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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SOMBRAS DE UM CRIME
SOMBRAS DE UM CRIME

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

33

O sorriso de Steve não sobreviveu ao encontro com Fiona. Ao entrar no escritório dela, encontrou-a observando a tela do computador com os olhos vidrados, as mãos
cruzadas atrás da cabeça.

- O dia está lindo, não? - falou alegremente, sentando-se no sofá. Fiona o fitou como se ele tivesse enlouquecido. - Está? - Acho que sim - respondeu, animado.
- Acabei de ter um encontro muito interessante com Terry Fowler.

- Que bom - replicou Fiona de modo distraído. - Ela é muito eficiente. Tenho certeza de que fará um excelente trabalho. - Sua voz falhou e ela franziu o cenho
ao olhar para a parede acima da cabeça dele.

- Terra para Fiona... Alguém em casa? - Desculpe, Steve, não dormi bem ontem à noite. Estou... um pouco distraída.

- Você queria me ver por que mesmo? - lembrou a ela. Fiona franziu o cenho de novo e apertou o osso do nariz com o polegar e o indicador.

- Eu sei. Tudo fazia sentido quando deixei a mensagem, mas agora... Bom, não tenho certeza se não estou reagindo de modo exagerado.

Ver Fiona distraída daquele jeito era algo que acontecia muito raramente para Steve não levar a sério.

- Fale logo - pediu. - Depois a gente decide. Ela fez que sim. - Faz tanto sentido quanto qualquer outra coisa. Acordei no meio da noite. Você sabe, como acontece
comigo de vez em quando. Nenhum motivo em particular, mas não consegui voltar a dormir. Então, fui para meu escritório a fim de me distrair um pouco na Internet,
e acabei numa sala de batepapo onde as pessoas estavam discutindo sobre o assassinato de Jane Elias. Ao que parece, o consenso é que a guarda prendeu o homem errado.

Ela inspirou fundo. - Tudo bem, sei o que você pensa dessa gente que se mete em grupos de discussão eletrônica no meio da noite, mas dois dos comentários foram
feitos por pessoas que conhecem esse cara, e elas disseram que ele não possui inteligência suficiente para planejar, nem para levar a cabo um esquema tão complicado.
Agora, se a polícia realmente prendeu o homem errado e o assassinato de Jane não tiver nada a ver com seu relacionamento com um oficial da Guarda Siochána, então
a lógica sugere que Jane Elias e Drew Shand podem ter sido assassinados pela mesma pessoa.

- Isso é forçar a barra, Fi, e você sabe. Países diferentes? Modus operandi completamente diferentes e nenhuma assinatura que a gente saiba?

- Há uma espécie de assinatura, Steve. Tanto Drew Shand quanto Jane Elias eram autores premiados que escreviam romances de suspense sobre serial killers, os quais
foram adaptados com sucesso para a TV ou o cinema. Ambos foram mortos de modo semelhante às mortes descritas nesses mesmos livros adaptados. - Fiona agora estava
concentrada, a distração ficara para trás.

- Essa não é uma assinatura convencional. - Esse foi o único protesto

que Steve conseguiu encontrar.

- Eu sei. Mas estive trabalhando em outro caso... o espanhol... que também apresenta uma assinatura nada convencional, e acho que é por isso que estou mais aberta
à ideia do que normalmente estaria. Então, seja indulgente. Pelo bem da argumentação, digamos que haja uma possibilidade de os dois crimes terem sido cometidos
pela mesma pessoa.

Steve concordou com um meneio de cabeça.

- Certo. Só por um interesse estritamente acadêmico, vamos ver aonde isso nos leva.

- Isso nos leva ao fato de que Georgia Lester está desaparecida. Ela recebeu pelo menos uma ameaça de morte e, quando descobriu que Kit também havia recebido
uma, isso a deixou bastante assustada. Kit, que a conhece melhor do que ninguém, acha que os jornais estão certos e que ela deve ter se escondido, numa espécie
de armação bizarra visando a autopromoção. Você disse ontem à noite que é possível que ela tenha sido sequestrada. As duas opções são válidas. Pelo que eu sei,
a polícia pode estar negociando com o sequestrador neste exato momento. Acredito que você poderia descobrir isso com relativa facilidade se quisesse. No entanto,
há outra possibilidade.

- Estou com uma impressão terrível de que sei aonde você quer chegar com isso - comentou Steve.

- Acho que Georgia pode ser a terceira vítima de um serial killer. Se for esse o caso, para a assinatura bater ela tem que ter sido assassinada da mesma maneira
que uma das vítimas de seu romance. Concorda?

Steve decidiu cooperar, deixando Fiona prosseguir com aquela linha de pensamento.

- Em tese, sim. - Depois de me conectar ontem à noite, fui dar uma olhada nas obras da Georgia. Ela só escreveu um único romance sobre serial killers, And Ever
Shall Be So, o qual foi transformado em filme. Ela é uma escritora premiada... ganhou duas vezes o Crime Writers' Association Gold Dagger pelo melhor romance policial
do ano. Ela se enquadra em todos os critérios, Steve. Bom, dei uma folheada no livro ontem à noite. - Fiona fez uma pausa. Afastou o cabelo do rosto, revelando
as marcas escuras sob os olhos.

Ela continuou, mas agora sua voz adquirira o tom calmo e imparcial de um professor compartilhando informações.

- O assassino em And Ever Shall Be So sequestra suas vítimas. Ele finge estar com o carro quebrado em uma estradinha rural, mas em plena luz do dia, para que ninguém
suspeite dele. Depois carrega as vítimas para seu esconderijo, onde as estrangula. Por fim, retira a pele delas, as desmembra e as embrulha como pedaços de carne.

Steve olhou fixamente para Fiona por um longo tempo. Era uma possibilidade pavorosa, mas, se aceitasse sua premissa básica, essa seria a conclusão inevitável.

- E você acha que foi isso o que aconteceu com a Georgia? Fiona o encarou, olho no olho. - Estou morrendo de medo de que tenha sido exatamente isso o que aconteceu
com ela. Me diz que eu estou sendo paranoica, Steve.

- Você é a psicóloga, Fi. Você sabe que só é paranoia quando não há fundamento. O que está me dizendo pode ser um tanto improvável, mas não é completamente sem
fundamento. - Steve se inclinou para a frente, os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos entrelaçadas. Por mais cético que tentasse soar, parte dele fora convencida
pela tese de Fiona. - No livro, o que ele faz com os restos?

- O assassino possui um açougue na cidade onde as vítimas moram. Ele tem um freezer enorme que, supostamente, está obsoleto. Ele o mantém trancado com cadeado.
É nele que coloca os pacotes com a carne humana. Então, se eu estiver certa, pela lógica, o lugar para procurarmos pela Georgia seria o Smithfield Market. Eles
vivem na cidade, entenda bem, ela e Anthony.

Steve fechou os olhos. Estava imaginando como conseguiria convencer os detetives que estavam procurando Georgia Lester de que eles precisariam de um mandado de
busca para o Smithfield Market.

- Mais uma pergunta - disse, por fim. - Você acha que existe alguma ligação com as ameaças de morte?

Fiona deu de ombros. - Não sei. Minha primeira reação foi de que o autor das cartas não era um assassino. Em nenhuma das cartas que eu vi, ele se vangloria de
algum assassinato, o que seria de esperar se ele fosse o assassino. Além disso, em geral as pessoas que escrevem ameaças anônimas pensam de modo diferente daquelas
que realmente matam. No entanto, quanto mais o tempo passa, menos confiante me sinto com relação a meu próprio julgamento. É difícil acreditar que seja apenas
coincidência alguém estar matando escritores enquanto outra pessoa envia ameaças de morte para esses mesmos escritores.

- Não sabemos se Jane Elias e Drew Shand receberam ameaças similares às enviadas para Kit e para os outros, não é? E a guarda me falou que eles não encontraram
nada semelhante entre os papéis dela. - Por mais que estivesse disposto a aceitar a teoria de Fiona sobre um serial killer, Steve continuava, pessoalmente, relutante
em acreditar que as cartas pudessem conter uma ameaça concreta. Se fosse assim, isso significava que seu melhor amigo podia ser o próximo alvo. E essa era uma possibilidade
que lhe fazia gelar a espinha.

Fiona olhou para ele como que anestesiada. As palavras entraram por um ouvido e saíram pelo outro, sem alterar em nada a ansiedade que a corroía por dentro.

- Tudo o que sei é que, se houver um serial killer à solta, Kit é provavelmente o próximo da lista, quer ele seja ou não o autor das cartas. Kit se enquadra em
todos os critérios, da mesma forma que a Georgia. Você precisa fazer alguma coisa, Steve.

34.

Fiona estava atipicamente quieta ao caminharem pelas ruas movimentadas de Holborn, depois de saírem do escritório dela rumo à cafeteria onde Steve marcara o encontro.
Enquanto eles desciam em direção à Farringdon Road, seu humor parecia combinar com o céu cinzento e os prédios vitorianos altos e sombrios que os cercavam. Tentando
distraí-la, Steve falou:

- Sua aluna do doutorado tem o hábito de fazer convites a homens estranhos?

- Você está falando da Terry? - Ela me convidou para jantar. - Vejo que ela ainda não aprendeu a controlar seus impulsos. - Fiona pareceu entretida.

- Ela tem o hábito de fazer esse tipo de coisa? - exigiu saber Steve, bastante desanimado com a ideia.

- Fazer propostas a homens? Acho que não, não. Mas ela tem uma incrível tendência de ceder a seus desejos, sentimentos e inspirações sem parar para pensar.

- Ela é exatamente o que você precisa, Steve. Alguém que vai arrancá-lo da rotina - disse Fiona, dando o braço a ele e apertando de leve.

- É assim que você me vê? Um homem preso à rotina?

- Admita, você é uma criatura de hábitos, um homem cauteloso. Um rápido encontro com uma garota agitada e carismática como Terry pode ser exatamente o que você
precisa.

- Você acha que isso é tudo o que ela quer? Um rápido encontro? - perguntou Steve, tentando manter o mesmo tom descontraído de Fiona.

- Não faço ideia. Desculpe, não tive a intenção de sugerir que ela só te vê como um brinquedo. Ela não tem a reputação de ser namoradeira. Trabalho com Terry há
quase dois anos, e tudo o que a vi fazer com os homens foi colocá-los no seu devido lugar. O que em geral é a distância. Não - acrescentou Fiona rapidamente - que
tenha alguma coisa errada nisso. Vi muitas alunas perderem o rumo por serem as mais atraentes da turma e não conseguirem resistir à sedução dos homens.

- Mas Terry não é uma dessas, é isso o que você está dizendo? Eles deram um passo para o lado a fim de dar passagem a uma mulher numa cadeira de rodas.

- Definitivamente, não. Ela tem consciência do próprio charme, mas não faz uso dele. Quando começou o doutorado, Terry morava com alguém, mas eles terminaram...
ah, isso já faz um ano e meio. Desde então, não soube de ninguém que mexesse com ela. Portanto, ela deve ter realmente gostado de você. - Fiona apertou o braço
dele e sorriu.

- Você a conhece bem - observou Steve. - Você está sondando o terreno. Presumo, então, que aceitou o convite? - Aceitei. Fiona ergueu as sobrancelhas. - Que
bom! Já estava na hora de você viver um pouco, Steve. Solte-se. E lembre-se de que Terry é a mulher perfeita para você fazer isso. Ela é inteligente e talentosa.
E bastante divertida.

Steve sorriu. - Isso eu já tinha notado. Suponho que terei de ir com calma com relação a ela.

- O que não é ruim num relacionamento - comentou Fiona com um sorrisinho maldoso.

- Ei, controle-se. Só combinamos um jantar, e não morarmos juntos. Fiona não disse nada, apenas lhe lançou um olhar inquisitivo ao soltar seu braço e se virar
para a cafeteria. Ela abrira no auge da moda de café na

cidade. A decoração ostentava o estilo tradicional dos anos 1990, com cada parede pintada em um tom de cor primária diferente, e vasos altos de alumínio exibindo
folhagens exóticas espalhados pelo ambiente de forma estratégica. Em vez das cadeiras normais, poltronas baixas, que envolviam os quadris, e mesas na altura dos
joelhos, pintadas em tons de verde-chá. Ao fundo, uma música no estilo popular britânico, apenas alta o suficiente para abafar o chiado e o crepitar das máquinas
de café. A cafeteria ficava longe demais da universidade para atrair os alunos. Bem no meio da manhã, apenas meia dúzia de mesas estava ocupada. Steve foi andando
na frente até uma mesa no canto dos fundos, onde havia menos chances de que alguém escutasse a conversa deles. Após passar os olhos no elaborado cardápio de bebidas
quentes e frias, Fiona escolheu um cappuccino, e Steve, um expresso diluído. Ele pegou um charuto e o acendeu, soltando um anel de fumaça perfeito que subiu em
direção ao teto.

Fiona sorriu. - Você só faz isso quando está nervoso. -É? - Já tinha notado antes. Quando você está agitado, sopra anéis de fumaça.

- Então isso é o que eu sou para você, um rato de laboratório sobre duas pernas - comentou ele de modo afetuoso.

Antes que ela pudesse responder, uma mulher negra e alta, em um tailleur caramelo e com uma pasta na mão, entrou na cafeteria e olhou em torno. Ao ver Steve, a
mulher começou a andar na direção deles. Enquanto ela se aproximava, Fiona observou os detalhes. Sapatos de saltos baixos, panturrilhas fortes. Cabelos cortados
rente à cabeça, maçãs do rosto salientes, nariz adunco e olhos escuros emoldurados por óculos de armação oval. Era difícil estimar a idade dela, mas, como Fiona
sabia que ela era uma inspetora-chefe, tinha que ter pelo menos trinta e alguma coisa. Ao chegar na mesa deles, a mulher cumprimentou Steve com um aceno de cabeça
e estendeu a mão para Fiona.

- Dra. Cameron? É uma honra conhecê-la. Sou Sarah Duvall. Da City of London Police.

Elas apertaram as mãos e Duvall se sentou de frente para Fiona. - Bom te ver, Steve - acrescentou, curvando a cabeça ligeiramente.

- Obrigado por vir, Sarah. Sei que você está enrolada até o pescoço no momento - disse ele.

- Não estamos todos? - retrucou Duvall. O garçom chegou com os cafés e Duvall pediu um expresso grande. Fiona não ficou nem um pouco surpresa. Alguma coisa precisava
ter servido de combustível para aquela mulher enérgica e sensata enquanto ela galgava os postos da City, e não teriam sido elogios. - Então, Steve me disse que
você queria conversar comigo sobre a investigação do caso Georgia Lester. - Duvall avaliou Fiona com olhos astutos.

- Para ser honesta, quanto mais eu penso nisso, mais acho que provavelmente estou fazendo todo mundo perder tempo - falou Fiona de modo evasivo, ciente de que não
estava exibindo sua costumeira confiança e imaginando se, na verdade, não estaria se sentindo ligeiramente intimidada pela outra mulher.

- Deixe que eu julgo isso - replicou Duvall. - Pois bem, se importa de me contar tudo?

Fiona começou pelo princípio, com o assassinato de Drew Shand, e apresentou a hipótese que já discutira com Steve. Duvall escutou em silêncio, o rosto sem nenhuma
expressão, o corpo tão imóvel quanto água parada. Quando Fiona terminou de explicar sua teoria, ela simplesmente anuiu com um aceno de cabeça.

- Entendo. - Ela pegou a xícara e tomou um gole do café. - Não acho que isso seja perda de tempo, de jeito nenhum - disse, por fim. Olhou de relance para Steve.
- Posso ser franca?

- Fiona entende a questão do sigilo - confirmou ele. Duvall pegou a colher e mexeu o café de modo pensativo. - A investigação sobre o desaparecimento da Georgia
está a cargo da divisão de Dorset, já que, ao que se sabe, lá é o último lugar onde ela esteve e também onde o carro dela foi encontrado. Eu só fui envolvida no
caso porque sua residência em Londres fica na nossa área. Alguns interrogatórios precisavam ser conduzidos aqui, e ficou decidido que eles deveriam ficar a cargo
de oficiais mais experientes do que aqueles que lidam com a maioria das pessoas desaparecidas. Por motivos que tenho certeza de que você irá apreciar. - Fiona
fez que sim, impressionada com a abordagem direta e lógica de Duvall.

"Há suposições, como você mesma ressaltou, de que a sra. Lester armou o próprio desaparecimento para se autopromover. E, até certo ponto, estamos permitindo que
essa suposição se espalhe. No entanto, não acredito que seja esse o caso. A despeito de tudo, ela já havia contratado um guardacostas para acompanhá-la no tour
de lançamento do livro, o que eu não acredito que ela teria feito se estivesse planejando desaparecer. Além disso, a aflição do marido é genuína, e todos que
interroguei me asseguraram que ela não o deixaria deliberadamente nessa ansiedade. Estamos monitorando o telefone e a correspondência do sr. Fitzgerald, com o
consentimento dele, e até o momento não houve nenhum pedido de resgate. O que já teria acontecido se ela tivesse sido sequestrada. Acho que podemos ter certeza
quanto a isso.

"Como você mesma ressaltou, isso nos deixa a desagradável alternativa de que a sra. Lester está morta, e não por suas próprias mãos. Não há nada que sugira um
acidente fatal. Portanto, estou conduzindo o caso como se estivesse lidando com os estágios iniciais de uma investigação de homicídio. Achei o que você disse tanto
perturbador quanto curiosamente satisfatório, porque bate totalmente com meus instintos sobre o caso. Só gostaria que alguém tivesse me contado sobre essas ameaças
de morte antes."

Fiona pareceu arrependida. - Em parte, a culpa é minha, sinto dizer. Georgia queria levá-las à polícia, mas meu companheiro, Kit, era contrário à ideia. Kit achou
que eram apenas cartas raivosas normais e não queria que pensassem que ele estava buscando se autopromover depois do assassinato de Shand. Eu deveria ter sido
mais insistente, desculpe.

Duvall anuiu com um meneio de cabeça. Seu rosto não indicava compreensão, e ela tampouco tentou tranquilizar Fiona. Sua expressão dizia que ela deveria ter pensado
melhor, e Fiona sofreu ao perceber isso.

- Quero vê-las assim que for possível. - Foi tudo o que Duvall disse. - Vou enviá-las para você ainda hoje - prometeu Fiona. - Elas estão no meu escritório. Sinto
muito, não pensei direito. Deveria tê-las trazido comigo.

Os lábios de Duvall se apertaram numa concordância silenciosa. - E o que fazemos agora? - perguntou Steve, ansioso para afastar a leve irritação que surgira entre
as duas e voltar a um território mais produtivo.

- Não consigo ver como você vai conseguir um mandado de busca para o Smithfield Market com base no que Fiona lhe contou.

Duvall tomou outro gole do café. Uma técnica calculada para dar espaço para pensar, decidiu Fiona.

- Posso tentar - disse ela por fim. Mais café. - Temos um ou dois magistrados bastante compreensivos na City. E temos um ótimo relacionamento com as autoridades
locais. Na verdade, temos uma equipe de oficiais cuja base fica em Smithfield. O que talvez me ajude, doutora, é se você puder me falar um pouco sobre o tipo de
pessoa que acredita estar cometendo esses crimes e se é provável que ela ataque de novo. - Ela sorriu de leve. - Prevenção é sempre um bom argumento para usar
com os magistrados.

- Não sou uma psicóloga comportamental - retrucou Fiona. - Sou uma acadêmica. Não monto perfis baseados em coisas do tipo: se o assassino fazia xixi na cama ou
se sofreu abusos de um pai alcoólatra. Deixo isso para os psicólogos clínicos, que têm uma vasta experiência na qual se apoiar.

Duvall fez que sim. - Eu sei. Pessoalmente prefiro certo rigor intelectual no tocante a investigações criminais - disse, de modo irônico. - Mas com base no que
você sabe sobre esse tipo de assassino, tem algo que possa me dizer?

- Esses assassinatos são estimulados pelo ódio. A maioria dos homicídios em série é de natureza sexual, mas, de vez em quando, surgem outros motivos. Por exemplo,
o tipo missionário, cujo objetivo é livrar o mundo de um grupo particular de indivíduos que não merece viver. Trabalhei recentemente num caso semelhante com a polícia
espanhola. Nesse caso, eu diria que a motivação principal é a perda.

- Perda? - interrompeu Duvall. - A maior parte dos adultos desenvolve seu ego a partir de uma matriz complexa de fatores interligados - explicou Fiona. - Assim,
se perdemos um pai, se nossos companheiros nos abandonam, se a carreira pela qual trabalhamos tanto desmorona, ficamos desolados, mas não perdemos a consciência
de quem somos. No entanto, há pessoas que nunca alcançam esse tipo de integração. Seu eu está estritamente ligado a um único aspecto de suas vidas. Se elas perdem
esse elemento, perdem completamente o equilíbrio e o controle normais. Algumas cometem suicídio. Um grupo menor

canaliza a dor e o ódio, e busca se vingar daqueles que consideram de alguma forma responsáveis.

- Compreendo - retrucou Duvall. - E você acha que é isso o que pode ter acontecido aqui?

Fiona deu de ombros. - Isso é o que minha experiência me levaria a pensar. Steve se inclinou para a frente. - Então que tipo de pessoa veria escritores de suspense
sobre serial killers como seus inimigos?

- Ou inimigas - interveio Duvall. - Nós da City gostamos de oportunidades iguais, Steve. Ao contrário da Polícia Metropolitana. - Mais uma vez, o leve sorriso por
trás da farpa.

Steve fez que não. - Se é um serial killer, é um homem. Drew Shand era um homossexual que foi visto pela última vez saindo de um bar gay com outro homem, o qual
não se apresentou como testemunha. Podemos presumir, portanto, que ele seja o assassino.

Duvall inclinou a cabeça em sinal de concordância. - Você tem razão. Pelo menos, por enquanto. - Ela se virou para Fiona de novo. - Seja indulgente conosco, doutora.
Que tipo de pessoa iria querer matar esses escritores?

Fiona recusou-se a se sentir pressionada ou intimidada. Precisava provar seu ponto de vista, e Sarah Duvall não ia impedi-la de fazer isso.

- Escrita criativa. Esse é um campo no qual as paixões são exacerbadas. Eu sei, vivo com um escritor. Suponho que possa ser um fã obsessivo que quer fazer com
que seu nome seja conhecido, um tipo Mark Chapman* de assassino. Só que na maioria das vezes eles param num único crime. É o suficiente para dar sua declaração.
E, em geral, não são sofisticados o suficiente para montar uma estrutura de assassinato tão complexa.

"Pode, também, ser um aspirante a escritor cheio de ressentimento pelo sucesso alheio. Em seu universo paralelo, ele talvez acredite que eles tenham roubado suas
tramas, suas ideias, seja por meios convencionais ou entrando em sua mente enquanto ele estava dormindo. Com base no conteúdo

*O assassino de John Lennon. (N. T.)

das cartas, eu diria que o autor das ameaças de morte se enquadra nessa categoria.

"Ou pode ser um escritor cuja carreira entrou em irreparável declínio. Talvez alguém que acredita que esses escritores em particular roubaram o sucesso que deveria
ser dele."

Fiona abriu as mãos. - Sinto muito, não posso ser mais específica do que isso. - Reparou que Duvall parecia cética.

- Nunca imaginei que alguém pudesse se sentir tão ameaçado por escritores a ponto de querer matá-los - comentou Steve.

- Quem quer que esteja fazendo isso ficou obcecado com a ideia de que esse grupo particular de escritores de algum jeito lhe fez um mal terrível, destrutivo. E
essa é sua forma de reparar esse mal - explicou Fiona.

Duvall franziu o cenho. - Até parece que escrever livros muda a vida de alguém. - Você não acha que a caneta é mais poderosa do que a espada? - perguntou Fiona.

- Não, não acho - insistiu Duvall. - Livros são apenas... livros. - Paus e pedras podem quebrar meus ossos, mas palavras não podem me machucar. É isso o que você
pensa?

Duvall pensou um pouco. - Acho que nunca li nada que tenha mudado minha vida. Para melhor ou pior.

- "A poesia não faz nada acontecer" - observou Fiona. - Como? - É algo que W. H. Auden escreveu. Você acha que o mesmo vale para o cinema e a TV? - perguntou
Fiona a Duvall. Isso agora era entre elas. Steve manteve-se de fora enquanto as duas fitavam intensamente uma à outra.

Duvall recostou-se na cadeira, ponderando. - Seus colegas estão sempre nos dizendo que as crianças copiam a violência que assistem na TV

- Com certeza, há depoimentos que confirmam isso. Mas, quanto a influenciar nosso comportamento diretamente ou não, acho que o que lemos e assistimos altera nossa
visão de mundo. E não posso deixar de imaginar

se esse assassino é alguém que não gosta do modo como esses escritores e as adaptações de seus livros apresentam o mundo - retrucou Fiona.

- Você está forçando um pouco a barra. Fiona deu de ombros. - Por mais estranho que pareça, a lógica me diz que, se Georgia está morta e esses crimes estiverem
ligados, o motivo se encontra nas coisas que eles escreveram.

Duvall fez que sim. - Estude a vítima para aprender. - Leia a vítima, aprenda sobre o assassino - concordou Steve. - A regra número um de homicídios de pessoas
estranhas.

- E ele vai matar de novo - declarou Duvall, abertamente. Esse era o assunto que Fiona desejava poder evitar, a questão que a assombrava desde que lera os trechos-chave
de And Ever Shall Be So.

- Vai. A menos que seja impedido, ele vai matar de novo. O que você precisa fazer agora é montar uma lista das vítimas em potencial e providenciar proteção para
elas.

Duvall perdeu a calma por alguns instantes e olhou para Steve em busca de apoio. Dessa vez, foi ele quem permaneceu impassível.

- Não vejo como podemos fazer isso - sentiu-se Duvall num impasse. Obviamente não gostava de ver alguém que considerava uma pessoa de fora lhe dizendo como fazer
seu trabalho.

- Eu diria que esse é o passo mais lógico - falou Fiona de modo seco. Lidava agora com o futuro de Kit, sua confiança assumira novamente a direção, com um quê
de agressividade. - Você tem que procurar por escritores de suspense premiados que escreveram romances sobre serial killers, os quais foram adaptados para o cinema
ou a TV. Fale com o pessoal da Crime Writers' Association. Eles poderão colocá-la em contato com um ou outro dos aficionados por crime, que por sua vez poderão
lhe fornecer todas as informações de que você precisa.

- Mas deve haver dúzias de escritores assim - protestou Duvall. - Não podemos oferecer proteção a todos eles.

- Pelo menos você deveria alertá-los. - A voz de Fiona estava tão implacável quanto seu rosto, os olhos amendoados brilhando de maneira intensa na penumbra da
cafeteria.

Duvall fechou a cara. - Isso é impossível. Acho que não pensou muito bem nisso, dra. Cameron. A última coisa que queremos é suscitar pânico. A mídia já está atacando
por todos os lados, e nem sabemos ainda se Georgia Lester está viva ou morta. Seria uma total irresponsabilidade ir a público neste momento.

Fiona lançou um olhar furioso para Duvall. - Alguns desses escritores são meus amigos. Eu vivo com um deles. Se você não vai alertá-los, eu vou.

As narinas estreitas de Duvall se abriram. Ela se virou para Steve. - Achei que você tivesse dito que ela compreendia a questão do sigilo. Steve pousou a mão sobre
o braço de Fiona. Ela a afastou com um safanão impaciente.

- Duvall está certa - falou ele com gentileza. - Não temos certeza de nada ainda, e nossas chances de pegar esse homem poderiam ser seriamente prejudicadas se
entrarmos em pânico de maneira prematura. Você sabe disso, Fi. Se isso não afetasse o Kit, você seria a primeira a dizer que não devemos dar ao assassino o gostinho
da publicidade.

- Verdade, Steve, eu provavelmente diria isso sim - replicou Fiona com raiva. - Só que isso afeta o Kit, e eu devo a ele muito mais do que devo à City of London
Police.

Fez-se um silêncio perigoso. Em seguida Duvall disse: - Avise seu companheiro para ficar alerta. Mas preciso insistir que guardem isso para vocês.

Fiona bufou com desdém. - Não estamos falando de idiotas aqui. Estamos falando de homens e mulheres inteligentes que vivem pelo poder da imaginação. Desde que
Drew Shand morreu, os escritores de suspense escoceses montaram um esquema telefônico para checar diariamente uns aos outros. Um deles até já me ligou em busca
de apoio. Muitos sabem o que eu faço para viver. Se você encontrar a Georgia em pedaços no Smithfield, meu telefone vai tocar sem parar. Não vou dizer a essas
pessoas que não há motivo para preocupação.

- Fi, você sabe que existe uma grande diferença entre sugerir que elas deveriam se manter alertas e dizer que tem um serial killer à solta que talvez esteja atrás
delas. E você também sabe que é perfeitamente capaz de percorrer essa linha - comentou Steve.

Fiona levantou-se da poltrona. - Você talvez tenha se esquecido da Lesley, Steve. Eu, porém, jamais vou esquecer. E vou lidar com isso como achar que devo, e não
do jeito que vocês acharem melhor.

Steve a observou sair a passos largos da cafeteria, o cabelo esvoaçando pela velocidade empregada.

- Que merda - resmungou ele. - Gostaria de saber que diabos foi isso - falou Duvall. - Senhor - acrescentou, mais como um insulto calculado do que como uma reflexão
tardia.

Steve apagou o charuto com impaciência. - Ela está certa. Não pensei na Lesley - disse meio que para si mesmo. Ele se empertigou na poltrona. - Lesley era irmã
de Fiona. Ela foi assassinada por um estuprador em série quando ainda era uma estudante. Eles nunca pegaram o culpado. Foi por isso que Fiona se tornou uma psicóloga
criminalista. Ela sempre acreditou que, se a universidade tivesse alertado as alunas, Lesley teria escapado. Provavelmente está errada, mas os sobreviventes precisam
encontrar alguém em quem colocar a culpa. Caso contrário, acabam culpando a vítima, e isso é menos saudável ainda.

Duvall concordou com um aceno de cabeça, enfim compreendendo. - Não é de admirar que ela esteja preocupada com o namorado. - Eu também estou preocupado com ele,
Sarah. Kit é meu melhor amigo - falou Steve, com uma expressão grave.

- É melhor você ir atrás dela e tentar acalmá-la. Não quero vê-la atirando a esmo no meio da minha investigação. Por mais que ela tenha sido de grande ajuda.

Steve, que gostava tanto quanto Duvall que lhe dissessem o que fazer, fitou-a com olhos duros.

Duvall ergueu a mão em sinal de paz. - E, quando eu voltar para a Wood Street, vou direto até meu chefe, a fim de exigir um esquadrão inteiro para trabalhar no
caso. Vou me concentrar agora de tarde no pedido do mandado de busca. Diga isso a ela para acalmá-la.

- Vou dizer, Sarah. Fico feliz que você esteja levando isso a sério. Porque, se alguma coisa acontecer com Kit Martin, Fiona não será a única a querer sangue.

35.

O que ela queria fazer era entrar no primeiro táxi e ir direto para casa, para Kit. Fiona, porém, sempre evitara colocar o desejo na frente da obrigação, portanto
continuou percorrendo o caminho de volta para seu escritório, indiferente a tudo e a todos, a cabeça zumbindo de maneira caótica, o estômago revirado de medo. Não
havia um motivo particular para Kit ser o próximo da lista, mas, por outro lado, também não havia motivo para não ser. Precisava encontrar um meio de convencê-lo
a levá-la a sério sem deixá-lo tão assustado quanto ela se sentia.

Estava prestes a entrar em seu escritório quando escutou alguém chamá-la. Virou-se e viu Steve correndo pelo corredor em sua direção, o rosto coberto por uma fina
camada de suor.

- Espera aí, Fi! - gritou ele quando ela se virou de novo, entrou no escritório e bateu a porta às suas costas.

Fiona não tinha nem tirado a jaqueta ainda quando viu Steve a seu lado. Com um braço livre, mas o outro ainda metido na manga, ela não pôde impedir que ele a puxasse
e lhe desse um abraço bem apertado.

- Sei que você está assustada - disse. - Assustada é o caralho - rosnou Fiona. - Estou furiosa. Há pessoas em perigo, e vocês não querem protegê-las. - Ela se
desvencilhou e terminou de tirar a jaqueta, jogando-a sobre o sofá. - Vocês não manteriam isso em

segredo se alguém estivesse matando policiais, Steve. Por que Kit e os amigos dele não merecem a mesma consideração?

- Não dá para comparar, Fi. Os policiais sabem manter as coisas sob controle. Mas, se começarmos a emitir alertas para os escritores, a coisa toda vai ficar uma
loucura. Não temos como oferecer proteção a todos eles, não temos pessoal suficiente. Assim, alguns vão correr para a mídia, gritando que a polícia é incompetente,
e os jornais vão transformar isso numa histeria em massa. Aí os loucos vão se soltar. Vai ter gente à espreita. E trotes telefônicos. E então os vigilantes tomarão
a justiça nas próprias mãos, tentando proteger seus heróis. E, antes que você perceba, alguém que não tem nada a ver com essa confusão toda vai sair machucado.
- Steve andava de um lado para o outro enquanto falava, a tensão visível em cada movimento.

- Isso é uma droga, Steve, e você sabe. Se Georgia tiver sido assassinada... e acredite em mim, estou rezando para que a equipe de Sarah Duvall não encontre nada
no Smithfield Market além de carcaças de animais... então acho inevitável concluir que há um serial killer à solta. E não vou deixar que meu companheiro e os amigos
dele sejam feitos de isca enquanto vocês tentam, sem sucesso, capturar a pessoa certa. - Fiona abriu a gaveta de sua mesa e tirou uma pasta de plástico, que atirou
na direção de Steve. -Aqui estão suas cartas. A do Kit, da Georgia e as outras quatro. Entregue-as a Sarah.

Steve endureceu o rosto. - Tudo bem. Só me prometa uma coisa. Prometa que vai fazer o que tiver de fazer de maneira responsável.

Fiona parecia prestes a explodir em lágrimas de ódio. - Ah, Steve, você já devia me conhecer. - O tom de censura em sua voz era cortante.

Steve se encolheu, como ela esperava. - Me desculpe, Fi. Mas você precisa entender meu ponto de vista. Não podemos permitir que a mídia comece uma caça às bruxas.
Veja só, também estou assustado. Se alguma coisa acontecesse com Kit, eu jamais me perdoaria. - Então faça alguma coisa para se certificar de que nada aconteça.
Steve jogou a pasta com as cartas sobre a cadeira, frustrado.

- Você não entende? Não posso. Isso não está nas minhas mãos. A força da City não tem nada a ver com a gente, e não posso interferir no caso deles.

- Bom, então não há mais nada a dizer, certo? - A voz de Fiona parecia vir de algum lugar muito distante.

Antes que ele pudesse responder, o telefone tocou. Fiona atendeu de modo automático, dizendo:

- Você vai ter de me dar licença. Tenho trabalho a fazer. - Ela se virou de costas para ele deliberadamente. - Alô, Fiona Cameron.

Steve observou seus ombros caírem ao descobrir quem estava ligando. - Só um minuto, major - pediu ela, cobrindo o bocal com a mão. Olhou por cima do ombro. - Até
mais, Steve. - Esperou que ele pegasse as cartas e saísse do escritório, em seguida foi para a cadeira atrás da mesa.

Abafando um suspiro, voltou para o telefone. - Desculpe por fazê-lo esperar, precisei me despedir de alguém. - Sinto muito. Liguei numa hora ruim - desculpou-se
Berrocal. - No momento, o senhor pode acreditar em mim, qualquer hora seria ruim. Como posso ajudá-lo, major?

- Tenho boas notícias - informou ele. - Estamos com Miguel Delgado sob custódia.

Fiona tentou soar animada, apesar da dor de cabeça que começava a sentir por trás dos olhos.

- Meus parabéns. O senhor deve estar muito aliviado. - Si, e feliz por termos conseguido capturá-lo. A senhora estava certa, ele tinha outro esconderijo. Um amigo
dele possuía um daqueles trailers que minha mulher chama de Winnebago. Delgado achava que podia confiar no sujeito por ele ser um criminoso também. Só que esse
amigo é apenas um ladrãozinho barato, um arrombador. Ele tinha visto o rosto de Delgado no jornal e sabia que o que quer que Delgado tivesse feito tinha de ser
bastante sério. E os únicos crimes graves dos quais escutara falar eram os assassinatos. Como não queria se ver envolvido em crimes desse tipo, deixou Delgado
pegar o trailer emprestado, mas avisou a polícia local. Nós o encontramos hoje de manhã em um camping, a alguns quilômetros da cidade.

- Bom trabalho. Ele confessou?

Ela escutou o suspiro de Berrocal. - Não, ele não disse nada desde que foi preso. - Há alguma prova concreta que o ligue aos crimes?

- A segunda vítima? O americano? Um garçom se apresentou dizendo! que se lembra de ter visto Delgado com ele dois dias antes do assassinato, Temos esperança de que
o laboratório consiga uma comparação positiva das fibras, mas o resultado ainda vai demorar um pouco. Além disso, estamos testando as facas que Delgado tinha no
trailer quando o capturamos. Esses resultados também não saíram ainda. Portanto, por enquanto não temos nada com que pressioná-lo.

Ela esperava que ele não estivesse querendo sua ajuda. Queria dizer a ele para ir para o inferno, que tinha coisas mais importantes com que se preocupar. Contudo,
seu lado profissional sabia que colocar um ponto final nos assassinatos de Toledo era tão importante quanto o que estava acontecendo em sua vida pessoal. Com relação
a valor, precisava acreditar que todas as vidas eram iguais. Caso contrário, seu trabalho não faria sentido. Desse modo, forçou-se a não despejar sua frustração
e hostilidade em cima de Salvador Berrocal.

- Tenho certeza de que o senhor possui uma equipe bastante experiente para trabalhar nisso - disse, enquanto apertava o botão para ligar o computador.

- Nunca interroguei um serial killer antes. Mas tenho um plano - respondeu ele, parecendo entusiasmado. - Pensei em deixá-lo irritado. Em usar um dos meus auxiliares
para provocá-lo. A senhora sabe o que eu quero dizer. Esses policiais idiotas daqui, como eles podem ser tão burros para prender um indivíduo tão patético quanto
você? É claro que quem quer que tenha cometido esses crimes foi inteligente o bastante para fazer um planejamento cuidadoso, e charmoso o suficiente para fazer
com que as vítimas o acompanhassem de livre e espontânea vontade. E um vendedor feioso, fedido e fracassado como você não possui as características necessárias
para ser o assassino de Toledo. Meu homem vai agir como se estivesse irritadíssimo por estar perdendo tempo com um interrogatório inútil.

- Acho que isso vai deixá-lo bastante furioso - observou Fiona. - O que provavelmente lhes dará uma vantagem. O senhor sem dúvida

pensou em tudo com muito cuidado. -Agora se manda e me deixe sozinha, pensou. - Mantenha-me informada dos desdobramentos.

Ele ainda lhe agradecia pelo perfil quando ela desligou o telefone. Berrocal que pensasse que ela era uma filha da mãe grosseira. Não dava a mínima. Fiona entrou
direto no programa de e-mail e começou a escrever uma mensagem nova. Kit não atendia o telefone quando estava trabalhando, mas ela sabia que ele checava o e-mail
mais ou menos a cada hora.

De: Fiona Cameron <fcameron@psych.ulon.ac.uk>

Para: Kit Martin <KMWriter@trashnet.com>

Assunto: Conselho

Lembra da mensagem da capa do livro O Guia do Mochileiro das Galáxias? Bom, NÃO ENTRE EM PÂNICO. Não quis te assustar hoje de manhã. Eu tinha uma ideia, mas queria
discuti-la primeiro com Steve. Durante a noite, descobri que os moradores da região acreditam que a guarda prendeu o homem errado pelo assassinato de Jane Elias.
Levando em consideração a morte de Drew e o desaparecimento da Georgia, precisei pensar na possibilidade de um criminoso em série. Assim, dei uma olhada em And
Ever Shall Be Soe fiquei perturbada com certas coisas que vi ali. Tive um encontro com a oficial da City of London Police responsável pelo caso, e a boa notícia
é que ela me levou a sério. A má notícia, claro, é que, se eu estiver certa, então Georgia provavelmente está morta, como temíamos. O pior é que é provável que
ocorram mais assassinatos; e, claro, a polícia já está dizendo que não quer emitir um alerta geral e dar início a um pânico injustificado, em grande parte porque
eles não possuem pessoal suficiente para oferecer às pessoas qualquer proteção... NÃO HÁ MOTIVO para imaginar que você esteja especificamente em risco (sim, eu
ainda acho que as ameaças de morte provavelmente não têm nada a ver com os assassinatos), mas é bom você se precaver. Não abra a porta para estranhos. Não vá a
lugar nenhum sozinho. Estou falando sério, lugar nenhum. Para o inferno com a bravata, quero você a salvo.

Se quiser falar comigo, estou no trabalho. Tenho uma reunião do departamento das duas às três e aula das três e meia às cinco. Estarei em casa às seis, espero.
Amo você.

Cuide-se. E

Fiona apertou o botão de enviar e observou a mensagem desaparecer no ar. O lado racional de sua mente lhe dizia que ela não poderia salvar Kit se alguém estivesse
determinado a matá-lo. No entanto, podia adotar as medidas de precaução. Um arrombador certa vez lhe dissera que os sistemas de segurança das casas particulares
não conseguiam impedir um invasor determinado. Se ele quisesse entrar numa casa específica, ele podia e faria. Os sistemas eram úteis para afastar os ladrões oportunistas.
"Você tem de fazer com que a casa do vizinho pareça uma opção mais fácil", explicara ele. Bom, se o preço pela segurança de Kit era fazer com que outra pessoa
parecesse uma opção mais fácil, Fiona estava preparada para tanto.

Depois, ela viveria com as consequências. Por enquanto, o importante era mantê-lo vivo.

Apesar do que tinha dito para Fiona, Sarah Duvall estava ciente de que tinha responsabilidade para com as vítimas em potencial. Ela sempre defendera o policiamento
preventivo, mas isso adquiria um peso maior quando o crime em questão era assassinato, e não roubo ou furtos. Sua maior prioridade era preparar o pedido para o
mandado de busca no Smithfield Market, mas, uma vez feito isso, procurou descobrir o que mais poderia fazer para avançar no caso.

Como nunca havia trabalhado com Fiona, Duvall reconhecia que talvez fosse mais cética com relação ao seu modo de ver as coisas do que Steve Preston, que parecia
considerar a psicóloga praticamente infalível. Portanto, tinha suas dúvidas no tocante à visão de Fiona de que era improvável que as ameaças de morte fossem obra
do assassino. Duvall não acreditava em coincidência. A seu ver, até mesmo sincronismo era algo suspeito. Simplesmente não conseguia acreditar que um serial killer
estava eliminando escritores de suspense ao mesmo tempo que um indivíduo completamente diferente lhes

mandava ameaças de morte. Ou eles eram a mesma pessoa, ou o emissor das cartas tinha um conhecimento privilegiado. Desse modo, se conseguisse identificar a origem
das cartas, ou descobriria a identidade do assassino ou, pelo menos, alguém que poderia levá-la ao culpado.

Embora não estivesse disposta a aceitar sem restrições tudo o que Fiona dissera, sabia reconhecer o bom-senso quando se deparava com ele. E lhe parecia mais do
que provável que o autor das cartas fosse um aspirante a escritor frustrado ou alguém cuja carreira tinha descido pelo ralo. Se fosse esse o caso, então havia
boas chances de que algum agente literário ou editor houvesse tido contato com o sujeito, e talvez ele até fosse capaz de saber quem era essa figura. Essas pessoas
trabalhavam com palavras; não era impossível que elas pudessem reconhecer o estilo da prosa de um escritor.

Assim, tinha mandado um de seus auxiliares identificar as autoridades apropriadas, até mesmo um especialista em romances policiais. Como resultado, conseguira marcar
um encontro para a manhã seguinte com dois importantes agentes e três editores do gênero. Eles não faziam ideia sobre o que ela queria conversar com eles, embora
os tivesse deixado impressionados com a urgência do pedido e a necessidade de sigilo.

Mas isso seria só no dia seguinte, e pensaria mais tarde qual seria a melhor forma de conduzir a reunião. Precisava se concentrar agora em quem poderia ser o
futuro alvo de seu suposto serial killer.

Esse objetivo a levara a Clapham e a uma rua silenciosa de casinhas com jardins que ficava umas duas ruas atrás do parque. Conforme seu detetive lhe informara,
o que Dominic Reid não sabia sobre romances policiais contemporâneos não valia a pena saber. Quando o carro encostou junto ao meio-fio duas casas depois da de
Reid, Duvall acendeu a luz interna.

- Só um minuto - falou para o detetive que estava dirigindo. Usou o tempo para repassar as informações que ele lhe entregara mais cedo.

Dominic Reid, 47 anos. Havia começado sua carreira trabalhando na rádio BBC, depois diversificara suas atividades e passara a atuar como produtor independente.
Atualmente, sua empresa era responsável por dois programas de perguntas e respostas na rádio Four, e ele também possuía uma lista de participações em documentários
de rádio, a maior parte ligada a algum aspecto da redação de textos de mistério. Reid havia escrito um guia

de romances policiais para uma importante cadeia de livrarias, trabalhado como critico do gênero em duas revistas e, recentemente, publicara Paging Death, uma
análise crítica da moderna ficção policial britânica. Se alguém podia dizer a Duvall quem seria um provável alvo para um serial killer, esse alguém era Reid.

- Você lê essas coisas? - perguntou ela ao detetive. - Romances policiais?

Ele fez que não. - Tentei ler um certa vez. Contei cinco erros nas primeiras vinte páginas e desisti. É como continuar trabalhando nas férias. E você, madame?

- Nunca leio nenhum tipo de ficção. - Duvall parecia uma abstêmia falando de bebidas fortes. Ela desligou a luz. - Vamos lá.

Reid abriu a porta quase antes de o som da campainha morrer. Ele era um homem alto e muito magro, com um rosto ossudo e cativante sob uma moita de cabelos louros
desgrenhados, entremeados de fios brancos.

- Inspetora-chefe Duvall? - perguntou ele, procurando suprimir o entusiasmo.

- Sr. Reid - cumprimentou-o Duvall com um aceno de cabeça. - Obrigada por concordar em me ver assim tão rápido.

Ele deu um passo para trás, sinalizando para que eles entrassem. Duvall e o detetive entraram no vestíbulo. Quase não havia espaço para os três; pilhas de livros
encontravam-se escoradas contra uma das paredes, chegando à altura da cintura. Eles seguiram Reid até a sala de estar onde três paredes ostentavam prateleiras
repletas de mais livros de capa dura. Fora os livros, a mobília da sala resumia-se a quatro poltronas surradas e um par de mesinhas. Um enorme gato branco e preto
estava enroscado sobre uma das poltronas, e não mexeu sequer um bigode ao vê-los entrar.

- Por favor, sentem-se - falou Reid. Duvall passou os olhos rapidamente pelas poltronas em busca de pelos de gato, e optou pela que estava mais perto da porta
por ser a que provavelmente provocaria menos danos a seu tailleur. Seus olhos encontraram os do detetive e ela apontou com a cabeça para a poltrona mais distante.

- Vocês gostariam de beber alguma coisa? - perguntou Reid com entusiasmo. - Chá, café, refrigerante? Ou algo mais forte?

- Obrigada, sr. Reid, mas não quero tomar o seu tempo mais do que o necessário. Por favor? - Duvall fez um gesto com a mão em direção à poltrona restante.

Reid acomodou o corpo comprido na poltrona. - Na verdade, nunca conheci um oficial superior da polícia - disse. - Parece estranho, eu sei, uma vez que já li tanto
a respeito. Mas é verdade. - Ele engoliu em seco, e seu pomo de adão subiu e desceu pelo colarinho aberto da camisa.

- Fico feliz que tenha encontrado um tempo para nos receber. Peço desculpas por meu colega não ter podido explicar por que eu precisava vê-lo com tanta urgência.

- Muito misterioso. Mas é claro, a senhora esperava que isso atraísse a minha atenção, não é?

Duvall confirmou com um sorriso fino. Quando era preciso, ela podia ser bastante agradável e simpática com uma testemunha. No entanto, estudiosos como Reid não
precisavam ser paparicados para compartilharem o conhecimento que possuíam.

- É uma questão altamente confidencial. Antes que eu lhe fale sobre isso, preciso ter certeza de que o senhor manterá a discrição.

Reid empertigou-se, com uma expressão de surpresa. - Isso parece sério. - É muito sério. Posso confiar que o senhor não contará nada a ninguém? Ele fez que sim
diversas vezes. - Se é o que a senhora quer, claro, guardarei segredo. Tem alguma coisa a ver com o desaparecimento de Georgia Lester? - perguntou ele.

- Por que o senhor diz isso? Ele encolheu os ombros de um jeito um pouco esquisito. - Apenas presumi... a senhora é da City Police, e sei que Georgia vive em
Londres. E com a notícia do desaparecimento dela...

Duvall cruzou as pernas e se inclinou para a frente. - É verdade que eu sou a oficial responsável pela investigação do desaparecimento da sra. Lester. No entanto,
minha preocupação é outra. À luz dos recentes assassinatos de Drew Shand e Jane Elias, estamos considerando a possibilidade... e digo apenas isso, possibilidade...
de que haja uma ligação.

Reid cruzou os braços na frente do peito, num gesto automático de defesa.

- A senhora está imaginando se há um serial killer atrás de escritores de romance policial. - Era uma afirmação, e não uma pergunta. - Sim, entendo o porquê de
estar pensando assim. Não vou fingir que isso não tinha passado pela minha cabeça. - Ele apontou com a cabeça para as prateleiras de livros. - Acho que eu leio
demais. - Deu um sorriso meio de lado.

- Pode ser que só estejamos deixando a imaginação correr solta - reconheceu Duvall. - Mas precisamos explorar cada linha possível de investigação. É por isso que
eu quis falar com o senhor. Estou ansiosa para tentar estabelecer quem mais pode estar em risco, se nossa teoria estiver correta.

Reid concordou com um aceno de cabeça. - E a senhora acha que eu posso ajudá-la. Bom, ninguém conhece o gênero melhor do que eu. Diga-me o que quer saber.

Duvall permitiu-se relaxar ligeiramente. Ia conseguir o que queria sem precisar gastar quase nenhuma energia. O que por ela estava ótimo, visto que estava começando
a sentir que o dia tinha sido longo demais.

- Partindo do pressuposto de que exista uma ligação, há alguns fatores semelhantes. Todos os três escreveram romances sobre serial killers. Todos ganharam prêmios
por seus livros. E todos tiveram esses livros adaptados com sucesso para a TV ou o cinema. Imagino que não existam muitos outros que se enquadrem nessa categoria,
certo?

Reid descruzou os braços. - Mais do que a senhora pensa, inspetora. Obviamente, a senhora está falando de escritores de suspense como Kit Martin, Enya Flannery
e Jonathan Lewis.

Duvall piscou algumas vezes ao ouvir o nome de Kit Martin, mas, afora isso, não deu nenhuma outra indicação de que o nome dele tivesse um significado maior do que
os outros. Contudo, se ele era o primeiro nome que vinha à mente do especialista, o medo de Fiona Cameron era justificado, pensou Duvall enquanto escutava o que
Reid estava dizendo.

- No entanto, assim como romances estritamente sobre serial killers, alguns autores de séries policiais incluíram assassinos desse tipo em seus

livros. Por exemplo, Ian Rankin e Reginald Hill. - Ele se levantou. - Tenho um banco de dados em meu computador na sala ao lado. Todos os fatores que a senhora
descreveu fazem parte dos meus parâmetros. Assim, podemos fazer uma pesquisa e descobrir exatamente quem se enquadra no perfil. Por que não vamos até lá e vemos
o que conseguimos?

Duvall descruzou as pernas. - Parece uma ótima ideia. Mostre o caminho, sr. Reid.

Os dentes de Susannah batiam sem parar. Castanholas incontroláveis ecoando em sua cabeça. Não se lembrava de ter achado a cabana fria quando eles estiveram lá.
Mas, também, o tempo em setembro estava ameno. Uma hora com o aquecedor ligado à noite tinha sido o suficiente para quebrar o gelo do ar. Isso e o calor do corpo
de Thomas ao lado do dela. Agora, não havia corpo nenhum para aquecê-la. Apenas o frio úmido de novembro acariciando sua pele. Seu sequestrador certamente não
ia gastar dinheiro com aquecimento só para deixá-la confortável.

Sua pele nua estava toda arrepiada. O que era resultado tanto da temperatura do ambiente quanto do medo. Sem dúvida, o medo já seria o bastante para deixá-la arrepiada
mesmo num lugar tropical. Num minuto estava verificando as contas do mês, e no seguinte escutou uma batida na porta. Olhou para fora pela janela. Uma van branca
desconhecida estava parada na frente da casa. No entanto, o homem em pé na entrada com um pacote e uma prancheta usava o familiar uniforme do entregador que sua
companhia sempre contratava para lhe enviar os pacotes de trabalho.

Não estava esperando nenhuma entrega do escritório. E já era tarde para o entregador aparecer, ele sempre vinha pela manhã. Devia ser algo urgente, pensou. Talvez
o contrato Brantingham. Phil havia mencionado no e-mail, pela manhã, que ele estava prestes a ser fechado. Susannah abriu a porta e sorriu para o entregador.

Nunca soube o que a acertou. Só que certamente alguma coisa fizera isso. A próxima coisa que se lembrava era de uma dor excruciante. Uma dor que incluía escuridão
e movimento. E o ronco baixo de um motor. Estava deitada de lado, a baba escorrendo pelo canto da boca. E não podia se mexer. Bem devagar, como se estivesse muito
bêbada, identificou a dor. O foco principal era a cabeça. Tal como uma enxaqueca muito forte, exceto que ela começava na nuca, e não atrás dos olhos.

O segundo ponto na hierarquia da dor eram os ombros. Seus braços pareciam estar amarrados atrás das costas. Essa era a informação que seus músculos gritavam. Ao
tentar se sentar, uma nova onda de dor percorreu suas pernas. Até onde podia sentir através da tempestuosa sobrecarga sensorial, os pés também estavam amarrados
e presos aos pulsos. Amarrada como um animal caçado, não era assim que os americanos diziam?

Se ficasse completamente imóvel, a dor diminuía. Ainda era insuportável, mas pelo menos permitia que pensasse em outra coisa. Escuridão e movimento. E a sensação
áspera de um carpete sob sua bochecha. Só podia ser o porta-malas de um carro, certo?

Foi quando o medo se instaurou. Não fazia ideia de há quanto tempo estavam rodando. Não era possível medir a duração da dor.

Por fim, o movimento cessou com um tranco. O barulho do motor parou. Susannah tentou escutar alguma coisa, mas sem sucesso. Então o portamalas se abriu. O choque
da claridade em seus olhos provocou uma dor nauseante em sua cabeça. Conseguiu ajustá-los e viu uma silhueta escura contra o céu noturno.

Susannah abriu a boca e gritou. O homem riu. - Ninguém vai te ouvir, minha bichinha. - O sotaque era do Nordeste da Inglaterra, pelo menos isso ela conseguiu identificar.

Ele se curvou e gemeu com o esforço de tirá-la do carro. Cambaleou ligeiramente, por causa do peso, enquanto caminhava. Com seu rosto enfiado no ombro dele, Susannah
não conseguia ver nada. A qualidade do ar mudou e ela percebeu que eles haviam entrado em algum lugar. Mais alguns passos, ele virou à direita e, de repente, eles
estavam sob uma ofuscante luz fluorescente. Ele a largou e ela soltou um grito ao bater no piso frio de lajotas. Sua cabeça bateu contra algo duro e frio.

Quando Susannah voltou a si, estava nua. Sentada sobre um vaso sanitário, o braço direito algemado a um suporte de toalhas firmemente aparafusado na parede. Tonta,
confusa e com dor, ela percebeu que as pernas também estavam acorrentadas, e a corrente passava por trás da base do vaso, de modo que ela estava ancorada ao sanitário.

Contudo, pelo menos agora sabia onde estava. Thomas havia alugado a cabana numa área remota da Cornualha para celebrar o primeiro aniversário deles. Eles haviam
passado uma semana ali, passeando pelos penhascos, observando os pássaros, preparando refeições simples, fazendo amor todas as noites. Fora um sonho.

Isso agora era um pesadelo. E só piorava. Quando ela gritou, ele reapareceu. Alto e largo, com músculos típicos de um halterofilista. O cabelo escuro cortado
à escovinha emoldurava um rosto vagamente familiar. Ela não conseguia lembrar onde o vira antes. Mas, também, era um rosto bastante comum. Impossível de descrever.
Se Susannah tivesse de fazer um inventário daqueles traços, o resultado seria compatível com milhares de homens. Sobrancelhas escuras, olhos azuis, compleição
clara, nariz reto, boca nem grande nem pequena, um queixo ligeiramente retraído. A única coisa estranha a respeito dele era que o sujeito usava um jaleco branco
e tinha um estetoscópio pendurado em volta do pescoço, como um médico. Ele parou na porta, avaliando-a.

- Por que você está fazendo isso? - choramingou Susannah. -Isso não é da sua conta - respondeu ele. Um segundo par de algemas apareceu em sua mão. - Se você lutar,
vai doer muito mais.

Ela tentou acertá-lo com o braço livre, mas ele foi mais rápido. Agarrou-a pelo pulso e fechou a algema em torno dele. Esticou o braço dela e prendeu o outro elo
em torno do cano de água. Em seguida, ele pegou um rolo de fita adesiva e prendeu seu pulso e sua mão à parede, de modo que o braço ficasse imobilizado.

Tão perplexa quanto aterrorizada, Susannah observou, sem acreditar, quando ele pegou um aparelho de pressão, prendeu-o na parte superior de seu braço e o inflou.
Saiu do banheiro. Ela reconheceu o aparato com o qual ele voltou. Doara sangue por muitos anos.

- O que você está fazendo? - protestou ela enquanto ele localizava uma veia e inseria uma agulha.

- Vou tirar seu sangue - respondeu ele com calma, com a mesma tranquilidade das enfermeiras do centro de transfusão de sangue.

Ainda sem acreditar, ela observou, de boca aberta, seu sangue começar a escorrer pelo tubo e encher uma jarra.

- Você é louco! - gritou. - Não, sou apenas diferente - retrucou ele, sentando-se na beirada da banheira para esperar.

Susannah o encarou. - O que você vai fazer comigo? - Vou alimentá-la e me certificar de que você beba o suficiente. E vou tirar seu sangue. -Ele se levantou e
caminhou em direção à porta do pequeno banheiro.

- Você é um vampiro? - indagou ela, sentindo que ia desmaiar. Ele se virou e sorriu. A simplicidade do gesto fez com que fosse a coisa mais assustadora que ela
já vira até então.

- Não, sou um artista. Quando ele retornou, trouxe consigo um conjunto de pincéis de vários tamanhos, desde um bem fininho, como um lápis, até outro com quase
2 centímetros e meio de espessura. Satisfeito ao ver que retirara quase meio litro de sangue, ele soltou o aparato e o aparelho de pressão, mantendo o polegar
sobre o meio da agulha. Colocou uma bolinha de algodão e um curativo para estancar o sangramento, e depois arrancou a fita que prendia o braço à parede. Soltou
a algema e deu um passo para trás, a fim de que ela não conseguisse acertá-lo.

- Pronto, não doeu nada, doeu, minha bichinha? - Ele deixou a jarra de sangue na pia e saiu do banheiro. Ao voltar, trazia uma lata de bebida energética e um prato
de papel com uma pilha de sanduíches de patê de ligado e meia dúzia de biscoitos de chocolate. Colocou-os no chão, a uma distância que Susannah conseguisse alcançar
com a mão livre. - Aí está. Isso vai acabar com a sensação de desmaio. E vai ajudar seu corpo a repor parte do sangue que você perdeu.

Ele então se virou de costas, como se ela não mais existisse. Pegou a jarra de sangue e enfiou os pincéis no bolso do jaleco. Deu um passo em direção à

banheira e olhou de maneira pensativa para a parede. Duas fileiras de azulejos Contornavam a parte superior da banheira, mas, logo acima delas, havia uma droa
de uns 2 metros quadrados de parede branca, só emassada. Escolheu um pincel de tamanho médio e o mergulhou no sangue.

E pôs-se a pintar. Susannah começou a chorar

36.

Enquanto tomava sua segunda xícara de café, Steve começou a imaginar se tinha virado um maníaco-depressivo da noite para o dia. Fazia menos de uma hora que ele
levantara da cama, e já passara da antecipação nervosa ao desespero profundo mais vezes do que conseguia contar.

No entanto, como havia comentado com Fiona na véspera, esses só eram sintomas de doença mental se não tivessem fundamento. E ele tinha bons motivos para sentir
as duas coisas. Seu otimismo, abrandado como sempre por uma cautela natural, girava todo em torno de Terry Fowler. Se ela fosse tão competente quanto Fiona prometera,
e se Joanne tivesse identificado os casos certos, o caso Susan Blanchard poderia vir a dar o primeiro passo positivo em muito tempo. Isso seria recompensa suficiente.
Entretanto, além disso, tinha a perspectiva do jantar com ela naquela noite. Não conseguia se lembrar da última vez que se sentira tão ansioso para encontrar uma
mulher, nem tanta certeza de que seria divertido. Não podia esquecer de reservar um restaurante. Nada sofisticado demais; não queria que eles se sentissem desconfortáveis.
Mas também nada tão informal; queria que Terry percebesse que ele a levava a sério. Normalmente, teria pedido a Kit para sugerir um lugar. No entanto, isso hoje
estava fora de questão.

Tal como seu otimismo, seu pessimismo era, ao mesmo tempo, profissional e pessoal. Não havia como negar o fato de que ele provocara sérios danos à sua mais antiga
amizade. Fiona lhe exigira mais do que ele podia

oferecer, e ela com certeza sentia que ele a tinha deixado na mão. Ela e Kit, os dois. Steve tentara ligar várias vezes na noite anterior, porém todas as vezes
a secretária atendera. Sem dúvida, Fiona tinha decidido monitorar as chamadas, e ele obviamente constava na lista dos não aprovados.

O problema é que ela estava certa em termos morais e emocionais. Só que ele estava certo em termos práticos. E essas duas certezas eram mutuamente incompatíveis.
Durante toda a sua vida adulta, Steve se sentira feliz pelo fato de que o trabalho que amava nunca havia se virado contra ele e ameaçado algo que considerasse
importante. Já vira isso acontecer com seus colegas - casamentos destruídos, filhos que se tornavam inimigos, amizades traídas -, e sempre soubera que era apenas
uma questão de sorte isso nunca ter acontecido com ele antes.

Mas agora sua sorte acabara. Sua amiga mais antiga se distanciara e seu melhor amigo estava em risco, e não havia nada que ele pudesse fazer quanto a isso. O caso
não era nem dele. Tudo o que sabia sobre o que estava acontecendo dizia respeito ao que Sarah Duvall fizera a cortesia de lhe contar. E ele trabalhava no Departamento
de Investigações Criminais há tempo bastante para 'saber que esse era um dos casos mais complicados de solucionar. Nenhum criminoso era mais difícil de ser capturado
do que um assassino sem uma ligação aparente com a vítima, alguém cuja lógica só fazia sentido para ele mesmo, que deixava poucos rastros e era inteligente o
suficiente para se manter alguns passos à frente de seus perseguidores. Quando assassinos desse tipo eram capturados, quase sempre era por acidente. Vizinhos que
reclamavam do fedor dos ralos; a verificação aleatória de uma placa de carro que mostrava que ela pertencia a um veículo completamente diferente; um policial rodoviário
que parava alguém por excesso de velocidade.

O fato de que a vida de Kit pudesse depender de uma chance tão frágil e fortuita era algo que Steve não conseguia sequer pensar. Isso devia ser muito pior para
Fiona, que já tivera de vivenciar uma perda aparentemente aleatória. E agora, quando ele deveria estar ao lado dela, dando seu apoio aos dois, havia sido deixado
de fora.

Steve levou o resto do café para o quarto e ficou olhando para o guarda roupa. Não podia confiar que fosse conseguir voltar em casa para se trocar antes do encontro
à noite. Escolheu um terno leve de lã azul-marinho

que não amarrotava com facilidade. Uma camisa branca e uma gravata azul para o dia, uma camisa cinza-escuro, cuidadosamente dobrada e ensacada, e uma gravata de
seda vermelha para depois. A gravata fora presente de Fiona, lembrou. Estranho que ela fosse exatamente do mesmo tom do batom de Terry. Mesmo em algo tão básico
assim, os dois aspectos de sua vida estavam interligados.

Enquanto se vestia, Steve tentou colocar de lado seus sentimentos pessoais. Tinha coisas importantes a fazer, e precisava estar com a mente limpa. Isso, porém,
não funcionou e, enquanto caminhava até o carro, deu-se conta de que, qualquer que fosse o resultado com relação ao caso Blanchard, não conseguiria se acalmar
até saber o que Sarah Duvall estava fazendo.

O que Sarah Duvall estava fazendo era imaginando por que havia pensado que agentes literários e editores seriam capazes de lhe dizer qualquer coisa a respeito
das ameaças de morte que Kit Martin, Georgia Lester e pelos menos três outros escritores de suspense haviam recebido.

Os cinco sujeitos com os quais acabara de tomar o café da manhã haviam escutado, extasiados, o que ela dissera. Em seguida, soltaram a bomba:

- Recebemos mais de três mil manuscritos não solicitados ao ano - informou um dos agentes. - De todos esses, talvez uns três, no máximo, a gente resolva agenciar.
Isso significa que há muita gente insatisfeita aí fora e, para ser franco, inspetora, se a senhora se dispuser a ler alguns desses manuscritos, irá perceber que
nem sempre lidamos com indivíduos equilibrados.

- Eu recebo muitas cartas agressivas - disse um editor, corroborando a opinião do agente. - Geralmente de pessoas que recusei, mas, de vez em quando, de autores
que descartei porque as vendas não foram satisfatórias. As pessoas levam para o lado pessoal, uma vez que escrever é uma coisa bastante pessoal. No entanto, normalmente
fica só nisso. Elas liberam a raiva, adicionam você em sua lista mental de pessoas detestáveis, falam mal de você no meio, mas só isso.

Eles passaram as cartas de mãos em mãos, comentando apenas que elas pareciam mais hostis do que o normal. No entanto, todos concordaram que

nenhum deles teria importunado a polícia por causa delas, não teriam nem mesmo falado com o segurança da empresa.

- Trabalhamos num meio muito emotivo - falou outro dos agentes, - Os sentimentos são exacerbados. No entanto, para essas pessoas as palavras são as únicas armas
válidas.

Ainda assim, Duvall conseguira que cada um deles prometesse levar consigo uma cópia das cartas, a fim de compará-las com qualquer correspondência agressiva que
tivessem em seus arquivos; quem sabe eles se deparavam com algo semelhante? Era uma chance em mil, portanto ela não ficou surpresa quando não obteve uma resposta
positiva.

Isso não impediu que se sentisse desapontada. Esperava que isso não fosse um mau augúrio para o resto do dia. Não queria acabar bancando a idiota com relação a
uma operação tão importante quanto a busca no Smithfield Market.

Não lhe ocorreu que, indiretamente, estava esperando que Georgia Lester houvesse sido assassinada.

Terry Fowler parecia tão relaxada quanto na véspera. Ela usava um cardigã preto fino sobre uma camiseta branca, e o que parecia ser o mesmo par de calças jeans
pretas. Colocara uma cadeira ao seu lado, a fim de que Steve pudesse olhar o monitor por cima do seu ombro.

- Resultados interessantes - disse, apertando algumas teclas. Ele notou que as mãos dela eram surpreendentemente grandes, com dedos fortes que terminavam em unhas
curtas, muito bem aparadas, como se para afastar a tentação de roê-las. Ela usava um pesado anel de prata no dedo médio da mão direita. - Pude usar um conjunto
de parâmetros que Fiona desenvolveu para estupros em série. Precisei fazer uma ou duas modificações, mas como eu estava trabalhando com um pacote mais ou menos
padrão, foi muito mais rápido do que começar do zero. E já que você parecia estar com pressa...

- Força do hábito, me desculpe. Um ou dois dias a mais provavelmente não teriam feito muita diferença.

- Imagino que rapidez não seja um hábito ruim na sua área de atuação - comentou Terry, virando-se meio de lado para oferecer-lhe um sorriso.

Voce precisa tentar pegar os bandidos antes que eles façam coisas ainda piores.

- Mais ou menos isso. - Steve suspirou. - Às vezes é mais uma questão de fazer as coisas antes que os burocratas percebam quanta verba você está usando.

- Ah, certo. Bom, essa verba em particular serviu para executar o programa de conexão criminal nos arquivos que você me entregou. - Ela ergueu as sobrancelhas.
- Inclusive os quatro que você meteu no meio para ver se eu sabia fazer isso direito.

- Não foi por isso que eu os meti no meio - protestou Steve. - Não foi para testar você, e sim para mostrar aos meus colegas que isso não é enrolação. O valor
dos resultados ficará mais forte se eu puder mostrar que o programa descarta os casos que sabemos ser irrelevantes.

- Só verificando - murmurou ela. - Tudo bem, não fiquei ofendida, entendo o princípio do controle científico... de qualquer forma, após ter inserido todos os casos
no computador, parece que você realmente tem um grupo aqui. - Seu tom se tornou mais arrebatado ao abordar o teor dos resultados. - Quatro casos de estupro e dois
de ataque sexual grave. O caso de Hertfordshire mostrou uma probabilidade um pouco menor do que os outros cinco, mas ainda apresenta uma chance de 87%, o que eu
definitivamente consideraria uma boa chance.

Steve sentiu uma pequena onda de excitação, embora os anos de prática tenham feito com que conseguisse escondê-la bem.

- E como isso se traduz em termos de perfil geográfico? - Vamos prosseguir passo a passo - disse Terry, clicando o mouse sobre as caixas de diálogo com a mão direita.
Um mapa do norte de Londres apareceu em preto e branco. Ela apertou umas duas teclas e a tela se encheu de cores iridescentes, verdes, azuis, amarelos, roxos e
uma área avermelhada. - Isso é o que conseguimos com os primeiros dois casos. Acrescentando o terceiro e o quarto... - Mais dedilhar de dedos sobre o teclado.
Agora a área vermelha ficou mais definida, a cor mais clara. No entanto, uma segunda área vermelho-arroxeada apareceu ligeiramente ao norte da região vermelha
original. Steve, que já vira Fiona fazer isso inúmeras vezes para deduzir mais ou menos o significado do que se apresentava diante dele,

notou que a área principal cobria dúzias de ruas no norte de Kentish Town. A segunda área estendia-se em direção a Archway.

- Acrescente o quinto, e a segunda área fica menos destacada - continuou Terry. - Mas, quando introduzimos o sexto caso, veja o que acontece. - O setor vermelho
original mal se alterou, mas a área arroxeada adquiriu um tom nitidamente mais avermelhado.

- E o que você conclui a partir daí? - perguntou Steve, certo de que sabia o que viria a seguir.

Terry virou a cabeça e sorriu. - O mesmo que você, espero. - Ela pegou um lápis e apontou para a principal área vermelha. - Se tivermos identificado o grupo corretamente,
então as chances são de que seu homem more por aqui. É possível que ele more nessa segunda região também, porém eu me sentiria inclinada a dizer que é onde ele
trabalha. Quando um criminoso está no começo da carreira, ele tende a permanecer mais perto de casa. E, se analisarmos os dois primeiros casos, o único ponto que
conseguimos é essa seção aqui, cuja probabilidade apenas se intensifica com a inserção dos outros casos.

Ela se recostou na cadeira e a girou de modo a ficar quase que de frente para Steve. Sem olhar para a tela, apertou mais duas teclas.

- Vamos ver o que acontece quando inserimos o assassinato de Susan Blanchard.

Nem todo o autocontrole do mundo impediu Steve de deixar transparecer o choque.

- O que você disse? Terry riu. - Você parece um bacalhau petrificado. Achei que isso pudesse atiçá-lo. - Você andou discutindo isso com Fiona? - perguntou Steve,
escondendo seus sentimentos atrás de um tom ríspido.

- Não. Descobri por mim mesma. Quando você disse que tinha um outro caso para inserir no grupo, imaginei que tinha de ser algo bastante sério. E a única coisa
mais grave que estupro violento é homicídio sexual. Além disso, tinha de ser um caso importante para você investir em conexão criminal e perfil geográfico. Provavelmente
um que estava estagnado, porque esse tipo de processo não é normalmente a primeira opção de pesquisa. Uma vez que você demonstrou interesse por casos no norte
de Londres,

as chances seriam de que estivesse procurando um estupro seguido de assassinato ao norte do rio, algo ainda não solucionado. Junte tudo isso e o que surge é Susan
Blanchard. - Ela abriu as mãos numa imitação dramática de um mágico tirando o coelho da cartola.

- Estou impressionado - reconheceu Steve. Fiona dissera que Terry era impulsiva; não mencionara que ela também era intuitiva.

Terry deu de ombros. - Não foi tão difícil assim. Sou treinada para fazer ligações. - Ela sorriu. - Você não devia ficar surpreso quando faço isso.

Steve riu. - Sou cercado por pessoas treinadas para fazer ligações, mas, na maioria das vezes, não dá para garantir que elas farão. Você está certa, é claro, estou
interessado no assassinato de Susan Blanchard.

- Achei que vocês tivessem terminado a investigação após aquele fiasco no Bailey. O depoimento oficial não era de que não estavam procurando nenhum outro suspeito?

-Bom, a gente não podia dizer nada sem que parecêssemos ainda mais idiotas do que já parecíamos - replicou Steve, a voz traindo a amargura, apesar do esforço de
contê-la.

- Tudo bem, certo. Mas cá entre nós, vocês ainda estão investigando? Ele fez que sim. - Tenho uma pequena equipe trabalhando nisso. - E Fiona não? Fez-se silêncio.
- Prefiro não falar disso, se você não se incomodar. Talvez seja melhor perguntar a Fiona.

- Tudo bem. - Terry fez um gesto com a mão como quem descarta o assunto. - Não é da minha conta. Fico grata pelo cheque que vou receber. E então, você quer ver
o que acontece quando inserimos o assassinato de Susan Blanchard no meio?

- O Sinn Féin é um braço do IRA? - Uau, assim fala o detetive. Certo, apesar de você ser um machista preconceituoso, vou compartilhar meus resultados com você.
- O sorriso tirou quase toda a malícia das palavras de Terry, e ela apertou o <enter>.

A principal área vermelha não mudou em nada, mas a região mais ao norte perdeu um pouco a cor. - Não preciso explicar isso, preciso?

Steve fez que não, sendo tomado por uma profunda sensação de satisfação.

- Não. De acordo com o programa, Susan Blanchard foi morta pelo mesmo homem que cometeu quatro estupros e dois ataques sexuais graves no decorrer de dois anos
anteriores à morte dela. Preciso confessar que essa é a melhor notícia que recebo em muito tempo.

Terry lhe ofereceu o sorriso que ele estava começando a reconhecer como um sinal de que ela estava prestes a desafiá-lo.

- Que bom! Você tem uma visão estranha do mundo, Steve. Poucas pessoas considerariam boa notícia descobrir que um estuprador em série virou um assassino. Você
devia sair mais.

- Achei que você já tinha dado o primeiro passo para corrigir isso - retrucou ele, devolvendo o sorriso.

- É um trabalho sujo, salvar os renegados, mas alguém precisa fazer isso - falou ela com petulância. - Então, aonde a gente vai?

- Abriu uma taverna nova em Clerkenwell. O chef treinou com Marco Pierre White e se especializou em peixe. Consegui reserva para as sete e meia. Tudo bem?

- Tudo ótimo. Por um breve instante, Steve pensou em se oferecer para buscá-la, mas sabia que seria pouco provável que tivesse tempo. Não queria começar desapontando-a
logo de cara. Se as coisas dessem certo entre eles, seu trabalho proporcionaria inúmeras oportunidades de compromissos sociais furados no futuro. Além disso, não
queria parecer o bobão que secretamente sabia ser. Em vez disso, anotou o nome e o endereço do restaurante em um pedaço de papel.

- Preciso voltar ao quartel-general e colocar meu time para trabalhar nisso. Você pode imprimir o mapa para mim?

Terry se virou de volta para o computador. - Você quer que eu amplie as áreas vermelhas? - perguntou. - Por favor. - Precisa de um relatório por escrito? - Acho
bom fazer valer o meu dinheiro - respondeu Steve.

- Mando por fax ou por e-mail? - Os dois, se você não se incomodar. - Você receberá até o fim da manhã. - Terry deu uma piscadinha. - A gente se vê mais tarde.

Steve concordou com um aceno de cabeça e andou em direção à porta. Quando se virou para sair, ela soprou um beijo. O rubor perdurou até ele terminar de descer
a escada. Assim como o sorriso. Terry Fowler conseguira mais do que apenas reavivar seu caso adormecido. Enquanto estavam juntos, ela o fizera esquecer do medo
que sentia por Kit. E isso valia muito, mas muito mais do que a Polícia Metropolitana podia pensar em pagar a ela.

De volta à Scotland Yard, Steve chamou Joanne em seu escritório. Neil estava ocupado vigiando Francis Blake, e era o dia de folga de John, de modo que lhe restavam
pouquíssimos recursos, apesar das novas possibilidades que a análise de Terry havia apresentado.

Steve abriu os mapas sobre a mesa, incapaz de esconder o entusiasmo. - Parece que finalmente vamos chegar a algum lugar. O perfil geográfico dos seus casos de
estupro. Quando inserimos o assassinato de Susan Blanchard no grupo, a área vermelha principal não se alterou em nada.

Joanne ergueu a cabeça, os olhos brilhando de entusiasmo. - Isso é fantástico! Uau! Então, o que quer que eu faça? - Infelizmente, agora é a hora do trabalho penoso.
Identifique as ruas realçadas em vermelho... acrescente uma para cada lado, pelo amor de Deus... e consiga a lista de eleitores da região.

Joanne suspirou. - E então eu a comparo com o banco de dados de registros criminais? - A menos que você consiga pensar numa forma melhor de fazer isso. - Quando
eu governar o mundo, o banco de dados de registros criminais será organizado de modo que você possa fazer uma busca com uma dúzia de parâmetros diferentes ao mesmo
tempo - comentou ela, levantando-se. - Estou indo.

- Obrigado, Joanne. Ah, e obrigado pela dica do restaurante. Ela ergueu as sobrancelhas.

- Espero que você goste. Steve soltou uma risada. - Pretendo. Joanne se virou a meio caminho da porta. - Isso se você conseguir ir, é claro. Quero dizer, se
eu tiver sorte, talvez a gente tenha de ir fazer uma visitinha ao novo suspeito número um hoje à noite. Certo, senhor?

- Boa sorte, Jo. Mas tente não ter tanta sorte antes de amanhã de manhã, se você quiser continuar a ser minha detetive predileta.

Depois que ela saiu, Steve manteve os olhos fixos na porta fechada, sentindo o fervilhar do sangue nas veias que vinha com o conhecimento de que finalmente podiam
estar a poucas horas de uma virada da sorte. Ao pensar em viradas de sorte, lembrou-se da mensagem que encontrara sobre sua mesa pedindo para que ele ligasse para
Sarah Duvall.

Parte dele tinha medo de ligar. Se o corpo de Georgia Lester tivesse sido encontrado, queria adiar o máximo possível esse conhecimento e suas implicações. Por
outro lado, era possível que a tivessem encontrado com vida. Steve tirou o telefone do gancho e discou o número de Sarah.

Extraído da Prova Decodificada P13/4599

Azoqf tqkru zpsqa dsumx qefqd edqym uzeyk xurqe sauzs fasqf mxaft mdpqd. Ftqkx xtmhq faefm dfeqq uzsft qbmff qdzft qzuze bufqa rftqp gynet ufbmp pke.

Quando eles encontrarem os restos de Georgia Lester, minha vida vai ficar bem mais difícil. Eles vão começar a perceber que há um padrão. Contudo, levarão um ou
dois dias para reconhecer isso oficialmente. Não vão querer admitir o que está acontecendo, porque isso irá suscitar pânico.

Preciso, portanto, atacar logo meu próximo alvo, enquanto ele ainda não suspeita de nada. Mas preciso tomar cuidado para não apressar as coisas. Paciência, esse
é o segredo. Nunca ataque na incerteza. Nunca perca o controle. Apenas aguarde. Mesmo que a espera seja difícil e amarga.

Use um uniforme de entregador. Eu sabia desde o início do que precisava para pegar Kit Martin. No entanto, não sabia como ia arrumar o uniforme. Mas então os deuses
sorriram para mim. Eu estava na lavanderia certo dia, observando minhas roupas girarem na máquina de lavar. Só havia mais um homem na lavanderia, e, quando ele
tirou as roupas úmidas da máquina e as meteu na secadora, não pude deixar de notar o logotipo da empresa Capital City Couriers brilhando na jaqueta de algodão
azul-marinho. E havia calças combinando. Uma dádiva dos céus.

Depois que ele colocou algumas moedas na secadora, olhou para o relógio e seguiu para o pub do outro lado da rua. Esperei alguns minutos e então meti toda a roupa
dele na minha mala. Fácil, fácil.

Sentei e esperei minha roupa terminar de lavar, na maior tranquilidade. Dez minutos depois, eu voltava para meu apartamento com minha roupa molhada por cima da
dele. As calças precisam de bainha e a jaqueta fica um pouco apertada nos ombros, mas não tem importância. Não vou usar essa roupa por muito tempo mesmo.

Apenas por tempo suficiente para convencer Kit Martin a abrir a porta da frente para o Carteiro Paulo.

37.

Fiona olhou para o relógio na parede de seu escritório. O café da manhã havia sido tenso, apesar dos esforços de ambos para manter uma vida tão normal quanto possível
em vista do medo que os corroía sob a superfície. Conseguira que Kit lhe prometesse que não ia abrir a porta para estranhos, nem sair sozinho, nem mesmo para
suas costumeiras caminhadas pelo Heath na hora do almoço. Pôde perceber que Kit ficara irritado com as restrições, mas pelo menos ele poderia recuperar o orgulho
dizendo para si mesmo que estava fazendo isso para tranquilizar Fiona, e não por covardia.

A pior parte era não saber o que estava acontecendo. Fiona quase desejava ter conseguido ser mais compreensiva com relação à recusa de Steve em oferecer a Kit
uma proteção formal. Pelo menos assim eles continuariam a se comunicar e ela poderia acompanhar os progressos da investigação. No entanto, não conseguia perdoar
o fato de ele não ter arriscado o pescoço pelo bem da amizade deles. Assim, teria de aprender a lidar com a ignorância à qual não estava acostumada.

Olhou para o relógio de novo. Era inútil. Não chegaria a lugar algum sentada ali. O artigo que deveria revisar antes de mandar para publicação parecia encará-la
de maneira acusatória da tela do computador, tão negligenciado quanto um terreno abandonado. Em seu coração, Fiona sabia que não conseguiria se concentrar ali no
escritório. Se levasse o artigo para casa,

talvez conseguisse trabalhar um pouco lá. Nada aconteceria com Kit enquanto eles estivessem em casa juntos.

Fiona tomou a decisão e já estava pegando a jaqueta no cabide quando o telefone tocou. Resistiu à tentação de ignorá-lo, atravessou a sala e atendeu no quarto
toque:

- Alô, Fiona Cameron. - Dra. Cameron? Aqui quem fala é Victoria Green, do Man. Gostaria de saber se a senhora pode dispor de alguns minutos.

- Infelizmente, não. - Posso apenas explicar qual é o assunto? - A voz da jornalista era agradável e insinuante.

- Seria perda de tempo, pois não estou interessada. Se você der uma olhada nos seus arquivos de clippings, verá que não dou entrevistas.

- Não queremos uma entrevista - respondeu Green com rapidez. - Gostaríamos que escrevesse um artigo para nós. Sei que a senhora faz isso, já li alguns de seus
trabalhos no Applied Psychology Journal.

- Você lê o APJ? - perguntou Fiona, a surpresa impedindo que desligasse o telefone.

- Sou formada em psicologia. Gosto de ler seus artigos sobre conexão criminal. Foi assim que soube que a senhora era a pessoa mais indicada para escrever um artigo
para nós.

- Creio que não - reiterou Fiona. - Entenda - continuou Green, sem se deixar intimidar -, defendo a teoria de que Drew Shand e Jane Elias foram assassinados pela
mesma pessoa. E acredito que Georgia Lester possa ser a próxima vítima. Gostaria que a senhora rodasse seu programa de conexão criminal nesses casos para ver
se estou certa.

Fiona desligou o telefone sem se dar ao trabalho de responder. A notícia já se espalhara. Não demoraria muito para que outros tirassem as mesmas conclusões que
Victoria Green. Se ainda tinha alguma dúvida quanto a voltar para casa e ficar com Kit, a dúvida desapareceu com aquele telefonema.

O homem com uma cara de fuinha deu de ombros. - Carne é carne, não é mesmo? Uma vez retirada a pele e os ossos, sua Urna humana não terá uma aparência muito diferente
de um bife de vaca Ou de cervo.

Sarah Duvall suspirou: - Obrigada por me lembrar. - E o mercado é imenso. Não posso nem imaginar o número de freetora naquele lugar. Não é como entrar no açougue
do bairro, a senhora sabe. 'Demos 23 unidades no prédio leste e mais 21 no oeste. - Seus olhos escuros cintilaram e o nariz aquilino enrugou-se num espirro.

O sargento Ron Daniels sorriu de modo benevolente para o homem baixo. Por causa de seu trabalho como oficial responsável pela equipe policial do Smithfield Market,
ele conhecia Darren Green, o representante de vendas, há anos. Sabia que, por trás da agressividade, havia um homem razoável, desde que lhe demonstrassem o devido
respeito.

- Ninguém está mais feliz com isso do que eu, Darren. Temos um trabalho enorme nas mãos, e é por isso que viemos falar com você.

Duvall se virou para o legista do Ministério do Interior. - Professor Blackett, o que o senhor me diz? O homem careca e de meia-idade sentado atrás dela levantou
os olhos do bloco de anotações e franziu o cenho.

- Vai ser complicado, como o sr. Green ressaltou. No entanto, seguindo a sua sugestão, li o trecho relevante do livro de Georgia. E, se estivermos lidando com
um assassino imitador, então os pedaços de carne vão variar dos cortes tradicionais em alguns detalhes-chave.

- Mas ainda vai parecer apenas carne, não é mesmo? - insistiu Darren Green. Tom Blackett fez que não. - Confie em mim, podemos perceber as diferenças. - Ele virou
uma folha do bloco e começou a desenhar numa página em branco. - Os seres humanos são bípedes, e não quadrúpedes. Nossos ombros e os músculos da coxa são bastante
diferentes dos de uma vaca ou um cervo. Especialmente a perna. Se você fizer um corte transversal no meio da coxa e tirar a cabeça do fêmur, a qual seria óbvia
demais para deixar no lugar... - Ele apontou para o esboço rústico que fizera. Darren Green se inclinou e olhou em dúvida

para o desenho. - ... verá o contorno arredondado do corpo do fêmur aqui. Na frente dele, temos o grupo de músculos anteriores, o reto femoral e o vasto. Atrás,
temos o grupo posterior, o adutor magno e os tendões. E aqui temos o grupo de músculos médios, que é onde fica a maioria das artérias e nervos. Você também perceberá
uma quantidade maior de gordura do que numa carcaça animal padrão.

O rosto de Green abriu-se num sorriso ao começar a compreender. - Certo - disse. - A forma dessa carne não tem nada a ver com a perna de uma vaca ou um cervo.

- E, é claro, os pedaços de carne humana são muito menores do que os cortes correspondentes de uma vaca ou um cervo - continuou Blackett. - O que é algo que qualquer
açougueiro reconheceria logo de cara, certo?

- Eu diria que sim - respondeu Green com cautela. - Mas, mesmo que a gente ajude vocês na busca, ainda assim vamos levar uma eternidade para cobrir o mercado inteiro.
Nunca vamos conseguir terminar e limpar tudo antes que as entregas da manhã cheguem. Lembrem-se: essa não é uma loja que só abre às nove. A maior parte do trabalho
acontece entre quatro e sete da manhã.

- Se estivéssemos falando em procurar no mercado inteiro, eu concordaria com você, st Green - comentou Duvall. - Mas temos informações que irão limitar as buscas
consideravelmente. Estamos procurando por freezers que não são usados no dia a dia. Os que servem para guardar alimentos por longos períodos. Provavelmente, freezers
que estejam trancados. É por isso que precisamos da cooperação total de vocês. Não queremos sair por aí arrombando a propriedade alheia. Preciso, portanto, que
o senhor contate todas as pessoas que têm alguma unidade no mercado e peça a elas que se certifiquem de que haverá gente no local hoje à noite, empregados que
possam nos garantir acesso a todo o estoque. E eles terão de ficar lá a noite toda se for preciso.

- Maldição - protestou Green. - Esse é um pedido absurdo. - Se o senhor não tem como fazer isso sozinho, posso disponibilizar alguns dos policiais que fazem a
segurança do mercado para ajudá-lo. Mas isso precisa ser feito - retrucou Duvall, com um tom decidido e uma expressão implacável.

- Eles não vão gostar nada disso - reclamou ele.

Multeis tomou a palavra: - Não estamos fazendo isso por diversão, Darren. É uma questão muito séria.

- Isso mesmo - concordou Duvall, fechando a cara. - Então, preciso que o senhor e seus voluntários estejam na delegacia de Snow Hill às nove para que o professor
Blackett possa explicar o que vocês terão de procurar, para que vocês sejam direcionados aos policiais que irão ajudar. Pretendo começar a operação às dez em
ponto. Não tenho a menor intenção de atrapalhar o trabalho noturno. Mas isso vai depender do senhor e de seus ajudantes. Sugiro que comece logo. - O sorriso em seus
lábios não abrandou em nada a força da ordem. Entre reclamações murmuradas, Green se afastou.

- O que você acha, Ron? Vai funcionar? - perguntou Duvall. O homenzarrão fez que sim. - Acho que você vai conseguir toda a cooperação de que precisa. Vou ter
uma palavrinha com o Darren, me certificar de que ele diga aos comerciantes que eles não são suspeitos de nada ainda.

Duvall fez que sim. - Você parece muito confiante que irá conseguir identificar o que estamos procurando, professor.

- Se eu deixasse transparecer minhas dúvidas, o st Green faria o máximo para impedir a operação. Não é fácil identificar carne humana só de olhar, inspetora. É
bastante simples realizar testes para confirmar se é ou não, uma vez que encontremos algo suspeito, mas encontrar a carne vai depender completamente do quão bom
seu assassino é. - Blackett fez uma pausa e ergueu as sobrancelhas. - Partindo do princípio de que ele existe, é claro.

38.

O detetive Neil McCartney estava cansado. Vigiar Francis Blake doze horas por dia era uma tarefa exaustiva, em grande parte porque o homem levava uma vida muito
chata. Algumas vezes ele não via sequer o nariz de seu alvo o turno inteiro. Pelo menos Neil conseguira trocar para o turno do dia, de dez às dez, o que era um
pouco menos desesperador do que as noites longas, quando tudo o que Blake parecia fazer era ver televisão e dormir. Neil, porém, sabia que isso era apenas um
alívio temporário. Com Joanne presa no escritório atacando o computador, não demoraria muito para John começar a encher o saco, a fim de pegar de volta o turno
do dia. Não sem motivo - John tinha mulher e filhos pequenos, que não queriam ficar em silêncio o dia inteiro porque o papai estava dormindo.

Essa poderia ter sido a sua vida, pensou Neil, com uma pontada de amargura. Se ele não tivesse sido burro o suficiente para escolher a mulher errada. Conhecera
Kim no trabalho. Ela era alegre e animada, a alma e a diversão de todas as festas. Não era o tipo que normalmente o atraía, uma vez que ele era um sujeito mais
quieto. Na época, Neil achava que os olhares que lhe lançavam eram de inveja. Demorara muito para descobrir que eram de pena. Ele era o álibi dela para o romance
com um dos oficiais da custódia, a distração perfeita para enganar a mulher do homem em todos os eventos da polícia. E o melhor álibi possível era o casamento.

A princípio, voltara sua amargura contra si mesmo. Mas não fazia sentido ficar remoendo a amargura por causa da Kim; ela era quem era. Assim mesmo, sua busca para
encontrar algo em que jogar a culpa terminara com o trabalho.

Ele podia facilmente ter se tornado um tira rancoroso, descontando sua raiva naqueles com quem viesse a ter algum contato profissional. Mas a transferência que
pedira o levara a trabalhar à paisana, como parte da equipe de Steve Preston. E isso o salvara. A nova função o lembrara do porquê de ter entrado para a polícia
em primeiro lugar. Prender os vilões, esse era o objetivo, para o inferno com o joguinho burocrático. Era assim que Steve comandava seu esquadrão, e os oficiais
que não concordavam com isso não duravam muito.

Como consequência, agora a lealdade de Neil estava incontestavelmente com seu chefe. Era por isso que, por mais entediante que fosse a vigilância, sentia-se preparado
para levá-la a cabo. O fiasco da armadilha para pegar Francis Blake e os resultados do julgamento subsequente haviam apenas fortalecido sua decisão. Era isso o
que acontecia quando a política se metia no meio do trabalho da polícia, e ele estava tão determinado quanto o chefe a endireitar as coisas e prender o assassino
de Susan Blanchard. Em vista disso, engoliu suas dúvidas quanto à validade do que estava fazendo e grudou em Blake como chiclete.

Bocejou. A chuva caía sem parar sobre o para-brisa. Parecia um contraponto pertinente para a ausência de emoção em sua vida e na de Blake. Se ele tivesse o dinheiro
que Blake conseguira através do acordo com os jornais, Neil tinha certeza de que estaria vivendo num lugar com um pouco mais de classe do que aquele. Ninguém
poderia discordar, aquele lugar era um lixo.

O apartamento que Blake alugara após ser solto ficava a pouco mais de 1 quilômetro de sua antiga casa em King's Cross. O novo apartamento ficava numa rua transversal
à Pentonville Road, um local movimentado, porém meio decadente, o tipo de lugar onde os moradores eram prostitutas aposentadas, desempregados, idosos pobres e
doentes mentais. O melhor que se podia dizer sobre o lugar era que dava acesso fácil aos transportes públicos. Mais ou menos na metade da rua, algum arquiteto
sem inspiração projetara um conjunto habitacional em tijolos cinza que parecia ter sido

construído às pressas na década de 1960. Ele se destacava das casas vizinhas, com seus pequenos jardins, por uma entrada de serviço que subia pelas laterais e
dava a volta nos fundos. No térreo havia meia dúzia de lojas - um jornaleiro, uma loja de bebidas, uma loja de apostas, um mercadinho, uma lanchonete de kebab
e uma central de táxis não oficiais. Os dois andares acima eram divididos em apartamentos, e era num desses caixotes sombrios no segundo andar que Blake decidira
morar. Neil ficava em depressão só de pensar.

Ele não apenas optaria por viver em algum lugar com um pouco mais de classe como também faria algo mais excitante do que uma visita eventual à loja de apostas
ou à videolocadora da esquina.

Na opinião de Neil, Blake podia muito bem ter continuado atrás das grades.

A alguns quilômetros dali, Steve Preston e Terry Fowler estavam tendo uma noite bastante diferente. Para variar, Steve conseguira sair do trabalho com tempo de
sobra, deixando Joanne mergulhada numa busca aparentemente interminável pelos registros criminais. Neil não relatara nada de importante, portanto não havia nenhuma
preocupação profissional específica para perturbar sua mente e distrair sua atenção da companhia.

Terry havia chegado cinco minutos adiantada, dizendo que uma pontualidade patológica a impedia de se atrasar elegantemente para o que quer que fosse.

- Sou sempre a que chega na festa quando os anfitriões ainda estão no banho - disse ela. - É uma boa forma de começar a noite.

Steve não se importou nem um pouco. Ficava perfeitamente satisfeito com mais cinco minutos extras para admirá-la. Terry usava um vestido preto simples, na altura
dos joelhos, de algum material que ele não reconheceu, mas que parecia balançar e cintilar em torno do corpo sempre que ela se mexia. Para alguém que estivera melancolicamente
estagnado por tempo demais, percebia agora, Steve permitiu-se imaginar, ainda que com cautela, se sua sorte tinha realmente mudado tanto quanto aparentava. Cuidado,
preveniu-se. Você sabe que, quando se apega, investe muito, rápido demais. Vá com calma, não deixe que ela perceba o quanto você precisa disso. Pelo

menos dessa vez, trate sua vida pessoal da mesma forma circunspecta com que constrói um caso.

No entanto, nada aconteceu durante o jantar para mudar a sensação de tremenda sorte. Steve estava se sentindo uma companhia interessante, e ela parecia mais do
que disposta a gostar dele. A conversa não recaiu em nenhum momento naqueles silêncios constrangedores em que alguém procura algo para dizer. Eles trocaram histórias,
um fez o outro rir, começaram a esboçar os detalhes de suas vidas. Para um homem acostumado a se resguardar na maior parte do tempo, Steve ficou agradavelmente
surpreso ao descobrir que a aparente franqueza de Terry tinha o poder de fazê-lo se abrir. Pela primeira vez desde que conhecera Fiona na universidade, há tantos
anos, encontrava uma mulher que lhe permitia relaxar, que só pedia para que ele fosse ele mesmo. Irônica, inteligente e aparentemente sem pretensões, Terry dava
a impressão de ser tão bonita por dentro quanto por fora. Steve não fazia ideia do que ela vira nele. Quando, em determinado momento, ela se levantou da mesa para
ir ao toalete, ele se pegou observando a porta, ansioso para que ela voltasse logo, algo que ninguém o fazia sentir há anos. Estou parecendo um adolescente de
novo, pensou, perplexo. Isso é loucura, Preston. Controle-se.

Durante todo o jantar, Steve ficou esperando que acontecesse alguma coisa para quebrar o encanto. Mas nada aconteceu. Ela nem mesmo protestou quando ele insistiu
em pagar o jantar.

- Você ganha muito mais do que eu, querido - disse com um dar de ombros casual.

Já passava das dez quando eles saíram do restaurante. Uma chuva fina começara a cair enquanto eles estavam lá dentro e, como consequência, os dois se aconchegaram
um ao outro sob a marquise para esperar um táxi. O letreiro em néon branco com o nome do restaurante fez sombra sobre o rosto de Steve, transformando-o em um conjunto
claro-escuro de planos e ângulos. O cabelo de Terry adquiriu um tom platinado sob a luz. Ela se aconchegou ainda mais a Steve e ergueu o rosto para ele, sorrindo.

- E agora, bonitão, você trocou os lençóis hoje de manhã? Steve soltou uma gargalhada. - Por quê? Você trocou?

- Embora eu imagine que sua casa seja muito mais civilizada do que a minha, sim, troquei.

Ele balançou a cabeça, o sorriso formando rugas em torno dos olhos. - Certo, vou arriscar parecer presunçoso. Sim, troquei os lençóis hoje de manhã. - Ele a apertou
um pouco mais.

Em resposta, Terry se virou de modo a ficar de frente para ele. Ficou na ponta dos pés e se inclinou em direção a Steve. Agarrou-o pelas lapelas e puxou seu rosto
para perto do dela. E então o beijou. Um beijo longo, lânguido e voluptuoso.

Essa era toda a resposta que ele precisava. Qualquer simulação de cautela desapareceu sob o calor instantâneo de seu desejo por ela. Quando chegaram ao apartamento
dele, pela primeira vez em anos, Steve tirou o fio do telefone e desligou o pager. Naquela noite, não havia nada tão urgente que não pudesse esperar até a manhã
seguinte. Nada, com exceção de Terry, e isso era mais do que suficiente.

A cidade à noite. Alguns anos antes, as ruas em torno do Smithfield Market estariam desertas àquela hora da noite. Prédios altos e cinzentos, com fachadas sem
graça, transformavam as ruas estreitas em labirintos de desfiladeiros. Os postes pouco faziam para abrandar a penumbra. O mercado em si estava fechado, uma imensidão
de vidro vitoriano, tijolos e feno em restauração.

Mas agora tudo isso havia mudado. Bistrôs e cervejarias, bares e restaurantes haviam colonizado a área, suas luzes claras derramando-se sobre as calçadas, povoando
as ruas com fregueses. Os prédios velhos tinham sido transformados em apartamentos de luxo para os novos-ricos, e o Smithfield se reinventara, numa tentativa corajosa
de se tornar o epítome da sofisticação.

Os corredores do mercado haviam recuperado sua antiga glória. Mesmo quando estava fechado para negócios - que era como a maioria das pessoas sempre o encontrava
-, era uma visão impressionante. Uma grade alta de feno forjado estendia-se por toda a avenida, separando os prédios leste e oeste, ricamente pintada em tons de
uva, verde-piscina opaco e azul-celeste, com detalhes em dourado. Do meio da grade erguiam-se ornamentadas

pilastras de feno fundido, com folhas de acanto decorando os capitéis que davam suporte a coberturas planas projetadas para proteger a rua da chuva.

O interior era uma mistura do magnífico trabalho em feno da era vitoriana com a moderna tecnologia. Caminhões carregados de carcaças paravam em compartimentos de
carga especialmente construídos para proteger a carne dos elementos, e então a carne era transportada por um sistema mecânico de trilhos e entregue diretamente
nas unidades de venda feitas sob medida. As entregas feitas em caixas e caixotes menores eram levadas para corredores de serviço com temperatura controlada que
se estendiam por toda a lateral de ambos os prédios. Era uma diferença muito grande do antigo sistema de carregadores correndo de um lado para o outro com a carne
exposta a qualquer perigo de contaminação pelo ar. Um sistema que teria tornado o trabalho do assassino muito mais difícil.

Pouco antes das dez, a equipe de Sarah Duvall chegou. Alguns foram em carros comuns, mas a maioria preferiu andar a pequena distância entre o mercado e a delegacia
de Snow Hill, onde ocorrera a reunião. Duvall tinha exigido que a operação fosse conduzida da forma mais discreta possível. A última coisa que queria era uma frota
de carros e camburões oficiais alinhados do lado de fora do Smithfield tarde da noite. Seria inevitável que uma visão dessas atraísse a mídia e, assim que os jornalistas
sentissem o cheiro de um furo, não demorariam muito para descobrir o que estava acontecendo.

Darren Green fizera bem o seu trabalho. Os comerciantes sabiam o que estava para acontecer e, de maneira surpreendente, muito poucos haviam reclamado do possível
atraso no trabalho noturno. Agora que a busca estava prestes a começar, o momento pertencia a Green. Sua irritação inicial dera lugar à excitação, e ele corria
em torno dos policiais uniformizados como uma mosca sobrevoando um pedaço de carne exposta, certificando-se de que todos tinham recebido os macacões e capacetes
que precisariam usar para cumprir as rígidas normas de higiene.

Duvall inspecionou a equipe à sua frente. Conseguira reunir uma dúzia de policiais uniformizados, meia dúzia de detetives e quatro açougueiros para ajudar os oficiais
que trabalhavam no mercado a conduzir a busca. Tom Blackett estava lá, acompanhado de dois de seus assistentes do St. Bartholomew's Hospital. Enquanto esperavam
os retardatários chegarem, Blackett aproximou-se de Duvall.

- Estou admirado que você tenha conseguido um mandado de busca - comentou, quase num murmúrio.

- Tive de recorrer a tantos favores para conseguir isso que, se eu acabar fazendo papel de idiota, vou levar anos para retribuir.

- Posso imaginar. Não são muitos os magistrados que arriscariam o pescoço por algo tão frágil. - O sorriso de Blackett foi tão animador quanto a chuva fina que
começara a cair. - Vamos rezar para que encontremos alguma coisa. - Ele se afastou para falar com seus assistentes.

Duvall pigarreou para limpar a garganta. - Certo, todos vocês, atenção. Vocês sabem o que deverão fazer quando entrarmos. O professor Blackett e seus assistentes
vão esperar comigo sob o relógio na rua do meio. Se alguém encontrar qualquer coisa suspeita, nos avise imediatamente e os legistas os acompanharão para examinar
o que quer que tenham encontrado. Sr. Green?

Darren deu um passo à frente de um jeito tão teatral que pareceu um completo absurdo.

- Por aqui - chamou. - Boa sorte! - gritou Duvall quando a equipe partiu. Ela os seguiu e viu quando cada um se dirigiu para a seção destacada. - Vamos precisar-
acrescentou por entre os dentes.

39.

Como raramente acontecia, Kit acordou primeiro. Virou-se na cama, passou o braço em volta de Fiona e deu-lhe um beijo na nuca.

- Ahnn - resmungou ela. - Vou levantar - disse ele. - Vou preparar um peixe defumado, com arroz e ovos cozidos para o café da manhã.

- Ai, meu Deus - suspirou Fiona. - Precisa mesmo? A gente não pode simplesmente ficar aqui e aproveitar o escurinho mais um pouco?

Kit riu. - O escurinho acabou faz tempo. Já amanheceu. Não sei por que, mas acordei com fome. Levante-se, dra. Cameron. O café estará pronto em... ahn, quarenta
minutos. - Ele se afastou dela com outro beijo e pulou da cama, cheio de energia. Quando o assunto era mudança de atividade, Kit, como a maioria dos escritores,
fazia disso uma arte.

Fiona escutou os passos dele se afastando, e se forçou a sentar na cama. Bocejou, esticou as costas e se levantou. Flexionou os ombros, que haviam endurecido durante
o sono. Muita tensão, disse a si mesma. Não saber o que estava acontecendo com a investigação de Sarah Duvall era uma espécie de tortura. E, dada sua situação
com Steve, não podia nem mesmo usá-lo para se inteirar dos fatos.

Precisava saber se Georgia estava morta. O medo que sentia por Kit a corroía por dentro sem parar, e ela não podia ficar com ele 24 horas por dia.

Pelo menos, se eles encontrassem os restos de Georgia no mercado, poderiam tomar as devidas precauções para deixá-lo mais seguro do que estava agora. E se ela estivesse
errada... Pela primeira vez na vida, Fiona esperava estar embaraçosa e irremediavelmente errada. Tudo o que queria era ver o rosto sorridente de Georgia no jornal,
de volta aos braços de Anthony em um único pedaço. Seria até capaz de perdoá-la pela ansiedade que ela causara, simplesmente porque isso significaria que Kit estava
seguro de novo. Não sabia como ia aguentar um dia inteiro no trabalho quando sua cabeça estava em outro lugar.

Vinte minutos depois, Fiona estava de banho tomado, vestida e maquiada decentemente. Mais do que isso, estava acordada. Durante o café da manhã, eles falaram pouco,
permitindo que o rádio preenchesse o silêncio. Muitos pensamentos e medos fervilhavam em suas cabeças para permitir que eles pudessem conversar sobre amenidades.
Por fim, Fiona empurrou o prato de lado após comer e repetir.

- Estava uma delícia - disse. - Não apenas a noite foi memorável, como a manhã também. - Ela se levantou e pegou sua pasta.

- Você tem sorte por ter a mim - respondeu ele, sorrindo como o Lobo Mau, mas estragando a cena com uma piscadinha.

- Eu sei. E pretendo que continue assim. Você vai se cuidar, não vai? - Fiona abriu um sorriso titubeante e deixou-se envolver para um abraço. - Cuide-se - falou
baixinho.

- Claro que vou me cuidar. Preciso terminar um livro, meu amor. A gente se fala mais tarde. - Era uma promessa que ele tinha toda a intenção de manter.

Como uma criança na véspera do Natal, Steve mal conseguira dormir. O que acontecera entre ele e Terry até então o deixara exultante e sem fôlego. No entanto,
a perspectiva do que podia vir a seguir tirara seu sono. Ainda assim, não estava cansado.

Ele se recostou de volta nos travesseiros e espreguiçou, esticando os braços e arqueando a coluna. Novamente relaxado, virou-se de lado para observá-la. Ela era
do tipo que se espalha, braços e pernas abertos como uma estrela do mar gigante. Terry estava de bruços, o rosto virado para ele.

Mesmo com a maquiagem borrada e o cabelo desgrenhado pelo sono, Steve a achou linda. Sentiu-se deslumbrado e chocado em parcelas iguais. Seu próprio corpo parecia
estranho e novo. Já tivera transas mais tecnicamente perfeitas com outras mulheres, mas, na véspera, a técnica parecera irrelevante. Seu corpo fora completamente
arrebatado, não houvera o menor espaço para analisar o que estava fazendo. Nada daquela sensação de estar desempenhando um papel em benefício do outro ou de si
mesmo. O que havia acontecido entre ele e Terry o consumira de forma inédita.

E tinha sido divertido. Eles não haviam apenas se deixado consumir pelo fogo da paixão, tinham rido muito também. Steve acordara no mesmo espaço familiar, mas
analisava a manhã com os olhos de um explorador. Era inquietante, quase assustador descobrir-se tão completamente envolvido pela atração. Apesar de toda a sua
sofisticação adulta e astúcia profissional, sentia-se despreparado e vulnerável, e não sabia como lidar com isso.

Terry se mexeu, emitindo um suave e incompreensível ruído no fundo da garganta. Seu rosto se contorceu, as sobrancelhas levantaram. E então ela abriu os olhos.
Após um momento de desorientação, a boca se abriu num sorriso satisfeito.

- Puta que pariu, ainda bem que não foi um sonho - disse, recobrando o domínio do corpo e se aconchegando a ele.

Ele roçou o queixo com a barba por fazer pelos cabelos embaraçados de Terry, e a envolveu em seus braços.

- Vocês, acadêmicas, têm um jeito todo especial com as palavras. - Ah, mas as ações dizem mais do que as palavras, e eu sou uma mulher de ação, definitivamente
- replicou Terry, correndo os dedos pelos músculos definidos do tórax e pelas costelas de Steve. Sentiu-o enrijecer, passou uma perna por cima da dele e apertou
os quadris preguiçosamente de encontro àquele corpo.

Steve gemeu baixinho. - Você é uma pessoa diurna então - observou, a voz rouca de excitação. Ela jogou a cabeça para trás e fez beicinho. - Isso é problema? -
O tom era tão provocativo quanto os movimentos de seu corpo Ele a puxou mais para perto e sentiu o calor dos seios dela contra seu peito. 328

- Não, a menos que você precise estar em algum lugar na próxima hora.

Sarah Duvall sentiu-se enjoada. Sabia que isso tinha mais a ver com as poucas horas de sono e o excesso de café do que com o que vira no Smithfield Market, porém
a compreensão não serviu para abrandar a ligeira sensação de náusea. Explicar para Anthony Fitzgerald o que ele teria de identificar no necrotério também não havia
ajudado. Quase desejava que o assassino tivesse seguido o texto mais à risca. Teriam, então, menos um horror para encarar.

Sentou-se com uma expressão séria no banco traseiro do carro. A imobilidade facial disfarçava o trabalho incessante da mente. O caso estava mais enrolado do que
se poderia esperar. Ele ia provocar um interesse potencialmente devastador da mídia, o que significava que cada movimento seu e de sua equipe estaria sob o escrutínio
não apenas de um exército de jornalistas como tambêm de uma hierarquia com os nervos à flor da pele, com medo de que ela pudesse fazer ou dizer algo errado.

E havia ainda Fiona Cameron. Com essa última descoberta, Fiona não seria a única a somar dois e dois e deduzir que um serial killer estava à solta. Não era algo
que Duvall desejasse reconhecer publicamente, porém não acreditava que eles conseguissem continuar negando que as mortes de Drew Shand, Jane Elias e Georgia Lester
estavam ligadas. De qualquer forma, não demoraria muito para que um esperto e ambicioso jornalista lembrasse que Fiona Cameron vivia com um escritor policial.
Eles fariam fila na porta do escritório dela, e embora achasse improvável que Fiona procurasse a mídia por iniciativa própria, Duvall não fazia ideia de como ela
reagiria a uma pergunta direta de um jornalista. E assim que a notícia fosse ao ar, haveria uma fila de escritores de suspense em pânico exigindo proteção policial.
Era um campo minado. Especialmente se a mídia também descobrisse que alguém vinha enviando ameaças de morte para esses escritores.

Além disso, havia a investigação em si. A manhã fora um pesadelo, mas isso era apenas o começo. Após a horripilante descoberta pouco depois da meia-noite, ela
tentara impedir que o mercado abrisse para as negociações

dali a menos de quatro horas. Darren Green, porém, protestara veementemente que ela estava louca. De forma alguma ela poderia argumentar que o mercado inteiro era
a cena de um crime. Era óbvio, ressaltara ele, exibindo uma inteligência e uma determinação de aço que Duvall não pensara que ele fosse capaz de demonstrar, que
o que quer que tivesse acontecido ocorrera fazia tempo. Centenas de pessoas tinham entrado e saído do mercado desde então, e não havia a menor chance de a polícia
encontrar quaisquer vestígios de seu assassino em algum outro lugar que não nas imediações do freezer em questão.

Como trunfo, Green argumentara ainda que a melhor forma de eles se certificarem de que a polícia interrogaria todas as testemunhas em potencial era permitindo
que o mercado funcionasse normalmente. Eles poderiam anotar os nomes e endereços de todos que aparecessem e talvez até começar seus interrogatórios ali mesmo.

Tinha sido uma sugestão esperta, sobretudo porque permitia que Duvall salvasse seu orgulho. Assim, eles lacraram o estoque e destacaram um pequeno exército de
oficiais para se certificarem de que ninguém entrasse no mercado sem fornecer detalhes para contato. Enquanto isso, os peritos tinham dado início à meticulosa
tarefa de examinar cada centímetro do depósito de equipamentos onde ocorrera a terrível descoberta.

Até então, tudo péssimo. O que tomava as coisas ainda piores era que ela teria de continuar trabalhando com a polícia de Dorset. O que quer que tivesse acontecido
com Georgia Lester talvez tivesse terminado no território de Duvall, mas havia começado na jurisdição deles. Se houvessem testemunhas, as chances eram muito maiores
de que elas aparecessem por lá. Era muito mais provável que alguém percebesse algo fora do normal numa remota área rural do que uma pessoa com um carregamento
de carne atrair a atenção em pleno Smithfield Market. Contanto que os oficiais de lá soubessem que diabos tinham de fazer, acrescentou de modo automático. Duvall
nunca fora boa em delegar autoridade, nem mesmo para sua própria equipe, mas ter de confiar o cerne de uma investigação a outra força era seu pior pesadelo. Até
então, não tinha o que reclamar do trabalho de seus colegas de Dorset, mas, ainda assim, tinha a sensação incômoda de que eles não estavam progredindo rápido o
bastante. Precisava marcar uma reunião, de preferência por lá, para que pudesse sentir onde tudo começara.

Isso, porém, teria de esperar. Primeiro, devia a Steve a cortesia de contar a ele os resultados de sua dica, portanto pediu ao motorista que a levasse até a Scotland
Yard antes de voltar para seu próprio escritório na Wood Street. Pegou o elevador até o andar dele e atravessou o corredor com um andar arrogante, o que lhe garantiu
alguns olhares apreensivos daqueles por quem passou. Bateu de leve à porta e entrou. Sua primeira impressão foi de que Steve conseguira espremer uma semana de
férias nas últimas 24 horas. As linhas de preocupação em torno dos olhos tinham se suavizado. Em vez da palidez de um oficial trabalhando de maneira obsessiva,
sua pele estava com um tom saudável. Havia um brilho em seus olhos e ele a cumprimentou com um sorriso que ficava anos-luz de distância do esgar cansado da véspera.

- Pelo visto, seu caso está indo melhor do que o meu - disse Duvall, sentando-se na cadeira em frente a ele, ciente de que seu tailleur estava amarrotado e ela
provavelmente exalava o cheiro de um cinzeiro de bar.

Steve arqueou as sobrancelhas, surpreso. - Deve ser Uma ilusão de ótica. Escutei dizer que você teve uma noite longa.

Duvall fez que sim, ajeitando os óculos no nariz. - E vai ser um longo dia. Achei que gostaria de saber o que eu encontrei. - Gostaria mesmo - respondeu Steve,
com um meneio de cabeça afirmativo.

- Entramos por volta das dez e começamos a virar o lugar de cabeça para baixo. Açougueiros e policiais verificando freezers e geladeiras em busca de pedaços de
carne com aparência duvidosa, comerciantes gritando que seus estoques estavam virando uma bagunça, legistas analisando tudo que parecesse remotamente anormal.
Embora não houvesse tanto assim, preciso dizer. O acordo era, se encontrássemos alguma coisa realmente suspeita, os legistas levariam os achados de volta para o
laboratório e fariam testes para verificar se era carne humana ou não. Eu tinha reunido a equipe inteira e explicado o que eles deveriam procurar. Mas, na hora,
tudo não passou de blá-blá-blá acadêmico.

- O que você quer dizer com isso? - Por volta da meia-noite, os rapazes encontraram um freezer no fundo do depósito. Ele estava trancado com cadeado, e ninguém
admitiu ter a

chave. Segundo o escritório do supervisor do mercado, o freezer foi posto lá um mês atrás por um dos comerciantes, que devia ter providenciado para que ele fosse
jogado fora. Mas o comerciante foi taxativo ao dizer que não o havia trancado, e dois membros de sua equipe confirmaram isso. Então, pegamos o alicate de correntes.
Quando o abrimos, encontramos um monte de pacotes de carne. Com exceção de uma prateleira. Tudo o que ela continha era um pacote enrolado em plástico preto, daqueles
que se usam em lixeiras. - Duvall fez uma pausa a título de efeito, com uma expressão Interrogativa.

Steve fechou os olhos por um momento, o rosto anguloso aflito. - A cabeça? - A cabeça. O açougueiro que estava ajudando os rapazes despencou no chão como um boi
abatido. Tivemos de levá-lo ao hospital para costurar o corte na cabeça. Ele bateu na quina de uma mesa ao cair.

- Ele vai falar disso pelo resto da vida - comentou Steve. - Suponho que era a cabeça da Georgia?

- Claro. O marido vai fazer a identificação mais tarde, mas não restam dúvidas.

- Quando vocês vão dar a declaração? Duvall suspirou: - Meu chefe quer marcar uma coletiva de imprensa para hoje à tarde. Estamos esperando a confirmação de Dorset
de que algum dos oficiais deles estará aqui.

- Você se incomoda se eu der a notícia para Kit Martin antes da coletiva de imprensa? Ele e Georgia eram amigos, e ele sabe que Fiona conversou com a gente. Acho
que é o mínimo que eu posso fazer.

Duvall franziu o cenho. - Preferiria manter isso entre nós o máximo de tempo possível. Eu sei que ele é seu amigo, mas não podemos permitir que pensem que a polícia
está dando tratamento preferencial a um escritor.

Steve deu de ombros. - O caso é seu, Sarah. Para ser honesto, estava pensando tanto nos interesses da Scotland Yard quanto na consideração para com Kit. Fiona
Cameron é uma ótima profissional, e já estamos há um bom tempo sem os serviços dela por causa da nossa própria estupidez. Apesar disso, ela veio a

nós com sua suspeita. Eu apreciaria a chance de construir uma pequena ponte para transpor o abismo que se instaurou entre a gente. Acredito que a City poderia
se beneficiar com isso também.

O sorriso sardônico de Duvall escondia uma irritação genuína. Primeiro tinha sido vencida pela esperteza de Darren Green, agora, de Steve Preston, e tudo numa
questão de horas. Não podia dizer que isso era um bálsamo para o espírito, em especial um espírito normalmente tão confiante quanto o dela.

- Muito bem levantado, superintendente. Steve reconheceu o uso do título como um sinal para que ele recuasse. - A decisão é sua, Sarah. - Suponho que isso não
vá fazer mal algum. Desde que você deixe bem claro que ele não pode falar com a mídia antes da gente. - Uma última tentativa de parecer no controle.

- Acho que ele nem pensaria nisso. - Steve se levantou e pegou a jaqueta. - Ela era amiga dele, Sarah. Ele não está tão desesperado assim por publicidade.

Ela aceitou a censura implícita em silêncio e se levantou. - Eu te mantenho informado - declarou. - Afinal, como está indo o caso Blanchard?

Steve deu de ombros enquanto vestia a jaqueta e abriu as mãos. - Estamos atrás de algo que talvez seja uma pista. Mas está sendo uma luta bastante cansativa. Não
tenho os recursos para conduzir uma operação adequada.

O sorriso de Duvall foi duro. - Ainda negando tudo, certo? - Mais ou menos isso. Pelo menos até termos algo concreto. Duvall encolheu-se. - E eu achei que meu
dia estava ruim. Steve abriu a porta e deu espaço para que ela saísse primeiro. - Não deixe que isso te afete. A vida é mais do que apenas trabalho. Ele atravessou
o corredor com o andar tranquilo de um homem que saía para uma caminhada pelo parque. Duvall o observou, sua expressão geralmente impassível vencida pela perplexidade.
Steve Preston, dizendo que a

vida era mais do que apenas trabalho? Isso era tão provável quanto Bart Simpson seguir uma carreira diplomática.

Sentindo-se um pouco mexida, Duvall seguiu em direção ao carro. Precisava voltar para seu próprio escritório na Wood Street. Pelo visto, o dia prometia várias
surpresas. Talvez Dorset provasse ser o reduto de uma nova raça de supertiras. E, talvez, apenas talvez, eles conseguissem encontrar o assassino de Georgia Lester
antes que a mídia os comesse vivos. Uma coisa era certa: coisas estranhas podiam acontecer.

40.

Fiona deixou a sala de aula e se encaminhou para seu escritório. Não se lembrava sobre o que estivera falando nos últimos cinquenta minutos. Tinha ligado o piloto
automático e olhava para os alunos com uma distância alienada. A ansiedade vibrava dentro dela como um cabo de alta tensão, afastando todo o resto. Queria estar
em casa com Kit. Queria tê-lo onde ela pudesse ver ou, pelo menos, sentir sua presença. Saber que ele consideraria isso insuportável não a deixava nem um pouco
mais tranquila.

Precisava descobrir alguma coisa, e rápido, disse a si mesma. Ou eles poderiam descartar a ideia de um serial killer, de modo que relaxasse e voltasse para uma
vida razoavelmente normal, ou todos teriam de aceitar que Kit e um punhado de outros escritores estavam em risco e tomar as devidas providências. Se a polícia
não pudesse protegê-lo, ela daria um jeito. Sabia que existiam agências que providenciavam guarda-costas, e Fiona não tinha o menor pudor em cercar Kit de proteção
profissional. Ele ficaria louco, é claro. Mas ele não precisava saber.

Acontecesse o que acontecesse, a vida deles jamais seria a mesma. Kit tinha sido obrigado a encarar a própria vulnerabilidade física, por mais que zombasse do
fato. Isso, inevitavelmente, mudaria sua visão de si mesmo. E Fiona fora forçada a reconhecer que, apesar de todos aqueles anos, não estava nem de perto numa posição
em que pudesse oferecer uma proteção efetiva para aqueles que amava. A ignorância talvez fosse uma desculpa

válida no que dizia respeito a poder ou não ter salvado Lesley; mas, mesmo agora, com todo conhecimento e experiência acumulados, ainda não estava certa de poder
salvar Kit.

Não era uma ideia reconfortante. Ela jogou os papéis sobre a mesa e checou a caixa de e-mails. Afora os usuais memorandos do departamento, havia apenas um pequeno
bilhete de Kit, dizendo: "São dez horas e está tudo bem." Ele tinha prometido enviar mensagens em intervalos regulares após sua insistência para que mantivesse
contato. Kit dissera que isso o fazia se sentir um covarde, mas ambos sabiam que era apenas uma objeção simbólica.

Fiona começou a escrever uma resposta breve, mas foi interrompida por um telefonema da Espanha.

- Olá, major Berrocal - cumprimentou, tentando não soar tão distraída quanto se sentia. Parte dela reconheceu com desanimada surpresa que não era do seu feitio
dar tão pouca importância a um caso no qual estivera envolvida.

-Achei que a senhora gostaria de saber a respeito dos nossos progressos - disse ele, soando meio desanimado também.

- Isso é muito gentil da sua parte. - Não há muito que dizer, infelizmente. Delgado se recusa a admitir a culpa. Ele apenas se senta lá, o rosto duro como pedra,
sem dizer coisa alguma. No entanto, a boa notícia é que parece que estamos começando a conseguir provas da perícia para corroborar as provas circunstanciais. Encontramos
um antigo vizinho de Delgado que trabalha no Alcázar e que acha que ele talvez tenha conseguido acesso às chaves numa de suas visitas. E o melhor de tudo: finalmente
localizamos duas testemunhas que o viram com a inglesa na noite do assassinato. Um casal de Bilbao. Eles viram a história no jornal e entraram em contato conosco.
Ao que parece, eles estavam hospedados no hotel em que ela trabalhava, por isso a reconheceram. Ela havia feito o check-in deles. Até agora, só entramos com a
acusação por esse assassinato, mas acho que eventualmente teremos o bastante para levá-lo a julgamento pelas três mortes.

- Isso é uma ótima notícia - replicou Fiona, sem se importar de fato. - O senhor deve estar feliz por ele estar fora das mas.

- Muito feliz. Nós nunca teríamos chegado tão perto, e tão rápido, sem a sua ajuda. Tomei todas as providências para que meus superiores reconheçam isso. Acho que
isso pode persuadi-los a trazê-la para cá, a fim de que a senhora nos dê treinamento no programa de conexão criminal e perfil geográfico.

Fiona soltou uma risada rouca. - Acho que o senhor está sendo muito otimista, major. Mas boa sorte com seu caso contra Delgado.

- Obrigado. E boa sorte com seu trabalho, dra. Cameron. Tenho certeza de que nos encontraremos novamente.

Fiona se despediu e recolocou o telefone no gancho. Sabia que devia se sentir triunfante, mas em vez disso, sentia apenas frustração. Seu trabalho ajudara a botar
um ponto final nos assassinatos de Toledo. No entanto, ninguém a deixava fazer o mesmo pelo homem que amava. Talvez devesse ligar para Sarah Duvall e oferecer
seus serviços.

O máximo que podia acontecer era receber um não.

Kit estava na cozinha preparando café quando a campainha tocou. Congelou no meio do que estava fazendo. Não estava esperando ninguém e, apesar da coragem que demonstrara
na frente de Fiona, estava bem ciente de que, se havia um assassino à solta com uma lista, seu nome estaria inevitavelmente perto do topo. Com cuidado, colocou
a colher de volta no saco de café e o apoiou contra a cafeteira. Inspirou fundo e atravessou o corredor.

Estava a centímetros da porta quando a campainha soou novamente, provocando-lhe uma contração involuntária. O carteiro toca sempre duas vezes. James M. Cain, um
clássico da literatura noir americana. Não tinha um final muito feliz. Kit percorreu o espaço que faltava na ponta dos pés e grudou o ouvido na porta.

- Quem está aí? - perguntou. A portinhola da correspondência se abriu. Uma voz sem corpo vinda de baixo respondeu:

- Sou eu, Kit, Steve. Kit sentiu um alívio vertiginoso, destrancou rapidamente a fechadura e abriu a porta.

- Não sou paranoico, juro - disse. Ao ver o rosto de Steve, deu um passo para trás. Idiota, xingou-se em silêncio. Steve não estaria ali no meio do dia se a notícia
não fosse da pior espécie. - Aconteceu alguma coisa com a Fiona? - balbuciou, a boca subitamente seca, os olhos esbugalhados.

Steve pousou uma das mãos em seu braço e o puxou com gentileza para dentro de casa. Fechou a porta atrás de si com determinação.

- Até onde eu sei, Fi está bem. Vamos lá, vamos para a cozinha. Preciso conversar com você.

Anestesiado de tamanha ansiedade, Kit seguiu na frente, quase tropeçando quando o carpete deu lugar ao piso de lajotas.

- Eu estava fazendo um café - comentou, sabendo que era irrelevante, mas querendo prolongar a ignorância o máximo possível.

- Café está ótimo - respondeu Steve. Sentou-se à mesa e esperou pacientemente enquanto Kit terminava o ritual, preparando a espuma do leite e passando o café.
Com cuidado, Kit colocou uma xícara diante de Steve e se sentou com outra.

- É sobre a Georgia. - Foi uma declaração, e não uma pergunta. Steve fez que sim. - Uma de minhas colegas encontrou os restos dela hoje de madrugada. - E esses
restos foram encontrados onde Fiona disse que seriam? No Smithfield?

- Fiona estava certa em todos os aspectos, com exceção de um. - Steve pegou um charuto e brincou com o invólucro de celofane. - Não foi nada bonito, Kit. Quem
quer que a tenha matado, deixou a cabeça. Assim não teríamos dúvidas quando a encontrássemos.

Kit inspirou fundo, trêmulo. - Jesus! - Ele soltou o ar devagar. Cobriu o rosto com as mãos; seus ombros tremiam. Steve sentiu-se impotente. Conhecia Kit há anos,
mas a amizade deles nunca tivera de lidar com o pesar. Não fazia ideia de como devia agir. Quando um policial chorava, em geral não queria que seus colegas interferissem,
nem mesmo as mulheres. Só queriam acabar logo com aquilo. Steve levantou e foi até o armário de bebidas. Encontrou o conhaque e despejou uns bons dois dedos num
copo. Colocou-o na frente de Kit, pousou uma das mãos sobre o ombro do amigo e disse:

- Beba isso, vai ajudar. Quando Kit ergueu a cabeça, os olhos estavam vermelhos e inchados, as bochechas molhadas. Ele empurrou o conhaque para o lado e pegou
o café. Envolveu a xícara com as duas mãos para sugar todo o calor que pudesse.

- Eu esperava que Fiona estivesse errada - disse ele. - Ficava me dizendo que era o tipo de coisa doentia que eu imaginaria, não o tipo que realmente acontece,
entende? Foi o meu jeito de lidar com isso. Não podia me permitir acreditar que tem alguém aí fora matando gente.

Steve suspirou: - Quando alguém vê as coisas que eu já vi, Kit, sabe que a vida real supera de longe a ficção. Sinto muito pela Georgia, de verdade. Sei que ela
era sua amiga.

Kit sacudiu a cabeça, como que negando o fato. - Ela sempre foi tão cheia de vida. Eu diria que Georgia era indestrutível. Por baixo de toda a futilidade, ela era
tão esperta, tão forte. Eu sei que as pessoas achavam que nós formávamos um casal estranho, mas ela era a amiga mais íntima que eu tinha no meio. Georgia era brilhante.
Ela me fazia rir. E estava sempre ali. Quando a escrita ia mal, ela trazia uma garrafa de alguma coisa e a gente ficava reclamando da vida miserável que tínhamos,
mesmo sabendo que éramos dois vagabundos sortudos. - Ele bebeu todo o café e esfregou os olhos ferozmente com as costas das mãos. - Merda, que vida filha da puta!

-A declaração formal só será feita hoje à tarde - informou Steve, lançando mão do que sabia. - Mas eu não queria que você ligasse o rádio e descobrisse dessa forma.

- Obrigado. Como está o Anthony, você sabe? Steve fez que não. - O caso não é da Polícia Metropolitana. É da City, portanto não tenho informações diretas. Mas
sei que ele deve estar fazendo a identificação formal agora.

- Coitado. - Kit pegou o conhaque e tomou um longo gole. - Se eu escrever um bilhete, você coloca no correio para mim? É só que eu prometi a Fiona que não sairia
sozinho. Achei que ela estava sendo superprotetora, mas agora... - Ele se levantou. - Me dá só um minuto.

- Leve o tempo que quiser - respondeu Steve, desembrulhando o charuto e acendendo. Enquanto esperava Kit voltar, não conseguiu evitar que a mente se afastasse da
dor e da confusão da morte de Georgia e se concentrasse em Terry. Nem mesmo a horripilante notícia que Sarah lhe dera tinha conseguido estragar o brilho da noite
anterior, ou daquela manhã. Eles iam se encontrar de novo mais tarde. A cautela habitual de Steve parecia tê-lo abandonado, juntamente com a prudência que permeara
sua vida interior por tanto tempo. Não queria fazer joguinho nenhum, bancar o difícil. Queria estar com ela, e como Terry lhe assegurara que o sentimento era mútuo,
parecia loucura não aproveitar cada momento disponível. Parte dele queria dividir com Kit o que estava acontecendo em sua vida pessoal. Mas não era o momento.

Quando Kit voltou para a cozinha, segurava um envelope. - Eu não tinha um cartão de condolências apropriado, tive de escrever num cartão-postal mesmo. Não acho
que Anthony vá se importar. Só queria que ele soubesse que estou pensando nele. Diga a ele que estou aqui para o que precisar. - Ele entregou o cartão para Steve.
- Já colei o selo. Se você puder metê-lo na caixa do correio que fica no final da rua, ele deverá recebê-lo amanhã.

- Você vai ficar bem? - perguntou Steve, levantando-se. Kit inspirou fundo. - Vou. Sei que você precisa ir, o trabalho está se acumulando à sua espera.

De forma impulsiva, Steve deu um passo à frente e abraçou o amigo. Kit devolveu o abraço, apertando Steve com força. Não houve constrangimento quando se soltaram
e se afastaram.

- Obrigado por vir me contar, Steve. Você estava certo, eu teria ficado louco se tivesse escutado isso no jornal. Agora que eu sei, posso tirar o fio do telefone.
As últimas pessoas com as quais quero falar no momento são os jornalistas.

- Você conta para a Fi? - perguntou Steve. - Ou quer que eu conte? - Vou mandar um e-mail para ela agora. Não quero ligar quando ela está trabalhando, você sabe
como é. - Kit acompanhou Steve até a porta da frente. Ao contrário do habitual, não esperou que Steve sumisse de vista para fechar a porta. Em vez disso, fechou-a
imediatamente, trancando com

chave e papaiz. Em seguida, voltou devagar até sua escrivaninha e conectou seu e-mail:

De: Kit Martin <KMWriter@trashnet.com> Para: Fiona Cameron <fcameron@psych.ulon.ac.ulc>

Assunto: Pior impossível

Você estava certa. Georgia está morta. Palavras frias e duras para um fato frio e duro. Steve acabou de sair daqui. Ele veio me contar pessoalmente, não queria
que eu descobrisse através do telefonema de um jornalista ou do rádio.

Eles a encontraram no Smithfield, como você disse. Li And Ever Shall Be So, portanto imagino bem demais como foi. Segundo Steve, a única diferença foi que o assassino
deixou a cabeça junto com o resto do corpo.

Gostaria que você estivesse aqui. Ou que eu estivesse aí. Estou me sentindo desconectado da minha própria vida. Muito desorientado. Por favor, não se preocupe
comigo. Estou levando a sério tudo o que você falou. Vou ficar aqui trancado até você voltar, e então pensaremos no melhor a fazer até alguém colocar esse louco
atrás das grades.

Tem de haver uma pista no meio disso tudo, em algum lugar. Suponho que eles vão juntar as investigações agora, ainda que extraoficialmente. Faça o que for possível
para entrar na equipe. Não que eu queira te ver trabalhando em vez de ficar comigo. Mas quero ver esse cara na cadeia, não apenas por causa da Georgia, mas para
eu poder ter paz de novo. E, se alguém pode montar um caso a partir da conexão entre esses crimes, esse alguém é você."

Amo você,

K.

Kit enviou a mensagem e fechou o e-mail. Abriu a bandeja do aparelho de CD e tirou o disco. Foi até a sala de estar no segundo andar onde Fiona guardava seus CDs
de música clássica e passou em revista a prateleira.

Pegando o réquiem de Verdi, desceu novamente e o enfiou no aparelho. Apertou o play e se sentou em sua cadeira. Enquanto a música preenchia o ambiente, recostou-se,
fechou os olhos e deixou a mente invocar as imagens da amiga que acabara de perder.

41.

A sala de conferências estava lotada, clara, por causa das luzes das câmeras de TV, e abafada, pelo calor de todos aqueles corpos entusiasmados. Os jornalistas
especulavam entre si sobre a natureza da declaração. Os mais cínicos, já tendo passado por aquele tipo de coisa, tentavam fazer seus palpites soar como certezas.
Tinha de ser Georgia Lester, e ela estava morta. Essa era a ideia básica sobre a situação. Tinha de ser algo com relação a Georgia Lester, não havia nenhuma outra
coisa tão importante acontecendo no momento. Se houvesse, algum contato já teria soprado algo. E ela tinha de estar morta, caso contrário a coletiva teria sido
organizada pelos editores, é claro.

Todos alegavam ter uma fonte interna. Uma dessas fontes tinha dito que ocorrera uma grande operação na noite anterior em torno do Smithfield Market, e essa operação
tinha algo a ver com a escritora desaparecida. Os mais esclarecidos haviam presunçosamente somado dois e dois e chegado a essa conclusão; esperavam apenas que
ela fosse confirmada dali a pouco. Se estivessem certos, a primeira página estaria garantida. E era isso o que de fato importava.

O resto agora era apenas uma questão de detalhes, diziam os mais confiantes. Colocar os pingos nos "is" e os traços nos "ts". E mandar os repórteres de segunda linha,
os que não tinham um título de correspondente

criminal ou especialista em assuntos internos, procurar o marido para a foto comovente e a declaração chorosa.

Mesmo assim, um burburinho se instaurou quando os policiais entraram. era óbvio que a coisa era séria. O próprio comissário estava lá, acompanhado da inspetora-chefe
Sarah Duvall e mais um rosto que nenhum dos repórteres reconheceu. Os oficiais se sentaram atrás de uma bancada com microfones, constrangidos e inquietos. O coordenador
de mídia esperava como um pai ansioso a encenação de Natal da escola. Quando todos se mostraram satisfeitos com a qualidade do som, o comissário pigarreou e disse:

- Obrigado por virem, senhoras e senhores. Vou dar uma declaração breve, e depois responderei as perguntas. - Ele apresentou os colegas. O estranho era um detetive
superintendente de Dorset. O comissário baixou os olhos para um papel em sua mão.

Ele pigarreou novamente. - Como resultado de uma operação realizada ontem à noite pelos oficiais da City of London Police, nas redondezas do Smithfield Market,
foram descobertos restos humanos. Esses restos foram identificados como pertencentes à escritora de suspense desaparecida, a sra. Georgia Lester. Em vista disso,
demos início a uma investigação de assassinato. A inspetora-chefe Duvall ficará à frente da investigação. Estamos trabalhando em parceria com nossos colegas de
Dorset, de onde aparentemente a sra. Lester desapareceu na semana passada.

"Esse é um crime particularmente assustador, e pedimos a qualquer um que a tenha visto depois que ela deixou sua cabana em Dorset, na última quarta-feira, que
se apresente. O carro da sra. Lester foi encontrado abandonado no domingo, mas não temos ideia de há quanto tempo ele estava lá. Gostaríamos de reduzir o máximo
possível esse espaço de tempo. Pedimos também a qualquer testemunha que tenha visto algo extraordinário em torno do Smithfield Market na última semana que fale
conosco."

Ele ergueu os olhos e contraiu os lábios. - Vocês podem fazer as perguntas agora. Seguiu-se um burburinho de vozes e mãos levantadas. O coordenador de mídia apontou
para uma repórter.

- Corinne Thomas, da rádio BBC. O que exatamente o senhor quer dizer com restos humanos?

O comissário fez sinal para Duvall responder a pergunta. - A sra. Lester foi desmembrada. A forma como isso foi feito sugere alguém com conhecimentos rudimentares
de anatomia ou corte de carne, como um açougueiro.

Segunda pergunta: - Jack O'Connor, do The Times. Um dos romances da sra. Lester, adaptado para o cinema, apresenta um assassino que sequestra suas vítimas e depois
as corta em pedaços. Se bem me lembro, no livro, os corpos foram escondidos num açougue. O senhor acredita que o assassino copiou o livro?

- Sem comentários - respondeu o comissário com firmeza. O'Connor não ia desistir. - O senhor acredita que haja uma ligação entre esse crime e o recente assassinato
de Drew Shand, em Edimburgo, também morto de maneira idêntica a uma das vítimas em seu livro? - A agitação dos colegas quase abafou a voz de O'Connor, porém, pela
expressão séria dos policiais, não restou dúvidas de que eles tinham escutado a pergunta.

- Sem comentários - repetiu o comissário. A terceira repórter colocou-se de pé num salto. - Sharon Collier, do Mirror. O senhor está negando que exista um serial
killer matando escritores de suspense?

- Não estou negando nem confirmando nada, srta. Colher. No ponto em que estamos, não tenho provas que me permitam fornecer quaisquer comentários a essas perguntas.
- O comissário estava começando a ficar nervoso. O coordenador de mídia rapidamente encontrou um de seus jornalistas mais comportados e o instigou a entrar em ação.

- Patrick Stacey, do Express. Onde exatamente o corpo foi encontrado? Duvall tomou a iniciativa: - Descobrimos os restos da sra. Lester num freezer em desuso,
no depósito do Smithfield Market. Segundo o proprietário, o freezer estava lá havia cerca de cinco semanas, à espera de ser transferido para outro depósito de
carnes. Então, pedimos a qualquer um que tenha visto alguém utilizar o freezer nas últimas cinco semanas que fale conosco.

Começou o bombardeio de perguntas: - Vocês têm algum suspeito? - Que pistas estão seguindo?

- O marido dela é suspeito? - Existe um serial killer à solta? - Vocês têm alguma prisão em vista? - Vocês contrataram os serviços de um especialista em perfis?
De repente, o comissário se levantou. - Isso é tudo, senhoras e senhores. Nós os manteremos informados dos progressos da investigação.

- Só um minuto! - Um grito soou no meio da sala. Um homem barbudo num paletó de tweed, camisa xadrez e gravata vermelha abria caminho pelas fileiras de jornalistas.

O comissário olhou para o coordenador de mídia, que fez sinal com as mãos para que eles saíssem. O oficial de Dorset começou a se dirigir para uma das saídas laterais,
mas Duvall permaneceu sentada, observando o homem que avançava com determinação, aparentemente indiferente às pessoas que empurrava para fora do caminho.

- Por que vocês não dizem a verdade? - gritou ele, o rosto vermelho. - Por que negar o que todo mundo já sabe? Que há um serial killer à solta matando os escritores
de suspense que roubaram suas ideias.

A essa altura, vários policiais uniformizados tentavam alcançar a origem do distúrbio. A sala de conferências, porém, estava um caos, com os jornalistas tentando
ver e escutar o que estava acontecendo. Ainda assim, era possível escutar o homem no paletó de tweed acima do burburinho das vozes.

- Como eu sei? - berrou ele a plenos pulmões. - Sei, porque fui eu. Eu os matei. Drew Shand. Jane Elias. Georgia Lester. Eles roubaram minhas histórias e eu os
fiz pagar por isso.

Duvall levantou, passou pelo chefe e mergulhou na confusão. Sem se preocupar com os obstáculos, abriu caminho pela multidão excitada, indo em direção ao homem.
Ela não parou para pedir desculpas ao fotógrafo pela cotovelada que lhe deu nas costelas, nem pelo golpe no queixo que um repórter levou quando arremessou o braço
para o alto. A essa altura, o homem no paletó de tweed já conseguira se livrar o suficiente da multidão que o cercava e jogava folhas de papel no ar. Ele arremessou
os folhetos bem alto, acima da cabeça, e eles flutuaram no ar como morcegos albinos indiferentes à luz repentina. Alguns jornalistas começaram a empurrar uns aos

outros, tentando pegar um folheto para si, enquanto outros bombardeavam o homem de perguntas, o qual ostentava o esgar rígido de uma gárgula.

Dois dos policiais uniformizados o agarraram no instante em que Duvall conseguiu vencer a última fileira de jornalistas. Ofegante, com a jaqueta rasgada na altura
do ombro, ela encarou o estranho.

- Tirem-no daqui - ordenou. - Levem-no para a sala de detenção. Agora!

Os jornalistas uivaram em protesto quando os policiais levaram o homem embora. Duvall notou que ele não ofereceu resistência. Ela ficou ali, parada no meio da
multidão, observando o homem sair escoltado pela porta que os oficiais haviam usado para entrar. Os gritos do comissário ao microfone chegaram gradualmente a seus
ouvidos.

- Senhoras e senhores, a coletiva terminou. Por favor, saiam do prédio. - Ele podia muito bem estar cantando "Yellow Submarine", pensou Duvall. Pelo menos isso
chamaria a atenção do povo.

Ignorando as ordens para que reagisse, Duvall agarrou um dos folhetos amassados e abriu caminho de volta pela multidão de jornalistas raivosos e frustrados sem
dizer uma palavra. Ao se aproximar da plataforma, fez sinal com a mão para que todos fossem embora. O superintendente de Dorset dava a impressão de estar ansioso
para se ver fora dali, enquanto o comissário parecia furioso. Enquanto eles próprios saíam, Duvall aproveitou a chance para dar uma olhada no folheto.

O autor, um certo Charles Redford, alegava ser o assassino de Drew Shand, Jane Elias e Georgia Lester. Em um estilo que lembrava, de maneira perturbadora, o das
ameaças de morte que Duvall examinara, Redford dizia que eles estavam sendo punidos por roubarem suas ideias, por impedi-lo de se tornar um autor publicado. Ele
lhes enviara todos os manuscritos, pedindo que o ajudassem a encontrar um editor. Não apenas eles não o haviam ajudado, como também esfregaram sal em suas feridas
ao roubar suas ideias e usá-las em seus próprios livros. A conspiração descrita no folheto era maluca o suficiente para chamar a atenção dos mais paranoicos, mas,
como motivo para um assassinato em série, parecia um pouco fraco, pensou Duvall. Ela nunca deixava de se surpreender com o quão pouco era preciso para que algumas
pessoas cruzassem a linha, passando de malucos normais

ou "beleza" para maníacos homicidas. Sem dúvida, Fiona Cameron teria um torno técnico para isso.

Já na antessala, longe da confusão, o comissário balançou a cabeça. - Que diabos foi aquilo? - exigiu saber. - Como aquele lunático entrou aqui?

Duvall tirou a jaqueta e inspecionou o estrago com os lábios contraídos. O comissário que resolvesse isso com os imbecis da mídia; ela não ia entrar nessa guerra
em particular.

- Ele devia ter algum tipo de credencial de imprensa - gaguejou o coordenador de mídia, defendendo-se. - Caso contrário, não teria conseguido entrar.

O comissário balançou uma das mãos como se espantasse uma vespa irritante.

- Não tem importância. Quem é o sujeito? Duvall ergueu os olhos da jaqueta rasgada e inspirou fundo. - Segundo o folheto, que agora está nas mãos da imprensa mundial,
ele se chama Charles Redford e é um aspirante a escritor de suspense que acredita que as vítimas roubaram suas ideias.

- Isso é verdade? - O comissário parecia estupefato. - É o que pretendo descobrir agora mesmo. Mandei que os policiais o levassem para a sala de detenção. Vou
prendê-lo sob suspeita de assassinato e começarei a investigar a partir daí.

- Precisamos prendê-lo agora? Ele pode ser apenas um maluco atrás de atenção, o que vai nos fazer perder tempo.

Fazia muito tempo, pensou Duvall, que o comissário não realizava um trabalho policial sem envolver a política.

- Quero seguir o livro à risca, senhor. Se ele for o assassino, não quero arriscar perder o caso no tribunal por causa de alguma falha no procedimento. Quero que
ele seja preso, quero que arrume um representante legal e quero que tudo seja devidamente registrado na ficha dele.

Para sua surpresa, o superintendente de Dorset interveio a seu favor: - A inspetora-chefe Duvall tem razão - disse, o leve sotaque interiorano adicionando uma autoridade
inesperada à voz suave de barítono. - Se eu estivesse no lugar dela, ia querer a mesma coisa. Além disso, gostaria muito de poder estar presente no interrogatório.

- Não posso concordar com isso - respondeu o comissário de modo reticente. - É uma questão de jurisdição, entende?

- Temos uma sala de interrogatório com um anexo para observação - comentou Duvall. - Certamente não seria um problema se nosso colega ficasse nesse anexo, certo?
Acredito que isso poderia ser bastante útil, senhor. Outro par de olhos, outro par de ouvidos. - Ela não achava nem por um momento que o superintendente provinciano
pudesse perceber algo que ela própria não veria de cara, mas sabia que ainda precisaria da cooperação de Dorset para montar o caso. Não custava nada deixar o oficial
feliz.

- Tudo bem. - O comissário concordou com um aceno de cabeça e a puxou para o lado. - Mas isso é tudo, Duvall - acrescentou, num tom mais baixo. - O caso é seu.

Talvez não se ele a tiver matado em Dorset, pensou Duvall. No entanto, se houvesse alguma chance de construir um nome ali, estava decidida a fazer de tudo para
que esse nome fosse o dela. Ele havia confessado em seu território. E, se fosse humanamente possível, o manteria ali.

- Vou para a sala de detenção - declarou Duvall. Os dois homens a observaram jogar a jaqueta arruinada por cima do ombro e sair andando corredor abaixo de maneira
confiante.

- Que Deus o ajude se ele a estiver fazendo perder tempo - falou o oficial de Dorset.

- Ela vai desperdiçar energia. - O que o senhor quer dizer com isso? - Como a gente normalmente descarta as confissões falsas? Nós pegamos as pessoas com detalhes
que não são do conhecimento do público. Só que esse assassino está seguindo um projeto previamente publicado. Ele vai saber todas as respostas, quer os tenha matado
ou não.

O superintendente de Dorset inspirou com força. - Ah, merda! - Não sei ao certo se Duvall já pensou nisso - acrescentou o comissário, contraindo os lábios num
sorriso de superioridade.

Fiona fechou os olhos, bloqueando o e-mail na tela à sua frente. A confirmação do que temia era a última coisa que desejava. Por fim, forçou-se a

reler o que Kit escrevera. Não era o momento de ser indulgente consigo mesma. Ele precisava de seu apoio, e não que ela se acovardasse num canto como um coelhinho
assustado. Recobrando-se, Fiona apertou o botão de responder.

De: Fiona Cameron <fcameron@psych.ulon.ac.uk>

Para: Kit Martin <KMWriter@trashnet.com>

Assunto: Re: Pior impossível

Meu querido Kit, Sinto muito, muito mesmo pelo que aconteceu com a Georgia. Você deve estar sofrendo, meu amor, e eu gostaria de poder fazer alguma coisa para
abrandar a sua dor. Tenho medo de que não possa ser muito útil nesse caso, mesmo que a inspetora Duvall queira a minha ajuda. Qualquer um com metade de um cérebro
pode ver que esses casos estão ligados, e você sabe que eu não lido com aquela lengalenga piegas de "ele fazia xixi na cama quando tinha nove anos e torturava
o gato do vizinho". Assim, o que eu poderia oferecer? Não muito, exceto meu bom-senso. Meu amor, é importante que você tome bastante cuidado. Chegarei em casa
no horário de sempre, ou mais cedo, se eu conseguir. Amo você. F.

Charles Cavendish Redford mostrou-se inflexível ao afirmar que não queria representação legal. Alegou que conhecia mais sobre as leis criminais do que a maioria
dos advogados de defesa do Estado, e era perfeitamente capaz de suportar um interrogatório policial sem alguém segurando sua mão.

Essa decisão agradou Duvall. Sabia que até mesmo os advogados de defesa recém-formados aconselhariam Redford a não dizer nada. Contudo, se ele desejava desgraçar-se
sozinho, por ela tudo bem. A ausência de um advogado significaria apenas um número menor de interrupções nas revelações que Redford queria fazer. E, se uma coisa
ficara clara, era que ele estava ansioso para falar. Ela mesma precisara fazê-lo calar a boca várias vezes enquanto o sargento da custódia preenchia a ficha; a
última coisa que desejava agora era que ele mudasse de ideia e se fechasse quando eles fossem para a sala de interrogatório e tudo estivesse sendo registrado oficialmente.

Assim que a prisão de Redford foi formalmente declarada, Duvall enviou um time para fazer as buscas na casa dele. Outra equipe recebeu a incumbência de descobrir
tudo o que fosse humanamente possível sobre a vida de Charles Redford, pretenso aspirante a escritor. Em seguida, Duvall escapou para seu escritório por dez minutos.
Jogou o casaco arruinado no fundo do armário e o substituiu por um casaquinho leve de lã preto que ficava ali para qualquer eventualidade. Borrifou uma nuvem do
seu perfume

favorito no ar e se colocou debaixo dela, sentindo o frescor atingir a pele. Sentou-se, então, com um caderninho de anotações e um lápis, e pôs-se a anotar os
pontos principais que desejava abordar.

Por fim, cerca de uma hora depois da comoção na sala de conferências, Duvall se viu sentada em frente a seu serial killer confesso, com uma mesa recoberta de
fórmica entre eles. A sala era claustrofóbica de tão pequena, e o espelho grande numa das paredes, em vez de aumentar, parecia diminuir ainda mais o espaço. O
perfume Versace Red Jeans que Duvall usava pairava acima do cheiro normal de suor estagnado, fumaça e medo. Redford, porém, não era nenhum Hannibal Lecter e sequer
enrugou o nariz.

- Até que enfim - disse ele, impaciente. - Bom, vamos lá, comece a gravar logo.

O auxiliar de Duvall esticou o braço e ligou os dois gravadores. Ditou a data e a hora, e os detalhes referentes às pessoas presentes. O superintendente de Dorset,
escondido atrás do espelho com seu próprio equipamento de som, não figurou na lista.

Duvall analisou Redford. Altura mediana, compleição mediana. O cabelo e a barba eram cuidadosamente aparados, e sua pele ostentava a palidez de alguém que passava
pouco tempo ao ar livre. Os olhos eram de um forte azul-esverdeado, observadores e encovados. O paletó de tweed devia ter sido caro quando novo, mas isso já fazia
muito tempo. O caimento era bom o suficiente para parecer ter sido feito especialmente para ele, porém isso não significava nada hoje em dia, com a expansão dos
brechós destinados a levantar fundos para caridade, que surgiam em cada esquina como cogumelos. O colarinho da camisa xadrez estava ligeiramente puído na parte
interna. Seus dedos longos se entrelaçavam de maneira ininterrupta e aparentemente sem razão. Ele transmitia uma impressão de intensidade por trás da máscara de
humildade refinada.

- A senhora deve ter mandado uma equipe fazer as buscas na minha casa - declarou ele, esboçando um sorriso afetado no canto da boca. - Vai ser perda de tempo.
Eles não vão encontrar nada além de jornais velhos. O tipo de coisa que alguém teria se fosse um pouco relapso quanto a colocar o lixo para fora.

- Vamos ver - respondeu Duvall.

- A senhora não vai ver nada, inspetora-chefe Duvall - disse, quase mastigando as palavras de seu título. - Qual o seu primeiro nome? Aposto que é um nome bonito
e bem feminino, que a senhora detesta. Bom, inspetora, sou seu pior pesadelo.

Duvall permitiu-se um sorriso indulgente. - Acredito que não, sr. Redford. - Sou sim. A senhora vai ver, cometi esses assassinatos. E estou admitindo de livre
e espontânea vontade. Vou lhe contar como os matei e o que eu fiz. Mas só até certo ponto. Não vou lhe dar nenhuma prova concreta, nem vou dizer onde procurar
as testemunhas. A senhora faz ideia de quantas hospedarias há em Edimburgo? Isso vai manter seus colegas da Lothian and Borders*9 ocupados por um bom tempo. Tudo
o que a senhora vai ter é a minha confissão, inspetora. - Ele sorriu, deixando à mostra os incisivos pequenos como os dentes de leite de uma criança. - A senhora
vai se divertir muito com a promotoria. Nenhuma prova, com exceção da minha confissão. Ai, meu Deus!

Duvall pareceu entediada. - Tudo bem, podemos continuar com a confissão então? Redford deu a impressão de ficar momentaneamente magoado. Em seguida, animou-se
de novo.

- Vejo aonde quer chegar - falou, triunfante. - A senhora está tentando me irritar, fazendo com que eu me sinta descartado. Bom, deixe-me lhe dizer uma coisa, já
li e vi o suficiente para conhecer seus truques, inspetora Duvall. A senhora não vai conseguir me enrolar. Bom, eu me considero um contador de histórias, portanto
vamos começar pelo início.

- Não - interrompeu-o Duvall de maneira determinada. - Vamos tentar uma abordagem mais radical. Vamos fingir que somos Martin Amis ou Margaret Atwood. Vamos começar
pelo fim, com Georgia Lester.

- Meu Deus! - soltou Redford uma longa exclamação de admiração. - Uma policial culta. Vou ter que prestar atenção à estrutura da minha história. Mas a senhora não
quer saber por que eu decidi atacar escritores de suspense?

*9. Força policial escocesa que atua em Edimburgo e nas áreas adjacentes, East Lothian, Midlothian, Scottish Borders e West Lothian. (N. T.)

Duvall tirou o folheto de sua bolsa preta simples.

- Estou mostrando ao sr. Redford um dos folhetos que ele distribuiu na coletiva de imprensa hoje à tarde - declarou, a fim de que ficasse gravado. - Suponho que
seus motivos estejam descritos aqui, não? O senhor lhes enviou seus romances, esperando que eles o ajudassem. No entanto, eles não apenas o ignoraram, como, segundo
o senhor, roubaram suas ideias e plagiaram seu estilo de escrever. O resumo está bom o suficiente? - O tom de voz dela era cortante. Ele estava tão confiante que
o melhor que ela podia esperar era deixá-lo abalado, e tentaria fazer isso logo. Podia sentir a adrenalina agitando seu corpo, a tensão retesando-a como a corda
de um violino. Era tão raro se sentir desafiada num interrogatório, e Duvall apreciava um bom desafio.

- Está sim - concordou ele com uma ponta de irritação. - Mas achei que a senhora quisesse saber mais a respeito do motivo que me levou a isso. A senhora devia
estar interessada.

Ela deu de ombros. - O motivo é valorizado demais nos romances, sr. Redford. Lembra daquele médico em Manchester? Harold Shipman? Ele foi condenado por matar
15 pacientes idosos com overdose de morfina. Ninguém sabe por que ele fez isso, o que não impediu o júri de colocá-lo atrás das grades. Prefiro deixar o motivo
para os advogados. Estou interessada na dinâmica do que o senhor fez e como fez. E vamos nos ater a Georgia Lester, certo? Quando chegar a hora, o senhor terá
várias oportunidades de conversar sobre seus outros crimes com os oficiais das outras jurisdições. Isso, é claro, se o senhor conseguir me convencer de que teve
algo a ver com o assassinato de Georgia Lester.

Redford recostou-se na cadeira e tamborilou os dedos na mesa como um professor arrogante. - Eu sabia que ela tinha uma cabana em Dorset - começou, de modo expansivo.

- Sabia como? - revidou Duvall. Estava determinada a não deixá-lo relaxar no relato da narrativa.

- A revista Helio! publicou uma matéria sobre ela no ano passado. Com fotos dentro e fora da cabana. O artigo dizia que ela ficava a uns 11 quilômetros de Lyme
Regis. Não foi difícil encontrar. Então, fui até a

cabana e armei meu plano. Me certifiquei de que sabia qual seria o cronograma dela.

- E como o senhor descobriu isso? - exigiu Duvall saber. - Pelo site dela. Todos os compromissos públicos da Georgia estão no site. Eu sabia que ela ia para Dorset
na maioria dos fins de semana, e foi fácil descobrir quando ela pretendia voltar para Londres pela lista de eventos publicada no site. A senhora precisa continuar
interrompendo? - perguntou ele, irritado.

- Achei que gostaria das minhas perguntas - respondeu Duvall com calma. - O senhor não quer que eu acredite no que está dizendo? Devia se sentir grato por eu estar
tentando confirmar sua história com todos esses detalhes.

Os olhos dele soltaram um lampejo de raiva. - A senhora se acha esperta, não é mesmo, Duvall? Mas não tanto quanto eu. Eu os matei, e a senhora terá de me indiciar
pelo assassinato de Georgia Lester.

- Ou isso ou por interferir na justiça, sr. Redford. De qualquer modo, o senhor seguiu a Georgia. Que crimezinho patético! Como a capturou?

Uma hora depois, Duvall deixou a sala de interrogatório. Sentia-se exausta e frustrada. Apesar de bombardeá-lo com perguntas, não conseguira extrair nada dele
que não tivesse sido publicado pela mídia ou que ele não pudesse ter descoberto através de uma leitura cuidadosa do texto de Georgia. Entrou na sala de observação
onde o superintendente de Dorset estava sentado com um caderninho sobre o joelho.

- O que você acha? - perguntou. Ele ergueu os olhos e fez uma careta. - Acho que você precisa de algo mais concreto, algo que não seja do domínio público. Ele
não lhe deu nada que uma boa argumentação não destrua aos olhos do júri. Ele quer seu dia no tribunal, mas não quer ser condenado, pelo menos é como eu vejo.
Além disso, ele se julga mais esperto do que você.

Duvall se encostou na parede e cruzou os braços.

- Talvez eu consiga pegá-lo justamente por isso. Ao ler o folheto, fiquei espantada ao notar como o estilo é semelhante ao das ameaças de morte enviadas para alguns
dos escritores policiais. Com o testemunho do especialista certo, acho que posso ligá-lo às cartas, mesmo que não encontremos os originais no computador dele. E,
se conseguirmos ligar as cartas aos assassinatos, poderemos encostá-lo na parede. Contudo, isso não vai ser nada fácil.

- Você acha que ele é o culpado? Duvall se afastou da parede e cruzou a sala até o espelho unilateral. Redford olhava para cima como se pudesse vê-la, um sorriso
confiante estampado no rosto.

- Estava pensando nisso, não tenho certeza. O superintendente bateu com a caneta sobre o caderninho. - Ao ler o folheto, tive a impressão de que ele faria qualquer
coisa para ter seus livros publicados.

Duvall suspirou. Já pensara nisso. - Você acha que ele seria capaz de matar? - Acho que ele seria capaz de confessar ter matado. - Ele fez que não. - Vou dizer
uma coisa, inspetora. Não vou brigar com você por causa desse sujeito.

Fiona encontrou Kit deitado no sofá da sala de estar do segundo andar. No chão ao lado dele, uma garrafa com cerca de dois dedos de vinho tinto. O cálice equilibrado
sobre seu peito continha mais um dedo. A televisão passava uma novela australiana. Os olhos dele estavam fixos na tela, mas Fiona sabia que ele não estava assistindo
ao programa.

- Vou pegar outra garrafa - disse. - Boa ideia - concordou ele. Não havia nenhum traço de álcool em sua voz.

Ao voltar, Fiona se sentou de pernas cruzadas no chão ao lado dele e despejou o resto da garrafa aberta em seu próprio cálice.

- Não sei nem como dizer o quanto sinto pela morte da Georgia. - Eu também - respondeu Kit, mudando de posição de modo a ficar meio sentado, recostado contra
o braço do sofá. - Estou assustado. Tem

alguém aí fora matando pessoas como eu, e é difícil não pensar que eu talvez seja o próximo da lista.

- Eu sei. - Fiona bebeu seu vinho de uma só vez e abriu a segunda garrafa. E não há nada que eu possa dizer ou fazer para mudar isso. Meu Deus, odeio essa sensação.
- Esticou o braço e pegou a mão dele.

O silêncio entre eles foi preenchido pela conversa oca do romance juvenil da novela. Fiona desejava mais do que qualquer outra coisa na vida ter uma varinha mágica
para remover a sensação de perigo que se agarrava a eles como uma teia de aranha grudenta, impedindo-os de sentir qualquer coisa que não isso.

- Foi gentil da parte do Steve vir aqui te contar. - Ela quebrou o silêncio. - Especialmente depois do que aconteceu entre a gente.

- Ele te ama demais para ser mesquinho. Fiona olhou de relance para ele, surpresa. Sempre achara que o peso do amor de Steve era um segredo particular. Eles nunca
haviam falado disso antes, e Fiona supunha que Kit aceitara sua versão do relacionamento entre ela e Steve; um forte desafio à ideia de que a amizade entre um
homem e uma mulher heterossexuais era inerentemente impossível.

Kit balançou a cabeça, esboçando um sorriso fatigado. - Você acha que eu nunca percebi? - Pensei que não. Como você nunca fez objeção a ele, achei que tivesse
simplesmente aceitado nossa amizade sem contestar - admitiu ela.

Kit pegou a garrafa e encheu o próprio cálice. - Por que eu devia me incomodar? Steve nunca foi uma ameaça. Sempre soube que você não o amava. Bom, você o ama,
isso é óbvio, mas como amigo. Além disso, ele nunca tentou me dizer como tratá-la. Então, por que isso deveria ser um problema?

Fiona deitou a cabeça na coxa dele. - Você está sempre me surpreendendo. - Que bom! Odiaria pensar que eu não tenho segredos para você. - Ele soltou a mão dela
e acariciou seu cabelo. - Você é uma excelente razão para eu querer continuar vivo. Não vou arriscar.

Ela agarrou a oportunidade que se apresentava. - Então a primeira coisa que a gente vai fazer amanhã de manhã é ligar para uma empresa de segurança e arrumar um
guarda-costas para você.

- Está falando sério? - O tom dele era um misto de incredulidade e Indignação.

- Nunca falei mais sério. Você não pode viver como um eremita, Kit. Sabe que isso vai deixá-lo louco em dois dias. Você vai se sentir frustrado e ficar mal-humorado,
não vai conseguir trabalhar e aí vai fazer alguma coisa que considere segura, como sair para uma caminhada pelo Heath. E vai se expor. - Quando ele fez menção
de reclamar, Fiona levantou a mão em sinal de que não adiantava discutir. - Não vou brigar com você, Kit. Sua segurança é a coisa mais importante no momento,
mas você tem de viver também.

- Muito justo. Mas um guarda-costas? Eu me sentiria um completo idiota.

- É melhor do que a alternativa. Antes que Kit pudesse replicar, os créditos da novela terminaram de passar na tela e a vinheta do noticiário das seis começou
a tocar. Fiona se virou para a televisão.

- Vamos ver o que eles vão falar sobre a Georgia - disse. O apresentador deu um sorriso melancólico, sua marca registrada, e abriu o noticiário:

- Boa-noite. Os restos da escritora de mistério Georgia Lester foram encontrados num freezer no Smithfield Market, em Londres. Pouco depois, num acontecimento
dramático, um homem confessou o assassinato no meio de uma coletiva de imprensa organizada pela polícia.

Fiona e Kit sequer prestaram atenção às manchetes seguintes. - Como é que é? - ofegou Kit. Eles não precisaram esperar muito. A notícia sobre Georgia foi o primeiro
item abordado.

- A City of London Police organizou uma coletiva de imprensa hoje à tarde para anunciar que as buscas realizadas no Smithfield Market resultaram na descoberta dos
restos de Georgia Lester. A descoberta ocorreu nas primeiras horas dessa madrugada, enquanto a polícia trabalhava noite adentro averiguando uma nova linha de
investigação. Dez dias atrás, a sra. Lester desapareceu em algum lugar entre sua cabana em Dorset e sua residência em Londres. Desde então, temia-se por sua segurança.

"No entanto, a revelação foi ofuscada pelo que aconteceu na própria coletiva de imprensa. Passamos agora para nossa repórter, Gabrielle Gershon."

Uma mulher de uns 30 e poucos anos, com uma expressão séria e óculos estilosos, olhou para a câmera.

- A polícia ofereceu poucas informações durante a coletiva de imprensa. Eles admitiram apenas que o corpo desmembrado de Georgia Lester foi encontrado num freezer
no Smithfield Market, porém se recusaram a comentar se há alguma ligação entre a morte da premiada escritora e os recentes assassinatos de seus colegas Drew Shand
e Jane Elias.

"No entanto, ao final da coletiva, um homem abriu caminho entre a multidão de repórteres, dizendo ser o responsável pelas três mortes. Ele distribuiu folhetos
nos quais alegava que os três autores assassinados tinham roubado seu trabalho e que os havia matado para se vingar do plágio.

"Por motivos legais, não poderemos mostrar as imagens desse evento dramático. Contudo, o homem foi levado sob custódia e, há dez minutos, a polícia admitiu t-lo
prendido sob suspeita de assassinato."

A voz do apresentador interrompeu: - A polícia parece ter ficado surpresa por essa extraordinária intervenção, Gabrielle? - perguntou ele.

- Sim, Don, eles ficaram completamente confusos. Até aquele momento, eles não tinham dado nenhuma indicação de que já tivessem qualquer outro suspeito em vista
pela morte de Georgia Lester.

- Isso é uma reviravolta formidável. Não me lembro de jamais ter acontecido nada semelhante - falou o apresentador Don quando a tela voltou a mostrar o estúdio.
- Obrigado, Gabrielle. Voltaremos a falar com você se surgir mais alguma informação. - Ele olhou sério para a câmera. - Ao final do programa, faremos uma retrospectiva
da vida e do trabalho de Georgia Lester. Vamos agora às outras notícias da noite.

Fiona pegou o controle remoto e tirou o som da televisão. - Inacreditável - falou, pensativa. - Ele confessou na frente de uma sala cheia de jornalistas?

- Eis um homem que não precisa de um agente literário.

- Me passa o telefone - pediu Fiona.

Kit esticou o braço e pegou o telefone sem fio.

- Vai ligar para quem? - Wood Street. Quero saber se isso é verdade ou se o sujeito é apenas o lunático do bairro.

- Você acha que eles vão dizer? Fiona olhou para ele como uma professora que repreende o aluno. - Você acha que não? Dez minutos depois, ela desligou. Sarah Duvall
não estava disponível, obviamente. Contudo, bastara ela explicar ao desconfiado sargento que atendera o telefone sua ligação com o caso para que ele lhe assegurasse
que sim, o pessoal da homicídios estava levando a confissão a sério. E, extraoficialmente, era provável que o sujeito fosse indiciado por alguma coisa na manhã
seguinte. Talvez não assassinato, ainda não. Mas algo sério.

Aquilo foi, pensou Fiona, igual ao momento em que você percebe que passou o efeito da anestesia do dentista. Ela sentiu a tensão abandonar seus ombros como um
líquido que se esvai. Seu ceticismo inicial cedera mediante a afirmação do sargento do Departamento de Investigação Criminal de que uma profissional tão esperta
quanto Sarah Duvall estava levando aquilo a sério. Se o confessor fosse um dos suspeitos habituais, aqueles que apareciam sempre que um crime importante atingia
as manchetes, a polícia saberia. Fiona fitou os olhos ansiosos de Kit e sorriu.

- Eles parecem achar que ele é um suspeito legítimo - disse, soltando o ar. Ela pulou rapidamente do chão para o sofá e o envolveu em seus braços. - Espero que
estejam certos - falou baixinho. - Ó céus, espero que isso tenha acabado.

43.

O ar do aposento recendia a uma forte mistura de ilangue-ilangue, sândalo e rosa. O crepitar de um par de velas quebrava o gelo das paredes brancas, transformando
o quarto de Steve de uma cela monástica em um lugar onde o romance era possível. O óleo de massagem e as velas eram uma contribuição de Terry para a atmosfera;
depois da primeira noite, quando tudo se resumira à necessidade, Terry decidira dar um toque mais sensual ao ninho de amor deles.

Eles estavam deitados em um estado de letargia, com os membros entrelaçados e um par de taças de champanhe ao alcance das mãos, as quais no momento se viam esquecidas,
substituídas pelos relatos de suas histórias pregressas. Enquanto escutava a narrativa de Terry sobre sua infância, Steve comprazia-se com a sensação de ter sido
arrancado da mediocridade de sua própria vida.

Quando o toque estridente do celular interrompeu as doces ironias de Terry, Steve sentiu como se estivesse sendo arrastado de volta para sua antiga vida.

- Merda - xingou, aborrecido, enquanto se desvencilhava dela. Ela riu. - Ignore. Você não está de serviço. - Não posso - respondeu ele com irritação, cruzando
o quarto em dois ou três passos largos e agarrando o telefone sobre a cômoda. - Tem

muita coisa em jogo no momento. Droga! - Ele apertou um botão e ladrou: - Preston.

- Steve? Aqui quem fala é Sarah Duvall. Steve controlou sua irritação, voltou para a beirada da cama e se sentou. - O que posso fazer por você, Sarah? - Eu te
peguei numa hora ruim? - Não, tudo bem. Duvall percebeu as respostas monossilábicas, e viu que não estava nada bem, mas continuou assim mesmo. Não ia permitir
que a conveniência de Steve Preston ficasse entre ela e seu objetivo.

- Queria saber se você acha que a dra. Cameron aceitaria uma abordagem formal minha para trabalhar com a City no assassinato de Georgia Lester.

Steve olhou de relance para Terry, constrangido. Sentia-se ligeiramente desconfortável em falar sobre Fiona na frente dela. Uma sensação quase incestuosa.

- Não vejo por que não. O problema dela é com a Polícia Metropolitana, não com a polícia em geral. O que você quer, especificamente?

- Como você sabe, estamos com um homem em custódia que confessou os assassinatos. Estou tendo alguns probleminhas para checar a autenticidade do que ele diz, visto
que muitos dos detalhes do crime foram copiados do livro da Georgia. No entanto, acho que ele pode ter alguma coisa a ver com as cartas. Quero tentar ligá-lo a
elas, e depois aos três crimes, especialmente se conseguirmos provar que Shand e Mias também receberam cartas. Achei que a dra. Cameron poderia comparar as cartas
e o folheto que ele distribuiu na coletiva de imprensa, e depois dar uma revisada nas evidências dos outros dois casos para ver se há uma conexão. Com os três
casos juntos, temos mais chances de descobrir alguma testemunha, ou pelo menos algo mais que possa confirmar a culpa dele ou descartá-lo como suspeito.

- Eu diria que vale a pena tentar - comentou Steve com cuidado. - E não há ninguém melhor para esse tipo de trabalho.

- Não quero esperar até amanhã - replicou Duvall. - Você tem o telefone da casa dela?

- Acho melhor você falar cara a cara do que por telefone. - Não era a hora de dizer a Duvall que seus modos ao telefone não ajudariam a quebrar o gelo com uma
mulher que já se sentia predisposta a não gostar da policial em virtude da relutância que esta demonstrara em fornecer proteção para Kit e seus colegas.

- O endereço de casa, então? Steve olhou de relance para Terry, enroscada de lado, observando-o com um sorriso. Por um instante, pensou em ir até o outro aposento
para evitar qualquer chance de que Terry reconhecesse o endereço de sua supervisora. O instinto de sigilo estava entranhado em seus ossos, mas Steve percebeu que,
para ter qualquer chance de fazer aquele relacionamento dar certo, precisaria deixá-la entrar em sua vida. Inspirou fundo e recitou o endereço familiar. Terry
ergueu as sobrancelhas e assumiu uma expressão de curiosidade. Steve despediu-se de Duvall e jogou o telefone de volta sobre a cômoda.

- Não vou bisbilhotar se você preferir que eu não faça isso, mas não pude deixar de reconhecer o endereço da Fiona - disse ela.

Steve voltou para a cama e abriu o braço para que ela se aninhasse ali. - Sabe o sujeito que confessou, na coletiva de imprensa, ter matado Georgia Lester?

- Sei, vi no noticiário. - Bom, a City quer consultar a Fiona sobre isso. Eles acham que ele é um forte suspeito.

- E eles querem estabelecer uma conexão com os assassinatos dos outros dois escritores, certo? - O interesse de Terry fora despertado, e ela se ergueu num dos
cotovelos.

- Isso mesmo. Fiona vai agarrar a chance com unhas e dentes. Apesar de tudo, isso dará a ela a oportunidade de confirmar se eles pegaram ou não a pessoa certa
e, assim, ela poderá parar de se preocupar com a possibilidade de Kit ser o próximo da lista.

- Claro É por isso que ela tem andado no mundo da lua nos últimos dois dias.

- Não te ocorreu que Kit pudesse ser um alvo? - O que eu posso dizer? Tinha me esquecido dele. Só o encontrei uma vez. Além disso, Fiona nunca fala de sua vida
pessoal. E, na verdade, a

possibilidade de haver um serial killer à solta não tem sido muito comentada. Todos os jornais disseram que não havia ligação nenhuma entre Drew Shand e Jane seja
lá qual for o nome. - Ela sacudiu a cabeça com irritação. - Meu Deus, como pude ser tão idiota? Fiona deve estar louca de preocupação.

Steve soltou um suspiro. - Ela está o mais próximo que eu já vi do desespero. Tivemos uma discussão feia ontem. Ela ficou zangada porque, na verdade, a ideia da
busca no Smithfield partiu dela, mas nem a City nem a Polícia Metropolitana concordaram em oferecer proteção ao Kit.

Terry franziu o cenho. - Meu Deus, Steve, isso é horrível. Divididos entre a profissão e a amizade. Você e Fiona devem estar passando por um momento terrível. Os
dois desesperadamente preocupados com Kit e batendo cabeça um contra o outro.

- Não tem sido fácil - reconheceu Steve. - Pelo menos, parece que Kit está seguro agora, e eu me sinto profundamente grato por isso. Kit é meu melhor amigo e,
se algo acontecesse com ele, não sei como conseguiria lidar com as consequências. O único problema é que temo que isso tenha afetado minha amizade com Fiona. Ela
não é uma mulher que perdoa com facilidade.

- Ela vai superar com o tempo - falou Terry com uma confiança otimista. - Especialmente se você rastejar direitinho. Pelo que já vi, posso dizer que ela sempre
se dobra diante de uma pequena humilhação.

Steve fez que não. - Acho que dessa vez vai ser preciso mais do que isso. Terry se aconchegou a ele. - Tanto trabalho para fazê-lo relaxar e agora você está retesado
como uma mola de novo. - Ela pegou o óleo de massagem. - Isso é simples de resolver. Você vai ter que tirar Fiona e Kit da cabeça, deitar aí e tomar seu remédio
como um homem adulto.

Steve conseguiu sorrir enquanto se virava de barriga para baixo, sentindo os músculos relaxarem sob as mãos dela.

- Você manda, doutora. - Não sou uma doutora ainda - replicou Terry. - Imagine apenas que eu serei muito melhor depois que conseguir meu diploma...

Ele gemeu quando as mãos dela, escorregadias por causa do óleo, começaram a massagear seus ombros.

- Não sei se sou forte o bastante para aguentar. - A gente vai aos poucos, soldado. - Seus dedos fortes massagearam os músculos poderosos das costas dele, apagando
todos os pensamentos sobre Sarah Duvall e até mesmo Fiona Cameron.

Fiona estava na cozinha preparando um café quando a campainha tocou. Franzindo o cenho diante da interrupção inesperada, atravessou o corredor para checar o olho
mágico. Provavelmente era um jornalista que decidira arrancar uma declaração suculenta de Kit para o jornal da manhã. Se fosse, sentiria o maior prazer em mandá-lo
embora. Uma coisa era certa. Nenhum amigo apareceria sem ligar primeiro.

Para sua surpresa, Fiona reconheceu a pessoa parada à porta, embora não tivesse a menor ideia do que a inspetora-chefe Sarah Duvall estava fazendo ali. Murmurando
entre os dentes "Que inferno!", Fiona abriu a porta.

- Inspetora-chefe Duvall. - Desculpe interrompê-la a esta hora - falou Duvall, rigida, como se pedir desculpas fosse algo estranho para ela. - Tinha esperanças
de que você pudesse me ceder um pouco do seu tempo.

Fiona deu um passo para trás e fez sinal para Duvall entrar. - Segunda porta à esquerda, a cozinha. Vamos conversar lá. Duvall atravessou o corredor, observando
tudo enquanto seguia. Piso de madeira de qualidade, caros tapetes orientais, duas dramáticas paisagens a óleo nas paredes. No ponto em que a escada fazia a curva,
um homem que ela reconheceu como sendo Kit Martin apareceu e a olhou com curiosidade.

- É trabalho, Kit - informou Fiona. - Preciso ter uma palavrinha com a inspetora Duvall.

- Não dá para esperar até amanhã de manhã? Sem problema - respondeu ele, virando-se e sumindo escada acima.

- Vi no noticiário que você tem um homem sob custódia - falou Fiona, entrando na cozinha atrás de Duvall. - Sente-se, por favor.

Duvall puxou uma cadeira e se sentou, cruzando as pernas.

- Eu estava fazendo um café. Quer uma xícara? - Obrigada. - Puro, não é mesmo? - Fiona não esperou pela resposta, pegou uma segunda xícara e a encheu. Despejou
um pouco de leite em sua própria e levou as duas para a mesa, onde se sentou de frente para Duvall. Tomando cuidado em manter o mesmo rosto sem expressão da policial,
perguntou: - Então, o que a traz aqui?

- Como você disse, temos um homem sob custódia. Não tivemos muita escolha, uma vez que ele confessou em público - explicou Duvall, com leve tom de ironia. - Mas
a situação está longe de ser clara. O nome do sujeito é Charles Redford, e ele admitiu ter cometido os assassinatos, porém não nos deu nada que não esteja acessível
a qualquer pessoa que tenha lido os jornais e o livro da Georgia, no qual o crime parece se basear. A busca no apartamento dele também não nos forneceu nada de
concreto. Ele tinha cópias dos três livros cruciais, de Shand, Elias e Lester, em sua escrivaninha. Havia também uma pilha de jornais com matérias sobre os três
assassinatos, mas, afora isso, nada que possa ser levado para o laboratório.

"Só conseguimos uma pista; a conta de telefone mostra que ele ligou para Shand e Lester nos últimos três meses. E uma agente literária nos deu uma declaração dizendo
que Redford a ameaçou. Ela estava pensando em representá-lo, mas acabou optando por não fazer isso. Quando ele recebeu a carta de recusa, foi até o escritório
onde ela trabalha, passou pela recepcionista, entrou em sua sala e começou a xingá-la. Ele então agarrou um abridor de cartas que estava sobre a mesa e o brandiu
na cara dela, dizendo que ela devia tomar cuidado com quem insultava. Em seguida, lançou o abridor na parede e saiu pisando duro."

Fiona tomou um gole do café e não disse nada, apenas ergueu as sobrancelhas ligeiramente. Seu encontro anterior com Duvall não lhe deixava com a menor vontade
de facilitar as coisas para ela.

Duvall pigarreou para limpar a garganta e continuou: - Ela disse que decidiu não levar o caso à polícia porque estava de partida para Nova York no dia seguinte
e não tinha tempo para a "encheção de saco", palavras dela. - Sua expressão indicava séria desaprovação. - Demos uma olhada no computador dele também, mas até
o momento

não encontramos nenhum vestígio das ameaças de morte. Tenho esperanças de que os técnicos consigam encontrar alguma coisa quando examinarem o disco rígido com
mais atenção, mas não estou disposta a apostar minhas fichas nisso. - Ela pegou a pasta, colocou-a no colo e a abriu. - Trouxe comigo as cópias das cartas e também
uma cópia do folheto que ele distribuiu na coletiva de imprensa hoje à tarde. - Tirou um punhado de envelopes plásticos transparentes, cada qual contendo uma cópia.
Fechou a pasta, colocou-a de volta no chão ao lado do pé e espalhou os envelopes sobre a mesa. - Acredito que o linguajar seja singular o suficiente para provar
que todos foram escritos pela mesma pessoa. Pretendo mostrá-los a um linguista, na esperança de que possamos usar isso como prova. - Os olhos de Duvall encontraram
os de Fiona. Não havia ajuda ali, mas ela continuou mesmo assim: - Gostaria que você os analisasse do ponto de vista de uma psicóloga e me dissesse o que acha.

- O que eu acho sobre o quê? Duvall contraiu os lábios. Não esperava que fosse ser fácil. Poderia lidar tranquilamente com uma hostilidade escancarada. No entanto,
a obstinação de Fiona em não demonstrar qualquer tipo de reação era muito semelhante à sua própria para que soubesse como contorná-la.

- Se foi a mesma pessoa que escreveu tudo isso. Se essa pessoa é capaz de passar das cartas à ação. Se há alguma pista nesses materiais que indique uma ligação
com os crimes. Estou interessada em qualquer coisa que você possa me dizer.

Fiona segurou sua xícara com as duas mãos e olhou fixamente para Duvall.

- Você acha que ele é o assassino? Duvall ajeitou os óculos. - Isso faz diferença? - Estou curiosa. Tenho algo em jogo aqui, se você não se esqueceu - retrucou
Fiona com frieza.

Duvall descruzou as pernas. - Não tomo decisões baseadas no instinto. Trabalho com as provas e a minha experiência. Com base nisso, diria que é bem provável que
ele seja o assassino. Ele é arrogante e confiante demais. É fútil, muito fútil. E está

convencido de que foi passado para trás. Acho que planejou isso com muito cuidado, para que seja indiciado e julgado, mas não condenado. Desse modo, ele finalmente
terá a chance de aparecer o tanto que deseja. Acredito que seu companheiro esteja seguro, dra. Cameron.

Fiona ouviu o que precisava escutar. - Pode contar comigo - declarou. Duvall pousou a mão sobre os envelopes. - Tem mais uma coisa - disse. Fiona não gostava
do modo como Duvall agia. Havia uma frieza calculada em tudo o que a detetive fazia e dizia, e isso a fazia se sentir usada. Se não fosse sua ligação pessoal com
o caso, jamais teria deixado chegar àquele ponto. Contudo, estava irritada com a suposição de que, por ter deixado, poderia ser forçada a ir ainda mais longe.

- Está tarde, inspetora - falou Fiona, a voz fria. - Vá direto ao ponto. Duvall piscou. - Não estou aqui para perder tempo, doutora. O seu ou o meu. Conheço bem
seu trabalho com conexão criminal. Se quisermos levar esse caso a julgamento, acredito ser necessário construirmos uma ligação convincente entre os três crimes.
Já falei com meus colegas em Edimburgo e na Irlanda, e eles estão dispostos a deixá-la analisar as provas, a fim de que possa formular uma teoria de que os três
assassinatos são obra da mesma pessoa, algo que possa ser defendido no tribunal.

Fiona sacudiu a cabeça, incrédula. - Você partiu do pressuposto de que eu aceitaria o caso sem me consultar?

Duvall fez que não de maneira impaciente. - Eu tinha esperanças de que aceitasse. Se não quiser, eu encontro outra pessoa. Mas me disseram que você é a melhor.
E, como você mesma ressaltou, seu interesse no caso é pessoal.

Fiona encarou Duvall com um misto de sentimentos travando uma guerra dentro de si. Estava indignada pela ousadia da mulher, irritada por ter sido manipulada, mas,
ao mesmo tempo, sentia-se lisonjeada e intrigada diante da perspectiva de um desafio profissional. Esse não era um caso que gostaria de entregar a outra pessoa,
admitiu para si mesma. No entanto,

perceber que Duvall veria sua concordância como uma espécie de triunfo a incomodava bastante.

- As circunstâncias desses assassinatos são bem diferentes - declarou, determinada a não dar a Duvall o que ela esperava logo de cara. - É improvável que eu consiga
construir o tipo de conexão concreta que o júri gosta.

Duvall sorriu, um sorriso pequeno e tenso. - Nós duas acreditamos que Drew Shand, Jane Elias e Georgia Lester foram mortos pela mesma pessoa. E ambas sabemos que,
se esse for o caso, ele deve ter deixado sua assinatura em cada um dos crimes. Você sabe como ler o que está escrito com tinta invisível. Eu sei como traduzir
isso em prova concreta. E então, topa ou não?

As duas mulheres se encararam por algum tempo. Estava na hora da decisão, Fiona sabia. E esse caso era pessoal demais para ela suportar a ideia de deixá-lo nas
mãos de outra pessoa. Fiona pegou os envelopes.

- Topo - afirmou.

Charles Cavendish Redford recostou-se na parede fria de sua cela. Sabia que não adiantava tentar dormir. Eles ficariam ali, observando-o pelo buraco do vigia,
e simplesmente esperariam até que dormisse para acordá-lo e levá-lo de volta para a sala de interrogatório, na esperança de que ele estivesse desorientado e lhes
desse algo que apenas o assassino saberia. Não ia cair nessa. O lado bom de ter lido tantos romances detetivescos e histórias sobre crimes reais é que conhecia
todos os truques dos tiras. Iria permanecer acordado e alerta, cheio de adrenalina. Eles não poderiam mantê-lo preso por muito tempo sem indiciá-lo. O que quer
que eles fizessem lhe serviria muito bem. Indiciado ou não, isso não mudaria em nada os planos que armara com tanto cuidado.

Tudo estava indo às mil maravilhas. Aquela policial era um presente de Deus. Sabia que podia irritá-la e, quanto maior o antagonismo entre eles, maiores as chances
de que ela o indiciasse pelo assassinato de Georgia Lester. Ele teria seu momento ao sol.

Não tinha medo de ser condenado. Era esperto demais para isso. De um jeito ou de outro, sairia dali um homem livre. E então os editores iriam se digladiar pela
chance de publicar seu trabalho.

Virou-se de lado no colchão fino, certificando-se de que não ficasse muito confortável. Sorriu consigo mesmo. Charles Cavendish Redford aguentara por tempo demais
ser posto de lado, roubado e traído. Entretanto, logo, logo isso seria passado. Em pouco tempo, ele seria famoso. Como Drew Shand, Jane Elias e Georgia Lester.

44.

Fiona recostou-se no umbral da porta da sala de estar.

- Duvall quer mandar alguém vir interrogá-lo amanhã - informou. - Para saber. se você se lembra de ter recebido alguma carta ou manuscrito de um sujeito chamado
Charles Redford.

- Mas não foi por isso que ela veio aqui, foi? - perguntou Kit, deitado de barriga para baixo no sofá.

- Não. Ela apenas aproveitou a oportunidade para pedir. - Fiona entrou na sala e escolheu uma poltrona que lhe permitisse ver o rosto de Kit.

- Charles Redford. Esse é o sujeito que está sob custódia? - perguntou ele. Sabia que ela contaria o motivo da visita quando estivesse pronta. Até então, ficava
satisfeito em deixar a conversa seguir um curso mais confortável.

- Isso mesmo. Você o conhece? Kit franziu a testa enquanto vasculhava a memória. - Acho que ele me mandou um manuscrito uns dois anos atrás. Eu enviei uma carta
delicada de volta dizendo que, infelizmente, não tinha tempo nem experiência para criticar o trabalho dos outros, e sugeri que ele arrumasse um agente. - Kit bocejou.
- Não me lembro de ter ouvido falar dele depois disso.

- Você não leu o manuscrito?

- A vida é curta demais. - Kit pegou o cálice e virou o resto do vinho em sua boca. Esperou que Fiona abordasse o verdadeiro motivo da visita da Inspetora.

- Vou para Edimburgo amanhã de manhã - informou ela. - Drew Shand? - perguntou Kit. - Duvall acha uma boa ideia tentar estabelecer uma conexão entre os três crimes.
Não sei se concordo muito com isso. Eles ocorreram em três jurisdições diferentes e, pelo que eu entendo das leis, cada caso só pode ser julgado em sua própria
jurisdição. Não sei até que ponto os tribunais aceitariam provas de outros crimes. Contudo, as outras forças policiais concordaram em cooperar, portanto eles devem
considerar uma tentativa válida, nem que seja para livrar a própria cara. Duvall acredita que terá mais chance de condená-lo pelo assassinato da Georgia se conseguir
provar um padrão de comportamento.

Kit ergueu-se num cotovelo. - Então a informação que recebemos mais cedo estava correta? Eles pegaram o homem certo.

- Duvall acha que ele é um forte suspeito. E ela é uma pessoa com os pés no chão. É quase certo que ele seja o autor das cartas. Duvall disse que o linguajar
é praticamente idêntico. E o que foi bastante embaraçoso para mim: ela me lembrou de um caso que eu li, ocorrido nos Estados Unidos, onde um sujeito que escrevia
ameaças de morte matou meia dúzia de pessoas. Dou o braço a torcer. Estava errada quando falei que não achava que o autor das cartas pudesse ser o assassino.

Kit deu uma risadinha. - Posso ter isso por escrito? - devolveu Fiona a criancice com outra, e botou a língua para fora. - Então, que horas você vai?

- Tem um voo pouco depois das nove. - Fico feliz que você esteja indo. Eu gostava do Drew. E da Jane. Não gosto de pensar que quem os matou vai sair livre dessa.
Se alguém pode construir uma conexão forte o suficiente para convencer o júri, esse alguém é você.

Fiona suspirou: - Gostaria de ter a mesma confiança. Vai ser difícil provar isso. - Ela desviou os olhos. - Queria que você fosse comigo.

- Por quê? Não tem necessidade, não agora que eles estão com o sejalá-quem-for atrás das grades.

Como não sabia expressar o que a estava incomodando, Fiona deu de ombros.

- Eu sei. Só preferiria que você estivesse comigo, só isso. - Tenho um livro para terminar - protestou ele. - Você pode trabalhar em Edimburgo. Pode se sentar
no quarto do hotel e escrever o dia inteiro.

- Não é tão simples assim, Fiona. Eu estou em casa aqui. Esse negócio com a Georgia está mexendo com a minha cabeça. Tudo o que eu consigo fazer no momento é escrever.
E, para isso, preciso estar sentado no meu escritório, com a minha música e as minhas coisas em volta. Não vou conseguir me concentrar num lugar estranho, de jeito
nenhum, com arrumadeiras entrando e saindo do quarto e nada para bloquear o que acontece às minhas costas, com exceção da televisão. Eu não vou, e minha decisão
é definitiva - Ele projetou o queixo para a frente, desafiando-a a discordar.

Fiona correu uma das mãos pelo cabelo, frustrada. - Não quero te deixar aqui sozinho. Não poderei te dar apoio nenhum a 650 quilômetros de distância.

Eles se encararam por alguns instantes, ambos inflexíveis em suas decisões. Por fim, Kit fez que não.

- Não posso ceder. Quero ficar no meu casulo. Na minha casa. Além disso, meus amigos estão aqui. A gente vai ter que se reunir e fazer um brinde a Georgia. É um
rito de passagem, Fiona. Preciso estar aqui e participar. - Ele estendeu a mão para ela, a súplica visível em seus olhos. - Você precisa entender meu ponto de vista.

- Tudo bem - cedeu Fiona. - Acho que estava pensando em mim tanto quanto em você. Tenho sentido tanto medo, só queria mantê-lo por perto, para me lembrar de que
tudo está bem de novo. - Ambos sorriram com tristeza, conscientes da tendência que o trabalho de cada um tinha de interferir na forma como gostariam de conduzir
suas vidas.

- Quanto tempo você vai ficar fora? - perguntou Kit por fim. - Não sei ao certo. Quero seguir direto para Dublin assim que terminar em Edimburgo. Amanhã é sexta.
Devo chegar à Irlanda no domingo. Talvez

em casa na segunda? Mais do que isso e vou ter sérios problemas em arrumar alguém para me cobrir na universidade.

- Vou preparar algo especial para segunda à noite, então - replicou - Teremos um jantar romântico. A gente desliga os telefones, tira a bateria da campainha e
relembra por que sentimos tanta atração um pelo outro.

Fiona sorriu. - Temos que esperar até segunda?

Ao sair do avião, Fiona encarou uma garoa fina. As nuvens baixas encobriam os montes de Pentland e Ochil, enquanto a chuva lançava um brilho pálido sobre o verde
e os prédios. O dia começara mal, e não parecia que ia melhorar. Estava pensando na Georgia no momento em que pegou o laptop para guardá-lo na maleta. Preocupada,
ela o deixou escorregar e ele caiu no chão, abrindo e soltando a tela.

- Merda! - explodiu. Não tinha tempo de resolver aquilo. Furiosa com sua falta de cuidado, Fiona abriu o armário da escrivaninha e pegou a pasta que continha os
CDs e disquetes que precisava para instalar seus programas. Meteu tudo em sua maleta e desceu correndo as escadas.

Kit levantou os olhos do jornal. - Qual é o problema? - perguntou. - Acabei de arrebentar meu laptop - respondeu ela. - Não acredito que fiz isso. Posso pegar
o seu emprestado para levar para Edimburgo?

Ele voltou momentos depois, fechando o zíper da maleta do laptop, muito mais calmo do que ela estaria naquelas circunstâncias. Esse era o preço da ansiedade dos
dias anteriores, um acidente tão pequeno a deixara desvairada.

Contudo, pelo menos tinha um laptop com o qual trabalhar. Já o usara durante o voo, para registrar as comparações entre as ameaças de morte e o folheto que Redford
distribuíra na coletiva de imprensa. Fiona não tinha dúvidas de que todos haviam sido escritos pela mesma pessoa. E não podia descartar a possibilidade de que
o autor das cartas se tornara obcecado o bastante pelo seu próprio sofrimento para passar das palavras às ações. Se conseguisse provar isso, testemunharia com
prazer no tribunal.

Assim que saiu do avião, atravessou rapidamente a pista de decolagem molhada e escorregadia em direção ao terminal. Uma vez lá dentro, Fiona sacudiu a cabeça para
livrar os cabelos do excesso de água e seguiu as placas que indicavam a saída. A caminhada do portão até o saguão de chegada pareceu interminável, corredores
infinitos cruzando-se numa espécie de labirinto que os ratos de laboratório solucionavam com mais facilidade do que os passageiros cansados.

No fim, Fiona conseguiu alcançar o burburinho do aeroporto. Ao olhar em torno, viu um homem com uma placa branca onde estava escrito CAMERON em letras claras.
O sujeito parecia um daqueles galgos pequenos: magrelo, com cabelos escuros e um temo que lhe pendia dos ombros como se ainda estivesse pendurado num cabide. Com
o pé batendo no chão de maneira impaciente e os olhos dardejando de um lado para o outro, ele parecia mais um bandido esperando um ataque surpresa do que um oficial
da polícia. Fiona andou até ele, colocou a mala no chão e tocou seu ombro.

- Sou Fiona Cameron - informou. - Está esperando por mim? O homem abaixou a cabeça. - Sim, isso mesmo. - Ele dobrou o cartaz e o enfiou no bolso do paletó, em
seguida estendeu-lhe a mão. - Sou o inspetor Murray, Dougie Murray. Prazer em conhecê-la. - Apertou sua mão vigorosamente. - O carro está lá fora. - Ele a soltou
e saiu andando.

Fiona ajustou a alça da maleta do laptop sobre o ombro, pegou a mala e o seguiu. Do lado de fora, um sedan os aguardava. Murray acenou para o guarda de trânsito
que patrulhava a rua e se dirigiu para o banco do motorista. Fiona abriu a porta traseira e jogou a mala dentro, em seguida sentou ao lado dele na frente. Ele já
estava dando a partida.

- O superintendente pede desculpas. Surgiu uma reunião à qual ele não pôde faltar. Recebi instruções de levá-la ao St. Leonard. É o quartelgeneral da divisão, reduto
dos investigadores. O superintendente irá encontrá-la lá. Tudo bem?

- Gostaria de passar no hotel primeiro - falou Fiona com firmeza. - Só para fazer o check-in e deixar a mala. Não quero ficar carregando minha mala de um lado
para o outro o dia inteiro.

- Não, tudo bem, é claro. Reservamos um quarto para a senhora no Channings, portanto teremos de fazer um pequeno desvio - replicou ele,

animado, como se ficasse bastante satisfeito em planejar algo mais criativo do que um retorno direto para a cidade.

Eles saíram do anel rodoviário em frente ao cassino Stakis, com sua arquitetura art déco, e atravessaram um cinturão verde até chegar à Queensferry Road. Fiona
observava o trânsito sem registrar nada, pensando em Kit. Ele devia estar sentado à sua mesa, trabalhando, o aparelho de CD equipado com qualquer que fosse a preferência
do momento. Sem dúvida, a pilha contaria com REM e Radiohead. Talvez The Fall ou Maniacs. Ele estaria alternando entre martelar o teclado e olhar para fora pela
janela, escolhendo o trabalho para manter os demônios a distância. Agora, porém, ela precisava tirá-lo da cabeça e se concentrar no que viera fazer.

De repente, os bangalôs deram lugar a construções altas em arenito, afastadas da rua principal, elegantes casas vitorianas que, em sua maioria, haviam sido divididas
em apartamentos com janelas enormes e pé-direito alto para aumentar a ventilação. Eles fizeram uma curva acentuada à esquerda e entraram numa rua de paralelepípedos;
as rodas do carro cantaram quando Murray virou na rua seguinte.

- Chegamos - anunciou ele, parando em fila dupla na frente de um prédio de arenito amarelado, com um toldo cobrindo a entrada e um par de postes ornamentais.
- Vou esperar no carro. - Fiona não ficou surpresa.

A elegância interna combinava com a fachada em tom de areia. Ela fez o check-in e subiu a escada imponente atrás do jovem que lhe mostraria o quarto. O aposento
ficava no segundo andar, virado para os jardins amplos que separavam o hotel da rua. Através da névoa provocada pela chuva, era possível ver uma faixa acinzentada
da foz do rio Forth. À esquerda, uma grande construção gótica com torres gêmeas dominava as ruas abaixo.

- Que prédio é aquele? - perguntou ela para o carregador, que já estava saindo.

- É o Fettes College - respondeu ele. - A faculdade que Tony Blair frequentou.

Isso explicava muito, pensou Fiona. Ela desfez a mala e desceu. Dez minutos depois, eles deixaram a Cidade Nova georgiana, desceram pela Cowgate e subiram a Pleasence
até um edifício moderno onde se localizava a divisão da Lothian and Borders Police.

Fiona entrou atrás de Murray e o seguiu por um corredor. Ele abriu uma porta com um floreio e disse:

- Vou avisar ao superintendente que a senhora já chegou. O trabalho será feito aqui mesmo, portanto pode ir se ajeitando.

Quando ele se virou, Fiona decidiu que estava na hora de começar a se impor.

- Uma xícara de café seria ótimo - pediu, sem sorrir. - Certo. Leite? Açúcar? - Leite sim, açúcar não, por favor. Ele saiu marchando, os passos rápidos fazendo
a jaqueta balançar. Fiona virou-se para a sala. Ela era surpreendentemente agradável, ainda que pequena. Havia uma mesa de madeira clara com uma cadeira giratória
diante dela. Duas outras cadeiras acolchoadas estavam encostadas numa das paredes. Havia também outra mesinha com um telefone, uma jarra de água e dois copos limpos.
E o melhor de tudo: a sala tinha janela. Fiona podia ver o estacionamento e, para além das paredes e dos telhados, um pedaço dos penhascos de Salisbury sobressaindo
em tons de verde através da chuva.

Fiona deixou o laptop sobre a mesa e se ajoelhou para procurar uma tomada de telefone. Acabara de plugar o adaptador para o cabo do modem quando a porta se abriu.
Um par de pernas atarracadas com calças apertadas nas coxas veio em sua direção. Ela se inclinou para trás a fim de ver o resto do homem. A visão sacudiu sua lembrança;
o quadro se formou em sua mente como uma imagem em papel fotográfico que, aos poucos, adquire definição ao ser mergulhado no líquido revelador. Um homem atarracado
com cabelos vermelhos e um rosto sardento e corado pelos ventos da costa leste. Olhos azuis emoldurados por cílios excepcionalmente escuros. Nariz de batata e
uma boca pequena de querubim. O inspetor Alexander Galloway da Fife Police. Fiona foi imediatamente transportada no tempo. Há doze anos concordara em encontrá-lo
para um drinque em um pub escuro e triste de St. Andrews, a fim de descobrir o que ele sabia sobre o assassinato de Lesley. Ele não estivera envolvido no caso desde
o início, mas tinha sido um dos policiais designados para revê-lo seis meses depois do ocorrido. E não pudera lhe dizer nada de novo.

Ela agora o fitava boquiaberta, em choque. Não tinha se tocado quando Duvall lhe explicara que o superintendente Sandy Galloway era o oficial responsável pela investigação
do assassinato de Drew Shand. Contudo, não restavam dúvidas. O cabelo ruivo desbotara para um grisalho avermelhado, e o rosto corado adquirira um tom arroxeado
que poderia deixar o médico dele preocupado, isso se ele encontrasse tempo para visitá-lo. Os olhos, porém, eram do mesmo azul pálido, emoldurados por aqueles
extraordinários cílios escuros. O nariz arrebitado era um Jackson Pollock de veias vermelhas, e a boca parecia ostentar mais rugas de desaprovação do que ela se
lembrava. Mas isso era o que doze anos na polícia faziam com um homem, pensou Fiona. Ele baixou os olhos para ela e abriu um ligeiro sorriso.

- Não, não, doutora, você entendeu tudo errado. Nós é que temos de ficar de joelhos dessa vez - disse, de modo alegre.

Fiona pôs-se de pé. -Eu não fazia ideia... estava apenas procurando pela tomada do telefone. Galloway pareceu ficar um pouco irritado: - Murray devia ter visto
isso para você. - Não acho que Murray veja esse tipo de coisa - retrucou Fiona, ironicamente. - Pelo menos, não para mulheres mais velhas. Ainda estou esperando
meu café.

Galloway jogou a cabeça para trás numa risada sem som. - Você ficou mais afiada com o passar dos anos. - Apenas observação profissional. Estou surpresa por vê-lo
novamente. - Fiona estendeu a mão. O aperto de Galloway era seco e firme.

- Comentei com a inspetora-chefe Duvall que a gente já havia se encontrado. Achei que ela ia te falar.

- Acho que Duvall gosta de nos ver sempre prontos para agir diante de qualquer surpresa - retrucou Fiona, com o tom mais neutro que conseguiu.

- Certo. Queria me desculpar. Por nunca termos conseguido prender alguém pelo assassinato da sua irmã.

Fiona desviou os olhos. - Não vou fingir que não fiquei zangada na época. Mas, hoje em dia, entendo bem melhor como é difícil encontrar um criminoso em série.
- Ela o fitou de novo. - Não guardo ressentimentos. Você deu o melhor de si.

Galloway esfregou a lateral do nariz com o dedo indicador. - Bom, de qualquer forma, aprendi uma lição valiosa com você. - Aprendeu? - Sim. Nunca se esqueça de
que uma vítima possui familiares que precisam saber o que aconteceu. Não atrapalha em nada manter isso em mente. - Ele pigarreou para limpar a garganta. - De qualquer
forma, foi muito gentil da sua parte ter vindo tão rápido. Pedi a um dos meus oficiais que lhe trouxesse os arquivos sobre o assassinato. Precisa de mais alguma
coisa?

Fiona abriu a maleta do laptop. - Gostaria de dar uma olhada no apartamento do Drew. - Fizemos uma busca minuciosa, você sabe. - Ele se inclinou para a frente
e apoiou os punhos sobre a mesa, franzindo o cenho. A posição deveria parecer agressiva, mas, de alguma forma, Galloway passava apenas uma impressão de ansiedade.

Ela o fitou no fundo dos olhos. - Quero só sentir o ambiente. E quero me certificar de que não haja nada lá que ligue Shand a Charles Redford.

Nesse momento, uma batida soou na porta e um policial uniformizado entrou empurrando um carrinho com a pilha de arquivos. Ele colocou os arquivos sobre a mesa.

- Mais alguma coisa, senhor? Galloway olhou de modo interrogativo para Fiona. - Café - disse ela. - Me mostre onde fica o melhor café do prédio ou mande alguém
me trazer uma xícara de hora em hora.

- Você a escutou, policial - falou Galloway. - Vá até meu escritório e traga a bandeja com minha cafeteira e o café. - Ele sorriu para Fiona. - Posso vir aqui
pegar uma xícara se ficar desesperado. Agora, vou deixá-la sozinha. Se precisar de alguma coisa ou se quiser discutir algo comigo, basta pegar o telefone e pedir
ao atendente que transfira a ligação para mim. E, quando quiser ir ao apartamento, me avise que eu arrumo um carro para você.

- Obrigada. Pelo tamanho da pilha, vou estar bem ocupada o dia inteiro - respondeu Fiona. - Provavelmente vou querer ir até lá no fim da tarde, mas eu aviso quando
conseguir ver uma luz no fim do túnel.

Uma vez sozinha com os próprios brinquedos, Fiona instalou seu software no computador de Kit. Antes de começar a trabalhar, mandou um e-mail rápido para ele dizendo
que chegara em segurança. Em seguida, após certificar-se de que o celular estava ligado, pôs mãos à obra. Já estava familiarizada com os relatórios policiais e,
embora não pulasse nada, sabia como Ir direto ao que lhe interessava.

Estava procurando por características comuns aos três assassinatos que, se olhadas separadamente, seriam insignificantes, mas que, vistas em conjunto, formavam
uma conclusão inevitável. Fiona suspeitava de que havia pouco que ela pudesse descobrir que um policial inteligente não descobriria também. No entanto, a vantagem
de deixá-la realizar aquele trabalho era que ela poderia testemunhar como uma especialista independente, uma autoridade reconhecida no campo da conexão criminal.

Dessa vez, tinha algo firme em que basear sua análise. Estava claro que cada um dos três assassinatos copiara um episódio do livro escrito pela vítima. A prisão
realizada pela polícia irlandesa desviara a atenção desse aspecto em particular, mas Duvall lhe assegurara que a guarda ia repensar sua posição sob a luz da confissão
de Redford. Ela não tinha dúvidas de que o suspeito seria liberado pouco depois.

O que estava claro é que cada uma das vítimas devia ter sido seguida. Uma das coisas que precisaria averiguar nos próximos dias era quanta informação sobre cada
uma delas estava disponível ao público. Com um pouco de sorte, parte desse material já devia constar nos arquivos sobre os assassinatos. E, claro, as forças policiais
envolvidas procurariam novas testemunhas agora que tinham um suspeito cuja foto poderiam publicar.

Para Fiona, o trabalho era mais sutil. Para variar, podia trabalhar no seu próprio ritmo. A probabilidade era de que Duvall estivesse certa, como Kit ressaltara.
Dessa vez, não havia o tiquetaquear de uma bomba, a pressão de um assassino se preparando para atacar de novo.

 

 

 

CONTINUA