Biblio VT
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Tal como os policiais, os bombeiros e os jornalistas, Fiona sabia que o humor negro era a forma mais rápida e eficiente de colocar uma distância emocional entre
ela e as coisas terríveis que seu trabalho a forçava a encarar. Assim, quando digitou o nome de Jane Elias em seu mecanismo de busca e ele sugeriu um site chamado
Rindo com as Celebridades Monas, não conseguiu resistir.
A morte de Jane entrara para o domínio público há menos de um dia, mas ela já ganhara a própria lápide em forma de desenho. Fiona clicou no nome de Jane. A tela
adquiriu uma moldura em forma de caixão. "Jane Elias matou cerca de 47 pessoas em seus sete romances. Alguns diriam que já estava na hora de ela descobrir qual
era a sensação. Nós não, é claro. Se você se sente ofendido com piadas sobre a morte, não continue a ler esta página." Fiona, claro, continuou. Até então, só
havia quatro piadas.
Por que Jane Elias tinha de morrer? Para finalmente conseguir colocar as mãos numa boa trama.
Quando os escritores começam um livro, eles sabem como vai terminar? Jane Elias com certeza não sabia!
O que São Pedro disse para Jane Elias quando ela chegou lá no céu? Então, Jane, quem é o culpado?
Qual foi o motivo do assassinato de Jane Dias? Cifras pelas quais vale morrer.
Só a primeira arrancava um sorriso, e mesmo assim um bem pequeno, ponderou Fiona, fechando o site e partindo para outros mais convencionais. O primeiro que verificou
fora criado por um fã. Sob a data, dizia apenas: "Jane Elias foi encontrada morta hoje. Este site está fora do ar em sinal de respeito."
Teve um pouco mais de sorte com a segunda opção, outro site criado por um dos devotados leitores de Jane. O assassinato estava relatado em detalhes e, logo abaixo,
havia uma série de links para outras áreas do site. Entre as opções, havia: Sua Vida, Álbum de Fotos, A Investigação, Livro de Condolências e Links Relacionados.
Fiona escolheu o Álbum de Fotos primeiro, curiosa para ver o que o criador do site tinha conseguido reunir, dada a notória timidez de Jane diante das câmeras.
Em primeiro lugar, a foto da capa, que só aparecera no romance de estreia. Era um rosto comum, do tipo que seria difícil descrever em termos que o diferenciassem
de milhões de outros. Cabelos castanhos na altura do queixo, repartidos à direita; sobrancelhas retas, olhos escuros, um nariz bastante comum e lábios cheios que
se curvavam num ligeiro sorriso, sem revelar nada. Ela usava uma camisa aberta no pescoço, deixando antever uma fina corrente de ouro. Fora as luzes louras e algumas
rugas em torno dos olhos, Jane estava exatamente idêntica à noite do jantar.
Em seguida, uma foto de sua turma do ensino médio. Seu cabelo estava mais longo, caindo reto até a altura dos seios pequenos, mas repartido do mesmo jeito. Aos
18 anos, Jane usava óculos feiosos de moldura grossa que faziam seus olhos parecerem desfocados. O rosto era mais cheio, quase gorducho. Se tudo o que Fiona conseguisse
descobrir se resumisse a isso, duvidava que fosse capaz de distinguir Jane no meio de uma multidão.
A terceira foto mostrava a escritora recebendo o primeiro de seus dois prêmios Edgar durante o jantar da Mystery Writers of America. O sorriso era largo e espontâneo
e ela parecia surpreendentemente elegante em um vestido de lantejoulas preto e justo.
A última foto do álbum revelava um lado totalmente diferente de Jane Elias. Tirada na linha de chegada de uma meia-maratona em prol da caridade, em Dublin, Jane
fora clicada em plena corrida, o short e a camiseta deixando antever as formas suaves dos músculos bem desenvolvidos, tanto nos braços quanto nas pernas. A câmera
a capturara em um momento favorável, ela expressava o êxtase de um atleta que consegue superar a barreira da dor. Estava mais atraente naquela foto do que em qualquer
outra, Fiona percebeu com indiferença.
Ao terminar de analisar as fotos, Fiona passou para o livro de condolências. Se estivesse envolvida na investigação, sugeriria à polícia que desse uma olhada nas
mensagens deixadas pelos fãs. Dada a tendência dos psicopatas de tentarem se inserir nas discussões sobre seus crimes, era o lugar óbvio para o assassino dar as
caras. As doze mensagens que Fiona verificou pareciam inofensivas o suficiente, mas ainda havia muito tempo para aparecerem coisas estranhas e bizarras. Marcou
a página, decidindo voltar a ela dali a um ou dois dias, a fim de ver se aparecia alguma coisa semelhante ao que encontrara nas cartas de Kit e Georgia.
Não havia nada mais no site que pudesse interessá-la; portanto, como uma criança que guarda o melhor da refeição para o final, foi direto para Murder Behind the
Headlines. Digitou "Jane Elias" no espaço de busca e apertou <enter>.
A rainha dos romances policiais sobre serial killers, Jane Elias, finalmente conheceu o sofrimento que impingiu a dúzias de vítimas em seus livros. Infelizmente,
ela não poderá lucrar com essa experiência, pois o homem - ou mulher - que a sequestrou se certificou de que ela não viveria para contar a história. O corpo de
Elias foi encontrado no início desta manhã por um guarda-florestal que a atropelou com seu caminhão. Seu corpo fora estrategicamente deixado no meio de uma estrada
secundária, logo após uma curva sem visibilidade, próximo à casa da romancista, em County Wicklow, Irlanda. A cena apresenta uma semelhança impressionante com
um dos locais de desova em Death on Arrival, o primeiro livro de Elias, cuja adaptação para o cinema rendeu um Oscar à sedutora Michelle Pfeiffer.
Segundo nossas fontes no laboratório legista de County Wicklow, os ferimentos de Elias assemelham-se bastante aos da sua vítima no livro, com a única diferença
de que foram infligidos após sua morte. Talvez o assassino fosse mais sensível do que a própria vítima. Eis aqui um trecho retirado do livro:
"A aguilhoada tardia de uma lâmina de barbear. O brotar de uma queimadura, de uma ardência abrasadora a uma dor excruciante que se espalha por todo o corpo enquanto
o cheiro de carne queimada exala no ambiente. A aflição dolorosa da carne forçada a se acomodar em menos espaço do que precisa. A dor nauseante de um osso quebrado
que nunca ganha tempo para se calcificar. A agonia embotada de um soco propositalmente mirado nos órgãos sob a pele."
Apavorante, não? Principalmente após o recente assassinato do escritor Drew Shand, em Edimburgo, Escócia, que também morreu de modo semelhante ao descrito em seu
livro, Copycat. Por mais improvável que pareça, os teóricos da conspiração já começaram a especular se alguém não estaria matando escritores de suspense especializados
em romances sobre serial killers. Isso é que é levar a crítica longe demais.
Mas a verdade talvez se encontre em outro lugar. O MBTH pode revelar com exclusividade que o maior segredo de Elias era o romance que mantinha há cinco anos com
o agente secreto Pierce Finnegan, uma das figuras-chave da força policial irlandesa, a Guarda Siochána, em sua luta contra o tráfico de drogas. Finnegan foi um
dos responsáveis por desbaratar uma importante rota de fornecimento de heroína no ano passado, e dizem que sua cabeça foi posta a prêmio pelos líderes do tráfico
que ainda aguardam julgamento. No momento, ele está trabalhando com a Europol, e possui fortes contatos entre as autoridades antidrogas americanas. Para sermos
francos, seu romance com Elias era um segredo muito mais bem guardado do que qualquer assunto pertinente à Guarda Siochána.
Elias conheceu Finnegan durante o período em que ele participou de uma convenção internacional para a equipe de inteligência criminal em Quântico. Segundo amigos,
ela assistiu anonimamente à convenção, a convite de uma empresa de softwares da Flórida que estava lançando um programa pioneiro de retratos falados. Durante a
convenção, ela conseguiu participar de várias sessões privadas, onde escutou uma palestra de Finnegan. Mais tarde, eles foram apresentados por amigos em comum,
e os dois rapidamente deram início
a uma forte relação pessoal. Nem mesmo os chefes de Finnegan sabiam de seu romance com Elias.
Em consequência disso, Elias se mudou para a Irlanda. Finnegan visitava regularmente a bem protegida propriedade da amada em County Wicklow, embora os habitantes
da região acreditem que nem mesmo a equipe de segurança da escritora soubesse a verdadeira identidade dele. Muitas vezes, ela o encontrava em segredo quando ele
estava viajando a serviço. Elias se hospedava no mesmo hotel e os dois compartilhavam noites de amor clandestinas. Assim, não há mistério quanto à origem de suas
tramas.
Há muitas especulações no momento de que a morte de Elias tenha sido um ato de vingança contra Finnegan ou um aviso para que ele largue o caso e destrua as provas
coletadas, comprometendo, assim, o julgamento. A morte de Drew Shand pode ter proporcionado ao assassino o plano perfeito. Finnegan receberia a mensagem sem que
isso fosse necessariamente ligado a nenhum dos casos investigados pela guarda. Claro que isso só funcionaria se o relacionamento deles continuasse sendo um segredo.
Desculpe, Pierce. Desculpe, sr. Assassino. Destruímos o disfarce de vocês.
LEMBRE-SE DE QUE VOCÊ LEU ISSO EM MURDER BEHIND THE HEADLINES
Fiona respirou fundo. Isso causaria um rebuliço se fosse verdade. Ter um amante que era um agente secreto antidrogas era um motivo muito mais plausível para um
assassinato tão violento do que a ideia de que um serial killer estava matando escritores. Sabendo como as agências de polícia investigavam os próprios oficiais,
Fiona tinha sérias dúvidas de que os chefes de Finnegan não soubessem do relacionamento dele com Elias, embora os dois, sem dúvida, tivessem feito um bom trabalho
em mantê-lo longe dos olhos do público.
Não conseguiu evitar se sentir aliviada. Embora seu raciocínio lógico se mostrasse relutante em aceitar a possibilidade de um assassino que queria livrar o mundo
dos escritores de suspense, seu lado emocional não conhecera nada além de medo desde que vira a manchete do jornal. Fiona conhecia muito bem as habilidades implacáveis
dos criminosos em série; a ideia de que Kit pudesse fazer parte da lista de um deles vinha lhe martelando a cabeça há
uma hora, e ela se sentia egoisticamente grata por haver uma explicação lógica para a morte de Jane que não envolvesse seu próprio amante.
Fechou o computador e desceu. Kit estava de volta na cozinha, derramando cuscuz numa panela de água fervente. Ele se virou e forçou um sorriso meio de lado.
- Dez minutos - informou. - Você conseguiu trabalhar? - perguntou Fiona, completando o cálice de vinho dele e enchendo o seu.
- Nada como a tragédia alheia para fazer as palavras fluírem - respondeu ele, num tom de voz cortante. - É como um mecanismo de defesa. Meu cérebro usa a escrita
para bloquear a estática. Enquanto eu olho para a tela e escrevo, não consigo pensar sobre o que a Jane deve ter sofrido antes que o cretino a deixasse morrer.
- Esse é o problema de ter uma imaginação fértil - observou Fiona. - Especialmente uma como a sua. Você não precisa nem se esforçar para criar uma centena de cenários
angustiantes. - Ela atravessou a cozinha, e ele se virou para aceitar seu abraço. - Os ferimentos foram provocados após a morte. Ela não foi torturada.
- Acho que devíamos nos sentir gratos por isso - murmurou Kit com a boca enfiada em seu cabelo. Afastou-se com delicadeza. - E então, o que você conseguiu desencavar?
- O ponto principal? Você não precisa se preocupar. - Ela se sentou à mesa e relatou sua pesquisa em detalhes.
- Você sabe o que eu penso desses fofoqueiros - protestou Kit. - Como pode ter certeza de que eles estão certos sobre o relacionamento dela com o agente secreto?
Talvez eles fossem só amigos. Talvez ele fosse apenas um contato que ela usava para coletar ideias e construir seus panos de fundo. Fiona deu de ombros. - Não
tenho como ter certeza. Mas sem dúvida eles têm boas fontes e as exploram ao máximo. Assim sendo, a menos que escutemos o contrário, eu aceitaria o que eles estão
dizendo sem grandes questionamentos.
- Mais fácil falar do que fazer - murmurou ele. - Tem uma coisa que pode ajudá-lo a se acalmar. Quando você ligar para os seus colegas para ver se alguém mais
recebeu alguma carta ameaçadora,
pergunte se eles por acaso sabem se a Jane recebeu uma. Caso contrário, então isso comprova ainda mais minha teoria de que as pessoas que escrevem ameaças de morte
não são as que matam.
- Talvez fosse melhor eu ligar para a polícia e perguntar a eles. - Ah, sim, claro. Como se eles fossem te contar! - Talvez contem para o Steve. Fiona fez que
sim, reconhecendo o bom-senso dessa observação. - Vou encontrar com ele amanhã à noite de qualquer jeito - continuou Kit, tirando os legumes grelhados do forno
e misturando-os ao cuscuz. Colocou a comida na mesa com um floreio e se sentou de frente para Fiona. - Vou perguntar se ele tem como descobrir se Jane recebeu
alguma ameaça de morte. Se não recebem, então você provavelmente está certa, e Georgia e eu não temos o que temer. Enquanto isso, prometo me precaver, sem ser
paranoico. Tudo bem assim?
Fiona sorriu. - Por mim, tudo. Mas, se alguém se aproximar de você com uma faca, nada de heroísmo. Fique na sua.
- O quê? Você não quer que eu resista e aja como um homem? - brincou. - Deus do céu, de jeito nenhum. Estou ocupada demais para tirar uma folga a fim de preparar
um funeral. - Fiona provou a comida. - Humm. Delicioso. Cuide-se, querido, eu nunca conseguiria substituí-lo na cozinha.
Kit fingiu ficar magoado. - Só na cozinha? - Se eu não comer diariamente, vou morrer. Eu sentiria falta de transar com você, mas isso não me mataria.
- Acha que não? - perguntou ele com uma expressão perigosa. - É melhor não conferir. Kit deu uma risadinha. - Boa resposta, doutora. Então, que tal uma boa noite
quietinhos em casa?
- Kit, a gente nunca fica quietinho em casa. Por que começar agora? - Ela ergueu uma sobrancelha de modo provocativo. - Mas eu não recusaria uma bela trepada.
- Você me convenceu, sua safadinha. - O sorriso de Kit prometia um sexo ardente.
Em pouco tempo, Jane Elias estaria fria sob a terra. Nenhum dos dois esquecera isso por um só momento. No entanto, manter os fantasmas afaastados era o melhor que
podiam fazer um pelo outro, e eles sabiam disso. Era, como tantas vezes ocorrera no passado, um acordo tácito.
22.
Georgia Lester estava sentada à mesa da cozinha com uma xícara de porcelana de um chá preto fraco entre as mãos, olhando sem ver através dos deploráveis arbustos
outonais para as macieiras desnudas no fundo do jardim de sua cabana. Não reparava nas plantas perenes que precisavam ser aparadas nem nas roseiras que seriam
podadas na próxima vez que o jardineiro aparecesse. Isso não era seu trabalho, tampouco lhe interessava. Só notava o jardim quando ele estava bonito. A feiura,
preferia descartar. Já havia coisas feias o suficiente em sua cabeça sem que precisasse acrescentar outras vindas de fora.
O que gostava em sua cabana era da paz. Ser Georgia Lester era cansativo. Precisava se esforçar constantemente para manter a imagem de elegância e beleza sofisticada
que o mundo esperava dela. Claro que fora ela própria quem criara essa expectativa, a invenção consciente de uma personagem cheia de estilo que a destacava do
resto da manada. Isso, porém, não facilitava as coisas, e agora, sempre que se olhava no espelho pela manhã, tinha a impressão de que a montanha ficava mais alta
a cada dia. Talvez estivesse na hora de outra visita ao charmoso médico da Harley Street que tinha feito um ótimo trabalho com a pele flácida sob seu maxilar.
No entanto, ali na cabana podia abstrair-se da necessidade de manter uma fachada. Bom, podia fazer isso quando estava sozinha, corrigiu-se, a lembrança fazendo
surgir um sorriso maroto nos cantos dos lábios. Uma
garota precisava se distrair de vez em quando e, por mais devotado que Anthony fosse, ele não podia proporcionar o estímulo de um corpo jovem e firme no auge de
sua energia sexual. Nenhum de seus flertes durava muito tempo, Georgia se certificava disso. Tampouco significavam mais do que uma espécie de transfusão de sangue
- algo necessário, porém, de alguma forma, impessoal.
Mas nesse fim de semana Georgia tinha um cronograma diferente. Nada de se arrumar para os amantes, apenas trabalhar em suas revisões. Ao contrário da maioria dos
escritores que conhecia, adorava o processo revisor. Ele permitia que ela se distanciasse do feijão com arroz que era colocar o primeiro esboço no papel, e se concentrasse
na qualidade do texto em si. Estabelecera a reputação de ter uma prosa elegantemente construída, e achava que isso era decorrente de sua atenção às minúcias de
cada frase, que davam forma ao livro. Tinha três dias para realizar seu trabalho favorito, e estava ansiosa por isso.
No momento, Georgia pensava no trecho do livro que pretendia revisar dali a pouco. A prova impressa já estava sobre sua escrivaninha, ao lado da caneta-tinteiro
Mont Blanc Meisterstück que sempre usava ao fazer as revisões, e que mais tarde a secretária passaria para o computador. Não ia nem se incomodar em se vestir ainda.
Perambularia pela casa em sua felpuda camisola, o cabelo preso num turbante de seda, até a hora do almoço. Então, entraria na banheira ao som de The World at One.
Um sanduíche de almoço e depois seguiria para Dorchester. Tinha comida suficiente no congelador, porém o vinho branco acabara de forma inexplicável, e jantar sem
uma taça de Chablis gelado era impensável. Acreditava piamente que os escritores precisavam de uma rotina disciplinada. E isso incluía os pequenos prazeres da
vida, assim como os hábitos mentais que lhe permitiam publicar um livro por ano.
Georgia terminou de beber o chá e encheu a xícara novamente. Planejava aproveitar ao máximo aqueles três dias. Ao final deles, ingressaria num tour para promover
seu último livro. Pensar nisso a fez lembrar que ainda não conseguira persuadir seu editor a incluir no orçamento o belo guardacostas que contratara antes de sair
de Londres. Não achava que alguém estivesse atrás dela, não de verdade, apesar de seus protestos para o querido e doce Kit de que eles deveriam mostrar aquelas
irritantes cartas à polícia.
Contudo, não fazia objeções a tirar vantagem dessa possibilidade. Não fazia mal algum manter seu nome na boca do público. A ideia de que ela era importante o suficiente
para despertar a atenção de um possível assassino inevitavelmente atrairia novos leitores, ávidos em descobrir o que havia de tão especial nela. E, uma vez atraídos,
Georgia estava profundamente convencida de que eles continuariam a devorar toda a sua lista de livros já publicados.
Alcançara o topo da lista dos mais vendidos graças a planos astutos como esse. Tinha consciência de que sua atitude era malvista por muitos de seus colegas. Não
dava a mínima para isso. Eles podiam fingir o quanto quisessem que eram nobres demais para empregar esse tipo de tática. Na verdade, estavam apenas com inveja
do espaço que ela ocupava na mídia.
Sem saber que estava prestes a gerar a maior publicidade de sua carreira, Georgia bebericou o chá, sentindo-se muito, muito satisfeita consigo mesma.
23.
Fiona estava atrasada. Literalmente. Evitando os alunos, entrou como um tufão na sala da secretária.
- Maldita Nopthern Line - disse, ofegante, lutando para tirar o casaco e abrir a porta do seu escritório ao mesmo tempo. Entrou, soltou a jaqueta e a maleta, e
pegou a pasta de anotações para a reunião do departamento que havia começado há cinco minutos; sua secretária a seguiu.
- Tem um policial espanhol tentando falar com a senhora - informou ela. Consultou o papel de recados que tinha na mão. - Um tal de major Salvador Berrocal. Ele
já ligou três vezes na última meia hora.
- Merda, merda, merda! - murmurou Fiona com raiva. - Ele pediu que a senhora retornasse a ligação o mais rápido possível - acrescentou a secretária de maneira
prestativa, enquanto Fiona hesitava entre sua mesa e a saída. - Parecia urgente.
- Não posso faltar à reunião - replicou Fiona. - Barnard está tentando se livrar de metade das suas turmas, e não quero que elas acabem nas minhas mãos. - Correu
a mão pelo cabelo. - Certo. Ligue para Berrocal e diga a ele que estou ocupada, mas que ligo assim que puder. Desculpe, Lizzie, preciso correr.
Fiona atravessou correndo o corredor e parou de maneira abrupta em frente à sala de reuniões, atraindo olhares curiosos daqueles que só conheciam seu jeito elegante
e controlado. Parou por um momento, ajeitou o
cabelo e respirou fundo para se recompor, em seguida entrou com um sorriso de desculpas.
- Desculpem, culpa do metrô - murmurou, assumindo seu lugar na mesa de conferências. O professor Barnard nem sequer titubeou no meio de sua explicação complicada,
tampouco dirigiu-lhe um simples olhar.
Fiona teve a sensação de que aquela estava sendo a reunião mais longa da história, e teve de se esforçar para não demonstrar inquietação enquanto eles discutiam
os aparentemente infindáveis problemas do departamento. Conseguiu conter sua impaciência, recusando-se a permitir que a presença dominadora de Barnard acabasse
induzindo-a a aceitar mais do que uma turma adicional. No entanto, mesmo enquanto apresentava seus argumentos de defesa, parte de sua mente pensava na mensagem
urgente de Berrocal. Ele devia estar com um suspeito sob custódia. Pelo menos, era o que ela esperava.
Assim que a reunião terminou, Fiona juntou seus papéis e saiu dali, o que lhe garantiu algumas sobrancelhas levantadas e uma troca de olhares maliciosos por parte
dos colegas que preferiam evitá-la por considerarem-na arrogante em excesso. De volta ao escritório, pediu a Lizzie que segurasse suas ligações, e começou a discar
o número de Berrocal antes mesmo de se sentar.
- Major Berrocal? - perguntou quando o telefone foi atendido no segundo toque.
- Si. Dra. Cameron? - Seu tom não dava a menor pista sobre a natureza das notícias.
- Sinto não ter ligado antes, mas estava ocupada - falou rápido. - O senhor conseguiu alguma coisa?
Ele suspirou: - Não o que eu esperava. Infelizmente, temos outro assassinato. Fiona sentiu um baque. Havia temido tanto essa notícia que se recusara a pensar
nela como uma séria possibilidade.
- Sinto muito por escutar isso - falou, reconhecendo a inadequação das palavras.
- Estou ligando para saber se a senhora pode vir a Toledo de novo e nos prestar uma nova consultoria. Talvez as informações desse último
assassinato possam ajudá-la a determinar o local onde devemos procurar nosso suspeito agora.
Fiona fechou os olhos.
- Sinto muito - respondeu, esperando que ele percebesse o pesar genuíno em sua voz. - No momento é impossível. Tenho muitos compromissos aqui que não posso adiar.
Fez-se um silêncio pesado. Em seguida, Berrocal falou: - Temia que a senhora dissesse isso.
- Mas posso examinar as informações se o senhor me enviar os detalhes por fax - prosseguiu ela, o senso de dever falando mais alto do que a razão.
- Isso seria possível? - Estou com a agenda apertada, mas tenho certeza de que posso encontrar um tempo para analisar o material - assegurou-lhe, já imaginando
como faria isso.
- Obrigado. - O alívio na voz dele foi evidente mesmo por telefone. - Talvez o senho pudesse me passar o essencial agora? - pediu ela, pegando um bloquinho de
anotações e prendendo o telefone entre a orelha e o ombro.
- O corpo foi encontrado dentro do pátio do Alcázar. - A voz de Berrocal tornou-se fria e impessoal. - Uma inglesa, Jenny Sheriff. Vinte e dois anos, de Guildford.
- Ele dividiu o estranho nome do lugar em duas palavras. - Ela estava fazendo um intercâmbio de um ano para melhorar seu espanhol e trabalhava como recepcionista
no Hotel Alfonso VI. Seu turno terminou às dez da noite de ontem e ela contou a uma colega que ia se encontrar com um homem para tomar um café na praça. Falou
que ele era fascinante, que conhecia profundamente a história de Toledo.
- Ela mencionou o nome dele? - perguntou Fiona. - Não. Encontramos um barman que disse ter servido café e conhaque para ela e um homem um pouco depois das dez.
Ele se lembrava porque já a tinha visto várias vezes antes, bebendo com amigos. No entanto, não poderia reconhecer o homem que a acompanhava porque ele estava
sentado de costas para o bar. O barman não se lembra de tê-los visto sair, pois estava ocupado atendendo um grupo de turistas que havia acabado de entrar.
- Quando ela foi encontrada?
- Hoje de manhã. O zelador que abre os portões para o restante da equipe do Alcázar encontrou a entrada dos empregados destrancada. Quando ele entrou no pátio,
viu-a deitada lá. Ela foi esfaqueada diversas vezes na barriga. Segundo o relatório preliminar, a arma do crime foi uma baioneta. A morte assemelha-se à dos muitos
republicanos assassinados pelas forças de Franco quando eles aliviaram o cerco ao Alcázar durante a Guerra Civil. Isso combina com o tema que a senhora identificou
de cenários turísticos associados a mortes violentas. Há também outra conexão. Tal como Martina Albrecht, a vagina de Sheriff foi mutilada após a morte por repetidas
inserções de uma garrafa quebrada. E, por fim, encontramos também um mapa turístico da cidade, oferecido pelo hotel, em seu bolso. Por tudo isso, acho que não
resta dúvidas de que estamos lidando com o mesmo homem. Delgado ou seja lá quem for. - A voz dele mostrava-se irritada de tanta frustração.
- Nenhum sinal de entrada forçada? - indagou Fiona. - Não. Aparentemente, ele tinha as chaves. Estamos trabalhando nisso. Ele talvez tenha um amigo com acesso
às chaves, ou então as adquiriu de alguma outra forma. Vamos checar as casas de todas as pessoas que têm uma cópia dessas chaves. É possível que ele esteja se
escondendo próximo a uma delas. Ele pode ter arrombado alguma dessas casas e pego as chaves.
Fiona suspirou: - Sinto muito por escutar isso, major. Quando o senhor me contou que tinha um suspeito, achei que esse seria o fim.
- Eu também. Mas Delgado parece ter desaparecido no mapa. Todos os policiais da cidade estão com o nome e uma foto dele, mas até o momento não temos nenhuma pista
de seu paradeiro.
- Deve ser muito frustrante para o senhor. - Ela franziu o cenho enquanto falava, tentando resgatar algo em seu subconsciente.
- É mesmo. Mas não vamos desistir. Vou lhe enviar o material por fax assim que estiver disponível.
Depois de desligar, Fiona permaneceu com os olhos fixos na parede, esperando que seu subconsciente colocasse para fora o que quer que estivesse se escondendo ali.
Não veio nada. O telefone tocou de novo, trazendo-a de volta para as exigências imediatas do trabalho que deveria estar fazendo.
Apesar de todo o esforço para se concentrar, apenas parte de seu cérebro se mostrava focado na aula daquela manhã. O problema de Berrocal aninhara-se em um canto
de sua mente. Frustrada por não conseguir trazer para a superfície o que quer que a estivesse incomodando, Fiona passou o horário de almoço na piscina, nadando
de um lado para o outro de maneira distraída, tentando alcançar o estado de semitranse que o exercício podia produzir. Ainda assim, algo lhe escapava.
Enquanto andava de volta para o departamento, tentou invocar na mente a imagem do Alcázar. Talvez isso a ajudasse a resolver o quebracabeça. O prédio imponente
ficava no ponto mais alto da Cidade Velha, o lugar perfeito para uma fortaleza, uma situação que fora explorada por cada força que o ocupara desde a época dos
romanos. Ele dominava a cidade, maior do que qualquer outra coisa em sua linha de visão, com uma geometria quadrangular que parecia repreender a aparência desordenada
dos prédios que pontilhavam a descida dos morros em direção ao Tejo.
No entanto, o palácio nunca tivera sorte. Fora incendiado diversas vezes e seriamente danificado, durante a Guerra Civil, ao ser bombardeado pelos homens de Franco
por meses a fio. De longe, era uma visão austera, com paredes aparentemente desprovidas dos ornamentos decorativos encontrados em seus dois maiores rivais, a catedral
e San Juan de los Reyes. Sua severidade só era amenizada pelas quatro torres arredondadas que decoravam os cantos, cada qual com um beiral à la castelo da Disneylândia.
Dentro das paredes altas, o negócio era diferente. Cada uma das fachadas externas era decorada com um estilo arquitetônico distinto. Fiona nunca visitara o Alcázar,
mas já tinha visto fotografias e achava quase um absurdo que um prédio com um estilo tão elaborado acabasse servindo como quartel-general e museu do Exército.
Ainda assim, o palácio acabara de ganhar mais outro episódio em sua história sangrenta. Agora era o cenário de um crime. O lugar de descanso da última vítima de
um assassino implacável que ela, Fiona, deveria ajudar a capturar. Um objetivo que, pelo visto, ainda faltava bastante para ser alcançado.
Apesar do esforço, sua mente se recusava a liberar a inspiração e, lá pelas tantas da tarde, Fiona desistiu de tentar. Resolveu trabalhar até tarde e lidar com
a correspondência que se acumulara em proporções perigosas
sobre sua mesa. Kit ia sair, primeiro para uma noite de autógrafos numa livraria, seguido por um drinque com Steve, portanto não havia pressa em Ir para casa. Quando
finalmente deixou o escritório, deparou-se com dois professores de meio período do curso de antropologia que a convenceram a Ir tomar um drinque no clube dos funcionários.
Fiona tomava sua segunda taça de vinho quando o assunto mudou de rumo. Dois de seus colegas estavam ridicularizando as ideias de um terceiro sobre os costumes
fúnebres da África Ocidental. Uma corrente elétrica cruzou o cérebro de Fiona e, de repente, ela lembrou o que precisava dizer a Berrocal. Murmurando uma desculpa,
levantou-se e voltou correndo para seu escritório.
Quando finalmente conseguiu falar com a polícia espanhola, Berrocal já tinha ido embora. Fiona não quis que um subalterno anotasse a mensagem com seu palpite,
sabia o quanto ele soaria bizarro. Da mesma forma, não queria esperar até a manhã seguinte. Ligou o computador e abriu direto o programa de e-mail.
De: Fiona Cameron <fcameron@psych.ulon.ac.ulc
Para: Salvador Berrocal <Sberroc@cnp.mad.es>
Assunto: Re: Assassinatos de Toledo
Caro major Berrocal,
Andei pensando sobre onde seu suspeito pode estar se escondendo, e uma ideia me ocorreu, embora provavelmente seja um tiro no escuro. Como sabemos, ele é obcecado
pela história de Toledo, a qual, em sua mente, está conectada com as mortes. Onde a morte e a história se cruzam? Nos cemitérios. Fiquei imaginando se há, em Toledo
ou perto da cidade, cemitérios com grandes tumbas ou câmaras mortuárias. Se houver, talvez ele esteja escondido numa delas. Sem dúvida, ele encontrou alguma espécie
de abrigo, visto que continua com uma aparência decente o bastante para não atrair a atenção. Acredito que ele possa ter invadido algum mausoléu ou jazigo de família,
que está usando como sua base de operações.
Se o senhor não tiver mais nenhuma pista, talvez valha a pena averiguar essa possibilidade. Estarei em casa mais tarde e pretendo analisar o material que o senhor
prometeu me enviar
Boa caçada!
Atenciosamente,
Fiona Cameron
24.
Kit fechou o último livro com um floreio e largou a caneta.
- Obrigado, querida - falou para a vendedora que afastou a pilha de livros de capa dura para o lado.
- Você se incomoda de autografar alguns dos livros de bolso também? - perguntou a mulher.
- Com grande prazer. - Ele olhou de relance para Steve, que verificava a seção de romances policiais baseados em fatos reais. - Não vou demorar - avisou.
- Sem problema - replicou Steve, pegando na prateleira um livro sobre patologia forense.
- Acho que foi uma noite proveitosa - comentou Kit de modo distraído enquanto autografava.
- Foi ótima. - A vendedora estava entusiasmada. - Foi a primeira vez que organizamos uma semana inteira de eventos temáticos, e o resultado foi fabuloso. Aumentamos
as vendas, não apenas durante os eventos, mas de dia também.
- É porque vocês sabem como promover o negócio - respondeu Kit. - As vitrines são chamativas, e isso atrai os compradores. Tivemos uma boa audiência hoje à noite.
A mulher fez uma careta. - Com exceção do maluco da primeira fila.
- Tem sempre um maluco.
- Eu sei, mas a forma como ele falou do Drew Shand e da Jane Elias... um louco. Isso não o preocupa, que malucos assim leiam seus livros? Kit se levantou e deu
de ombros.
- Na verdade, não. É com os que ficam calados que você precisa se preocupar. Não é mesmo, Steve?
Steve ergueu os olhos, assustado. - Desculpe, sobre o que você estava falando, Kit? - Estava dizendo que não são os malucos falastrões que precisam ser observados
de perto. Os que realmente causam problemas são os que não demonstram ser candidatos ao hospício. Steve fechou o livro.
- É verdade. Os assassinatos perfeitos são cometidos por pessoas espertas o bastante para fazerem com que pareçam acidentes, e controladas o suficiente para ficarem
de bico calado. Kit bufou:
- Ao contrário daquele sujeito de Sheffield que cortou a cabeça da mulher e depois a levou para a namorada, a fim de provar o quanto a amava.
A vendedora estremeceu. - Isso é invenção sua. - Gostaria que fosse. Em geral, a realidade é muito mais horrível do que até mesmo a ficção dele - observou Steve.
- Já acabou, Kit?
Ao saírem da livraria, Kit e Steve desceram a rua em um silêncio amigável. Seguindo um acordo tácito, entraram no primeiro pub que Kit classificava como decente,
um estabelecimento no qual não haviam sido poupados gastos para fazê-lo parecer com um típico bar da década de 1930, com piso de tábua corrida e cadeiras de madeira.
Só faltava a serragem sobre o chão. Enquanto abriam caminho até o balcão, Kit finalmente falou:
- Você não acha que existe alguma conexão entre os assassinatos de Drew Shand e Jane Elias, acha?
- Não sei o suficiente sobre nenhum dos casos para especular - respondeu Steve. Ele abriu espaço entre os fregueses e atraiu o olhar da atendente. - Duas canecas
de cerveja preta, querida.
Kit riu.
- Conhecimento de menos nunca impediu Fiona. Ela acredita que isso é tão provável quanto o Manchester United perder a liderança do campeonato. Mas ela pode estar
dizendo isso só para eu não me preocupar.
Steve tomou um gole da cerveja e deu uma risadinha. - Você acha que eu vou contradizê-la? E arriscar invocar a ira de Deus sobre minha cabeça?
- Sabe qual é o seu problema, Stevie? Você deixa Fiona escapar impune com coisas demais. Você acata o que ela diz como não faz com nenhuma outra pessoa. Só que,
com uma mulher como a Fiona, não se pode ceder tanto assim. Dê-lhe espaço e, antes que perceba, ela estará dominando o mundo inteiro. - Velhos hábitos são difíceis
de largar - retrucou Steve, ciente de que Kit estava marcando seu território de maneira tão óbvia quanto um gato macho. Sabia que o companheiro estava certo. Na
época em que se tornara amigo de Fiona, não percebera que ela precisava de alguém que a enfrentasse e a desafiasse. Agora era tarde demais para mudar. E pior:
esse se tornara o padrão de todos os seus relacionamentos com mulheres. Podia ser duro com as colegas de trabalho e as subordinadas, sem nunca fazer concessões
em razão do sexo. No entanto, quando o assunto era romance, Steve voltava a ser o bobalhão que não havia conseguido conquistar Fiona. Não gostava disso, mas não
tinha tempo nem motivação suficientes para tentar mudar. Mesmo que pudesse, Steve pôs esse pensamento de lado e voltou sua atenção para o que Kit estava dizendo.
- Não preciso que seja indulgente comigo. Só quero que me diga se você acha que eu devo me preocupar com essas cartas ameaçadoras.
Eles se mudaram para uma das mesas do canto que, por experiência, sabiam ser a menos barulhenta do lugar. Ali poderiam conversar sem arriscar uma dor de garganta
e sem atrair ouvidos curiosos. Steve tirou um charuto do bolso da camisa e o acendeu. - Repete tudo, Kit. Não escutei direito com aquela barulheira toda do bar.
Kit sacudiu a cabeça. - Você não estava ouvindo. Estava distraído, pensando em mulheres.
Eu estava falando das cartas ameaçadoras que alguns escritores de suspense estão recebendo. Eu recebi uma, Georgia recebeu outra. Fiona me sugeriu
que perguntasse se alguém mais havia recebido também, e mandei alguns e-mails hoje para verificar exatamente isso. Até o momento, três outros já confirmaram. Jonathan
Lewis, Aclara Chester e Enya Flannery. E meu agente recebeu uma também. Todas elas parecem ter sido escritas pela mesma pessoa. Além disso, Enya e Jonathan disseram
que encontraram mensagens semelhantes em suas secretárias eletrônicas. Só que a voz estava abafada demais para um possível reconhecimento, mesmo que eles conhecessem
a pessoa.
- E você quer saber se é possível que esses dois assassinatos estejam ligados? Se existe alguém à solta com raiva de escritores de suspense? - Steve tentou não
demonstrar a incredulidade que sentia. Sabia que Kit tinha um ego saudável com relação a seu trabalho, mas não podia acreditar que ele e seus colegas realmente
pensassem que eram importantes o bastante para transformar alguém em um serial killer.
- Bom, isso me passou pela cabeça - admitiu Kit. - Não acho que seja tão fora de propósito assim, dadas as circunstâncias. Uma carta raivosa é fácil de descartar,
mas seis me incomodam um pouco. Fiquei pensando se você não poderia ligar para os seus colegas no outro lado do Mar da Irlanda e verificar se Jane Elias recebeu
uma dessas ameaças de morte.
- Kit, todos os jornais estão falando dessa história sobre o relacionamento de Jane Elias com o tal oficial da Guarda Siochána. Francamente, eu diria que isso tem
muito mais a ver com o assassinato dela do que qualquer outra coisa. Pelo que escutei, Pierce Finnegan fez um monte de inimigos no decorrer dos anos, tanto dentro
do QG quanto fora. Não há forma melhor de se atingir um policial do que pegar quem ele ama. Assim, não, não acho que você deva perder seu sono imaginando que alguém
possa estar atrás de você.
- Mas você pode ligar assim mesmo? Só para que eu e Fiona possamos tirar isso da cabeça? - Kit olhou para Steve por cima da borda da caneca. Se ele não fizesse
isso pela amizade, faria por suas curiosas noções de amor nobre. Kit poderia apostar nisso.
- Vou ver o que consigo descobrir - concordou Steve. Sabia que estava sendo manipulado, mas não estava com disposição para brigar contra isso.
Kit fez que sim, satisfeito.
- Isso é tudo o que eu queria escutar. Fiona disse que não acha provável que exista uma conexão, mas não tenho certeza se ela realmente pensa isso ou se está só
dizendo para não me assustar. Às vezes sinto que ela me considera uma florzinha frágil que precisa ser protegida do vento e da chuva.
Steve cuspiu a cerveja que tinha na boca sobre a mesa. - Pelo amor de Deus, Kit. Você é tão frágil quanto a ponte Forth. Antes que Kit pudesse responder, a paz
deles foi quebrada pelo aviso de que uma banda irlandesa ia começar a tocar. Kit terminou de beber a cerveja e se levantou.
- Vamos embora. Vamos para minha casa, são só dez minutos de canilnhada.
Nenhum dos dois notou o homem barbudo que havia se sentado nos fundos da livraria abandonar sua caneca meio cheia de Guinness e segui-los a uma distância segura.
Ele havia saído da livraria antes dos autógrafos e esperara pacientemente, sob uma marquise próxima, Kit e Steve saírem. Descera a rua atrás deles e, ao vê-los
entrar no pub, esperara do lado de fora por tempo suficiente para que os dois comprassem as bebidas e se sentassem. Em seguida, juntara-se a três outros homens
que seguiam para o pub, comprara uma cerveja para si e conseguira um lugar de onde via a cabeça de Kit e o perfil de Steve.
Agora, seguia os dois pelas ruas escuras, tomando cuidado em manter uma boa distância. Sorriu consigo mesmo. Sua cautela era perda de tempo. Os idiotas não faziam
ideia de que estavam sendo seguidos. Quando eles atravessaram um portão, parou e fingiu amarrar os sapatos. Em seguida, continuou a descer a rua, olhando de relance
para o lado ao passar pela casa onde os dois haviam entrado. Não conseguiu evitar sentir um espasmo de raiva invejosa ao notar a elegante residência. Se seu plano
desse certo, Kit não aproveitaria sua vidinha calma e confortável por muito mais tempo. Tinha planos de deixar as coisas bem menos confortáveis para o sr. Sanguinolento
Marfim
Ao entrarem em casa, eles encontraram Fiona terminando de comer o penne à la puttanesca que Kit deixara para ela.
- Vocês chegaram cedo - comentou Fiona. - A gente achou que podia tentar pegar você com seu amante secreto - brincou Steve.
Fiona mostrou-lhe a língua. - Tarde demais. Ela acabou de sair. - Os irlandeses invadiram o pub - falou Kit. - Você sabe como eu odeio aquela maldita música caipira.
- Pegou duas garrafas de cerveja preta Sam Smith Organic no armário de bebidas. - Portanto, decidimos voltar para casa e estragar a sua noite.
- Chegaram tarde demais para isso também. Salvador Berrocal me ligou mais cedo para dizer que encontraram outro corpo em Toledo; então, andei analisando os relatórios
sobre a cena do crime e inserindo os dados no computador em vez de me deliciar com um bom e longo banho de banheira.
Kit fez uma careta. - Que merda! - Como foi o evento? - perguntou Fiona. - Nada mal, se levarmos em conta que eu não estava promovendo um novo livro. Vendi
algumas cópias e autografei todos os exemplares que havia na livraria.
- Ele está sendo modesto de novo, Fi. Kit os tem na palma da mão. Eles o amam. Todas as mulheres querem levá-lo para casa, e os homens querem convidá-lo para uma
cerveja - interveio Steve, sentando-se de frente para ela.
- E vocês são os dois sortudos - falou Kit. - Em algum lugar da sua juventude, ou infância...
- Nós devemos ter feito algo terrivelmente grave.*6 - retrucou Fiona. - Como vão as coisas com você, Steve?
Ele balançou a mão como quem diz mais ou menos. - Tivemos sorte com um ataque racista em Brick Lane. Temos três suspeitos sob custódia, e um deles está cantando
como uma diva. Isso foi o que
6 Referência à música "Something Good", do filme A Noviça Rebelde: "So somewhere in my youth or childhoocV I must have done something good." No entanto, aqui, Fiona
faz uma brincadeira no final da estrofe, mudando um pouco o sentido. (N. T.)
aconteceu de melhor. Blake ainda não voltou da Espanha, mas demos uma olhada nas finanças dele e não há nada que indique nenhuma chantagem. O único depósito substancial
em sua conta bancária provém da venda da história para os jornais. Ele retirou uma boa parte dessa quantia em dinheiro, que provavelmente está gastando na Espanha.
- Malditos tabloides. Deixam a gente enojado - comentou Kit. Fiona suspirou: - Tecnicamente, ele é inocente. Não há nada que os impeça de pagar a ele pela história.
- Ele não é inocente se testemunhou Susan Blanchard ser morta e não disse nada - protestou Kit.
- Não temos certeza disso. É apenas minha teoria. - Ela lembrou-lhe. Ao ver que ela havia acabado de comer, Steve pegou um charuto e o acendeu.
- Mas eu segui meu próprio conselho e passei em revista as testemunhas de novo.
- Alguma sorte? - perguntou Fiona. - Bom, ainda é cedo para dizer, mas talvez haja algo. Reli as declarações originais e percebi que uma mulher mencionou ter visto
um ciclista vindo da direção da cena do crime. Ela estava passeando com o cachorro, e percebeu o ciclista porque ele estava indo muito mais rápido do que o normal
para as bicicletas no Heath. A gente não verificou isso na época porque Blake logo surgiu como um forte suspeito.
Fiona franziu o cenho. - Lembro de ter percebido isso quando ainda estava oficialmente no caso. Acho que cheguei a mencionar o fato em meu relatório preliminar
- disse, pensativa.
- Pois então você a interrogou de novo? - perguntou Kit. - Fui vê-la pessoalmente - admitiu Steve. Ele levantou as mãos para impedir o protesto de Fiona. - Sei
que é patético, um detetive da minha estirpe tomar o depoimento de uma testemunha, e sei que devia ser capaz de delegar o trabalho, mas, se ferrarmos com tudo
de novo e eu tiver que arcar com as consequências, pelo menos serão as consequências dos meus próprios atos.
- E o que ela disse? - indagou Fiona.
- A mulher não tinha muito a acrescentar. Ela já tinha passado da área onde ocorreu o assassinato e se culpa porque estava usando um walkman. Está convencida de
que, se não estivesse escutando o Réquiem de Mozart, teria ouvido alguma coisa e poderia ter soado o alarme. De qualquer forma, dez minutos depois, uma bicicleta
passou por ela em alta velocidade. Ela notou o fato em parte porque não é permitido andar de bicicleta naquela área do Heath àquela hora, embora algumas pessoas
desrespeitem as regras. Mas o que realmente chamou sua atenção foi a velocidade. Ele parecia um alucinado, disse ela.
Fiona suspirou:
- Então, sem chances de conseguirmos uma descrição decente. Steve fez que não.
- Infelizmente, não. Ela apenas o viu de costas e não conhece nada a respeito de bicicletas, portanto não sabia dizer nem se era uma bicicleta de corrida ou uma
mountain bike. Ela lembra que ele estava de capacete e usava roupas de ciclista. Bermuda preta e uma camiseta escura. Talvez roxa ou azul-marinho, ou marrom.
- Isso facilita muito as buscas - ironizou Kit. - Contudo... - Steve ergueu um dedo e sorriu. - Ela concordou em ser hipnotizada para ver se tem algo mais em seu
subconsciente sobre esse ciclista. Além disso, quando entrevistamos de novo as outras testemunhas que se apresentaram e perguntamos se tinham visto algum ciclista
naquele dia, conseguimos mais um resultado. Uma babá estava sentada ao pé do mono quando ele passou por ela. Ela disse que ele estava indo tão rápido que achou
que não fosse conseguir fazer a curva, mas ele conseguiu e continuou em direção à saída para a Heath Road.
- Como vocês deixaram isso passar na primeira vez? - perguntou Kit, sempre disposto a colocar Steve numa situação difícil, apesar da amizade entre eles.
Steve pareceu envergonhado. - Ela é filipina. Seu inglês é ótimo, mas não é sua língua materna. Quando falamos com ela antes, não tínhamos um tradutor. O detetive
que conduziu a entrevista preliminar achou que ela não tinha nada de útil a acrescentar, portanto não se incomodou em marcar uma segunda entrevista com um tradutor.
Dessa vez, fizemos direito.
- E você conseguiu algo de útil agora? - quis saber Fiona. Steve tomou um longo gole direto da garrafa e fez que sim.
morinc Ela lembra aue ele estava usando óculos, capacete e roupas escuras. Acha que era uma mountain bike. Disse que parecia com a que seu patrão tem. Identificamos
o fabricante e o modelo, embora ela possa estar enganada, é claro. - É uma boa memória depois de todo esse tempo - ponderou Fiona.
- Quanto tempo levou para ela se lembrar de tudo isso?
- Foi bem rápido - respondeu Steve, com certa amargura. - Assim que perguntamos sobre o ciclista, ela começou a sacudir a cabeça de maneira afirmativa e ficou
bastante excitada. Disse que havia tentado contar ao policial que a entrevistara antes, mas, tão logo ele percebeu que ela não tinha visto Blake, perdeu o interesse.
Em nossa defesa, preciso dizer que ela não respondeu à primeira convocação das testemunhas. Ela levou dez dias ou mais para se apresentar. Seus patrões estavam
viajando na semana do assassinato, e ela se sentiu nervosa em ir até a polícia sem a permissão deles. Então, quando finalmente conversamos com ela, Blake já se
tornara o principal suspeito. - Não é uma boa defesa - comentou Kit. - E você tem a audácia de
ficar irritado quando insiro um detetive palerma em meus livros de vez em quando. Tudo bem, mas e agora?
Steve brincou com seu charuto. - Estou tentado a falar com Blake e pedir a ele que dê uma declaração como testemunha.
Kit quase se engasgou com a risada. - Já posso até imaginar a declaração dele. Aposto que ela vai conter as palavras "sai" e "fora".
Steve deu um soco de brincadeira no ombro do amigo. - Não meça as palavras, Kit, diga-nos o que realmente pensa. Ignorando-os, Fiona falou de modo pausado: -
Você precisaria tomar muito cuidado. A posição de vocês perante o público é de que não estão procurando ninguém no momento. Se você convocar Blake para um interrogatório,
ele poderia facilmente declarar assédio, uma vez que, como você próprio admitiu, o caso está fechado. E, se vocês tentarem se defender dizendo que ainda estão
interrogando possíveis testemunhas,
irão alertar o verdadeiro assassino. Ele saberá que está sendo procurado com mais vigor do que antes.
- Mas teríamos como comparar o que temos com o que Blake vier a nos dizer - argumentou Steve.
- Acho que Kit está certo. Ele não vai lhes dizer nada de útil - observou Fiona, fazendo que não. - Ele tem muito a perder se tiver realmente testemunhado o assassinato.
- Ela usou os dedos para enumerar os argumentos. - Primeiro, ele se arrisca a ser acusado por obstrução da justiça, já que não revelou o que sabia durante todo
esse tempo. Segundo, perde a chance de chantagear o assassino caso saiba a identidade dele. Terceiro, perde a força de sua fantasia secreta. E quarto, perde o
protesto público de inocência que já lhe garantiu uma boa soma em dinheiro por parte dos jornais, e o restante que virá com a indenização que irá receber do Ministério
do Interior.
- Então, se fosse você, o deixaria em paz - resumiu Steve. Fiona ergueu as sobrancelhas. - Eu não disse isso. Só falei que não o interrogaria a respeito do assassinato.
Steve sorriu. - Por outro lado, se a divisão de tráfego descobrir que Blake atravessa a King's Cross a 50 quilômetros por hora, vai querer checar se ele não andou
bebendo...
Kit fez que não, fingindo sofrimento. - Isso seria assédio - observou. - Só se não soubermos fazer direito. E pretendo vigiá-lo de perto quando ele voltar para
casa.
Fiona meneou a cabeça em aprovação. - É uma chance remota, mas ele talvez os leve direto ao assassino. Steve ficou sério. - Já vi chances mais remotas darem resultado.
Acreditem em mim: se Francis Blake tiver algo a esconder, vou descobrir.
25.
Steve colocou o telefone no gancho e fez uma anotação em seu bloquinho. Um pouco mais cedo, falara com o oficial da guarda responsável pela investigação do assassinato
de Jane Elias e, ao desligar, ficara esperando para ver se o homem retornaria. O investigador prometera uma resposta o mais rápido possível, embora tivesse ressaltado
que só no escritório de Elias havia centenas de cartas e milhares de folhas de papel. No entanto, eles já tinham uma equipe trabalhando nisso. Por fim, o oficial
ligou para informar que, até então, não haviam encontrado entre os papéis de Elias nenhuma carta semelhante à que Kit, Georgia e seus outros colegas tinham recebido.
Essa resposta não era conclusiva, é claro. Ela poderia tê-la jogado no lixo ou a queimado na lareira de sua sala de estar. Contudo, nenhuma carta fora encontrada
junto com o corpo e nem a guarda recebera nenhuma comunicação por escrito de um suposto assassino. Não havia nada que indicasse qualquer conexão entre o autor
das cartas e o assassino de Jane Elias. Steve ficou feliz em poder dar uma boa notícia a alguém; gostaria que pudessem fazer o mesmo por ele.
Ele bocejou e se espreguiçou, abrindo tanto os braços que os ombros estalaram. Estava longe de ser o único oficial na Scotland Yard atrás de sua mesa às nove horas
da noite. No entanto, quase todos os que estavam ali e que não faziam parte do turno da noite estavam bem abaixo do cargo de detetive superintendente. O fato,
porém, lembrou-se com arrependimento e
autopiedade, é que a maioria tinha família esperando por eles em casa. Já aceitara há muito tempo que provavelmente jamais alcançaria esse estágio de felicidade.
A ferocidade de seu amor não declarado - pois sabia que não era correspondido - por Fiona o tirara do mercado, ainda que de modo involuntário, durante os anos
cruciais de sua juventude, quando todos os seus amigos haviam assumido seus primeiros relacionamentos.
Steve sublimara sua paixão platônica com a ajuda do trabalho e, quando, por fim, percebeu certo dia que o laço de amizade entre eles era, afinal, suficiente, deu-se
conta de que organizara sua vida de tal forma que já não havia tempo, energia ou oportunidade para construir o tipo de relacionamento que o deixaria satisfeito.
Só que ultimamente vinha pensando muito nisso.
Muitos dos amigos que tinham se casado há 12 anos ou mais estavam solteiros de novo. E poucos pareciam permanecer assim por muito tempo. Talvez aos 38 anos ainda
não fosse tarde demais. Quem sabe não havia chegado a hora de embarcar numa típica vida de solteiro novamente? Se Francis Blake persistisse em sua intenção declarada
de processar o Ministério do Interior, era bem possível que eles precisassem encontrar um bode expiatório entre os altos oficiais. Como resultado, ele poderia acabar
com muito tempo livre nas mãos. Sabia que, se os chefes decidissem que era ele quem deveria levar a culpa publicamente, corria o risco de, no mínimo, ser afastado
de sua posição, transferido para áreas em que não tivesse um envolvimento direto com o público e os desafios profissionais fossem mínimos. Sem um trabalho que lhe
exigisse tanta dedicação, teria tempo de sobra para preencher. Não tempo para matar, mas para crescer.
Por outro lado, talvez ainda pudesse encontrar a chave para desvendar o mistério do assassinato de Susan Blanchard. Embora fosse assombrado pelo sonho de uma vida
de casado, talvez até mesmo com filhos, a satisfação de um trabalho bem-feito era algo que desejava mais ardorosamente, uma vez que já experimentara esse êxtase
tantas vezes. Sabia que podia senti-lo de novo, e nunca se cansava disso.
Com um suspiro, Steve fechou o arquivo sobre Francis Blake. Já o lera e relera uma dúzia de vezes na semana anterior, mas não estava com a sensação de ter deixado
algo passar, nem nenhuma intuição que lhe dissesse onde poderia encontrar a próxima pista. Gostaria que o conselho de Fiona não tivesse corroborado seus próprios
instintos sobre como Blake reagiria.
Pelo menos, forçar um bronzeado e insolente Francis Blake a dar um depoimento como testemunha lhe proporcionaria algo com o que atacar. Ela, entretanto, estava
certa. O único motivo para ele querer falar com Blake era o desejo de deixar um homem que desprezava desconfortável.
Pensar em Fiona no contexto daquele caso acendeu uma pequena chama de ódio dentro dele. Se ao menos eles tivessem podido continuar trabalhando juntos, ele não
estaria naquela confusão agora. O pensamento despertou uma lembrança enterrada. Steve pôs-se de pé num pulo e atravessou a sala até o armário de pastas. Logo no
começo do caso, Fiona esboçara um perfil resumido com algumas sugestões de rotas de investigação. Em meio ao caos daquela época, Steve se esquecera completamente
disso, até ela mencionar esse fato na noite anterior, enquanto eles conversavam sobre o ciclista.
Steve deixou os dedos percorrerem as pastas, tentando se lembrar de onde o colocara. Na segunda tentativa, encontrou o que estava procurando. O arquivo com os
dizeres "relatório preliminar de FC" escrito em caneta pilot preta estava no canto superior direito de uma pasta bege de papel manilha. Steve sorriu e o puxou.
Ele era dolorosamente fino, motivo pelo qual não o notara logo de cara. Abriu-o e começou a ler o texto preciso e familiar de Fiona. Como sempre, ela não identificara
o caso pelo nome, uma vez que não confiava totalmente na segurança do computador da universidade.
Caso SP/35/FC
A vítima e a cena do crime podem ser classificadas como pertencentes a grupos de baixo risco. Ela era uma mulher casada "respeitável", acompanhada por seus dois
filhos gêmeos, e, segundo seu círculo de amigos e familiares mais imediatos, nunca teve nenhum tipo de envolvimento criminal. A cena do crime é um local público,
um lugar com um número razoável de frequentadores, onde há poucas coisas que os distraia do que está ocorrendo em suas imediações. O crime aconteceu em plena luz
do dia, a poucos metros de uma rua bem movimentada. Hampstead Heath é considerado um dos parques mais seguros da capital durante o dia, relativamente bem policiado
e sem uma reputação de ataques sérios ou atividades que envolvam drogas.
Isso significa, por outro lado, que o criminoso assumiu um grande risco ao executar seu plano. O que indica um grau elevado de maturidade e sofisticação ou um desprezo
temerário pelas consequências de seus atos.
Contudo, se examinarmos a natureza do crime em si, torna-se claro que não foi um ataque oportunista nascido de um impulso momentâneo. A arma usada no crime -
uma faca com lâmina comprida - deve ter sido levada pelo criminoso até a cena; o ataque ocorreu numa das poucas áreas de fácil acesso, porém bastante escondida
do Heath, o que denota certo grau de premeditação; e é possível, dado o depoimento da testemunha 1276/98/STR que ele tenha ido até lá equipado com um veículo
de fuga, a dizer, uma bicicleta. Como consequência, sinto-me inclinada a sugerir que estamos procurando por um homem com um alto grau de confiança em suas habilidades.
Tal maturidade criminal provém única e exclusivamente da experiência. Embora ele talvez nunca tenha matado antes, há grandes chances de que já tenha cometido sérios
ataques sexuais. Caso ele possua uma ficha criminal, a probabilidade é que ela tenha começado com incidentes de voyeurismo ou exibição de genitália em público,
passado para ataques sexuais leves até chegar ao estupro. Contudo, é bem possível que ele tenha conseguido driblar a polícia e não possua nenhuma ficha.
Eu recomendaria, portanto, uma revista cuidadosa dos casos solucionados e não solucionados de estupro e ataques sexuais sérios nos últimos cinco anos, no intuito
de estabelecer uma conexão criminal que possa nos levar a um suspeito. Os principais fatores aos quais devemos estar atentos são:
1. Crimes que tenham ocorrido ao ar livre - as pesquisas indicam que os estupradores tendem a cometer seus crimes em recintos fechados ou ao ar livre, raramente
misturando os dois.
2. A maioria dos estupradores tende a cometer seus crimes contra membros do mesmo grupo étnico, embora isso possa variar. Uma vez que a vítima aqui é branca e
loura, há grandes chances de que suas vítimas anteriores apresentem características semelhantes.
3. Ele não se sentiu incomodado pela presença de crianças pequenas. Isso talvez até mesmo lhe proporcione um elemento de satisfação a mais. Logo, quaisquer incidentes
que incluam a presença de crianças e que se enquadrem nos padrões acima apresentam uma probabilidade ainda maior de estar entre seus crimes anteriores.
4. Delitos em que o criminoso fugiu de bicicleta. Se isso já funcionou para ele no passado, há grandes chances de que tenha repetido o processo.
5. Crimes em que o criminoso usou ou ameaçou usar uma faca. Está claro que ele deve ter levado a faca consigo para o Heath; portanto, ela deve fazer parte de suas
atividades anteriores. Com os resultados dessa pesquisa, talvez seja possível estabelecer o agravamento das agressões por meio de conexão criminal e, consequentemente,
desenvolver um perfil geográfico que possa levar à identificação de um suspeito válido.
Como sempre, Fiona fora sucinta e tinha ido direto ao ponto, pensou Steve. E, como ela generosamente deixara de lembrá-lo na noite anterior, percebera logo de
cara o possível significado da bicicleta. Ao final do relatório formal, Fiona havia anexado um pequeno recado com sua letra clara e miúda. Eu sei, dizia o recado,
que duas testemunhas declararam ter visto um homem correndo próximo à cena do crime. Não acho que este seja o seu assassino. Quem quer que tenha cometido o crime
estava suficientemente bem preparado para não arriscar uma fuga que chamasse tanta atenção. Se eu tivesse de apostar meu pescoço, diria que o ciclista misterioso
- que, até onde posso ver pelas declarações, não se apresentou para confirmar que estava no Heath na hora do crime - é um suspeito muito mais plausível. Conversamos
em breve. E
Embora o caso de Susan Blanchard estivesse oficialmente arquivado, Steve conseguira persuadir seu chefe a lhe conceder uma pequena equipe para dar continuidade
às investigações, o que ninguém admitiria publicamente, a menos que elas resultassem num culpado que pudesse substituir Francis Blake com credibilidade aos olhos
do povo e do Ministério Público. Steve contava com um inspetor e dois detetives trabalhando com ele em tempo integral, assim como um mar de boa vontade por parte
dos oficiais que o haviam ajudado na investigação original.
Revendo mentalmente o que os membros de sua equipe estavam fazendo, Steve decidiu usar a detetive Joanne Gibb para passar em revista os registros. Joanne era uma
pesquisadora meticulosa e hábil no estabelecimento de relações com oficiais tanto de outras divisões quanto de fora da Polícia Metropolitana. Ele já a vira amaciar
e seduzir oficiais hostis de outras forças, fazendo-os deixar de lado o ressentimento pelo fato de a Scotland Yard estar se intrometendo em seu caminho. Ninguém
seria mais
perseverante no rastreamento de casos com modus operandi similares aos sugeridos por Fiona; não havia ninguém melhor para extrair os detalhes de outros investigadores.
Steve copiou com cuidado os parâmetros que Fiona havia formulado e deixou um bilhete para Joanne começar o trabalho na manhã seguinte. Espreguiçou-se com prazer,
tanto aliviado quanto energizado por ter algo positivo em vista. Hoje à noite talvez dormisse bem, em vez do sono fragmentado e agitado que vinha tendo ultimamente.
Levantou o corpo esguio da cadeira e pegou a jaqueta do cabide pendurado num gancho que ele próprio havia colado na lateral do armário de pastas, logo atrás de
sua mesa. Funcional, porém não esteticamente belo, como tantas coisas em sua vida, algo que Fiona já ressaltara mais de uma vez desde o início da amizade deles.
Se ele tivesse o estilo de Kit, talvez as coisas pudessem ter sido diferentes, pensou, batendo no bolso para verificar se estava com as chaves. Não fazia sentido
especular, decidiu. Para ter o estilo de Kit, teria de ser um homem diferente. E um homem diferente talvez não tivesse usufruído as recompensas de uma amizade
estável com Fiona, como acontecera com ele.
A dois passos da porta de saída, o telefone de sua mesa tocou. Steve hesitou por um momento, mas se virou em seguida.
- Steve Preston - atendeu. - Superintendente Preston? Aqui quem fala é o sargento Wilson. Acabamos de receber um fax da polícia espanhola. Francis Blake reservou
um voo para amanhã de manhã, de Alicante para Stansted. Ele deve pousar às 11h45. Achei que gostaria de saber o mais rápido possível.
- Obrigado, sargento. Temos os detalhes do voo? - Está tudo no fax. Mandarei alguém entregá-lo ao senhor. - Não se preocupe, eu o pegarei quando sair. - Steve
desligou o telefone e permitiu-se um sorriso. Agora tinha duas linhas de investigação para o dia seguinte. Enquanto Joanne pesquisava em busca de rastros do assassino,
o inspetor John Robson e o detetive Neil McCartney vigiariam a pessoa que talvez os levasse ao mesmo homem.
Sem dúvida, uma guinada para melhor, pensou Steve, com os ombros nitidamente empertigados ao rumar para a porta pela segunda vez.
Aquele era o lugar que importava. Aquele era o lugar sagrado, o sítio do sacrifício onde a moralidade se tornava palpável. Tudo ali fora escolhido a dedo. Nada
era acidental, exceto o formato da sala, sobre o qual não podia fazer nada. Havia uma janela, mas ele a cobrira com uma folha de compensado e depois a emassara
com cuidado para deixar a parede completamente lisa. Apenas a porta interferia no equilíbrio perfeito do aposento. Isso, contudo, era aceitável. Ela garantia uma
simetria à sala, da mesma forma como o corpo humano se mostrava simétrico em torno da coluna cervical.
Ele forrara o interior com papel de parede. O papel que queria deixara de ser fabricado anos antes, mas isso não tinha importância. Fizera uma cópia em estêncil
do padrão de folhas estilizadas que descia em tiras pelas paredes, usara uma tinta especialmente preparada para reproduzir os tons exatos de verde, tal como se
lembrava, e, com bastante cuidado, conseguira uma cópia perfeita. Em seguida, cobrira o papel com uma camada fina de verniz náutico incolor para que qualquer respingo
ou mancha pudesse ser limpo sem danos. Isso, pensou, era uma melhoria que podia fazer para seu conforto.
O piso fora fácil. Havia comprado os tacos antigos em uma loja de produtos de demolição. Madeira de bordo, o vendedor lhe dissera. Dos escritórios de uma antiga
fábrica de lã no caminho para Exeter. Ele levara algumas noites para arrumá-los o mais parecido possível com o arranjo original, o que tinha sido uma tarefa mais
entediante do que na verdade desafiadora.
A luminária viera de um brechó na Taunton Road. Ela havia sido sua primeira aquisição, o item que, na verdade, lhe dera a ideia de construir aquele lugar mágico.
Poderia muito bem ser a original, tamanha a semelhança de suas três cúpulas de vidro fosco com aquela de que se lembrava. Ao olhar para ela na loja sombria, tivera
a ideia de ressuscitar o lugar, reconstruí-lo tal como fora e fazer dele um templo para seus desejos obscuros.
A mobília era singela. Uma mesa simples de madeira de pinho, embora as marcas sobre sua superfície fossem diferentes das que lhe vinham à memória. Quatro cadeiras
com o espaldar arredondado, também de pinho, o topo dos encostos ligeiramente mais escurecidos devido ao uso de mãos para afastá-las e aproximá-las da mesa. Outra
mesinha para jogo de cartas coberta com um feltro verde desbotado, onde estavam arrumadas as ferramentas de sua vocação, o aço reluzente brilhando sob a luz. Bisturis,
um cutelo de açougueiro, um pequeno serrote e uma pedra de amolar para que todos estivessem sempre bem afiados. Sob a mesa havia uma pilha de bandejas de poliestireno
para carnes, de vários tamanhos, e um rolo de filme plástico de tamanho industrial.
O assassinato ocorria em outro lugar, é claro. Não importava onde. Isso era irrelevante para o significado do ritual. O método era sempre o mesmo. Estrangulamento
por laço era o termo oficial, ele sabia. Mais confiável do que o uso das mãos, que poderiam escorregar e deslizar sobre a pele devido ao suor gerado pelo medo.
O principal motivo para a escolha dessa forma de matar é que ela não causava traumas ao corpo. Matar a facadas ou a tiros criava uma enorme sujeira, destruindo
a perfeição que ele desejava.
Em seguida, vinha a limpeza. Nu para se colocar à altura do sacrifício, ele inseria o corpo despido em água morna e abria as veias a fim de permitir que o máximo
possível de sangue escorresse para fora. Não queria feias manchas arroxeadas estragando a aparência de sua oferenda. Depois disso, esvaziava a banheira para tornar
a enchê-la. O corpo era então cuidadosamente purificado com sabonete sem perfume, as unhas escovadas, os fluidos de morte lavados, todas as impurezas purgadas.
Por fim, podia dar início ao trabalho. Uma vez começado o processo, não podia perder tempo. O rigor mortis começaria em cinco ou seis horas após a morte, o que
tornaria seu trabalho mais difícil e menos preciso. O corpo deitado sobre a mesa, lívido como uma estátua, era sua oferenda ritual aos estranhos deuses da obsessão
que há tantos anos aprendera ser preciso aplacar.
Primeiro a cabeça. Os tendões e as complexas estruturas do pescoço foram cortados com uma lâmina tão fina que a marca deixada não era mais espessa do que a linha
desenhada por um lápis. Trocou então o bisturi pelo cutelo, a fim de separar o crânio da primeira vértebra. Colocou a cabeça de lado, daria atenção a ela mais
tarde. Em seguida fez uma incisão em Y, tal como um legista. Puxou a epiderme para trás, virando o corpo com cuidado para poder soltar toda a pele, do pescoço
até os dedos dos pés, e removê-la como se fosse um macacão de mergulho até revelar um cadáver semelhante a uma ilustração de anatomia. A pele removida foi jogada
num balde a seus pés.
A seguir, enfiou as mãos na massa ainda morna da cavidade abdominal, levantando com delicadeza os intestinos e os outros órgãos internos antes de desprendê-los
e arrumá-los em uma pilha ao lado do corpo. Cortou o diafragma e cuidadosamente retirou o coração e os pulmões, colocando-os de forma simétrica do outro lado do
tórax. Passou aos pulsos. Cortou-os de modo preciso, sem se incomodar com a desarticulação. Sua carreira como açougueiro lhe proporcionara todas as habilidades
básicas, as quais, acreditava piamente, havia refinado até se transformarem numa arte. Nunca o corpo humano fora tão perfeitamente dissecado, ou com tamanha reverência.
Os pés eram os próximos. Depois os cotovelos e os joelhos, seguidos pela separação do restante dos membros superiores na altura dos quadris e dos ombros. Agora
trabalhava com rapidez e precisão, dividindo o torso com os movimentos eficientes de um especialista à vontade em sua especialidade. O tempo passou voando enquanto
suas mãos trabalhavam de maneira metódica, até que só restou um monte de carne em pedaços, e a cabeça virada para fora na ponta da mesa. Agora sua excitação atingia
o auge, seu coração batia com força e ele estava com a boca seca. Com um leve gemido, pegou seu próprio pênis com as mãos ensanguentadas e, com cuidado, o meteu
na boca aberta como um totem à sua frente. Segurando a cabeça pelos cabelos, começou a dar estocadas no orifício; um tremor de êxtase percorreu-lhe o corpo.
Liberada a paixão, apoiou os punhos sobre a mesa e inclinou-se para a frente, a respiração pesada como a de um maratonista ao atingir a linha de chegada. O sacramento
terminara. Só faltava despojar-se dos restos.
Para a maioria dos assassinos, isso apresentaria problemas insuperáveis. Se Dennis Nilsen tivesse conseguido desenvolver um meio mais prático de se
livrar de suas vítimas, provavelmente teria passado muitos anos reduzindo as estatísticas de desabrigados.
No entanto, para o dono de um açougue que vendia carnes no atacado, essa questão era simples. Ele possuía dúzias de congeladores cheios de pacotes de carne. Mesmo
que alguém conseguisse arrombar os cadeados do freezer que seus empregados sabiam conter seu estoque particular, não veria nada mais suspeito do que dúzias de
pacotes de carne congelada. Felizmente, a carne humana parecia com qualquer outra, uma vez em pedaços.
26.
Para Fiona, o entardecer em Hampstead Heath nunca perdera sua magia, especialmente naquela época do ano. No começo de outubro, após um verão quente, a luz do dia
realçava a poeira que cobria as folhas outonais, os tons desbotados da grama, o cinza árido da terra. No entanto, à medida que o pôr do sol ia pintando o céu
de um vermelho rosado, as cores adquiriam riqueza e profundidade, proporcionando um forte contraste com a cidade que se estendia lá embaixo.
Ao contrário do Heath, as ruas londrinas perdiam definição sob a luz do crepúsculo. O sol se pondo refletia-se em algumas janelas dos prédios mais altos, feixes
de fogo matizando a massa cinzenta amorfa como sinapses produzindo centelhas no cérebro. Não era o cenário selvagem e variado das montanhas de Derbyshire, não adiantava
querer forçar a imaginação, mas ele a lembrava que tais lugares não apenas existiam, como faziam parte de seu mapa mental, estavam ali para serem resgatados sempre
que preciso. Isso lhe garantia uma espécie de conforto. Na semana desde que lera a notícia sobre a morte de Jane Elias, Fiona fora até o Heath pelo menos uma
vez ao dia. Agora se encontrava sentada num banco no topo do Parliament Hill, feliz em não fazer nada mais complicado do que ficar observando as pessoas por um
tempo.
Conhecia de vista alguns dos frequentadores, de suas caminhadas pelo parque; pessoas passeando com cachorros; gente correndo; uma turma de
garotos skatistas prestes a entrar na adolescência; duas senhoras que moravam na sua rua e que, ao cruzarem por ela em uma marcha rápida, cumprimentaram-na com
um aceno de cabeça; a assistente do livreiro praticando sua marcha atlética. Havia outros que ela nunca vira antes. Alguns eram obviamente locais, entretidos em
conversas com seus parceiros ou filhos, os pés decidindo, de maneira automática, a nova direção em cada entroncamento do caminho. Outros eram visivelmente turistas,
agarrados a mapas e franzindo o cenho em seu esforço para identificar pontos de referência na cidade abaixo. Outros ainda recusavam-se a ser inseridos em qualquer
categoria, seus ritmos em algum lugar entre uma caminhada despreocupada e uma marcha intencional.
Em qual categoria o assassino de Susan Blanchard se enquadrava?, pensou Fiona. Subitamente alerta, ela se perguntou o que despertara esse pensamento. Não era como
se não visitasse o Heath regularmente desde o assassinato, muito embora tivesse evitado passar pelo caminho da cena do crime. Mas por que esse pensamento lhe vinha
à mente agora?
Fiona analisou o caminho em ambas as direções, convencida de que havia visto algo ou alguém que, de forma subconsciente, despertara os pensamentos sobre o assassino.
Não podia ser o casal de trinta e poucos anos, o homem com o bebê preso ao peito. Tampouco o sujeito de meia-idade com seu labrador preto. Nem as duas adolescentes
de patins rindo de alguma piada. Intrigada, ela olhou em torno.
Ele estava agachado em um buraco a cerca de 45 metros de distância, talvez a uns 6 metros da pista. À primeira vista, parecia apenas mais um corredor. Bermuda
leve de ginástica, camiseta e tênis. Contudo, ele não parecia ofegante, como alguém que tivesse subido correndo o morro inevitavelmente estaria. Nem estava olhando
a vista. Não, ele estava observando as duas garotas patinando em círculos num dos grandes entroncamentos das pistas, as vozes esganiçadas pelo riso, lançando insultos
uma à outra.
Quando as garotas se afastaram e sumiram atrás de um grupo de arbustos, saindo de seu campo de visão, ele se levantou e olhou para trás a fim de ver quem mais
estava vindo. Por alguns minutos, ninguém pareceu capturar sua atenção. Então surgiu um casal de adolescentes de braços dados, a garota com a cabeça apoiada sobre
o ombro do namorado. Imediatamente,
o homem assumiu uma posição de alerta. Enfiou as mãos nos bolsos e se agachou de novo. Fiona observou o garoto e a menina até eles sumirem de vista, em seguida
se levantou e deu alguns passos na direção do homem. Olhou para ele de maneira ostensiva e pegou o celular. Assim que ele percebeu o que ela estava fazendo, empertigou-se
e começou a descer correndo o morro em direção à trilha que serpeava em meio aos arbustos densos.
Fiona abaixou o telefone. Não tinha a menor intenção de ligar para a polícia, só queria que ele imaginasse que era isso que ela estava fazendo. O que ela ia dizer
afinal? Que havia um homem aparentemente interessado em observar garotas adolescentes? Ele não fizera nada de ameaçador, nada fora do comum, nada que não pudesse
ser explicado em tons de protesto raivoso. Até mesmo sua partida súbita poderia ser facilmente justificada; ele havia parado a corrida um pouco e se sentia descansado
o suficiente para continuar. Por mais inofensivo que esse comportamento pudesse parecer, tinha sido o bastante para deixar Fiona com as antenas ligadas. Não que
ela suspeitasse de que ele fosse algo mais do que um simples e tímido voyeur. Mas isso a fizera lembrar que o assassino de Susan Blanchard devia ter averiguado
o local do crime com cuidado antes de atacar. Ele poderia ter andado pelo terreno, em vez de passar de bicicleta, absorvendo cada detalhe do cenário, planejando
sua rota de fuga, selecionando a vítima. Ele talvez tivesse sido sofisticado o suficiente para disfarçar completamente suas intenções, mas Fiona duvidava disso.
Imaginou onde ele estaria agora. O desejo de matar de novo devia ser muito forte, ponderou ela. Por onde ele estaria andando agora? Que tipo de reconhecimento estaria
fazendo? Como ele escolheria o próximo local? Será que voltaria ao Heath? Ou tentaria outro lugar nas proximidades? O cemitério Highgate? O Alexandra Palace? Ou
será que ele conhecia a cidade bem o suficiente para tentar um lugar mais distante? Onde ficavam os limites de seu mapa mental? Ela conhecia os limites impostos
por sua psique; esses eram evidentes em suas ações. Mas quais seriam seus limites geográficos?
Perguntas sem resposta acumularam-se na mente de Fiona, destruindo a paz que ela viera buscar no Heath após um dia cansativo de trabalho. Estava na hora de voltar
para casa pelas ruas com prédios imponentes de
estuque encardido e tijolos amarelados e sujos, que adquiriam um ar sombrio sob a luz alaranjada dos postes. Hora de aproveitar seu próprio prazer "voyeurístico"
em olhar de relance para as janelas acesas pelo caminho, saboreando vislumbres da vida alheia que se apresentavam em breves cenas captadas por sua visão periférica.
E, é claro, o sentimento de superioridade que não conseguia abafar ao perceber um interior particularmente brega.
- Vá fazer algo de útil, sua infeliz - murmurou consigo mesma ao notar uma sala de estar recentemente decorada que incorporava três padrões gritantes de papel
de parede. Fez uma anotação mental para comentar isso com Kit depois.
Assim que abriu a porta da frente, o telefone começou a tocar. Fiona foi correndo até a cozinha e o atendeu no quarto toque:
- Alô? - Dra. Cameron? - A voz apresentava um pequeno eco, como acontece algumas vezes com celulares.
- Major Berrocal? - perguntou, em dúvida. - Si. Sinto muito perturbá-la em casa, mas fizemos alguns progressos que achei que a senhora gostaria de saber.
- Não, tudo bem, não tem problema. O senhor encontrou Delgado? - Enquanto falava, Fiona tirou a jaqueta e pegou um bloquinho e uma caneta que mantinha ao lado
do telefone.
- Não exatamente. Mas encontramos o lugar onde achamos que ele estava se escondendo.
- Isso parece um bom progresso. - Si. E foi graças a sua ideia. - Ele estava vivendo num mausoléu?... numa tumba? - Fiona sentiu uma pontada de orgulho gratificante.
- Não exatamente, não. Tem um cemitério grande no norte da cidade que se enquadra na sugestão que a senhora fez. Persuadimos a polícia local a fazer uma busca
nele. Como eles não encontraram nenhum sinal de tumba arrombada, chegaram à conclusão de que éramos completamente loucos e que Delgado não estava lá. Mas um dos
meus oficiais, ele é o que minha mulher chama de buldogue farejador, voltou lá hoje.
- E ele encontrou alguma coisa? - quis Fiona saber logo.
- Si. Tem um pequeno barraco que costumava ser usado pelos coveiros para guardar as ferramentas. O barraco estava vazio há alguns anos, mas meu oficial percebeu
que os pregos que prendiam as tábuas nas janelas estavam soltos. Ele entrou e descobriu o que acreditamos ser o acampamento de Delgado. Havia comida, água, um
saco de dormir e algumas roupas. Comparamos as impressões digitais com as encontradas nas coisas do apartamento de Delgado, e elas batem perfeitamente.
- Então o senhor sabe que ele esteve lá. - Si. Coloquei alguns homens vigiando o cemitério, mas temo que ele não vá retormar. Uma fruta encontrada na cabana estava
começando a apodrecer. Acredito que ele tenha visto os policiais fazendo a busca, e agora não vai mais voltar para lá.
-Imagino que isso seja uma grande decepção para o senhor-respondeu Fiona. - Tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe.
- Perto, mas não deu em nada. Acho que ele vai fugir agora, não? Fiona pensou por alguns instantes. - Não acredito que ele vá entrar em pânico. Até o momento,
suas reações demonstram um forte controle. Ele conhece bem a cidade e a área em torno. Provavelmente já tem outro esconderijo em mente.
Berrocal soltou um rosnado sutil. - Tenho medo de que ele se sinta encurralado e resolva partir para uma última explosão de glória. Algo espetacular. Ele não tem
mais nada a perder. Sabe que nós sabemos que ele é o assassino. Talvez sua única esperança seja conseguir provar seu ponto de vista uma última vez, de forma dramática.
- O senhor está pensando numa chacina? Um massacre? - perguntou Fiona.
- É o que eu temo - confirmou Berrocal. Fiona suspirou: - Não consigo me lembrar de nenhum caso em que um serial killer tenha partido para homicídios em massa.
Mas, por outro lado, a maioria dos assassinatos em série é de cunho essencialmente sexual, e senti desde o começo que esses homicídios derivavam de um motivo
diferente. Honestamente, não sei o que dizer, major. Preciso concordar que sua leitura da situação parece plausível.
Fez-se uma longa pausa. Então, Berrocal disse: - Vou deixar a cidade inteira sob alerta. Não é um lugar muito grande. A gente deve conseguir encontrá-lo.
Um tiro no escuro, pensou Fiona. Todo mundo que lida com criminosos em série acaba fazendo isso.
- Procure alguém que tenha um conhecimento profundo da história de Toledo - aconselhou ela. - Pergunte sobre lugares da cidade ligados a mortes violentas. Se ele
atacar de novo, seja para cometer um único assassinato ou uma chacina, é no que ele vai se concentrar. E é provavelmente onde o senhor poderá capturá-lo.
- Obrigado pelo conselho. - De nada. Tenho certeza de que o senhor já tinha pensado nisso. Mas me mantenha avisada.
- Claro. Boa-noite, doutora. - Boa-noite, major. E boa sorte. - Enquanto Fiona colocava o telefone no gancho com desânimo, escutou a porta da frente sendo aberta.
- Kit? - chamou, surpresa.
A porta se fechou e a voz familiar de seu companheiro respondeu: - Oi, querida, cheguei. Ele foi até a cozinha e a envolveu no abraço sufocante que ela aprendera
a apreciar. Fiona jogou a cabeça para trás e o beijou, os olhos amendoados brilhando de prazer.
- Não esperava você tão cedo. Pensei que vocês todos fossem sair para jantar depois do evento da Georgia.
Kit a soltou e andou até a geladeira. - Esse era o plano. Só que, sem a estrela, não tem show. - O quê? Georgia decidiu que precisava de um sono reparador mais
do que de uma noite de farra com censurados escritores de suspense? - brincou Fiona, pegando dois cálices para o vinho que Kit estava abrindo.
- Quem sabe? Ela não apareceu. - Está dizendo que ela cancelou? - A incredulidade de Fiona era óbvia. A ideia da louca por publicidade da Georgia Lester perdendo
a chance de dar uma palestra no British Film Institute era quase inacreditável.
- Não. Estou dizendo que ela não apareceu. Não mandou nenhuma mensagem, não falou com o BEI nem com seu agente. E não atendeu o
telefone de casa nem o celular, segundo o tal agente. - Kit puxou a rolha e serviu o vinho.
- Então o que aconteceu? - Nada importante. A audiência ficou esperando por uma meia hora, então o sujeito que iria apresentá-la se levantou e disse que a sra.
Lester estava indisposta e que as pessoas poderiam pegar seu reembolso na bilheteria. Fomos todos tomar um drinque rápido e eu voltei para casa.
- Bom, um mistério - replicou Fiona de modo tranquilo. - Qual é a teoria, Sherlock?
- O pessoal que saiu para beber acabou com duas teorias distintas. - Kit se sentou numa cadeira, preparando-se para a narrativa. - A benevolente é a seguinte:
Georgia tem uma cabana em Dorset, aonde ela diz que vai para escrever, mas, na verdade, e isso eu sei, vai é para trepar até cair com o último garçom italiano
no qual enfiou as garras. Bem longe do Anthony, o marido chato, porém devotado, certo? Pois bem, ela está lá, em plena aventura maliciosa com o Super Mano, perde
a noção da hora e termina saindo no último minuto, mas a gasolina acaba no meio do caminho, a quilômetros de qualquer lugar. E o celular fica sem bateria.
- Essa é a versão benevolente? - Vamos lá, Fiona, você conhece a Georgia. A maioria das pessoas que só a vê em aparições públicas acha difícil dizer alguma coisa
sobre ela que não envolva certo grau de ressentimento.
- Mal posso esperar pela versão cruel - murmurou Fiona - Essa é assim: após a morte do Drew, Georgia começou a reclamar com a Carnegie House, exigindo que eles
lhe providenciassem um guardacostas. Ela argumentou dizendo que era a Rainha do Crime, que precisava de proteção contra os malucos à solta e que isso era obrigação
de seu editor. Claro que vários de meus colegas acharam que era apenas uma desculpa para fazer a Camegie arrumar homens para ela...
- Ai, essa é cruel! - Mas possivelmente verdade. De qualquer forma, como você sabe, ela estava ameaçando não participar do tour de lançamento de seu novo livro
se eles não providenciassem alguma proteção com mais músculos do que um agente literário e um representante de vendas. E, é claro, essa palestra era tecnicamente
o primeiro evento do tour. Assim, vários colegas acreditam
que ela decidiu não aparecer para dar um susto nos editores. Afinal, o BFI não é uma simples livraria. Não aparecer lá viraria manchete, sem que lhe custasse um
grande prejuízo nas vendas - acrescentou ele com cinismo.
- A intenção então é que amanhã de manhã os editores liguem para ela prometendo um par de leões de chácara para escoltá-la pelas livrarias da Inglaterra? - perguntou
Fiona, tentando não soar tão perplexa quanto se sentia.
- Isso mesmo. Ela vai ligar para eles e se fazer de coitada. "Tadinha de mim, fiquei tão assustada que, na hora H, tudo o que eu quis foi sair correndo e me esconder."
Para não falar o quão arrasada ela está por ter decepcionado sua legião de fãs devotados. Desse modo, se a Carnegie realmente valoriza sua escritora de suspense
que mais vende, vai arrumar, é claro, uma limusine à prova de balas e um time de guarda-costas para ela...
- O que, por sua vez, vai gerar ainda mais publicidade. - Um ponto que todos têm certeza de que não passou pela cabeça da Georgia - comentou Kit com um sarcasmo
amigável.
- Essa é realmente a análise mais repugnante e cínica que eu escuto em muito tempo. Vocês, rapazes, deviam se sentir envergonhados.
Kit abriu um sorriso satânico. - Aposto 5 libras que eles estão certos. O que eles não sabem é que Georgia recebeu uma ameaça de morte. E que ela realmente acha
que pode estar na lista de um assassino.
- Você não contou a eles? - Por que contaria? Alguém teria dito se soubesse. Quando comecei a averiguar quem mais havia recebido cartas como essa, tomei cuidado
em não mencionar a Georgia. Com o nome dela em jogo, alguém teria vendido a história para uma das colunas diárias do jornal. Assim, todo mundo se divertiu à custa
dela hoje à noite.
- E você? Sabendo o que sabe, o que você acha? Kit correu as mãos pelo rosto e pela cabeça. - Há coisas muito piores que podem ter acontecido com ela. Só espero
que eles estejam certos. Que tenha sido tudo armação. Porque, se não for, então acho que está na hora de começar a me preocupar de verdade.
27.
- O que eu disse? - falou Kit, brandindo o Guardian sob o nariz de Fiona durante o café da manhã dois dias depois. - Se estão dizendo no The Loafer, deve ser verdade.
- Ele apontou para um item na coluna de fofocas literárias e leu: - "Segundo as más línguas, a escritora de suspense Georgia Lester resolveu se esconder, pois
teme por sua vida. Uma das escritoras atuais que mais vende, Lester não apareceu numa prestigiada palestra no British Film Institute sobre filmes noir contemporâneos
baseados em livros, e ninguém ouviu falar dela desde então.
"Aparentemente, Lester brigou com os editores da Carnegie House por eles não terem providenciado seguranças para acompanhá-la no tour de lançamento de seu último
suspense psicológico, Terminal Identity. A exigência ocorreu logo após o chocante assassinato do jovem escritor prodígio Drew Shand, em Edimburgo, no mês passado,
que a polícia acredita poder estar relacionado a algum fã obcecado, e o igualmente bizarro assassinato da eremita americana Jane Elias, próximo à casa onde morava
na Irlanda, uma morte supostamente cometida por uma gangue desbaratada por seu amante, um agente secreto do esquadrão antidrogas.
"Ao que parece, teve início a temporada de caça aos escritores de suspense. Segundo um amigo, Lester estava indignada pelo que considerava um descaso com seu bem-estar
e teria afirmado que faria a Carnegie pagar caro por isso. Se com dor ou com dinheiro, não ficou claro.
"O fato de Lester, famosa por sua boa vontade em ajudar a mídia, ter virado as costas a uma grande oportunidade de expressar suas visões foi, sem dúvida, uma mensagem
direta para seus editores de que ela não será facilmente apaziguada, não importa o quão paranoicas sejam suas exigências."
- Bom, isso é o que o mundo está dizendo. Talvez eu deva parar de me preocupar, não acha?
Fiona fez que não. - Não, não acho. Não até você escutar o que a Georgia tem a dizer. Isso aí que está no The Loafer deve ter vazado de um dos seus amigos beberrões
da outra noite. - Ela se sentia mais preocupada do que estava disposta a confessar, portanto buscou algo tranquilizador para dizer. Não conseguiu pensar em nada,
a não ser o argumento que vinha usando desde que vira a ameaça de morte de Georgia. - Seja lá o que tiver acontecido, não acho que a pessoa que escreveu a carta
seja a responsável. Claro que não custa nada se precaver. Mas não acho que você tem que ficar com medo.
Kit resmungou alguma coisa com a boca cheia de cereal. O silêncio que se seguiu foi quebrado apenas pelo barulho de mastigação e pelo virar das páginas do jornal,
enquanto cada um lia a seção que lhe interessava.
De repente, Fiona se animou. Aquilo era muito mais tranquilizador do que qualquer idiotice que ela pudesse pensar em dizer.
- Agora sim, isso é bem mais interessante do que a disseminação de fofocas sem fundamento - comentou, dobrando o jornal na seção que lhe atraíra a atenção e o
passando para Kit.
Preso suspeito pelo assassinato de Elias
Um homem foi preso como suspeito pelo assassinato brutal da escritora americana de suspense Jane Elias, confirmou a Guarda Siochána, em County Wicklow. O suspeito
é John Patrick Regan, um construtor de 35 anos, de Kildenny, uma pequena cidade a 24 quilômetros da propriedade da srta. Elias às margens do lago Killargan. A
srta. Elias foi encontrada morta em uma estrada do interior há dez dias. Foi vista pela última vez pelos seguranças de sua propriedade saindo de sua
marina particular num iate de 21 pés, doze horas antes. Acredita-se que Regan seja primo e sócio de Thomas Donaghy, que no momento aguarda julgamento sob a acusação
de tráfico de heroína. Donaghy foi preso durante uma importante operação da guarda no ano passado, resultado de uma cilada armada pelos agentes secretos que levou
ao confisco da heroína, avaliada em 1,2 milhão de libras esterlinas. Ao que parece, Piare Finnegan, o oficial da guarda responsável pela operação, era amante
de Jane Elias. Especulou-se ontem à noite que o assassinato ocorreu no intuito de desencorajar Finnegan a apresentar as provas quando o caso contra Donaghy e seus
comparsas for a julgamento no mês que vem. O porta-voz da guarda afirmou: "Temos um suspeito sob custódia que está sendo interrogado sobre a morte de Jane Elias.
Até o momento, ele não foi acusado de nada." A morte de Jane Elias chocou a pacata comunidade irlandesa onde a reclusa escritora era bastante respeitada. Continua
na pág. 3.
Kit passou os olhos rapidamente pelo restante da notícia e se virou para Fiona com um meio-sorriso.
- Acho que podemos dizer que isso é uma boa notícia - comentou ele. - Eu diria que é o melhor que podemos esperar com relação a uma investigação de homicídio.
Ele sacudiu a cabeça, os lábios crispados de revolta. - Que morte estúpida! Quero dizer, ser morto não por algo que você é ou que fez. E sim por causa da pessoa
que você ama.
- Acontece o tempo todo, se você pensar nisso - replicou Fiona. - Mulheres assassinadas pelos ex-maridos que não aceitam que elas estejam com outra pessoa. Pessoas
mortas porque dormiram com alguém da religião ou da cor errada. Ou do sexo errado.
- Não, isso é diferente. Nesses casos, existe um elemento de escolha. Em algum nível, há uma decisão consciente, você sabe no que está se metendo. Mas quando você
se envolve com alguém da polícia, não tem como saber que isso irá se virar contra você desse jeito.
Fiona fez que não. - Mas é a mesma coisa. Tudo bem, você diz que existe um elemento de escolha nesses exemplos que eu citei. Só que você sabe que não é bem assim.
Se a gente vivesse na Irlanda do Norte e eu fosse uma ministra protestante, e você um republicano do alto escalão, deixaria de me amar porque isso poderia nos custar
nossas vidas?
Kit olhou fixamente para Fiona, sentada do outro lado da mesa. - Não seja idiota. Claro que não. - Pois então. Não acho que Jane Elias não enxergasse os riscos
potenciais de amar alguém como Pierce Finnegan. Ela era esperta demais para não perceber. Eu diria que ela aceitou o risco porque era muito melhor estar com ele
do que viver uma vida segura, porém sem ele. Da mesma forma que já deve ter passado pela sua cabeça que viver com uma mulher que ajuda a polícia a capturar criminosos
em série também tem seus riscos - acrescentou Fiona, falando de modo suave para que as palavras não soassem como um desafio.
- Não vou fmgir que eu não me preocupe às vezes. Mas a verdade é, Fiona, nunca me passou pela cabeça que seu trabalho pudesse me colocar em risco. É com você que
eu me preocupo. Acho que projetei para Jane o que eu sinto. Imagino que ela deva ter passado noites em claro por causa do Finnegan, mas talvez, como eu, ela nunca
tenha pensado que pudesse vir a sofrer as rebarbas. - Ele abriu bem as mãos, e sorriu para ela.
Fiona esticou o braço por cima da mesa em busca da mão dele. Kit interceptou o gesto, encontrando a dela no meio do caminho.
- Eu te amo, você sabe - disse ela. - Meu Deus! Isso é um pouco meloso demais para o café da manhã - brincou.
- Ah, por favor, não me venha com essa de inglês durão comigo -protestou Fiona. - Está se esquecendo de que eu sei a verdade.
- Você poderia arruinar minha reputação com uma só palavra - retrucou ele com tristeza.
- Então prepare mais um pouco de chá e manterei minha boca fechada. - Ela pegou o jornal de volta e o atirou para o lado. - Tem uma coisa boa sobre essa prisão.
- O quê?
- Significa que não há ligação entre o assassinato de Jane Elias e Drew Shand. Podemos parar de nos preocupar com a possibilidade de um serial killer estar atrás
dos melhores escritores de suspense do mundo - ressaltou Fiona.
A água ferveu e a chaleira começou a chiar, abafando a resposta murmurada de Kit.
- O que você disse? - perguntou Fiona. Kit se virou para ela. - Eu disse: isso se os policiais irlandeses estiverem certos. Fiona balançou a cabeça, rindo. -
Qual é o seu problema? Você quer sentir que sua vida está em risco? Está transformando isso em inspiração para escrever?
Dessa vez, não houve um sorriso de protesto. - Não. Não quero passar a vida olhando por cima do ombro. Mas você tem que admitir, não seria a primeira vez que os
tiras prendem a pessoa errada.
- Mas não há motivo para supor que seja esse o caso. Kit deu de ombros. - Não há motivo para supor que não seja. Fiona franziu o cenho. - Não é típico de você
se mostrar pessimista aqui na cozinha. - Eu diria que estou sendo realista, e não pessimista. - O tom de Kit indicava que ele não seria persuadido do contrário
tão cedo.
Fiona afastou a cadeira. - Tudo bem - falou com calma. - Deixa comigo.
Prisão no caso Jane Elias - Últimas notícias
Sempre podemos contar com os tiras para seguirem a linha de investigação mais óbvia. Portanto, hoje à noite John Patrick Regan está atrás das grades, acusado de
um crime que chocou os leitores de best-sellers da classe média.
Nossos leitores lembrarão que revelamos com exclusividade a identidade do namorado de Elias, o agente secreto da Guarda Siochána, Pierce Finnegan. Já que os oficiais
da lei verificam este site com tanta avidez quanto nossos fãs mais devotados, eles decidiram que seria uma boa ideia passar em revista os casos recentes de Finnegan.
E bingo! O alvo da vez é Tommy Donaghy e seu time de traficantes de drogas da primeira liga. No momento, Donaghy e três de seus testas de ferro encontram-se à
espera de julgamento sob a acusação de tráfico de heroína, graças em grande parte aos talentos de Finnegan em armar uma cilada. Embora a base de operações de Donaghy
estivesse montada no norte de Dublin, a guarda passou em revista seus sócios conhecidos e capturou seu primo, John Regan, que vive a meros 24 quilômetros da propriedade
de Elias, nas montanhas de Wicklow. E, por uma estranha coincidência, a empresa de construção de Regan foi responsável por uma parte do trabalho de restauração
feito na mansão georgiana onde Elias morava.
Regan faz pequenos biscates como construtor, é divorciado, tem dois filhos e mora na pacata cidade irlandesa de Kildenny. Ele possui também uma pequena lancha
e, na tarde do desaparecimento de Elias, estava pescando. Sozinho. Portanto, ele é um homem com os meios, motivo e oportunidade, e sem um álibi em vista. Isso
é muito bom para a guarda, especialmente se levarmos em consideração que eles não têm nenhuma outra pista.
Infelizmente, para eles, Regan não possui ficha criminal. Pelo que dizem, até o momento a análise forense não conseguiu nada, embora continue procurando. Contudo,
podemos esperar que até o fim da noite as acusações sejam feitas. Ou antes, se Regan decidir confessar. O que, dada a tendência dos irlandeses de atirar-no-próprio-pé,
é quase certo. Esperamos apenas, pelo bem de John Regan, que Finnegan não seja o responsável por conduzir o interrogatório.
LEMBRE-SE DE QUE VOCÊ LEU ISSO EM MURDER BEHIND THE HEADLINES
Fiona se levantou e esperou com impaciência que a impressora cuspisse o papel. Pegou a folha na bandeja e desceu correndo os três lances de escadas até o escritório
de Kit. Sabia que ele tinha trocado a cozinha pelo conforto de sua escrivaninha; a rádio de música clássica dera lugar a Gomez cantando alegremente que não havia
horas suficientes no dia. Conhecia muito bem a sensação.
Kit olhava para a tela com tristeza, lendo as últimas páginas que havia escrito. Fiona soltou o papel sobre o teclado. Ele passou a mão pela cabeça enquanto lia,
massageando a pele lisa que formava linhas e rugas.
- Isso me parece um pouco irreverente demais - falou, em dúvida. - É o jeito como eles escrevem. Acredite em mim, se eles tivessem bons motivos para imaginar que
a prisão não foi legítima, estariam gritando a plenos pulmões, e não apenas jogando insinuações vagas. Eu já te falei, eles se orgulham de descobrir coisas que
ninguém mais sabe ou não quer publicar. E, como a maioria de nós, gostam de cobrir os próprios rastros, para o caso de estarem errados. Confie em mim, sou uma
ph.D... - Fiona se curvou e beijou a pele macia da região onde o lóbulo da orelha se encontrava com a linha do maxilar. Kit girou a cadeira e a puxou para o colo.
Agora, seu sorriso não tinha nada de indiferente.
- Obrigado - falou. - Você conseguiu me acalmar. - Que bom! Isso significa que a gente pode sair e se divertir como pessoas normais em um sábado?
- Você quer ser normal? De onde tirou isso? - Achei que podíamos tentar, ver o que andamos perdendo todos esses anos. - Tudo bem. Mas só dessa vez. E só se formos
seriamente anormais depois que voltarmos para casa.
- Vou te fazer cumprir a promessa. Ele soltou uma risada. - Mal posso esperar.
Extraído da Prova Decodificada P13/4599
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Inacreditável. Eles prenderam alguém pelo assassinato de Jane Elias. Pelo que eu li, Elias estava dormindo com um agente secreto da polícia irlandesa que prendeu
importantes traficantes de drogas no ano passado. E eles acham que foi um assassinato de vingança. Bom, pelo menos nisso eles acertaram!
Esses irlandeses são malucos. Assassinos do crime organizado não agem de modo tão elaborado para acabar com alguém, mas acredito que o lado bom é que meus alvos
não vão estar com a guarda levantada. Eu estava começando a ficar preocupado com a possibilidade de não conseguir enganar Kit Martin se ele estivesse com medo de
que alguém poderia estar atrás dele.
Veja bem, eu esperava que Georgia Lester fosse ser um pouco mais cautelosa. Eu sabotei a mangueira de combustível do carro dela para que ele parasse, e a segui
de perto, pronto para agir como o cavaleiro errante. Ela estava em pé ao lado do Jaguar com uma expressão de desamparo quando encostei meu carro logo atrás. Ofereci-me
para dar uma olhada, mas ela disse que ia chamar o reboque. Eu a acertei quando ela se abaixou para pegar o celular. Em seguida a arrastei até o banco traseiro.
Levei cerca de cinco minutos para levá-la de volta para a cabana. A propriedade possui outra casinha nos fundos do jardim, onde eu havia me instalado. Deixei-a
amarrada e amordaçada enquanto ia me livrar do Jaguar. Quando finalmente voltei, já estava bem escuro. Melhor assim.
Esse foi o único assassinato que me deixou com pesadelos. Sonho que estou sufocando sob uma montanha de carne e não consigo sair. E então vejo os olhos dela. Ela
já tinha acordado quando cheguei. Seus olhos estavam esbugalhados, como de um cavalo assustado. Pude ver o branco em torno da íris. Aquilo realmente me incomodou.
Precisei apagá-la de novo, o que eu não queria fazer. Mas não consegui encarar a ideia de estrangulá-la enquanto ela estava consciente.
Realmente não gosto de matar. Gosto de como me sinto depois, a sensação de poder que percorre meu corpo quando penso que estou conseguindo me recobrar muito bem.
Gostaria que houvesse um jeito mais fácil de fazer isso. Mas preciso me ater ao plano.
Fico pensando em quanto tempo eles levarão para resolver a charada dessa vez.
28.
Joanne Gibb lembrou que um amigo certa vez falara das abreviações que os médicos usam em suas anotações. Não as que resumem pressão arterial ou pulsação - as
do tipo GAE para "Garoto com Aparência Engraçada". O que lhe veio à mente naquela segunda de manhã foi NQTA - "Normal para Quem Trabalha Aqui". Trabalhar em casos
complicados do Departamento de Investigação Criminal produzia efeitos semelhantes em todos os oficiais dedicados. Palidez, cabelos gordurosos uma hora depois de
tomar banho, manchas escuras sob os olhos, rugas na testa e em torno da boca, ombros demasiadamente tensos. Isso, com certeza NQTA. Analisou-se no espelho do
banheiro feminino. Precisava de uma plástica, não de bons cosméticos.
Levando em consideração o quanto havia envelhecido externamente nos três anos em que trabalhava para Steve Preston, estremeceu só de pensar na condição de seus
órgãos internos. Mostrou a língua para seu próprio reflexo, e percebeu que ela já adquirira um tom amarelado apenas uma hora depois de o despertador tê-la arrancado
das quatro horas de inconsciência que conseguira obter na noite anterior. Estava convencida de que café em excesso e sono de menos estavam lhe dando úlceras. Os
cigarros estavam destruindo o que restava de sua capacidade aeróbica, e não gostava nem de pensar no que a bebida devia estar fazendo com seu fígado. Seu namorado
vinha falando de irem morar juntos e começar uma família. A julgar pelo estado do que via, tudo o que podia esperar de seu sistema reprodutivo era um macaco com
três cabeças.
Para os homens, decidiu, era fácil. Na maioria das vezes, eles conseguiam, de alguma forma, parecer atraentemente cansados ou admiravelmente assombrados, como acontecia
com Steve Preston, fazendo com que as mulheres quisessem levá-los para casa e cuidar deles. As mulheres, por outro lado, acabavam tachadas de cães raivosos e abandonadas
por seus homens pela mais nova modelo do mercado. Bom, entrar para a Polícia Metropolitana fora escolha sua. Poderia ter arrumado um trabalho no banco ou numa
loja e manter sua aparência por mais algum tempo. E morrer de tédio, pensou enquanto escovava o cabelo castanho que lhe descia até o queixo. Quem sabe se desse
um corte nele? Algo um pouco mais chamativo do que a pesada cortina que pendia sem vida em torno de um rosto que ela uma vez achara ter um formato de coração.
Joanne fechou os olhos e suspirou. Para o inferno com a autopiedade com relação à beleza. Devia se lembrar do que era importante e se orgulhar disso, não de sua
aparência diante do espelho. Enfiou a maquiagem de volta na nécessaire e a guardou na bolsa. Pegando a pilha de pastas que representava o trabalho do fim de semana,
conseguiu dispensar um dedo para abrir a porta e atravessou o corredor para ir falar com o chefe.
Encontrou Steve Preston atrás da mesa com sua inseparável caneca de chá preto ao lado, a fumaça do primeiro charuto do dia acumulando-se sob o teto baixo.
- Bom-dia, Joanne - cumprimentou ele. Ao analisá-lo, Joanne teve a impressão de que ele dormira tanto quanto ela.
- Bom-dia, chefe - cumprimentou ela de volta, soltando os arquivos na ponta da mesa e se sentando na cadeira em frente a ele.
- Você ainda estava conectada às duas e meia da manhã - comentou ele. Joanne tirou o maço de cigarros da bolsa e acendeu um. - Estava pesquisando. - Descobriu
alguma coisa? Ela apontou para os arquivos, soltando um rastro fino de fumaça no ar. - Eu me concentrei nos arquivos da Polícia Metropolitana, da City e dos Home
Counties. *7 Posso ampliar a pesquisa, se o senhor achar que vale
*7 A Policia Metropolitana, também conhecida como Met, cujo quartel-general é a Scotland Yard, faz o policiamento de toda a Grande Londres, com exceção da Square
Mile, ou seja, a cidade em si, que conta com sua própria força policial, a City of London Police. Já Home Counties se refere aos condados que cercam Londres. (N. T.)
a pena. Preciso dizer, esse trabalho ficaria muito mais fácil se tivéssemos algum tipo de sistema central de registros para crimes graves - observou ela, com o
cansaço amargurado daqueles que precisam trabalhar sem um sistema adequado.
- Algum dia teremos - replicou Steve. - Provavelmente será tarde demais para nossa sanidade, mas teremos. Os garotos de Bramshill, no condado de Hampshire, estão
usando o sistema de análise canadense que estabelece conexão entre crimes violentos, o VICLAS. Ele é supostamente mais sofisticado do que o do FBI, mas não há como
saber quando eles vão começar a usá-lo em benefício das operações de campo, especialmente as que, como essa, estão cá embaixo na lista de prioridades. Até lá,
estamos presos a telefonemas, faxes e pedidos de favores. Como foi a pesquisa?
- Depressivamente bem. Não posso dizer que foi divertido ser lembrada de quantos estupros e ataques sexuais graves são registrados ao ano. Mas acho que consegui
desencavar alguns dados bem interessantes. Fiz um resumo para o senhor. Era isso o que eu estava fazendo às duas e meia da manhã. - Joanne abriu a pasta que estava
no topo da pilha e pegou duas folhas de papel. - Aqui.
Steve passou os olhos pelas informações cuidadosamente coletadas. - Bom trabalho, Joanne. Quer me falar sobre o que está aqui? Joanne pegou sua própria cópia do
resumo e colocou a pasta sobre o colo. Puxou os óculos de leitura do bolso da camisa e os empoleirou na ponta do nariz.
- Como eu fiz, requisitei os casos que combinavam com todos os cinco critérios que o senhor mencionou - começou ela, saboreando, como sempre acontecia, o relato
e a discussão que muitas vezes estimulavam novas ideias. - Depois pedi que incluíssem outros casos que se enquadrassem em pelo menos três dos itens. Procurei por
casos em que o ataque tivesse acontecido ao ar livre, houvesse uma faca envolvida, a vítima fosse uma mulher jovem e loura, crianças tivessem testemunhado parte
do ataque ou todo ele e o criminoso pudesse ter fugido de bicicleta.
"Para ser honesta, não esperava tantos resultados. Contudo, temos quatro estupros e dois ataques sexuais graves que incorporam os cinco critérios. Todos os seis
aconteceram ao norte do rio. O primeiro foi registrado há dois anos e meio, em Stoke Newington. Uma mulher que pegava sol no
jardim de casa enquanto seu bebê dormia no carrinho foi atacada por um homem com roupas de ciclista que pulou a cerca do jardim. Os gritos dela alertaram o vizinho,
e o atacante fugiu.
"O segundo aconteceu em Camden, cerca de dez semanas depois. Uma mulher passeava pela margem do canal com seu filhinho de três anos quando um homem pulou de detrás
de um muro e encostou uma faca em seu pescoço. Ele lhe disse que ia estuprá-la, mas eles foram interrompidos por um grupo de estudantes que vinha andando pela
margem. Ele pulou o muro de volta e fugiu numa bicicleta antes que alguém conseguisse impedi-lo.
"O terceiro aconteceu no último andar de um edifício-garagem em Brent. Quinze semanas depois. Dessa vez, ele estuprou uma mulher que saíra para fazer compras.
Ela havia acabado de colocar o filho na cadeirinha do carro quando ele surgiu por trás, a empurrou sobre o banco e a estuprou sob ameaça de faca. Segundo o investigador
do caso, ela teve a impressão de que ele estava com um capacete de ciclista.
"Quase seis meses se passaram até o registro seguinte de estupro. Dessa vez, ele atacou mais a oeste, em Kensal Rise. A vítima tinha levado o filhinho recém-nascido
para um passeio no cemitério."
Nesse momento, Joanne deixou cair a máscara profissional e ergueu os olhos para Steve.
- Não é tão estranho quanto parece - falou, na defensiva. - Esses velhos cemitérios vitorianos podem ser bem bonitos, o senhor sabe. Especialmente nas áreas em
que há muito verde em volta. Steve sacudiu a cabeça.
- Eu não disse nada, Joanne. Meu amigo Kit considera o Highgate Cemetery a melhor fonte de inspiração que ele conhece. Claro que ele não é um policial...
- De qualquer forma, ela estava passeando pelo cemitério com o bebê quando um sujeito com bermuda de lycra, camiseta, capacete de ciclista e óculos pulou na frente
dela, segurando o que lhe pareceu uma daquelas caras facas de cozinha feitas de um único pedaço de metal. Ela lutou com ele e acabou levando dezessete pontos no
braço em virtude dos cortes. Depois do ataque, ele fugiu numa mountain bike. Essa foi a melhor descrição que consegui.
- Sexo masculino, caucasiano, altura entre 1,78m e 1,82m, compleição magra, cabelos escuros, pele clara - leu Steve de modo cansado. - Bom, isso combina com metade
da lista de suspeitos masculinos da Polícia Metropolitana. - Metade não, chefe. Acredito que não mais do que 10% dessas pessoas conseguiriam realizar uma fuga decente
de bicicleta.
Steve olhou para o charuto e fez uma careta. - Provavelmente você está certa. O interessante é que a descrição não combina com Blake. Ele é muito baixo, e acho
que ninguém poderia descrevê-lo como um homem magro. Seus ombros são largos demais. Certo, vamos escutar o resto. - A número cinco trabalhava como faxineira numa
escola em Crouch End. Ela foi a última a sair da escola numa sexta-feira, um ano e meio atrás. Ele estava esperando por ela. Enquanto ela trancava os portões, ele
veio por trás e encostou uma faca em sua garganta. Em seguida, arrastou-a para o meio dos arbustos que ladeavam o caminho de entrada e a estuprou. Não havia nenhuma
criança junto, mas incluí esse caso porque ele aconteceu numa escola primária e o sujeito estava de bicicleta. O que o senhor acha?
- Vamos mantê-lo junto com os outros por enquanto. E o último? - Bom, esse é realmente interessante. Aconteceu apenas cinco semanas antes do assassinato de Susan
Blanchard. Foi um pouco mais longe, na verdade, em Hatfield, no condado de Hertfordshire. Mas aconteceu num parque. Uma babá estava passeando com o garotinho
que ela toma conta, andando pela parte do parque onde há um bosque. Ela foi derrubada, disse que chegou a perder a consciência por alguns minutos. Quando voltou
a si, tinha sido arrastada para o meio dos arbustos e estava sendo estuprada. Ele estava com uma faca encostada em seu pescoço e ameaçou esfaqueá-la como se ela
fosse um porco se emitisse qualquer som. - Merda - xingou Steve baixinho. - Por que não soubemos disso quando Susan Blanchard foi morta?
Os lábios de Joanne se apertaram, formando uma linha fina. - Porque Hertfordshire não enviou nada para a gente. - E por que não? Não é como se estivéssemos mantendo
o assassinato de Blanchard em segredo! O caso saiu em todos os jornais. Será que não ocorreu a eles que podia ser o mesmo sujeito?
- Pelo visto, não. O fato é que eles já tinham um suspeito em vista. Um sujeito acusado de estupro tinha sido solto sob fiança, e eles acharam que era ele comendo
o último pedaço do bolo antes de ir para a cadeia, como o investigador charmosamente me explicou - acrescentou Joanne, de modo ferino. - Quando Susan Blanchard
foi morta, o amiguinho deles já estava preso, cumprindo uma pena de sete anos por três estupros. Assim, eles não se deram ao trabalho de nos contar porque não
podia ser ele, podia? - concluiu, com a voz saturada de sarcasmo.
- Ótimo. - Steve apagou o charuto e suspirou. - O estuprador admitiu ter atacado a babá, então?
- Ao que parece, sim. Só que todos os seus outros estupros ocorreram num beco no meio da noite, e nenhuma das outras vítimas era loura. O pessoal de Hertfordshire
acreditou nele, mas eu não.
- Não, eu também não. Mas acredito que na época eles não tinham motivo para não acreditar e, com isso, conseguiram dar o caso por encerrado. Eles não são os únicos
que escolhem a opção mais fácil.
Joanne fitou Steve com raiva. - Com todo o respeito, senhor, Blake não foi a opção mais fácil. Ele era um suspeito plausível.
- Isso agora é história, Jo. Estou mais interessado no futuro do que no passado. - Steve se levantou e começou a andar de um lado para o outro atrás da mesa. -
E esses seis casos ainda estão sem solução?
- Com exceção do de Hertfordshire, sim. Ele não deixa muita coisa que possa ser usada como prova. Usou camisinha. E roupas de ciclista não soltam muitas fibras.
O que temos são alguns pelos pubianos do estupro de Kensal Rise, o que nos forneceu o DNA. Contudo, até o momento esse DNA não bateu com nenhuma das amostras que
temos em nossos arquivos. - Joanne fechou a pasta e a colocou de volta junto com as outras. - Não há nenhum suspeito viável em qualquer dos casos citados. Não
sei por onde podemos começar a procurar, chefe.
- Nem eu. Mas conheço uma mulher que talvez saiba. - Steve parou na frente da janela e olhou sem ver a deprimente vista lá embaixo.
- A dra. Cameron? - perguntou Joanne. Ele fez que sim.
- Achei que ela tinha dito que jamais trabalharia com a Polícia Metropolitana de novo.
- E disse. E tenho certeza de que falou sério. - Ele se virou para fitá-la, com um sorriso irônico estampado no rosto. - Me passe o livro de humilhações.
- O senhor vai precisar de um colete à prova de balas também - observou Joanne, lembrando-se do olhar frio como gelo de Fiona Cameron.
- Não tenho dúvidas disso, Jo. Não duvidaria disso nem por um minuto.
29.
A alguns quilômetros dali, Kit Martin estava sentado num restaurantezinho barato, esperando um caminhoneiro que deveria ter saído da Bélgica e atravessado o Canal
na noite anterior. Segundo um amigo em comum, o caminhoneiro poderia explicar a Kit alguns dos esquemas usados pelos contrabandistas para atravessar o Canal. O
homem dizia que ele próprio não contrabandeava nada, mas conhecia todas as artimanhas e, por um preço surpreendentemente barato, estava disposto a fornecer o máximo
de informações possível.
Kit não havia contado a Fiona sobre o encontro; sabia que sua fonte era confiável, mas Fiona talvez incluísse o caminhoneiro na categoria de estranhos com os quais
ele não deveria se encontrar sozinho. Só que ele precisava das informações que esse contato podia fornecer e, além disso, não acreditava que pudesse estar em risco
ali. Provavelmente a coisa mais perigosa no restaurante era um ataque cardíaco disfarçado de Supercafé da Manhã. Além do mais, agora que Steve lhe dissera que
a guarda não havia encontrado nenhuma ameaça de morte na casa de Jane Elias, ele se sentia ainda menos inclinado a viver como um eremita com medo da própria sombra.
Kit olhou para seu relógio de pulso. O homem estava dez minutos atrasado, o que não era um problema. Ele tinha lhe avisado que não podia afirmar com certeza quando
chegaria ao encontro. Isso dependeria do sempre imprevisível trânsito na M25. Kit mexeu o chá para esfriar um pouco e
rearrumou a toalha de papel que cobria o tampo marrom-alaranjado. Os dois homens na mesa ao lado atiraram um punhado de moedas sobre a mesa como pagamento pelo
café da manhã e saíram, deixando para trás uma cópia do Daily Mail. Kit esticou o braço e pegou o jornal. Ignorou a baboseira política na primeira página e continuou
a folhear. A história que lhe chamou a atenção foi a manchete principal da página cinco:
Carro de escritora desaparecida encontrado em ponto turístico
O carro da desaparecida escritora de suspense Georgia Lester foi encontrado abandonado no bosque próximo a um popular ponto turístico, a alguns quilômetros da
cabana de veraneio da escritora. A polícia de Dorset revelou que o carro foi visto ontem por pessoas que visitavam o lago Burman, um ponto turístico local próximo
a Dorchester. Dentro do carro, que estava destrancado, foram encontradas uma pequena mala de viagem e uma singular jaqueta Moschino, ambas pertencentes a escritora.
Segundo o porta-voz da polícia: "Não há sinal de luta nem nenhum indício de que a sra. Lester tenha sofrido qualquer acidente. "Se ela estiver bem, pedimos que
entre em contato com a delegacia policial mais próxima, o mais rápido possível. "Pedimos também que, se alguém tiver visto a sra. Lester ou seu carro antes de
domingo à noite, entre em contato com a polícia de Dorset." Ele se recusou a dizer se a polícia considera suspeito o desaparecimento da sra. Lester. O medo com
relação à sua segurança vem crescendo desde que ela faltou à palestra que deveria dar no British Film Institute na quarta à noite. Seu marido, Anthony Fitzgerald,
declarou ontem à noite: "Estou muito preocupado com a Georgia. Falei com ela na terça de tardinha e ela me disse que estava ansiosa pelo evento no BFI. "Só soube
que ela tinha faltado a palestra quando cheguei em casa na quarta à noite e vi várias mensagens urgentes dos organizadores em nossa secretária eletrônica.
"Tenho tentado entrar em contato com ela desde então, mas até agora nada. Prestei queixa do desaparecimento dela na sexta de manhã, mas a polícia não parece estar
levando o caso muito a sério. "Conheço minha mulher, e ela jamais decepcionaria os fãs de caso pensado. Alguma coisa deve ter acontecido, só não sei o quê." Surgiram
especulações de que a sra. Lester tenha desaparecido propositalmente. Alguns colegas mencionaram que ela estava irritada com seus editores, a Carnegie House, por
eles terem se recusado a providenciar guarda-costas para acompanhá-la no tour de lançamento de seu próximo livro. A sra. Lester afirmou que, desde o assassinato
do também escritor de suspense Drew Shand, temia por sua vida. Um de seus amigos declarou ontem à noite: "Nós todos pensamos que Georgia estava exagerando, mas
ninguém conseguiu demovê-la da ideia de que seu editor estava colocando-a deliberadamente em risco. Quando Georgia não apareceu no Mn, algumas pessoas acharam
que ela estava tentando puni-lo. Agora, porém, estamos começando a pensar se ela não estava certa afinal." A Dama Desaparece - pág. 11.
- Ah, merda! - murmurou Kit por entre os dentes, virando as páginas com rapidez. O que mais mexeu com ele foi a reação de Anthony. A queixa do desaparecimento
de Georgia à polícia indicava que isso não era uma armação dela. Kit não acreditava que a amiga pudesse esconder algo assim do marido e deixá-lo preocupado à toa.
Não era do seu feitio ferir de maneira deliberada aqueles de quem ela gostava.
O artigo na página 11 tomava a folha quase inteira, com uma fotografia grande da famosíssima Agatha Christie. Dentro dela, outra menor de Georgia, parecendo mais
arrogantemente fascinante do que nunca, o cabelo louro preso de maneira engenhosa no alto da cabeça.
A Dama Desaparece
O mistério envolvendo o paradeiro da Rainha do Crime contemporânea, Georgia Lester, possui uma estranha semelhança com outro famoso desaparecimento. A mais ilustre
escritora de suspense de todos os tempos, a dama Agatha Christie, sumiu por onze dias em 1926, até ser descoberta num hotel em Harrogate, onde se registrara
sob o nome da suposta amante de seu marido. O desaparecimento de Agatha ocorreu logo depois de uma séria discussão com seu galante marido, o coronel Archibald
Christie, após a qual ele fez as malas e foi passar o fim de semana com a amante, Nancy Neele. Na mesma noite, Agatha colocou a filha Rosalind para dormir e
saiu da mansão em Sunningdale em seu Morris Cowley cinza. Ela deixou uma carta para a secretária, pedindo que esta cancelasse seus compromissos e informando que
tinha ido para Yorkshire. Contudo, ela enviou também uma carta para o comissário da polícia de Surrey, dizendo que temia por sua vida e pedindo a ajuda dele.
Seu carro foi encontrado abandonado na manhã seguinte. Tal como o Jaguar de Georgia, o Morris de Agatha foi encontrado próximo a um ponto turístico, o lago Silent.
Dentro do carro estavam o casaco de pele da escritora e uma mala com três vestidos, dois pares de sapatos e sua carteira de motorista, cuja validade expirara.
Todos os jornais da época cobriram a história, especulando se a desaparecida escritora de mistério tinha sido assassinada ou cometido suicídio. Nosso jornal chegou
a oferecer uma recompensa de cem libras por qualquer informação que nos levasse ao seu paradeiro. Claro que, enquanto a caçada prosseguia, as suspeitas recaíram
sobre seu infiel marido. O lago Silent foi drenado, um pequeno avião sobrevoou o local em busca de pistas e uma matilha de cães de caça foi usada para esquadrinhar
a área, tudo em vão.
As forças policiais de quatro condados coordenaram uma busca em massa pelas montanhas, da qual participaram 15 mil voluntários. O criminologista Edgar Lustgarten
escreveu um artigo para o Daily Mail, explicando que Agatha entregara-se a um "típico caso de 'represália mental'". Seus livros estouraram em vendas, naturalmente.
Enquanto isso, no hotel hidropático de Harrogate (hoje conhecido como Old Swan), uma mulher registrada sob o nome de sra. Neele aproveitava todas as facilidades
que o hotel tinha a oferecer a sete guinéus por semana. Ela conversava com os outros hóspedes, dizendo ser da África do Sul, fazia suas refeições no restaurante
e aproveitava os bailes no salão. Todavia, um tocador de banjo da banda do hotel, com um olho afiado, a reconheceu das fotografias dos jornais. A polícia foi
chamada e a observou por dois dias até o marido chegar e confirmar que a misteriosa sra. Neele era, na verdade, sua esposa. A mídia a acusou de tentar se autopromover,
embora dois médicos tenham testemunhado que ela estava sofrendo de um caso genuíno de amnésia decorrente de estresse. Agatha Christie levou a verdade por trás
de seu desaparecimento para o túmulo. Jamais saberemos se ela realmente perdeu a memória ou se isso foi apenas um ato de vingança contra o marido. E hoje perguntas
semelhantes estão sendo feitas com relação ao desaparecimento de Georgia Lester. Com seu novo livro prestes a ser lançado, será que isso é apenas uma tentativa
de autopromoção? Ou será que ela está se vingando de seu editor por não levar a sério seu medo de estar sendo perseguida? Ou será que algo mais sinistro aconteceu
com a contemporânea Rainha do Crime britânica? Sua legião de fãs espera uma resposta ansiosamente.
Eles não eram os únicos, pensou Kit. Ele também não se incomodaria de obter algumas respostas. Mais do que isso, se Georgia tivesse realmente planejado seu desaparecimento,
sentia que merecia essas respostas. Eles
eram amigos, ele e Georgia. Ela fora uma das primeiras escritoras de suspense que ele havia conhecido depois que se tornara um autor publicado.
Lembrava-se nitidamente do primeiro evento do qual tinham participado juntos, um festival literário na região central da Inglaterra. Seu primeiro livro acabara
de ser lançado em brochura, e aquela era sua terceira aparição em público como um autor de verdade. Ele estava apavorado por saber que iria dividir o palco com
Georgia, já uma autora consagrada, e mais outro escritor cujos livros tinham ganhado destaque em decorrência de uma adaptação para TV muito bem-feita. Antes do
evento, no camarim, o autor adaptado resolveu se divertir com o nervosismo de Kit, e deleitava-se com uma mistura perniciosa de críticas condescendentes e histórias
sobre eventos desastrosos que só não deixariam em pânico os mais confiantes.
Georgia se intrometera ao final de uma dessas histórias, vestida com um longo de seda branco e cheirando a Chanel nº 5. Ao perceber a ansiedade estampada no rosto
de Kit, lançou um olhar sagaz para o outro autor.
- Você é um verdadeiro cretino, Godfrey, perturbando esse pobre rapaz - disse ela, e se sentou como um cisne elegante no braço da cadeira de Kit. Pousou uma das
mãos de unhas bem pintadas sobre o braço dele. - Estava ansiosa para conhecer você, Kit. Achei The Dissection Man o melhor suspense que li no ano passado. Tenho
certeza de que você vai ser uma grande celebridade.
Ele murmurou algum elogio esquisito em resposta. - Não precisa ficar nervoso, querido. Lembre-se, aquelas pessoas estão lá porque adoram o que todos nós fazemos.
Elas querem gostar de você tanto quanto gostam dos seus livros. Você teria de ser um completo monstro para que elas não o acolhessem com carinho. O que você obviamente
não é, meu querido.
Era isso o que ele precisava ouvir. Graças a Georgia, ele havia conseguido relaxar e, para sua surpresa, começara a se divertir de verdade. Kit observou e escutou
enquanto ela e Godfrey entretinham a plateia e, ao fim da noite, acabou percebendo que ele também podia fazer isso. Tudo o que lhe faltava era a confiança que
vinha com a técnica e que lhe permitiria conduzir o show.
Depois do evento, Kit tinha saído para jantar com Georgia e o agente literário dela. Aquele fora o começo de um relacionamento surpreendentemente
íntimo. Surpreendente porque, embora uma das facetas do trabalho de Georgia incorporasse algumas das características horripilantes de seus próprios suspenses sobre
serial killers, eles não podiam ser mais diferentes no tocante a temperamento, visão de mundo e estilo de vida. No entanto, o respeito mútuo e a afeição sempre
tinham feito com que eles deixassem de lado todas as diferenças, tanto políticas quanto sociais. A tolerância divertida que ele às vezes sentia por suas declarações
mais estapafúrdias nunca abalara a amizade deles. Só lastimava que Fiona não conseguisse ver além da máscara que Georgia usava em público e perceber sua generosidade.
De alguma forma, Georgia sempre deixava Fiona irritada, embora ele não conseguisse entender o porquê. O que lhe parecia uma observação inofensiva podia provocar
um brilho de irritação nos olhos de Fiona, o que o deixava estupefato. No fim, atribuía isso a uma ausência de química entre as duas e tentava mantê-las afastadas
sempre que possível.
Kit gostaria de saber o que estava acontecendo com Georgia. Por mais que ela fosse perfeitamente capaz de fazer algo tão terrível quanto simular um desaparecimento
no intuito de constranger seus editores, ele realmente não acreditava que ela pudesse fazer Anthony sofrer também. Apesar de suas frequentes indiscrições e infidelidades,
era a devoção inabalável de Anthony que lhe garantia estabilidade. Com o passar dos anos, ele cultivara um ar de estudada indiferença no que dizia respeito às predileções
da esposa por jovens amantes latinos, mas Kit não tinha dúvidas de que, embora o casamento deles pudesse parecer bizarro aos olhos de estranhos, era uma união
necessária à sobrevivência de ambos.
Kit repensou a ideia que antes descartara como absurda. Era possível, é claro, que Anthony fosse cúmplice na armação. Por mais difícil que fosse imaginar o profundamente
respeitável Anthony enganando a mídia e a polícia, se havia alguém que poderia convencê-lo a fazer isso, esse alguém era Georgia. E, se a polícia não estava levando
o desaparecimento dela a sério, as chances de que fosse esse o caso eram bem fortes. Kit se agarrou a essa esperança, sem querer encarar a possibilidade mais preocupante
que lhe atormentava a mente. Se algo terrível tivesse acontecido, queria adiar esse conhecimento o máximo possível. Não podia se permitir imaginar que Georgia
talvez nunca mais voltasse.
Ele afastou esses pensamentos para bem longe, acreditando de modo supersticioso que poderia influenciar a volta da amiga se a visualizasse. Permitiu-se um sorriso
seco. Já podia imaginar a coletiva de imprensa quando Georgia aparecesse. Será que ela alegaria amnésia? De alguma forma, duvidava muito. Não, ela preferiria algo
mais melodramático, definitivamente. Ela estivera se escondendo por temer por sua vida depois do que acontecera com o pobrezinho do Drew. Decidira, porém, retornar
ao mundo porque não suportava a ideia de que a incerteza com relação a seu destino pudesse ferir seus amigos, seus fãs e, acima de tudo, seu querido e devotado
marido.
Isso, pensou ele. Georgia faria exatamente assim. Haveria brados raivosos de reclamação por ela ter manipulado a mídia de modo tão descarado e feito a polícia
perder tempo - nessa ordem, decidiu Kit, com uma certeza cínica. Os fãs, entretanto, aceitariam a desculpa; suas imaginações superalimentadas pelo combustível
que ele, Georgia e o resto deles lhes providenciavam. E esse era o ponto crucial.
No entanto, tentar assobiar para espantar os demônios não deu muito certo; outras possibilidades menos divertidas ainda o atormentavam. Podia descartar o suicídio
de cara. Ninguém que se amasse tanto quanto a Georgia poderia sucumbir ao desespero tão rapidamente. Alguém teria percebido e soado o alarme.
Já a outra opção, mais aterrorizante, era um caminho pelo qual ele não se sentia preparado a percorrer sem a ajuda de um guia. E, uma vez que o melhor guia possível
iria chegar em casa mais tarde, Kit decidiu que não se permitiria sequer considerar esse cenário até então. Assim que tomou essa decisão, ela se fez desnecessária.
Um homem baixo e corpulento, com mãos tatuadas, despencou na cadeira à sua frente.
- Você é Kit Martin, certo? - perguntou, num forte sotaque do Nordeste da Inglaterra.
Kit estendeu a mão por cima da mesa. A salvação assumia formas bastante estranhas, mas estava sempre disposto a reconhecê-la quando ela se apresentava.
30.
Fiona lançou um olhar furioso por cima da mesa, e seus olhos amendoados escureceram.
- Você - disse, com uma parada enfática - está de sacanagem. Steve fez que não. - Você me conhece melhor do que isso. - Achei que conhecesse. - Ela se virou e
fixou os olhos na parede, sem ver. Quando falou, sua voz estava calma e ponderada, destilando a fúria de maneira controlada. - Achei que você entendesse a profundidade
da minha dedicação ao que eu faço. Não foi meu orgulho que vocês feriram quando me afastaram do caso e o entregaram a Andrew Horsforth, você sabe. Foi a minha
crença de que pessoas como você tinham começado a levar a sério o valor daquilo que eu e mais um punhado de meus colegas estamos fazendo.
- Sei que sim. - Seu tom não indicava um pedido de desculpas. Fiona o encarou. - Seus chefes ainda veem os psicólogos como nada além de uma ferramenta que eles
podem usar como melhor lhes aprouver. E isso não é bom o suficiente.
- Acha que eu não sei? Acha que eu não quero mudar isso? - retrucou ele, os olhos escuros de frustração. - Fi, me ajuda. Me ajuda a fazê-los mudar de ideia. Tudo
o que estou pedindo é que você insira esses dados no
seu programa de conexão criminal e veja que perfil geográfico ele devolve Achei que você quisesse pegar o assassino de Susan Blanchard. Se você não quiser fazer
isso em prol da nossa amizade, faça por ela e pelos filhos.
- Uau, esse é um golpe baixo, Steve. Olha só, eu já deixei de lado meu Julgamento e cedi à sua chantagem com relação a isso. Revisei todo o material do Horsforth,
ainda que, e só Deus sabe, parte dele tenha me deixado enjoada. Fiz algumas sugestões para ajudá-lo a prosseguir com a investigação. Ofereci isso em nome da nossa
amizade. Só que agora acho que você está querendo tirar vantagem dela. Você não tem o direito de me pedir mais nenhum favor. - Ela ergueu o queixo em sinal de
desafio.
Steve não desviou os olhos. Sabia que o que ela estava dizendo era justo, mas sua determinação em resolver o caso era maior do que o constrangimento.
- Eu preciso disso, Fi - disse, expondo os fatos da forma mais direta que podia. - Não tenho nada em que me apoiar com relação a este caso. Meus chefes não querem
nem saber, a menos que eu apareça com alguma espécie de revelação brilhante. Eles só querem se livrar disso tudo. Eu também, mas quero me livrar sabendo que peguei
a pessoa certa. E, no momento, estou num beco sem saída. Tenho alguns oficiais que estão dispostos a trabalhar para resolver logo isso, mas preciso de uma pista
que eles possam seguir. Minha melhor chance é o que você tiver a me oferecer. - Ele se calou e a encarou, o rosto magro duro como uma escultura.
Eles ficaram fitando um ao outro, a amizade de metade de uma vida em jogo.
- Não vou fazer isso - declarou Fiona. Os lábios de Steve se apertaram numa linha fina. Sentia a esperança com a qual chegara escorrendo-lhe pelos dedos, mas não
desistiu. Ainda não. Recusou-se a desviar os olhos, não ia ceder.
- Não vou fazer, Steve, não mesmo - repetiu Fiona. Ele reconheceu isso como uma pequena abertura em sua resolução e se inclinou para a frente.
- Preciso disso. Ela concordou com um exausto meneio de cabeça. - Sei que sim. Tudo bem, eis o acordo. Um dos meus alunos do doutorado está trabalhando com conexão
criminal e perfil geográfico. O que vai
acontecer é que a Polícia Metropolitana vai lhe pagar para analisar o material. Será uma consulta.
- Não sei se conseguirei verba para tanto. - Melhor conseguir, Steve. Pelo menos desse jeito alguém consegue se beneficiar com isso.
- Mas você vai supervisionar? Fiona fez que não. - Terry Fowler é extremamente capaz de fornecer uma análise direta como essa. Não insulto meus alunos olhando
por cima dos ombros deles. Eu estou fora, Steve. Já disse isso, mas você parece não querer escutar.
Ele correu a mão pelo cabelo num gesto de frustração. -Acho que precisarei me contentar com o segundo melhor então. - Não estou tentando empurrar gato por lebre.
Terry vai fazer um bom trabalho. Steve, você precisa parar de se punir por causa desse caso. Sei que você se importa com o que faz, mas não pode deixar que isso
coloque nossa amizade em risco. - Fiona esticou o braço por cima da mesa e pegou a mão dele. - Acho que é tarde demais para te aconselhar a arrumar uma vida, não
é?
Steve conseguiu dar um meio-sorriso. - Mais do que tarde. - Foi o que me salvou - disse ela com simplicidade. Os olhos de Steve se enevoaram. - Ele conseguiu,
não foi? - Tinha vontade de dizer que desejava que os dois pudessem ter salvado um ao outro, mas nunca diria isso, não mais. Ou ela já sabia e, à sua maneira,
se acomodara aos sentimentos dele, ou então a notícia seria como uma corrente contrária, provocando um redemoinho em suas vidas e ameaçando o equilíbrio que se
desenvolvera entre eles. Qualquer que fosse o caso seria inútil.
Como que em decorrência desse pensamento, a porta da frente se abriu. - Oi, Fiona, cheguei. - A voz de Kit ecoou pelo corredor. Eles escutaram o baque da sacola
atingindo o chão quando ele a jogou dentro do escritório ao passar. Logo em seguida, Kit parou na porta e sorriu ao vê-los, alheio à tensão que pairava no ar.
- Oi, Stevie, não esperava vê-lo hoje.
- Só passei para ver o quanto a minha conta estava no vermelho - falou Steve com ironia.
Kit foi até Fiona e a abraçou.
- Steve quer que eu continue a trabalhar para ele no caso Susan Blanchard - informou ela.
Kit olhou por cima da cabeça dela para Steve, as sobrancelhas erguidas em sinal de interrogação.
- Ela te deu um fora. - De certa forma - respondeu Steve. - A Polícia Metropolitana vai pagar a Terry Fowler para fazer o serviço - interveio Fiona com firmeza.
- Espero que sim - replicou Steve. Ele se levantou. - Eu te ligo de manhã para combinarmos melhor.
- Não vá ainda, Steve - pediu Fiona. - Jante conosco. A gente pode jogar uma partida de palavras cruzadas depois.
Era uma oferta de paz, ele sabia. A parte dele que odiara ter de implorar queria ir embora, mas Steve não tinha certeza do que isso significaria para o futuro
da relação deles. Seu orgulho era um preço pequeno a pagar para cicatrizar a ferida que se abrira entre os dois. Steve olhou para Kit.
- Depende do que você tiver para jantar. Kit franziu o cenho. - Deixe-me ver. - Ele abriu a geladeira e analisou. - Tenho peito de frango, cebola, estragão fresco,
erva-doce... Que tal um guisado de frango com estragão? - Ele olhou para os dois.
Steve fingiu pensar por alguns instantes. - E pudim de sobremesa? - Você não é nada exigente, é? - reclamou Kit. - Temos sorvete de chocolate feito em casa no
congelador, alguns morangos e meio pote de manga em calda na geladeira. Isso serve?
- Tudo bem, você me convenceu. Kit tirou a jaqueta, jogou-a sobre a cadeira e se pôs a trabalhar. - Como foi o seu dia? - perguntou Fiona enquanto o observava
cortar os ingredientes.
- Bastante produtivo - respondeu Kit. - Fui ver um contato. Mas é melhor não entrar em detalhes na frente de um policial - acrescentou, sorrindo por cima do ombro
para Steve. - Mas preciso dizer uma coisa: Georgia está dando o que falar. Vocês viram os tabloides hoje? O Mail publicou um belo artigo comparando o desaparecimento
dela com o da Agatha Christie na década de 1920.
- Então ela ainda não apareceu? - perguntou Fiona. Ela se virou para Steve. - Georgia Lester, a escritora de suspense? Você tem acompanhado a matéria?
- Li alguma coisa nos jornais. Você não disse que ela recebeu uma carta igual à sua, Kit? O que você acha? Ela se escondeu para provocar a curiosidade do público
ou por medo?
- Ela não se assustou com a carta até saber que eu tinha recebido uma também. Isso a incomodou, definitivamente. Sei que ela estava enchendo o saco dos editores
para que providenciassem seguranças para acompanhá-la no tour de lançamento do livro, mas achei que fosse apenas encenação da parte dela. Ela gosta de se exibir
às vezes - acrescentou ele de modo afetuoso, pegando uma pesada frigideira de ferro que estava pendurada ao lado do fogão.
- Uma coisa é certa - comentou Fiona de modo seco. - Com relação a Georgia, suicídio está fora de questão.
- Por que você diz isso? - perguntou Steve. - Os suicidas têm baixa autoestima. Georgia, por outro lado, é uma mulher que não duvida nem um tiquinho de si mesma.
Em uma escala de um a dez, a saúde do ego dela fica em torno de onze.
- Ela está certa - confirmou Kit. - Quando a maioria de nós recebe uma crítica ruim, chutamos o gato, xingamos o computador, ficamos arrasados. Mesmo que a gente
finja estar acima disso. Só que no caso da Georgia, se ela ganha uma crítica ruim, manda flores para o crítico com um bilhete dizendo que espera que ele melhore
logo.
Steve quase engasgou com o riso. - Você está inventando isso. - Juro por Deus, é verdade. A ideia de suicídio para Georgia é usar um moletom.
- Então só resta uma alternativa, é isso o que você está dizendo? Se ela não armou esse desaparecimento para se autopromover, então ela foi sequestrada? - Steve
expressou em palavras o que Kit e Fiona estavam evitando fazer.
Fez-se um longo silêncio. Kit jogou os pedaços de frango na frigideira junto com as cebolas. O vapor se desprendeu, preenchendo a cozinha com o aroma de comida.
- Acredito que é exatamente isso o que estamos tomando cuidado em não dizer - observou Fiona.
- O que não significa que não estejam pensando. Eu estaria, se estivesse no lugar de vocês. Depois de Drew Shand e Jane Elias, isso deve ser a primeira coisa que
lhes veio à mente - replicou Steve.
- Mas não há ligação entre esses dois assassinatos - protestou Kit. - A guarda prendeu um sujeito da região pelo assassinato de Jane. E você me falou que eles
não encontraram nenhuma ameaça de morte entre a correspondência dela, o que me acalmou um pouco.
- Não importa que não haja ligação - afirmou Fiona. - Psicologicamente falando, há. Tudo o que sabemos é que dois escritores de suspense foram mortos. Então, quando
uma terceira desaparece, é inevitável que comecemos a pensar se não é o mesmo caso. É a mente pregando peças na gente, Kit. De maneira subconsciente, sempre procuramos
por ligações. Mesmo que elas não existam. Desse modo, ainda que conscientemente você negue que as mortes de Drew e Jane possam ter qualquer ligação com o desaparecimento
de Georgia, num nível mais baixo, você não consegue evitar a conexão e começa a se preocupar com isso.
- De qualquer forma - interrompeu Steve -, falando puramente como um policial, não posso descartar a possibilidade de que Georgia tenha sido sequestrada. - E,
claro, se ela foi, e o sequestrador pediu resgate, a polícia teria mantido isso em segredo - ponderou Fiona. - Eles teriam feito exatamente o que estão fazendo.
Fingindo que não estão preocupados, tratando o caso como nada além de uma possível suspeita.
- Eu diria que sim - confirmou Steve. - Então, o que vocês dois querem dizer é que não adianta especular - observou Kit. - É por aí. - Steve inspirou profundamente.
- O cheiro está delicioso, Kit. -vai ficar-replicou Kit de modo confiante. - Espero que, onde quer que Georgia esteja, ela possa comer algo tão bom assim.
Fiona sorriu com ironia. - Eu também espero. Porque, se for provado que isso foi uma armação, ela vai passar a pão e água por um bom tempo.
31.
O relógio marcava 3h24 da manhã. Fiona não tinha ideia do que a acordara, mas seus olhos estavam bem abertos e o cérebro a mil. Não adiantava tentar voltar a dormir,
sabia disso. Raramente tinha insônia, mas, quando isso acontecia, o único jeito era se levantar e manter a mente ocupada até ficar com sono de novo.
Levantou da cama. Kit resmungou, se virou de lado e voltou a respirar de maneira ritmada. Com os passos abafados pelo carpete, ela pegou o robe no cabide e saiu
do quarto. O único barulho era o ruído distante do trânsito. Não sentiu nenhuma outra presença além dela própria e de Kit. Ao subir a escada, olhou pela janela
para o jardim lá embaixo. A luz mortiça dos três quartos visíveis da lua o transformava num conglomerado lúgubre de formas monocromáticas. Todas, porém, eram familiares.
O que quer que tivesse perturbado seu sono, não era um estranho na casa nem no jardim.
Já no escritório, Fiona acendeu a luminária de mesa e pegou uma garrafa de Perrier no frigobar ao lado da escrivaninha, um dos presentes de aniversário mais bizarros
que Kit lhe dera. Na época, não ficara muito animada com o presente - embora esperasse ter conseguido disfarçar o desapontamento -, mas acabara aprendendo a apreciar
sua utilidade desde então. Ele era bom nisso, aparecer com coisas que ela jamais imaginara que precisava. Abriu a garrafa. O sótão à prova de som estava tão quieto
que ela escutou as bolhas de gás sendo liberadas.
Ligou o computador e esperou que ele iniciasse. Em seguida, conectou-se à Internet. A América estava acordada; haveria gente mais do que suficiente nas salas de
bate-papo para distraí-la. Ao conectar, lembrou-se de que aquela era a noite do mês em que Murder Behind the Headlines fazia uma discussão on-line das dez até
a meia-noite. Clicou na página do site e esperou que ele carregasse.
Fiona deu uma olhada nos temas de debate e escolheu o de Jane Elias. Entrou no meio do que parecia ser uma discussão acalorada sobre a Guarda Siochána. Uma vez
que o site oferecia a chance de rever toda a discussão, optou por isso.
Enquanto lia, sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. De acordo com três comentários distintos, a opinião sobre o assassinato da escritora era de que a guarda
havia prendido o homem errado, e sabia disso. Ao que parecia, eles tinham sido pressionados a prender John Patrick Regan pelos oficiais superiores da Unidade de
Crimes Violentos, apesar da relutância dos oficiais regionais. Agora, na ausência de provas forenses que ligassem Regan ao crime, os policiais locais estavam,
aparentemente, começando a se sentir incomodados com a prisão, enquanto o advogado de Regan lutava para que ele fosse solto. Segundo um dos comentários, todas
as pessoas de Kildenny que conheciam John Regan eram taxativas ao afirmar que o homem não possuía inteligência para organizar um sequestro, muito menos coragem
para matar uma mulher e mutilar seu corpo.
Nesse ponto, o debate se degenerava em um ataque violento à polícia. Fiona não fazia a menor questão de saber se os oficiais da Guarda Siochána naquele cantinho
obscuro de County Wicklow eram competentes ou não. Tinha coisas mais importantes em que pensar.
Desconectou-se, desligou o computador e ficou olhando para a tela. A prisão de Regan a tranquilizara muito mais do que estava disposta a admitir para Kit. Com
ele fora do jogo, o quadro ficava muito diferente. Não era mais uma questão do subconsciente forçando ligações; seu medo se tornava a conclusão lógica.
Em geral, o assassinato de duas pessoas que atuavam no mesmo campo e que moravam em lados opostos do Mar da Irlanda seria tão insignificante que passaria despercebido.
No entanto, quando ambos eram figuras públicas; ambos autores de suspense premiados; ambos escritores cujo trabalho fora
adaptado com sucesso para a TV ou o cinema; e ambos assassinados de um jeito que batia mais ou menos com elementos de suas obras, a coincidência era tanta que
chamava a atenção.
Fiona pesou tudo o que sabia na balança da experiência. Sim, assassinos que imitavam outros assassinatos existiam. E o assassino de Jane Elias podia ser tanto um
serial killer quanto um imitador, dada a distância física entre as vítimas e o jeito aparentemente bastante diferente de suas mortes.
Fiona, porém, nunca gostara de coincidências. Ela se levantou da mesa e desceu correndo a escada até a sala extra onde a vasta biblioteca de livros de suspense
de Kit cobria as paredes do chão ao teto. Não dá para esperar uma organização por ordem alfabética, suspirou Finona consigo mesma. Passou em revista as prateleiras,
procurando por um dos livros de Georgia. O primeiro que encontrou foi Last Rights, o último volume de uma trilogia de suspense jurídico que havia lido uns dois
anos antes. Abrindo a segunda orelha, leu a biografia da autora.
Vários dos livros de Georgia haviam sido adaptados para a TV, inclusive a série de suspense jurídico. Apenas um, o único exemplar de suspense psicológico cuja
violência abalara profundamente muitos de seus leitores tradicionais, fora adaptado para o cinema. And Ever More Shall Be So tinha sido um filme britânico de baixo
orçamento, patrocinado pelo Channel 4. Fiona lembrava-se vagamente de ter lido algo sobre o sucesso do filme. Alguma coisa nele atraíra uma audiência em massa,
e ele se tornara um sucesso em ambos os lados do Atlântico. O inesquecível e etéreo tema de um solitário menino soprano cantando "Green Grow the Rushes-O" como
um lamento, um contraponto pungente para os pesadelos do filme, talvez tivesse algo a ver com isso. Por alguma razão, ela nunca o vira, mas Kit devia ter visto.
Agora tudo o que precisava era encontrar o livro. Um exemplar entre dois ou três mil não podia ser tão difícil, podia? De forma metódica, Fiona passou de uma prateleira
à outra, parando sempre que se deparava com o nome de Georgia. Como diabos Kit conseguia encontrar alguma coisa ali? E por que ele nunca jogava nenhum livro fora,
por mais horrível que declarasse ser?
Quando já estava na metade da segunda parede, Fiona encontrou o que estava procurando. A primeira edição de And Ever Shall Be So, com uma
dedicatória na folha de rosto escrita com a letra surpreendentemente impecável de Georgia: "Para meu querido Kit, ii miglior fabbro, o melhor artífice. Com muito
amor, Georgia Lester." A cara dela, pensou Mona, com um sorrisinho sarcástico.
Fiona desligou a luz e voltou para o sótão. Acomodou-se no sofá-cama e puxou o cobertor por cima das pernas para não ficar com frio. Em seguida começou a folhear
o livro. O que encontrou ali acabou de vez com a sua paz.
32.
Steve esticou o braço para impedir que a porta do elevador se fechasse. Ela se abriu de novo e ele entrou, dando de cara com a detetive Joanne Gibb.
- Bom-dia, Joanne. - Bom-dia, chefe. Posso perguntar como foi a humilhação? Steve fez uma careta. - Vamos dizer apenas que estamos na direção certa. A dra. Cameron
vai me colocar em contato com um de seus alunos que irá fazer a análise. Se eu conseguir desencavar alguma verba para pagá-lo.
- Mas isso pode dar um bom resultado - protestou Joanne. - Sem dúvida o comandante Telford vai entender a razão de seguirmos essa pista, certo?
Steve sorriu. - Acho que consigo persuadi-lo a compartilhar nosso ponto de vista. - O elevador parou com um tranco no andar deles. - Me deseje sorte, vejo você
e Neil em meu escritório daqui a quinze minutos.
Ele desceu o corredor, passando por portas fechadas até chegar no escritório de seu superior imediato. Steve bateu e esperou ser convidado a entrar. O comandante
David Telford estava sentado atrás do que Steve apostaria ser a mesa mais arrumada do prédio. Nem um único pedacinho de papel perdido maculava a superfície polida.
As canetas reunidas num copinho de metal, um bloco de anotações ao lado do telefone, e isso era tudo.
As paredes nuas, exceto pelas comendas emolduradas de Telford e seu diploma da Aston University.
- Sente-se, Steve - falou ele, sério. Estava determinado a apagar da memória de todos na Polícia Metropolitana a noção de que alguém além de Steve Preston era
culpado pelo fiasco da prisão de Francis Blake. Steve compreendia isso, e sabia que esse era o motivo pelo qual Telford, ou Teflon, como era conhecido entre os
subalternos, continuava a tratá-lo como se ele fedesse.
- Obrigado, senhor... - Às vezes entrar no jogo era ultrajante, mas Steve gostava demais de prender criminosos para sequer considerar seriamente a alternativa.
- Nenhum progresso ainda, certo? - A pergunta de Telford indicava a resposta que ele queria ouvir. O comandante se preocupava mais com a imagem do que com a justiça,
Steve sabia disso. Encontrar o assassino de Susan Blanchard não era uma das prioridades de Teflon. Seria melhor que sua equipe jamais encontrasse o verdadeiro
assassino, assim o mundo poderia continuar pensando que a Polícia Metropolitana tinha perdido Francis Blake por causa de um juiz e não pela própria operação malconduzida.
- Ao contrário, senhor, acho que encontramos uma nova linha de investigação. - De modo cuidadoso, Steve apresentou as novas evidências sobre o ciclista e os resultados
da pesquisa dos arquivos feita por Joanne. - Agora preciso de verba para pagar pelo perfil geográfico com base nesse conjunto de casos, a fim de que possamos encontrar
um suspeito viável - concluiu.
Telford franziu o cenho. - Isso tudo é meio frágil, não é? Não há nenhuma prova concreta, há? - O problema com esse caso sempre foi a ausência de provas concretas,
senhor. A falta de uma perícia na cena do crime, o número relativamente pequeno de testemunhas, a ausência de uma relação aparente entre o criminoso e a vítima.
É óbvio que o assassino possui alguma experiência em cobrir os próprios rastros, e isso sugere que ele já cometeu ataques de cunho sexual antes. Desde que iniciamos
as buscas, essa é a linha de investigação mais promissora, senhor.
- Uma tentativa desesperada - reclamou Telford.
- Acho que é mais do que isso, senhor. - As palavras "com todo o respeito" dançaram nos lábios de Steve, mas ele se conteve, relutante em proferir aquela mentira
em particular. - É uma estratégia investigativa válida. Mais cedo ou mais tarde, esse caso nos colocará novamente sob os holofotes se não o resolvermos. Quando
isso acontecer, quero poder dizer que investigamos todas as possibilidades.
- Achei que a dra. Cameron tinha dito publicamente que jamais trabalharia com a gente de novo. - Telford tentou por outro ângulo, incomodado com a sutil ameaça
de publicidade feita por Steve.
- Não é a dra. Cameron quem irá fazer a análise, senhor. A verba seria destinada a outro membro do departamento dela.
Telford abriu um sorrisinho. - Nada melhor para deixá-la irritada. Steve não disse nada. Talvez a malícia pudesse vencer onde o bomsenso não conseguira.
Telford girou a cadeira e deu a impressão de estar analisando o próprio diploma.
- Ah, tudo bem, faça sua análise. - Ele se virou abruptamente de volta para Steve. - Só não estrague as coisas dessa vez, superintendente.
Steve voltou para seu escritório com os punhos cerrados. Seria uma doce vingança encontrar o assassino de Susan Blanchard, pensou. Tudo bem, Telford levaria o
crédito aos olhos do público, mas todos na força saberiam a verdade. A justiça prevaleceria da melhor forma possível.
Ao abrir a porta do escritório, encontrou os detetives Neil McCartney e Joanne esperando por ele. Neil era um sujeito grandalhão e desleixado por volta dos 25
anos. Steve nunca o vira com uma aparência que não fosse levemente desarrumada, e ele era incapaz de sentar numa cadeira sem se esparramar. Muitas vezes imaginava
como o rapaz costumava ficar de uniforme. Provavelmente, sua aparência tinha sido o suficiente para lhe garantir uma promoção para o Departamento de Investigação
Criminal na primeira oportunidade possível. Também não havia atrapalhado em nada o fato de o rapaz ser um bom policial; astuto, cuidadoso e obstinado a ponto de
ser cruel.
- Tudo certo. Conseguimos sinal verde para prosseguir com o perfil geográfico - anunciou Steve, espremendo-se para passar entre as pernas
esticadas de Neil. - Vou levar o material pessoalmente até a universidade assim que terminarmos aqui. Pois então, Neil, o que Blake anda fazendo?
- Até onde podemos dizer, nada de muito interessante. Ele dorme até tarde, sai para comprar o jornal e uma caixa de leite e pegar uns dois vídeos quase todas as
manhãs, e volta para casa. Às vezes vai até um agente de apostas na hora do almoço, toma algumas cervejas no pub local e dá uma caminhada pelo parque. Volta para
o apartamento e, aparentemente, fica assistindo televisão, a julgar pela luz bruxuleante refletida na janela. Nada sinistro, nada suspeito. O que acho ótimo, já
que só podemos fazer uma vigilância mínima, na base do um por um. Pelo que sabemos, ele poderia aprontar qualquer coisa quando não estamos por perto. Alguns dias
ele nem coloca o nariz para fora da porta. Blake podia ter um harém dentro de casa e nós nem saberíamos.
Steve concordou com um meneio de cabeça solidário. - Sei que isso não é satisfatório. Mas vamos ter que continuar a vigilância da melhor forma que pudermos. Até
conseguirmos uma pista mais concreta, ele é tudo o que temos. Talvez seja uma boa ideia termos uma conversinha discreta com os vizinhos do apartamento de baixo,
verificar se eles viram ou escutaram algum sinal de companhia. Mas só se tivermos certeza de que eles não são amigos. Não quero alertar Blake de que continuamos
interessados nele. O que você acha, Neil?
Neil fungou. Já trabalhara para chefes que não gostavam de ouvir que suas sugestões podiam não funcionar. Contudo, já aprendera o suficiente sobre Steve Preston
para saber que podia dizer o que lhe passava pela cabeça sem que isso, quase nunca, se voltasse contra ele mesmo. Especialmente quando estavam entre amigos, como
agora.
- Acho que não, chefe - replicou. - O casal no apartamento de baixo é jovem, por volta dos vinte e poucos anos. Eles parecem ser daqueles que acreditam que nós
somos os bandidos, entende o que eu quero dizer? Eles provavelmente achariam ser sua obrigação contar a Blake que os tiras estão fuçando a vida dele.
Não era isso o que Steve esperava ouvir, mas confiava no julgamento de Neil. - É John quem o está vigiando hoje? - perguntou. - É. - Neil bocejou.
- Certo. Por que não tira o resto do dia de folga, Neil? Descanse. - Tem certeza, chefe? - Tenho. Joanne pode dar conta das coisas por aqui. Se precisarmos de
você, a gente grita.
Neil se levantou da cadeira, espreguiçando-se de modo extravagante. - Não vou reclamar. Pobre de mim, mais de oito horas para dormir. Meu corpo pode entrar em
colapso com o choque. - Ele saiu da sala andando de maneira cansada.
- Quer que eu cuide do forte então, chefe? - perguntou Joanne. - Quero. Vou dar um pulo na universidade para ver o tal de Terry Fowler. A dra. Cameron deixou uma
mensagem dizendo que já preparou tudo. Não sei quanto tempo vou levar, depende do quanto esse Fowler está por dentro do caso. E devo passar depois para ver a dra.
Cameron. Então, a gente se vê mais tarde, quando der.
Foi estranho entrar no Departamento de Psicologia e não ir direto para o escritório de Fiona. O porteiro indicou-lhe o caminho até o cubículo no terceiro andar
que Terry Fowler dividia com outro aluno do doutorado. Steve bateu à porta e ficou surpreso ao escutar uma voz feminina convidá-lo a entrar.
Ele meteu a cabeça pelo vão da porta. A sala continha duas mesas de computador, uma vazia, a outra ocupada por uma mulher jovem com cabelos louros platinados e
espetados, batom vermelho e óculos de armação preta e grossa. Suas orelhas cintilavam com três piercings em cada uma e um par daquelas argolinhas que abraçam a
cartilagem da orelha. Steve sorriu.
- Desculpe incomodá-la. Estou procurando por Terry Fowler. A mulher ergueu os olhos num gesto de fingida exasperação. Em seguida, sorriu e apontou para si mesma.
- Já encontrou. Theresa Fowler a seu serviço. Fiona embarcou na velha brincadeira de testar quais as suas suposições com relação a gênero?
Irritado com Fiona por fazê-lo parecer o modelo perfeito do policial preconceituoso, Steve entrou e encolheu os ombros como que pedindo desculpas. Nada como começar
em desvantagem, pensou.
- O que eu posso dizer? Caí direitinho. Peço desculpas, não costumo fazer suposições machistas. - Ele estendeu a mão. - Steve Preston.
- Prazer em conhecê-lo, superintendente. - Seu aperto de mão combinava com o dele; firme, sem exageros, o aperto de alguém que não desejava provar nada. - Não se
preocupe. Os psicólogos acham difícil resistir a uma brincadeirinha idiota. Faz parte do pacote. Puxe uma cadeira e fique à vontade. Bom, o mais à vontade que
conseguir num desses instrumentos de tortura.
O sorriso dela era contagiante, e ele se viu retribuindo. - Pode me chamar de Steve, por favor. - Puxou uma cadeira de plástico e se sentou. - Acredito que Fiona
tenha lhe passado mais informações do que para mim, certo?
Ela fez que não. - Só em termos gerais. Ela disse que você tinha um punhado de casos que queria que eu inserisse no sistema de conexão criminal. Aí, se eles formarem
um grupo, eu produzo um perfil geográfico. E você vai me pagar, o que é um bônus, preciso dizer. - Terry se recostou na cadeira, sem perceber que o gesto deixava
à mostra o corpo esguio, em uma calça jeans preta e camiseta.
- Tem mais uma coisa - falou Steve, abrindo sua pasta e pescando a pilha de arquivos que Joanne compilara. Ele havia acrescentado mais quatro casos que não tinham
nada a ver com os outros só para testar a precisão do programa de conexão criminal, mas não ia dizer isso a Terry. - Em primeiro lugar, preciso deixar claro que
esse material é altamente confidencial.
- Meus lábios estão selados - disse Terry, apertando-os com força. - Não duvido disso - replicou ele de modo contido, determinado a manter as coisas no nível
da formalidade. - Mas não pude deixar de notar que você divide esse escritório com outra pessoa. Então, sempre que sair daqui, terá de levar o arquivo com você,
a menos que tenha certeza de que ele ficará protegido.
- Tudo bem. - Mesmo que você esteja só dando um pulinho no banheiro ou indo até a máquina de fazer café.
- Já entendi. - Ela sorriu e ergueu as mãos com as palmas abertas para a frente, num gesto conciliatório. - Está tudo bem, Steve, compreendo.
- Não quero parecer que estou tentando ensinar o padre a rezar missa. Terry fez que não.
- Ei, você nunca trabalhou comigo antes, como pode saber que eu não sou apenas uma loura avoada? - Ela arregalou os olhos numa expressão interrogativa.
Foi a vez de Steve fazer graça: - Fiona não me odeia tanto assim. Certo, isso é o que eu tenho para você. Seis estupros e quatro ataques sexuais graves. Como Fiona
disse, quero que você verifique se é pertinente acreditar que existe uma ligação entre alguns ou todos eles. Se você conseguir um grupo, quero ver o que o perfil
geográfico produz. E, se conseguirmos chegar a isso, aí quero que você insira outro local para ver o que acontece.
Terry ergueu uma sobrancelha. O gesto poderia parecer arrogante, mas, de algum jeito, ela conseguiu evitar passar essa impressão.
- O outro local está nos arquivos? Steve fez que não. - Não quero influenciar seu modo de pensar. Depois que os resultados saírem, a gente enfia com esse dado.
- Por mim, tudo bem. Para quando você precisa disso? Steve abriu as mãos. - Ontem? - Ontem custa mais. Mas, pelo preço combinado, posso fazer para amanhã. Com
uma condição.
Steve inclinou a cabeça ligeiramente, com uma expressão desconfiada. - Uma condição? - Você janta comigo amanhã. - O sorriso que ela deu foi como o flerte calculado
de uma mulher que espera conseguir as coisas a seu modo.
Steve sentiu o sangue queimar-lhe as bochechas. - Jantar com você? - É uma ideia tão esquisita assim? Ele se forçou a manter sua reserva profissional. - Só não
acho que seja uma boa ideia. - Por quê? Você não é casado, é? - Não, mas... - Então, qual é o problema?
- Não estou habituado a misturar trabalho e prazer - respondeu ele, ciente de que soava como a pessoa formal e rígida que pedira a Deus jamais se tornar.
- Onde mais pessoas como nós conhecem companhias interessantes para jantar? Não precisamos conversar sobre trabalho, você sabe - replicou Terry. - Não vou perguntar
sobre seus dez melhores casos se você não me pedir para explicar a teoria de Jean Piaget. Vamos lá, o que você tem a perder? Mesmo que o encontro acabe sendo um
desastre, serão apenas algumas poucas horas. E eu não conto nada a ninguém se você não contar.
Agradavelmente perplexo, mas ainda desconfiado, Steve correu a mão pelos cabelos.
- Isso tudo é muito repentino. Ela deu de ombros. - A vida é curta demais. A gente precisa aproveitar cada momento. - Mas por que eu? - Deus do céu, vocês,
policiais, sabem como fazer perguntas, não é mesmo? - Ela riu, os dentes brancos e perfeitos brilhando como os do Lobo Mau. - Porque você tem cérebro e senso de
humor, porque é um cara boapinta e não é um psicólogo fanático por computadores. Quatro bons motivos. Pois, então, vai jantar comigo ou não? Tudo bem se você não
quiser, vou aceitar. Já sou bem crescidinha. E prometo que vou fazer a sua análise, sem ressentimentos.
Steve balançou a cabeça, completamente desorientado pelo jeito como a reunião desviara de suas expectativas.
- Tudo bem, combinado - ouviu-se dizer, percebendo ao falar que a ideia era realmente excitante.
- Boa resposta, Steve. Eu te ligo amanhã, quando tiver alguma coisa, certo? - Ela esticou o braço para pegar a pilha de arquivos.
Entendendo isso como uma forma de mandá-lo embora, Steve se levantou.
- Ahn... e quanto ao jantar? Onde eu faço a reserva? De que tipo de comida você gosta?
Ela deu de ombros. - Você escolhe. Eu não como carne vermelha, mas adoro peixe. Nunca encontrei um tipo de comida de que não gostasse.
- Por que isso não me surpreende? Obrigado, Terry. - Ele atravessou o corredor em direção à escada que o levaria até o escritório de Fiona com um sorriso de orelha
a orelha. Não conseguia acreditar no que acabara de acontecer. Tinha sido pego de surpresa pelo carisma de uma estranha. Pusera de lado um de seus princípios mais
arraigados e agora se sentia mais leve do que se sentira em meses. Talvez sua sorte estivesse mudando, finalmente.
CONTINUA
21
Tal como os policiais, os bombeiros e os jornalistas, Fiona sabia que o humor negro era a forma mais rápida e eficiente de colocar uma distância emocional entre
ela e as coisas terríveis que seu trabalho a forçava a encarar. Assim, quando digitou o nome de Jane Elias em seu mecanismo de busca e ele sugeriu um site chamado
Rindo com as Celebridades Monas, não conseguiu resistir.
A morte de Jane entrara para o domínio público há menos de um dia, mas ela já ganhara a própria lápide em forma de desenho. Fiona clicou no nome de Jane. A tela
adquiriu uma moldura em forma de caixão. "Jane Elias matou cerca de 47 pessoas em seus sete romances. Alguns diriam que já estava na hora de ela descobrir qual
era a sensação. Nós não, é claro. Se você se sente ofendido com piadas sobre a morte, não continue a ler esta página." Fiona, claro, continuou. Até então, só
havia quatro piadas.
Por que Jane Elias tinha de morrer? Para finalmente conseguir colocar as mãos numa boa trama.
Quando os escritores começam um livro, eles sabem como vai terminar? Jane Elias com certeza não sabia!
O que São Pedro disse para Jane Elias quando ela chegou lá no céu? Então, Jane, quem é o culpado?
Qual foi o motivo do assassinato de Jane Dias? Cifras pelas quais vale morrer.
Só a primeira arrancava um sorriso, e mesmo assim um bem pequeno, ponderou Fiona, fechando o site e partindo para outros mais convencionais. O primeiro que verificou
fora criado por um fã. Sob a data, dizia apenas: "Jane Elias foi encontrada morta hoje. Este site está fora do ar em sinal de respeito."
Teve um pouco mais de sorte com a segunda opção, outro site criado por um dos devotados leitores de Jane. O assassinato estava relatado em detalhes e, logo abaixo,
havia uma série de links para outras áreas do site. Entre as opções, havia: Sua Vida, Álbum de Fotos, A Investigação, Livro de Condolências e Links Relacionados.
Fiona escolheu o Álbum de Fotos primeiro, curiosa para ver o que o criador do site tinha conseguido reunir, dada a notória timidez de Jane diante das câmeras.
Em primeiro lugar, a foto da capa, que só aparecera no romance de estreia. Era um rosto comum, do tipo que seria difícil descrever em termos que o diferenciassem
de milhões de outros. Cabelos castanhos na altura do queixo, repartidos à direita; sobrancelhas retas, olhos escuros, um nariz bastante comum e lábios cheios que
se curvavam num ligeiro sorriso, sem revelar nada. Ela usava uma camisa aberta no pescoço, deixando antever uma fina corrente de ouro. Fora as luzes louras e algumas
rugas em torno dos olhos, Jane estava exatamente idêntica à noite do jantar.
Em seguida, uma foto de sua turma do ensino médio. Seu cabelo estava mais longo, caindo reto até a altura dos seios pequenos, mas repartido do mesmo jeito. Aos
18 anos, Jane usava óculos feiosos de moldura grossa que faziam seus olhos parecerem desfocados. O rosto era mais cheio, quase gorducho. Se tudo o que Fiona conseguisse
descobrir se resumisse a isso, duvidava que fosse capaz de distinguir Jane no meio de uma multidão.
A terceira foto mostrava a escritora recebendo o primeiro de seus dois prêmios Edgar durante o jantar da Mystery Writers of America. O sorriso era largo e espontâneo
e ela parecia surpreendentemente elegante em um vestido de lantejoulas preto e justo.
A última foto do álbum revelava um lado totalmente diferente de Jane Elias. Tirada na linha de chegada de uma meia-maratona em prol da caridade, em Dublin, Jane
fora clicada em plena corrida, o short e a camiseta deixando antever as formas suaves dos músculos bem desenvolvidos, tanto nos braços quanto nas pernas. A câmera
a capturara em um momento favorável, ela expressava o êxtase de um atleta que consegue superar a barreira da dor. Estava mais atraente naquela foto do que em qualquer
outra, Fiona percebeu com indiferença.
Ao terminar de analisar as fotos, Fiona passou para o livro de condolências. Se estivesse envolvida na investigação, sugeriria à polícia que desse uma olhada nas
mensagens deixadas pelos fãs. Dada a tendência dos psicopatas de tentarem se inserir nas discussões sobre seus crimes, era o lugar óbvio para o assassino dar as
caras. As doze mensagens que Fiona verificou pareciam inofensivas o suficiente, mas ainda havia muito tempo para aparecerem coisas estranhas e bizarras. Marcou
a página, decidindo voltar a ela dali a um ou dois dias, a fim de ver se aparecia alguma coisa semelhante ao que encontrara nas cartas de Kit e Georgia.
Não havia nada mais no site que pudesse interessá-la; portanto, como uma criança que guarda o melhor da refeição para o final, foi direto para Murder Behind the
Headlines. Digitou "Jane Elias" no espaço de busca e apertou <enter>.
A rainha dos romances policiais sobre serial killers, Jane Elias, finalmente conheceu o sofrimento que impingiu a dúzias de vítimas em seus livros. Infelizmente,
ela não poderá lucrar com essa experiência, pois o homem - ou mulher - que a sequestrou se certificou de que ela não viveria para contar a história. O corpo de
Elias foi encontrado no início desta manhã por um guarda-florestal que a atropelou com seu caminhão. Seu corpo fora estrategicamente deixado no meio de uma estrada
secundária, logo após uma curva sem visibilidade, próximo à casa da romancista, em County Wicklow, Irlanda. A cena apresenta uma semelhança impressionante com
um dos locais de desova em Death on Arrival, o primeiro livro de Elias, cuja adaptação para o cinema rendeu um Oscar à sedutora Michelle Pfeiffer.
Segundo nossas fontes no laboratório legista de County Wicklow, os ferimentos de Elias assemelham-se bastante aos da sua vítima no livro, com a única diferença
de que foram infligidos após sua morte. Talvez o assassino fosse mais sensível do que a própria vítima. Eis aqui um trecho retirado do livro:
"A aguilhoada tardia de uma lâmina de barbear. O brotar de uma queimadura, de uma ardência abrasadora a uma dor excruciante que se espalha por todo o corpo enquanto
o cheiro de carne queimada exala no ambiente. A aflição dolorosa da carne forçada a se acomodar em menos espaço do que precisa. A dor nauseante de um osso quebrado
que nunca ganha tempo para se calcificar. A agonia embotada de um soco propositalmente mirado nos órgãos sob a pele."
Apavorante, não? Principalmente após o recente assassinato do escritor Drew Shand, em Edimburgo, Escócia, que também morreu de modo semelhante ao descrito em seu
livro, Copycat. Por mais improvável que pareça, os teóricos da conspiração já começaram a especular se alguém não estaria matando escritores de suspense especializados
em romances sobre serial killers. Isso é que é levar a crítica longe demais.
Mas a verdade talvez se encontre em outro lugar. O MBTH pode revelar com exclusividade que o maior segredo de Elias era o romance que mantinha há cinco anos com
o agente secreto Pierce Finnegan, uma das figuras-chave da força policial irlandesa, a Guarda Siochána, em sua luta contra o tráfico de drogas. Finnegan foi um
dos responsáveis por desbaratar uma importante rota de fornecimento de heroína no ano passado, e dizem que sua cabeça foi posta a prêmio pelos líderes do tráfico
que ainda aguardam julgamento. No momento, ele está trabalhando com a Europol, e possui fortes contatos entre as autoridades antidrogas americanas. Para sermos
francos, seu romance com Elias era um segredo muito mais bem guardado do que qualquer assunto pertinente à Guarda Siochána.
Elias conheceu Finnegan durante o período em que ele participou de uma convenção internacional para a equipe de inteligência criminal em Quântico. Segundo amigos,
ela assistiu anonimamente à convenção, a convite de uma empresa de softwares da Flórida que estava lançando um programa pioneiro de retratos falados. Durante a
convenção, ela conseguiu participar de várias sessões privadas, onde escutou uma palestra de Finnegan. Mais tarde, eles foram apresentados por amigos em comum,
e os dois rapidamente deram início
a uma forte relação pessoal. Nem mesmo os chefes de Finnegan sabiam de seu romance com Elias.
Em consequência disso, Elias se mudou para a Irlanda. Finnegan visitava regularmente a bem protegida propriedade da amada em County Wicklow, embora os habitantes
da região acreditem que nem mesmo a equipe de segurança da escritora soubesse a verdadeira identidade dele. Muitas vezes, ela o encontrava em segredo quando ele
estava viajando a serviço. Elias se hospedava no mesmo hotel e os dois compartilhavam noites de amor clandestinas. Assim, não há mistério quanto à origem de suas
tramas.
Há muitas especulações no momento de que a morte de Elias tenha sido um ato de vingança contra Finnegan ou um aviso para que ele largue o caso e destrua as provas
coletadas, comprometendo, assim, o julgamento. A morte de Drew Shand pode ter proporcionado ao assassino o plano perfeito. Finnegan receberia a mensagem sem que
isso fosse necessariamente ligado a nenhum dos casos investigados pela guarda. Claro que isso só funcionaria se o relacionamento deles continuasse sendo um segredo.
Desculpe, Pierce. Desculpe, sr. Assassino. Destruímos o disfarce de vocês.
LEMBRE-SE DE QUE VOCÊ LEU ISSO EM MURDER BEHIND THE HEADLINES
Fiona respirou fundo. Isso causaria um rebuliço se fosse verdade. Ter um amante que era um agente secreto antidrogas era um motivo muito mais plausível para um
assassinato tão violento do que a ideia de que um serial killer estava matando escritores. Sabendo como as agências de polícia investigavam os próprios oficiais,
Fiona tinha sérias dúvidas de que os chefes de Finnegan não soubessem do relacionamento dele com Elias, embora os dois, sem dúvida, tivessem feito um bom trabalho
em mantê-lo longe dos olhos do público.
Não conseguiu evitar se sentir aliviada. Embora seu raciocínio lógico se mostrasse relutante em aceitar a possibilidade de um assassino que queria livrar o mundo
dos escritores de suspense, seu lado emocional não conhecera nada além de medo desde que vira a manchete do jornal. Fiona conhecia muito bem as habilidades implacáveis
dos criminosos em série; a ideia de que Kit pudesse fazer parte da lista de um deles vinha lhe martelando a cabeça há
uma hora, e ela se sentia egoisticamente grata por haver uma explicação lógica para a morte de Jane que não envolvesse seu próprio amante.
Fechou o computador e desceu. Kit estava de volta na cozinha, derramando cuscuz numa panela de água fervente. Ele se virou e forçou um sorriso meio de lado.
- Dez minutos - informou. - Você conseguiu trabalhar? - perguntou Fiona, completando o cálice de vinho dele e enchendo o seu.
- Nada como a tragédia alheia para fazer as palavras fluírem - respondeu ele, num tom de voz cortante. - É como um mecanismo de defesa. Meu cérebro usa a escrita
para bloquear a estática. Enquanto eu olho para a tela e escrevo, não consigo pensar sobre o que a Jane deve ter sofrido antes que o cretino a deixasse morrer.
- Esse é o problema de ter uma imaginação fértil - observou Fiona. - Especialmente uma como a sua. Você não precisa nem se esforçar para criar uma centena de cenários
angustiantes. - Ela atravessou a cozinha, e ele se virou para aceitar seu abraço. - Os ferimentos foram provocados após a morte. Ela não foi torturada.
- Acho que devíamos nos sentir gratos por isso - murmurou Kit com a boca enfiada em seu cabelo. Afastou-se com delicadeza. - E então, o que você conseguiu desencavar?
- O ponto principal? Você não precisa se preocupar. - Ela se sentou à mesa e relatou sua pesquisa em detalhes.
- Você sabe o que eu penso desses fofoqueiros - protestou Kit. - Como pode ter certeza de que eles estão certos sobre o relacionamento dela com o agente secreto?
Talvez eles fossem só amigos. Talvez ele fosse apenas um contato que ela usava para coletar ideias e construir seus panos de fundo. Fiona deu de ombros. - Não
tenho como ter certeza. Mas sem dúvida eles têm boas fontes e as exploram ao máximo. Assim sendo, a menos que escutemos o contrário, eu aceitaria o que eles estão
dizendo sem grandes questionamentos.
- Mais fácil falar do que fazer - murmurou ele. - Tem uma coisa que pode ajudá-lo a se acalmar. Quando você ligar para os seus colegas para ver se alguém mais
recebeu alguma carta ameaçadora,
pergunte se eles por acaso sabem se a Jane recebeu uma. Caso contrário, então isso comprova ainda mais minha teoria de que as pessoas que escrevem ameaças de morte
não são as que matam.
- Talvez fosse melhor eu ligar para a polícia e perguntar a eles. - Ah, sim, claro. Como se eles fossem te contar! - Talvez contem para o Steve. Fiona fez que
sim, reconhecendo o bom-senso dessa observação. - Vou encontrar com ele amanhã à noite de qualquer jeito - continuou Kit, tirando os legumes grelhados do forno
e misturando-os ao cuscuz. Colocou a comida na mesa com um floreio e se sentou de frente para Fiona. - Vou perguntar se ele tem como descobrir se Jane recebeu
alguma ameaça de morte. Se não recebem, então você provavelmente está certa, e Georgia e eu não temos o que temer. Enquanto isso, prometo me precaver, sem ser
paranoico. Tudo bem assim?
Fiona sorriu. - Por mim, tudo. Mas, se alguém se aproximar de você com uma faca, nada de heroísmo. Fique na sua.
- O quê? Você não quer que eu resista e aja como um homem? - brincou. - Deus do céu, de jeito nenhum. Estou ocupada demais para tirar uma folga a fim de preparar
um funeral. - Fiona provou a comida. - Humm. Delicioso. Cuide-se, querido, eu nunca conseguiria substituí-lo na cozinha.
Kit fingiu ficar magoado. - Só na cozinha? - Se eu não comer diariamente, vou morrer. Eu sentiria falta de transar com você, mas isso não me mataria.
- Acha que não? - perguntou ele com uma expressão perigosa. - É melhor não conferir. Kit deu uma risadinha. - Boa resposta, doutora. Então, que tal uma boa noite
quietinhos em casa?
- Kit, a gente nunca fica quietinho em casa. Por que começar agora? - Ela ergueu uma sobrancelha de modo provocativo. - Mas eu não recusaria uma bela trepada.
- Você me convenceu, sua safadinha. - O sorriso de Kit prometia um sexo ardente.
Em pouco tempo, Jane Elias estaria fria sob a terra. Nenhum dos dois esquecera isso por um só momento. No entanto, manter os fantasmas afaastados era o melhor que
podiam fazer um pelo outro, e eles sabiam disso. Era, como tantas vezes ocorrera no passado, um acordo tácito.
22.
Georgia Lester estava sentada à mesa da cozinha com uma xícara de porcelana de um chá preto fraco entre as mãos, olhando sem ver através dos deploráveis arbustos
outonais para as macieiras desnudas no fundo do jardim de sua cabana. Não reparava nas plantas perenes que precisavam ser aparadas nem nas roseiras que seriam
podadas na próxima vez que o jardineiro aparecesse. Isso não era seu trabalho, tampouco lhe interessava. Só notava o jardim quando ele estava bonito. A feiura,
preferia descartar. Já havia coisas feias o suficiente em sua cabeça sem que precisasse acrescentar outras vindas de fora.
O que gostava em sua cabana era da paz. Ser Georgia Lester era cansativo. Precisava se esforçar constantemente para manter a imagem de elegância e beleza sofisticada
que o mundo esperava dela. Claro que fora ela própria quem criara essa expectativa, a invenção consciente de uma personagem cheia de estilo que a destacava do
resto da manada. Isso, porém, não facilitava as coisas, e agora, sempre que se olhava no espelho pela manhã, tinha a impressão de que a montanha ficava mais alta
a cada dia. Talvez estivesse na hora de outra visita ao charmoso médico da Harley Street que tinha feito um ótimo trabalho com a pele flácida sob seu maxilar.
No entanto, ali na cabana podia abstrair-se da necessidade de manter uma fachada. Bom, podia fazer isso quando estava sozinha, corrigiu-se, a lembrança fazendo
surgir um sorriso maroto nos cantos dos lábios. Uma
garota precisava se distrair de vez em quando e, por mais devotado que Anthony fosse, ele não podia proporcionar o estímulo de um corpo jovem e firme no auge de
sua energia sexual. Nenhum de seus flertes durava muito tempo, Georgia se certificava disso. Tampouco significavam mais do que uma espécie de transfusão de sangue
- algo necessário, porém, de alguma forma, impessoal.
Mas nesse fim de semana Georgia tinha um cronograma diferente. Nada de se arrumar para os amantes, apenas trabalhar em suas revisões. Ao contrário da maioria dos
escritores que conhecia, adorava o processo revisor. Ele permitia que ela se distanciasse do feijão com arroz que era colocar o primeiro esboço no papel, e se concentrasse
na qualidade do texto em si. Estabelecera a reputação de ter uma prosa elegantemente construída, e achava que isso era decorrente de sua atenção às minúcias de
cada frase, que davam forma ao livro. Tinha três dias para realizar seu trabalho favorito, e estava ansiosa por isso.
No momento, Georgia pensava no trecho do livro que pretendia revisar dali a pouco. A prova impressa já estava sobre sua escrivaninha, ao lado da caneta-tinteiro
Mont Blanc Meisterstück que sempre usava ao fazer as revisões, e que mais tarde a secretária passaria para o computador. Não ia nem se incomodar em se vestir ainda.
Perambularia pela casa em sua felpuda camisola, o cabelo preso num turbante de seda, até a hora do almoço. Então, entraria na banheira ao som de The World at One.
Um sanduíche de almoço e depois seguiria para Dorchester. Tinha comida suficiente no congelador, porém o vinho branco acabara de forma inexplicável, e jantar sem
uma taça de Chablis gelado era impensável. Acreditava piamente que os escritores precisavam de uma rotina disciplinada. E isso incluía os pequenos prazeres da
vida, assim como os hábitos mentais que lhe permitiam publicar um livro por ano.
Georgia terminou de beber o chá e encheu a xícara novamente. Planejava aproveitar ao máximo aqueles três dias. Ao final deles, ingressaria num tour para promover
seu último livro. Pensar nisso a fez lembrar que ainda não conseguira persuadir seu editor a incluir no orçamento o belo guardacostas que contratara antes de sair
de Londres. Não achava que alguém estivesse atrás dela, não de verdade, apesar de seus protestos para o querido e doce Kit de que eles deveriam mostrar aquelas
irritantes cartas à polícia.
Contudo, não fazia objeções a tirar vantagem dessa possibilidade. Não fazia mal algum manter seu nome na boca do público. A ideia de que ela era importante o suficiente
para despertar a atenção de um possível assassino inevitavelmente atrairia novos leitores, ávidos em descobrir o que havia de tão especial nela. E, uma vez atraídos,
Georgia estava profundamente convencida de que eles continuariam a devorar toda a sua lista de livros já publicados.
Alcançara o topo da lista dos mais vendidos graças a planos astutos como esse. Tinha consciência de que sua atitude era malvista por muitos de seus colegas. Não
dava a mínima para isso. Eles podiam fingir o quanto quisessem que eram nobres demais para empregar esse tipo de tática. Na verdade, estavam apenas com inveja
do espaço que ela ocupava na mídia.
Sem saber que estava prestes a gerar a maior publicidade de sua carreira, Georgia bebericou o chá, sentindo-se muito, muito satisfeita consigo mesma.
23.
Fiona estava atrasada. Literalmente. Evitando os alunos, entrou como um tufão na sala da secretária.
- Maldita Nopthern Line - disse, ofegante, lutando para tirar o casaco e abrir a porta do seu escritório ao mesmo tempo. Entrou, soltou a jaqueta e a maleta, e
pegou a pasta de anotações para a reunião do departamento que havia começado há cinco minutos; sua secretária a seguiu.
- Tem um policial espanhol tentando falar com a senhora - informou ela. Consultou o papel de recados que tinha na mão. - Um tal de major Salvador Berrocal. Ele
já ligou três vezes na última meia hora.
- Merda, merda, merda! - murmurou Fiona com raiva. - Ele pediu que a senhora retornasse a ligação o mais rápido possível - acrescentou a secretária de maneira
prestativa, enquanto Fiona hesitava entre sua mesa e a saída. - Parecia urgente.
- Não posso faltar à reunião - replicou Fiona. - Barnard está tentando se livrar de metade das suas turmas, e não quero que elas acabem nas minhas mãos. - Correu
a mão pelo cabelo. - Certo. Ligue para Berrocal e diga a ele que estou ocupada, mas que ligo assim que puder. Desculpe, Lizzie, preciso correr.
Fiona atravessou correndo o corredor e parou de maneira abrupta em frente à sala de reuniões, atraindo olhares curiosos daqueles que só conheciam seu jeito elegante
e controlado. Parou por um momento, ajeitou o
cabelo e respirou fundo para se recompor, em seguida entrou com um sorriso de desculpas.
- Desculpem, culpa do metrô - murmurou, assumindo seu lugar na mesa de conferências. O professor Barnard nem sequer titubeou no meio de sua explicação complicada,
tampouco dirigiu-lhe um simples olhar.
Fiona teve a sensação de que aquela estava sendo a reunião mais longa da história, e teve de se esforçar para não demonstrar inquietação enquanto eles discutiam
os aparentemente infindáveis problemas do departamento. Conseguiu conter sua impaciência, recusando-se a permitir que a presença dominadora de Barnard acabasse
induzindo-a a aceitar mais do que uma turma adicional. No entanto, mesmo enquanto apresentava seus argumentos de defesa, parte de sua mente pensava na mensagem
urgente de Berrocal. Ele devia estar com um suspeito sob custódia. Pelo menos, era o que ela esperava.
Assim que a reunião terminou, Fiona juntou seus papéis e saiu dali, o que lhe garantiu algumas sobrancelhas levantadas e uma troca de olhares maliciosos por parte
dos colegas que preferiam evitá-la por considerarem-na arrogante em excesso. De volta ao escritório, pediu a Lizzie que segurasse suas ligações, e começou a discar
o número de Berrocal antes mesmo de se sentar.
- Major Berrocal? - perguntou quando o telefone foi atendido no segundo toque.
- Si. Dra. Cameron? - Seu tom não dava a menor pista sobre a natureza das notícias.
- Sinto não ter ligado antes, mas estava ocupada - falou rápido. - O senhor conseguiu alguma coisa?
Ele suspirou: - Não o que eu esperava. Infelizmente, temos outro assassinato. Fiona sentiu um baque. Havia temido tanto essa notícia que se recusara a pensar
nela como uma séria possibilidade.
- Sinto muito por escutar isso - falou, reconhecendo a inadequação das palavras.
- Estou ligando para saber se a senhora pode vir a Toledo de novo e nos prestar uma nova consultoria. Talvez as informações desse último
assassinato possam ajudá-la a determinar o local onde devemos procurar nosso suspeito agora.
Fiona fechou os olhos.
- Sinto muito - respondeu, esperando que ele percebesse o pesar genuíno em sua voz. - No momento é impossível. Tenho muitos compromissos aqui que não posso adiar.
Fez-se um silêncio pesado. Em seguida, Berrocal falou: - Temia que a senhora dissesse isso.
- Mas posso examinar as informações se o senhor me enviar os detalhes por fax - prosseguiu ela, o senso de dever falando mais alto do que a razão.
- Isso seria possível? - Estou com a agenda apertada, mas tenho certeza de que posso encontrar um tempo para analisar o material - assegurou-lhe, já imaginando
como faria isso.
- Obrigado. - O alívio na voz dele foi evidente mesmo por telefone. - Talvez o senho pudesse me passar o essencial agora? - pediu ela, pegando um bloquinho de
anotações e prendendo o telefone entre a orelha e o ombro.
- O corpo foi encontrado dentro do pátio do Alcázar. - A voz de Berrocal tornou-se fria e impessoal. - Uma inglesa, Jenny Sheriff. Vinte e dois anos, de Guildford.
- Ele dividiu o estranho nome do lugar em duas palavras. - Ela estava fazendo um intercâmbio de um ano para melhorar seu espanhol e trabalhava como recepcionista
no Hotel Alfonso VI. Seu turno terminou às dez da noite de ontem e ela contou a uma colega que ia se encontrar com um homem para tomar um café na praça. Falou
que ele era fascinante, que conhecia profundamente a história de Toledo.
- Ela mencionou o nome dele? - perguntou Fiona. - Não. Encontramos um barman que disse ter servido café e conhaque para ela e um homem um pouco depois das dez.
Ele se lembrava porque já a tinha visto várias vezes antes, bebendo com amigos. No entanto, não poderia reconhecer o homem que a acompanhava porque ele estava
sentado de costas para o bar. O barman não se lembra de tê-los visto sair, pois estava ocupado atendendo um grupo de turistas que havia acabado de entrar.
- Quando ela foi encontrada?
- Hoje de manhã. O zelador que abre os portões para o restante da equipe do Alcázar encontrou a entrada dos empregados destrancada. Quando ele entrou no pátio,
viu-a deitada lá. Ela foi esfaqueada diversas vezes na barriga. Segundo o relatório preliminar, a arma do crime foi uma baioneta. A morte assemelha-se à dos muitos
republicanos assassinados pelas forças de Franco quando eles aliviaram o cerco ao Alcázar durante a Guerra Civil. Isso combina com o tema que a senhora identificou
de cenários turísticos associados a mortes violentas. Há também outra conexão. Tal como Martina Albrecht, a vagina de Sheriff foi mutilada após a morte por repetidas
inserções de uma garrafa quebrada. E, por fim, encontramos também um mapa turístico da cidade, oferecido pelo hotel, em seu bolso. Por tudo isso, acho que não
resta dúvidas de que estamos lidando com o mesmo homem. Delgado ou seja lá quem for. - A voz dele mostrava-se irritada de tanta frustração.
- Nenhum sinal de entrada forçada? - indagou Fiona. - Não. Aparentemente, ele tinha as chaves. Estamos trabalhando nisso. Ele talvez tenha um amigo com acesso
às chaves, ou então as adquiriu de alguma outra forma. Vamos checar as casas de todas as pessoas que têm uma cópia dessas chaves. É possível que ele esteja se
escondendo próximo a uma delas. Ele pode ter arrombado alguma dessas casas e pego as chaves.
Fiona suspirou: - Sinto muito por escutar isso, major. Quando o senhor me contou que tinha um suspeito, achei que esse seria o fim.
- Eu também. Mas Delgado parece ter desaparecido no mapa. Todos os policiais da cidade estão com o nome e uma foto dele, mas até o momento não temos nenhuma pista
de seu paradeiro.
- Deve ser muito frustrante para o senhor. - Ela franziu o cenho enquanto falava, tentando resgatar algo em seu subconsciente.
- É mesmo. Mas não vamos desistir. Vou lhe enviar o material por fax assim que estiver disponível.
Depois de desligar, Fiona permaneceu com os olhos fixos na parede, esperando que seu subconsciente colocasse para fora o que quer que estivesse se escondendo ali.
Não veio nada. O telefone tocou de novo, trazendo-a de volta para as exigências imediatas do trabalho que deveria estar fazendo.
Apesar de todo o esforço para se concentrar, apenas parte de seu cérebro se mostrava focado na aula daquela manhã. O problema de Berrocal aninhara-se em um canto
de sua mente. Frustrada por não conseguir trazer para a superfície o que quer que a estivesse incomodando, Fiona passou o horário de almoço na piscina, nadando
de um lado para o outro de maneira distraída, tentando alcançar o estado de semitranse que o exercício podia produzir. Ainda assim, algo lhe escapava.
Enquanto andava de volta para o departamento, tentou invocar na mente a imagem do Alcázar. Talvez isso a ajudasse a resolver o quebracabeça. O prédio imponente
ficava no ponto mais alto da Cidade Velha, o lugar perfeito para uma fortaleza, uma situação que fora explorada por cada força que o ocupara desde a época dos
romanos. Ele dominava a cidade, maior do que qualquer outra coisa em sua linha de visão, com uma geometria quadrangular que parecia repreender a aparência desordenada
dos prédios que pontilhavam a descida dos morros em direção ao Tejo.
No entanto, o palácio nunca tivera sorte. Fora incendiado diversas vezes e seriamente danificado, durante a Guerra Civil, ao ser bombardeado pelos homens de Franco
por meses a fio. De longe, era uma visão austera, com paredes aparentemente desprovidas dos ornamentos decorativos encontrados em seus dois maiores rivais, a catedral
e San Juan de los Reyes. Sua severidade só era amenizada pelas quatro torres arredondadas que decoravam os cantos, cada qual com um beiral à la castelo da Disneylândia.
Dentro das paredes altas, o negócio era diferente. Cada uma das fachadas externas era decorada com um estilo arquitetônico distinto. Fiona nunca visitara o Alcázar,
mas já tinha visto fotografias e achava quase um absurdo que um prédio com um estilo tão elaborado acabasse servindo como quartel-general e museu do Exército.
Ainda assim, o palácio acabara de ganhar mais outro episódio em sua história sangrenta. Agora era o cenário de um crime. O lugar de descanso da última vítima de
um assassino implacável que ela, Fiona, deveria ajudar a capturar. Um objetivo que, pelo visto, ainda faltava bastante para ser alcançado.
Apesar do esforço, sua mente se recusava a liberar a inspiração e, lá pelas tantas da tarde, Fiona desistiu de tentar. Resolveu trabalhar até tarde e lidar com
a correspondência que se acumulara em proporções perigosas
sobre sua mesa. Kit ia sair, primeiro para uma noite de autógrafos numa livraria, seguido por um drinque com Steve, portanto não havia pressa em Ir para casa. Quando
finalmente deixou o escritório, deparou-se com dois professores de meio período do curso de antropologia que a convenceram a Ir tomar um drinque no clube dos funcionários.
Fiona tomava sua segunda taça de vinho quando o assunto mudou de rumo. Dois de seus colegas estavam ridicularizando as ideias de um terceiro sobre os costumes
fúnebres da África Ocidental. Uma corrente elétrica cruzou o cérebro de Fiona e, de repente, ela lembrou o que precisava dizer a Berrocal. Murmurando uma desculpa,
levantou-se e voltou correndo para seu escritório.
Quando finalmente conseguiu falar com a polícia espanhola, Berrocal já tinha ido embora. Fiona não quis que um subalterno anotasse a mensagem com seu palpite,
sabia o quanto ele soaria bizarro. Da mesma forma, não queria esperar até a manhã seguinte. Ligou o computador e abriu direto o programa de e-mail.
De: Fiona Cameron <fcameron@psych.ulon.ac.ulc
Para: Salvador Berrocal <Sberroc@cnp.mad.es>
Assunto: Re: Assassinatos de Toledo
Caro major Berrocal,
Andei pensando sobre onde seu suspeito pode estar se escondendo, e uma ideia me ocorreu, embora provavelmente seja um tiro no escuro. Como sabemos, ele é obcecado
pela história de Toledo, a qual, em sua mente, está conectada com as mortes. Onde a morte e a história se cruzam? Nos cemitérios. Fiquei imaginando se há, em Toledo
ou perto da cidade, cemitérios com grandes tumbas ou câmaras mortuárias. Se houver, talvez ele esteja escondido numa delas. Sem dúvida, ele encontrou alguma espécie
de abrigo, visto que continua com uma aparência decente o bastante para não atrair a atenção. Acredito que ele possa ter invadido algum mausoléu ou jazigo de família,
que está usando como sua base de operações.
Se o senhor não tiver mais nenhuma pista, talvez valha a pena averiguar essa possibilidade. Estarei em casa mais tarde e pretendo analisar o material que o senhor
prometeu me enviar
Boa caçada!
Atenciosamente,
Fiona Cameron
24.
Kit fechou o último livro com um floreio e largou a caneta.
- Obrigado, querida - falou para a vendedora que afastou a pilha de livros de capa dura para o lado.
- Você se incomoda de autografar alguns dos livros de bolso também? - perguntou a mulher.
- Com grande prazer. - Ele olhou de relance para Steve, que verificava a seção de romances policiais baseados em fatos reais. - Não vou demorar - avisou.
- Sem problema - replicou Steve, pegando na prateleira um livro sobre patologia forense.
- Acho que foi uma noite proveitosa - comentou Kit de modo distraído enquanto autografava.
- Foi ótima. - A vendedora estava entusiasmada. - Foi a primeira vez que organizamos uma semana inteira de eventos temáticos, e o resultado foi fabuloso. Aumentamos
as vendas, não apenas durante os eventos, mas de dia também.
- É porque vocês sabem como promover o negócio - respondeu Kit. - As vitrines são chamativas, e isso atrai os compradores. Tivemos uma boa audiência hoje à noite.
A mulher fez uma careta. - Com exceção do maluco da primeira fila.
- Tem sempre um maluco.
- Eu sei, mas a forma como ele falou do Drew Shand e da Jane Elias... um louco. Isso não o preocupa, que malucos assim leiam seus livros? Kit se levantou e deu
de ombros.
- Na verdade, não. É com os que ficam calados que você precisa se preocupar. Não é mesmo, Steve?
Steve ergueu os olhos, assustado. - Desculpe, sobre o que você estava falando, Kit? - Estava dizendo que não são os malucos falastrões que precisam ser observados
de perto. Os que realmente causam problemas são os que não demonstram ser candidatos ao hospício. Steve fechou o livro.
- É verdade. Os assassinatos perfeitos são cometidos por pessoas espertas o bastante para fazerem com que pareçam acidentes, e controladas o suficiente para ficarem
de bico calado. Kit bufou:
- Ao contrário daquele sujeito de Sheffield que cortou a cabeça da mulher e depois a levou para a namorada, a fim de provar o quanto a amava.
A vendedora estremeceu. - Isso é invenção sua. - Gostaria que fosse. Em geral, a realidade é muito mais horrível do que até mesmo a ficção dele - observou Steve.
- Já acabou, Kit?
Ao saírem da livraria, Kit e Steve desceram a rua em um silêncio amigável. Seguindo um acordo tácito, entraram no primeiro pub que Kit classificava como decente,
um estabelecimento no qual não haviam sido poupados gastos para fazê-lo parecer com um típico bar da década de 1930, com piso de tábua corrida e cadeiras de madeira.
Só faltava a serragem sobre o chão. Enquanto abriam caminho até o balcão, Kit finalmente falou:
- Você não acha que existe alguma conexão entre os assassinatos de Drew Shand e Jane Elias, acha?
- Não sei o suficiente sobre nenhum dos casos para especular - respondeu Steve. Ele abriu espaço entre os fregueses e atraiu o olhar da atendente. - Duas canecas
de cerveja preta, querida.
Kit riu.
- Conhecimento de menos nunca impediu Fiona. Ela acredita que isso é tão provável quanto o Manchester United perder a liderança do campeonato. Mas ela pode estar
dizendo isso só para eu não me preocupar.
Steve tomou um gole da cerveja e deu uma risadinha. - Você acha que eu vou contradizê-la? E arriscar invocar a ira de Deus sobre minha cabeça?
- Sabe qual é o seu problema, Stevie? Você deixa Fiona escapar impune com coisas demais. Você acata o que ela diz como não faz com nenhuma outra pessoa. Só que,
com uma mulher como a Fiona, não se pode ceder tanto assim. Dê-lhe espaço e, antes que perceba, ela estará dominando o mundo inteiro. - Velhos hábitos são difíceis
de largar - retrucou Steve, ciente de que Kit estava marcando seu território de maneira tão óbvia quanto um gato macho. Sabia que o companheiro estava certo. Na
época em que se tornara amigo de Fiona, não percebera que ela precisava de alguém que a enfrentasse e a desafiasse. Agora era tarde demais para mudar. E pior:
esse se tornara o padrão de todos os seus relacionamentos com mulheres. Podia ser duro com as colegas de trabalho e as subordinadas, sem nunca fazer concessões
em razão do sexo. No entanto, quando o assunto era romance, Steve voltava a ser o bobalhão que não havia conseguido conquistar Fiona. Não gostava disso, mas não
tinha tempo nem motivação suficientes para tentar mudar. Mesmo que pudesse, Steve pôs esse pensamento de lado e voltou sua atenção para o que Kit estava dizendo.
- Não preciso que seja indulgente comigo. Só quero que me diga se você acha que eu devo me preocupar com essas cartas ameaçadoras.
Eles se mudaram para uma das mesas do canto que, por experiência, sabiam ser a menos barulhenta do lugar. Ali poderiam conversar sem arriscar uma dor de garganta
e sem atrair ouvidos curiosos. Steve tirou um charuto do bolso da camisa e o acendeu. - Repete tudo, Kit. Não escutei direito com aquela barulheira toda do bar.
Kit sacudiu a cabeça. - Você não estava ouvindo. Estava distraído, pensando em mulheres.
Eu estava falando das cartas ameaçadoras que alguns escritores de suspense estão recebendo. Eu recebi uma, Georgia recebeu outra. Fiona me sugeriu
que perguntasse se alguém mais havia recebido também, e mandei alguns e-mails hoje para verificar exatamente isso. Até o momento, três outros já confirmaram. Jonathan
Lewis, Aclara Chester e Enya Flannery. E meu agente recebeu uma também. Todas elas parecem ter sido escritas pela mesma pessoa. Além disso, Enya e Jonathan disseram
que encontraram mensagens semelhantes em suas secretárias eletrônicas. Só que a voz estava abafada demais para um possível reconhecimento, mesmo que eles conhecessem
a pessoa.
- E você quer saber se é possível que esses dois assassinatos estejam ligados? Se existe alguém à solta com raiva de escritores de suspense? - Steve tentou não
demonstrar a incredulidade que sentia. Sabia que Kit tinha um ego saudável com relação a seu trabalho, mas não podia acreditar que ele e seus colegas realmente
pensassem que eram importantes o bastante para transformar alguém em um serial killer.
- Bom, isso me passou pela cabeça - admitiu Kit. - Não acho que seja tão fora de propósito assim, dadas as circunstâncias. Uma carta raivosa é fácil de descartar,
mas seis me incomodam um pouco. Fiquei pensando se você não poderia ligar para os seus colegas no outro lado do Mar da Irlanda e verificar se Jane Elias recebeu
uma dessas ameaças de morte.
- Kit, todos os jornais estão falando dessa história sobre o relacionamento de Jane Elias com o tal oficial da Guarda Siochána. Francamente, eu diria que isso tem
muito mais a ver com o assassinato dela do que qualquer outra coisa. Pelo que escutei, Pierce Finnegan fez um monte de inimigos no decorrer dos anos, tanto dentro
do QG quanto fora. Não há forma melhor de se atingir um policial do que pegar quem ele ama. Assim, não, não acho que você deva perder seu sono imaginando que alguém
possa estar atrás de você.
- Mas você pode ligar assim mesmo? Só para que eu e Fiona possamos tirar isso da cabeça? - Kit olhou para Steve por cima da borda da caneca. Se ele não fizesse
isso pela amizade, faria por suas curiosas noções de amor nobre. Kit poderia apostar nisso.
- Vou ver o que consigo descobrir - concordou Steve. Sabia que estava sendo manipulado, mas não estava com disposição para brigar contra isso.
Kit fez que sim, satisfeito.
- Isso é tudo o que eu queria escutar. Fiona disse que não acha provável que exista uma conexão, mas não tenho certeza se ela realmente pensa isso ou se está só
dizendo para não me assustar. Às vezes sinto que ela me considera uma florzinha frágil que precisa ser protegida do vento e da chuva.
Steve cuspiu a cerveja que tinha na boca sobre a mesa. - Pelo amor de Deus, Kit. Você é tão frágil quanto a ponte Forth. Antes que Kit pudesse responder, a paz
deles foi quebrada pelo aviso de que uma banda irlandesa ia começar a tocar. Kit terminou de beber a cerveja e se levantou.
- Vamos embora. Vamos para minha casa, são só dez minutos de canilnhada.
Nenhum dos dois notou o homem barbudo que havia se sentado nos fundos da livraria abandonar sua caneca meio cheia de Guinness e segui-los a uma distância segura.
Ele havia saído da livraria antes dos autógrafos e esperara pacientemente, sob uma marquise próxima, Kit e Steve saírem. Descera a rua atrás deles e, ao vê-los
entrar no pub, esperara do lado de fora por tempo suficiente para que os dois comprassem as bebidas e se sentassem. Em seguida, juntara-se a três outros homens
que seguiam para o pub, comprara uma cerveja para si e conseguira um lugar de onde via a cabeça de Kit e o perfil de Steve.
Agora, seguia os dois pelas ruas escuras, tomando cuidado em manter uma boa distância. Sorriu consigo mesmo. Sua cautela era perda de tempo. Os idiotas não faziam
ideia de que estavam sendo seguidos. Quando eles atravessaram um portão, parou e fingiu amarrar os sapatos. Em seguida, continuou a descer a rua, olhando de relance
para o lado ao passar pela casa onde os dois haviam entrado. Não conseguiu evitar sentir um espasmo de raiva invejosa ao notar a elegante residência. Se seu plano
desse certo, Kit não aproveitaria sua vidinha calma e confortável por muito mais tempo. Tinha planos de deixar as coisas bem menos confortáveis para o sr. Sanguinolento
Marfim
Ao entrarem em casa, eles encontraram Fiona terminando de comer o penne à la puttanesca que Kit deixara para ela.
- Vocês chegaram cedo - comentou Fiona. - A gente achou que podia tentar pegar você com seu amante secreto - brincou Steve.
Fiona mostrou-lhe a língua. - Tarde demais. Ela acabou de sair. - Os irlandeses invadiram o pub - falou Kit. - Você sabe como eu odeio aquela maldita música caipira.
- Pegou duas garrafas de cerveja preta Sam Smith Organic no armário de bebidas. - Portanto, decidimos voltar para casa e estragar a sua noite.
- Chegaram tarde demais para isso também. Salvador Berrocal me ligou mais cedo para dizer que encontraram outro corpo em Toledo; então, andei analisando os relatórios
sobre a cena do crime e inserindo os dados no computador em vez de me deliciar com um bom e longo banho de banheira.
Kit fez uma careta. - Que merda! - Como foi o evento? - perguntou Fiona. - Nada mal, se levarmos em conta que eu não estava promovendo um novo livro. Vendi
algumas cópias e autografei todos os exemplares que havia na livraria.
- Ele está sendo modesto de novo, Fi. Kit os tem na palma da mão. Eles o amam. Todas as mulheres querem levá-lo para casa, e os homens querem convidá-lo para uma
cerveja - interveio Steve, sentando-se de frente para ela.
- E vocês são os dois sortudos - falou Kit. - Em algum lugar da sua juventude, ou infância...
- Nós devemos ter feito algo terrivelmente grave.*6 - retrucou Fiona. - Como vão as coisas com você, Steve?
Ele balançou a mão como quem diz mais ou menos. - Tivemos sorte com um ataque racista em Brick Lane. Temos três suspeitos sob custódia, e um deles está cantando
como uma diva. Isso foi o que
6 Referência à música "Something Good", do filme A Noviça Rebelde: "So somewhere in my youth or childhoocV I must have done something good." No entanto, aqui, Fiona
faz uma brincadeira no final da estrofe, mudando um pouco o sentido. (N. T.)
aconteceu de melhor. Blake ainda não voltou da Espanha, mas demos uma olhada nas finanças dele e não há nada que indique nenhuma chantagem. O único depósito substancial
em sua conta bancária provém da venda da história para os jornais. Ele retirou uma boa parte dessa quantia em dinheiro, que provavelmente está gastando na Espanha.
- Malditos tabloides. Deixam a gente enojado - comentou Kit. Fiona suspirou: - Tecnicamente, ele é inocente. Não há nada que os impeça de pagar a ele pela história.
- Ele não é inocente se testemunhou Susan Blanchard ser morta e não disse nada - protestou Kit.
- Não temos certeza disso. É apenas minha teoria. - Ela lembrou-lhe. Ao ver que ela havia acabado de comer, Steve pegou um charuto e o acendeu.
- Mas eu segui meu próprio conselho e passei em revista as testemunhas de novo.
- Alguma sorte? - perguntou Fiona. - Bom, ainda é cedo para dizer, mas talvez haja algo. Reli as declarações originais e percebi que uma mulher mencionou ter visto
um ciclista vindo da direção da cena do crime. Ela estava passeando com o cachorro, e percebeu o ciclista porque ele estava indo muito mais rápido do que o normal
para as bicicletas no Heath. A gente não verificou isso na época porque Blake logo surgiu como um forte suspeito.
Fiona franziu o cenho. - Lembro de ter percebido isso quando ainda estava oficialmente no caso. Acho que cheguei a mencionar o fato em meu relatório preliminar
- disse, pensativa.
- Pois então você a interrogou de novo? - perguntou Kit. - Fui vê-la pessoalmente - admitiu Steve. Ele levantou as mãos para impedir o protesto de Fiona. - Sei
que é patético, um detetive da minha estirpe tomar o depoimento de uma testemunha, e sei que devia ser capaz de delegar o trabalho, mas, se ferrarmos com tudo
de novo e eu tiver que arcar com as consequências, pelo menos serão as consequências dos meus próprios atos.
- E o que ela disse? - indagou Fiona.
- A mulher não tinha muito a acrescentar. Ela já tinha passado da área onde ocorreu o assassinato e se culpa porque estava usando um walkman. Está convencida de
que, se não estivesse escutando o Réquiem de Mozart, teria ouvido alguma coisa e poderia ter soado o alarme. De qualquer forma, dez minutos depois, uma bicicleta
passou por ela em alta velocidade. Ela notou o fato em parte porque não é permitido andar de bicicleta naquela área do Heath àquela hora, embora algumas pessoas
desrespeitem as regras. Mas o que realmente chamou sua atenção foi a velocidade. Ele parecia um alucinado, disse ela.
Fiona suspirou:
- Então, sem chances de conseguirmos uma descrição decente. Steve fez que não.
- Infelizmente, não. Ela apenas o viu de costas e não conhece nada a respeito de bicicletas, portanto não sabia dizer nem se era uma bicicleta de corrida ou uma
mountain bike. Ela lembra que ele estava de capacete e usava roupas de ciclista. Bermuda preta e uma camiseta escura. Talvez roxa ou azul-marinho, ou marrom.
- Isso facilita muito as buscas - ironizou Kit. - Contudo... - Steve ergueu um dedo e sorriu. - Ela concordou em ser hipnotizada para ver se tem algo mais em seu
subconsciente sobre esse ciclista. Além disso, quando entrevistamos de novo as outras testemunhas que se apresentaram e perguntamos se tinham visto algum ciclista
naquele dia, conseguimos mais um resultado. Uma babá estava sentada ao pé do mono quando ele passou por ela. Ela disse que ele estava indo tão rápido que achou
que não fosse conseguir fazer a curva, mas ele conseguiu e continuou em direção à saída para a Heath Road.
- Como vocês deixaram isso passar na primeira vez? - perguntou Kit, sempre disposto a colocar Steve numa situação difícil, apesar da amizade entre eles.
Steve pareceu envergonhado. - Ela é filipina. Seu inglês é ótimo, mas não é sua língua materna. Quando falamos com ela antes, não tínhamos um tradutor. O detetive
que conduziu a entrevista preliminar achou que ela não tinha nada de útil a acrescentar, portanto não se incomodou em marcar uma segunda entrevista com um tradutor.
Dessa vez, fizemos direito.
- E você conseguiu algo de útil agora? - quis saber Fiona. Steve tomou um longo gole direto da garrafa e fez que sim.
morinc Ela lembra aue ele estava usando óculos, capacete e roupas escuras. Acha que era uma mountain bike. Disse que parecia com a que seu patrão tem. Identificamos
o fabricante e o modelo, embora ela possa estar enganada, é claro. - É uma boa memória depois de todo esse tempo - ponderou Fiona.
- Quanto tempo levou para ela se lembrar de tudo isso?
- Foi bem rápido - respondeu Steve, com certa amargura. - Assim que perguntamos sobre o ciclista, ela começou a sacudir a cabeça de maneira afirmativa e ficou
bastante excitada. Disse que havia tentado contar ao policial que a entrevistara antes, mas, tão logo ele percebeu que ela não tinha visto Blake, perdeu o interesse.
Em nossa defesa, preciso dizer que ela não respondeu à primeira convocação das testemunhas. Ela levou dez dias ou mais para se apresentar. Seus patrões estavam
viajando na semana do assassinato, e ela se sentiu nervosa em ir até a polícia sem a permissão deles. Então, quando finalmente conversamos com ela, Blake já se
tornara o principal suspeito. - Não é uma boa defesa - comentou Kit. - E você tem a audácia de
ficar irritado quando insiro um detetive palerma em meus livros de vez em quando. Tudo bem, mas e agora?
Steve brincou com seu charuto. - Estou tentado a falar com Blake e pedir a ele que dê uma declaração como testemunha.
Kit quase se engasgou com a risada. - Já posso até imaginar a declaração dele. Aposto que ela vai conter as palavras "sai" e "fora".
Steve deu um soco de brincadeira no ombro do amigo. - Não meça as palavras, Kit, diga-nos o que realmente pensa. Ignorando-os, Fiona falou de modo pausado: -
Você precisaria tomar muito cuidado. A posição de vocês perante o público é de que não estão procurando ninguém no momento. Se você convocar Blake para um interrogatório,
ele poderia facilmente declarar assédio, uma vez que, como você próprio admitiu, o caso está fechado. E, se vocês tentarem se defender dizendo que ainda estão
interrogando possíveis testemunhas,
irão alertar o verdadeiro assassino. Ele saberá que está sendo procurado com mais vigor do que antes.
- Mas teríamos como comparar o que temos com o que Blake vier a nos dizer - argumentou Steve.
- Acho que Kit está certo. Ele não vai lhes dizer nada de útil - observou Fiona, fazendo que não. - Ele tem muito a perder se tiver realmente testemunhado o assassinato.
- Ela usou os dedos para enumerar os argumentos. - Primeiro, ele se arrisca a ser acusado por obstrução da justiça, já que não revelou o que sabia durante todo
esse tempo. Segundo, perde a chance de chantagear o assassino caso saiba a identidade dele. Terceiro, perde a força de sua fantasia secreta. E quarto, perde o
protesto público de inocência que já lhe garantiu uma boa soma em dinheiro por parte dos jornais, e o restante que virá com a indenização que irá receber do Ministério
do Interior.
- Então, se fosse você, o deixaria em paz - resumiu Steve. Fiona ergueu as sobrancelhas. - Eu não disse isso. Só falei que não o interrogaria a respeito do assassinato.
Steve sorriu. - Por outro lado, se a divisão de tráfego descobrir que Blake atravessa a King's Cross a 50 quilômetros por hora, vai querer checar se ele não andou
bebendo...
Kit fez que não, fingindo sofrimento. - Isso seria assédio - observou. - Só se não soubermos fazer direito. E pretendo vigiá-lo de perto quando ele voltar para
casa.
Fiona meneou a cabeça em aprovação. - É uma chance remota, mas ele talvez os leve direto ao assassino. Steve ficou sério. - Já vi chances mais remotas darem resultado.
Acreditem em mim: se Francis Blake tiver algo a esconder, vou descobrir.
25.
Steve colocou o telefone no gancho e fez uma anotação em seu bloquinho. Um pouco mais cedo, falara com o oficial da guarda responsável pela investigação do assassinato
de Jane Elias e, ao desligar, ficara esperando para ver se o homem retornaria. O investigador prometera uma resposta o mais rápido possível, embora tivesse ressaltado
que só no escritório de Elias havia centenas de cartas e milhares de folhas de papel. No entanto, eles já tinham uma equipe trabalhando nisso. Por fim, o oficial
ligou para informar que, até então, não haviam encontrado entre os papéis de Elias nenhuma carta semelhante à que Kit, Georgia e seus outros colegas tinham recebido.
Essa resposta não era conclusiva, é claro. Ela poderia tê-la jogado no lixo ou a queimado na lareira de sua sala de estar. Contudo, nenhuma carta fora encontrada
junto com o corpo e nem a guarda recebera nenhuma comunicação por escrito de um suposto assassino. Não havia nada que indicasse qualquer conexão entre o autor
das cartas e o assassino de Jane Elias. Steve ficou feliz em poder dar uma boa notícia a alguém; gostaria que pudessem fazer o mesmo por ele.
Ele bocejou e se espreguiçou, abrindo tanto os braços que os ombros estalaram. Estava longe de ser o único oficial na Scotland Yard atrás de sua mesa às nove horas
da noite. No entanto, quase todos os que estavam ali e que não faziam parte do turno da noite estavam bem abaixo do cargo de detetive superintendente. O fato,
porém, lembrou-se com arrependimento e
autopiedade, é que a maioria tinha família esperando por eles em casa. Já aceitara há muito tempo que provavelmente jamais alcançaria esse estágio de felicidade.
A ferocidade de seu amor não declarado - pois sabia que não era correspondido - por Fiona o tirara do mercado, ainda que de modo involuntário, durante os anos
cruciais de sua juventude, quando todos os seus amigos haviam assumido seus primeiros relacionamentos.
Steve sublimara sua paixão platônica com a ajuda do trabalho e, quando, por fim, percebeu certo dia que o laço de amizade entre eles era, afinal, suficiente, deu-se
conta de que organizara sua vida de tal forma que já não havia tempo, energia ou oportunidade para construir o tipo de relacionamento que o deixaria satisfeito.
Só que ultimamente vinha pensando muito nisso.
Muitos dos amigos que tinham se casado há 12 anos ou mais estavam solteiros de novo. E poucos pareciam permanecer assim por muito tempo. Talvez aos 38 anos ainda
não fosse tarde demais. Quem sabe não havia chegado a hora de embarcar numa típica vida de solteiro novamente? Se Francis Blake persistisse em sua intenção declarada
de processar o Ministério do Interior, era bem possível que eles precisassem encontrar um bode expiatório entre os altos oficiais. Como resultado, ele poderia acabar
com muito tempo livre nas mãos. Sabia que, se os chefes decidissem que era ele quem deveria levar a culpa publicamente, corria o risco de, no mínimo, ser afastado
de sua posição, transferido para áreas em que não tivesse um envolvimento direto com o público e os desafios profissionais fossem mínimos. Sem um trabalho que lhe
exigisse tanta dedicação, teria tempo de sobra para preencher. Não tempo para matar, mas para crescer.
Por outro lado, talvez ainda pudesse encontrar a chave para desvendar o mistério do assassinato de Susan Blanchard. Embora fosse assombrado pelo sonho de uma vida
de casado, talvez até mesmo com filhos, a satisfação de um trabalho bem-feito era algo que desejava mais ardorosamente, uma vez que já experimentara esse êxtase
tantas vezes. Sabia que podia senti-lo de novo, e nunca se cansava disso.
Com um suspiro, Steve fechou o arquivo sobre Francis Blake. Já o lera e relera uma dúzia de vezes na semana anterior, mas não estava com a sensação de ter deixado
algo passar, nem nenhuma intuição que lhe dissesse onde poderia encontrar a próxima pista. Gostaria que o conselho de Fiona não tivesse corroborado seus próprios
instintos sobre como Blake reagiria.
Pelo menos, forçar um bronzeado e insolente Francis Blake a dar um depoimento como testemunha lhe proporcionaria algo com o que atacar. Ela, entretanto, estava
certa. O único motivo para ele querer falar com Blake era o desejo de deixar um homem que desprezava desconfortável.
Pensar em Fiona no contexto daquele caso acendeu uma pequena chama de ódio dentro dele. Se ao menos eles tivessem podido continuar trabalhando juntos, ele não
estaria naquela confusão agora. O pensamento despertou uma lembrança enterrada. Steve pôs-se de pé num pulo e atravessou a sala até o armário de pastas. Logo no
começo do caso, Fiona esboçara um perfil resumido com algumas sugestões de rotas de investigação. Em meio ao caos daquela época, Steve se esquecera completamente
disso, até ela mencionar esse fato na noite anterior, enquanto eles conversavam sobre o ciclista.
Steve deixou os dedos percorrerem as pastas, tentando se lembrar de onde o colocara. Na segunda tentativa, encontrou o que estava procurando. O arquivo com os
dizeres "relatório preliminar de FC" escrito em caneta pilot preta estava no canto superior direito de uma pasta bege de papel manilha. Steve sorriu e o puxou.
Ele era dolorosamente fino, motivo pelo qual não o notara logo de cara. Abriu-o e começou a ler o texto preciso e familiar de Fiona. Como sempre, ela não identificara
o caso pelo nome, uma vez que não confiava totalmente na segurança do computador da universidade.
Caso SP/35/FC
A vítima e a cena do crime podem ser classificadas como pertencentes a grupos de baixo risco. Ela era uma mulher casada "respeitável", acompanhada por seus dois
filhos gêmeos, e, segundo seu círculo de amigos e familiares mais imediatos, nunca teve nenhum tipo de envolvimento criminal. A cena do crime é um local público,
um lugar com um número razoável de frequentadores, onde há poucas coisas que os distraia do que está ocorrendo em suas imediações. O crime aconteceu em plena luz
do dia, a poucos metros de uma rua bem movimentada. Hampstead Heath é considerado um dos parques mais seguros da capital durante o dia, relativamente bem policiado
e sem uma reputação de ataques sérios ou atividades que envolvam drogas.
Isso significa, por outro lado, que o criminoso assumiu um grande risco ao executar seu plano. O que indica um grau elevado de maturidade e sofisticação ou um desprezo
temerário pelas consequências de seus atos.
Contudo, se examinarmos a natureza do crime em si, torna-se claro que não foi um ataque oportunista nascido de um impulso momentâneo. A arma usada no crime -
uma faca com lâmina comprida - deve ter sido levada pelo criminoso até a cena; o ataque ocorreu numa das poucas áreas de fácil acesso, porém bastante escondida
do Heath, o que denota certo grau de premeditação; e é possível, dado o depoimento da testemunha 1276/98/STR que ele tenha ido até lá equipado com um veículo
de fuga, a dizer, uma bicicleta. Como consequência, sinto-me inclinada a sugerir que estamos procurando por um homem com um alto grau de confiança em suas habilidades.
Tal maturidade criminal provém única e exclusivamente da experiência. Embora ele talvez nunca tenha matado antes, há grandes chances de que já tenha cometido sérios
ataques sexuais. Caso ele possua uma ficha criminal, a probabilidade é que ela tenha começado com incidentes de voyeurismo ou exibição de genitália em público,
passado para ataques sexuais leves até chegar ao estupro. Contudo, é bem possível que ele tenha conseguido driblar a polícia e não possua nenhuma ficha.
Eu recomendaria, portanto, uma revista cuidadosa dos casos solucionados e não solucionados de estupro e ataques sexuais sérios nos últimos cinco anos, no intuito
de estabelecer uma conexão criminal que possa nos levar a um suspeito. Os principais fatores aos quais devemos estar atentos são:
1. Crimes que tenham ocorrido ao ar livre - as pesquisas indicam que os estupradores tendem a cometer seus crimes em recintos fechados ou ao ar livre, raramente
misturando os dois.
2. A maioria dos estupradores tende a cometer seus crimes contra membros do mesmo grupo étnico, embora isso possa variar. Uma vez que a vítima aqui é branca e
loura, há grandes chances de que suas vítimas anteriores apresentem características semelhantes.
3. Ele não se sentiu incomodado pela presença de crianças pequenas. Isso talvez até mesmo lhe proporcione um elemento de satisfação a mais. Logo, quaisquer incidentes
que incluam a presença de crianças e que se enquadrem nos padrões acima apresentam uma probabilidade ainda maior de estar entre seus crimes anteriores.
4. Delitos em que o criminoso fugiu de bicicleta. Se isso já funcionou para ele no passado, há grandes chances de que tenha repetido o processo.
5. Crimes em que o criminoso usou ou ameaçou usar uma faca. Está claro que ele deve ter levado a faca consigo para o Heath; portanto, ela deve fazer parte de suas
atividades anteriores. Com os resultados dessa pesquisa, talvez seja possível estabelecer o agravamento das agressões por meio de conexão criminal e, consequentemente,
desenvolver um perfil geográfico que possa levar à identificação de um suspeito válido.
Como sempre, Fiona fora sucinta e tinha ido direto ao ponto, pensou Steve. E, como ela generosamente deixara de lembrá-lo na noite anterior, percebera logo de
cara o possível significado da bicicleta. Ao final do relatório formal, Fiona havia anexado um pequeno recado com sua letra clara e miúda. Eu sei, dizia o recado,
que duas testemunhas declararam ter visto um homem correndo próximo à cena do crime. Não acho que este seja o seu assassino. Quem quer que tenha cometido o crime
estava suficientemente bem preparado para não arriscar uma fuga que chamasse tanta atenção. Se eu tivesse de apostar meu pescoço, diria que o ciclista misterioso
- que, até onde posso ver pelas declarações, não se apresentou para confirmar que estava no Heath na hora do crime - é um suspeito muito mais plausível. Conversamos
em breve. E
Embora o caso de Susan Blanchard estivesse oficialmente arquivado, Steve conseguira persuadir seu chefe a lhe conceder uma pequena equipe para dar continuidade
às investigações, o que ninguém admitiria publicamente, a menos que elas resultassem num culpado que pudesse substituir Francis Blake com credibilidade aos olhos
do povo e do Ministério Público. Steve contava com um inspetor e dois detetives trabalhando com ele em tempo integral, assim como um mar de boa vontade por parte
dos oficiais que o haviam ajudado na investigação original.
Revendo mentalmente o que os membros de sua equipe estavam fazendo, Steve decidiu usar a detetive Joanne Gibb para passar em revista os registros. Joanne era uma
pesquisadora meticulosa e hábil no estabelecimento de relações com oficiais tanto de outras divisões quanto de fora da Polícia Metropolitana. Ele já a vira amaciar
e seduzir oficiais hostis de outras forças, fazendo-os deixar de lado o ressentimento pelo fato de a Scotland Yard estar se intrometendo em seu caminho. Ninguém
seria mais
perseverante no rastreamento de casos com modus operandi similares aos sugeridos por Fiona; não havia ninguém melhor para extrair os detalhes de outros investigadores.
Steve copiou com cuidado os parâmetros que Fiona havia formulado e deixou um bilhete para Joanne começar o trabalho na manhã seguinte. Espreguiçou-se com prazer,
tanto aliviado quanto energizado por ter algo positivo em vista. Hoje à noite talvez dormisse bem, em vez do sono fragmentado e agitado que vinha tendo ultimamente.
Levantou o corpo esguio da cadeira e pegou a jaqueta do cabide pendurado num gancho que ele próprio havia colado na lateral do armário de pastas, logo atrás de
sua mesa. Funcional, porém não esteticamente belo, como tantas coisas em sua vida, algo que Fiona já ressaltara mais de uma vez desde o início da amizade deles.
Se ele tivesse o estilo de Kit, talvez as coisas pudessem ter sido diferentes, pensou, batendo no bolso para verificar se estava com as chaves. Não fazia sentido
especular, decidiu. Para ter o estilo de Kit, teria de ser um homem diferente. E um homem diferente talvez não tivesse usufruído as recompensas de uma amizade
estável com Fiona, como acontecera com ele.
A dois passos da porta de saída, o telefone de sua mesa tocou. Steve hesitou por um momento, mas se virou em seguida.
- Steve Preston - atendeu. - Superintendente Preston? Aqui quem fala é o sargento Wilson. Acabamos de receber um fax da polícia espanhola. Francis Blake reservou
um voo para amanhã de manhã, de Alicante para Stansted. Ele deve pousar às 11h45. Achei que gostaria de saber o mais rápido possível.
- Obrigado, sargento. Temos os detalhes do voo? - Está tudo no fax. Mandarei alguém entregá-lo ao senhor. - Não se preocupe, eu o pegarei quando sair. - Steve
desligou o telefone e permitiu-se um sorriso. Agora tinha duas linhas de investigação para o dia seguinte. Enquanto Joanne pesquisava em busca de rastros do assassino,
o inspetor John Robson e o detetive Neil McCartney vigiariam a pessoa que talvez os levasse ao mesmo homem.
Sem dúvida, uma guinada para melhor, pensou Steve, com os ombros nitidamente empertigados ao rumar para a porta pela segunda vez.
Aquele era o lugar que importava. Aquele era o lugar sagrado, o sítio do sacrifício onde a moralidade se tornava palpável. Tudo ali fora escolhido a dedo. Nada
era acidental, exceto o formato da sala, sobre o qual não podia fazer nada. Havia uma janela, mas ele a cobrira com uma folha de compensado e depois a emassara
com cuidado para deixar a parede completamente lisa. Apenas a porta interferia no equilíbrio perfeito do aposento. Isso, contudo, era aceitável. Ela garantia uma
simetria à sala, da mesma forma como o corpo humano se mostrava simétrico em torno da coluna cervical.
Ele forrara o interior com papel de parede. O papel que queria deixara de ser fabricado anos antes, mas isso não tinha importância. Fizera uma cópia em estêncil
do padrão de folhas estilizadas que descia em tiras pelas paredes, usara uma tinta especialmente preparada para reproduzir os tons exatos de verde, tal como se
lembrava, e, com bastante cuidado, conseguira uma cópia perfeita. Em seguida, cobrira o papel com uma camada fina de verniz náutico incolor para que qualquer respingo
ou mancha pudesse ser limpo sem danos. Isso, pensou, era uma melhoria que podia fazer para seu conforto.
O piso fora fácil. Havia comprado os tacos antigos em uma loja de produtos de demolição. Madeira de bordo, o vendedor lhe dissera. Dos escritórios de uma antiga
fábrica de lã no caminho para Exeter. Ele levara algumas noites para arrumá-los o mais parecido possível com o arranjo original, o que tinha sido uma tarefa mais
entediante do que na verdade desafiadora.
A luminária viera de um brechó na Taunton Road. Ela havia sido sua primeira aquisição, o item que, na verdade, lhe dera a ideia de construir aquele lugar mágico.
Poderia muito bem ser a original, tamanha a semelhança de suas três cúpulas de vidro fosco com aquela de que se lembrava. Ao olhar para ela na loja sombria, tivera
a ideia de ressuscitar o lugar, reconstruí-lo tal como fora e fazer dele um templo para seus desejos obscuros.
A mobília era singela. Uma mesa simples de madeira de pinho, embora as marcas sobre sua superfície fossem diferentes das que lhe vinham à memória. Quatro cadeiras
com o espaldar arredondado, também de pinho, o topo dos encostos ligeiramente mais escurecidos devido ao uso de mãos para afastá-las e aproximá-las da mesa. Outra
mesinha para jogo de cartas coberta com um feltro verde desbotado, onde estavam arrumadas as ferramentas de sua vocação, o aço reluzente brilhando sob a luz. Bisturis,
um cutelo de açougueiro, um pequeno serrote e uma pedra de amolar para que todos estivessem sempre bem afiados. Sob a mesa havia uma pilha de bandejas de poliestireno
para carnes, de vários tamanhos, e um rolo de filme plástico de tamanho industrial.
O assassinato ocorria em outro lugar, é claro. Não importava onde. Isso era irrelevante para o significado do ritual. O método era sempre o mesmo. Estrangulamento
por laço era o termo oficial, ele sabia. Mais confiável do que o uso das mãos, que poderiam escorregar e deslizar sobre a pele devido ao suor gerado pelo medo.
O principal motivo para a escolha dessa forma de matar é que ela não causava traumas ao corpo. Matar a facadas ou a tiros criava uma enorme sujeira, destruindo
a perfeição que ele desejava.
Em seguida, vinha a limpeza. Nu para se colocar à altura do sacrifício, ele inseria o corpo despido em água morna e abria as veias a fim de permitir que o máximo
possível de sangue escorresse para fora. Não queria feias manchas arroxeadas estragando a aparência de sua oferenda. Depois disso, esvaziava a banheira para tornar
a enchê-la. O corpo era então cuidadosamente purificado com sabonete sem perfume, as unhas escovadas, os fluidos de morte lavados, todas as impurezas purgadas.
Por fim, podia dar início ao trabalho. Uma vez começado o processo, não podia perder tempo. O rigor mortis começaria em cinco ou seis horas após a morte, o que
tornaria seu trabalho mais difícil e menos preciso. O corpo deitado sobre a mesa, lívido como uma estátua, era sua oferenda ritual aos estranhos deuses da obsessão
que há tantos anos aprendera ser preciso aplacar.
Primeiro a cabeça. Os tendões e as complexas estruturas do pescoço foram cortados com uma lâmina tão fina que a marca deixada não era mais espessa do que a linha
desenhada por um lápis. Trocou então o bisturi pelo cutelo, a fim de separar o crânio da primeira vértebra. Colocou a cabeça de lado, daria atenção a ela mais
tarde. Em seguida fez uma incisão em Y, tal como um legista. Puxou a epiderme para trás, virando o corpo com cuidado para poder soltar toda a pele, do pescoço
até os dedos dos pés, e removê-la como se fosse um macacão de mergulho até revelar um cadáver semelhante a uma ilustração de anatomia. A pele removida foi jogada
num balde a seus pés.
A seguir, enfiou as mãos na massa ainda morna da cavidade abdominal, levantando com delicadeza os intestinos e os outros órgãos internos antes de desprendê-los
e arrumá-los em uma pilha ao lado do corpo. Cortou o diafragma e cuidadosamente retirou o coração e os pulmões, colocando-os de forma simétrica do outro lado do
tórax. Passou aos pulsos. Cortou-os de modo preciso, sem se incomodar com a desarticulação. Sua carreira como açougueiro lhe proporcionara todas as habilidades
básicas, as quais, acreditava piamente, havia refinado até se transformarem numa arte. Nunca o corpo humano fora tão perfeitamente dissecado, ou com tamanha reverência.
Os pés eram os próximos. Depois os cotovelos e os joelhos, seguidos pela separação do restante dos membros superiores na altura dos quadris e dos ombros. Agora
trabalhava com rapidez e precisão, dividindo o torso com os movimentos eficientes de um especialista à vontade em sua especialidade. O tempo passou voando enquanto
suas mãos trabalhavam de maneira metódica, até que só restou um monte de carne em pedaços, e a cabeça virada para fora na ponta da mesa. Agora sua excitação atingia
o auge, seu coração batia com força e ele estava com a boca seca. Com um leve gemido, pegou seu próprio pênis com as mãos ensanguentadas e, com cuidado, o meteu
na boca aberta como um totem à sua frente. Segurando a cabeça pelos cabelos, começou a dar estocadas no orifício; um tremor de êxtase percorreu-lhe o corpo.
Liberada a paixão, apoiou os punhos sobre a mesa e inclinou-se para a frente, a respiração pesada como a de um maratonista ao atingir a linha de chegada. O sacramento
terminara. Só faltava despojar-se dos restos.
Para a maioria dos assassinos, isso apresentaria problemas insuperáveis. Se Dennis Nilsen tivesse conseguido desenvolver um meio mais prático de se
livrar de suas vítimas, provavelmente teria passado muitos anos reduzindo as estatísticas de desabrigados.
No entanto, para o dono de um açougue que vendia carnes no atacado, essa questão era simples. Ele possuía dúzias de congeladores cheios de pacotes de carne. Mesmo
que alguém conseguisse arrombar os cadeados do freezer que seus empregados sabiam conter seu estoque particular, não veria nada mais suspeito do que dúzias de
pacotes de carne congelada. Felizmente, a carne humana parecia com qualquer outra, uma vez em pedaços.
26.
Para Fiona, o entardecer em Hampstead Heath nunca perdera sua magia, especialmente naquela época do ano. No começo de outubro, após um verão quente, a luz do dia
realçava a poeira que cobria as folhas outonais, os tons desbotados da grama, o cinza árido da terra. No entanto, à medida que o pôr do sol ia pintando o céu
de um vermelho rosado, as cores adquiriam riqueza e profundidade, proporcionando um forte contraste com a cidade que se estendia lá embaixo.
Ao contrário do Heath, as ruas londrinas perdiam definição sob a luz do crepúsculo. O sol se pondo refletia-se em algumas janelas dos prédios mais altos, feixes
de fogo matizando a massa cinzenta amorfa como sinapses produzindo centelhas no cérebro. Não era o cenário selvagem e variado das montanhas de Derbyshire, não adiantava
querer forçar a imaginação, mas ele a lembrava que tais lugares não apenas existiam, como faziam parte de seu mapa mental, estavam ali para serem resgatados sempre
que preciso. Isso lhe garantia uma espécie de conforto. Na semana desde que lera a notícia sobre a morte de Jane Elias, Fiona fora até o Heath pelo menos uma
vez ao dia. Agora se encontrava sentada num banco no topo do Parliament Hill, feliz em não fazer nada mais complicado do que ficar observando as pessoas por um
tempo.
Conhecia de vista alguns dos frequentadores, de suas caminhadas pelo parque; pessoas passeando com cachorros; gente correndo; uma turma de
garotos skatistas prestes a entrar na adolescência; duas senhoras que moravam na sua rua e que, ao cruzarem por ela em uma marcha rápida, cumprimentaram-na com
um aceno de cabeça; a assistente do livreiro praticando sua marcha atlética. Havia outros que ela nunca vira antes. Alguns eram obviamente locais, entretidos em
conversas com seus parceiros ou filhos, os pés decidindo, de maneira automática, a nova direção em cada entroncamento do caminho. Outros eram visivelmente turistas,
agarrados a mapas e franzindo o cenho em seu esforço para identificar pontos de referência na cidade abaixo. Outros ainda recusavam-se a ser inseridos em qualquer
categoria, seus ritmos em algum lugar entre uma caminhada despreocupada e uma marcha intencional.
Em qual categoria o assassino de Susan Blanchard se enquadrava?, pensou Fiona. Subitamente alerta, ela se perguntou o que despertara esse pensamento. Não era como
se não visitasse o Heath regularmente desde o assassinato, muito embora tivesse evitado passar pelo caminho da cena do crime. Mas por que esse pensamento lhe vinha
à mente agora?
Fiona analisou o caminho em ambas as direções, convencida de que havia visto algo ou alguém que, de forma subconsciente, despertara os pensamentos sobre o assassino.
Não podia ser o casal de trinta e poucos anos, o homem com o bebê preso ao peito. Tampouco o sujeito de meia-idade com seu labrador preto. Nem as duas adolescentes
de patins rindo de alguma piada. Intrigada, ela olhou em torno.
Ele estava agachado em um buraco a cerca de 45 metros de distância, talvez a uns 6 metros da pista. À primeira vista, parecia apenas mais um corredor. Bermuda
leve de ginástica, camiseta e tênis. Contudo, ele não parecia ofegante, como alguém que tivesse subido correndo o morro inevitavelmente estaria. Nem estava olhando
a vista. Não, ele estava observando as duas garotas patinando em círculos num dos grandes entroncamentos das pistas, as vozes esganiçadas pelo riso, lançando insultos
uma à outra.
Quando as garotas se afastaram e sumiram atrás de um grupo de arbustos, saindo de seu campo de visão, ele se levantou e olhou para trás a fim de ver quem mais
estava vindo. Por alguns minutos, ninguém pareceu capturar sua atenção. Então surgiu um casal de adolescentes de braços dados, a garota com a cabeça apoiada sobre
o ombro do namorado. Imediatamente,
o homem assumiu uma posição de alerta. Enfiou as mãos nos bolsos e se agachou de novo. Fiona observou o garoto e a menina até eles sumirem de vista, em seguida
se levantou e deu alguns passos na direção do homem. Olhou para ele de maneira ostensiva e pegou o celular. Assim que ele percebeu o que ela estava fazendo, empertigou-se
e começou a descer correndo o morro em direção à trilha que serpeava em meio aos arbustos densos.
Fiona abaixou o telefone. Não tinha a menor intenção de ligar para a polícia, só queria que ele imaginasse que era isso que ela estava fazendo. O que ela ia dizer
afinal? Que havia um homem aparentemente interessado em observar garotas adolescentes? Ele não fizera nada de ameaçador, nada fora do comum, nada que não pudesse
ser explicado em tons de protesto raivoso. Até mesmo sua partida súbita poderia ser facilmente justificada; ele havia parado a corrida um pouco e se sentia descansado
o suficiente para continuar. Por mais inofensivo que esse comportamento pudesse parecer, tinha sido o bastante para deixar Fiona com as antenas ligadas. Não que
ela suspeitasse de que ele fosse algo mais do que um simples e tímido voyeur. Mas isso a fizera lembrar que o assassino de Susan Blanchard devia ter averiguado
o local do crime com cuidado antes de atacar. Ele poderia ter andado pelo terreno, em vez de passar de bicicleta, absorvendo cada detalhe do cenário, planejando
sua rota de fuga, selecionando a vítima. Ele talvez tivesse sido sofisticado o suficiente para disfarçar completamente suas intenções, mas Fiona duvidava disso.
Imaginou onde ele estaria agora. O desejo de matar de novo devia ser muito forte, ponderou ela. Por onde ele estaria andando agora? Que tipo de reconhecimento estaria
fazendo? Como ele escolheria o próximo local? Será que voltaria ao Heath? Ou tentaria outro lugar nas proximidades? O cemitério Highgate? O Alexandra Palace? Ou
será que ele conhecia a cidade bem o suficiente para tentar um lugar mais distante? Onde ficavam os limites de seu mapa mental? Ela conhecia os limites impostos
por sua psique; esses eram evidentes em suas ações. Mas quais seriam seus limites geográficos?
Perguntas sem resposta acumularam-se na mente de Fiona, destruindo a paz que ela viera buscar no Heath após um dia cansativo de trabalho. Estava na hora de voltar
para casa pelas ruas com prédios imponentes de
estuque encardido e tijolos amarelados e sujos, que adquiriam um ar sombrio sob a luz alaranjada dos postes. Hora de aproveitar seu próprio prazer "voyeurístico"
em olhar de relance para as janelas acesas pelo caminho, saboreando vislumbres da vida alheia que se apresentavam em breves cenas captadas por sua visão periférica.
E, é claro, o sentimento de superioridade que não conseguia abafar ao perceber um interior particularmente brega.
- Vá fazer algo de útil, sua infeliz - murmurou consigo mesma ao notar uma sala de estar recentemente decorada que incorporava três padrões gritantes de papel
de parede. Fez uma anotação mental para comentar isso com Kit depois.
Assim que abriu a porta da frente, o telefone começou a tocar. Fiona foi correndo até a cozinha e o atendeu no quarto toque:
- Alô? - Dra. Cameron? - A voz apresentava um pequeno eco, como acontece algumas vezes com celulares.
- Major Berrocal? - perguntou, em dúvida. - Si. Sinto muito perturbá-la em casa, mas fizemos alguns progressos que achei que a senhora gostaria de saber.
- Não, tudo bem, não tem problema. O senhor encontrou Delgado? - Enquanto falava, Fiona tirou a jaqueta e pegou um bloquinho e uma caneta que mantinha ao lado
do telefone.
- Não exatamente. Mas encontramos o lugar onde achamos que ele estava se escondendo.
- Isso parece um bom progresso. - Si. E foi graças a sua ideia. - Ele estava vivendo num mausoléu?... numa tumba? - Fiona sentiu uma pontada de orgulho gratificante.
- Não exatamente, não. Tem um cemitério grande no norte da cidade que se enquadra na sugestão que a senhora fez. Persuadimos a polícia local a fazer uma busca
nele. Como eles não encontraram nenhum sinal de tumba arrombada, chegaram à conclusão de que éramos completamente loucos e que Delgado não estava lá. Mas um dos
meus oficiais, ele é o que minha mulher chama de buldogue farejador, voltou lá hoje.
- E ele encontrou alguma coisa? - quis Fiona saber logo.
- Si. Tem um pequeno barraco que costumava ser usado pelos coveiros para guardar as ferramentas. O barraco estava vazio há alguns anos, mas meu oficial percebeu
que os pregos que prendiam as tábuas nas janelas estavam soltos. Ele entrou e descobriu o que acreditamos ser o acampamento de Delgado. Havia comida, água, um
saco de dormir e algumas roupas. Comparamos as impressões digitais com as encontradas nas coisas do apartamento de Delgado, e elas batem perfeitamente.
- Então o senhor sabe que ele esteve lá. - Si. Coloquei alguns homens vigiando o cemitério, mas temo que ele não vá retormar. Uma fruta encontrada na cabana estava
começando a apodrecer. Acredito que ele tenha visto os policiais fazendo a busca, e agora não vai mais voltar para lá.
-Imagino que isso seja uma grande decepção para o senhor-respondeu Fiona. - Tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe.
- Perto, mas não deu em nada. Acho que ele vai fugir agora, não? Fiona pensou por alguns instantes. - Não acredito que ele vá entrar em pânico. Até o momento,
suas reações demonstram um forte controle. Ele conhece bem a cidade e a área em torno. Provavelmente já tem outro esconderijo em mente.
Berrocal soltou um rosnado sutil. - Tenho medo de que ele se sinta encurralado e resolva partir para uma última explosão de glória. Algo espetacular. Ele não tem
mais nada a perder. Sabe que nós sabemos que ele é o assassino. Talvez sua única esperança seja conseguir provar seu ponto de vista uma última vez, de forma dramática.
- O senhor está pensando numa chacina? Um massacre? - perguntou Fiona.
- É o que eu temo - confirmou Berrocal. Fiona suspirou: - Não consigo me lembrar de nenhum caso em que um serial killer tenha partido para homicídios em massa.
Mas, por outro lado, a maioria dos assassinatos em série é de cunho essencialmente sexual, e senti desde o começo que esses homicídios derivavam de um motivo
diferente. Honestamente, não sei o que dizer, major. Preciso concordar que sua leitura da situação parece plausível.
Fez-se uma longa pausa. Então, Berrocal disse: - Vou deixar a cidade inteira sob alerta. Não é um lugar muito grande. A gente deve conseguir encontrá-lo.
Um tiro no escuro, pensou Fiona. Todo mundo que lida com criminosos em série acaba fazendo isso.
- Procure alguém que tenha um conhecimento profundo da história de Toledo - aconselhou ela. - Pergunte sobre lugares da cidade ligados a mortes violentas. Se ele
atacar de novo, seja para cometer um único assassinato ou uma chacina, é no que ele vai se concentrar. E é provavelmente onde o senhor poderá capturá-lo.
- Obrigado pelo conselho. - De nada. Tenho certeza de que o senhor já tinha pensado nisso. Mas me mantenha avisada.
- Claro. Boa-noite, doutora. - Boa-noite, major. E boa sorte. - Enquanto Fiona colocava o telefone no gancho com desânimo, escutou a porta da frente sendo aberta.
- Kit? - chamou, surpresa.
A porta se fechou e a voz familiar de seu companheiro respondeu: - Oi, querida, cheguei. Ele foi até a cozinha e a envolveu no abraço sufocante que ela aprendera
a apreciar. Fiona jogou a cabeça para trás e o beijou, os olhos amendoados brilhando de prazer.
- Não esperava você tão cedo. Pensei que vocês todos fossem sair para jantar depois do evento da Georgia.
Kit a soltou e andou até a geladeira. - Esse era o plano. Só que, sem a estrela, não tem show. - O quê? Georgia decidiu que precisava de um sono reparador mais
do que de uma noite de farra com censurados escritores de suspense? - brincou Fiona, pegando dois cálices para o vinho que Kit estava abrindo.
- Quem sabe? Ela não apareceu. - Está dizendo que ela cancelou? - A incredulidade de Fiona era óbvia. A ideia da louca por publicidade da Georgia Lester perdendo
a chance de dar uma palestra no British Film Institute era quase inacreditável.
- Não. Estou dizendo que ela não apareceu. Não mandou nenhuma mensagem, não falou com o BEI nem com seu agente. E não atendeu o
telefone de casa nem o celular, segundo o tal agente. - Kit puxou a rolha e serviu o vinho.
- Então o que aconteceu? - Nada importante. A audiência ficou esperando por uma meia hora, então o sujeito que iria apresentá-la se levantou e disse que a sra.
Lester estava indisposta e que as pessoas poderiam pegar seu reembolso na bilheteria. Fomos todos tomar um drinque rápido e eu voltei para casa.
- Bom, um mistério - replicou Fiona de modo tranquilo. - Qual é a teoria, Sherlock?
- O pessoal que saiu para beber acabou com duas teorias distintas. - Kit se sentou numa cadeira, preparando-se para a narrativa. - A benevolente é a seguinte:
Georgia tem uma cabana em Dorset, aonde ela diz que vai para escrever, mas, na verdade, e isso eu sei, vai é para trepar até cair com o último garçom italiano
no qual enfiou as garras. Bem longe do Anthony, o marido chato, porém devotado, certo? Pois bem, ela está lá, em plena aventura maliciosa com o Super Mano, perde
a noção da hora e termina saindo no último minuto, mas a gasolina acaba no meio do caminho, a quilômetros de qualquer lugar. E o celular fica sem bateria.
- Essa é a versão benevolente? - Vamos lá, Fiona, você conhece a Georgia. A maioria das pessoas que só a vê em aparições públicas acha difícil dizer alguma coisa
sobre ela que não envolva certo grau de ressentimento.
- Mal posso esperar pela versão cruel - murmurou Fiona - Essa é assim: após a morte do Drew, Georgia começou a reclamar com a Carnegie House, exigindo que eles
lhe providenciassem um guardacostas. Ela argumentou dizendo que era a Rainha do Crime, que precisava de proteção contra os malucos à solta e que isso era obrigação
de seu editor. Claro que vários de meus colegas acharam que era apenas uma desculpa para fazer a Camegie arrumar homens para ela...
- Ai, essa é cruel! - Mas possivelmente verdade. De qualquer forma, como você sabe, ela estava ameaçando não participar do tour de lançamento de seu novo livro
se eles não providenciassem alguma proteção com mais músculos do que um agente literário e um representante de vendas. E, é claro, essa palestra era tecnicamente
o primeiro evento do tour. Assim, vários colegas acreditam
que ela decidiu não aparecer para dar um susto nos editores. Afinal, o BFI não é uma simples livraria. Não aparecer lá viraria manchete, sem que lhe custasse um
grande prejuízo nas vendas - acrescentou ele com cinismo.
- A intenção então é que amanhã de manhã os editores liguem para ela prometendo um par de leões de chácara para escoltá-la pelas livrarias da Inglaterra? - perguntou
Fiona, tentando não soar tão perplexa quanto se sentia.
- Isso mesmo. Ela vai ligar para eles e se fazer de coitada. "Tadinha de mim, fiquei tão assustada que, na hora H, tudo o que eu quis foi sair correndo e me esconder."
Para não falar o quão arrasada ela está por ter decepcionado sua legião de fãs devotados. Desse modo, se a Carnegie realmente valoriza sua escritora de suspense
que mais vende, vai arrumar, é claro, uma limusine à prova de balas e um time de guarda-costas para ela...
- O que, por sua vez, vai gerar ainda mais publicidade. - Um ponto que todos têm certeza de que não passou pela cabeça da Georgia - comentou Kit com um sarcasmo
amigável.
- Essa é realmente a análise mais repugnante e cínica que eu escuto em muito tempo. Vocês, rapazes, deviam se sentir envergonhados.
Kit abriu um sorriso satânico. - Aposto 5 libras que eles estão certos. O que eles não sabem é que Georgia recebeu uma ameaça de morte. E que ela realmente acha
que pode estar na lista de um assassino.
- Você não contou a eles? - Por que contaria? Alguém teria dito se soubesse. Quando comecei a averiguar quem mais havia recebido cartas como essa, tomei cuidado
em não mencionar a Georgia. Com o nome dela em jogo, alguém teria vendido a história para uma das colunas diárias do jornal. Assim, todo mundo se divertiu à custa
dela hoje à noite.
- E você? Sabendo o que sabe, o que você acha? Kit correu as mãos pelo rosto e pela cabeça. - Há coisas muito piores que podem ter acontecido com ela. Só espero
que eles estejam certos. Que tenha sido tudo armação. Porque, se não for, então acho que está na hora de começar a me preocupar de verdade.
27.
- O que eu disse? - falou Kit, brandindo o Guardian sob o nariz de Fiona durante o café da manhã dois dias depois. - Se estão dizendo no The Loafer, deve ser verdade.
- Ele apontou para um item na coluna de fofocas literárias e leu: - "Segundo as más línguas, a escritora de suspense Georgia Lester resolveu se esconder, pois
teme por sua vida. Uma das escritoras atuais que mais vende, Lester não apareceu numa prestigiada palestra no British Film Institute sobre filmes noir contemporâneos
baseados em livros, e ninguém ouviu falar dela desde então.
"Aparentemente, Lester brigou com os editores da Carnegie House por eles não terem providenciado seguranças para acompanhá-la no tour de lançamento de seu último
suspense psicológico, Terminal Identity. A exigência ocorreu logo após o chocante assassinato do jovem escritor prodígio Drew Shand, em Edimburgo, no mês passado,
que a polícia acredita poder estar relacionado a algum fã obcecado, e o igualmente bizarro assassinato da eremita americana Jane Elias, próximo à casa onde morava
na Irlanda, uma morte supostamente cometida por uma gangue desbaratada por seu amante, um agente secreto do esquadrão antidrogas.
"Ao que parece, teve início a temporada de caça aos escritores de suspense. Segundo um amigo, Lester estava indignada pelo que considerava um descaso com seu bem-estar
e teria afirmado que faria a Carnegie pagar caro por isso. Se com dor ou com dinheiro, não ficou claro.
"O fato de Lester, famosa por sua boa vontade em ajudar a mídia, ter virado as costas a uma grande oportunidade de expressar suas visões foi, sem dúvida, uma mensagem
direta para seus editores de que ela não será facilmente apaziguada, não importa o quão paranoicas sejam suas exigências."
- Bom, isso é o que o mundo está dizendo. Talvez eu deva parar de me preocupar, não acha?
Fiona fez que não. - Não, não acho. Não até você escutar o que a Georgia tem a dizer. Isso aí que está no The Loafer deve ter vazado de um dos seus amigos beberrões
da outra noite. - Ela se sentia mais preocupada do que estava disposta a confessar, portanto buscou algo tranquilizador para dizer. Não conseguiu pensar em nada,
a não ser o argumento que vinha usando desde que vira a ameaça de morte de Georgia. - Seja lá o que tiver acontecido, não acho que a pessoa que escreveu a carta
seja a responsável. Claro que não custa nada se precaver. Mas não acho que você tem que ficar com medo.
Kit resmungou alguma coisa com a boca cheia de cereal. O silêncio que se seguiu foi quebrado apenas pelo barulho de mastigação e pelo virar das páginas do jornal,
enquanto cada um lia a seção que lhe interessava.
De repente, Fiona se animou. Aquilo era muito mais tranquilizador do que qualquer idiotice que ela pudesse pensar em dizer.
- Agora sim, isso é bem mais interessante do que a disseminação de fofocas sem fundamento - comentou, dobrando o jornal na seção que lhe atraíra a atenção e o
passando para Kit.
Preso suspeito pelo assassinato de Elias
Um homem foi preso como suspeito pelo assassinato brutal da escritora americana de suspense Jane Elias, confirmou a Guarda Siochána, em County Wicklow. O suspeito
é John Patrick Regan, um construtor de 35 anos, de Kildenny, uma pequena cidade a 24 quilômetros da propriedade da srta. Elias às margens do lago Killargan. A
srta. Elias foi encontrada morta em uma estrada do interior há dez dias. Foi vista pela última vez pelos seguranças de sua propriedade saindo de sua
marina particular num iate de 21 pés, doze horas antes. Acredita-se que Regan seja primo e sócio de Thomas Donaghy, que no momento aguarda julgamento sob a acusação
de tráfico de heroína. Donaghy foi preso durante uma importante operação da guarda no ano passado, resultado de uma cilada armada pelos agentes secretos que levou
ao confisco da heroína, avaliada em 1,2 milhão de libras esterlinas. Ao que parece, Piare Finnegan, o oficial da guarda responsável pela operação, era amante
de Jane Elias. Especulou-se ontem à noite que o assassinato ocorreu no intuito de desencorajar Finnegan a apresentar as provas quando o caso contra Donaghy e seus
comparsas for a julgamento no mês que vem. O porta-voz da guarda afirmou: "Temos um suspeito sob custódia que está sendo interrogado sobre a morte de Jane Elias.
Até o momento, ele não foi acusado de nada." A morte de Jane Elias chocou a pacata comunidade irlandesa onde a reclusa escritora era bastante respeitada. Continua
na pág. 3.
Kit passou os olhos rapidamente pelo restante da notícia e se virou para Fiona com um meio-sorriso.
- Acho que podemos dizer que isso é uma boa notícia - comentou ele. - Eu diria que é o melhor que podemos esperar com relação a uma investigação de homicídio.
Ele sacudiu a cabeça, os lábios crispados de revolta. - Que morte estúpida! Quero dizer, ser morto não por algo que você é ou que fez. E sim por causa da pessoa
que você ama.
- Acontece o tempo todo, se você pensar nisso - replicou Fiona. - Mulheres assassinadas pelos ex-maridos que não aceitam que elas estejam com outra pessoa. Pessoas
mortas porque dormiram com alguém da religião ou da cor errada. Ou do sexo errado.
- Não, isso é diferente. Nesses casos, existe um elemento de escolha. Em algum nível, há uma decisão consciente, você sabe no que está se metendo. Mas quando você
se envolve com alguém da polícia, não tem como saber que isso irá se virar contra você desse jeito.
Fiona fez que não. - Mas é a mesma coisa. Tudo bem, você diz que existe um elemento de escolha nesses exemplos que eu citei. Só que você sabe que não é bem assim.
Se a gente vivesse na Irlanda do Norte e eu fosse uma ministra protestante, e você um republicano do alto escalão, deixaria de me amar porque isso poderia nos custar
nossas vidas?
Kit olhou fixamente para Fiona, sentada do outro lado da mesa. - Não seja idiota. Claro que não. - Pois então. Não acho que Jane Elias não enxergasse os riscos
potenciais de amar alguém como Pierce Finnegan. Ela era esperta demais para não perceber. Eu diria que ela aceitou o risco porque era muito melhor estar com ele
do que viver uma vida segura, porém sem ele. Da mesma forma que já deve ter passado pela sua cabeça que viver com uma mulher que ajuda a polícia a capturar criminosos
em série também tem seus riscos - acrescentou Fiona, falando de modo suave para que as palavras não soassem como um desafio.
- Não vou fmgir que eu não me preocupe às vezes. Mas a verdade é, Fiona, nunca me passou pela cabeça que seu trabalho pudesse me colocar em risco. É com você que
eu me preocupo. Acho que projetei para Jane o que eu sinto. Imagino que ela deva ter passado noites em claro por causa do Finnegan, mas talvez, como eu, ela nunca
tenha pensado que pudesse vir a sofrer as rebarbas. - Ele abriu bem as mãos, e sorriu para ela.
Fiona esticou o braço por cima da mesa em busca da mão dele. Kit interceptou o gesto, encontrando a dela no meio do caminho.
- Eu te amo, você sabe - disse ela. - Meu Deus! Isso é um pouco meloso demais para o café da manhã - brincou.
- Ah, por favor, não me venha com essa de inglês durão comigo -protestou Fiona. - Está se esquecendo de que eu sei a verdade.
- Você poderia arruinar minha reputação com uma só palavra - retrucou ele com tristeza.
- Então prepare mais um pouco de chá e manterei minha boca fechada. - Ela pegou o jornal de volta e o atirou para o lado. - Tem uma coisa boa sobre essa prisão.
- O quê?
- Significa que não há ligação entre o assassinato de Jane Elias e Drew Shand. Podemos parar de nos preocupar com a possibilidade de um serial killer estar atrás
dos melhores escritores de suspense do mundo - ressaltou Fiona.
A água ferveu e a chaleira começou a chiar, abafando a resposta murmurada de Kit.
- O que você disse? - perguntou Fiona. Kit se virou para ela. - Eu disse: isso se os policiais irlandeses estiverem certos. Fiona balançou a cabeça, rindo. -
Qual é o seu problema? Você quer sentir que sua vida está em risco? Está transformando isso em inspiração para escrever?
Dessa vez, não houve um sorriso de protesto. - Não. Não quero passar a vida olhando por cima do ombro. Mas você tem que admitir, não seria a primeira vez que os
tiras prendem a pessoa errada.
- Mas não há motivo para supor que seja esse o caso. Kit deu de ombros. - Não há motivo para supor que não seja. Fiona franziu o cenho. - Não é típico de você
se mostrar pessimista aqui na cozinha. - Eu diria que estou sendo realista, e não pessimista. - O tom de Kit indicava que ele não seria persuadido do contrário
tão cedo.
Fiona afastou a cadeira. - Tudo bem - falou com calma. - Deixa comigo.
Prisão no caso Jane Elias - Últimas notícias
Sempre podemos contar com os tiras para seguirem a linha de investigação mais óbvia. Portanto, hoje à noite John Patrick Regan está atrás das grades, acusado de
um crime que chocou os leitores de best-sellers da classe média.
Nossos leitores lembrarão que revelamos com exclusividade a identidade do namorado de Elias, o agente secreto da Guarda Siochána, Pierce Finnegan. Já que os oficiais
da lei verificam este site com tanta avidez quanto nossos fãs mais devotados, eles decidiram que seria uma boa ideia passar em revista os casos recentes de Finnegan.
E bingo! O alvo da vez é Tommy Donaghy e seu time de traficantes de drogas da primeira liga. No momento, Donaghy e três de seus testas de ferro encontram-se à
espera de julgamento sob a acusação de tráfico de heroína, graças em grande parte aos talentos de Finnegan em armar uma cilada. Embora a base de operações de Donaghy
estivesse montada no norte de Dublin, a guarda passou em revista seus sócios conhecidos e capturou seu primo, John Regan, que vive a meros 24 quilômetros da propriedade
de Elias, nas montanhas de Wicklow. E, por uma estranha coincidência, a empresa de construção de Regan foi responsável por uma parte do trabalho de restauração
feito na mansão georgiana onde Elias morava.
Regan faz pequenos biscates como construtor, é divorciado, tem dois filhos e mora na pacata cidade irlandesa de Kildenny. Ele possui também uma pequena lancha
e, na tarde do desaparecimento de Elias, estava pescando. Sozinho. Portanto, ele é um homem com os meios, motivo e oportunidade, e sem um álibi em vista. Isso
é muito bom para a guarda, especialmente se levarmos em consideração que eles não têm nenhuma outra pista.
Infelizmente, para eles, Regan não possui ficha criminal. Pelo que dizem, até o momento a análise forense não conseguiu nada, embora continue procurando. Contudo,
podemos esperar que até o fim da noite as acusações sejam feitas. Ou antes, se Regan decidir confessar. O que, dada a tendência dos irlandeses de atirar-no-próprio-pé,
é quase certo. Esperamos apenas, pelo bem de John Regan, que Finnegan não seja o responsável por conduzir o interrogatório.
LEMBRE-SE DE QUE VOCÊ LEU ISSO EM MURDER BEHIND THE HEADLINES
Fiona se levantou e esperou com impaciência que a impressora cuspisse o papel. Pegou a folha na bandeja e desceu correndo os três lances de escadas até o escritório
de Kit. Sabia que ele tinha trocado a cozinha pelo conforto de sua escrivaninha; a rádio de música clássica dera lugar a Gomez cantando alegremente que não havia
horas suficientes no dia. Conhecia muito bem a sensação.
Kit olhava para a tela com tristeza, lendo as últimas páginas que havia escrito. Fiona soltou o papel sobre o teclado. Ele passou a mão pela cabeça enquanto lia,
massageando a pele lisa que formava linhas e rugas.
- Isso me parece um pouco irreverente demais - falou, em dúvida. - É o jeito como eles escrevem. Acredite em mim, se eles tivessem bons motivos para imaginar que
a prisão não foi legítima, estariam gritando a plenos pulmões, e não apenas jogando insinuações vagas. Eu já te falei, eles se orgulham de descobrir coisas que
ninguém mais sabe ou não quer publicar. E, como a maioria de nós, gostam de cobrir os próprios rastros, para o caso de estarem errados. Confie em mim, sou uma
ph.D... - Fiona se curvou e beijou a pele macia da região onde o lóbulo da orelha se encontrava com a linha do maxilar. Kit girou a cadeira e a puxou para o colo.
Agora, seu sorriso não tinha nada de indiferente.
- Obrigado - falou. - Você conseguiu me acalmar. - Que bom! Isso significa que a gente pode sair e se divertir como pessoas normais em um sábado?
- Você quer ser normal? De onde tirou isso? - Achei que podíamos tentar, ver o que andamos perdendo todos esses anos. - Tudo bem. Mas só dessa vez. E só se formos
seriamente anormais depois que voltarmos para casa.
- Vou te fazer cumprir a promessa. Ele soltou uma risada. - Mal posso esperar.
Extraído da Prova Decodificada P13/4599
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Inacreditável. Eles prenderam alguém pelo assassinato de Jane Elias. Pelo que eu li, Elias estava dormindo com um agente secreto da polícia irlandesa que prendeu
importantes traficantes de drogas no ano passado. E eles acham que foi um assassinato de vingança. Bom, pelo menos nisso eles acertaram!
Esses irlandeses são malucos. Assassinos do crime organizado não agem de modo tão elaborado para acabar com alguém, mas acredito que o lado bom é que meus alvos
não vão estar com a guarda levantada. Eu estava começando a ficar preocupado com a possibilidade de não conseguir enganar Kit Martin se ele estivesse com medo de
que alguém poderia estar atrás dele.
Veja bem, eu esperava que Georgia Lester fosse ser um pouco mais cautelosa. Eu sabotei a mangueira de combustível do carro dela para que ele parasse, e a segui
de perto, pronto para agir como o cavaleiro errante. Ela estava em pé ao lado do Jaguar com uma expressão de desamparo quando encostei meu carro logo atrás. Ofereci-me
para dar uma olhada, mas ela disse que ia chamar o reboque. Eu a acertei quando ela se abaixou para pegar o celular. Em seguida a arrastei até o banco traseiro.
Levei cerca de cinco minutos para levá-la de volta para a cabana. A propriedade possui outra casinha nos fundos do jardim, onde eu havia me instalado. Deixei-a
amarrada e amordaçada enquanto ia me livrar do Jaguar. Quando finalmente voltei, já estava bem escuro. Melhor assim.
Esse foi o único assassinato que me deixou com pesadelos. Sonho que estou sufocando sob uma montanha de carne e não consigo sair. E então vejo os olhos dela. Ela
já tinha acordado quando cheguei. Seus olhos estavam esbugalhados, como de um cavalo assustado. Pude ver o branco em torno da íris. Aquilo realmente me incomodou.
Precisei apagá-la de novo, o que eu não queria fazer. Mas não consegui encarar a ideia de estrangulá-la enquanto ela estava consciente.
Realmente não gosto de matar. Gosto de como me sinto depois, a sensação de poder que percorre meu corpo quando penso que estou conseguindo me recobrar muito bem.
Gostaria que houvesse um jeito mais fácil de fazer isso. Mas preciso me ater ao plano.
Fico pensando em quanto tempo eles levarão para resolver a charada dessa vez.
28.
Joanne Gibb lembrou que um amigo certa vez falara das abreviações que os médicos usam em suas anotações. Não as que resumem pressão arterial ou pulsação - as
do tipo GAE para "Garoto com Aparência Engraçada". O que lhe veio à mente naquela segunda de manhã foi NQTA - "Normal para Quem Trabalha Aqui". Trabalhar em casos
complicados do Departamento de Investigação Criminal produzia efeitos semelhantes em todos os oficiais dedicados. Palidez, cabelos gordurosos uma hora depois de
tomar banho, manchas escuras sob os olhos, rugas na testa e em torno da boca, ombros demasiadamente tensos. Isso, com certeza NQTA. Analisou-se no espelho do
banheiro feminino. Precisava de uma plástica, não de bons cosméticos.
Levando em consideração o quanto havia envelhecido externamente nos três anos em que trabalhava para Steve Preston, estremeceu só de pensar na condição de seus
órgãos internos. Mostrou a língua para seu próprio reflexo, e percebeu que ela já adquirira um tom amarelado apenas uma hora depois de o despertador tê-la arrancado
das quatro horas de inconsciência que conseguira obter na noite anterior. Estava convencida de que café em excesso e sono de menos estavam lhe dando úlceras. Os
cigarros estavam destruindo o que restava de sua capacidade aeróbica, e não gostava nem de pensar no que a bebida devia estar fazendo com seu fígado. Seu namorado
vinha falando de irem morar juntos e começar uma família. A julgar pelo estado do que via, tudo o que podia esperar de seu sistema reprodutivo era um macaco com
três cabeças.
Para os homens, decidiu, era fácil. Na maioria das vezes, eles conseguiam, de alguma forma, parecer atraentemente cansados ou admiravelmente assombrados, como acontecia
com Steve Preston, fazendo com que as mulheres quisessem levá-los para casa e cuidar deles. As mulheres, por outro lado, acabavam tachadas de cães raivosos e abandonadas
por seus homens pela mais nova modelo do mercado. Bom, entrar para a Polícia Metropolitana fora escolha sua. Poderia ter arrumado um trabalho no banco ou numa
loja e manter sua aparência por mais algum tempo. E morrer de tédio, pensou enquanto escovava o cabelo castanho que lhe descia até o queixo. Quem sabe se desse
um corte nele? Algo um pouco mais chamativo do que a pesada cortina que pendia sem vida em torno de um rosto que ela uma vez achara ter um formato de coração.
Joanne fechou os olhos e suspirou. Para o inferno com a autopiedade com relação à beleza. Devia se lembrar do que era importante e se orgulhar disso, não de sua
aparência diante do espelho. Enfiou a maquiagem de volta na nécessaire e a guardou na bolsa. Pegando a pilha de pastas que representava o trabalho do fim de semana,
conseguiu dispensar um dedo para abrir a porta e atravessou o corredor para ir falar com o chefe.
Encontrou Steve Preston atrás da mesa com sua inseparável caneca de chá preto ao lado, a fumaça do primeiro charuto do dia acumulando-se sob o teto baixo.
- Bom-dia, Joanne - cumprimentou ele. Ao analisá-lo, Joanne teve a impressão de que ele dormira tanto quanto ela.
- Bom-dia, chefe - cumprimentou ela de volta, soltando os arquivos na ponta da mesa e se sentando na cadeira em frente a ele.
- Você ainda estava conectada às duas e meia da manhã - comentou ele. Joanne tirou o maço de cigarros da bolsa e acendeu um. - Estava pesquisando. - Descobriu
alguma coisa? Ela apontou para os arquivos, soltando um rastro fino de fumaça no ar. - Eu me concentrei nos arquivos da Polícia Metropolitana, da City e dos Home
Counties. *7 Posso ampliar a pesquisa, se o senhor achar que vale
*7 A Policia Metropolitana, também conhecida como Met, cujo quartel-general é a Scotland Yard, faz o policiamento de toda a Grande Londres, com exceção da Square
Mile, ou seja, a cidade em si, que conta com sua própria força policial, a City of London Police. Já Home Counties se refere aos condados que cercam Londres. (N. T.)
a pena. Preciso dizer, esse trabalho ficaria muito mais fácil se tivéssemos algum tipo de sistema central de registros para crimes graves - observou ela, com o
cansaço amargurado daqueles que precisam trabalhar sem um sistema adequado.
- Algum dia teremos - replicou Steve. - Provavelmente será tarde demais para nossa sanidade, mas teremos. Os garotos de Bramshill, no condado de Hampshire, estão
usando o sistema de análise canadense que estabelece conexão entre crimes violentos, o VICLAS. Ele é supostamente mais sofisticado do que o do FBI, mas não há como
saber quando eles vão começar a usá-lo em benefício das operações de campo, especialmente as que, como essa, estão cá embaixo na lista de prioridades. Até lá,
estamos presos a telefonemas, faxes e pedidos de favores. Como foi a pesquisa?
- Depressivamente bem. Não posso dizer que foi divertido ser lembrada de quantos estupros e ataques sexuais graves são registrados ao ano. Mas acho que consegui
desencavar alguns dados bem interessantes. Fiz um resumo para o senhor. Era isso o que eu estava fazendo às duas e meia da manhã. - Joanne abriu a pasta que estava
no topo da pilha e pegou duas folhas de papel. - Aqui.
Steve passou os olhos pelas informações cuidadosamente coletadas. - Bom trabalho, Joanne. Quer me falar sobre o que está aqui? Joanne pegou sua própria cópia do
resumo e colocou a pasta sobre o colo. Puxou os óculos de leitura do bolso da camisa e os empoleirou na ponta do nariz.
- Como eu fiz, requisitei os casos que combinavam com todos os cinco critérios que o senhor mencionou - começou ela, saboreando, como sempre acontecia, o relato
e a discussão que muitas vezes estimulavam novas ideias. - Depois pedi que incluíssem outros casos que se enquadrassem em pelo menos três dos itens. Procurei por
casos em que o ataque tivesse acontecido ao ar livre, houvesse uma faca envolvida, a vítima fosse uma mulher jovem e loura, crianças tivessem testemunhado parte
do ataque ou todo ele e o criminoso pudesse ter fugido de bicicleta.
"Para ser honesta, não esperava tantos resultados. Contudo, temos quatro estupros e dois ataques sexuais graves que incorporam os cinco critérios. Todos os seis
aconteceram ao norte do rio. O primeiro foi registrado há dois anos e meio, em Stoke Newington. Uma mulher que pegava sol no
jardim de casa enquanto seu bebê dormia no carrinho foi atacada por um homem com roupas de ciclista que pulou a cerca do jardim. Os gritos dela alertaram o vizinho,
e o atacante fugiu.
"O segundo aconteceu em Camden, cerca de dez semanas depois. Uma mulher passeava pela margem do canal com seu filhinho de três anos quando um homem pulou de detrás
de um muro e encostou uma faca em seu pescoço. Ele lhe disse que ia estuprá-la, mas eles foram interrompidos por um grupo de estudantes que vinha andando pela
margem. Ele pulou o muro de volta e fugiu numa bicicleta antes que alguém conseguisse impedi-lo.
"O terceiro aconteceu no último andar de um edifício-garagem em Brent. Quinze semanas depois. Dessa vez, ele estuprou uma mulher que saíra para fazer compras.
Ela havia acabado de colocar o filho na cadeirinha do carro quando ele surgiu por trás, a empurrou sobre o banco e a estuprou sob ameaça de faca. Segundo o investigador
do caso, ela teve a impressão de que ele estava com um capacete de ciclista.
"Quase seis meses se passaram até o registro seguinte de estupro. Dessa vez, ele atacou mais a oeste, em Kensal Rise. A vítima tinha levado o filhinho recém-nascido
para um passeio no cemitério."
Nesse momento, Joanne deixou cair a máscara profissional e ergueu os olhos para Steve.
- Não é tão estranho quanto parece - falou, na defensiva. - Esses velhos cemitérios vitorianos podem ser bem bonitos, o senhor sabe. Especialmente nas áreas em
que há muito verde em volta. Steve sacudiu a cabeça.
- Eu não disse nada, Joanne. Meu amigo Kit considera o Highgate Cemetery a melhor fonte de inspiração que ele conhece. Claro que ele não é um policial...
- De qualquer forma, ela estava passeando pelo cemitério com o bebê quando um sujeito com bermuda de lycra, camiseta, capacete de ciclista e óculos pulou na frente
dela, segurando o que lhe pareceu uma daquelas caras facas de cozinha feitas de um único pedaço de metal. Ela lutou com ele e acabou levando dezessete pontos no
braço em virtude dos cortes. Depois do ataque, ele fugiu numa mountain bike. Essa foi a melhor descrição que consegui.
- Sexo masculino, caucasiano, altura entre 1,78m e 1,82m, compleição magra, cabelos escuros, pele clara - leu Steve de modo cansado. - Bom, isso combina com metade
da lista de suspeitos masculinos da Polícia Metropolitana. - Metade não, chefe. Acredito que não mais do que 10% dessas pessoas conseguiriam realizar uma fuga decente
de bicicleta.
Steve olhou para o charuto e fez uma careta. - Provavelmente você está certa. O interessante é que a descrição não combina com Blake. Ele é muito baixo, e acho
que ninguém poderia descrevê-lo como um homem magro. Seus ombros são largos demais. Certo, vamos escutar o resto. - A número cinco trabalhava como faxineira numa
escola em Crouch End. Ela foi a última a sair da escola numa sexta-feira, um ano e meio atrás. Ele estava esperando por ela. Enquanto ela trancava os portões, ele
veio por trás e encostou uma faca em sua garganta. Em seguida, arrastou-a para o meio dos arbustos que ladeavam o caminho de entrada e a estuprou. Não havia nenhuma
criança junto, mas incluí esse caso porque ele aconteceu numa escola primária e o sujeito estava de bicicleta. O que o senhor acha?
- Vamos mantê-lo junto com os outros por enquanto. E o último? - Bom, esse é realmente interessante. Aconteceu apenas cinco semanas antes do assassinato de Susan
Blanchard. Foi um pouco mais longe, na verdade, em Hatfield, no condado de Hertfordshire. Mas aconteceu num parque. Uma babá estava passeando com o garotinho
que ela toma conta, andando pela parte do parque onde há um bosque. Ela foi derrubada, disse que chegou a perder a consciência por alguns minutos. Quando voltou
a si, tinha sido arrastada para o meio dos arbustos e estava sendo estuprada. Ele estava com uma faca encostada em seu pescoço e ameaçou esfaqueá-la como se ela
fosse um porco se emitisse qualquer som. - Merda - xingou Steve baixinho. - Por que não soubemos disso quando Susan Blanchard foi morta?
Os lábios de Joanne se apertaram, formando uma linha fina. - Porque Hertfordshire não enviou nada para a gente. - E por que não? Não é como se estivéssemos mantendo
o assassinato de Blanchard em segredo! O caso saiu em todos os jornais. Será que não ocorreu a eles que podia ser o mesmo sujeito?
- Pelo visto, não. O fato é que eles já tinham um suspeito em vista. Um sujeito acusado de estupro tinha sido solto sob fiança, e eles acharam que era ele comendo
o último pedaço do bolo antes de ir para a cadeia, como o investigador charmosamente me explicou - acrescentou Joanne, de modo ferino. - Quando Susan Blanchard
foi morta, o amiguinho deles já estava preso, cumprindo uma pena de sete anos por três estupros. Assim, eles não se deram ao trabalho de nos contar porque não
podia ser ele, podia? - concluiu, com a voz saturada de sarcasmo.
- Ótimo. - Steve apagou o charuto e suspirou. - O estuprador admitiu ter atacado a babá, então?
- Ao que parece, sim. Só que todos os seus outros estupros ocorreram num beco no meio da noite, e nenhuma das outras vítimas era loura. O pessoal de Hertfordshire
acreditou nele, mas eu não.
- Não, eu também não. Mas acredito que na época eles não tinham motivo para não acreditar e, com isso, conseguiram dar o caso por encerrado. Eles não são os únicos
que escolhem a opção mais fácil.
Joanne fitou Steve com raiva. - Com todo o respeito, senhor, Blake não foi a opção mais fácil. Ele era um suspeito plausível.
- Isso agora é história, Jo. Estou mais interessado no futuro do que no passado. - Steve se levantou e começou a andar de um lado para o outro atrás da mesa. -
E esses seis casos ainda estão sem solução?
- Com exceção do de Hertfordshire, sim. Ele não deixa muita coisa que possa ser usada como prova. Usou camisinha. E roupas de ciclista não soltam muitas fibras.
O que temos são alguns pelos pubianos do estupro de Kensal Rise, o que nos forneceu o DNA. Contudo, até o momento esse DNA não bateu com nenhuma das amostras que
temos em nossos arquivos. - Joanne fechou a pasta e a colocou de volta junto com as outras. - Não há nenhum suspeito viável em qualquer dos casos citados. Não
sei por onde podemos começar a procurar, chefe.
- Nem eu. Mas conheço uma mulher que talvez saiba. - Steve parou na frente da janela e olhou sem ver a deprimente vista lá embaixo.
- A dra. Cameron? - perguntou Joanne. Ele fez que sim.
- Achei que ela tinha dito que jamais trabalharia com a Polícia Metropolitana de novo.
- E disse. E tenho certeza de que falou sério. - Ele se virou para fitá-la, com um sorriso irônico estampado no rosto. - Me passe o livro de humilhações.
- O senhor vai precisar de um colete à prova de balas também - observou Joanne, lembrando-se do olhar frio como gelo de Fiona Cameron.
- Não tenho dúvidas disso, Jo. Não duvidaria disso nem por um minuto.
29.
A alguns quilômetros dali, Kit Martin estava sentado num restaurantezinho barato, esperando um caminhoneiro que deveria ter saído da Bélgica e atravessado o Canal
na noite anterior. Segundo um amigo em comum, o caminhoneiro poderia explicar a Kit alguns dos esquemas usados pelos contrabandistas para atravessar o Canal. O
homem dizia que ele próprio não contrabandeava nada, mas conhecia todas as artimanhas e, por um preço surpreendentemente barato, estava disposto a fornecer o máximo
de informações possível.
Kit não havia contado a Fiona sobre o encontro; sabia que sua fonte era confiável, mas Fiona talvez incluísse o caminhoneiro na categoria de estranhos com os quais
ele não deveria se encontrar sozinho. Só que ele precisava das informações que esse contato podia fornecer e, além disso, não acreditava que pudesse estar em risco
ali. Provavelmente a coisa mais perigosa no restaurante era um ataque cardíaco disfarçado de Supercafé da Manhã. Além do mais, agora que Steve lhe dissera que
a guarda não havia encontrado nenhuma ameaça de morte na casa de Jane Elias, ele se sentia ainda menos inclinado a viver como um eremita com medo da própria sombra.
Kit olhou para seu relógio de pulso. O homem estava dez minutos atrasado, o que não era um problema. Ele tinha lhe avisado que não podia afirmar com certeza quando
chegaria ao encontro. Isso dependeria do sempre imprevisível trânsito na M25. Kit mexeu o chá para esfriar um pouco e
rearrumou a toalha de papel que cobria o tampo marrom-alaranjado. Os dois homens na mesa ao lado atiraram um punhado de moedas sobre a mesa como pagamento pelo
café da manhã e saíram, deixando para trás uma cópia do Daily Mail. Kit esticou o braço e pegou o jornal. Ignorou a baboseira política na primeira página e continuou
a folhear. A história que lhe chamou a atenção foi a manchete principal da página cinco:
Carro de escritora desaparecida encontrado em ponto turístico
O carro da desaparecida escritora de suspense Georgia Lester foi encontrado abandonado no bosque próximo a um popular ponto turístico, a alguns quilômetros da
cabana de veraneio da escritora. A polícia de Dorset revelou que o carro foi visto ontem por pessoas que visitavam o lago Burman, um ponto turístico local próximo
a Dorchester. Dentro do carro, que estava destrancado, foram encontradas uma pequena mala de viagem e uma singular jaqueta Moschino, ambas pertencentes a escritora.
Segundo o porta-voz da polícia: "Não há sinal de luta nem nenhum indício de que a sra. Lester tenha sofrido qualquer acidente. "Se ela estiver bem, pedimos que
entre em contato com a delegacia policial mais próxima, o mais rápido possível. "Pedimos também que, se alguém tiver visto a sra. Lester ou seu carro antes de
domingo à noite, entre em contato com a polícia de Dorset." Ele se recusou a dizer se a polícia considera suspeito o desaparecimento da sra. Lester. O medo com
relação à sua segurança vem crescendo desde que ela faltou à palestra que deveria dar no British Film Institute na quarta à noite. Seu marido, Anthony Fitzgerald,
declarou ontem à noite: "Estou muito preocupado com a Georgia. Falei com ela na terça de tardinha e ela me disse que estava ansiosa pelo evento no BFI. "Só soube
que ela tinha faltado a palestra quando cheguei em casa na quarta à noite e vi várias mensagens urgentes dos organizadores em nossa secretária eletrônica.
"Tenho tentado entrar em contato com ela desde então, mas até agora nada. Prestei queixa do desaparecimento dela na sexta de manhã, mas a polícia não parece estar
levando o caso muito a sério. "Conheço minha mulher, e ela jamais decepcionaria os fãs de caso pensado. Alguma coisa deve ter acontecido, só não sei o quê." Surgiram
especulações de que a sra. Lester tenha desaparecido propositalmente. Alguns colegas mencionaram que ela estava irritada com seus editores, a Carnegie House, por
eles terem se recusado a providenciar guarda-costas para acompanhá-la no tour de lançamento de seu próximo livro. A sra. Lester afirmou que, desde o assassinato
do também escritor de suspense Drew Shand, temia por sua vida. Um de seus amigos declarou ontem à noite: "Nós todos pensamos que Georgia estava exagerando, mas
ninguém conseguiu demovê-la da ideia de que seu editor estava colocando-a deliberadamente em risco. Quando Georgia não apareceu no Mn, algumas pessoas acharam
que ela estava tentando puni-lo. Agora, porém, estamos começando a pensar se ela não estava certa afinal." A Dama Desaparece - pág. 11.
- Ah, merda! - murmurou Kit por entre os dentes, virando as páginas com rapidez. O que mais mexeu com ele foi a reação de Anthony. A queixa do desaparecimento
de Georgia à polícia indicava que isso não era uma armação dela. Kit não acreditava que a amiga pudesse esconder algo assim do marido e deixá-lo preocupado à toa.
Não era do seu feitio ferir de maneira deliberada aqueles de quem ela gostava.
O artigo na página 11 tomava a folha quase inteira, com uma fotografia grande da famosíssima Agatha Christie. Dentro dela, outra menor de Georgia, parecendo mais
arrogantemente fascinante do que nunca, o cabelo louro preso de maneira engenhosa no alto da cabeça.
A Dama Desaparece
O mistério envolvendo o paradeiro da Rainha do Crime contemporânea, Georgia Lester, possui uma estranha semelhança com outro famoso desaparecimento. A mais ilustre
escritora de suspense de todos os tempos, a dama Agatha Christie, sumiu por onze dias em 1926, até ser descoberta num hotel em Harrogate, onde se registrara
sob o nome da suposta amante de seu marido. O desaparecimento de Agatha ocorreu logo depois de uma séria discussão com seu galante marido, o coronel Archibald
Christie, após a qual ele fez as malas e foi passar o fim de semana com a amante, Nancy Neele. Na mesma noite, Agatha colocou a filha Rosalind para dormir e
saiu da mansão em Sunningdale em seu Morris Cowley cinza. Ela deixou uma carta para a secretária, pedindo que esta cancelasse seus compromissos e informando que
tinha ido para Yorkshire. Contudo, ela enviou também uma carta para o comissário da polícia de Surrey, dizendo que temia por sua vida e pedindo a ajuda dele.
Seu carro foi encontrado abandonado na manhã seguinte. Tal como o Jaguar de Georgia, o Morris de Agatha foi encontrado próximo a um ponto turístico, o lago Silent.
Dentro do carro estavam o casaco de pele da escritora e uma mala com três vestidos, dois pares de sapatos e sua carteira de motorista, cuja validade expirara.
Todos os jornais da época cobriram a história, especulando se a desaparecida escritora de mistério tinha sido assassinada ou cometido suicídio. Nosso jornal chegou
a oferecer uma recompensa de cem libras por qualquer informação que nos levasse ao seu paradeiro. Claro que, enquanto a caçada prosseguia, as suspeitas recaíram
sobre seu infiel marido. O lago Silent foi drenado, um pequeno avião sobrevoou o local em busca de pistas e uma matilha de cães de caça foi usada para esquadrinhar
a área, tudo em vão.
As forças policiais de quatro condados coordenaram uma busca em massa pelas montanhas, da qual participaram 15 mil voluntários. O criminologista Edgar Lustgarten
escreveu um artigo para o Daily Mail, explicando que Agatha entregara-se a um "típico caso de 'represália mental'". Seus livros estouraram em vendas, naturalmente.
Enquanto isso, no hotel hidropático de Harrogate (hoje conhecido como Old Swan), uma mulher registrada sob o nome de sra. Neele aproveitava todas as facilidades
que o hotel tinha a oferecer a sete guinéus por semana. Ela conversava com os outros hóspedes, dizendo ser da África do Sul, fazia suas refeições no restaurante
e aproveitava os bailes no salão. Todavia, um tocador de banjo da banda do hotel, com um olho afiado, a reconheceu das fotografias dos jornais. A polícia foi
chamada e a observou por dois dias até o marido chegar e confirmar que a misteriosa sra. Neele era, na verdade, sua esposa. A mídia a acusou de tentar se autopromover,
embora dois médicos tenham testemunhado que ela estava sofrendo de um caso genuíno de amnésia decorrente de estresse. Agatha Christie levou a verdade por trás
de seu desaparecimento para o túmulo. Jamais saberemos se ela realmente perdeu a memória ou se isso foi apenas um ato de vingança contra o marido. E hoje perguntas
semelhantes estão sendo feitas com relação ao desaparecimento de Georgia Lester. Com seu novo livro prestes a ser lançado, será que isso é apenas uma tentativa
de autopromoção? Ou será que ela está se vingando de seu editor por não levar a sério seu medo de estar sendo perseguida? Ou será que algo mais sinistro aconteceu
com a contemporânea Rainha do Crime britânica? Sua legião de fãs espera uma resposta ansiosamente.
Eles não eram os únicos, pensou Kit. Ele também não se incomodaria de obter algumas respostas. Mais do que isso, se Georgia tivesse realmente planejado seu desaparecimento,
sentia que merecia essas respostas. Eles
eram amigos, ele e Georgia. Ela fora uma das primeiras escritoras de suspense que ele havia conhecido depois que se tornara um autor publicado.
Lembrava-se nitidamente do primeiro evento do qual tinham participado juntos, um festival literário na região central da Inglaterra. Seu primeiro livro acabara
de ser lançado em brochura, e aquela era sua terceira aparição em público como um autor de verdade. Ele estava apavorado por saber que iria dividir o palco com
Georgia, já uma autora consagrada, e mais outro escritor cujos livros tinham ganhado destaque em decorrência de uma adaptação para TV muito bem-feita. Antes do
evento, no camarim, o autor adaptado resolveu se divertir com o nervosismo de Kit, e deleitava-se com uma mistura perniciosa de críticas condescendentes e histórias
sobre eventos desastrosos que só não deixariam em pânico os mais confiantes.
Georgia se intrometera ao final de uma dessas histórias, vestida com um longo de seda branco e cheirando a Chanel nº 5. Ao perceber a ansiedade estampada no rosto
de Kit, lançou um olhar sagaz para o outro autor.
- Você é um verdadeiro cretino, Godfrey, perturbando esse pobre rapaz - disse ela, e se sentou como um cisne elegante no braço da cadeira de Kit. Pousou uma das
mãos de unhas bem pintadas sobre o braço dele. - Estava ansiosa para conhecer você, Kit. Achei The Dissection Man o melhor suspense que li no ano passado. Tenho
certeza de que você vai ser uma grande celebridade.
Ele murmurou algum elogio esquisito em resposta. - Não precisa ficar nervoso, querido. Lembre-se, aquelas pessoas estão lá porque adoram o que todos nós fazemos.
Elas querem gostar de você tanto quanto gostam dos seus livros. Você teria de ser um completo monstro para que elas não o acolhessem com carinho. O que você obviamente
não é, meu querido.
Era isso o que ele precisava ouvir. Graças a Georgia, ele havia conseguido relaxar e, para sua surpresa, começara a se divertir de verdade. Kit observou e escutou
enquanto ela e Godfrey entretinham a plateia e, ao fim da noite, acabou percebendo que ele também podia fazer isso. Tudo o que lhe faltava era a confiança que
vinha com a técnica e que lhe permitiria conduzir o show.
Depois do evento, Kit tinha saído para jantar com Georgia e o agente literário dela. Aquele fora o começo de um relacionamento surpreendentemente
íntimo. Surpreendente porque, embora uma das facetas do trabalho de Georgia incorporasse algumas das características horripilantes de seus próprios suspenses sobre
serial killers, eles não podiam ser mais diferentes no tocante a temperamento, visão de mundo e estilo de vida. No entanto, o respeito mútuo e a afeição sempre
tinham feito com que eles deixassem de lado todas as diferenças, tanto políticas quanto sociais. A tolerância divertida que ele às vezes sentia por suas declarações
mais estapafúrdias nunca abalara a amizade deles. Só lastimava que Fiona não conseguisse ver além da máscara que Georgia usava em público e perceber sua generosidade.
De alguma forma, Georgia sempre deixava Fiona irritada, embora ele não conseguisse entender o porquê. O que lhe parecia uma observação inofensiva podia provocar
um brilho de irritação nos olhos de Fiona, o que o deixava estupefato. No fim, atribuía isso a uma ausência de química entre as duas e tentava mantê-las afastadas
sempre que possível.
Kit gostaria de saber o que estava acontecendo com Georgia. Por mais que ela fosse perfeitamente capaz de fazer algo tão terrível quanto simular um desaparecimento
no intuito de constranger seus editores, ele realmente não acreditava que ela pudesse fazer Anthony sofrer também. Apesar de suas frequentes indiscrições e infidelidades,
era a devoção inabalável de Anthony que lhe garantia estabilidade. Com o passar dos anos, ele cultivara um ar de estudada indiferença no que dizia respeito às predileções
da esposa por jovens amantes latinos, mas Kit não tinha dúvidas de que, embora o casamento deles pudesse parecer bizarro aos olhos de estranhos, era uma união
necessária à sobrevivência de ambos.
Kit repensou a ideia que antes descartara como absurda. Era possível, é claro, que Anthony fosse cúmplice na armação. Por mais difícil que fosse imaginar o profundamente
respeitável Anthony enganando a mídia e a polícia, se havia alguém que poderia convencê-lo a fazer isso, esse alguém era Georgia. E, se a polícia não estava levando
o desaparecimento dela a sério, as chances de que fosse esse o caso eram bem fortes. Kit se agarrou a essa esperança, sem querer encarar a possibilidade mais preocupante
que lhe atormentava a mente. Se algo terrível tivesse acontecido, queria adiar esse conhecimento o máximo possível. Não podia se permitir imaginar que Georgia
talvez nunca mais voltasse.
Ele afastou esses pensamentos para bem longe, acreditando de modo supersticioso que poderia influenciar a volta da amiga se a visualizasse. Permitiu-se um sorriso
seco. Já podia imaginar a coletiva de imprensa quando Georgia aparecesse. Será que ela alegaria amnésia? De alguma forma, duvidava muito. Não, ela preferiria algo
mais melodramático, definitivamente. Ela estivera se escondendo por temer por sua vida depois do que acontecera com o pobrezinho do Drew. Decidira, porém, retornar
ao mundo porque não suportava a ideia de que a incerteza com relação a seu destino pudesse ferir seus amigos, seus fãs e, acima de tudo, seu querido e devotado
marido.
Isso, pensou ele. Georgia faria exatamente assim. Haveria brados raivosos de reclamação por ela ter manipulado a mídia de modo tão descarado e feito a polícia
perder tempo - nessa ordem, decidiu Kit, com uma certeza cínica. Os fãs, entretanto, aceitariam a desculpa; suas imaginações superalimentadas pelo combustível
que ele, Georgia e o resto deles lhes providenciavam. E esse era o ponto crucial.
No entanto, tentar assobiar para espantar os demônios não deu muito certo; outras possibilidades menos divertidas ainda o atormentavam. Podia descartar o suicídio
de cara. Ninguém que se amasse tanto quanto a Georgia poderia sucumbir ao desespero tão rapidamente. Alguém teria percebido e soado o alarme.
Já a outra opção, mais aterrorizante, era um caminho pelo qual ele não se sentia preparado a percorrer sem a ajuda de um guia. E, uma vez que o melhor guia possível
iria chegar em casa mais tarde, Kit decidiu que não se permitiria sequer considerar esse cenário até então. Assim que tomou essa decisão, ela se fez desnecessária.
Um homem baixo e corpulento, com mãos tatuadas, despencou na cadeira à sua frente.
- Você é Kit Martin, certo? - perguntou, num forte sotaque do Nordeste da Inglaterra.
Kit estendeu a mão por cima da mesa. A salvação assumia formas bastante estranhas, mas estava sempre disposto a reconhecê-la quando ela se apresentava.
30.
Fiona lançou um olhar furioso por cima da mesa, e seus olhos amendoados escureceram.
- Você - disse, com uma parada enfática - está de sacanagem. Steve fez que não. - Você me conhece melhor do que isso. - Achei que conhecesse. - Ela se virou e
fixou os olhos na parede, sem ver. Quando falou, sua voz estava calma e ponderada, destilando a fúria de maneira controlada. - Achei que você entendesse a profundidade
da minha dedicação ao que eu faço. Não foi meu orgulho que vocês feriram quando me afastaram do caso e o entregaram a Andrew Horsforth, você sabe. Foi a minha
crença de que pessoas como você tinham começado a levar a sério o valor daquilo que eu e mais um punhado de meus colegas estamos fazendo.
- Sei que sim. - Seu tom não indicava um pedido de desculpas. Fiona o encarou. - Seus chefes ainda veem os psicólogos como nada além de uma ferramenta que eles
podem usar como melhor lhes aprouver. E isso não é bom o suficiente.
- Acha que eu não sei? Acha que eu não quero mudar isso? - retrucou ele, os olhos escuros de frustração. - Fi, me ajuda. Me ajuda a fazê-los mudar de ideia. Tudo
o que estou pedindo é que você insira esses dados no
seu programa de conexão criminal e veja que perfil geográfico ele devolve Achei que você quisesse pegar o assassino de Susan Blanchard. Se você não quiser fazer
isso em prol da nossa amizade, faça por ela e pelos filhos.
- Uau, esse é um golpe baixo, Steve. Olha só, eu já deixei de lado meu Julgamento e cedi à sua chantagem com relação a isso. Revisei todo o material do Horsforth,
ainda que, e só Deus sabe, parte dele tenha me deixado enjoada. Fiz algumas sugestões para ajudá-lo a prosseguir com a investigação. Ofereci isso em nome da nossa
amizade. Só que agora acho que você está querendo tirar vantagem dela. Você não tem o direito de me pedir mais nenhum favor. - Ela ergueu o queixo em sinal de
desafio.
Steve não desviou os olhos. Sabia que o que ela estava dizendo era justo, mas sua determinação em resolver o caso era maior do que o constrangimento.
- Eu preciso disso, Fi - disse, expondo os fatos da forma mais direta que podia. - Não tenho nada em que me apoiar com relação a este caso. Meus chefes não querem
nem saber, a menos que eu apareça com alguma espécie de revelação brilhante. Eles só querem se livrar disso tudo. Eu também, mas quero me livrar sabendo que peguei
a pessoa certa. E, no momento, estou num beco sem saída. Tenho alguns oficiais que estão dispostos a trabalhar para resolver logo isso, mas preciso de uma pista
que eles possam seguir. Minha melhor chance é o que você tiver a me oferecer. - Ele se calou e a encarou, o rosto magro duro como uma escultura.
Eles ficaram fitando um ao outro, a amizade de metade de uma vida em jogo.
- Não vou fazer isso - declarou Fiona. Os lábios de Steve se apertaram numa linha fina. Sentia a esperança com a qual chegara escorrendo-lhe pelos dedos, mas não
desistiu. Ainda não. Recusou-se a desviar os olhos, não ia ceder.
- Não vou fazer, Steve, não mesmo - repetiu Fiona. Ele reconheceu isso como uma pequena abertura em sua resolução e se inclinou para a frente.
- Preciso disso. Ela concordou com um exausto meneio de cabeça. - Sei que sim. Tudo bem, eis o acordo. Um dos meus alunos do doutorado está trabalhando com conexão
criminal e perfil geográfico. O que vai
acontecer é que a Polícia Metropolitana vai lhe pagar para analisar o material. Será uma consulta.
- Não sei se conseguirei verba para tanto. - Melhor conseguir, Steve. Pelo menos desse jeito alguém consegue se beneficiar com isso.
- Mas você vai supervisionar? Fiona fez que não. - Terry Fowler é extremamente capaz de fornecer uma análise direta como essa. Não insulto meus alunos olhando
por cima dos ombros deles. Eu estou fora, Steve. Já disse isso, mas você parece não querer escutar.
Ele correu a mão pelo cabelo num gesto de frustração. -Acho que precisarei me contentar com o segundo melhor então. - Não estou tentando empurrar gato por lebre.
Terry vai fazer um bom trabalho. Steve, você precisa parar de se punir por causa desse caso. Sei que você se importa com o que faz, mas não pode deixar que isso
coloque nossa amizade em risco. - Fiona esticou o braço por cima da mesa e pegou a mão dele. - Acho que é tarde demais para te aconselhar a arrumar uma vida, não
é?
Steve conseguiu dar um meio-sorriso. - Mais do que tarde. - Foi o que me salvou - disse ela com simplicidade. Os olhos de Steve se enevoaram. - Ele conseguiu,
não foi? - Tinha vontade de dizer que desejava que os dois pudessem ter salvado um ao outro, mas nunca diria isso, não mais. Ou ela já sabia e, à sua maneira,
se acomodara aos sentimentos dele, ou então a notícia seria como uma corrente contrária, provocando um redemoinho em suas vidas e ameaçando o equilíbrio que se
desenvolvera entre eles. Qualquer que fosse o caso seria inútil.
Como que em decorrência desse pensamento, a porta da frente se abriu. - Oi, Fiona, cheguei. - A voz de Kit ecoou pelo corredor. Eles escutaram o baque da sacola
atingindo o chão quando ele a jogou dentro do escritório ao passar. Logo em seguida, Kit parou na porta e sorriu ao vê-los, alheio à tensão que pairava no ar.
- Oi, Stevie, não esperava vê-lo hoje.
- Só passei para ver o quanto a minha conta estava no vermelho - falou Steve com ironia.
Kit foi até Fiona e a abraçou.
- Steve quer que eu continue a trabalhar para ele no caso Susan Blanchard - informou ela.
Kit olhou por cima da cabeça dela para Steve, as sobrancelhas erguidas em sinal de interrogação.
- Ela te deu um fora. - De certa forma - respondeu Steve. - A Polícia Metropolitana vai pagar a Terry Fowler para fazer o serviço - interveio Fiona com firmeza.
- Espero que sim - replicou Steve. Ele se levantou. - Eu te ligo de manhã para combinarmos melhor.
- Não vá ainda, Steve - pediu Fiona. - Jante conosco. A gente pode jogar uma partida de palavras cruzadas depois.
Era uma oferta de paz, ele sabia. A parte dele que odiara ter de implorar queria ir embora, mas Steve não tinha certeza do que isso significaria para o futuro
da relação deles. Seu orgulho era um preço pequeno a pagar para cicatrizar a ferida que se abrira entre os dois. Steve olhou para Kit.
- Depende do que você tiver para jantar. Kit franziu o cenho. - Deixe-me ver. - Ele abriu a geladeira e analisou. - Tenho peito de frango, cebola, estragão fresco,
erva-doce... Que tal um guisado de frango com estragão? - Ele olhou para os dois.
Steve fingiu pensar por alguns instantes. - E pudim de sobremesa? - Você não é nada exigente, é? - reclamou Kit. - Temos sorvete de chocolate feito em casa no
congelador, alguns morangos e meio pote de manga em calda na geladeira. Isso serve?
- Tudo bem, você me convenceu. Kit tirou a jaqueta, jogou-a sobre a cadeira e se pôs a trabalhar. - Como foi o seu dia? - perguntou Fiona enquanto o observava
cortar os ingredientes.
- Bastante produtivo - respondeu Kit. - Fui ver um contato. Mas é melhor não entrar em detalhes na frente de um policial - acrescentou, sorrindo por cima do ombro
para Steve. - Mas preciso dizer uma coisa: Georgia está dando o que falar. Vocês viram os tabloides hoje? O Mail publicou um belo artigo comparando o desaparecimento
dela com o da Agatha Christie na década de 1920.
- Então ela ainda não apareceu? - perguntou Fiona. Ela se virou para Steve. - Georgia Lester, a escritora de suspense? Você tem acompanhado a matéria?
- Li alguma coisa nos jornais. Você não disse que ela recebeu uma carta igual à sua, Kit? O que você acha? Ela se escondeu para provocar a curiosidade do público
ou por medo?
- Ela não se assustou com a carta até saber que eu tinha recebido uma também. Isso a incomodou, definitivamente. Sei que ela estava enchendo o saco dos editores
para que providenciassem seguranças para acompanhá-la no tour de lançamento do livro, mas achei que fosse apenas encenação da parte dela. Ela gosta de se exibir
às vezes - acrescentou ele de modo afetuoso, pegando uma pesada frigideira de ferro que estava pendurada ao lado do fogão.
- Uma coisa é certa - comentou Fiona de modo seco. - Com relação a Georgia, suicídio está fora de questão.
- Por que você diz isso? - perguntou Steve. - Os suicidas têm baixa autoestima. Georgia, por outro lado, é uma mulher que não duvida nem um tiquinho de si mesma.
Em uma escala de um a dez, a saúde do ego dela fica em torno de onze.
- Ela está certa - confirmou Kit. - Quando a maioria de nós recebe uma crítica ruim, chutamos o gato, xingamos o computador, ficamos arrasados. Mesmo que a gente
finja estar acima disso. Só que no caso da Georgia, se ela ganha uma crítica ruim, manda flores para o crítico com um bilhete dizendo que espera que ele melhore
logo.
Steve quase engasgou com o riso. - Você está inventando isso. - Juro por Deus, é verdade. A ideia de suicídio para Georgia é usar um moletom.
- Então só resta uma alternativa, é isso o que você está dizendo? Se ela não armou esse desaparecimento para se autopromover, então ela foi sequestrada? - Steve
expressou em palavras o que Kit e Fiona estavam evitando fazer.
Fez-se um longo silêncio. Kit jogou os pedaços de frango na frigideira junto com as cebolas. O vapor se desprendeu, preenchendo a cozinha com o aroma de comida.
- Acredito que é exatamente isso o que estamos tomando cuidado em não dizer - observou Fiona.
- O que não significa que não estejam pensando. Eu estaria, se estivesse no lugar de vocês. Depois de Drew Shand e Jane Elias, isso deve ser a primeira coisa que
lhes veio à mente - replicou Steve.
- Mas não há ligação entre esses dois assassinatos - protestou Kit. - A guarda prendeu um sujeito da região pelo assassinato de Jane. E você me falou que eles
não encontraram nenhuma ameaça de morte entre a correspondência dela, o que me acalmou um pouco.
- Não importa que não haja ligação - afirmou Fiona. - Psicologicamente falando, há. Tudo o que sabemos é que dois escritores de suspense foram mortos. Então, quando
uma terceira desaparece, é inevitável que comecemos a pensar se não é o mesmo caso. É a mente pregando peças na gente, Kit. De maneira subconsciente, sempre procuramos
por ligações. Mesmo que elas não existam. Desse modo, ainda que conscientemente você negue que as mortes de Drew e Jane possam ter qualquer ligação com o desaparecimento
de Georgia, num nível mais baixo, você não consegue evitar a conexão e começa a se preocupar com isso.
- De qualquer forma - interrompeu Steve -, falando puramente como um policial, não posso descartar a possibilidade de que Georgia tenha sido sequestrada. - E,
claro, se ela foi, e o sequestrador pediu resgate, a polícia teria mantido isso em segredo - ponderou Fiona. - Eles teriam feito exatamente o que estão fazendo.
Fingindo que não estão preocupados, tratando o caso como nada além de uma possível suspeita.
- Eu diria que sim - confirmou Steve. - Então, o que vocês dois querem dizer é que não adianta especular - observou Kit. - É por aí. - Steve inspirou profundamente.
- O cheiro está delicioso, Kit. -vai ficar-replicou Kit de modo confiante. - Espero que, onde quer que Georgia esteja, ela possa comer algo tão bom assim.
Fiona sorriu com ironia. - Eu também espero. Porque, se for provado que isso foi uma armação, ela vai passar a pão e água por um bom tempo.
31.
O relógio marcava 3h24 da manhã. Fiona não tinha ideia do que a acordara, mas seus olhos estavam bem abertos e o cérebro a mil. Não adiantava tentar voltar a dormir,
sabia disso. Raramente tinha insônia, mas, quando isso acontecia, o único jeito era se levantar e manter a mente ocupada até ficar com sono de novo.
Levantou da cama. Kit resmungou, se virou de lado e voltou a respirar de maneira ritmada. Com os passos abafados pelo carpete, ela pegou o robe no cabide e saiu
do quarto. O único barulho era o ruído distante do trânsito. Não sentiu nenhuma outra presença além dela própria e de Kit. Ao subir a escada, olhou pela janela
para o jardim lá embaixo. A luz mortiça dos três quartos visíveis da lua o transformava num conglomerado lúgubre de formas monocromáticas. Todas, porém, eram familiares.
O que quer que tivesse perturbado seu sono, não era um estranho na casa nem no jardim.
Já no escritório, Fiona acendeu a luminária de mesa e pegou uma garrafa de Perrier no frigobar ao lado da escrivaninha, um dos presentes de aniversário mais bizarros
que Kit lhe dera. Na época, não ficara muito animada com o presente - embora esperasse ter conseguido disfarçar o desapontamento -, mas acabara aprendendo a apreciar
sua utilidade desde então. Ele era bom nisso, aparecer com coisas que ela jamais imaginara que precisava. Abriu a garrafa. O sótão à prova de som estava tão quieto
que ela escutou as bolhas de gás sendo liberadas.
Ligou o computador e esperou que ele iniciasse. Em seguida, conectou-se à Internet. A América estava acordada; haveria gente mais do que suficiente nas salas de
bate-papo para distraí-la. Ao conectar, lembrou-se de que aquela era a noite do mês em que Murder Behind the Headlines fazia uma discussão on-line das dez até
a meia-noite. Clicou na página do site e esperou que ele carregasse.
Fiona deu uma olhada nos temas de debate e escolheu o de Jane Elias. Entrou no meio do que parecia ser uma discussão acalorada sobre a Guarda Siochána. Uma vez
que o site oferecia a chance de rever toda a discussão, optou por isso.
Enquanto lia, sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. De acordo com três comentários distintos, a opinião sobre o assassinato da escritora era de que a guarda
havia prendido o homem errado, e sabia disso. Ao que parecia, eles tinham sido pressionados a prender John Patrick Regan pelos oficiais superiores da Unidade de
Crimes Violentos, apesar da relutância dos oficiais regionais. Agora, na ausência de provas forenses que ligassem Regan ao crime, os policiais locais estavam,
aparentemente, começando a se sentir incomodados com a prisão, enquanto o advogado de Regan lutava para que ele fosse solto. Segundo um dos comentários, todas
as pessoas de Kildenny que conheciam John Regan eram taxativas ao afirmar que o homem não possuía inteligência para organizar um sequestro, muito menos coragem
para matar uma mulher e mutilar seu corpo.
Nesse ponto, o debate se degenerava em um ataque violento à polícia. Fiona não fazia a menor questão de saber se os oficiais da Guarda Siochána naquele cantinho
obscuro de County Wicklow eram competentes ou não. Tinha coisas mais importantes em que pensar.
Desconectou-se, desligou o computador e ficou olhando para a tela. A prisão de Regan a tranquilizara muito mais do que estava disposta a admitir para Kit. Com
ele fora do jogo, o quadro ficava muito diferente. Não era mais uma questão do subconsciente forçando ligações; seu medo se tornava a conclusão lógica.
Em geral, o assassinato de duas pessoas que atuavam no mesmo campo e que moravam em lados opostos do Mar da Irlanda seria tão insignificante que passaria despercebido.
No entanto, quando ambos eram figuras públicas; ambos autores de suspense premiados; ambos escritores cujo trabalho fora
adaptado com sucesso para a TV ou o cinema; e ambos assassinados de um jeito que batia mais ou menos com elementos de suas obras, a coincidência era tanta que
chamava a atenção.
Fiona pesou tudo o que sabia na balança da experiência. Sim, assassinos que imitavam outros assassinatos existiam. E o assassino de Jane Elias podia ser tanto um
serial killer quanto um imitador, dada a distância física entre as vítimas e o jeito aparentemente bastante diferente de suas mortes.
Fiona, porém, nunca gostara de coincidências. Ela se levantou da mesa e desceu correndo a escada até a sala extra onde a vasta biblioteca de livros de suspense
de Kit cobria as paredes do chão ao teto. Não dá para esperar uma organização por ordem alfabética, suspirou Finona consigo mesma. Passou em revista as prateleiras,
procurando por um dos livros de Georgia. O primeiro que encontrou foi Last Rights, o último volume de uma trilogia de suspense jurídico que havia lido uns dois
anos antes. Abrindo a segunda orelha, leu a biografia da autora.
Vários dos livros de Georgia haviam sido adaptados para a TV, inclusive a série de suspense jurídico. Apenas um, o único exemplar de suspense psicológico cuja
violência abalara profundamente muitos de seus leitores tradicionais, fora adaptado para o cinema. And Ever More Shall Be So tinha sido um filme britânico de baixo
orçamento, patrocinado pelo Channel 4. Fiona lembrava-se vagamente de ter lido algo sobre o sucesso do filme. Alguma coisa nele atraíra uma audiência em massa,
e ele se tornara um sucesso em ambos os lados do Atlântico. O inesquecível e etéreo tema de um solitário menino soprano cantando "Green Grow the Rushes-O" como
um lamento, um contraponto pungente para os pesadelos do filme, talvez tivesse algo a ver com isso. Por alguma razão, ela nunca o vira, mas Kit devia ter visto.
Agora tudo o que precisava era encontrar o livro. Um exemplar entre dois ou três mil não podia ser tão difícil, podia? De forma metódica, Fiona passou de uma prateleira
à outra, parando sempre que se deparava com o nome de Georgia. Como diabos Kit conseguia encontrar alguma coisa ali? E por que ele nunca jogava nenhum livro fora,
por mais horrível que declarasse ser?
Quando já estava na metade da segunda parede, Fiona encontrou o que estava procurando. A primeira edição de And Ever Shall Be So, com uma
dedicatória na folha de rosto escrita com a letra surpreendentemente impecável de Georgia: "Para meu querido Kit, ii miglior fabbro, o melhor artífice. Com muito
amor, Georgia Lester." A cara dela, pensou Mona, com um sorrisinho sarcástico.
Fiona desligou a luz e voltou para o sótão. Acomodou-se no sofá-cama e puxou o cobertor por cima das pernas para não ficar com frio. Em seguida começou a folhear
o livro. O que encontrou ali acabou de vez com a sua paz.
32.
Steve esticou o braço para impedir que a porta do elevador se fechasse. Ela se abriu de novo e ele entrou, dando de cara com a detetive Joanne Gibb.
- Bom-dia, Joanne. - Bom-dia, chefe. Posso perguntar como foi a humilhação? Steve fez uma careta. - Vamos dizer apenas que estamos na direção certa. A dra. Cameron
vai me colocar em contato com um de seus alunos que irá fazer a análise. Se eu conseguir desencavar alguma verba para pagá-lo.
- Mas isso pode dar um bom resultado - protestou Joanne. - Sem dúvida o comandante Telford vai entender a razão de seguirmos essa pista, certo?
Steve sorriu. - Acho que consigo persuadi-lo a compartilhar nosso ponto de vista. - O elevador parou com um tranco no andar deles. - Me deseje sorte, vejo você
e Neil em meu escritório daqui a quinze minutos.
Ele desceu o corredor, passando por portas fechadas até chegar no escritório de seu superior imediato. Steve bateu e esperou ser convidado a entrar. O comandante
David Telford estava sentado atrás do que Steve apostaria ser a mesa mais arrumada do prédio. Nem um único pedacinho de papel perdido maculava a superfície polida.
As canetas reunidas num copinho de metal, um bloco de anotações ao lado do telefone, e isso era tudo.
As paredes nuas, exceto pelas comendas emolduradas de Telford e seu diploma da Aston University.
- Sente-se, Steve - falou ele, sério. Estava determinado a apagar da memória de todos na Polícia Metropolitana a noção de que alguém além de Steve Preston era
culpado pelo fiasco da prisão de Francis Blake. Steve compreendia isso, e sabia que esse era o motivo pelo qual Telford, ou Teflon, como era conhecido entre os
subalternos, continuava a tratá-lo como se ele fedesse.
- Obrigado, senhor... - Às vezes entrar no jogo era ultrajante, mas Steve gostava demais de prender criminosos para sequer considerar seriamente a alternativa.
- Nenhum progresso ainda, certo? - A pergunta de Telford indicava a resposta que ele queria ouvir. O comandante se preocupava mais com a imagem do que com a justiça,
Steve sabia disso. Encontrar o assassino de Susan Blanchard não era uma das prioridades de Teflon. Seria melhor que sua equipe jamais encontrasse o verdadeiro
assassino, assim o mundo poderia continuar pensando que a Polícia Metropolitana tinha perdido Francis Blake por causa de um juiz e não pela própria operação malconduzida.
- Ao contrário, senhor, acho que encontramos uma nova linha de investigação. - De modo cuidadoso, Steve apresentou as novas evidências sobre o ciclista e os resultados
da pesquisa dos arquivos feita por Joanne. - Agora preciso de verba para pagar pelo perfil geográfico com base nesse conjunto de casos, a fim de que possamos encontrar
um suspeito viável - concluiu.
Telford franziu o cenho. - Isso tudo é meio frágil, não é? Não há nenhuma prova concreta, há? - O problema com esse caso sempre foi a ausência de provas concretas,
senhor. A falta de uma perícia na cena do crime, o número relativamente pequeno de testemunhas, a ausência de uma relação aparente entre o criminoso e a vítima.
É óbvio que o assassino possui alguma experiência em cobrir os próprios rastros, e isso sugere que ele já cometeu ataques de cunho sexual antes. Desde que iniciamos
as buscas, essa é a linha de investigação mais promissora, senhor.
- Uma tentativa desesperada - reclamou Telford.
- Acho que é mais do que isso, senhor. - As palavras "com todo o respeito" dançaram nos lábios de Steve, mas ele se conteve, relutante em proferir aquela mentira
em particular. - É uma estratégia investigativa válida. Mais cedo ou mais tarde, esse caso nos colocará novamente sob os holofotes se não o resolvermos. Quando
isso acontecer, quero poder dizer que investigamos todas as possibilidades.
- Achei que a dra. Cameron tinha dito publicamente que jamais trabalharia com a gente de novo. - Telford tentou por outro ângulo, incomodado com a sutil ameaça
de publicidade feita por Steve.
- Não é a dra. Cameron quem irá fazer a análise, senhor. A verba seria destinada a outro membro do departamento dela.
Telford abriu um sorrisinho. - Nada melhor para deixá-la irritada. Steve não disse nada. Talvez a malícia pudesse vencer onde o bomsenso não conseguira.
Telford girou a cadeira e deu a impressão de estar analisando o próprio diploma.
- Ah, tudo bem, faça sua análise. - Ele se virou abruptamente de volta para Steve. - Só não estrague as coisas dessa vez, superintendente.
Steve voltou para seu escritório com os punhos cerrados. Seria uma doce vingança encontrar o assassino de Susan Blanchard, pensou. Tudo bem, Telford levaria o
crédito aos olhos do público, mas todos na força saberiam a verdade. A justiça prevaleceria da melhor forma possível.
Ao abrir a porta do escritório, encontrou os detetives Neil McCartney e Joanne esperando por ele. Neil era um sujeito grandalhão e desleixado por volta dos 25
anos. Steve nunca o vira com uma aparência que não fosse levemente desarrumada, e ele era incapaz de sentar numa cadeira sem se esparramar. Muitas vezes imaginava
como o rapaz costumava ficar de uniforme. Provavelmente, sua aparência tinha sido o suficiente para lhe garantir uma promoção para o Departamento de Investigação
Criminal na primeira oportunidade possível. Também não havia atrapalhado em nada o fato de o rapaz ser um bom policial; astuto, cuidadoso e obstinado a ponto de
ser cruel.
- Tudo certo. Conseguimos sinal verde para prosseguir com o perfil geográfico - anunciou Steve, espremendo-se para passar entre as pernas
esticadas de Neil. - Vou levar o material pessoalmente até a universidade assim que terminarmos aqui. Pois então, Neil, o que Blake anda fazendo?
- Até onde podemos dizer, nada de muito interessante. Ele dorme até tarde, sai para comprar o jornal e uma caixa de leite e pegar uns dois vídeos quase todas as
manhãs, e volta para casa. Às vezes vai até um agente de apostas na hora do almoço, toma algumas cervejas no pub local e dá uma caminhada pelo parque. Volta para
o apartamento e, aparentemente, fica assistindo televisão, a julgar pela luz bruxuleante refletida na janela. Nada sinistro, nada suspeito. O que acho ótimo, já
que só podemos fazer uma vigilância mínima, na base do um por um. Pelo que sabemos, ele poderia aprontar qualquer coisa quando não estamos por perto. Alguns dias
ele nem coloca o nariz para fora da porta. Blake podia ter um harém dentro de casa e nós nem saberíamos.
Steve concordou com um meneio de cabeça solidário. - Sei que isso não é satisfatório. Mas vamos ter que continuar a vigilância da melhor forma que pudermos. Até
conseguirmos uma pista mais concreta, ele é tudo o que temos. Talvez seja uma boa ideia termos uma conversinha discreta com os vizinhos do apartamento de baixo,
verificar se eles viram ou escutaram algum sinal de companhia. Mas só se tivermos certeza de que eles não são amigos. Não quero alertar Blake de que continuamos
interessados nele. O que você acha, Neil?
Neil fungou. Já trabalhara para chefes que não gostavam de ouvir que suas sugestões podiam não funcionar. Contudo, já aprendera o suficiente sobre Steve Preston
para saber que podia dizer o que lhe passava pela cabeça sem que isso, quase nunca, se voltasse contra ele mesmo. Especialmente quando estavam entre amigos, como
agora.
- Acho que não, chefe - replicou. - O casal no apartamento de baixo é jovem, por volta dos vinte e poucos anos. Eles parecem ser daqueles que acreditam que nós
somos os bandidos, entende o que eu quero dizer? Eles provavelmente achariam ser sua obrigação contar a Blake que os tiras estão fuçando a vida dele.
Não era isso o que Steve esperava ouvir, mas confiava no julgamento de Neil. - É John quem o está vigiando hoje? - perguntou. - É. - Neil bocejou.
- Certo. Por que não tira o resto do dia de folga, Neil? Descanse. - Tem certeza, chefe? - Tenho. Joanne pode dar conta das coisas por aqui. Se precisarmos de
você, a gente grita.
Neil se levantou da cadeira, espreguiçando-se de modo extravagante. - Não vou reclamar. Pobre de mim, mais de oito horas para dormir. Meu corpo pode entrar em
colapso com o choque. - Ele saiu da sala andando de maneira cansada.
- Quer que eu cuide do forte então, chefe? - perguntou Joanne. - Quero. Vou dar um pulo na universidade para ver o tal de Terry Fowler. A dra. Cameron deixou uma
mensagem dizendo que já preparou tudo. Não sei quanto tempo vou levar, depende do quanto esse Fowler está por dentro do caso. E devo passar depois para ver a dra.
Cameron. Então, a gente se vê mais tarde, quando der.
Foi estranho entrar no Departamento de Psicologia e não ir direto para o escritório de Fiona. O porteiro indicou-lhe o caminho até o cubículo no terceiro andar
que Terry Fowler dividia com outro aluno do doutorado. Steve bateu à porta e ficou surpreso ao escutar uma voz feminina convidá-lo a entrar.
Ele meteu a cabeça pelo vão da porta. A sala continha duas mesas de computador, uma vazia, a outra ocupada por uma mulher jovem com cabelos louros platinados e
espetados, batom vermelho e óculos de armação preta e grossa. Suas orelhas cintilavam com três piercings em cada uma e um par daquelas argolinhas que abraçam a
cartilagem da orelha. Steve sorriu.
- Desculpe incomodá-la. Estou procurando por Terry Fowler. A mulher ergueu os olhos num gesto de fingida exasperação. Em seguida, sorriu e apontou para si mesma.
- Já encontrou. Theresa Fowler a seu serviço. Fiona embarcou na velha brincadeira de testar quais as suas suposições com relação a gênero?
Irritado com Fiona por fazê-lo parecer o modelo perfeito do policial preconceituoso, Steve entrou e encolheu os ombros como que pedindo desculpas. Nada como começar
em desvantagem, pensou.
- O que eu posso dizer? Caí direitinho. Peço desculpas, não costumo fazer suposições machistas. - Ele estendeu a mão. - Steve Preston.
- Prazer em conhecê-lo, superintendente. - Seu aperto de mão combinava com o dele; firme, sem exageros, o aperto de alguém que não desejava provar nada. - Não se
preocupe. Os psicólogos acham difícil resistir a uma brincadeirinha idiota. Faz parte do pacote. Puxe uma cadeira e fique à vontade. Bom, o mais à vontade que
conseguir num desses instrumentos de tortura.
O sorriso dela era contagiante, e ele se viu retribuindo. - Pode me chamar de Steve, por favor. - Puxou uma cadeira de plástico e se sentou. - Acredito que Fiona
tenha lhe passado mais informações do que para mim, certo?
Ela fez que não. - Só em termos gerais. Ela disse que você tinha um punhado de casos que queria que eu inserisse no sistema de conexão criminal. Aí, se eles formarem
um grupo, eu produzo um perfil geográfico. E você vai me pagar, o que é um bônus, preciso dizer. - Terry se recostou na cadeira, sem perceber que o gesto deixava
à mostra o corpo esguio, em uma calça jeans preta e camiseta.
- Tem mais uma coisa - falou Steve, abrindo sua pasta e pescando a pilha de arquivos que Joanne compilara. Ele havia acrescentado mais quatro casos que não tinham
nada a ver com os outros só para testar a precisão do programa de conexão criminal, mas não ia dizer isso a Terry. - Em primeiro lugar, preciso deixar claro que
esse material é altamente confidencial.
- Meus lábios estão selados - disse Terry, apertando-os com força. - Não duvido disso - replicou ele de modo contido, determinado a manter as coisas no nível
da formalidade. - Mas não pude deixar de notar que você divide esse escritório com outra pessoa. Então, sempre que sair daqui, terá de levar o arquivo com você,
a menos que tenha certeza de que ele ficará protegido.
- Tudo bem. - Mesmo que você esteja só dando um pulinho no banheiro ou indo até a máquina de fazer café.
- Já entendi. - Ela sorriu e ergueu as mãos com as palmas abertas para a frente, num gesto conciliatório. - Está tudo bem, Steve, compreendo.
- Não quero parecer que estou tentando ensinar o padre a rezar missa. Terry fez que não.
- Ei, você nunca trabalhou comigo antes, como pode saber que eu não sou apenas uma loura avoada? - Ela arregalou os olhos numa expressão interrogativa.
Foi a vez de Steve fazer graça: - Fiona não me odeia tanto assim. Certo, isso é o que eu tenho para você. Seis estupros e quatro ataques sexuais graves. Como Fiona
disse, quero que você verifique se é pertinente acreditar que existe uma ligação entre alguns ou todos eles. Se você conseguir um grupo, quero ver o que o perfil
geográfico produz. E, se conseguirmos chegar a isso, aí quero que você insira outro local para ver o que acontece.
Terry ergueu uma sobrancelha. O gesto poderia parecer arrogante, mas, de algum jeito, ela conseguiu evitar passar essa impressão.
- O outro local está nos arquivos? Steve fez que não. - Não quero influenciar seu modo de pensar. Depois que os resultados saírem, a gente enfia com esse dado.
- Por mim, tudo bem. Para quando você precisa disso? Steve abriu as mãos. - Ontem? - Ontem custa mais. Mas, pelo preço combinado, posso fazer para amanhã. Com
uma condição.
Steve inclinou a cabeça ligeiramente, com uma expressão desconfiada. - Uma condição? - Você janta comigo amanhã. - O sorriso que ela deu foi como o flerte calculado
de uma mulher que espera conseguir as coisas a seu modo.
Steve sentiu o sangue queimar-lhe as bochechas. - Jantar com você? - É uma ideia tão esquisita assim? Ele se forçou a manter sua reserva profissional. - Só não
acho que seja uma boa ideia. - Por quê? Você não é casado, é? - Não, mas... - Então, qual é o problema?
- Não estou habituado a misturar trabalho e prazer - respondeu ele, ciente de que soava como a pessoa formal e rígida que pedira a Deus jamais se tornar.
- Onde mais pessoas como nós conhecem companhias interessantes para jantar? Não precisamos conversar sobre trabalho, você sabe - replicou Terry. - Não vou perguntar
sobre seus dez melhores casos se você não me pedir para explicar a teoria de Jean Piaget. Vamos lá, o que você tem a perder? Mesmo que o encontro acabe sendo um
desastre, serão apenas algumas poucas horas. E eu não conto nada a ninguém se você não contar.
Agradavelmente perplexo, mas ainda desconfiado, Steve correu a mão pelos cabelos.
- Isso tudo é muito repentino. Ela deu de ombros. - A vida é curta demais. A gente precisa aproveitar cada momento. - Mas por que eu? - Deus do céu, vocês,
policiais, sabem como fazer perguntas, não é mesmo? - Ela riu, os dentes brancos e perfeitos brilhando como os do Lobo Mau. - Porque você tem cérebro e senso de
humor, porque é um cara boapinta e não é um psicólogo fanático por computadores. Quatro bons motivos. Pois, então, vai jantar comigo ou não? Tudo bem se você não
quiser, vou aceitar. Já sou bem crescidinha. E prometo que vou fazer a sua análise, sem ressentimentos.
Steve balançou a cabeça, completamente desorientado pelo jeito como a reunião desviara de suas expectativas.
- Tudo bem, combinado - ouviu-se dizer, percebendo ao falar que a ideia era realmente excitante.
- Boa resposta, Steve. Eu te ligo amanhã, quando tiver alguma coisa, certo? - Ela esticou o braço para pegar a pilha de arquivos.
Entendendo isso como uma forma de mandá-lo embora, Steve se levantou.
- Ahn... e quanto ao jantar? Onde eu faço a reserva? De que tipo de comida você gosta?
Ela deu de ombros. - Você escolhe. Eu não como carne vermelha, mas adoro peixe. Nunca encontrei um tipo de comida de que não gostasse.
- Por que isso não me surpreende? Obrigado, Terry. - Ele atravessou o corredor em direção à escada que o levaria até o escritório de Fiona com um sorriso de orelha
a orelha. Não conseguia acreditar no que acabara de acontecer. Tinha sido pego de surpresa pelo carisma de uma estranha. Pusera de lado um de seus princípios mais
arraigados e agora se sentia mais leve do que se sentira em meses. Talvez sua sorte estivesse mudando, finalmente.