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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SOMBRAS DE UM CRIME / Val McDermid
SOMBRAS DE UM CRIME / Val McDermid

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

A psicóloga Fiona Cameron dedicou a vida a capturar criminosos para impedir que outras pessoas morressem de forma tão brutal quanto Lesley, sua irmã caçula que fora estuprada e assassinada. Contudo, jurou jamais trabalhar para a Scotland Yard novamente, uma vez que agiram contra seus conselhos e, como resultado, destruíram uma investigação.
No entanto, ao descobrir que há um assassino à solta liquidando escritores da mesma forma como as vítimas são mortas nos livros, ela não consegue deixar de suspeitar que seu namorado, o premiado autor de suspense Kit Martin, seja um alvo em potencial e decide investigar.
Fiona terá de lançar mão de toda a sua astúcia e inteligência para solucionar o caso mais importante de sua vida e salvar o homem que ama. Com um serial killer prestes a atacar, ela se vê em uma corrida contra o tempo não apenas para salvar vidas mas também para buscar a própria redenção. pessoal e profissional.

 

 

 


 

 

 


A névoa se desprende das águas cinzentas da foz do rio Forth, uma neblina densa da cor de cúmulos. Ela engole as luzes claras do mais novo parque da cidade, dos
hotéis sofisticados e dos restaurantes elegantes. Mescla-se aos espectros dos marinheiros nas docas, que costumavam gastar todo o dinheiro que ganhavam em cerveja
e em prostitutas com expressões tão duras quanto as mãos de seus clientes. E sobe pela montanha até a Cidade Nova, onde os contornos geométricos de elegância georgiana
a dividem em blocos antes que ela desça novamente em direção ao canal dos jardins de Princes Street. Os poucos que voltam tarde de uma noite de festas apressam
o passo para escapar de seu abraço frio e úmido.

Quando, por fim, alcança os diversos planos de ruas estreitas e o emaranhado de vielas da Cidade Velha, a neblina já perdeu sua densidade anestesiante. Ela se metamorfoseou
em uma névoa difusa que transforma os estabelecimentos para turistas em presenças indistintas e sinistras. Os pôsteres já meio rasgados que anunciam os recentes
eventos do Festival Frange entram e saem de vista como fantasmas espalhafatosos. Em uma noite como essa é fácil ver o que inspirou Robert Louis Stevenson a criar
O médico e o monstro. Ele pode ter ambientado a história em Londres, porém é, sem dúvida, Edimburgo que salta misteriosamente das páginas.

Por trás das fachadas enegrecidas de fuligem dos prédios da Royal Mile ficam velhos aposentos dispostos em torno de pátios áridos. No século XVIII,
eles eram o equivalente aos conjuntos habitacionais de hoje - superlotados pelos desabrigados da cidade, lar dos bêbados e dos viciados em láudano, reduto das
prostitutas mais sórdidas e das crianças de rua. Nessa noite, como uma reprise angustiante do pior pesadelo da história, o corpo de uma mulher encontra-se estirado
próximo à cabeceira de uma escadaria de pedra que proporciona um atalho íngreme entre a High Street e a base do The Mound. Seu vestido curto foi puxado para cima,
as costuras de baixa qualidade arrebentadas com violência.

Se ela tivesse gritado ao ser atacada, seus gritos teriam sido abafados pela cortina de névoa. Uma coisa é certa: ela jamais vai gritar de novo: Sua garganta é
uma boca escarlate aberta. Para tornar o ferimento ainda mais aviltante, as tripas convolutas de seu intestino foram jogadas sobre o ombro esquerdo.

O tipógrafo que tropeçou no corpo a caminho de casa, depois de fazer serão no trabalho, se agacha na entrada da área cercada que leva ao pátio. Ele está perto
o suficiente da poça formada por seu próprio vômito para sentir uma nova ânsia por causa do fedor repugnante que paira no ar opressivo da neblina. Usou seu celular
para chamar a polícia, mas os poucos minutos que eles levam para chegar parecem uma eternidade, e é impossível apagar de sua mente a recente visão do inferno.

De repente, luzes azuis piscantes surgem diante dele quando dois carros de polícia param junto ao meio-fio. Som de passos correndo, ele já não está mais sozinho.
Dois policiais uniformizados o ajudam com gentileza a se pôr de pé. Eles o conduzem até um dos carros e o colocam no banco traseiro. Os outros dois policiais desapareceram
na área cercada, o som indistinto de seus passos engolido quase imediatamente pela névoa insistente. Agora os únicos sons são o chiado do rádio da polícia e o
bater de dentes do tipógrafo.

O dr. Harry Gemmell se agacha ao lado do corpo, os dedos enluvados tateando coisas sobre as quais o inspetor Campbell Grant não quer nem pensar. Em vez de estudar
o que o legista da polícia está fazendo, Grant olha para os peritos em cenas de crime, com seus macacões brancos. Eles estão usando lanternas para vasculhar a
área em torno do corpo. A neblina parece atravessar os ossos de Grant, fazendo com que ele se sinta um velho.

Por fim, Gemmell solta um gemido e se levanta, retirando as luvas de borracha sujas de sangue. Olha para seu robusto relógio esportivo e dá um meneio de cabeça,
satisfeito.

- Isso - diz. - Oito de setembro, bem apropriado. - O que você quer dizer com isso? - pergunta Grant, cansado. Está irritado de antemão com a perspectiva de encarar
o hábito de Gemmell de forçar os detetives a arrancar as informações paulatinamente.

- Seu homem aqui, ele gosta de brincar de seguir as pistas. Veja se consegue descobrir sozinho, Cam. As marcas no pescoço dela indicam estrangulamento manual, embora,
segundo meus cálculos, ela morreu em virtude do corte na garganta. No entanto, são as mutilações que contam a história.

- Isso deveria me dizer alguma coisa, Harry? Além de uma boa razão para me fazer perder o jantar? - exige saber Grant.

- Mil oitocentos e oitenta e oito em Whitechapel, 1999 em Edimburgo. - Gemmell ergue uma sobrancelha. - Está na hora de chamar os especialistas em perfis, Cam.

- Que diabos você está falando, Harry? - pergunta Grant. Ele imagina se Gemmell andou bebendo.

- Acho que seu assassino é um copycat, um imitador, Cam. Acho que você está procurando Jack, o Estripador.


1.

A dra. Fiona Cameron aproximou-se da beirada de Stanage Edge e se inclinou para a frente, a fim de sentir o vento. O único tipo de morte súbita que poderia encarar
ali seria a própria, e isso só se fosse mais descuidada do que acreditava ser. Mas, supondo por um momento que perdesse a concentração sobre o arenito molhado,
ela despencaria uns bons 10 ou 12 metros, e quicaria como uma boneca de plástico sobre as rochas pontiagudas, quebrando os ossos e rasgando a pele.

Acabaria parecendo uma vítima. De jeito nenhum, pensou Fiona, deixando o vento empurrá-la para trás o suficiente para sair do perigo. Não ali, nunca. Aquele era
um local de peregrinação, o lugar aonde ia para se lembrar do porquê de ser quem era. Voltava ali três ou quatro vezes ao ano, invariavelmente sozinha, sempre
que sentia necessidade de confrontar suas lembranças. Seria impossível aturar a companhia de outro ser humano naquela extensão de terra selvagem e desoladora.
Só havia espaço para dois: Fiona e seu fantasma, aquela outra metade de si mesma que só a acompanhava naquela terra inóspita.

Era estranho, pensou. Havia tantos outros lugares em que passara muito mais tempo com Lesley. No entanto, todos eles acabavam sendo estragados pela percepção de
outras vozes, outras vidas. Ali, ponderou, podia sentir Lesley sem interferência alguma. Podia ver seu rosto, iluminado por um sorriso, ou sério e concentrado
ao realizar uma barganha complicada.

Podia escutar sua voz, ponderada ao fazer confidências ou alta de entusiasmo pelo sucesso em algo. Fiona quase acreditava que podia sentir o suave aroma de musk
em sua pele, como quando se aconchegavam uma à outra durante um piquenique.

Ali, mais do que em qualquer outro lugar, Fiona percebia como sua própria vida perdera o brilho. Fechou os olhos e deixou o quadro se formar em sua mente. Sua
imagem refletida, o mesmo cabelo castanho-avermelhado e olhos amendoados, a mesma curvatura das sobrancelhas, o mesmo nariz. Todo mundo sempre se surpreendia com
a semelhança. Apenas as bocas eram diferentes; a sua era grande, com lábios cheios, a de Lesley parecia um pequeno arco do Cupido, o lábio inferior mais cheio
do que o superior.

Ali, também, fora o lugar das discussões, da decisão que acabara levando Lesley ao encontro da morte. Aquele era o lugar da censura final, o lugar no qual Fiona
não conseguia esquecer o que faltava em sua vida.

Fiona sentiu os olhos marejados. Abriu-os e deixou que o vento lhe proporcionasse a desculpa para tanto. O tempo de vulnerabilidade havia acabado. Estava ali, lembrou-se,
para fugir das vítimas. Olhou através das samambaias amarronzadas de Hathersage Moor para o desajeitado polegar de Higger Tor e mais além, e virou-se para observar
as nuvens da chuva que já castigava uma das pontas de Bamford Moor. Naquele vento, tinha vinte minutos antes que elas alcançassem Stanage Edge, calculou, remexendo
os ombros para deixar a mochila numa posição mais confortável. Hora de começar a se mexer.

O trem que pegara logo cedo na estação de King's Cross, seguido pela conexão de um trem local, a deixara em Hathersage pouco depois das dez. Fizera em um bom
tempo a subida íngreme até High Neb, apreciando o esforço dos músculos, a contração das panturrilhas e a tensão dos quadríceps. O empenho final para chegar ao
extremo norte de Stanage a deixara ofegante, e ela se recostara contra a rocha para tomar um longo gole de sua garrafa de água antes de prosseguir pelo terreno
plano de arenito. Sua conexão com o passado estava mais firmemente enraizada do que qualquer outra coisa que conhecesse. Mas o vento às suas costas a alegrara,
afastando os pensamentos do emaranhado de irritações que a tinham acordado. Soubera na hora que precisava passar o dia longe de Londres, ou então aceitar que à
noite seus ombros estariam completamente rígidos, enviando ondas de dor pelo pescoço até a cabeça.

O único compromisso marcado em sua agenda era uma reunião para supervisionar o trabalho de um de seus alunos do doutorado, e isso havia sido facilmente resolvido
por meio de um simples telefonema, que dera já no trem. Ali, naquela imensidão inóspita, nenhum cretino dos tabloides poderia encontrá-la, nenhum fotógrafo poderia
enfiar a câmera na cara dela e exigir saber o que a dra. Cameron tinha a dizer sobre os eventos daquele dia na corte.

É claro que ela não poderia saber com certeza se as coisas aconteceriam de acordo com suas expectativas. Todavia, ao escutar no noticiário noturno da véspera que
o julgamento sensacionalista do Assassino de Hampstead Heath ainda estava suspenso depois do segundo dia de apresentação dos argumentos legais, todos os seus instintos
tinham lhe dito que, ao final daquele dia, a brigada de jornais sensacionalistas estaria sedenta de sangue. E ela era a arma perfeita para drenar o sangue da polícia.
O melhor a fazer era manter-se afastada de tudo aquilo, por vários motivos.

Nunca estimulara a publicidade por seu trabalho com a polícia, mas ela a perseguira mesmo assim. Fiona detestava ver seu rosto estampado nos jornais quase tanto
quanto isso incomodava seus colegas. Quase pior do que a perda de privacidade era perceber que, de alguma forma, sua notoriedade havia enfraquecido seu trabalho
como acadêmica. Agora, sempre que publicava alguma coisa nos periódicos ou contribuía para um livro, seu trabalho era analisado com mais ceticismo do que antes,
pelo simples fato de ter posto em prática suas habilidades e conhecimento, o que lhe garantia caretas de desaprovação entre os puristas.

A reprovação silenciosa ficara ainda mais forte depois de um dos tabloides revelar que ela estava vivendo com Kit Martin. Era difícil imaginar quem, do ponto de
vista da academia, poderia ser um parceiro menos respeitável para uma psicóloga acadêmica envolvida no desenvolvimento de métodos científicos que ajudariam a polícia
a capturar criminosos reincidentes do que o maior escritor nacional de romances policiais sobre serial killers. Se Fiona ligasse a mínima para o que seus colegas
pensavam dela, talvez tivesse se dado ao trabalho de explicar que não se apaixonara pelos romances de Kit, e sim pelo homem que os escrevia, e que a natureza do
trabalho dele

a fizera ser mais cautelosa ao começar o relacionamento do que teria sido caso contrário. Mas, como ninguém ousara desafiá-la cara a cara, tinha optado por não
se entregar à armadilha da autojustificação.

Ao pensar em Kit, a tristeza desapareceu. Ter encontrado o único homem que conseguia salvá-la do cárcere de sua introspecção era uma bênção que jamais deixaria
de considerar um milagre. Talvez o mundo nunca viesse a enxergar o que se escondia por trás do charme de homem durão que ele usava em público, porém, além da inteligência
sagaz, ela havia descoberto uma generosidade, respeito e sensibilidade que já tinha perdido a esperança de encontrar. Com Kit, finalmente alcançara uma espécie
de paz que, na maior parte do tempo, mantinha afastados os demônios de Stanage Edge.

Enquanto caminhava, Fiona olhou para o relógio. Já conseguira avançar bastante. Se mantivesse o passo, teria tempo de tomar um drinque no pub Fox House antes de
pegar o ônibus que a levaria de volta a Sheffield, onde tomaria o trem para Londres. No final, teriam sido cinco horas ao ar livre, cinco horas sem ter visto praticamente
nenhum outro ser humano, e isso já era o suficiente para se recobrar. Até a próxima vez, pensou com tristeza.

O trem estava mais vazio do que ela esperava. Fiona conseguiu um assento duplo só para si, e o homem à sua frente pegou no sono dez minutos depois de eles saírem
de Sheffield, permitindo que ela tivesse espaço para espalhar suas coisas na mesa entre eles. O que achava ótimo, visto que tinha trabalho mais do que suficiente
para ocupar o tempo da viagem. Fizera um acordo com o proprietário de um pub que ficava a alguns minutos de caminhada da estação. Ele cuidava do seu celular e
do laptop enquanto ela ia caminhar nas montanhas e, em troca, Fiona lhe dava cópias autografadas da primeira edição dos livros de Kit. Isso era mais seguro do
que os guarda-volumes da estação e, certamente, mais barato.

Fiona abriu o laptop e conectou o celular para acessar seu e-mail. Uma mensagem piscou na tela, dizendo que havia cinco e-mails novos. Fiona os baixou e desconectou
o celular. Duas das mensagens eram de alunos, e outra de um colega de Princeton perguntando se poderia ter acesso aos dados que ela coletara sobre casos de estupro
já solucionados. Nada que não pudesse esperar até a manhã seguinte. Abriu o quarto e-mail, de Kit.

De: Kit Martin <kmwritern@trashnet.com>

Para: Fiona Cameron <fcameron@psych.ulon.ac.uk>

Assunto: Jantar hoje

Espero que você tenha tido um bom dia nas montanhas. Fui produtivo e, na hora do chá, já havia escrito 2.500 palavras. As coisas no Bailey aconteceram do jeito
que você disse que aconteceriam. Confie nessa intuição feminina! (Estou brincando, sei que foi um julgamento racional, baseado na ponderação de todas as provas
científicas...

De qualquer forma, imaginei que Steve estivesse precisando se alegrar, portanto combinei de ir jantar com ele. Vamos ao St. John's, em Clerkenwell, nos empanturrar
de carne. Você provavelmente não vai querer se encontrar com a gente, mas, se quiser, vai ser ótimo. Caso contrário, preparei um risoto de salmão com aspargos
para o almoço, e sobrou bastante. Deixei na geladeira para você jantar. Te amo.

Fiona sorriu. Típico do Kit. Desde que todos estivessem bem alimentados, nada muito terrível poderia acontecer com o mundo. Não estava surpresa por Steve precisar
se alegrar. Nenhum oficial da polícia gostava de ver um caso desmoronar, especialmente um que tivera tanta repercussão pública quanto o assassinato de Hampstead
Heath. No entanto, para o detetive superintendente Steve Preston o colapso de seu caso particular devia ter deixado um gosto mais amargo do que para o resto.
Fiona sabia muito bem o que estava em jogo naquela acusação e, embora sentisse uma simpatia pessoal por Steve, achava que tinha sido bem-feito para a Polícia Metropolitana.

Abriu o e-mail seguinte, tendo deixado o mais interessante por último.

De: Salvador Berrocal <Sberroc@cnp.mad.es>

Para: Fiona Cameron <fcameron@psych.ulon.ac.uk>

Assunto: Pedido de consultoria

Cara dra. Cameron, Sou major da unidade à paisana do Corpo Nacional de Polícia de Madri. Tenho várias investigações de homicídio sob minha responsabilidade. Um
colega da Scotland Yard me passou seu nome e disse que a senhora é especialista em conexão criminal e perfil geográfico. Por favor, perdoe a ousadia de contatá-la
tão diretamente. Estou escrevendo para perguntar se a senhora poderia fazer a cortesia de nos prestar seus serviços de consultoria em uma questão de grande urgência.
Na Espanha, temos pouca experiência com serial killers, e nossa polícia não conta com a ajuda de psicólogos especializados. Houve dois assassinatos em Toled6 num
prazo de três semanas e acreditamos que eles tenham sido cometidos pela mesma pessoa. No entanto, a conexão entre eles não é óbvia, e precisamos de um especialista
que nos ajude com a análise desses homicídios. Pelo que entendi, a senhora tem experiência na área de análise e conexão criminal, e acredito que isso nos seria
de grande auxílio. Gostaria de saber se a senhora estaria disposta a nos ajudar a solucionar esses crimes. A senhora irá receber uma remuneração adequada por essa
consultoria, caso " decida nos ajudar. Aguardo ansioso por sua resposta.

Respeitosamente,

5º Major Salvador Berrocal Corpo Nacional de Polícia

Fiona cruzou os braços e olhou para a tela. Sabia que, por trás ao pedido cuidadosamente formulado, havia um par de corpos que deviam ter sido mutilados e provavelmente
torturados antes da morte. Era também provável que houvesse algum elemento de violação sexual nos ataques. Podia presumir isso com certo grau de certeza, visto
que as forças policiais eram bem

capazes de lidar com assassinatos rotineiros sem pedir a ajuda de um especialista, algo que apenas ela e uns poucos outros eram capazes de proporcionar. Quando pessoas
recém-conhecidas descobriam esse aspecto do trabalho de Fiona, geralmente estremeciam e perguntavam como ela conseguia se envolver em casos tão pavorosos.

Sua resposta mais comum era dar de ombros e dizer: 'Alguém tem de fazer. Melhor que seja alguém como eu, que sabe o que está fazendo. Ninguém pode trazer os mortos
de volta, mas às vezes é possível evitar que outros vivos se juntem a eles."

Ela sabia que essa era uma resposta vaga, cuidadosamente calculada para evitar mais perguntas. A verdade é que odiava o confronto inevitável com mortes violentas
que o trabalho com várias forças policiais trouxera para sua vida, para não falar das lembranças que isso despertava. Sabia mais sobre o que podia ser infligido
ao corpo humano, mais sobre as dores que o espírito podia aguentar do que jamais quisera saber. Contudo, era impossível escapar de tal exposição e, como isso sempre
exigia demais dela, só aceitava um novo trabalho quando se sentia suficientemente recuperada de seu último encontro direto com as vítimas de um serial killer.

Fazia quase quatro meses desde que Fiona trabalhara numa série de assassinatos. Um homem havia matado quatro prostitutas em Merseyside, num prazo de um ano e meio.
Graças, em parte, à análise de dados que Fiona e um de seus alunos da graduação haviam realizado, a polícia fora capaz de reduzir o número de suspeitos o suficiente
para que a detecção forense pudesse ser aplicada. Agora tinham um homem em custódia, acusado de três dos quatro crimes, e, graças à compatibilidade do DNA, eles
estavam bastante certos de que conseguiriam sua condenação.

Desde então, seu único projeto de consultoria policial fora um estudo de longo prazo sobre ladrões reincidentes para a polícia sueca. Estava na hora de sujar as
mãos de novo, pensou. Apertou o botão de <responder>.

De: Fiona Cameron <kameron@psych.ulon.ac.ulc>

Para: Salvador Berrocal <Sberroc@cnp.mad.es>

Assunto: Re: Pedido de consultoria

Caro major Berrocal,

Caro major Berrocal, Obrigada pelo seu convite para atuar como consultora para o Corpo Nacional de Polícia. A princípio, estou disposta a aceitar seu pedido. No
entanto, antes de ter certeza de que eu possa ser de serventia para o senhor, preciso de mais detalhes. O ideal seria ver um esboço das circunstâncias de ambos
os crimes, um resumo dos relatórios da patologia e algum depoimento de testemunhas. Entendo razoavelmente bem o espanhol escrito, portanto, em prol da velocidade,
não é preciso que esses documentos sejam traduzidos. Claro que qualquer coisa que o senhor me mande será estritamente confidencial.

Em nome da segurança, sugiro que envie esses documentos por fax para a minha casa.

Fiona digitou os detalhes sobre o fax e o telefone de casa e enviou o e-mail. Na melhor das hipóteses, poderia ajudar a prevenir outros assassinatos e adquirir
dados úteis para suas pesquisas no processo. Na pior, teria uma desculpa válida para ficar de fora das repercussões do fiasco do julgamento de Hampstead Heath.
Alguém - ou melhor, dois espanhóis - havia pago um preço alto para manter Fiona Cameron longe das manchetes.

2.

Ao passar pela porta de casa, Fiona escutou REM dizendo que ninguém amava um professor triste. Como sempre, Kit tinha enfiado meia dúzia de CDs no aparelho de
som de seu escritório, programado para tocar de modo aleatório, e saído de casa enquanto ainda restavam horas para a seleção terminar. Ele não suportava o silêncio.
Fiona descobrira isso logo no começo do relacionamento, quando o convidara para uma caminhada em sua preciosa Derbyshire e vira, horrorizada, que ele enchera a
mochila de fitas cassetes para o wallunan. Várias vezes chegava em casa e, mesmo sem ninguém lá, encontrava o escritório de Kit reverberando ao som de alguma música,
a televisão da sala mugindo como um touro e o rádio da cozinha acrescentando um contraponto enlouquecido à barulheira infernal. Quanto maior o barulho, mais fácil
parecia ser para Kit escapar para seu mundo imaginário. Já Fiona, que precisava de silêncio para se concentrar em qualquer coisa vagamente criativa, considerava
aquilo um paradoxo incompreensível.

Na primeira vez em que conversaram sobre a possibilidade de morarem juntos, Fiona ressaltou que qualquer propriedade que comprassem tinha de ser capaz de lhe proporcionar
um cômodo silencioso para trabalhar. Eles acabaram com uma casa alta e estreita em Dartmouth Park, que tinha pertencido a um roqueiro. Ele havia convertido o sótão
em um estúdio à prova de som, o que garantia a Fiona o espaço perfeito para escapar da barulheira de Kit. E era também grande o suficiente para que ela pudesse
instalar um

sofá-cama, ideal nas noites em que Kit ficava escrevendo até altas horas da 'madrugada por causa do prazo de entrega de algum livro. Às vezes, ela sentia um profundo
pesar pelo prolongado sofrimento dos vizinhos. Eles deviam odiar o mês de fevereiro, quando, invariavelmente, o final de um livro se traduzia em Radiohead até
a madrugada.

Fiona soltou a mochila, entrou no escritório de Kit no primeiro andar e desligou o som. O abençoado silêncio foi como um bálsamo para sua cabeça. Ela seguiu para
o quarto deles no segundo andar, a fim de se livrar da inçlumentária de caminhada e vestir algo mais confortável. Em seguida, subiu com dificuldade os últimos dois
lances de escadas até seu escritório, sentindo os músculos da perna repuxarem. A primeira coisa que notou foi a luz piscando na secretária eletrônica. Quinze mensagens.
Poderia apostar que eram todas de jornalistas, e não estava com disposição de escutá-las, muito menos responder. Essa era uma daquelas ocasiões em que se sentia
absolutamente determinada a não dizer nada que pudesse ser distorcido de acordo com os interesses de alguém mais.

Ao colocar o laptop na escrivaninha, Fiona percebeu que o major Berrocal não tinha perdido tempo. Havia uma pilha de papéis na bandeja do fax. Isso ela não podia
ignorar. Abafando um suspiro, pegou a pilha, acertou as pontas automaticamente e desceu de novo.

Como Kit havia prometido, seu jantar estava na geladeira. Imaginou por um momento quantos fãs dele acreditariam que o homem que criava cenas de violência gráfica
tão fortes a ponto de deixar os críticos com pesadelos era a mesma criatura cuja ideia de relaxamento após um dia duro de trabalho consistia em preparar uma comida
elaborada para sua mulher. Eles provavelmente prefeririam acreditar que ele passava as noites em Hampstead Heath, arrancando a cabeça de animaizinhos peludos. Sorrindo
ao pensar nisso, Fiona encheu uma taça de vinho branco enquanto esperava o risoto aquecer, em seguida sentou-se à mesa da cozinha com o fax espanhol e um lápis.
Ao olhar de relance para o relógio, decidiu dar uma olhada no noticiário antes de começar a árdua tarefa de decifrar relatórios policiais estrangeiros.

A vinheta do jornal da noite expeliu seus acordes familiares. A câmera aproximou-se do rosto solene do apresentador. "Boa-noite. As manchetes de hoje. O homem
acusado do assassinato de Hampstead Heath saiu livre após a juíza acusar a polícia de haver montado uma armadilha para capturá-lo."

Matéria principal, percebeu Fiona, sem surpresa alguma. "As negociações de paz no Oriente Médio estão prestes a entrar em colapso, apesar da intervenção do presidente
dos Estados Unidos. E a cotação do rublo cai em virtude do último escândalo do sistema bancário russo."

A tela atrás da cabeça do apresentador mudou do logotipo do jornal para o exterior da Corte Criminal Central. "Hoje, no OId Bailey, o homem acusado de estuprar
e assassinar barbaramente Susan Blanchard foi libertado por ordem da juíza responsável pelo julgamento. A magistrada Justice Mary Delancey afirmou não restarem
dúvidas de que a Polícia Metropolitana capturou Francis Blake em uma operação que, segundo ela, foi 'quase uma caça às bruxas'. Apesar da ausência de provas concretas
contra o sr. Blake, disse ela, eles decidiram que ele era o assassino. Vamos falar agora com a nossa correspondente de assuntos internos, Danielle Rutherford,
que esteve presente no tribunal hoje."

Uma mulher por volta dos 30 anos, com cabelos castanhos emaranhados pelo vento, olhou avidamente para a câmera.

- Houve uma cena feia hoje no tribunal quando a juíza Justice Delancey ordenou que Francis Blake fosse libertado. A família de Susan Blanchard, que foi estuprada
e assassinada enquanto passeava em Hampstead Heath com seus bebês gêmeos, ficou furiosa com a decisão da juíza e a óbvia satisfação de Blake no banco dos réus.

"A juíza, porém, mostrou-se indiferente aos protestos e condenou a Polícia Metropolitana por seus métodos, que descreveu como uma afronta à democracia civilizada.
Agindo de acordo com os conselhos de um perito em perfil psicológico, a polícia preparou uma isca, usando uma atraente detetive para tentar ganhar a confiança
do sr. Blake e induzi-lo a confessar o assassinato. A armação, que custou centenas de milhares de libras ao orçamento de operações policiais e levou quase três
meses, não resultou numa confissão direta, embora a polícia acreditasse ter obtido provas suficientes para levar o sr. Blake a julgamento.

"A defesa argumentou que o que quer que o sr. Blake tivesse dito havia sido instigado pela detetive e calculado de modo a impressionar a personalidade que havia
falsamente projetado. A juíza concordou com essa visão. Após sua libertação, o sr. Blake, que passou oito meses detido em custódia, anunciou que iria buscar uma
indenização."

A tela de fundo mudou, revelando um homem truculento, de 20 e poucos anos, com cabelo preto curtinho e olhos escuros e fundos. Uma profusão de microfones e gravadores
portáteis surgiu na frente de sua camisa branca e paletó preto. Sua voz era surpreendentemente estudada, e ele baixava os olhos com frequência para um pedaço de
papel que tinha em mãos.

- Sempre aleguei minha inocência quanto ao assassinato de Susan Blanchard, e hoje fui absolvido pela corte. No entanto, paguei um preço terrível. Perdi meu emprego,
minha casa, minha namorada e minha reputação. Sou inocente, mas passei oito meses atrás das grades. Vou processar a Polícia Metropolitana por falso encarceramento
e pedir indenização. E espero sinceramente que eles pensem duas vezes antes de acusar outro homem inocente. - Ele ergueu os olhos, os quais ostentavam um brilho
raivoso e hostil. Fiona estremeceu de modo involuntário.

A tela de fundo mudou de novo. Um homem alto num terno cinza amarrotado, cercado por dois outros vestidos com capa de chuva e com expressões duras como pedra, aproximou-se
da câmera de cabeça baixa e boca crispada. A repórter falou em off: "O oficial responsável pelo caso, detetive superintendente Steve Preston, recusou-se a comentar
a libertação de Blake. Em depoimento posterior, a Scotland Yard anunciou que no momento não está à procura de nenhum outro suspeito do assassinato de Susan Blanchard.
Danielle Rutherford, direto do Old Bailey."

De volta ao estúdio, o apresentador anunciou que eles fariam um retrospecto aprofundado do caso após os comerciais. Fiona desligou a televisão. Não precisava escutar
a versão resumida dos fatos. Por motivos bastante fortes, ela jamais esqueceria o estupro e assassinato de Susan Blanchard. Não por causa das fotos do corpo feitas
pela polícia, nem do relatório da autópsia e nem por seu conhecimento da cena do crime, a meros vinte minutos de caminhada de sua casa, embora tudo isso já fosse
terrível o suficiente. Tampouco por causa da brutalidade de um assassino que estuprara e esfaqueara uma jovem mãe na frente de seus dois filhos gêmeos de um ano
e meio.

O que tornava o assassinato de Hampstead Heath tão importante para Fiona era o fato de marcar o fim de sua cooperação com a Polícia Metropolitana. Ela e Steve
Preston eram amigos desde a época de graduação, quando estudavam psicologia em Manchester. Ao contrário da maioria das

amizades feitas na faculdade, a deles perdurara, apesar das diferentes opções de carreira. Assim sendo, quando a força policial britânica começou a considerar
as vantagens de trabalhar com psicólogos para aumentar suas chances de capturar criminosos reincidentes, pareceu a Steve a coisa mais natural do mundo consultar
Fiona. Esse tinha sido o começo de uma relação proveitosa, com a abordagem rigorosa na análise de dados de Fiona complementando a experiência e o instinto dos detetives
com os quais trabalhara.

Poucas horas depois de descobrirem o corpo de Susan Blanchard, ficou claro para Steve que aquele era exatamente o tipo de caso em que os talentos de Fiona poderiam
ser bem aproveitados. Um homem que matava daquele jeito não era um principiante. Steve aprendera o suficiente em conversas com Fiona e em sua própria leitura para
saber que um assassino desse tipo já devia ter deixado sua marca no sistema judiciário. Com sua experiência, Fiona seria capaz de, pelo menos, sugerir que tipo
de ficha criminal o suspeito teria. Dependendo das circunstâncias, ela poderia até mesmo indicar a área geográfica em que ele provavelmente morava. Fiona olhava
as mesmas coisas que os detetives viam, mas, para ela, elas teriam um significado diferente.

Francis Blake surgira como um possível suspeito logo no começo das investigações. Ele fora visto no Heath por volta da hora do assassinato, saindo correndo do
mato denso que cercava a pequena clareira onde o corpo de Susan fora encontrado por um passeador de cães que escutara as crianças chorando. Blake era gerente da
filial de uma funerária, o que deu a entender aos detetives que ele nutria uma atração nada saudável pela morte. E também já trabalhara num açougue na adolescência,
fazendo a polícia acreditar que não se sentia mal em ver sangue. Blake jamais havia sido fichado depois de adulto, porém, na adolescência, fora indiciado duas
vezes: uma por atear fogo a um latão de lixo e outra por agredir um garoto mais novo. Além disso, mostrara-se bastante evasivo quanto ao que estivera fazendo naquela
manhã no Heath.

Só havia um problema: Fiona não acreditava que Francis Blake fosse o assassino. Ela disse isso a Steve e continuou afirmando a quem mais quisesse ouvir. No entanto,
suas sugestões de linhas alternativas de investigação tinham, aparentemente, resultado em nada. Sob o olhar perscrutador de uma mídia raivosa, Steve estava sendo
pressionado a realizar uma prisão.

Certa manhã, ele aparecera no escritório dela na universidade. Bastou dar uma olhada em sua expressão dura para Fiona indagar:

- Eu não vou gostar disso, vou? Ele fez que não e se jogou na cadeira em frente a ela. - Você não é a única. Tentei argumentar até ficar sem voz, mas às vezes
é impossível contornar a política. O comandante passou por cima de mim. Ele convocou Andrew Horsforth.

Nenhum dos dois precisou dizer nada. Andrew Horsforth era um psicólogo clínico que havia trabalhado vários anos num manicômio judiciário cuja reputação só fazia
despencar a cada relatório publicado sobre o estabelecimento. Ao montar os perfis, ele utilizava uma abordagem que Fiona, desdenhosamente, chamava de "sentimental",
orgulhando-se da qualidade de sua intuição, adquirida em anos de experiência prática. "O que não seria um problema se ele conseguisse enxergar além do próprio
ego", comentara ela sarcasticamente certa vez, após escutar uma de suas palestras. Horsforth tivera o que ela considerava uma estreia de sorte no primeiro caso
de peso em que montara um perfil, e tirava partido disso desde então, nunca deixando de fornecer à mídia todas as declarações e entrevistas que esta pedisse. Quando
a polícia conseguia realizar uma prisão baseada no perfil do criminoso montado por ele, Horsforth era rápido em reclamar o crédito; quando não, a culpa nunca era
dele. Diante de um suspeito como Francis Blake, Fiona tinha certeza de que Horsforth faria o perfil se adequar ao homem.

- Então estou fora - declarou ela, com um ar de que a decisão era definitiva.

- Acredite em mim, você está fora mesmo - replicou Steve, com amargura. - Eles decidiram ignorar seu julgamento profissional e minha opinião pessoal. Vão seguir
em frente com a armadilha. Orquestrada por Horsforth.

Fiona balançou a cabeça, exasperada. - Ah, pelo amor de Deus! - explodiu ela. - É uma péssima ideia. Mesmo que eu achasse que Blake era o seu homem, ainda assim
seria uma péssima ideia. Vocês poderiam até conseguir alguma coisa que pudesse ser válida no tribunal se usassem uma psicóloga treinada, com anos de experiência
em terapia, para servir de isca, mas, nem com a maior boa vontade,

mandar uma policial novata instruída por um idiota como Horsforth é receita certa para o desastre.

Steve correu as mãos pelo cabelo escuro que começava a rarear, afastando-o da testa.

- Acha que não disse isso a eles? - Sua boca se fechou numa expressão de frustração.

- Tenho certeza que sim. E sei que você está tão irritado quanto eu. - Fiona levantou e se virou para olhar pela janela. Não suportava a ideia de deixar transparecer
sua humilhação, mesmo para alguém tão próximo quanto Steve. - Então é isso. Está tudo acabado com a Polícia Metropolitana. Nunca mais vou trabalhar com você ou
seus colegas de novo.

Steve a conhecia bem o suficiente para saber que seria inútil tentar discutir com ela naquele momento. Ele ficara tão zangado com a rejeição de seu próprio julgamento
profissional que a ideia de pedir demissão passara rapidamente por sua cabeça. Contudo, ao contrário de Fiona, não havia uma carreira alternativa em que sua experiência
pudesse fazer a diferença, portanto afastara a ideia com a desculpa autoindulgente de orgulho ferido. Esperava que, com o tempo, Fiona fizesse o mesmo. Mas não
era a hora de sugerir isso.

- Não posso culpá-la, Fi - disse com tristeza. - Sinto muito perder você.

Já recomposta, ela o encarou. - Não sou a única a quem você vai dizer que sente muito antes de tudo isso terminar - retrucou ela com suavidade. Mesmo então, percebera
que as coisas poderiam acabar muito mal. Os oficiais da polícia, desesperados por uma prisão e apoiados por um psicólogo aparentemente respeitável que lhes dizia
o que queriam ouvir, não ficariam satisfeitos até que seu homem estivesse atrás das grades.

Fiona não sentia prazer algum em verificar que tinha acertado em cheio.

3.

A fortaleza medieval de Toledo foi construída sobre uma escarpa rochosa, quase toda delimitada por uma curva do rio Tejo. O rio profundo e as escarpas íngremes
proporcionavam uma defesa natural para a maior parte da cidade, restando apenas uma estreita faixa de terra a ser protegida contra os inimigos. Hoje em dia, uma
bela estrada contorna a margem mais distante do Tejo, numa descida íngreme que parte da catedral ricamente ornamentada e do Alcázar, com suas linhas severas, proporcionando
visões panorâmicas de um emaranhado de prédios que adquirem um tom de mel sob a luz do sol. Isso era tudo o que Fiona se lembrava de um dia quente e empoeirado
treze anos antes, quando explorara a cidade com mais três amigos.

Eles estavam celebrando o final do doutorado com um tour pela Espanha num trailer velho da Volkswagen, visitando as principais cidades e pontos turísticos. Para
Fiona, Toledo significava El Greco, Fernando e Isabel, e vitrines cheias de armaduras e espadas. Se alguém tivesse dito àquela jovem psicóloga acadêmica que ela
voltaria ali um dia para prestar serviços de consultoria à polícia espanhola, ela teria imaginado que a pessoa estava sob efeito de algum alucinógeno.

O primeiro corpo fora encontrado em meio ao mato de uma ravina funda que descia até o rio Tejo, a cerca de 1,5 quilômetro dos portões da cidade. Segundo a tradição
local, o arroio ostentava o revoltante nome de La Degollada - a mulher com a garganta cortada, de acordo com o dicionário

de espanhol de Fiona. Dizia-se que o corpo original de La Degollada era de uma cigana que seduzira um dos guardas, permitindo que a cidade sofresse uma emboscada.
Sua punição por fazer um soldado perder a cabeça foi literalmente perder a própria. Ela teve a garganta cortada com tamanha violência que foi praticamente decapitada.
Fiona percebeu quase sem surpresa alguma que o dossiê fornecido pelo major Berrocal não dizia o que havia acontecido com o soldado.

A vítima de agora era uma cidadã alemã de 25 anos, Martina Albrecht. Martina trabalhava como guia freelancer, conduzindo grupos de turistas de língua alemã por
Toledo. Segundo amigos e vizinhos, Martina tinha um caso com um homem casado, um jovem oficial do exército espanhol agregado ao Ministério da Defesa, em Madri.
Na noite do crime, ele estava em um jantar oficial na capital, a pouco mais de 65 quilômetros do local. Eles ainda estavam bebendo café e conhaque na hora em que
o corpo dela fora encontrado, portanto ele havia sido completamente descartado como suspeito. Além disso, os amigos de Martina declararam que ela estava bem feliz
com a falta de compromisso na relação, e não dissera nada que indicasse haver algum problema entre eles.

O corpo fora encontrado pouco antes da meia-noite por um casal adolescente que tinha estacionado a motocicleta ao lado da estrada e descido a ravina, a fim de se
esconder de olhares indiscretos. Eles também haviam sido descartados como suspeitos, embora o pai da menina tivesse, em depoimento, acusado o namorado de ser perfeitamente
capaz de cometer o assassinato, tendo como base o fato de ele estar planejando deflorar uma jovem inocente.

De acordo com os relatórios da perícia, Martina encontrava-se deitada de costas sob a luz do luar, com os braços e as pernas estirados. O legista relatou que sua
garganta fora cortada da esquerda para a direita, por alguém que devia estar atrás dela e usou uma lâmina longa e bastante afiada, possivelmente uma baioneta. No
entanto, seria difícil afirmar com precisão e, como Toledo era famosa por seu aço, a venda de facas com pontas afiadas era uma ocorrência diária nas dúzias de
lojinhas para turistas que pontilhavam as ruas principais. A morte viera rapidamente, o sangue jorrando das carótidas cortadas em um par de jatos. Suas roupas
estavam empapadas de sangue, o que indicava que, na hora do crime, ela devia estar de pé, e não deitada.

Um exame mais aprofundado revelou o tecido da vagina dilacerado por 'repetidas estocadas com uma garrafa de vinho quebrada. A relativa ausência de sangue no local
indicava que, graças a Deus, Martina já estava morta nesse momento. A garrafa era de um vinho tinto barato, Manchegan, vendido em quase todas as lojas da região.
O único outro item de interesse encontrado na cena do crime era um guia de Toledo em alemão, manchado de sangue. O nome, endereço e telefone de Martina estavam
escritos no verso da capa, em sua própria caligrafia.

Não havia nenhuma evidência forense significativa, nem nenhuma indicação de como Martina fora levada até La Degollada. Não era um lugar de difícil acesso; a rota
panorâmica em torno do Tejo cruzava por ali, e havia muitos lugares nas redondezas onde um carro poderia ter sido escondido. Segundo a mulher com quem ela dividia
o apartamento, próximo à estação, Martina chegara do trabalho por volta das sete. Elas tinham comido juntas: pão, queijo e salada; e, em seguida, sua companheira
de casa saíra para encontrar um grupo de amigos. Até então, Martina não tinha planos, tendo dito que talvez saísse para tomar um drinque depois. Os oficiais da
polícia vasculharam os cafés e bares que ela costumava frequentar, mas ninguém confirmou tê-la visto naquela noite. Os membros do grupo para o qual ela servira
de guia no dia anterior haviam sido interrogados ao chegarem a Aranjuez no dia seguinte, mas nenhum deles percebera qualquer interesse particular na jovem por
parte de algum colega do grupo. Além disso, todos haviam passado a noite juntos numa festa flamenca. Todos eles tinham seu álibi confirmado por pelo menos três
outros membros do grupo.

Na ausência de pistas concretas, a busca estava estagnada. Era, pensou Fiona, o tipo de investigação frustrante, tipicamente provocada pelo primeiro crime de
uma série, em que o criminoso era inteligente o suficiente para saber como cobrir seus rastros, além de não temer ser capturado. Sem conexão óbvia entre vítima
e assassino, era sempre mais difícil identificar caminhos dignos de serem investigados.

Então, duas semanas depois, um segundo corpo apareceu. Um espaço relativamente curto, notou Fiona. Dessa vez, a cena do crime foi o grande monastério de San Juan
de los Reyes. Ela se lembrava dos claustros, um gigantesco quadrilátero ornamentado com estranhas gárgulas. Fora ali, lembrou-se, que um de seus amigos vira a
imagem bizarra de uma gárgula

Invertida - em vez de uma carranca grotesca decorando uma bica, essa estátua consistia em um corpo da cintura para baixo, como se o dono do corpo tivesse enfiado
a cabeça contra o muro.

A característica singular da igreja em si era o arranjo de algemas e correntes penduradas em sua fachada. Elas eram as mesmas correntes que os conquistadores mouros
usavam para prender os cristãos capturados em Granada. Quando o poderoso exército de Fernando e Isabel derrotou os mouros e recuperou Granada, os monarcas decretaram
que as correntes deveriam ser penduradas na igreja em memória dos mortos. Fiona se lembrava muito bem de sua aparência bizarra sob a luz do sol, ferro preto contra
a pedra dourada e decorada da fachada.

A segunda vítima era um estudante americano de arte sacra, James Paul Palango. Seu corpo tinha sido encontrado ao amanhecer por um gari que varria a rua ao lado
dos claustros do monastério de San Juan de los Reyes. Ele acabara de virar a esquina e passar para a calçada da frente da igreja quando seus olhos perceberam algo
acima de sua cabeça. Palango estava suspenso por um par de correntes. E, sob a luz suave do amanhecer, algo brilhava em torno da carne macia de seu pescoço. Quando
desceram o corpo, ficou claro que ele fora estrangulado com uma coleira de cachorro e, em seguida, preso às correntes com dois pares de algemas. O legista relatou
também que o corpo de Palango fora sodomizado repetidas vezes com o gargalo quebrado de uma garrafa de vinho, a qual continuava dentro do ânus esfacelado. Mais
uma vez, não havia nenhuma evidência forense significativa. O interessante é que, dentro de um bolso de Palango, haviam encontrado um guia de Toledo.

As investigações revelaram que Palango era um cristão evangélico, oriundo de uma família rica da Geórgia. Ele estava hospedado no hotel que ficava no alto de um
penhasco do outro lado do rio, de frente para a cidade. Segundo o gerente do hotel, Palango jantara cedo e depois saíra em seu carro alugado, por volta das nove
horas. O carro foi posteriormente descoberto em um estacionamento que ficava em frente ao Alcázar. Extensos interrogatórios na vizinhança revelaram que o americano
havia tomado um café na Plaza de Zocodover, no coração da cidade antiga, porém, em virtude da confusão noturna daquela área turística, ninguém percebera quando
ele saíra do café ou se estivera sozinho. E ninguém mais o vira desde então.

Fiona recostou-se na cadeira e esfregou os olhos. Não era de surpreender que o major Berrocal estivesse tão ansioso por sua ajuda. A única informação relevante
que a polícia conseguira coletar era a de que o assassino tinha de ser forte o suficiente para subir uma escada com um homem de 64 quilos, e ousado o bastante
para exibir sua vítima em um local público. Em uma nota escrita a mão, o major Berrocal ressaltava que, após o fechamento do café mais próximo, nas primeiras horas
da madrugada, a área em torno da igreja tornava-se erma e, embora pudesse ser vista por várias casas, o assassino havia escolhido o ponto mais distante da fachada
para exibir o corpo, onde seria menos provável que alguém o visse.

Fiona recostou-se novamente e esticou os braços acima da cabeça enquanto contemplava a informação que tivera tanto trabalho em decifrar. Profissionalmente, era
interessante, não havia dúvidas quanto a isso. O que precisava considerar é se poderia oferecer algo relevante à investigação. Já trabalhara com a polícia europeia
em diversas ocasiões, e várias vezes se sentira limitada por sua falta de conhecimento dos costumes sociais. Por outro lado, já começava a ter uma vaga ideia de
como esse assassino operava, e onde a polícia poderia iniciar sua busca.

Uma coisa era certa: enquanto ela hesitava, ele estaria planejando seu próximo assassinato. Fiona encheu a taça novamente e tomou sua decisão.

4.

Fiona já estava no meio da escada com o Guia da Espanha quando escutou a porta da frente se abrir.

- Olá! - gritou. - Trouxe Steve comigo - replicou Kit, a voz relaxada pelo álcool acentuando seu sotaque de Manchester.

Fiona estava cansada demais para apreciar a perspectiva de ficar acordada até tarde bebendo e conversando. Mas, pelo menos, era só Steve. Ele era parte da família,
bastante acostumado à companhia deles para se importar que ela fosse se deitar e os deixasse a sós. Fiona desceu o último lance de degraus e olhou para os dois.
Os homens mais importantes de sua vida; eles formavam um contraste estranho. Steve, alto, moreno e magrelo; Kit, com seu torso largo e musculoso fazendo-o parecer
mais baixo do que era, a cabeça raspada brilhando sob a luz. Steve, com seus olhos sagazes e dedos longos, é quem parecia o intelectual, enquanto Kit dava a impressão
de um tira durão que trabalhava como leão de chácara nas horas vagas. Os dois se viraram para ela, os rostos corados se abrindo num sorriso idêntico de garotinhos
encabulados.

- Pelo visto, o jantar foi bom - observou Fiona com sarcasmo, descendo rapidamente o restante dos degraus. Ela ficou na ponta dos pés para dar um beijo no rosto
de Steve e, em seguida, deixou que Kit a envolvesse em seus braços.
Kit plantou-lhe um beijo estalado na boca. - Sentimos sua falta - disse, soltando-a e seguindo para a cozinha. - Sentiram nada - retrucou Fiona. - Vocês tiveram
uma ótima noite sozinhos, só os rapazes, comeram quilos de carne de animais mortos, beberam... - Ela fez uma pausa, inclinando ligeiramente a cabeça para analisá-los.
- ... três garrafas de vinho tinto...

- Ela nunca erra - interrompeu Kit. - ... e conversaram sobre como endireitar o mundo - concluiu Fiona. - Ficaram muito melhor sem mim.

Steve sentou numa das cadeiras da cozinha e aceitou o copo de conhaque que Kit lhe ofereceu. Ele estava com o ar de um homem sob ataque que finalmente sente ter
alcançado um porto seguro. Ergueu seu copo, num brinde insolente.

- Que nossos inimigos se deem mal. Você está certa, Fi, só que pelos motivos errados - disse ele.'

Fiona sentou-se em frente a ele e puxou a taça de vinho para si, intrigada. - Acho difícil de acreditar - replicou ela, com implicância. - Fi, só fiquei feliz
por você não estar lá porque sei que você já está com a cabeça cheia o suficiente, e não precisava me ouvir reclamar sobre como eu nunca teria passado pelas humilhações
de hoje se tivesse trabalhado com você em vez de com aquele idiota do Horsforth. - Steve ergueu a mão para indicar a Kit que um dedo de conhaque era mais do que
suficiente.

Kit se recostou contra a bancada da cozinha, envolvendo seu copo com ambas as mãos para aquecer o álcool.

- Você está certo quanto à cabeça cheia. - Ele riu, o orgulho que sentia por ela visível no sorriso afetuoso.

- Os iguais se reconhecem - devolveu Fiona. - Sinto muito que você tenha tido um péssimo dia, Steve.

Antes que ele pudesse responder, Kit se intrometeu: - Era para acontecer. Aquela investigação estava condenada desde o princípio. De qualquer forma, vocês nunca
conseguiriam escapar impunes com um engodo daqueles no tribunal, mesmo que Blake tivesse mordido a isca e confessado tudo, tintim por tintim. Os júris britânicos
não engolem
uma emboscada. Qualquer inglês médio considera trapaça armar para alguém quando a prova não foi coletada de maneira correta.

- Não use meias-palavras, Kit, diga logo o que você realmente pensa - retrucou Steve, com sarcasmo.

- Esperava que vocês dois já tivessem chegado a uma conclusão - protestou Fiona com suavidade.

- Ah, chegamos - respondeu Steve. - Sinto como se tivesse usado uma camisa de silício o dia inteiro.

- Ei, eu não disse que a culpa era sua - lembrou-o Kit. - A gente sabe que passaram por cima de você. Se alguém devia estar se autoflagelando, esse alguém é seu
comandante. Mas pode apostar sua aposentadoria que, hoje à noite, Teflon Telford vai lavar as mãos com um frasco inteiro de detergente, tal qual Pôncio Pilatos.
Vai ser assim: "Bom, é verdade, mas às vezes você precisa deixar que os oficiais mais jovens tomem as decisões, e eu achei que Steve Preston fosse conseguir lidar
melhor com o caso" - concluiu ele, imitando a voz grave do chefe de Steve.

Steve olhou fixamente para seu conhaque. Kit não estava dizendo nada que ele já não soubesse, mas escutar isso da boca de outra pessoa não deixava o fracasso com
um gosto menos amargo. No dia seguinte, teria de encarar os colegas sabendo que era a pessoa designada para carregar a cruz. Alguns conheciam suficientemente bem
a política para perceber que ele não era nada além do que o bode expiatório da vez, mas muitos outros adorariam a chance de rir pelas suas costas. Esse era o
preço a pagar por seus antigos sucessos. E, no ambiente competitivo do alto escalão da Polícia Metropolitana, você era apenas considerado por seu último sucesso,
ou fracasso.

- Vocês realmente não estão atrás de mais ninguém? - perguntou Fiona, percebendo a depressão de Steve e tentando dar um rumo mais positivo à conversa,

Steve assumiu um ar rebelde. - Essa é a posição oficial. Dizer qualquer outra coisa agora vai fazer com que pareçamos mais cabeças-duras do que já parecemos. Mas
não estou feliz com isso. Alguém matou Susan Blanchard, e você sabe melhor do que eu que esse tipo de assassino não vai parar por aí.

- E o que você vai fazer com relação a isso? - quis saber Fiona.
Kit lançou-lhe um olhar especulativo. - Acho que a pergunta é: o que você vai fazer com relação a isso? Fiona fez que não, tentando não demonstrar sua irritação.
- Ah, não, não tente fazer com que eu me sinta culpada. Eu disse que nunca mais trabalharia para a Polícia Metropolitana de novo, não depois desse fiasco, e falei
sério.

Steve abriu as mãos num gesto conciliatório. - Ei, mesmo que eu fosse responsável pelo orçamento, não te insultaria dessa forma.

Kit agarrou uma das cadeiras e se sentou de pernas abertas. - É, mas ela me ama. Eu posso insultá-la. Vamos lá, Fiona, não ia doer nada se você desse uma olhada
no material da emboscada, ia? Só como um exercício acadêmico.

Fiona suspirou: - Você só quer o material em casa para poder meter o bedelho e dar uma olhada nele - disse ela, mudando de tática. - É tudo grão para o seu pequeno
e horripilante moinho, não é mesmo?

- Isso não é justo! Você sabe que eu nunca bisbilhoto material confidencial - replicou Kit, com uma expressão indignada.

Fiona soltou uma risadinha. - Te peguei. Kit riu. - Muito justo, chefe. Steve recostou-se na cadeira, pensativo. - Por outro lado... - Ah, cresçam vocês dois
- resmungou Fiona. - Tenho coisa melhor a fazer do que avaliar a pequena e suja operação de Andrew Horsforth.

Steve analisou Fiona. Ele a conhecia bem o suficiente para saber que tipo de desafio poderia dobrar sua teimosa resistência, e estava desesperado o bastante para
arriscar.

- O problema, Fi, é que as pistas estão realmente frias. Já faz mais de um ano que Susan Blanchard foi assassinada e quase dez meses desde que deixamos de prestar
atenção em qualquer outra pessoa que não Francis Blake. Não quero deixar o caso sem solução. Não quero que seus filhos cresçam com um monte de perguntas sem respostas.
Você conhece muito bem o tipo
de dor emocional gerada pela falta de informação. Eu realmente quero saber o filho da mãe que fez isso. Mas precisamos de pistas frescas - comentou ele. - E,
como Kit disse, isso pode, no mínimo, ser útil para você profissionalmente.

Fiona bateu a porta da geladeira com mais força do que o necessário. - Você é um sujeitinho manipulador - reclamou ela. No entanto, saber que ele estava deliberadamente
apertando seus botões não impediu que reconhecesse o mérito do argumento. Sentindo-se atingida, tentou uma última estratégia de defesa: - Steve, não sou uma psicóloga
clínica. Não passo os dias escutando as pessoas falarem de suas vidinhas deprimentes. Trabalho com análise de números. Lido com fatos, e não impressões. Mesmo
que eu me sentasse e engolisse meu desdém por tempo suficiente para analisar os arquivos da emboscada, não sei se teria algo de útil a acrescentar no final.

- Mas isso não ia machucar, ia? - intrometeu-se Kit. - Não é como se você estivesse voltando atrás na sua palavra e retomando o trabalho com a Polícia Metropolitana.
Você estaria apenas fazendo um favor pessoal pro Steve. Quero dizer, era só para ele. Steve está angustiado. E ele é o seu melhor amigo. Você não quer ajudá-lo?

Fiona sentou e se inclinou para a frente, de modo que o cabelo castanho, cortado na altura dos ombros, cobrisse seu rosto como uma cortina. Steve abriu a boca
para falar, mas Kit fez sinal para que ele continuasse calado, murmurando entre os lábios: "Não!" Steve ergueu um ombro, num dar de ombros pela metade.

Por fim, Fiona suspirou fundo e afastou o cabelo com as duas mãos. - Merda, eu faço - concordou. Ao ver o sorriso de satisfação de Steve, ela acrescentou: - Não
estou prometendo nada, lembre-se disso. Mande as coisas para mim de manhã cedinho que eu dou uma olhada.

- Obrigado, Fi - agradeceu ele. - Mesmo que seja um tiro no escuro, preciso de toda ajuda que puder arrumar. Fico muito feliz.

- Ótimo. E devia mesmo - replicou ela, séria. - Agora, podemos falar de outra coisa?
Já passava da meia-noite quando Fiona e seu Guia da Espanha finalmente foram para a cama. Ao sair do banheiro, Kit viu o guia e franziu o cenho, curioso.

- Essa é uma forma sutil de me dizer que está na hora de começarmos a planejar umas férias? - perguntou ele, escorregando para debaixo do edredom e aconchegando-se
a ela.

- Quem me dera! Sinto muito, mas é trabalho. Recebi um pedido hoje da polícia espanhola para atuar como consultora. Dois assassinatos em Toledo que parecem o início
de uma série.

- Presumo, então, que você decidiu aceitar? Fiona balançou o livro debaixo do nariz dele. - É o que parece. Preciso conversar com eles de manhã sobre os aspectos
práticos, mas não acredito que vá ser difícil tirar alguns dias para ir até lá no fim da semana.

Kit virou-se de costas e cruzou os braços acima da cabeça. - E eu achando que você estava planejando férias românticas em Torremolinos.

Fiona colocou o livro de lado e se virou para fitar Kit, acariciando os pelos escuros no peito dele.

- Você podia ir comigo se quisesse. Toledo é uma bela cidade. Não é como se você não fosse conseguir arrumar nada para se distrair enquanto eu estivesse trabalhando.
Além disso, uns dias de folga não vão lhe fazer mal.

Ele passou um braço em volta dos ombros dela e a puxou mais para perto.

- Estou atrasado com o livro e, se você não estiver aqui no fim de semana, vou ter uma boa desculpa para me trancar e trabalhar o dia inteiro.

- Você pode trabalhar em Toledo. -A mão dela desceu para o abdômen. - Com você para me distrair? - Vou trabalhar o dia inteiro. E, levando em conta as experiências
anteriores, provavelmente metade da noite. - Ela se ajeitou para ficar mais confortável ao lado dele.

- Pelo visto, não vai fazer diferença alguma se eu ficar em casa. - Você ia gostar. - Fiona bocejou. - É uma cidade interessante. Pode servir de inspiração, nunca
se sabe.
- Certo. Já me vejo escrevendo um romance sobre um serial killer espanhol.

- E por que não? É um trabalho sujo, mas alguém tem de fazer. Só achei que você fosse apreciar uma folga em um lugar onde a comida é espetacular... - A voz dela
falhou, sonolenta.

- Eu também penso em outras coisas além do meu estômago - protestou ele. - Não é em Toledo que estão todos os El Greco?

- Isso mesmo - respondeu Fiona. - A casa dele também. - Os olhos dela estavam fechados e a voz tomou-se um murmúrio, indicando que ela estava escorregando irreversivelmente
para o mundo dos sonhos.

- Bom, isso faz com que a viagem pareça valer a pena. Talvez eu vá, afinal - observou Kit. Não houve resposta. O fato de Fiona ter madrugado e caminhado 16 quilômetros
pela imensidão inóspita de Derbyshire havia finalmente cobrado seu preço. Kit sorriu e esticou o braço livre para pegar a cópia do livro de James Sallis em sua
mesinha de cabeceira. Ao contrário de Fiona, ele nunca conseguia adormecer sem antes suprir sua dose diária de horror. A diferença, ponderou ele, é que sabia que
o que estava lendo era ficção. Não importava que não tivesse resolvido o crime ao apagar a luz. Seus assassinos não iriam matar novamente até que estivesse preparado
para eles.

5.

O voo para Madri não estava lotado. Sem esperar que Fiona pedisse, Kit deixou-a com duas poltronas só para si e se sentou do outro lado do corredor. Logo após
a decolagem, ele abriu o laptop e começou a trabalhar, o walkman abafando qualquer barulho que pudesse distraí-lo. No caminho até o aeroporto, havia implicado com
ela, perguntando quando ia começar a analisar o grosso material que Steve mandara entregar na casa, e que ela estivera propositalmente ignorando nos últimos dois
dias. Fiona vinha se escondendo atrás da necessidade de se familiarizar com o material de Toledo, mas, se fosse honesta, precisaria reconhecer que já fizera isso.
Agora não tinha desculpas, e o voo era longo o suficiente para começar a saborear o que teria de digerir.

A primeira seção começava com uma página de anúncios pessoais no Time Out. No decorrer dos longos interrogatórios policiais, Blake havia admitido que, embora
namorasse há bastante tempo uma comissária de bordo, gostava de responder a mulheres que colocavam anúncios na coluna de corações solitários. Ele dissera que preferia
as que pareciam inseguras, porque elas sempre se sentiam gratas por conhecer um sujeito boa-pinta como ele. Também admitia que o sexo era seu principal interesse,
mas insistia que não gostava de perder tempo com mulheres bonitas, porém burras. Pelo que Fiona se lembrava das transcrições originais dos interrogatórios, Blake
mostrara-se confiante, até mesmo arrogante, quanto à sua
capacidade de atrair as mulheres; um homem que sabia o que queria e não tinha dúvida de que podia conseguir. Ele definitivamente não dava a Impressão de ser fraco
ou inseguro.

Baseado em sua própria interpretação dos interrogatórios, Horsforth montara vários anúncios para atrair o suspeito. As primeiras tentativas obtiveram numerosas
respostas, embora nenhuma de Blake.

- Isso é que é entrar na cabeça do assassino - murmurou Fiona entre os dentes.

A segunda vez, porém, atingira o alvo. Blake havia respondido ao seguinte anúncio: "Mulher branca, solteira, 26 anos, magra, nova em Londres, procura homem para
conversar, jantar, ver filmes e apresentá-la às coisas boas e interessantes da cidade. Senso de humor indispensável. Favor enviar fotos."

Blake se descrevera como um profissional de 29 anos que gostava de ir ao cinema, ler e caminhar pelos parques londrinos, além de apreciar a companhia feminina.
Sob a orientação de Andrew Horsforth, a detetive novata Erin Richards escrevera a seguinte resposta:

Caro Francis. Obrigada pela sua carta. Ela foi, sem dúvida, a mais interessante que recebi. Preciso confessar que estou um pouco nervosa com relação a isso, pois
não é o tipo de coisa que faço normalmente. Você se importaria se nos correspondêssemos um pouco mais antes de marcarmos um encontro?

Como você, gosto muito de ir ao cinema. Que tipo de filme você prefere? Embora eu saiba que esse não é o gênero normalmente preferido pelas mulheres, adoro todos
aqueles suspenses macabros, como Os Sete Crimes Capitais, Oito Milímetros e Fargo, e também os filmes de Hitchcock, como Psicose. Mas é preciso que a trama seja
boa para me atrair. Com relação à leitura, não leio tanto quanto deveria. Meus autores prediletos são: Patricia Cornwell, Kit Martin e Thomas Harris. Às vezes,
leio histórias reais de assassinatos também.

Não conheço Londres bem o suficiente para saber onde é seguro caminhar. A gente lê coisas terríveis nos jornais, pessoas sendo assaltadas e estupradas nos parques,
e isso me deixa um pouco tensa, pois não sou daqui. Quem sabe um dia você possa me mostrar alguns de seus lugares prediletos para passear?

Sou funcionária pública. Nada muito interessante, sinto dizer. Trabalho como secretária no Ministério da Agricultura. Mudei-me de Beccles, em

Suffolk, depois que minha mãe faleceu. Não havia nada que me prendesse lá, visto que meu pai morreu uns dois anos antes dela, e não tenho irmãos ou irmãs. Achei
por bem vir me aventurar em Londres!

Adoraria saber um pouco mais de você, se achar que temos coisas em comum suficientes para apreciarmos a companhia um do outro. Pode enviar a carta para minha caixa
postal, pois vou mantê-la por mais umas duas semanas.

Sinceramente, Eileen Rogers

Blake enviara a resposta para a caixa postal: Cara Eileen. Obrigado pela carta adorável. Sim, acho que temos muito em comum. A princípio, parecemos gostar dos
mesmos tipos de livros e filmes.

Posso entender por que você se sente um pouco nervosa em andar em Londres sozinha. Sempre morei aqui, e há muitos lugares na cidade que não conheço. Às vezes fico
um pouco ansioso se preciso ir a algum deles a trabalho, pois é bem fácil acabar em algum local desconhecido, que nos pareça ameaçador. Deve ser muito mais difícil
para uma mulher sozinha. Ficaria feliz em servir de guia para você. Conheço bem Hampstead Heath, Regent's Park e Hyde Park, passeio bastante por eles.

Entendo que deva se sentir um pouco nervosa em encontrar um estranho como eu, mas gostaria de conversar com você pessoalmente. Não posso deixar de imaginar que
devemos ter muito a dizer um ao outro. Podemos marcar em algum lugar público, como é recomendado que se faça na primeira vez. Eu poderia encontrá-la no sábado
à tarde para tomarmos um café. Que tal o Hard Rock Café, na esquina do Hyde Park, às três? Você pode me ligar para confirmar os detalhes se quiser.

Por favor, diga que sim. Você me parece ser o tipo de mulher que eu gostaria de conhecer.

Respeitosamente, Francis Blake

O peixe mordera a isca com inacreditável facilidade, pensou Fiona. Não porque Horsforth tivesse sido particularmente esperto ou sutil no modo como orquestrara
a abordagem; Blake é quem se mostrara surpreendentemente ávido em fazer o contato, apesar de estar sendo objeto de tamanha

atenção policial. Talvez fosse esse o motivo; talvez ele estivesse desesperado por uma trégua com alguém que não fizesse ideia do que ele estava passando nas mãos
dos oficiais de justiça. Para um homem que parecia gostar de estar no controle, devia ser enfurecedor estar cercado de pessoas que pensavam saber mais sobre ele
do que na verdade sabiam. Uma estranha que não soubesse que ele estava sendo suspeito de um crime permitiria que se sentisse mais relaxado.

Quaisquer que fossem as razões, a operação pôde seguir em frente. A detetive Richards telefonou para Blake e marcou o encontro. O telefonema durou cerca de dez
minutos, notou Fiona. Eles conversaram sem que se sentissem desconfortáveis, na maior parte do tempo sobre filmes que tinham visto recentemente, e então combinaram
o encontro. Na primeira vez, como em todas que se seguiram, Richards usou uma escuta, transmitindo a conversa para uma van de apoio que os vigiava discretamente
o tempo todo.

Richards desempenhou bem seu papel, mantendo um equilíbrio apropriado entre nervosismo palpável e cordialidade amigável. Eles tomaram um café, em seguida ,Blake
sugeriu uma pequena caminhada pelo parque, antes de se despedirem. Enquanto caminhavam, ele mostrou a ela os lugares que poderia visitar sozinha em segurança e
os que deveria evitar. Parecia saber exatamente quais áreas eram abertas e bem iluminadas e quais eram escuras, flanqueadas por arbustos que poderiam proporcionar
esconderijos para alguém com uma intenção duvidosa. Não era o tipo de análise que uma pessoa comum faria do ambiente, pensou Fiona. Da mesma forma que alguém
que quase morre num incêndio passa a ter um interesse fora do comum por saídas de incêndio, apenas uma pessoa que pensasse em usar um parque para algo além de
ar fresco e exercícios veria o entorno da forma como Francis Blake via. Ele olhava o mundo como um predador, e não como" uma vítima.

No entanto, isso não fazia dele um assassino. Ele podia ser um assaltante, um voyeur, um exibicionista ou um estuprador, o que o levaria a exibir o mesmo tipo
de atitude. Horsforth, porém, permitira-se acreditar que Blake era um assassino, e interpretara seu comportamento de acordo com essa suposição. Isso ficava claro
em suas anotações sobre o encontro. A conversa tinha sido inofensiva o suficiente, mas, mesmo assim, Horsforth vira o que desejava ver.

Perceber isso deixava Fiona profundamente deprimida. Qualquer análise objetiva do material estava, de antemão, comprometida, uma vez que a visão precipitada de
Horsforth a respeito da atitude de Blake havia ditado todas as ações subsequentes da polícia.

Os encontros prosseguiram, duas ou três vezes por semana. No quarto encontro, Richards mencionou o assassinato de Susan Blanchard ao falar das coisas terríveis
que aconteciam com as mulheres na cidade. Blake replicou de imediato:

- No dia, eu estava lá. No Heath, quero dizer. Devo ter passado pelo lugar quase na mesma hora em que ela foi estuprada e morta.

Richards fingiu ficar chocada: - Meu Deus! Deve ter sido horrível. - Não percebi nada na hora. Bom, claro que não. Caso contrário, eu teria soado o alarme. Mas
não posso deixar de pensar que se tivesse escolhido uma rota um pouquinho diferente, se tivesse subido o monte por trás dos arbustos, em vez de seguir pela trilha,
teria me deparado com o assassino - gabou-se ele.

Essa conversa era importante, Fiona sabia. Só que mais uma vez era passível de uma interpretação diferente daquela que Horsforth intuíra. Para ele, isso significara
que Blake era um assassino desesperado para falar de seu crime, ainda que de modo indireto. Para Fiona, isso significava algo completamente diferente. Ela fez
uma anotação em seu caderninho e continuou.

No final da terceira semana, Blake começou a direcionar a conversa para o tema sexo. Segundo ele, estava na hora de levarem o relacionamento deles para o estágio
seguinte, além de idas ao cinema, caminhadas e jantares. Richards recuou ligeiramente, como tinham lhe instruído que fizesse, dizendo que queria ter certeza de
que eles eram compatíveis antes de dar esse passo definitivo e dormir com ele. O plano era levar a conversa para fantasias sexuais. Fiona precisou reconhecer que
essa tinha sido uma manobra esperta da parte de Horsforth, embora ela própria talvez tivesse abordado o assunto de forma mais indireta. Aí morava a diferença, não
era uma psicóloga clínica. Em questões desse tipo, precisava concordar que seu instinto provavelmente não era o melhor guia.

Foi a vez de Richards conduzir o rumo da conversa. E ela não perdeu tempo. Não é que fosse inexperiente no tocante a sexo, disse. No entanto,

por experiências anteriores, percebia que os homens com os quais dormia rapidamente a entediavam.

- Eles são tão previsíveis, tão convencionais - reclamou ela. - Quero ter certeza de que o próximo homem com quem me envolver terá imaginação, que me levará a
lugares que nunca conheci.

Blake imediatamente perguntou o que ela queria dizer com isso, e, como Horsforth devia tê-la instruído, Richards recuou de novo, dizendo que não sabia se poderia
discutir um assunto desses de modo tão aberto no meio do Regent's Park. Ela explicou que precisaria viajar na semana seguinte, para um curso de treinamento em
Manchester, e disse que escreveria para ele.

- Me sinto um pouco exposta aqui - disse ela. - Acho melhor colocar isso no papel. Aí, se você ficar chocado demais e desistir de mim, não precisarei ver sua cara,
certo?

Blake pareceu se divertir com a alternância entre indecência e timidez. - Aposto que nada do que você disser vai me chocar - replicou ele. - Prometo, você é quem
manda, Eileen. Vou levá-la a esses lugares. Aonde for, o que você quiser. Me escreva essa carta hoje à noite para que eu a receba na segunda de manhã, e garanto
que você vai ficar louca para voltar o mais rápido possível para Londres, assim que receber minha resposta.

De alguma forma, Fiona duvidava disso. No entanto, não tinha tempo de esclarecer suas dúvidas e ver como as coisas terminavam. Kit já guardara o laptop; as luzes
de "Apertem os cintos" estavam acesas e a tripulação já estava se dirigindo para suas poltronas, a fim de se preparar para o pouso. O major Berrocal estaria esperando
por eles no portão de chegada, e um trabalho em que acreditava ser capaz de proporcionar conselhos úteis sempre teria prioridade sobre algo já destruído por outra
pessoa.

Por enquanto, as fantasias pervertidas de Francis Blake e Erin Richards teriam de permanecer na pasta.

6.

O major Berrocal não estava esperando por eles no portão de chegada. Na verdade, encontrava-se ao lado da porta do avião quando esta se abriu, batendo o pé com
impaciência. Sem dúvida, ele conseguira transmitir uma mensagem para a tripulação, pois, assim que eles se levantaram após o pouso, uma aeromoça aproximou-se de
Fiona e pediu que ela a acompanhasse até a frente do avião, a fim de que pudesse desembarcar antes dos outros passageiros. Kit a seguiu logo atrás, oferecendo seu
melhor sorriso para a aeromoça e dizendo:

- Estamos viajando juntos. A primeira impressão que Fiona teve do policial espanhol foi de uma tremenda energia malcontida. Ele tinha uma estatura mediana, era
magro e pálido, com olhos azul-escuros que nunca se aquietavam. Seu terno cinzachumbo dava a impressão de ter sido passado naquela manhã, e as botas pretas brilhavam
como os sapatos dos militares. Esses dois detalhes destoavam do cabelo preto revolto, comprido o suficiente para cobrir o colarinho da camisa. Ele a cumprimentou
com um aceno de cabeça, ao mesmo tempo educado e brusco, e disse:

- Obrigado por vir, doutora. - Obrigada por vir nos receber. Major, esse é meu companheiro, Kit Martin. Eu comentei que ele viria comigo.

Kit estendeu a mão.

- Prazer em conhecê-lo. Não se preocupe, não vou atrapalhar vocês. Derrocai respondeu com um aceno de cabeça, indiferente. - Tenho um carro à nossa espera - falou
para Fiona, esticando o braço para pegar a maleta e o laptop dela. - Sr. Martin, se não se importar, siga para o setor de bagagens, um de meus homens irá encontrá-lo
lá. Ele levará o senhor e suas malas para seu hotel em Toledo. - Berrocal puxou um cartão do bolso da camisa. - Este é o número do meu celular. Se quiser falar
com a dra. Cameron, ela vai estar comigo. - Ele ofereceu um sorriso tímido e partiu pela ponte de embarque, rumo ao corredor principal.

- Sr. Amigável - ironizou Kit. - Sr. Sob Pressão, acho eu - replicou Fiona. Ela passou um braço em volta de Kit e lhe deu um abraço rápido. - Se precisar de mim,
ligue para o meu celular.

Eles seguiram atrás de Berrocal, Fiona quase tendo de correr para não perdê-lo de vista.

- Não se preocupe comigo - falou Kit. - Estou com o guia. Vou investigar Toledo por mim mesmo. Ou isso, ou vou estar debruçado sobre a mesinha de cabeceira do quarto,
tentando escrever.

Eles alcançaram Berrocal, que esperava ao lado da porta de segurança. - O senhor terá de passar pela alfândega - falou ele para Kit, apontando para o corredor à
esquerda.

- Prazer em conhecê-lo - respondeu Kit. Ser agradável não custava nada, principalmente porque Berrocal se dera ao trabalho de pegar um carrinho para ele. Kit beijou
Fiona de leve no rosto, dizendo "Vejo você mais tarde", e se afastou sem olhar para trás.

- Ele realmente não vai causar problema algum - disse Fiona, enquanto eles seguiam em direção à alfândega. - Kit não se importa em ficar sozinho.

Berrocal mostrou o distintivo e, com Fiona à sua frente, passou direto pelas formalidades.

- Não esperaria que o tivesse trazido se não fosse assim - respondeu ele de modo brusco. - Reservei um quarto para vocês no Parador de Toledo, mas gostaria de
seguir direto até as cenas dos crimes. Além disso, queria discutir o caso no caminho, o que não seria possível na frente do sr. Martin.

Um policial uniformizado esperava ao lado de um carro sedan, empertigando-se ao ver Berrocal se aproximar. Ele abriu a porta de trás e Fiona entrou. Berrocal deu
a volta no carro e se sentou ao lado dela.

- Toledo fica a uma hora do aeroporto - informou o major. - Se quiser fazer alguma pergunta, posso responder no caminho.

Ele obviamente não era um homem de jogar conversa fora, pensou Fiona. Não desperdiçara seu tempo com aquelas perguntas educadas e dispensáveis sobre o voo, que
geralmente lhe faziam ao chegar a alguma cidade. Tampouco sentira necessidade de falar sobre os livros de Kit, o que quase sempre acontecia quando ele a acompanhava
nas viagens.

- Que método de investigação o senhor empregou? - perguntou Fiona. - Além de procurar por testemunhas, é claro.

Berrocal se ajeitou no assento, a fim de poder olhar diretamente para ela.

- Examinamos nossos registros de ataques sexuais violentos. Várias pessoas foram interrogadas: Mas todas tinham um álibi para o primeiro ou o segundo assassinato,
ou para ambos. Fora isso, não tínhamos motivos para mantê-las sob custódia.

- Seu inglês é bem fluente. - Fiona não pôde deixar de comentar. - Falo melhor do que escrevo - retrucou ele, sorrindo pela primeira vez desde que tinham se encontrado.
- Minha mulher é canadense. Viajamos de férias a Vancouver todos os anos. Assim, quando a polícia decidiu consultar um especialista inglês em conexão de crimes
e criminosos seriais, fui a escolha óbvia para atuar como o oficial de ligação. Como falei no e-mail, não temos aqui um perito nessa área.

- Não sei se algum de nós possui o que eu chamaria de perícia em conexão criminal - respondeu Fiona secamente. - Tenho alguma experiência, mas, todas as vezes que
faço isso, sinto como se estivesse tateando no escuro, quase tanto quanto os detetives. Cada caso é diferente e, às vezes, as lições do passado não ajudam tanto
assim.

Ele concordou com um meneio de cabeça: - Entendo. Ninguém está esperando que faça um milagre, dra. Cameron. Mas, num caso como esse, precisamos de toda a ajuda
que pudermos conseguir. Não é segredo para a senhora que, quando um assassino escolhe um estranho, a maior parte dos nossos procedimentos policiais

torna-se inútil. Portanto, precisamos de um ponto de vista diferente, e isso é o que a senhora pode nos proporcionar.

Fiona ergueu as sobrancelhas e, para escapar do olhar penetrante dele, virou-se para a janela e ficou observando os carros passarem em alta velocidade pela rodovia.
Em um dos lados da via, viu a cidade que se estendia em direção ao centro; do outro, a terra vermelha e irregular da planície central hispânica, exposta por causa
de algum trabalho de construção. O solo argiloso, o céu de um azul quase metálico e as sombras densas das escavadeiras transformavam a vista numa pintura comovente
de Giorgio de Chirico, evocando calor e perigo. Por alguma razão, aquilo a fez se lembrar da imaginação surrealista de Cervantes. Tal como Dom Quixote, pensou,
ela estaria lá fora investindo contra os moinhos, tentando separar as sombras da realidade, com aquele homem incansável como seu Sancho Pança para mitigar sua
confusão.

- Li o material que me mandou - disse ela, afastando os pensamentos fantásticos e se virando para encará-lo novamente. - Não estou convencida de que seu homem
já tenha sido indiciado por ataques sexuais.

Berrocal franziu o cenho. - Por que a senhora diz isso? Pelo que li, achei que os serial killers geralmente tivessem um histórico de violência sexual. E ele cometeu
atos brutais de violência sexual nos corpos das duas vítimas.

- Verdade. No entanto, em ambos os casos, as violações foram cometidas após a morte. E a penetração foi com um objeto, e não com o pênis. Não que isso necessariamente
descarte um motivo sexual - acrescentou Fiona, quase sem pensar. - Só não acho que nesse caso a prioridade seja a satisfação sexual - continuou ela, com um pouco
mais de firmeza. - Superficialmente, esses casos podem parecer tratar de poder sexual, mas eles me parecem ser mais sobre profanação. Quase vandalismo - concluiu.

Berrocal remexeu-se no assento. Parecia estar pensando se, afinal, tinha sido uma boa ideia contatá-la.

- Se for esse o caso, por que os rostos não foram mutilados também? - Ele ergueu o queixo de modo visivelmente desafiador.

Fiona abriu as mãos. - Não sei. Mas imagino que talvez seja porque o assassino quisesse que as vítimas fossem reconhecidas logo. Nenhum dos dois era daqui, portanto

identificá-los levaria um pouco mais de tempo se os rostos ficassem irreconhecíveis.

Ele meneou a cabeça em concordância, parcialmente satisfeito com a resposta dela. Decidiu guardar para depois seu julgamento sobre aquela mulher que parecia não
ter dificuldades em encontrar meios de descartar a explicação convencional.

- Acho que talvez seja melhor eu não perguntar quais são suas teorias agora - declarou ele, com um ligeiro sorriso. - Melhor esperar que a senhora veja onde os
crimes aconteceram, e depois talvez possamos ir para a sede da polícia local. Montei um centro de operações para a investigação lá.

- Pelo que me lembro, o senhor disse que não trabalha em Toledo? Berrocal fez que não. - Normalmente trabalho em Madri. Cidades como Toledo apresentam um índice
bem baixo de assassinatos ao ano e, na maioria dos casos, eles são decorrentes de problemas domésticos. Como consequência, a polícia daqui não conta com ninguém
com boa experiência em homicídios mais complexos, e, portanto, precisou trazer um especialista de Madri. Infelizmente, temos um índice maior de assassinatos na
capital. Assim sendo, fui enviado para organizar a investigação.

- Isso não deve ser fácil - observou Fiona. - O senhor precisa tomar cuidado para não ferir a sensibilidade local.

Berrocal deu de ombros, os dedos martelando o batente da janela. - Por um lado. Por outro, é mais fácil para os oficiais de Toledo. Quando eu piso no calo das
pessoas, os policiais daqui podem jogar as mãos para o alto e dizer: "Ei, não é nossa culpa, é esse idiota da cidade grande, que veio aqui remexer as coisas e
que não sabe tratar as pessoas." Claro que alguns detetives ficam um pouco incomodados, eles veem minha presença como uma crítica ao trabalho deles, mas só preciso
amansá-los. - Os olhos dele se enrugaram com um sorriso maroto. - Mas a senhora deve estar familiarizada com esse tipo de reação também. Tal como eu e meu time,
a senhora é o que minha mulher costuma chamar de "visita importante".

Fiona acatou a expressão com um meio-sorriso. - Algumas vezes isso tem suas desvantagens. É possível que minha falta de familiaridade com o lugar ou com os costumes
locais me faça atribuir mais ou menos importância a algo do que deveria a princípio.

E ele deu de ombros novamente.

- O outro lado da moeda é que os locais podem assumir como corriqueiro algo que a senhora percebe como uma alteração no padrão.

- Toledo é uma cidade que atrai muito turismo, certo? - perguntou Fiona. - Certo. E é também a sede do arcebispado, portanto a burocracia da igreja ocupa uma
quantidade significativa de prédios em torno da catedral. Tire a Igreja e o turismo, há pouco espaço para qualquer outra coisa na cidade antiga. A cada ano que
passa, o número de moradores na parte antiga de Toledo diminui, e o de negócios tradicionais também.

Fiona fez uma anotação mental e continuou, buscando um tom de interesse casual:

- Isso por acaso gera rancor naqueles que são expulsos em prol das demandas da indústria do turismo?

Berrocal deu uma risadinha. - Acho que a maioria fica feliz em trocar um escuro apartamento medieval, aonde para chegar é preciso subir cinco lances de escadas
estreitas, por outro bani ventilado e iluminado, e com elevador. E com um terraço ou uma varanda onde possam se sentar ao ar livre. Para não falar no conforto
de ter água quente.

- Ainda assim... - Fiona escolheu as palavras com cuidado. - Eu cresci numa cidade pequena no norte da Inglaterra. Pouco mais do que uma vila, juro. Uma vila bem
bonita, no coração do distrito de Derbyshire Peak. Um lugar perfeito para caminhadas, ou para visitar as cavernas abertas ao público. Com o passar dos anos, os
turistas começaram a aparecer cada vez mais. Sempre que uma casa era posta à venda, ela era comprada por gente de fora que a transformava em uma residência de
veraneio. Todas as lojas da rua principal viraram casas de chá ou lojinhas de artesanato. Os pubs estavam mais interessados em preparar comida para os turistas
do que para os locais. Nos meses de verão, você não conseguia andar pela rua principal ou parar o carro em frente à sua própria casa. Quando eu sai de lá, metade
da população mudava a cada semana, viajantes em férias que apareciam com o carro abarrotado de compras. Tudo o que eles compravam na cidade era pão e leite. A
vila perdeu sua identidade. Ela se tornou uma república de turistas. E os locais que foram expulsos no processo não ficaram nem um

pouco satisfeitos. Mesmo supondo, eu diria que deve haver muitos nativos que não gostam do que está acontecendo com sua cidade.

Berrocal observou-a com olhos astutos. Ele era inteligente o suficiente para perceber que ela não estava falando apenas por falar. Tomando como base a facilidade
com que Fiona descartara a interpretação mais óbvia do histórico do assassino, o major entendeu que ela estava tentando lhe dizer alguma coisa.

- Você acha que alguém está matando pessoas porque não gosta de turistas? - Ele tentou não deixar transparecer a incredulidade na voz. Afinal de contas, a mulher
viera com uma recomendação da Scotland Yard.

Fiona desviou os olhos e fitou os campos verdejantes por onde passavam no momento.

- Não acho que seja assim tão simples, major. E não quero teorizar antes de analisar os dados. Mas acredito que seu assassino tenha um motivo mais incomum do que
uma simples frustração sexual.

- Certo. E o que a senhora quer fazer? - Quero fazer exatamente o que o senhor sugeriu. Quero ver os lugares onde os corpos foram encontrados e, depois, no seu
centro de operações, quero dar uma olhada nas fotos das cenas dos crimes e ler os relatórios completos do legista. Também gostaria de ver os guias encontrados
nos locais, se possível. Depois disso tudo, gostaria de voltar para meu hotel e refletir sobre as coisas que vi.

Ele concordou com um gesto de cabeça: - Como quiser. - Além disso, gostaria que o senhor conseguisse com seus colegas de Toledo quaisquer relatórios de vandalismo
contra lugares turísticos, hotéis ou negócios voltados para o turismo. E de ataques aos turistas em si. Tudo isso, digamos, dos últimos dois anos. Casos solucionados
e não solucionados, se possível. - Ela sorriu. - Também preciso de um mapa razoavelmente detalhado da cidade que possa ser escaneado.

- Pode deixar comigo. - Ele curvou a cabeça ligeiramente. - A senhora já me mostrou uma forma diferente de olhar os casos.

Fiona se ajeitou no assento de modo a poder olhar por cima do ombro do motorista.

- Espero que sim. Quando analiso um crime, não o observo com os mesmos olhos de um detetive. Procuro igualmente por elementos psicológicos e práticos que possam
ligar um crime ao outro. Também procuro por grupamentos geográficos. Além disso, fico atenta a qualquer outro sinal que possa me dizer alguma coisa sobre o criminoso.

- E então a senhora consegue descobrir como a mente dele funciona? Fiona franziu o cenho. - Não é exatamente a motivação o que eu tento descobrir. Busco desenvolver
uma ideia de como ele vê o mundo. Motivação é algo muito Individual. O que todos nós temos em comum é o fato de construirmos nossa identidade com base no que aprendemos
sobre o mundo. Assim, o modo como um criminoso comete seus delitos é um reflexo da forma como vive o resto de sua vida. Onde ele se sente confortável, física e
mentalmente. Procuro por padrões de comportamento no crime que possam me dar pistas de como ele se comporta no restante do tempo.

Ela deu um meio-sorriso e continuou: - Alguns de meus colegas adotam uma abordagem diferente, com a qual o senhor deve estar mais familiarizado. Eles observam
um crime e procuram por um conjunto de sintomas no passado do criminoso que produzem um jeito de viver particular no presente. Nunca achei isso muito útil. Na minha
opinião, há muitas pessoas que compartilham um passado semelhante sem se tornar psicopatas seriais para que isso possa ser usado como uma ferramenta de diagnóstico
precisa. Não estou dizendo que meus métodos produzam necessariamente um resultado mais exato, mas, em geral, isso ocorre porque eu raramente tenho dados suficientes,
e não porque o método seja falho. Não existe uma fórmula mágica, major. No entanto, meu treinamento é tão diferente do de um oficial da polícia que sou compelida
a ver as coisas de uma perspectiva distinta. Trabalhando juntos, acabamos vendo a coisa em estéreo, e não em mono. Não posso deixar de acreditar que isso nos
dê uma vantagem sobre o criminoso.

- É por isso que está aqui, doutora. - Berrocal se inclinou para a frente e falou alguma coisa rápido em espanhol para o motorista. Eles estavam se aproximando
de um grupo de modernas casas de subúrbio, a rua flanqueada por construções de concreto onde se viam lojas de mobílias, concessionárias de carros e pequenos negócios.
Ele se recostou de novo, pegou um maço de

cigarros e começou a brincar com ele entre os dedos. - Mais dez minutos. Aí vou poder fumar um cigarro e a senhora poderá começar a trabalhar.

Dessa vez, o sorriso de Fiona pareceu desanimado. - Mal posso esperar.

Extraído da Prova Decodificada P13/4599

Uzqhq dftag stfyg dpqdo agxpn qeaqm ek. Upuym suzpq ufarf qzngf uzykt qmpuf tmpnq qzyqe ekmzp rdust fqzuz s...

O documento em questão utiliza uma simples transliteração (a=m, b=n etc.) e um arranjo de letras em grupos de cinco caracteres, em vez do formato comum das palavras.
O que se segue é uma transcrição do material decodificado, acrescentando a pontuação correta em prol do sentido. J. M. Arthur, perito em documentação.

Nunca pensei que matar pudesse ser tão fácil. Já imaginara isso diversas vezes, mas em minha mente era sempre algo complicado e assustador. A realidade é bem diferente.
O surto de poder, é isso o que nos impele a levar a cabo a decisão. A imaginação definitivamente não nos prepara para o ato em si.

Outro erro que cometi foi pensar que o assassinato precisava fazer parte de algo mais. Mas a verdade é: matar pode ser um fim em si mesmo. Às vezes, as pessoas
precisam pagar pelo que fizeram, e tirar-lhes a vida é a única forma de fazer isso.

Nunca achei que pudesse me transformar num assassino. Eu já havia decidido o rumo de minha vida. Mas, então, algo mudou, e pude vê-los rindo de mim, esfregando
seu tão chamado sucesso em minha cara. Eu seria um homem digno de pena se aceitasse a provocação sem fazer nada.

Ninguém sabe como irá reagir quando sua vida é roubada por pessoas que não querem saber quem sairá machucado. Bom, nunca fui o tipo de homem que apenas observa
as coisas acontecerem sem reagir, e vou fazê-los pagar. Vou mudar as regras. Mas não serei óbvio. Serei sutil e escolherei meus alvos com cuidado.

Dessa vez, eles não vão poder me ignorar. Não vão poder me excluir. Eu é que vou riscá-los do mapa, escrevendo seus nomes com sangue, enviando uma mensagem em
alto e bom som. Eles são responsáveis por sua própria ruína, é isso o que vou dizer. Viva segundo sua palavra, e morra por ela.

Não é difícil rastrear escritores de suspense. Estou acostumado a observar as pessoas, faço isso há anos. E o fato de eles serem tão fúteis não é nada mal. A Internet
está repleta de sites nos quais eles dão entrevistas a três por quatro. Além disso, eles estão sempre fazendo aparições públicas.

Assim sendo, faz todo sentido começar com alguém que se expõe bastante, para facilitar ao máximo o meu trabalho. Acho que a melhor forma de provar meu ponto de
vista é fazê-los sentir o gostinho de seu próprio remédio. Matá-los, pura e simplesmente, não seria o bastante. Quero que fique claro desde o princípio que não há
nada de acidental no que irá acontecer. E saber o que está por vir os fará sofrer ainda mais. Satisfação, é isso o que eu desejo.

Para fazer com que a punição esteja à altura do crime, preciso conhecer bem o crime, e agora terminei minha lista. Classifiquei-os segundo a facilidade com que
penso que conseguirei matá-los, e foi assim que escolhi meus candidatos à execução:

1. Drew Shand

2. Jane Elias

3. Georgia Lester

4. Kit Martin

5. Enya Flannery

6. Jonathan Lewis

Agora, tudo o que preciso fazer é descobrir como capturá-los.

Eles me colocaram nessa jaula. Só que deveriam saber que animais enjaulados se tornam perigosos.

Foram eles que provocaram isso.

7.

Fiona desceu a trilha estreita, feliz por ter escolhido mocassins sem salto para viajar. Não que ela fosse particularmente íngreme, mas o chão de terra batida
era pontilhado por pequeninas pedras que poderiam representar um perigo para os tornozelos se estivesse de salto. Fez uma anotação mental para verificar que tipo
de sapatos Martina Albrecht estava usando na hora da morte. Isso poderia lhe indicar se ela havia acompanhado o assassino até a cena do crime de livre e espontânea
vontade ou não.

À sua frente, Berrocal diminuiu o passo e se virou, exalando uma nuvem de fumaça que fez Fiona se lembrar das fogueiras no norte do Saara, nas quais usavam bosta
seca de camelo.

- A senhora está bem? - perguntou o major. - Estou - respondeu ela, aproximando-se dele e aproveitando a pausa para dar uma olhada nos arredores. Eles estavam
num vale estreito e plano, que se distanciava da estrada numa descida em curva. As paredes altas de ambos os lados já tiravam a visão do viaduto que fazia a circunvalación
em torno da margem sul do Tejo. Dali em diante, não era possível ser visto pelos faróis de um carro que estivesse passando. As laterais do vale eram cobertas
por uma vegetação baixa, com algumas poucas árvores pontilhando as áreas menos íngremes.

- Estamos quase chegando - informou Berrocat. - Está vendo aqueles arbustos ali? É um pouco depois. - Ele se pôs em marcha novamente, com Fiona logo atrás.

- Ele devia ter uma lanterna - comentou ela, ao ver os arbustos se fechando em volta deles, quase se encontrando acima de suas cabeças. A fumaça de Berrocal atingiu
seu rosto, e ela se forçou a não respirar pelo nariz até que estivessem em campo aberto novamente.

- Acho que ela não o teria acompanhado, caso contrário - retrucou Berrocal. - Não há sinal de luta em lugar algum, nem na estrada nem na trilha.

- Que tipo de sapato ela estava usando? Berrocal se virou e sorriu, como se recompensasse um pupilo inteligente. - Sandálias baixas. Ela provavelmente seguiu até
a armadilha sem pensar duas vezes.

Ao deixarem os arbustos, eles se depararam com uma pequena clareira. Na ponta mais distante, um par de oliveiras retorcidas ladeava a trilha. Um policial uniformizado
estava escondido nas sombras, bem na entrada da clareira. Ele deu um passo à frente, a mão indo direto para o coldre. Ao ver que era Berrocal, bateu continência
e recuou. A área toda continuava cercada pelas familiares fitas de isolamento, que agora pareciam desbotadas e sujas. Fiona viu a mancha vermelho-amarronzada irregular
na trilha e na vegetação que a cercava, o único sinal evidente de que ali ocorrera um crime violento. De modo aparentemente incompatível, ela escutou o gorjear
dos pássaros acima do ronco distante do tráfego. Sempre se admirava com a forma como o mundo prosseguia com a vida, como se ignorasse a tragédia ocorrida a poucos
metros de distância.

Depois de Lesley, ela se pegara andando pelas ruas da cidade onde ocorrera o crime, zangada e frustrada com o modo como as pessoas prosseguiam com suas vidas como
se nada tivesse acontecido, como se não tivessem nada a ver com aquilo. Claro que, de certa forma, aquilo não lhes dizia respeito. Fiona, porém, acreditava então,
e continuava a acreditar que as sociedades tinham os criminosos que mereciam. Crimes brutais não surgiam do nada; suas sementes eram lançadas pelos crimes mais
amplos da comunidade na qual estavam inseridos. Essa não era uma visão popular entre os oficiais da lei, portanto, quando trabalhava com a polícia, Fiona guardava
suas ideias só para si.

Assim sendo, ela olhou em volta sem dizer nada. Não havia muito que dizer além do óbvio. E Fiona nunca gostara de declarar o óbvio.

Berrocal apontou para a área manchada de sangue, apagando o cigarro sob a sola do sapato.

- Ela foi encontrada deitada próximo à poça de sangue, e não no meio dela. O que acrescenta peso à teoria de que ele estava atrás dela e ela estava de pé quando
sua garganta foi cortada. Misericordiosamente rápido, disse o legista. Aí, ao que parece, ele deu um passo para trás e a deixou cair.

- As lacerações vaginais ocorreram depois da morte? - perguntou Fiona. - Sim. Acreditamos que ele abriu as pernas dela. A grama estava amassada do lado dos quadris,
como se alguém tivesse ajoelhado ali. Ele cortou a calcinha fora, provavelmente com a mesma lâmina. Havia manchas de sangue no tecido. Em seguida, quebrou a garrafa
de vinho no chão e... - Berrocal pigarreou para limpar a garganta - ... inseriu o gargalo quebrado na vagina. Com uma força considerável. Várias vezes. Encontramos
fragmentos de vidro no lado direito do corpo, o que reforça a ideia de que ele era destro.

Fiona andou até a lateral da clareira e olhou para a cena do crime do ponto de vista que o assassino teria.

- O que me chama mais a atenção é o que mencionei antes. As mutilações sexuais ocorreram depois da morte, o que é incomum. Não há sinal de atividade sexual antes
do ataque. Ele partiu direto para o assassinato. Sem preliminares.

Berrocal concordou com um meneio de cabeça. - A senhora acha que isso é significativo? - Isso sugere uma pessoa que acredita não ter quase poder algum. E não
houve nenhuma hesitação. O que revela um ódio enorme. Assim, ao buscar crimes que possam estar ligados a esse, terei em mente que eles provavelmente exibirão características
semelhantes. - Fiona arregaçou as calças, agachou-se e estudou o solo. Não havia nenhum motivo especial para fazer isso. Na verdade, ela aprendia muito pouco com
a observação das cenas dos crimes. Nunca descobrira nada que não constasse nos arquivos que lia depois. No entanto, os oficiais de polícia esperavam que ela absorvesse
alguma coisa do lugar no qual o corpo fora encontrado. Era quase uma superstição e, portanto, decidira há tempos que era mais fácil se mostrar

indulgente e lhes dar o que esperavam do que começar uma relação com o pé esquerdo.

Ela se levantou. - Obrigada por me trazer aqui. - A senhora percebeu alguma coisa que já não soubesse? - perguntou Berrocal, dando um passo para o lado e indicando
que ela devia tomar a dianteira no caminho de volta.

A pergunta temida. - Confirmei uma hipótese - respondeu ela. - Seu assassino conhece bem o território. Esse não é um local que um simples visitante conheceria.

- Alguém daqui, então? - Acho que é seguro afirmar isso - declarou ela com firmeza. - Ele não apenas conhece este lugar, como sabe o que aconteceu aqui e o que
isso significa. - Fiona escutou o dique do isqueiro. Berrocal estava claramente determinado a recuperar o nível de nicotina em seu sangue, após uma hora confinado
num carro.

Tão logo eles contornaram a curva da trilha e a estrada voltou ao campo de visão, Fiona parou abruptamente. Um trem em miniatura, com uma fileira de vagões brancos
encardidos, atravessava o viaduto. Ela escutou o som longínquo de um comentário, embora distante demais para conseguir entender as palavras.

- Que diabos é isso? - perguntou, apontando para o trem e virando-se para Berrocal.

Ele ergueu as sobrancelhas como se estivesse cansado do mundo. - Eles o chamam de Tren Real. - Ele suspirou. - O Trem Real. Leva os turistas para um passeio pela
cidade antiga e pela circunvalación.

Fiona deu uma risadinha. - É difícil imaginar a família real andando naquilo. O rosto de Berrocal contorceu-se numa expressão de dor. - Ele não tem dignidade
alguma - concordou ele. - Não é meu exemplo favorito de turismo espanhol.

Eles voltaram para o carro em silêncio. Fiona parecia alheia aos arredores, absorta demais nos próprios pensamentos para apreciar a paisagem ou a vista da cidade
que se desdobrou diante deles ao alcançarem o nível da estrada.

- Agora vamos até a igreja - anunciou Berrocal. Fiona procurou esconder sua impaciência. Queria começar a trabalhar de verdade, e não gastar mais tempo observando
as cenas dos crimes. Se continuasse assim, poderia muito bem ter ido para o hotel com Kit. Teria sido tão útil quanto.

Uns 60 metros acima da rota panorâmica que Fiona percorria em direção à cidade, Kit abriu um par de pesadas venezianas de madeira decoradas com motivos em ferro.
A luz penetrou o aposento e ele soltou um leve assobio ao ver a vista. O Parador Conde de Orgaz, batizado em homenagem ao quadro mais famoso de El Greco, ficava
no alto do Cerro dei Emperador e proporcionava uma vista da cidade de tirar o fôlego. A visão quase irreal ainda guardava uma semelhança extraordinária com as paisagens
de vários outros El Grecos, apesar de já se terem passado quatro séculos e meio desde então. O hotel situava-se com perfeição no topo da colina oposta à cidade
e, do quarto deles, era possível ver toda a cidade medieval. Kit decidiu ceder à tentação.

Vinte minutos depois, um táxi o deixou na Plaza de Zocodover, uma praça cheia de vida que, segundo o guia, era o coração da vida social da cidade. Cercada por
cafés e confeitarias, os prédios altos, com venezianas nas janelas, ostentavam um ar de elegância ligeiramente decadente. Parecia uma típica cidade provinciana
do sul da Europa, pensou Kit. Mulheres andando de modo determinado com suas pesadas sacolas de compras, velhos sentados, fumando e conversando, adolescentes com
roupas de marca parados nas entradas das lojas ou nas esquinas, olhando furtivamente para as meninas e pavoneando-se. Mas nem sempre fora assim.

Pelo que descobrira em suas leituras, Toledo havia sido conquistada primeiro pelos romanos, depois pelos visigodos, em seguida pelos mouros e, por fim, pelos cristãos.
Embora houvesse se tornado a capital de Castela e o quartel-general das campanhas militares medievais contra os mouros, ela também ficara conhecida como um refúgio
de tolerância cultural.

No entanto, tudo isso havia mudado com o casamento de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, em 1479. O confessor pessoal de Isabel era o

cardeal Tomás de Torquemada, o homem escolhido pelo papa para ser o Grande Inquisidor da Espanha.

Kit dissera a Fiona que gostaria de ver os El Grecos em Toledo. Isso, porém, era apenas parte da verdade. O que o atraíra até a cidade era a perspectiva de andar
pelas mesmas ruas que Torquemada havia percorrido, muitas delas praticamente inalteradas desde antes do século XV. Queria deixar que sua imaginação o levasse até
a época em que as ruas de Toledo eram marcadas pelo medo e pelo ódio, quando irmão denunciava irmão, e padres ordenados inventavam métodos de tortura violentos
que ainda eram praticados, e quando o Estado pervertera a cruzada religiosa, transformando-a num meio de se enriquecer.

Toledo era uma cidade que, tanto pela conquista quanto pela opressão, estava ensopada com o sangue de seu povo. A perspectiva irresistível de descobrir o quanto
daquela atmosfera havia persistido era o que atraía a imaginação de Kit.

Não era difícil apagar ás imagens modernas e ver as ruas como elas deviam ter sido. Os prédios eram os mesmos, edifícios altos com vielas estreitas entre eles;
fachadas ostentando uma alternância entre tijolos erodidos e estuque desbotado, e que, em geral, já tinham visto dias melhores. Guarnecidas com venezianas nas
janelas para proteger do calor de setembro, a única coisa que descaracterizava essas fachadas eram os varais de roupas atravessando os becos.

Com a aproximação da sesta, as ruas se esvaziaram, e Kit viu-se praticamente sozinho a esquadrinhar o emaranhado de ruas entre a catedral e o monastério de San
Juan de los Reyes, seguindo seu mapa em direção ao antigo bairro judeu, La Judería.

Ele subiu um lance de escadas entre paredes altas e cegas, e chegou num pequeno jardim pontilhado por bancos e com uma vista espetacular. Só que paisagens contemporâneas
não era o que ele estava procurando. Kit deixou a mente vagar, afastando-se do presente; olhou por cima dos telhados de um vermelho desbotado, bloqueando as antenas
comuns de televisão e as parabólicas, e mergulhou no passado.

A Inquisição deveria estabelecer uma fé verdadeiramente cristã na Espanha. Só que, na verdade, ela se resumira ao antissemitismo e à ganância, pensou ele. Mas,
para ser justo, a maior parte dos movimentos de direita

opressores tinha raízes semelhantes. Naquela época, os judeus espanhóis eram vistos como pessoas demasiadamente poderosas e ricas. O conforto, a segurança e a
prosperidade de sua vida lhes foram roubados da noite para o dia, transformando-se num inferno.

Uma espécie de histeria devia ter se espalhado pelas cidades de Castela e Aragão, e aqueles que tinham algum ressentimento viram a oportunidade de acertar as contas
com seus inimigos. Carta branca para os inadequados, os vingativos e os hipócritas, refletiu Kit.

Uma vez denunciado, era quase impossível escapar incólume. Se a reencarnação existisse, pensou Kit, então Torquemada provavelmente voltara como o senador Joe McCarthy.
"Você é ou já foi um herege?"

A Inquisição havia envenenado a comunidade inteira. Ninguém devia se sentir seguro, exceto, talvez, o Grande Inquisidor e seu time de asseclas. Afinal de contas,
eles detinham uma dispensa especial dada pelo papa. Se alguém morresse sob tortura, ou se algum erro fosse cometido, eles tinham o poder de absolver um ao outro,
para que suas mãos e almas permanecessem limpas.

E agora outro assassino se encontrava à solta pelas ruas de Toledo, trazendo à tona velhos pesadelos e lançando uma nuvem negra sobre aquele paraíso turístico.
Seu rastro de vítimas podia ser insignificante se comparado aos assassinatos cometidos pelos inquisidores, mas, para aqueles afetados por essas mortes, a dor e
a confusão seriam igualmente intensas. Era isso o que Fiona estava encarando, e ele não a invejava nem um pouco. Tinha seus próprios fantasmas e, apesar do que
dizia a si mesma, ele não acreditava que seu trabalho ajudasse a aplacá-los. No entanto, não a forçaria a ver isso; ela precisava chegar a essa conclusão de livre
e espontânea vontade, e ainda faltava muito para isso acontecer. Ele tampouco invejava o caminho que ela teria de percorrer. Era muito mais fácil habitar o mundo
da imaginação.

Apesar do calor do sol, Kit tremeu de modo involuntário. Era verdade que um lugar mantinha seu espírito. Mesmo com a beleza que o cercava, era fácil demais invocar
os espíritos atormentados de antigos horrores.

Aquele era o território perfeito para um serial killer, pensou.

8.

Drew Shand recostou-se na cadeira e girou os ombros, fazendo uma careta ao senti-los estalarem. Já havia tentado de todas as maneiras ajustar a cara cadeira ortopédica,
mas sempre ficava enrijecido ao final de um dia de trabalho, do mesmo modo como ficava na época em que se sentava numa cadeira de cozinha vagabunda, debruçado sobre
um laptop de segunda mão. O assento eletricamente ajustável fora um dos primeiros luxos que comprara com o adiantamento substancial recebido por seu primeiro romance.
Contudo, ainda acabava o dia com dor nas costas.

Ao terminar o primeiro esboço de seu romance de estreia, Drew achou que ele seria uma boa leitura, mas, mesmo tendo tentado, não havia conseguido esconder a surpresa
quando seu agente lhe telefonou dizendo que ele tinha sido vendido por um montante de seis dígitos. E todos à esquerda da vírgula decimal. Além disso, pouco depois
do acordo, Copycat fora vendido para a TV, e a adaptação rendera vários prêmios para seu carismático astro, o que, como consequência, havia elevado o livro para
o topo da lista dos mais vendidos.

Contudo, mais do que o sucesso, mais ainda do que as excelentes críticas e o prêmio Crime Writers' Association Dagger pelo melhor romance de estreia do ano, Drew
apreciava o fato de ter podido pedir demissão de seu deprimente emprego como professor de inglês dos fedelhos irritantes e mimados das famílias de classe média
de Edimburgo. Para manter um teto

sobre sua cabeça, ele fora forçado a escrever Copycat de madrugada e durante as horas de descanso nos finais de semana, o que havia levado um ano e meio. Isso
lhe exigira muita perseverança e paciência para aturar a Implicância dos amigos, que ficavam lhe dizendo para fazer algo de útil na vida. Só que agora era ele
quem desfrutava de uma vida maravilhosa, enquanto os outros continuavam presos à chatice de um trabalho formal, de nove às cinco. Drew não trabalhava segundo o
cronograma de ninguém. Escrevia quando bem entendia. Tudo bem, isso acontecia quase diariamente, mas era ele quem decidia. Ele tomava as decisões, e não um patrão
escravocrata que agia como um cretino porque seu próprio empreguinho infeliz estava na reta.

E Drew adorava sua vida. Em geral, acordava por volta das dez, onze horas da manhã. Preparava um cappuccino em sua cafeteira italiana novinha, dava uma olhada
no jornal e, em seguida, despertava o cérebro sob os jatos fortes de uma ducha possante. Ao meio-dia, sentava-se em frente a seu computador de ponta com um par
de omeletes de bacon. Enquanto comia, relia o que havia escrito na véspera e, em seguida, checava os e-mails. Por volta de uma e meia, estava pronto para começar
a trabalhar.

E esse era apenas seu terceiro romance. Drew ainda desprendia muita energia ao martelar as palavras, fazendo pequenas pausas para avaliar a direção dos parágrafos
seguintes antes que seus dedos batessem nas teclas com a força típica de um homem que aprendera relutantemente a tocar piano quando criança. Não gostava de redigir
uma frase de modo ponderado ou de checar o número de palavras ao final de cada parágrafo. Tampouco fazia algo tão mecânico quanto estipular uma meta diária de
palavras. Apenas escrevia sem parar, até acabar a inspiração. O que, em geral, acontecia por volta das cinco horas. O engraçado é que normalmente percebia que
tinha escrito cerca de quatro mil palavras, dada uma margem de erro de umas duzentas. A princípio, achara isso coincidência, mas depois chegara à conclusão de
que quatro mil palavras era o máximo que seu cérebro conseguia produzir em um dia sem que o texto degenerasse em baboseira.

Bom, essa era uma desculpa tão boa quanto qualquer outra para dar o dia por encerrado. Drew desligava o computador, despia o roupão e vestia a roupa de ginástica.
A academia ficava a umas duas ruas de distância de seu apartamento georgiano de quatro quartos, nos limites da Cidade Nova,

e ele apreciava a caminhada pelas ruas ao escurecer, o ar frio virando fumaça tão logo era exalado. Tal qual o dragão mágico da música,*1 só que efeminado, pensou
com ironia enquanto virava a Broughton Street e subia os degraus da academia.

Drew adorava malhar. Sua série demorava exatamente uma hora. Quinze minutos na esteira, meia hora no aparelho de musculação Nautilus, exercitando todos os diferentes
grupos de músculos, dez minutos com pesos livres e, em seguida, cinco minutos na bicicleta. A mistura perfeita de exercícios aeróbicos e de força, com pesos e repetições
suficientes para deixar seu corpo torneado, sem virar um Stallone.

No entanto, não era apenas o prazer de sentir como o corpo de 31 anos reagia à rotina do dia a dia que levava Drew à academia. Era também a oportunidade de checar
os outros homens que frequentavam o lugar. Não fazia diferença que fossem heterossexuais ou homossexuais. Não ia à academia para paquerar, embora já tivesse se
dado bem umas duas vezes. O que gostava era da chance de observar os corpos se esforçando ao máximo, de admirar uma bunda bonita, um par de coxas firmes, ombros
bem definidos. Além disso, malhar o fazia se sentir em forma e preparado para qualquer surpresa que o resto da noite pudesse lhe reservar.

Depois de malhar, Drew relaxava na sauna da academia. Mais uma vez, não ia ali em busca de sexo, embora observar não arrancasse pedaço, olhar de esguelha um companheiro
bem-dotado. Às vezes, o olhar era retribuído, e eles então esperavam até que a sala revestida de pinho ficasse vazia para combinarem de se encontrar e tomar um
drinque num dos bares gays da vizinhança.

Isso era outra coisa com a qual não precisava mais se preocupar. Na época em que dava aulas, ele ficava extremamente receoso em aceitar qualquer convite feito em
algum lugar que não fosse um legítimo estabelecimento gay. E, mesmo então, sempre verificava os bares o mais cuidadosamente que podia antes de decidir passar
a noite ali. Poderia não ser problema algum para um ministro reconhecer sua homossexualidade em alto e bom som, mas, para um professor de Edimburgo, ser um gay
assumido ainda era

*1. Referência à música "Puff, the Magic Dragon", de Leonard Lipton e Peter Yarrow, cuja gravação de 1963 alcançou grande popularidade na Grã-Bretanha. (N. T.)

o caminho mais rápido para a fila dos desempregados. Agora, podia fazer iludido visual onde quisesse e com quem quisesse. O maior risco que teria de encarar seria
receber um soco no meio da cara, mas isso ainda não havia acontecido. Drew se orgulhava de seu instinto em saber de quem podia se aproximar ou não; acreditava
que isso era parte da sensibilidade que fazia dele um escritor tão fenomenal.

Sorriu consigo mesmo enquanto se vestia. O cara que tinha visto no remador era novo na academia - pelo menos, naquele horário -, embora lá o tivesse visto antes
no bar da esquina, o Barbary Coast. O Barbary era um dos mais novos bares gays da cidade, e o lugar predileto de Drew em toda Edimburgo. Nos fundos do bar havia
uma porta protegida por dois seguranças truculentos. Se eles já o conhecessem, simplesmente saíam da frente. Se não, perguntavam o que você estava procurando.
Se você dissesse que estava procurando pelo Quarto Escuro, eles o deixavam passar. Caso contrário, sugeriam educadamente que você permanecesse no salão principal.
Drew conhecia os dois pelo primeiro nome.

Ele tinha percebido o cara no remador observando-o através de um dos espelhos grandes que circundavam a sala de musculação. Calculou que, se chegasse ao Barbary
no prazo de uma hora, talvez o encontrasse sentado junto ao balcão. E, se ele soubesse da existência do quarto no segundo andar, bom, isso não seria nada mal.

Deus do céu, Drew amava o Quarto Escuro. Tinha a sensação de que tudo podia acontecer ali e, por experiência própria, em geral acontecia mesmo. Várias vezes. As
pessoas que tinham reclamado das incrivelmente detalhadas descrições de violência em Copycat teriam um ataque cardíaco se soubessem um milésimo do que os homens
faziam uns com os outros na escuridão de um quartinho do segundo andar, a poucos minutos de caminhada do clube de futebol Heart of Midlothian. Poderia apostar que
até alguns serial killers de verdade ficariam de cabelo em pé.

De volta a seu apartamento, Drew levou o tempo necessário para vestir-se com esmero. Jeans pretos justos que ressaltavam o pau e as bolas, e uma camiseta branca
com a estampa de seu livro. Colocou uma argola de ouro em uma das orelhas e passou um cinto de couro preto com tachinhas pelos ilhoses da calça. Calçou um par
de botas pretas de motociclista com solado

grosso e prendeu o fecho de velcro. Pegou a jaqueta de couro surrada, vestiu-a e se admirou no espelho de corpo inteiro. Nada mal, parabenizou-se. Excelente corte
de cabelo, pensou, passando os dedos pelos cabelos escuros e curtos que achava que o faziam parecer perigoso e sexy. O cara novo da academia valia cada centavo.

Drew abriu a gaveta da mesinha de cabeceira e tirou de dentro uma caixinha, uma pequena colher e um canudo, todos de prata, além de um cartão de crédito vencido.
Abriu a caixa e pegou uma porção generosa do pó branco com a colher. Usando o cartão de crédito, dividiu a cocaína em duas fileiras grossas. Inseriu o canudo na
narina esquerda, tampou a direita com o dedo e aspirou uma das fileiras. Jogou a cabeça para trás e deu duas fungadas, alegrando-se com a sensação de formigamento
que se espalhou pelo palato. Repetiu o processo com a narina direita e fez uma pequena pausa, apreciando a agitação inicial assim que a coca atingiu sua corrente
sanguínea. A coisa era boa; a sensação duraria algum tempo. E, se precisasse de mais, sabia que poderia conseguir no bar. Talvez não fosse da mesma qualidade de
seu estoque pessoal, mas resolveria o problema.

Por fim, Drew fechou'a pulseira de aço de seu Tag Heuer em tomo do pulso, tomando cuidado para não prender nenhum pelinho no processo. Estava pronto para a diversão.

Só não poderia saber que essa seria a última vez.

9.

Fiona abriu as venezianas e olhou através do Tejo para Toledo, resplandecente sob a luz prateada da lua nascente. À esquerda, podia reconhecer o esplendor de San
Juan de los Reyes, onde o corpo de James Palango fora encontrado pendurado pelas correntes. Daquela distância, o lugar parecia inofensivo demais para tal exibição.
Sem dúvida, quando o visitara naquela tarde, ele lhe parecera um ambiente improvável para um crime tão degradante. Alguns turistas haviam passado na hora, lendo
seus guias turísticos e tirando fotos, sem prestar atenção a ela ou a Berrocal. Fiona precisou se lembrar de que aquela era a igreja construída pelos dois monarcas
que haviam permitido a instauração da Inquisição. Muito provavelmente, San Juan de los Reyes havia presenciado coisas muito piores do que aquele último crime.

A visita à igreja não lhe acrescentou nada, mas permitiu a Berrocal a chance de descrever os detalhes da cena do crime e fumar mais três de seus execráveis cigarros.
Em seguida, eles caminharam pela cidade até a delegacia de polícia na qual Berrocal montara sua base.

- É mais fácil do que ir de carro - ressaltou ele. - Então, o que a senhora precisa saber? - perguntou, assim que se puseram a andar.

- Preciso me familiarizar com todos os detalhes dos casos. Desse modo, poderei montar uma lista completa das conexões-chave entre eles. Não faz sentido tentar
montar um perfil geográfico com apenas dois casos.

Não há informação suficiente, principalmente porque os dois lugares foram escolhidos por seu significado histórico. O que espero conseguir fazer é sugerir quais
registros o senhor deve examinar em busca de prováveis crimes anteriores que o assassino possa ter cometido - explicou Fiona.

- Isso pode ser facilmente arranjado. Todo o material relevante está na nossa sala. Separei uma mesa para a senhora. - Ele pegou o celular e discou. O telefonema
foi breve, uma rápida troca de palavras em que ele pouco falou. Berrocal desligou com um pequeno sorriso. - Os arquivos estarão à sua espera.

- Obrigada. Vou ler tudo, fazer algumas anotações e voltar para o meu hotel. Gosto de refletir por um tempo antes de redigir meu relatório preliminar, mas ele estará
pronto pela manhã.

Não havia nenhum equipamento de ponta na sala que Berrocal conseguira arrumar. O aposento localizado no final de um corredor abafado era escuro e sem janelas, com
paredes sujas e cheias de manchas, sobre as quais Fiona nem quis pensar muito a respeito. A sala fedia a cigarro, café velho e suor masculino. Quatro mesas tinham
sido amontoadas no espaço, e apenas uma ostentava um computador. Dois mapas grandes da cidade e dos bairros adjacentes decoravam as paredes, e um cavalete exibia
uma visão familiar - o quadro do crime, com fotografias das vítimas e várias anotações rabiscadas. Duas mesas estavam ocupadas por detetives de aparência esgotada
agarrados ao telefone, que mal levantaram os olhos quando Berrocal apressou-a a entrar.

Ele apontou para a mesa mais distante, com duas pilhas de arquivos escoradas uma à outra de maneira precária.

-Achei que a senhora poderia trabalhar ali - disse. - Peço desculpas pelas acomodações espartanas, mas esse era o único espaço disponível. Pelo menos o café é
bebível - acrescentou, com um sorriso irônico.

E pelo menos havia uma tomada próximo, pensou Fiona, enquanto se espremia no exíguo espaço entre a cadeira e a mesa.

- Esses são os arquivos dos assassinatos? - perguntou ela. Berrocal fez que sim. - Como a senhora pediu. Fiona levou algumas horas para analisar dúzias de relatórios
diferentes, ampliando seu conhecimento de espanhol o máximo que podia com a ajuda

do dicionário. Em duas ocasiões, precisou admitir a derrota e pedir a Berrocal que traduzisse as passagens que não entendera. Fez anotações enquanto prosseguia,
trabalhando com o banco de dados desenvolvido cuidadosamente por ela e um de seus alunos do doutorado, o qual atribuía probabilidades a características particulares
dos dois assassinatos. Em seguida, o programa analisava quais, dentre as características em comum, eram significativas em termos de atribuição dos crimes a uma
mesma pessoa. Por exemplo, a maioria dos assassinatos estranhos acontecia à noite; o fato de dois crimes em uma série terem ocorrido à noite não era, por si só,
suficiente para estabelecer uma conexão entre eles. Já atos de violência sexual a um cadáver com uma garrafa quebrada era algo relativamente raro e, portanto,
os dois crimes exibirem essa característica particular fazia com que o programa conferisse a isso uma importância bem maior.

A maior parte do material original de seu banco de dados viera do FBI, o qual tinha sido extremamente generoso com os detalhes referentes a crimes antigos ao perceber
que ela ficaria feliz em coletar informações sem os dados pessoais, como, por exemplo, nomes das vítimas e dos criminosos. Fiona sabia que, assim como as análises
estatísticas elaboradas pelos psicólogos, seu banco de dados fornecia, na melhor das hipóteses, apenas uma visão parcial do todo, embora isso lhe garantisse vislumbres
valiosos sobre a natureza dos crimes com os quais estava lidando. Talvez mais importante ainda: ele lhe permitia afirmar com certo grau de certeza se os crimes
faziam parte de uma série ou se eram o trabalho de criminosos distintos.

Ao fim da tarde de trabalho, ela conseguiu demonstrar empiricamente o que a polícia já deduzira com base no senso comum e na experiência: os dois assassinatos
tinham sido cometidos pela mesma pessoa, sem sombra de dúvida. Contudo, se não conseguisse oferecer nada além disso, então não haveria motivo para ter feito a
viagem. Fiona, porém, estava convencida de que, ao analisar os dados que tinha em mãos, poderia indicar à polícia outros crimes que o assassino talvez tivesse
cometido. Com acesso a essa informação, ela poderia, por fim, construir um perfil geográfico útil.

O que precisava agora era sair da delegacia e deixar a mente refletir livremente sobre as informações que conseguira extrair dos arquivos.

Ao chegar ao hotel, encontrou um bilhete de Kit sobre a mesa: "Desci até o bar. Me encontre lá quando chegar, e jantaremos juntos." Ela sorriu e

atravessou o quarto, indo até a janela para checar a vista. Era estranho pensar que a beleza que se desdobrava à sua frente escondia toda a gama normal de feiura
humana. Em algum lugar daquele formigueiro de prédios, um assassino prosseguia com sua vida, sem levantar suspeitas em ninguém. Fiona esperava conseguir colocar
a polícia no rumo certo, para que o encontrassem antes que ele matasse novamente.

Isso, porém, ficaria para depois. Fiona deu as costas para a janela e tirou a roupa, enrugando o nariz ao sentir o fedor de cigarro que ficara entranhado nas fibras
do tecido. Tomou um banho rápido e vestiu um jeans e uma camisa de seda acinturada.

Encontrou Kit sentado a uma mesa num dos cantos do bar, debruçado sobre o laptop, com uma taça de vinho tinto ao alcance da mão e uma tigela de azeitonas ao lado.
Passou o braço em torno do pescoço dele e deu-lhe um beijo no topo da cabeça.

- Seu dia foi bom? - perguntou, sentando-se na cadeira em frente a ele.

Ele levantouos olhos, surpreso. - Oi. Deixe-me salvar isso aqui. - Kit terminou o que estava fazendo e desligou o computador. Fechou-o e sorriu para ela. - Eles
te deram a noite de folga?

- Mais ou menos. Preciso redigir um pequeno relatório mais tarde. Estou deixando as informações assentarem antes de me comprometer com a avaliação. - Um garçom
apareceu e Fiona pediu um vinho de uva manzanilla, refrescado. - O que você andou fazendo?

Kit ficou um pouco sem graça. - Dei uma volta pela cidade hoje à tarde. Só para absorver a atmosfera, entende? Esse lugar respira história. É quase possível senti-la
no ar. Cada esquina que a gente vira, tem algo para ver, para imaginar. De qualquer forma, acabei pensando na Inquisição, em como devia ser a vida aqui na época.

Fiona soltou um gemido. - Nem me conte. Isso te deu a ideia para um novo livro. Ele sorriu. - Fez com que as engrenagens começassem a girar. - Era isso o que
estava fazendo no laptop?

Ele fez que não. - Não, ainda é cedo demais para começar a escrever alguma coisa. Só estava dando uma burilada nas coisas que escrevi na semana passada. Mexendo
e arrumando, a parte chata. E você? Como foi o seu dia?

O garçom trouxe o drinque de Fiona e ela tomou um gole. - Nada importante, rotina. Dei uma olhada nos arquivos de forma sistemática. Berrocal é bastante organizado.
E esperto. Não é preciso explicar nada a ele duas vezes.

- Isso facilita um pouco a sua vida. - Não brinca! O problema é que não tenho muito em que me basear. Normalmente, o local de desova de um corpo é bastante pessoal
para o assassino. E, uma vez que esses locais possuem um significado histórico particular, isso complica as coisas. Não sei se um perfil geográfico será muito
útil.

Kit deu de ombros. - Tudo o que você pode fazer é dar o melhor de si. O povo daqui certamente tem um interesse por coisas pavorosas. Eles têm esse trenzinho idiota
que atravessa a cidade e percorre a estrada circular do outro lado do rio, e as informações fornecidas pelo guia são totalmente bizarras. Elas são dadas em espanhol,
alemão e numa espécie de inglês capenga. Você recebe toda sorte de informações sobre a história sangrenta da cidade. Tem até um lugar chamado A Ravina da Mulher
com a Garganta Cortada. Dá para acreditar?

Fiona ficou perplexa: - Eles te contam isso num passeio turístico? Kit fez que sim. - Eu sei, não é o tipo de coisa da qual alguém normalmente se vanglorie, é?

- É o lugar onde uma das vítimas foi encontrada - respondeu Fiona, calmamente. - Eu estava partindo do pressuposto de que apenas os moradores sabiam a respeito
dele.

- Bom, posso te contar tudo a respeito - replicou Kit. - A tal mulher trepou com um dos guardas e deixou que os inimigos atacassem a cidade, portanto eles cortaram
a garganta dela para se certificar de que ela não faria isso de novo.

- Você foi até San Juan de los Reyes? O grande monastério? - Passei por ele. Estava guardando a visita para amanhã. - Percebeu as correntes na fachada? - É
difícil não perceber. Segundo o guia turístico, Fernando e Isabel as penduraram ali após a retomada de Granada. Elas eram usadas pelos mouros para acorrentar os
prisioneiros cristãos. Preciso dizer, se essa era a ideia de decoração de Isabel, mal posso esperar para ver o interior. Morram de inveja, meus vassalos - acrescentou
ele com um sorriso irônico. - Por que a pergunta?

- Porque foi onde o segundo corpo foi encontrado. Você está aqui há menos de um dia e já sabe a história por trás dos dois lugares onde os corpos foram desovados.
Isso me faz pensar se estou certa em minhas conjecturas.

Kit deu-lhe um tapinha de leve na mão e assumiu uma expressão de apoio zombeteiro:

- Não esquente a cabeça, querida, você não pode estar certa sempre. Deixe isso comigo.

Fiona quase engasgou com a risada. - Fico feliz por poder contar com você. E agora, a gente vai jantar ou não?

Fiona tomou um gole de conhaque e estudou as ideias rudimentares que tinha esboçado. Ao fundo, o som dos dedos de Kit martelando o teclado do laptop era levemente
tranquilizador. Até mesmo o familiar zumbido do walkman dele era reconfortante. Kit nunca interferia quando Fiona tinha trabalho a fazer, algo pelo qual era extremamente
grata. Já escutara muitas de suas amigas reclamarem que, se o marido não estava trabalhando, elas também não deviam estar. Ele sempre ficava feliz em preencher
o tempo com seu próprio trabalho ou com um livro, ou em ir até um bar conhecer gente nova.

"Estou convencida de que o principal interesse do assassino não é a satisfação sexual", leu Fiona. "No entanto, a natureza da mutilação sexual realizada depois
da morte é sugestiva. Acredito que seja um modo de demonstrar desprezo por algo que considera uma 'fraqueza' em suas

vítimas, o que me leva a presumir que o método usado para contatá-las foi apelo físico ou sexual. A princípio, eu sugeriria que ele provavelmente as conheceu em
uma ocasião anterior, e deu um jeito de encontrá-las na noite dos crimes. Como isca, ele talvez tenha sugerido que seu conhecimento específicolhes pudesse ser útil
em sua vida profissional. Está claro que ele não Aparenta ser uma ameaça para aqueles que escolhe como vítimas. E ele conhece os tipos de lugares onde essas vítimas
em potencial podem ser encontradas. Isso indica um considerável conhecimento da região e sugere que ele é nativo de Toledo.

"Esses assassinatos não são decorrentes de ódio sexual em virtude da Impotência ou excitação excessiva; a motivação é algo completamente diferente."

Até então estava ótimo, pensou Fiona. Não achava que houvesse muito que discordar ali. "Esses crimes apresentam um nível relativamente alto de sofisticação e
planejamento. Assim sendo, é improvável que o criminoso seja um simples iniciante. Ele se sente confortável demais com o que está fazendo. Contudo, se acreditarmos
que a motivação por trás desses assassinatos não é de 'ordem sexual, então é também improvável que seus crimes anteriores sejam dessa natureza.

"Levando em consideração que as cenas de ambos os crimes são pontos turísticos importantes, e que as duas vítimas eram estrangeiros, acredito que a chave para
a motivação do assassino seja a forma como ele vê os visitantes na cidade. Ele os vê não como um benefício, mas como intrusos que não são bem-vindos. Acho bastante
provável que seus crimes anteriores tenham sido contra turistas ou negócios relacionados a turismo. É bem possível que ele tenha começado com atos de vandalismo
contra hotéis ou negócios dedicados aos turistas, como, por exemplo, lojas de suvenires. Isso talvez tenha se expandido para ataques contra os próprios turistas,
como assaltos."

Fiona recostou-se na cadeira e ponderou. Estava sugerindo um perfil nada convencional de um serial killer, mas se sentira incomodada desde o início pela natureza
incomum das cenas dos crimes. A maioria dos assassinos deixava os corpos no local do crime, ou escolhia com cuidado lugares onde houvesse pouca chance de serem
vistos abandonando o corpo. O assassino assumira um risco bastante alto com sua segunda vítima, o que deixava claro que os locais eram profundamente simbólicos
para ele. Assim, os

locais de desova pareciam ser, no mínimo, tão importantes quanto a seleção das vítimas. Não eram apenas lugares que simbolizavam violência. Eram lugares significativos
para um visitante casual, como a experiência de Kit comprovara.

Fiona sentia-se feliz com o progresso que fizera. Agora, dependia de Berrocal para persuadir a polícia local a lhe fornecer as informações necessárias sobre crimes
contra propriedades e pessoas ligadas ao turismo. Armada com esse material, ela poderia aplicar suas teorias de cortexão criminal para descobrir quais deles tinham
sido cometidos pela mesma pessoa.

Uma vez que conseguisse estabelecer quais atos eram parte de uma série e quais eram eventos isolados, ela poderia marcar as cenas dos crimes relevantes em um mapa
da cidade que escaneara para seu computador. O poderoso software de perfil geográfico que possuía em seu laptop aplicaria uma série complexa de algoritmos aos
pontos marcados no mapa. Ele então apontaria áreas prováveis em que o criminoso vivia ou trabalhava. Ela poderia acrescentar as cenas dos crimes ao bolo e, se
elas não destoassem demais das áreas apontadas pelo computador, então talvez fosse capaz de indicar a Berrocal a região da cidade que o criminoso chamava de lar.

Dez anos antes, pensou Fiona, as pessoas teriam rido de se acabar se ela ousasse sugerir que uma combinação de perfil psicológico, conexão criminal e perfil geográfico
pudesse levar à captura de um assassino. Naquela época, simplesmente não havia programas de computador poderosos o suficiente para analisar os números rápido o
bastante, mesmo que alguém considerasse ser esse um método válido de investigação. O universo das investigações criminais mudara mais rápido do que qualquer um poderia
esperar. Por fim, a tecnologia estava superando a capacidade dos criminosos de se manterem um passo à frente da polícia. E Fiona tinha bastante sorte em fazer
parte da revolução.

Pela manhã, poderia testar suas habilidades mais uma vez. Trabalhar com a polícia na captura de criminosos era a coisa mais emocionante que já fizera. Contudo,
nunca perdia de vista o fato de que estava lidando com vidas reais, e não apenas com uma série de eventos matemáticos e cálculos de computador. Se o que fazia
não pudesse salvar vidas, então, em última instância, nada disso faria sentido. Desse modo, os casos em que se envolvia não se resumiam a simples desafios profissionais.
Eles se tornavam nada menos do que uma medida de si mesma.

10.

Fiona entrou no escritório enfumaçado pouco depois das onze. Berrocal e seus dois detetives estavam absortos em conversas ao telefone, e mal levantaram os olhos
ao vê-la chegar. Ela mandara o relatório para Berrocal por fax, às oito da manhã, sabendo que ele precisaria de tempo para reunir o material que ela pedira. Após
o envio, usara as três horas seguintes para um prazeroso café da manhã na cama com Kit, e depois o acompanhara em uma visita à clássica obra de El Greco, O Enterro
do Conde de Orgaz, exposto de modo esplendidamente solitário em um anexo da igreja de São Tomé. Tinha sido uma forma de começar o dia melhor do que lendo relatórios
policiais.

A pilha de pastas sobre sua mesa parecia a mesma da véspera. Fiona esperou que Berrocal desligasse o telefone, e falou:

- Olá. Os relatórios sobre vandalismo e sobre os ataques não chegaram ainda?

Berrocal fez que sim. - São esses aí na sua mesa. Os não resolvidos estão à esquerda, os solucionados, à direita. Eles se referem aos últimos doze meses.

- Você foi rápido. Ele deu de ombros. - Eles sabiam que eu ia ficar na cola deles até que me entregassem o que a senhora pediu. E gostam de ter uma vida calma.
Quer alguma ajuda, ou isso é algo que a senhora precise fazer sozinha?

- Infelizmente, eu mesma preciso analisar os dados - respondeu Fiona. - E quanto ao mapa da cidade?

Berrocal ergueu um dedo, como se repreendesse a si mesmo. - Tenho aqui. - Ele se virou para a mesa vazia e vasculhou a primeira gaveta, tirando de lá um pequeno
mapa turístico e outro maior, mais detalhado. - Não sabia ao certo qual a senhora preferiria - acrescentou, entregando-os a ela.

- Vocês por acaso têm um scanner aqui? - perguntou ela, sem esperança.

Ele deu de ombros novamente. - Deve haver um em algum lugar. - Preciso que o mapa detalhado seja escaneado como um arquivo GIF - informou Fiona, abrindo a maleta
do laptop e pescando um disquete vazio. - Se o senhor puder mandar gravar o arquivo no disquete, posso transferi-lo para o meu sistema.

Ele concordou com um aceno de cabeça e se virou para o detetive mais próximo, dizendo algo num espanhol rápido. O detetive desligou imediatamente o telefone e lançou
um olhar intrigado para o chefe. Berrocal jogou o mapa e o disquete para ele e despejou uma série de frases curtas. O rapaz abriu um sorriso radiante para Fiona
e saiu em direção à porta. Sem dúvida, atuar como um contínuo para a consultora inglesa era preferível a ficar confinado naquela Bala minúscula.

-E café con leche para dos - acrescentou Berrocal, com um sorrisinho maroto, para as costas do detetive.

- Obrigada - falou Fiona, pegando a primeira pasta. Precisava formular uma lista de fatores significativos; hora do crime, data do crime, que tipo de vandalismo
ocorrera e uma dúzia de outros itens. Em seguida, tinha de verificar meticulosamente os detalhes. Se o criminoso fosse conhecido, precisaria inserir também todas
as informações relevantes de sua história e dos delitos anteriores. Ao todo, eram 47 arquivos para analisar, e o fato de estar tudo em espanhol dificultava ainda
mais as coisas. O dia seria longo, pontuado por xícaras regulares de café e salgadinhos dos quais nem se lembraria cinco minutos depois de comê-los, tamanha a
sua concentração.

Por fim, ela se sentou e esperou enquanto o computador organizava os dados e fornecia os resultados de seus cálculos. Sem surpresa alguma, a

maioria das ocorrências apareceu como eventos distintos. Todavia, entre eles havia três grupos de relatórios criminais que davam a impressão, cada qual, de ter
sido cometido pela mesma pessoa. O primeiro era uma série de alagues a lojas de suvenires. Em todos os casos, o crime ocorrera no meio da semana, entre duas e
três da manhã. Os primeiros três falavam em tinta jogada contra as vitrines. Mas então os crimes se agravaram. Os quatro ataques seguintes diziam respeito a vitrines
quebradas e tinta jogada sobre o estoque da loja. Todos os crimes faziam parte da pilha de casos não solucionados.

O segundo grupo referia-se à pichação das paredes de hotéis e restaurantes. Só que, nesse caso, os dizeres eram políticos - desvarios de direita sobre a Espanha
para os espanhóis e a expulsão dos imigrantes. Fiona imediatamente descartou esses como o trabalho de seu assassino.

O terceiro grupo veio da pilha de casos não solucionados. Nos últimos quatro meses, três turistas haviam sido atacados enquanto voltavam para seus hotéis de madrugada.
Berrocal lhe dissera que, conforme os padrões espanhóis, Toledo era uma cidade onde as pessoas se deitavam cedo, e a maioria dos cafés e restaurantes fechava às
onze. No entanto, havia uns poucos bares que ficavam abertos até mais tarde, e todas as vítimas tinham estado em algum deles. Elas estavam voltando para os hotéis
a pé e sozinhas quando um homem mascarado saíra de um beco escuro e as atacara. Ele não lhes pedira dinheiro, apenas as atacara brutalmente e em silêncio por alguns
minutos, antes de sair correndo em direção ao labirinto de vielas estreitas nas proximidades.

Fiona soltou um longo suspiro de satisfação. Quando a conexão entre crimes funcionava direito, era como um pequeno milagre se desdobrando à sua frente. Agora podia
inserir os locais das duas séries significativas em seu software de perfil geográfico e ver o que resultava dali.

Kit observou Fiona subir o monte ao sair de São Tomé, admirando seu andar suave e o modo como o corte das calças realçava a curva delicada dos quadris. Sou um
filho da mãe de sorte, pensou, satisfeito, deleitando-se por alguns instantes com a lembrança da prazerosa manhã passada na cama. Mesmo que ela o irritasse às
vezes com sua permanente necessidade de

analisar e dissecar tudo e todos que cruzavam seu caminho, não a trocaria por nenhuma mulher que já tivesse conhecido. Uma das coisas que amava nela era sua dedicação
ao trabalho. No entanto, mesmo quando estava absorta num caso, Fiona nunca perdia de vista a importância do relacionamento deles.

Aquela manhã era um exemplo. Ela poderia ter lançado mão da desculpa de que "era indispensável" e ido direto para a delegacia. Contudo, Fiona lhe assegurara que
não haveria nada que pudesse fazer ainda e que podia tirar um tempo para compartilhar algo que ele desejava fazer. Ele procurava agir da mesma forma, mas sabia
que era pior nisso do que ela. Quando se concentrava, trabalhando a pleno vapor na finalização de um livro, não conseguia pensar em nada além do texto que precisava
redigir. A única forma que encontrava de demonstrar seu amor por ela era cozinhando e se sentando para comerem juntos. Não era muito, mas era melhor do que nada.

Kit passou o resto do dia agindo como um turista, e voltou para o hotel pouco depois das seis. Pegou uma garrafa de vinho tinto no bar e subiu para o quarto.
Não fazia ideia de quando Fiona chegaria. Ligou a televisão no canal MTV Europe, serviu-se de uma taça do vinho, ligou o computador e checou os e-mails. A única
mensagem importante era de seu agente, confirmando um acordo com cineastas independentes que queriam adaptar seu primeiro romance para a TV. Pessoalmente, considerava
The Dissection Man impossível de ser filmado, mas, se eles se dispunham a pagar uma quantia vultuosa para descobrir isso por si próprios, não seria ele quem iria
reclamar.

Não que ligasse muito para dinheiro. Seus pais eram professores, e ele e o irmão haviam crescido num ambiente em que dinheiro nunca fora problema. Sempre houvera
o suficiente, e Kit não se lembrava de ter sido privado de alguma coisa porque seus pais não podiam pagar. Não recebera um grande adiantamento por seu primeiro
romance, nem pelo segundo, e acreditava que ninguém ficara mais surpreso do que os próprios editores quando The Blood Painter tornou-se um cult da noite para o
dia, entrando para o rol dos grandes sucessos. Como resultado, imaginava que tinha ganhado mais dinheiro nos dois anos anteriores do que seus pais nos últimos
dez.

E não sabia o que fazer com tanto. Uma grande parcela fora usada para comprar a casa, mas, afora isso, ele e Fiona não eram pessoas materialistas.

Não ligava para roupas de marca nem tinha interesse em carros de luxo; ainda preferia o tipo de férias em que eles pegavam um avião para algum lugar, alugavam
um carro simples e ficavam em hotéis baratos ou em hospadarias. Seu maior gasto era provavelmente com música, mas, mesmo assim, esperava até estar numa turnê de
lançamento de um livro nos Balados Unidos ou no Canadá para se entregar à compra desvairada de (ll)s, sempre por preços mais baixos.

O único desejo que realmente acalentara era ter um lugar afastado para onde escapar para escrever quando o livro passasse da metade, o período mais difícil. Começos
eram sempre fáceis, porém, depois de umas cem páginas, vinha a depressão ao perceber que já não tinha mais tanto para desenvolver quanto esperava. Nesse estágio,
qualquer interrupção era uma tortura. Fiona fora praticamente a única pessoa que não o irritava, mas isso porque ela sabia quando deixá-lo em paz.

Tinha sido ela quem sugerira comprar uma cabana no meio do mato, onde ele poderia se refugiar e trabalhar sem ser perturbado pelo tempo que fosse necessário para
superar o período de insatisfação. Em geral, a fase mais terrível durava cerca de seis semanas, ou 150 páginas, e ela lhe dissera que não se importava de ficar
sozinha se isso o ajudasse a recuperar mais rapidamente seu jeito alegre de ser.

Por isso, ele tinha comprado a cabana. Nunca deixava de se surpreender que um lugar no território britânico pudesse ser tão isolado. Não se via nenhuma outra casa
em torno da cabana de dois quartos. Para chegar lá, ele tinha de tomar um avião até Invemess, pegar o velho Land Rover que mantinha num estacionamento, comprar
um bom estoque de comida e dirigir por mais duas horas em direção à borda leste da imensidão inóspita de Sutherland. A energia elétrica provinha de um gerador
a diesel, a água, de uma nascente nas proximidades, e o aquecimento, de um fogão a lenha que também servia para esquentar a água, a fim de encher pelo menos metade
da banheira. Por insistência de Fiona, ele havia comprado um telefone via satélite, mas só o usava para acessar e-mails.

O isolamento era mais do que a maioria das pessoas aguentaria. Para Kit, porém, era uma tábua de salvação. Tendo como única distração uma eventual saída para caçar
coelhos, ele invariavelmente percebia que atravessava a parte mais difícil do livro em muito menos tempo do que levaria

se estivesse em Londres. E, como resultado, a qualidade do trabalho melhorara. Tinha certeza disso, e seus leitores também.

Além do mais, não havia como negar que a ausência enriquecia seu relacionamento com Fiona. Ainda que trocassem e-mails todos os dias - muitas vezes mensagens que
noutro contexto pareceriam pornografia -, o reencontro trazia de volta o ardor dos primeiros dias, quando o contato físico nunca era excessivo, nem as exigências
escandalosas demais. Só de pensar nisso ficava excitado. Quem poderia imaginar que por trás do manto de frieza que Fiona ostentava havia uma mulher sensual, capaz
de transformar um rude escritor inglês de mistério em um idiota romântico?

Ela sempre atingia o auge da paixão quando era forçada a confrontar mortes violentas. Era como se precisasse restabelecer sua conexão com a vida, reafirmar a própria
vitalidade perante um assassino. Ele podia não gostar dos motivos, mas precisava confessar que não se sentia mal em usufruir os benefícios.

Kit balançou a cabeça para afastar o pensamento. Antecipar a volta de Fiona era o meio mais eficaz de distraí-lo do que precisava fazer. Decidira realizar uma
das revisões periódicas que fazia de modo rotineiro para checar se o livro estava fluindo bem. Digitou os comandos para imprimir as últimas sessenta páginas e
trocou o canal para a BBC World, a fim de ver quais eram as manchetes do dia.

O noticiário do início da noite já havia começado, e o apresentador estava terminando de dar algum dado profundamente chato sobre a situação do euro, cortesia
do novo ministro da Fazenda. De repente, a voz do âncora assumiu um tom de urgência. "Uma notícia acaba de chegar. A polícia de Edimburgo identificou a vítima
de um assassinato brutal, ocorrido no coração da capital escocesa no começo desta madrugada, como o internacionalmente famoso escritor de suspense Drew Shand."

Kit franziu a testa, incrédulo. "Passamos para o nosso correspondente em Edimburgo, James Donnelly", continuou o apresentador.

Um jovem repórter com uma expressão séria estava de pé na frente de um prédio de pedra cinza.

- O corpo mutilado de Drew Shand foi encontrado por um oficial da polícia durante uma ronda pela Royal Mile um pouco depois das três da

manhã. A polícia isolou a área atrás da catedral de St. Giles, que permanece como o cenário de atividades policiais. No começo desta tarde, o detetive superintendente
Sandy Galloway revelou em entrevista coletiva que a garganta da vítima foi cortada e seu corpo e rosto, mutilados com uma faca. Ele fez um apelo para que qualquer
pessoa que tenha passado pela área entre meia-noite e três da manhã se apresente na central da polícia.

"Há poucos minutos nos foi revelada a identidade da vítima, o premiado escritor de suspense Drew Shand. O escritor, de 31 anos, passou a ser considerado uma das
novas estrelas da ficção de suspense britânico quando seu primeiro romance, Copycat, alcançou a lista dos mais vendidos em ambos os lados do Atlântico e ganhou
os prêmios John Creasey Memorial Dagger e Mcvitie. A adaptação para a TV de Copycat também ganhou importantes prêmios, e está sendo divulgada em vários países.

"Um ex-professor de inglês, Shand vivia sozinho em seu apartamento na Cidade Nova. Seu segundo romance, The Darkest Hour, deverá ser lançado mês que vem. Shand,
homossexual assumido, era conhecido por frequentar vários bares gays em Edimburgo, inclusive um que dizem ser voltado para aqueles que apreciam o sadomasoquismo.
Até o momento, a polícia se negou a sugerir qualquer possível motivo para o crime."

- Típico, culpem a vítima - rosnou Kit. Ele depositou a taça na mesa com tanta força que a haste quebrou, lançando um filete de vinho tinto sobre o chão de mármore.
Ignorando o fato, tomou um gole direto da garrafa. Mal sentiu o sabor. - Drew Shand - murmurou, levando a garrafa à boca novamente. Sacudiu a cabeça de um lado
para o outro, sem conseguir acreditar. - Pobre coitado. - Teve um flashback repentino do grupo de discussões do qual haviam participado no último Festival do Livro,
em Edimburgo; a única chance que tivera de aparecer ao lado da estrela em ascensão. Lembrava-se de Drew inclinado para a frente, os cotovelos apoiados nos joelhos,
as mãos abertas, o rosto sério ao tentar provar que a violência em Copycat tinha um propósito, não era gratuita. A audiência fora persuadida, lembrou-se Kit,
embora ele ainda tivesse suas dúvidas. Depois do evento, os dois haviam se sentado do lado de fora da tenda, cada um com uma garrafa de cerveja na mão, a fim
de continuar a discussão, intercalando opiniões sérias com pitadas de humor negro, uma característica tanto dos oficiais de polícia quanto dos escritores de suspense.
Uma imagem

vívida de Drew jogando a cabeça para trás e rindo explodiu em sua mente como fogos de artifício.

Subitamente, Kit percebeu o quanto gostaria que Fiona estivesse ali com ele. Um crítico certa vez comentara que ele fazia com que seus leitores se identificassem
tanto com as vítimas que eles sentiam algo semelhante ao choque da perda de um amigo de verdade quando o personagem era morto. Na época, Kit ficara orgulhoso com
o comentário. Só que, até então, não conhecia pessoalmente ninguém que tivesse sido assassinado. Sentado num quarto de hotel qualquer, numa cidade estranha, atordoado
pelo choque da morte de Drew Shand, ele enfim reconhecia o absurdo da crítica.

Agora sabia a verdade.

11.

Fiona espreguiçou-se de modo extravagante e olhou para o relógio. Para sua surpresa, já eram 7h10.

Seus movimentos atraíram a atenção de Berrocal, que estivera fora a maior parte do-dia, mas havia retornado um pouco antes.

- Conseguiu fazer algum progresso? - perguntou ele. Ela descreveu os resultados do dia de trabalho. - Agora preciso de um descanso - disse. - É fácil começar a
cometer erros depois de ter ficado olhando para a tela de um computador o dia inteiro e, se eu errar a esquematização dos locais dos crimes, os resultados não
terão o menor valor.

Berrocal aproximou-se da mesa de Fiona e olhou por cima do ombro dela para o laptop.

- Isso é formidável - comentou ele. - Um sistema como esse facilitaria muito o nosso trabalho.

- Algumas forças policiais já o estão usando - replicou Fiona. - O programa de conexão funciona melhor com crimes contra propriedades, como roubo e arrombamento.
A versão que estou usando é experimental. Ela me permite inserir meu próprio conjunto de variáveis para a listagem, o que torna necessário ter uma certa experiência
para usá-lo. Contudo, a versão básica com parâmetros fixos reduz os arrombamentos onde quer que seja usada. Ela ajuda a esclarecer crimes em aberto, tanto dos
livros quanto de casos atuais. O senhor devia convencer seus chefes a investir no software.

Berrocal bufou: - Mais fácil falar do que fazer. Meus chefes não gostam de gastar dinheiro com nada, se puderem evitar.

- Mas o senhor conseguiu convencê-los a me pagar - retrucou Fiona com sarcasmo, levantando-se e desligando o computador.

- Quando se trata de perder os dólares dos turistas, eles entram em pânico. Do nada, recebemos ajuda que em outras circunstâncias jamais receberíamos. Então, quais
são seus planos para hoje à noite? Gostaria que eu levasse a senhora e o sr. Kit para jantar em um lugar tipicamente toledano? - Ele se afastou, a fim de permitir
que ela saísse de detrás da mesa.

- É muito gentil da sua parte, mas não acho que eu vá ser uma boa companhia. Tenho um monte de coisas remoendo na minha cabeça, e prefiro simplesmente voltar para
o hotel e comer alguma coisa com Kit por lá mesmo. Depois disso, talvez eu trabalhe mais um pouco.

Ele deu de ombros. - Como quiser. Mas não precisa trabalhar o tempo todo enquanto estiver aqui, a senhora sabe.

Fiona fechou o laptop e começou a guardá-lo. - Preciso sim, major - respondeu, calmamente. Ela ergueu a cabeça e fitou-o diretamente nos olhos. - Ele está à solta,
planejando o próximo ataque. O intervalo já é pequeno. Odeio parecer melodramática, mas, quando estamos lidando com um assassino tão organizado e brutal como esse,
cada dia é precioso. Não quero o sangue da próxima vítima em minhas mãos se eu puder evitar.

Berrocal diminuiu a marcha do carro por causa do trânsito e olhou de relance para Fiona. - A senhora realmente acha que o homem por trás do vandalismo é o mesmo
que atacou os turistas?

Fiona deu de ombros. - Não há garantias no que eu faço. O ideal seria trabalhar com pelo menos cinco localidades para cada série em potencial. No entanto, com
base nas probabilidades, eu diria que sim. O vandalismo só coincide com o

primeiro ataque. Depois do segundo ataque, não houve mais casos de tinta jogada ou vitrine quebrada. Desse modo, ou o vândalo se mudou, ou encontrou uma forma
mais satisfatória de descarregar sua raiva. Tudo o que eu sei sobre a piora do comportamento de criminosos violentos me diz que é provável que, uma vez tendo
escapado impune, ele tenha se tornado mais confiante. Ele colocou em uso a engrenagem seguinte e passou a atacar a causa direta de seu ódio, em vez de acertar
os alvos de forma indireta. Se estiver certa, isso ficará evidente quando eu rodar o programa de perfil geográfico.

- A senhora terá provas de que foi a mesma pessoa que cometeu os crimes? - Berrocal não conseguiu evitar soar um pouco cético.

- Prova irrefutável, não. Nem mesmo o tipo de prova que poderia ser usada no tribunal. No entanto, se o programa me der os mesmos prováveis locais de residência
para as duas séries de crimes, então estaremos diante de uma forte probabilidade, o senhor não concorda? E então seus colegas de Toledo terão uma ideia de onde
começar a procurar pela prova. - Fiona ajeitou-se no assento, tentando aliviar a rigidez dos ombros. Eles haviam acabado de entrar na rua que costeava o rio, oposta
à escarpa onde Toledo brilhava sob a luz do crepúsculo. - Que vista fantástica! - acrescentou.

- É uma bela cidade - reconheceu Berrocal. - É por isso que crimes como esse parecem muito mais chocantes do que um ato rotineiro de violência nas ruas ermas de
Madri. E, é claro, também é por isso que essa investigação recebeu tanta atenção. Não são apenas meus chefes que estão pressionando por uma solução rápida. Os
jornais e as emissoras de TV estão na nossa cola. Por sorte, consegui manter seu nome longe da mídia até agora. Não acho que soaria bem eles saberem que precisamos
trazer uma especialista da Inglaterra para solucionar um caso estritamente espanhol.

- Não vou solucionar seu caso, major. Sou uma psicóloga prestando consultoria, e não uma detetive. Tudo o que posso fazer é dar algumas sugestões. Fica a cargo
de vocês decidir se elas são valiosas, e também é responsabilidade de vocês encontrar as provas para prender o assassino.

Berrocal deu uma risadinha. - Doutora, a senhora sabe tão bem quanto eu que a mídia não está interessada na verdade. Se eles descobrirem que a senhora está aqui,
irão retratá-la como uma espécie de detetive milagrosa, uma Sherlock Holmes

'moderna que foi chamada porque a polícia daqui é burra demais para fazer seu trabalho.

- É por isso que não dizemos que eu estou aqui - concluiu ela. Eles ficaram em silêncio por um minuto ou dois, até Berrocal virar na estrada principal e começar
a subir a ladeira íngreme que levava ao hotel, deixando a vista espetacular para trás.

- Seu programa irá nos dizer se o assassino mora na mesma região que o homem dos ataques? - perguntou ele.

- Não sei se dispomos de dados suficientes - respondeu ela com franqueza. - Por si sós, os dois assassinatos não poderão garantir nenhuma precisão, nem de perto.
Não há localidades suficientes, entenda. No entanto, eu vou brincar com várias combinações e ver o que resulta daí. Devo poder responder à sua pergunta amanhã
de manhã.

- Tem certeza de que não quer sair para jantar? - perguntou ele ao parar o carro no estacionamento.

- É muita gentileza da sua parte. Mas prefiro aproveitar o tempo para trabalhar. Quanto mais rápido eu conseguir fazer isso, mais rápido poderei voltar para casa.
Além disso, creio que sua família gostaria de ficar um pouco com o senhor.

Ele soltou um leve riso de deboche. - Creio que sim. Mas, como a senhora, ainda vou trabalhar hoje, infelizmente.

- Pelo menos, terei a companhia de Kit durante o jantar. Ele tem o dom de me fazer rir, mesmo quando estou no meio de algo tão sombrio quanto isso. E sejamos sinceros,
major, esse tipo de trabalho não dá margem a muitas risadas.

Ele concordou com um meneio de cabeça, sério: -- Entendo o que quer dizer. Às vezes, sinto como se carregasse o esgoto junto comigo quando chego do trabalho. Quase
perco a vontade de pegar meus filhos no colo e abraçá-los, por medo de infectá-los com as coisas que vi, que sei. - Ele se inclinou para abrir a porta para Fiona.
- Boa caçada, doutora.

Ela fez que sim. - Para o senhor também, major.

Ao abrir a porta do quarto, a primeira reação de Fiona foi de perplexidade. A única luz no aposento provinha da cidade de Toledo ao longe, dramaticamente acesa
por dúzias de refletores. Contra a luz, viu a silhueta de Kit sentado ao pé da cama, os cotovelos apoiados nos joelhos, a cabeça abaixada.

- Kit? - chamou ela com suavidade ao fechar a porta. Não sabia o que havia de errado, mas alguma coisa havia.

Fiona aproximou-se dele com passos rápidos, soltando a maleta, o laptop e o casaco no caminho. Kit ergueu a cabeça e se virou para encará-la quando ela se sentou
a seu lado na cama.

- O que aconteceu, meu amor? - perguntou, com preocupação e ansiedade evidentes na voz. Passou um braço em tomo dos ombros dele e ele se aconchegou a ela.

- Drew Shand foi assassinado - respondeu ele, a voz fraquejando. - O sujeito que escreveu Copycat? - Segundo a BBC World, eles encontraram o corpo dele essa madrugada,
perto da Royal Mile. - Kit parecia estar em choque.

- Foi assim que você descobriu? Pela televisão? - quis saber ela, apavorada só de pensar.

- Foi. Pensei em dar uma olhada nas manchetes. - Ele soltou uma risada estrangulada. - Você não espera escutar que um de seus amigos foi assassinado e mutilado.

- Que horror! - replicou Fiona, sabendo que essas não eram as palavras adequadas. Conhecia bem demais o choque e a dor de uma descoberta assim. A diferença era
que, no seu caso, o mensageiro da temível notícia tinha sido o telefone.

- É, e vou te contar o pior. Como ele era homossexual assumido e frequentava bares nos quais os clientes se entregam a práticas sexuais consideradas repulsivas
pelo cidadão médio de Edimburgo, já está sendo acusado de ser o responsável por sua própria destruição. É o jogo de culpe-a-vítima. Nada como uma abordagem desse
tipo para fazer com que os cidadãos respeitáveis durmam tranquilos, sabendo que nada lhes poderá acontecer. - Kit parecia zangado, mas Fiona reconheceu que isso
era apenas uma defesa contra a dor.

- Sinto muito, Kit - disse ela, apertando-o ainda mais e deixando que ele se aconchegasse a seu corpo.

- Nunca conheci ninguém que tivesse sido assassinado. Sei que conversamos sobre a Lesley, e achei que entendia como você se sentia com relação ao que aconteceu
com ela, mas agora percebo que eu não fazia ideia. E nem posso dizer que conhecia Drew tão bem assim. Mas não consigo aceitar que alguém quisesse matá-lo, não consigo
imaginar o porquê.

Fiona nunca encontrara Drew Shand, mas sabia coisas demais sobre assassinatos e suas consequências para não sentir o horror por trás do simples fato daquela morte.
Sabia muito bem o que um assassinato significava para aqueles que ficavam. Esse era o motivo de ter se tornado quem era.

Kit a deixara mexida com uma única palavra. Lesley. Se fechasse os olhos, tudo voltaria numa torrente. A tragédia acontecera numa sexta-feira como outra qualquer.
Ela estava em seu primeiro ano como docente da universidade e adquirira o hábito de sair para se divertir no fim da semana com a equipe médica da instituição onde
desenvolvia sua pesquisa. Eles tinham começado a noite num pub em Bloomsbury, depois seguiram até a estação Euston e acabaram num restaurante indiano, numa das
ruas transversais da Euston Road. Ao retomar para seu apartamento de dois quartos em Camden, já era quase meia-noite e as dificuldades da semana estavam amortecidas
por uma leve embriaguez.

A secretária eletrônica piscava enlouquecida, indicando meia dúzia de mensagens ou mais. Curiosa, ela apertou o botão e seguiu em direção à cozinha. As primeiras
palavras a fizeram estancar: "Fiona? Seu pai. Me ligue assim que chegar." O problema não eram as palavras, mas a forma como elas haviam sido ditas. A voz do pai,
normalmente forte e confiante, parecia quase um sussurro, um eco fraco e trêmulo do seu jeito habitual.

Um bipe, e a secretária passou para a mensagem seguinte: "Fiona, seu pai de novo. Me ligue quando receber esta mensagem, não importa a hora." Dessa vez a voz falhou
no final.

Ela já estava voltando para pegar o telefone. Outro bipe, e a voz do pai mais uma vez: "Fiona, preciso falar com você. Não dá para esperar até amanhã." Todos
os seus instintos lhe disseram que eram más notícias. Do pior tipo. Devia ser alguma coisa com a mãe. Um ataque cardíaco? Um AVC? Um acidente de carro?

Ela agarrou o telefone e discou o número familiar. A resposta veio antes mesmo do primeiro toque. Uma voz estranha falou:

- Alô? Quem está falando? - Fiona Cameron. Quem é você? - Só um minuto, por favor. Vou chamar seu pai. - Fiona escutou um som de palavras abafadas, seguido por
um burburinho, e então a voz do pai, quase tão estranha quanto a da pessoa que atendera:

- Fiona - falou ele, de modo automático. Em seguida, começou a chorar. - Pai, o que aconteceu? Foi com a mamãe? O que foi que houve? - Todo o treinamento profissional
de Fiona para manter-se calma desapareceu ao escutar o choro do pai.

- Não, não. Foi com a Lesley. Ela... Lesley foi... - Ele se forçou a controlar a respiração. Fiona escutou o pai inspirar fundo, e então ele soltou: - Lesley está
morta.

Ela não lembrava o que ele tinha dito em seguida. Sentira uma distância enorme erguer-se entre si mesma e as coisas que a cercavam, a voz do pai um eco distante
contra o zumbido em seus ouvidos. Sua irmã caçula estava morta. Não era possível. Tinha de ser um engano.

Não havia engano algum. Lesley, estudante do terceiro ano da St. Andrews University, havia sido estuprada e estrangulada ao voltar para a casa onde morava. Ninguém
jamais fora acusado pelo crime. A polícia acreditava que o assassino tinha estuprado duas outras estudantes no período de um ano e meio antes disso, mas não possuía
provas significativas. Um par de pegadas de uma marca de tênis bastante comum. Uma descrição tão vaga que condizia com metade dos homens da cidade. Mesmo que na
época já houvesse exame de DNA, não teria adiantado nada. Ele usara camisinha. Todos os ataques haviam acontecido durante o inverno, e as mulheres estavam de
luvas, não tendo, portanto, arranhado o atacante.

Nos seis meses seguintes à morte de Lesley, Fiona se sentira como se estivesse vivendo um pesadelo. A qualquer minuto, poderia acordar e nada daquilo teria acontecido.
Lesley estaria viva. Sua mãe não estaria passando por uma depressão quase suicida. O pai não estaria bebendo demais e escrevendo infindáveis cartas para seu representante
no Parlamento, a mídia e a polícia, reclamando da incapacidade deles em prender o culpado.

E ela não estaria se culpando por ter persuadido Lesley a abrir as asas e ir para St. Andrews em vez de ter ido morar com ela em Londres.

Então, certo dia, participara de uma palestra dada por um colega do Canadá. Ele havia falado sobre a incipiente ciência da análise criminal e sobre como poderia
ser aplicada nas investigações. Foi como se uma luz tivesse se acendido subitamente em seu cérebro. O casulo se desmanchou com uma intensidade estarrecedora, e
Fiona descobriu o que queria fazer com sua vida.

Uma hora num auditório escutando uma palestra e nada mais seria igual novamente. Ela não podia salvar Lesley. Não podia nem mesmo capturar o assassino da irmã.
Mas agora entendia que um dia talvez encontrasse a redenção ajudando a salvar outras pessoas.

A perspectiva era suficiente. Pelo menos, na maioria dos dias. Mas agora outro assassino interferia em sua vida, mesmo que indiretamente. Tudo isso passou por
sua cabeça enquanto permanecia ali sentada, com Kit em seus braços, fazendo o pouco que estava a seu alcance para confortá-lo.

Após um longo silêncio, Kit finalmente se afastou. - Sinto muito, estou sendo um bebê chorão - disse ele. - Não é como se ele fosse meu melhor amigo ou coisa parecida.

- Você não está sendo um bebê chorão. Você o conhecia, gostava dele, respeitava seu trabalho. E é um choque perceber que, de repente, ele não está mais por aqui.

Kit se levantou e acendeu uma lâmpada. - É a maldição de ter uma imaginação fértil num momento como este. Fico pensando em como deve ter sido para ele, o medo
que ele deve ter sentido. - Ele respirou fundo. - Preciso fazer alguma coisa para manter a mente ocupada. - Pegou a pilha de papéis que tinha mandado imprimir.
- Você se importa se a gente pedir alguma coisa para comer ao serviço de quarto?

- Como você preferir. - Fiona pendurou o casaco e pegou o laptop. - Tenho um monte de coisas para fazer, se você quiser trabalhar.

Kit abriu um meio-sorriso. - Obrigado. - Ele se sentou de pernas cruzadas sobre a cama com o manuscrito e um lápis. Fiona o observou através do espelho até ter
certeza

de que ele estava lendo, e não remoendo o que acontecera. Mais do que tudo, ficava feliz por ele ter decidido acompanhá-la na viagem a Toledo. Nãu gostaria que
Kit tivesse de encarar a notícia da morte de Drew Shand sozinho.

Isso era algo que sabia por experiência própria. E não desejaria tal coisa nem ao pior inimigo.

Extraído da Prova Decodificada P13/4599

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Não foi difícil acabar com Drew Shand. Uma sujeira, mas nada difícil. Eles não percebem o quanto são vulneráveis. Algumas horas de pesquisa na Internet e descobri
os detalhes de sua rotina diária.

Não achei que seria muito dificil agarrá-lo. O tipo dele adora ser adulada O problema era apenas encontrar úm lugar para realizar o serviço.

Foi então que encontrei o lugar perfeito: um açougue desativado, fechado com tábuas de madeira. A sala dos fundos era coberta de azulejos, do chão ao teto. Havia
um balcão para cortar carne no meio do aposento e duas pias grandes em uma das paredes. A julgar pela poeira e pelas teias de aranha, ninguém entrava lá havia
anos, e não achei que houvesse a chance de alguém aparecer tão cedo. Assim, decidi que não seria preciso limpar minha sujeira.

No dia seguinte, estacionei o carro próximo ao apartamento dele, de onde poderia vê-lo entrar e sair. Ele voltou da ginástica na hora prevista e, uma hora depois,
saiu em direção à Broughton Street Liguei o carro e o segui até o bar Barbary Coast O lugar já estava bem cheio, e alguns caras começaram a me olhar, examinando-me.
Aquilo fez com que me sentisse desconfortável e pegajoso. Afinal de contas, não queria que ninguém se lembrasse de mim.

Drew estava no balcão do bar, e eu resolvi me aproximar dele. Ele havia pedido um drinque. Quando o drinque chegou, estendi uma nota de 10 libras e disse: "Esse
é
por minha conta." Ele não reclamou. Nós seguimos para um dos cantos do salão, mais escuro, e eu fingi surpresa quando ele me falou quem era. Disse que achava as
cenas de tortura do livro brilhantes. Ele contou como os críticos haviam reclamado que a violência era excessiva, e eu repliquei dizendo que a achara perfeita.
Quase sensual.

Drew me olhou de um jeito engraçado, mas não disse nada. Apenas foi até o balcão de novo e pediu outra rodada. Ao voltar, perguntou se era daquilo que eu gostava,
um pouco de violência. Tudo estava saindo melhor do que a encomenda. Resumindo, ele me convidou para subir, para um tal Quarto Escuro. Disse a ele que conhecia
um lugar melhor. Contei que trabalhava numa empresa de construção e estava com as chaves de uma antiga loja que eu transformara num calabouço de fantasias.

Mal acreditei em como tinha sido fácil. Pensava que teria de realmente transar com Drew antes de conseguir convencê-lo a me acompanhar, e a ideia era ainda mais
repugnante do que as coisas que eu planejava fazer com ele. Mas Drew em ingênuo. A pior parte foi quando estacionei na rua de trás e ele se inclinou e começou a
me beijar. Empurrei-o com um pouco mais de força do que pretendia, porém isso o excitou ainda mais. Quando destranquei o cadeado, ele pressionou o corpo contra
minhas costas e senti seu pau duro em minha bunda. Qualquer chance de mudar de ideia dissipou-se na hora.

Abri a porta e, quando ele foi ligar o interruptor, bati com minha pesada lanterna de metal no lado de sua cabeça, um pouco acima da orelha. Ele despencou como
uma árvore.

Não gosto de lembrar o que aconteceu a seguir. Não foi nada bonito. Estrangular alguém é mais difícil do que parece. Especialmente quando você está usando luvas
de borracha e suas mãos começam a suar e escorregar por dentro delas.

Em seguida veio a mutilação. Isso foi realmente nojento. Horrível. Não só por causa do sangue, mas o cheiro. Quase vomitei. Já tive algumas noites bem ruins, mas
nada que se comparasse a isso.

Assim que terminei o que tinha de fazer, fechei a jaqueta dele para manter tudo no lugar. Em seguida o levantei e o carreguei nos braços até meu 4 x 4. Não podia
simplesmente jogá-lo sobre o ombro, ou suas entranhas se espalhariam por todos os lados.

Eu já havia escolhido o lugar para deixar o corpo. O lugar descrito no livro de Shand estava fora de questão. O risco de exposição era grande demais. Eu estaria
pedindo para ser pego. Mas, e aí? O que você pode esperar? Cem por cento de precisão?

Tinha decidido largá-lo na rua ao lado da catedral. Ao chegar lá, não havia ninguém por perto, portanto coloquei-o sobre os degraus que levavam a um prédio de escritórios.

Abri a jaqueta dele e o exibi tal como no livro. Deus do céu, isso quase me fez vomitar de novo. Em seguida, fugi como se estivesse sendo perseguido pelos quatro
cavaleiros do Apocalipse. Hora de voltar para onde eu supostamente devia estar.

Achei que fosse ter pesadelos por causa disso. Mas não tive. Não que eu tenha gostado, nem nada parecido. Foi apenas um serviço que tinha de ser feito, e eu o fiz
bem. Senti orgulho por isso. Mas não prazer.

12.

Quando o jantar pedido ao serviço de quarto chegou, Fiona e Kit foram forçados a abandonar seus respectivos trabalhos. Ela estivera inserindo dados no laptop e
havia começado a rodar várias combinações no software de perfil geográfico, porém a tarefa era demasiadamente mecânica, deixando a mente livre para remoer as próprias
lembranças. Tentar afogar as vozes em sua cabeça com álcool era tentador. Contudo, Fiona vira o pai se refugiar na bebida, um catalisador de pesadelos paranoicos
que destruíra sua vida tão seguramente quanto o assassinato havia acabado com a de Lesley. Se ele não tivesse morrido de falência do fígado quatro anos antes,
ela suspeitava que ele acabaria tirando a própria vida mais cedo ou mais tarde, provavelmente mais cedo. Assim sendo, para ela, a garrafa de uísque não era uma
opção.

Só que se enterrar no trabalho também não estava ajudando. Sentar para comer com Kit forçou-a a perceber que o fantasma de Lesley não havia deixado de atormentá-la
desde que ele mencionara seu nome um pouco antes. E, pelo jeito dele, Kit estava igualmente perdido em pensamentos. Eles comeram o peixe assado em silêncio, sem
saber como abordar o assunto que se recusava a sair-lhes da mente.

Fiona terminou primeiro, empurrando as sobras de comida para um lado do prato. Inspirou fundo.

-Acho que será mais fácil eu conseguir me acalmar se puder descobrir mais sobre o que aconteceu com Drew. Não que eu pense que possa ajudar

de forma prática, porém... - Ela suspirou. - Coletar informações sempre me ajuda.

Kit ergueu os olhos do prato por um breve momento e percebeu a dor das lembranças estampada no rosto de Fiona. Sabia que, após o assassinato da irmã, fora justamente
a ignorância que a fizera acordar gritando noite após noite. Ela precisava saber em detalhes o que havia acontecido com Lesley. Mesmo contra a vontade da mãe,
que se mostrara determinada a saber o menos possível sobre a morte da filha caçula, Fiona percorrera todos os caminhos que pudera imaginar no intuito de absorver
cada fato que estivesse relacionado com a terrível tragédia. Ela se tornara amiga dos jornalistas locais, usara todo o seu charme para persuadir os detetives a
compartilhar as informações que tinham. E, aos poucos, quando, por fim, conseguiu formar o quadro das últimas horas de Lesley, os pesadelos cederam. Com o passar
dos anos, ao aprofundar seu conhecimento sobre os padrões de comportamento de estupradores e serial killers, esse quadro se tomou ainda mais claro, adicionando
textura e forma à sua compreensão, preenchendo as lacunas da relação entre Lesley e o assassino.

Embora parte dele considerasse isso uma obsessão doentia, precisava admitir que o conhecimento parecia atuar como uma espécie de bálsamo para Fiona. E, no que
lhe dizia respeito, isso era tudo o que importava. Mesmo que ela não conseguisse explicar por que uma reconstrução mental detalhada a ajudava, nenhum dos dois
podia negar o fato. Kit também percebera que isso funcionava tanto com sua relação pessoal com os assassinatos quanto com a profissional. Quanto mais ela sabia,
mais segura se sentia. Talvez Fiona estivesse certa. Talvez a melhor forma de assegurar um sono sem pesadelos com Lesley fosse obtendo o máximo de informação sobre
o que acontecera a Drew Shand. E talvez isso o ajudasse também.

- O que você está pensando em fazer? - perguntou ele. - Vamos ver o que eles estão dizendo na Internet - respondeu ela. - O que você acha?

Ele deu de ombros e, em seguida, encheu a taça de vinho. - Não pode ser pior do que as imagens que minha cabeça está criando. Kit pegou os pratos sujos e colocou
as bandejas do lado de fora do quarto, enquanto Fiona se conectava à Internet e abria seu mecanismo de busca predileto, que vasculhava o vasto mundo virtual com
um único comando.

"Onde posso encontrar Drew Shand?", digitou ela. Em segundos, veio a Imposta. Shand tinha seu próprio site, assim como uns dois sites de fãs dedicados ao trabalho
dele.

- Talvez seja melhor verificar os sites dos fãs primeiro - observou Kit. - Não acho que ele vá postar mais nada de agora em diante.

A primeira página em que Fiona clicou mostrava um fundo preto com a loto do romancista usada na capa de seu livro. Logo abaixo, as datas de seu nascimento e morte,
seguidas pelo parágrafo de abertura de Copycat:

A névoa se desprende das águas cinzentas da foz do rio Forth, uma neblina densa da cor de cúmulos. Ela engole as luzes claras do mais novo parque da cidade, dos
hotéis sofisticados e dos restaurantes elegantes. Mescla-se aos espectros dos marinheiros nas docas, que costumavam gastar todo o dinheiro que ganhavam em cerveja
e em prostitutas com expressões tão duras quanto as mãos de seus clientes. E sobe pela montanha até a Cidade Nova, onde os contornos geométricos de elegância georgiana
a dividem em blocos antes que ela desça novamente em direção ao canal dos jardins de Princes Street. Os poucos que voltam tarde de uma noite de festas apressam
o passo para escapar de seu abraço frio e úmido.

Fiona estremeceu. - Isso deixa a gente com os pelos da nuca eriçados, não é mesmo? - comentou Kit. - Um excelente parágrafo de abertura. O garoto realmente tinha
talento. Você leu Copycat?

- Foi um dos que você me deu de Natal. - Ah, é. Tinha esquecido. Fiona riu. - É que foram muitos. - Desde que tinham começado o relacionamento, Kit sempre lhe
dava de Natal seus livros de suspense prediletos do ano. Antes de eles se tornarem amantes, esse era um gênero que ela não tinha o hábito de ler. Agora, gostava
de acompanhar a produção dos competidores de seu parceiro, desde que fosse uma viagem guiada, e não uma escolha aleatória da seção de suspense da livraria.

Ao descer a tela, Fiona ignorou a biografia do autor e se concentrou nos detalhes do crime. Não havia nada que eles já não soubessem. O segundo

site tinha pouco a acrescentar, exceto um rumor de que Shand frequentava um pub gay em Edimburgo no qual os clientes podiam, supostamente, se entregar a fantasias
sadomasoquistas num quarto no segundo andar.

- Entende o que estou dizendo? - indagou Kit com irritação. - Já está começando. A síndrome de "a vítima mereceu". Agora você está vendo com seus próprios olhos.
Drew pediu para ser assassinado. Ele gostava do tipo de sexo que pode fugir ao controle, e isso o matou.

- E vai piorar antes de melhorar - retrucou Fiona. - A menos que encontrem alguém rapidamente e descubram que não teve nada a ver com o fato de ele ser gay.

- Certo. Se a Aids não acabar com você, o bicho-papão com certeza vai. Fiona abriu seu menu de favoritos e passou o cursor pela lista. Kit chegou mais para perto
dela, lendo por cima de seu ombro.

- Eu me pergunto quantas pessoas possuem em sua lista de favoritos sites como Real Polícia Montada do Canadá, FBI, vários outros sobre serial killers e um grupo
de discussão sobre patologia forense.

- Mais do que seria saudável, acredito eu - murmurou Fiona. Ao final da lista havia um site que ela sabia que deixava os oficiais da lei furiosos. Oficialmente,
Murder Behind the Headlines era escrito em parceria por um jornalista de Detroit, um detetive particular de Vancouver com um suposto passado nebuloso na CIA, e
um pós-graduado em criminologia de Liverpool. Dada a minúcia de detalhes que eles conseguiam fornecer sobre casos de assassinatos sensacionalistas, Fiona suspeitava
de que a construção do site contava com a ajuda de alguns verdadeiros hackers. Isso para não mencionar o enorme número de colaboradores anônimos que gostavam da
ideia de compartilhar qualquer informação privilegiada ou boato que pudessem obter. Já haviam ocorrido várias tentativas de tirar o site do ar, com base no argumento
de que eles estavam tornando públicas informações que permitiam a expansão de assassinatos copiados e confissões falsas, mas, de alguma forma, eles sempre conseguiam
voltar com gráficos e fofocas ainda mais sofisticados. Fiona esperava sinceramente que os parentes mais sensíveis das vítimas jamais se conectassem a Murder Behind
the Headlines.

Ao ver onde o cursor havia parado, Kit gemeu. - Central de fofocas - reclamou. - Você ficaria surpreso em ver quantas vezes eles acertam - replicou ela com suavidade.

- Pode ser, mas eles sempre me deixam com a sensação de que preciso de um banho. E não sabem escrever.

Fiona não conseguiu evitar sorrir ao se conectar ao site. - Esqueça o aspecto moral, o problema são os ponto e vírgulas - observou com ironia. Quando o site carregou,
ela digitou "Drew Shand". No canto superior esquerdo da página apareceu a mesma foto de Drew com um ar atraente de intelectual. Dessa vez, porém, o texto era bastante
diferente:

O escritor escocês Drew Shand foi encontrado morto no coração histórico da cidade onde morava e que usou como pano de fundo para seu primeiro e pavoroso romance,
Copycat, ganhador de vários prêmios. Seu corpo, mutilado, foi encontrado atrás da catedral de St. Giles, a poucos metros da calçada percorrida diariamente por
milhões de turistas. Até o momento, ninguém foi preso sob a suspeita de ter cometido o crime.

O MBTH escutou de uma fonte interna da investigação que existem várias coincidências entre a morte de Shand e a violência de ótimo resultado comercial em Copycat.
A trama do romance gira em torno de uma recriação dos famosos Assassinatos de Whitechapel - uma espécie de Jack, o Estripador sanguinolento.

A quarta vítima do Jack original foi encontrada por um policial ao fazer a ronda. O mesmo aconteceu com a quarta vítima de Shand. E o mesmo aconteceu com ele.

O legista na época dos Assassinatos de Whitechapel, dr. Frederick Brown, relatou: "O corpo estava deitado de costas, a cabeça virada para a esquerda. Os braços
pendiam ao lado do corpo como se tivessem simplesmente caído ali. Ambas as palmas estavam viradas para cima, os dedos ligeiramente curvos... a perna esquerda encontrava-se
estendida em linha reta com o corpo. O abdômen exposto. A perna direita dobrada, fazendo um quatro. A garganta cortada de uma ponta à outra. Grande parte do intestino
foi puxada para fora e jogada por cima do ombro direito... um pedaço com cerca de 60 centímetros foi cortado e deixado entre o corpo e o braço esquerdo.

"O lóbulo e o pavilhão externo da orelha direita foram cortados... há um corte percorrendo a parte inferior da pálpebra esquerda e que divide

completamente as estruturas... a pálpebra direita apresenta um corte de cerca de 1,3 centímetro.

"Há um talho profundo sobre o osso do nariz... Esse corte penetra o osso e divide todas as estruturas da bochecha, exceto a mucosa da boca. A ponta do nariz foi
quase arrancada... em cada lado das bochechas, a pele foi cortada e levantada, formando um triângulo de pele solta de cerca de 4 centímetros." A morte foi decorrente
da hemorragia causada pelo corte da carótida esquerda.

Shand inseriu cada um desses aspectos macabros em seu romance. E, segundo nossa fonte, todos estavam presentes no assassinato do próprio escritor. Ao que parece,
um dos detetives chamados até a cena do crime havia lido Copycat e percebeu imediatamente as similaridades. Mas somente quanto o legista da polícia listou os ferimentos
e o detetive os comparou com o livro de Shand e os relatos do caso original de Jack, o Estripador, foi que a polícia se convenceu de que estava lidando com um
imitador do imitador.

Aparentemente, a teoria que circula na sede da polícia é que Shand gostava de sexo sadomasóquista pesado. Eles acreditam que isso o tornou vulnerável a algum pervertido
com fixação no livro, que desejava testar as descrições na vida real. Até onde sabemos, Shand era uma criatura de hábitos - sua rotina diária está descrita em seu
próprio site para todos verem. Assim, não seria muito difícil para o assassino rastreá-lo e, caso ele fizesse o tipo de Shand, tudo ficaria mais fácil ainda. E,
é claro, o ponto fácil em matar alguém que gosta de sadomasoquismo é que a pessoa vai achar que você está apenas brincando quando a amarrar. Não importa que, como
Shand, a vítima malhe todos os dias, porque ela estará amarrada como uma galinha, pronta para você.

Mais um detalhe - a polícia acha que ele foi morto em algum outro lugar e depois levado até o local da desova, ao contrário tanto dos Assassinatos de Whitechapel
quanto das chacinas em Copycat. Contudo, o apartamento de Shand estava intacto e, portanto, eles não fazem ideia de onde o assassinato realmente aconteceu. De uma
coisa, porém, eles podem ter certeza - alguém tem um grande trabalho de limpeza nas mãos.

Kit soltou um leve assobio. - Isso é uma verdadeira porcaria. Fiona saiu do site. - Não brinca. - Então, o que você deduz de tudo isso? - Provavelmente o mesmo
que você - replicou ela. - Sem dúvida, o (Time foi planejado de modo que imitasse as circunstâncias de um dos assassinatos do livro de Shand. Que, por sua vez,
imita um dos assassinatos do Estripador original, com exceção do sexo da vítima. O fato de o assassino ter sido bem-sucedido indica claramente um alto nível de
controle e de organização. Assim, é provável que ele possua uma inteligência bem acima da média. Sua vida fantasiosa também é bastante desenvolvida, provavelmente
estimulada por pornografias violentas. É improvável que ele aceite bem figuras de autoridade; portanto, se tiver um emprego, este não deve ser compatível com sua
inteligência, o que, por sua vez, pode ser uma fonte de irritação para ele. - Ela fez uma careta. - Contudo, ao dizer essas coisas, estou apenas brincando com
as probabilidades.

- E quanto ao relacionamento dele com Shand? Ele é uma dessas pessoas que gostam de ficar à espreita, um amante rejeitado ou algum tipo maluco de aspirante a assistente?
O que você acha?

Fiona se deixou cair sobre uma das cadeiras ao lado da janela e olhou para a cidade. Ao dar a resposta, falou devagar, escolhendo cuidadosamente as palavras:

- Essa, sem dúvida, é a pergunta mais interessante, Kit - falou, oferecendo-lhe um rápido sorriso. - Não é surpresa alguma que tenha vindo de você. O fato de o
assassino sentir uma fixação pelo livro e copiar os crimes não é tão extraordinário assim. Muitas vezes, assassinos que exibem os corpos de suas vítimas de modo
ritual estão apenas replicando imagens que viram em algum material pornográfico ou numa situação particularmente significativa para eles. No entanto, a maior parte
dos assassinos com uma motivação sexual ficaria satisfeita em descarregar sua raiva em qualquer pessoa que se encaixasse mais ou menos em suas fantasias. A opção
de caçar e destruir o criador da obra que instigou seu desejo de matar é curiosamente pessoal. E, em um crime em que a despersonalização da vítima é crucial para
o processo, isso é bastante incomum.

Kit passou as mãos pela cabeça raspada, o rosto sugerindo um misto de surpresa e exasperação.

- Com você, tem sempre de ser um sermão, não é mesmo? Você ainda não respondeu à minha pergunta.

Fiona deu uma risadinha. - Esperava que você não tivesse notado. Já que sou forçada a responder, diria que é uma dessas pessoas que gostam de ficar à espreita
e que ficou obcecada com Copycat. Mas isso é pura especulação.

- Murder Behind the Headlines também é, mas isso não te impede de ler - argumentou Kit. Ele se levantou e começou a andar de um lado para o outro do quarto. -
Isso é muito louco, não é? A ideia de alguém seguindo Drew como uma sombra, invisível até o último instante. A gente nunca pensa nisso quando está escrevendo.
Que algum maluco vai ver a história de sua vida em nossas palavras.

- Você provavelmente nunca escreveria outro livro se ficasse pensando nisso - retrucou Fiona. - A loucura dos outros não é responsabilidade sua. Vem cá, me dá
um abraço.

Kit andou até Fiona, puxou-a com gentileza para que se levantasse e passou os braços em volta dela. Ela ergueu a cabeça e o fitou.

- Há outras formas de tirar uma coisa da cabeça. Kit - disse com suavidade enquanto ele baixava a boca para beijá-la.

Ao cair da tarde, dentro dos muros de Toledo, o paseo fervilhava a todo vapor. Em torno da Plaza de Zocodover, as pessoas andavam em pares, famílias e grupos,
apreciando o ar do fim de tarde e conversando sobre o dia de trabalho enquanto se moviam entre fachos de luz amarela. Os restaurantes, já meio vazios agora que
a alta estação estava no final, serviam jantar aos turistas e moradores locais, recebendo seus clientes regulares com um sorriso de boas-vindas e rápidos bate-papos.
Os bares prosperavam, as mesas cheias, dentro e fora, com os clientes mais velhos apreciando um licor junto com o café e os rapazes observando as moças fofocando
e rindo em grupos separados. Um grande contraste com as vielas e os becos sombrios que irradiavam da praça, ligando-a ao resto da cidade.

Num dos cafés que ficavam em torno da praça, Miguel Delgado sorriu para a mulher inglesa que trabalhava na recepção do hotel Alfonso VI.

Duas noites antes, arquitetara o encontro tropeçando na bolsa dela e derrubando seu drinque. Ela estava com amigos, e não suspeitara de nada quando ele trouxe outro
drinque para substituir o que havia derramado. Hoje, porém, os amigos não estavam lá. Pelo preço de outro drinque, ele podia dar início a seu próximo ato de vingança.

Ele tomou o último gole de seu café puro e dobrou o jornal. Tomando cuidado para não atrair a atenção, andou até a mesa dela, curvou a cabeça em sinal de cumprimento
e sorriu.

- Buenas tardes - disse.

A mulher devolveu o sorriso sem titubear. Minutos depois, eles conversavam animadamente. Delgado estava de volta aos negócios.

13.

Um comentário de cunho profissional: escutei ontem à noite que Blake fez um acordo com um dos tabloides que saem aos domingos. Você conhece o tipo - o inferno
que minha vida se tornou após ser acusado falsamente de ser o assassino de Hampstead Heath. E, com base nisso, ele se mandou para a Espanha, supostamente para
fugir de toda a pressão. Claro que estamos de olho nele, ainda que a distância, e, segundo o agente de viagens, Blake alugou uma casa nas cercanias de Fuengirola
pelo próximo mês. Pelo menos, Toledo fica longe o suficiente para que você não tenha o desprazer de entrar num café e dar de cara com ele sentado ao balcão. Quando
voltar, me liga, e poderemos marcar um jantar. Amor, Steve

Fiona fechou o e-mail de Steve. Responderia depois. Havia sido atencioso da parte dele repassar as notícias sobre Drew, mas ela não queria perder o foco do trabalho
pensando em Francis Blake agora. Enquanto esperava Berrocal chegar, verificou de novo se linha inserido as cenas dos crimes corretamente no mapa. Assim que terminou,
Berrocal chegou, desculpando-se várias vezes por fazê-la esperar.

- Então, o que tem para me mostrar?

O mapa de Toledo escaneado era em preto e branco, as ruas e vielas (apresentadas por linhas pretas sobre um fundo acinzentado.

- É assim que funciona - explicou Fiona. - Comecei com a grade das ruas. Ontem à noite, inseri os locais dos incidentes que me interessavam. - Ela deixou de mencionar
a notícia da Inglaterra que havia reavivado lembranças dolorosas, tirando-lhe o sono. Não desejava a simpatia de Berrocal nem, o que era mais importante, fornecer
munição a qualquer pessoa que pudesse vir a sugerir que seu trabalho não atingira a qualidade esperada. Assim, injetara em seu sistema copos e mais copos do café
industrial que os jovens detetives haviam deixado sobre sua mesa, a fim de tentar disfarçar o cansaço da voz. - Em primeiro lugar, o grupo de incidentes sobre vandalismo.

Fiona apertou umas duas teclas e a tela se acendeu com uma variedade Irregular de cores vibrantes, começando com um verde-marinho, passando por vários tons de
azul e roxo, até chegar ao vermelho. Havia apenas duas pequenas áreas vermelhas, ambas a oeste da catedral e da Plaza Mayor.

- O programa atribui cores distintas a diferentes níveis de probabilidade. O responsável pelos atos de vandalismo que identifiquei como um único grupo mora, provavelmente,
em uma dessas áreas vermelhas - disse ela, apontando com um lápis.

- Bem interessante - observou Berrocal com suavidade. - Não me pergunte como isso funciona. A matemática está muito além do meu alcance. Deixo isso para os técnicos.
Tudo o que sei é que o grau de precisão é assustadoramente alto. - Ela apagou as cores da tela. - Agora, esse é o quadro resultante dos ataques. - Mais uma vez,
a tela se acendeu com cores vibrantes. Dessa vez, havia três áreas vermelhas. Uma delas parecia quase idêntica à maior das duas do quadro anterior, enquanto as
outras ficavam um pouco mais ao norte. - Acredito que a razão dessas duas seja porque os locais dos ataques foram definidos com base na probabilidade de haver possíveis
vítimas nesses lugares bem tarde da noite - continuou, apontando para as áreas de um vermelho berrante. - Mas perceba o que acontece quando junto os dois resultados
e observamos os casos de vandalismo e ataques ao mesmo tempo.

Fiona clicou o mouse umas duas vezes. Agora a única área em vermelho era a maior das duas áreas originais, as outras tinham se transformado num roxo escuro.

- Se eu fosse um policial de Toledo procurando resolver esses casos de vandalismo e de ataques, concentraria minha atenção nas pessoas que moram bem aqui, em
torno da extremidade inferior da Calle Alfonso X.

- Fascinante - reconheceu Berrocal. - E o que acontece quando a senhora insere os assassinatos também?

- É muito difícil dizer com precisão - admitiu ela. - Estamos lidando com apenas dois casos, o que é uma base muito pequena para se trabalhar. E, como eu disse
antes, em virtude de as cenas dos crimes terem sido escolhidas por seu significado histórico, e não pessoal, isso poderia distorcer os resultados. - Mais uma vez,
Fiona apagou a tela. - Por si sós, eles não nos proporcionam nenhuma precisão. - Dessa vez, não apareceu nenhuma área em vermelho, apenas uma massa roxa irregular
que cobria a maior parte da região oeste da Cidade Velha e se estendia como uma marca de nascença em direção aos subúrbios. - No entanto, estou trabalhando com
o pressuposto de que minhas tecidas de conexão criminal e agravamento da violência estão corretas. Se eu estiver certa e esses três grupos de crimes tiverem sido
cometidos pela mesma pessoa, então, quando adicionar os locais dos crimes às outras duas séries, a área vermelha deveria continuar aparecendo mais ou menos no
mesmo lugar. Mas, se eu estiver errada, então o quadro resultante mostrará uma distorção significativa. - Ela olhou para Berrocal e abriu um sorriso maroto. -
Pronto?

- O suspense está me matando - respondeu ele. Fiona apertou umas duas teclas e a tela se reconfigurou. A área vermelha continuava ali, embora num tom um pouco
mais fraco. No entanto, as áreas roxas tinham se expandido e ficado mais azuladas. Fiona circulou a área vermelha com a ponta do lápis.

- Isso não distorce a área-chave de modo significativo. O que indica que a pessoa que cometeu os crimes pode muito bem ser a mesma dos atos de vandalismo e dos
ataques. O senhor está vendo a zona arroxeada?

Berrocal fez que sim. - É a zona de suporte, não é? Se ele não estiver na área vermelha, pode estar na roxa?

- Isso mesmo. Agora, o modo como ela se alterou com a inserção dos assassinatos pode não significar muito por si só, levando em consideração o quanto ele é específico
com relação aos locais de desova e o quanto esses

locais onde ele exibe as vítimas são importantes para a natureza de seus crimes. Mas estou tentada a correr o risco aqui e sugerir que ele talvez tenha se mudado
no período entre os ataques e o primeiro assassinato.

Berrocal franziu o cenho.

- Por que a senhora diz isso? - Não importa o quanto um sistema seja de ponta, há sempre espaço para o instinto quando o assunto é interpretação. Posso me defender
dizendo que já usei muito esse programa de perfil geográfico, e desenvolvi um sexto sentido para o significado dos quadros que ultrapassa o que está no manual.
Além disso, há algo em relação a esse formato que me faz pensar que não estamos diante de uma mudança de endereço. Sinto muito. Não posso ser mais específica
do que isso.

- Então o que aprendemos é inútil. - De jeito nenhum, longe disso. Se ele se mudou, foi relativamente há pouco tempo. No período entre o último dos ataques e o
primeiro assassinato. Deve haver registros civis que possam nos mostrar quem vive por ali e se alguém se mudou nos últimos dois meses. Eu posso estar errada, ele
talvez ainda more por lá. Mas, se fosse eu quem estivesse conduzindo a Investigação, meu primeiro passo seria descobrir quem, dentro da área vermelha, se mudou.

- A senhora acha que ele se mudou para dificultar nossa busca? - perguntou Berrocal.

-Não, não acho que seus planos estejam tantos passos à frente. E talvez ele não tenha se mudado por escolha própria. Talvez tenha sido forçado porque o prédio
foi vendido para algum negócio voltado ao turismo. Ele veria isso como uma forte provocação. Se foi o que aconteceu, pode ser o fator que o levou a começar a matar.
Ele já acalenta seu ódio há algum tempo, a julgar pela época em que os outros crimes começaram. Talvez esse desenvolvimento turístico já estivesse previsto e ele
estivesse tentando lutar contra isso. E, por fim, perdeu. Ele decidiu então se vingar das pessoas que considerava culpadas. - Fiona se recostou na cadeira. - Sei
que pode parecer absurdo, mas, quando estamos falando dos motivos de um psicopata para matar, isso faz tanto sentido quanto qualquer outro. E explica os incidentes
de uma forma que as teorias convencionais de homicídio sexual não conseguem.

- A forma como a senhora explicou sem dúvida tem lógica - reconheceu Berrocal. - Pode imprimir esses mapas para a gente? Eu gostaria de dar início a essa linha
de investigação o mais rápido possível.

Fiona fez que sim.

- Sem problema. Eu também estou redigindo um relatório completo para o senhor, no qual descrevo todo o meu raciocínio. Vou incluir um perfil comportamental básico
do criminoso.

Berrocal franziu o cenho. - Achei que a senhora não aprovasse a análise comportamental!

- Sozinha, acredito que ela seja de pouco valor. Mas quando a combinamos com a conexão criminal e o perfil geográfico, pode ser útil.

Berrocal pareceu hesitante.

- E quando o seu relatório ficará pronto? - Devo terminá-lo ainda hoje. - Ótimo. Assim poderei distribuí-lo entre os investigadores da equipe. Amanhã de manhã,
gostaria que a senhora participasse de uma reunião com eles para responder a quaisquer perguntas e esclarecer as objeções, tudo bem?

Ela fez que sim. - Com muito prazer. Berrocal se levantou. - Presumo que depois disso a senhora irá voltar para a Inglaterra, certo?

Fiona sorriu. - Certo. Não há mais nada que eu possa fazer por vocês no momento, portanto não vejo por que não voltar para casa.

Ele concordou com um meneio de cabeça. - Vou deixá-la terminar o relatório. Obrigado. - De nada - respondeu ela de modo distraído, já pensando na tarefa seguinte.
Quanto mais rápido terminasse isso, mais cedo poderia começar a pensar seriamente em voltar para casa.

Ele nunca sabia quanto tempo levaria. Por isso precisava saborear cada momento, como uma criança abrindo os presentes de Natal, sem saber ao certo qual dos embrulhos
coloridos continha o presente que realmente importava. O truque era organizar tudo a fim de construir um clímax. Só que às vezes isso não acontecia, e ele odiava
a perda do controle absoluto, odiava a raiva que fervia dentro de si quando aquelas vagabundas o deixavam na mão, quando elas não aguentavam por tempo suficiente
para que ele pudesse extrair cada gota de prazer da dor que lhes infligia. A morte devia ser o momento final de um crescendo, não um triste diminuendo que deixava
o espírito insatisfeito.

Por isso se dedicava tanto a atingir a perfeição. A experiência lhe ensinara que cada estágio tinha um sabor particular, desde o primeiro momento, quando a escolhia,
até o último, em que a abandonava. O segredo era planejar. O gosto da antecipação era quase tão bom quanto o espectro de sensualidade proporcionado pela execução
de seu plano perfeito. Maravilhosa também era a satisfação de observar aquelas mentes pequenas amaldiçoá-lo enquanto travavam uma luta com suas amarras para, no
final, perderem.

A princípio, seus oponentes tinham sido tão insignificantes quanto os grilos que cricrilavam à noite, do lado de fora da segurança dos lares. Os policiais idiotas
da redondeza, que jamais investigariam nada mais complicado do que

um assalto malplanejado ao supermercado local, não tinham a menor chance de se aproximar dele. Ele sabia que as chances de eles conseguirem preencher um relatório
do Programa de Detenção de Criminosos Violentos (VICAP em inglês) e entregá-lo ao FBI eram remotas. Toda aquela papelada interferindo com a ingestão de hambúrgueres
e cervejas - sem chance.

Um desafio tão insignificante não poderia durar para sempre. Ele sabia disso. Apostara nisso. Havia se programado desde o início para derrotar os melhores, portanto
não sentia nenhuma satisfação em dar uma volta nos imbecis que haviam entrado para a força policial de pequenas cidades porque não tinham capacidade de fazer algo
melhor com sua vida. Eles achavam que realizavam muito bem seu trabalho, mas isso não o impedira de entrar no território deles e sequestrar uma mulher bem debaixo
de seus narizes. Até o momento, seu maior triunfo viera com a número cinco. La Quinta era a filha do xerife de uma pequena cidade do Nebraska.

Como sempre, ele a tirara de dentro de casa. Era sábado à noite, e os pais dela haviam saído para um jantar beneficente em prol do candidato republicano local que
disputava a corrida rumo ao Senado. A garota abrira a porta sem pensar, ao ver o uniforme da polícia rodoviária. Tinha sido incrivelmente fácil derrubá-la no chão
com um simples soco. Com os pés e as mãos amarrados, ela passara a noite no porta-malas, enquanto ele dirigia pela interestadual, estimulado pela adrenalina e pela
nicotina.

Chegara em casa no meio da manhã. Cercado por uma mata densa, longe de olhos indiscretos, ele a carregara para dentro e fizera dela sua escrava. Acorrentada a
um banco em sua oficina de trabalho, La Quinta aprendera que a dor pode assumir muitas formas. A aguilhoada tardia de uma lâmina de barbear. O brotar de uma queimadura,
de uma ardência abrasadora a uma dor excruciante que se espalha por todo o corpo enquanto o cheiro de carne queimada exala no ambiente. A aflição dolorosa da carne
forçada a se acomodar em menos espaço do que precisa. A dor nauseante de um osso quebrado que nunca ganha tempo para se calcificar. A agonia embotada de um soco
propositalmente mirado nos órgãos sob a pele. Ela levou dias para morrer.

E ele apreciara cada momento. Depois a levara de volta para casa. Não até a porta, é claro. Isso teria sido imprudente. Ele a levara até a primeira curva de uma
erma estrada

secundária, nos limites da cidade, e deixara seu corpo estirado sobre o asfalto para que o próximo motorista incauto a esmagasse sob suas rodas.

La Quinta os obrigara finalmente a abrir os olhos. Ele já havia lido o suficiente para saber o que aconteceria a seguir. Um pedido urgente ao FBI, seguido por uma
busca computadorizada da região, no intuito de encontrar outros casos semelhantes. Assim que eles percebessem que ele levava seu negócio a sério, a máquina começaria
a funcionar. De acordo com suas previsões, os federais chegaram. E, por fim, ela aterrissou para encarar uma profusão de câmeras no aeroporto.

Finalmente, começava o jogo. Jay Schumann estava na cidade. A dra. Jay Schumann, a psicóloga forense que dera as costas a uma lucrativa carreira como psicóloga
clínica para se tornar uma célebre caçadora de mentes do FEL Jay Schumann, a mulher que restaurara a imagem denegrida da montagem de perfis psicológicos com incontestáveis
sucessos. Jay Schumann, com seus penetrantes olhos escuros que contrastavam tão bem com o cabelo louro-claro, a foto que garantia um rosto humano aos processos
jurídicos. Jay Schumann, cujo glamour havia persuadido os chefes a usarem suas habilidades tanto com a mídia quanto com os criminosos.

Nos vinte anos desde aquela fatídica noite de formatura, em que ela o humilhara de modo tão imprudente e desnecessário, eles haviam se distanciado bastante da pequena
cidade da Nova Inglaterra. Só que ele nunca havia esquecido ou perdoado a chicotada de desprezo que marcara e mudara sua vida para sempre.

As cinco primeiras tinham sido um mero aprendizado. As próximas 15 serviriam para aperfeiçoar sua arte. Uma para cada ano desperdiçado. E então, apenas então,
ele permitiria que Jay Schumann ficasse cara a cara com seu maior inimigo pessoal e profissional.

Ainda havia um longo caminho a seguir. Mas agora ela estava no caso. Por fim, a verdadeira vingança poderia começar.

14.

Fiona deu uma última olhada em suas anotações e voltou a atenção para o auditório semivazio no qual daria a aula.

- Para resumir, aquele velho e assustador misógino chamado São Paulo disse: "Quando eu era criança, falava como criança, entendia como criança, pensava como criança;
mas, quando me tornei um homem, deixei de lado as coisas infantis." Assim como faz a maioria de nós.

"Só que com o sociopata é diferente. A maioria de nós acaba percebendo que não é o centro do mundo, e que outras pessoas podem dividir o palco conosco no decorrer
da vida. A personalidade sociopata nunca faz esse ajuste. Em sua limitada visão de mundo, os outros existem num nível sub-humano. O único propósito que ele considera
válido é o de suprir as próprias necessidades e satisfazer os próprios desejos." Ela deu uma risadinha dissimulada. "É por isso que eles dão ótimos líderes corporativos."

Muito poucos sorrisos encorajadores, pensou ela com desgosto. Provavelmente porque a metade deles já planejava seguir tal carreira. Tão sérios os estudantes modernos.

- Desse modo, se quisermos desenvolver algum tipo de compreensão empática do psicopata criminoso - continuou Fiona -, precisamos aprender a voltar no tempo. Vou
deixar vocês pensarem nisso, e também nesse fascinante texto psicológico retirado da Bíblia: "Se não vos transformardes

e vos tomardes como criancinhas, não entrareis no reino dos céus." Ou, como geralmente descobrimos em nosso campo de trabalho, no inferno. - Ela ofereceu um curto
e educado aceno de cabeça. - Obrigada, senhoras e senhores. Até semana que vem, nesse mesmo horário.

De cabeça baixa, Fiona reuniu seus papéis, escutando os murmúrios abafados dos alunos que saíam. Imaginou se os deixara desapontados. Tinha certeza de que uma
boa parte deles se inscrevera em seu curso sobre mentes criminosas instigada pelo filme O Silêncio dos Inocentes. Eles esperavam encontrar uma espécie de Jodie
Foster, impulsionada pelo instinto e pela intuição, mas, em vez disso, tinham deparado com seminários sobre estatísticas e dissertações, em que lhes era exigido
rigor intelectual. O percentual de desistência preocupava o coordenador do departamento, mas não Fiona. Ela nunca se interessara por mentes tacanhas.

Algum sexto sentido a fez erguer os olhos, e, sem perceber, abriu um sorriso ao ver a silhueta robusta de Kit descendo o corredor entre as fileiras de cadeiras.
Ele devolveu o sorriso e apoiou os antebraços na beira da plataforma, enquanto ela terminava de arrumar e guardar suas anotações na • pasta.

- Belo fechamento - observou ele. - Gosto da imagem do assassino sociopata como um Peter Pan. O garoto que nunca cresceu.

- Essa é uma comparação interessante. Com um pouco de imaginação, poderia extrair alguma coisa daí. O Capitão Gancho e os Garotos Perdidos. Wendy como a figura
da mãe... Obrigada, Kit, acho que vou roubar sua ideia. Então, a que devo o prazer? - perguntou Fiona, descendo da plataforma e plantando-lhe um beijo no rosto.

- Trabalhei como um trem hoje, a todo vapor, mas o vapor acabou há cerca de uma hora. E lembrei que vai haver uma festa de lançamento do novo livro de Adam Chester
na Crime in Store, às seis. Pensei em dar uma passada por aqui e ver se você não gostaria de ir comigo. - Kit começou a andar ao lado dela.

- Você se esqueceu de que a gente combinou de jantar com o Steve hoje?

- O jantar é às oito. Achei que podíamos tomar uns cálices do vinho barato oferecido pelos editores no caminho. Assim mostro minha cara e lembro a todo mundo que
ainda estou na disputa. Você decide, querida.

Se ainda tiver muita coisa para fazer, a gente se encontra na casa do Steve mais tarde. - Kit a enlaçou pela cintura e lhe deu um beijo rápido antes que eles entrassem
no saguão do prédio da faculdade de psicologia.

Fiona pensou por alguns instantes. Não tinha nada mais importante para fazer do que corrigir algumas dissertações, e isso poderia esperar até a manhã seguinte.

- Vou dar uma passada no escritório e verificar se surgiu alguma coisa urgente de última hora. Caso contrário, estamos combinados.

A livraria dedicada a romances de mistério estava cheia, repleta de autores, colecionadores e fãs dos complexos e maravilhosamente bem-escritos romances de Adam
Chester sobre procedimentos policiais na década de 1950. Por causa do último, o décimo da série, os editores estavam relançando todas as cópias em brochura anteriores
com novas capas, as fotografias indistintas evocando a atmosfera sombria e melancólica dos livros. Sua editora e agente literária estava parada, orgulhosa, ao lado
de uma vitrine com as novas capas, lançando sorrisos de encorajamento a compradores em potencial.

Assim que entrou, Kit foi logo cercado por um enérgico trio de mulheres que aparecia em todos os eventos de ficção policial na capital, e que aparentemente o adoravam
acima de todos os outros autores. Fiona deixou-o se virar sozinho e abriu caminho pela multidão, indo em busca de uma taça de vinho branco. Kit era um profissional;
ele daria atenção suficiente às mulheres para reforçar sua imagem de pessoa acessível e divertida antes de se afastar e ir bater um papo com seus amigos e colegas.
De sua parte, Fiona ficava feliz em se sentar no fundo da livraria e observá-lo perambular pela sala.

- Ele é um profissional e tanto - murmurou uma voz em seu ouvido. Fiona reconheceu de imediato o refinado sotaque escocês de Mary Helen Margoyles e se virou para
cumprimentá-la com um beijo.

- Mary Helen, que surpresa maravilhosa! - exclamou com sinceridade. Apesar de odiar os melodramáticos romances jacobitas de mistério com a irmã mais nova de Flora
Macdonald, Mona tinha um carinho especial por Mary Helen, além de adorar sua língua ferina. - O que a traz aqui, tão longe das Terras Altas da Escócia?

- Ah, tive de descer para falar com um horroroso homenzinho da BBC que está produzindo uma série de TV baseada nos livros de Morag Macdonald. - Mas isso é bom,
não é?

Mary Helen fez uma careta, como se tivesse mordido uma maçã azeda,

- Você não diria isso se soubesse quem eles escolheram para o papel de Morag.

- Desembucha logo. - Fiona já passara tempo suficiente com autores para saber exatamente o que eles esperavam ouvir.

- Rachel Trilling. - A voz de Mary Helen denotava forte reprovação.

- Ela não é...? - Fiona lutou para lembrar o nome. - Ela não é a cantora dos Dead Souls?

Mary Helen ergueu as sobrancelhas. - Meu Deus! - exclamou. - Finalmente encontrei alguém que já ouviu falar nela. Pois então, o que você pode esperar de um produtor
que acha que um laçarote branco é um pássaro tropical?

- Ah, Mary Helen, sinto muito.

- Vou ter de seguir o velho conselho de Kit: pegue o dinheiro e deixe para lá - declarou Mary Helen com um sorriso amargo. - Fora isso, como vai a vida?

- Ficaria muito melhor se você me passasse outra daquelas taças de vinho branco - respondeu Mary Helen. Fiona passou, mas, antes que elas pudessem continuar a
conversa, o gerente da livraria chamou a atenção de todos para Adam Chester. Adam apresentou seu novo livro de modo breve e astucioso, em seguida leu um trecho.
Depois de responder a algumas perguntas, chegou a hora dos autógrafos.

Enquanto os compradores formavam uma fila, Kit passou os olhos em torno da sala.

- Ai-ai - falou para Nigel Southem, o autor de 20 e poucos anos de engraçados contos noir com quem estava conversando. - É melhor eu ir resgatar Fiona das garras
da louca da Mary Helen.

Nigel ergueu as sobrancelhas perfeitamente desenhadas. - Achei que sua companheira fosse um par mais do que perfeito para a Harpia das Terras Altas. Mas me conta,
como é viver com alguém que passa os dias bisbilhotando as fantasias pervertidas dos psicopatas?

- Por mais engraçado que pareça, não conversamos muito sobre isso. temos mais o que fazer da vida - respondeu Kit. - De qualquer forma, não é isso o que ela faz.
Ela trabalha com análises computacionais, e não psicanálise. Nigel sacudiu a cabeça como quem diz: que pena! - Eu não suportaria isso. Quero dizer, deve ser como
morar com o controlador dos controladores. Ela não vive dizendo que você entendeu tudo errado?

Kit deu-lhe um soco de brincadeira no ombro. - Você não faz ideia de como os adultos vivem, não é? Escute aqui, Nigel, se algum dia você der a sorte de encontrar
uma mulher com a metade do cérebro, da esperteza e da beleza de Fiona, faça um favor a si mesmo: entre num curso de treinamento antes de convidá-la para sair.
- Sem esperar resposta, Kit atravessou a multidão e envolveu Mary Helen num abraço de urso. - Como vai a rainha do vale? - perguntou, plantando-lhe um sonoro beijo
no rosto. - Agora melhor, por encontrar você e Fiona. Para ser honesta, só vim a esse lançamento hoje na esperança de ver alguns rostos sorridentes. Esse negócio
que aconteceu com Drew Shand lançou uma terrível nuvem negra sobre a comunidade de escritores de mistério escoceses. Nas duas últimas semanas, a gente tem se ligado
todos os dias, só para verificar se o outro está vivo.

- Você é a rainha do drama, Mary Helen - implicou Kit. - Estou falando sério - protestou Mary Helen. - Foi um choque terrível para todos nós. - Mas com certeza
isso não representa uma ameaça para o resto de vocês, representa? - indagou Fiona. - Achei que a polícia estivesse convencida de que Drew foi morto por alguém que
ele conheceu naquela noite no bar gay, como é mesmo o nome?

- Barbary Coast - intrometeu-se Kit. - Então, a menos que você leve uma vida secreta numa sociedade sadomasoquista sem que a gente saiba, está segura - continuou,
passando o braço em torno dos ombros de Mary Helen para confortá-la.

- Eu não poderia reivindicar nada tão excitante - replicou Mary Helen, de modo seco. - Mas não é bem assim, é? Quero dizer, Drew foi

morto exatamente do modo como matou uma de suas vítimas no livro. É difícil evitar chegar à conclusão de que quem quer que o tenha matado tem uma mórbida fascinação
pelo gênero. Você conhece essas coisas, Fiona. Não concorda comigo?

Colocada numa situação difícil pelos penetrantes olhos azuis de Mary Helen, Fiona deu de ombros.

- É difícil dizer. Tudo o que sei sobre o caso é o mesmo que as pessoas que leram os jornais e checaram a Internet.

- Você deve ter alguma teoria - pressionou-a Mary Helen. - Afinal de contas, esse é o seu trabalho. Vamos lá, não seja tímida, você está entre amigos.

Fiona fez uma careta. - A meu ver, esse assassinato tem todas as características de um crime cometido por alguém que gosta de ficar à espreita. Alguém que se tornou
tão obcecado por Drew e por sua obra que a única forma de resolver sua compulsão era destruir quem a instigou. E o fato de Drew ter proporcionado o roteiro perfeito
foi apenas um elemento infeliz no cenário como um todo. Se eu estiver certa, então o resto de vocês está tão seguro quanto estava antes da morte dele. De modo
geral, esse tipo de assassino não transfere sua obsessão para outro alvo.

- Viu, Mary Helen? Agora você pode dormir tranquila - falou Kit. - Você é um pequeno filho da mãe condescendente, Kit Martin - disse Mary Helen, dando-lhe um amistoso
soco no ombro. - Obrigada, Fiona. Eu me sinto melhor em ouvir isso, e vou repassar essa informação aos meus colegas do norte da fronteira.

- Espere um pouco, Mary Helen - protestou Fiona. - Eu não tenho certeza de nada. Tudo o que falei foi pura especulação.

Mary Helen abriu um sorriso de orelha a orelha. - Pode ser, mas faz mais sentido do que as baboseiras que a polícia está dizendo. Bom, agora vou continuar a amá-los
e deixá-los, porque preciso ter uma conversinha com minha agente, se ela conseguir largar o Adam por um minuto.

Eles a observaram se afastar. Fiona balançou a cabeça, exasperada. - Eu caio todas as vezes. Ela simplesmente me envolve com seu brilho e suas covinhas e me enrola
como um novelo.

- Não se torture tanto. Ela faz isso com todo mundo - retrucou Kit, pegando outra taça de vinho. - Somos todos um bando de idiotas que sucumbem ao carisma de "velha
dama" de Mary Helen. De qualquer forma, acho que ela realmente precisava ser confortada. Não estava brincando quanto às pessoas estarem tensas com relação à morte
do Drew. A editora do Adam acabou de me contar que Georgia se recusou a prosseguir com o tour de lançamento de seu novo livro se eles não arrumarem um guardacostas
para ela.

Fiona bufou: - Georgia só perderia uma oportunidade de autopromoção se alguém costurasse sua boca. Você sabe disso. Lembra quando ela apareceu com um cão farejador
na livraria Waterstone's, em Hampstead, depois daquela bomba do IRA, nas docas?

Kit deu uma risadinha. - Você está sempre pronta para enfiar a faca na Georgia, não é mesmo? - É porque eu não possuo o benefício do charme masculino, como você.
Sou do sexo errado.

Ele jogou as mãos para o alto. - Ela não consegue evitar, querida. Você conhece a Georgia. Ela é levada pela própria imaginação. De qualquer forma, segundo a editora
do Adam, ela está transformando a vida deles num inferno. Está ameaçando trocar de editora no próximo livro, ameaçando contar à mídia que teme por sua própria
vida e que seus editores se recusam a protegê-la.

- Sei que Georgia é sua amiga, mas, se ela devotasse à escrita a metade da energia que gasta em autopromoção, seus livros teriam melhorado, e não piorado com o
passar dos anos.

Kit levou um dedo aos lábios. - Shh. Não diga isso em voz alta. Você pode fazer com que o editor dela comece a ter ideias. Não há nada melhor do que uma morte
dramática para elevar a venda de um livro. Ouvi falar que os pedidos pelo novo livro de Shand mais do que dobraram desde a morte dele.

- Por que isso não me surpreende? - Fiona suspirou. - Talvez você devesse mencionar isso à polícia. Até onde sabemos, talvez Drew estivesse pensando em trocar
de editora. Um editor que estivesse prestes a perdê-lo

poderia muito bem pensar em dar uma derradeira injeção de lucro em seu balancete.

Kit balançou a cabeça com pesar. - Uma opinião tão vil do negócio editorial. Não sei de onde você tirou essas ideias.

- Acho que tenho andado demais com escritores. Isso azeda o leite da gentileza humana.

Kit retribuiu o comentário mordaz com um leve sorriso. - Então, você realmente acha que o assassino de Drew não vai atacar de novo? Ou estava apenas sendo gentil
com a Mary Helen?

Fiona deu de ombros. - Se eu pudesse prever o futuro tão bem assim, a gente já teria ganhado na loteria. Sinceramente, não sei. Mas, se ele resolver atacar, não
vai escolher uma pessoa que escreve sobre belas amenidades, como Mary Helen. Vai procurar alguém que esteja mais no lado noir.

Kit congelou. - Alguém como eu, você quer dizer? - Está me dizendo que isso realmente ainda não tinha passado pela sua cabeça?

Sem ser notado por nenhuma das pessoas ao seu redor, o homem no paletó de tweed observava Kit Martin do outro lado da sala. A conversa com a namorada deixara-o
abalado, isso era óbvio. Seus olhos estavam arregalados, e o rosto, normalmente cheio de trejeitos, parecia uma máscara de imobilidade. Ótimo, pensou o homem com
profunda satisfação. Gostava de ver Martin angustiado.

Se tudo saísse de acordo com o plano, Martin teria bons motivos para se preocupar. Escondidos por trás da barba e do bigode, os lábios do homem se contorceram
numa pequena careta de escárnio. Observou Martin apoiar a mão sobre o ombro da namorada e conduzi-la através da livraria lotada em direção à porta. Ele mal parou
para se despedir dos amigos, reparou o homem. Sem dúvida, as palavras da mulher tinham mexido com ele.

Já que o principal objeto de seu ódio se fora, o homem espremeu-se entre a multidão e foi até a mesa onde estava o vinho. Estendeu seu cálice

para que o enchessem de novo, agradeceu com um meneio de cabeça e sumiu em direção ao fundo da sala. Ainda havia alguns poucos autores ali, mas eles não mereciam
sequer o seu desprezo, muito menos sua atenção. Tinha a si mesmo em tão alta conta que só se interessava pelos melhores. Isso, claro, sempre fora o problema, percebia
agora. Eram eles que viviam sendo pressionados a criar as grandes obras, o que explicava por que o haviam tratado daquela forma.

Só que isso era passado. O que interessava agora era a retribuição.

15.

No táxi a caminho da casa de Steve, Kit estava atipicamente quieto. Fiona sabia que não adiantava tentar forçá-lo a falar sobre o que o estava incomodando. Ele
diria que não era nada, e ficaria taciturno e mal-humorado. Tal como a maioria dos homens, a consciência de sua própria vulnerabilidade o deixava desconfortável.
Em vez de pressioná-lo, o que o deixaria ainda mais perturbado, ela apenas colocou a mão sobre a dele sem dizer nada. A meio caminho da Pentonvillle Road, ele
finalmente falou:

- Sei que é difícil de acreditar, mas realmente não tinha passado pela minha cabeça que o assassino de Drew pudesse querer vir atrás de mim. - Ele recostou a
cabeça contra o encosto do banco traseiro e suspirou: - Sou um idiota ou o quê?

- Essa é a reação saudável - replicou Fiona. - Por que você deveria imaginar que seria a próxima vítima de um assassino cujo crime aconteceu a 650 quilômetros
de distância? Se... e esse é um grande se... a morte de Drew foi a primeira de uma série, ainda assim não sabemos o que o tornou um alvo atraente. Foi pelo fato
de que ele era homossexual? Por causa de sua obra? Algo em seu passado sobre o qual não sabemos? Sua atração pelo lado negro de sua sexualidade? É difícil determinar
qual desses fatores foi a causa, e apenas um deles se aplica a você. Estatisticamente, o risco de você se tornar a vitima de um serial killer é quase zero.

- Ainda assim, seria de esperar que me passasse pela cabeça que eu poderia estar na lista negra de algum maluco - retrucou Kit de modo áspero. - Afinal de contas,
sou eu quem supostamente possui uma imaginação fértil. Você pensou nisso.

Fiona apertou-lhe o braço. - Verdade, mas minha forma de ver o mundo é ainda mais distorcida que a sua. Além disso, eu amo você. É de esperar que eu me preocupe
exageradamente.

Kit gemeu, passou um braço em torno dela e a puxou para perto. - Isso nunca te irrita, estar certa o tempo todo? Ela deu uma risada. - Descubra qual o seu talento
e agarre-se a ele, é o que eu digo. E, já que você acabou de admitir que eu tenho o direito de me preocupar, precisa me prometer que não vai conversar com estranhos.

Ele bufou: - Essa é uma promessa fácil de manter. Pelo menos até sair o novo livro.

O táxi parou em frente a uma casa de quatro andares, em Islington, onde Steve ocupava o apartamento térreo. Ele tinha condições de alugar algo maior, mas passava
tão pouco tempo em casa que não via razão de sair de um lugar que atendia perfeitamente às suas necessidades. Dois quartos - um dos quais ele fizera de escritório
-, uma copa/cozinha cujas janelas francesas davam para o jardim e uma sala de estar grande o suficiente para acomodar dois sofás e uma poltrona era tudo de que
precisava. A decoração era simples. Fiona adorava a economia de estilo, mas Kit odiava a pureza impessoal. Ambos tinham a impressão de que Steve mal notava nada
disso. Desde que fosse funcional, ele ficava satisfeito.

Os sapatos de saltos baixos de Fiona bateram ruidosamente nos degraus de pedra que desciam até a entrada do porão. Kit a seguia, admirando seu cabelo iluminado
pelas luzes da rua, que realçavam o brilho castanhoavermelhado. Ela era, pensou Kit, mais bonita do que ele jamais poderia merecer. Ao alcançá-la, no momento em
que ela tocava a campainha, ele a enlaçou e plantou-lhe um beijo no pescoço.

- Eu te amo, Fiona - disse, a voz rouca. Ela soltou uma risadinha abafada.

- E eu não sei!

Steve abriu a porta e, ao vê-los, um sorriso se formou de orelha a orelha. - Sejam decentes - avisou. - Alguns de nós são obrigados a morar aqui.

Eles o seguiram pelo corredor estreito até a copa, onde a mesa estava posta com uma variedade de pães, queijos, patês e saladas. Um aroma de alho-poró e batatas
pairava no ar. Steve vivia à base de sopa. Havia sempre uma panela com algum preparado sobre o fogão, ao lado de um pote com os ingredientes da próxima mistura.
Ele só fazia sopa. Kit gostava de zombar dos limitados dotes culinários de Steve, porém, quando o pressionavam, era obrigado a reconhecer que Steve preparava a
melhor sopa que ele já provara e, longe de possuir um minguado repertório, ele provavelmente fazia mais experiências com combinações de sabores do que o próprio
Kit.

- Só que vem sempre em uma tigela com uma colher - reclamara Kit certa vez. - É tão previsível.

- Pelo menos meus convidados não precisam ser formados em engenharia civil para comer o jantar - rosnara Steve de volta. - Lembro da primeira alcachofra que comi
na sua casa. Além disso, com a vida que tenho, preciso de algo rápido quando chego em casa, e minha sopa tem uma aparência muito mais saudável do que um sanduíche
de bacon.

Naquela noite, porém, ninguém estava interessado em discutir o menu. Só duas semanas depois de voltar de Toledo foi que Fiona encontrara tempo para prestar a devida
atenção ao arquivo do caso sobre a armadilha que a Polícia Metropolitana tinha armado para Francis Blake. Como insistisse em manter o caráter informal de suas
conclusões, Fiona sugerira apresentá-las durante o jantar. Assim, dessa vez o ar estava tenso de antecipação quando Kit e Fiona se sentaram, enquanto Steve servia
o vinho.

- Primeiro a sopa, depois a gente discute o caso - declarou Fiona. Steve sorriu com sarcasmo. - Como a senhora quiser, doutora. - Ele serviu a fumegante e cremosa
vichyssoise. - Então, qual vai ser o assunto da conversa-fiada?

- Que tal a sua vida amorosa? - sugeriu Kit. - Isso deve levar uns dez segundos - falou Steve. Pegou a colher e a examinou com olhos críticos. - Minha vida amorosa
é como o Monstro do Lago Ness... os rumores de sua existência são amplamente exagerados.

- O que aconteceu com aquela advogada do Ministério Público que você levou para jantar na outra semana? - perguntou Fiona.

- Ela estava mais interessada nas leis sobre a divulgação de provas do que em mim - respondeu Steve. - Eu teria tido uma noite mais interessante se tivesse saído
com o comandante e a mulher dele.

Kit assobiou. - Foi tão bom assim, é? - Bom, suponho que ela também não deva ter me considerado muito interessante - replicou Steve, tomando uma colherada da
sopa.

- O problema com a gente é que nós três temos uma fascinação mórbida por mortes violentas - interveio Fiona. - Talvez Kit devesse te apresentar uma sexy escritora
de suspense policial.

Kit quase engasgou. - Mais fácil falar do que fazer. Se eliminarmos as que já são comprometidas, as que têm uma queda séria pelas drogas e as lésbicas, não sobra
muita coisa.

- Além disso, você não ia aguentar a competição - acrescentou Steve. Ao terminarem de tomar a sopa, Steve tirou as tigelas da mesa e Fiona pegou duas folhas em
sua pasta.

- Preciso admitir que o material que você me enviou é uma leitura bastante interessante - comentou. - Para não falar das interpretações de Andrew Horsforth sobre
os encontros. Foi uma aula prática sobre o que acontece quando você coloca a teoria na frente dos fatos. Em certo sentido, as conclusões que ele esboçou são válidas.
Quero dizer, isso se você se concentrar nas beiradas e esquecer o cerne do material. Se você olhar para o conjunto das conclusões de modo contínuo, indo da mais
provável para a menos provável, vai ver que na maior parte das vezes ele optou pela menos provável, porque ela confirmava a visão que ele já tinha formado, ou
seja, de que Francis Blake era o assassino.

- E você, muito esperta, partiu da premissa oposta - interveio Kit com um sarcasmo carinhoso. - Ninguém gosta de uma espertalhona, você sabe.

Fiona mostrou a língua para ele. - Errado. Parti de uma visão neutra. Tentei ignorar minha opinião já meio formada de que Francis Blake não era o assassino. Estava
preocupada em conseguir ser o mais objetiva possível.

- Não se pode dizer o mesmo de Horsforth - observou Steve. - Você vai ficar feliz em saber que ele foi riscado da lista de consultores do Ministério do Interior*2
após nosso fiasco no Bailey.

- Isso é um pouco radical da parte do Ministério do Interior, não? - perguntou Kit, com a boca cheia de salada.

- É mais fácil usar o Horsforth como bode expiatório do que os oficiais de polícia seniores - respondeu Steve. - Somos tão culpados quanto ele pelo que aconteceu,
mas que Deus proíba que mais lama seja jogada contra a Polícia Metropolitana no momento.

- As cabeças dos adjuntos vão rolar - observou Fiona com cinismo. - Antes que eu diga o que penso, Steve, preciso que me responda uma pergunta. Embora eu saiba
mais ou menos onde aconteceu o assassinato, não cheguei a ir até a cena do crime, portanto não tive certeza de uma coisa. Tem algum lugar no Heath de onde uma
pessoa poderia assistir ao crime sem ser vista pelo assassino de Susan Blanchard?

Steve franziu o cenho e ergueu os olhos para o canto do teto, enquanto buscava na memória o local do assassinato. Ao responder, falou de modo pausado, considerando
todos os aspectos:

- Encontramos o corpo numa espécie de buraco. Havia uma fileira de rododendros entre a trilha e Susan. Em seguida, a clareira na qual ela foi encontrada. Mais
acima, o terreno se elevava ligeiramente até atingir outra fileira de arbustos. Acredito que uma pessoa escondida nos arbustos poderia observar tudo sem ser vista
por um assassino que estivesse concentrado em seu trabalho. Os peritos procuraram por impressões digitais na área toda, e não me lembro de nada na análise da perícia
que indicasse a presença de uma terceira pessoa.

- Você acha que Blake assistiu ao assassinato? - interveio Kit, incapaz de ficar quieto.

- Você está parecendo o Horsforth - replicou Steve. - Teorizando sem dados suficientes. Pode muito bem ter sido uma outra pessoa, alguém completamente diferente
que contou a Blake o que viu. Vamos escutar o que Fiona tem a dizer.

*2. Na Inglaterra, o Ministério do Interior é responsável pelo controle da imigração, pela segurança e pela ordem. É também responsável pela polícia. (N.T.)

Kit olhou para o alto. - Esqueci. Temos de ouvir o sermão inteiro. Não podemos pular para a última página e ver quem é o culpado. - Divertido, ele balançou a cabeça
de modo condescendente.

- Por que mudar o hábito de uma vida inteira? - falou Fiona com doçura. - Certo, isso é o que eu acho. Vamos começar pelo princípio, sabemos que estamos procurando
por um assassino bastante confiante. Sabemos disso porque Hampstead Heath é um local público, e o risco de cometer um crime em plena luz do dia e ser visto por
alguém que esteja passando é alto. Além disso, o modo como o corpo foi exibido aponta para um homem que é, pelo menos em termos policiais, um "criminoso maduro".
A ficha de Blake, por outro lado, é trivial e não mostra nenhum sinal de piora no comportamento que sugira que ele pudesse vir a cometer um crime desses. Essa
foi a primeira coisa que me incomodou quando ele foi apontado como o principal suspeito.

- Espere um pouco - objetou Kit. - Você não pode dizer que só porque Blake não possui uma ficha criminal pesada ele não tenha cometido os tipos de crime que poderiam
levar a um assassinato sexual. Ele pode ter sido esperto o suficiente ou ter tido sorte o bastante de escapar impune.

- Verdade - concordou Fiona. - Por isso eu não riscaria Blake da lista de suspeitos com base apenas nisso. Tampouco o descartaria com base no fato de que o material
pornográfico encontrado pela polícia no apartamento dele, embora de conteúdo sadomasoquista, não continha fotografias ou descrições condizentes com o modo como
o corpo foi exibido. No entanto, esse detalhe me faz pensar, porque o assassino precisou criar essa imagem de alguma forma. Se ela não foi retirada de nenhum material
pornográfico, então é decorrente de alguma experiência passada, ocorrida na época em que ele estava formando sua identidade sexual. E nenhuma das pesquisas feitas
por Steve revelou algo compatível no histórico de Blake. Assim, a meu ver, isso lança outro ponto de interrogação sobre ele.

Steve tinha se inclinado e apoiado os cotovelos sobre a mesa, o cenho franzido em sinal de concentração. Até então, Fiona não dissera nada que batesse de frente
com o que ele mesmo acreditava. No entanto, sempre achava que o raciocínio que ela usava para ligar os fatos esclarecia melhor as coisas, às vezes rearranjando
detalhes de modo a formar um quadro

diferente. Percebia aonde ela queria chegar e imaginou se Kit estaria certo sobre o que estava por vir.

- Acredito também que este assassino não saiba lidar muito bem com o sexo oposto - continuou ela. - E, mais uma vez, isso não se encaixa no perfil de Blake. Ele
tinha uma namorada e, além disso, gostava de entrar em contato com mulheres estranhas através de anúncios nos jornais. Sabemos, por algumas mulheres que se apresentaram
para dar depoimentos, que ele conseguiu transar com elas, ainda que a maioria o considerasse dominador demais para querer dar continuidade à relação. Portanto,
estamos diante de um homem capaz de interagir social e sexualmente com as mulheres.

- Melhor do que eu - ressaltou Steve. - Mas você está certa. Essa foi uma das principais razões que me fizeram suspeitar da culpa de Blake, desde o início. Ele
não é um virgem frustrado ou alguém que precisa espancar as mulheres para atingir a satisfação sexual.

- Eu já sabia de tudo isso antes de ler os registros sobre a armadilha - prosseguiu Fiona. - Tenho certeza de que você também, Steve. No entanto, ao ler sobre
os encontros entre Blake e Erin Richards, ficou claro que ele sabia mais sobre o assassinato de Susan Blanchard do que poderia ter deduzido a partir das informações
fornecidas pela mídia. Ele sabia, por exemplo, que as mãos dela tinham sido arrumadas como se estivesse rezando, os dedos entrelaçados, e não apenas com as pontas
encostadas umas nas noutras. Após ser preso, Blake afirmou que havia escutado isso num pub, mas não conseguiu identificar a pessoa que disse ter contado a ele.
Mas voltarei a esse ponto depois.

Kit concordou com um meneio de cabeça. A despeito de sua implicância, estava tão fascinado pela explicação de Fiona quanto Steve. Tinha certeza de que sabia aonde
ela queria chegar, mas isso não significava que não queria ver o argumento que ela usaria para justificar a conclusão. Mesmo após todo aquele tempo juntos, ainda
se sentia intrigado pelo modo como a mente dela funcionava, tão analítica, em contraste com sua própria abordagem intuitiva.

- Estamos prendendo a respiração - brincou. Recusando-se a permitir que isso interferisse em seu ritmo, Fiona o ignorou e prosseguiu:

- Quero analisar agora as fantasias que Blake descreveu em suas cartas e nas conversas com a detetive Richards. Com base em minha experiência, eu esperaria que
o assassino tivesse fantasias bastante específicas, esperaria que o objeto delas fosse uma adolescente ou uma mulher de 20 e poucos anos, como Susan Blanchard.
Elas são mais fáceis de manipular, tanto na fantasia quanto na vida real. Nos cenários que cria em sua mente, o assassino transforma as mulheres em objetos. Suas
fantasias envolvem controle, submissão e atos violentos que despertam um medo terrível no objeto de sua atenção. Ele irá se imaginar ameaçando-a com uma faca,
amarrando-a, causando-lhe dor, cortando-a e fazendo-a implorar por piedade. - Fiona fez uma pausa e tomou um longo gole do vinho. - E como ele a matou ao ar livre,
eu esperaria que o local desses encontros sexuais imaginários fosse um parque ou um bosque.

"Mas não é isso que vemos com Blake. Quase tudo o que ele descreve para a detetive Richards envolve voyeurismo. Ele fala e escreve sobre uma terceira pessoa assistindo
seus jogos sentais, ficando excitada por causa deles, muitas vezes entrando na brincadeira. Admito, aqui há também fortes elementos de submissão e dominação, mas
eles ficam muito mais no campo da brincadeira do que na inflicção de dor real. No entanto, o ponto decisivo para mim é que todos os cenários que ele descreve para
essa mulher que deseja levar para a cama, essa mulher com quem passeia pelos parques de Londres... em todos os cenários descritos, sem exceção, o local do sexo
é algum recinto fechado. Na funerária onde ele trabalha, no escritório onde ela trabalha, num armazém abandonado, em seu apartamento. Nenhuma dessas situações elaboradamente
detalhadas, pornograficamente descritas, acontece ao ar livre.

"E, para finalizar, temos a questão do material pornográfico que a polícia encontrou no apartamento de Blake. É verdade que foi uma grande quantidade, tanto revistas
quanto vídeos. E é verdade também que a maioria seria classificada como pesada, quase todas envolvendo mulheres jovens ou adolescentes. No entanto, se a listagem
no arquivo é precisa, muito poucas tratam de estupro ou sadomasoquismo. O que havia era muita coisa falando de sexo a três e voyeurismo. E um pouco de escravidão."

- Você está dizendo que Blake não combina com o crime - disse Steve, de modo direto.

- Baseado no resultado de sua operação, acredito que qualquer psicólogo qualificado com uma mente aberta chegaria à mesma conclusão - concordou Fiona.

- Mas tem mais, não tem? - interveio Kit. - Você acha que sabe o que realmente aconteceu, não acha, Fiona?

Steve, que passava patê num pedaço de pão, parou com a faca no ar. - Verdade? Fiona brincou com o guardanapo. - Não é o que estou dizendo, Kit. Não sei quem matou
Susan Blanchard. Mas apostaria minha reputação que não foi Francis Blake. - Ela inspirou fundo. - No entanto, acredito que ele viu quem foi. Blake é um voyeur.
Isso explica a forma como ele vê os parques. Ele gosta de observar. Acho que foi isso o que aconteceu naquela manhã em Hampstead Heath. Ele estava escondido nos
arbustos, na esperança de ver um casal fazendo amor. Mas acabou vendo algo bem diferente. Francis Blake ficou ali assistindo alguém estuprar e matar Susan Blanchard.
E foi a coisa mais excitante que ele já vira na vida.

16.

O silêncio que se seguiu à conclusão de Fiona foi como o vazio de ar que ocorre depois da onda de choque produzida pela explosão de uma bomba. Ainda que Kit tivesse
adivinhado desde o início aonde ela pretendia chegar, a solidez de seu julgamento o deixou estático, congelado. Steve fechou os olhos e apoiou a cabeça numa das
mãos, massageando o osso do nariz com o polegar e o indicador.

- Isso é um salto e tanto, Fi - falou com suavidade. - Mas imprime um sentido às informações de uma maneira que nenhum outro jeito consegue - retrucou ela, pegando
a garrafa de vinho e enchendo sua taça de novo, como que se preparando para que tentassem desafiar seu raciocínio.

Steve ergueu a cabeça e fitou-a direto nos olhos. Queria acreditar nela, principalmente porque isso lhe garantiria novos caminhos de investigação. No entanto,
sabia que seus próprios sentimentos por ela sempre o deixavam predisposto a conceder-lhe o benefício da dúvida. Já arriscara o pescoço várias vezes para defender
os relatórios dela perante seus superiores, e fora sempre recompensado por isso. Dessa vez, porém, seu futuro dependia do que fizesse com o caso de Susan Blanchard.
Se piorasse as coisas ainda mais, sua carreira estaria definitivamente arruinada. Ninguém o criticaria se deixasse o caso resvalar para a seção de crimes não solucionados;
a opinião do público permaneceria a mesma, de que eles tinham capturado o

homem certo, mas haviam destruído suas chances de jogá-lo na cadeia. Contudo, se resolvesse se arriscar e ir atrás das possibilidades lançadas pela teoria de Fiona,
precisava estar certo de que seria bem-sucedido. Pigarreou para limpar a garganta.

- Ou talvez Blake seja completamente inocente - falou. Fiona fez que não. - Há coincidências demais. - Ela enumerou os pontos com os dedos. - Sabemos que ele
estava no Heath naquele dia. Que suas fantasias envolvem voyeurismo. E que ele sabia de coisas sobre o assassinato que nunca foram divulgadas ao público. Seria
forçar demais a credibilidade sugerir que o homem que estava no Heath naquele dia soube num pub, por meio de um estranho que ninguém conseguiu identificar, a forma
exata como o corpo de Susan foi arrumado. Todos os motivos pelos quais Blake foi apontado como suspeito dão margem a uma outra interpretação, e apenas uma...
ele viu o que aconteceu.

- Se você estiver certa... e isso me parece bem provável... a ironia é que Francis Blake poderia ter ajudado a polícia na investigação - observou Kit. - Ele sabe
mais sobre o assassino do que qualquer outra pessoa.

- Se eles o tivessem tratado como uma testemunha, e não como o principal suspeito, talvez as coisas pudessem ter tido um final diferente. Por outro lado... - Fiona
deu de ombros. - Talvez não.

Steve suspirou: - De um jeito ou de outro, a gente pôs tudo a perder. Tenho de dizer, Fi, acho que você pode estar certa. Não estou totalmente convencido, mas
levarei isso em consideração.

Fiona o fitou por um longo momento, pensando. Estava acostumada a ver Steve aceitar suas ideias com mais facilidade. A cautela de agora fez com que percebesse
que ele devia estar sob uma tremenda pressão. Ela tinha dito que não queria se envolver, mas estava feliz por tê-lo ajudado, o pouco que fosse.

- Espero que essas informações lhe sejam úteis - disse, com mais humildade do que normalmente sentia quando apresentava sua opinião profissional.

- O que eu não entendo - interveio Kit - é por que Blake não falou a verdade quando foi interrogado depois de ter sido preso. Quero dizer, esse

seria o modo mais óbvio de se livrar da acusação, não? "Não fui eu, mas vi quem foi."

- Não se você tivesse confiança absoluta de que o tribunal não fosse aceitar o caso. Não se soubesse que não havia prova concreta que o ligasse a um crime que
não cometeu - respondeu Fiona. - Ele tinha um advogado, não tinha, Steve?

- Desde o começo. A primeira declaração que deu após ter sido preso foi: "Sem comentários." Depois, quando apresentamos as provas, o advogado pediu um recesso.
Quando eles voltaram, tudo o que Blake disse foi que estivera no Heath naquela manhã, que tinha perdido a noção do tempo e que percebera que ia chegar atrasado
ao trabalho, e por isso o tinham visto sair de lá correndo. Quanto às coisas que escreveu e disse durante a operação secreta, ele foi taxativo ao afirmar que era
tudo fantasia, nada além disso.

- Então, durante a conversa, o advogado deve ter dito a ele que o caso não se sustentaria no tribunal - comentou Kit, começando a entender. - E aquele merdinha
presunçoso ficou sentado lá, consciente de que sabia mais do que vocês jamais poderiam imaginar sobre o que havia acontecido a Susan Blanchard, e que vocês nunca
iriam descobrir. Que filho da mãe asqueroso!

Fiona concordou com um meneio de cabeça. - Ele provavelmente pensou que o negócio acabaria ali, no Tribunal dos Magistrados.*3 Em vez disso, acabou passando oito
meses detido. E, a essa altura, já não tinha mais saída. Ele não podia recuar e admitir que tinha visto o crime. Vocês ficariam tão furiosos por terem sido enrolados
que acabariam acusando-o de ter sido cúmplice. Blake deve acalentar um ódio tremendo pela polícia agora.

Kit recostou-se na cadeira. - Nem tanto. Você não o viu na televisão? Ele está tirando o maior proveito do caso. Está vivendo a melhor época de sua vida. Não apenas
tem em sua posse lembranças poderosas que pode reavivar a hora que quiser, como

*3. Na Inglaterra, o Tribunal dos Magistrados é uma corte, com jurisdição limitada, que trata dos crimes de menor gravidade. Opõe-se ao Tribunal da Coroa, responsável
pelos casos de maior gravidade. (N. T.)

também a profunda satisfação de saber que fez a polícia e o Ministério Público parecerem idiotas.

- Mais do que isso - resmungou Steve. - Ele vai receber uma indenização substancial do Ministério do Interior por ter sido injustamente encarcerado, para não mencionar
o dinheiro que está arrancando da mídia. - Soltou o ar com força. - Às vezes, esse trabalho me dá vontade de chorar. - Sob a luz suave da copa, seus traços pareceram
ainda mais austeros do que o normal, em decorrência da confirmação amarga feita por Fiona.

Fez-se uma longa pausa. De repente, ninguém mais estava com vontade de comer. Kit pegou o vinho e encheu todas as taças.

- O que você vai fazer agora? - perguntou a Steve. - Voltar ao ponto zero? Já que não foi Francis Blake, alguém mais esteve no Heath naquela manhã e matou Susan
Blanchard. Vamos ter de revisar tudo, rever cada depoimento das testemunhas e interrogá-las novamente.

Kit soltou uma risada de deboche.

- Certo. Só não dá para esperar que Blake se apresente e conte o que viu.

- Tem uma coisa que você talvez goste de levar em consideração - falou Fiona de modo pausado.

Steve ergueu a cabeça, os olhos subitamente atentos. - O quê? - É possível que Blake tenha conseguido identificar o assassino. Ele pode tê-lo reconhecido, tê-lo
visto depois. Pode até ter visto o assassino fugir num carro e conseguido anotar a placa. Eu diria que, dado seu momento de triunfo atual, ele esteja se sentindo
confiante o suficiente para tentar chantagear o verdadeiro assassino. Não sei se você tem os recursos para tanto, uma vez que a investigação está oficialmente
suspensa, mas eu o observaria de perto quando ele voltasse de sua temporada na Espanha. Coloque uma escuta no telefone dele, abra sua correspondência, mantenha
uma vigilância discreta, monitore sua conta bancária. A chance é remota, mas talvez Blake o leve direto ao assassino.

Steve fez que não, em dúvida. - Isso seria forçar a barra, Fi. Além disso, eu jamais conseguiria um mandado para colocar uma escuta telefônica com base nesses
argumentos. O máximo que eu posso conseguir é montar um esquema leve de vigilância.

- Isso é melhor do que nada. O que mais você tem? - quis saber Kit. - Claro que você pode voltar ao ponto zero e conversar com todas as testemunhas de novo, como
sugeriu. Contudo, quanto mais você vai realmente conseguir extrair delas agora, depois de tanto tempo? Além disso, o que quer que elas tenham a dizer vai estar
maculado pelo bombardeio da mídia em torno da prisão e do julgamento. Elas vão se segurar ainda mais firmemente à ideia de que Blake é o seu homem. É normal, é
humano. A meu ver, uma chance remota é melhor do que chance nenhuma. Se vocês quiserem se redimir pelo assassinato de Susan Blanchard, eu diria que não têm outra
escolha.

- Eu também não tenho nenhuma verba - falou Steve, com amargura. - Estou conduzindo uma investigação discreta, passível de ser contestada, o que significa que
tenho poucos homens à disposição, e uma quantidade ainda menor de recursos. Não tenho como armar o tipo de operação que você está sugerindo, mesmo que achasse
um meio de justificá-la.

- Talvez esteja na hora de chamar seus homens de confiança - retrucou Kit. - Deve haver alguém no seu time em dívida com você. Ou que sinta que está em dívida
com Susan Blanchard e a família dela. Para não falar em todos aqueles policiais que se sentiram humilhados pela declaração do juiz. Aposto que alguns deles não
se importariam de fazer um trabalhinho extra para você, mesmo sem receber. Mas que droga! Se tudo o que você precisa é de alguém que fique sentado num carro na
frente da casa dele, pode contar comigo. - Ele sorriu. - Nunca desista, Steve.

Steve balançou a cabeça. - Vocês fazem com que me sinta envergonhado. Fiona passou horas analisando a porcaria de operação comandada pelo Horsforth, e você se
oferece para vigiar o cretino número um da cidade. E tudo o que consigo fazer é me sentar e reclamar das dificuldades. - Sem perceber, Steve empertigou os ombros.
- Obrigado, aos dois. Pelo menos agora tenho uma nova linha de investigação para estimular meu pessoal.

Kit ergueu sua taça. - Ao resultado - brindou. Steve abriu um sorriso amargo. - Ao resultado certo.

* * *

Já passava da meia-noite quando eles chegaram em casa. Kit disse que estava agitado demais para dormir e muito embriagado para escrever, portanto ia dar uma olhada
na Internet para ver se algum de seus companheiros estava conectado a um dos vários jogos multijogadores que usava como meio de se acalmar.

- São sete horas na costa leste - murmurou, enquanto entrava no escritório. - Deve haver alguém pronto para ser morto.

Fiona subiu a escada que levava ao sótão. Deixaria seus papéis no escritório e depois iria direto para a cama, a fim de usufruir sete horas maravilhosas de sono.
A luz vermelha piscando na secretária eletrônica fez com que parasse ao se virar para sair. O que fazer: ignorar ou escutar a mensagem? O senso de dever foi mais
forte do que a vontade, ainda mais quando viu que só havia um único recado.

Era Salvador Berrocal, a voz confiante abafada pelo revestimento à prova de som do recinto:

- Achei que a senhora gostaria de saber que identificamos um suspeito com relação aos dois assassinatos de Toledo - disse ele. - Estou lhe mandando os detalhes
por e-mail, mas quis avisá-la o mais rápido possível de nosso progresso.

- Ótimo! - Com a mão direita, Nona deu um soco na palma esquerda. Agora estava tão acesa quanto Kit. Com dois passos rápidos, alcançou seu computador e acessou
o e-mail. Havia meia dúzia de mensagens, mas apenas uma a interessava. Abriu-a imediatamente.

De: Salvador Berrocal <Sberroc@cúp.mad.es>

Para: Fiona Cameron <cameron@psych.ulon.ac.ulc>

Assunto: Consultoria em Toledo

Cara dra. Cameron,

Finalmente conseguimos obter os detalhes de que precisávamos para seguir em frente. Encontramos alguém que acreditamos ser um provável suspeito. O nome dele é
Miguel José Delgado. É solteiro e tem 29 anos. Até dois meses atrás, Delgado possuía um pequeno armazém,que vendia, basicamente, gêneros alimentícios para os moradores
locais. O negócio estava indo à falência, o que Delgado acreditava

dever-se ao fato de os moradores do centro da cidade estarem sendo forçados a se mudar para os subúrbios. Ele vivia em um pequeno apartamento nos fundos da loja.
Os donos do prédio queriam vendê-lo para uma cadeia de hotéis americana. A resistência era liderada por Delgado. Segundo as pessoas da vizinhança, ele falava com
bastante violência do desenvolvimento proposto. Dizia que os turistas eram um câncer que estava destruindo a verdadeira vida de Toledo. De modo interessante, uma
das testemunhas contou que ele falava frequentemente que não ia "se abaixar para ser enrabado" pelos americanos. Assim sendo, há dois meses, o senhorio descobriu
que Delgado passaria a noite fora. Ao voltar, ele encontrou a loja interditada com tábuas de madeira e o apartamento trancado. O senhorio havia transferido todas
as suas posses e o estoque da loja para um novo apartamento, a cerca de 5 quilômetros ao sul da cidade. Eles deram a Delgado as chaves de seu novo apartamento
e uma "grande quantia em dinheiro", e lhe disseram que ele não poderia mais manter a loja naquele prédio. Ninguém gostava muito de Delgado, nem os vizinhos, nem
os fregueses, e provavelmente esse era o verdadeiro motivo de o negócio estar indo mal. As pessoas o descrevem como um homem "por vezes rabugento e pouco prestativo",
embora algumas digam que ele pode ser bastante charmoso quando quer, sobretudo quando fala de seu assunto predileto: a história de Toledo. Ele vivia sozinho e,
até onde sabemos, não tinha namorada. Como a senhora pode ver, ele se encaixa muito bem no perfil, tanto psicológico quanto geográfico. Só temos um problema. Não
conseguimos descobrir onde Delgado está vivendo. Ele jamais foi visto perto do novo apartamento. Na verdade, duas semanas após a mudança forçada, os vizinhos ligaram
para o proprietário a fim de reclamar do cheiro. Quando os homens contratados pelo senhorio entraram no apartamento, descobriram que todos os bens perecíveis da
loja tinham estragado. Apesar de ele ainda não ter sido encontrado, a boa notícia é que até agora o assassino não voltou a atacar. Quero lhe agradecer mais uma
vez a ajuda. Sem ela, ainda não teríamos ideia de quem procurar. Eu a manterei informada do progresso de nossa busca.

Atenciosamente,

Salvador Berrocal

Fiona chegou ao fim da mensagem e sorriu. Pelo menos um policial parecia estar no caminho certo para um bom resultado. Até então, temia que, quando falasse com
Berrocal, ele lhe dissesse que outro estrangeiro havia sido morto. Contudo, por alguma razão, Delgado - se é que ele era realmente o assassino - tinha dado um
tempo.

Ou isso, ou eles ainda não haviam encontrado o corpo. Qualquer que fosse o caso não havia nada que ela pudesse fazer. Fiona desligou o computador e desceu. Ao
alcançar o último lance da escada, viu Kit na porta de seu escritório com uma folha de papel na mão e uma expressão preocupada.

- O que foi? - perguntou. Ele ergueu a cabeça, e Fiona percebeu os olhos arregalados e inquietos. Ao falar, sua voz soou estranhamente esganiçada:

- Recebi uma ameaça de morte.

17.

Kit entregou o papel a Fiona, que o pegou com cuidado pela ponta superior esquerda. Era uma folha simples de A4, dobrada em três para caber num envelope comum.
Não havia nada que a distinguisse de qualquer outro documento gerado por computador. A fonte era comum, e o layout simples. Fiona observou tudo isso antes de reunir
forças para ler a carta.

Kit Martin, você é um ladrão da criatividade alheia e um difamador da reputação alheia. Você rouba o que não consegue produzir por si só. E suas mentiras privam
os outros daquilo que por direito é deles.

Seu trabalho é um débil reflexo da luz de outras pessoas. Você se esforça para garantir que seus competidores sejam tirados de campo. Você toma, destrói, você é
um vampiro que suga o sangue daqueles cujos dons inveja. Sabe que isso é verdade. Coloque a mão na consciência, e não poderá contestar as coisas de que me privou.

Chegou a hora do acerto de contas. Você não merece nada além do meu desprezo e do meu ódio. Se matá-lo é o que preciso fazer para garantir o que é meu por direito,
que assim seja.

A hora e o dia serão de minha escolha. Acredito que isso irá lhe tirar o sono, mas você não merece dormir em paz. Vou gostar de assistir a seu funeral. De suas
cinzas, renascerei como a fênix.

Fiona releu a carta malévola. Em seguida, colocou-a com cuidado sobre a mesa do corredor e deu um passo à frente para abraçar Kit.

- Pobrezinho! Que coisa horrível! - Ela pôde sentir a tensão de Kit quando ele enterrou o rosto em seu ombro.

- Não consigo tirar isso da minha cabeça. - A voz saiu abafada. - Não faz nenhum sentido.

Fiona não disse nada. Apenas segurou-o com força até sentir que seu corpo começava a relaxar.

- De onde veio isso? - perguntou, por fim. - Estava no meio da correspondência. Eu estava ocupado quando a segunda remessa chegou; só me preocupei em tirar as
cartas de cima do capacho na hora de sair. Meti tudo no escritório. Não estava esperando nada urgente.

- Você está com o envelope? Ele fez que sim. - Deve estar na lixeira, eu o joguei fora de modo automático. - Kit entrou no escritório. Fiona o seguiu em direção
ao caos de livros e papéis que cobria todas as superfícies disponíveis e metade do chão. Mais uma vez, surpreendeu-se que alguém conseguisse trabalhar em meio
a tamanha bagunça. Kit, porém, não apenas trabalhava ali, como parecia lembrar exatamente o lugar específico de cada livro, pasta ou carta. Ele foi direto até o
cesto de papéis ao lado da escrivaninha e pescou um envelope branco simples. Com o cenho franzido, observou-o com atenção. Fiona passou o braço em torno de sua
cintura e estudou o envelope junto com ele. O endereço tinha sido impresso com a mesma fonte desconhecida.

- O carimbo postal é do oeste de Londres. A carta foi enviada há dois dias, o selo é de segunda classe - observou ele, com uma risada nervosa. - Bom, pelo visto
não é uma ameaça de morte urgente. Acho que isso deve servir de consolo.

- Você devia mostrar a carta para a polícia - falou Fiona, de modo decisivo.

Kit deixou o envelope cair sobre o teclado do computador. - Você acha? - Ele parecia um tanto cético. - Acho, claro. É uma carta horrorosa. Uma ameaça de morte,
pelo amor de Deus!

Kit despencou na cadeira e se virou para encará-la. - Recebo cartas horrorosas o tempo todo, querida. Não contendo ameaças de morte, admito, mas, entre as cartas
dos fãs, recebo regularmente

algumas falando mal de mim e dos meus livros. O Indignado de Tunbridge Wells ficou horrorizado com as cenas de tortura em The Dissection Man. A Senhora Censora
de Lambeth está chocada em ver que os adolescentes têm acesso às fantasias sentais depravadas de The Blade King. E há também as que me acusam de não ter estômago
para escrever sobre mutilações grotescas e perversões sexuais em mais detalhes. Nem todas são enaltecedoras, você sabe.

- E como essas pessoas conseguem o seu endereço? - quis saber Fiona, subitamente impressionada pela visão incômoda de leitores mentalmente instáveis abrindo caminho
até sua porta da frente.

Kit deu de ombros. - Não faço ideia. A maioria é entregue pelo meu editor. Algumas chegam por e-mail. Os mais obcecados devem ter vasculhado a lista dos eleitores
de Dartmouth Park, provavelmente. Não sou uma pessoa tão difícil de encontrar, querida.

Fiona estremeceu. - Essa carta já foi ruim o suficiente. Mas agora você está me deixando bastante assustada. Honestamente, Kit, acho que você devia mostrar essa
aí para a polícia.

Ele pegou um lápis e começou a brincar com ele entre os dedos. - Eles iriam rir de mim, Fiona. Isso é apenas um trote. Não há nada de específico nela. Tudo o que
diz é que eu roubo as ideias de outras pessoas. O que é mentira. Deve ser apenas mais um louco encucado com alguma coisa.

Fiona não pareceu convencida. - Não acho que você deva dar tão pouca importância a isso, Kit. Não acho mesmo. - Ela se virou e andou até a janela, onde, como sempre,
a persiana encontrava-se levantada. De modo impaciente, puxou a corda para protegê-los da visão de fora. Qualquer coisa para não dizer o que lhe passava pela
mente.

- Não é que eu esteja dando pouca importância. A polícia é que veria isso como perda de tempo. De qualquer forma, por que eu deveria dar mais atenção a essa ameaça
do que às outras cartas ofensivas que já recebi? Recebo cartas de malucos desde que meu primeiro livro foi publicado. Nada demais. Honestamente. Foi um choque,
só isso. Em geral, eles não são tão

rancorosos. Além disso, nenhuma delas jamais deu em nada, não vejo por que com essa seria diferente. - Sabia muito bem que estava protestando demais. Mas não queria
se sentir assustado. Queria inserir aquela carta na mesma categoria das outras mensagens raivosas que já encontrara sobre o capacho da entrada. Qualquer outra
reação abriria uma porta que desejava manter firmemente fechada.

Fiona, porém, estava determinada a explicitar o que ambos estavam pensando, por mais desagradável que fosse.

- Depois do que aconteceu com Drew, não acho que você deva ignorar isso - disse baixinho.

- Eu sabia que você ia dizer isso - retrucou Kit, irritado. - Sabia que não devia ter te mostrado. Deus do céu, Fiona, você tem sempre que analisar tudo, fazer
conexões. Bom, às vezes as coisas não estão relacionadas. Elas não têm nada a ver uma com a outra. São coisas distintas, só isso. Tudo bem?

- Não, não está nada bem. - Fiona elevou a voz, as bochechas em fogo. - Por que você está sendo tão cabeça-dura? Há duas semanas, um de seus colegas foi assassinado
de um modo horroroso, ritualístico. Agora você recebe uma ameaça de morte e não acha que as duas coisas podem estar conectadas? Caia na real, Kiti

Ele bateu o lápis na mesa com força. - A única conexão entre essa carta e o que aconteceu com Drew é que algum pervertido mental achou engraçado se aproveitar
da morte dele para me assustar. Você leu a carta, Fiona. Ela não foi escrita pela pessoa que matou Drew. Ele não especifica nada nem se gaba. Não há nada do tipo:
"Você vai receber o que merece, assim como Drew Shand."

- Isso não prova nada - explodiu Fiona. - Essa carta foi escrita por alguém cuja mente está além dos limites da sanidade. Tal como o assassino de Drew.

Kit se levantou e deu um soco na parede com o lado da mão. - E tal como Fred e Rosemary West,4 mas tenho certeza de que não foram eles quem me mandaram a carta.
Entenda, Fiona, se eu for até a polícia com uma idiotice dessas, você sabe muito bem o que eles vão dizer.

Ela cruzou os braços. - Não sei, não, explique. - Eles vão dizer que estou agindo como a Georgia. Que estou sendo macaco de imitação. Querendo publicidade. Não
vão levar isso a sério. De qualquer forma, o que eles poderiam fazer? Mandar a carta para o laboratório, para verificar se há uma chance remota de o emissor ter
deixado convenientemente impressões digitais ou DNA? Acho que não.

Fiona não podia contestar a verdade dessas palavras. Sabia que ele provavelmente estava certo. No entanto, saber disso não aliviou o bolo frio em seu estômago.
Perceber que alguém odiava Kit - ou sua obra - o suficiente para injetar tanto veneno numa folha de papel era enervante. E temer que esse veneno pudesse se transformar
num ato de violência real era, a seu ver, uma reação perfeitamente normal.

Ela passou por ele e seguiu para o corredor. Ao chegar à porta, virou-se. - A decisão é sua. A carta é sua. Mas acho que você está errado. - Grande novidade! -
Ele virou de costas para ela. - Acho que consigo conviver com isso.

*4 Casal de serial killers britânicos. Ele e a mulher torturaram, estupraram e mataram pelo menos doze jovens mulheres. A maioria dos crimes aconteceu entre maio
de 1973 e setembro de 1979. (N. T.)

Extraído da Prova Decodificada P13/4599

Tqsaf mxafa ruzwp dqiet mzp. Mxxah qdftq bmbqd etqim e. Ngfft qkpup zfsqf uf. Qhqdk napkt mpftq udaiz ftqad kmzpz afazq arftq yomyq oxaeq.

A morte de Drew Shand teve muita repercussão. Mas eles não entenderam. Todo mundo tinha sua própria teoria, e nenhuma delas chegou nem perto da verdade. Mas eles
logo entenderão. De minha parte, estou quieto, agindo como um bom menino para não atrair a atenção. Não que alguém esteja prestando atenção.

O que significa que não sofri interferências com relação ao estágio seguinte do meu plano. Jane Elias. Ela é americana, mas mora na Irlanda; provavelmente porque
lá os escritores não precisam pagar impostos. A vagabunda não estava satisfeita em ganhar mais dinheiro do que Deus, queria guardar tudo para si.

Não foi difícil descobrir onde ela morava. Talvez seja fácil se esconder em um lugar tão grande quanto os Estados Unidos, mas não na Irlanda. Eu sabia que ela possuía
uma propriedade grande em CountyWicklow, às margens do lago. Sabia que ficava a cerca de uma hora de carro de Dublin. Um dos sites dos fãs tinha uma foto da casa.
Então, tirei um dia para dar uma volta de carro pela região, com um mapa em grande escala nas mãos e um par de binóculos. Até que encontrei.

Na manhã seguinte, retornei à propriedade de Jane Elias. Segui até a margem do lago ao ver o que estava procurando - uma marina com vários barquinhos enfileirados
numa rampa de concreto. Não havia ninguém em volta. Não poderia ter sido melhor. Agachei no meio dos barcos e observei a propriedade de Dias na margem oposta. Consegui
vislumbrar um pequeno píer com dois barcos amarrados ao lado. Se minha informação estava correta, ela viria até o lago à tarde e sairia para velejar.

Eu estava certo, ela apareceu um pouco depois das duas. Entrou num dos barcos e saiu velejando pelo lago. Esperei até que escurecesse e ela retornasse, aí arrastei
um dos barquinhos para a água e subi a bordo. Eu já tinha escolhido um esconderijo, um pouco mais acima, onde as árvores chegavam até a margem.

Estava me sentindo um pouco tenso pelo que teria de fazer no dia seguinte. Qualquer erro poderia pôr tudo a perder. Além disso, teria de matar novamente. Decidi
que dessa vez não seria tão fiel ao livro. Eu não conseguiria torturar alguém por horas a fio. Sabia que não tinha estômago para tanto. Além do mais, não tinha
tempo, nem um lugar seguro para algo tão elaborado.

O que eu faria, decidi, seria matá-la rapidamente com uma faca. Depois poderia fazer com seu corpo as coisas necessárias para deixá-lo parecido com a descrição
do livro. O que importa é a aparência. Não sou um assassino fetichista com obsessão pelos detalhes. Tudo o que eu quero é enviar uma mensagem, e não satisfazer algum
desejo distorcido. Se houvesse uma outra forma de mostrar a esses cretinos que eles não podem menosprezar a mim e a minha vida e escapar impunes, eu optaria por
ela.

Estou tentando não pensar sobre o que precisarei fazer com ela. Meu estômago já está inquieto o suficiente, não quero piorar ainda mais as coisas. Tudo o que preciso
fazer é continuar dizendo a mim mesmo que será rápido, depois poderei voltar para casa.

Dessa vez eles terão de prestar atenção.

18.

A luz cálida do amanhecer era de um cinza perolado; uma fina camada de nuvens cobria os picos de Wicklow Hills e se estendia sobre as águas do lago Killargan.
Os espetaculares tons avermelhados das árvores outonais começavam a se destacar contra o verde suave das colinas, imprimindo certo calor à frieza do cenário.

Jane Elias parou no jardim rodeado de tifas e soltou um longo e baixo assobio. Duas faixas pretas e amarelas surgiram em meio a um grupo verde, ocre e marrom de
plátanos a algumas centenas de metros de distância, as silhuetas se transformando num belo par de dobermans esguios à medida que se aproximavam pelo gramado. Jane
estendeu as mãos para os cachorros, quando eles pararam a seus pés, e deliciou-se com o calor sensual das línguas molhadas contra sua pele.

- Chega - ordenou, após alguns instantes. Os cachorros, obedientes ao ritual matinal, deitaram a seus pés, enquanto ela começava uma série de alongamentos para
soltar os músculos ainda meio adormecidos. Em seguida, ao dar início à sua corrida diária, os cachorros se levantaram e partiram na frente. Essa era a melhor parte
do dia, pensou. Nenhuma promessa quebrada, nenhuma frase escrita, nenhuma ligação recebida. Tudo ainda era possível.

Aos poucos, Jane aumentou a velocidade, prosseguindo em direção ao muro que circundava a propriedade. Nove quilômetros, a distância perfeita

para uma corrida matinal. Podia percorrer os limites de seu domínio em absoluta privacidade, protegida de olhos indiscretos e sem medo.

Não considerava o segurança que monitorava o circuito fechado de câmeras de TV como alguém com olhos indiscretos. Afinal de contas, pagava a ele para garantir
sua segurança. Não se incomodava que ele a observasse correr. Eles ocupavam universos distintos; ele, naquela salinha sem janelas, o corpo robusto enfiado numa
camisa cáqui e calças azul-marinho, o rádio preso à cintura e com sua vidinha particular longe dali; ela, sob o ar fresco de seu feudo pessoal, os cabelos louros
amarrados num rabo de cavalo, os músculos esguios envoltos por uma leve roupa de ginástica e os pés movendo-se num ritmo regular, enquanto pensava sobre o trabalho
à sua espera.

Após a corrida, deixou os cachorros entrarem no vestíbulo, onde os alimentou com pedaços de carne e biscoitos enriquecidos com vitaminas. Enquanto eles se distraíam
com a comida, atravessou a cozinha de sua mansão georgiana, indo em direção ao banheiro particular que ninguém tinha permissão para usar, nem mesmo seu namorado,
Pierce Finnegan. Cinco exatos minutos sob a ducha quente do chuveiro, seguidos por um jato gelado para fechar os poros, e Jane estava pronta para passar ao estágio
seguinte de sua rotina diária. Enxugou-se com força, em seguida espalhou o caro hidratante corporal dos pés até o queixo. Outro hidratante para o rosto, um gel
específico para os olhos e um batom vermelho-escuro.

Vestindo um jeans e uma camisa xadrez de flanela, voltou para a cozinha em busca de uma tigela de salada de frutas, uma torrada integral com pasta de amendoim
orgânica e um copo grande de suco de tomate. E pensar que já estivera 11 quilos acima do peso. Essa era uma das coisas que jamais aconteceriam novamente.

Às sete e meia, Jane já estava em seu escritório, o trabalho do dia arrumado sobre uma das duas escrivaninhas encostadas contra as paredes. A tarefa de hoje consistia
em corrigir as provas de seu próximo romance. Pelas cinco horas seguintes, Jane concentrou-se nas folhas impressas, verificando cada linha à procura de erros,
fazendo uma alteração ocasional em uma frase que agora achava estranha e, por vezes, pegando o dicionário para checar a ortografia de alguma palavra.

Exatamente ao meio-dia e meia, Jane afastou a cadeira da escrivaninha e esticou os braços acima da cabeça. Atravessou mais uma vez a casa silenciosa até a cozinha,
ligou o rádio, sintonizando-o em uma estação de música clássica, e pegou uma porção de sopa de legumes no congelador. Enquanto a sopa esquentava no micro-ondas,
abriu a correspondência que o pessoal da segurança entregara enquanto estava trabalhando. Depois de tomar a sopa, acompanhada por duas fatias de pão, voltou ao
escritório, onde ditou as respostas para as cartas do dia.

Deixou a fita cassete sobre o balcão da cozinha. O pessoal da segurança se encarregaria de coletá-la e entregá-la para a mulher na cidade mais próxima que atuava
como sua secretária. As cartas retornariam em disquete ao final do dia, prontas para serem impressas e assinadas. As duas só se encontravam nos eventos sociais
da cidade, e assim mesmo raramente, mas o acordo funcionava bem a despeito disso.

Jane voltou ao vestíbulo, pegou um pulôver de lã e deixou os cachorros saírem novamente para o jardim. Percorreu o caminho que levava ao píer, a cabeça erguida
enquanto saboreava o ar fresco da tarde e verificava o vento. O céu antes nublado estava agora aberto, uma faixa azul pontuada por algumas nuvens esparsas. Pelos
seus cálculos, o vento devia estar por volta de uns cinco nós, a velocidade perfeita para um rápido passeio em seu Beneteau First Classic, de 21 pés, atualmente
seu predileto dentre os três barcos que mantinha ancorados em sua pequena marina particular. Ele era perfeito para velejar sozinha, ao contrário do Moody, que
por ser maior, preferia usar quando saía com Pierce.

Após verificar o estado do barco, zarpou, permitindo que ele se afastasse do píer antes de içar a vela principal. Deixando-a ligeiramente rizada, partiu em direção
ao centro do lago, planejando mentalmente o passeio, sem se preocupar em consultar a carta de navegação. Conhecia aquela parte do lago melhor do que seu próprio
rosto. Três em cada quatro dias, velejava mais ou menos pela mesma rota, dependendo do vento. Na sua opinião, era a rota que proporcionava a melhor visão das colinas,
além de não apresentar nenhuma pedra ou outro obstáculo contra o qual poderia colidir caso se distraísse, pensando mais no trabalho do que no leme.

Em pouco tempo deixara a margem para trás, e cruzava o lago num ângulo de 45 graus, acompanhada apenas pelo assobio da água contra o

casco e o sussurro do vento nas velas. Jane exultou ao sentir o ar contra sua pele, adorando a sensação de liberdade que velejar pelo lago sempre lhe trazia. E
daí se as pessoas a achavam esquisita, uma escrava de rotinas e padrões, uma reclusa paranoica? Sabia que não era assim. Não havia nada de rotineiro naquilo que
fazia na água, sempre que possível, diariamente, lançando a si mesma e sua embarcação contra o vento e a imensidão do lago. Ali, era a Rainha da Liberdade. Os
outros que se fodessem. Podiam chamá-la de obsessiva se quisessem. Isso só provava o quão pouco a conheciam. Eles não faziam ideia do que era a sua vida junto ao
timão. Tampouco conheciam a paixão ardente de seu relacionamento com Pierce, mantido em segredo há tanto tempo que os dois já haviam se esquecido de como era viver
de outra forma.

Ele a visitava sempre que podia, o que, dada a agenda de um membro do esquadrão antidrogas da Guarda Siochána, não ocorria com frequência. Eles haviam se conhecido
durante um curso do FBI que ele fizera em Quântico. Um dos instrutores, um amigo de Jane da época da faculdade, os convidara para um jantar, e a atração fora imediata.
Em poucas semanas, ela havia vendido sua casa na Nova Inglaterra e comprado a propriedade na Irlanda. Só depois de ter se mudado foi que descobriu a vantagem extra
da isenção de impostos que o governo irlandês estendia aos escritores. Agora se sentia mais parte dali do que jamais se sentira em qualquer outro lugar.

E, quando Pierce viajava em alguma missão secreta, ela às vezes pegava um quarto no mesmo hotel. Ser uma reclusa tinha suas vantagens. Ninguém a reconhecia, o que
muitas vezes acontecia com outros autores de best-sellers que apareciam em programas de entrevistas e que tinham fotos coloridas estampadas na capa de seus livros.
Apresentar a identidade de Margaret J. Elias, seu nome de batismo, jamais fizera com que os recepcionistas dos hotéis sequer levantassem uma sobrancelha. Em dois
dias, com a revisão das provas terminada e enviada para Nova York, iria para Marrocos se encontrar com ele. Mal podia esperar.

Após um longo percurso velejando em zigue-zague, Jane virou o barco 90 graus à direita. Com essa mudança, poderia contornar tranquilamente o cabo e entrar na baía,
onde o vento era mais fraco, o que lhe garantiria espaço e tempo suficientes para manobrar o veleiro, a fim de pegar o caminho de volta em direção ao centro do
lago.

Ao entrar na baía, percebeu um barco ziguezagueando erraticamente pela linha que planejava seguir. Com um leve toque no timão, ajustou a direção, na esperança
de que o outro velejador respondesse de acordo. Contudo, de repente o pequeno barco adernou demais, lançando o homem que estava no leme dentro d'água. Em poucos
segundos, o vento carregou o barco numa direção, enquanto a corrente levava o homem para outra.

Invocando a ira dos deuses contra os idiotas que não sabiam como agir na água, Jane ligou o motor e se apressou em recolher a vela. Um minuto depois, seguia lentamente
em direção ao colete salva-vidas laranja, tudo o que conseguia ver com clareza do idiota que obviamente não sabia como conduzir um barco.

Quando emparelhou com ele, colocou o motor em marcha lenta e lançou a escada de corda que ficava na popa. O homem nadou meio sem jeito até a popa do barco e, com
certo esforço, conseguiu sair do lago.

- Obrigado - falou, ainda sem fôlego, abrindo o colete salva-vidas e enfiando uma das mãos por debaixo dele.

- Acho que você não conhece essas águas - rosnou Jane de volta, virando-se para colocar o motor em marcha novamente.

Ela não viu o porrete fazer um arco no ar e atingir a base de seu crânio.

19.

Olhando de baixo, as duas mulheres no lado escarpado da montanha pareciam um par de cursores se movendo na diagonal por uma plácida tela verde. Partindo do vale
de Wye, em Litton Mill, elas haviam subido rapidamente por entre as árvores que costeavam a velha estrada de feno, até saírem na lateral descampada da montanha,
onde até mesmo as ovelhas evitavam passar por entre as pedras de calcário. Alcançaram o ponto mais alto da subida, e Fiona, que, por já conhecer o terreno, tinha
sido mais rápida, escolheu uma rocha grande com uma leve saliência para se empoleirar, enquanto esperava Caroline terminar de subir, ofegante, os últimos 20 metros.
Olhou para sua companheira e sorriu de modo afetuoso.

Durante o período de Lesley em St. Andrews, ela havia aprendido tanto sobre si mesma quanto sobre a carreira que escolhera. Uma das coisas que descobrira fora
a respeito das inclinações de seu coração. Na época do assassinato, ela estava apaixonada, vivendo o primeiro amor. A natureza desse amor fora outro aspecto de
sua morte com o qual os pais haviam tido dificuldade em lidar. Para Fiona, porém, não fora surpresa alguma descobrir que sua irmã dividia a cama com outra mulher.
Na verdade, Lesley não chegara a lhe contar isso tão diretamente, mas Fiona já percebera pela forma como ela falava de sua amiga, Caroline Matthews.

Por causa da clandestinidade da relação, Fiona tinha sido a única pessoa com quem Caroline pudera se abrir e chorar abertamente. Não era de

surpreender que do luto nascesse um forte laço de amizade. Agora, doze anos depois, Fiona e Caroline se encontravam sempre que a última ia a Londres e se comunicavam
com alguma frequência por telefone e e-mails. E, pelo menos três vezes por ano, encontravam-se para uma caminhada pelas montanhas.

Caroline permanecera em St. Andrews e agora ensinava matemática. Ela havia seguido em frente, tal como Fiona. No entanto, para as duas, a morte de Lesley influenciaria
para sempre a forma como lidavam com suas relações afetivas. E o sentimento de culpa que ambas nutriam para com Lesley significava que nunca deixaram de se apoiar
mutuamente.

Caroline alcançou o pico, vermelha e ofegante. Despencou em uma rocha ao lado de Fiona, a respiração rápida e entrecortada.

- Ó Pai - falou, ofegante. - Estou tão fora de forma. O verão foi um fracasso total, passeamos muito pouco pelas montanhas.

- E pelo visto vocês também não andam fazendo muita ginástica - comentou Fiona.

Caroline fez uma careta. - Julia começou a fazer aulas de step durante o horário de almoço, portanto parou de pensar em entrar para uma academia. E nós duas trabalhamos
tanto que ela ficaria furiosa se eu tirasse as duas noites de folga que temos por semana para ir à ginástica. Fico tentando me convencer a levantar cedo e ir antes
do trabalho. Mas, de alguma forma, nunca consigo.

- Você se sentiria melhor se arrumasse um tempo para ir. - Fiona abriu a mochila e pescou uma garrafinha de água.

- Fiona... - O tom de Caroline foi de advertência. Fiona riu. - Desculpe. Você está certa. Não sou sua mãe. Cale a boca, Fiona. - Ela estendeu a mão e Caroline
lhe deu uma palmada afetuosa no pulso. Era um velho hábito, nascido no início da amizade forjada pelo luto, quando Fiona transferira para Caroline o cuidado que
não mais podia oferecer à irmã.

Fiona tomou um gole d'água e ofereceu a garrafa a Caroline, que recusou com um aceno de cabeça.

- Se eu começar a beber numa temperatura dessas, vou sentir vontade de fazer xixi daqui a cinco minutos. E não consigo ver nenhum lugar mais protegido num raio
de uns 800 metros.

- Desde que você não se desidrate. - Fiona! - Dessa vez foi um grito. - Você não é minha mãe. Comporte-se.

- Desculpe. Morar com um homem faz isso com a gente. Especialmente um que passa a metade do tempo vivendo num universo paralelo.

- Provavelmente um universo no qual alguém sempre se lembra de pegar a roupa na lavanderia e colocar comida na frente dele em intervalos regulares, certo?

Fiona riu. - Esse tipo de coisa Kit não esquece. O problema é que ele fica tão concentrado no trabalho que de repente olha para o relógio e percebe que tinha
marcado de me pegar dez minutos antes. Ou se distrai conversando consigo mesmo no metrô e, só ao chegar a Kennington, percebe que devia ter saltado em Leicester
Square.

- E, a propósito, como ele está? Fiona levantou, meteu a garrafa de água de volta na mochila e a pendurou nas costas.

- Continua o mesmo cabeça-dura de sempre. Caroline, já com a respiração de volta ao normal, levantou-se e fitou Fiona com curiosidade. Não era típico dela falar
mal de Kit. Além disso, se fosse comparar quem era mais cabeça-dura naquela relação, teria de dar o troféu à amiga. Pelo que pudera perceber, Kit era bastante
tranquilo. Nos debates, ele era rápido e direto, mas nunca atacava do jeito como Fiona fazia se sentisse que o outro lado era mais fraco e poderia ser intimidado.

- Parece que ele andou te cutucando com vara curta - falou com cautela, enquanto seguia Fiona pela trilha estreita que cortava caminho pela montanha, acima da espetacular
curva de Water-cum-Jolly Dale.*5

- Você poderia dizer isso. - Fiona fechou a boca, os olhos fixos no chão à sua frente.

- Quer conversar sobre isso? - Estou tão irritada com ele - respondeu, de modo ríspido. - Tivemos uma discussão terrível na outra noite. Ele recebeu uma ameaça
de

*5. Nome curioso dado à área em Monsal Dele onde o rio Wye foi represado, formando um grande reservatório. (N. T.)

morte pelo correio e se recusa terminantemente a mostrá-la à polícia. Diz que é só mais outra das várias cartas raivosas que recebe com frequência, mas não tenho
tanta certeza. Ela me pareceu bastante violenta. E depois do que aconteceu com Drew Shand...

- Mas isso foi um caso isolado, não foi? - perguntou Caroline. - Segundo as notícias divulgadas pela mídia escocesa, eles acreditam que tenha sido um caso de sexo
sadomasoquista que passou dos limites. Não há nenhum indício de que qualquer pessoa fora da comunidade homossexual esteja em risco.

Fiona fixou os olhos no horizonte com uma expressão de raiva. - Essa é apenas uma das possibilidades. E não sabemos se Drew Shand recebeu alguma ameaça de morte,
porque tudo o que sabemos é o que a polícia está dizendo. Sei que pode ser um exagero sugerir que o assassinato teve mais a ver com o livro de Drew do que com
sua vida, mas é uma possibilidade, e, sendo assim, acho que Kit deveria levar essa carta mais a sério.

- Foi sobre isso que vocês brigaram? - Mal nos falamos desde então. - Mas Kit entende por que você ficou tão incomodada, certo? - indagou Caroline, aproveitando
uma bifurcação na trilha para se colocar ao lado de Fiona.

- Acho que ele entendeu que estou preocupada com ele - respondeu Fiona, a voz fria como gelo.

- Só que o problema não é esse, é? Fiona não disse nada, apenas continuou a andar de modo decidido, fazendo questão de manter os olhos fixos no rio que se abria
num grande reservatório, resultado da represa criada para alimentar o moinho georgiano de Cressbrook.

- Isso não é só por causa do Kit, Fiona. É por causa da Lesley. Fiona parou subitamente. - Não tem nada a ver com a Lesley. - Seu queixo assumiu uma expressão
de teimosia.

Caroline parou um metro adiante, se virou e pousou a mão enluvada sobre o braço da amiga.

- Não precisa fingir para mim, Fiona. Você não suporta a ideia de perdê-lo, pois já perdeu Lesley e sabe qual é a sensação quando alguém que

ama é assassinado. Esse medo faz com que um pequeno perigo assuma proporções exageradas, de risco de vida, e a transforma numa mulher superprotetora. - Caroline
fez uma pausa. Como Fiona não disse nada, ela prosseguiu: - Entendo o fenômeno, pois também sou acometida por ele. Julia fica louca com isso. Se ela não vai de
carro até a cidade, eu sempre vou buscá-la. Ela diz que isso a faz se sentir como uma adolescente, cuja mãe desconfia de que está aos beijos com o malfeitor do
bairro atrás de algum estacionamento.

Caroline soltou uma risada fraca. - Certa vez, no começo do nosso relacionamento, ela insistiu para que eu não fosse pegá-la depois de uma reunião de pais na escola
à noite. Eu então esperei do lado de fora da escola até ela sair. E a segui até em casa. Ela quase teve um ataque cardíaco porque, enquanto cortava caminho por
um beco no centro da cidade, escutou passos logo atrás e achou que fosse ser assaltada. Foi quando percebeu que minha insistência em buscá-la tinha mais a ver
com meus próprios medos do que com uma falta de confiança em sua capacidade. Agora ela aceita, por mais que lá no fundo isso a deixe irritada. Fiona, você precisa
contar ao Kit por que deixou que essa carta ameaçadora assumisse proporções tão gigantescas. Se ele diz que não é nada, provavelmente está certo. Ele conhece as
cartas que recebe. Mas Kit precisa saber que você não está apenas fazendo tempestade em copo d'água. Que há um motivo válido para agir do jeito que está agindo.

Fiona olhou fixamente para os penhascos de pedra calcária do outro lado do vale.

- Achei que eu fosse a psicóloga aqui. - Sua voz tremeu ligeiramente. - É, bom, então, psicóloga, analise a si mesma. Fiona baixou os olhos para as pontas gastas
de suas botas de caminhada. - Você está certa, eu acho. Eu devia me explicar melhor. - Virou-se para Caroline, que a fitava. - Não conseguiria viver comigo mesma
se alguma coisa acontecesse a ele. - Seus olhos brilhavam em virtude das lágrimas não derramadas.

Caroline a abraçou com força. Fiona se afastou e conseguiu abrir um sorriso hesitante. - Vou conversar com ele quando chegar em casa. Prometo. E agora, vamos
ficar aqui paradas até ficarmos com hipotermia ou vamos para o pub Monsal Head?

Caroline fingiu pensar um pouco. - Pesando as opções, acho que prefiro o pub. - Vamos apostar quem chega primeiro à represa - disse Fiona, disparando a toda velocidade
pela lateral da montanha.

- Você - murmurou Caroline, seguindo-a numa velocidade mais razoável. Mesmo após doze anos, a morte de Lesley ainda era um evento determinante em suas vidas. Não
importa o quanto houvessem tentado deixar aquilo para trás, ali estava, pensou, pronto para atacar a qualquer momento. Algumas vezes pensava se algum dia elas
ficariam livres daquele abraço sombrio. Ou mesmo se queriam se livrar dele.

Ao sair da estação do metrô, Fiona subiu marchando a Dartmouth Park Hill, determinada a resolver as coisas com Kit. Caroline estava certa; ela não se permitira
reconhecer o que a fizera exigir que ele levasse a carta a sério. De cabeça baixa, seguiu pisando sobre as folhas caídas, ultrapassando com facilidade os últimos
transeuntes que voltavam para casa do trabalho. Alcançou a virada à esquerda que dava na sua rua em tempo recorde, aumentando a velocidade assim que começou a
descer a ladeira. Agora estava com pressa, mais do que pronta para pedir desculpas e se explicar.

Seu ânimo sofreu um baque ao abrir a porta e escutar Kit avisar: - Estamos aqui em cima. - Quem quer que fosse o "outro" ou os "outros", não estava com disposição
para companhia.

- Só vou tirar as botas! - gritou de volta. Após soltar a mochila no chão e pendurar a jaqueta no pilar da escada, Fiona desamarrou as botas e descalçou-as. Mexeu
os dedos dos pés para sentir o prazer da liberdade de movimentos. Por mais confortáveis que suas velhas botas fossem, ainda tolhiam seus pés. Parou na cozinha
para pegar um cálice, sabendo que, se Kit tinha companhia, o vinho já estaria aberto. Em seguida, subiu para a sala de estar no segundo andar.

As luzes estavam acesas, formando poças espalhadas de uma iluminação aconchegante em torno da sala ampla. Kit estava em sua poltrona favorita, com um cálice na
mão. A cena seria perfeita se ele estivesse sozinho. Mas sua companhia era a última pessoa que Fiona gostaria de ver.

Enroscada no sofá, com as sandálias de tiras jogadas displicentemente sobre o tapete a seus pés, estava Georgia Lester. Considerada uma lenda viva, Georgia publicara
mais de trinta romances em 25 anos de carreira, durante os quais se destacara a ponto de desafiar P. D. James e Ruth Rendeu pelo título de Rainha do Crime. Ela
havia sido uma das primeiras escritoras de suspense a ter seus livros sucessivamente adaptados para a TV, o que lhe garantira um lugar nas listas dos mais vendidos
desde então. Era a queridinha da mídia, explorando sem pudores cada oportunidade de aparecer nos jornais, no rádio ou na televisão. Os homens eram seduzidos por
seu jeito lisonjeiro e paquerador e sua indiscutível generosidade; a maioria das mulheres, inclusive Fiona, a detestava com fervor. "Ela é a Barbara Cartland
dos romances de suspense", comentara Fiona certa vez com Mary Helen Margoyles, que engasgou com o drinque e rapidamente repassou o comentário de boca em boca.
Sem entregar o santo, é claro.

A iluminação suave favorecia Georgia, amenizando o aspecto de pele esticada pelo excesso de cosméticos, suavizando a maquiagem elaborada que aplicava com habilidade
para parecer mais nova. Naquela luz, ela poderia passar por uns 40 e poucos anos, o que Fiona reconhecia como um verdadeiro milagre para uma mulher que não tinha
menos do que 57.

- Fiona, querida - ronronou Georgia, inclinando a cabeça para cima num gesto que demandava um beijo no ar.

Fiona cedeu, consciente de sua pele queimada pelo vento, do cabelo em desalinho e de que seu pulôver de lã devia estar cheirando a suor. Georgia, como era de
esperar, exalava Chanel Nº 5, e usava um impecável vestido azul-escuro solto que marcava estrategicamente os seios e quadris. Seu cabelo, de um louro-acinzentado
improvável, porém convincente, parecia ter saído direto do cabeleireiro.

- Não esperava vê-la, Georgia - disse Fiona, virando-se de costas para se servir de vinho. Aproximando-se de Kit, deu-lhe um beijo no rosto. - Oi, meu amor. -
Esperava que o gesto combinasse com seu tom de voz, indicando que estava oferecendo uma trégua.

Ele a enlaçou pela cintura com o braço livre e a abraçou, aliviado ao ver que o dia nas montanhas em companhia de Caroline parecia ter abrandado sua hostilidade.
Kit não gostava quando ficavam irritadiços um com o outro, mas percebera desde cedo que teria de se acostumar a isso ou aprender

a pedir desculpas mesmo quando achava que estava com a razão. Na maioria das vezes, cedia, pelo bem de uma vida tranquila. No entanto, às vezes, fincava o pé, tolerando
o mal-estar na atmosfera pelo tempo que fosse preciso até Fiona reconhecer que podia estar errada.

- Você teve um bom dia? - perguntou. - Tivemos sorte com o tempo - respondeu ela, empoleirando-se no braço da poltrona. - Andamos uns 16 quilômetros; com vistas
espetaculares.

Georgia estremeceu. - Dezesseis quilômetros? Não sei como você consegue, Fiona, realmente não sei. Você não prefere estar num lugar quentinho e aconchegante com
esse homem delicioso? - As duas coisas não são mutuamente excludentes, Georgia - replicou

Fiona. - Eu gosto do exercício. O sorriso de Georgia foi semelhante ao tapinha de um professor na cabeça de uma criança. - Sempre preferi me exercitar em recintos
fechados - ironizou ela.

Fiona recusou-se a se deixar irritar. - E então, como vai, Georgia? Escutei dizer que você anda um pouco nervosa com relação à sua segurança.

Georgia imediatamente assumiu uma expressão de tragédia. - Pobrezinho do Drew. Que destino terrível, uma grande perda para todos nós. - Não sabia que vocês se
conheciam - retrucou Fiona, tentando não deixar transparecer a malícia na voz.

- Estou falando de sua obra, Fiona, querida. Ver um talento como o dele terminar assim, tão jovem, é inacreditavelmente trágico.

Fiona resistiu à vontade de rir. - Mas com certeza a morte do Drew não é motivo para que você se sinta ameaçada, é? - perguntou.

- É por isso que Georgia está aqui - interrompeu Kit. Ele não queria que a rixa entre as duas fizesse Fiona sair da sala. Isso já acontecera; em vez de deixar
as coisas esquentarem demais até se tornarem uma discussão séria que poderia prejudicar a improvável amizade entre Kit e Georgia, Fiona sempre escolhia tirar o
corpo fora. Hoje, porém, ele desejava que ela ficasse.

- Claro, querida. Quando Kit me contou sobre a terrível carta que recebeu, percebi logo que precisava vir até aqui. Ele não estava dando a devida importância,
entenda. E, quando ele me falou de sua reação, vi logo que teria uma aliada em você. - Ela abriu um sorriso cosmeticamente glorioso, de orelha a orelha.

- Georgia recebeu uma carta igual à minha - informou Kit. - Mostre a Fiona... pode ser que seja da mesma pessoa.

Georgia pegou um pedaço de papel dobrado que estava sobre a mesa ao lado do sofá. Estendeu-o, forçando Fiona a se levantar para pegá-lo. Fiona dirigiu-se até a
outra poltrona antes de abri-lo e estudá-lo. O papel e a fonte pareciam os mesmos da carta de Kit. Até onde se lembrava, algumas frases eram idênticas:

Georgia Lester você se considera a Rainha do Crime, mas o seu reino se resume a plágio e protecionismo. Sua fama se baseia naquilo que rouba de outros. Você não
dá o devido crédito e suas mentiras privam os outros daquilo que por direito é deles.

Seu trabalho é um débil reflexo da luz de outras pessoas. E você não seria ninguém se não se alimentásse das ideias alheias. Você se esforça para garantir que seus
competidores sejam tirados de campo. Em vez de oferecer ajuda, atropela aqueles que são melhores do que você jamais será. É uma vampira que suga o sangue daqueles
cujos dons inveja. Sabe que isso é verdade. Coloque a mão na consciência, e não poderá contestar as coisas de que me privou.

Chegou a hora do acerto de contas. Você não merece nada além do meu desprezo e do meu ódio. Se matá-la é o que preciso fazer para garantir o que é meu por direito,
que assim seja.

A hora e o dia serão de minha escolha. Acredito que isso irá lhe tirar o sono,

mas você não merece dormir em paz. Vou gostar de assistir a seu funeral. De suas cinzas, renascerei como a fênix.

Fiona dobrou a carta com cuidado. Não tinha dúvidas de que viera da mesma pessoa que escrevera a outra, que lhe deixara tão perturbada dois dias antes.

- Quando você recebeu isso? - Georgia balançou uma das mãos com displicência. - Uns 15 dias atrás? Não tenho certeza. Voltei de Dorset na terça passada e
ela estava no meio da correspondência.

- Você tomou alguma providência? Georgia alisou o cabelo que lhe caía sobre a têmpora direita. - Para ser honesta, achei que fosse uma daquelas cartas raivosas
que Kit diz receber regularmente. Não tenho muita experiência nesse aspecto... em geral, só recebo cartas de admiradores. Meu trabalho é muito menos provocativo
do que o de Kit, entenda. Mas quando ele me contou que tinha recebido uma carta semelhante, vi logo que não podíamos ignorá-las. Ainda mais depois do que aconteceu
com Drew, quero dizer.

- Georgia acha que a gente devia mostrá-las à polícia - falou Kit.

- Ela concorda com você.

Fiona olhou para ele, estupefata. Sentia como se tivesse caído em sua própria armadilha. Embora achasse as cartas profundamente perturbadoras, odiava a ideia de
tomar uma atitude que ligaria Kit a Georgia tanto aos olhos da polícia quanto do público. Se eles levassem aquelas cartas à polícia, em 24 horas a mídia cairia
sobre eles. O que quer que Georgia prometesse naquele momento, Fiona sabia que o chamariz da publicidade seria forte demais para ela resistir. Seria um pesadelo.

Não teria de contar apenas com uma terrível invasão de sua privacidade e da de Kit. Se até então não havia ninguém à espreita dele, logo haveria. Fotos de sua
casa apareceriam nos tabloides, transformando-a num alvo facilmente identificável para qualquer estranho que visse nos livros dele algo que mexesse com suas próprias
fragilidades mentais. Sabia que não estava sendo paranoica; eles conheciam pelo menos um escritor de suspense cuja vida se tornara tão intolerável por causa de
um sujeito desses que a família fora obrigada a se mudar e a trocar as crianças de escola.

No entanto, fora ela quem havia pressionado Kit a tomar alguma atitude diante daquela ameaça. Se mudasse de ideia agora, seria melhor ter uma boa explicação na
ponta da língua.

- Concordo que vocês devam levar isso a sério - falou com cautela. - Mas não estou convencida de que adiantaria alguma coisa mostrar essas cartas à polícia. Como
você mesmo disse, Kit, eles não poderiam fazer grande coisa. É improvável que eles mandem as cartas para o laboratório, elas tampouco oferecem alguma pista a respeito
da identidade do remetente, e a polícia não tem como proteger nenhum de vocês. Isso só atrairia uma atenção indesejada do tipo exato de gente que os deixa nervosos.

Kit pareceu ligeiramente confuso: - Não foi isso que você disse na outra noite. Fiona abriu um sorriso constrangido e deu de ombros. - Andei pensando nisso hoje.
Percebi que minha reação foi exagerada e que você estava certo.

Kit ergueu as sobrancelhas. - Posso ter isso por escrito? - brincou. - Está tudo muito bom - interrompeu Georgia, a boca pendendo de um jeito petulante. - Mas
podemos estar diante de um perigo real. Você está realmente sugerindo que a gente deixe isso de lado, Fiona?

Fiona fez que não. - Claro que não, Georgia. Você e Kit precisam se precaver de todas as formas possíveis. - Forçou um sorriso falso. - Pelo que eu sei, você queria
que seu editor contratasse um guarda-costas para acompanhá-la no tour de lançamento do livro, certo? Isso seria um bom jeito de começar.

Kit olhou para elas de boca aberta. Não podia acreditar que Fiona estivesse falando sério.

- Você quer que eu arrume um guarda-costas? - perguntou, incrédulo. - Não se você souber como se precaver. Não saia à noite desacompanhado. Não converse com estranhos
quando estiver sozinho. - Ela deu uma risadinha. - E não vá a bares gays sadomasoquistas.

- Não acho que isso seja motivo de pilhéria, Fiona - comentou Georgia de modo ofendido.

- Não, desculpe, você está certa, Georgia. Mas o que vocês precisam ter em mente é que é improvável que a pessoa que mandou essas cartas seja a mesma que matou
Drew.

- Como pode ter tanta certeza? Foi a vez de Fiona adotar um ar de quem sabe das coisas. - Há um ditado entre os oficiais da lei: "Os assassinos não avisam e quem
avisa não mata." Em termos psicológicos, pessoas que escrevem cartas ameaçadoras raramente colocam em prática suas ameaças. O que elas querem é provocar medo sem
sujar as mãos. E as pessoas que matam geralmente não avisam antes da hora. Isso prejudicaria seus planos, no mínimo. Se vocês quiserem, eu levo as cartas para uma
análise psicolinguística profissional.

E, se depois disso, eu achar que há algum motivo real para preocupação, vou com vocês até a polícia. Combinado?

Georgia crispou os lábios. Se ela pudesse ver como isso acentuava as rugas em volta de sua boca, nunca mais repetiria o gesto.

- Vou aceitar seu julgamento profissional, Fiona. Mas preciso dizer, não estou completamente satisfeita. E vou conversar com meu editor a respeito do guarda-costas.

- Uma boa decisão - retrucou Fiona, esforçando-se para abafar a risadinha que se formou em sua garganta.

- E agora - disse ela, apertando o vestido em torno do corpo e calçando as sandálias de modo elegante - preciso ir. Anthony e eu vamos jantar com o ministro da
Cultura e a mulher dele, e já estou elegantemente atrasada.

Enquanto Kit acompanhava Georgia até o carro, Fiona pulou para o sofá e deitou toda esticada, a fim de permitir que seus músculos relaxassem. As cartas eram preocupantes.
Mas agora que percebera o que realmente a estava incomodando, conseguia colocá-las em perspectiva. Não acreditava que as ameaças fossem verdadeiras.

Escutou Kit subir correndo a escada. Ao entrar de novo na sala, ele se jogou no sofá e a puxou para si.

- Você é uma mulher muito esperta - disse, rindo. - Não entendo o que você quer dizer. - Um guarda-costas é um bom jeito de começar. - Ele a imitou. - Bom, ela
merece. Honestamente, Kit, não sei como você aguenta toda aquela manha.

- Sempre tive um fraco pelo burlesco - confessou ele. - Ela é divertida, Fiona. E excessivamente generosa.

- Só se você for um amigo, querido - replicou Fiona, imitando os trejeitos de Georgia.

- E dizem que os homens são maliciosos. - Ele a envolveu em seus braços e pressionou o corpo contra o dela. - A briga acabou?

Fiona soltou um suspiro: - Eu reagi de modo exagerado. Lesley está sempre no fundo da minha mente. Mesmo que não tenha consciência disso.

- Obrigado, Caroline. - Kit enterrou o rosto nos cabelos dela e beijou seu pescoço. Em seguida, afastou-se. - Ah, e a propósito, preciso falar uma

coisa. Nunca escutei você dizer tanta bobagem quanto hoje. "Vou levar as cartas para uma análise psicolinguística profissional." Francamente, Fiona.

- Georgia pareceu achar uma boa ideia. - É, mas a Georgia vive no mundo da lua, não tem o menor senso de realidade. Não se esqueça de que ela acha nossos policiais
maravilhosos. E que as acusações de racismo e corrupção contra a Polícia Metropolitana são mentiras deslavadas disseminadas por conspiradores de esquerda.

- E não são? - Fiona arregalou os olhos, fingindo horror. - Não sei como lhe dizer isso, querida, mas Papai Noel também não existe.

Ela puxou a cabeça dele mais para perto. - Então preciso ver o que você tem no seu saco vermelho para mim.

20.

No dia seguinte, como de hábito, Fiona pegou uma cópia do Evening Post na estação do metrô ao voltar para casa do trabalho. A matéria principal na página três
deixou-a tão atordoada que ela sequer tentou embarcar quando o trem parou na estação. Em vez disso, continuou a ler, petrificada:

Rainha do Crime encontrada morta

A famosa escritora americana de suspense, Jane Elias, foi brutalmente assassinada; um crime terrível que imita a pavorosa violência de seu próprio livro, revelou
a polícia de County Wicldow hoje. Seu corpo, mutilado, foi encontrado por um guarda florestal no início da manhã de ontem, em uma estrada secundária próxima à
cidade rural onde morava, e que foi seu lar na República da Irlanda nos últimos quatro anos. Ela foi tão terrivelmente desfigurada pelo assassino que a identificação
só foi possível por causa de uma cicatriz decorrente de uma cirurgia cervical feita há três anos. O porta-voz da polícia afirmou: 'Até mesmo os oficiais experientes
ficaram chocados ao ver o que havia sido feito com a vítima. A senhorita Elias vivia nessa área havia quatro anos e era muito popular entre os moradores da região.
Estamos seguindo várias linhas de investigação, mas, até o momento, é difícil imaginar por que alguém iria querer fazer uma coisa dessas com ela."

Seu agente literário britânico, Jeremy Devonshire, ficou profundamente abalado ao ouvir a notícia. "E um choque", disse ele. "Não consigo aceitar. Jane era uma
mulher muito charmosa. Trabalhamos juntos nos últimos cinco anos, e posso dizer honestamente que nunca tivemos uma única discussão." O porta-voz de seus editores,
Tumhouse Bachelor, declarou: "Estamos muito abalados com essa notícia. Jane não apenas possuía um talento fantástico como também era uma pessoa bastante agradável.
Toda a empresa está de luto hoje."

Psicopatas

Jane Elias alcançou o topo da lista dos mais vendidos em ambos os lados do Atlântico com seu primeiro romance, Death ar: Arrival, o qual introduziu a dra. Jay
Schummann, uma agente do FBI especializada em perfis de serial killers. O sucesso acarretou uma premiada série de romances, três dos quais viraram filmes hollywoodianos,
incluindo seu livro de estreia. A adaptação de Death oa Arrival, com Michelle Pfeiffer, ganhou um Oscar. Jane Elias era conhecida por seu estilo de vida recluso.
Ao contrário da maioria dos escritores famosos, evitava a publicidade, só aparecendo raramente para falar com a imprensa. Ela justificou sua mudança para a Irlanda
como decorrente do desejo de ter uma vida tranquila, o que não mais conseguia encontrar em sua terra natal na Nova Inglaterra. A segurança em sua mansão georgiana
à margem do lago Killargan era bastante rigida, com guardas de serviço 24 horas por dia e um circuito fechado de câmeras de TV que monitoravam os 8 quilômetros
de cerca. Apesar de tudo isso, ela desempenhava um papel atuante na comunidade local, tendo escrito recentemente uma peça para a companhia de teatro da igreja
a fim de levantar fundos para um parquinho para as crianças. Velejadora experiente, Jane Elias mantinha vários barcos em sua marina particular. Especulou-se essa
manhã que ela tenha sido atacada enquanto velejava pelo lago em um de seus iates.

Chocada, Fiona releu a matéria, como se esperasse que dessa vez as palavras se rearranjassem de modo diferente. A notícia, porém, permaneceu a mesma. A mulher
que sentara à sua frente durante um jantar menos de três meses antes era agora a vítima de um assassino. Nenhum percentual de familiaridade com o universo da investigação
de homicídios poderia abrandar o horror gélido que a acometeu.

Fiona não se lembrava da viagem de volta para casa, a mente completamente ocupada pelas lembranças de Jane Elias ainda viva e as imagens conjuradas do corpo da escritora
após a morte. Elas haviam se conhecido na última viagem de Jane a Londres, para o lançamento do sétimo volume de sua série sobre Jay Schumann, Double Take. Jane
e Kit tinham o mesmo editor e, em virtude da relutância de Jane em fazer aparições em público, a Turnhouse Bachelor organizara uma série de jantares privados com
experientes comerciantes do mercado de livros e críticos importantes. No intuito de maximizar os benefícios da empresa, eles haviam convidado também dois de seus
outros escritores policiais para cada um dos jantares, e fora assim que Kit e Fiona tinham conhecido a americana. Logo que Jane descobriu o interesse profissional
de Fiona pelo crime, ela se mostrou muito mais interessada em conversar com a psicóloga do que com os outros convidados. As duas haviam passado grande parte da
noite imersas numa discussão pavorosa sobre assassinatos e suas motivações.

Fiona se sentira atraída por Jane, primeiro por sua perspicácia intelectual, mas também por sua inteligência ferina. Podia entender como Jane conseguira contornar
as compreensíveis exigências dos editores para que assumisse um papel mais atuante na promoção de sua obra. Qualquer pessoa que já tivesse sido o alvo daquela
língua mordaz não teria pressa em repetir a experiência.

Agora, porém, essa voz se calara para sempre. Sentia essa perda, pensou Fiona enquanto subia a Dartmouth Park Hill, com mais intensidade do que esperava. E provavelmente
seria obrigada a dar a notícia a Kit.

Ao entrar em casa, escutou a voz clara de Tracey Thom dizendo que vagava entre os feridos. Fiona conhecia muito bem a sensação. Entrou no escritório de Kit e o
encontrou debruçado sobre o computador, os dedos voando pelo teclado. Pousou uma das mãos sobre o ombro dele e deu um beijo no topo de sua cabeça reluzente.

- Só mais cinco minutos - falou ele de modo distraído. Fiona deixou-o trabalhar. As más notícias sempre chegavam cedo demais. Era melhor deixá-lo terminar o que
estava fazendo do que interromper seu fluxo com algo tão grave que ficaria para sempre ligado àquele capítulo, àquele parágrafo. Na cozinha, serviu um cálice de
vinho branco gelado para cada um e se sentou à mesa para esperar. Os cinco minutos viraram doze, mas Fiona não ficou impaciente. Não havia nada que nenhum dos
dois pudesse fazer pela Jane.

Por fim, Kit apareceu, cumprimentando-a com um sorriso que se transformou em incerteza ao ver sua expressão sombria.

- O que foi? - perguntou ele, franzindo o cenho, preocupado. Fiona empurrou o cálice na direção dele. - Más notícias. - Não havia como abrandar a notícia, portanto
nem tentou. - Jane Elias foi assassinada.

A mão de Kit congelou a meio caminho do drinque. - Jane? - indagou, incrédulo. - Assassinada? Onde? Quando? O que aconteceu?

Fiona empurrou o jornal por cima da mesa. - Isso é tudo o que sei. Kit despencou sobre uma cadeira, pegou o vinho e passou os olhos pelo jornal.

- Isso é horrível - comentou, balançando a cabeça em negação. - Pobre Jane. Merda, não consigo acreditar.

- Também não consigo aceitar. Jane tinha uma personalidade tão forte. É difícil imaginá-la como uma vítima. - Que pesadelo terrível! - Kit correu uma das mãos
sobre a cabeça, num gesto consternado. - E Drew foi assassinado há apenas duas ou três semanas. - Ele parou no meio do gesto. - Você acha que existe alguma conexão?
Que alguém está atrás de escritores de suspense?

- Não, não acho - respondeu Fiona com firmeza, esticando o braço por cima da mesa e pousando a mão sobre o braço dele. - Não há motivo para pensarmos nisso, Kit.
Países diferentes, sexos diferentes, locais de desova diferentes. O fato de que os dois escreviam suspenses psicológicos é apenas uma terrível coincidência.

- Você sempre diz que coincidência não existe.

- Certo, talvez não exatamente uma coincidência. É possível que alguém que estivesse tão obcecado pela Jane quanto o assassino do Drew estava por ele tenha visto
as histórias sobre o assassinato e decidido que essa era a melhor forma de lidar com o objeto do seu desejo. No entanto, chegar à conclusão, com base nesses dois
assassinatos, de que existe alguém atrás de escritores de suspense é bobagem.

Kit balançou a cabeça e suspirou: - É, eu sei. Só que eu vivo num mundo no qual as teorias de conspiração são sempre algo mais atraente do que o contrário. Quero
dizer, é mais fácil acreditar que existe um serial killer à solta do que dois indivíduos seriamente depravados que só conseguem se excitar sexualmente matando
escritores. E, se levarmos em conta as cartas... bom, então parece que existe uma porrada de malucos interessados em gente como eu.

- Entendo por que você se sente assim. Mas acho que foi só um acaso infeliz. Realmente acho. - Fiona sentiu o vazio de suas palavras mesmo enquanto as proferia.
Não havia nada que pudesse dizer para ajudar. Odiava isso.

Kit afastou a cadeira e bateu na mesa com as palmas abertas. - Como pode ter acontecido uma coisa dessas com a Jane? Logo ela! Jane tomava tanto cuidado com sua
privacidade. Todo mundo sabia que a casa dela era uma fortaleza.

- Talvez esse fosse o desafio - ponderou Fiona, incapaz de impedir que suas engrenagens profissionais começassem a girar. Era onde sempre escolhia se refugiar
quando não sabia o que mais responder. Não tinha orgulho disso, porém não sabia como mudar. Ou mesmo se queria mudar. Algumas de suas melhores ideias tinham surgido
em decorrência de sua visão profissional, ainda que fora de propósito.

- Por que alguém ia querer matá-la? - bradou Kit. - Quero dizer, sei que ela despertava muita inveja nos outros escritores. Mas as pessoas que dizem que seriam
capazes de matar para ganhar o que ela ganhava estão falando apenas por falar. Os escritores não são como a máfia, não matam seus competidores. E fora do mercado...
por que ela seria um alvo?

Fiona deu de ombros. - Os motivos de sempre. Amor, ódio, ganância, medo. Ela estava saindo com alguém?

Kit fez que não.

- Não faço ideia. Nunca escutei nenhum comentário sobre sua vida pessoal. O que, por si só, é incomum. Você sabe que o universo dos livros é uma central de fofocas.
Tudo mundo sabe sobre a vida de todo mundo. Eu poderia dizer qual foi seu último adiantamento...

- Quanto? - Dezoito milhões de dólares por um acordo de três livros. No entanto, nunca escutei nada sobre um namorado ou amante. Se é que havia alguém. Talvez
ela fosse apenas uma dessas pessoas que não ligam para sexo. Eu certamente não a senti exalar nenhum tipo de vibração nesse sentido. Você sentiu?

- Não - respondeu Fiona. - Nenhum flerte durante o jantar, fosse com homem ou mulher.

- Isso mesmo. Totalmente na dela, mantendo distância. A única hora em que a vi se animar foi quando vocês duas engataram naquela conversa sobre as vítimas complacentes
de sádicos sexuais. - Ele se levantou e andou até a geladeira, e começou a tirar metodicamente alguns legumes da gaveta. - Cuscuz com legumes grelhados - falou,
mais para si mesmo.

- Quando não souber o que fazer, cozinhe - replicou Fiona de um jeito afetuoso. - Quer conversar mais um pouco?

- Não. Vou cortar esses legumes e depois voltar ao trabalho enquanto eles cozinham. Essa é a melhor terapia que conheço.

Ela terminou de beber o vinho e se levantou. - Estarei no sótão se precisar de mim. Kit aquiesceu com um aceno de cabeça. - Você vai checar o caso na Internet?
- Você me conhece bem demais. Acha que estou sendo mórbida? Kit se virou e sorriu.

- Os sinos estão tocando para mim e meu fantasminha mórbido - cantarolou com sua voz de barítono. - Siga em frente e cave fundo. Você pode servir o que descobrir
durante o jantar e apaziguar meus medos irracionais.

Fiona sorriu de volta. Um pensamento cruzou sua mente sem querer: se Jane Elias tinha um amante, alguém devia estar inconsolável no momento.

- Me chame quando o jantar estiver pronto. - Foi tudo o que disse.

Teve vontade de dizer o quanto o amava, mas isso seria tentar demais o destino.


Extraído da Prova Decodificada P13/4599

Uimef afmxx ketmf fqdqp milqd vmzqq xume. Mxxui mzfqp fapai meexq qb. Upupz fzqqp mzkbu xxefa wzaow yqagf quftqd...

Fiquei completamente arrasado depois de matar Jane Elias. Tudo o que eu queria fazer era dormir. Era como se eu quisesse apagar do meu cérebro essa memória e dormir
fosse a melhor forma de conseguir isso. Não conseguia nem mesmo pegar uma caneta e registrar tudo com precisão, até hoje.

Claro que não pude matá-la no barco, não queria sangue por todos os lados. Isso não seria correto no contexto do livro. Assim sendo, depois de deixá-la inconsciente,
velejei até a rampa da marina, tirei-a do barco e acabei com ela no raso.

Continuo com sorte. Deixei que ela sangrasse um pouco dentro d'água, depois a botei no banco traseiro do meu 4 x 4 e soltei o barco no lago, deixando-o à deriva.
Eles que tentem descobrir o que aconteceu, pensei.

Em seguida, fiz o que precisava fazer. Não sei por que, mas foi pior do que com Shand. Talvez porque ela fosse mulher. Ou talvez porque tenha tido que despi-la
e ela parecesse muito mais vulnerável sem as roupas.

Tudo correu de acordo com o plano. E, pelo que li nos jornais, parece que eles estão começando a entender a mensagem. Já não era sem tempo.

Agora, está na hora de começar a pensar sobre a número três. Georgia Lester. estou lendo seu livro de novo. Por que alguém desejaria publicá-lo e, ainda por cima,
transformá-lo num filme, está além da minha compreensão. Infelizmente meu

plano irá ajudar a aumentar a venda desse livro patético. Mas isso eu não posso evitar. Tenho de continuar pensando no objetivo final.

Já fiz uma inspeção em sua cabana em Dorset, e ela é perfeita para o que eu pretendo fazer. Descobrir quando Georgia pretende ir para lá é que é um pouco mais

Sei que essa semana ela está em Londres e, pelo que posso ver de seus compromissos na Internet, acho que ela irá para Dorset no fim de semana, no intuito de ficar
lá até terça ou quarta-feira.

Não estou animado com essa morte em particular. Até o momento, é o pior prospecto. O que terei de fazer com ela é horrível demais. Leio e releio o trecho do livro
que descreve tudo, e meu estômago se contorce só de pensar que terei de imitar isso. Mas não posso parar agora. Isso faria com que tudo o que já fiz até o momento
perdesse o sentido.

Quando me sinto assim, olho em torno e vejo ao que fui reduzido por causa das coisas que eles fizeram comigo. Não sinto prazer em fazer nada disso, mas pelo menos
estou recuperando meu amor-próprio. Não estou aceitando o que eles fizeram comigo de cabeça baixa, e isso já vale alguma coisa.

Assim, tenho apenas de trincar os dentes e fazer o que precisa ser feito. Dois já foram, faltam quatro. Até então, eles terão sacado o que está acontecendo.

 

 


CONTINUA