Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SOLSTICIO DE INVERNO / Rosamunde Pilcher
SOLSTICIO DE INVERNO / Rosamunde Pilcher

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SOLSTICIO DE INVERNO

Primeira Parte

 

Elfrida Phipps, antes de abandonar Londres para sempre e ir viver para o campo, foi até ao canil de Batters sea e saiu de lá com uma companhia canina. Foi preciso uma boa meia hora e o coração dilacerado para o encontrar, mas mal o viu, sentado muito perto das grades da sua box, a olhar para cima com os seus enternecedores olhos escuros, percebeu que teria de ser aquele. Não queria um animal muito grande nem um cãozinho de regaço, irritadiço e nervoso.

Aquele tinha, exactamente, o tamanho ideal. Tamanho de cão.

Tinha o pêlo abundante e macio, parte do qual lhe caía sobre os olhos e as orelhas, que conseguia levantar e baixar, e uma cauda que era uma pluma triunfante.

A pelagem era às manchas irregulares de castanho e branco. As partes castanhas eram exactamente cor de café com leite. Quando quis inteirar-se dos seus progenitores, a responsável do canil disse-lhe que achava que descendia de um cruzamento de collie com várias outras raças. Elfrida não se importou com o facto. Adorava a expressão que via no focinho meigo.

Deixou um donativo para o canil de Battersea e depois meteu-se no seu velho carro com o novo companheiro, que foi sentado no lugar do passageiro a olhar pela janela com ar deliciado, como se nunca tivesse feito outra coisa na vida.

No dia seguinte, levou-o a um salão de beleza para canídeos da sua zona, onde o tosquiaram, banharam e secaram. Voltou para ela fofo, lavadinho e a cheirar agradavelmente a limão. A sua reacção a toda esta atenção privilegiada saldou-se numa profusa demonstração de fidelidade, gratidão e dedicação. Era um cão tímido, até mesmo acanhado, porém, corajoso. Se tocavam à campainha ou ele se dava conta de algum intruso, ladrava furiosamente por instantes, mas depois retirava-se para o seu cesto ou para o colo de Elfrida.

Elfrida precisou de algum tempo para se decidir pelo nome a dar-lhe; por fim baptizou-o de Horace.

Elfrida, de cesto numa das mãos e a trela de Horace firmemente presa na outra, saiu de casa, fechou a porta atrás de si e, depois de percorrer o carreiro e passar o portão, seguiu pelo passeio, em direcção aos Correios e ao Armazém Geral.

Estava-se numa melancólica e cinzenta tarde de meados de Outubro, onde nada de importante parecia acontecer. As árvores largavam as suas últimas folhas outonais; o vento era tão gélido que nem o jardineiro mais abnegado se atrevia a cirandar por ali; a rua estava deserta e as crianças ainda não tinham saído da escola. No alto, o céu mostrava-se carregado de nuvens baixas que passavam incessantemente sem, no entanto, o deixarem clarear. Caminhava com rapidez, com Horace a trotar relutantemente junto aos seus calcanhares, ciente de que era o seu exercício do dia e que não lhe restava alternativa senão aproveitá-lo o melhor possível.

Elfrida fora viver para aquela aldeia, chamada Dibton, que ficava em Hampshire, dezoito meses antes, deixando Londres para sempre e organizando ali a sua nova vida. No início sentira-se algo solitária, mas naquele momento não se imaginava capaz de viver noutro sítio qualquer. De vez em quando, velhas amizades dos seus tempos no teatro realizavam a intrépida viagem da cidade até ali para passarem uns dias com ela, dormindo no divã cheio de protuberâncias do minúsculo quarto dos fundos, onde tinha a sua máquina de costura e ganhava uns trocos a fazer lindas e requintadas almofadas para uma loja de decoração de interiores na Sloane Street.

Quando esses amigos voltavam a partir, sentiam necessidade de se certificar de que ela ficava bem: «Ficas bem, não ficas, Elfrida?», «Não te arrependeste? Não queres voltar para Londres? És feliz?», e ela conseguia tranquilizá-los respondendo-lhes: «Claro que estou. Este é o meu retiro geriátrico. Passarei aqui o crepúsculo dos meus anos.»

De modo que, naquele momento, já se sentia completamente à vontade no seu novo ambiente. Sabia quem morava nesta casa ou naquela vivenda, as pessoas tratavam-na pelo seu nome. «Bons dias, Elfrida», ou «Lindo dia, Mistress Phipps.» Alguns dos habitantes eram famílias em que o dono da casa trabalhava em Londres e partia para a cidade no primeiro comboio rápido da manhã, regressando depois ao fim da tarde para pegar no seu carro e percorrer a curta distância até casa. Outros tinham vivido ali toda a vida, em pequenas casas de pedra herdadas de pais e avós. Outros, ainda, eram completamente novos na terra, moravam nas aldeias do concelho, à volta da vila, e trabalhavam na fábrica de electrónica que ficava na cidade vizinha. Era tudo muito trivial e até descontraído, precisamente aquilo de que Elfrida necessitava.

No caminho, passou em frente do pub, que fora remodelado e era agora conhecido por Cocheira de Dibton. Tinha letreiros em ferro forjado e um amplo espaço para estacionamento de automóveis. Mais adiante, passou pela igreja com os seus teixos, o portão coberto à entrada e o quadro cheio de papéis esvoaçantes com notícias da paróquia: um concerto de guitarra, um passeio para um grupo de mães e crianças pequenas. No pátio da igreja, um homem acendia uma fogueira, e no ar pairava o cheiro adocicado das folhas a queimar. No alto, gralhas crocitavam. Num dos pilares do portão da igreja estava um gato sentado, mas, felizmente, Horace não deu por ele.

A rua curvava na ponta, passando em frente da discreta vivenda do novo pastor, e a seguir aparecia a loja da vila, com bandeiras esvoaçantes a anunciar gelados e mostruários de jornais encostados à parede. À entrada estavam dois ou três jovens de bicicleta, e o carteiro, com a sua carrinha vermelha, esvaziava o marco do correio.

A montra do estabelecimento tinha grades que impediam os vândalos de partir os vidros e de roubar as latas de biscoitos e os arranjos de feijões cozidos que Mrs. Jennings considerava uma decoração requintada. Elfrida pousou o seu cesto, amarrou a ponta da trela a uma das barras de ferro e Horace sentou-se, resignado. Detestava que o deixassem na rua, à mercê da rapaziada escarninha, mas Mrs. Jennings não gostava de cães no seu estabelecimento. Dizia que alçavam a perna e faziam porcaria.

O interior da loja, de tectos baixos, tinha muita luz e estava muito quente. Frigoríficos e arcas congeladoras zuniam, a iluminação era fornecida por fiadas de lâmpadas fosforescentes e o conjunto de expositores fora montado meses antes, um grande melhoramento que, segundo Mrs. Jennings, conferia à casa o estatuto de minimercado. Todas estas barreiras já não permitiam descortinar, à primeira vista, quem se encontrava na loja ou não, e só depois de Elfrida passar um expositor (Cafés e Chás Instantâneos) é que viu as costas conhecidas de alguém a pagar a sua conta junto da caixa registadora.

Tratava-se de Oscar Blundell. Elfrida já não tinha idade para ficar com o coração aos pulos de emoção, mas gostava sempre muito de ver Oscar. Ele fora praticamente a primeira pessoa que conhecera quando fora viver para Dibton, pois, certo domingo de manhã, ao ir à igreja, o pastor viera falar com ela à entrada, depois da missa, com o cabelo todo no ar devido à fresca brisa primaveril e a batina branca a adejar que nem roupa estendida numa corda. Dirigira-lhe palavras gentis de acolhimento, fizera algumas referências superficiais sobre o fabrico de flores e o Instituto Feminino e depois, misericordiosamente, a sua atenção fora desviada.

E aqui está o nosso organista, Oscar Blundell. Não é o organista habitual, sabe, mas uma esplêndida roda sobresselente em tempos de necessidade.

Foi então que Elfrida se voltou e viu aproximar-se um homem que emergiu da obscuridade reinante no interior da igreja para o meio da luz do Sol. Reparou no rosto brando e divertido, nos olhos encapuçados, no cabelo que em tempos devia ter sido louro, mas se tornara completamente branco. Era tão alto como Elfrida, o que fugia ao habitual.

Esta era, normalmente, mais alta do que a maioria dos homens, com um metro e oitenta, e esguia como um caniço, no entanto olhou Oscar nos olhos e gostou do que viu. Como era domingo, vestia um fato de tweed com uma gravata a condizer, e ao trocarem um aperto de mão, o seu toque foi firmemente agradável. Elfrida observou:

Acho formidável. Refiro-me ao facto de saber tocar órgão. É o seu passatempo?

Ele replicou, com ar muito sério:

Não, trata-se do meu trabalho. Da minha vida. A seguir sorriu, o que retirou toda a pomposidade às suas palavras. Melhor dizendo, da minha profissão emendou.

Um dia ou dois mais tarde, Elfrida recebeu um telefonema.

Viva, daqui fala Gloria Blundell. Conheceu o meu marido neste último domingo, na igreja. O organista. Venha jantar connosco na terça-feira. Sabe onde moramos. Na Granja. A casa com torreões em tijoleira, ao fundo da vila.

É muita gentileza sua. Adoraria.

Que tal vão as mudanças?

Lentas.

Esplêndido. Então, até terça. Por volta das sete e meia.

Muito obrigada.

Mas o auscultador na outra ponta da linha já fora pousado. Ao que parecia, Mrs. Blundell era uma mulher que não tinha tempo a perder.

A Granja era a maior casa de Dibton, cuja entrada era feita através de uns portões enormes e pretensiosos que se erguiam ao cimo de um caminho. Nada daquilo parecia condizer muito com Oscar Blundell, mas seria interessante ir, conhecer a sua mulher e a sua casa. Nunca se consegue saber exactamente como uma pessoa é sem a vermos no ambiente da sua própria casa, junto da sua mobília, dos seus livros e no seu estilo de vida.

Terça-feira de manhã lavou o cabelo e aplicou-lhe a coloração mensal. A tonalidade tinha a designação oficial de louro-morango, embora às vezes ficasse mais para o laranja do que para o morango. Daquela vez calhara assim, porém Elfrida tinha coisas mais importantes com que se preocupar. As roupas levantavam algumas dificuldades. Acabou por optar por uma saia às flores que lhe ia até aos tornozelos e um casaco de malha de lã verde-lima, tricotado à mão. O efeito combinado do cabelo com as flores da saia e o casaco era razoavelmente vistoso, mas uma das melhores maneiras de Elfrida aumentar bastante a sua autoconfiança era parecer bizarra.

Pôs-se a caminho, levando dez minutos a atravessar a vila, a entrar pelos portões pretensiosos e a subir o caminho que conduzia à casa. Daquela vez estava mesmo em cima da hora. Como nunca ali estivera, em vez de abrir a porta da frente, entrar pela casa dentro e chamar "Hu-hu», como fazia normalmente, procurou a campainha e premiu-a. Ouviu-a soar ao fundo da casa. Aguardou, olhando para os relvados em volta, tão impecavelmente cuidados que parecia que tinham acabado de ser aparados. No ar pairava o odor a relva recém-cortada e a fragrância húmida do refrescante crepúsculo primaveril.

Passos. A porta abriu-se. Apareceu uma senhora trajada de azul e avental branco, não se tratando, claramente, da dona da casa.

Boas noites. É Mistress Phipps, não é verdade? Faça favor de entrar, Mistress Blundell não demorará, foi só lá acima compor o cabelo.

Sou a primeira?

Sim, mas fez muito bem em vir cedo. Os outros não tardarão a chegar. Quer que guarde o seu casaco?

Não, por enquanto fico com ele, obrigada.

Não vale a pena explicar que a blusa de seda azul, que levava debaixo do casaco de malha, tinha um buraquinho na parte inferior de uma das mangas.

A sala de estar... Entretanto, foram interrompidas.

A senhora é que é Elfrida Phipps... Desculpe não ter ido recebê-la...

Elfrida olhou para cima e viu a sua anfitriã descer umas escadas amplas que partiam de um patamar com balaustrada. Era uma mulher alta e bem constituída; vestia calças de seda pretas e um casaco chinês bordado. Empunhava um copo de vidro semicheio do que parecia ser uísque e água gasosa.

Atrasei-me um pouco e depois recebi um telefonema. Como está? estendeu-lhe a mão. Gloria Blundell. Muito gosto.

Possuía um rosto aberto e corado, uns olhos muito azuis e um cabelo que, tal como o de Elfrida, parecia ter levado uma coloração, embora apenas numa tonalidade de louro mais discreta.

Foi muita gentileza sua convidar-me.

Venha para junto da lareira. Obrigada, Mistress Muswell, conto que os outros não batam à porta e entrem. Por aqui...

Elfrida seguiu-a até uma ampla sala de estar, quase toda apainelada ao estilo dos anos trinta e com uma enorme lareira em tijoleira onde ardiam toros de madeira. Em frente desta havia um guarda-fogo forrado a cabedal, material com que se encontravam estofadas todas as cadeiras e sofás da sala. Os cortinados eram em veludo cor de ameixa, debruados a dourado, e o chão apresentava-se alcatifado e com espessos tapetes persas, ricamente coloridos, espalhados em vários pontos. Nada parecia velho, gasto ou debotado, tudo deixava transparecer um agradável ar de conforto masculino.

Mora cá há muito tempo? perguntou Elfrida, tentando não parecer demasiado inquiridora.

Cinco anos. A casa foi-me deixada por um velho tio. Sempre a adorei, costumava vir cá em criança. Pousou o copo em cima de uma mesinha próxima e foi colocar mais um toro enorme na fogueira. Nem imagina o estado em que a encontrei, tudo no fio e comido pelas traças, o que me obrigou a remodelar praticamente de alto a baixo. Também fiz uma cozinha nova e mais um par de casas de banho.

Onde é que morava anteriormente?

Oh, em Londres. Tínhamos uma casa em Elm Park Gardens. Pegou de novo no seu copo, tomou um bom gole e voltou a pousá-lo. Sorriu. É a minha bebida de aperitivo. Preciso sempre de um pequeno empurrão antes das refeições. Deseja beber alguma coisa? Um xerez? Gim com água tónica? Sim, era um óptimo sítio para viver, e a casa era maravilhosamente espaçosa. Além disso, a igreja onde Oscar era organista, a de Saint Biddulph, ficava apenas a dez minutos de distância. Acho que teríamos ficado lá para sempre, mas o meu velho tio solteirão foi levado, como eles dizem, e a Granja ficou para mim. Temos uma filha, chama-se Francesca, que tem agora onze anos. Sempre achei melhor criar uma criança no campo. Não sei o que Oscar anda a fazer, ficou de servir as bebidas. Provavelmente esqueceu-se do jantar e pôs-se a ler. Queremos apresentar-lhe outros convidados, os McGearey. Ele trabalha na City. E também Joan e Tommy Mills. Tommy é consultor no nosso hospital, em Pedbury. Desculpe, disse xerez ou gim tónico?

Elfrida pediu gin tónico e observou Gloria Blundell a preparar-lhe um numa mesa bem fornecida ao fundo da sala. Aproveitou para voltar a encher o seu copo com uma boa porção de uísque.

Ao voltar para junto de Elfrida, disse:

Faça favor. Espero que esteja suficientemente forte. Deseja gelo? Agora sente-se, esteja à vontade e fale-me da sua casinha.

Bem... é pequena. Gloria riu-se.

Fica na Poulton's Row, não é? Essas casas foram construídas para o pessoal dos caminhos-de-ferro. São tremendamente acanhadas, não são?

Nem por isso. Não tenho muita mobília e Horace e eu ocupamos pouco espaço. Horace é o meu cão. Um rafeiro sem grande graça.

Eu tenho dois pequineses, que são bonitos, mas mordem nos hóspedes, por isso estão fechados na cozinha com Mistress Muswell. Que foi que a fez vir para Dibton?

Vi o anúncio da casa no The Sunday Times. Tinha fotografia e parecia um amor. E não era demasiado cara.

Hei-de ir conhecê-la. Já não entro numa delas desde miúda, quando costumava visitar a viúva de um antigo cabineiro de comboio. E em que se ocupa?

Como?

Jardinagem? Golfe? Caridade?

Elfrida retraiu-se ligeiramente. Sabia reconhecer uma mulher impetuosa quando alguma se lhe deparava.

- Estou a tentar dar um jeito ao jardim, mas até agora tem sido praticamente só tirar-lhe o lixo.

Monta?

Nunca na vida montei a cavalo.

Bem, eu fi-lo quando os meus rapazes eram pequenos, mas isso já foi há muito tempo. Francesca tem um pónei, mas acho que não tem muito jeito.

Também tem rapazes?

Oh, sim. Ambos crescidos e já casados.

Mas...?

Sabe, já fui casada antes. Oscar é o meu segundo marido.

Desculpe, não fazia ideia.

Não tem nada que pedir desculpa. O meu filho Giles trabalha em Bristol e Crawford tem um emprego na City. Em computadores ou coisa do género, não percebo nada do assunto. Claro, conhecíamos Oscar há anos. Frequentávamos Saint Biddulph, na Raleigh Square; era a nossa igreja. Tocou divinalmente no funeral do meu marido. Quando nos casámos, deixámos todos estupefactos. «Um solteirão tão empedernido», diziam. «Faz ideia no que se vai meter?»

Elfrida estava a achar tudo maravilhosamente interessante.

Oscar foi sempre músico? perguntou.

Sempre. Estudou no coro da Abadia de Westminster, depois foi dar aulas de música no Glastonbury College. Foi maestro de coro e organista lá durante muitos anos. Depois reformou-se do ensino, mudou-se para Londres e arranjou trabalho em Saint Biddulph. Teria ficado por lá até ao fim dos seus dias, mas, entretanto, o meu tio morreu e quis o destino que as coisas mudassem.

Elfrida sentiu uma certa pena de Oscar.

Ele não se importou de dizer adeus a Londres?

Foi um pouco como arrancar uma velha árvore pelas suas raízes. Mas alinhou corajosamente, para bem de Francesca. No entanto, dispõe de uma sala de música pessoal, onde tem os seus livros e partituras, e dá umas aulas para não perder a prática. A música é a sua vida. Sempre que há uma emergência e lhe pedem que toque na missa da manhã na igreja de Dibton, adora. E como não podia deixar de ser, está sempre a escapulir-se até lá para praticar tranquilamente.

Atrás de Gloria, a porta que deitava para o corredor abrira-se silenciosamente. Como esta estava a falar, só deu por isso ao reparar que a atenção de Elfrida se desviara, de modo que se virou para trás, na sua poltrona.

Ora até que enfim, meu caro, estávamos precisamente a falar de ti.

Os outros convidados começaram a chegar na mesma altura e ao mesmo tempo, entrando e enchendo a casa com o som das suas vozes. Os Blundell foram recebê-los e, por um momento, Elfrida ficou sozinha. Apeteceu-lhe voltar para casa naquele momento e passar um serão solitário a reflectir sobre tudo o que ficara a saber, mas, claro, que tal não teria sido possível. Ainda não tivera tempo para pôr a triste ideia de parte já os convidados entravam todos na sala de estar e o jantar seguia o seu curso.

Foi uma noite formal, pródiga e tradicional, com uma comida excelente e um vinho esplêndido. Deleitaram-se com salmão fumado e uma coroa de borrego lindamente apresentada, a sobremesa era composta por três pudins acompanhados de chantilly firme servido em taças e, para finalizar, um magnífico stilton cremoso e raiado de azul. Quando passaram o vinho do Porto de mão em mão, Elfrida reparou, algo divertida, que as senhoras não saíam da sala e ficavam, sim, junto dos homens, e embora ela já estivesse a água, da qual se servira de um jarro em vidro trabalhado, reparou que as outras mulheres se deliciavam com o seu vinho do Porto, sobretudo Gloria.

Não se admiraria de que Gloria, sentada numa das cabeceiras da mesa e excedendo-se ligeiramente na ingestão de álcool, quando chegasse a altura de se levantar da mesa, caísse redonda no meio do chão. No entanto, a sua anfitriã era de têmpera, pelo que, quando Mrs. Muswell enfiou a cabeça pela abertura da porta a anunciar que o café se encontrava servido na sala de estar, ela conduziu o grupo para fora da sala de jantar e pelo corredor em passada segura.

Reuniram-se em frente da lareira, mas Elfrida, ao tirar a sua chávena de café do tabuleiro, reparou, através da janela sem cortinas, no céu de um azul-safíra intenso. Embora o dia de Primavera tivesse estado incerto, alternando aguaceiros com lampejos de sol, as nuvens haviam dispersado durante o jantar e no céu, por cima de uma faia em flor distante, brilhava uma estrela. A janela tinha um banco embutido por baixo, de modo que Elfrida foi sentar-se nele, com o pires e a chávena nas mãos, a olhar para as estrelas.

A certa altura, Oscar aproximou-se dela.

Está confortável? perguntou-lhe.

Elfrida virou-se e olhou para ele. Andara o jantar todo tão ocupado a servir o vinho, a levantar os pratos e a distribuir os deliciosos pudins, que mal haviam falado.

Sem dúvida. A noite está a ser muito agradável. E os seus narcisos não tardam a florir.

Aprecia jardinagem?

Tenho pouca experiência, mas este jardim parece especialmente convidativo.

Quer ir dar uma volta por ele, para o conhecer? Ainda não escureceu completamente.

Elfrida olhou de relance para os outros que, instalados nas poltronas fundas em torno da lareira, se entretinham a conversar.

Sim, gostaria muito, mas não será indelicado?

De modo algum. Tirou-lhe a chávena da mão e foi colocá-la no tabuleiro.

Elfrida e eu vamos dar uma volta pelo jardim.

A esta hora? admirou-se Gloria. Está escuro e faz frio.

Ainda não escureceu completamente. Daqui a dez minutos já cá estamos.

Certo, mas vê se a pobre rapariga leva um casaco ... está muito frio e húmido. Não deixe que ele a entretenha muito tempo, minha querida...

Não deixarei.

Os outros voltaram ao tema em debate, que era o preço proibitivo da educação privada. Elfrida e Oscar saíram porta fora. Este, depois de a fechar silenciosamente atrás de si, pegou num casacão de cabedal forrado a lã de borrego que estava sobre uma cadeira.

É de Gloria... pode levá-lo.

Colocou-o suavemente nos ombros de Elfrida. A seguir, abriu a porta de entrada e ambos saíram para a friagem límpida daquela noite primaveril. Arbustos e sebes vislumbravam-se no meio do lusco-fusco e, sob os pés, sentia-se a relva molhada de orvalho.

Começaram a andar. Ao fundo do relvado erguia-se um muro em tijolo onde se abria uma arcada com um imponente portão em ferro forjado. Oscar abriu-o e viram-se no meio de um espaçoso jardim murado, impecavelmente dividido em formas geométricas por sebes de buxo. Um quarto do espaço era preenchido por roseirais; os arbustos estavam podados e a terra fartamente adubada. Saltava à vista que, quando o Verão chegasse, a visão daquele espaço seria encantadora.

Elfrida sentiu-se desajeitada diante de tanto profissionalismo.

É tudo trabalho seu?

Não. Eu planeio, mas tenho um jardineiro a trabalhar para mim.

Não percebo muito de nomes de flores. Nunca tive um jardim a sério.

A minha mãe também não tinha grande jeito para nomes. Se alguém lhe perguntava o nome de uma flor, e ela não fazia ideia de qual era, respondia simplesmente, com grande autoridade, Inapoticum forgetanamia. Resultava quase sempre.

Hei-de-me lembrar dessa.

Lado a lado, percorreram o amplo piso coberto de cascalho. A certa altura, Oscar disse:

Espero que não se tenha sentido demasiado isolada ao jantar. Receio bem que não passemos de uma espécie de grupo paroquial.

- De maneira nenhuma. Apreciei cada instante. Sou muito boa ouvinte.

A vida provinciana é assim. Fervilha de intriga.

Sente saudades de Londres?

De vez em quando. Dos concertos, das óperas. Da minha igreja, Saint Biddulph.

É uma pessoa religiosa? perguntou Elfrida impulsivamente, arrependendo-se quase logo a seguir. Demasiado cedo para uma pergunta tão pessoal.

Oscar, porém, manteve-se impassível.

Não sei, mas passei a vida toda mergulhado na música sacra, liturgias e magnificats da Igreja Anglicana. Além disso, sentir-me-ia pouco à vontade a viver num mundo onde não houvesse ninguém a quem agradecer.

Refere-se às bênçãos, não?

Precisamente.

Compreendo, mas mesmo assim não sou minimamente religiosa. Naquele domingo só fui à igreja por me sentir um pouco isolada e precisar da companhia de outras pessoas. Não contava com tão linda música. E nunca ouvira aquele trecho do Te Deum.

O órgão é novo, foi adquirido graças a inúmeras pequenas vendas particulares.

Caminharam em silêncio durante algum tempo. A certa altura, Elfrida perguntou:

Considera isso uma bênção? Refiro-me ao órgão novo. Oscar riu-se.

A Elfrida faz lembrar um cãozinho em volta de um osso. Sim, claro que considero.

Que mais?

Oscar não respondeu imediatamente. Elfrida pensou na mulher dele; na casa muito confortável e luxuosa; na sala de música exclusiva; nos seus amigos; na segurança financeira evidente. Achou que seria interessante saber como é que Oscar acabara por casar com Gloria. Teria ele, depois de anos de vida de solteiro, de alunos, salários magros e salas de aulas poeirentas, visto assomar à sua frente o futuro vazio de uma velhice de homem só, enveredando então pelo caminho mais seguro, ou seja, a viúva rica e impetuosa, a anfitriã requintada, a boa amiga, a mãe competente? Ou, quem sabe, fora ela a dar o primeiro passo e a tomar a decisão? Talvez se tivessem, simplesmente, apaixonado um pelo outro. Fosse como fosse, parecia resultar.

Fez-se silêncio entre ambos. Elfrida observou:

Se preferir, não responda.

Estava apenas a ver de que maneira poderia explicar. Casei tarde na vida e Gloria já tinha dois rapazes do anterior casamento. Por alguma razão, nunca me ocorrera ter um filho meu. Quando Francesca nasceu, fiquei espantado não só por ela estar ali, aquele ser humano minúsculo, mas também por ser tão linda. E dizer-me algo. Como se a conhecesse desde sempre. Um milagre. Agora, tem onze anos e eu continuo atónito com a minha boa sorte.

Está aqui em casa?

Não, estuda num colégio interno. Amanhã à noite vou buscá-la para vir cá passar o fim de semana.

Gostaria de a conhecer.

Claro que sim. A perspectiva de a Elfrida vir a ficar encantada com ela agrada-me. Quando Gloria herdou este casarão, senti-me renitente em sair de Londres. Mas por Francesca deixei-me levar pela corrente e acabei por concordar. Aqui, dispõe de espaço e de liberdade. Árvores, o cheiro da erva. Espaço para crescer. Espaço para os coelhinhos, os porquinhos-da-índia e o pónei.

Para mim disse Elfrida , o que mais me encanta é o canto das aves pela manhã e a imensidão do céu.

Creio que a Elfrida também fugiu de Londres, não foi?

Sim. Era tempo.

Custou?

De certo modo. Passei lá toda a minha vida. Desde a saída da escola e de casa. Estava na RADA. Fiz teatro, sabe. Para grande desgosto dos meus pais. Mas não me importava que discordassem; na verdade, isso nunca me ralou.

Actriz. Devia ter imaginado.

E cantora, também. E dançarina. Revistas e grandes musicais americanos. Ficava sempre atrás no coro, por ser tremendamente alta. E depois, anos de representações quinzenais e alguns papéis na televisão. Nada de muito notório.

Ainda trabalha?

Nem pensar, já me deixei disso há anos. Casei com um actor, o pior erro que podia ter cometido por todas as razões do mundo. Depois, ele foi para a América e nunca mais deu notícias, de modo que eu conformei-me e fui trabalhando no que aparecia. A certa altura, voltei a casar, mas também não resultou. Acho que nunca soube escolher muito bem.

O seu segundo marido também era actor? perguntou Oscar com voz divertida, precisamente como Elfrida desejava que fosse. Raramente falava dos ex-maridos, e a única maneira de tornar as desgraças suportáveis era rir delas.

Oh, não, esse era um homem de negócios. Vendia forros de chão em vinil terrivelmente caro. Qualquer um pensaria que eu estava maravilhosamente segura e bem na vida, mas ele tinha aquela desagradável convicção vitoriana segundo a qual, se um homem proporciona alimento e casa a uma esposa, e ainda lhe dá uma espécie de subsídio para cuidar do lar, já cumpriu a sua parte do contrato conjugal.

Bem disse Oscar , e porque não? É uma tradição assente, com séculos de existência Só que, antigamente chamava-se escravatura.

Ainda bem que compreende. Quando fiz sessenta anos foi o melhor dia da minha vida, porque passei a receber uma reforma e soube que podia entrar no posto de correio mais próximo e receber dinheiro sem ser em troca de trabalho. Nunca na vida me tinham dado algo de graça. Era como um mundo completamente novo.

Teve filhos?

Não, filhos, nunca.

Ainda não falou do motivo que a fez mudar-se precisamente para esta aldeia.

Precisava de novos ares.

Um grande passo.

Já escurecera por completo. Elfrida voltou-se e, ao olhar de novo para a casa, viu, através do arrendado do ferro forjado do portão, o brilho das janelas da sala de estar. Alguém correra as cortinas.

Ainda não falei sobre isso. Nunca o contei a ninguém observou.

Não é obrigada a contar-me.

Talvez já tenha falado de mais. Se calhar bebi demasiado vinho ao jantar.

Não creio.

Havia um homem, muito especial, adorável, meigo, divertido e perfeito. Outro actor, embora dessa vez se tratasse de alguém com sucesso e fama, mas prefiro não dizer como se chamava. Vivemos juntos durante três anos na sua casinha em Barnes, até de repente lhe aparecer a doença de Parkinson e, dois anos depois, morrer. A casa pertencia-lhe. Tinha de me ir embora. Uma semana depois do funeral, vi o anúncio da casa na Poulton's Row. No The Sunday Times. Na semana a seguir, comprei-a. Tenho pouco dinheiro, mas não foi demasiado cara. Trouxe o meu querido cão Horace comigo para me fazer companhia, tenho a minha pensão e ganho uns dinheiros extra a fazer almofadas para uma casa de decoração de interiores muito requintada, em Londres. Sempre gostei de costurar e é agradável trabalhar com materiais bonitos e caros; cada projecto é diferente. Parecia tudo muito trivial. Não sei porque me deu para lhe contar tudo isto. Não tem grande interesse.

Acho fascinante.

Não vejo razão para tal. Mas é muita delicadeza sua. Estava demasiado escuro para lhe poder ver o rosto ou ler-lhe a expressão dos olhos. Talvez seja melhor voltarmos para junto dos outros.

Com certeza.

Adoro o seu jardim. Obrigada. Um dia hei-de vê-lo à luz do dia. Era terça-feira. Na manhã do domingo seguinte, a chuva caiu - não naqueles chuviscos de Primavera, mas sim em aguaceiro contínuo, tamborilando contra os vidros das janelas da casa de Elfrida e escurecendo as divisões minúsculas ao ao ponto de a obrigar a ligar as luzes todas. Depois de pôr Horace a fazer o seu chichi matinal no jardim, preparou um chá e levou-o para a cama consigo, decidida a passar uma manhã quente, confortável e ociosa a ler os jornais da véspera e a esforçar-se por terminar as palavras-cruzadas.

No entanto, pouco depois das onze, foi interrompida pelo toque da campainha da frente, um dispositivo de som estridente que uma corrente pendurada accionava. O barulho que fazia parecia um alarme de emergência, a anunciar um incêndio, e pregou um susto enorme a Elfrida. Horace, deitado aos pés da cama, sentou-se e deixou escapar dois latidos. Era o máximo que estava preparado para fazer em defesa da sua dona; a sua natureza cobarde não lhe permitia rosnar ou morder em intrusos.

Atónita, mas não alarmada, Elfrida levantou-se da cama, vestiu o robe, apertou o cinto e desceu as escadas íngremes e estreitas. Estas iam dar à sala de estar e à porta da entrada, que deitava directamente para o minijardim da frente. Deparou com uma menina, de jeans, sapatos de ténis e com o anoraque gotejante. Como este não tinha capuz, a cabeça da criança estava molhada como a de um cão que tivesse acabado de desfrutar de um belo mergulho. O cabelo, arruivado, estava preso em tranças, e o rosto sardento apresentava-se avermelhado devido ao frio que reinava no exterior.

Mistress Phipps?

Usava um aparelho nos dentes.

Sim?

Sou Francesca Blundell. A minha mãe disse que está um dia horrível, por isso não gostaria de lá ir almoçar? Temos uma quantidade enorme de bifes e montes de...

Mas eu só lá fui jantar!

Ela disse que a senhora diria isso.

É tremendamente gentil. Como podes ver, ainda não me vesti. Nem sequer ainda tinha pensado no almoço.

Ela tencionava telefonar, mas depois eu disse que vinha de bicicleta.

Vieste de bicicleta?

Deixei-a no passeio. Não faz mal.

Escapou, por um triz, ao duche de água que tombou de uma goteira excessivamente cheia.

Acho melhor entrares sugeriu Elfrida , senão ainda te afogas.

Oh, obrigada agradeceu Francesca, aceitando prontamente o convite e entrando.

Horace, tendo ouvido vozes e concluído que não havia perigo, descia dignamente as escadas. Elfrida fechou a porta.

Este é Horace. O meu cão.

É um amor. Olá. Os pequineses da minha mãe ladram durante horas sempre que há visitas. Posso despir o anoraque?

Com certeza, acho uma óptima ideia.

Francesca assim fez, abrindo o fecho e pendurando o agasalho na saliência ao fundo do corrimão, onde ficou a pingar para o chão. Depois olhou em redor e disse:

Sempre achei estas casinhas um amor, mas nunca entrara em nenhuma. Tinha os olhos grandes e acinzentados, sombreados por pestanas densas e louras. Quando a minha mãe me contou que estava a viver aqui, não descansei enquanto não vim ver como era. Por isso trouxe a bicicleta. Não se importa, pois não?

Nem um pouco. Só receio é que esteja tudo um bocado desarrumado.

Eu acho que está impecável.

Claro que não estava. Estava, isso sim, atravancado e surrado, cheio de uma série de objectos pessoais que Elfrida trouxera consigo de Londres: o sofá torto, a pequena cadeira de braços vitoriana, o guarda-fogo de metal, a maltratada secretária, candeeiros de mesa, quadros sem valor e demasiados livros.

Tencionava acender a lareira, pois está um dia muito cinzento, mas ainda não me dispus a isso. Queres uma chávena de chá, café ou qualquer outra bebida?

Não, obrigada, acabei de beber uma Cola. Para onde dá aquela porta?

Para a cozinha. Eu mostro-te.

Elfrida foi à frente, abriu a porta de madeira, que estava no trinco, e escancarou-a. A sua cozinha não era maior do que uma cabina de navio. Aí, um pequeno Rayburn ardia continuamente, mantendo toda a casa aquecida, um armário de madeira estava empilhado de loiça, por baixo da janela havia um lava-louça de pedra e o espaço restante era preenchido por uma mesa e duas cadeiras de madeira. A seguir à janela havia uma porta pequena que dava para o quintal. A metade superior da mesma era formada por pequenos painéis de vidro que deixavam ver o pátio lajeado e o canteiro estreito que, até ali, era tudo o que Elfrida conseguira fazer em termos de canteiros de flores. Fetos abriam caminho por entre as lajes e uma madressilva trepara pela parede vizinha.

Não se torna muito convidativo num dia como o de hoje, mas sempre dá para uma pessoa se sentar numa cadeira de descanso ao entardecer.

Oh, mas eu adoro exclamou Francesca, olhando à sua volta com ar de quem percebe de questões domésticas. Não tem frigorífico. Nem máquina de lavar roupa. Nem arca congeladora.

Não, não tenho arca congeladora, mas quanto ao frigorífico e à máquina de lavar roupa, tive de os deixar no barracão que fica ao fundo do quintal. E lavo a loiça toda no lava-louças, porque não há espaço para uma máquina.

Acho que. se a minha mãe não tivesse máquina de lavar louça, morria.

Quando se vive sozinho, não custa muito.

Adoro o seu serviço de louça. Azul e branco. É o meu preferido.

Eu também gosto muito. As peças não condizem umas com as outras, mas compro-as à medida que as vou encontrando nas lojas de velharias. Agora são tantas que mal tenho onde guardá-las.

O que há lá em cima?

O mesmo. Duas divisões e uma casa de banho minúscula. A banheira é de tal maneira pequena que sou obrigada a ficar com as pernas penduradas para fora. Numa das divisões fiz o meu quarto e na outra, a minha sala de costura. Se recebo algum hóspede, tem de ficar a dormir ao pé da máquina da costura, dos bocados de tecido que por lá andam e dos livros de encomendas.

O meu pai disse-me que faz almofadões. Acho que é tudo o que faz exactamente falta a uma pessoa. E um cão, claro. Como uma casa de bonecas.

Tu tens alguma casa de bonecas?

Sim, mas já não brincco com ela. Tenho animais. Um porquinho-da-índia chamado Happy, embora não esteja muito bem. Deve ter de ir ao veterinário. Está com peladas horríveis pelo corpo todo. E coelhos. E um pónei. Franziu o nariz. Chama-se Príncipe, mas baba-se um bocado. Agora é melhor ir. A minha mãe disse que tenho de o levar a passear antes de almoço e isso leva montes de tempo, principalmente quando chove. Obrigada por me deixar ver a sua casa.

Foi um prazer. Obrigada por me teres vindo trazer tão amável convite.

Podemos contar consigo, não é verdade?

Claro.

Vai a pé?

Não, levarei o meu carro por causa da chuva. E se quiseres saber onde ele fica, já te vou adiantando: na rua.

É aquele velho Ford Fiesta azul?

Exactamente. E velho é a palavra adequada. Mas não me importo, desde que as rodas andem e o motor pegue.

Francesca sorriu ao ouvir a piada, mostrando, sem o menor embaraço, os dentes com o aparelho.

Então, até logo disse.

Pegou no seu anoraque, que ainda pingava, vestiu-o e tirou as tranças para fora. Elfrida abriu-lhe a porta.

A minha mãe pediu para lá estar à uma menos um quarto.

Lá estarei, e muito obrigada.

Hei-de voltar prometeu Francesca.

Elfrida ficou a vê-la atravessar o carreiro chapinhando nas poças, e atravessar o portão. Pouco depois, partia na sua bicicleta e dizia-lhe adeus com a mão, pedalando furiosamente pelo meio das poças de água, estrada fora, até desaparecer de vista.

Os melhores amigos de Elfrida eram Oscar, Gloria e Francesca. Através deles, conheceu outras pessoas. Não apenas os McGearey e os Mill, mas também os Foubister, que eram uma família antiga na terra, organizadores da festa anual de Verão da igreja no parque da sua incoerente casa georgiana. E também havia o comandante Burton-Jones, reformado, viúvo, imensamente diligente, que trabalhava no seu jardim imaculado, era presidente da Public Footpath Association e figura principal no coro da igreja. O comandante Burton-Jones (a quem tratavam por Bobby) dava pequenas festas requintadas e chamava cabina ao seu quarto. Depois havia os Dunn, ele um homem imensamente rico que comprara e reconvertera a velha reitoria numa maravilha de espaço e convivência, completada por uma sala de jogos e uma piscina coberta de água quente.

Outros, mais humildes, foram entrando na sua vida um a um, à medida que Elfrida prosseguia as suas actividades diárias: Mrs. Jennings, que dirigia o minimercado e o Correio da vila; Mr. Hodgkins, que dava a volta pela vila uma vez por semana com a sua carrinha de venda de carnes, era uma fonte de confiança de novidades e mexericos, além de ter pontos de vista políticos muito firmes; Albert Meddows, que respondera ao anúncio por ela colocado no vidro da montra do minimercado de Mrs. Jennings, a pedir um jardineiro e tratou, sozinho, da desgraça em que se encontrava o jardim das traseiras de Elfrida. O pastor e a esposa convidaram-na para um jantar, no decurso do qual lhe sugeriram, mais uma vez, que se juntasse ao Instituto Feminino. Elfrida declinara amavelmente o convite não apreciava viagens de camioneta e nunca na vida fizera um frasco de compota , mas concordara em colaborar com a escola primária e acabou a produzir a pantomima que apresentavam todos os anos pelo Natal.

Eram todos muito amáveis e acolhedores, porém Elfrida não os achava tão interessantes nem estimulantes como os Blundell. A hospitalidade de Gloria não tinha limites, e era raro decorrer uma semana sem que Elfrida fosse convidada para passar algum tempo na Granja, uma refeição requintada ou uma actividade fora de portas, como uma partida de ténis (Elfrida não jogava ténis mas adorava assistir), ou um piquenique. Também havia outras ocasiões em que se saía da terra: a corrida da Primavera numa aldeia vizinha, uma visita ao jardim do National Trust, uma ida ao teatro a Chichester. Passara o Natal com eles, assim como a passagem do ano, e quando Elfrida deu a sua primeira festa para todos os novos amigos (depois de Albert Meddows ter ressuscitado o jardim, nivelado as lajes, podado a madressilva e pintado o barracão), foi Oscar quem providenciou todos os «bebes» e Gloria todos os «comes», que vieram da sua espaçosa cozinha.

Apesar de tudo, existiam limites e reservas. Nem poderia ser de outro modo; se Elfrida não quisesse ser absorvida e ficar subjugada pelos Blundell. Gloria afigurara-se-lhe imediatamente uma mulher dominadora com um traço, talvez, de crueldade no seu carácter, tão determinada estava em conseguir que as coisas corressem sempre ao seu jeito e Elfrida tinha plena consciência dos perigos decorrentes de tal situação. Saíra de Londres para construir uma vida para si só e sabia que seria facílimo uma mulher solteira, e de poucos proventos, deixar-se ir (e possivelmente afogar-se) no rasto agitado da energia social de Gloria.

Assim, Elfrida aprendera a, de vez em quando, recuar ligeiramente, preservar a sua independência, apresentar desculpas. Normalmente era algum excesso de trabalho, um compromisso já feito e ao qual não podia, de modo algum, fugir, com algum conhecimento que não fosse das relações de Gloria. De vez em quando, escapava aos limites de Dibton, metia Horace no banco de trás do seu carro e afastava-se o mais que podia campo fora, até alguma outra aldeia onde não a conhecessem e onde ela e Horace pudessem subir uma colina, na qual pastassem ovelhas, ou seguir pelo carreiro ao longo de alguma corrente escura e revolta e encontrar, no fim desta, um pub cheio de desconhecidos onde pudesse comer uma sanduíche e beber um café, e deleitar-se com a sua preciosa solidão.

Era nessas ocasiões que, longe de Dibton e com a sua percepção afinada por um sentido de perspectiva, se tornava possível analisar o seu envolvimento com os Blundell e catalogar as suas conclusões de maneira impessoal e imparcial, como se fosse uma lista de compras.

A primeira delas era a de que gostava imensamente de Oscar; talvez demasiado. Já passara, há muito, da idade do amor romântico, mas já não se poderia dizer o mesmo do companheirismo. Desde a primeira vez em que se tinham encontrado, em frente da igreja de Dibton, altura em que simpatizara imediatamente com ele, que começara a apreciar, cada vez mais, a sua companhia. O tempo só viera confirmar essa impressão.

Mas o gelo era fino. Elfrida não era hipócrita nem senhora de padrões morais exageradamente elevados; na verdade, o homem que amara, com quem vivera durante tanto tempo e que já morrera, era casado com outra mulher. Elfrida, porém, nunca a conhecera e, quando se tinham encontrado, o casamento já andava pelas ruas da amargura, daí que nunca se tivesse deixado consumir pelo remorso. Por outro lado, o cenário que se apresentava não era, de modo algum, tão inocente, e Elfrida já o testemunhara em mais de uma ocasião: o da mulher só, viúva, divorciada ou desoladamente solitária por qualquer outra razão, que passava a ser protegida por uma amiga com cujo marido acabava por se envolver. Uma situação condenável que desaprovava fortemente.

No entanto, no caso de Elfrida, tal não viria a acontecer. Sabia que era na sua consciência do perigo e no seu próprio bom-senso que encontraria a sua maior força.

Em segundo lugar, Francesca, com onze anos de idade, era a filha que Elfrida, caso tivesse tido alguma, gostaria que fosse sua: imdependente, sincera e totalmente franca, possuía, no entanto, um sentido do ridículo capaz de pôr Elfrida a rir a bandeiras despregadas, e uma imaginação alimentada pela leitura voraz de livros. Francesca ficava de tal maneira absorta nas suas leituras que bem podiam entrar no seu quarto, ligar a televisão ou manter uma discussão violenta que ela nem sequer levantava os olhos da página. Nas férias escolares, era frequente aparecer na Poulton's Row para brincar com Horace e ver Elfrida na sua máquina da costura, aproveitando para fazer perguntas incontáveis sobre o seu passado teatral, que achava francamente fascinante.

O seu relacionamento com o pai era inusitadamente intenso e carinhoso. Ele tinha idade para ser seu avô, mas o prazer que encontravam na companhia um do outro ultrapassava, de longe, o da relação normal entre pai e filha. No lado de lá da porta fechada da sala de música ouvia-se os dois a tocar em dueto ao piano, apontando erros entre si que desencadeavam não recriminações, mas sim muitas gargalhadas. Nos serões de Inverno, ele lia-lhe em voz alta, os dois aninhados no enorme sofá, e o afecto que a filha lhe tinha manifestava-se em frequentes abraços, nos bracinhos à volta do pescoço dele e dos beijinhos dados em cima da farta cabeleira branca.

Quanto a Gloria, era uma mulher habituada a lidar com homens, mais chegada aos dois filhos adultos e casados do que à filha tardiamente concebida. Elfrida já tivera oportunidade de conhecer os dois rapazes, Giles e Crawford Bellamy, assim como as respectivas esposas, bonitinhas e bem vestidas. De vez em quando, apareciam na Granja para o fím-de-semana ou vinham de carro de Londres para almoçar aos domingos. Embora não fossem gémeos, eram estranhamente parecidos, convencionais e convencidos. Elfrida tinha a impressão de que nenhum deles a aprovava, mas como também não gostava particularmente de nenhum dos dois, pouco se importava com o facto. Gloria mimava-os, o que era bem mais importante, e quando chegava a altura de partirem, levavam os porta-bagagens dos carros caros a abarrotar de legumes frescos e fruta da horta de Gloria, de onde esta ficava a acenar-lhes como qualquer mãe sentimental. Saltava à vista que, aos seus olhos, nenhum dos filhos poderia proceder mal, e Elfrida tinha a certeza de que, se ela não tivesse aprovado as respectivas esposas, tanto Daphne como Arabella teriam tido pouca duração.

Francesca, no entanto, era de outra cepa. Profundamente ligada a Oscar, não se deixava influenciar, seguia os seus próprios interesses e achava a leitura e a música muito mais atractivas do que as gincanas locais do Pony Club. Ainda assim, nunca se rebelava nem amuava, cuidando do seu pequeno pónei rabugento com carinho, exercitando-o regularmente, cavalgando pelo recinto fechado, que Gloria mandara improvisar para actividades equestres, e dando grandes passeios com ele ao longo dos caminhos tranquilos à beira do pequeno rio. Oscar ia muitas vezes com a filha, montado numa velha bicicleta, relíquia dos seus tempos de mestre-escola.

Gloria deixava-os estar, se calhar, pensava Elfrida, porque a filha não era assim tão importante para si. Pelo menos não tão absorvente ou gratificante como o próprio estilo de vida agitado que levava, as suas festas, o seu círculo de amizades. Igualmente valiosa era a sua posição como mentora social; havia alturas em que fazia lembrar um organizador de caçadas, fazendo soar a sua trompa para chamar a atenção e açoitando os seus cães.

Elfrida caíra em desgraça apenas uma vez. Foi durante uma noite de convívio em casa dos Foubister, um jantar de grande formalidade e estilo, à luz das velas, que fazia refulgir as pratas, e com um velho mordomo a servir à mesa. Terminada a refeição, passaram à sala de estar (deveras fria, pois a noite estava gélida) e Oscar pusera-se a tocar para eles no piano de cauda; depois de um estudo de Chopin, sugerira a Elfrida que cantasse.

Elfrida ficou muito embaraçada e surpreendida. Não cantava há anos, protestou, a sua voz estava um horror...

Mas o velho Sir Edwin Foubister também tentou persuadi-la.

Por favor implorou , sempre gostei de uma voz bonita. Foi tão desarmante que deixou Elfrida hesitante. Afinal de contas, que importava que a sua voz tivesse perdido o timbre juvenil, ela desafinasse nas notas mais altas e acabasse por fazer uma triste figura? Foi então que reparou no rosto de Gloria, cuja expressão mostrava a maior reprovação e assombro. Percebeu logo que Gloria não queria que ela cantasse. Não a queria ver-se destacar ao lado de Oscar e entreter o pequeno grupo. Não gostava de que os outros brilhassem, atraíssem as atenções, desviassem a conversa para longe dela. Foi uma percepção de total clareza e algo chocante, como se tivesse apanhado Gloria despida. Em circunstâncias diferentes, Elfrida talvez tivesse jogado pelo seguro, recusando delicadamente, apresentado desculpas. Mas jantara bem e bebera um vinho delicioso, de modo que, assim fortalecida, sentiu acender-se dentro de si uma pequena chama de altivez. Nunca antes se deixara intimidar e não era naquela altura da sua vida que iria permiti-lo. Portanto, sorriu perante o sobrolho franzido e ameaçador de Gloria e, virando a cabeça para o seu anfitrião, disse:

Se é esse o seu desejo, terei muito gosto...

Esplêndido agradeceu Sir Edwin, batendo palmas como uma criança. Que maravilha.

Elfrida levantou-se então e foi até junto de Oscar, que a aguardava.

Que vai cantar?

Disse-lhe. Uma velha canção de Rodgers e Hart.

Conhece?

Claro.

Um acorde ou dois para a introdução. Já lá ia muito tempo. Endireitou os ombros e encheu os pulmões . Bastou-me olhar-te uma vez.

Os anos haviam tornado a sua voz mais fina, mas ainda era capaz de aguentar as notas com segurança.

Para que o meu coração parasse.

Consumiu-a então imediatamente uma felicidade irracional que a fez sentir-se jovem de novo, ao lado de Oscar e, com ele, enchendo a sala com aquela música da sua juventude.

Gloria mal lhe falou durante o resto da noite, mas ninguém se deu ao trabalho de tentar arrancá-la ao seu mau humor. Enquanto congratulavam Elfrida pela sua actuação, Gloria bebia o seu brande. Quando chegou a altura de se irem embora, Sir Edwin acompanhou-os até ao local impecavelmente coberto de cascalho, onde o imponente carro de Gloria estava estacionado. Elfrida deu-lhe as boas-noites e enfiou-se no banco de trás, mas foi Oscar quem se sentou ao volante, obrigando assim Gloria a sentar-se no banco do passageiro do seu próprio automóvel.

A caminho de casa, Oscar perguntou à mulher:

Que tal achaste a noite? Gloria limitou-se a responder:

Estou com dores de cabeça. E ficou novamente calada.

Elfrida pensou, «não admira», mas absteve-se prudentemente de o dizer em voz alta. E essa era, talvez, a verdade mais preocupante e triste de todas: Gloria Blundell, mulher empedernida e de estômago forte, bebia de mais. Nunca ficava incapacitada, jamais tinha ressacas. Mas bebia demasiado. E Oscar sabia.

Oscar. Naquele momento estava ali, na loja de Mrs. Jennings, numa tarde cinzenta de Outubro, a comprar os seus jornais e uma lata de comida para cão. Vestia umas calças de bombazina, uma camisola grossa que parecia feita de tweed, e botas grossas, o que parecia indicar que estaria a tratar do seu jardim quando se lembrara de que precisava daquilo, tendo-se posto a caminho.

Mrs. Jennings levantou a cabeça.

Boas tardes, Mistress Phipps.

Oscar, com as mãos cheias de trocos, virou-se e avistou-a.

Boas tardes, Elfrida. Ela respondeu-lhe:

Deve ter vindo a pé. Não vi o seu carro.

Estacionei-o no outro lado da esquina. Acho que é tudo, Mistress Jennings.

Oscar desviou-se para dar lugar a Elfrida, ali ficando sem, aparentemente, dar mostras de pressa.

Já não a vemos há dias. Como vai?

Oh, sobrevivendo. Um pouco farta deste tempo.

Pavoroso, não acha? intrometeu-se Mrs. Jennings. Gelado e húmido ao mesmo tempo. Que tem aí, Mistress Phipps?

Elfrida colocou o que trazia dentro do cesto em cima do balcão, para que Mrs. Jennings pudesse verificar os preços e anotá-los na sua conta. Um pão, meia dúzia de ovos, um pouco de toucinho fumado e de manteiga, duas latas de comida para cão e uma revista chamada Lares Maravilhosos.

Quer que ponha na sua conta?

Se fizer favor, deixei a minha bolsa em casa.

Oscar reparou na revista.

Tenciona fazer alguns melhoramentos domésticos? perguntou.

Provavelmente não, mas acho terapêutico ler sobre as outras pessoas. Se calhar, porque sei que não terei de ir atrás dos outros. É um pouco como ouvir alguém a aparar a relva.

Mrs. Jennings achou a ideia muito engraçada.

O Jennings pôs o seu cortador de relva de parte já em Setembro. Detesta aparar a relva, lá isso detesta.

Oscar ficou a ver Elfrida colocar as coisas dentro do seu cesto e depois propôs:

Se quiser dou-lhe boleia até casa.

Não me importo de andar a pé. Trouxe Horace comigo.

Terei muito gosto em levá-lo também. Obrigado, Mistress Jennings, adeus.

Adeusinho, Mister Blundell. Cumprimentos à esposa.

Saíram juntos da loja. No exterior, via-se um grupo de jovens entretidos a conversar no passeio. Tinha-se-lhes juntado uma rapariga de aspecto duvidoso, a fumar, de cabelos muito negros e uma saia de cabedal que mal lhe chegava ao traseiro. A sua presença parecera galvanizar os rapazes, que se tinham lançado numa pantomima de escárnios, insultos e gargalhadas sem sentido. Horace, apanhado no meio daquele comportamento indecoroso, tinha um ar muito infeliz. Elfrida desprendeu a trela e ele abanou a cauda, aliviado. Os três deram a volta à esquina e percorreram a travessa onde Oscar deixara o carro. Elfrida sentou-se no banco do passageiro e Horace foi-se instalar entre as suas pernas, apoiando o focinho no seu colo. Quando Oscar se sentou ao volante, depois de fechar a porta e ligar o motor, ela observou:

Nunca conto encontrar ninguém na loja, à tarde. As manhãs é que são destinadas aos contactos sociais. É quando se apanham todos os mexericos.

Eu sei. Mas Gloria foi a Londres e eu esqueci-me dos jornais. Deu a volta com o carro e enveredou pela rua principal. As aulas diárias já tinham terminado, e os passeios mostravam-se apinhados de crianças cansadas, sujas e de mochilas escolares às costas, a caminho de casa. O homem no pátio da igreja fizera nova fogueira para queimar as folhas caídas e o fumo subia no ar parado e húmido.

Quando é que Gloria foi a Londres?

Ontem. Tem não sei que reunião. Acho que se relaciona com o movimento Salvem as Crianças. Foi de comboio. Tenho de a ir esperar ao que chega às seis e meia da tarde.

Gostaria de ir tomar uma chávena de chá comigo? Ou prefere voltar à sua jardinagem?

Como é que sabe que tenho estado a tratar do jardim?

Pistas deixadas. Intuição feminina. Lama nas suas botas. Oscar riu-se.

Perfeitamente correcto, Mister Homes. Mas seria incapaz de recusar uma chávena de chá. Nada como isso para animar um jardineiro.

Passaram em frente do pub e, pouco depois, chegavam à estrada que descia pelo declive e ia dar à linha de caminho-de-ferro e às pequenas vivendas que formavam a Poulton's Row. Oscar deteve o carro em frente do portão da casa de Elfrida e desceram. Horace, liberto da sua trela, correu alegremente pelo carreiro acima, seguido de Elfrida, com o seu cesto das compras, e de Oscar. Elfrida abriu a porta.

Nunca a fecha à chave? perguntou Oscar, atrás dela.

Não para uma ida às compras à vila. Seja como for, não há nada para roubar. Entre e feche a porta. Foi até à cozinha e pousou o cesto em cima da mesa. Se não se importa, acenda a lareira. Um dia como este requer um pouco de consolo.

Encheu a chaleira com água da torneira e colocou-a no fogão. Em seguida, despiu o casaco, que colocou nas costas de uma cadeira, e foi buscar umas peças de louça desirmanada.

Canecas ou chávenas?

Para os jardineiros, canecas.

Tomamos o chá ao pé da lareira ou sentamo-nos aqui mesmo?

Sinto-me muito mais feliz com os joelhos debaixo de uma mesa.

Elfrida abriu então umas caixas de lata onde habitualmente guardava bolos, mas sem grande esperança. Duas estavam vazias, a terceira continha um pedaço de bolo de gengibre. Colocou-a em cima da mesa, juntamente com uma faca. Encontrou uma embalagem de leite no frigorífico e despejou-o dentro de uma leiteira de cerâmica amarela. Descobriu o açucareiro. Ouviam-se já, vindos da sala ao lado, os estalidos dos ramos a crepitar na lareira. Elfrida foi até ao umbral da porta e encostou-se a este, ficando a observar Oscar, que colocava, com alguma cautela, dois pedaços de carvão no topo da sua pequena pira.

Dando-se conta da presença de Elfrida, endireitou-se e voltou-se para ela, sorrindo-lhe.

Está a arder que é uma beleza. Feita com todos os requintes, com muitos gravetos. Precisa de toros para o Inverno? Se quiser deixo-lhe um carregamento deles.

Onde é que os guardaria?

Podíamos empilhá-los no jardim da frente, contra a parede.

Seria uma maravilha, caso possa dispensar alguns.

Temos mais do que o suficiente. Limpou o pó das mãos nas calças e olhou em volta. Sabe, transformou isto num lugar encantador.

Está uma confusão, eu sei. Falta de espaço. Os objectos que se possuem são um dilema, se são! Tornam-se parte de nós, e tenho dificuldade em me desfazer das coisas. Tenho por aí uma série de miudezas que carrego comigo há uma data de anos, já desde os meus vertiginosos tempos no palco. Eu era como um caracol com a concha às costas. Um xaile de seda ou umas bugigangas tornavam os desconfortáveis alojamentos da malta do teatro um pouco mais suportáveis.

Gosto em especial dos seus cães de Staffordshire.

Fizeram sempre parte da minha bagagem, embora não formem propriamente um par.

E também do pequeno relógio de viagem.

Esse também viajou muito.

Realmente tem um ar bem usado.

Estafado seria mais verdadeiro. Tenho-o há anos, foi-me deixado por um velho padrinho. Eu... eu tenho algo que talvez seja verdadeiramente valioso, que é aquele pequeno quadro além.

Onde é que o arranjou?

Foi-me oferecido por um actor. Participávamos os dois numa readaptação de Hay Fever, em Chichester, e no fim da série de espectáculos, pediu-me que eu ficasse com ele. Um presente de despedida. Descobrira-o numa loja de quinquilharias e não creio que lhe tivesse custado muito dinheiro, no entanto, estava entusiasmado porque tinha a certeza de que se tratava de um David Wilkie.

Sir David Wilkie? admirou-se Oscar. Um bem precioso. Então porque foi que lho ofereceu?

Elfrida, porém, não se deixou desconcertar.

Quem sabe se para me agradecer por lhe ter cozido as peúgas?

Oscar voltou a fixar a sua atenção no quadro. Ocupava pouco espaço, pois tinha apenas cerca de vinte centímetros por quarenta, e retratava um casal idoso, vestido à século dezoito, sentado a uma mesa em cujo tampo se via uma enorme Bíblia forrada a cabedal. O fundo era sombrio, as roupas do homem escuras. A mulher, no entanto, usava um xaile amarelo-canário por cima de um vestido vermelho, e a touca branca amarrada por baixo do queixo era cheia de rufos e fitinhas.

Eu diria que ela vestiu-se para alguma celebração, não acha?

Sem dúvida. Elfrida, talvez devesse começar a deixar a porta de entrada fechada.

É bem provável.

Está no seguro?

É o meu seguro. Para tempos de necessidade. Quando me vir pelas ruas com um par de sacos de plástico e Horace preso por um cordel, aí, e só aí, é que pensarei em vendê-lo.

Uma prevenção contra a desgraça. Oscar sorriu e tirou os óculos. Seja o que for. A maneira como reúne os seus objectos é que cria este todo agradável. Tenho a certeza de que não tem nada que não considere belo ou saiba que é útil.

William Morris.

E, talvez, a noção de bom gosto.

O Oscar diz coisas extremamente bonitas.

Nessa altura, a chaleira que Elfrida pusera ao lume começou a assobiar, o que significava que a água já fervia. Foi tirá-la do fogão, seguida por Oscar, que ficou a vê-la preparar o chá num bule castanho, que depois colocou em cima da mesa.

Se gosta do chá bem forte, é melhor esperar um pouco mais. E se preferir limão em vez de leite, também há. Temos aqui um pedaço de bolo de gengibre envelhecido.

Um banquete. Oscar puxou de uma cadeira e sentou-se, como que aliviado por descansar as pernas.

Elfrida sentou-se igualmente à mesa, de frente para ele, atarefando-se a cortar o bolo de gengibre. Às tantas disse:

Oscar, vou-me embora.

Ele não respondeu mas ela, ao olhá-lo, reparou que a fitava com uma expressão de espanto horrorizado.

Para sempre? perguntou-lhe a medo.

Claro que para sempre não. O alívio foi evidente.

Graças a Deus. Que susto me pregou!

Eu nunca deixaria Dibton para sempre. Já lho disse. Tenciono passar o crepúsculo dos meus anos aqui. Mas é altura de tirar umas férias.

Sente-se particularmente exausta?

Não, mas o Outono costuma deprimir-me. É uma espécie de limbo entre o Verão e o Natal. Um tempo morto. Além disso, o meu próximo aniversário vem aí. Sessenta e dois. O que ainda é mais deprimente. É altura, portanto, de uma mudança.

Muito sensato. Far-lhe-á bem. Posso saber para onde vai?

Para a ponta mais afastada da Cornualha. Se uma pessoa espirra, corre o perigo de cair no Atlântico.

Cornualha? Ficou atónito. Porquê a Cornualha?

Porque tenho um primo a viver lá. Chama-se Jeffrey Sutton e tem exactamente menos dois anos que eu. Fomos sempre amigos. É uma daquelas pessoas simpáticas a quem podemos telefonar de repente e perguntar, «Posso ir aí passar uns dias?», e ter a certeza de que a resposta será positiva. E mais, ficará radiante. Portanto Horace e eu vamos até lá de carro.

Oscar sacudiu a cabeça, algo desconcertado:

Nunca a tinha ouvido falar em nenhum primo. Melhor dizendo, em nenhum parente.

Imaginava-me como fruto de uma imaculada concepção?

Não tanto. Mas admito que fico surpreendido.

-Não acho minimamente surpreendente. Não tenho o hábito de estar sempre a falar da família. Elfrida resolveu então abrandar. Mas Jeffrey é uma pessoa especial e mantivemos sempre contacto. Tem mulher?

Na verdade, teve duas. A primeira era uma chata. Chamava-se podie. Creio que ele ficou encantado com a beleza dela e o ar indefeso descobrindo depois, pobre homem, que se ligara à mulher mais preocupada consigo mesma que se possa imaginar. Além disso, era ociosa e completamente avessa às lides domésticas, e a maior parte do salário tão arduamente ganho por Jeffrey era para pagar a cozinheiras, mulheres da limpeza e pessoal do género, na esperança de conseguir criar as duas filhas.

Que aconteceu ao casamento? perguntou Oscar, claramente fascinado.

Foi durando, até, finalmente, as duas meninas crescerem, completarem a sua educação e começarem a ganhar, após o que ele afastou-se. Havia uma rapariga chamada Serena, muito mais nova que Jeffrey e um amor de pessoa. Era floricultora; tinha um pequeno negócio de arranjos florais para festas e cuidava dos canteiros de janela das outras pessoas. Ele conhecia-a há anos. Quando terminou o seu casamento, terminou também o seu trabalho, sacudiu a poeira londrina dos sapatos e mudou-se, na companhia de Serena, para o mais longe de Londres que conseguiu. Terminado o divórcio, que foi deveras litigioso, casou com Serena quase logo a seguir e iniciou nova família. Tiveram um rapaz e uma rapariga. Vivem quase sem capital, da criação de galinhas e da hospedagem a turistas de Verão.

E viveram felizes para todo o sempre?

Poderia dizer-se que assim foi.

E quanto às filhas dele? Que foi que lhes aconteceu?

Nunca mais soube nada delas. A mais velha chamava-se Nicola. Penso que casou com um homem qualquer e teve uma filha. Era tremendamente antipática, insatisfeita e sempre a queixar-se das injustiças da vida. Creio que tinha imensos ciúmes de Carrie.

Que era a irmã.

Precisamente. E uma querida. Herdou exactamente o feitio doce de Jeffrey. Aqui há uns dez anos, tive de fazer uma operação que é comum às mulheres, mas sobre a qual não me alargarei neste momento, Oscar, e ela foi cuidar de mim. Ficou um mês e meio. Nessa altura, eu estava sozinha e vivia num andar muito acanhado em Putney, no entanto, ela tomou conta de tudo e demo-nos às mil maravilhas. Elfrida ficou pensativa, fazendo contas de cabeça. Deve ter agora à volta de trinta anos. Como o tempo voa!

Casou?

Não creio. Como disse, nunca mais soube delas. Na última vez que tive notícias, estava a trabalhar na Áustria para uma grande empresa de viagens. Sabe como é, a acompanhar excursões de esqui para turistas e a certificar-se de que ficam instalados no hotel certo. Ela sempre adorou esquiar. Seja como for, tenho a certeza de que está feliz. Creio que o seu chá já deve estar suficientemente forte.

Deitou o chá na caneca (estava razoavelmente escuro) e deu-lhe uma fatia de bolo de gengibre a esfarelar-se.

Portanto, como vê, tenho família, embora não especialmente chegada. Sorriu-lhe. E quanto a si? Tempo de confissão. Tem algum parente de quem se possa gabar?

Oscar passou a mão pela cabeça.

Não sei. Acho que tenho. Mas, tal como a Elfrida, não faço ideia por onde andarão ou o que farão.

Conte.

Bem. Deu uma dentada no bolo com ar pensativo. A minha mãe era escocesa. Que tal, para começar?

Nada mal.

Tinha uma casa enorme em Sutherland, algumas terras e uma quinta.

Senhora de posses.

Eu costumava passar as férias de Verão com ela, mas morreu tinha eu dezasseis anos, de modo que nunca mais lá voltei.

Como se chamava a herdade?

Corrydale. Era imensamente grande?

Não. Apenas imensamente confortável. Refeições copiosas, botas de borracha e canas de pescar por tudo o que era sítio. Odores agradáveis, a flores, cera de abelha e a galinha cozinhada.

Hum, delicioso. De fazer crescer água na boca. Tenho a certeza de que era uma bem-aventurada.

Isso não sei. Só sei que era a simplicidade em pessoa e extraordinariamente talentosa.

Em que aspecto?

Acho que no talento de viver. E na música. Era uma pianista exímia. De verdade. Penso que foi dela que herdei o pequeno dom que tenho, e também foi ela quem me ajudou a escolher a minha carreira. Em Corrydale havia sempre música. Fazia parte da minha vida.

Que mais?

Como?

Que mais fazia?

Mal me consigo lembrar. Caçava coelhos à tarde. Ia à pesca da truta. Jogava golfe. A minha avó adorava esse desporto e tentou fazer de mim um bom golfista, mas nunca lhe cheguei aos calcanhares. Depois. apareciam por lá umas pessoas e púnhamo-nos a jogar ténis e, se estivesse calor suficiente, o que era raro, ia de bicicleta até à praia e atirava-me ao mar do Norte. Em Corrydale, fosse qual fosse a actividade, era sempre tudo muito relaxante. E divertido.

Depois o que aconteceu?

A minha avó morreu. Estava-se em guerra. O meu tio ficou com a propriedade e foi viver para lá.

Deixou de o convidar para as férias de Verão?

Esses tempos tinham chegado ao fim. Eu tinha dezasseis anos, andava metido na música, com exames. Outros interesses, outras pessoas. Uma vida diferente.

Ele ainda lá vive? Refiro-me ao seu tio.

Não, mudou-se para Londres. Agora vive numa mansão próxima do Albert Hall.

Como é que se chama?

Hector McLellan.

Oh, esplêndido. Aposto em como anda de kílt e tem a barba ruiva.

Já não. É muito velho.

E Corrydale?

Passou-a para as mãos de Hughie, o filho. Meu primo. Um sujeito imprestável, cujo único fito era viver à larga e em grande estilo. Encheu Corrydale de amigos degenerados que lhe beberam o uísque e levaram ao desespero os velhos e respeitáveis empregados que trabalhavam na casa e na propriedade há muitos anos. Redundou tudo num grande escândalo. Depois, Hughie achou que a vida a norte da fronteira não era para si e vendeu tudo, indo viver para Barbados. Tanto quanto sei ainda por lá anda, já vai na terceira mulher e leva a vida de um Rei.

Elfrida sentiu inveja.

Oh, ele parece uma pessoa mesmo fascinante.

Não, fascinante não. Entediantemente previsível. Costumávamos aturar-nos um ao outro, mas nunca fomos amigos.

Portanto, foi tudo vendido e o Oscar nunca mais lá voltará?

É muito pouco provável que o faça. Recostou-se e cruzou os braços. Para dizer a verdade, até poderia lá voltar. Quando a minha avó morreu, deixou uma casa a meias a Hughie e a mim. Mas há anos que lá está um casal a morar. Todos os trimestres chega uma pequena renda enviada pelo escritório do feitor. Penso que Hughie recebe o mesmo, embora mal dê para pagar o salário de um par de plantadores.

- É uma casa grande?

Nem por isso. Fica no meio da pequena vila. Em tempos, era ocupada pelos serviços municipais, mas depois foi convertida em casa de habitação.

Que excitante. Quem me dera ter uma casa na Escócia.

Metade de uma casa.

- Metade de uma casa e melhor do que casa nenhuma. Podia levar Francesca a passar parte das férias lá.

Para ser sincero, tal não me ocorreu sequer. Nunca me lembro daquele lugar. Imagino que, um dia, Hughie se ofereça para comprar a minha metade ou eu a dele. Não é algo com que me preocupe. E prefiro não precipitar nenhuma situação. Quanto menos tiver a ver com Hughie McLellan, melhor.

Acho que está a ser terrivelmente fraco.

Apenas tento ser discreto. E então, quando é que parte?

Na próxima quinta-feira.

Ficará por lá durante quanto tempo?

Um mês.

Envia-nos um postal?

Claro.

E avisa-nos assim que chegar?

Imediatamente.

Sentiremos saudades suas confessou Oscar, o que a enterneceu.

A casa chamava-se Emblo. A sua fachada de granito ficava voltada para o vento norte e o Atlântico. Nesse lado, as janelas eram pequenas, poucas e fundas, com parapeitos suficientemente largos para albergar os vasos de gerânios, pedaços de madeira trazidos pelas ondas e conchas que Serena tanto adorava coleccionar. Em tempos, fizera parte da Quinta Emblo, uma próspera quinta dedicada à produção de leite, e servira de habitação ao respectivo encarregado; porém, este acabara por se reformar, depois morrera, a mecanização assenhoreou-se das ordenhas, os salários na agricultura subiram e o fazendeiro atenuara os prejuízos vendendo a pequena casa. Depois disso, pertencera a três donos diferentes e, na última vez, fora posta à venda precisamente na altura em que Jeffrey tomara a grande decisão de se afastar de Londres, de Dodie e do seu emprego. Viu o anúncio no The Times, meteu-se imediatamente no seu carro e guiou a noite toda para poder ver a casa antes de alguém ter a oportunidade de apresentar uma oferta por ela. Deparara com um casebre húmido, parcamente mobilado, para não mais do que uma estadia no Verão, afundado no meio de um jardim deixado ao abandono, onde plátanos raquíticos se inclinavam ao sabor dos ventos prevalecentes. Mas tinha uma vista para os penhascos e o mar e, no lado voltado para sul, uma faixa de relvado abrigada onde as glicínias trepavam pela parede e ainda florescia uma cameleira.

Telefonara ao gerente do seu banco, obtivera um empréstimo e comprara o lugar. Quando ele e Serena se mudaram para lá, havia ninhos de aves na chaminé, o papel antigo pelava das paredes, e no ar pairava um cheiro intenso a mofo e bolor. Mas nada disso teve importância. Acamparam em sacos-cama e abriram uma garrafa de champanhe. Estavam juntos e no seu lar.

Isso passara-se dez anos antes. Tinham sido precisos dois anos para pôr a casa habitável, envolvendo muito esforço físico, sujidade, destruição, dificuldades e uma sucessão de canalizadores, empreiteiros e pedreiros, que devassaram a casa com as suas botas de borracha enlameadas, ferveram inúmeras canecas de chá e perderam-se em intermináveis conversas sobre o sentido da vida.

De vez em quando, Jeffrey e Serena exasperavam-se com a lentidão e a incerteza dos homens, mas era impossível resistir àqueles filósofos amadores que pareciam não ter pressa para nada, cientes de que o dia seguinte seria mais um dia.

Finalmente, ficou tudo pronto. Os operários partiram, deixando atrás de si uma casa de pedra pequena, bem posicionada e sólida, com cozinha e sala de estar em baixo e uma escada rangente que conduzia ao piso superior. Ao fundo da cozinha ressaltava o que antes fora uma área de lavagem de roupa, de piso lajeado e arejada, onde eram guardadas as capas da chuva e as botas e onde Serena tinha a sua máquina de lavar roupa e a sua arca congeladora. Dispunha ainda de uma enorme pia de barro, que Jeffrey encontrara abandonada numa vala. Restaurada, tinha muita utilidade para lavar ovos e cães cheios de lama, ou para os cestos de flores silvestres que Serena adorava colher para com eles fazer arranjos em vasos antigos. No andar de cima havia três quartos pintados de branco e com tectos inclinados, assim como uma pequena casa de banho, de cuja janela se tinha a melhor vista de toda a casa, deitando para sul sobre os campos da quinta, colina acima até à charneca.

Não estavam isolados. A casa da quinta, com os seus edifícios exteriores em número considerável, erguia-se a não mais de um quilómetro de distância, portanto havia um movimento contínuo de tráfego para baixo e para cima ao longo do caminho que passava em frente do seu portão: tractores, camiões-cisterna de leite e automóveis, além da criançada que o autocarro da escola deixava ficar ao fundo da estrada, para depois seguirem a pé até suas casas. O fazendeiro tinha uma família de quatro elementos, e os seus filhos eram os melhores amigos de Ben e Amy. Juntos, andavam de bicicleta, iam às amoras e desciam os penhascos de mochila pendurada nos ombros frágeis para irem nadar e fazer piqueniques.

Elfrida nunca visitara a casa nem eles, mas agora estava a chegar, e Jeffrey sentira ressurgir em si um sentimento há muito esquecido que identificou como entusiasmo.

Elfrida. Ele tinha naquele momento cinquenta e oito anos e Elfrida...? Sessenta e um, sessenta e dois? Não importava. Em rapaz, sempre a tivera em grande conta por a achar temerosa e divertida. Na adolescência, aprisionado nas disciplinas obscuras do colégio interno, ela fora como uma luz na sua vida: gloriosamente atraente, admiravelmente rebelde, combatera a oposição dos pais para, finalmente, subir ao Palco e tornar-se actriz. Tanta determinação, coragem e força de vontade tinham enchido Jeffrey de admiração e inabalável dedicação. Numa ou duas ocasiões, ela chegara mesmo a ir buscá-lo ao enfadonho colégio nas saídas de sábado ou domingo, e ele gabara-se um pouco dela diante dos seus amigos, fazendo-a esperar junto da espectral porta da frente, pseudogótica, pois queria que os outros a vissem ali, sentada no seu pequeno descapotável vermelho, de óculos escuros, o cabelo cor de ananás displicentemente preso com um lenço de chiffon.

«Minha prima. Está a fazer uma peça de teatro. Em Londres», dizia ele com admirável indiferença, como se fosse algo que acontecesse a qualquer pessoa todos os dias. «Trouxeram-na de Nova Iorque.» Quando, por fim, saía ao seu encontro, pedia desculpa pelo atraso, subia para o assento minúsculo ao lado dela e arrancavam com um troar impressionante do motor, no meio de uma chuva de gravilha. Logo que regressava ao colégio, não se continha de disfarçado orgulho: «Oh, fomos só até à Roadhouse, demos um mergulho na piscina e depois comemos.»

Tinha um orgulho enorme nela e estava até um pouco apaixonado.

Mas o tempo passou, eles cresceram, perderam o contacto e cada um seguiu a sua vida. Elfrida casou com um actor qualquer, a relação não deu certo e separaram-se, depois voltou a desposar um sujeito de mau carácter até, finalmente, acabar por se juntar ao seu bem-amado de eleição. Tudo parecia apontar para uma felicidade duradoura quando a união foi atingida pela tragédia, pois o aparecimento da doença de Parkinson no companheiro acabou por redundar na sua morte.

Jeffrey vira Elfrida pela última vez em Londres, pouco depois da prima ter encontrado aquele homem excepcional, a quem tratava sempre por Jimbo.

«Esse não é o seu nome verdadeiro, querido, mas aquele que eu lhe pus. Nunca pensei que pudesse ser assim. Nunca imaginei que fosse possível ser tão diferente de uma pessoa e, no entanto, estar-lhe tão próxima. Ele é tudo aquilo que eu nunca fui e, contudo, amo-o mais do que qualquer pessoa ou algo que já tenha conhecido.»

E quanto à tua carreira?», perguntara-lhe Jeffrey.

«Oh, a minha carreira que se dane», respondera-lhe Elfrida, deitando a rir. Nunca a vira tão feliz, tão bonita, tão completamente realizada.

O seu próprio casamento, a correr muito mal, começava a desfazer-se, porém Elfrida estava sempre ali, no outro lado da linha telefónica, a ligar para ele, pronta a prodigalizar-lhe todo o tipo de conselhos, uns bons, outros maus, mas, o que importava acima de tudo, infinitamente solidários. Certa vez, levara Serena a conhecê-la, e ela ligara-lhe na manhã seguinte a dizer: «Jeffrey, ela é um amor... Acaba com as tristezas e concentra-te nela.»

«E as minhas filhas?»

«Já são crescidas e capazes de se manter a si próprias. Tens de pensar em ti. Põe os pés à parede. Não te deixes amedrontar. O tempo voa e só há uma vida.»

«E Dodie?»

«Ela que se desenvencilhe. Há-de arrancar-te uma boa pensão. Não abandonará os seus confortos terrenos. Ela que fique com tudo, mas tu vai-te embora e sê feliz.»

Vai-te embora e sê feliz. Ele assim fizera.

Eram cinco horas de uma tarde de Outubro cinzenta. O vento estava a levantar-se. Ele tratara das galinhas, apanhara os ovos, fechara as cacarejantes criaturas nos seus pequenos galinheiros de madeira domésticos. Começava a ficar escuro. Serena acendera as luzes dentro de Emblo e as pequenas janelas brilhavam no meio dos derradeiros fulgores do dia. Era quinta-feira, o dia em que o contentor do lixo sobre rodas tinha de ser levado até junto do caminho, para que o carro do lixo, que vinha fazer a recolha semanal, o esvaziasse de manhã bem cedo. Do mar começara a soprar um vento que trazia um cheiro e um sabor a maresia. A sua força fazia abanar os aglomerados de tojo, sussurrando por entre a folhagem do topo. Jeffrey podia ouvir, sobrepondo-se àquele murmúrio, o barulho da água do riacho a correr colina abaixo e ao longo da beira do caminho. Como estava frio, foi a casa buscar um casaco. Serena mexia o conteúdo de algo que estava ao lume, enquanto as crianças se atarefavam com os seus trabalhos de casa na mesa da cozinha.

Ele disse:

Vou levar o contentor do lixo.

Ah, homem esperto em se ter lembrado.

Volto daqui a cinco minutos.

Fico à espera de Elfrida.

Jeffrey levou o contentor pelo caminho cheio de sulcos abaixo e acomodou-o no seu sítio habitual. No outro lado da estrada havia outro portão de madeira, que deitava para o campo de um outro fazendeiro, e Jeffrey foi encostar-se a ele como qualquer camponês idoso. Apalpou os bolsos à procura dos cigarros, puxou de um e acendeu-o com o seu velho isqueiro de aço inoxidável. O dia ia morrendo. Viu o céu escurecer, enevoado. O mar estava cor de ardósia, salpicado de espuma. A noite iria ser tempestuosa. Ao fundo dos penhascos a rebentação estrondeava, e ele sentia a humidade da névoa marinha no rosto.

O meu quarto é uma cabina de vidro transparente, Toda a Cornualha troveja à minha porta, E os barcos brancos de Inverno jazem, Nas estradas marítimas da charneca.

Ficou até terminar o cigarro, depois deitou fora a beata, regressando a casa. Foi então que viu uns faróis aproximarem-se, vindos de leste, aparecendo e desaparecendo ao sabor das curvas da estrada. Encostou-se ao portão e aguardou. Pouco depois surgiu um velho Fiesta azul, fazendo cautelosamente a última curva antes de se voltar para Emblo. Soube, instintivamente, que se tratava de Elfrida. Colocou-se no meio do caminho a acenar com os braços e o carro parou. Abriu a porta e sentou-se ao lado da prima. Sentiu o perfume conhecido, a essência que esta sempre usara, que sempre lhe associara.

Não podes estacionar aqui, é a estrada principal. Serias abalroada por um tractor ou por um autocarro com turistas alemães. Entra pelo terreno avisou-a.

Elfrida assim fez, voltando depois a parar. Cumprimentou-o:

Olá.

Conseguiste.

Em cinco horas.

Encontraste o caminho?

Graças ao elucidativo mapa que me desenhaste.

Quem vem ali atrás?

Horace, o meu cão. Avisei-te que tinha de o trazer.

Que bom é estares aqui. Estava sempre à espera de um telefonema teu a dizeres que tinhas mudado de ideias.

Jamais o faria respondeu-lhe Elfrida. Depois tornou-se prática:

Aquele é que é o carreiro que leva até à frente da tua casa?

É.

Terrivelmente estreito, querido.

Tem largura suficiente.

Então, vamos a isso. Jeffrey riu-se.

Em frente.

Elfrida meteu a primeira e começaram a subir, sacolejando, a estreita passagem que ia até à porta da casa.

Que tal foi a viagem? quis saber Jeffrey.

Excelente. Estava um bocado nervosa, há anos que não fazia um percurso tão longo. Atrapalho-me um pouco com as auto-estradas desconhecidas e os camiões trovejantes. Este carro não é propriamente um Ferrari.

Não precisas de mais.

Ao aproximarem-se da casinha, a luz de fora acendeu-se. Iluminava um espaço aberto defronte de uma parede alta de granito. O caminho continuava até à quinta que ficava à distância, mas Jeffrey disse-lhe que estacionasse e Elfrida assim fez. Apareceram imediatamente dois cães-pastor, vindos não sabia de onde, que se lançaram na direcção deles a ladrar desalmadamente.

Não tenhas receio sossegou-a Jeffrey - são meus. Tarhnv e Findus, e não mordem.

Nem mesmo a Horace!

Muito menos a Horace.

Saíram do carro e deixaram Horace à solta. Gerou-se a confusão que era de esperar, enquanto os três cães trocavam as habituais cheiradelas de reconhecimento entre si, até que, a certa altura, Horace desapareceu no meio de um aglomerado de arbustos ali mesmo à mão e alçou da perna, aliviado.

Jeffrey estava divertido.

De que raça é Horace?

Desconhecida. Mas é leal, sossegado e asseado. Pode dormir comigo. Trouxe o cesto dele.

Jeffrey abriu o porta-bagagens e tirou de lá uma velha mala de viagem e um saco de papel grande e cheio.

Trouxeste mantimentos?

É a comida de Horace e a sua tralha.

Foi buscar o cesto do cão e mais outro saco atravancado de objectos. Depois de fecharem as portas do carro, Jeffrey seguiu à frente por um carreiro de lajes que conduzia às traseiras da casa. O vento que soprava do lado do mar fustigava-os. Quadrados de luz provenientes das janelas e de uma meia-porta de vidro incidiam nas pedras arredondadas do pavimento. Jeffrey pousou a mala de Elfrida, abriu a porta e ela entrou na cozinha. As duas crianças levantaram os olhos da mesa e Serena, que estava ao fogão, virou-se e veio, de avental e braços abertos, saudá-los.

Jeffrey, vieste mesmo com ela! Que esperto, desceu com o contentor do lixo e voltou para cima contigo. Que noção impecável de tempo. A viagem foi muito difícil? Queres uma chávena de chá ou algo para comer? Oh, mas ainda não conheces as crianças, pois não? Ben e Amy. Esta é Elfrida, queridos.

Nós sabemos disse o rapazinho. Há muito tempo que eles . falam de si.

Era tão moreno quanto a irmã mais nova era loura. levantou-se da mesa e veio apertar-lhe a mão, perscrutando a bagagem que trazia com um certo interesse. Esperava um presente, porém tinham-lhe ensinado que não lhe devia fazer referência, caso não lho dessem. Tinha os olhos e a tez morena do pai e uma farta cabeleira escura. Elfrida calculava que dali a uns anos, teria um punhado de raparigas a suspirar por ele nos arredores.

O pai entrou atrás de Elfrida e pousou a mala ao fundo das escadas.

Olá, pai.

Olá, Ben. Terminaste os trabalhos de casa?

Terminei.

Muito bem. E tu, Amy, também já acabaste?

Eu já acabei os meus há séculos respondeu-lhe a filha com ar complacente.

Era tímida. Chegou-se ao pai e enterrou o rostozinho na sua perna, ao ponto de só se lhe ver o longo cabelo de um louro leitoso e o azul desbotado do macacão. Elfrida sempre soubera da existência de Amy e Ben, mas, ao vê-los naquele momento, não pôde deixar de se maravilhar com o facto de serem mesmo filhos de Jeffrey, embora suficientemente novos para serem seus netos. Achou-os lindos. Porém, também Serena o era, ao seu jeito muito particular. Tinha o cabelo tão louro como o de Amy, mas usava-o ao alto, num carrapito preso com um gancho de tartaruga. Possuía uns olhos azuis muito brilhantes e tinha o rosto magro salpicado de sardas. Vestia uns jeans finos, que lhe alongavam imenso as pernas, e uma camisola azul, e prendera um lenço de seda ao pescoço. Como estava ao fogão, tivera de atar à cintura um avental às riscas, que ainda não se lembrara de tirar.

Qual é o programa? perguntou Jeffrey.

Vou preparar uma chávena de chá para Elfrida, se lhe apetecer. Ou então poderá sentar-se aqui ao pé do lume, ir até ao quarto e desfazer as malas, ou tomar um banho. Como ela preferir respondeu Serena.

Quando é a janta?

Às oito, se concordarem. Primeiro, darei de comer a Amy e a Ben.

Amy emergiu de entre as pernas do pai e disse:

Salsichas.

Elfrida ficou com expressão curiosa.

O quê?

Salsichas para o nosso chá. E puré de batata e ervilhas.

Que delícia.

Mas vocês vão comer outra coisa. A mamã tem estado a fazer.

Não me digas o que é, para a surpresa ser maior.

É galinha com cogumelos.

Amy! gritou-lhe o irmão. Não digas! Elfrida riu.

Não faz mal, tenho a certeza de que deve estar uma maravilha.

E agora, vejamos disse Serena, erguendo ligeiramente a voz acima da tagarelice dos filhos , queres uma chávena de chá?

Porém, tinham sido feitos outros oferecimentos mais aliciantes.

O que eu realmente gostaria de fazer agora era de ir lá acima, desfazer as malas e tomar um banho. Será demasiado indelicado da minha parte?

De modo algum. Só temos aquela casa de banho, mas as crianças podem lá ir depois de ti. Há água quente com fartura.

Bem-hajas. Nesse caso é o que vou fazer.

E quanto a Horace? perguntou Jeffrey. Não tem de ser alimentado?

Sim, claro que sim. Estás a oferecer-te para o fazeres por mim? Duas medidas de biscoitos e meia lata de comida. E um pouco de água quente.

Horace é um cão? perguntou Ben.

Meu marido é que não é de certeza.

Onde é que ele está?

Lá fora. A fazer amizade, assim espero, com os teus cães.

Quero ir ver...

Eu também...

Espera por mim...

Saíram para o jardim escuro sem levarem agasalhos extra, botas de borracha ou quaisquer reprimendas da mãe. A porta ficou aberta, deixando entrar golfadas de ar frio. Jeffrey foi fechá-la calmamente e pegou de novo nas malas de Elfrida.

Anda disse-lhe, começando a subir as escadas que rangiam. Mostrou-lhe o espaço superior.

Até daqui a uma hora. Vou preparar-te uma bebida avisou-a. E saiu, fechando a porta atrás de si. Elfrida sentou-se na cama, que era dupla, apercebendo-se imediatamente de que estava fatigada. Bocejou monumentalmente, depois olhou em volta, apreciando o quarto encantador, tão parcamente mobilado que até dava a impressão de escassez, no entanto, maravilhosamente tranquilo. Um pouco como Serena. Paredes e cortinas brancas, no chão um tapete a condizer. Uma cómoda de pinho com naperões de linho e renda. A fazer de guarda-fato, uns ganchos de madeira e uma série de cabides às cores. A cobertura acolchoada era de algodão às riscas azuis, havia livros e revistas recentes na mesinha de cabeceira, além de um pequeno vaso com uma única hortênsia cor-de-rosa clara.

Elfrida bocejou de novo. Chegara. Não se perdera, o carro não avariara nem tivera nenhum acidente. E Jeffrey estava à sua espera ao fundo da estrada, aparecendo de repente no meio dela como um assaltante, a acenar-lhe com os braços para que parasse. Se ela não o tivesse reconhecido imediatamente, teria apanhado um susto de morte, mas não poderia haver a menor confusão, pois Jeffrey continuava a ser o mesmo homem alto e magro de sempre, ainda ágil e activo, apesar dos anos avançados, assim conservado provavelmente devido à companhia da esposa jovem e dos filhos pequenos. E o que era ainda mais importante, parecia feliz. Fizera o que estava certo. A sua vida parecera ter-se resolvido, precisamente o que ela mais lhe desejara.

Instantes depois, levantou-se da cama, desfez as malas e arrumou os seus poucos pertences, adaptando o quarto simples ao seu jeito. Depois despiu-se, embrulhou-se no seu velho roupão e foi ao pequeno quarto de banho, que ficava mesmo ao lado, onde se deixou ficar mergulhada, durante algum tempo, em água bem quente. Quando terminou, deixara de bocejar, já não se sentia cansada, mas sim activa, animada e pronta para a noite que tinha pela frente. Vestiu então umas calças de veludo e uma blusa de seda, agarrou no seu saco de viagem, que estava a abarrotar de presentes, e desceu ao piso de baixo sentindo-se como um marinheiro a percorrer a prancha que o levaria à coberta inferior. Na cozinha, as crianças comiam as suas salsichas, enquanto a mãe batia claras em castelo com a batedeira eléctrica. Quando Elfrida apareceu, olhou para ela e sorriu-lhe, dizendo:

Vai ter com Jeffrey, está na sala. Acendeu a lareira.

Posso ajudar? Não sou grande cozinheira, mas para lavar panelas ainda sirvo.

Serena riu-se.

Não há panelas para lavar.

Ainda volto a ver Amy e Ben?

Claro. Depois do banho virão dar as boas-noites.

O banho soube-me divinalmente. Rejuvenescedor. Ben perguntou:

O que quer dizer rejuvenescedor?

Quer dizer tornar mais novo explicou Serena.

Ela não parece mais nova.

Isso é porque sou velha disse-lhe Elfrida. Vê se não te esqueces de vir dar as boas-noites porque tenho uma coisa para ti... ergueu o saco. Aqui.

Podemos ver já?

Não, só depois, ao pé da lareira. Mais ou menos como quando são os presentes de Natal.

Elfrida foi ao encontro de Jeffrey, que se encontrava na pequena sala de estar, refastelado como qualquer nobre em frente da sua lareira a ler o The Times. Quando ela apareceu, atirou o jornal para o lado e levantou-se com cautela porque naquela divisão, por alguma razão, o tecto era excepcionalmente baixo e Jeffrey estava bem ciente do perigo que seria bater com a cabeça numa das vigas pintadas de branco. Era particularmente vulnerável por estar careca, via-se-lhe a pele muito bronzeada pelo sol, apesar da faixa de cabelo que lhe rodeava a cabeça, mais abaixo, ainda o mostrar tão escuro como quando era novo. Também tinha os olhos escuros; algumas rugas de expressão sulcavam-lhe o rosto magro. Vestia uma camisola azul-marinho e, em vez de gravata, usava um lenço vermelho. Elfrida sempre tivera olho para os homens bem-parecidos, de modo que foi gratificante verificar que o seu primo Jeffrey continuava elegante como sempre.

Jeffrey observou:

Estás encantadora.

Pelo menos, limpa. Abençoado banho.

Pousou o saco no chão e deixou-se cair num sofá, pondo-se a olhar apreciativamente à sua volta, reparando nos quadros, uns conhecidos, outros não. Um fogo que ardia fortemente, jarras com plantas secas, fotografias de família em molduras de prata, algumas peças de mobília antigas e bonitas. Não havia espaço para muito mais. Observou:

Construíste aqui uma casa encantadora!

O mérito não é meu, mas sim de Serena. Vai um copo de vinho?

- Que delícia, obrigada. É um mundo completamente diferente daquele onde vivias, não é? A tua casa em Camden, teres de ir para o Centro todos os dias, as festas formais e o relacionamento com todas as pessoas certas.

Jeffrey, que estava no outro lado da sala a preparar as bebidas, não respondeu imediatamente às suas observações, mas pareceu ficar a reflectir sobre as mesmas. De volta, entregou-lhe o copo de vinho e sentou-se novamente no seu cadeirão amplo. Os olhos de ambos encontraram-se, com o tapete de permeio.

Desculpa disse Elfrida.

Desculpa de quê?

A falta de tacto. Sabes que falo sempre sem pensar.

Não acho que tenha sido falta de tacto, apenas disseste a verdade. Era um outro mundo, que não deixou saudades. Sempre preocupado com o dinheiro, as minhas filhas em colégios demasiado caros. A contratação de um mordomo sempre que dávamos um jantar, uma cozinha nova só porque os Harley Wright, que viviam no outro lado da rua, tinham redesenhado a sua e Dodie não suportava ficar para trás. Permanentemente preocupado com a liquidez financeira, com o estado do mercado de acções, as exigências de Lloyds, a possibilidade de me tornar supérfluo. Às vezes passava a noite sem dormir. E tudo isso para nada. Mas foi preciso afastar-me para me dar conta dessa realidade.

Agora estás bem?

Em que aspecto?

Financeiro, suponho.

Sim, estamos bem. Sem problemas. Não temos muito, mas também não precisamos de mais.

Vivem de quê? Das vossas galinhas? Jeffrey desatou a rir.

Seria difícil. No entanto, mantêm-nos ocupados e proporcionam-nos um pequeno rendimento. No Verão, o facto de oferecermos cama e pequeno-almoço ajuda, mas só temos um quarto, que é o teu, e como a casa de banho é comum, não podemos cobrar muito. Há um edifício abandonado entre esta casa e a quinta, e de vez em quando pensamos em propor a sua compra para depois o convertermos num anexo para turistas, mas ainda é um empreendimento razoável, por isso vamos sempre adiando. Serena ainda trabalha, faz arranjos para casamentos e festas do género, e Ben e Amy estão a receber uma educação excelente na escola local. Para mim foi uma revelação descobrir como se pode viver bem com simplicidade.

E feliz?

Mais feliz do que alguma vez imaginei possível.

-E Dodie?

Está a viver num apartamento nos arredores de Hurlingham, muito jeitoso, com vista para o rio. Nicola está com ela, pois o seu casamento foi por água abaixo, portanto ficaram a viver juntas, sem dúvida a darem cabo da cabeça uma à outra.

E a filha de Nicola?

A minha neta Lucy. Já tem catorze anos. Pobre miúda, agora também vive lá com elas. A vida dela não deve ser fácil, mas nada posso fazer para o evitar. Ainda tentei convidá-la a vir passar uns tempos aqui connosco, mas Nicola diz que eu sou um patife e Serena uma bruxa, portanto não a deixa visitar-nos.

Elfrida suspirou. Entendia perfeitamente a impossibilidade de alterar a situação. Perguntou ainda:

E Carrie?

Ainda está na Áustria, ou algo do género. Arranjou um bom emprego numa agência de viagens e tem uma posição cheia de responsabilidade.

Não costumas vê-la?

Almoçámos juntos na última vez em que estive em Londres, mas é raro haver possibilidade de nos encontrarmos.

Não casou?

Não.

E ela, vem cá?

Não, mas por razões válidas. Não quer incomodar, constranger Serena, Ben e Amy. Seja como for, já tem trinta anos, não é nenhuma menina. É senhora da sua própria vida. Se quiser vir a Emblo, sabe que basta pegar no telefone.

Fez uma pausa para pousar a bebida, puxar de um cigarro e acendê-lo. Elfrida comentou:

Vejo que não desististe.

Não, não desisti nem tenciono fazê-lo. Isso choca-te?

Jeffrey, nunca nada me chocou ao longo da vida. Tu sabes.

Estás com um aspecto maravilhoso. Como tens passado?

Maravilhosamente, suponho.

A solidão não pesa muito?

Cada vez menos.

O que te aconteceu foi uma crueldade.

Referes-te a Jimbo? Querido homem. Foi mais cruel para ele do que para mim. A degeneração lenta de um homem brilhante. Mas não ficaram mágoas, Jeffrey. Sei que durou pouco tempo, mas o que tivemos foi especial. Poucas são as pessoas que alcançam tão grande felicidade, mesmo que por um ano ou dois.

Fala-me do teu esconderijo em Hampshire.

Dibton. A vila é vulgaríssima e sem nada de empolgante, mas creio que era precisamente disso que eu andava à procura. casa é uma casinha de operário dos caminhos-de-ferro, faz parte de uma fiada delas. Tudo aquilo de que preciso.

-Pessoas simpáticas?

Também elas vulgaríssimas. Simpáticas e amistosas. Acho que

poderá dizer que fui bem recebida. Em Londres é que eu não podia continuar.

Alguma amizade especial?

Elfrida começou por lhe falar dos Foubister, de Bobby Burton-Jones, do pastor e da mulher, e da pantomima da escola primária. Passou depois a Mrs. Jennings, Albert Meddows e ao fabulosamente rico Mr, Dunn, com a sua piscina coberta e a sua imensa estufa de gerânios vermelho-fogo e plantas da borracha.

Por fim, falou-lhe dos Blundell: Oscar, Gloria e Francesca.

Têm sido verdadeiramente amigos. Poderá dizer-se que me tomaram sob sua protecção. Gloria é rica e generosa. Levam uma vida um bocado independente. A casa onde vivem, conhecida pela Granja, foi herdada por ela, é perfeitamente hedionda, apesar de terrivelmente acolhedora e confortável. Ela tem dois filhos, já crescidos, de um primeiro casamento, mas Francesca é muito original, engraçada e meiga. Gloria é uma anfitriã ávida; mal se passa um dia em que não organize uma festa, um piquenique, um encontro ou uma reunião qualquer. Adora cavalos e pela-se por reunir montes de amigos, com quem marca um local de encontro, indo depois ter com eles com um bar no porta-bagagens e os pequineses a ladrar desvairadamente a quem passa.

Jeffrey estava nitidamente divertido.

E Oscar também gosta dessas ocasiões?

Não sei. Mas é um homem gentil, amável... um encanto de pessoa, na verdade... e sai muito com Francesca para apostar nos cavalos mais improváveis e comprar sorvetes.

Que é que ele faz? Ou é reformado?

É músico. Organista. Pianista, professor.

Fizeste muito bem em arranjar amigos tão interessantes. Salta à vista que te adoram, provavelmente porque tiveste sempre o condão de entrar como uma boa lufada de ar fresco na vida das pessoas.

Elfrida, porém, falou com uma certa reserva:

Tenho de ser muito cuidadosa e restrita comigo mesma. Não tenciono deixar-me absorver.

Quem não quereria absorver-te?

Não deves ser sectário.

Estive sempre do teu lado.

Anos mais tarde, ao fazer uma retrospectiva das semanas passadas em Emblo, aquilo que Elfrida recordaria com maior clareza seria o som do vento. Este soprava continuamente, umas vezes reduzido a uma brisa agradável, outras projectando-se do mar com força tempestuosa, fustigando os penhascos, ululando chaminés abaixo e fazendo tremer portes e janelas nos seus gonzos. Passado pouco tempo, habituou-se à sua presença constante, mas à noite era impossível ignorá-lo, o que a fazia ficar deitada, no meio da escuridão, a ouvi-lo soprar impetuosamente do Atlântico, lançar-se pela charneca acima e fazer com que os ramos de uma velha macieira lhe batessem fantasmagoricamente na janela do quarto. Esse vento tornou claro que o Verão chegara ao fim. Outubro mudou para Novembro, e as noites iam ficando cada vez maiores. As vacas do fazendeiro, uma bela manada de leiteiras Guernsey, desciam dos campos para ser mungidas de manhã e de tarde, transformando o prado entre Emblo e a casa da quinta num lodaçal. Depois de lhes tirarem o leite à tarde, eram de novo devolvidas aos pastos e abrigavam-se junto de um muro que se erguia num terreno não cultivado ou atrás de um emaranhado de mato e tojo.

Porque é que não ficam abrigadas dentro de um estábulo durante a noite? quis Elfrida saber.

Nunca ficaram. Não temos geada por aqui, e a erva abunda.

Pobres bichos comentou Elfrida vendo-se obrigada a reconhecer, no entanto, que tinham um aspecto luzidio e razoavelmente satisfeito.

A rotina diária da pequena família assenhoreou-se dela, acabando por fazê-la adaptar-se ao seu ritmo tranquilo. Havia sempre roupa para apanhar, camisas para engomar, batatas para desenterrar, galinhas para alimentar e ovos para lavar. Passada a primeira semana apercebeu-se, algo admirada, de que há sete dias que não lia um jornal nem via televisão. O resto do mundo bem poderia ir pelos ares, que Elfrida só se preocupava em tirar os lençóis da corda antes da chuvada seguinte.

Nalgumas noites chegava mesmo a encarregar-se da cozinha e a preparar o jantar para Amy e Ben, permitindo assim que Jeffrey e Serena fossem jantar fora ou a um cinema próximo. Ensinou também as crianças a jogar às cartas e hipnotizava-as com histórias dos seus tempos no teatro.

Certo fím-de-semana, o tempo instável aqueceu como na Primavera, o vento deixou de soprar com tanta força e o Sol brilhou num céu sem nuvens. Serena, decidida a aproveitar o melhor possível o dia benevolente, chamou os quatro filhos do fazendeiro, arranjou um farnel de piquenique, e o grupo, formado por seis crianças, três adultos e três cães, lançou-se a caminho pelos campos, em direcção aos penhascos. Amy e Elfrida iam lado a lado, à cabeça. O carreiro levou-os a uns degraus de pedra que serpenteavam encosta abaixo, por entre tojo e arbustos espinhosos.

Elfrida avistou amoras-pretas.

Podíamos apanhá-las sugeriu a Amy , para depois fazermos compota.

Amy, porém, foi mais ajuizada.

Não, não podemos. Depois de Outubro não se podem colher amoras, porque é nessa altura que as bruxas da Cornualha as enfeitiçam.

Extraordinário. Como é que sabes isso?

Foi a nossa professora que nos contou. A única diferença é que ela não disse enfeitiçadas, mas sim urinadas.

Ao chegarem à beira do penhasco, depararam com toda a imensidão dO oceano, extravagantemente azul e refulgente sob a luz do Sol. O carreiro descia, levantando dificuldades e parecendo perigoso, até desembocar numa enseada secreta. A maré estava baixa, daí que houvesse uma pequena faixa de areia e as poças nas rochas brilhassem como jóias.

Todos desceram com uma certa dificuldade, se bem que os cães se lançassem em frente sem temor. Ao chegarem às rochas, Amy deixou Elfrida nestas e foi juntar-se aos outros no areal, onde Jeffrey já pusera todos a erguer um castelo de areia gigantesco, enquanto Serena procurava conchas e pedrinhas arredondadas para depois o enfeitar.

Chegado o meio-dia, o sol começou a aquecer verdadeiramente, ao ponto de Elfrida tirar o casaco e enrolar as mangas da camisola para cima. Tinham deixado toalhas, cestos e mochilas com o farnel em cima de uma rocha mais lisa onde Elfrida se sentou a observar o mar, sentindo-se hipnotizada pela sua imensidão e magnificência. As cores da água e a sua limpidez eram de tirar o fôlego: faixas de azul, verde, turquesa, púrpura, todas se entremeavam, rendilhadas de espuma branca. Às tantas, ergueu-se uma vaga enorme, e as ondas começaram a formar-se na zona de rebentação, ao largo, ganhando altura e peso antes de se esmagarem contra a linha costeira de granito entalhado, projectando enormes jactos de água sibilante no ar. No alto, as gaivotas rodopiavam e, ao longe, perto da linha do horizonte, via-se um pequeno barco de pesca a abrir caminho por entre a água turbulenta.

Elfrida ficou a olhar, enfeitiçada, perdendo por completo a noção do tempo, mas, pouco depois, Serena foi para junto dela, afim de preparar o piquenique. Tirou de dentro dos cestos e das mochilas garrafas, copos de plástico, guardanapos, um saco de maçãs. De um deles vinha um apetitoso cheiro a pasteis quentes.

Elfrida ficou espantada:

Quando é que fizeste esses pasteis, Serena? Levam imenso tempo.

Tenho sempre alguns na arca congeladora. As crianças adoram-nos.

Eu também.

Tirei-os ontem à noite. Tinha o pressentimento de que o dia iria estar bom. Que tal uma bebida? Podes escolher entre cerveja ou vinho. Ou limonada, se te sentires abstémia.

Prefiro vinho.

A garrafa vinha dentro de um saco térmico e o vinho, bebido de um copo de plástico, soube melhor do que algum outro anteriormente provado. Elfrida virou-se de novo para o oceano e declarou:

Isto é o paraíso.

No Verão vimos para cá quase todos os fíns-de-semana. Agora que as duas crianças já podem andar sozinhas, é mais fácil.

Que família tão feliz a vossa.

É verdade concordou Serena, sorrindo. Eu sei. Temos muita sorte. Mas olha que tenho mesmo consciência disso, Elfrida. De verdade. Todos os dias me sinto agradecida.

De vez em quando, Elfrida saía de Emblo e ia dar uma volta de carro sozinha, deixando Horace na companhia dos cães-pastor de Jeffrey. O facto de aquele pequeno pedaço do país ser tão selvagem, remoto e, ainda assim, tão diversificado, não cessava de a espantar. As estradas, libertas do trânsito turístico do Verão, eram estreitas e serpenteantes, porém nada mais encontrou além de uma ocasional camioneta, carrinha de carniceiro ou tractor. A estrada, depois de atravessar uma charneca vazia, deslizava até um vale minúsculo cheio de rododendros, onde jardins de meter inveja ainda se mantinham verdejantes com hortênsias e as saltitantes florescências pendentes conhecidas por brincos-de-princesa.

Um dia, foi até à cidade vizinha, onde estacionou o carro e seguiu depois a pé pelo emaranhado confuso de ruelas e azinhagas que conduziam ao porto. Na rua deste havia restaurantes, lojas de artesanato e uma série de pequenas galerias com todo o tipo de arte e escultura. Encontrou uma livraria e entrou, demorando algum tempo a escolher dois livros para Amy e Ben. Soube-lhe tão bem que se foi deixando ficar e, ao lembrar-se de Francesca, também lhe comprou um. Encontrou-o na secção de livros em segunda-mão: A Ilha dos Carneiros, de John Buchan. Lembrava-se de o ter lido na escola e de ter ficado encantada com a aventura, além disso, sabia que era uma história que Oscar e Francesca podiam ler juntos, afundados na poltrona enorme junto da lareira de toros incandescentes.

Mandou embrulhar os livros, pagou-os, e a seguir saiu de novo para a rua, prosseguindo o seu caminho. Encontrou umas camisolas de cores vivas, feitas à mão, numa loja de artesanato, e escolheu duas, uma para Jeffrey e outra para Serena. Comprou postais e uma garrafa de vinho, depois, já consideravelmente carregada, lançou-se de novo ao caminho, enveredando por um labirinto de ruas de piso de pedras arredondadas, onde havia roupa pendurada a secar e nastúrcios e petunias cor-de-rosa nos parapeitos das janelas. Mais outra galeria. Incapaz de resistir, deteve-se em frente da montra, na qual viu uma pequena pintura abstracta, de moldura manchada a imitar madeira, com todas as cores da Cornualha aplicadas em formas que representavam exactamente as impressões e os sentimentos que aquela terra antiga lhe provocavam.

Elfrida sentiu imediatamente vontade de a levar, não para si, mas para a oferecer como presente. Pensou que se Jimbo fosse vivo, a compraria para lha oferecer, pois era exactamente o tipo de imagem que ele teria simplesmente adorado. Imaginou-se a dar-lha, a levá-la até sa ern Barnes, onde tinham sido tão inimaginavelmente felizes juntos. Imaginou-o a rasgar o papel de embrulho, enquanto ela observava a sua expressão, antecipadamente certa que seria de deleite e prazer...

A imagem tremeu, ficou aguada e Elfrida apercebeu-se de que tinha os olhos rasos de lágrimas. Nunca chorara por Jimbo, limitara-se a sofrer o seu luto em privado, consigo mesma, tentando aprender a conviver com a solidão gélida de uma existência sem ele. Pensara tê-lo conseguido, mas não era assim. Perguntou a si mesma se não seria uma mulher incapaz de viver sem um homem e, a ser verdade, não havia nada que pudesse fazer.

Controlou as lágrimas. Ridículo. Tinha sessenta e dois anos e ali a chorar como uma rapariga que tivesse perdido o seu amado! No entanto, continuou no mesmo sítio, a olhar para o quadro, cheia de vontade de o ter. De partilhar o prazer que este lhe provocava. De o dar.

Lembrou-se então de o comprar para oferecer a Oscar Blundell. Mas Oscar não era simplesmente Oscar. Metade dele era Oscar e a outra metade, Gloria, e esta ficaria atónita perante tal presente. Elfrida podia ouvi-la a exclamar: «Elfrida! Não é possível que esteja a falar a sério. Não passa de um amontoado de formas. Uma criança de quatro anos seria capaz de fazer melhor. E qual é a parte de cima? Francamente, Elfrida, que tolice a sua. O que a levou a dar dinheiro por uma coisa dessas? Foi roubada.»

Não, não seria boa ideia. Afastou-se relutantemente da montra da galeria e seguiu em frente, deixando as ruas para trás e enveredando por um caminho que subia aos ziguezagues até ao topo do promontório verdejante que dividia as duas praias. O vento foi-se tornando cada vez mais forte e impetuoso à medida que subia, e quando chegou ao cimo, deu consigo rodeada de oceano e céu, unidos num azul imenso na curva do horizonte. Dava um pouco a impressão de se estar no meio do mar. Acercou-se de um banco e sentou-se, aninhada no seu casaco forrado a pêlo de carneiro, rodeada dos seus embrulhos, fazendo lembrar uma velha reformada cansada das compras.

Mas ela não era uma velha reformada qualquer. Era Elfrida. Estava ali. Sobrevivera e continuava em frente. Mas em direcção a quê? Uma gaivota, que andava à procura de migalhas de pão ou algo comestível que tivesse ficado de algum piquenique, lançou-se do alto em voo rasante e pousou aos seus pés. Tinha uns olhinhos frios e ávidos e o seu descaramento fê-la sorrir. Percebeu que sentia falta de companhia. Especialmente da de Oscar. Desejava-o ali com ela, nem que fosse só por um dia, de modo a que, quando regressassem a Dibton, pudessem falar sobre o vento, o mar e a gaivota, recordar e maravilhar-se perante a magia de um momento especial.

Talvez isso fosse o pior de tudo. Não ter ninguém com quem recordar as coisas.

Quando chegou o dia de Elfrida regressar a Dibton, ela mal podia acreditar que estivera um mês em Emblo, tão celeremente as semanas haviam passado. Tentaram convencê-la, evidentemente, a ficar.

Podes cá ficar o tempo que quiseres disse-lhe Serena, e Elfrida percebera que falava com sinceridade. Foste uma maravilha, uma mistura de mãe, irmã e amiga. Sentiremos muitas saudades tuas.

És um amor, mas tenho de regressar. Retomar de novo a minha vida.

Voltarás cá?

Tenta impedir-me.

Planeara partir o mais cedo possível, afim de ainda chegar a Dibton antes do escurecer. Eram oito da manhã já estava fora de casa, enquanto Jeffrey carregava o carro. Tinha a pequena família à sua volta e Amy debulhada em lágrimas.

Não quero que vás. Tens de ficar.

Os hóspedes não ficam para sempre, Amy querida. É hora de partir.

Também Horace mostrava uma relutância desleal em partir. Sempre que o punham dentro do carro, saltava novamente para o chão até que, por fim, teve de ser arrastado pela coleira e colocado em cima do banco com a porta fechada. Ficou a olhar pela janela, com um ar de tristeza no focinho peludo e os olhos escuros pesarosos.

Parece-me observou Ben , que ele também vai chorar. Nem Amy nem Ben se tinham ainda vestido, de modo que os casacos acolchoados e as botas por cima dos pijamas davam-lhes um ar engraçado. Amy, ao ouvir o comentário do irmão, ficou ainda mais chorosa. A mãe inclinou-se e pegou-a ao colo.

Anima-te, Amy. Horace ficará bem assim que se puser a caminho.

Eu não quero que ninguém se vá embora. Eram horas de partir. Elfrida voltou-se para Jeffrey.

Meu querido, mil vezes obrigada. O primo ainda não se barbeara e ela sentiu-lhe o rosto áspero contra a face. E tu, Serena...

Deu-lhe um beijo, passou a mão pelos cabelos louros de Amy e sentou-se ao volante com determinação. Ligou o motor e afastou-se. Eles ficaram a acenar-lhe até o carro desaparecer de vista, mas Elfrida tinha a certeza de que só tinham voltado para dentro de casa depois do pequeno Fiesta entrar na estrada principal e de ela e Horace se encontrarem verdadeiramente a caminho.

Não era altura para se sentir solitária e sem família. O adeus não fora definitivo, pois podia voltar a Emblo quando quisesse. Talvez dali a um ano, ou mais cedo. Jeffrey e Serena estariam sempre ali, assim como Amy e Ben. Essa é que era a parte mais dolorosa: Jeffrey e Serena não mudariam, mas as duas crianças ficariam mais altas, magras, gordas; perderiam aquela inocência infantil, além dos dentes da frente.

Nunca mais voltaria a encontrar as crianças que aprendera a amar durante aquele período particular das suas vidas. Do mesmo modo que as férias tinham terminado, também elas tinham desaparecido para sempre. Elfrida, decidida a animar-se, olhou em frente com optimismo, como sempre fizera quando se tornava necessário encontrar uma maneira eficaz de lidar com uma sensação de perda. Ia voltar para o pequeno ninho que lhe servia de lar, para os seus pequenos pertences. Para o diminuto refúgio que partilhava com Horace. Abriria portas e janelas, inspeccionaria o seu jardim, acenderia a lareira.

No dia seguinte, provavelmente, telefonaria para a Granja e falaria com Gloria. Soariam então gritos de alegria pelo seu regresso e um pedido imediato para que lá fosse a casa. E quando Elfrida fosse, levaria consigo o livro para dar a Francesca, A Ilha dos Carneiros. Dir-lhe-ia: «Escolhi-o de propósito para ti porque adorei lê-lo quando tinha a tua idade e tenho a certeza de que também gostarás.»

Mas Elfrida sabia que precisava de fazer umas compras antes de seguir para a Poulton's Row. O seu primeiro porto de escala seria o minimercado de Mrs. Jennings. Começou a fazer mentalmente uma lista: pão, leite, salsichas, ovos, manteiga, café, biscoitos e umas latas para Horace. Talvez uma sopa para o seu jantar. Algo de sustento como uma Cullen Skink...

Meia hora depois, entrou na auto-estrada no sentido sul-norte. Ligou o rádio e preparou-se para a longa viagem.

O relógio da igreja de Dibton marcava duas e meia da tarde quando entrou na estrada principal da vila. Em frente do minimercado de Mrs. Jennings estava o mesmo grupo de jovens rústicos do costume e, um pouco mais adiante, divisou Bobby Burton-Jones a aparar as sebes de alfena do seu jardim com um par de tesouras. Nada parecera ter mudado, excepto a maioria das árvores ter deixado cair as suas folhas e haver já uma inconfundível friagem invernosa no ar.

Elfrida estacionou o carro, pegou na sua bolsa e entrou no estabelecimento, que parecia estar vazio. Pegou num cesto metálico e foi andando pelos corredores, tirando aquilo de que necessitava das prateleiras. Por fim, aproximou-se do balcão, onde Mrs. Jennings fazia contas nas costas de um envelope, pois não a ouvira chegar.

Foi então que, ao olhar para cima, a viu. Pousou o lápis e tirou os óculos.

Viva, Mistress Phipps, que surpresa. Já não a vejo há semanas. As férias foram boas?

Maravilhosas. Acabei de chegar. Ainda não fui a casa, porque Precisava de comprar algumas provisões. Pousou o cesto das compras em cima do balcão e estendeu a mão para o Daily Telegraph. Acredita que passei um mês sem ler o jornal? Para ser sincera, nem lhe senti a falta.

Mrs. Jennings não fez nenhum comentário. Elfrida fítou-a e viu-a a olhar fixamente para ela, mordendo os lábios com ar aflito. Elfrida pousou o jornal em cima das suas compras. Passado um bocado, perguntou:

Há algum problema, Mistress Jennings?

Então não sabe? perguntou-lhe a dona do minimercado.

Não sei o quê?

Não ouviu falar?

Elfrida sentiu a boca repentinamente seca.

Não.

Foi Mistress Blundell.

Que tem?

Morreu, Mistress Phipps. Um desastre de carro no desvio de Pudstone. Trazia a filha para casa, depois de uma festa de fogo-de-artifício. Foi no dia quatro de Novembro. Um enorme camião articulado. Só Deus sabe como aconteceu. Ela não o deve ter visto. Estava uma noite pavorosa. Chovia a cântaros.

Elfrida, atordoada pelo choque, não conseguia falar.

Lamento, Mistress Phipps, pensei que já lhe tivessem contado.

Como é que poderia ter sabido? Não li um único jornal e ninguém sabia onde eu estava. Não deixei a morada do sítio para onde ia a ninguém.

Uma tragédia, Mistress Phipps. Mal podíamos acreditar. Aqui na vila ninguém queria aceitar o sucedido.

E Francesca? perguntou, receosa da resposta.

Também morreu, Mistress Phipps. Assim como os dois cãezinhos que iam atrás. Se visse a fotografia no jornal, não acreditava. O carro ficou todo esmagado. Elas não tiveram hipótese. A única coisa boa foi, segundo a Polícia, o ter sido instantâneo. Nenhuma delas se deve ter apercebido. A voz de Mrs. Jennings tremeu ligeiramente. Notava-se que lhe era extremamente penoso falar no sucedido. Uma pessoa passa a vida a ouvir falar deste tipo de coisas, mas quando acontecem com alguém que conhecemos...

É verdade.

A senhora ficou branca como a cal, Mistress Phipps. Quer que lhe prepare uma chávena de chá? Venha até ao fundo da loja.

Não, estou bem, obrigada. O que parecia ser verdade, pois o tremendo choque deixara-a calada, bastante calma e impassível. Perguntou: E o funeral?

Foi há dois dias, aqui na vila. Apareceu imensa gente. Uma verdadeira homenagem.

Queria então dizer que ela perdera até mesmo a possibilidade de chorar pelos mortos e reconfortar os vivos.

E Oscar... Mister Blundel? perguntou.

Mal o vimos. Esteve no funeral, claro, mas depois disso desapareceu. Mantém-se recolhido. Pobre senhor. Uma pessoa nem imagina o que tem passado. O Que está a passar.

Lembrou-se de Francesca a rir e a brincar com o pai, a tocar em conjunto com ele ao piano, enrodilhada contra ele na poltrona enorme a Uvi-lo ler-lhe um livro. Depois afastou a imagem da mente, pois recordá-la era demasiado insuportável.

Ele está na Granja? inquiriu.

Tanto quanto sei. O rapaz tem lá ido deixar o leite, os jornais e outras coisas. Suponho que queira estar sozinho. O que é natural. O pastor foi até lá, mas nem a ele o quis ver. Mistress Muswell vai lá todos os dias, como sempre fez, mas diz que ele não sai da sala de música. Deixa-lhe um tabuleiro preparado com o jantar em cima da mesa da cozinha, mas conta que, na maioria das vezes, nem lhe toca.

Acha que ele aceitará receber-me?

Não faço ideia, Mistress Phipps. No entanto, a senhora e ele sempre foram amigos.

Devia cá ter estado.

A culpa não foi sua, Mistress Phipps.

Alguém entrara na loja e Mrs. Jennings voltou a colocar os óculos, numa tentativa corajosa de parecer atarefada.

Isto é para pôr na sua conta, não é verdade? Prazer em vê-la. Sentimos a sua falta. Acho que estraguei o seu regresso a casa. Desculpe.

Obrigada por me contar. Ainda bem que foi a senhora e não outra pessoa qualquer.

Saiu da loja, entrou no carro, onde se deixou ficar sentada por momentos, com a sensação de que o seu dia, a sua vida, fora partido ao meio e jamais poderia ser reparado, nunca mais voltaria a ser a mesma. Passara dos risos e da felicidade de Emblo para uma situação de perda e dor impensáveis. E o que mais a perturbava era o facto de não ter sabido da tragédia, não ter tido nenhum palpite ou suspeita da mesma. Aquilo fazia com que se sentisse culpada por alguma razão, como se tivesse fugido às suas responsabilidades, ter ficado em Emblo em vez de estar ali. Em Dibton. Junto de Oscar.

Passado um bocado ligou o motor e afastou-se, acabrunhada. Bobby Burton-Jones acabara de aparar as suas sebes e desaparecera porta dentro, o que foi um alívio, pois não tinha vontade de parar para falar com ninguém. Percorreu a rua principal da vila e virou na esquina que dava para aquela onde morava. As casas foram escasseando, até que, a certa altura, chegou diante dos enormes portões da Granja, a casa que Pertencera a Gloria. Enveredou pelo caminho de acesso, subiu e deu a volta ao lado do sítio onde o majestoso cedro crescia. Avistou a fachada elaborada da casa e viu uma enorme limusina preta estacionada em frente da porta ampla.

Parou o carro um pouco mais adiante e apeou-se, reparando então que ao volante do impressionante veículo estava um motorista, de uniforme e boné, a ler o jornal. Ao ouvi-la, olhou-a de relance, cumprimentou-a com uma inclinação de cabeça e voltou aos seus resultados das corridas. Via-se bem que não estava para conversas. Elfrida passou por ele, subiu os degraus e percorreu a entrada aberta, detendo-se depois no familiar alpendre forrado a azulejo. A porta semienvidraçada estava fechada, mas ela não tocou à campainha, simplesmente abriu-a e entrou.

Reinava o maior silêncio, cortado apenas pelo tiquetaque do relógio de pé alto. Deteve-se por instantes, de ouvido à escuta, à espera de ouvir reconfortantes sons domésticos vindos da cozinha ou um fio de música do andar de cima. Nada. O silêncio era sufocante, como um nevoeiro.

À sua direita, a porta da sala de estar encontrava-se aberta. Elfrida atravessou o vestíbulo, onde carpetes espessas abafaram os seus passos, e entrou, imaginando-se sozinha. Foi então que viu um homem sentado na poltrona ao pé da lareira apagada. Calças de tweed, sapatos rústicos e pesados. Pouco mais se via.

Oscar - murmurou, aproximando-se para o olhar. Foi então que sentiu o segundo maior choque daquele dia terrível. Oscar estava ali, envelhecido como nunca o poderia imaginar, transformado num velho de óculos, enrugado e encolhido na poltrona, com uma das mãos descarnadas a agarrar no punho de prata de uma bengala de ébano. Levou instintivamente a mão à boca para abafar um grito ou, talvez, esconder o seu desespero.

O homem ergueu a cabeça para ela e exclamou:

Santo Deus!

Elfrida sentiu um alívio tão grande invadi-la que pensou que as suas pernas iam ceder. Antes que tal acontecesse, sentou-se precipitadamente no banco almofadado em frente da lareira. Ficaram a olhar um para o outro e, a certa altura, ele disse:

Não a ouvi chegar. Tocou à campainha? Sou um bocado surdo, mas tê-la-ia ouvido. Teria ido à porta...

Não se tratava de Oscar, inacreditavelmente envelhecido. Era outra pessoa parecida com Oscar, mas não era Oscar. Talvez uns vinte anos mais velho que ele. Um cavalheiro idoso, já entrado nos oitenta, a falar com extrema cortesia e acentuado sotaque escocês. A sua voz lembrava-lhe a de um velho médico muito estimado, que cuidara de si nos seus tempos de criança. Por alguma razão, isso tornou muito mais fácil lidar com ele.

Não - respondeu-lhe , não toquei à campainha. Apenas entrei.

Desculpe não me levantar. Ultimamente ando um pouco hirto e lento. Talvez devêssemos apresentar-nos. Sou Hector McLellan. Oscar é meu sobrinho.

 

Hector McLellan, em tempos proprietário de Corrydale, mas no presente a viver em Londres, cujo filho Hughie deixara Inglaterra para sempre, fora viver Para Barbados.

Elfrida observou:

Oscar falou-me em si.

E como se chama a senhora, minha querida?

Elfrida Phipps. Moro na vila. Sozinha. Gloria e Oscar foram imensamente gentis comigo. Lamento ter-me comportado com tão pouca delicadeza quando cheguei. O senhor pareceu-me Oscar, mas depois apercebi-me da minha confusão.

Oscar envelhecido pelo sofrimento?

Exactamente. Acho que sim. Sabe, ainda não o vi. Fui passar um mês à Cornualha, com uns primos. Acabei de saber tudo através de Mistress Jennings, do minimercado da vila. Entrei para comprar pão e... umas coisas. Foi então que ela me contou.

Compreendo. Foi um acidente horrível.

Que aconteceu?

O velho encolheu os ombros.

Gloria meteu pelo desvio e foi contra um enorme camião articulado.

Quer dizer que não chegou a vê-lo?

Estava muito escuro. Começara a chover.

Mistress Jennings contou que fora a uma festa com Francesca. Espectáculo de fogo-de-artifício ou algo do género.

Precisamente.

Elfrida mordeu os lábios. Passados instantes, observou:

Às vezes, no fim das festas, ela ficava um pouco bebida de mais.

Arrependeu-se imediatamente de ter feito o comentário. O velho, porém, não desmentiu.

Eu sei, minha querida. Todos nós estávamos a par. Às vezes, Gloria excedia-se um pouco. Ficava demasiado alterada no fim dos convívios. Talvez lhe custasse resistir. E depois vinha a guiar para casa. Oscar sabe isso melhor que qualquer de nós. Está cheio de remorsos por não ter sido ele a levar Francesca à festa de fogo-de-artifício. Acho que nunca pensou que fosse algo mais do que uma festa para crianças, e que depois Gloria não traria Francesca directamente para casa. Mas imagino que estivessem lá outros pais e a coisa continuou. Começou a chover pouco antes de se virem embora. Depois, uma distracção momentânea, uma confusão de luzes, um veículo pesado, uma estrada molhada... Abriu os braços num gesto que dizia tudo. Tudo acabado. Vidas que se foram.

Não cheguei a tempo nem mesmo do funeral.

Eu também não. Estava com gripe e o meu médico proibiu-me de vir. Esta é a minha primeira visita, embora tenha enviado um cartão de condolências e entrado em contacto pelo telefone. Só ao falar com Oscar é que me dei conta da sua situação. Portanto, assim que pude vim de Londres para conversar com ele. Posso estar velho, mas ainda sou seu tio. Certamente viu o meu carro e o meu motorista à porta.

Sim, vi. Elfrida ficou com expressão preocupada. O senhor falou na «sua situação». Isso tem algum significado especial?

Pode crer.

Poderei saber do que se trata?

Não é segredo, minha querida. Gloria deixou tudo aos filhos, incluindo a casa. No dia a seguir ao funeral, vieram ter com ele e comunicaram-lhe que não podia continuar a viver na casa, porque tencionavam vendê-la.

E onde é que eles imaginam que ele vai viver?

Sugeriram um lar para a terceira idade qualquer. Creio que se chama O Prior. Trouxeram umas brochuras para ele ler. Acrescentou com velada ironia: Via-se bem que tinham pensado em tudo.

Quer dizer que o põem na rua? Num lar de idosos? Oscar? Devem estar loucos.

Não, não creio que estejam malucos, o que são é avarentos e impiedosos. E também têm duas mulheres sem coração, provavelmente a fazer força por trás, afim de deitarem a mão a tudo o que houver de valor.

Nesse caso, Oscar tem de comprar outra casa.

Hector McLellan baixou a cabeça e olhou para Elfrida por cima dos aros dos óculos.

Oscar não tem recursos - informou.

Quer dizer que não tem dinheiro?

Uma reforma, evidentemente, e algumas economias, mas não o suficiente para comprar uma casa decente aos preços inflacionados de hoje em dia.

Os filhos de Gloria, Giles e Crawford, devem ter conhecimento disso. Lembrou-se de algo mais. A própria Gloria devia saber. Certamente deixou alguma coisa a Oscar. Era sempre tão generosa, tão dada a obras de caridade!

Talvez tencionasse fazê-lo. Ainda era uma mulher relativamente nova. É bem provável que a possibilidade de morrer antes de Oscar nunca lhe tenha ocorrido. Ou talvez, simplesmente, nunca tenha chegado a fazer um testamento novo, ou a acrescentar algum codicilo ao antigo. Nunca saberemos.

Mas ele não pode ir viver para um lar da terceira idade. A própria ideia era ofensiva: Oscar, nem mais nem menos, enfiado no meio de um grupo de velhos incontinentes, a comer pudins de leite e a fazer cestos! A ideia que tinha de um lar não era muito clara, pois nunca visitara nenhum. Declarou firmemente: Não permitirei que tal aconteça.

Que tenciona fazer?

Ele pode ir viver comigo. Mal acabara de falar já se dava conta da impossibilidade de concretizar a sugestão. Na Poulton's Row mal havia espaço para um, quanto mais para dois! E onde é que ele colocaria o seu piano de cauda? No telhado, ou no barracão do quintal? Parece que disse um disparate. Não, isso não é possível.

Na minha opinião, acho que ele devia ir-se embora. Esta casa e esta vila, tudo isto está cheio de recordações penosas. O melhor seria afastar-se. Desloquei-me até cá precisamente para o ver. Mistress Muswell deu-nos almoço. Apresentei a minha sugestão, mas Oscar parece incapaz de tomar qualquer tipo de decisão. Dá a impressão de que não se importa com o que possa acontecer-lhe.

Onde é que se encontra neste momento?

Foi chamado ao jardim. O sistema de aquecimento da estufa está

com um problema qualquer. Disse-lhe que esperava até ele voltar, mas depois regressaria a Londres. Foi por isso que me encontrou aqui sentado na poltrona do meu sobrinho, parecendo, sem dúvida, um velho espírito maléfico.

O senhor não faz lembrar nenhum velho espírito maléfico. Qual foi a sua sugestão?

Que ele vá para Sutherland passar uns tempos. A Corrydale e à velha casa da quinta. Seja como for, metade pertence-lhe, e o meu Hughie, que é dono da outra metade, vive em Barbados e é provável que fique por lá.

Pensei que a casa estivesse arrendada.

Não, neste momento está vazia. Vivia lá um casal de idosos, os Cochrane, mas o velhote morreu e a mulher foi viver com a filha. Soube do acontecido através do nosso antigo feitor, o major Billicliffe. Já se reformou, mas continua a viver em Corrydale. Quando Hughie vendeu a maior parte dos bens que lhe deixei, o major comprou a casa do guarda florestal. Telefonei-lhe e falámos durante um grande bocado. Ele diz que a casa está em boas condições, talvez precise de uma pintura, mas de resto está sólida e não tem humidade.

Mobilada?

Sim, nada de luxuoso, mas dá perfeitamente para ali viver no dia-a-dia.

Elfrida reflectiu por um momento. Sutherland. Imaginou como sena: turfeiras e carneiros. Longínqua como a Lua. Observou:

Fica muito longe para Oscar ir, ainda por cima sozinho.

Em Corrydale e em Creagan conhecem-no. É da família, meu sobrinho. As pessoas são amáveis. Hão-de lembrar-se dele, apesar de já lá não ir há cinquenta anos.

Mas estará ele disposto a um afastamento desses? A tão grande mudança na sua vida? Porque não voltar a Londres e ficar perto da igreja onde foi organista? Não seria mais sensato?

Uma regressão. assombrada, perto, por recordações da filha.

Sim, tem razão.

E o mais triste é ter abandonado a sua música. É como se a melhor parte de si tivesse morrido.

Como é que poderei ajudar?

Isso é consigo. Tentar convencê-lo com jeitinho, talvez?

Posso tentar.

Não saberia, porém, aonde ir buscar as forças.

Ficaram calados, a olhar tristemente um para o outro. O silêncio foi interrompido pelo som de passos que se aproximavam, lentos, pelo piso de cascalho que dava acesso à casa. Elfrida levantou a cabeça e viu Oscar passar em frente da janela comprida. Ficou imediatamente nervosa. Pôs-se de pé.

Já aí vem disse.

A porta da frente abriu-se e fechou-se. Aguardaram. Uma longa pausa. Depois a maçaneta girou, a porta da sala abriu-se e ele apareceu, ficando a olhar para os dois do outro lado do enorme tapete espesso. Vestia umas velhas calças de bombazina e um camisolão tricotado com um ponto que fazia lembrar tweed. O cabelo branco farto caía-lhe sobre a testa, por isso empurrou-o para trás com a mão. Elfrida imaginara-o caído, arrasado pela tragédia, mas a dor, essa tinha-a escondida, pois era um homem reservado.

Elfrida. Soube que estava cá porque vi o seu carro lá fora. Ela aproximou-se dele, que lhe agarrou nas mãos beijando-a na face. Sentiu-lhe os lábios gelados na sua pele. Olhou-o nos olhos.

Querido Oscar. Já cá estou de novo.

Há quanto tempo chegou?

Há cerca de um quarto de hora. Parti da Cornualha hoje de manhã bem cedo. Fui ao minimercado e Mistress Jennings contou-me. Não sabia de nada. Há um mês que não leio jornais. Vim então imediatamente para aqui, onde encontrei o seu tio.

Compreendo. Largou-lhe as mãos e olhou para Hector que, sentado na sua poltrona, assistia ao encontro. Desculpe tê-lo feito esperar, Hector. Surgiram complicações. Algo a ver com o mecanismo eléctrico. Mas vejo que Elfrida lhe fez companhia.

E bem agradável. Agora tenho de me ir embora.

O que originou um grande esforço por parte do velho, que tentou levantar-se com a ajuda da bengala. Oscar aproximou-se imediatamente e estendeu-lhe a mão. Depois de um esforço considerável por parte de ambos, conseguiu que o tio ficasse de pé, apoiado ao bastão e preparado para partir.

Atravessaram a sala ao ritmo do passo do velho senhor, até chegarem ao vestíbulo. Aí, Oscar ajudou-o a vestir o sobretudo antiquado e a pôr o usado chapéu de feltro castanho na cabeça. Hector deu-lhe uma inclinação jovial.

Apreciei muito a sua vinda. Hector A sério Foi um prazer vê-lo.

Meu caro, grato pelo almoço. Se fores até à cidade, aparece lá em casa.

Sem dúvida.

E pensa na minha sugestão. Pode parecer um pouco drástica, ao menos permitir-te-á mudar de ares. Aqui é que não deves ficar. - De repente, lembrou-se de algo e começou a apalpar o bolso do sobretudo. Quase me esquecia. Tomei nota do número de telefone de Billidiffe para ti. Basta ligares para ele, tem a chave da casa. Tirou um bocado de papel dobrado do bolso e entregou-o ao sobrinho. Só convém que não deixes muito para o fim do dia acrescentou com um brilhozinho nos velhos olhos remelosos. Ele tem tendência para se consolar com uma garrafa de uísque e, depois disso, fica com a cabeça à nora.

Elfrida, porém, estava preocupada com outras questões de carácter mais prático.

Há quanto tempo a casa está vazia?

Uns dois meses. Mas uma tal Mistress Snead vai até lá de vez em quando para limpá-la e arejá-la. Billicliffe é que tratou disso, mas eu é que lhe pago o salário. Não interessa nada deixar a propriedade arruinar-se.

Parece observou Elfrida , que o senhor pensou em tudo.

Hoje em dia, não tenho muito em que pensar. Agora preciso de ir. Adeus, minha querida. Gostei muito de a conhecer. Espero que nos voltemos a encontrar um dia.

Eu também espero. Vamos acompanhá-lo ao carro.

Oscar enfiou a mão por baixo do cotovelo de Hector e os três saíram porta fora e desceram os degraus até ao piso de cascalho. A tarde esfriara e começara a cair uma chuva fina. O motorista, ao vê-los, saiu do carro enorme e deu a volta para abrir a porta do lado do passageiro. Ajudaram Hector a instalar-se no seu lugar e a prender o seu cinto de segurança.

Adeus, Oscar, meu caro. Fica bem. Oscar abraçou o velho tio.

Mais uma vez obrigado por ter vindo, Hector.

Só espero ter-te trazido algum conforto.

Pode crer que sim.

Afastou-se e fechou a porta. O carro começou a andar. Hector acenou com uma mão encarquilhada, enquanto os dois ficaram a vê-lo afastar-se, rumo a Londres, a uma velocidade apropriadamente digna. Ficaram ali até o carro desaparecer de vista e deixarem de ouvir o motor.

O silêncio que se seguiu foi preenchido pelo crocitar de gralhas. Estava frio e húmido. Elfrida estremeceu.

Voltemos para dentro sugeriu Oscar.

Tem a certeza de que não quer que eu me vá embora também?

Não, prefiro que não vá. Quero que fique comigo.

Mistress Muswell está cá?

Não, todos os dias sai a seguir ao almoço.

Gostaria de que lhe preparasse uma chávena de chá?

Acho que seria uma ideia excelente.

Posso levar Horace para dentro de casa? Tem passado o dia todo fechado no carro.

Claro que pode. Agora não corre perigo. Os pequineses que o atacariam já não existem.

Elfrida sufocou uma exclamação de horror. Atravessou o piso de cascalho e foi até ao seu pequeno carro abrir a porta a Horace. Este saltou para fora muito agradecido e disparou em frente, só parando em frente de um arbusto de loureiro mesmo a jeito, por baixo do qual se aliviou demoradamente. Terminada a satisfação daquela necessidade fisiológica, esgravatou em volta durante um bocado e depois voltou para junto deles. Oscar inclinou-se, acariciou-lhe a cabeça e só depois é que entraram todos em casa. Oscar fechou a porta e conduziu-os depois até à cozinha, confortavelmente aquecida. A cozinha de Gloria, espaçosa e eficiente, onde tanta comida deliciosa fora confeccionada para saciar os apetites de tantos amigos e familiares... Agora estava vazia, muito arrumada, e Elfrida reparou que Mrs. Muswell deixara em cima da mesa um tabuleiro com uma única caneca, um pote de leite e uma lata de biscoitos. Via-se que se esforçava o mais possível para alimentar e cuidar do seu solitário patrão.

Elfrida encontrou a chaleira, encheu-a e pô-la ao lume. Voltou-se para Oscar, que se inclinava para o agradável calor emanado do fogão, e disse-lhe:

Gostaria de ter o dom da palavra e uma mente privilegiada para saber o que lhe dizer, mas não é assim, Oscar. Lamento. Só gostaria de ter sabido antes. Teria voltado imediatamente da Cornualha, ao menos para assistir ao funeral.

Oscar puxou de uma cadeira e sentou-se à mesa da cozinha. Ao ouvi-la, pousou os cotovelos no tampo, enterrando o rosto entre as mãos. Durante um momento horrível, Elfrida pensou que chorava. Ouviu-se a si mesma continuar, desajeitadamente:

Por acaso, não pus os olhos num único jornal, não li um único durante um mês inteiro. Não fazia a menor ideia. Até hoje...

Oscar afastou lentamente as mãos do rosto e ela viu que não chorara, mas tinha uma angústia tão grande no olhar que era pior do que as lágrimas.

Eu teria entrado em contacto consigo, mas não sabia onde estava retorquiu-lhe ele.

Isso porque não me passava pela cabeça que pudesse precisar de saber. Respirou fundo. Oscar, conheço bem a dor e o sentimento de privação que representa perder um ser amado. Eu sempre soube, desde o aparecimento da doença de Jimbo, que era terminal, que ele jamais se recuperaria. Mas quando morreu, não estava minimamente preparada para tanto sofrimento e tão grande vazio. Também sei que aquilo que senti na altura não se compara com o que está a passar neste momento. £ nada pOSSO fazer para ajudar, para o consolar.

Está presente.

Se quiser falar, posso escutar.

Ainda não.

Eu sei. É demasiado cedo. Passou pouco tempo.

Pouco depois do acidente, o pastor veio cá. Logo a seguir a terem-me comunicado o falecimento de Francesca e de Gloria. Tentou reconfortar-me, falou de Deus, e eu perguntei a mim mesmo se ele estaria bom da cabeça. Certa vez, a Elfrida perguntou-me se eu era religioso; creio que não fui capaz de responder à sua pergunta. Só sabia que a minha música, o meu trabalho e os meus coros eram mais importantes para mim do que qualquer dogma da Igreja. O Te Deum. Lembra-se do seu primeiro jantar na Granja, quando demos uma volta pelo jardim e a Elfrida me disse que gostara especialmente de certa parte do Te Deun? As palavras, e essa música, já me encheram de uma certeza de divindade, e de eternidade, talvez.

«Nós Te saudamos, Senhor. Tu és o nosso Deus.

Toda a Terra Te adora, Pai Eterno.»

Foi quando tocava órgão, fazendo ribombar as notas e ouvindo as vozes dos rapazes a subir até aos esteios, foi aí que acreditei verdadeiramente, que soube o que era ter uma fé, a qual pensei que nada poderia abalar. calou-se.

Elfrida aguardou. Passado um bocado, inquiriu:

E agora, Oscar?

Tudo tinha a ver com Deus. E não posso acreditar num Deus capaz de me tirar Francesca. Mandei o pastor para casa. Pareceu-me que se foi embora um pouco aborrecido.

Elfrida mostrou-se compreensiva.

Pobre homem.

Sobreviverá, sem dúvida. A chaleira está a ferver.

A interrupção foi bem-vinda. Elfrida entreteve-se a procurar o bule e o chá, e a deitar este na água fervente. Encontrou outra caneca para si, levou tudo para cima da mesa e sentou-se em frente de Oscar, tal como tinham estado naquele dia, há uma eternidade, antes dela partir para a Cornualha, na sua pequena casa na Poulton's Row, tinha Oscar as botas todas enlameadas.

Gosta dele bem forte, não é?

Forte e preto.

Elfrida serviu-se e depois deixou o chá a abrir mais.

Hector falou-me dos seus enteados e da casa. Refiro-me à sua venda disse.

Eles acham que eu devo ir para O Prior, uma mansão vitoriana convertida em lar para cavalheiros desvalidos.

O Oscar não vai para lá, pois não?

Confesso que não tenho vontade nenhuma.

Que pretende fazer?

Gostaria de ficar sozinho, para me recuperar de tudo isto. não posso continuar aqui, pois Giles e Crawford querem que saia para poderem pôr a casa à venda, o mais depressa possível.

Brutos.

Elfrida deitou o chá de Oscar, preto como breu, na caneca, e empurrou-a para perto dele. O amigo juntou-lhe um pouco de leite e bebeu.

Ela disse-lhe:

Horace McLellan falou-me na sugestão que lhe fez.

Bem me pareceu.

A ideia é assim tão má?

Elfrida, é uma loucura.

Não vejo porquê.

Então dir-lhe-ei porquê. Sutherland fica na outra ponta do país e já lá não vou há cinquenta anos. Apesar do optimismo de Hector, não conheceria absolutamente ninguém. A casa tem estado meio ao abandono, há meses que não vive lá ninguém. Não sou um animal naturalmente domesticado. Não saberia por que ponta pegar para a tornar habitável. E para quem me viraria então?

Mistress Snead? Elfrida!

Era uma censura, mas, ainda assim, Elfrida insistiu:

Essa casa é muito isolada?

Não, fica em plena Creagan, a aldeia lá do sítio.

E horrenda?

Horrenda? repetiu Oscar. As palavras que a Elfrida utiliza! Não, é apenas uma casa larga, quadrada e sem nada que a distinga. Não é propriamente feia, mas também não tem nada que a alinde. E não dispõe de jardim, que também não serve de grande consolo quando é Inverno.

Nem sempre será Inverno.

O pior é que não consigo imaginar o que farei da minha vida.

Bem, uma coisa é certa: o Oscar não pode ficar aqui. E só vai para O Prior se passar por cima do meu cadáver. Portanto, tem que reflectir sobre as alternativas disponíveis. Podia ir viver comigo em Poulton's Row, mas, como sabe, aquele casebre mal tem espaço para mim e Horace. Oscar não fez nenhum comentário à sugestão mirabolante. Pensei que talvez gostasse de regressar a Londres, mas Hector disse-me que não é o caso.

E tem razão.

- Escócia continuou Elfrida em tom pensativo. Sutherland. ao menos seria começar de novo.

Tenho sessenta e sete anos e neste momento não estou em condições para começar o que quer que seja. E, apesar de não me apetecer falar com ninguém, também tenho pavor de ficar sozinho. Sentir solidão, viver só é o pior. A casa vazia. Mesmo antes de casar com Gloria, dispunha sempre da companhia de colegas, membros do coro, alunos, todo um mundo de gente animada. Tinha uma vida preenchida.

Pode voltar a ser assim.

Não.

Sim, Oscar, pode. Sei que nunca será o mesmo, mas o Oscar tem muito para dar às pessoas. Uma generosidade de espírito que nós não devemos desperdiçar.

Oscar franziu o sobrolho.

Disse «nós».

Foi um lapso. Queria dizer o Oscar.

Oscar acabou de beber o seu chá até a caneca ficar vazia. Pegou no bule e voltou a enchê-la com o que restara. Parecia ainda mais forte e escuro que na vez anterior e estranhamente pouco apetecível.

Supondo que ia para a Escócia. Como faria uma viagem tão longa?

Há aviões e comboios.

Preferia ir no meu carro.

Então vá a guiar. Não tem pressa. Siga por fases...

Elfrida sentiu a voz sumir e não foi capaz de terminar a frase, pois imaginar Oscar a empreender tal viagem até ao desconhecido, sozinho, enchia-a de desolação. Gloria devia estar ali ao seu lado, para partilharem o volante, Francesca no banco de trás, com os seus jogos de computador e a sua tagarelice ingénua. E no espaço ao fundo do carro enorme, os dois pequineses irrequietos e barulhentos, incluídos nas férias juntamente com os tacos de golfe e as canas de pesca...

Tudo desaparecido. Morto. Para nunca mais.

Oscar sentiu-lhe a angústia e pousou uma das mãos nas dela.

Tem de ser corajosa, Elfrida, senão eu não me aguento.

Estou a tentar. Mas não o posso aliviar.

Imaginemos... imaginemos que levamos a sua ideia em linha de conta. Imaginemos que vou. Que me meto no carro e parto para a Escócia, para Sutherland. Se eu fizer essa viagem, vem comigo?

Elfrida ficou calada; não sabia o que responder. Ficou a olhar para o rosto dele, ainda não muito certa de ter ouvido bem; se ele lhe fizera realmente aquela proposta extraordinária ou se, na confusão provocada Pelo choque e pela tristeza, a sua imaginação não a teria inventado?

Ir consigo?

Porque não? A ideia é assim tão má? Irmos juntos? Havemos de lá chegar. Iremos buscar a chave ao major Billicliffe, descobriremos a casa, tomaremos posse e passaremos o Inverno lá.

O Natal?

Natal, não. Este ano, não. Seria assim mau? É tão ao norte que os dias serão pequenos, as noites longas e escuras, e eu provavelmente não serei grande companhia. Mas, por volta da Primavera é possível que me sinta mais recomposto. Já terá passado algum tempo. Aqui, como claramente disse, não tenho futuro. Giles e Crawford querem a casa, portanto deixarei que fiquem com ela. Com toda a pressa que têm.

E a minha casa, Oscar? Que hei-de fazer com a minha casita?

Deixe-a. Ou feche-a. Ficará segura. Tenho a certeza de que os seus vizinhos a vigiarão.

Falava a sério. Estava a pedir-lhe que fosse com ele. Queria a sua companhia. Precisava dela. Dela, Elfrida. Excêntrica, desorganizada, fenecida já a sua beleza. Até mesmo com uma certa reputação duvidosa. E com sessenta e dois anos de idade.

Oscar, não sei se serei assim uma aposta tão boa.

Está a subestimar-se. Por favor venha, Elfrida. Ajude-me. Como poderei ajudar? perguntara a Hector, enquanto esperavam

que Oscar voltasse da estufa. E naquele momento fora Oscar a responder à pergunta.

Toda a vida fora impulsiva, tomara decisões sem pensar no futuro e não lamentara nenhuma delas, por mais tresloucadas que tivessem sido. Ao olhar para trás, só lamentara as oportunidades perdidas, por terem aparecido na altura errada ou porque fora demasiado tímida para as aproveitar.

Respirou fundo.

Está bem, irei.

Querida amiga.

Irei por ti, Oscar, mas também o devo a Gloria. Jamais esquecerei a simpatia e generosidade com que me trataram, a mim, uma desconhecida. Quando vim para Dibton, tu, Gloria e Francesca foram os meus primeiros amigos...

Continua.

Sinto-me envergonhada. Temos estado a falar e só agora pronunciei os seus nomes diante de ti. Na Cornualha, falava muito de vocês. Contava a Jeffrey coisas sobre os três, como tinham sido simpáticos comigo. Fui às compras e escolhi um livro para Francesca, e por pouco não comprei um quadro para ti e Gloria, mas depois achei que ela não o iria apreciar muito.

E eu, teria gostado?

Não sei. Formara-se-lhe um nó na garganta, que lhe dificultava a fala. Estava a chorar, sentia a boca a tremer, porém, as lágrimas, estranhamente, como que aliviavam, rolando-lhe quentes e molhadas pelas faces. Os velhos, lembrou a si mesma, ficam horríveis quando choram. Tentou enxugar as lágrimas com um lenço.

só estive uma vez na Escócia. Em Glasgow, faz imenso tempo, com uma companhia de teatro itinerante. Não tivemos quase público nenhum e nunca parou de chover. Procurou um lenço na manga e assoou-se. ... e não fui caPaz de entender uma única palavra do que me diziam.

Em Glasgow têm um sotaque muito pronunciado.

Na altura não teve graça nenhuma.

E agora também não, mas, como sempre, fizeste-me sorrir.

-Como uma espécie de palhaço?

Não, palhaço não. Apenas como uma amiga estimada e divertida.

 

Sam

Às sete horas da primeira manhã escura de Dezembro, Sam Howard empurrou o seu carrinho com a bagagem para fora do terminal de chegadas do Aeroporto de Heathrow. Do lado de lá da barreira apinhava-se a habitual confusão de gente que viera esperar quem chegava no avião: casais idosos, jovens em fato de treino, mães fatigadas com filhos pequenos ao colo; e também motoristas uniformizados para os VIP dos quais Sam não fazia parte. homens não identificados que seguravam cartazes com mensagens misteriosas, escritas em maiúsculas: MR. WILSON, dizia uma; ABDUL AZIZ CONSOLIDATED TRADERS, dizia outra.

Sam não tinha ninguém à sua espera. Nem mulher, nem motorista. Nenhumas boas-vindas, humildes que fossem. Sabia que no outro lado da parede de vidro do terminal aquecido faria muito frio; em parte, porque tinham alertado para a temperatura em Londres antes da aterragem do avião, mas também porque todos estavam protegidos com casacos acolchoados, luvas, lenços e barretes de lã. Em Nova Iorque também estava frio, mas era um frio seco e revigorante, que estimulava, juntando-se-lhe um vento cortante que soprava do rio East e que fazia adejar violentamente todas as bandeiras que caíam nos dentes das suas rajadas.

O seu carrinho, carregado com duas malas, um enorme saco de golfe americano e a pasta, não dava muito jeito. Manejou-o em direcção às portas automáticas da saída e, de repente, viu-se no meio de uma manhã de Inverno inglesa, fria, húmida e escura. Aí chegado, foi para a fila dos táxis. Só teve de esperar cerca de cinco minutos, mas isso não impediu que ficasse com as plantas dos pés enregeladas. O táxi estava coberto, não se sabia por que razão, por letras de imprensa, e o motorista era um indivíduo taciturno, de bigode de pontas caídas. Sam esperava que não fosse de conversas, pois não tinha vontade de falar.

Para onde?

Wandsworth, por favor. S W dezassete. Beauly Road número catorze.

É pra já.

O motorista nem se mexeu para ajudar a arrumar a bagagem, achando, ao que parecia, que Sam era suficientemente novo e com boa constituição física para tratar do assunto sozinho. Este não logrou as expectativas e pôs tudo a bordo, ajeitou o saco de golfe no chão do táxi, empurrou o carrinho para onde não estorvasse e entrou, fechando ruidosamente a porta a seguir. O táxi arrancou, com os pára-brisas a trabalhar furiosamente.

A breve espera deixara-o gelado. Sam levantou a gola do sobretudo azul-marinho e, cruzando os braços, recostou-se no plástico antiquado do banco. Bocejou. Sentia-se cansado e sujo. Viajara na classe executiva com um grupo de empresários, mas, antes de aterrarem, os outros tinham feito idas discretas aos lavabos para se lavarem, barbearem, arranjar os nós das gravatas e refrescarem-se de um modo geral. Se calhar, coitados, tinham reuniões logo após a chegada. Não era o seu caso, o que lhe dava grande satisfação. O seu compromisso estava marcado para segunda-feira ao meio-dia, altura em que se apresentaria no White's para almoçar com Sir David Swinfield, presidente da Sturrock & Swinfíeld, o último patrão de Sam. Até lá, tinha o tempo todo por sua conta.

Bocejou de novo e passou uma mão pela barba que lhe começava a despontar no queixo. Talvez devesse ter-se barbeado. Sentir-se-ia com um ar um pouco menos boémio. Lembrou-se de que era provável que também o desse a entender pelas roupas: camisolão, jeans gastos e botas. Sentia os olhos ressequidos e pesados pela falta de sono, mas isso fora por ter passado a breve noite a ler um livro. Além disso, tinha o estômago às voltas, sem dúvida devido à refeição copiosa que tomara às duas da manhã, hora do Reino Unido.

O táxi deteve-se num sinal vermelho. De repente o motorista falou, proferindo a pergunta por cima do ombro.

Esteve de férias?

Não - respondeu-lhe Sam.

Sabe... por causa dos tacos de golfe.

Não, não estive de férias.

Em trabalho, então?

De certo modo. Trabalhei seis anos em Nova Iorque. Caramba. Como é que aguentou o ritmo?

Não foi mau. Até foi bom. Uma pessoa habitua-se. A água da chuva escorria pelos vidros.

A manhã não está grande coisa para um regresso a casa. Luz verde. Continuaram em frente.

Lá isso não - concordou Sam.

Não esclareceu que não estava de volta a casa. Naquele momento não tinha casa, o que parecia condizer com a sua imagem de ocioso. Era a primeira vez na vida, e já tinha trinta e nove anos, que se via desprovido de um tecto a que chamasse seu. Embrulhado no seu sobretudo com ar taciturno e aninhado no banco de trás do táxi, pensou nas casas que já tivera, relembrando, em primeiro lugar, a de Yorkshire, em Radley Hill onde, filho único, nascera e fora criado. Era uma casa de família ampla, sólida e confortável, impregnada do cheiro a fumo de fogo de lenha, flores primaveris e bolos no forno. A casa encontrava-se rodeada por quatro hectares de terra e dispunha de um campo de ténis e de um bosquedo onde, nos fins de tarde outonais, ele se escondia de espingarda em riste para caçar os pombos que vinham dos restolhais. Era para Radley Hill que voltava depois das aulas na escola local, e mais tarde do colégio interno, de onde vinha para férias, normalmente acompanhado por um amigo. Era um lugar confortável, como um velho casaco de tweed, que pensou nunca mudaria, mas claro que isso acabou por acontecer. É que, no decorrer do seu último ano na Universidade de Newcastle, a mãe morrera e, depois disso, nunca mais nada voltara a ser como dantes.

O negócio da família era uma pequena fábrica de lanifícios, numa pequena cidade de Yorkshire. Terminado o curso, Sam pensara em levantar voo, arranjar talvez um emprego no estrangeiro, mas a morte da mãe tirara-lhe a coragem de abandonar o pai, de modo que voltou para Yorkshire, Radley Hill e a fábrica, munido do seu diploma de engenheiro. Durante alguns anos, pai e filho funcionaram muito bem juntos e o negócio floresceu. Mas, às tantas, a recessão abateu-se sobre o ramo, e a fábrica, que se especializara em requintados artigos de lã e tweeds muito leves, teve de enfrentar a concorrência da Europa, um fluxo de importações e um problema de fluidez financeira. Foi então que a Sturrock & Swinfíeld, o grande conglomerado têxtil com base em Londres, avançou e tomou conta do negócio. Sam ficou a trabalhar sob a nova gerência, mas o pai, cão demasiado velho para aprender novos truques, reformou-se antes de tempo. Porém, entreter-se com o seu jardim e com o estranho jogo que era o golfe não foi o suficiente para combater o stress da solidão, o tédio e a inactividade forçadas, de modo que morreu um ano depois com um ataque cardíaco fulminante.

Radley Hill ficou para Sam. Depois de grande reflexão, colocou a propriedade à venda. Parecia a única atitude sensata a tomar, pois passara a viver em Londres, ainda a trabalhar para a Sturrock & Swinfield, especializando-se nos altos e baixos dos mercados flutuantes e no negócio da corretagem dos têxteis. O dinheiro obtido com a venda de Raley Hill permitiu-lhe comprar o seu primeiro bem, um apartamento com jardim em Park Common, tão próximo do metropolitano que à noite ouvia o estrépito das composições. Mas tinha uma nesga de jardin que apanhava o sol da tarde e, depois de mobilado com algumas das peças mais pequenas da velha casa em Yorkshire ficou confortável e agradável. Fora feliz ali, levando uma vida despreocupada de solteiro que, ao recordar, via sempre cheia de sol e de amigos. Dera incontáveis festas improvisadas em que as divisões ficavam a transbordar e os convidados acabavam sentados no terraço minúsculo, e fíns-de-semana invernosos a abarrotar de antigos colegas do Norte que vinham assistir aos jogos de râguebi em Twickenham. E, evidentemente, uma série de romances tórridos.

Foi nos estertores de um deles que chegou, de repente, um convite de Sir David Swinfeld. Ali, no prestigiado escritório bem no alto, acima da névoa londrina, Sam foi informado de que seria transferido para Nova Iorque, Estados Unidos. Mike Passano, administrador da sucursal nova-iorquina, pedira que fosse ele, especificamente. Representara uma promoção, assim como um aumento de responsabilidade e de salário.

«Tem alguma razão para não ir, Sam?»

Nova Iorque. Ele respondera, «Não, senhor», o que era verdade. Não tinha laços familiares, mulher, filhos. Nada que tivesse de abandonar. «Nenhuma razão.» Era a oportunidade pela qual ansiara no seu subconsciente desde a universidade. Um emprego novo, uma cidade nova, um país novo. Uma vida nova.

Levou a namorada do momento a jantar fora, tentou explicar; esta chorou um pouco e disse que, se Sam quisesse, iria para Nova Iorque com ele. No entanto, sabia que não era o que desejava. Sentindo-se um malandro, confessou-lho, ela chorou um pouco mais e, quando chegou a altura de se despedirem, arranjou-lhe um táxi, meteu-a dentro dele e ficou a vê-lo afastar-se. Nunca mais lhe pôs os olhos em cima.

Era igualmente impiedoso no que se referia a bens materiais. Uma etapa da sua vida chegara ao fim, e não fazia ideia se algum dia voltaria a Londres. Assim, vendeu o seu carro e o apartamento, deixando armazenadas apenas algumas peças de mobília preferidas, quadros e livros. Deixou a sua secretária do escritório completamente vazia. Alguém deu uma festa, onde pôde despedir-se de todos os seus amigos.

«Não fiques muito tempo por lá», disseram-lhe. «Volta depressa.»

Mas Nova Iorque estava à sua espera e, depois de chegar, ficou seduzido por tudo o que encontrou. Adaptou-se ao lugar como pato na água, deleitando-se com todos os aspectos que diziam respeito à miscelânea estimulante e cosmopolita que formava a cidade. Lá, o seu lar era um apartamento num prédio sem elevador em Greenwich Village, mas depois de casar com Deborah, esta convenceu-o a mudar-se e acabaram num elegante duplex na Rua 70, Este. Sempre apreciara o desafio de uma casa nova, novos ambientes, de pintar um pouco, arrumar os móveis e pendurar quadros. Mas Deborah não queria nenhum dos trastes da velha casa de Greenwich Village no seu lindo apartamento novo e, além disso, contratou os serviços de um decorador de interiores que morreria se aquele sofá a cair de velho fosse integrado no seu décor de tons condizentes. Ainda houve algumas discussões, mas não muitas, pois Sam normalmente acabava por ceder, contentando-se em ficar com o seu velho sofá de cabedal no sótão, onde também tinha o computador e o fax. Sabia-lhe bem estar ali e houve ocasiões em que, nos fins-de-semana, Deborah imaginou-o a fazer horas extraordinárias, enquanto Sam ficava enfiado no seu sofá de cabedal a assistir a futebol pela televisão.

Lares. O da Rua 70, Este, fora o último, também desaparecera. Juntamente com Deborah.

Ela nunca fora uma mulher cobarde. Dissera-lhe, cara a cara, que se ia embora. Estava farta de ser preterida em favor da Sturrock & Swinfíeld, farta de estar casada com um fanático do trabalho. Também havia claro, outro homem, e quando ela lhe disse de quem se tratava, Sam ficou simultaneamente estupefacto e cheio de ansiedade quanto ao futuro dela. Assim lho disse, porém Deborah estava decidida. Era demasiado tarde. Tomara uma decisão. Sam não foi capaz de a dissuadir.

Sentiu-se furioso, mas também magoado, desorientado e humilhado. Lembrou-se do antiquado termo «cornudo». Sou um cornudo, puseram-me um par de cornos.

Mas, apesar de tudo, compreendia.

Na manhã a seguir à sua partida, ao entrar no escritório, foi recebido por olhares de relance e rostos comiserantes. Alguns colegas encheram-se de cuidados, deram-lhe palmadinhas de solidariedade nas costas, fizeram-no saber que eram seus amigos e estavam à sua disposição para o que precisasse.

Outros, que nunca tinham gostado muito de Sam, mostraram sinais de estar ironicamente divertidos. Apercebeu-se então de que, provavelmente, todos andavam a par do que se passava, e Sam, apesar de ser o actor principal no drama, fora o último a saber.

Em determinada altura do dia, Mike Passano aparecera, entrara pela porta aberta e empoleirara-se na beira da secretária de Sam. Depois de falarem de questões do dia-a-dia, Mike dissera-lhe: «Lamento o que aconteceu em relação a Debbie. Só queria que soubesses.» «Obrigado.» «O consolo não é muito, mas ao menos não tens filhos para complicar as coisas.» «É verdade.» «Se uma noite destas quiseres aparecer para jantar...» «Eu estou bem, Mike.» «Certo. Bem. Fica para outra ocasião.»

Aguentara estoicamente durante seis semanas. No escritório, arranJava sempre desculpa para ficar até muito depois dos outros terem saído, voltando tarde para um apartamento vazio e sem comida. Às vezes, Parava num bar e tragava uma sanduíche, que acompanhava com um uísque. Ou dois. Começou a sofrer, pela primeira vez na vida, de insónias e durante o dia sentia-se invadir por uma estranha agitação, como se não apenas o seu casamento mas tudo o mais, tivesse perdido a graça.

Mike Passano aconselhou-o: «Tira umas férias», mas isso era a última coisa que Sam desejava. A pouco e pouco, foi-se compenetrando de que já estava farto de Nova Iorque. Queria Inglaterra. Queria voltar para casa. Queria céus enevoados, campos verdejantes, cerveja quente e autocarros vermelhos.

Até que, certa tarde, quando estava no ponto mais baixo do seu desespero, o telefone tocou no seu apartamento. Era Sir David Swinfield, de Londres.

Podemos falar, Sam?

Com certeza.

Ouvi dizer que as coisas não lhe estão a correr muito bem.

As más notícias chegam depressa.

Mike Passano contou-me. Soube hoje de manhã. Lamento.

Obrigado.

Apetece-lhe mudar? Sam ficou de pé atrás.

Qual é a sua ideia?

Ideia nova. Projecto novo. Mesmo ao cimo da sua rua. Pode ter interesse.

Onde?

Reino Unido.

Quer dizer que saio de Nova Iorque?

Esteve aí seis anos. Tratarei das coisas com Mike.

Quem é que me substitui?

Lowell Oldberg.

Não tem experiência.

Também você não tinha. Só lhe restava conformar-se.

É uma despromoção? perguntara Sam abruptamente.

Não, Apenas um desvio estratégico. Para cima e em frente. Uma pausa. Quero-o de volta, Sam. Preciso de si. Acho que chegou a altura.

A casa na Beauly Road era uma vivenda de três pisos, ligeiramente distante das outras, separada do passeio por um jardim frontal que fora transformado em abrigo pavimentado para automóveis. O resto da tranquila rua residencial tinha carros estacionados em ambos os sentidos, indício da afluência que se fazia sentir naquela zona. Também havia árvores, naquele momento despidas de folhagem, mas, no Verão, cheias de folhas! o que proporcionaria uma ilusão de campo, sugerindo um agradável subúrbio afastado da cidade de Londres.

A manhã ainda estava escura. Quando Sam, rodeado pela sua bagagem, pagou ao taxista, a porta da frente da casa abriu-se, deixando escapar um fio de luz, e uma figura masculina corpulenta apareceu.

Sam! Semipreparado para o seu dia na cidade, Neil Philip vestia as calças de um fato formal e uma confortável camisola azul. colarinho de gola alta. Desceu o carreiro, acercando-se do portão. Caramba, como é bom ver-te.

Sam foi então envolvido num abraço enorme, já que Neil nunca fora homem para conter as suas emoções. Era como ser abraçado por um urso. O motorista do táxi, sempre impassível, afastou-se. Neil pegou nas duas malas tremendamente pesadas e levou-as até à porta aberta, deixando Sam às voltas com o seu saco de golfe e a pasta.

Janey está a acabar de organizar as crianças, não tarda a descer. A viagem correu bem? Imagino que estejas terrivelmente cansado. Deixou cair as malas ao fundo das escadas. A chaleira está ao lume, queres uma chávena de café?

Adoraria.

Então, anda.

Sam tirou o sobretudo e dobrou-o sobre o corrimão. De cima chegou-lhe o som de uma voz infantil a lamuriar-se em relação a algo. Num dos degraus das escadas estavam dois pares de botas de borracha, ao lado um do outro, e um camião de brincar. Seguiu atrás de Neil pelo corredor, até chegar a uma espaçosa cozinha familiar, com clarabóia e janelas sobre o lava-loiça. As cortinas ainda estavam corridas, mas, no alto, podia ver as nuvens escuras, manchadas pela reflexão da luz. Os armários eram em pinho, o frigorífico zunia ao de leve, e a mesa estava posta para o pequeno-almoço: toalha de mesa em xadrez, pacotes de cereais, um jarro com leite, suportes para ovos.

Neil deitou café em pó numa chávena e adicionou-lhe água a ferver. O aroma delicioso encheu a cozinha.

Queres comer alguma coisa?

Não, só café.

Sam puxou de uma cadeira e sentou-se. Não conseguia perceber por que razão se sentia tão fatigado, já que passara pelo menos sete horas sentado.

Estás com óptimo aspecto, Neil.

Oh, cá se vai vivendo. Vida de família. Colocou duas fatias de pão numa torradeira eléctrica. Não chegaste a conhecer esta casa, Pois não? Comprámo-la dois anos depois de ires para Nova Iorque. Subida de nível, chamou-lhe Janey. Além disso, também precisávamos de um jardim para as crianças.

Refresca-me a memória.

O quê?

Idades. Daisy e Leo. Uma pessoa perde-lhes a conta.

Daisy tem dez e Leo seis. Estão contentíssimos por ires cá ficar. Não falam de outra coisa desde o teu telefonema. Quanto tempo tencionas ficar?

Não são férias, Neil. Negócios. O presidente chamou-me cá. Qualquer coisa a ver com um projecto novo.

Disseste adeus a Nova Iorque?

Por enquanto.

Sam, lamento muito o que aconteceu em relação a Deborah.

Depois falamos nisso, agora não. Há muito mais para dizer.

Hoje, ao fim da tarde, vamos até um pub e poderás deitar tudo cá para fora diante de uma caneca de cerveja. Mas não te esqueças de que podes ficar o tempo que quiseres.

É muita generosidade tua.

Eu sou assim, meu caro, eu sou assim.

As torradas saltaram e Neil tirou-as da torradeira, enfiando-lhe mais duas. Sam observou os movimentos delicados e precisos de um homem grande, aparentemente desajeitado. Neil continuava a ser senhor de uma farta cabeleira escura onde, no entanto, já se vislumbravam os primeiros fios brancos. Também ganhara um pouco de peso, como os homens atléticos têm tendência, de resto tudo o mais parecia na mesma.

Neil Philip fazia parte da vida de Sam. Eram amigos desde o primeiro dia no colégio interno, altura em que não passavam de dois rapazinhos apreensivos perante uma vida nova. Neil era uma das visitas regulares de Radley Hill nas férias, e a mãe de Sam acabou por tratá-lo como um segundo filho. Quando Sam foi para Newcastle, Neil seguiu para a Universidade de Edimburgo, onde jogou râguebi como um fanático, chegando mesmo a representar a Escócia numa temporada brilhante. Terminada a universidade, encontraram-se de novo em Londres, nos tempos da Eel Park Common, e foi como se tivessem apenas feito uma pausa na conversa. Quando Neil casou com Janey, em St. Paul, Knightsbridge, Sam foi o padrinho. E quando chegou a vez de Sam desposar Deborah, no jardim da casa dos pais em East Hampton, Neil e Janey tinham ido de avião para que ele pudesse ser o padrinho do amigo. Sam ficara-lhe profundamente grato, pois, caso contrário, o noivo teria ficado tristemente representado em termos de familiares, amigos ou conhecidos.

Neil serviu-se de café e pôs ovos a escalfar. No andar de cima, as vozes foram-se tornando cada vez mais altas, ouviram-se passos a descer apressadamente as escadas e duas crianças irromperam pela cozinha dentro, Daisy vestida com o seu uniforme do colégio e Leo envergando uns jeans e uma camisola. Pararam, de olhos fixos no desconhecido.

Sam cumprimentou-os:

Olá. Intimidados, não responderam.

Cumprimentem o amigo disse-lhes Neil.

Pensei que trazia um chapéu de cobói observou Leo. Em Nova Iorque não usam chapéus à cobói, tolo disse-lhe a irmã, trocista.

Bem, então que usam?

Se calhar não usam nada.

Quem é que não usa nada? perguntou Janey, assomando à porta, vestida muito à semelhança do filho e de braços abertos para acolher Sam. Oh, Sam, há quanto tempo. Como é bom ver-te.

Sam pôs-se de pé para a abraçar e beijar.

Deus, grande bruto, não fizeste a barba.

A preguiça era demasiado grande.

Já não te vemos há séculos. Esperamos que possas ficar definitivamente por cá. Daisy, nunca hás-de conseguir comer esses Coco Pops todos, portanto despeja alguns na tigela de Leo.

Após a saída dos donos, a casa ficou tranquila: Neil seguiu para a sua labuta diária e Janey foi levar as crianças à escola. Tinham mostrado a Sam o seu quarto e a sua casa de banho. Depois de um banho relaxante e de se barbear, embrulhou-se num roupão que encontrou pendurado atrás da porta da casa de banho e meteu-se na cama. Podia ver através da janela os ramos rendilhados de um plátano. Os automóveis passavam, silvando, na rua. Ao longe, no céu, um jacto sulcava os ares. Adormeceu.

Choveu durante a maior parte do fim-de-semana, mas na segunda-feira de manhã o tempo nasceu seco, mesmo com umas abertas de céu a espreitar, de vez em quando, detrás das nuvens que passavam. Neil, depois de assistir na televisão a um jogo de futebol empapado em água, de organizar um longo passeio molhado pelo Richmond Park no domingo e de uma maratona de Monopólio depois do lanche, inspeccionou a manhã desanuviada e declarou com franco azedume: «Isto é que é azar» e partiu para o trabalho.

As crianças saíram a seguir; uma vizinha veio buscá-las para as levar à escola. Uma senhora da Jamaica apareceu para aspirar a casa, enquanto Janey ia às compras.

Queres uma chave? perguntou a Sam. Depois das quatro já cá estou.

Nesse caso, não me faz falta.

Quando é que pensas voltar?

Não faço ideia.

Bem - sorriu-lhe e deu-lhe um beijo rápido , então, boa-sorte.

Sam saiu pouco depois dela, adequadamente vestido para a ocasião importante, levando o seu sobretudo e um guarda-chuva de Neil, não se desse o caso de chover. Fechou a porta da frente ao som do hino que a empregada da limpeza cantarolava enquanto lavava a casa de banho. Ao meio-dia e vinte e cinco subiu a St. James Street, apresentou-se diante do porteiro do White's e perguntou por Sir David Swinfield. Sir David encontrava-se no bar, responderam-lhe, à espera de um convidado.

Só saíram do clube às três e meia, descendo os degraus que conduziam ao passeio, onde o carro de Sir David, mais o respectivo motorista, o aguardavam. Sam declinou delicadamente a boleia oferecida e ficou a ver o enorme carro-salão preto a meter-se no meio do trânsito e desaparecer em direcção a Picadilly.

Sam virou-se e começou a andar de volta a Wandsworth; pelo menos faria parte do caminho a pé. Atravessou Green Park e a Belgrave Square, enveredou pela Sloane Street e, por fim, pela Kings Road. Naquela altura, já o dia chegara ao fim, as luzes haviam-se acendido, as montras das lojas brilhavam com toda a parafernália da decoração natalícia e do consumismo sedutor. Foi então que se deu conta, atónito, de que andara tão metido consigo mesmo que nem se dera conta da aproximação do Natal. Os meses, lentos nalguns aspectos, tinham passado como uma flecha, noutros. Natal. Não fazia a menor ideia onde o passaria e não se lembrava de ninguém que pudesse estar à espera de um presente dele, o que era uma verdade desanimadora e não abonava muito a seu favor. No entanto, a ideia dos presentes entusiasmou-o. Entrou numa florista, onde comprou um arranjo enorme de lírios brancos para Janey; um pouco mais adiante, parou numa loja de vinhos e escolheu uma garrafa de conhaque e outra de champanhe para Neil. Carregado, pensou igualmente nas crianças, Daisy e Leo. Também gostaria de lhes oferecer presentes, porém não fazia a mínima ideia dos seus gostos. Teria de lhes perguntar. Como já passara dois dias na companhia deles, tinha a certeza de que saberiam esclarecê-lo.

Ao chegar à World's End já gastara a sua energia; também recomeçara a chover. Já eram quase cinco da tarde e o trânsito encontrava-se no seu auge, arrastando-se a passo de caracol, no entanto cinco minutos depois mandou parar um táxi e deu a morada ao motorista. Demorou um tempo imenso a atravessar a Wandsworth Bridge. Quando, finalmente, subiram a Beauly Road até ao fim, avistou as luzes acesas por detrás das cortinas corridas do número catorze, o que lhe deu a reconfortante sensação de que chegava a casa.

Quando tocou à porta, Janey veio abrir.

Ora cá estás. Pensei que te tinhas perdido. Vestia os seus jeans e uma camisola vermelha, e prendera o cabelo preto no alto da cabeça com um travessão de tartaruga.

Estive a fazer exercício. Janey fechou a porta.

Seria de pensar que um domingo molhado no Richmond Park seria prolongado pelo resto da semana. Que tal correu? Refiro-me ao almoço com o presidente, claro.

- Correu bem. Depois conto-te. Entregou-lhe os lírios. São para ti. Um presente doméstico para uma anfitriã gentil.

Obrigada. Não era preciso trazeres-me flores, mas fico contente.

Ainda por cima lírios. Dão um cheiro delicioso a toda a casa. Vem até à cozinha, eu preparo-te uma chávena de chá.

Sam, depois de se deter para pendurar o seu sobretudo num bengaleiro cheio de pequenos sobretudos e anoraques, foi atrás de Janey levando o saco das garrafas. Guardou o conhaque na garrafeira de Neil e o champanhe no frigorífico.

Champanhe! exclamou Janey, que enchia a chaleira, ligando depois o sistema eléctrico. Isso significa uma celebração?

Talvez. Puxou de uma cadeira, onde se sentou, apoiando os cotovelos em cima da mesa. Onde estão Daisy e Leo?

Lá em cima, a ver televisão ou a jogar no computador. Têm licença para o fazer depois de terminarem os trabalhos de casa.

Que bem cheira esta cozinha.

É o jantar. Tenho más notícias. Vamos ter outro convidado.

Que tem esse outro convidado assim de tão mau?

É um chato.

Porque o convidaram?

Ele é que se fez convidado. É um velho amigo dos meus pais e como está em Londres sozinho, não tem mais ninguém conhecido. Telefonou e parecia desanimado, portanto senti-me na obrigação de o convidar. Por acaso lamento, porque preferia que fossemos só nós os três. Já avisei Neil. Liguei-lhe para o escritório e ficou mesmo desconsolado, mas disse que ia tentar chegar mais cedo a casa para preparar as bebidas e acender a lareira.

Eu podia perfeitamente encarregar-me disso.

Tu és convidado. Tomas um banho, descansas um pouco e depois apareces todo bonito.

Imagino que para impressionar esse vosso convidado indesejado. Viu Janey fazer uma careta. Vá, que tem ele de tão chato?

Janey, fora buscar uma jarra florida, enchera-a de água, e agora entretinha-se a dispor os seus lírios dentro dela.

Ele não é propriamente repulsivo. Apenas um bocado maçador. Gosta que o considerem um velho excêntrico. Quando está por perto, uma pessoa põe o traseiro instintivamente fora do alcance dos seus dedos.

Sam riu-se.

Ah, é desses...

Pois é. Casou três vezes, mas agora está sozinho.

De onde é?

Penso que andou na escola com o meu pai, mas actualmente viVe nas Baamas, em Barbados ou um sítio do género. Já lá está há imenso tempo.

Que faz o tipo em Londres?

Não sei bem. En route para França, suponho. Vai passar o Natal a Nice.

Parece ser uma pessoa interessante.

Não é. Pronto. Estão lindas. Obrigada, mais uma vez. Vou colocá-las na sala de estar, no lugar de honra. A chaleira começou a apitar e ela pegou na caixa do chá. Estou ansiosa por saber como o teu U encontro decorreu, mas quando estou a cozinhar não consigo concentrar-me, além disso, ainda tenho de fazer um pudim.

Posso esperar.

Correu bem, Sam? Foi positivo?

Foi. Eu acho que sim.

Que maravilha. Fico contente. Sam bebeu o seu chá e, corrido da cozinha por Janey, subiu ao piso de cima, onde encontrou Daisy e Leo entretidos a brincar no quarto. Tinham desligado a televisão e estavam sentados a uma mesa de aspecto muito usado, cheia de folhas de papel, que pareciam estar a recortar. Além de tesouras, tinham lá posto também tubos de cola, canetas de bico de feltro, um novelo de fio colorido e uns bocados de fita num tecido muito fino. Já estava em curso uma obra qualquer. Ao entrar, olharam para ele.

Olá, Sam.

Viva. Que estão a fazer?

Cartões de Natal respondeu-lhe Daisy com ar importante. A minha professora de desenho ensinou-nos hoje a fazê-los e estou a mostrar a Leo como é. Põe-se cola, depois salpica-se com pozinhos brilhantes e deixa-se secar. Mas primeiro é preciso desenhar alguma coisa.

Como, por exemplo?

Bem, uma árvore de Natal. Ou uma meia. Ou uma casa com as janelas iluminadas. A única coisa aborrecida é o pó brilhante espalhar-se por todo o lado. Leo diz que são brilhozinhos. Agora, Leo, dobras o papel assim, com muito cuidado... não pode ficar torto...

Saltava à vista que não precisavam de ajuda. Deixou-os e foi para o seu quarto, onde se despiu e tomou um duche.

Tomas um banho, descansas um pouco e depois apareces todo bonito. Levara o The Times para cima consigo, de modo que, depois do banho, estendeu-se em cima da cama a tentar dar-lhe uma vista de olhos, porém não conseguiu concentrar-se e deixou o jornal resvalar para o chão, deixando-se ficar, simplesmente, a olhar para o tecto. Do lado de lá da porta fechada chegavam sons. As vozes das crianças; um telefone a tocar; os passos de Janey quando foi atender. «Está», ouviu-a dizer. Captou o cheiro de fazer crescer água na boca que vinha do jantar em preparação e, algum tempo depois, o barulho das torneiras a correr para o banho das crianças.

Há muito tempo que não se sentia envolver no seio de uma família de verdade, que não era tão acarinhado e desejado. Ao aprofundar essa linha de pensamento, apercebeu-se de que o retraimento de Deborah começara meses antes de lhe anunciar que se ia embora, mas Sam andara demasiado ocupado para reparar no desgaste gradual de que a relação de ambos estava a ser vítima. Sabia que o fim de um casamento nunca era culpa de uma só das partes. Fosse de que maneira fosse, a outra metade tinha de carregar com uma parte da culpa.

Deu consigo a relembrar Radley Hill, pois a atmosfera que se vivia naquela despretensiosa casa londrina, onde Janey e Neil criavam os seus filhos, trouxera-lhe lembranças da segurança e do conforto do lugar onde Sam passara a sua meninice e adolescência. Sempre as boas-vindas, a lareira acesa, o cheiro da deliciosa comida campestre que vinha da cozinha. Botas no alpendre, raquetes de ténis no vestíbulo, as vozes dos jovens seus amigos, o som dos seus passos escada abaixo. Não sabia se alguma vez viria a desfrutar do refúgio de uma vida familiar. Até então, os seus esforços nesse sentido tinham sido um fracasso. Ele e Deborah podiam ter tido filhos, mas a ideia nunca agradara particularmente à mulher, e ele fora obrigado a ceder, relutantemente, nessa matéria. O que, perante a maneira como as coisas tinham descambado, fora até melhor. O certo é que a casa na Rua 70, Este, habitada apenas pelos dois, nunca fora um verdadeiro lar. É verdade que a sala de estar fizera a inveja de todos os amigos, tão impecavelmente decorada em tons de creme e bege, com esculturas modernas e quadros abstractos, estrategicamente iluminados, nas paredes. E a cozinha era uma maravilha de instrumentos modernos, porém dela nunca saíra mais do que uma fatia de melão ou uma piza aquecida no microndas. Deborah não era muito dada às prendas do lar; preferia receber os amigos em restaurantes.

Radley Hill. Ao relembrar os dias frenéticos da vida urbana: os transportes, os negócios, as noites tardias e os dias longos, o cheiro do metro e dos gases dos escapes dos automóveis recordou Yorkshire, visualizou a sólida e simples casa de pedra, o terraço, os prados, os roseirais de sua mãe. Pensou na aldeia onde seu pai tivera a fábrica, onde o vento dispersava o fumo das chaminés, e o rio, que descia das colinas, deslizava entre as ruas sombreadas pelas árvores e por baixo das pontes recurvas. O som da água a correr sobre as rochas era tão familiar e fazia de tal maneira parte da vida, que uma pessoa deixava, pura e simplesmente, de o ouvir. Pensou no campo circundante e nos longos passeios a pé que fazia com o pai ao domingo; ou quando iam pescar Para os pequenos e afastados lagos escuros que havia na zona das charnecas, onde o ar era frio, límpido, e os espaços vazios eram trespassados pelo piar dos maçaricos...

Lá fora, na rua, um carro estacionou por baixo da sua janela. A porta da frente abriu-se e fechou-se. Ouviu Janey perguntar:

Neil! Olá querido!

Soube então que o amigo chegara a casa.

Levantou-se da cama, libertou-se do roupão e foi então vestir-se adequadamente para a noite que tinha pela frente: calças engomadas, uma camisa lavada, uma camisola de caxemira azul-marinho, sem gravata; meias creme, sapatos engraxados. Penteou o cabelo, pôs um pouco de aftershave e desceu. A porta da sala de estar encontrava-se aberta, de modo que entrou e foi dar com Neil, em mangas de camisa, entretido a puxar o brilho a uns copos com um pano e a arrumar a mesinha das bebidas: revistas e livros endireitados, almofadas afofadas, lareira acesa. Os lírios que Sam oferecera a Janey lá estavam na sua jarra, no meio de uma mesinha redonda polida, rodeada por um conjunto de caixas Battersea. O seu perfume, acentuado pelo calor, já se espalhara pelo ar. O relógio por cima da lareira mostrava que eram sete e um quarto.

Viva! cumprimentou Sam.

Neil interrompeu a sua tarefa para olhar para o amigo.

Ora viva. Então, descansaste bastante?

Devia era ter vindo dar-te uma ajuda.

De modo nenhum. Escapuli-me mais cedo para casa, afim de vir desempenhar o meu papel de anfitrião.

Já soube que temos companhia para o jantar. Neil ficou de má catadura.

O tipo é mesmo parvo. Janey devia ter-lhe dado com os pés, mas é demasiado sensível para isso. Deu uma passagem ao último copo, pousou-o e atirou o pano para o lado. Pronto, já está. Tudo pronto. Tomemos uma bebida e sentemo-nos para aproveitar este momento de tranquilidade. Quero que me contes como tudo se passou antes do nosso convidado chegar e termos de o ouvir a ele. Uísque? Soda ou água? Com gelo? Como vês, sei a fraseologia toda, caso te tenhas esquecido de como se diz.

Pode ser soda. Onde está Janey?

A bater natas.

E as crianças?

Na cama, espero. A ler. Caso contrário, vai haver sarilho. Serviu as bebidas, acrescentou-lhes gelo e levou um dos copos a Sam. Depois, com um suspiro de alívio, deixou-se cair numa das confortáveis poltronas que ladeavam a lareira. Então, conta lá como o almoço correu.

Sam instalou-se na poltrona ao lado.

Bem, creio eu.

Nada de abominável? Nenhuma sugestão de redundância? Sam riu-se. Sabia bem ter alguém com quem não fazer cerimónias, estar com um homem que conhecia quase desde que nascera e com quem nunca tivera o menor segredo.

Precisamente o oposto.

A sério? Algum emprego novo, então?

Isso mesmo.

Nos Estados Unidos?

Não. Aqui. Reino Unido.

Em que sítio?

Sam não respondeu imediatamente. Tomou um gole da sua bebida, sentiu-a gelada, acre e estimulante na língua, depois pousou o copo sobre a mesinha lateral.

-Já ouviste falar da McTaggart, em Buckly?

O quê... aquela gente que fabrica tweed em Sutherland?

Exactamente.

Bem, claro que sim. Qualquer cavalheiro de província que se preze tem um fato de caça feito de tweed Buckly. O meu pai tinha um, melhor dizendo, tem. Parece uma armadura. A lembrança fê-lo rir. Não me digas que estão com dificuldades.

Têm estado, mas a Sturrock & Swinfield comprou-os aqui há uns meses. Admira-me que não tenhas dado por isso, mas, se calhar, não lês o Financial Times.

Não falho um dia, mas essa escapou-me. Os têxteis não se enquadram na minha linha de interesses comerciais. É extraordinário, a McTaggart ir por água abaixo. Esboçou um sorriso pesaroso. Repara, se calhar foi mais um dos cenários habituais, não se pode fazer dinheiro com um produto que dure eternamente.

Esse, evidentemente, foi um dos problemas. E nunca diversificaram. Imagino que fossem instalações antiquadas e eles nunca vissem necessidade de modernizar. Mas o mercado diminuiu, até mesmo em relação aos tweeds tradicionais. Com a venda das grandes propriedades e o esvaziamento das grandes áreas de caça, deixou de haver necessidade de tweeds para os fiscais de caça e os guardas-florestais. Mas também tiveram outros reveses. O velho McTaggart morreu há dois anos, e os dois filhos não estavam interessados no negócio. Um já andava metido nos computadores, o outro dirigia uma boa garagem nos arredores de Glasgow. Não quiseram largar o que tinham para dar continuidade ao negócio do pai. Calculo que a vida no Norte perdeu os seus encantos.

- Que extraordinário observou Neil, deixando escapar um susPiro - Enfim, cada um tem as suas aspirações. Então, que foi que aconteceu?

Bem, primeiro os filhos desbarataram parte do património vendendo todos os edifícios ligados à fábrica, depois puseram-na à venda. Os trabalhadores, ao verem que não aparecia ninguém suficientemente interessado, foram ter com a Local Company e, juntos, começaram a gerir a empresa. O problema é que não há falta de emprego naquela área, como podes imaginar. Seja como for, são todos operários especializados e têm passado de pais para filhos naquele ofício, tecelões, fiandeiros, tintureiros, tudo o que se possa imaginar. Sam esvaziou o resto da bebida que tinha no copo. Portanto, estavam a ser razoavelmente bem sucedidos, até já tinham recebido algumas encomendas novas, exportações para os Estados Unidos, esse tipo de coisa... quando, trás!, acontece uma desgraça. Choveu consecutivamente durante dois meses, o rio galgou as margens e inundou a fábrica até à altura de um homem. Perderam tudo, o estoque, os computadores, a maior parte da maquinaria. Acabou-se. Os bancos suspenderam o crédito, a LEC ficou com os dedos queimados, e a força laboral viu-se diante de um futuro no desemprego.

Neil levantou-se e foi buscar o copo de Sam.

Caramba, mas que grande azar.

É verdade. Portanto, em desespero de causa, abordaram a Sturrock & Swinfield. David Swinfield mandou fazer um estudo de viabilização exaustivo no local e ficou interessado. Mas a fábrica ainda está na maior desgraça. Já não funciona desde a cheia; só lá ficaram três operários.

Neil entregou-lhe o copo com nova dose.

E qual é o teu papel nisso tudo?

Vou pôr tudo novamente de pé. Dirigir o negócio.

Assim, sem mais nem menos?

Não exactamente. Mesmo antes da cheia já a fábrica estava em mau estado. A maioria das máquinas é, provavelmente, do tempo da Arca de Noé. Só daqui a um ano é que tudo ficará pronto para voltar a funcionar.

Estou admirado de que o estudo de viabilização de Swinfield tenha mostrado que aquele lugar tem alguma hipótese financeira. Quero dizer, achas que ainda é possível fazer alguma coisa por uma indústria num local tão remoto? Para ser franco, duvido de que valha, sequer, a pena.

Oh, eu acho que vale. Claro que teremos de diversificar, mas o nome McTaggart tem muito boa fama em todo o mundo. O que vale muitíssimo nos mercados de luxo.

O quê? Certamente esses não receberão bem aquelas excelentes roupas pesadonas, à prova de espinhos e para todos os climas, destinadas a usar no campo, pois não? Isso seria trágico. Terias de continuar a fabricar desse material.

Claro que o faremos, assim como tecidos de lã em xadrez. Essa é a imagem de marca de McTaggart. Tradição. Mas essa será apenas uma parte da nossa produção. Concentrar-nos-emos em força em têxteis mais leves, mais coloridos. Tecidos de camisas para o mercado italiano, por exemplo Xailes, lenços de cabeça, écharpes, malhas de lã. Simultaneamente caros e de curta duração.

Caxemira?

Claro.

Estão, portanto, previstas incursões à China profunda, não?

- David Swinfield já mandou agentes à Manchuria.

E quanto à maquinaria?

provavelmente será comprada na Suíça.

O que significará um programa de formação total para o operariado.

sim, mas esse será efectuado no local, por representantes dos fornecedores. O que, infelizmente, se saldará numa força laboral. reduNeil ficou calado, assimilando o que acabara de ouvir. Depois, suspirou e abanou a cabeça, mostrando-se algo confundido.

Parece interessante, mas não te estou a ver vivendo numa turfeira, depois de Londres e Nova Iorque. Seria o mesmo que colocar um vice-cônsul da Grã-Bretanha nas ilhas Andaman. Não tem jeito nenhum.

É aquilo que sei e posso fazer.

Salário?

Subiu.

Suborno. Sam sorriu.

De maneira nenhuma. Simplesmente um bónus.

E que vais fazer contigo mesmo? Do teu tempo de lazer, quando não estiveres a trabalhar que nem um escravo na fábrica ou a tentar fazer o balanço das contas? Tenho muita dificuldade em acreditar que Buckly seja um local com muita animação. Podes muito bem ser obrigado a jogar ao bingo.

Pescarei. Lembras-te das pescarias com o meu pai? E jogarei golfe. Existem pelo menos cinco campos magníficos nos arredores. Entrarei nos clubes e farei amizade com os velhotes de camisolas com nódoas de sopa.

O mais provável fabricadas por Nick Faldo.

Não importa.

Não achas, portanto, que tudo isso representa uma regressão?

Vou regressar às minhas raízes, se é que isso é regredir. E, estranhamente, a ideia de ter de enfrentar e resolver tantas dificuldades entusiasma-me. Também sei como dirigir uma fábrica. Aprendi com o meu pai. Ele tinha uma autêntica paixão pelo seu trabalho. Adorava as suas máquinas da mesma maneira que os outros homens adoram os seus carros. Costumava tocar nos rolos enormes de tweed como se estivesse a acariciá-los, pelo prazer de sentir a lã entretecida sob os dedos. Se calhar também sou assim. Só sei que já estou farto de marketing. Anseio por regressar ao piso de uma fábrica, aos primeiros passos de todo o negócio. Neste momento acho que é exactamente disso que preciso.

Neil observou-o atentamente do outro lado da lareira e disse-lhe:

- Não fiques ofendido, mas não sei bem se o teu presidente não estará a ser paternalista.

Referes-te ao facto da minha vida pessoal se ter desfeito?

Para ser franco, sim.

Não te preocupes. Fiz-lhe a mesma pergunta, mas ele já me tinha destinado para o negócio da fábrica, em Buckly, muito antes de saber de Deborah.

Claro. Realmente foi uma pergunta parva. Sir David Swinfield não chegaria onde chegou por ter um coração mole. Quando é que partes?

O mais depressa possível. Mas ainda há uma série de coisas a resolver antes de ir. Tenho uma reunião marcada para amanhã de manhã com o pessoal financeiro. Para organizar um programa de reinvestimento. Esse tipo de coisa.

Onde é que tencionas viver quando fores para lá? Pareceu-me ouvir-te contar que os filhos do McTaggart venderam as casas todas.

É verdade, tens razão. Mas isso não tem grande importância. Se calhar, fico numa pensão, ou alugo uma casa. Nunca se sabe, posso até ir morar para uma cabana de telhado de turfa com uma moçoila de cabelos negros.

Neil riu-se. Olhou de relance para o relógio, ajeitou o seu peso considerável na poltrona e bocejou com gosto, passando os dedos pelo cabelo.

Bem, só me resta desejar-te a melhor das sortes, meu caro.

Basta um bom pontapé no começo para a coisa voltar a andar. Neil sorriu.

Nesse caso, é melhor comprares umas botas de futebol decentes, pois vais precisar delas...

Ficou-se por ali, pois tinham tocado à campainha.

Neil exclamou:

Oh, raios. Pousou o copo e levantou-se. Deve ser o velho maçador.

Mas antes de ter tempo de ir à porta, ouviu a porta da cozinha abrir-se e os passos rápidos de Janey soarem pelo corredor fora. A seguir, a sua voz:

Ora viva. Como está? Muito gosto em vê-lo. Parecia genuinamente encantada e Sam pensou, não pela primeira vez, que a amiga era uma pessoa maravilhosamente gentil.

Faça o favor de entrar. Murmúrios de uma voz masculina. Oh, chocolates. Muito obrigada. Terei de os esconder das crianças. Veio a pé desde o metro ou conseguiu arranjar táxi? Dê-me o seu sobretudo, para o pendurar. Neil está lá dentro...

A porta abriu-se. Naquela altura, os dois homens já se tinham posto de pé c Ncil adiantou se para cumprimentar o seu comvidado, conduzido até à sala pela dona da casa.

-Viva...

_Neil. Caramba, como é bom vê-lo! Já lá vai muito tempo. Foi muita gentileza sua receber-me para jantar.

De modo algum.

Janey observou:

E olha o que ele me trouxe. Mudara para umas calças de veludo pretas e uma blusa de cetim branca, mas ainda não se livrara do seu avental de cozinheira às riscas vermelhas e brancas. Mostrou uma modesta caixa de chocolates de menta After Eight. Chocolates divinais.

É só uma lembrança. Estou a ver se me lembro há quantos anos não vos vejo. Quando é que foi a última vez? Um almoço com os seus pais, Janey. Realmente já faz muito tempo.

Sam, de pé e de costas voltadas para a lareira, mirou o recém-chegado. Viu um homem bem entrado na casa dos sessenta, mas com o porte e os maneirismos de um jovem vivaço de quarenta anos antes. Era provável que tivesse sido um indivíduo atraente, ao jeito de David Niven, mas naquela altura da sua vida as feições haviam perdido a firmeza, tinha as maçãs do rosto raiadas de veias finas, e o bigode, bem aparado, manchado por toda uma vida de tabaco, tal como os dedos. O cabelo era branco, a enfraquecer, porém usava-o até ao colarinho. Tinha os olhos brilhantes, num azul muito claro, e o rosto e as mãos profundamente bronzeados, já com manchas prenunciadoras da idade. Vestia calças de flanela cinzentas, camisa às riscas azuis e brancas, um blazer azul-escuro, com botões em metal dourado, e calçava sapatos de camurça castanhos. Do colarinho alto e hirto pendia uma extravagante gravata de seda com vistosas riscas vermelhas, amarelas e verde-pavão. O relógio de pulso era em ouro, assim como os botões de punho. Saltava à vista que tivera um cuidado especial com a sua aparência, tresandando a Eau Sauvage.

É verdade, muito tempo concordou Janey. Devem ter passado uns sete anos. Ainda eles moravam no Wiltshire. Agora, permita-me que proceda às apresentações. Este é Sam Howard, que veio passar uns dias connosco. E, Sam, este é Hughie McLellan.

Como está?

Prazer em conhecê-lo. Apertaram as mãos.

Sam e Neil são amigos há muitos anos, desde o tempo de estudantes.

Nada como um velho amigo. Santo Deus, o trânsito em Londres está um pavor. Nunca vi nada tão complicado. Levei um quarto de hora a apanhar um táxi.

Onde é que ficou instalado? perguntou Neil.

Oh, no meu clube, evidentemente, mas já não é o que era. Dei uma gorjeta ao porteiro, mas mais valia ter poupado a moeda. E o incómodo.

Deixe-me arranjar-lhe uma bebida, Hughie. A visita ficou nitidamente mais animada.

Boa ideia. Olhou de relance para a mesa onde estavam as garrafas e os copos. Gim com água tónica, se não se importa. - Apalpou os bolsos. Dá-me licença que fume, Janey?

Claro, esteja à vontade. Deve haver por aí um cinzeiro. Tentou ver se encontrava algum, viu um em cima da sua secretária esvaziou os clipes que tinha dentro e pousou-o sobre a mesinha ao pé do sofá.

Raios, hoje em dia ninguém fuma. Nova Iorque é um pesadelo.

Mal uma pessoa se descuida, aparece um tipo que lhe dá um tiro.

Tirou um cigarro da sua cigarreira de prata e acendeu-o com o seu isqueiro de ouro. Soltou uma baforada de fumo e pareceu ficar imediatamente muito mais descontraído, estendendo depois a mão para pegar no copo que Neil lhe estendia. Bem-haja, meu caro. Aos bons tempos.

Queres beber alguma coisa, Janey?

Tenho a minha bebida de cozinheira na cozinha. Uma taça de vinho. A propósito, Neil, não te importas de lá ir abrir uma garrafa para o jantar?

Com certeza. Desculpa. Já o devia ter feito. Hughie, dá-me licença por um instante? Sente-se, esteja à vontade. Sam faz-lhe companhia...

Depois dos dois saírem e fecharem a porta, Hughie fez como lhe tinham dito. Com o copo e o cinzeiro convenientemente à mão, instalou-se no sofá da esquina, apoiando um dos braços nas costas do mesmo.

Casa encantadora esta. Nunca tinha cá estado. Na última vez em que cá vim, ainda moravam em Fulham. Conheço Janey desde criança. Os pais são velhos amigos meus.

Ela contou-me. Vive em Barbados, suponho.

É verdade, tenho uma casa em Speighstown. De vez em quando venho até Londres, só para não perder o contacto com as coisas, falar com o meu corretor, cortar o cabelo e ir ao meu alfaiate. O pior é que os amigos estão a desaparecer. Sempre que cá chego, há mais um que bateu as botas. Uma tristeza, realmente. Enfim, estamos todos a ir para velhos. Apagou a ponta do cigarro, tomou novo gole do seu gim tónico e pousou um olhar especulativo em Sam. Está de férias?

Por assim dizer. Só por alguns dias.

Qual é o seu tipo de trabalho?

Lanifícios. Logo a seguir, como não tinha vontade de falar de si próprio, insistiu: Há quanto tempo vive em Barbados?

Cerca de trinta anos. Dirigi o Beach Club durante quinze deles, mas desisti daquilo antes de me tornar um alcoólico inveterado. Antes disso, vivia numa propriedade na Escócia. Foi-me doada por um pai parcimonioso que não tencionava pagar direitos de transmissão por sua morte.

Sam sentiu-se vagamente interessado.

- Que tipo de propriedade? perguntou.

- Oh, de tamanho razoável. Quintas, terras, esse tipo de coisa. Um , casarão vitoriano. Caça, boa pesca.

Vivia lá permanentemente?

- Tentei, meu caro, mas os invernos naquela latitude são de respeito. para apreciar aquele tipo de vida ao máximo é preciso dispor de um pouco de apoio. Para os nossos avós estava tudo muito certo, pois tinham criados para tudo o que era serviço, cozinheiros e capatazes com salários inacreditavelmente baixos. Quando eu fui para lá, só aquecer a maldita casa custava um dinheirão. O que não quer dizer... ergueu uma sobrancelha e esboçou um sorriso manhoso ... que não tenhamos passado um bom bocado. A minha primeira mulher tinha a mania de receber e fazia com que Corrydale estivesse sempre a abarrotar de hóspedes. Eu costumava dizer que ela tinha hóspedes do mesmo modo que os outros tinham ratos. Comida para um exército e bebida para um exército de bêbados. Dias memoráveis. Enquanto falava, recordando tempos aparentemente inesquecíveis, Hughie ia acariciando a sua gravata de seda, fazendo-a deslizar entre os dedos. Claro que não podiam durar para sempre. Foi então que Elaine fugiu com um negociante de utilidades, e depois disso, manter as coisas como estavam não parecia fazer grande sentido. Além de que metade do pessoal pusera-se a milhas, e o gerente do banco começara a emitir ruídos desagradáveis...

Sam escutava tudo aquilo com um misto de irritação e compaixão. Ali estava um indivíduo a quem tinham entregue um tesouro em bandeja de prata, o qual depois desbaratara. Era difícil sentir pena dele, pois a bravura de Hughie transformava-o numa personagem lamentável.

portanto, vendi tudo e ponto final. Mudei-me para Barbados. A melhor coisa que já fiz na vida.

Vendeu tudo, assim, sem mais nem menos? O lote inteiro?

Bem, não exactamente. A propriedade foi vendida por lotes. A quinta foi comprada pelo inquilino da altura, e uma das duas casinhas ficou para os velhos inquilinos fiéis que tinham estado a viver nela. O que restou, o casarão, estábulos, terra, foi arrematado por uma cadeia nacional de hotéis rurais. Sabe como é. Peixe à discrição e possibilidade de caçar faisões e tetrazes.

Hughie acabou com o resto de gim tónico que tinha no copo e dePOIS ficou a olhar, pensativamente, para o copo vazio.

Deseja mais uma dose? Hughie mostrou-se animado.

Excelente ideia. Pouca água tónica.

Sam tirou-lhe o copo da mão e Hughie puxou de mais um cigarro. Quanto tempo vai ficar em Londres? perguntou-lhe, enquanto Preparava a bebida.

O menos tempo possível. Cheguei há cerca de quatro dias. Parto para Nice na quarta-feira. Tenho uma boa amiga lá, Maudie Peabody. talvez a conheça. Não? Oh, obrigado, meu caro. Foi muito amável. Maudie é uma velha conhecida dos meus primeiros tempos em Barbados. Americana. Podre de rica. Tem uma villa divina nas colinas sobranceiras a Cannes. Passo o Natal com ela, assim como a passagem do ano, e depois volto para Barbados.

Sam voltou a instalar-se no seu lugar junto da lareira.

Parece ter a sua vida muito bem organizada.

Oh, não tenho passado mal, realmente. Faz-se o que se pode. Agora, que vivo sozinho, sinto-me um pouco solitário. Não fui muito bem sucedido nos casamentos. Além disso, são danadamente caros. Todas as minhas ex-mulheres levaram o seu quinhão. O que restou dele!

Tem filhos?

Não. Nada de crianças. Tive papeira quando andava em Eton e fiquei estéril. Uma pena, de facto. Se não fosse isso, teria tido filhos que cuidassem de mim na velhice. Para dizer a verdade, pouca família me resta. Tenho o meu pai, mas com esse mal falo. Ficou danado quando vendi o que me deixou, porém nada pôde fazer contra isso. Também tenho um primo, um tipo apagado. Vive no Hampshire. Tentei telefonar-lhe, mas não consegui.

Onde é que o seu pai vive?

Muito confortável e solitário numa mansão para os lados de Albert Hall. Ainda não entrei em contacto com ele. Vou adiando. Se calhar, passo por lá quando voltar de França. Visita de cortesia. Nunca temos muito de que falar.

Sam ficou aliviado quando Neil e Janey voltaram de novo para junto deles. A dona da casa terminara, ao que parecia, o seu jantar e tirara o avental. Tinha um ar radiante e, ao entrar na sala, aproximou-se de Sam, pôs-lhe os braços à volta do pescoço e deu-lhe um beijo repenicado.

Neil falou-me do novo emprego. Acho óptimo. Não te importas que eu saiba, pois não? Acho fantástico, um verdadeiro desafio. Estou francamente satisfeita por ti. Não poderias ter arranjado nada mais excitante para fazer.

Sam reparou que Neil o fitava, um tudo nada embaraçado.

Não ficas aborrecido por eu lhe ter contado, pois não?

Claro que não. Deu um abraço a Janey. Poupaste-me o trabalho.

Que se passa? quis saber Hughie, de ouvido alerta. Poderei saber do que se trata?

Janey voltou-se para ele.

É o novo emprego de Sam. Soube hoje. Vai mesmo para o Norte da Escócia pôr uma velha fábrica de lanifícios a funcionar novamente.

Não me diga! Pela primeira vez, a atenção de Hughie era distraída por algo ou alguém não relacionado com a sua própria pessoa.

Escócia, hcin? Que zona? " Sam disse-lhe.

-Buckly. Sutherland.

Hughie ficou de boca aberta.

por amor de Deus! Buckly. Não me diga que tem a ver com a McTaggart?

Conhece-os.

-Meu caro, como a palma da minha mão. Buckly fica apenas a 5 quilómetros de Corrydale. Os meus fatos de caça eram todos feitos em tweed de Buckly. E a minha avó costumava cozer-me as meias de caça com linha McTaggart. Velha firma de família. Foi fundada pelo menos há cento e cinquenta anos. Que raio aconteceu?

O velho McTaggart morreu. Os filhos não estavam interessados. Acabou-se-lhes o dinheiro e uma cheia levou o resto por água abaixo.

Que história trágica. É como saber da morte de um velho amigo.

E o meu caro vai tomar conta daquilo! Quando é que segue para o Norte?

Breve.

Tem onde ficar?

Não. Todas as propriedades domésticas da fábrica foram vendidas. Acamparei numa pensão e depois procurarei algo para comprar.

Interessante comentou Hughie.

Olharam todos para ele, que não entrou em pormenores, concentrando-se apenas no acto de apagar o seu cigarro. A certa altura, Janey não se conteve:

Porque é interessante?

Porque eu tenho uma casa.

E onde é que tem a casa?

Não em Corrydale, mas em Creagan. Ainda mais perto de Buckly.

Porque tem uma casa em Creagan?

Fazia de escritório da velha propriedade e era nela que vivia a família do feitor. Bastante ampla, sólida, vitoriana. Com quintal. Mas a minha avó achou que não dava jeito no dia-a-dia porque ficava demasiado longe de Corrydale, de modo que instalou o feitor e a respectiva família em acomodações mais adequadas, dentro do perímetro do parque. Deixou a velha casa para mim. E a um primo meu. Somos co-proprietários.

Neil franziu o sobrolho.

Então quem é que lá vive neste momento?

Tem estado vazia. Esteve alugada durante os últimos vinte anos a um casal de velhotes de apelido Cochrane, mas um morreu e o outro foi viver com a família. Para ser sincero, uma das razões que me trouxe a Londres foi a ideia de a colocar à venda. A minha parte fazia-me jeito. Tentei ligar a Oscar, que é o outro proprietário, para falar sobre o assunto, mas não consegui encontrá-lo. Se calhar morreu. De tédio? sem dúvida.

Janey ignorou aquele pequeno acesso de malícia e perguntou:

Ele estaria disposto a vender a sua metade da casa?

Não posso imaginar razão para não o fazer. Não lhe serve de nada. Na verdade, tenho uma reunião marcada na Hurst & Fieldrnore amanhã de manhã para os sondar, ver se querem encarregar-se da venda.

Mas o seu primo...

Oh, quando voltar de França resolvo a questão com ele.

Então, o que estava a dizer, Hughie?

O vosso amigo Sam precisa de uma casa e eu tenho uma para vender. Sou obrigado a reconhecer que lhe vem mesmo a calhar. Perto do trabalho, das lojas e de um campo de golfe onde há campeonatos. Nenhum homem poderia pedir mais. Virou a cabeça e olhou para Neil. Não custa nada ir até lá dar uma vista de olhos. Nunca se sabe se não chegamos a um acordo. Uma negociação particular viria mesmo a calhar.

Sam, cauteloso, inquiriu:

Quanto é que está a pedir?

Bem, não se procedeu a nenhuma avaliação por razões óbvias. Mas... Hughie baixou os olhos, sacudiu um pouco de cinza do joelho das calças ... cento e cinquenta mil?

A dividir entre si e o seu primo?

Exactamente. Setenta e cinco para cada.

Quando é que tenciona entrar em contacto com ele?

Não faço ideia, meu caro. Ele tem-se mantido afastado. Pode estar em qualquer lado. Mas não há razão para não ir dar uma vista de olhos à casa.

Há lá algum agente ou pessoa com a qual possa falar?

Não é preciso. Hughie ergueu-se de lado e apalpou o bolso das calças. Tirou de dentro dele uma chave grande e antiquada, presa a uma etiqueta vermelha onde estava escrito em letras maiúsculas, CASA DA QUINTA. Exibiu-a no ar como se fosse um trofeu.

Janey ficou espantada.

Anda sempre com ela?

Tolinha, claro que não. Já vos disse que amanhã tencionava ir à Hurst & Fieldrnore, onde a deixaria.

Sam pegou na chave.

Como é que comunico consigo?

Dê-me um cartão seu, meu caro. Pode mandar-me um fax para Barbados. E fica com o número do telefone de Maudie, no Sul de França, para onde poderá ligar se tomar uma decisão rápida.

Claro que irei ver a casa, e obrigado. Mas, certamente, que nada poderá ser oficializado sem a aprovação do seu primo.

Claro que não. Nada de trapaças. Tudo como deve ser. Ainda assim, uma proposta viável. Verificou-se nova pausa. A certa altura Janey observou:

Foi uma coincidência extraordinária. Tenho a certeza de que e

Um sinal maravilhoso. De que tudo vai correr bem. Não será bom celebrarmos? Sam ofereceu-nos uma garrafa de champanhe. não devemos abri-la e fazer uma saúde a Sam, a McTaggart e a dias felizes QUe talvez passe na nova casa?

Esplêndida ideia! concordou Hughie. Mas se não se importam eu preferia antes outro gim tónico.

 

Carrie

Nessa noite, Carrie sonhou com a Áustria e com Oberbeuren. No sonho, o céu era de um azul intenso e a neve tão resplandecente que cada floco brilhava como uma jóia. Ela fazia esqui numa pista vazia. Ia deslizando através dos campos brancos que se espraiavam a perder de vista de ambos os lados. Havia pinheiros negros, a pista estendia-se pelo meio deles e estava sozinha. De repente, ao emergir de entre os pinheiros, apercebeu-se de que não estava só, pois avistou, ao longe, outro esquiador solitário, uma silhueta negra, trepidante, que descia a vertente ziguezagueando na neve. Sabia que o esquiador era Andreas e queria que este soubesse da sua presença, para que esperasse por si. Andreas. Pára, espera por mim. Esquiemos juntos por aí abaixo. Podia ouvir a sua voz, arrastada pelo vento, assim como o som que os seus esquis faziam na superfície muito batida da pista. Mas Andreas desaparecera. Foi então que, ao passar uma elevação de terreno, percebeu que ele ouvira o seu chamado e estava à sua espera, apoiado aos seus bastões, com a cabeça levantada e os óculos puxados para o alto. Sorria. Os dentes brancos sobressaíam no rosto intensamente bronzeado. Talvez tivesse querido apenas brincar. Andreas. Deteve-se ao seu lado e só então é que viu que não era Andreas, mas outro homem alto, de sorriso cruel e olhos duros como seixos cinzentos. O céu deixara de ser azul, apresentava-se agora escuro e tempestuoso, e ela tinha medo...

A sensação de medo acordou-a, levando-a a abrir imediatamente os olhos no meio da escuridão. Ouvia as batidas do coração. Desorientada, divisou, por entre uma abertura entre os reposteiros, as luzes acesas na rua. Não estava na Áustria nem em Oberbeuren, mas sim em Londres. Não no seu apartamento a cheirar a pinho, com a varanda do lado de lá das janelas, mas sim em Puney, no quarto que os amigos Sara e David Lumley, lhe tinham dispensado. Não havia céus gelados e cheios de estrelas, apenas o gotejar de chuva cinzenta. O sonho foi-se desvanecendo- Andreas, que nunca fora verdadeiramente seu, desaparecera. Tudo terminara.

Estendeu a mão e apalpou o tampo da mesinha-de-cabeceira, à procura do seu relógio de pulso. Eram seis da manhã de um dia escuro de princípios de Dezembro.

A cama vazia era desconsoladora. Deu consigo a sentir uma necessidade física desesperada de Andreas; desejaria tê-lo ali, sentir-lhe o corpo macio e musculoso contra o seu. Voltar para onde ambos deveriam estar, na enorme cama trabalhada sob as vigas inclinadas; amantes, abraçados um ao outro em pleno êxtase. Virou-se de lado, aconchegando-se a si mesma para ficar mais confortável e aquecida. Tudo ia correr bem. Era como uma doença, acabaria por passar. Fechou Os olhos, enterrou o rosto na almofada e voltou a adormecer.

Às nove da manhã despertou novamente, vendo que a enevoada manhã de Inverno começara a clarear. Naquela altura, já David e Sara deviam ter ido para o trabalho. Sabia que ficara sozinha em casa. Já ali se encontrava há uma semana e ainda nada fizera; não vira ninguém nem dera o menor passo para arranjar novo emprego. Sara e David, infinitamente compreensivos, tinham-na deixado à vontade, e a única consolação que Carrie tivera resumira-se a uma longa e reconfortante conversa de quase uma hora com o pai, que vivia na Cornualha. «Entrarás em contacto com a tua mãe, não é verdade?» perguntara-lhe ele. Carrie prometera fazê-lo, mas continuara a arranjar boas desculpas para adiar a situação. Porém, uma semana era demasiado tempo; tinha consciência de que não podia continuar a adiar indefinidamente. Naquele dia, naquela própria manhã, telefonaria a Dodie. Surpresa, diria com ar jovial. Estou de volta. Aqui. Em Londres.

Haveria espanto, explicações, desculpas e depois combinariam o encontro mútuo. Não temia essa situação, mas também não lhe apetecia muito voltar a ver a mãe, nem sua irmã Nicola. Sabia que iria encontrar muitas novidades e nenhuma delas boa. Apesar de tudo, os laços de sangue tinham muita força, quanto mais depressa resolvesse a situação, melhor.

Levantou-se da cama, enfiou o robe e desceu ao piso de baixo. A cozinha estava arrumada e brilhava de asseio. Sara era uma dona de casa exemplar, apesar de trabalhar a tempo inteiro. Arranjara mesmo tempo para escrever um bilhete a Carrie, deixando-o encostado à planta envasada colocada no meio da mesa.

Bons dias. Tens bacon e sumo de laranja no frigorífico. David tem uma reunião até tarde, mas eu estarei em casa à hora do costume. Se fores até Safeway, agradecia que comprasses algo vegetariano para o jantar. Couve-flor serve. E umas saquetas de chá Lapsang Souchong. Beijinhos. Sara.

Carrie pôs a chaleira ao lume, fez café. meteu uma fatia de pão na torradeira. Bebeu o café, mas não comeu a torrada. O telefone estava em cima da cómoda a olhar para si como um peso na consciência. Já era um quarto para as dez quando acabou de beber a sua terceira chávena de Café. Certamente que até mesmo Dodie Sutton já devia estar levantada e arranjada àquela hora. A chuva tamborilava contra a janela. Ouviu o tom de chamada. Aguardou. Está?

Mãe.

-Quem fala?

Carrie.

Carrie? Estás a ligar da Áustria?

Não, de Londres. Estou cá. De volta a casa.

Na Ranfurly Road?

Não. Já desisti da casa da Ranfurly Road há três anos. Três meses de aviso de ambas as partes. Estou sem sítio para morar.

Então onde é que estás?

Em Putney. Com uns amigos. Mesmo do outro lado do rio.

Há quanto tempo voltaste?

Há cerca de uma semana. Mas tenho tido muito que fazer, caso contrário já teria telefonado.

Uma semana? Estás de férias? Dodie falava em tom de lamúria, como se a filha a tivesse enganado de alguma maneira.

Não, não estou de férias. Deixei o meu emprego. Achei que já lá estava há tempo de mais.

Sempre pensei que ficavas lá para sempre. Já não te vemos há anos. Que aconteceu?

Não aconteceu nada. Apenas me deu na veneta.

Tencionas arranjar outro emprego?

Tem de ser. Olha, mãe, pensei em ir ver-te. Hoje estás em casa?

Só de manhã. À tarde fiquei de ir jogar xadrez com a velha Leila Maxwell. Está com cataratas, coitada, e mal vê as cartas, mas é o mínimo que posso fazer.

Então, que tal ao almoço? insistiu Carrie.

Aqui em casa?

Se preferires, vamos comer fora.

Não. Prepararei qualquer coisa. Sopa e patê ou algo parecido. Achas bem?

Perfeito. Como vai Nicola?

Oh, minha querida, nem queiras saber os dramas. Carrie sobressaltou-se.

Dramas?

Eu acho que ela não está boa da cabeça. Depois te conto. Fez-se uma pausa e, de repente, Dodie, nitidamente como quem acaba de ter uma ideia brilhante, acrescentou:

Se calhar o teu regresso a casa até vem mesmo a calhar. Ela vem cá almoçar, mas talvez possas chegar um pouco mais cedo para conversarmos só as duas sobre o assunto.

Carrie começou a achar que, afinal, não devia era ter telefonado.

E Lucy, como vai? perguntou.

Lucy também está cá. Esta manhã não teve aulas, algo relacionado com a substituição da caldeira. Está no seu quarto a estudar para não sei que exame. Passa a maior parte do tempo lá metida, por isso não nos incomodará.

Gostaria de a ver.

Oh, claro que a verás. A que horas cá estás?

Onze e meia está bem? Se calhar vou a pé.

Não tens carro?

Tenho, mas o exercício não me fará nada mal.

O dia está horrível.

Sobreviverei. Então até logo, mãe.

Fico à tua espera.

Dodie desligou. Instantes depois, Carrie pousou o auscultador, sentou-se a olhá-lo durante algum tempo e depois desatou a rir. Não de alegria mas de amargura, pois a recepção fria e ambígua da mãe fora exactamente a que Carrie temera e esperara.

Fora sempre assim. Uma falta de comunicação, talvez mesmo uma antipatia, com a qual Carrie se habituara a viver e aprendera a aceitar, ainda antes de entrar na adolescência. Estar com outras famílias e ver como se relacionavam entre si só serviu para fortalecer a sua percepção, e não fora a presença do pai, talvez tivesse crescido sem saber o que era amar e ser amada.

Nunca compreendera muito bem o que levara Jeffrey Sutton a casar com Dodie. Talvez por ela ser bonita, namoradeira e insinuante, e em jovem ter tido a capacidade de se tornar exactamente no tipo de companheira que qualquer potencial marido desejaria para a sua vida. Para vir a descobrir, mais tarde, que tudo não passara de um acto calculado. Dodie, por seu lado, viu em Jeffrey não só um homem atraente e másculo, como também alguém que lhe daria segurança, já que o seu trabalho como corretor na City era sólido, a sua carreira evoluía firmemente, e os seus colegas desfrutavam do nível social que Dodie sempre desejara alcançar.

Nicola fora a primeira a nascer, seguida, cinco anos depois, de Carrie. As irmãs eram de tal maneira diferentes e tinham tão pouco em comum que cada uma parecia pertencer a um dos progenitores. Como se Dodie tivesse concebido Nicola sem a ajuda de Jeffrey, e este tivesse sido pai de Carrie por meio de algum método miraculosamente individual.

Fora seu pai, seu amigo, seu aliado. O elemento mais forte de uma união que só poderia ser classificada de um casamento desastroso.

Quem levava as crianças à escola, enquanto a mãe ficava na cama a bebericar chá da China e a ler novelas, era Jeffrey. Carrie lembrava-se de ele voltar do trabalho, do som da sua chave na porta, e de correr escada abaixo para o receber. Dodie ainda não voltara do seu jogo de bridge, e o consorte era obrigado a desenvencilhar-se sozinho na cozinha. Sujo e exausto depois de um dia de trabalho duro, deixava cair pesadamente a pasta, despia o sobretudo e subia para a ajudar nos trabalhos de casa ou para a ouvir dedilhar a sua lição de piano. Era Jeffrey quem trazia alegria à família, lembrando-se sempre espontaneamente de um piquenique, um passeio, umas férias. Ele é que levara Carrie a esquiar pela primeira vez a Vale d'Isere, tinha ela dez anos. Tinham ficado instalados numa villa alugada e participado numa animada festa juntamente com outras duas famílias. Fora uma das melhores festas que Carrie tivera, além de o início de uma paixão para toda a vida. Nicola recusara o convite, em parte porque não era minimamente atlética, mas também porque gostava de ficar sozinha com Dodie, de modo a poderem ir as duas às compras, em busca de vestidos novos que Nicola pudesse usar em todas as festas de Natal para as quais fora convidada e não tencionava perder.

As paixões de Nicola resumiam-se a roupas, rapazes e festas, pelo que ninguém se admirou de que, aos vinte e um anos, ficasse noiva e depois casasse. O jovem eleito chamava-se Miles Wesley e era tudo o que Dodie sonhara para a filha mais velha. O rapaz tinha uma avó chamada Lady Burfield; os pais possuíam uma invejável propriedade no Hampshire; fora educado em Harrow e tinha um respeitável emprego na Hurst & Fieldmore, uma firma antiga e respeitável, com sucursais em todo o país. Miles estava na sede, na Davies Street, aprendendo os meandros da venda de grandes áreas destinadas a desporto, caça e pesca. Nenhuma mãe poderia ter desejado melhor. Dodie passou um agradável período a planear um casamento que faria a inveja de todas as suas amigas e seria tema de conversa para os anos seguintes.

Carrie não foi dama de honor nesse casamento porque se recusou a tal. Aos quinze anos era alta, esguia e dedicava-se afincadamente aos seus estudos porque queria, acima de tudo, entrar na universidade. A sua aparência geral fazia o desespero da mãe, que abominava os jeans gastos, as botas pesadas e as T-shirts largueironas tão ao gosto de Carrie, e por pouco não desmaiou quando certa vez a viu chegar com um casaco de cabedal, comprado na loja Oxfam, que não parecia mais do que um carneiro morto.

Quando a palavra «dama de honor» foi mencionada, Carrie clarificou imediatamente a sua posição.

Disse:

Não.

Houve discussões terríveis.

" Como podes ser tão egoísta? quis saber Dodie.

Sem a menor dificuldade.

É a tua única irmã. Bem podias pensar nela.

Olha, mãe, não o faria nem pela rainha. Sou demasiado alta para ir de dama de honor. Não pretendo percorrer nenhuma coxia de igreja parecendo um enorme merengue de tafetá cor-de-rosa. Uma perfeita idiota!

Sabes perfeitamente que não será tafetá cor-de-rosa. Nicola e eu escolhemos um chiffon rosa-forte.

Ainda pior.

Só pensas em ti.

Desta vez, vou fazer precisamente isso. Nicola não se importará. Tem montes de amigas bonitas, ansiosas por ser damas de honor. De qualquer modo Carrie bocejou , não sou muito a favor dos casamentos pela Igreja. De vez em quando adorava enfurecer um pouco a mãe. Porque é que eles não vão só ao registo? Pensa no dinheiro que pouparias. Por outro lado, isso significaria a ausência de presentes de casamento e cheques apetitosos.

Que observação mais indelicada.

Estou só a ser prática.

Dodie respirara fundo e mantivera a voz baixa e branda:

Se as pessoas desejarem dar a Nicola um cheque como presente de casamento, sei que será muito bem recebido. Afinal de contas, eles terão de mobilar o apartamento novo. Frigorífico, candeeiros, carpetes. Sabes que tudo isso custa muito dinheiro.

O melhor era meterem toda essa massa numa conta especial e depois utilizarem-na para pagar o divórcio...

Dodie saíra da sala e atirara com a porta. A questão da dama de honor nunca mais foi mencionada.

Carrie foi a primeira pessoa em quem Jeffrey confiou. Tinha então dezanove anos e andava em Oxford a tirar Literatura Inglesa e Filosofia, adorando cada momento da sua nova vida. Certo domingo de manhã, ele telefonou-lhe de Londres.

Tens alguma coisa de especial para fazer hoje? perguntou-lhe.

Nada de especial.

Pensei em desafiar-te para almoçarmos juntos.

Que bom.

A tua mãe está com Nicola. Lucy apareceu com febre e a avó foi ajudar. Apareço aí por volta do meio-dia.

Carrie ficou encantada.

Cá estarei.

Estava um dia de Outubro dourado e Jeffrey, depois de ir buscar Carrie, levara-a a almoçar ao Manoir aux Quatre-Saisons, nos arredores. Fora um mimo dispendioso. Terminado o almoço, deram um passeio pelo jardim e sentaram-se a desfrutar do sol benigno daqueles últimos dias quentes de Outono; as aves cantavam e as folhas caíam na relva como moedas de cobre.

Foi então que Jeffrey lhe falou de Serena, de a ter conhecido, de apaixonar-se por ela.

já a conheço há cinco anos. Tem idade para ser minha filha, mas é tudo para mim, não creio que possa continuar a viver sem ela. O Seu pai tinha uma amante. Outra mulher. E Carrie nunca desconfiara minimamente. Era difícil saber o que dizer.

Estás chocada, Carrie?

Claro que não, pai. Apenas fui apanhada desprevenida.

Vou deixar-vos a todas para ir viver com ela.

Carrie olhara para o pai e vira a dor nos seus olhos escuros. É uma decisão terrível.

Não, não é. Só quero que me contes o que está a acontecer. Por mim, já me teria ido embora e levado Serena comigo. No entanto, não fui capaz de fazê-lo antes de achar que tanto tu como Nicola estavam... lançadas na vida, creio. Adultas. Tinha de ficar enquanto ainda precisasses de mim, enquanto ainda pudesse fazer-te falta. Agora é diferente. Tenho a certeza absoluta de que és capaz de caminhar pelos teus próprios pés. E Nicola é uma mulher casada e mãe de uma menina. Só espero que seja feliz. Miles sempre me pareceu um tipo às direitas, mesmo apesar de um pouco mole. Estou convencido de que Nicola o domina, mas isso é lá com ele.

Pobre homem.

Pensou no próprio casamento do pai com Dodie.

Tens sido muito infeliz durante todos estes anos? perguntou-lhe.

Jeffrey abanou a cabeça.

Não. Houve momentos de grande felicidade, sobretudo quando estava contigo. Mas estou farto de manter as aparências e de me esforçar sempre pelo melhor. O esforço de tentar arranjar dinheiro suficiente, de continuar a lutar e de me matar a trabalhar deixou-me exausto. Preciso de uma vida diferente, de amor, afecto, companheirismo e alegria, e Dodie é incapaz de me dar alguma destas coisas. Como provavelmente te deves ter dado conta, já não dormimos juntos há anos. Quero uma casa onde os amigos possam aparecer, sentarem-se à mesa

da cozinha e partilharem espaguete e uma garrafa de vinho. Quero entrar em casa ao fim do dia e ouvir alguém chamar o meu nome. De manhã, quero barbear-me e sentir o cheiro dos ovos com bacon a vir da cozinha e do café a coar. E não se trata apenas de andropausa, é apenas uma necessidade profunda que tem estado a tremeluzir há anos. Eu não ia dizer que era andropausa. Eu sei que não.

Outra família saíra do hotel para o sol cálido da tarde. Um casal com um filho pequeno. Este encontrara um malho de críquet e uma bola, de modo que tentava acertar nesta com o dito. Depois de falhar três vezes, o pai foi colocar-se atrás do filho e, envolvendo as mãos da criança com as suas, ensinou-lhe como se fazia. Carrie observou:

Tu fizeste tudo o que podias por nós. Nenhum homem poderia ter feito melhor. Se é essa a tua vontade, não deves hesitar.

E a tua mãe?

Ficará arrasada, evidentemente, e com o orgulho pelas ruas da amargura, mas estou convencida de que nunca investiu muito no vosso casamento e, talvez, quem sabe, acabe por se tornar uma pessoa melhor ficando sozinha. Carrie suspirou. Tens de ser realista, pai. Ela não deixará de arranjar um bom advogado de divórcio e deixar-te nas lonas.

Eu sei. É um preço que terei de pagar.

E quanto ao teu emprego?

Largá-lo-ei.

Não te fará diferença?

Não, já cheguei mais alto que alguma vez desejei. Além disso, estou farto da lufa-lufa, da ansiedade e de ter de vencer constantemente a concorrência para me manter à frente. Se calhar, nunca fui um animal ambicioso. E agora tornei-me egoísta. Achas que é errado querer ser feliz na minha idade?

Sabes muito bem o que penso.

Durante algum tempo não proferiram palavra, deixaram-se simplesmente ali ficar sentados, numa harmonia silenciosa. A certa altura, Jeffrey voltou a falar:

Agora conversemos sobre ti. Há um fideicomisso em teu nome, fi-lo quando nasceste. Nicola também, mas a maior parte já se gastou naquele casamento ridículo. A questão é que está parado no banco, a acumular alguns juros, é certo, mas talvez tenha chegado a altura de o levantares e o utilizares para comprar uma casa para ti. Em Londres ou noutro sítio qualquer. Investir na habitação é sempre bom. Gosto de te imaginar independente... Não é nenhuma fortuna, mas creio que chegará para uma casa relativamente modesta. Que achas?

Acho que a ideia me agrada. Carrie inclinou-se para a frente e depositou um beijo na face do pai. És um amor. Obrigada. Não nos perderemos de vista, pois não? Escrever-nos-emos, mandaremos faxes um ao outro e telefonar-nos-emos, vás tu para onde fores. Manteremos o contacto.

Jeffrey sorriu e ficou com um ar menos tenso; tensão que ela se habituara a ver-lhe nos últimos tempos. Saltava à vista que tivera muito em que reflectir. Perguntou então:

Se eu no próximo domingo vier ter contigo a Oxford e trouxer Serena comigo, gostarias de a conhecer?

Claro que gostaria, pai. Mas ela que não pemse que sou demasiado importante e que alguma vez me interporei entre vocês. Não quero ser motivo para que Serena se sinta culpada ou com remorsos. A partir de agora, as velhas responsabilidades devem terminar e começa a tua nova vida. Só espero que, desta vez, seja tudo felicidade.

- E tu, minha querida? Que me dizes de ti? Tens algum amor na tua vida?

Dezenas - brincou ela. Não me faltam.

Não virá por aí mais algum casamento pomposo?

Nem pensar. Pelo menos nos próximos anos. Tenho muitas outras coisas para fazer na vida. Ainda por cima, agora tenho de comprar uma casa para mim. Falámos sobre tantos planos e tantas questões...

Não estejas demasiado optimista. Vêm aí tempos difíceis.

Carrie pegou-lhe na mão e disse:

Aliados, pai. Ombro a ombro.

Jeffrey tinha razão. Foi uma experiência traumatizante, e durante muito tempo ecoaram sons de ressentimento e recriminação. No final do dia, porém, a maioria das pessoas teve de concordar que Dodie se saíra muito bem e lucrara o mais possível com uma situação lamentável. Tal como Carrie previra, deixou Jeffrey com uma mão à frente e outra atrás, ficando com a casa da família em Campden Hill, o carro, a maior parte dos bens terrenos de Jeffrey e quase todo o seu dinheiro. Este nada contestou, mas também pouco mais teria conseguido alterar.

Dodie, assim que soube que Carrie tinha comprado uma pequena casa com terraço na Ranfurly Road, pôs a casa de Campden Hill à venda, jurando dramaticamente que esta estava demasiado cheia de más recordações para que pudesse lá viver. Obteve um bom preço por ela e mudou-se para um encantador apartamento antigo em Fulham, com vista para sul e para Putney, no outro lado do rio, e com jardins privados que faziam fronteira com Hurlingham.

«É o meu pequeno ninho solitário», dissera às amigas, em tom simultaneamente melancólico e animado, e todos comentaram que estava maravilhosa. Na verdade, sentia-se mais satisfeita que nunca com o seu brídege, os beberetes e a inesgotável panaceia das compras, de onde regressava cheia de sacos de marcas e caixas atafulhadas de papéis absorventes e guloseimas. Começou a ir passar férias ao estrangeiro com amigas, fez viagens confortáveis de comboio a Paris e cruzeiros pelo Mediterrâneo em paquetes impecavelmente dirigidos, onde dispunha de todas as oportunidades para deslumbrar nalguma colecção de roupas recentemente adquirida. Foi num desses cruzeiros que conheceu Johnnie Struthers, um coronel da aviação reformado e viúvo. O indivíduo, que tinha uma nítida paixoneta por Dodie, telefonava a convidá-la para jantar, sempre que ia a Londres.

Dodie estava feliz como nunca lhe acontecera. Então, sete anos depois do próprio divórcio de Dodie. Nicola Wesley descobriu que o Pacato do marido andava a enganá-la com outra mulher, pelo que aproveitou a oportunidade para se pôr ao largo de um casamento que já dera o que tinha a dar. Claro que foi ter com a mãe, instalando-se no seu lindo e espaçoso apartamento. O que teria sido muito divertido e animado, não fora Nicola levar consigo Lucy, a filha de sete anos, o que fez com que Dodie percebesse que os seus dias de tranquilidade tinham chegado ao fim.

O bule do café estava vazio e as borras no fundo da sua chávena esfriaram. Carrie levantou-se, atirou a tosta não comida para o balde do lixo, passou o bule por água e meteu a chávena e o pires na máquina de lavar. Subiu ao andar de cima, tomou um duche, lavou o cabelo curto e vestiu-se. Ultimamente, não andava a preocupar-se muito com a sua imagem, ia para todo o lado com uns jeans velhos e sem maquilhagem, mas naquela manhã sabia que era tempo de ter um pouco de cuidado consigo mesma, quanto mais não fosse para ganhar coragem.

Escolheu, portanto, umas calças adelgaçantes cor de camelo, uma camisola de gola alta em caxemira, botas envernizadas, argolas de ouro e um fio, também de ouro, ao pescoço. Perfumou-se, inspeccionou a mala a tiracolo, em cabedal, tirou o casaco do guarda-roupa e desceu.

As chaves da porta da frente estavam em cima da cómoda do vestíbulo, dentro de uma tacinha em metal, ao lado de uma jarra com jacintos brancos. Na parede acima da cómoda havia um espelho alto. Enquanto vestia o casaco e abotoava os botões, via a sua imagem reflectida nele. Deteve-se por momentos, mirando-se. Viu uma rapariga alta, magra, de cabelo escuro... ou talvez, mais exactamente, uma mulher alta, magra e de cabelos escuros. Afinal de contas, estava prestes a completar os trinta. O seu cabelo castanho-dourado brilhava, acabado de lavar, e um caracol caía-lhe sobre a testa, como uma asa de pássaro. Os seus olhos, acentuados pela sombra e pelo rímel, eram grandes e escuros como café; quanto ao rosto ainda conservava a tonalidade bronzeada adquirida nas imensidões de neve onde o sol se reflectia. Estava com bom aspecto. Confiante. Ninguém de quem se tivesse pena.

Acabou de abotoar os botões do casaco, em tecido canelado cinzento-escuro debruado a verde-floresta, que fora comprado em Viena no ano anterior. Andreas, que ia com ela, ajudara-a a escolher e depois fizera questão em pagá-lo. «Nunca mais deixarás de o usar», dissera-lhe, «e ficarás sempre com um aspecto deslumbrante.»

Naquele dia estava muito frio, nevava ao de leve, e, depois de comprarem o casaco, tinham andado pelas ruas de braço dado, acabando por almoçar em grande estilo no Sacher.

Não penses nisso.

Pegou nas chaves, ligou o alarme e saiu de casa. Desceu a rua, depois enveredou pela Putney High Street, percorrendo os passeios movimentados em direcção ao rio. Ao atravessar a ponte, sentiu a friagem de um vento que soprava do leste, esgueirando-se rio acima, vindo do mar. Passada a ponte, pouco faltava para chegar a Farnham Court, o ornamentado quarteirão eduardino de apartamentos onde Dodie tinha o seu. Subiu os degraus, passou as pesadas portas principais, meteu-se no elevador e carregou no botão. O elevador subiu até ao andar pretendido onde parou de supetão. Carrie abriu as portas, que fizeram um ruído enorme, atravessou o corredor e carregou na campainha.

Dodie estivera à sua espera. Atendeu quase imediatamente, abrindo a fechadura dupla e escancarando a porta.

Carrie!

Tinha o mesmo aspecto de sempre, nem mais velha, magra ou gorda. Pequena e com boa apresentação, cabelo escuro impecavelmente arranjado, com uma madeixa branca que era completamente natural e provocava invejas. Envergava um fato saia-casaco de malha de lã, com a saia curta como se usava, e sapatos baixos decorados com fivelas quadradas em dourado. Uma mulherzinha bonita e fútil, aparentemente muito bem na vida. A única coisa que denunciava a sua idade era a boca, que os anos haviam moldado numa expressão de descontentamento permanente. Sempre tinham dito a Carrie que os olhos eram o espelho da alma, porém decidira, há muito tempo, que a boca de uma pessoa é que mostrava verdadeiramente o seu carácter.

Entrou e Dodie fechou a porta cuidadosamente. Não haveria braços abertos, abraços, exclamações de deleite maternal.

Olá, mãe, como tens passado? perguntou, despindo o casaco. Estás com óptimo aspecto.

Obrigada, querida. Tu também pareces muito bem. Tão bronzeada! Como se tivesses acabado de chegar de umas férias a apanhar sol. Põe o teu casaco na cadeira. Queres café ou alguma outra bebida?

Não, tomei o pequeno-almoço há pouco. Deram então um beijinho formal na face uma da outra, mal se tocando. Dodie tinha as bochechas macias e perfumadas. Só me levantei às nove.

Levantar tarde da cama sabe bem. Anda...

Virou-se e conduziu a filha até à sala de estar. Nesse instante, as nuvens daquele dia invernoso afastaram-se e, por um momento, a sala ficou repleta de um sol de Inverno ofuscante. A divisão era agradável, tinha duas janelas largas voltadas para sul, com uma varanda no lado de fora e, ao fundo, a paisagem com o rio. Logo a seguir, separada por uma porta dupla que ficava sempre aberta, estava a sala de jantar de Dodie. Carrie reparou na mesa de mogno e no lindo armário, tudo parte da sua infância, da casa de Campden Hill. Havia uma profusão de flores frescas e o ar estava impregnado do perfume inebriante de lírios brancos.

Onde está o pessoal? perguntou Carrie.

Como já te disse, Lucy está no seu quarto e...

Ela não é muito sociável, pois não?

Nem por isso. Gosta muito de lá estar. Tem a sua secretária, um computador e uma pequena televisão.

Na lareira de mármore branco tremeluzia um pequeno aquecedor eléctrico a imitar os de carvão. Dodie sentou-se na sua poltrona habitual, de lado. Estivera a ler o jornal quando Carrie tocara à porta, de modo que pegou nele com a mão de unhas delicadamente pintadas de cor-de-rosa, dobrou-o e pousou-o sobre a mesinha.

As nuvens voltaram a tapar o sol que desapareceu.

Foi bom teres vindo tão depressa. Queria falar-te deste drama ridículo que surgiu de repente.

Nicola?

Deve estar a chegar.

Carrie instalou-se na poltrona no outro lado do tapete branco de pele de ovelha, estendido em frente da lareira.

Onde é que ela foi?

A um agente de viagens.

Tenciona viajar?

Eu acho que enlouqueceu. Já to disse ao telefone, não disse? Conheceu um homem. Um americano. Encontrou-o numa festa qualquer há umas semanas, e a partir daí têm-se encontrado.

Carrie achou que a notícia era boa e não dava minimamente a entender que a irmã enlouquecera.

Que tipo de americano? perguntou cautelosamente.

Oh, muito apresentável. Homem de negócios. Caminhos-de-ferro, aço ou algo do género. Vive em Cleveland, Ohio ou lá o que é. Chama-se Randall Fischer. Voltou para a América e convidou Nicola para ir lá passar o Natal com ele.

Em Cleveland, Ohio?

Não, ele tem uma casa na Florida; ao que parece passa sempre o Natal lá.

Parecia tudo tão normal que Carrie sentia dificuldade em perceber! onde estava o drama.

É casado?

Diz que é divorciado.

Nesse caso, provavelmente é. Já o conheces?

Claro que sim. Ela trouxe-o cá a casa uma vez ou duas para tomar uma bebida, e uma noite ele levou-nos a jantar fora às duas. Ao Claridges. Estava hospedado lá.

Nesse caso, deve ter muito dinheiro depreendeu Carrie, franzindo depois a testa. Não gostas dele, mãe?

Oh, não me parece má pessoa. Tem à volta de cinquenta anos. Não é particularmente atraente.

Nicola acha-o a seu gosto?

- Acho que sim.

Então onde é que está o problema?

Acho que ela se está a precipitar. No fundo, nada sabe sobre o indivíduo.

Mãe, Nicola tem trinta e cinco anos. Certamente já sabe cuidar de si mesma e cometer os seus próprios erros, se o quiser.

A questão não é essa.

Então qual é? Esclarece-me.

Não compreendes, Carrie? Trata-se de Lucy.

Queres dizer que Lucy não foi incluída no convite?

Claro que foi, mas recusa-se a acompanhá-los. Diz que não quer

ir para a Florida, não conhece ninguém lá, não terá nada para fazer e que Randall, no fundo, não tem vontade de que ela vá. Só a convidou por obrigação.

Carrie mostrou-se compreensiva.

Entendo o seu ponto de vista. Que idade tem? Catorze. Provavelmente sente-se como um peixe fora de água. Reconheço que é um pouco embaraçoso ver a mãe a braços com um romance amoroso.

Um leve rubor começara a subir pelo pescoço de Dodie, que abominava qualquer forma de discordância e não gostava que a obrigassem a argumentar para defender a sua posição.

É uma oportunidade esplêndida para Lucy. Viajar. Ver outra parte do mundo.

Não, se ela não quiser.

Mas então que fará ela?

Agora, pensou Carrie, é que estamos a chegar ao cerne da questão.

Referes-te ao Natal? Fica contigo, acho. Afinal de contas, este parece ser o seu lar neste momento. Desde que os pais se divorciaram. Para onde é que ela poderia ir?

Dodie não replicou imediatamente. Em vez disso, pôs-se de pé, agitada, e foi até à janela, ficando a olhar para o rio com ar pensativo. Carrie aguardou. A certa altura, a mãe virou-se.

Não consigo tomar conta dela sozinha. Tenho a minha vida. Tenho planos feitos, convites... Talvez vá passar o Natal com os Freeman, a Bournemouth. Todos os anos vão para o Palace Hotel. Convidaram-me para ir com eles. O seu tom de voz tornava perfeitamente claro que Lucy não fazia parte do seu esquema festivo. Já não sou nova como dantes, Carrie. Os meus tempos a tomar conta de crianças já passaram. E não tenciono alterar os meus planos por causa de uma pirralha teimosa.

Não, pensou Carrie, tal ideia nunca me passou pela cabeça por um instante sequer. Passado um bocado, perguntou:

E o pai dela? Miles. Então, não poderá ir passar o Natal com ele e a nova mulher? Ou agora já não se falam?

Oh, sim, claro que se falam. Dodie voltou para a sua poltrona, onde se sentou de novo, chegando-se para a frente, tensa. De vez em quando passa um domingo com o pai. mas sem grande entusiasmo.

Eles não têm filhos, pois não?

Não. E duvido de que alguma vez venham a ter. Ela é uma mulher dedicada à sua carreira. Dodie falava com desdém. Não quer que bebés interfiram na sua vida.

Quer dizer que não aceitarão que Lucy vá passar o Natal com eles?

De facto, telefonei a Miles, em desespero de causa, e coloquei-lhe o problema. Fui obrigada a isso porque Nicola recusa-se a falar com ele e nem mesmo lhe pronuncia o nome. O pior é que, no Natal, Miles e a mulher vão esquiar para Saint Moritz com um grupo de adultos. Lucy nunca fez esqui e é uma desgraça com pessoas que não conhece. Miles disse que estava fora de questão, pois estragaria o Natal a todos.

Carrie começou a sentir uma imensa pena da criança, atirada para o limbo por dois progenitores demasiado preocupados com os seus próprios interesses. Fez por não parecer demasiado fria, afirmando:

Nesse caso, parece que chegaste a um beco sem saída.

Nicola está perfeitamente determinada a ir à Florida. Sabes como pode ser egoísta. E depois de tudo o que eu fiz por ela...

Talvez só não queira perder a oportunidade de se divertir um pouco.

De se divertir um pouco repetiu Dodie amargamente, fazendo com que as palavras parecessem quase indecentes.

Carrie observava-a. De repente, Dodie pareceu querer fugir ao olhar da filha. Olhou para baixo, ajeitou a manga do casaco, ajustou um dos botões dourados e observou:

Era a isto que eu me referia quando falámos ao telefone. O facto de o teu regresso repentino da Áustria se ter verificado numa altura propícia.

Estás a pensar em mim? Para tirar o peso de Lucy de cima de ti? Dodie ergueu os olhos para a filha.

Já fizeste planos?

Mãe, acabei de chegar da Áustria. Ainda não tive tempo para fazer planos. Não tenho casa e só em finais de Fevereiro é que voltarei a ter a da Ranfurly Road. Ando a viver com a mala às costas. Não tenho mesmo a menor hipótese de ter alguém a morar comigo.

Não me referia a isso. Pensei que talvez... o teu pai.

Jeffrey?

Agora trata-lo por Jeffrey?

Chamo-lhe Jeffrey desde o divórcio. Sei que é meu pai, mas também é marido de Serena e meu amigo.

Dodie vacilou um pouco ao ouvir os nomes, porém Carrie, sabendo que a mãe estava a ser cruel, ignorou o facto.

Além disso, acho que a ideia não é viável.

Mas» ele é avô de Lucy. Com certeza...

- Olha, mãe, eu já falei com Jeffrey. Telefonei-lhe no dia em que cheguei. Tivemos uma longa conversa. Falámos sobre o Natal, mas ele está à espera do irmão de Serena e da respectiva mulher e bebé, que ficaram de lá ir passar aqueles dias. Emblo vai ficar a abarrotar, nem pensar em enfiar mais duas pessoas lá.

Podias sugerir...

Não. Não é justo para Serena. Ela não nos pode receber, mas ficará cheia de sentimentos de culpa por causa disso. Nem sequer tocarei no assunto.

Oh!

Dodie deixou escapar um suspiro e recostou-se, como se tivesse acabado de chegar ao seu limite. Fazia lembrar um balão a quem tivessem esvaziado todo o ar, ficando murcho e repentinamente velho.

Realmente não posso continuar assim muito mais tempo. É demasiada preocupação. Ninguém me ajuda, nem mesmo a minha própria família.

Mas, mãe...

Não terminou. Ouviu-se o ruído de uma chave na porta da frente, depois o barulho desta a abrir e a fechar de novo.

Nicola voltou - disse Dodie desnecessariamente, recompondo-se, ajeitando o cabelo e ficando sentada com um ar animado e expectante.

Nicola entrou na sala e Carrie levantou-se, voltando-se para a irmã.

Olá cumprimentou.

Carrie! exclamou Nicola, abrindo a boca de espanto. Que diabo estás a fazer aqui? Imaginava-te na Áustria.

E estava - retorquiu-lhe Carrie. Mas agora voltei.

As irmãs entreolharam-se. Nunca tinham sido muito chegadas, jamais haviam sido amigas e partilhado segredos. Carrie reparou então que Nicola, à medida que os anos iam passando, estava cada vez mais parecida com a mãe: a mesma altura, a mesma figura equilibrada, o mesmo cabelo escuro e farto. A mesma boquinha de trejeito malévolo. Postas ao lado uma da outra, facilmente passariam por gémeas. Carrie lembrava-se sempre dela muito arranjada. Com camisolas e saias a condizer, o mesmo em relação a malas e sapatos, o lenço de seda do pescoço exactamente da cor do baton. Um pouco como aquelas bonecas de recortar em cartão, às quais se prendiam moldes de roupa em papel, com umas pequenas dobras de virar nas pontas: um vestido leve para a praia, um casaco de gola de pele para um passeio no Inverno, um gorro e uma bolsa em crinolina para uma festa elegante. Naquele momento, via que Nicola continuava a preocupar-se com o mesmo estilo, pois por baixo do casaco de imitação de pele de leopardo trazia um fato saia-calça impecavelmente confeccionado. A bolsa de pôr ao ombro era em camurça castanha, exactamente no mesmo material e tom das botas de salto alto.

Nicola pousou a bolsa no assento de uma cadeira e começou a desabotoar o casaco.

Voltaste de vez? perguntou.

Não sei. Terei de ver.

Carrie aproximou-se da irmã e deu-lhe um beijo, que ela retribuiu mecanicamente.

Mas quando é que chegaste? quis saber, despindo o casaco e atirando-o para cima da bolsa.

Há cerca de uma semana. Tenho tido umas coisas para fazer, por isso é que só liguei à mãe esta manhã.

Nicola lançou um olhar frio a Dodie.

Imagino que a mãe já te tenha posto ao corrente de todos os dramas. Para te ter do seu lado.

Saltava à vista que havia problemas entre Dodie e Nicola. Carrie calculou que Lucy estivesse a passar um mau bocado com as duas. Dodie mostrou-se magoada.

Não é justo, Nicola - protestou.

Não, mas aposto que é verdade disse Nicola, deixando-se cair pesadamente no meio do sofá. Seja como for, agora é demasiado tarde. Parto no dia dezoito de Dezembro. Por duas semanas.

A esta declaração desafiadora seguiu-se um silêncio carregado de significado. Dodie virou a cabeça e pôs-se a olhar para o carvão eléctrico que tremeluzia. Toda ela transbordava de desaprovação. Nicola captou o olhar de Carrie e fez-lhe uma careta, como se as duas estivessem de conluio contra a mãe. Carrie não lhe retribuiu o olhar porque, naquele momento, nenhuma delas lhe estava a agradar.

Não servia de nada, no entanto, ser apanhada no meio daquela briga. Então disse, o mais brandamente que pôde:

Parece que há um problema com Lucy.

Também foi convidada para ir à Florida, mas recusa-se a ir comigo.

Compreendo o seu ponto de vista.

Oh, como não podia deixar de ser!

A mãe sugeriu que eu ficasse a tomar conta dela durante o Natal.

Tu?

A exclamação de Nicola fez com que a palavra parecesse um insulto. Depois de reflectir um pouco voltou a proferi-la, dessa vez com uma entoação completamente diferente. Uma ideia brilhante que ainda não lhe tinha ocorrido.

O pior é que não posso.

Porque não?

Não tenho casa !

E a da Ranfurly Road?

- Ainda está alugada.

Dodie decidiu então meter-se na conversa:

Pensei que Carrie pudesse levar Lucy a passar o Natal à Cornualha com o teu pai, mas ao que parece isso também está fora de questão.

Porquê? perguntou Nicola.

Carrie esclareceu-a:

Falta de espaço, o estupor do Miles, mais o estupor da mulher, recusam-se a ficar com ela, os egoístas. Desculpas, só desculpas de todos os lados. Roeu a unha do polegar. Eu vou, de qualquer maneira. Vou à Florida ter com o Randall e ninguém me fará mudar de ideias. Há imenso tempo que não tenho umas férias, vou e pronto.

Carrie, por um lado, compreendia a irmã, mas, por outro, pensava em Lucy. Assim, tentou apelar à razão:

Mas, Nicola...

Não pôde continuar, pois Nicola virou-se de rompante para ela.

Para ti está tudo muito bem.

Carrie perguntou a si mesma quantas vezes não ouvira já aquela velha queixa na vida. Para ti está tudo muito bem.

Como nunca formaste família, não sabes o que é ficar dia e noite preso a uma criança. O tempo todo. Manter Lucy entretida, resolver os problemas da escola. Tudo sozinha. Tanto quanto vejo, a tua vida tem sido umas férias permanentes, nada além de fazeres esqui e divertires-te. Montanhas, gente nova e festas. E sempre na Áustria. Há anos que não te ponho os olhos em cima. Uma despreocupação total.

Carrie esforçou-se por falar com voz serena:

Nicola, vê-se bem que não tens a menor ideia sobre o que tenho feito. Trabalhei como relações públicas numa agência de viagens muito prestigiada, onde todas as manhãs nove pessoas se apresentavam no meu escritório. Tinha uma secretária e um apartamento só para mim, mas na estação alta era frequente trabalhar sete dias por semana. Portanto, não me venhas com essa conversa da irresponsabilidade.

Não é o mesmo - insistiu Nicola, teimosa e agarrando-se ao seu ressentimento. Não é o mesmo que criar um filho.

Carrie desistiu.

Olha, assim não chegamos a lado nenhum. Nicola ignorou-a.

É contigo, mãe. Terás de esquecer Bournemouth. Dodie não se aguentou e enfureceu-se.

Nem penses nisso.

Dificilmente poderás deixar Lucy aqui sozinha.

E porque teria eu de fazer o sacrifício?

De repente, Carrie percebeu que não era capaz de continuar a ouvir aquele arrazoado sem sentido. As duas, estavam de tal maneira viradas uma contra a outra que nenhum argumento no mundo as poderia fazer chegar a qualquer conclusão razoável.

- Parem! - ordenou-lhes bruscamente.

Deveras surpreendentemente, assim fizeram. Passado um bocado, Nicola perguntou:

- Então, tens alguma sugestão brilhante, Carrie?

- Não sei. Só sei que estamos a falar da tua filha, não de um cão que tenha de ir para um canil. Se não se importam, gostaria de ir ter com ela. Dificilmente falará com menos irracionalidade que a mãe ou a avó.

- Muito obrigada.

- Onde fica o seu quarto?

- A seguir à cozinha. - Nicola fez um gesto com a cabeça. - Nas traseiras.

Carrie foi até à porta. Quando ia a abri-la, a mãe acrescentou:

- Vê se consegues convencê-la a ser boa rapariga e simplesmente... ir.

Carrie não respondeu. Saiu da sala e fechou suavemente a porta atrás de si.

 

Lucy

Farnham Court fora construída no tempo em que era suposto as famílias de classe média ainda empregarem criadas internas. Daí que todos os apartamentos dispusessem de um quarto, pequeno e insignificante, para a criada ou a estafada cozinheira da casa. Lucy Wesley, quando fora viver para casa da avó, após o divórcio dos pais, ficara com este quarto e, para dizer a verdade, pouco lhe importava que estivesse atravancado ou fosse pouco ensolarado, pois era só seu.

A janela deitava para o espaço fechado que ficava no meio do edifício, ao fundo do qual havia um pátio pavimentado, com alguns canteiros contendo arbustos e bolbos que a porteira devia manter arranjados e regados; não havia vista absolutamente nenhuma e a janela encontrava-se velada por uma cortina de voile branco. As paredes, no entanto, eram amarelas, o que proporcionava uma ilusão de luz solar, e os cortinados tinham riscas brancas e amarelas. Lucy dispunha de uma cama, cheia de ursinhos de pelúcia, e de uma mesa ampla, com gavetas, onde fazia os trabalhos de casa, assim como de uma série de prateleiras para a sua colecção enorme de livros. Tinha o seu computador em cima da dita mesa. A decoração era completada por candeeiros, um pequeno televisor e uma pele de ovelha a fazer de tapete sobre a alcatifa do chão. Quando as colegas a visitavam, não escondiam a inveja e a admiração que sentiam por Lucy ter um quarto só para si, não ter de o dividir com nenhuma irmã ou com a tralha de algum parente.

Era um quarto muito arrumado, porque Lucy era uma jovem extremamente arrumada. Conservava os livros em filas muito direitas, a cama estava sempre feita e as roupas dobradas. Na escola acontecia o mesmo com a sua carteira, onde tinha os seus lápis sempre afiados e os cadernos de exercícios empilhados muito certinhos. Mrs. Burgess, que vinha fazer a limpeza a casa da avó uma vez por semana, entrava no quarto de Lucy armada de aspirador Hoover e pano do pó, deixando-o a cheirar a lavanda, mas de vez em quando, levada por uma espécie de compulsão doméstica, Lucy voltava a limpá-lo ela mesma, polindo o vidro du espelho da mesinha-de-cabeceira e a moldura de prata que continha a fotografia do pai.

Sentia terrivelmente a sua falta, não apenas como pessoa mas como qual peça de mobília à qual falta uma perna e acaba por perder equilíbrio e cair de lado, com o seu afastamento todo o sentido de família ruíra por terra desfeado e sem préstimo, e Lucy percebera que era irreparável e nunca mais nada voltaria a ser como dantes. Tinha set anos na altura em que os pais se divorciaram. Uma idade má (se é que havia alguma idade boa). Ainda criança pequena, mas com tino sufi ciente para saber exactamente o que estava a acontecer, deparara-se com a desagregação da estrutura da existência, ficando ela e a mãe sozinhas a juntar os detritos de tudo o que restara. Tinham-se mudado para casa da avó, e Lucy ainda pensara que era uma situação temporária acabando por aceitar, a pouco e pouco, o facto de ser permanente. Por alguma razão, apesar de discordâncias e discussões, a situação parecera convir a ambas as mulheres, e como ninguém se dera ao trabalho de perguntar a opinião a Lucy, esta guardara-a para si mesma.

De tempos a tempos via o pai, porém a nova esposa deste, chamada Marilyn, só queria sossego, não mostrando o menor interesse por crianças ou enteadas, ou o que quer que fosse além do seu trabalho absorvente, caso contrário, certamente já teria tido filhos seus. Ela e Miles nem mesmo tinham uma casa como devia ser, com jardim, mas sim um apartamento, o tipo de apartamento onde ninguém se dava ao trabalho de cozinhar, pois bastava um simples telefonema para virem entregar uma refeição ligeira à porta num carrinho.

Marilyn não era, de modo algum, o tipo de pessoa com que se pudesse desabafar, e Lucy achava que já não podia fazê-lo com o pai por causa da divisão de lealdades para com ambas as partes. Às vezes, tinha a impressão de que rebentaria se não encontrasse um adulto com quem falar. Miss Maxwell-Brown, a directora do seu colégio, era exactamente esse tipo de pessoa. De vez em quando dava a entender, no decurso de alguma conversa a sós, que, se Lucy tivesse alguma coisa a dizer, ela teria muito gosto em escutar. Mas a reserva de Lucy, assim como a mesma lealdade fastidiosa, impediam-na de o fazer. Além disso, tinha horror a que alguém sentisse pena de si, como se fosse uma espécie de órfã. Portanto respondia sempre: «Não, estou bem. Está tudo muito bem.» Mrs. Maxwell-Brown deixava-a então ir, relutante.

Naquela manhã de sexta-feira, faltava um quarto para o meio-dia, terminara os seus trabalhos de casa (estivera a trabalhar neles desde o pequeno-almoço) e escrevia no seu diário. Este era grosso como uma Bíblia, tinha uma capa de cabedal e uma fechadura minúscula, com a respectiva chave. O papel era grosso e macio, dava prazer escrever nele, e fora um presente vindo da Cornualha. Na primeira folha vinha escrito: «Votos de Feliz Natal, Lucy, do Avô, Serena, Amy e Ben.»

Nunca se esqueciam do Natal nem do dia de anos, o que era uma simpatia da parte deles, porque Lucy era uma criança quando aquele casamento específico se dissolvera e não se lembrava de Jeffrey Sutton, nunca conhecera Serena, Amy ou Ben. Às vezes, quando a vida se tornava desanimadora, deixava-se ficar na cama a tecer fantasias sobre eles, imaginando que a convidavam para ir e ficar lá e que o que seria ainda mais improvável - a mãe e a avó a deixavam fazer a viagem. Tinha tudo mentalmente planeado. Iria de táxi até Paddington, meter-se-ia no comboio e estariam à sua espera num sítio com mar azul, para depois a levarem para uma casa no meio de um jardim maravilhoso, talvez perto de uma praia, onde os ventos que chegavam do oceano entrariam pela janela aberta do seu quarto. E ter Amy e Ben ao pé de si seria como possuir uma irmã e um irmão a sério.

Lucy nunca mais deixara de escrever no diário desde o dia em que o recebera. Não era tanto um diário, antes um bloco de notas, pois não havia datas, apenas lindas páginas em branco, onde a pessoa é que escrevia a data e, por baixo, o que tinha a dizer. Às vezes, tinha pouca coisa para registar, mas lá acontecia ir ao cinema ou a um concerto com o resto da classe e então já havia muita coisa para recordar, chegando a utilizar até duas ou três páginas. Escrever com a sua melhor caneta no papel espesso e cremoso dava-lhe grande satisfação. Adorava blocos de notas, papel, canetas, o cheiro da tinta, todos os utensílios da escrita. As papelarias eram os seus lugares preferidos e raramente saía de alguma sem trazer uma caixinha de clipes coloridos, um maço de postais ou uma caneta de tinta vermelha Biro.

Escreveu:

Esta manhã a mamã foi ao agente de viagens, e saiu logo a seguir ao pequeno-almoço. Ela e a avó mal se falam por causa do Natal, de Bournemouth e da Florida. Gostaria de que compreendessem que eu detestaria a Florida. Não se pode passar o dia inteiro a nadar numa piscina e eu não gosto assim tanto de Randall, de gelados ou de ver vídeos!

Sempre era melhor ter o diário de que ninguém com quem desabafar, mas uma pessoa seria melhor. Pousou a caneta e olhou para a manhã acinzentada que se via do lado de lá das adejantes cortinas de voile brancas. Pensou em Carrie, a irmã mais nova da mamã, e uma esplêndida tia. Carrie seria perfeita, porque falava consigo como se fosse uma pessoa crescida e também estava sempre pronta a fazer coisas excitantes e novas. Carrie, antes de ir para a Áustria e nunca mais voltar, fora quem valera a Lucy; quem lhe proporcionara programas especiais na sua companhia como, por exemplo, assistirem à La Filie Mal Gardée na Opera House, ou irem até Kew nos primeiros dias quentes da PrimaVera. Carrie fizera mesmo com que o Museu de História Natural parecesse

divertido e interessante. Certa vez, tinham descido o rio num barco, em direcção à Tower Bridge, almoçaram a bordo, e toda a Londres vista do barco, parecera uma cidade estrangeira, desconhecida, com torres e pináculos banhados pela luz do Sol. Pegou novamente na caneta.

Não me importaria de passar o Natal com o meu pai, mas eles vão para fora, esquiar. Marilyn diz que é um compromisso prolongado. Tenho a certeza de que o meu pai o cancelaria, mas claro que ela não deixa. Não sei o que tem O Natal assim de tão especial, e porque fica toda a gente tão agitada. Seja como for, hoje à tarde vou ao cinema com Emma e depois volto para tomar chá com ela.

Enquanto Lucy estava no quarto, primeiro a estudar, depois a escrever no seu diário, do lado de lá da porta a avó ia-se entretendo nas suas tarefas domésticas. De vez em quando, no decurso da manhã, ouvira o telefone tocar e a voz baixa da avó a tagarelar. Há cerca de uma hora atrás, ouvira alguém tocar à campainha e entrar para fazer uma visita e, enquanto terminava os seus exercícios de Francês, chegava-lhe o murmúrio suave de uma conversa por trás das portas da sala de estar, ao fundo do corredor. Não fazia ideia de quem se tratava e não sentia nenhuma curiosidade especial. Devia ser alguma das amigas chatas da avó. Naquele momento, porém, chegou-lhe aos ouvidos o ruído próprio do elevador a subir, e, a seguir, o barulho de uma chave a entrar na fechadura da porta da frente, percebendo então que a mãe voltara da agência de viagens.

O pior era que, apesar da insistência de Lucy em afirmar que não iria para a Florida, não sabia se a mãe não teria mesmo reservado dois bilhetes e Lucy acabasse por não ter outro remédio senão acompanhá-la à força. Afinal de contas, aos catorze anos pouco se podia fazer, excepto passar as duas semanas amuada, detestar cada momento e, na melhor das hipóteses, estragar também as férias aos outros. Ela era perfeitamente capaz de o fazer e a mãe sabia, mas, ainda assim, a possibilidade aterradora não deixava de se pôr. Levantou a cabeça como um cão alerta e pôs-se à escuta. No entanto, os passos não se detiveram à sua porta, seguiram pelo corredor, até à sala de estar. A porta abriu-se e fechou-se. Vozes, de novo. Fechou os olhos e desejou também poder fazer o mesmo aos ouvidos.

De pouco consolo servia, mas ao menos a terceira pessoa, fosse quem fosse a visita, evitaria nova discussão, pelo menos naquela altura. Aguardou o desenrolar dos acontecimentos, o que demorou cerca de cinco minutos. Depois, a porta da sala abriu-se e fechou-se de novo e alguém aproximou-se. Lucy fechou o diário e ficou à espera, de olhos fixos na maçaneta da sua porta. A sua mãe vinha comunicar-lhe o que fora decidido sobre os planos para a Florida. Lucy sentiu-se imediatamente agoniada, tal era a aflição. Contudo, bateram à porta e percebeu que não se tratava da mãe, pois esta jamais anunciava a sua chegada, mas pelo contrário, entrava de rompante, invadindo a sua privacidade, completamente indiferente ao que porventura estivesse a fazer. Quando batiam à porta, Miss Maxwell-Brown dizia sempre, Entre! Mas antes de ela chegar a dizer o mesmo, a porta abriu-se lentamente, e uma cabeça espreitou.

Interrompo?

Sorria. Não era a mãe. Nem a avó. Nenhuma das conhecidas chatas da avó. Mas...

Carrie. Carrie? Acabara de pensar nela, e agora aparecia-lhe ali à porta do seu quarto, não na Áustria, onde Lucy a imaginara a ter uma vida glamorosa de férias a esquiar e em hotéis luxuosos. Carrie. Além disso, costumava vê-la de cabelo comprido, agora usava-o curto e estava muito magra e bronzeada, alta como sempre.

Carrie. Lucy ficou estupefacta, sem palavras. Num turbilhão de emoções variadas. Atónita e incredulamente deliciada por um facto maravilhoso e imprevisível se ter concretizado. Carrie. Sentiu um rubor cálido de puro deleite subir-lhe às maçãs do rosto. Coisas como aquela aconteciam muito raramente, por isso estava sem palavras. Por sua vontade, ter-se-ia levantado de um salto e corrido a abraçar Carrie, mas talvez esta a tivesse achado horrivelmente infantil. Talvez...

Não abras tanto os olhos. Sou mesmo eu disse Carrie. Lucy levantou-se lentamente. Exclamou:

Santo Deus! Carrie entrou no quarto e fechou a porta atrás de si.

Surpresa?

Sim, não fazia ideia. Estás cá há muito tempo?

Cerca de uma hora. Conversava com a minha mãe.

Não. Refiro-me a Londres.

Uma semana.

Não sabia.

Ninguém sabia. Não importa, agora já sabes. Baixou-se e deu-lhe um beijo na cara. Sentiu um perfume muito agradável. Cresceste. Acabei de dizer um disparate, mas antigamente tinha de me dobrar o dobro para chegar a ti. Olhou em redor. Bonito quarto. Era muito sombrio. E que arrumado. Andaste a fazer-lhe a limpeza da Primavera?

Não esta manhã. E foi a avó que a fez por mim. Deixou-me escolher as cores.

Perfeito. Tudo ensolarado. Havia uma pequena poltrona azul ao lado da cama e Carrie deixou-se cair nela, esticando as pernas comPridas e cruzando os pés elegantemente calçados com umas botas. Tens estado a estudar?

Sim, a fazer os trabalhos de casa. Lucy pegou no diário e guardou-o discretamente dentro de uma gaveta. A seguir, voltou a sentar-se e fez girar a sua cadeira de maneira a ficar de frente para a tiA. Quando é que chegaste?

Já disse, há uma semana. Podia ter-vos avisado da minha chegada, mas foi tudo um pouco precipitado.

Quanto tempo ficas por cá?

Por tempo indefinido. Larguei o trabalho que tinha. Neste momento, estou simultaneamente sem casa e sem trabalho, mas não im porta. Como tens passado?

Lucy encolheu os ombros.

Vou andando.

Parece que vem por aí uma certa crise. Ou talvez já aí esteja! Pobre criança, deves estar a tentar adivinhar o que vai acontecer a seguir.

Lucy estava grata por a tia ir directamente ao assunto. Carrie fora sempre muito objectiva, nunca fugindo a perguntas embaraçosas relacionadas com algum dilema. De repente, Lucy sentiu-se muito melhor e até suficientemente forte para perguntar:

A minha mãe comprou dois bilhetes para a Florida, não comprou?

Ter-te-ias importado?

Muitíssimo. Carrie riu-se.

Não te rales, ela vai sozinha. Portanto, essa pequena batalha já tu venceste. Deve ter sido muito difícil.

Achas que, no fundo, estou a ser uma estúpida em não querer ir com ela?

Não, acho que tens toda a razão. Só irias chatear, estarias a mais. É muito melhor para Nicola ir sozinha. Mas isso levanta um problema.

Referes-te ao Natal, não é?

Não, não me refiro ao Natal, mas sim a ti. O que é que tu queres fazer? Aposto como ainda ninguém te fez essa pergunta.

Pois não.

Eu sugeri que fosses ter com o teu pai, mas ao que parece ele e Marilyn vão para a montanha com um grupo de amigos.

Não gostaria de ir com eles. Marilyn não me aprecia muito e eu nunca esquiei, portanto, acho que não seria nada divertido.

Não tens nenhuma colega especial, com uma mãe especial, com quem gostasses de estar?

Lucy sentiu-se um pouco embaraçada. Claro que tinha colegas, montes delas, mas ninguém especial, nenhuma com uma mãe maternal. Emma Forbes era a sua maior amiga, mas a mãe dela trabalhava numa revista e andava sempre em reuniões. Lucy mal a conhecia, e Emma tivera de se tornar tremendamente independente e organizar a sua própria vida com a ajuda de uma chave da casa e uma empregada sueca. apesar de todas as suas conversas, risadas e tempo passado juntas, Emma ainda não fizera a menor referência ao Natal. Carrie aguardava. Os seus olhos escuros mostravam-se observadores, cheios de compreensão. Lucy disse: - pensei que talvez pudesse ir ter com o meu avô à Cornualha.

- O problema é eu nunca ter estado com ele ou com Serena, Amy ou Ben, e nem sequer me lembrar dele. Além disso, a avó mostra um? horror em relação a ele, nem sequer pronuncia os nomes daquela família. mas achei que, se não tivesse alternativa, talvez me deixasse ir.

Gostarias?

Sim, acho que sim. O pior é que nunca estive... a voz faltou-lhe - E se calhar eles também não me querem lá.

Carrie observou:

Acho a ideia uma maravilha e estou convencida de que um dia ainda acabas por ir até lá. Mas este Natal não pode ser. Quando voltei da Áustria falei com Jeffrey e sei que têm a casa cheia. Uma casa que, ainda por cima, não é muito grande, na verdade até é minúscula, e vai ficar bem atravancada com umas visitas.

A esperança morreu.

Oh, pronto. Paciência...

Mas de certeza que um dia irás até lá. Talvez na Primavera. Eles adorariam e tu também. Vamos ter de arranjar outra solução.

Aquele «nós» era significativo.

Nós?

Sim. Tu e eu. Órfãs unidas sob a tempestade. Que havemos de fazer?

Referes-te ao Natal?

Claro que é ao Natal.

Em Londres?

Acho que passá-lo em Londres seria muito aborrecido, não achas? Talvez devêssemos ir para fora.

Mas para onde?

Parecia não haver resposta para aquela pergunta. Olharam uma para a outra com ar pensativo; às tantas Carrie pôs-se de pé, acercou-se da janela, afastando a cortina de voile e olhando para o triste pátio três pisos abaixo.

Tive uma ideia. Acabou de me vir à cabeça! exclamou. Largou a cortina e veio empoleirar-se na beira da secretária de Lucy. Alguma vez ouviste falar de Elfrida Phipps? . Lucy disse que não com a cabeça, curiosa sobre o que viria a seguir.

- É um amor de pessoa. Prima de Jeffrey. A tua avó nunca a suportOu Por ser muito independente e livre, ainda por cima actriz, e por ter tido muitos namorados e maridos. Nunca tiveram aquilo que poderias chamar de muito em comum, de modo que a tua avó sempre censurou muito Elfrida. Mas eu sempre a adorei. Quando fui para Oxford comecei novamente a dar-me com ela e tornámo-nos grandes amigas.

Que idade tem?

Oh, já não é nova. Mais de sessenta. Mas é mais divertida do que alguma pessoa que já tenhas conhecido. ?

Onde é que vive?

Costumava viver em Londres, mas um dia o seu... bem, ele não era seu marido, mas ela adorava-o... morreu e ela foi para o campo. Certa vez, faz muito tempo, esteve de cama depois de uma operação e eu fiquei com ela até melhorar. Jeffrey diz que está a viver numa aldeia no Hampshire. Conta que a casa dela é minúscula, mas tenho a certeza de que terá espaço para nós as duas. E se não houver, Elfrida inventá-lo-á. Não achas que é uma boa ideia? Vamos tentar?

Nós as duas?

E Elfrida.

Durante quinze dias?

Claro.

Ela não se importará?

Aposto a minha última moeda em como vai delirar.

Como é que lhe iremos pedir esse favor?

Telefono-lhe. Tenho o número.

Agora?

Não, agora não. Quando voltar para Putney. Não convém os outros saberem os nossos planos antes de termos a certeza de que está tudo certo. Depois, apresentamo-los como um fait accompli.

Se ela não nos puder receber no Natal...

Não devemos pensar de maneira tão negativa. Há que ter pensamentos positivos. E por enquanto não digas uma palavra. Será o nosso segredo. Carrie afastou a manga da sua camisola de caxemira do pulso e consultou o relógio. Céus, é quase uma da tarde! Estou cheia de fome, e tu? A tua avó disse que poderíamos comer uma sopa e patê, mas não creio que isso me baste. Que tal irmos as quatro almoçar fora? Haverá por aí um sítio barato, animado e que fique perto?

Há o Rosetti. Fica a cinco minutos de caminho, a pé.

Italiano?

Espaguete e coisas do género.

A minha comida preferida. Que dizes? Vamos perguntar às nossas mães se querem ir almoçar fora connosco?

Lucy lembrou-se de Emma.

Hoje à tarde vou ao cinema com uma amiga. Fiquei de ir ter com ela às duas e meia.

Como é que vais?

-De metro.

- Não há problema. Almoçamos e depois mando-te num táxi. Chegarás a tempo.

Estava a ficar cada vez melhor. Almoços de restaurante e táxis. Perguntou a si mesma se Carrie, recém-chegada da Áustria, não era rica. Pelo menos parecia, com as suas roupas bonitas, o cabelo brIlhante e a maquilhagem elegantíssima... tão bem como as modelos que pousavam, de cabedal e peles, nas páginas lustrosas da Vogue, tão da preferência de sua avó. Era como se, de repente, ela saísse dum recanto sombrio e frio para o meio da luz esplendorosa e quente , Tudo porque se sentia aliviada, já sem preocupações, com Carrie novamente de volta, uma presença benévola que resolvia todos os problemas. Para seu horror, a emoção fez com que os seus olhos se humedecessem ridiculamente e sentisse o esgar do choro a deformar-lhe as feições, como se fosse um bebé.

Oh, Carrie...

Ei, nada de lágrimas. Não há motivo nenhum para chorar. Vamos divertir-nos à grande.

Abriu os braços a Lucy e esta refugiou-se neles, premindo o rosto contra a caxemira macia da camisola da tia e sentindo-lhe, mais uma vez, o perfume. Era mesmo verdade, estava ali. Felizmente, conseguiu impedir que as estúpidas das lágrimas chegassem a cair, e depressa agarrou num lenço ao qual se assoou ansiosamente.

Desculpa.

Não tens que pedir desculpa de nada. Agora lava a cara e põe um casaco ou algo do género. Vou dar a boa notícia às outras pessoas.

Só sobre o almoço?

Só sobre o almoço. Quanto ao resto, nada diremos... É um segredo entre nós as duas.

Encontrou Dodie na pequena cozinha, de certo modo empenhada em pôr o prometido almoço a andar. Começara a pôr a mesa e estava prestes a abrir uma lata de sopa.

Não abras! exclamou Carrie.

Assustada, Dodie virou-se para a filha mais nova.

Porque não?

Vestida com as suas roupas impecáveis e formais, sem um fio de cabelo fora do sítio, parecia deslocada numa cozinha. Nem mesmo pusera avental e tinha a lata da sopa bem afastada de si, à distância do braço, como se o abre-latas pudesse mordê-la.

Porque vamos almoçar fora. Eu é que convido. Lucy e eu achámos que tínhamos todas direito a um pequeno mimo. Ela sugeriu um restaurante qualquer chamado Rosetti. Estás de acordo?

Bem. Estou. Dodie continuava, no entanto, hesitante. Penso que tínhamos combinado comer sopa e patê Aqui.

Tens toda a razão. Combinámos. Mas podemos mudar de Ídeia.

É quase uma da tarde. Ainda arranjaremos mesa? Porque não? Preferes ligar para eles? Sabes qual é o número?

Acho que sim.

Então faz isso mesmo. E guarda a lata de sopa para o jantar. Onde está Nicola?

Na sala de estar.

Amuada?

Não. Encantada consigo mesma.

Façamos um pacto. Durante o almoço nem uma palavra sobre a Florida. Lucy já teve que chegue.

Bem, eu de certeza que tive.

Carrie encontrou Nicola toda enfiada numa poltrona a folhear o número mais recente da Harper & Queen que comprara quando voltava da agência de viagens.

Estás a planear arranjar um novo guarda-roupa para a viagem à Florida?

Nicola fechou a revista e atirou-a para o chão.

Sei o que estás a pensar, Carrie, mas estou-me nas tintas.

Porque haverias de estar? E porque não haverias de ir se é isso que queres?

Estás a falar a sério?

Tudo é melhor do que ficares por aqui a criar discórdia e cheia de ressentimentos.

Muito obrigada.

Oh, Nicola... Carrie sentou-se no braço do sofá. Façamos umas tréguas. Vamos almoçar fora. Ficaremos mais animadas. E não falaremos da Florida, de Bournemouth, do Natal ou do que quer que seja.

A ideia foi de Lucy?

Não, minha. E devo dar-te os parabéns. Ela é bonita por fora e por dentro, o que normalmente não tem a ver com a maioria das adolescentes de catorze anos. Fizeste um bom trabalho.

Bem. Nicola, já mais descansada, permitiu-se um sorriso forçado. Obrigada. No entanto, apressou-se a acrescentar: Mas olha que não tem sido fácil.

Acho que criar uma criança nunca é. Não faço ideia. Agora vem, prepara-te para sair. A mãe está a ligar para o restaurante para nos reservarem uma mesa. E Lucy e eu tencionamos comer montes de carbonara.

Por cima da lareira da mãe havia um espelho veneziano, numa moldura dourada, que reflectia todo o encanto da pequena sala. Nicola levantou-se e foi-se mirar nele, ajeitando o cabelo e passando o dedo mindinho pelos lábios pintados. Depois, encontrou os olhos da irmã e perguntou-lhe:

Continua a haver um pequeno problema para resolver, não é? Tentarei encontrar uma solução. Carrie, porque voltaste da Áustria? Carrie encolheu os ombros. Foi uma decisão repentina. Bem, seja qual for a razão, estou contente. Nicola pegou no casaco de pele e depois estragou tudo acrescentando: Ao menos fico ccom um pouco menos de pressão em cima de mim.

O almoço mostrou ter sido uma excelente ideia. Tanto Dodie como Nicola adoravam o ambiente do restaurante e ainda o pequeno grupo ia a caminho, percorrendo a curta distância entre Farnham Court e o Roetti já estavam francamente mais bem-dispostas. O frio que se fazia sentir naquele dia cinzento de Dezembro foi uma boa desculpa para Dodie se embrulhar no seu novo casaco preto orlado a pele, e quando passou as portas envidraçadas e entrou no interior aquecido, a cheirar deliciosamente, vários italianos, encantadores e sorridentes, correram pressurosamente a cumprimentá-la, aliviá-la do seu casaco, fazendo-a sentir-se bela e importante. O lugar não era amplo e o número de lugares já fora preenchido, no entanto, via-se uma mesa reservada a um canto. Depois de todos sentados, Carrie não perdeu tempo, mandando vir bebidas para todos: gim tónico para Dodie e Nicola, uma Coca-Cola para Lucy e uma Pepe para si. Depois escolheu uma garrafa de vinho para acompanhar a refeição. As tensões, relaxadas pelo álcool e suavizadas pelo ambiente agradável do pequeno restaurante, foram gradualmente desaparecendo; a conversa tornou-se, se não esfuziante, pelo menos razoavelmente fácil.

Vendo bem, já não estavam juntas há vários anos, havendo muita tagarelice e muito mexerico para pôr em dia. Velhos amigos e conhecidos, parentes afastados. Carrie ficou a saber dos cruzeiros de Dodie pelo Mediterrâneo e sobre determinada ilha grega da qual se apaixonara.

O meu sonho era construir uma casa lá confessou.

Carrie fez perguntas, falou-lhes um pouco de Oberbeuren, da magia das montanhas no Verão, altura em que os caminhantes vinham ficar no hotel enorme, e as vertentes brancas utilizadas para o esqui se cobriam de erva verde, onde o gado pastava e os chocalhos tilintavam no ar límpido.

Dodie e Nicola cumpriram o prometido: não houve menção ao Natal, à Florida ou a Bournemouth.

Quando acabaram de tomar café e Carrie estava a pagar a conta, Chegou a altura de Lucy se ir embora. Um dos empregados prestáveis foi para a rua, onde ficou no passeio, ao frio, com o seu longo avental branco a adejar ao vento, até avistar um táxi e fazer-lhe sinal para que Parasse. Carrie deu algum dinheiro para pagar a bandeirada e esperou que Lucy se instalasse em segurança lá dentro. A jovem chegou-se para a frente no assento e baixou o vidro.

Carrie, ainda não te agradeci. Gostei muito.

O prazer foi meu. Diverte-te com o filme. Depois telefona.

Não demores muito.

Assim que puder. Tens de te despachar. Nicola foi mais prática.

Lucy, a que horas estás em casa?

Por volta das sete.

Porta-te bem.

Está descansada.

O táxi afastou-se e elas ficaram a vê-lo ir. Depois viraram-se e começaram a percorrer o passeio em direcção ao rio. Pararam na esquina da Farnham Road para se despedirem.

Realmente animaste-nos imenso comentou Dodie que, amolecida pela profusão de boa comida e bebida acabada de consumir, estava disposta a ser generosa. Que bom estares novamente junto de nós! Vai dando notícias. Diz-nos o que tencionas fazer.

Sim, claro. Adeus, mãe. Deu um beijo no rosto de Dodie. Adeus, Nicola. Ainda te vejo antes da viagem?

Oh, é provável, estarei por aqui. Obrigada pelo almoço.

Se não te vir, diverte-te.

É o que tenciono fazer.

Separaram-se. Carrie ficou a vê-las ir, duas mulheres ridiculamente idênticas, cada uma assoberbada pelos seus próprios afazeres e problemas. Não tinham mudado. Virou-se e continuou a caminhar. Só quando ia a meio da Putney Bridge é que, ao sentir a frialdade e a humidade do vento de leste no rosto, se lembrou do bilhete que Sara deixara na mesa da cozinha a pedir-lhe que comprasse uns legumes para o jantar e também um pacote de saquetas de chá lapsang souchong. Então, ao chegar à Putney High Street, entrou numa mercearia paquistanesa, de onde saiu carregada de couve-flor, aipo e batatinhas novas. Comprou igualmente as saquetas de chá, um pão escuro estaladiço e duas garrafas de vinho Jacob Creek. O sujeito bem-parecido que se encontrava ao balcão, enfiou tudo num saco de compras e recebeu o dinheiro.

Santo Deus, o dia está mesmo frio. Quando chegar a casa ficará bem aliviada.

Ela concordou, agradeceu-lhe e saiu de novo para a rua. A tarde enevoada e invernosa entrara já no lusco-fusco; os automóveis já circulavam de luz acesa e as montras das lojas faziam incidir quadrados de luz sobre o pavimento húmido. Quando Carrie chegou à pequena casa com terraço de Lumley, levava as mãos geladas e foi com muita dificuldade que despiu a luva e manuseou as chaves. Dentro de casa, acendeu a luz do vestíbulo, desligou o alarme e deliciou-se com o calor. Entrou na cozinha, pousou o saco das compras e ligou a chaleira eléctrica. Correu as cortinas de xadrez azul e branco, tirou as mercearias do saco e, como a água já estava a ferver, preparou uma caneca de chá. Finalmente, despiu o casaco, dobrou-o nas costas de uma cadeira, tirou a agenda de dentro da bolsa e instalou-se ao pé do telefone.

elfrida Phipps, Poulton's Row, Dibton. Carrie levantou o auscultador e carregou nas teclas. Ouviu o toque duplo do telefone de Elfrida. Aguardou durante muito tempo, mas ninguém atendeu. Perguntou-se por que Elfrida nunca se dispusera a investir num atendedor de chamadas. Talvez tivesse saído. Carrie desistiu, bebeu o seu chá, foi ao andar de cima pendurar o casaco e mudar de sapatos. voltou à cozinha e fez nova tentativa para encontrar Elfrida e, Mais uma vez, foi em vão. Depois de experimentar pela terceira vez, altura em que já descascara as batatas para o jantar e fizera uma grAtinada com uns peitos de frango, começou a ficar algo preocupada. Afinal de contas, há muito tempo que não contactavam uma com a outra. Elfrida nunca fora muito de escrever cartas, preferindo o telefone, mas estivera sempre lá. Ocorreu-lhe a ideia horrível de que pudesse ter morrido. Essa possibilidade deixou Carrie transtornada, mas depois o bom-senso voltou a dominar; raciocinou que, se algo tivesse acontecido a Elfrida, Jeffrey não deixaria de a informar.

Jeffrey. Ligaria para o pai. Jeffrey sabia, certamente, do paradeiro da prima. Carrie sabia o número de Emblo de cor, portanto levantou o auscultador uma vez mais e fez a chamada. Dessa vez foi bem sucedida, pois ele atendeu quase imediatamente.

Jeffrey Sutton.

Jeffrey, fala Carrie.

Minha querida. Como estás?

Estou óptima. Apesar do frio.

Está um Inverno dos diabos, não está? Nós quase fomos varridos do alto do penhasco.

Como vão Serena, Amy e Ben?

Estão todos bem. Serena foi buscar os miúdos à escola de carro e eu estou aqui sozinho a passar cheques para pagar contas. Então, que me dizes?

Dispões de um pouco de tempo para falar?

De quanto tempo?

Cerca de uma hora.

Por amor de Deus, que aconteceu?

Ando à procura de Elfrida. Tenho estado a ligar o número de uibton, mas ninguém atende. Ela não está lá.

Não está lá?

Foi para a Escócia.

Que está ela a fazer na Escócia?

Partiu o mês passado. Ainda lá se encontra.

Porque não me disseste quando liguei para ti a semana passada?

Parecia haver outros assuntos mais importantes sobre os quais devíamos falar. Tu, por exemplo.

Pois foi. Carrie sentiu-se ligeiramente envergonhada.

Bem, desculpa.

Não sabia que o paradeiro de Elfrida era assim tão

importante para ti.

Bem, neste momento é. O que a levou a ir para a Escócia?

É uma história muito longa observou Jeffrey E contou-lha.

Escutou o relato muito penalizada. Começou a sentir-se mais desconcertada. Conhecia Elfrida muito bem e sabia-a um coração compassivo e impetuoso, e sem grande preocupação com o futuro. Ainda assim, sentia que houvera ali uma certa precipitação. Exprimindo o que lhe viera à ideia, perguntou: Ela está apaixonada por esse homem?

Não sei, Carrie, na verdade não faço ideia do que se passa. Deu-me a notícia pelo telefone e parecia mais preocupada do que satísfeita.

Nesse caso não se trata de paixão, mas sim de compaixão.

Disse-me que ele lhe pediu que o acompanhasse para lhe fazer companhia e consolo, e que ela aceitou.

Que tipo de consolo gostaria eu de saber.

Partiriam no dia seguinte, de carro, fazendo a longa viagem por fases.

Em que zona da Escócia estão?

Sutherland. Bem ao norte. Tenho a morada e o número de telefone algures. Não queria que Elfrida desaparecesse sem que alguém ficasse a saber para onde ia.

Ela já entrou em contacto depois de chegar?

Não. Imagino que ande preocupada com outros assuntos. Era tudo muito frustrante.

Oh, raios! exclamou Carrie.

Porque estás assim?

Precisava mesmo de entrar em contacto com Elfrida. De falar com ela.

Há algum problema?

De certo modo.

Contigo?

Não, não comigo. Com a tua neta, Lucy Wesley.

Explica lá isso. Foi então a vez de Carrie falar, de tentar explicar ao pai, o mais resumidamente possível, a situação complicada que estava a ser vivida em Farnham Court: Nicola de partida a passar o Natal na Florida» com o novo namorado americano; Lucy recusando-se a acompanhar a mãe; Dodie insistindo em não poder faltar à elegante festa planeada no Palace Hotel, em Bournemouth- e tanto Nicola como Dodie a dizerem que não desistiriam absolutamente de nada.

 

Oscar

Em pleno Inverno, era uma terra estranha. Monótona, onde a força do vento clareava. As colinas, que desciam até à costa, já tinham os cumes cobertos

de neve, neve que se misturava com as nuvens ao ponto de os fazer desaparecer de vista, velados, indistintos, como se já tivessem sido absorvidos pelos céus sombrios.

Era estranho, porque Oscar não se lembrava de ver a paisagem assim. Nos seus tempos de rapaz, costumava ir visitar a sua avó a Corrydale no Verão e, nessa altura, lá, bem ao norte, as tardes prolongavam-se até às dez ou onze da noite, e quando se ia deitar, as sombras das árvores alongavam-se sobre os campos que o sol dourara.

Passeava com Horace. Saíra de casa depois de almoço, lançando-se ao caminho com a ajuda de um cajado improvisado, protegido do vento frio por um casacão forrado de lã de ovelha e um velho chapéu de tweed bem puxado para a testa. As botas eram fortes, preparadas para caminhar, mas assim que atravessou as ruas da pequena aldeia e subiu a vertente que conduzia ao campo de golfe, conseguiu começar a caminhar com uma certa velocidade. Passado um bocado já não sentia o frio e tinha consciência do seu corpo, quente debaixo de todas aquelas camadas de lã, assim como da batida acelerada do seu coração.

Horace saltitava alegremente à sua frente. Seguiram pelo carreiro que serpenteava bem ao cimo do campo de golfe por entre moitas densas de tojo. Cerca de quilómetro e meio mais à frente, esse carreiro ia ter a uns degraus e depois acompanhava uma linha férrea que já não era usada, mas que, em tempos, estabelecera ligação com Londres. Oscar chegara a Creagan através daquele pequeno ramal, com muitas paragens em passagens de nível.

O mar estendia-se à sua direita, para além do campo de golfe e das dunas, cor de aço sob o céu invernoso, melancólico; a zona de maré ficava bem ao longe. Deteve-se a escutar, ouvindo as ondas a morrer na Praia, empurradas pelo vento, e o grito das gaivotas. Quando observava as aves reparou, vagamente surpreendido, que havia alguns jogadores de golfe, figuras vestidas em tons coloridos que percorriam espaços entre buracos, puxando os seus carrinhos carregados de tacos.

Lembrava-se de que, quando a sua avó jogava golfe, costumava levar um caddie consigo, sempre o mesmo, um velho ex-recluso chamado Sandy, que conhecia cada curva e obstáculo do campo como a palma da sua mão e a aconselhava em conformidade. Sandy passava a maior parte do tempo embriagado, mas quando fazia de caddie de Mrs. McLellan, comportava-se com a sobriedade de um juiz. A velha linha férrea desaparecia dentro de uma moita de giesta. Oscar, ao dar a volta a essa parcela de terreno, viu que chegara ao fim do campo de golfe, ao nono tee. Revelou-se-lhe então a extensão seguinte da costa, outra baía ampla e baixa, um velho molhe e um aglomerado de cabanas de pescadores, amontoadas, térreas e baixas, de modo a escaparem à fúria do vento.

Foi então que ouviu vozes: um homem a chamar, um murmúrio de conversas. Virou a cabeça e viu, abaixo dele, um grupo composto por quatro homens a caminho da ponta do campo de golfe. Oscar ficou imediatamente incomodado, com receio de que um deles fosse o major Billicliffe, que dessem pela sua presença e forçassem apresentações e conversa. Ficou muito quieto, esperançado em passar despercebido, porém os seus medos revelaram-se, felizmente, infundados. O major Billicliffe, alto como uma árvore e com as pernas franzinas envoltas nos seus calções folgados presos abaixo do joelho, não fazia parte do grupo. Oscar observou as quatro figuras corpulentas, envergando casacos coloridos, calças à prova de água, sapatos de ténis brancos e bonés de pala americanos. Billicliffe nunca andaria tão bem-posto.

Fora por causa do major Billicliffe que Oscar mantivera a sua presença tão discreta desde que chegara a Creagan. De vez em quando, a pedido de Elfrida, atravessava discretamente a estrada para ir ao supermercado comprar um pão grande, ou na sua saída diária para ir buscar o The Times e o Telegraph ao jornaleiro. Ia sempre atento, não fosse o caso de Billicliffe aparecer à sua frente, esfuziante de saudações e convites para a sua casa horrível.

Elfrida achava que Oscar estava a ser fraco.

Ele é inofensivo, Oscar, não passa de um velho estúpido. Se o encontrares, deves manter-te firme. Delicado, mas firme.

O sujeito é um maçador de primeira.

Não podes passar o resto da vida fechado em casa, Oscar. É ridículo.

Fico dentro de casa, porque o tempo está péssimo, para dizer o mínimo.

Disparate. Costumavas passar o sábado inteiro a apanhar as folhas secas do chão do teu jardim, mesmo que chovesse a cântaros.

 

  1. Caddie: rapaz que leva os tacos e outros objectos no jogo de golfe. (N. da T.)

 

Billicliffe não pode entrar no meu jardim.

- Pode ver-te do lado de lá do muro. É suficientemente alto para iSSo.

Nem sequer me fales nisso.

Aquele passeio com Horace fora a primeira incursão verdadeira de Oscar ao campo e fizera-o porque, de repente, sentira-se agitado, cheio de uma energia nervosa que lhe deu vontade de esticar as pernas. Nem mesmo a perspectiva de encontrar o major Billicliffe o dissuadiu e, como Elfrida ressaltava constantemente, não podia passar o resto da vida fechado dentro de casa, a esconder-se atrás do sofá sempre que tocavam à campainha da frente.

Era uma situação francamente aborrecida, pois Billicliffe, antigo feitor de Corrydale, agora reformado, era o homem que tinha a chave da Casa da Quinta consigo e, à sua chegada, a primeira prioridade fora irem pedir-lha.

A ocasião não fora propícia. Oscar e Elfrida, depois da longa viagem de dois dias que os trouxera do Hampshire em pleno Inverno, estavam exaustos. Tinham vindo pela Al, enfrentando chuva, veículos pesados e condutores maníacos que passavam em alta velocidade pela via rápida. Ao atravessarem a fronteira da Escócia, subiram o Soutra, a chuva transformara-se primeiro em granizo, depois em neve, e as condições haviam-se tornado bastante complicadas.

Elfrida sugerira que fizessem mais uma paragem para terem uma noite repousante, mas Oscar estava simplesmente desejoso de chegar, de modo que prosseguiram caminho, cada vez mais para norte. No cume de Drumochter, a neve atingira os quinze centímetros de altura. Tinham-se deixado ir no rasto protector da traseira de um enorme camião articulado, confiantes de que, se acontecesse alguma catástrofe, esta, pelo menos, atingiria o grande veículo primeiro.

A noite caiu cedo e os últimos quilómetros foram feitos em condições nocturnas. Oscar também descobriu que a memória lhe falhara e viu-se aflito para descobrir o caminho no emaranhado de novos sistemas rodoviários que tinham sido construídos há bastante tempo, desde as suas visitas juvenis.

Porque é que tudo tem de mudar? queixou-se, de mau-humor, esforçando-se por ler o mapa à luz de uma lanterna.

Em nome do progresso retorquiu-lhe Elfrida firmemente. Ao menos não iremos por uma estrada de pista única.

Finalmente, atravessaram a ponte nova que se estendia sobre a enseada.

Nos velhos tempos recordou Oscar , tínhamos de passar as colinas e meter cerca de oito quilómetros pelo interior.

Estás a ver? As coisas melhoraram. E agora aonde vamos? - Temos de virar à esquerda, voltar à estrada antiga e seguir para Ridente.

Será que a estrada antiga ainda lá está?

Se não estiver, ficamos em maus lençóis.

Mas continuava lá, de modo que saíram da via rápida e enveredaram pelo campo. Nessa altura, já Elfrida se sentia muito fatigada. Encontrar a casa de Billicliffe fora a última gota frustrante.

«Ele está na velha cabana de Ferguson», dissera Hector a Oscar, quando este lhe pedira indicações e direcções. «Era o antigo guarda-florestal. Certamente lembras-te dele. Vira pelo portão principal e segue o teu faro. Eu ligarei a Billicliffe a avisá-lo da tua chegada.»

Porém, a escuridão fê-los perder todo o sentido da distância e não deram pelo tal portão. Só depois de passarem em frente é que Oscar viu o letreiro

CORRYDALE COUNTRY HOTEL RURAL

Tinham de encontrar um sítio onde pudessem virar e voltar para trás. Foi preciso muito tempo e fizeram-no num pátio lamacento de uma quinta, com um cão que ladrava ferozmente. Ao retrocederem, a passo de caracol, tiveram então mais sorte. Depois de passarem o portão, Oscar perscrutou o que os rodeava, em busca de indicações, mas ficou ainda mais confuso que antes.

Não me lembro de nada disto queixou-se, como se a amnésia que o assolava fosse da responsabilidade de Elfrida.

As coisas mudam, Oscar, as coisas mudam.

Não vejo uma malfadada casa em parte nenhuma.

Bem, não podemos passar o resto da noite às voltas. Sentia-se um certo desespero na voz de Elfrida. Oscar esperava que a amiga não estivesse prestes a perder a sua calma, pois mostrara-se tão maravilhosamente tranquila durante dois dias que ele achava que, se ela ficasse tão desesperada como ele já se sentia, dificilmente aguentaria.

Tens a certeza de que estamos na estrada certa?

Naquela altura, porém, Oscar já não tinha a certeza de nada. Respondeu-lhe tristemente:

Talvez estejamos demasiado velhos para andar nesta caça aos gansos.

Ora, não sejas ridículo. Claro que não estamos. E não é nenhuma caça aos gansos, sim a uma chave. Temos de encontrar a chave. Basta que demos com a estúpida dessa casinha.

O que, no fim, acabou por acontecer, completamente por acaso. Viraram à esquerda numa estrada cheia de sulcos que parecia conduzir a lado nenhum, mas viram imediatamente uma luz a brilhar por entre árvores despidas, um portão aberto e um carreiro curto, que conduzia a uma casa de pedra, onde a única janela deixava passar a iluminação interior.

Será qUe é ali? perguntou Elfrida em tom duvidoso.

Oscar suspirou de alívio, pois acabara de reconhecer, de recordar.

É ali declarou.

-Graças a Deus!

Elfrida fez entrar o carro pelo portão e parou em frente da casita, sentindo estalar o cascalho do chão sob os pneus. Os faróis do carro iluminaram um alpendre rural de madeira e uma porta fechada. Elfrida desligou o motor. De repente, assustando-os até à medula, a quietude foi trespassada por uma cacofonia de rosnadelas, latidos e uivos lúgubres.

Por amor de Deus! exclamou Elfrida.

É um cão observou Oscar.

Um mastim. Um rottweiler. Um cão de caça. Um cão como o dos Baskerville. Não ponho o pé fora deste carro. Prefiro conservar todos os meus membros.

Foi então que se ouviu o som de uma voz, alterada pela fúria, e uma porta a bater. O ladrar parou. O pobre e paciente Horace, sentado no banco de trás, espreitava timidamente pela janela. Saltava à vista que também ele não queria perder nenhum dos membros. Aguardaram.

Vamos só buscar a chave e pomo-nos imediatamente a caminho. Nada de convívio disse Oscar.

Como quiseres.

A porta da pequena casa abriu-se e a débil iluminação do interior mostrou uma entrada diminuta, diante da qual se postava uma figura masculina, magra e desajeitada, de joelhos bambos, a espreitar sob o umbral baixo da porta, com a mão a fazer de pala sobre os olhos, afim de os proteger do fulgor dos faróis do carro. Elfrida desligou-os imediatamente.

É você? Blundell? Tenho estado à espera...

A frase ficou simplesmente suspensa no ar, por terminar.

Oscar e Elfrida apearam-se, ambos rígidos e doridos de exaustão. Oscar sentia os joelhos a ranger. Ali fora, o ar estava muito frio.

Desculpe disse Oscar, embora dificilmente pudesse ter chegado mais cedo. Guiar no meio do escuro é difícil. Está tudo muito diferente. Vimos buscar a chave e depois...

Ia a dizer, «seguiremos o nosso caminho», mas o major Billicliffe não o deixou terminar.

Com certeza. Tenho-a aqui. Entrem. Ia precisamente beber alguma coisa. Fazem-me companhia.

Bem...

É bom ver-vos. Tenho estado ansioso por isso. Saiam do frio!

Afastou-se para o lado, mantendo a porta hospitaleiramente aberta e Oscar, depois de um momento de hesitação, capitulou, embora só desejasse não deparar com mais nada que o impedisse de chegar ao fim daquela viagem horrível, ver-se em Creagan e tomar posse da sua casa. Tudo indicava, no entanto, que teriam de se prestar àquele encontro social, com bebidas.

Obrigado agradeceu debilmente, estendendo a mão a Elfrida, para a ajudar a seguir à sua frente.

Esta é a minha amiga Elfrida Phipps. Veio partilhar a viagem comigo.

Esplêndido. Esplêndido. Foi uma grande viagem. Encantado em conhecê-la, minha senhora. Pegou na mão de Elfrida e, por um momento, Oscar pensou que a ia beijar, tão corteses e antiquadas eram as suas maneiras.

Como está? cumprimentou Elfrida.

E agora fechemos a porta e deixemos o maldito frio lá fora. Venham.

Seguiram-no até uma pequena sala de estar de tecto baixo, onde uma fogueira minúscula, que ardia num pequeno espaço forrado a azulejo, pouco fazia para aquecer o ar. Tudo parecia no maior estado de confusão e abandono: poltronas de cabedal bambas, um tapete enrugado, uma carpete coberta de pêlo de cão, cinzeiros a transbordar de cinza de cachimbo.

Ao fundo da sala havia uma outra porta, atrás da qual o cão enfurecido fora preso. Do outro lado chegavam ganidos e uma respiração pesada, de vez em quando soava um encontrão contra a porta e o entrechocalhar de uma corrente, quando o animal aprisionado, frustrado até ao limite, atirava o seu peso contra a mesma.

Elfrida, como era natural, começou a ficar um pouco nervosa.

Que tipo de cão é? perguntou.

Uma labrador respondeu-lhe o major Billicliffe. Uma cadela velha e muito querida. Incapaz de fazer mal a uma mosca.

Por cima do fogo havia uma cornija de lareira atravancada com uma miríade de objectos: canecas farruscadas, uma bola de golfe, um relógio que parara no meio-dia e um quarto, uns quantos postais e convites de pontas reviradas, e uma caixa de couro onde o major guardava as suas próteses auditivas. Antes de fazer fosse o que fosse, agarrou nestas e colocou-as nas enormes orelhas avermelhadas. Oscar e Elfrida viram-no, fascinados, proceder a alguns ajustamentos estridentes com o auxílio da ponta do dedo. Em seguida, voltou-se para eles com uma expressão satisfeita, como quem acabara de executar um trabalho complicado.

Assim está melhor. Raramente ando com elas. Às vezes até me esqueço do sítio onde as deixei. E agora, que desejam tomar?

Atravessou a sala até se deter diante de um velho carrinho carregado de garrafas, com um ou dois copos cheios de manchas na prateleira de baixo. o bar está aberto.

Oscar ansiava por uma chávena de chá, mas sabia que isso demoraria ainda mais tempo a preparar.

-Um uísque será óptimo. Muito pequeno. Com muita água.

-E a senhora?

Elfrida parecia um pouco embaraçada. Também ela sentia uma vontade desesperada de tomar um chá, porém respondeu sem hesitar:

-Poderá ser um xerez?

Tenho algum não sei onde. Onde estará a garrafa? Pegou numa que Continha uma pequena porção de líquido. Ainda chega.

Foi servindo as bebidas e falando. Oscar e Elfrida mantinham-se ao lado da fogueira miserável, sem interromper.

A limpeza aqui da casa tem andado muito fraca nos últimos tempos. Sabem, a mulher morreu há dois anos. Sinto muito a falta dela, mas que se há-de fazer? Há uma serviçal que ficou de vir limpar isto.

Oscar viu-o manusear desajeitadamente garrafas e jarros, entornando água na carpete, erguendo os copos com mão trémula. Assim à vista, o major Billicliffe fazia lembrar um cavalo velho a caminho do matadouro, as pernas muito magras, cobertas por umas meias, terminavam num par de sapatões pretos rústicos, pesados e emporcalhados. Tinha a cabeça careca, esparsamente coberta por alguns fios de cabelo grisalho, e os olhos remelosos. O bigode estava manchado de nicotina e os dentes, amarelados, já apresentavam falhas.

Custava imaginá-lo como um oficial garboso e aprumado de qualquer regimento do Exército britânico.

Hector ligou para mim a avisar da vossa chegada. Fiquei encantado. Era tempo de termos um pouco de sangue novo nestas bandas. Como vai o meu caro? É curioso que nunca nos tenhamos encontrado, nós dois, mas enfim, já lá vão tantos anos... Estou cá desde os sessenta, mal saí do exército. Bem, não exactamente. Primeiro, fiz um curso de formação profissional em Cirencester, precisava de me qualificar para o lugar. Feitor. Não é trabalho para um ignorante qualquer. Óptima pescaria. A mulher achava isto um bocado solitário. Não pescava. Passeava os cães. A velha televisão é que a impediu de perder o juízo. Conseguira, finalmente, acabar de preparar as bebidas, de modo que aproximou-se, periclitante, com um copo em cada mão, para as entregar. O uísque parece um bocado claro. Tem a certeza de que assim está bem?

Perfeito , mentiu Oscar.

O major Billicliffe voltou ao carrinho, afim de resolver o problema da sua própria sede, o que pareceu requerer uma porção de uísque tremendamente escuro num copo pequeno.

Devia ter por aqui algo que se trincasse. Sentem-se, fiquem à vontade.

Não podemos demorar muito.

Daqui a Creagan são só uns cinco minutos.

Oscar e Elfrida não tiveram outro remédio senão sentar-se na beira de um sofá. No outro lado do tapete, o major Billicliffe depositou a sua altura tremenda na única poltrona existente, com os velhos joelhos a ressaltar debaixo do tweed gasto dos seus calções compridos.

Já estou reformado, claro. O bom do Hector deixou-me comprar esta casita, mas também estava vazia há muito tempo. E Hughie pouco se ralava. Os dias dos trabalhadores agrícolas com habitação própria já lá vão. Agora são todos contratados. A maquinaria é formidável. Eu gostava de trabalhar para Hector, mas foi por pouco tempo. Hector foi embora, veio Hughie, e esse deitou tudo a perder. Fazia umas orgias na casa grande. Umas orgias do caraças. Uma desgraça. Um mau exemplo para todos. Essas bebidas estão boas? Isso depois acabou. Hughie pirou-se para Barbados e vendeu o sítio. Hoje é um hotel. Devem ter passado pela placa. Tudo vidros espelhados e com casa de banho. E os preços do bar são uma perfeita roubalheira. Nunca ponho lá os pés. Tudo o que sobra hoje da propriedade é a quinta, que o jovem Thomson (o pai costumava arrendar a quinta) comprou, mal aquilo foi posto à venda. Parece que está a sair-se bem. Mas eu nunca vou até lá, como já vos disse. Joga golfe? Temos um grupinho muito jeitoso. Devia juntar-se a nós. Se quiser inscrevo-o. Fica perto da sua casa. Simpático, o casal que viveu lá durante anos. O seu apelido era Cochrane. Depois do velho morrer, a mulher foi viver com a filha. Se calhar, foi a sua sorte. Depois temos Mistress Snead... cuida da casa. Vai e vem. Acho que Hector lhe paga alguma coisa. Não chegou a dizer-vos?

Oscar acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

Boa mulher. Boa mulher. Conheci-a no talho. Disse que tem mantido a caldeira a funcionar. Já não é da minha responsabilidade, senão já tinha lá dado um salto para inspeccioná-la.

Oscar, sentindo-se desesperado, perguntou:

A chave?

O major Billicliffe franziu a testa, confundido.

Como?

A chave. Da Casa da Quinta. Se não se importa passe-nos já a chave, pois temos de ir andando.

Ah, com certeza. Tenho-a algures. Acabou a sua bebida de um trago, pousou o copito vazio e ergueu-se com esforço. Atravessou a sala mais uma vez e pôs-se a remexer numa velha escrivaninha de tampo rolante, que estava aberta e com um aspecto de desarrumação caótica. Inclinou-se e procurou a esmo, sem resultado, durante uns momentos. Meteu as mãos nos pequenos compartimentos, abriu e fechou gavetas até que, de repente exclamou: «Eureka! e ergueu uma chave grande e de ar antigo, à qual estava amarrada uma etiqueta amarrotada. Sabia que a tinha num lado qualquer. Ultimamente ando um pouco esquecido.

Oscar e Elfrida acabaram de beber as suas bebidas fracas e levantaram-se com ar decidido. Oscar tirou a chave da mão do major Billicliffe.

Muito obrigado. Desculpe ter incomodado.

Não foi incómodo nenhum. Adorei ter um pouco de companhia.

Lembrem-se, estou quase sempre no clube. Já não jogo tanto como antigamente. Sabe bem conversar um pouco com os velhos amigos e também se pode comer uma boa sanduíche no bar. Acompanhou-os até à porta. Têm de voltar aqui de novo. E talvez eu apareça por lá para ver se estão bem instalados.

Elfrida sorriu.

Com certeza. Mas não vá já. Oscar não tem estado muito bem e precisamos de um pouco de tempo para organizar as coisas.

Claro, claro. Mas não há dúvida de que voltaremos a ver-nos por aí.

A meio do seu passeio, Oscar fez então uma pausa para observar os golfistas, tranquilizado pelo facto de nenhum dos quatro homens ser o major Billicliffe. Já se tinham posicionado e escolhido os tacos, de modo que ele, não desejando perturbá-los ou desviar-lhes a atenção, deixou-se ficar imóvel até o último jogador atirar a sua bola para o que parecia um lugar indefinido. A luz começava a escassear e Oscar lembrou-se de que eles teriam de se pôr a caminho, se quisessem chegar ao clube antes de escurecer. O golfista debruçou-se para apanhar o seu tee e, ao fazê-lo, reparou em Oscar.

Os olhos de ambos encontraram-se por um instante, com a zona lisa do campo de golfe de permeio. O outro homem ergueu a mão à laia de saudação ou, quem sabe, para dar a entender a Oscar que dera pela sua presença. Oscar retribuiu a saudação. A seguir, o golfista enfiou o seu taco no saco, pegou na alça do seu carrinho e seguiu no encalço dos seus companheiros. Oscar viu-o ir, uma figura corpulenta de calças azul-claras e casaco escarlate. Provavelmente era alguém que viera de visita a Creagan, calculou vindo, talvez, dos Estados Unidos ou então um residente local. Momentos depois, desaparecia atrás do obstáculo natural formado por um pequeno outeiro coberto de tojo, e Oscar prosseguiu o seu caminho mais o cão.

Começava a sentir-se um pouco fatigado. Mais abaixo, entre o campo de golfe e as dunas, avistou o carreiro empedrado por onde os tractores de conservação do campo passavam e que ia ter à aldeia. Ao fundo, o extenso areal da praia curvava e depois dele, recortada contra as nuvens cinzentas, viam-se os telhados das casas espalhadas a esmo e o Pináculo da igreja da aldeia. O efeito era sombrio como uma gravura antiga. Parecia muito distante e Oscar perguntou a si mesmo se não teria exagerado no passeio. Mas de repente viu um pequeno abrigo de Cadeira, construído para servir de abrigo a viajantes apanhados de surpresa pela chuva ou a precisarem de descansar os pés por um bocado. Oscar, ao aproximar-se, viu que se encontrava dividido em quatro segmentos, proporcionando abrigo a alguma ventania, cada um fornecido com um pequeno banco de madeira. Decidiu sentar-se por instantes, afim de recuperar o fôlego e, depois de escolher o compartimento que mais lhe agradou, instalou-se o melhor possível.

Pensou nos golfistas, reflectindo no companheirismo que os unia naquele tipo de jogo, no qual tinham ficado entretidos até ao lusco-fusco da tarde que terminava, e deu-se conta de que sentia uma inveja que quase tocava o ressentimento. Estavam juntos. Amigos. Conversavam, jogavam, competiam. Tomariam uma bebida no clube, depois cada um voltaria para o seio da respectiva família.

 

Homens vulgares.

Teve dúvidas de que alguma vez voltasse a ser um homem vulgar.

Em tempos, nos seus dias de juventude, Oscar jogara golfe, embora sempre sem grande habilidade. Talvez fosse altura de recomeçar, de comprar um conjunto caro de tacos, um carrinho Big Bertha e espantar todos, incluindo a sua própria pessoa, com uma fantástica perícia no arremesso da bola. A perspectiva, apesar de divertida, não o fez sorrir. Naquela altura já nada o fazia sorrir.

Luto. Ainda estava de luto. Ele próprio utilizara muitas vezes essa palavra inócua, escrevendo a amigos a quem acabara de falecer a mulher, um progenitor ou mesmo um filho. Era uma palavra que englobava uma multitude de emoções não vividas. A palavra condolências era outra. «Queira receber as minhas mais sinceras condolências», escreveria, assinando depois a carta e indo metê-la disciplinadamente no correio, ciente de ter cumprido, o melhor possível, uma tarefa necessária.

Agora sabia que não tivera a menor percepção do que dissera. O luto não era um estado de espírito, mas sim algo físico, um vazio, um manto mortal de dor indescritível e impermeável a qualquer consolo. A sua única protecção, que ele mesmo erguera, era uma paliçada que o isolava do mundo. Ali, em Creagan, eram-lhe poupados os encontros, os contactos casuais com conhecidos. E também o insultuoso conforto beato do pastor, a dor que o embaraço dos outros lhe causava. As condolências desajeitadas mas bem-intencionadas, olhos que fugiam aos seus. Durante o seu passeio observara, como era seu hábito, o céu, as nuvens, as colinas, as aves. Sentira o vento na cara e escutara o troar das ondas a abaterem-se na costa. Cheirara o odor forte e adocicado da maresia... e não sentira nenhuma reacção, não se animara nem se maravilhara. Não se inspirara. Não sentira alegria. Era um pouco como olhar para um quadro, ao qual se era indiferente, e ver uma paisagem enorme, primorosamente executada, mas completamente falha de alma.

Sempre desprezara a autocomiseração e agora, ali sentado, todo encolhido, no pequeno abrigo de madeira, lutava contra ela como um leão, esforçando-se por ser positivo, por valorizar as benesses actuais.

A primeira era a Casa da Quinta. O facto de lhe pertencer parte dela, de estar vaga e de lhe ter proporcionado o santuário oportuno para onde fugir. A segunda, Elfrida. O seu reaparecimento, após as férias na Cornualha, representara um grande alívio para Oscar. O seu companheirismo preservara-lhe a razão, a sua maneira de estar na vida, simples e prática, ajudara-o a atravessar a fase mais negra, confortando-o só pelo facto de aceitar as suas limitações. Quando ficava calado, ela deixava-o sozinho. Quando ele queria falar, escutava-o.

A terceira benesse era a noção de que, mesmo que ele não ficasse para sempre naquela remota comunidade do Norte, não tinha a menor possibilidade de regressar à casa que pertencera a Gloria. Os seus dois filhos já haviam tomado posse da Granja, pondo-a à venda. De certo modo, Oscar estava-lhes grato, pois a sua atitude sem tréguas e pouco abonatória poupara-o ao martírio de viver num espaço assombrado pelas recordações de Francesca, onde já só reinava um silêncio gélido e entorpecente.

Tenho de continuar, disse de si para si. Seguir em frente, passo a passo. Porém, aos sessenta e sete anos, já com a maior parte da sua vida para trás, às vezes parecia impossível reunir a energia necessária. Aquele manto mortal, composto de choque e perda terrível, não só o cegara e ensurdecera como lhe imbuíra cada osso do corpo de uma fadiga pavorosa e penetrante.

- Tenho de ir.

Dessa vez disse as palavras em voz alta, e Horace, que estivera deitado aos seus pés, sentou-se e olhou para ele com ar expectante, quase sorrindo. Era um cão muito sorridente. Oscar sentia-se grato pela sua companhia. Pôs-se então de pé.

- Vamos, meu velho. É tempo de voltar para casa.

Quando Oscar chegou, finalmente, ao clube, estava escuro e sentia-se muito cansado. Caminhou penosamente ao longo da berma da estrada, avistando o fulgor das luzes a brilhar pelas janelas largas, por trás das quais se viam figuras descontraídas como se estivessem num pub cheio de amigos, sentadas à mesa a comer sanduíches, sem dúvida a falarem sobre os seus assuntos. Entre o clube e o primeiro tee havia um adro pavimentado, com canteiros altos que no Verão se deviam encher de flores de cores alegres: begónias e gerânios. Ao lado do clube ficava o parque de estacionamento, agora inundado com a luz que vinha de cima -Ainda ali estavam mais de uma dezena de veículos. Quando Oscar se aproximou, viu uma carrinha muito usada. Encostado a ela estava um homem, a substituir uns sapatos de golfe por uns sapatões rústicos. Reconheceu nele o indivíduo do blusão encarnado e das calças azul-claras impermeáveis, porém já não tinha o boné de pala americano, vendo-se-lhe, sim, a farta cabeleira, já grisalha, iluminada pela luz fria que vinha de cima.

O homem deu a última laçada nos atacadores e pôs-se de pé. Nessa altura, já Oscar se aproximara. Por um instante hesitou, sem saber se devia parar a dirigir-lhe uma palavra amigável. Perguntar, talvez, se o jogo correra bem. Mas ainda não tomara uma decisão, já o problema era resolvido.

Viva. Que tal foi a caminhada?

Oscar fez uma pausa e virou-se para o indivíduo.

Creio que exagerei um pouco. Estou com falta de prática. E consigo correu tudo bem?

Ao chegarmos ao décimo-quinto, desistimos. Não tivemos coragem para continuar. Estava demasiado escuro e frio. Inclinou-se para pegar nos sapatos de golfe e atirá-los para as traseiras da carrinha cuja porta fechou. Não estava tempo para um jogo plenamente desfrutado. Acercou-se. Oscar viu um rosto rude de provinciano e um par de olhos azuis perscrutantes. Desculpe-me, mas o senhor é Oscar Blundell, não é?

Oscar ficou desconcertado não só por o reconhecerem como também identificarem.

Sim, sou.

Sabia que estava de volta a Creagan. (Que mais saberia ele?) . Só cá estive há vinte anos, por isso não cheguei a conhecer Mistress McLellan, a sua avó, no entanto tive o prazer de travar uma grande amizade com Hector. Foi por pouco tempo, antes de ele passar Corrydale a Hughie e ir viver para o Sul. A propósito, chamo-me Peter Kennedy. Estendeu a mão a Oscar, que a apertou com a sua, enluvada. Bem-vindo a Creagan.

Obrigado.

Deve estar exausto. É uma longa caminhada, e contra o vento. Vou entrar para tomar uma chávena de chá. Gostaria de me fazer companhia?

Oscar ficou calado, hesitante e dividido por emoções contraditórias. Estava cansado até aos ossos, mas a ideia de se sentar um pouco, num ambiente aquecido, e desfrutar do consolo de uma chávena de chá quente e reconfortante, era muito tentadora. Por outro lado, não estava bem certo de ter coragem para entrar naquela casa de convívio fortemente iluminada. Se calhar haveria apresentações, teria de falar com desconhecidos, responder a perguntas.

Mas havia algo de tão afável e genuíno naquele novo amigo, algo de tão desarmante e sincero, que não foi capaz de recusar o convite. Em vez disso, tentou encontrar uma desculpa.

Tenho o cão.

Pômo-lo no meu carro. Será por pouco tempo, não lhe fará mal.

Eu... Tinha de ser dito. Preferia não encontrar o major Billicliffe.

O rosto jovial de Peter Kennedy franziu-se num sorriso compreensivo.

Não se preocupe. Pousou a mão no braço de Oscar. FOI para casa há uns cinco minutos. Vi-o partir.

Há-de pensar que sou pouco caridoso. Não, não acho. Portanto, vai fazer-me companhia, não é verdade?

sim, Com muito gosto.

- Muito obrigado.

Será um prazer.

Resolveram o problema de Horace, colocando-o na parte de trás da carrinha de Peter Kennedy, juntamente com o saco e os sapatos de golfe. Ele ficou a olhá-los através da janela com ar reprovador, mas Oscar esforçou-se por não ligar.

Não demoro disse ao cão.

Juntos, deram a volta à esquina do clube e subiram o pequeno lance de degraus que conduzia à porta principal. Peter Kennedy abriu-a e deixou que Oscar entrasse num vestíbulo sóbrio, alcatifado e com armários alinhados contra a parede contendo trofeus e escudos em prata, assim como retratos emoldurados de velhos golfistas que tinham prestigiado o clube. À direita, umas portas envidraçadas davam para a sala principal, mobilada com mesas e cadeiras confortáveis, mais um pequeno bar ao canto. Ao entrarem, uma ou duas pessoas levantaram a cabeça para os mirar, porém a maioria pouca atenção lhes deu.

Vamos sentar-nos além. Há uma mesa livre e ficaremos sossegados.

Mas antes que o pudessem fazer, a porta giratória ao lado do bar escancarou-se para deixar passar uma empregada de mesa já entrada nos anos. Usava saia branca e blusa preta e tinha o cabelo branco maravilhosamente ondulado e arranjado. Ao dar por eles, desfez-se em sorrisos.

Mister Kennedy, não sabia que o iria ver hoje à noite.

Olá, Jessie. Será que não vimos a tempo de uma chávena de chá?

Nunca é demasiado tarde. Devem estar gelados, depois de andarem a jogar lá fora com um dia destes. Desviou o olhar para Oscar, que acabara de tirar o chapéu e se mantinha imóvel, debaixo de todas aquelas camadas de camisolas e casacos que levava. Também esteve a jogar?

Não, só a passear.

Jessie, este é Mister Oscar Blundell. Veio para ficar na Casa da Quinta.

Oh, Deus! Então é o senhor! Ouvi falar da sua vinda, mas ainda não o vira. Também joga golfe?

Lamento, mas não.

Teremos que dar um jeito a isso. Agora, Mister Kennedy, onde é que quer sentar-se?

Porém, antes que pudesse responder-lhe, houve uma interrupção.

DO fundo da sala veio uma exclamação sonora feita por uma voz profunda que soou como um clarinete, sobressaltando os presentes e suscitando olhares pouco amigáveis da parte de um grupo que se juntara em redor de uma televisão.

Peter! Chegue aqui para lhe dizer uma coisa. Já não o vejo há uma semana ou mais!

Peter Kennedy virou-se e Oscar, que seguiu a direcção do seu olhar, viu no canto mais afastado da sala um homem idoso muito corpulento, sentado numa cadeira de rodas, ao lado de uma mesinha onde estava um copinho de uísque.

Peter Agitava um cajado nodoso, como se fosse possível deixar de ser ouvido ou visto. Chegue aqui e venha contar-me as novidades.

Oscar, não se importa que o deixe sozinho só por um instante? É o velho Charlie Beith e tenho de lá ir cumprimentá-lo.

Com certeza.

É só um minuto. Jessie cuidará de si. Dito isto, afastou-se em direcção ao inválido. Mas que grande surpresa, foi dizendo. Então hoje resolveu pôr o pé fora de casa, Charlie?

O velho na cadeira de rodas saudou-o com tamanho entusiasmo e afecto que Oscar sentiu que estava, de certo modo, a ser um intruso e desviou o olhar.

Jessie tomou conta da situação.

Venha sentar-se e ponha-se à vontade. Tire o casaco, ou nem dará pela diferença quando sair. Quer que lhe traga um scone? E prefere chá indiano ou chinês?

Oscar perguntou:

Desculpe, mas de quem se trata?

Charlie Beith? É uma pessoa muito engraçada, tem mais de noventa anos, embora ninguém saiba a idade certa. Tinha uma quinta em Toshlands, ainda não há muitos anos. Agora quem cuida dela é o filho. Ia bem até lhe dar um ataque há uns dois anos. Vive no lar da terceira idade e Mister Kennedy costuma visitá-lo regularmente. Uma das filhas trouxe-o cá hoje à noite, para se distrair e conviver um pouco. É um grande vivaço.

Na verdade observou Oscar, hesitando , não era ao velhote que me estava a referir, mas sim a Mister Kennedy. Acabei de o encontrar no parque de estacionamento. Conhecia o meu tio. Mas não sei...

Quer dizer que não sabe o que faz ou quem é? Deve ser a única alma em Creagan que não o conhece. É o nosso pastor. O pastor da igreja.

O pastor. O vigário. O reitor. Não interessava. O homem cuja missão era reconfortar não só os doentes do corpo como também os do espírito. A simpatia espontânea de Peter parecera genuína, porém o que acabara de saber tornava-a deprimentemente suspeita. Já estaria a par das razões do regresso de Oscar a Creagan? Já saberia da horrível morte da sua mulher e filha? Assim sendo, quem...?

Mas tive o prazer de travar uma grande amizade com Hector. Teria Hector, levado pela melhor das intenções, entrado em contacto com Peter Kennedy? Explicando a situação. Sugerindo, quem sabe, uma visita pastoral. Conversas reconfortantes; orientação espiritual; tentar suavemente o regresso de Oscar ao seio de uma Igreja em que deixara de acreditar.

Sente-se bem? perguntou Jessie.

Oscar olhou para o rosto maternal e reparou na expressão preocupada. Sentia um calor que não era provocado pela sala aquecida, nem pelas camadas de roupa que vestia, mas sim pelo turbilhão interior, assustadoramente próximo do pânico. Sabia que não podia Continuar ali, caso contrário sufocaria.

Fazendo um esforço enorme, obrigou-se a falar:

Desculpe. Está muito quente. Acabei de me lembrar. A sua voz soava irreal, parecia vinda de outra sala. Prometi. Preciso de voltar para casa.

Mas não toma o seu chá?

Lamento mas não posso... Já a recuar para a porta, tentou desculpar-se de novo.

Voltou-lhe as costas e dirigiu-se, cuidadosa e lentamente, para a saída. A porta envidraçada custou a empurrar, mas depois fechou-se pesadamente nas suas costas. Atravessou o vestíbulo, abriu o segundo conjunto de portas e, por fim, saiu para o ar gélido. O vento frio acometeu contra ele, que teve de se inclinar para a frente, afim de não perder o equilíbrio, deixando o ar gelado encher-lhe os pulmões. Sentiu o suor gelar-lhe na testa e colocou o seu velho chapéu de tweed. Estava bem. Sobrevivera. Só precisava de chegar a casa. Para ficar a salvo. Sozinho com Elfrida. Desceu os degraus, foi até ao parque de estacionamento e tirou Horace do carro de Peter Kennedy. Depois pôs-se a caminho, em passadas largas e rápidas, arrastando o cãozito atrás de si. Fugindo.

 

Elfrida

Em Dibton, o Instituto Feminino era famoso pelos seus passeios-mistério. Normalmente, realizavam-se aos sábados à tarde e, nessas ocasiões, as senhoras empilhavam-se numa camioneta que depois as levava para destino desconhecido. Na maioria das vezes, iam parar a uma área comercial com jardins para visitar e lojas de recordações onde podiam comprar toalhas de chá floridas, marcas para livros e pacotes de guloseimas de fabrico caseiro. Depois das compras, seguia-se o lanche num hotel local qualquer; um lanche como devia ser, com peixe e batatas fritas. Em seguida, empilhavam-se de novo na camioneta e eram conduzidas de volta a casa.

Estas saídas eram muito populares.

Elfrida, tão abruptamente impelida a ir para o Norte da Escócia, para Creagan e para a Casa da Quinta, por circunstâncias alheias ao seu controlo, considerou que aquele iria ser o seu maior passeio-mistério de todos os tempos. Desde que ela e Oscar tinham partido de Dibton que não fazia ideia do que lhe estava reservado, e ainda não houvera nenhum momento adequado para se informar. A sua partida fora de tal modo precipitada, o fazer das malas tão acelerado e tão curto o tempo para as despedidas, que pormenores minuciosos relativos ao seu destino perderam toda a importância. Só havia que partir.

Fora necessário, como é evidente, tomar algumas providências indispensáveis. O carro de Oscar tivera de ir à revisão e de ser atestado de gasolina. Oscar tratou do assunto. Os enteados, Giles e Crawford, foram informados da sua partida iminente e o seu gerente bancário alertado para a mudança de morada. Quanto a Elfrida, entregou a chave de Poulton's Row à vizinha do lado, com o mínimo de explicações, pedindo-lhe também que ficasse de olho no seu pobre Ford Fiesta, abandonado à beira do passeio em frente da sua casita.

- Quando é que regressa, Mistress Phipps?

- Não faço a menor ideia. Mas darei notícias. Também tem aqui a chave do carro. Sirva-se dele quando quiser. Só lhe fará bem. - Quase como se fosse um cão velho necessitado de exercício. - Desliguei a água e tranquei todas as janelas.

Mas, para onde vai?

Acho que para a Escócia.

Depois, Oscar tivera de entrar em contacto com Hector McLella para o pôr ao corrente da situação, enquanto Elfrida ligava ao seu primo Jeffrey, na Cornualha, e tentava explicar as circunstâncias que a levavam a tomar aquela decisão. Não foi muito bem sucedida, pois ele levara algum tempo a compreender a situação. Porém quando, por fim conseguira, Jeffrey limitara-se a dizer, «Boa sorte», mas só depois de ela lhe dar a morada e o número de telefone da casa de Oscar é que a deixara desligar.

Sem ter a menor ideia concreta do tipo de roupas de que iria necessitar, enfiou uma variedade de peças (quentes) e de sapatos (fortes) na mala. A seguir, meteu os seus bens mais preciosos, que levava sempre consigo, dentro de um velho saco maleável com fecho metálico: o xaile de seda, a embrulhar o pequeno quadro pintado por Sir David Wilkie; os cãezinhos Staffordshire; o seu relógio; a peça de tapeçaria em que se encontrava a trabalhar. Por cima iam algumas fotografias em molduras de prata e meia dúzia de livros. Era tudo. A bagagem de Oscar pouco mais volume fazia: uma maleta de viagem, preparada por Mistress Muswell, uma pasta a rebentar pelas costuras e o seu equipamento de pesca.

Tencionas ir à pesca, Oscar?

Não faço a menor ideia. Mas não posso ir para a Escócia sem a minha cana. Seria quase um sacrilégio.

O Volvo de Oscar teve espaço para tudo isto, e ainda para Horace mais o seu cobertor, biscoitos e tigela para a água. Horace, tal como Elfrida, não fazia ideia do que lhe estava reservado, no entanto entrou alegremente no carro e instalou-se confortavelmente, ao que tudo indicava aliviado por não o deixarem para trás. Quando via malas de viagem não ficava nada satisfeito.

Não vamos nada pesados observou Elfrida a Oscar, porém este estava demasiado ansioso e distraído para fazer algum comentário em resposta.

Em vez disso, voltou-se para trás, afim de dar as suas últimas instruções à leal Mistress Muswell que sempre o acompanhara no decorrer daqueles dias difíceis e que, naquele momento, se encontrava ao cimo dos degraus, nitidamente emocionada, dando a impressão de, a qualquer momento, desatar a chorar.

Adeus, Mistress Muswell.

Mande um postal disse-lhe ela corajosamente, mas em voz trémula.

Com certeza. Adeus. Obrigado por tudo.

Deu-lhe então um beijo rápido na face, o que fez com que a velha empregada se fosse abaixo. Ao afastarem-se da Granja, Elfrida viu, pelo espelho retrovisor, a figura elegantemente uniformizada a assoar o nariz e a limpar os olhos com um lencinho.

- Que irá ser dela? perguntou Elfrida, sentindo-se uma traidora.

Giles prometeu tratar da sua situação. Não deve ter dificuldade em arranjar novo emprego. É uma mulher maravilhosa.

Depois disso, pararam de falar. Elfrida foi a guiar durante a maior parte do caminho, só deixando que Oscar a substituísse quando começava a sentir-se perigosamente fatigada, «o CANSAÇO MATAva e UMA PARAGEM» alertavam letreiros de estrada aos veículos ligeiros e pesados que circulavam rumo ao norte pela Al. Parava então o carro na berma da estrada ou nalgum posto de paragem e trocava de lugar com ele.

Durante esse primeiro dia, Oscar mal falou e ela deixou-o estar calado, sem sequer sugerir que ligassem o rádio do carro na FM clássica. De vez em quando, paravam para Horace dar uma voltinha, esticarem as próprias pernas, às vezes para comerem ou tomarem uma chávena de chá. O tempo estava frio e desolado e a noite caiu cedo, altura em que a condução se tornou ainda mais cansativa. Isso fez com que saíssem da auto-estrada e fossem até uma pequena vila em Northumberland, de que Oscar se recordava. Aí encontraram, na praça principal, uma velha estalagem de que ele também se lembrava e ainda não fora excessivamente modernizada ou alterada. Melhor ainda, a gerência teve a gentileza de deixar Horace entrar, mais o seu cobertor, e ficar instalado junto da sua dona.

Na manhã seguinte, mal o comércio abriu, Elfrida foi dar um passeio pela vila e encontrou um pequeno supermercado, onde comprou algumas provisões para a eventual chegada: uma lata de sopa, pão, manteiga, bacon e ovos. O empregado arrumou-lhe tudo dentro de um saco de compras, e de repente ela avistou uma garrafa de uísque (medicinal?) que resolveu também levar.

O segundo dia de condução foi um pouco melhor. O tempo estava horrível, mas pelo menos Oscar tornara-se mais comunicativo. Olhava para os campos e quintas por que passavam, apontava para marcos e olhava para o céu com ar preocupado, fazendo previsões meteorológicas pouco animadoras. Apesar disso, ainda não chegara a altura de conversar, de lhe fazer a torrente de perguntas por que ansiava: Como irá ser, Oscar? De que tamanho é a casa, alguém a terá ido aquecer, haverá água quente? E estará limpa, terá lençóis? E as pessoas serão amistosas para nós, e conhecer-te-ão? Ou banir-nos-ão?

Tudo era inimaginável. Mas aquilo era uma aventura, disse de si para si, metendo a segunda para subir a escorregadia vertente do Soutra, com os pára-brisas a trabalhar no máximo e todo o mundo à volta a parecer que se afogava no meio da brancura de uma borrasca súbita.

Em jovem, nos seus tempos de actriz, viajara com companhias itinerantes de norte a sul da Grã-Bretanha, sem mesmo saber o que a aguardava no fim da jornada. As recordações que conservava daqueles dias eram uma amálgama indistinta de cidades provincianas, teatros bolorentos e alojamentos que cheiravam a couve cozida. Mas era jovem, fazia um trabalho que amava e sentia-se muito feliz. Cada viagem num comboio barulhento era um desafio, cada teatro encardido uma nova descoberta. Naquele momento, sentia um pouco dessa velha excitação aquecê-la, mas viu-se obrigada a lembrar a si própria que já não era a mesma rapariga ardente, antes uma respeitável senhora de sessenta e dois anos. Ao menos não estou sozinha. Nem aborrecida. Nem morta!

O encontro com o major Billicliffe fora o derradeiro obstáculo. Ultrapassado este e com a chave bem guardada dentro do bolso de Oscar a longa e extenuante viagem de dois dias ficara para trás e os últimos quilómetros foram fáceis, quase despreocupados. Oscar foi a guiar. Estava frio, mas a neve parara de cair e a estrada escura estendia-se colina abaixo, em direcção ao mar, por entre densos aglomerados de coníferas. Elfrida abriu a janela do seu lado e ouviu o sussurro do vento nos ramos, sentiu o cheiro a pinheiro e a maresia. A certa altura, as árvores começaram a escassear e viram-se rodeados de dunas e pinheiros raquíticos e, mais ao fundo, avistaram uma linha direita prateada que era o mar. Ao longe, no meio da água, um farol piscava, sulcando a escuridão. Depois, mais à frente, o brilho dos candeeiros de rua e casas com janelas iluminadas por trás de cortinas corridas. Apareceu uma rua com casas de pedra, porém, de tamanhos e alturas diferentes entre si. Viu a igreja assomar, com um relógio iluminado como uma lanterna redonda na sua torre. Os ponteiros estavam parados nas sete da tarde. A certa altura, começaram a aparecer casas maiores e mais bonitas, erguidas por trás de muros altos de pedra. Creagan. Parecia deserta. Ninguém a caminhar pelas ruas, de carros nem amostra. Nenhum som, nem mesmo o grito das gaivotas. Mais uma volta, mais uma rua até que, a certa altura, Oscar parou junto ao passeio. Desligou o motor. Ficou imóvel por instantes. Elfrida aguardou. De repente, pousou uma das mãos nas dela.

Minha cara, chegámos , anunciou.

Ali estava a Casa da Quinta. Elfrida viu-a, pela primeira vez, à luz dos candeeiros: quadrada, sólida, afastada da rua e rodeada por uma cerca em ferro forjado e um pátio coberto de pequenos calhaus rolados da praia. A frente da casa fazia lembrar um desenho de criança: tinha uma porta e cinco janelas. Acima destas, inseridas a meio da inclinação da cobertura de telhas, sobressaíam duas águas-furtadas.

Apearam-se do carro e Elfrida soltou Horace. Este, que não se esquecera do ladrar e dos uivos da cadela do major Billicliffe, hesitou em sair, preocupado, atento. Porém, finalmente tranquilizado, saltou para a rua e a pouco e pouco começou a cheirar em volta, em busca de odores desconhecidos.

Oscar abriu o portão e percorreu o carreiro. Elfrida e Horace foram atrás dele. Meteu a chave à porta. Esta abriu-se para dentro e ele procurou um interruptor. Encontrou-o e acendeu a luz.

Entraram, e Elfrida sentiu imediatamente a limpeza de um lugar acabado de esfregar e encerar. Em frente, uma escada conduzia a um patamar com uma janela sem cortinas. Havia uma porta fechada em cada um dos lados, mas ao fundo do corredor uma terceira encontrava-se aberta e foi nessa que Oscar entrou, acendendo outra luz.

Elfrida fechou a porta da entrada atrás de si, deixando o frio da noite invernosa lá fora. Foi atrás de Oscar e encontrou-o numa cozinha, onde se via um antiquado armário pintado e uma mesa de madeira. Por baixo da janela havia uma tina de barro e, ao lado, um espaçoso fogão a gás que teria, possivelmente, uns quarenta anos de existência.

Não é propriamente um luxo , observou Oscar. Parecia estar a pedir desculpa.

Está óptimo assegurou-lhe Elfrida, com sinceridade. Alguém deixou aqui um bilhete.

Era uma folha de papel com linhas que se encontrava no meio da mesa, com uma ponta presa debaixo de um frasco de compota. Oscar pegou no bilhete e entregou-o a Elfrida, que o leu em voz alta.

«Liguei a caldeira (petróleo). Vai precisar de mandar vir mais petróleo. Camas feitas em 2 quartos. Água quente para o banho. Carvão e lenha no barracão. Algumas janelas não abrem. Leite no frigorífico (copa). Apareço amanhã para ver se está tudo bem. Cumprimentos, J. Snead (Mrs.)»

Oscar elucidou:

Mistress Snead.

Pois.

Elfrida, vais chorar?

É possível.

Porquê?

De alívio.

Tudo isso fora há três semanas atrás. Já era Dezembro, cinco da tarde de uma sexta-feira escura, em pleno Inverno. Oscar, que fora dar um passeio na companhia de Horace, ainda não voltara. Elfrida afastou imagens dele morto de um ataque cardíaco, do seu corpo caído aos pés de uma duna de areia. Simplesmente, demorava-se um pouco mais que o previsto, certamente desfrutando daquela sua primeira incursão aos arredores, sentindo-se mais apto para o exercício e enchendo os pulmões de ar fresco e rejuvenescedor. A decisão de sair fora exclusivamente sua mas ela tivera o cuidado de não parecer demasiado entusiasmada, receosa de lhe dar a impressão de que estava ansiosa por se livrar dele.

Deixou-se ficar em frente do fogão, onde aquecia água numa chaleira. Preparou uma caneca de chá de saqueta, juntou-lhe um pouco de leite e levou-a para a sala de estar, no piso de cima. Era uma divisão formal e espaçosa, com uma enorme janela panorâmica que deitava para a rua e a igreja. Podiam gastar-se ali horas sentado na sacada a ver o mundo passar: carros a andar de um lado para o outro, carrinhas de entregas e camiões carregados de brita; pessoas às compras, paradas no passeio a conversar, crianças tagarelas como pardais, indo e vindo da escola.

A sala encontrava-se mobilada, tal como o resto da casa, com o mínimo dos mínimos de móveis. Um tapete turco grosso. Um sofá e duas cadeiras. Uma mesa contra a parede, uma estante com a frente envidraçada onde havia alguns livros encostados uns aos outros. Nada de quadros nem ornamentos. Nem a menor pista sobre os interesses e afazeres dos ocupantes anteriores. Elfrida achava aquela falta de decoração e de objectos bastante terapêutica. Sem quadros, bugigangas, pequenos objectos de prata e conjuntos de porcelana decorativa para dispersar a atenção, tornava-se possível apreciar as proporções agradáveis da divisão, a cornija trabalhada e a rosácea de estuque no meio do tecto, de onde pendia um candelabro vitoriano encantador.

Depois de chegar e desfazer as malas, pusera o seu modesto cunho pessoal na casa. O David Wilkie pendia agora na parede em frente da lareira, por cima da pesada mesa de carvalho que Oscar utilizava como secretária. Os cães Staffordshire e o relógio ocupavam a cornija de mármore vazia da lareira. Comprara no Arthur Snead, Frutas e Legumes, um ramo de crisântemos, descobrira uma jarra amarela e fizera um arranjo pouco ambicioso. Colocara a tapeçaria meio feita em que estava a trabalhar na base de uma cadeira. Já acendera a lareira e naquele momento deitava-lhe carvão e toros, antes de se ir sentar à janela a ver se Oscar chegava. Mal acabara de se instalar, com a caneca nas mãos, quando o telefone tocou. Assustou-se, pois ainda quase não tinham recebido chamadas desde a sua chegada. Elfrida esperava que não fosse o major Billicliffe. Pousou a caneca no chão e foi atender. O telefone encontrava-se no primeiro andar, sobre uma pequena cómoda mesmo ao lado da porta da sala de estar. Pegou no auscultador. Está?

Elfrida?

Sim?

Fala Carrie. Carrie Sutton.

Carrie! Onde é que estás?

Em Londres. Como tens passado?

Vai-se andando.

Jeffrey disse-me que estavas na Escócia. Deu-me o teu número de telefone. Elfrida, quero fazer-te um pedido. É um grande favor.

Não faças cerimónias.

Tem a ver com o Natal.

Como era de prever, foi um telefonema prolongado. Quando acabaram de falar, Elfrida pousou de novo o auscultador. Nesse preciso instante ouviu a porta da frente abrir e percebeu que Oscar e Horace tinham chegado a casa. Inclinou-se sobre a balaustrada e perguntou:

Correu tudo bem?

Sim. Já cá estamos.

Desceu ao piso de baixo. No vestíbulo, Oscar livrava-se do casaco e do chapéu, que pendurou no bengaleiro de madeira trabalhada. Horace marchara já em direcção à cozinha, à sua tigela de água e ao seu cesto quentinho.

Demoraram imenso.

Percorremos quilómetros. Fomos até à ponta do campo de golfe. Já não me lembrava de que ficava tão longe.

Passou a mão pelos cabelos. Elfrida achou-o com ar exausto.

Que tal uma chávena de chá? propôs.

Creio que neste momento preciso é de algo mais forte.

Um uísque. Vai para cima. Acendi a lareira. Já to levo.

Foi à cozinha, deitou uma porção de uísque num copinho para Oscar e depois voltou a pôr a chaleira ao lume para fazer mais chá para si, pois sabia que a anterior esfriara. Horace já dormia. Deixou-o ficar e subiu ao andar de cima com o copinho numa mão e a caneca na outra. Encontrou Oscar apoiado à lareira com uma mão, a olhar fixamente para o fogo. Quando ela entrou, virou a cabeça na sua direcção e sorriu, agradecido.

És a bondade em pessoa.

Pegou no copo e sentou-se cuidadosamente numa das poltronas, esticando as pernas à sua frente. Elfrida foi correr as cortinas, ocultando a noite.

Ainda não as tinha corrido porque estava sentada à janela a ver se vos via.

Pensaste que eu tinha morrido?

A imaginação prega partidas terríveis.

Fizeram-me atrasar. Conheci um indivíduo à entrada do clube. Conversámos. Convidou-me para entrar, afim de tomar um chá, mas às tantas foi falar com um velho numa cadeira de rodas. Perguntei então à empregada de mesa de quem se tratava; respondeu-me que se chamava Peter Kennedy e era o pastor.

Elfrida aguardou. Às tantas, perguntou:

E então, Oscar?

- Pensei que ele soubesse do acontecido. Do acidente. Gloria e Francesca. Da morte de ambas. Ocorreu-me a possibilidade de Hector lhe ter contado. Imaginei-o um tipo simpático, mas às tantas não passaria de caridade. Pena de mim. Não quero ser ajudado. Não quero ter de falar ou escutar. Quero que me deixem em paz. Por isso não fiquei. Vim-me embora. Para casa.

Oh, Oscar.

Eu sei. Fui rude e mal-educado.

Estou certa de que ele compreenderá.

Espero que sim. Simpatizei com ele.

Haverá tempo. Bem precisas dele. Oscar respirou fundo, com ar sofrido. Observou:

Detesto-me a mim próprio.

Oh, meu caro, nunca faças isso.

Censuras-me?

Não. Eu compreendo.

Bebeu um pouco do chá que escaldava, reconfortante. Sentara-se em frente dele, numa pequena cadeira de base larga forrada em tecido axadrezado. Sentia o calor da fogueira na barriga das pernas.

Talvez não seja uma altura oportuna, mas tenho de te perguntar uma coisa. De te dizer algo , disse.

Espero que não me queiras dizer que te vais embora.

Não, não é isso. Recebi um telefonema. De Carrie Sutton, filha de Jeffrey. Voltou da Áustria. Quer vir passar o Natal connosco.

Mas nós não vamos celebrar o Natal.

Oscar, eu disse-lhe que não passaremos de um pouco de borrego ao almoço e nada de enfeites. Contei-lhe que foi esse o nosso acordo. Ela compreende. Não lhe faz a menor diferença. Diz que também não está interessada no Natal.

Nesse caso, que venha. Elfrida hesitou.

Há uma complicação.

Um homem?

Não. A neta de Jeffrey. Sobrinha de Carrie. Lucy. Se Carrie vier, Lucy terá de a acompanhar.

Fez-se um silêncio muito prolongado. Os olhos de Oscar desviaram-se do rosto de Elfrida e fixaram-se na fogueira. Por um momento, pareceu tão velho como o tio, naquele dia horrível em que Elfrida encontrara o idoso inesperadamente e achara, por um instante horrível, que se tratava de Oscar.

Disse a Carrie que precisava de te perguntar. De te falar na menina, acrescentou.

Que idade tem ela?

Catorze.

Porque é que tem de vir?

Oh, não sei. Elfrida encolheu os ombros. Uma história qualquer da mãe que vai para a Florida passar o Natal com um namorado e a filha não querer acompanhá-la. E Dodie, a avó, recusa-se a ficar

Com a neta. O tipo de confusão egoísta que está sempre a acontecer naquela família.

Oscar não fez comentários. Elfrida mordeu os lábios. Acrescentou:

Posso telefonar a Carrie e dizer-lhe que não venha. Que ainda é muito cedo. Uma menina a cirandar por aqui seria extremamente penoso para ti. Possivelmente, insuportável. Compreendo perfeitamente e não pensarei mal de ti se disseres que não.

Oscar fitou-a com uma expressão de afecto nas feições suaves.

Adoro a tua franqueza, Elfrida.

Tem de ser mesmo assim.

Se elas vierem...

Saberão que não haverá Natal.

Mas, e a menina?

Terá a companhia de Carrie. Farão o que lhes apetecer. Irão à igreja, acompanharão os cânticos, trocarão presentes.

Parece um programa muito fraco para uma menina tão jovem.

E para ti, Oscar?

Eu não conto. Nada poderá ser mudado. Parece-me que tens vontade de que elas venham. Então diz-lhes que o façam.

Tens a certeza? Absoluta? Oscar assentiu.

És uma pessoa muito querida, boa e corajosa.

Há espaço para elas?

O sótão está vazio. Talvez pudéssemos comprar uma cama e Lucy dormiria lá em cima.

Precisaremos de comprar mais que uma.

Pouca coisa mais.

O que quiseres, isso é que importa. Diz-lhes que venham. Quando quiserem. Far-te-ão companhia. Receio que a minha não seja nada animada.

Oscar, não foi para fazermos uma companhia animada um ao outro que viemos para aqui.

Oscar bebeu um pouco do seu uísque, aparentemente perdido nos seus pensamentos. Depois, disse:

Telefona já a Carrie. Se vierem de comboio ou de avião, podemos mandar um táxi buscá-las a Inverness. Se chegarem de carro, avisa-a da neve.

Elfrida sentia-se profundamente grata a Oscar pela sua generosidade de espírito. Tê-lo ali sentado a pensar naqueles pormenores mundanos fê-la sentir-se muito melhor. Estava a ser hospitaleiro, quase como se tivesse sido ele a fazer o convite e não este a ser-lhe praticamente imposto. Acabou de beber o seu chá e pôs-se de pé.

- Vou telefonar imediatamente a Carrie. Dirigiu-se para a porta e depois voltou-se para trás. Obrigada, Oscar.

 

Lucy

Ainda 8 de Dezembro

Já tomei nota de todas as coisas maravilhosas que me aconteceram hoje, desde a chegada de Carrie a irmos almoçar fora e ela dizer-me que nós as duas talvez pudéssemos ir passar o Natal fora. O filme

também foi muito bom. Bem, agora são dez e meia da noite, quase horas de ir para a cama, por isso estou a escrever em camisa de dormir. O que aconteceu é que depois do jantar tomei um banho, lavei o cabelo, e, quando estava a secá-lo, fui à cozinha preparar um copo de leite quente com chocolate. Nessa altura, o telefone tocou e a minha mãe veio dizer-me que era Carrie, a querer falar comigo. Acho que já tinham estado a conversar. Atendi no telefone da cozinha e esperei até ouvir o dique e saber que a minha mãe desligara, portanto não iria escutar. Às vezes tem essa mania. Foi então que Carrie me disse. Vamos passar o Natal à Escócia. Elfrida, prima do meu avô, está lá com um amigo e ambos querem que vamos. É um lugar chamado Creagan, e parece que a casa é bastante grande. Estou tão entusiasmada que quase rebento. Carrie diz que é demasiado longe para irmos de carro, portanto apanharemos um avião até Inverness e depois seguiremos o resto do caminho num táxi. Partimos a 15 de Dezembro; ela já reservou as passagens. O amigo de Elfrida chama-se Oscar, mas Carrie não sabe como ele é, pois nunca o conheceu. Perguntei-lhe se já tinha contado à mãe e à avó, e ela disse que não. Quis saber se ela queria que eu lhes dissesse, mas a resposta foi outra vez negativa, porque a avó nunca simpatizou muito com Elfrida e será melhor a Própria Carrie falar-lhe no assunto, portanto virá cá amanhã para dar a notícia e acalmar a avó, se ela começar a levantar dificuldades. A mãe não dirá uma palavra porque só pensa em Randall e na Florida. Perguntei a Carrie o que devia levar e ela falou-me em casaco de pele e sapatos para a neve mas claro que estava só a brincar. Nem acredito que vou à Escócia. Já estou a contar os dias. Carrie diz que provavelmente o Natal não será grande coisa, pois Oscar e Elfrida já são um pouco velhos Mas o que interessa é que me vou embora com Carrie, o Natal não importa nada, tanto mais que nunca gostei muito de pudim de Natal.

Elfrida diz que há lá uma praia, no mar do Norte. Mal consigo esperar!

 

Elfrida

Naquela manhã de sábado, Elfrida foi a primeira a descer. Vestira umas calças grossas em veludo listrado, mais duas camisolas, e sentiu-se grata a estas quando abriu a porta das traseiras para deixar Horace sair para o quintal. Durante a noite formara-se uma camada grossa de gelo refulgente que tudo cobria, e os seus passos deixaram marcas na erva grossa e estaladiça do pequeno espaço. Ainda não era dia, e ela e o cão emergiram no meio da luz emitida por um candeeiro de rua que iluminava a vertente inclinada que ia até ao cimo da colina.

Horace detestava o frio, portanto Elfrida manteve-se perto dele, esperando que o animal cheirasse aqui e ali, disparando a certa altura até ao cimo do quintal onde sentiu o rasto de um coelho, demorando imenso tempo até descobrir o sítio exacto para o seu chichi. Elfrida aguardava, enregelada, tentando ser paciente, e ao olhar para o céu, viu-o azul-safira e muito límpido. Para leste, sobre o mar, o fulgor da aurora estendia-se numa faixa cor-de-rosa, embora o Sol ainda não tivesse despontado no horizonte. Concluiu que iria estar um dia lindo, e sentiu-se grata. Já tinham tido céus cinzentos, ventos uivantes e chuva que bastasse.

Horace terminou, finalmente, o que tinha a fazer, de modo que voltaram apressadamente para dentro de casa. Elfrida fechou a porta. Depois, colocou a chaleira ao lume e procurou a frigideira para o bacon. Pôs a mesa com uma toalha aos quadrados, chávenas e pires. Foi buscar os ovos. Oscar gostava de comida cozinhada ao pequeno-almoço e embora Elfrida não lhe fizesse companhia, adorava o cheiro do bacon a fritar.

Fez torradas, munindo-se de todas as cautelas, pois naquela cozinha antiquada isso representava um certo perigo, já que a torradeira era muito velha, já dera o que tinha a dar e o seu funcionamento deixava muito a desejar. Às vezes, fazia saltar duas torradas razoavelmente douradas. Outras, regurgitava o pão tal qual como este entrara. Mas se tiVesse um ataque de mau génio, esquecia-se de se desligar a si mesma, a cozinha enchia-se de fumo escuro e os dois pedaços de carvão que saíam nem às gaivotas agradavam.

De vez em quando, Elfrida dizia a si mesma que tinham de comprar uma torradeira nova. Havia uma pequena loja de electrodomésticos ao cimo da rua, a William G. Croft. As montras do estabelecimento estavam repletas de microndas, secadores de cabelo, ferros-de-engomar, fritadeiras e uma série de outros aparelhos sem os quais Elfrida podia viver perfeitamente. Uma torradeira, porém, era essencial. Um dia fora até lá, mas viera-se embora sem concretizar a compra, ao tomar conhecimento do preço.

A situação estava um pouco complicada para ela, pois sem o pequeno rendimento adicional das suas almofadas bordadas, vivia permanentemente com falta de dinheiro. O final do mês nunca chegava suficientemente depressa para ela poder ir buscar a sua pensão aos Correios. Achava que o mais aconselhável seria arranjar um inquilino para Poulton's Row, alugando-lhe a casa ao trimestre e assegurando, deste modo, um pequeno rendimento. No entanto, organizar a questão logística a partir de Sutherland era demasiado para Elfrida, pelo que a ideia em germinação foi posta de lado. Quanto a Oscar, ela não fazia a menor ideia se se defrontava, ou não, com o mesmo dilema, mas também não tencionava perguntar. Provavelmente, tinha algumas economias, uma conta no banco ou acções, contudo, sabia que Gloria é que pagava as contas das despesas diárias que o estilo de vida luxuoso da Granja criava.

Prosseguia, portanto, a sua luta diária com a torradeira, decidindo que todo e qualquer dinheiro seu disponível se destinaria à compra de livros ou flores.

Naquele dia, sentia-se bem-humorada e o cheiro do bacon misturava-se com o da torrada acabada de fazer e do café quente. O café era extremamente importante. Estava sentada à mesa a tomar a primeira chávena do dia quando Oscar desceu para se lhe juntar. Elfrida reparou imediatamente na sua aparência. Normalmente, usava uma camisa de flanela por baixo de um pulôver quente. Muito informal. Nada de gravata. Naquela manhã, porém, não só vestira uma das suas melhores camisas como também pusera gravata, um colete e o seu melhor casaco de tweed.

Mirou-o com um certo espanto.

Estás muito elegante.

Obrigado. Fico satisfeito em saber que reparaste.

Para quê toda essa elegância?

Oscar tirou o seu prato de bacon e ovos mexidos da placa quente, onde Elfrida o deixara para não arrefecer.

E se te disser que é por ser sábado?

Não fico convencida.

Porque não me posso permitir transformar-me num velho desmazelado.

O facto de teres gravata não fará grande diferença.

Sentou-se e serviu-se de café.

Obrigado. Não, tens toda a razão. Fiz um pequeno esforço porque preciso de ir visitar alguém.

Elfrida ficou surpreendida, mas fez o possível por não o dar a entender. Também sentia grande curiosidade.

Quem é que vais visitar?

Rose Miller.

Quem é Rose Miller?

Uma velha amiga.

Nunca me falaste nela. É caso para eu morrer de ciúmes?

Não me parece. Deve ter uns oitenta e cinco anos, se é que ainda está viva. Era a criada da minha avó. Vive em Corrydale, numa casita com telhado de colmo. Vou ver como está.

Por que razão resolveste ir visitar a antiga criada da tua avó, assim, de repente? Tens-te mantido tão reservado que, se calhar, as pessoas até pensam que andas fugido.

Importas-te?

Oh, meu caro Oscar, estou absolutamente encantada. Só não entendo muito bem essa mudança no teu estado de espírito.

Oscar pousou a sua chávena. Ao falar de novo, fê-lo com voz diferente, sem gracejar.

Foi ontem. Depois de encontrar aquele sujeito. Peter Kennedy. O pastor. Ter-me portado de maneira tão estúpida, tão rude. E há outra coisa. No decorrer das últimas semanas considerei-me um anónimo, mas claro que isso é ilusão minha. Se Peter Kennedy sabe quem sou, isso também acontece com muitas outras pessoas. Apenas são demasiado delicadas, sensatas e acanhadas para me virem bater à porta. É um meio pequeno; as notícias espalham-se depressa. Nesta altura, já Rose Miller deve saber da minha chegada. E ficará profundamente magoada se não entrar em contacto com ela. Portanto, decidi ir. Comprarei um ramo de flores no Arthur Snead e, juntos, recordaremos os velhos tempos. Não precisas do carro, pois não?

Não. É o que viver aqui tem de melhor. Basta-me atravessar a praça para ir ao supermercado, o talho fica ao fundo da rua e a caminho de casa sempre posso dar uma vista de olhos pela loja de antiguidades e trazer de lá um bule vitoriano. Ou até arranjar o cabelo.

Queres dizer que há mesmo um cabeleireiro em Creagan?

Evidentemente. Por cima da barbearia. Onde havia de ser? respondeu Elfrida, inclinando-se sobre a mesa para lhe tirar o prato vazio da frente e se servir da sua segunda chávena de café. As cortinas de pano de algodão listrado ainda estavam corridas, de modo que puxou-as para o lado, revelando o céu que clareava.

De repente, sentiu-se animada como já não lhe acontecia há muito tempo. As coisas começavam, lentamente a melhorar. O dia estaria Enregelante mas agradável. Oscar ia fazer uma visita, e na semana seguinte, Carrie e Lucy chegariam. Ao pensar nisso, achou que o dia anterior talvez tivesse representado um ponto de viragem, embora não o tivesse reconhecido como tal.

Vou dar uma volta anunciou Oscar. Esticar as pernas Apanhar ar fresco. Levarei Horace comigo.

Saltava à vista que Elfrida não seria convidada para os acompanhar O que não fazia diferença, porque não tinha vontade de sair, estafando-se a arrostar o vento e a chuva. Conseguiu, mais uma vez, não mostrar surpresa e recomendou-lhe simplesmente que se protegesse bem contra o frio que fazia.

O certo é que, felizmente, Oscar encontrara o tal homem, Peter Kennedy. O pastor. E, vá-se lá saber por que razão, tinham entabulado conversação e ele fora tratado com simpatia e hospitalidade. O facto de, qual cão que morde a mão que o alimenta, Oscar ter entrado em pânico e saído porta fora, revelara-se, provavelmente, menos importante para Peter do que para Oscar que, via-se bem, ficara muito envergonhado com o seu comportamento. Se calhar, passara a noite acordado, cheio de remorsos. Talvez a visita à velha serviçal fosse uma espécie de reparação, o seu primeiro passo no regresso ao convívio com o seu semelhante.

A que horas vais, Oscar? perguntou Elfrida, trazendo a sua chávena de volta para a mesa. Refiro-me ao encontro marcado com Rose.

Não é nenhum encontro marcado, pois ela não sabe da minha ida.

Mas chamar-lhe encontro marcado é muito mais excitante.

Creio que cerca das dez e meia. Achas bem?

Perfeito. Ela já andará a pé e oferecer-te-á um chá e, talvez, um biscoito. Bebeu o seu café. Talvez não fosse má ideia, já que estarás em Corrydale, ires fazer uma visita ao major Billicliffe.

Estava com medo que dissesses isso.

Oh, Oscar, estás a ser covarde. O homem não passa de um velho inofensivo e, se calhar, até se sente terrivelmente solitário. É indelicado continuar a viver aqui e fazer de conta que ele não existe. Vendo bem, estava à nossa espera com a chave e uma bebida deslavada. Oscar, calado, não parecia minimamente entusiasmado. Podias passar por lá casualmente, para o dia correr mais depressa. Talvez convidá-lo para uma bebida na altura em que Carrie e Lucy estiverem cá. Poderias dizer que era uma festa.

Oscar desviou o tema da conversa com astúcia.

Quando é que elas chegam?

Sexta-feira. Já te tinha dito. Chegam a Inverness de avião e já combinei com o homem do táxi para as ir buscar.

Não sabiam que tínhamos um táxi aqui.

Alec Dobbs.

- Pensei que esse era o cangalheiro.

E é, mas também tem um táxi.

- Um homem de muitos misteres.

Elfrida beberricou o seu café. Já se esquecera do major Billicliffe e pensava agora na chegada de Carrie e Lucy.

já temos pouco tempo, não é? Tenho de ver se dou uma volta por aí para arranjar com que mobilar o sótão. Deve haver alguma loja com artigos em segunda-mão. Tentarei saber.

A quem perguntarás? . Ao homem do talho?

Ou ao jornaleiro?

Porque não ao cangalheiro?

A Mistress Snead, sem dúvida. Essa deve saber de certeza.

A fascinante conversa teria prosseguido indefinidamente, se não fosse interrompida pelo toque estridente da campainha da frente, o que fez com que Horace desse um pulo de susto e se sentasse no seu cesto a ladrar perdidamente.

Elfrida mandou-o calar, saiu da cozinha e desceu ao vestíbulo. O toque fora do carteiro, que deixara duas cartas no tapete. O que Elfrida considerou, mais uma vez, um bom presságio, porque ainda praticamente ninguém lhes escrevera desde a sua chegada.

Inclinou-se para pegar nas cartas, que depois levou consigo até junto de Oscar.

Uma é para ti, dactilografada e de aspecto formal, provavelmente do gerente do teu banco. E a outra é para mim.

Agora é a minha vez de ter ciúmes.

Não me parece que seja caso para isso. Tirou os óculos do bolso e colocou-os. Uma letra muito certinha e pontiaguda, à moda antiga.

Pegou numa faca, abriu o envelope e tirou a carta. Voltou a página afim de ver de quem era a assinatura e sorriu.

Oscar, é de Hector. Aquele velhinho simpático escreveu-nos. Sentou-se e abriu o papel azul espesso. É um cheque! Um cheque de quinhentas libras!

Oscar ficou de boca aberta.

Quinhentas libras? Tens a certeza?

Vê tu mesmo. Endossado a ti.

Oscar ficou a olhar para o cheque com ar ligeiramente estupefacto, e depois observou:

Talvez seja melhor veres a que se destina. Elfrida leu então, em voz alta:

Estimados Oscar e Elfrida.

Não escrevi antes porque queria dar a ambos tempo para se instalarem. Espero que tenham feito boa viagem e a casa estivesse em boas condições. Devo confessar que, depois de partirem, ainda pensei em escrever a Peter Kennedy, o pastor da igreja paroquial de Creagan. Sei que tu, Oscar, desejas preservar a tua privacidade e o anonimato para poderes conformar-te com a tragédia que sofreste, mas não pude deixar de me sentir preocupado contigo, e Peter é bom homem, um excelente amigo, e eu sabia que podia confiar que não iria comentar os teus problemas com ninguém. Era visita regular de Corrydale antes de eu entregar a propriedade a Hughie, e gostei muito da sua companhia e da sua perspicácia. Espero que se cheguem a conhecer e que tu estejas disposto a aceitar a atenção dele e a possível oferta de solidariedade. Conto que estas minhas iniciativas não te ofendam. Também me preocupa a possibilidade da casa estar insuficientemente mobilada e equipada. Como sabem, já não a vejo há anos, embora tenha providenciado, desde a partida dos Cochrane, para a sua manutenção. Como me sinto responsável por te ter convencido a sair do Hampshire para ires viver para Creagan, gostaria muito de patrocinar a aquisição de quaisquer extras que vocês achem que tornarão a vossa vida mais confortável. Assim, envio um cheque de quinhentas libras que, espero, seja suficiente para as vossas necessidades.

O tempo em Londres ainda está cinzento e frio. Saio pouco, mas vejo da minha janela. Espero que estejam os dois bem. Gostaria de uma carta ou um telefonema vosso para ficar sossegado. Vi no The Times que a Granja está à venda. Os rapazes não perderam tempo.

Um abraço para os dois, Hector

Elfrida dobrou a folha e voltou a metê-la no envelope.

Vou responder-lhe ainda hoje de manhã , declarou.

Está a ser muitíssimo generoso. E realmente não estamos a precisar de nada.

Ai isso é que estamos! contrapôs Elfrida firmemente.

O quê, por exemplo?

Uma torradeira nova que não queime o pão, expluda ou que me electrocute. Esta é do século passado. Além disso, precisamos de uma cama para Lucy e seria agradável ter cortinas na janela da escada.

Nunca reparei em nenhum desses pormenores observou Oscar, mostrando-se algo envergonhado.

Os homens nunca reparam.

Talvez possas comprar uma máquina de lavar loiça. Não?

Não quero nenhuma máquina de lavar loiça.

- Um microndas?

Também não quero nenhum microndas.

Que tal uma televisão?

Nunca vejo televisão. E tu?

Só os noticiários. E o Songs of Praise. E os programas sobre viagens.

Oscar, não achas que somos umas pessoas cheias de sorte por termos tão poucas necessidades?

Sem dúvida. Pegou no cheque e observou-o. Em mais de um aspecto. Segunda-feira irei ao Banco da Escócia depositar isto numa conta conjunta em nome de nós dois. Podes comprar mobília à vontade.

Mas o dinheiro não é para mim.

É para nós dois.

E o Banco da Escócia prestar-se-á a isso?

Já sou cliente deles desde rapaz. Não prevejo dificuldades.

Estás a ser demasiado optimista, Oscar. E não te esqueças das flores para Rose.

Não esquecerei.

O dia acabou por se revelar radiosamente límpido. O Sol vermelho ergueu-se no céu azul e não corria uma brisa. As senhoras que andavam às compras caminhavam cautelosamente pelos passeios, receosas de escorregar ou cair. Calçavam botas grossas e agasalhavam-se com chapéus e luvas de lã. O frio, porém, não as impedia de pararem para tagarelar, a respiração condensada em vapor que ficava a pairar por instantes enquanto falavam.

A igreja, que se erguia por trás do rendilhado negro de árvores despidas, refulgia, dourada, sob os raios solares. As gaivotas rodopiavam por cima do pináculo da torre e viam-se gralhas pousadas no cata-vento da cúpula. A geada cobrira a erva do velho cemitério, e os carros, vindos de quintas distantes, traziam um revestimento de neve. Na parte aberta do porta-bagagens de um deles aparecia a ponta de um pinheiro para a árvore de Natal.

Elfrida, depois de terminar rapidamente as suas tarefas domésticas, fazer camas, acender o fogo na lareira e trazer um cesto de lenha do barracão do quintal, sentou-se à janela da sala a observar toda aquela actividade sazonal. Oscar saíra, depois de gastar algum tempo e esforço a retirar o gelo do vidro da frente, afim do pára-brisas poder funcionar. Elfrida esperava que Rose Miller ficasse satisfeita em vê-lo e calculava que assim seria.

Voltou-se para a mesa, com o sol diáfano a aquecer-lhe as costas, e começou a escrever a Hector.

 

Casa da Quinta

9 de Dezembro

Estimado Hector

Que bom ter escrito. Os nossos agradecimentos, meus e de Oscar, pelo generoso presente. Foi muito bem-vindo por várias razões. Estamos com uma certa falta de objectos essenciais, embora nos tenhamos desenvencilhado bastante bem sem eles. Mas agora uma jovem prima minha, Carrie Sutton, vem cá passar o Natal e traz consigo a sobrinha, Lucy, que tem catorze anos, portanto será bom dar um aspecto um pouco mais festivo à casa e torná-la mais acolhedora. Precisamos realmente de uma torradeira nova, mas isso bastará, e também tenho de comprar alguma mobília para o quarto de Lucy (irá dormir no sótão!), de modo que o seu cheque veio mesmo a calhar.

Oscar está bem. Tem andado muito melancólico desde que chegámos e eu de vez em quando fico um pouco deprimida por vê-lo assim, sem saber se acabará por emergir de tão grande desgosto para prosseguir a sua vida. Ainda não quis ver nem falar com ninguém. Ontem, no entanto, foi dar um longo passeio com Horace, o meu cão, e ao pé do clube de golfe foi abordado por Peter Kennedy. Simpatizou muito com ele, disse que tinha um rosto bondoso. Convidado para tomar um chá no clube ainda entrou, mas assim que percebeu que Peter Kennedy era o pastor, ficou em pânico e fugiu.

Fiquei preocupadíssima ao saber do acontecido, mas o incidente fê-lo pensar e chegar à conclusão de que não pode continuar a fugir. Tanto que, esta manhã, meteu-se no carro e foi a Corrydale fazer uma visita a Rose Miller. É o primeiro passo que dá voluntariamente em direcção ao mundo dos outros; estou muito contente e convencida de que os Kennedy virão logo a seguir. Aconteça o que acontecer, Oscar não deve ser impelido, mas sim deixado à vontade para que avance ao seu próprio ritmo. Estamos realmente muito bem e os dias passam com tranquilidade. Esta terra é muito calma e eu levo Horace para grandes passeios à beira-mar e às vezes só voltamos depois do pôr-do-Sol. Não temos televisão, mas também não nos faz falta. Oscar trouxe o seu radiozinho e passamos o serão a jogar canasta e a ouvir a FM clássica. Foi uma longa viagem do Hampshire até aqui, e nós...

Estava tão atenta à sua carta, tão alheia às vozes que lhe chegavam da rua, mais abaixo, que não ouviu o portão de ferro abrir e fechar, nem os passos até à porta da frente. Quando a campainha soou, sobressaltou-se de tal maneira que deixou cair a caneta. No piso de baixo, Horace desatou, como de costume a ladrar em pânico. Levantou-se, saiu da sala e desceu apressadamente as escadas.

Oh, Horace, está calado!

Atravessou o vestíbulo e abriu a pesada porta, deixando entrar o sol brilhante e o frio penetrante, deparando com uma figura feminina desconhecida.

Não ligue ao cão.

Não tem importância.

A sua visita era uma mulher talvez perto dos quarenta anos, alta, magra e de aspecto maravilhosamente simples. Tinha o cabelo muito escuro, quase preto, cortado a direito pela altura dos ombros e com franja. Envergava uma Barbour muito usada por cima de uma camisola de lã vermelha comprida e calçava o que pareciam ser umas botas Doc Marten. Trazia um cachecol em tecido de lã escocesa ao pescoço, que fazia ressaltar-lhe o rosto lindamente estruturado e sem qualquer maquilhagem. Estava bronzeada, porém o frio daquela manhã desenhara-lhe rosáceas vermelhas nas bochechas. Os olhos eram profundos e escuros como breu. Numa mão trazia um saco de plástico cheio de compras, na outra um pequeno cesto rural contendo ovos.

Sorriu.

Olá. É Elfrida Phipps? Espero não estar a incomodá-la, mas eu sou Tabitha.

Elfrida não disfarçou o espanto que se lhe espelhou no rosto.

Sou Tabitha Kennedy. Mulher de Peter Kennedy.

Oh! Elfrida fez um esforço enorme para não parecer surpreendida além do razoável. Nunca na vida deparara com uma pessoa com tão pouco aspecto de ser mulher de um pastor. Que prazer em conhecê-la. Afastou-se da porta, mantendo-a aberta. Faça o favor de entrar.

Tabitha Kennedy, porém, hesitou.

Deve estar ocupada. Trouxe-lhe apenas uns ovos. Das minhas galinhas.

Não estou ocupada e ovos frescos são um verdadeiro pitéu. Entre, vou preparar-lhe uma chávena de café.

Tabitha entrou e Elfrida fechou a porta.

Importa-se de ir até à cozinha? perguntou, indicando o caminho. Porei a chaleira ao lume e depois iremos tomar o café lá para cima. Ou prefere antes chá?

Adoraria uma chávena de café. Estou gelada. Peter ficou com o carro, por isso tive de descer a colina a pé. O chão está tão gelado que pensei que não escapava de uma queda.

Foi atrás de Elfrida até à cozinha, pousou o cesto de ovos em cima da mesa e pendurou o saco nas costas de uma cadeira.

Oscar também levou o carro. Foi a Creagan visitar alguém chamado Rose Miller.

Oh, vai ser uma festa. Rose sempre adorou Oscar. Está sempre a falar nele. Sabe que nunca estive aqui? Sempre que vinha até esta casa era tudo muito formal, subia as escadas e ia logo para a sala de estar. Os Cochrane eram um velho casal engraçado, muito reservado. Pouco dados, como se diz, ao convívio. Eu e Peter éramos convidados, uma vez por ano, a vir tomar chá e a ter uma conversa educada. Era tudo um pouco difícil de suportar. Que tal se sentem aqui?

Elfrida enchera a chaleira e pusera-a ao lume, e naquele momento dispunha as chávenas e os pires num tabuleiro.

Optimamente. Tabitha olhou em redor.

Esta cozinha faz-me lembrar uma exposição num desses museus do Património Nacional. A minha avó tinha uma tal e qual assim. Não creio que os Cochrane fossem muito dados a electrodomésticos, mas se assim era, Mistress Cochrane certamente levou a maioria. Têm máquina de lavar louça?

Não, mas como nunca tive nenhuma, não me faz diferença.

E máquina de lavar roupa?

Há uma, muito velha, na copa. Leva horas, mas funciona. E a minha máquina de secar é a corda pendurada ao fundo do quintal.

Tem copa? Posso ver?

Com certeza.

É por esta porta? Cada vez melhor. Chão lajeado, tanque de cimento e tábuas de esfregar em madeira. Mas têm um frigorífico.

Que pouca falta me faz com este tempo.

Tabitha fechou a porta que dava para a copa, voltou para a cozinha e foi sentar-se numa cadeira junto da mesa.

Serve-se daquela sala de estar grande lá de cima?

Constantemente. Passo a vida a subir e descer escadas.

E quanto às divisões do rés-do-chão?

Uma delas é uma tenebrosa casa de jantar vitoriana. Montes de móveis pesados e escuros em mogno, cortinas de tecido felpudo e um piano vertical com suportes para velas. A outra divisão deve ter servido originariamente de escritório da propriedade. Não me parece que os Cochrane a tenham alguma vez utilizado. Ainda lá está uma velha secretária de tampo rolante e gavetas especiais para guardar as rendas. Receio que ainda não tenhamos aberto as portas de nenhuma dessas salas. Comemos aqui ou ao pé da lareira.

Muito mais simples.

E Oscar parece não se importar.

Ainda bem que Oscar não está. Uma das razões que me trouxe aqui foi pedir desculpa e agora já não precisarei de o fazer disse Tabitha.

Pedir desculpa? De quê?

Peter pediu-me que o fizesse. Acha que ontem à tarde foi demasiado metediço e bisbilhoteiro. Espera sinceramente não ter perturbado Oscar.

Tanto quanto sei, Oscar é que acha que devia pedir desculpa a peter. Não foi nada delicado ter-se vindo embora daquela maneira, mas entrou em pânico. Ficou cheio de remorsos. Percebeu que não se tinha portado nada bem.

Hector escreveu-nos a contar que a mulher e a filha lhe morreram num acidente de automóvel. Superar algo assim e depois continuar a viver leva muito tempo.

É o chamado luto.

Eu sei. Para si também não deve ter sido fácil. Para dizer a verdade, tem sido infernal.

Elfrida ouviu-se proferir aquelas palavras impulsivas e ficou espantada por elas lhe terem saído, porque nem sequer identificara, ou admitira, os momentos mais difíceis, nem mesmo a si mesma.

Penso que a frustração é o pior, pois não há absolutamente nada que uma pessoa possa fazer para ajudar. E depois há a impaciência. A seguir, vem o remorso derivado da impaciência. Tive de morder a língua em mais de uma ocasião. E há ainda outro aspecto, que é eu ser um animal bastante social. Não me refiro a festas constantes, mas antes a fazer amigos e a conhecer gente. Oscar tem-me obrigado a comportar com muita reserva. Se calhar, criei uma imagem de pessoa pretensiosa.

Estou certa de que não.

Mistress Snead tem sido a minha salvação. Temos grandes conversas à volta de uma chávena de chá.

Ainda bem que ela trabalha para si.

Hoje... hoje tenho a impressão de que os tempos de maior dificuldade já estão a ficar para trás. Espero que sim, para bem de Oscar. Ele é um amor de pessoa, não merece o que aconteceu. Talvez o ter ido visitar Rose Miller seja um passo em frente.

Nós estivemos sempre à disposição, Peter e eu, mas achámos que ambos precisavam de algum tempo. Por vezes, é difícil saber qual a altura apropriada.

Não se preocupe com isso, por favor.

Acha boa ideia Peter vir visitar Oscar? Podiam acertar as coisas entre eles.

Acho a ideia esplêndida, mas diga-lhe que telefone primeiro.

Assim farei.

O café estava pronto, o tabuleiro preparado. Elfrida pegou nele.

Subamos. Lá em cima é mais confortável. Foi à frente, seguida por Tabitha.

Sempre achei esta escada uma beleza. Dá uma bela impressão logo à entrada. Peter diz que as balaustradas são feitas de pinho do Báltico, trazido como lastro nos barcos da pesca do arenque.

Ao chegar ao patamar intermédio parou para olhar pela janela. No lado de lá, o quintal, ainda coberto de gelo e desolado pelo inverno que ia a meio, estendia-se pelo declive acima numa série de socalcos cobertos de erva, com um carreiro e pequenos lances de degraus pelo meio Mesmo ao cimo, havia uma fileira de pinheiros com ninhos de gralhas.

Já me tinha esquecido da extensão de terra que pertence a esta casa. Lá de fora não se consegue ver por causa do muro alto. Adoro um quintal murado. O velho Cochrane era um excelente jardineiro. Abastecia o Manse de alfaces gratuitas.

Oscar também gosta de jardinagem, mas até agora ainda só varreu umas folhas.

Na Primavera aparecem narcisos silvestres e os socalcos ficam roxos. E também há lilases.

Elfrida, carregada com o tabuleiro, continuou a subir. Atrás dela, Tabitha prosseguiu o seu comentário:

Não é só a sensação que transmite, impressiona verdadeiramente. Não se imagina tão grande...

O sol baixo entrava pela porta aberta da sala.

Sempre achei esta sala de estar uma das divisões mais bonitas da casa. Oh, olhe, deixaram-lhe ficar o candelabro. Deve ter vindo de Corrydale. Olhou em volta para as paredes nuas e reparou no pequeno quadro que Elfrida trouxera consigo de Dibton. Santo Deus, que lindo. Aproximou-se para o examinar mais de perto. Não estava aqui, pois não?

Não. É meu disse Elfrida, pousando o tabuleiro em cima da mesa junto da janela.

É um David Wilkie, de certeza. Elfrida ficou impressionada.

Sim, é. Já o tenho há anos. Levo-o sempre comigo para onde vou morar.

Como é que tamanha preciosidade foi parar às suas mãos?

Ofereceram-mo. Tabitha riu-se.

Alguém deve ter gostado muito de si.

Parece uma mancha num mata-borrão; demasiado pequeno para uma parede tão grande.

Mas é encantador.

Elfrida foi pegar fogo à lenha da lareira.

Será que precisamos? perguntou Tabitha. Está tudo tão quentinho.

É o que esta casa tem de melhor... uma caldeira a petróleo e aquecimento central. Quando vim para cá estava com imenso receio de que isto fosse um gelo, mas como vê estamos muito confortáveis. A caldeira também aquece a água, portanto, os banhos são escaldantes.

E estas casas vitorianas são sólidas, estão muito bem construídas. Não deixam entrar uma corrente de ar.

O fogo pegou e começou a crepitar. Saltaram pequenas chamas. Elfrida juntou-lhe um bocado de carvão e um toro.

Sentamo-nos ao pé da janela?

Óptimo. O sol está uma beleza.

Tabitha tirou o cachecol do pescoço e abriu o fecho do blusão, que despiu e atirou para cima de uma cadeira antes de se sentar na bancada da janela.

Costuma ficar aqui a ver quem passa? Já deve saber o suficiente sobre nós, os locais, para escrever um livro.

É realmente fascinante. Elfrida afastou para o lado a carta que começara a escrever a Hector. Vive cá há muito tempo?

Cerca de vinte anos. Casámos pouco antes de Peter vir para cá como pastor.

Que idade tinha?

Vinte. Tabitha fez uma careta. Alguns paroquianos não aprovaram nada, mas ao fim do dia já estava tudo bem. Os nossos dois filhos nasceram em Manse.

Que idade têm?

Rory, dezoito. Terminou o liceu. Os nossos dois rebentos têm frequentado o colégio local. Teve notas para entrar na Universidade de Durham, mas só começa no próximo ano. Não sei o que irá fazer para se ocupar neste intervalo. Peter diz que o que interessa é que o rapaz trabalhe ou estude. Clodagh tem doze e, sabe-se lá porquê, é doida por cavalos. Ainda não percebemos porque escolheu ela um passatempo tão dispendioso.

Podia antes ter optado pelo planador.

De repente começaram ambas a rir. Sabia bem estarem ali as duas a tagarelar, à volta de uma chávena de café, sobre os seus homens e filhos, como se fossem velhas conhecidas.

Ao olhar para Tabitha, ali sentada com a sua camisola de gola alta e o cabelo cortado à menina, Elfrida encheu-se de curiosidade.

Gosta de ser casada com um pastor?

Adoro estar casada com Peter. E não sou apenas a mulher do pastor, pois dou aulas de pintura no liceu. Sou uma professora qualificada, com todos os diplomas próprios. Cinco manhãs por semana.

Não me diga que é pintora...

Sim, pinto e desenho, mas também ensino trabalhos manuais, cerâmica e bordados. Todos os paninhos da igreja foram feitos pelas alunas mais velhas. Foi um projecto grandioso. E não há mãe em Creagan que não tenha uma jarra de flores, um tanto desequilibrada, para as suas begónias.

Eu fui actriz disse Elfrida.

Depois sentiu-se um pouco acanhada e desejou não ter deixado escapar a sua antiga profissão, não fosse estar a querer competir com o talento de Tabitha.

Tabitha, porém, mostrou-se surpreendida e encantada.

Não me diga! Se quer saber, até nem fico muito admirada. Estou mesmo a imaginá-la em palco. Era famosa?

Não, absolutamente nada. Mas tive sempre trabalho, por muito modesto que fosse.

Isso é o que importa, não é? Fazermos aquilo de que gostamos e i ainda por cima pagarem-nos por isso. É assim que eu também sinto. É excelente para o amor-próprio. Peter compreende. É uma das razões pelas quais gosto tanto dele. Estou ansiosa para que o conheça. Podia convidá-la para ir até a Manse, mas é melhor esperar que, primeiro, eles dois se entendam. Assim que isso acontecer, irão até lá. Telefonarei.

Gostaria imenso.

Que fazem no Natal?

Não devemos fazer nada de especial. Não creio que Oscar tenha vontade de o festejar. E eu compreendo, porque pode ser uma altura extremamente emotiva. Mas é complicado, já que no próximo sábado chega uma prima minha, que traz a sobrinha consigo. Já as adverti de que os festejos serão fracos, mas vêm na mesma.

Que idade tem ela?

Carrie tem trinta, mas a sobrinha, catorze. Não a conheço. Espero que não seja demasiado tímida. Ou demasiado vivaça, já agora. Espero... também espero que não se aborreça.

Há sempre tanto que fazer em Creagan no Natal que, sem dúvida, se divertirá imenso. As crianças da localidade reúnem-se...

Ela não as conhece.

Apresentá-la-emos a Rory e a Clodagh, e depois conhecerá os outros todos.

Elfrida não se sentia tão segura disso.

Eles não se importarão?

Importar? Porque se haveriam de importar?

Bem... uma criança estranha. De Londres.

Mais uma razão para a entreterem observou Tabitha.

De repente, Elfrida captou o lado severo da professora, a manter a disciplina, e da mulher do pastor, a criar os filhos segundo os verdadeiros princípios cristãos. Percebeu então que Tabitha, apesar da sua aparência boémia e dos modos juvenis, era uma pessoa diferenciada. O aumento do respeito fez com que Elfrida a apreciasse ainda mais.

Foi então que se lembrou.

Tenho de comprar alguma mobília. Estamos com uma certa escassez dela, pois a casa estava meio vazia, para ser alugada. Não há problema quanto ao quarto para Carrie, mas pensei em pôr Lucy no sótão. É lindo e luminoso, mas falta-lhe... Não se importa de lá ir comigo dar-lhe uma vista de olhos? Poderá ajudar-me a pensar no que hei-de arranjar.

Com certeza. Com todo o gosto. Tabitha terminara o café e puxou então a manga da camisola para cima, afim de ver as horas. Depois tenho de ir a correr. Peter tem uma reunião em Bucky hoje à noite e preciso de lhe dar uma sopa antes de sair.

Se não tiver tempo...

- Claro que tenho. Venha, mostre-me. Sou uma perita em decorações de interior.

O capital é curto.

Sou mulher de um pastor, portanto, isso não é novidade. Subiram as escadas até ao último piso, onde ficavam os sótãos. Um deles, sem janela, tinha três baús velhos, um manequim de modista e teias de aranha com fartura. O outro, com a sua clarabóia enorme e a baixada no tecto, tinha a enchê-lo unicamente a pálida luz do Inverno. Tabitha ficou encantada.

Que quarto encantador. Qualquer adolescente adoraria tê-lo só para si. Vai pôr alcatifa? É que as tábuas do soalho são lindas. E também tem um radiador, o que o tornará muito confortável. Claro que precisará de uma cama e, talvez, de uma cómoda com gavetas. E que tal uma televisão?

Não tenho nenhuma.

Pois é, mas os adolescentes gostam sempre de ver os seus programas. Rory tem uma velha, que já não utiliza; vou falar com ele sobre o assunto. E alguns candeeiros. E uma cortina para a clarabóia. Caso contrário, fica um bocado assustador.

Tenho algum dinheiro observou Elfrida , mandado por Hector, mas não muito. Pensei em ir a uma loja de mobílias em segunda mão...

Em Buckly há um mercado excelente.

Nunca fui a Buckly.

Eu levo-a. Encontra tudo muito mais em conta.

Camas?

Oh, camas maravilhosas. E lençóis, quadros, objets d'art, roupas terrivelmente antigas, guarda-fatos, carpetes. Na semana que vem. Uma tarde qualquer... pode ser terça-feira?

Elfrida, cuja agenda estava tristemente vazia há mais de um mês, concordou.

Podemos ir no seu carro? Peter deve precisar do nosso. Elfrida concordou de novo.

Vai ser muito divertido. Mal posso esperar. Consultou novamente o relógio de pulso. Agora tenho mesmo de voar ou Peter ficará furibundo.

Depois de Tabitha partir, Elfrida foi acabar a carta para Hector.

só chegámos às sete da noite do segundo dia. Esta missiva está a levar muito tempo a escrever porque fui interrompida pela

chegada de Tabitha Kennedy, que veio fazer uma visita. Tenho a certeza de que dentro em breve Peter e Oscar esclarecerão o mal-entendido. Tabitha é adorável e vai-me levar a um mercado em Buckly para eu comprar coisas para a casa. Mais uma vez, obrigada pela sua simpatia e generosidade. Espero que fique bem e que o tempo melhore para poder sair e dar umas voltinhas. Um grande abraço de nós dois.

Elfrida Releu a carta, meteu-a num envelope, escreveu a morada e colou-lhe o selo. Depois, desceu ao piso de baixo e inspeccionou rapidamente o conteúdo do frigorífico. Concluiu que só precisava de uns legumes e talvez, de alguma fruta. Horace dormia no seu cesto e não desejava claramente, ser incomodado, de modo que deixou-o ali e, depois de se agasalhar, saiu porta fora. Não a fechou à chave, já aprendera que, em Creagan, ninguém o fazia.

O vento estava enregelante, mas o sol baixo derretera já parte do gelo e o pavimento apresentava-se molhado e escuro. Ainda assim, Elfrida caminhou com precaução como qualquer das outras senhoras que andavam às compras, pois naquela altura uma perna partida fazia-lhe tanta falta como um buraco na cabeça.

Meteu a carta no marco de correio, em seguida atravessou a rua em direcção ao Frutas e Legumes, de Arthur Snead. Por acaso, encontrou a pequena loja vazia. Artur Snead estava apoiado ao balcão a ler o resultado das corridas. Ao ver Elfrida endireitou-se e dobrou o jornal, pondo-o de lado.

Viva, Mistress Phipps. Como vai nesta bela manhã?

Arthur Snead era a outra metade de Mrs. Snead, que o tratava sempre por Artur. Os Snead tinham-se revelado um conforto para Elfrida quando esta chegara a Creagan, não apenas por Mrs. Snead fazer a limpeza da Casa da Quinta e ser uma mina de informações utilíssima, mas também porque eram cockneys e Elfrida, depois de ter vivido em Londres grande parte da sua vida, adorava o sotaque familiar das suas vozes que, de certo modo, a ajudara a sentir-se um pouco menos isolada. Os Snead haviam chegado a Creagan cinco anos antes, vindos de Hackney. Elfrida ouvira o relato da inusitada mudança durante várias chávenas de chá com Mrs. Snead. Contara que Artur se lançara à vida com um pequeno carrinho de mão na North End Road, tendo depois conseguido comprar, finalmente, uma pequena loja. Depois, as pessoas da Câmara tinham-no ido chatear e ele ficara tão farto que, ao ver isto anunciado numa revista de jardinagem - ele comprava sempre essa revista por causa do seu bocado de terra, onde cultivava umas ervilhas deliciosas - perguntara a Mrs. Snead, «Que tal achas isto, minha velha?» e ela, sempre leal, respondera, «Okay, Artur», de modo que se tinham posto a caminho, comprado a loja e o pequeno apartamento por cima sem olhar para trás. A clientela era boa gente e ele entrara no clube de bowling e viciara-se na pesca marítima. Quanto a Mrs. Snead, era agora membro da paróquia, participava nas passeatas e, de vez em quando, cantava no coro.

Respeitados e aceites pela comunidade local, continuavam a ser conhecidos, sem malícia, pelos «Colonos Brancos».

É melhor ter cuidado, minha querida, ainda esta manhã vi o seu homem a comprar crisântemos para outra senhora.

Eu sei. Chama-se Rose Miller e estou a esforçar-me por não sentir ciúmes. Tem por aí alguns legumes?

Uns brócolos que são uma maravilha. Chegaram esta manhã. A camioneta teve um bocado de dificuldade em subir a encosta. Dizem que por lá a neve chegou ao metro. E há batatas de Chipre.

Elfrida comprou os brócolos e as batatas, umas tangerinas num saco de rede e duas toranjas de ar deslavado que Arthur lhe vendeu por metade do preço.

Vai já para casa?

Não. Elfrida resolvera-se. Vou comprar uma torradeira nova. A de lá de casa está um perigo.

Então deixe aqui os sacos, que vou-lhos pôr em casa. É só atravessar a rua e metê-los atrás da porta.

É muito simpático da sua parte. De facto, porque é que as batatas hão-de ser tão pesadas? Obrigado, Arthur.

Assim, liberta de pesos, seguiu pela rua fora, em direcção aos Electrodomésticos William G. Croft. Ao entrar, a porta emitiu um sinal sonoro e Mr. Croft, com o seu fato-macaco em caqui, saiu da porta aberta da divisão dos fundos, onde passava a maior parte do seu tempo a consertar aspiradores e televisores. Reconheceu-a imediatamente da visita anterior.

Bons dias, Mistress Phipps, cá a temos de novo.

É verdade. Venho por causa das torradeiras. Mas desta vez comprarei uma.

A outra explodiu?

Não. Mas pode acontecer a qualquer momento.

Qual foi o modelo que preferiu?

O mais barato. Mas acho que gostaria de algo um pouco mais... moderno.

Tenho precisamente o que deseja.

Foi buscar a dita, que ainda estava dentro da sua caixa, e tirou-a para cima do balcão, afim de Elfrida a examinar. Era extremamente elegante, de formas aerodinâmicas e em tom de azul-claro. O lojista mostrou-lhe como funcionava, o que não era nada complicado, e como, pelo simples girar de um botão, podia obter torradas mais claras ou mais escuras.

E tem um ano de garantia - finalizou Mr. Croft, como se isso a tornasse irresistível. O que, evidentemente, foi o caso.

Elfrida disse que ficava com ela.

O único problema é não dispor de dinheiro suficiente para a pagar já. Não se importa de ma guardar até eu a vir buscar, amanhã ou outro dia?

Não é necessário, Mistress Phipps. A senhora leva-a consigo agora e paga quando passar por cá na próxima vez.

Tem a certeza?

Não fico com medo de que fuja com ela.

Elfrida levou a torradeira para casa, ligou-a e fez duas belas torradas para si, que barrou com Marmite, comendo-as deliciada. Atirou a velha torradeira para a lata do lixo. Nesse preciso instante ouviu a porta da entrada abrir e fechar, percebendo que Oscar acabara de chegar Ainda a mastigar, desceu ao seu encontro, no vestíbulo.

Voltaste. Como estava Rose Miller?

Em esplêndida forma. Tirou o chapéu e pendurou-o no pilar do corrimão das escadas. Conversámos imenso e tomámos um cálice de licor de bagas de sabugueiro.

Vejo que dispensaram o chá.

Porque estás a comer torradas?

Comprei uma torradeira nova. Vem ver. Voltou à cozinha com ele no seu encalço. Não é uma beleza? Disseste-me que fosse às compras e eu assim fiz. Só ainda não a paguei. Disse que ia lá amanhã.

Vou contigo.

Despiu o casacão, ajeitou uma cadeira e sentou-se. Elfrida observou-o. Para um homem que acabara de beberricar licor com uma velha admiradora, tinha um ar cansado e preocupado. Talvez o licor fosse um pouco forte de mais para as onze da manhã.

Estás bem, Oscar?

Sim, estou bem. Segui o teu conselho e passei pelo major Billicliffe.

Ah, fizeste bem.

Pois, mas olha que não estou nada satisfeito.

Porque não? Que aconteceu? Oscar contou-lhe.

A casinha de Rose, em Creagan, erguia-se na pequena estrada que se estendia por trás da casa do antigo feitor, por onde ele passara para fazer a sua visita. Fica para outro dia, disse Oscar de si para si. Billicliffe pode esperar até outro dia. Mas depois, estimulado pelo licor e a caminho de casa, ouvira a cadela a uivar. O som parecia um pedido de socorro e Oscar ficara imediatamente preocupado. Não pudera deixar de passar por lá. Enveredara com o carro pelo caminho que ia dar à pequena casa de pedra e ouvira a cadela a uivar mais uma vez. Elfrida escutava-o consternada, já receosa do fim da história.

Que foi que fizeste?

Saí do carro e toquei à campainha. Ninguém respondeu, com excepção da cadela, que parou de uivar e começou a ladrar. Depois, experimentei a porta e vi que estava aberta. Entrei e chamei, mas não houve resposta.

Se calhar, esqueceu-se de colocar as próteses auriculares.

Não encontrei ninguém lá dentro. E a cadela estava fechada no mesmo sítio das traseiras, a atirar-se à porta tal como na noite em que lá passámos.

Não a soltaste?

Não nessa altura. Tentei a outra divisão do piso térreo. Aí o caos ainda era maior do que na sala de estar. Camisas ressequidas penduradas nas costas das cadeiras, papéis e caixas velhas, tudo empilhado em cima de uma mesa, tacos de golfe espalhados pelo chão. Mas havia uma escada, de modo que resolvi subir, abri uma porta que encontrei ao chegar ao piso de cima e espreitei. Foi então que deparei com o velhote, metido na cama.

Estava morto?

Por um momento pensei que sim, mas depois ele pronunciou o meu nome e mexeu-se.

Graças a Deus!

Não estava morto, mas tinha um ar cadavérico e via-se que não se encontrava nada bem. No entanto, ao dar-se conta de que chegara uma visita, tentara recobrar as forças, soerguera-se sobre as almofadas e pusera uma expressão corajosa. Quando Oscar puxou de uma cadeira, se sentou a seu lado e lhe perguntou qual era o problema, o major Billicliffe explicou. Havia um mês ou dois que não se sentia muito bem, umas dores de estômago valentes e falta de apetite. Na véspera, a mulher que lhe fazia as limpezas aparecera e ficara tão preocupada com a sua aparência que telefonara ao Dr. Sinclair, um médico que vivia em Creagan. Para abreviar, o Dr. Sinclair abandonara a sua consulta da manhã e fora imediatamente a Corrydale onde, depois de examinar o major Billicliffe minuciosamente, lhe dissera que era melhor ir uns dias para o hospital de Inverness, onde faria alguns exames que permitiriam determinar a origem dos seus males. Deixara sedativos e um analgésico, e a enfermeira local passaria por lá todos os dias.

Quando é que ele tem de ir para Inverness?

Segunda-feira. O doutor Sinclair já lhe reservou uma cama.

E como é que ele vai para lá?

Claro que aí é que estava o problema. Uma ambulância percorreria provavelmente a longa distância que mediava entre Inverness e Corrydale para ir buscar o velhote, mas se as estradas estivessem intransitáveis por causa da neve, certamente teria de se recorrer a um helicóptero. Foi nesse ponto que a voz débil faltara ao major Billicliffe e Oscar percebera que o velho militar estava muito assustado não apenas com a ideia de o levarem de helicóptero, mas também com a perspectiva do hospital, exames, médicos, doença, sofrimento e uma possível operação.

Fora nesta conjuntura que ele começara a sentir-se responsável. parecia não haver mais ninguém e sugerira ao major ser ele, Oscar a levá-lo de carro ao hospital e a ver se ficava convenientemente instalado.

O major Billicliffe quase chorara ao ouvir o oferecimento.

Mas porquê? perguntara, procurando um lenço enxovalhado para limpar as suas lágrimas débeis de inválido. Porque haveria o senhor de se preocupar com um velho estúpido como eu?

Oscar respondera-lhe:

Porque teria muito gosto nisso. Porque o senhor faz parte de Corrydale. Por causa da minha avó e de Hector. O major BillicliffJ não se mostrara convencido. Oscar finalizara: Porque é meu amigo!

Elfrida estava muito emocionada.

És um amor de pessoa. E foi exactamente o que devias ter feito! Se estiveres presente, ele não terá tanto medo.

Só espero que não fiquemos retidos no meio de uma tempestade de neve.

Oh, quando lá chegares, é só atravessar aquela ponte. E a cadela?

Desci ao andar de baixo e fui soltá-la no jardim. Estava aflita por urinar. E não se mostrou nada feroz; como ele disse, era apenas uma labrador muito querida, a precisar de festas. A propósito, chama-se Brandy.

Interessante.

Depois de resolver o seu pequeno problema, meti-a no carro e levei-a a Rose Miller, a quem contei o sucedido. Ficou preocupada por não fazer ideia do que se passava. O major passara por algumas adversidades, mas ela não pudera ir até lá a casa para ver se podia fazer alguma coisa. Quando me vim embora, já se estava a preparar para lá ir fazer umas limpezas e cozinhar-lhe alguma coisa. Aos oitenta e três anos, nada lhe agrada mais do que um desafio. E o que é engraçado é que parece ter uma grande estima pelo velho Billicliffe. Estava sempre a dizer, «Perde-se com o uísque, mas é um cavalheiro muito bom e delicado, e demasiado orgulhoso para pedir ajuda.»

E quanto à pobre cadela?

Rose vai tomar providências para que Charlie, o sobrinho, cuide dela até Billicliffe voltar do hospital. Ele trabalha na propriedade, para o pessoal do hotel, e tem um abrigo onde a cadela pode dormir. Charlie dar-lhe-á comida e levá-la-á consigo.

Parece que trataste de tudo.

Penso que ele irá ficar bom. São só dois dias, e depois estará no hospital.

Oh, Oscar, a manhã que tu tiveste!

Mas ainda bem que fui. Sorriu. Portanto, foi isto. E tu? Que mais fizeste, além de comprares uma torradeira?

Tive uma manhã muito agradável. Melhor que a tua! Escrevi a Hector e Tabitha Kennedy veio visitar-me. Tenho imenso que te contar.

Então contas-me tudo durante o almoço. Façamos uma extravagância. Celebremos a nossa consciência tranquila e a generosidade de Hector. Vamos até ao pub, comemos uma sanduíche, ou se calhar uma tarte, eu desafio-te para um gim tónico e beberemos a... nós?

Almoço. Fora.

Falas a sério?

Claro.

Oh, Oscar.

Elfrida sentiu-se quase à beira das lágrimas, por um momento ridículo, mas em vez disso deu a volta à mesa, rodeou-o com os braços e abraçou-o.

Estava a ser um belo dia.

 

Oscar

Depois de um pequeno-almoço tardio, Oscar, agasalhado como de costume contra o frio, descera a rua até ao jornaleiro para ir buscar a sua resma semanal de jornais dominicais. A pequena vila estava despovoada e silenciosa: ainda não havia carros àquela hora matutina e o único som audível era o das gaivotas e das gralhas, nas suas eternas movimentações, a pairar, rodopiar e pousar na torre da igreja. Estava mais um dia brilhante, sem nuvens nem o menor sopro de vento. Tudo estava petrificado pelo gelo, e os seus passos soavam no pavimento deserto. Sentia-se tão isolado como um explorador do Árctico. Ao regressar, encontrou Elfrida e Horace de partida para um bom e prolongado passeio à beira-mar. Elfrida levava um gorro grosso de lã que fazia lembrar um abafador de bule de chá, bem puxado sobre as orelhas, e o seu casacão de cobertor, franjado nas pontas.

Ela ainda lhe propôs que os acompanhasse, mas Oscar recusou o convite, porque queria sentar-se a ler a secção de arte do jornal, inteirando-se de tudo o que estava a acontecer em Londres. Exposições, óperas e concertos. Gostava, igualmente, de ler os artigos que tratavam de jardinagem. De momento, as notícias do mundo ficavam para segundo plano.

Quanto tempo demoras? perguntou-lhe ele.

Não faço ideia, mas voltarei para casa a tempo de te grelhar a costeleta. E meti um pudim de arroz no forno.

Oscar gostava de pudim de arroz. Elfrida já lhe fizera um certa vez e ficara esplêndido, cremoso, saboroso e a saber ligeiramente a limão.

Para que lado é que vais? quis ele saber.

Ao longo das dunas. Porquê?

Para ir à tua procura com um destacamento, se não estiveres de volta ao anoitecer.

Já te prometi que terei o máximo cuidado.

Isso mesmo.

Separaram-se. Oscar entrou em casa e subiu até à sua magnífica sala de estar. Elfrida preparara a lenha para a fogueira, de modo que acendeu-a, depois voltou novamente ao piso de baixo e foi ao barracão encher um segundo cesto de madeira. Para o fogo arder o dia inteiro, um cesto não bastava até à hora de deitar. Com as chamas a arder agradavelmente, seleccionou a secção de Artes do jornal e instalou-se comodamente a lê-la.

Foi perturbado pelos sinos da igreja. O relógio da mesma disse-lhe que eram dez e meia da manhã. Deixou cair o jornal, levantou-se e foi até ao assento da janela, onde ficou sentado, meio de esguelha, a olhar para a rua. Achava fascinante ver, aos domingos de manhã, como a vila vazia se começava a encher a pouco e pouco.

A igreja ganhava vida, preparando-se para a afluência dominical. Os portões da frente tinham sido abertos e sacristãos, anciãos, ou lá como lhes chamavam, envergando fatos escuros ou kills, passavam por eles, desaparecendo no interior. Oscar reconheceu Mister W. G. Croft, que vendera a nova torradeira a Elfrida. De repente chegaram-lhe os sons, embora abafados pelas grossas paredes de pedra, do órgão. «Que o Rebanho Paste Tranquilamente». O som era atenuado pelas espessas paredes de pedra, mas o ouvido profissional de Oscar identificou de imediato a qualidade do instrumento e o talento de quem o tocava. Era muito frequente, nas igrejas rurais, os organistas terem de fazer o melhor que podiam com equipamentos antigos e gastos, um coro de vozes desafinadas, sendo ainda obrigados, enquanto pedalavam, a cantar em voz bem alta para dar à congregação alguma ideia da melodia.

No início, Oscar achara um pouco desconcertante ter a igreja tão próxima, uma recordação constante de tudo o que perdera. Naquele momento, ali sentado, percebeu que só precisava de atravessar a rua para ser arrastado para o meio daquela gente e, qual nadador apanhado numa corrente, ser sugado para dentro daquelas portas imponentes, indo parar à nave sublime.

As janelas da igreja eram altas e arqueadas, em estilo gótico. Do lado de fora, as cores dos vitrais das janelas revelavam-se ténues, mas ele sabia que, para apreciar a sua magnífica beleza, era preciso vê-las do interior, com a luz do dia a jorrar através das cores e a traçar losangos de rubi, safira e esmeralda nas lajes gastas.

Talvez aquilo fosse simbólico. Talvez, isolado da igreja, encontrasse outros deleites, prazeres e confortos que, no estado de espírito em que se encontrava naquele momento, negasse a si próprio deliberadamente.

Era uma suposição interessante, ainda que perturbadora, sobre a qual não tinha vontade de reflectir. Afastou-se da janela e voltou para junto da lareira e do seu jornal. Mas quando a congregação, que estava na igreja do outro lado da rua, se levantou para cantar o seu primeiro hino, ele baixou o jornal e escutou, olhando fixamente para as chamas.

Escutai, uma voz forte soa,

Cristo está perto, parece dizer.

Afastai os sonhos sombrios

Vós que sois filhos do dia.

Um belo e antigo hino clássico do Advento. Lembrou-se de o ensaiar com o coro da escola onde leccionara, implorando-lhes que cantassem como se acreditassem verdadeiramente na sua mensagem de esperança.

«Tenho de falar com Peter Kennedy», pensou.

O domingo, no entanto, era o dia mais ocupado da semana de um pastor. Talvez no dia seguinte. Ou no outro.

Entretanto... colocou os óculos e esforçou-se por se concentrar no Sunday Times e numa erudita crítica sobre a realização de Fidelio, no Covent Garden.

Segunda-feira era um dos dias de Mrs. Snead. O outro era a terça. Chegou às nove em ponto, estavam Elfrida e Oscar a acabar de tomar o pequeno-almoço, e anunciou a sua entrada pelo bater da porta das traseiras. Depois fez uma pausa na copa, onde se livrou do anoraque, do lenço da cabeça e das botas, pendurando a roupa no seu gancho do costume. Fazia-se sempre acompanhar de um saco de plástico às flores, onde guardava a sua fatiota de trabalho: um avental e um par de sapatos de ténis. Oscar e Elfrida aguardaram. Então, a porta abriu-se e bangl Ali estava ela.

Bom dia a todos.

«Uma entrada», pensou Oscar «que faria o orgulho de qualquer actriz.»

Bom dia, Mistress Snead.

Caramba, que vento frio! Esfregando as mãos uma na outra para restabelecer a circulação, Mrs. Snead fechou a porta atrás de si com um pontapé. Parece que atravessa uma pessoa como uma faca.

Elfrida pousou a sua chávena de café.

Tome um chá.

Não me importava nada, antes de começar. A água está a ferver, não está? Reparou na torradeira nova. Ena, vejam só o que está aqui! Andou nas compras, hem? Já não era sem tempo; a outra já estava como havia de ir. Que foi que lhe fez? Foi para o caixote do lixo, espero.

Procurou uma caneca, uma saqueta de chá e um pacote de leite. Feito o seu chá, puxou da cadeira que estava à mão e sentou-se junto deles.

Que é que se está a passar com o major Billicliffe? Ficaram ambos a olhar para ela. Oscar observou então:

As notícias viajam depressa.

O Charlie Miller foi ao Artur ontem à tarde comprar uma couve. Ele é que lhe contou. Disse que tem de cuidar da cadela. E que o velho vai para o hospital de Inverness. Espero que não seja nada de grave.

Também esperamos que não, Mister Snead. E Oscar é que vai levá-lo até lá.

Foi mais ou menos isso o que Charlie disse ao Artur. Fitou Oscar. Está disposto a isso, Mister Blundell? Ainda é um bom esticão.

Acho que não terei problemas, Mistress Snead.

Pelo menos não neva. A que horas pensam partir?

Assim que acabar de tomar o meu pequeno-almoço.

Tem telemóvel, não tem? Devia ter um.

Não, não tenho, mas não haverá problema.

Bom, esperemos que sim, seja como for. Não vale a pena ser pessimista. Agora, antes que me esqueça, Artur manda perguntar se querem uma árvore de Natal, para ficar reservada.

Uma árvore de Natal? Elfrida mostrou-se hesitante. Bem... Não sei.

Têm de ter uma árvore. Sem ela não é Natal.

Sim. Talvez. Mas pensámos em não ter essa preocupação.

Uma árvore de Natal não é nenhuma preocupação. É um divertimento. Decorá-la e isso tudo.

Elfrida apelou a Oscar.

Que achas?

Oscar achou que era tempo de acabar com o sofrimento da amiga.

Fez muito bem em perguntar, Mistress Snead, mas a nossa árvore de Natal virá de Corrydale.

Elfrida ficou de boca aberta. E, pela primeira vez na vida, sentiu-se furiosa com Oscar.

A nossa vem de Corrydale? Porque não me contaste? Eu aqui a dizer a Mistress Snead que não queremos árvore nenhuma e agora é que me contas que reservaste uma? És impossível!

Desculpa.

Quando é que organizaste isso tudo?

No sábado, quando fui visitar Rose. Contei-te que Charlie trabalha nos jardins lá da zona. Têm uma plantação de árvores de Natal e Rose disse que ele nos escolheria uma bem bonita.

Devias ter-me dito.

Tinha tantas outras coisas para te contar, que me esqueci. Achei que seria simpático para Carrie e Lucy.

Elfrida deitou imediatamente a fúria para trás das costas.

Foi uma ideia simpática. Quando é que a trazem?

Temos de telefonar a Charlie e depois ir buscá-la. Naquela altura, já Mrs. Snead estava de orelhas arrebitadas.

Era uma mulher pequena e magra, com o cabelo grisalho fortemente encaracolado por uma permanente, que andava sempre com uns excêntricos brincos pendentes. Ali sentada, de cabeça à banda e olhinhos atentos aos quais nada escapava, fazia lembrar a Oscar um pardal descarado.

Vão ter visitas, vão?

-Ainda não tive oportunidade de lhe dizer, Mistress Snead, mas uma prima minha vem cá passar o Natal. Traz a sobrinha, Lucy, que tem catorze anos.

Mrs. Snead ficou francamente encantada.

Que bom. Ter gente nova cá em casa vai animar-vos. Quando é que chegam? E aonde é que quer que durmam? Teremos de limpar e encerar os quartos.

Pensei em pôr Lucy lá em cima no sótão.

Mas não tem lá móvel absolutamente nenhum...

Depois de amanhã já terei. Tabitha Kennedy vai comigo ao mercado de Buckly. Diz que tem de tudo.

Mrs. Snead fungou.

Não é nada novo advertiu. Tudo em segunda mão.

Tenho a certeza de que servirá perfeitamente.

Pensei que a senhora tencionasse montar uma bela mobília nova. Estava nitidamente desiludida com a falta de gosto de Elfrida. Vi uma em Inverness quando lá fui pela última vez. Era linda. Toda folheada a nogueira, com manípulos em metal dourado. E a cama tinha uma cabeceira e uns folhos em cetim cor de pêssego.

Devia ser muito bonita, Mistress Snead, mas um pouco luxuosa de mais. Além disso, não tenho vontade de guiar até Inverness.

Mrs. Snead ponderou na nova situação doméstica e beberricou o seu chá.

Há pouca fartura de roupa de cama continuou. Certamente não quer comprá-la em segunda-mão. A ideia de me servir de um cobertor usado nunca me agradou. Em Buckly há um vendedor de tecidos; não tem nada de especial em roupas de vestir, mas tem muitos lençóis e atoalhados. Podia pedir a Mistress Kennedy para lá dar um pulo consigo.

Boa ideia.

Oh, bem. Mrs. Snead acabou de beber o seu chá e, pondo-se lestamente de pé, foi despejar o que ficara no fundo da sua chávena no lava-loiça. Aqui sentada na conversa não chego a lado nenhum. Por onde quer que comece, Mistress Phipps?

Vamos até ao sótão. É preciso varrê-lo, esfregá-lo e limpar a clarabóia. Assim, quando a mobília chegar, pode ser imediatamente levada para cima e colocada no seu lugar.

Quem é que vai fazer esse carrego, posso saber? Mrs. Snead sabia mostrar-se muito protectora e inabalável. Nem a senhora nem Mister Blundell, espero. Ainda arranjam umas hérnias.

Contratarei um transporte que tenha pessoal de mudanças.

Se quiser, Artur trata-lhe do assunto.

É muita gentileza vossa.

E tem muito jeito com a chave de parafusos, isso lhe garanto eu. Dito isto, Mrs. Snead muniu-se de vassouras, espanadores e a sua lata de cera para o chão e subiu ao sótão. Pouco depois, ouvia-se o barulho do velho aspirador Hoover, acompanhado pela voz de Mrs. Snead que cantarolava, «I want to be Bobby's girl». Elfrida reprimiu uma risada. Oscar observou:

Mistress Snead não só nos limpa o pó como traz consigo uma canção que me transporta ao passado. É uma mulher realmente notável.

Que recordações é que a cantoria dela evoca em ti, Oscar?

Salas de estudo no colégio para rapazes, cheiro a suor dos sapatos de ginástica e concertos com música em altos berros.

Não me parece nada romântico.

Eu era um professor solteiro. Não tinha inclinação para romances. Consultou o relógio. Elfrida, tenho de ir andando.

Tem cuidado contigo, está bem?

Esforçar-me-ei por te fazer a vontade.

Não vem ao caso, mas acho que és um santo.

Hei-de pedir a Mistress Snead que me dê lustro à auréola.

Oscar...

Que foi?

Boa sorte.

Nessa noite, o vento virou para leste. Oscar acordou às primeiras horas da manhã com os assobios e os silvos de uma borrasca iminente e o tamborilar da chuva nos vidros das janelas. Ficou acordado durante muito tempo, a pensar em Godfrey Billicliffe. Ao menos sabia o seu primeiro nome, ficara a conhecê-lo ao ajudar a irmã da recepção a preencher os incontáveis formulários, antes de deixar o velho enfermo entregue aos seus cuidados.

A missão não fora tão difícil como receara. O percurso até Inverness decorrera sem incidentes e Billicliffe, encorajado pelas atenções de que era alvo, falou sem parar durante todo o caminho. Oscar ficara a saber muito sobre a sua vida: a sua carreira no exército; a sua passagem pela Alemanha com o Exército britânico do Reno; como conhecera a sua futura mulher em Osnabriick; o seu casamento em Colchester; o facto de nunca terem tido filhos. Oscar, ao volante do seu carro, ficou grato por não ter de fazer grandes observações àquela torrente de recordações. A única coisa que tinha de fazer, de vez em quando, era uma concordância casual ou um movimento afirmativo de cabeça, após o que Godfrey Billicliffe continuava.

Só depois de acelerarem pela auto-estrada que passava pela Black Isle, e Inverness aparecer ao longe, do outro lado da água, é que o major Billicliffe se calou. Por instantes, Oscar pensou que tivesse adormecido, mas ao olhar de relance, viu que não. Talvez fosse simplesmente a matutar. Passado algum tempo, recomeçou a falar, embora agora já não fosse do passado, mas sim do presente e do futuro.

Venhu calado a pensar, Oscar...

Sobre o quê?

No que irá acontecer... quando for desta para melhor.

Mas o major não vai desta para melhor assegurou-lhe Oscar, esperando estar a ser convicto.

Nunca se sabe... Não é como quando se é jovem... Tenho de estar preparado. Pronto para todas as contingências. Aprendi isto no exército. Preparar para o pior e esperar pelo melhor. Nova pausa prolongada. Gostaria de saber... claro que é consigo, claro... se concordaria em ser meu executor. Ficaria descansado... Mãos capazes...

Não sei bem se as minhas mãos são capazes.

Disparate. Sobrinho de Hector McLellan. Não que o filho dele fosse grande coisa... mas o senhor... é de outra cepa. Os amigos morreram todos. Pensei que pudesse... Gostaria muito...

Oscar não suportava as frases por terminar do major. Disse então, o mais calmamente que pôde:

Se quiser. Se isso o tranquiliza, serei seu executor. Mas...

Esplêndido. Então está combinado. Direi ao meu advogado. Boa pessoa. Ele é que me tratou de tudo quando comprei a minha casa à Câmara de Corrydale. Excelente pescador.

Ele tem nome?

O major Billicliffe, ao ouvir a inesperada pergunta de Oscar, emitiu um ronco que, provavelmente, pretendia ser uma gargalhada.

Claro que tem nome. Chama-se Murdo McKenzie. Da firma McKenzie & Stout. South Street, Inverness.

Murdo McKenzie.

Tenho de o avisar de que o senhor é o meu executor. Depois de me instalar... telefono-lhe... Eles devem ter telefone... não é? finalizou em tom duvidoso.

É claro. Tenho a certeza de que a enfermeira lhe levará um telefone para a mesinha-de-cabeceira.

É um bocado diferente dos velhos tempos observou o major Billicliffe, que em tempos passara uma temporada no hospital militar em Scutari. Rondas dos oficiais médicos e arrastadeiras. E uma matrona que parecia um sargento. Nessa altura não havia telefones.

As recordações submergiram-no e só voltou a falar quando chegaram ao seu destino.

O hospital era o Royal Western. Oscar encontrou-o sem grande dificuldade e, assim que chegaram, tiraram-lhe o problema das mãos. Só precisou de acompanhar o major Billicliffe até ao lugar onde ficaria. Um porteiro apareceu com uma cadeira de rodas e Oscar foi ao seu lado, carregando a mala consigo: uma peça de equipamento pesadíssima e de aspecto gasto, que parecia feita de pele de elefante. Subiram num elevador enorme e depois percorreram corredores intermináveis, forrados a linóleo encerado, até chegarem, finalmente, à Enfermaria Catorze. A irmã estava pronta para proceder à admissão, munida da sua prancheta e dos seus questionários. Tudo correu bem até se chegar ao parente mais próximo.

- O seu parente mais próximo, major Billicliffe. O velho major ficou repentinamente confuso.

- Como disse?

- Parente mais próximo. Sabe, mulher, filhos, irmãos ou irmãs. O velhote sacudiu a cabeça.

- Não tenho ninguém. Não tenho ninguém.

- Ora, deixe-se disso. Deve ter alguém.

Oscar não foi capaz de suportar a cena por mais tempo.

- Eu - disse firmemente. - Eu sou o parente mais próximo do major Billicliffe. Oscar Blundell. Pode tomar nota. Moro na Casa da Quinta. Em Creagan.

A irmã assim fez.

- Tem telefone? Oscar deu-lhe o número.

Por fim, tudo ficou escrito, registado e assinado. Chegou a altura de Oscar se retirar. Despediu-se.

- Poderá cá voltar?

- com certeza. Desde que não fique preso na neve.

- Obrigado por me ter trazido. Fico-lhe grato.

- Não tem de quê.

Afastou-se então do velho e da sua mala, dizendo a si mesmo que a culpa não era sua. Não havia razão para se sentir como um traidor.

Não podia ter feito melhor. Mais tarde, se não recebessem notícias do inválido, ele e Elfrida percorreriam mais uma vez a longa distância e iriam visitar Godfrey Billicliffe. Ninguém melhor do que Elfrida para o animar. Provavelmente levar-lhe-ia uvas.

Uma rajada de vento atingiu a casa. Oscar virou-se nas almofadas e fechou os olhos, começando de imediato a pensar em Francesca. Era frequente isso acontecer-lhe nas horas sombrias de vigília, nas noites agitadas, e tinha pavor do que tal significava: um tormento de saudade, angústia e sensação de perda. Francesca. Os seus lábios formaram, silenciosamente, o nome da filha. Francesca. Enfiou a mão por baixo da almofada e agarrou no lenço, certo de que acabaria por chorar. No entanto, em vez disso, deu-se conta de uma espécie de tranquilidade, como se estivesse melhor consigo mesmo, o que já não lhe acontecia há muito tempo. Francesca. Viu-a correr na sua direcção através dos prados ensolarados da Granja. E a imagem ficou, pungente, mas especialmente doce.

Apegando-se a ela, adormeceu.

A manhã seguinte nasceu com um tempo horrível. O gelo que tudo cobria, fora submergido por cargas de água acompanhadas de granizo, e a rua estava repleta de chapéus-de-chuva apressados e a escorrer. Ao meio-dia, o enorme camião de brita apareceu, de volta ao seu depósito, com os pára-lamas carregados de neve e os pára-brisas no máximo.

Elfrida comprara um bloco de notas para si. Durante o almoço, composto por sopa e um bocado de stilton que encontrara no supermercado, fez listas.

- Tenho de pensar em todos os pormenores - disse a Oscar com ar preocupado. - Não há tempo para esquecimentos. Elas devem estar aí na sexta-feira. Achas que Lucy quererá um toucador?

Oscar, que tentava fazer as palavras-cruzadas do The Times, pôs nobremente o jornal de lado e tirou os óculos, como para pensar melhor. No entanto, só conseguiu sair-se com «Não faço ideia».

- E uma cama, evidentemente. Esforçou-se por prestar atenção ao problema.

- Um guarda-fato? - arriscou.

- Jamais conseguiremos enfiar um guarda-fato debaixo daquele tecto inclinado. Teremos de nos ficar por uns cabides presos na parede - respondeu Elfrida, tomando nota.

Oscar recostou-se na sua cadeira e observou-a com ar divertido. Nunca vira Elfrida tão embrenhada num assunto e tão organizada. Por um momento fez-lhe lembrar, na melhor maneira possível, Gloria, a planear e a esboçar, a escrever listas e a fazer com que as coisas acontecessem.

- Quando é que Mistress Kennedy cá vem?

- Disse que estava cá às duas e meia. Ofereci-me para ir no teu carro. Não precisas dele, pois não?

- Não.

- Se estiveres com energia, podes levar Horace a passear. Oscar, começando a impacientar-se, retorquiu:

- Veremos. E voltou às suas palavras-cruzadas.

Quando Tabitha Kennedy chegou, Elfrida estava ao cimo do quintal a tirar a roupa que fora indevidamente pendurada na corda a secar. Portanto, quando tocaram à campainha, Oscar é que desceu para abrir a porta.

Tabitha vinha de gabardina e botas, porém não trazia nada na cabeça e o vento agitava-lhe o cabelo escuro. Afastou uma madeixa da cara.

- Olá. Sou Tabitha.

- com certeza. Faça o favor de entrar. Elfrida não demora, foi só tirar uma roupa molhada da corda. Sou Oscar Blundell.

- Eu sei. - Tinha um lindo sorriso. - Como está? - Apertaram as mãos. - Espero não ter chegado demasiado cedo.

- De modo nenhum. Venha até lá acima, sempre se está melhor do que aqui de pé.

Foi à frente e Tabitha seguiu-o, conversando como se o conhecesse desde sempre.

Não acha toda esta chuva uma desilusão, depois de um tempo maravilhoso de gelo? Há por aí canos a rebentar por tudo o que é sítio e o funileiro não tem mãos a medir.

Na sala de estar, o fogo da lareira ardia vivamente e um jarro com os jacintos que Arthur Snead os obrigara a aceitar enchia o ar com a sua fragrância.

Oh, que maravilha! Cheiram mesmo a Primavera, não acha? Disse a Elfrida que teríamos de ir no vosso carro, mas Peter hoje fica em casa, por isso deixou-me trazer o nosso. Tudo menos ir às compras comigo.

Compreendo-o perfeitamente. Ainda bem que pode dar uma ajuda a Elfrida.

Tenho todo o gosto nisso. Adoro gastar o dinheiro dos outros. É provável que voltemos bastante tarde. O mercado só fecha às cinco e nessa altura já devemos estar a precisar urgentemente de um chá regenerador.

No piso de baixo uma porta bateu e ouviram-se os passos de Elfrida a correr escada acima. Apareceu à porta com o seu casacão grosso e o gorro que fazia lembrar um abafador de bule.

Tabitha, desculpe tê-la feito esperar. É em dias como o de hoje que anseio por um secador de roupa. Mas só em dias como este. Agora só preciso de ir buscar a minha bolsa, a lista das compras e as chaves do carro.

Não são precisas disse-lhe Tabitha. Vamos no meu.

Finalmente partiram, cheias de entusiasmo, fazendo lembrar a Oscar duas raparigas de saída para se divertirem. Ficou à janela a vê-las ir, depois de se meterem na carrinha muito usada, apertarem os cintos de segurança e atravessarem a praça até desaparecerem de vista.

Estava sozinho. Horace dormia ao pé da lareira. Ciente de que andara a protelar as coisas, fez nova tentativa para terminar as palavras-cruzadas, mas, derrotado, acabou por colocar o jornal de parte. Sabia que havia outros assuntos a tratar. Levantou-se e foi até à pesada mesa de carvalho, encostada à parede em frente da lareira, que lhe fazia de secretária. Arranjou espaço, afastando para o lado um ou dois dossiers com papéis e a sua pasta, e depois sentou-se a escrever duas cartas que já deviam ter seguido há muito. Uma era para Hector McLellan, a agradecer-lhe a generosidade, e esforçando-se por parecer positivo e tranquilo. A segunda destinava-se a Mrs. Muswell, a quem abandonara tão abruptamente. A recordação dela a chorar à porta da Granja, enquanto ele e Elfrida se afastavam, atormentava-lhe a consciência desde então. Na carta, assegurava-lhe que estava bem, agradecia-lhe a lealdade e dizia-lhe que esperava que tivesse encontrado outro emprego ao seu gosto. Mandou-lhe cumprimentos e depois assinou.

Dobrou as cartas, endereçou os envelopes e colou-lhes os selos. Estavam prontos para ir para o correio.

Peter hoje está em casa.

Naquele momento.

Saiu do quarto e foi até ao patamar, onde estava o telefone. Pegou na lista telefónica, procurou o número e carregou nos dígitos. Ouviu o som do toque, mas só por uma vez, como se o aparelho estivesse em cima de uma secretária, mesmo ao alcance de uma pessoa pronta a atender imediatamente.

Residência Paroquial de Creagan. Era a mesma voz afável. Fala Peter Kennedy.

Às cinco e meia da tarde, Oscar, convenientemente agasalhado e de chapéu posto, saiu da Casa da Quinta e percorreu, a pé, a estrada íngreme que conduzia ao topo da colina. Elfrida e Tabitha ainda não tinham voltado, de modo que deixou a luz do vestíbulo acesa para as acolher quando chegassem, e um bilhete para Elfrida em cima da mesa da cozinha. «Saí por um bocado, mas não demoro.» Também deixou Horace tratado, depois de dar uma volta com o cão e de lhe dar os seus biscoitos e corações de borrego. Este era o melhor petisco que lhe podiam oferecer; engolira avidamente toda a porção, a seguir fora aninhar-se no seu cesto a tirar uma soneca.

Oscar passou entre muros altos e árvores de jardim. Estava muito escuro, uma tarde sombria, porém o vento abrandara, dando lugar a uma chuva miudinha. Ao cimo da estrada, depois da subida muito inclinada, fizera uma pausa para recuperar o fôlego, e depois continuara em frente pelo carreiro que se estendia pela vertente da colina acima. A cidade ficou para trás, em baixo. Passeou o olhar por outros jardins, topos de telhado, a linha das ruas marcada com candeeiros. Na torre da igreja, o relógio brilhava como uma lua cheia.

Um pouco mais ao longe a sua vista já se ajustara à escuridão. conseguia distinguir a linha da costa distante, estendida, como um braço, pelo mar fora e segurando entre os dedos a luz intermitente do farol. Não havia estrelas.

Um portão dava para uma estrada larga, ladeada à direita por amplas casas de pedra vitorianas, no meio de jardins espaçosos. A primeira era a Casa Paroquial. Oscar recordava-se da sua localização de sessenta anos antes, altura em que a avó o levava consigo e ele ficava a brincar com os filhos do pastor de então. Lembrava-se da casa e da família que ali vivera, porém os nomes tinham-se-lhe varrido da memória.

Por cima da porta havia uma luz acesa. Abriu o portão. Depois de entrar fechou-o e percorreu o carreiro, ouvindo o barulho das pedrinhas da praia debaixo das solas dos sapatos. A porta da frente fora pintada de azul-claro. Tocou à campainha.

De repente estremeceu. Fez por se convencer de que era por causa do frio e da humidade.

Ouviu uma porta interior abrir-se, logo seguida da azul, que se escancarou, fazendo-o cegar com a luz forte. Peter estava ali, a recebê-lo com toda a afabilidade. Vestia uma camisola grossa de gola alta e umas calças de bombazina muito usadas. Tinha uma aparência reconfortantemente leiga.

Oscar! Venha, entre. Olhou por cima do ombro de Oscar. Não trouxe o carro?

Não. Vim a pé.

Fez muito bem. Entraram para o vestíbulo, onde se via um tapete turco, uma estante em carvalho fumado, uma cómoda antiga sobre a qual havia uma pilha impecavelmente arrumada de revistas da paróquia. No pilar do corrimão da escada estava um chapéu de montar e no primeiro degrau via-se um par de sapatos de futebol e uma pilha de roupa limpa e dobrada. Tudo ali deixado, calculou Oscar, até a pessoa que fosse para cima a seguir, a levar.

Dispa o casaco. As crianças saíram, portanto temos a casa só para nós. Tenho a lareira acesa no meu gabinete. Passei a tarde lá dentro a pôr uma papelada em dia e a escrever um artigo há muito prometido! ao Sutherland Times.

Oscar livrou-se de luvas, casaco e chapéu, entregou-os a Peter Kennedy que os colocou numa impressionante cadeira de carvalho com ar de ter pertencido, em tempos, a um bispo.

Agora, venha daí propôs o pastor. Seguiu à frente até ao seu gabinete, uma sala de janelas recurvas que dava para a frente e devia ter estado destinada a servir de casa de jantar na altura em que a casa fora construída. Tinha uns cortinados espessos que protegiam da tarde invernosa e era suavemente iluminada por três candeeiros, um em cima da enorme secretária atravancada e outros dois sobre a cornija da lareira, cada um em sua ponta, onde estavam duas velhas poltronas forradas a cabedal. As paredes tinham muitas prateleiras com livros, e, depois do vazio arejado da Casa da Quinta, o interior daquela sala revelava-se cheio de segurança, penumbra e calor. Era um pouco como regressar ao ventre materno.

O cheiro também era maravilhoso e Oscar conseguiu, a certa altura, perceber que vinha da pilha impecável de pedaços de turfa que ardia lentamente dentro do receptáculo da lareira. Observou:

Fogo de turfa. Algo do qual já me tinha esquecido. Às vezes, quando levo o cão à rua durante a noite, sinto-lhe o cheiro, vindo de outras chaminés. Hei-de ver se arranjo alguma, só por causa do odor.

Tenho muita sorte. Um dos meus paroquianos tem uma turfeira e mantém-me fornecido. Agora venha sentar-se e fique à vontade. Deseja um café? Oscar não respondeu imediatamente e Peter Kennedy consultou o seu relógio. Seis menos um quarto. Podíamos muito bem tomar um cálice de Laphroaig. Tenho uma garrafa guardada, só para ocasiões especiais.

Uísque de malte. Laphroaig. Irresistível.

Nada me poderia saber melhor.

Também me pareceu, portanto preparei-me.

Oscar viu então em cima da secretária ao pé de um computador, uma pilha de livros, papéis algo desarrumados e o telefone. um pequeno tabuleiro impecavelmente arranjado com a garrafa de Laphroaig, dois cálices e um jarro de água. Nem valia a pena pensar no café. Ficou comovido.

As raparigas ainda não voltaram?

Não.

Oscar sentou-se numa das poltronas, que achou surpreendentemente macia e confortável. Acima dele, no meio da cornija da lareira, erguia-se um relógio, do tipo daqueles que são oferecidos a pastores ou professores reformados depois de quarenta anos de serviço leal. Tinha um tiquetaque suave, determinado e agradável como um metrónomo cuidadosamente marcado.

Cá por mim elas combinaram banquetear-se com um lanche, depois de terminarem as compras.

Não tenho dúvidas. Espero que tenha corrido tudo bem. Peter pegou nos dois cálices, entregou um a Oscar e sentou-se na poltrona ao lado, voltado para a sua visita. Ergueu o seu.

À nossa saúde.

O Laphroaig era um autêntico néctar, límpido, delicioso, a deslizar pela garganta, quente. Peter continuou:

Nesta altura, Buckly é uma cidade deveras deprimente. A maioria das pessoas encontra-se desempregada. A fábrica de lanifícios foi ao ar, e os especialistas em tecelagem e fiação poucas alternativas de trabalho têm.

Oscar franziu o sobrolho.

A fábrica de lanifícios? Não me diga que fala da McTaggart...

Exactamente. A McTaggart.

Faliu? Não fazia ideia. Espantoso. É como dizerem-me que o Rochedo de Gibraltar ruiu. Que aconteceu?

Peter contou-lhe.

O velho morreu, os filhos não se interessaram. Os trabalhadores obtiveram alguma ajuda financeira e continuaram em frente. Não estavam a sair-se mal, mas foi então que o tempo piorou horrivelmente. O rio galgou as margens e ficou tudo inundado. Perdeu-se tudo, destruição total.

Oscar estava horrorizado.

Então não há mais nada a fazer?

Parece que um desses grandes conglomerados têxteis vai tomar conta daquilo. A Sturrock & Swinfield, de Londres, mas até agora ainda nada de especial aconteceu e o povo de Buckly começa a recear o pior. Ou seja: nunca chegar a acontecer realmente.

Que tragédia! comentou Oscar, com expressão compungida. Nem sei como é que deixei escapar isso. Acho que... ultimamente não tenho lido os jornais com muita atenção, pelo menos as páginas regionais. E aqui só compro o The Times e o The Telegraph, portanto nunca me inteiro das notícias locais. E com pouca gente tenho falado tirando Mistress Snead. Aliás, é por essa razão que aqui estou. Para lhe pedir desculpa. Devia ter vindo antes, mas não o fiz.

Por amor de Deus! Não esteja preocupado. Apercebi-me de que o apanhei de surpresa e devia ter esperado por uma ocasião mais propícia para o abordar. Espero que não tenha ficado demasiado incomodado.

Não percebo o que me deu. Foi ridículo.

Por favor, não pense mais nisso. Não houve nenhum prejuízo. Há-de ir até lá comigo para tomar um chá, outra bebida ou o que porventura lhe apetecer. O melhor seria juntar-se ao clube quando lhe apetecesse, para, então, quando o tempo voltasse a melhorar, podermos jogar todos juntos. Costuma fazê-lo?

No tempo da minha avó, quando era rapaz, jogava, mas nem nessa altura tinha muito jeito.

Gostaria imenso de jogar consigo.

Não disponho de equipamento próprio.

Eu arranjo-lhe algum emprestado. O campo é esplêndido e seria uma pena viver aqui e não experimentar ao menos uma volta. A sua avó era uma jogadora de golfe exímia. Quando vim para cá, ouvi falar muito na sua perícia. Foi campeã dois anos seguidos. De uma maneira ou outra, deve ter sido uma senhora excepcional.

Sim, realmente era.

E também uma grande apreciadora de música.

E de jardinagem. O que fazia era bem feito.

Oscar tomou mais um gole de Laphroaig e depois pousou o cálice na mesinha ao seu lado, onde ficou a reluzir como uma jóia sob a luz suave do candeeiro. Depois disse:

Godfrey Billicliffe também me convidou para entrar no clube de golfe, mas receio que, nesse momento concreto, o nosso encontro não estivesse a desenrolar-se na altura mais auspiciosa. Tanto Elfrida como eu estávamos exaustos da longa viagem que acabávamos de fazer. O nosso único desejo era tomar posse da chave da nossa casa e fugir. Acho que fomos muito indelicados.

Ele às vezes é um grande maçador. Eu sei. Também tive conhecimento de que ontem de manhã o foi levar ao hospital no seu carro.

Como é que soube? Peter Kennedy sorriu.

Nesta pequena comunidade as notícias espalham-se depressa. Não, não se preocupe, não foi mexerico. O doutor Sinclair telefonou-me para me colocar ao corrente do problema. O seu gesto foi muito generoso.

Não. Creio que ninguém sabia. Ele tem sido problemático desde que a mulher morreu. Tem-se ido abaixo a uma velocidade assustadora. Solidão, talvez, mas também é demasiado orgulhoso para o admitir, e nenhum de nós teve coragem para lhe sugerir que vendesse a casa e fosse viver para o lar da terceira idade.

Os meus enteados também me incitaram a que fosse para um lar de reformados no Hampshire; mas isso foi porque herdaram a casa da mãe e queriam ver-se livres de mim para a poder vender. Achei a ideia pavorosa. Como o princípio do fim.

Como é que se apercebeu de que havia algo de errado com ele? Fui visitar Rose Miller. Ao voltar para casa ouvi a cadela do Billicliffe a uivar. Então, fui ver o que se passava. Para ficar com a consciência tranquila, acho. Tanto Elfrida como eu tínhamo-nos sentido um pouco mal em relação ao velhote. Foi então que o encontrei no piso de cima, obviamente em muito mau estado. A perspectiva de ambulâncias e de helicópteros também o apavorava. Tinha um ar terrivelmente só.

Oferecer-me para o levar a Inverness no meu carro foi o mínimo que pude fazer.

Na sexta-feira preciso de ir a Inverness onde vou moderar uma reunião. Passarei pelo hospital para lhe fazer uma visita, ver como está.

Disse que me declararia como o seu parente mais próximo, portanto têm lá o meu nome e número de telefone na série de formulários que tivemos de preencher. Portanto, acho que, se houver alguma novidade, serei informado.

Bem, então vá-me dando notícias.

Com certeza.

Ora bem, fale-me no seu tio. Como é que vai Hector?

Cada vez mais velho. Vive em Londres. Foi visitar-me depois... depois do funeral. Não participou nele porque estava com gripe e o médico proibiu-o, e muito bem. Foi Hector que sugeriu que eu saísse do Hampshire e viesse para cá.

Eu sei, Oscar. Ele escreveu-me uma longa carta. Fiquei cheio de pena com o acontecido. Ainda tive vontade de ir logo ter consigo para lhe oferecer os meus préstimos no que fosse preciso... mas o meu instinto disse-me que, por enquanto, o senhor precisava de ficar sozinho. Espero que não tenha ficado com a impressão de que fui indiferente ou desatento.

Não, não pensei nisso.

Às vezes... falar com um desconhecido, uma pessoa afastada, ajuda.

É como desabafar com alguém que se encontra numa viagem de comboio e sabe que nunca mais se voltará a ver.

Não exactamente , Peter sorriu , pois espero que volte a ver-me.

É difícil saber por onde começar. Parece que já foi tudo há muito tempo.

A vida tende a ter dessas situações.

Nunca pensei em casar. Achei sempre que ficaria solteiro toda a vida. Tinha o meu trabalho como professor, dava aulas de piano e ensaiava o coro. Desfrutava da companhia de outros professores e das suas esposas. A minha paixão era a música. Leccionava em Glastonbury, numa escola pública pouco conhecida, mas excelente por isso mesmo. Sentia-me muito bem por lá. Depois comecei a envelhecer, o reitor reformou-se e foi substituído por um sujeito mais jovem. O reitor fora sempre um bom amigo, e, embora o seu substituto fosse perfeitamente competente, delicado e tradicionalista, um ano depois achei que era tempo de mudar. Fora-me oferecido o lugar de organista e maestro de coro em Saint Biddulph, Londres. Ainda fiquei a reflectir durante algum tempo, mas não muito. A música de Saint Biddulph sempre tivera grande fama pela sua excelência, e o coro era estável, fundado graças a uma doação generosíssima feita por um paroquiano dedicado, alguns anos atrás. Portanto, mudei de agulha e fui para Londres. Passei a viver num apartamento espaçoso e confortável no segundo piso de uma casa antiga, apenas a cerca de cinco minutos da igreja, e as senhoras da paróquia trataram de me arranjar uma empregada competente, de modo que era muito bem tratado.

«Foram tempos maravilhosos. Acho mesmo que o pico da minha carreira relativamente modesta. Dois dos elementos do coro eram cantores de ópera profissionais, o público era entusiasta, e conseguimos alargar o repertório e apresentar, em ocasiões especiais, alguns temas corais ambiciosos. Salvate Flores Martyrum, de Palestrina, a adaptação do vigésimo-terceiro salmo por Schubert, o Requiem, de Fauré. Material glorioso.

«Conheci os Bellamy pouco depois de chegar a Saint Biddulph. Viviam com um certo estilo numa casa em Elm Park Gardens, e mostraram-se imensamente gentis e hospitaleiros comigo logo desde o princípio. Quando George Bellamy adoeceu, habituei-me a ir lá a casa fazer-lhe companhia, jogar gamão com ele. Quando faleceu, compus a música para o seu funeral, que teve uma certa grandiosidade.

«Depois do funeral, pensei que Gloria já não quereria que eu continuasse a ir lá a casa, que a razão das minhas visitas desaparecera. No entanto, ela continuou a convidar-me para vários eventos sociais, um beberete, um jantar, uma ceia dominical. Às vezes íamos ao cinema juntos, ou passávamos um dia em Kew. Eu não dava grande importância ao assunto, mas apreciava a sua companhia. Até que um dia ela, na sua maneira prática de estar na vida, me disse que não seria má ideia casarmos. Explicou-me que não gostava de viver sem um homem e haveria de gostar de ter uma esposa que cuidasse de mim. Sei que parece um bocado frio de mais, mas o certo é que eu gostava muito dela, que, penso, também sentia o mesmo por mim. Ambos ultrapassáramos já os arroubos da juventude, portanto tínhamos idade suficiente para tornar bem sucedido o que outros viam apenas como um casamento de conveniência.

Ela foi uma mulher maravilhosa, meiga, generosa e compassiva. Eu nunca vivera, desde os meus tempos de rapaz em Creagan, no meio de tanto conforto material, com tanta abundância. Ela e George tinham filhos, Giles e Crawford, mas já eram ambos adultos, tinham saído de casa e viviam independentes. E Gloria ainda era uma mulher nova, a transbordar de vitalidade física. Quando me disse que estava grávida, fiquei ridiculamente incrédulo. Nunca, em toda a minha vida, me imaginara a ser pai. Mas quando Francesca nasceu, aquela criaturinha minúscula, senti uma felicidade tal que sei que nunca mais voltarei a experimentar na vida. Era como se tivesse ocorrido um milagre. O que nunca deixou de ser.

«Às vezes, à medida que foi crescendo, quando andava de um lado para o outro a pairar e, de uma maneira geral, a fazer os disparates que todas as crianças fazem, ficava a olhar para ela e continuava a achar inacreditável que eu tivesse contribuído para criar aquele ser humano em miniatura, tão belo e encantador.

«A certa altura, Gloria herdou uma casa no campo, no Hampshire, de modo que mudámo-nos de Londres para lá e iniciámos a nossa nova vida em Dibton. Não posso deixar de admitir que tinha saudades de Saint Biddulph, mas a música continuava a fazer parte da minha vida. Ensinava um pouco e, de vez em quando, tocava órgão no serviço matinal da igreja local.

Ao chegar aqui, Oscar fez uma pausa para pegar no cálice e tomar mais um gole de Laphroaig. Um pedaço incandescente de turfa deslizou, com um silvo, para o leito de cinzas da lareira. O relógio prosseguia o seu tiquetaque.

Conhece a sua amiga Elfrida há muito tempo? perguntou Peter.

Não. Só nos conhecemos quando ela foi viver lá para a aldeia. Estava sozinha e Gloria estabeleceu amizade com ela, como que tomou Elfrida sob sua protecção. Era divertida, cheia de vida e todos nós gostávamos muito da sua companhia. Francesca passava a vida a ir de bicicleta visitá-la. Fazia-a rir. Na altura do acidente, Elfrida encontrava-se na Cornualha, de visita a um parente. Regressou logo a seguir ao funeral, sem fazer a menor ideia do que acontecera. Quando Hector me sugeriu que saísse do Hampshire e voltasse a Creagan, percebi que não seria capaz de o fazer sozinho. A viagem parecia demasiado árdua e tinha pavor de ficar sozinho. Pedi então a Elfrida que viesse comigo. Ela, como é extremamente bondosa, concordou. Faz-me muita companhia e conseguiu sempre fazer-me sorrir nos momentos mais difíceis. Quando a conheci pela primeira vez, perguntou-me se era religioso.

Respondi-lhe que é difícil não acreditar quando se passa a maior parte da vida às voltas com as liturgias e as tradições da Igreja Anglicana. E que achava que precisava de ter algum ser a quem agradecer.

«Isso, porque me sentia um afortunado. Era feliz. O casamento de conveniência resultara, e Francesca fazia com que não me arrependesse de nada. Gloria, no entanto, tinha uma personalidade forte, dominadora. E os bens eram praticamente todos seus. Às vezes, era preciso lidar com ela com todo o tacto. Adorava companhia, gente, artistas, festas e, de vez em quando, bebia de mais. Não estou a dizer que fosse uma alcoólatra, longe disso, apenas bebia socialmente. Era frequente, depois de uma noite fora, eu ter de conduzir o seu magnífico carro, o que ela detestava e fazia com que na manhã seguinte acordasse amuada. Mas eu conhecia a sua fraqueza, tal como acontecia com as suas numerosas qualidades.

«No dia da festa ao ar livre de Guy Fawkes, ela disse que levava Francesca, e lembro-me de ter pensado que também devia ir. Mas combinara receber um homem que ficara de me construir uma cerca nova para a zona do estábulo. Era um trabalho que eu queria ver terminado o mais depressa possível, de modo que nem pensei em adiar a questão. Além disso, era apenas uma festa infantil. Um grande lanche, com fogo-de-artifício. Estariam em casa no mínimo às sete da tarde.

«E, como era evidente, tratava-se de uma festa para crianças, embora os adultos também lá estivessem, na maioria amigos de Gloria. Mas depois do fogo-de-artifício terminar, as crianças ficaram a brincar no jardim com os seus pauzinhos luminosos e a dar largas à sua excitação, enquanto os adultos entraram para tomar uma bebida.

«Não faço ideia da quantidade que Gloria bebeu. Graças a Deus não lhe fizeram nenhuma autópsia. As condições de condução eram péssimas. De repente começara a chover fortemente e as estradas estavam alagadas. Tinham estado a decorrer umas obras de reparação no cruzamento, onde ficaram luzes de alerta a piscar. Talvez tenha sido isso que a confundiu. Nunca saberemos. O motorista do camião afirmou que o carro dela saíra da sua faixa e dirigira-se para ele a uma certa velocidade, na altura em que dava a volta, vindo da direita. Tinha, como é evidente, prioridade. Numa fracção de segundo, o carro de Gloria ficou destruído, irreconhecível, e tanto ela como Francesca morreram.

«A notícia foi-me dada pela Polícia. Um sargento jovem e delicado. Pobre rapaz. Não consigo descrever a minha reacção, porque não senti nada. Fiquei aparvalhado. Vazio. Desprovido de emoção. Até que, a pouco e pouco, esse vazio foi sendo preenchido por uma raiva amarga, um ressentimento contra quem, ou o que, permitira que tal coisa me tivesse acontecido. Sei que o mundo está cheio de horrores e uma pessoa acaba por endurecer, horrorizada, mas endurecida, ao ver na televisão imagens He aldeias destruídas, crianças a morrer de fome, enormes catástrofes naturais. Mas aquilo era comigo. Era a minha vida, a minha existência. A minha mulher. A minha filha. Se havia um Deus (e eu nunca tivera a certeza absoluta disso) eu não queria ter nada a ver com Ele.

«O nosso clérigo em Dibton apareceu a apresentar condolências. Disse-me que Deus manda às pessoas só aquilo que elas são capazes de suportar. Então, revoltei-me contra ele e respondi-lhe que preferia mil vezes ser fraco como a água e ainda ter a minha filha viva. Depois mandei-o embora. Nunca mais nos reconciliámos um com o outro. Eu conhecia a fraqueza de Gloria. Devia ter ido com elas. Eu é que devia ter estado ao volante daquele carro. Se ao menos. "Se ao menos" é o meu pesadelo.

Essa ideia de «Se ao menos» é uma compreensão tardia de algo que devia ter sido feito e não foi. Um exercício inútil. Parece-me que o acidente resultou de várias circunstâncias trágicas. Quem sabe? Talvez o Oscar também tivesse morrido e aí ter-se-ia aberto um vazio ainda maior na vida daqueles que vos conheciam e amavam... Quanto a Deus, admito francamente que acho mais fácil viver com as velhas questões sobre o sofrimento, do que com muitas das explicações piedosas apresentadas, de vez em quando, algumas das quais parecem raiar a blasfémia. Espero bem que ninguém tenha procurado consolá-lo dizendo que Deus deve ter precisado mais de Francesca do que o senhor. Eu não conseguiria adorar um Deus que me roubasse deliberadamente um filho. Esse Deus seria um monstro moral. Oscar estava estupefacto.

É nisso perguntou por fim , que acredita verdadeiramente? Peter assentiu.

É no que acredito piamente. Trinta anos de ministério ensinaram-me que a única coisa que nunca devemos dizer quando uma criança morre é que «Foi a vontade de Deus». Simplesmente não sabemos o suficiente para fazer semelhante afirmação. Na verdade, estou convencido de que quando Francesca morreu naquele acidente terrível, Deus foi o primeiro a compadecer-se.

Quero continuar em frente, prosseguir a minha vida, ser capaz de aceitar... poder dar de novo. Não gosto de estar sempre a receber. Nunca fui pessoa para isso.

Oh, Oscar, as coisas serenarão. A sua profissão fez com que a Igreja tenha feito parte da sua vida durante muitos anos, é natural que conheça bem, tal como eu, as grandes promessas bíblicas sobre vida e morte. O problema é que o trauma provocado pela dor pode, muitas vezes, torná-las irreais. Aquilo de que provavelmente irá precisar mais, durante algum tempo, não é de quem lhe cite a Bíblia, mas sim de amigos chegados que lhe segurem na mão e o escutem quando quiser falar sobre Francesca.

Oscar lembrou-se de Elfrida. Peter calou-se por instantes, como que a dar-lhe tempo para reflectir sobre aquele novo conceito. Oscar, porém, nada disse.

A vida é agradável continuou Peter. Para lá da dor, a vida continua a ser agradável. O que é básico continua lá. Beleza, alimento e amizade, reservatórios de amor e compreensão. Mais tarde, certamente ainda não, o Oscar vai precisar de outros que o encorajem a iniciar coisas novas. Acolha-os bem. Ajudá-lo-ão a seguir em frente, a acarinhar as boas recordações e a enfrentar as más com algo mais do que amargura e raiva.

Oscar lembrou-se da noite em que, a altas horas, a imagem de Francesca lhe viera à mente e de como, pela primeira vez, esta não o fizera verter dolorosas lágrimas de perda e saudade, mas enchera-o sim, de um conforto apaziguador. Talvez tenha sido esse o início da sua recuperação. Talvez aquela conversa, aquela entrevista, fosse qual fosse o nome que tinha, representasse uma continuação. Não tinha forma de saber. Só sabia que se sentia melhor, mais forte, não tão imprestável. Se calhar, vistas bem as coisas, ele não se tivesse saído assim tão mal.

Obrigado agradeceu.

Oh, meu amigo, gostaria de ter podido dar-lhe muito mais.

Não. Nem pense nisso. Deu-me o suficiente.

 

                                                                                            CONTINUA  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades