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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SUSSURROS DO PAIS DAS MARAVILHAS / A.G. Howard
SUSSURROS DO PAIS DAS MARAVILHAS / A.G. Howard

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Investida & Bloqueio
— Se pretendemos sobreviver a isso, Alison, você tem que atacar a jugular. Sem. Misericórdia.
A voz grossa e autoritária de Thomas me comove e ele me ajuda a levantar, depois ajusta meus dedos ao cabo metálico da espada que havia escorregado de minha mão enluvada. Uma mistura de suor e do cheiro cítrico do sabonete por ele usado paira no ar, abafada pelo perfume das flores e da vegetação que nos cercam.
Toco o quadril no ponto onde ainda lateja por causa da queda e retomo minha posição, encarando nossos oponentes do outro lado do mato manchado de sangue: a minha, com o brilho lindo e fantasmagórico de sua pele... O de Thomas, com o corpo musculoso e os olhos verdes destemidos. As espadas prateadas deles brilham sob o sol de outono e refletem suas expressões imóveis, até que, num movimento lento como o de uma nuvem de tempestade, a curiosidade lhes cruza as feições, enquanto eles tentam prever nossa estratégia.
Meu coração bate forte, ansioso. Enxugo um pouco do suor da minha testa. Eles são mais jovens e mais rápidos, mas Thomas e eu temos a inteligência do nosso lado e uma conexão incomparável. Somos uma equipe há vinte e dois anos. Aqueles amadores não são páreos para nós.
Ignorando o calor e a irritação da minha pele sob as várias camadas de roupa, convenço meu corpo a relaxar, mas me mantenho em posição, a espada empunhada e pronta para o combate, antes de tirar a máscara do meu rosto.
Meu marido geralmente me dá dicas, gestos que só eu sou capaz de decifrar: um menear de cabeça para uma defesa, um estreitar de olhos para um bloqueio. Desta vez, porém, não preciso das instruções dele. Conheço minha oponente. Observei-a o suficiente para descobrir seus pontos fortes e seus pontos fracos. Ela me atacará pela esquerda e me defenderei com um bloqueio. A não ser que agora ela decida misturar os golpes.
Como se pensasse que me decifrou, ela me encara com seus olhos azuis penetrantes e sorri, excessivamente confiante, antes de colocar a máscara no lugar. Ela fica rígida e eu também, de modo a convidá-la a fazer o primeiro movimento.
Com reserva e graça, ela troca de pé de apoio e investe contra mim, me atacando numa tática surpresa. Atinjo a espada dela imediatamente, cedendo ao seu ritmo. Ela perde o equilíbrio e exagera na compensação, executando um golpe atrapalhado. Sua reação apressada deixa seu peito exposto.

 

 

 


 

 

 


Rugindo, miro o coração dela com a ponta da espada, sentindo uma emoção intensa ao furar seu casaco branco. Ela deixa a espada de lado e põe a mão no esterno. Seus olhos se arregalam por trás da máscara. O sangue jorra pela grama e mancha meus tênis brancos.

— Mamãe? — murmura ela em choque, encolhendo-se no chão.

Levanto a máscara, tiro as luvas e me ajoelho ao lado dela, cutucando suas costelas incansavelmente.

— Diga! — grito. — Diga que sou a rainha!

Jebediah e Thomas riem ali por perto, enquanto Alyssa gargalha histericamente, balançando de costas como uma tartaruga virada de cabeça para baixo em seu casco, tentando recuperar o fôlego e escapar da minha tortura de cosquinhas. A máscara dela cai, revelando seu rosto avermelhado.

— Diga! — insisto.

— Nunca! — responde ela e segura minhas mãos, lutando comigo e me derrubando ao seu lado.

Em pouco tempo, minhas costelas doem por causa de seus dedos incansáveis e estamos nos abraçando e rindo tanto que lágrimas escorrem de nossos olhos.

— Certo. — Thomas recupera a compostura o bastante para pedir um cessar-fogo. — Os velhos ganharam, simples assim.

— Dobrados novamente — comenta Alyssa, apontando para nossas espadas flexíveis de treino. A piadinha tira uma risadinha de Jebediah, que toca na mão ensanguentada dela.

Thomas me ajuda a levantar e toco os riozinhos vermelhos do meu casaco e calças de esgrima, o líquido grudento entre meus dedos.

Meu marido me oferece uma toalha para limparmos a bagunça. Uso a minha para enxugar meu rosto e minha testa.

— Ainda acho que o sangue falso de Halloween foi um exagero — opina Jenara do balanço na varanda, onde ela e Corbin esperam para desafiar a equipe vencedora. Eles bebem limonada de um tom de rosa igual ao dos cabelos dela. Ela retorce o nariz. — Foi uma cena bem assustadora.

— Você só pode estar brincando — diz Alyssa com uma risadinha ansiosa, admirando os milhares de gotas vermelhas nas roupas e nas rosas, madressilvas e ervas prateadas no jardim. — É lindo. Assim como qualquer decoração, ela só precisa ser transformada em algo novo.

A trança loira comprida às suas costas balança como se ganhasse vida. Ela usa sua mágica para suspender as gotículas brilhantes das plantas e flores e fazer as manchas em nossas roupas se juntarem a elas. O sangue falso paira no ar e ali fica, as gotas se fundindo como chuva na vidraça, até formarem uma treliça — um arco tremeluzente vermelho que parece um vitral. Alyssa segura a mão de Jebediah e o puxa para perto. Ele ri, guiando-a na dança sob o gazebo improvisado. Seus movimentos são graciosos e sincronizados, os corpos jamais destruindo a obra de Alyssa.

Thomas tomba a cabeça num gesto de repreensão, apesar de ser impossível ignorar o orgulho em sua expressão. Se não fosse pela cerca de madeira de três metros que ele recentemente instalou para nos proteger de curiosos, é bem provável que ele não estivesse vendo o showzinho de Alyssa com tanta leveza.

Se bem que ela sempre conseguiu dominá-lo com seus encantos.

Nossa filha olha para ele, rindo, em paz e à vontade como nunca a vi em todos os seus dezessete anos.

Como resultado de seu treinamento de mágica com Morfeu em seus sonhos, ela está executando os feitiços com perfeição, sendo capaz de dar vazão a seus poderes apenas com o pensamento. É em momentos como este que vejo: a rainha mística fervilhando sob a superfície. Uma predisposição ao sangue e ao caos. Como ela ganha vida em chamas e tempestades. Como a mágica dela inspira e doma o pandemônio. Como ela encontra beleza em tudo o que é mórbido e bizarro.

É irônico. Tentei por muito tempo cultivar essas qualidades em mim, mas meu lado humano era forte demais. Nunca pretendi ser rainha. Desejava, mas não de coração.

A dança termina e, com um virar de pulso de Alyssa, as gotículas de sangue caem em câmera lenta — como flocos de uma neve macabra — e novamente repousam em nossas roupas, nas folhas e nas pétalas das quais se originaram.

Jenara bebe o restante da limonada, os cubos de gelo no copo se chocando uns contra os outros.

— Vai ser bem difícil limpar essa bagunça toda.

Alyssa dá de ombros e ri.

— Nada que um frasco de água sanitária e uma mangueira não resolvam.

— Não. Não vou usar água sanitária nesta obra-prima. — Jenara estica os braços para mostrar o casaco rosado cobrindo seu corpinho. Ela o tingiu há algumas semanas e acrescentou uma renda delicada nas mangas e no colarinho. Colocando o copo de gelo ao lado do pé de Corbin, ela sai do balanço. — Se vamos insistir no uso de sangue, vou vestir meu casaco preto.

Corbin a segura pela cintura e a puxa de volta para seu colo.

— Ah, venha cá, princesinha. Vamos derrotar os mais velhos antes mesmo de você quebrar a unha. Jeb e Al simplesmente não têm os movimentos apropriados.

Jenara sorri.

— Bem notado.

— Uha! — Num movimento fluido, Alyssa pisa na espada caída a fim de que ela fique perpendicular ao chão e bata com o cabo em sua mão espalmada. — Venha cá e diga isso na minha cara, Cor-bin-ara.

Troco olhares com meu marido e rio.

— Bela manobra, menina skatista. — Jebediah dá uma risadinha, brandindo seu florete. — Quer uma disputa sob o salgueiro? — Ele arqueia a sobrancelha.

— Você não vai durar dois segundos. — Ela abre um sorriso rápido, seu anel de noivado brilhando à luz ao passar a espada de uma mão para a outra num movimento único e fluido.

— Ah, é mesmo? — pergunta ele, para, sem aviso, erguê-la e jogá-la sobre o ombro. A espada cai no chão com um baque, e ela ri enquanto ele a leva até a árvore e derruba os dois nas folhas que pendem baixo.

Ela poderia facilmente usar seus poderes para se libertar. Mas aí é que está. Não quer se livrar dele. Nunca quis. Ele é seu parceiro humano, em todos os sentidos.

Ela e eu conversamos sobre o que significa a imortalidade... sobre como vai ser difícil quando ele tiver morrido e ela continuar viva. Ela me garantiu que pode sobreviver — apesar de seu olhar ficar distante ao imaginar isso e de seu rosto nublar-se ao pensar na situação. Contudo, acredito na devoção dela ao País das Maravilhas, e Morfeu é poderoso o bastante para ajudá-la a superar essa perda. E sei que, quando tal dia chegar, a imortalidade dela será algo estonteante. Morfeu vai cuidar dela. Ele a tratará como realeza. Ele o faria mesmo que ela não fosse uma rainha, porque admira a coragem dela.

Ela é uma guerreira e eu sou uma covarde. Meu medo de perder Thomas supera qualquer lealdade que um dia eu tive pelo reino interior. Não consigo viver sem ele por toda a eternidade. Por esse motivo, entre tantos outros, fico feliz por meu espírito não ser mágico e eu ainda ser mortal. Mesmo que viva mais que meu marido, não será por muito tempo. E me sinto segura nessa inevitabilidade.

Ver Jeb e Alyssa lutando e rindo me faz sorrir. Eles são tão parecidos com Thomas e eu quando tínhamos essa idade — cheios de esperança. A diferença é que eles têm uma chance real de conquistar tudo o que sonharam, porque não há mentiras entre eles. O País das Maravilhas é um livro aberto que ambos leram e viveram. Eles até mesmo incluíram Jenara e Corbin em seu círculo íntimo.

Só recentemente Thomas e eu tivemos a verdade para nos unir. E tenho de agradecer minha filha por nos dar essa segunda oportunidade e por me devolver minha sanidade. Fecho os olhos, escutando. Tudo o que ouço é a água de nosso chafariz e as brincadeiras de Jebediah e Alyssa. Nada da conversa dos insetos. Nada do sussurro das flores.

De acordo com meu pedido, três meses atrás, quando Thomas, Alyssa, seu noivo e eu voltamos de nossa última viagem ao País das Maravilhas, Alyssa usou seus poderes reais para pôr um ponto-final nas intermináveis conversas em meus ouvidos, e ela se certificou de que seus descendentes ouçam apenas o silêncio. Só ela agora tem uma linha direta com os insetos e as plantas. Assim como ela é a única que ainda faz, nos sonhos, visitas regulares ao reino interior.

Apesar de ainda ter meus brotos de asa e as marcas nos olhos, minhas características intraterrenas só aparecem se eu deixar. Então, pela primeira vez desde meus dezesseis anos, me sinto normal. E, pela primeira vez desde meus doze anos, lembro-me do silêncio.

Achei que sentiria falta das vozinhas que me acompanharam ao longo de toda a adolescência, vozes que se tornaram minhas confidentes quando ninguém mais ouvia; porém, não preciso mais delas como muletas. Agora tenho uma família e um marido que sabe e compartilha da minha história no País das Maravilhas.

Nunca mais ficarei sozinha.

Meus olhos se abrem e sinto os dedos firmes de Thomas se entrelaçarem aos meus, como se ele lesse meus pensamentos. Nada me dá mais segurança que a sensação da mão dele na minha.

— Divirtam-se, meninos — diz ele. — Vamos acabar por aqui. — Ele vira os olhos castanhos para mim e beija os nós dos meus dedos, provocando um arrepio que me vai do braço ao coração. — Prometi à minha constrangida esposa que sairia com ela no nosso aniversário de vinte anos. Continuaremos amanhã. — Estreita os olhos na direção de Corbin e Jenara. — A não ser que vocês dois estejam prontos para perder agora. Todos sabemos como isso vai terminar. A idade e a sabedoria sempre vencem a juventude e a irresponsabilidade. — Sua risadinha maliciosa à la Elvis é recebida por bufadas dos jovens.

— Até parece, sr. G. — fala Jenara com ar de deboche. — Amanhã... mesma hora, mesmo lugar. Eu estarei de preto. E se lembre: o perdedor tem que usar um vestidinho curto em público. Prepare-se para a maior transformação da sua vida.


Enquanto Thomas toma banho, observo-me no espelho sobre o lavabo. Uma tarefa mundana para a maioria das pessoas, mas algo que tenho evitado desde que conheci meu marido.

Finalmente, depois de todos esses anos, não preciso mais me esconder de espelhos. Não preciso mais ter medo de ver a expressão crítica de Morfeu atrás de meu reflexo.

Meu vestido é simples e elegante: renda branca com um decote nas costas e sem mangas. Uma tira de renda contrastante — cor de um cappuccino — afina minha cintura e complementa o brilho bronzeado da minha pele recém-lavada. O sutiã envolve meus seios, e a saia, meus quadris — a barra abaixo do joelho. Alyssa e Jenara me ajudaram a escolhê-lo na loja, jurando que ele era sensual o bastante para deixar Thomas de olhos arregalados. Estou ansiosa por testar a teoria.

Ficamos separados, desnecessariamente, por muito tempo. Talvez por isso ele faça com que eu me sinta como uma menininha apaixonada, porque cada momento que passamos juntos é como redescobrir tudo de novo — suas palavras gentis, seus beijos, sua risada e sua bondade.

Com um toque de blush no rosto e um quê de batom vermelho nos lábios, estou pronta. A energia e a vitalidade pulsam em meu corpo e geram faíscas sob minha pele. Meus cabelos platinados na altura dos ombros envolvem sedutoramente meu rosto, de forma que dou início à tarefa de prendê-los com grampos brilhantes.

Uma mulher prestes a sair com o marido de vinte anos de casamento... é isso que vejo. Houve um tempo, porém, em que eu não estava sozinha na nostalgia, quando qualquer superfície refletora abria as portas para o louco e caótico País das Maravilhas que eu pretendia dominar. Salvei o menino na teia daquele mundo e fiz o meu melhor para dar as costas a tudo isso quebrando todos os espelhos por perto.

Foi errado abandonar tudo sem nem uma explicação. Agora sei disso.

Fugi às minhas responsabilidades, num pacto com o próprio diabo. Então Morfeu, entrando nos sonhos da minha filha — me usando como um canal involuntário —, encontrou outra maneira de me fazer pagar. Ele apareceu para ela todas as noites durante os primeiros cinco anos de sua vida, disfarçando-se de criança — a tal ponto que virou criança de corpo e alma —, de modo a ser o amiguinho dela e conquistar seu afeto e confiança. Quando descobri, tentei reagir ao ataque mental dele com um conflito físico, a fim de protegê-la fazendo a única coisa que me era possível: ir embora.

Fecho os olhos e, por um instante, meu vestido no espelho se transforma na camisa de força que se tornou minha arma preferida.

Como pude achar que não haveria consequências por ter me escondido num hospício? Esperava que ele encontrasse outro parceiro de luta... outro Liddell para explorar, alguém que pudesse salvar-lhe a alma dessa maldição de passar a eternidade preso no covil da Irmã Dois. Para escapar ao seu destino, ele tinha de realizar a Maldição da Vermelha, coroando uma rainha da linhagem dela com a tiara de rubi, enquanto a própria Vermelha possuía o corpo da outra. Equivocadamente supus que, ao decepcioná-lo, ele seguiria em frente e encontraria outra vítima num parente distante, respeitando minha escolha.

No entanto, havia uma rachadura na minha armadura e meu adversário a penetrou. Eu deveria ter previsto. Desde que conheço Morfeu, ele nunca seguiu em frente. Não tendo seu objetivo em vista. Ele é o estrategista mais brilhante e mais paciente que jamais conheci.

O vapor do banho de Thomas nubla meu reflexo e por trás da névoa me vejo como era quando descobri os planos de Morfeu para Alyssa: aquela mãe jovem e ingênua, temendo pelo futuro da filha. Culpada por colocar a filha em perigo. Minha menininha nunca quis ser minha substituta, mas, com minha traição, foi exatamente isso que ela se tornou.

Optei por não contar a Alyssa minhas escolhas e as repercussões delas porque achava que tinha conseguido poupá-la. Mas todo aquele tempo no hospício, longe do meu marido e da minha filha, não teve importância. Nem o juramento de Morfeu de não entrar em contato com Alyssa de novo. Porque ele já tinha plantado, na mente dela, memórias dos momentos a dois, contando com a curiosidade que ela herdou de Liddell para convencê-la a procurá-lo. Aos dezesseis anos, ela encontrou a toca do coelho sozinha, exatamente como ele planejara.

Minha mão dispersa involuntariamente a lembrança e puxo uma mecha de cabelo com força demais. Sinto uma dor no couro cabeludo e faço uma careta. Rearrumando a mecha, prendo-a com um grampo.

Morfeu convenceu minha filha a conquistar a coroa que eu desejava e acabei por desprezar. Ao longo do processo, ele se salvou. Era uma responsabilidade pela qual Alyssa não tinha pedido, apesar de ela acabar por aceitá-la e até mesmo adotá-la. Ainda assim... ele a convenceu a virar rainha sem lhe contar todos os fatos.

A única coisa que me deixa feliz é saber que ele não saiu incólume. Ele pagou um preço. Um preço que jamais imaginou.

Enquanto “amadurecia” com Alyssa nos sonhos de infância dela, enquanto a observava enfrentar todos os desafios que ele lhe impunha no País das Maravilhas, Morfeu — o ser solitário e egoísta antes incapaz de amar — apaixonou-se completamente por ela. Eu não acreditaria, se não tivesse visto com meus próprios olhos. Ele sentiu a força de sua devoção quando desistiu da oportunidade de tê-la ao seu lado no reino interior. Quando ele optou por esperar, a fim de que a metade humana do coração dela pudesse se curar, até que ela fosse forte o bastante para governar o reino Vermelho eternamente.

Por causa desse sacrifício, começo a suspeitar que talvez ele não seja demoníaco. Que talvez, depois de todos esses anos, eu esteja vendo um lado dele quase vulnerável e amoroso. Um lado que ele manteve afastado de mim, a não ser por um ou dois vislumbres dos quais me esqueci ao longo dos anos.

Ainda assim não estou pronta para perdoá-lo por usar minha filha. Porque, para isso, teria de me perdoar por torná-la responsável por minhas confusões. E por mais que Thomas queira... não tenho certeza se consigo.

A vida de Alyssa sempre foi dividia ao meio por causa de mim. Ela sempre tolerou tudo com tranquilidade. Ninguém podia vê-la com seus assuntos interiores e negar que ela foi feita para ser rainha. Ela ama o mesmo mundo que acabei por odiar.

E, como amo minha filha, de alguma forma tenho de aprender a adotar aquele mundo novamente. De outro modo, nunca superarei o fato de ter deixado Morfeu e toda a loucura do País das Maravilhas entrarem em nossa vida.

Meu reflexo nebuloso me traz de volta ao aqui e agora. Passo meu perfume preferido nos ombros e pulsos — nadando em tons de maracujá e laranja —, depois maquio o nariz com pó, saindo do banheiro antes que o vapor do banho de Thomas possa borrar a maquiagem.

Coloco brincos de pérolas e um colar e bracelete combinando, depois me sento na beirada da cama e movimento os dedos do pé, me concentrando na porta fechada do nosso quarto. Sons de portas de armários e panelas batendo umas nas outras vêm do outro lado. As crianças estão na cozinha, preparando algo para o jantar. Penso em ajudá-las enquanto espero Thomas, mas não estou pronta para enfiar os pés no par de salto alto ao meu lado. O carpete é tão gostoso... fofo e farto. Em vez de ajudá-las, deito-me no edredom, abro os braços e fecho os olhos, relaxando músculos que ainda doem por causa da esgrima mais cedo.

Atenta ao ritmo da água contra o boxe do banheiro, permito-me voltar a outro dia e hora, quando tinha treze anos, olhando para o mundo tomado pela chuva. Quando aceitei o chamado interior durante um dos períodos mais tristes e solitários da minha vida.

Foi quando Morfeu se aproximou de mim e me ofereceu poder e vingança na palma de sua mão manipuladora. Foi o dia que mudaria, para sempre, quem eu iria me tornar.


Capítulo 2


Encaixotada

Vinte e seis anos antes...

A chuva batia na caixa de papelão vazia sobre minha cabeça. Eu a virei de lado e entrei nela antes da tempestade. A Lixeira ao meu lado fedia a peixe morto e fruta podre, superando os cheiros frescos de asfalto e terra molhados. Poças marcavam a rua irregular e a água jorrava das calhas que pendiam dos fundos do meu prédio de apartamentos do outro lado do beco.

Uma lufada de vento invadiu meu abrigo improvisado. Acocorei-me contra a parte de trás da caixa, colocando minha sacola atrás do pescoço como um travesseiro e segurando as páginas de Alice no País das Maravilhas a fim de eu não me perder na leitura. Algumas semanas antes, risquei o Alice no título e o substituí por Alison. Em parte era para todos saberem que o livro era meu. Mas havia mais... parte de mim queria que eu pudesse viver as mesmas aventuras... que eu de alguma forma fosse Alice e entrasse numa toca de coelho onde um mundo novo me aguardasse — um mundo onde alguém tão peculiar e deslocada quanto eu talvez se encaixasse. Um lugar do qual eu pudesse fazer parte.

Nunca fui boa em entender outras pessoas. Principalmente porque eu me mudava demais. Pelo menos era o que eu dizia para mim mesma. Não tinha nada a ver com minha dificuldade em confiar nas pessoas ou minha incapacidade de me relacionar com elas diariamente.

A leitura me dava amigos o bastante, e os livros de Lewis Carroll eram meus preferidos, sendo uma das poucas coisas que minha mãe me deixou ao morrer, pouco depois do parto. As histórias me aproximavam dela, apesar de jamais tê-la conhecido. Talvez porque, secretamente, eu entendesse como o País das Maravilhas era real para ela, considerando nosso parentesco distante com os Liddell de Londres.

Certa vez, quando eu morava num orfanato e esperava por uma família adotiva, entrei no escritório e li minha ficha. Só assim é que pude descobrir minha origem. Alice Liddell, a menina real que inspirou as histórias de Carroll, teve um filho que, antes de ir para a guerra e morrer no campo de batalha, se envolveu com uma mulher. A namoradinha dele acabou grávida e veio para os Estados Unidos a fim de criar o filho ilegítimo. O menino cresceu e teve uma filha: minha mãe, Alicia.

De alguma forma, tudo isso deixava minha mãe maluca. Minha ficha dizia que ela passou algum tempo num hospício quando adolescente, depois de pintar os personagens do País das Maravilhas em todas as paredes de casa e insistir que eles conversavam com ela nos sonhos. Quando nasci, ela saltou do segundo andar do hospital para testar as “asas de fada” que as vozes diziam que ela tinha. Ela caiu num arbusto de rosas e quebrou o pescoço.

O médico disse que ela cometeu suicídio — depressão pós-parto e luto por ter perdido meu pai meses antes, num acidente de fábrica. Qualquer que fosse o motivo, algo nunca foi explicado... as marcas do tamanho de uma moeda em suas omoplatas, grandes demais e perfeitamente separadas para terem sido causadas por espinhos.

Minha opinião? Ela tinha asas, sim. Asas que nunca brotaram. Se sou louca por pensar isso, paciência. Porque, se eu era maluca, isso significa que tínhamos uma relação. Algo em comum. Desde que ninguém ficasse sabendo.

Minha mãe também deixara para trás uma câmera polaroide — do tipo que cospe imagens prontas ao aperto de um botão. Sei como usá-la desde os cinco anos.

Abracei com mais força as fotografias que tirei da bolsa. Era algo em que me tornei boa: me esconder atrás de árvores nos parquinhos ou de carros no estacionamento de shoppings para captar momentos das famílias e amigos de outras pessoas. Gostava de me cercar deles — me protegendo, assim, da falta da minha própria família.

Arregacei a manga da minha jaqueta jeans para consultar o relógio. Só mais dez minutos e as aulas terminariam. Então eu voltaria para meu apartamento e fingiria ter passado o dia onde deveria ter estado. Apareci no início da minha última aula, ficando o suficiente para ser considerada na lista de presença, antes de “dar um passeio no banheiro” e não voltar mais. Com alguma sorte, a srta. Bunsby, minha cuidadora mais recente, jamais ficaria sabendo da minha fuga. Moro com ela só há um mês. Não queria incomodá-la e ser abandonada de novo. Apesar de ser uma viúva vegetariana de quarenta e tantos anos, ela era a melhor cuidadora que já tive.

Olhei para o sexto andar do prédio. Nosso apartamento ficava mais à esquerda, onde a escada de incêndio estava toda enferrujada, virando um esqueleto preto pendente e inútil. Eu era ótima em escalada e tentara fazia algumas semanas descer pela escada e sair à noite para uma sessão de fotografias. Escorreguei e caí.

Seis andares era uma queda e tanto. Eu deveria ter morrido ou ao menos quebrado alguns ossos. Durante a queda, porém, entrei em estado de sonho e, de alguma forma, ao acordar não tinha nenhum ferimento. Não estava nem mesmo com dor. Só tinha uma lembrança estranha de enormes asas pretas.

Mexendo nas fotos, encontrei uma no fim da pilha: uma mariposa enorme de corpo azulado e asas pretas, toda aberta numa flor entre um ângulo de sol e sombra. Lembro-me de quando a vi no parque, como se ela estivesse paralisada entre dois mundos. Tirei a foto não apenas pelo simbolismo, mas também porque já tinha visto o inseto antes. Minha mãe tinha desenhado uma mariposa como aquela numa folha de papel mantida dentro dos livros da Alice. O mais estranho é que ela também tinha feito, bem ao lado, um esboço da Alice presente nas ilustrações do País das Maravilhas. De alguma forma — em sua mente —, os dois desenhos estavam conectados. Perdi o desenho durante uma de minhas muitas mudanças. Então, ao ver aquela mariposa idêntica, ao vivo e em cores, tive de imortalizá-la com minha câmera.

Suspirando, guardei a imagem no meu livro da Alice, para marcar a página. Aquela foto era a preferida da srta. Bunsby. Ela disse que eu tinha um dom, que, se eu continuasse melhorando, ela me daria a câmera do marido — uma Yashica 44 —, assim como seus livros sobre revelação de filmes.

Ela foi um dos poucos adultos que acreditaram em mim sem me criticar. Todavia, se a srta. Bunsby soubesse que eu achava que essa mesma mariposa exercera um papel nas fantasias da minha mãe quanto ao País das Maravilhas, ela pensaria que minha imaginação era fértil demais, como meus professores e cuidadores sempre disseram. Fiz a pesquisa na biblioteca. Mariposas vivem meses, não décadas.

Pensar nisso meio que me deixou assustada. Mas também fez com que eu me sentisse especial, como se eu e minha mãe importássemos para alguém em algum lugar — o bastante para merecermos ser observadas. Não foi a primeira vez que senti que insetos e plantas estavam tentando entrar em contato comigo de um jeito que não tentavam com outras pessoas. Eu ouvia vozes desde que cheguei à puberdade, perto do meu aniversário de doze anos, há um ano. Ainda assim, sabia muito bem que não deveria compartilhar isso com ninguém, pelo risco de acabar na ala psiquiátrica, como minha mãe.

Meu estômago roncou e coloquei a mão na barriga. A srta. Bunsby serviria beterraba e caçarola de tofu hoje à noite. Só de pensar nisso minhas papilas gustativas querem sair correndo. Tive de economizar meu lanche ao máximo. O pacote de biscoitos com manteiga de amendoim que guardei do almoço estava aberto ao meu lado. Coloquei um deles na boca e o mastiguei lentamente. Migalhas se acumularam na ilustração de Alice fugindo de alguns guardas da Rainha de Copas, na esperança de manter a cabeça, de modo que as espanei dali, fazendo-as cair na minha coxa.

Uma barata surgiu de baixo das abas da caixa e subiu pela minha calça para pegar um pouco de comida sem nem sequer um “por favor” ou “obrigada”. Em minha opinião, as baratas eram os insetos mais rudes do mundo. Eu conversara com moscas e besouros que eram educados e interessantes. Mas as baratas nunca tinham muito a dizer além de resmungar por causa da falta de lixo e sujeira, agora que os seres humanos habitavam o mundo delas, alegando que os sacos de lixo e os aspiradores de pó estavam prestes a acabar com elas.

Agitei a mão, afastando o inseto. Encolhi-me mais na caixa e censurei meus maus modos.

— Estou tentando ajudá-la, sua idiota. Você quer ser esmagada? — Peguei minha bolsa, enfiando as fotos e livros dentro dela, e saí para a tempestade, correndo até o espaço entre meu prédio e a barbearia ao lado.

A única entrada era pela frente. Nosso senhorio, Wally Harcus, mantinha a porta dos fundos trancada “por segurança”. Pelo menos era o que ele dizia. Ele só queria tirar vantagem de todas as mães solteiras e menininhas que viviam em seu prédio de aluguel barato. A porta dele era a primeira do corredor, o que significava que ele tinha a situação perfeita, da perspectiva de um pervertido.

As gotas de chuva e o gelo me feriam. O tecido da minha jaqueta e da minha calça absorvia todas as gotas e eu me sentia cinco quilos mais pesada e vinte graus mais gelada assim que entrei no prédio.

Minhas mãos estavam molhadas demais para segurar a maçaneta e, por isso, a porta se fechou com um baque. Gemi ao ouvir o barulho.

Mal tinha passado pela porta de Wally quando esta se abriu. Segui lentamente pelo corredor até a escada, mantendo os olhos no homem.

Seu rosto suado apareceu antes, depois todo o corpo, camadas de banha mal contidas por uma camiseta azul justa e calça cáqui manchada de gordura. Dava para sentir o fedor dele com meus olhos — o cheiro de carne e repolho podres. Bolsas de suor formavam círculos irregulares sob seus braços, criando uma mancha azul-marinho.

Ele sempre me lembrava uma morsa — careca, dobras de pele sobre a sobrancelha, o queixo duplo e um bigode que parecia um salsichão polonês semicomido pendendo sobre seus lábios gordos. Os sons que emitia cada vez que respirava só contribuíam para a ilusão de um mamífero marinho.

— Oi, Alison. Se molhou um pouco, né? — Seus olhos brilharam, escuros e aquosos como carvão líquido, ao dar uma mordida em seu damasco maduro demais. O suquinho escorreu por seu queixo e ele abriu uma risadinha maliciosa. Seus incisivos, grandes demais para sua boca, exibiam-se como presas de marfim subdesenvolvidas.

Meu estômago se revirou de novo enquanto ele saía completamente para o corredor e encarava meu peito, a camiseta grudada no corpo. Ele parecia faminto, como se fosse me engolir toda. Fechei a jaqueta e tirei mechas de cabelo molhado do rosto.

— Tenho chocolate quente no fogão. Quer uma xícara? — perguntou ele.

Eu o surpreendi me encarando várias vezes, mas ele nunca antes teve coragem de me convidar para entrar. Engoli em seco e segurei com força as alças da bolsa.

— Não, a srta. Bunsby está me esperando.

— Não está, não. Teve de ir rapidinho ao mercado. — Ele me mostrou um bilhete.

Só tive tempo de ver um triângulo amassado com as palavras voltarei dentro de uma hora, antes de ele guardar o bilhete no bolso.

— Na verdade — continuou Wally —, ela me disse para lhe fazer companhia. Disse que você é nova demais para ficar sozinha sem causar problemas. Posso ir ao seu apartamento, se você quiser. — Ele balançou as chaves que pendiam do cinto, o sorriso ainda maior.

Idiota.

Eu o odiava e me odiava ainda mais por estar com medo. Já encarei monstros como ele antes. Numa família adotiva anterior, tive um irmão adotivo de catorze anos que me prendeu no porão e enfiou a língua na minha boca enquanto suas mãos subiam por sob minha camiseta. Ainda assim fui devolvida ao abrigo por morder a ponta da língua dele e quebrar seu polegar. Eu era a problemática.

Infelizmente para mim, não seria tão fácil me livrar de Wally Harcus quanto foi me livrar de um adolescente magricela.

Meus calcanhares tocaram o primeiro degrau, me detendo. Era correr ou lutar. De uma coisa eu sabia: a srta. Bunsby jamais pediria à morsa que me fizesse companhia. Ele provavelmente a viu saindo e pensou que era a chance perfeita de tentar algo. E ali estava ele entre mim e minha única rota de fuga. E, mesmo que eu me trancasse dentro do nosso apartamento, ele tinha as chaves para entrar.

Eu podia colocar algo contra a porta e ganhar tempo para descer pela escada de incêndio quebrada. Eu provavelmente cairia e morreria, mas isso seria melhor do que a alternativa.

Dei meia-volta e subi os quatro lances de escada. Dava para ouvir os passos dele me seguindo devagar, se arrastando. Ele não tinha pressa. Todos cuidavam da própria vida aqui. Ninguém o impediria, o que tornava a perseguição tão desafiadora quanto a de uma mosca já presa na teia da aranha.

Lágrimas encobriam minha visão ao chegar à porta do nosso apartamento. Um pedaço de fita adesiva pendia com um pedacinho do bilhete da srta. Bunsby no ponto onde ela o prendera, perto do olho mágico. Wally tinha pegado a cartinha que ela deixou para mim.

Engolindo em seco a bile que subia pela garganta, lutei para enfiar a chave na fechadura. A adrenalina usava meu coração como saco de pancadas, socando-o até que ele batesse incontrolavelmente no peito. Tinha acabado de conseguir entrar, fechar a porta e trancá-la, quando Wally subiu o último degrau da escada de nosso andar.

Com todo o corpo rígido, arrastei a cadeira preferida da srta. Bunsby e a coloquei sob a maçaneta, correndo para me trancar no quarto, deixando a bolsa cair junto à soleira, do lado de dentro. A tarde nublada reduzia a luminosidade do dia a uma névoa cinza e, com as cortinas pesadas cobrindo as janelas, as sombras inundavam o quarto e pintavam formas fantasmagóricas nas paredes nuas.

Chaves tilintavam do lado de fora do nosso apartamento, alto o bastante para eu ouvi-las pela porta fechada. Chorando, fui até a janela, abri as cortinas e o vidro. Uma lufada de vento e chuva soprou em meus cabelos, fazendo-os bater contra meu rosto. Lágrimas escorriam queimando meu rosto, enquanto eu passava uma das pernas pelo peitoril, prestes a me jogar.

— Tsc, tsc. Isso seria uma tragédia e um desperdício. — Um sotaque caipira marcado me deixou paralisada ali, sentada entre a vida e a morte. — Claro que sua existência vale mais que a daquele rato gordo.

Virei a cabeça em direção à voz. No canto esquerdo do meu quarto, as sombras se moviam e assumiam a silhueta clara de um homem.

Consegui falar entredentes.

— Q-quem está aí?

— Apresentações não são necessárias entre amigos. — O intruso saiu para a luz fraca, revelando um rosto ao mesmo tempo belo e assustador. Ele não era humano. Não, ele era perfeito e místico demais para isso. Marcas semelhantes a tatuagens brilhavam com cores vivas sob seus olhos escuros e fantasmagóricos. Seus cabelos azulados balançavam sem sincronia com o vento que entrava pela janela. — Acredito que mereço o título de amigo, você não acha? Considerando que da última vez você quase quebrou a cabeça ao descer por essa escada de incêndio. — Asas gigantescas surgiram atrás dos ombros dele, brilhando como seda preta sob a luz cinzenta.

Perdida entre o terror, a descrença e a esperança, trouxe a perna de volta para meu quarto e me encostei na junção entre o peitoril da janela e a parede.

— Você... então foi você. Você me salvou.

Ele alisou as luvas vermelhas que recobriam suas mãos.

— Não exatamente, Alison. Você mesma se salvou ao desafiar as leis da natureza. O simples fato de você ter tentado descer pela escada de incêndio foi digno de uma segunda chance na vida, não? A coragem misturada à estupidez se torna impulsividade, o que é uma característica admirável de onde venho, algo que deve sempre ser recompensado.

Estreitei os olhos para ele.

— Você me recompensou por minha estupidez?

Ele segurava uma cartola diante de si e a acariciava como se ela fosse um gato.

— Sua impulsividade. — Uma risada reverberou em seu peito. — Você é estranha, não é? Você não duvidou de mim ainda, nem questionou se sou real. Nem mesmo perguntou como sei seu nome. Você não se importa com nada disso, não é?

Fechei as mãos ao lado do corpo.

— Não importa se sou louca, desde que minha loucura me ajude a sobreviver.

Ele arqueou a sobrancelha, obviamente feliz e surpreso com minha resposta.

— Ah, você fala como uma verdadeira criatura do reino interior. A loucura, como qualquer outro aspecto da irracionalidade, pode ser usada como instrumento e arma nas mãos certas.

Não tive nem tempo de perguntar o que era o reino interior porque, no cômodo ao lado, os pés da cadeira arranhavam o piso de azulejo e riscavam meus nervos como garras. Wally estava no apartamento.

Minha garganta secou. Olhei para os degraus escorregadios lá fora e depois para dentro, na direção do homem alado agora de corpo inteiro junto à porta. Ele era alto e gracioso, com dezenove ou vinte anos e vestindo rendas e veludo, como um cavalheiro de outra época.

— Você é... você é o meu anjo da guarda? — Ouvi falar dessas criaturas, mas nunca acreditei que fossem reais. Naquele momento, porém, estava disposta a acreditar em qualquer coisa se isso fosse capaz de me salvar do senhorio ou de um pescoço quebrado.

Meu visitante mostrou os dentes num sorriso lindo que transformou seu rosto no parque de diversões do diabo — malícia oculta por um verniz de adorável persuasão.

— Estou bem longe de ser um anjo, meu patinho. Mas estou aqui para vê-la distribuir um pouco de sua virtude com um tolo pecador. — Ele colocou a cartola na cabeça. Mariposas mortas balançaram na aba, num tributo mórbido ao vento que soprava as cortinas. — Agora vamos nos divertir um pouco com o velho Wally, sim?


Capítulo 3


A Longa Perna
da Lei

Os passos de Wally, a Morsa, se aproximavam da minha porta.

— Não vai deixá-lo entrar, não é? — perguntei ao demônio... anjo... salvador... que seja. Ele ficou imóvel como uma estátua, as joias de seu rosto piscando em vários tons de dourado. — Você vai me ajudar uma última vez? — Uma veia latejava forte no meu pescoço e minhas cordas vocais tremiam como uma tarola.

As asas da criatura se abriram.

— Ah, não, patinho. Você mesma vai se ajudar. Afinal, você é quem tem uma linha direta com os mais antigos habitantes da Terra. Eles são mestres em outras coisas além de conversinhas, Alison. Eles têm habilidades. Você só precisa pedir uma mãozinha. — Ele apontou uma aranha de pernas longas que passava pela parede atrás dele, lançando uma sombra enorme sobre o gesso branco. — Ou oito patas. O que você preferir.

Antes que eu pudesse entender o gracejo, meu hóspede místico desapareceu numa nuvem de poeira azulada, substituído por uma mariposa do tamanho de um pássaro que se escondeu de novo nas sombras.

A mariposa da minha imagem... do desenho da mamãe.

Meu olhar se voltou para as polaroides que saíram pela abertura da bolsa. Antes de poder me ater a elas, a porta se abriu, criando uma trilha pelas memórias roubadas.

Meu estômago se revirou quando Wally entrou. Pedacinhos brilhantes de damascos estavam presos a seu bigode. Ele usou as costas da mão gorda para se limpar e quase tropeçou no meu exemplar de Alice no País das Maravilhas.

Ele o pegou e fez um barulho de desprezo.

— As aventuras de Alison no País das Maravilhas? O que há de errado com você, menina? Você é louca ou só estúpida? — O desenho da mariposa caiu do livro quando ele o balançou. Wally ficou olhando a imagem cair no chão. — Espere aí, já vi esse inseto. Estava tentando tirá-lo do prédio. Foi o que me levou à sua porta... — Wally se deteve, como se tivesse falado demais. — Afaste-se dessa janela. Isso não é nenhuma toca de coelho. Você vai tropeçar e eu terei que limpar sua bunda raquítica do asfalto.

Travei a mandíbula, imóvel.

Ele jogou o livro no chão.

— Olha, posso fazê-la suspirar ou chorar. De qualquer forma, isso vai acontecer.

Minha atenção passou de seu olhar desejoso para a parede sobre a porta. Para o desfile de aranhas saindo de um buraco atrás dele, na moldura da porta, cobrindo a parede e o teto. Havia umas trinta aranhas agora e mais delas surgiam. Será que a tempestade as despertou?

Peça uma mãozinha ou oito patas...

Talvez eu estivesse tendo alucinações. Talvez eu finalmente estivesse perdendo a cabeça, como minha mãe. Contudo, o que quer que estivesse acontecendo, tinha de usar isso em meu benefício. Não podia me mexer, e eu já tinha perdido a oportunidade de mergulhar para a morte.

— Me ajude — implorei, sem saber direito o que queria dizer com isso nem para quem estava pedindo.

— Ah, vou ajudá-la. — Em segundos, Wally me prendeu contra a parede com sua mão suada no meu pescoço. Segurei o pulso dele com ambas as mãos e enfiei minha unha com força. Ele riu, seu hálito azedo no meu rosto. — É, vou ajudá-la de verdade. Está vendo, sou o coelho branco e vou levá-la numa aventura que você jamais esquecerá, Alice.

Ele me ergueu pelo pescoço até que fiquei só na ponta dos pés. A pressão fechava minha garganta e pontos pretos começaram a surgir no meu campo de visão. Chutei-o, mas ele se desviou e, com a mão livre, começou a mexer no meu cinto.

Meus músculos abdominais se contraíram, num sinal de repulsa. Os pontos pretos aumentaram, mas não por falta de oxigênio. Virei os olhos e vi o enxame de aranhas nas paredes e no teto — centenas delas.

— Ajude-me agora — ordenei desta vez, sem hesitar. Minha única esperança era tirar Wally do apartamento com uma avalanche de aranhas levando-o escada abaixo.

A reação das aranhas foi instantânea e violenta. Wally gritou e me soltou quando o enxame começou a subir por ele, entrando em seus sapatos e escalando suas pernas. Afastei-me da janela e puxei o ar, enquanto os insetos continuavam com sua marcha, tomando conta do peito dele. Seus gritos de horror eram abafados pelos sussurros furiosos das aranhas que o recobriam. Mais aracnídeos vieram substituir aquelas que morriam. Elas chegaram ao pescoço e ao rosto de Wally, depois encheram sua boca entreaberta, silenciando seus gritos desesperados. Ele levou as mãos ao pescoço, os braços nus cobertos por mangas de pernas ágeis e tórax arfantes.

Seu nariz e seus olhos desapareceram sob a infestação crescente. Ele perdeu o equilíbrio e tentou se segurar na parede, mas errou o alvo. Caiu da janela aberta, engasgando-se durante a queda.

Paralisada, recuei até a porta do meu quarto, perdendo o fôlego ao ouvir o baque pesado do corpo dele no asfalto molhado.

Um movimento repentino no canto esquerdo do quarto me distraiu. A mariposa saiu das sombras e pousou no peitoril, observando a confusão lá embaixo. Um ataque de náusea queimava meu estômago.

— Foi um acidente — choraminguei para o inseto, como se estivesse me confessando. — Eu... não queria que isso acontecesse!

— Ah, mas eu queria. — Aquele sotaque se revirava dentro de minha mente. A voz pertencia à mariposa e ao homem. De alguma forma, eles eram a mesma coisa e de alguma forma também estavam ligados às histórias do País das Maravilhas. Minha mãe tinha entendido tudo. O que significava que ele nos observava fazia anos. Não só isso; ele levara Wally ao meu apartamento mais cedo. Foi por causa dele que o senhorio encontrou o bilhete da srta. Bunsby antes de mim. Tudo foi armado.

Eu não conseguia falar, envolvida por um furacão de confusão, surpresa e arrependimento.

— Não se preocupe com aquele rato, Alison — repreendeu-me mentalmente a voz britânica. — Há incontáveis jovens a quem ele fez mal. Coube a você resolver o problema. Desequilíbrio gera desequilíbrio. O caos é o que restabelece o equilíbrio. Haverá repercussões. Você não pertence mais a este lugar. É melhor assim. Você está destinada a muito mais do que este mundo tem a oferecer. — A mariposa voou sobre mim, pairando diante do meu rosto. — Assuma a responsabilidade. O poder é o único caminho para a felicidade, e posso ajudá-la a conquistá-lo. Meu nome é Morfeu. Encontre um espelho e me chame quando estiver pronta para viver seu destino.

Ao dizer isso, o enorme inseto virou-se e saiu pela janela.

— Espere! — gritei. Lágrimas ensopando meus olhos, me arrastei até a janela e olhei para baixo. Dois adolescentes de bicicleta que estavam ao lado do corpo de Wally olharam para cima. Pouco antes o homem estava me dominando... agora ele parecia uma boneca quebrada com braços e pernas revirados em poses incomuns até se desencaixarem do restante do corpo. As poças ao lado dele estavam manchadas de vermelho, com o sangue que vertia da parte de trás de seu crânio.

Cachorros latiam e pessoas gritavam, enquanto mais espectadores saíam do prédio. Lentamente, todos voltaram a atenção para minha janela. Vários deles apontaram para mim; alguns menearam negativamente a cabeça.

Queria correr, mas não conseguia me soltar da janela. As aranhas tinham sumido, entrando em milhares de esconderijos acessíveis somente a insetos, abandonando-me ao desejo de ter o tamanho delas, para poder desaparecer e jamais ter de enfrentar as acusações e perguntas que viriam.


Morfeu tinha razão. Não encontrei abrigo depois disso. E suspeito que tenha sido por isso que ele cuidou para que Wally encontrasse o bilhete e me perseguisse.

O departamento de proteção à infância acusou a srta. Bunsby de negligência, alegando que qualquer pessoa com minhas “tendências violentas” não deveria ser deixada sozinha enquanto ela fazia compras. Eles também disseram que eu andava faltando às aulas, o que só fez com que a srta. Bunsby parecesse mais inepta. Fui tirada dos cuidados dela na mesma noite.

Enquanto a polícia e os assistentes sociais entrevistavam a srta. Bunsby na sala, eu guardava minhas coisas, tentando evitar olhar pela janela. A srta. Bunsby tinha deixado um saco marrom de mercado na cama. Engraçado ela pensar que havia fracassado comigo. Deu para ver isso refletido em seus olhos amendoados úmidos quando ela chegou em casa depois de toda confusão. Pena que eu não podia lhe dizer a verdade. Pena que não pude dizer que ela não tinha culpa por eu ter sido cúmplice de um assassinato... que a responsabilidade foi do próprio Wally, e também de uma mariposa mística e de um enxame de aranhas.

Dentro do saco de mercado, ela colocou a câmera do marido, filme e um livro sobre revelação de fotografias. Havia ainda um pacote de biscoitos de manteiga de amendoim, uma maçã e uma garrafa de água. Senti uma dor no coração, porque sabia que podia ter sido feliz com ela, se Morfeu não tivesse outros planos para mim. No entanto, por mais que eu sofresse, me recusei a chorar. Cansei de chorar.

E nunca mais seria vítima novamente.

Ao deixar o apartamento, a srta. Bunsby prometeu tentar me visitar um dia. Eu sabia que isso não aconteceria.

Um mês se passou, cheio de avaliações psiquiátricas e exames médicos, a fim de garantir que eu não estava traumatizada. Por mais que tentassem, os médicos não podiam me considerar louca, porque eu me recusava a dar detalhes sobre o acontecido. Só disse que o senhorio tentou me agarrar, lutamos e ele caiu da janela. Simples assim.

Quando o psiquiatra exibiu os cartões com borrões para me analisar, eu nunca disse com o que eles realmente se pareciam. Não lhe disse que via tocas de coelhos, lagartas fumantes, menininhas usando aventais com facas nas mãos, homens alados, mariposas do tamanho de um papagaio ou exércitos de aranhas. Também não deixei ninguém me surpreender falando de flores e insetos que insistiam em me fazer companhia. Sabia como parecer sã.

Fiz um trabalho tão bom que tive alta sem mais avaliações depois de apenas seis semanas. O problema era que o serviço social não conseguia me colocar com outra família adotiva, considerando toda a minha bagagem. Então o abrigo se tornou minha residência permanente.

Pelo menos era o que eles pensavam. Eu não pretendia ficar ali. Planejava ir a algum lugar onde as leis e os olhos atentos deles jamais me encontrassem novamente. E sabia exatamente quem me ajudaria na fuga.

Todas aquelas semanas em terapia, adiei meu contato com Morfeu. Precisava de tempo para refletir. E cheguei a três conclusões. Primeira, minha família estava de alguma forma ligada às histórias de Lewis Carroll, o que significava que o País das Maravilhas existia em algum nível. Em segundo lugar, Morfeu também estava ligado ao País das Maravilhas e precisava de mim para algo, porque ninguém ajuda outra pessoa sem querer algo em troca. Por fim, antes de ajudá-lo, ele teria de me dar algumas coisas: uma forma de fugir do abrigo e respostas a todas as minhas perguntas.

Era difícil aguentar a solidão. O prédio cinzento tinha vários andares com quartos em todos eles. Eram como dormitórios, com três ou quatro meninas em cada quarto... ou meninos, dependendo do andar. O lugar era cercado por uma grade de ferro para manter os estranhos longe e os internos dentro. Havia apenas um portão, sempre trancado.

A lavanderia — um prédio de teto reto com janelas de ventilação instaladas bem embaixo das calhas — estava abandonada, exceto nos fins de semana, quando nos revezávamos lavando nossas roupas de acordo com o número dos nossos quartos. Concluí que seria o melhor lugar para uma reunião na noite de quarta-feira.

Saí do meu quarto, lanterna na mão, cerca de duas horas depois que as luzes se apagaram.

Encontrei um espelhinho de mão na gaveta de uma das minhas colegas de quarto e o levei dentro de uma fronha, assim como os livros de Lewis Carroll de minha mãe, um caderno de espiral e uma caneta. Ainda não sabia onde o espelho entrava, mas Morfeu insistiu que eu usasse um para chamá-lo. Como a lavanderia estava trancada, subi numa árvore ao lado e alcancei o teto usando os galhos, abri uma janelinha de ventilação e entrei, colocando primeiramente os pés. A sola da minha bota tocou uma secadora, então a queda não foi muito grande.

Cortei a escuridão com minha lanterna, revelando um chão de cimento, lavadoras e secadoras e quatro cestos de vinil. Uma mistura de pó e sabão me fez espirrar. Uns poucos bichos noturnos me receberam antes de cuidar da vida deles.

O luar entrava pelas janelinhas e iluminava o ambiente com um toque prateado cremoso. Arranjei um lugar perto da porta a fim de arrumar minhas coisas. Meu corpo seria uma barricada, no caso de alguém descobrir que eu não estava na cama e vir à minha procura. Se eu bloqueasse a entrada, isso me daria tempo extra para pensar numa desculpa.

Depois de abrir minha jaqueta no chão, como uma almofada, apoiei a lanterna contra a parede, criando um anel de luz, e então me sentei e ergui o espelho.

— Morfeu — sussurrei, e só precisei fazer isso.


Capítulo 4


Vinte Perguntas

Um brilho azul apareceu na superfície do espelho, pulsando. Mas o pulso não era apenas visual; era tátil. Eu o sentia vibrando pelo cabo. Com cuidado, coloquei o espelho no chão. Sob um brilho azulado, a agora conhecida mariposa saiu do espelho, como se estivesse esperando dentro dele o tempo todo.

Ela alçou voo e pousou numa poça de luar à minha frente. Suas asas se encolheram diante do peito e depois se abriram como as de um anjo, revelando uma pele branca e perfeita e partes ocultas meio carnavalescas, iluminadas por joias sob olhos negros. Desgrenhada pela estática mágica emanando da forma humanoide e das roupas extravagantes, uma massa de cabelos azulados na altura dos ombros esvoaçava-se em sua cabeça como se soprada por uma brisa.

Morfeu pairava sobre mim — arrumando o chapéu num ângulo ousado.

— Alison — disse ele simplesmente, e o cheiro doce de algo alcoólico veio em minha direção. — Pronta para fazer um acordo?

Ergui o dedo. Da última vez que estivemos juntos, estava distraída pelo perigo que me cercava e maravilhada com a mágica dele. Tudo isso levou ao assassinato de um homem. Nessa noite, eu daria as cartas.

— Você já brincou de Vinte Perguntas? — perguntei a ele.

Ele tombou a cabeça e deu uma risadinha, erguendo uma das asas por sobre o ombro para limpá-la.

— Deixe-me ver... É algo parecido como Responda ao Enigma?

Fiz uma cara de intrigada.

— Ãhn?

Ele abriu as asas e se sentou no meio da lavanderia, seus traços iluminados pela luz azulada que irradiava de seus cabelos e das joias sob seus olhos.

— Responda ao Enigma: não pertenço a ninguém, mas sou usado por todos. Para alguns, sou dinheiro; para outros, posso voar. Crio espaço e não ocupo espaço. Para os que nunca mudam, não mudo nada. Mas, para os que mudam, carrego o peso das areias do deserto. Quem sou eu?

Mordi o lábio. Não era fácil ignorar a vontade de competir — de provar a ele que eu era capaz de desvendar o enigma. Mas sentia que era exatamente isso que ele queria, e precisava me manter atenta aos meus objetivos.

— A bola está comigo, Morfeu. Vinte perguntas. Eu pergunto e você responde. Não vou fazer acordo antes de você satisfazer minha curiosidade. Nada de perseguir coelhos.

Ele bufou.

— Nem mesmo coelhos brancos?

Franzindo a testa, abri a sacola e peguei a caneta e o caderno.

— Nada de fugir da raia. Respostas diretas. Você quer algo de mim. Se pretende conseguir, eu é quem dou as cartas daqui por diante.

— Ora, ora. Tão jovem e tão tirânica. Gosto disso numa cúmplice. — Ele cruzou e descruzou as pernas, apoiou o queixo com as mãos e estreitou os olhos. — Com certeza, patinho. O palco é seu.

Raios azulados vazaram de sua sombra no cimento, cruzando a lavanderia em todas as direções. As lavadoras e secadoras foram ligadas e começaram a rugir e balançar.

Cerrei os dentes.

— Não sou patinho. Está vendo alguma pena em mim? Sou Alison. Nada mais, nada menos. Entendeu?

As joias sob seus olhos emitiram um cálido tom alaranjado.

— Ah, entendi. Mas você, não. Porque você é muito mais do que apenas um nome.

Franzi a testa.

— O que você quer dizer com isso?

— Todos são mais. Somos formados por forças vivas, sangue, ossos e espírito. E seu sangue é mais precioso que o dos demais.

Não conseguia pensar numa resposta, distraída demais que estava pelos motores ecoando nas paredes.

— Pare as máquinas. Preciso conseguir ouvir se alguém se aproximar.

— Temo que não. Minha mente funciona melhor ao som do caos ao fundo. E a sua precisa aprender a fazer o mesmo. E, quanto à sua privacidade, já cuidei disso. Dê uma olhadinha no espelho, frutinha.

Rangendo os dentes ao ouvir o apelido novo — que era dez vezes mais irritante que o anterior —, ergui o espelho. O reflexo fraco do meu rosto ficou borrado, mudando para um portal que mostrava o terreno ao redor da lavanderia. Pontinhos de luz flutuavam em meio às árvores e ao mato. Olhando mais perto, eu conseguia ver as formas de mulherezinhas com escamas reluzentes e asas de libélula.

Um calafrio estranho me deixou toda arrepiada — uma consciência de toda a mágica ao nosso redor que eu não sabia que era possível.

— O que são elas?

— Fadas. Apesar de pequenas, elas podem deter qualquer um que tente nos interromper. Só cuidado com onde pisa ao sair daqui. Senão, pode tropeçar em um ou dois corpos.

Arfei e deixei o espelho de lado.

— Elas os matarão? — Não podia deixar isso acontecer. Uma morte na minha consciência era o bastante.

Morfeu gargalhou.

— Deveria ter esclarecido. Corpos dormentes. Eles não estarão feridos ao acordarem, só muito satisfeitos e confusos. Mais importante, eles estarão preocupados demais com os próprios pensamentos para perceber que você esteve aqui ou para se importar. Mas, novamente, esta não é a minha vez de falar. Você tinha perguntas a me fazer, sim?

Tenho tantas perguntas mais agora.

Deixei de lado a vontade de saber tudo de uma vez, determinada a continuar focada. Peguei da fronha os livros da minha mãe e os coloquei entre nós dois, preparando-me para escrever no caderno as respostas dele.

Ele bateu palmas.

— Ah, que bom! Gosto deste joguinho. Me mostre todas as suas cartas e eu lhe mostrarei as minhas. Espere até você ver o que tenho na manga.

— Pode parar de falar? — repreendi. — Então, você e aquelas... fadas... vocês vivem no País das Maravilhas?

Seu semblante se iluminou. Ele estava obviamente ansioso por responder, mas manteve a boca bem fechada.

— Vamos logo! — insisti. — Vocês são do País das Maravilhas?

Ele permaneceu em silêncio.

— Sério?

— Você me pediu para parar de falar.

Enfiei as unhas em meus joelhos.

— Argh! Me responda!

— Uau. — Ele tirou as luvas, uma de cada vez, prazerosa e enlouquecidamente calmo. — Não precisa se exaltar. Sim... Sou do País das Maravilhas, assim como minhas adoráveis cachorrinhas lá fora.

— Isso quer dizer que — engoli em seco — o País das Maravilhas é real?

— Sim.

— E a toca do coelho também? — perguntei, com um nó na garganta.

Estudando-me na luz fraca, Morfeu fez que sim.

— Posso lhe dar um mapa. É só pedir.

Segurei o colarinho da minha camisa, tentando esconder a pulsação acelerada no pescoço.

— Que papel você exerce lá? Nunca o vi nas histórias.

Uma faixa de mágica azul saiu da ponta do seu dedo até meu exemplar de As Aventuras de “Alison” no País das Maravilhas. As correntes elétricas viraram as páginas, parando ao chegarem à ilustração da Lagarta conversando com Alice.

— Assim como sua inteligente e curiosa heroína, eu não era exatamente eu mesmo nas histórias mais antigas.

Meu olhar se voltou para o texto na página e a resposta de Alice à pergunta da Lagarta sobre a identidade dela: Infelizmente não posso explicar, senhor. Porque não sou eu mesma, entende?

Engoli em seco, a verdade me atingindo como um tapa na cara.

— Você é a Lagarta... depois de sair do casulo.

Morfeu fez uma cara feia, como se ofendido.

— Mariposas e borboletas não apenas eclodem de casulos. Elas se transformam. Agora você tem mais seis perguntas. Não as desperdice, frutinha.

— Espere aí... Só fiz quatro perguntas até agora.

— Tenho que discordar. — Ele mostrou as mãos numa faixa de luar, balançando os dedos e criando sombras na parede; formas incrivelmente reais para uma sombra. Algumas pareciam xícaras, outras, cogumelos, outras como rosas atingidas por baldes de tinta. — Você fez catorze perguntas, apesar de a maioria delas ser inútil. Primeiro, me perguntou se já tinha brincado de Vinte Perguntas. Bom, isso em si é uma pergunta. Depois, quando lhe propus o enigma, você disse, e estou citando, “Ãhn?”. Outra pergunta. Em seguida, depois de pedir para eu não lhe chamar de patinho, perguntou se eu via alguma pena em você e, depois, se eu “entendi”. Por fim, você perguntou o que eu estava querendo dizendo sobre você ser mais do que um nome. Sinceramente, você realmente acha que alguma dessas perguntas eram necessárias? Claro, quando você perguntou sobre as fadas, o que elas eram e se elas matariam seus tratadores de zoológico bobinhos, isso foi quase relevante.

Meus olhos queimavam.

— Não vivo num zoológico! — exclamei, furiosa.

Morfeu riu e fundiu seus fantoches de sombra num coelho saltando pela parede.

— Acrescente a isso as quatro perguntas sobre mim e meu lar, as únicas que realmente pareciam ter lá a sua importância, se me permite dizer, e você fez onze perguntas. Infelizmente, você repetiu uma delas duas vezes depois de me pedir para parar de falar, e em seguida questionou minha seriedade. Ou seja, mais três. Então só restam seis. Escolha suas palavras com sabedoria.

Reprimindo um grito, apertei a caneta na mão até me ferir.

— Tudo bem — murmurei, preparando-me para fazer mais uma pergunta que tinha medo de já ter feito antes de ele me tirar mais oportunidades. — Você entrou em contato com minha mãe, não é? Quando ela era adolescente.

As lavadoras e secadoras ficaram em silêncio, enquanto a mágica dele voltava a seu corpo e a malícia desaparecia de seus traços. Ele tirou o chapéu e o pôs no colo.

— Eu tentei, Alison. A mente dela... estava mais frágil do que eu imaginava.

Joguei o caderno no chão e me levantei.

— Você me disse que a impulsividade sempre rende uma segunda chance na vida. Então por que você não a segurou? Você me segurou! Você não poderia ter feito a mesma coisa por ela? A queda dela foi muito menor! Você poderia tê-la segurado com suas asas! — Lágrimas rolavam por meu rosto. Estava furiosa, talvez mais comigo mesma do que com ele. Prometi nunca mais chorar.

Ele ergueu a cabeça para mim de seu lugar no chão. As joias brilharam num tom de mirta, refletindo a suavidade de sua expressão. Era quase como se uma partezinha dele se solidarizasse.

— Sua mãe optou por saltar ao ar livre. Havia espectadores demais no estacionamento. Ela impossibilitou qualquer resgate. Se ao menos tivesse saltado de uma altura um pouco maior, suas próprias asas poderiam tê-la salvado. Os dois cálculos errados lhe custaram tudo.

— Não. Foi você quem lhe custou tudo. Por que você insiste em importunar minha família? — Recusei-me a pensar na ironia das palavras e esperei que ele fizesse o mesmo. Se ele inventasse alguma piadinha estúpida sobre isso, ou sugerisse que eu tinha quatro perguntas e agora só me restavam duas, eu perderia o controle. Eu o estrangularia com as próprias mãos, com ou sem mágica elétrica.

Por sorte, ele apenas balançou a cabeça e disse:

— Não sou o responsável, nem estou aqui para reparar todas as coisas erradas com as quais você teve de lidar na vida. Em vez disso, estou oferecendo uma forma de você honrar a morte da sua mãe. De você fazer as pazes com isso.

Enxuguei a umidade quente do meu rosto.

— Não quero fazer as pazes com isso! Só queria tê-la conhecido. E só tenho essas histórias estúpidas para me lembrar dela! As histórias que a mataram. — Chutei os livros na direção dele. Os livros correram pelo chão por alguns centímetros, mas não foram muito longe. Olhei para eles, desejando que saltassem no ar e o atacassem como uma ave de rapina... que tivessem bicos para bicar aqueles olhos belos e infinitos, cheios de enigmas crípticos e respostas mais crípticas ainda.

Como se pudessem ouvir meus pensamentos, dois livros levitaram, folhas agitando-se como asas. Eles se voltaram para atacá-lo, mas Morfeu estava preparado, protegido atrás de uma redoma formada por luzes azuladas.

— Um espetáculo esplêndido — comentou ele com um quê de orgulho na voz ao ajeitar o nó da gravata. — Avise-me quando terminar com seu ataque de menina mimada.

Espere aí. Eu fiz com que os livros atacassem? Eu os fiz voar? Fiquei boquiaberta.

Impossível. Os livros caíram no chão com um baque, como se meu pensamento lógico os tivesse matado.

— Eu fiz isso. — Era uma observação. Mesmo descrente, tomei o cuidado para não formular aquilo como uma pergunta. Só me restavam duas agora... escolha suas palavras com sabedoria.

Olhei para os livros caídos e Morfeu, que desativara sua mágica e estava novamente desprotegido, esperando ao luar, paciente e sombrio.

— Minha mãe, ela tinha as mesmas habilidades, não é?

Ele devolveu o chapéu à cabeça.

— Sim, mas as habilidades dela estavam adormecidas. Tentei despertá-las, mostrar-lhe nos sonhos do que ela era capaz. Tentei encorajá-la a dar vida às pinturas nas paredes. Mas antes que ela pudesse... — Ele estendeu a mão. — Bom, deixe para lá. Você deu vida àqueles livros quase sem esforço. Pense no que você pode conseguir com orientação e foco. Está vendo, você conhece, sim, sua mãe. Porque esse toque mágico era parte dela. O que ela deixou para você em seu sangue. Cabe a você escolher o que fazer com isso. Ela só queria liberdade e fuga. Alguns podem dizer que ela conseguiu isso. Mas, quanto a você, algo me diz que um final assim não satisfaria alguém com sua... garra e determinação. Então o que você quer, Alison?

Não hesitei.

— Quero sair deste mundo. — Minha voz pareceu frágil, como um sopro de ar passando por uma janela de tela, enquanto eu afundava no chão, sobre minha jaqueta. Cruzei as pernas, imitando a pose de Morfeu. — Mas também quero tanto mais...

Ele sorriu.

— Claro que quer. Você quer tudo. A coroa, o trono, súditos temerosos prostrados de joelhos a seus pés. E você deve ter tudo isso. É sua linhagem. Isso lhe foi tirado, e você recuperará tudo. Acredito que é hora de lhe mostrar meu ás, princesinha. — Ele tirou um cilindro de papel da manga do paletó e o desenrolou para eu poder ver a bela caligrafia. A tinta dourada parecia úmida, mas sabia que não estava, senão ela teria borrado. Era um reflexo da luz da lanterna.

Corta a Pedra com uma Pena, Cruza uma Floresta com um Passo, Segura o Oceano na Palma da Mão, Altera o Futuro com a Ponta dos Dedos, Derrota um Inimigo Invisível, Esmaga um Exército sob Seus Pés, Acorda os Mortos, Colhe o Poder de um Sorriso.

— Não entendo...

— São testes — respondeu ele. — Se você passar por eles, vai destronar a impostora que ocupa seu lugar e será coroada a única e verdadeira Rainha Vermelha. Você reinará sobre metade do País das Maravilhas e jamais precisará voltar a este zoológico.

Engoli em seco. Um calafrio lento percorreu meu corpo, quente e doce, como uma árvore sentindo a resina verter de seus galhos ao primeiro sinal da primavera. Era minha intuição encantada despertando. Havia um lugar ao qual pertencer. Um lugar para governar. Lá, nunca mais seria solitária e todos me obedeceriam.

— Mas como posso realizar coisas tão impossíveis?

Morfeu enrolou o papel novamente e o guardou.

— Esta é sua vigésima pergunta, e muito bem usada. A resposta está no enigma que mencionei antes. E, caso você não tenha entendido, pense nisto: qualquer interpretação pode ser alterada simplesmente olhando-se para as coisas de outra forma, de ângulos mais coloridos... vendo-se as palavras e o mundo por um caleidoscópio, não por um telescópio.

Fiz que sim, porque fazia sentido, de alguma forma hábil e absurda. Depois de todo o alerta quanto a usar minhas palavras com sabedoria, já estava começando a ver tudo de um jeito diferente: conotação versus denotação, instinto versus lógica, infinito versus...

— Tempo — sussurrei, respondendo ao enigma.

— Isso mesmo. — Ele se levantou, tirando uma chavezinha presa a uma corrente em sua lapela. Ele a segurou de modo que ela foi iluminada pelo luar. — Tempo de treiná-la, tempo de superar os testes e tempo de conquistar seus súditos.

— Quanto tempo demorará? E o que você ganha com isso? Você disse que faríamos um acordo.

— Desculpe, Alison. Suas perguntas acabaram. Tudo o que você precisa saber é que vê-la coroada é tão bom para mim quanto para você. — Ele jogou a chave para mim e eu a peguei no ar. — Nada vai atrapalhá-la, por mais que demore. Você me dará o tempo e eu lhe darei os instrumentos de que você precisa para reclamar o que lhe é de direito, para mudar tudo o que você achou que você era. E então o tempo não terá mais importância, pois você vestirá o manto da imortalidade interior. A começar hoje, mudamos seu destino.


Capítulo 5


Trilhos de Trem

A falta do barulho tranquilizador do banho acaba com minha névoa nostálgica.

Espreguiço-me e me sento na cama, olhando para a porta entreaberta de onde o vapor sai numa dança fantasmagórica. Thomas está se barbeando. A água jorra na pia, para e ele cantarola baixinho ao passar a lâmina sobre a pele. A música é a que ele costumava cantar para mim quando estávamos namorando. As palavras atravessam minha memória: um homem implorando perdão por amar demais a moça, dizendo-lhe que não queria outra, só ela para sempre, que valia a pena qualquer sofrimento para ficar com ela.

Ele levou a cabo a mensagem da música, ficou ao meu lado quando qualquer outro homem teria desistido e me abandonado. Nunca me arrependi de preferir ele ao meu destino interior. Só me arrependo de tê-lo magoado. Assim como me arrependo de quase ter tirado de Alyssa sua chance de imortalidade.

Na época achei que estava fazendo a coisa certa, ficando em silêncio para salvá-la das práticas bárbaras do País das Maravilhas. Só tinha dezesseis anos quando me deparei com a toca da Irmã Dois e vi para que finalidade ela usava crianças, mas, mesmo com aquela idade, não conseguia fechar os olhos para a tragédia ou as semelhanças: como o coveiro extraía os sonhos delas para alimentar as almas incansáveis no cemitério. Da mesma forma como fizeram comigo inomináveis monstros ao longo da minha vida — canalizando meus sonhos para seu prazer e satisfação. Todavia, ao contrário de mim, as vítimas da Irmã Dois nunca conseguiram escapar.

Ver Thomas envolto na teia dela depois de ficar preso lá por dez anos — toda a sua vida desperdiçada — mudou algo em mim. E minha traição mudou Morfeu. Foi uma trágica reação em cadeia.

Estremeço e me afasto do banheiro, olhando para meus pés descalços, a mente paralisada num tempo e lugar horríveis.

O colchão afunda-se quando Thomas se senta atrás de mim usando calça cinza e uma camisa lavanda que pende de seus ombros largos, solta e toda aberta.

— Minha Ali-ursinha. No que você está pensando? — Beija-me no pescoço, envolvendo-me com o perfume da loção pós-barba. Seus dedos cingem-me a barriga, gerando calafrios de prazer em toda a minha pele.

Sorrio e me derreto em seus lábios, minhas costas tocando seu peito nu, enquanto ele me beija embaixo da orelha.

— Em você e no agora — respondo, passando os dedos pelo tecido que lhe recobre os braços.

— Perfeito — sussurra ele. — Porque estou pensando em você e em como você é linda.

— Você aprova o vestido, então?

— Não só isso... — Sua boca cheia de malícia abre caminho até minha nuca. — Você está cheirosa também.

Dou uma risadinha, e ele sorri contra meu corpo.

— Se pretendemos ir a algum lugar hoje à noite — insisto, tentando me concentrar apesar de seus beijos suaves —, temos que sair daqui a pouco.

Ele suspira — pétalas de hálito quente se abrindo perto da minha omoplata esquerda e meu botão de asas.

— Acho que você tem razão. Principalmente porque não estamos apenas saindo. Estamos indo embora.

Olho por sobre meu ombro, para onde sua boca faz contato e deixa uma marca de sensações.

— Embora... para onde?

— Para a distante Londres. — Ele ri. Seus cabelos úmidos absorvem o sol se pondo pelas persianas, uma confusão oleosa de ondas achocolatadas. Quando ele sorri para mim assim, parece ter dezenove anos novamente.

— Você quer ir para Londres hoje. — Viro-me na cama para ajudá-lo a abotoar a camisa. É uma das minhas camisas preferidas pela maneira como a cor complementa a pele dele e como o tecido sedoso gruda em seu corpo. Passo os dedos por seu peito antes de fechar o colarinho. A esgrima diária definiu seus músculos a um novo nível, uma densidade sofisticada que só os músculos de um homem da idade dele podem adquirir. — Então... Acho que essa viagem-surpresa significa que você decidiu adiar nossa briga de espadas amanhã. Tem certeza disso? Não me leve a mal, você está em excelente forma. Só não sei se você tem pernas para uma minissaia.

Ele ri, fazendo a covinha em seu queixo encontrar uma sombra e parecer ainda mais profunda.

— Ah, voltaremos a tempo de defender nossos títulos. Vamos pegar um atalho. — Ele coloca meu colar com a chave no meu pescoço. — Nossa filha da realeza nos ofereceu seu espelho.

Abro um sorriso forçado, apesar do frio na espinha — como se aranhas com patinhas de gelo estivessem fazendo teias congeladas em cada um dos ossos. Sempre que uso as passagens nos espelhos, sinto que estou voltando ao passado e é por isso que, quando visitamos os Skeffington em Londres, insisto em irmos pelo caminho tradicional, pegando um voo comercial.

Mas hoje à noite não tenho coragem de impedir os planos dele. Posso fazer isso. Afinal, ainda estaremos no reino humano.

Houve uma época em que ansiava por entrar no espelho e descer pela toca do coelho, só para rever as paisagens e criaturas. Entretanto, depois de ficar presa lá há alguns meses, passando dias e noites no castelo de Marfim, ajudando Grenadine a conter o vazamento de lembranças, para mim chega. Estou preparada para ficar aqui pelo resto da vida, com Thomas e Alyssa. Sacio minha vontade de companhia do reino interior na Estalagem do Humphrey duas vezes por mês, quando visitamos a família de Thomas. Isso basta.

— Certo. Só me deixe terminar de me vestir. — Abaixo-me para pegar as sandálias, mas Thomas ganha de mim, ajoelhando-se aos meus pés.

— Espere um pouco — adverte ele, baixinho e com cuidado. — Este é o trabalho de um cavalheiro, princesa. — Ele ergue meus pés nus, dando um beijinho no meu calcanhar antes de calçar o sapato. Ele faz o mesmo com o outro e termina com um beijo no meu joelho, antes de pôr cuidadosamente meus pés calçados no chão.

— Meus lindos dedinhos. — Inclino-me de modo que nossas testas se toquem, a fim de poder me perder em seus olhos gentis e cálidos.

Abrindo aquele sorriso de Elvis que adoro, Thomas se levanta e me ajuda a me levantar. Ele pega um paletó esporte e minha manta de renda e me leva pelo corredor até o quarto de Alyssa. Risadas abafadas e conversas vêm da cozinha. O cheiro de queijo derretido, linguiça picante e molho marinara me dá água na boca. As crianças devem ter decidido fazer pizza em casa.

— Então vamos à Estalagem do Humphrey? — pergunto, de repente com vontade de um prato de espaguete à bolonhesa com pão de alho, alcachofra e queijo feta, meu prato preferido entre as especialidades do Hubert’s.

— Faz parte dos planos — responde Thomas. — Vamos passar a noite lá. Mas primeiro vamos a Ironbridge Gorge. — Ele mostra os cogumelos no bolso do paletó, nossos “bilhetes” para o trem da memória, antes de vesti-lo.

Franzo a testa e o ajudo a ajeitar a lapela, estudando nosso reflexo no espelho de corpo inteiro de Alyssa, uma antiguidade prateada francesa que ela encontrou num mercado de pulgas. Foi a primeira coisa que ela comprou depois do nosso retorno do País das Maravilhas, para ela poder dar uma olhada em seus súditos ao longo do dia, quando necessário.

— Não entendo. Por que iríamos a Iron Bridge? Já não vimos tudo o que tinha para ver?

— Você, não — responde Thomas, seu rosto pintado pelo pôr do sol rosado. — Sei que você ainda está cheia de arrependimentos. Vejo a dor no seu rosto todos os dias. — Ele acaricia minha testa franzida. — Já é hora de se perdoar. Já é hora de você perceber o impacto positivo que teve sobre todos nós o fato de você deixar Morfeu e o País das Maravilhas entrarem na sua vida, porque você olhou tanto para o lado negativo que perdeu a noção disso. Ontem perguntei a Alyssa sobre memórias perdidas. Ela me disse que, depois que elas são armazenadas como carga, se tornam parte do trem, mesmo depois que são vistas por quem as criou. Então vamos dar uma última olhada naqueles anos perdidos, mas, desta vez, vamos fazer isso juntos. Você precisa ver o que teria sido de nós se você não tivesse interferido.


Nossa viagem a Ironbridge Gorge é mais simples do que era quando Alyssa e eu vínhamos aqui, cada uma de nós procurando algo diferente. Com a ajuda de Jeb, ela recentemente instalou um enorme espelho no túnel da ponte. Agora, o transporte aqui é tão simples quanto passar de um espelho para outro. Não há viagem pelo interior. É uma ligação direta do quarto dela para o túnel.

Ao fazermos a travessia, candelabros — feitos de enxames de vaga-lumes presos a armações — passam como rodas-gigantes em miniatura pelo teto. Eles brilham ao longo de paredes sujas, cartazes publicitários velhos de 1956 a 1959 e uma pilha de velhos brinquedos descartados no túnel.

A despeito do nervosismo, consigo comer cogumelos o suficiente para encolher com Thomas, a fim de podermos embarcar no trenzinho de brinquedo enferrujado que leva a todos às memórias perdidas e esquecidas do País das Maravilhas.

O besouro-condutor nos espera. Ele abre a porta em que se lê Thomas Gardner e nos leva a um cômodo sem janela forrado por um tapete sob um sofá cor de creme. Um abajur todo decorado lança um brilho ameno sobre as paredes. Do outro lado, um palquinho com cortinas de veludo aguarda para exibir as memórias de Thomas.

— Por favor, sentem-se e bebam alguma coisa — oferece o besouro, mais cordial do que nunca. Muito se falou sobre as loucuras de Alyssa no mundo dos espelhos. Ela adquiriu a reputação de uma Rainha Vermelha severa, mas sábia, e isso nos assegura, como seus pais, do respeito de todo o reino interior.

Thomas e eu nos sentamos lado a lado no sofá. Há uma mesinha à esquerda e um guardanapo rendado sob um prato cheio de biscoitos com gotas de chocolate. Pego um e o ofereço a Thomas. Ele come metade, limpando as migalhas que caem em sua calça, e gesticula para eu comer o restante.

Ondas de náusea me atingem. Tento atribuir a sensação à fome e mordisco o biscoito macio e a cobertura delicada de amêndoas, ficando mais tensa quando o condutor esmurra com seu braço artrópode um botão na parede. As cortinas do palco se abrem, revelando uma tela de cinema.

— Imagine mentalmente o rosto do seu marido enquanto olha para a tela vazia e você vivenciará o passado dele como se fosse hoje. — O besouro mexe num controle que desliga a luz e então fecha a porta.

Dou a mão para Thomas. Na única vez que visitei este trem, estava espiando o passado dele sem que ele soubesse e as coisas que vi me deixaram tão horrorizada que quis escondê-las dele para sempre. Agora ele está aqui, me encorajando a olhar mais atentamente. Mesmo com o conforto da presença dele, meu nervosismo é quase sufocante.

Supero isso, lembrando-me dele como a criança que vi no dia em que vim sozinha — quando o nome dele era David Skeffington e ele tinha oito anos. Desta vez, porém, imagino-o alguns meses antes, quando ele ainda vivia com sua mãe, seu pai, duas irmãs e um irmão em Oxford.

Uma imagem aparece na tela em cores vivas e me toca. Ela me destroça — cada parte do meu corpo se desfiando —, até que me recomponho, atenta, admirando os olhinhos de David e compartilhando seus pensamentos, emoções e sensações infantis.

Ele tem uma infância feliz, cheia de momentos sentimentais... seguindo seu pai durante os trabalhos na fazenda de caprinos, brincando com suas irmãs e irmão nas colinas que cercam a casa, os passeios e piqueniques da família, as histórias antes de dormir recitadas pela voz melódica e suave da mãe. Mas, uma noite, ele é visitado por um grupo de cavaleiros imperiais usando túnicas vermelhas e brancas — os mesmos que vieram buscar o irmão dele dois anos antes.

A mãe chora com a chegada deles, gritando que os cavaleiros nunca visitam uma família pela segunda vez, mas seu pai a consola, dizendo que, por suspeitar que isso fosse acontecer, ele mesmo os convocara. Então ele leva David para um quarto escuro para ser interrogado.

Um dos cavaleiros, um homem de barba grisalha usando uma túnica vermelha e malha de ferro, abre, na escuridão, um aparelho multiespelhado. Ele aciona um botão, iluminando as molduras. Cada espelho está montado num ângulo exato para refletir o outro, provocando uma ilusão de infinito.

— Ande pelo labirinto de espelhos, menino — diz o cavaleiro. — Diga-me o que você vê.

David anda para lá e para cá, primeiramente sem ver nada além de milhares de imagens de si mesmo. Então ele vê algo se movimentando num dos reflexos distantes — a silhueta de algo inumano. Ele vira a cabeça e encontra a mesma distorção em todos os planos de vidro prateado. Com uma piscada de olho, as sombras dão lugar à claridade e um mundo estranho e assustador se abre. Pássaros feios e enormes com dois pares de asas andam pelo terreno em vez de voarem. Morcegos vermelhos duas vezes maiores do que condores passam por cima dele, caçando qualquer coisa com coragem o bastante para compartilhar o céu flamejante com suas línguas compridas e venenosas. Ele começa a recuar, mas o terror se transforma em fascinação e o seduz, enquanto criaturas menores — seres parecidos com filhotinhos coloridos na forma de flocos de neve — passeiam pelo cenário. Eles viram do avesso, suas entranhas uma bola de dentes afiados que devoram tudo pelo caminho. O sangue mancha tudo à medida que eles se banqueteiam dos pássaros de quatro asas. David faz uma cara feia, meio que esperando sujar-se com o jato quente cor de cobre, mas o massacre é contido pelos reflexos. O medo e a repugnância fecham sua garganta, mas ele observa por mais um segundo, enquanto criaturas ainda menores, parecidas com uma borboleta com cauda de escorpião, voam baixo — elegantes anjos da morte — e transformam todas as bolinhas de dentes ensanguentados em estátuas de pedra.

Numa euforia estonteante, David sai do labirinto e repassa toda a morte que viu. Os cavaleiros conversam entre si e se viram para o pai dele.

— Isso não tem precedentes: seu segundo filho também tem a visão — afirma o cavaleiro de barba grisalha. — Ele vê os pontos fracos na barreira entre o reino interior e o mundo humano com mais clareza do que o irmão. Você sabe o que isso significa, Gregor.

O pai de David faz que sim. Ele parece triste e ao mesmo tempo orgulhoso ao dar tapinhas na cabeça de David. O menino não sabe o que sentir. Mas de uma coisa ele sabe: ele não é mais considerado uma criança. Ele é um guerreiro e será treinado como tal.

Seu pai faz suas malas, eles beijam uma última vez a mãe e as irmãs em prantos e então vão viver com os tios e primos de David em Oxford, Inglaterra, na Estalagem do Humphrey. A insuportável dor sentida por ele ao dar adeus à família e à antiga vida é amenizada somente quando seu irmão mais velho, Bernie, vem recebê-los à porta.

A cena treme ao passarmos por vários meses de lições: estudando em Qualquer Outro Lugar, o mundo espelhado para onde os exilados do País das Maravilhas são banidos. Ele aprende que tal lugar está conectado ao País das Maravilhas por uma densa floresta e ao mundo humano por espelhos infinitos, e que um domo de ferro cerca a prisão, transformando quaisquer seres intraterrenos encarcerados em criaturas grotescas, caso tentem usar mágica no interior.

Durante seu treinamento, David se afunda em estudos sobre as criaturas mutantes para ter a honra de fazer parte de um grupo especial dos cavaleiros que guardam os dois portões — o portão do reino humano e o portão do País das Maravilhas. A violência e o pavor, porém, saturam de imagens vívidas e bizarras seus sonhos e pesadelos. Ainda assim ele progride, fazendo aulas de autodefesa e refinando sua linguagem — aprendendo a usar a mente como armadura quando são os enigmas a arma.

As cenas da vida de David param no restaurante de Hubert, enquanto seus pés deslizam nas cinzas do ringue, enquanto os convivas o veem aprender a bloquear um ataque vindo de cima. Sinto a pulsação de Thomas... David... acelerar, sinto sua vontade de dar orgulho ao pai, sua competitividade em relação ao irmão e aos primos e a consciência tímida de ter todos os olhos sobre si — o candidato mais jovem. Mas com o tempo ele aprende a bloquear tudo, exceto o jogo. Ele se torna confiante, gracioso e fiel, supera todos os seus oponentes — incluindo seu próprio pai — e, em seu nono aniversário, está pronto para sua primeira viagem a Qualquer Outro Lugar, a fim de sentir os segredos internos em primeira mão. A maioria dos meninos é admitida aos treze anos, mas ele merece uma iniciação precoce, não só porque aprendeu a se defender, mas também porque tem a ousadia, sabedoria e perspicácia de alguém cinco anos mais velho.

Um arco-íris vívido mancha a tela, enquanto as memórias se voltam para o caminho de David dentro de um túnel de vento esbranquiçado na forma de um tornado. O funil serve aos cavaleiros como travessia segura para o mundo prisional, já que eles são os únicos com medalhões mágicos que controlam os ventos. As lufadas tomam conta dos cabelos e das roupas de David, que é carregado com seu tio William para o portão do País das Maravilhas, onde David será iniciado nos segredos de seu posto como guardião. Impulsionado pelo medalhão no pescoço do tio, o funil se abre e os cospe, um a um, muito acima do portão trancado contra a floresta densa e o País das Maravilhas. Um gigantesco escorregador de cinzas se ergue para pegá-los e levá-los à plataforma, mantendo-os a uma distância segura do fulgurante vórtex de nada que separa o portão do terreno mundano e mantém encurralados os prisioneiros.

David observa tudo através de óculos de armação de couro, iluminados. Como esta é a primeira vez dele dentro do mundo na redoma, ele estava determinado a não perder nada, nem mesmo a viagem até lá. Seu pai cedeu e o deixou usar os óculos que ele e seu irmão usavam para proteger os olhos das cinzas e iluminar o caminho quando andavam de moto por trilhas sujas nas colinas de Oxford, à noite.

Por causa de sua visão perfeita, ele vê — enquanto seu tio é jogado para fora do túnel atrás dele — que a corrente mantendo o medalhão no pescoço do velho se quebra e o colar começa a cair. David estende a mão para pegá-lo. Uma vez em segurança ao lado do portão, ele devolve o colar ao tio. O velho lhe dá um tapinha nas costas e guarda o colar em sua malha de ferro.

— Um dia, você terá um medalhão. Aposto minha vida nisso. — Seu tio ri. David sorri diante do elogio.

Tio William sempre foi seu preferido... Ele cheira aos doces de canela que sua mãe costumava pôr nos pratos natalinos, ele é capaz de vencer qualquer um no xadrez e sempre tem uma bela piada para contar. Foi ele quem manteve David debaixo da asa quando seu pai teve de voltar para a fazenda. E agora ele insiste em ser o guia de David em todos os mistérios deste mundo estranho e mágico que sua família protege há séculos.

David se aproxima do portão de ferro sólido, a fim de que o Tio William possa lhe contar o segredo de como se abre caminho para o País das Maravilhas. Embutida na parte de baixo da barreira de três andares, a caixa hexagonal aparece com cinco quebra-cabeças organizados numa estrutura de boneca russa. David observa Tio William montar três deles, fazendo o portão ranger e se abrir um pouco por vez, revelando o túnel escuro atrás — um corredor pela floresta densa. Vem um cheiro forte — madeira úmida e podre. Faltando somente dois quebra-cabeças para abrir completamente o portão, Tio William fica pálido e se apoia contra o ferro. Então ele segura o peito e cai ajoelhado.

Ofegante, David se abaixa ao lado dele.

— Tio, o que houve? — Ele quer gritar, mas engoliu névoa negra demais em meio ao nada a caminho do portão. Suas cordas vocais não estão totalmente despertas, então ele continua num murmúrio. — Devo chamar o vento de novo? — Seu sussurro é indecifrável até mesmo aos próprios ouvidos.

Não importa. Seu tio não pode mais lhe responder. David é pequeno demais para carregar o corpo do Tio William até o local de pouso. E, se ele pegasse sozinho o túnel de vento à procura de ajuda, abandonaria o tio vulnerável diante do portão entreaberto. David não sabe como usar a caixa para trancar a porta. Ele pega um pombo-correio mecânico da bolsa do velho. Aquilo só é usado em emergências e deve ser enviado com uma mensagem gravada, mas, com sua voz muda, ele só pode enviar o pombo-correio sem mensagem nenhuma, na esperança de que seus parentes o vejam e saibam que algo deu errado.

Ele aciona o interruptor para acender os olhos e ativar as asas do pombo e manda-o para o céu. Mas teme estar sem tempo. A pele do seu tio já está azulada, como a cor do gelo sobre um lago.

O coração de David bate forte no peito.

Há uma coisa que ele pode fazer.

Com os olhos em chamas atrás dos óculos, David olha para o portão parcialmente aberto. Apesar de a Irmandade do Espelho ter muitas informações sobre Qualquer Outro Lugar e seus ocupantes, não foram feitos muitos estudos sobre o País das Maravilhas. Exceto pelos livros da Alice, pouco se sabe sobre os seres de lá. De todo modo, abundam rumores sobre criaturas com poderes curativos que ultrapassam a compreensão humana.

David pode não saber resolver os dois últimos quebra-cabeças, mas a abertura — pequena demais para um adulto — já está do tamanho perfeito para seu corpinho passar.

Ele hesita. Há outras histórias também, sobre as fadas. Dizem que algumas são enganadoras e fatais. Mas como é possível que elas sejam piores que os monstros deste lado do portão? E ele foi ensinado a derrotar os melhores. Com certeza seu conhecimento pode fazê-lo entrar no País das Maravilhas e sair incólume dele.

Tenso, David se levanta e passa pelo portão, antes que o medo ou a razão possam detê-lo.


Capítulo 6


Âncora

Numa reação em cadeia, assim que David passa pelo portão, este se fecha atrás dele. Seu tio estaria protegido de quaisquer criaturas perdidas do País das Maravilhas, até que o próprio mecanismo se reiniciasse com a boca para a floresta densa se abrindo e fechando. Só então o portão permitiria que alguém passasse pela mesma abertura de novo. Até mesmo David teria de encontrar um novo caminho... atravessando outra garganta da floresta densa.

Um calor de pânico queima o rosto de David. Ele se sente sozinho e com medo por um instante, antes de se lembrar de que fora treinado como cavaleiro. Seu plano daria certo. Ele só tem de encontrar uma fada com poderes de cura e fazer algum tipo de acordo. Dizem que elas colecionam quinquilharias humanas.

David tira as luvas, revelando o anel que recebera ao ser ungido: um anel de ouro puro reluzente cravejado de diamantes em sua circunferência e um enorme rubi brilhante com uma cruz branca de jade no meio. Para ele, o anel não tem preço, mas ele está disposto a dá-lo se isso significar a salvação do Tio William.

O cheiro podre detestável arde-lhe os olhos, mesmo por trás dos óculos. Ele liga as luzes em torno da armação de couro para iluminar a trilha cheia de musgos e começa a correr. Depois de uns seiscentos metros, o ar parece menos denso. Ele luta para respirar no espaço fechado e escuro. Seus óculos se embaçam, o que o faz tirá-los do rosto e posicioná-los no pescoço, de onde ainda iluminam seus passos.

Ele vira uma curva e vê uma clareira, com uma luz ainda fraca e ar fresco. Ofegante, David desliga os óculos para não ficar exposto ao sair da boca ensandecida para entrar na clareira.

Ele empunha a espada ao saltar por cima dos dentes e pousar num arbusto. O som de algo se quebrando o faz se virar para olhar para a árvore da qual saiu. A boca tenta mordê-lo. Ele se joga para trás, escapando por um triz dos dentes, que voltam para dentro do tronco a fim de formarem o que parece ser uma protuberância na casca — mas David sabe muito bem que não é nada disso.

O mato reluzente envolve suas botas enquanto ele caminha pelo punhado de arbustos, à procura de uma saída.

Alguns arbustos atrás dele balançam. Tenso, ele fica no meio da clareira, fora do alcance do mato e das árvores que o cercam, mantendo os olhos no dossel de galhos.

Os arbustos balançam novamente e ele ergue a espada, preparando-se mentalmente para os seres intraterrenos que surgiriam da floresta densa em formas estranhas e horríveis. Possivelmente uma formiga de fogo com o corpo em chamas ou um cavalo voador com embaladeiras de madeira afixadas às seis patas.

Em vez disso, um grito irrompe do outro lado dos arbustos, seguido por uma confusão de vozes histéricas diminutas, ainda mais estranhas por causa da brincadeira infantil delas.

— Estupidezez! Estúpido, estúpido, estúpido! Ela né quinem fugitivos!

— Ataquiri o humanolongo!

— Sinsins! Ou vão ser nossos morotoros pescoços e cortados.

— Apostas erradas acontecem.

— Erradas ou nãoses, Twid Two pede que vocesseis fiquem parados.

— Todosos podedem sonharos!

— Ela vai pendurar vocesseis pelos pescoços... morotoros-mortoros-mortos que sejam!

David relembra suas aulas de idioma. É como latim suíno misturado com jargão sem sentido. Mas três das frases ele consegue compreender claramente. As criaturas de vozes minúsculas estão perseguindo uma fugitiva, estão preocupadas com a falta de sonhos e estão prestes a ser enforcadas.

As vozes crescem e os arbustos balançam novamente. David se esconde atrás de uma pedra enorme para observar. Ele não pode deixar que o capturem ou o machuquem... Tio William precisa que ele encontre ajuda e volte rápido. As folhas nos arbustos se abrem e algo aparece.

David perde o fôlego ao ver um menino humano nu, talvez seis anos mais velho que ele, avançar na luz amena da clareira. Ele é da cor do leite, só um emaranhado de cabelos pretos na cabeça. É como se todo o sangue tivesse vertido dele... não do seu rosto, mas de seu peito, braços e pernas. Então David percebe que o menino não está completamente nu. Seu corpo está coberto por alguma coisa — uma gosma espessa. Fibras sedosas pendem dele como tranças, como se ele estivesse sendo desfiado.

Teia de aranha?

David engole em seco, fazendo mais barulho do que esperava.

O menino se vira para ele, mas seus olhos vítreos não o veem. Sua expressão não parece ter percebido nada. Não há nenhuma expressão além de um olhar vazio e sombrio.

Uma corda de teia de aranha atinge o calcanhar do menino, derrubando-o de cara no chão. Ele resmunga algo com a boca cheia de mato — um som estranho e animalesco sem nenhum sentido —, como se ele tivesse esquecido como se fala.

As criaturinhas tagarelas surgem apressadas — cinco delas —, ainda discutindo entre si. Parecem macacos-aranha prateados de pele sem pelo. Olhos volumosos cor de níquel, sem pupila ou íris, brilham como moedas num poço dos desejos.

Uma gosma brilhante verte da pele careca. As gotas prateadas oleosas marcam seus passos como trilhas longas e finas. Todos usam minúsculos capacetes de mineiro. As luzes percorrem a clareira desorganizadamente, como bolhas reluzentes.

Ao passarem pela pedra de David, um cheiro pútrido de carne os acompanha. Eles cercam o menino caído, fazendo sons ameaçadores. Um deles tira a teia do calcanhar da vítima e a usa para amarrar-lhe as mãos nas costas. O menino exibe os dentes numa tentativa feroz e furiosa de se libertar, embora sua expressão mantenha o olhar vazio.

A criatura mais perto dele recua e ri — dentes afiados à mostra em seu rosto símio. Ela emite um som incômodo entre um ronronar e um uivo, depois salta sobre o menino, enchendo a boca dele com a teia. Os outros macacos prateados incentivam o companheiro, exultante com os sons de sufocamento do menino indefeso.

Nauseado com o espetáculo horrível, David joga os óculos no grupo para distrair as criaturas e sai do seu esconderijo.

— En garde! — grita, agitando a espada na direção das criaturas prateadas, numa tentativa de espantá-las.

Elas gritam em uníssono e correm para os galhos próximos. As lamúrias balançam as folhas, seguidas pelas luzes dos capacetes.

David abaixa a espada e se põe ao lado do menino, soltando-o das amarras.

— Vocesse não deveria ter feito isso, ser falante — alerta uma das criaturas com uma voz débil e ameaçadoramente melódica. — A jardineira deverese estare a caminhoinho. — As demais reagem rindo, balançando ainda mais os galhos, mas então fazem um silêncio incômodo, como se ouvindo algo.

Jardineira? David mantém um olho mirado nas criaturas e continua a desamarrar o menino. O Tio William geme em seu pensamento. David espera que seus outros familiares já tenham encontrado o velho. De uma coisa ele sabe: Tio William e seu pai iriam querer que ele fizesse a coisa certa. Ele jurou proteger toda a humanidade contra a magia, e este menino obviamente precisa de proteção.

Tão atento a suas batalhas internas, ele não vê a gigantesca sombra até ouvir a música assustadora:

— A dona aranha subiu pela parede — canta uma voz misteriosa do alto.

Ele sente um arrepio assim que olha para cima — tarde demais. A visão aterrorizante o deixa paralisado.

Uma aranha do tamanho de um homem pende de cabeça para baixo. A metade de cima é fêmea — o rosto translúcido com cicatrizes e arranhões ensanguentados ao longo de seus lábios roxeados, rosto, queixo e têmporas. Seus pelos prateados caem em mechas espessas, quase alcançando a cabeça de David. A parte de baixo é a de uma viúva-negra, cinco vezes maior que as bolas de ginástica que os cavalheiros usavam para ficar fortes e resistentes. Ela se equilibra num fio de teia preso aos galhos, e a teia brilha como seus famintos olhos azuis. Oito patas brilhantes de aranha envolvem a teia-âncora, algo assustador e gracioso.

David pensa em empunhar a espada, mas fica paralisado de medo e surpresa.

Ela ergue e baixa a pata esquerda e quase parece humana, exceto pelas tesouras de jardim no lugar da mão.

A jardineira. A palavra apavora David, abate-se sobre ele, trazendo-o de volta ao presente.

Snip, snip, snip. O abrir e fechar das tesouras despertam David completamente do transe. Ele recua de costas, o coração acelerado enquanto as lâminas quase atingem seu rosto.

A mulher com características de aranha desce delicadamente ao chão diante dele.

O terror sacode seu sistema nervoso — milhares de pedrinhas de gelo incendiando sua pele. Antes de poder se endireitar e correr, um jato espesso de teia o envolve dos pés à cintura, capturando sua bainha e inutilizando sua espada. David tropeça e cai no chão ao lado do menino que ele tentara salvar. O menino o encara com aqueles olhos desolados e dormentes. Com a língua ele tira a teia da boca e murmura novamente aquele mantra sem sentido, como se tentasse dizer algo a David.

O lado esquerdo do corpo de David dói por causa da queda e punhados de mato pinicam o interior de seu ouvido.

— Bom, bom — diz o aracnídeo com uma voz rouca que deixa um sabor de cobre na boca de David, como flocos de ferrugem e desespero. — Vocês doises viraram amigos? Que lindoinho.

As criaturas símias prateadas riem e saem de seus esconderijos. Numa tentativa desesperada de fugir, David enfia as mãos no mato e rasteja até o limite da mata.

Duas das criaturas saltam sobre ele e outra tira o anel de seu dedo.

— Brilhante! — grita ela, exibindo seu prêmio.

— Devolva isso — exige David, apesar de não fazer ideia de onde vem sua coragem.

Rosnando, a aranha jardineira empurra os macacos de lado com quatro patas e prende David onde ele está, dando voltas e mais voltas nele, até envolvê-lo de teia até os ombros.

— Este daí-í é um reluzente falante — provoca um captor prateado, cutucando David com um galho.

— Falante ele pode ser, meu escravo. — A mulher aracnídea se abaixa, seu hálito atingindo o rosto de David. Ele tosse, engasgando com o cheiro de terra úmida e podre. — Mas ele é um sonhador? — Sua mão direita, escondida por uma luva de borracha, toca-lhe o queixo. Como uma criança preocupada com uma casca de ferida, ela olha nos olhos dele, um estudo intenso que revira as entranhas de David. Ele sente o puxão bem lá no fundo, em profundezas maiores que a de seu coração, ossos e sangue... até libertar e expor todos os temores e esperanças mais secretos de sua alma. — Sim. Ele ser um sonhador único. E ser meu.

Diante da afirmação da bruxa aracnídea, as criaturas símias dançam, a gosma prateada delas descendo pelo rosto de David.

— Solte-nos — implora ele, olhando para o outro menino.

— Ah, negativo. — A luva de borracha lhe toca a cabeça, esfregando o cabelo no couro cabeludo. — Levar vou Irmã Dois à sua vontade. Dela um presente para mim, ele é. Ele ser vai magnífico no meu jardim. Vi coisas outras humanos não viram. Ahhh, você ter vai os sonhos mais vívidos. E pesadelos, ah, pesadelos em convulsão. — Uma baba pinga de seu lábio, o que combina com o sangue já em seu queixo. Limpa-a com a mão de tesoura, cortando-se mais uma vez.

David fica tenso dentro de seu casulo, tentando tocar a espada. Mas seus membros estão presos — imóveis.

O menino caído se lamuria e a aranha vai até ele.

— Parece que temos um substituto para você. Não foi fácil? Chega de sofrimento. — Ela tira a luva, usando os dentes para ajudar na falta de outra mão útil. A bainha de couro cede para revelar cinco caudas de escorpião se encolhendo e se esticando no lugar de dedos.

David geme ao ver algo tão repugnante.

A Irmã Dois se curva sobre o prisioneiro e abre a teia no peito dele, expondo a pele branca.

— Hora de se juntar aos outros. — Sua mão venenosa se choca com força contra o esterno do menino e o veneno verte da ponta do seu dedo; então ela atravessa os ossos até o coração.

O menino uiva e convulsiona. David grita e tenta chegar até ele, mas não consegue se mover. Em pouco tempo, o corpo do menino se encolhe e se transforma num escravo símio prateado, como os demais. Finalmente ele para de se debater e fecha seus olhos sem pupilas, seu rosto primata relaxado e uma língua negra pendendo da boca. Bolhas de gosma saem do que um dia foi carne humana e um rabo fino e comprido cresce em suas costas.

David fecha os olhos com força, tentando não gritar como um menininho. Tenha coragem, diz ele para si mesmo. Você é um cavaleiro. Mas ele está perdendo a coragem... ele está esquecendo tudo o que aprendeu. Ele só se lembra do sangue e da morte e dos dentes afiados e ferrões. Sente a mão macia e cuidadosa de sua mãe lhe acariciando a cabeça. A lembrança é destruída por um par de tesouras de jardim.

— Não tenha medo, menininho sonhador. — A Irmã Dois se volta para ele, enquanto os escravos pegam o novo membro do grupo e o levam para longe. — Você está em casa agora. Você tem irmãos e irmãs imortais aqui. Um dia, quando seus sonhos se esgotarem, você se juntará a eles. Mas, antes, alimentará minhas almas famintas e derrotadas.


— Nããão! — grito. É um grito tanto para David quanto para o menino perdido que jamais conheceremos. O menino perdido que nunca se reunirá novamente com seus entes queridos. Que agora se perdeu para sempre, até mesmo de si próprio.

Grito mais alto à medida que a teia cobre o rosto de David e ele não consegue mais gritar por si mesmo nem por ninguém.

— Nãããão!

— Alison. — Thomas me sacode pelo ombro e a cena treme e se desfaz ao meu redor, me tirando das lembranças dele e me fazendo cair de novo no sofá, aninhada pela semiescuridão que nos cerca.

Escondo meu rosto no braço de Thomas, em busca de seu perfume e calor. Lembrando-me de que ele está aqui e jamais sofrerá daquele modo novamente.

— Sinto muito mesmo.

— Não, meu amor. Você me salvou. Você não tem que pedir desculpas por nada. — Ele me abraça e me puxa para perto, esperando que meus batimentos se normalizem e eu consiga respirar novamente sem ofegar.

— A Irmã Um mentiu para mim — digo, tentando dar sentido às coisas. — Ela disse que as fadas usavam corpos de criança para alimentar as flores. Mas não era nada disso.

— Não. As fadas já foram crianças também. — Thomas suspira demoradamente, seu tórax erguendo minha cabeça com o esforço. — E elas não podem voltar àquela forma.

Meu rosto queima de raiva.

— Não consigo mais assistir a isso. Por favor, diga que é aqui que tudo termina.

Ele me aperta.

— Está tudo bem. Essa é a bênção. Algo na teia agiu como sedativo. Eu estava num transe. Não tenho lembranças da minha época na toca, porque não tive lembranças. Só tive um sonho. Mas me lembro de despertar quando você me libertou da armadilha e caí no chão. Eu me lembro de você me cobrindo.

— Sim — sussurro na escuridão. — A Irmã Um me deixou emprestar o cobertor. Era tudo o que ela podia oferecer. Ela estava apavorada com a ira da irmã gêmea. Usei a manta como maca, para me ajudar a tirá-lo dali.

— Eu me lembro disso também. Vi vislumbres de você olhando para trás para ter certeza de que eu não caí. Seus olhos eram da cor da liberdade. Ou do meu futuro. Eles eram tão cheios de dor, de determinação. E de força. — Thomas me aperta com mais força. — Então, ao acordar no ombro de Morfeu quando ele passou comigo pelo portal, você e suas asas desapareceram aos poucos. Você era transcendente... etérea. Acordar na sua cama foi como acordar de um coma de dez anos e ver um anjo. Seu rosto era conhecido, acho que por causa daqueles vislumbres de consciência. Por algum motivo, quando Marfim apagou minhas outras memórias, aqueles momentos permaneceram. Talvez porque não fossem memórias ainda. Eram mais... despertares. E, sem minhas outras lembranças, você era a única coisa que eu reconhecia. Mais tarde, me convenci de que tinha sonhado com você e as asas, mas não importava. Porque só de olhar para você, com ou sem asas, renasci.

Aninhei-me mais em seu peito para ouvir seu coração. Fechando os olhos, revivo mentalmente o momento em que nos conhecemos oficialmente, como se o estivesse vendo na tela do outro lado da sala.

Eu me sentei ao lado da cama e guardei vigília naquela noite, depois de quebrar todos os espelhos para que Morfeu não pudesse voltar ao quarto. Sabia que o tinha decepcionado. Também sabia que ele estava furioso. Mas não me importava. Só me importava de ajudar o menino na teia.

Sabendo que ele não teria identidade ao acordar, eu o batizei enquanto ele dormia. Ele me lembrava de uma pintura que vi uma vez numa das minhas casas adotivas. As pessoas eram religiosas e um retrato de São Tomás pendia sobre a lareira. Seus cabelos eram castanhos, o rosto jovem, mas marcado pela sabedoria, e seus olhos escuros eram solidários e melancólicos. Ele era o santo padroeiro das pessoas tomadas pela dúvida e, como nunca acreditei que eu tivesse um lugar no mundo humano, tomei-o como meu santo pessoal.

Contudo, ao ver o menino sonhador dormindo naquela noite no meu quarto, um menino que ajudei a salvar... um menino a quem dei um lar, sabia que jamais duvidaria do meu lugar novamente.

Nervosa e insegura, observei seus olhos castanhos se abrirem na manhã seguinte. Uma aurora cor de pêssego dançava nas paredes do quarto, animada por três galhos balançando do lado de fora da janela. Eu me perguntava se ele teria medo de mim, se ele entraria em pânico e sairia correndo. Mas, quando nossos olhares se encontraram, eu me senti — pela primeira vez em muitos anos — segura. Ele me tocou como se me conhecesse desde sempre. Considerando o tempo que ele passou sem contato humano, não hesitei em tocá-lo. Silenciosamente, segurei a mão dele e entrei sob a colcha de retalhos, acomodando-me ao seu lado. Sem falar nada, seus dedos tocaram todo o meu rosto, seu hálito doce na minha pele — um resíduo da poção do esquecimento que Marfim lhe dera. Para mim, era o cheiro da esperança e de uma nova vida. Então ele parou na minha boca, segurou meu rosto e me deu um beijo, seu toque tão terno e ainda assim tão confiante para um menino de dezenove anos que nunca tinha beijado uma menina. Foi meu primeiro beijo recíproco, o único que chegou ao meu coração e me iluminou como uma tocha desafiadora contra o vento forte. Fiquei ali no calor de seu abraço e dormimos por horas, até que o sol avançou no céu e chegou a hora de lhe dar respostas, por mais falsas que fossem.

Thomas não conseguiu falar nos primeiros meses. Ele entendia as coisas que eu dizia, mas teve de reaprender as palavras — como articulá-las e lê-las. Era como se a Irmã Dois não tivesse apenas sugado seus sonhos e imaginação, mas também toda uma vida de comunicação. Apesar de ser frustrante para ele, isso facilitou as coisas para mim e fui capaz de relacionar sua deficiência e amnésia a um acidente de carro e um ferimento na cabeça.

Agora repasso as mentiras que disse na esperança de mantê-lo são, e me pergunto como as coisas podiam ter sido diferentes se o tivesse trazido aqui para o trem, a fim de que ele visse a verdade.

Mas o passado não pode ser desfeito. Ele me perdoou e me ama, apesar de tudo.

— Só queria ter podido salvar todas aquelas crianças, como salvei você — digo, segurando a camisa de Thomas. — Ou salvar Alyssa da dor pela qual ela passou.

— Deixe disso, docinho. Você não vê quantas vidas você salvou? Não só a minha. Você e eu fomos destinados a fazer parte do País das Maravilhas. Não importa os caminhos que escolhemos. Fomos pegos naquela teia assim que nascemos. O que significa que era inevitável que nossa filha tivesse o mesmo destino e que o papel dela fosse maior que o nosso.

— Entendo isso, mas...

— Mas o que você insiste em esquecer — interrompe Thomas com cuidado — é que, sem seu papel nisso tudo, nossa menina jamais teria nascido, porque eu teria terminado como fada, constantemente em busca daquela faísca de inspiração, sem nunca saber exatamente o que perdi. Não consigo pensar em fim mais trágico. Você consegue?

Uma emoção nova cresce dentro de mim. Um quê de indignação virtuosa por todas as crianças humanas perdidas e aquelas que consegui salvar, uma emoção quente e avassaladora.

— Ao entrarmos no País das Maravilhas pela primeira vez — continua Thomas, segurando minha mão e levando-a ao seu coração —, você deu vida à nossa filha e uma chance de vida a todas as crianças que a Irmã Dois teria pegado e usado no futuro. O fato de Morfeu convencer Alyssa a ser rainha o fez se apaixonar por ela, o que por sua vez deu a um ser solitário e egoísta a chance de crescer e fazer algo admirável... Ela está com a gente agora por causa disso. Jeb ter desistido da sua musa em nome das crianças humanas... um menino que não teve muita infância... outro sacrifício admirável. Somos todos pessoas melhores... ou seres intraterrenos, em alguns casos... porque você teve coragem e ousadia suficientes para buscar uma vida melhor para si mesma. Por causa das suas escolhas quando era aquela menina solitária de treze anos, e novamente quando era aquela princesa virtuosa e misericordiosa de dezesseis anos, incontáveis vidas foram salvas e melhoradas. E, ao salvar o pai de Alyssa, você lhe deu uma chance de existir.

Contive o choro.

— O que lhe deu chance de criá-la. Ela é forte e incrível por causa de você. — Seguro a mão dele, fecho-a e beijo os nós dos dedos. — Obrigada por nunca ter desistido de mim ou da nossa menina. Você é nosso herói.

— Você é minha heroína, Alison. Literalmente. — Ele tira do meu rosto uma mecha que se soltou do grampo. — Quantos homens podem dizer isso da mulher que amam? Hein?

Paro de lutar contra as lágrimas. Deixo-as rolar tranquilamente por meu rosto. São lágrimas diferentes das de outros choros. São puras, terapêuticas e felizes. Divinamente felizes. A despeito da escuridão que todos enfrentamos, tenho minha família. Honrei a morte da minha mãe permitindo que outros vivessem. Como Morfeu disse uma vez... ele me deu uma chance de fazer as pazes com a morte. E agora Thomas me dá uma chance de fazer as pazes com minha vida. Tudo é como deveria ser. Finalmente.

Haveria momentos em que os pensamentos sombrios me visitariam, tenho certeza. Mas agora... agora tinha uma luz para lançar sobre eles. Um farol a me guiar.

— Chega de olhar para trás — digo para meu marido, a voz surpreendentemente firme.

— Chega de passeios de trem. — Ele acaricia meu queixo com os nós dos dedos. — Só para a frente, deste dia em diante. Aproveitando todos os momentos juntos que nos restam neste mundo. Você comigo.

— Até o derradeiro fim — falo.

Thomas enxuga minhas lágrimas.

— Feliz aniversário, Ali-ursinha. — Ele me puxa para o colo no sofá e me beija até eu perder o fôlego e ficar toda vermelha como uma noiva tímida. Depois ele me põe no chão para ajeitar minhas roupas e sussurra em meu ouvido. — Estou morrendo de fome. Que tal espaguete à bolonhesa?

Eu rio.

— Você leu meus pensamentos.

Ao sairmos do trem rumo ao espelho, ele segura minha mão. O menino na teia e o homem dos meus sonhos. Para sempre e eternamente, minha âncora.


CONTINUA

Investida & Bloqueio
— Se pretendemos sobreviver a isso, Alison, você tem que atacar a jugular. Sem. Misericórdia.
A voz grossa e autoritária de Thomas me comove e ele me ajuda a levantar, depois ajusta meus dedos ao cabo metálico da espada que havia escorregado de minha mão enluvada. Uma mistura de suor e do cheiro cítrico do sabonete por ele usado paira no ar, abafada pelo perfume das flores e da vegetação que nos cercam.
Toco o quadril no ponto onde ainda lateja por causa da queda e retomo minha posição, encarando nossos oponentes do outro lado do mato manchado de sangue: a minha, com o brilho lindo e fantasmagórico de sua pele... O de Thomas, com o corpo musculoso e os olhos verdes destemidos. As espadas prateadas deles brilham sob o sol de outono e refletem suas expressões imóveis, até que, num movimento lento como o de uma nuvem de tempestade, a curiosidade lhes cruza as feições, enquanto eles tentam prever nossa estratégia.
Meu coração bate forte, ansioso. Enxugo um pouco do suor da minha testa. Eles são mais jovens e mais rápidos, mas Thomas e eu temos a inteligência do nosso lado e uma conexão incomparável. Somos uma equipe há vinte e dois anos. Aqueles amadores não são páreos para nós.
Ignorando o calor e a irritação da minha pele sob as várias camadas de roupa, convenço meu corpo a relaxar, mas me mantenho em posição, a espada empunhada e pronta para o combate, antes de tirar a máscara do meu rosto.
Meu marido geralmente me dá dicas, gestos que só eu sou capaz de decifrar: um menear de cabeça para uma defesa, um estreitar de olhos para um bloqueio. Desta vez, porém, não preciso das instruções dele. Conheço minha oponente. Observei-a o suficiente para descobrir seus pontos fortes e seus pontos fracos. Ela me atacará pela esquerda e me defenderei com um bloqueio. A não ser que agora ela decida misturar os golpes.
Como se pensasse que me decifrou, ela me encara com seus olhos azuis penetrantes e sorri, excessivamente confiante, antes de colocar a máscara no lugar. Ela fica rígida e eu também, de modo a convidá-la a fazer o primeiro movimento.
Com reserva e graça, ela troca de pé de apoio e investe contra mim, me atacando numa tática surpresa. Atinjo a espada dela imediatamente, cedendo ao seu ritmo. Ela perde o equilíbrio e exagera na compensação, executando um golpe atrapalhado. Sua reação apressada deixa seu peito exposto.

 


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Rugindo, miro o coração dela com a ponta da espada, sentindo uma emoção intensa ao furar seu casaco branco. Ela deixa a espada de lado e põe a mão no esterno. Seus olhos se arregalam por trás da máscara. O sangue jorra pela grama e mancha meus tênis brancos.

— Mamãe? — murmura ela em choque, encolhendo-se no chão.

Levanto a máscara, tiro as luvas e me ajoelho ao lado dela, cutucando suas costelas incansavelmente.

— Diga! — grito. — Diga que sou a rainha!

Jebediah e Thomas riem ali por perto, enquanto Alyssa gargalha histericamente, balançando de costas como uma tartaruga virada de cabeça para baixo em seu casco, tentando recuperar o fôlego e escapar da minha tortura de cosquinhas. A máscara dela cai, revelando seu rosto avermelhado.

— Diga! — insisto.

— Nunca! — responde ela e segura minhas mãos, lutando comigo e me derrubando ao seu lado.

Em pouco tempo, minhas costelas doem por causa de seus dedos incansáveis e estamos nos abraçando e rindo tanto que lágrimas escorrem de nossos olhos.

— Certo. — Thomas recupera a compostura o bastante para pedir um cessar-fogo. — Os velhos ganharam, simples assim.

— Dobrados novamente — comenta Alyssa, apontando para nossas espadas flexíveis de treino. A piadinha tira uma risadinha de Jebediah, que toca na mão ensanguentada dela.

Thomas me ajuda a levantar e toco os riozinhos vermelhos do meu casaco e calças de esgrima, o líquido grudento entre meus dedos.

Meu marido me oferece uma toalha para limparmos a bagunça. Uso a minha para enxugar meu rosto e minha testa.

— Ainda acho que o sangue falso de Halloween foi um exagero — opina Jenara do balanço na varanda, onde ela e Corbin esperam para desafiar a equipe vencedora. Eles bebem limonada de um tom de rosa igual ao dos cabelos dela. Ela retorce o nariz. — Foi uma cena bem assustadora.

— Você só pode estar brincando — diz Alyssa com uma risadinha ansiosa, admirando os milhares de gotas vermelhas nas roupas e nas rosas, madressilvas e ervas prateadas no jardim. — É lindo. Assim como qualquer decoração, ela só precisa ser transformada em algo novo.

A trança loira comprida às suas costas balança como se ganhasse vida. Ela usa sua mágica para suspender as gotículas brilhantes das plantas e flores e fazer as manchas em nossas roupas se juntarem a elas. O sangue falso paira no ar e ali fica, as gotas se fundindo como chuva na vidraça, até formarem uma treliça — um arco tremeluzente vermelho que parece um vitral. Alyssa segura a mão de Jebediah e o puxa para perto. Ele ri, guiando-a na dança sob o gazebo improvisado. Seus movimentos são graciosos e sincronizados, os corpos jamais destruindo a obra de Alyssa.

Thomas tomba a cabeça num gesto de repreensão, apesar de ser impossível ignorar o orgulho em sua expressão. Se não fosse pela cerca de madeira de três metros que ele recentemente instalou para nos proteger de curiosos, é bem provável que ele não estivesse vendo o showzinho de Alyssa com tanta leveza.

Se bem que ela sempre conseguiu dominá-lo com seus encantos.

Nossa filha olha para ele, rindo, em paz e à vontade como nunca a vi em todos os seus dezessete anos.

Como resultado de seu treinamento de mágica com Morfeu em seus sonhos, ela está executando os feitiços com perfeição, sendo capaz de dar vazão a seus poderes apenas com o pensamento. É em momentos como este que vejo: a rainha mística fervilhando sob a superfície. Uma predisposição ao sangue e ao caos. Como ela ganha vida em chamas e tempestades. Como a mágica dela inspira e doma o pandemônio. Como ela encontra beleza em tudo o que é mórbido e bizarro.

É irônico. Tentei por muito tempo cultivar essas qualidades em mim, mas meu lado humano era forte demais. Nunca pretendi ser rainha. Desejava, mas não de coração.

A dança termina e, com um virar de pulso de Alyssa, as gotículas de sangue caem em câmera lenta — como flocos de uma neve macabra — e novamente repousam em nossas roupas, nas folhas e nas pétalas das quais se originaram.

Jenara bebe o restante da limonada, os cubos de gelo no copo se chocando uns contra os outros.

— Vai ser bem difícil limpar essa bagunça toda.

Alyssa dá de ombros e ri.

— Nada que um frasco de água sanitária e uma mangueira não resolvam.

— Não. Não vou usar água sanitária nesta obra-prima. — Jenara estica os braços para mostrar o casaco rosado cobrindo seu corpinho. Ela o tingiu há algumas semanas e acrescentou uma renda delicada nas mangas e no colarinho. Colocando o copo de gelo ao lado do pé de Corbin, ela sai do balanço. — Se vamos insistir no uso de sangue, vou vestir meu casaco preto.

Corbin a segura pela cintura e a puxa de volta para seu colo.

— Ah, venha cá, princesinha. Vamos derrotar os mais velhos antes mesmo de você quebrar a unha. Jeb e Al simplesmente não têm os movimentos apropriados.

Jenara sorri.

— Bem notado.

— Uha! — Num movimento fluido, Alyssa pisa na espada caída a fim de que ela fique perpendicular ao chão e bata com o cabo em sua mão espalmada. — Venha cá e diga isso na minha cara, Cor-bin-ara.

Troco olhares com meu marido e rio.

— Bela manobra, menina skatista. — Jebediah dá uma risadinha, brandindo seu florete. — Quer uma disputa sob o salgueiro? — Ele arqueia a sobrancelha.

— Você não vai durar dois segundos. — Ela abre um sorriso rápido, seu anel de noivado brilhando à luz ao passar a espada de uma mão para a outra num movimento único e fluido.

— Ah, é mesmo? — pergunta ele, para, sem aviso, erguê-la e jogá-la sobre o ombro. A espada cai no chão com um baque, e ela ri enquanto ele a leva até a árvore e derruba os dois nas folhas que pendem baixo.

Ela poderia facilmente usar seus poderes para se libertar. Mas aí é que está. Não quer se livrar dele. Nunca quis. Ele é seu parceiro humano, em todos os sentidos.

Ela e eu conversamos sobre o que significa a imortalidade... sobre como vai ser difícil quando ele tiver morrido e ela continuar viva. Ela me garantiu que pode sobreviver — apesar de seu olhar ficar distante ao imaginar isso e de seu rosto nublar-se ao pensar na situação. Contudo, acredito na devoção dela ao País das Maravilhas, e Morfeu é poderoso o bastante para ajudá-la a superar essa perda. E sei que, quando tal dia chegar, a imortalidade dela será algo estonteante. Morfeu vai cuidar dela. Ele a tratará como realeza. Ele o faria mesmo que ela não fosse uma rainha, porque admira a coragem dela.

Ela é uma guerreira e eu sou uma covarde. Meu medo de perder Thomas supera qualquer lealdade que um dia eu tive pelo reino interior. Não consigo viver sem ele por toda a eternidade. Por esse motivo, entre tantos outros, fico feliz por meu espírito não ser mágico e eu ainda ser mortal. Mesmo que viva mais que meu marido, não será por muito tempo. E me sinto segura nessa inevitabilidade.

Ver Jeb e Alyssa lutando e rindo me faz sorrir. Eles são tão parecidos com Thomas e eu quando tínhamos essa idade — cheios de esperança. A diferença é que eles têm uma chance real de conquistar tudo o que sonharam, porque não há mentiras entre eles. O País das Maravilhas é um livro aberto que ambos leram e viveram. Eles até mesmo incluíram Jenara e Corbin em seu círculo íntimo.

Só recentemente Thomas e eu tivemos a verdade para nos unir. E tenho de agradecer minha filha por nos dar essa segunda oportunidade e por me devolver minha sanidade. Fecho os olhos, escutando. Tudo o que ouço é a água de nosso chafariz e as brincadeiras de Jebediah e Alyssa. Nada da conversa dos insetos. Nada do sussurro das flores.

De acordo com meu pedido, três meses atrás, quando Thomas, Alyssa, seu noivo e eu voltamos de nossa última viagem ao País das Maravilhas, Alyssa usou seus poderes reais para pôr um ponto-final nas intermináveis conversas em meus ouvidos, e ela se certificou de que seus descendentes ouçam apenas o silêncio. Só ela agora tem uma linha direta com os insetos e as plantas. Assim como ela é a única que ainda faz, nos sonhos, visitas regulares ao reino interior.

Apesar de ainda ter meus brotos de asa e as marcas nos olhos, minhas características intraterrenas só aparecem se eu deixar. Então, pela primeira vez desde meus dezesseis anos, me sinto normal. E, pela primeira vez desde meus doze anos, lembro-me do silêncio.

Achei que sentiria falta das vozinhas que me acompanharam ao longo de toda a adolescência, vozes que se tornaram minhas confidentes quando ninguém mais ouvia; porém, não preciso mais delas como muletas. Agora tenho uma família e um marido que sabe e compartilha da minha história no País das Maravilhas.

Nunca mais ficarei sozinha.

Meus olhos se abrem e sinto os dedos firmes de Thomas se entrelaçarem aos meus, como se ele lesse meus pensamentos. Nada me dá mais segurança que a sensação da mão dele na minha.

— Divirtam-se, meninos — diz ele. — Vamos acabar por aqui. — Ele vira os olhos castanhos para mim e beija os nós dos meus dedos, provocando um arrepio que me vai do braço ao coração. — Prometi à minha constrangida esposa que sairia com ela no nosso aniversário de vinte anos. Continuaremos amanhã. — Estreita os olhos na direção de Corbin e Jenara. — A não ser que vocês dois estejam prontos para perder agora. Todos sabemos como isso vai terminar. A idade e a sabedoria sempre vencem a juventude e a irresponsabilidade. — Sua risadinha maliciosa à la Elvis é recebida por bufadas dos jovens.

— Até parece, sr. G. — fala Jenara com ar de deboche. — Amanhã... mesma hora, mesmo lugar. Eu estarei de preto. E se lembre: o perdedor tem que usar um vestidinho curto em público. Prepare-se para a maior transformação da sua vida.


Enquanto Thomas toma banho, observo-me no espelho sobre o lavabo. Uma tarefa mundana para a maioria das pessoas, mas algo que tenho evitado desde que conheci meu marido.

Finalmente, depois de todos esses anos, não preciso mais me esconder de espelhos. Não preciso mais ter medo de ver a expressão crítica de Morfeu atrás de meu reflexo.

Meu vestido é simples e elegante: renda branca com um decote nas costas e sem mangas. Uma tira de renda contrastante — cor de um cappuccino — afina minha cintura e complementa o brilho bronzeado da minha pele recém-lavada. O sutiã envolve meus seios, e a saia, meus quadris — a barra abaixo do joelho. Alyssa e Jenara me ajudaram a escolhê-lo na loja, jurando que ele era sensual o bastante para deixar Thomas de olhos arregalados. Estou ansiosa por testar a teoria.

Ficamos separados, desnecessariamente, por muito tempo. Talvez por isso ele faça com que eu me sinta como uma menininha apaixonada, porque cada momento que passamos juntos é como redescobrir tudo de novo — suas palavras gentis, seus beijos, sua risada e sua bondade.

Com um toque de blush no rosto e um quê de batom vermelho nos lábios, estou pronta. A energia e a vitalidade pulsam em meu corpo e geram faíscas sob minha pele. Meus cabelos platinados na altura dos ombros envolvem sedutoramente meu rosto, de forma que dou início à tarefa de prendê-los com grampos brilhantes.

Uma mulher prestes a sair com o marido de vinte anos de casamento... é isso que vejo. Houve um tempo, porém, em que eu não estava sozinha na nostalgia, quando qualquer superfície refletora abria as portas para o louco e caótico País das Maravilhas que eu pretendia dominar. Salvei o menino na teia daquele mundo e fiz o meu melhor para dar as costas a tudo isso quebrando todos os espelhos por perto.

Foi errado abandonar tudo sem nem uma explicação. Agora sei disso.

Fugi às minhas responsabilidades, num pacto com o próprio diabo. Então Morfeu, entrando nos sonhos da minha filha — me usando como um canal involuntário —, encontrou outra maneira de me fazer pagar. Ele apareceu para ela todas as noites durante os primeiros cinco anos de sua vida, disfarçando-se de criança — a tal ponto que virou criança de corpo e alma —, de modo a ser o amiguinho dela e conquistar seu afeto e confiança. Quando descobri, tentei reagir ao ataque mental dele com um conflito físico, a fim de protegê-la fazendo a única coisa que me era possível: ir embora.

Fecho os olhos e, por um instante, meu vestido no espelho se transforma na camisa de força que se tornou minha arma preferida.

Como pude achar que não haveria consequências por ter me escondido num hospício? Esperava que ele encontrasse outro parceiro de luta... outro Liddell para explorar, alguém que pudesse salvar-lhe a alma dessa maldição de passar a eternidade preso no covil da Irmã Dois. Para escapar ao seu destino, ele tinha de realizar a Maldição da Vermelha, coroando uma rainha da linhagem dela com a tiara de rubi, enquanto a própria Vermelha possuía o corpo da outra. Equivocadamente supus que, ao decepcioná-lo, ele seguiria em frente e encontraria outra vítima num parente distante, respeitando minha escolha.

No entanto, havia uma rachadura na minha armadura e meu adversário a penetrou. Eu deveria ter previsto. Desde que conheço Morfeu, ele nunca seguiu em frente. Não tendo seu objetivo em vista. Ele é o estrategista mais brilhante e mais paciente que jamais conheci.

O vapor do banho de Thomas nubla meu reflexo e por trás da névoa me vejo como era quando descobri os planos de Morfeu para Alyssa: aquela mãe jovem e ingênua, temendo pelo futuro da filha. Culpada por colocar a filha em perigo. Minha menininha nunca quis ser minha substituta, mas, com minha traição, foi exatamente isso que ela se tornou.

Optei por não contar a Alyssa minhas escolhas e as repercussões delas porque achava que tinha conseguido poupá-la. Mas todo aquele tempo no hospício, longe do meu marido e da minha filha, não teve importância. Nem o juramento de Morfeu de não entrar em contato com Alyssa de novo. Porque ele já tinha plantado, na mente dela, memórias dos momentos a dois, contando com a curiosidade que ela herdou de Liddell para convencê-la a procurá-lo. Aos dezesseis anos, ela encontrou a toca do coelho sozinha, exatamente como ele planejara.

Minha mão dispersa involuntariamente a lembrança e puxo uma mecha de cabelo com força demais. Sinto uma dor no couro cabeludo e faço uma careta. Rearrumando a mecha, prendo-a com um grampo.

Morfeu convenceu minha filha a conquistar a coroa que eu desejava e acabei por desprezar. Ao longo do processo, ele se salvou. Era uma responsabilidade pela qual Alyssa não tinha pedido, apesar de ela acabar por aceitá-la e até mesmo adotá-la. Ainda assim... ele a convenceu a virar rainha sem lhe contar todos os fatos.

A única coisa que me deixa feliz é saber que ele não saiu incólume. Ele pagou um preço. Um preço que jamais imaginou.

Enquanto “amadurecia” com Alyssa nos sonhos de infância dela, enquanto a observava enfrentar todos os desafios que ele lhe impunha no País das Maravilhas, Morfeu — o ser solitário e egoísta antes incapaz de amar — apaixonou-se completamente por ela. Eu não acreditaria, se não tivesse visto com meus próprios olhos. Ele sentiu a força de sua devoção quando desistiu da oportunidade de tê-la ao seu lado no reino interior. Quando ele optou por esperar, a fim de que a metade humana do coração dela pudesse se curar, até que ela fosse forte o bastante para governar o reino Vermelho eternamente.

Por causa desse sacrifício, começo a suspeitar que talvez ele não seja demoníaco. Que talvez, depois de todos esses anos, eu esteja vendo um lado dele quase vulnerável e amoroso. Um lado que ele manteve afastado de mim, a não ser por um ou dois vislumbres dos quais me esqueci ao longo dos anos.

Ainda assim não estou pronta para perdoá-lo por usar minha filha. Porque, para isso, teria de me perdoar por torná-la responsável por minhas confusões. E por mais que Thomas queira... não tenho certeza se consigo.

A vida de Alyssa sempre foi dividia ao meio por causa de mim. Ela sempre tolerou tudo com tranquilidade. Ninguém podia vê-la com seus assuntos interiores e negar que ela foi feita para ser rainha. Ela ama o mesmo mundo que acabei por odiar.

E, como amo minha filha, de alguma forma tenho de aprender a adotar aquele mundo novamente. De outro modo, nunca superarei o fato de ter deixado Morfeu e toda a loucura do País das Maravilhas entrarem em nossa vida.

Meu reflexo nebuloso me traz de volta ao aqui e agora. Passo meu perfume preferido nos ombros e pulsos — nadando em tons de maracujá e laranja —, depois maquio o nariz com pó, saindo do banheiro antes que o vapor do banho de Thomas possa borrar a maquiagem.

Coloco brincos de pérolas e um colar e bracelete combinando, depois me sento na beirada da cama e movimento os dedos do pé, me concentrando na porta fechada do nosso quarto. Sons de portas de armários e panelas batendo umas nas outras vêm do outro lado. As crianças estão na cozinha, preparando algo para o jantar. Penso em ajudá-las enquanto espero Thomas, mas não estou pronta para enfiar os pés no par de salto alto ao meu lado. O carpete é tão gostoso... fofo e farto. Em vez de ajudá-las, deito-me no edredom, abro os braços e fecho os olhos, relaxando músculos que ainda doem por causa da esgrima mais cedo.

Atenta ao ritmo da água contra o boxe do banheiro, permito-me voltar a outro dia e hora, quando tinha treze anos, olhando para o mundo tomado pela chuva. Quando aceitei o chamado interior durante um dos períodos mais tristes e solitários da minha vida.

Foi quando Morfeu se aproximou de mim e me ofereceu poder e vingança na palma de sua mão manipuladora. Foi o dia que mudaria, para sempre, quem eu iria me tornar.


Capítulo 2


Encaixotada

Vinte e seis anos antes...

A chuva batia na caixa de papelão vazia sobre minha cabeça. Eu a virei de lado e entrei nela antes da tempestade. A Lixeira ao meu lado fedia a peixe morto e fruta podre, superando os cheiros frescos de asfalto e terra molhados. Poças marcavam a rua irregular e a água jorrava das calhas que pendiam dos fundos do meu prédio de apartamentos do outro lado do beco.

Uma lufada de vento invadiu meu abrigo improvisado. Acocorei-me contra a parte de trás da caixa, colocando minha sacola atrás do pescoço como um travesseiro e segurando as páginas de Alice no País das Maravilhas a fim de eu não me perder na leitura. Algumas semanas antes, risquei o Alice no título e o substituí por Alison. Em parte era para todos saberem que o livro era meu. Mas havia mais... parte de mim queria que eu pudesse viver as mesmas aventuras... que eu de alguma forma fosse Alice e entrasse numa toca de coelho onde um mundo novo me aguardasse — um mundo onde alguém tão peculiar e deslocada quanto eu talvez se encaixasse. Um lugar do qual eu pudesse fazer parte.

Nunca fui boa em entender outras pessoas. Principalmente porque eu me mudava demais. Pelo menos era o que eu dizia para mim mesma. Não tinha nada a ver com minha dificuldade em confiar nas pessoas ou minha incapacidade de me relacionar com elas diariamente.

A leitura me dava amigos o bastante, e os livros de Lewis Carroll eram meus preferidos, sendo uma das poucas coisas que minha mãe me deixou ao morrer, pouco depois do parto. As histórias me aproximavam dela, apesar de jamais tê-la conhecido. Talvez porque, secretamente, eu entendesse como o País das Maravilhas era real para ela, considerando nosso parentesco distante com os Liddell de Londres.

Certa vez, quando eu morava num orfanato e esperava por uma família adotiva, entrei no escritório e li minha ficha. Só assim é que pude descobrir minha origem. Alice Liddell, a menina real que inspirou as histórias de Carroll, teve um filho que, antes de ir para a guerra e morrer no campo de batalha, se envolveu com uma mulher. A namoradinha dele acabou grávida e veio para os Estados Unidos a fim de criar o filho ilegítimo. O menino cresceu e teve uma filha: minha mãe, Alicia.

De alguma forma, tudo isso deixava minha mãe maluca. Minha ficha dizia que ela passou algum tempo num hospício quando adolescente, depois de pintar os personagens do País das Maravilhas em todas as paredes de casa e insistir que eles conversavam com ela nos sonhos. Quando nasci, ela saltou do segundo andar do hospital para testar as “asas de fada” que as vozes diziam que ela tinha. Ela caiu num arbusto de rosas e quebrou o pescoço.

O médico disse que ela cometeu suicídio — depressão pós-parto e luto por ter perdido meu pai meses antes, num acidente de fábrica. Qualquer que fosse o motivo, algo nunca foi explicado... as marcas do tamanho de uma moeda em suas omoplatas, grandes demais e perfeitamente separadas para terem sido causadas por espinhos.

Minha opinião? Ela tinha asas, sim. Asas que nunca brotaram. Se sou louca por pensar isso, paciência. Porque, se eu era maluca, isso significa que tínhamos uma relação. Algo em comum. Desde que ninguém ficasse sabendo.

Minha mãe também deixara para trás uma câmera polaroide — do tipo que cospe imagens prontas ao aperto de um botão. Sei como usá-la desde os cinco anos.

Abracei com mais força as fotografias que tirei da bolsa. Era algo em que me tornei boa: me esconder atrás de árvores nos parquinhos ou de carros no estacionamento de shoppings para captar momentos das famílias e amigos de outras pessoas. Gostava de me cercar deles — me protegendo, assim, da falta da minha própria família.

Arregacei a manga da minha jaqueta jeans para consultar o relógio. Só mais dez minutos e as aulas terminariam. Então eu voltaria para meu apartamento e fingiria ter passado o dia onde deveria ter estado. Apareci no início da minha última aula, ficando o suficiente para ser considerada na lista de presença, antes de “dar um passeio no banheiro” e não voltar mais. Com alguma sorte, a srta. Bunsby, minha cuidadora mais recente, jamais ficaria sabendo da minha fuga. Moro com ela só há um mês. Não queria incomodá-la e ser abandonada de novo. Apesar de ser uma viúva vegetariana de quarenta e tantos anos, ela era a melhor cuidadora que já tive.

Olhei para o sexto andar do prédio. Nosso apartamento ficava mais à esquerda, onde a escada de incêndio estava toda enferrujada, virando um esqueleto preto pendente e inútil. Eu era ótima em escalada e tentara fazia algumas semanas descer pela escada e sair à noite para uma sessão de fotografias. Escorreguei e caí.

Seis andares era uma queda e tanto. Eu deveria ter morrido ou ao menos quebrado alguns ossos. Durante a queda, porém, entrei em estado de sonho e, de alguma forma, ao acordar não tinha nenhum ferimento. Não estava nem mesmo com dor. Só tinha uma lembrança estranha de enormes asas pretas.

Mexendo nas fotos, encontrei uma no fim da pilha: uma mariposa enorme de corpo azulado e asas pretas, toda aberta numa flor entre um ângulo de sol e sombra. Lembro-me de quando a vi no parque, como se ela estivesse paralisada entre dois mundos. Tirei a foto não apenas pelo simbolismo, mas também porque já tinha visto o inseto antes. Minha mãe tinha desenhado uma mariposa como aquela numa folha de papel mantida dentro dos livros da Alice. O mais estranho é que ela também tinha feito, bem ao lado, um esboço da Alice presente nas ilustrações do País das Maravilhas. De alguma forma — em sua mente —, os dois desenhos estavam conectados. Perdi o desenho durante uma de minhas muitas mudanças. Então, ao ver aquela mariposa idêntica, ao vivo e em cores, tive de imortalizá-la com minha câmera.

Suspirando, guardei a imagem no meu livro da Alice, para marcar a página. Aquela foto era a preferida da srta. Bunsby. Ela disse que eu tinha um dom, que, se eu continuasse melhorando, ela me daria a câmera do marido — uma Yashica 44 —, assim como seus livros sobre revelação de filmes.

Ela foi um dos poucos adultos que acreditaram em mim sem me criticar. Todavia, se a srta. Bunsby soubesse que eu achava que essa mesma mariposa exercera um papel nas fantasias da minha mãe quanto ao País das Maravilhas, ela pensaria que minha imaginação era fértil demais, como meus professores e cuidadores sempre disseram. Fiz a pesquisa na biblioteca. Mariposas vivem meses, não décadas.

Pensar nisso meio que me deixou assustada. Mas também fez com que eu me sentisse especial, como se eu e minha mãe importássemos para alguém em algum lugar — o bastante para merecermos ser observadas. Não foi a primeira vez que senti que insetos e plantas estavam tentando entrar em contato comigo de um jeito que não tentavam com outras pessoas. Eu ouvia vozes desde que cheguei à puberdade, perto do meu aniversário de doze anos, há um ano. Ainda assim, sabia muito bem que não deveria compartilhar isso com ninguém, pelo risco de acabar na ala psiquiátrica, como minha mãe.

Meu estômago roncou e coloquei a mão na barriga. A srta. Bunsby serviria beterraba e caçarola de tofu hoje à noite. Só de pensar nisso minhas papilas gustativas querem sair correndo. Tive de economizar meu lanche ao máximo. O pacote de biscoitos com manteiga de amendoim que guardei do almoço estava aberto ao meu lado. Coloquei um deles na boca e o mastiguei lentamente. Migalhas se acumularam na ilustração de Alice fugindo de alguns guardas da Rainha de Copas, na esperança de manter a cabeça, de modo que as espanei dali, fazendo-as cair na minha coxa.

Uma barata surgiu de baixo das abas da caixa e subiu pela minha calça para pegar um pouco de comida sem nem sequer um “por favor” ou “obrigada”. Em minha opinião, as baratas eram os insetos mais rudes do mundo. Eu conversara com moscas e besouros que eram educados e interessantes. Mas as baratas nunca tinham muito a dizer além de resmungar por causa da falta de lixo e sujeira, agora que os seres humanos habitavam o mundo delas, alegando que os sacos de lixo e os aspiradores de pó estavam prestes a acabar com elas.

Agitei a mão, afastando o inseto. Encolhi-me mais na caixa e censurei meus maus modos.

— Estou tentando ajudá-la, sua idiota. Você quer ser esmagada? — Peguei minha bolsa, enfiando as fotos e livros dentro dela, e saí para a tempestade, correndo até o espaço entre meu prédio e a barbearia ao lado.

A única entrada era pela frente. Nosso senhorio, Wally Harcus, mantinha a porta dos fundos trancada “por segurança”. Pelo menos era o que ele dizia. Ele só queria tirar vantagem de todas as mães solteiras e menininhas que viviam em seu prédio de aluguel barato. A porta dele era a primeira do corredor, o que significava que ele tinha a situação perfeita, da perspectiva de um pervertido.

As gotas de chuva e o gelo me feriam. O tecido da minha jaqueta e da minha calça absorvia todas as gotas e eu me sentia cinco quilos mais pesada e vinte graus mais gelada assim que entrei no prédio.

Minhas mãos estavam molhadas demais para segurar a maçaneta e, por isso, a porta se fechou com um baque. Gemi ao ouvir o barulho.

Mal tinha passado pela porta de Wally quando esta se abriu. Segui lentamente pelo corredor até a escada, mantendo os olhos no homem.

Seu rosto suado apareceu antes, depois todo o corpo, camadas de banha mal contidas por uma camiseta azul justa e calça cáqui manchada de gordura. Dava para sentir o fedor dele com meus olhos — o cheiro de carne e repolho podres. Bolsas de suor formavam círculos irregulares sob seus braços, criando uma mancha azul-marinho.

Ele sempre me lembrava uma morsa — careca, dobras de pele sobre a sobrancelha, o queixo duplo e um bigode que parecia um salsichão polonês semicomido pendendo sobre seus lábios gordos. Os sons que emitia cada vez que respirava só contribuíam para a ilusão de um mamífero marinho.

— Oi, Alison. Se molhou um pouco, né? — Seus olhos brilharam, escuros e aquosos como carvão líquido, ao dar uma mordida em seu damasco maduro demais. O suquinho escorreu por seu queixo e ele abriu uma risadinha maliciosa. Seus incisivos, grandes demais para sua boca, exibiam-se como presas de marfim subdesenvolvidas.

Meu estômago se revirou de novo enquanto ele saía completamente para o corredor e encarava meu peito, a camiseta grudada no corpo. Ele parecia faminto, como se fosse me engolir toda. Fechei a jaqueta e tirei mechas de cabelo molhado do rosto.

— Tenho chocolate quente no fogão. Quer uma xícara? — perguntou ele.

Eu o surpreendi me encarando várias vezes, mas ele nunca antes teve coragem de me convidar para entrar. Engoli em seco e segurei com força as alças da bolsa.

— Não, a srta. Bunsby está me esperando.

— Não está, não. Teve de ir rapidinho ao mercado. — Ele me mostrou um bilhete.

Só tive tempo de ver um triângulo amassado com as palavras voltarei dentro de uma hora, antes de ele guardar o bilhete no bolso.

— Na verdade — continuou Wally —, ela me disse para lhe fazer companhia. Disse que você é nova demais para ficar sozinha sem causar problemas. Posso ir ao seu apartamento, se você quiser. — Ele balançou as chaves que pendiam do cinto, o sorriso ainda maior.

Idiota.

Eu o odiava e me odiava ainda mais por estar com medo. Já encarei monstros como ele antes. Numa família adotiva anterior, tive um irmão adotivo de catorze anos que me prendeu no porão e enfiou a língua na minha boca enquanto suas mãos subiam por sob minha camiseta. Ainda assim fui devolvida ao abrigo por morder a ponta da língua dele e quebrar seu polegar. Eu era a problemática.

Infelizmente para mim, não seria tão fácil me livrar de Wally Harcus quanto foi me livrar de um adolescente magricela.

Meus calcanhares tocaram o primeiro degrau, me detendo. Era correr ou lutar. De uma coisa eu sabia: a srta. Bunsby jamais pediria à morsa que me fizesse companhia. Ele provavelmente a viu saindo e pensou que era a chance perfeita de tentar algo. E ali estava ele entre mim e minha única rota de fuga. E, mesmo que eu me trancasse dentro do nosso apartamento, ele tinha as chaves para entrar.

Eu podia colocar algo contra a porta e ganhar tempo para descer pela escada de incêndio quebrada. Eu provavelmente cairia e morreria, mas isso seria melhor do que a alternativa.

Dei meia-volta e subi os quatro lances de escada. Dava para ouvir os passos dele me seguindo devagar, se arrastando. Ele não tinha pressa. Todos cuidavam da própria vida aqui. Ninguém o impediria, o que tornava a perseguição tão desafiadora quanto a de uma mosca já presa na teia da aranha.

Lágrimas encobriam minha visão ao chegar à porta do nosso apartamento. Um pedaço de fita adesiva pendia com um pedacinho do bilhete da srta. Bunsby no ponto onde ela o prendera, perto do olho mágico. Wally tinha pegado a cartinha que ela deixou para mim.

Engolindo em seco a bile que subia pela garganta, lutei para enfiar a chave na fechadura. A adrenalina usava meu coração como saco de pancadas, socando-o até que ele batesse incontrolavelmente no peito. Tinha acabado de conseguir entrar, fechar a porta e trancá-la, quando Wally subiu o último degrau da escada de nosso andar.

Com todo o corpo rígido, arrastei a cadeira preferida da srta. Bunsby e a coloquei sob a maçaneta, correndo para me trancar no quarto, deixando a bolsa cair junto à soleira, do lado de dentro. A tarde nublada reduzia a luminosidade do dia a uma névoa cinza e, com as cortinas pesadas cobrindo as janelas, as sombras inundavam o quarto e pintavam formas fantasmagóricas nas paredes nuas.

Chaves tilintavam do lado de fora do nosso apartamento, alto o bastante para eu ouvi-las pela porta fechada. Chorando, fui até a janela, abri as cortinas e o vidro. Uma lufada de vento e chuva soprou em meus cabelos, fazendo-os bater contra meu rosto. Lágrimas escorriam queimando meu rosto, enquanto eu passava uma das pernas pelo peitoril, prestes a me jogar.

— Tsc, tsc. Isso seria uma tragédia e um desperdício. — Um sotaque caipira marcado me deixou paralisada ali, sentada entre a vida e a morte. — Claro que sua existência vale mais que a daquele rato gordo.

Virei a cabeça em direção à voz. No canto esquerdo do meu quarto, as sombras se moviam e assumiam a silhueta clara de um homem.

Consegui falar entredentes.

— Q-quem está aí?

— Apresentações não são necessárias entre amigos. — O intruso saiu para a luz fraca, revelando um rosto ao mesmo tempo belo e assustador. Ele não era humano. Não, ele era perfeito e místico demais para isso. Marcas semelhantes a tatuagens brilhavam com cores vivas sob seus olhos escuros e fantasmagóricos. Seus cabelos azulados balançavam sem sincronia com o vento que entrava pela janela. — Acredito que mereço o título de amigo, você não acha? Considerando que da última vez você quase quebrou a cabeça ao descer por essa escada de incêndio. — Asas gigantescas surgiram atrás dos ombros dele, brilhando como seda preta sob a luz cinzenta.

Perdida entre o terror, a descrença e a esperança, trouxe a perna de volta para meu quarto e me encostei na junção entre o peitoril da janela e a parede.

— Você... então foi você. Você me salvou.

Ele alisou as luvas vermelhas que recobriam suas mãos.

— Não exatamente, Alison. Você mesma se salvou ao desafiar as leis da natureza. O simples fato de você ter tentado descer pela escada de incêndio foi digno de uma segunda chance na vida, não? A coragem misturada à estupidez se torna impulsividade, o que é uma característica admirável de onde venho, algo que deve sempre ser recompensado.

Estreitei os olhos para ele.

— Você me recompensou por minha estupidez?

Ele segurava uma cartola diante de si e a acariciava como se ela fosse um gato.

— Sua impulsividade. — Uma risada reverberou em seu peito. — Você é estranha, não é? Você não duvidou de mim ainda, nem questionou se sou real. Nem mesmo perguntou como sei seu nome. Você não se importa com nada disso, não é?

Fechei as mãos ao lado do corpo.

— Não importa se sou louca, desde que minha loucura me ajude a sobreviver.

Ele arqueou a sobrancelha, obviamente feliz e surpreso com minha resposta.

— Ah, você fala como uma verdadeira criatura do reino interior. A loucura, como qualquer outro aspecto da irracionalidade, pode ser usada como instrumento e arma nas mãos certas.

Não tive nem tempo de perguntar o que era o reino interior porque, no cômodo ao lado, os pés da cadeira arranhavam o piso de azulejo e riscavam meus nervos como garras. Wally estava no apartamento.

Minha garganta secou. Olhei para os degraus escorregadios lá fora e depois para dentro, na direção do homem alado agora de corpo inteiro junto à porta. Ele era alto e gracioso, com dezenove ou vinte anos e vestindo rendas e veludo, como um cavalheiro de outra época.

— Você é... você é o meu anjo da guarda? — Ouvi falar dessas criaturas, mas nunca acreditei que fossem reais. Naquele momento, porém, estava disposta a acreditar em qualquer coisa se isso fosse capaz de me salvar do senhorio ou de um pescoço quebrado.

Meu visitante mostrou os dentes num sorriso lindo que transformou seu rosto no parque de diversões do diabo — malícia oculta por um verniz de adorável persuasão.

— Estou bem longe de ser um anjo, meu patinho. Mas estou aqui para vê-la distribuir um pouco de sua virtude com um tolo pecador. — Ele colocou a cartola na cabeça. Mariposas mortas balançaram na aba, num tributo mórbido ao vento que soprava as cortinas. — Agora vamos nos divertir um pouco com o velho Wally, sim?


Capítulo 3


A Longa Perna
da Lei

Os passos de Wally, a Morsa, se aproximavam da minha porta.

— Não vai deixá-lo entrar, não é? — perguntei ao demônio... anjo... salvador... que seja. Ele ficou imóvel como uma estátua, as joias de seu rosto piscando em vários tons de dourado. — Você vai me ajudar uma última vez? — Uma veia latejava forte no meu pescoço e minhas cordas vocais tremiam como uma tarola.

As asas da criatura se abriram.

— Ah, não, patinho. Você mesma vai se ajudar. Afinal, você é quem tem uma linha direta com os mais antigos habitantes da Terra. Eles são mestres em outras coisas além de conversinhas, Alison. Eles têm habilidades. Você só precisa pedir uma mãozinha. — Ele apontou uma aranha de pernas longas que passava pela parede atrás dele, lançando uma sombra enorme sobre o gesso branco. — Ou oito patas. O que você preferir.

Antes que eu pudesse entender o gracejo, meu hóspede místico desapareceu numa nuvem de poeira azulada, substituído por uma mariposa do tamanho de um pássaro que se escondeu de novo nas sombras.

A mariposa da minha imagem... do desenho da mamãe.

Meu olhar se voltou para as polaroides que saíram pela abertura da bolsa. Antes de poder me ater a elas, a porta se abriu, criando uma trilha pelas memórias roubadas.

Meu estômago se revirou quando Wally entrou. Pedacinhos brilhantes de damascos estavam presos a seu bigode. Ele usou as costas da mão gorda para se limpar e quase tropeçou no meu exemplar de Alice no País das Maravilhas.

Ele o pegou e fez um barulho de desprezo.

— As aventuras de Alison no País das Maravilhas? O que há de errado com você, menina? Você é louca ou só estúpida? — O desenho da mariposa caiu do livro quando ele o balançou. Wally ficou olhando a imagem cair no chão. — Espere aí, já vi esse inseto. Estava tentando tirá-lo do prédio. Foi o que me levou à sua porta... — Wally se deteve, como se tivesse falado demais. — Afaste-se dessa janela. Isso não é nenhuma toca de coelho. Você vai tropeçar e eu terei que limpar sua bunda raquítica do asfalto.

Travei a mandíbula, imóvel.

Ele jogou o livro no chão.

— Olha, posso fazê-la suspirar ou chorar. De qualquer forma, isso vai acontecer.

Minha atenção passou de seu olhar desejoso para a parede sobre a porta. Para o desfile de aranhas saindo de um buraco atrás dele, na moldura da porta, cobrindo a parede e o teto. Havia umas trinta aranhas agora e mais delas surgiam. Será que a tempestade as despertou?

Peça uma mãozinha ou oito patas...

Talvez eu estivesse tendo alucinações. Talvez eu finalmente estivesse perdendo a cabeça, como minha mãe. Contudo, o que quer que estivesse acontecendo, tinha de usar isso em meu benefício. Não podia me mexer, e eu já tinha perdido a oportunidade de mergulhar para a morte.

— Me ajude — implorei, sem saber direito o que queria dizer com isso nem para quem estava pedindo.

— Ah, vou ajudá-la. — Em segundos, Wally me prendeu contra a parede com sua mão suada no meu pescoço. Segurei o pulso dele com ambas as mãos e enfiei minha unha com força. Ele riu, seu hálito azedo no meu rosto. — É, vou ajudá-la de verdade. Está vendo, sou o coelho branco e vou levá-la numa aventura que você jamais esquecerá, Alice.

Ele me ergueu pelo pescoço até que fiquei só na ponta dos pés. A pressão fechava minha garganta e pontos pretos começaram a surgir no meu campo de visão. Chutei-o, mas ele se desviou e, com a mão livre, começou a mexer no meu cinto.

Meus músculos abdominais se contraíram, num sinal de repulsa. Os pontos pretos aumentaram, mas não por falta de oxigênio. Virei os olhos e vi o enxame de aranhas nas paredes e no teto — centenas delas.

— Ajude-me agora — ordenei desta vez, sem hesitar. Minha única esperança era tirar Wally do apartamento com uma avalanche de aranhas levando-o escada abaixo.

A reação das aranhas foi instantânea e violenta. Wally gritou e me soltou quando o enxame começou a subir por ele, entrando em seus sapatos e escalando suas pernas. Afastei-me da janela e puxei o ar, enquanto os insetos continuavam com sua marcha, tomando conta do peito dele. Seus gritos de horror eram abafados pelos sussurros furiosos das aranhas que o recobriam. Mais aracnídeos vieram substituir aquelas que morriam. Elas chegaram ao pescoço e ao rosto de Wally, depois encheram sua boca entreaberta, silenciando seus gritos desesperados. Ele levou as mãos ao pescoço, os braços nus cobertos por mangas de pernas ágeis e tórax arfantes.

Seu nariz e seus olhos desapareceram sob a infestação crescente. Ele perdeu o equilíbrio e tentou se segurar na parede, mas errou o alvo. Caiu da janela aberta, engasgando-se durante a queda.

Paralisada, recuei até a porta do meu quarto, perdendo o fôlego ao ouvir o baque pesado do corpo dele no asfalto molhado.

Um movimento repentino no canto esquerdo do quarto me distraiu. A mariposa saiu das sombras e pousou no peitoril, observando a confusão lá embaixo. Um ataque de náusea queimava meu estômago.

— Foi um acidente — choraminguei para o inseto, como se estivesse me confessando. — Eu... não queria que isso acontecesse!

— Ah, mas eu queria. — Aquele sotaque se revirava dentro de minha mente. A voz pertencia à mariposa e ao homem. De alguma forma, eles eram a mesma coisa e de alguma forma também estavam ligados às histórias do País das Maravilhas. Minha mãe tinha entendido tudo. O que significava que ele nos observava fazia anos. Não só isso; ele levara Wally ao meu apartamento mais cedo. Foi por causa dele que o senhorio encontrou o bilhete da srta. Bunsby antes de mim. Tudo foi armado.

Eu não conseguia falar, envolvida por um furacão de confusão, surpresa e arrependimento.

— Não se preocupe com aquele rato, Alison — repreendeu-me mentalmente a voz britânica. — Há incontáveis jovens a quem ele fez mal. Coube a você resolver o problema. Desequilíbrio gera desequilíbrio. O caos é o que restabelece o equilíbrio. Haverá repercussões. Você não pertence mais a este lugar. É melhor assim. Você está destinada a muito mais do que este mundo tem a oferecer. — A mariposa voou sobre mim, pairando diante do meu rosto. — Assuma a responsabilidade. O poder é o único caminho para a felicidade, e posso ajudá-la a conquistá-lo. Meu nome é Morfeu. Encontre um espelho e me chame quando estiver pronta para viver seu destino.

Ao dizer isso, o enorme inseto virou-se e saiu pela janela.

— Espere! — gritei. Lágrimas ensopando meus olhos, me arrastei até a janela e olhei para baixo. Dois adolescentes de bicicleta que estavam ao lado do corpo de Wally olharam para cima. Pouco antes o homem estava me dominando... agora ele parecia uma boneca quebrada com braços e pernas revirados em poses incomuns até se desencaixarem do restante do corpo. As poças ao lado dele estavam manchadas de vermelho, com o sangue que vertia da parte de trás de seu crânio.

Cachorros latiam e pessoas gritavam, enquanto mais espectadores saíam do prédio. Lentamente, todos voltaram a atenção para minha janela. Vários deles apontaram para mim; alguns menearam negativamente a cabeça.

Queria correr, mas não conseguia me soltar da janela. As aranhas tinham sumido, entrando em milhares de esconderijos acessíveis somente a insetos, abandonando-me ao desejo de ter o tamanho delas, para poder desaparecer e jamais ter de enfrentar as acusações e perguntas que viriam.


Morfeu tinha razão. Não encontrei abrigo depois disso. E suspeito que tenha sido por isso que ele cuidou para que Wally encontrasse o bilhete e me perseguisse.

O departamento de proteção à infância acusou a srta. Bunsby de negligência, alegando que qualquer pessoa com minhas “tendências violentas” não deveria ser deixada sozinha enquanto ela fazia compras. Eles também disseram que eu andava faltando às aulas, o que só fez com que a srta. Bunsby parecesse mais inepta. Fui tirada dos cuidados dela na mesma noite.

Enquanto a polícia e os assistentes sociais entrevistavam a srta. Bunsby na sala, eu guardava minhas coisas, tentando evitar olhar pela janela. A srta. Bunsby tinha deixado um saco marrom de mercado na cama. Engraçado ela pensar que havia fracassado comigo. Deu para ver isso refletido em seus olhos amendoados úmidos quando ela chegou em casa depois de toda confusão. Pena que eu não podia lhe dizer a verdade. Pena que não pude dizer que ela não tinha culpa por eu ter sido cúmplice de um assassinato... que a responsabilidade foi do próprio Wally, e também de uma mariposa mística e de um enxame de aranhas.

Dentro do saco de mercado, ela colocou a câmera do marido, filme e um livro sobre revelação de fotografias. Havia ainda um pacote de biscoitos de manteiga de amendoim, uma maçã e uma garrafa de água. Senti uma dor no coração, porque sabia que podia ter sido feliz com ela, se Morfeu não tivesse outros planos para mim. No entanto, por mais que eu sofresse, me recusei a chorar. Cansei de chorar.

E nunca mais seria vítima novamente.

Ao deixar o apartamento, a srta. Bunsby prometeu tentar me visitar um dia. Eu sabia que isso não aconteceria.

Um mês se passou, cheio de avaliações psiquiátricas e exames médicos, a fim de garantir que eu não estava traumatizada. Por mais que tentassem, os médicos não podiam me considerar louca, porque eu me recusava a dar detalhes sobre o acontecido. Só disse que o senhorio tentou me agarrar, lutamos e ele caiu da janela. Simples assim.

Quando o psiquiatra exibiu os cartões com borrões para me analisar, eu nunca disse com o que eles realmente se pareciam. Não lhe disse que via tocas de coelhos, lagartas fumantes, menininhas usando aventais com facas nas mãos, homens alados, mariposas do tamanho de um papagaio ou exércitos de aranhas. Também não deixei ninguém me surpreender falando de flores e insetos que insistiam em me fazer companhia. Sabia como parecer sã.

Fiz um trabalho tão bom que tive alta sem mais avaliações depois de apenas seis semanas. O problema era que o serviço social não conseguia me colocar com outra família adotiva, considerando toda a minha bagagem. Então o abrigo se tornou minha residência permanente.

Pelo menos era o que eles pensavam. Eu não pretendia ficar ali. Planejava ir a algum lugar onde as leis e os olhos atentos deles jamais me encontrassem novamente. E sabia exatamente quem me ajudaria na fuga.

Todas aquelas semanas em terapia, adiei meu contato com Morfeu. Precisava de tempo para refletir. E cheguei a três conclusões. Primeira, minha família estava de alguma forma ligada às histórias de Lewis Carroll, o que significava que o País das Maravilhas existia em algum nível. Em segundo lugar, Morfeu também estava ligado ao País das Maravilhas e precisava de mim para algo, porque ninguém ajuda outra pessoa sem querer algo em troca. Por fim, antes de ajudá-lo, ele teria de me dar algumas coisas: uma forma de fugir do abrigo e respostas a todas as minhas perguntas.

Era difícil aguentar a solidão. O prédio cinzento tinha vários andares com quartos em todos eles. Eram como dormitórios, com três ou quatro meninas em cada quarto... ou meninos, dependendo do andar. O lugar era cercado por uma grade de ferro para manter os estranhos longe e os internos dentro. Havia apenas um portão, sempre trancado.

A lavanderia — um prédio de teto reto com janelas de ventilação instaladas bem embaixo das calhas — estava abandonada, exceto nos fins de semana, quando nos revezávamos lavando nossas roupas de acordo com o número dos nossos quartos. Concluí que seria o melhor lugar para uma reunião na noite de quarta-feira.

Saí do meu quarto, lanterna na mão, cerca de duas horas depois que as luzes se apagaram.

Encontrei um espelhinho de mão na gaveta de uma das minhas colegas de quarto e o levei dentro de uma fronha, assim como os livros de Lewis Carroll de minha mãe, um caderno de espiral e uma caneta. Ainda não sabia onde o espelho entrava, mas Morfeu insistiu que eu usasse um para chamá-lo. Como a lavanderia estava trancada, subi numa árvore ao lado e alcancei o teto usando os galhos, abri uma janelinha de ventilação e entrei, colocando primeiramente os pés. A sola da minha bota tocou uma secadora, então a queda não foi muito grande.

Cortei a escuridão com minha lanterna, revelando um chão de cimento, lavadoras e secadoras e quatro cestos de vinil. Uma mistura de pó e sabão me fez espirrar. Uns poucos bichos noturnos me receberam antes de cuidar da vida deles.

O luar entrava pelas janelinhas e iluminava o ambiente com um toque prateado cremoso. Arranjei um lugar perto da porta a fim de arrumar minhas coisas. Meu corpo seria uma barricada, no caso de alguém descobrir que eu não estava na cama e vir à minha procura. Se eu bloqueasse a entrada, isso me daria tempo extra para pensar numa desculpa.

Depois de abrir minha jaqueta no chão, como uma almofada, apoiei a lanterna contra a parede, criando um anel de luz, e então me sentei e ergui o espelho.

— Morfeu — sussurrei, e só precisei fazer isso.


Capítulo 4


Vinte Perguntas

Um brilho azul apareceu na superfície do espelho, pulsando. Mas o pulso não era apenas visual; era tátil. Eu o sentia vibrando pelo cabo. Com cuidado, coloquei o espelho no chão. Sob um brilho azulado, a agora conhecida mariposa saiu do espelho, como se estivesse esperando dentro dele o tempo todo.

Ela alçou voo e pousou numa poça de luar à minha frente. Suas asas se encolheram diante do peito e depois se abriram como as de um anjo, revelando uma pele branca e perfeita e partes ocultas meio carnavalescas, iluminadas por joias sob olhos negros. Desgrenhada pela estática mágica emanando da forma humanoide e das roupas extravagantes, uma massa de cabelos azulados na altura dos ombros esvoaçava-se em sua cabeça como se soprada por uma brisa.

Morfeu pairava sobre mim — arrumando o chapéu num ângulo ousado.

— Alison — disse ele simplesmente, e o cheiro doce de algo alcoólico veio em minha direção. — Pronta para fazer um acordo?

Ergui o dedo. Da última vez que estivemos juntos, estava distraída pelo perigo que me cercava e maravilhada com a mágica dele. Tudo isso levou ao assassinato de um homem. Nessa noite, eu daria as cartas.

— Você já brincou de Vinte Perguntas? — perguntei a ele.

Ele tombou a cabeça e deu uma risadinha, erguendo uma das asas por sobre o ombro para limpá-la.

— Deixe-me ver... É algo parecido como Responda ao Enigma?

Fiz uma cara de intrigada.

— Ãhn?

Ele abriu as asas e se sentou no meio da lavanderia, seus traços iluminados pela luz azulada que irradiava de seus cabelos e das joias sob seus olhos.

— Responda ao Enigma: não pertenço a ninguém, mas sou usado por todos. Para alguns, sou dinheiro; para outros, posso voar. Crio espaço e não ocupo espaço. Para os que nunca mudam, não mudo nada. Mas, para os que mudam, carrego o peso das areias do deserto. Quem sou eu?

Mordi o lábio. Não era fácil ignorar a vontade de competir — de provar a ele que eu era capaz de desvendar o enigma. Mas sentia que era exatamente isso que ele queria, e precisava me manter atenta aos meus objetivos.

— A bola está comigo, Morfeu. Vinte perguntas. Eu pergunto e você responde. Não vou fazer acordo antes de você satisfazer minha curiosidade. Nada de perseguir coelhos.

Ele bufou.

— Nem mesmo coelhos brancos?

Franzindo a testa, abri a sacola e peguei a caneta e o caderno.

— Nada de fugir da raia. Respostas diretas. Você quer algo de mim. Se pretende conseguir, eu é quem dou as cartas daqui por diante.

— Ora, ora. Tão jovem e tão tirânica. Gosto disso numa cúmplice. — Ele cruzou e descruzou as pernas, apoiou o queixo com as mãos e estreitou os olhos. — Com certeza, patinho. O palco é seu.

Raios azulados vazaram de sua sombra no cimento, cruzando a lavanderia em todas as direções. As lavadoras e secadoras foram ligadas e começaram a rugir e balançar.

Cerrei os dentes.

— Não sou patinho. Está vendo alguma pena em mim? Sou Alison. Nada mais, nada menos. Entendeu?

As joias sob seus olhos emitiram um cálido tom alaranjado.

— Ah, entendi. Mas você, não. Porque você é muito mais do que apenas um nome.

Franzi a testa.

— O que você quer dizer com isso?

— Todos são mais. Somos formados por forças vivas, sangue, ossos e espírito. E seu sangue é mais precioso que o dos demais.

Não conseguia pensar numa resposta, distraída demais que estava pelos motores ecoando nas paredes.

— Pare as máquinas. Preciso conseguir ouvir se alguém se aproximar.

— Temo que não. Minha mente funciona melhor ao som do caos ao fundo. E a sua precisa aprender a fazer o mesmo. E, quanto à sua privacidade, já cuidei disso. Dê uma olhadinha no espelho, frutinha.

Rangendo os dentes ao ouvir o apelido novo — que era dez vezes mais irritante que o anterior —, ergui o espelho. O reflexo fraco do meu rosto ficou borrado, mudando para um portal que mostrava o terreno ao redor da lavanderia. Pontinhos de luz flutuavam em meio às árvores e ao mato. Olhando mais perto, eu conseguia ver as formas de mulherezinhas com escamas reluzentes e asas de libélula.

Um calafrio estranho me deixou toda arrepiada — uma consciência de toda a mágica ao nosso redor que eu não sabia que era possível.

— O que são elas?

— Fadas. Apesar de pequenas, elas podem deter qualquer um que tente nos interromper. Só cuidado com onde pisa ao sair daqui. Senão, pode tropeçar em um ou dois corpos.

Arfei e deixei o espelho de lado.

— Elas os matarão? — Não podia deixar isso acontecer. Uma morte na minha consciência era o bastante.

Morfeu gargalhou.

— Deveria ter esclarecido. Corpos dormentes. Eles não estarão feridos ao acordarem, só muito satisfeitos e confusos. Mais importante, eles estarão preocupados demais com os próprios pensamentos para perceber que você esteve aqui ou para se importar. Mas, novamente, esta não é a minha vez de falar. Você tinha perguntas a me fazer, sim?

Tenho tantas perguntas mais agora.

Deixei de lado a vontade de saber tudo de uma vez, determinada a continuar focada. Peguei da fronha os livros da minha mãe e os coloquei entre nós dois, preparando-me para escrever no caderno as respostas dele.

Ele bateu palmas.

— Ah, que bom! Gosto deste joguinho. Me mostre todas as suas cartas e eu lhe mostrarei as minhas. Espere até você ver o que tenho na manga.

— Pode parar de falar? — repreendi. — Então, você e aquelas... fadas... vocês vivem no País das Maravilhas?

Seu semblante se iluminou. Ele estava obviamente ansioso por responder, mas manteve a boca bem fechada.

— Vamos logo! — insisti. — Vocês são do País das Maravilhas?

Ele permaneceu em silêncio.

— Sério?

— Você me pediu para parar de falar.

Enfiei as unhas em meus joelhos.

— Argh! Me responda!

— Uau. — Ele tirou as luvas, uma de cada vez, prazerosa e enlouquecidamente calmo. — Não precisa se exaltar. Sim... Sou do País das Maravilhas, assim como minhas adoráveis cachorrinhas lá fora.

— Isso quer dizer que — engoli em seco — o País das Maravilhas é real?

— Sim.

— E a toca do coelho também? — perguntei, com um nó na garganta.

Estudando-me na luz fraca, Morfeu fez que sim.

— Posso lhe dar um mapa. É só pedir.

Segurei o colarinho da minha camisa, tentando esconder a pulsação acelerada no pescoço.

— Que papel você exerce lá? Nunca o vi nas histórias.

Uma faixa de mágica azul saiu da ponta do seu dedo até meu exemplar de As Aventuras de “Alison” no País das Maravilhas. As correntes elétricas viraram as páginas, parando ao chegarem à ilustração da Lagarta conversando com Alice.

— Assim como sua inteligente e curiosa heroína, eu não era exatamente eu mesmo nas histórias mais antigas.

Meu olhar se voltou para o texto na página e a resposta de Alice à pergunta da Lagarta sobre a identidade dela: Infelizmente não posso explicar, senhor. Porque não sou eu mesma, entende?

Engoli em seco, a verdade me atingindo como um tapa na cara.

— Você é a Lagarta... depois de sair do casulo.

Morfeu fez uma cara feia, como se ofendido.

— Mariposas e borboletas não apenas eclodem de casulos. Elas se transformam. Agora você tem mais seis perguntas. Não as desperdice, frutinha.

— Espere aí... Só fiz quatro perguntas até agora.

— Tenho que discordar. — Ele mostrou as mãos numa faixa de luar, balançando os dedos e criando sombras na parede; formas incrivelmente reais para uma sombra. Algumas pareciam xícaras, outras, cogumelos, outras como rosas atingidas por baldes de tinta. — Você fez catorze perguntas, apesar de a maioria delas ser inútil. Primeiro, me perguntou se já tinha brincado de Vinte Perguntas. Bom, isso em si é uma pergunta. Depois, quando lhe propus o enigma, você disse, e estou citando, “Ãhn?”. Outra pergunta. Em seguida, depois de pedir para eu não lhe chamar de patinho, perguntou se eu via alguma pena em você e, depois, se eu “entendi”. Por fim, você perguntou o que eu estava querendo dizendo sobre você ser mais do que um nome. Sinceramente, você realmente acha que alguma dessas perguntas eram necessárias? Claro, quando você perguntou sobre as fadas, o que elas eram e se elas matariam seus tratadores de zoológico bobinhos, isso foi quase relevante.

Meus olhos queimavam.

— Não vivo num zoológico! — exclamei, furiosa.

Morfeu riu e fundiu seus fantoches de sombra num coelho saltando pela parede.

— Acrescente a isso as quatro perguntas sobre mim e meu lar, as únicas que realmente pareciam ter lá a sua importância, se me permite dizer, e você fez onze perguntas. Infelizmente, você repetiu uma delas duas vezes depois de me pedir para parar de falar, e em seguida questionou minha seriedade. Ou seja, mais três. Então só restam seis. Escolha suas palavras com sabedoria.

Reprimindo um grito, apertei a caneta na mão até me ferir.

— Tudo bem — murmurei, preparando-me para fazer mais uma pergunta que tinha medo de já ter feito antes de ele me tirar mais oportunidades. — Você entrou em contato com minha mãe, não é? Quando ela era adolescente.

As lavadoras e secadoras ficaram em silêncio, enquanto a mágica dele voltava a seu corpo e a malícia desaparecia de seus traços. Ele tirou o chapéu e o pôs no colo.

— Eu tentei, Alison. A mente dela... estava mais frágil do que eu imaginava.

Joguei o caderno no chão e me levantei.

— Você me disse que a impulsividade sempre rende uma segunda chance na vida. Então por que você não a segurou? Você me segurou! Você não poderia ter feito a mesma coisa por ela? A queda dela foi muito menor! Você poderia tê-la segurado com suas asas! — Lágrimas rolavam por meu rosto. Estava furiosa, talvez mais comigo mesma do que com ele. Prometi nunca mais chorar.

Ele ergueu a cabeça para mim de seu lugar no chão. As joias brilharam num tom de mirta, refletindo a suavidade de sua expressão. Era quase como se uma partezinha dele se solidarizasse.

— Sua mãe optou por saltar ao ar livre. Havia espectadores demais no estacionamento. Ela impossibilitou qualquer resgate. Se ao menos tivesse saltado de uma altura um pouco maior, suas próprias asas poderiam tê-la salvado. Os dois cálculos errados lhe custaram tudo.

— Não. Foi você quem lhe custou tudo. Por que você insiste em importunar minha família? — Recusei-me a pensar na ironia das palavras e esperei que ele fizesse o mesmo. Se ele inventasse alguma piadinha estúpida sobre isso, ou sugerisse que eu tinha quatro perguntas e agora só me restavam duas, eu perderia o controle. Eu o estrangularia com as próprias mãos, com ou sem mágica elétrica.

Por sorte, ele apenas balançou a cabeça e disse:

— Não sou o responsável, nem estou aqui para reparar todas as coisas erradas com as quais você teve de lidar na vida. Em vez disso, estou oferecendo uma forma de você honrar a morte da sua mãe. De você fazer as pazes com isso.

Enxuguei a umidade quente do meu rosto.

— Não quero fazer as pazes com isso! Só queria tê-la conhecido. E só tenho essas histórias estúpidas para me lembrar dela! As histórias que a mataram. — Chutei os livros na direção dele. Os livros correram pelo chão por alguns centímetros, mas não foram muito longe. Olhei para eles, desejando que saltassem no ar e o atacassem como uma ave de rapina... que tivessem bicos para bicar aqueles olhos belos e infinitos, cheios de enigmas crípticos e respostas mais crípticas ainda.

Como se pudessem ouvir meus pensamentos, dois livros levitaram, folhas agitando-se como asas. Eles se voltaram para atacá-lo, mas Morfeu estava preparado, protegido atrás de uma redoma formada por luzes azuladas.

— Um espetáculo esplêndido — comentou ele com um quê de orgulho na voz ao ajeitar o nó da gravata. — Avise-me quando terminar com seu ataque de menina mimada.

Espere aí. Eu fiz com que os livros atacassem? Eu os fiz voar? Fiquei boquiaberta.

Impossível. Os livros caíram no chão com um baque, como se meu pensamento lógico os tivesse matado.

— Eu fiz isso. — Era uma observação. Mesmo descrente, tomei o cuidado para não formular aquilo como uma pergunta. Só me restavam duas agora... escolha suas palavras com sabedoria.

Olhei para os livros caídos e Morfeu, que desativara sua mágica e estava novamente desprotegido, esperando ao luar, paciente e sombrio.

— Minha mãe, ela tinha as mesmas habilidades, não é?

Ele devolveu o chapéu à cabeça.

— Sim, mas as habilidades dela estavam adormecidas. Tentei despertá-las, mostrar-lhe nos sonhos do que ela era capaz. Tentei encorajá-la a dar vida às pinturas nas paredes. Mas antes que ela pudesse... — Ele estendeu a mão. — Bom, deixe para lá. Você deu vida àqueles livros quase sem esforço. Pense no que você pode conseguir com orientação e foco. Está vendo, você conhece, sim, sua mãe. Porque esse toque mágico era parte dela. O que ela deixou para você em seu sangue. Cabe a você escolher o que fazer com isso. Ela só queria liberdade e fuga. Alguns podem dizer que ela conseguiu isso. Mas, quanto a você, algo me diz que um final assim não satisfaria alguém com sua... garra e determinação. Então o que você quer, Alison?

Não hesitei.

— Quero sair deste mundo. — Minha voz pareceu frágil, como um sopro de ar passando por uma janela de tela, enquanto eu afundava no chão, sobre minha jaqueta. Cruzei as pernas, imitando a pose de Morfeu. — Mas também quero tanto mais...

Ele sorriu.

— Claro que quer. Você quer tudo. A coroa, o trono, súditos temerosos prostrados de joelhos a seus pés. E você deve ter tudo isso. É sua linhagem. Isso lhe foi tirado, e você recuperará tudo. Acredito que é hora de lhe mostrar meu ás, princesinha. — Ele tirou um cilindro de papel da manga do paletó e o desenrolou para eu poder ver a bela caligrafia. A tinta dourada parecia úmida, mas sabia que não estava, senão ela teria borrado. Era um reflexo da luz da lanterna.

Corta a Pedra com uma Pena, Cruza uma Floresta com um Passo, Segura o Oceano na Palma da Mão, Altera o Futuro com a Ponta dos Dedos, Derrota um Inimigo Invisível, Esmaga um Exército sob Seus Pés, Acorda os Mortos, Colhe o Poder de um Sorriso.

— Não entendo...

— São testes — respondeu ele. — Se você passar por eles, vai destronar a impostora que ocupa seu lugar e será coroada a única e verdadeira Rainha Vermelha. Você reinará sobre metade do País das Maravilhas e jamais precisará voltar a este zoológico.

Engoli em seco. Um calafrio lento percorreu meu corpo, quente e doce, como uma árvore sentindo a resina verter de seus galhos ao primeiro sinal da primavera. Era minha intuição encantada despertando. Havia um lugar ao qual pertencer. Um lugar para governar. Lá, nunca mais seria solitária e todos me obedeceriam.

— Mas como posso realizar coisas tão impossíveis?

Morfeu enrolou o papel novamente e o guardou.

— Esta é sua vigésima pergunta, e muito bem usada. A resposta está no enigma que mencionei antes. E, caso você não tenha entendido, pense nisto: qualquer interpretação pode ser alterada simplesmente olhando-se para as coisas de outra forma, de ângulos mais coloridos... vendo-se as palavras e o mundo por um caleidoscópio, não por um telescópio.

Fiz que sim, porque fazia sentido, de alguma forma hábil e absurda. Depois de todo o alerta quanto a usar minhas palavras com sabedoria, já estava começando a ver tudo de um jeito diferente: conotação versus denotação, instinto versus lógica, infinito versus...

— Tempo — sussurrei, respondendo ao enigma.

— Isso mesmo. — Ele se levantou, tirando uma chavezinha presa a uma corrente em sua lapela. Ele a segurou de modo que ela foi iluminada pelo luar. — Tempo de treiná-la, tempo de superar os testes e tempo de conquistar seus súditos.

— Quanto tempo demorará? E o que você ganha com isso? Você disse que faríamos um acordo.

— Desculpe, Alison. Suas perguntas acabaram. Tudo o que você precisa saber é que vê-la coroada é tão bom para mim quanto para você. — Ele jogou a chave para mim e eu a peguei no ar. — Nada vai atrapalhá-la, por mais que demore. Você me dará o tempo e eu lhe darei os instrumentos de que você precisa para reclamar o que lhe é de direito, para mudar tudo o que você achou que você era. E então o tempo não terá mais importância, pois você vestirá o manto da imortalidade interior. A começar hoje, mudamos seu destino.


Capítulo 5


Trilhos de Trem

A falta do barulho tranquilizador do banho acaba com minha névoa nostálgica.

Espreguiço-me e me sento na cama, olhando para a porta entreaberta de onde o vapor sai numa dança fantasmagórica. Thomas está se barbeando. A água jorra na pia, para e ele cantarola baixinho ao passar a lâmina sobre a pele. A música é a que ele costumava cantar para mim quando estávamos namorando. As palavras atravessam minha memória: um homem implorando perdão por amar demais a moça, dizendo-lhe que não queria outra, só ela para sempre, que valia a pena qualquer sofrimento para ficar com ela.

Ele levou a cabo a mensagem da música, ficou ao meu lado quando qualquer outro homem teria desistido e me abandonado. Nunca me arrependi de preferir ele ao meu destino interior. Só me arrependo de tê-lo magoado. Assim como me arrependo de quase ter tirado de Alyssa sua chance de imortalidade.

Na época achei que estava fazendo a coisa certa, ficando em silêncio para salvá-la das práticas bárbaras do País das Maravilhas. Só tinha dezesseis anos quando me deparei com a toca da Irmã Dois e vi para que finalidade ela usava crianças, mas, mesmo com aquela idade, não conseguia fechar os olhos para a tragédia ou as semelhanças: como o coveiro extraía os sonhos delas para alimentar as almas incansáveis no cemitério. Da mesma forma como fizeram comigo inomináveis monstros ao longo da minha vida — canalizando meus sonhos para seu prazer e satisfação. Todavia, ao contrário de mim, as vítimas da Irmã Dois nunca conseguiram escapar.

Ver Thomas envolto na teia dela depois de ficar preso lá por dez anos — toda a sua vida desperdiçada — mudou algo em mim. E minha traição mudou Morfeu. Foi uma trágica reação em cadeia.

Estremeço e me afasto do banheiro, olhando para meus pés descalços, a mente paralisada num tempo e lugar horríveis.

O colchão afunda-se quando Thomas se senta atrás de mim usando calça cinza e uma camisa lavanda que pende de seus ombros largos, solta e toda aberta.

— Minha Ali-ursinha. No que você está pensando? — Beija-me no pescoço, envolvendo-me com o perfume da loção pós-barba. Seus dedos cingem-me a barriga, gerando calafrios de prazer em toda a minha pele.

Sorrio e me derreto em seus lábios, minhas costas tocando seu peito nu, enquanto ele me beija embaixo da orelha.

— Em você e no agora — respondo, passando os dedos pelo tecido que lhe recobre os braços.

— Perfeito — sussurra ele. — Porque estou pensando em você e em como você é linda.

— Você aprova o vestido, então?

— Não só isso... — Sua boca cheia de malícia abre caminho até minha nuca. — Você está cheirosa também.

Dou uma risadinha, e ele sorri contra meu corpo.

— Se pretendemos ir a algum lugar hoje à noite — insisto, tentando me concentrar apesar de seus beijos suaves —, temos que sair daqui a pouco.

Ele suspira — pétalas de hálito quente se abrindo perto da minha omoplata esquerda e meu botão de asas.

— Acho que você tem razão. Principalmente porque não estamos apenas saindo. Estamos indo embora.

Olho por sobre meu ombro, para onde sua boca faz contato e deixa uma marca de sensações.

— Embora... para onde?

— Para a distante Londres. — Ele ri. Seus cabelos úmidos absorvem o sol se pondo pelas persianas, uma confusão oleosa de ondas achocolatadas. Quando ele sorri para mim assim, parece ter dezenove anos novamente.

— Você quer ir para Londres hoje. — Viro-me na cama para ajudá-lo a abotoar a camisa. É uma das minhas camisas preferidas pela maneira como a cor complementa a pele dele e como o tecido sedoso gruda em seu corpo. Passo os dedos por seu peito antes de fechar o colarinho. A esgrima diária definiu seus músculos a um novo nível, uma densidade sofisticada que só os músculos de um homem da idade dele podem adquirir. — Então... Acho que essa viagem-surpresa significa que você decidiu adiar nossa briga de espadas amanhã. Tem certeza disso? Não me leve a mal, você está em excelente forma. Só não sei se você tem pernas para uma minissaia.

Ele ri, fazendo a covinha em seu queixo encontrar uma sombra e parecer ainda mais profunda.

— Ah, voltaremos a tempo de defender nossos títulos. Vamos pegar um atalho. — Ele coloca meu colar com a chave no meu pescoço. — Nossa filha da realeza nos ofereceu seu espelho.

Abro um sorriso forçado, apesar do frio na espinha — como se aranhas com patinhas de gelo estivessem fazendo teias congeladas em cada um dos ossos. Sempre que uso as passagens nos espelhos, sinto que estou voltando ao passado e é por isso que, quando visitamos os Skeffington em Londres, insisto em irmos pelo caminho tradicional, pegando um voo comercial.

Mas hoje à noite não tenho coragem de impedir os planos dele. Posso fazer isso. Afinal, ainda estaremos no reino humano.

Houve uma época em que ansiava por entrar no espelho e descer pela toca do coelho, só para rever as paisagens e criaturas. Entretanto, depois de ficar presa lá há alguns meses, passando dias e noites no castelo de Marfim, ajudando Grenadine a conter o vazamento de lembranças, para mim chega. Estou preparada para ficar aqui pelo resto da vida, com Thomas e Alyssa. Sacio minha vontade de companhia do reino interior na Estalagem do Humphrey duas vezes por mês, quando visitamos a família de Thomas. Isso basta.

— Certo. Só me deixe terminar de me vestir. — Abaixo-me para pegar as sandálias, mas Thomas ganha de mim, ajoelhando-se aos meus pés.

— Espere um pouco — adverte ele, baixinho e com cuidado. — Este é o trabalho de um cavalheiro, princesa. — Ele ergue meus pés nus, dando um beijinho no meu calcanhar antes de calçar o sapato. Ele faz o mesmo com o outro e termina com um beijo no meu joelho, antes de pôr cuidadosamente meus pés calçados no chão.

— Meus lindos dedinhos. — Inclino-me de modo que nossas testas se toquem, a fim de poder me perder em seus olhos gentis e cálidos.

Abrindo aquele sorriso de Elvis que adoro, Thomas se levanta e me ajuda a me levantar. Ele pega um paletó esporte e minha manta de renda e me leva pelo corredor até o quarto de Alyssa. Risadas abafadas e conversas vêm da cozinha. O cheiro de queijo derretido, linguiça picante e molho marinara me dá água na boca. As crianças devem ter decidido fazer pizza em casa.

— Então vamos à Estalagem do Humphrey? — pergunto, de repente com vontade de um prato de espaguete à bolonhesa com pão de alho, alcachofra e queijo feta, meu prato preferido entre as especialidades do Hubert’s.

— Faz parte dos planos — responde Thomas. — Vamos passar a noite lá. Mas primeiro vamos a Ironbridge Gorge. — Ele mostra os cogumelos no bolso do paletó, nossos “bilhetes” para o trem da memória, antes de vesti-lo.

Franzo a testa e o ajudo a ajeitar a lapela, estudando nosso reflexo no espelho de corpo inteiro de Alyssa, uma antiguidade prateada francesa que ela encontrou num mercado de pulgas. Foi a primeira coisa que ela comprou depois do nosso retorno do País das Maravilhas, para ela poder dar uma olhada em seus súditos ao longo do dia, quando necessário.

— Não entendo. Por que iríamos a Iron Bridge? Já não vimos tudo o que tinha para ver?

— Você, não — responde Thomas, seu rosto pintado pelo pôr do sol rosado. — Sei que você ainda está cheia de arrependimentos. Vejo a dor no seu rosto todos os dias. — Ele acaricia minha testa franzida. — Já é hora de se perdoar. Já é hora de você perceber o impacto positivo que teve sobre todos nós o fato de você deixar Morfeu e o País das Maravilhas entrarem na sua vida, porque você olhou tanto para o lado negativo que perdeu a noção disso. Ontem perguntei a Alyssa sobre memórias perdidas. Ela me disse que, depois que elas são armazenadas como carga, se tornam parte do trem, mesmo depois que são vistas por quem as criou. Então vamos dar uma última olhada naqueles anos perdidos, mas, desta vez, vamos fazer isso juntos. Você precisa ver o que teria sido de nós se você não tivesse interferido.


Nossa viagem a Ironbridge Gorge é mais simples do que era quando Alyssa e eu vínhamos aqui, cada uma de nós procurando algo diferente. Com a ajuda de Jeb, ela recentemente instalou um enorme espelho no túnel da ponte. Agora, o transporte aqui é tão simples quanto passar de um espelho para outro. Não há viagem pelo interior. É uma ligação direta do quarto dela para o túnel.

Ao fazermos a travessia, candelabros — feitos de enxames de vaga-lumes presos a armações — passam como rodas-gigantes em miniatura pelo teto. Eles brilham ao longo de paredes sujas, cartazes publicitários velhos de 1956 a 1959 e uma pilha de velhos brinquedos descartados no túnel.

A despeito do nervosismo, consigo comer cogumelos o suficiente para encolher com Thomas, a fim de podermos embarcar no trenzinho de brinquedo enferrujado que leva a todos às memórias perdidas e esquecidas do País das Maravilhas.

O besouro-condutor nos espera. Ele abre a porta em que se lê Thomas Gardner e nos leva a um cômodo sem janela forrado por um tapete sob um sofá cor de creme. Um abajur todo decorado lança um brilho ameno sobre as paredes. Do outro lado, um palquinho com cortinas de veludo aguarda para exibir as memórias de Thomas.

— Por favor, sentem-se e bebam alguma coisa — oferece o besouro, mais cordial do que nunca. Muito se falou sobre as loucuras de Alyssa no mundo dos espelhos. Ela adquiriu a reputação de uma Rainha Vermelha severa, mas sábia, e isso nos assegura, como seus pais, do respeito de todo o reino interior.

Thomas e eu nos sentamos lado a lado no sofá. Há uma mesinha à esquerda e um guardanapo rendado sob um prato cheio de biscoitos com gotas de chocolate. Pego um e o ofereço a Thomas. Ele come metade, limpando as migalhas que caem em sua calça, e gesticula para eu comer o restante.

Ondas de náusea me atingem. Tento atribuir a sensação à fome e mordisco o biscoito macio e a cobertura delicada de amêndoas, ficando mais tensa quando o condutor esmurra com seu braço artrópode um botão na parede. As cortinas do palco se abrem, revelando uma tela de cinema.

— Imagine mentalmente o rosto do seu marido enquanto olha para a tela vazia e você vivenciará o passado dele como se fosse hoje. — O besouro mexe num controle que desliga a luz e então fecha a porta.

Dou a mão para Thomas. Na única vez que visitei este trem, estava espiando o passado dele sem que ele soubesse e as coisas que vi me deixaram tão horrorizada que quis escondê-las dele para sempre. Agora ele está aqui, me encorajando a olhar mais atentamente. Mesmo com o conforto da presença dele, meu nervosismo é quase sufocante.

Supero isso, lembrando-me dele como a criança que vi no dia em que vim sozinha — quando o nome dele era David Skeffington e ele tinha oito anos. Desta vez, porém, imagino-o alguns meses antes, quando ele ainda vivia com sua mãe, seu pai, duas irmãs e um irmão em Oxford.

Uma imagem aparece na tela em cores vivas e me toca. Ela me destroça — cada parte do meu corpo se desfiando —, até que me recomponho, atenta, admirando os olhinhos de David e compartilhando seus pensamentos, emoções e sensações infantis.

Ele tem uma infância feliz, cheia de momentos sentimentais... seguindo seu pai durante os trabalhos na fazenda de caprinos, brincando com suas irmãs e irmão nas colinas que cercam a casa, os passeios e piqueniques da família, as histórias antes de dormir recitadas pela voz melódica e suave da mãe. Mas, uma noite, ele é visitado por um grupo de cavaleiros imperiais usando túnicas vermelhas e brancas — os mesmos que vieram buscar o irmão dele dois anos antes.

A mãe chora com a chegada deles, gritando que os cavaleiros nunca visitam uma família pela segunda vez, mas seu pai a consola, dizendo que, por suspeitar que isso fosse acontecer, ele mesmo os convocara. Então ele leva David para um quarto escuro para ser interrogado.

Um dos cavaleiros, um homem de barba grisalha usando uma túnica vermelha e malha de ferro, abre, na escuridão, um aparelho multiespelhado. Ele aciona um botão, iluminando as molduras. Cada espelho está montado num ângulo exato para refletir o outro, provocando uma ilusão de infinito.

— Ande pelo labirinto de espelhos, menino — diz o cavaleiro. — Diga-me o que você vê.

David anda para lá e para cá, primeiramente sem ver nada além de milhares de imagens de si mesmo. Então ele vê algo se movimentando num dos reflexos distantes — a silhueta de algo inumano. Ele vira a cabeça e encontra a mesma distorção em todos os planos de vidro prateado. Com uma piscada de olho, as sombras dão lugar à claridade e um mundo estranho e assustador se abre. Pássaros feios e enormes com dois pares de asas andam pelo terreno em vez de voarem. Morcegos vermelhos duas vezes maiores do que condores passam por cima dele, caçando qualquer coisa com coragem o bastante para compartilhar o céu flamejante com suas línguas compridas e venenosas. Ele começa a recuar, mas o terror se transforma em fascinação e o seduz, enquanto criaturas menores — seres parecidos com filhotinhos coloridos na forma de flocos de neve — passeiam pelo cenário. Eles viram do avesso, suas entranhas uma bola de dentes afiados que devoram tudo pelo caminho. O sangue mancha tudo à medida que eles se banqueteiam dos pássaros de quatro asas. David faz uma cara feia, meio que esperando sujar-se com o jato quente cor de cobre, mas o massacre é contido pelos reflexos. O medo e a repugnância fecham sua garganta, mas ele observa por mais um segundo, enquanto criaturas ainda menores, parecidas com uma borboleta com cauda de escorpião, voam baixo — elegantes anjos da morte — e transformam todas as bolinhas de dentes ensanguentados em estátuas de pedra.

Numa euforia estonteante, David sai do labirinto e repassa toda a morte que viu. Os cavaleiros conversam entre si e se viram para o pai dele.

— Isso não tem precedentes: seu segundo filho também tem a visão — afirma o cavaleiro de barba grisalha. — Ele vê os pontos fracos na barreira entre o reino interior e o mundo humano com mais clareza do que o irmão. Você sabe o que isso significa, Gregor.

O pai de David faz que sim. Ele parece triste e ao mesmo tempo orgulhoso ao dar tapinhas na cabeça de David. O menino não sabe o que sentir. Mas de uma coisa ele sabe: ele não é mais considerado uma criança. Ele é um guerreiro e será treinado como tal.

Seu pai faz suas malas, eles beijam uma última vez a mãe e as irmãs em prantos e então vão viver com os tios e primos de David em Oxford, Inglaterra, na Estalagem do Humphrey. A insuportável dor sentida por ele ao dar adeus à família e à antiga vida é amenizada somente quando seu irmão mais velho, Bernie, vem recebê-los à porta.

A cena treme ao passarmos por vários meses de lições: estudando em Qualquer Outro Lugar, o mundo espelhado para onde os exilados do País das Maravilhas são banidos. Ele aprende que tal lugar está conectado ao País das Maravilhas por uma densa floresta e ao mundo humano por espelhos infinitos, e que um domo de ferro cerca a prisão, transformando quaisquer seres intraterrenos encarcerados em criaturas grotescas, caso tentem usar mágica no interior.

Durante seu treinamento, David se afunda em estudos sobre as criaturas mutantes para ter a honra de fazer parte de um grupo especial dos cavaleiros que guardam os dois portões — o portão do reino humano e o portão do País das Maravilhas. A violência e o pavor, porém, saturam de imagens vívidas e bizarras seus sonhos e pesadelos. Ainda assim ele progride, fazendo aulas de autodefesa e refinando sua linguagem — aprendendo a usar a mente como armadura quando são os enigmas a arma.

As cenas da vida de David param no restaurante de Hubert, enquanto seus pés deslizam nas cinzas do ringue, enquanto os convivas o veem aprender a bloquear um ataque vindo de cima. Sinto a pulsação de Thomas... David... acelerar, sinto sua vontade de dar orgulho ao pai, sua competitividade em relação ao irmão e aos primos e a consciência tímida de ter todos os olhos sobre si — o candidato mais jovem. Mas com o tempo ele aprende a bloquear tudo, exceto o jogo. Ele se torna confiante, gracioso e fiel, supera todos os seus oponentes — incluindo seu próprio pai — e, em seu nono aniversário, está pronto para sua primeira viagem a Qualquer Outro Lugar, a fim de sentir os segredos internos em primeira mão. A maioria dos meninos é admitida aos treze anos, mas ele merece uma iniciação precoce, não só porque aprendeu a se defender, mas também porque tem a ousadia, sabedoria e perspicácia de alguém cinco anos mais velho.

Um arco-íris vívido mancha a tela, enquanto as memórias se voltam para o caminho de David dentro de um túnel de vento esbranquiçado na forma de um tornado. O funil serve aos cavaleiros como travessia segura para o mundo prisional, já que eles são os únicos com medalhões mágicos que controlam os ventos. As lufadas tomam conta dos cabelos e das roupas de David, que é carregado com seu tio William para o portão do País das Maravilhas, onde David será iniciado nos segredos de seu posto como guardião. Impulsionado pelo medalhão no pescoço do tio, o funil se abre e os cospe, um a um, muito acima do portão trancado contra a floresta densa e o País das Maravilhas. Um gigantesco escorregador de cinzas se ergue para pegá-los e levá-los à plataforma, mantendo-os a uma distância segura do fulgurante vórtex de nada que separa o portão do terreno mundano e mantém encurralados os prisioneiros.

David observa tudo através de óculos de armação de couro, iluminados. Como esta é a primeira vez dele dentro do mundo na redoma, ele estava determinado a não perder nada, nem mesmo a viagem até lá. Seu pai cedeu e o deixou usar os óculos que ele e seu irmão usavam para proteger os olhos das cinzas e iluminar o caminho quando andavam de moto por trilhas sujas nas colinas de Oxford, à noite.

Por causa de sua visão perfeita, ele vê — enquanto seu tio é jogado para fora do túnel atrás dele — que a corrente mantendo o medalhão no pescoço do velho se quebra e o colar começa a cair. David estende a mão para pegá-lo. Uma vez em segurança ao lado do portão, ele devolve o colar ao tio. O velho lhe dá um tapinha nas costas e guarda o colar em sua malha de ferro.

— Um dia, você terá um medalhão. Aposto minha vida nisso. — Seu tio ri. David sorri diante do elogio.

Tio William sempre foi seu preferido... Ele cheira aos doces de canela que sua mãe costumava pôr nos pratos natalinos, ele é capaz de vencer qualquer um no xadrez e sempre tem uma bela piada para contar. Foi ele quem manteve David debaixo da asa quando seu pai teve de voltar para a fazenda. E agora ele insiste em ser o guia de David em todos os mistérios deste mundo estranho e mágico que sua família protege há séculos.

David se aproxima do portão de ferro sólido, a fim de que o Tio William possa lhe contar o segredo de como se abre caminho para o País das Maravilhas. Embutida na parte de baixo da barreira de três andares, a caixa hexagonal aparece com cinco quebra-cabeças organizados numa estrutura de boneca russa. David observa Tio William montar três deles, fazendo o portão ranger e se abrir um pouco por vez, revelando o túnel escuro atrás — um corredor pela floresta densa. Vem um cheiro forte — madeira úmida e podre. Faltando somente dois quebra-cabeças para abrir completamente o portão, Tio William fica pálido e se apoia contra o ferro. Então ele segura o peito e cai ajoelhado.

Ofegante, David se abaixa ao lado dele.

— Tio, o que houve? — Ele quer gritar, mas engoliu névoa negra demais em meio ao nada a caminho do portão. Suas cordas vocais não estão totalmente despertas, então ele continua num murmúrio. — Devo chamar o vento de novo? — Seu sussurro é indecifrável até mesmo aos próprios ouvidos.

Não importa. Seu tio não pode mais lhe responder. David é pequeno demais para carregar o corpo do Tio William até o local de pouso. E, se ele pegasse sozinho o túnel de vento à procura de ajuda, abandonaria o tio vulnerável diante do portão entreaberto. David não sabe como usar a caixa para trancar a porta. Ele pega um pombo-correio mecânico da bolsa do velho. Aquilo só é usado em emergências e deve ser enviado com uma mensagem gravada, mas, com sua voz muda, ele só pode enviar o pombo-correio sem mensagem nenhuma, na esperança de que seus parentes o vejam e saibam que algo deu errado.

Ele aciona o interruptor para acender os olhos e ativar as asas do pombo e manda-o para o céu. Mas teme estar sem tempo. A pele do seu tio já está azulada, como a cor do gelo sobre um lago.

O coração de David bate forte no peito.

Há uma coisa que ele pode fazer.

Com os olhos em chamas atrás dos óculos, David olha para o portão parcialmente aberto. Apesar de a Irmandade do Espelho ter muitas informações sobre Qualquer Outro Lugar e seus ocupantes, não foram feitos muitos estudos sobre o País das Maravilhas. Exceto pelos livros da Alice, pouco se sabe sobre os seres de lá. De todo modo, abundam rumores sobre criaturas com poderes curativos que ultrapassam a compreensão humana.

David pode não saber resolver os dois últimos quebra-cabeças, mas a abertura — pequena demais para um adulto — já está do tamanho perfeito para seu corpinho passar.

Ele hesita. Há outras histórias também, sobre as fadas. Dizem que algumas são enganadoras e fatais. Mas como é possível que elas sejam piores que os monstros deste lado do portão? E ele foi ensinado a derrotar os melhores. Com certeza seu conhecimento pode fazê-lo entrar no País das Maravilhas e sair incólume dele.

Tenso, David se levanta e passa pelo portão, antes que o medo ou a razão possam detê-lo.


Capítulo 6


Âncora

Numa reação em cadeia, assim que David passa pelo portão, este se fecha atrás dele. Seu tio estaria protegido de quaisquer criaturas perdidas do País das Maravilhas, até que o próprio mecanismo se reiniciasse com a boca para a floresta densa se abrindo e fechando. Só então o portão permitiria que alguém passasse pela mesma abertura de novo. Até mesmo David teria de encontrar um novo caminho... atravessando outra garganta da floresta densa.

Um calor de pânico queima o rosto de David. Ele se sente sozinho e com medo por um instante, antes de se lembrar de que fora treinado como cavaleiro. Seu plano daria certo. Ele só tem de encontrar uma fada com poderes de cura e fazer algum tipo de acordo. Dizem que elas colecionam quinquilharias humanas.

David tira as luvas, revelando o anel que recebera ao ser ungido: um anel de ouro puro reluzente cravejado de diamantes em sua circunferência e um enorme rubi brilhante com uma cruz branca de jade no meio. Para ele, o anel não tem preço, mas ele está disposto a dá-lo se isso significar a salvação do Tio William.

O cheiro podre detestável arde-lhe os olhos, mesmo por trás dos óculos. Ele liga as luzes em torno da armação de couro para iluminar a trilha cheia de musgos e começa a correr. Depois de uns seiscentos metros, o ar parece menos denso. Ele luta para respirar no espaço fechado e escuro. Seus óculos se embaçam, o que o faz tirá-los do rosto e posicioná-los no pescoço, de onde ainda iluminam seus passos.

Ele vira uma curva e vê uma clareira, com uma luz ainda fraca e ar fresco. Ofegante, David desliga os óculos para não ficar exposto ao sair da boca ensandecida para entrar na clareira.

Ele empunha a espada ao saltar por cima dos dentes e pousar num arbusto. O som de algo se quebrando o faz se virar para olhar para a árvore da qual saiu. A boca tenta mordê-lo. Ele se joga para trás, escapando por um triz dos dentes, que voltam para dentro do tronco a fim de formarem o que parece ser uma protuberância na casca — mas David sabe muito bem que não é nada disso.

O mato reluzente envolve suas botas enquanto ele caminha pelo punhado de arbustos, à procura de uma saída.

Alguns arbustos atrás dele balançam. Tenso, ele fica no meio da clareira, fora do alcance do mato e das árvores que o cercam, mantendo os olhos no dossel de galhos.

Os arbustos balançam novamente e ele ergue a espada, preparando-se mentalmente para os seres intraterrenos que surgiriam da floresta densa em formas estranhas e horríveis. Possivelmente uma formiga de fogo com o corpo em chamas ou um cavalo voador com embaladeiras de madeira afixadas às seis patas.

Em vez disso, um grito irrompe do outro lado dos arbustos, seguido por uma confusão de vozes histéricas diminutas, ainda mais estranhas por causa da brincadeira infantil delas.

— Estupidezez! Estúpido, estúpido, estúpido! Ela né quinem fugitivos!

— Ataquiri o humanolongo!

— Sinsins! Ou vão ser nossos morotoros pescoços e cortados.

— Apostas erradas acontecem.

— Erradas ou nãoses, Twid Two pede que vocesseis fiquem parados.

— Todosos podedem sonharos!

— Ela vai pendurar vocesseis pelos pescoços... morotoros-mortoros-mortos que sejam!

David relembra suas aulas de idioma. É como latim suíno misturado com jargão sem sentido. Mas três das frases ele consegue compreender claramente. As criaturas de vozes minúsculas estão perseguindo uma fugitiva, estão preocupadas com a falta de sonhos e estão prestes a ser enforcadas.

As vozes crescem e os arbustos balançam novamente. David se esconde atrás de uma pedra enorme para observar. Ele não pode deixar que o capturem ou o machuquem... Tio William precisa que ele encontre ajuda e volte rápido. As folhas nos arbustos se abrem e algo aparece.

David perde o fôlego ao ver um menino humano nu, talvez seis anos mais velho que ele, avançar na luz amena da clareira. Ele é da cor do leite, só um emaranhado de cabelos pretos na cabeça. É como se todo o sangue tivesse vertido dele... não do seu rosto, mas de seu peito, braços e pernas. Então David percebe que o menino não está completamente nu. Seu corpo está coberto por alguma coisa — uma gosma espessa. Fibras sedosas pendem dele como tranças, como se ele estivesse sendo desfiado.

Teia de aranha?

David engole em seco, fazendo mais barulho do que esperava.

O menino se vira para ele, mas seus olhos vítreos não o veem. Sua expressão não parece ter percebido nada. Não há nenhuma expressão além de um olhar vazio e sombrio.

Uma corda de teia de aranha atinge o calcanhar do menino, derrubando-o de cara no chão. Ele resmunga algo com a boca cheia de mato — um som estranho e animalesco sem nenhum sentido —, como se ele tivesse esquecido como se fala.

As criaturinhas tagarelas surgem apressadas — cinco delas —, ainda discutindo entre si. Parecem macacos-aranha prateados de pele sem pelo. Olhos volumosos cor de níquel, sem pupila ou íris, brilham como moedas num poço dos desejos.

Uma gosma brilhante verte da pele careca. As gotas prateadas oleosas marcam seus passos como trilhas longas e finas. Todos usam minúsculos capacetes de mineiro. As luzes percorrem a clareira desorganizadamente, como bolhas reluzentes.

Ao passarem pela pedra de David, um cheiro pútrido de carne os acompanha. Eles cercam o menino caído, fazendo sons ameaçadores. Um deles tira a teia do calcanhar da vítima e a usa para amarrar-lhe as mãos nas costas. O menino exibe os dentes numa tentativa feroz e furiosa de se libertar, embora sua expressão mantenha o olhar vazio.

A criatura mais perto dele recua e ri — dentes afiados à mostra em seu rosto símio. Ela emite um som incômodo entre um ronronar e um uivo, depois salta sobre o menino, enchendo a boca dele com a teia. Os outros macacos prateados incentivam o companheiro, exultante com os sons de sufocamento do menino indefeso.

Nauseado com o espetáculo horrível, David joga os óculos no grupo para distrair as criaturas e sai do seu esconderijo.

— En garde! — grita, agitando a espada na direção das criaturas prateadas, numa tentativa de espantá-las.

Elas gritam em uníssono e correm para os galhos próximos. As lamúrias balançam as folhas, seguidas pelas luzes dos capacetes.

David abaixa a espada e se põe ao lado do menino, soltando-o das amarras.

— Vocesse não deveria ter feito isso, ser falante — alerta uma das criaturas com uma voz débil e ameaçadoramente melódica. — A jardineira deverese estare a caminhoinho. — As demais reagem rindo, balançando ainda mais os galhos, mas então fazem um silêncio incômodo, como se ouvindo algo.

Jardineira? David mantém um olho mirado nas criaturas e continua a desamarrar o menino. O Tio William geme em seu pensamento. David espera que seus outros familiares já tenham encontrado o velho. De uma coisa ele sabe: Tio William e seu pai iriam querer que ele fizesse a coisa certa. Ele jurou proteger toda a humanidade contra a magia, e este menino obviamente precisa de proteção.

Tão atento a suas batalhas internas, ele não vê a gigantesca sombra até ouvir a música assustadora:

— A dona aranha subiu pela parede — canta uma voz misteriosa do alto.

Ele sente um arrepio assim que olha para cima — tarde demais. A visão aterrorizante o deixa paralisado.

Uma aranha do tamanho de um homem pende de cabeça para baixo. A metade de cima é fêmea — o rosto translúcido com cicatrizes e arranhões ensanguentados ao longo de seus lábios roxeados, rosto, queixo e têmporas. Seus pelos prateados caem em mechas espessas, quase alcançando a cabeça de David. A parte de baixo é a de uma viúva-negra, cinco vezes maior que as bolas de ginástica que os cavalheiros usavam para ficar fortes e resistentes. Ela se equilibra num fio de teia preso aos galhos, e a teia brilha como seus famintos olhos azuis. Oito patas brilhantes de aranha envolvem a teia-âncora, algo assustador e gracioso.

David pensa em empunhar a espada, mas fica paralisado de medo e surpresa.

Ela ergue e baixa a pata esquerda e quase parece humana, exceto pelas tesouras de jardim no lugar da mão.

A jardineira. A palavra apavora David, abate-se sobre ele, trazendo-o de volta ao presente.

Snip, snip, snip. O abrir e fechar das tesouras despertam David completamente do transe. Ele recua de costas, o coração acelerado enquanto as lâminas quase atingem seu rosto.

A mulher com características de aranha desce delicadamente ao chão diante dele.

O terror sacode seu sistema nervoso — milhares de pedrinhas de gelo incendiando sua pele. Antes de poder se endireitar e correr, um jato espesso de teia o envolve dos pés à cintura, capturando sua bainha e inutilizando sua espada. David tropeça e cai no chão ao lado do menino que ele tentara salvar. O menino o encara com aqueles olhos desolados e dormentes. Com a língua ele tira a teia da boca e murmura novamente aquele mantra sem sentido, como se tentasse dizer algo a David.

O lado esquerdo do corpo de David dói por causa da queda e punhados de mato pinicam o interior de seu ouvido.

— Bom, bom — diz o aracnídeo com uma voz rouca que deixa um sabor de cobre na boca de David, como flocos de ferrugem e desespero. — Vocês doises viraram amigos? Que lindoinho.

As criaturas símias prateadas riem e saem de seus esconderijos. Numa tentativa desesperada de fugir, David enfia as mãos no mato e rasteja até o limite da mata.

Duas das criaturas saltam sobre ele e outra tira o anel de seu dedo.

— Brilhante! — grita ela, exibindo seu prêmio.

— Devolva isso — exige David, apesar de não fazer ideia de onde vem sua coragem.

Rosnando, a aranha jardineira empurra os macacos de lado com quatro patas e prende David onde ele está, dando voltas e mais voltas nele, até envolvê-lo de teia até os ombros.

— Este daí-í é um reluzente falante — provoca um captor prateado, cutucando David com um galho.

— Falante ele pode ser, meu escravo. — A mulher aracnídea se abaixa, seu hálito atingindo o rosto de David. Ele tosse, engasgando com o cheiro de terra úmida e podre. — Mas ele é um sonhador? — Sua mão direita, escondida por uma luva de borracha, toca-lhe o queixo. Como uma criança preocupada com uma casca de ferida, ela olha nos olhos dele, um estudo intenso que revira as entranhas de David. Ele sente o puxão bem lá no fundo, em profundezas maiores que a de seu coração, ossos e sangue... até libertar e expor todos os temores e esperanças mais secretos de sua alma. — Sim. Ele ser um sonhador único. E ser meu.

Diante da afirmação da bruxa aracnídea, as criaturas símias dançam, a gosma prateada delas descendo pelo rosto de David.

— Solte-nos — implora ele, olhando para o outro menino.

— Ah, negativo. — A luva de borracha lhe toca a cabeça, esfregando o cabelo no couro cabeludo. — Levar vou Irmã Dois à sua vontade. Dela um presente para mim, ele é. Ele ser vai magnífico no meu jardim. Vi coisas outras humanos não viram. Ahhh, você ter vai os sonhos mais vívidos. E pesadelos, ah, pesadelos em convulsão. — Uma baba pinga de seu lábio, o que combina com o sangue já em seu queixo. Limpa-a com a mão de tesoura, cortando-se mais uma vez.

David fica tenso dentro de seu casulo, tentando tocar a espada. Mas seus membros estão presos — imóveis.

O menino caído se lamuria e a aranha vai até ele.

— Parece que temos um substituto para você. Não foi fácil? Chega de sofrimento. — Ela tira a luva, usando os dentes para ajudar na falta de outra mão útil. A bainha de couro cede para revelar cinco caudas de escorpião se encolhendo e se esticando no lugar de dedos.

David geme ao ver algo tão repugnante.

A Irmã Dois se curva sobre o prisioneiro e abre a teia no peito dele, expondo a pele branca.

— Hora de se juntar aos outros. — Sua mão venenosa se choca com força contra o esterno do menino e o veneno verte da ponta do seu dedo; então ela atravessa os ossos até o coração.

O menino uiva e convulsiona. David grita e tenta chegar até ele, mas não consegue se mover. Em pouco tempo, o corpo do menino se encolhe e se transforma num escravo símio prateado, como os demais. Finalmente ele para de se debater e fecha seus olhos sem pupilas, seu rosto primata relaxado e uma língua negra pendendo da boca. Bolhas de gosma saem do que um dia foi carne humana e um rabo fino e comprido cresce em suas costas.

David fecha os olhos com força, tentando não gritar como um menininho. Tenha coragem, diz ele para si mesmo. Você é um cavaleiro. Mas ele está perdendo a coragem... ele está esquecendo tudo o que aprendeu. Ele só se lembra do sangue e da morte e dos dentes afiados e ferrões. Sente a mão macia e cuidadosa de sua mãe lhe acariciando a cabeça. A lembrança é destruída por um par de tesouras de jardim.

— Não tenha medo, menininho sonhador. — A Irmã Dois se volta para ele, enquanto os escravos pegam o novo membro do grupo e o levam para longe. — Você está em casa agora. Você tem irmãos e irmãs imortais aqui. Um dia, quando seus sonhos se esgotarem, você se juntará a eles. Mas, antes, alimentará minhas almas famintas e derrotadas.


— Nããão! — grito. É um grito tanto para David quanto para o menino perdido que jamais conheceremos. O menino perdido que nunca se reunirá novamente com seus entes queridos. Que agora se perdeu para sempre, até mesmo de si próprio.

Grito mais alto à medida que a teia cobre o rosto de David e ele não consegue mais gritar por si mesmo nem por ninguém.

— Nãããão!

— Alison. — Thomas me sacode pelo ombro e a cena treme e se desfaz ao meu redor, me tirando das lembranças dele e me fazendo cair de novo no sofá, aninhada pela semiescuridão que nos cerca.

Escondo meu rosto no braço de Thomas, em busca de seu perfume e calor. Lembrando-me de que ele está aqui e jamais sofrerá daquele modo novamente.

— Sinto muito mesmo.

— Não, meu amor. Você me salvou. Você não tem que pedir desculpas por nada. — Ele me abraça e me puxa para perto, esperando que meus batimentos se normalizem e eu consiga respirar novamente sem ofegar.

— A Irmã Um mentiu para mim — digo, tentando dar sentido às coisas. — Ela disse que as fadas usavam corpos de criança para alimentar as flores. Mas não era nada disso.

— Não. As fadas já foram crianças também. — Thomas suspira demoradamente, seu tórax erguendo minha cabeça com o esforço. — E elas não podem voltar àquela forma.

Meu rosto queima de raiva.

— Não consigo mais assistir a isso. Por favor, diga que é aqui que tudo termina.

Ele me aperta.

— Está tudo bem. Essa é a bênção. Algo na teia agiu como sedativo. Eu estava num transe. Não tenho lembranças da minha época na toca, porque não tive lembranças. Só tive um sonho. Mas me lembro de despertar quando você me libertou da armadilha e caí no chão. Eu me lembro de você me cobrindo.

— Sim — sussurro na escuridão. — A Irmã Um me deixou emprestar o cobertor. Era tudo o que ela podia oferecer. Ela estava apavorada com a ira da irmã gêmea. Usei a manta como maca, para me ajudar a tirá-lo dali.

— Eu me lembro disso também. Vi vislumbres de você olhando para trás para ter certeza de que eu não caí. Seus olhos eram da cor da liberdade. Ou do meu futuro. Eles eram tão cheios de dor, de determinação. E de força. — Thomas me aperta com mais força. — Então, ao acordar no ombro de Morfeu quando ele passou comigo pelo portal, você e suas asas desapareceram aos poucos. Você era transcendente... etérea. Acordar na sua cama foi como acordar de um coma de dez anos e ver um anjo. Seu rosto era conhecido, acho que por causa daqueles vislumbres de consciência. Por algum motivo, quando Marfim apagou minhas outras memórias, aqueles momentos permaneceram. Talvez porque não fossem memórias ainda. Eram mais... despertares. E, sem minhas outras lembranças, você era a única coisa que eu reconhecia. Mais tarde, me convenci de que tinha sonhado com você e as asas, mas não importava. Porque só de olhar para você, com ou sem asas, renasci.

Aninhei-me mais em seu peito para ouvir seu coração. Fechando os olhos, revivo mentalmente o momento em que nos conhecemos oficialmente, como se o estivesse vendo na tela do outro lado da sala.

Eu me sentei ao lado da cama e guardei vigília naquela noite, depois de quebrar todos os espelhos para que Morfeu não pudesse voltar ao quarto. Sabia que o tinha decepcionado. Também sabia que ele estava furioso. Mas não me importava. Só me importava de ajudar o menino na teia.

Sabendo que ele não teria identidade ao acordar, eu o batizei enquanto ele dormia. Ele me lembrava de uma pintura que vi uma vez numa das minhas casas adotivas. As pessoas eram religiosas e um retrato de São Tomás pendia sobre a lareira. Seus cabelos eram castanhos, o rosto jovem, mas marcado pela sabedoria, e seus olhos escuros eram solidários e melancólicos. Ele era o santo padroeiro das pessoas tomadas pela dúvida e, como nunca acreditei que eu tivesse um lugar no mundo humano, tomei-o como meu santo pessoal.

Contudo, ao ver o menino sonhador dormindo naquela noite no meu quarto, um menino que ajudei a salvar... um menino a quem dei um lar, sabia que jamais duvidaria do meu lugar novamente.

Nervosa e insegura, observei seus olhos castanhos se abrirem na manhã seguinte. Uma aurora cor de pêssego dançava nas paredes do quarto, animada por três galhos balançando do lado de fora da janela. Eu me perguntava se ele teria medo de mim, se ele entraria em pânico e sairia correndo. Mas, quando nossos olhares se encontraram, eu me senti — pela primeira vez em muitos anos — segura. Ele me tocou como se me conhecesse desde sempre. Considerando o tempo que ele passou sem contato humano, não hesitei em tocá-lo. Silenciosamente, segurei a mão dele e entrei sob a colcha de retalhos, acomodando-me ao seu lado. Sem falar nada, seus dedos tocaram todo o meu rosto, seu hálito doce na minha pele — um resíduo da poção do esquecimento que Marfim lhe dera. Para mim, era o cheiro da esperança e de uma nova vida. Então ele parou na minha boca, segurou meu rosto e me deu um beijo, seu toque tão terno e ainda assim tão confiante para um menino de dezenove anos que nunca tinha beijado uma menina. Foi meu primeiro beijo recíproco, o único que chegou ao meu coração e me iluminou como uma tocha desafiadora contra o vento forte. Fiquei ali no calor de seu abraço e dormimos por horas, até que o sol avançou no céu e chegou a hora de lhe dar respostas, por mais falsas que fossem.

Thomas não conseguiu falar nos primeiros meses. Ele entendia as coisas que eu dizia, mas teve de reaprender as palavras — como articulá-las e lê-las. Era como se a Irmã Dois não tivesse apenas sugado seus sonhos e imaginação, mas também toda uma vida de comunicação. Apesar de ser frustrante para ele, isso facilitou as coisas para mim e fui capaz de relacionar sua deficiência e amnésia a um acidente de carro e um ferimento na cabeça.

Agora repasso as mentiras que disse na esperança de mantê-lo são, e me pergunto como as coisas podiam ter sido diferentes se o tivesse trazido aqui para o trem, a fim de que ele visse a verdade.

Mas o passado não pode ser desfeito. Ele me perdoou e me ama, apesar de tudo.

— Só queria ter podido salvar todas aquelas crianças, como salvei você — digo, segurando a camisa de Thomas. — Ou salvar Alyssa da dor pela qual ela passou.

— Deixe disso, docinho. Você não vê quantas vidas você salvou? Não só a minha. Você e eu fomos destinados a fazer parte do País das Maravilhas. Não importa os caminhos que escolhemos. Fomos pegos naquela teia assim que nascemos. O que significa que era inevitável que nossa filha tivesse o mesmo destino e que o papel dela fosse maior que o nosso.

— Entendo isso, mas...

— Mas o que você insiste em esquecer — interrompe Thomas com cuidado — é que, sem seu papel nisso tudo, nossa menina jamais teria nascido, porque eu teria terminado como fada, constantemente em busca daquela faísca de inspiração, sem nunca saber exatamente o que perdi. Não consigo pensar em fim mais trágico. Você consegue?

Uma emoção nova cresce dentro de mim. Um quê de indignação virtuosa por todas as crianças humanas perdidas e aquelas que consegui salvar, uma emoção quente e avassaladora.

— Ao entrarmos no País das Maravilhas pela primeira vez — continua Thomas, segurando minha mão e levando-a ao seu coração —, você deu vida à nossa filha e uma chance de vida a todas as crianças que a Irmã Dois teria pegado e usado no futuro. O fato de Morfeu convencer Alyssa a ser rainha o fez se apaixonar por ela, o que por sua vez deu a um ser solitário e egoísta a chance de crescer e fazer algo admirável... Ela está com a gente agora por causa disso. Jeb ter desistido da sua musa em nome das crianças humanas... um menino que não teve muita infância... outro sacrifício admirável. Somos todos pessoas melhores... ou seres intraterrenos, em alguns casos... porque você teve coragem e ousadia suficientes para buscar uma vida melhor para si mesma. Por causa das suas escolhas quando era aquela menina solitária de treze anos, e novamente quando era aquela princesa virtuosa e misericordiosa de dezesseis anos, incontáveis vidas foram salvas e melhoradas. E, ao salvar o pai de Alyssa, você lhe deu uma chance de existir.

Contive o choro.

— O que lhe deu chance de criá-la. Ela é forte e incrível por causa de você. — Seguro a mão dele, fecho-a e beijo os nós dos dedos. — Obrigada por nunca ter desistido de mim ou da nossa menina. Você é nosso herói.

— Você é minha heroína, Alison. Literalmente. — Ele tira do meu rosto uma mecha que se soltou do grampo. — Quantos homens podem dizer isso da mulher que amam? Hein?

Paro de lutar contra as lágrimas. Deixo-as rolar tranquilamente por meu rosto. São lágrimas diferentes das de outros choros. São puras, terapêuticas e felizes. Divinamente felizes. A despeito da escuridão que todos enfrentamos, tenho minha família. Honrei a morte da minha mãe permitindo que outros vivessem. Como Morfeu disse uma vez... ele me deu uma chance de fazer as pazes com a morte. E agora Thomas me dá uma chance de fazer as pazes com minha vida. Tudo é como deveria ser. Finalmente.

Haveria momentos em que os pensamentos sombrios me visitariam, tenho certeza. Mas agora... agora tinha uma luz para lançar sobre eles. Um farol a me guiar.

— Chega de olhar para trás — digo para meu marido, a voz surpreendentemente firme.

— Chega de passeios de trem. — Ele acaricia meu queixo com os nós dos dedos. — Só para a frente, deste dia em diante. Aproveitando todos os momentos juntos que nos restam neste mundo. Você comigo.

— Até o derradeiro fim — falo.

Thomas enxuga minhas lágrimas.

— Feliz aniversário, Ali-ursinha. — Ele me puxa para o colo no sofá e me beija até eu perder o fôlego e ficar toda vermelha como uma noiva tímida. Depois ele me põe no chão para ajeitar minhas roupas e sussurra em meu ouvido. — Estou morrendo de fome. Que tal espaguete à bolonhesa?

Eu rio.

— Você leu meus pensamentos.

Ao sairmos do trem rumo ao espelho, ele segura minha mão. O menino na teia e o homem dos meus sonhos. Para sempre e eternamente, minha âncora.


CONTINUA

Investida & Bloqueio
— Se pretendemos sobreviver a isso, Alison, você tem que atacar a jugular. Sem. Misericórdia.
A voz grossa e autoritária de Thomas me comove e ele me ajuda a levantar, depois ajusta meus dedos ao cabo metálico da espada que havia escorregado de minha mão enluvada. Uma mistura de suor e do cheiro cítrico do sabonete por ele usado paira no ar, abafada pelo perfume das flores e da vegetação que nos cercam.
Toco o quadril no ponto onde ainda lateja por causa da queda e retomo minha posição, encarando nossos oponentes do outro lado do mato manchado de sangue: a minha, com o brilho lindo e fantasmagórico de sua pele... O de Thomas, com o corpo musculoso e os olhos verdes destemidos. As espadas prateadas deles brilham sob o sol de outono e refletem suas expressões imóveis, até que, num movimento lento como o de uma nuvem de tempestade, a curiosidade lhes cruza as feições, enquanto eles tentam prever nossa estratégia.
Meu coração bate forte, ansioso. Enxugo um pouco do suor da minha testa. Eles são mais jovens e mais rápidos, mas Thomas e eu temos a inteligência do nosso lado e uma conexão incomparável. Somos uma equipe há vinte e dois anos. Aqueles amadores não são páreos para nós.
Ignorando o calor e a irritação da minha pele sob as várias camadas de roupa, convenço meu corpo a relaxar, mas me mantenho em posição, a espada empunhada e pronta para o combate, antes de tirar a máscara do meu rosto.
Meu marido geralmente me dá dicas, gestos que só eu sou capaz de decifrar: um menear de cabeça para uma defesa, um estreitar de olhos para um bloqueio. Desta vez, porém, não preciso das instruções dele. Conheço minha oponente. Observei-a o suficiente para descobrir seus pontos fortes e seus pontos fracos. Ela me atacará pela esquerda e me defenderei com um bloqueio. A não ser que agora ela decida misturar os golpes.
Como se pensasse que me decifrou, ela me encara com seus olhos azuis penetrantes e sorri, excessivamente confiante, antes de colocar a máscara no lugar. Ela fica rígida e eu também, de modo a convidá-la a fazer o primeiro movimento.
Com reserva e graça, ela troca de pé de apoio e investe contra mim, me atacando numa tática surpresa. Atinjo a espada dela imediatamente, cedendo ao seu ritmo. Ela perde o equilíbrio e exagera na compensação, executando um golpe atrapalhado. Sua reação apressada deixa seu peito exposto.

 


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Rugindo, miro o coração dela com a ponta da espada, sentindo uma emoção intensa ao furar seu casaco branco. Ela deixa a espada de lado e põe a mão no esterno. Seus olhos se arregalam por trás da máscara. O sangue jorra pela grama e mancha meus tênis brancos.

— Mamãe? — murmura ela em choque, encolhendo-se no chão.

Levanto a máscara, tiro as luvas e me ajoelho ao lado dela, cutucando suas costelas incansavelmente.

— Diga! — grito. — Diga que sou a rainha!

Jebediah e Thomas riem ali por perto, enquanto Alyssa gargalha histericamente, balançando de costas como uma tartaruga virada de cabeça para baixo em seu casco, tentando recuperar o fôlego e escapar da minha tortura de cosquinhas. A máscara dela cai, revelando seu rosto avermelhado.

— Diga! — insisto.

— Nunca! — responde ela e segura minhas mãos, lutando comigo e me derrubando ao seu lado.

Em pouco tempo, minhas costelas doem por causa de seus dedos incansáveis e estamos nos abraçando e rindo tanto que lágrimas escorrem de nossos olhos.

— Certo. — Thomas recupera a compostura o bastante para pedir um cessar-fogo. — Os velhos ganharam, simples assim.

— Dobrados novamente — comenta Alyssa, apontando para nossas espadas flexíveis de treino. A piadinha tira uma risadinha de Jebediah, que toca na mão ensanguentada dela.

Thomas me ajuda a levantar e toco os riozinhos vermelhos do meu casaco e calças de esgrima, o líquido grudento entre meus dedos.

Meu marido me oferece uma toalha para limparmos a bagunça. Uso a minha para enxugar meu rosto e minha testa.

— Ainda acho que o sangue falso de Halloween foi um exagero — opina Jenara do balanço na varanda, onde ela e Corbin esperam para desafiar a equipe vencedora. Eles bebem limonada de um tom de rosa igual ao dos cabelos dela. Ela retorce o nariz. — Foi uma cena bem assustadora.

— Você só pode estar brincando — diz Alyssa com uma risadinha ansiosa, admirando os milhares de gotas vermelhas nas roupas e nas rosas, madressilvas e ervas prateadas no jardim. — É lindo. Assim como qualquer decoração, ela só precisa ser transformada em algo novo.

A trança loira comprida às suas costas balança como se ganhasse vida. Ela usa sua mágica para suspender as gotículas brilhantes das plantas e flores e fazer as manchas em nossas roupas se juntarem a elas. O sangue falso paira no ar e ali fica, as gotas se fundindo como chuva na vidraça, até formarem uma treliça — um arco tremeluzente vermelho que parece um vitral. Alyssa segura a mão de Jebediah e o puxa para perto. Ele ri, guiando-a na dança sob o gazebo improvisado. Seus movimentos são graciosos e sincronizados, os corpos jamais destruindo a obra de Alyssa.

Thomas tomba a cabeça num gesto de repreensão, apesar de ser impossível ignorar o orgulho em sua expressão. Se não fosse pela cerca de madeira de três metros que ele recentemente instalou para nos proteger de curiosos, é bem provável que ele não estivesse vendo o showzinho de Alyssa com tanta leveza.

Se bem que ela sempre conseguiu dominá-lo com seus encantos.

Nossa filha olha para ele, rindo, em paz e à vontade como nunca a vi em todos os seus dezessete anos.

Como resultado de seu treinamento de mágica com Morfeu em seus sonhos, ela está executando os feitiços com perfeição, sendo capaz de dar vazão a seus poderes apenas com o pensamento. É em momentos como este que vejo: a rainha mística fervilhando sob a superfície. Uma predisposição ao sangue e ao caos. Como ela ganha vida em chamas e tempestades. Como a mágica dela inspira e doma o pandemônio. Como ela encontra beleza em tudo o que é mórbido e bizarro.

É irônico. Tentei por muito tempo cultivar essas qualidades em mim, mas meu lado humano era forte demais. Nunca pretendi ser rainha. Desejava, mas não de coração.

A dança termina e, com um virar de pulso de Alyssa, as gotículas de sangue caem em câmera lenta — como flocos de uma neve macabra — e novamente repousam em nossas roupas, nas folhas e nas pétalas das quais se originaram.

Jenara bebe o restante da limonada, os cubos de gelo no copo se chocando uns contra os outros.

— Vai ser bem difícil limpar essa bagunça toda.

Alyssa dá de ombros e ri.

— Nada que um frasco de água sanitária e uma mangueira não resolvam.

— Não. Não vou usar água sanitária nesta obra-prima. — Jenara estica os braços para mostrar o casaco rosado cobrindo seu corpinho. Ela o tingiu há algumas semanas e acrescentou uma renda delicada nas mangas e no colarinho. Colocando o copo de gelo ao lado do pé de Corbin, ela sai do balanço. — Se vamos insistir no uso de sangue, vou vestir meu casaco preto.

Corbin a segura pela cintura e a puxa de volta para seu colo.

— Ah, venha cá, princesinha. Vamos derrotar os mais velhos antes mesmo de você quebrar a unha. Jeb e Al simplesmente não têm os movimentos apropriados.

Jenara sorri.

— Bem notado.

— Uha! — Num movimento fluido, Alyssa pisa na espada caída a fim de que ela fique perpendicular ao chão e bata com o cabo em sua mão espalmada. — Venha cá e diga isso na minha cara, Cor-bin-ara.

Troco olhares com meu marido e rio.

— Bela manobra, menina skatista. — Jebediah dá uma risadinha, brandindo seu florete. — Quer uma disputa sob o salgueiro? — Ele arqueia a sobrancelha.

— Você não vai durar dois segundos. — Ela abre um sorriso rápido, seu anel de noivado brilhando à luz ao passar a espada de uma mão para a outra num movimento único e fluido.

— Ah, é mesmo? — pergunta ele, para, sem aviso, erguê-la e jogá-la sobre o ombro. A espada cai no chão com um baque, e ela ri enquanto ele a leva até a árvore e derruba os dois nas folhas que pendem baixo.

Ela poderia facilmente usar seus poderes para se libertar. Mas aí é que está. Não quer se livrar dele. Nunca quis. Ele é seu parceiro humano, em todos os sentidos.

Ela e eu conversamos sobre o que significa a imortalidade... sobre como vai ser difícil quando ele tiver morrido e ela continuar viva. Ela me garantiu que pode sobreviver — apesar de seu olhar ficar distante ao imaginar isso e de seu rosto nublar-se ao pensar na situação. Contudo, acredito na devoção dela ao País das Maravilhas, e Morfeu é poderoso o bastante para ajudá-la a superar essa perda. E sei que, quando tal dia chegar, a imortalidade dela será algo estonteante. Morfeu vai cuidar dela. Ele a tratará como realeza. Ele o faria mesmo que ela não fosse uma rainha, porque admira a coragem dela.

Ela é uma guerreira e eu sou uma covarde. Meu medo de perder Thomas supera qualquer lealdade que um dia eu tive pelo reino interior. Não consigo viver sem ele por toda a eternidade. Por esse motivo, entre tantos outros, fico feliz por meu espírito não ser mágico e eu ainda ser mortal. Mesmo que viva mais que meu marido, não será por muito tempo. E me sinto segura nessa inevitabilidade.

Ver Jeb e Alyssa lutando e rindo me faz sorrir. Eles são tão parecidos com Thomas e eu quando tínhamos essa idade — cheios de esperança. A diferença é que eles têm uma chance real de conquistar tudo o que sonharam, porque não há mentiras entre eles. O País das Maravilhas é um livro aberto que ambos leram e viveram. Eles até mesmo incluíram Jenara e Corbin em seu círculo íntimo.

Só recentemente Thomas e eu tivemos a verdade para nos unir. E tenho de agradecer minha filha por nos dar essa segunda oportunidade e por me devolver minha sanidade. Fecho os olhos, escutando. Tudo o que ouço é a água de nosso chafariz e as brincadeiras de Jebediah e Alyssa. Nada da conversa dos insetos. Nada do sussurro das flores.

De acordo com meu pedido, três meses atrás, quando Thomas, Alyssa, seu noivo e eu voltamos de nossa última viagem ao País das Maravilhas, Alyssa usou seus poderes reais para pôr um ponto-final nas intermináveis conversas em meus ouvidos, e ela se certificou de que seus descendentes ouçam apenas o silêncio. Só ela agora tem uma linha direta com os insetos e as plantas. Assim como ela é a única que ainda faz, nos sonhos, visitas regulares ao reino interior.

Apesar de ainda ter meus brotos de asa e as marcas nos olhos, minhas características intraterrenas só aparecem se eu deixar. Então, pela primeira vez desde meus dezesseis anos, me sinto normal. E, pela primeira vez desde meus doze anos, lembro-me do silêncio.

Achei que sentiria falta das vozinhas que me acompanharam ao longo de toda a adolescência, vozes que se tornaram minhas confidentes quando ninguém mais ouvia; porém, não preciso mais delas como muletas. Agora tenho uma família e um marido que sabe e compartilha da minha história no País das Maravilhas.

Nunca mais ficarei sozinha.

Meus olhos se abrem e sinto os dedos firmes de Thomas se entrelaçarem aos meus, como se ele lesse meus pensamentos. Nada me dá mais segurança que a sensação da mão dele na minha.

— Divirtam-se, meninos — diz ele. — Vamos acabar por aqui. — Ele vira os olhos castanhos para mim e beija os nós dos meus dedos, provocando um arrepio que me vai do braço ao coração. — Prometi à minha constrangida esposa que sairia com ela no nosso aniversário de vinte anos. Continuaremos amanhã. — Estreita os olhos na direção de Corbin e Jenara. — A não ser que vocês dois estejam prontos para perder agora. Todos sabemos como isso vai terminar. A idade e a sabedoria sempre vencem a juventude e a irresponsabilidade. — Sua risadinha maliciosa à la Elvis é recebida por bufadas dos jovens.

— Até parece, sr. G. — fala Jenara com ar de deboche. — Amanhã... mesma hora, mesmo lugar. Eu estarei de preto. E se lembre: o perdedor tem que usar um vestidinho curto em público. Prepare-se para a maior transformação da sua vida.


Enquanto Thomas toma banho, observo-me no espelho sobre o lavabo. Uma tarefa mundana para a maioria das pessoas, mas algo que tenho evitado desde que conheci meu marido.

Finalmente, depois de todos esses anos, não preciso mais me esconder de espelhos. Não preciso mais ter medo de ver a expressão crítica de Morfeu atrás de meu reflexo.

Meu vestido é simples e elegante: renda branca com um decote nas costas e sem mangas. Uma tira de renda contrastante — cor de um cappuccino — afina minha cintura e complementa o brilho bronzeado da minha pele recém-lavada. O sutiã envolve meus seios, e a saia, meus quadris — a barra abaixo do joelho. Alyssa e Jenara me ajudaram a escolhê-lo na loja, jurando que ele era sensual o bastante para deixar Thomas de olhos arregalados. Estou ansiosa por testar a teoria.

Ficamos separados, desnecessariamente, por muito tempo. Talvez por isso ele faça com que eu me sinta como uma menininha apaixonada, porque cada momento que passamos juntos é como redescobrir tudo de novo — suas palavras gentis, seus beijos, sua risada e sua bondade.

Com um toque de blush no rosto e um quê de batom vermelho nos lábios, estou pronta. A energia e a vitalidade pulsam em meu corpo e geram faíscas sob minha pele. Meus cabelos platinados na altura dos ombros envolvem sedutoramente meu rosto, de forma que dou início à tarefa de prendê-los com grampos brilhantes.

Uma mulher prestes a sair com o marido de vinte anos de casamento... é isso que vejo. Houve um tempo, porém, em que eu não estava sozinha na nostalgia, quando qualquer superfície refletora abria as portas para o louco e caótico País das Maravilhas que eu pretendia dominar. Salvei o menino na teia daquele mundo e fiz o meu melhor para dar as costas a tudo isso quebrando todos os espelhos por perto.

Foi errado abandonar tudo sem nem uma explicação. Agora sei disso.

Fugi às minhas responsabilidades, num pacto com o próprio diabo. Então Morfeu, entrando nos sonhos da minha filha — me usando como um canal involuntário —, encontrou outra maneira de me fazer pagar. Ele apareceu para ela todas as noites durante os primeiros cinco anos de sua vida, disfarçando-se de criança — a tal ponto que virou criança de corpo e alma —, de modo a ser o amiguinho dela e conquistar seu afeto e confiança. Quando descobri, tentei reagir ao ataque mental dele com um conflito físico, a fim de protegê-la fazendo a única coisa que me era possível: ir embora.

Fecho os olhos e, por um instante, meu vestido no espelho se transforma na camisa de força que se tornou minha arma preferida.

Como pude achar que não haveria consequências por ter me escondido num hospício? Esperava que ele encontrasse outro parceiro de luta... outro Liddell para explorar, alguém que pudesse salvar-lhe a alma dessa maldição de passar a eternidade preso no covil da Irmã Dois. Para escapar ao seu destino, ele tinha de realizar a Maldição da Vermelha, coroando uma rainha da linhagem dela com a tiara de rubi, enquanto a própria Vermelha possuía o corpo da outra. Equivocadamente supus que, ao decepcioná-lo, ele seguiria em frente e encontraria outra vítima num parente distante, respeitando minha escolha.

No entanto, havia uma rachadura na minha armadura e meu adversário a penetrou. Eu deveria ter previsto. Desde que conheço Morfeu, ele nunca seguiu em frente. Não tendo seu objetivo em vista. Ele é o estrategista mais brilhante e mais paciente que jamais conheci.

O vapor do banho de Thomas nubla meu reflexo e por trás da névoa me vejo como era quando descobri os planos de Morfeu para Alyssa: aquela mãe jovem e ingênua, temendo pelo futuro da filha. Culpada por colocar a filha em perigo. Minha menininha nunca quis ser minha substituta, mas, com minha traição, foi exatamente isso que ela se tornou.

Optei por não contar a Alyssa minhas escolhas e as repercussões delas porque achava que tinha conseguido poupá-la. Mas todo aquele tempo no hospício, longe do meu marido e da minha filha, não teve importância. Nem o juramento de Morfeu de não entrar em contato com Alyssa de novo. Porque ele já tinha plantado, na mente dela, memórias dos momentos a dois, contando com a curiosidade que ela herdou de Liddell para convencê-la a procurá-lo. Aos dezesseis anos, ela encontrou a toca do coelho sozinha, exatamente como ele planejara.

Minha mão dispersa involuntariamente a lembrança e puxo uma mecha de cabelo com força demais. Sinto uma dor no couro cabeludo e faço uma careta. Rearrumando a mecha, prendo-a com um grampo.

Morfeu convenceu minha filha a conquistar a coroa que eu desejava e acabei por desprezar. Ao longo do processo, ele se salvou. Era uma responsabilidade pela qual Alyssa não tinha pedido, apesar de ela acabar por aceitá-la e até mesmo adotá-la. Ainda assim... ele a convenceu a virar rainha sem lhe contar todos os fatos.

A única coisa que me deixa feliz é saber que ele não saiu incólume. Ele pagou um preço. Um preço que jamais imaginou.

Enquanto “amadurecia” com Alyssa nos sonhos de infância dela, enquanto a observava enfrentar todos os desafios que ele lhe impunha no País das Maravilhas, Morfeu — o ser solitário e egoísta antes incapaz de amar — apaixonou-se completamente por ela. Eu não acreditaria, se não tivesse visto com meus próprios olhos. Ele sentiu a força de sua devoção quando desistiu da oportunidade de tê-la ao seu lado no reino interior. Quando ele optou por esperar, a fim de que a metade humana do coração dela pudesse se curar, até que ela fosse forte o bastante para governar o reino Vermelho eternamente.

Por causa desse sacrifício, começo a suspeitar que talvez ele não seja demoníaco. Que talvez, depois de todos esses anos, eu esteja vendo um lado dele quase vulnerável e amoroso. Um lado que ele manteve afastado de mim, a não ser por um ou dois vislumbres dos quais me esqueci ao longo dos anos.

Ainda assim não estou pronta para perdoá-lo por usar minha filha. Porque, para isso, teria de me perdoar por torná-la responsável por minhas confusões. E por mais que Thomas queira... não tenho certeza se consigo.

A vida de Alyssa sempre foi dividia ao meio por causa de mim. Ela sempre tolerou tudo com tranquilidade. Ninguém podia vê-la com seus assuntos interiores e negar que ela foi feita para ser rainha. Ela ama o mesmo mundo que acabei por odiar.

E, como amo minha filha, de alguma forma tenho de aprender a adotar aquele mundo novamente. De outro modo, nunca superarei o fato de ter deixado Morfeu e toda a loucura do País das Maravilhas entrarem em nossa vida.

Meu reflexo nebuloso me traz de volta ao aqui e agora. Passo meu perfume preferido nos ombros e pulsos — nadando em tons de maracujá e laranja —, depois maquio o nariz com pó, saindo do banheiro antes que o vapor do banho de Thomas possa borrar a maquiagem.

Coloco brincos de pérolas e um colar e bracelete combinando, depois me sento na beirada da cama e movimento os dedos do pé, me concentrando na porta fechada do nosso quarto. Sons de portas de armários e panelas batendo umas nas outras vêm do outro lado. As crianças estão na cozinha, preparando algo para o jantar. Penso em ajudá-las enquanto espero Thomas, mas não estou pronta para enfiar os pés no par de salto alto ao meu lado. O carpete é tão gostoso... fofo e farto. Em vez de ajudá-las, deito-me no edredom, abro os braços e fecho os olhos, relaxando músculos que ainda doem por causa da esgrima mais cedo.

Atenta ao ritmo da água contra o boxe do banheiro, permito-me voltar a outro dia e hora, quando tinha treze anos, olhando para o mundo tomado pela chuva. Quando aceitei o chamado interior durante um dos períodos mais tristes e solitários da minha vida.

Foi quando Morfeu se aproximou de mim e me ofereceu poder e vingança na palma de sua mão manipuladora. Foi o dia que mudaria, para sempre, quem eu iria me tornar.


Capítulo 2


Encaixotada

Vinte e seis anos antes...

A chuva batia na caixa de papelão vazia sobre minha cabeça. Eu a virei de lado e entrei nela antes da tempestade. A Lixeira ao meu lado fedia a peixe morto e fruta podre, superando os cheiros frescos de asfalto e terra molhados. Poças marcavam a rua irregular e a água jorrava das calhas que pendiam dos fundos do meu prédio de apartamentos do outro lado do beco.

Uma lufada de vento invadiu meu abrigo improvisado. Acocorei-me contra a parte de trás da caixa, colocando minha sacola atrás do pescoço como um travesseiro e segurando as páginas de Alice no País das Maravilhas a fim de eu não me perder na leitura. Algumas semanas antes, risquei o Alice no título e o substituí por Alison. Em parte era para todos saberem que o livro era meu. Mas havia mais... parte de mim queria que eu pudesse viver as mesmas aventuras... que eu de alguma forma fosse Alice e entrasse numa toca de coelho onde um mundo novo me aguardasse — um mundo onde alguém tão peculiar e deslocada quanto eu talvez se encaixasse. Um lugar do qual eu pudesse fazer parte.

Nunca fui boa em entender outras pessoas. Principalmente porque eu me mudava demais. Pelo menos era o que eu dizia para mim mesma. Não tinha nada a ver com minha dificuldade em confiar nas pessoas ou minha incapacidade de me relacionar com elas diariamente.

A leitura me dava amigos o bastante, e os livros de Lewis Carroll eram meus preferidos, sendo uma das poucas coisas que minha mãe me deixou ao morrer, pouco depois do parto. As histórias me aproximavam dela, apesar de jamais tê-la conhecido. Talvez porque, secretamente, eu entendesse como o País das Maravilhas era real para ela, considerando nosso parentesco distante com os Liddell de Londres.

Certa vez, quando eu morava num orfanato e esperava por uma família adotiva, entrei no escritório e li minha ficha. Só assim é que pude descobrir minha origem. Alice Liddell, a menina real que inspirou as histórias de Carroll, teve um filho que, antes de ir para a guerra e morrer no campo de batalha, se envolveu com uma mulher. A namoradinha dele acabou grávida e veio para os Estados Unidos a fim de criar o filho ilegítimo. O menino cresceu e teve uma filha: minha mãe, Alicia.

De alguma forma, tudo isso deixava minha mãe maluca. Minha ficha dizia que ela passou algum tempo num hospício quando adolescente, depois de pintar os personagens do País das Maravilhas em todas as paredes de casa e insistir que eles conversavam com ela nos sonhos. Quando nasci, ela saltou do segundo andar do hospital para testar as “asas de fada” que as vozes diziam que ela tinha. Ela caiu num arbusto de rosas e quebrou o pescoço.

O médico disse que ela cometeu suicídio — depressão pós-parto e luto por ter perdido meu pai meses antes, num acidente de fábrica. Qualquer que fosse o motivo, algo nunca foi explicado... as marcas do tamanho de uma moeda em suas omoplatas, grandes demais e perfeitamente separadas para terem sido causadas por espinhos.

Minha opinião? Ela tinha asas, sim. Asas que nunca brotaram. Se sou louca por pensar isso, paciência. Porque, se eu era maluca, isso significa que tínhamos uma relação. Algo em comum. Desde que ninguém ficasse sabendo.

Minha mãe também deixara para trás uma câmera polaroide — do tipo que cospe imagens prontas ao aperto de um botão. Sei como usá-la desde os cinco anos.

Abracei com mais força as fotografias que tirei da bolsa. Era algo em que me tornei boa: me esconder atrás de árvores nos parquinhos ou de carros no estacionamento de shoppings para captar momentos das famílias e amigos de outras pessoas. Gostava de me cercar deles — me protegendo, assim, da falta da minha própria família.

Arregacei a manga da minha jaqueta jeans para consultar o relógio. Só mais dez minutos e as aulas terminariam. Então eu voltaria para meu apartamento e fingiria ter passado o dia onde deveria ter estado. Apareci no início da minha última aula, ficando o suficiente para ser considerada na lista de presença, antes de “dar um passeio no banheiro” e não voltar mais. Com alguma sorte, a srta. Bunsby, minha cuidadora mais recente, jamais ficaria sabendo da minha fuga. Moro com ela só há um mês. Não queria incomodá-la e ser abandonada de novo. Apesar de ser uma viúva vegetariana de quarenta e tantos anos, ela era a melhor cuidadora que já tive.

Olhei para o sexto andar do prédio. Nosso apartamento ficava mais à esquerda, onde a escada de incêndio estava toda enferrujada, virando um esqueleto preto pendente e inútil. Eu era ótima em escalada e tentara fazia algumas semanas descer pela escada e sair à noite para uma sessão de fotografias. Escorreguei e caí.

Seis andares era uma queda e tanto. Eu deveria ter morrido ou ao menos quebrado alguns ossos. Durante a queda, porém, entrei em estado de sonho e, de alguma forma, ao acordar não tinha nenhum ferimento. Não estava nem mesmo com dor. Só tinha uma lembrança estranha de enormes asas pretas.

Mexendo nas fotos, encontrei uma no fim da pilha: uma mariposa enorme de corpo azulado e asas pretas, toda aberta numa flor entre um ângulo de sol e sombra. Lembro-me de quando a vi no parque, como se ela estivesse paralisada entre dois mundos. Tirei a foto não apenas pelo simbolismo, mas também porque já tinha visto o inseto antes. Minha mãe tinha desenhado uma mariposa como aquela numa folha de papel mantida dentro dos livros da Alice. O mais estranho é que ela também tinha feito, bem ao lado, um esboço da Alice presente nas ilustrações do País das Maravilhas. De alguma forma — em sua mente —, os dois desenhos estavam conectados. Perdi o desenho durante uma de minhas muitas mudanças. Então, ao ver aquela mariposa idêntica, ao vivo e em cores, tive de imortalizá-la com minha câmera.

Suspirando, guardei a imagem no meu livro da Alice, para marcar a página. Aquela foto era a preferida da srta. Bunsby. Ela disse que eu tinha um dom, que, se eu continuasse melhorando, ela me daria a câmera do marido — uma Yashica 44 —, assim como seus livros sobre revelação de filmes.

Ela foi um dos poucos adultos que acreditaram em mim sem me criticar. Todavia, se a srta. Bunsby soubesse que eu achava que essa mesma mariposa exercera um papel nas fantasias da minha mãe quanto ao País das Maravilhas, ela pensaria que minha imaginação era fértil demais, como meus professores e cuidadores sempre disseram. Fiz a pesquisa na biblioteca. Mariposas vivem meses, não décadas.

Pensar nisso meio que me deixou assustada. Mas também fez com que eu me sentisse especial, como se eu e minha mãe importássemos para alguém em algum lugar — o bastante para merecermos ser observadas. Não foi a primeira vez que senti que insetos e plantas estavam tentando entrar em contato comigo de um jeito que não tentavam com outras pessoas. Eu ouvia vozes desde que cheguei à puberdade, perto do meu aniversário de doze anos, há um ano. Ainda assim, sabia muito bem que não deveria compartilhar isso com ninguém, pelo risco de acabar na ala psiquiátrica, como minha mãe.

Meu estômago roncou e coloquei a mão na barriga. A srta. Bunsby serviria beterraba e caçarola de tofu hoje à noite. Só de pensar nisso minhas papilas gustativas querem sair correndo. Tive de economizar meu lanche ao máximo. O pacote de biscoitos com manteiga de amendoim que guardei do almoço estava aberto ao meu lado. Coloquei um deles na boca e o mastiguei lentamente. Migalhas se acumularam na ilustração de Alice fugindo de alguns guardas da Rainha de Copas, na esperança de manter a cabeça, de modo que as espanei dali, fazendo-as cair na minha coxa.

Uma barata surgiu de baixo das abas da caixa e subiu pela minha calça para pegar um pouco de comida sem nem sequer um “por favor” ou “obrigada”. Em minha opinião, as baratas eram os insetos mais rudes do mundo. Eu conversara com moscas e besouros que eram educados e interessantes. Mas as baratas nunca tinham muito a dizer além de resmungar por causa da falta de lixo e sujeira, agora que os seres humanos habitavam o mundo delas, alegando que os sacos de lixo e os aspiradores de pó estavam prestes a acabar com elas.

Agitei a mão, afastando o inseto. Encolhi-me mais na caixa e censurei meus maus modos.

— Estou tentando ajudá-la, sua idiota. Você quer ser esmagada? — Peguei minha bolsa, enfiando as fotos e livros dentro dela, e saí para a tempestade, correndo até o espaço entre meu prédio e a barbearia ao lado.

A única entrada era pela frente. Nosso senhorio, Wally Harcus, mantinha a porta dos fundos trancada “por segurança”. Pelo menos era o que ele dizia. Ele só queria tirar vantagem de todas as mães solteiras e menininhas que viviam em seu prédio de aluguel barato. A porta dele era a primeira do corredor, o que significava que ele tinha a situação perfeita, da perspectiva de um pervertido.

As gotas de chuva e o gelo me feriam. O tecido da minha jaqueta e da minha calça absorvia todas as gotas e eu me sentia cinco quilos mais pesada e vinte graus mais gelada assim que entrei no prédio.

Minhas mãos estavam molhadas demais para segurar a maçaneta e, por isso, a porta se fechou com um baque. Gemi ao ouvir o barulho.

Mal tinha passado pela porta de Wally quando esta se abriu. Segui lentamente pelo corredor até a escada, mantendo os olhos no homem.

Seu rosto suado apareceu antes, depois todo o corpo, camadas de banha mal contidas por uma camiseta azul justa e calça cáqui manchada de gordura. Dava para sentir o fedor dele com meus olhos — o cheiro de carne e repolho podres. Bolsas de suor formavam círculos irregulares sob seus braços, criando uma mancha azul-marinho.

Ele sempre me lembrava uma morsa — careca, dobras de pele sobre a sobrancelha, o queixo duplo e um bigode que parecia um salsichão polonês semicomido pendendo sobre seus lábios gordos. Os sons que emitia cada vez que respirava só contribuíam para a ilusão de um mamífero marinho.

— Oi, Alison. Se molhou um pouco, né? — Seus olhos brilharam, escuros e aquosos como carvão líquido, ao dar uma mordida em seu damasco maduro demais. O suquinho escorreu por seu queixo e ele abriu uma risadinha maliciosa. Seus incisivos, grandes demais para sua boca, exibiam-se como presas de marfim subdesenvolvidas.

Meu estômago se revirou de novo enquanto ele saía completamente para o corredor e encarava meu peito, a camiseta grudada no corpo. Ele parecia faminto, como se fosse me engolir toda. Fechei a jaqueta e tirei mechas de cabelo molhado do rosto.

— Tenho chocolate quente no fogão. Quer uma xícara? — perguntou ele.

Eu o surpreendi me encarando várias vezes, mas ele nunca antes teve coragem de me convidar para entrar. Engoli em seco e segurei com força as alças da bolsa.

— Não, a srta. Bunsby está me esperando.

— Não está, não. Teve de ir rapidinho ao mercado. — Ele me mostrou um bilhete.

Só tive tempo de ver um triângulo amassado com as palavras voltarei dentro de uma hora, antes de ele guardar o bilhete no bolso.

— Na verdade — continuou Wally —, ela me disse para lhe fazer companhia. Disse que você é nova demais para ficar sozinha sem causar problemas. Posso ir ao seu apartamento, se você quiser. — Ele balançou as chaves que pendiam do cinto, o sorriso ainda maior.

Idiota.

Eu o odiava e me odiava ainda mais por estar com medo. Já encarei monstros como ele antes. Numa família adotiva anterior, tive um irmão adotivo de catorze anos que me prendeu no porão e enfiou a língua na minha boca enquanto suas mãos subiam por sob minha camiseta. Ainda assim fui devolvida ao abrigo por morder a ponta da língua dele e quebrar seu polegar. Eu era a problemática.

Infelizmente para mim, não seria tão fácil me livrar de Wally Harcus quanto foi me livrar de um adolescente magricela.

Meus calcanhares tocaram o primeiro degrau, me detendo. Era correr ou lutar. De uma coisa eu sabia: a srta. Bunsby jamais pediria à morsa que me fizesse companhia. Ele provavelmente a viu saindo e pensou que era a chance perfeita de tentar algo. E ali estava ele entre mim e minha única rota de fuga. E, mesmo que eu me trancasse dentro do nosso apartamento, ele tinha as chaves para entrar.

Eu podia colocar algo contra a porta e ganhar tempo para descer pela escada de incêndio quebrada. Eu provavelmente cairia e morreria, mas isso seria melhor do que a alternativa.

Dei meia-volta e subi os quatro lances de escada. Dava para ouvir os passos dele me seguindo devagar, se arrastando. Ele não tinha pressa. Todos cuidavam da própria vida aqui. Ninguém o impediria, o que tornava a perseguição tão desafiadora quanto a de uma mosca já presa na teia da aranha.

Lágrimas encobriam minha visão ao chegar à porta do nosso apartamento. Um pedaço de fita adesiva pendia com um pedacinho do bilhete da srta. Bunsby no ponto onde ela o prendera, perto do olho mágico. Wally tinha pegado a cartinha que ela deixou para mim.

Engolindo em seco a bile que subia pela garganta, lutei para enfiar a chave na fechadura. A adrenalina usava meu coração como saco de pancadas, socando-o até que ele batesse incontrolavelmente no peito. Tinha acabado de conseguir entrar, fechar a porta e trancá-la, quando Wally subiu o último degrau da escada de nosso andar.

Com todo o corpo rígido, arrastei a cadeira preferida da srta. Bunsby e a coloquei sob a maçaneta, correndo para me trancar no quarto, deixando a bolsa cair junto à soleira, do lado de dentro. A tarde nublada reduzia a luminosidade do dia a uma névoa cinza e, com as cortinas pesadas cobrindo as janelas, as sombras inundavam o quarto e pintavam formas fantasmagóricas nas paredes nuas.

Chaves tilintavam do lado de fora do nosso apartamento, alto o bastante para eu ouvi-las pela porta fechada. Chorando, fui até a janela, abri as cortinas e o vidro. Uma lufada de vento e chuva soprou em meus cabelos, fazendo-os bater contra meu rosto. Lágrimas escorriam queimando meu rosto, enquanto eu passava uma das pernas pelo peitoril, prestes a me jogar.

— Tsc, tsc. Isso seria uma tragédia e um desperdício. — Um sotaque caipira marcado me deixou paralisada ali, sentada entre a vida e a morte. — Claro que sua existência vale mais que a daquele rato gordo.

Virei a cabeça em direção à voz. No canto esquerdo do meu quarto, as sombras se moviam e assumiam a silhueta clara de um homem.

Consegui falar entredentes.

— Q-quem está aí?

— Apresentações não são necessárias entre amigos. — O intruso saiu para a luz fraca, revelando um rosto ao mesmo tempo belo e assustador. Ele não era humano. Não, ele era perfeito e místico demais para isso. Marcas semelhantes a tatuagens brilhavam com cores vivas sob seus olhos escuros e fantasmagóricos. Seus cabelos azulados balançavam sem sincronia com o vento que entrava pela janela. — Acredito que mereço o título de amigo, você não acha? Considerando que da última vez você quase quebrou a cabeça ao descer por essa escada de incêndio. — Asas gigantescas surgiram atrás dos ombros dele, brilhando como seda preta sob a luz cinzenta.

Perdida entre o terror, a descrença e a esperança, trouxe a perna de volta para meu quarto e me encostei na junção entre o peitoril da janela e a parede.

— Você... então foi você. Você me salvou.

Ele alisou as luvas vermelhas que recobriam suas mãos.

— Não exatamente, Alison. Você mesma se salvou ao desafiar as leis da natureza. O simples fato de você ter tentado descer pela escada de incêndio foi digno de uma segunda chance na vida, não? A coragem misturada à estupidez se torna impulsividade, o que é uma característica admirável de onde venho, algo que deve sempre ser recompensado.

Estreitei os olhos para ele.

— Você me recompensou por minha estupidez?

Ele segurava uma cartola diante de si e a acariciava como se ela fosse um gato.

— Sua impulsividade. — Uma risada reverberou em seu peito. — Você é estranha, não é? Você não duvidou de mim ainda, nem questionou se sou real. Nem mesmo perguntou como sei seu nome. Você não se importa com nada disso, não é?

Fechei as mãos ao lado do corpo.

— Não importa se sou louca, desde que minha loucura me ajude a sobreviver.

Ele arqueou a sobrancelha, obviamente feliz e surpreso com minha resposta.

— Ah, você fala como uma verdadeira criatura do reino interior. A loucura, como qualquer outro aspecto da irracionalidade, pode ser usada como instrumento e arma nas mãos certas.

Não tive nem tempo de perguntar o que era o reino interior porque, no cômodo ao lado, os pés da cadeira arranhavam o piso de azulejo e riscavam meus nervos como garras. Wally estava no apartamento.

Minha garganta secou. Olhei para os degraus escorregadios lá fora e depois para dentro, na direção do homem alado agora de corpo inteiro junto à porta. Ele era alto e gracioso, com dezenove ou vinte anos e vestindo rendas e veludo, como um cavalheiro de outra época.

— Você é... você é o meu anjo da guarda? — Ouvi falar dessas criaturas, mas nunca acreditei que fossem reais. Naquele momento, porém, estava disposta a acreditar em qualquer coisa se isso fosse capaz de me salvar do senhorio ou de um pescoço quebrado.

Meu visitante mostrou os dentes num sorriso lindo que transformou seu rosto no parque de diversões do diabo — malícia oculta por um verniz de adorável persuasão.

— Estou bem longe de ser um anjo, meu patinho. Mas estou aqui para vê-la distribuir um pouco de sua virtude com um tolo pecador. — Ele colocou a cartola na cabeça. Mariposas mortas balançaram na aba, num tributo mórbido ao vento que soprava as cortinas. — Agora vamos nos divertir um pouco com o velho Wally, sim?


Capítulo 3


A Longa Perna
da Lei

Os passos de Wally, a Morsa, se aproximavam da minha porta.

— Não vai deixá-lo entrar, não é? — perguntei ao demônio... anjo... salvador... que seja. Ele ficou imóvel como uma estátua, as joias de seu rosto piscando em vários tons de dourado. — Você vai me ajudar uma última vez? — Uma veia latejava forte no meu pescoço e minhas cordas vocais tremiam como uma tarola.

As asas da criatura se abriram.

— Ah, não, patinho. Você mesma vai se ajudar. Afinal, você é quem tem uma linha direta com os mais antigos habitantes da Terra. Eles são mestres em outras coisas além de conversinhas, Alison. Eles têm habilidades. Você só precisa pedir uma mãozinha. — Ele apontou uma aranha de pernas longas que passava pela parede atrás dele, lançando uma sombra enorme sobre o gesso branco. — Ou oito patas. O que você preferir.

Antes que eu pudesse entender o gracejo, meu hóspede místico desapareceu numa nuvem de poeira azulada, substituído por uma mariposa do tamanho de um pássaro que se escondeu de novo nas sombras.

A mariposa da minha imagem... do desenho da mamãe.

Meu olhar se voltou para as polaroides que saíram pela abertura da bolsa. Antes de poder me ater a elas, a porta se abriu, criando uma trilha pelas memórias roubadas.

Meu estômago se revirou quando Wally entrou. Pedacinhos brilhantes de damascos estavam presos a seu bigode. Ele usou as costas da mão gorda para se limpar e quase tropeçou no meu exemplar de Alice no País das Maravilhas.

Ele o pegou e fez um barulho de desprezo.

— As aventuras de Alison no País das Maravilhas? O que há de errado com você, menina? Você é louca ou só estúpida? — O desenho da mariposa caiu do livro quando ele o balançou. Wally ficou olhando a imagem cair no chão. — Espere aí, já vi esse inseto. Estava tentando tirá-lo do prédio. Foi o que me levou à sua porta... — Wally se deteve, como se tivesse falado demais. — Afaste-se dessa janela. Isso não é nenhuma toca de coelho. Você vai tropeçar e eu terei que limpar sua bunda raquítica do asfalto.

Travei a mandíbula, imóvel.

Ele jogou o livro no chão.

— Olha, posso fazê-la suspirar ou chorar. De qualquer forma, isso vai acontecer.

Minha atenção passou de seu olhar desejoso para a parede sobre a porta. Para o desfile de aranhas saindo de um buraco atrás dele, na moldura da porta, cobrindo a parede e o teto. Havia umas trinta aranhas agora e mais delas surgiam. Será que a tempestade as despertou?

Peça uma mãozinha ou oito patas...

Talvez eu estivesse tendo alucinações. Talvez eu finalmente estivesse perdendo a cabeça, como minha mãe. Contudo, o que quer que estivesse acontecendo, tinha de usar isso em meu benefício. Não podia me mexer, e eu já tinha perdido a oportunidade de mergulhar para a morte.

— Me ajude — implorei, sem saber direito o que queria dizer com isso nem para quem estava pedindo.

— Ah, vou ajudá-la. — Em segundos, Wally me prendeu contra a parede com sua mão suada no meu pescoço. Segurei o pulso dele com ambas as mãos e enfiei minha unha com força. Ele riu, seu hálito azedo no meu rosto. — É, vou ajudá-la de verdade. Está vendo, sou o coelho branco e vou levá-la numa aventura que você jamais esquecerá, Alice.

Ele me ergueu pelo pescoço até que fiquei só na ponta dos pés. A pressão fechava minha garganta e pontos pretos começaram a surgir no meu campo de visão. Chutei-o, mas ele se desviou e, com a mão livre, começou a mexer no meu cinto.

Meus músculos abdominais se contraíram, num sinal de repulsa. Os pontos pretos aumentaram, mas não por falta de oxigênio. Virei os olhos e vi o enxame de aranhas nas paredes e no teto — centenas delas.

— Ajude-me agora — ordenei desta vez, sem hesitar. Minha única esperança era tirar Wally do apartamento com uma avalanche de aranhas levando-o escada abaixo.

A reação das aranhas foi instantânea e violenta. Wally gritou e me soltou quando o enxame começou a subir por ele, entrando em seus sapatos e escalando suas pernas. Afastei-me da janela e puxei o ar, enquanto os insetos continuavam com sua marcha, tomando conta do peito dele. Seus gritos de horror eram abafados pelos sussurros furiosos das aranhas que o recobriam. Mais aracnídeos vieram substituir aquelas que morriam. Elas chegaram ao pescoço e ao rosto de Wally, depois encheram sua boca entreaberta, silenciando seus gritos desesperados. Ele levou as mãos ao pescoço, os braços nus cobertos por mangas de pernas ágeis e tórax arfantes.

Seu nariz e seus olhos desapareceram sob a infestação crescente. Ele perdeu o equilíbrio e tentou se segurar na parede, mas errou o alvo. Caiu da janela aberta, engasgando-se durante a queda.

Paralisada, recuei até a porta do meu quarto, perdendo o fôlego ao ouvir o baque pesado do corpo dele no asfalto molhado.

Um movimento repentino no canto esquerdo do quarto me distraiu. A mariposa saiu das sombras e pousou no peitoril, observando a confusão lá embaixo. Um ataque de náusea queimava meu estômago.

— Foi um acidente — choraminguei para o inseto, como se estivesse me confessando. — Eu... não queria que isso acontecesse!

— Ah, mas eu queria. — Aquele sotaque se revirava dentro de minha mente. A voz pertencia à mariposa e ao homem. De alguma forma, eles eram a mesma coisa e de alguma forma também estavam ligados às histórias do País das Maravilhas. Minha mãe tinha entendido tudo. O que significava que ele nos observava fazia anos. Não só isso; ele levara Wally ao meu apartamento mais cedo. Foi por causa dele que o senhorio encontrou o bilhete da srta. Bunsby antes de mim. Tudo foi armado.

Eu não conseguia falar, envolvida por um furacão de confusão, surpresa e arrependimento.

— Não se preocupe com aquele rato, Alison — repreendeu-me mentalmente a voz britânica. — Há incontáveis jovens a quem ele fez mal. Coube a você resolver o problema. Desequilíbrio gera desequilíbrio. O caos é o que restabelece o equilíbrio. Haverá repercussões. Você não pertence mais a este lugar. É melhor assim. Você está destinada a muito mais do que este mundo tem a oferecer. — A mariposa voou sobre mim, pairando diante do meu rosto. — Assuma a responsabilidade. O poder é o único caminho para a felicidade, e posso ajudá-la a conquistá-lo. Meu nome é Morfeu. Encontre um espelho e me chame quando estiver pronta para viver seu destino.

Ao dizer isso, o enorme inseto virou-se e saiu pela janela.

— Espere! — gritei. Lágrimas ensopando meus olhos, me arrastei até a janela e olhei para baixo. Dois adolescentes de bicicleta que estavam ao lado do corpo de Wally olharam para cima. Pouco antes o homem estava me dominando... agora ele parecia uma boneca quebrada com braços e pernas revirados em poses incomuns até se desencaixarem do restante do corpo. As poças ao lado dele estavam manchadas de vermelho, com o sangue que vertia da parte de trás de seu crânio.

Cachorros latiam e pessoas gritavam, enquanto mais espectadores saíam do prédio. Lentamente, todos voltaram a atenção para minha janela. Vários deles apontaram para mim; alguns menearam negativamente a cabeça.

Queria correr, mas não conseguia me soltar da janela. As aranhas tinham sumido, entrando em milhares de esconderijos acessíveis somente a insetos, abandonando-me ao desejo de ter o tamanho delas, para poder desaparecer e jamais ter de enfrentar as acusações e perguntas que viriam.


Morfeu tinha razão. Não encontrei abrigo depois disso. E suspeito que tenha sido por isso que ele cuidou para que Wally encontrasse o bilhete e me perseguisse.

O departamento de proteção à infância acusou a srta. Bunsby de negligência, alegando que qualquer pessoa com minhas “tendências violentas” não deveria ser deixada sozinha enquanto ela fazia compras. Eles também disseram que eu andava faltando às aulas, o que só fez com que a srta. Bunsby parecesse mais inepta. Fui tirada dos cuidados dela na mesma noite.

Enquanto a polícia e os assistentes sociais entrevistavam a srta. Bunsby na sala, eu guardava minhas coisas, tentando evitar olhar pela janela. A srta. Bunsby tinha deixado um saco marrom de mercado na cama. Engraçado ela pensar que havia fracassado comigo. Deu para ver isso refletido em seus olhos amendoados úmidos quando ela chegou em casa depois de toda confusão. Pena que eu não podia lhe dizer a verdade. Pena que não pude dizer que ela não tinha culpa por eu ter sido cúmplice de um assassinato... que a responsabilidade foi do próprio Wally, e também de uma mariposa mística e de um enxame de aranhas.

Dentro do saco de mercado, ela colocou a câmera do marido, filme e um livro sobre revelação de fotografias. Havia ainda um pacote de biscoitos de manteiga de amendoim, uma maçã e uma garrafa de água. Senti uma dor no coração, porque sabia que podia ter sido feliz com ela, se Morfeu não tivesse outros planos para mim. No entanto, por mais que eu sofresse, me recusei a chorar. Cansei de chorar.

E nunca mais seria vítima novamente.

Ao deixar o apartamento, a srta. Bunsby prometeu tentar me visitar um dia. Eu sabia que isso não aconteceria.

Um mês se passou, cheio de avaliações psiquiátricas e exames médicos, a fim de garantir que eu não estava traumatizada. Por mais que tentassem, os médicos não podiam me considerar louca, porque eu me recusava a dar detalhes sobre o acontecido. Só disse que o senhorio tentou me agarrar, lutamos e ele caiu da janela. Simples assim.

Quando o psiquiatra exibiu os cartões com borrões para me analisar, eu nunca disse com o que eles realmente se pareciam. Não lhe disse que via tocas de coelhos, lagartas fumantes, menininhas usando aventais com facas nas mãos, homens alados, mariposas do tamanho de um papagaio ou exércitos de aranhas. Também não deixei ninguém me surpreender falando de flores e insetos que insistiam em me fazer companhia. Sabia como parecer sã.

Fiz um trabalho tão bom que tive alta sem mais avaliações depois de apenas seis semanas. O problema era que o serviço social não conseguia me colocar com outra família adotiva, considerando toda a minha bagagem. Então o abrigo se tornou minha residência permanente.

Pelo menos era o que eles pensavam. Eu não pretendia ficar ali. Planejava ir a algum lugar onde as leis e os olhos atentos deles jamais me encontrassem novamente. E sabia exatamente quem me ajudaria na fuga.

Todas aquelas semanas em terapia, adiei meu contato com Morfeu. Precisava de tempo para refletir. E cheguei a três conclusões. Primeira, minha família estava de alguma forma ligada às histórias de Lewis Carroll, o que significava que o País das Maravilhas existia em algum nível. Em segundo lugar, Morfeu também estava ligado ao País das Maravilhas e precisava de mim para algo, porque ninguém ajuda outra pessoa sem querer algo em troca. Por fim, antes de ajudá-lo, ele teria de me dar algumas coisas: uma forma de fugir do abrigo e respostas a todas as minhas perguntas.

Era difícil aguentar a solidão. O prédio cinzento tinha vários andares com quartos em todos eles. Eram como dormitórios, com três ou quatro meninas em cada quarto... ou meninos, dependendo do andar. O lugar era cercado por uma grade de ferro para manter os estranhos longe e os internos dentro. Havia apenas um portão, sempre trancado.

A lavanderia — um prédio de teto reto com janelas de ventilação instaladas bem embaixo das calhas — estava abandonada, exceto nos fins de semana, quando nos revezávamos lavando nossas roupas de acordo com o número dos nossos quartos. Concluí que seria o melhor lugar para uma reunião na noite de quarta-feira.

Saí do meu quarto, lanterna na mão, cerca de duas horas depois que as luzes se apagaram.

Encontrei um espelhinho de mão na gaveta de uma das minhas colegas de quarto e o levei dentro de uma fronha, assim como os livros de Lewis Carroll de minha mãe, um caderno de espiral e uma caneta. Ainda não sabia onde o espelho entrava, mas Morfeu insistiu que eu usasse um para chamá-lo. Como a lavanderia estava trancada, subi numa árvore ao lado e alcancei o teto usando os galhos, abri uma janelinha de ventilação e entrei, colocando primeiramente os pés. A sola da minha bota tocou uma secadora, então a queda não foi muito grande.

Cortei a escuridão com minha lanterna, revelando um chão de cimento, lavadoras e secadoras e quatro cestos de vinil. Uma mistura de pó e sabão me fez espirrar. Uns poucos bichos noturnos me receberam antes de cuidar da vida deles.

O luar entrava pelas janelinhas e iluminava o ambiente com um toque prateado cremoso. Arranjei um lugar perto da porta a fim de arrumar minhas coisas. Meu corpo seria uma barricada, no caso de alguém descobrir que eu não estava na cama e vir à minha procura. Se eu bloqueasse a entrada, isso me daria tempo extra para pensar numa desculpa.

Depois de abrir minha jaqueta no chão, como uma almofada, apoiei a lanterna contra a parede, criando um anel de luz, e então me sentei e ergui o espelho.

— Morfeu — sussurrei, e só precisei fazer isso.


Capítulo 4


Vinte Perguntas

Um brilho azul apareceu na superfície do espelho, pulsando. Mas o pulso não era apenas visual; era tátil. Eu o sentia vibrando pelo cabo. Com cuidado, coloquei o espelho no chão. Sob um brilho azulado, a agora conhecida mariposa saiu do espelho, como se estivesse esperando dentro dele o tempo todo.

Ela alçou voo e pousou numa poça de luar à minha frente. Suas asas se encolheram diante do peito e depois se abriram como as de um anjo, revelando uma pele branca e perfeita e partes ocultas meio carnavalescas, iluminadas por joias sob olhos negros. Desgrenhada pela estática mágica emanando da forma humanoide e das roupas extravagantes, uma massa de cabelos azulados na altura dos ombros esvoaçava-se em sua cabeça como se soprada por uma brisa.

Morfeu pairava sobre mim — arrumando o chapéu num ângulo ousado.

— Alison — disse ele simplesmente, e o cheiro doce de algo alcoólico veio em minha direção. — Pronta para fazer um acordo?

Ergui o dedo. Da última vez que estivemos juntos, estava distraída pelo perigo que me cercava e maravilhada com a mágica dele. Tudo isso levou ao assassinato de um homem. Nessa noite, eu daria as cartas.

— Você já brincou de Vinte Perguntas? — perguntei a ele.

Ele tombou a cabeça e deu uma risadinha, erguendo uma das asas por sobre o ombro para limpá-la.

— Deixe-me ver... É algo parecido como Responda ao Enigma?

Fiz uma cara de intrigada.

— Ãhn?

Ele abriu as asas e se sentou no meio da lavanderia, seus traços iluminados pela luz azulada que irradiava de seus cabelos e das joias sob seus olhos.

— Responda ao Enigma: não pertenço a ninguém, mas sou usado por todos. Para alguns, sou dinheiro; para outros, posso voar. Crio espaço e não ocupo espaço. Para os que nunca mudam, não mudo nada. Mas, para os que mudam, carrego o peso das areias do deserto. Quem sou eu?

Mordi o lábio. Não era fácil ignorar a vontade de competir — de provar a ele que eu era capaz de desvendar o enigma. Mas sentia que era exatamente isso que ele queria, e precisava me manter atenta aos meus objetivos.

— A bola está comigo, Morfeu. Vinte perguntas. Eu pergunto e você responde. Não vou fazer acordo antes de você satisfazer minha curiosidade. Nada de perseguir coelhos.

Ele bufou.

— Nem mesmo coelhos brancos?

Franzindo a testa, abri a sacola e peguei a caneta e o caderno.

— Nada de fugir da raia. Respostas diretas. Você quer algo de mim. Se pretende conseguir, eu é quem dou as cartas daqui por diante.

— Ora, ora. Tão jovem e tão tirânica. Gosto disso numa cúmplice. — Ele cruzou e descruzou as pernas, apoiou o queixo com as mãos e estreitou os olhos. — Com certeza, patinho. O palco é seu.

Raios azulados vazaram de sua sombra no cimento, cruzando a lavanderia em todas as direções. As lavadoras e secadoras foram ligadas e começaram a rugir e balançar.

Cerrei os dentes.

— Não sou patinho. Está vendo alguma pena em mim? Sou Alison. Nada mais, nada menos. Entendeu?

As joias sob seus olhos emitiram um cálido tom alaranjado.

— Ah, entendi. Mas você, não. Porque você é muito mais do que apenas um nome.

Franzi a testa.

— O que você quer dizer com isso?

— Todos são mais. Somos formados por forças vivas, sangue, ossos e espírito. E seu sangue é mais precioso que o dos demais.

Não conseguia pensar numa resposta, distraída demais que estava pelos motores ecoando nas paredes.

— Pare as máquinas. Preciso conseguir ouvir se alguém se aproximar.

— Temo que não. Minha mente funciona melhor ao som do caos ao fundo. E a sua precisa aprender a fazer o mesmo. E, quanto à sua privacidade, já cuidei disso. Dê uma olhadinha no espelho, frutinha.

Rangendo os dentes ao ouvir o apelido novo — que era dez vezes mais irritante que o anterior —, ergui o espelho. O reflexo fraco do meu rosto ficou borrado, mudando para um portal que mostrava o terreno ao redor da lavanderia. Pontinhos de luz flutuavam em meio às árvores e ao mato. Olhando mais perto, eu conseguia ver as formas de mulherezinhas com escamas reluzentes e asas de libélula.

Um calafrio estranho me deixou toda arrepiada — uma consciência de toda a mágica ao nosso redor que eu não sabia que era possível.

— O que são elas?

— Fadas. Apesar de pequenas, elas podem deter qualquer um que tente nos interromper. Só cuidado com onde pisa ao sair daqui. Senão, pode tropeçar em um ou dois corpos.

Arfei e deixei o espelho de lado.

— Elas os matarão? — Não podia deixar isso acontecer. Uma morte na minha consciência era o bastante.

Morfeu gargalhou.

— Deveria ter esclarecido. Corpos dormentes. Eles não estarão feridos ao acordarem, só muito satisfeitos e confusos. Mais importante, eles estarão preocupados demais com os próprios pensamentos para perceber que você esteve aqui ou para se importar. Mas, novamente, esta não é a minha vez de falar. Você tinha perguntas a me fazer, sim?

Tenho tantas perguntas mais agora.

Deixei de lado a vontade de saber tudo de uma vez, determinada a continuar focada. Peguei da fronha os livros da minha mãe e os coloquei entre nós dois, preparando-me para escrever no caderno as respostas dele.

Ele bateu palmas.

— Ah, que bom! Gosto deste joguinho. Me mostre todas as suas cartas e eu lhe mostrarei as minhas. Espere até você ver o que tenho na manga.

— Pode parar de falar? — repreendi. — Então, você e aquelas... fadas... vocês vivem no País das Maravilhas?

Seu semblante se iluminou. Ele estava obviamente ansioso por responder, mas manteve a boca bem fechada.

— Vamos logo! — insisti. — Vocês são do País das Maravilhas?

Ele permaneceu em silêncio.

— Sério?

— Você me pediu para parar de falar.

Enfiei as unhas em meus joelhos.

— Argh! Me responda!

— Uau. — Ele tirou as luvas, uma de cada vez, prazerosa e enlouquecidamente calmo. — Não precisa se exaltar. Sim... Sou do País das Maravilhas, assim como minhas adoráveis cachorrinhas lá fora.

— Isso quer dizer que — engoli em seco — o País das Maravilhas é real?

— Sim.

— E a toca do coelho também? — perguntei, com um nó na garganta.

Estudando-me na luz fraca, Morfeu fez que sim.

— Posso lhe dar um mapa. É só pedir.

Segurei o colarinho da minha camisa, tentando esconder a pulsação acelerada no pescoço.

— Que papel você exerce lá? Nunca o vi nas histórias.

Uma faixa de mágica azul saiu da ponta do seu dedo até meu exemplar de As Aventuras de “Alison” no País das Maravilhas. As correntes elétricas viraram as páginas, parando ao chegarem à ilustração da Lagarta conversando com Alice.

— Assim como sua inteligente e curiosa heroína, eu não era exatamente eu mesmo nas histórias mais antigas.

Meu olhar se voltou para o texto na página e a resposta de Alice à pergunta da Lagarta sobre a identidade dela: Infelizmente não posso explicar, senhor. Porque não sou eu mesma, entende?

Engoli em seco, a verdade me atingindo como um tapa na cara.

— Você é a Lagarta... depois de sair do casulo.

Morfeu fez uma cara feia, como se ofendido.

— Mariposas e borboletas não apenas eclodem de casulos. Elas se transformam. Agora você tem mais seis perguntas. Não as desperdice, frutinha.

— Espere aí... Só fiz quatro perguntas até agora.

— Tenho que discordar. — Ele mostrou as mãos numa faixa de luar, balançando os dedos e criando sombras na parede; formas incrivelmente reais para uma sombra. Algumas pareciam xícaras, outras, cogumelos, outras como rosas atingidas por baldes de tinta. — Você fez catorze perguntas, apesar de a maioria delas ser inútil. Primeiro, me perguntou se já tinha brincado de Vinte Perguntas. Bom, isso em si é uma pergunta. Depois, quando lhe propus o enigma, você disse, e estou citando, “Ãhn?”. Outra pergunta. Em seguida, depois de pedir para eu não lhe chamar de patinho, perguntou se eu via alguma pena em você e, depois, se eu “entendi”. Por fim, você perguntou o que eu estava querendo dizendo sobre você ser mais do que um nome. Sinceramente, você realmente acha que alguma dessas perguntas eram necessárias? Claro, quando você perguntou sobre as fadas, o que elas eram e se elas matariam seus tratadores de zoológico bobinhos, isso foi quase relevante.

Meus olhos queimavam.

— Não vivo num zoológico! — exclamei, furiosa.

Morfeu riu e fundiu seus fantoches de sombra num coelho saltando pela parede.

— Acrescente a isso as quatro perguntas sobre mim e meu lar, as únicas que realmente pareciam ter lá a sua importância, se me permite dizer, e você fez onze perguntas. Infelizmente, você repetiu uma delas duas vezes depois de me pedir para parar de falar, e em seguida questionou minha seriedade. Ou seja, mais três. Então só restam seis. Escolha suas palavras com sabedoria.

Reprimindo um grito, apertei a caneta na mão até me ferir.

— Tudo bem — murmurei, preparando-me para fazer mais uma pergunta que tinha medo de já ter feito antes de ele me tirar mais oportunidades. — Você entrou em contato com minha mãe, não é? Quando ela era adolescente.

As lavadoras e secadoras ficaram em silêncio, enquanto a mágica dele voltava a seu corpo e a malícia desaparecia de seus traços. Ele tirou o chapéu e o pôs no colo.

— Eu tentei, Alison. A mente dela... estava mais frágil do que eu imaginava.

Joguei o caderno no chão e me levantei.

— Você me disse que a impulsividade sempre rende uma segunda chance na vida. Então por que você não a segurou? Você me segurou! Você não poderia ter feito a mesma coisa por ela? A queda dela foi muito menor! Você poderia tê-la segurado com suas asas! — Lágrimas rolavam por meu rosto. Estava furiosa, talvez mais comigo mesma do que com ele. Prometi nunca mais chorar.

Ele ergueu a cabeça para mim de seu lugar no chão. As joias brilharam num tom de mirta, refletindo a suavidade de sua expressão. Era quase como se uma partezinha dele se solidarizasse.

— Sua mãe optou por saltar ao ar livre. Havia espectadores demais no estacionamento. Ela impossibilitou qualquer resgate. Se ao menos tivesse saltado de uma altura um pouco maior, suas próprias asas poderiam tê-la salvado. Os dois cálculos errados lhe custaram tudo.

— Não. Foi você quem lhe custou tudo. Por que você insiste em importunar minha família? — Recusei-me a pensar na ironia das palavras e esperei que ele fizesse o mesmo. Se ele inventasse alguma piadinha estúpida sobre isso, ou sugerisse que eu tinha quatro perguntas e agora só me restavam duas, eu perderia o controle. Eu o estrangularia com as próprias mãos, com ou sem mágica elétrica.

Por sorte, ele apenas balançou a cabeça e disse:

— Não sou o responsável, nem estou aqui para reparar todas as coisas erradas com as quais você teve de lidar na vida. Em vez disso, estou oferecendo uma forma de você honrar a morte da sua mãe. De você fazer as pazes com isso.

Enxuguei a umidade quente do meu rosto.

— Não quero fazer as pazes com isso! Só queria tê-la conhecido. E só tenho essas histórias estúpidas para me lembrar dela! As histórias que a mataram. — Chutei os livros na direção dele. Os livros correram pelo chão por alguns centímetros, mas não foram muito longe. Olhei para eles, desejando que saltassem no ar e o atacassem como uma ave de rapina... que tivessem bicos para bicar aqueles olhos belos e infinitos, cheios de enigmas crípticos e respostas mais crípticas ainda.

Como se pudessem ouvir meus pensamentos, dois livros levitaram, folhas agitando-se como asas. Eles se voltaram para atacá-lo, mas Morfeu estava preparado, protegido atrás de uma redoma formada por luzes azuladas.

— Um espetáculo esplêndido — comentou ele com um quê de orgulho na voz ao ajeitar o nó da gravata. — Avise-me quando terminar com seu ataque de menina mimada.

Espere aí. Eu fiz com que os livros atacassem? Eu os fiz voar? Fiquei boquiaberta.

Impossível. Os livros caíram no chão com um baque, como se meu pensamento lógico os tivesse matado.

— Eu fiz isso. — Era uma observação. Mesmo descrente, tomei o cuidado para não formular aquilo como uma pergunta. Só me restavam duas agora... escolha suas palavras com sabedoria.

Olhei para os livros caídos e Morfeu, que desativara sua mágica e estava novamente desprotegido, esperando ao luar, paciente e sombrio.

— Minha mãe, ela tinha as mesmas habilidades, não é?

Ele devolveu o chapéu à cabeça.

— Sim, mas as habilidades dela estavam adormecidas. Tentei despertá-las, mostrar-lhe nos sonhos do que ela era capaz. Tentei encorajá-la a dar vida às pinturas nas paredes. Mas antes que ela pudesse... — Ele estendeu a mão. — Bom, deixe para lá. Você deu vida àqueles livros quase sem esforço. Pense no que você pode conseguir com orientação e foco. Está vendo, você conhece, sim, sua mãe. Porque esse toque mágico era parte dela. O que ela deixou para você em seu sangue. Cabe a você escolher o que fazer com isso. Ela só queria liberdade e fuga. Alguns podem dizer que ela conseguiu isso. Mas, quanto a você, algo me diz que um final assim não satisfaria alguém com sua... garra e determinação. Então o que você quer, Alison?

Não hesitei.

— Quero sair deste mundo. — Minha voz pareceu frágil, como um sopro de ar passando por uma janela de tela, enquanto eu afundava no chão, sobre minha jaqueta. Cruzei as pernas, imitando a pose de Morfeu. — Mas também quero tanto mais...

Ele sorriu.

— Claro que quer. Você quer tudo. A coroa, o trono, súditos temerosos prostrados de joelhos a seus pés. E você deve ter tudo isso. É sua linhagem. Isso lhe foi tirado, e você recuperará tudo. Acredito que é hora de lhe mostrar meu ás, princesinha. — Ele tirou um cilindro de papel da manga do paletó e o desenrolou para eu poder ver a bela caligrafia. A tinta dourada parecia úmida, mas sabia que não estava, senão ela teria borrado. Era um reflexo da luz da lanterna.

Corta a Pedra com uma Pena, Cruza uma Floresta com um Passo, Segura o Oceano na Palma da Mão, Altera o Futuro com a Ponta dos Dedos, Derrota um Inimigo Invisível, Esmaga um Exército sob Seus Pés, Acorda os Mortos, Colhe o Poder de um Sorriso.

— Não entendo...

— São testes — respondeu ele. — Se você passar por eles, vai destronar a impostora que ocupa seu lugar e será coroada a única e verdadeira Rainha Vermelha. Você reinará sobre metade do País das Maravilhas e jamais precisará voltar a este zoológico.

Engoli em seco. Um calafrio lento percorreu meu corpo, quente e doce, como uma árvore sentindo a resina verter de seus galhos ao primeiro sinal da primavera. Era minha intuição encantada despertando. Havia um lugar ao qual pertencer. Um lugar para governar. Lá, nunca mais seria solitária e todos me obedeceriam.

— Mas como posso realizar coisas tão impossíveis?

Morfeu enrolou o papel novamente e o guardou.

— Esta é sua vigésima pergunta, e muito bem usada. A resposta está no enigma que mencionei antes. E, caso você não tenha entendido, pense nisto: qualquer interpretação pode ser alterada simplesmente olhando-se para as coisas de outra forma, de ângulos mais coloridos... vendo-se as palavras e o mundo por um caleidoscópio, não por um telescópio.

Fiz que sim, porque fazia sentido, de alguma forma hábil e absurda. Depois de todo o alerta quanto a usar minhas palavras com sabedoria, já estava começando a ver tudo de um jeito diferente: conotação versus denotação, instinto versus lógica, infinito versus...

— Tempo — sussurrei, respondendo ao enigma.

— Isso mesmo. — Ele se levantou, tirando uma chavezinha presa a uma corrente em sua lapela. Ele a segurou de modo que ela foi iluminada pelo luar. — Tempo de treiná-la, tempo de superar os testes e tempo de conquistar seus súditos.

— Quanto tempo demorará? E o que você ganha com isso? Você disse que faríamos um acordo.

— Desculpe, Alison. Suas perguntas acabaram. Tudo o que você precisa saber é que vê-la coroada é tão bom para mim quanto para você. — Ele jogou a chave para mim e eu a peguei no ar. — Nada vai atrapalhá-la, por mais que demore. Você me dará o tempo e eu lhe darei os instrumentos de que você precisa para reclamar o que lhe é de direito, para mudar tudo o que você achou que você era. E então o tempo não terá mais importância, pois você vestirá o manto da imortalidade interior. A começar hoje, mudamos seu destino.


Capítulo 5


Trilhos de Trem

A falta do barulho tranquilizador do banho acaba com minha névoa nostálgica.

Espreguiço-me e me sento na cama, olhando para a porta entreaberta de onde o vapor sai numa dança fantasmagórica. Thomas está se barbeando. A água jorra na pia, para e ele cantarola baixinho ao passar a lâmina sobre a pele. A música é a que ele costumava cantar para mim quando estávamos namorando. As palavras atravessam minha memória: um homem implorando perdão por amar demais a moça, dizendo-lhe que não queria outra, só ela para sempre, que valia a pena qualquer sofrimento para ficar com ela.

Ele levou a cabo a mensagem da música, ficou ao meu lado quando qualquer outro homem teria desistido e me abandonado. Nunca me arrependi de preferir ele ao meu destino interior. Só me arrependo de tê-lo magoado. Assim como me arrependo de quase ter tirado de Alyssa sua chance de imortalidade.

Na época achei que estava fazendo a coisa certa, ficando em silêncio para salvá-la das práticas bárbaras do País das Maravilhas. Só tinha dezesseis anos quando me deparei com a toca da Irmã Dois e vi para que finalidade ela usava crianças, mas, mesmo com aquela idade, não conseguia fechar os olhos para a tragédia ou as semelhanças: como o coveiro extraía os sonhos delas para alimentar as almas incansáveis no cemitério. Da mesma forma como fizeram comigo inomináveis monstros ao longo da minha vida — canalizando meus sonhos para seu prazer e satisfação. Todavia, ao contrário de mim, as vítimas da Irmã Dois nunca conseguiram escapar.

Ver Thomas envolto na teia dela depois de ficar preso lá por dez anos — toda a sua vida desperdiçada — mudou algo em mim. E minha traição mudou Morfeu. Foi uma trágica reação em cadeia.

Estremeço e me afasto do banheiro, olhando para meus pés descalços, a mente paralisada num tempo e lugar horríveis.

O colchão afunda-se quando Thomas se senta atrás de mim usando calça cinza e uma camisa lavanda que pende de seus ombros largos, solta e toda aberta.

— Minha Ali-ursinha. No que você está pensando? — Beija-me no pescoço, envolvendo-me com o perfume da loção pós-barba. Seus dedos cingem-me a barriga, gerando calafrios de prazer em toda a minha pele.

Sorrio e me derreto em seus lábios, minhas costas tocando seu peito nu, enquanto ele me beija embaixo da orelha.

— Em você e no agora — respondo, passando os dedos pelo tecido que lhe recobre os braços.

— Perfeito — sussurra ele. — Porque estou pensando em você e em como você é linda.

— Você aprova o vestido, então?

— Não só isso... — Sua boca cheia de malícia abre caminho até minha nuca. — Você está cheirosa também.

Dou uma risadinha, e ele sorri contra meu corpo.

— Se pretendemos ir a algum lugar hoje à noite — insisto, tentando me concentrar apesar de seus beijos suaves —, temos que sair daqui a pouco.

Ele suspira — pétalas de hálito quente se abrindo perto da minha omoplata esquerda e meu botão de asas.

— Acho que você tem razão. Principalmente porque não estamos apenas saindo. Estamos indo embora.

Olho por sobre meu ombro, para onde sua boca faz contato e deixa uma marca de sensações.

— Embora... para onde?

— Para a distante Londres. — Ele ri. Seus cabelos úmidos absorvem o sol se pondo pelas persianas, uma confusão oleosa de ondas achocolatadas. Quando ele sorri para mim assim, parece ter dezenove anos novamente.

— Você quer ir para Londres hoje. — Viro-me na cama para ajudá-lo a abotoar a camisa. É uma das minhas camisas preferidas pela maneira como a cor complementa a pele dele e como o tecido sedoso gruda em seu corpo. Passo os dedos por seu peito antes de fechar o colarinho. A esgrima diária definiu seus músculos a um novo nível, uma densidade sofisticada que só os músculos de um homem da idade dele podem adquirir. — Então... Acho que essa viagem-surpresa significa que você decidiu adiar nossa briga de espadas amanhã. Tem certeza disso? Não me leve a mal, você está em excelente forma. Só não sei se você tem pernas para uma minissaia.

Ele ri, fazendo a covinha em seu queixo encontrar uma sombra e parecer ainda mais profunda.

— Ah, voltaremos a tempo de defender nossos títulos. Vamos pegar um atalho. — Ele coloca meu colar com a chave no meu pescoço. — Nossa filha da realeza nos ofereceu seu espelho.

Abro um sorriso forçado, apesar do frio na espinha — como se aranhas com patinhas de gelo estivessem fazendo teias congeladas em cada um dos ossos. Sempre que uso as passagens nos espelhos, sinto que estou voltando ao passado e é por isso que, quando visitamos os Skeffington em Londres, insisto em irmos pelo caminho tradicional, pegando um voo comercial.

Mas hoje à noite não tenho coragem de impedir os planos dele. Posso fazer isso. Afinal, ainda estaremos no reino humano.

Houve uma época em que ansiava por entrar no espelho e descer pela toca do coelho, só para rever as paisagens e criaturas. Entretanto, depois de ficar presa lá há alguns meses, passando dias e noites no castelo de Marfim, ajudando Grenadine a conter o vazamento de lembranças, para mim chega. Estou preparada para ficar aqui pelo resto da vida, com Thomas e Alyssa. Sacio minha vontade de companhia do reino interior na Estalagem do Humphrey duas vezes por mês, quando visitamos a família de Thomas. Isso basta.

— Certo. Só me deixe terminar de me vestir. — Abaixo-me para pegar as sandálias, mas Thomas ganha de mim, ajoelhando-se aos meus pés.

— Espere um pouco — adverte ele, baixinho e com cuidado. — Este é o trabalho de um cavalheiro, princesa. — Ele ergue meus pés nus, dando um beijinho no meu calcanhar antes de calçar o sapato. Ele faz o mesmo com o outro e termina com um beijo no meu joelho, antes de pôr cuidadosamente meus pés calçados no chão.

— Meus lindos dedinhos. — Inclino-me de modo que nossas testas se toquem, a fim de poder me perder em seus olhos gentis e cálidos.

Abrindo aquele sorriso de Elvis que adoro, Thomas se levanta e me ajuda a me levantar. Ele pega um paletó esporte e minha manta de renda e me leva pelo corredor até o quarto de Alyssa. Risadas abafadas e conversas vêm da cozinha. O cheiro de queijo derretido, linguiça picante e molho marinara me dá água na boca. As crianças devem ter decidido fazer pizza em casa.

— Então vamos à Estalagem do Humphrey? — pergunto, de repente com vontade de um prato de espaguete à bolonhesa com pão de alho, alcachofra e queijo feta, meu prato preferido entre as especialidades do Hubert’s.

— Faz parte dos planos — responde Thomas. — Vamos passar a noite lá. Mas primeiro vamos a Ironbridge Gorge. — Ele mostra os cogumelos no bolso do paletó, nossos “bilhetes” para o trem da memória, antes de vesti-lo.

Franzo a testa e o ajudo a ajeitar a lapela, estudando nosso reflexo no espelho de corpo inteiro de Alyssa, uma antiguidade prateada francesa que ela encontrou num mercado de pulgas. Foi a primeira coisa que ela comprou depois do nosso retorno do País das Maravilhas, para ela poder dar uma olhada em seus súditos ao longo do dia, quando necessário.

— Não entendo. Por que iríamos a Iron Bridge? Já não vimos tudo o que tinha para ver?

— Você, não — responde Thomas, seu rosto pintado pelo pôr do sol rosado. — Sei que você ainda está cheia de arrependimentos. Vejo a dor no seu rosto todos os dias. — Ele acaricia minha testa franzida. — Já é hora de se perdoar. Já é hora de você perceber o impacto positivo que teve sobre todos nós o fato de você deixar Morfeu e o País das Maravilhas entrarem na sua vida, porque você olhou tanto para o lado negativo que perdeu a noção disso. Ontem perguntei a Alyssa sobre memórias perdidas. Ela me disse que, depois que elas são armazenadas como carga, se tornam parte do trem, mesmo depois que são vistas por quem as criou. Então vamos dar uma última olhada naqueles anos perdidos, mas, desta vez, vamos fazer isso juntos. Você precisa ver o que teria sido de nós se você não tivesse interferido.


Nossa viagem a Ironbridge Gorge é mais simples do que era quando Alyssa e eu vínhamos aqui, cada uma de nós procurando algo diferente. Com a ajuda de Jeb, ela recentemente instalou um enorme espelho no túnel da ponte. Agora, o transporte aqui é tão simples quanto passar de um espelho para outro. Não há viagem pelo interior. É uma ligação direta do quarto dela para o túnel.

Ao fazermos a travessia, candelabros — feitos de enxames de vaga-lumes presos a armações — passam como rodas-gigantes em miniatura pelo teto. Eles brilham ao longo de paredes sujas, cartazes publicitários velhos de 1956 a 1959 e uma pilha de velhos brinquedos descartados no túnel.

A despeito do nervosismo, consigo comer cogumelos o suficiente para encolher com Thomas, a fim de podermos embarcar no trenzinho de brinquedo enferrujado que leva a todos às memórias perdidas e esquecidas do País das Maravilhas.

O besouro-condutor nos espera. Ele abre a porta em que se lê Thomas Gardner e nos leva a um cômodo sem janela forrado por um tapete sob um sofá cor de creme. Um abajur todo decorado lança um brilho ameno sobre as paredes. Do outro lado, um palquinho com cortinas de veludo aguarda para exibir as memórias de Thomas.

— Por favor, sentem-se e bebam alguma coisa — oferece o besouro, mais cordial do que nunca. Muito se falou sobre as loucuras de Alyssa no mundo dos espelhos. Ela adquiriu a reputação de uma Rainha Vermelha severa, mas sábia, e isso nos assegura, como seus pais, do respeito de todo o reino interior.

Thomas e eu nos sentamos lado a lado no sofá. Há uma mesinha à esquerda e um guardanapo rendado sob um prato cheio de biscoitos com gotas de chocolate. Pego um e o ofereço a Thomas. Ele come metade, limpando as migalhas que caem em sua calça, e gesticula para eu comer o restante.

Ondas de náusea me atingem. Tento atribuir a sensação à fome e mordisco o biscoito macio e a cobertura delicada de amêndoas, ficando mais tensa quando o condutor esmurra com seu braço artrópode um botão na parede. As cortinas do palco se abrem, revelando uma tela de cinema.

— Imagine mentalmente o rosto do seu marido enquanto olha para a tela vazia e você vivenciará o passado dele como se fosse hoje. — O besouro mexe num controle que desliga a luz e então fecha a porta.

Dou a mão para Thomas. Na única vez que visitei este trem, estava espiando o passado dele sem que ele soubesse e as coisas que vi me deixaram tão horrorizada que quis escondê-las dele para sempre. Agora ele está aqui, me encorajando a olhar mais atentamente. Mesmo com o conforto da presença dele, meu nervosismo é quase sufocante.

Supero isso, lembrando-me dele como a criança que vi no dia em que vim sozinha — quando o nome dele era David Skeffington e ele tinha oito anos. Desta vez, porém, imagino-o alguns meses antes, quando ele ainda vivia com sua mãe, seu pai, duas irmãs e um irmão em Oxford.

Uma imagem aparece na tela em cores vivas e me toca. Ela me destroça — cada parte do meu corpo se desfiando —, até que me recomponho, atenta, admirando os olhinhos de David e compartilhando seus pensamentos, emoções e sensações infantis.

Ele tem uma infância feliz, cheia de momentos sentimentais... seguindo seu pai durante os trabalhos na fazenda de caprinos, brincando com suas irmãs e irmão nas colinas que cercam a casa, os passeios e piqueniques da família, as histórias antes de dormir recitadas pela voz melódica e suave da mãe. Mas, uma noite, ele é visitado por um grupo de cavaleiros imperiais usando túnicas vermelhas e brancas — os mesmos que vieram buscar o irmão dele dois anos antes.

A mãe chora com a chegada deles, gritando que os cavaleiros nunca visitam uma família pela segunda vez, mas seu pai a consola, dizendo que, por suspeitar que isso fosse acontecer, ele mesmo os convocara. Então ele leva David para um quarto escuro para ser interrogado.

Um dos cavaleiros, um homem de barba grisalha usando uma túnica vermelha e malha de ferro, abre, na escuridão, um aparelho multiespelhado. Ele aciona um botão, iluminando as molduras. Cada espelho está montado num ângulo exato para refletir o outro, provocando uma ilusão de infinito.

— Ande pelo labirinto de espelhos, menino — diz o cavaleiro. — Diga-me o que você vê.

David anda para lá e para cá, primeiramente sem ver nada além de milhares de imagens de si mesmo. Então ele vê algo se movimentando num dos reflexos distantes — a silhueta de algo inumano. Ele vira a cabeça e encontra a mesma distorção em todos os planos de vidro prateado. Com uma piscada de olho, as sombras dão lugar à claridade e um mundo estranho e assustador se abre. Pássaros feios e enormes com dois pares de asas andam pelo terreno em vez de voarem. Morcegos vermelhos duas vezes maiores do que condores passam por cima dele, caçando qualquer coisa com coragem o bastante para compartilhar o céu flamejante com suas línguas compridas e venenosas. Ele começa a recuar, mas o terror se transforma em fascinação e o seduz, enquanto criaturas menores — seres parecidos com filhotinhos coloridos na forma de flocos de neve — passeiam pelo cenário. Eles viram do avesso, suas entranhas uma bola de dentes afiados que devoram tudo pelo caminho. O sangue mancha tudo à medida que eles se banqueteiam dos pássaros de quatro asas. David faz uma cara feia, meio que esperando sujar-se com o jato quente cor de cobre, mas o massacre é contido pelos reflexos. O medo e a repugnância fecham sua garganta, mas ele observa por mais um segundo, enquanto criaturas ainda menores, parecidas com uma borboleta com cauda de escorpião, voam baixo — elegantes anjos da morte — e transformam todas as bolinhas de dentes ensanguentados em estátuas de pedra.

Numa euforia estonteante, David sai do labirinto e repassa toda a morte que viu. Os cavaleiros conversam entre si e se viram para o pai dele.

— Isso não tem precedentes: seu segundo filho também tem a visão — afirma o cavaleiro de barba grisalha. — Ele vê os pontos fracos na barreira entre o reino interior e o mundo humano com mais clareza do que o irmão. Você sabe o que isso significa, Gregor.

O pai de David faz que sim. Ele parece triste e ao mesmo tempo orgulhoso ao dar tapinhas na cabeça de David. O menino não sabe o que sentir. Mas de uma coisa ele sabe: ele não é mais considerado uma criança. Ele é um guerreiro e será treinado como tal.

Seu pai faz suas malas, eles beijam uma última vez a mãe e as irmãs em prantos e então vão viver com os tios e primos de David em Oxford, Inglaterra, na Estalagem do Humphrey. A insuportável dor sentida por ele ao dar adeus à família e à antiga vida é amenizada somente quando seu irmão mais velho, Bernie, vem recebê-los à porta.

A cena treme ao passarmos por vários meses de lições: estudando em Qualquer Outro Lugar, o mundo espelhado para onde os exilados do País das Maravilhas são banidos. Ele aprende que tal lugar está conectado ao País das Maravilhas por uma densa floresta e ao mundo humano por espelhos infinitos, e que um domo de ferro cerca a prisão, transformando quaisquer seres intraterrenos encarcerados em criaturas grotescas, caso tentem usar mágica no interior.

Durante seu treinamento, David se afunda em estudos sobre as criaturas mutantes para ter a honra de fazer parte de um grupo especial dos cavaleiros que guardam os dois portões — o portão do reino humano e o portão do País das Maravilhas. A violência e o pavor, porém, saturam de imagens vívidas e bizarras seus sonhos e pesadelos. Ainda assim ele progride, fazendo aulas de autodefesa e refinando sua linguagem — aprendendo a usar a mente como armadura quando são os enigmas a arma.

As cenas da vida de David param no restaurante de Hubert, enquanto seus pés deslizam nas cinzas do ringue, enquanto os convivas o veem aprender a bloquear um ataque vindo de cima. Sinto a pulsação de Thomas... David... acelerar, sinto sua vontade de dar orgulho ao pai, sua competitividade em relação ao irmão e aos primos e a consciência tímida de ter todos os olhos sobre si — o candidato mais jovem. Mas com o tempo ele aprende a bloquear tudo, exceto o jogo. Ele se torna confiante, gracioso e fiel, supera todos os seus oponentes — incluindo seu próprio pai — e, em seu nono aniversário, está pronto para sua primeira viagem a Qualquer Outro Lugar, a fim de sentir os segredos internos em primeira mão. A maioria dos meninos é admitida aos treze anos, mas ele merece uma iniciação precoce, não só porque aprendeu a se defender, mas também porque tem a ousadia, sabedoria e perspicácia de alguém cinco anos mais velho.

Um arco-íris vívido mancha a tela, enquanto as memórias se voltam para o caminho de David dentro de um túnel de vento esbranquiçado na forma de um tornado. O funil serve aos cavaleiros como travessia segura para o mundo prisional, já que eles são os únicos com medalhões mágicos que controlam os ventos. As lufadas tomam conta dos cabelos e das roupas de David, que é carregado com seu tio William para o portão do País das Maravilhas, onde David será iniciado nos segredos de seu posto como guardião. Impulsionado pelo medalhão no pescoço do tio, o funil se abre e os cospe, um a um, muito acima do portão trancado contra a floresta densa e o País das Maravilhas. Um gigantesco escorregador de cinzas se ergue para pegá-los e levá-los à plataforma, mantendo-os a uma distância segura do fulgurante vórtex de nada que separa o portão do terreno mundano e mantém encurralados os prisioneiros.

David observa tudo através de óculos de armação de couro, iluminados. Como esta é a primeira vez dele dentro do mundo na redoma, ele estava determinado a não perder nada, nem mesmo a viagem até lá. Seu pai cedeu e o deixou usar os óculos que ele e seu irmão usavam para proteger os olhos das cinzas e iluminar o caminho quando andavam de moto por trilhas sujas nas colinas de Oxford, à noite.

Por causa de sua visão perfeita, ele vê — enquanto seu tio é jogado para fora do túnel atrás dele — que a corrente mantendo o medalhão no pescoço do velho se quebra e o colar começa a cair. David estende a mão para pegá-lo. Uma vez em segurança ao lado do portão, ele devolve o colar ao tio. O velho lhe dá um tapinha nas costas e guarda o colar em sua malha de ferro.

— Um dia, você terá um medalhão. Aposto minha vida nisso. — Seu tio ri. David sorri diante do elogio.

Tio William sempre foi seu preferido... Ele cheira aos doces de canela que sua mãe costumava pôr nos pratos natalinos, ele é capaz de vencer qualquer um no xadrez e sempre tem uma bela piada para contar. Foi ele quem manteve David debaixo da asa quando seu pai teve de voltar para a fazenda. E agora ele insiste em ser o guia de David em todos os mistérios deste mundo estranho e mágico que sua família protege há séculos.

David se aproxima do portão de ferro sólido, a fim de que o Tio William possa lhe contar o segredo de como se abre caminho para o País das Maravilhas. Embutida na parte de baixo da barreira de três andares, a caixa hexagonal aparece com cinco quebra-cabeças organizados numa estrutura de boneca russa. David observa Tio William montar três deles, fazendo o portão ranger e se abrir um pouco por vez, revelando o túnel escuro atrás — um corredor pela floresta densa. Vem um cheiro forte — madeira úmida e podre. Faltando somente dois quebra-cabeças para abrir completamente o portão, Tio William fica pálido e se apoia contra o ferro. Então ele segura o peito e cai ajoelhado.

Ofegante, David se abaixa ao lado dele.

— Tio, o que houve? — Ele quer gritar, mas engoliu névoa negra demais em meio ao nada a caminho do portão. Suas cordas vocais não estão totalmente despertas, então ele continua num murmúrio. — Devo chamar o vento de novo? — Seu sussurro é indecifrável até mesmo aos próprios ouvidos.

Não importa. Seu tio não pode mais lhe responder. David é pequeno demais para carregar o corpo do Tio William até o local de pouso. E, se ele pegasse sozinho o túnel de vento à procura de ajuda, abandonaria o tio vulnerável diante do portão entreaberto. David não sabe como usar a caixa para trancar a porta. Ele pega um pombo-correio mecânico da bolsa do velho. Aquilo só é usado em emergências e deve ser enviado com uma mensagem gravada, mas, com sua voz muda, ele só pode enviar o pombo-correio sem mensagem nenhuma, na esperança de que seus parentes o vejam e saibam que algo deu errado.

Ele aciona o interruptor para acender os olhos e ativar as asas do pombo e manda-o para o céu. Mas teme estar sem tempo. A pele do seu tio já está azulada, como a cor do gelo sobre um lago.

O coração de David bate forte no peito.

Há uma coisa que ele pode fazer.

Com os olhos em chamas atrás dos óculos, David olha para o portão parcialmente aberto. Apesar de a Irmandade do Espelho ter muitas informações sobre Qualquer Outro Lugar e seus ocupantes, não foram feitos muitos estudos sobre o País das Maravilhas. Exceto pelos livros da Alice, pouco se sabe sobre os seres de lá. De todo modo, abundam rumores sobre criaturas com poderes curativos que ultrapassam a compreensão humana.

David pode não saber resolver os dois últimos quebra-cabeças, mas a abertura — pequena demais para um adulto — já está do tamanho perfeito para seu corpinho passar.

Ele hesita. Há outras histórias também, sobre as fadas. Dizem que algumas são enganadoras e fatais. Mas como é possível que elas sejam piores que os monstros deste lado do portão? E ele foi ensinado a derrotar os melhores. Com certeza seu conhecimento pode fazê-lo entrar no País das Maravilhas e sair incólume dele.

Tenso, David se levanta e passa pelo portão, antes que o medo ou a razão possam detê-lo.


Capítulo 6


Âncora

Numa reação em cadeia, assim que David passa pelo portão, este se fecha atrás dele. Seu tio estaria protegido de quaisquer criaturas perdidas do País das Maravilhas, até que o próprio mecanismo se reiniciasse com a boca para a floresta densa se abrindo e fechando. Só então o portão permitiria que alguém passasse pela mesma abertura de novo. Até mesmo David teria de encontrar um novo caminho... atravessando outra garganta da floresta densa.

Um calor de pânico queima o rosto de David. Ele se sente sozinho e com medo por um instante, antes de se lembrar de que fora treinado como cavaleiro. Seu plano daria certo. Ele só tem de encontrar uma fada com poderes de cura e fazer algum tipo de acordo. Dizem que elas colecionam quinquilharias humanas.

David tira as luvas, revelando o anel que recebera ao ser ungido: um anel de ouro puro reluzente cravejado de diamantes em sua circunferência e um enorme rubi brilhante com uma cruz branca de jade no meio. Para ele, o anel não tem preço, mas ele está disposto a dá-lo se isso significar a salvação do Tio William.

O cheiro podre detestável arde-lhe os olhos, mesmo por trás dos óculos. Ele liga as luzes em torno da armação de couro para iluminar a trilha cheia de musgos e começa a correr. Depois de uns seiscentos metros, o ar parece menos denso. Ele luta para respirar no espaço fechado e escuro. Seus óculos se embaçam, o que o faz tirá-los do rosto e posicioná-los no pescoço, de onde ainda iluminam seus passos.

Ele vira uma curva e vê uma clareira, com uma luz ainda fraca e ar fresco. Ofegante, David desliga os óculos para não ficar exposto ao sair da boca ensandecida para entrar na clareira.

Ele empunha a espada ao saltar por cima dos dentes e pousar num arbusto. O som de algo se quebrando o faz se virar para olhar para a árvore da qual saiu. A boca tenta mordê-lo. Ele se joga para trás, escapando por um triz dos dentes, que voltam para dentro do tronco a fim de formarem o que parece ser uma protuberância na casca — mas David sabe muito bem que não é nada disso.

O mato reluzente envolve suas botas enquanto ele caminha pelo punhado de arbustos, à procura de uma saída.

Alguns arbustos atrás dele balançam. Tenso, ele fica no meio da clareira, fora do alcance do mato e das árvores que o cercam, mantendo os olhos no dossel de galhos.

Os arbustos balançam novamente e ele ergue a espada, preparando-se mentalmente para os seres intraterrenos que surgiriam da floresta densa em formas estranhas e horríveis. Possivelmente uma formiga de fogo com o corpo em chamas ou um cavalo voador com embaladeiras de madeira afixadas às seis patas.

Em vez disso, um grito irrompe do outro lado dos arbustos, seguido por uma confusão de vozes histéricas diminutas, ainda mais estranhas por causa da brincadeira infantil delas.

— Estupidezez! Estúpido, estúpido, estúpido! Ela né quinem fugitivos!

— Ataquiri o humanolongo!

— Sinsins! Ou vão ser nossos morotoros pescoços e cortados.

— Apostas erradas acontecem.

— Erradas ou nãoses, Twid Two pede que vocesseis fiquem parados.

— Todosos podedem sonharos!

— Ela vai pendurar vocesseis pelos pescoços... morotoros-mortoros-mortos que sejam!

David relembra suas aulas de idioma. É como latim suíno misturado com jargão sem sentido. Mas três das frases ele consegue compreender claramente. As criaturas de vozes minúsculas estão perseguindo uma fugitiva, estão preocupadas com a falta de sonhos e estão prestes a ser enforcadas.

As vozes crescem e os arbustos balançam novamente. David se esconde atrás de uma pedra enorme para observar. Ele não pode deixar que o capturem ou o machuquem... Tio William precisa que ele encontre ajuda e volte rápido. As folhas nos arbustos se abrem e algo aparece.

David perde o fôlego ao ver um menino humano nu, talvez seis anos mais velho que ele, avançar na luz amena da clareira. Ele é da cor do leite, só um emaranhado de cabelos pretos na cabeça. É como se todo o sangue tivesse vertido dele... não do seu rosto, mas de seu peito, braços e pernas. Então David percebe que o menino não está completamente nu. Seu corpo está coberto por alguma coisa — uma gosma espessa. Fibras sedosas pendem dele como tranças, como se ele estivesse sendo desfiado.

Teia de aranha?

David engole em seco, fazendo mais barulho do que esperava.

O menino se vira para ele, mas seus olhos vítreos não o veem. Sua expressão não parece ter percebido nada. Não há nenhuma expressão além de um olhar vazio e sombrio.

Uma corda de teia de aranha atinge o calcanhar do menino, derrubando-o de cara no chão. Ele resmunga algo com a boca cheia de mato — um som estranho e animalesco sem nenhum sentido —, como se ele tivesse esquecido como se fala.

As criaturinhas tagarelas surgem apressadas — cinco delas —, ainda discutindo entre si. Parecem macacos-aranha prateados de pele sem pelo. Olhos volumosos cor de níquel, sem pupila ou íris, brilham como moedas num poço dos desejos.

Uma gosma brilhante verte da pele careca. As gotas prateadas oleosas marcam seus passos como trilhas longas e finas. Todos usam minúsculos capacetes de mineiro. As luzes percorrem a clareira desorganizadamente, como bolhas reluzentes.

Ao passarem pela pedra de David, um cheiro pútrido de carne os acompanha. Eles cercam o menino caído, fazendo sons ameaçadores. Um deles tira a teia do calcanhar da vítima e a usa para amarrar-lhe as mãos nas costas. O menino exibe os dentes numa tentativa feroz e furiosa de se libertar, embora sua expressão mantenha o olhar vazio.

A criatura mais perto dele recua e ri — dentes afiados à mostra em seu rosto símio. Ela emite um som incômodo entre um ronronar e um uivo, depois salta sobre o menino, enchendo a boca dele com a teia. Os outros macacos prateados incentivam o companheiro, exultante com os sons de sufocamento do menino indefeso.

Nauseado com o espetáculo horrível, David joga os óculos no grupo para distrair as criaturas e sai do seu esconderijo.

— En garde! — grita, agitando a espada na direção das criaturas prateadas, numa tentativa de espantá-las.

Elas gritam em uníssono e correm para os galhos próximos. As lamúrias balançam as folhas, seguidas pelas luzes dos capacetes.

David abaixa a espada e se põe ao lado do menino, soltando-o das amarras.

— Vocesse não deveria ter feito isso, ser falante — alerta uma das criaturas com uma voz débil e ameaçadoramente melódica. — A jardineira deverese estare a caminhoinho. — As demais reagem rindo, balançando ainda mais os galhos, mas então fazem um silêncio incômodo, como se ouvindo algo.

Jardineira? David mantém um olho mirado nas criaturas e continua a desamarrar o menino. O Tio William geme em seu pensamento. David espera que seus outros familiares já tenham encontrado o velho. De uma coisa ele sabe: Tio William e seu pai iriam querer que ele fizesse a coisa certa. Ele jurou proteger toda a humanidade contra a magia, e este menino obviamente precisa de proteção.

Tão atento a suas batalhas internas, ele não vê a gigantesca sombra até ouvir a música assustadora:

— A dona aranha subiu pela parede — canta uma voz misteriosa do alto.

Ele sente um arrepio assim que olha para cima — tarde demais. A visão aterrorizante o deixa paralisado.

Uma aranha do tamanho de um homem pende de cabeça para baixo. A metade de cima é fêmea — o rosto translúcido com cicatrizes e arranhões ensanguentados ao longo de seus lábios roxeados, rosto, queixo e têmporas. Seus pelos prateados caem em mechas espessas, quase alcançando a cabeça de David. A parte de baixo é a de uma viúva-negra, cinco vezes maior que as bolas de ginástica que os cavalheiros usavam para ficar fortes e resistentes. Ela se equilibra num fio de teia preso aos galhos, e a teia brilha como seus famintos olhos azuis. Oito patas brilhantes de aranha envolvem a teia-âncora, algo assustador e gracioso.

David pensa em empunhar a espada, mas fica paralisado de medo e surpresa.

Ela ergue e baixa a pata esquerda e quase parece humana, exceto pelas tesouras de jardim no lugar da mão.

A jardineira. A palavra apavora David, abate-se sobre ele, trazendo-o de volta ao presente.

Snip, snip, snip. O abrir e fechar das tesouras despertam David completamente do transe. Ele recua de costas, o coração acelerado enquanto as lâminas quase atingem seu rosto.

A mulher com características de aranha desce delicadamente ao chão diante dele.

O terror sacode seu sistema nervoso — milhares de pedrinhas de gelo incendiando sua pele. Antes de poder se endireitar e correr, um jato espesso de teia o envolve dos pés à cintura, capturando sua bainha e inutilizando sua espada. David tropeça e cai no chão ao lado do menino que ele tentara salvar. O menino o encara com aqueles olhos desolados e dormentes. Com a língua ele tira a teia da boca e murmura novamente aquele mantra sem sentido, como se tentasse dizer algo a David.

O lado esquerdo do corpo de David dói por causa da queda e punhados de mato pinicam o interior de seu ouvido.

— Bom, bom — diz o aracnídeo com uma voz rouca que deixa um sabor de cobre na boca de David, como flocos de ferrugem e desespero. — Vocês doises viraram amigos? Que lindoinho.

As criaturas símias prateadas riem e saem de seus esconderijos. Numa tentativa desesperada de fugir, David enfia as mãos no mato e rasteja até o limite da mata.

Duas das criaturas saltam sobre ele e outra tira o anel de seu dedo.

— Brilhante! — grita ela, exibindo seu prêmio.

— Devolva isso — exige David, apesar de não fazer ideia de onde vem sua coragem.

Rosnando, a aranha jardineira empurra os macacos de lado com quatro patas e prende David onde ele está, dando voltas e mais voltas nele, até envolvê-lo de teia até os ombros.

— Este daí-í é um reluzente falante — provoca um captor prateado, cutucando David com um galho.

— Falante ele pode ser, meu escravo. — A mulher aracnídea se abaixa, seu hálito atingindo o rosto de David. Ele tosse, engasgando com o cheiro de terra úmida e podre. — Mas ele é um sonhador? — Sua mão direita, escondida por uma luva de borracha, toca-lhe o queixo. Como uma criança preocupada com uma casca de ferida, ela olha nos olhos dele, um estudo intenso que revira as entranhas de David. Ele sente o puxão bem lá no fundo, em profundezas maiores que a de seu coração, ossos e sangue... até libertar e expor todos os temores e esperanças mais secretos de sua alma. — Sim. Ele ser um sonhador único. E ser meu.

Diante da afirmação da bruxa aracnídea, as criaturas símias dançam, a gosma prateada delas descendo pelo rosto de David.

— Solte-nos — implora ele, olhando para o outro menino.

— Ah, negativo. — A luva de borracha lhe toca a cabeça, esfregando o cabelo no couro cabeludo. — Levar vou Irmã Dois à sua vontade. Dela um presente para mim, ele é. Ele ser vai magnífico no meu jardim. Vi coisas outras humanos não viram. Ahhh, você ter vai os sonhos mais vívidos. E pesadelos, ah, pesadelos em convulsão. — Uma baba pinga de seu lábio, o que combina com o sangue já em seu queixo. Limpa-a com a mão de tesoura, cortando-se mais uma vez.

David fica tenso dentro de seu casulo, tentando tocar a espada. Mas seus membros estão presos — imóveis.

O menino caído se lamuria e a aranha vai até ele.

— Parece que temos um substituto para você. Não foi fácil? Chega de sofrimento. — Ela tira a luva, usando os dentes para ajudar na falta de outra mão útil. A bainha de couro cede para revelar cinco caudas de escorpião se encolhendo e se esticando no lugar de dedos.

David geme ao ver algo tão repugnante.

A Irmã Dois se curva sobre o prisioneiro e abre a teia no peito dele, expondo a pele branca.

— Hora de se juntar aos outros. — Sua mão venenosa se choca com força contra o esterno do menino e o veneno verte da ponta do seu dedo; então ela atravessa os ossos até o coração.

O menino uiva e convulsiona. David grita e tenta chegar até ele, mas não consegue se mover. Em pouco tempo, o corpo do menino se encolhe e se transforma num escravo símio prateado, como os demais. Finalmente ele para de se debater e fecha seus olhos sem pupilas, seu rosto primata relaxado e uma língua negra pendendo da boca. Bolhas de gosma saem do que um dia foi carne humana e um rabo fino e comprido cresce em suas costas.

David fecha os olhos com força, tentando não gritar como um menininho. Tenha coragem, diz ele para si mesmo. Você é um cavaleiro. Mas ele está perdendo a coragem... ele está esquecendo tudo o que aprendeu. Ele só se lembra do sangue e da morte e dos dentes afiados e ferrões. Sente a mão macia e cuidadosa de sua mãe lhe acariciando a cabeça. A lembrança é destruída por um par de tesouras de jardim.

— Não tenha medo, menininho sonhador. — A Irmã Dois se volta para ele, enquanto os escravos pegam o novo membro do grupo e o levam para longe. — Você está em casa agora. Você tem irmãos e irmãs imortais aqui. Um dia, quando seus sonhos se esgotarem, você se juntará a eles. Mas, antes, alimentará minhas almas famintas e derrotadas.


— Nããão! — grito. É um grito tanto para David quanto para o menino perdido que jamais conheceremos. O menino perdido que nunca se reunirá novamente com seus entes queridos. Que agora se perdeu para sempre, até mesmo de si próprio.

Grito mais alto à medida que a teia cobre o rosto de David e ele não consegue mais gritar por si mesmo nem por ninguém.

— Nãããão!

— Alison. — Thomas me sacode pelo ombro e a cena treme e se desfaz ao meu redor, me tirando das lembranças dele e me fazendo cair de novo no sofá, aninhada pela semiescuridão que nos cerca.

Escondo meu rosto no braço de Thomas, em busca de seu perfume e calor. Lembrando-me de que ele está aqui e jamais sofrerá daquele modo novamente.

— Sinto muito mesmo.

— Não, meu amor. Você me salvou. Você não tem que pedir desculpas por nada. — Ele me abraça e me puxa para perto, esperando que meus batimentos se normalizem e eu consiga respirar novamente sem ofegar.

— A Irmã Um mentiu para mim — digo, tentando dar sentido às coisas. — Ela disse que as fadas usavam corpos de criança para alimentar as flores. Mas não era nada disso.

— Não. As fadas já foram crianças também. — Thomas suspira demoradamente, seu tórax erguendo minha cabeça com o esforço. — E elas não podem voltar àquela forma.

Meu rosto queima de raiva.

— Não consigo mais assistir a isso. Por favor, diga que é aqui que tudo termina.

Ele me aperta.

— Está tudo bem. Essa é a bênção. Algo na teia agiu como sedativo. Eu estava num transe. Não tenho lembranças da minha época na toca, porque não tive lembranças. Só tive um sonho. Mas me lembro de despertar quando você me libertou da armadilha e caí no chão. Eu me lembro de você me cobrindo.

— Sim — sussurro na escuridão. — A Irmã Um me deixou emprestar o cobertor. Era tudo o que ela podia oferecer. Ela estava apavorada com a ira da irmã gêmea. Usei a manta como maca, para me ajudar a tirá-lo dali.

— Eu me lembro disso também. Vi vislumbres de você olhando para trás para ter certeza de que eu não caí. Seus olhos eram da cor da liberdade. Ou do meu futuro. Eles eram tão cheios de dor, de determinação. E de força. — Thomas me aperta com mais força. — Então, ao acordar no ombro de Morfeu quando ele passou comigo pelo portal, você e suas asas desapareceram aos poucos. Você era transcendente... etérea. Acordar na sua cama foi como acordar de um coma de dez anos e ver um anjo. Seu rosto era conhecido, acho que por causa daqueles vislumbres de consciência. Por algum motivo, quando Marfim apagou minhas outras memórias, aqueles momentos permaneceram. Talvez porque não fossem memórias ainda. Eram mais... despertares. E, sem minhas outras lembranças, você era a única coisa que eu reconhecia. Mais tarde, me convenci de que tinha sonhado com você e as asas, mas não importava. Porque só de olhar para você, com ou sem asas, renasci.

Aninhei-me mais em seu peito para ouvir seu coração. Fechando os olhos, revivo mentalmente o momento em que nos conhecemos oficialmente, como se o estivesse vendo na tela do outro lado da sala.

Eu me sentei ao lado da cama e guardei vigília naquela noite, depois de quebrar todos os espelhos para que Morfeu não pudesse voltar ao quarto. Sabia que o tinha decepcionado. Também sabia que ele estava furioso. Mas não me importava. Só me importava de ajudar o menino na teia.

Sabendo que ele não teria identidade ao acordar, eu o batizei enquanto ele dormia. Ele me lembrava de uma pintura que vi uma vez numa das minhas casas adotivas. As pessoas eram religiosas e um retrato de São Tomás pendia sobre a lareira. Seus cabelos eram castanhos, o rosto jovem, mas marcado pela sabedoria, e seus olhos escuros eram solidários e melancólicos. Ele era o santo padroeiro das pessoas tomadas pela dúvida e, como nunca acreditei que eu tivesse um lugar no mundo humano, tomei-o como meu santo pessoal.

Contudo, ao ver o menino sonhador dormindo naquela noite no meu quarto, um menino que ajudei a salvar... um menino a quem dei um lar, sabia que jamais duvidaria do meu lugar novamente.

Nervosa e insegura, observei seus olhos castanhos se abrirem na manhã seguinte. Uma aurora cor de pêssego dançava nas paredes do quarto, animada por três galhos balançando do lado de fora da janela. Eu me perguntava se ele teria medo de mim, se ele entraria em pânico e sairia correndo. Mas, quando nossos olhares se encontraram, eu me senti — pela primeira vez em muitos anos — segura. Ele me tocou como se me conhecesse desde sempre. Considerando o tempo que ele passou sem contato humano, não hesitei em tocá-lo. Silenciosamente, segurei a mão dele e entrei sob a colcha de retalhos, acomodando-me ao seu lado. Sem falar nada, seus dedos tocaram todo o meu rosto, seu hálito doce na minha pele — um resíduo da poção do esquecimento que Marfim lhe dera. Para mim, era o cheiro da esperança e de uma nova vida. Então ele parou na minha boca, segurou meu rosto e me deu um beijo, seu toque tão terno e ainda assim tão confiante para um menino de dezenove anos que nunca tinha beijado uma menina. Foi meu primeiro beijo recíproco, o único que chegou ao meu coração e me iluminou como uma tocha desafiadora contra o vento forte. Fiquei ali no calor de seu abraço e dormimos por horas, até que o sol avançou no céu e chegou a hora de lhe dar respostas, por mais falsas que fossem.

Thomas não conseguiu falar nos primeiros meses. Ele entendia as coisas que eu dizia, mas teve de reaprender as palavras — como articulá-las e lê-las. Era como se a Irmã Dois não tivesse apenas sugado seus sonhos e imaginação, mas também toda uma vida de comunicação. Apesar de ser frustrante para ele, isso facilitou as coisas para mim e fui capaz de relacionar sua deficiência e amnésia a um acidente de carro e um ferimento na cabeça.

Agora repasso as mentiras que disse na esperança de mantê-lo são, e me pergunto como as coisas podiam ter sido diferentes se o tivesse trazido aqui para o trem, a fim de que ele visse a verdade.

Mas o passado não pode ser desfeito. Ele me perdoou e me ama, apesar de tudo.

— Só queria ter podido salvar todas aquelas crianças, como salvei você — digo, segurando a camisa de Thomas. — Ou salvar Alyssa da dor pela qual ela passou.

— Deixe disso, docinho. Você não vê quantas vidas você salvou? Não só a minha. Você e eu fomos destinados a fazer parte do País das Maravilhas. Não importa os caminhos que escolhemos. Fomos pegos naquela teia assim que nascemos. O que significa que era inevitável que nossa filha tivesse o mesmo destino e que o papel dela fosse maior que o nosso.

— Entendo isso, mas...

— Mas o que você insiste em esquecer — interrompe Thomas com cuidado — é que, sem seu papel nisso tudo, nossa menina jamais teria nascido, porque eu teria terminado como fada, constantemente em busca daquela faísca de inspiração, sem nunca saber exatamente o que perdi. Não consigo pensar em fim mais trágico. Você consegue?

Uma emoção nova cresce dentro de mim. Um quê de indignação virtuosa por todas as crianças humanas perdidas e aquelas que consegui salvar, uma emoção quente e avassaladora.

— Ao entrarmos no País das Maravilhas pela primeira vez — continua Thomas, segurando minha mão e levando-a ao seu coração —, você deu vida à nossa filha e uma chance de vida a todas as crianças que a Irmã Dois teria pegado e usado no futuro. O fato de Morfeu convencer Alyssa a ser rainha o fez se apaixonar por ela, o que por sua vez deu a um ser solitário e egoísta a chance de crescer e fazer algo admirável... Ela está com a gente agora por causa disso. Jeb ter desistido da sua musa em nome das crianças humanas... um menino que não teve muita infância... outro sacrifício admirável. Somos todos pessoas melhores... ou seres intraterrenos, em alguns casos... porque você teve coragem e ousadia suficientes para buscar uma vida melhor para si mesma. Por causa das suas escolhas quando era aquela menina solitária de treze anos, e novamente quando era aquela princesa virtuosa e misericordiosa de dezesseis anos, incontáveis vidas foram salvas e melhoradas. E, ao salvar o pai de Alyssa, você lhe deu uma chance de existir.

Contive o choro.

— O que lhe deu chance de criá-la. Ela é forte e incrível por causa de você. — Seguro a mão dele, fecho-a e beijo os nós dos dedos. — Obrigada por nunca ter desistido de mim ou da nossa menina. Você é nosso herói.

— Você é minha heroína, Alison. Literalmente. — Ele tira do meu rosto uma mecha que se soltou do grampo. — Quantos homens podem dizer isso da mulher que amam? Hein?

Paro de lutar contra as lágrimas. Deixo-as rolar tranquilamente por meu rosto. São lágrimas diferentes das de outros choros. São puras, terapêuticas e felizes. Divinamente felizes. A despeito da escuridão que todos enfrentamos, tenho minha família. Honrei a morte da minha mãe permitindo que outros vivessem. Como Morfeu disse uma vez... ele me deu uma chance de fazer as pazes com a morte. E agora Thomas me dá uma chance de fazer as pazes com minha vida. Tudo é como deveria ser. Finalmente.

Haveria momentos em que os pensamentos sombrios me visitariam, tenho certeza. Mas agora... agora tinha uma luz para lançar sobre eles. Um farol a me guiar.

— Chega de olhar para trás — digo para meu marido, a voz surpreendentemente firme.

— Chega de passeios de trem. — Ele acaricia meu queixo com os nós dos dedos. — Só para a frente, deste dia em diante. Aproveitando todos os momentos juntos que nos restam neste mundo. Você comigo.

— Até o derradeiro fim — falo.

Thomas enxuga minhas lágrimas.

— Feliz aniversário, Ali-ursinha. — Ele me puxa para o colo no sofá e me beija até eu perder o fôlego e ficar toda vermelha como uma noiva tímida. Depois ele me põe no chão para ajeitar minhas roupas e sussurra em meu ouvido. — Estou morrendo de fome. Que tal espaguete à bolonhesa?

Eu rio.

— Você leu meus pensamentos.

Ao sairmos do trem rumo ao espelho, ele segura minha mão. O menino na teia e o homem dos meus sonhos. Para sempre e eternamente, minha âncora.


CONTINUA

Investida & Bloqueio
— Se pretendemos sobreviver a isso, Alison, você tem que atacar a jugular. Sem. Misericórdia.
A voz grossa e autoritária de Thomas me comove e ele me ajuda a levantar, depois ajusta meus dedos ao cabo metálico da espada que havia escorregado de minha mão enluvada. Uma mistura de suor e do cheiro cítrico do sabonete por ele usado paira no ar, abafada pelo perfume das flores e da vegetação que nos cercam.
Toco o quadril no ponto onde ainda lateja por causa da queda e retomo minha posição, encarando nossos oponentes do outro lado do mato manchado de sangue: a minha, com o brilho lindo e fantasmagórico de sua pele... O de Thomas, com o corpo musculoso e os olhos verdes destemidos. As espadas prateadas deles brilham sob o sol de outono e refletem suas expressões imóveis, até que, num movimento lento como o de uma nuvem de tempestade, a curiosidade lhes cruza as feições, enquanto eles tentam prever nossa estratégia.
Meu coração bate forte, ansioso. Enxugo um pouco do suor da minha testa. Eles são mais jovens e mais rápidos, mas Thomas e eu temos a inteligência do nosso lado e uma conexão incomparável. Somos uma equipe há vinte e dois anos. Aqueles amadores não são páreos para nós.
Ignorando o calor e a irritação da minha pele sob as várias camadas de roupa, convenço meu corpo a relaxar, mas me mantenho em posição, a espada empunhada e pronta para o combate, antes de tirar a máscara do meu rosto.
Meu marido geralmente me dá dicas, gestos que só eu sou capaz de decifrar: um menear de cabeça para uma defesa, um estreitar de olhos para um bloqueio. Desta vez, porém, não preciso das instruções dele. Conheço minha oponente. Observei-a o suficiente para descobrir seus pontos fortes e seus pontos fracos. Ela me atacará pela esquerda e me defenderei com um bloqueio. A não ser que agora ela decida misturar os golpes.
Como se pensasse que me decifrou, ela me encara com seus olhos azuis penetrantes e sorri, excessivamente confiante, antes de colocar a máscara no lugar. Ela fica rígida e eu também, de modo a convidá-la a fazer o primeiro movimento.
Com reserva e graça, ela troca de pé de apoio e investe contra mim, me atacando numa tática surpresa. Atinjo a espada dela imediatamente, cedendo ao seu ritmo. Ela perde o equilíbrio e exagera na compensação, executando um golpe atrapalhado. Sua reação apressada deixa seu peito exposto.

 


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Rugindo, miro o coração dela com a ponta da espada, sentindo uma emoção intensa ao furar seu casaco branco. Ela deixa a espada de lado e põe a mão no esterno. Seus olhos se arregalam por trás da máscara. O sangue jorra pela grama e mancha meus tênis brancos.

— Mamãe? — murmura ela em choque, encolhendo-se no chão.

Levanto a máscara, tiro as luvas e me ajoelho ao lado dela, cutucando suas costelas incansavelmente.

— Diga! — grito. — Diga que sou a rainha!

Jebediah e Thomas riem ali por perto, enquanto Alyssa gargalha histericamente, balançando de costas como uma tartaruga virada de cabeça para baixo em seu casco, tentando recuperar o fôlego e escapar da minha tortura de cosquinhas. A máscara dela cai, revelando seu rosto avermelhado.

— Diga! — insisto.

— Nunca! — responde ela e segura minhas mãos, lutando comigo e me derrubando ao seu lado.

Em pouco tempo, minhas costelas doem por causa de seus dedos incansáveis e estamos nos abraçando e rindo tanto que lágrimas escorrem de nossos olhos.

— Certo. — Thomas recupera a compostura o bastante para pedir um cessar-fogo. — Os velhos ganharam, simples assim.

— Dobrados novamente — comenta Alyssa, apontando para nossas espadas flexíveis de treino. A piadinha tira uma risadinha de Jebediah, que toca na mão ensanguentada dela.

Thomas me ajuda a levantar e toco os riozinhos vermelhos do meu casaco e calças de esgrima, o líquido grudento entre meus dedos.

Meu marido me oferece uma toalha para limparmos a bagunça. Uso a minha para enxugar meu rosto e minha testa.

— Ainda acho que o sangue falso de Halloween foi um exagero — opina Jenara do balanço na varanda, onde ela e Corbin esperam para desafiar a equipe vencedora. Eles bebem limonada de um tom de rosa igual ao dos cabelos dela. Ela retorce o nariz. — Foi uma cena bem assustadora.

— Você só pode estar brincando — diz Alyssa com uma risadinha ansiosa, admirando os milhares de gotas vermelhas nas roupas e nas rosas, madressilvas e ervas prateadas no jardim. — É lindo. Assim como qualquer decoração, ela só precisa ser transformada em algo novo.

A trança loira comprida às suas costas balança como se ganhasse vida. Ela usa sua mágica para suspender as gotículas brilhantes das plantas e flores e fazer as manchas em nossas roupas se juntarem a elas. O sangue falso paira no ar e ali fica, as gotas se fundindo como chuva na vidraça, até formarem uma treliça — um arco tremeluzente vermelho que parece um vitral. Alyssa segura a mão de Jebediah e o puxa para perto. Ele ri, guiando-a na dança sob o gazebo improvisado. Seus movimentos são graciosos e sincronizados, os corpos jamais destruindo a obra de Alyssa.

Thomas tomba a cabeça num gesto de repreensão, apesar de ser impossível ignorar o orgulho em sua expressão. Se não fosse pela cerca de madeira de três metros que ele recentemente instalou para nos proteger de curiosos, é bem provável que ele não estivesse vendo o showzinho de Alyssa com tanta leveza.

Se bem que ela sempre conseguiu dominá-lo com seus encantos.

Nossa filha olha para ele, rindo, em paz e à vontade como nunca a vi em todos os seus dezessete anos.

Como resultado de seu treinamento de mágica com Morfeu em seus sonhos, ela está executando os feitiços com perfeição, sendo capaz de dar vazão a seus poderes apenas com o pensamento. É em momentos como este que vejo: a rainha mística fervilhando sob a superfície. Uma predisposição ao sangue e ao caos. Como ela ganha vida em chamas e tempestades. Como a mágica dela inspira e doma o pandemônio. Como ela encontra beleza em tudo o que é mórbido e bizarro.

É irônico. Tentei por muito tempo cultivar essas qualidades em mim, mas meu lado humano era forte demais. Nunca pretendi ser rainha. Desejava, mas não de coração.

A dança termina e, com um virar de pulso de Alyssa, as gotículas de sangue caem em câmera lenta — como flocos de uma neve macabra — e novamente repousam em nossas roupas, nas folhas e nas pétalas das quais se originaram.

Jenara bebe o restante da limonada, os cubos de gelo no copo se chocando uns contra os outros.

— Vai ser bem difícil limpar essa bagunça toda.

Alyssa dá de ombros e ri.

— Nada que um frasco de água sanitária e uma mangueira não resolvam.

— Não. Não vou usar água sanitária nesta obra-prima. — Jenara estica os braços para mostrar o casaco rosado cobrindo seu corpinho. Ela o tingiu há algumas semanas e acrescentou uma renda delicada nas mangas e no colarinho. Colocando o copo de gelo ao lado do pé de Corbin, ela sai do balanço. — Se vamos insistir no uso de sangue, vou vestir meu casaco preto.

Corbin a segura pela cintura e a puxa de volta para seu colo.

— Ah, venha cá, princesinha. Vamos derrotar os mais velhos antes mesmo de você quebrar a unha. Jeb e Al simplesmente não têm os movimentos apropriados.

Jenara sorri.

— Bem notado.

— Uha! — Num movimento fluido, Alyssa pisa na espada caída a fim de que ela fique perpendicular ao chão e bata com o cabo em sua mão espalmada. — Venha cá e diga isso na minha cara, Cor-bin-ara.

Troco olhares com meu marido e rio.

— Bela manobra, menina skatista. — Jebediah dá uma risadinha, brandindo seu florete. — Quer uma disputa sob o salgueiro? — Ele arqueia a sobrancelha.

— Você não vai durar dois segundos. — Ela abre um sorriso rápido, seu anel de noivado brilhando à luz ao passar a espada de uma mão para a outra num movimento único e fluido.

— Ah, é mesmo? — pergunta ele, para, sem aviso, erguê-la e jogá-la sobre o ombro. A espada cai no chão com um baque, e ela ri enquanto ele a leva até a árvore e derruba os dois nas folhas que pendem baixo.

Ela poderia facilmente usar seus poderes para se libertar. Mas aí é que está. Não quer se livrar dele. Nunca quis. Ele é seu parceiro humano, em todos os sentidos.

Ela e eu conversamos sobre o que significa a imortalidade... sobre como vai ser difícil quando ele tiver morrido e ela continuar viva. Ela me garantiu que pode sobreviver — apesar de seu olhar ficar distante ao imaginar isso e de seu rosto nublar-se ao pensar na situação. Contudo, acredito na devoção dela ao País das Maravilhas, e Morfeu é poderoso o bastante para ajudá-la a superar essa perda. E sei que, quando tal dia chegar, a imortalidade dela será algo estonteante. Morfeu vai cuidar dela. Ele a tratará como realeza. Ele o faria mesmo que ela não fosse uma rainha, porque admira a coragem dela.

Ela é uma guerreira e eu sou uma covarde. Meu medo de perder Thomas supera qualquer lealdade que um dia eu tive pelo reino interior. Não consigo viver sem ele por toda a eternidade. Por esse motivo, entre tantos outros, fico feliz por meu espírito não ser mágico e eu ainda ser mortal. Mesmo que viva mais que meu marido, não será por muito tempo. E me sinto segura nessa inevitabilidade.

Ver Jeb e Alyssa lutando e rindo me faz sorrir. Eles são tão parecidos com Thomas e eu quando tínhamos essa idade — cheios de esperança. A diferença é que eles têm uma chance real de conquistar tudo o que sonharam, porque não há mentiras entre eles. O País das Maravilhas é um livro aberto que ambos leram e viveram. Eles até mesmo incluíram Jenara e Corbin em seu círculo íntimo.

Só recentemente Thomas e eu tivemos a verdade para nos unir. E tenho de agradecer minha filha por nos dar essa segunda oportunidade e por me devolver minha sanidade. Fecho os olhos, escutando. Tudo o que ouço é a água de nosso chafariz e as brincadeiras de Jebediah e Alyssa. Nada da conversa dos insetos. Nada do sussurro das flores.

De acordo com meu pedido, três meses atrás, quando Thomas, Alyssa, seu noivo e eu voltamos de nossa última viagem ao País das Maravilhas, Alyssa usou seus poderes reais para pôr um ponto-final nas intermináveis conversas em meus ouvidos, e ela se certificou de que seus descendentes ouçam apenas o silêncio. Só ela agora tem uma linha direta com os insetos e as plantas. Assim como ela é a única que ainda faz, nos sonhos, visitas regulares ao reino interior.

Apesar de ainda ter meus brotos de asa e as marcas nos olhos, minhas características intraterrenas só aparecem se eu deixar. Então, pela primeira vez desde meus dezesseis anos, me sinto normal. E, pela primeira vez desde meus doze anos, lembro-me do silêncio.

Achei que sentiria falta das vozinhas que me acompanharam ao longo de toda a adolescência, vozes que se tornaram minhas confidentes quando ninguém mais ouvia; porém, não preciso mais delas como muletas. Agora tenho uma família e um marido que sabe e compartilha da minha história no País das Maravilhas.

Nunca mais ficarei sozinha.

Meus olhos se abrem e sinto os dedos firmes de Thomas se entrelaçarem aos meus, como se ele lesse meus pensamentos. Nada me dá mais segurança que a sensação da mão dele na minha.

— Divirtam-se, meninos — diz ele. — Vamos acabar por aqui. — Ele vira os olhos castanhos para mim e beija os nós dos meus dedos, provocando um arrepio que me vai do braço ao coração. — Prometi à minha constrangida esposa que sairia com ela no nosso aniversário de vinte anos. Continuaremos amanhã. — Estreita os olhos na direção de Corbin e Jenara. — A não ser que vocês dois estejam prontos para perder agora. Todos sabemos como isso vai terminar. A idade e a sabedoria sempre vencem a juventude e a irresponsabilidade. — Sua risadinha maliciosa à la Elvis é recebida por bufadas dos jovens.

— Até parece, sr. G. — fala Jenara com ar de deboche. — Amanhã... mesma hora, mesmo lugar. Eu estarei de preto. E se lembre: o perdedor tem que usar um vestidinho curto em público. Prepare-se para a maior transformação da sua vida.


Enquanto Thomas toma banho, observo-me no espelho sobre o lavabo. Uma tarefa mundana para a maioria das pessoas, mas algo que tenho evitado desde que conheci meu marido.

Finalmente, depois de todos esses anos, não preciso mais me esconder de espelhos. Não preciso mais ter medo de ver a expressão crítica de Morfeu atrás de meu reflexo.

Meu vestido é simples e elegante: renda branca com um decote nas costas e sem mangas. Uma tira de renda contrastante — cor de um cappuccino — afina minha cintura e complementa o brilho bronzeado da minha pele recém-lavada. O sutiã envolve meus seios, e a saia, meus quadris — a barra abaixo do joelho. Alyssa e Jenara me ajudaram a escolhê-lo na loja, jurando que ele era sensual o bastante para deixar Thomas de olhos arregalados. Estou ansiosa por testar a teoria.

Ficamos separados, desnecessariamente, por muito tempo. Talvez por isso ele faça com que eu me sinta como uma menininha apaixonada, porque cada momento que passamos juntos é como redescobrir tudo de novo — suas palavras gentis, seus beijos, sua risada e sua bondade.

Com um toque de blush no rosto e um quê de batom vermelho nos lábios, estou pronta. A energia e a vitalidade pulsam em meu corpo e geram faíscas sob minha pele. Meus cabelos platinados na altura dos ombros envolvem sedutoramente meu rosto, de forma que dou início à tarefa de prendê-los com grampos brilhantes.

Uma mulher prestes a sair com o marido de vinte anos de casamento... é isso que vejo. Houve um tempo, porém, em que eu não estava sozinha na nostalgia, quando qualquer superfície refletora abria as portas para o louco e caótico País das Maravilhas que eu pretendia dominar. Salvei o menino na teia daquele mundo e fiz o meu melhor para dar as costas a tudo isso quebrando todos os espelhos por perto.

Foi errado abandonar tudo sem nem uma explicação. Agora sei disso.

Fugi às minhas responsabilidades, num pacto com o próprio diabo. Então Morfeu, entrando nos sonhos da minha filha — me usando como um canal involuntário —, encontrou outra maneira de me fazer pagar. Ele apareceu para ela todas as noites durante os primeiros cinco anos de sua vida, disfarçando-se de criança — a tal ponto que virou criança de corpo e alma —, de modo a ser o amiguinho dela e conquistar seu afeto e confiança. Quando descobri, tentei reagir ao ataque mental dele com um conflito físico, a fim de protegê-la fazendo a única coisa que me era possível: ir embora.

Fecho os olhos e, por um instante, meu vestido no espelho se transforma na camisa de força que se tornou minha arma preferida.

Como pude achar que não haveria consequências por ter me escondido num hospício? Esperava que ele encontrasse outro parceiro de luta... outro Liddell para explorar, alguém que pudesse salvar-lhe a alma dessa maldição de passar a eternidade preso no covil da Irmã Dois. Para escapar ao seu destino, ele tinha de realizar a Maldição da Vermelha, coroando uma rainha da linhagem dela com a tiara de rubi, enquanto a própria Vermelha possuía o corpo da outra. Equivocadamente supus que, ao decepcioná-lo, ele seguiria em frente e encontraria outra vítima num parente distante, respeitando minha escolha.

No entanto, havia uma rachadura na minha armadura e meu adversário a penetrou. Eu deveria ter previsto. Desde que conheço Morfeu, ele nunca seguiu em frente. Não tendo seu objetivo em vista. Ele é o estrategista mais brilhante e mais paciente que jamais conheci.

O vapor do banho de Thomas nubla meu reflexo e por trás da névoa me vejo como era quando descobri os planos de Morfeu para Alyssa: aquela mãe jovem e ingênua, temendo pelo futuro da filha. Culpada por colocar a filha em perigo. Minha menininha nunca quis ser minha substituta, mas, com minha traição, foi exatamente isso que ela se tornou.

Optei por não contar a Alyssa minhas escolhas e as repercussões delas porque achava que tinha conseguido poupá-la. Mas todo aquele tempo no hospício, longe do meu marido e da minha filha, não teve importância. Nem o juramento de Morfeu de não entrar em contato com Alyssa de novo. Porque ele já tinha plantado, na mente dela, memórias dos momentos a dois, contando com a curiosidade que ela herdou de Liddell para convencê-la a procurá-lo. Aos dezesseis anos, ela encontrou a toca do coelho sozinha, exatamente como ele planejara.

Minha mão dispersa involuntariamente a lembrança e puxo uma mecha de cabelo com força demais. Sinto uma dor no couro cabeludo e faço uma careta. Rearrumando a mecha, prendo-a com um grampo.

Morfeu convenceu minha filha a conquistar a coroa que eu desejava e acabei por desprezar. Ao longo do processo, ele se salvou. Era uma responsabilidade pela qual Alyssa não tinha pedido, apesar de ela acabar por aceitá-la e até mesmo adotá-la. Ainda assim... ele a convenceu a virar rainha sem lhe contar todos os fatos.

A única coisa que me deixa feliz é saber que ele não saiu incólume. Ele pagou um preço. Um preço que jamais imaginou.

Enquanto “amadurecia” com Alyssa nos sonhos de infância dela, enquanto a observava enfrentar todos os desafios que ele lhe impunha no País das Maravilhas, Morfeu — o ser solitário e egoísta antes incapaz de amar — apaixonou-se completamente por ela. Eu não acreditaria, se não tivesse visto com meus próprios olhos. Ele sentiu a força de sua devoção quando desistiu da oportunidade de tê-la ao seu lado no reino interior. Quando ele optou por esperar, a fim de que a metade humana do coração dela pudesse se curar, até que ela fosse forte o bastante para governar o reino Vermelho eternamente.

Por causa desse sacrifício, começo a suspeitar que talvez ele não seja demoníaco. Que talvez, depois de todos esses anos, eu esteja vendo um lado dele quase vulnerável e amoroso. Um lado que ele manteve afastado de mim, a não ser por um ou dois vislumbres dos quais me esqueci ao longo dos anos.

Ainda assim não estou pronta para perdoá-lo por usar minha filha. Porque, para isso, teria de me perdoar por torná-la responsável por minhas confusões. E por mais que Thomas queira... não tenho certeza se consigo.

A vida de Alyssa sempre foi dividia ao meio por causa de mim. Ela sempre tolerou tudo com tranquilidade. Ninguém podia vê-la com seus assuntos interiores e negar que ela foi feita para ser rainha. Ela ama o mesmo mundo que acabei por odiar.

E, como amo minha filha, de alguma forma tenho de aprender a adotar aquele mundo novamente. De outro modo, nunca superarei o fato de ter deixado Morfeu e toda a loucura do País das Maravilhas entrarem em nossa vida.

Meu reflexo nebuloso me traz de volta ao aqui e agora. Passo meu perfume preferido nos ombros e pulsos — nadando em tons de maracujá e laranja —, depois maquio o nariz com pó, saindo do banheiro antes que o vapor do banho de Thomas possa borrar a maquiagem.

Coloco brincos de pérolas e um colar e bracelete combinando, depois me sento na beirada da cama e movimento os dedos do pé, me concentrando na porta fechada do nosso quarto. Sons de portas de armários e panelas batendo umas nas outras vêm do outro lado. As crianças estão na cozinha, preparando algo para o jantar. Penso em ajudá-las enquanto espero Thomas, mas não estou pronta para enfiar os pés no par de salto alto ao meu lado. O carpete é tão gostoso... fofo e farto. Em vez de ajudá-las, deito-me no edredom, abro os braços e fecho os olhos, relaxando músculos que ainda doem por causa da esgrima mais cedo.

Atenta ao ritmo da água contra o boxe do banheiro, permito-me voltar a outro dia e hora, quando tinha treze anos, olhando para o mundo tomado pela chuva. Quando aceitei o chamado interior durante um dos períodos mais tristes e solitários da minha vida.

Foi quando Morfeu se aproximou de mim e me ofereceu poder e vingança na palma de sua mão manipuladora. Foi o dia que mudaria, para sempre, quem eu iria me tornar.


Capítulo 2


Encaixotada

Vinte e seis anos antes...

A chuva batia na caixa de papelão vazia sobre minha cabeça. Eu a virei de lado e entrei nela antes da tempestade. A Lixeira ao meu lado fedia a peixe morto e fruta podre, superando os cheiros frescos de asfalto e terra molhados. Poças marcavam a rua irregular e a água jorrava das calhas que pendiam dos fundos do meu prédio de apartamentos do outro lado do beco.

Uma lufada de vento invadiu meu abrigo improvisado. Acocorei-me contra a parte de trás da caixa, colocando minha sacola atrás do pescoço como um travesseiro e segurando as páginas de Alice no País das Maravilhas a fim de eu não me perder na leitura. Algumas semanas antes, risquei o Alice no título e o substituí por Alison. Em parte era para todos saberem que o livro era meu. Mas havia mais... parte de mim queria que eu pudesse viver as mesmas aventuras... que eu de alguma forma fosse Alice e entrasse numa toca de coelho onde um mundo novo me aguardasse — um mundo onde alguém tão peculiar e deslocada quanto eu talvez se encaixasse. Um lugar do qual eu pudesse fazer parte.

Nunca fui boa em entender outras pessoas. Principalmente porque eu me mudava demais. Pelo menos era o que eu dizia para mim mesma. Não tinha nada a ver com minha dificuldade em confiar nas pessoas ou minha incapacidade de me relacionar com elas diariamente.

A leitura me dava amigos o bastante, e os livros de Lewis Carroll eram meus preferidos, sendo uma das poucas coisas que minha mãe me deixou ao morrer, pouco depois do parto. As histórias me aproximavam dela, apesar de jamais tê-la conhecido. Talvez porque, secretamente, eu entendesse como o País das Maravilhas era real para ela, considerando nosso parentesco distante com os Liddell de Londres.

Certa vez, quando eu morava num orfanato e esperava por uma família adotiva, entrei no escritório e li minha ficha. Só assim é que pude descobrir minha origem. Alice Liddell, a menina real que inspirou as histórias de Carroll, teve um filho que, antes de ir para a guerra e morrer no campo de batalha, se envolveu com uma mulher. A namoradinha dele acabou grávida e veio para os Estados Unidos a fim de criar o filho ilegítimo. O menino cresceu e teve uma filha: minha mãe, Alicia.

De alguma forma, tudo isso deixava minha mãe maluca. Minha ficha dizia que ela passou algum tempo num hospício quando adolescente, depois de pintar os personagens do País das Maravilhas em todas as paredes de casa e insistir que eles conversavam com ela nos sonhos. Quando nasci, ela saltou do segundo andar do hospital para testar as “asas de fada” que as vozes diziam que ela tinha. Ela caiu num arbusto de rosas e quebrou o pescoço.

O médico disse que ela cometeu suicídio — depressão pós-parto e luto por ter perdido meu pai meses antes, num acidente de fábrica. Qualquer que fosse o motivo, algo nunca foi explicado... as marcas do tamanho de uma moeda em suas omoplatas, grandes demais e perfeitamente separadas para terem sido causadas por espinhos.

Minha opinião? Ela tinha asas, sim. Asas que nunca brotaram. Se sou louca por pensar isso, paciência. Porque, se eu era maluca, isso significa que tínhamos uma relação. Algo em comum. Desde que ninguém ficasse sabendo.

Minha mãe também deixara para trás uma câmera polaroide — do tipo que cospe imagens prontas ao aperto de um botão. Sei como usá-la desde os cinco anos.

Abracei com mais força as fotografias que tirei da bolsa. Era algo em que me tornei boa: me esconder atrás de árvores nos parquinhos ou de carros no estacionamento de shoppings para captar momentos das famílias e amigos de outras pessoas. Gostava de me cercar deles — me protegendo, assim, da falta da minha própria família.

Arregacei a manga da minha jaqueta jeans para consultar o relógio. Só mais dez minutos e as aulas terminariam. Então eu voltaria para meu apartamento e fingiria ter passado o dia onde deveria ter estado. Apareci no início da minha última aula, ficando o suficiente para ser considerada na lista de presença, antes de “dar um passeio no banheiro” e não voltar mais. Com alguma sorte, a srta. Bunsby, minha cuidadora mais recente, jamais ficaria sabendo da minha fuga. Moro com ela só há um mês. Não queria incomodá-la e ser abandonada de novo. Apesar de ser uma viúva vegetariana de quarenta e tantos anos, ela era a melhor cuidadora que já tive.

Olhei para o sexto andar do prédio. Nosso apartamento ficava mais à esquerda, onde a escada de incêndio estava toda enferrujada, virando um esqueleto preto pendente e inútil. Eu era ótima em escalada e tentara fazia algumas semanas descer pela escada e sair à noite para uma sessão de fotografias. Escorreguei e caí.

Seis andares era uma queda e tanto. Eu deveria ter morrido ou ao menos quebrado alguns ossos. Durante a queda, porém, entrei em estado de sonho e, de alguma forma, ao acordar não tinha nenhum ferimento. Não estava nem mesmo com dor. Só tinha uma lembrança estranha de enormes asas pretas.

Mexendo nas fotos, encontrei uma no fim da pilha: uma mariposa enorme de corpo azulado e asas pretas, toda aberta numa flor entre um ângulo de sol e sombra. Lembro-me de quando a vi no parque, como se ela estivesse paralisada entre dois mundos. Tirei a foto não apenas pelo simbolismo, mas também porque já tinha visto o inseto antes. Minha mãe tinha desenhado uma mariposa como aquela numa folha de papel mantida dentro dos livros da Alice. O mais estranho é que ela também tinha feito, bem ao lado, um esboço da Alice presente nas ilustrações do País das Maravilhas. De alguma forma — em sua mente —, os dois desenhos estavam conectados. Perdi o desenho durante uma de minhas muitas mudanças. Então, ao ver aquela mariposa idêntica, ao vivo e em cores, tive de imortalizá-la com minha câmera.

Suspirando, guardei a imagem no meu livro da Alice, para marcar a página. Aquela foto era a preferida da srta. Bunsby. Ela disse que eu tinha um dom, que, se eu continuasse melhorando, ela me daria a câmera do marido — uma Yashica 44 —, assim como seus livros sobre revelação de filmes.

Ela foi um dos poucos adultos que acreditaram em mim sem me criticar. Todavia, se a srta. Bunsby soubesse que eu achava que essa mesma mariposa exercera um papel nas fantasias da minha mãe quanto ao País das Maravilhas, ela pensaria que minha imaginação era fértil demais, como meus professores e cuidadores sempre disseram. Fiz a pesquisa na biblioteca. Mariposas vivem meses, não décadas.

Pensar nisso meio que me deixou assustada. Mas também fez com que eu me sentisse especial, como se eu e minha mãe importássemos para alguém em algum lugar — o bastante para merecermos ser observadas. Não foi a primeira vez que senti que insetos e plantas estavam tentando entrar em contato comigo de um jeito que não tentavam com outras pessoas. Eu ouvia vozes desde que cheguei à puberdade, perto do meu aniversário de doze anos, há um ano. Ainda assim, sabia muito bem que não deveria compartilhar isso com ninguém, pelo risco de acabar na ala psiquiátrica, como minha mãe.

Meu estômago roncou e coloquei a mão na barriga. A srta. Bunsby serviria beterraba e caçarola de tofu hoje à noite. Só de pensar nisso minhas papilas gustativas querem sair correndo. Tive de economizar meu lanche ao máximo. O pacote de biscoitos com manteiga de amendoim que guardei do almoço estava aberto ao meu lado. Coloquei um deles na boca e o mastiguei lentamente. Migalhas se acumularam na ilustração de Alice fugindo de alguns guardas da Rainha de Copas, na esperança de manter a cabeça, de modo que as espanei dali, fazendo-as cair na minha coxa.

Uma barata surgiu de baixo das abas da caixa e subiu pela minha calça para pegar um pouco de comida sem nem sequer um “por favor” ou “obrigada”. Em minha opinião, as baratas eram os insetos mais rudes do mundo. Eu conversara com moscas e besouros que eram educados e interessantes. Mas as baratas nunca tinham muito a dizer além de resmungar por causa da falta de lixo e sujeira, agora que os seres humanos habitavam o mundo delas, alegando que os sacos de lixo e os aspiradores de pó estavam prestes a acabar com elas.

Agitei a mão, afastando o inseto. Encolhi-me mais na caixa e censurei meus maus modos.

— Estou tentando ajudá-la, sua idiota. Você quer ser esmagada? — Peguei minha bolsa, enfiando as fotos e livros dentro dela, e saí para a tempestade, correndo até o espaço entre meu prédio e a barbearia ao lado.

A única entrada era pela frente. Nosso senhorio, Wally Harcus, mantinha a porta dos fundos trancada “por segurança”. Pelo menos era o que ele dizia. Ele só queria tirar vantagem de todas as mães solteiras e menininhas que viviam em seu prédio de aluguel barato. A porta dele era a primeira do corredor, o que significava que ele tinha a situação perfeita, da perspectiva de um pervertido.

As gotas de chuva e o gelo me feriam. O tecido da minha jaqueta e da minha calça absorvia todas as gotas e eu me sentia cinco quilos mais pesada e vinte graus mais gelada assim que entrei no prédio.

Minhas mãos estavam molhadas demais para segurar a maçaneta e, por isso, a porta se fechou com um baque. Gemi ao ouvir o barulho.

Mal tinha passado pela porta de Wally quando esta se abriu. Segui lentamente pelo corredor até a escada, mantendo os olhos no homem.

Seu rosto suado apareceu antes, depois todo o corpo, camadas de banha mal contidas por uma camiseta azul justa e calça cáqui manchada de gordura. Dava para sentir o fedor dele com meus olhos — o cheiro de carne e repolho podres. Bolsas de suor formavam círculos irregulares sob seus braços, criando uma mancha azul-marinho.

Ele sempre me lembrava uma morsa — careca, dobras de pele sobre a sobrancelha, o queixo duplo e um bigode que parecia um salsichão polonês semicomido pendendo sobre seus lábios gordos. Os sons que emitia cada vez que respirava só contribuíam para a ilusão de um mamífero marinho.

— Oi, Alison. Se molhou um pouco, né? — Seus olhos brilharam, escuros e aquosos como carvão líquido, ao dar uma mordida em seu damasco maduro demais. O suquinho escorreu por seu queixo e ele abriu uma risadinha maliciosa. Seus incisivos, grandes demais para sua boca, exibiam-se como presas de marfim subdesenvolvidas.

Meu estômago se revirou de novo enquanto ele saía completamente para o corredor e encarava meu peito, a camiseta grudada no corpo. Ele parecia faminto, como se fosse me engolir toda. Fechei a jaqueta e tirei mechas de cabelo molhado do rosto.

— Tenho chocolate quente no fogão. Quer uma xícara? — perguntou ele.

Eu o surpreendi me encarando várias vezes, mas ele nunca antes teve coragem de me convidar para entrar. Engoli em seco e segurei com força as alças da bolsa.

— Não, a srta. Bunsby está me esperando.

— Não está, não. Teve de ir rapidinho ao mercado. — Ele me mostrou um bilhete.

Só tive tempo de ver um triângulo amassado com as palavras voltarei dentro de uma hora, antes de ele guardar o bilhete no bolso.

— Na verdade — continuou Wally —, ela me disse para lhe fazer companhia. Disse que você é nova demais para ficar sozinha sem causar problemas. Posso ir ao seu apartamento, se você quiser. — Ele balançou as chaves que pendiam do cinto, o sorriso ainda maior.

Idiota.

Eu o odiava e me odiava ainda mais por estar com medo. Já encarei monstros como ele antes. Numa família adotiva anterior, tive um irmão adotivo de catorze anos que me prendeu no porão e enfiou a língua na minha boca enquanto suas mãos subiam por sob minha camiseta. Ainda assim fui devolvida ao abrigo por morder a ponta da língua dele e quebrar seu polegar. Eu era a problemática.

Infelizmente para mim, não seria tão fácil me livrar de Wally Harcus quanto foi me livrar de um adolescente magricela.

Meus calcanhares tocaram o primeiro degrau, me detendo. Era correr ou lutar. De uma coisa eu sabia: a srta. Bunsby jamais pediria à morsa que me fizesse companhia. Ele provavelmente a viu saindo e pensou que era a chance perfeita de tentar algo. E ali estava ele entre mim e minha única rota de fuga. E, mesmo que eu me trancasse dentro do nosso apartamento, ele tinha as chaves para entrar.

Eu podia colocar algo contra a porta e ganhar tempo para descer pela escada de incêndio quebrada. Eu provavelmente cairia e morreria, mas isso seria melhor do que a alternativa.

Dei meia-volta e subi os quatro lances de escada. Dava para ouvir os passos dele me seguindo devagar, se arrastando. Ele não tinha pressa. Todos cuidavam da própria vida aqui. Ninguém o impediria, o que tornava a perseguição tão desafiadora quanto a de uma mosca já presa na teia da aranha.

Lágrimas encobriam minha visão ao chegar à porta do nosso apartamento. Um pedaço de fita adesiva pendia com um pedacinho do bilhete da srta. Bunsby no ponto onde ela o prendera, perto do olho mágico. Wally tinha pegado a cartinha que ela deixou para mim.

Engolindo em seco a bile que subia pela garganta, lutei para enfiar a chave na fechadura. A adrenalina usava meu coração como saco de pancadas, socando-o até que ele batesse incontrolavelmente no peito. Tinha acabado de conseguir entrar, fechar a porta e trancá-la, quando Wally subiu o último degrau da escada de nosso andar.

Com todo o corpo rígido, arrastei a cadeira preferida da srta. Bunsby e a coloquei sob a maçaneta, correndo para me trancar no quarto, deixando a bolsa cair junto à soleira, do lado de dentro. A tarde nublada reduzia a luminosidade do dia a uma névoa cinza e, com as cortinas pesadas cobrindo as janelas, as sombras inundavam o quarto e pintavam formas fantasmagóricas nas paredes nuas.

Chaves tilintavam do lado de fora do nosso apartamento, alto o bastante para eu ouvi-las pela porta fechada. Chorando, fui até a janela, abri as cortinas e o vidro. Uma lufada de vento e chuva soprou em meus cabelos, fazendo-os bater contra meu rosto. Lágrimas escorriam queimando meu rosto, enquanto eu passava uma das pernas pelo peitoril, prestes a me jogar.

— Tsc, tsc. Isso seria uma tragédia e um desperdício. — Um sotaque caipira marcado me deixou paralisada ali, sentada entre a vida e a morte. — Claro que sua existência vale mais que a daquele rato gordo.

Virei a cabeça em direção à voz. No canto esquerdo do meu quarto, as sombras se moviam e assumiam a silhueta clara de um homem.

Consegui falar entredentes.

— Q-quem está aí?

— Apresentações não são necessárias entre amigos. — O intruso saiu para a luz fraca, revelando um rosto ao mesmo tempo belo e assustador. Ele não era humano. Não, ele era perfeito e místico demais para isso. Marcas semelhantes a tatuagens brilhavam com cores vivas sob seus olhos escuros e fantasmagóricos. Seus cabelos azulados balançavam sem sincronia com o vento que entrava pela janela. — Acredito que mereço o título de amigo, você não acha? Considerando que da última vez você quase quebrou a cabeça ao descer por essa escada de incêndio. — Asas gigantescas surgiram atrás dos ombros dele, brilhando como seda preta sob a luz cinzenta.

Perdida entre o terror, a descrença e a esperança, trouxe a perna de volta para meu quarto e me encostei na junção entre o peitoril da janela e a parede.

— Você... então foi você. Você me salvou.

Ele alisou as luvas vermelhas que recobriam suas mãos.

— Não exatamente, Alison. Você mesma se salvou ao desafiar as leis da natureza. O simples fato de você ter tentado descer pela escada de incêndio foi digno de uma segunda chance na vida, não? A coragem misturada à estupidez se torna impulsividade, o que é uma característica admirável de onde venho, algo que deve sempre ser recompensado.

Estreitei os olhos para ele.

— Você me recompensou por minha estupidez?

Ele segurava uma cartola diante de si e a acariciava como se ela fosse um gato.

— Sua impulsividade. — Uma risada reverberou em seu peito. — Você é estranha, não é? Você não duvidou de mim ainda, nem questionou se sou real. Nem mesmo perguntou como sei seu nome. Você não se importa com nada disso, não é?

Fechei as mãos ao lado do corpo.

— Não importa se sou louca, desde que minha loucura me ajude a sobreviver.

Ele arqueou a sobrancelha, obviamente feliz e surpreso com minha resposta.

— Ah, você fala como uma verdadeira criatura do reino interior. A loucura, como qualquer outro aspecto da irracionalidade, pode ser usada como instrumento e arma nas mãos certas.

Não tive nem tempo de perguntar o que era o reino interior porque, no cômodo ao lado, os pés da cadeira arranhavam o piso de azulejo e riscavam meus nervos como garras. Wally estava no apartamento.

Minha garganta secou. Olhei para os degraus escorregadios lá fora e depois para dentro, na direção do homem alado agora de corpo inteiro junto à porta. Ele era alto e gracioso, com dezenove ou vinte anos e vestindo rendas e veludo, como um cavalheiro de outra época.

— Você é... você é o meu anjo da guarda? — Ouvi falar dessas criaturas, mas nunca acreditei que fossem reais. Naquele momento, porém, estava disposta a acreditar em qualquer coisa se isso fosse capaz de me salvar do senhorio ou de um pescoço quebrado.

Meu visitante mostrou os dentes num sorriso lindo que transformou seu rosto no parque de diversões do diabo — malícia oculta por um verniz de adorável persuasão.

— Estou bem longe de ser um anjo, meu patinho. Mas estou aqui para vê-la distribuir um pouco de sua virtude com um tolo pecador. — Ele colocou a cartola na cabeça. Mariposas mortas balançaram na aba, num tributo mórbido ao vento que soprava as cortinas. — Agora vamos nos divertir um pouco com o velho Wally, sim?


Capítulo 3


A Longa Perna
da Lei

Os passos de Wally, a Morsa, se aproximavam da minha porta.

— Não vai deixá-lo entrar, não é? — perguntei ao demônio... anjo... salvador... que seja. Ele ficou imóvel como uma estátua, as joias de seu rosto piscando em vários tons de dourado. — Você vai me ajudar uma última vez? — Uma veia latejava forte no meu pescoço e minhas cordas vocais tremiam como uma tarola.

As asas da criatura se abriram.

— Ah, não, patinho. Você mesma vai se ajudar. Afinal, você é quem tem uma linha direta com os mais antigos habitantes da Terra. Eles são mestres em outras coisas além de conversinhas, Alison. Eles têm habilidades. Você só precisa pedir uma mãozinha. — Ele apontou uma aranha de pernas longas que passava pela parede atrás dele, lançando uma sombra enorme sobre o gesso branco. — Ou oito patas. O que você preferir.

Antes que eu pudesse entender o gracejo, meu hóspede místico desapareceu numa nuvem de poeira azulada, substituído por uma mariposa do tamanho de um pássaro que se escondeu de novo nas sombras.

A mariposa da minha imagem... do desenho da mamãe.

Meu olhar se voltou para as polaroides que saíram pela abertura da bolsa. Antes de poder me ater a elas, a porta se abriu, criando uma trilha pelas memórias roubadas.

Meu estômago se revirou quando Wally entrou. Pedacinhos brilhantes de damascos estavam presos a seu bigode. Ele usou as costas da mão gorda para se limpar e quase tropeçou no meu exemplar de Alice no País das Maravilhas.

Ele o pegou e fez um barulho de desprezo.

— As aventuras de Alison no País das Maravilhas? O que há de errado com você, menina? Você é louca ou só estúpida? — O desenho da mariposa caiu do livro quando ele o balançou. Wally ficou olhando a imagem cair no chão. — Espere aí, já vi esse inseto. Estava tentando tirá-lo do prédio. Foi o que me levou à sua porta... — Wally se deteve, como se tivesse falado demais. — Afaste-se dessa janela. Isso não é nenhuma toca de coelho. Você vai tropeçar e eu terei que limpar sua bunda raquítica do asfalto.

Travei a mandíbula, imóvel.

Ele jogou o livro no chão.

— Olha, posso fazê-la suspirar ou chorar. De qualquer forma, isso vai acontecer.

Minha atenção passou de seu olhar desejoso para a parede sobre a porta. Para o desfile de aranhas saindo de um buraco atrás dele, na moldura da porta, cobrindo a parede e o teto. Havia umas trinta aranhas agora e mais delas surgiam. Será que a tempestade as despertou?

Peça uma mãozinha ou oito patas...

Talvez eu estivesse tendo alucinações. Talvez eu finalmente estivesse perdendo a cabeça, como minha mãe. Contudo, o que quer que estivesse acontecendo, tinha de usar isso em meu benefício. Não podia me mexer, e eu já tinha perdido a oportunidade de mergulhar para a morte.

— Me ajude — implorei, sem saber direito o que queria dizer com isso nem para quem estava pedindo.

— Ah, vou ajudá-la. — Em segundos, Wally me prendeu contra a parede com sua mão suada no meu pescoço. Segurei o pulso dele com ambas as mãos e enfiei minha unha com força. Ele riu, seu hálito azedo no meu rosto. — É, vou ajudá-la de verdade. Está vendo, sou o coelho branco e vou levá-la numa aventura que você jamais esquecerá, Alice.

Ele me ergueu pelo pescoço até que fiquei só na ponta dos pés. A pressão fechava minha garganta e pontos pretos começaram a surgir no meu campo de visão. Chutei-o, mas ele se desviou e, com a mão livre, começou a mexer no meu cinto.

Meus músculos abdominais se contraíram, num sinal de repulsa. Os pontos pretos aumentaram, mas não por falta de oxigênio. Virei os olhos e vi o enxame de aranhas nas paredes e no teto — centenas delas.

— Ajude-me agora — ordenei desta vez, sem hesitar. Minha única esperança era tirar Wally do apartamento com uma avalanche de aranhas levando-o escada abaixo.

A reação das aranhas foi instantânea e violenta. Wally gritou e me soltou quando o enxame começou a subir por ele, entrando em seus sapatos e escalando suas pernas. Afastei-me da janela e puxei o ar, enquanto os insetos continuavam com sua marcha, tomando conta do peito dele. Seus gritos de horror eram abafados pelos sussurros furiosos das aranhas que o recobriam. Mais aracnídeos vieram substituir aquelas que morriam. Elas chegaram ao pescoço e ao rosto de Wally, depois encheram sua boca entreaberta, silenciando seus gritos desesperados. Ele levou as mãos ao pescoço, os braços nus cobertos por mangas de pernas ágeis e tórax arfantes.

Seu nariz e seus olhos desapareceram sob a infestação crescente. Ele perdeu o equilíbrio e tentou se segurar na parede, mas errou o alvo. Caiu da janela aberta, engasgando-se durante a queda.

Paralisada, recuei até a porta do meu quarto, perdendo o fôlego ao ouvir o baque pesado do corpo dele no asfalto molhado.

Um movimento repentino no canto esquerdo do quarto me distraiu. A mariposa saiu das sombras e pousou no peitoril, observando a confusão lá embaixo. Um ataque de náusea queimava meu estômago.

— Foi um acidente — choraminguei para o inseto, como se estivesse me confessando. — Eu... não queria que isso acontecesse!

— Ah, mas eu queria. — Aquele sotaque se revirava dentro de minha mente. A voz pertencia à mariposa e ao homem. De alguma forma, eles eram a mesma coisa e de alguma forma também estavam ligados às histórias do País das Maravilhas. Minha mãe tinha entendido tudo. O que significava que ele nos observava fazia anos. Não só isso; ele levara Wally ao meu apartamento mais cedo. Foi por causa dele que o senhorio encontrou o bilhete da srta. Bunsby antes de mim. Tudo foi armado.

Eu não conseguia falar, envolvida por um furacão de confusão, surpresa e arrependimento.

— Não se preocupe com aquele rato, Alison — repreendeu-me mentalmente a voz britânica. — Há incontáveis jovens a quem ele fez mal. Coube a você resolver o problema. Desequilíbrio gera desequilíbrio. O caos é o que restabelece o equilíbrio. Haverá repercussões. Você não pertence mais a este lugar. É melhor assim. Você está destinada a muito mais do que este mundo tem a oferecer. — A mariposa voou sobre mim, pairando diante do meu rosto. — Assuma a responsabilidade. O poder é o único caminho para a felicidade, e posso ajudá-la a conquistá-lo. Meu nome é Morfeu. Encontre um espelho e me chame quando estiver pronta para viver seu destino.

Ao dizer isso, o enorme inseto virou-se e saiu pela janela.

— Espere! — gritei. Lágrimas ensopando meus olhos, me arrastei até a janela e olhei para baixo. Dois adolescentes de bicicleta que estavam ao lado do corpo de Wally olharam para cima. Pouco antes o homem estava me dominando... agora ele parecia uma boneca quebrada com braços e pernas revirados em poses incomuns até se desencaixarem do restante do corpo. As poças ao lado dele estavam manchadas de vermelho, com o sangue que vertia da parte de trás de seu crânio.

Cachorros latiam e pessoas gritavam, enquanto mais espectadores saíam do prédio. Lentamente, todos voltaram a atenção para minha janela. Vários deles apontaram para mim; alguns menearam negativamente a cabeça.

Queria correr, mas não conseguia me soltar da janela. As aranhas tinham sumido, entrando em milhares de esconderijos acessíveis somente a insetos, abandonando-me ao desejo de ter o tamanho delas, para poder desaparecer e jamais ter de enfrentar as acusações e perguntas que viriam.


Morfeu tinha razão. Não encontrei abrigo depois disso. E suspeito que tenha sido por isso que ele cuidou para que Wally encontrasse o bilhete e me perseguisse.

O departamento de proteção à infância acusou a srta. Bunsby de negligência, alegando que qualquer pessoa com minhas “tendências violentas” não deveria ser deixada sozinha enquanto ela fazia compras. Eles também disseram que eu andava faltando às aulas, o que só fez com que a srta. Bunsby parecesse mais inepta. Fui tirada dos cuidados dela na mesma noite.

Enquanto a polícia e os assistentes sociais entrevistavam a srta. Bunsby na sala, eu guardava minhas coisas, tentando evitar olhar pela janela. A srta. Bunsby tinha deixado um saco marrom de mercado na cama. Engraçado ela pensar que havia fracassado comigo. Deu para ver isso refletido em seus olhos amendoados úmidos quando ela chegou em casa depois de toda confusão. Pena que eu não podia lhe dizer a verdade. Pena que não pude dizer que ela não tinha culpa por eu ter sido cúmplice de um assassinato... que a responsabilidade foi do próprio Wally, e também de uma mariposa mística e de um enxame de aranhas.

Dentro do saco de mercado, ela colocou a câmera do marido, filme e um livro sobre revelação de fotografias. Havia ainda um pacote de biscoitos de manteiga de amendoim, uma maçã e uma garrafa de água. Senti uma dor no coração, porque sabia que podia ter sido feliz com ela, se Morfeu não tivesse outros planos para mim. No entanto, por mais que eu sofresse, me recusei a chorar. Cansei de chorar.

E nunca mais seria vítima novamente.

Ao deixar o apartamento, a srta. Bunsby prometeu tentar me visitar um dia. Eu sabia que isso não aconteceria.

Um mês se passou, cheio de avaliações psiquiátricas e exames médicos, a fim de garantir que eu não estava traumatizada. Por mais que tentassem, os médicos não podiam me considerar louca, porque eu me recusava a dar detalhes sobre o acontecido. Só disse que o senhorio tentou me agarrar, lutamos e ele caiu da janela. Simples assim.

Quando o psiquiatra exibiu os cartões com borrões para me analisar, eu nunca disse com o que eles realmente se pareciam. Não lhe disse que via tocas de coelhos, lagartas fumantes, menininhas usando aventais com facas nas mãos, homens alados, mariposas do tamanho de um papagaio ou exércitos de aranhas. Também não deixei ninguém me surpreender falando de flores e insetos que insistiam em me fazer companhia. Sabia como parecer sã.

Fiz um trabalho tão bom que tive alta sem mais avaliações depois de apenas seis semanas. O problema era que o serviço social não conseguia me colocar com outra família adotiva, considerando toda a minha bagagem. Então o abrigo se tornou minha residência permanente.

Pelo menos era o que eles pensavam. Eu não pretendia ficar ali. Planejava ir a algum lugar onde as leis e os olhos atentos deles jamais me encontrassem novamente. E sabia exatamente quem me ajudaria na fuga.

Todas aquelas semanas em terapia, adiei meu contato com Morfeu. Precisava de tempo para refletir. E cheguei a três conclusões. Primeira, minha família estava de alguma forma ligada às histórias de Lewis Carroll, o que significava que o País das Maravilhas existia em algum nível. Em segundo lugar, Morfeu também estava ligado ao País das Maravilhas e precisava de mim para algo, porque ninguém ajuda outra pessoa sem querer algo em troca. Por fim, antes de ajudá-lo, ele teria de me dar algumas coisas: uma forma de fugir do abrigo e respostas a todas as minhas perguntas.

Era difícil aguentar a solidão. O prédio cinzento tinha vários andares com quartos em todos eles. Eram como dormitórios, com três ou quatro meninas em cada quarto... ou meninos, dependendo do andar. O lugar era cercado por uma grade de ferro para manter os estranhos longe e os internos dentro. Havia apenas um portão, sempre trancado.

A lavanderia — um prédio de teto reto com janelas de ventilação instaladas bem embaixo das calhas — estava abandonada, exceto nos fins de semana, quando nos revezávamos lavando nossas roupas de acordo com o número dos nossos quartos. Concluí que seria o melhor lugar para uma reunião na noite de quarta-feira.

Saí do meu quarto, lanterna na mão, cerca de duas horas depois que as luzes se apagaram.

Encontrei um espelhinho de mão na gaveta de uma das minhas colegas de quarto e o levei dentro de uma fronha, assim como os livros de Lewis Carroll de minha mãe, um caderno de espiral e uma caneta. Ainda não sabia onde o espelho entrava, mas Morfeu insistiu que eu usasse um para chamá-lo. Como a lavanderia estava trancada, subi numa árvore ao lado e alcancei o teto usando os galhos, abri uma janelinha de ventilação e entrei, colocando primeiramente os pés. A sola da minha bota tocou uma secadora, então a queda não foi muito grande.

Cortei a escuridão com minha lanterna, revelando um chão de cimento, lavadoras e secadoras e quatro cestos de vinil. Uma mistura de pó e sabão me fez espirrar. Uns poucos bichos noturnos me receberam antes de cuidar da vida deles.

O luar entrava pelas janelinhas e iluminava o ambiente com um toque prateado cremoso. Arranjei um lugar perto da porta a fim de arrumar minhas coisas. Meu corpo seria uma barricada, no caso de alguém descobrir que eu não estava na cama e vir à minha procura. Se eu bloqueasse a entrada, isso me daria tempo extra para pensar numa desculpa.

Depois de abrir minha jaqueta no chão, como uma almofada, apoiei a lanterna contra a parede, criando um anel de luz, e então me sentei e ergui o espelho.

— Morfeu — sussurrei, e só precisei fazer isso.


Capítulo 4


Vinte Perguntas

Um brilho azul apareceu na superfície do espelho, pulsando. Mas o pulso não era apenas visual; era tátil. Eu o sentia vibrando pelo cabo. Com cuidado, coloquei o espelho no chão. Sob um brilho azulado, a agora conhecida mariposa saiu do espelho, como se estivesse esperando dentro dele o tempo todo.

Ela alçou voo e pousou numa poça de luar à minha frente. Suas asas se encolheram diante do peito e depois se abriram como as de um anjo, revelando uma pele branca e perfeita e partes ocultas meio carnavalescas, iluminadas por joias sob olhos negros. Desgrenhada pela estática mágica emanando da forma humanoide e das roupas extravagantes, uma massa de cabelos azulados na altura dos ombros esvoaçava-se em sua cabeça como se soprada por uma brisa.

Morfeu pairava sobre mim — arrumando o chapéu num ângulo ousado.

— Alison — disse ele simplesmente, e o cheiro doce de algo alcoólico veio em minha direção. — Pronta para fazer um acordo?

Ergui o dedo. Da última vez que estivemos juntos, estava distraída pelo perigo que me cercava e maravilhada com a mágica dele. Tudo isso levou ao assassinato de um homem. Nessa noite, eu daria as cartas.

— Você já brincou de Vinte Perguntas? — perguntei a ele.

Ele tombou a cabeça e deu uma risadinha, erguendo uma das asas por sobre o ombro para limpá-la.

— Deixe-me ver... É algo parecido como Responda ao Enigma?

Fiz uma cara de intrigada.

— Ãhn?

Ele abriu as asas e se sentou no meio da lavanderia, seus traços iluminados pela luz azulada que irradiava de seus cabelos e das joias sob seus olhos.

— Responda ao Enigma: não pertenço a ninguém, mas sou usado por todos. Para alguns, sou dinheiro; para outros, posso voar. Crio espaço e não ocupo espaço. Para os que nunca mudam, não mudo nada. Mas, para os que mudam, carrego o peso das areias do deserto. Quem sou eu?

Mordi o lábio. Não era fácil ignorar a vontade de competir — de provar a ele que eu era capaz de desvendar o enigma. Mas sentia que era exatamente isso que ele queria, e precisava me manter atenta aos meus objetivos.

— A bola está comigo, Morfeu. Vinte perguntas. Eu pergunto e você responde. Não vou fazer acordo antes de você satisfazer minha curiosidade. Nada de perseguir coelhos.

Ele bufou.

— Nem mesmo coelhos brancos?

Franzindo a testa, abri a sacola e peguei a caneta e o caderno.

— Nada de fugir da raia. Respostas diretas. Você quer algo de mim. Se pretende conseguir, eu é quem dou as cartas daqui por diante.

— Ora, ora. Tão jovem e tão tirânica. Gosto disso numa cúmplice. — Ele cruzou e descruzou as pernas, apoiou o queixo com as mãos e estreitou os olhos. — Com certeza, patinho. O palco é seu.

Raios azulados vazaram de sua sombra no cimento, cruzando a lavanderia em todas as direções. As lavadoras e secadoras foram ligadas e começaram a rugir e balançar.

Cerrei os dentes.

— Não sou patinho. Está vendo alguma pena em mim? Sou Alison. Nada mais, nada menos. Entendeu?

As joias sob seus olhos emitiram um cálido tom alaranjado.

— Ah, entendi. Mas você, não. Porque você é muito mais do que apenas um nome.

Franzi a testa.

— O que você quer dizer com isso?

— Todos são mais. Somos formados por forças vivas, sangue, ossos e espírito. E seu sangue é mais precioso que o dos demais.

Não conseguia pensar numa resposta, distraída demais que estava pelos motores ecoando nas paredes.

— Pare as máquinas. Preciso conseguir ouvir se alguém se aproximar.

— Temo que não. Minha mente funciona melhor ao som do caos ao fundo. E a sua precisa aprender a fazer o mesmo. E, quanto à sua privacidade, já cuidei disso. Dê uma olhadinha no espelho, frutinha.

Rangendo os dentes ao ouvir o apelido novo — que era dez vezes mais irritante que o anterior —, ergui o espelho. O reflexo fraco do meu rosto ficou borrado, mudando para um portal que mostrava o terreno ao redor da lavanderia. Pontinhos de luz flutuavam em meio às árvores e ao mato. Olhando mais perto, eu conseguia ver as formas de mulherezinhas com escamas reluzentes e asas de libélula.

Um calafrio estranho me deixou toda arrepiada — uma consciência de toda a mágica ao nosso redor que eu não sabia que era possível.

— O que são elas?

— Fadas. Apesar de pequenas, elas podem deter qualquer um que tente nos interromper. Só cuidado com onde pisa ao sair daqui. Senão, pode tropeçar em um ou dois corpos.

Arfei e deixei o espelho de lado.

— Elas os matarão? — Não podia deixar isso acontecer. Uma morte na minha consciência era o bastante.

Morfeu gargalhou.

— Deveria ter esclarecido. Corpos dormentes. Eles não estarão feridos ao acordarem, só muito satisfeitos e confusos. Mais importante, eles estarão preocupados demais com os próprios pensamentos para perceber que você esteve aqui ou para se importar. Mas, novamente, esta não é a minha vez de falar. Você tinha perguntas a me fazer, sim?

Tenho tantas perguntas mais agora.

Deixei de lado a vontade de saber tudo de uma vez, determinada a continuar focada. Peguei da fronha os livros da minha mãe e os coloquei entre nós dois, preparando-me para escrever no caderno as respostas dele.

Ele bateu palmas.

— Ah, que bom! Gosto deste joguinho. Me mostre todas as suas cartas e eu lhe mostrarei as minhas. Espere até você ver o que tenho na manga.

— Pode parar de falar? — repreendi. — Então, você e aquelas... fadas... vocês vivem no País das Maravilhas?

Seu semblante se iluminou. Ele estava obviamente ansioso por responder, mas manteve a boca bem fechada.

— Vamos logo! — insisti. — Vocês são do País das Maravilhas?

Ele permaneceu em silêncio.

— Sério?

— Você me pediu para parar de falar.

Enfiei as unhas em meus joelhos.

— Argh! Me responda!

— Uau. — Ele tirou as luvas, uma de cada vez, prazerosa e enlouquecidamente calmo. — Não precisa se exaltar. Sim... Sou do País das Maravilhas, assim como minhas adoráveis cachorrinhas lá fora.

— Isso quer dizer que — engoli em seco — o País das Maravilhas é real?

— Sim.

— E a toca do coelho também? — perguntei, com um nó na garganta.

Estudando-me na luz fraca, Morfeu fez que sim.

— Posso lhe dar um mapa. É só pedir.

Segurei o colarinho da minha camisa, tentando esconder a pulsação acelerada no pescoço.

— Que papel você exerce lá? Nunca o vi nas histórias.

Uma faixa de mágica azul saiu da ponta do seu dedo até meu exemplar de As Aventuras de “Alison” no País das Maravilhas. As correntes elétricas viraram as páginas, parando ao chegarem à ilustração da Lagarta conversando com Alice.

— Assim como sua inteligente e curiosa heroína, eu não era exatamente eu mesmo nas histórias mais antigas.

Meu olhar se voltou para o texto na página e a resposta de Alice à pergunta da Lagarta sobre a identidade dela: Infelizmente não posso explicar, senhor. Porque não sou eu mesma, entende?

Engoli em seco, a verdade me atingindo como um tapa na cara.

— Você é a Lagarta... depois de sair do casulo.

Morfeu fez uma cara feia, como se ofendido.

— Mariposas e borboletas não apenas eclodem de casulos. Elas se transformam. Agora você tem mais seis perguntas. Não as desperdice, frutinha.

— Espere aí... Só fiz quatro perguntas até agora.

— Tenho que discordar. — Ele mostrou as mãos numa faixa de luar, balançando os dedos e criando sombras na parede; formas incrivelmente reais para uma sombra. Algumas pareciam xícaras, outras, cogumelos, outras como rosas atingidas por baldes de tinta. — Você fez catorze perguntas, apesar de a maioria delas ser inútil. Primeiro, me perguntou se já tinha brincado de Vinte Perguntas. Bom, isso em si é uma pergunta. Depois, quando lhe propus o enigma, você disse, e estou citando, “Ãhn?”. Outra pergunta. Em seguida, depois de pedir para eu não lhe chamar de patinho, perguntou se eu via alguma pena em você e, depois, se eu “entendi”. Por fim, você perguntou o que eu estava querendo dizendo sobre você ser mais do que um nome. Sinceramente, você realmente acha que alguma dessas perguntas eram necessárias? Claro, quando você perguntou sobre as fadas, o que elas eram e se elas matariam seus tratadores de zoológico bobinhos, isso foi quase relevante.

Meus olhos queimavam.

— Não vivo num zoológico! — exclamei, furiosa.

Morfeu riu e fundiu seus fantoches de sombra num coelho saltando pela parede.

— Acrescente a isso as quatro perguntas sobre mim e meu lar, as únicas que realmente pareciam ter lá a sua importância, se me permite dizer, e você fez onze perguntas. Infelizmente, você repetiu uma delas duas vezes depois de me pedir para parar de falar, e em seguida questionou minha seriedade. Ou seja, mais três. Então só restam seis. Escolha suas palavras com sabedoria.

Reprimindo um grito, apertei a caneta na mão até me ferir.

— Tudo bem — murmurei, preparando-me para fazer mais uma pergunta que tinha medo de já ter feito antes de ele me tirar mais oportunidades. — Você entrou em contato com minha mãe, não é? Quando ela era adolescente.

As lavadoras e secadoras ficaram em silêncio, enquanto a mágica dele voltava a seu corpo e a malícia desaparecia de seus traços. Ele tirou o chapéu e o pôs no colo.

— Eu tentei, Alison. A mente dela... estava mais frágil do que eu imaginava.

Joguei o caderno no chão e me levantei.

— Você me disse que a impulsividade sempre rende uma segunda chance na vida. Então por que você não a segurou? Você me segurou! Você não poderia ter feito a mesma coisa por ela? A queda dela foi muito menor! Você poderia tê-la segurado com suas asas! — Lágrimas rolavam por meu rosto. Estava furiosa, talvez mais comigo mesma do que com ele. Prometi nunca mais chorar.

Ele ergueu a cabeça para mim de seu lugar no chão. As joias brilharam num tom de mirta, refletindo a suavidade de sua expressão. Era quase como se uma partezinha dele se solidarizasse.

— Sua mãe optou por saltar ao ar livre. Havia espectadores demais no estacionamento. Ela impossibilitou qualquer resgate. Se ao menos tivesse saltado de uma altura um pouco maior, suas próprias asas poderiam tê-la salvado. Os dois cálculos errados lhe custaram tudo.

— Não. Foi você quem lhe custou tudo. Por que você insiste em importunar minha família? — Recusei-me a pensar na ironia das palavras e esperei que ele fizesse o mesmo. Se ele inventasse alguma piadinha estúpida sobre isso, ou sugerisse que eu tinha quatro perguntas e agora só me restavam duas, eu perderia o controle. Eu o estrangularia com as próprias mãos, com ou sem mágica elétrica.

Por sorte, ele apenas balançou a cabeça e disse:

— Não sou o responsável, nem estou aqui para reparar todas as coisas erradas com as quais você teve de lidar na vida. Em vez disso, estou oferecendo uma forma de você honrar a morte da sua mãe. De você fazer as pazes com isso.

Enxuguei a umidade quente do meu rosto.

— Não quero fazer as pazes com isso! Só queria tê-la conhecido. E só tenho essas histórias estúpidas para me lembrar dela! As histórias que a mataram. — Chutei os livros na direção dele. Os livros correram pelo chão por alguns centímetros, mas não foram muito longe. Olhei para eles, desejando que saltassem no ar e o atacassem como uma ave de rapina... que tivessem bicos para bicar aqueles olhos belos e infinitos, cheios de enigmas crípticos e respostas mais crípticas ainda.

Como se pudessem ouvir meus pensamentos, dois livros levitaram, folhas agitando-se como asas. Eles se voltaram para atacá-lo, mas Morfeu estava preparado, protegido atrás de uma redoma formada por luzes azuladas.

— Um espetáculo esplêndido — comentou ele com um quê de orgulho na voz ao ajeitar o nó da gravata. — Avise-me quando terminar com seu ataque de menina mimada.

Espere aí. Eu fiz com que os livros atacassem? Eu os fiz voar? Fiquei boquiaberta.

Impossível. Os livros caíram no chão com um baque, como se meu pensamento lógico os tivesse matado.

— Eu fiz isso. — Era uma observação. Mesmo descrente, tomei o cuidado para não formular aquilo como uma pergunta. Só me restavam duas agora... escolha suas palavras com sabedoria.

Olhei para os livros caídos e Morfeu, que desativara sua mágica e estava novamente desprotegido, esperando ao luar, paciente e sombrio.

— Minha mãe, ela tinha as mesmas habilidades, não é?

Ele devolveu o chapéu à cabeça.

— Sim, mas as habilidades dela estavam adormecidas. Tentei despertá-las, mostrar-lhe nos sonhos do que ela era capaz. Tentei encorajá-la a dar vida às pinturas nas paredes. Mas antes que ela pudesse... — Ele estendeu a mão. — Bom, deixe para lá. Você deu vida àqueles livros quase sem esforço. Pense no que você pode conseguir com orientação e foco. Está vendo, você conhece, sim, sua mãe. Porque esse toque mágico era parte dela. O que ela deixou para você em seu sangue. Cabe a você escolher o que fazer com isso. Ela só queria liberdade e fuga. Alguns podem dizer que ela conseguiu isso. Mas, quanto a você, algo me diz que um final assim não satisfaria alguém com sua... garra e determinação. Então o que você quer, Alison?

Não hesitei.

— Quero sair deste mundo. — Minha voz pareceu frágil, como um sopro de ar passando por uma janela de tela, enquanto eu afundava no chão, sobre minha jaqueta. Cruzei as pernas, imitando a pose de Morfeu. — Mas também quero tanto mais...

Ele sorriu.

— Claro que quer. Você quer tudo. A coroa, o trono, súditos temerosos prostrados de joelhos a seus pés. E você deve ter tudo isso. É sua linhagem. Isso lhe foi tirado, e você recuperará tudo. Acredito que é hora de lhe mostrar meu ás, princesinha. — Ele tirou um cilindro de papel da manga do paletó e o desenrolou para eu poder ver a bela caligrafia. A tinta dourada parecia úmida, mas sabia que não estava, senão ela teria borrado. Era um reflexo da luz da lanterna.

Corta a Pedra com uma Pena, Cruza uma Floresta com um Passo, Segura o Oceano na Palma da Mão, Altera o Futuro com a Ponta dos Dedos, Derrota um Inimigo Invisível, Esmaga um Exército sob Seus Pés, Acorda os Mortos, Colhe o Poder de um Sorriso.

— Não entendo...

— São testes — respondeu ele. — Se você passar por eles, vai destronar a impostora que ocupa seu lugar e será coroada a única e verdadeira Rainha Vermelha. Você reinará sobre metade do País das Maravilhas e jamais precisará voltar a este zoológico.

Engoli em seco. Um calafrio lento percorreu meu corpo, quente e doce, como uma árvore sentindo a resina verter de seus galhos ao primeiro sinal da primavera. Era minha intuição encantada despertando. Havia um lugar ao qual pertencer. Um lugar para governar. Lá, nunca mais seria solitária e todos me obedeceriam.

— Mas como posso realizar coisas tão impossíveis?

Morfeu enrolou o papel novamente e o guardou.

— Esta é sua vigésima pergunta, e muito bem usada. A resposta está no enigma que mencionei antes. E, caso você não tenha entendido, pense nisto: qualquer interpretação pode ser alterada simplesmente olhando-se para as coisas de outra forma, de ângulos mais coloridos... vendo-se as palavras e o mundo por um caleidoscópio, não por um telescópio.

Fiz que sim, porque fazia sentido, de alguma forma hábil e absurda. Depois de todo o alerta quanto a usar minhas palavras com sabedoria, já estava começando a ver tudo de um jeito diferente: conotação versus denotação, instinto versus lógica, infinito versus...

— Tempo — sussurrei, respondendo ao enigma.

— Isso mesmo. — Ele se levantou, tirando uma chavezinha presa a uma corrente em sua lapela. Ele a segurou de modo que ela foi iluminada pelo luar. — Tempo de treiná-la, tempo de superar os testes e tempo de conquistar seus súditos.

— Quanto tempo demorará? E o que você ganha com isso? Você disse que faríamos um acordo.

— Desculpe, Alison. Suas perguntas acabaram. Tudo o que você precisa saber é que vê-la coroada é tão bom para mim quanto para você. — Ele jogou a chave para mim e eu a peguei no ar. — Nada vai atrapalhá-la, por mais que demore. Você me dará o tempo e eu lhe darei os instrumentos de que você precisa para reclamar o que lhe é de direito, para mudar tudo o que você achou que você era. E então o tempo não terá mais importância, pois você vestirá o manto da imortalidade interior. A começar hoje, mudamos seu destino.


Capítulo 5


Trilhos de Trem

A falta do barulho tranquilizador do banho acaba com minha névoa nostálgica.

Espreguiço-me e me sento na cama, olhando para a porta entreaberta de onde o vapor sai numa dança fantasmagórica. Thomas está se barbeando. A água jorra na pia, para e ele cantarola baixinho ao passar a lâmina sobre a pele. A música é a que ele costumava cantar para mim quando estávamos namorando. As palavras atravessam minha memória: um homem implorando perdão por amar demais a moça, dizendo-lhe que não queria outra, só ela para sempre, que valia a pena qualquer sofrimento para ficar com ela.

Ele levou a cabo a mensagem da música, ficou ao meu lado quando qualquer outro homem teria desistido e me abandonado. Nunca me arrependi de preferir ele ao meu destino interior. Só me arrependo de tê-lo magoado. Assim como me arrependo de quase ter tirado de Alyssa sua chance de imortalidade.

Na época achei que estava fazendo a coisa certa, ficando em silêncio para salvá-la das práticas bárbaras do País das Maravilhas. Só tinha dezesseis anos quando me deparei com a toca da Irmã Dois e vi para que finalidade ela usava crianças, mas, mesmo com aquela idade, não conseguia fechar os olhos para a tragédia ou as semelhanças: como o coveiro extraía os sonhos delas para alimentar as almas incansáveis no cemitério. Da mesma forma como fizeram comigo inomináveis monstros ao longo da minha vida — canalizando meus sonhos para seu prazer e satisfação. Todavia, ao contrário de mim, as vítimas da Irmã Dois nunca conseguiram escapar.

Ver Thomas envolto na teia dela depois de ficar preso lá por dez anos — toda a sua vida desperdiçada — mudou algo em mim. E minha traição mudou Morfeu. Foi uma trágica reação em cadeia.

Estremeço e me afasto do banheiro, olhando para meus pés descalços, a mente paralisada num tempo e lugar horríveis.

O colchão afunda-se quando Thomas se senta atrás de mim usando calça cinza e uma camisa lavanda que pende de seus ombros largos, solta e toda aberta.

— Minha Ali-ursinha. No que você está pensando? — Beija-me no pescoço, envolvendo-me com o perfume da loção pós-barba. Seus dedos cingem-me a barriga, gerando calafrios de prazer em toda a minha pele.

Sorrio e me derreto em seus lábios, minhas costas tocando seu peito nu, enquanto ele me beija embaixo da orelha.

— Em você e no agora — respondo, passando os dedos pelo tecido que lhe recobre os braços.

— Perfeito — sussurra ele. — Porque estou pensando em você e em como você é linda.

— Você aprova o vestido, então?

— Não só isso... — Sua boca cheia de malícia abre caminho até minha nuca. — Você está cheirosa também.

Dou uma risadinha, e ele sorri contra meu corpo.

— Se pretendemos ir a algum lugar hoje à noite — insisto, tentando me concentrar apesar de seus beijos suaves —, temos que sair daqui a pouco.

Ele suspira — pétalas de hálito quente se abrindo perto da minha omoplata esquerda e meu botão de asas.

— Acho que você tem razão. Principalmente porque não estamos apenas saindo. Estamos indo embora.

Olho por sobre meu ombro, para onde sua boca faz contato e deixa uma marca de sensações.

— Embora... para onde?

— Para a distante Londres. — Ele ri. Seus cabelos úmidos absorvem o sol se pondo pelas persianas, uma confusão oleosa de ondas achocolatadas. Quando ele sorri para mim assim, parece ter dezenove anos novamente.

— Você quer ir para Londres hoje. — Viro-me na cama para ajudá-lo a abotoar a camisa. É uma das minhas camisas preferidas pela maneira como a cor complementa a pele dele e como o tecido sedoso gruda em seu corpo. Passo os dedos por seu peito antes de fechar o colarinho. A esgrima diária definiu seus músculos a um novo nível, uma densidade sofisticada que só os músculos de um homem da idade dele podem adquirir. — Então... Acho que essa viagem-surpresa significa que você decidiu adiar nossa briga de espadas amanhã. Tem certeza disso? Não me leve a mal, você está em excelente forma. Só não sei se você tem pernas para uma minissaia.

Ele ri, fazendo a covinha em seu queixo encontrar uma sombra e parecer ainda mais profunda.

— Ah, voltaremos a tempo de defender nossos títulos. Vamos pegar um atalho. — Ele coloca meu colar com a chave no meu pescoço. — Nossa filha da realeza nos ofereceu seu espelho.

Abro um sorriso forçado, apesar do frio na espinha — como se aranhas com patinhas de gelo estivessem fazendo teias congeladas em cada um dos ossos. Sempre que uso as passagens nos espelhos, sinto que estou voltando ao passado e é por isso que, quando visitamos os Skeffington em Londres, insisto em irmos pelo caminho tradicional, pegando um voo comercial.

Mas hoje à noite não tenho coragem de impedir os planos dele. Posso fazer isso. Afinal, ainda estaremos no reino humano.

Houve uma época em que ansiava por entrar no espelho e descer pela toca do coelho, só para rever as paisagens e criaturas. Entretanto, depois de ficar presa lá há alguns meses, passando dias e noites no castelo de Marfim, ajudando Grenadine a conter o vazamento de lembranças, para mim chega. Estou preparada para ficar aqui pelo resto da vida, com Thomas e Alyssa. Sacio minha vontade de companhia do reino interior na Estalagem do Humphrey duas vezes por mês, quando visitamos a família de Thomas. Isso basta.

— Certo. Só me deixe terminar de me vestir. — Abaixo-me para pegar as sandálias, mas Thomas ganha de mim, ajoelhando-se aos meus pés.

— Espere um pouco — adverte ele, baixinho e com cuidado. — Este é o trabalho de um cavalheiro, princesa. — Ele ergue meus pés nus, dando um beijinho no meu calcanhar antes de calçar o sapato. Ele faz o mesmo com o outro e termina com um beijo no meu joelho, antes de pôr cuidadosamente meus pés calçados no chão.

— Meus lindos dedinhos. — Inclino-me de modo que nossas testas se toquem, a fim de poder me perder em seus olhos gentis e cálidos.

Abrindo aquele sorriso de Elvis que adoro, Thomas se levanta e me ajuda a me levantar. Ele pega um paletó esporte e minha manta de renda e me leva pelo corredor até o quarto de Alyssa. Risadas abafadas e conversas vêm da cozinha. O cheiro de queijo derretido, linguiça picante e molho marinara me dá água na boca. As crianças devem ter decidido fazer pizza em casa.

— Então vamos à Estalagem do Humphrey? — pergunto, de repente com vontade de um prato de espaguete à bolonhesa com pão de alho, alcachofra e queijo feta, meu prato preferido entre as especialidades do Hubert’s.

— Faz parte dos planos — responde Thomas. — Vamos passar a noite lá. Mas primeiro vamos a Ironbridge Gorge. — Ele mostra os cogumelos no bolso do paletó, nossos “bilhetes” para o trem da memória, antes de vesti-lo.

Franzo a testa e o ajudo a ajeitar a lapela, estudando nosso reflexo no espelho de corpo inteiro de Alyssa, uma antiguidade prateada francesa que ela encontrou num mercado de pulgas. Foi a primeira coisa que ela comprou depois do nosso retorno do País das Maravilhas, para ela poder dar uma olhada em seus súditos ao longo do dia, quando necessário.

— Não entendo. Por que iríamos a Iron Bridge? Já não vimos tudo o que tinha para ver?

— Você, não — responde Thomas, seu rosto pintado pelo pôr do sol rosado. — Sei que você ainda está cheia de arrependimentos. Vejo a dor no seu rosto todos os dias. — Ele acaricia minha testa franzida. — Já é hora de se perdoar. Já é hora de você perceber o impacto positivo que teve sobre todos nós o fato de você deixar Morfeu e o País das Maravilhas entrarem na sua vida, porque você olhou tanto para o lado negativo que perdeu a noção disso. Ontem perguntei a Alyssa sobre memórias perdidas. Ela me disse que, depois que elas são armazenadas como carga, se tornam parte do trem, mesmo depois que são vistas por quem as criou. Então vamos dar uma última olhada naqueles anos perdidos, mas, desta vez, vamos fazer isso juntos. Você precisa ver o que teria sido de nós se você não tivesse interferido.


Nossa viagem a Ironbridge Gorge é mais simples do que era quando Alyssa e eu vínhamos aqui, cada uma de nós procurando algo diferente. Com a ajuda de Jeb, ela recentemente instalou um enorme espelho no túnel da ponte. Agora, o transporte aqui é tão simples quanto passar de um espelho para outro. Não há viagem pelo interior. É uma ligação direta do quarto dela para o túnel.

Ao fazermos a travessia, candelabros — feitos de enxames de vaga-lumes presos a armações — passam como rodas-gigantes em miniatura pelo teto. Eles brilham ao longo de paredes sujas, cartazes publicitários velhos de 1956 a 1959 e uma pilha de velhos brinquedos descartados no túnel.

A despeito do nervosismo, consigo comer cogumelos o suficiente para encolher com Thomas, a fim de podermos embarcar no trenzinho de brinquedo enferrujado que leva a todos às memórias perdidas e esquecidas do País das Maravilhas.

O besouro-condutor nos espera. Ele abre a porta em que se lê Thomas Gardner e nos leva a um cômodo sem janela forrado por um tapete sob um sofá cor de creme. Um abajur todo decorado lança um brilho ameno sobre as paredes. Do outro lado, um palquinho com cortinas de veludo aguarda para exibir as memórias de Thomas.

— Por favor, sentem-se e bebam alguma coisa — oferece o besouro, mais cordial do que nunca. Muito se falou sobre as loucuras de Alyssa no mundo dos espelhos. Ela adquiriu a reputação de uma Rainha Vermelha severa, mas sábia, e isso nos assegura, como seus pais, do respeito de todo o reino interior.

Thomas e eu nos sentamos lado a lado no sofá. Há uma mesinha à esquerda e um guardanapo rendado sob um prato cheio de biscoitos com gotas de chocolate. Pego um e o ofereço a Thomas. Ele come metade, limpando as migalhas que caem em sua calça, e gesticula para eu comer o restante.

Ondas de náusea me atingem. Tento atribuir a sensação à fome e mordisco o biscoito macio e a cobertura delicada de amêndoas, ficando mais tensa quando o condutor esmurra com seu braço artrópode um botão na parede. As cortinas do palco se abrem, revelando uma tela de cinema.

— Imagine mentalmente o rosto do seu marido enquanto olha para a tela vazia e você vivenciará o passado dele como se fosse hoje. — O besouro mexe num controle que desliga a luz e então fecha a porta.

Dou a mão para Thomas. Na única vez que visitei este trem, estava espiando o passado dele sem que ele soubesse e as coisas que vi me deixaram tão horrorizada que quis escondê-las dele para sempre. Agora ele está aqui, me encorajando a olhar mais atentamente. Mesmo com o conforto da presença dele, meu nervosismo é quase sufocante.

Supero isso, lembrando-me dele como a criança que vi no dia em que vim sozinha — quando o nome dele era David Skeffington e ele tinha oito anos. Desta vez, porém, imagino-o alguns meses antes, quando ele ainda vivia com sua mãe, seu pai, duas irmãs e um irmão em Oxford.

Uma imagem aparece na tela em cores vivas e me toca. Ela me destroça — cada parte do meu corpo se desfiando —, até que me recomponho, atenta, admirando os olhinhos de David e compartilhando seus pensamentos, emoções e sensações infantis.

Ele tem uma infância feliz, cheia de momentos sentimentais... seguindo seu pai durante os trabalhos na fazenda de caprinos, brincando com suas irmãs e irmão nas colinas que cercam a casa, os passeios e piqueniques da família, as histórias antes de dormir recitadas pela voz melódica e suave da mãe. Mas, uma noite, ele é visitado por um grupo de cavaleiros imperiais usando túnicas vermelhas e brancas — os mesmos que vieram buscar o irmão dele dois anos antes.

A mãe chora com a chegada deles, gritando que os cavaleiros nunca visitam uma família pela segunda vez, mas seu pai a consola, dizendo que, por suspeitar que isso fosse acontecer, ele mesmo os convocara. Então ele leva David para um quarto escuro para ser interrogado.

Um dos cavaleiros, um homem de barba grisalha usando uma túnica vermelha e malha de ferro, abre, na escuridão, um aparelho multiespelhado. Ele aciona um botão, iluminando as molduras. Cada espelho está montado num ângulo exato para refletir o outro, provocando uma ilusão de infinito.

— Ande pelo labirinto de espelhos, menino — diz o cavaleiro. — Diga-me o que você vê.

David anda para lá e para cá, primeiramente sem ver nada além de milhares de imagens de si mesmo. Então ele vê algo se movimentando num dos reflexos distantes — a silhueta de algo inumano. Ele vira a cabeça e encontra a mesma distorção em todos os planos de vidro prateado. Com uma piscada de olho, as sombras dão lugar à claridade e um mundo estranho e assustador se abre. Pássaros feios e enormes com dois pares de asas andam pelo terreno em vez de voarem. Morcegos vermelhos duas vezes maiores do que condores passam por cima dele, caçando qualquer coisa com coragem o bastante para compartilhar o céu flamejante com suas línguas compridas e venenosas. Ele começa a recuar, mas o terror se transforma em fascinação e o seduz, enquanto criaturas menores — seres parecidos com filhotinhos coloridos na forma de flocos de neve — passeiam pelo cenário. Eles viram do avesso, suas entranhas uma bola de dentes afiados que devoram tudo pelo caminho. O sangue mancha tudo à medida que eles se banqueteiam dos pássaros de quatro asas. David faz uma cara feia, meio que esperando sujar-se com o jato quente cor de cobre, mas o massacre é contido pelos reflexos. O medo e a repugnância fecham sua garganta, mas ele observa por mais um segundo, enquanto criaturas ainda menores, parecidas com uma borboleta com cauda de escorpião, voam baixo — elegantes anjos da morte — e transformam todas as bolinhas de dentes ensanguentados em estátuas de pedra.

Numa euforia estonteante, David sai do labirinto e repassa toda a morte que viu. Os cavaleiros conversam entre si e se viram para o pai dele.

— Isso não tem precedentes: seu segundo filho também tem a visão — afirma o cavaleiro de barba grisalha. — Ele vê os pontos fracos na barreira entre o reino interior e o mundo humano com mais clareza do que o irmão. Você sabe o que isso significa, Gregor.

O pai de David faz que sim. Ele parece triste e ao mesmo tempo orgulhoso ao dar tapinhas na cabeça de David. O menino não sabe o que sentir. Mas de uma coisa ele sabe: ele não é mais considerado uma criança. Ele é um guerreiro e será treinado como tal.

Seu pai faz suas malas, eles beijam uma última vez a mãe e as irmãs em prantos e então vão viver com os tios e primos de David em Oxford, Inglaterra, na Estalagem do Humphrey. A insuportável dor sentida por ele ao dar adeus à família e à antiga vida é amenizada somente quando seu irmão mais velho, Bernie, vem recebê-los à porta.

A cena treme ao passarmos por vários meses de lições: estudando em Qualquer Outro Lugar, o mundo espelhado para onde os exilados do País das Maravilhas são banidos. Ele aprende que tal lugar está conectado ao País das Maravilhas por uma densa floresta e ao mundo humano por espelhos infinitos, e que um domo de ferro cerca a prisão, transformando quaisquer seres intraterrenos encarcerados em criaturas grotescas, caso tentem usar mágica no interior.

Durante seu treinamento, David se afunda em estudos sobre as criaturas mutantes para ter a honra de fazer parte de um grupo especial dos cavaleiros que guardam os dois portões — o portão do reino humano e o portão do País das Maravilhas. A violência e o pavor, porém, saturam de imagens vívidas e bizarras seus sonhos e pesadelos. Ainda assim ele progride, fazendo aulas de autodefesa e refinando sua linguagem — aprendendo a usar a mente como armadura quando são os enigmas a arma.

As cenas da vida de David param no restaurante de Hubert, enquanto seus pés deslizam nas cinzas do ringue, enquanto os convivas o veem aprender a bloquear um ataque vindo de cima. Sinto a pulsação de Thomas... David... acelerar, sinto sua vontade de dar orgulho ao pai, sua competitividade em relação ao irmão e aos primos e a consciência tímida de ter todos os olhos sobre si — o candidato mais jovem. Mas com o tempo ele aprende a bloquear tudo, exceto o jogo. Ele se torna confiante, gracioso e fiel, supera todos os seus oponentes — incluindo seu próprio pai — e, em seu nono aniversário, está pronto para sua primeira viagem a Qualquer Outro Lugar, a fim de sentir os segredos internos em primeira mão. A maioria dos meninos é admitida aos treze anos, mas ele merece uma iniciação precoce, não só porque aprendeu a se defender, mas também porque tem a ousadia, sabedoria e perspicácia de alguém cinco anos mais velho.

Um arco-íris vívido mancha a tela, enquanto as memórias se voltam para o caminho de David dentro de um túnel de vento esbranquiçado na forma de um tornado. O funil serve aos cavaleiros como travessia segura para o mundo prisional, já que eles são os únicos com medalhões mágicos que controlam os ventos. As lufadas tomam conta dos cabelos e das roupas de David, que é carregado com seu tio William para o portão do País das Maravilhas, onde David será iniciado nos segredos de seu posto como guardião. Impulsionado pelo medalhão no pescoço do tio, o funil se abre e os cospe, um a um, muito acima do portão trancado contra a floresta densa e o País das Maravilhas. Um gigantesco escorregador de cinzas se ergue para pegá-los e levá-los à plataforma, mantendo-os a uma distância segura do fulgurante vórtex de nada que separa o portão do terreno mundano e mantém encurralados os prisioneiros.

David observa tudo através de óculos de armação de couro, iluminados. Como esta é a primeira vez dele dentro do mundo na redoma, ele estava determinado a não perder nada, nem mesmo a viagem até lá. Seu pai cedeu e o deixou usar os óculos que ele e seu irmão usavam para proteger os olhos das cinzas e iluminar o caminho quando andavam de moto por trilhas sujas nas colinas de Oxford, à noite.

Por causa de sua visão perfeita, ele vê — enquanto seu tio é jogado para fora do túnel atrás dele — que a corrente mantendo o medalhão no pescoço do velho se quebra e o colar começa a cair. David estende a mão para pegá-lo. Uma vez em segurança ao lado do portão, ele devolve o colar ao tio. O velho lhe dá um tapinha nas costas e guarda o colar em sua malha de ferro.

— Um dia, você terá um medalhão. Aposto minha vida nisso. — Seu tio ri. David sorri diante do elogio.

Tio William sempre foi seu preferido... Ele cheira aos doces de canela que sua mãe costumava pôr nos pratos natalinos, ele é capaz de vencer qualquer um no xadrez e sempre tem uma bela piada para contar. Foi ele quem manteve David debaixo da asa quando seu pai teve de voltar para a fazenda. E agora ele insiste em ser o guia de David em todos os mistérios deste mundo estranho e mágico que sua família protege há séculos.

David se aproxima do portão de ferro sólido, a fim de que o Tio William possa lhe contar o segredo de como se abre caminho para o País das Maravilhas. Embutida na parte de baixo da barreira de três andares, a caixa hexagonal aparece com cinco quebra-cabeças organizados numa estrutura de boneca russa. David observa Tio William montar três deles, fazendo o portão ranger e se abrir um pouco por vez, revelando o túnel escuro atrás — um corredor pela floresta densa. Vem um cheiro forte — madeira úmida e podre. Faltando somente dois quebra-cabeças para abrir completamente o portão, Tio William fica pálido e se apoia contra o ferro. Então ele segura o peito e cai ajoelhado.

Ofegante, David se abaixa ao lado dele.

— Tio, o que houve? — Ele quer gritar, mas engoliu névoa negra demais em meio ao nada a caminho do portão. Suas cordas vocais não estão totalmente despertas, então ele continua num murmúrio. — Devo chamar o vento de novo? — Seu sussurro é indecifrável até mesmo aos próprios ouvidos.

Não importa. Seu tio não pode mais lhe responder. David é pequeno demais para carregar o corpo do Tio William até o local de pouso. E, se ele pegasse sozinho o túnel de vento à procura de ajuda, abandonaria o tio vulnerável diante do portão entreaberto. David não sabe como usar a caixa para trancar a porta. Ele pega um pombo-correio mecânico da bolsa do velho. Aquilo só é usado em emergências e deve ser enviado com uma mensagem gravada, mas, com sua voz muda, ele só pode enviar o pombo-correio sem mensagem nenhuma, na esperança de que seus parentes o vejam e saibam que algo deu errado.

Ele aciona o interruptor para acender os olhos e ativar as asas do pombo e manda-o para o céu. Mas teme estar sem tempo. A pele do seu tio já está azulada, como a cor do gelo sobre um lago.

O coração de David bate forte no peito.

Há uma coisa que ele pode fazer.

Com os olhos em chamas atrás dos óculos, David olha para o portão parcialmente aberto. Apesar de a Irmandade do Espelho ter muitas informações sobre Qualquer Outro Lugar e seus ocupantes, não foram feitos muitos estudos sobre o País das Maravilhas. Exceto pelos livros da Alice, pouco se sabe sobre os seres de lá. De todo modo, abundam rumores sobre criaturas com poderes curativos que ultrapassam a compreensão humana.

David pode não saber resolver os dois últimos quebra-cabeças, mas a abertura — pequena demais para um adulto — já está do tamanho perfeito para seu corpinho passar.

Ele hesita. Há outras histórias também, sobre as fadas. Dizem que algumas são enganadoras e fatais. Mas como é possível que elas sejam piores que os monstros deste lado do portão? E ele foi ensinado a derrotar os melhores. Com certeza seu conhecimento pode fazê-lo entrar no País das Maravilhas e sair incólume dele.

Tenso, David se levanta e passa pelo portão, antes que o medo ou a razão possam detê-lo.


Capítulo 6


Âncora

Numa reação em cadeia, assim que David passa pelo portão, este se fecha atrás dele. Seu tio estaria protegido de quaisquer criaturas perdidas do País das Maravilhas, até que o próprio mecanismo se reiniciasse com a boca para a floresta densa se abrindo e fechando. Só então o portão permitiria que alguém passasse pela mesma abertura de novo. Até mesmo David teria de encontrar um novo caminho... atravessando outra garganta da floresta densa.

Um calor de pânico queima o rosto de David. Ele se sente sozinho e com medo por um instante, antes de se lembrar de que fora treinado como cavaleiro. Seu plano daria certo. Ele só tem de encontrar uma fada com poderes de cura e fazer algum tipo de acordo. Dizem que elas colecionam quinquilharias humanas.

David tira as luvas, revelando o anel que recebera ao ser ungido: um anel de ouro puro reluzente cravejado de diamantes em sua circunferência e um enorme rubi brilhante com uma cruz branca de jade no meio. Para ele, o anel não tem preço, mas ele está disposto a dá-lo se isso significar a salvação do Tio William.

O cheiro podre detestável arde-lhe os olhos, mesmo por trás dos óculos. Ele liga as luzes em torno da armação de couro para iluminar a trilha cheia de musgos e começa a correr. Depois de uns seiscentos metros, o ar parece menos denso. Ele luta para respirar no espaço fechado e escuro. Seus óculos se embaçam, o que o faz tirá-los do rosto e posicioná-los no pescoço, de onde ainda iluminam seus passos.

Ele vira uma curva e vê uma clareira, com uma luz ainda fraca e ar fresco. Ofegante, David desliga os óculos para não ficar exposto ao sair da boca ensandecida para entrar na clareira.

Ele empunha a espada ao saltar por cima dos dentes e pousar num arbusto. O som de algo se quebrando o faz se virar para olhar para a árvore da qual saiu. A boca tenta mordê-lo. Ele se joga para trás, escapando por um triz dos dentes, que voltam para dentro do tronco a fim de formarem o que parece ser uma protuberância na casca — mas David sabe muito bem que não é nada disso.

O mato reluzente envolve suas botas enquanto ele caminha pelo punhado de arbustos, à procura de uma saída.

Alguns arbustos atrás dele balançam. Tenso, ele fica no meio da clareira, fora do alcance do mato e das árvores que o cercam, mantendo os olhos no dossel de galhos.

Os arbustos balançam novamente e ele ergue a espada, preparando-se mentalmente para os seres intraterrenos que surgiriam da floresta densa em formas estranhas e horríveis. Possivelmente uma formiga de fogo com o corpo em chamas ou um cavalo voador com embaladeiras de madeira afixadas às seis patas.

Em vez disso, um grito irrompe do outro lado dos arbustos, seguido por uma confusão de vozes histéricas diminutas, ainda mais estranhas por causa da brincadeira infantil delas.

— Estupidezez! Estúpido, estúpido, estúpido! Ela né quinem fugitivos!

— Ataquiri o humanolongo!

— Sinsins! Ou vão ser nossos morotoros pescoços e cortados.

— Apostas erradas acontecem.

— Erradas ou nãoses, Twid Two pede que vocesseis fiquem parados.

— Todosos podedem sonharos!

— Ela vai pendurar vocesseis pelos pescoços... morotoros-mortoros-mortos que sejam!

David relembra suas aulas de idioma. É como latim suíno misturado com jargão sem sentido. Mas três das frases ele consegue compreender claramente. As criaturas de vozes minúsculas estão perseguindo uma fugitiva, estão preocupadas com a falta de sonhos e estão prestes a ser enforcadas.

As vozes crescem e os arbustos balançam novamente. David se esconde atrás de uma pedra enorme para observar. Ele não pode deixar que o capturem ou o machuquem... Tio William precisa que ele encontre ajuda e volte rápido. As folhas nos arbustos se abrem e algo aparece.

David perde o fôlego ao ver um menino humano nu, talvez seis anos mais velho que ele, avançar na luz amena da clareira. Ele é da cor do leite, só um emaranhado de cabelos pretos na cabeça. É como se todo o sangue tivesse vertido dele... não do seu rosto, mas de seu peito, braços e pernas. Então David percebe que o menino não está completamente nu. Seu corpo está coberto por alguma coisa — uma gosma espessa. Fibras sedosas pendem dele como tranças, como se ele estivesse sendo desfiado.

Teia de aranha?

David engole em seco, fazendo mais barulho do que esperava.

O menino se vira para ele, mas seus olhos vítreos não o veem. Sua expressão não parece ter percebido nada. Não há nenhuma expressão além de um olhar vazio e sombrio.

Uma corda de teia de aranha atinge o calcanhar do menino, derrubando-o de cara no chão. Ele resmunga algo com a boca cheia de mato — um som estranho e animalesco sem nenhum sentido —, como se ele tivesse esquecido como se fala.

As criaturinhas tagarelas surgem apressadas — cinco delas —, ainda discutindo entre si. Parecem macacos-aranha prateados de pele sem pelo. Olhos volumosos cor de níquel, sem pupila ou íris, brilham como moedas num poço dos desejos.

Uma gosma brilhante verte da pele careca. As gotas prateadas oleosas marcam seus passos como trilhas longas e finas. Todos usam minúsculos capacetes de mineiro. As luzes percorrem a clareira desorganizadamente, como bolhas reluzentes.

Ao passarem pela pedra de David, um cheiro pútrido de carne os acompanha. Eles cercam o menino caído, fazendo sons ameaçadores. Um deles tira a teia do calcanhar da vítima e a usa para amarrar-lhe as mãos nas costas. O menino exibe os dentes numa tentativa feroz e furiosa de se libertar, embora sua expressão mantenha o olhar vazio.

A criatura mais perto dele recua e ri — dentes afiados à mostra em seu rosto símio. Ela emite um som incômodo entre um ronronar e um uivo, depois salta sobre o menino, enchendo a boca dele com a teia. Os outros macacos prateados incentivam o companheiro, exultante com os sons de sufocamento do menino indefeso.

Nauseado com o espetáculo horrível, David joga os óculos no grupo para distrair as criaturas e sai do seu esconderijo.

— En garde! — grita, agitando a espada na direção das criaturas prateadas, numa tentativa de espantá-las.

Elas gritam em uníssono e correm para os galhos próximos. As lamúrias balançam as folhas, seguidas pelas luzes dos capacetes.

David abaixa a espada e se põe ao lado do menino, soltando-o das amarras.

— Vocesse não deveria ter feito isso, ser falante — alerta uma das criaturas com uma voz débil e ameaçadoramente melódica. — A jardineira deverese estare a caminhoinho. — As demais reagem rindo, balançando ainda mais os galhos, mas então fazem um silêncio incômodo, como se ouvindo algo.

Jardineira? David mantém um olho mirado nas criaturas e continua a desamarrar o menino. O Tio William geme em seu pensamento. David espera que seus outros familiares já tenham encontrado o velho. De uma coisa ele sabe: Tio William e seu pai iriam querer que ele fizesse a coisa certa. Ele jurou proteger toda a humanidade contra a magia, e este menino obviamente precisa de proteção.

Tão atento a suas batalhas internas, ele não vê a gigantesca sombra até ouvir a música assustadora:

— A dona aranha subiu pela parede — canta uma voz misteriosa do alto.

Ele sente um arrepio assim que olha para cima — tarde demais. A visão aterrorizante o deixa paralisado.

Uma aranha do tamanho de um homem pende de cabeça para baixo. A metade de cima é fêmea — o rosto translúcido com cicatrizes e arranhões ensanguentados ao longo de seus lábios roxeados, rosto, queixo e têmporas. Seus pelos prateados caem em mechas espessas, quase alcançando a cabeça de David. A parte de baixo é a de uma viúva-negra, cinco vezes maior que as bolas de ginástica que os cavalheiros usavam para ficar fortes e resistentes. Ela se equilibra num fio de teia preso aos galhos, e a teia brilha como seus famintos olhos azuis. Oito patas brilhantes de aranha envolvem a teia-âncora, algo assustador e gracioso.

David pensa em empunhar a espada, mas fica paralisado de medo e surpresa.

Ela ergue e baixa a pata esquerda e quase parece humana, exceto pelas tesouras de jardim no lugar da mão.

A jardineira. A palavra apavora David, abate-se sobre ele, trazendo-o de volta ao presente.

Snip, snip, snip. O abrir e fechar das tesouras despertam David completamente do transe. Ele recua de costas, o coração acelerado enquanto as lâminas quase atingem seu rosto.

A mulher com características de aranha desce delicadamente ao chão diante dele.

O terror sacode seu sistema nervoso — milhares de pedrinhas de gelo incendiando sua pele. Antes de poder se endireitar e correr, um jato espesso de teia o envolve dos pés à cintura, capturando sua bainha e inutilizando sua espada. David tropeça e cai no chão ao lado do menino que ele tentara salvar. O menino o encara com aqueles olhos desolados e dormentes. Com a língua ele tira a teia da boca e murmura novamente aquele mantra sem sentido, como se tentasse dizer algo a David.

O lado esquerdo do corpo de David dói por causa da queda e punhados de mato pinicam o interior de seu ouvido.

— Bom, bom — diz o aracnídeo com uma voz rouca que deixa um sabor de cobre na boca de David, como flocos de ferrugem e desespero. — Vocês doises viraram amigos? Que lindoinho.

As criaturas símias prateadas riem e saem de seus esconderijos. Numa tentativa desesperada de fugir, David enfia as mãos no mato e rasteja até o limite da mata.

Duas das criaturas saltam sobre ele e outra tira o anel de seu dedo.

— Brilhante! — grita ela, exibindo seu prêmio.

— Devolva isso — exige David, apesar de não fazer ideia de onde vem sua coragem.

Rosnando, a aranha jardineira empurra os macacos de lado com quatro patas e prende David onde ele está, dando voltas e mais voltas nele, até envolvê-lo de teia até os ombros.

— Este daí-í é um reluzente falante — provoca um captor prateado, cutucando David com um galho.

— Falante ele pode ser, meu escravo. — A mulher aracnídea se abaixa, seu hálito atingindo o rosto de David. Ele tosse, engasgando com o cheiro de terra úmida e podre. — Mas ele é um sonhador? — Sua mão direita, escondida por uma luva de borracha, toca-lhe o queixo. Como uma criança preocupada com uma casca de ferida, ela olha nos olhos dele, um estudo intenso que revira as entranhas de David. Ele sente o puxão bem lá no fundo, em profundezas maiores que a de seu coração, ossos e sangue... até libertar e expor todos os temores e esperanças mais secretos de sua alma. — Sim. Ele ser um sonhador único. E ser meu.

Diante da afirmação da bruxa aracnídea, as criaturas símias dançam, a gosma prateada delas descendo pelo rosto de David.

— Solte-nos — implora ele, olhando para o outro menino.

— Ah, negativo. — A luva de borracha lhe toca a cabeça, esfregando o cabelo no couro cabeludo. — Levar vou Irmã Dois à sua vontade. Dela um presente para mim, ele é. Ele ser vai magnífico no meu jardim. Vi coisas outras humanos não viram. Ahhh, você ter vai os sonhos mais vívidos. E pesadelos, ah, pesadelos em convulsão. — Uma baba pinga de seu lábio, o que combina com o sangue já em seu queixo. Limpa-a com a mão de tesoura, cortando-se mais uma vez.

David fica tenso dentro de seu casulo, tentando tocar a espada. Mas seus membros estão presos — imóveis.

O menino caído se lamuria e a aranha vai até ele.

— Parece que temos um substituto para você. Não foi fácil? Chega de sofrimento. — Ela tira a luva, usando os dentes para ajudar na falta de outra mão útil. A bainha de couro cede para revelar cinco caudas de escorpião se encolhendo e se esticando no lugar de dedos.

David geme ao ver algo tão repugnante.

A Irmã Dois se curva sobre o prisioneiro e abre a teia no peito dele, expondo a pele branca.

— Hora de se juntar aos outros. — Sua mão venenosa se choca com força contra o esterno do menino e o veneno verte da ponta do seu dedo; então ela atravessa os ossos até o coração.

O menino uiva e convulsiona. David grita e tenta chegar até ele, mas não consegue se mover. Em pouco tempo, o corpo do menino se encolhe e se transforma num escravo símio prateado, como os demais. Finalmente ele para de se debater e fecha seus olhos sem pupilas, seu rosto primata relaxado e uma língua negra pendendo da boca. Bolhas de gosma saem do que um dia foi carne humana e um rabo fino e comprido cresce em suas costas.

David fecha os olhos com força, tentando não gritar como um menininho. Tenha coragem, diz ele para si mesmo. Você é um cavaleiro. Mas ele está perdendo a coragem... ele está esquecendo tudo o que aprendeu. Ele só se lembra do sangue e da morte e dos dentes afiados e ferrões. Sente a mão macia e cuidadosa de sua mãe lhe acariciando a cabeça. A lembrança é destruída por um par de tesouras de jardim.

— Não tenha medo, menininho sonhador. — A Irmã Dois se volta para ele, enquanto os escravos pegam o novo membro do grupo e o levam para longe. — Você está em casa agora. Você tem irmãos e irmãs imortais aqui. Um dia, quando seus sonhos se esgotarem, você se juntará a eles. Mas, antes, alimentará minhas almas famintas e derrotadas.


— Nããão! — grito. É um grito tanto para David quanto para o menino perdido que jamais conheceremos. O menino perdido que nunca se reunirá novamente com seus entes queridos. Que agora se perdeu para sempre, até mesmo de si próprio.

Grito mais alto à medida que a teia cobre o rosto de David e ele não consegue mais gritar por si mesmo nem por ninguém.

— Nãããão!

— Alison. — Thomas me sacode pelo ombro e a cena treme e se desfaz ao meu redor, me tirando das lembranças dele e me fazendo cair de novo no sofá, aninhada pela semiescuridão que nos cerca.

Escondo meu rosto no braço de Thomas, em busca de seu perfume e calor. Lembrando-me de que ele está aqui e jamais sofrerá daquele modo novamente.

— Sinto muito mesmo.

— Não, meu amor. Você me salvou. Você não tem que pedir desculpas por nada. — Ele me abraça e me puxa para perto, esperando que meus batimentos se normalizem e eu consiga respirar novamente sem ofegar.

— A Irmã Um mentiu para mim — digo, tentando dar sentido às coisas. — Ela disse que as fadas usavam corpos de criança para alimentar as flores. Mas não era nada disso.

— Não. As fadas já foram crianças também. — Thomas suspira demoradamente, seu tórax erguendo minha cabeça com o esforço. — E elas não podem voltar àquela forma.

Meu rosto queima de raiva.

— Não consigo mais assistir a isso. Por favor, diga que é aqui que tudo termina.

Ele me aperta.

— Está tudo bem. Essa é a bênção. Algo na teia agiu como sedativo. Eu estava num transe. Não tenho lembranças da minha época na toca, porque não tive lembranças. Só tive um sonho. Mas me lembro de despertar quando você me libertou da armadilha e caí no chão. Eu me lembro de você me cobrindo.

— Sim — sussurro na escuridão. — A Irmã Um me deixou emprestar o cobertor. Era tudo o que ela podia oferecer. Ela estava apavorada com a ira da irmã gêmea. Usei a manta como maca, para me ajudar a tirá-lo dali.

— Eu me lembro disso também. Vi vislumbres de você olhando para trás para ter certeza de que eu não caí. Seus olhos eram da cor da liberdade. Ou do meu futuro. Eles eram tão cheios de dor, de determinação. E de força. — Thomas me aperta com mais força. — Então, ao acordar no ombro de Morfeu quando ele passou comigo pelo portal, você e suas asas desapareceram aos poucos. Você era transcendente... etérea. Acordar na sua cama foi como acordar de um coma de dez anos e ver um anjo. Seu rosto era conhecido, acho que por causa daqueles vislumbres de consciência. Por algum motivo, quando Marfim apagou minhas outras memórias, aqueles momentos permaneceram. Talvez porque não fossem memórias ainda. Eram mais... despertares. E, sem minhas outras lembranças, você era a única coisa que eu reconhecia. Mais tarde, me convenci de que tinha sonhado com você e as asas, mas não importava. Porque só de olhar para você, com ou sem asas, renasci.

Aninhei-me mais em seu peito para ouvir seu coração. Fechando os olhos, revivo mentalmente o momento em que nos conhecemos oficialmente, como se o estivesse vendo na tela do outro lado da sala.

Eu me sentei ao lado da cama e guardei vigília naquela noite, depois de quebrar todos os espelhos para que Morfeu não pudesse voltar ao quarto. Sabia que o tinha decepcionado. Também sabia que ele estava furioso. Mas não me importava. Só me importava de ajudar o menino na teia.

Sabendo que ele não teria identidade ao acordar, eu o batizei enquanto ele dormia. Ele me lembrava de uma pintura que vi uma vez numa das minhas casas adotivas. As pessoas eram religiosas e um retrato de São Tomás pendia sobre a lareira. Seus cabelos eram castanhos, o rosto jovem, mas marcado pela sabedoria, e seus olhos escuros eram solidários e melancólicos. Ele era o santo padroeiro das pessoas tomadas pela dúvida e, como nunca acreditei que eu tivesse um lugar no mundo humano, tomei-o como meu santo pessoal.

Contudo, ao ver o menino sonhador dormindo naquela noite no meu quarto, um menino que ajudei a salvar... um menino a quem dei um lar, sabia que jamais duvidaria do meu lugar novamente.

Nervosa e insegura, observei seus olhos castanhos se abrirem na manhã seguinte. Uma aurora cor de pêssego dançava nas paredes do quarto, animada por três galhos balançando do lado de fora da janela. Eu me perguntava se ele teria medo de mim, se ele entraria em pânico e sairia correndo. Mas, quando nossos olhares se encontraram, eu me senti — pela primeira vez em muitos anos — segura. Ele me tocou como se me conhecesse desde sempre. Considerando o tempo que ele passou sem contato humano, não hesitei em tocá-lo. Silenciosamente, segurei a mão dele e entrei sob a colcha de retalhos, acomodando-me ao seu lado. Sem falar nada, seus dedos tocaram todo o meu rosto, seu hálito doce na minha pele — um resíduo da poção do esquecimento que Marfim lhe dera. Para mim, era o cheiro da esperança e de uma nova vida. Então ele parou na minha boca, segurou meu rosto e me deu um beijo, seu toque tão terno e ainda assim tão confiante para um menino de dezenove anos que nunca tinha beijado uma menina. Foi meu primeiro beijo recíproco, o único que chegou ao meu coração e me iluminou como uma tocha desafiadora contra o vento forte. Fiquei ali no calor de seu abraço e dormimos por horas, até que o sol avançou no céu e chegou a hora de lhe dar respostas, por mais falsas que fossem.

Thomas não conseguiu falar nos primeiros meses. Ele entendia as coisas que eu dizia, mas teve de reaprender as palavras — como articulá-las e lê-las. Era como se a Irmã Dois não tivesse apenas sugado seus sonhos e imaginação, mas também toda uma vida de comunicação. Apesar de ser frustrante para ele, isso facilitou as coisas para mim e fui capaz de relacionar sua deficiência e amnésia a um acidente de carro e um ferimento na cabeça.

Agora repasso as mentiras que disse na esperança de mantê-lo são, e me pergunto como as coisas podiam ter sido diferentes se o tivesse trazido aqui para o trem, a fim de que ele visse a verdade.

Mas o passado não pode ser desfeito. Ele me perdoou e me ama, apesar de tudo.

— Só queria ter podido salvar todas aquelas crianças, como salvei você — digo, segurando a camisa de Thomas. — Ou salvar Alyssa da dor pela qual ela passou.

— Deixe disso, docinho. Você não vê quantas vidas você salvou? Não só a minha. Você e eu fomos destinados a fazer parte do País das Maravilhas. Não importa os caminhos que escolhemos. Fomos pegos naquela teia assim que nascemos. O que significa que era inevitável que nossa filha tivesse o mesmo destino e que o papel dela fosse maior que o nosso.

— Entendo isso, mas...

— Mas o que você insiste em esquecer — interrompe Thomas com cuidado — é que, sem seu papel nisso tudo, nossa menina jamais teria nascido, porque eu teria terminado como fada, constantemente em busca daquela faísca de inspiração, sem nunca saber exatamente o que perdi. Não consigo pensar em fim mais trágico. Você consegue?

Uma emoção nova cresce dentro de mim. Um quê de indignação virtuosa por todas as crianças humanas perdidas e aquelas que consegui salvar, uma emoção quente e avassaladora.

— Ao entrarmos no País das Maravilhas pela primeira vez — continua Thomas, segurando minha mão e levando-a ao seu coração —, você deu vida à nossa filha e uma chance de vida a todas as crianças que a Irmã Dois teria pegado e usado no futuro. O fato de Morfeu convencer Alyssa a ser rainha o fez se apaixonar por ela, o que por sua vez deu a um ser solitário e egoísta a chance de crescer e fazer algo admirável... Ela está com a gente agora por causa disso. Jeb ter desistido da sua musa em nome das crianças humanas... um menino que não teve muita infância... outro sacrifício admirável. Somos todos pessoas melhores... ou seres intraterrenos, em alguns casos... porque você teve coragem e ousadia suficientes para buscar uma vida melhor para si mesma. Por causa das suas escolhas quando era aquela menina solitária de treze anos, e novamente quando era aquela princesa virtuosa e misericordiosa de dezesseis anos, incontáveis vidas foram salvas e melhoradas. E, ao salvar o pai de Alyssa, você lhe deu uma chance de existir.

Contive o choro.

— O que lhe deu chance de criá-la. Ela é forte e incrível por causa de você. — Seguro a mão dele, fecho-a e beijo os nós dos dedos. — Obrigada por nunca ter desistido de mim ou da nossa menina. Você é nosso herói.

— Você é minha heroína, Alison. Literalmente. — Ele tira do meu rosto uma mecha que se soltou do grampo. — Quantos homens podem dizer isso da mulher que amam? Hein?

Paro de lutar contra as lágrimas. Deixo-as rolar tranquilamente por meu rosto. São lágrimas diferentes das de outros choros. São puras, terapêuticas e felizes. Divinamente felizes. A despeito da escuridão que todos enfrentamos, tenho minha família. Honrei a morte da minha mãe permitindo que outros vivessem. Como Morfeu disse uma vez... ele me deu uma chance de fazer as pazes com a morte. E agora Thomas me dá uma chance de fazer as pazes com minha vida. Tudo é como deveria ser. Finalmente.

Haveria momentos em que os pensamentos sombrios me visitariam, tenho certeza. Mas agora... agora tinha uma luz para lançar sobre eles. Um farol a me guiar.

— Chega de olhar para trás — digo para meu marido, a voz surpreendentemente firme.

— Chega de passeios de trem. — Ele acaricia meu queixo com os nós dos dedos. — Só para a frente, deste dia em diante. Aproveitando todos os momentos juntos que nos restam neste mundo. Você comigo.

— Até o derradeiro fim — falo.

Thomas enxuga minhas lágrimas.

— Feliz aniversário, Ali-ursinha. — Ele me puxa para o colo no sofá e me beija até eu perder o fôlego e ficar toda vermelha como uma noiva tímida. Depois ele me põe no chão para ajeitar minhas roupas e sussurra em meu ouvido. — Estou morrendo de fome. Que tal espaguete à bolonhesa?

Eu rio.

— Você leu meus pensamentos.

Ao sairmos do trem rumo ao espelho, ele segura minha mão. O menino na teia e o homem dos meus sonhos. Para sempre e eternamente, minha âncora.


CONTINUA

Investida & Bloqueio
— Se pretendemos sobreviver a isso, Alison, você tem que atacar a jugular. Sem. Misericórdia.
A voz grossa e autoritária de Thomas me comove e ele me ajuda a levantar, depois ajusta meus dedos ao cabo metálico da espada que havia escorregado de minha mão enluvada. Uma mistura de suor e do cheiro cítrico do sabonete por ele usado paira no ar, abafada pelo perfume das flores e da vegetação que nos cercam.
Toco o quadril no ponto onde ainda lateja por causa da queda e retomo minha posição, encarando nossos oponentes do outro lado do mato manchado de sangue: a minha, com o brilho lindo e fantasmagórico de sua pele... O de Thomas, com o corpo musculoso e os olhos verdes destemidos. As espadas prateadas deles brilham sob o sol de outono e refletem suas expressões imóveis, até que, num movimento lento como o de uma nuvem de tempestade, a curiosidade lhes cruza as feições, enquanto eles tentam prever nossa estratégia.
Meu coração bate forte, ansioso. Enxugo um pouco do suor da minha testa. Eles são mais jovens e mais rápidos, mas Thomas e eu temos a inteligência do nosso lado e uma conexão incomparável. Somos uma equipe há vinte e dois anos. Aqueles amadores não são páreos para nós.
Ignorando o calor e a irritação da minha pele sob as várias camadas de roupa, convenço meu corpo a relaxar, mas me mantenho em posição, a espada empunhada e pronta para o combate, antes de tirar a máscara do meu rosto.
Meu marido geralmente me dá dicas, gestos que só eu sou capaz de decifrar: um menear de cabeça para uma defesa, um estreitar de olhos para um bloqueio. Desta vez, porém, não preciso das instruções dele. Conheço minha oponente. Observei-a o suficiente para descobrir seus pontos fortes e seus pontos fracos. Ela me atacará pela esquerda e me defenderei com um bloqueio. A não ser que agora ela decida misturar os golpes.
Como se pensasse que me decifrou, ela me encara com seus olhos azuis penetrantes e sorri, excessivamente confiante, antes de colocar a máscara no lugar. Ela fica rígida e eu também, de modo a convidá-la a fazer o primeiro movimento.
Com reserva e graça, ela troca de pé de apoio e investe contra mim, me atacando numa tática surpresa. Atinjo a espada dela imediatamente, cedendo ao seu ritmo. Ela perde o equilíbrio e exagera na compensação, executando um golpe atrapalhado. Sua reação apressada deixa seu peito exposto.

 


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Rugindo, miro o coração dela com a ponta da espada, sentindo uma emoção intensa ao furar seu casaco branco. Ela deixa a espada de lado e põe a mão no esterno. Seus olhos se arregalam por trás da máscara. O sangue jorra pela grama e mancha meus tênis brancos.

— Mamãe? — murmura ela em choque, encolhendo-se no chão.

Levanto a máscara, tiro as luvas e me ajoelho ao lado dela, cutucando suas costelas incansavelmente.

— Diga! — grito. — Diga que sou a rainha!

Jebediah e Thomas riem ali por perto, enquanto Alyssa gargalha histericamente, balançando de costas como uma tartaruga virada de cabeça para baixo em seu casco, tentando recuperar o fôlego e escapar da minha tortura de cosquinhas. A máscara dela cai, revelando seu rosto avermelhado.

— Diga! — insisto.

— Nunca! — responde ela e segura minhas mãos, lutando comigo e me derrubando ao seu lado.

Em pouco tempo, minhas costelas doem por causa de seus dedos incansáveis e estamos nos abraçando e rindo tanto que lágrimas escorrem de nossos olhos.

— Certo. — Thomas recupera a compostura o bastante para pedir um cessar-fogo. — Os velhos ganharam, simples assim.

— Dobrados novamente — comenta Alyssa, apontando para nossas espadas flexíveis de treino. A piadinha tira uma risadinha de Jebediah, que toca na mão ensanguentada dela.

Thomas me ajuda a levantar e toco os riozinhos vermelhos do meu casaco e calças de esgrima, o líquido grudento entre meus dedos.

Meu marido me oferece uma toalha para limparmos a bagunça. Uso a minha para enxugar meu rosto e minha testa.

— Ainda acho que o sangue falso de Halloween foi um exagero — opina Jenara do balanço na varanda, onde ela e Corbin esperam para desafiar a equipe vencedora. Eles bebem limonada de um tom de rosa igual ao dos cabelos dela. Ela retorce o nariz. — Foi uma cena bem assustadora.

— Você só pode estar brincando — diz Alyssa com uma risadinha ansiosa, admirando os milhares de gotas vermelhas nas roupas e nas rosas, madressilvas e ervas prateadas no jardim. — É lindo. Assim como qualquer decoração, ela só precisa ser transformada em algo novo.

A trança loira comprida às suas costas balança como se ganhasse vida. Ela usa sua mágica para suspender as gotículas brilhantes das plantas e flores e fazer as manchas em nossas roupas se juntarem a elas. O sangue falso paira no ar e ali fica, as gotas se fundindo como chuva na vidraça, até formarem uma treliça — um arco tremeluzente vermelho que parece um vitral. Alyssa segura a mão de Jebediah e o puxa para perto. Ele ri, guiando-a na dança sob o gazebo improvisado. Seus movimentos são graciosos e sincronizados, os corpos jamais destruindo a obra de Alyssa.

Thomas tomba a cabeça num gesto de repreensão, apesar de ser impossível ignorar o orgulho em sua expressão. Se não fosse pela cerca de madeira de três metros que ele recentemente instalou para nos proteger de curiosos, é bem provável que ele não estivesse vendo o showzinho de Alyssa com tanta leveza.

Se bem que ela sempre conseguiu dominá-lo com seus encantos.

Nossa filha olha para ele, rindo, em paz e à vontade como nunca a vi em todos os seus dezessete anos.

Como resultado de seu treinamento de mágica com Morfeu em seus sonhos, ela está executando os feitiços com perfeição, sendo capaz de dar vazão a seus poderes apenas com o pensamento. É em momentos como este que vejo: a rainha mística fervilhando sob a superfície. Uma predisposição ao sangue e ao caos. Como ela ganha vida em chamas e tempestades. Como a mágica dela inspira e doma o pandemônio. Como ela encontra beleza em tudo o que é mórbido e bizarro.

É irônico. Tentei por muito tempo cultivar essas qualidades em mim, mas meu lado humano era forte demais. Nunca pretendi ser rainha. Desejava, mas não de coração.

A dança termina e, com um virar de pulso de Alyssa, as gotículas de sangue caem em câmera lenta — como flocos de uma neve macabra — e novamente repousam em nossas roupas, nas folhas e nas pétalas das quais se originaram.

Jenara bebe o restante da limonada, os cubos de gelo no copo se chocando uns contra os outros.

— Vai ser bem difícil limpar essa bagunça toda.

Alyssa dá de ombros e ri.

— Nada que um frasco de água sanitária e uma mangueira não resolvam.

— Não. Não vou usar água sanitária nesta obra-prima. — Jenara estica os braços para mostrar o casaco rosado cobrindo seu corpinho. Ela o tingiu há algumas semanas e acrescentou uma renda delicada nas mangas e no colarinho. Colocando o copo de gelo ao lado do pé de Corbin, ela sai do balanço. — Se vamos insistir no uso de sangue, vou vestir meu casaco preto.

Corbin a segura pela cintura e a puxa de volta para seu colo.

— Ah, venha cá, princesinha. Vamos derrotar os mais velhos antes mesmo de você quebrar a unha. Jeb e Al simplesmente não têm os movimentos apropriados.

Jenara sorri.

— Bem notado.

— Uha! — Num movimento fluido, Alyssa pisa na espada caída a fim de que ela fique perpendicular ao chão e bata com o cabo em sua mão espalmada. — Venha cá e diga isso na minha cara, Cor-bin-ara.

Troco olhares com meu marido e rio.

— Bela manobra, menina skatista. — Jebediah dá uma risadinha, brandindo seu florete. — Quer uma disputa sob o salgueiro? — Ele arqueia a sobrancelha.

— Você não vai durar dois segundos. — Ela abre um sorriso rápido, seu anel de noivado brilhando à luz ao passar a espada de uma mão para a outra num movimento único e fluido.

— Ah, é mesmo? — pergunta ele, para, sem aviso, erguê-la e jogá-la sobre o ombro. A espada cai no chão com um baque, e ela ri enquanto ele a leva até a árvore e derruba os dois nas folhas que pendem baixo.

Ela poderia facilmente usar seus poderes para se libertar. Mas aí é que está. Não quer se livrar dele. Nunca quis. Ele é seu parceiro humano, em todos os sentidos.

Ela e eu conversamos sobre o que significa a imortalidade... sobre como vai ser difícil quando ele tiver morrido e ela continuar viva. Ela me garantiu que pode sobreviver — apesar de seu olhar ficar distante ao imaginar isso e de seu rosto nublar-se ao pensar na situação. Contudo, acredito na devoção dela ao País das Maravilhas, e Morfeu é poderoso o bastante para ajudá-la a superar essa perda. E sei que, quando tal dia chegar, a imortalidade dela será algo estonteante. Morfeu vai cuidar dela. Ele a tratará como realeza. Ele o faria mesmo que ela não fosse uma rainha, porque admira a coragem dela.

Ela é uma guerreira e eu sou uma covarde. Meu medo de perder Thomas supera qualquer lealdade que um dia eu tive pelo reino interior. Não consigo viver sem ele por toda a eternidade. Por esse motivo, entre tantos outros, fico feliz por meu espírito não ser mágico e eu ainda ser mortal. Mesmo que viva mais que meu marido, não será por muito tempo. E me sinto segura nessa inevitabilidade.

Ver Jeb e Alyssa lutando e rindo me faz sorrir. Eles são tão parecidos com Thomas e eu quando tínhamos essa idade — cheios de esperança. A diferença é que eles têm uma chance real de conquistar tudo o que sonharam, porque não há mentiras entre eles. O País das Maravilhas é um livro aberto que ambos leram e viveram. Eles até mesmo incluíram Jenara e Corbin em seu círculo íntimo.

Só recentemente Thomas e eu tivemos a verdade para nos unir. E tenho de agradecer minha filha por nos dar essa segunda oportunidade e por me devolver minha sanidade. Fecho os olhos, escutando. Tudo o que ouço é a água de nosso chafariz e as brincadeiras de Jebediah e Alyssa. Nada da conversa dos insetos. Nada do sussurro das flores.

De acordo com meu pedido, três meses atrás, quando Thomas, Alyssa, seu noivo e eu voltamos de nossa última viagem ao País das Maravilhas, Alyssa usou seus poderes reais para pôr um ponto-final nas intermináveis conversas em meus ouvidos, e ela se certificou de que seus descendentes ouçam apenas o silêncio. Só ela agora tem uma linha direta com os insetos e as plantas. Assim como ela é a única que ainda faz, nos sonhos, visitas regulares ao reino interior.

Apesar de ainda ter meus brotos de asa e as marcas nos olhos, minhas características intraterrenas só aparecem se eu deixar. Então, pela primeira vez desde meus dezesseis anos, me sinto normal. E, pela primeira vez desde meus doze anos, lembro-me do silêncio.

Achei que sentiria falta das vozinhas que me acompanharam ao longo de toda a adolescência, vozes que se tornaram minhas confidentes quando ninguém mais ouvia; porém, não preciso mais delas como muletas. Agora tenho uma família e um marido que sabe e compartilha da minha história no País das Maravilhas.

Nunca mais ficarei sozinha.

Meus olhos se abrem e sinto os dedos firmes de Thomas se entrelaçarem aos meus, como se ele lesse meus pensamentos. Nada me dá mais segurança que a sensação da mão dele na minha.

— Divirtam-se, meninos — diz ele. — Vamos acabar por aqui. — Ele vira os olhos castanhos para mim e beija os nós dos meus dedos, provocando um arrepio que me vai do braço ao coração. — Prometi à minha constrangida esposa que sairia com ela no nosso aniversário de vinte anos. Continuaremos amanhã. — Estreita os olhos na direção de Corbin e Jenara. — A não ser que vocês dois estejam prontos para perder agora. Todos sabemos como isso vai terminar. A idade e a sabedoria sempre vencem a juventude e a irresponsabilidade. — Sua risadinha maliciosa à la Elvis é recebida por bufadas dos jovens.

— Até parece, sr. G. — fala Jenara com ar de deboche. — Amanhã... mesma hora, mesmo lugar. Eu estarei de preto. E se lembre: o perdedor tem que usar um vestidinho curto em público. Prepare-se para a maior transformação da sua vida.


Enquanto Thomas toma banho, observo-me no espelho sobre o lavabo. Uma tarefa mundana para a maioria das pessoas, mas algo que tenho evitado desde que conheci meu marido.

Finalmente, depois de todos esses anos, não preciso mais me esconder de espelhos. Não preciso mais ter medo de ver a expressão crítica de Morfeu atrás de meu reflexo.

Meu vestido é simples e elegante: renda branca com um decote nas costas e sem mangas. Uma tira de renda contrastante — cor de um cappuccino — afina minha cintura e complementa o brilho bronzeado da minha pele recém-lavada. O sutiã envolve meus seios, e a saia, meus quadris — a barra abaixo do joelho. Alyssa e Jenara me ajudaram a escolhê-lo na loja, jurando que ele era sensual o bastante para deixar Thomas de olhos arregalados. Estou ansiosa por testar a teoria.

Ficamos separados, desnecessariamente, por muito tempo. Talvez por isso ele faça com que eu me sinta como uma menininha apaixonada, porque cada momento que passamos juntos é como redescobrir tudo de novo — suas palavras gentis, seus beijos, sua risada e sua bondade.

Com um toque de blush no rosto e um quê de batom vermelho nos lábios, estou pronta. A energia e a vitalidade pulsam em meu corpo e geram faíscas sob minha pele. Meus cabelos platinados na altura dos ombros envolvem sedutoramente meu rosto, de forma que dou início à tarefa de prendê-los com grampos brilhantes.

Uma mulher prestes a sair com o marido de vinte anos de casamento... é isso que vejo. Houve um tempo, porém, em que eu não estava sozinha na nostalgia, quando qualquer superfície refletora abria as portas para o louco e caótico País das Maravilhas que eu pretendia dominar. Salvei o menino na teia daquele mundo e fiz o meu melhor para dar as costas a tudo isso quebrando todos os espelhos por perto.

Foi errado abandonar tudo sem nem uma explicação. Agora sei disso.

Fugi às minhas responsabilidades, num pacto com o próprio diabo. Então Morfeu, entrando nos sonhos da minha filha — me usando como um canal involuntário —, encontrou outra maneira de me fazer pagar. Ele apareceu para ela todas as noites durante os primeiros cinco anos de sua vida, disfarçando-se de criança — a tal ponto que virou criança de corpo e alma —, de modo a ser o amiguinho dela e conquistar seu afeto e confiança. Quando descobri, tentei reagir ao ataque mental dele com um conflito físico, a fim de protegê-la fazendo a única coisa que me era possível: ir embora.

Fecho os olhos e, por um instante, meu vestido no espelho se transforma na camisa de força que se tornou minha arma preferida.

Como pude achar que não haveria consequências por ter me escondido num hospício? Esperava que ele encontrasse outro parceiro de luta... outro Liddell para explorar, alguém que pudesse salvar-lhe a alma dessa maldição de passar a eternidade preso no covil da Irmã Dois. Para escapar ao seu destino, ele tinha de realizar a Maldição da Vermelha, coroando uma rainha da linhagem dela com a tiara de rubi, enquanto a própria Vermelha possuía o corpo da outra. Equivocadamente supus que, ao decepcioná-lo, ele seguiria em frente e encontraria outra vítima num parente distante, respeitando minha escolha.

No entanto, havia uma rachadura na minha armadura e meu adversário a penetrou. Eu deveria ter previsto. Desde que conheço Morfeu, ele nunca seguiu em frente. Não tendo seu objetivo em vista. Ele é o estrategista mais brilhante e mais paciente que jamais conheci.

O vapor do banho de Thomas nubla meu reflexo e por trás da névoa me vejo como era quando descobri os planos de Morfeu para Alyssa: aquela mãe jovem e ingênua, temendo pelo futuro da filha. Culpada por colocar a filha em perigo. Minha menininha nunca quis ser minha substituta, mas, com minha traição, foi exatamente isso que ela se tornou.

Optei por não contar a Alyssa minhas escolhas e as repercussões delas porque achava que tinha conseguido poupá-la. Mas todo aquele tempo no hospício, longe do meu marido e da minha filha, não teve importância. Nem o juramento de Morfeu de não entrar em contato com Alyssa de novo. Porque ele já tinha plantado, na mente dela, memórias dos momentos a dois, contando com a curiosidade que ela herdou de Liddell para convencê-la a procurá-lo. Aos dezesseis anos, ela encontrou a toca do coelho sozinha, exatamente como ele planejara.

Minha mão dispersa involuntariamente a lembrança e puxo uma mecha de cabelo com força demais. Sinto uma dor no couro cabeludo e faço uma careta. Rearrumando a mecha, prendo-a com um grampo.

Morfeu convenceu minha filha a conquistar a coroa que eu desejava e acabei por desprezar. Ao longo do processo, ele se salvou. Era uma responsabilidade pela qual Alyssa não tinha pedido, apesar de ela acabar por aceitá-la e até mesmo adotá-la. Ainda assim... ele a convenceu a virar rainha sem lhe contar todos os fatos.

A única coisa que me deixa feliz é saber que ele não saiu incólume. Ele pagou um preço. Um preço que jamais imaginou.

Enquanto “amadurecia” com Alyssa nos sonhos de infância dela, enquanto a observava enfrentar todos os desafios que ele lhe impunha no País das Maravilhas, Morfeu — o ser solitário e egoísta antes incapaz de amar — apaixonou-se completamente por ela. Eu não acreditaria, se não tivesse visto com meus próprios olhos. Ele sentiu a força de sua devoção quando desistiu da oportunidade de tê-la ao seu lado no reino interior. Quando ele optou por esperar, a fim de que a metade humana do coração dela pudesse se curar, até que ela fosse forte o bastante para governar o reino Vermelho eternamente.

Por causa desse sacrifício, começo a suspeitar que talvez ele não seja demoníaco. Que talvez, depois de todos esses anos, eu esteja vendo um lado dele quase vulnerável e amoroso. Um lado que ele manteve afastado de mim, a não ser por um ou dois vislumbres dos quais me esqueci ao longo dos anos.

Ainda assim não estou pronta para perdoá-lo por usar minha filha. Porque, para isso, teria de me perdoar por torná-la responsável por minhas confusões. E por mais que Thomas queira... não tenho certeza se consigo.

A vida de Alyssa sempre foi dividia ao meio por causa de mim. Ela sempre tolerou tudo com tranquilidade. Ninguém podia vê-la com seus assuntos interiores e negar que ela foi feita para ser rainha. Ela ama o mesmo mundo que acabei por odiar.

E, como amo minha filha, de alguma forma tenho de aprender a adotar aquele mundo novamente. De outro modo, nunca superarei o fato de ter deixado Morfeu e toda a loucura do País das Maravilhas entrarem em nossa vida.

Meu reflexo nebuloso me traz de volta ao aqui e agora. Passo meu perfume preferido nos ombros e pulsos — nadando em tons de maracujá e laranja —, depois maquio o nariz com pó, saindo do banheiro antes que o vapor do banho de Thomas possa borrar a maquiagem.

Coloco brincos de pérolas e um colar e bracelete combinando, depois me sento na beirada da cama e movimento os dedos do pé, me concentrando na porta fechada do nosso quarto. Sons de portas de armários e panelas batendo umas nas outras vêm do outro lado. As crianças estão na cozinha, preparando algo para o jantar. Penso em ajudá-las enquanto espero Thomas, mas não estou pronta para enfiar os pés no par de salto alto ao meu lado. O carpete é tão gostoso... fofo e farto. Em vez de ajudá-las, deito-me no edredom, abro os braços e fecho os olhos, relaxando músculos que ainda doem por causa da esgrima mais cedo.

Atenta ao ritmo da água contra o boxe do banheiro, permito-me voltar a outro dia e hora, quando tinha treze anos, olhando para o mundo tomado pela chuva. Quando aceitei o chamado interior durante um dos períodos mais tristes e solitários da minha vida.

Foi quando Morfeu se aproximou de mim e me ofereceu poder e vingança na palma de sua mão manipuladora. Foi o dia que mudaria, para sempre, quem eu iria me tornar.


Capítulo 2


Encaixotada

Vinte e seis anos antes...

A chuva batia na caixa de papelão vazia sobre minha cabeça. Eu a virei de lado e entrei nela antes da tempestade. A Lixeira ao meu lado fedia a peixe morto e fruta podre, superando os cheiros frescos de asfalto e terra molhados. Poças marcavam a rua irregular e a água jorrava das calhas que pendiam dos fundos do meu prédio de apartamentos do outro lado do beco.

Uma lufada de vento invadiu meu abrigo improvisado. Acocorei-me contra a parte de trás da caixa, colocando minha sacola atrás do pescoço como um travesseiro e segurando as páginas de Alice no País das Maravilhas a fim de eu não me perder na leitura. Algumas semanas antes, risquei o Alice no título e o substituí por Alison. Em parte era para todos saberem que o livro era meu. Mas havia mais... parte de mim queria que eu pudesse viver as mesmas aventuras... que eu de alguma forma fosse Alice e entrasse numa toca de coelho onde um mundo novo me aguardasse — um mundo onde alguém tão peculiar e deslocada quanto eu talvez se encaixasse. Um lugar do qual eu pudesse fazer parte.

Nunca fui boa em entender outras pessoas. Principalmente porque eu me mudava demais. Pelo menos era o que eu dizia para mim mesma. Não tinha nada a ver com minha dificuldade em confiar nas pessoas ou minha incapacidade de me relacionar com elas diariamente.

A leitura me dava amigos o bastante, e os livros de Lewis Carroll eram meus preferidos, sendo uma das poucas coisas que minha mãe me deixou ao morrer, pouco depois do parto. As histórias me aproximavam dela, apesar de jamais tê-la conhecido. Talvez porque, secretamente, eu entendesse como o País das Maravilhas era real para ela, considerando nosso parentesco distante com os Liddell de Londres.

Certa vez, quando eu morava num orfanato e esperava por uma família adotiva, entrei no escritório e li minha ficha. Só assim é que pude descobrir minha origem. Alice Liddell, a menina real que inspirou as histórias de Carroll, teve um filho que, antes de ir para a guerra e morrer no campo de batalha, se envolveu com uma mulher. A namoradinha dele acabou grávida e veio para os Estados Unidos a fim de criar o filho ilegítimo. O menino cresceu e teve uma filha: minha mãe, Alicia.

De alguma forma, tudo isso deixava minha mãe maluca. Minha ficha dizia que ela passou algum tempo num hospício quando adolescente, depois de pintar os personagens do País das Maravilhas em todas as paredes de casa e insistir que eles conversavam com ela nos sonhos. Quando nasci, ela saltou do segundo andar do hospital para testar as “asas de fada” que as vozes diziam que ela tinha. Ela caiu num arbusto de rosas e quebrou o pescoço.

O médico disse que ela cometeu suicídio — depressão pós-parto e luto por ter perdido meu pai meses antes, num acidente de fábrica. Qualquer que fosse o motivo, algo nunca foi explicado... as marcas do tamanho de uma moeda em suas omoplatas, grandes demais e perfeitamente separadas para terem sido causadas por espinhos.

Minha opinião? Ela tinha asas, sim. Asas que nunca brotaram. Se sou louca por pensar isso, paciência. Porque, se eu era maluca, isso significa que tínhamos uma relação. Algo em comum. Desde que ninguém ficasse sabendo.

Minha mãe também deixara para trás uma câmera polaroide — do tipo que cospe imagens prontas ao aperto de um botão. Sei como usá-la desde os cinco anos.

Abracei com mais força as fotografias que tirei da bolsa. Era algo em que me tornei boa: me esconder atrás de árvores nos parquinhos ou de carros no estacionamento de shoppings para captar momentos das famílias e amigos de outras pessoas. Gostava de me cercar deles — me protegendo, assim, da falta da minha própria família.

Arregacei a manga da minha jaqueta jeans para consultar o relógio. Só mais dez minutos e as aulas terminariam. Então eu voltaria para meu apartamento e fingiria ter passado o dia onde deveria ter estado. Apareci no início da minha última aula, ficando o suficiente para ser considerada na lista de presença, antes de “dar um passeio no banheiro” e não voltar mais. Com alguma sorte, a srta. Bunsby, minha cuidadora mais recente, jamais ficaria sabendo da minha fuga. Moro com ela só há um mês. Não queria incomodá-la e ser abandonada de novo. Apesar de ser uma viúva vegetariana de quarenta e tantos anos, ela era a melhor cuidadora que já tive.

Olhei para o sexto andar do prédio. Nosso apartamento ficava mais à esquerda, onde a escada de incêndio estava toda enferrujada, virando um esqueleto preto pendente e inútil. Eu era ótima em escalada e tentara fazia algumas semanas descer pela escada e sair à noite para uma sessão de fotografias. Escorreguei e caí.

Seis andares era uma queda e tanto. Eu deveria ter morrido ou ao menos quebrado alguns ossos. Durante a queda, porém, entrei em estado de sonho e, de alguma forma, ao acordar não tinha nenhum ferimento. Não estava nem mesmo com dor. Só tinha uma lembrança estranha de enormes asas pretas.

Mexendo nas fotos, encontrei uma no fim da pilha: uma mariposa enorme de corpo azulado e asas pretas, toda aberta numa flor entre um ângulo de sol e sombra. Lembro-me de quando a vi no parque, como se ela estivesse paralisada entre dois mundos. Tirei a foto não apenas pelo simbolismo, mas também porque já tinha visto o inseto antes. Minha mãe tinha desenhado uma mariposa como aquela numa folha de papel mantida dentro dos livros da Alice. O mais estranho é que ela também tinha feito, bem ao lado, um esboço da Alice presente nas ilustrações do País das Maravilhas. De alguma forma — em sua mente —, os dois desenhos estavam conectados. Perdi o desenho durante uma de minhas muitas mudanças. Então, ao ver aquela mariposa idêntica, ao vivo e em cores, tive de imortalizá-la com minha câmera.

Suspirando, guardei a imagem no meu livro da Alice, para marcar a página. Aquela foto era a preferida da srta. Bunsby. Ela disse que eu tinha um dom, que, se eu continuasse melhorando, ela me daria a câmera do marido — uma Yashica 44 —, assim como seus livros sobre revelação de filmes.

Ela foi um dos poucos adultos que acreditaram em mim sem me criticar. Todavia, se a srta. Bunsby soubesse que eu achava que essa mesma mariposa exercera um papel nas fantasias da minha mãe quanto ao País das Maravilhas, ela pensaria que minha imaginação era fértil demais, como meus professores e cuidadores sempre disseram. Fiz a pesquisa na biblioteca. Mariposas vivem meses, não décadas.

Pensar nisso meio que me deixou assustada. Mas também fez com que eu me sentisse especial, como se eu e minha mãe importássemos para alguém em algum lugar — o bastante para merecermos ser observadas. Não foi a primeira vez que senti que insetos e plantas estavam tentando entrar em contato comigo de um jeito que não tentavam com outras pessoas. Eu ouvia vozes desde que cheguei à puberdade, perto do meu aniversário de doze anos, há um ano. Ainda assim, sabia muito bem que não deveria compartilhar isso com ninguém, pelo risco de acabar na ala psiquiátrica, como minha mãe.

Meu estômago roncou e coloquei a mão na barriga. A srta. Bunsby serviria beterraba e caçarola de tofu hoje à noite. Só de pensar nisso minhas papilas gustativas querem sair correndo. Tive de economizar meu lanche ao máximo. O pacote de biscoitos com manteiga de amendoim que guardei do almoço estava aberto ao meu lado. Coloquei um deles na boca e o mastiguei lentamente. Migalhas se acumularam na ilustração de Alice fugindo de alguns guardas da Rainha de Copas, na esperança de manter a cabeça, de modo que as espanei dali, fazendo-as cair na minha coxa.

Uma barata surgiu de baixo das abas da caixa e subiu pela minha calça para pegar um pouco de comida sem nem sequer um “por favor” ou “obrigada”. Em minha opinião, as baratas eram os insetos mais rudes do mundo. Eu conversara com moscas e besouros que eram educados e interessantes. Mas as baratas nunca tinham muito a dizer além de resmungar por causa da falta de lixo e sujeira, agora que os seres humanos habitavam o mundo delas, alegando que os sacos de lixo e os aspiradores de pó estavam prestes a acabar com elas.

Agitei a mão, afastando o inseto. Encolhi-me mais na caixa e censurei meus maus modos.

— Estou tentando ajudá-la, sua idiota. Você quer ser esmagada? — Peguei minha bolsa, enfiando as fotos e livros dentro dela, e saí para a tempestade, correndo até o espaço entre meu prédio e a barbearia ao lado.

A única entrada era pela frente. Nosso senhorio, Wally Harcus, mantinha a porta dos fundos trancada “por segurança”. Pelo menos era o que ele dizia. Ele só queria tirar vantagem de todas as mães solteiras e menininhas que viviam em seu prédio de aluguel barato. A porta dele era a primeira do corredor, o que significava que ele tinha a situação perfeita, da perspectiva de um pervertido.

As gotas de chuva e o gelo me feriam. O tecido da minha jaqueta e da minha calça absorvia todas as gotas e eu me sentia cinco quilos mais pesada e vinte graus mais gelada assim que entrei no prédio.

Minhas mãos estavam molhadas demais para segurar a maçaneta e, por isso, a porta se fechou com um baque. Gemi ao ouvir o barulho.

Mal tinha passado pela porta de Wally quando esta se abriu. Segui lentamente pelo corredor até a escada, mantendo os olhos no homem.

Seu rosto suado apareceu antes, depois todo o corpo, camadas de banha mal contidas por uma camiseta azul justa e calça cáqui manchada de gordura. Dava para sentir o fedor dele com meus olhos — o cheiro de carne e repolho podres. Bolsas de suor formavam círculos irregulares sob seus braços, criando uma mancha azul-marinho.

Ele sempre me lembrava uma morsa — careca, dobras de pele sobre a sobrancelha, o queixo duplo e um bigode que parecia um salsichão polonês semicomido pendendo sobre seus lábios gordos. Os sons que emitia cada vez que respirava só contribuíam para a ilusão de um mamífero marinho.

— Oi, Alison. Se molhou um pouco, né? — Seus olhos brilharam, escuros e aquosos como carvão líquido, ao dar uma mordida em seu damasco maduro demais. O suquinho escorreu por seu queixo e ele abriu uma risadinha maliciosa. Seus incisivos, grandes demais para sua boca, exibiam-se como presas de marfim subdesenvolvidas.

Meu estômago se revirou de novo enquanto ele saía completamente para o corredor e encarava meu peito, a camiseta grudada no corpo. Ele parecia faminto, como se fosse me engolir toda. Fechei a jaqueta e tirei mechas de cabelo molhado do rosto.

— Tenho chocolate quente no fogão. Quer uma xícara? — perguntou ele.

Eu o surpreendi me encarando várias vezes, mas ele nunca antes teve coragem de me convidar para entrar. Engoli em seco e segurei com força as alças da bolsa.

— Não, a srta. Bunsby está me esperando.

— Não está, não. Teve de ir rapidinho ao mercado. — Ele me mostrou um bilhete.

Só tive tempo de ver um triângulo amassado com as palavras voltarei dentro de uma hora, antes de ele guardar o bilhete no bolso.

— Na verdade — continuou Wally —, ela me disse para lhe fazer companhia. Disse que você é nova demais para ficar sozinha sem causar problemas. Posso ir ao seu apartamento, se você quiser. — Ele balançou as chaves que pendiam do cinto, o sorriso ainda maior.

Idiota.

Eu o odiava e me odiava ainda mais por estar com medo. Já encarei monstros como ele antes. Numa família adotiva anterior, tive um irmão adotivo de catorze anos que me prendeu no porão e enfiou a língua na minha boca enquanto suas mãos subiam por sob minha camiseta. Ainda assim fui devolvida ao abrigo por morder a ponta da língua dele e quebrar seu polegar. Eu era a problemática.

Infelizmente para mim, não seria tão fácil me livrar de Wally Harcus quanto foi me livrar de um adolescente magricela.

Meus calcanhares tocaram o primeiro degrau, me detendo. Era correr ou lutar. De uma coisa eu sabia: a srta. Bunsby jamais pediria à morsa que me fizesse companhia. Ele provavelmente a viu saindo e pensou que era a chance perfeita de tentar algo. E ali estava ele entre mim e minha única rota de fuga. E, mesmo que eu me trancasse dentro do nosso apartamento, ele tinha as chaves para entrar.

Eu podia colocar algo contra a porta e ganhar tempo para descer pela escada de incêndio quebrada. Eu provavelmente cairia e morreria, mas isso seria melhor do que a alternativa.

Dei meia-volta e subi os quatro lances de escada. Dava para ouvir os passos dele me seguindo devagar, se arrastando. Ele não tinha pressa. Todos cuidavam da própria vida aqui. Ninguém o impediria, o que tornava a perseguição tão desafiadora quanto a de uma mosca já presa na teia da aranha.

Lágrimas encobriam minha visão ao chegar à porta do nosso apartamento. Um pedaço de fita adesiva pendia com um pedacinho do bilhete da srta. Bunsby no ponto onde ela o prendera, perto do olho mágico. Wally tinha pegado a cartinha que ela deixou para mim.

Engolindo em seco a bile que subia pela garganta, lutei para enfiar a chave na fechadura. A adrenalina usava meu coração como saco de pancadas, socando-o até que ele batesse incontrolavelmente no peito. Tinha acabado de conseguir entrar, fechar a porta e trancá-la, quando Wally subiu o último degrau da escada de nosso andar.

Com todo o corpo rígido, arrastei a cadeira preferida da srta. Bunsby e a coloquei sob a maçaneta, correndo para me trancar no quarto, deixando a bolsa cair junto à soleira, do lado de dentro. A tarde nublada reduzia a luminosidade do dia a uma névoa cinza e, com as cortinas pesadas cobrindo as janelas, as sombras inundavam o quarto e pintavam formas fantasmagóricas nas paredes nuas.

Chaves tilintavam do lado de fora do nosso apartamento, alto o bastante para eu ouvi-las pela porta fechada. Chorando, fui até a janela, abri as cortinas e o vidro. Uma lufada de vento e chuva soprou em meus cabelos, fazendo-os bater contra meu rosto. Lágrimas escorriam queimando meu rosto, enquanto eu passava uma das pernas pelo peitoril, prestes a me jogar.

— Tsc, tsc. Isso seria uma tragédia e um desperdício. — Um sotaque caipira marcado me deixou paralisada ali, sentada entre a vida e a morte. — Claro que sua existência vale mais que a daquele rato gordo.

Virei a cabeça em direção à voz. No canto esquerdo do meu quarto, as sombras se moviam e assumiam a silhueta clara de um homem.

Consegui falar entredentes.

— Q-quem está aí?

— Apresentações não são necessárias entre amigos. — O intruso saiu para a luz fraca, revelando um rosto ao mesmo tempo belo e assustador. Ele não era humano. Não, ele era perfeito e místico demais para isso. Marcas semelhantes a tatuagens brilhavam com cores vivas sob seus olhos escuros e fantasmagóricos. Seus cabelos azulados balançavam sem sincronia com o vento que entrava pela janela. — Acredito que mereço o título de amigo, você não acha? Considerando que da última vez você quase quebrou a cabeça ao descer por essa escada de incêndio. — Asas gigantescas surgiram atrás dos ombros dele, brilhando como seda preta sob a luz cinzenta.

Perdida entre o terror, a descrença e a esperança, trouxe a perna de volta para meu quarto e me encostei na junção entre o peitoril da janela e a parede.

— Você... então foi você. Você me salvou.

Ele alisou as luvas vermelhas que recobriam suas mãos.

— Não exatamente, Alison. Você mesma se salvou ao desafiar as leis da natureza. O simples fato de você ter tentado descer pela escada de incêndio foi digno de uma segunda chance na vida, não? A coragem misturada à estupidez se torna impulsividade, o que é uma característica admirável de onde venho, algo que deve sempre ser recompensado.

Estreitei os olhos para ele.

— Você me recompensou por minha estupidez?

Ele segurava uma cartola diante de si e a acariciava como se ela fosse um gato.

— Sua impulsividade. — Uma risada reverberou em seu peito. — Você é estranha, não é? Você não duvidou de mim ainda, nem questionou se sou real. Nem mesmo perguntou como sei seu nome. Você não se importa com nada disso, não é?

Fechei as mãos ao lado do corpo.

— Não importa se sou louca, desde que minha loucura me ajude a sobreviver.

Ele arqueou a sobrancelha, obviamente feliz e surpreso com minha resposta.

— Ah, você fala como uma verdadeira criatura do reino interior. A loucura, como qualquer outro aspecto da irracionalidade, pode ser usada como instrumento e arma nas mãos certas.

Não tive nem tempo de perguntar o que era o reino interior porque, no cômodo ao lado, os pés da cadeira arranhavam o piso de azulejo e riscavam meus nervos como garras. Wally estava no apartamento.

Minha garganta secou. Olhei para os degraus escorregadios lá fora e depois para dentro, na direção do homem alado agora de corpo inteiro junto à porta. Ele era alto e gracioso, com dezenove ou vinte anos e vestindo rendas e veludo, como um cavalheiro de outra época.

— Você é... você é o meu anjo da guarda? — Ouvi falar dessas criaturas, mas nunca acreditei que fossem reais. Naquele momento, porém, estava disposta a acreditar em qualquer coisa se isso fosse capaz de me salvar do senhorio ou de um pescoço quebrado.

Meu visitante mostrou os dentes num sorriso lindo que transformou seu rosto no parque de diversões do diabo — malícia oculta por um verniz de adorável persuasão.

— Estou bem longe de ser um anjo, meu patinho. Mas estou aqui para vê-la distribuir um pouco de sua virtude com um tolo pecador. — Ele colocou a cartola na cabeça. Mariposas mortas balançaram na aba, num tributo mórbido ao vento que soprava as cortinas. — Agora vamos nos divertir um pouco com o velho Wally, sim?


Capítulo 3


A Longa Perna
da Lei

Os passos de Wally, a Morsa, se aproximavam da minha porta.

— Não vai deixá-lo entrar, não é? — perguntei ao demônio... anjo... salvador... que seja. Ele ficou imóvel como uma estátua, as joias de seu rosto piscando em vários tons de dourado. — Você vai me ajudar uma última vez? — Uma veia latejava forte no meu pescoço e minhas cordas vocais tremiam como uma tarola.

As asas da criatura se abriram.

— Ah, não, patinho. Você mesma vai se ajudar. Afinal, você é quem tem uma linha direta com os mais antigos habitantes da Terra. Eles são mestres em outras coisas além de conversinhas, Alison. Eles têm habilidades. Você só precisa pedir uma mãozinha. — Ele apontou uma aranha de pernas longas que passava pela parede atrás dele, lançando uma sombra enorme sobre o gesso branco. — Ou oito patas. O que você preferir.

Antes que eu pudesse entender o gracejo, meu hóspede místico desapareceu numa nuvem de poeira azulada, substituído por uma mariposa do tamanho de um pássaro que se escondeu de novo nas sombras.

A mariposa da minha imagem... do desenho da mamãe.

Meu olhar se voltou para as polaroides que saíram pela abertura da bolsa. Antes de poder me ater a elas, a porta se abriu, criando uma trilha pelas memórias roubadas.

Meu estômago se revirou quando Wally entrou. Pedacinhos brilhantes de damascos estavam presos a seu bigode. Ele usou as costas da mão gorda para se limpar e quase tropeçou no meu exemplar de Alice no País das Maravilhas.

Ele o pegou e fez um barulho de desprezo.

— As aventuras de Alison no País das Maravilhas? O que há de errado com você, menina? Você é louca ou só estúpida? — O desenho da mariposa caiu do livro quando ele o balançou. Wally ficou olhando a imagem cair no chão. — Espere aí, já vi esse inseto. Estava tentando tirá-lo do prédio. Foi o que me levou à sua porta... — Wally se deteve, como se tivesse falado demais. — Afaste-se dessa janela. Isso não é nenhuma toca de coelho. Você vai tropeçar e eu terei que limpar sua bunda raquítica do asfalto.

Travei a mandíbula, imóvel.

Ele jogou o livro no chão.

— Olha, posso fazê-la suspirar ou chorar. De qualquer forma, isso vai acontecer.

Minha atenção passou de seu olhar desejoso para a parede sobre a porta. Para o desfile de aranhas saindo de um buraco atrás dele, na moldura da porta, cobrindo a parede e o teto. Havia umas trinta aranhas agora e mais delas surgiam. Será que a tempestade as despertou?

Peça uma mãozinha ou oito patas...

Talvez eu estivesse tendo alucinações. Talvez eu finalmente estivesse perdendo a cabeça, como minha mãe. Contudo, o que quer que estivesse acontecendo, tinha de usar isso em meu benefício. Não podia me mexer, e eu já tinha perdido a oportunidade de mergulhar para a morte.

— Me ajude — implorei, sem saber direito o que queria dizer com isso nem para quem estava pedindo.

— Ah, vou ajudá-la. — Em segundos, Wally me prendeu contra a parede com sua mão suada no meu pescoço. Segurei o pulso dele com ambas as mãos e enfiei minha unha com força. Ele riu, seu hálito azedo no meu rosto. — É, vou ajudá-la de verdade. Está vendo, sou o coelho branco e vou levá-la numa aventura que você jamais esquecerá, Alice.

Ele me ergueu pelo pescoço até que fiquei só na ponta dos pés. A pressão fechava minha garganta e pontos pretos começaram a surgir no meu campo de visão. Chutei-o, mas ele se desviou e, com a mão livre, começou a mexer no meu cinto.

Meus músculos abdominais se contraíram, num sinal de repulsa. Os pontos pretos aumentaram, mas não por falta de oxigênio. Virei os olhos e vi o enxame de aranhas nas paredes e no teto — centenas delas.

— Ajude-me agora — ordenei desta vez, sem hesitar. Minha única esperança era tirar Wally do apartamento com uma avalanche de aranhas levando-o escada abaixo.

A reação das aranhas foi instantânea e violenta. Wally gritou e me soltou quando o enxame começou a subir por ele, entrando em seus sapatos e escalando suas pernas. Afastei-me da janela e puxei o ar, enquanto os insetos continuavam com sua marcha, tomando conta do peito dele. Seus gritos de horror eram abafados pelos sussurros furiosos das aranhas que o recobriam. Mais aracnídeos vieram substituir aquelas que morriam. Elas chegaram ao pescoço e ao rosto de Wally, depois encheram sua boca entreaberta, silenciando seus gritos desesperados. Ele levou as mãos ao pescoço, os braços nus cobertos por mangas de pernas ágeis e tórax arfantes.

Seu nariz e seus olhos desapareceram sob a infestação crescente. Ele perdeu o equilíbrio e tentou se segurar na parede, mas errou o alvo. Caiu da janela aberta, engasgando-se durante a queda.

Paralisada, recuei até a porta do meu quarto, perdendo o fôlego ao ouvir o baque pesado do corpo dele no asfalto molhado.

Um movimento repentino no canto esquerdo do quarto me distraiu. A mariposa saiu das sombras e pousou no peitoril, observando a confusão lá embaixo. Um ataque de náusea queimava meu estômago.

— Foi um acidente — choraminguei para o inseto, como se estivesse me confessando. — Eu... não queria que isso acontecesse!

— Ah, mas eu queria. — Aquele sotaque se revirava dentro de minha mente. A voz pertencia à mariposa e ao homem. De alguma forma, eles eram a mesma coisa e de alguma forma também estavam ligados às histórias do País das Maravilhas. Minha mãe tinha entendido tudo. O que significava que ele nos observava fazia anos. Não só isso; ele levara Wally ao meu apartamento mais cedo. Foi por causa dele que o senhorio encontrou o bilhete da srta. Bunsby antes de mim. Tudo foi armado.

Eu não conseguia falar, envolvida por um furacão de confusão, surpresa e arrependimento.

— Não se preocupe com aquele rato, Alison — repreendeu-me mentalmente a voz britânica. — Há incontáveis jovens a quem ele fez mal. Coube a você resolver o problema. Desequilíbrio gera desequilíbrio. O caos é o que restabelece o equilíbrio. Haverá repercussões. Você não pertence mais a este lugar. É melhor assim. Você está destinada a muito mais do que este mundo tem a oferecer. — A mariposa voou sobre mim, pairando diante do meu rosto. — Assuma a responsabilidade. O poder é o único caminho para a felicidade, e posso ajudá-la a conquistá-lo. Meu nome é Morfeu. Encontre um espelho e me chame quando estiver pronta para viver seu destino.

Ao dizer isso, o enorme inseto virou-se e saiu pela janela.

— Espere! — gritei. Lágrimas ensopando meus olhos, me arrastei até a janela e olhei para baixo. Dois adolescentes de bicicleta que estavam ao lado do corpo de Wally olharam para cima. Pouco antes o homem estava me dominando... agora ele parecia uma boneca quebrada com braços e pernas revirados em poses incomuns até se desencaixarem do restante do corpo. As poças ao lado dele estavam manchadas de vermelho, com o sangue que vertia da parte de trás de seu crânio.

Cachorros latiam e pessoas gritavam, enquanto mais espectadores saíam do prédio. Lentamente, todos voltaram a atenção para minha janela. Vários deles apontaram para mim; alguns menearam negativamente a cabeça.

Queria correr, mas não conseguia me soltar da janela. As aranhas tinham sumido, entrando em milhares de esconderijos acessíveis somente a insetos, abandonando-me ao desejo de ter o tamanho delas, para poder desaparecer e jamais ter de enfrentar as acusações e perguntas que viriam.


Morfeu tinha razão. Não encontrei abrigo depois disso. E suspeito que tenha sido por isso que ele cuidou para que Wally encontrasse o bilhete e me perseguisse.

O departamento de proteção à infância acusou a srta. Bunsby de negligência, alegando que qualquer pessoa com minhas “tendências violentas” não deveria ser deixada sozinha enquanto ela fazia compras. Eles também disseram que eu andava faltando às aulas, o que só fez com que a srta. Bunsby parecesse mais inepta. Fui tirada dos cuidados dela na mesma noite.

Enquanto a polícia e os assistentes sociais entrevistavam a srta. Bunsby na sala, eu guardava minhas coisas, tentando evitar olhar pela janela. A srta. Bunsby tinha deixado um saco marrom de mercado na cama. Engraçado ela pensar que havia fracassado comigo. Deu para ver isso refletido em seus olhos amendoados úmidos quando ela chegou em casa depois de toda confusão. Pena que eu não podia lhe dizer a verdade. Pena que não pude dizer que ela não tinha culpa por eu ter sido cúmplice de um assassinato... que a responsabilidade foi do próprio Wally, e também de uma mariposa mística e de um enxame de aranhas.

Dentro do saco de mercado, ela colocou a câmera do marido, filme e um livro sobre revelação de fotografias. Havia ainda um pacote de biscoitos de manteiga de amendoim, uma maçã e uma garrafa de água. Senti uma dor no coração, porque sabia que podia ter sido feliz com ela, se Morfeu não tivesse outros planos para mim. No entanto, por mais que eu sofresse, me recusei a chorar. Cansei de chorar.

E nunca mais seria vítima novamente.

Ao deixar o apartamento, a srta. Bunsby prometeu tentar me visitar um dia. Eu sabia que isso não aconteceria.

Um mês se passou, cheio de avaliações psiquiátricas e exames médicos, a fim de garantir que eu não estava traumatizada. Por mais que tentassem, os médicos não podiam me considerar louca, porque eu me recusava a dar detalhes sobre o acontecido. Só disse que o senhorio tentou me agarrar, lutamos e ele caiu da janela. Simples assim.

Quando o psiquiatra exibiu os cartões com borrões para me analisar, eu nunca disse com o que eles realmente se pareciam. Não lhe disse que via tocas de coelhos, lagartas fumantes, menininhas usando aventais com facas nas mãos, homens alados, mariposas do tamanho de um papagaio ou exércitos de aranhas. Também não deixei ninguém me surpreender falando de flores e insetos que insistiam em me fazer companhia. Sabia como parecer sã.

Fiz um trabalho tão bom que tive alta sem mais avaliações depois de apenas seis semanas. O problema era que o serviço social não conseguia me colocar com outra família adotiva, considerando toda a minha bagagem. Então o abrigo se tornou minha residência permanente.

Pelo menos era o que eles pensavam. Eu não pretendia ficar ali. Planejava ir a algum lugar onde as leis e os olhos atentos deles jamais me encontrassem novamente. E sabia exatamente quem me ajudaria na fuga.

Todas aquelas semanas em terapia, adiei meu contato com Morfeu. Precisava de tempo para refletir. E cheguei a três conclusões. Primeira, minha família estava de alguma forma ligada às histórias de Lewis Carroll, o que significava que o País das Maravilhas existia em algum nível. Em segundo lugar, Morfeu também estava ligado ao País das Maravilhas e precisava de mim para algo, porque ninguém ajuda outra pessoa sem querer algo em troca. Por fim, antes de ajudá-lo, ele teria de me dar algumas coisas: uma forma de fugir do abrigo e respostas a todas as minhas perguntas.

Era difícil aguentar a solidão. O prédio cinzento tinha vários andares com quartos em todos eles. Eram como dormitórios, com três ou quatro meninas em cada quarto... ou meninos, dependendo do andar. O lugar era cercado por uma grade de ferro para manter os estranhos longe e os internos dentro. Havia apenas um portão, sempre trancado.

A lavanderia — um prédio de teto reto com janelas de ventilação instaladas bem embaixo das calhas — estava abandonada, exceto nos fins de semana, quando nos revezávamos lavando nossas roupas de acordo com o número dos nossos quartos. Concluí que seria o melhor lugar para uma reunião na noite de quarta-feira.

Saí do meu quarto, lanterna na mão, cerca de duas horas depois que as luzes se apagaram.

Encontrei um espelhinho de mão na gaveta de uma das minhas colegas de quarto e o levei dentro de uma fronha, assim como os livros de Lewis Carroll de minha mãe, um caderno de espiral e uma caneta. Ainda não sabia onde o espelho entrava, mas Morfeu insistiu que eu usasse um para chamá-lo. Como a lavanderia estava trancada, subi numa árvore ao lado e alcancei o teto usando os galhos, abri uma janelinha de ventilação e entrei, colocando primeiramente os pés. A sola da minha bota tocou uma secadora, então a queda não foi muito grande.

Cortei a escuridão com minha lanterna, revelando um chão de cimento, lavadoras e secadoras e quatro cestos de vinil. Uma mistura de pó e sabão me fez espirrar. Uns poucos bichos noturnos me receberam antes de cuidar da vida deles.

O luar entrava pelas janelinhas e iluminava o ambiente com um toque prateado cremoso. Arranjei um lugar perto da porta a fim de arrumar minhas coisas. Meu corpo seria uma barricada, no caso de alguém descobrir que eu não estava na cama e vir à minha procura. Se eu bloqueasse a entrada, isso me daria tempo extra para pensar numa desculpa.

Depois de abrir minha jaqueta no chão, como uma almofada, apoiei a lanterna contra a parede, criando um anel de luz, e então me sentei e ergui o espelho.

— Morfeu — sussurrei, e só precisei fazer isso.


Capítulo 4


Vinte Perguntas

Um brilho azul apareceu na superfície do espelho, pulsando. Mas o pulso não era apenas visual; era tátil. Eu o sentia vibrando pelo cabo. Com cuidado, coloquei o espelho no chão. Sob um brilho azulado, a agora conhecida mariposa saiu do espelho, como se estivesse esperando dentro dele o tempo todo.

Ela alçou voo e pousou numa poça de luar à minha frente. Suas asas se encolheram diante do peito e depois se abriram como as de um anjo, revelando uma pele branca e perfeita e partes ocultas meio carnavalescas, iluminadas por joias sob olhos negros. Desgrenhada pela estática mágica emanando da forma humanoide e das roupas extravagantes, uma massa de cabelos azulados na altura dos ombros esvoaçava-se em sua cabeça como se soprada por uma brisa.

Morfeu pairava sobre mim — arrumando o chapéu num ângulo ousado.

— Alison — disse ele simplesmente, e o cheiro doce de algo alcoólico veio em minha direção. — Pronta para fazer um acordo?

Ergui o dedo. Da última vez que estivemos juntos, estava distraída pelo perigo que me cercava e maravilhada com a mágica dele. Tudo isso levou ao assassinato de um homem. Nessa noite, eu daria as cartas.

— Você já brincou de Vinte Perguntas? — perguntei a ele.

Ele tombou a cabeça e deu uma risadinha, erguendo uma das asas por sobre o ombro para limpá-la.

— Deixe-me ver... É algo parecido como Responda ao Enigma?

Fiz uma cara de intrigada.

— Ãhn?

Ele abriu as asas e se sentou no meio da lavanderia, seus traços iluminados pela luz azulada que irradiava de seus cabelos e das joias sob seus olhos.

— Responda ao Enigma: não pertenço a ninguém, mas sou usado por todos. Para alguns, sou dinheiro; para outros, posso voar. Crio espaço e não ocupo espaço. Para os que nunca mudam, não mudo nada. Mas, para os que mudam, carrego o peso das areias do deserto. Quem sou eu?

Mordi o lábio. Não era fácil ignorar a vontade de competir — de provar a ele que eu era capaz de desvendar o enigma. Mas sentia que era exatamente isso que ele queria, e precisava me manter atenta aos meus objetivos.

— A bola está comigo, Morfeu. Vinte perguntas. Eu pergunto e você responde. Não vou fazer acordo antes de você satisfazer minha curiosidade. Nada de perseguir coelhos.

Ele bufou.

— Nem mesmo coelhos brancos?

Franzindo a testa, abri a sacola e peguei a caneta e o caderno.

— Nada de fugir da raia. Respostas diretas. Você quer algo de mim. Se pretende conseguir, eu é quem dou as cartas daqui por diante.

— Ora, ora. Tão jovem e tão tirânica. Gosto disso numa cúmplice. — Ele cruzou e descruzou as pernas, apoiou o queixo com as mãos e estreitou os olhos. — Com certeza, patinho. O palco é seu.

Raios azulados vazaram de sua sombra no cimento, cruzando a lavanderia em todas as direções. As lavadoras e secadoras foram ligadas e começaram a rugir e balançar.

Cerrei os dentes.

— Não sou patinho. Está vendo alguma pena em mim? Sou Alison. Nada mais, nada menos. Entendeu?

As joias sob seus olhos emitiram um cálido tom alaranjado.

— Ah, entendi. Mas você, não. Porque você é muito mais do que apenas um nome.

Franzi a testa.

— O que você quer dizer com isso?

— Todos são mais. Somos formados por forças vivas, sangue, ossos e espírito. E seu sangue é mais precioso que o dos demais.

Não conseguia pensar numa resposta, distraída demais que estava pelos motores ecoando nas paredes.

— Pare as máquinas. Preciso conseguir ouvir se alguém se aproximar.

— Temo que não. Minha mente funciona melhor ao som do caos ao fundo. E a sua precisa aprender a fazer o mesmo. E, quanto à sua privacidade, já cuidei disso. Dê uma olhadinha no espelho, frutinha.

Rangendo os dentes ao ouvir o apelido novo — que era dez vezes mais irritante que o anterior —, ergui o espelho. O reflexo fraco do meu rosto ficou borrado, mudando para um portal que mostrava o terreno ao redor da lavanderia. Pontinhos de luz flutuavam em meio às árvores e ao mato. Olhando mais perto, eu conseguia ver as formas de mulherezinhas com escamas reluzentes e asas de libélula.

Um calafrio estranho me deixou toda arrepiada — uma consciência de toda a mágica ao nosso redor que eu não sabia que era possível.

— O que são elas?

— Fadas. Apesar de pequenas, elas podem deter qualquer um que tente nos interromper. Só cuidado com onde pisa ao sair daqui. Senão, pode tropeçar em um ou dois corpos.

Arfei e deixei o espelho de lado.

— Elas os matarão? — Não podia deixar isso acontecer. Uma morte na minha consciência era o bastante.

Morfeu gargalhou.

— Deveria ter esclarecido. Corpos dormentes. Eles não estarão feridos ao acordarem, só muito satisfeitos e confusos. Mais importante, eles estarão preocupados demais com os próprios pensamentos para perceber que você esteve aqui ou para se importar. Mas, novamente, esta não é a minha vez de falar. Você tinha perguntas a me fazer, sim?

Tenho tantas perguntas mais agora.

Deixei de lado a vontade de saber tudo de uma vez, determinada a continuar focada. Peguei da fronha os livros da minha mãe e os coloquei entre nós dois, preparando-me para escrever no caderno as respostas dele.

Ele bateu palmas.

— Ah, que bom! Gosto deste joguinho. Me mostre todas as suas cartas e eu lhe mostrarei as minhas. Espere até você ver o que tenho na manga.

— Pode parar de falar? — repreendi. — Então, você e aquelas... fadas... vocês vivem no País das Maravilhas?

Seu semblante se iluminou. Ele estava obviamente ansioso por responder, mas manteve a boca bem fechada.

— Vamos logo! — insisti. — Vocês são do País das Maravilhas?

Ele permaneceu em silêncio.

— Sério?

— Você me pediu para parar de falar.

Enfiei as unhas em meus joelhos.

— Argh! Me responda!

— Uau. — Ele tirou as luvas, uma de cada vez, prazerosa e enlouquecidamente calmo. — Não precisa se exaltar. Sim... Sou do País das Maravilhas, assim como minhas adoráveis cachorrinhas lá fora.

— Isso quer dizer que — engoli em seco — o País das Maravilhas é real?

— Sim.

— E a toca do coelho também? — perguntei, com um nó na garganta.

Estudando-me na luz fraca, Morfeu fez que sim.

— Posso lhe dar um mapa. É só pedir.

Segurei o colarinho da minha camisa, tentando esconder a pulsação acelerada no pescoço.

— Que papel você exerce lá? Nunca o vi nas histórias.

Uma faixa de mágica azul saiu da ponta do seu dedo até meu exemplar de As Aventuras de “Alison” no País das Maravilhas. As correntes elétricas viraram as páginas, parando ao chegarem à ilustração da Lagarta conversando com Alice.

— Assim como sua inteligente e curiosa heroína, eu não era exatamente eu mesmo nas histórias mais antigas.

Meu olhar se voltou para o texto na página e a resposta de Alice à pergunta da Lagarta sobre a identidade dela: Infelizmente não posso explicar, senhor. Porque não sou eu mesma, entende?

Engoli em seco, a verdade me atingindo como um tapa na cara.

— Você é a Lagarta... depois de sair do casulo.

Morfeu fez uma cara feia, como se ofendido.

— Mariposas e borboletas não apenas eclodem de casulos. Elas se transformam. Agora você tem mais seis perguntas. Não as desperdice, frutinha.

— Espere aí... Só fiz quatro perguntas até agora.

— Tenho que discordar. — Ele mostrou as mãos numa faixa de luar, balançando os dedos e criando sombras na parede; formas incrivelmente reais para uma sombra. Algumas pareciam xícaras, outras, cogumelos, outras como rosas atingidas por baldes de tinta. — Você fez catorze perguntas, apesar de a maioria delas ser inútil. Primeiro, me perguntou se já tinha brincado de Vinte Perguntas. Bom, isso em si é uma pergunta. Depois, quando lhe propus o enigma, você disse, e estou citando, “Ãhn?”. Outra pergunta. Em seguida, depois de pedir para eu não lhe chamar de patinho, perguntou se eu via alguma pena em você e, depois, se eu “entendi”. Por fim, você perguntou o que eu estava querendo dizendo sobre você ser mais do que um nome. Sinceramente, você realmente acha que alguma dessas perguntas eram necessárias? Claro, quando você perguntou sobre as fadas, o que elas eram e se elas matariam seus tratadores de zoológico bobinhos, isso foi quase relevante.

Meus olhos queimavam.

— Não vivo num zoológico! — exclamei, furiosa.

Morfeu riu e fundiu seus fantoches de sombra num coelho saltando pela parede.

— Acrescente a isso as quatro perguntas sobre mim e meu lar, as únicas que realmente pareciam ter lá a sua importância, se me permite dizer, e você fez onze perguntas. Infelizmente, você repetiu uma delas duas vezes depois de me pedir para parar de falar, e em seguida questionou minha seriedade. Ou seja, mais três. Então só restam seis. Escolha suas palavras com sabedoria.

Reprimindo um grito, apertei a caneta na mão até me ferir.

— Tudo bem — murmurei, preparando-me para fazer mais uma pergunta que tinha medo de já ter feito antes de ele me tirar mais oportunidades. — Você entrou em contato com minha mãe, não é? Quando ela era adolescente.

As lavadoras e secadoras ficaram em silêncio, enquanto a mágica dele voltava a seu corpo e a malícia desaparecia de seus traços. Ele tirou o chapéu e o pôs no colo.

— Eu tentei, Alison. A mente dela... estava mais frágil do que eu imaginava.

Joguei o caderno no chão e me levantei.

— Você me disse que a impulsividade sempre rende uma segunda chance na vida. Então por que você não a segurou? Você me segurou! Você não poderia ter feito a mesma coisa por ela? A queda dela foi muito menor! Você poderia tê-la segurado com suas asas! — Lágrimas rolavam por meu rosto. Estava furiosa, talvez mais comigo mesma do que com ele. Prometi nunca mais chorar.

Ele ergueu a cabeça para mim de seu lugar no chão. As joias brilharam num tom de mirta, refletindo a suavidade de sua expressão. Era quase como se uma partezinha dele se solidarizasse.

— Sua mãe optou por saltar ao ar livre. Havia espectadores demais no estacionamento. Ela impossibilitou qualquer resgate. Se ao menos tivesse saltado de uma altura um pouco maior, suas próprias asas poderiam tê-la salvado. Os dois cálculos errados lhe custaram tudo.

— Não. Foi você quem lhe custou tudo. Por que você insiste em importunar minha família? — Recusei-me a pensar na ironia das palavras e esperei que ele fizesse o mesmo. Se ele inventasse alguma piadinha estúpida sobre isso, ou sugerisse que eu tinha quatro perguntas e agora só me restavam duas, eu perderia o controle. Eu o estrangularia com as próprias mãos, com ou sem mágica elétrica.

Por sorte, ele apenas balançou a cabeça e disse:

— Não sou o responsável, nem estou aqui para reparar todas as coisas erradas com as quais você teve de lidar na vida. Em vez disso, estou oferecendo uma forma de você honrar a morte da sua mãe. De você fazer as pazes com isso.

Enxuguei a umidade quente do meu rosto.

— Não quero fazer as pazes com isso! Só queria tê-la conhecido. E só tenho essas histórias estúpidas para me lembrar dela! As histórias que a mataram. — Chutei os livros na direção dele. Os livros correram pelo chão por alguns centímetros, mas não foram muito longe. Olhei para eles, desejando que saltassem no ar e o atacassem como uma ave de rapina... que tivessem bicos para bicar aqueles olhos belos e infinitos, cheios de enigmas crípticos e respostas mais crípticas ainda.

Como se pudessem ouvir meus pensamentos, dois livros levitaram, folhas agitando-se como asas. Eles se voltaram para atacá-lo, mas Morfeu estava preparado, protegido atrás de uma redoma formada por luzes azuladas.

— Um espetáculo esplêndido — comentou ele com um quê de orgulho na voz ao ajeitar o nó da gravata. — Avise-me quando terminar com seu ataque de menina mimada.

Espere aí. Eu fiz com que os livros atacassem? Eu os fiz voar? Fiquei boquiaberta.

Impossível. Os livros caíram no chão com um baque, como se meu pensamento lógico os tivesse matado.

— Eu fiz isso. — Era uma observação. Mesmo descrente, tomei o cuidado para não formular aquilo como uma pergunta. Só me restavam duas agora... escolha suas palavras com sabedoria.

Olhei para os livros caídos e Morfeu, que desativara sua mágica e estava novamente desprotegido, esperando ao luar, paciente e sombrio.

— Minha mãe, ela tinha as mesmas habilidades, não é?

Ele devolveu o chapéu à cabeça.

— Sim, mas as habilidades dela estavam adormecidas. Tentei despertá-las, mostrar-lhe nos sonhos do que ela era capaz. Tentei encorajá-la a dar vida às pinturas nas paredes. Mas antes que ela pudesse... — Ele estendeu a mão. — Bom, deixe para lá. Você deu vida àqueles livros quase sem esforço. Pense no que você pode conseguir com orientação e foco. Está vendo, você conhece, sim, sua mãe. Porque esse toque mágico era parte dela. O que ela deixou para você em seu sangue. Cabe a você escolher o que fazer com isso. Ela só queria liberdade e fuga. Alguns podem dizer que ela conseguiu isso. Mas, quanto a você, algo me diz que um final assim não satisfaria alguém com sua... garra e determinação. Então o que você quer, Alison?

Não hesitei.

— Quero sair deste mundo. — Minha voz pareceu frágil, como um sopro de ar passando por uma janela de tela, enquanto eu afundava no chão, sobre minha jaqueta. Cruzei as pernas, imitando a pose de Morfeu. — Mas também quero tanto mais...

Ele sorriu.

— Claro que quer. Você quer tudo. A coroa, o trono, súditos temerosos prostrados de joelhos a seus pés. E você deve ter tudo isso. É sua linhagem. Isso lhe foi tirado, e você recuperará tudo. Acredito que é hora de lhe mostrar meu ás, princesinha. — Ele tirou um cilindro de papel da manga do paletó e o desenrolou para eu poder ver a bela caligrafia. A tinta dourada parecia úmida, mas sabia que não estava, senão ela teria borrado. Era um reflexo da luz da lanterna.

Corta a Pedra com uma Pena, Cruza uma Floresta com um Passo, Segura o Oceano na Palma da Mão, Altera o Futuro com a Ponta dos Dedos, Derrota um Inimigo Invisível, Esmaga um Exército sob Seus Pés, Acorda os Mortos, Colhe o Poder de um Sorriso.

— Não entendo...

— São testes — respondeu ele. — Se você passar por eles, vai destronar a impostora que ocupa seu lugar e será coroada a única e verdadeira Rainha Vermelha. Você reinará sobre metade do País das Maravilhas e jamais precisará voltar a este zoológico.

Engoli em seco. Um calafrio lento percorreu meu corpo, quente e doce, como uma árvore sentindo a resina verter de seus galhos ao primeiro sinal da primavera. Era minha intuição encantada despertando. Havia um lugar ao qual pertencer. Um lugar para governar. Lá, nunca mais seria solitária e todos me obedeceriam.

— Mas como posso realizar coisas tão impossíveis?

Morfeu enrolou o papel novamente e o guardou.

— Esta é sua vigésima pergunta, e muito bem usada. A resposta está no enigma que mencionei antes. E, caso você não tenha entendido, pense nisto: qualquer interpretação pode ser alterada simplesmente olhando-se para as coisas de outra forma, de ângulos mais coloridos... vendo-se as palavras e o mundo por um caleidoscópio, não por um telescópio.

Fiz que sim, porque fazia sentido, de alguma forma hábil e absurda. Depois de todo o alerta quanto a usar minhas palavras com sabedoria, já estava começando a ver tudo de um jeito diferente: conotação versus denotação, instinto versus lógica, infinito versus...

— Tempo — sussurrei, respondendo ao enigma.

— Isso mesmo. — Ele se levantou, tirando uma chavezinha presa a uma corrente em sua lapela. Ele a segurou de modo que ela foi iluminada pelo luar. — Tempo de treiná-la, tempo de superar os testes e tempo de conquistar seus súditos.

— Quanto tempo demorará? E o que você ganha com isso? Você disse que faríamos um acordo.

— Desculpe, Alison. Suas perguntas acabaram. Tudo o que você precisa saber é que vê-la coroada é tão bom para mim quanto para você. — Ele jogou a chave para mim e eu a peguei no ar. — Nada vai atrapalhá-la, por mais que demore. Você me dará o tempo e eu lhe darei os instrumentos de que você precisa para reclamar o que lhe é de direito, para mudar tudo o que você achou que você era. E então o tempo não terá mais importância, pois você vestirá o manto da imortalidade interior. A começar hoje, mudamos seu destino.


Capítulo 5


Trilhos de Trem

A falta do barulho tranquilizador do banho acaba com minha névoa nostálgica.

Espreguiço-me e me sento na cama, olhando para a porta entreaberta de onde o vapor sai numa dança fantasmagórica. Thomas está se barbeando. A água jorra na pia, para e ele cantarola baixinho ao passar a lâmina sobre a pele. A música é a que ele costumava cantar para mim quando estávamos namorando. As palavras atravessam minha memória: um homem implorando perdão por amar demais a moça, dizendo-lhe que não queria outra, só ela para sempre, que valia a pena qualquer sofrimento para ficar com ela.

Ele levou a cabo a mensagem da música, ficou ao meu lado quando qualquer outro homem teria desistido e me abandonado. Nunca me arrependi de preferir ele ao meu destino interior. Só me arrependo de tê-lo magoado. Assim como me arrependo de quase ter tirado de Alyssa sua chance de imortalidade.

Na época achei que estava fazendo a coisa certa, ficando em silêncio para salvá-la das práticas bárbaras do País das Maravilhas. Só tinha dezesseis anos quando me deparei com a toca da Irmã Dois e vi para que finalidade ela usava crianças, mas, mesmo com aquela idade, não conseguia fechar os olhos para a tragédia ou as semelhanças: como o coveiro extraía os sonhos delas para alimentar as almas incansáveis no cemitério. Da mesma forma como fizeram comigo inomináveis monstros ao longo da minha vida — canalizando meus sonhos para seu prazer e satisfação. Todavia, ao contrário de mim, as vítimas da Irmã Dois nunca conseguiram escapar.

Ver Thomas envolto na teia dela depois de ficar preso lá por dez anos — toda a sua vida desperdiçada — mudou algo em mim. E minha traição mudou Morfeu. Foi uma trágica reação em cadeia.

Estremeço e me afasto do banheiro, olhando para meus pés descalços, a mente paralisada num tempo e lugar horríveis.

O colchão afunda-se quando Thomas se senta atrás de mim usando calça cinza e uma camisa lavanda que pende de seus ombros largos, solta e toda aberta.

— Minha Ali-ursinha. No que você está pensando? — Beija-me no pescoço, envolvendo-me com o perfume da loção pós-barba. Seus dedos cingem-me a barriga, gerando calafrios de prazer em toda a minha pele.

Sorrio e me derreto em seus lábios, minhas costas tocando seu peito nu, enquanto ele me beija embaixo da orelha.

— Em você e no agora — respondo, passando os dedos pelo tecido que lhe recobre os braços.

— Perfeito — sussurra ele. — Porque estou pensando em você e em como você é linda.

— Você aprova o vestido, então?

— Não só isso... — Sua boca cheia de malícia abre caminho até minha nuca. — Você está cheirosa também.

Dou uma risadinha, e ele sorri contra meu corpo.

— Se pretendemos ir a algum lugar hoje à noite — insisto, tentando me concentrar apesar de seus beijos suaves —, temos que sair daqui a pouco.

Ele suspira — pétalas de hálito quente se abrindo perto da minha omoplata esquerda e meu botão de asas.

— Acho que você tem razão. Principalmente porque não estamos apenas saindo. Estamos indo embora.

Olho por sobre meu ombro, para onde sua boca faz contato e deixa uma marca de sensações.

— Embora... para onde?

— Para a distante Londres. — Ele ri. Seus cabelos úmidos absorvem o sol se pondo pelas persianas, uma confusão oleosa de ondas achocolatadas. Quando ele sorri para mim assim, parece ter dezenove anos novamente.

— Você quer ir para Londres hoje. — Viro-me na cama para ajudá-lo a abotoar a camisa. É uma das minhas camisas preferidas pela maneira como a cor complementa a pele dele e como o tecido sedoso gruda em seu corpo. Passo os dedos por seu peito antes de fechar o colarinho. A esgrima diária definiu seus músculos a um novo nível, uma densidade sofisticada que só os músculos de um homem da idade dele podem adquirir. — Então... Acho que essa viagem-surpresa significa que você decidiu adiar nossa briga de espadas amanhã. Tem certeza disso? Não me leve a mal, você está em excelente forma. Só não sei se você tem pernas para uma minissaia.

Ele ri, fazendo a covinha em seu queixo encontrar uma sombra e parecer ainda mais profunda.

— Ah, voltaremos a tempo de defender nossos títulos. Vamos pegar um atalho. — Ele coloca meu colar com a chave no meu pescoço. — Nossa filha da realeza nos ofereceu seu espelho.

Abro um sorriso forçado, apesar do frio na espinha — como se aranhas com patinhas de gelo estivessem fazendo teias congeladas em cada um dos ossos. Sempre que uso as passagens nos espelhos, sinto que estou voltando ao passado e é por isso que, quando visitamos os Skeffington em Londres, insisto em irmos pelo caminho tradicional, pegando um voo comercial.

Mas hoje à noite não tenho coragem de impedir os planos dele. Posso fazer isso. Afinal, ainda estaremos no reino humano.

Houve uma época em que ansiava por entrar no espelho e descer pela toca do coelho, só para rever as paisagens e criaturas. Entretanto, depois de ficar presa lá há alguns meses, passando dias e noites no castelo de Marfim, ajudando Grenadine a conter o vazamento de lembranças, para mim chega. Estou preparada para ficar aqui pelo resto da vida, com Thomas e Alyssa. Sacio minha vontade de companhia do reino interior na Estalagem do Humphrey duas vezes por mês, quando visitamos a família de Thomas. Isso basta.

— Certo. Só me deixe terminar de me vestir. — Abaixo-me para pegar as sandálias, mas Thomas ganha de mim, ajoelhando-se aos meus pés.

— Espere um pouco — adverte ele, baixinho e com cuidado. — Este é o trabalho de um cavalheiro, princesa. — Ele ergue meus pés nus, dando um beijinho no meu calcanhar antes de calçar o sapato. Ele faz o mesmo com o outro e termina com um beijo no meu joelho, antes de pôr cuidadosamente meus pés calçados no chão.

— Meus lindos dedinhos. — Inclino-me de modo que nossas testas se toquem, a fim de poder me perder em seus olhos gentis e cálidos.

Abrindo aquele sorriso de Elvis que adoro, Thomas se levanta e me ajuda a me levantar. Ele pega um paletó esporte e minha manta de renda e me leva pelo corredor até o quarto de Alyssa. Risadas abafadas e conversas vêm da cozinha. O cheiro de queijo derretido, linguiça picante e molho marinara me dá água na boca. As crianças devem ter decidido fazer pizza em casa.

— Então vamos à Estalagem do Humphrey? — pergunto, de repente com vontade de um prato de espaguete à bolonhesa com pão de alho, alcachofra e queijo feta, meu prato preferido entre as especialidades do Hubert’s.

— Faz parte dos planos — responde Thomas. — Vamos passar a noite lá. Mas primeiro vamos a Ironbridge Gorge. — Ele mostra os cogumelos no bolso do paletó, nossos “bilhetes” para o trem da memória, antes de vesti-lo.

Franzo a testa e o ajudo a ajeitar a lapela, estudando nosso reflexo no espelho de corpo inteiro de Alyssa, uma antiguidade prateada francesa que ela encontrou num mercado de pulgas. Foi a primeira coisa que ela comprou depois do nosso retorno do País das Maravilhas, para ela poder dar uma olhada em seus súditos ao longo do dia, quando necessário.

— Não entendo. Por que iríamos a Iron Bridge? Já não vimos tudo o que tinha para ver?

— Você, não — responde Thomas, seu rosto pintado pelo pôr do sol rosado. — Sei que você ainda está cheia de arrependimentos. Vejo a dor no seu rosto todos os dias. — Ele acaricia minha testa franzida. — Já é hora de se perdoar. Já é hora de você perceber o impacto positivo que teve sobre todos nós o fato de você deixar Morfeu e o País das Maravilhas entrarem na sua vida, porque você olhou tanto para o lado negativo que perdeu a noção disso. Ontem perguntei a Alyssa sobre memórias perdidas. Ela me disse que, depois que elas são armazenadas como carga, se tornam parte do trem, mesmo depois que são vistas por quem as criou. Então vamos dar uma última olhada naqueles anos perdidos, mas, desta vez, vamos fazer isso juntos. Você precisa ver o que teria sido de nós se você não tivesse interferido.


Nossa viagem a Ironbridge Gorge é mais simples do que era quando Alyssa e eu vínhamos aqui, cada uma de nós procurando algo diferente. Com a ajuda de Jeb, ela recentemente instalou um enorme espelho no túnel da ponte. Agora, o transporte aqui é tão simples quanto passar de um espelho para outro. Não há viagem pelo interior. É uma ligação direta do quarto dela para o túnel.

Ao fazermos a travessia, candelabros — feitos de enxames de vaga-lumes presos a armações — passam como rodas-gigantes em miniatura pelo teto. Eles brilham ao longo de paredes sujas, cartazes publicitários velhos de 1956 a 1959 e uma pilha de velhos brinquedos descartados no túnel.

A despeito do nervosismo, consigo comer cogumelos o suficiente para encolher com Thomas, a fim de podermos embarcar no trenzinho de brinquedo enferrujado que leva a todos às memórias perdidas e esquecidas do País das Maravilhas.

O besouro-condutor nos espera. Ele abre a porta em que se lê Thomas Gardner e nos leva a um cômodo sem janela forrado por um tapete sob um sofá cor de creme. Um abajur todo decorado lança um brilho ameno sobre as paredes. Do outro lado, um palquinho com cortinas de veludo aguarda para exibir as memórias de Thomas.

— Por favor, sentem-se e bebam alguma coisa — oferece o besouro, mais cordial do que nunca. Muito se falou sobre as loucuras de Alyssa no mundo dos espelhos. Ela adquiriu a reputação de uma Rainha Vermelha severa, mas sábia, e isso nos assegura, como seus pais, do respeito de todo o reino interior.

Thomas e eu nos sentamos lado a lado no sofá. Há uma mesinha à esquerda e um guardanapo rendado sob um prato cheio de biscoitos com gotas de chocolate. Pego um e o ofereço a Thomas. Ele come metade, limpando as migalhas que caem em sua calça, e gesticula para eu comer o restante.

Ondas de náusea me atingem. Tento atribuir a sensação à fome e mordisco o biscoito macio e a cobertura delicada de amêndoas, ficando mais tensa quando o condutor esmurra com seu braço artrópode um botão na parede. As cortinas do palco se abrem, revelando uma tela de cinema.

— Imagine mentalmente o rosto do seu marido enquanto olha para a tela vazia e você vivenciará o passado dele como se fosse hoje. — O besouro mexe num controle que desliga a luz e então fecha a porta.

Dou a mão para Thomas. Na única vez que visitei este trem, estava espiando o passado dele sem que ele soubesse e as coisas que vi me deixaram tão horrorizada que quis escondê-las dele para sempre. Agora ele está aqui, me encorajando a olhar mais atentamente. Mesmo com o conforto da presença dele, meu nervosismo é quase sufocante.

Supero isso, lembrando-me dele como a criança que vi no dia em que vim sozinha — quando o nome dele era David Skeffington e ele tinha oito anos. Desta vez, porém, imagino-o alguns meses antes, quando ele ainda vivia com sua mãe, seu pai, duas irmãs e um irmão em Oxford.

Uma imagem aparece na tela em cores vivas e me toca. Ela me destroça — cada parte do meu corpo se desfiando —, até que me recomponho, atenta, admirando os olhinhos de David e compartilhando seus pensamentos, emoções e sensações infantis.

Ele tem uma infância feliz, cheia de momentos sentimentais... seguindo seu pai durante os trabalhos na fazenda de caprinos, brincando com suas irmãs e irmão nas colinas que cercam a casa, os passeios e piqueniques da família, as histórias antes de dormir recitadas pela voz melódica e suave da mãe. Mas, uma noite, ele é visitado por um grupo de cavaleiros imperiais usando túnicas vermelhas e brancas — os mesmos que vieram buscar o irmão dele dois anos antes.

A mãe chora com a chegada deles, gritando que os cavaleiros nunca visitam uma família pela segunda vez, mas seu pai a consola, dizendo que, por suspeitar que isso fosse acontecer, ele mesmo os convocara. Então ele leva David para um quarto escuro para ser interrogado.

Um dos cavaleiros, um homem de barba grisalha usando uma túnica vermelha e malha de ferro, abre, na escuridão, um aparelho multiespelhado. Ele aciona um botão, iluminando as molduras. Cada espelho está montado num ângulo exato para refletir o outro, provocando uma ilusão de infinito.

— Ande pelo labirinto de espelhos, menino — diz o cavaleiro. — Diga-me o que você vê.

David anda para lá e para cá, primeiramente sem ver nada além de milhares de imagens de si mesmo. Então ele vê algo se movimentando num dos reflexos distantes — a silhueta de algo inumano. Ele vira a cabeça e encontra a mesma distorção em todos os planos de vidro prateado. Com uma piscada de olho, as sombras dão lugar à claridade e um mundo estranho e assustador se abre. Pássaros feios e enormes com dois pares de asas andam pelo terreno em vez de voarem. Morcegos vermelhos duas vezes maiores do que condores passam por cima dele, caçando qualquer coisa com coragem o bastante para compartilhar o céu flamejante com suas línguas compridas e venenosas. Ele começa a recuar, mas o terror se transforma em fascinação e o seduz, enquanto criaturas menores — seres parecidos com filhotinhos coloridos na forma de flocos de neve — passeiam pelo cenário. Eles viram do avesso, suas entranhas uma bola de dentes afiados que devoram tudo pelo caminho. O sangue mancha tudo à medida que eles se banqueteiam dos pássaros de quatro asas. David faz uma cara feia, meio que esperando sujar-se com o jato quente cor de cobre, mas o massacre é contido pelos reflexos. O medo e a repugnância fecham sua garganta, mas ele observa por mais um segundo, enquanto criaturas ainda menores, parecidas com uma borboleta com cauda de escorpião, voam baixo — elegantes anjos da morte — e transformam todas as bolinhas de dentes ensanguentados em estátuas de pedra.

Numa euforia estonteante, David sai do labirinto e repassa toda a morte que viu. Os cavaleiros conversam entre si e se viram para o pai dele.

— Isso não tem precedentes: seu segundo filho também tem a visão — afirma o cavaleiro de barba grisalha. — Ele vê os pontos fracos na barreira entre o reino interior e o mundo humano com mais clareza do que o irmão. Você sabe o que isso significa, Gregor.

O pai de David faz que sim. Ele parece triste e ao mesmo tempo orgulhoso ao dar tapinhas na cabeça de David. O menino não sabe o que sentir. Mas de uma coisa ele sabe: ele não é mais considerado uma criança. Ele é um guerreiro e será treinado como tal.

Seu pai faz suas malas, eles beijam uma última vez a mãe e as irmãs em prantos e então vão viver com os tios e primos de David em Oxford, Inglaterra, na Estalagem do Humphrey. A insuportável dor sentida por ele ao dar adeus à família e à antiga vida é amenizada somente quando seu irmão mais velho, Bernie, vem recebê-los à porta.

A cena treme ao passarmos por vários meses de lições: estudando em Qualquer Outro Lugar, o mundo espelhado para onde os exilados do País das Maravilhas são banidos. Ele aprende que tal lugar está conectado ao País das Maravilhas por uma densa floresta e ao mundo humano por espelhos infinitos, e que um domo de ferro cerca a prisão, transformando quaisquer seres intraterrenos encarcerados em criaturas grotescas, caso tentem usar mágica no interior.

Durante seu treinamento, David se afunda em estudos sobre as criaturas mutantes para ter a honra de fazer parte de um grupo especial dos cavaleiros que guardam os dois portões — o portão do reino humano e o portão do País das Maravilhas. A violência e o pavor, porém, saturam de imagens vívidas e bizarras seus sonhos e pesadelos. Ainda assim ele progride, fazendo aulas de autodefesa e refinando sua linguagem — aprendendo a usar a mente como armadura quando são os enigmas a arma.

As cenas da vida de David param no restaurante de Hubert, enquanto seus pés deslizam nas cinzas do ringue, enquanto os convivas o veem aprender a bloquear um ataque vindo de cima. Sinto a pulsação de Thomas... David... acelerar, sinto sua vontade de dar orgulho ao pai, sua competitividade em relação ao irmão e aos primos e a consciência tímida de ter todos os olhos sobre si — o candidato mais jovem. Mas com o tempo ele aprende a bloquear tudo, exceto o jogo. Ele se torna confiante, gracioso e fiel, supera todos os seus oponentes — incluindo seu próprio pai — e, em seu nono aniversário, está pronto para sua primeira viagem a Qualquer Outro Lugar, a fim de sentir os segredos internos em primeira mão. A maioria dos meninos é admitida aos treze anos, mas ele merece uma iniciação precoce, não só porque aprendeu a se defender, mas também porque tem a ousadia, sabedoria e perspicácia de alguém cinco anos mais velho.

Um arco-íris vívido mancha a tela, enquanto as memórias se voltam para o caminho de David dentro de um túnel de vento esbranquiçado na forma de um tornado. O funil serve aos cavaleiros como travessia segura para o mundo prisional, já que eles são os únicos com medalhões mágicos que controlam os ventos. As lufadas tomam conta dos cabelos e das roupas de David, que é carregado com seu tio William para o portão do País das Maravilhas, onde David será iniciado nos segredos de seu posto como guardião. Impulsionado pelo medalhão no pescoço do tio, o funil se abre e os cospe, um a um, muito acima do portão trancado contra a floresta densa e o País das Maravilhas. Um gigantesco escorregador de cinzas se ergue para pegá-los e levá-los à plataforma, mantendo-os a uma distância segura do fulgurante vórtex de nada que separa o portão do terreno mundano e mantém encurralados os prisioneiros.

David observa tudo através de óculos de armação de couro, iluminados. Como esta é a primeira vez dele dentro do mundo na redoma, ele estava determinado a não perder nada, nem mesmo a viagem até lá. Seu pai cedeu e o deixou usar os óculos que ele e seu irmão usavam para proteger os olhos das cinzas e iluminar o caminho quando andavam de moto por trilhas sujas nas colinas de Oxford, à noite.

Por causa de sua visão perfeita, ele vê — enquanto seu tio é jogado para fora do túnel atrás dele — que a corrente mantendo o medalhão no pescoço do velho se quebra e o colar começa a cair. David estende a mão para pegá-lo. Uma vez em segurança ao lado do portão, ele devolve o colar ao tio. O velho lhe dá um tapinha nas costas e guarda o colar em sua malha de ferro.

— Um dia, você terá um medalhão. Aposto minha vida nisso. — Seu tio ri. David sorri diante do elogio.

Tio William sempre foi seu preferido... Ele cheira aos doces de canela que sua mãe costumava pôr nos pratos natalinos, ele é capaz de vencer qualquer um no xadrez e sempre tem uma bela piada para contar. Foi ele quem manteve David debaixo da asa quando seu pai teve de voltar para a fazenda. E agora ele insiste em ser o guia de David em todos os mistérios deste mundo estranho e mágico que sua família protege há séculos.

David se aproxima do portão de ferro sólido, a fim de que o Tio William possa lhe contar o segredo de como se abre caminho para o País das Maravilhas. Embutida na parte de baixo da barreira de três andares, a caixa hexagonal aparece com cinco quebra-cabeças organizados numa estrutura de boneca russa. David observa Tio William montar três deles, fazendo o portão ranger e se abrir um pouco por vez, revelando o túnel escuro atrás — um corredor pela floresta densa. Vem um cheiro forte — madeira úmida e podre. Faltando somente dois quebra-cabeças para abrir completamente o portão, Tio William fica pálido e se apoia contra o ferro. Então ele segura o peito e cai ajoelhado.

Ofegante, David se abaixa ao lado dele.

— Tio, o que houve? — Ele quer gritar, mas engoliu névoa negra demais em meio ao nada a caminho do portão. Suas cordas vocais não estão totalmente despertas, então ele continua num murmúrio. — Devo chamar o vento de novo? — Seu sussurro é indecifrável até mesmo aos próprios ouvidos.

Não importa. Seu tio não pode mais lhe responder. David é pequeno demais para carregar o corpo do Tio William até o local de pouso. E, se ele pegasse sozinho o túnel de vento à procura de ajuda, abandonaria o tio vulnerável diante do portão entreaberto. David não sabe como usar a caixa para trancar a porta. Ele pega um pombo-correio mecânico da bolsa do velho. Aquilo só é usado em emergências e deve ser enviado com uma mensagem gravada, mas, com sua voz muda, ele só pode enviar o pombo-correio sem mensagem nenhuma, na esperança de que seus parentes o vejam e saibam que algo deu errado.

Ele aciona o interruptor para acender os olhos e ativar as asas do pombo e manda-o para o céu. Mas teme estar sem tempo. A pele do seu tio já está azulada, como a cor do gelo sobre um lago.

O coração de David bate forte no peito.

Há uma coisa que ele pode fazer.

Com os olhos em chamas atrás dos óculos, David olha para o portão parcialmente aberto. Apesar de a Irmandade do Espelho ter muitas informações sobre Qualquer Outro Lugar e seus ocupantes, não foram feitos muitos estudos sobre o País das Maravilhas. Exceto pelos livros da Alice, pouco se sabe sobre os seres de lá. De todo modo, abundam rumores sobre criaturas com poderes curativos que ultrapassam a compreensão humana.

David pode não saber resolver os dois últimos quebra-cabeças, mas a abertura — pequena demais para um adulto — já está do tamanho perfeito para seu corpinho passar.

Ele hesita. Há outras histórias também, sobre as fadas. Dizem que algumas são enganadoras e fatais. Mas como é possível que elas sejam piores que os monstros deste lado do portão? E ele foi ensinado a derrotar os melhores. Com certeza seu conhecimento pode fazê-lo entrar no País das Maravilhas e sair incólume dele.

Tenso, David se levanta e passa pelo portão, antes que o medo ou a razão possam detê-lo.


Capítulo 6


Âncora

Numa reação em cadeia, assim que David passa pelo portão, este se fecha atrás dele. Seu tio estaria protegido de quaisquer criaturas perdidas do País das Maravilhas, até que o próprio mecanismo se reiniciasse com a boca para a floresta densa se abrindo e fechando. Só então o portão permitiria que alguém passasse pela mesma abertura de novo. Até mesmo David teria de encontrar um novo caminho... atravessando outra garganta da floresta densa.

Um calor de pânico queima o rosto de David. Ele se sente sozinho e com medo por um instante, antes de se lembrar de que fora treinado como cavaleiro. Seu plano daria certo. Ele só tem de encontrar uma fada com poderes de cura e fazer algum tipo de acordo. Dizem que elas colecionam quinquilharias humanas.

David tira as luvas, revelando o anel que recebera ao ser ungido: um anel de ouro puro reluzente cravejado de diamantes em sua circunferência e um enorme rubi brilhante com uma cruz branca de jade no meio. Para ele, o anel não tem preço, mas ele está disposto a dá-lo se isso significar a salvação do Tio William.

O cheiro podre detestável arde-lhe os olhos, mesmo por trás dos óculos. Ele liga as luzes em torno da armação de couro para iluminar a trilha cheia de musgos e começa a correr. Depois de uns seiscentos metros, o ar parece menos denso. Ele luta para respirar no espaço fechado e escuro. Seus óculos se embaçam, o que o faz tirá-los do rosto e posicioná-los no pescoço, de onde ainda iluminam seus passos.

Ele vira uma curva e vê uma clareira, com uma luz ainda fraca e ar fresco. Ofegante, David desliga os óculos para não ficar exposto ao sair da boca ensandecida para entrar na clareira.

Ele empunha a espada ao saltar por cima dos dentes e pousar num arbusto. O som de algo se quebrando o faz se virar para olhar para a árvore da qual saiu. A boca tenta mordê-lo. Ele se joga para trás, escapando por um triz dos dentes, que voltam para dentro do tronco a fim de formarem o que parece ser uma protuberância na casca — mas David sabe muito bem que não é nada disso.

O mato reluzente envolve suas botas enquanto ele caminha pelo punhado de arbustos, à procura de uma saída.

Alguns arbustos atrás dele balançam. Tenso, ele fica no meio da clareira, fora do alcance do mato e das árvores que o cercam, mantendo os olhos no dossel de galhos.

Os arbustos balançam novamente e ele ergue a espada, preparando-se mentalmente para os seres intraterrenos que surgiriam da floresta densa em formas estranhas e horríveis. Possivelmente uma formiga de fogo com o corpo em chamas ou um cavalo voador com embaladeiras de madeira afixadas às seis patas.

Em vez disso, um grito irrompe do outro lado dos arbustos, seguido por uma confusão de vozes histéricas diminutas, ainda mais estranhas por causa da brincadeira infantil delas.

— Estupidezez! Estúpido, estúpido, estúpido! Ela né quinem fugitivos!

— Ataquiri o humanolongo!

— Sinsins! Ou vão ser nossos morotoros pescoços e cortados.

— Apostas erradas acontecem.

— Erradas ou nãoses, Twid Two pede que vocesseis fiquem parados.

— Todosos podedem sonharos!

— Ela vai pendurar vocesseis pelos pescoços... morotoros-mortoros-mortos que sejam!

David relembra suas aulas de idioma. É como latim suíno misturado com jargão sem sentido. Mas três das frases ele consegue compreender claramente. As criaturas de vozes minúsculas estão perseguindo uma fugitiva, estão preocupadas com a falta de sonhos e estão prestes a ser enforcadas.

As vozes crescem e os arbustos balançam novamente. David se esconde atrás de uma pedra enorme para observar. Ele não pode deixar que o capturem ou o machuquem... Tio William precisa que ele encontre ajuda e volte rápido. As folhas nos arbustos se abrem e algo aparece.

David perde o fôlego ao ver um menino humano nu, talvez seis anos mais velho que ele, avançar na luz amena da clareira. Ele é da cor do leite, só um emaranhado de cabelos pretos na cabeça. É como se todo o sangue tivesse vertido dele... não do seu rosto, mas de seu peito, braços e pernas. Então David percebe que o menino não está completamente nu. Seu corpo está coberto por alguma coisa — uma gosma espessa. Fibras sedosas pendem dele como tranças, como se ele estivesse sendo desfiado.

Teia de aranha?

David engole em seco, fazendo mais barulho do que esperava.

O menino se vira para ele, mas seus olhos vítreos não o veem. Sua expressão não parece ter percebido nada. Não há nenhuma expressão além de um olhar vazio e sombrio.

Uma corda de teia de aranha atinge o calcanhar do menino, derrubando-o de cara no chão. Ele resmunga algo com a boca cheia de mato — um som estranho e animalesco sem nenhum sentido —, como se ele tivesse esquecido como se fala.

As criaturinhas tagarelas surgem apressadas — cinco delas —, ainda discutindo entre si. Parecem macacos-aranha prateados de pele sem pelo. Olhos volumosos cor de níquel, sem pupila ou íris, brilham como moedas num poço dos desejos.

Uma gosma brilhante verte da pele careca. As gotas prateadas oleosas marcam seus passos como trilhas longas e finas. Todos usam minúsculos capacetes de mineiro. As luzes percorrem a clareira desorganizadamente, como bolhas reluzentes.

Ao passarem pela pedra de David, um cheiro pútrido de carne os acompanha. Eles cercam o menino caído, fazendo sons ameaçadores. Um deles tira a teia do calcanhar da vítima e a usa para amarrar-lhe as mãos nas costas. O menino exibe os dentes numa tentativa feroz e furiosa de se libertar, embora sua expressão mantenha o olhar vazio.

A criatura mais perto dele recua e ri — dentes afiados à mostra em seu rosto símio. Ela emite um som incômodo entre um ronronar e um uivo, depois salta sobre o menino, enchendo a boca dele com a teia. Os outros macacos prateados incentivam o companheiro, exultante com os sons de sufocamento do menino indefeso.

Nauseado com o espetáculo horrível, David joga os óculos no grupo para distrair as criaturas e sai do seu esconderijo.

— En garde! — grita, agitando a espada na direção das criaturas prateadas, numa tentativa de espantá-las.

Elas gritam em uníssono e correm para os galhos próximos. As lamúrias balançam as folhas, seguidas pelas luzes dos capacetes.

David abaixa a espada e se põe ao lado do menino, soltando-o das amarras.

— Vocesse não deveria ter feito isso, ser falante — alerta uma das criaturas com uma voz débil e ameaçadoramente melódica. — A jardineira deverese estare a caminhoinho. — As demais reagem rindo, balançando ainda mais os galhos, mas então fazem um silêncio incômodo, como se ouvindo algo.

Jardineira? David mantém um olho mirado nas criaturas e continua a desamarrar o menino. O Tio William geme em seu pensamento. David espera que seus outros familiares já tenham encontrado o velho. De uma coisa ele sabe: Tio William e seu pai iriam querer que ele fizesse a coisa certa. Ele jurou proteger toda a humanidade contra a magia, e este menino obviamente precisa de proteção.

Tão atento a suas batalhas internas, ele não vê a gigantesca sombra até ouvir a música assustadora:

— A dona aranha subiu pela parede — canta uma voz misteriosa do alto.

Ele sente um arrepio assim que olha para cima — tarde demais. A visão aterrorizante o deixa paralisado.

Uma aranha do tamanho de um homem pende de cabeça para baixo. A metade de cima é fêmea — o rosto translúcido com cicatrizes e arranhões ensanguentados ao longo de seus lábios roxeados, rosto, queixo e têmporas. Seus pelos prateados caem em mechas espessas, quase alcançando a cabeça de David. A parte de baixo é a de uma viúva-negra, cinco vezes maior que as bolas de ginástica que os cavalheiros usavam para ficar fortes e resistentes. Ela se equilibra num fio de teia preso aos galhos, e a teia brilha como seus famintos olhos azuis. Oito patas brilhantes de aranha envolvem a teia-âncora, algo assustador e gracioso.

David pensa em empunhar a espada, mas fica paralisado de medo e surpresa.

Ela ergue e baixa a pata esquerda e quase parece humana, exceto pelas tesouras de jardim no lugar da mão.

A jardineira. A palavra apavora David, abate-se sobre ele, trazendo-o de volta ao presente.

Snip, snip, snip. O abrir e fechar das tesouras despertam David completamente do transe. Ele recua de costas, o coração acelerado enquanto as lâminas quase atingem seu rosto.

A mulher com características de aranha desce delicadamente ao chão diante dele.

O terror sacode seu sistema nervoso — milhares de pedrinhas de gelo incendiando sua pele. Antes de poder se endireitar e correr, um jato espesso de teia o envolve dos pés à cintura, capturando sua bainha e inutilizando sua espada. David tropeça e cai no chão ao lado do menino que ele tentara salvar. O menino o encara com aqueles olhos desolados e dormentes. Com a língua ele tira a teia da boca e murmura novamente aquele mantra sem sentido, como se tentasse dizer algo a David.

O lado esquerdo do corpo de David dói por causa da queda e punhados de mato pinicam o interior de seu ouvido.

— Bom, bom — diz o aracnídeo com uma voz rouca que deixa um sabor de cobre na boca de David, como flocos de ferrugem e desespero. — Vocês doises viraram amigos? Que lindoinho.

As criaturas símias prateadas riem e saem de seus esconderijos. Numa tentativa desesperada de fugir, David enfia as mãos no mato e rasteja até o limite da mata.

Duas das criaturas saltam sobre ele e outra tira o anel de seu dedo.

— Brilhante! — grita ela, exibindo seu prêmio.

— Devolva isso — exige David, apesar de não fazer ideia de onde vem sua coragem.

Rosnando, a aranha jardineira empurra os macacos de lado com quatro patas e prende David onde ele está, dando voltas e mais voltas nele, até envolvê-lo de teia até os ombros.

— Este daí-í é um reluzente falante — provoca um captor prateado, cutucando David com um galho.

— Falante ele pode ser, meu escravo. — A mulher aracnídea se abaixa, seu hálito atingindo o rosto de David. Ele tosse, engasgando com o cheiro de terra úmida e podre. — Mas ele é um sonhador? — Sua mão direita, escondida por uma luva de borracha, toca-lhe o queixo. Como uma criança preocupada com uma casca de ferida, ela olha nos olhos dele, um estudo intenso que revira as entranhas de David. Ele sente o puxão bem lá no fundo, em profundezas maiores que a de seu coração, ossos e sangue... até libertar e expor todos os temores e esperanças mais secretos de sua alma. — Sim. Ele ser um sonhador único. E ser meu.

Diante da afirmação da bruxa aracnídea, as criaturas símias dançam, a gosma prateada delas descendo pelo rosto de David.

— Solte-nos — implora ele, olhando para o outro menino.

— Ah, negativo. — A luva de borracha lhe toca a cabeça, esfregando o cabelo no couro cabeludo. — Levar vou Irmã Dois à sua vontade. Dela um presente para mim, ele é. Ele ser vai magnífico no meu jardim. Vi coisas outras humanos não viram. Ahhh, você ter vai os sonhos mais vívidos. E pesadelos, ah, pesadelos em convulsão. — Uma baba pinga de seu lábio, o que combina com o sangue já em seu queixo. Limpa-a com a mão de tesoura, cortando-se mais uma vez.

David fica tenso dentro de seu casulo, tentando tocar a espada. Mas seus membros estão presos — imóveis.

O menino caído se lamuria e a aranha vai até ele.

— Parece que temos um substituto para você. Não foi fácil? Chega de sofrimento. — Ela tira a luva, usando os dentes para ajudar na falta de outra mão útil. A bainha de couro cede para revelar cinco caudas de escorpião se encolhendo e se esticando no lugar de dedos.

David geme ao ver algo tão repugnante.

A Irmã Dois se curva sobre o prisioneiro e abre a teia no peito dele, expondo a pele branca.

— Hora de se juntar aos outros. — Sua mão venenosa se choca com força contra o esterno do menino e o veneno verte da ponta do seu dedo; então ela atravessa os ossos até o coração.

O menino uiva e convulsiona. David grita e tenta chegar até ele, mas não consegue se mover. Em pouco tempo, o corpo do menino se encolhe e se transforma num escravo símio prateado, como os demais. Finalmente ele para de se debater e fecha seus olhos sem pupilas, seu rosto primata relaxado e uma língua negra pendendo da boca. Bolhas de gosma saem do que um dia foi carne humana e um rabo fino e comprido cresce em suas costas.

David fecha os olhos com força, tentando não gritar como um menininho. Tenha coragem, diz ele para si mesmo. Você é um cavaleiro. Mas ele está perdendo a coragem... ele está esquecendo tudo o que aprendeu. Ele só se lembra do sangue e da morte e dos dentes afiados e ferrões. Sente a mão macia e cuidadosa de sua mãe lhe acariciando a cabeça. A lembrança é destruída por um par de tesouras de jardim.

— Não tenha medo, menininho sonhador. — A Irmã Dois se volta para ele, enquanto os escravos pegam o novo membro do grupo e o levam para longe. — Você está em casa agora. Você tem irmãos e irmãs imortais aqui. Um dia, quando seus sonhos se esgotarem, você se juntará a eles. Mas, antes, alimentará minhas almas famintas e derrotadas.


— Nããão! — grito. É um grito tanto para David quanto para o menino perdido que jamais conheceremos. O menino perdido que nunca se reunirá novamente com seus entes queridos. Que agora se perdeu para sempre, até mesmo de si próprio.

Grito mais alto à medida que a teia cobre o rosto de David e ele não consegue mais gritar por si mesmo nem por ninguém.

— Nãããão!

— Alison. — Thomas me sacode pelo ombro e a cena treme e se desfaz ao meu redor, me tirando das lembranças dele e me fazendo cair de novo no sofá, aninhada pela semiescuridão que nos cerca.

Escondo meu rosto no braço de Thomas, em busca de seu perfume e calor. Lembrando-me de que ele está aqui e jamais sofrerá daquele modo novamente.

— Sinto muito mesmo.

— Não, meu amor. Você me salvou. Você não tem que pedir desculpas por nada. — Ele me abraça e me puxa para perto, esperando que meus batimentos se normalizem e eu consiga respirar novamente sem ofegar.

— A Irmã Um mentiu para mim — digo, tentando dar sentido às coisas. — Ela disse que as fadas usavam corpos de criança para alimentar as flores. Mas não era nada disso.

— Não. As fadas já foram crianças também. — Thomas suspira demoradamente, seu tórax erguendo minha cabeça com o esforço. — E elas não podem voltar àquela forma.

Meu rosto queima de raiva.

— Não consigo mais assistir a isso. Por favor, diga que é aqui que tudo termina.

Ele me aperta.

— Está tudo bem. Essa é a bênção. Algo na teia agiu como sedativo. Eu estava num transe. Não tenho lembranças da minha época na toca, porque não tive lembranças. Só tive um sonho. Mas me lembro de despertar quando você me libertou da armadilha e caí no chão. Eu me lembro de você me cobrindo.

— Sim — sussurro na escuridão. — A Irmã Um me deixou emprestar o cobertor. Era tudo o que ela podia oferecer. Ela estava apavorada com a ira da irmã gêmea. Usei a manta como maca, para me ajudar a tirá-lo dali.

— Eu me lembro disso também. Vi vislumbres de você olhando para trás para ter certeza de que eu não caí. Seus olhos eram da cor da liberdade. Ou do meu futuro. Eles eram tão cheios de dor, de determinação. E de força. — Thomas me aperta com mais força. — Então, ao acordar no ombro de Morfeu quando ele passou comigo pelo portal, você e suas asas desapareceram aos poucos. Você era transcendente... etérea. Acordar na sua cama foi como acordar de um coma de dez anos e ver um anjo. Seu rosto era conhecido, acho que por causa daqueles vislumbres de consciência. Por algum motivo, quando Marfim apagou minhas outras memórias, aqueles momentos permaneceram. Talvez porque não fossem memórias ainda. Eram mais... despertares. E, sem minhas outras lembranças, você era a única coisa que eu reconhecia. Mais tarde, me convenci de que tinha sonhado com você e as asas, mas não importava. Porque só de olhar para você, com ou sem asas, renasci.

Aninhei-me mais em seu peito para ouvir seu coração. Fechando os olhos, revivo mentalmente o momento em que nos conhecemos oficialmente, como se o estivesse vendo na tela do outro lado da sala.

Eu me sentei ao lado da cama e guardei vigília naquela noite, depois de quebrar todos os espelhos para que Morfeu não pudesse voltar ao quarto. Sabia que o tinha decepcionado. Também sabia que ele estava furioso. Mas não me importava. Só me importava de ajudar o menino na teia.

Sabendo que ele não teria identidade ao acordar, eu o batizei enquanto ele dormia. Ele me lembrava de uma pintura que vi uma vez numa das minhas casas adotivas. As pessoas eram religiosas e um retrato de São Tomás pendia sobre a lareira. Seus cabelos eram castanhos, o rosto jovem, mas marcado pela sabedoria, e seus olhos escuros eram solidários e melancólicos. Ele era o santo padroeiro das pessoas tomadas pela dúvida e, como nunca acreditei que eu tivesse um lugar no mundo humano, tomei-o como meu santo pessoal.

Contudo, ao ver o menino sonhador dormindo naquela noite no meu quarto, um menino que ajudei a salvar... um menino a quem dei um lar, sabia que jamais duvidaria do meu lugar novamente.

Nervosa e insegura, observei seus olhos castanhos se abrirem na manhã seguinte. Uma aurora cor de pêssego dançava nas paredes do quarto, animada por três galhos balançando do lado de fora da janela. Eu me perguntava se ele teria medo de mim, se ele entraria em pânico e sairia correndo. Mas, quando nossos olhares se encontraram, eu me senti — pela primeira vez em muitos anos — segura. Ele me tocou como se me conhecesse desde sempre. Considerando o tempo que ele passou sem contato humano, não hesitei em tocá-lo. Silenciosamente, segurei a mão dele e entrei sob a colcha de retalhos, acomodando-me ao seu lado. Sem falar nada, seus dedos tocaram todo o meu rosto, seu hálito doce na minha pele — um resíduo da poção do esquecimento que Marfim lhe dera. Para mim, era o cheiro da esperança e de uma nova vida. Então ele parou na minha boca, segurou meu rosto e me deu um beijo, seu toque tão terno e ainda assim tão confiante para um menino de dezenove anos que nunca tinha beijado uma menina. Foi meu primeiro beijo recíproco, o único que chegou ao meu coração e me iluminou como uma tocha desafiadora contra o vento forte. Fiquei ali no calor de seu abraço e dormimos por horas, até que o sol avançou no céu e chegou a hora de lhe dar respostas, por mais falsas que fossem.

Thomas não conseguiu falar nos primeiros meses. Ele entendia as coisas que eu dizia, mas teve de reaprender as palavras — como articulá-las e lê-las. Era como se a Irmã Dois não tivesse apenas sugado seus sonhos e imaginação, mas também toda uma vida de comunicação. Apesar de ser frustrante para ele, isso facilitou as coisas para mim e fui capaz de relacionar sua deficiência e amnésia a um acidente de carro e um ferimento na cabeça.

Agora repasso as mentiras que disse na esperança de mantê-lo são, e me pergunto como as coisas podiam ter sido diferentes se o tivesse trazido aqui para o trem, a fim de que ele visse a verdade.

Mas o passado não pode ser desfeito. Ele me perdoou e me ama, apesar de tudo.

— Só queria ter podido salvar todas aquelas crianças, como salvei você — digo, segurando a camisa de Thomas. — Ou salvar Alyssa da dor pela qual ela passou.

— Deixe disso, docinho. Você não vê quantas vidas você salvou? Não só a minha. Você e eu fomos destinados a fazer parte do País das Maravilhas. Não importa os caminhos que escolhemos. Fomos pegos naquela teia assim que nascemos. O que significa que era inevitável que nossa filha tivesse o mesmo destino e que o papel dela fosse maior que o nosso.

— Entendo isso, mas...

— Mas o que você insiste em esquecer — interrompe Thomas com cuidado — é que, sem seu papel nisso tudo, nossa menina jamais teria nascido, porque eu teria terminado como fada, constantemente em busca daquela faísca de inspiração, sem nunca saber exatamente o que perdi. Não consigo pensar em fim mais trágico. Você consegue?

Uma emoção nova cresce dentro de mim. Um quê de indignação virtuosa por todas as crianças humanas perdidas e aquelas que consegui salvar, uma emoção quente e avassaladora.

— Ao entrarmos no País das Maravilhas pela primeira vez — continua Thomas, segurando minha mão e levando-a ao seu coração —, você deu vida à nossa filha e uma chance de vida a todas as crianças que a Irmã Dois teria pegado e usado no futuro. O fato de Morfeu convencer Alyssa a ser rainha o fez se apaixonar por ela, o que por sua vez deu a um ser solitário e egoísta a chance de crescer e fazer algo admirável... Ela está com a gente agora por causa disso. Jeb ter desistido da sua musa em nome das crianças humanas... um menino que não teve muita infância... outro sacrifício admirável. Somos todos pessoas melhores... ou seres intraterrenos, em alguns casos... porque você teve coragem e ousadia suficientes para buscar uma vida melhor para si mesma. Por causa das suas escolhas quando era aquela menina solitária de treze anos, e novamente quando era aquela princesa virtuosa e misericordiosa de dezesseis anos, incontáveis vidas foram salvas e melhoradas. E, ao salvar o pai de Alyssa, você lhe deu uma chance de existir.

Contive o choro.

— O que lhe deu chance de criá-la. Ela é forte e incrível por causa de você. — Seguro a mão dele, fecho-a e beijo os nós dos dedos. — Obrigada por nunca ter desistido de mim ou da nossa menina. Você é nosso herói.

— Você é minha heroína, Alison. Literalmente. — Ele tira do meu rosto uma mecha que se soltou do grampo. — Quantos homens podem dizer isso da mulher que amam? Hein?

Paro de lutar contra as lágrimas. Deixo-as rolar tranquilamente por meu rosto. São lágrimas diferentes das de outros choros. São puras, terapêuticas e felizes. Divinamente felizes. A despeito da escuridão que todos enfrentamos, tenho minha família. Honrei a morte da minha mãe permitindo que outros vivessem. Como Morfeu disse uma vez... ele me deu uma chance de fazer as pazes com a morte. E agora Thomas me dá uma chance de fazer as pazes com minha vida. Tudo é como deveria ser. Finalmente.

Haveria momentos em que os pensamentos sombrios me visitariam, tenho certeza. Mas agora... agora tinha uma luz para lançar sobre eles. Um farol a me guiar.

— Chega de olhar para trás — digo para meu marido, a voz surpreendentemente firme.

— Chega de passeios de trem. — Ele acaricia meu queixo com os nós dos dedos. — Só para a frente, deste dia em diante. Aproveitando todos os momentos juntos que nos restam neste mundo. Você comigo.

— Até o derradeiro fim — falo.

Thomas enxuga minhas lágrimas.

— Feliz aniversário, Ali-ursinha. — Ele me puxa para o colo no sofá e me beija até eu perder o fôlego e ficar toda vermelha como uma noiva tímida. Depois ele me põe no chão para ajeitar minhas roupas e sussurra em meu ouvido. — Estou morrendo de fome. Que tal espaguete à bolonhesa?

Eu rio.

— Você leu meus pensamentos.

Ao sairmos do trem rumo ao espelho, ele segura minha mão. O menino na teia e o homem dos meus sonhos. Para sempre e eternamente, minha âncora.


CONTINUA

Investida & Bloqueio
— Se pretendemos sobreviver a isso, Alison, você tem que atacar a jugular. Sem. Misericórdia.
A voz grossa e autoritária de Thomas me comove e ele me ajuda a levantar, depois ajusta meus dedos ao cabo metálico da espada que havia escorregado de minha mão enluvada. Uma mistura de suor e do cheiro cítrico do sabonete por ele usado paira no ar, abafada pelo perfume das flores e da vegetação que nos cercam.
Toco o quadril no ponto onde ainda lateja por causa da queda e retomo minha posição, encarando nossos oponentes do outro lado do mato manchado de sangue: a minha, com o brilho lindo e fantasmagórico de sua pele... O de Thomas, com o corpo musculoso e os olhos verdes destemidos. As espadas prateadas deles brilham sob o sol de outono e refletem suas expressões imóveis, até que, num movimento lento como o de uma nuvem de tempestade, a curiosidade lhes cruza as feições, enquanto eles tentam prever nossa estratégia.
Meu coração bate forte, ansioso. Enxugo um pouco do suor da minha testa. Eles são mais jovens e mais rápidos, mas Thomas e eu temos a inteligência do nosso lado e uma conexão incomparável. Somos uma equipe há vinte e dois anos. Aqueles amadores não são páreos para nós.
Ignorando o calor e a irritação da minha pele sob as várias camadas de roupa, convenço meu corpo a relaxar, mas me mantenho em posição, a espada empunhada e pronta para o combate, antes de tirar a máscara do meu rosto.
Meu marido geralmente me dá dicas, gestos que só eu sou capaz de decifrar: um menear de cabeça para uma defesa, um estreitar de olhos para um bloqueio. Desta vez, porém, não preciso das instruções dele. Conheço minha oponente. Observei-a o suficiente para descobrir seus pontos fortes e seus pontos fracos. Ela me atacará pela esquerda e me defenderei com um bloqueio. A não ser que agora ela decida misturar os golpes.
Como se pensasse que me decifrou, ela me encara com seus olhos azuis penetrantes e sorri, excessivamente confiante, antes de colocar a máscara no lugar. Ela fica rígida e eu também, de modo a convidá-la a fazer o primeiro movimento.
Com reserva e graça, ela troca de pé de apoio e investe contra mim, me atacando numa tática surpresa. Atinjo a espada dela imediatamente, cedendo ao seu ritmo. Ela perde o equilíbrio e exagera na compensação, executando um golpe atrapalhado. Sua reação apressada deixa seu peito exposto.

 


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Rugindo, miro o coração dela com a ponta da espada, sentindo uma emoção intensa ao furar seu casaco branco. Ela deixa a espada de lado e põe a mão no esterno. Seus olhos se arregalam por trás da máscara. O sangue jorra pela grama e mancha meus tênis brancos.

— Mamãe? — murmura ela em choque, encolhendo-se no chão.

Levanto a máscara, tiro as luvas e me ajoelho ao lado dela, cutucando suas costelas incansavelmente.

— Diga! — grito. — Diga que sou a rainha!

Jebediah e Thomas riem ali por perto, enquanto Alyssa gargalha histericamente, balançando de costas como uma tartaruga virada de cabeça para baixo em seu casco, tentando recuperar o fôlego e escapar da minha tortura de cosquinhas. A máscara dela cai, revelando seu rosto avermelhado.

— Diga! — insisto.

— Nunca! — responde ela e segura minhas mãos, lutando comigo e me derrubando ao seu lado.

Em pouco tempo, minhas costelas doem por causa de seus dedos incansáveis e estamos nos abraçando e rindo tanto que lágrimas escorrem de nossos olhos.

— Certo. — Thomas recupera a compostura o bastante para pedir um cessar-fogo. — Os velhos ganharam, simples assim.

— Dobrados novamente — comenta Alyssa, apontando para nossas espadas flexíveis de treino. A piadinha tira uma risadinha de Jebediah, que toca na mão ensanguentada dela.

Thomas me ajuda a levantar e toco os riozinhos vermelhos do meu casaco e calças de esgrima, o líquido grudento entre meus dedos.

Meu marido me oferece uma toalha para limparmos a bagunça. Uso a minha para enxugar meu rosto e minha testa.

— Ainda acho que o sangue falso de Halloween foi um exagero — opina Jenara do balanço na varanda, onde ela e Corbin esperam para desafiar a equipe vencedora. Eles bebem limonada de um tom de rosa igual ao dos cabelos dela. Ela retorce o nariz. — Foi uma cena bem assustadora.

— Você só pode estar brincando — diz Alyssa com uma risadinha ansiosa, admirando os milhares de gotas vermelhas nas roupas e nas rosas, madressilvas e ervas prateadas no jardim. — É lindo. Assim como qualquer decoração, ela só precisa ser transformada em algo novo.

A trança loira comprida às suas costas balança como se ganhasse vida. Ela usa sua mágica para suspender as gotículas brilhantes das plantas e flores e fazer as manchas em nossas roupas se juntarem a elas. O sangue falso paira no ar e ali fica, as gotas se fundindo como chuva na vidraça, até formarem uma treliça — um arco tremeluzente vermelho que parece um vitral. Alyssa segura a mão de Jebediah e o puxa para perto. Ele ri, guiando-a na dança sob o gazebo improvisado. Seus movimentos são graciosos e sincronizados, os corpos jamais destruindo a obra de Alyssa.

Thomas tomba a cabeça num gesto de repreensão, apesar de ser impossível ignorar o orgulho em sua expressão. Se não fosse pela cerca de madeira de três metros que ele recentemente instalou para nos proteger de curiosos, é bem provável que ele não estivesse vendo o showzinho de Alyssa com tanta leveza.

Se bem que ela sempre conseguiu dominá-lo com seus encantos.

Nossa filha olha para ele, rindo, em paz e à vontade como nunca a vi em todos os seus dezessete anos.

Como resultado de seu treinamento de mágica com Morfeu em seus sonhos, ela está executando os feitiços com perfeição, sendo capaz de dar vazão a seus poderes apenas com o pensamento. É em momentos como este que vejo: a rainha mística fervilhando sob a superfície. Uma predisposição ao sangue e ao caos. Como ela ganha vida em chamas e tempestades. Como a mágica dela inspira e doma o pandemônio. Como ela encontra beleza em tudo o que é mórbido e bizarro.

É irônico. Tentei por muito tempo cultivar essas qualidades em mim, mas meu lado humano era forte demais. Nunca pretendi ser rainha. Desejava, mas não de coração.

A dança termina e, com um virar de pulso de Alyssa, as gotículas de sangue caem em câmera lenta — como flocos de uma neve macabra — e novamente repousam em nossas roupas, nas folhas e nas pétalas das quais se originaram.

Jenara bebe o restante da limonada, os cubos de gelo no copo se chocando uns contra os outros.

— Vai ser bem difícil limpar essa bagunça toda.

Alyssa dá de ombros e ri.

— Nada que um frasco de água sanitária e uma mangueira não resolvam.

— Não. Não vou usar água sanitária nesta obra-prima. — Jenara estica os braços para mostrar o casaco rosado cobrindo seu corpinho. Ela o tingiu há algumas semanas e acrescentou uma renda delicada nas mangas e no colarinho. Colocando o copo de gelo ao lado do pé de Corbin, ela sai do balanço. — Se vamos insistir no uso de sangue, vou vestir meu casaco preto.

Corbin a segura pela cintura e a puxa de volta para seu colo.

— Ah, venha cá, princesinha. Vamos derrotar os mais velhos antes mesmo de você quebrar a unha. Jeb e Al simplesmente não têm os movimentos apropriados.

Jenara sorri.

— Bem notado.

— Uha! — Num movimento fluido, Alyssa pisa na espada caída a fim de que ela fique perpendicular ao chão e bata com o cabo em sua mão espalmada. — Venha cá e diga isso na minha cara, Cor-bin-ara.

Troco olhares com meu marido e rio.

— Bela manobra, menina skatista. — Jebediah dá uma risadinha, brandindo seu florete. — Quer uma disputa sob o salgueiro? — Ele arqueia a sobrancelha.

— Você não vai durar dois segundos. — Ela abre um sorriso rápido, seu anel de noivado brilhando à luz ao passar a espada de uma mão para a outra num movimento único e fluido.

— Ah, é mesmo? — pergunta ele, para, sem aviso, erguê-la e jogá-la sobre o ombro. A espada cai no chão com um baque, e ela ri enquanto ele a leva até a árvore e derruba os dois nas folhas que pendem baixo.

Ela poderia facilmente usar seus poderes para se libertar. Mas aí é que está. Não quer se livrar dele. Nunca quis. Ele é seu parceiro humano, em todos os sentidos.

Ela e eu conversamos sobre o que significa a imortalidade... sobre como vai ser difícil quando ele tiver morrido e ela continuar viva. Ela me garantiu que pode sobreviver — apesar de seu olhar ficar distante ao imaginar isso e de seu rosto nublar-se ao pensar na situação. Contudo, acredito na devoção dela ao País das Maravilhas, e Morfeu é poderoso o bastante para ajudá-la a superar essa perda. E sei que, quando tal dia chegar, a imortalidade dela será algo estonteante. Morfeu vai cuidar dela. Ele a tratará como realeza. Ele o faria mesmo que ela não fosse uma rainha, porque admira a coragem dela.

Ela é uma guerreira e eu sou uma covarde. Meu medo de perder Thomas supera qualquer lealdade que um dia eu tive pelo reino interior. Não consigo viver sem ele por toda a eternidade. Por esse motivo, entre tantos outros, fico feliz por meu espírito não ser mágico e eu ainda ser mortal. Mesmo que viva mais que meu marido, não será por muito tempo. E me sinto segura nessa inevitabilidade.

Ver Jeb e Alyssa lutando e rindo me faz sorrir. Eles são tão parecidos com Thomas e eu quando tínhamos essa idade — cheios de esperança. A diferença é que eles têm uma chance real de conquistar tudo o que sonharam, porque não há mentiras entre eles. O País das Maravilhas é um livro aberto que ambos leram e viveram. Eles até mesmo incluíram Jenara e Corbin em seu círculo íntimo.

Só recentemente Thomas e eu tivemos a verdade para nos unir. E tenho de agradecer minha filha por nos dar essa segunda oportunidade e por me devolver minha sanidade. Fecho os olhos, escutando. Tudo o que ouço é a água de nosso chafariz e as brincadeiras de Jebediah e Alyssa. Nada da conversa dos insetos. Nada do sussurro das flores.

De acordo com meu pedido, três meses atrás, quando Thomas, Alyssa, seu noivo e eu voltamos de nossa última viagem ao País das Maravilhas, Alyssa usou seus poderes reais para pôr um ponto-final nas intermináveis conversas em meus ouvidos, e ela se certificou de que seus descendentes ouçam apenas o silêncio. Só ela agora tem uma linha direta com os insetos e as plantas. Assim como ela é a única que ainda faz, nos sonhos, visitas regulares ao reino interior.

Apesar de ainda ter meus brotos de asa e as marcas nos olhos, minhas características intraterrenas só aparecem se eu deixar. Então, pela primeira vez desde meus dezesseis anos, me sinto normal. E, pela primeira vez desde meus doze anos, lembro-me do silêncio.

Achei que sentiria falta das vozinhas que me acompanharam ao longo de toda a adolescência, vozes que se tornaram minhas confidentes quando ninguém mais ouvia; porém, não preciso mais delas como muletas. Agora tenho uma família e um marido que sabe e compartilha da minha história no País das Maravilhas.

Nunca mais ficarei sozinha.

Meus olhos se abrem e sinto os dedos firmes de Thomas se entrelaçarem aos meus, como se ele lesse meus pensamentos. Nada me dá mais segurança que a sensação da mão dele na minha.

— Divirtam-se, meninos — diz ele. — Vamos acabar por aqui. — Ele vira os olhos castanhos para mim e beija os nós dos meus dedos, provocando um arrepio que me vai do braço ao coração. — Prometi à minha constrangida esposa que sairia com ela no nosso aniversário de vinte anos. Continuaremos amanhã. — Estreita os olhos na direção de Corbin e Jenara. — A não ser que vocês dois estejam prontos para perder agora. Todos sabemos como isso vai terminar. A idade e a sabedoria sempre vencem a juventude e a irresponsabilidade. — Sua risadinha maliciosa à la Elvis é recebida por bufadas dos jovens.

— Até parece, sr. G. — fala Jenara com ar de deboche. — Amanhã... mesma hora, mesmo lugar. Eu estarei de preto. E se lembre: o perdedor tem que usar um vestidinho curto em público. Prepare-se para a maior transformação da sua vida.


Enquanto Thomas toma banho, observo-me no espelho sobre o lavabo. Uma tarefa mundana para a maioria das pessoas, mas algo que tenho evitado desde que conheci meu marido.

Finalmente, depois de todos esses anos, não preciso mais me esconder de espelhos. Não preciso mais ter medo de ver a expressão crítica de Morfeu atrás de meu reflexo.

Meu vestido é simples e elegante: renda branca com um decote nas costas e sem mangas. Uma tira de renda contrastante — cor de um cappuccino — afina minha cintura e complementa o brilho bronzeado da minha pele recém-lavada. O sutiã envolve meus seios, e a saia, meus quadris — a barra abaixo do joelho. Alyssa e Jenara me ajudaram a escolhê-lo na loja, jurando que ele era sensual o bastante para deixar Thomas de olhos arregalados. Estou ansiosa por testar a teoria.

Ficamos separados, desnecessariamente, por muito tempo. Talvez por isso ele faça com que eu me sinta como uma menininha apaixonada, porque cada momento que passamos juntos é como redescobrir tudo de novo — suas palavras gentis, seus beijos, sua risada e sua bondade.

Com um toque de blush no rosto e um quê de batom vermelho nos lábios, estou pronta. A energia e a vitalidade pulsam em meu corpo e geram faíscas sob minha pele. Meus cabelos platinados na altura dos ombros envolvem sedutoramente meu rosto, de forma que dou início à tarefa de prendê-los com grampos brilhantes.

Uma mulher prestes a sair com o marido de vinte anos de casamento... é isso que vejo. Houve um tempo, porém, em que eu não estava sozinha na nostalgia, quando qualquer superfície refletora abria as portas para o louco e caótico País das Maravilhas que eu pretendia dominar. Salvei o menino na teia daquele mundo e fiz o meu melhor para dar as costas a tudo isso quebrando todos os espelhos por perto.

Foi errado abandonar tudo sem nem uma explicação. Agora sei disso.

Fugi às minhas responsabilidades, num pacto com o próprio diabo. Então Morfeu, entrando nos sonhos da minha filha — me usando como um canal involuntário —, encontrou outra maneira de me fazer pagar. Ele apareceu para ela todas as noites durante os primeiros cinco anos de sua vida, disfarçando-se de criança — a tal ponto que virou criança de corpo e alma —, de modo a ser o amiguinho dela e conquistar seu afeto e confiança. Quando descobri, tentei reagir ao ataque mental dele com um conflito físico, a fim de protegê-la fazendo a única coisa que me era possível: ir embora.

Fecho os olhos e, por um instante, meu vestido no espelho se transforma na camisa de força que se tornou minha arma preferida.

Como pude achar que não haveria consequências por ter me escondido num hospício? Esperava que ele encontrasse outro parceiro de luta... outro Liddell para explorar, alguém que pudesse salvar-lhe a alma dessa maldição de passar a eternidade preso no covil da Irmã Dois. Para escapar ao seu destino, ele tinha de realizar a Maldição da Vermelha, coroando uma rainha da linhagem dela com a tiara de rubi, enquanto a própria Vermelha possuía o corpo da outra. Equivocadamente supus que, ao decepcioná-lo, ele seguiria em frente e encontraria outra vítima num parente distante, respeitando minha escolha.

No entanto, havia uma rachadura na minha armadura e meu adversário a penetrou. Eu deveria ter previsto. Desde que conheço Morfeu, ele nunca seguiu em frente. Não tendo seu objetivo em vista. Ele é o estrategista mais brilhante e mais paciente que jamais conheci.

O vapor do banho de Thomas nubla meu reflexo e por trás da névoa me vejo como era quando descobri os planos de Morfeu para Alyssa: aquela mãe jovem e ingênua, temendo pelo futuro da filha. Culpada por colocar a filha em perigo. Minha menininha nunca quis ser minha substituta, mas, com minha traição, foi exatamente isso que ela se tornou.

Optei por não contar a Alyssa minhas escolhas e as repercussões delas porque achava que tinha conseguido poupá-la. Mas todo aquele tempo no hospício, longe do meu marido e da minha filha, não teve importância. Nem o juramento de Morfeu de não entrar em contato com Alyssa de novo. Porque ele já tinha plantado, na mente dela, memórias dos momentos a dois, contando com a curiosidade que ela herdou de Liddell para convencê-la a procurá-lo. Aos dezesseis anos, ela encontrou a toca do coelho sozinha, exatamente como ele planejara.

Minha mão dispersa involuntariamente a lembrança e puxo uma mecha de cabelo com força demais. Sinto uma dor no couro cabeludo e faço uma careta. Rearrumando a mecha, prendo-a com um grampo.

Morfeu convenceu minha filha a conquistar a coroa que eu desejava e acabei por desprezar. Ao longo do processo, ele se salvou. Era uma responsabilidade pela qual Alyssa não tinha pedido, apesar de ela acabar por aceitá-la e até mesmo adotá-la. Ainda assim... ele a convenceu a virar rainha sem lhe contar todos os fatos.

A única coisa que me deixa feliz é saber que ele não saiu incólume. Ele pagou um preço. Um preço que jamais imaginou.

Enquanto “amadurecia” com Alyssa nos sonhos de infância dela, enquanto a observava enfrentar todos os desafios que ele lhe impunha no País das Maravilhas, Morfeu — o ser solitário e egoísta antes incapaz de amar — apaixonou-se completamente por ela. Eu não acreditaria, se não tivesse visto com meus próprios olhos. Ele sentiu a força de sua devoção quando desistiu da oportunidade de tê-la ao seu lado no reino interior. Quando ele optou por esperar, a fim de que a metade humana do coração dela pudesse se curar, até que ela fosse forte o bastante para governar o reino Vermelho eternamente.

Por causa desse sacrifício, começo a suspeitar que talvez ele não seja demoníaco. Que talvez, depois de todos esses anos, eu esteja vendo um lado dele quase vulnerável e amoroso. Um lado que ele manteve afastado de mim, a não ser por um ou dois vislumbres dos quais me esqueci ao longo dos anos.

Ainda assim não estou pronta para perdoá-lo por usar minha filha. Porque, para isso, teria de me perdoar por torná-la responsável por minhas confusões. E por mais que Thomas queira... não tenho certeza se consigo.

A vida de Alyssa sempre foi dividia ao meio por causa de mim. Ela sempre tolerou tudo com tranquilidade. Ninguém podia vê-la com seus assuntos interiores e negar que ela foi feita para ser rainha. Ela ama o mesmo mundo que acabei por odiar.

E, como amo minha filha, de alguma forma tenho de aprender a adotar aquele mundo novamente. De outro modo, nunca superarei o fato de ter deixado Morfeu e toda a loucura do País das Maravilhas entrarem em nossa vida.

Meu reflexo nebuloso me traz de volta ao aqui e agora. Passo meu perfume preferido nos ombros e pulsos — nadando em tons de maracujá e laranja —, depois maquio o nariz com pó, saindo do banheiro antes que o vapor do banho de Thomas possa borrar a maquiagem.

Coloco brincos de pérolas e um colar e bracelete combinando, depois me sento na beirada da cama e movimento os dedos do pé, me concentrando na porta fechada do nosso quarto. Sons de portas de armários e panelas batendo umas nas outras vêm do outro lado. As crianças estão na cozinha, preparando algo para o jantar. Penso em ajudá-las enquanto espero Thomas, mas não estou pronta para enfiar os pés no par de salto alto ao meu lado. O carpete é tão gostoso... fofo e farto. Em vez de ajudá-las, deito-me no edredom, abro os braços e fecho os olhos, relaxando músculos que ainda doem por causa da esgrima mais cedo.

Atenta ao ritmo da água contra o boxe do banheiro, permito-me voltar a outro dia e hora, quando tinha treze anos, olhando para o mundo tomado pela chuva. Quando aceitei o chamado interior durante um dos períodos mais tristes e solitários da minha vida.

Foi quando Morfeu se aproximou de mim e me ofereceu poder e vingança na palma de sua mão manipuladora. Foi o dia que mudaria, para sempre, quem eu iria me tornar.


Capítulo 2


Encaixotada

Vinte e seis anos antes...

A chuva batia na caixa de papelão vazia sobre minha cabeça. Eu a virei de lado e entrei nela antes da tempestade. A Lixeira ao meu lado fedia a peixe morto e fruta podre, superando os cheiros frescos de asfalto e terra molhados. Poças marcavam a rua irregular e a água jorrava das calhas que pendiam dos fundos do meu prédio de apartamentos do outro lado do beco.

Uma lufada de vento invadiu meu abrigo improvisado. Acocorei-me contra a parte de trás da caixa, colocando minha sacola atrás do pescoço como um travesseiro e segurando as páginas de Alice no País das Maravilhas a fim de eu não me perder na leitura. Algumas semanas antes, risquei o Alice no título e o substituí por Alison. Em parte era para todos saberem que o livro era meu. Mas havia mais... parte de mim queria que eu pudesse viver as mesmas aventuras... que eu de alguma forma fosse Alice e entrasse numa toca de coelho onde um mundo novo me aguardasse — um mundo onde alguém tão peculiar e deslocada quanto eu talvez se encaixasse. Um lugar do qual eu pudesse fazer parte.

Nunca fui boa em entender outras pessoas. Principalmente porque eu me mudava demais. Pelo menos era o que eu dizia para mim mesma. Não tinha nada a ver com minha dificuldade em confiar nas pessoas ou minha incapacidade de me relacionar com elas diariamente.

A leitura me dava amigos o bastante, e os livros de Lewis Carroll eram meus preferidos, sendo uma das poucas coisas que minha mãe me deixou ao morrer, pouco depois do parto. As histórias me aproximavam dela, apesar de jamais tê-la conhecido. Talvez porque, secretamente, eu entendesse como o País das Maravilhas era real para ela, considerando nosso parentesco distante com os Liddell de Londres.

Certa vez, quando eu morava num orfanato e esperava por uma família adotiva, entrei no escritório e li minha ficha. Só assim é que pude descobrir minha origem. Alice Liddell, a menina real que inspirou as histórias de Carroll, teve um filho que, antes de ir para a guerra e morrer no campo de batalha, se envolveu com uma mulher. A namoradinha dele acabou grávida e veio para os Estados Unidos a fim de criar o filho ilegítimo. O menino cresceu e teve uma filha: minha mãe, Alicia.

De alguma forma, tudo isso deixava minha mãe maluca. Minha ficha dizia que ela passou algum tempo num hospício quando adolescente, depois de pintar os personagens do País das Maravilhas em todas as paredes de casa e insistir que eles conversavam com ela nos sonhos. Quando nasci, ela saltou do segundo andar do hospital para testar as “asas de fada” que as vozes diziam que ela tinha. Ela caiu num arbusto de rosas e quebrou o pescoço.

O médico disse que ela cometeu suicídio — depressão pós-parto e luto por ter perdido meu pai meses antes, num acidente de fábrica. Qualquer que fosse o motivo, algo nunca foi explicado... as marcas do tamanho de uma moeda em suas omoplatas, grandes demais e perfeitamente separadas para terem sido causadas por espinhos.

Minha opinião? Ela tinha asas, sim. Asas que nunca brotaram. Se sou louca por pensar isso, paciência. Porque, se eu era maluca, isso significa que tínhamos uma relação. Algo em comum. Desde que ninguém ficasse sabendo.

Minha mãe também deixara para trás uma câmera polaroide — do tipo que cospe imagens prontas ao aperto de um botão. Sei como usá-la desde os cinco anos.

Abracei com mais força as fotografias que tirei da bolsa. Era algo em que me tornei boa: me esconder atrás de árvores nos parquinhos ou de carros no estacionamento de shoppings para captar momentos das famílias e amigos de outras pessoas. Gostava de me cercar deles — me protegendo, assim, da falta da minha própria família.

Arregacei a manga da minha jaqueta jeans para consultar o relógio. Só mais dez minutos e as aulas terminariam. Então eu voltaria para meu apartamento e fingiria ter passado o dia onde deveria ter estado. Apareci no início da minha última aula, ficando o suficiente para ser considerada na lista de presença, antes de “dar um passeio no banheiro” e não voltar mais. Com alguma sorte, a srta. Bunsby, minha cuidadora mais recente, jamais ficaria sabendo da minha fuga. Moro com ela só há um mês. Não queria incomodá-la e ser abandonada de novo. Apesar de ser uma viúva vegetariana de quarenta e tantos anos, ela era a melhor cuidadora que já tive.

Olhei para o sexto andar do prédio. Nosso apartamento ficava mais à esquerda, onde a escada de incêndio estava toda enferrujada, virando um esqueleto preto pendente e inútil. Eu era ótima em escalada e tentara fazia algumas semanas descer pela escada e sair à noite para uma sessão de fotografias. Escorreguei e caí.

Seis andares era uma queda e tanto. Eu deveria ter morrido ou ao menos quebrado alguns ossos. Durante a queda, porém, entrei em estado de sonho e, de alguma forma, ao acordar não tinha nenhum ferimento. Não estava nem mesmo com dor. Só tinha uma lembrança estranha de enormes asas pretas.

Mexendo nas fotos, encontrei uma no fim da pilha: uma mariposa enorme de corpo azulado e asas pretas, toda aberta numa flor entre um ângulo de sol e sombra. Lembro-me de quando a vi no parque, como se ela estivesse paralisada entre dois mundos. Tirei a foto não apenas pelo simbolismo, mas também porque já tinha visto o inseto antes. Minha mãe tinha desenhado uma mariposa como aquela numa folha de papel mantida dentro dos livros da Alice. O mais estranho é que ela também tinha feito, bem ao lado, um esboço da Alice presente nas ilustrações do País das Maravilhas. De alguma forma — em sua mente —, os dois desenhos estavam conectados. Perdi o desenho durante uma de minhas muitas mudanças. Então, ao ver aquela mariposa idêntica, ao vivo e em cores, tive de imortalizá-la com minha câmera.

Suspirando, guardei a imagem no meu livro da Alice, para marcar a página. Aquela foto era a preferida da srta. Bunsby. Ela disse que eu tinha um dom, que, se eu continuasse melhorando, ela me daria a câmera do marido — uma Yashica 44 —, assim como seus livros sobre revelação de filmes.

Ela foi um dos poucos adultos que acreditaram em mim sem me criticar. Todavia, se a srta. Bunsby soubesse que eu achava que essa mesma mariposa exercera um papel nas fantasias da minha mãe quanto ao País das Maravilhas, ela pensaria que minha imaginação era fértil demais, como meus professores e cuidadores sempre disseram. Fiz a pesquisa na biblioteca. Mariposas vivem meses, não décadas.

Pensar nisso meio que me deixou assustada. Mas também fez com que eu me sentisse especial, como se eu e minha mãe importássemos para alguém em algum lugar — o bastante para merecermos ser observadas. Não foi a primeira vez que senti que insetos e plantas estavam tentando entrar em contato comigo de um jeito que não tentavam com outras pessoas. Eu ouvia vozes desde que cheguei à puberdade, perto do meu aniversário de doze anos, há um ano. Ainda assim, sabia muito bem que não deveria compartilhar isso com ninguém, pelo risco de acabar na ala psiquiátrica, como minha mãe.

Meu estômago roncou e coloquei a mão na barriga. A srta. Bunsby serviria beterraba e caçarola de tofu hoje à noite. Só de pensar nisso minhas papilas gustativas querem sair correndo. Tive de economizar meu lanche ao máximo. O pacote de biscoitos com manteiga de amendoim que guardei do almoço estava aberto ao meu lado. Coloquei um deles na boca e o mastiguei lentamente. Migalhas se acumularam na ilustração de Alice fugindo de alguns guardas da Rainha de Copas, na esperança de manter a cabeça, de modo que as espanei dali, fazendo-as cair na minha coxa.

Uma barata surgiu de baixo das abas da caixa e subiu pela minha calça para pegar um pouco de comida sem nem sequer um “por favor” ou “obrigada”. Em minha opinião, as baratas eram os insetos mais rudes do mundo. Eu conversara com moscas e besouros que eram educados e interessantes. Mas as baratas nunca tinham muito a dizer além de resmungar por causa da falta de lixo e sujeira, agora que os seres humanos habitavam o mundo delas, alegando que os sacos de lixo e os aspiradores de pó estavam prestes a acabar com elas.

Agitei a mão, afastando o inseto. Encolhi-me mais na caixa e censurei meus maus modos.

— Estou tentando ajudá-la, sua idiota. Você quer ser esmagada? — Peguei minha bolsa, enfiando as fotos e livros dentro dela, e saí para a tempestade, correndo até o espaço entre meu prédio e a barbearia ao lado.

A única entrada era pela frente. Nosso senhorio, Wally Harcus, mantinha a porta dos fundos trancada “por segurança”. Pelo menos era o que ele dizia. Ele só queria tirar vantagem de todas as mães solteiras e menininhas que viviam em seu prédio de aluguel barato. A porta dele era a primeira do corredor, o que significava que ele tinha a situação perfeita, da perspectiva de um pervertido.

As gotas de chuva e o gelo me feriam. O tecido da minha jaqueta e da minha calça absorvia todas as gotas e eu me sentia cinco quilos mais pesada e vinte graus mais gelada assim que entrei no prédio.

Minhas mãos estavam molhadas demais para segurar a maçaneta e, por isso, a porta se fechou com um baque. Gemi ao ouvir o barulho.

Mal tinha passado pela porta de Wally quando esta se abriu. Segui lentamente pelo corredor até a escada, mantendo os olhos no homem.

Seu rosto suado apareceu antes, depois todo o corpo, camadas de banha mal contidas por uma camiseta azul justa e calça cáqui manchada de gordura. Dava para sentir o fedor dele com meus olhos — o cheiro de carne e repolho podres. Bolsas de suor formavam círculos irregulares sob seus braços, criando uma mancha azul-marinho.

Ele sempre me lembrava uma morsa — careca, dobras de pele sobre a sobrancelha, o queixo duplo e um bigode que parecia um salsichão polonês semicomido pendendo sobre seus lábios gordos. Os sons que emitia cada vez que respirava só contribuíam para a ilusão de um mamífero marinho.

— Oi, Alison. Se molhou um pouco, né? — Seus olhos brilharam, escuros e aquosos como carvão líquido, ao dar uma mordida em seu damasco maduro demais. O suquinho escorreu por seu queixo e ele abriu uma risadinha maliciosa. Seus incisivos, grandes demais para sua boca, exibiam-se como presas de marfim subdesenvolvidas.

Meu estômago se revirou de novo enquanto ele saía completamente para o corredor e encarava meu peito, a camiseta grudada no corpo. Ele parecia faminto, como se fosse me engolir toda. Fechei a jaqueta e tirei mechas de cabelo molhado do rosto.

— Tenho chocolate quente no fogão. Quer uma xícara? — perguntou ele.

Eu o surpreendi me encarando várias vezes, mas ele nunca antes teve coragem de me convidar para entrar. Engoli em seco e segurei com força as alças da bolsa.

— Não, a srta. Bunsby está me esperando.

— Não está, não. Teve de ir rapidinho ao mercado. — Ele me mostrou um bilhete.

Só tive tempo de ver um triângulo amassado com as palavras voltarei dentro de uma hora, antes de ele guardar o bilhete no bolso.

— Na verdade — continuou Wally —, ela me disse para lhe fazer companhia. Disse que você é nova demais para ficar sozinha sem causar problemas. Posso ir ao seu apartamento, se você quiser. — Ele balançou as chaves que pendiam do cinto, o sorriso ainda maior.

Idiota.

Eu o odiava e me odiava ainda mais por estar com medo. Já encarei monstros como ele antes. Numa família adotiva anterior, tive um irmão adotivo de catorze anos que me prendeu no porão e enfiou a língua na minha boca enquanto suas mãos subiam por sob minha camiseta. Ainda assim fui devolvida ao abrigo por morder a ponta da língua dele e quebrar seu polegar. Eu era a problemática.

Infelizmente para mim, não seria tão fácil me livrar de Wally Harcus quanto foi me livrar de um adolescente magricela.

Meus calcanhares tocaram o primeiro degrau, me detendo. Era correr ou lutar. De uma coisa eu sabia: a srta. Bunsby jamais pediria à morsa que me fizesse companhia. Ele provavelmente a viu saindo e pensou que era a chance perfeita de tentar algo. E ali estava ele entre mim e minha única rota de fuga. E, mesmo que eu me trancasse dentro do nosso apartamento, ele tinha as chaves para entrar.

Eu podia colocar algo contra a porta e ganhar tempo para descer pela escada de incêndio quebrada. Eu provavelmente cairia e morreria, mas isso seria melhor do que a alternativa.

Dei meia-volta e subi os quatro lances de escada. Dava para ouvir os passos dele me seguindo devagar, se arrastando. Ele não tinha pressa. Todos cuidavam da própria vida aqui. Ninguém o impediria, o que tornava a perseguição tão desafiadora quanto a de uma mosca já presa na teia da aranha.

Lágrimas encobriam minha visão ao chegar à porta do nosso apartamento. Um pedaço de fita adesiva pendia com um pedacinho do bilhete da srta. Bunsby no ponto onde ela o prendera, perto do olho mágico. Wally tinha pegado a cartinha que ela deixou para mim.

Engolindo em seco a bile que subia pela garganta, lutei para enfiar a chave na fechadura. A adrenalina usava meu coração como saco de pancadas, socando-o até que ele batesse incontrolavelmente no peito. Tinha acabado de conseguir entrar, fechar a porta e trancá-la, quando Wally subiu o último degrau da escada de nosso andar.

Com todo o corpo rígido, arrastei a cadeira preferida da srta. Bunsby e a coloquei sob a maçaneta, correndo para me trancar no quarto, deixando a bolsa cair junto à soleira, do lado de dentro. A tarde nublada reduzia a luminosidade do dia a uma névoa cinza e, com as cortinas pesadas cobrindo as janelas, as sombras inundavam o quarto e pintavam formas fantasmagóricas nas paredes nuas.

Chaves tilintavam do lado de fora do nosso apartamento, alto o bastante para eu ouvi-las pela porta fechada. Chorando, fui até a janela, abri as cortinas e o vidro. Uma lufada de vento e chuva soprou em meus cabelos, fazendo-os bater contra meu rosto. Lágrimas escorriam queimando meu rosto, enquanto eu passava uma das pernas pelo peitoril, prestes a me jogar.

— Tsc, tsc. Isso seria uma tragédia e um desperdício. — Um sotaque caipira marcado me deixou paralisada ali, sentada entre a vida e a morte. — Claro que sua existência vale mais que a daquele rato gordo.

Virei a cabeça em direção à voz. No canto esquerdo do meu quarto, as sombras se moviam e assumiam a silhueta clara de um homem.

Consegui falar entredentes.

— Q-quem está aí?

— Apresentações não são necessárias entre amigos. — O intruso saiu para a luz fraca, revelando um rosto ao mesmo tempo belo e assustador. Ele não era humano. Não, ele era perfeito e místico demais para isso. Marcas semelhantes a tatuagens brilhavam com cores vivas sob seus olhos escuros e fantasmagóricos. Seus cabelos azulados balançavam sem sincronia com o vento que entrava pela janela. — Acredito que mereço o título de amigo, você não acha? Considerando que da última vez você quase quebrou a cabeça ao descer por essa escada de incêndio. — Asas gigantescas surgiram atrás dos ombros dele, brilhando como seda preta sob a luz cinzenta.

Perdida entre o terror, a descrença e a esperança, trouxe a perna de volta para meu quarto e me encostei na junção entre o peitoril da janela e a parede.

— Você... então foi você. Você me salvou.

Ele alisou as luvas vermelhas que recobriam suas mãos.

— Não exatamente, Alison. Você mesma se salvou ao desafiar as leis da natureza. O simples fato de você ter tentado descer pela escada de incêndio foi digno de uma segunda chance na vida, não? A coragem misturada à estupidez se torna impulsividade, o que é uma característica admirável de onde venho, algo que deve sempre ser recompensado.

Estreitei os olhos para ele.

— Você me recompensou por minha estupidez?

Ele segurava uma cartola diante de si e a acariciava como se ela fosse um gato.

— Sua impulsividade. — Uma risada reverberou em seu peito. — Você é estranha, não é? Você não duvidou de mim ainda, nem questionou se sou real. Nem mesmo perguntou como sei seu nome. Você não se importa com nada disso, não é?

Fechei as mãos ao lado do corpo.

— Não importa se sou louca, desde que minha loucura me ajude a sobreviver.

Ele arqueou a sobrancelha, obviamente feliz e surpreso com minha resposta.

— Ah, você fala como uma verdadeira criatura do reino interior. A loucura, como qualquer outro aspecto da irracionalidade, pode ser usada como instrumento e arma nas mãos certas.

Não tive nem tempo de perguntar o que era o reino interior porque, no cômodo ao lado, os pés da cadeira arranhavam o piso de azulejo e riscavam meus nervos como garras. Wally estava no apartamento.

Minha garganta secou. Olhei para os degraus escorregadios lá fora e depois para dentro, na direção do homem alado agora de corpo inteiro junto à porta. Ele era alto e gracioso, com dezenove ou vinte anos e vestindo rendas e veludo, como um cavalheiro de outra época.

— Você é... você é o meu anjo da guarda? — Ouvi falar dessas criaturas, mas nunca acreditei que fossem reais. Naquele momento, porém, estava disposta a acreditar em qualquer coisa se isso fosse capaz de me salvar do senhorio ou de um pescoço quebrado.

Meu visitante mostrou os dentes num sorriso lindo que transformou seu rosto no parque de diversões do diabo — malícia oculta por um verniz de adorável persuasão.

— Estou bem longe de ser um anjo, meu patinho. Mas estou aqui para vê-la distribuir um pouco de sua virtude com um tolo pecador. — Ele colocou a cartola na cabeça. Mariposas mortas balançaram na aba, num tributo mórbido ao vento que soprava as cortinas. — Agora vamos nos divertir um pouco com o velho Wally, sim?


Capítulo 3


A Longa Perna
da Lei

Os passos de Wally, a Morsa, se aproximavam da minha porta.

— Não vai deixá-lo entrar, não é? — perguntei ao demônio... anjo... salvador... que seja. Ele ficou imóvel como uma estátua, as joias de seu rosto piscando em vários tons de dourado. — Você vai me ajudar uma última vez? — Uma veia latejava forte no meu pescoço e minhas cordas vocais tremiam como uma tarola.

As asas da criatura se abriram.

— Ah, não, patinho. Você mesma vai se ajudar. Afinal, você é quem tem uma linha direta com os mais antigos habitantes da Terra. Eles são mestres em outras coisas além de conversinhas, Alison. Eles têm habilidades. Você só precisa pedir uma mãozinha. — Ele apontou uma aranha de pernas longas que passava pela parede atrás dele, lançando uma sombra enorme sobre o gesso branco. — Ou oito patas. O que você preferir.

Antes que eu pudesse entender o gracejo, meu hóspede místico desapareceu numa nuvem de poeira azulada, substituído por uma mariposa do tamanho de um pássaro que se escondeu de novo nas sombras.

A mariposa da minha imagem... do desenho da mamãe.

Meu olhar se voltou para as polaroides que saíram pela abertura da bolsa. Antes de poder me ater a elas, a porta se abriu, criando uma trilha pelas memórias roubadas.

Meu estômago se revirou quando Wally entrou. Pedacinhos brilhantes de damascos estavam presos a seu bigode. Ele usou as costas da mão gorda para se limpar e quase tropeçou no meu exemplar de Alice no País das Maravilhas.

Ele o pegou e fez um barulho de desprezo.

— As aventuras de Alison no País das Maravilhas? O que há de errado com você, menina? Você é louca ou só estúpida? — O desenho da mariposa caiu do livro quando ele o balançou. Wally ficou olhando a imagem cair no chão. — Espere aí, já vi esse inseto. Estava tentando tirá-lo do prédio. Foi o que me levou à sua porta... — Wally se deteve, como se tivesse falado demais. — Afaste-se dessa janela. Isso não é nenhuma toca de coelho. Você vai tropeçar e eu terei que limpar sua bunda raquítica do asfalto.

Travei a mandíbula, imóvel.

Ele jogou o livro no chão.

— Olha, posso fazê-la suspirar ou chorar. De qualquer forma, isso vai acontecer.

Minha atenção passou de seu olhar desejoso para a parede sobre a porta. Para o desfile de aranhas saindo de um buraco atrás dele, na moldura da porta, cobrindo a parede e o teto. Havia umas trinta aranhas agora e mais delas surgiam. Será que a tempestade as despertou?

Peça uma mãozinha ou oito patas...

Talvez eu estivesse tendo alucinações. Talvez eu finalmente estivesse perdendo a cabeça, como minha mãe. Contudo, o que quer que estivesse acontecendo, tinha de usar isso em meu benefício. Não podia me mexer, e eu já tinha perdido a oportunidade de mergulhar para a morte.

— Me ajude — implorei, sem saber direito o que queria dizer com isso nem para quem estava pedindo.

— Ah, vou ajudá-la. — Em segundos, Wally me prendeu contra a parede com sua mão suada no meu pescoço. Segurei o pulso dele com ambas as mãos e enfiei minha unha com força. Ele riu, seu hálito azedo no meu rosto. — É, vou ajudá-la de verdade. Está vendo, sou o coelho branco e vou levá-la numa aventura que você jamais esquecerá, Alice.

Ele me ergueu pelo pescoço até que fiquei só na ponta dos pés. A pressão fechava minha garganta e pontos pretos começaram a surgir no meu campo de visão. Chutei-o, mas ele se desviou e, com a mão livre, começou a mexer no meu cinto.

Meus músculos abdominais se contraíram, num sinal de repulsa. Os pontos pretos aumentaram, mas não por falta de oxigênio. Virei os olhos e vi o enxame de aranhas nas paredes e no teto — centenas delas.

— Ajude-me agora — ordenei desta vez, sem hesitar. Minha única esperança era tirar Wally do apartamento com uma avalanche de aranhas levando-o escada abaixo.

A reação das aranhas foi instantânea e violenta. Wally gritou e me soltou quando o enxame começou a subir por ele, entrando em seus sapatos e escalando suas pernas. Afastei-me da janela e puxei o ar, enquanto os insetos continuavam com sua marcha, tomando conta do peito dele. Seus gritos de horror eram abafados pelos sussurros furiosos das aranhas que o recobriam. Mais aracnídeos vieram substituir aquelas que morriam. Elas chegaram ao pescoço e ao rosto de Wally, depois encheram sua boca entreaberta, silenciando seus gritos desesperados. Ele levou as mãos ao pescoço, os braços nus cobertos por mangas de pernas ágeis e tórax arfantes.

Seu nariz e seus olhos desapareceram sob a infestação crescente. Ele perdeu o equilíbrio e tentou se segurar na parede, mas errou o alvo. Caiu da janela aberta, engasgando-se durante a queda.

Paralisada, recuei até a porta do meu quarto, perdendo o fôlego ao ouvir o baque pesado do corpo dele no asfalto molhado.

Um movimento repentino no canto esquerdo do quarto me distraiu. A mariposa saiu das sombras e pousou no peitoril, observando a confusão lá embaixo. Um ataque de náusea queimava meu estômago.

— Foi um acidente — choraminguei para o inseto, como se estivesse me confessando. — Eu... não queria que isso acontecesse!

— Ah, mas eu queria. — Aquele sotaque se revirava dentro de minha mente. A voz pertencia à mariposa e ao homem. De alguma forma, eles eram a mesma coisa e de alguma forma também estavam ligados às histórias do País das Maravilhas. Minha mãe tinha entendido tudo. O que significava que ele nos observava fazia anos. Não só isso; ele levara Wally ao meu apartamento mais cedo. Foi por causa dele que o senhorio encontrou o bilhete da srta. Bunsby antes de mim. Tudo foi armado.

Eu não conseguia falar, envolvida por um furacão de confusão, surpresa e arrependimento.

— Não se preocupe com aquele rato, Alison — repreendeu-me mentalmente a voz britânica. — Há incontáveis jovens a quem ele fez mal. Coube a você resolver o problema. Desequilíbrio gera desequilíbrio. O caos é o que restabelece o equilíbrio. Haverá repercussões. Você não pertence mais a este lugar. É melhor assim. Você está destinada a muito mais do que este mundo tem a oferecer. — A mariposa voou sobre mim, pairando diante do meu rosto. — Assuma a responsabilidade. O poder é o único caminho para a felicidade, e posso ajudá-la a conquistá-lo. Meu nome é Morfeu. Encontre um espelho e me chame quando estiver pronta para viver seu destino.

Ao dizer isso, o enorme inseto virou-se e saiu pela janela.

— Espere! — gritei. Lágrimas ensopando meus olhos, me arrastei até a janela e olhei para baixo. Dois adolescentes de bicicleta que estavam ao lado do corpo de Wally olharam para cima. Pouco antes o homem estava me dominando... agora ele parecia uma boneca quebrada com braços e pernas revirados em poses incomuns até se desencaixarem do restante do corpo. As poças ao lado dele estavam manchadas de vermelho, com o sangue que vertia da parte de trás de seu crânio.

Cachorros latiam e pessoas gritavam, enquanto mais espectadores saíam do prédio. Lentamente, todos voltaram a atenção para minha janela. Vários deles apontaram para mim; alguns menearam negativamente a cabeça.

Queria correr, mas não conseguia me soltar da janela. As aranhas tinham sumido, entrando em milhares de esconderijos acessíveis somente a insetos, abandonando-me ao desejo de ter o tamanho delas, para poder desaparecer e jamais ter de enfrentar as acusações e perguntas que viriam.


Morfeu tinha razão. Não encontrei abrigo depois disso. E suspeito que tenha sido por isso que ele cuidou para que Wally encontrasse o bilhete e me perseguisse.

O departamento de proteção à infância acusou a srta. Bunsby de negligência, alegando que qualquer pessoa com minhas “tendências violentas” não deveria ser deixada sozinha enquanto ela fazia compras. Eles também disseram que eu andava faltando às aulas, o que só fez com que a srta. Bunsby parecesse mais inepta. Fui tirada dos cuidados dela na mesma noite.

Enquanto a polícia e os assistentes sociais entrevistavam a srta. Bunsby na sala, eu guardava minhas coisas, tentando evitar olhar pela janela. A srta. Bunsby tinha deixado um saco marrom de mercado na cama. Engraçado ela pensar que havia fracassado comigo. Deu para ver isso refletido em seus olhos amendoados úmidos quando ela chegou em casa depois de toda confusão. Pena que eu não podia lhe dizer a verdade. Pena que não pude dizer que ela não tinha culpa por eu ter sido cúmplice de um assassinato... que a responsabilidade foi do próprio Wally, e também de uma mariposa mística e de um enxame de aranhas.

Dentro do saco de mercado, ela colocou a câmera do marido, filme e um livro sobre revelação de fotografias. Havia ainda um pacote de biscoitos de manteiga de amendoim, uma maçã e uma garrafa de água. Senti uma dor no coração, porque sabia que podia ter sido feliz com ela, se Morfeu não tivesse outros planos para mim. No entanto, por mais que eu sofresse, me recusei a chorar. Cansei de chorar.

E nunca mais seria vítima novamente.

Ao deixar o apartamento, a srta. Bunsby prometeu tentar me visitar um dia. Eu sabia que isso não aconteceria.

Um mês se passou, cheio de avaliações psiquiátricas e exames médicos, a fim de garantir que eu não estava traumatizada. Por mais que tentassem, os médicos não podiam me considerar louca, porque eu me recusava a dar detalhes sobre o acontecido. Só disse que o senhorio tentou me agarrar, lutamos e ele caiu da janela. Simples assim.

Quando o psiquiatra exibiu os cartões com borrões para me analisar, eu nunca disse com o que eles realmente se pareciam. Não lhe disse que via tocas de coelhos, lagartas fumantes, menininhas usando aventais com facas nas mãos, homens alados, mariposas do tamanho de um papagaio ou exércitos de aranhas. Também não deixei ninguém me surpreender falando de flores e insetos que insistiam em me fazer companhia. Sabia como parecer sã.

Fiz um trabalho tão bom que tive alta sem mais avaliações depois de apenas seis semanas. O problema era que o serviço social não conseguia me colocar com outra família adotiva, considerando toda a minha bagagem. Então o abrigo se tornou minha residência permanente.

Pelo menos era o que eles pensavam. Eu não pretendia ficar ali. Planejava ir a algum lugar onde as leis e os olhos atentos deles jamais me encontrassem novamente. E sabia exatamente quem me ajudaria na fuga.

Todas aquelas semanas em terapia, adiei meu contato com Morfeu. Precisava de tempo para refletir. E cheguei a três conclusões. Primeira, minha família estava de alguma forma ligada às histórias de Lewis Carroll, o que significava que o País das Maravilhas existia em algum nível. Em segundo lugar, Morfeu também estava ligado ao País das Maravilhas e precisava de mim para algo, porque ninguém ajuda outra pessoa sem querer algo em troca. Por fim, antes de ajudá-lo, ele teria de me dar algumas coisas: uma forma de fugir do abrigo e respostas a todas as minhas perguntas.

Era difícil aguentar a solidão. O prédio cinzento tinha vários andares com quartos em todos eles. Eram como dormitórios, com três ou quatro meninas em cada quarto... ou meninos, dependendo do andar. O lugar era cercado por uma grade de ferro para manter os estranhos longe e os internos dentro. Havia apenas um portão, sempre trancado.

A lavanderia — um prédio de teto reto com janelas de ventilação instaladas bem embaixo das calhas — estava abandonada, exceto nos fins de semana, quando nos revezávamos lavando nossas roupas de acordo com o número dos nossos quartos. Concluí que seria o melhor lugar para uma reunião na noite de quarta-feira.

Saí do meu quarto, lanterna na mão, cerca de duas horas depois que as luzes se apagaram.

Encontrei um espelhinho de mão na gaveta de uma das minhas colegas de quarto e o levei dentro de uma fronha, assim como os livros de Lewis Carroll de minha mãe, um caderno de espiral e uma caneta. Ainda não sabia onde o espelho entrava, mas Morfeu insistiu que eu usasse um para chamá-lo. Como a lavanderia estava trancada, subi numa árvore ao lado e alcancei o teto usando os galhos, abri uma janelinha de ventilação e entrei, colocando primeiramente os pés. A sola da minha bota tocou uma secadora, então a queda não foi muito grande.

Cortei a escuridão com minha lanterna, revelando um chão de cimento, lavadoras e secadoras e quatro cestos de vinil. Uma mistura de pó e sabão me fez espirrar. Uns poucos bichos noturnos me receberam antes de cuidar da vida deles.

O luar entrava pelas janelinhas e iluminava o ambiente com um toque prateado cremoso. Arranjei um lugar perto da porta a fim de arrumar minhas coisas. Meu corpo seria uma barricada, no caso de alguém descobrir que eu não estava na cama e vir à minha procura. Se eu bloqueasse a entrada, isso me daria tempo extra para pensar numa desculpa.

Depois de abrir minha jaqueta no chão, como uma almofada, apoiei a lanterna contra a parede, criando um anel de luz, e então me sentei e ergui o espelho.

— Morfeu — sussurrei, e só precisei fazer isso.


Capítulo 4


Vinte Perguntas

Um brilho azul apareceu na superfície do espelho, pulsando. Mas o pulso não era apenas visual; era tátil. Eu o sentia vibrando pelo cabo. Com cuidado, coloquei o espelho no chão. Sob um brilho azulado, a agora conhecida mariposa saiu do espelho, como se estivesse esperando dentro dele o tempo todo.

Ela alçou voo e pousou numa poça de luar à minha frente. Suas asas se encolheram diante do peito e depois se abriram como as de um anjo, revelando uma pele branca e perfeita e partes ocultas meio carnavalescas, iluminadas por joias sob olhos negros. Desgrenhada pela estática mágica emanando da forma humanoide e das roupas extravagantes, uma massa de cabelos azulados na altura dos ombros esvoaçava-se em sua cabeça como se soprada por uma brisa.

Morfeu pairava sobre mim — arrumando o chapéu num ângulo ousado.

— Alison — disse ele simplesmente, e o cheiro doce de algo alcoólico veio em minha direção. — Pronta para fazer um acordo?

Ergui o dedo. Da última vez que estivemos juntos, estava distraída pelo perigo que me cercava e maravilhada com a mágica dele. Tudo isso levou ao assassinato de um homem. Nessa noite, eu daria as cartas.

— Você já brincou de Vinte Perguntas? — perguntei a ele.

Ele tombou a cabeça e deu uma risadinha, erguendo uma das asas por sobre o ombro para limpá-la.

— Deixe-me ver... É algo parecido como Responda ao Enigma?

Fiz uma cara de intrigada.

— Ãhn?

Ele abriu as asas e se sentou no meio da lavanderia, seus traços iluminados pela luz azulada que irradiava de seus cabelos e das joias sob seus olhos.

— Responda ao Enigma: não pertenço a ninguém, mas sou usado por todos. Para alguns, sou dinheiro; para outros, posso voar. Crio espaço e não ocupo espaço. Para os que nunca mudam, não mudo nada. Mas, para os que mudam, carrego o peso das areias do deserto. Quem sou eu?

Mordi o lábio. Não era fácil ignorar a vontade de competir — de provar a ele que eu era capaz de desvendar o enigma. Mas sentia que era exatamente isso que ele queria, e precisava me manter atenta aos meus objetivos.

— A bola está comigo, Morfeu. Vinte perguntas. Eu pergunto e você responde. Não vou fazer acordo antes de você satisfazer minha curiosidade. Nada de perseguir coelhos.

Ele bufou.

— Nem mesmo coelhos brancos?

Franzindo a testa, abri a sacola e peguei a caneta e o caderno.

— Nada de fugir da raia. Respostas diretas. Você quer algo de mim. Se pretende conseguir, eu é quem dou as cartas daqui por diante.

— Ora, ora. Tão jovem e tão tirânica. Gosto disso numa cúmplice. — Ele cruzou e descruzou as pernas, apoiou o queixo com as mãos e estreitou os olhos. — Com certeza, patinho. O palco é seu.

Raios azulados vazaram de sua sombra no cimento, cruzando a lavanderia em todas as direções. As lavadoras e secadoras foram ligadas e começaram a rugir e balançar.

Cerrei os dentes.

— Não sou patinho. Está vendo alguma pena em mim? Sou Alison. Nada mais, nada menos. Entendeu?

As joias sob seus olhos emitiram um cálido tom alaranjado.

— Ah, entendi. Mas você, não. Porque você é muito mais do que apenas um nome.

Franzi a testa.

— O que você quer dizer com isso?

— Todos são mais. Somos formados por forças vivas, sangue, ossos e espírito. E seu sangue é mais precioso que o dos demais.

Não conseguia pensar numa resposta, distraída demais que estava pelos motores ecoando nas paredes.

— Pare as máquinas. Preciso conseguir ouvir se alguém se aproximar.

— Temo que não. Minha mente funciona melhor ao som do caos ao fundo. E a sua precisa aprender a fazer o mesmo. E, quanto à sua privacidade, já cuidei disso. Dê uma olhadinha no espelho, frutinha.

Rangendo os dentes ao ouvir o apelido novo — que era dez vezes mais irritante que o anterior —, ergui o espelho. O reflexo fraco do meu rosto ficou borrado, mudando para um portal que mostrava o terreno ao redor da lavanderia. Pontinhos de luz flutuavam em meio às árvores e ao mato. Olhando mais perto, eu conseguia ver as formas de mulherezinhas com escamas reluzentes e asas de libélula.

Um calafrio estranho me deixou toda arrepiada — uma consciência de toda a mágica ao nosso redor que eu não sabia que era possível.

— O que são elas?

— Fadas. Apesar de pequenas, elas podem deter qualquer um que tente nos interromper. Só cuidado com onde pisa ao sair daqui. Senão, pode tropeçar em um ou dois corpos.

Arfei e deixei o espelho de lado.

— Elas os matarão? — Não podia deixar isso acontecer. Uma morte na minha consciência era o bastante.

Morfeu gargalhou.

— Deveria ter esclarecido. Corpos dormentes. Eles não estarão feridos ao acordarem, só muito satisfeitos e confusos. Mais importante, eles estarão preocupados demais com os próprios pensamentos para perceber que você esteve aqui ou para se importar. Mas, novamente, esta não é a minha vez de falar. Você tinha perguntas a me fazer, sim?

Tenho tantas perguntas mais agora.

Deixei de lado a vontade de saber tudo de uma vez, determinada a continuar focada. Peguei da fronha os livros da minha mãe e os coloquei entre nós dois, preparando-me para escrever no caderno as respostas dele.

Ele bateu palmas.

— Ah, que bom! Gosto deste joguinho. Me mostre todas as suas cartas e eu lhe mostrarei as minhas. Espere até você ver o que tenho na manga.

— Pode parar de falar? — repreendi. — Então, você e aquelas... fadas... vocês vivem no País das Maravilhas?

Seu semblante se iluminou. Ele estava obviamente ansioso por responder, mas manteve a boca bem fechada.

— Vamos logo! — insisti. — Vocês são do País das Maravilhas?

Ele permaneceu em silêncio.

— Sério?

— Você me pediu para parar de falar.

Enfiei as unhas em meus joelhos.

— Argh! Me responda!

— Uau. — Ele tirou as luvas, uma de cada vez, prazerosa e enlouquecidamente calmo. — Não precisa se exaltar. Sim... Sou do País das Maravilhas, assim como minhas adoráveis cachorrinhas lá fora.

— Isso quer dizer que — engoli em seco — o País das Maravilhas é real?

— Sim.

— E a toca do coelho também? — perguntei, com um nó na garganta.

Estudando-me na luz fraca, Morfeu fez que sim.

— Posso lhe dar um mapa. É só pedir.

Segurei o colarinho da minha camisa, tentando esconder a pulsação acelerada no pescoço.

— Que papel você exerce lá? Nunca o vi nas histórias.

Uma faixa de mágica azul saiu da ponta do seu dedo até meu exemplar de As Aventuras de “Alison” no País das Maravilhas. As correntes elétricas viraram as páginas, parando ao chegarem à ilustração da Lagarta conversando com Alice.

— Assim como sua inteligente e curiosa heroína, eu não era exatamente eu mesmo nas histórias mais antigas.

Meu olhar se voltou para o texto na página e a resposta de Alice à pergunta da Lagarta sobre a identidade dela: Infelizmente não posso explicar, senhor. Porque não sou eu mesma, entende?

Engoli em seco, a verdade me atingindo como um tapa na cara.

— Você é a Lagarta... depois de sair do casulo.

Morfeu fez uma cara feia, como se ofendido.

— Mariposas e borboletas não apenas eclodem de casulos. Elas se transformam. Agora você tem mais seis perguntas. Não as desperdice, frutinha.

— Espere aí... Só fiz quatro perguntas até agora.

— Tenho que discordar. — Ele mostrou as mãos numa faixa de luar, balançando os dedos e criando sombras na parede; formas incrivelmente reais para uma sombra. Algumas pareciam xícaras, outras, cogumelos, outras como rosas atingidas por baldes de tinta. — Você fez catorze perguntas, apesar de a maioria delas ser inútil. Primeiro, me perguntou se já tinha brincado de Vinte Perguntas. Bom, isso em si é uma pergunta. Depois, quando lhe propus o enigma, você disse, e estou citando, “Ãhn?”. Outra pergunta. Em seguida, depois de pedir para eu não lhe chamar de patinho, perguntou se eu via alguma pena em você e, depois, se eu “entendi”. Por fim, você perguntou o que eu estava querendo dizendo sobre você ser mais do que um nome. Sinceramente, você realmente acha que alguma dessas perguntas eram necessárias? Claro, quando você perguntou sobre as fadas, o que elas eram e se elas matariam seus tratadores de zoológico bobinhos, isso foi quase relevante.

Meus olhos queimavam.

— Não vivo num zoológico! — exclamei, furiosa.

Morfeu riu e fundiu seus fantoches de sombra num coelho saltando pela parede.

— Acrescente a isso as quatro perguntas sobre mim e meu lar, as únicas que realmente pareciam ter lá a sua importância, se me permite dizer, e você fez onze perguntas. Infelizmente, você repetiu uma delas duas vezes depois de me pedir para parar de falar, e em seguida questionou minha seriedade. Ou seja, mais três. Então só restam seis. Escolha suas palavras com sabedoria.

Reprimindo um grito, apertei a caneta na mão até me ferir.

— Tudo bem — murmurei, preparando-me para fazer mais uma pergunta que tinha medo de já ter feito antes de ele me tirar mais oportunidades. — Você entrou em contato com minha mãe, não é? Quando ela era adolescente.

As lavadoras e secadoras ficaram em silêncio, enquanto a mágica dele voltava a seu corpo e a malícia desaparecia de seus traços. Ele tirou o chapéu e o pôs no colo.

— Eu tentei, Alison. A mente dela... estava mais frágil do que eu imaginava.

Joguei o caderno no chão e me levantei.

— Você me disse que a impulsividade sempre rende uma segunda chance na vida. Então por que você não a segurou? Você me segurou! Você não poderia ter feito a mesma coisa por ela? A queda dela foi muito menor! Você poderia tê-la segurado com suas asas! — Lágrimas rolavam por meu rosto. Estava furiosa, talvez mais comigo mesma do que com ele. Prometi nunca mais chorar.

Ele ergueu a cabeça para mim de seu lugar no chão. As joias brilharam num tom de mirta, refletindo a suavidade de sua expressão. Era quase como se uma partezinha dele se solidarizasse.

— Sua mãe optou por saltar ao ar livre. Havia espectadores demais no estacionamento. Ela impossibilitou qualquer resgate. Se ao menos tivesse saltado de uma altura um pouco maior, suas próprias asas poderiam tê-la salvado. Os dois cálculos errados lhe custaram tudo.

— Não. Foi você quem lhe custou tudo. Por que você insiste em importunar minha família? — Recusei-me a pensar na ironia das palavras e esperei que ele fizesse o mesmo. Se ele inventasse alguma piadinha estúpida sobre isso, ou sugerisse que eu tinha quatro perguntas e agora só me restavam duas, eu perderia o controle. Eu o estrangularia com as próprias mãos, com ou sem mágica elétrica.

Por sorte, ele apenas balançou a cabeça e disse:

— Não sou o responsável, nem estou aqui para reparar todas as coisas erradas com as quais você teve de lidar na vida. Em vez disso, estou oferecendo uma forma de você honrar a morte da sua mãe. De você fazer as pazes com isso.

Enxuguei a umidade quente do meu rosto.

— Não quero fazer as pazes com isso! Só queria tê-la conhecido. E só tenho essas histórias estúpidas para me lembrar dela! As histórias que a mataram. — Chutei os livros na direção dele. Os livros correram pelo chão por alguns centímetros, mas não foram muito longe. Olhei para eles, desejando que saltassem no ar e o atacassem como uma ave de rapina... que tivessem bicos para bicar aqueles olhos belos e infinitos, cheios de enigmas crípticos e respostas mais crípticas ainda.

Como se pudessem ouvir meus pensamentos, dois livros levitaram, folhas agitando-se como asas. Eles se voltaram para atacá-lo, mas Morfeu estava preparado, protegido atrás de uma redoma formada por luzes azuladas.

— Um espetáculo esplêndido — comentou ele com um quê de orgulho na voz ao ajeitar o nó da gravata. — Avise-me quando terminar com seu ataque de menina mimada.

Espere aí. Eu fiz com que os livros atacassem? Eu os fiz voar? Fiquei boquiaberta.

Impossível. Os livros caíram no chão com um baque, como se meu pensamento lógico os tivesse matado.

— Eu fiz isso. — Era uma observação. Mesmo descrente, tomei o cuidado para não formular aquilo como uma pergunta. Só me restavam duas agora... escolha suas palavras com sabedoria.

Olhei para os livros caídos e Morfeu, que desativara sua mágica e estava novamente desprotegido, esperando ao luar, paciente e sombrio.

— Minha mãe, ela tinha as mesmas habilidades, não é?

Ele devolveu o chapéu à cabeça.

— Sim, mas as habilidades dela estavam adormecidas. Tentei despertá-las, mostrar-lhe nos sonhos do que ela era capaz. Tentei encorajá-la a dar vida às pinturas nas paredes. Mas antes que ela pudesse... — Ele estendeu a mão. — Bom, deixe para lá. Você deu vida àqueles livros quase sem esforço. Pense no que você pode conseguir com orientação e foco. Está vendo, você conhece, sim, sua mãe. Porque esse toque mágico era parte dela. O que ela deixou para você em seu sangue. Cabe a você escolher o que fazer com isso. Ela só queria liberdade e fuga. Alguns podem dizer que ela conseguiu isso. Mas, quanto a você, algo me diz que um final assim não satisfaria alguém com sua... garra e determinação. Então o que você quer, Alison?

Não hesitei.

— Quero sair deste mundo. — Minha voz pareceu frágil, como um sopro de ar passando por uma janela de tela, enquanto eu afundava no chão, sobre minha jaqueta. Cruzei as pernas, imitando a pose de Morfeu. — Mas também quero tanto mais...

Ele sorriu.

— Claro que quer. Você quer tudo. A coroa, o trono, súditos temerosos prostrados de joelhos a seus pés. E você deve ter tudo isso. É sua linhagem. Isso lhe foi tirado, e você recuperará tudo. Acredito que é hora de lhe mostrar meu ás, princesinha. — Ele tirou um cilindro de papel da manga do paletó e o desenrolou para eu poder ver a bela caligrafia. A tinta dourada parecia úmida, mas sabia que não estava, senão ela teria borrado. Era um reflexo da luz da lanterna.

Corta a Pedra com uma Pena, Cruza uma Floresta com um Passo, Segura o Oceano na Palma da Mão, Altera o Futuro com a Ponta dos Dedos, Derrota um Inimigo Invisível, Esmaga um Exército sob Seus Pés, Acorda os Mortos, Colhe o Poder de um Sorriso.

— Não entendo...

— São testes — respondeu ele. — Se você passar por eles, vai destronar a impostora que ocupa seu lugar e será coroada a única e verdadeira Rainha Vermelha. Você reinará sobre metade do País das Maravilhas e jamais precisará voltar a este zoológico.

Engoli em seco. Um calafrio lento percorreu meu corpo, quente e doce, como uma árvore sentindo a resina verter de seus galhos ao primeiro sinal da primavera. Era minha intuição encantada despertando. Havia um lugar ao qual pertencer. Um lugar para governar. Lá, nunca mais seria solitária e todos me obedeceriam.

— Mas como posso realizar coisas tão impossíveis?

Morfeu enrolou o papel novamente e o guardou.

— Esta é sua vigésima pergunta, e muito bem usada. A resposta está no enigma que mencionei antes. E, caso você não tenha entendido, pense nisto: qualquer interpretação pode ser alterada simplesmente olhando-se para as coisas de outra forma, de ângulos mais coloridos... vendo-se as palavras e o mundo por um caleidoscópio, não por um telescópio.

Fiz que sim, porque fazia sentido, de alguma forma hábil e absurda. Depois de todo o alerta quanto a usar minhas palavras com sabedoria, já estava começando a ver tudo de um jeito diferente: conotação versus denotação, instinto versus lógica, infinito versus...

— Tempo — sussurrei, respondendo ao enigma.

— Isso mesmo. — Ele se levantou, tirando uma chavezinha presa a uma corrente em sua lapela. Ele a segurou de modo que ela foi iluminada pelo luar. — Tempo de treiná-la, tempo de superar os testes e tempo de conquistar seus súditos.

— Quanto tempo demorará? E o que você ganha com isso? Você disse que faríamos um acordo.

— Desculpe, Alison. Suas perguntas acabaram. Tudo o que você precisa saber é que vê-la coroada é tão bom para mim quanto para você. — Ele jogou a chave para mim e eu a peguei no ar. — Nada vai atrapalhá-la, por mais que demore. Você me dará o tempo e eu lhe darei os instrumentos de que você precisa para reclamar o que lhe é de direito, para mudar tudo o que você achou que você era. E então o tempo não terá mais importância, pois você vestirá o manto da imortalidade interior. A começar hoje, mudamos seu destino.


Capítulo 5


Trilhos de Trem

A falta do barulho tranquilizador do banho acaba com minha névoa nostálgica.

Espreguiço-me e me sento na cama, olhando para a porta entreaberta de onde o vapor sai numa dança fantasmagórica. Thomas está se barbeando. A água jorra na pia, para e ele cantarola baixinho ao passar a lâmina sobre a pele. A música é a que ele costumava cantar para mim quando estávamos namorando. As palavras atravessam minha memória: um homem implorando perdão por amar demais a moça, dizendo-lhe que não queria outra, só ela para sempre, que valia a pena qualquer sofrimento para ficar com ela.

Ele levou a cabo a mensagem da música, ficou ao meu lado quando qualquer outro homem teria desistido e me abandonado. Nunca me arrependi de preferir ele ao meu destino interior. Só me arrependo de tê-lo magoado. Assim como me arrependo de quase ter tirado de Alyssa sua chance de imortalidade.

Na época achei que estava fazendo a coisa certa, ficando em silêncio para salvá-la das práticas bárbaras do País das Maravilhas. Só tinha dezesseis anos quando me deparei com a toca da Irmã Dois e vi para que finalidade ela usava crianças, mas, mesmo com aquela idade, não conseguia fechar os olhos para a tragédia ou as semelhanças: como o coveiro extraía os sonhos delas para alimentar as almas incansáveis no cemitério. Da mesma forma como fizeram comigo inomináveis monstros ao longo da minha vida — canalizando meus sonhos para seu prazer e satisfação. Todavia, ao contrário de mim, as vítimas da Irmã Dois nunca conseguiram escapar.

Ver Thomas envolto na teia dela depois de ficar preso lá por dez anos — toda a sua vida desperdiçada — mudou algo em mim. E minha traição mudou Morfeu. Foi uma trágica reação em cadeia.

Estremeço e me afasto do banheiro, olhando para meus pés descalços, a mente paralisada num tempo e lugar horríveis.

O colchão afunda-se quando Thomas se senta atrás de mim usando calça cinza e uma camisa lavanda que pende de seus ombros largos, solta e toda aberta.

— Minha Ali-ursinha. No que você está pensando? — Beija-me no pescoço, envolvendo-me com o perfume da loção pós-barba. Seus dedos cingem-me a barriga, gerando calafrios de prazer em toda a minha pele.

Sorrio e me derreto em seus lábios, minhas costas tocando seu peito nu, enquanto ele me beija embaixo da orelha.

— Em você e no agora — respondo, passando os dedos pelo tecido que lhe recobre os braços.

— Perfeito — sussurra ele. — Porque estou pensando em você e em como você é linda.

— Você aprova o vestido, então?

— Não só isso... — Sua boca cheia de malícia abre caminho até minha nuca. — Você está cheirosa também.

Dou uma risadinha, e ele sorri contra meu corpo.

— Se pretendemos ir a algum lugar hoje à noite — insisto, tentando me concentrar apesar de seus beijos suaves —, temos que sair daqui a pouco.

Ele suspira — pétalas de hálito quente se abrindo perto da minha omoplata esquerda e meu botão de asas.

— Acho que você tem razão. Principalmente porque não estamos apenas saindo. Estamos indo embora.

Olho por sobre meu ombro, para onde sua boca faz contato e deixa uma marca de sensações.

— Embora... para onde?

— Para a distante Londres. — Ele ri. Seus cabelos úmidos absorvem o sol se pondo pelas persianas, uma confusão oleosa de ondas achocolatadas. Quando ele sorri para mim assim, parece ter dezenove anos novamente.

— Você quer ir para Londres hoje. — Viro-me na cama para ajudá-lo a abotoar a camisa. É uma das minhas camisas preferidas pela maneira como a cor complementa a pele dele e como o tecido sedoso gruda em seu corpo. Passo os dedos por seu peito antes de fechar o colarinho. A esgrima diária definiu seus músculos a um novo nível, uma densidade sofisticada que só os músculos de um homem da idade dele podem adquirir. — Então... Acho que essa viagem-surpresa significa que você decidiu adiar nossa briga de espadas amanhã. Tem certeza disso? Não me leve a mal, você está em excelente forma. Só não sei se você tem pernas para uma minissaia.

Ele ri, fazendo a covinha em seu queixo encontrar uma sombra e parecer ainda mais profunda.

— Ah, voltaremos a tempo de defender nossos títulos. Vamos pegar um atalho. — Ele coloca meu colar com a chave no meu pescoço. — Nossa filha da realeza nos ofereceu seu espelho.

Abro um sorriso forçado, apesar do frio na espinha — como se aranhas com patinhas de gelo estivessem fazendo teias congeladas em cada um dos ossos. Sempre que uso as passagens nos espelhos, sinto que estou voltando ao passado e é por isso que, quando visitamos os Skeffington em Londres, insisto em irmos pelo caminho tradicional, pegando um voo comercial.

Mas hoje à noite não tenho coragem de impedir os planos dele. Posso fazer isso. Afinal, ainda estaremos no reino humano.

Houve uma época em que ansiava por entrar no espelho e descer pela toca do coelho, só para rever as paisagens e criaturas. Entretanto, depois de ficar presa lá há alguns meses, passando dias e noites no castelo de Marfim, ajudando Grenadine a conter o vazamento de lembranças, para mim chega. Estou preparada para ficar aqui pelo resto da vida, com Thomas e Alyssa. Sacio minha vontade de companhia do reino interior na Estalagem do Humphrey duas vezes por mês, quando visitamos a família de Thomas. Isso basta.

— Certo. Só me deixe terminar de me vestir. — Abaixo-me para pegar as sandálias, mas Thomas ganha de mim, ajoelhando-se aos meus pés.

— Espere um pouco — adverte ele, baixinho e com cuidado. — Este é o trabalho de um cavalheiro, princesa. — Ele ergue meus pés nus, dando um beijinho no meu calcanhar antes de calçar o sapato. Ele faz o mesmo com o outro e termina com um beijo no meu joelho, antes de pôr cuidadosamente meus pés calçados no chão.

— Meus lindos dedinhos. — Inclino-me de modo que nossas testas se toquem, a fim de poder me perder em seus olhos gentis e cálidos.

Abrindo aquele sorriso de Elvis que adoro, Thomas se levanta e me ajuda a me levantar. Ele pega um paletó esporte e minha manta de renda e me leva pelo corredor até o quarto de Alyssa. Risadas abafadas e conversas vêm da cozinha. O cheiro de queijo derretido, linguiça picante e molho marinara me dá água na boca. As crianças devem ter decidido fazer pizza em casa.

— Então vamos à Estalagem do Humphrey? — pergunto, de repente com vontade de um prato de espaguete à bolonhesa com pão de alho, alcachofra e queijo feta, meu prato preferido entre as especialidades do Hubert’s.

— Faz parte dos planos — responde Thomas. — Vamos passar a noite lá. Mas primeiro vamos a Ironbridge Gorge. — Ele mostra os cogumelos no bolso do paletó, nossos “bilhetes” para o trem da memória, antes de vesti-lo.

Franzo a testa e o ajudo a ajeitar a lapela, estudando nosso reflexo no espelho de corpo inteiro de Alyssa, uma antiguidade prateada francesa que ela encontrou num mercado de pulgas. Foi a primeira coisa que ela comprou depois do nosso retorno do País das Maravilhas, para ela poder dar uma olhada em seus súditos ao longo do dia, quando necessário.

— Não entendo. Por que iríamos a Iron Bridge? Já não vimos tudo o que tinha para ver?

— Você, não — responde Thomas, seu rosto pintado pelo pôr do sol rosado. — Sei que você ainda está cheia de arrependimentos. Vejo a dor no seu rosto todos os dias. — Ele acaricia minha testa franzida. — Já é hora de se perdoar. Já é hora de você perceber o impacto positivo que teve sobre todos nós o fato de você deixar Morfeu e o País das Maravilhas entrarem na sua vida, porque você olhou tanto para o lado negativo que perdeu a noção disso. Ontem perguntei a Alyssa sobre memórias perdidas. Ela me disse que, depois que elas são armazenadas como carga, se tornam parte do trem, mesmo depois que são vistas por quem as criou. Então vamos dar uma última olhada naqueles anos perdidos, mas, desta vez, vamos fazer isso juntos. Você precisa ver o que teria sido de nós se você não tivesse interferido.


Nossa viagem a Ironbridge Gorge é mais simples do que era quando Alyssa e eu vínhamos aqui, cada uma de nós procurando algo diferente. Com a ajuda de Jeb, ela recentemente instalou um enorme espelho no túnel da ponte. Agora, o transporte aqui é tão simples quanto passar de um espelho para outro. Não há viagem pelo interior. É uma ligação direta do quarto dela para o túnel.

Ao fazermos a travessia, candelabros — feitos de enxames de vaga-lumes presos a armações — passam como rodas-gigantes em miniatura pelo teto. Eles brilham ao longo de paredes sujas, cartazes publicitários velhos de 1956 a 1959 e uma pilha de velhos brinquedos descartados no túnel.

A despeito do nervosismo, consigo comer cogumelos o suficiente para encolher com Thomas, a fim de podermos embarcar no trenzinho de brinquedo enferrujado que leva a todos às memórias perdidas e esquecidas do País das Maravilhas.

O besouro-condutor nos espera. Ele abre a porta em que se lê Thomas Gardner e nos leva a um cômodo sem janela forrado por um tapete sob um sofá cor de creme. Um abajur todo decorado lança um brilho ameno sobre as paredes. Do outro lado, um palquinho com cortinas de veludo aguarda para exibir as memórias de Thomas.

— Por favor, sentem-se e bebam alguma coisa — oferece o besouro, mais cordial do que nunca. Muito se falou sobre as loucuras de Alyssa no mundo dos espelhos. Ela adquiriu a reputação de uma Rainha Vermelha severa, mas sábia, e isso nos assegura, como seus pais, do respeito de todo o reino interior.

Thomas e eu nos sentamos lado a lado no sofá. Há uma mesinha à esquerda e um guardanapo rendado sob um prato cheio de biscoitos com gotas de chocolate. Pego um e o ofereço a Thomas. Ele come metade, limpando as migalhas que caem em sua calça, e gesticula para eu comer o restante.

Ondas de náusea me atingem. Tento atribuir a sensação à fome e mordisco o biscoito macio e a cobertura delicada de amêndoas, ficando mais tensa quando o condutor esmurra com seu braço artrópode um botão na parede. As cortinas do palco se abrem, revelando uma tela de cinema.

— Imagine mentalmente o rosto do seu marido enquanto olha para a tela vazia e você vivenciará o passado dele como se fosse hoje. — O besouro mexe num controle que desliga a luz e então fecha a porta.

Dou a mão para Thomas. Na única vez que visitei este trem, estava espiando o passado dele sem que ele soubesse e as coisas que vi me deixaram tão horrorizada que quis escondê-las dele para sempre. Agora ele está aqui, me encorajando a olhar mais atentamente. Mesmo com o conforto da presença dele, meu nervosismo é quase sufocante.

Supero isso, lembrando-me dele como a criança que vi no dia em que vim sozinha — quando o nome dele era David Skeffington e ele tinha oito anos. Desta vez, porém, imagino-o alguns meses antes, quando ele ainda vivia com sua mãe, seu pai, duas irmãs e um irmão em Oxford.

Uma imagem aparece na tela em cores vivas e me toca. Ela me destroça — cada parte do meu corpo se desfiando —, até que me recomponho, atenta, admirando os olhinhos de David e compartilhando seus pensamentos, emoções e sensações infantis.

Ele tem uma infância feliz, cheia de momentos sentimentais... seguindo seu pai durante os trabalhos na fazenda de caprinos, brincando com suas irmãs e irmão nas colinas que cercam a casa, os passeios e piqueniques da família, as histórias antes de dormir recitadas pela voz melódica e suave da mãe. Mas, uma noite, ele é visitado por um grupo de cavaleiros imperiais usando túnicas vermelhas e brancas — os mesmos que vieram buscar o irmão dele dois anos antes.

A mãe chora com a chegada deles, gritando que os cavaleiros nunca visitam uma família pela segunda vez, mas seu pai a consola, dizendo que, por suspeitar que isso fosse acontecer, ele mesmo os convocara. Então ele leva David para um quarto escuro para ser interrogado.

Um dos cavaleiros, um homem de barba grisalha usando uma túnica vermelha e malha de ferro, abre, na escuridão, um aparelho multiespelhado. Ele aciona um botão, iluminando as molduras. Cada espelho está montado num ângulo exato para refletir o outro, provocando uma ilusão de infinito.

— Ande pelo labirinto de espelhos, menino — diz o cavaleiro. — Diga-me o que você vê.

David anda para lá e para cá, primeiramente sem ver nada além de milhares de imagens de si mesmo. Então ele vê algo se movimentando num dos reflexos distantes — a silhueta de algo inumano. Ele vira a cabeça e encontra a mesma distorção em todos os planos de vidro prateado. Com uma piscada de olho, as sombras dão lugar à claridade e um mundo estranho e assustador se abre. Pássaros feios e enormes com dois pares de asas andam pelo terreno em vez de voarem. Morcegos vermelhos duas vezes maiores do que condores passam por cima dele, caçando qualquer coisa com coragem o bastante para compartilhar o céu flamejante com suas línguas compridas e venenosas. Ele começa a recuar, mas o terror se transforma em fascinação e o seduz, enquanto criaturas menores — seres parecidos com filhotinhos coloridos na forma de flocos de neve — passeiam pelo cenário. Eles viram do avesso, suas entranhas uma bola de dentes afiados que devoram tudo pelo caminho. O sangue mancha tudo à medida que eles se banqueteiam dos pássaros de quatro asas. David faz uma cara feia, meio que esperando sujar-se com o jato quente cor de cobre, mas o massacre é contido pelos reflexos. O medo e a repugnância fecham sua garganta, mas ele observa por mais um segundo, enquanto criaturas ainda menores, parecidas com uma borboleta com cauda de escorpião, voam baixo — elegantes anjos da morte — e transformam todas as bolinhas de dentes ensanguentados em estátuas de pedra.

Numa euforia estonteante, David sai do labirinto e repassa toda a morte que viu. Os cavaleiros conversam entre si e se viram para o pai dele.

— Isso não tem precedentes: seu segundo filho também tem a visão — afirma o cavaleiro de barba grisalha. — Ele vê os pontos fracos na barreira entre o reino interior e o mundo humano com mais clareza do que o irmão. Você sabe o que isso significa, Gregor.

O pai de David faz que sim. Ele parece triste e ao mesmo tempo orgulhoso ao dar tapinhas na cabeça de David. O menino não sabe o que sentir. Mas de uma coisa ele sabe: ele não é mais considerado uma criança. Ele é um guerreiro e será treinado como tal.

Seu pai faz suas malas, eles beijam uma última vez a mãe e as irmãs em prantos e então vão viver com os tios e primos de David em Oxford, Inglaterra, na Estalagem do Humphrey. A insuportável dor sentida por ele ao dar adeus à família e à antiga vida é amenizada somente quando seu irmão mais velho, Bernie, vem recebê-los à porta.

A cena treme ao passarmos por vários meses de lições: estudando em Qualquer Outro Lugar, o mundo espelhado para onde os exilados do País das Maravilhas são banidos. Ele aprende que tal lugar está conectado ao País das Maravilhas por uma densa floresta e ao mundo humano por espelhos infinitos, e que um domo de ferro cerca a prisão, transformando quaisquer seres intraterrenos encarcerados em criaturas grotescas, caso tentem usar mágica no interior.

Durante seu treinamento, David se afunda em estudos sobre as criaturas mutantes para ter a honra de fazer parte de um grupo especial dos cavaleiros que guardam os dois portões — o portão do reino humano e o portão do País das Maravilhas. A violência e o pavor, porém, saturam de imagens vívidas e bizarras seus sonhos e pesadelos. Ainda assim ele progride, fazendo aulas de autodefesa e refinando sua linguagem — aprendendo a usar a mente como armadura quando são os enigmas a arma.

As cenas da vida de David param no restaurante de Hubert, enquanto seus pés deslizam nas cinzas do ringue, enquanto os convivas o veem aprender a bloquear um ataque vindo de cima. Sinto a pulsação de Thomas... David... acelerar, sinto sua vontade de dar orgulho ao pai, sua competitividade em relação ao irmão e aos primos e a consciência tímida de ter todos os olhos sobre si — o candidato mais jovem. Mas com o tempo ele aprende a bloquear tudo, exceto o jogo. Ele se torna confiante, gracioso e fiel, supera todos os seus oponentes — incluindo seu próprio pai — e, em seu nono aniversário, está pronto para sua primeira viagem a Qualquer Outro Lugar, a fim de sentir os segredos internos em primeira mão. A maioria dos meninos é admitida aos treze anos, mas ele merece uma iniciação precoce, não só porque aprendeu a se defender, mas também porque tem a ousadia, sabedoria e perspicácia de alguém cinco anos mais velho.

Um arco-íris vívido mancha a tela, enquanto as memórias se voltam para o caminho de David dentro de um túnel de vento esbranquiçado na forma de um tornado. O funil serve aos cavaleiros como travessia segura para o mundo prisional, já que eles são os únicos com medalhões mágicos que controlam os ventos. As lufadas tomam conta dos cabelos e das roupas de David, que é carregado com seu tio William para o portão do País das Maravilhas, onde David será iniciado nos segredos de seu posto como guardião. Impulsionado pelo medalhão no pescoço do tio, o funil se abre e os cospe, um a um, muito acima do portão trancado contra a floresta densa e o País das Maravilhas. Um gigantesco escorregador de cinzas se ergue para pegá-los e levá-los à plataforma, mantendo-os a uma distância segura do fulgurante vórtex de nada que separa o portão do terreno mundano e mantém encurralados os prisioneiros.

David observa tudo através de óculos de armação de couro, iluminados. Como esta é a primeira vez dele dentro do mundo na redoma, ele estava determinado a não perder nada, nem mesmo a viagem até lá. Seu pai cedeu e o deixou usar os óculos que ele e seu irmão usavam para proteger os olhos das cinzas e iluminar o caminho quando andavam de moto por trilhas sujas nas colinas de Oxford, à noite.

Por causa de sua visão perfeita, ele vê — enquanto seu tio é jogado para fora do túnel atrás dele — que a corrente mantendo o medalhão no pescoço do velho se quebra e o colar começa a cair. David estende a mão para pegá-lo. Uma vez em segurança ao lado do portão, ele devolve o colar ao tio. O velho lhe dá um tapinha nas costas e guarda o colar em sua malha de ferro.

— Um dia, você terá um medalhão. Aposto minha vida nisso. — Seu tio ri. David sorri diante do elogio.

Tio William sempre foi seu preferido... Ele cheira aos doces de canela que sua mãe costumava pôr nos pratos natalinos, ele é capaz de vencer qualquer um no xadrez e sempre tem uma bela piada para contar. Foi ele quem manteve David debaixo da asa quando seu pai teve de voltar para a fazenda. E agora ele insiste em ser o guia de David em todos os mistérios deste mundo estranho e mágico que sua família protege há séculos.

David se aproxima do portão de ferro sólido, a fim de que o Tio William possa lhe contar o segredo de como se abre caminho para o País das Maravilhas. Embutida na parte de baixo da barreira de três andares, a caixa hexagonal aparece com cinco quebra-cabeças organizados numa estrutura de boneca russa. David observa Tio William montar três deles, fazendo o portão ranger e se abrir um pouco por vez, revelando o túnel escuro atrás — um corredor pela floresta densa. Vem um cheiro forte — madeira úmida e podre. Faltando somente dois quebra-cabeças para abrir completamente o portão, Tio William fica pálido e se apoia contra o ferro. Então ele segura o peito e cai ajoelhado.

Ofegante, David se abaixa ao lado dele.

— Tio, o que houve? — Ele quer gritar, mas engoliu névoa negra demais em meio ao nada a caminho do portão. Suas cordas vocais não estão totalmente despertas, então ele continua num murmúrio. — Devo chamar o vento de novo? — Seu sussurro é indecifrável até mesmo aos próprios ouvidos.

Não importa. Seu tio não pode mais lhe responder. David é pequeno demais para carregar o corpo do Tio William até o local de pouso. E, se ele pegasse sozinho o túnel de vento à procura de ajuda, abandonaria o tio vulnerável diante do portão entreaberto. David não sabe como usar a caixa para trancar a porta. Ele pega um pombo-correio mecânico da bolsa do velho. Aquilo só é usado em emergências e deve ser enviado com uma mensagem gravada, mas, com sua voz muda, ele só pode enviar o pombo-correio sem mensagem nenhuma, na esperança de que seus parentes o vejam e saibam que algo deu errado.

Ele aciona o interruptor para acender os olhos e ativar as asas do pombo e manda-o para o céu. Mas teme estar sem tempo. A pele do seu tio já está azulada, como a cor do gelo sobre um lago.

O coração de David bate forte no peito.

Há uma coisa que ele pode fazer.

Com os olhos em chamas atrás dos óculos, David olha para o portão parcialmente aberto. Apesar de a Irmandade do Espelho ter muitas informações sobre Qualquer Outro Lugar e seus ocupantes, não foram feitos muitos estudos sobre o País das Maravilhas. Exceto pelos livros da Alice, pouco se sabe sobre os seres de lá. De todo modo, abundam rumores sobre criaturas com poderes curativos que ultrapassam a compreensão humana.

David pode não saber resolver os dois últimos quebra-cabeças, mas a abertura — pequena demais para um adulto — já está do tamanho perfeito para seu corpinho passar.

Ele hesita. Há outras histórias também, sobre as fadas. Dizem que algumas são enganadoras e fatais. Mas como é possível que elas sejam piores que os monstros deste lado do portão? E ele foi ensinado a derrotar os melhores. Com certeza seu conhecimento pode fazê-lo entrar no País das Maravilhas e sair incólume dele.

Tenso, David se levanta e passa pelo portão, antes que o medo ou a razão possam detê-lo.


Capítulo 6


Âncora

Numa reação em cadeia, assim que David passa pelo portão, este se fecha atrás dele. Seu tio estaria protegido de quaisquer criaturas perdidas do País das Maravilhas, até que o próprio mecanismo se reiniciasse com a boca para a floresta densa se abrindo e fechando. Só então o portão permitiria que alguém passasse pela mesma abertura de novo. Até mesmo David teria de encontrar um novo caminho... atravessando outra garganta da floresta densa.

Um calor de pânico queima o rosto de David. Ele se sente sozinho e com medo por um instante, antes de se lembrar de que fora treinado como cavaleiro. Seu plano daria certo. Ele só tem de encontrar uma fada com poderes de cura e fazer algum tipo de acordo. Dizem que elas colecionam quinquilharias humanas.

David tira as luvas, revelando o anel que recebera ao ser ungido: um anel de ouro puro reluzente cravejado de diamantes em sua circunferência e um enorme rubi brilhante com uma cruz branca de jade no meio. Para ele, o anel não tem preço, mas ele está disposto a dá-lo se isso significar a salvação do Tio William.

O cheiro podre detestável arde-lhe os olhos, mesmo por trás dos óculos. Ele liga as luzes em torno da armação de couro para iluminar a trilha cheia de musgos e começa a correr. Depois de uns seiscentos metros, o ar parece menos denso. Ele luta para respirar no espaço fechado e escuro. Seus óculos se embaçam, o que o faz tirá-los do rosto e posicioná-los no pescoço, de onde ainda iluminam seus passos.

Ele vira uma curva e vê uma clareira, com uma luz ainda fraca e ar fresco. Ofegante, David desliga os óculos para não ficar exposto ao sair da boca ensandecida para entrar na clareira.

Ele empunha a espada ao saltar por cima dos dentes e pousar num arbusto. O som de algo se quebrando o faz se virar para olhar para a árvore da qual saiu. A boca tenta mordê-lo. Ele se joga para trás, escapando por um triz dos dentes, que voltam para dentro do tronco a fim de formarem o que parece ser uma protuberância na casca — mas David sabe muito bem que não é nada disso.

O mato reluzente envolve suas botas enquanto ele caminha pelo punhado de arbustos, à procura de uma saída.

Alguns arbustos atrás dele balançam. Tenso, ele fica no meio da clareira, fora do alcance do mato e das árvores que o cercam, mantendo os olhos no dossel de galhos.

Os arbustos balançam novamente e ele ergue a espada, preparando-se mentalmente para os seres intraterrenos que surgiriam da floresta densa em formas estranhas e horríveis. Possivelmente uma formiga de fogo com o corpo em chamas ou um cavalo voador com embaladeiras de madeira afixadas às seis patas.

Em vez disso, um grito irrompe do outro lado dos arbustos, seguido por uma confusão de vozes histéricas diminutas, ainda mais estranhas por causa da brincadeira infantil delas.

— Estupidezez! Estúpido, estúpido, estúpido! Ela né quinem fugitivos!

— Ataquiri o humanolongo!

— Sinsins! Ou vão ser nossos morotoros pescoços e cortados.

— Apostas erradas acontecem.

— Erradas ou nãoses, Twid Two pede que vocesseis fiquem parados.

— Todosos podedem sonharos!

— Ela vai pendurar vocesseis pelos pescoços... morotoros-mortoros-mortos que sejam!

David relembra suas aulas de idioma. É como latim suíno misturado com jargão sem sentido. Mas três das frases ele consegue compreender claramente. As criaturas de vozes minúsculas estão perseguindo uma fugitiva, estão preocupadas com a falta de sonhos e estão prestes a ser enforcadas.

As vozes crescem e os arbustos balançam novamente. David se esconde atrás de uma pedra enorme para observar. Ele não pode deixar que o capturem ou o machuquem... Tio William precisa que ele encontre ajuda e volte rápido. As folhas nos arbustos se abrem e algo aparece.

David perde o fôlego ao ver um menino humano nu, talvez seis anos mais velho que ele, avançar na luz amena da clareira. Ele é da cor do leite, só um emaranhado de cabelos pretos na cabeça. É como se todo o sangue tivesse vertido dele... não do seu rosto, mas de seu peito, braços e pernas. Então David percebe que o menino não está completamente nu. Seu corpo está coberto por alguma coisa — uma gosma espessa. Fibras sedosas pendem dele como tranças, como se ele estivesse sendo desfiado.

Teia de aranha?

David engole em seco, fazendo mais barulho do que esperava.

O menino se vira para ele, mas seus olhos vítreos não o veem. Sua expressão não parece ter percebido nada. Não há nenhuma expressão além de um olhar vazio e sombrio.

Uma corda de teia de aranha atinge o calcanhar do menino, derrubando-o de cara no chão. Ele resmunga algo com a boca cheia de mato — um som estranho e animalesco sem nenhum sentido —, como se ele tivesse esquecido como se fala.

As criaturinhas tagarelas surgem apressadas — cinco delas —, ainda discutindo entre si. Parecem macacos-aranha prateados de pele sem pelo. Olhos volumosos cor de níquel, sem pupila ou íris, brilham como moedas num poço dos desejos.

Uma gosma brilhante verte da pele careca. As gotas prateadas oleosas marcam seus passos como trilhas longas e finas. Todos usam minúsculos capacetes de mineiro. As luzes percorrem a clareira desorganizadamente, como bolhas reluzentes.

Ao passarem pela pedra de David, um cheiro pútrido de carne os acompanha. Eles cercam o menino caído, fazendo sons ameaçadores. Um deles tira a teia do calcanhar da vítima e a usa para amarrar-lhe as mãos nas costas. O menino exibe os dentes numa tentativa feroz e furiosa de se libertar, embora sua expressão mantenha o olhar vazio.

A criatura mais perto dele recua e ri — dentes afiados à mostra em seu rosto símio. Ela emite um som incômodo entre um ronronar e um uivo, depois salta sobre o menino, enchendo a boca dele com a teia. Os outros macacos prateados incentivam o companheiro, exultante com os sons de sufocamento do menino indefeso.

Nauseado com o espetáculo horrível, David joga os óculos no grupo para distrair as criaturas e sai do seu esconderijo.

— En garde! — grita, agitando a espada na direção das criaturas prateadas, numa tentativa de espantá-las.

Elas gritam em uníssono e correm para os galhos próximos. As lamúrias balançam as folhas, seguidas pelas luzes dos capacetes.

David abaixa a espada e se põe ao lado do menino, soltando-o das amarras.

— Vocesse não deveria ter feito isso, ser falante — alerta uma das criaturas com uma voz débil e ameaçadoramente melódica. — A jardineira deverese estare a caminhoinho. — As demais reagem rindo, balançando ainda mais os galhos, mas então fazem um silêncio incômodo, como se ouvindo algo.

Jardineira? David mantém um olho mirado nas criaturas e continua a desamarrar o menino. O Tio William geme em seu pensamento. David espera que seus outros familiares já tenham encontrado o velho. De uma coisa ele sabe: Tio William e seu pai iriam querer que ele fizesse a coisa certa. Ele jurou proteger toda a humanidade contra a magia, e este menino obviamente precisa de proteção.

Tão atento a suas batalhas internas, ele não vê a gigantesca sombra até ouvir a música assustadora:

— A dona aranha subiu pela parede — canta uma voz misteriosa do alto.

Ele sente um arrepio assim que olha para cima — tarde demais. A visão aterrorizante o deixa paralisado.

Uma aranha do tamanho de um homem pende de cabeça para baixo. A metade de cima é fêmea — o rosto translúcido com cicatrizes e arranhões ensanguentados ao longo de seus lábios roxeados, rosto, queixo e têmporas. Seus pelos prateados caem em mechas espessas, quase alcançando a cabeça de David. A parte de baixo é a de uma viúva-negra, cinco vezes maior que as bolas de ginástica que os cavalheiros usavam para ficar fortes e resistentes. Ela se equilibra num fio de teia preso aos galhos, e a teia brilha como seus famintos olhos azuis. Oito patas brilhantes de aranha envolvem a teia-âncora, algo assustador e gracioso.

David pensa em empunhar a espada, mas fica paralisado de medo e surpresa.

Ela ergue e baixa a pata esquerda e quase parece humana, exceto pelas tesouras de jardim no lugar da mão.

A jardineira. A palavra apavora David, abate-se sobre ele, trazendo-o de volta ao presente.

Snip, snip, snip. O abrir e fechar das tesouras despertam David completamente do transe. Ele recua de costas, o coração acelerado enquanto as lâminas quase atingem seu rosto.

A mulher com características de aranha desce delicadamente ao chão diante dele.

O terror sacode seu sistema nervoso — milhares de pedrinhas de gelo incendiando sua pele. Antes de poder se endireitar e correr, um jato espesso de teia o envolve dos pés à cintura, capturando sua bainha e inutilizando sua espada. David tropeça e cai no chão ao lado do menino que ele tentara salvar. O menino o encara com aqueles olhos desolados e dormentes. Com a língua ele tira a teia da boca e murmura novamente aquele mantra sem sentido, como se tentasse dizer algo a David.

O lado esquerdo do corpo de David dói por causa da queda e punhados de mato pinicam o interior de seu ouvido.

— Bom, bom — diz o aracnídeo com uma voz rouca que deixa um sabor de cobre na boca de David, como flocos de ferrugem e desespero. — Vocês doises viraram amigos? Que lindoinho.

As criaturas símias prateadas riem e saem de seus esconderijos. Numa tentativa desesperada de fugir, David enfia as mãos no mato e rasteja até o limite da mata.

Duas das criaturas saltam sobre ele e outra tira o anel de seu dedo.

— Brilhante! — grita ela, exibindo seu prêmio.

— Devolva isso — exige David, apesar de não fazer ideia de onde vem sua coragem.

Rosnando, a aranha jardineira empurra os macacos de lado com quatro patas e prende David onde ele está, dando voltas e mais voltas nele, até envolvê-lo de teia até os ombros.

— Este daí-í é um reluzente falante — provoca um captor prateado, cutucando David com um galho.

— Falante ele pode ser, meu escravo. — A mulher aracnídea se abaixa, seu hálito atingindo o rosto de David. Ele tosse, engasgando com o cheiro de terra úmida e podre. — Mas ele é um sonhador? — Sua mão direita, escondida por uma luva de borracha, toca-lhe o queixo. Como uma criança preocupada com uma casca de ferida, ela olha nos olhos dele, um estudo intenso que revira as entranhas de David. Ele sente o puxão bem lá no fundo, em profundezas maiores que a de seu coração, ossos e sangue... até libertar e expor todos os temores e esperanças mais secretos de sua alma. — Sim. Ele ser um sonhador único. E ser meu.

Diante da afirmação da bruxa aracnídea, as criaturas símias dançam, a gosma prateada delas descendo pelo rosto de David.

— Solte-nos — implora ele, olhando para o outro menino.

— Ah, negativo. — A luva de borracha lhe toca a cabeça, esfregando o cabelo no couro cabeludo. — Levar vou Irmã Dois à sua vontade. Dela um presente para mim, ele é. Ele ser vai magnífico no meu jardim. Vi coisas outras humanos não viram. Ahhh, você ter vai os sonhos mais vívidos. E pesadelos, ah, pesadelos em convulsão. — Uma baba pinga de seu lábio, o que combina com o sangue já em seu queixo. Limpa-a com a mão de tesoura, cortando-se mais uma vez.

David fica tenso dentro de seu casulo, tentando tocar a espada. Mas seus membros estão presos — imóveis.

O menino caído se lamuria e a aranha vai até ele.

— Parece que temos um substituto para você. Não foi fácil? Chega de sofrimento. — Ela tira a luva, usando os dentes para ajudar na falta de outra mão útil. A bainha de couro cede para revelar cinco caudas de escorpião se encolhendo e se esticando no lugar de dedos.

David geme ao ver algo tão repugnante.

A Irmã Dois se curva sobre o prisioneiro e abre a teia no peito dele, expondo a pele branca.

— Hora de se juntar aos outros. — Sua mão venenosa se choca com força contra o esterno do menino e o veneno verte da ponta do seu dedo; então ela atravessa os ossos até o coração.

O menino uiva e convulsiona. David grita e tenta chegar até ele, mas não consegue se mover. Em pouco tempo, o corpo do menino se encolhe e se transforma num escravo símio prateado, como os demais. Finalmente ele para de se debater e fecha seus olhos sem pupilas, seu rosto primata relaxado e uma língua negra pendendo da boca. Bolhas de gosma saem do que um dia foi carne humana e um rabo fino e comprido cresce em suas costas.

David fecha os olhos com força, tentando não gritar como um menininho. Tenha coragem, diz ele para si mesmo. Você é um cavaleiro. Mas ele está perdendo a coragem... ele está esquecendo tudo o que aprendeu. Ele só se lembra do sangue e da morte e dos dentes afiados e ferrões. Sente a mão macia e cuidadosa de sua mãe lhe acariciando a cabeça. A lembrança é destruída por um par de tesouras de jardim.

— Não tenha medo, menininho sonhador. — A Irmã Dois se volta para ele, enquanto os escravos pegam o novo membro do grupo e o levam para longe. — Você está em casa agora. Você tem irmãos e irmãs imortais aqui. Um dia, quando seus sonhos se esgotarem, você se juntará a eles. Mas, antes, alimentará minhas almas famintas e derrotadas.


— Nããão! — grito. É um grito tanto para David quanto para o menino perdido que jamais conheceremos. O menino perdido que nunca se reunirá novamente com seus entes queridos. Que agora se perdeu para sempre, até mesmo de si próprio.

Grito mais alto à medida que a teia cobre o rosto de David e ele não consegue mais gritar por si mesmo nem por ninguém.

— Nãããão!

— Alison. — Thomas me sacode pelo ombro e a cena treme e se desfaz ao meu redor, me tirando das lembranças dele e me fazendo cair de novo no sofá, aninhada pela semiescuridão que nos cerca.

Escondo meu rosto no braço de Thomas, em busca de seu perfume e calor. Lembrando-me de que ele está aqui e jamais sofrerá daquele modo novamente.

— Sinto muito mesmo.

— Não, meu amor. Você me salvou. Você não tem que pedir desculpas por nada. — Ele me abraça e me puxa para perto, esperando que meus batimentos se normalizem e eu consiga respirar novamente sem ofegar.

— A Irmã Um mentiu para mim — digo, tentando dar sentido às coisas. — Ela disse que as fadas usavam corpos de criança para alimentar as flores. Mas não era nada disso.

— Não. As fadas já foram crianças também. — Thomas suspira demoradamente, seu tórax erguendo minha cabeça com o esforço. — E elas não podem voltar àquela forma.

Meu rosto queima de raiva.

— Não consigo mais assistir a isso. Por favor, diga que é aqui que tudo termina.

Ele me aperta.

— Está tudo bem. Essa é a bênção. Algo na teia agiu como sedativo. Eu estava num transe. Não tenho lembranças da minha época na toca, porque não tive lembranças. Só tive um sonho. Mas me lembro de despertar quando você me libertou da armadilha e caí no chão. Eu me lembro de você me cobrindo.

— Sim — sussurro na escuridão. — A Irmã Um me deixou emprestar o cobertor. Era tudo o que ela podia oferecer. Ela estava apavorada com a ira da irmã gêmea. Usei a manta como maca, para me ajudar a tirá-lo dali.

— Eu me lembro disso também. Vi vislumbres de você olhando para trás para ter certeza de que eu não caí. Seus olhos eram da cor da liberdade. Ou do meu futuro. Eles eram tão cheios de dor, de determinação. E de força. — Thomas me aperta com mais força. — Então, ao acordar no ombro de Morfeu quando ele passou comigo pelo portal, você e suas asas desapareceram aos poucos. Você era transcendente... etérea. Acordar na sua cama foi como acordar de um coma de dez anos e ver um anjo. Seu rosto era conhecido, acho que por causa daqueles vislumbres de consciência. Por algum motivo, quando Marfim apagou minhas outras memórias, aqueles momentos permaneceram. Talvez porque não fossem memórias ainda. Eram mais... despertares. E, sem minhas outras lembranças, você era a única coisa que eu reconhecia. Mais tarde, me convenci de que tinha sonhado com você e as asas, mas não importava. Porque só de olhar para você, com ou sem asas, renasci.

Aninhei-me mais em seu peito para ouvir seu coração. Fechando os olhos, revivo mentalmente o momento em que nos conhecemos oficialmente, como se o estivesse vendo na tela do outro lado da sala.

Eu me sentei ao lado da cama e guardei vigília naquela noite, depois de quebrar todos os espelhos para que Morfeu não pudesse voltar ao quarto. Sabia que o tinha decepcionado. Também sabia que ele estava furioso. Mas não me importava. Só me importava de ajudar o menino na teia.

Sabendo que ele não teria identidade ao acordar, eu o batizei enquanto ele dormia. Ele me lembrava de uma pintura que vi uma vez numa das minhas casas adotivas. As pessoas eram religiosas e um retrato de São Tomás pendia sobre a lareira. Seus cabelos eram castanhos, o rosto jovem, mas marcado pela sabedoria, e seus olhos escuros eram solidários e melancólicos. Ele era o santo padroeiro das pessoas tomadas pela dúvida e, como nunca acreditei que eu tivesse um lugar no mundo humano, tomei-o como meu santo pessoal.

Contudo, ao ver o menino sonhador dormindo naquela noite no meu quarto, um menino que ajudei a salvar... um menino a quem dei um lar, sabia que jamais duvidaria do meu lugar novamente.

Nervosa e insegura, observei seus olhos castanhos se abrirem na manhã seguinte. Uma aurora cor de pêssego dançava nas paredes do quarto, animada por três galhos balançando do lado de fora da janela. Eu me perguntava se ele teria medo de mim, se ele entraria em pânico e sairia correndo. Mas, quando nossos olhares se encontraram, eu me senti — pela primeira vez em muitos anos — segura. Ele me tocou como se me conhecesse desde sempre. Considerando o tempo que ele passou sem contato humano, não hesitei em tocá-lo. Silenciosamente, segurei a mão dele e entrei sob a colcha de retalhos, acomodando-me ao seu lado. Sem falar nada, seus dedos tocaram todo o meu rosto, seu hálito doce na minha pele — um resíduo da poção do esquecimento que Marfim lhe dera. Para mim, era o cheiro da esperança e de uma nova vida. Então ele parou na minha boca, segurou meu rosto e me deu um beijo, seu toque tão terno e ainda assim tão confiante para um menino de dezenove anos que nunca tinha beijado uma menina. Foi meu primeiro beijo recíproco, o único que chegou ao meu coração e me iluminou como uma tocha desafiadora contra o vento forte. Fiquei ali no calor de seu abraço e dormimos por horas, até que o sol avançou no céu e chegou a hora de lhe dar respostas, por mais falsas que fossem.

Thomas não conseguiu falar nos primeiros meses. Ele entendia as coisas que eu dizia, mas teve de reaprender as palavras — como articulá-las e lê-las. Era como se a Irmã Dois não tivesse apenas sugado seus sonhos e imaginação, mas também toda uma vida de comunicação. Apesar de ser frustrante para ele, isso facilitou as coisas para mim e fui capaz de relacionar sua deficiência e amnésia a um acidente de carro e um ferimento na cabeça.

Agora repasso as mentiras que disse na esperança de mantê-lo são, e me pergunto como as coisas podiam ter sido diferentes se o tivesse trazido aqui para o trem, a fim de que ele visse a verdade.

Mas o passado não pode ser desfeito. Ele me perdoou e me ama, apesar de tudo.

— Só queria ter podido salvar todas aquelas crianças, como salvei você — digo, segurando a camisa de Thomas. — Ou salvar Alyssa da dor pela qual ela passou.

— Deixe disso, docinho. Você não vê quantas vidas você salvou? Não só a minha. Você e eu fomos destinados a fazer parte do País das Maravilhas. Não importa os caminhos que escolhemos. Fomos pegos naquela teia assim que nascemos. O que significa que era inevitável que nossa filha tivesse o mesmo destino e que o papel dela fosse maior que o nosso.

— Entendo isso, mas...

— Mas o que você insiste em esquecer — interrompe Thomas com cuidado — é que, sem seu papel nisso tudo, nossa menina jamais teria nascido, porque eu teria terminado como fada, constantemente em busca daquela faísca de inspiração, sem nunca saber exatamente o que perdi. Não consigo pensar em fim mais trágico. Você consegue?

Uma emoção nova cresce dentro de mim. Um quê de indignação virtuosa por todas as crianças humanas perdidas e aquelas que consegui salvar, uma emoção quente e avassaladora.

— Ao entrarmos no País das Maravilhas pela primeira vez — continua Thomas, segurando minha mão e levando-a ao seu coração —, você deu vida à nossa filha e uma chance de vida a todas as crianças que a Irmã Dois teria pegado e usado no futuro. O fato de Morfeu convencer Alyssa a ser rainha o fez se apaixonar por ela, o que por sua vez deu a um ser solitário e egoísta a chance de crescer e fazer algo admirável... Ela está com a gente agora por causa disso. Jeb ter desistido da sua musa em nome das crianças humanas... um menino que não teve muita infância... outro sacrifício admirável. Somos todos pessoas melhores... ou seres intraterrenos, em alguns casos... porque você teve coragem e ousadia suficientes para buscar uma vida melhor para si mesma. Por causa das suas escolhas quando era aquela menina solitária de treze anos, e novamente quando era aquela princesa virtuosa e misericordiosa de dezesseis anos, incontáveis vidas foram salvas e melhoradas. E, ao salvar o pai de Alyssa, você lhe deu uma chance de existir.

Contive o choro.

— O que lhe deu chance de criá-la. Ela é forte e incrível por causa de você. — Seguro a mão dele, fecho-a e beijo os nós dos dedos. — Obrigada por nunca ter desistido de mim ou da nossa menina. Você é nosso herói.

— Você é minha heroína, Alison. Literalmente. — Ele tira do meu rosto uma mecha que se soltou do grampo. — Quantos homens podem dizer isso da mulher que amam? Hein?

Paro de lutar contra as lágrimas. Deixo-as rolar tranquilamente por meu rosto. São lágrimas diferentes das de outros choros. São puras, terapêuticas e felizes. Divinamente felizes. A despeito da escuridão que todos enfrentamos, tenho minha família. Honrei a morte da minha mãe permitindo que outros vivessem. Como Morfeu disse uma vez... ele me deu uma chance de fazer as pazes com a morte. E agora Thomas me dá uma chance de fazer as pazes com minha vida. Tudo é como deveria ser. Finalmente.

Haveria momentos em que os pensamentos sombrios me visitariam, tenho certeza. Mas agora... agora tinha uma luz para lançar sobre eles. Um farol a me guiar.

— Chega de olhar para trás — digo para meu marido, a voz surpreendentemente firme.

— Chega de passeios de trem. — Ele acaricia meu queixo com os nós dos dedos. — Só para a frente, deste dia em diante. Aproveitando todos os momentos juntos que nos restam neste mundo. Você comigo.

— Até o derradeiro fim — falo.

Thomas enxuga minhas lágrimas.

— Feliz aniversário, Ali-ursinha. — Ele me puxa para o colo no sofá e me beija até eu perder o fôlego e ficar toda vermelha como uma noiva tímida. Depois ele me põe no chão para ajeitar minhas roupas e sussurra em meu ouvido. — Estou morrendo de fome. Que tal espaguete à bolonhesa?

Eu rio.

— Você leu meus pensamentos.

Ao sairmos do trem rumo ao espelho, ele segura minha mão. O menino na teia e o homem dos meus sonhos. Para sempre e eternamente, minha âncora.


CONTINUA

Investida & Bloqueio
— Se pretendemos sobreviver a isso, Alison, você tem que atacar a jugular. Sem. Misericórdia.
A voz grossa e autoritária de Thomas me comove e ele me ajuda a levantar, depois ajusta meus dedos ao cabo metálico da espada que havia escorregado de minha mão enluvada. Uma mistura de suor e do cheiro cítrico do sabonete por ele usado paira no ar, abafada pelo perfume das flores e da vegetação que nos cercam.
Toco o quadril no ponto onde ainda lateja por causa da queda e retomo minha posição, encarando nossos oponentes do outro lado do mato manchado de sangue: a minha, com o brilho lindo e fantasmagórico de sua pele... O de Thomas, com o corpo musculoso e os olhos verdes destemidos. As espadas prateadas deles brilham sob o sol de outono e refletem suas expressões imóveis, até que, num movimento lento como o de uma nuvem de tempestade, a curiosidade lhes cruza as feições, enquanto eles tentam prever nossa estratégia.
Meu coração bate forte, ansioso. Enxugo um pouco do suor da minha testa. Eles são mais jovens e mais rápidos, mas Thomas e eu temos a inteligência do nosso lado e uma conexão incomparável. Somos uma equipe há vinte e dois anos. Aqueles amadores não são páreos para nós.
Ignorando o calor e a irritação da minha pele sob as várias camadas de roupa, convenço meu corpo a relaxar, mas me mantenho em posição, a espada empunhada e pronta para o combate, antes de tirar a máscara do meu rosto.
Meu marido geralmente me dá dicas, gestos que só eu sou capaz de decifrar: um menear de cabeça para uma defesa, um estreitar de olhos para um bloqueio. Desta vez, porém, não preciso das instruções dele. Conheço minha oponente. Observei-a o suficiente para descobrir seus pontos fortes e seus pontos fracos. Ela me atacará pela esquerda e me defenderei com um bloqueio. A não ser que agora ela decida misturar os golpes.
Como se pensasse que me decifrou, ela me encara com seus olhos azuis penetrantes e sorri, excessivamente confiante, antes de colocar a máscara no lugar. Ela fica rígida e eu também, de modo a convidá-la a fazer o primeiro movimento.
Com reserva e graça, ela troca de pé de apoio e investe contra mim, me atacando numa tática surpresa. Atinjo a espada dela imediatamente, cedendo ao seu ritmo. Ela perde o equilíbrio e exagera na compensação, executando um golpe atrapalhado. Sua reação apressada deixa seu peito exposto.

 


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Rugindo, miro o coração dela com a ponta da espada, sentindo uma emoção intensa ao furar seu casaco branco. Ela deixa a espada de lado e põe a mão no esterno. Seus olhos se arregalam por trás da máscara. O sangue jorra pela grama e mancha meus tênis brancos.

— Mamãe? — murmura ela em choque, encolhendo-se no chão.

Levanto a máscara, tiro as luvas e me ajoelho ao lado dela, cutucando suas costelas incansavelmente.

— Diga! — grito. — Diga que sou a rainha!

Jebediah e Thomas riem ali por perto, enquanto Alyssa gargalha histericamente, balançando de costas como uma tartaruga virada de cabeça para baixo em seu casco, tentando recuperar o fôlego e escapar da minha tortura de cosquinhas. A máscara dela cai, revelando seu rosto avermelhado.

— Diga! — insisto.

— Nunca! — responde ela e segura minhas mãos, lutando comigo e me derrubando ao seu lado.

Em pouco tempo, minhas costelas doem por causa de seus dedos incansáveis e estamos nos abraçando e rindo tanto que lágrimas escorrem de nossos olhos.

— Certo. — Thomas recupera a compostura o bastante para pedir um cessar-fogo. — Os velhos ganharam, simples assim.

— Dobrados novamente — comenta Alyssa, apontando para nossas espadas flexíveis de treino. A piadinha tira uma risadinha de Jebediah, que toca na mão ensanguentada dela.

Thomas me ajuda a levantar e toco os riozinhos vermelhos do meu casaco e calças de esgrima, o líquido grudento entre meus dedos.

Meu marido me oferece uma toalha para limparmos a bagunça. Uso a minha para enxugar meu rosto e minha testa.

— Ainda acho que o sangue falso de Halloween foi um exagero — opina Jenara do balanço na varanda, onde ela e Corbin esperam para desafiar a equipe vencedora. Eles bebem limonada de um tom de rosa igual ao dos cabelos dela. Ela retorce o nariz. — Foi uma cena bem assustadora.

— Você só pode estar brincando — diz Alyssa com uma risadinha ansiosa, admirando os milhares de gotas vermelhas nas roupas e nas rosas, madressilvas e ervas prateadas no jardim. — É lindo. Assim como qualquer decoração, ela só precisa ser transformada em algo novo.

A trança loira comprida às suas costas balança como se ganhasse vida. Ela usa sua mágica para suspender as gotículas brilhantes das plantas e flores e fazer as manchas em nossas roupas se juntarem a elas. O sangue falso paira no ar e ali fica, as gotas se fundindo como chuva na vidraça, até formarem uma treliça — um arco tremeluzente vermelho que parece um vitral. Alyssa segura a mão de Jebediah e o puxa para perto. Ele ri, guiando-a na dança sob o gazebo improvisado. Seus movimentos são graciosos e sincronizados, os corpos jamais destruindo a obra de Alyssa.

Thomas tomba a cabeça num gesto de repreensão, apesar de ser impossível ignorar o orgulho em sua expressão. Se não fosse pela cerca de madeira de três metros que ele recentemente instalou para nos proteger de curiosos, é bem provável que ele não estivesse vendo o showzinho de Alyssa com tanta leveza.

Se bem que ela sempre conseguiu dominá-lo com seus encantos.

Nossa filha olha para ele, rindo, em paz e à vontade como nunca a vi em todos os seus dezessete anos.

Como resultado de seu treinamento de mágica com Morfeu em seus sonhos, ela está executando os feitiços com perfeição, sendo capaz de dar vazão a seus poderes apenas com o pensamento. É em momentos como este que vejo: a rainha mística fervilhando sob a superfície. Uma predisposição ao sangue e ao caos. Como ela ganha vida em chamas e tempestades. Como a mágica dela inspira e doma o pandemônio. Como ela encontra beleza em tudo o que é mórbido e bizarro.

É irônico. Tentei por muito tempo cultivar essas qualidades em mim, mas meu lado humano era forte demais. Nunca pretendi ser rainha. Desejava, mas não de coração.

A dança termina e, com um virar de pulso de Alyssa, as gotículas de sangue caem em câmera lenta — como flocos de uma neve macabra — e novamente repousam em nossas roupas, nas folhas e nas pétalas das quais se originaram.

Jenara bebe o restante da limonada, os cubos de gelo no copo se chocando uns contra os outros.

— Vai ser bem difícil limpar essa bagunça toda.

Alyssa dá de ombros e ri.

— Nada que um frasco de água sanitária e uma mangueira não resolvam.

— Não. Não vou usar água sanitária nesta obra-prima. — Jenara estica os braços para mostrar o casaco rosado cobrindo seu corpinho. Ela o tingiu há algumas semanas e acrescentou uma renda delicada nas mangas e no colarinho. Colocando o copo de gelo ao lado do pé de Corbin, ela sai do balanço. — Se vamos insistir no uso de sangue, vou vestir meu casaco preto.

Corbin a segura pela cintura e a puxa de volta para seu colo.

— Ah, venha cá, princesinha. Vamos derrotar os mais velhos antes mesmo de você quebrar a unha. Jeb e Al simplesmente não têm os movimentos apropriados.

Jenara sorri.

— Bem notado.

— Uha! — Num movimento fluido, Alyssa pisa na espada caída a fim de que ela fique perpendicular ao chão e bata com o cabo em sua mão espalmada. — Venha cá e diga isso na minha cara, Cor-bin-ara.

Troco olhares com meu marido e rio.

— Bela manobra, menina skatista. — Jebediah dá uma risadinha, brandindo seu florete. — Quer uma disputa sob o salgueiro? — Ele arqueia a sobrancelha.

— Você não vai durar dois segundos. — Ela abre um sorriso rápido, seu anel de noivado brilhando à luz ao passar a espada de uma mão para a outra num movimento único e fluido.

— Ah, é mesmo? — pergunta ele, para, sem aviso, erguê-la e jogá-la sobre o ombro. A espada cai no chão com um baque, e ela ri enquanto ele a leva até a árvore e derruba os dois nas folhas que pendem baixo.

Ela poderia facilmente usar seus poderes para se libertar. Mas aí é que está. Não quer se livrar dele. Nunca quis. Ele é seu parceiro humano, em todos os sentidos.

Ela e eu conversamos sobre o que significa a imortalidade... sobre como vai ser difícil quando ele tiver morrido e ela continuar viva. Ela me garantiu que pode sobreviver — apesar de seu olhar ficar distante ao imaginar isso e de seu rosto nublar-se ao pensar na situação. Contudo, acredito na devoção dela ao País das Maravilhas, e Morfeu é poderoso o bastante para ajudá-la a superar essa perda. E sei que, quando tal dia chegar, a imortalidade dela será algo estonteante. Morfeu vai cuidar dela. Ele a tratará como realeza. Ele o faria mesmo que ela não fosse uma rainha, porque admira a coragem dela.

Ela é uma guerreira e eu sou uma covarde. Meu medo de perder Thomas supera qualquer lealdade que um dia eu tive pelo reino interior. Não consigo viver sem ele por toda a eternidade. Por esse motivo, entre tantos outros, fico feliz por meu espírito não ser mágico e eu ainda ser mortal. Mesmo que viva mais que meu marido, não será por muito tempo. E me sinto segura nessa inevitabilidade.

Ver Jeb e Alyssa lutando e rindo me faz sorrir. Eles são tão parecidos com Thomas e eu quando tínhamos essa idade — cheios de esperança. A diferença é que eles têm uma chance real de conquistar tudo o que sonharam, porque não há mentiras entre eles. O País das Maravilhas é um livro aberto que ambos leram e viveram. Eles até mesmo incluíram Jenara e Corbin em seu círculo íntimo.

Só recentemente Thomas e eu tivemos a verdade para nos unir. E tenho de agradecer minha filha por nos dar essa segunda oportunidade e por me devolver minha sanidade. Fecho os olhos, escutando. Tudo o que ouço é a água de nosso chafariz e as brincadeiras de Jebediah e Alyssa. Nada da conversa dos insetos. Nada do sussurro das flores.

De acordo com meu pedido, três meses atrás, quando Thomas, Alyssa, seu noivo e eu voltamos de nossa última viagem ao País das Maravilhas, Alyssa usou seus poderes reais para pôr um ponto-final nas intermináveis conversas em meus ouvidos, e ela se certificou de que seus descendentes ouçam apenas o silêncio. Só ela agora tem uma linha direta com os insetos e as plantas. Assim como ela é a única que ainda faz, nos sonhos, visitas regulares ao reino interior.

Apesar de ainda ter meus brotos de asa e as marcas nos olhos, minhas características intraterrenas só aparecem se eu deixar. Então, pela primeira vez desde meus dezesseis anos, me sinto normal. E, pela primeira vez desde meus doze anos, lembro-me do silêncio.

Achei que sentiria falta das vozinhas que me acompanharam ao longo de toda a adolescência, vozes que se tornaram minhas confidentes quando ninguém mais ouvia; porém, não preciso mais delas como muletas. Agora tenho uma família e um marido que sabe e compartilha da minha história no País das Maravilhas.

Nunca mais ficarei sozinha.

Meus olhos se abrem e sinto os dedos firmes de Thomas se entrelaçarem aos meus, como se ele lesse meus pensamentos. Nada me dá mais segurança que a sensação da mão dele na minha.

— Divirtam-se, meninos — diz ele. — Vamos acabar por aqui. — Ele vira os olhos castanhos para mim e beija os nós dos meus dedos, provocando um arrepio que me vai do braço ao coração. — Prometi à minha constrangida esposa que sairia com ela no nosso aniversário de vinte anos. Continuaremos amanhã. — Estreita os olhos na direção de Corbin e Jenara. — A não ser que vocês dois estejam prontos para perder agora. Todos sabemos como isso vai terminar. A idade e a sabedoria sempre vencem a juventude e a irresponsabilidade. — Sua risadinha maliciosa à la Elvis é recebida por bufadas dos jovens.

— Até parece, sr. G. — fala Jenara com ar de deboche. — Amanhã... mesma hora, mesmo lugar. Eu estarei de preto. E se lembre: o perdedor tem que usar um vestidinho curto em público. Prepare-se para a maior transformação da sua vida.


Enquanto Thomas toma banho, observo-me no espelho sobre o lavabo. Uma tarefa mundana para a maioria das pessoas, mas algo que tenho evitado desde que conheci meu marido.

Finalmente, depois de todos esses anos, não preciso mais me esconder de espelhos. Não preciso mais ter medo de ver a expressão crítica de Morfeu atrás de meu reflexo.

Meu vestido é simples e elegante: renda branca com um decote nas costas e sem mangas. Uma tira de renda contrastante — cor de um cappuccino — afina minha cintura e complementa o brilho bronzeado da minha pele recém-lavada. O sutiã envolve meus seios, e a saia, meus quadris — a barra abaixo do joelho. Alyssa e Jenara me ajudaram a escolhê-lo na loja, jurando que ele era sensual o bastante para deixar Thomas de olhos arregalados. Estou ansiosa por testar a teoria.

Ficamos separados, desnecessariamente, por muito tempo. Talvez por isso ele faça com que eu me sinta como uma menininha apaixonada, porque cada momento que passamos juntos é como redescobrir tudo de novo — suas palavras gentis, seus beijos, sua risada e sua bondade.

Com um toque de blush no rosto e um quê de batom vermelho nos lábios, estou pronta. A energia e a vitalidade pulsam em meu corpo e geram faíscas sob minha pele. Meus cabelos platinados na altura dos ombros envolvem sedutoramente meu rosto, de forma que dou início à tarefa de prendê-los com grampos brilhantes.

Uma mulher prestes a sair com o marido de vinte anos de casamento... é isso que vejo. Houve um tempo, porém, em que eu não estava sozinha na nostalgia, quando qualquer superfície refletora abria as portas para o louco e caótico País das Maravilhas que eu pretendia dominar. Salvei o menino na teia daquele mundo e fiz o meu melhor para dar as costas a tudo isso quebrando todos os espelhos por perto.

Foi errado abandonar tudo sem nem uma explicação. Agora sei disso.

Fugi às minhas responsabilidades, num pacto com o próprio diabo. Então Morfeu, entrando nos sonhos da minha filha — me usando como um canal involuntário —, encontrou outra maneira de me fazer pagar. Ele apareceu para ela todas as noites durante os primeiros cinco anos de sua vida, disfarçando-se de criança — a tal ponto que virou criança de corpo e alma —, de modo a ser o amiguinho dela e conquistar seu afeto e confiança. Quando descobri, tentei reagir ao ataque mental dele com um conflito físico, a fim de protegê-la fazendo a única coisa que me era possível: ir embora.

Fecho os olhos e, por um instante, meu vestido no espelho se transforma na camisa de força que se tornou minha arma preferida.

Como pude achar que não haveria consequências por ter me escondido num hospício? Esperava que ele encontrasse outro parceiro de luta... outro Liddell para explorar, alguém que pudesse salvar-lhe a alma dessa maldição de passar a eternidade preso no covil da Irmã Dois. Para escapar ao seu destino, ele tinha de realizar a Maldição da Vermelha, coroando uma rainha da linhagem dela com a tiara de rubi, enquanto a própria Vermelha possuía o corpo da outra. Equivocadamente supus que, ao decepcioná-lo, ele seguiria em frente e encontraria outra vítima num parente distante, respeitando minha escolha.

No entanto, havia uma rachadura na minha armadura e meu adversário a penetrou. Eu deveria ter previsto. Desde que conheço Morfeu, ele nunca seguiu em frente. Não tendo seu objetivo em vista. Ele é o estrategista mais brilhante e mais paciente que jamais conheci.

O vapor do banho de Thomas nubla meu reflexo e por trás da névoa me vejo como era quando descobri os planos de Morfeu para Alyssa: aquela mãe jovem e ingênua, temendo pelo futuro da filha. Culpada por colocar a filha em perigo. Minha menininha nunca quis ser minha substituta, mas, com minha traição, foi exatamente isso que ela se tornou.

Optei por não contar a Alyssa minhas escolhas e as repercussões delas porque achava que tinha conseguido poupá-la. Mas todo aquele tempo no hospício, longe do meu marido e da minha filha, não teve importância. Nem o juramento de Morfeu de não entrar em contato com Alyssa de novo. Porque ele já tinha plantado, na mente dela, memórias dos momentos a dois, contando com a curiosidade que ela herdou de Liddell para convencê-la a procurá-lo. Aos dezesseis anos, ela encontrou a toca do coelho sozinha, exatamente como ele planejara.

Minha mão dispersa involuntariamente a lembrança e puxo uma mecha de cabelo com força demais. Sinto uma dor no couro cabeludo e faço uma careta. Rearrumando a mecha, prendo-a com um grampo.

Morfeu convenceu minha filha a conquistar a coroa que eu desejava e acabei por desprezar. Ao longo do processo, ele se salvou. Era uma responsabilidade pela qual Alyssa não tinha pedido, apesar de ela acabar por aceitá-la e até mesmo adotá-la. Ainda assim... ele a convenceu a virar rainha sem lhe contar todos os fatos.

A única coisa que me deixa feliz é saber que ele não saiu incólume. Ele pagou um preço. Um preço que jamais imaginou.

Enquanto “amadurecia” com Alyssa nos sonhos de infância dela, enquanto a observava enfrentar todos os desafios que ele lhe impunha no País das Maravilhas, Morfeu — o ser solitário e egoísta antes incapaz de amar — apaixonou-se completamente por ela. Eu não acreditaria, se não tivesse visto com meus próprios olhos. Ele sentiu a força de sua devoção quando desistiu da oportunidade de tê-la ao seu lado no reino interior. Quando ele optou por esperar, a fim de que a metade humana do coração dela pudesse se curar, até que ela fosse forte o bastante para governar o reino Vermelho eternamente.

Por causa desse sacrifício, começo a suspeitar que talvez ele não seja demoníaco. Que talvez, depois de todos esses anos, eu esteja vendo um lado dele quase vulnerável e amoroso. Um lado que ele manteve afastado de mim, a não ser por um ou dois vislumbres dos quais me esqueci ao longo dos anos.

Ainda assim não estou pronta para perdoá-lo por usar minha filha. Porque, para isso, teria de me perdoar por torná-la responsável por minhas confusões. E por mais que Thomas queira... não tenho certeza se consigo.

A vida de Alyssa sempre foi dividia ao meio por causa de mim. Ela sempre tolerou tudo com tranquilidade. Ninguém podia vê-la com seus assuntos interiores e negar que ela foi feita para ser rainha. Ela ama o mesmo mundo que acabei por odiar.

E, como amo minha filha, de alguma forma tenho de aprender a adotar aquele mundo novamente. De outro modo, nunca superarei o fato de ter deixado Morfeu e toda a loucura do País das Maravilhas entrarem em nossa vida.

Meu reflexo nebuloso me traz de volta ao aqui e agora. Passo meu perfume preferido nos ombros e pulsos — nadando em tons de maracujá e laranja —, depois maquio o nariz com pó, saindo do banheiro antes que o vapor do banho de Thomas possa borrar a maquiagem.

Coloco brincos de pérolas e um colar e bracelete combinando, depois me sento na beirada da cama e movimento os dedos do pé, me concentrando na porta fechada do nosso quarto. Sons de portas de armários e panelas batendo umas nas outras vêm do outro lado. As crianças estão na cozinha, preparando algo para o jantar. Penso em ajudá-las enquanto espero Thomas, mas não estou pronta para enfiar os pés no par de salto alto ao meu lado. O carpete é tão gostoso... fofo e farto. Em vez de ajudá-las, deito-me no edredom, abro os braços e fecho os olhos, relaxando músculos que ainda doem por causa da esgrima mais cedo.

Atenta ao ritmo da água contra o boxe do banheiro, permito-me voltar a outro dia e hora, quando tinha treze anos, olhando para o mundo tomado pela chuva. Quando aceitei o chamado interior durante um dos períodos mais tristes e solitários da minha vida.

Foi quando Morfeu se aproximou de mim e me ofereceu poder e vingança na palma de sua mão manipuladora. Foi o dia que mudaria, para sempre, quem eu iria me tornar.


Capítulo 2


Encaixotada

Vinte e seis anos antes...

A chuva batia na caixa de papelão vazia sobre minha cabeça. Eu a virei de lado e entrei nela antes da tempestade. A Lixeira ao meu lado fedia a peixe morto e fruta podre, superando os cheiros frescos de asfalto e terra molhados. Poças marcavam a rua irregular e a água jorrava das calhas que pendiam dos fundos do meu prédio de apartamentos do outro lado do beco.

Uma lufada de vento invadiu meu abrigo improvisado. Acocorei-me contra a parte de trás da caixa, colocando minha sacola atrás do pescoço como um travesseiro e segurando as páginas de Alice no País das Maravilhas a fim de eu não me perder na leitura. Algumas semanas antes, risquei o Alice no título e o substituí por Alison. Em parte era para todos saberem que o livro era meu. Mas havia mais... parte de mim queria que eu pudesse viver as mesmas aventuras... que eu de alguma forma fosse Alice e entrasse numa toca de coelho onde um mundo novo me aguardasse — um mundo onde alguém tão peculiar e deslocada quanto eu talvez se encaixasse. Um lugar do qual eu pudesse fazer parte.

Nunca fui boa em entender outras pessoas. Principalmente porque eu me mudava demais. Pelo menos era o que eu dizia para mim mesma. Não tinha nada a ver com minha dificuldade em confiar nas pessoas ou minha incapacidade de me relacionar com elas diariamente.

A leitura me dava amigos o bastante, e os livros de Lewis Carroll eram meus preferidos, sendo uma das poucas coisas que minha mãe me deixou ao morrer, pouco depois do parto. As histórias me aproximavam dela, apesar de jamais tê-la conhecido. Talvez porque, secretamente, eu entendesse como o País das Maravilhas era real para ela, considerando nosso parentesco distante com os Liddell de Londres.

Certa vez, quando eu morava num orfanato e esperava por uma família adotiva, entrei no escritório e li minha ficha. Só assim é que pude descobrir minha origem. Alice Liddell, a menina real que inspirou as histórias de Carroll, teve um filho que, antes de ir para a guerra e morrer no campo de batalha, se envolveu com uma mulher. A namoradinha dele acabou grávida e veio para os Estados Unidos a fim de criar o filho ilegítimo. O menino cresceu e teve uma filha: minha mãe, Alicia.

De alguma forma, tudo isso deixava minha mãe maluca. Minha ficha dizia que ela passou algum tempo num hospício quando adolescente, depois de pintar os personagens do País das Maravilhas em todas as paredes de casa e insistir que eles conversavam com ela nos sonhos. Quando nasci, ela saltou do segundo andar do hospital para testar as “asas de fada” que as vozes diziam que ela tinha. Ela caiu num arbusto de rosas e quebrou o pescoço.

O médico disse que ela cometeu suicídio — depressão pós-parto e luto por ter perdido meu pai meses antes, num acidente de fábrica. Qualquer que fosse o motivo, algo nunca foi explicado... as marcas do tamanho de uma moeda em suas omoplatas, grandes demais e perfeitamente separadas para terem sido causadas por espinhos.

Minha opinião? Ela tinha asas, sim. Asas que nunca brotaram. Se sou louca por pensar isso, paciência. Porque, se eu era maluca, isso significa que tínhamos uma relação. Algo em comum. Desde que ninguém ficasse sabendo.

Minha mãe também deixara para trás uma câmera polaroide — do tipo que cospe imagens prontas ao aperto de um botão. Sei como usá-la desde os cinco anos.

Abracei com mais força as fotografias que tirei da bolsa. Era algo em que me tornei boa: me esconder atrás de árvores nos parquinhos ou de carros no estacionamento de shoppings para captar momentos das famílias e amigos de outras pessoas. Gostava de me cercar deles — me protegendo, assim, da falta da minha própria família.

Arregacei a manga da minha jaqueta jeans para consultar o relógio. Só mais dez minutos e as aulas terminariam. Então eu voltaria para meu apartamento e fingiria ter passado o dia onde deveria ter estado. Apareci no início da minha última aula, ficando o suficiente para ser considerada na lista de presença, antes de “dar um passeio no banheiro” e não voltar mais. Com alguma sorte, a srta. Bunsby, minha cuidadora mais recente, jamais ficaria sabendo da minha fuga. Moro com ela só há um mês. Não queria incomodá-la e ser abandonada de novo. Apesar de ser uma viúva vegetariana de quarenta e tantos anos, ela era a melhor cuidadora que já tive.

Olhei para o sexto andar do prédio. Nosso apartamento ficava mais à esquerda, onde a escada de incêndio estava toda enferrujada, virando um esqueleto preto pendente e inútil. Eu era ótima em escalada e tentara fazia algumas semanas descer pela escada e sair à noite para uma sessão de fotografias. Escorreguei e caí.

Seis andares era uma queda e tanto. Eu deveria ter morrido ou ao menos quebrado alguns ossos. Durante a queda, porém, entrei em estado de sonho e, de alguma forma, ao acordar não tinha nenhum ferimento. Não estava nem mesmo com dor. Só tinha uma lembrança estranha de enormes asas pretas.

Mexendo nas fotos, encontrei uma no fim da pilha: uma mariposa enorme de corpo azulado e asas pretas, toda aberta numa flor entre um ângulo de sol e sombra. Lembro-me de quando a vi no parque, como se ela estivesse paralisada entre dois mundos. Tirei a foto não apenas pelo simbolismo, mas também porque já tinha visto o inseto antes. Minha mãe tinha desenhado uma mariposa como aquela numa folha de papel mantida dentro dos livros da Alice. O mais estranho é que ela também tinha feito, bem ao lado, um esboço da Alice presente nas ilustrações do País das Maravilhas. De alguma forma — em sua mente —, os dois desenhos estavam conectados. Perdi o desenho durante uma de minhas muitas mudanças. Então, ao ver aquela mariposa idêntica, ao vivo e em cores, tive de imortalizá-la com minha câmera.

Suspirando, guardei a imagem no meu livro da Alice, para marcar a página. Aquela foto era a preferida da srta. Bunsby. Ela disse que eu tinha um dom, que, se eu continuasse melhorando, ela me daria a câmera do marido — uma Yashica 44 —, assim como seus livros sobre revelação de filmes.

Ela foi um dos poucos adultos que acreditaram em mim sem me criticar. Todavia, se a srta. Bunsby soubesse que eu achava que essa mesma mariposa exercera um papel nas fantasias da minha mãe quanto ao País das Maravilhas, ela pensaria que minha imaginação era fértil demais, como meus professores e cuidadores sempre disseram. Fiz a pesquisa na biblioteca. Mariposas vivem meses, não décadas.

Pensar nisso meio que me deixou assustada. Mas também fez com que eu me sentisse especial, como se eu e minha mãe importássemos para alguém em algum lugar — o bastante para merecermos ser observadas. Não foi a primeira vez que senti que insetos e plantas estavam tentando entrar em contato comigo de um jeito que não tentavam com outras pessoas. Eu ouvia vozes desde que cheguei à puberdade, perto do meu aniversário de doze anos, há um ano. Ainda assim, sabia muito bem que não deveria compartilhar isso com ninguém, pelo risco de acabar na ala psiquiátrica, como minha mãe.

Meu estômago roncou e coloquei a mão na barriga. A srta. Bunsby serviria beterraba e caçarola de tofu hoje à noite. Só de pensar nisso minhas papilas gustativas querem sair correndo. Tive de economizar meu lanche ao máximo. O pacote de biscoitos com manteiga de amendoim que guardei do almoço estava aberto ao meu lado. Coloquei um deles na boca e o mastiguei lentamente. Migalhas se acumularam na ilustração de Alice fugindo de alguns guardas da Rainha de Copas, na esperança de manter a cabeça, de modo que as espanei dali, fazendo-as cair na minha coxa.

Uma barata surgiu de baixo das abas da caixa e subiu pela minha calça para pegar um pouco de comida sem nem sequer um “por favor” ou “obrigada”. Em minha opinião, as baratas eram os insetos mais rudes do mundo. Eu conversara com moscas e besouros que eram educados e interessantes. Mas as baratas nunca tinham muito a dizer além de resmungar por causa da falta de lixo e sujeira, agora que os seres humanos habitavam o mundo delas, alegando que os sacos de lixo e os aspiradores de pó estavam prestes a acabar com elas.

Agitei a mão, afastando o inseto. Encolhi-me mais na caixa e censurei meus maus modos.

— Estou tentando ajudá-la, sua idiota. Você quer ser esmagada? — Peguei minha bolsa, enfiando as fotos e livros dentro dela, e saí para a tempestade, correndo até o espaço entre meu prédio e a barbearia ao lado.

A única entrada era pela frente. Nosso senhorio, Wally Harcus, mantinha a porta dos fundos trancada “por segurança”. Pelo menos era o que ele dizia. Ele só queria tirar vantagem de todas as mães solteiras e menininhas que viviam em seu prédio de aluguel barato. A porta dele era a primeira do corredor, o que significava que ele tinha a situação perfeita, da perspectiva de um pervertido.

As gotas de chuva e o gelo me feriam. O tecido da minha jaqueta e da minha calça absorvia todas as gotas e eu me sentia cinco quilos mais pesada e vinte graus mais gelada assim que entrei no prédio.

Minhas mãos estavam molhadas demais para segurar a maçaneta e, por isso, a porta se fechou com um baque. Gemi ao ouvir o barulho.

Mal tinha passado pela porta de Wally quando esta se abriu. Segui lentamente pelo corredor até a escada, mantendo os olhos no homem.

Seu rosto suado apareceu antes, depois todo o corpo, camadas de banha mal contidas por uma camiseta azul justa e calça cáqui manchada de gordura. Dava para sentir o fedor dele com meus olhos — o cheiro de carne e repolho podres. Bolsas de suor formavam círculos irregulares sob seus braços, criando uma mancha azul-marinho.

Ele sempre me lembrava uma morsa — careca, dobras de pele sobre a sobrancelha, o queixo duplo e um bigode que parecia um salsichão polonês semicomido pendendo sobre seus lábios gordos. Os sons que emitia cada vez que respirava só contribuíam para a ilusão de um mamífero marinho.

— Oi, Alison. Se molhou um pouco, né? — Seus olhos brilharam, escuros e aquosos como carvão líquido, ao dar uma mordida em seu damasco maduro demais. O suquinho escorreu por seu queixo e ele abriu uma risadinha maliciosa. Seus incisivos, grandes demais para sua boca, exibiam-se como presas de marfim subdesenvolvidas.

Meu estômago se revirou de novo enquanto ele saía completamente para o corredor e encarava meu peito, a camiseta grudada no corpo. Ele parecia faminto, como se fosse me engolir toda. Fechei a jaqueta e tirei mechas de cabelo molhado do rosto.

— Tenho chocolate quente no fogão. Quer uma xícara? — perguntou ele.

Eu o surpreendi me encarando várias vezes, mas ele nunca antes teve coragem de me convidar para entrar. Engoli em seco e segurei com força as alças da bolsa.

— Não, a srta. Bunsby está me esperando.

— Não está, não. Teve de ir rapidinho ao mercado. — Ele me mostrou um bilhete.

Só tive tempo de ver um triângulo amassado com as palavras voltarei dentro de uma hora, antes de ele guardar o bilhete no bolso.

— Na verdade — continuou Wally —, ela me disse para lhe fazer companhia. Disse que você é nova demais para ficar sozinha sem causar problemas. Posso ir ao seu apartamento, se você quiser. — Ele balançou as chaves que pendiam do cinto, o sorriso ainda maior.

Idiota.

Eu o odiava e me odiava ainda mais por estar com medo. Já encarei monstros como ele antes. Numa família adotiva anterior, tive um irmão adotivo de catorze anos que me prendeu no porão e enfiou a língua na minha boca enquanto suas mãos subiam por sob minha camiseta. Ainda assim fui devolvida ao abrigo por morder a ponta da língua dele e quebrar seu polegar. Eu era a problemática.

Infelizmente para mim, não seria tão fácil me livrar de Wally Harcus quanto foi me livrar de um adolescente magricela.

Meus calcanhares tocaram o primeiro degrau, me detendo. Era correr ou lutar. De uma coisa eu sabia: a srta. Bunsby jamais pediria à morsa que me fizesse companhia. Ele provavelmente a viu saindo e pensou que era a chance perfeita de tentar algo. E ali estava ele entre mim e minha única rota de fuga. E, mesmo que eu me trancasse dentro do nosso apartamento, ele tinha as chaves para entrar.

Eu podia colocar algo contra a porta e ganhar tempo para descer pela escada de incêndio quebrada. Eu provavelmente cairia e morreria, mas isso seria melhor do que a alternativa.

Dei meia-volta e subi os quatro lances de escada. Dava para ouvir os passos dele me seguindo devagar, se arrastando. Ele não tinha pressa. Todos cuidavam da própria vida aqui. Ninguém o impediria, o que tornava a perseguição tão desafiadora quanto a de uma mosca já presa na teia da aranha.

Lágrimas encobriam minha visão ao chegar à porta do nosso apartamento. Um pedaço de fita adesiva pendia com um pedacinho do bilhete da srta. Bunsby no ponto onde ela o prendera, perto do olho mágico. Wally tinha pegado a cartinha que ela deixou para mim.

Engolindo em seco a bile que subia pela garganta, lutei para enfiar a chave na fechadura. A adrenalina usava meu coração como saco de pancadas, socando-o até que ele batesse incontrolavelmente no peito. Tinha acabado de conseguir entrar, fechar a porta e trancá-la, quando Wally subiu o último degrau da escada de nosso andar.

Com todo o corpo rígido, arrastei a cadeira preferida da srta. Bunsby e a coloquei sob a maçaneta, correndo para me trancar no quarto, deixando a bolsa cair junto à soleira, do lado de dentro. A tarde nublada reduzia a luminosidade do dia a uma névoa cinza e, com as cortinas pesadas cobrindo as janelas, as sombras inundavam o quarto e pintavam formas fantasmagóricas nas paredes nuas.

Chaves tilintavam do lado de fora do nosso apartamento, alto o bastante para eu ouvi-las pela porta fechada. Chorando, fui até a janela, abri as cortinas e o vidro. Uma lufada de vento e chuva soprou em meus cabelos, fazendo-os bater contra meu rosto. Lágrimas escorriam queimando meu rosto, enquanto eu passava uma das pernas pelo peitoril, prestes a me jogar.

— Tsc, tsc. Isso seria uma tragédia e um desperdício. — Um sotaque caipira marcado me deixou paralisada ali, sentada entre a vida e a morte. — Claro que sua existência vale mais que a daquele rato gordo.

Virei a cabeça em direção à voz. No canto esquerdo do meu quarto, as sombras se moviam e assumiam a silhueta clara de um homem.

Consegui falar entredentes.

— Q-quem está aí?

— Apresentações não são necessárias entre amigos. — O intruso saiu para a luz fraca, revelando um rosto ao mesmo tempo belo e assustador. Ele não era humano. Não, ele era perfeito e místico demais para isso. Marcas semelhantes a tatuagens brilhavam com cores vivas sob seus olhos escuros e fantasmagóricos. Seus cabelos azulados balançavam sem sincronia com o vento que entrava pela janela. — Acredito que mereço o título de amigo, você não acha? Considerando que da última vez você quase quebrou a cabeça ao descer por essa escada de incêndio. — Asas gigantescas surgiram atrás dos ombros dele, brilhando como seda preta sob a luz cinzenta.

Perdida entre o terror, a descrença e a esperança, trouxe a perna de volta para meu quarto e me encostei na junção entre o peitoril da janela e a parede.

— Você... então foi você. Você me salvou.

Ele alisou as luvas vermelhas que recobriam suas mãos.

— Não exatamente, Alison. Você mesma se salvou ao desafiar as leis da natureza. O simples fato de você ter tentado descer pela escada de incêndio foi digno de uma segunda chance na vida, não? A coragem misturada à estupidez se torna impulsividade, o que é uma característica admirável de onde venho, algo que deve sempre ser recompensado.

Estreitei os olhos para ele.

— Você me recompensou por minha estupidez?

Ele segurava uma cartola diante de si e a acariciava como se ela fosse um gato.

— Sua impulsividade. — Uma risada reverberou em seu peito. — Você é estranha, não é? Você não duvidou de mim ainda, nem questionou se sou real. Nem mesmo perguntou como sei seu nome. Você não se importa com nada disso, não é?

Fechei as mãos ao lado do corpo.

— Não importa se sou louca, desde que minha loucura me ajude a sobreviver.

Ele arqueou a sobrancelha, obviamente feliz e surpreso com minha resposta.

— Ah, você fala como uma verdadeira criatura do reino interior. A loucura, como qualquer outro aspecto da irracionalidade, pode ser usada como instrumento e arma nas mãos certas.

Não tive nem tempo de perguntar o que era o reino interior porque, no cômodo ao lado, os pés da cadeira arranhavam o piso de azulejo e riscavam meus nervos como garras. Wally estava no apartamento.

Minha garganta secou. Olhei para os degraus escorregadios lá fora e depois para dentro, na direção do homem alado agora de corpo inteiro junto à porta. Ele era alto e gracioso, com dezenove ou vinte anos e vestindo rendas e veludo, como um cavalheiro de outra época.

— Você é... você é o meu anjo da guarda? — Ouvi falar dessas criaturas, mas nunca acreditei que fossem reais. Naquele momento, porém, estava disposta a acreditar em qualquer coisa se isso fosse capaz de me salvar do senhorio ou de um pescoço quebrado.

Meu visitante mostrou os dentes num sorriso lindo que transformou seu rosto no parque de diversões do diabo — malícia oculta por um verniz de adorável persuasão.

— Estou bem longe de ser um anjo, meu patinho. Mas estou aqui para vê-la distribuir um pouco de sua virtude com um tolo pecador. — Ele colocou a cartola na cabeça. Mariposas mortas balançaram na aba, num tributo mórbido ao vento que soprava as cortinas. — Agora vamos nos divertir um pouco com o velho Wally, sim?


Capítulo 3


A Longa Perna
da Lei

Os passos de Wally, a Morsa, se aproximavam da minha porta.

— Não vai deixá-lo entrar, não é? — perguntei ao demônio... anjo... salvador... que seja. Ele ficou imóvel como uma estátua, as joias de seu rosto piscando em vários tons de dourado. — Você vai me ajudar uma última vez? — Uma veia latejava forte no meu pescoço e minhas cordas vocais tremiam como uma tarola.

As asas da criatura se abriram.

— Ah, não, patinho. Você mesma vai se ajudar. Afinal, você é quem tem uma linha direta com os mais antigos habitantes da Terra. Eles são mestres em outras coisas além de conversinhas, Alison. Eles têm habilidades. Você só precisa pedir uma mãozinha. — Ele apontou uma aranha de pernas longas que passava pela parede atrás dele, lançando uma sombra enorme sobre o gesso branco. — Ou oito patas. O que você preferir.

Antes que eu pudesse entender o gracejo, meu hóspede místico desapareceu numa nuvem de poeira azulada, substituído por uma mariposa do tamanho de um pássaro que se escondeu de novo nas sombras.

A mariposa da minha imagem... do desenho da mamãe.

Meu olhar se voltou para as polaroides que saíram pela abertura da bolsa. Antes de poder me ater a elas, a porta se abriu, criando uma trilha pelas memórias roubadas.

Meu estômago se revirou quando Wally entrou. Pedacinhos brilhantes de damascos estavam presos a seu bigode. Ele usou as costas da mão gorda para se limpar e quase tropeçou no meu exemplar de Alice no País das Maravilhas.

Ele o pegou e fez um barulho de desprezo.

— As aventuras de Alison no País das Maravilhas? O que há de errado com você, menina? Você é louca ou só estúpida? — O desenho da mariposa caiu do livro quando ele o balançou. Wally ficou olhando a imagem cair no chão. — Espere aí, já vi esse inseto. Estava tentando tirá-lo do prédio. Foi o que me levou à sua porta... — Wally se deteve, como se tivesse falado demais. — Afaste-se dessa janela. Isso não é nenhuma toca de coelho. Você vai tropeçar e eu terei que limpar sua bunda raquítica do asfalto.

Travei a mandíbula, imóvel.

Ele jogou o livro no chão.

— Olha, posso fazê-la suspirar ou chorar. De qualquer forma, isso vai acontecer.

Minha atenção passou de seu olhar desejoso para a parede sobre a porta. Para o desfile de aranhas saindo de um buraco atrás dele, na moldura da porta, cobrindo a parede e o teto. Havia umas trinta aranhas agora e mais delas surgiam. Será que a tempestade as despertou?

Peça uma mãozinha ou oito patas...

Talvez eu estivesse tendo alucinações. Talvez eu finalmente estivesse perdendo a cabeça, como minha mãe. Contudo, o que quer que estivesse acontecendo, tinha de usar isso em meu benefício. Não podia me mexer, e eu já tinha perdido a oportunidade de mergulhar para a morte.

— Me ajude — implorei, sem saber direito o que queria dizer com isso nem para quem estava pedindo.

— Ah, vou ajudá-la. — Em segundos, Wally me prendeu contra a parede com sua mão suada no meu pescoço. Segurei o pulso dele com ambas as mãos e enfiei minha unha com força. Ele riu, seu hálito azedo no meu rosto. — É, vou ajudá-la de verdade. Está vendo, sou o coelho branco e vou levá-la numa aventura que você jamais esquecerá, Alice.

Ele me ergueu pelo pescoço até que fiquei só na ponta dos pés. A pressão fechava minha garganta e pontos pretos começaram a surgir no meu campo de visão. Chutei-o, mas ele se desviou e, com a mão livre, começou a mexer no meu cinto.

Meus músculos abdominais se contraíram, num sinal de repulsa. Os pontos pretos aumentaram, mas não por falta de oxigênio. Virei os olhos e vi o enxame de aranhas nas paredes e no teto — centenas delas.

— Ajude-me agora — ordenei desta vez, sem hesitar. Minha única esperança era tirar Wally do apartamento com uma avalanche de aranhas levando-o escada abaixo.

A reação das aranhas foi instantânea e violenta. Wally gritou e me soltou quando o enxame começou a subir por ele, entrando em seus sapatos e escalando suas pernas. Afastei-me da janela e puxei o ar, enquanto os insetos continuavam com sua marcha, tomando conta do peito dele. Seus gritos de horror eram abafados pelos sussurros furiosos das aranhas que o recobriam. Mais aracnídeos vieram substituir aquelas que morriam. Elas chegaram ao pescoço e ao rosto de Wally, depois encheram sua boca entreaberta, silenciando seus gritos desesperados. Ele levou as mãos ao pescoço, os braços nus cobertos por mangas de pernas ágeis e tórax arfantes.

Seu nariz e seus olhos desapareceram sob a infestação crescente. Ele perdeu o equilíbrio e tentou se segurar na parede, mas errou o alvo. Caiu da janela aberta, engasgando-se durante a queda.

Paralisada, recuei até a porta do meu quarto, perdendo o fôlego ao ouvir o baque pesado do corpo dele no asfalto molhado.

Um movimento repentino no canto esquerdo do quarto me distraiu. A mariposa saiu das sombras e pousou no peitoril, observando a confusão lá embaixo. Um ataque de náusea queimava meu estômago.

— Foi um acidente — choraminguei para o inseto, como se estivesse me confessando. — Eu... não queria que isso acontecesse!

— Ah, mas eu queria. — Aquele sotaque se revirava dentro de minha mente. A voz pertencia à mariposa e ao homem. De alguma forma, eles eram a mesma coisa e de alguma forma também estavam ligados às histórias do País das Maravilhas. Minha mãe tinha entendido tudo. O que significava que ele nos observava fazia anos. Não só isso; ele levara Wally ao meu apartamento mais cedo. Foi por causa dele que o senhorio encontrou o bilhete da srta. Bunsby antes de mim. Tudo foi armado.

Eu não conseguia falar, envolvida por um furacão de confusão, surpresa e arrependimento.

— Não se preocupe com aquele rato, Alison — repreendeu-me mentalmente a voz britânica. — Há incontáveis jovens a quem ele fez mal. Coube a você resolver o problema. Desequilíbrio gera desequilíbrio. O caos é o que restabelece o equilíbrio. Haverá repercussões. Você não pertence mais a este lugar. É melhor assim. Você está destinada a muito mais do que este mundo tem a oferecer. — A mariposa voou sobre mim, pairando diante do meu rosto. — Assuma a responsabilidade. O poder é o único caminho para a felicidade, e posso ajudá-la a conquistá-lo. Meu nome é Morfeu. Encontre um espelho e me chame quando estiver pronta para viver seu destino.

Ao dizer isso, o enorme inseto virou-se e saiu pela janela.

— Espere! — gritei. Lágrimas ensopando meus olhos, me arrastei até a janela e olhei para baixo. Dois adolescentes de bicicleta que estavam ao lado do corpo de Wally olharam para cima. Pouco antes o homem estava me dominando... agora ele parecia uma boneca quebrada com braços e pernas revirados em poses incomuns até se desencaixarem do restante do corpo. As poças ao lado dele estavam manchadas de vermelho, com o sangue que vertia da parte de trás de seu crânio.

Cachorros latiam e pessoas gritavam, enquanto mais espectadores saíam do prédio. Lentamente, todos voltaram a atenção para minha janela. Vários deles apontaram para mim; alguns menearam negativamente a cabeça.

Queria correr, mas não conseguia me soltar da janela. As aranhas tinham sumido, entrando em milhares de esconderijos acessíveis somente a insetos, abandonando-me ao desejo de ter o tamanho delas, para poder desaparecer e jamais ter de enfrentar as acusações e perguntas que viriam.


Morfeu tinha razão. Não encontrei abrigo depois disso. E suspeito que tenha sido por isso que ele cuidou para que Wally encontrasse o bilhete e me perseguisse.

O departamento de proteção à infância acusou a srta. Bunsby de negligência, alegando que qualquer pessoa com minhas “tendências violentas” não deveria ser deixada sozinha enquanto ela fazia compras. Eles também disseram que eu andava faltando às aulas, o que só fez com que a srta. Bunsby parecesse mais inepta. Fui tirada dos cuidados dela na mesma noite.

Enquanto a polícia e os assistentes sociais entrevistavam a srta. Bunsby na sala, eu guardava minhas coisas, tentando evitar olhar pela janela. A srta. Bunsby tinha deixado um saco marrom de mercado na cama. Engraçado ela pensar que havia fracassado comigo. Deu para ver isso refletido em seus olhos amendoados úmidos quando ela chegou em casa depois de toda confusão. Pena que eu não podia lhe dizer a verdade. Pena que não pude dizer que ela não tinha culpa por eu ter sido cúmplice de um assassinato... que a responsabilidade foi do próprio Wally, e também de uma mariposa mística e de um enxame de aranhas.

Dentro do saco de mercado, ela colocou a câmera do marido, filme e um livro sobre revelação de fotografias. Havia ainda um pacote de biscoitos de manteiga de amendoim, uma maçã e uma garrafa de água. Senti uma dor no coração, porque sabia que podia ter sido feliz com ela, se Morfeu não tivesse outros planos para mim. No entanto, por mais que eu sofresse, me recusei a chorar. Cansei de chorar.

E nunca mais seria vítima novamente.

Ao deixar o apartamento, a srta. Bunsby prometeu tentar me visitar um dia. Eu sabia que isso não aconteceria.

Um mês se passou, cheio de avaliações psiquiátricas e exames médicos, a fim de garantir que eu não estava traumatizada. Por mais que tentassem, os médicos não podiam me considerar louca, porque eu me recusava a dar detalhes sobre o acontecido. Só disse que o senhorio tentou me agarrar, lutamos e ele caiu da janela. Simples assim.

Quando o psiquiatra exibiu os cartões com borrões para me analisar, eu nunca disse com o que eles realmente se pareciam. Não lhe disse que via tocas de coelhos, lagartas fumantes, menininhas usando aventais com facas nas mãos, homens alados, mariposas do tamanho de um papagaio ou exércitos de aranhas. Também não deixei ninguém me surpreender falando de flores e insetos que insistiam em me fazer companhia. Sabia como parecer sã.

Fiz um trabalho tão bom que tive alta sem mais avaliações depois de apenas seis semanas. O problema era que o serviço social não conseguia me colocar com outra família adotiva, considerando toda a minha bagagem. Então o abrigo se tornou minha residência permanente.

Pelo menos era o que eles pensavam. Eu não pretendia ficar ali. Planejava ir a algum lugar onde as leis e os olhos atentos deles jamais me encontrassem novamente. E sabia exatamente quem me ajudaria na fuga.

Todas aquelas semanas em terapia, adiei meu contato com Morfeu. Precisava de tempo para refletir. E cheguei a três conclusões. Primeira, minha família estava de alguma forma ligada às histórias de Lewis Carroll, o que significava que o País das Maravilhas existia em algum nível. Em segundo lugar, Morfeu também estava ligado ao País das Maravilhas e precisava de mim para algo, porque ninguém ajuda outra pessoa sem querer algo em troca. Por fim, antes de ajudá-lo, ele teria de me dar algumas coisas: uma forma de fugir do abrigo e respostas a todas as minhas perguntas.

Era difícil aguentar a solidão. O prédio cinzento tinha vários andares com quartos em todos eles. Eram como dormitórios, com três ou quatro meninas em cada quarto... ou meninos, dependendo do andar. O lugar era cercado por uma grade de ferro para manter os estranhos longe e os internos dentro. Havia apenas um portão, sempre trancado.

A lavanderia — um prédio de teto reto com janelas de ventilação instaladas bem embaixo das calhas — estava abandonada, exceto nos fins de semana, quando nos revezávamos lavando nossas roupas de acordo com o número dos nossos quartos. Concluí que seria o melhor lugar para uma reunião na noite de quarta-feira.

Saí do meu quarto, lanterna na mão, cerca de duas horas depois que as luzes se apagaram.

Encontrei um espelhinho de mão na gaveta de uma das minhas colegas de quarto e o levei dentro de uma fronha, assim como os livros de Lewis Carroll de minha mãe, um caderno de espiral e uma caneta. Ainda não sabia onde o espelho entrava, mas Morfeu insistiu que eu usasse um para chamá-lo. Como a lavanderia estava trancada, subi numa árvore ao lado e alcancei o teto usando os galhos, abri uma janelinha de ventilação e entrei, colocando primeiramente os pés. A sola da minha bota tocou uma secadora, então a queda não foi muito grande.

Cortei a escuridão com minha lanterna, revelando um chão de cimento, lavadoras e secadoras e quatro cestos de vinil. Uma mistura de pó e sabão me fez espirrar. Uns poucos bichos noturnos me receberam antes de cuidar da vida deles.

O luar entrava pelas janelinhas e iluminava o ambiente com um toque prateado cremoso. Arranjei um lugar perto da porta a fim de arrumar minhas coisas. Meu corpo seria uma barricada, no caso de alguém descobrir que eu não estava na cama e vir à minha procura. Se eu bloqueasse a entrada, isso me daria tempo extra para pensar numa desculpa.

Depois de abrir minha jaqueta no chão, como uma almofada, apoiei a lanterna contra a parede, criando um anel de luz, e então me sentei e ergui o espelho.

— Morfeu — sussurrei, e só precisei fazer isso.


Capítulo 4


Vinte Perguntas

Um brilho azul apareceu na superfície do espelho, pulsando. Mas o pulso não era apenas visual; era tátil. Eu o sentia vibrando pelo cabo. Com cuidado, coloquei o espelho no chão. Sob um brilho azulado, a agora conhecida mariposa saiu do espelho, como se estivesse esperando dentro dele o tempo todo.

Ela alçou voo e pousou numa poça de luar à minha frente. Suas asas se encolheram diante do peito e depois se abriram como as de um anjo, revelando uma pele branca e perfeita e partes ocultas meio carnavalescas, iluminadas por joias sob olhos negros. Desgrenhada pela estática mágica emanando da forma humanoide e das roupas extravagantes, uma massa de cabelos azulados na altura dos ombros esvoaçava-se em sua cabeça como se soprada por uma brisa.

Morfeu pairava sobre mim — arrumando o chapéu num ângulo ousado.

— Alison — disse ele simplesmente, e o cheiro doce de algo alcoólico veio em minha direção. — Pronta para fazer um acordo?

Ergui o dedo. Da última vez que estivemos juntos, estava distraída pelo perigo que me cercava e maravilhada com a mágica dele. Tudo isso levou ao assassinato de um homem. Nessa noite, eu daria as cartas.

— Você já brincou de Vinte Perguntas? — perguntei a ele.

Ele tombou a cabeça e deu uma risadinha, erguendo uma das asas por sobre o ombro para limpá-la.

— Deixe-me ver... É algo parecido como Responda ao Enigma?

Fiz uma cara de intrigada.

— Ãhn?

Ele abriu as asas e se sentou no meio da lavanderia, seus traços iluminados pela luz azulada que irradiava de seus cabelos e das joias sob seus olhos.

— Responda ao Enigma: não pertenço a ninguém, mas sou usado por todos. Para alguns, sou dinheiro; para outros, posso voar. Crio espaço e não ocupo espaço. Para os que nunca mudam, não mudo nada. Mas, para os que mudam, carrego o peso das areias do deserto. Quem sou eu?

Mordi o lábio. Não era fácil ignorar a vontade de competir — de provar a ele que eu era capaz de desvendar o enigma. Mas sentia que era exatamente isso que ele queria, e precisava me manter atenta aos meus objetivos.

— A bola está comigo, Morfeu. Vinte perguntas. Eu pergunto e você responde. Não vou fazer acordo antes de você satisfazer minha curiosidade. Nada de perseguir coelhos.

Ele bufou.

— Nem mesmo coelhos brancos?

Franzindo a testa, abri a sacola e peguei a caneta e o caderno.

— Nada de fugir da raia. Respostas diretas. Você quer algo de mim. Se pretende conseguir, eu é quem dou as cartas daqui por diante.

— Ora, ora. Tão jovem e tão tirânica. Gosto disso numa cúmplice. — Ele cruzou e descruzou as pernas, apoiou o queixo com as mãos e estreitou os olhos. — Com certeza, patinho. O palco é seu.

Raios azulados vazaram de sua sombra no cimento, cruzando a lavanderia em todas as direções. As lavadoras e secadoras foram ligadas e começaram a rugir e balançar.

Cerrei os dentes.

— Não sou patinho. Está vendo alguma pena em mim? Sou Alison. Nada mais, nada menos. Entendeu?

As joias sob seus olhos emitiram um cálido tom alaranjado.

— Ah, entendi. Mas você, não. Porque você é muito mais do que apenas um nome.

Franzi a testa.

— O que você quer dizer com isso?

— Todos são mais. Somos formados por forças vivas, sangue, ossos e espírito. E seu sangue é mais precioso que o dos demais.

Não conseguia pensar numa resposta, distraída demais que estava pelos motores ecoando nas paredes.

— Pare as máquinas. Preciso conseguir ouvir se alguém se aproximar.

— Temo que não. Minha mente funciona melhor ao som do caos ao fundo. E a sua precisa aprender a fazer o mesmo. E, quanto à sua privacidade, já cuidei disso. Dê uma olhadinha no espelho, frutinha.

Rangendo os dentes ao ouvir o apelido novo — que era dez vezes mais irritante que o anterior —, ergui o espelho. O reflexo fraco do meu rosto ficou borrado, mudando para um portal que mostrava o terreno ao redor da lavanderia. Pontinhos de luz flutuavam em meio às árvores e ao mato. Olhando mais perto, eu conseguia ver as formas de mulherezinhas com escamas reluzentes e asas de libélula.

Um calafrio estranho me deixou toda arrepiada — uma consciência de toda a mágica ao nosso redor que eu não sabia que era possível.

— O que são elas?

— Fadas. Apesar de pequenas, elas podem deter qualquer um que tente nos interromper. Só cuidado com onde pisa ao sair daqui. Senão, pode tropeçar em um ou dois corpos.

Arfei e deixei o espelho de lado.

— Elas os matarão? — Não podia deixar isso acontecer. Uma morte na minha consciência era o bastante.

Morfeu gargalhou.

— Deveria ter esclarecido. Corpos dormentes. Eles não estarão feridos ao acordarem, só muito satisfeitos e confusos. Mais importante, eles estarão preocupados demais com os próprios pensamentos para perceber que você esteve aqui ou para se importar. Mas, novamente, esta não é a minha vez de falar. Você tinha perguntas a me fazer, sim?

Tenho tantas perguntas mais agora.

Deixei de lado a vontade de saber tudo de uma vez, determinada a continuar focada. Peguei da fronha os livros da minha mãe e os coloquei entre nós dois, preparando-me para escrever no caderno as respostas dele.

Ele bateu palmas.

— Ah, que bom! Gosto deste joguinho. Me mostre todas as suas cartas e eu lhe mostrarei as minhas. Espere até você ver o que tenho na manga.

— Pode parar de falar? — repreendi. — Então, você e aquelas... fadas... vocês vivem no País das Maravilhas?

Seu semblante se iluminou. Ele estava obviamente ansioso por responder, mas manteve a boca bem fechada.

— Vamos logo! — insisti. — Vocês são do País das Maravilhas?

Ele permaneceu em silêncio.

— Sério?

— Você me pediu para parar de falar.

Enfiei as unhas em meus joelhos.

— Argh! Me responda!

— Uau. — Ele tirou as luvas, uma de cada vez, prazerosa e enlouquecidamente calmo. — Não precisa se exaltar. Sim... Sou do País das Maravilhas, assim como minhas adoráveis cachorrinhas lá fora.

— Isso quer dizer que — engoli em seco — o País das Maravilhas é real?

— Sim.

— E a toca do coelho também? — perguntei, com um nó na garganta.

Estudando-me na luz fraca, Morfeu fez que sim.

— Posso lhe dar um mapa. É só pedir.

Segurei o colarinho da minha camisa, tentando esconder a pulsação acelerada no pescoço.

— Que papel você exerce lá? Nunca o vi nas histórias.

Uma faixa de mágica azul saiu da ponta do seu dedo até meu exemplar de As Aventuras de “Alison” no País das Maravilhas. As correntes elétricas viraram as páginas, parando ao chegarem à ilustração da Lagarta conversando com Alice.

— Assim como sua inteligente e curiosa heroína, eu não era exatamente eu mesmo nas histórias mais antigas.

Meu olhar se voltou para o texto na página e a resposta de Alice à pergunta da Lagarta sobre a identidade dela: Infelizmente não posso explicar, senhor. Porque não sou eu mesma, entende?

Engoli em seco, a verdade me atingindo como um tapa na cara.

— Você é a Lagarta... depois de sair do casulo.

Morfeu fez uma cara feia, como se ofendido.

— Mariposas e borboletas não apenas eclodem de casulos. Elas se transformam. Agora você tem mais seis perguntas. Não as desperdice, frutinha.

— Espere aí... Só fiz quatro perguntas até agora.

— Tenho que discordar. — Ele mostrou as mãos numa faixa de luar, balançando os dedos e criando sombras na parede; formas incrivelmente reais para uma sombra. Algumas pareciam xícaras, outras, cogumelos, outras como rosas atingidas por baldes de tinta. — Você fez catorze perguntas, apesar de a maioria delas ser inútil. Primeiro, me perguntou se já tinha brincado de Vinte Perguntas. Bom, isso em si é uma pergunta. Depois, quando lhe propus o enigma, você disse, e estou citando, “Ãhn?”. Outra pergunta. Em seguida, depois de pedir para eu não lhe chamar de patinho, perguntou se eu via alguma pena em você e, depois, se eu “entendi”. Por fim, você perguntou o que eu estava querendo dizendo sobre você ser mais do que um nome. Sinceramente, você realmente acha que alguma dessas perguntas eram necessárias? Claro, quando você perguntou sobre as fadas, o que elas eram e se elas matariam seus tratadores de zoológico bobinhos, isso foi quase relevante.

Meus olhos queimavam.

— Não vivo num zoológico! — exclamei, furiosa.

Morfeu riu e fundiu seus fantoches de sombra num coelho saltando pela parede.

— Acrescente a isso as quatro perguntas sobre mim e meu lar, as únicas que realmente pareciam ter lá a sua importância, se me permite dizer, e você fez onze perguntas. Infelizmente, você repetiu uma delas duas vezes depois de me pedir para parar de falar, e em seguida questionou minha seriedade. Ou seja, mais três. Então só restam seis. Escolha suas palavras com sabedoria.

Reprimindo um grito, apertei a caneta na mão até me ferir.

— Tudo bem — murmurei, preparando-me para fazer mais uma pergunta que tinha medo de já ter feito antes de ele me tirar mais oportunidades. — Você entrou em contato com minha mãe, não é? Quando ela era adolescente.

As lavadoras e secadoras ficaram em silêncio, enquanto a mágica dele voltava a seu corpo e a malícia desaparecia de seus traços. Ele tirou o chapéu e o pôs no colo.

— Eu tentei, Alison. A mente dela... estava mais frágil do que eu imaginava.

Joguei o caderno no chão e me levantei.

— Você me disse que a impulsividade sempre rende uma segunda chance na vida. Então por que você não a segurou? Você me segurou! Você não poderia ter feito a mesma coisa por ela? A queda dela foi muito menor! Você poderia tê-la segurado com suas asas! — Lágrimas rolavam por meu rosto. Estava furiosa, talvez mais comigo mesma do que com ele. Prometi nunca mais chorar.

Ele ergueu a cabeça para mim de seu lugar no chão. As joias brilharam num tom de mirta, refletindo a suavidade de sua expressão. Era quase como se uma partezinha dele se solidarizasse.

— Sua mãe optou por saltar ao ar livre. Havia espectadores demais no estacionamento. Ela impossibilitou qualquer resgate. Se ao menos tivesse saltado de uma altura um pouco maior, suas próprias asas poderiam tê-la salvado. Os dois cálculos errados lhe custaram tudo.

— Não. Foi você quem lhe custou tudo. Por que você insiste em importunar minha família? — Recusei-me a pensar na ironia das palavras e esperei que ele fizesse o mesmo. Se ele inventasse alguma piadinha estúpida sobre isso, ou sugerisse que eu tinha quatro perguntas e agora só me restavam duas, eu perderia o controle. Eu o estrangularia com as próprias mãos, com ou sem mágica elétrica.

Por sorte, ele apenas balançou a cabeça e disse:

— Não sou o responsável, nem estou aqui para reparar todas as coisas erradas com as quais você teve de lidar na vida. Em vez disso, estou oferecendo uma forma de você honrar a morte da sua mãe. De você fazer as pazes com isso.

Enxuguei a umidade quente do meu rosto.

— Não quero fazer as pazes com isso! Só queria tê-la conhecido. E só tenho essas histórias estúpidas para me lembrar dela! As histórias que a mataram. — Chutei os livros na direção dele. Os livros correram pelo chão por alguns centímetros, mas não foram muito longe. Olhei para eles, desejando que saltassem no ar e o atacassem como uma ave de rapina... que tivessem bicos para bicar aqueles olhos belos e infinitos, cheios de enigmas crípticos e respostas mais crípticas ainda.

Como se pudessem ouvir meus pensamentos, dois livros levitaram, folhas agitando-se como asas. Eles se voltaram para atacá-lo, mas Morfeu estava preparado, protegido atrás de uma redoma formada por luzes azuladas.

— Um espetáculo esplêndido — comentou ele com um quê de orgulho na voz ao ajeitar o nó da gravata. — Avise-me quando terminar com seu ataque de menina mimada.

Espere aí. Eu fiz com que os livros atacassem? Eu os fiz voar? Fiquei boquiaberta.

Impossível. Os livros caíram no chão com um baque, como se meu pensamento lógico os tivesse matado.

— Eu fiz isso. — Era uma observação. Mesmo descrente, tomei o cuidado para não formular aquilo como uma pergunta. Só me restavam duas agora... escolha suas palavras com sabedoria.

Olhei para os livros caídos e Morfeu, que desativara sua mágica e estava novamente desprotegido, esperando ao luar, paciente e sombrio.

— Minha mãe, ela tinha as mesmas habilidades, não é?

Ele devolveu o chapéu à cabeça.

— Sim, mas as habilidades dela estavam adormecidas. Tentei despertá-las, mostrar-lhe nos sonhos do que ela era capaz. Tentei encorajá-la a dar vida às pinturas nas paredes. Mas antes que ela pudesse... — Ele estendeu a mão. — Bom, deixe para lá. Você deu vida àqueles livros quase sem esforço. Pense no que você pode conseguir com orientação e foco. Está vendo, você conhece, sim, sua mãe. Porque esse toque mágico era parte dela. O que ela deixou para você em seu sangue. Cabe a você escolher o que fazer com isso. Ela só queria liberdade e fuga. Alguns podem dizer que ela conseguiu isso. Mas, quanto a você, algo me diz que um final assim não satisfaria alguém com sua... garra e determinação. Então o que você quer, Alison?

Não hesitei.

— Quero sair deste mundo. — Minha voz pareceu frágil, como um sopro de ar passando por uma janela de tela, enquanto eu afundava no chão, sobre minha jaqueta. Cruzei as pernas, imitando a pose de Morfeu. — Mas também quero tanto mais...

Ele sorriu.

— Claro que quer. Você quer tudo. A coroa, o trono, súditos temerosos prostrados de joelhos a seus pés. E você deve ter tudo isso. É sua linhagem. Isso lhe foi tirado, e você recuperará tudo. Acredito que é hora de lhe mostrar meu ás, princesinha. — Ele tirou um cilindro de papel da manga do paletó e o desenrolou para eu poder ver a bela caligrafia. A tinta dourada parecia úmida, mas sabia que não estava, senão ela teria borrado. Era um reflexo da luz da lanterna.

Corta a Pedra com uma Pena, Cruza uma Floresta com um Passo, Segura o Oceano na Palma da Mão, Altera o Futuro com a Ponta dos Dedos, Derrota um Inimigo Invisível, Esmaga um Exército sob Seus Pés, Acorda os Mortos, Colhe o Poder de um Sorriso.

— Não entendo...

— São testes — respondeu ele. — Se você passar por eles, vai destronar a impostora que ocupa seu lugar e será coroada a única e verdadeira Rainha Vermelha. Você reinará sobre metade do País das Maravilhas e jamais precisará voltar a este zoológico.

Engoli em seco. Um calafrio lento percorreu meu corpo, quente e doce, como uma árvore sentindo a resina verter de seus galhos ao primeiro sinal da primavera. Era minha intuição encantada despertando. Havia um lugar ao qual pertencer. Um lugar para governar. Lá, nunca mais seria solitária e todos me obedeceriam.

— Mas como posso realizar coisas tão impossíveis?

Morfeu enrolou o papel novamente e o guardou.

— Esta é sua vigésima pergunta, e muito bem usada. A resposta está no enigma que mencionei antes. E, caso você não tenha entendido, pense nisto: qualquer interpretação pode ser alterada simplesmente olhando-se para as coisas de outra forma, de ângulos mais coloridos... vendo-se as palavras e o mundo por um caleidoscópio, não por um telescópio.

Fiz que sim, porque fazia sentido, de alguma forma hábil e absurda. Depois de todo o alerta quanto a usar minhas palavras com sabedoria, já estava começando a ver tudo de um jeito diferente: conotação versus denotação, instinto versus lógica, infinito versus...

— Tempo — sussurrei, respondendo ao enigma.

— Isso mesmo. — Ele se levantou, tirando uma chavezinha presa a uma corrente em sua lapela. Ele a segurou de modo que ela foi iluminada pelo luar. — Tempo de treiná-la, tempo de superar os testes e tempo de conquistar seus súditos.

— Quanto tempo demorará? E o que você ganha com isso? Você disse que faríamos um acordo.

— Desculpe, Alison. Suas perguntas acabaram. Tudo o que você precisa saber é que vê-la coroada é tão bom para mim quanto para você. — Ele jogou a chave para mim e eu a peguei no ar. — Nada vai atrapalhá-la, por mais que demore. Você me dará o tempo e eu lhe darei os instrumentos de que você precisa para reclamar o que lhe é de direito, para mudar tudo o que você achou que você era. E então o tempo não terá mais importância, pois você vestirá o manto da imortalidade interior. A começar hoje, mudamos seu destino.


Capítulo 5


Trilhos de Trem

A falta do barulho tranquilizador do banho acaba com minha névoa nostálgica.

Espreguiço-me e me sento na cama, olhando para a porta entreaberta de onde o vapor sai numa dança fantasmagórica. Thomas está se barbeando. A água jorra na pia, para e ele cantarola baixinho ao passar a lâmina sobre a pele. A música é a que ele costumava cantar para mim quando estávamos namorando. As palavras atravessam minha memória: um homem implorando perdão por amar demais a moça, dizendo-lhe que não queria outra, só ela para sempre, que valia a pena qualquer sofrimento para ficar com ela.

Ele levou a cabo a mensagem da música, ficou ao meu lado quando qualquer outro homem teria desistido e me abandonado. Nunca me arrependi de preferir ele ao meu destino interior. Só me arrependo de tê-lo magoado. Assim como me arrependo de quase ter tirado de Alyssa sua chance de imortalidade.

Na época achei que estava fazendo a coisa certa, ficando em silêncio para salvá-la das práticas bárbaras do País das Maravilhas. Só tinha dezesseis anos quando me deparei com a toca da Irmã Dois e vi para que finalidade ela usava crianças, mas, mesmo com aquela idade, não conseguia fechar os olhos para a tragédia ou as semelhanças: como o coveiro extraía os sonhos delas para alimentar as almas incansáveis no cemitério. Da mesma forma como fizeram comigo inomináveis monstros ao longo da minha vida — canalizando meus sonhos para seu prazer e satisfação. Todavia, ao contrário de mim, as vítimas da Irmã Dois nunca conseguiram escapar.

Ver Thomas envolto na teia dela depois de ficar preso lá por dez anos — toda a sua vida desperdiçada — mudou algo em mim. E minha traição mudou Morfeu. Foi uma trágica reação em cadeia.

Estremeço e me afasto do banheiro, olhando para meus pés descalços, a mente paralisada num tempo e lugar horríveis.

O colchão afunda-se quando Thomas se senta atrás de mim usando calça cinza e uma camisa lavanda que pende de seus ombros largos, solta e toda aberta.

— Minha Ali-ursinha. No que você está pensando? — Beija-me no pescoço, envolvendo-me com o perfume da loção pós-barba. Seus dedos cingem-me a barriga, gerando calafrios de prazer em toda a minha pele.

Sorrio e me derreto em seus lábios, minhas costas tocando seu peito nu, enquanto ele me beija embaixo da orelha.

— Em você e no agora — respondo, passando os dedos pelo tecido que lhe recobre os braços.

— Perfeito — sussurra ele. — Porque estou pensando em você e em como você é linda.

— Você aprova o vestido, então?

— Não só isso... — Sua boca cheia de malícia abre caminho até minha nuca. — Você está cheirosa também.

Dou uma risadinha, e ele sorri contra meu corpo.

— Se pretendemos ir a algum lugar hoje à noite — insisto, tentando me concentrar apesar de seus beijos suaves —, temos que sair daqui a pouco.

Ele suspira — pétalas de hálito quente se abrindo perto da minha omoplata esquerda e meu botão de asas.

— Acho que você tem razão. Principalmente porque não estamos apenas saindo. Estamos indo embora.

Olho por sobre meu ombro, para onde sua boca faz contato e deixa uma marca de sensações.

— Embora... para onde?

— Para a distante Londres. — Ele ri. Seus cabelos úmidos absorvem o sol se pondo pelas persianas, uma confusão oleosa de ondas achocolatadas. Quando ele sorri para mim assim, parece ter dezenove anos novamente.

— Você quer ir para Londres hoje. — Viro-me na cama para ajudá-lo a abotoar a camisa. É uma das minhas camisas preferidas pela maneira como a cor complementa a pele dele e como o tecido sedoso gruda em seu corpo. Passo os dedos por seu peito antes de fechar o colarinho. A esgrima diária definiu seus músculos a um novo nível, uma densidade sofisticada que só os músculos de um homem da idade dele podem adquirir. — Então... Acho que essa viagem-surpresa significa que você decidiu adiar nossa briga de espadas amanhã. Tem certeza disso? Não me leve a mal, você está em excelente forma. Só não sei se você tem pernas para uma minissaia.

Ele ri, fazendo a covinha em seu queixo encontrar uma sombra e parecer ainda mais profunda.

— Ah, voltaremos a tempo de defender nossos títulos. Vamos pegar um atalho. — Ele coloca meu colar com a chave no meu pescoço. — Nossa filha da realeza nos ofereceu seu espelho.

Abro um sorriso forçado, apesar do frio na espinha — como se aranhas com patinhas de gelo estivessem fazendo teias congeladas em cada um dos ossos. Sempre que uso as passagens nos espelhos, sinto que estou voltando ao passado e é por isso que, quando visitamos os Skeffington em Londres, insisto em irmos pelo caminho tradicional, pegando um voo comercial.

Mas hoje à noite não tenho coragem de impedir os planos dele. Posso fazer isso. Afinal, ainda estaremos no reino humano.

Houve uma época em que ansiava por entrar no espelho e descer pela toca do coelho, só para rever as paisagens e criaturas. Entretanto, depois de ficar presa lá há alguns meses, passando dias e noites no castelo de Marfim, ajudando Grenadine a conter o vazamento de lembranças, para mim chega. Estou preparada para ficar aqui pelo resto da vida, com Thomas e Alyssa. Sacio minha vontade de companhia do reino interior na Estalagem do Humphrey duas vezes por mês, quando visitamos a família de Thomas. Isso basta.

— Certo. Só me deixe terminar de me vestir. — Abaixo-me para pegar as sandálias, mas Thomas ganha de mim, ajoelhando-se aos meus pés.

— Espere um pouco — adverte ele, baixinho e com cuidado. — Este é o trabalho de um cavalheiro, princesa. — Ele ergue meus pés nus, dando um beijinho no meu calcanhar antes de calçar o sapato. Ele faz o mesmo com o outro e termina com um beijo no meu joelho, antes de pôr cuidadosamente meus pés calçados no chão.

— Meus lindos dedinhos. — Inclino-me de modo que nossas testas se toquem, a fim de poder me perder em seus olhos gentis e cálidos.

Abrindo aquele sorriso de Elvis que adoro, Thomas se levanta e me ajuda a me levantar. Ele pega um paletó esporte e minha manta de renda e me leva pelo corredor até o quarto de Alyssa. Risadas abafadas e conversas vêm da cozinha. O cheiro de queijo derretido, linguiça picante e molho marinara me dá água na boca. As crianças devem ter decidido fazer pizza em casa.

— Então vamos à Estalagem do Humphrey? — pergunto, de repente com vontade de um prato de espaguete à bolonhesa com pão de alho, alcachofra e queijo feta, meu prato preferido entre as especialidades do Hubert’s.

— Faz parte dos planos — responde Thomas. — Vamos passar a noite lá. Mas primeiro vamos a Ironbridge Gorge. — Ele mostra os cogumelos no bolso do paletó, nossos “bilhetes” para o trem da memória, antes de vesti-lo.

Franzo a testa e o ajudo a ajeitar a lapela, estudando nosso reflexo no espelho de corpo inteiro de Alyssa, uma antiguidade prateada francesa que ela encontrou num mercado de pulgas. Foi a primeira coisa que ela comprou depois do nosso retorno do País das Maravilhas, para ela poder dar uma olhada em seus súditos ao longo do dia, quando necessário.

— Não entendo. Por que iríamos a Iron Bridge? Já não vimos tudo o que tinha para ver?

— Você, não — responde Thomas, seu rosto pintado pelo pôr do sol rosado. — Sei que você ainda está cheia de arrependimentos. Vejo a dor no seu rosto todos os dias. — Ele acaricia minha testa franzida. — Já é hora de se perdoar. Já é hora de você perceber o impacto positivo que teve sobre todos nós o fato de você deixar Morfeu e o País das Maravilhas entrarem na sua vida, porque você olhou tanto para o lado negativo que perdeu a noção disso. Ontem perguntei a Alyssa sobre memórias perdidas. Ela me disse que, depois que elas são armazenadas como carga, se tornam parte do trem, mesmo depois que são vistas por quem as criou. Então vamos dar uma última olhada naqueles anos perdidos, mas, desta vez, vamos fazer isso juntos. Você precisa ver o que teria sido de nós se você não tivesse interferido.


Nossa viagem a Ironbridge Gorge é mais simples do que era quando Alyssa e eu vínhamos aqui, cada uma de nós procurando algo diferente. Com a ajuda de Jeb, ela recentemente instalou um enorme espelho no túnel da ponte. Agora, o transporte aqui é tão simples quanto passar de um espelho para outro. Não há viagem pelo interior. É uma ligação direta do quarto dela para o túnel.

Ao fazermos a travessia, candelabros — feitos de enxames de vaga-lumes presos a armações — passam como rodas-gigantes em miniatura pelo teto. Eles brilham ao longo de paredes sujas, cartazes publicitários velhos de 1956 a 1959 e uma pilha de velhos brinquedos descartados no túnel.

A despeito do nervosismo, consigo comer cogumelos o suficiente para encolher com Thomas, a fim de podermos embarcar no trenzinho de brinquedo enferrujado que leva a todos às memórias perdidas e esquecidas do País das Maravilhas.

O besouro-condutor nos espera. Ele abre a porta em que se lê Thomas Gardner e nos leva a um cômodo sem janela forrado por um tapete sob um sofá cor de creme. Um abajur todo decorado lança um brilho ameno sobre as paredes. Do outro lado, um palquinho com cortinas de veludo aguarda para exibir as memórias de Thomas.

— Por favor, sentem-se e bebam alguma coisa — oferece o besouro, mais cordial do que nunca. Muito se falou sobre as loucuras de Alyssa no mundo dos espelhos. Ela adquiriu a reputação de uma Rainha Vermelha severa, mas sábia, e isso nos assegura, como seus pais, do respeito de todo o reino interior.

Thomas e eu nos sentamos lado a lado no sofá. Há uma mesinha à esquerda e um guardanapo rendado sob um prato cheio de biscoitos com gotas de chocolate. Pego um e o ofereço a Thomas. Ele come metade, limpando as migalhas que caem em sua calça, e gesticula para eu comer o restante.

Ondas de náusea me atingem. Tento atribuir a sensação à fome e mordisco o biscoito macio e a cobertura delicada de amêndoas, ficando mais tensa quando o condutor esmurra com seu braço artrópode um botão na parede. As cortinas do palco se abrem, revelando uma tela de cinema.

— Imagine mentalmente o rosto do seu marido enquanto olha para a tela vazia e você vivenciará o passado dele como se fosse hoje. — O besouro mexe num controle que desliga a luz e então fecha a porta.

Dou a mão para Thomas. Na única vez que visitei este trem, estava espiando o passado dele sem que ele soubesse e as coisas que vi me deixaram tão horrorizada que quis escondê-las dele para sempre. Agora ele está aqui, me encorajando a olhar mais atentamente. Mesmo com o conforto da presença dele, meu nervosismo é quase sufocante.

Supero isso, lembrando-me dele como a criança que vi no dia em que vim sozinha — quando o nome dele era David Skeffington e ele tinha oito anos. Desta vez, porém, imagino-o alguns meses antes, quando ele ainda vivia com sua mãe, seu pai, duas irmãs e um irmão em Oxford.

Uma imagem aparece na tela em cores vivas e me toca. Ela me destroça — cada parte do meu corpo se desfiando —, até que me recomponho, atenta, admirando os olhinhos de David e compartilhando seus pensamentos, emoções e sensações infantis.

Ele tem uma infância feliz, cheia de momentos sentimentais... seguindo seu pai durante os trabalhos na fazenda de caprinos, brincando com suas irmãs e irmão nas colinas que cercam a casa, os passeios e piqueniques da família, as histórias antes de dormir recitadas pela voz melódica e suave da mãe. Mas, uma noite, ele é visitado por um grupo de cavaleiros imperiais usando túnicas vermelhas e brancas — os mesmos que vieram buscar o irmão dele dois anos antes.

A mãe chora com a chegada deles, gritando que os cavaleiros nunca visitam uma família pela segunda vez, mas seu pai a consola, dizendo que, por suspeitar que isso fosse acontecer, ele mesmo os convocara. Então ele leva David para um quarto escuro para ser interrogado.

Um dos cavaleiros, um homem de barba grisalha usando uma túnica vermelha e malha de ferro, abre, na escuridão, um aparelho multiespelhado. Ele aciona um botão, iluminando as molduras. Cada espelho está montado num ângulo exato para refletir o outro, provocando uma ilusão de infinito.

— Ande pelo labirinto de espelhos, menino — diz o cavaleiro. — Diga-me o que você vê.

David anda para lá e para cá, primeiramente sem ver nada além de milhares de imagens de si mesmo. Então ele vê algo se movimentando num dos reflexos distantes — a silhueta de algo inumano. Ele vira a cabeça e encontra a mesma distorção em todos os planos de vidro prateado. Com uma piscada de olho, as sombras dão lugar à claridade e um mundo estranho e assustador se abre. Pássaros feios e enormes com dois pares de asas andam pelo terreno em vez de voarem. Morcegos vermelhos duas vezes maiores do que condores passam por cima dele, caçando qualquer coisa com coragem o bastante para compartilhar o céu flamejante com suas línguas compridas e venenosas. Ele começa a recuar, mas o terror se transforma em fascinação e o seduz, enquanto criaturas menores — seres parecidos com filhotinhos coloridos na forma de flocos de neve — passeiam pelo cenário. Eles viram do avesso, suas entranhas uma bola de dentes afiados que devoram tudo pelo caminho. O sangue mancha tudo à medida que eles se banqueteiam dos pássaros de quatro asas. David faz uma cara feia, meio que esperando sujar-se com o jato quente cor de cobre, mas o massacre é contido pelos reflexos. O medo e a repugnância fecham sua garganta, mas ele observa por mais um segundo, enquanto criaturas ainda menores, parecidas com uma borboleta com cauda de escorpião, voam baixo — elegantes anjos da morte — e transformam todas as bolinhas de dentes ensanguentados em estátuas de pedra.

Numa euforia estonteante, David sai do labirinto e repassa toda a morte que viu. Os cavaleiros conversam entre si e se viram para o pai dele.

— Isso não tem precedentes: seu segundo filho também tem a visão — afirma o cavaleiro de barba grisalha. — Ele vê os pontos fracos na barreira entre o reino interior e o mundo humano com mais clareza do que o irmão. Você sabe o que isso significa, Gregor.

O pai de David faz que sim. Ele parece triste e ao mesmo tempo orgulhoso ao dar tapinhas na cabeça de David. O menino não sabe o que sentir. Mas de uma coisa ele sabe: ele não é mais considerado uma criança. Ele é um guerreiro e será treinado como tal.

Seu pai faz suas malas, eles beijam uma última vez a mãe e as irmãs em prantos e então vão viver com os tios e primos de David em Oxford, Inglaterra, na Estalagem do Humphrey. A insuportável dor sentida por ele ao dar adeus à família e à antiga vida é amenizada somente quando seu irmão mais velho, Bernie, vem recebê-los à porta.

A cena treme ao passarmos por vários meses de lições: estudando em Qualquer Outro Lugar, o mundo espelhado para onde os exilados do País das Maravilhas são banidos. Ele aprende que tal lugar está conectado ao País das Maravilhas por uma densa floresta e ao mundo humano por espelhos infinitos, e que um domo de ferro cerca a prisão, transformando quaisquer seres intraterrenos encarcerados em criaturas grotescas, caso tentem usar mágica no interior.

Durante seu treinamento, David se afunda em estudos sobre as criaturas mutantes para ter a honra de fazer parte de um grupo especial dos cavaleiros que guardam os dois portões — o portão do reino humano e o portão do País das Maravilhas. A violência e o pavor, porém, saturam de imagens vívidas e bizarras seus sonhos e pesadelos. Ainda assim ele progride, fazendo aulas de autodefesa e refinando sua linguagem — aprendendo a usar a mente como armadura quando são os enigmas a arma.

As cenas da vida de David param no restaurante de Hubert, enquanto seus pés deslizam nas cinzas do ringue, enquanto os convivas o veem aprender a bloquear um ataque vindo de cima. Sinto a pulsação de Thomas... David... acelerar, sinto sua vontade de dar orgulho ao pai, sua competitividade em relação ao irmão e aos primos e a consciência tímida de ter todos os olhos sobre si — o candidato mais jovem. Mas com o tempo ele aprende a bloquear tudo, exceto o jogo. Ele se torna confiante, gracioso e fiel, supera todos os seus oponentes — incluindo seu próprio pai — e, em seu nono aniversário, está pronto para sua primeira viagem a Qualquer Outro Lugar, a fim de sentir os segredos internos em primeira mão. A maioria dos meninos é admitida aos treze anos, mas ele merece uma iniciação precoce, não só porque aprendeu a se defender, mas também porque tem a ousadia, sabedoria e perspicácia de alguém cinco anos mais velho.

Um arco-íris vívido mancha a tela, enquanto as memórias se voltam para o caminho de David dentro de um túnel de vento esbranquiçado na forma de um tornado. O funil serve aos cavaleiros como travessia segura para o mundo prisional, já que eles são os únicos com medalhões mágicos que controlam os ventos. As lufadas tomam conta dos cabelos e das roupas de David, que é carregado com seu tio William para o portão do País das Maravilhas, onde David será iniciado nos segredos de seu posto como guardião. Impulsionado pelo medalhão no pescoço do tio, o funil se abre e os cospe, um a um, muito acima do portão trancado contra a floresta densa e o País das Maravilhas. Um gigantesco escorregador de cinzas se ergue para pegá-los e levá-los à plataforma, mantendo-os a uma distância segura do fulgurante vórtex de nada que separa o portão do terreno mundano e mantém encurralados os prisioneiros.

David observa tudo através de óculos de armação de couro, iluminados. Como esta é a primeira vez dele dentro do mundo na redoma, ele estava determinado a não perder nada, nem mesmo a viagem até lá. Seu pai cedeu e o deixou usar os óculos que ele e seu irmão usavam para proteger os olhos das cinzas e iluminar o caminho quando andavam de moto por trilhas sujas nas colinas de Oxford, à noite.

Por causa de sua visão perfeita, ele vê — enquanto seu tio é jogado para fora do túnel atrás dele — que a corrente mantendo o medalhão no pescoço do velho se quebra e o colar começa a cair. David estende a mão para pegá-lo. Uma vez em segurança ao lado do portão, ele devolve o colar ao tio. O velho lhe dá um tapinha nas costas e guarda o colar em sua malha de ferro.

— Um dia, você terá um medalhão. Aposto minha vida nisso. — Seu tio ri. David sorri diante do elogio.

Tio William sempre foi seu preferido... Ele cheira aos doces de canela que sua mãe costumava pôr nos pratos natalinos, ele é capaz de vencer qualquer um no xadrez e sempre tem uma bela piada para contar. Foi ele quem manteve David debaixo da asa quando seu pai teve de voltar para a fazenda. E agora ele insiste em ser o guia de David em todos os mistérios deste mundo estranho e mágico que sua família protege há séculos.

David se aproxima do portão de ferro sólido, a fim de que o Tio William possa lhe contar o segredo de como se abre caminho para o País das Maravilhas. Embutida na parte de baixo da barreira de três andares, a caixa hexagonal aparece com cinco quebra-cabeças organizados numa estrutura de boneca russa. David observa Tio William montar três deles, fazendo o portão ranger e se abrir um pouco por vez, revelando o túnel escuro atrás — um corredor pela floresta densa. Vem um cheiro forte — madeira úmida e podre. Faltando somente dois quebra-cabeças para abrir completamente o portão, Tio William fica pálido e se apoia contra o ferro. Então ele segura o peito e cai ajoelhado.

Ofegante, David se abaixa ao lado dele.

— Tio, o que houve? — Ele quer gritar, mas engoliu névoa negra demais em meio ao nada a caminho do portão. Suas cordas vocais não estão totalmente despertas, então ele continua num murmúrio. — Devo chamar o vento de novo? — Seu sussurro é indecifrável até mesmo aos próprios ouvidos.

Não importa. Seu tio não pode mais lhe responder. David é pequeno demais para carregar o corpo do Tio William até o local de pouso. E, se ele pegasse sozinho o túnel de vento à procura de ajuda, abandonaria o tio vulnerável diante do portão entreaberto. David não sabe como usar a caixa para trancar a porta. Ele pega um pombo-correio mecânico da bolsa do velho. Aquilo só é usado em emergências e deve ser enviado com uma mensagem gravada, mas, com sua voz muda, ele só pode enviar o pombo-correio sem mensagem nenhuma, na esperança de que seus parentes o vejam e saibam que algo deu errado.

Ele aciona o interruptor para acender os olhos e ativar as asas do pombo e manda-o para o céu. Mas teme estar sem tempo. A pele do seu tio já está azulada, como a cor do gelo sobre um lago.

O coração de David bate forte no peito.

Há uma coisa que ele pode fazer.

Com os olhos em chamas atrás dos óculos, David olha para o portão parcialmente aberto. Apesar de a Irmandade do Espelho ter muitas informações sobre Qualquer Outro Lugar e seus ocupantes, não foram feitos muitos estudos sobre o País das Maravilhas. Exceto pelos livros da Alice, pouco se sabe sobre os seres de lá. De todo modo, abundam rumores sobre criaturas com poderes curativos que ultrapassam a compreensão humana.

David pode não saber resolver os dois últimos quebra-cabeças, mas a abertura — pequena demais para um adulto — já está do tamanho perfeito para seu corpinho passar.

Ele hesita. Há outras histórias também, sobre as fadas. Dizem que algumas são enganadoras e fatais. Mas como é possível que elas sejam piores que os monstros deste lado do portão? E ele foi ensinado a derrotar os melhores. Com certeza seu conhecimento pode fazê-lo entrar no País das Maravilhas e sair incólume dele.

Tenso, David se levanta e passa pelo portão, antes que o medo ou a razão possam detê-lo.


Capítulo 6


Âncora

Numa reação em cadeia, assim que David passa pelo portão, este se fecha atrás dele. Seu tio estaria protegido de quaisquer criaturas perdidas do País das Maravilhas, até que o próprio mecanismo se reiniciasse com a boca para a floresta densa se abrindo e fechando. Só então o portão permitiria que alguém passasse pela mesma abertura de novo. Até mesmo David teria de encontrar um novo caminho... atravessando outra garganta da floresta densa.

Um calor de pânico queima o rosto de David. Ele se sente sozinho e com medo por um instante, antes de se lembrar de que fora treinado como cavaleiro. Seu plano daria certo. Ele só tem de encontrar uma fada com poderes de cura e fazer algum tipo de acordo. Dizem que elas colecionam quinquilharias humanas.

David tira as luvas, revelando o anel que recebera ao ser ungido: um anel de ouro puro reluzente cravejado de diamantes em sua circunferência e um enorme rubi brilhante com uma cruz branca de jade no meio. Para ele, o anel não tem preço, mas ele está disposto a dá-lo se isso significar a salvação do Tio William.

O cheiro podre detestável arde-lhe os olhos, mesmo por trás dos óculos. Ele liga as luzes em torno da armação de couro para iluminar a trilha cheia de musgos e começa a correr. Depois de uns seiscentos metros, o ar parece menos denso. Ele luta para respirar no espaço fechado e escuro. Seus óculos se embaçam, o que o faz tirá-los do rosto e posicioná-los no pescoço, de onde ainda iluminam seus passos.

Ele vira uma curva e vê uma clareira, com uma luz ainda fraca e ar fresco. Ofegante, David desliga os óculos para não ficar exposto ao sair da boca ensandecida para entrar na clareira.

Ele empunha a espada ao saltar por cima dos dentes e pousar num arbusto. O som de algo se quebrando o faz se virar para olhar para a árvore da qual saiu. A boca tenta mordê-lo. Ele se joga para trás, escapando por um triz dos dentes, que voltam para dentro do tronco a fim de formarem o que parece ser uma protuberância na casca — mas David sabe muito bem que não é nada disso.

O mato reluzente envolve suas botas enquanto ele caminha pelo punhado de arbustos, à procura de uma saída.

Alguns arbustos atrás dele balançam. Tenso, ele fica no meio da clareira, fora do alcance do mato e das árvores que o cercam, mantendo os olhos no dossel de galhos.

Os arbustos balançam novamente e ele ergue a espada, preparando-se mentalmente para os seres intraterrenos que surgiriam da floresta densa em formas estranhas e horríveis. Possivelmente uma formiga de fogo com o corpo em chamas ou um cavalo voador com embaladeiras de madeira afixadas às seis patas.

Em vez disso, um grito irrompe do outro lado dos arbustos, seguido por uma confusão de vozes histéricas diminutas, ainda mais estranhas por causa da brincadeira infantil delas.

— Estupidezez! Estúpido, estúpido, estúpido! Ela né quinem fugitivos!

— Ataquiri o humanolongo!

— Sinsins! Ou vão ser nossos morotoros pescoços e cortados.

— Apostas erradas acontecem.

— Erradas ou nãoses, Twid Two pede que vocesseis fiquem parados.

— Todosos podedem sonharos!

— Ela vai pendurar vocesseis pelos pescoços... morotoros-mortoros-mortos que sejam!

David relembra suas aulas de idioma. É como latim suíno misturado com jargão sem sentido. Mas três das frases ele consegue compreender claramente. As criaturas de vozes minúsculas estão perseguindo uma fugitiva, estão preocupadas com a falta de sonhos e estão prestes a ser enforcadas.

As vozes crescem e os arbustos balançam novamente. David se esconde atrás de uma pedra enorme para observar. Ele não pode deixar que o capturem ou o machuquem... Tio William precisa que ele encontre ajuda e volte rápido. As folhas nos arbustos se abrem e algo aparece.

David perde o fôlego ao ver um menino humano nu, talvez seis anos mais velho que ele, avançar na luz amena da clareira. Ele é da cor do leite, só um emaranhado de cabelos pretos na cabeça. É como se todo o sangue tivesse vertido dele... não do seu rosto, mas de seu peito, braços e pernas. Então David percebe que o menino não está completamente nu. Seu corpo está coberto por alguma coisa — uma gosma espessa. Fibras sedosas pendem dele como tranças, como se ele estivesse sendo desfiado.

Teia de aranha?

David engole em seco, fazendo mais barulho do que esperava.

O menino se vira para ele, mas seus olhos vítreos não o veem. Sua expressão não parece ter percebido nada. Não há nenhuma expressão além de um olhar vazio e sombrio.

Uma corda de teia de aranha atinge o calcanhar do menino, derrubando-o de cara no chão. Ele resmunga algo com a boca cheia de mato — um som estranho e animalesco sem nenhum sentido —, como se ele tivesse esquecido como se fala.

As criaturinhas tagarelas surgem apressadas — cinco delas —, ainda discutindo entre si. Parecem macacos-aranha prateados de pele sem pelo. Olhos volumosos cor de níquel, sem pupila ou íris, brilham como moedas num poço dos desejos.

Uma gosma brilhante verte da pele careca. As gotas prateadas oleosas marcam seus passos como trilhas longas e finas. Todos usam minúsculos capacetes de mineiro. As luzes percorrem a clareira desorganizadamente, como bolhas reluzentes.

Ao passarem pela pedra de David, um cheiro pútrido de carne os acompanha. Eles cercam o menino caído, fazendo sons ameaçadores. Um deles tira a teia do calcanhar da vítima e a usa para amarrar-lhe as mãos nas costas. O menino exibe os dentes numa tentativa feroz e furiosa de se libertar, embora sua expressão mantenha o olhar vazio.

A criatura mais perto dele recua e ri — dentes afiados à mostra em seu rosto símio. Ela emite um som incômodo entre um ronronar e um uivo, depois salta sobre o menino, enchendo a boca dele com a teia. Os outros macacos prateados incentivam o companheiro, exultante com os sons de sufocamento do menino indefeso.

Nauseado com o espetáculo horrível, David joga os óculos no grupo para distrair as criaturas e sai do seu esconderijo.

— En garde! — grita, agitando a espada na direção das criaturas prateadas, numa tentativa de espantá-las.

Elas gritam em uníssono e correm para os galhos próximos. As lamúrias balançam as folhas, seguidas pelas luzes dos capacetes.

David abaixa a espada e se põe ao lado do menino, soltando-o das amarras.

— Vocesse não deveria ter feito isso, ser falante — alerta uma das criaturas com uma voz débil e ameaçadoramente melódica. — A jardineira deverese estare a caminhoinho. — As demais reagem rindo, balançando ainda mais os galhos, mas então fazem um silêncio incômodo, como se ouvindo algo.

Jardineira? David mantém um olho mirado nas criaturas e continua a desamarrar o menino. O Tio William geme em seu pensamento. David espera que seus outros familiares já tenham encontrado o velho. De uma coisa ele sabe: Tio William e seu pai iriam querer que ele fizesse a coisa certa. Ele jurou proteger toda a humanidade contra a magia, e este menino obviamente precisa de proteção.

Tão atento a suas batalhas internas, ele não vê a gigantesca sombra até ouvir a música assustadora:

— A dona aranha subiu pela parede — canta uma voz misteriosa do alto.

Ele sente um arrepio assim que olha para cima — tarde demais. A visão aterrorizante o deixa paralisado.

Uma aranha do tamanho de um homem pende de cabeça para baixo. A metade de cima é fêmea — o rosto translúcido com cicatrizes e arranhões ensanguentados ao longo de seus lábios roxeados, rosto, queixo e têmporas. Seus pelos prateados caem em mechas espessas, quase alcançando a cabeça de David. A parte de baixo é a de uma viúva-negra, cinco vezes maior que as bolas de ginástica que os cavalheiros usavam para ficar fortes e resistentes. Ela se equilibra num fio de teia preso aos galhos, e a teia brilha como seus famintos olhos azuis. Oito patas brilhantes de aranha envolvem a teia-âncora, algo assustador e gracioso.

David pensa em empunhar a espada, mas fica paralisado de medo e surpresa.

Ela ergue e baixa a pata esquerda e quase parece humana, exceto pelas tesouras de jardim no lugar da mão.

A jardineira. A palavra apavora David, abate-se sobre ele, trazendo-o de volta ao presente.

Snip, snip, snip. O abrir e fechar das tesouras despertam David completamente do transe. Ele recua de costas, o coração acelerado enquanto as lâminas quase atingem seu rosto.

A mulher com características de aranha desce delicadamente ao chão diante dele.

O terror sacode seu sistema nervoso — milhares de pedrinhas de gelo incendiando sua pele. Antes de poder se endireitar e correr, um jato espesso de teia o envolve dos pés à cintura, capturando sua bainha e inutilizando sua espada. David tropeça e cai no chão ao lado do menino que ele tentara salvar. O menino o encara com aqueles olhos desolados e dormentes. Com a língua ele tira a teia da boca e murmura novamente aquele mantra sem sentido, como se tentasse dizer algo a David.

O lado esquerdo do corpo de David dói por causa da queda e punhados de mato pinicam o interior de seu ouvido.

— Bom, bom — diz o aracnídeo com uma voz rouca que deixa um sabor de cobre na boca de David, como flocos de ferrugem e desespero. — Vocês doises viraram amigos? Que lindoinho.

As criaturas símias prateadas riem e saem de seus esconderijos. Numa tentativa desesperada de fugir, David enfia as mãos no mato e rasteja até o limite da mata.

Duas das criaturas saltam sobre ele e outra tira o anel de seu dedo.

— Brilhante! — grita ela, exibindo seu prêmio.

— Devolva isso — exige David, apesar de não fazer ideia de onde vem sua coragem.

Rosnando, a aranha jardineira empurra os macacos de lado com quatro patas e prende David onde ele está, dando voltas e mais voltas nele, até envolvê-lo de teia até os ombros.

— Este daí-í é um reluzente falante — provoca um captor prateado, cutucando David com um galho.

— Falante ele pode ser, meu escravo. — A mulher aracnídea se abaixa, seu hálito atingindo o rosto de David. Ele tosse, engasgando com o cheiro de terra úmida e podre. — Mas ele é um sonhador? — Sua mão direita, escondida por uma luva de borracha, toca-lhe o queixo. Como uma criança preocupada com uma casca de ferida, ela olha nos olhos dele, um estudo intenso que revira as entranhas de David. Ele sente o puxão bem lá no fundo, em profundezas maiores que a de seu coração, ossos e sangue... até libertar e expor todos os temores e esperanças mais secretos de sua alma. — Sim. Ele ser um sonhador único. E ser meu.

Diante da afirmação da bruxa aracnídea, as criaturas símias dançam, a gosma prateada delas descendo pelo rosto de David.

— Solte-nos — implora ele, olhando para o outro menino.

— Ah, negativo. — A luva de borracha lhe toca a cabeça, esfregando o cabelo no couro cabeludo. — Levar vou Irmã Dois à sua vontade. Dela um presente para mim, ele é. Ele ser vai magnífico no meu jardim. Vi coisas outras humanos não viram. Ahhh, você ter vai os sonhos mais vívidos. E pesadelos, ah, pesadelos em convulsão. — Uma baba pinga de seu lábio, o que combina com o sangue já em seu queixo. Limpa-a com a mão de tesoura, cortando-se mais uma vez.

David fica tenso dentro de seu casulo, tentando tocar a espada. Mas seus membros estão presos — imóveis.

O menino caído se lamuria e a aranha vai até ele.

— Parece que temos um substituto para você. Não foi fácil? Chega de sofrimento. — Ela tira a luva, usando os dentes para ajudar na falta de outra mão útil. A bainha de couro cede para revelar cinco caudas de escorpião se encolhendo e se esticando no lugar de dedos.

David geme ao ver algo tão repugnante.

A Irmã Dois se curva sobre o prisioneiro e abre a teia no peito dele, expondo a pele branca.

— Hora de se juntar aos outros. — Sua mão venenosa se choca com força contra o esterno do menino e o veneno verte da ponta do seu dedo; então ela atravessa os ossos até o coração.

O menino uiva e convulsiona. David grita e tenta chegar até ele, mas não consegue se mover. Em pouco tempo, o corpo do menino se encolhe e se transforma num escravo símio prateado, como os demais. Finalmente ele para de se debater e fecha seus olhos sem pupilas, seu rosto primata relaxado e uma língua negra pendendo da boca. Bolhas de gosma saem do que um dia foi carne humana e um rabo fino e comprido cresce em suas costas.

David fecha os olhos com força, tentando não gritar como um menininho. Tenha coragem, diz ele para si mesmo. Você é um cavaleiro. Mas ele está perdendo a coragem... ele está esquecendo tudo o que aprendeu. Ele só se lembra do sangue e da morte e dos dentes afiados e ferrões. Sente a mão macia e cuidadosa de sua mãe lhe acariciando a cabeça. A lembrança é destruída por um par de tesouras de jardim.

— Não tenha medo, menininho sonhador. — A Irmã Dois se volta para ele, enquanto os escravos pegam o novo membro do grupo e o levam para longe. — Você está em casa agora. Você tem irmãos e irmãs imortais aqui. Um dia, quando seus sonhos se esgotarem, você se juntará a eles. Mas, antes, alimentará minhas almas famintas e derrotadas.


— Nããão! — grito. É um grito tanto para David quanto para o menino perdido que jamais conheceremos. O menino perdido que nunca se reunirá novamente com seus entes queridos. Que agora se perdeu para sempre, até mesmo de si próprio.

Grito mais alto à medida que a teia cobre o rosto de David e ele não consegue mais gritar por si mesmo nem por ninguém.

— Nãããão!

— Alison. — Thomas me sacode pelo ombro e a cena treme e se desfaz ao meu redor, me tirando das lembranças dele e me fazendo cair de novo no sofá, aninhada pela semiescuridão que nos cerca.

Escondo meu rosto no braço de Thomas, em busca de seu perfume e calor. Lembrando-me de que ele está aqui e jamais sofrerá daquele modo novamente.

— Sinto muito mesmo.

— Não, meu amor. Você me salvou. Você não tem que pedir desculpas por nada. — Ele me abraça e me puxa para perto, esperando que meus batimentos se normalizem e eu consiga respirar novamente sem ofegar.

— A Irmã Um mentiu para mim — digo, tentando dar sentido às coisas. — Ela disse que as fadas usavam corpos de criança para alimentar as flores. Mas não era nada disso.

— Não. As fadas já foram crianças também. — Thomas suspira demoradamente, seu tórax erguendo minha cabeça com o esforço. — E elas não podem voltar àquela forma.

Meu rosto queima de raiva.

— Não consigo mais assistir a isso. Por favor, diga que é aqui que tudo termina.

Ele me aperta.

— Está tudo bem. Essa é a bênção. Algo na teia agiu como sedativo. Eu estava num transe. Não tenho lembranças da minha época na toca, porque não tive lembranças. Só tive um sonho. Mas me lembro de despertar quando você me libertou da armadilha e caí no chão. Eu me lembro de você me cobrindo.

— Sim — sussurro na escuridão. — A Irmã Um me deixou emprestar o cobertor. Era tudo o que ela podia oferecer. Ela estava apavorada com a ira da irmã gêmea. Usei a manta como maca, para me ajudar a tirá-lo dali.

— Eu me lembro disso também. Vi vislumbres de você olhando para trás para ter certeza de que eu não caí. Seus olhos eram da cor da liberdade. Ou do meu futuro. Eles eram tão cheios de dor, de determinação. E de força. — Thomas me aperta com mais força. — Então, ao acordar no ombro de Morfeu quando ele passou comigo pelo portal, você e suas asas desapareceram aos poucos. Você era transcendente... etérea. Acordar na sua cama foi como acordar de um coma de dez anos e ver um anjo. Seu rosto era conhecido, acho que por causa daqueles vislumbres de consciência. Por algum motivo, quando Marfim apagou minhas outras memórias, aqueles momentos permaneceram. Talvez porque não fossem memórias ainda. Eram mais... despertares. E, sem minhas outras lembranças, você era a única coisa que eu reconhecia. Mais tarde, me convenci de que tinha sonhado com você e as asas, mas não importava. Porque só de olhar para você, com ou sem asas, renasci.

Aninhei-me mais em seu peito para ouvir seu coração. Fechando os olhos, revivo mentalmente o momento em que nos conhecemos oficialmente, como se o estivesse vendo na tela do outro lado da sala.

Eu me sentei ao lado da cama e guardei vigília naquela noite, depois de quebrar todos os espelhos para que Morfeu não pudesse voltar ao quarto. Sabia que o tinha decepcionado. Também sabia que ele estava furioso. Mas não me importava. Só me importava de ajudar o menino na teia.

Sabendo que ele não teria identidade ao acordar, eu o batizei enquanto ele dormia. Ele me lembrava de uma pintura que vi uma vez numa das minhas casas adotivas. As pessoas eram religiosas e um retrato de São Tomás pendia sobre a lareira. Seus cabelos eram castanhos, o rosto jovem, mas marcado pela sabedoria, e seus olhos escuros eram solidários e melancólicos. Ele era o santo padroeiro das pessoas tomadas pela dúvida e, como nunca acreditei que eu tivesse um lugar no mundo humano, tomei-o como meu santo pessoal.

Contudo, ao ver o menino sonhador dormindo naquela noite no meu quarto, um menino que ajudei a salvar... um menino a quem dei um lar, sabia que jamais duvidaria do meu lugar novamente.

Nervosa e insegura, observei seus olhos castanhos se abrirem na manhã seguinte. Uma aurora cor de pêssego dançava nas paredes do quarto, animada por três galhos balançando do lado de fora da janela. Eu me perguntava se ele teria medo de mim, se ele entraria em pânico e sairia correndo. Mas, quando nossos olhares se encontraram, eu me senti — pela primeira vez em muitos anos — segura. Ele me tocou como se me conhecesse desde sempre. Considerando o tempo que ele passou sem contato humano, não hesitei em tocá-lo. Silenciosamente, segurei a mão dele e entrei sob a colcha de retalhos, acomodando-me ao seu lado. Sem falar nada, seus dedos tocaram todo o meu rosto, seu hálito doce na minha pele — um resíduo da poção do esquecimento que Marfim lhe dera. Para mim, era o cheiro da esperança e de uma nova vida. Então ele parou na minha boca, segurou meu rosto e me deu um beijo, seu toque tão terno e ainda assim tão confiante para um menino de dezenove anos que nunca tinha beijado uma menina. Foi meu primeiro beijo recíproco, o único que chegou ao meu coração e me iluminou como uma tocha desafiadora contra o vento forte. Fiquei ali no calor de seu abraço e dormimos por horas, até que o sol avançou no céu e chegou a hora de lhe dar respostas, por mais falsas que fossem.

Thomas não conseguiu falar nos primeiros meses. Ele entendia as coisas que eu dizia, mas teve de reaprender as palavras — como articulá-las e lê-las. Era como se a Irmã Dois não tivesse apenas sugado seus sonhos e imaginação, mas também toda uma vida de comunicação. Apesar de ser frustrante para ele, isso facilitou as coisas para mim e fui capaz de relacionar sua deficiência e amnésia a um acidente de carro e um ferimento na cabeça.

Agora repasso as mentiras que disse na esperança de mantê-lo são, e me pergunto como as coisas podiam ter sido diferentes se o tivesse trazido aqui para o trem, a fim de que ele visse a verdade.

Mas o passado não pode ser desfeito. Ele me perdoou e me ama, apesar de tudo.

— Só queria ter podido salvar todas aquelas crianças, como salvei você — digo, segurando a camisa de Thomas. — Ou salvar Alyssa da dor pela qual ela passou.

— Deixe disso, docinho. Você não vê quantas vidas você salvou? Não só a minha. Você e eu fomos destinados a fazer parte do País das Maravilhas. Não importa os caminhos que escolhemos. Fomos pegos naquela teia assim que nascemos. O que significa que era inevitável que nossa filha tivesse o mesmo destino e que o papel dela fosse maior que o nosso.

— Entendo isso, mas...

— Mas o que você insiste em esquecer — interrompe Thomas com cuidado — é que, sem seu papel nisso tudo, nossa menina jamais teria nascido, porque eu teria terminado como fada, constantemente em busca daquela faísca de inspiração, sem nunca saber exatamente o que perdi. Não consigo pensar em fim mais trágico. Você consegue?

Uma emoção nova cresce dentro de mim. Um quê de indignação virtuosa por todas as crianças humanas perdidas e aquelas que consegui salvar, uma emoção quente e avassaladora.

— Ao entrarmos no País das Maravilhas pela primeira vez — continua Thomas, segurando minha mão e levando-a ao seu coração —, você deu vida à nossa filha e uma chance de vida a todas as crianças que a Irmã Dois teria pegado e usado no futuro. O fato de Morfeu convencer Alyssa a ser rainha o fez se apaixonar por ela, o que por sua vez deu a um ser solitário e egoísta a chance de crescer e fazer algo admirável... Ela está com a gente agora por causa disso. Jeb ter desistido da sua musa em nome das crianças humanas... um menino que não teve muita infância... outro sacrifício admirável. Somos todos pessoas melhores... ou seres intraterrenos, em alguns casos... porque você teve coragem e ousadia suficientes para buscar uma vida melhor para si mesma. Por causa das suas escolhas quando era aquela menina solitária de treze anos, e novamente quando era aquela princesa virtuosa e misericordiosa de dezesseis anos, incontáveis vidas foram salvas e melhoradas. E, ao salvar o pai de Alyssa, você lhe deu uma chance de existir.

Contive o choro.

— O que lhe deu chance de criá-la. Ela é forte e incrível por causa de você. — Seguro a mão dele, fecho-a e beijo os nós dos dedos. — Obrigada por nunca ter desistido de mim ou da nossa menina. Você é nosso herói.

— Você é minha heroína, Alison. Literalmente. — Ele tira do meu rosto uma mecha que se soltou do grampo. — Quantos homens podem dizer isso da mulher que amam? Hein?

Paro de lutar contra as lágrimas. Deixo-as rolar tranquilamente por meu rosto. São lágrimas diferentes das de outros choros. São puras, terapêuticas e felizes. Divinamente felizes. A despeito da escuridão que todos enfrentamos, tenho minha família. Honrei a morte da minha mãe permitindo que outros vivessem. Como Morfeu disse uma vez... ele me deu uma chance de fazer as pazes com a morte. E agora Thomas me dá uma chance de fazer as pazes com minha vida. Tudo é como deveria ser. Finalmente.

Haveria momentos em que os pensamentos sombrios me visitariam, tenho certeza. Mas agora... agora tinha uma luz para lançar sobre eles. Um farol a me guiar.

— Chega de olhar para trás — digo para meu marido, a voz surpreendentemente firme.

— Chega de passeios de trem. — Ele acaricia meu queixo com os nós dos dedos. — Só para a frente, deste dia em diante. Aproveitando todos os momentos juntos que nos restam neste mundo. Você comigo.

— Até o derradeiro fim — falo.

Thomas enxuga minhas lágrimas.

— Feliz aniversário, Ali-ursinha. — Ele me puxa para o colo no sofá e me beija até eu perder o fôlego e ficar toda vermelha como uma noiva tímida. Depois ele me põe no chão para ajeitar minhas roupas e sussurra em meu ouvido. — Estou morrendo de fome. Que tal espaguete à bolonhesa?

Eu rio.

— Você leu meus pensamentos.

Ao sairmos do trem rumo ao espelho, ele segura minha mão. O menino na teia e o homem dos meus sonhos. Para sempre e eternamente, minha âncora.


CONTINUA

Investida & Bloqueio
— Se pretendemos sobreviver a isso, Alison, você tem que atacar a jugular. Sem. Misericórdia.
A voz grossa e autoritária de Thomas me comove e ele me ajuda a levantar, depois ajusta meus dedos ao cabo metálico da espada que havia escorregado de minha mão enluvada. Uma mistura de suor e do cheiro cítrico do sabonete por ele usado paira no ar, abafada pelo perfume das flores e da vegetação que nos cercam.
Toco o quadril no ponto onde ainda lateja por causa da queda e retomo minha posição, encarando nossos oponentes do outro lado do mato manchado de sangue: a minha, com o brilho lindo e fantasmagórico de sua pele... O de Thomas, com o corpo musculoso e os olhos verdes destemidos. As espadas prateadas deles brilham sob o sol de outono e refletem suas expressões imóveis, até que, num movimento lento como o de uma nuvem de tempestade, a curiosidade lhes cruza as feições, enquanto eles tentam prever nossa estratégia.
Meu coração bate forte, ansioso. Enxugo um pouco do suor da minha testa. Eles são mais jovens e mais rápidos, mas Thomas e eu temos a inteligência do nosso lado e uma conexão incomparável. Somos uma equipe há vinte e dois anos. Aqueles amadores não são páreos para nós.
Ignorando o calor e a irritação da minha pele sob as várias camadas de roupa, convenço meu corpo a relaxar, mas me mantenho em posição, a espada empunhada e pronta para o combate, antes de tirar a máscara do meu rosto.
Meu marido geralmente me dá dicas, gestos que só eu sou capaz de decifrar: um menear de cabeça para uma defesa, um estreitar de olhos para um bloqueio. Desta vez, porém, não preciso das instruções dele. Conheço minha oponente. Observei-a o suficiente para descobrir seus pontos fortes e seus pontos fracos. Ela me atacará pela esquerda e me defenderei com um bloqueio. A não ser que agora ela decida misturar os golpes.
Como se pensasse que me decifrou, ela me encara com seus olhos azuis penetrantes e sorri, excessivamente confiante, antes de colocar a máscara no lugar. Ela fica rígida e eu também, de modo a convidá-la a fazer o primeiro movimento.
Com reserva e graça, ela troca de pé de apoio e investe contra mim, me atacando numa tática surpresa. Atinjo a espada dela imediatamente, cedendo ao seu ritmo. Ela perde o equilíbrio e exagera na compensação, executando um golpe atrapalhado. Sua reação apressada deixa seu peito exposto.

 


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Rugindo, miro o coração dela com a ponta da espada, sentindo uma emoção intensa ao furar seu casaco branco. Ela deixa a espada de lado e põe a mão no esterno. Seus olhos se arregalam por trás da máscara. O sangue jorra pela grama e mancha meus tênis brancos.

— Mamãe? — murmura ela em choque, encolhendo-se no chão.

Levanto a máscara, tiro as luvas e me ajoelho ao lado dela, cutucando suas costelas incansavelmente.

— Diga! — grito. — Diga que sou a rainha!

Jebediah e Thomas riem ali por perto, enquanto Alyssa gargalha histericamente, balançando de costas como uma tartaruga virada de cabeça para baixo em seu casco, tentando recuperar o fôlego e escapar da minha tortura de cosquinhas. A máscara dela cai, revelando seu rosto avermelhado.

— Diga! — insisto.

— Nunca! — responde ela e segura minhas mãos, lutando comigo e me derrubando ao seu lado.

Em pouco tempo, minhas costelas doem por causa de seus dedos incansáveis e estamos nos abraçando e rindo tanto que lágrimas escorrem de nossos olhos.

— Certo. — Thomas recupera a compostura o bastante para pedir um cessar-fogo. — Os velhos ganharam, simples assim.

— Dobrados novamente — comenta Alyssa, apontando para nossas espadas flexíveis de treino. A piadinha tira uma risadinha de Jebediah, que toca na mão ensanguentada dela.

Thomas me ajuda a levantar e toco os riozinhos vermelhos do meu casaco e calças de esgrima, o líquido grudento entre meus dedos.

Meu marido me oferece uma toalha para limparmos a bagunça. Uso a minha para enxugar meu rosto e minha testa.

— Ainda acho que o sangue falso de Halloween foi um exagero — opina Jenara do balanço na varanda, onde ela e Corbin esperam para desafiar a equipe vencedora. Eles bebem limonada de um tom de rosa igual ao dos cabelos dela. Ela retorce o nariz. — Foi uma cena bem assustadora.

— Você só pode estar brincando — diz Alyssa com uma risadinha ansiosa, admirando os milhares de gotas vermelhas nas roupas e nas rosas, madressilvas e ervas prateadas no jardim. — É lindo. Assim como qualquer decoração, ela só precisa ser transformada em algo novo.

A trança loira comprida às suas costas balança como se ganhasse vida. Ela usa sua mágica para suspender as gotículas brilhantes das plantas e flores e fazer as manchas em nossas roupas se juntarem a elas. O sangue falso paira no ar e ali fica, as gotas se fundindo como chuva na vidraça, até formarem uma treliça — um arco tremeluzente vermelho que parece um vitral. Alyssa segura a mão de Jebediah e o puxa para perto. Ele ri, guiando-a na dança sob o gazebo improvisado. Seus movimentos são graciosos e sincronizados, os corpos jamais destruindo a obra de Alyssa.

Thomas tomba a cabeça num gesto de repreensão, apesar de ser impossível ignorar o orgulho em sua expressão. Se não fosse pela cerca de madeira de três metros que ele recentemente instalou para nos proteger de curiosos, é bem provável que ele não estivesse vendo o showzinho de Alyssa com tanta leveza.

Se bem que ela sempre conseguiu dominá-lo com seus encantos.

Nossa filha olha para ele, rindo, em paz e à vontade como nunca a vi em todos os seus dezessete anos.

Como resultado de seu treinamento de mágica com Morfeu em seus sonhos, ela está executando os feitiços com perfeição, sendo capaz de dar vazão a seus poderes apenas com o pensamento. É em momentos como este que vejo: a rainha mística fervilhando sob a superfície. Uma predisposição ao sangue e ao caos. Como ela ganha vida em chamas e tempestades. Como a mágica dela inspira e doma o pandemônio. Como ela encontra beleza em tudo o que é mórbido e bizarro.

É irônico. Tentei por muito tempo cultivar essas qualidades em mim, mas meu lado humano era forte demais. Nunca pretendi ser rainha. Desejava, mas não de coração.

A dança termina e, com um virar de pulso de Alyssa, as gotículas de sangue caem em câmera lenta — como flocos de uma neve macabra — e novamente repousam em nossas roupas, nas folhas e nas pétalas das quais se originaram.

Jenara bebe o restante da limonada, os cubos de gelo no copo se chocando uns contra os outros.

— Vai ser bem difícil limpar essa bagunça toda.

Alyssa dá de ombros e ri.

— Nada que um frasco de água sanitária e uma mangueira não resolvam.

— Não. Não vou usar água sanitária nesta obra-prima. — Jenara estica os braços para mostrar o casaco rosado cobrindo seu corpinho. Ela o tingiu há algumas semanas e acrescentou uma renda delicada nas mangas e no colarinho. Colocando o copo de gelo ao lado do pé de Corbin, ela sai do balanço. — Se vamos insistir no uso de sangue, vou vestir meu casaco preto.

Corbin a segura pela cintura e a puxa de volta para seu colo.

— Ah, venha cá, princesinha. Vamos derrotar os mais velhos antes mesmo de você quebrar a unha. Jeb e Al simplesmente não têm os movimentos apropriados.

Jenara sorri.

— Bem notado.

— Uha! — Num movimento fluido, Alyssa pisa na espada caída a fim de que ela fique perpendicular ao chão e bata com o cabo em sua mão espalmada. — Venha cá e diga isso na minha cara, Cor-bin-ara.

Troco olhares com meu marido e rio.

— Bela manobra, menina skatista. — Jebediah dá uma risadinha, brandindo seu florete. — Quer uma disputa sob o salgueiro? — Ele arqueia a sobrancelha.

— Você não vai durar dois segundos. — Ela abre um sorriso rápido, seu anel de noivado brilhando à luz ao passar a espada de uma mão para a outra num movimento único e fluido.

— Ah, é mesmo? — pergunta ele, para, sem aviso, erguê-la e jogá-la sobre o ombro. A espada cai no chão com um baque, e ela ri enquanto ele a leva até a árvore e derruba os dois nas folhas que pendem baixo.

Ela poderia facilmente usar seus poderes para se libertar. Mas aí é que está. Não quer se livrar dele. Nunca quis. Ele é seu parceiro humano, em todos os sentidos.

Ela e eu conversamos sobre o que significa a imortalidade... sobre como vai ser difícil quando ele tiver morrido e ela continuar viva. Ela me garantiu que pode sobreviver — apesar de seu olhar ficar distante ao imaginar isso e de seu rosto nublar-se ao pensar na situação. Contudo, acredito na devoção dela ao País das Maravilhas, e Morfeu é poderoso o bastante para ajudá-la a superar essa perda. E sei que, quando tal dia chegar, a imortalidade dela será algo estonteante. Morfeu vai cuidar dela. Ele a tratará como realeza. Ele o faria mesmo que ela não fosse uma rainha, porque admira a coragem dela.

Ela é uma guerreira e eu sou uma covarde. Meu medo de perder Thomas supera qualquer lealdade que um dia eu tive pelo reino interior. Não consigo viver sem ele por toda a eternidade. Por esse motivo, entre tantos outros, fico feliz por meu espírito não ser mágico e eu ainda ser mortal. Mesmo que viva mais que meu marido, não será por muito tempo. E me sinto segura nessa inevitabilidade.

Ver Jeb e Alyssa lutando e rindo me faz sorrir. Eles são tão parecidos com Thomas e eu quando tínhamos essa idade — cheios de esperança. A diferença é que eles têm uma chance real de conquistar tudo o que sonharam, porque não há mentiras entre eles. O País das Maravilhas é um livro aberto que ambos leram e viveram. Eles até mesmo incluíram Jenara e Corbin em seu círculo íntimo.

Só recentemente Thomas e eu tivemos a verdade para nos unir. E tenho de agradecer minha filha por nos dar essa segunda oportunidade e por me devolver minha sanidade. Fecho os olhos, escutando. Tudo o que ouço é a água de nosso chafariz e as brincadeiras de Jebediah e Alyssa. Nada da conversa dos insetos. Nada do sussurro das flores.

De acordo com meu pedido, três meses atrás, quando Thomas, Alyssa, seu noivo e eu voltamos de nossa última viagem ao País das Maravilhas, Alyssa usou seus poderes reais para pôr um ponto-final nas intermináveis conversas em meus ouvidos, e ela se certificou de que seus descendentes ouçam apenas o silêncio. Só ela agora tem uma linha direta com os insetos e as plantas. Assim como ela é a única que ainda faz, nos sonhos, visitas regulares ao reino interior.

Apesar de ainda ter meus brotos de asa e as marcas nos olhos, minhas características intraterrenas só aparecem se eu deixar. Então, pela primeira vez desde meus dezesseis anos, me sinto normal. E, pela primeira vez desde meus doze anos, lembro-me do silêncio.

Achei que sentiria falta das vozinhas que me acompanharam ao longo de toda a adolescência, vozes que se tornaram minhas confidentes quando ninguém mais ouvia; porém, não preciso mais delas como muletas. Agora tenho uma família e um marido que sabe e compartilha da minha história no País das Maravilhas.

Nunca mais ficarei sozinha.

Meus olhos se abrem e sinto os dedos firmes de Thomas se entrelaçarem aos meus, como se ele lesse meus pensamentos. Nada me dá mais segurança que a sensação da mão dele na minha.

— Divirtam-se, meninos — diz ele. — Vamos acabar por aqui. — Ele vira os olhos castanhos para mim e beija os nós dos meus dedos, provocando um arrepio que me vai do braço ao coração. — Prometi à minha constrangida esposa que sairia com ela no nosso aniversário de vinte anos. Continuaremos amanhã. — Estreita os olhos na direção de Corbin e Jenara. — A não ser que vocês dois estejam prontos para perder agora. Todos sabemos como isso vai terminar. A idade e a sabedoria sempre vencem a juventude e a irresponsabilidade. — Sua risadinha maliciosa à la Elvis é recebida por bufadas dos jovens.

— Até parece, sr. G. — fala Jenara com ar de deboche. — Amanhã... mesma hora, mesmo lugar. Eu estarei de preto. E se lembre: o perdedor tem que usar um vestidinho curto em público. Prepare-se para a maior transformação da sua vida.


Enquanto Thomas toma banho, observo-me no espelho sobre o lavabo. Uma tarefa mundana para a maioria das pessoas, mas algo que tenho evitado desde que conheci meu marido.

Finalmente, depois de todos esses anos, não preciso mais me esconder de espelhos. Não preciso mais ter medo de ver a expressão crítica de Morfeu atrás de meu reflexo.

Meu vestido é simples e elegante: renda branca com um decote nas costas e sem mangas. Uma tira de renda contrastante — cor de um cappuccino — afina minha cintura e complementa o brilho bronzeado da minha pele recém-lavada. O sutiã envolve meus seios, e a saia, meus quadris — a barra abaixo do joelho. Alyssa e Jenara me ajudaram a escolhê-lo na loja, jurando que ele era sensual o bastante para deixar Thomas de olhos arregalados. Estou ansiosa por testar a teoria.

Ficamos separados, desnecessariamente, por muito tempo. Talvez por isso ele faça com que eu me sinta como uma menininha apaixonada, porque cada momento que passamos juntos é como redescobrir tudo de novo — suas palavras gentis, seus beijos, sua risada e sua bondade.

Com um toque de blush no rosto e um quê de batom vermelho nos lábios, estou pronta. A energia e a vitalidade pulsam em meu corpo e geram faíscas sob minha pele. Meus cabelos platinados na altura dos ombros envolvem sedutoramente meu rosto, de forma que dou início à tarefa de prendê-los com grampos brilhantes.

Uma mulher prestes a sair com o marido de vinte anos de casamento... é isso que vejo. Houve um tempo, porém, em que eu não estava sozinha na nostalgia, quando qualquer superfície refletora abria as portas para o louco e caótico País das Maravilhas que eu pretendia dominar. Salvei o menino na teia daquele mundo e fiz o meu melhor para dar as costas a tudo isso quebrando todos os espelhos por perto.

Foi errado abandonar tudo sem nem uma explicação. Agora sei disso.

Fugi às minhas responsabilidades, num pacto com o próprio diabo. Então Morfeu, entrando nos sonhos da minha filha — me usando como um canal involuntário —, encontrou outra maneira de me fazer pagar. Ele apareceu para ela todas as noites durante os primeiros cinco anos de sua vida, disfarçando-se de criança — a tal ponto que virou criança de corpo e alma —, de modo a ser o amiguinho dela e conquistar seu afeto e confiança. Quando descobri, tentei reagir ao ataque mental dele com um conflito físico, a fim de protegê-la fazendo a única coisa que me era possível: ir embora.

Fecho os olhos e, por um instante, meu vestido no espelho se transforma na camisa de força que se tornou minha arma preferida.

Como pude achar que não haveria consequências por ter me escondido num hospício? Esperava que ele encontrasse outro parceiro de luta... outro Liddell para explorar, alguém que pudesse salvar-lhe a alma dessa maldição de passar a eternidade preso no covil da Irmã Dois. Para escapar ao seu destino, ele tinha de realizar a Maldição da Vermelha, coroando uma rainha da linhagem dela com a tiara de rubi, enquanto a própria Vermelha possuía o corpo da outra. Equivocadamente supus que, ao decepcioná-lo, ele seguiria em frente e encontraria outra vítima num parente distante, respeitando minha escolha.

No entanto, havia uma rachadura na minha armadura e meu adversário a penetrou. Eu deveria ter previsto. Desde que conheço Morfeu, ele nunca seguiu em frente. Não tendo seu objetivo em vista. Ele é o estrategista mais brilhante e mais paciente que jamais conheci.

O vapor do banho de Thomas nubla meu reflexo e por trás da névoa me vejo como era quando descobri os planos de Morfeu para Alyssa: aquela mãe jovem e ingênua, temendo pelo futuro da filha. Culpada por colocar a filha em perigo. Minha menininha nunca quis ser minha substituta, mas, com minha traição, foi exatamente isso que ela se tornou.

Optei por não contar a Alyssa minhas escolhas e as repercussões delas porque achava que tinha conseguido poupá-la. Mas todo aquele tempo no hospício, longe do meu marido e da minha filha, não teve importância. Nem o juramento de Morfeu de não entrar em contato com Alyssa de novo. Porque ele já tinha plantado, na mente dela, memórias dos momentos a dois, contando com a curiosidade que ela herdou de Liddell para convencê-la a procurá-lo. Aos dezesseis anos, ela encontrou a toca do coelho sozinha, exatamente como ele planejara.

Minha mão dispersa involuntariamente a lembrança e puxo uma mecha de cabelo com força demais. Sinto uma dor no couro cabeludo e faço uma careta. Rearrumando a mecha, prendo-a com um grampo.

Morfeu convenceu minha filha a conquistar a coroa que eu desejava e acabei por desprezar. Ao longo do processo, ele se salvou. Era uma responsabilidade pela qual Alyssa não tinha pedido, apesar de ela acabar por aceitá-la e até mesmo adotá-la. Ainda assim... ele a convenceu a virar rainha sem lhe contar todos os fatos.

A única coisa que me deixa feliz é saber que ele não saiu incólume. Ele pagou um preço. Um preço que jamais imaginou.

Enquanto “amadurecia” com Alyssa nos sonhos de infância dela, enquanto a observava enfrentar todos os desafios que ele lhe impunha no País das Maravilhas, Morfeu — o ser solitário e egoísta antes incapaz de amar — apaixonou-se completamente por ela. Eu não acreditaria, se não tivesse visto com meus próprios olhos. Ele sentiu a força de sua devoção quando desistiu da oportunidade de tê-la ao seu lado no reino interior. Quando ele optou por esperar, a fim de que a metade humana do coração dela pudesse se curar, até que ela fosse forte o bastante para governar o reino Vermelho eternamente.

Por causa desse sacrifício, começo a suspeitar que talvez ele não seja demoníaco. Que talvez, depois de todos esses anos, eu esteja vendo um lado dele quase vulnerável e amoroso. Um lado que ele manteve afastado de mim, a não ser por um ou dois vislumbres dos quais me esqueci ao longo dos anos.

Ainda assim não estou pronta para perdoá-lo por usar minha filha. Porque, para isso, teria de me perdoar por torná-la responsável por minhas confusões. E por mais que Thomas queira... não tenho certeza se consigo.

A vida de Alyssa sempre foi dividia ao meio por causa de mim. Ela sempre tolerou tudo com tranquilidade. Ninguém podia vê-la com seus assuntos interiores e negar que ela foi feita para ser rainha. Ela ama o mesmo mundo que acabei por odiar.

E, como amo minha filha, de alguma forma tenho de aprender a adotar aquele mundo novamente. De outro modo, nunca superarei o fato de ter deixado Morfeu e toda a loucura do País das Maravilhas entrarem em nossa vida.

Meu reflexo nebuloso me traz de volta ao aqui e agora. Passo meu perfume preferido nos ombros e pulsos — nadando em tons de maracujá e laranja —, depois maquio o nariz com pó, saindo do banheiro antes que o vapor do banho de Thomas possa borrar a maquiagem.

Coloco brincos de pérolas e um colar e bracelete combinando, depois me sento na beirada da cama e movimento os dedos do pé, me concentrando na porta fechada do nosso quarto. Sons de portas de armários e panelas batendo umas nas outras vêm do outro lado. As crianças estão na cozinha, preparando algo para o jantar. Penso em ajudá-las enquanto espero Thomas, mas não estou pronta para enfiar os pés no par de salto alto ao meu lado. O carpete é tão gostoso... fofo e farto. Em vez de ajudá-las, deito-me no edredom, abro os braços e fecho os olhos, relaxando músculos que ainda doem por causa da esgrima mais cedo.

Atenta ao ritmo da água contra o boxe do banheiro, permito-me voltar a outro dia e hora, quando tinha treze anos, olhando para o mundo tomado pela chuva. Quando aceitei o chamado interior durante um dos períodos mais tristes e solitários da minha vida.

Foi quando Morfeu se aproximou de mim e me ofereceu poder e vingança na palma de sua mão manipuladora. Foi o dia que mudaria, para sempre, quem eu iria me tornar.


Capítulo 2


Encaixotada

Vinte e seis anos antes...

A chuva batia na caixa de papelão vazia sobre minha cabeça. Eu a virei de lado e entrei nela antes da tempestade. A Lixeira ao meu lado fedia a peixe morto e fruta podre, superando os cheiros frescos de asfalto e terra molhados. Poças marcavam a rua irregular e a água jorrava das calhas que pendiam dos fundos do meu prédio de apartamentos do outro lado do beco.

Uma lufada de vento invadiu meu abrigo improvisado. Acocorei-me contra a parte de trás da caixa, colocando minha sacola atrás do pescoço como um travesseiro e segurando as páginas de Alice no País das Maravilhas a fim de eu não me perder na leitura. Algumas semanas antes, risquei o Alice no título e o substituí por Alison. Em parte era para todos saberem que o livro era meu. Mas havia mais... parte de mim queria que eu pudesse viver as mesmas aventuras... que eu de alguma forma fosse Alice e entrasse numa toca de coelho onde um mundo novo me aguardasse — um mundo onde alguém tão peculiar e deslocada quanto eu talvez se encaixasse. Um lugar do qual eu pudesse fazer parte.

Nunca fui boa em entender outras pessoas. Principalmente porque eu me mudava demais. Pelo menos era o que eu dizia para mim mesma. Não tinha nada a ver com minha dificuldade em confiar nas pessoas ou minha incapacidade de me relacionar com elas diariamente.

A leitura me dava amigos o bastante, e os livros de Lewis Carroll eram meus preferidos, sendo uma das poucas coisas que minha mãe me deixou ao morrer, pouco depois do parto. As histórias me aproximavam dela, apesar de jamais tê-la conhecido. Talvez porque, secretamente, eu entendesse como o País das Maravilhas era real para ela, considerando nosso parentesco distante com os Liddell de Londres.

Certa vez, quando eu morava num orfanato e esperava por uma família adotiva, entrei no escritório e li minha ficha. Só assim é que pude descobrir minha origem. Alice Liddell, a menina real que inspirou as histórias de Carroll, teve um filho que, antes de ir para a guerra e morrer no campo de batalha, se envolveu com uma mulher. A namoradinha dele acabou grávida e veio para os Estados Unidos a fim de criar o filho ilegítimo. O menino cresceu e teve uma filha: minha mãe, Alicia.

De alguma forma, tudo isso deixava minha mãe maluca. Minha ficha dizia que ela passou algum tempo num hospício quando adolescente, depois de pintar os personagens do País das Maravilhas em todas as paredes de casa e insistir que eles conversavam com ela nos sonhos. Quando nasci, ela saltou do segundo andar do hospital para testar as “asas de fada” que as vozes diziam que ela tinha. Ela caiu num arbusto de rosas e quebrou o pescoço.

O médico disse que ela cometeu suicídio — depressão pós-parto e luto por ter perdido meu pai meses antes, num acidente de fábrica. Qualquer que fosse o motivo, algo nunca foi explicado... as marcas do tamanho de uma moeda em suas omoplatas, grandes demais e perfeitamente separadas para terem sido causadas por espinhos.

Minha opinião? Ela tinha asas, sim. Asas que nunca brotaram. Se sou louca por pensar isso, paciência. Porque, se eu era maluca, isso significa que tínhamos uma relação. Algo em comum. Desde que ninguém ficasse sabendo.

Minha mãe também deixara para trás uma câmera polaroide — do tipo que cospe imagens prontas ao aperto de um botão. Sei como usá-la desde os cinco anos.

Abracei com mais força as fotografias que tirei da bolsa. Era algo em que me tornei boa: me esconder atrás de árvores nos parquinhos ou de carros no estacionamento de shoppings para captar momentos das famílias e amigos de outras pessoas. Gostava de me cercar deles — me protegendo, assim, da falta da minha própria família.

Arregacei a manga da minha jaqueta jeans para consultar o relógio. Só mais dez minutos e as aulas terminariam. Então eu voltaria para meu apartamento e fingiria ter passado o dia onde deveria ter estado. Apareci no início da minha última aula, ficando o suficiente para ser considerada na lista de presença, antes de “dar um passeio no banheiro” e não voltar mais. Com alguma sorte, a srta. Bunsby, minha cuidadora mais recente, jamais ficaria sabendo da minha fuga. Moro com ela só há um mês. Não queria incomodá-la e ser abandonada de novo. Apesar de ser uma viúva vegetariana de quarenta e tantos anos, ela era a melhor cuidadora que já tive.

Olhei para o sexto andar do prédio. Nosso apartamento ficava mais à esquerda, onde a escada de incêndio estava toda enferrujada, virando um esqueleto preto pendente e inútil. Eu era ótima em escalada e tentara fazia algumas semanas descer pela escada e sair à noite para uma sessão de fotografias. Escorreguei e caí.

Seis andares era uma queda e tanto. Eu deveria ter morrido ou ao menos quebrado alguns ossos. Durante a queda, porém, entrei em estado de sonho e, de alguma forma, ao acordar não tinha nenhum ferimento. Não estava nem mesmo com dor. Só tinha uma lembrança estranha de enormes asas pretas.

Mexendo nas fotos, encontrei uma no fim da pilha: uma mariposa enorme de corpo azulado e asas pretas, toda aberta numa flor entre um ângulo de sol e sombra. Lembro-me de quando a vi no parque, como se ela estivesse paralisada entre dois mundos. Tirei a foto não apenas pelo simbolismo, mas também porque já tinha visto o inseto antes. Minha mãe tinha desenhado uma mariposa como aquela numa folha de papel mantida dentro dos livros da Alice. O mais estranho é que ela também tinha feito, bem ao lado, um esboço da Alice presente nas ilustrações do País das Maravilhas. De alguma forma — em sua mente —, os dois desenhos estavam conectados. Perdi o desenho durante uma de minhas muitas mudanças. Então, ao ver aquela mariposa idêntica, ao vivo e em cores, tive de imortalizá-la com minha câmera.

Suspirando, guardei a imagem no meu livro da Alice, para marcar a página. Aquela foto era a preferida da srta. Bunsby. Ela disse que eu tinha um dom, que, se eu continuasse melhorando, ela me daria a câmera do marido — uma Yashica 44 —, assim como seus livros sobre revelação de filmes.

Ela foi um dos poucos adultos que acreditaram em mim sem me criticar. Todavia, se a srta. Bunsby soubesse que eu achava que essa mesma mariposa exercera um papel nas fantasias da minha mãe quanto ao País das Maravilhas, ela pensaria que minha imaginação era fértil demais, como meus professores e cuidadores sempre disseram. Fiz a pesquisa na biblioteca. Mariposas vivem meses, não décadas.

Pensar nisso meio que me deixou assustada. Mas também fez com que eu me sentisse especial, como se eu e minha mãe importássemos para alguém em algum lugar — o bastante para merecermos ser observadas. Não foi a primeira vez que senti que insetos e plantas estavam tentando entrar em contato comigo de um jeito que não tentavam com outras pessoas. Eu ouvia vozes desde que cheguei à puberdade, perto do meu aniversário de doze anos, há um ano. Ainda assim, sabia muito bem que não deveria compartilhar isso com ninguém, pelo risco de acabar na ala psiquiátrica, como minha mãe.

Meu estômago roncou e coloquei a mão na barriga. A srta. Bunsby serviria beterraba e caçarola de tofu hoje à noite. Só de pensar nisso minhas papilas gustativas querem sair correndo. Tive de economizar meu lanche ao máximo. O pacote de biscoitos com manteiga de amendoim que guardei do almoço estava aberto ao meu lado. Coloquei um deles na boca e o mastiguei lentamente. Migalhas se acumularam na ilustração de Alice fugindo de alguns guardas da Rainha de Copas, na esperança de manter a cabeça, de modo que as espanei dali, fazendo-as cair na minha coxa.

Uma barata surgiu de baixo das abas da caixa e subiu pela minha calça para pegar um pouco de comida sem nem sequer um “por favor” ou “obrigada”. Em minha opinião, as baratas eram os insetos mais rudes do mundo. Eu conversara com moscas e besouros que eram educados e interessantes. Mas as baratas nunca tinham muito a dizer além de resmungar por causa da falta de lixo e sujeira, agora que os seres humanos habitavam o mundo delas, alegando que os sacos de lixo e os aspiradores de pó estavam prestes a acabar com elas.

Agitei a mão, afastando o inseto. Encolhi-me mais na caixa e censurei meus maus modos.

— Estou tentando ajudá-la, sua idiota. Você quer ser esmagada? — Peguei minha bolsa, enfiando as fotos e livros dentro dela, e saí para a tempestade, correndo até o espaço entre meu prédio e a barbearia ao lado.

A única entrada era pela frente. Nosso senhorio, Wally Harcus, mantinha a porta dos fundos trancada “por segurança”. Pelo menos era o que ele dizia. Ele só queria tirar vantagem de todas as mães solteiras e menininhas que viviam em seu prédio de aluguel barato. A porta dele era a primeira do corredor, o que significava que ele tinha a situação perfeita, da perspectiva de um pervertido.

As gotas de chuva e o gelo me feriam. O tecido da minha jaqueta e da minha calça absorvia todas as gotas e eu me sentia cinco quilos mais pesada e vinte graus mais gelada assim que entrei no prédio.

Minhas mãos estavam molhadas demais para segurar a maçaneta e, por isso, a porta se fechou com um baque. Gemi ao ouvir o barulho.

Mal tinha passado pela porta de Wally quando esta se abriu. Segui lentamente pelo corredor até a escada, mantendo os olhos no homem.

Seu rosto suado apareceu antes, depois todo o corpo, camadas de banha mal contidas por uma camiseta azul justa e calça cáqui manchada de gordura. Dava para sentir o fedor dele com meus olhos — o cheiro de carne e repolho podres. Bolsas de suor formavam círculos irregulares sob seus braços, criando uma mancha azul-marinho.

Ele sempre me lembrava uma morsa — careca, dobras de pele sobre a sobrancelha, o queixo duplo e um bigode que parecia um salsichão polonês semicomido pendendo sobre seus lábios gordos. Os sons que emitia cada vez que respirava só contribuíam para a ilusão de um mamífero marinho.

— Oi, Alison. Se molhou um pouco, né? — Seus olhos brilharam, escuros e aquosos como carvão líquido, ao dar uma mordida em seu damasco maduro demais. O suquinho escorreu por seu queixo e ele abriu uma risadinha maliciosa. Seus incisivos, grandes demais para sua boca, exibiam-se como presas de marfim subdesenvolvidas.

Meu estômago se revirou de novo enquanto ele saía completamente para o corredor e encarava meu peito, a camiseta grudada no corpo. Ele parecia faminto, como se fosse me engolir toda. Fechei a jaqueta e tirei mechas de cabelo molhado do rosto.

— Tenho chocolate quente no fogão. Quer uma xícara? — perguntou ele.

Eu o surpreendi me encarando várias vezes, mas ele nunca antes teve coragem de me convidar para entrar. Engoli em seco e segurei com força as alças da bolsa.

— Não, a srta. Bunsby está me esperando.

— Não está, não. Teve de ir rapidinho ao mercado. — Ele me mostrou um bilhete.

Só tive tempo de ver um triângulo amassado com as palavras voltarei dentro de uma hora, antes de ele guardar o bilhete no bolso.

— Na verdade — continuou Wally —, ela me disse para lhe fazer companhia. Disse que você é nova demais para ficar sozinha sem causar problemas. Posso ir ao seu apartamento, se você quiser. — Ele balançou as chaves que pendiam do cinto, o sorriso ainda maior.

Idiota.

Eu o odiava e me odiava ainda mais por estar com medo. Já encarei monstros como ele antes. Numa família adotiva anterior, tive um irmão adotivo de catorze anos que me prendeu no porão e enfiou a língua na minha boca enquanto suas mãos subiam por sob minha camiseta. Ainda assim fui devolvida ao abrigo por morder a ponta da língua dele e quebrar seu polegar. Eu era a problemática.

Infelizmente para mim, não seria tão fácil me livrar de Wally Harcus quanto foi me livrar de um adolescente magricela.

Meus calcanhares tocaram o primeiro degrau, me detendo. Era correr ou lutar. De uma coisa eu sabia: a srta. Bunsby jamais pediria à morsa que me fizesse companhia. Ele provavelmente a viu saindo e pensou que era a chance perfeita de tentar algo. E ali estava ele entre mim e minha única rota de fuga. E, mesmo que eu me trancasse dentro do nosso apartamento, ele tinha as chaves para entrar.

Eu podia colocar algo contra a porta e ganhar tempo para descer pela escada de incêndio quebrada. Eu provavelmente cairia e morreria, mas isso seria melhor do que a alternativa.

Dei meia-volta e subi os quatro lances de escada. Dava para ouvir os passos dele me seguindo devagar, se arrastando. Ele não tinha pressa. Todos cuidavam da própria vida aqui. Ninguém o impediria, o que tornava a perseguição tão desafiadora quanto a de uma mosca já presa na teia da aranha.

Lágrimas encobriam minha visão ao chegar à porta do nosso apartamento. Um pedaço de fita adesiva pendia com um pedacinho do bilhete da srta. Bunsby no ponto onde ela o prendera, perto do olho mágico. Wally tinha pegado a cartinha que ela deixou para mim.

Engolindo em seco a bile que subia pela garganta, lutei para enfiar a chave na fechadura. A adrenalina usava meu coração como saco de pancadas, socando-o até que ele batesse incontrolavelmente no peito. Tinha acabado de conseguir entrar, fechar a porta e trancá-la, quando Wally subiu o último degrau da escada de nosso andar.

Com todo o corpo rígido, arrastei a cadeira preferida da srta. Bunsby e a coloquei sob a maçaneta, correndo para me trancar no quarto, deixando a bolsa cair junto à soleira, do lado de dentro. A tarde nublada reduzia a luminosidade do dia a uma névoa cinza e, com as cortinas pesadas cobrindo as janelas, as sombras inundavam o quarto e pintavam formas fantasmagóricas nas paredes nuas.

Chaves tilintavam do lado de fora do nosso apartamento, alto o bastante para eu ouvi-las pela porta fechada. Chorando, fui até a janela, abri as cortinas e o vidro. Uma lufada de vento e chuva soprou em meus cabelos, fazendo-os bater contra meu rosto. Lágrimas escorriam queimando meu rosto, enquanto eu passava uma das pernas pelo peitoril, prestes a me jogar.

— Tsc, tsc. Isso seria uma tragédia e um desperdício. — Um sotaque caipira marcado me deixou paralisada ali, sentada entre a vida e a morte. — Claro que sua existência vale mais que a daquele rato gordo.

Virei a cabeça em direção à voz. No canto esquerdo do meu quarto, as sombras se moviam e assumiam a silhueta clara de um homem.

Consegui falar entredentes.

— Q-quem está aí?

— Apresentações não são necessárias entre amigos. — O intruso saiu para a luz fraca, revelando um rosto ao mesmo tempo belo e assustador. Ele não era humano. Não, ele era perfeito e místico demais para isso. Marcas semelhantes a tatuagens brilhavam com cores vivas sob seus olhos escuros e fantasmagóricos. Seus cabelos azulados balançavam sem sincronia com o vento que entrava pela janela. — Acredito que mereço o título de amigo, você não acha? Considerando que da última vez você quase quebrou a cabeça ao descer por essa escada de incêndio. — Asas gigantescas surgiram atrás dos ombros dele, brilhando como seda preta sob a luz cinzenta.

Perdida entre o terror, a descrença e a esperança, trouxe a perna de volta para meu quarto e me encostei na junção entre o peitoril da janela e a parede.

— Você... então foi você. Você me salvou.

Ele alisou as luvas vermelhas que recobriam suas mãos.

— Não exatamente, Alison. Você mesma se salvou ao desafiar as leis da natureza. O simples fato de você ter tentado descer pela escada de incêndio foi digno de uma segunda chance na vida, não? A coragem misturada à estupidez se torna impulsividade, o que é uma característica admirável de onde venho, algo que deve sempre ser recompensado.

Estreitei os olhos para ele.

— Você me recompensou por minha estupidez?

Ele segurava uma cartola diante de si e a acariciava como se ela fosse um gato.

— Sua impulsividade. — Uma risada reverberou em seu peito. — Você é estranha, não é? Você não duvidou de mim ainda, nem questionou se sou real. Nem mesmo perguntou como sei seu nome. Você não se importa com nada disso, não é?

Fechei as mãos ao lado do corpo.

— Não importa se sou louca, desde que minha loucura me ajude a sobreviver.

Ele arqueou a sobrancelha, obviamente feliz e surpreso com minha resposta.

— Ah, você fala como uma verdadeira criatura do reino interior. A loucura, como qualquer outro aspecto da irracionalidade, pode ser usada como instrumento e arma nas mãos certas.

Não tive nem tempo de perguntar o que era o reino interior porque, no cômodo ao lado, os pés da cadeira arranhavam o piso de azulejo e riscavam meus nervos como garras. Wally estava no apartamento.

Minha garganta secou. Olhei para os degraus escorregadios lá fora e depois para dentro, na direção do homem alado agora de corpo inteiro junto à porta. Ele era alto e gracioso, com dezenove ou vinte anos e vestindo rendas e veludo, como um cavalheiro de outra época.

— Você é... você é o meu anjo da guarda? — Ouvi falar dessas criaturas, mas nunca acreditei que fossem reais. Naquele momento, porém, estava disposta a acreditar em qualquer coisa se isso fosse capaz de me salvar do senhorio ou de um pescoço quebrado.

Meu visitante mostrou os dentes num sorriso lindo que transformou seu rosto no parque de diversões do diabo — malícia oculta por um verniz de adorável persuasão.

— Estou bem longe de ser um anjo, meu patinho. Mas estou aqui para vê-la distribuir um pouco de sua virtude com um tolo pecador. — Ele colocou a cartola na cabeça. Mariposas mortas balançaram na aba, num tributo mórbido ao vento que soprava as cortinas. — Agora vamos nos divertir um pouco com o velho Wally, sim?


Capítulo 3


A Longa Perna
da Lei

Os passos de Wally, a Morsa, se aproximavam da minha porta.

— Não vai deixá-lo entrar, não é? — perguntei ao demônio... anjo... salvador... que seja. Ele ficou imóvel como uma estátua, as joias de seu rosto piscando em vários tons de dourado. — Você vai me ajudar uma última vez? — Uma veia latejava forte no meu pescoço e minhas cordas vocais tremiam como uma tarola.

As asas da criatura se abriram.

— Ah, não, patinho. Você mesma vai se ajudar. Afinal, você é quem tem uma linha direta com os mais antigos habitantes da Terra. Eles são mestres em outras coisas além de conversinhas, Alison. Eles têm habilidades. Você só precisa pedir uma mãozinha. — Ele apontou uma aranha de pernas longas que passava pela parede atrás dele, lançando uma sombra enorme sobre o gesso branco. — Ou oito patas. O que você preferir.

Antes que eu pudesse entender o gracejo, meu hóspede místico desapareceu numa nuvem de poeira azulada, substituído por uma mariposa do tamanho de um pássaro que se escondeu de novo nas sombras.

A mariposa da minha imagem... do desenho da mamãe.

Meu olhar se voltou para as polaroides que saíram pela abertura da bolsa. Antes de poder me ater a elas, a porta se abriu, criando uma trilha pelas memórias roubadas.

Meu estômago se revirou quando Wally entrou. Pedacinhos brilhantes de damascos estavam presos a seu bigode. Ele usou as costas da mão gorda para se limpar e quase tropeçou no meu exemplar de Alice no País das Maravilhas.

Ele o pegou e fez um barulho de desprezo.

— As aventuras de Alison no País das Maravilhas? O que há de errado com você, menina? Você é louca ou só estúpida? — O desenho da mariposa caiu do livro quando ele o balançou. Wally ficou olhando a imagem cair no chão. — Espere aí, já vi esse inseto. Estava tentando tirá-lo do prédio. Foi o que me levou à sua porta... — Wally se deteve, como se tivesse falado demais. — Afaste-se dessa janela. Isso não é nenhuma toca de coelho. Você vai tropeçar e eu terei que limpar sua bunda raquítica do asfalto.

Travei a mandíbula, imóvel.

Ele jogou o livro no chão.

— Olha, posso fazê-la suspirar ou chorar. De qualquer forma, isso vai acontecer.

Minha atenção passou de seu olhar desejoso para a parede sobre a porta. Para o desfile de aranhas saindo de um buraco atrás dele, na moldura da porta, cobrindo a parede e o teto. Havia umas trinta aranhas agora e mais delas surgiam. Será que a tempestade as despertou?

Peça uma mãozinha ou oito patas...

Talvez eu estivesse tendo alucinações. Talvez eu finalmente estivesse perdendo a cabeça, como minha mãe. Contudo, o que quer que estivesse acontecendo, tinha de usar isso em meu benefício. Não podia me mexer, e eu já tinha perdido a oportunidade de mergulhar para a morte.

— Me ajude — implorei, sem saber direito o que queria dizer com isso nem para quem estava pedindo.

— Ah, vou ajudá-la. — Em segundos, Wally me prendeu contra a parede com sua mão suada no meu pescoço. Segurei o pulso dele com ambas as mãos e enfiei minha unha com força. Ele riu, seu hálito azedo no meu rosto. — É, vou ajudá-la de verdade. Está vendo, sou o coelho branco e vou levá-la numa aventura que você jamais esquecerá, Alice.

Ele me ergueu pelo pescoço até que fiquei só na ponta dos pés. A pressão fechava minha garganta e pontos pretos começaram a surgir no meu campo de visão. Chutei-o, mas ele se desviou e, com a mão livre, começou a mexer no meu cinto.

Meus músculos abdominais se contraíram, num sinal de repulsa. Os pontos pretos aumentaram, mas não por falta de oxigênio. Virei os olhos e vi o enxame de aranhas nas paredes e no teto — centenas delas.

— Ajude-me agora — ordenei desta vez, sem hesitar. Minha única esperança era tirar Wally do apartamento com uma avalanche de aranhas levando-o escada abaixo.

A reação das aranhas foi instantânea e violenta. Wally gritou e me soltou quando o enxame começou a subir por ele, entrando em seus sapatos e escalando suas pernas. Afastei-me da janela e puxei o ar, enquanto os insetos continuavam com sua marcha, tomando conta do peito dele. Seus gritos de horror eram abafados pelos sussurros furiosos das aranhas que o recobriam. Mais aracnídeos vieram substituir aquelas que morriam. Elas chegaram ao pescoço e ao rosto de Wally, depois encheram sua boca entreaberta, silenciando seus gritos desesperados. Ele levou as mãos ao pescoço, os braços nus cobertos por mangas de pernas ágeis e tórax arfantes.

Seu nariz e seus olhos desapareceram sob a infestação crescente. Ele perdeu o equilíbrio e tentou se segurar na parede, mas errou o alvo. Caiu da janela aberta, engasgando-se durante a queda.

Paralisada, recuei até a porta do meu quarto, perdendo o fôlego ao ouvir o baque pesado do corpo dele no asfalto molhado.

Um movimento repentino no canto esquerdo do quarto me distraiu. A mariposa saiu das sombras e pousou no peitoril, observando a confusão lá embaixo. Um ataque de náusea queimava meu estômago.

— Foi um acidente — choraminguei para o inseto, como se estivesse me confessando. — Eu... não queria que isso acontecesse!

— Ah, mas eu queria. — Aquele sotaque se revirava dentro de minha mente. A voz pertencia à mariposa e ao homem. De alguma forma, eles eram a mesma coisa e de alguma forma também estavam ligados às histórias do País das Maravilhas. Minha mãe tinha entendido tudo. O que significava que ele nos observava fazia anos. Não só isso; ele levara Wally ao meu apartamento mais cedo. Foi por causa dele que o senhorio encontrou o bilhete da srta. Bunsby antes de mim. Tudo foi armado.

Eu não conseguia falar, envolvida por um furacão de confusão, surpresa e arrependimento.

— Não se preocupe com aquele rato, Alison — repreendeu-me mentalmente a voz britânica. — Há incontáveis jovens a quem ele fez mal. Coube a você resolver o problema. Desequilíbrio gera desequilíbrio. O caos é o que restabelece o equilíbrio. Haverá repercussões. Você não pertence mais a este lugar. É melhor assim. Você está destinada a muito mais do que este mundo tem a oferecer. — A mariposa voou sobre mim, pairando diante do meu rosto. — Assuma a responsabilidade. O poder é o único caminho para a felicidade, e posso ajudá-la a conquistá-lo. Meu nome é Morfeu. Encontre um espelho e me chame quando estiver pronta para viver seu destino.

Ao dizer isso, o enorme inseto virou-se e saiu pela janela.

— Espere! — gritei. Lágrimas ensopando meus olhos, me arrastei até a janela e olhei para baixo. Dois adolescentes de bicicleta que estavam ao lado do corpo de Wally olharam para cima. Pouco antes o homem estava me dominando... agora ele parecia uma boneca quebrada com braços e pernas revirados em poses incomuns até se desencaixarem do restante do corpo. As poças ao lado dele estavam manchadas de vermelho, com o sangue que vertia da parte de trás de seu crânio.

Cachorros latiam e pessoas gritavam, enquanto mais espectadores saíam do prédio. Lentamente, todos voltaram a atenção para minha janela. Vários deles apontaram para mim; alguns menearam negativamente a cabeça.

Queria correr, mas não conseguia me soltar da janela. As aranhas tinham sumido, entrando em milhares de esconderijos acessíveis somente a insetos, abandonando-me ao desejo de ter o tamanho delas, para poder desaparecer e jamais ter de enfrentar as acusações e perguntas que viriam.


Morfeu tinha razão. Não encontrei abrigo depois disso. E suspeito que tenha sido por isso que ele cuidou para que Wally encontrasse o bilhete e me perseguisse.

O departamento de proteção à infância acusou a srta. Bunsby de negligência, alegando que qualquer pessoa com minhas “tendências violentas” não deveria ser deixada sozinha enquanto ela fazia compras. Eles também disseram que eu andava faltando às aulas, o que só fez com que a srta. Bunsby parecesse mais inepta. Fui tirada dos cuidados dela na mesma noite.

Enquanto a polícia e os assistentes sociais entrevistavam a srta. Bunsby na sala, eu guardava minhas coisas, tentando evitar olhar pela janela. A srta. Bunsby tinha deixado um saco marrom de mercado na cama. Engraçado ela pensar que havia fracassado comigo. Deu para ver isso refletido em seus olhos amendoados úmidos quando ela chegou em casa depois de toda confusão. Pena que eu não podia lhe dizer a verdade. Pena que não pude dizer que ela não tinha culpa por eu ter sido cúmplice de um assassinato... que a responsabilidade foi do próprio Wally, e também de uma mariposa mística e de um enxame de aranhas.

Dentro do saco de mercado, ela colocou a câmera do marido, filme e um livro sobre revelação de fotografias. Havia ainda um pacote de biscoitos de manteiga de amendoim, uma maçã e uma garrafa de água. Senti uma dor no coração, porque sabia que podia ter sido feliz com ela, se Morfeu não tivesse outros planos para mim. No entanto, por mais que eu sofresse, me recusei a chorar. Cansei de chorar.

E nunca mais seria vítima novamente.

Ao deixar o apartamento, a srta. Bunsby prometeu tentar me visitar um dia. Eu sabia que isso não aconteceria.

Um mês se passou, cheio de avaliações psiquiátricas e exames médicos, a fim de garantir que eu não estava traumatizada. Por mais que tentassem, os médicos não podiam me considerar louca, porque eu me recusava a dar detalhes sobre o acontecido. Só disse que o senhorio tentou me agarrar, lutamos e ele caiu da janela. Simples assim.

Quando o psiquiatra exibiu os cartões com borrões para me analisar, eu nunca disse com o que eles realmente se pareciam. Não lhe disse que via tocas de coelhos, lagartas fumantes, menininhas usando aventais com facas nas mãos, homens alados, mariposas do tamanho de um papagaio ou exércitos de aranhas. Também não deixei ninguém me surpreender falando de flores e insetos que insistiam em me fazer companhia. Sabia como parecer sã.

Fiz um trabalho tão bom que tive alta sem mais avaliações depois de apenas seis semanas. O problema era que o serviço social não conseguia me colocar com outra família adotiva, considerando toda a minha bagagem. Então o abrigo se tornou minha residência permanente.

Pelo menos era o que eles pensavam. Eu não pretendia ficar ali. Planejava ir a algum lugar onde as leis e os olhos atentos deles jamais me encontrassem novamente. E sabia exatamente quem me ajudaria na fuga.

Todas aquelas semanas em terapia, adiei meu contato com Morfeu. Precisava de tempo para refletir. E cheguei a três conclusões. Primeira, minha família estava de alguma forma ligada às histórias de Lewis Carroll, o que significava que o País das Maravilhas existia em algum nível. Em segundo lugar, Morfeu também estava ligado ao País das Maravilhas e precisava de mim para algo, porque ninguém ajuda outra pessoa sem querer algo em troca. Por fim, antes de ajudá-lo, ele teria de me dar algumas coisas: uma forma de fugir do abrigo e respostas a todas as minhas perguntas.

Era difícil aguentar a solidão. O prédio cinzento tinha vários andares com quartos em todos eles. Eram como dormitórios, com três ou quatro meninas em cada quarto... ou meninos, dependendo do andar. O lugar era cercado por uma grade de ferro para manter os estranhos longe e os internos dentro. Havia apenas um portão, sempre trancado.

A lavanderia — um prédio de teto reto com janelas de ventilação instaladas bem embaixo das calhas — estava abandonada, exceto nos fins de semana, quando nos revezávamos lavando nossas roupas de acordo com o número dos nossos quartos. Concluí que seria o melhor lugar para uma reunião na noite de quarta-feira.

Saí do meu quarto, lanterna na mão, cerca de duas horas depois que as luzes se apagaram.

Encontrei um espelhinho de mão na gaveta de uma das minhas colegas de quarto e o levei dentro de uma fronha, assim como os livros de Lewis Carroll de minha mãe, um caderno de espiral e uma caneta. Ainda não sabia onde o espelho entrava, mas Morfeu insistiu que eu usasse um para chamá-lo. Como a lavanderia estava trancada, subi numa árvore ao lado e alcancei o teto usando os galhos, abri uma janelinha de ventilação e entrei, colocando primeiramente os pés. A sola da minha bota tocou uma secadora, então a queda não foi muito grande.

Cortei a escuridão com minha lanterna, revelando um chão de cimento, lavadoras e secadoras e quatro cestos de vinil. Uma mistura de pó e sabão me fez espirrar. Uns poucos bichos noturnos me receberam antes de cuidar da vida deles.

O luar entrava pelas janelinhas e iluminava o ambiente com um toque prateado cremoso. Arranjei um lugar perto da porta a fim de arrumar minhas coisas. Meu corpo seria uma barricada, no caso de alguém descobrir que eu não estava na cama e vir à minha procura. Se eu bloqueasse a entrada, isso me daria tempo extra para pensar numa desculpa.

Depois de abrir minha jaqueta no chão, como uma almofada, apoiei a lanterna contra a parede, criando um anel de luz, e então me sentei e ergui o espelho.

— Morfeu — sussurrei, e só precisei fazer isso.


Capítulo 4


Vinte Perguntas

Um brilho azul apareceu na superfície do espelho, pulsando. Mas o pulso não era apenas visual; era tátil. Eu o sentia vibrando pelo cabo. Com cuidado, coloquei o espelho no chão. Sob um brilho azulado, a agora conhecida mariposa saiu do espelho, como se estivesse esperando dentro dele o tempo todo.

Ela alçou voo e pousou numa poça de luar à minha frente. Suas asas se encolheram diante do peito e depois se abriram como as de um anjo, revelando uma pele branca e perfeita e partes ocultas meio carnavalescas, iluminadas por joias sob olhos negros. Desgrenhada pela estática mágica emanando da forma humanoide e das roupas extravagantes, uma massa de cabelos azulados na altura dos ombros esvoaçava-se em sua cabeça como se soprada por uma brisa.

Morfeu pairava sobre mim — arrumando o chapéu num ângulo ousado.

— Alison — disse ele simplesmente, e o cheiro doce de algo alcoólico veio em minha direção. — Pronta para fazer um acordo?

Ergui o dedo. Da última vez que estivemos juntos, estava distraída pelo perigo que me cercava e maravilhada com a mágica dele. Tudo isso levou ao assassinato de um homem. Nessa noite, eu daria as cartas.

— Você já brincou de Vinte Perguntas? — perguntei a ele.

Ele tombou a cabeça e deu uma risadinha, erguendo uma das asas por sobre o ombro para limpá-la.

— Deixe-me ver... É algo parecido como Responda ao Enigma?

Fiz uma cara de intrigada.

— Ãhn?

Ele abriu as asas e se sentou no meio da lavanderia, seus traços iluminados pela luz azulada que irradiava de seus cabelos e das joias sob seus olhos.

— Responda ao Enigma: não pertenço a ninguém, mas sou usado por todos. Para alguns, sou dinheiro; para outros, posso voar. Crio espaço e não ocupo espaço. Para os que nunca mudam, não mudo nada. Mas, para os que mudam, carrego o peso das areias do deserto. Quem sou eu?

Mordi o lábio. Não era fácil ignorar a vontade de competir — de provar a ele que eu era capaz de desvendar o enigma. Mas sentia que era exatamente isso que ele queria, e precisava me manter atenta aos meus objetivos.

— A bola está comigo, Morfeu. Vinte perguntas. Eu pergunto e você responde. Não vou fazer acordo antes de você satisfazer minha curiosidade. Nada de perseguir coelhos.

Ele bufou.

— Nem mesmo coelhos brancos?

Franzindo a testa, abri a sacola e peguei a caneta e o caderno.

— Nada de fugir da raia. Respostas diretas. Você quer algo de mim. Se pretende conseguir, eu é quem dou as cartas daqui por diante.

— Ora, ora. Tão jovem e tão tirânica. Gosto disso numa cúmplice. — Ele cruzou e descruzou as pernas, apoiou o queixo com as mãos e estreitou os olhos. — Com certeza, patinho. O palco é seu.

Raios azulados vazaram de sua sombra no cimento, cruzando a lavanderia em todas as direções. As lavadoras e secadoras foram ligadas e começaram a rugir e balançar.

Cerrei os dentes.

— Não sou patinho. Está vendo alguma pena em mim? Sou Alison. Nada mais, nada menos. Entendeu?

As joias sob seus olhos emitiram um cálido tom alaranjado.

— Ah, entendi. Mas você, não. Porque você é muito mais do que apenas um nome.

Franzi a testa.

— O que você quer dizer com isso?

— Todos são mais. Somos formados por forças vivas, sangue, ossos e espírito. E seu sangue é mais precioso que o dos demais.

Não conseguia pensar numa resposta, distraída demais que estava pelos motores ecoando nas paredes.

— Pare as máquinas. Preciso conseguir ouvir se alguém se aproximar.

— Temo que não. Minha mente funciona melhor ao som do caos ao fundo. E a sua precisa aprender a fazer o mesmo. E, quanto à sua privacidade, já cuidei disso. Dê uma olhadinha no espelho, frutinha.

Rangendo os dentes ao ouvir o apelido novo — que era dez vezes mais irritante que o anterior —, ergui o espelho. O reflexo fraco do meu rosto ficou borrado, mudando para um portal que mostrava o terreno ao redor da lavanderia. Pontinhos de luz flutuavam em meio às árvores e ao mato. Olhando mais perto, eu conseguia ver as formas de mulherezinhas com escamas reluzentes e asas de libélula.

Um calafrio estranho me deixou toda arrepiada — uma consciência de toda a mágica ao nosso redor que eu não sabia que era possível.

— O que são elas?

— Fadas. Apesar de pequenas, elas podem deter qualquer um que tente nos interromper. Só cuidado com onde pisa ao sair daqui. Senão, pode tropeçar em um ou dois corpos.

Arfei e deixei o espelho de lado.

— Elas os matarão? — Não podia deixar isso acontecer. Uma morte na minha consciência era o bastante.

Morfeu gargalhou.

— Deveria ter esclarecido. Corpos dormentes. Eles não estarão feridos ao acordarem, só muito satisfeitos e confusos. Mais importante, eles estarão preocupados demais com os próprios pensamentos para perceber que você esteve aqui ou para se importar. Mas, novamente, esta não é a minha vez de falar. Você tinha perguntas a me fazer, sim?

Tenho tantas perguntas mais agora.

Deixei de lado a vontade de saber tudo de uma vez, determinada a continuar focada. Peguei da fronha os livros da minha mãe e os coloquei entre nós dois, preparando-me para escrever no caderno as respostas dele.

Ele bateu palmas.

— Ah, que bom! Gosto deste joguinho. Me mostre todas as suas cartas e eu lhe mostrarei as minhas. Espere até você ver o que tenho na manga.

— Pode parar de falar? — repreendi. — Então, você e aquelas... fadas... vocês vivem no País das Maravilhas?

Seu semblante se iluminou. Ele estava obviamente ansioso por responder, mas manteve a boca bem fechada.

— Vamos logo! — insisti. — Vocês são do País das Maravilhas?

Ele permaneceu em silêncio.

— Sério?

— Você me pediu para parar de falar.

Enfiei as unhas em meus joelhos.

— Argh! Me responda!

— Uau. — Ele tirou as luvas, uma de cada vez, prazerosa e enlouquecidamente calmo. — Não precisa se exaltar. Sim... Sou do País das Maravilhas, assim como minhas adoráveis cachorrinhas lá fora.

— Isso quer dizer que — engoli em seco — o País das Maravilhas é real?

— Sim.

— E a toca do coelho também? — perguntei, com um nó na garganta.

Estudando-me na luz fraca, Morfeu fez que sim.

— Posso lhe dar um mapa. É só pedir.

Segurei o colarinho da minha camisa, tentando esconder a pulsação acelerada no pescoço.

— Que papel você exerce lá? Nunca o vi nas histórias.

Uma faixa de mágica azul saiu da ponta do seu dedo até meu exemplar de As Aventuras de “Alison” no País das Maravilhas. As correntes elétricas viraram as páginas, parando ao chegarem à ilustração da Lagarta conversando com Alice.

— Assim como sua inteligente e curiosa heroína, eu não era exatamente eu mesmo nas histórias mais antigas.

Meu olhar se voltou para o texto na página e a resposta de Alice à pergunta da Lagarta sobre a identidade dela: Infelizmente não posso explicar, senhor. Porque não sou eu mesma, entende?

Engoli em seco, a verdade me atingindo como um tapa na cara.

— Você é a Lagarta... depois de sair do casulo.

Morfeu fez uma cara feia, como se ofendido.

— Mariposas e borboletas não apenas eclodem de casulos. Elas se transformam. Agora você tem mais seis perguntas. Não as desperdice, frutinha.

— Espere aí... Só fiz quatro perguntas até agora.

— Tenho que discordar. — Ele mostrou as mãos numa faixa de luar, balançando os dedos e criando sombras na parede; formas incrivelmente reais para uma sombra. Algumas pareciam xícaras, outras, cogumelos, outras como rosas atingidas por baldes de tinta. — Você fez catorze perguntas, apesar de a maioria delas ser inútil. Primeiro, me perguntou se já tinha brincado de Vinte Perguntas. Bom, isso em si é uma pergunta. Depois, quando lhe propus o enigma, você disse, e estou citando, “Ãhn?”. Outra pergunta. Em seguida, depois de pedir para eu não lhe chamar de patinho, perguntou se eu via alguma pena em você e, depois, se eu “entendi”. Por fim, você perguntou o que eu estava querendo dizendo sobre você ser mais do que um nome. Sinceramente, você realmente acha que alguma dessas perguntas eram necessárias? Claro, quando você perguntou sobre as fadas, o que elas eram e se elas matariam seus tratadores de zoológico bobinhos, isso foi quase relevante.

Meus olhos queimavam.

— Não vivo num zoológico! — exclamei, furiosa.

Morfeu riu e fundiu seus fantoches de sombra num coelho saltando pela parede.

— Acrescente a isso as quatro perguntas sobre mim e meu lar, as únicas que realmente pareciam ter lá a sua importância, se me permite dizer, e você fez onze perguntas. Infelizmente, você repetiu uma delas duas vezes depois de me pedir para parar de falar, e em seguida questionou minha seriedade. Ou seja, mais três. Então só restam seis. Escolha suas palavras com sabedoria.

Reprimindo um grito, apertei a caneta na mão até me ferir.

— Tudo bem — murmurei, preparando-me para fazer mais uma pergunta que tinha medo de já ter feito antes de ele me tirar mais oportunidades. — Você entrou em contato com minha mãe, não é? Quando ela era adolescente.

As lavadoras e secadoras ficaram em silêncio, enquanto a mágica dele voltava a seu corpo e a malícia desaparecia de seus traços. Ele tirou o chapéu e o pôs no colo.

— Eu tentei, Alison. A mente dela... estava mais frágil do que eu imaginava.

Joguei o caderno no chão e me levantei.

— Você me disse que a impulsividade sempre rende uma segunda chance na vida. Então por que você não a segurou? Você me segurou! Você não poderia ter feito a mesma coisa por ela? A queda dela foi muito menor! Você poderia tê-la segurado com suas asas! — Lágrimas rolavam por meu rosto. Estava furiosa, talvez mais comigo mesma do que com ele. Prometi nunca mais chorar.

Ele ergueu a cabeça para mim de seu lugar no chão. As joias brilharam num tom de mirta, refletindo a suavidade de sua expressão. Era quase como se uma partezinha dele se solidarizasse.

— Sua mãe optou por saltar ao ar livre. Havia espectadores demais no estacionamento. Ela impossibilitou qualquer resgate. Se ao menos tivesse saltado de uma altura um pouco maior, suas próprias asas poderiam tê-la salvado. Os dois cálculos errados lhe custaram tudo.

— Não. Foi você quem lhe custou tudo. Por que você insiste em importunar minha família? — Recusei-me a pensar na ironia das palavras e esperei que ele fizesse o mesmo. Se ele inventasse alguma piadinha estúpida sobre isso, ou sugerisse que eu tinha quatro perguntas e agora só me restavam duas, eu perderia o controle. Eu o estrangularia com as próprias mãos, com ou sem mágica elétrica.

Por sorte, ele apenas balançou a cabeça e disse:

— Não sou o responsável, nem estou aqui para reparar todas as coisas erradas com as quais você teve de lidar na vida. Em vez disso, estou oferecendo uma forma de você honrar a morte da sua mãe. De você fazer as pazes com isso.

Enxuguei a umidade quente do meu rosto.

— Não quero fazer as pazes com isso! Só queria tê-la conhecido. E só tenho essas histórias estúpidas para me lembrar dela! As histórias que a mataram. — Chutei os livros na direção dele. Os livros correram pelo chão por alguns centímetros, mas não foram muito longe. Olhei para eles, desejando que saltassem no ar e o atacassem como uma ave de rapina... que tivessem bicos para bicar aqueles olhos belos e infinitos, cheios de enigmas crípticos e respostas mais crípticas ainda.

Como se pudessem ouvir meus pensamentos, dois livros levitaram, folhas agitando-se como asas. Eles se voltaram para atacá-lo, mas Morfeu estava preparado, protegido atrás de uma redoma formada por luzes azuladas.

— Um espetáculo esplêndido — comentou ele com um quê de orgulho na voz ao ajeitar o nó da gravata. — Avise-me quando terminar com seu ataque de menina mimada.

Espere aí. Eu fiz com que os livros atacassem? Eu os fiz voar? Fiquei boquiaberta.

Impossível. Os livros caíram no chão com um baque, como se meu pensamento lógico os tivesse matado.

— Eu fiz isso. — Era uma observação. Mesmo descrente, tomei o cuidado para não formular aquilo como uma pergunta. Só me restavam duas agora... escolha suas palavras com sabedoria.

Olhei para os livros caídos e Morfeu, que desativara sua mágica e estava novamente desprotegido, esperando ao luar, paciente e sombrio.

— Minha mãe, ela tinha as mesmas habilidades, não é?

Ele devolveu o chapéu à cabeça.

— Sim, mas as habilidades dela estavam adormecidas. Tentei despertá-las, mostrar-lhe nos sonhos do que ela era capaz. Tentei encorajá-la a dar vida às pinturas nas paredes. Mas antes que ela pudesse... — Ele estendeu a mão. — Bom, deixe para lá. Você deu vida àqueles livros quase sem esforço. Pense no que você pode conseguir com orientação e foco. Está vendo, você conhece, sim, sua mãe. Porque esse toque mágico era parte dela. O que ela deixou para você em seu sangue. Cabe a você escolher o que fazer com isso. Ela só queria liberdade e fuga. Alguns podem dizer que ela conseguiu isso. Mas, quanto a você, algo me diz que um final assim não satisfaria alguém com sua... garra e determinação. Então o que você quer, Alison?

Não hesitei.

— Quero sair deste mundo. — Minha voz pareceu frágil, como um sopro de ar passando por uma janela de tela, enquanto eu afundava no chão, sobre minha jaqueta. Cruzei as pernas, imitando a pose de Morfeu. — Mas também quero tanto mais...

Ele sorriu.

— Claro que quer. Você quer tudo. A coroa, o trono, súditos temerosos prostrados de joelhos a seus pés. E você deve ter tudo isso. É sua linhagem. Isso lhe foi tirado, e você recuperará tudo. Acredito que é hora de lhe mostrar meu ás, princesinha. — Ele tirou um cilindro de papel da manga do paletó e o desenrolou para eu poder ver a bela caligrafia. A tinta dourada parecia úmida, mas sabia que não estava, senão ela teria borrado. Era um reflexo da luz da lanterna.

Corta a Pedra com uma Pena, Cruza uma Floresta com um Passo, Segura o Oceano na Palma da Mão, Altera o Futuro com a Ponta dos Dedos, Derrota um Inimigo Invisível, Esmaga um Exército sob Seus Pés, Acorda os Mortos, Colhe o Poder de um Sorriso.

— Não entendo...

— São testes — respondeu ele. — Se você passar por eles, vai destronar a impostora que ocupa seu lugar e será coroada a única e verdadeira Rainha Vermelha. Você reinará sobre metade do País das Maravilhas e jamais precisará voltar a este zoológico.

Engoli em seco. Um calafrio lento percorreu meu corpo, quente e doce, como uma árvore sentindo a resina verter de seus galhos ao primeiro sinal da primavera. Era minha intuição encantada despertando. Havia um lugar ao qual pertencer. Um lugar para governar. Lá, nunca mais seria solitária e todos me obedeceriam.

— Mas como posso realizar coisas tão impossíveis?

Morfeu enrolou o papel novamente e o guardou.

— Esta é sua vigésima pergunta, e muito bem usada. A resposta está no enigma que mencionei antes. E, caso você não tenha entendido, pense nisto: qualquer interpretação pode ser alterada simplesmente olhando-se para as coisas de outra forma, de ângulos mais coloridos... vendo-se as palavras e o mundo por um caleidoscópio, não por um telescópio.

Fiz que sim, porque fazia sentido, de alguma forma hábil e absurda. Depois de todo o alerta quanto a usar minhas palavras com sabedoria, já estava começando a ver tudo de um jeito diferente: conotação versus denotação, instinto versus lógica, infinito versus...

— Tempo — sussurrei, respondendo ao enigma.

— Isso mesmo. — Ele se levantou, tirando uma chavezinha presa a uma corrente em sua lapela. Ele a segurou de modo que ela foi iluminada pelo luar. — Tempo de treiná-la, tempo de superar os testes e tempo de conquistar seus súditos.

— Quanto tempo demorará? E o que você ganha com isso? Você disse que faríamos um acordo.

— Desculpe, Alison. Suas perguntas acabaram. Tudo o que você precisa saber é que vê-la coroada é tão bom para mim quanto para você. — Ele jogou a chave para mim e eu a peguei no ar. — Nada vai atrapalhá-la, por mais que demore. Você me dará o tempo e eu lhe darei os instrumentos de que você precisa para reclamar o que lhe é de direito, para mudar tudo o que você achou que você era. E então o tempo não terá mais importância, pois você vestirá o manto da imortalidade interior. A começar hoje, mudamos seu destino.


Capítulo 5


Trilhos de Trem

A falta do barulho tranquilizador do banho acaba com minha névoa nostálgica.

Espreguiço-me e me sento na cama, olhando para a porta entreaberta de onde o vapor sai numa dança fantasmagórica. Thomas está se barbeando. A água jorra na pia, para e ele cantarola baixinho ao passar a lâmina sobre a pele. A música é a que ele costumava cantar para mim quando estávamos namorando. As palavras atravessam minha memória: um homem implorando perdão por amar demais a moça, dizendo-lhe que não queria outra, só ela para sempre, que valia a pena qualquer sofrimento para ficar com ela.

Ele levou a cabo a mensagem da música, ficou ao meu lado quando qualquer outro homem teria desistido e me abandonado. Nunca me arrependi de preferir ele ao meu destino interior. Só me arrependo de tê-lo magoado. Assim como me arrependo de quase ter tirado de Alyssa sua chance de imortalidade.

Na época achei que estava fazendo a coisa certa, ficando em silêncio para salvá-la das práticas bárbaras do País das Maravilhas. Só tinha dezesseis anos quando me deparei com a toca da Irmã Dois e vi para que finalidade ela usava crianças, mas, mesmo com aquela idade, não conseguia fechar os olhos para a tragédia ou as semelhanças: como o coveiro extraía os sonhos delas para alimentar as almas incansáveis no cemitério. Da mesma forma como fizeram comigo inomináveis monstros ao longo da minha vida — canalizando meus sonhos para seu prazer e satisfação. Todavia, ao contrário de mim, as vítimas da Irmã Dois nunca conseguiram escapar.

Ver Thomas envolto na teia dela depois de ficar preso lá por dez anos — toda a sua vida desperdiçada — mudou algo em mim. E minha traição mudou Morfeu. Foi uma trágica reação em cadeia.

Estremeço e me afasto do banheiro, olhando para meus pés descalços, a mente paralisada num tempo e lugar horríveis.

O colchão afunda-se quando Thomas se senta atrás de mim usando calça cinza e uma camisa lavanda que pende de seus ombros largos, solta e toda aberta.

— Minha Ali-ursinha. No que você está pensando? — Beija-me no pescoço, envolvendo-me com o perfume da loção pós-barba. Seus dedos cingem-me a barriga, gerando calafrios de prazer em toda a minha pele.

Sorrio e me derreto em seus lábios, minhas costas tocando seu peito nu, enquanto ele me beija embaixo da orelha.

— Em você e no agora — respondo, passando os dedos pelo tecido que lhe recobre os braços.

— Perfeito — sussurra ele. — Porque estou pensando em você e em como você é linda.

— Você aprova o vestido, então?

— Não só isso... — Sua boca cheia de malícia abre caminho até minha nuca. — Você está cheirosa também.

Dou uma risadinha, e ele sorri contra meu corpo.

— Se pretendemos ir a algum lugar hoje à noite — insisto, tentando me concentrar apesar de seus beijos suaves —, temos que sair daqui a pouco.

Ele suspira — pétalas de hálito quente se abrindo perto da minha omoplata esquerda e meu botão de asas.

— Acho que você tem razão. Principalmente porque não estamos apenas saindo. Estamos indo embora.

Olho por sobre meu ombro, para onde sua boca faz contato e deixa uma marca de sensações.

— Embora... para onde?

— Para a distante Londres. — Ele ri. Seus cabelos úmidos absorvem o sol se pondo pelas persianas, uma confusão oleosa de ondas achocolatadas. Quando ele sorri para mim assim, parece ter dezenove anos novamente.

— Você quer ir para Londres hoje. — Viro-me na cama para ajudá-lo a abotoar a camisa. É uma das minhas camisas preferidas pela maneira como a cor complementa a pele dele e como o tecido sedoso gruda em seu corpo. Passo os dedos por seu peito antes de fechar o colarinho. A esgrima diária definiu seus músculos a um novo nível, uma densidade sofisticada que só os músculos de um homem da idade dele podem adquirir. — Então... Acho que essa viagem-surpresa significa que você decidiu adiar nossa briga de espadas amanhã. Tem certeza disso? Não me leve a mal, você está em excelente forma. Só não sei se você tem pernas para uma minissaia.

Ele ri, fazendo a covinha em seu queixo encontrar uma sombra e parecer ainda mais profunda.

— Ah, voltaremos a tempo de defender nossos títulos. Vamos pegar um atalho. — Ele coloca meu colar com a chave no meu pescoço. — Nossa filha da realeza nos ofereceu seu espelho.

Abro um sorriso forçado, apesar do frio na espinha — como se aranhas com patinhas de gelo estivessem fazendo teias congeladas em cada um dos ossos. Sempre que uso as passagens nos espelhos, sinto que estou voltando ao passado e é por isso que, quando visitamos os Skeffington em Londres, insisto em irmos pelo caminho tradicional, pegando um voo comercial.

Mas hoje à noite não tenho coragem de impedir os planos dele. Posso fazer isso. Afinal, ainda estaremos no reino humano.

Houve uma época em que ansiava por entrar no espelho e descer pela toca do coelho, só para rever as paisagens e criaturas. Entretanto, depois de ficar presa lá há alguns meses, passando dias e noites no castelo de Marfim, ajudando Grenadine a conter o vazamento de lembranças, para mim chega. Estou preparada para ficar aqui pelo resto da vida, com Thomas e Alyssa. Sacio minha vontade de companhia do reino interior na Estalagem do Humphrey duas vezes por mês, quando visitamos a família de Thomas. Isso basta.

— Certo. Só me deixe terminar de me vestir. — Abaixo-me para pegar as sandálias, mas Thomas ganha de mim, ajoelhando-se aos meus pés.

— Espere um pouco — adverte ele, baixinho e com cuidado. — Este é o trabalho de um cavalheiro, princesa. — Ele ergue meus pés nus, dando um beijinho no meu calcanhar antes de calçar o sapato. Ele faz o mesmo com o outro e termina com um beijo no meu joelho, antes de pôr cuidadosamente meus pés calçados no chão.

— Meus lindos dedinhos. — Inclino-me de modo que nossas testas se toquem, a fim de poder me perder em seus olhos gentis e cálidos.

Abrindo aquele sorriso de Elvis que adoro, Thomas se levanta e me ajuda a me levantar. Ele pega um paletó esporte e minha manta de renda e me leva pelo corredor até o quarto de Alyssa. Risadas abafadas e conversas vêm da cozinha. O cheiro de queijo derretido, linguiça picante e molho marinara me dá água na boca. As crianças devem ter decidido fazer pizza em casa.

— Então vamos à Estalagem do Humphrey? — pergunto, de repente com vontade de um prato de espaguete à bolonhesa com pão de alho, alcachofra e queijo feta, meu prato preferido entre as especialidades do Hubert’s.

— Faz parte dos planos — responde Thomas. — Vamos passar a noite lá. Mas primeiro vamos a Ironbridge Gorge. — Ele mostra os cogumelos no bolso do paletó, nossos “bilhetes” para o trem da memória, antes de vesti-lo.

Franzo a testa e o ajudo a ajeitar a lapela, estudando nosso reflexo no espelho de corpo inteiro de Alyssa, uma antiguidade prateada francesa que ela encontrou num mercado de pulgas. Foi a primeira coisa que ela comprou depois do nosso retorno do País das Maravilhas, para ela poder dar uma olhada em seus súditos ao longo do dia, quando necessário.

— Não entendo. Por que iríamos a Iron Bridge? Já não vimos tudo o que tinha para ver?

— Você, não — responde Thomas, seu rosto pintado pelo pôr do sol rosado. — Sei que você ainda está cheia de arrependimentos. Vejo a dor no seu rosto todos os dias. — Ele acaricia minha testa franzida. — Já é hora de se perdoar. Já é hora de você perceber o impacto positivo que teve sobre todos nós o fato de você deixar Morfeu e o País das Maravilhas entrarem na sua vida, porque você olhou tanto para o lado negativo que perdeu a noção disso. Ontem perguntei a Alyssa sobre memórias perdidas. Ela me disse que, depois que elas são armazenadas como carga, se tornam parte do trem, mesmo depois que são vistas por quem as criou. Então vamos dar uma última olhada naqueles anos perdidos, mas, desta vez, vamos fazer isso juntos. Você precisa ver o que teria sido de nós se você não tivesse interferido.


Nossa viagem a Ironbridge Gorge é mais simples do que era quando Alyssa e eu vínhamos aqui, cada uma de nós procurando algo diferente. Com a ajuda de Jeb, ela recentemente instalou um enorme espelho no túnel da ponte. Agora, o transporte aqui é tão simples quanto passar de um espelho para outro. Não há viagem pelo interior. É uma ligação direta do quarto dela para o túnel.

Ao fazermos a travessia, candelabros — feitos de enxames de vaga-lumes presos a armações — passam como rodas-gigantes em miniatura pelo teto. Eles brilham ao longo de paredes sujas, cartazes publicitários velhos de 1956 a 1959 e uma pilha de velhos brinquedos descartados no túnel.

A despeito do nervosismo, consigo comer cogumelos o suficiente para encolher com Thomas, a fim de podermos embarcar no trenzinho de brinquedo enferrujado que leva a todos às memórias perdidas e esquecidas do País das Maravilhas.

O besouro-condutor nos espera. Ele abre a porta em que se lê Thomas Gardner e nos leva a um cômodo sem janela forrado por um tapete sob um sofá cor de creme. Um abajur todo decorado lança um brilho ameno sobre as paredes. Do outro lado, um palquinho com cortinas de veludo aguarda para exibir as memórias de Thomas.

— Por favor, sentem-se e bebam alguma coisa — oferece o besouro, mais cordial do que nunca. Muito se falou sobre as loucuras de Alyssa no mundo dos espelhos. Ela adquiriu a reputação de uma Rainha Vermelha severa, mas sábia, e isso nos assegura, como seus pais, do respeito de todo o reino interior.

Thomas e eu nos sentamos lado a lado no sofá. Há uma mesinha à esquerda e um guardanapo rendado sob um prato cheio de biscoitos com gotas de chocolate. Pego um e o ofereço a Thomas. Ele come metade, limpando as migalhas que caem em sua calça, e gesticula para eu comer o restante.

Ondas de náusea me atingem. Tento atribuir a sensação à fome e mordisco o biscoito macio e a cobertura delicada de amêndoas, ficando mais tensa quando o condutor esmurra com seu braço artrópode um botão na parede. As cortinas do palco se abrem, revelando uma tela de cinema.

— Imagine mentalmente o rosto do seu marido enquanto olha para a tela vazia e você vivenciará o passado dele como se fosse hoje. — O besouro mexe num controle que desliga a luz e então fecha a porta.

Dou a mão para Thomas. Na única vez que visitei este trem, estava espiando o passado dele sem que ele soubesse e as coisas que vi me deixaram tão horrorizada que quis escondê-las dele para sempre. Agora ele está aqui, me encorajando a olhar mais atentamente. Mesmo com o conforto da presença dele, meu nervosismo é quase sufocante.

Supero isso, lembrando-me dele como a criança que vi no dia em que vim sozinha — quando o nome dele era David Skeffington e ele tinha oito anos. Desta vez, porém, imagino-o alguns meses antes, quando ele ainda vivia com sua mãe, seu pai, duas irmãs e um irmão em Oxford.

Uma imagem aparece na tela em cores vivas e me toca. Ela me destroça — cada parte do meu corpo se desfiando —, até que me recomponho, atenta, admirando os olhinhos de David e compartilhando seus pensamentos, emoções e sensações infantis.

Ele tem uma infância feliz, cheia de momentos sentimentais... seguindo seu pai durante os trabalhos na fazenda de caprinos, brincando com suas irmãs e irmão nas colinas que cercam a casa, os passeios e piqueniques da família, as histórias antes de dormir recitadas pela voz melódica e suave da mãe. Mas, uma noite, ele é visitado por um grupo de cavaleiros imperiais usando túnicas vermelhas e brancas — os mesmos que vieram buscar o irmão dele dois anos antes.

A mãe chora com a chegada deles, gritando que os cavaleiros nunca visitam uma família pela segunda vez, mas seu pai a consola, dizendo que, por suspeitar que isso fosse acontecer, ele mesmo os convocara. Então ele leva David para um quarto escuro para ser interrogado.

Um dos cavaleiros, um homem de barba grisalha usando uma túnica vermelha e malha de ferro, abre, na escuridão, um aparelho multiespelhado. Ele aciona um botão, iluminando as molduras. Cada espelho está montado num ângulo exato para refletir o outro, provocando uma ilusão de infinito.

— Ande pelo labirinto de espelhos, menino — diz o cavaleiro. — Diga-me o que você vê.

David anda para lá e para cá, primeiramente sem ver nada além de milhares de imagens de si mesmo. Então ele vê algo se movimentando num dos reflexos distantes — a silhueta de algo inumano. Ele vira a cabeça e encontra a mesma distorção em todos os planos de vidro prateado. Com uma piscada de olho, as sombras dão lugar à claridade e um mundo estranho e assustador se abre. Pássaros feios e enormes com dois pares de asas andam pelo terreno em vez de voarem. Morcegos vermelhos duas vezes maiores do que condores passam por cima dele, caçando qualquer coisa com coragem o bastante para compartilhar o céu flamejante com suas línguas compridas e venenosas. Ele começa a recuar, mas o terror se transforma em fascinação e o seduz, enquanto criaturas menores — seres parecidos com filhotinhos coloridos na forma de flocos de neve — passeiam pelo cenário. Eles viram do avesso, suas entranhas uma bola de dentes afiados que devoram tudo pelo caminho. O sangue mancha tudo à medida que eles se banqueteiam dos pássaros de quatro asas. David faz uma cara feia, meio que esperando sujar-se com o jato quente cor de cobre, mas o massacre é contido pelos reflexos. O medo e a repugnância fecham sua garganta, mas ele observa por mais um segundo, enquanto criaturas ainda menores, parecidas com uma borboleta com cauda de escorpião, voam baixo — elegantes anjos da morte — e transformam todas as bolinhas de dentes ensanguentados em estátuas de pedra.

Numa euforia estonteante, David sai do labirinto e repassa toda a morte que viu. Os cavaleiros conversam entre si e se viram para o pai dele.

— Isso não tem precedentes: seu segundo filho também tem a visão — afirma o cavaleiro de barba grisalha. — Ele vê os pontos fracos na barreira entre o reino interior e o mundo humano com mais clareza do que o irmão. Você sabe o que isso significa, Gregor.

O pai de David faz que sim. Ele parece triste e ao mesmo tempo orgulhoso ao dar tapinhas na cabeça de David. O menino não sabe o que sentir. Mas de uma coisa ele sabe: ele não é mais considerado uma criança. Ele é um guerreiro e será treinado como tal.

Seu pai faz suas malas, eles beijam uma última vez a mãe e as irmãs em prantos e então vão viver com os tios e primos de David em Oxford, Inglaterra, na Estalagem do Humphrey. A insuportável dor sentida por ele ao dar adeus à família e à antiga vida é amenizada somente quando seu irmão mais velho, Bernie, vem recebê-los à porta.

A cena treme ao passarmos por vários meses de lições: estudando em Qualquer Outro Lugar, o mundo espelhado para onde os exilados do País das Maravilhas são banidos. Ele aprende que tal lugar está conectado ao País das Maravilhas por uma densa floresta e ao mundo humano por espelhos infinitos, e que um domo de ferro cerca a prisão, transformando quaisquer seres intraterrenos encarcerados em criaturas grotescas, caso tentem usar mágica no interior.

Durante seu treinamento, David se afunda em estudos sobre as criaturas mutantes para ter a honra de fazer parte de um grupo especial dos cavaleiros que guardam os dois portões — o portão do reino humano e o portão do País das Maravilhas. A violência e o pavor, porém, saturam de imagens vívidas e bizarras seus sonhos e pesadelos. Ainda assim ele progride, fazendo aulas de autodefesa e refinando sua linguagem — aprendendo a usar a mente como armadura quando são os enigmas a arma.

As cenas da vida de David param no restaurante de Hubert, enquanto seus pés deslizam nas cinzas do ringue, enquanto os convivas o veem aprender a bloquear um ataque vindo de cima. Sinto a pulsação de Thomas... David... acelerar, sinto sua vontade de dar orgulho ao pai, sua competitividade em relação ao irmão e aos primos e a consciência tímida de ter todos os olhos sobre si — o candidato mais jovem. Mas com o tempo ele aprende a bloquear tudo, exceto o jogo. Ele se torna confiante, gracioso e fiel, supera todos os seus oponentes — incluindo seu próprio pai — e, em seu nono aniversário, está pronto para sua primeira viagem a Qualquer Outro Lugar, a fim de sentir os segredos internos em primeira mão. A maioria dos meninos é admitida aos treze anos, mas ele merece uma iniciação precoce, não só porque aprendeu a se defender, mas também porque tem a ousadia, sabedoria e perspicácia de alguém cinco anos mais velho.

Um arco-íris vívido mancha a tela, enquanto as memórias se voltam para o caminho de David dentro de um túnel de vento esbranquiçado na forma de um tornado. O funil serve aos cavaleiros como travessia segura para o mundo prisional, já que eles são os únicos com medalhões mágicos que controlam os ventos. As lufadas tomam conta dos cabelos e das roupas de David, que é carregado com seu tio William para o portão do País das Maravilhas, onde David será iniciado nos segredos de seu posto como guardião. Impulsionado pelo medalhão no pescoço do tio, o funil se abre e os cospe, um a um, muito acima do portão trancado contra a floresta densa e o País das Maravilhas. Um gigantesco escorregador de cinzas se ergue para pegá-los e levá-los à plataforma, mantendo-os a uma distância segura do fulgurante vórtex de nada que separa o portão do terreno mundano e mantém encurralados os prisioneiros.

David observa tudo através de óculos de armação de couro, iluminados. Como esta é a primeira vez dele dentro do mundo na redoma, ele estava determinado a não perder nada, nem mesmo a viagem até lá. Seu pai cedeu e o deixou usar os óculos que ele e seu irmão usavam para proteger os olhos das cinzas e iluminar o caminho quando andavam de moto por trilhas sujas nas colinas de Oxford, à noite.

Por causa de sua visão perfeita, ele vê — enquanto seu tio é jogado para fora do túnel atrás dele — que a corrente mantendo o medalhão no pescoço do velho se quebra e o colar começa a cair. David estende a mão para pegá-lo. Uma vez em segurança ao lado do portão, ele devolve o colar ao tio. O velho lhe dá um tapinha nas costas e guarda o colar em sua malha de ferro.

— Um dia, você terá um medalhão. Aposto minha vida nisso. — Seu tio ri. David sorri diante do elogio.

Tio William sempre foi seu preferido... Ele cheira aos doces de canela que sua mãe costumava pôr nos pratos natalinos, ele é capaz de vencer qualquer um no xadrez e sempre tem uma bela piada para contar. Foi ele quem manteve David debaixo da asa quando seu pai teve de voltar para a fazenda. E agora ele insiste em ser o guia de David em todos os mistérios deste mundo estranho e mágico que sua família protege há séculos.

David se aproxima do portão de ferro sólido, a fim de que o Tio William possa lhe contar o segredo de como se abre caminho para o País das Maravilhas. Embutida na parte de baixo da barreira de três andares, a caixa hexagonal aparece com cinco quebra-cabeças organizados numa estrutura de boneca russa. David observa Tio William montar três deles, fazendo o portão ranger e se abrir um pouco por vez, revelando o túnel escuro atrás — um corredor pela floresta densa. Vem um cheiro forte — madeira úmida e podre. Faltando somente dois quebra-cabeças para abrir completamente o portão, Tio William fica pálido e se apoia contra o ferro. Então ele segura o peito e cai ajoelhado.

Ofegante, David se abaixa ao lado dele.

— Tio, o que houve? — Ele quer gritar, mas engoliu névoa negra demais em meio ao nada a caminho do portão. Suas cordas vocais não estão totalmente despertas, então ele continua num murmúrio. — Devo chamar o vento de novo? — Seu sussurro é indecifrável até mesmo aos próprios ouvidos.

Não importa. Seu tio não pode mais lhe responder. David é pequeno demais para carregar o corpo do Tio William até o local de pouso. E, se ele pegasse sozinho o túnel de vento à procura de ajuda, abandonaria o tio vulnerável diante do portão entreaberto. David não sabe como usar a caixa para trancar a porta. Ele pega um pombo-correio mecânico da bolsa do velho. Aquilo só é usado em emergências e deve ser enviado com uma mensagem gravada, mas, com sua voz muda, ele só pode enviar o pombo-correio sem mensagem nenhuma, na esperança de que seus parentes o vejam e saibam que algo deu errado.

Ele aciona o interruptor para acender os olhos e ativar as asas do pombo e manda-o para o céu. Mas teme estar sem tempo. A pele do seu tio já está azulada, como a cor do gelo sobre um lago.

O coração de David bate forte no peito.

Há uma coisa que ele pode fazer.

Com os olhos em chamas atrás dos óculos, David olha para o portão parcialmente aberto. Apesar de a Irmandade do Espelho ter muitas informações sobre Qualquer Outro Lugar e seus ocupantes, não foram feitos muitos estudos sobre o País das Maravilhas. Exceto pelos livros da Alice, pouco se sabe sobre os seres de lá. De todo modo, abundam rumores sobre criaturas com poderes curativos que ultrapassam a compreensão humana.

David pode não saber resolver os dois últimos quebra-cabeças, mas a abertura — pequena demais para um adulto — já está do tamanho perfeito para seu corpinho passar.

Ele hesita. Há outras histórias também, sobre as fadas. Dizem que algumas são enganadoras e fatais. Mas como é possível que elas sejam piores que os monstros deste lado do portão? E ele foi ensinado a derrotar os melhores. Com certeza seu conhecimento pode fazê-lo entrar no País das Maravilhas e sair incólume dele.

Tenso, David se levanta e passa pelo portão, antes que o medo ou a razão possam detê-lo.


Capítulo 6


Âncora

Numa reação em cadeia, assim que David passa pelo portão, este se fecha atrás dele. Seu tio estaria protegido de quaisquer criaturas perdidas do País das Maravilhas, até que o próprio mecanismo se reiniciasse com a boca para a floresta densa se abrindo e fechando. Só então o portão permitiria que alguém passasse pela mesma abertura de novo. Até mesmo David teria de encontrar um novo caminho... atravessando outra garganta da floresta densa.

Um calor de pânico queima o rosto de David. Ele se sente sozinho e com medo por um instante, antes de se lembrar de que fora treinado como cavaleiro. Seu plano daria certo. Ele só tem de encontrar uma fada com poderes de cura e fazer algum tipo de acordo. Dizem que elas colecionam quinquilharias humanas.

David tira as luvas, revelando o anel que recebera ao ser ungido: um anel de ouro puro reluzente cravejado de diamantes em sua circunferência e um enorme rubi brilhante com uma cruz branca de jade no meio. Para ele, o anel não tem preço, mas ele está disposto a dá-lo se isso significar a salvação do Tio William.

O cheiro podre detestável arde-lhe os olhos, mesmo por trás dos óculos. Ele liga as luzes em torno da armação de couro para iluminar a trilha cheia de musgos e começa a correr. Depois de uns seiscentos metros, o ar parece menos denso. Ele luta para respirar no espaço fechado e escuro. Seus óculos se embaçam, o que o faz tirá-los do rosto e posicioná-los no pescoço, de onde ainda iluminam seus passos.

Ele vira uma curva e vê uma clareira, com uma luz ainda fraca e ar fresco. Ofegante, David desliga os óculos para não ficar exposto ao sair da boca ensandecida para entrar na clareira.

Ele empunha a espada ao saltar por cima dos dentes e pousar num arbusto. O som de algo se quebrando o faz se virar para olhar para a árvore da qual saiu. A boca tenta mordê-lo. Ele se joga para trás, escapando por um triz dos dentes, que voltam para dentro do tronco a fim de formarem o que parece ser uma protuberância na casca — mas David sabe muito bem que não é nada disso.

O mato reluzente envolve suas botas enquanto ele caminha pelo punhado de arbustos, à procura de uma saída.

Alguns arbustos atrás dele balançam. Tenso, ele fica no meio da clareira, fora do alcance do mato e das árvores que o cercam, mantendo os olhos no dossel de galhos.

Os arbustos balançam novamente e ele ergue a espada, preparando-se mentalmente para os seres intraterrenos que surgiriam da floresta densa em formas estranhas e horríveis. Possivelmente uma formiga de fogo com o corpo em chamas ou um cavalo voador com embaladeiras de madeira afixadas às seis patas.

Em vez disso, um grito irrompe do outro lado dos arbustos, seguido por uma confusão de vozes histéricas diminutas, ainda mais estranhas por causa da brincadeira infantil delas.

— Estupidezez! Estúpido, estúpido, estúpido! Ela né quinem fugitivos!

— Ataquiri o humanolongo!

— Sinsins! Ou vão ser nossos morotoros pescoços e cortados.

— Apostas erradas acontecem.

— Erradas ou nãoses, Twid Two pede que vocesseis fiquem parados.

— Todosos podedem sonharos!

— Ela vai pendurar vocesseis pelos pescoços... morotoros-mortoros-mortos que sejam!

David relembra suas aulas de idioma. É como latim suíno misturado com jargão sem sentido. Mas três das frases ele consegue compreender claramente. As criaturas de vozes minúsculas estão perseguindo uma fugitiva, estão preocupadas com a falta de sonhos e estão prestes a ser enforcadas.

As vozes crescem e os arbustos balançam novamente. David se esconde atrás de uma pedra enorme para observar. Ele não pode deixar que o capturem ou o machuquem... Tio William precisa que ele encontre ajuda e volte rápido. As folhas nos arbustos se abrem e algo aparece.

David perde o fôlego ao ver um menino humano nu, talvez seis anos mais velho que ele, avançar na luz amena da clareira. Ele é da cor do leite, só um emaranhado de cabelos pretos na cabeça. É como se todo o sangue tivesse vertido dele... não do seu rosto, mas de seu peito, braços e pernas. Então David percebe que o menino não está completamente nu. Seu corpo está coberto por alguma coisa — uma gosma espessa. Fibras sedosas pendem dele como tranças, como se ele estivesse sendo desfiado.

Teia de aranha?

David engole em seco, fazendo mais barulho do que esperava.

O menino se vira para ele, mas seus olhos vítreos não o veem. Sua expressão não parece ter percebido nada. Não há nenhuma expressão além de um olhar vazio e sombrio.

Uma corda de teia de aranha atinge o calcanhar do menino, derrubando-o de cara no chão. Ele resmunga algo com a boca cheia de mato — um som estranho e animalesco sem nenhum sentido —, como se ele tivesse esquecido como se fala.

As criaturinhas tagarelas surgem apressadas — cinco delas —, ainda discutindo entre si. Parecem macacos-aranha prateados de pele sem pelo. Olhos volumosos cor de níquel, sem pupila ou íris, brilham como moedas num poço dos desejos.

Uma gosma brilhante verte da pele careca. As gotas prateadas oleosas marcam seus passos como trilhas longas e finas. Todos usam minúsculos capacetes de mineiro. As luzes percorrem a clareira desorganizadamente, como bolhas reluzentes.

Ao passarem pela pedra de David, um cheiro pútrido de carne os acompanha. Eles cercam o menino caído, fazendo sons ameaçadores. Um deles tira a teia do calcanhar da vítima e a usa para amarrar-lhe as mãos nas costas. O menino exibe os dentes numa tentativa feroz e furiosa de se libertar, embora sua expressão mantenha o olhar vazio.

A criatura mais perto dele recua e ri — dentes afiados à mostra em seu rosto símio. Ela emite um som incômodo entre um ronronar e um uivo, depois salta sobre o menino, enchendo a boca dele com a teia. Os outros macacos prateados incentivam o companheiro, exultante com os sons de sufocamento do menino indefeso.

Nauseado com o espetáculo horrível, David joga os óculos no grupo para distrair as criaturas e sai do seu esconderijo.

— En garde! — grita, agitando a espada na direção das criaturas prateadas, numa tentativa de espantá-las.

Elas gritam em uníssono e correm para os galhos próximos. As lamúrias balançam as folhas, seguidas pelas luzes dos capacetes.

David abaixa a espada e se põe ao lado do menino, soltando-o das amarras.

— Vocesse não deveria ter feito isso, ser falante — alerta uma das criaturas com uma voz débil e ameaçadoramente melódica. — A jardineira deverese estare a caminhoinho. — As demais reagem rindo, balançando ainda mais os galhos, mas então fazem um silêncio incômodo, como se ouvindo algo.

Jardineira? David mantém um olho mirado nas criaturas e continua a desamarrar o menino. O Tio William geme em seu pensamento. David espera que seus outros familiares já tenham encontrado o velho. De uma coisa ele sabe: Tio William e seu pai iriam querer que ele fizesse a coisa certa. Ele jurou proteger toda a humanidade contra a magia, e este menino obviamente precisa de proteção.

Tão atento a suas batalhas internas, ele não vê a gigantesca sombra até ouvir a música assustadora:

— A dona aranha subiu pela parede — canta uma voz misteriosa do alto.

Ele sente um arrepio assim que olha para cima — tarde demais. A visão aterrorizante o deixa paralisado.

Uma aranha do tamanho de um homem pende de cabeça para baixo. A metade de cima é fêmea — o rosto translúcido com cicatrizes e arranhões ensanguentados ao longo de seus lábios roxeados, rosto, queixo e têmporas. Seus pelos prateados caem em mechas espessas, quase alcançando a cabeça de David. A parte de baixo é a de uma viúva-negra, cinco vezes maior que as bolas de ginástica que os cavalheiros usavam para ficar fortes e resistentes. Ela se equilibra num fio de teia preso aos galhos, e a teia brilha como seus famintos olhos azuis. Oito patas brilhantes de aranha envolvem a teia-âncora, algo assustador e gracioso.

David pensa em empunhar a espada, mas fica paralisado de medo e surpresa.

Ela ergue e baixa a pata esquerda e quase parece humana, exceto pelas tesouras de jardim no lugar da mão.

A jardineira. A palavra apavora David, abate-se sobre ele, trazendo-o de volta ao presente.

Snip, snip, snip. O abrir e fechar das tesouras despertam David completamente do transe. Ele recua de costas, o coração acelerado enquanto as lâminas quase atingem seu rosto.

A mulher com características de aranha desce delicadamente ao chão diante dele.

O terror sacode seu sistema nervoso — milhares de pedrinhas de gelo incendiando sua pele. Antes de poder se endireitar e correr, um jato espesso de teia o envolve dos pés à cintura, capturando sua bainha e inutilizando sua espada. David tropeça e cai no chão ao lado do menino que ele tentara salvar. O menino o encara com aqueles olhos desolados e dormentes. Com a língua ele tira a teia da boca e murmura novamente aquele mantra sem sentido, como se tentasse dizer algo a David.

O lado esquerdo do corpo de David dói por causa da queda e punhados de mato pinicam o interior de seu ouvido.

— Bom, bom — diz o aracnídeo com uma voz rouca que deixa um sabor de cobre na boca de David, como flocos de ferrugem e desespero. — Vocês doises viraram amigos? Que lindoinho.

As criaturas símias prateadas riem e saem de seus esconderijos. Numa tentativa desesperada de fugir, David enfia as mãos no mato e rasteja até o limite da mata.

Duas das criaturas saltam sobre ele e outra tira o anel de seu dedo.

— Brilhante! — grita ela, exibindo seu prêmio.

— Devolva isso — exige David, apesar de não fazer ideia de onde vem sua coragem.

Rosnando, a aranha jardineira empurra os macacos de lado com quatro patas e prende David onde ele está, dando voltas e mais voltas nele, até envolvê-lo de teia até os ombros.

— Este daí-í é um reluzente falante — provoca um captor prateado, cutucando David com um galho.

— Falante ele pode ser, meu escravo. — A mulher aracnídea se abaixa, seu hálito atingindo o rosto de David. Ele tosse, engasgando com o cheiro de terra úmida e podre. — Mas ele é um sonhador? — Sua mão direita, escondida por uma luva de borracha, toca-lhe o queixo. Como uma criança preocupada com uma casca de ferida, ela olha nos olhos dele, um estudo intenso que revira as entranhas de David. Ele sente o puxão bem lá no fundo, em profundezas maiores que a de seu coração, ossos e sangue... até libertar e expor todos os temores e esperanças mais secretos de sua alma. — Sim. Ele ser um sonhador único. E ser meu.

Diante da afirmação da bruxa aracnídea, as criaturas símias dançam, a gosma prateada delas descendo pelo rosto de David.

— Solte-nos — implora ele, olhando para o outro menino.

— Ah, negativo. — A luva de borracha lhe toca a cabeça, esfregando o cabelo no couro cabeludo. — Levar vou Irmã Dois à sua vontade. Dela um presente para mim, ele é. Ele ser vai magnífico no meu jardim. Vi coisas outras humanos não viram. Ahhh, você ter vai os sonhos mais vívidos. E pesadelos, ah, pesadelos em convulsão. — Uma baba pinga de seu lábio, o que combina com o sangue já em seu queixo. Limpa-a com a mão de tesoura, cortando-se mais uma vez.

David fica tenso dentro de seu casulo, tentando tocar a espada. Mas seus membros estão presos — imóveis.

O menino caído se lamuria e a aranha vai até ele.

— Parece que temos um substituto para você. Não foi fácil? Chega de sofrimento. — Ela tira a luva, usando os dentes para ajudar na falta de outra mão útil. A bainha de couro cede para revelar cinco caudas de escorpião se encolhendo e se esticando no lugar de dedos.

David geme ao ver algo tão repugnante.

A Irmã Dois se curva sobre o prisioneiro e abre a teia no peito dele, expondo a pele branca.

— Hora de se juntar aos outros. — Sua mão venenosa se choca com força contra o esterno do menino e o veneno verte da ponta do seu dedo; então ela atravessa os ossos até o coração.

O menino uiva e convulsiona. David grita e tenta chegar até ele, mas não consegue se mover. Em pouco tempo, o corpo do menino se encolhe e se transforma num escravo símio prateado, como os demais. Finalmente ele para de se debater e fecha seus olhos sem pupilas, seu rosto primata relaxado e uma língua negra pendendo da boca. Bolhas de gosma saem do que um dia foi carne humana e um rabo fino e comprido cresce em suas costas.

David fecha os olhos com força, tentando não gritar como um menininho. Tenha coragem, diz ele para si mesmo. Você é um cavaleiro. Mas ele está perdendo a coragem... ele está esquecendo tudo o que aprendeu. Ele só se lembra do sangue e da morte e dos dentes afiados e ferrões. Sente a mão macia e cuidadosa de sua mãe lhe acariciando a cabeça. A lembrança é destruída por um par de tesouras de jardim.

— Não tenha medo, menininho sonhador. — A Irmã Dois se volta para ele, enquanto os escravos pegam o novo membro do grupo e o levam para longe. — Você está em casa agora. Você tem irmãos e irmãs imortais aqui. Um dia, quando seus sonhos se esgotarem, você se juntará a eles. Mas, antes, alimentará minhas almas famintas e derrotadas.


— Nããão! — grito. É um grito tanto para David quanto para o menino perdido que jamais conheceremos. O menino perdido que nunca se reunirá novamente com seus entes queridos. Que agora se perdeu para sempre, até mesmo de si próprio.

Grito mais alto à medida que a teia cobre o rosto de David e ele não consegue mais gritar por si mesmo nem por ninguém.

— Nãããão!

— Alison. — Thomas me sacode pelo ombro e a cena treme e se desfaz ao meu redor, me tirando das lembranças dele e me fazendo cair de novo no sofá, aninhada pela semiescuridão que nos cerca.

Escondo meu rosto no braço de Thomas, em busca de seu perfume e calor. Lembrando-me de que ele está aqui e jamais sofrerá daquele modo novamente.

— Sinto muito mesmo.

— Não, meu amor. Você me salvou. Você não tem que pedir desculpas por nada. — Ele me abraça e me puxa para perto, esperando que meus batimentos se normalizem e eu consiga respirar novamente sem ofegar.

— A Irmã Um mentiu para mim — digo, tentando dar sentido às coisas. — Ela disse que as fadas usavam corpos de criança para alimentar as flores. Mas não era nada disso.

— Não. As fadas já foram crianças também. — Thomas suspira demoradamente, seu tórax erguendo minha cabeça com o esforço. — E elas não podem voltar àquela forma.

Meu rosto queima de raiva.

— Não consigo mais assistir a isso. Por favor, diga que é aqui que tudo termina.

Ele me aperta.

— Está tudo bem. Essa é a bênção. Algo na teia agiu como sedativo. Eu estava num transe. Não tenho lembranças da minha época na toca, porque não tive lembranças. Só tive um sonho. Mas me lembro de despertar quando você me libertou da armadilha e caí no chão. Eu me lembro de você me cobrindo.

— Sim — sussurro na escuridão. — A Irmã Um me deixou emprestar o cobertor. Era tudo o que ela podia oferecer. Ela estava apavorada com a ira da irmã gêmea. Usei a manta como maca, para me ajudar a tirá-lo dali.

— Eu me lembro disso também. Vi vislumbres de você olhando para trás para ter certeza de que eu não caí. Seus olhos eram da cor da liberdade. Ou do meu futuro. Eles eram tão cheios de dor, de determinação. E de força. — Thomas me aperta com mais força. — Então, ao acordar no ombro de Morfeu quando ele passou comigo pelo portal, você e suas asas desapareceram aos poucos. Você era transcendente... etérea. Acordar na sua cama foi como acordar de um coma de dez anos e ver um anjo. Seu rosto era conhecido, acho que por causa daqueles vislumbres de consciência. Por algum motivo, quando Marfim apagou minhas outras memórias, aqueles momentos permaneceram. Talvez porque não fossem memórias ainda. Eram mais... despertares. E, sem minhas outras lembranças, você era a única coisa que eu reconhecia. Mais tarde, me convenci de que tinha sonhado com você e as asas, mas não importava. Porque só de olhar para você, com ou sem asas, renasci.

Aninhei-me mais em seu peito para ouvir seu coração. Fechando os olhos, revivo mentalmente o momento em que nos conhecemos oficialmente, como se o estivesse vendo na tela do outro lado da sala.

Eu me sentei ao lado da cama e guardei vigília naquela noite, depois de quebrar todos os espelhos para que Morfeu não pudesse voltar ao quarto. Sabia que o tinha decepcionado. Também sabia que ele estava furioso. Mas não me importava. Só me importava de ajudar o menino na teia.

Sabendo que ele não teria identidade ao acordar, eu o batizei enquanto ele dormia. Ele me lembrava de uma pintura que vi uma vez numa das minhas casas adotivas. As pessoas eram religiosas e um retrato de São Tomás pendia sobre a lareira. Seus cabelos eram castanhos, o rosto jovem, mas marcado pela sabedoria, e seus olhos escuros eram solidários e melancólicos. Ele era o santo padroeiro das pessoas tomadas pela dúvida e, como nunca acreditei que eu tivesse um lugar no mundo humano, tomei-o como meu santo pessoal.

Contudo, ao ver o menino sonhador dormindo naquela noite no meu quarto, um menino que ajudei a salvar... um menino a quem dei um lar, sabia que jamais duvidaria do meu lugar novamente.

Nervosa e insegura, observei seus olhos castanhos se abrirem na manhã seguinte. Uma aurora cor de pêssego dançava nas paredes do quarto, animada por três galhos balançando do lado de fora da janela. Eu me perguntava se ele teria medo de mim, se ele entraria em pânico e sairia correndo. Mas, quando nossos olhares se encontraram, eu me senti — pela primeira vez em muitos anos — segura. Ele me tocou como se me conhecesse desde sempre. Considerando o tempo que ele passou sem contato humano, não hesitei em tocá-lo. Silenciosamente, segurei a mão dele e entrei sob a colcha de retalhos, acomodando-me ao seu lado. Sem falar nada, seus dedos tocaram todo o meu rosto, seu hálito doce na minha pele — um resíduo da poção do esquecimento que Marfim lhe dera. Para mim, era o cheiro da esperança e de uma nova vida. Então ele parou na minha boca, segurou meu rosto e me deu um beijo, seu toque tão terno e ainda assim tão confiante para um menino de dezenove anos que nunca tinha beijado uma menina. Foi meu primeiro beijo recíproco, o único que chegou ao meu coração e me iluminou como uma tocha desafiadora contra o vento forte. Fiquei ali no calor de seu abraço e dormimos por horas, até que o sol avançou no céu e chegou a hora de lhe dar respostas, por mais falsas que fossem.

Thomas não conseguiu falar nos primeiros meses. Ele entendia as coisas que eu dizia, mas teve de reaprender as palavras — como articulá-las e lê-las. Era como se a Irmã Dois não tivesse apenas sugado seus sonhos e imaginação, mas também toda uma vida de comunicação. Apesar de ser frustrante para ele, isso facilitou as coisas para mim e fui capaz de relacionar sua deficiência e amnésia a um acidente de carro e um ferimento na cabeça.

Agora repasso as mentiras que disse na esperança de mantê-lo são, e me pergunto como as coisas podiam ter sido diferentes se o tivesse trazido aqui para o trem, a fim de que ele visse a verdade.

Mas o passado não pode ser desfeito. Ele me perdoou e me ama, apesar de tudo.

— Só queria ter podido salvar todas aquelas crianças, como salvei você — digo, segurando a camisa de Thomas. — Ou salvar Alyssa da dor pela qual ela passou.

— Deixe disso, docinho. Você não vê quantas vidas você salvou? Não só a minha. Você e eu fomos destinados a fazer parte do País das Maravilhas. Não importa os caminhos que escolhemos. Fomos pegos naquela teia assim que nascemos. O que significa que era inevitável que nossa filha tivesse o mesmo destino e que o papel dela fosse maior que o nosso.

— Entendo isso, mas...

— Mas o que você insiste em esquecer — interrompe Thomas com cuidado — é que, sem seu papel nisso tudo, nossa menina jamais teria nascido, porque eu teria terminado como fada, constantemente em busca daquela faísca de inspiração, sem nunca saber exatamente o que perdi. Não consigo pensar em fim mais trágico. Você consegue?

Uma emoção nova cresce dentro de mim. Um quê de indignação virtuosa por todas as crianças humanas perdidas e aquelas que consegui salvar, uma emoção quente e avassaladora.

— Ao entrarmos no País das Maravilhas pela primeira vez — continua Thomas, segurando minha mão e levando-a ao seu coração —, você deu vida à nossa filha e uma chance de vida a todas as crianças que a Irmã Dois teria pegado e usado no futuro. O fato de Morfeu convencer Alyssa a ser rainha o fez se apaixonar por ela, o que por sua vez deu a um ser solitário e egoísta a chance de crescer e fazer algo admirável... Ela está com a gente agora por causa disso. Jeb ter desistido da sua musa em nome das crianças humanas... um menino que não teve muita infância... outro sacrifício admirável. Somos todos pessoas melhores... ou seres intraterrenos, em alguns casos... porque você teve coragem e ousadia suficientes para buscar uma vida melhor para si mesma. Por causa das suas escolhas quando era aquela menina solitária de treze anos, e novamente quando era aquela princesa virtuosa e misericordiosa de dezesseis anos, incontáveis vidas foram salvas e melhoradas. E, ao salvar o pai de Alyssa, você lhe deu uma chance de existir.

Contive o choro.

— O que lhe deu chance de criá-la. Ela é forte e incrível por causa de você. — Seguro a mão dele, fecho-a e beijo os nós dos dedos. — Obrigada por nunca ter desistido de mim ou da nossa menina. Você é nosso herói.

— Você é minha heroína, Alison. Literalmente. — Ele tira do meu rosto uma mecha que se soltou do grampo. — Quantos homens podem dizer isso da mulher que amam? Hein?

Paro de lutar contra as lágrimas. Deixo-as rolar tranquilamente por meu rosto. São lágrimas diferentes das de outros choros. São puras, terapêuticas e felizes. Divinamente felizes. A despeito da escuridão que todos enfrentamos, tenho minha família. Honrei a morte da minha mãe permitindo que outros vivessem. Como Morfeu disse uma vez... ele me deu uma chance de fazer as pazes com a morte. E agora Thomas me dá uma chance de fazer as pazes com minha vida. Tudo é como deveria ser. Finalmente.

Haveria momentos em que os pensamentos sombrios me visitariam, tenho certeza. Mas agora... agora tinha uma luz para lançar sobre eles. Um farol a me guiar.

— Chega de olhar para trás — digo para meu marido, a voz surpreendentemente firme.

— Chega de passeios de trem. — Ele acaricia meu queixo com os nós dos dedos. — Só para a frente, deste dia em diante. Aproveitando todos os momentos juntos que nos restam neste mundo. Você comigo.

— Até o derradeiro fim — falo.

Thomas enxuga minhas lágrimas.

— Feliz aniversário, Ali-ursinha. — Ele me puxa para o colo no sofá e me beija até eu perder o fôlego e ficar toda vermelha como uma noiva tímida. Depois ele me põe no chão para ajeitar minhas roupas e sussurra em meu ouvido. — Estou morrendo de fome. Que tal espaguete à bolonhesa?

Eu rio.

— Você leu meus pensamentos.

Ao sairmos do trem rumo ao espelho, ele segura minha mão. O menino na teia e o homem dos meus sonhos. Para sempre e eternamente, minha âncora.

 

 


CONTINUA