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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SUSSURROS DO PAIS DAS MARAVILHAS
SUSSURROS DO PAIS DAS MARAVILHAS

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A MARIPOSA NO ESPELHO


Capítulo 1


As Maquinações
da Mariposa

— Tem certeza, Morfeu?

— Tenho — respondeu Morfeu, tirando as luvas e enfiando-as no casaco. — Você, entretanto, parece que precisa ser convencida.

A magia pulsava nervosamente na ponta de seus dedos, uma luz azul pulsante logo abaixo da pele. Por causa da ponte de ferro que havia lá fora, seus poderes estavam limitados a alguns truques inofensivos, mas suficientes para dar o seu recado, se necessário.

O besouro-tapete — que de tão grande chegava à altura dos ombros de Morfeu, depois de este haver tomado uma poção encolhedora — engoliu em seco por trás de suas muitas mandíbulas estalantes. Sua pele carpetada tremia.

— Não, não. Por favor, o senhor interpretou mal as minhas ressalvas. — Os braços ramosos do inseto vibravam enquanto ele folheava as marcações em ordem alfabética de sua prancheta, as quais continham todas as lembranças perdidas no País das Maravilhas. — É que ficar espiando os momentos esquecidos de um ser humano parece uma maneira tediosa de se passar uma tarde, só isso...

Morfeu mudou de posição, e suas asas lançaram uma sombra sobre a cara do besouro.

— Ah, mas este humano, em especial, tem muito a me ensinar.

Esse humano, em especial, havia conseguido capturar algo que Morfeu desejava mais que tudo neste mundo.

— Sente-se — disse o inseto, apontando para uma cadeira branca de vinil —, e eu prepararei as memórias para o senhor.

Morfeu jogou as asas para o lado, sentou-se e deu uma tragada no narguilé fornecido por seu anfitrião como cortesia. O tabaco doce e fresco passou ardendo pela sua garganta. Ele soprou baforadas de fumaça no ar, formando com elas o rosto de Alyssa. Era fácil imaginar o modo como seus olhos sempre se cobriam de um azul gélido quando ela o via, cheios de excitação e temor ao mesmo tempo. Adorava isso nela: a sagacidade de seus instintos intraterrenos alertando-a a não confiar nele, suavizada pelas emoções humanas forjadas durante a infância que passaram juntos.

Antes dela, Morfeu levara a vida em solidão, sem nunca precisar de ninguém. Ele não fazia a menor ideia do feitiço que ela lhe lançara. Ela era mais que uma decepção, sempre jurando devoção ao lado errado. Seu encanto, porém, era inegável. Principalmente quando ela o desafiava ou o encarava com sua indignação de justiceira, o que a deixava com os lábios deliciosamente posicionados quando rangia os dentes.

Morfeu colocou o narguilé de lado, embora a sensação de queimação em seu peito não tivesse nenhuma relação com o fumo. Alyssa era a única que poderia aplacar o incêndio que havia ali, pois fora ela quem havia atiçado aquelas chamas.

Os dois tinham passado cinco anos juntos — como amigos de infância —, até que a mãe dela a arrancou dele, Alyssa sangrando e ferida, e ele ficara se remoendo de remorso e com culpa por causa de um juramento imprudente que havia feito, no qual prometeu se manter longe dela.

Manter-se afastado da amiga fez com que ele sentisse o gosto da solidão pela primeira vez. Mesmo todos os anos de claustrofobia que ele passara aprisionado em um casulo antes de encontrá-la... nem mesmo eles o prepararam para o sofrimento da ausência dela.

Então, por fim, ela havia voltado para ele, fazendo-o reviver todos os antigos sentimentos que ele pensava ter dominado. Daquela vez, também, tudo foi muito rápido. Ela partira novamente, por escolha própria. Restaram a dor e a solidão excruciantes. Debilitantes.

Havia apenas seis meses que ela partira do País das Maravilhas, e ele não compreendia este vazio corrosivo que só poderia ser preenchido pelo toque dela, por seu perfume, sua voz. As solitárias criaturas mágicas não ligavam para essas bobagens; não precisavam de companhia, abominavam a bagagem emocional. Sua afeição e lealdade pertenciam ao agreste País das Maravilhas e a nada nem a ninguém mais.

Então o que ela havia feito para mudar isso?

Ultimamente, cada vez que ele via o próprio reflexo, não mais reconhecia a Mariposa no espelho. Estava incompleto, enfraquecido; e menosprezava isso.

O menosprezo era ainda maior porque ele havia se esforçado tanto para cortejá-la, enquanto ela oferecia seu afeto a um reles mortal.

Morfeu suprimiu um rosnado. Ele não conseguia compreender a sorte de Jebediah, como um humano podia ter tanto poder sobre uma rainha intraterrena. Como um simples rapaz era capaz de controlar um coração real e mestiço tão multifacetado, um espírito propenso ao pandemônio e à loucura. Jebediah puxava Alyssa para baixo, acorrentando-a ao tédio e à banalidade do reino humano.

Ela precisa ser libertada.

Morfeu havia considerado a possibilidade de matar seu rival, mas Alyssa jamais o perdoaria. Não. Chegara o momento de tomar medidas criativas.

Se Morfeu soubesse no que Jebediah havia pensando durante sua jornada pelo País das Maravilhas — todos os momentos em que ele se sentiu mais aterrorizado, mais desanimado —, conheceria as fraquezas e as forças do mortal, intimamente. Ele saberia como enfraquecer Jebediah, contrapondo-o a si mesmo.

Essas fraquezas o derrotariam melhor do que Morfeu o faria. E depois, quando tivesse destruído a confiança de Alyssa em seu cavaleiro mortal, Morfeu estaria lá para confortá-la e conquistá-la.

Voltaria a ouvir a risada de Alyssa do modo como ela ria quando os dois eram crianças, e teria de novo a oportunidade de ser presenteado com o seu sorriso deslumbrante.

Ele voltaria a ser completo.

— Por aqui, por favor — pediu o besouro para que Morfeu o seguisse.

Morfeu tirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo. Quando o inseto abriu a porta para um compartimento de memórias sem janelas, o cheiro de amêndoas vindo de uma travessa de biscoitos de luar fresquinhos que estava em uma mesa de canto se espargiu no ar. Havia uma chaise-longue na cor creme colocada contra a parede, e uma ornamentada luminária de piso feita de latão iluminava o espaço com uma luz discreta.

Morfeu concentrou-se no pequeno palco do outro lado do compartimento. Sentiu o coração palpitar de ansiedade num ritmo profundo e firme. As cortinas de veludo vermelho aguardavam o momento de se abrirem para mostrar as memórias de Jebediah na tela prateada.

— Como o senhor entrará na cabeça do rapaz para visitar suas lembranças perdidas, sou obrigado pelas normas a avisar-lhe que... as emoções humanas podem ser muito poderosas... podem nos fazer ver as coisas sob uma perspectiva totalmente diferente — advertiu o besouro.

— Estou contando com isso. — Morfeu deu um sorriso afetado. — Conhece aquele ditado sobre amigos e inimigos?

O besouro coçou a pele enrugada.

— Hum... mantenha seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda?

Morfeu acomodou-se na cadeira estofada e alisou a calça risca de giz ao cruzar as pernas apoiando um tornozelo sobre o outro.

— Melhor ainda é se colocar no lugar de seu inimigo. É a melhor maneira de controlar seus passos. Ou de apagá-los, caso tenha a oportunidade.

O besouro, voltando a tremer, esticou o braço fininho e apertou um botão na parede. As cortinas do palco se abriram, revelando uma tela de cinema.

— Imagine o rosto do rapaz enquanto olha para a tela em branco e vivenciará o passado dele como se fosse hoje.

As palavras do besouro eram ensaiadas, até mesmo mecânicas, mas a pulsação de Morfeu ficou acelerada. Ele esperou o besouro desligar a luz. Assim que o inseto saiu e fechou a porta, o corpo de Morfeu desmembrou-se nas juntas, flutuando pela escuridão como se fosse feito de partículas de pó. Todos os seus pedaços se uniram novamente na tela prateada, em cores vivas e cinematográficas, até que ele entrou na cabeça de Jebediah, apropriando-se do seu corpo, sentindo suas emoções.

Naquele momento, Morfeu entregou-se à experiência e, pela primeira vez na vida, passou a ver as coisas como um humano.


Capítulo 2


Primeira Lembrança —
Kriptonita

Jeb acordou em uma cama suspensa.

Estava nu. Por que estava nu?

Antes que esse fato pudesse ser totalmente registrado, trinta fadas ou mais, do tamanho de mariposas, surgiram do ar, acariciando cada parte do seu corpo e sussurrando-lhe. Ele tentou mexer os braços e pernas. As asas das fadas — que batiam na velocidade das asas de um beija-flor — liberavam partículas parecidas com as pétalas delicadas de um dente-de-leão, que, de alguma maneira, o imobilizaram. As sementes exalavam um perfume de canela e baunilha que foi inundando sua consciência, até que a sala ficou totalmente fora de foco.

Quando a névoa se dissipou, ele estava em sua cama, em casa. A noite adentrava pela janela e Taelor estava em cima dele, seminua. A unhas pintadas à moda francesinha percorreram os pelos de seu peito e abdômen, dirigindo-se ao cós de sua calça jeans.

Aquilo não podia ser verdade. Taelor e ele tinham brigado antes do baile de formatura, haviam terminado tudo.

Com delicadeza, ele a virou, colocando-a debaixo dele, e apoiou-se nos cotovelos, afastando o cabelo do rosto dela. Mas não foram os olhos de Taelor que encontraram os dele. Foram os olhos gélidos e azuis de Alyssa — encarando-o com um ar de admiração e inocência. Os dedos dele pareciam grandes e desajeitados nas têmporas dela.

A Al na cama dele?

Não. Isso não podia acontecer. Alyssa nem havia beijado homem algum. E Jeb nunca tinha sido o primeiro de nenhuma garota.

A Al era intocável para ele. Ela já passara por muitos episódios turbulentos em sua vida. E ele não era exatamente um exemplo de estabilidade.

Ele tirou as mãos dela e ficou de joelhos.

— Jeb, você não me quer? — perguntou Al, passando a mão no peito dele.

Ele não conseguiu responder. Seus dedos coçavam e pareciam esticar-se, como se estivessem crescendo. Ele ergueu as mãos sob o luar, observando, horrorizado, seus dedos caírem, um por um, e se metamorfosearem em lagartas. As lagartas, então, avançaram lentamente na direção de Alyssa, e ele não conseguia fazer nada para detê-las. Jeb caiu de costas na cama, com as mãos sobre o rosto, olhando fixa e incredulamente para os tocos crus e cheios de sangue onde antes estavam seus dedos.

Gritando, Alyssa tentou sair do colchão, mas as lagartas a pegaram, arrastando-se por sua pele e tecendo teias, até que restou somente uma forma se agitando dentro de um casulo.

— Soltem ela! — gritou Jeb. Uma luz lampejou em seus olhos, e então ele já não mais se encontrava em sua cama. Estava em algum lugar da mansão de Morfeu, e as fadas percorriam sua pele, hipnotizando-o... usando algum tipo de feromônio alucinógeno.

Elas estão me segurando aqui para que o Morfeu fique sozinho com a Al. No instante em que a realidade foi percebida, o feitiço foi quebrado.

Jeb pulou rápido da cama suspensa e saiu da nuvem de sedução de suas captoras. Pegando um travesseiro, ele se cobriu.

— Quero alguma coisa para vestir!

As fadas flutuavam no ar, seus olhos de libélula observando-o.

Havia várias cestas douradas no chão perto dos pés dele. Jeb chutou uma. Suas pequenas captoras se espalharam pelo ar, em histeria coletiva.

Gossamer, a fada predileta de Morfeu, designou cinco delas para pegar os morangos que rolaram. Elas contaram as frutas uma por uma e as colocaram de volta na cesta.

Jeb chutou outra cesta cheia de contas de óleo perfumado. Outras cinco fadas lançaram-se ao chão para pegar tudo, parando para contar cada conta antes de guardá-la.

Em pouco tempo, ela já havia chutado todas as cestas. Algumas estavam cheias de pétalas de flores, outras continham loção, outras, ainda, uvas. Ao virá-las, ele conseguira manter a maioria de suas captoras preocupada. Apenas Gossamer e outras duas ainda pairavam em torno de sua cabeça.

— Me deem algo para vestir — repetiu ele —, ou vou começar a tirar as plumas dos travesseiros. Vocês não estão em número suficiente para limpar uma sujeira dessas.

— Ele não está respondendo ao nosso feitiço — murmurou uma das fadas para Gossamer, com seus olhos de inseto voltados para Jeb.

— E nem à nossa magia — acrescentou a outra, amuada. — Eu conjurei uma moça das lembranças dele, mas seu subconsciente conseguiu escapar.

— Sim, este aqui é, sem dúvida, um desafio — concordou Gossamer, numa voz que tilintava feito um sino. Depois de mandar as outras duas fadas recolherem o conteúdo da última cesta, ela ofereceu a Jeb um robe de seda.

Ele se virou de costas e enfiou a peça de roupa no corpo, assimilando os arredores.

Morfeu o colocara em uma prisão opulenta. A sala era toda revestida de piso de mármore preto que refletia a luz laranja dos candelabros. Ele já estava bem familiarizado com o ponto focal: um colchão circular balançante preso por correntes douradas no centro do teto côncavo. Peles e almofadas forravam a cama, perfumadas por pétalas de rosa.

Apesar de todos esses confortos, faltava a essa sala um detalhe muito importante: uma saída. Não havia portas, janelas ou qualquer outra abertura à vista.

Paredes convexas — pintadas em cor de lavanda escura — eram cobertas por parreiras que se estendiam por toda a sua circunferência, entrando e saindo do reboco e se entrelaçando nos candelabros acesos. Frutas brotavam das vinhas. De quando em quando, as uvas explodiam espontaneamente e pingavam seu suco dentro de bacias de pedra posicionadas ao longo das paredes para apanhá-lo. E, delas, um líquido viscoso e purpúreo era drenado para dentro de fontes — um abastecimento constante de vinho de fadas com aroma adocicado.

Ele se lembrava vagamente de ter provado o vinho ao chegar. Desconfiado, tentou resistir, mas estava com muita sede. Era impossível saber que tipo de magia havia no líquido.

Jeb gemeu e esfregou o rosto. Quanto tempo teria passado bêbado e enfeitiçado? Ele acabara sendo inútil para Alyssa, assim como o pai dele teria sido.

— Onde ela está? — perguntou ele, ignorando a harpa que tocava sozinha, a qual, na tentativa de abafar-lhe a voz, começou a tocar mais alto. — Me diga o que Morfeu está fazendo com ela.

Minúscula, reluzente e confiante, Gossamer acomodou-se em uma almofada de cetim, passou a mão pelo colchão ao seu lado e cruzou as pernas apoiando os tornozelos verdes um sobre o outro.

— Talvez você não perceba o que nós, as fadas, somos capazes de fazer. Temos séculos de prática. Podemos lhe mostrar um êxtase com o qual você sempre sonhou.

Jeb a olhou de cima a baixo e ajustou a faixa de cetim em sua cintura.

— Me desculpe, não sonho com coisas verdes.

Ele encontrou a mochila de Alyssa debaixo da cama e a puxou. Jeb havia notado alguma coisa dentro dela anteriormente, quando a vasculhara em busca de outra coisa: uma pulseira de ferro forjado que ela provavelmente havia enfiado na mochila quando ainda estava na escola e ficara esquecida ali. Ele havia pesquisado muito as fadas quando começou a pintá-las, e sabia que elas não gostavam de ferro — se a lenda fosse verdadeira.

Jeb jogou a mochila sobre o colchão. Os cobertores de pele encresparam-se feito uma onda gigante e derrubaram Gossamer de sua almofada. Acionando suas asas com rapidez, ela pousou sobre o ombro de Jeb.

— Se é Alyssa que inspira suas paixões, podemos realizar essa fantasia. — Gossamer bateu palmas. As outras largaram seus postos de limpeza e se apressaram a formar um círculo em volta de Jeb. Uma onda de enjoo lhe invadiu o estômago quando todas as fadas assumiram a aparência de Alyssa — réplicas perfeitas em miniatura, com cabelo platinado e roupas sensuais de skatista. Elas liberaram novamente suas sementes de feromônios, cegando-o com o perfume de Alyssa, doce como néctar.

Brandindo uma almofada, Jeb rompeu a ilusão e dissipou as sementes. As fadas saíram aos guinchos e foram se esconder nas vinhas das paredes, com seus corpos brilhantes parecendo cordões de luz branca e piscante.

Gossamer pairou no ar acima dele, ralhando.

— Já chega! Informem o nosso mestre de que o mortal é leal à garota. Não podemos seduzi-lo para que volte ao seu mundo sem ela.

Jeb ficou resmungando, enquanto as fadas se esgueiravam por buracos do tamanho de ervilhas, na parede onde as vinhas entravam e saíam. Se ao menos ele pudesse passar por aquelas pequenas saídas também... Chegou a pensar em usar a poção encolhedora que ele e Alyssa tinham encontrado quando chegaram ao País das Maravilhas, mas ela o deixaria tão pequeno quanto suas captoras, e ele ficaria indefeso contra Morfeu. A impotência lhe fervia as entranhas, tão profunda como a que ele sentia quando era criança, escondendo-se em um armário até que passassem os ataques de fúria do pai.

Ele cerrou os dentes. Tinha de haver uma passagem escondida em algum lugar por trás das vinhas. Elas o tinham trazido para cá; devia haver uma saída.

Subitamente, ele deu um pulo para a parede mais próxima e arrancou algumas vinhas, lançando-as para todos os lados. O diminuto guincho de surpresa de Gossamer não o intimidou.

Uvas explodiam em suas mãos, libertando seu aroma potente e denso. As plantas viscosas cortavam seus dedos feito arames. Jeb aceitou a dor. Era algo que podia controlar — diferentemente do tormento dos cigarros acesos que seu pai lhe enfiava na pele, ou dos punhos que lhe socavam o rosto e o estômago. O cheiro da nicotina, o gosto de sangue. Imaginação ou não, eles alimentaram o selvagem em sua alma.

Ele mergulhou numa espiral vermelha de fúria e devastou a sala. Quando finalmente voltou a si e recostou-se na cama, ficou chocado com os estragos que causara.

Arfando e suando, ele cuidou dos cortes nas junções dos dedos e vasculhou os destroços à procura de Gossamer. Será que a tinha machucado? Se sim, talvez fosse mesmo filho de seu pai.

Jeb cerrou os punhos, descontente consigo mesmo.

— Gossamer? — Ele se encolheu ao ouvir a própria voz, rude e inflamada de emoção.

Um rufar de asas mexeu uma das correntes que prendiam a cama ao teto. Ele respirou, aliviado ao ver a fada. Embora parecesse meio idiota importar-se, já que estava prestes a usar a pulseira de ferro de Alyssa contra ela.

Gossamer pousou no chão ao lado das vinhas rasgadas e das cestas que ele tinha derrubado de novo; seus ombros estavam caídos, em demonstração de derrota. Provavelmente, ela não sabia por onde começar a calcular todos os conteúdos derramados.

Jeb começou a vasculhar a mochila. A harpa havia parado de tocar, e o silêncio o incomodava feito o ruído dos ponteiros de um relógio. Cada segundo que ele passava longe de Alyssa deixava-a mais vulnerável a Morfeu.

Seus dedos finalmente encontraram um metal frio. Ele jogou a pulseira de ferro na direção de Gossamer, mas mantendo alguma distância, na esperança de enfraquecê-la sem machucá-la.

Ela gritou e lançou-se ao ar, se debatendo.

— Por favor... afaste isso.

— Não até eu conseguir algumas respostas. — Jeb segurou uma das asas dela entre o indicador e o polegar, levando-a para a cama e sentando-a sobre uma almofada, tomando o cuidado de manter a pulseira próxima o bastante para intimidá-la. — Basta cooperar, que eu não vou machucá-la.

— Já está machucando. — Ela gemeu, com a pele esverdeada já tingida de turquesa. — Não posso usar minha magia... — Gossamer bateu as mãos no próprio rosto. — Vai me deixar... horrível. Abster-me. — Sua voz ficou mais calma, como se estivesse falando consigo mesma, e, rangendo os dentes, continuou: — Abster-me até a ameaça de dor e contaminação passar.

Jeb franziu a testa.

— Então o ferro vira seus poderes contra vocês? É a arma perfeita para usar contra seu chefe.

— Um objeto desse tamanho... só funciona com os menores de nossa espécie.

Jeb curvou-se, aproximando ainda mais a pulseira dela.

— Muito bem, então considere isso um detector de mentiras. Toda vez que eu perceber que você está fingindo, aproximarei o ferro. Onde está a Al, e o que o seu chefe repugnante está fazendo com ela?

A cor da fada mudou para um verde azulado. Ela rolou sobre a almofada, as asas lutando para bater. Gossamer as puxou por cima dos ombros até a altura do peito, cruzando-as, como se quisesse conter a sua magia.

— A sua Alyssa está confortável e sendo bem cuidada. Morfeu está zelando pelo sono dela...

Jeb soltou um grunhido. Na noite passada, ele havia zelado pelo sono dela, no barco. Mudara a posição do corpo dela para que pudesse olhá-la de frente e fazer uma promessa, mesmo que Alyssa estivesse sonolenta demais para ouvi-lo. Jeb havia prometido que a protegeria, que a levaria para casa a salvo. E não iria quebrar sua promessa agora.

Ele precisou resistir ao desejo de destruir a sala novamente.

— Como eu saio daqui?

— Apenas o Morfeu tem os meios para abrir a passagem.

Jeb inclinou-se para a frente, com o nariz quase tocando o rosto de Gossamer enquanto segurava a pulseira sobre a cabeça dela, como se fosse um objeto corrosivo.

— Está dizendo que estou preso aqui até que aquela barata de asas decida me soltar? Ele vai fazer a Al enfrentar o País das Maravilhas sozinha?

Ela choramingou, levando a mão à testa.

— Não. Como você provou ser leal, ele permitirá que a acompanhe em sua jornada. Você comparecerá ao banquete e traçarão os planos.

— Banquete?

— A apresentação de Alyssa. Morfeu deseja exibi-la aos outros.

— Que outros?

Gossamer deixou-se cair, formando um monte de cor púrpura e em seguida saiu depressa de seu poleiro. Ela puxou alguma coisa de dentro da almofada — um desenho de Al que Jeb não se lembrava de ter feito. Lentamente, Gossamer levantou os joelhos e estudou as linhas.

— Você fez isto enquanto estava sob nosso feitiço. Tem poder dentro de seu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Você captou o interior de Alyssa com perfeição.

— Esse desenho é pura fantasia — resmungou Jeb. Ele colocou a pulseira de ferro sobre o papel ao lado de Gossamer.

Ela rolou para o meio do desenho, tentando escapar do metal.

— Há mais verdade nesta aparência de Alyssa do que em qualquer coisa que possam me forçar a falar.

Jeb puxou o desenho, fazendo Gossamer e a pulseira de ferro rolarem por cima da pelugem. Ele estendeu o desenho sobre uma almofada e percorreu as linhas de carvão com o dedo. A imagem era igual a todos os outros desenhos de fadas que ele havia feito de Al ao longo dos anos, mas, ainda assim, não poderia ser mais diferente da garota que ele conhecia.

Ele a desenhara com o cabelo preso no alto da cabeça. Al nunca usava o cabelo daquele jeito. Um vestido preto de alcinhas realçava suas curvas. Nem morta ela seria vista em um vestido tão convencional. E a única coisa que se parecia com ela eram as luvas de renda preta sem dedos que cobriam as cicatrizes da palma das mãos.

Fora isso, o desenho era uma fantasia completa. Sentada em um banco de jardim, Al segurava uma rosa. Rímel e lágrimas escorriam em curvas graciosas por seu rosto. Pensando bem, se parecia com a maquiagem dela na última vez que ele a vira.

Ele ainda não conseguia entender por que, depois de quase se afogar em um oceano de lágrimas, o rímel de Alyssa não havia borrado. Apertando os olhos, ele estudou o par de asas translúcidas abertas nas costas dela. As membranas finas tremeluziam sob o único raio de sol que atravessava as nuvens. As asas faziam com que se sentisse estranho, mas Jeb não conseguia perceber a razão.

Talvez porque elas lembrassem as asas de Morfeu, embora tivessem uma cor totalmente diferente. As têmporas de Jeb latejaram. Nada poderia ser pior do que Alyssa sozinha com aquele homem-inseto. Aquele doido tinha algum tipo de poder sobre ela, havia entrado em sua cabeça quando ela era pequena. O subconsciente pode ser muito poderoso, e se Morfeu ainda tivesse acesso aos sonhos da Al...

— Como posso derrotá-lo? — perguntou Jeb com um nó na garganta.

Os olhos bulbosos de Gossamer voltaram-se para os dele. Ela estava fraca demais para se arrastar para longe da pulseira, que agora roçava sua coxa.

— Ele não será derrotado. Há anos ele espera por este dia.

Jeb fez cara feia.

— Muito bem, ele é o Super-Homem. Mas todo mundo tem a sua kriptonita. Algo de que sente medo.

— O confinamento — Gossamer deixou escapar, e, diante da confissão, seu corpo escureceu até ficar da cor de um machucado.

— Como assim?

Gossamer levou o dorso da mão à testa.

— Por favor... está muito perto... o ferro... está drenando minha energia.

Jeb caiu de costas no colchão e afastou a pulseira da fada. Equilibrando-o entre os dedos, ele estudou o ferro sob a luz das velas. A pulseira o lembrou de seu piercing de ferro e da primeira vez que Al o vira, sua reação de entusiasmo. Ela havia implorado para tocá-lo e fez várias perguntas sobre o processo de colocação de um piercing. Seu entusiasmo e ingenuidade, suas inseguranças... Morfeu não hesitaria em usar qualquer uma dessas coisas, ou todas elas, para manipulá-la.

Jeb precisava convencer Al a sair do País das Maravilhas, a esquecer esta jornada para quebrar a maldição de sua família, a qualquer custo. Algo muito tenebroso estava à espreita, bem perto dela, como no sonho que ele tivera. E Jeb podia sentir que, fosse lá o que estivesse para acontecer, estava se aproximando.

— Então vocês querem que ela conserte os erros da Alice original, certo? E se eu consertá-los? — Jeb tentou raciocinar. — Vocês enviam a Al para casa e deixam que eu cuide de tudo?

— Impossível — respondeu Gossamer num sussurro arfante, voltando à cor verde-clara. Engatinhando na direção do desenho, ela passou a pequenina mão sobre a rosa. — Ela já passou nos testes e provou ser a escolhida.

— Testes? Está se referindo a encontrar a toca do coelho para o País das Maravilhas e secar o oceano de lágrimas?

Gossamer fez que sim.

— Mas eu ajudei a fazer isso.

— É por ela que ele esperava. Não por você.

Jeb levantou a pulseira de ferro uma última vez.

— O que ele realmente quer dela?

Antes que Gossamer pudesse responder, o teto abobadado começou a tremer. Pedaços espessos de gesso despencaram no solo. Jeb colocou uma almofada sobre a cabeça e uma mão sobre Gossamer para protegê-la dos detritos. O teto se abriu nas emendas, fazendo a cama balançar e puxando as correntes em direções opostas, de modo que o colchão subiu vários centímetros.

Depois que os tremores passaram, Jeb olhou para cima. A silhueta escura de Morfeu apareceu em uma abertura no teto.

Sutileza era um dos últimos itens na lista de prioridades desse cara.

— Já te disseram que você é muito escandaloso? — rosnou Jeb.

Morfeu inclinou-se para olhar a sala destruída.

— Já te disseram que você é um péssimo hóspede?

Parte da responsabilidade daquela bagunça era da grandiosa entrada de seu aprisionador, mas Jeb mordeu a língua, não querendo arriscar sua oportunidade de ver Al.

Morfeu relaxou.

— Alyssa o aguarda na sala dos espelhos. E, por favor, tome um banho e faça a barba. Você será apresentado aos nossos convidados do banquete como um cavaleiro élfico, então precisa parecer como tal. Gossamer lhe dirá como se comportar adequadamente. — Morfeu largou algumas roupas e botas, que fizeram um ruído ao atingir o chão. — Aí está seu uniforme. — Ele fez uma pausa e apontou para as correntes. — Que pena que você não tenha asas e nenhuma magia intraterrena. Terá que sair daí sozinho. E posso assegurar que não será nada fácil.

Os músculos de Jeb se retesaram quando Morfeu sumiu de vista; ele sabia que o aviso se referia a muito mais do que sair daquela sala.


Capítulo 3


Segunda Lembrança —
Carnificina

Jeb limpou o suor da testa. Morfeu estava certo. A escalada para sair de sua prisão dourada seria mesmo difícil. Mas isso não significava nada se comparado à jornada pelo País das Maravilhas que ele e Alyssa haviam cumprido desde então. O dia inteiro tinha sido um desafio atrás do outro, com o perigo e a morte aguardando em cada esquina. E agora ele havia perdido a Al. Os dois tinham se separado pouco antes de ela completar o teste final. Al ficou enfrentando as irmãs Twid no cemitério, sozinha, e ele ficou preso aqui no fundo do abismo.

A noite já havia caído quando ele atingiu o solo, e foi uma transição extremamente rápida, como se alguém tivesse apagado a luz.

Jeb sentiu os músculos do corpo endurecerem. Odiava pensar na Al sozinha naquele mundo insano depois de anoitecer. E, mais uma vez, ela provou ser forte o bastante para encarar quase tudo. No final, foi ela quem o salvara mais de uma vez...

Ele se lembrou dela pairando acima dele — um brilho selvagem, flutuando com a graça de uma libélula. Ver as asas dela brotarem tinha sido ao mesmo tempo assustador e milagroso. Jeb mal conseguiu respirar enquanto observava a transformação.

Falando sinceramente, Jeb ainda não tinha recuperado o fôlego de quando ela o levara para dentro do abismo e ele gritara: “Você é minha corda de segurança!”, antes de ela subir ainda mais alto para o céu. Ele não deveria ter colocado tanta pressão sobre ela para salvá-lo; tinha que ter feito o que conseguisse para sair de lá por si próprio e encontrá-la no meio do caminho. Do contrário, ela nunca se perdoaria se algo saísse errado.

A carcaça de um pássaro Jubjub havia amortecido sua queda. Ele limpou nas calças a gosma pegajosa que tinha entre os dedos, torcendo o nariz diante dos restos malcheirosos do exército que os perseguia e acabou caindo no abismo. Jeb procurou ficar de pé na escuridão. Suas botas produziam sons de sucção toda vez que ele pisava. Ele nunca tivera fricotes; qualquer aversão a sangue e violência havia sido expurgada — uma dessensibilização gradual que era reforçada sempre que ele se olhava no espelho e via suas bochechas e olhos inchados, grandes e cheios de sangue, que nem um bife malpassado.

Contudo, sem uma centelha de luz para guiá-lo, a carnificina aos seus pés parecia mais viva do que morta. Sua imaginação trazia arquivos de todos os tipos, de filmes de zumbis a demônios e assombrações. Seu estômago queimava de náusea. Jeb sentiu-se aliviado ao perceber que os assobios que ouvia dentro do abismo eram produzidos pelo vento. E não havia ruídos de correntes fantasmagóricas nem gemidos de mortos-vivos.

Além disso, seu verdadeiro inimigo era o tempo, mais perigoso do que qualquer coisa que pudesse imaginar. A Al ainda tinha de cumprir a última tarefa no cemitério. E, depois, eles ainda tinham de encontrar um ao outro.

Ele se forçou a avançar às cegas até sua mão alcançar a parede do abismo. Antes de descer totalmente, Jeb viu que a mochila de Al tinha ficado presa em uma pedra saliente próxima ao chão. Se conseguisse encontrá-la, poderia contar com uma lanterna. Tateando a superfície áspera da pedra, ele levantava seus pés por sobre os obstáculos, tocando os cadáveres com os dedos dos pés para mensurar a largura de cada passo.

Com os cotovelos esbarrando nas pedras, Jeb observou o céu. Um pequeno aglomerado de estrelas brigava com as nuvens, aparecendo para iluminar levemente o lugar ao seu redor, tornando possível que ele continuasse sem esbarrar no falecido exército da rainha. Uma brisa úmida levantava a poeira feito pequenos tornados. Logo choveria. E, neste lugar, era possível que, literalmente, chovesse a cântaros — daqueles temporais ruidosos, torrenciais.

Um calafrio que não tinha nada a ver com a tempestade iminente lhe percorreu a espinha e obscureceu qualquer sentimento bom que ele poderia ter encontrado naquele pensamento. Qual era a razão de todos esses “testes” de Morfeu? Toda vez que a Al conseguia se sair bem em um desses testes, sua forma intraterrena tornava-se mais acentuada. Será que o intuito era transformá-la completamente para que não pudesse mais voltar ao reino humano?

Fios de cabelo caíram sobre seu rosto, e Jeb os afastou.

Morfeu afirmara que tudo o que ele mais queria era que Alyssa voltasse ao seu lugar. Sua casa. Jeb esperava que ele estivesse se referindo ao mundo deles, o reino humano. Mas e se a Al não estivesse sob nenhuma maldição, no final das contas?

Ele se lembrou de sua pesquisa sobre fadas, na qual descobriu que elas eram criaturas chamadas de changelings — as crias das fadas secretamente deixadas no lugar de bebês humanos roubados. Alice Liddell, a tataravó de Al, teria sido uma changeling? Quem sabe foi por isso que ela encontrou, quando criança, a toca do coelho — por instinto. Isso significaria, de alguma estranha maneira, que aqui era a casa de Al.

Jeb parou com as especulações. Elas só levavam a mais dúvidas.

Ele tinha encontrado a mochila. Abriu-a, tirou a lanterna e colocou a mochila nos ombros.

Ao fechar o zíper, ele acendeu a lanterna e percorreu o cenário com fachos de luz. Os guardas destruídos pareciam cartas de baralho amarrotadas. Brinquedos descartados. Até mesmo os pássaros Jubjub poderiam se passar por brinquedos infantis com o enchimento extrapolando para fora.

Com a mochila ajeitada no corpo, Jeb percorreu a circunferência do abismo sem encontrar nenhuma abertura. Pedras que haviam caído bloqueavam qualquer possível passagem que ele tentasse. Era como se ele tivesse caído dentro de um tubo gigante. Não havia nenhuma outra saída a não ser subindo.

Jeb apontou a luz para o gramado a cerca de vinte andares acima — a clareira onde Alyssa havia pousado. Estava determinado a encontrá-la antes de Morfeu, mesmo que tivesse de escalar as pedras pontiagudas no escuro e sem uma corda de segurança.

Ele havia acabado de apoiar a lanterna entre os lábios e escorar o pé em um rochedo para tomar impulso quando ouviu uma voz com um sotaque britânico familiar.

— Ao trabalho, homens. Precisamos contar todos antes que as irmãs Twid enviem sua brigada de duendes para recolher os mortos.

Morfeu.

Jeb desceu e quase colidiu com o intraterreno alado, que tinha aparecido do nada, como se tivesse aberto um zíper no ar e passado por ele. Cavaleiros élficos faziam fila atrás dele, entre vinte e trinta, carregando lanternas e usando o mesmo uniforme de Jeb, só que menos esfarrapado e sujo. Eles passaram sem nem olhar para Jeb, extremamente concentrados na contagem dos corpos.

— Ora, ora, pseudocavaleiro. — Morfeu riu com desdém.

Cada pedacinho de Jeb ansiava por apagar aquele sorriso arrogante e socar aquele rosto. Mas ele estava em desvantagem. Se quisesse sair desse fosso para encontrar a Al, teria de bancar o bonzinho.

— Detesto dizer isso, mas é bom vê-lo, senhor Mariposa. — Jeb guardou a lanterna. — Vejo que pegou o espelho para vir aqui.

— Eu só viajo de espelho. — Morfeu ergueu a lanterna e examinou as roupas esfarrapadas de Jeb. — Tem a vantagem de não estragar tanto as roupas. E vou lhe contar outro segredo: se eu mantiver as asas daquele lado do plano — ele apontou com o polegar para as suas costas, onde metade de seus apêndices não era visível —, a abertura fica acessível para nossa viagem de volta.

Jeb forçou um sorriso.

— É bom saber.

Perfeito, na verdade. Ele poderia voltar com a trupe de elfos e depois tomar o expresso na sala de espelhos para encontrar a Al. Mas primeiro teria de distrair Morfeu, baixar a guarda dele. Jeb perguntou:

— Esse chapéu é novo?

Morfeu ficou radiante.

— Que gentil de sua parte ter notado. É meu chapéu da Insurreição. Ainda não havia tido a oportunidade de usá-lo antes. — Com o dedo, bateu em várias mariposas que formavam a guirlanda na aba do chapéu e depois se inclinou e fez conchinha no ouvido de Jeb para sussurrar um segredo. — As asas vermelhas representam derramamento de sangue.

— Ãh-hã. — Jeb cerrou a mandíbula diante do indesejado bafo quente no lóbulo de sua orelha. Depois, olhou para os cavaleiros, discerníveis somente por suas lanternas flutuando na escuridão atrás dele. — Então, está planejando um motim com o exército da rainha de Marfim?

Morfeu apertou o ombro de Jeb.

— Eu sempre soube que era mais esperto do que os mortais comuns.

Os músculos de Jeb contraíram-se ao contato.

— O que significa que você estava mandando a Al para uma missão absurda só para se divertir.

Cuidado. Jeb não poderia deixar sua desconfiança transparecer. Pelo menos não ainda. Em vez disso, ele se inclinou para ajustar os cadarços das botas e respirou fundo antes de se reerguer.

Morfeu apertou sua gravata vermelha.

— Todas as tarefas que pedi à Alyssa tinham um propósito. — Ele deu um passo para o lado quando alguém mais passou pelo portal do espelho: um esqueleto do tamanho de um duende, com antenas e olhos cor-de-rosa brilhantes, metido em um colete vermelho.

— Rábido Branco? — sussurrou Jeb, incrédulo. Nada daquilo fazia sentido. O Rábido era da corte Vermelha. Por que estava aqui?

— Qual é o relatório? — Morfeu agachou-se para ficar na altura do Rábido, ainda mantendo as asas enfiadas no portal invisível do espelho.

O pequeno intraterreno apertou as mãos enluvadas e olhou para Jeb, sua cabeça careca refletindo o brilho suave da lanterna de Morfeu.

— Um de nós, você é?

Morfeu sorriu e respondeu por Jeb.

— É claro que é. Ele ajudou a nossa Alyssa a conquistar o grande e cruel exército Vermelho, não lembra?

Coçando a antena esquerda, o Rábido fez que sim.

— Rainha Grenadine neutralizada está. Nos portões da frente e de trás, o castelo guardado está pelos regimentos três e sete. Flanqueando a rainha, um círculo de cinco. Sem esquecer da coroa e seu guardador.

— Ah, sim. O bandersnatch. Bem, quando Alyssa tiver trazido seu prêmio do cemitério das irmãs Twid, nada mais terei a temer daquela besta medonha. Fez um bom trabalho, senhor Branco. — Morfeu deu uma batidinha na aba do chapéu.

O Rábido bateu os tornozelos cadavéricos um no outro, depois se curvou e lançou um olhar penetrante para Jeb, antes de pular novamente para o portal.

— Ele é o seu espião — murmurou Jeb, sentindo-se idiota por não ter adivinhado antes.

— Sim.

— Então todas as vezes que o esqueletinho ameaçou a Al, matando-a de susto, era só para manter a aparência de lealdade à Rainha Grenadine?

— Os melhores espiões são aqueles que jogam dos dois lados com o mesmo vigor.

A distância, Jeb avaliou as lanternas que balançavam. O tilintar dos cabos de metal e o pisar de botas eclipsavam o suave lamento do vento.

— Certo. Já que estamos abrindo o jogo...

O comentário de Morfeu o interrompeu.

— Que trocadilho mais delicioso, considerando a posição em que estamos. — A lanterna dele apontou para os cadáveres dos guardas de carta.

Jeb ignorou a piada mórbida.

— Eu ia perguntar por que o Rábido se voltou contra a corte Vermelha.

— Ele era o conselheiro real da Rainha Vermelha quando Alice nos visitou. Deseja ver a verdadeira herdeira no trono tanto quanto eu.

— Verdadeira herdeira. — Jeb chutou um punhado de terra com uma bota, sentindo o peito apertado. — Então tudo isso é para destronar Grenadine e abrir caminho para uma nova rainha.

— Sim. — A lanterna iluminou o rosto de Morfeu, numa expressão de indulgência sonhadora. — E estamos muito perto. Em breve, ela ocupará o trono que é e sempre foi o lugar dela.

O lugar dela. Uma hipótese se formava na mente de Jeb, uma ideia ultrajante e incompreensível, mas, de qualquer maneira, a resposta óbvia para todas as dúvidas que ele vinha remoendo. Todas as dúvidas, exceto uma...

— Mas, primeiro — interviu Morfeu, varrendo o ar com um gesto desdenhoso —, temos que ter certeza do que iremos enfrentar quando atacarmos o castelo. Você e Alyssa conseguiram eliminar boa parte da oposição com seus fantásticos movimentos de pés. Estamos aqui para avaliar se os números batem com os que o Rábido reportou. Devemos ter certeza que Grenadine não tem outras cartas escondidas na manga. — Ele bateu nas costas de Jeb. — Viu o trocadilho? “Cartas na manga?” — E deu uma gargalhada.

Jeb não deu nem um risinho.

— Ah, corta essa. Os guardas dela são de cartas. É uma piada como a que você fez antes, só que mais inteligente.

— Ah, sim, entendi — retrucou Jeb.

O riso de Morfeu se dissipou.

— Você não é um namorado muito divertido.

— Você não leva nada a sério? A Al está correndo perigo — Jeb deixou escapar.

— Bobagem. Ela é gloriosamente capaz! Você nunca a viu voando? É claro que viu! Estava pendurado na corrente que ela segurava. — Morfeu voltou a lanterna para a própria cabeça, num arroubo de celebração. — Não foi uma bela visão, presenciá-la transformando-se no que realmente é? Igual a uma princesa de contos de fadas. — Ele lançou um olhar dissimulado para Jeb. — Não concorda?

Princesa de contos de fadas. Lá estava, saindo da boca do próprio Morfeu, zombando de Jeb por não perceber desde o início. Jeb apertou as alças da mochila para evitar dar um soco na laringe de Morfeu.

Morfeu abaixou a lanterna e depois tirou luvas prateadas de sua lapela.

— Não se sinta desprezado, cavaleiro mortal. Sua contribuição não passará despercebida. E eu sempre pago minhas dívidas. Então, o tirarei desta vala da morte para demonstrar minha gratidão.

— Você pode me agradecer me deixando ajudar a Al. Ela vai terminar a tarefa muito mais depressa comigo do lado — Jeb conseguiu dizer, sentindo um nó nas cordas vocais. Se conseguisse chegar até Al, talvez os dois pudessem se esconder de Morfeu no cemitério das irmãs Twid, até encontrarem uma maneira de escapar.

— Sinto muito — retrucou Morfeu, vestindo as luvas e acenando para que os cavaleiros élficos retornassem. — Ela precisa fazer isso sozinha. Você a verá em breve; todos nós vamos nos reencontrar. Uma grande família feliz.

— Não! — exclamou Jeb, perdendo o controle. Ele investiu, mas os elfos foram mais rápidos e o contiveram, com os dedos machucando seus cotovelos feridos. — Deixe-a sair do País das Maravilhas, seu filho de inseto...

Morfeu pressionou um dedo contra a boca de Jeb.

— Ah-há! Essa, você já usou.

Jeb puxou a cabeça para trás, deixando o dedo do intraterreno suspenso no ar.

Sob a luz da lanterna, as joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficaram escuras, da cor de sangue seco.

— Ora, ora. Isso são modos de tratar seu salvador? — Ele fez cara amuada. — Além do mais, como posso deixar Alyssa sair se ela não está comigo? Da última vez que soube, ela estava entrando no jardim das almas. Mas, quando terminar por lá, ela virá ao meu encontro. Ela ainda tem um papel muito importante a desempenhar.

— Certo. Porque ela é a herdeira do trono. — Jeb ouviu, incrédulo, suas próprias palavras ecoarem, como se tivessem saído da boca de outra pessoa. — Não sei como, mas é ela.

— Bravo! — Morfeu aplaudiu. — Estão vendo o que eu disse, irmãos cavaleiros? — Olhando para os cavaleiros por cima do ombro de Jeb, Morfeu deu tapinhas no peito em cima da gravata vermelha, como se estivesse tomado pela emoção. — Mais esperto que um mortal comum. Pena que tenha as limitações físicas de um.

— Não importa. Ela está fora do seu alcance. — rebateu Jeb, dando um tranco nos elfos; havia muitos o segurando, contudo. — Ela deve estar dentro do cemitério agora, e não pode forçá-la a fazer nada. Você mesmo disse que as Twids não deixam você entrar.

— É verdade. Mas ela encontrará, sozinha, o caminho para o castelo. No momento em que ela perceber que estou mantendo presa a coisa que ela mais ama no mundo, virá rastejando para mim, com as asas a reboque.

Morfeu levantou uma mão e fez um sinal.

Os cavaleiros élficos soltaram Jeb. Ele girou sobre o calcanhar e atirou a mochila sobre eles, dispersando o grupo feito pinos de boliche. Esticando o braço, ele bateu o punho na testa de Morfeu, desequilibrando-o. Um dos cavaleiros se esforçou para permanecer no lugar e manter o espelho aberto. Antes que Jeb pudesse se catapultar e atravessá-lo, raios de luz azul grudaram em sua pele e roupas, feito eletricidade estática. Eles o arrastaram, controlando-o como se fosse um fantoche, até ele ficar de frente para Morfeu. Os raios vinham da ponta dos dedos do intraterreno.

Morfeu aproximou-se.

Jeb tentou recuar, mas seus músculos travaram, ficaram paralisados.

— Durma — disse Morfeu num tom simples, e levou a mão azul fluorescente à testa de Jeb, cujo corpo foi percorrido por uma luz pulsante. Ele sentiu um gosto doce, parecido com leite e mel, e depois sentiu o aroma de lavanda. Com os dedos apertando o tecido macio da camisa de Morfeu, Jeb lutou para manter-se acordado. Mas a luz era muito reconfortante... muito suave... muito calorosa. Contra sua vontade, suas pálpebras ficaram cada vez mais pesadas e ele caiu no chão, em sono profundo.


Capítulo 4


Terceira Lembrança —
Engaiolado

O crânio de Jeb latejava, e havia sangue saindo de seu couro cabeludo e entrando em seus olhos.

Ele limpou o líquido viscoso e focou no lugar à sua volta. Morfeu o tinha trazido para o castelo Vermelho depois de colocá-lo sob o feitiço do sono. Largou-o dentro de uma gaiola na masmorra. Jeb não queria ter tomado a poção encolhedora quando acordou, mas o homem-inseto havia lhe dado um ultimato.

Primeiro, ele havia ameaçado matar a Al. Mas Jeb rebateu, dizendo que o homem estava blefando, pois sabia que ela era indispensável. Depois, Morfeu usara de outra arma, ameaçando fazer com que a frágil mãe de Al ultrapassasse o limite da loucura. Isso, ele faria.

A Al havia lutado muito para salvar a mãe. Ela morreria se a perdesse para a loucura. Então, Jeb não hesitou em levar o frasco aos lábios.

Seu corpo balançava, mas não devido aos efeitos colaterais da poção. A plataforma debaixo dele oscilava por causa de suas tentativas de abrir as barras de sua prisão usando a cabeça — uma atitude desesperada que havia resultado em nada além de um corte logo acima da testa. A magia de Morfeu — um fio elétrico e azul — mantinha a porta da gaiola fechada e imóvel.

— Que bela coisa você fez, não? — entoou uma voz feminina e irritante. — Morfeu escolhe quem tem o poder de suprimir sua magia. Obviamente, você não é um dos escolhidos.

Jeb fez cara feia para sua companheira de prisão. Era uma lóri — um intraterreno parecido com um periquito, mas normalmente do tamanho de um ser humano. Como os dois tinham encolhido, a única coisa que a distinguia dos pássaros do mundo humano eram as túnicas de cetim cor de creme com estampas jacquard colocadas sobre suas asas, corpo e pernas, e seu rosto humanoide enfiado no meio de plumas vermelhas, como se fosse uma máscara. Ele foi cutucado por um bico mais parecido com o chifre de um rinoceronte, posicionado no lugar onde deveria haver um nariz. Os lábios da criatura se agitavam furiosamente.

O pior de tudo era que a voz dela poderia derrubar a Torre de Pisa com uma sílaba. Quando falava, era como se alguém tivesse implantado cirurgicamente alto-falantes nos ouvidos de Jeb e travado o volume no “mais surdo que uma porta”. Ela era uma das muitas razões pelas quais ele tentava sair da gaiola com tanta insistência.

A luz bruxuleante das velas na parede iluminava seu ar de arrogância e deixava o resto da masmorra nas sombras. Depois que a voz da lóri parou de ecoar, Jeb investiu:

— Olhe aqui, Lorina. Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu marido. — Ele apontou a criatura que roncava abaixo da gaiola, de aparência tão estranha quanto à da esposa, com o corpo de um dodô, cabeça de homem e mãos que se projetavam da ponta de suas asas atarracadas. — Foi ele quem manteve Alice Liddell presa em uma gaiola igual a esta aqui, muitos anos atrás. É por culpa dele que a minha namorada é a única que pode destronar a sua rainha. Será que já lhe ocorreu que é por isso que vocês estão presos?

— O Charlie não fez nada disso! — berrou a lóri, pairando dentro da gaiola. — Alguma vez já lhe passou pela cabeça que o Morfeu é um cara de pau mentiroso?

Só em todos os segundos de todas as horas. Jeb apoiou-se nas barras. Seus joelhos cederam, enfraquecidos pelas tentativas de abri-las usando cada músculo de seu corpo. Ele desabou sobre o piso de metal, empurrando uma fatia de pera já amarelada que estava ao seu lado, feito um pequeno sofá. A gaiola era um pequenino forte inexpugnável. Mas não importava. As barras poderiam ser feitas de espaguete cru, e mesmo assim ele não conseguiria ajudar a Al. Mesmo que escapasse, com este tamanho, Jeb não conseguiria derrotar ninguém.

Charlie, o marido dodô de Lorina, não poderia ajudar muito. Ele estava preso por algemas e correntes de ferro e cochilava recostado na parede. Embora a gaiola estivesse pendurada bem perto da cabeça do dodô, não havia nada que Charlie pudesse fazer.

Provavelmente, Morfeu havia lançado no homem-pássaro gigante o mesmo feitiço do sono que jogara em Jeb, mas Charlie já estava se libertando dele.

Lorina acomodou-se no poleiro no centro da gaiola, balançando sobre a cabeça de Jeb feito uma acrobata no trapézio. A cara dela estava tão vermelha quanto as suas penas, o que fazia as espadas e copas estampadas nas bochechas quase desaparecerem.

— Como vamos ficar exilados nestas instalações fedendo a urina, terá bastante tempo para ouvir a verdade — bramiu ela.

Jeb esfregou a cabeça para apaziguar a dor lancinante.

— Se puder baixar a voz uns dois decibéis, eu agradeceria.

— Abaixar minha voz?

— Aaaii. — Jeb enterrou o rosto nas mãos.

O trapézio em miniatura rangia a cada balanço, piorando a poluição sonora.

— Para a sua informação, minha rainha adora o som da minha voz. Ela até o elogia...

O ronco do dodô parou, e ele estalou os lábios.

— Isso é porque ela protege os ouvidos com cera de abelha, Ó, Mais Adorável das Loucas.

— Seu mentiroso! — retrucou Lorina, balançando o poleiro tão depressa que Jeb achou que ia vomitar.

— Estou preso com correntes de ferro — avisou Charlie depois de um bocejo. — Não tenho forças para mentir. — Em seguida, pegou novamente no sono.

Isso pareceu calar Lorina, pelo menos temporariamente.

Jeb aproveitou o silêncio para pensar. A esta altura, Morfeu já deve ter contado a Al sobre sua verdadeira linhagem, sobre o que espera dela. Deve estar tão chocada... tão apavorada. Jeb ansiava tanto abraçá-la que era como se houvesse uma bigorna lhe pressionando o peito.

Aquele mariposo deveria ter contado a verdade desde o começo. Ela nunca escolheria ficar. Mas Morfeu sabia disso, e a manipulou sob o pretexto de que ela poderia curar a maldição da própria família. Jeb queria arrancar as asas pretas de Morfeu e enfiá-las goela abaixo por tê-la enganado, porque não havia cura para o parentesco, e ele sabia muito bem disso.

— Foi a Vermelha quem colocou Alice na gaiola. — A lóri voltou à carga. — Não o Charlie.

— Mas o seu marido escolheu mantê-la presa na gaiola — acrescentou Jeb, mesmo sabendo que não deveria. Ele cobriu as orelhas para a estrondosa refutação, mas Lorina só soltou um suspiro.

— Não. O Charlie tentou fazer a coisa certa pela menina — disse ela, consideravelmente mais ponderada agora. — Ele planejava mandar Alice de volta para o reino humano sem a Vermelha saber, mas a rainha descobriu e os arrastou para uma caverna nos picos mais altos e mais remotos do País das Maravilhas, sem que nenhum de nós soubesse. Ela deixou o Charlie com a vítima dela para poder encenar seu plano mestre, sabendo que Alice seria cuidada por um prisioneiro que nunca poderia escapar. Porque, como você deve saber, os dodôs não podem voar. Ela me privou de meu marido durante anos. Ele era prisioneiro, assim como a mortal.

— Se isso te ajuda a dormir de noite, tudo bem, passarinha.

Uma comoção de poeira e asas, jacquard e cetim, subitamente surgiu e o atacou.

— Você pode mostrar algum respeito e ouvir?!

Jeb levantou as mãos para se defender.

— Está bem. Shhhh. Eu vou ouvir.

Não havia nada mais que ele pudesse fazer. Morfeu lhe dissera que, assim que Alyssa fosse coroada rainha, ela abriria o portal para o reino humano. Acreditando ou não nisso, Jeb não poderia fazer nada a não ser ter esperança. Ele não tinha nenhum poder ali. E ter consciência disso lhe devorava as entranhas a cada minuto.

Acomodada diante de Jeb sob um monte de tecido luxuoso, a lóri olhou por entre as barras e resmungou alguma coisa para o marido que dormia.

— Seu velho e imprestável fezzerjub. Eu é que tenho que te proteger. Nem sei por que me casei com você.

O dodô resfolegou e murmurou, sonolento:

— Porque se casar com o bobo da corte era a única maneira de ter uma posição na corte Vermelha, Ó, Senhora das Nênias. — E o ronco voltou.

— Viu como deu certo? — resmungou ela, fazendo beicinho com os lábios vermelhos em forma de coração, sob a curva de seu bico. — Aquele Rábido ossudo e seu coração negro de pedra. — Ela alisou as penas da nuca e cobriu-as com uma rede decorada por lantejoulas.

Jeb estendeu a mão para pegar o dedal cheio de água que seu captor havia deixado ao lado da fatia de pera. Em suas mãos, ele era do tamanho de uma caneca de café. Ele o passou para sua colega de cela, que o pegou com as asas e deu alguns goles.

— Me diga uma coisa, Lori. Se o que você está dizendo é verdade... — Observando a atitude defensiva na cara bicuda, ele refez a pergunta para poupar os ouvidos. — Como você escolheu compartilhar o seu lado da história, talvez pudesse me dizer de que maneira Morfeu teve participação na prisão de Alice.

Ela sacudiu as gotículas de seus lábios.

— Não teve participação nenhuma. Ele gostava muito de Alice e teria feito qualquer coisa para que ela chegasse em casa sã e salva. Mas, na hora em que ele lhe ofereceu seu conselho como lagarta, alertando-a para que evitasse o castelo da Rainha Vermelha a todo custo, sua metamorfose aconteceu. Quando ele emergiu, totalmente transformado, e soube o que havia acontecido com Alice, ficou furioso.

— Está tentando me dizer que ele possui alguma consciência?

— Pelo menos no que dizia respeito a Alice, sim. — A lóri ajustou a suntuosa túnica que ficava escorregando devido à falta de ombros. — Morfeu usou todos os seus recursos de magia e acabou encontrando ela e meu marido escondidos nas cavernas dos picos mais altos do País das Maravilhas. Infelizmente, já era tarde demais para Alice. — Lorina devolveu o dedal a Jeb, agora com metade da água.

Jeb endireitou o corpo, fazendo a gaiola balançar.

— Então por que ele quer ajudar a Rainha Vermelha a colocar outra rainha no trono, quando ele deveria odiá-la por ter mantido Alice presa em uma gaiola por tantos anos?

— Talvez ele esteja bravo por Grenadine não ter tentado encontrar Alice assim que esta foi capturada. Mas Grenadine perdeu sua fita de memória e esqueceu a criança.

— Um bom regente teria mais do que uma fita para lembrá-la; teria se certificado de que tudo e todos estavam em seu lugar.

— A minha rainha é uma boa regente!

Jeb encolheu-se com o urro agudíssimo.

O ronco do dodô parou.

— Minha vociferante esposa diz a verdade, rapaz. Morfeu parece guardar ressentimento pelo que ele acredita ser negligência, mesmo tendo sido somente um descuido.

Jeb balançou a cabeça diante de todas as falhas que havia no raciocínio de todos.

— Não. Há mais coisas nessa história.

— Você tem bons instintos, cavaleiro mortal.

Jeb olhou para cima, na direção da voz tilintada. Uma luz brilhante flutuou pela pequena janela e entrou pela pesada porta da masmorra. Jeb levantou-se e agarrou as barras da gaiola, inclinando a cabeça para ver melhor.

Gossamer.

A pequena fada adejou para perto e sussurrou algo para o mágico fio azul que fixava a porta de arame, entrando na gaiola. O fio azul deu um nó em si mesmo depois de ela fechar o trinco.

Ela cintilava feito pequenos fogos de artifício ao pairar no lugar, estudando Jeb com uma expressão de solidariedade.

Como os dois agora tinham o mesmo tamanho, Jeb se lembrou de uma pintura que vira certa vez, de um artista tcheco, Viktor Olivia. O pintor era famoso por retratar uma fada que seduzia homens, levando-os a se embebedarem com absinto. Gossamer personificava essa criatura: uma forma feminina perfeita coberta de poeira verde, e nua, com escamas brilhantes cobrindo-a como um biquíni minúsculo.

Ele havia sentido, quando saiu da sala de espelhos, que Gossamer estava do lado dele e de Alyssa.

— Você veio ajudar — lançou ele, esperançoso.

Uma chave de cobre, da mesma cor dos olhos dela e quase do comprimento total de seu torso, pendia de seu pescoço. Seu olhar caiu para os pés delicados, como se estivesse lutando contra si mesma.

— Eu teria vindo mais cedo, mas Morfeu está sempre vigiando o espelho. Agora que ele está com Alyssa, preparando-a para a coroação, estará ocupado demais para ficar de olho no resto de nós... até o fim.

— O fim? — Jeb apertou a barra ao lado dela, concentrado em seu olhar de libélula. — Você tem que me contar tudo.

A fada olhou para Lorina, que estava se esticando para a porta de arame.

— Você sabe muito bem que não tem o poder de sair desta gaiola, a menos que eu a abra para você.

Bufando, a lóri voltou a voar para o trapézio.

Gossamer conduziu Jeb para a fatia de pera e os dois se sentaram. Seu perfume frutado se impunha sobre o fedor da masmorra e o acalmou o suficiente para ele poder ouvi-la.

A fada colocou as mãos sobre as de Jeb, que descansavam sobre os joelhos.

— Eu já traí meu mestre o bastante vindo até aqui, e sua ira será enorme. Eu só posso dizer que, dentro de uma hora, Alyssa estará comprometida para sempre, amarrada ao País das Maravilhas para toda a eternidade. Morfeu planejou tudo para enviá-lo de volta, cavaleiro mortal... mas sem ela.

Uma veia na têmpora de Jeb começou a se contorcer feito uma serpente em uma bandeja quente. Ele deu um pulo para cima e bateu a cabeça nas barras novamente, tentando amolecer o fio azul, incapaz de controlar a fúria exasperada que lhe fervia por dentro. Mais sangue escorreu por sua têmpora.

— Você tem que me soltar! Preciso impedir isso!

— Sim, sim! Nós também! — intervieram o dodô e sua esposa, em coro. — Temos que ajudar a Rainha Grenadine a manter a coroa!

— Naturalmente — afirmou Gossamer, pegando a mão de Jeb e puxando-o para perto dela. — Vocês todos terão a oportunidade de lutar e de mostrar a sua lealdade.

— Mas não posso lutar assim. — Jeb chutou uma semente do tamanho de seu pé. — Você trouxe algum bolo do crescimento?

— Não. Não é a força de seu corpo que salvará Alyssa, e sim a força de seu coração de artista. Mas eu posso assegurar que não sairá deste lugar em sua forma atual.

A lóri desceu de seu poleiro e ralhou com a fada.

— Agora, me escute, sua lacraiazinha. Este rapaz não tem papel nenhum. Ele é, no máximo, coadjuvante. Eu sou a criada da rainha, e Charlie é o bobo da corte. Nós deveríamos ser a sua prioridade. Somos honoráveis membros da corte, os únicos que podem dar um basta nesta paródia!

Acelerando as asas até virarem um borrão enevoado, Gossamer flutuou e colocou as mãos nos quadris.

— Quanto ao seu papel, Lorina: você pode abrir as correntes de seu marido, pois preciso falar com o mortal a sós e tenho pouca tolerância ao ferro. — Ela abriu a porta da gaiola e lhe deu a chave.

A lóri esvoaçou-se veloz, numa comoção de exibicionismo e má vontade.

— Venha, venha, Doçura Selvagem — chamou Charlie, encorajando a esposa enquanto ela flutuava em torno dele, subindo e descendo, incapaz de manter-se firme em alguma altura. — Apresse-se, por favor. O ferro está me dando fisgadas. Poxa vida! Não é tão difícil assim... tente novamente!

A cara de Lorina ficou ainda mais vermelha.

— Tente, com a ponta da asa, usar uma chave do mesmo tamanho que a sua cabeça, seu meleca! Alguns de nós não foram abençoados com dedos, sabia?

Enquanto o casal se ocupava, Gossamer sentava-se novamente ao lado de Jeb.

— Você disse que meu coração de artista pode salvar Alyssa. Naquele quarto na mansão de Morfeu, também... você disse que eu tenho o poder dentro de meu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Minha namorada está prestes a morrer para mim e para a família dela. Não pode haver escuridão maior — sussurrou Jeb com lágrimas de frustração que lhe surgiram nos cantos dos olhos.

— Morreria por ela, cavaleiro mortal?

A espinha de Jeb se retesou. No passado, toda vez que ele protegera Alyssa, sempre se jogara sem nem pestanejar. Seria capaz de morrer por ela?

Quando o pai de Jeb morreu em um acidente, foi Alyssa quem o salvou. Ele não conseguia acreditar que tinha chegado a pensar em morar em Londres sem ela. Precisava dela, todos os dias. De seu sorriso compreensivo, de como ela fez suas cicatrizes parecerem medalhas de mérito sob seu toque, e de seus olhos incríveis. Mesmo tendo passado por tantas provações quanto ele, havia uma luz dentro dela que nunca se enfraquecia. E essa luz não somente a tornava linda por fora, mas também permitia que ela trouxesse vida aos incríveis mosaicos que fazia.

Era essa luz — tanto a interna quanto a externa — que o tinha levado a desenhá-la e pintá-la tantas e tantas vezes.

Ele olhou para Gossamer, quase incapaz de conter a emoção, agora que havia encontrado uma saída.

— Ela é minha melhor amiga.

Minha musa, meu pincel, minha arte, meu coração. Tudo isso estará morto sem ela.

Esfregando o rosto, ele limpou o líquido que havia caído de seus olhos e escorrido pelo rosto:

— Eu a amo. Sim, eu morreria por ela. É isso que preciso fazer?

A fada o encarava sem piscar.

— Está disposto a ir além da morte? A se perder de todos, até de você mesmo, em um lugar onde as lembranças se esvaem em uma maré escura como tinta? Pois, para libertar Alyssa, você terá que tomar o lugar da Rainha de Marfim na caixa linguardarte onde ela se encontra presa.

Jeb lembrou-se da água escura dentro da caixa que ele havia visto na sala dos espelhos da mansão de Morfeu e da cabeça fantasmagórica que havia lá dentro, e seu coração disparou. O sentimento de autopreservação o invadiu e sua mente começou a tentar encontrar outra maneira. Mas, bem lá no fundo, ele sabia que não havia alternativa e que o tempo de Al estava se esgotando. Ele só lamentava não poder dizer a ela, nem uma única vez, com sua própria voz, como se sentia, antes de ser trancado para sempre.

— Aceito.

— E assim será. — Gossamer ficou de pé e estendeu os braços. Fraco e entorpecido, Jeb aceitou seu abraço. Ela o apertou com força e voou com ele para fora da gaiola, pousando no chão. — O mortal concordou em ser o herói de seu reino. Procurem honrar sua bravura — disparou as palavras para Lorina.

Lorina havia conseguido soltar o marido. Ela se sentou no ombro dele, abanando-se com uma asa. Com os olhos arregalados, ela aquiesceu em silêncio — a demonstração mais sincera de louvor que poderia ter oferecido. O dodô ajoelhou-se ao lado de Jeb, uma presença enorme e plumada.

— Teremos uma dívida eterna para com você, rapaz. O que podemos fazer para ajudar?

Gossamer apontou para um canto da masmorra, onde um cobertor de juta cobria uma cama, chegando até o chão.

— Tragam-me o que está debaixo daquela cama.

Entorpecido por uma mistura de incredulidade e temor, Jeb observou o dodô trazer a caixa linguardarte.

Lorina ficou perplexa.

— Morfeu manteve a Marfim escondida aqui?

Gossamer assentiu.

— Por sugestão do Rábido. Ele disse que este era o único lugar no castelo onde ninguém viria à procura dela.

Depois de pedir a Charlie que abrisse a tampa e arrumasse uma pedra onde eles pudessem subir para ver lá dentro, Gossamer pediu ao estranho casal que se afastasse um pouco para que ela e Jeb tivessem um pouco de privacidade.

Jeb afagou as rosas brancas aveludadas que adornavam o exterior da caixa, fascinado pela beleza do rosto da Marfim quando este veio à tona. O olhar cristalizado de assombro dela passava dele para a fada, e voltava — cautelosamente curioso. Ele estremeceu ao pensar que tomaria o lugar dela.

Tinha mesmo que fazer isso?

Jeb sentiu que Gossamer observava seu semblante.

— Devo perguntar uma última vez se está seguro de sua decisão — indagou ela. — Porque, como você está escolhendo ser trancado, e selando essa escolha com seu sangue, a caixa nunca o libertará. Ninguém poderá salvá-lo. Você está oferecendo sua eternidade pela da Marfim, uma rainha que você nem sequer conhece.

Jeb sentiu um nó na garganta.

— Não. Estou trocando a minha eternidade pela da Al.

Gossamer sorriu com ternura.

— Em seus sonhos, vi certa vez que você teme não ser bom o bastante para a menina. Depois de tal sacrifício, ninguém poderá questionar seu valor como homem nem seu amor por ela. — Ela o beijou no rosto, deixando um calor que penetrou seu coração e conseguiu derreter uma pequena porção do terror congelante que lá se escondia.

Gossamer deu-lhe um pincel e recuou.

— Agora, use o poder que somente você pode exercer. Pinte as rosas com o seu sangue.

Jeb foi tomado por uma tontura. Murmurou coisas... sem sentido, temerosas... palavras agonizantes que ele sabia serem as últimas.

Depois, canalizou a raiva, o terror e o desejo por um futuro que ele nunca teria para as estocadas do pincel. Cada botão branco, tingiu-os de vermelho até perder-se dentro das sombras de seu trabalho, e fundiu-se à sua obra-prima, tornando-se um só.


Capítulo 5


A Decisão da Mariposa

A cena se estendeu e ficou turva enquanto Morfeu era arrastado para fora das lembranças de Jebediah e depositado de volta na chaise-longue. A escuridão deixava a sala pesada, mas ele nem se mexeu para ligar a luminária. O cenário completamente enegrecido parecia combinar com os pensamentos obscuros que lhe cruzavam a mente.

Ele passou o dedo pela coxa, acompanhando as listras do tecido risca de giz e alisando as rugas.

Por que se sentia tão aborrecido? Ele havia encontrado exatamente o que esperava encontrar. As fraquezas de Jebediah estavam à mostra: um ódio que poderia facilmente ser manipulado, um sentimento de impotência alimentado por um pai violento e crítico, um ciúme que provocava um sentimento temerário de proteção e que lhe custaria a própria vida.

O que Morfeu não tinha esperado encontrar, entretanto, era tanta semelhança entre ele e o rapaz. Os demônios do passado atormentado de Jebediah não eram muito diferentes dos seus. Ele sempre se surpreendera sentindo inveja dos humanos... por nunca ter tido o carinho de um pai ou de uma mãe. Simplesmente por ocupar seu lugar no mundo, ele também compreendia o medo de talvez nunca chegar a conhecer completamente a confiança e a afeição de outra pessoa.

Contudo, no passado, Morfeu nunca havia considerado isso uma coisa ruim. Ele apreciava ser uma alma reclusa e independente. Por vezes, até se vangloriava, quando lhe convinha ser o centro das atenções, naturalmente. Mas a atenção, a afeição ou a confiança não eram coisas de que ele precisava. Não até aparecer Alyssa. Depois que ela escolheu ignorá-lo, ele não conseguiu funcionar... sentiu-se desastrado e incompetente.

E agora, depois de colocar-se no lugar de Jebediah, Morfeu compreendia, mais até do que desejava, como o lado humano de Alyssa funcionava. Embora metade dela tivesse asas e pudesse flutuar sobre as inseguranças e trivialidades dos mortais, a outra metade tinha seus alicerces nas coisas que qualquer outro humano ansiava: confiança e segurança.

Tendo visto a coragem e a engenhosidade de Jebediah, bem como sua lealdade a Alyssa, Morfeu soube, sem sombra de dúvida, que aquilo era exatamente o que o rapaz oferecia a ela: uma rede de segurança e emoção que a salvaria caso a queda fosse muito alta.

Não era de admirar que ela fosse tão cativada por ele. Não era de admirar que ele exercesse poder sobre ela. Diabos, o próprio Morfeu ficou morbidamente fascinado pelos honoráveis traços morais do rapaz, incomuns em um humano tão machucado. Morfeu ficou tentado a recuar e deixar Jebediah ter seu momento de felicidade. Alguns poderiam até dizer que ele o havia merecido por desejar abdicar de seu futuro, de suas lembranças e de sua vida por Alyssa.

Morfeu rosnou e caiu para a frente com os punhos cerrados, tentando suavizar o estranho peso em seu peito. O rapaz não ficaria aqui para sempre. Era um mortal. Um dia, morreria de velho, no mínimo, e Alyssa voltaria a ser um alvo fácil.

Alvo fácil.

A mandíbula de Morfeu se contraiu. O romance não era uma coisa justa. Nem era um jogo. Era guerra. E, como em qualquer outro campo de batalha, não lhe cabiam a compaixão e a misericórdia.

O besouro-tapete estava certo. As emoções humanas eram coisas imprevisíveis e poderosas. Elas haviam penetrado na cabeça de Morfeu, enfraquecido sua determinação.

Com os cotovelos nos joelhos, ele levantou as mãos com as palmas para cima, incapaz de ver a silhueta delas no escuro. Ele conjurou um pouco de magia na ponta dos dedos, em bolas elétricas de plasma do tamanho de ervilhas, e depois enviou as esferas para todos os cantos da sala, os raios azuis deixando rastros como eletricidade estática. Elas subiram pelas paredes e em seguida se uniram na forma de uma mulher. A luz pulsava em ritmo hipnótico.

Imaginar Jebediah com Alyssa, mostrando a ela os caminhos do amor, domando seu espírito selvagem com suas corriqueiras convenções humanas, tudo isso queimou a garganta de Morfeu com o sabor amargo da inveja.

Ele não queria que o lado selvagem de Alyssa fosse dominado por nenhum outro homem, não desejava compartilhar nenhuma parte dela. Morfeu desejava os dois lados: sua inocência e seu espírito desafiador.

Que graça poderia haver na dependência? Que espontaneidade poderia haver em um mundo previsível? Ele poderia lhe oferecer uma eternidade de desafios e paixão, de momentos ternos e calmos nas profundezas de chamas vibrantes e tempestades devastadoras — a tranquilidade em meio ao caos.

O lugar dela era com ele, usando trajes de soberana. Ele tinha tanto a ensinar-lhe sobre o reino intraterreno, sobre as glórias da manipulação e da loucura. Se Morfeu alimentasse o faminto lado intraterreno de Alyssa, suas inseguranças e inibições humanas diminuiriam e, com o tempo, poderiam desaparecer. Ela nunca mais ansiaria pelo amor seguro de Jebediah.

Morfeu invocou sua magia de volta, recolhendo as espirais de luz azul até ficar novamente envolto na escuridão. Suas asas varreram o chão quando ele se levantou, e ele as ergueu num arco que quase tocava o teto.

Nada mais de deliberações. Ele tinha tentado fazer o que era justo em instâncias passadas e, sem exceção, isso sempre o prejudicara. Podia ignorar a pontada de culpa que lhe agitava o peito, mas não podia abdicar de suas necessidades pelas necessidades de Jebediah. Ele nunca mais seria ele mesmo sem Alyssa ao lado — a chama para sua Mariposa. Morfeu não pararia até que ela voltasse para o lugar que lhe pertencia, no País das Maravilhas.

Para vencer, ele jogaria sujo, colheria os despojos do coração dela do modo como fosse necessário, não importava quanto isso custasse ao rapaz mortal. Afinal, este era o modo intraterreno. Fazer menos que isso faria de Morfeu um humano. E ele sabia, agora mais do que nunca, que essa era a última coisa que jamais desejou ser.


SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS
Epígrafe

ÀS VEZES PENSO EM SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS ANTES DO CAFÉ DA MANHÃ.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Um

Mortalidade

Capítulo 1

Deportação

Algumas pessoas podem dizer que é impossível morrer e viver para contar. São as pessoas que nunca experimentaram a mágica. Quanto a mim, sou tataraneta da Alice que inspirou Lewis Carroll. Acreditei no inacreditável por mais de sessenta e quatro anos, desde que tinha dezesseis e descobri que o País das Maravilhas era real e cheio de seres caprichosos, misteriosos e loucos, governados por acordos e enigmas. Ainda assim, às vezes, por mais que você acredite no impossível, as coisas não saem como você as planejou. Toda mágica pode encontrar um obstáculo de vez em quando.

Por exemplo, nunca esperei que meu cadáver acabasse numa caixa de sapatos. É isso que os caixões crematórios me lembram... uma caixa de papelão do tamanho de uma pessoa. O caixão não é muito confortável. Não há a forração de veludo para suavizar a base de madeira. Nenhuma almofada para acomodar minha coluna curvada. E nada de roupas, além de um vestido de papel para cobrir minha pele velha e enrugada.

O cheiro de papelão se fixa ao meu nariz e as rodas de aço da maca giram ao longo do corredor, rangendo em algum lugar sob mim, junto a passos familiares. Sinto a transição do ambiente fresco e de temperatura controlada onde o legista atestou minha “morteza” (como os seres do País das Maravilhas diriam). Ele, então, pôs uma identificação de aço inoxidável no meu peito e fechou uma tampa sobre mim, me prendendo na escuridão.

A maca sacode ao entrar num lugar muito mais quente. O cheiro de ovo podre do propano confirma nossa localização. Já visitei este lugar. Nos últimos meses visitei vários crematórios, quando não havia ninguém por perto, de madrugada. Para conhecer melhor o gigantesco forno de tijolos à vista que estaria esperando para queimar minha carne. Para encontrar o projeto perfeito, com um banheiro e um espelho de corpo todo do outro lado do salão.

Assim que optei pelo crematório do Pleasance Rest Cemetery, me preparei para morrer.

Meu plano original era usar Tetrodotoxina. Em doses pequenas, subletais, ela deixa a vítima num estado de quase morte por dias, permitindo que ela mantenha a consciência. Morfeu, porém, não concordava. Ele disse que a margem de erro entre o estado de quase morte e a morte de verdade era pequena demais no mundo mortal e não algo com o que se brincar. Ele não queria que eu arriscasse. Então, ofereceu uma substituto do País das Maravilhas: uma poção que funciona quase da mesma forma, mas que tem um antídoto cem por cento garantido.

Bebi a dose de quase morte nesta manhã e, dez horas mais tarde, ainda sinto o gosto amargo e anestésico, como cravos dançando no fundo da garrafa de vinagre. Não consigo morder a língua para aliviar o efeito. A mágica me deixou catatônica — meus olhos fechados e imóveis, meus batimentos e respiração reduzidos a um ronronar indetectável por quaisquer instrumentos humanos.

Meu lado intraterreno se remexe dentro do meu crânio, me garantindo que isso vai dar certo, mas meu lado humano instintivamente se encolhe quando o medo tranca minha garganta. Não posso gritar para dizer a todos que estou viva. Minhas cordas vocais não vão funcionar. A claustrofobia, minha velha inimiga, me deixa toda arrepiada. Sei o que está acontecendo ao meu redor, apesar de não conseguir abrir os olhos ou mover meus membros. Todos os cheiros, sons e sensações táteis são ampliados por minha incapacidade de reação.

Os paramédicos que atenderam, nesta manhã, à chamada de emergência da minha neta de vinte e sete anos me declararam morta — fulminada por um ataque cardíaco. Foi insuportável ouvi-la chorar e gritar. Isso despertou lembranças da minha maior perda — da morte de Jeb, três anos antes. Uma faca ainda é cravada no meu peito sempre que me lembro do nosso último adeus.

Mas Jeb me mandou ser firme. E ensinei aos meus netos o mesmo — sempre encarar as coisas. Ela ficará bem. Não tenho dúvida disso porque ela é muito parecida comigo, para além de seus cabelos loiros, olhos azuis e curiosidade. Ela é teimosa, leal e uma sobrevivente.

Assim que os paramédicos levaram meu corpo ao necrotério, tudo funcionou como o previsto.

Minha família sabia que cemitério eu escolhera e as quatro exigências do meu testamento: nada de exibição pública do meu corpo, nada de velório, cremação em doze horas depois da minha morte e a dispersão das minhas cinzas no mesmo local onde as de Jeb foram jogadas, sob o salgueiro em nossa casa de campo. A árvore tinha um significado especial, por ter sido gerada de uma mudinha do salgueiro que dividia os quintais da nossa casa quando éramos crianças.

Tais pedidos nada convencionais não abalaram minha família, considerando que me tornei uma mulher muito excêntrica.

Depois da morte de Jeb, eles me viram vagar pela casa de campo, reunindo os mosaicos que fiz ao longo da vida, cheios de paisagens bizarras e místicas — com títulos como A Batida do Coração do Inverno, Dunas de Xadrez e O Ventre do Monstro —, e guardando-os no sótão, ao lado de outras quinquilharias, incluindo um anúncio de um passeio pelo Tâmisa, em Londres. As últimas coisas que guardei ali foram duas chaves: uma que pertencia à minha mãe, e era capaz de transformar qualquer espelho num portal, e outra que podia abrir o jardim das almas do País das Maravilhas. Esta última foi um presente dado a Jeb, depois que ele desistiu da sua musa, de modo a satisfazer a necessidade do reino interior por sonhos vívidos e cheios de imaginação, conectando nossos mundos em paz ao longo do processo. Ele desistiu do que fez dele único, a fim de manter as crianças humanas seguras. Um ato de coragem que seus filhos e netos jamais tiveram o privilégio de saber. Era essa a lembrancinha de que eu tinha mais dificuldade para me desapegar, porque era uma homenagem à coragem e ao caráter nobre de Jeb — as duas coisas que eu mais amava nele. No entanto, como Rainha Vermelha do País das Maravilhas, eu não tinha motivo para guardar chave tão sagrada.

Escondi tudo num baú no sótão e o tranquei. Então pus a chave do baú em meio às páginas da minha velha coleção de Lewis Carroll. Jeb e eu éramos donos da casa e do terreno que a cercava, e insistimos, em nossos testamentos, para que o lugar permanecesse sempre com a família. Assim, se nossos descendentes um dia precisassem me encontrar, poderiam. Eles só precisam procurar as pistas, como um dia eu fiz. Seguir meus passos e acreditar no impossível — em contos de fadas e desejos e mágicas.

Sempre os mantive no escuro quanto ao nosso legado, dando-lhes uma chance de viver uma vida normal. Até mesmo ordenei que os insetos e flores ficassem em silêncio. Agora sou a única capaz de ouvir esses sons do mundo interior, e as coisas continuarão assim enquanto eu estiver reinando como a Rainha Vermelha. Contudo, se algum familiar procurar com presteza, vai encontrar a verdade que escondi para eles.

Em todos esses anos, eles aceitaram meus caprichos porque sempre os respeitei e os amei incondicionalmente. E agora conto com a lealdade deles. Todo o meu plano de morrer depende da execução do meu testamento.

A cremação era a única forma de evitar que drenassem meu sangue, bombeassem formol em minhas veias e cerzissem minhas pálpebras — todos aqueles procedimentos mórbidos e intrusivos para embalsamar e preservar o corpo mortal. Fui abençoada ao longo dos meus oitenta anos de vida humana com saúde e uma mente aguçada. Nunca precisei de marca-passo e não tenho próteses, implantes ou dentaduras, então não há nada que possa explodir no forno. Isso significa que não haverá incisões nem extrações. Era importante que eu permanecesse intacta — por dentro e por fora.

Todavia, se o Rábido Branco não se apressasse e chegasse aqui com o antídoto para me tirar deste estado, nada importaria. Vou virar um monte de cinzas. E Morfeu terá de encontrar um lar novo para meu espírito eterno... um novo corpo para eu habitar.

Ele ficará furioso se isso acontecer e nunca me deixará esquecer isso. Uma eternidade é muito, muito tempo para ouvir eu avisei, entoado continuamente com um marcado sotaque londrino.

— Não me importo — disse ele há duas semanas, enquanto discutíamos meu êxodo do reino humano e tomávamos chá durante uma das minhas visitas ao País das Maravilhas em sonho. Ele levou a xícara à boca, seu rosto curioso perfeito e jovem como sempre. Ele bebeu e deixou a xícara de lado novamente. — Muitas coisas podem dar errado. Devo estar lá para executar meu plano.

— Vou agir sozinha — declarei. Estudei a cama com dossel e a lareira instaladas na diagonal em relação a enormes poltronas vitorianas ao lado de uma mesa oval, buscando conforto no cenário. — E vamos seguir meu plano. — Aqueles seriam meus últimos instantes no reino humano. Tinha de ser de acordo com a minha vontade. Contive uma descarga de tristeza e tentei exibir o mesmo controle que Morfeu exibia com sua xícara de chá, mas o líquido quente molhou minha mão velha quando meu pulso tremeu. Gritei.

— Alyssa, por favor. Permita-me. — Com seus dedos lisos e elegantes, ele cuidadosamente segurou meus dedos enrugados, limpando o chá e acariciando a mão queimada com um guardanapo.

Permita-me. Nós dois sabíamos que ele falava de outras coisas além da limpeza do chá derramado.

Tantos anos passamos juntos nos meus sonhos — e tantos outros na nossa infância —, com Morfeu me treinando e me ensinando sobre meu reino e o mundo. Não havia oportunidades para ficarmos sozinhos, já que ele mantinha o véu do sono descoberto para eu poder interagir com o Rábido, Chessie, Marfim, as criaturas e meus súditos.

Isso mudou quando fiquei viúva. Realizava meus deveres reais todas as noites e lutava para ser forte, até que meu luto pela morte de Jeb ficou tão intenso que as lágrimas se acumulavam em meus cílios, me cegando. Morfeu — sentindo minha vergonha, porque rainhas não choram — insistia que era hora do chá, que tomávamos sozinhos nos aposentos reais que um dia pertenceria a nós como rei e rainha.

Ali, na nossa solidão, escondidos de olhos predadores e cercados por exuberantes tapetes vermelhos e cortinas douradas, eu me perdia em minha dor. Permita-me, dizia ele. Estendendo os braços, ele me abraçava enquanto eu chorava. Noite após noite, durante um ano, até que finalmente não conseguia mais chorar.

Pouco depois, a atenção de Morfeu mudou. Seus carinhos se tornaram menos confortantes e mais íntimos. Estava constrangida demais para reagir, tímida demais em meu corpo velho.

Um ser místico eternamente jovem cortejando uma velha — teria rido do absurdo disso, não estivesse tão afetada pela devoção cega dele e pela intensidade do seu amor.

— Mesmo que usássemos seu plano... — Morfeu falava baixinho e de mau humor ao esfregar o guardanapo entre meus dedos, enxugando os resquícios de chá. — ... ainda assim eu deveria estar lá nas coxias, para supervisionar o espetáculo.

Franzi a testa para ele. Sua teimosia, juntamente com a dança dos vaga-lumes em seus cabelos desgrenhados e seus traços bizarramente belos, me fez lembrar outra noite em que nos sentamos neste quarto juntos — há várias décadas —, quando ele tentou me convencer a usar a coroa de rubi pela primeira vez. Quando tentei convencê-lo a me devolver meu desejo para eu poder fugir do País das Maravilhas, curar a maldição da minha família e manter Jeb em segurança. Eu era uma pessoa diferente na época, cheia de juventude, aspirações humanas e inocência.

Nosso quarto real se tornou uma lembrança dolorosa da velhice e decrepitude. Ansiava criar lembranças novas aqui, depois de desistir de tentar superar a beleza caótica do País das Maravilhas, quando fui coroada rainha de novo e permaneceria com dezesseis anos para sempre — jovem, cheia de energia e tão sedutora quanto o homem alado que governaria ao meu lado.

Até então, eu não me encaixava. Eu era uma foto deixada ao sol e chuva, minhas cores vibrantes se desbotando melancolicamente e ganhando um tom amarelado. Meus poderes intraterrenos ainda eram fortes, mas estavam presos num vaso gasto pelo tempo. Meus ombros pareciam curvados e pesados demais, eu raramente usava minhas asas. Do que mais sentia falta era voar.

Eu me perguntava se era assim que a Rainha Vermelha se sentiu no fim e por que ela permitiu que Morfeu a convencesse a voltar ao País das Maravilhas, abandonando seus descendentes semi-humanos. Por fim, foi plano dela voltar, apesar de não querer fazer aquela jornada sozinha. Ela brigou com Morfeu, dando início a uma série de eventos e manipulações que acabaram por me levar à coroa e me tornar rainha. Algo pelo qual aprendi a agradecer, apesar de na época ter reclamado do presente. Demorei muito para admirar totalmente a preciosa imortalidade, e jamais desvalorizaria isso novamente.

Depois que Morfeu terminou de limpar o chá derramado, tirei a mão da dele e timidamente cobri meu pescoço com o lenço de seda, tentando esconder minhas peles murchas. As pessoas diziam que eu era linda para a minha idade. Que parecia ao menos vinte anos mais nova. Todavia, em comparação à beleza sobrenatural e imutável de Morfeu, eu me sentia velha.

— Não quero você lá — insisti, determinada a mantê-lo distante da casa funerária. — Já basta você ter me visto murchar como uma uva-passa ao longo dos anos. — Até minha voz soava enferrujada, como se as palavras jorrassem da minha garganta e língua em porções cáusticas.

Morfeu apoiou os cotovelos na toalha da mesa, aproximando-se ao máximo com o jogo de chá entre nós. Seus cabelos azuis tocaram-lhe os ombros, animados e encantados — um contraste marcante com as ondas brancas reduzidas a um coque preso atrás da minha cabeça.

— Você está no fim de sua crisálida, meu amor. Esta etapa é a mais difícil, acredite. Uma batalha furiosa e incômoda de identidade, antes de se libertar e se transformar na criatura de luz e criatividade que sempre foi seu destino. Posso mantê-la atenta. Para evitar quaisquer... distrações.

Ele olhou para minha aliança, que eu ainda não tinha tirado. Aquilo se tornara mais do que um símbolo da nossa devoção. Tornara-se um símbolo da minha vida humana, e eu pretendia usá-la até deixar tudo para trás.

Com o dedinho, Morfeu circulou a aliança, cuidando para não tocar os diamantes ou o suporte de prata que os mantinha no lugar.

— É importante que você não permita nada que a impeça de dar o salto final. Você sofreu a perda daqueles que se foram há tanto tempo. Eles estão em paz. Deixe que a paz deles lhe dê paz. Senão, você será afetada... incapaz de agir com a mente ágil. O foco é fundamental para que qualquer um dos planos funcione.

— Já sei disso — respondo, um aperto no peito dolorido. — Você tem medo de que eu fique senil. De eu não ser capaz de lidar com isso.

Ele suspirou, acariciando meu polegar com o dele.

— Não senil. Nostálgica. Acontece a humanos. Você mesma me contou, enquanto eu a via amadurecer do refinamento à sabedoria.

— Refinamento. — Tentei um sorriso hesitante diante do esforço dele em me encantar. — É assim que vocês falam hoje em dia?

Ele me encarou sem hesitar.

— Seus olhos não perderam a incandescência; nem a mente, a inteligência. Você não é ingênua. Você é minha torta de ameixa, e sempre foi. Já lhe disse isso repetidas vezes, não é?

Ao menos uma vez por noite nos meus sonhos, Querida Mariposa.

Não respondi em voz alta, assim como não revelei minhas maiores inseguranças: estava com vergonha de ele me ver tão decadente... Não suportava a ideia de ele ter qualquer lembrança de mim como um cadáver naquele caixão de papelão — assim como eu vi Jeb depois da morte dele, antes de ser cremado.

— Uma rainha não deveria exigir resgate — sentencio. Ainda o encaro, maravilhada com aquelas íris coloridas que devolvem a mim o mesmo olhar de nossa infância, cheio de surpresa e afeto. De certa forma, ele via para além do meu corpo velho e enxergava a menina que fui, e eu queria muito conseguir me ver como ele me via. — Uma rainha deve merecer o respeito do seu reino e de seus súditos. E a admiração do rei.

Ele pegou minha mão novamente e beijou cada um dos nós dos dedos cheios de artrite.

— Ah, eu lhe garanto Você sempre mereceu isso. Na verdade, planejo mostrar-lhe a profundidade de minha admiração. — A palavra profundidade saiu de sua garganta como um urro. — Ainda que sejam necessárias várias vezes para convencê-la, finalmente chegará o momento de você ser minha.

Meu rosto ficou vermelho. Apesar de todos os anos em que ele me elogiou e me provocou com insinuações, e a despeito de tudo o que vivi como mãe, esposa e avó mortal, ele ainda conseguia me fazer enrubescer.

— Ah, aí está. — Ele passou o dedo por meu rosto enrugado e sorriu, satisfeito demais consigo mesmo. — Não perdi meu encanto.

— Como se isso fosse possível, para o mestre da sedução verbal — provoquei.

Seu humor mudou para a insolência num piscar de olhos.

— Você logo verá que isso é mais do que conversinha, minha rosa.

Fiquei ainda mais vermelha, sentindo-me mais jovem do que nunca. Ele sempre causava esse efeito em mim. Sempre fez com que eu me sentisse viva e desejável. Exceto pelas vezes que ele me desafiava ou me deixava furiosa.

Ele se recostou em seu lugar, as asas erguidas.

— Seu corpo está cansado. Deixe-me fazer isso por você, para você poder descansar — tentou ele uma última vez.

— Você me ensinou a ser forte e astuciosa. Devo dar sozinha este último salto para dentro da toca do coelho. — Uma sensação inesperada de vulnerabilidade me fez tremer. Peguei minha xícara de chá para absorver seu calor. — Mas você estará lá para me pegar?

— Estarei lá esperando um beijo arrasador para compensar todos os meus problemas — respondeu ele sem hesitar.

Sorrindo, peguei o jogo de xadrez. Morfeu ficou observando atentamente eu animar as peças para que atuassem no meu grandioso plano de deixar o reino humano e esconder meus vestígios com a ajuda do meu conselheiro real, além de pedaços de osso fornecidos pelas fadas, um saco de cinzas, dois trajes de disfarce, uma mosca comum e um punhado de duendes. Enquanto eu falava, seu olho adornado com joias brilhava num tom esverdeado — incomodado, mas esperançoso. A ansiedade que emanava dele era visceral.

Era inconcebível que tivéssemos um relacionamento de sessenta e três anos — platônico — sem um quê de tensão. Apesar de ele gostar muito de me ver andar na ponta dos pés na corda bamba da sedução contida, ele manteve seu juramento e respeitou minha decisão de ser fiel a Jeb. Ele esperou três anos, enquanto eu sofria a morte do meu marido mortal e preparava minha família para minha partida iminente. Era essa a profundidade do respeito dele por mim. Ele teve meu respeito em troca. E muito mais...

Agora chegou o dia de recompensá-lo por sua paciência e estou começando a me arrepender por não deixá-lo planejar minha morte... por não deixá-lo controlar o espetáculo. Provavelmente, tudo seria muito mais fácil. Eu já estaria em seus braços e em sua cama — uma jovem rainha borboleta, governando meu reino, embriagada de poder, loucura e paixão.

Não. Eu consigo. Posso provar que sou capaz, calculista e forte, como todas as boas rainhas deveriam ser.

O único papel de Morfeu no meu plano era mandar o Rábido com o antídoto. Assim que meu cúmplice chegar, tudo se encaixará e fugirei para o País das Maravilhas. Como um corpo não pode ser exumado depois de reduzido a cinzas, ninguém saberá que ainda estou viva e apenas fui embora deste mundo para sempre.

Uma pontada de tristeza segue-se a esse pensamento quando finalmente me dou conta. Acabou. Estou pronta para dar um fim... para começar meu futuro imortal. Vivi uma vida plena aqui. Minha família é saudável e feliz. Estamos no auge. Todos os sonhos humanos foram realizados e meu coração está firme e forte novamente.

Se bem que, por causa disso, há muita coisa a ser deixada para trás. Não há nada inconcluso, mas ainda assim é difícil dizer adeus para sempre. Assim que a coroa for colocada em minha cabeça para dar início à minha imortalidade, não terei de usá-la constantemente para manter minha juventude, mas terei de ficar no País das Maravilhas. Como Marfim uma vez me disse, o tempo é complicado ao se passar pelo portal a fim de retornar ao mundo humano... há de se imaginar uma hora específica, ou o relógio retrocede e o portal deixará você no mesmo momento de sua passagem.

Se eu tentar cruzar as fronteiras para o reino humano depois de partir, voltarei para sempre a este momento e terei oitenta anos para sempre, ou automaticamente envelhecerei todo o tempo que se passou e virarei pó na hora. Acrescente-se a isso o fato de eu estar morta aos olhos de todos — jamais poderia explicar meu reaparecimento sem causar terror e confusão — e ir e voltar não será mais uma opção.

Uma muralha impenetrável está prestes a se erguer entre mim e minha família, deixando-nos sem nada além de memórias.

O rosto de Jeb reapareceu em minha mente antes que eu pudesse impedir... como seus olhos verdes brilhantes me encararam pouco antes de ele os fechar na morte. Como eles estavam tão cheios de amor e gratidão por todos os sonhos que compartilhamos.

Sinto algo crescer na minha garganta e uma dor atrás dos olhos. No meu peito, a pequena identidade de metal parece uma pilha de tijolos.

Pare. Não posso fazer isso agora. Tenho de me concentrar na fuga. Morfeu tinha razão. Pensar naqueles que amei só vai me atrapalhar. Vou manter as lembranças sob controle... esquecer como encarei a morte da mamãe e do papai, como achei que jamais superaria a dor. Como Jeb foi meu porto seguro, como sempre. Assim como fui para ele, quando a mãe dele morreu.

É fútil pensar nessas coisas agora, porque, assim que Jeb morreu, todo o mundo se distorceu — adquiriu uma nova forma que eu não reconhecia. As coisas cotidianas se tornaram estranhas e desagradáveis. Com a morte dele, eu não fazia parte de mais nada.

Minha metamorfose estava completa assim que meu marido mortal deixou de respirar. Só o que me restava agora era sair do meu velho casulo.

Um cheiro novo entra em meu entorno de papelão — loção pós-barba ou desodorante —, me obrigando a voltar ao presente enquanto dois homens conversam do lado de fora do caixão.

— Última da noite, Frank?

— É isso, Brian. Chegou há algumas horas. Só entrega. E é para se apressar com ela. Quer que eu fique e ajude?

Tenho dificuldade para respirar. Meu plano não permite duas testemunhas. Só uma. Enquanto espero pela resposta do operador do crematório, meu coração se encolhe dentro de mim, cheio de medo. O órgão parece tremer, apesar de não haver pulsação em meus pulsos ou ouvidos. Só uma vibração fria e indiscernível por trás do meu esterno, como gelatina gelada retirada da fôrma.

— Não — diz finalmente Brian, mexendo em alguns papéis. — Posso fazer isso de olhos fechados.

A ironia é risível. Se tudo sair como planejado, ele não só terá seus olhos fechados, como também estará dormindo e sonhando.

— Vá para casa e fique com sua família — conclui Brian. — Diga a Melanie e às crianças que mandei um oi.

— Entendi. Até amanhã.

As portas se fecham com um rangido e o alívio toma conta de mim, mas por pouco tempo. Os cliques e claques da esteira mecanizada balançam as paredes de papelão do meu caixão e agitam meus ossos rígidos. Sinto um balançar leve sob minha coluna enquanto meu caixão segue por uma esteira com rolos de metal. À medida que estes se movem, as chamas crepitam mais alto, aquecendo meus pés no ponto onde a parede sob a sola dos meus pés se aproxima perigosamente da entrada do incinerador.

Era para o Rábido estar aqui antes que o forno de temperatura controlada estivesse quente o bastante para acionar o mecanismo de abertura. As coisas estão acontecendo fora da sequência e rápido demais. Meus músculos doem e ganham vida, mas estão rígidos como aço. Imóveis. Um vislumbre de outra lembrança me arrepia: quando a Rainha Vermelha controlou meu corpo naquele último dia em Qualquer Outro Lugar. Quando eu era uma marionete dela. Sinto-me tão impotente agora quanto naquele tempo.

Estou prestes a ser envolta em chamas. Meu corpo não vai sobreviver. De todo modo, preciso sobreviver. Prometi voltar como eu mesma. Inteira. É uma promessa que não posso quebrar. Morfeu esperou demais por meu retorno. Não posso decepcioná-lo.

A dúvida ergue sua cabeça horrível: o que farei? Não consigo me mover, não consigo me livrar... não sem o antídoto. Um vazio dói por trás dos meus canais lacrimais enquanto desejo que uma enchente me liberte e encha toda a minha caixa com um oceano de lágrimas para me salvar do fogo. Mas meus olhos podiam muito bem estar cheios de areia.

Chega de drama, meu amor. Use sua mágica. Improvise e encontre uma forma de escapar.

Não tenho certeza se é a voz de Morfeu na minha cabeça ou se é minha própria voz. Ouvi o sotaque dele e sua insistência tantas vezes ao longo da vida que eles estão entranhados em mim como se fossem meus.

Seja qual for o caso, isso desperta minha determinação. Há um motivo para eu ter vindo a este lugar na noite passada, quando tudo estava escuro e em silêncio: para poder anotar mentalmente todas as coisas que poderia animar se precisasse. Para poder entender a logística do forno crematório. Para poder usar minha mágica às cegas.

Concentro-me no maquinário da esteira. Aprendi uma coisa ou outra sendo esposa de um mecânico. As molas do mecanismo se contraem enquanto as imagino se retraindo. O movimento aciona as amarras e a porta de metal se fecha com um baque. Minha caixa para imediatamente ao atingir o obstáculo.

— Você só pode estar brincando comigo — resmunga Brian. Ele mexe na maçaneta da porta e bate nas dobradiças. — Pronto. Agora, sim.

Ele empurra meu caixão de volta para a esteira de metal, criando espaço para a dobradiça se abrir. Minha mente procura outra forma de detê-lo quando o ouço gritar “Mas o que é que...?”, pouco antes de ouvir o som do seu corpo caindo no chão. O caixão bate na porta fechada novamente.

— Rainha Alyssa — uma voz fina soa do outro lado do papelão.

Nikki, sua fadinha maravilhosa. Um formigamento se irradia pelos meus lábios, o fantasma de um sorriso esperando para se abrir. Meus dedos dos pés se dobrariam de empolgação, não fosse minha paralisia.

A tampa do caixão se abre e as asas de vinte fadas pairam ao redor do meu rosto — lufadinhas de vento com cheiro de canela e baunilha.

Mãozinhas do tamanho de joaninhas seguram minhas pálpebras, abrindo-as diante de um brilho âmbar. Ainda não consigo virar a cabeça, mas pela minha visão periférica a galhada do Rábido aparece sobre a borda do caixão, seguida por um par de olhos rosados brilhantes.

— Atrasado estou — desculpa-se ele.

Tento menear a cabeça, mas não consigo.

Todo o seu rosto aparece diante de mim.

— Arrumá-la, Alteza. Levá-la para casa, finalmente.

Casa. A palavra passeia por minha mente, cheia de promessas e esperanças. Imagino-me voando com Morfeu pelos cenários bizarros e irregulares do País das Maravilhas. Como vai ser bom me sentir pertencente a um lugar de novo. Fazer parte e nunca ter de abandonar ninguém novamente.

O Rábido estica o braço magro e derrama em minha garganta algo de uma garrafa vermelha. Um leve toque de frutas vermelhas misturado a menta arde em minha língua. Meu coração ganha vida, batendo com tanta força contra meu esterno que eu perco o fôlego. Em pouco tempo, sou capaz de abrir os olhos sem a ajuda das fadas. Elas se dispersam com risadinhas e pairam ao redor do adormecido operador do crematório, caído no chão de cimento.

Pisco com força e rapidez. Meus canais lacrimais funcionam e meus olhos se enchem de água. O sal fere e coça.

Depois, meus dedos dos pés e das mãos latejam e os músculos despertam, moles e resistentes, como elásticos esticados demais. Enquanto me sento, minhas velhas articulações estalam.

O Rábido sobe na beirada da inclinação e segura o caixão, mantendo-o ao meu nível.

— Perdoe o Branco Rábido. Para todo o sempre, ao seu lado estarei.

Acaricio sua cabeça macia.

— Nenhum perdão é necessário. O que importa é que você está aqui agora. Alguém o viu saindo do banheiro?

O Rábido faz que não.

— A mosca no muro ficou de olho no futuro. — Ele ri da rima e aponta para a parte de cima da porta que ostenta a única janela do salão. A mosca anda pelo vidro do outro lado, numa demonstração de sua devoção inabalável.

O Rábido abre o sorriso sorrateiro que aprendi a apreciar, enquanto sua mão esquelética me entrega uma mochilinha. Olho dentro e está tudo ali: meu colar com o rubi, minha aliança de casamento, os trajes de disfarce, um saco de cinzas e pedacinhos de osso, uma muda de roupa, uma faca e três lembranças da minha vida humana que serão as únicas coisas que levarei comigo ao transpor os limites do País das Maravilhas.

Primeiro, coloco o colar em volta do pescoço e aperto a chave contra o peito, saboreando o poder que ela contém.

O operador do crematório ronca no chão. Ele parece com frio e nada confortável, mas sei que não está. Seus sonhos são cálidos e sensuais. As fadas voam ao redor dele, as asas batendo à velocidade de beija-flores, enquanto elas espalham partículas que são como dentes-de-leão cheios de feromônios. As sementinhas caem sobre o rosto sorridente do homem, levando seu inconsciente a imaginar as fantasias mais carnais. Torço o nariz, com vergonha até de imaginar o que ele está sonhando. Ele provavelmente vai ter uma ressaca de sonhos por uma semana.

Ainda que ele não vá sofrer nenhum efeito físico duradouro, as fadas estão explorando os pensamentos secretos dele. Quando eu era mais nova, teria me arrependido de tê-lo usado em meu plano. Agora, não. Quando ele acordar, daqui a mais ou menos uma hora, sua dor de cabeça insuportável o impedirá de questionar como conseguiu me cremar enquanto ele dormia. Ele só irá querer uma aspirina e sua cama macia em casa.

O fim justifica os meios.

Uso a faca para cortar uma abertura na lateral do caixão e tirar minhas pernas, lenta e cuidadosamente. Não consigo me mover tão rápido quanto antes. Meus pés descalços tocam o chão frio, o vestido de papel fazendo barulho. O Rábido se vira de costas enquanto tiro o vestido e o jogo dentro da caixa, depois visto um moletom e botas cinza — as roupas mais confortáveis e discretas do meu armário. Repreendo-me por me esquecer das roupas íntimas, mas não importa o que estou vestindo agora, porque no País das Maravilhas Morfeu encheu todos os armários do castelo com camisolas e lingeries de renda, cetim e veludo — um guarda-roupa digno de uma rainha.

Hoje, o disfarce esconderá meu traje simplório. Coloco o pé no tecido mágico. Para virar uma camaleoa, só preciso vestir o capuz e me concentrar nos arredores, meu corpo refletindo o cenário de fundo.

Mas primeiro...

Sem eu nem pedir, o Rábido me entrega o saco de cinzas e ossos e minha aliança de casamento. Olho o anel. Jeb o fez para mim quando tinha a capacidade mágica de pintar coisas e lhes dar vida. Quando sua musa se tornou uma entidade viva. Ele me serviu tanto como anel de noivado quanto como anel de casamento e era indestrutível. Pelo menos era o que pensávamos. A única vez que ele perdeu um de seus doze diamantes foi por descuido da minha mágica, quando eu a estava praticando.

Estava do lado de fora da nossa casa de campo, tentando fazer o salgueiro dançar, quando o diamante caiu na grama. Procuramos e procuramos, mas nunca o encontramos. Depois de uma semana, ele apareceu de novo, nascendo do solo na forma de uma flor parecida com vidro. Era como se o diamante fosse uma semente, tendo dentro de si a força da criação mágica de Jeb.

O cheiro de terra presente na lembrança dá lugar ao cheiro do propano do forno. Abro o saco e derramo as cinzas e ossos no caixão, mantendo os movimentos metódicos e precisos para a nostalgia não tomar conta de mim novamente.

Depois de esvaziar o saco, beijo minha aliança e a coloco em cima do montículo.

— Rábido, derreta isso com sua mágica.

Meu conselheiro real se aproxima, olha pela abertura e estreita seus olhos brilhantes até que eles irradiem um calor vermelho. Enquanto ele se concentra, as faixas de prata se fundem, reduzindo os onze diamantes a cinzas.

Coloco a placa de identificação dentro do caixão e leio o que está gravado no aço: Alyssa Victoria Gardner Holt. Sinto um nó na garganta. É a última vez que meu nome humano me definirá.

Reposicionando a tampa, ordeno que o mecanismo da porta funcione. Entrefecho os olhos diante do calor e das chamas, enquanto as portas se abrem o bastante para eu empurrar o caixão pela esteira, a porta se fechando em seguida. Ela se fecha completamente, tanto que nem mesmo se pode ver o brilho alaranjado lá dentro.

Alguns segundos mais e eu estaria presa ali. Agora, depois que o papelão se queimar todo, vai parecer que eu estava. As prateleiras de metal na parede contêm vários cubinhos de papelão. Dentro estão os restos mortais dos corpos que vieram antes de mim e agora esperam ser transferidos para suas urnas.

Mas meus “restos mortais” são únicos. Os diamantes de Jeb esperam lá dentro — sementinhas mágicas. Quando as cinzas forem lançadas no lugar onde as dele foram absorvidas na terra sob nosso salgueiro, flores nascerão, uma parte dele e minha. Unindo o que restou de nosso lado humano, numa última homenagem a toda a beleza que ele criou durante a vida.

Seguro-me para não chorar e pego a mochila enquanto o Rábido veste outro traje de disfarce, o qual encolhe até caber em seu corpo de coelho. Mentalmente, pergunto à mosca se o corredor está livre.

Ela responde num sussurro:

Está tudo bem, Rainha Alyssa...

Os outros humanos se foram. Não há nada além de umas traças por aqui.

Desnecessário ficar invisível, então.

— Nikki — sussurro, e a fadinha balança as asas, soltando a dose final de pó de fada no homem adormecido. Então ela reúne suas companheiras e nos segue porta afora. O banheiro fica a poucos passos do outro lado do corredor comprido e escuro. Sigo tomando cuidado para não esmagar as traças que caminham perto dos meus pés e dos pés do Rábido. Sorrio ao ver os insetos acompanhados de uma fila enorme de baratas, besouros e aranhas.

Rainha Alyssa! Rainha Alyssa! Tão triste vê-la partir...

A mosca voa ao redor da minha cabeça, acrescentando suas despedidas à confusão.

— Sentirei saudade de vocês também — digo, lutando contra uma onda de melancolia. Será a última vez que ouvirei esses cumprimentos confusos e zunidores. No País das Maravilhas, os insetos são... bem diferentes. Menos inócuos e bonzinhos. Alguns são maus e letais, e nada pequenos. Mas conheço todos os segredos deles e todas as suas fraquezas — graças ao sábio guardião do País das Maravilhas.

Nosso desfile entra no banheiro e para diante do espelho. Em vez de me ater à minha aparência velha e enrugada, imagino o relógio de sol que cobre a toca do coelho em um jardim londrino. O vidro racha como gelo no lago e, no reflexo entrequebrado, o relógio de sol aparece, marcado por uma réstia de pôr do sol rosa. É cedo e ninguém ocupa a trilha ainda. Como precaução, visto o capuz e o Rábido faz o mesmo.

Só precisamos de um ou dois pensamentos sobre nossas cercanias e seremos invisíveis.

Usando minha chave, miro numa fissura na forma de buraco de fechadura, minúsculo e intrincado.

O portal se abre. O Rábido me cutuca com seus dedos magros e entrelaço meus dedos aos dele. Junto com as fadas e nossos insetos companheiros, passamos pela abertura liquefeita. Uma brisa fria me atinge, assim como o cheiro de mato e rosas cobertos de orvalho reluzente.

Os botões de rosa dizem:

Bem-vinda, Majestade. Os anos ficaram para trás. Logo você estará desabrochando como nós novamente.

Sorrio. O Rábido me puxa rumo ao relógio de sol que já expõe a toca do coelho. Ele está ansioso para ir embora. Mais insetos se juntaram a nós; alguns pelo terreno: besouros, centopeias e escorpiões; outros pela brisa: borboletas, mariposas, vaga-lumes...

Saem em enxame do mato e ficam dando a volta em mim e em meu conselheiro real — um arco-íris encantado, espesso e brilhante, sob a luz rosada do céu.

As borboletas cantam:

Vida longa à Rainha Alyssa. Que você seja para sempre jovem, louca e livre.

Muitos deles pousam sobre mim, as asas acariciando meu rosto e pescoço através do traje de disfarce, e percebo que não terei mais de me tornar invisível. Meus amigos insetos estão aqui para me dar proteção, como sempre estiveram.

O Rábido me solta, seus dedos de cadáver tocando os meus enquanto ele segue as fadas e mergulha na toca do coelho sem olhar para trás.

— Atrase-se não, Majesta-a-a-ade — o grito do Rábido ecoa até mim, afastando-se mais e mais à medida que ele desce, sem peso, como uma pena ao vento.

Ao contrário do meu séquito interior, não consigo ir embora sem uma olhada para trás.

Paro, olhando em meio à nuvem de milhares de asinhas adejando diante da paisagem tremeluzente no horizonte. Meu peito se aperta.

Pego as lembrancinhas da minha mochila. Três garrafas de vidro decoradas: a primeira cheia de pedrinhas, a segunda com conchas e a última com um pó prateado. Uma olhada nas três e as lembranças contra as quais eu lutava iluminam minha mente, graciosa e lentamente, como a aurora invadindo o mundo imóvel que desperta.


CONTINUA

A MARIPOSA NO ESPELHO


Capítulo 1


As Maquinações
da Mariposa

— Tem certeza, Morfeu?

— Tenho — respondeu Morfeu, tirando as luvas e enfiando-as no casaco. — Você, entretanto, parece que precisa ser convencida.

A magia pulsava nervosamente na ponta de seus dedos, uma luz azul pulsante logo abaixo da pele. Por causa da ponte de ferro que havia lá fora, seus poderes estavam limitados a alguns truques inofensivos, mas suficientes para dar o seu recado, se necessário.

O besouro-tapete — que de tão grande chegava à altura dos ombros de Morfeu, depois de este haver tomado uma poção encolhedora — engoliu em seco por trás de suas muitas mandíbulas estalantes. Sua pele carpetada tremia.

— Não, não. Por favor, o senhor interpretou mal as minhas ressalvas. — Os braços ramosos do inseto vibravam enquanto ele folheava as marcações em ordem alfabética de sua prancheta, as quais continham todas as lembranças perdidas no País das Maravilhas. — É que ficar espiando os momentos esquecidos de um ser humano parece uma maneira tediosa de se passar uma tarde, só isso...

Morfeu mudou de posição, e suas asas lançaram uma sombra sobre a cara do besouro.

— Ah, mas este humano, em especial, tem muito a me ensinar.

Esse humano, em especial, havia conseguido capturar algo que Morfeu desejava mais que tudo neste mundo.

— Sente-se — disse o inseto, apontando para uma cadeira branca de vinil —, e eu prepararei as memórias para o senhor.

Morfeu jogou as asas para o lado, sentou-se e deu uma tragada no narguilé fornecido por seu anfitrião como cortesia. O tabaco doce e fresco passou ardendo pela sua garganta. Ele soprou baforadas de fumaça no ar, formando com elas o rosto de Alyssa. Era fácil imaginar o modo como seus olhos sempre se cobriam de um azul gélido quando ela o via, cheios de excitação e temor ao mesmo tempo. Adorava isso nela: a sagacidade de seus instintos intraterrenos alertando-a a não confiar nele, suavizada pelas emoções humanas forjadas durante a infância que passaram juntos.

Antes dela, Morfeu levara a vida em solidão, sem nunca precisar de ninguém. Ele não fazia a menor ideia do feitiço que ela lhe lançara. Ela era mais que uma decepção, sempre jurando devoção ao lado errado. Seu encanto, porém, era inegável. Principalmente quando ela o desafiava ou o encarava com sua indignação de justiceira, o que a deixava com os lábios deliciosamente posicionados quando rangia os dentes.

Morfeu colocou o narguilé de lado, embora a sensação de queimação em seu peito não tivesse nenhuma relação com o fumo. Alyssa era a única que poderia aplacar o incêndio que havia ali, pois fora ela quem havia atiçado aquelas chamas.

Os dois tinham passado cinco anos juntos — como amigos de infância —, até que a mãe dela a arrancou dele, Alyssa sangrando e ferida, e ele ficara se remoendo de remorso e com culpa por causa de um juramento imprudente que havia feito, no qual prometeu se manter longe dela.

Manter-se afastado da amiga fez com que ele sentisse o gosto da solidão pela primeira vez. Mesmo todos os anos de claustrofobia que ele passara aprisionado em um casulo antes de encontrá-la... nem mesmo eles o prepararam para o sofrimento da ausência dela.

Então, por fim, ela havia voltado para ele, fazendo-o reviver todos os antigos sentimentos que ele pensava ter dominado. Daquela vez, também, tudo foi muito rápido. Ela partira novamente, por escolha própria. Restaram a dor e a solidão excruciantes. Debilitantes.

Havia apenas seis meses que ela partira do País das Maravilhas, e ele não compreendia este vazio corrosivo que só poderia ser preenchido pelo toque dela, por seu perfume, sua voz. As solitárias criaturas mágicas não ligavam para essas bobagens; não precisavam de companhia, abominavam a bagagem emocional. Sua afeição e lealdade pertenciam ao agreste País das Maravilhas e a nada nem a ninguém mais.

Então o que ela havia feito para mudar isso?

Ultimamente, cada vez que ele via o próprio reflexo, não mais reconhecia a Mariposa no espelho. Estava incompleto, enfraquecido; e menosprezava isso.

O menosprezo era ainda maior porque ele havia se esforçado tanto para cortejá-la, enquanto ela oferecia seu afeto a um reles mortal.

Morfeu suprimiu um rosnado. Ele não conseguia compreender a sorte de Jebediah, como um humano podia ter tanto poder sobre uma rainha intraterrena. Como um simples rapaz era capaz de controlar um coração real e mestiço tão multifacetado, um espírito propenso ao pandemônio e à loucura. Jebediah puxava Alyssa para baixo, acorrentando-a ao tédio e à banalidade do reino humano.

Ela precisa ser libertada.

Morfeu havia considerado a possibilidade de matar seu rival, mas Alyssa jamais o perdoaria. Não. Chegara o momento de tomar medidas criativas.

Se Morfeu soubesse no que Jebediah havia pensando durante sua jornada pelo País das Maravilhas — todos os momentos em que ele se sentiu mais aterrorizado, mais desanimado —, conheceria as fraquezas e as forças do mortal, intimamente. Ele saberia como enfraquecer Jebediah, contrapondo-o a si mesmo.

Essas fraquezas o derrotariam melhor do que Morfeu o faria. E depois, quando tivesse destruído a confiança de Alyssa em seu cavaleiro mortal, Morfeu estaria lá para confortá-la e conquistá-la.

Voltaria a ouvir a risada de Alyssa do modo como ela ria quando os dois eram crianças, e teria de novo a oportunidade de ser presenteado com o seu sorriso deslumbrante.

Ele voltaria a ser completo.

— Por aqui, por favor — pediu o besouro para que Morfeu o seguisse.

Morfeu tirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo. Quando o inseto abriu a porta para um compartimento de memórias sem janelas, o cheiro de amêndoas vindo de uma travessa de biscoitos de luar fresquinhos que estava em uma mesa de canto se espargiu no ar. Havia uma chaise-longue na cor creme colocada contra a parede, e uma ornamentada luminária de piso feita de latão iluminava o espaço com uma luz discreta.

Morfeu concentrou-se no pequeno palco do outro lado do compartimento. Sentiu o coração palpitar de ansiedade num ritmo profundo e firme. As cortinas de veludo vermelho aguardavam o momento de se abrirem para mostrar as memórias de Jebediah na tela prateada.

— Como o senhor entrará na cabeça do rapaz para visitar suas lembranças perdidas, sou obrigado pelas normas a avisar-lhe que... as emoções humanas podem ser muito poderosas... podem nos fazer ver as coisas sob uma perspectiva totalmente diferente — advertiu o besouro.

— Estou contando com isso. — Morfeu deu um sorriso afetado. — Conhece aquele ditado sobre amigos e inimigos?

O besouro coçou a pele enrugada.

— Hum... mantenha seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda?

Morfeu acomodou-se na cadeira estofada e alisou a calça risca de giz ao cruzar as pernas apoiando um tornozelo sobre o outro.

— Melhor ainda é se colocar no lugar de seu inimigo. É a melhor maneira de controlar seus passos. Ou de apagá-los, caso tenha a oportunidade.

O besouro, voltando a tremer, esticou o braço fininho e apertou um botão na parede. As cortinas do palco se abriram, revelando uma tela de cinema.

— Imagine o rosto do rapaz enquanto olha para a tela em branco e vivenciará o passado dele como se fosse hoje.

As palavras do besouro eram ensaiadas, até mesmo mecânicas, mas a pulsação de Morfeu ficou acelerada. Ele esperou o besouro desligar a luz. Assim que o inseto saiu e fechou a porta, o corpo de Morfeu desmembrou-se nas juntas, flutuando pela escuridão como se fosse feito de partículas de pó. Todos os seus pedaços se uniram novamente na tela prateada, em cores vivas e cinematográficas, até que ele entrou na cabeça de Jebediah, apropriando-se do seu corpo, sentindo suas emoções.

Naquele momento, Morfeu entregou-se à experiência e, pela primeira vez na vida, passou a ver as coisas como um humano.


Capítulo 2


Primeira Lembrança —
Kriptonita

Jeb acordou em uma cama suspensa.

Estava nu. Por que estava nu?

Antes que esse fato pudesse ser totalmente registrado, trinta fadas ou mais, do tamanho de mariposas, surgiram do ar, acariciando cada parte do seu corpo e sussurrando-lhe. Ele tentou mexer os braços e pernas. As asas das fadas — que batiam na velocidade das asas de um beija-flor — liberavam partículas parecidas com as pétalas delicadas de um dente-de-leão, que, de alguma maneira, o imobilizaram. As sementes exalavam um perfume de canela e baunilha que foi inundando sua consciência, até que a sala ficou totalmente fora de foco.

Quando a névoa se dissipou, ele estava em sua cama, em casa. A noite adentrava pela janela e Taelor estava em cima dele, seminua. A unhas pintadas à moda francesinha percorreram os pelos de seu peito e abdômen, dirigindo-se ao cós de sua calça jeans.

Aquilo não podia ser verdade. Taelor e ele tinham brigado antes do baile de formatura, haviam terminado tudo.

Com delicadeza, ele a virou, colocando-a debaixo dele, e apoiou-se nos cotovelos, afastando o cabelo do rosto dela. Mas não foram os olhos de Taelor que encontraram os dele. Foram os olhos gélidos e azuis de Alyssa — encarando-o com um ar de admiração e inocência. Os dedos dele pareciam grandes e desajeitados nas têmporas dela.

A Al na cama dele?

Não. Isso não podia acontecer. Alyssa nem havia beijado homem algum. E Jeb nunca tinha sido o primeiro de nenhuma garota.

A Al era intocável para ele. Ela já passara por muitos episódios turbulentos em sua vida. E ele não era exatamente um exemplo de estabilidade.

Ele tirou as mãos dela e ficou de joelhos.

— Jeb, você não me quer? — perguntou Al, passando a mão no peito dele.

Ele não conseguiu responder. Seus dedos coçavam e pareciam esticar-se, como se estivessem crescendo. Ele ergueu as mãos sob o luar, observando, horrorizado, seus dedos caírem, um por um, e se metamorfosearem em lagartas. As lagartas, então, avançaram lentamente na direção de Alyssa, e ele não conseguia fazer nada para detê-las. Jeb caiu de costas na cama, com as mãos sobre o rosto, olhando fixa e incredulamente para os tocos crus e cheios de sangue onde antes estavam seus dedos.

Gritando, Alyssa tentou sair do colchão, mas as lagartas a pegaram, arrastando-se por sua pele e tecendo teias, até que restou somente uma forma se agitando dentro de um casulo.

— Soltem ela! — gritou Jeb. Uma luz lampejou em seus olhos, e então ele já não mais se encontrava em sua cama. Estava em algum lugar da mansão de Morfeu, e as fadas percorriam sua pele, hipnotizando-o... usando algum tipo de feromônio alucinógeno.

Elas estão me segurando aqui para que o Morfeu fique sozinho com a Al. No instante em que a realidade foi percebida, o feitiço foi quebrado.

Jeb pulou rápido da cama suspensa e saiu da nuvem de sedução de suas captoras. Pegando um travesseiro, ele se cobriu.

— Quero alguma coisa para vestir!

As fadas flutuavam no ar, seus olhos de libélula observando-o.

Havia várias cestas douradas no chão perto dos pés dele. Jeb chutou uma. Suas pequenas captoras se espalharam pelo ar, em histeria coletiva.

Gossamer, a fada predileta de Morfeu, designou cinco delas para pegar os morangos que rolaram. Elas contaram as frutas uma por uma e as colocaram de volta na cesta.

Jeb chutou outra cesta cheia de contas de óleo perfumado. Outras cinco fadas lançaram-se ao chão para pegar tudo, parando para contar cada conta antes de guardá-la.

Em pouco tempo, ela já havia chutado todas as cestas. Algumas estavam cheias de pétalas de flores, outras continham loção, outras, ainda, uvas. Ao virá-las, ele conseguira manter a maioria de suas captoras preocupada. Apenas Gossamer e outras duas ainda pairavam em torno de sua cabeça.

— Me deem algo para vestir — repetiu ele —, ou vou começar a tirar as plumas dos travesseiros. Vocês não estão em número suficiente para limpar uma sujeira dessas.

— Ele não está respondendo ao nosso feitiço — murmurou uma das fadas para Gossamer, com seus olhos de inseto voltados para Jeb.

— E nem à nossa magia — acrescentou a outra, amuada. — Eu conjurei uma moça das lembranças dele, mas seu subconsciente conseguiu escapar.

— Sim, este aqui é, sem dúvida, um desafio — concordou Gossamer, numa voz que tilintava feito um sino. Depois de mandar as outras duas fadas recolherem o conteúdo da última cesta, ela ofereceu a Jeb um robe de seda.

Ele se virou de costas e enfiou a peça de roupa no corpo, assimilando os arredores.

Morfeu o colocara em uma prisão opulenta. A sala era toda revestida de piso de mármore preto que refletia a luz laranja dos candelabros. Ele já estava bem familiarizado com o ponto focal: um colchão circular balançante preso por correntes douradas no centro do teto côncavo. Peles e almofadas forravam a cama, perfumadas por pétalas de rosa.

Apesar de todos esses confortos, faltava a essa sala um detalhe muito importante: uma saída. Não havia portas, janelas ou qualquer outra abertura à vista.

Paredes convexas — pintadas em cor de lavanda escura — eram cobertas por parreiras que se estendiam por toda a sua circunferência, entrando e saindo do reboco e se entrelaçando nos candelabros acesos. Frutas brotavam das vinhas. De quando em quando, as uvas explodiam espontaneamente e pingavam seu suco dentro de bacias de pedra posicionadas ao longo das paredes para apanhá-lo. E, delas, um líquido viscoso e purpúreo era drenado para dentro de fontes — um abastecimento constante de vinho de fadas com aroma adocicado.

Ele se lembrava vagamente de ter provado o vinho ao chegar. Desconfiado, tentou resistir, mas estava com muita sede. Era impossível saber que tipo de magia havia no líquido.

Jeb gemeu e esfregou o rosto. Quanto tempo teria passado bêbado e enfeitiçado? Ele acabara sendo inútil para Alyssa, assim como o pai dele teria sido.

— Onde ela está? — perguntou ele, ignorando a harpa que tocava sozinha, a qual, na tentativa de abafar-lhe a voz, começou a tocar mais alto. — Me diga o que Morfeu está fazendo com ela.

Minúscula, reluzente e confiante, Gossamer acomodou-se em uma almofada de cetim, passou a mão pelo colchão ao seu lado e cruzou as pernas apoiando os tornozelos verdes um sobre o outro.

— Talvez você não perceba o que nós, as fadas, somos capazes de fazer. Temos séculos de prática. Podemos lhe mostrar um êxtase com o qual você sempre sonhou.

Jeb a olhou de cima a baixo e ajustou a faixa de cetim em sua cintura.

— Me desculpe, não sonho com coisas verdes.

Ele encontrou a mochila de Alyssa debaixo da cama e a puxou. Jeb havia notado alguma coisa dentro dela anteriormente, quando a vasculhara em busca de outra coisa: uma pulseira de ferro forjado que ela provavelmente havia enfiado na mochila quando ainda estava na escola e ficara esquecida ali. Ele havia pesquisado muito as fadas quando começou a pintá-las, e sabia que elas não gostavam de ferro — se a lenda fosse verdadeira.

Jeb jogou a mochila sobre o colchão. Os cobertores de pele encresparam-se feito uma onda gigante e derrubaram Gossamer de sua almofada. Acionando suas asas com rapidez, ela pousou sobre o ombro de Jeb.

— Se é Alyssa que inspira suas paixões, podemos realizar essa fantasia. — Gossamer bateu palmas. As outras largaram seus postos de limpeza e se apressaram a formar um círculo em volta de Jeb. Uma onda de enjoo lhe invadiu o estômago quando todas as fadas assumiram a aparência de Alyssa — réplicas perfeitas em miniatura, com cabelo platinado e roupas sensuais de skatista. Elas liberaram novamente suas sementes de feromônios, cegando-o com o perfume de Alyssa, doce como néctar.

Brandindo uma almofada, Jeb rompeu a ilusão e dissipou as sementes. As fadas saíram aos guinchos e foram se esconder nas vinhas das paredes, com seus corpos brilhantes parecendo cordões de luz branca e piscante.

Gossamer pairou no ar acima dele, ralhando.

— Já chega! Informem o nosso mestre de que o mortal é leal à garota. Não podemos seduzi-lo para que volte ao seu mundo sem ela.

Jeb ficou resmungando, enquanto as fadas se esgueiravam por buracos do tamanho de ervilhas, na parede onde as vinhas entravam e saíam. Se ao menos ele pudesse passar por aquelas pequenas saídas também... Chegou a pensar em usar a poção encolhedora que ele e Alyssa tinham encontrado quando chegaram ao País das Maravilhas, mas ela o deixaria tão pequeno quanto suas captoras, e ele ficaria indefeso contra Morfeu. A impotência lhe fervia as entranhas, tão profunda como a que ele sentia quando era criança, escondendo-se em um armário até que passassem os ataques de fúria do pai.

Ele cerrou os dentes. Tinha de haver uma passagem escondida em algum lugar por trás das vinhas. Elas o tinham trazido para cá; devia haver uma saída.

Subitamente, ele deu um pulo para a parede mais próxima e arrancou algumas vinhas, lançando-as para todos os lados. O diminuto guincho de surpresa de Gossamer não o intimidou.

Uvas explodiam em suas mãos, libertando seu aroma potente e denso. As plantas viscosas cortavam seus dedos feito arames. Jeb aceitou a dor. Era algo que podia controlar — diferentemente do tormento dos cigarros acesos que seu pai lhe enfiava na pele, ou dos punhos que lhe socavam o rosto e o estômago. O cheiro da nicotina, o gosto de sangue. Imaginação ou não, eles alimentaram o selvagem em sua alma.

Ele mergulhou numa espiral vermelha de fúria e devastou a sala. Quando finalmente voltou a si e recostou-se na cama, ficou chocado com os estragos que causara.

Arfando e suando, ele cuidou dos cortes nas junções dos dedos e vasculhou os destroços à procura de Gossamer. Será que a tinha machucado? Se sim, talvez fosse mesmo filho de seu pai.

Jeb cerrou os punhos, descontente consigo mesmo.

— Gossamer? — Ele se encolheu ao ouvir a própria voz, rude e inflamada de emoção.

Um rufar de asas mexeu uma das correntes que prendiam a cama ao teto. Ele respirou, aliviado ao ver a fada. Embora parecesse meio idiota importar-se, já que estava prestes a usar a pulseira de ferro de Alyssa contra ela.

Gossamer pousou no chão ao lado das vinhas rasgadas e das cestas que ele tinha derrubado de novo; seus ombros estavam caídos, em demonstração de derrota. Provavelmente, ela não sabia por onde começar a calcular todos os conteúdos derramados.

Jeb começou a vasculhar a mochila. A harpa havia parado de tocar, e o silêncio o incomodava feito o ruído dos ponteiros de um relógio. Cada segundo que ele passava longe de Alyssa deixava-a mais vulnerável a Morfeu.

Seus dedos finalmente encontraram um metal frio. Ele jogou a pulseira de ferro na direção de Gossamer, mas mantendo alguma distância, na esperança de enfraquecê-la sem machucá-la.

Ela gritou e lançou-se ao ar, se debatendo.

— Por favor... afaste isso.

— Não até eu conseguir algumas respostas. — Jeb segurou uma das asas dela entre o indicador e o polegar, levando-a para a cama e sentando-a sobre uma almofada, tomando o cuidado de manter a pulseira próxima o bastante para intimidá-la. — Basta cooperar, que eu não vou machucá-la.

— Já está machucando. — Ela gemeu, com a pele esverdeada já tingida de turquesa. — Não posso usar minha magia... — Gossamer bateu as mãos no próprio rosto. — Vai me deixar... horrível. Abster-me. — Sua voz ficou mais calma, como se estivesse falando consigo mesma, e, rangendo os dentes, continuou: — Abster-me até a ameaça de dor e contaminação passar.

Jeb franziu a testa.

— Então o ferro vira seus poderes contra vocês? É a arma perfeita para usar contra seu chefe.

— Um objeto desse tamanho... só funciona com os menores de nossa espécie.

Jeb curvou-se, aproximando ainda mais a pulseira dela.

— Muito bem, então considere isso um detector de mentiras. Toda vez que eu perceber que você está fingindo, aproximarei o ferro. Onde está a Al, e o que o seu chefe repugnante está fazendo com ela?

A cor da fada mudou para um verde azulado. Ela rolou sobre a almofada, as asas lutando para bater. Gossamer as puxou por cima dos ombros até a altura do peito, cruzando-as, como se quisesse conter a sua magia.

— A sua Alyssa está confortável e sendo bem cuidada. Morfeu está zelando pelo sono dela...

Jeb soltou um grunhido. Na noite passada, ele havia zelado pelo sono dela, no barco. Mudara a posição do corpo dela para que pudesse olhá-la de frente e fazer uma promessa, mesmo que Alyssa estivesse sonolenta demais para ouvi-lo. Jeb havia prometido que a protegeria, que a levaria para casa a salvo. E não iria quebrar sua promessa agora.

Ele precisou resistir ao desejo de destruir a sala novamente.

— Como eu saio daqui?

— Apenas o Morfeu tem os meios para abrir a passagem.

Jeb inclinou-se para a frente, com o nariz quase tocando o rosto de Gossamer enquanto segurava a pulseira sobre a cabeça dela, como se fosse um objeto corrosivo.

— Está dizendo que estou preso aqui até que aquela barata de asas decida me soltar? Ele vai fazer a Al enfrentar o País das Maravilhas sozinha?

Ela choramingou, levando a mão à testa.

— Não. Como você provou ser leal, ele permitirá que a acompanhe em sua jornada. Você comparecerá ao banquete e traçarão os planos.

— Banquete?

— A apresentação de Alyssa. Morfeu deseja exibi-la aos outros.

— Que outros?

Gossamer deixou-se cair, formando um monte de cor púrpura e em seguida saiu depressa de seu poleiro. Ela puxou alguma coisa de dentro da almofada — um desenho de Al que Jeb não se lembrava de ter feito. Lentamente, Gossamer levantou os joelhos e estudou as linhas.

— Você fez isto enquanto estava sob nosso feitiço. Tem poder dentro de seu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Você captou o interior de Alyssa com perfeição.

— Esse desenho é pura fantasia — resmungou Jeb. Ele colocou a pulseira de ferro sobre o papel ao lado de Gossamer.

Ela rolou para o meio do desenho, tentando escapar do metal.

— Há mais verdade nesta aparência de Alyssa do que em qualquer coisa que possam me forçar a falar.

Jeb puxou o desenho, fazendo Gossamer e a pulseira de ferro rolarem por cima da pelugem. Ele estendeu o desenho sobre uma almofada e percorreu as linhas de carvão com o dedo. A imagem era igual a todos os outros desenhos de fadas que ele havia feito de Al ao longo dos anos, mas, ainda assim, não poderia ser mais diferente da garota que ele conhecia.

Ele a desenhara com o cabelo preso no alto da cabeça. Al nunca usava o cabelo daquele jeito. Um vestido preto de alcinhas realçava suas curvas. Nem morta ela seria vista em um vestido tão convencional. E a única coisa que se parecia com ela eram as luvas de renda preta sem dedos que cobriam as cicatrizes da palma das mãos.

Fora isso, o desenho era uma fantasia completa. Sentada em um banco de jardim, Al segurava uma rosa. Rímel e lágrimas escorriam em curvas graciosas por seu rosto. Pensando bem, se parecia com a maquiagem dela na última vez que ele a vira.

Ele ainda não conseguia entender por que, depois de quase se afogar em um oceano de lágrimas, o rímel de Alyssa não havia borrado. Apertando os olhos, ele estudou o par de asas translúcidas abertas nas costas dela. As membranas finas tremeluziam sob o único raio de sol que atravessava as nuvens. As asas faziam com que se sentisse estranho, mas Jeb não conseguia perceber a razão.

Talvez porque elas lembrassem as asas de Morfeu, embora tivessem uma cor totalmente diferente. As têmporas de Jeb latejaram. Nada poderia ser pior do que Alyssa sozinha com aquele homem-inseto. Aquele doido tinha algum tipo de poder sobre ela, havia entrado em sua cabeça quando ela era pequena. O subconsciente pode ser muito poderoso, e se Morfeu ainda tivesse acesso aos sonhos da Al...

— Como posso derrotá-lo? — perguntou Jeb com um nó na garganta.

Os olhos bulbosos de Gossamer voltaram-se para os dele. Ela estava fraca demais para se arrastar para longe da pulseira, que agora roçava sua coxa.

— Ele não será derrotado. Há anos ele espera por este dia.

Jeb fez cara feia.

— Muito bem, ele é o Super-Homem. Mas todo mundo tem a sua kriptonita. Algo de que sente medo.

— O confinamento — Gossamer deixou escapar, e, diante da confissão, seu corpo escureceu até ficar da cor de um machucado.

— Como assim?

Gossamer levou o dorso da mão à testa.

— Por favor... está muito perto... o ferro... está drenando minha energia.

Jeb caiu de costas no colchão e afastou a pulseira da fada. Equilibrando-o entre os dedos, ele estudou o ferro sob a luz das velas. A pulseira o lembrou de seu piercing de ferro e da primeira vez que Al o vira, sua reação de entusiasmo. Ela havia implorado para tocá-lo e fez várias perguntas sobre o processo de colocação de um piercing. Seu entusiasmo e ingenuidade, suas inseguranças... Morfeu não hesitaria em usar qualquer uma dessas coisas, ou todas elas, para manipulá-la.

Jeb precisava convencer Al a sair do País das Maravilhas, a esquecer esta jornada para quebrar a maldição de sua família, a qualquer custo. Algo muito tenebroso estava à espreita, bem perto dela, como no sonho que ele tivera. E Jeb podia sentir que, fosse lá o que estivesse para acontecer, estava se aproximando.

— Então vocês querem que ela conserte os erros da Alice original, certo? E se eu consertá-los? — Jeb tentou raciocinar. — Vocês enviam a Al para casa e deixam que eu cuide de tudo?

— Impossível — respondeu Gossamer num sussurro arfante, voltando à cor verde-clara. Engatinhando na direção do desenho, ela passou a pequenina mão sobre a rosa. — Ela já passou nos testes e provou ser a escolhida.

— Testes? Está se referindo a encontrar a toca do coelho para o País das Maravilhas e secar o oceano de lágrimas?

Gossamer fez que sim.

— Mas eu ajudei a fazer isso.

— É por ela que ele esperava. Não por você.

Jeb levantou a pulseira de ferro uma última vez.

— O que ele realmente quer dela?

Antes que Gossamer pudesse responder, o teto abobadado começou a tremer. Pedaços espessos de gesso despencaram no solo. Jeb colocou uma almofada sobre a cabeça e uma mão sobre Gossamer para protegê-la dos detritos. O teto se abriu nas emendas, fazendo a cama balançar e puxando as correntes em direções opostas, de modo que o colchão subiu vários centímetros.

Depois que os tremores passaram, Jeb olhou para cima. A silhueta escura de Morfeu apareceu em uma abertura no teto.

Sutileza era um dos últimos itens na lista de prioridades desse cara.

— Já te disseram que você é muito escandaloso? — rosnou Jeb.

Morfeu inclinou-se para olhar a sala destruída.

— Já te disseram que você é um péssimo hóspede?

Parte da responsabilidade daquela bagunça era da grandiosa entrada de seu aprisionador, mas Jeb mordeu a língua, não querendo arriscar sua oportunidade de ver Al.

Morfeu relaxou.

— Alyssa o aguarda na sala dos espelhos. E, por favor, tome um banho e faça a barba. Você será apresentado aos nossos convidados do banquete como um cavaleiro élfico, então precisa parecer como tal. Gossamer lhe dirá como se comportar adequadamente. — Morfeu largou algumas roupas e botas, que fizeram um ruído ao atingir o chão. — Aí está seu uniforme. — Ele fez uma pausa e apontou para as correntes. — Que pena que você não tenha asas e nenhuma magia intraterrena. Terá que sair daí sozinho. E posso assegurar que não será nada fácil.

Os músculos de Jeb se retesaram quando Morfeu sumiu de vista; ele sabia que o aviso se referia a muito mais do que sair daquela sala.


Capítulo 3


Segunda Lembrança —
Carnificina

Jeb limpou o suor da testa. Morfeu estava certo. A escalada para sair de sua prisão dourada seria mesmo difícil. Mas isso não significava nada se comparado à jornada pelo País das Maravilhas que ele e Alyssa haviam cumprido desde então. O dia inteiro tinha sido um desafio atrás do outro, com o perigo e a morte aguardando em cada esquina. E agora ele havia perdido a Al. Os dois tinham se separado pouco antes de ela completar o teste final. Al ficou enfrentando as irmãs Twid no cemitério, sozinha, e ele ficou preso aqui no fundo do abismo.

A noite já havia caído quando ele atingiu o solo, e foi uma transição extremamente rápida, como se alguém tivesse apagado a luz.

Jeb sentiu os músculos do corpo endurecerem. Odiava pensar na Al sozinha naquele mundo insano depois de anoitecer. E, mais uma vez, ela provou ser forte o bastante para encarar quase tudo. No final, foi ela quem o salvara mais de uma vez...

Ele se lembrou dela pairando acima dele — um brilho selvagem, flutuando com a graça de uma libélula. Ver as asas dela brotarem tinha sido ao mesmo tempo assustador e milagroso. Jeb mal conseguiu respirar enquanto observava a transformação.

Falando sinceramente, Jeb ainda não tinha recuperado o fôlego de quando ela o levara para dentro do abismo e ele gritara: “Você é minha corda de segurança!”, antes de ela subir ainda mais alto para o céu. Ele não deveria ter colocado tanta pressão sobre ela para salvá-lo; tinha que ter feito o que conseguisse para sair de lá por si próprio e encontrá-la no meio do caminho. Do contrário, ela nunca se perdoaria se algo saísse errado.

A carcaça de um pássaro Jubjub havia amortecido sua queda. Ele limpou nas calças a gosma pegajosa que tinha entre os dedos, torcendo o nariz diante dos restos malcheirosos do exército que os perseguia e acabou caindo no abismo. Jeb procurou ficar de pé na escuridão. Suas botas produziam sons de sucção toda vez que ele pisava. Ele nunca tivera fricotes; qualquer aversão a sangue e violência havia sido expurgada — uma dessensibilização gradual que era reforçada sempre que ele se olhava no espelho e via suas bochechas e olhos inchados, grandes e cheios de sangue, que nem um bife malpassado.

Contudo, sem uma centelha de luz para guiá-lo, a carnificina aos seus pés parecia mais viva do que morta. Sua imaginação trazia arquivos de todos os tipos, de filmes de zumbis a demônios e assombrações. Seu estômago queimava de náusea. Jeb sentiu-se aliviado ao perceber que os assobios que ouvia dentro do abismo eram produzidos pelo vento. E não havia ruídos de correntes fantasmagóricas nem gemidos de mortos-vivos.

Além disso, seu verdadeiro inimigo era o tempo, mais perigoso do que qualquer coisa que pudesse imaginar. A Al ainda tinha de cumprir a última tarefa no cemitério. E, depois, eles ainda tinham de encontrar um ao outro.

Ele se forçou a avançar às cegas até sua mão alcançar a parede do abismo. Antes de descer totalmente, Jeb viu que a mochila de Al tinha ficado presa em uma pedra saliente próxima ao chão. Se conseguisse encontrá-la, poderia contar com uma lanterna. Tateando a superfície áspera da pedra, ele levantava seus pés por sobre os obstáculos, tocando os cadáveres com os dedos dos pés para mensurar a largura de cada passo.

Com os cotovelos esbarrando nas pedras, Jeb observou o céu. Um pequeno aglomerado de estrelas brigava com as nuvens, aparecendo para iluminar levemente o lugar ao seu redor, tornando possível que ele continuasse sem esbarrar no falecido exército da rainha. Uma brisa úmida levantava a poeira feito pequenos tornados. Logo choveria. E, neste lugar, era possível que, literalmente, chovesse a cântaros — daqueles temporais ruidosos, torrenciais.

Um calafrio que não tinha nada a ver com a tempestade iminente lhe percorreu a espinha e obscureceu qualquer sentimento bom que ele poderia ter encontrado naquele pensamento. Qual era a razão de todos esses “testes” de Morfeu? Toda vez que a Al conseguia se sair bem em um desses testes, sua forma intraterrena tornava-se mais acentuada. Será que o intuito era transformá-la completamente para que não pudesse mais voltar ao reino humano?

Fios de cabelo caíram sobre seu rosto, e Jeb os afastou.

Morfeu afirmara que tudo o que ele mais queria era que Alyssa voltasse ao seu lugar. Sua casa. Jeb esperava que ele estivesse se referindo ao mundo deles, o reino humano. Mas e se a Al não estivesse sob nenhuma maldição, no final das contas?

Ele se lembrou de sua pesquisa sobre fadas, na qual descobriu que elas eram criaturas chamadas de changelings — as crias das fadas secretamente deixadas no lugar de bebês humanos roubados. Alice Liddell, a tataravó de Al, teria sido uma changeling? Quem sabe foi por isso que ela encontrou, quando criança, a toca do coelho — por instinto. Isso significaria, de alguma estranha maneira, que aqui era a casa de Al.

Jeb parou com as especulações. Elas só levavam a mais dúvidas.

Ele tinha encontrado a mochila. Abriu-a, tirou a lanterna e colocou a mochila nos ombros.

Ao fechar o zíper, ele acendeu a lanterna e percorreu o cenário com fachos de luz. Os guardas destruídos pareciam cartas de baralho amarrotadas. Brinquedos descartados. Até mesmo os pássaros Jubjub poderiam se passar por brinquedos infantis com o enchimento extrapolando para fora.

Com a mochila ajeitada no corpo, Jeb percorreu a circunferência do abismo sem encontrar nenhuma abertura. Pedras que haviam caído bloqueavam qualquer possível passagem que ele tentasse. Era como se ele tivesse caído dentro de um tubo gigante. Não havia nenhuma outra saída a não ser subindo.

Jeb apontou a luz para o gramado a cerca de vinte andares acima — a clareira onde Alyssa havia pousado. Estava determinado a encontrá-la antes de Morfeu, mesmo que tivesse de escalar as pedras pontiagudas no escuro e sem uma corda de segurança.

Ele havia acabado de apoiar a lanterna entre os lábios e escorar o pé em um rochedo para tomar impulso quando ouviu uma voz com um sotaque britânico familiar.

— Ao trabalho, homens. Precisamos contar todos antes que as irmãs Twid enviem sua brigada de duendes para recolher os mortos.

Morfeu.

Jeb desceu e quase colidiu com o intraterreno alado, que tinha aparecido do nada, como se tivesse aberto um zíper no ar e passado por ele. Cavaleiros élficos faziam fila atrás dele, entre vinte e trinta, carregando lanternas e usando o mesmo uniforme de Jeb, só que menos esfarrapado e sujo. Eles passaram sem nem olhar para Jeb, extremamente concentrados na contagem dos corpos.

— Ora, ora, pseudocavaleiro. — Morfeu riu com desdém.

Cada pedacinho de Jeb ansiava por apagar aquele sorriso arrogante e socar aquele rosto. Mas ele estava em desvantagem. Se quisesse sair desse fosso para encontrar a Al, teria de bancar o bonzinho.

— Detesto dizer isso, mas é bom vê-lo, senhor Mariposa. — Jeb guardou a lanterna. — Vejo que pegou o espelho para vir aqui.

— Eu só viajo de espelho. — Morfeu ergueu a lanterna e examinou as roupas esfarrapadas de Jeb. — Tem a vantagem de não estragar tanto as roupas. E vou lhe contar outro segredo: se eu mantiver as asas daquele lado do plano — ele apontou com o polegar para as suas costas, onde metade de seus apêndices não era visível —, a abertura fica acessível para nossa viagem de volta.

Jeb forçou um sorriso.

— É bom saber.

Perfeito, na verdade. Ele poderia voltar com a trupe de elfos e depois tomar o expresso na sala de espelhos para encontrar a Al. Mas primeiro teria de distrair Morfeu, baixar a guarda dele. Jeb perguntou:

— Esse chapéu é novo?

Morfeu ficou radiante.

— Que gentil de sua parte ter notado. É meu chapéu da Insurreição. Ainda não havia tido a oportunidade de usá-lo antes. — Com o dedo, bateu em várias mariposas que formavam a guirlanda na aba do chapéu e depois se inclinou e fez conchinha no ouvido de Jeb para sussurrar um segredo. — As asas vermelhas representam derramamento de sangue.

— Ãh-hã. — Jeb cerrou a mandíbula diante do indesejado bafo quente no lóbulo de sua orelha. Depois, olhou para os cavaleiros, discerníveis somente por suas lanternas flutuando na escuridão atrás dele. — Então, está planejando um motim com o exército da rainha de Marfim?

Morfeu apertou o ombro de Jeb.

— Eu sempre soube que era mais esperto do que os mortais comuns.

Os músculos de Jeb contraíram-se ao contato.

— O que significa que você estava mandando a Al para uma missão absurda só para se divertir.

Cuidado. Jeb não poderia deixar sua desconfiança transparecer. Pelo menos não ainda. Em vez disso, ele se inclinou para ajustar os cadarços das botas e respirou fundo antes de se reerguer.

Morfeu apertou sua gravata vermelha.

— Todas as tarefas que pedi à Alyssa tinham um propósito. — Ele deu um passo para o lado quando alguém mais passou pelo portal do espelho: um esqueleto do tamanho de um duende, com antenas e olhos cor-de-rosa brilhantes, metido em um colete vermelho.

— Rábido Branco? — sussurrou Jeb, incrédulo. Nada daquilo fazia sentido. O Rábido era da corte Vermelha. Por que estava aqui?

— Qual é o relatório? — Morfeu agachou-se para ficar na altura do Rábido, ainda mantendo as asas enfiadas no portal invisível do espelho.

O pequeno intraterreno apertou as mãos enluvadas e olhou para Jeb, sua cabeça careca refletindo o brilho suave da lanterna de Morfeu.

— Um de nós, você é?

Morfeu sorriu e respondeu por Jeb.

— É claro que é. Ele ajudou a nossa Alyssa a conquistar o grande e cruel exército Vermelho, não lembra?

Coçando a antena esquerda, o Rábido fez que sim.

— Rainha Grenadine neutralizada está. Nos portões da frente e de trás, o castelo guardado está pelos regimentos três e sete. Flanqueando a rainha, um círculo de cinco. Sem esquecer da coroa e seu guardador.

— Ah, sim. O bandersnatch. Bem, quando Alyssa tiver trazido seu prêmio do cemitério das irmãs Twid, nada mais terei a temer daquela besta medonha. Fez um bom trabalho, senhor Branco. — Morfeu deu uma batidinha na aba do chapéu.

O Rábido bateu os tornozelos cadavéricos um no outro, depois se curvou e lançou um olhar penetrante para Jeb, antes de pular novamente para o portal.

— Ele é o seu espião — murmurou Jeb, sentindo-se idiota por não ter adivinhado antes.

— Sim.

— Então todas as vezes que o esqueletinho ameaçou a Al, matando-a de susto, era só para manter a aparência de lealdade à Rainha Grenadine?

— Os melhores espiões são aqueles que jogam dos dois lados com o mesmo vigor.

A distância, Jeb avaliou as lanternas que balançavam. O tilintar dos cabos de metal e o pisar de botas eclipsavam o suave lamento do vento.

— Certo. Já que estamos abrindo o jogo...

O comentário de Morfeu o interrompeu.

— Que trocadilho mais delicioso, considerando a posição em que estamos. — A lanterna dele apontou para os cadáveres dos guardas de carta.

Jeb ignorou a piada mórbida.

— Eu ia perguntar por que o Rábido se voltou contra a corte Vermelha.

— Ele era o conselheiro real da Rainha Vermelha quando Alice nos visitou. Deseja ver a verdadeira herdeira no trono tanto quanto eu.

— Verdadeira herdeira. — Jeb chutou um punhado de terra com uma bota, sentindo o peito apertado. — Então tudo isso é para destronar Grenadine e abrir caminho para uma nova rainha.

— Sim. — A lanterna iluminou o rosto de Morfeu, numa expressão de indulgência sonhadora. — E estamos muito perto. Em breve, ela ocupará o trono que é e sempre foi o lugar dela.

O lugar dela. Uma hipótese se formava na mente de Jeb, uma ideia ultrajante e incompreensível, mas, de qualquer maneira, a resposta óbvia para todas as dúvidas que ele vinha remoendo. Todas as dúvidas, exceto uma...

— Mas, primeiro — interviu Morfeu, varrendo o ar com um gesto desdenhoso —, temos que ter certeza do que iremos enfrentar quando atacarmos o castelo. Você e Alyssa conseguiram eliminar boa parte da oposição com seus fantásticos movimentos de pés. Estamos aqui para avaliar se os números batem com os que o Rábido reportou. Devemos ter certeza que Grenadine não tem outras cartas escondidas na manga. — Ele bateu nas costas de Jeb. — Viu o trocadilho? “Cartas na manga?” — E deu uma gargalhada.

Jeb não deu nem um risinho.

— Ah, corta essa. Os guardas dela são de cartas. É uma piada como a que você fez antes, só que mais inteligente.

— Ah, sim, entendi — retrucou Jeb.

O riso de Morfeu se dissipou.

— Você não é um namorado muito divertido.

— Você não leva nada a sério? A Al está correndo perigo — Jeb deixou escapar.

— Bobagem. Ela é gloriosamente capaz! Você nunca a viu voando? É claro que viu! Estava pendurado na corrente que ela segurava. — Morfeu voltou a lanterna para a própria cabeça, num arroubo de celebração. — Não foi uma bela visão, presenciá-la transformando-se no que realmente é? Igual a uma princesa de contos de fadas. — Ele lançou um olhar dissimulado para Jeb. — Não concorda?

Princesa de contos de fadas. Lá estava, saindo da boca do próprio Morfeu, zombando de Jeb por não perceber desde o início. Jeb apertou as alças da mochila para evitar dar um soco na laringe de Morfeu.

Morfeu abaixou a lanterna e depois tirou luvas prateadas de sua lapela.

— Não se sinta desprezado, cavaleiro mortal. Sua contribuição não passará despercebida. E eu sempre pago minhas dívidas. Então, o tirarei desta vala da morte para demonstrar minha gratidão.

— Você pode me agradecer me deixando ajudar a Al. Ela vai terminar a tarefa muito mais depressa comigo do lado — Jeb conseguiu dizer, sentindo um nó nas cordas vocais. Se conseguisse chegar até Al, talvez os dois pudessem se esconder de Morfeu no cemitério das irmãs Twid, até encontrarem uma maneira de escapar.

— Sinto muito — retrucou Morfeu, vestindo as luvas e acenando para que os cavaleiros élficos retornassem. — Ela precisa fazer isso sozinha. Você a verá em breve; todos nós vamos nos reencontrar. Uma grande família feliz.

— Não! — exclamou Jeb, perdendo o controle. Ele investiu, mas os elfos foram mais rápidos e o contiveram, com os dedos machucando seus cotovelos feridos. — Deixe-a sair do País das Maravilhas, seu filho de inseto...

Morfeu pressionou um dedo contra a boca de Jeb.

— Ah-há! Essa, você já usou.

Jeb puxou a cabeça para trás, deixando o dedo do intraterreno suspenso no ar.

Sob a luz da lanterna, as joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficaram escuras, da cor de sangue seco.

— Ora, ora. Isso são modos de tratar seu salvador? — Ele fez cara amuada. — Além do mais, como posso deixar Alyssa sair se ela não está comigo? Da última vez que soube, ela estava entrando no jardim das almas. Mas, quando terminar por lá, ela virá ao meu encontro. Ela ainda tem um papel muito importante a desempenhar.

— Certo. Porque ela é a herdeira do trono. — Jeb ouviu, incrédulo, suas próprias palavras ecoarem, como se tivessem saído da boca de outra pessoa. — Não sei como, mas é ela.

— Bravo! — Morfeu aplaudiu. — Estão vendo o que eu disse, irmãos cavaleiros? — Olhando para os cavaleiros por cima do ombro de Jeb, Morfeu deu tapinhas no peito em cima da gravata vermelha, como se estivesse tomado pela emoção. — Mais esperto que um mortal comum. Pena que tenha as limitações físicas de um.

— Não importa. Ela está fora do seu alcance. — rebateu Jeb, dando um tranco nos elfos; havia muitos o segurando, contudo. — Ela deve estar dentro do cemitério agora, e não pode forçá-la a fazer nada. Você mesmo disse que as Twids não deixam você entrar.

— É verdade. Mas ela encontrará, sozinha, o caminho para o castelo. No momento em que ela perceber que estou mantendo presa a coisa que ela mais ama no mundo, virá rastejando para mim, com as asas a reboque.

Morfeu levantou uma mão e fez um sinal.

Os cavaleiros élficos soltaram Jeb. Ele girou sobre o calcanhar e atirou a mochila sobre eles, dispersando o grupo feito pinos de boliche. Esticando o braço, ele bateu o punho na testa de Morfeu, desequilibrando-o. Um dos cavaleiros se esforçou para permanecer no lugar e manter o espelho aberto. Antes que Jeb pudesse se catapultar e atravessá-lo, raios de luz azul grudaram em sua pele e roupas, feito eletricidade estática. Eles o arrastaram, controlando-o como se fosse um fantoche, até ele ficar de frente para Morfeu. Os raios vinham da ponta dos dedos do intraterreno.

Morfeu aproximou-se.

Jeb tentou recuar, mas seus músculos travaram, ficaram paralisados.

— Durma — disse Morfeu num tom simples, e levou a mão azul fluorescente à testa de Jeb, cujo corpo foi percorrido por uma luz pulsante. Ele sentiu um gosto doce, parecido com leite e mel, e depois sentiu o aroma de lavanda. Com os dedos apertando o tecido macio da camisa de Morfeu, Jeb lutou para manter-se acordado. Mas a luz era muito reconfortante... muito suave... muito calorosa. Contra sua vontade, suas pálpebras ficaram cada vez mais pesadas e ele caiu no chão, em sono profundo.


Capítulo 4


Terceira Lembrança —
Engaiolado

O crânio de Jeb latejava, e havia sangue saindo de seu couro cabeludo e entrando em seus olhos.

Ele limpou o líquido viscoso e focou no lugar à sua volta. Morfeu o tinha trazido para o castelo Vermelho depois de colocá-lo sob o feitiço do sono. Largou-o dentro de uma gaiola na masmorra. Jeb não queria ter tomado a poção encolhedora quando acordou, mas o homem-inseto havia lhe dado um ultimato.

Primeiro, ele havia ameaçado matar a Al. Mas Jeb rebateu, dizendo que o homem estava blefando, pois sabia que ela era indispensável. Depois, Morfeu usara de outra arma, ameaçando fazer com que a frágil mãe de Al ultrapassasse o limite da loucura. Isso, ele faria.

A Al havia lutado muito para salvar a mãe. Ela morreria se a perdesse para a loucura. Então, Jeb não hesitou em levar o frasco aos lábios.

Seu corpo balançava, mas não devido aos efeitos colaterais da poção. A plataforma debaixo dele oscilava por causa de suas tentativas de abrir as barras de sua prisão usando a cabeça — uma atitude desesperada que havia resultado em nada além de um corte logo acima da testa. A magia de Morfeu — um fio elétrico e azul — mantinha a porta da gaiola fechada e imóvel.

— Que bela coisa você fez, não? — entoou uma voz feminina e irritante. — Morfeu escolhe quem tem o poder de suprimir sua magia. Obviamente, você não é um dos escolhidos.

Jeb fez cara feia para sua companheira de prisão. Era uma lóri — um intraterreno parecido com um periquito, mas normalmente do tamanho de um ser humano. Como os dois tinham encolhido, a única coisa que a distinguia dos pássaros do mundo humano eram as túnicas de cetim cor de creme com estampas jacquard colocadas sobre suas asas, corpo e pernas, e seu rosto humanoide enfiado no meio de plumas vermelhas, como se fosse uma máscara. Ele foi cutucado por um bico mais parecido com o chifre de um rinoceronte, posicionado no lugar onde deveria haver um nariz. Os lábios da criatura se agitavam furiosamente.

O pior de tudo era que a voz dela poderia derrubar a Torre de Pisa com uma sílaba. Quando falava, era como se alguém tivesse implantado cirurgicamente alto-falantes nos ouvidos de Jeb e travado o volume no “mais surdo que uma porta”. Ela era uma das muitas razões pelas quais ele tentava sair da gaiola com tanta insistência.

A luz bruxuleante das velas na parede iluminava seu ar de arrogância e deixava o resto da masmorra nas sombras. Depois que a voz da lóri parou de ecoar, Jeb investiu:

— Olhe aqui, Lorina. Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu marido. — Ele apontou a criatura que roncava abaixo da gaiola, de aparência tão estranha quanto à da esposa, com o corpo de um dodô, cabeça de homem e mãos que se projetavam da ponta de suas asas atarracadas. — Foi ele quem manteve Alice Liddell presa em uma gaiola igual a esta aqui, muitos anos atrás. É por culpa dele que a minha namorada é a única que pode destronar a sua rainha. Será que já lhe ocorreu que é por isso que vocês estão presos?

— O Charlie não fez nada disso! — berrou a lóri, pairando dentro da gaiola. — Alguma vez já lhe passou pela cabeça que o Morfeu é um cara de pau mentiroso?

Só em todos os segundos de todas as horas. Jeb apoiou-se nas barras. Seus joelhos cederam, enfraquecidos pelas tentativas de abri-las usando cada músculo de seu corpo. Ele desabou sobre o piso de metal, empurrando uma fatia de pera já amarelada que estava ao seu lado, feito um pequeno sofá. A gaiola era um pequenino forte inexpugnável. Mas não importava. As barras poderiam ser feitas de espaguete cru, e mesmo assim ele não conseguiria ajudar a Al. Mesmo que escapasse, com este tamanho, Jeb não conseguiria derrotar ninguém.

Charlie, o marido dodô de Lorina, não poderia ajudar muito. Ele estava preso por algemas e correntes de ferro e cochilava recostado na parede. Embora a gaiola estivesse pendurada bem perto da cabeça do dodô, não havia nada que Charlie pudesse fazer.

Provavelmente, Morfeu havia lançado no homem-pássaro gigante o mesmo feitiço do sono que jogara em Jeb, mas Charlie já estava se libertando dele.

Lorina acomodou-se no poleiro no centro da gaiola, balançando sobre a cabeça de Jeb feito uma acrobata no trapézio. A cara dela estava tão vermelha quanto as suas penas, o que fazia as espadas e copas estampadas nas bochechas quase desaparecerem.

— Como vamos ficar exilados nestas instalações fedendo a urina, terá bastante tempo para ouvir a verdade — bramiu ela.

Jeb esfregou a cabeça para apaziguar a dor lancinante.

— Se puder baixar a voz uns dois decibéis, eu agradeceria.

— Abaixar minha voz?

— Aaaii. — Jeb enterrou o rosto nas mãos.

O trapézio em miniatura rangia a cada balanço, piorando a poluição sonora.

— Para a sua informação, minha rainha adora o som da minha voz. Ela até o elogia...

O ronco do dodô parou, e ele estalou os lábios.

— Isso é porque ela protege os ouvidos com cera de abelha, Ó, Mais Adorável das Loucas.

— Seu mentiroso! — retrucou Lorina, balançando o poleiro tão depressa que Jeb achou que ia vomitar.

— Estou preso com correntes de ferro — avisou Charlie depois de um bocejo. — Não tenho forças para mentir. — Em seguida, pegou novamente no sono.

Isso pareceu calar Lorina, pelo menos temporariamente.

Jeb aproveitou o silêncio para pensar. A esta altura, Morfeu já deve ter contado a Al sobre sua verdadeira linhagem, sobre o que espera dela. Deve estar tão chocada... tão apavorada. Jeb ansiava tanto abraçá-la que era como se houvesse uma bigorna lhe pressionando o peito.

Aquele mariposo deveria ter contado a verdade desde o começo. Ela nunca escolheria ficar. Mas Morfeu sabia disso, e a manipulou sob o pretexto de que ela poderia curar a maldição da própria família. Jeb queria arrancar as asas pretas de Morfeu e enfiá-las goela abaixo por tê-la enganado, porque não havia cura para o parentesco, e ele sabia muito bem disso.

— Foi a Vermelha quem colocou Alice na gaiola. — A lóri voltou à carga. — Não o Charlie.

— Mas o seu marido escolheu mantê-la presa na gaiola — acrescentou Jeb, mesmo sabendo que não deveria. Ele cobriu as orelhas para a estrondosa refutação, mas Lorina só soltou um suspiro.

— Não. O Charlie tentou fazer a coisa certa pela menina — disse ela, consideravelmente mais ponderada agora. — Ele planejava mandar Alice de volta para o reino humano sem a Vermelha saber, mas a rainha descobriu e os arrastou para uma caverna nos picos mais altos e mais remotos do País das Maravilhas, sem que nenhum de nós soubesse. Ela deixou o Charlie com a vítima dela para poder encenar seu plano mestre, sabendo que Alice seria cuidada por um prisioneiro que nunca poderia escapar. Porque, como você deve saber, os dodôs não podem voar. Ela me privou de meu marido durante anos. Ele era prisioneiro, assim como a mortal.

— Se isso te ajuda a dormir de noite, tudo bem, passarinha.

Uma comoção de poeira e asas, jacquard e cetim, subitamente surgiu e o atacou.

— Você pode mostrar algum respeito e ouvir?!

Jeb levantou as mãos para se defender.

— Está bem. Shhhh. Eu vou ouvir.

Não havia nada mais que ele pudesse fazer. Morfeu lhe dissera que, assim que Alyssa fosse coroada rainha, ela abriria o portal para o reino humano. Acreditando ou não nisso, Jeb não poderia fazer nada a não ser ter esperança. Ele não tinha nenhum poder ali. E ter consciência disso lhe devorava as entranhas a cada minuto.

Acomodada diante de Jeb sob um monte de tecido luxuoso, a lóri olhou por entre as barras e resmungou alguma coisa para o marido que dormia.

— Seu velho e imprestável fezzerjub. Eu é que tenho que te proteger. Nem sei por que me casei com você.

O dodô resfolegou e murmurou, sonolento:

— Porque se casar com o bobo da corte era a única maneira de ter uma posição na corte Vermelha, Ó, Senhora das Nênias. — E o ronco voltou.

— Viu como deu certo? — resmungou ela, fazendo beicinho com os lábios vermelhos em forma de coração, sob a curva de seu bico. — Aquele Rábido ossudo e seu coração negro de pedra. — Ela alisou as penas da nuca e cobriu-as com uma rede decorada por lantejoulas.

Jeb estendeu a mão para pegar o dedal cheio de água que seu captor havia deixado ao lado da fatia de pera. Em suas mãos, ele era do tamanho de uma caneca de café. Ele o passou para sua colega de cela, que o pegou com as asas e deu alguns goles.

— Me diga uma coisa, Lori. Se o que você está dizendo é verdade... — Observando a atitude defensiva na cara bicuda, ele refez a pergunta para poupar os ouvidos. — Como você escolheu compartilhar o seu lado da história, talvez pudesse me dizer de que maneira Morfeu teve participação na prisão de Alice.

Ela sacudiu as gotículas de seus lábios.

— Não teve participação nenhuma. Ele gostava muito de Alice e teria feito qualquer coisa para que ela chegasse em casa sã e salva. Mas, na hora em que ele lhe ofereceu seu conselho como lagarta, alertando-a para que evitasse o castelo da Rainha Vermelha a todo custo, sua metamorfose aconteceu. Quando ele emergiu, totalmente transformado, e soube o que havia acontecido com Alice, ficou furioso.

— Está tentando me dizer que ele possui alguma consciência?

— Pelo menos no que dizia respeito a Alice, sim. — A lóri ajustou a suntuosa túnica que ficava escorregando devido à falta de ombros. — Morfeu usou todos os seus recursos de magia e acabou encontrando ela e meu marido escondidos nas cavernas dos picos mais altos do País das Maravilhas. Infelizmente, já era tarde demais para Alice. — Lorina devolveu o dedal a Jeb, agora com metade da água.

Jeb endireitou o corpo, fazendo a gaiola balançar.

— Então por que ele quer ajudar a Rainha Vermelha a colocar outra rainha no trono, quando ele deveria odiá-la por ter mantido Alice presa em uma gaiola por tantos anos?

— Talvez ele esteja bravo por Grenadine não ter tentado encontrar Alice assim que esta foi capturada. Mas Grenadine perdeu sua fita de memória e esqueceu a criança.

— Um bom regente teria mais do que uma fita para lembrá-la; teria se certificado de que tudo e todos estavam em seu lugar.

— A minha rainha é uma boa regente!

Jeb encolheu-se com o urro agudíssimo.

O ronco do dodô parou.

— Minha vociferante esposa diz a verdade, rapaz. Morfeu parece guardar ressentimento pelo que ele acredita ser negligência, mesmo tendo sido somente um descuido.

Jeb balançou a cabeça diante de todas as falhas que havia no raciocínio de todos.

— Não. Há mais coisas nessa história.

— Você tem bons instintos, cavaleiro mortal.

Jeb olhou para cima, na direção da voz tilintada. Uma luz brilhante flutuou pela pequena janela e entrou pela pesada porta da masmorra. Jeb levantou-se e agarrou as barras da gaiola, inclinando a cabeça para ver melhor.

Gossamer.

A pequena fada adejou para perto e sussurrou algo para o mágico fio azul que fixava a porta de arame, entrando na gaiola. O fio azul deu um nó em si mesmo depois de ela fechar o trinco.

Ela cintilava feito pequenos fogos de artifício ao pairar no lugar, estudando Jeb com uma expressão de solidariedade.

Como os dois agora tinham o mesmo tamanho, Jeb se lembrou de uma pintura que vira certa vez, de um artista tcheco, Viktor Olivia. O pintor era famoso por retratar uma fada que seduzia homens, levando-os a se embebedarem com absinto. Gossamer personificava essa criatura: uma forma feminina perfeita coberta de poeira verde, e nua, com escamas brilhantes cobrindo-a como um biquíni minúsculo.

Ele havia sentido, quando saiu da sala de espelhos, que Gossamer estava do lado dele e de Alyssa.

— Você veio ajudar — lançou ele, esperançoso.

Uma chave de cobre, da mesma cor dos olhos dela e quase do comprimento total de seu torso, pendia de seu pescoço. Seu olhar caiu para os pés delicados, como se estivesse lutando contra si mesma.

— Eu teria vindo mais cedo, mas Morfeu está sempre vigiando o espelho. Agora que ele está com Alyssa, preparando-a para a coroação, estará ocupado demais para ficar de olho no resto de nós... até o fim.

— O fim? — Jeb apertou a barra ao lado dela, concentrado em seu olhar de libélula. — Você tem que me contar tudo.

A fada olhou para Lorina, que estava se esticando para a porta de arame.

— Você sabe muito bem que não tem o poder de sair desta gaiola, a menos que eu a abra para você.

Bufando, a lóri voltou a voar para o trapézio.

Gossamer conduziu Jeb para a fatia de pera e os dois se sentaram. Seu perfume frutado se impunha sobre o fedor da masmorra e o acalmou o suficiente para ele poder ouvi-la.

A fada colocou as mãos sobre as de Jeb, que descansavam sobre os joelhos.

— Eu já traí meu mestre o bastante vindo até aqui, e sua ira será enorme. Eu só posso dizer que, dentro de uma hora, Alyssa estará comprometida para sempre, amarrada ao País das Maravilhas para toda a eternidade. Morfeu planejou tudo para enviá-lo de volta, cavaleiro mortal... mas sem ela.

Uma veia na têmpora de Jeb começou a se contorcer feito uma serpente em uma bandeja quente. Ele deu um pulo para cima e bateu a cabeça nas barras novamente, tentando amolecer o fio azul, incapaz de controlar a fúria exasperada que lhe fervia por dentro. Mais sangue escorreu por sua têmpora.

— Você tem que me soltar! Preciso impedir isso!

— Sim, sim! Nós também! — intervieram o dodô e sua esposa, em coro. — Temos que ajudar a Rainha Grenadine a manter a coroa!

— Naturalmente — afirmou Gossamer, pegando a mão de Jeb e puxando-o para perto dela. — Vocês todos terão a oportunidade de lutar e de mostrar a sua lealdade.

— Mas não posso lutar assim. — Jeb chutou uma semente do tamanho de seu pé. — Você trouxe algum bolo do crescimento?

— Não. Não é a força de seu corpo que salvará Alyssa, e sim a força de seu coração de artista. Mas eu posso assegurar que não sairá deste lugar em sua forma atual.

A lóri desceu de seu poleiro e ralhou com a fada.

— Agora, me escute, sua lacraiazinha. Este rapaz não tem papel nenhum. Ele é, no máximo, coadjuvante. Eu sou a criada da rainha, e Charlie é o bobo da corte. Nós deveríamos ser a sua prioridade. Somos honoráveis membros da corte, os únicos que podem dar um basta nesta paródia!

Acelerando as asas até virarem um borrão enevoado, Gossamer flutuou e colocou as mãos nos quadris.

— Quanto ao seu papel, Lorina: você pode abrir as correntes de seu marido, pois preciso falar com o mortal a sós e tenho pouca tolerância ao ferro. — Ela abriu a porta da gaiola e lhe deu a chave.

A lóri esvoaçou-se veloz, numa comoção de exibicionismo e má vontade.

— Venha, venha, Doçura Selvagem — chamou Charlie, encorajando a esposa enquanto ela flutuava em torno dele, subindo e descendo, incapaz de manter-se firme em alguma altura. — Apresse-se, por favor. O ferro está me dando fisgadas. Poxa vida! Não é tão difícil assim... tente novamente!

A cara de Lorina ficou ainda mais vermelha.

— Tente, com a ponta da asa, usar uma chave do mesmo tamanho que a sua cabeça, seu meleca! Alguns de nós não foram abençoados com dedos, sabia?

Enquanto o casal se ocupava, Gossamer sentava-se novamente ao lado de Jeb.

— Você disse que meu coração de artista pode salvar Alyssa. Naquele quarto na mansão de Morfeu, também... você disse que eu tenho o poder dentro de meu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Minha namorada está prestes a morrer para mim e para a família dela. Não pode haver escuridão maior — sussurrou Jeb com lágrimas de frustração que lhe surgiram nos cantos dos olhos.

— Morreria por ela, cavaleiro mortal?

A espinha de Jeb se retesou. No passado, toda vez que ele protegera Alyssa, sempre se jogara sem nem pestanejar. Seria capaz de morrer por ela?

Quando o pai de Jeb morreu em um acidente, foi Alyssa quem o salvou. Ele não conseguia acreditar que tinha chegado a pensar em morar em Londres sem ela. Precisava dela, todos os dias. De seu sorriso compreensivo, de como ela fez suas cicatrizes parecerem medalhas de mérito sob seu toque, e de seus olhos incríveis. Mesmo tendo passado por tantas provações quanto ele, havia uma luz dentro dela que nunca se enfraquecia. E essa luz não somente a tornava linda por fora, mas também permitia que ela trouxesse vida aos incríveis mosaicos que fazia.

Era essa luz — tanto a interna quanto a externa — que o tinha levado a desenhá-la e pintá-la tantas e tantas vezes.

Ele olhou para Gossamer, quase incapaz de conter a emoção, agora que havia encontrado uma saída.

— Ela é minha melhor amiga.

Minha musa, meu pincel, minha arte, meu coração. Tudo isso estará morto sem ela.

Esfregando o rosto, ele limpou o líquido que havia caído de seus olhos e escorrido pelo rosto:

— Eu a amo. Sim, eu morreria por ela. É isso que preciso fazer?

A fada o encarava sem piscar.

— Está disposto a ir além da morte? A se perder de todos, até de você mesmo, em um lugar onde as lembranças se esvaem em uma maré escura como tinta? Pois, para libertar Alyssa, você terá que tomar o lugar da Rainha de Marfim na caixa linguardarte onde ela se encontra presa.

Jeb lembrou-se da água escura dentro da caixa que ele havia visto na sala dos espelhos da mansão de Morfeu e da cabeça fantasmagórica que havia lá dentro, e seu coração disparou. O sentimento de autopreservação o invadiu e sua mente começou a tentar encontrar outra maneira. Mas, bem lá no fundo, ele sabia que não havia alternativa e que o tempo de Al estava se esgotando. Ele só lamentava não poder dizer a ela, nem uma única vez, com sua própria voz, como se sentia, antes de ser trancado para sempre.

— Aceito.

— E assim será. — Gossamer ficou de pé e estendeu os braços. Fraco e entorpecido, Jeb aceitou seu abraço. Ela o apertou com força e voou com ele para fora da gaiola, pousando no chão. — O mortal concordou em ser o herói de seu reino. Procurem honrar sua bravura — disparou as palavras para Lorina.

Lorina havia conseguido soltar o marido. Ela se sentou no ombro dele, abanando-se com uma asa. Com os olhos arregalados, ela aquiesceu em silêncio — a demonstração mais sincera de louvor que poderia ter oferecido. O dodô ajoelhou-se ao lado de Jeb, uma presença enorme e plumada.

— Teremos uma dívida eterna para com você, rapaz. O que podemos fazer para ajudar?

Gossamer apontou para um canto da masmorra, onde um cobertor de juta cobria uma cama, chegando até o chão.

— Tragam-me o que está debaixo daquela cama.

Entorpecido por uma mistura de incredulidade e temor, Jeb observou o dodô trazer a caixa linguardarte.

Lorina ficou perplexa.

— Morfeu manteve a Marfim escondida aqui?

Gossamer assentiu.

— Por sugestão do Rábido. Ele disse que este era o único lugar no castelo onde ninguém viria à procura dela.

Depois de pedir a Charlie que abrisse a tampa e arrumasse uma pedra onde eles pudessem subir para ver lá dentro, Gossamer pediu ao estranho casal que se afastasse um pouco para que ela e Jeb tivessem um pouco de privacidade.

Jeb afagou as rosas brancas aveludadas que adornavam o exterior da caixa, fascinado pela beleza do rosto da Marfim quando este veio à tona. O olhar cristalizado de assombro dela passava dele para a fada, e voltava — cautelosamente curioso. Ele estremeceu ao pensar que tomaria o lugar dela.

Tinha mesmo que fazer isso?

Jeb sentiu que Gossamer observava seu semblante.

— Devo perguntar uma última vez se está seguro de sua decisão — indagou ela. — Porque, como você está escolhendo ser trancado, e selando essa escolha com seu sangue, a caixa nunca o libertará. Ninguém poderá salvá-lo. Você está oferecendo sua eternidade pela da Marfim, uma rainha que você nem sequer conhece.

Jeb sentiu um nó na garganta.

— Não. Estou trocando a minha eternidade pela da Al.

Gossamer sorriu com ternura.

— Em seus sonhos, vi certa vez que você teme não ser bom o bastante para a menina. Depois de tal sacrifício, ninguém poderá questionar seu valor como homem nem seu amor por ela. — Ela o beijou no rosto, deixando um calor que penetrou seu coração e conseguiu derreter uma pequena porção do terror congelante que lá se escondia.

Gossamer deu-lhe um pincel e recuou.

— Agora, use o poder que somente você pode exercer. Pinte as rosas com o seu sangue.

Jeb foi tomado por uma tontura. Murmurou coisas... sem sentido, temerosas... palavras agonizantes que ele sabia serem as últimas.

Depois, canalizou a raiva, o terror e o desejo por um futuro que ele nunca teria para as estocadas do pincel. Cada botão branco, tingiu-os de vermelho até perder-se dentro das sombras de seu trabalho, e fundiu-se à sua obra-prima, tornando-se um só.


Capítulo 5


A Decisão da Mariposa

A cena se estendeu e ficou turva enquanto Morfeu era arrastado para fora das lembranças de Jebediah e depositado de volta na chaise-longue. A escuridão deixava a sala pesada, mas ele nem se mexeu para ligar a luminária. O cenário completamente enegrecido parecia combinar com os pensamentos obscuros que lhe cruzavam a mente.

Ele passou o dedo pela coxa, acompanhando as listras do tecido risca de giz e alisando as rugas.

Por que se sentia tão aborrecido? Ele havia encontrado exatamente o que esperava encontrar. As fraquezas de Jebediah estavam à mostra: um ódio que poderia facilmente ser manipulado, um sentimento de impotência alimentado por um pai violento e crítico, um ciúme que provocava um sentimento temerário de proteção e que lhe custaria a própria vida.

O que Morfeu não tinha esperado encontrar, entretanto, era tanta semelhança entre ele e o rapaz. Os demônios do passado atormentado de Jebediah não eram muito diferentes dos seus. Ele sempre se surpreendera sentindo inveja dos humanos... por nunca ter tido o carinho de um pai ou de uma mãe. Simplesmente por ocupar seu lugar no mundo, ele também compreendia o medo de talvez nunca chegar a conhecer completamente a confiança e a afeição de outra pessoa.

Contudo, no passado, Morfeu nunca havia considerado isso uma coisa ruim. Ele apreciava ser uma alma reclusa e independente. Por vezes, até se vangloriava, quando lhe convinha ser o centro das atenções, naturalmente. Mas a atenção, a afeição ou a confiança não eram coisas de que ele precisava. Não até aparecer Alyssa. Depois que ela escolheu ignorá-lo, ele não conseguiu funcionar... sentiu-se desastrado e incompetente.

E agora, depois de colocar-se no lugar de Jebediah, Morfeu compreendia, mais até do que desejava, como o lado humano de Alyssa funcionava. Embora metade dela tivesse asas e pudesse flutuar sobre as inseguranças e trivialidades dos mortais, a outra metade tinha seus alicerces nas coisas que qualquer outro humano ansiava: confiança e segurança.

Tendo visto a coragem e a engenhosidade de Jebediah, bem como sua lealdade a Alyssa, Morfeu soube, sem sombra de dúvida, que aquilo era exatamente o que o rapaz oferecia a ela: uma rede de segurança e emoção que a salvaria caso a queda fosse muito alta.

Não era de admirar que ela fosse tão cativada por ele. Não era de admirar que ele exercesse poder sobre ela. Diabos, o próprio Morfeu ficou morbidamente fascinado pelos honoráveis traços morais do rapaz, incomuns em um humano tão machucado. Morfeu ficou tentado a recuar e deixar Jebediah ter seu momento de felicidade. Alguns poderiam até dizer que ele o havia merecido por desejar abdicar de seu futuro, de suas lembranças e de sua vida por Alyssa.

Morfeu rosnou e caiu para a frente com os punhos cerrados, tentando suavizar o estranho peso em seu peito. O rapaz não ficaria aqui para sempre. Era um mortal. Um dia, morreria de velho, no mínimo, e Alyssa voltaria a ser um alvo fácil.

Alvo fácil.

A mandíbula de Morfeu se contraiu. O romance não era uma coisa justa. Nem era um jogo. Era guerra. E, como em qualquer outro campo de batalha, não lhe cabiam a compaixão e a misericórdia.

O besouro-tapete estava certo. As emoções humanas eram coisas imprevisíveis e poderosas. Elas haviam penetrado na cabeça de Morfeu, enfraquecido sua determinação.

Com os cotovelos nos joelhos, ele levantou as mãos com as palmas para cima, incapaz de ver a silhueta delas no escuro. Ele conjurou um pouco de magia na ponta dos dedos, em bolas elétricas de plasma do tamanho de ervilhas, e depois enviou as esferas para todos os cantos da sala, os raios azuis deixando rastros como eletricidade estática. Elas subiram pelas paredes e em seguida se uniram na forma de uma mulher. A luz pulsava em ritmo hipnótico.

Imaginar Jebediah com Alyssa, mostrando a ela os caminhos do amor, domando seu espírito selvagem com suas corriqueiras convenções humanas, tudo isso queimou a garganta de Morfeu com o sabor amargo da inveja.

Ele não queria que o lado selvagem de Alyssa fosse dominado por nenhum outro homem, não desejava compartilhar nenhuma parte dela. Morfeu desejava os dois lados: sua inocência e seu espírito desafiador.

Que graça poderia haver na dependência? Que espontaneidade poderia haver em um mundo previsível? Ele poderia lhe oferecer uma eternidade de desafios e paixão, de momentos ternos e calmos nas profundezas de chamas vibrantes e tempestades devastadoras — a tranquilidade em meio ao caos.

O lugar dela era com ele, usando trajes de soberana. Ele tinha tanto a ensinar-lhe sobre o reino intraterreno, sobre as glórias da manipulação e da loucura. Se Morfeu alimentasse o faminto lado intraterreno de Alyssa, suas inseguranças e inibições humanas diminuiriam e, com o tempo, poderiam desaparecer. Ela nunca mais ansiaria pelo amor seguro de Jebediah.

Morfeu invocou sua magia de volta, recolhendo as espirais de luz azul até ficar novamente envolto na escuridão. Suas asas varreram o chão quando ele se levantou, e ele as ergueu num arco que quase tocava o teto.

Nada mais de deliberações. Ele tinha tentado fazer o que era justo em instâncias passadas e, sem exceção, isso sempre o prejudicara. Podia ignorar a pontada de culpa que lhe agitava o peito, mas não podia abdicar de suas necessidades pelas necessidades de Jebediah. Ele nunca mais seria ele mesmo sem Alyssa ao lado — a chama para sua Mariposa. Morfeu não pararia até que ela voltasse para o lugar que lhe pertencia, no País das Maravilhas.

Para vencer, ele jogaria sujo, colheria os despojos do coração dela do modo como fosse necessário, não importava quanto isso custasse ao rapaz mortal. Afinal, este era o modo intraterreno. Fazer menos que isso faria de Morfeu um humano. E ele sabia, agora mais do que nunca, que essa era a última coisa que jamais desejou ser.


SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS
Epígrafe

ÀS VEZES PENSO EM SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS ANTES DO CAFÉ DA MANHÃ.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Um

Mortalidade

Capítulo 1

Deportação

Algumas pessoas podem dizer que é impossível morrer e viver para contar. São as pessoas que nunca experimentaram a mágica. Quanto a mim, sou tataraneta da Alice que inspirou Lewis Carroll. Acreditei no inacreditável por mais de sessenta e quatro anos, desde que tinha dezesseis e descobri que o País das Maravilhas era real e cheio de seres caprichosos, misteriosos e loucos, governados por acordos e enigmas. Ainda assim, às vezes, por mais que você acredite no impossível, as coisas não saem como você as planejou. Toda mágica pode encontrar um obstáculo de vez em quando.

Por exemplo, nunca esperei que meu cadáver acabasse numa caixa de sapatos. É isso que os caixões crematórios me lembram... uma caixa de papelão do tamanho de uma pessoa. O caixão não é muito confortável. Não há a forração de veludo para suavizar a base de madeira. Nenhuma almofada para acomodar minha coluna curvada. E nada de roupas, além de um vestido de papel para cobrir minha pele velha e enrugada.

O cheiro de papelão se fixa ao meu nariz e as rodas de aço da maca giram ao longo do corredor, rangendo em algum lugar sob mim, junto a passos familiares. Sinto a transição do ambiente fresco e de temperatura controlada onde o legista atestou minha “morteza” (como os seres do País das Maravilhas diriam). Ele, então, pôs uma identificação de aço inoxidável no meu peito e fechou uma tampa sobre mim, me prendendo na escuridão.

A maca sacode ao entrar num lugar muito mais quente. O cheiro de ovo podre do propano confirma nossa localização. Já visitei este lugar. Nos últimos meses visitei vários crematórios, quando não havia ninguém por perto, de madrugada. Para conhecer melhor o gigantesco forno de tijolos à vista que estaria esperando para queimar minha carne. Para encontrar o projeto perfeito, com um banheiro e um espelho de corpo todo do outro lado do salão.

Assim que optei pelo crematório do Pleasance Rest Cemetery, me preparei para morrer.

Meu plano original era usar Tetrodotoxina. Em doses pequenas, subletais, ela deixa a vítima num estado de quase morte por dias, permitindo que ela mantenha a consciência. Morfeu, porém, não concordava. Ele disse que a margem de erro entre o estado de quase morte e a morte de verdade era pequena demais no mundo mortal e não algo com o que se brincar. Ele não queria que eu arriscasse. Então, ofereceu uma substituto do País das Maravilhas: uma poção que funciona quase da mesma forma, mas que tem um antídoto cem por cento garantido.

Bebi a dose de quase morte nesta manhã e, dez horas mais tarde, ainda sinto o gosto amargo e anestésico, como cravos dançando no fundo da garrafa de vinagre. Não consigo morder a língua para aliviar o efeito. A mágica me deixou catatônica — meus olhos fechados e imóveis, meus batimentos e respiração reduzidos a um ronronar indetectável por quaisquer instrumentos humanos.

Meu lado intraterreno se remexe dentro do meu crânio, me garantindo que isso vai dar certo, mas meu lado humano instintivamente se encolhe quando o medo tranca minha garganta. Não posso gritar para dizer a todos que estou viva. Minhas cordas vocais não vão funcionar. A claustrofobia, minha velha inimiga, me deixa toda arrepiada. Sei o que está acontecendo ao meu redor, apesar de não conseguir abrir os olhos ou mover meus membros. Todos os cheiros, sons e sensações táteis são ampliados por minha incapacidade de reação.

Os paramédicos que atenderam, nesta manhã, à chamada de emergência da minha neta de vinte e sete anos me declararam morta — fulminada por um ataque cardíaco. Foi insuportável ouvi-la chorar e gritar. Isso despertou lembranças da minha maior perda — da morte de Jeb, três anos antes. Uma faca ainda é cravada no meu peito sempre que me lembro do nosso último adeus.

Mas Jeb me mandou ser firme. E ensinei aos meus netos o mesmo — sempre encarar as coisas. Ela ficará bem. Não tenho dúvida disso porque ela é muito parecida comigo, para além de seus cabelos loiros, olhos azuis e curiosidade. Ela é teimosa, leal e uma sobrevivente.

Assim que os paramédicos levaram meu corpo ao necrotério, tudo funcionou como o previsto.

Minha família sabia que cemitério eu escolhera e as quatro exigências do meu testamento: nada de exibição pública do meu corpo, nada de velório, cremação em doze horas depois da minha morte e a dispersão das minhas cinzas no mesmo local onde as de Jeb foram jogadas, sob o salgueiro em nossa casa de campo. A árvore tinha um significado especial, por ter sido gerada de uma mudinha do salgueiro que dividia os quintais da nossa casa quando éramos crianças.

Tais pedidos nada convencionais não abalaram minha família, considerando que me tornei uma mulher muito excêntrica.

Depois da morte de Jeb, eles me viram vagar pela casa de campo, reunindo os mosaicos que fiz ao longo da vida, cheios de paisagens bizarras e místicas — com títulos como A Batida do Coração do Inverno, Dunas de Xadrez e O Ventre do Monstro —, e guardando-os no sótão, ao lado de outras quinquilharias, incluindo um anúncio de um passeio pelo Tâmisa, em Londres. As últimas coisas que guardei ali foram duas chaves: uma que pertencia à minha mãe, e era capaz de transformar qualquer espelho num portal, e outra que podia abrir o jardim das almas do País das Maravilhas. Esta última foi um presente dado a Jeb, depois que ele desistiu da sua musa, de modo a satisfazer a necessidade do reino interior por sonhos vívidos e cheios de imaginação, conectando nossos mundos em paz ao longo do processo. Ele desistiu do que fez dele único, a fim de manter as crianças humanas seguras. Um ato de coragem que seus filhos e netos jamais tiveram o privilégio de saber. Era essa a lembrancinha de que eu tinha mais dificuldade para me desapegar, porque era uma homenagem à coragem e ao caráter nobre de Jeb — as duas coisas que eu mais amava nele. No entanto, como Rainha Vermelha do País das Maravilhas, eu não tinha motivo para guardar chave tão sagrada.

Escondi tudo num baú no sótão e o tranquei. Então pus a chave do baú em meio às páginas da minha velha coleção de Lewis Carroll. Jeb e eu éramos donos da casa e do terreno que a cercava, e insistimos, em nossos testamentos, para que o lugar permanecesse sempre com a família. Assim, se nossos descendentes um dia precisassem me encontrar, poderiam. Eles só precisam procurar as pistas, como um dia eu fiz. Seguir meus passos e acreditar no impossível — em contos de fadas e desejos e mágicas.

Sempre os mantive no escuro quanto ao nosso legado, dando-lhes uma chance de viver uma vida normal. Até mesmo ordenei que os insetos e flores ficassem em silêncio. Agora sou a única capaz de ouvir esses sons do mundo interior, e as coisas continuarão assim enquanto eu estiver reinando como a Rainha Vermelha. Contudo, se algum familiar procurar com presteza, vai encontrar a verdade que escondi para eles.

Em todos esses anos, eles aceitaram meus caprichos porque sempre os respeitei e os amei incondicionalmente. E agora conto com a lealdade deles. Todo o meu plano de morrer depende da execução do meu testamento.

A cremação era a única forma de evitar que drenassem meu sangue, bombeassem formol em minhas veias e cerzissem minhas pálpebras — todos aqueles procedimentos mórbidos e intrusivos para embalsamar e preservar o corpo mortal. Fui abençoada ao longo dos meus oitenta anos de vida humana com saúde e uma mente aguçada. Nunca precisei de marca-passo e não tenho próteses, implantes ou dentaduras, então não há nada que possa explodir no forno. Isso significa que não haverá incisões nem extrações. Era importante que eu permanecesse intacta — por dentro e por fora.

Todavia, se o Rábido Branco não se apressasse e chegasse aqui com o antídoto para me tirar deste estado, nada importaria. Vou virar um monte de cinzas. E Morfeu terá de encontrar um lar novo para meu espírito eterno... um novo corpo para eu habitar.

Ele ficará furioso se isso acontecer e nunca me deixará esquecer isso. Uma eternidade é muito, muito tempo para ouvir eu avisei, entoado continuamente com um marcado sotaque londrino.

— Não me importo — disse ele há duas semanas, enquanto discutíamos meu êxodo do reino humano e tomávamos chá durante uma das minhas visitas ao País das Maravilhas em sonho. Ele levou a xícara à boca, seu rosto curioso perfeito e jovem como sempre. Ele bebeu e deixou a xícara de lado novamente. — Muitas coisas podem dar errado. Devo estar lá para executar meu plano.

— Vou agir sozinha — declarei. Estudei a cama com dossel e a lareira instaladas na diagonal em relação a enormes poltronas vitorianas ao lado de uma mesa oval, buscando conforto no cenário. — E vamos seguir meu plano. — Aqueles seriam meus últimos instantes no reino humano. Tinha de ser de acordo com a minha vontade. Contive uma descarga de tristeza e tentei exibir o mesmo controle que Morfeu exibia com sua xícara de chá, mas o líquido quente molhou minha mão velha quando meu pulso tremeu. Gritei.

— Alyssa, por favor. Permita-me. — Com seus dedos lisos e elegantes, ele cuidadosamente segurou meus dedos enrugados, limpando o chá e acariciando a mão queimada com um guardanapo.

Permita-me. Nós dois sabíamos que ele falava de outras coisas além da limpeza do chá derramado.

Tantos anos passamos juntos nos meus sonhos — e tantos outros na nossa infância —, com Morfeu me treinando e me ensinando sobre meu reino e o mundo. Não havia oportunidades para ficarmos sozinhos, já que ele mantinha o véu do sono descoberto para eu poder interagir com o Rábido, Chessie, Marfim, as criaturas e meus súditos.

Isso mudou quando fiquei viúva. Realizava meus deveres reais todas as noites e lutava para ser forte, até que meu luto pela morte de Jeb ficou tão intenso que as lágrimas se acumulavam em meus cílios, me cegando. Morfeu — sentindo minha vergonha, porque rainhas não choram — insistia que era hora do chá, que tomávamos sozinhos nos aposentos reais que um dia pertenceria a nós como rei e rainha.

Ali, na nossa solidão, escondidos de olhos predadores e cercados por exuberantes tapetes vermelhos e cortinas douradas, eu me perdia em minha dor. Permita-me, dizia ele. Estendendo os braços, ele me abraçava enquanto eu chorava. Noite após noite, durante um ano, até que finalmente não conseguia mais chorar.

Pouco depois, a atenção de Morfeu mudou. Seus carinhos se tornaram menos confortantes e mais íntimos. Estava constrangida demais para reagir, tímida demais em meu corpo velho.

Um ser místico eternamente jovem cortejando uma velha — teria rido do absurdo disso, não estivesse tão afetada pela devoção cega dele e pela intensidade do seu amor.

— Mesmo que usássemos seu plano... — Morfeu falava baixinho e de mau humor ao esfregar o guardanapo entre meus dedos, enxugando os resquícios de chá. — ... ainda assim eu deveria estar lá nas coxias, para supervisionar o espetáculo.

Franzi a testa para ele. Sua teimosia, juntamente com a dança dos vaga-lumes em seus cabelos desgrenhados e seus traços bizarramente belos, me fez lembrar outra noite em que nos sentamos neste quarto juntos — há várias décadas —, quando ele tentou me convencer a usar a coroa de rubi pela primeira vez. Quando tentei convencê-lo a me devolver meu desejo para eu poder fugir do País das Maravilhas, curar a maldição da minha família e manter Jeb em segurança. Eu era uma pessoa diferente na época, cheia de juventude, aspirações humanas e inocência.

Nosso quarto real se tornou uma lembrança dolorosa da velhice e decrepitude. Ansiava criar lembranças novas aqui, depois de desistir de tentar superar a beleza caótica do País das Maravilhas, quando fui coroada rainha de novo e permaneceria com dezesseis anos para sempre — jovem, cheia de energia e tão sedutora quanto o homem alado que governaria ao meu lado.

Até então, eu não me encaixava. Eu era uma foto deixada ao sol e chuva, minhas cores vibrantes se desbotando melancolicamente e ganhando um tom amarelado. Meus poderes intraterrenos ainda eram fortes, mas estavam presos num vaso gasto pelo tempo. Meus ombros pareciam curvados e pesados demais, eu raramente usava minhas asas. Do que mais sentia falta era voar.

Eu me perguntava se era assim que a Rainha Vermelha se sentiu no fim e por que ela permitiu que Morfeu a convencesse a voltar ao País das Maravilhas, abandonando seus descendentes semi-humanos. Por fim, foi plano dela voltar, apesar de não querer fazer aquela jornada sozinha. Ela brigou com Morfeu, dando início a uma série de eventos e manipulações que acabaram por me levar à coroa e me tornar rainha. Algo pelo qual aprendi a agradecer, apesar de na época ter reclamado do presente. Demorei muito para admirar totalmente a preciosa imortalidade, e jamais desvalorizaria isso novamente.

Depois que Morfeu terminou de limpar o chá derramado, tirei a mão da dele e timidamente cobri meu pescoço com o lenço de seda, tentando esconder minhas peles murchas. As pessoas diziam que eu era linda para a minha idade. Que parecia ao menos vinte anos mais nova. Todavia, em comparação à beleza sobrenatural e imutável de Morfeu, eu me sentia velha.

— Não quero você lá — insisti, determinada a mantê-lo distante da casa funerária. — Já basta você ter me visto murchar como uma uva-passa ao longo dos anos. — Até minha voz soava enferrujada, como se as palavras jorrassem da minha garganta e língua em porções cáusticas.

Morfeu apoiou os cotovelos na toalha da mesa, aproximando-se ao máximo com o jogo de chá entre nós. Seus cabelos azuis tocaram-lhe os ombros, animados e encantados — um contraste marcante com as ondas brancas reduzidas a um coque preso atrás da minha cabeça.

— Você está no fim de sua crisálida, meu amor. Esta etapa é a mais difícil, acredite. Uma batalha furiosa e incômoda de identidade, antes de se libertar e se transformar na criatura de luz e criatividade que sempre foi seu destino. Posso mantê-la atenta. Para evitar quaisquer... distrações.

Ele olhou para minha aliança, que eu ainda não tinha tirado. Aquilo se tornara mais do que um símbolo da nossa devoção. Tornara-se um símbolo da minha vida humana, e eu pretendia usá-la até deixar tudo para trás.

Com o dedinho, Morfeu circulou a aliança, cuidando para não tocar os diamantes ou o suporte de prata que os mantinha no lugar.

— É importante que você não permita nada que a impeça de dar o salto final. Você sofreu a perda daqueles que se foram há tanto tempo. Eles estão em paz. Deixe que a paz deles lhe dê paz. Senão, você será afetada... incapaz de agir com a mente ágil. O foco é fundamental para que qualquer um dos planos funcione.

— Já sei disso — respondo, um aperto no peito dolorido. — Você tem medo de que eu fique senil. De eu não ser capaz de lidar com isso.

Ele suspirou, acariciando meu polegar com o dele.

— Não senil. Nostálgica. Acontece a humanos. Você mesma me contou, enquanto eu a via amadurecer do refinamento à sabedoria.

— Refinamento. — Tentei um sorriso hesitante diante do esforço dele em me encantar. — É assim que vocês falam hoje em dia?

Ele me encarou sem hesitar.

— Seus olhos não perderam a incandescência; nem a mente, a inteligência. Você não é ingênua. Você é minha torta de ameixa, e sempre foi. Já lhe disse isso repetidas vezes, não é?

Ao menos uma vez por noite nos meus sonhos, Querida Mariposa.

Não respondi em voz alta, assim como não revelei minhas maiores inseguranças: estava com vergonha de ele me ver tão decadente... Não suportava a ideia de ele ter qualquer lembrança de mim como um cadáver naquele caixão de papelão — assim como eu vi Jeb depois da morte dele, antes de ser cremado.

— Uma rainha não deveria exigir resgate — sentencio. Ainda o encaro, maravilhada com aquelas íris coloridas que devolvem a mim o mesmo olhar de nossa infância, cheio de surpresa e afeto. De certa forma, ele via para além do meu corpo velho e enxergava a menina que fui, e eu queria muito conseguir me ver como ele me via. — Uma rainha deve merecer o respeito do seu reino e de seus súditos. E a admiração do rei.

Ele pegou minha mão novamente e beijou cada um dos nós dos dedos cheios de artrite.

— Ah, eu lhe garanto Você sempre mereceu isso. Na verdade, planejo mostrar-lhe a profundidade de minha admiração. — A palavra profundidade saiu de sua garganta como um urro. — Ainda que sejam necessárias várias vezes para convencê-la, finalmente chegará o momento de você ser minha.

Meu rosto ficou vermelho. Apesar de todos os anos em que ele me elogiou e me provocou com insinuações, e a despeito de tudo o que vivi como mãe, esposa e avó mortal, ele ainda conseguia me fazer enrubescer.

— Ah, aí está. — Ele passou o dedo por meu rosto enrugado e sorriu, satisfeito demais consigo mesmo. — Não perdi meu encanto.

— Como se isso fosse possível, para o mestre da sedução verbal — provoquei.

Seu humor mudou para a insolência num piscar de olhos.

— Você logo verá que isso é mais do que conversinha, minha rosa.

Fiquei ainda mais vermelha, sentindo-me mais jovem do que nunca. Ele sempre causava esse efeito em mim. Sempre fez com que eu me sentisse viva e desejável. Exceto pelas vezes que ele me desafiava ou me deixava furiosa.

Ele se recostou em seu lugar, as asas erguidas.

— Seu corpo está cansado. Deixe-me fazer isso por você, para você poder descansar — tentou ele uma última vez.

— Você me ensinou a ser forte e astuciosa. Devo dar sozinha este último salto para dentro da toca do coelho. — Uma sensação inesperada de vulnerabilidade me fez tremer. Peguei minha xícara de chá para absorver seu calor. — Mas você estará lá para me pegar?

— Estarei lá esperando um beijo arrasador para compensar todos os meus problemas — respondeu ele sem hesitar.

Sorrindo, peguei o jogo de xadrez. Morfeu ficou observando atentamente eu animar as peças para que atuassem no meu grandioso plano de deixar o reino humano e esconder meus vestígios com a ajuda do meu conselheiro real, além de pedaços de osso fornecidos pelas fadas, um saco de cinzas, dois trajes de disfarce, uma mosca comum e um punhado de duendes. Enquanto eu falava, seu olho adornado com joias brilhava num tom esverdeado — incomodado, mas esperançoso. A ansiedade que emanava dele era visceral.

Era inconcebível que tivéssemos um relacionamento de sessenta e três anos — platônico — sem um quê de tensão. Apesar de ele gostar muito de me ver andar na ponta dos pés na corda bamba da sedução contida, ele manteve seu juramento e respeitou minha decisão de ser fiel a Jeb. Ele esperou três anos, enquanto eu sofria a morte do meu marido mortal e preparava minha família para minha partida iminente. Era essa a profundidade do respeito dele por mim. Ele teve meu respeito em troca. E muito mais...

Agora chegou o dia de recompensá-lo por sua paciência e estou começando a me arrepender por não deixá-lo planejar minha morte... por não deixá-lo controlar o espetáculo. Provavelmente, tudo seria muito mais fácil. Eu já estaria em seus braços e em sua cama — uma jovem rainha borboleta, governando meu reino, embriagada de poder, loucura e paixão.

Não. Eu consigo. Posso provar que sou capaz, calculista e forte, como todas as boas rainhas deveriam ser.

O único papel de Morfeu no meu plano era mandar o Rábido com o antídoto. Assim que meu cúmplice chegar, tudo se encaixará e fugirei para o País das Maravilhas. Como um corpo não pode ser exumado depois de reduzido a cinzas, ninguém saberá que ainda estou viva e apenas fui embora deste mundo para sempre.

Uma pontada de tristeza segue-se a esse pensamento quando finalmente me dou conta. Acabou. Estou pronta para dar um fim... para começar meu futuro imortal. Vivi uma vida plena aqui. Minha família é saudável e feliz. Estamos no auge. Todos os sonhos humanos foram realizados e meu coração está firme e forte novamente.

Se bem que, por causa disso, há muita coisa a ser deixada para trás. Não há nada inconcluso, mas ainda assim é difícil dizer adeus para sempre. Assim que a coroa for colocada em minha cabeça para dar início à minha imortalidade, não terei de usá-la constantemente para manter minha juventude, mas terei de ficar no País das Maravilhas. Como Marfim uma vez me disse, o tempo é complicado ao se passar pelo portal a fim de retornar ao mundo humano... há de se imaginar uma hora específica, ou o relógio retrocede e o portal deixará você no mesmo momento de sua passagem.

Se eu tentar cruzar as fronteiras para o reino humano depois de partir, voltarei para sempre a este momento e terei oitenta anos para sempre, ou automaticamente envelhecerei todo o tempo que se passou e virarei pó na hora. Acrescente-se a isso o fato de eu estar morta aos olhos de todos — jamais poderia explicar meu reaparecimento sem causar terror e confusão — e ir e voltar não será mais uma opção.

Uma muralha impenetrável está prestes a se erguer entre mim e minha família, deixando-nos sem nada além de memórias.

O rosto de Jeb reapareceu em minha mente antes que eu pudesse impedir... como seus olhos verdes brilhantes me encararam pouco antes de ele os fechar na morte. Como eles estavam tão cheios de amor e gratidão por todos os sonhos que compartilhamos.

Sinto algo crescer na minha garganta e uma dor atrás dos olhos. No meu peito, a pequena identidade de metal parece uma pilha de tijolos.

Pare. Não posso fazer isso agora. Tenho de me concentrar na fuga. Morfeu tinha razão. Pensar naqueles que amei só vai me atrapalhar. Vou manter as lembranças sob controle... esquecer como encarei a morte da mamãe e do papai, como achei que jamais superaria a dor. Como Jeb foi meu porto seguro, como sempre. Assim como fui para ele, quando a mãe dele morreu.

É fútil pensar nessas coisas agora, porque, assim que Jeb morreu, todo o mundo se distorceu — adquiriu uma nova forma que eu não reconhecia. As coisas cotidianas se tornaram estranhas e desagradáveis. Com a morte dele, eu não fazia parte de mais nada.

Minha metamorfose estava completa assim que meu marido mortal deixou de respirar. Só o que me restava agora era sair do meu velho casulo.

Um cheiro novo entra em meu entorno de papelão — loção pós-barba ou desodorante —, me obrigando a voltar ao presente enquanto dois homens conversam do lado de fora do caixão.

— Última da noite, Frank?

— É isso, Brian. Chegou há algumas horas. Só entrega. E é para se apressar com ela. Quer que eu fique e ajude?

Tenho dificuldade para respirar. Meu plano não permite duas testemunhas. Só uma. Enquanto espero pela resposta do operador do crematório, meu coração se encolhe dentro de mim, cheio de medo. O órgão parece tremer, apesar de não haver pulsação em meus pulsos ou ouvidos. Só uma vibração fria e indiscernível por trás do meu esterno, como gelatina gelada retirada da fôrma.

— Não — diz finalmente Brian, mexendo em alguns papéis. — Posso fazer isso de olhos fechados.

A ironia é risível. Se tudo sair como planejado, ele não só terá seus olhos fechados, como também estará dormindo e sonhando.

— Vá para casa e fique com sua família — conclui Brian. — Diga a Melanie e às crianças que mandei um oi.

— Entendi. Até amanhã.

As portas se fecham com um rangido e o alívio toma conta de mim, mas por pouco tempo. Os cliques e claques da esteira mecanizada balançam as paredes de papelão do meu caixão e agitam meus ossos rígidos. Sinto um balançar leve sob minha coluna enquanto meu caixão segue por uma esteira com rolos de metal. À medida que estes se movem, as chamas crepitam mais alto, aquecendo meus pés no ponto onde a parede sob a sola dos meus pés se aproxima perigosamente da entrada do incinerador.

Era para o Rábido estar aqui antes que o forno de temperatura controlada estivesse quente o bastante para acionar o mecanismo de abertura. As coisas estão acontecendo fora da sequência e rápido demais. Meus músculos doem e ganham vida, mas estão rígidos como aço. Imóveis. Um vislumbre de outra lembrança me arrepia: quando a Rainha Vermelha controlou meu corpo naquele último dia em Qualquer Outro Lugar. Quando eu era uma marionete dela. Sinto-me tão impotente agora quanto naquele tempo.

Estou prestes a ser envolta em chamas. Meu corpo não vai sobreviver. De todo modo, preciso sobreviver. Prometi voltar como eu mesma. Inteira. É uma promessa que não posso quebrar. Morfeu esperou demais por meu retorno. Não posso decepcioná-lo.

A dúvida ergue sua cabeça horrível: o que farei? Não consigo me mover, não consigo me livrar... não sem o antídoto. Um vazio dói por trás dos meus canais lacrimais enquanto desejo que uma enchente me liberte e encha toda a minha caixa com um oceano de lágrimas para me salvar do fogo. Mas meus olhos podiam muito bem estar cheios de areia.

Chega de drama, meu amor. Use sua mágica. Improvise e encontre uma forma de escapar.

Não tenho certeza se é a voz de Morfeu na minha cabeça ou se é minha própria voz. Ouvi o sotaque dele e sua insistência tantas vezes ao longo da vida que eles estão entranhados em mim como se fossem meus.

Seja qual for o caso, isso desperta minha determinação. Há um motivo para eu ter vindo a este lugar na noite passada, quando tudo estava escuro e em silêncio: para poder anotar mentalmente todas as coisas que poderia animar se precisasse. Para poder entender a logística do forno crematório. Para poder usar minha mágica às cegas.

Concentro-me no maquinário da esteira. Aprendi uma coisa ou outra sendo esposa de um mecânico. As molas do mecanismo se contraem enquanto as imagino se retraindo. O movimento aciona as amarras e a porta de metal se fecha com um baque. Minha caixa para imediatamente ao atingir o obstáculo.

— Você só pode estar brincando comigo — resmunga Brian. Ele mexe na maçaneta da porta e bate nas dobradiças. — Pronto. Agora, sim.

Ele empurra meu caixão de volta para a esteira de metal, criando espaço para a dobradiça se abrir. Minha mente procura outra forma de detê-lo quando o ouço gritar “Mas o que é que...?”, pouco antes de ouvir o som do seu corpo caindo no chão. O caixão bate na porta fechada novamente.

— Rainha Alyssa — uma voz fina soa do outro lado do papelão.

Nikki, sua fadinha maravilhosa. Um formigamento se irradia pelos meus lábios, o fantasma de um sorriso esperando para se abrir. Meus dedos dos pés se dobrariam de empolgação, não fosse minha paralisia.

A tampa do caixão se abre e as asas de vinte fadas pairam ao redor do meu rosto — lufadinhas de vento com cheiro de canela e baunilha.

Mãozinhas do tamanho de joaninhas seguram minhas pálpebras, abrindo-as diante de um brilho âmbar. Ainda não consigo virar a cabeça, mas pela minha visão periférica a galhada do Rábido aparece sobre a borda do caixão, seguida por um par de olhos rosados brilhantes.

— Atrasado estou — desculpa-se ele.

Tento menear a cabeça, mas não consigo.

Todo o seu rosto aparece diante de mim.

— Arrumá-la, Alteza. Levá-la para casa, finalmente.

Casa. A palavra passeia por minha mente, cheia de promessas e esperanças. Imagino-me voando com Morfeu pelos cenários bizarros e irregulares do País das Maravilhas. Como vai ser bom me sentir pertencente a um lugar de novo. Fazer parte e nunca ter de abandonar ninguém novamente.

O Rábido estica o braço magro e derrama em minha garganta algo de uma garrafa vermelha. Um leve toque de frutas vermelhas misturado a menta arde em minha língua. Meu coração ganha vida, batendo com tanta força contra meu esterno que eu perco o fôlego. Em pouco tempo, sou capaz de abrir os olhos sem a ajuda das fadas. Elas se dispersam com risadinhas e pairam ao redor do adormecido operador do crematório, caído no chão de cimento.

Pisco com força e rapidez. Meus canais lacrimais funcionam e meus olhos se enchem de água. O sal fere e coça.

Depois, meus dedos dos pés e das mãos latejam e os músculos despertam, moles e resistentes, como elásticos esticados demais. Enquanto me sento, minhas velhas articulações estalam.

O Rábido sobe na beirada da inclinação e segura o caixão, mantendo-o ao meu nível.

— Perdoe o Branco Rábido. Para todo o sempre, ao seu lado estarei.

Acaricio sua cabeça macia.

— Nenhum perdão é necessário. O que importa é que você está aqui agora. Alguém o viu saindo do banheiro?

O Rábido faz que não.

— A mosca no muro ficou de olho no futuro. — Ele ri da rima e aponta para a parte de cima da porta que ostenta a única janela do salão. A mosca anda pelo vidro do outro lado, numa demonstração de sua devoção inabalável.

O Rábido abre o sorriso sorrateiro que aprendi a apreciar, enquanto sua mão esquelética me entrega uma mochilinha. Olho dentro e está tudo ali: meu colar com o rubi, minha aliança de casamento, os trajes de disfarce, um saco de cinzas e pedacinhos de osso, uma muda de roupa, uma faca e três lembranças da minha vida humana que serão as únicas coisas que levarei comigo ao transpor os limites do País das Maravilhas.

Primeiro, coloco o colar em volta do pescoço e aperto a chave contra o peito, saboreando o poder que ela contém.

O operador do crematório ronca no chão. Ele parece com frio e nada confortável, mas sei que não está. Seus sonhos são cálidos e sensuais. As fadas voam ao redor dele, as asas batendo à velocidade de beija-flores, enquanto elas espalham partículas que são como dentes-de-leão cheios de feromônios. As sementinhas caem sobre o rosto sorridente do homem, levando seu inconsciente a imaginar as fantasias mais carnais. Torço o nariz, com vergonha até de imaginar o que ele está sonhando. Ele provavelmente vai ter uma ressaca de sonhos por uma semana.

Ainda que ele não vá sofrer nenhum efeito físico duradouro, as fadas estão explorando os pensamentos secretos dele. Quando eu era mais nova, teria me arrependido de tê-lo usado em meu plano. Agora, não. Quando ele acordar, daqui a mais ou menos uma hora, sua dor de cabeça insuportável o impedirá de questionar como conseguiu me cremar enquanto ele dormia. Ele só irá querer uma aspirina e sua cama macia em casa.

O fim justifica os meios.

Uso a faca para cortar uma abertura na lateral do caixão e tirar minhas pernas, lenta e cuidadosamente. Não consigo me mover tão rápido quanto antes. Meus pés descalços tocam o chão frio, o vestido de papel fazendo barulho. O Rábido se vira de costas enquanto tiro o vestido e o jogo dentro da caixa, depois visto um moletom e botas cinza — as roupas mais confortáveis e discretas do meu armário. Repreendo-me por me esquecer das roupas íntimas, mas não importa o que estou vestindo agora, porque no País das Maravilhas Morfeu encheu todos os armários do castelo com camisolas e lingeries de renda, cetim e veludo — um guarda-roupa digno de uma rainha.

Hoje, o disfarce esconderá meu traje simplório. Coloco o pé no tecido mágico. Para virar uma camaleoa, só preciso vestir o capuz e me concentrar nos arredores, meu corpo refletindo o cenário de fundo.

Mas primeiro...

Sem eu nem pedir, o Rábido me entrega o saco de cinzas e ossos e minha aliança de casamento. Olho o anel. Jeb o fez para mim quando tinha a capacidade mágica de pintar coisas e lhes dar vida. Quando sua musa se tornou uma entidade viva. Ele me serviu tanto como anel de noivado quanto como anel de casamento e era indestrutível. Pelo menos era o que pensávamos. A única vez que ele perdeu um de seus doze diamantes foi por descuido da minha mágica, quando eu a estava praticando.

Estava do lado de fora da nossa casa de campo, tentando fazer o salgueiro dançar, quando o diamante caiu na grama. Procuramos e procuramos, mas nunca o encontramos. Depois de uma semana, ele apareceu de novo, nascendo do solo na forma de uma flor parecida com vidro. Era como se o diamante fosse uma semente, tendo dentro de si a força da criação mágica de Jeb.

O cheiro de terra presente na lembrança dá lugar ao cheiro do propano do forno. Abro o saco e derramo as cinzas e ossos no caixão, mantendo os movimentos metódicos e precisos para a nostalgia não tomar conta de mim novamente.

Depois de esvaziar o saco, beijo minha aliança e a coloco em cima do montículo.

— Rábido, derreta isso com sua mágica.

Meu conselheiro real se aproxima, olha pela abertura e estreita seus olhos brilhantes até que eles irradiem um calor vermelho. Enquanto ele se concentra, as faixas de prata se fundem, reduzindo os onze diamantes a cinzas.

Coloco a placa de identificação dentro do caixão e leio o que está gravado no aço: Alyssa Victoria Gardner Holt. Sinto um nó na garganta. É a última vez que meu nome humano me definirá.

Reposicionando a tampa, ordeno que o mecanismo da porta funcione. Entrefecho os olhos diante do calor e das chamas, enquanto as portas se abrem o bastante para eu empurrar o caixão pela esteira, a porta se fechando em seguida. Ela se fecha completamente, tanto que nem mesmo se pode ver o brilho alaranjado lá dentro.

Alguns segundos mais e eu estaria presa ali. Agora, depois que o papelão se queimar todo, vai parecer que eu estava. As prateleiras de metal na parede contêm vários cubinhos de papelão. Dentro estão os restos mortais dos corpos que vieram antes de mim e agora esperam ser transferidos para suas urnas.

Mas meus “restos mortais” são únicos. Os diamantes de Jeb esperam lá dentro — sementinhas mágicas. Quando as cinzas forem lançadas no lugar onde as dele foram absorvidas na terra sob nosso salgueiro, flores nascerão, uma parte dele e minha. Unindo o que restou de nosso lado humano, numa última homenagem a toda a beleza que ele criou durante a vida.

Seguro-me para não chorar e pego a mochila enquanto o Rábido veste outro traje de disfarce, o qual encolhe até caber em seu corpo de coelho. Mentalmente, pergunto à mosca se o corredor está livre.

Ela responde num sussurro:

Está tudo bem, Rainha Alyssa...

Os outros humanos se foram. Não há nada além de umas traças por aqui.

Desnecessário ficar invisível, então.

— Nikki — sussurro, e a fadinha balança as asas, soltando a dose final de pó de fada no homem adormecido. Então ela reúne suas companheiras e nos segue porta afora. O banheiro fica a poucos passos do outro lado do corredor comprido e escuro. Sigo tomando cuidado para não esmagar as traças que caminham perto dos meus pés e dos pés do Rábido. Sorrio ao ver os insetos acompanhados de uma fila enorme de baratas, besouros e aranhas.

Rainha Alyssa! Rainha Alyssa! Tão triste vê-la partir...

A mosca voa ao redor da minha cabeça, acrescentando suas despedidas à confusão.

— Sentirei saudade de vocês também — digo, lutando contra uma onda de melancolia. Será a última vez que ouvirei esses cumprimentos confusos e zunidores. No País das Maravilhas, os insetos são... bem diferentes. Menos inócuos e bonzinhos. Alguns são maus e letais, e nada pequenos. Mas conheço todos os segredos deles e todas as suas fraquezas — graças ao sábio guardião do País das Maravilhas.

Nosso desfile entra no banheiro e para diante do espelho. Em vez de me ater à minha aparência velha e enrugada, imagino o relógio de sol que cobre a toca do coelho em um jardim londrino. O vidro racha como gelo no lago e, no reflexo entrequebrado, o relógio de sol aparece, marcado por uma réstia de pôr do sol rosa. É cedo e ninguém ocupa a trilha ainda. Como precaução, visto o capuz e o Rábido faz o mesmo.

Só precisamos de um ou dois pensamentos sobre nossas cercanias e seremos invisíveis.

Usando minha chave, miro numa fissura na forma de buraco de fechadura, minúsculo e intrincado.

O portal se abre. O Rábido me cutuca com seus dedos magros e entrelaço meus dedos aos dele. Junto com as fadas e nossos insetos companheiros, passamos pela abertura liquefeita. Uma brisa fria me atinge, assim como o cheiro de mato e rosas cobertos de orvalho reluzente.

Os botões de rosa dizem:

Bem-vinda, Majestade. Os anos ficaram para trás. Logo você estará desabrochando como nós novamente.

Sorrio. O Rábido me puxa rumo ao relógio de sol que já expõe a toca do coelho. Ele está ansioso para ir embora. Mais insetos se juntaram a nós; alguns pelo terreno: besouros, centopeias e escorpiões; outros pela brisa: borboletas, mariposas, vaga-lumes...

Saem em enxame do mato e ficam dando a volta em mim e em meu conselheiro real — um arco-íris encantado, espesso e brilhante, sob a luz rosada do céu.

As borboletas cantam:

Vida longa à Rainha Alyssa. Que você seja para sempre jovem, louca e livre.

Muitos deles pousam sobre mim, as asas acariciando meu rosto e pescoço através do traje de disfarce, e percebo que não terei mais de me tornar invisível. Meus amigos insetos estão aqui para me dar proteção, como sempre estiveram.

O Rábido me solta, seus dedos de cadáver tocando os meus enquanto ele segue as fadas e mergulha na toca do coelho sem olhar para trás.

— Atrase-se não, Majesta-a-a-ade — o grito do Rábido ecoa até mim, afastando-se mais e mais à medida que ele desce, sem peso, como uma pena ao vento.

Ao contrário do meu séquito interior, não consigo ir embora sem uma olhada para trás.

Paro, olhando em meio à nuvem de milhares de asinhas adejando diante da paisagem tremeluzente no horizonte. Meu peito se aperta.

Pego as lembrancinhas da minha mochila. Três garrafas de vidro decoradas: a primeira cheia de pedrinhas, a segunda com conchas e a última com um pó prateado. Uma olhada nas três e as lembranças contra as quais eu lutava iluminam minha mente, graciosa e lentamente, como a aurora invadindo o mundo imóvel que desperta.


CONTINUA

A MARIPOSA NO ESPELHO


Capítulo 1


As Maquinações
da Mariposa

— Tem certeza, Morfeu?

— Tenho — respondeu Morfeu, tirando as luvas e enfiando-as no casaco. — Você, entretanto, parece que precisa ser convencida.

A magia pulsava nervosamente na ponta de seus dedos, uma luz azul pulsante logo abaixo da pele. Por causa da ponte de ferro que havia lá fora, seus poderes estavam limitados a alguns truques inofensivos, mas suficientes para dar o seu recado, se necessário.

O besouro-tapete — que de tão grande chegava à altura dos ombros de Morfeu, depois de este haver tomado uma poção encolhedora — engoliu em seco por trás de suas muitas mandíbulas estalantes. Sua pele carpetada tremia.

— Não, não. Por favor, o senhor interpretou mal as minhas ressalvas. — Os braços ramosos do inseto vibravam enquanto ele folheava as marcações em ordem alfabética de sua prancheta, as quais continham todas as lembranças perdidas no País das Maravilhas. — É que ficar espiando os momentos esquecidos de um ser humano parece uma maneira tediosa de se passar uma tarde, só isso...

Morfeu mudou de posição, e suas asas lançaram uma sombra sobre a cara do besouro.

— Ah, mas este humano, em especial, tem muito a me ensinar.

Esse humano, em especial, havia conseguido capturar algo que Morfeu desejava mais que tudo neste mundo.

— Sente-se — disse o inseto, apontando para uma cadeira branca de vinil —, e eu prepararei as memórias para o senhor.

Morfeu jogou as asas para o lado, sentou-se e deu uma tragada no narguilé fornecido por seu anfitrião como cortesia. O tabaco doce e fresco passou ardendo pela sua garganta. Ele soprou baforadas de fumaça no ar, formando com elas o rosto de Alyssa. Era fácil imaginar o modo como seus olhos sempre se cobriam de um azul gélido quando ela o via, cheios de excitação e temor ao mesmo tempo. Adorava isso nela: a sagacidade de seus instintos intraterrenos alertando-a a não confiar nele, suavizada pelas emoções humanas forjadas durante a infância que passaram juntos.

Antes dela, Morfeu levara a vida em solidão, sem nunca precisar de ninguém. Ele não fazia a menor ideia do feitiço que ela lhe lançara. Ela era mais que uma decepção, sempre jurando devoção ao lado errado. Seu encanto, porém, era inegável. Principalmente quando ela o desafiava ou o encarava com sua indignação de justiceira, o que a deixava com os lábios deliciosamente posicionados quando rangia os dentes.

Morfeu colocou o narguilé de lado, embora a sensação de queimação em seu peito não tivesse nenhuma relação com o fumo. Alyssa era a única que poderia aplacar o incêndio que havia ali, pois fora ela quem havia atiçado aquelas chamas.

Os dois tinham passado cinco anos juntos — como amigos de infância —, até que a mãe dela a arrancou dele, Alyssa sangrando e ferida, e ele ficara se remoendo de remorso e com culpa por causa de um juramento imprudente que havia feito, no qual prometeu se manter longe dela.

Manter-se afastado da amiga fez com que ele sentisse o gosto da solidão pela primeira vez. Mesmo todos os anos de claustrofobia que ele passara aprisionado em um casulo antes de encontrá-la... nem mesmo eles o prepararam para o sofrimento da ausência dela.

Então, por fim, ela havia voltado para ele, fazendo-o reviver todos os antigos sentimentos que ele pensava ter dominado. Daquela vez, também, tudo foi muito rápido. Ela partira novamente, por escolha própria. Restaram a dor e a solidão excruciantes. Debilitantes.

Havia apenas seis meses que ela partira do País das Maravilhas, e ele não compreendia este vazio corrosivo que só poderia ser preenchido pelo toque dela, por seu perfume, sua voz. As solitárias criaturas mágicas não ligavam para essas bobagens; não precisavam de companhia, abominavam a bagagem emocional. Sua afeição e lealdade pertenciam ao agreste País das Maravilhas e a nada nem a ninguém mais.

Então o que ela havia feito para mudar isso?

Ultimamente, cada vez que ele via o próprio reflexo, não mais reconhecia a Mariposa no espelho. Estava incompleto, enfraquecido; e menosprezava isso.

O menosprezo era ainda maior porque ele havia se esforçado tanto para cortejá-la, enquanto ela oferecia seu afeto a um reles mortal.

Morfeu suprimiu um rosnado. Ele não conseguia compreender a sorte de Jebediah, como um humano podia ter tanto poder sobre uma rainha intraterrena. Como um simples rapaz era capaz de controlar um coração real e mestiço tão multifacetado, um espírito propenso ao pandemônio e à loucura. Jebediah puxava Alyssa para baixo, acorrentando-a ao tédio e à banalidade do reino humano.

Ela precisa ser libertada.

Morfeu havia considerado a possibilidade de matar seu rival, mas Alyssa jamais o perdoaria. Não. Chegara o momento de tomar medidas criativas.

Se Morfeu soubesse no que Jebediah havia pensando durante sua jornada pelo País das Maravilhas — todos os momentos em que ele se sentiu mais aterrorizado, mais desanimado —, conheceria as fraquezas e as forças do mortal, intimamente. Ele saberia como enfraquecer Jebediah, contrapondo-o a si mesmo.

Essas fraquezas o derrotariam melhor do que Morfeu o faria. E depois, quando tivesse destruído a confiança de Alyssa em seu cavaleiro mortal, Morfeu estaria lá para confortá-la e conquistá-la.

Voltaria a ouvir a risada de Alyssa do modo como ela ria quando os dois eram crianças, e teria de novo a oportunidade de ser presenteado com o seu sorriso deslumbrante.

Ele voltaria a ser completo.

— Por aqui, por favor — pediu o besouro para que Morfeu o seguisse.

Morfeu tirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo. Quando o inseto abriu a porta para um compartimento de memórias sem janelas, o cheiro de amêndoas vindo de uma travessa de biscoitos de luar fresquinhos que estava em uma mesa de canto se espargiu no ar. Havia uma chaise-longue na cor creme colocada contra a parede, e uma ornamentada luminária de piso feita de latão iluminava o espaço com uma luz discreta.

Morfeu concentrou-se no pequeno palco do outro lado do compartimento. Sentiu o coração palpitar de ansiedade num ritmo profundo e firme. As cortinas de veludo vermelho aguardavam o momento de se abrirem para mostrar as memórias de Jebediah na tela prateada.

— Como o senhor entrará na cabeça do rapaz para visitar suas lembranças perdidas, sou obrigado pelas normas a avisar-lhe que... as emoções humanas podem ser muito poderosas... podem nos fazer ver as coisas sob uma perspectiva totalmente diferente — advertiu o besouro.

— Estou contando com isso. — Morfeu deu um sorriso afetado. — Conhece aquele ditado sobre amigos e inimigos?

O besouro coçou a pele enrugada.

— Hum... mantenha seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda?

Morfeu acomodou-se na cadeira estofada e alisou a calça risca de giz ao cruzar as pernas apoiando um tornozelo sobre o outro.

— Melhor ainda é se colocar no lugar de seu inimigo. É a melhor maneira de controlar seus passos. Ou de apagá-los, caso tenha a oportunidade.

O besouro, voltando a tremer, esticou o braço fininho e apertou um botão na parede. As cortinas do palco se abriram, revelando uma tela de cinema.

— Imagine o rosto do rapaz enquanto olha para a tela em branco e vivenciará o passado dele como se fosse hoje.

As palavras do besouro eram ensaiadas, até mesmo mecânicas, mas a pulsação de Morfeu ficou acelerada. Ele esperou o besouro desligar a luz. Assim que o inseto saiu e fechou a porta, o corpo de Morfeu desmembrou-se nas juntas, flutuando pela escuridão como se fosse feito de partículas de pó. Todos os seus pedaços se uniram novamente na tela prateada, em cores vivas e cinematográficas, até que ele entrou na cabeça de Jebediah, apropriando-se do seu corpo, sentindo suas emoções.

Naquele momento, Morfeu entregou-se à experiência e, pela primeira vez na vida, passou a ver as coisas como um humano.


Capítulo 2


Primeira Lembrança —
Kriptonita

Jeb acordou em uma cama suspensa.

Estava nu. Por que estava nu?

Antes que esse fato pudesse ser totalmente registrado, trinta fadas ou mais, do tamanho de mariposas, surgiram do ar, acariciando cada parte do seu corpo e sussurrando-lhe. Ele tentou mexer os braços e pernas. As asas das fadas — que batiam na velocidade das asas de um beija-flor — liberavam partículas parecidas com as pétalas delicadas de um dente-de-leão, que, de alguma maneira, o imobilizaram. As sementes exalavam um perfume de canela e baunilha que foi inundando sua consciência, até que a sala ficou totalmente fora de foco.

Quando a névoa se dissipou, ele estava em sua cama, em casa. A noite adentrava pela janela e Taelor estava em cima dele, seminua. A unhas pintadas à moda francesinha percorreram os pelos de seu peito e abdômen, dirigindo-se ao cós de sua calça jeans.

Aquilo não podia ser verdade. Taelor e ele tinham brigado antes do baile de formatura, haviam terminado tudo.

Com delicadeza, ele a virou, colocando-a debaixo dele, e apoiou-se nos cotovelos, afastando o cabelo do rosto dela. Mas não foram os olhos de Taelor que encontraram os dele. Foram os olhos gélidos e azuis de Alyssa — encarando-o com um ar de admiração e inocência. Os dedos dele pareciam grandes e desajeitados nas têmporas dela.

A Al na cama dele?

Não. Isso não podia acontecer. Alyssa nem havia beijado homem algum. E Jeb nunca tinha sido o primeiro de nenhuma garota.

A Al era intocável para ele. Ela já passara por muitos episódios turbulentos em sua vida. E ele não era exatamente um exemplo de estabilidade.

Ele tirou as mãos dela e ficou de joelhos.

— Jeb, você não me quer? — perguntou Al, passando a mão no peito dele.

Ele não conseguiu responder. Seus dedos coçavam e pareciam esticar-se, como se estivessem crescendo. Ele ergueu as mãos sob o luar, observando, horrorizado, seus dedos caírem, um por um, e se metamorfosearem em lagartas. As lagartas, então, avançaram lentamente na direção de Alyssa, e ele não conseguia fazer nada para detê-las. Jeb caiu de costas na cama, com as mãos sobre o rosto, olhando fixa e incredulamente para os tocos crus e cheios de sangue onde antes estavam seus dedos.

Gritando, Alyssa tentou sair do colchão, mas as lagartas a pegaram, arrastando-se por sua pele e tecendo teias, até que restou somente uma forma se agitando dentro de um casulo.

— Soltem ela! — gritou Jeb. Uma luz lampejou em seus olhos, e então ele já não mais se encontrava em sua cama. Estava em algum lugar da mansão de Morfeu, e as fadas percorriam sua pele, hipnotizando-o... usando algum tipo de feromônio alucinógeno.

Elas estão me segurando aqui para que o Morfeu fique sozinho com a Al. No instante em que a realidade foi percebida, o feitiço foi quebrado.

Jeb pulou rápido da cama suspensa e saiu da nuvem de sedução de suas captoras. Pegando um travesseiro, ele se cobriu.

— Quero alguma coisa para vestir!

As fadas flutuavam no ar, seus olhos de libélula observando-o.

Havia várias cestas douradas no chão perto dos pés dele. Jeb chutou uma. Suas pequenas captoras se espalharam pelo ar, em histeria coletiva.

Gossamer, a fada predileta de Morfeu, designou cinco delas para pegar os morangos que rolaram. Elas contaram as frutas uma por uma e as colocaram de volta na cesta.

Jeb chutou outra cesta cheia de contas de óleo perfumado. Outras cinco fadas lançaram-se ao chão para pegar tudo, parando para contar cada conta antes de guardá-la.

Em pouco tempo, ela já havia chutado todas as cestas. Algumas estavam cheias de pétalas de flores, outras continham loção, outras, ainda, uvas. Ao virá-las, ele conseguira manter a maioria de suas captoras preocupada. Apenas Gossamer e outras duas ainda pairavam em torno de sua cabeça.

— Me deem algo para vestir — repetiu ele —, ou vou começar a tirar as plumas dos travesseiros. Vocês não estão em número suficiente para limpar uma sujeira dessas.

— Ele não está respondendo ao nosso feitiço — murmurou uma das fadas para Gossamer, com seus olhos de inseto voltados para Jeb.

— E nem à nossa magia — acrescentou a outra, amuada. — Eu conjurei uma moça das lembranças dele, mas seu subconsciente conseguiu escapar.

— Sim, este aqui é, sem dúvida, um desafio — concordou Gossamer, numa voz que tilintava feito um sino. Depois de mandar as outras duas fadas recolherem o conteúdo da última cesta, ela ofereceu a Jeb um robe de seda.

Ele se virou de costas e enfiou a peça de roupa no corpo, assimilando os arredores.

Morfeu o colocara em uma prisão opulenta. A sala era toda revestida de piso de mármore preto que refletia a luz laranja dos candelabros. Ele já estava bem familiarizado com o ponto focal: um colchão circular balançante preso por correntes douradas no centro do teto côncavo. Peles e almofadas forravam a cama, perfumadas por pétalas de rosa.

Apesar de todos esses confortos, faltava a essa sala um detalhe muito importante: uma saída. Não havia portas, janelas ou qualquer outra abertura à vista.

Paredes convexas — pintadas em cor de lavanda escura — eram cobertas por parreiras que se estendiam por toda a sua circunferência, entrando e saindo do reboco e se entrelaçando nos candelabros acesos. Frutas brotavam das vinhas. De quando em quando, as uvas explodiam espontaneamente e pingavam seu suco dentro de bacias de pedra posicionadas ao longo das paredes para apanhá-lo. E, delas, um líquido viscoso e purpúreo era drenado para dentro de fontes — um abastecimento constante de vinho de fadas com aroma adocicado.

Ele se lembrava vagamente de ter provado o vinho ao chegar. Desconfiado, tentou resistir, mas estava com muita sede. Era impossível saber que tipo de magia havia no líquido.

Jeb gemeu e esfregou o rosto. Quanto tempo teria passado bêbado e enfeitiçado? Ele acabara sendo inútil para Alyssa, assim como o pai dele teria sido.

— Onde ela está? — perguntou ele, ignorando a harpa que tocava sozinha, a qual, na tentativa de abafar-lhe a voz, começou a tocar mais alto. — Me diga o que Morfeu está fazendo com ela.

Minúscula, reluzente e confiante, Gossamer acomodou-se em uma almofada de cetim, passou a mão pelo colchão ao seu lado e cruzou as pernas apoiando os tornozelos verdes um sobre o outro.

— Talvez você não perceba o que nós, as fadas, somos capazes de fazer. Temos séculos de prática. Podemos lhe mostrar um êxtase com o qual você sempre sonhou.

Jeb a olhou de cima a baixo e ajustou a faixa de cetim em sua cintura.

— Me desculpe, não sonho com coisas verdes.

Ele encontrou a mochila de Alyssa debaixo da cama e a puxou. Jeb havia notado alguma coisa dentro dela anteriormente, quando a vasculhara em busca de outra coisa: uma pulseira de ferro forjado que ela provavelmente havia enfiado na mochila quando ainda estava na escola e ficara esquecida ali. Ele havia pesquisado muito as fadas quando começou a pintá-las, e sabia que elas não gostavam de ferro — se a lenda fosse verdadeira.

Jeb jogou a mochila sobre o colchão. Os cobertores de pele encresparam-se feito uma onda gigante e derrubaram Gossamer de sua almofada. Acionando suas asas com rapidez, ela pousou sobre o ombro de Jeb.

— Se é Alyssa que inspira suas paixões, podemos realizar essa fantasia. — Gossamer bateu palmas. As outras largaram seus postos de limpeza e se apressaram a formar um círculo em volta de Jeb. Uma onda de enjoo lhe invadiu o estômago quando todas as fadas assumiram a aparência de Alyssa — réplicas perfeitas em miniatura, com cabelo platinado e roupas sensuais de skatista. Elas liberaram novamente suas sementes de feromônios, cegando-o com o perfume de Alyssa, doce como néctar.

Brandindo uma almofada, Jeb rompeu a ilusão e dissipou as sementes. As fadas saíram aos guinchos e foram se esconder nas vinhas das paredes, com seus corpos brilhantes parecendo cordões de luz branca e piscante.

Gossamer pairou no ar acima dele, ralhando.

— Já chega! Informem o nosso mestre de que o mortal é leal à garota. Não podemos seduzi-lo para que volte ao seu mundo sem ela.

Jeb ficou resmungando, enquanto as fadas se esgueiravam por buracos do tamanho de ervilhas, na parede onde as vinhas entravam e saíam. Se ao menos ele pudesse passar por aquelas pequenas saídas também... Chegou a pensar em usar a poção encolhedora que ele e Alyssa tinham encontrado quando chegaram ao País das Maravilhas, mas ela o deixaria tão pequeno quanto suas captoras, e ele ficaria indefeso contra Morfeu. A impotência lhe fervia as entranhas, tão profunda como a que ele sentia quando era criança, escondendo-se em um armário até que passassem os ataques de fúria do pai.

Ele cerrou os dentes. Tinha de haver uma passagem escondida em algum lugar por trás das vinhas. Elas o tinham trazido para cá; devia haver uma saída.

Subitamente, ele deu um pulo para a parede mais próxima e arrancou algumas vinhas, lançando-as para todos os lados. O diminuto guincho de surpresa de Gossamer não o intimidou.

Uvas explodiam em suas mãos, libertando seu aroma potente e denso. As plantas viscosas cortavam seus dedos feito arames. Jeb aceitou a dor. Era algo que podia controlar — diferentemente do tormento dos cigarros acesos que seu pai lhe enfiava na pele, ou dos punhos que lhe socavam o rosto e o estômago. O cheiro da nicotina, o gosto de sangue. Imaginação ou não, eles alimentaram o selvagem em sua alma.

Ele mergulhou numa espiral vermelha de fúria e devastou a sala. Quando finalmente voltou a si e recostou-se na cama, ficou chocado com os estragos que causara.

Arfando e suando, ele cuidou dos cortes nas junções dos dedos e vasculhou os destroços à procura de Gossamer. Será que a tinha machucado? Se sim, talvez fosse mesmo filho de seu pai.

Jeb cerrou os punhos, descontente consigo mesmo.

— Gossamer? — Ele se encolheu ao ouvir a própria voz, rude e inflamada de emoção.

Um rufar de asas mexeu uma das correntes que prendiam a cama ao teto. Ele respirou, aliviado ao ver a fada. Embora parecesse meio idiota importar-se, já que estava prestes a usar a pulseira de ferro de Alyssa contra ela.

Gossamer pousou no chão ao lado das vinhas rasgadas e das cestas que ele tinha derrubado de novo; seus ombros estavam caídos, em demonstração de derrota. Provavelmente, ela não sabia por onde começar a calcular todos os conteúdos derramados.

Jeb começou a vasculhar a mochila. A harpa havia parado de tocar, e o silêncio o incomodava feito o ruído dos ponteiros de um relógio. Cada segundo que ele passava longe de Alyssa deixava-a mais vulnerável a Morfeu.

Seus dedos finalmente encontraram um metal frio. Ele jogou a pulseira de ferro na direção de Gossamer, mas mantendo alguma distância, na esperança de enfraquecê-la sem machucá-la.

Ela gritou e lançou-se ao ar, se debatendo.

— Por favor... afaste isso.

— Não até eu conseguir algumas respostas. — Jeb segurou uma das asas dela entre o indicador e o polegar, levando-a para a cama e sentando-a sobre uma almofada, tomando o cuidado de manter a pulseira próxima o bastante para intimidá-la. — Basta cooperar, que eu não vou machucá-la.

— Já está machucando. — Ela gemeu, com a pele esverdeada já tingida de turquesa. — Não posso usar minha magia... — Gossamer bateu as mãos no próprio rosto. — Vai me deixar... horrível. Abster-me. — Sua voz ficou mais calma, como se estivesse falando consigo mesma, e, rangendo os dentes, continuou: — Abster-me até a ameaça de dor e contaminação passar.

Jeb franziu a testa.

— Então o ferro vira seus poderes contra vocês? É a arma perfeita para usar contra seu chefe.

— Um objeto desse tamanho... só funciona com os menores de nossa espécie.

Jeb curvou-se, aproximando ainda mais a pulseira dela.

— Muito bem, então considere isso um detector de mentiras. Toda vez que eu perceber que você está fingindo, aproximarei o ferro. Onde está a Al, e o que o seu chefe repugnante está fazendo com ela?

A cor da fada mudou para um verde azulado. Ela rolou sobre a almofada, as asas lutando para bater. Gossamer as puxou por cima dos ombros até a altura do peito, cruzando-as, como se quisesse conter a sua magia.

— A sua Alyssa está confortável e sendo bem cuidada. Morfeu está zelando pelo sono dela...

Jeb soltou um grunhido. Na noite passada, ele havia zelado pelo sono dela, no barco. Mudara a posição do corpo dela para que pudesse olhá-la de frente e fazer uma promessa, mesmo que Alyssa estivesse sonolenta demais para ouvi-lo. Jeb havia prometido que a protegeria, que a levaria para casa a salvo. E não iria quebrar sua promessa agora.

Ele precisou resistir ao desejo de destruir a sala novamente.

— Como eu saio daqui?

— Apenas o Morfeu tem os meios para abrir a passagem.

Jeb inclinou-se para a frente, com o nariz quase tocando o rosto de Gossamer enquanto segurava a pulseira sobre a cabeça dela, como se fosse um objeto corrosivo.

— Está dizendo que estou preso aqui até que aquela barata de asas decida me soltar? Ele vai fazer a Al enfrentar o País das Maravilhas sozinha?

Ela choramingou, levando a mão à testa.

— Não. Como você provou ser leal, ele permitirá que a acompanhe em sua jornada. Você comparecerá ao banquete e traçarão os planos.

— Banquete?

— A apresentação de Alyssa. Morfeu deseja exibi-la aos outros.

— Que outros?

Gossamer deixou-se cair, formando um monte de cor púrpura e em seguida saiu depressa de seu poleiro. Ela puxou alguma coisa de dentro da almofada — um desenho de Al que Jeb não se lembrava de ter feito. Lentamente, Gossamer levantou os joelhos e estudou as linhas.

— Você fez isto enquanto estava sob nosso feitiço. Tem poder dentro de seu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Você captou o interior de Alyssa com perfeição.

— Esse desenho é pura fantasia — resmungou Jeb. Ele colocou a pulseira de ferro sobre o papel ao lado de Gossamer.

Ela rolou para o meio do desenho, tentando escapar do metal.

— Há mais verdade nesta aparência de Alyssa do que em qualquer coisa que possam me forçar a falar.

Jeb puxou o desenho, fazendo Gossamer e a pulseira de ferro rolarem por cima da pelugem. Ele estendeu o desenho sobre uma almofada e percorreu as linhas de carvão com o dedo. A imagem era igual a todos os outros desenhos de fadas que ele havia feito de Al ao longo dos anos, mas, ainda assim, não poderia ser mais diferente da garota que ele conhecia.

Ele a desenhara com o cabelo preso no alto da cabeça. Al nunca usava o cabelo daquele jeito. Um vestido preto de alcinhas realçava suas curvas. Nem morta ela seria vista em um vestido tão convencional. E a única coisa que se parecia com ela eram as luvas de renda preta sem dedos que cobriam as cicatrizes da palma das mãos.

Fora isso, o desenho era uma fantasia completa. Sentada em um banco de jardim, Al segurava uma rosa. Rímel e lágrimas escorriam em curvas graciosas por seu rosto. Pensando bem, se parecia com a maquiagem dela na última vez que ele a vira.

Ele ainda não conseguia entender por que, depois de quase se afogar em um oceano de lágrimas, o rímel de Alyssa não havia borrado. Apertando os olhos, ele estudou o par de asas translúcidas abertas nas costas dela. As membranas finas tremeluziam sob o único raio de sol que atravessava as nuvens. As asas faziam com que se sentisse estranho, mas Jeb não conseguia perceber a razão.

Talvez porque elas lembrassem as asas de Morfeu, embora tivessem uma cor totalmente diferente. As têmporas de Jeb latejaram. Nada poderia ser pior do que Alyssa sozinha com aquele homem-inseto. Aquele doido tinha algum tipo de poder sobre ela, havia entrado em sua cabeça quando ela era pequena. O subconsciente pode ser muito poderoso, e se Morfeu ainda tivesse acesso aos sonhos da Al...

— Como posso derrotá-lo? — perguntou Jeb com um nó na garganta.

Os olhos bulbosos de Gossamer voltaram-se para os dele. Ela estava fraca demais para se arrastar para longe da pulseira, que agora roçava sua coxa.

— Ele não será derrotado. Há anos ele espera por este dia.

Jeb fez cara feia.

— Muito bem, ele é o Super-Homem. Mas todo mundo tem a sua kriptonita. Algo de que sente medo.

— O confinamento — Gossamer deixou escapar, e, diante da confissão, seu corpo escureceu até ficar da cor de um machucado.

— Como assim?

Gossamer levou o dorso da mão à testa.

— Por favor... está muito perto... o ferro... está drenando minha energia.

Jeb caiu de costas no colchão e afastou a pulseira da fada. Equilibrando-o entre os dedos, ele estudou o ferro sob a luz das velas. A pulseira o lembrou de seu piercing de ferro e da primeira vez que Al o vira, sua reação de entusiasmo. Ela havia implorado para tocá-lo e fez várias perguntas sobre o processo de colocação de um piercing. Seu entusiasmo e ingenuidade, suas inseguranças... Morfeu não hesitaria em usar qualquer uma dessas coisas, ou todas elas, para manipulá-la.

Jeb precisava convencer Al a sair do País das Maravilhas, a esquecer esta jornada para quebrar a maldição de sua família, a qualquer custo. Algo muito tenebroso estava à espreita, bem perto dela, como no sonho que ele tivera. E Jeb podia sentir que, fosse lá o que estivesse para acontecer, estava se aproximando.

— Então vocês querem que ela conserte os erros da Alice original, certo? E se eu consertá-los? — Jeb tentou raciocinar. — Vocês enviam a Al para casa e deixam que eu cuide de tudo?

— Impossível — respondeu Gossamer num sussurro arfante, voltando à cor verde-clara. Engatinhando na direção do desenho, ela passou a pequenina mão sobre a rosa. — Ela já passou nos testes e provou ser a escolhida.

— Testes? Está se referindo a encontrar a toca do coelho para o País das Maravilhas e secar o oceano de lágrimas?

Gossamer fez que sim.

— Mas eu ajudei a fazer isso.

— É por ela que ele esperava. Não por você.

Jeb levantou a pulseira de ferro uma última vez.

— O que ele realmente quer dela?

Antes que Gossamer pudesse responder, o teto abobadado começou a tremer. Pedaços espessos de gesso despencaram no solo. Jeb colocou uma almofada sobre a cabeça e uma mão sobre Gossamer para protegê-la dos detritos. O teto se abriu nas emendas, fazendo a cama balançar e puxando as correntes em direções opostas, de modo que o colchão subiu vários centímetros.

Depois que os tremores passaram, Jeb olhou para cima. A silhueta escura de Morfeu apareceu em uma abertura no teto.

Sutileza era um dos últimos itens na lista de prioridades desse cara.

— Já te disseram que você é muito escandaloso? — rosnou Jeb.

Morfeu inclinou-se para olhar a sala destruída.

— Já te disseram que você é um péssimo hóspede?

Parte da responsabilidade daquela bagunça era da grandiosa entrada de seu aprisionador, mas Jeb mordeu a língua, não querendo arriscar sua oportunidade de ver Al.

Morfeu relaxou.

— Alyssa o aguarda na sala dos espelhos. E, por favor, tome um banho e faça a barba. Você será apresentado aos nossos convidados do banquete como um cavaleiro élfico, então precisa parecer como tal. Gossamer lhe dirá como se comportar adequadamente. — Morfeu largou algumas roupas e botas, que fizeram um ruído ao atingir o chão. — Aí está seu uniforme. — Ele fez uma pausa e apontou para as correntes. — Que pena que você não tenha asas e nenhuma magia intraterrena. Terá que sair daí sozinho. E posso assegurar que não será nada fácil.

Os músculos de Jeb se retesaram quando Morfeu sumiu de vista; ele sabia que o aviso se referia a muito mais do que sair daquela sala.


Capítulo 3


Segunda Lembrança —
Carnificina

Jeb limpou o suor da testa. Morfeu estava certo. A escalada para sair de sua prisão dourada seria mesmo difícil. Mas isso não significava nada se comparado à jornada pelo País das Maravilhas que ele e Alyssa haviam cumprido desde então. O dia inteiro tinha sido um desafio atrás do outro, com o perigo e a morte aguardando em cada esquina. E agora ele havia perdido a Al. Os dois tinham se separado pouco antes de ela completar o teste final. Al ficou enfrentando as irmãs Twid no cemitério, sozinha, e ele ficou preso aqui no fundo do abismo.

A noite já havia caído quando ele atingiu o solo, e foi uma transição extremamente rápida, como se alguém tivesse apagado a luz.

Jeb sentiu os músculos do corpo endurecerem. Odiava pensar na Al sozinha naquele mundo insano depois de anoitecer. E, mais uma vez, ela provou ser forte o bastante para encarar quase tudo. No final, foi ela quem o salvara mais de uma vez...

Ele se lembrou dela pairando acima dele — um brilho selvagem, flutuando com a graça de uma libélula. Ver as asas dela brotarem tinha sido ao mesmo tempo assustador e milagroso. Jeb mal conseguiu respirar enquanto observava a transformação.

Falando sinceramente, Jeb ainda não tinha recuperado o fôlego de quando ela o levara para dentro do abismo e ele gritara: “Você é minha corda de segurança!”, antes de ela subir ainda mais alto para o céu. Ele não deveria ter colocado tanta pressão sobre ela para salvá-lo; tinha que ter feito o que conseguisse para sair de lá por si próprio e encontrá-la no meio do caminho. Do contrário, ela nunca se perdoaria se algo saísse errado.

A carcaça de um pássaro Jubjub havia amortecido sua queda. Ele limpou nas calças a gosma pegajosa que tinha entre os dedos, torcendo o nariz diante dos restos malcheirosos do exército que os perseguia e acabou caindo no abismo. Jeb procurou ficar de pé na escuridão. Suas botas produziam sons de sucção toda vez que ele pisava. Ele nunca tivera fricotes; qualquer aversão a sangue e violência havia sido expurgada — uma dessensibilização gradual que era reforçada sempre que ele se olhava no espelho e via suas bochechas e olhos inchados, grandes e cheios de sangue, que nem um bife malpassado.

Contudo, sem uma centelha de luz para guiá-lo, a carnificina aos seus pés parecia mais viva do que morta. Sua imaginação trazia arquivos de todos os tipos, de filmes de zumbis a demônios e assombrações. Seu estômago queimava de náusea. Jeb sentiu-se aliviado ao perceber que os assobios que ouvia dentro do abismo eram produzidos pelo vento. E não havia ruídos de correntes fantasmagóricas nem gemidos de mortos-vivos.

Além disso, seu verdadeiro inimigo era o tempo, mais perigoso do que qualquer coisa que pudesse imaginar. A Al ainda tinha de cumprir a última tarefa no cemitério. E, depois, eles ainda tinham de encontrar um ao outro.

Ele se forçou a avançar às cegas até sua mão alcançar a parede do abismo. Antes de descer totalmente, Jeb viu que a mochila de Al tinha ficado presa em uma pedra saliente próxima ao chão. Se conseguisse encontrá-la, poderia contar com uma lanterna. Tateando a superfície áspera da pedra, ele levantava seus pés por sobre os obstáculos, tocando os cadáveres com os dedos dos pés para mensurar a largura de cada passo.

Com os cotovelos esbarrando nas pedras, Jeb observou o céu. Um pequeno aglomerado de estrelas brigava com as nuvens, aparecendo para iluminar levemente o lugar ao seu redor, tornando possível que ele continuasse sem esbarrar no falecido exército da rainha. Uma brisa úmida levantava a poeira feito pequenos tornados. Logo choveria. E, neste lugar, era possível que, literalmente, chovesse a cântaros — daqueles temporais ruidosos, torrenciais.

Um calafrio que não tinha nada a ver com a tempestade iminente lhe percorreu a espinha e obscureceu qualquer sentimento bom que ele poderia ter encontrado naquele pensamento. Qual era a razão de todos esses “testes” de Morfeu? Toda vez que a Al conseguia se sair bem em um desses testes, sua forma intraterrena tornava-se mais acentuada. Será que o intuito era transformá-la completamente para que não pudesse mais voltar ao reino humano?

Fios de cabelo caíram sobre seu rosto, e Jeb os afastou.

Morfeu afirmara que tudo o que ele mais queria era que Alyssa voltasse ao seu lugar. Sua casa. Jeb esperava que ele estivesse se referindo ao mundo deles, o reino humano. Mas e se a Al não estivesse sob nenhuma maldição, no final das contas?

Ele se lembrou de sua pesquisa sobre fadas, na qual descobriu que elas eram criaturas chamadas de changelings — as crias das fadas secretamente deixadas no lugar de bebês humanos roubados. Alice Liddell, a tataravó de Al, teria sido uma changeling? Quem sabe foi por isso que ela encontrou, quando criança, a toca do coelho — por instinto. Isso significaria, de alguma estranha maneira, que aqui era a casa de Al.

Jeb parou com as especulações. Elas só levavam a mais dúvidas.

Ele tinha encontrado a mochila. Abriu-a, tirou a lanterna e colocou a mochila nos ombros.

Ao fechar o zíper, ele acendeu a lanterna e percorreu o cenário com fachos de luz. Os guardas destruídos pareciam cartas de baralho amarrotadas. Brinquedos descartados. Até mesmo os pássaros Jubjub poderiam se passar por brinquedos infantis com o enchimento extrapolando para fora.

Com a mochila ajeitada no corpo, Jeb percorreu a circunferência do abismo sem encontrar nenhuma abertura. Pedras que haviam caído bloqueavam qualquer possível passagem que ele tentasse. Era como se ele tivesse caído dentro de um tubo gigante. Não havia nenhuma outra saída a não ser subindo.

Jeb apontou a luz para o gramado a cerca de vinte andares acima — a clareira onde Alyssa havia pousado. Estava determinado a encontrá-la antes de Morfeu, mesmo que tivesse de escalar as pedras pontiagudas no escuro e sem uma corda de segurança.

Ele havia acabado de apoiar a lanterna entre os lábios e escorar o pé em um rochedo para tomar impulso quando ouviu uma voz com um sotaque britânico familiar.

— Ao trabalho, homens. Precisamos contar todos antes que as irmãs Twid enviem sua brigada de duendes para recolher os mortos.

Morfeu.

Jeb desceu e quase colidiu com o intraterreno alado, que tinha aparecido do nada, como se tivesse aberto um zíper no ar e passado por ele. Cavaleiros élficos faziam fila atrás dele, entre vinte e trinta, carregando lanternas e usando o mesmo uniforme de Jeb, só que menos esfarrapado e sujo. Eles passaram sem nem olhar para Jeb, extremamente concentrados na contagem dos corpos.

— Ora, ora, pseudocavaleiro. — Morfeu riu com desdém.

Cada pedacinho de Jeb ansiava por apagar aquele sorriso arrogante e socar aquele rosto. Mas ele estava em desvantagem. Se quisesse sair desse fosso para encontrar a Al, teria de bancar o bonzinho.

— Detesto dizer isso, mas é bom vê-lo, senhor Mariposa. — Jeb guardou a lanterna. — Vejo que pegou o espelho para vir aqui.

— Eu só viajo de espelho. — Morfeu ergueu a lanterna e examinou as roupas esfarrapadas de Jeb. — Tem a vantagem de não estragar tanto as roupas. E vou lhe contar outro segredo: se eu mantiver as asas daquele lado do plano — ele apontou com o polegar para as suas costas, onde metade de seus apêndices não era visível —, a abertura fica acessível para nossa viagem de volta.

Jeb forçou um sorriso.

— É bom saber.

Perfeito, na verdade. Ele poderia voltar com a trupe de elfos e depois tomar o expresso na sala de espelhos para encontrar a Al. Mas primeiro teria de distrair Morfeu, baixar a guarda dele. Jeb perguntou:

— Esse chapéu é novo?

Morfeu ficou radiante.

— Que gentil de sua parte ter notado. É meu chapéu da Insurreição. Ainda não havia tido a oportunidade de usá-lo antes. — Com o dedo, bateu em várias mariposas que formavam a guirlanda na aba do chapéu e depois se inclinou e fez conchinha no ouvido de Jeb para sussurrar um segredo. — As asas vermelhas representam derramamento de sangue.

— Ãh-hã. — Jeb cerrou a mandíbula diante do indesejado bafo quente no lóbulo de sua orelha. Depois, olhou para os cavaleiros, discerníveis somente por suas lanternas flutuando na escuridão atrás dele. — Então, está planejando um motim com o exército da rainha de Marfim?

Morfeu apertou o ombro de Jeb.

— Eu sempre soube que era mais esperto do que os mortais comuns.

Os músculos de Jeb contraíram-se ao contato.

— O que significa que você estava mandando a Al para uma missão absurda só para se divertir.

Cuidado. Jeb não poderia deixar sua desconfiança transparecer. Pelo menos não ainda. Em vez disso, ele se inclinou para ajustar os cadarços das botas e respirou fundo antes de se reerguer.

Morfeu apertou sua gravata vermelha.

— Todas as tarefas que pedi à Alyssa tinham um propósito. — Ele deu um passo para o lado quando alguém mais passou pelo portal do espelho: um esqueleto do tamanho de um duende, com antenas e olhos cor-de-rosa brilhantes, metido em um colete vermelho.

— Rábido Branco? — sussurrou Jeb, incrédulo. Nada daquilo fazia sentido. O Rábido era da corte Vermelha. Por que estava aqui?

— Qual é o relatório? — Morfeu agachou-se para ficar na altura do Rábido, ainda mantendo as asas enfiadas no portal invisível do espelho.

O pequeno intraterreno apertou as mãos enluvadas e olhou para Jeb, sua cabeça careca refletindo o brilho suave da lanterna de Morfeu.

— Um de nós, você é?

Morfeu sorriu e respondeu por Jeb.

— É claro que é. Ele ajudou a nossa Alyssa a conquistar o grande e cruel exército Vermelho, não lembra?

Coçando a antena esquerda, o Rábido fez que sim.

— Rainha Grenadine neutralizada está. Nos portões da frente e de trás, o castelo guardado está pelos regimentos três e sete. Flanqueando a rainha, um círculo de cinco. Sem esquecer da coroa e seu guardador.

— Ah, sim. O bandersnatch. Bem, quando Alyssa tiver trazido seu prêmio do cemitério das irmãs Twid, nada mais terei a temer daquela besta medonha. Fez um bom trabalho, senhor Branco. — Morfeu deu uma batidinha na aba do chapéu.

O Rábido bateu os tornozelos cadavéricos um no outro, depois se curvou e lançou um olhar penetrante para Jeb, antes de pular novamente para o portal.

— Ele é o seu espião — murmurou Jeb, sentindo-se idiota por não ter adivinhado antes.

— Sim.

— Então todas as vezes que o esqueletinho ameaçou a Al, matando-a de susto, era só para manter a aparência de lealdade à Rainha Grenadine?

— Os melhores espiões são aqueles que jogam dos dois lados com o mesmo vigor.

A distância, Jeb avaliou as lanternas que balançavam. O tilintar dos cabos de metal e o pisar de botas eclipsavam o suave lamento do vento.

— Certo. Já que estamos abrindo o jogo...

O comentário de Morfeu o interrompeu.

— Que trocadilho mais delicioso, considerando a posição em que estamos. — A lanterna dele apontou para os cadáveres dos guardas de carta.

Jeb ignorou a piada mórbida.

— Eu ia perguntar por que o Rábido se voltou contra a corte Vermelha.

— Ele era o conselheiro real da Rainha Vermelha quando Alice nos visitou. Deseja ver a verdadeira herdeira no trono tanto quanto eu.

— Verdadeira herdeira. — Jeb chutou um punhado de terra com uma bota, sentindo o peito apertado. — Então tudo isso é para destronar Grenadine e abrir caminho para uma nova rainha.

— Sim. — A lanterna iluminou o rosto de Morfeu, numa expressão de indulgência sonhadora. — E estamos muito perto. Em breve, ela ocupará o trono que é e sempre foi o lugar dela.

O lugar dela. Uma hipótese se formava na mente de Jeb, uma ideia ultrajante e incompreensível, mas, de qualquer maneira, a resposta óbvia para todas as dúvidas que ele vinha remoendo. Todas as dúvidas, exceto uma...

— Mas, primeiro — interviu Morfeu, varrendo o ar com um gesto desdenhoso —, temos que ter certeza do que iremos enfrentar quando atacarmos o castelo. Você e Alyssa conseguiram eliminar boa parte da oposição com seus fantásticos movimentos de pés. Estamos aqui para avaliar se os números batem com os que o Rábido reportou. Devemos ter certeza que Grenadine não tem outras cartas escondidas na manga. — Ele bateu nas costas de Jeb. — Viu o trocadilho? “Cartas na manga?” — E deu uma gargalhada.

Jeb não deu nem um risinho.

— Ah, corta essa. Os guardas dela são de cartas. É uma piada como a que você fez antes, só que mais inteligente.

— Ah, sim, entendi — retrucou Jeb.

O riso de Morfeu se dissipou.

— Você não é um namorado muito divertido.

— Você não leva nada a sério? A Al está correndo perigo — Jeb deixou escapar.

— Bobagem. Ela é gloriosamente capaz! Você nunca a viu voando? É claro que viu! Estava pendurado na corrente que ela segurava. — Morfeu voltou a lanterna para a própria cabeça, num arroubo de celebração. — Não foi uma bela visão, presenciá-la transformando-se no que realmente é? Igual a uma princesa de contos de fadas. — Ele lançou um olhar dissimulado para Jeb. — Não concorda?

Princesa de contos de fadas. Lá estava, saindo da boca do próprio Morfeu, zombando de Jeb por não perceber desde o início. Jeb apertou as alças da mochila para evitar dar um soco na laringe de Morfeu.

Morfeu abaixou a lanterna e depois tirou luvas prateadas de sua lapela.

— Não se sinta desprezado, cavaleiro mortal. Sua contribuição não passará despercebida. E eu sempre pago minhas dívidas. Então, o tirarei desta vala da morte para demonstrar minha gratidão.

— Você pode me agradecer me deixando ajudar a Al. Ela vai terminar a tarefa muito mais depressa comigo do lado — Jeb conseguiu dizer, sentindo um nó nas cordas vocais. Se conseguisse chegar até Al, talvez os dois pudessem se esconder de Morfeu no cemitério das irmãs Twid, até encontrarem uma maneira de escapar.

— Sinto muito — retrucou Morfeu, vestindo as luvas e acenando para que os cavaleiros élficos retornassem. — Ela precisa fazer isso sozinha. Você a verá em breve; todos nós vamos nos reencontrar. Uma grande família feliz.

— Não! — exclamou Jeb, perdendo o controle. Ele investiu, mas os elfos foram mais rápidos e o contiveram, com os dedos machucando seus cotovelos feridos. — Deixe-a sair do País das Maravilhas, seu filho de inseto...

Morfeu pressionou um dedo contra a boca de Jeb.

— Ah-há! Essa, você já usou.

Jeb puxou a cabeça para trás, deixando o dedo do intraterreno suspenso no ar.

Sob a luz da lanterna, as joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficaram escuras, da cor de sangue seco.

— Ora, ora. Isso são modos de tratar seu salvador? — Ele fez cara amuada. — Além do mais, como posso deixar Alyssa sair se ela não está comigo? Da última vez que soube, ela estava entrando no jardim das almas. Mas, quando terminar por lá, ela virá ao meu encontro. Ela ainda tem um papel muito importante a desempenhar.

— Certo. Porque ela é a herdeira do trono. — Jeb ouviu, incrédulo, suas próprias palavras ecoarem, como se tivessem saído da boca de outra pessoa. — Não sei como, mas é ela.

— Bravo! — Morfeu aplaudiu. — Estão vendo o que eu disse, irmãos cavaleiros? — Olhando para os cavaleiros por cima do ombro de Jeb, Morfeu deu tapinhas no peito em cima da gravata vermelha, como se estivesse tomado pela emoção. — Mais esperto que um mortal comum. Pena que tenha as limitações físicas de um.

— Não importa. Ela está fora do seu alcance. — rebateu Jeb, dando um tranco nos elfos; havia muitos o segurando, contudo. — Ela deve estar dentro do cemitério agora, e não pode forçá-la a fazer nada. Você mesmo disse que as Twids não deixam você entrar.

— É verdade. Mas ela encontrará, sozinha, o caminho para o castelo. No momento em que ela perceber que estou mantendo presa a coisa que ela mais ama no mundo, virá rastejando para mim, com as asas a reboque.

Morfeu levantou uma mão e fez um sinal.

Os cavaleiros élficos soltaram Jeb. Ele girou sobre o calcanhar e atirou a mochila sobre eles, dispersando o grupo feito pinos de boliche. Esticando o braço, ele bateu o punho na testa de Morfeu, desequilibrando-o. Um dos cavaleiros se esforçou para permanecer no lugar e manter o espelho aberto. Antes que Jeb pudesse se catapultar e atravessá-lo, raios de luz azul grudaram em sua pele e roupas, feito eletricidade estática. Eles o arrastaram, controlando-o como se fosse um fantoche, até ele ficar de frente para Morfeu. Os raios vinham da ponta dos dedos do intraterreno.

Morfeu aproximou-se.

Jeb tentou recuar, mas seus músculos travaram, ficaram paralisados.

— Durma — disse Morfeu num tom simples, e levou a mão azul fluorescente à testa de Jeb, cujo corpo foi percorrido por uma luz pulsante. Ele sentiu um gosto doce, parecido com leite e mel, e depois sentiu o aroma de lavanda. Com os dedos apertando o tecido macio da camisa de Morfeu, Jeb lutou para manter-se acordado. Mas a luz era muito reconfortante... muito suave... muito calorosa. Contra sua vontade, suas pálpebras ficaram cada vez mais pesadas e ele caiu no chão, em sono profundo.


Capítulo 4


Terceira Lembrança —
Engaiolado

O crânio de Jeb latejava, e havia sangue saindo de seu couro cabeludo e entrando em seus olhos.

Ele limpou o líquido viscoso e focou no lugar à sua volta. Morfeu o tinha trazido para o castelo Vermelho depois de colocá-lo sob o feitiço do sono. Largou-o dentro de uma gaiola na masmorra. Jeb não queria ter tomado a poção encolhedora quando acordou, mas o homem-inseto havia lhe dado um ultimato.

Primeiro, ele havia ameaçado matar a Al. Mas Jeb rebateu, dizendo que o homem estava blefando, pois sabia que ela era indispensável. Depois, Morfeu usara de outra arma, ameaçando fazer com que a frágil mãe de Al ultrapassasse o limite da loucura. Isso, ele faria.

A Al havia lutado muito para salvar a mãe. Ela morreria se a perdesse para a loucura. Então, Jeb não hesitou em levar o frasco aos lábios.

Seu corpo balançava, mas não devido aos efeitos colaterais da poção. A plataforma debaixo dele oscilava por causa de suas tentativas de abrir as barras de sua prisão usando a cabeça — uma atitude desesperada que havia resultado em nada além de um corte logo acima da testa. A magia de Morfeu — um fio elétrico e azul — mantinha a porta da gaiola fechada e imóvel.

— Que bela coisa você fez, não? — entoou uma voz feminina e irritante. — Morfeu escolhe quem tem o poder de suprimir sua magia. Obviamente, você não é um dos escolhidos.

Jeb fez cara feia para sua companheira de prisão. Era uma lóri — um intraterreno parecido com um periquito, mas normalmente do tamanho de um ser humano. Como os dois tinham encolhido, a única coisa que a distinguia dos pássaros do mundo humano eram as túnicas de cetim cor de creme com estampas jacquard colocadas sobre suas asas, corpo e pernas, e seu rosto humanoide enfiado no meio de plumas vermelhas, como se fosse uma máscara. Ele foi cutucado por um bico mais parecido com o chifre de um rinoceronte, posicionado no lugar onde deveria haver um nariz. Os lábios da criatura se agitavam furiosamente.

O pior de tudo era que a voz dela poderia derrubar a Torre de Pisa com uma sílaba. Quando falava, era como se alguém tivesse implantado cirurgicamente alto-falantes nos ouvidos de Jeb e travado o volume no “mais surdo que uma porta”. Ela era uma das muitas razões pelas quais ele tentava sair da gaiola com tanta insistência.

A luz bruxuleante das velas na parede iluminava seu ar de arrogância e deixava o resto da masmorra nas sombras. Depois que a voz da lóri parou de ecoar, Jeb investiu:

— Olhe aqui, Lorina. Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu marido. — Ele apontou a criatura que roncava abaixo da gaiola, de aparência tão estranha quanto à da esposa, com o corpo de um dodô, cabeça de homem e mãos que se projetavam da ponta de suas asas atarracadas. — Foi ele quem manteve Alice Liddell presa em uma gaiola igual a esta aqui, muitos anos atrás. É por culpa dele que a minha namorada é a única que pode destronar a sua rainha. Será que já lhe ocorreu que é por isso que vocês estão presos?

— O Charlie não fez nada disso! — berrou a lóri, pairando dentro da gaiola. — Alguma vez já lhe passou pela cabeça que o Morfeu é um cara de pau mentiroso?

Só em todos os segundos de todas as horas. Jeb apoiou-se nas barras. Seus joelhos cederam, enfraquecidos pelas tentativas de abri-las usando cada músculo de seu corpo. Ele desabou sobre o piso de metal, empurrando uma fatia de pera já amarelada que estava ao seu lado, feito um pequeno sofá. A gaiola era um pequenino forte inexpugnável. Mas não importava. As barras poderiam ser feitas de espaguete cru, e mesmo assim ele não conseguiria ajudar a Al. Mesmo que escapasse, com este tamanho, Jeb não conseguiria derrotar ninguém.

Charlie, o marido dodô de Lorina, não poderia ajudar muito. Ele estava preso por algemas e correntes de ferro e cochilava recostado na parede. Embora a gaiola estivesse pendurada bem perto da cabeça do dodô, não havia nada que Charlie pudesse fazer.

Provavelmente, Morfeu havia lançado no homem-pássaro gigante o mesmo feitiço do sono que jogara em Jeb, mas Charlie já estava se libertando dele.

Lorina acomodou-se no poleiro no centro da gaiola, balançando sobre a cabeça de Jeb feito uma acrobata no trapézio. A cara dela estava tão vermelha quanto as suas penas, o que fazia as espadas e copas estampadas nas bochechas quase desaparecerem.

— Como vamos ficar exilados nestas instalações fedendo a urina, terá bastante tempo para ouvir a verdade — bramiu ela.

Jeb esfregou a cabeça para apaziguar a dor lancinante.

— Se puder baixar a voz uns dois decibéis, eu agradeceria.

— Abaixar minha voz?

— Aaaii. — Jeb enterrou o rosto nas mãos.

O trapézio em miniatura rangia a cada balanço, piorando a poluição sonora.

— Para a sua informação, minha rainha adora o som da minha voz. Ela até o elogia...

O ronco do dodô parou, e ele estalou os lábios.

— Isso é porque ela protege os ouvidos com cera de abelha, Ó, Mais Adorável das Loucas.

— Seu mentiroso! — retrucou Lorina, balançando o poleiro tão depressa que Jeb achou que ia vomitar.

— Estou preso com correntes de ferro — avisou Charlie depois de um bocejo. — Não tenho forças para mentir. — Em seguida, pegou novamente no sono.

Isso pareceu calar Lorina, pelo menos temporariamente.

Jeb aproveitou o silêncio para pensar. A esta altura, Morfeu já deve ter contado a Al sobre sua verdadeira linhagem, sobre o que espera dela. Deve estar tão chocada... tão apavorada. Jeb ansiava tanto abraçá-la que era como se houvesse uma bigorna lhe pressionando o peito.

Aquele mariposo deveria ter contado a verdade desde o começo. Ela nunca escolheria ficar. Mas Morfeu sabia disso, e a manipulou sob o pretexto de que ela poderia curar a maldição da própria família. Jeb queria arrancar as asas pretas de Morfeu e enfiá-las goela abaixo por tê-la enganado, porque não havia cura para o parentesco, e ele sabia muito bem disso.

— Foi a Vermelha quem colocou Alice na gaiola. — A lóri voltou à carga. — Não o Charlie.

— Mas o seu marido escolheu mantê-la presa na gaiola — acrescentou Jeb, mesmo sabendo que não deveria. Ele cobriu as orelhas para a estrondosa refutação, mas Lorina só soltou um suspiro.

— Não. O Charlie tentou fazer a coisa certa pela menina — disse ela, consideravelmente mais ponderada agora. — Ele planejava mandar Alice de volta para o reino humano sem a Vermelha saber, mas a rainha descobriu e os arrastou para uma caverna nos picos mais altos e mais remotos do País das Maravilhas, sem que nenhum de nós soubesse. Ela deixou o Charlie com a vítima dela para poder encenar seu plano mestre, sabendo que Alice seria cuidada por um prisioneiro que nunca poderia escapar. Porque, como você deve saber, os dodôs não podem voar. Ela me privou de meu marido durante anos. Ele era prisioneiro, assim como a mortal.

— Se isso te ajuda a dormir de noite, tudo bem, passarinha.

Uma comoção de poeira e asas, jacquard e cetim, subitamente surgiu e o atacou.

— Você pode mostrar algum respeito e ouvir?!

Jeb levantou as mãos para se defender.

— Está bem. Shhhh. Eu vou ouvir.

Não havia nada mais que ele pudesse fazer. Morfeu lhe dissera que, assim que Alyssa fosse coroada rainha, ela abriria o portal para o reino humano. Acreditando ou não nisso, Jeb não poderia fazer nada a não ser ter esperança. Ele não tinha nenhum poder ali. E ter consciência disso lhe devorava as entranhas a cada minuto.

Acomodada diante de Jeb sob um monte de tecido luxuoso, a lóri olhou por entre as barras e resmungou alguma coisa para o marido que dormia.

— Seu velho e imprestável fezzerjub. Eu é que tenho que te proteger. Nem sei por que me casei com você.

O dodô resfolegou e murmurou, sonolento:

— Porque se casar com o bobo da corte era a única maneira de ter uma posição na corte Vermelha, Ó, Senhora das Nênias. — E o ronco voltou.

— Viu como deu certo? — resmungou ela, fazendo beicinho com os lábios vermelhos em forma de coração, sob a curva de seu bico. — Aquele Rábido ossudo e seu coração negro de pedra. — Ela alisou as penas da nuca e cobriu-as com uma rede decorada por lantejoulas.

Jeb estendeu a mão para pegar o dedal cheio de água que seu captor havia deixado ao lado da fatia de pera. Em suas mãos, ele era do tamanho de uma caneca de café. Ele o passou para sua colega de cela, que o pegou com as asas e deu alguns goles.

— Me diga uma coisa, Lori. Se o que você está dizendo é verdade... — Observando a atitude defensiva na cara bicuda, ele refez a pergunta para poupar os ouvidos. — Como você escolheu compartilhar o seu lado da história, talvez pudesse me dizer de que maneira Morfeu teve participação na prisão de Alice.

Ela sacudiu as gotículas de seus lábios.

— Não teve participação nenhuma. Ele gostava muito de Alice e teria feito qualquer coisa para que ela chegasse em casa sã e salva. Mas, na hora em que ele lhe ofereceu seu conselho como lagarta, alertando-a para que evitasse o castelo da Rainha Vermelha a todo custo, sua metamorfose aconteceu. Quando ele emergiu, totalmente transformado, e soube o que havia acontecido com Alice, ficou furioso.

— Está tentando me dizer que ele possui alguma consciência?

— Pelo menos no que dizia respeito a Alice, sim. — A lóri ajustou a suntuosa túnica que ficava escorregando devido à falta de ombros. — Morfeu usou todos os seus recursos de magia e acabou encontrando ela e meu marido escondidos nas cavernas dos picos mais altos do País das Maravilhas. Infelizmente, já era tarde demais para Alice. — Lorina devolveu o dedal a Jeb, agora com metade da água.

Jeb endireitou o corpo, fazendo a gaiola balançar.

— Então por que ele quer ajudar a Rainha Vermelha a colocar outra rainha no trono, quando ele deveria odiá-la por ter mantido Alice presa em uma gaiola por tantos anos?

— Talvez ele esteja bravo por Grenadine não ter tentado encontrar Alice assim que esta foi capturada. Mas Grenadine perdeu sua fita de memória e esqueceu a criança.

— Um bom regente teria mais do que uma fita para lembrá-la; teria se certificado de que tudo e todos estavam em seu lugar.

— A minha rainha é uma boa regente!

Jeb encolheu-se com o urro agudíssimo.

O ronco do dodô parou.

— Minha vociferante esposa diz a verdade, rapaz. Morfeu parece guardar ressentimento pelo que ele acredita ser negligência, mesmo tendo sido somente um descuido.

Jeb balançou a cabeça diante de todas as falhas que havia no raciocínio de todos.

— Não. Há mais coisas nessa história.

— Você tem bons instintos, cavaleiro mortal.

Jeb olhou para cima, na direção da voz tilintada. Uma luz brilhante flutuou pela pequena janela e entrou pela pesada porta da masmorra. Jeb levantou-se e agarrou as barras da gaiola, inclinando a cabeça para ver melhor.

Gossamer.

A pequena fada adejou para perto e sussurrou algo para o mágico fio azul que fixava a porta de arame, entrando na gaiola. O fio azul deu um nó em si mesmo depois de ela fechar o trinco.

Ela cintilava feito pequenos fogos de artifício ao pairar no lugar, estudando Jeb com uma expressão de solidariedade.

Como os dois agora tinham o mesmo tamanho, Jeb se lembrou de uma pintura que vira certa vez, de um artista tcheco, Viktor Olivia. O pintor era famoso por retratar uma fada que seduzia homens, levando-os a se embebedarem com absinto. Gossamer personificava essa criatura: uma forma feminina perfeita coberta de poeira verde, e nua, com escamas brilhantes cobrindo-a como um biquíni minúsculo.

Ele havia sentido, quando saiu da sala de espelhos, que Gossamer estava do lado dele e de Alyssa.

— Você veio ajudar — lançou ele, esperançoso.

Uma chave de cobre, da mesma cor dos olhos dela e quase do comprimento total de seu torso, pendia de seu pescoço. Seu olhar caiu para os pés delicados, como se estivesse lutando contra si mesma.

— Eu teria vindo mais cedo, mas Morfeu está sempre vigiando o espelho. Agora que ele está com Alyssa, preparando-a para a coroação, estará ocupado demais para ficar de olho no resto de nós... até o fim.

— O fim? — Jeb apertou a barra ao lado dela, concentrado em seu olhar de libélula. — Você tem que me contar tudo.

A fada olhou para Lorina, que estava se esticando para a porta de arame.

— Você sabe muito bem que não tem o poder de sair desta gaiola, a menos que eu a abra para você.

Bufando, a lóri voltou a voar para o trapézio.

Gossamer conduziu Jeb para a fatia de pera e os dois se sentaram. Seu perfume frutado se impunha sobre o fedor da masmorra e o acalmou o suficiente para ele poder ouvi-la.

A fada colocou as mãos sobre as de Jeb, que descansavam sobre os joelhos.

— Eu já traí meu mestre o bastante vindo até aqui, e sua ira será enorme. Eu só posso dizer que, dentro de uma hora, Alyssa estará comprometida para sempre, amarrada ao País das Maravilhas para toda a eternidade. Morfeu planejou tudo para enviá-lo de volta, cavaleiro mortal... mas sem ela.

Uma veia na têmpora de Jeb começou a se contorcer feito uma serpente em uma bandeja quente. Ele deu um pulo para cima e bateu a cabeça nas barras novamente, tentando amolecer o fio azul, incapaz de controlar a fúria exasperada que lhe fervia por dentro. Mais sangue escorreu por sua têmpora.

— Você tem que me soltar! Preciso impedir isso!

— Sim, sim! Nós também! — intervieram o dodô e sua esposa, em coro. — Temos que ajudar a Rainha Grenadine a manter a coroa!

— Naturalmente — afirmou Gossamer, pegando a mão de Jeb e puxando-o para perto dela. — Vocês todos terão a oportunidade de lutar e de mostrar a sua lealdade.

— Mas não posso lutar assim. — Jeb chutou uma semente do tamanho de seu pé. — Você trouxe algum bolo do crescimento?

— Não. Não é a força de seu corpo que salvará Alyssa, e sim a força de seu coração de artista. Mas eu posso assegurar que não sairá deste lugar em sua forma atual.

A lóri desceu de seu poleiro e ralhou com a fada.

— Agora, me escute, sua lacraiazinha. Este rapaz não tem papel nenhum. Ele é, no máximo, coadjuvante. Eu sou a criada da rainha, e Charlie é o bobo da corte. Nós deveríamos ser a sua prioridade. Somos honoráveis membros da corte, os únicos que podem dar um basta nesta paródia!

Acelerando as asas até virarem um borrão enevoado, Gossamer flutuou e colocou as mãos nos quadris.

— Quanto ao seu papel, Lorina: você pode abrir as correntes de seu marido, pois preciso falar com o mortal a sós e tenho pouca tolerância ao ferro. — Ela abriu a porta da gaiola e lhe deu a chave.

A lóri esvoaçou-se veloz, numa comoção de exibicionismo e má vontade.

— Venha, venha, Doçura Selvagem — chamou Charlie, encorajando a esposa enquanto ela flutuava em torno dele, subindo e descendo, incapaz de manter-se firme em alguma altura. — Apresse-se, por favor. O ferro está me dando fisgadas. Poxa vida! Não é tão difícil assim... tente novamente!

A cara de Lorina ficou ainda mais vermelha.

— Tente, com a ponta da asa, usar uma chave do mesmo tamanho que a sua cabeça, seu meleca! Alguns de nós não foram abençoados com dedos, sabia?

Enquanto o casal se ocupava, Gossamer sentava-se novamente ao lado de Jeb.

— Você disse que meu coração de artista pode salvar Alyssa. Naquele quarto na mansão de Morfeu, também... você disse que eu tenho o poder dentro de meu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Minha namorada está prestes a morrer para mim e para a família dela. Não pode haver escuridão maior — sussurrou Jeb com lágrimas de frustração que lhe surgiram nos cantos dos olhos.

— Morreria por ela, cavaleiro mortal?

A espinha de Jeb se retesou. No passado, toda vez que ele protegera Alyssa, sempre se jogara sem nem pestanejar. Seria capaz de morrer por ela?

Quando o pai de Jeb morreu em um acidente, foi Alyssa quem o salvou. Ele não conseguia acreditar que tinha chegado a pensar em morar em Londres sem ela. Precisava dela, todos os dias. De seu sorriso compreensivo, de como ela fez suas cicatrizes parecerem medalhas de mérito sob seu toque, e de seus olhos incríveis. Mesmo tendo passado por tantas provações quanto ele, havia uma luz dentro dela que nunca se enfraquecia. E essa luz não somente a tornava linda por fora, mas também permitia que ela trouxesse vida aos incríveis mosaicos que fazia.

Era essa luz — tanto a interna quanto a externa — que o tinha levado a desenhá-la e pintá-la tantas e tantas vezes.

Ele olhou para Gossamer, quase incapaz de conter a emoção, agora que havia encontrado uma saída.

— Ela é minha melhor amiga.

Minha musa, meu pincel, minha arte, meu coração. Tudo isso estará morto sem ela.

Esfregando o rosto, ele limpou o líquido que havia caído de seus olhos e escorrido pelo rosto:

— Eu a amo. Sim, eu morreria por ela. É isso que preciso fazer?

A fada o encarava sem piscar.

— Está disposto a ir além da morte? A se perder de todos, até de você mesmo, em um lugar onde as lembranças se esvaem em uma maré escura como tinta? Pois, para libertar Alyssa, você terá que tomar o lugar da Rainha de Marfim na caixa linguardarte onde ela se encontra presa.

Jeb lembrou-se da água escura dentro da caixa que ele havia visto na sala dos espelhos da mansão de Morfeu e da cabeça fantasmagórica que havia lá dentro, e seu coração disparou. O sentimento de autopreservação o invadiu e sua mente começou a tentar encontrar outra maneira. Mas, bem lá no fundo, ele sabia que não havia alternativa e que o tempo de Al estava se esgotando. Ele só lamentava não poder dizer a ela, nem uma única vez, com sua própria voz, como se sentia, antes de ser trancado para sempre.

— Aceito.

— E assim será. — Gossamer ficou de pé e estendeu os braços. Fraco e entorpecido, Jeb aceitou seu abraço. Ela o apertou com força e voou com ele para fora da gaiola, pousando no chão. — O mortal concordou em ser o herói de seu reino. Procurem honrar sua bravura — disparou as palavras para Lorina.

Lorina havia conseguido soltar o marido. Ela se sentou no ombro dele, abanando-se com uma asa. Com os olhos arregalados, ela aquiesceu em silêncio — a demonstração mais sincera de louvor que poderia ter oferecido. O dodô ajoelhou-se ao lado de Jeb, uma presença enorme e plumada.

— Teremos uma dívida eterna para com você, rapaz. O que podemos fazer para ajudar?

Gossamer apontou para um canto da masmorra, onde um cobertor de juta cobria uma cama, chegando até o chão.

— Tragam-me o que está debaixo daquela cama.

Entorpecido por uma mistura de incredulidade e temor, Jeb observou o dodô trazer a caixa linguardarte.

Lorina ficou perplexa.

— Morfeu manteve a Marfim escondida aqui?

Gossamer assentiu.

— Por sugestão do Rábido. Ele disse que este era o único lugar no castelo onde ninguém viria à procura dela.

Depois de pedir a Charlie que abrisse a tampa e arrumasse uma pedra onde eles pudessem subir para ver lá dentro, Gossamer pediu ao estranho casal que se afastasse um pouco para que ela e Jeb tivessem um pouco de privacidade.

Jeb afagou as rosas brancas aveludadas que adornavam o exterior da caixa, fascinado pela beleza do rosto da Marfim quando este veio à tona. O olhar cristalizado de assombro dela passava dele para a fada, e voltava — cautelosamente curioso. Ele estremeceu ao pensar que tomaria o lugar dela.

Tinha mesmo que fazer isso?

Jeb sentiu que Gossamer observava seu semblante.

— Devo perguntar uma última vez se está seguro de sua decisão — indagou ela. — Porque, como você está escolhendo ser trancado, e selando essa escolha com seu sangue, a caixa nunca o libertará. Ninguém poderá salvá-lo. Você está oferecendo sua eternidade pela da Marfim, uma rainha que você nem sequer conhece.

Jeb sentiu um nó na garganta.

— Não. Estou trocando a minha eternidade pela da Al.

Gossamer sorriu com ternura.

— Em seus sonhos, vi certa vez que você teme não ser bom o bastante para a menina. Depois de tal sacrifício, ninguém poderá questionar seu valor como homem nem seu amor por ela. — Ela o beijou no rosto, deixando um calor que penetrou seu coração e conseguiu derreter uma pequena porção do terror congelante que lá se escondia.

Gossamer deu-lhe um pincel e recuou.

— Agora, use o poder que somente você pode exercer. Pinte as rosas com o seu sangue.

Jeb foi tomado por uma tontura. Murmurou coisas... sem sentido, temerosas... palavras agonizantes que ele sabia serem as últimas.

Depois, canalizou a raiva, o terror e o desejo por um futuro que ele nunca teria para as estocadas do pincel. Cada botão branco, tingiu-os de vermelho até perder-se dentro das sombras de seu trabalho, e fundiu-se à sua obra-prima, tornando-se um só.


Capítulo 5


A Decisão da Mariposa

A cena se estendeu e ficou turva enquanto Morfeu era arrastado para fora das lembranças de Jebediah e depositado de volta na chaise-longue. A escuridão deixava a sala pesada, mas ele nem se mexeu para ligar a luminária. O cenário completamente enegrecido parecia combinar com os pensamentos obscuros que lhe cruzavam a mente.

Ele passou o dedo pela coxa, acompanhando as listras do tecido risca de giz e alisando as rugas.

Por que se sentia tão aborrecido? Ele havia encontrado exatamente o que esperava encontrar. As fraquezas de Jebediah estavam à mostra: um ódio que poderia facilmente ser manipulado, um sentimento de impotência alimentado por um pai violento e crítico, um ciúme que provocava um sentimento temerário de proteção e que lhe custaria a própria vida.

O que Morfeu não tinha esperado encontrar, entretanto, era tanta semelhança entre ele e o rapaz. Os demônios do passado atormentado de Jebediah não eram muito diferentes dos seus. Ele sempre se surpreendera sentindo inveja dos humanos... por nunca ter tido o carinho de um pai ou de uma mãe. Simplesmente por ocupar seu lugar no mundo, ele também compreendia o medo de talvez nunca chegar a conhecer completamente a confiança e a afeição de outra pessoa.

Contudo, no passado, Morfeu nunca havia considerado isso uma coisa ruim. Ele apreciava ser uma alma reclusa e independente. Por vezes, até se vangloriava, quando lhe convinha ser o centro das atenções, naturalmente. Mas a atenção, a afeição ou a confiança não eram coisas de que ele precisava. Não até aparecer Alyssa. Depois que ela escolheu ignorá-lo, ele não conseguiu funcionar... sentiu-se desastrado e incompetente.

E agora, depois de colocar-se no lugar de Jebediah, Morfeu compreendia, mais até do que desejava, como o lado humano de Alyssa funcionava. Embora metade dela tivesse asas e pudesse flutuar sobre as inseguranças e trivialidades dos mortais, a outra metade tinha seus alicerces nas coisas que qualquer outro humano ansiava: confiança e segurança.

Tendo visto a coragem e a engenhosidade de Jebediah, bem como sua lealdade a Alyssa, Morfeu soube, sem sombra de dúvida, que aquilo era exatamente o que o rapaz oferecia a ela: uma rede de segurança e emoção que a salvaria caso a queda fosse muito alta.

Não era de admirar que ela fosse tão cativada por ele. Não era de admirar que ele exercesse poder sobre ela. Diabos, o próprio Morfeu ficou morbidamente fascinado pelos honoráveis traços morais do rapaz, incomuns em um humano tão machucado. Morfeu ficou tentado a recuar e deixar Jebediah ter seu momento de felicidade. Alguns poderiam até dizer que ele o havia merecido por desejar abdicar de seu futuro, de suas lembranças e de sua vida por Alyssa.

Morfeu rosnou e caiu para a frente com os punhos cerrados, tentando suavizar o estranho peso em seu peito. O rapaz não ficaria aqui para sempre. Era um mortal. Um dia, morreria de velho, no mínimo, e Alyssa voltaria a ser um alvo fácil.

Alvo fácil.

A mandíbula de Morfeu se contraiu. O romance não era uma coisa justa. Nem era um jogo. Era guerra. E, como em qualquer outro campo de batalha, não lhe cabiam a compaixão e a misericórdia.

O besouro-tapete estava certo. As emoções humanas eram coisas imprevisíveis e poderosas. Elas haviam penetrado na cabeça de Morfeu, enfraquecido sua determinação.

Com os cotovelos nos joelhos, ele levantou as mãos com as palmas para cima, incapaz de ver a silhueta delas no escuro. Ele conjurou um pouco de magia na ponta dos dedos, em bolas elétricas de plasma do tamanho de ervilhas, e depois enviou as esferas para todos os cantos da sala, os raios azuis deixando rastros como eletricidade estática. Elas subiram pelas paredes e em seguida se uniram na forma de uma mulher. A luz pulsava em ritmo hipnótico.

Imaginar Jebediah com Alyssa, mostrando a ela os caminhos do amor, domando seu espírito selvagem com suas corriqueiras convenções humanas, tudo isso queimou a garganta de Morfeu com o sabor amargo da inveja.

Ele não queria que o lado selvagem de Alyssa fosse dominado por nenhum outro homem, não desejava compartilhar nenhuma parte dela. Morfeu desejava os dois lados: sua inocência e seu espírito desafiador.

Que graça poderia haver na dependência? Que espontaneidade poderia haver em um mundo previsível? Ele poderia lhe oferecer uma eternidade de desafios e paixão, de momentos ternos e calmos nas profundezas de chamas vibrantes e tempestades devastadoras — a tranquilidade em meio ao caos.

O lugar dela era com ele, usando trajes de soberana. Ele tinha tanto a ensinar-lhe sobre o reino intraterreno, sobre as glórias da manipulação e da loucura. Se Morfeu alimentasse o faminto lado intraterreno de Alyssa, suas inseguranças e inibições humanas diminuiriam e, com o tempo, poderiam desaparecer. Ela nunca mais ansiaria pelo amor seguro de Jebediah.

Morfeu invocou sua magia de volta, recolhendo as espirais de luz azul até ficar novamente envolto na escuridão. Suas asas varreram o chão quando ele se levantou, e ele as ergueu num arco que quase tocava o teto.

Nada mais de deliberações. Ele tinha tentado fazer o que era justo em instâncias passadas e, sem exceção, isso sempre o prejudicara. Podia ignorar a pontada de culpa que lhe agitava o peito, mas não podia abdicar de suas necessidades pelas necessidades de Jebediah. Ele nunca mais seria ele mesmo sem Alyssa ao lado — a chama para sua Mariposa. Morfeu não pararia até que ela voltasse para o lugar que lhe pertencia, no País das Maravilhas.

Para vencer, ele jogaria sujo, colheria os despojos do coração dela do modo como fosse necessário, não importava quanto isso custasse ao rapaz mortal. Afinal, este era o modo intraterreno. Fazer menos que isso faria de Morfeu um humano. E ele sabia, agora mais do que nunca, que essa era a última coisa que jamais desejou ser.


SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS
Epígrafe

ÀS VEZES PENSO EM SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS ANTES DO CAFÉ DA MANHÃ.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Um

Mortalidade

Capítulo 1

Deportação

Algumas pessoas podem dizer que é impossível morrer e viver para contar. São as pessoas que nunca experimentaram a mágica. Quanto a mim, sou tataraneta da Alice que inspirou Lewis Carroll. Acreditei no inacreditável por mais de sessenta e quatro anos, desde que tinha dezesseis e descobri que o País das Maravilhas era real e cheio de seres caprichosos, misteriosos e loucos, governados por acordos e enigmas. Ainda assim, às vezes, por mais que você acredite no impossível, as coisas não saem como você as planejou. Toda mágica pode encontrar um obstáculo de vez em quando.

Por exemplo, nunca esperei que meu cadáver acabasse numa caixa de sapatos. É isso que os caixões crematórios me lembram... uma caixa de papelão do tamanho de uma pessoa. O caixão não é muito confortável. Não há a forração de veludo para suavizar a base de madeira. Nenhuma almofada para acomodar minha coluna curvada. E nada de roupas, além de um vestido de papel para cobrir minha pele velha e enrugada.

O cheiro de papelão se fixa ao meu nariz e as rodas de aço da maca giram ao longo do corredor, rangendo em algum lugar sob mim, junto a passos familiares. Sinto a transição do ambiente fresco e de temperatura controlada onde o legista atestou minha “morteza” (como os seres do País das Maravilhas diriam). Ele, então, pôs uma identificação de aço inoxidável no meu peito e fechou uma tampa sobre mim, me prendendo na escuridão.

A maca sacode ao entrar num lugar muito mais quente. O cheiro de ovo podre do propano confirma nossa localização. Já visitei este lugar. Nos últimos meses visitei vários crematórios, quando não havia ninguém por perto, de madrugada. Para conhecer melhor o gigantesco forno de tijolos à vista que estaria esperando para queimar minha carne. Para encontrar o projeto perfeito, com um banheiro e um espelho de corpo todo do outro lado do salão.

Assim que optei pelo crematório do Pleasance Rest Cemetery, me preparei para morrer.

Meu plano original era usar Tetrodotoxina. Em doses pequenas, subletais, ela deixa a vítima num estado de quase morte por dias, permitindo que ela mantenha a consciência. Morfeu, porém, não concordava. Ele disse que a margem de erro entre o estado de quase morte e a morte de verdade era pequena demais no mundo mortal e não algo com o que se brincar. Ele não queria que eu arriscasse. Então, ofereceu uma substituto do País das Maravilhas: uma poção que funciona quase da mesma forma, mas que tem um antídoto cem por cento garantido.

Bebi a dose de quase morte nesta manhã e, dez horas mais tarde, ainda sinto o gosto amargo e anestésico, como cravos dançando no fundo da garrafa de vinagre. Não consigo morder a língua para aliviar o efeito. A mágica me deixou catatônica — meus olhos fechados e imóveis, meus batimentos e respiração reduzidos a um ronronar indetectável por quaisquer instrumentos humanos.

Meu lado intraterreno se remexe dentro do meu crânio, me garantindo que isso vai dar certo, mas meu lado humano instintivamente se encolhe quando o medo tranca minha garganta. Não posso gritar para dizer a todos que estou viva. Minhas cordas vocais não vão funcionar. A claustrofobia, minha velha inimiga, me deixa toda arrepiada. Sei o que está acontecendo ao meu redor, apesar de não conseguir abrir os olhos ou mover meus membros. Todos os cheiros, sons e sensações táteis são ampliados por minha incapacidade de reação.

Os paramédicos que atenderam, nesta manhã, à chamada de emergência da minha neta de vinte e sete anos me declararam morta — fulminada por um ataque cardíaco. Foi insuportável ouvi-la chorar e gritar. Isso despertou lembranças da minha maior perda — da morte de Jeb, três anos antes. Uma faca ainda é cravada no meu peito sempre que me lembro do nosso último adeus.

Mas Jeb me mandou ser firme. E ensinei aos meus netos o mesmo — sempre encarar as coisas. Ela ficará bem. Não tenho dúvida disso porque ela é muito parecida comigo, para além de seus cabelos loiros, olhos azuis e curiosidade. Ela é teimosa, leal e uma sobrevivente.

Assim que os paramédicos levaram meu corpo ao necrotério, tudo funcionou como o previsto.

Minha família sabia que cemitério eu escolhera e as quatro exigências do meu testamento: nada de exibição pública do meu corpo, nada de velório, cremação em doze horas depois da minha morte e a dispersão das minhas cinzas no mesmo local onde as de Jeb foram jogadas, sob o salgueiro em nossa casa de campo. A árvore tinha um significado especial, por ter sido gerada de uma mudinha do salgueiro que dividia os quintais da nossa casa quando éramos crianças.

Tais pedidos nada convencionais não abalaram minha família, considerando que me tornei uma mulher muito excêntrica.

Depois da morte de Jeb, eles me viram vagar pela casa de campo, reunindo os mosaicos que fiz ao longo da vida, cheios de paisagens bizarras e místicas — com títulos como A Batida do Coração do Inverno, Dunas de Xadrez e O Ventre do Monstro —, e guardando-os no sótão, ao lado de outras quinquilharias, incluindo um anúncio de um passeio pelo Tâmisa, em Londres. As últimas coisas que guardei ali foram duas chaves: uma que pertencia à minha mãe, e era capaz de transformar qualquer espelho num portal, e outra que podia abrir o jardim das almas do País das Maravilhas. Esta última foi um presente dado a Jeb, depois que ele desistiu da sua musa, de modo a satisfazer a necessidade do reino interior por sonhos vívidos e cheios de imaginação, conectando nossos mundos em paz ao longo do processo. Ele desistiu do que fez dele único, a fim de manter as crianças humanas seguras. Um ato de coragem que seus filhos e netos jamais tiveram o privilégio de saber. Era essa a lembrancinha de que eu tinha mais dificuldade para me desapegar, porque era uma homenagem à coragem e ao caráter nobre de Jeb — as duas coisas que eu mais amava nele. No entanto, como Rainha Vermelha do País das Maravilhas, eu não tinha motivo para guardar chave tão sagrada.

Escondi tudo num baú no sótão e o tranquei. Então pus a chave do baú em meio às páginas da minha velha coleção de Lewis Carroll. Jeb e eu éramos donos da casa e do terreno que a cercava, e insistimos, em nossos testamentos, para que o lugar permanecesse sempre com a família. Assim, se nossos descendentes um dia precisassem me encontrar, poderiam. Eles só precisam procurar as pistas, como um dia eu fiz. Seguir meus passos e acreditar no impossível — em contos de fadas e desejos e mágicas.

Sempre os mantive no escuro quanto ao nosso legado, dando-lhes uma chance de viver uma vida normal. Até mesmo ordenei que os insetos e flores ficassem em silêncio. Agora sou a única capaz de ouvir esses sons do mundo interior, e as coisas continuarão assim enquanto eu estiver reinando como a Rainha Vermelha. Contudo, se algum familiar procurar com presteza, vai encontrar a verdade que escondi para eles.

Em todos esses anos, eles aceitaram meus caprichos porque sempre os respeitei e os amei incondicionalmente. E agora conto com a lealdade deles. Todo o meu plano de morrer depende da execução do meu testamento.

A cremação era a única forma de evitar que drenassem meu sangue, bombeassem formol em minhas veias e cerzissem minhas pálpebras — todos aqueles procedimentos mórbidos e intrusivos para embalsamar e preservar o corpo mortal. Fui abençoada ao longo dos meus oitenta anos de vida humana com saúde e uma mente aguçada. Nunca precisei de marca-passo e não tenho próteses, implantes ou dentaduras, então não há nada que possa explodir no forno. Isso significa que não haverá incisões nem extrações. Era importante que eu permanecesse intacta — por dentro e por fora.

Todavia, se o Rábido Branco não se apressasse e chegasse aqui com o antídoto para me tirar deste estado, nada importaria. Vou virar um monte de cinzas. E Morfeu terá de encontrar um lar novo para meu espírito eterno... um novo corpo para eu habitar.

Ele ficará furioso se isso acontecer e nunca me deixará esquecer isso. Uma eternidade é muito, muito tempo para ouvir eu avisei, entoado continuamente com um marcado sotaque londrino.

— Não me importo — disse ele há duas semanas, enquanto discutíamos meu êxodo do reino humano e tomávamos chá durante uma das minhas visitas ao País das Maravilhas em sonho. Ele levou a xícara à boca, seu rosto curioso perfeito e jovem como sempre. Ele bebeu e deixou a xícara de lado novamente. — Muitas coisas podem dar errado. Devo estar lá para executar meu plano.

— Vou agir sozinha — declarei. Estudei a cama com dossel e a lareira instaladas na diagonal em relação a enormes poltronas vitorianas ao lado de uma mesa oval, buscando conforto no cenário. — E vamos seguir meu plano. — Aqueles seriam meus últimos instantes no reino humano. Tinha de ser de acordo com a minha vontade. Contive uma descarga de tristeza e tentei exibir o mesmo controle que Morfeu exibia com sua xícara de chá, mas o líquido quente molhou minha mão velha quando meu pulso tremeu. Gritei.

— Alyssa, por favor. Permita-me. — Com seus dedos lisos e elegantes, ele cuidadosamente segurou meus dedos enrugados, limpando o chá e acariciando a mão queimada com um guardanapo.

Permita-me. Nós dois sabíamos que ele falava de outras coisas além da limpeza do chá derramado.

Tantos anos passamos juntos nos meus sonhos — e tantos outros na nossa infância —, com Morfeu me treinando e me ensinando sobre meu reino e o mundo. Não havia oportunidades para ficarmos sozinhos, já que ele mantinha o véu do sono descoberto para eu poder interagir com o Rábido, Chessie, Marfim, as criaturas e meus súditos.

Isso mudou quando fiquei viúva. Realizava meus deveres reais todas as noites e lutava para ser forte, até que meu luto pela morte de Jeb ficou tão intenso que as lágrimas se acumulavam em meus cílios, me cegando. Morfeu — sentindo minha vergonha, porque rainhas não choram — insistia que era hora do chá, que tomávamos sozinhos nos aposentos reais que um dia pertenceria a nós como rei e rainha.

Ali, na nossa solidão, escondidos de olhos predadores e cercados por exuberantes tapetes vermelhos e cortinas douradas, eu me perdia em minha dor. Permita-me, dizia ele. Estendendo os braços, ele me abraçava enquanto eu chorava. Noite após noite, durante um ano, até que finalmente não conseguia mais chorar.

Pouco depois, a atenção de Morfeu mudou. Seus carinhos se tornaram menos confortantes e mais íntimos. Estava constrangida demais para reagir, tímida demais em meu corpo velho.

Um ser místico eternamente jovem cortejando uma velha — teria rido do absurdo disso, não estivesse tão afetada pela devoção cega dele e pela intensidade do seu amor.

— Mesmo que usássemos seu plano... — Morfeu falava baixinho e de mau humor ao esfregar o guardanapo entre meus dedos, enxugando os resquícios de chá. — ... ainda assim eu deveria estar lá nas coxias, para supervisionar o espetáculo.

Franzi a testa para ele. Sua teimosia, juntamente com a dança dos vaga-lumes em seus cabelos desgrenhados e seus traços bizarramente belos, me fez lembrar outra noite em que nos sentamos neste quarto juntos — há várias décadas —, quando ele tentou me convencer a usar a coroa de rubi pela primeira vez. Quando tentei convencê-lo a me devolver meu desejo para eu poder fugir do País das Maravilhas, curar a maldição da minha família e manter Jeb em segurança. Eu era uma pessoa diferente na época, cheia de juventude, aspirações humanas e inocência.

Nosso quarto real se tornou uma lembrança dolorosa da velhice e decrepitude. Ansiava criar lembranças novas aqui, depois de desistir de tentar superar a beleza caótica do País das Maravilhas, quando fui coroada rainha de novo e permaneceria com dezesseis anos para sempre — jovem, cheia de energia e tão sedutora quanto o homem alado que governaria ao meu lado.

Até então, eu não me encaixava. Eu era uma foto deixada ao sol e chuva, minhas cores vibrantes se desbotando melancolicamente e ganhando um tom amarelado. Meus poderes intraterrenos ainda eram fortes, mas estavam presos num vaso gasto pelo tempo. Meus ombros pareciam curvados e pesados demais, eu raramente usava minhas asas. Do que mais sentia falta era voar.

Eu me perguntava se era assim que a Rainha Vermelha se sentiu no fim e por que ela permitiu que Morfeu a convencesse a voltar ao País das Maravilhas, abandonando seus descendentes semi-humanos. Por fim, foi plano dela voltar, apesar de não querer fazer aquela jornada sozinha. Ela brigou com Morfeu, dando início a uma série de eventos e manipulações que acabaram por me levar à coroa e me tornar rainha. Algo pelo qual aprendi a agradecer, apesar de na época ter reclamado do presente. Demorei muito para admirar totalmente a preciosa imortalidade, e jamais desvalorizaria isso novamente.

Depois que Morfeu terminou de limpar o chá derramado, tirei a mão da dele e timidamente cobri meu pescoço com o lenço de seda, tentando esconder minhas peles murchas. As pessoas diziam que eu era linda para a minha idade. Que parecia ao menos vinte anos mais nova. Todavia, em comparação à beleza sobrenatural e imutável de Morfeu, eu me sentia velha.

— Não quero você lá — insisti, determinada a mantê-lo distante da casa funerária. — Já basta você ter me visto murchar como uma uva-passa ao longo dos anos. — Até minha voz soava enferrujada, como se as palavras jorrassem da minha garganta e língua em porções cáusticas.

Morfeu apoiou os cotovelos na toalha da mesa, aproximando-se ao máximo com o jogo de chá entre nós. Seus cabelos azuis tocaram-lhe os ombros, animados e encantados — um contraste marcante com as ondas brancas reduzidas a um coque preso atrás da minha cabeça.

— Você está no fim de sua crisálida, meu amor. Esta etapa é a mais difícil, acredite. Uma batalha furiosa e incômoda de identidade, antes de se libertar e se transformar na criatura de luz e criatividade que sempre foi seu destino. Posso mantê-la atenta. Para evitar quaisquer... distrações.

Ele olhou para minha aliança, que eu ainda não tinha tirado. Aquilo se tornara mais do que um símbolo da nossa devoção. Tornara-se um símbolo da minha vida humana, e eu pretendia usá-la até deixar tudo para trás.

Com o dedinho, Morfeu circulou a aliança, cuidando para não tocar os diamantes ou o suporte de prata que os mantinha no lugar.

— É importante que você não permita nada que a impeça de dar o salto final. Você sofreu a perda daqueles que se foram há tanto tempo. Eles estão em paz. Deixe que a paz deles lhe dê paz. Senão, você será afetada... incapaz de agir com a mente ágil. O foco é fundamental para que qualquer um dos planos funcione.

— Já sei disso — respondo, um aperto no peito dolorido. — Você tem medo de que eu fique senil. De eu não ser capaz de lidar com isso.

Ele suspirou, acariciando meu polegar com o dele.

— Não senil. Nostálgica. Acontece a humanos. Você mesma me contou, enquanto eu a via amadurecer do refinamento à sabedoria.

— Refinamento. — Tentei um sorriso hesitante diante do esforço dele em me encantar. — É assim que vocês falam hoje em dia?

Ele me encarou sem hesitar.

— Seus olhos não perderam a incandescência; nem a mente, a inteligência. Você não é ingênua. Você é minha torta de ameixa, e sempre foi. Já lhe disse isso repetidas vezes, não é?

Ao menos uma vez por noite nos meus sonhos, Querida Mariposa.

Não respondi em voz alta, assim como não revelei minhas maiores inseguranças: estava com vergonha de ele me ver tão decadente... Não suportava a ideia de ele ter qualquer lembrança de mim como um cadáver naquele caixão de papelão — assim como eu vi Jeb depois da morte dele, antes de ser cremado.

— Uma rainha não deveria exigir resgate — sentencio. Ainda o encaro, maravilhada com aquelas íris coloridas que devolvem a mim o mesmo olhar de nossa infância, cheio de surpresa e afeto. De certa forma, ele via para além do meu corpo velho e enxergava a menina que fui, e eu queria muito conseguir me ver como ele me via. — Uma rainha deve merecer o respeito do seu reino e de seus súditos. E a admiração do rei.

Ele pegou minha mão novamente e beijou cada um dos nós dos dedos cheios de artrite.

— Ah, eu lhe garanto Você sempre mereceu isso. Na verdade, planejo mostrar-lhe a profundidade de minha admiração. — A palavra profundidade saiu de sua garganta como um urro. — Ainda que sejam necessárias várias vezes para convencê-la, finalmente chegará o momento de você ser minha.

Meu rosto ficou vermelho. Apesar de todos os anos em que ele me elogiou e me provocou com insinuações, e a despeito de tudo o que vivi como mãe, esposa e avó mortal, ele ainda conseguia me fazer enrubescer.

— Ah, aí está. — Ele passou o dedo por meu rosto enrugado e sorriu, satisfeito demais consigo mesmo. — Não perdi meu encanto.

— Como se isso fosse possível, para o mestre da sedução verbal — provoquei.

Seu humor mudou para a insolência num piscar de olhos.

— Você logo verá que isso é mais do que conversinha, minha rosa.

Fiquei ainda mais vermelha, sentindo-me mais jovem do que nunca. Ele sempre causava esse efeito em mim. Sempre fez com que eu me sentisse viva e desejável. Exceto pelas vezes que ele me desafiava ou me deixava furiosa.

Ele se recostou em seu lugar, as asas erguidas.

— Seu corpo está cansado. Deixe-me fazer isso por você, para você poder descansar — tentou ele uma última vez.

— Você me ensinou a ser forte e astuciosa. Devo dar sozinha este último salto para dentro da toca do coelho. — Uma sensação inesperada de vulnerabilidade me fez tremer. Peguei minha xícara de chá para absorver seu calor. — Mas você estará lá para me pegar?

— Estarei lá esperando um beijo arrasador para compensar todos os meus problemas — respondeu ele sem hesitar.

Sorrindo, peguei o jogo de xadrez. Morfeu ficou observando atentamente eu animar as peças para que atuassem no meu grandioso plano de deixar o reino humano e esconder meus vestígios com a ajuda do meu conselheiro real, além de pedaços de osso fornecidos pelas fadas, um saco de cinzas, dois trajes de disfarce, uma mosca comum e um punhado de duendes. Enquanto eu falava, seu olho adornado com joias brilhava num tom esverdeado — incomodado, mas esperançoso. A ansiedade que emanava dele era visceral.

Era inconcebível que tivéssemos um relacionamento de sessenta e três anos — platônico — sem um quê de tensão. Apesar de ele gostar muito de me ver andar na ponta dos pés na corda bamba da sedução contida, ele manteve seu juramento e respeitou minha decisão de ser fiel a Jeb. Ele esperou três anos, enquanto eu sofria a morte do meu marido mortal e preparava minha família para minha partida iminente. Era essa a profundidade do respeito dele por mim. Ele teve meu respeito em troca. E muito mais...

Agora chegou o dia de recompensá-lo por sua paciência e estou começando a me arrepender por não deixá-lo planejar minha morte... por não deixá-lo controlar o espetáculo. Provavelmente, tudo seria muito mais fácil. Eu já estaria em seus braços e em sua cama — uma jovem rainha borboleta, governando meu reino, embriagada de poder, loucura e paixão.

Não. Eu consigo. Posso provar que sou capaz, calculista e forte, como todas as boas rainhas deveriam ser.

O único papel de Morfeu no meu plano era mandar o Rábido com o antídoto. Assim que meu cúmplice chegar, tudo se encaixará e fugirei para o País das Maravilhas. Como um corpo não pode ser exumado depois de reduzido a cinzas, ninguém saberá que ainda estou viva e apenas fui embora deste mundo para sempre.

Uma pontada de tristeza segue-se a esse pensamento quando finalmente me dou conta. Acabou. Estou pronta para dar um fim... para começar meu futuro imortal. Vivi uma vida plena aqui. Minha família é saudável e feliz. Estamos no auge. Todos os sonhos humanos foram realizados e meu coração está firme e forte novamente.

Se bem que, por causa disso, há muita coisa a ser deixada para trás. Não há nada inconcluso, mas ainda assim é difícil dizer adeus para sempre. Assim que a coroa for colocada em minha cabeça para dar início à minha imortalidade, não terei de usá-la constantemente para manter minha juventude, mas terei de ficar no País das Maravilhas. Como Marfim uma vez me disse, o tempo é complicado ao se passar pelo portal a fim de retornar ao mundo humano... há de se imaginar uma hora específica, ou o relógio retrocede e o portal deixará você no mesmo momento de sua passagem.

Se eu tentar cruzar as fronteiras para o reino humano depois de partir, voltarei para sempre a este momento e terei oitenta anos para sempre, ou automaticamente envelhecerei todo o tempo que se passou e virarei pó na hora. Acrescente-se a isso o fato de eu estar morta aos olhos de todos — jamais poderia explicar meu reaparecimento sem causar terror e confusão — e ir e voltar não será mais uma opção.

Uma muralha impenetrável está prestes a se erguer entre mim e minha família, deixando-nos sem nada além de memórias.

O rosto de Jeb reapareceu em minha mente antes que eu pudesse impedir... como seus olhos verdes brilhantes me encararam pouco antes de ele os fechar na morte. Como eles estavam tão cheios de amor e gratidão por todos os sonhos que compartilhamos.

Sinto algo crescer na minha garganta e uma dor atrás dos olhos. No meu peito, a pequena identidade de metal parece uma pilha de tijolos.

Pare. Não posso fazer isso agora. Tenho de me concentrar na fuga. Morfeu tinha razão. Pensar naqueles que amei só vai me atrapalhar. Vou manter as lembranças sob controle... esquecer como encarei a morte da mamãe e do papai, como achei que jamais superaria a dor. Como Jeb foi meu porto seguro, como sempre. Assim como fui para ele, quando a mãe dele morreu.

É fútil pensar nessas coisas agora, porque, assim que Jeb morreu, todo o mundo se distorceu — adquiriu uma nova forma que eu não reconhecia. As coisas cotidianas se tornaram estranhas e desagradáveis. Com a morte dele, eu não fazia parte de mais nada.

Minha metamorfose estava completa assim que meu marido mortal deixou de respirar. Só o que me restava agora era sair do meu velho casulo.

Um cheiro novo entra em meu entorno de papelão — loção pós-barba ou desodorante —, me obrigando a voltar ao presente enquanto dois homens conversam do lado de fora do caixão.

— Última da noite, Frank?

— É isso, Brian. Chegou há algumas horas. Só entrega. E é para se apressar com ela. Quer que eu fique e ajude?

Tenho dificuldade para respirar. Meu plano não permite duas testemunhas. Só uma. Enquanto espero pela resposta do operador do crematório, meu coração se encolhe dentro de mim, cheio de medo. O órgão parece tremer, apesar de não haver pulsação em meus pulsos ou ouvidos. Só uma vibração fria e indiscernível por trás do meu esterno, como gelatina gelada retirada da fôrma.

— Não — diz finalmente Brian, mexendo em alguns papéis. — Posso fazer isso de olhos fechados.

A ironia é risível. Se tudo sair como planejado, ele não só terá seus olhos fechados, como também estará dormindo e sonhando.

— Vá para casa e fique com sua família — conclui Brian. — Diga a Melanie e às crianças que mandei um oi.

— Entendi. Até amanhã.

As portas se fecham com um rangido e o alívio toma conta de mim, mas por pouco tempo. Os cliques e claques da esteira mecanizada balançam as paredes de papelão do meu caixão e agitam meus ossos rígidos. Sinto um balançar leve sob minha coluna enquanto meu caixão segue por uma esteira com rolos de metal. À medida que estes se movem, as chamas crepitam mais alto, aquecendo meus pés no ponto onde a parede sob a sola dos meus pés se aproxima perigosamente da entrada do incinerador.

Era para o Rábido estar aqui antes que o forno de temperatura controlada estivesse quente o bastante para acionar o mecanismo de abertura. As coisas estão acontecendo fora da sequência e rápido demais. Meus músculos doem e ganham vida, mas estão rígidos como aço. Imóveis. Um vislumbre de outra lembrança me arrepia: quando a Rainha Vermelha controlou meu corpo naquele último dia em Qualquer Outro Lugar. Quando eu era uma marionete dela. Sinto-me tão impotente agora quanto naquele tempo.

Estou prestes a ser envolta em chamas. Meu corpo não vai sobreviver. De todo modo, preciso sobreviver. Prometi voltar como eu mesma. Inteira. É uma promessa que não posso quebrar. Morfeu esperou demais por meu retorno. Não posso decepcioná-lo.

A dúvida ergue sua cabeça horrível: o que farei? Não consigo me mover, não consigo me livrar... não sem o antídoto. Um vazio dói por trás dos meus canais lacrimais enquanto desejo que uma enchente me liberte e encha toda a minha caixa com um oceano de lágrimas para me salvar do fogo. Mas meus olhos podiam muito bem estar cheios de areia.

Chega de drama, meu amor. Use sua mágica. Improvise e encontre uma forma de escapar.

Não tenho certeza se é a voz de Morfeu na minha cabeça ou se é minha própria voz. Ouvi o sotaque dele e sua insistência tantas vezes ao longo da vida que eles estão entranhados em mim como se fossem meus.

Seja qual for o caso, isso desperta minha determinação. Há um motivo para eu ter vindo a este lugar na noite passada, quando tudo estava escuro e em silêncio: para poder anotar mentalmente todas as coisas que poderia animar se precisasse. Para poder entender a logística do forno crematório. Para poder usar minha mágica às cegas.

Concentro-me no maquinário da esteira. Aprendi uma coisa ou outra sendo esposa de um mecânico. As molas do mecanismo se contraem enquanto as imagino se retraindo. O movimento aciona as amarras e a porta de metal se fecha com um baque. Minha caixa para imediatamente ao atingir o obstáculo.

— Você só pode estar brincando comigo — resmunga Brian. Ele mexe na maçaneta da porta e bate nas dobradiças. — Pronto. Agora, sim.

Ele empurra meu caixão de volta para a esteira de metal, criando espaço para a dobradiça se abrir. Minha mente procura outra forma de detê-lo quando o ouço gritar “Mas o que é que...?”, pouco antes de ouvir o som do seu corpo caindo no chão. O caixão bate na porta fechada novamente.

— Rainha Alyssa — uma voz fina soa do outro lado do papelão.

Nikki, sua fadinha maravilhosa. Um formigamento se irradia pelos meus lábios, o fantasma de um sorriso esperando para se abrir. Meus dedos dos pés se dobrariam de empolgação, não fosse minha paralisia.

A tampa do caixão se abre e as asas de vinte fadas pairam ao redor do meu rosto — lufadinhas de vento com cheiro de canela e baunilha.

Mãozinhas do tamanho de joaninhas seguram minhas pálpebras, abrindo-as diante de um brilho âmbar. Ainda não consigo virar a cabeça, mas pela minha visão periférica a galhada do Rábido aparece sobre a borda do caixão, seguida por um par de olhos rosados brilhantes.

— Atrasado estou — desculpa-se ele.

Tento menear a cabeça, mas não consigo.

Todo o seu rosto aparece diante de mim.

— Arrumá-la, Alteza. Levá-la para casa, finalmente.

Casa. A palavra passeia por minha mente, cheia de promessas e esperanças. Imagino-me voando com Morfeu pelos cenários bizarros e irregulares do País das Maravilhas. Como vai ser bom me sentir pertencente a um lugar de novo. Fazer parte e nunca ter de abandonar ninguém novamente.

O Rábido estica o braço magro e derrama em minha garganta algo de uma garrafa vermelha. Um leve toque de frutas vermelhas misturado a menta arde em minha língua. Meu coração ganha vida, batendo com tanta força contra meu esterno que eu perco o fôlego. Em pouco tempo, sou capaz de abrir os olhos sem a ajuda das fadas. Elas se dispersam com risadinhas e pairam ao redor do adormecido operador do crematório, caído no chão de cimento.

Pisco com força e rapidez. Meus canais lacrimais funcionam e meus olhos se enchem de água. O sal fere e coça.

Depois, meus dedos dos pés e das mãos latejam e os músculos despertam, moles e resistentes, como elásticos esticados demais. Enquanto me sento, minhas velhas articulações estalam.

O Rábido sobe na beirada da inclinação e segura o caixão, mantendo-o ao meu nível.

— Perdoe o Branco Rábido. Para todo o sempre, ao seu lado estarei.

Acaricio sua cabeça macia.

— Nenhum perdão é necessário. O que importa é que você está aqui agora. Alguém o viu saindo do banheiro?

O Rábido faz que não.

— A mosca no muro ficou de olho no futuro. — Ele ri da rima e aponta para a parte de cima da porta que ostenta a única janela do salão. A mosca anda pelo vidro do outro lado, numa demonstração de sua devoção inabalável.

O Rábido abre o sorriso sorrateiro que aprendi a apreciar, enquanto sua mão esquelética me entrega uma mochilinha. Olho dentro e está tudo ali: meu colar com o rubi, minha aliança de casamento, os trajes de disfarce, um saco de cinzas e pedacinhos de osso, uma muda de roupa, uma faca e três lembranças da minha vida humana que serão as únicas coisas que levarei comigo ao transpor os limites do País das Maravilhas.

Primeiro, coloco o colar em volta do pescoço e aperto a chave contra o peito, saboreando o poder que ela contém.

O operador do crematório ronca no chão. Ele parece com frio e nada confortável, mas sei que não está. Seus sonhos são cálidos e sensuais. As fadas voam ao redor dele, as asas batendo à velocidade de beija-flores, enquanto elas espalham partículas que são como dentes-de-leão cheios de feromônios. As sementinhas caem sobre o rosto sorridente do homem, levando seu inconsciente a imaginar as fantasias mais carnais. Torço o nariz, com vergonha até de imaginar o que ele está sonhando. Ele provavelmente vai ter uma ressaca de sonhos por uma semana.

Ainda que ele não vá sofrer nenhum efeito físico duradouro, as fadas estão explorando os pensamentos secretos dele. Quando eu era mais nova, teria me arrependido de tê-lo usado em meu plano. Agora, não. Quando ele acordar, daqui a mais ou menos uma hora, sua dor de cabeça insuportável o impedirá de questionar como conseguiu me cremar enquanto ele dormia. Ele só irá querer uma aspirina e sua cama macia em casa.

O fim justifica os meios.

Uso a faca para cortar uma abertura na lateral do caixão e tirar minhas pernas, lenta e cuidadosamente. Não consigo me mover tão rápido quanto antes. Meus pés descalços tocam o chão frio, o vestido de papel fazendo barulho. O Rábido se vira de costas enquanto tiro o vestido e o jogo dentro da caixa, depois visto um moletom e botas cinza — as roupas mais confortáveis e discretas do meu armário. Repreendo-me por me esquecer das roupas íntimas, mas não importa o que estou vestindo agora, porque no País das Maravilhas Morfeu encheu todos os armários do castelo com camisolas e lingeries de renda, cetim e veludo — um guarda-roupa digno de uma rainha.

Hoje, o disfarce esconderá meu traje simplório. Coloco o pé no tecido mágico. Para virar uma camaleoa, só preciso vestir o capuz e me concentrar nos arredores, meu corpo refletindo o cenário de fundo.

Mas primeiro...

Sem eu nem pedir, o Rábido me entrega o saco de cinzas e ossos e minha aliança de casamento. Olho o anel. Jeb o fez para mim quando tinha a capacidade mágica de pintar coisas e lhes dar vida. Quando sua musa se tornou uma entidade viva. Ele me serviu tanto como anel de noivado quanto como anel de casamento e era indestrutível. Pelo menos era o que pensávamos. A única vez que ele perdeu um de seus doze diamantes foi por descuido da minha mágica, quando eu a estava praticando.

Estava do lado de fora da nossa casa de campo, tentando fazer o salgueiro dançar, quando o diamante caiu na grama. Procuramos e procuramos, mas nunca o encontramos. Depois de uma semana, ele apareceu de novo, nascendo do solo na forma de uma flor parecida com vidro. Era como se o diamante fosse uma semente, tendo dentro de si a força da criação mágica de Jeb.

O cheiro de terra presente na lembrança dá lugar ao cheiro do propano do forno. Abro o saco e derramo as cinzas e ossos no caixão, mantendo os movimentos metódicos e precisos para a nostalgia não tomar conta de mim novamente.

Depois de esvaziar o saco, beijo minha aliança e a coloco em cima do montículo.

— Rábido, derreta isso com sua mágica.

Meu conselheiro real se aproxima, olha pela abertura e estreita seus olhos brilhantes até que eles irradiem um calor vermelho. Enquanto ele se concentra, as faixas de prata se fundem, reduzindo os onze diamantes a cinzas.

Coloco a placa de identificação dentro do caixão e leio o que está gravado no aço: Alyssa Victoria Gardner Holt. Sinto um nó na garganta. É a última vez que meu nome humano me definirá.

Reposicionando a tampa, ordeno que o mecanismo da porta funcione. Entrefecho os olhos diante do calor e das chamas, enquanto as portas se abrem o bastante para eu empurrar o caixão pela esteira, a porta se fechando em seguida. Ela se fecha completamente, tanto que nem mesmo se pode ver o brilho alaranjado lá dentro.

Alguns segundos mais e eu estaria presa ali. Agora, depois que o papelão se queimar todo, vai parecer que eu estava. As prateleiras de metal na parede contêm vários cubinhos de papelão. Dentro estão os restos mortais dos corpos que vieram antes de mim e agora esperam ser transferidos para suas urnas.

Mas meus “restos mortais” são únicos. Os diamantes de Jeb esperam lá dentro — sementinhas mágicas. Quando as cinzas forem lançadas no lugar onde as dele foram absorvidas na terra sob nosso salgueiro, flores nascerão, uma parte dele e minha. Unindo o que restou de nosso lado humano, numa última homenagem a toda a beleza que ele criou durante a vida.

Seguro-me para não chorar e pego a mochila enquanto o Rábido veste outro traje de disfarce, o qual encolhe até caber em seu corpo de coelho. Mentalmente, pergunto à mosca se o corredor está livre.

Ela responde num sussurro:

Está tudo bem, Rainha Alyssa...

Os outros humanos se foram. Não há nada além de umas traças por aqui.

Desnecessário ficar invisível, então.

— Nikki — sussurro, e a fadinha balança as asas, soltando a dose final de pó de fada no homem adormecido. Então ela reúne suas companheiras e nos segue porta afora. O banheiro fica a poucos passos do outro lado do corredor comprido e escuro. Sigo tomando cuidado para não esmagar as traças que caminham perto dos meus pés e dos pés do Rábido. Sorrio ao ver os insetos acompanhados de uma fila enorme de baratas, besouros e aranhas.

Rainha Alyssa! Rainha Alyssa! Tão triste vê-la partir...

A mosca voa ao redor da minha cabeça, acrescentando suas despedidas à confusão.

— Sentirei saudade de vocês também — digo, lutando contra uma onda de melancolia. Será a última vez que ouvirei esses cumprimentos confusos e zunidores. No País das Maravilhas, os insetos são... bem diferentes. Menos inócuos e bonzinhos. Alguns são maus e letais, e nada pequenos. Mas conheço todos os segredos deles e todas as suas fraquezas — graças ao sábio guardião do País das Maravilhas.

Nosso desfile entra no banheiro e para diante do espelho. Em vez de me ater à minha aparência velha e enrugada, imagino o relógio de sol que cobre a toca do coelho em um jardim londrino. O vidro racha como gelo no lago e, no reflexo entrequebrado, o relógio de sol aparece, marcado por uma réstia de pôr do sol rosa. É cedo e ninguém ocupa a trilha ainda. Como precaução, visto o capuz e o Rábido faz o mesmo.

Só precisamos de um ou dois pensamentos sobre nossas cercanias e seremos invisíveis.

Usando minha chave, miro numa fissura na forma de buraco de fechadura, minúsculo e intrincado.

O portal se abre. O Rábido me cutuca com seus dedos magros e entrelaço meus dedos aos dele. Junto com as fadas e nossos insetos companheiros, passamos pela abertura liquefeita. Uma brisa fria me atinge, assim como o cheiro de mato e rosas cobertos de orvalho reluzente.

Os botões de rosa dizem:

Bem-vinda, Majestade. Os anos ficaram para trás. Logo você estará desabrochando como nós novamente.

Sorrio. O Rábido me puxa rumo ao relógio de sol que já expõe a toca do coelho. Ele está ansioso para ir embora. Mais insetos se juntaram a nós; alguns pelo terreno: besouros, centopeias e escorpiões; outros pela brisa: borboletas, mariposas, vaga-lumes...

Saem em enxame do mato e ficam dando a volta em mim e em meu conselheiro real — um arco-íris encantado, espesso e brilhante, sob a luz rosada do céu.

As borboletas cantam:

Vida longa à Rainha Alyssa. Que você seja para sempre jovem, louca e livre.

Muitos deles pousam sobre mim, as asas acariciando meu rosto e pescoço através do traje de disfarce, e percebo que não terei mais de me tornar invisível. Meus amigos insetos estão aqui para me dar proteção, como sempre estiveram.

O Rábido me solta, seus dedos de cadáver tocando os meus enquanto ele segue as fadas e mergulha na toca do coelho sem olhar para trás.

— Atrase-se não, Majesta-a-a-ade — o grito do Rábido ecoa até mim, afastando-se mais e mais à medida que ele desce, sem peso, como uma pena ao vento.

Ao contrário do meu séquito interior, não consigo ir embora sem uma olhada para trás.

Paro, olhando em meio à nuvem de milhares de asinhas adejando diante da paisagem tremeluzente no horizonte. Meu peito se aperta.

Pego as lembrancinhas da minha mochila. Três garrafas de vidro decoradas: a primeira cheia de pedrinhas, a segunda com conchas e a última com um pó prateado. Uma olhada nas três e as lembranças contra as quais eu lutava iluminam minha mente, graciosa e lentamente, como a aurora invadindo o mundo imóvel que desperta.


CONTINUA

A MARIPOSA NO ESPELHO


Capítulo 1


As Maquinações
da Mariposa

— Tem certeza, Morfeu?

— Tenho — respondeu Morfeu, tirando as luvas e enfiando-as no casaco. — Você, entretanto, parece que precisa ser convencida.

A magia pulsava nervosamente na ponta de seus dedos, uma luz azul pulsante logo abaixo da pele. Por causa da ponte de ferro que havia lá fora, seus poderes estavam limitados a alguns truques inofensivos, mas suficientes para dar o seu recado, se necessário.

O besouro-tapete — que de tão grande chegava à altura dos ombros de Morfeu, depois de este haver tomado uma poção encolhedora — engoliu em seco por trás de suas muitas mandíbulas estalantes. Sua pele carpetada tremia.

— Não, não. Por favor, o senhor interpretou mal as minhas ressalvas. — Os braços ramosos do inseto vibravam enquanto ele folheava as marcações em ordem alfabética de sua prancheta, as quais continham todas as lembranças perdidas no País das Maravilhas. — É que ficar espiando os momentos esquecidos de um ser humano parece uma maneira tediosa de se passar uma tarde, só isso...

Morfeu mudou de posição, e suas asas lançaram uma sombra sobre a cara do besouro.

— Ah, mas este humano, em especial, tem muito a me ensinar.

Esse humano, em especial, havia conseguido capturar algo que Morfeu desejava mais que tudo neste mundo.

— Sente-se — disse o inseto, apontando para uma cadeira branca de vinil —, e eu prepararei as memórias para o senhor.

Morfeu jogou as asas para o lado, sentou-se e deu uma tragada no narguilé fornecido por seu anfitrião como cortesia. O tabaco doce e fresco passou ardendo pela sua garganta. Ele soprou baforadas de fumaça no ar, formando com elas o rosto de Alyssa. Era fácil imaginar o modo como seus olhos sempre se cobriam de um azul gélido quando ela o via, cheios de excitação e temor ao mesmo tempo. Adorava isso nela: a sagacidade de seus instintos intraterrenos alertando-a a não confiar nele, suavizada pelas emoções humanas forjadas durante a infância que passaram juntos.

Antes dela, Morfeu levara a vida em solidão, sem nunca precisar de ninguém. Ele não fazia a menor ideia do feitiço que ela lhe lançara. Ela era mais que uma decepção, sempre jurando devoção ao lado errado. Seu encanto, porém, era inegável. Principalmente quando ela o desafiava ou o encarava com sua indignação de justiceira, o que a deixava com os lábios deliciosamente posicionados quando rangia os dentes.

Morfeu colocou o narguilé de lado, embora a sensação de queimação em seu peito não tivesse nenhuma relação com o fumo. Alyssa era a única que poderia aplacar o incêndio que havia ali, pois fora ela quem havia atiçado aquelas chamas.

Os dois tinham passado cinco anos juntos — como amigos de infância —, até que a mãe dela a arrancou dele, Alyssa sangrando e ferida, e ele ficara se remoendo de remorso e com culpa por causa de um juramento imprudente que havia feito, no qual prometeu se manter longe dela.

Manter-se afastado da amiga fez com que ele sentisse o gosto da solidão pela primeira vez. Mesmo todos os anos de claustrofobia que ele passara aprisionado em um casulo antes de encontrá-la... nem mesmo eles o prepararam para o sofrimento da ausência dela.

Então, por fim, ela havia voltado para ele, fazendo-o reviver todos os antigos sentimentos que ele pensava ter dominado. Daquela vez, também, tudo foi muito rápido. Ela partira novamente, por escolha própria. Restaram a dor e a solidão excruciantes. Debilitantes.

Havia apenas seis meses que ela partira do País das Maravilhas, e ele não compreendia este vazio corrosivo que só poderia ser preenchido pelo toque dela, por seu perfume, sua voz. As solitárias criaturas mágicas não ligavam para essas bobagens; não precisavam de companhia, abominavam a bagagem emocional. Sua afeição e lealdade pertenciam ao agreste País das Maravilhas e a nada nem a ninguém mais.

Então o que ela havia feito para mudar isso?

Ultimamente, cada vez que ele via o próprio reflexo, não mais reconhecia a Mariposa no espelho. Estava incompleto, enfraquecido; e menosprezava isso.

O menosprezo era ainda maior porque ele havia se esforçado tanto para cortejá-la, enquanto ela oferecia seu afeto a um reles mortal.

Morfeu suprimiu um rosnado. Ele não conseguia compreender a sorte de Jebediah, como um humano podia ter tanto poder sobre uma rainha intraterrena. Como um simples rapaz era capaz de controlar um coração real e mestiço tão multifacetado, um espírito propenso ao pandemônio e à loucura. Jebediah puxava Alyssa para baixo, acorrentando-a ao tédio e à banalidade do reino humano.

Ela precisa ser libertada.

Morfeu havia considerado a possibilidade de matar seu rival, mas Alyssa jamais o perdoaria. Não. Chegara o momento de tomar medidas criativas.

Se Morfeu soubesse no que Jebediah havia pensando durante sua jornada pelo País das Maravilhas — todos os momentos em que ele se sentiu mais aterrorizado, mais desanimado —, conheceria as fraquezas e as forças do mortal, intimamente. Ele saberia como enfraquecer Jebediah, contrapondo-o a si mesmo.

Essas fraquezas o derrotariam melhor do que Morfeu o faria. E depois, quando tivesse destruído a confiança de Alyssa em seu cavaleiro mortal, Morfeu estaria lá para confortá-la e conquistá-la.

Voltaria a ouvir a risada de Alyssa do modo como ela ria quando os dois eram crianças, e teria de novo a oportunidade de ser presenteado com o seu sorriso deslumbrante.

Ele voltaria a ser completo.

— Por aqui, por favor — pediu o besouro para que Morfeu o seguisse.

Morfeu tirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo. Quando o inseto abriu a porta para um compartimento de memórias sem janelas, o cheiro de amêndoas vindo de uma travessa de biscoitos de luar fresquinhos que estava em uma mesa de canto se espargiu no ar. Havia uma chaise-longue na cor creme colocada contra a parede, e uma ornamentada luminária de piso feita de latão iluminava o espaço com uma luz discreta.

Morfeu concentrou-se no pequeno palco do outro lado do compartimento. Sentiu o coração palpitar de ansiedade num ritmo profundo e firme. As cortinas de veludo vermelho aguardavam o momento de se abrirem para mostrar as memórias de Jebediah na tela prateada.

— Como o senhor entrará na cabeça do rapaz para visitar suas lembranças perdidas, sou obrigado pelas normas a avisar-lhe que... as emoções humanas podem ser muito poderosas... podem nos fazer ver as coisas sob uma perspectiva totalmente diferente — advertiu o besouro.

— Estou contando com isso. — Morfeu deu um sorriso afetado. — Conhece aquele ditado sobre amigos e inimigos?

O besouro coçou a pele enrugada.

— Hum... mantenha seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda?

Morfeu acomodou-se na cadeira estofada e alisou a calça risca de giz ao cruzar as pernas apoiando um tornozelo sobre o outro.

— Melhor ainda é se colocar no lugar de seu inimigo. É a melhor maneira de controlar seus passos. Ou de apagá-los, caso tenha a oportunidade.

O besouro, voltando a tremer, esticou o braço fininho e apertou um botão na parede. As cortinas do palco se abriram, revelando uma tela de cinema.

— Imagine o rosto do rapaz enquanto olha para a tela em branco e vivenciará o passado dele como se fosse hoje.

As palavras do besouro eram ensaiadas, até mesmo mecânicas, mas a pulsação de Morfeu ficou acelerada. Ele esperou o besouro desligar a luz. Assim que o inseto saiu e fechou a porta, o corpo de Morfeu desmembrou-se nas juntas, flutuando pela escuridão como se fosse feito de partículas de pó. Todos os seus pedaços se uniram novamente na tela prateada, em cores vivas e cinematográficas, até que ele entrou na cabeça de Jebediah, apropriando-se do seu corpo, sentindo suas emoções.

Naquele momento, Morfeu entregou-se à experiência e, pela primeira vez na vida, passou a ver as coisas como um humano.


Capítulo 2


Primeira Lembrança —
Kriptonita

Jeb acordou em uma cama suspensa.

Estava nu. Por que estava nu?

Antes que esse fato pudesse ser totalmente registrado, trinta fadas ou mais, do tamanho de mariposas, surgiram do ar, acariciando cada parte do seu corpo e sussurrando-lhe. Ele tentou mexer os braços e pernas. As asas das fadas — que batiam na velocidade das asas de um beija-flor — liberavam partículas parecidas com as pétalas delicadas de um dente-de-leão, que, de alguma maneira, o imobilizaram. As sementes exalavam um perfume de canela e baunilha que foi inundando sua consciência, até que a sala ficou totalmente fora de foco.

Quando a névoa se dissipou, ele estava em sua cama, em casa. A noite adentrava pela janela e Taelor estava em cima dele, seminua. A unhas pintadas à moda francesinha percorreram os pelos de seu peito e abdômen, dirigindo-se ao cós de sua calça jeans.

Aquilo não podia ser verdade. Taelor e ele tinham brigado antes do baile de formatura, haviam terminado tudo.

Com delicadeza, ele a virou, colocando-a debaixo dele, e apoiou-se nos cotovelos, afastando o cabelo do rosto dela. Mas não foram os olhos de Taelor que encontraram os dele. Foram os olhos gélidos e azuis de Alyssa — encarando-o com um ar de admiração e inocência. Os dedos dele pareciam grandes e desajeitados nas têmporas dela.

A Al na cama dele?

Não. Isso não podia acontecer. Alyssa nem havia beijado homem algum. E Jeb nunca tinha sido o primeiro de nenhuma garota.

A Al era intocável para ele. Ela já passara por muitos episódios turbulentos em sua vida. E ele não era exatamente um exemplo de estabilidade.

Ele tirou as mãos dela e ficou de joelhos.

— Jeb, você não me quer? — perguntou Al, passando a mão no peito dele.

Ele não conseguiu responder. Seus dedos coçavam e pareciam esticar-se, como se estivessem crescendo. Ele ergueu as mãos sob o luar, observando, horrorizado, seus dedos caírem, um por um, e se metamorfosearem em lagartas. As lagartas, então, avançaram lentamente na direção de Alyssa, e ele não conseguia fazer nada para detê-las. Jeb caiu de costas na cama, com as mãos sobre o rosto, olhando fixa e incredulamente para os tocos crus e cheios de sangue onde antes estavam seus dedos.

Gritando, Alyssa tentou sair do colchão, mas as lagartas a pegaram, arrastando-se por sua pele e tecendo teias, até que restou somente uma forma se agitando dentro de um casulo.

— Soltem ela! — gritou Jeb. Uma luz lampejou em seus olhos, e então ele já não mais se encontrava em sua cama. Estava em algum lugar da mansão de Morfeu, e as fadas percorriam sua pele, hipnotizando-o... usando algum tipo de feromônio alucinógeno.

Elas estão me segurando aqui para que o Morfeu fique sozinho com a Al. No instante em que a realidade foi percebida, o feitiço foi quebrado.

Jeb pulou rápido da cama suspensa e saiu da nuvem de sedução de suas captoras. Pegando um travesseiro, ele se cobriu.

— Quero alguma coisa para vestir!

As fadas flutuavam no ar, seus olhos de libélula observando-o.

Havia várias cestas douradas no chão perto dos pés dele. Jeb chutou uma. Suas pequenas captoras se espalharam pelo ar, em histeria coletiva.

Gossamer, a fada predileta de Morfeu, designou cinco delas para pegar os morangos que rolaram. Elas contaram as frutas uma por uma e as colocaram de volta na cesta.

Jeb chutou outra cesta cheia de contas de óleo perfumado. Outras cinco fadas lançaram-se ao chão para pegar tudo, parando para contar cada conta antes de guardá-la.

Em pouco tempo, ela já havia chutado todas as cestas. Algumas estavam cheias de pétalas de flores, outras continham loção, outras, ainda, uvas. Ao virá-las, ele conseguira manter a maioria de suas captoras preocupada. Apenas Gossamer e outras duas ainda pairavam em torno de sua cabeça.

— Me deem algo para vestir — repetiu ele —, ou vou começar a tirar as plumas dos travesseiros. Vocês não estão em número suficiente para limpar uma sujeira dessas.

— Ele não está respondendo ao nosso feitiço — murmurou uma das fadas para Gossamer, com seus olhos de inseto voltados para Jeb.

— E nem à nossa magia — acrescentou a outra, amuada. — Eu conjurei uma moça das lembranças dele, mas seu subconsciente conseguiu escapar.

— Sim, este aqui é, sem dúvida, um desafio — concordou Gossamer, numa voz que tilintava feito um sino. Depois de mandar as outras duas fadas recolherem o conteúdo da última cesta, ela ofereceu a Jeb um robe de seda.

Ele se virou de costas e enfiou a peça de roupa no corpo, assimilando os arredores.

Morfeu o colocara em uma prisão opulenta. A sala era toda revestida de piso de mármore preto que refletia a luz laranja dos candelabros. Ele já estava bem familiarizado com o ponto focal: um colchão circular balançante preso por correntes douradas no centro do teto côncavo. Peles e almofadas forravam a cama, perfumadas por pétalas de rosa.

Apesar de todos esses confortos, faltava a essa sala um detalhe muito importante: uma saída. Não havia portas, janelas ou qualquer outra abertura à vista.

Paredes convexas — pintadas em cor de lavanda escura — eram cobertas por parreiras que se estendiam por toda a sua circunferência, entrando e saindo do reboco e se entrelaçando nos candelabros acesos. Frutas brotavam das vinhas. De quando em quando, as uvas explodiam espontaneamente e pingavam seu suco dentro de bacias de pedra posicionadas ao longo das paredes para apanhá-lo. E, delas, um líquido viscoso e purpúreo era drenado para dentro de fontes — um abastecimento constante de vinho de fadas com aroma adocicado.

Ele se lembrava vagamente de ter provado o vinho ao chegar. Desconfiado, tentou resistir, mas estava com muita sede. Era impossível saber que tipo de magia havia no líquido.

Jeb gemeu e esfregou o rosto. Quanto tempo teria passado bêbado e enfeitiçado? Ele acabara sendo inútil para Alyssa, assim como o pai dele teria sido.

— Onde ela está? — perguntou ele, ignorando a harpa que tocava sozinha, a qual, na tentativa de abafar-lhe a voz, começou a tocar mais alto. — Me diga o que Morfeu está fazendo com ela.

Minúscula, reluzente e confiante, Gossamer acomodou-se em uma almofada de cetim, passou a mão pelo colchão ao seu lado e cruzou as pernas apoiando os tornozelos verdes um sobre o outro.

— Talvez você não perceba o que nós, as fadas, somos capazes de fazer. Temos séculos de prática. Podemos lhe mostrar um êxtase com o qual você sempre sonhou.

Jeb a olhou de cima a baixo e ajustou a faixa de cetim em sua cintura.

— Me desculpe, não sonho com coisas verdes.

Ele encontrou a mochila de Alyssa debaixo da cama e a puxou. Jeb havia notado alguma coisa dentro dela anteriormente, quando a vasculhara em busca de outra coisa: uma pulseira de ferro forjado que ela provavelmente havia enfiado na mochila quando ainda estava na escola e ficara esquecida ali. Ele havia pesquisado muito as fadas quando começou a pintá-las, e sabia que elas não gostavam de ferro — se a lenda fosse verdadeira.

Jeb jogou a mochila sobre o colchão. Os cobertores de pele encresparam-se feito uma onda gigante e derrubaram Gossamer de sua almofada. Acionando suas asas com rapidez, ela pousou sobre o ombro de Jeb.

— Se é Alyssa que inspira suas paixões, podemos realizar essa fantasia. — Gossamer bateu palmas. As outras largaram seus postos de limpeza e se apressaram a formar um círculo em volta de Jeb. Uma onda de enjoo lhe invadiu o estômago quando todas as fadas assumiram a aparência de Alyssa — réplicas perfeitas em miniatura, com cabelo platinado e roupas sensuais de skatista. Elas liberaram novamente suas sementes de feromônios, cegando-o com o perfume de Alyssa, doce como néctar.

Brandindo uma almofada, Jeb rompeu a ilusão e dissipou as sementes. As fadas saíram aos guinchos e foram se esconder nas vinhas das paredes, com seus corpos brilhantes parecendo cordões de luz branca e piscante.

Gossamer pairou no ar acima dele, ralhando.

— Já chega! Informem o nosso mestre de que o mortal é leal à garota. Não podemos seduzi-lo para que volte ao seu mundo sem ela.

Jeb ficou resmungando, enquanto as fadas se esgueiravam por buracos do tamanho de ervilhas, na parede onde as vinhas entravam e saíam. Se ao menos ele pudesse passar por aquelas pequenas saídas também... Chegou a pensar em usar a poção encolhedora que ele e Alyssa tinham encontrado quando chegaram ao País das Maravilhas, mas ela o deixaria tão pequeno quanto suas captoras, e ele ficaria indefeso contra Morfeu. A impotência lhe fervia as entranhas, tão profunda como a que ele sentia quando era criança, escondendo-se em um armário até que passassem os ataques de fúria do pai.

Ele cerrou os dentes. Tinha de haver uma passagem escondida em algum lugar por trás das vinhas. Elas o tinham trazido para cá; devia haver uma saída.

Subitamente, ele deu um pulo para a parede mais próxima e arrancou algumas vinhas, lançando-as para todos os lados. O diminuto guincho de surpresa de Gossamer não o intimidou.

Uvas explodiam em suas mãos, libertando seu aroma potente e denso. As plantas viscosas cortavam seus dedos feito arames. Jeb aceitou a dor. Era algo que podia controlar — diferentemente do tormento dos cigarros acesos que seu pai lhe enfiava na pele, ou dos punhos que lhe socavam o rosto e o estômago. O cheiro da nicotina, o gosto de sangue. Imaginação ou não, eles alimentaram o selvagem em sua alma.

Ele mergulhou numa espiral vermelha de fúria e devastou a sala. Quando finalmente voltou a si e recostou-se na cama, ficou chocado com os estragos que causara.

Arfando e suando, ele cuidou dos cortes nas junções dos dedos e vasculhou os destroços à procura de Gossamer. Será que a tinha machucado? Se sim, talvez fosse mesmo filho de seu pai.

Jeb cerrou os punhos, descontente consigo mesmo.

— Gossamer? — Ele se encolheu ao ouvir a própria voz, rude e inflamada de emoção.

Um rufar de asas mexeu uma das correntes que prendiam a cama ao teto. Ele respirou, aliviado ao ver a fada. Embora parecesse meio idiota importar-se, já que estava prestes a usar a pulseira de ferro de Alyssa contra ela.

Gossamer pousou no chão ao lado das vinhas rasgadas e das cestas que ele tinha derrubado de novo; seus ombros estavam caídos, em demonstração de derrota. Provavelmente, ela não sabia por onde começar a calcular todos os conteúdos derramados.

Jeb começou a vasculhar a mochila. A harpa havia parado de tocar, e o silêncio o incomodava feito o ruído dos ponteiros de um relógio. Cada segundo que ele passava longe de Alyssa deixava-a mais vulnerável a Morfeu.

Seus dedos finalmente encontraram um metal frio. Ele jogou a pulseira de ferro na direção de Gossamer, mas mantendo alguma distância, na esperança de enfraquecê-la sem machucá-la.

Ela gritou e lançou-se ao ar, se debatendo.

— Por favor... afaste isso.

— Não até eu conseguir algumas respostas. — Jeb segurou uma das asas dela entre o indicador e o polegar, levando-a para a cama e sentando-a sobre uma almofada, tomando o cuidado de manter a pulseira próxima o bastante para intimidá-la. — Basta cooperar, que eu não vou machucá-la.

— Já está machucando. — Ela gemeu, com a pele esverdeada já tingida de turquesa. — Não posso usar minha magia... — Gossamer bateu as mãos no próprio rosto. — Vai me deixar... horrível. Abster-me. — Sua voz ficou mais calma, como se estivesse falando consigo mesma, e, rangendo os dentes, continuou: — Abster-me até a ameaça de dor e contaminação passar.

Jeb franziu a testa.

— Então o ferro vira seus poderes contra vocês? É a arma perfeita para usar contra seu chefe.

— Um objeto desse tamanho... só funciona com os menores de nossa espécie.

Jeb curvou-se, aproximando ainda mais a pulseira dela.

— Muito bem, então considere isso um detector de mentiras. Toda vez que eu perceber que você está fingindo, aproximarei o ferro. Onde está a Al, e o que o seu chefe repugnante está fazendo com ela?

A cor da fada mudou para um verde azulado. Ela rolou sobre a almofada, as asas lutando para bater. Gossamer as puxou por cima dos ombros até a altura do peito, cruzando-as, como se quisesse conter a sua magia.

— A sua Alyssa está confortável e sendo bem cuidada. Morfeu está zelando pelo sono dela...

Jeb soltou um grunhido. Na noite passada, ele havia zelado pelo sono dela, no barco. Mudara a posição do corpo dela para que pudesse olhá-la de frente e fazer uma promessa, mesmo que Alyssa estivesse sonolenta demais para ouvi-lo. Jeb havia prometido que a protegeria, que a levaria para casa a salvo. E não iria quebrar sua promessa agora.

Ele precisou resistir ao desejo de destruir a sala novamente.

— Como eu saio daqui?

— Apenas o Morfeu tem os meios para abrir a passagem.

Jeb inclinou-se para a frente, com o nariz quase tocando o rosto de Gossamer enquanto segurava a pulseira sobre a cabeça dela, como se fosse um objeto corrosivo.

— Está dizendo que estou preso aqui até que aquela barata de asas decida me soltar? Ele vai fazer a Al enfrentar o País das Maravilhas sozinha?

Ela choramingou, levando a mão à testa.

— Não. Como você provou ser leal, ele permitirá que a acompanhe em sua jornada. Você comparecerá ao banquete e traçarão os planos.

— Banquete?

— A apresentação de Alyssa. Morfeu deseja exibi-la aos outros.

— Que outros?

Gossamer deixou-se cair, formando um monte de cor púrpura e em seguida saiu depressa de seu poleiro. Ela puxou alguma coisa de dentro da almofada — um desenho de Al que Jeb não se lembrava de ter feito. Lentamente, Gossamer levantou os joelhos e estudou as linhas.

— Você fez isto enquanto estava sob nosso feitiço. Tem poder dentro de seu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Você captou o interior de Alyssa com perfeição.

— Esse desenho é pura fantasia — resmungou Jeb. Ele colocou a pulseira de ferro sobre o papel ao lado de Gossamer.

Ela rolou para o meio do desenho, tentando escapar do metal.

— Há mais verdade nesta aparência de Alyssa do que em qualquer coisa que possam me forçar a falar.

Jeb puxou o desenho, fazendo Gossamer e a pulseira de ferro rolarem por cima da pelugem. Ele estendeu o desenho sobre uma almofada e percorreu as linhas de carvão com o dedo. A imagem era igual a todos os outros desenhos de fadas que ele havia feito de Al ao longo dos anos, mas, ainda assim, não poderia ser mais diferente da garota que ele conhecia.

Ele a desenhara com o cabelo preso no alto da cabeça. Al nunca usava o cabelo daquele jeito. Um vestido preto de alcinhas realçava suas curvas. Nem morta ela seria vista em um vestido tão convencional. E a única coisa que se parecia com ela eram as luvas de renda preta sem dedos que cobriam as cicatrizes da palma das mãos.

Fora isso, o desenho era uma fantasia completa. Sentada em um banco de jardim, Al segurava uma rosa. Rímel e lágrimas escorriam em curvas graciosas por seu rosto. Pensando bem, se parecia com a maquiagem dela na última vez que ele a vira.

Ele ainda não conseguia entender por que, depois de quase se afogar em um oceano de lágrimas, o rímel de Alyssa não havia borrado. Apertando os olhos, ele estudou o par de asas translúcidas abertas nas costas dela. As membranas finas tremeluziam sob o único raio de sol que atravessava as nuvens. As asas faziam com que se sentisse estranho, mas Jeb não conseguia perceber a razão.

Talvez porque elas lembrassem as asas de Morfeu, embora tivessem uma cor totalmente diferente. As têmporas de Jeb latejaram. Nada poderia ser pior do que Alyssa sozinha com aquele homem-inseto. Aquele doido tinha algum tipo de poder sobre ela, havia entrado em sua cabeça quando ela era pequena. O subconsciente pode ser muito poderoso, e se Morfeu ainda tivesse acesso aos sonhos da Al...

— Como posso derrotá-lo? — perguntou Jeb com um nó na garganta.

Os olhos bulbosos de Gossamer voltaram-se para os dele. Ela estava fraca demais para se arrastar para longe da pulseira, que agora roçava sua coxa.

— Ele não será derrotado. Há anos ele espera por este dia.

Jeb fez cara feia.

— Muito bem, ele é o Super-Homem. Mas todo mundo tem a sua kriptonita. Algo de que sente medo.

— O confinamento — Gossamer deixou escapar, e, diante da confissão, seu corpo escureceu até ficar da cor de um machucado.

— Como assim?

Gossamer levou o dorso da mão à testa.

— Por favor... está muito perto... o ferro... está drenando minha energia.

Jeb caiu de costas no colchão e afastou a pulseira da fada. Equilibrando-o entre os dedos, ele estudou o ferro sob a luz das velas. A pulseira o lembrou de seu piercing de ferro e da primeira vez que Al o vira, sua reação de entusiasmo. Ela havia implorado para tocá-lo e fez várias perguntas sobre o processo de colocação de um piercing. Seu entusiasmo e ingenuidade, suas inseguranças... Morfeu não hesitaria em usar qualquer uma dessas coisas, ou todas elas, para manipulá-la.

Jeb precisava convencer Al a sair do País das Maravilhas, a esquecer esta jornada para quebrar a maldição de sua família, a qualquer custo. Algo muito tenebroso estava à espreita, bem perto dela, como no sonho que ele tivera. E Jeb podia sentir que, fosse lá o que estivesse para acontecer, estava se aproximando.

— Então vocês querem que ela conserte os erros da Alice original, certo? E se eu consertá-los? — Jeb tentou raciocinar. — Vocês enviam a Al para casa e deixam que eu cuide de tudo?

— Impossível — respondeu Gossamer num sussurro arfante, voltando à cor verde-clara. Engatinhando na direção do desenho, ela passou a pequenina mão sobre a rosa. — Ela já passou nos testes e provou ser a escolhida.

— Testes? Está se referindo a encontrar a toca do coelho para o País das Maravilhas e secar o oceano de lágrimas?

Gossamer fez que sim.

— Mas eu ajudei a fazer isso.

— É por ela que ele esperava. Não por você.

Jeb levantou a pulseira de ferro uma última vez.

— O que ele realmente quer dela?

Antes que Gossamer pudesse responder, o teto abobadado começou a tremer. Pedaços espessos de gesso despencaram no solo. Jeb colocou uma almofada sobre a cabeça e uma mão sobre Gossamer para protegê-la dos detritos. O teto se abriu nas emendas, fazendo a cama balançar e puxando as correntes em direções opostas, de modo que o colchão subiu vários centímetros.

Depois que os tremores passaram, Jeb olhou para cima. A silhueta escura de Morfeu apareceu em uma abertura no teto.

Sutileza era um dos últimos itens na lista de prioridades desse cara.

— Já te disseram que você é muito escandaloso? — rosnou Jeb.

Morfeu inclinou-se para olhar a sala destruída.

— Já te disseram que você é um péssimo hóspede?

Parte da responsabilidade daquela bagunça era da grandiosa entrada de seu aprisionador, mas Jeb mordeu a língua, não querendo arriscar sua oportunidade de ver Al.

Morfeu relaxou.

— Alyssa o aguarda na sala dos espelhos. E, por favor, tome um banho e faça a barba. Você será apresentado aos nossos convidados do banquete como um cavaleiro élfico, então precisa parecer como tal. Gossamer lhe dirá como se comportar adequadamente. — Morfeu largou algumas roupas e botas, que fizeram um ruído ao atingir o chão. — Aí está seu uniforme. — Ele fez uma pausa e apontou para as correntes. — Que pena que você não tenha asas e nenhuma magia intraterrena. Terá que sair daí sozinho. E posso assegurar que não será nada fácil.

Os músculos de Jeb se retesaram quando Morfeu sumiu de vista; ele sabia que o aviso se referia a muito mais do que sair daquela sala.


Capítulo 3


Segunda Lembrança —
Carnificina

Jeb limpou o suor da testa. Morfeu estava certo. A escalada para sair de sua prisão dourada seria mesmo difícil. Mas isso não significava nada se comparado à jornada pelo País das Maravilhas que ele e Alyssa haviam cumprido desde então. O dia inteiro tinha sido um desafio atrás do outro, com o perigo e a morte aguardando em cada esquina. E agora ele havia perdido a Al. Os dois tinham se separado pouco antes de ela completar o teste final. Al ficou enfrentando as irmãs Twid no cemitério, sozinha, e ele ficou preso aqui no fundo do abismo.

A noite já havia caído quando ele atingiu o solo, e foi uma transição extremamente rápida, como se alguém tivesse apagado a luz.

Jeb sentiu os músculos do corpo endurecerem. Odiava pensar na Al sozinha naquele mundo insano depois de anoitecer. E, mais uma vez, ela provou ser forte o bastante para encarar quase tudo. No final, foi ela quem o salvara mais de uma vez...

Ele se lembrou dela pairando acima dele — um brilho selvagem, flutuando com a graça de uma libélula. Ver as asas dela brotarem tinha sido ao mesmo tempo assustador e milagroso. Jeb mal conseguiu respirar enquanto observava a transformação.

Falando sinceramente, Jeb ainda não tinha recuperado o fôlego de quando ela o levara para dentro do abismo e ele gritara: “Você é minha corda de segurança!”, antes de ela subir ainda mais alto para o céu. Ele não deveria ter colocado tanta pressão sobre ela para salvá-lo; tinha que ter feito o que conseguisse para sair de lá por si próprio e encontrá-la no meio do caminho. Do contrário, ela nunca se perdoaria se algo saísse errado.

A carcaça de um pássaro Jubjub havia amortecido sua queda. Ele limpou nas calças a gosma pegajosa que tinha entre os dedos, torcendo o nariz diante dos restos malcheirosos do exército que os perseguia e acabou caindo no abismo. Jeb procurou ficar de pé na escuridão. Suas botas produziam sons de sucção toda vez que ele pisava. Ele nunca tivera fricotes; qualquer aversão a sangue e violência havia sido expurgada — uma dessensibilização gradual que era reforçada sempre que ele se olhava no espelho e via suas bochechas e olhos inchados, grandes e cheios de sangue, que nem um bife malpassado.

Contudo, sem uma centelha de luz para guiá-lo, a carnificina aos seus pés parecia mais viva do que morta. Sua imaginação trazia arquivos de todos os tipos, de filmes de zumbis a demônios e assombrações. Seu estômago queimava de náusea. Jeb sentiu-se aliviado ao perceber que os assobios que ouvia dentro do abismo eram produzidos pelo vento. E não havia ruídos de correntes fantasmagóricas nem gemidos de mortos-vivos.

Além disso, seu verdadeiro inimigo era o tempo, mais perigoso do que qualquer coisa que pudesse imaginar. A Al ainda tinha de cumprir a última tarefa no cemitério. E, depois, eles ainda tinham de encontrar um ao outro.

Ele se forçou a avançar às cegas até sua mão alcançar a parede do abismo. Antes de descer totalmente, Jeb viu que a mochila de Al tinha ficado presa em uma pedra saliente próxima ao chão. Se conseguisse encontrá-la, poderia contar com uma lanterna. Tateando a superfície áspera da pedra, ele levantava seus pés por sobre os obstáculos, tocando os cadáveres com os dedos dos pés para mensurar a largura de cada passo.

Com os cotovelos esbarrando nas pedras, Jeb observou o céu. Um pequeno aglomerado de estrelas brigava com as nuvens, aparecendo para iluminar levemente o lugar ao seu redor, tornando possível que ele continuasse sem esbarrar no falecido exército da rainha. Uma brisa úmida levantava a poeira feito pequenos tornados. Logo choveria. E, neste lugar, era possível que, literalmente, chovesse a cântaros — daqueles temporais ruidosos, torrenciais.

Um calafrio que não tinha nada a ver com a tempestade iminente lhe percorreu a espinha e obscureceu qualquer sentimento bom que ele poderia ter encontrado naquele pensamento. Qual era a razão de todos esses “testes” de Morfeu? Toda vez que a Al conseguia se sair bem em um desses testes, sua forma intraterrena tornava-se mais acentuada. Será que o intuito era transformá-la completamente para que não pudesse mais voltar ao reino humano?

Fios de cabelo caíram sobre seu rosto, e Jeb os afastou.

Morfeu afirmara que tudo o que ele mais queria era que Alyssa voltasse ao seu lugar. Sua casa. Jeb esperava que ele estivesse se referindo ao mundo deles, o reino humano. Mas e se a Al não estivesse sob nenhuma maldição, no final das contas?

Ele se lembrou de sua pesquisa sobre fadas, na qual descobriu que elas eram criaturas chamadas de changelings — as crias das fadas secretamente deixadas no lugar de bebês humanos roubados. Alice Liddell, a tataravó de Al, teria sido uma changeling? Quem sabe foi por isso que ela encontrou, quando criança, a toca do coelho — por instinto. Isso significaria, de alguma estranha maneira, que aqui era a casa de Al.

Jeb parou com as especulações. Elas só levavam a mais dúvidas.

Ele tinha encontrado a mochila. Abriu-a, tirou a lanterna e colocou a mochila nos ombros.

Ao fechar o zíper, ele acendeu a lanterna e percorreu o cenário com fachos de luz. Os guardas destruídos pareciam cartas de baralho amarrotadas. Brinquedos descartados. Até mesmo os pássaros Jubjub poderiam se passar por brinquedos infantis com o enchimento extrapolando para fora.

Com a mochila ajeitada no corpo, Jeb percorreu a circunferência do abismo sem encontrar nenhuma abertura. Pedras que haviam caído bloqueavam qualquer possível passagem que ele tentasse. Era como se ele tivesse caído dentro de um tubo gigante. Não havia nenhuma outra saída a não ser subindo.

Jeb apontou a luz para o gramado a cerca de vinte andares acima — a clareira onde Alyssa havia pousado. Estava determinado a encontrá-la antes de Morfeu, mesmo que tivesse de escalar as pedras pontiagudas no escuro e sem uma corda de segurança.

Ele havia acabado de apoiar a lanterna entre os lábios e escorar o pé em um rochedo para tomar impulso quando ouviu uma voz com um sotaque britânico familiar.

— Ao trabalho, homens. Precisamos contar todos antes que as irmãs Twid enviem sua brigada de duendes para recolher os mortos.

Morfeu.

Jeb desceu e quase colidiu com o intraterreno alado, que tinha aparecido do nada, como se tivesse aberto um zíper no ar e passado por ele. Cavaleiros élficos faziam fila atrás dele, entre vinte e trinta, carregando lanternas e usando o mesmo uniforme de Jeb, só que menos esfarrapado e sujo. Eles passaram sem nem olhar para Jeb, extremamente concentrados na contagem dos corpos.

— Ora, ora, pseudocavaleiro. — Morfeu riu com desdém.

Cada pedacinho de Jeb ansiava por apagar aquele sorriso arrogante e socar aquele rosto. Mas ele estava em desvantagem. Se quisesse sair desse fosso para encontrar a Al, teria de bancar o bonzinho.

— Detesto dizer isso, mas é bom vê-lo, senhor Mariposa. — Jeb guardou a lanterna. — Vejo que pegou o espelho para vir aqui.

— Eu só viajo de espelho. — Morfeu ergueu a lanterna e examinou as roupas esfarrapadas de Jeb. — Tem a vantagem de não estragar tanto as roupas. E vou lhe contar outro segredo: se eu mantiver as asas daquele lado do plano — ele apontou com o polegar para as suas costas, onde metade de seus apêndices não era visível —, a abertura fica acessível para nossa viagem de volta.

Jeb forçou um sorriso.

— É bom saber.

Perfeito, na verdade. Ele poderia voltar com a trupe de elfos e depois tomar o expresso na sala de espelhos para encontrar a Al. Mas primeiro teria de distrair Morfeu, baixar a guarda dele. Jeb perguntou:

— Esse chapéu é novo?

Morfeu ficou radiante.

— Que gentil de sua parte ter notado. É meu chapéu da Insurreição. Ainda não havia tido a oportunidade de usá-lo antes. — Com o dedo, bateu em várias mariposas que formavam a guirlanda na aba do chapéu e depois se inclinou e fez conchinha no ouvido de Jeb para sussurrar um segredo. — As asas vermelhas representam derramamento de sangue.

— Ãh-hã. — Jeb cerrou a mandíbula diante do indesejado bafo quente no lóbulo de sua orelha. Depois, olhou para os cavaleiros, discerníveis somente por suas lanternas flutuando na escuridão atrás dele. — Então, está planejando um motim com o exército da rainha de Marfim?

Morfeu apertou o ombro de Jeb.

— Eu sempre soube que era mais esperto do que os mortais comuns.

Os músculos de Jeb contraíram-se ao contato.

— O que significa que você estava mandando a Al para uma missão absurda só para se divertir.

Cuidado. Jeb não poderia deixar sua desconfiança transparecer. Pelo menos não ainda. Em vez disso, ele se inclinou para ajustar os cadarços das botas e respirou fundo antes de se reerguer.

Morfeu apertou sua gravata vermelha.

— Todas as tarefas que pedi à Alyssa tinham um propósito. — Ele deu um passo para o lado quando alguém mais passou pelo portal do espelho: um esqueleto do tamanho de um duende, com antenas e olhos cor-de-rosa brilhantes, metido em um colete vermelho.

— Rábido Branco? — sussurrou Jeb, incrédulo. Nada daquilo fazia sentido. O Rábido era da corte Vermelha. Por que estava aqui?

— Qual é o relatório? — Morfeu agachou-se para ficar na altura do Rábido, ainda mantendo as asas enfiadas no portal invisível do espelho.

O pequeno intraterreno apertou as mãos enluvadas e olhou para Jeb, sua cabeça careca refletindo o brilho suave da lanterna de Morfeu.

— Um de nós, você é?

Morfeu sorriu e respondeu por Jeb.

— É claro que é. Ele ajudou a nossa Alyssa a conquistar o grande e cruel exército Vermelho, não lembra?

Coçando a antena esquerda, o Rábido fez que sim.

— Rainha Grenadine neutralizada está. Nos portões da frente e de trás, o castelo guardado está pelos regimentos três e sete. Flanqueando a rainha, um círculo de cinco. Sem esquecer da coroa e seu guardador.

— Ah, sim. O bandersnatch. Bem, quando Alyssa tiver trazido seu prêmio do cemitério das irmãs Twid, nada mais terei a temer daquela besta medonha. Fez um bom trabalho, senhor Branco. — Morfeu deu uma batidinha na aba do chapéu.

O Rábido bateu os tornozelos cadavéricos um no outro, depois se curvou e lançou um olhar penetrante para Jeb, antes de pular novamente para o portal.

— Ele é o seu espião — murmurou Jeb, sentindo-se idiota por não ter adivinhado antes.

— Sim.

— Então todas as vezes que o esqueletinho ameaçou a Al, matando-a de susto, era só para manter a aparência de lealdade à Rainha Grenadine?

— Os melhores espiões são aqueles que jogam dos dois lados com o mesmo vigor.

A distância, Jeb avaliou as lanternas que balançavam. O tilintar dos cabos de metal e o pisar de botas eclipsavam o suave lamento do vento.

— Certo. Já que estamos abrindo o jogo...

O comentário de Morfeu o interrompeu.

— Que trocadilho mais delicioso, considerando a posição em que estamos. — A lanterna dele apontou para os cadáveres dos guardas de carta.

Jeb ignorou a piada mórbida.

— Eu ia perguntar por que o Rábido se voltou contra a corte Vermelha.

— Ele era o conselheiro real da Rainha Vermelha quando Alice nos visitou. Deseja ver a verdadeira herdeira no trono tanto quanto eu.

— Verdadeira herdeira. — Jeb chutou um punhado de terra com uma bota, sentindo o peito apertado. — Então tudo isso é para destronar Grenadine e abrir caminho para uma nova rainha.

— Sim. — A lanterna iluminou o rosto de Morfeu, numa expressão de indulgência sonhadora. — E estamos muito perto. Em breve, ela ocupará o trono que é e sempre foi o lugar dela.

O lugar dela. Uma hipótese se formava na mente de Jeb, uma ideia ultrajante e incompreensível, mas, de qualquer maneira, a resposta óbvia para todas as dúvidas que ele vinha remoendo. Todas as dúvidas, exceto uma...

— Mas, primeiro — interviu Morfeu, varrendo o ar com um gesto desdenhoso —, temos que ter certeza do que iremos enfrentar quando atacarmos o castelo. Você e Alyssa conseguiram eliminar boa parte da oposição com seus fantásticos movimentos de pés. Estamos aqui para avaliar se os números batem com os que o Rábido reportou. Devemos ter certeza que Grenadine não tem outras cartas escondidas na manga. — Ele bateu nas costas de Jeb. — Viu o trocadilho? “Cartas na manga?” — E deu uma gargalhada.

Jeb não deu nem um risinho.

— Ah, corta essa. Os guardas dela são de cartas. É uma piada como a que você fez antes, só que mais inteligente.

— Ah, sim, entendi — retrucou Jeb.

O riso de Morfeu se dissipou.

— Você não é um namorado muito divertido.

— Você não leva nada a sério? A Al está correndo perigo — Jeb deixou escapar.

— Bobagem. Ela é gloriosamente capaz! Você nunca a viu voando? É claro que viu! Estava pendurado na corrente que ela segurava. — Morfeu voltou a lanterna para a própria cabeça, num arroubo de celebração. — Não foi uma bela visão, presenciá-la transformando-se no que realmente é? Igual a uma princesa de contos de fadas. — Ele lançou um olhar dissimulado para Jeb. — Não concorda?

Princesa de contos de fadas. Lá estava, saindo da boca do próprio Morfeu, zombando de Jeb por não perceber desde o início. Jeb apertou as alças da mochila para evitar dar um soco na laringe de Morfeu.

Morfeu abaixou a lanterna e depois tirou luvas prateadas de sua lapela.

— Não se sinta desprezado, cavaleiro mortal. Sua contribuição não passará despercebida. E eu sempre pago minhas dívidas. Então, o tirarei desta vala da morte para demonstrar minha gratidão.

— Você pode me agradecer me deixando ajudar a Al. Ela vai terminar a tarefa muito mais depressa comigo do lado — Jeb conseguiu dizer, sentindo um nó nas cordas vocais. Se conseguisse chegar até Al, talvez os dois pudessem se esconder de Morfeu no cemitério das irmãs Twid, até encontrarem uma maneira de escapar.

— Sinto muito — retrucou Morfeu, vestindo as luvas e acenando para que os cavaleiros élficos retornassem. — Ela precisa fazer isso sozinha. Você a verá em breve; todos nós vamos nos reencontrar. Uma grande família feliz.

— Não! — exclamou Jeb, perdendo o controle. Ele investiu, mas os elfos foram mais rápidos e o contiveram, com os dedos machucando seus cotovelos feridos. — Deixe-a sair do País das Maravilhas, seu filho de inseto...

Morfeu pressionou um dedo contra a boca de Jeb.

— Ah-há! Essa, você já usou.

Jeb puxou a cabeça para trás, deixando o dedo do intraterreno suspenso no ar.

Sob a luz da lanterna, as joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficaram escuras, da cor de sangue seco.

— Ora, ora. Isso são modos de tratar seu salvador? — Ele fez cara amuada. — Além do mais, como posso deixar Alyssa sair se ela não está comigo? Da última vez que soube, ela estava entrando no jardim das almas. Mas, quando terminar por lá, ela virá ao meu encontro. Ela ainda tem um papel muito importante a desempenhar.

— Certo. Porque ela é a herdeira do trono. — Jeb ouviu, incrédulo, suas próprias palavras ecoarem, como se tivessem saído da boca de outra pessoa. — Não sei como, mas é ela.

— Bravo! — Morfeu aplaudiu. — Estão vendo o que eu disse, irmãos cavaleiros? — Olhando para os cavaleiros por cima do ombro de Jeb, Morfeu deu tapinhas no peito em cima da gravata vermelha, como se estivesse tomado pela emoção. — Mais esperto que um mortal comum. Pena que tenha as limitações físicas de um.

— Não importa. Ela está fora do seu alcance. — rebateu Jeb, dando um tranco nos elfos; havia muitos o segurando, contudo. — Ela deve estar dentro do cemitério agora, e não pode forçá-la a fazer nada. Você mesmo disse que as Twids não deixam você entrar.

— É verdade. Mas ela encontrará, sozinha, o caminho para o castelo. No momento em que ela perceber que estou mantendo presa a coisa que ela mais ama no mundo, virá rastejando para mim, com as asas a reboque.

Morfeu levantou uma mão e fez um sinal.

Os cavaleiros élficos soltaram Jeb. Ele girou sobre o calcanhar e atirou a mochila sobre eles, dispersando o grupo feito pinos de boliche. Esticando o braço, ele bateu o punho na testa de Morfeu, desequilibrando-o. Um dos cavaleiros se esforçou para permanecer no lugar e manter o espelho aberto. Antes que Jeb pudesse se catapultar e atravessá-lo, raios de luz azul grudaram em sua pele e roupas, feito eletricidade estática. Eles o arrastaram, controlando-o como se fosse um fantoche, até ele ficar de frente para Morfeu. Os raios vinham da ponta dos dedos do intraterreno.

Morfeu aproximou-se.

Jeb tentou recuar, mas seus músculos travaram, ficaram paralisados.

— Durma — disse Morfeu num tom simples, e levou a mão azul fluorescente à testa de Jeb, cujo corpo foi percorrido por uma luz pulsante. Ele sentiu um gosto doce, parecido com leite e mel, e depois sentiu o aroma de lavanda. Com os dedos apertando o tecido macio da camisa de Morfeu, Jeb lutou para manter-se acordado. Mas a luz era muito reconfortante... muito suave... muito calorosa. Contra sua vontade, suas pálpebras ficaram cada vez mais pesadas e ele caiu no chão, em sono profundo.


Capítulo 4


Terceira Lembrança —
Engaiolado

O crânio de Jeb latejava, e havia sangue saindo de seu couro cabeludo e entrando em seus olhos.

Ele limpou o líquido viscoso e focou no lugar à sua volta. Morfeu o tinha trazido para o castelo Vermelho depois de colocá-lo sob o feitiço do sono. Largou-o dentro de uma gaiola na masmorra. Jeb não queria ter tomado a poção encolhedora quando acordou, mas o homem-inseto havia lhe dado um ultimato.

Primeiro, ele havia ameaçado matar a Al. Mas Jeb rebateu, dizendo que o homem estava blefando, pois sabia que ela era indispensável. Depois, Morfeu usara de outra arma, ameaçando fazer com que a frágil mãe de Al ultrapassasse o limite da loucura. Isso, ele faria.

A Al havia lutado muito para salvar a mãe. Ela morreria se a perdesse para a loucura. Então, Jeb não hesitou em levar o frasco aos lábios.

Seu corpo balançava, mas não devido aos efeitos colaterais da poção. A plataforma debaixo dele oscilava por causa de suas tentativas de abrir as barras de sua prisão usando a cabeça — uma atitude desesperada que havia resultado em nada além de um corte logo acima da testa. A magia de Morfeu — um fio elétrico e azul — mantinha a porta da gaiola fechada e imóvel.

— Que bela coisa você fez, não? — entoou uma voz feminina e irritante. — Morfeu escolhe quem tem o poder de suprimir sua magia. Obviamente, você não é um dos escolhidos.

Jeb fez cara feia para sua companheira de prisão. Era uma lóri — um intraterreno parecido com um periquito, mas normalmente do tamanho de um ser humano. Como os dois tinham encolhido, a única coisa que a distinguia dos pássaros do mundo humano eram as túnicas de cetim cor de creme com estampas jacquard colocadas sobre suas asas, corpo e pernas, e seu rosto humanoide enfiado no meio de plumas vermelhas, como se fosse uma máscara. Ele foi cutucado por um bico mais parecido com o chifre de um rinoceronte, posicionado no lugar onde deveria haver um nariz. Os lábios da criatura se agitavam furiosamente.

O pior de tudo era que a voz dela poderia derrubar a Torre de Pisa com uma sílaba. Quando falava, era como se alguém tivesse implantado cirurgicamente alto-falantes nos ouvidos de Jeb e travado o volume no “mais surdo que uma porta”. Ela era uma das muitas razões pelas quais ele tentava sair da gaiola com tanta insistência.

A luz bruxuleante das velas na parede iluminava seu ar de arrogância e deixava o resto da masmorra nas sombras. Depois que a voz da lóri parou de ecoar, Jeb investiu:

— Olhe aqui, Lorina. Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu marido. — Ele apontou a criatura que roncava abaixo da gaiola, de aparência tão estranha quanto à da esposa, com o corpo de um dodô, cabeça de homem e mãos que se projetavam da ponta de suas asas atarracadas. — Foi ele quem manteve Alice Liddell presa em uma gaiola igual a esta aqui, muitos anos atrás. É por culpa dele que a minha namorada é a única que pode destronar a sua rainha. Será que já lhe ocorreu que é por isso que vocês estão presos?

— O Charlie não fez nada disso! — berrou a lóri, pairando dentro da gaiola. — Alguma vez já lhe passou pela cabeça que o Morfeu é um cara de pau mentiroso?

Só em todos os segundos de todas as horas. Jeb apoiou-se nas barras. Seus joelhos cederam, enfraquecidos pelas tentativas de abri-las usando cada músculo de seu corpo. Ele desabou sobre o piso de metal, empurrando uma fatia de pera já amarelada que estava ao seu lado, feito um pequeno sofá. A gaiola era um pequenino forte inexpugnável. Mas não importava. As barras poderiam ser feitas de espaguete cru, e mesmo assim ele não conseguiria ajudar a Al. Mesmo que escapasse, com este tamanho, Jeb não conseguiria derrotar ninguém.

Charlie, o marido dodô de Lorina, não poderia ajudar muito. Ele estava preso por algemas e correntes de ferro e cochilava recostado na parede. Embora a gaiola estivesse pendurada bem perto da cabeça do dodô, não havia nada que Charlie pudesse fazer.

Provavelmente, Morfeu havia lançado no homem-pássaro gigante o mesmo feitiço do sono que jogara em Jeb, mas Charlie já estava se libertando dele.

Lorina acomodou-se no poleiro no centro da gaiola, balançando sobre a cabeça de Jeb feito uma acrobata no trapézio. A cara dela estava tão vermelha quanto as suas penas, o que fazia as espadas e copas estampadas nas bochechas quase desaparecerem.

— Como vamos ficar exilados nestas instalações fedendo a urina, terá bastante tempo para ouvir a verdade — bramiu ela.

Jeb esfregou a cabeça para apaziguar a dor lancinante.

— Se puder baixar a voz uns dois decibéis, eu agradeceria.

— Abaixar minha voz?

— Aaaii. — Jeb enterrou o rosto nas mãos.

O trapézio em miniatura rangia a cada balanço, piorando a poluição sonora.

— Para a sua informação, minha rainha adora o som da minha voz. Ela até o elogia...

O ronco do dodô parou, e ele estalou os lábios.

— Isso é porque ela protege os ouvidos com cera de abelha, Ó, Mais Adorável das Loucas.

— Seu mentiroso! — retrucou Lorina, balançando o poleiro tão depressa que Jeb achou que ia vomitar.

— Estou preso com correntes de ferro — avisou Charlie depois de um bocejo. — Não tenho forças para mentir. — Em seguida, pegou novamente no sono.

Isso pareceu calar Lorina, pelo menos temporariamente.

Jeb aproveitou o silêncio para pensar. A esta altura, Morfeu já deve ter contado a Al sobre sua verdadeira linhagem, sobre o que espera dela. Deve estar tão chocada... tão apavorada. Jeb ansiava tanto abraçá-la que era como se houvesse uma bigorna lhe pressionando o peito.

Aquele mariposo deveria ter contado a verdade desde o começo. Ela nunca escolheria ficar. Mas Morfeu sabia disso, e a manipulou sob o pretexto de que ela poderia curar a maldição da própria família. Jeb queria arrancar as asas pretas de Morfeu e enfiá-las goela abaixo por tê-la enganado, porque não havia cura para o parentesco, e ele sabia muito bem disso.

— Foi a Vermelha quem colocou Alice na gaiola. — A lóri voltou à carga. — Não o Charlie.

— Mas o seu marido escolheu mantê-la presa na gaiola — acrescentou Jeb, mesmo sabendo que não deveria. Ele cobriu as orelhas para a estrondosa refutação, mas Lorina só soltou um suspiro.

— Não. O Charlie tentou fazer a coisa certa pela menina — disse ela, consideravelmente mais ponderada agora. — Ele planejava mandar Alice de volta para o reino humano sem a Vermelha saber, mas a rainha descobriu e os arrastou para uma caverna nos picos mais altos e mais remotos do País das Maravilhas, sem que nenhum de nós soubesse. Ela deixou o Charlie com a vítima dela para poder encenar seu plano mestre, sabendo que Alice seria cuidada por um prisioneiro que nunca poderia escapar. Porque, como você deve saber, os dodôs não podem voar. Ela me privou de meu marido durante anos. Ele era prisioneiro, assim como a mortal.

— Se isso te ajuda a dormir de noite, tudo bem, passarinha.

Uma comoção de poeira e asas, jacquard e cetim, subitamente surgiu e o atacou.

— Você pode mostrar algum respeito e ouvir?!

Jeb levantou as mãos para se defender.

— Está bem. Shhhh. Eu vou ouvir.

Não havia nada mais que ele pudesse fazer. Morfeu lhe dissera que, assim que Alyssa fosse coroada rainha, ela abriria o portal para o reino humano. Acreditando ou não nisso, Jeb não poderia fazer nada a não ser ter esperança. Ele não tinha nenhum poder ali. E ter consciência disso lhe devorava as entranhas a cada minuto.

Acomodada diante de Jeb sob um monte de tecido luxuoso, a lóri olhou por entre as barras e resmungou alguma coisa para o marido que dormia.

— Seu velho e imprestável fezzerjub. Eu é que tenho que te proteger. Nem sei por que me casei com você.

O dodô resfolegou e murmurou, sonolento:

— Porque se casar com o bobo da corte era a única maneira de ter uma posição na corte Vermelha, Ó, Senhora das Nênias. — E o ronco voltou.

— Viu como deu certo? — resmungou ela, fazendo beicinho com os lábios vermelhos em forma de coração, sob a curva de seu bico. — Aquele Rábido ossudo e seu coração negro de pedra. — Ela alisou as penas da nuca e cobriu-as com uma rede decorada por lantejoulas.

Jeb estendeu a mão para pegar o dedal cheio de água que seu captor havia deixado ao lado da fatia de pera. Em suas mãos, ele era do tamanho de uma caneca de café. Ele o passou para sua colega de cela, que o pegou com as asas e deu alguns goles.

— Me diga uma coisa, Lori. Se o que você está dizendo é verdade... — Observando a atitude defensiva na cara bicuda, ele refez a pergunta para poupar os ouvidos. — Como você escolheu compartilhar o seu lado da história, talvez pudesse me dizer de que maneira Morfeu teve participação na prisão de Alice.

Ela sacudiu as gotículas de seus lábios.

— Não teve participação nenhuma. Ele gostava muito de Alice e teria feito qualquer coisa para que ela chegasse em casa sã e salva. Mas, na hora em que ele lhe ofereceu seu conselho como lagarta, alertando-a para que evitasse o castelo da Rainha Vermelha a todo custo, sua metamorfose aconteceu. Quando ele emergiu, totalmente transformado, e soube o que havia acontecido com Alice, ficou furioso.

— Está tentando me dizer que ele possui alguma consciência?

— Pelo menos no que dizia respeito a Alice, sim. — A lóri ajustou a suntuosa túnica que ficava escorregando devido à falta de ombros. — Morfeu usou todos os seus recursos de magia e acabou encontrando ela e meu marido escondidos nas cavernas dos picos mais altos do País das Maravilhas. Infelizmente, já era tarde demais para Alice. — Lorina devolveu o dedal a Jeb, agora com metade da água.

Jeb endireitou o corpo, fazendo a gaiola balançar.

— Então por que ele quer ajudar a Rainha Vermelha a colocar outra rainha no trono, quando ele deveria odiá-la por ter mantido Alice presa em uma gaiola por tantos anos?

— Talvez ele esteja bravo por Grenadine não ter tentado encontrar Alice assim que esta foi capturada. Mas Grenadine perdeu sua fita de memória e esqueceu a criança.

— Um bom regente teria mais do que uma fita para lembrá-la; teria se certificado de que tudo e todos estavam em seu lugar.

— A minha rainha é uma boa regente!

Jeb encolheu-se com o urro agudíssimo.

O ronco do dodô parou.

— Minha vociferante esposa diz a verdade, rapaz. Morfeu parece guardar ressentimento pelo que ele acredita ser negligência, mesmo tendo sido somente um descuido.

Jeb balançou a cabeça diante de todas as falhas que havia no raciocínio de todos.

— Não. Há mais coisas nessa história.

— Você tem bons instintos, cavaleiro mortal.

Jeb olhou para cima, na direção da voz tilintada. Uma luz brilhante flutuou pela pequena janela e entrou pela pesada porta da masmorra. Jeb levantou-se e agarrou as barras da gaiola, inclinando a cabeça para ver melhor.

Gossamer.

A pequena fada adejou para perto e sussurrou algo para o mágico fio azul que fixava a porta de arame, entrando na gaiola. O fio azul deu um nó em si mesmo depois de ela fechar o trinco.

Ela cintilava feito pequenos fogos de artifício ao pairar no lugar, estudando Jeb com uma expressão de solidariedade.

Como os dois agora tinham o mesmo tamanho, Jeb se lembrou de uma pintura que vira certa vez, de um artista tcheco, Viktor Olivia. O pintor era famoso por retratar uma fada que seduzia homens, levando-os a se embebedarem com absinto. Gossamer personificava essa criatura: uma forma feminina perfeita coberta de poeira verde, e nua, com escamas brilhantes cobrindo-a como um biquíni minúsculo.

Ele havia sentido, quando saiu da sala de espelhos, que Gossamer estava do lado dele e de Alyssa.

— Você veio ajudar — lançou ele, esperançoso.

Uma chave de cobre, da mesma cor dos olhos dela e quase do comprimento total de seu torso, pendia de seu pescoço. Seu olhar caiu para os pés delicados, como se estivesse lutando contra si mesma.

— Eu teria vindo mais cedo, mas Morfeu está sempre vigiando o espelho. Agora que ele está com Alyssa, preparando-a para a coroação, estará ocupado demais para ficar de olho no resto de nós... até o fim.

— O fim? — Jeb apertou a barra ao lado dela, concentrado em seu olhar de libélula. — Você tem que me contar tudo.

A fada olhou para Lorina, que estava se esticando para a porta de arame.

— Você sabe muito bem que não tem o poder de sair desta gaiola, a menos que eu a abra para você.

Bufando, a lóri voltou a voar para o trapézio.

Gossamer conduziu Jeb para a fatia de pera e os dois se sentaram. Seu perfume frutado se impunha sobre o fedor da masmorra e o acalmou o suficiente para ele poder ouvi-la.

A fada colocou as mãos sobre as de Jeb, que descansavam sobre os joelhos.

— Eu já traí meu mestre o bastante vindo até aqui, e sua ira será enorme. Eu só posso dizer que, dentro de uma hora, Alyssa estará comprometida para sempre, amarrada ao País das Maravilhas para toda a eternidade. Morfeu planejou tudo para enviá-lo de volta, cavaleiro mortal... mas sem ela.

Uma veia na têmpora de Jeb começou a se contorcer feito uma serpente em uma bandeja quente. Ele deu um pulo para cima e bateu a cabeça nas barras novamente, tentando amolecer o fio azul, incapaz de controlar a fúria exasperada que lhe fervia por dentro. Mais sangue escorreu por sua têmpora.

— Você tem que me soltar! Preciso impedir isso!

— Sim, sim! Nós também! — intervieram o dodô e sua esposa, em coro. — Temos que ajudar a Rainha Grenadine a manter a coroa!

— Naturalmente — afirmou Gossamer, pegando a mão de Jeb e puxando-o para perto dela. — Vocês todos terão a oportunidade de lutar e de mostrar a sua lealdade.

— Mas não posso lutar assim. — Jeb chutou uma semente do tamanho de seu pé. — Você trouxe algum bolo do crescimento?

— Não. Não é a força de seu corpo que salvará Alyssa, e sim a força de seu coração de artista. Mas eu posso assegurar que não sairá deste lugar em sua forma atual.

A lóri desceu de seu poleiro e ralhou com a fada.

— Agora, me escute, sua lacraiazinha. Este rapaz não tem papel nenhum. Ele é, no máximo, coadjuvante. Eu sou a criada da rainha, e Charlie é o bobo da corte. Nós deveríamos ser a sua prioridade. Somos honoráveis membros da corte, os únicos que podem dar um basta nesta paródia!

Acelerando as asas até virarem um borrão enevoado, Gossamer flutuou e colocou as mãos nos quadris.

— Quanto ao seu papel, Lorina: você pode abrir as correntes de seu marido, pois preciso falar com o mortal a sós e tenho pouca tolerância ao ferro. — Ela abriu a porta da gaiola e lhe deu a chave.

A lóri esvoaçou-se veloz, numa comoção de exibicionismo e má vontade.

— Venha, venha, Doçura Selvagem — chamou Charlie, encorajando a esposa enquanto ela flutuava em torno dele, subindo e descendo, incapaz de manter-se firme em alguma altura. — Apresse-se, por favor. O ferro está me dando fisgadas. Poxa vida! Não é tão difícil assim... tente novamente!

A cara de Lorina ficou ainda mais vermelha.

— Tente, com a ponta da asa, usar uma chave do mesmo tamanho que a sua cabeça, seu meleca! Alguns de nós não foram abençoados com dedos, sabia?

Enquanto o casal se ocupava, Gossamer sentava-se novamente ao lado de Jeb.

— Você disse que meu coração de artista pode salvar Alyssa. Naquele quarto na mansão de Morfeu, também... você disse que eu tenho o poder dentro de meu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Minha namorada está prestes a morrer para mim e para a família dela. Não pode haver escuridão maior — sussurrou Jeb com lágrimas de frustração que lhe surgiram nos cantos dos olhos.

— Morreria por ela, cavaleiro mortal?

A espinha de Jeb se retesou. No passado, toda vez que ele protegera Alyssa, sempre se jogara sem nem pestanejar. Seria capaz de morrer por ela?

Quando o pai de Jeb morreu em um acidente, foi Alyssa quem o salvou. Ele não conseguia acreditar que tinha chegado a pensar em morar em Londres sem ela. Precisava dela, todos os dias. De seu sorriso compreensivo, de como ela fez suas cicatrizes parecerem medalhas de mérito sob seu toque, e de seus olhos incríveis. Mesmo tendo passado por tantas provações quanto ele, havia uma luz dentro dela que nunca se enfraquecia. E essa luz não somente a tornava linda por fora, mas também permitia que ela trouxesse vida aos incríveis mosaicos que fazia.

Era essa luz — tanto a interna quanto a externa — que o tinha levado a desenhá-la e pintá-la tantas e tantas vezes.

Ele olhou para Gossamer, quase incapaz de conter a emoção, agora que havia encontrado uma saída.

— Ela é minha melhor amiga.

Minha musa, meu pincel, minha arte, meu coração. Tudo isso estará morto sem ela.

Esfregando o rosto, ele limpou o líquido que havia caído de seus olhos e escorrido pelo rosto:

— Eu a amo. Sim, eu morreria por ela. É isso que preciso fazer?

A fada o encarava sem piscar.

— Está disposto a ir além da morte? A se perder de todos, até de você mesmo, em um lugar onde as lembranças se esvaem em uma maré escura como tinta? Pois, para libertar Alyssa, você terá que tomar o lugar da Rainha de Marfim na caixa linguardarte onde ela se encontra presa.

Jeb lembrou-se da água escura dentro da caixa que ele havia visto na sala dos espelhos da mansão de Morfeu e da cabeça fantasmagórica que havia lá dentro, e seu coração disparou. O sentimento de autopreservação o invadiu e sua mente começou a tentar encontrar outra maneira. Mas, bem lá no fundo, ele sabia que não havia alternativa e que o tempo de Al estava se esgotando. Ele só lamentava não poder dizer a ela, nem uma única vez, com sua própria voz, como se sentia, antes de ser trancado para sempre.

— Aceito.

— E assim será. — Gossamer ficou de pé e estendeu os braços. Fraco e entorpecido, Jeb aceitou seu abraço. Ela o apertou com força e voou com ele para fora da gaiola, pousando no chão. — O mortal concordou em ser o herói de seu reino. Procurem honrar sua bravura — disparou as palavras para Lorina.

Lorina havia conseguido soltar o marido. Ela se sentou no ombro dele, abanando-se com uma asa. Com os olhos arregalados, ela aquiesceu em silêncio — a demonstração mais sincera de louvor que poderia ter oferecido. O dodô ajoelhou-se ao lado de Jeb, uma presença enorme e plumada.

— Teremos uma dívida eterna para com você, rapaz. O que podemos fazer para ajudar?

Gossamer apontou para um canto da masmorra, onde um cobertor de juta cobria uma cama, chegando até o chão.

— Tragam-me o que está debaixo daquela cama.

Entorpecido por uma mistura de incredulidade e temor, Jeb observou o dodô trazer a caixa linguardarte.

Lorina ficou perplexa.

— Morfeu manteve a Marfim escondida aqui?

Gossamer assentiu.

— Por sugestão do Rábido. Ele disse que este era o único lugar no castelo onde ninguém viria à procura dela.

Depois de pedir a Charlie que abrisse a tampa e arrumasse uma pedra onde eles pudessem subir para ver lá dentro, Gossamer pediu ao estranho casal que se afastasse um pouco para que ela e Jeb tivessem um pouco de privacidade.

Jeb afagou as rosas brancas aveludadas que adornavam o exterior da caixa, fascinado pela beleza do rosto da Marfim quando este veio à tona. O olhar cristalizado de assombro dela passava dele para a fada, e voltava — cautelosamente curioso. Ele estremeceu ao pensar que tomaria o lugar dela.

Tinha mesmo que fazer isso?

Jeb sentiu que Gossamer observava seu semblante.

— Devo perguntar uma última vez se está seguro de sua decisão — indagou ela. — Porque, como você está escolhendo ser trancado, e selando essa escolha com seu sangue, a caixa nunca o libertará. Ninguém poderá salvá-lo. Você está oferecendo sua eternidade pela da Marfim, uma rainha que você nem sequer conhece.

Jeb sentiu um nó na garganta.

— Não. Estou trocando a minha eternidade pela da Al.

Gossamer sorriu com ternura.

— Em seus sonhos, vi certa vez que você teme não ser bom o bastante para a menina. Depois de tal sacrifício, ninguém poderá questionar seu valor como homem nem seu amor por ela. — Ela o beijou no rosto, deixando um calor que penetrou seu coração e conseguiu derreter uma pequena porção do terror congelante que lá se escondia.

Gossamer deu-lhe um pincel e recuou.

— Agora, use o poder que somente você pode exercer. Pinte as rosas com o seu sangue.

Jeb foi tomado por uma tontura. Murmurou coisas... sem sentido, temerosas... palavras agonizantes que ele sabia serem as últimas.

Depois, canalizou a raiva, o terror e o desejo por um futuro que ele nunca teria para as estocadas do pincel. Cada botão branco, tingiu-os de vermelho até perder-se dentro das sombras de seu trabalho, e fundiu-se à sua obra-prima, tornando-se um só.


Capítulo 5


A Decisão da Mariposa

A cena se estendeu e ficou turva enquanto Morfeu era arrastado para fora das lembranças de Jebediah e depositado de volta na chaise-longue. A escuridão deixava a sala pesada, mas ele nem se mexeu para ligar a luminária. O cenário completamente enegrecido parecia combinar com os pensamentos obscuros que lhe cruzavam a mente.

Ele passou o dedo pela coxa, acompanhando as listras do tecido risca de giz e alisando as rugas.

Por que se sentia tão aborrecido? Ele havia encontrado exatamente o que esperava encontrar. As fraquezas de Jebediah estavam à mostra: um ódio que poderia facilmente ser manipulado, um sentimento de impotência alimentado por um pai violento e crítico, um ciúme que provocava um sentimento temerário de proteção e que lhe custaria a própria vida.

O que Morfeu não tinha esperado encontrar, entretanto, era tanta semelhança entre ele e o rapaz. Os demônios do passado atormentado de Jebediah não eram muito diferentes dos seus. Ele sempre se surpreendera sentindo inveja dos humanos... por nunca ter tido o carinho de um pai ou de uma mãe. Simplesmente por ocupar seu lugar no mundo, ele também compreendia o medo de talvez nunca chegar a conhecer completamente a confiança e a afeição de outra pessoa.

Contudo, no passado, Morfeu nunca havia considerado isso uma coisa ruim. Ele apreciava ser uma alma reclusa e independente. Por vezes, até se vangloriava, quando lhe convinha ser o centro das atenções, naturalmente. Mas a atenção, a afeição ou a confiança não eram coisas de que ele precisava. Não até aparecer Alyssa. Depois que ela escolheu ignorá-lo, ele não conseguiu funcionar... sentiu-se desastrado e incompetente.

E agora, depois de colocar-se no lugar de Jebediah, Morfeu compreendia, mais até do que desejava, como o lado humano de Alyssa funcionava. Embora metade dela tivesse asas e pudesse flutuar sobre as inseguranças e trivialidades dos mortais, a outra metade tinha seus alicerces nas coisas que qualquer outro humano ansiava: confiança e segurança.

Tendo visto a coragem e a engenhosidade de Jebediah, bem como sua lealdade a Alyssa, Morfeu soube, sem sombra de dúvida, que aquilo era exatamente o que o rapaz oferecia a ela: uma rede de segurança e emoção que a salvaria caso a queda fosse muito alta.

Não era de admirar que ela fosse tão cativada por ele. Não era de admirar que ele exercesse poder sobre ela. Diabos, o próprio Morfeu ficou morbidamente fascinado pelos honoráveis traços morais do rapaz, incomuns em um humano tão machucado. Morfeu ficou tentado a recuar e deixar Jebediah ter seu momento de felicidade. Alguns poderiam até dizer que ele o havia merecido por desejar abdicar de seu futuro, de suas lembranças e de sua vida por Alyssa.

Morfeu rosnou e caiu para a frente com os punhos cerrados, tentando suavizar o estranho peso em seu peito. O rapaz não ficaria aqui para sempre. Era um mortal. Um dia, morreria de velho, no mínimo, e Alyssa voltaria a ser um alvo fácil.

Alvo fácil.

A mandíbula de Morfeu se contraiu. O romance não era uma coisa justa. Nem era um jogo. Era guerra. E, como em qualquer outro campo de batalha, não lhe cabiam a compaixão e a misericórdia.

O besouro-tapete estava certo. As emoções humanas eram coisas imprevisíveis e poderosas. Elas haviam penetrado na cabeça de Morfeu, enfraquecido sua determinação.

Com os cotovelos nos joelhos, ele levantou as mãos com as palmas para cima, incapaz de ver a silhueta delas no escuro. Ele conjurou um pouco de magia na ponta dos dedos, em bolas elétricas de plasma do tamanho de ervilhas, e depois enviou as esferas para todos os cantos da sala, os raios azuis deixando rastros como eletricidade estática. Elas subiram pelas paredes e em seguida se uniram na forma de uma mulher. A luz pulsava em ritmo hipnótico.

Imaginar Jebediah com Alyssa, mostrando a ela os caminhos do amor, domando seu espírito selvagem com suas corriqueiras convenções humanas, tudo isso queimou a garganta de Morfeu com o sabor amargo da inveja.

Ele não queria que o lado selvagem de Alyssa fosse dominado por nenhum outro homem, não desejava compartilhar nenhuma parte dela. Morfeu desejava os dois lados: sua inocência e seu espírito desafiador.

Que graça poderia haver na dependência? Que espontaneidade poderia haver em um mundo previsível? Ele poderia lhe oferecer uma eternidade de desafios e paixão, de momentos ternos e calmos nas profundezas de chamas vibrantes e tempestades devastadoras — a tranquilidade em meio ao caos.

O lugar dela era com ele, usando trajes de soberana. Ele tinha tanto a ensinar-lhe sobre o reino intraterreno, sobre as glórias da manipulação e da loucura. Se Morfeu alimentasse o faminto lado intraterreno de Alyssa, suas inseguranças e inibições humanas diminuiriam e, com o tempo, poderiam desaparecer. Ela nunca mais ansiaria pelo amor seguro de Jebediah.

Morfeu invocou sua magia de volta, recolhendo as espirais de luz azul até ficar novamente envolto na escuridão. Suas asas varreram o chão quando ele se levantou, e ele as ergueu num arco que quase tocava o teto.

Nada mais de deliberações. Ele tinha tentado fazer o que era justo em instâncias passadas e, sem exceção, isso sempre o prejudicara. Podia ignorar a pontada de culpa que lhe agitava o peito, mas não podia abdicar de suas necessidades pelas necessidades de Jebediah. Ele nunca mais seria ele mesmo sem Alyssa ao lado — a chama para sua Mariposa. Morfeu não pararia até que ela voltasse para o lugar que lhe pertencia, no País das Maravilhas.

Para vencer, ele jogaria sujo, colheria os despojos do coração dela do modo como fosse necessário, não importava quanto isso custasse ao rapaz mortal. Afinal, este era o modo intraterreno. Fazer menos que isso faria de Morfeu um humano. E ele sabia, agora mais do que nunca, que essa era a última coisa que jamais desejou ser.


SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS
Epígrafe

ÀS VEZES PENSO EM SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS ANTES DO CAFÉ DA MANHÃ.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Um

Mortalidade

Capítulo 1

Deportação

Algumas pessoas podem dizer que é impossível morrer e viver para contar. São as pessoas que nunca experimentaram a mágica. Quanto a mim, sou tataraneta da Alice que inspirou Lewis Carroll. Acreditei no inacreditável por mais de sessenta e quatro anos, desde que tinha dezesseis e descobri que o País das Maravilhas era real e cheio de seres caprichosos, misteriosos e loucos, governados por acordos e enigmas. Ainda assim, às vezes, por mais que você acredite no impossível, as coisas não saem como você as planejou. Toda mágica pode encontrar um obstáculo de vez em quando.

Por exemplo, nunca esperei que meu cadáver acabasse numa caixa de sapatos. É isso que os caixões crematórios me lembram... uma caixa de papelão do tamanho de uma pessoa. O caixão não é muito confortável. Não há a forração de veludo para suavizar a base de madeira. Nenhuma almofada para acomodar minha coluna curvada. E nada de roupas, além de um vestido de papel para cobrir minha pele velha e enrugada.

O cheiro de papelão se fixa ao meu nariz e as rodas de aço da maca giram ao longo do corredor, rangendo em algum lugar sob mim, junto a passos familiares. Sinto a transição do ambiente fresco e de temperatura controlada onde o legista atestou minha “morteza” (como os seres do País das Maravilhas diriam). Ele, então, pôs uma identificação de aço inoxidável no meu peito e fechou uma tampa sobre mim, me prendendo na escuridão.

A maca sacode ao entrar num lugar muito mais quente. O cheiro de ovo podre do propano confirma nossa localização. Já visitei este lugar. Nos últimos meses visitei vários crematórios, quando não havia ninguém por perto, de madrugada. Para conhecer melhor o gigantesco forno de tijolos à vista que estaria esperando para queimar minha carne. Para encontrar o projeto perfeito, com um banheiro e um espelho de corpo todo do outro lado do salão.

Assim que optei pelo crematório do Pleasance Rest Cemetery, me preparei para morrer.

Meu plano original era usar Tetrodotoxina. Em doses pequenas, subletais, ela deixa a vítima num estado de quase morte por dias, permitindo que ela mantenha a consciência. Morfeu, porém, não concordava. Ele disse que a margem de erro entre o estado de quase morte e a morte de verdade era pequena demais no mundo mortal e não algo com o que se brincar. Ele não queria que eu arriscasse. Então, ofereceu uma substituto do País das Maravilhas: uma poção que funciona quase da mesma forma, mas que tem um antídoto cem por cento garantido.

Bebi a dose de quase morte nesta manhã e, dez horas mais tarde, ainda sinto o gosto amargo e anestésico, como cravos dançando no fundo da garrafa de vinagre. Não consigo morder a língua para aliviar o efeito. A mágica me deixou catatônica — meus olhos fechados e imóveis, meus batimentos e respiração reduzidos a um ronronar indetectável por quaisquer instrumentos humanos.

Meu lado intraterreno se remexe dentro do meu crânio, me garantindo que isso vai dar certo, mas meu lado humano instintivamente se encolhe quando o medo tranca minha garganta. Não posso gritar para dizer a todos que estou viva. Minhas cordas vocais não vão funcionar. A claustrofobia, minha velha inimiga, me deixa toda arrepiada. Sei o que está acontecendo ao meu redor, apesar de não conseguir abrir os olhos ou mover meus membros. Todos os cheiros, sons e sensações táteis são ampliados por minha incapacidade de reação.

Os paramédicos que atenderam, nesta manhã, à chamada de emergência da minha neta de vinte e sete anos me declararam morta — fulminada por um ataque cardíaco. Foi insuportável ouvi-la chorar e gritar. Isso despertou lembranças da minha maior perda — da morte de Jeb, três anos antes. Uma faca ainda é cravada no meu peito sempre que me lembro do nosso último adeus.

Mas Jeb me mandou ser firme. E ensinei aos meus netos o mesmo — sempre encarar as coisas. Ela ficará bem. Não tenho dúvida disso porque ela é muito parecida comigo, para além de seus cabelos loiros, olhos azuis e curiosidade. Ela é teimosa, leal e uma sobrevivente.

Assim que os paramédicos levaram meu corpo ao necrotério, tudo funcionou como o previsto.

Minha família sabia que cemitério eu escolhera e as quatro exigências do meu testamento: nada de exibição pública do meu corpo, nada de velório, cremação em doze horas depois da minha morte e a dispersão das minhas cinzas no mesmo local onde as de Jeb foram jogadas, sob o salgueiro em nossa casa de campo. A árvore tinha um significado especial, por ter sido gerada de uma mudinha do salgueiro que dividia os quintais da nossa casa quando éramos crianças.

Tais pedidos nada convencionais não abalaram minha família, considerando que me tornei uma mulher muito excêntrica.

Depois da morte de Jeb, eles me viram vagar pela casa de campo, reunindo os mosaicos que fiz ao longo da vida, cheios de paisagens bizarras e místicas — com títulos como A Batida do Coração do Inverno, Dunas de Xadrez e O Ventre do Monstro —, e guardando-os no sótão, ao lado de outras quinquilharias, incluindo um anúncio de um passeio pelo Tâmisa, em Londres. As últimas coisas que guardei ali foram duas chaves: uma que pertencia à minha mãe, e era capaz de transformar qualquer espelho num portal, e outra que podia abrir o jardim das almas do País das Maravilhas. Esta última foi um presente dado a Jeb, depois que ele desistiu da sua musa, de modo a satisfazer a necessidade do reino interior por sonhos vívidos e cheios de imaginação, conectando nossos mundos em paz ao longo do processo. Ele desistiu do que fez dele único, a fim de manter as crianças humanas seguras. Um ato de coragem que seus filhos e netos jamais tiveram o privilégio de saber. Era essa a lembrancinha de que eu tinha mais dificuldade para me desapegar, porque era uma homenagem à coragem e ao caráter nobre de Jeb — as duas coisas que eu mais amava nele. No entanto, como Rainha Vermelha do País das Maravilhas, eu não tinha motivo para guardar chave tão sagrada.

Escondi tudo num baú no sótão e o tranquei. Então pus a chave do baú em meio às páginas da minha velha coleção de Lewis Carroll. Jeb e eu éramos donos da casa e do terreno que a cercava, e insistimos, em nossos testamentos, para que o lugar permanecesse sempre com a família. Assim, se nossos descendentes um dia precisassem me encontrar, poderiam. Eles só precisam procurar as pistas, como um dia eu fiz. Seguir meus passos e acreditar no impossível — em contos de fadas e desejos e mágicas.

Sempre os mantive no escuro quanto ao nosso legado, dando-lhes uma chance de viver uma vida normal. Até mesmo ordenei que os insetos e flores ficassem em silêncio. Agora sou a única capaz de ouvir esses sons do mundo interior, e as coisas continuarão assim enquanto eu estiver reinando como a Rainha Vermelha. Contudo, se algum familiar procurar com presteza, vai encontrar a verdade que escondi para eles.

Em todos esses anos, eles aceitaram meus caprichos porque sempre os respeitei e os amei incondicionalmente. E agora conto com a lealdade deles. Todo o meu plano de morrer depende da execução do meu testamento.

A cremação era a única forma de evitar que drenassem meu sangue, bombeassem formol em minhas veias e cerzissem minhas pálpebras — todos aqueles procedimentos mórbidos e intrusivos para embalsamar e preservar o corpo mortal. Fui abençoada ao longo dos meus oitenta anos de vida humana com saúde e uma mente aguçada. Nunca precisei de marca-passo e não tenho próteses, implantes ou dentaduras, então não há nada que possa explodir no forno. Isso significa que não haverá incisões nem extrações. Era importante que eu permanecesse intacta — por dentro e por fora.

Todavia, se o Rábido Branco não se apressasse e chegasse aqui com o antídoto para me tirar deste estado, nada importaria. Vou virar um monte de cinzas. E Morfeu terá de encontrar um lar novo para meu espírito eterno... um novo corpo para eu habitar.

Ele ficará furioso se isso acontecer e nunca me deixará esquecer isso. Uma eternidade é muito, muito tempo para ouvir eu avisei, entoado continuamente com um marcado sotaque londrino.

— Não me importo — disse ele há duas semanas, enquanto discutíamos meu êxodo do reino humano e tomávamos chá durante uma das minhas visitas ao País das Maravilhas em sonho. Ele levou a xícara à boca, seu rosto curioso perfeito e jovem como sempre. Ele bebeu e deixou a xícara de lado novamente. — Muitas coisas podem dar errado. Devo estar lá para executar meu plano.

— Vou agir sozinha — declarei. Estudei a cama com dossel e a lareira instaladas na diagonal em relação a enormes poltronas vitorianas ao lado de uma mesa oval, buscando conforto no cenário. — E vamos seguir meu plano. — Aqueles seriam meus últimos instantes no reino humano. Tinha de ser de acordo com a minha vontade. Contive uma descarga de tristeza e tentei exibir o mesmo controle que Morfeu exibia com sua xícara de chá, mas o líquido quente molhou minha mão velha quando meu pulso tremeu. Gritei.

— Alyssa, por favor. Permita-me. — Com seus dedos lisos e elegantes, ele cuidadosamente segurou meus dedos enrugados, limpando o chá e acariciando a mão queimada com um guardanapo.

Permita-me. Nós dois sabíamos que ele falava de outras coisas além da limpeza do chá derramado.

Tantos anos passamos juntos nos meus sonhos — e tantos outros na nossa infância —, com Morfeu me treinando e me ensinando sobre meu reino e o mundo. Não havia oportunidades para ficarmos sozinhos, já que ele mantinha o véu do sono descoberto para eu poder interagir com o Rábido, Chessie, Marfim, as criaturas e meus súditos.

Isso mudou quando fiquei viúva. Realizava meus deveres reais todas as noites e lutava para ser forte, até que meu luto pela morte de Jeb ficou tão intenso que as lágrimas se acumulavam em meus cílios, me cegando. Morfeu — sentindo minha vergonha, porque rainhas não choram — insistia que era hora do chá, que tomávamos sozinhos nos aposentos reais que um dia pertenceria a nós como rei e rainha.

Ali, na nossa solidão, escondidos de olhos predadores e cercados por exuberantes tapetes vermelhos e cortinas douradas, eu me perdia em minha dor. Permita-me, dizia ele. Estendendo os braços, ele me abraçava enquanto eu chorava. Noite após noite, durante um ano, até que finalmente não conseguia mais chorar.

Pouco depois, a atenção de Morfeu mudou. Seus carinhos se tornaram menos confortantes e mais íntimos. Estava constrangida demais para reagir, tímida demais em meu corpo velho.

Um ser místico eternamente jovem cortejando uma velha — teria rido do absurdo disso, não estivesse tão afetada pela devoção cega dele e pela intensidade do seu amor.

— Mesmo que usássemos seu plano... — Morfeu falava baixinho e de mau humor ao esfregar o guardanapo entre meus dedos, enxugando os resquícios de chá. — ... ainda assim eu deveria estar lá nas coxias, para supervisionar o espetáculo.

Franzi a testa para ele. Sua teimosia, juntamente com a dança dos vaga-lumes em seus cabelos desgrenhados e seus traços bizarramente belos, me fez lembrar outra noite em que nos sentamos neste quarto juntos — há várias décadas —, quando ele tentou me convencer a usar a coroa de rubi pela primeira vez. Quando tentei convencê-lo a me devolver meu desejo para eu poder fugir do País das Maravilhas, curar a maldição da minha família e manter Jeb em segurança. Eu era uma pessoa diferente na época, cheia de juventude, aspirações humanas e inocência.

Nosso quarto real se tornou uma lembrança dolorosa da velhice e decrepitude. Ansiava criar lembranças novas aqui, depois de desistir de tentar superar a beleza caótica do País das Maravilhas, quando fui coroada rainha de novo e permaneceria com dezesseis anos para sempre — jovem, cheia de energia e tão sedutora quanto o homem alado que governaria ao meu lado.

Até então, eu não me encaixava. Eu era uma foto deixada ao sol e chuva, minhas cores vibrantes se desbotando melancolicamente e ganhando um tom amarelado. Meus poderes intraterrenos ainda eram fortes, mas estavam presos num vaso gasto pelo tempo. Meus ombros pareciam curvados e pesados demais, eu raramente usava minhas asas. Do que mais sentia falta era voar.

Eu me perguntava se era assim que a Rainha Vermelha se sentiu no fim e por que ela permitiu que Morfeu a convencesse a voltar ao País das Maravilhas, abandonando seus descendentes semi-humanos. Por fim, foi plano dela voltar, apesar de não querer fazer aquela jornada sozinha. Ela brigou com Morfeu, dando início a uma série de eventos e manipulações que acabaram por me levar à coroa e me tornar rainha. Algo pelo qual aprendi a agradecer, apesar de na época ter reclamado do presente. Demorei muito para admirar totalmente a preciosa imortalidade, e jamais desvalorizaria isso novamente.

Depois que Morfeu terminou de limpar o chá derramado, tirei a mão da dele e timidamente cobri meu pescoço com o lenço de seda, tentando esconder minhas peles murchas. As pessoas diziam que eu era linda para a minha idade. Que parecia ao menos vinte anos mais nova. Todavia, em comparação à beleza sobrenatural e imutável de Morfeu, eu me sentia velha.

— Não quero você lá — insisti, determinada a mantê-lo distante da casa funerária. — Já basta você ter me visto murchar como uma uva-passa ao longo dos anos. — Até minha voz soava enferrujada, como se as palavras jorrassem da minha garganta e língua em porções cáusticas.

Morfeu apoiou os cotovelos na toalha da mesa, aproximando-se ao máximo com o jogo de chá entre nós. Seus cabelos azuis tocaram-lhe os ombros, animados e encantados — um contraste marcante com as ondas brancas reduzidas a um coque preso atrás da minha cabeça.

— Você está no fim de sua crisálida, meu amor. Esta etapa é a mais difícil, acredite. Uma batalha furiosa e incômoda de identidade, antes de se libertar e se transformar na criatura de luz e criatividade que sempre foi seu destino. Posso mantê-la atenta. Para evitar quaisquer... distrações.

Ele olhou para minha aliança, que eu ainda não tinha tirado. Aquilo se tornara mais do que um símbolo da nossa devoção. Tornara-se um símbolo da minha vida humana, e eu pretendia usá-la até deixar tudo para trás.

Com o dedinho, Morfeu circulou a aliança, cuidando para não tocar os diamantes ou o suporte de prata que os mantinha no lugar.

— É importante que você não permita nada que a impeça de dar o salto final. Você sofreu a perda daqueles que se foram há tanto tempo. Eles estão em paz. Deixe que a paz deles lhe dê paz. Senão, você será afetada... incapaz de agir com a mente ágil. O foco é fundamental para que qualquer um dos planos funcione.

— Já sei disso — respondo, um aperto no peito dolorido. — Você tem medo de que eu fique senil. De eu não ser capaz de lidar com isso.

Ele suspirou, acariciando meu polegar com o dele.

— Não senil. Nostálgica. Acontece a humanos. Você mesma me contou, enquanto eu a via amadurecer do refinamento à sabedoria.

— Refinamento. — Tentei um sorriso hesitante diante do esforço dele em me encantar. — É assim que vocês falam hoje em dia?

Ele me encarou sem hesitar.

— Seus olhos não perderam a incandescência; nem a mente, a inteligência. Você não é ingênua. Você é minha torta de ameixa, e sempre foi. Já lhe disse isso repetidas vezes, não é?

Ao menos uma vez por noite nos meus sonhos, Querida Mariposa.

Não respondi em voz alta, assim como não revelei minhas maiores inseguranças: estava com vergonha de ele me ver tão decadente... Não suportava a ideia de ele ter qualquer lembrança de mim como um cadáver naquele caixão de papelão — assim como eu vi Jeb depois da morte dele, antes de ser cremado.

— Uma rainha não deveria exigir resgate — sentencio. Ainda o encaro, maravilhada com aquelas íris coloridas que devolvem a mim o mesmo olhar de nossa infância, cheio de surpresa e afeto. De certa forma, ele via para além do meu corpo velho e enxergava a menina que fui, e eu queria muito conseguir me ver como ele me via. — Uma rainha deve merecer o respeito do seu reino e de seus súditos. E a admiração do rei.

Ele pegou minha mão novamente e beijou cada um dos nós dos dedos cheios de artrite.

— Ah, eu lhe garanto Você sempre mereceu isso. Na verdade, planejo mostrar-lhe a profundidade de minha admiração. — A palavra profundidade saiu de sua garganta como um urro. — Ainda que sejam necessárias várias vezes para convencê-la, finalmente chegará o momento de você ser minha.

Meu rosto ficou vermelho. Apesar de todos os anos em que ele me elogiou e me provocou com insinuações, e a despeito de tudo o que vivi como mãe, esposa e avó mortal, ele ainda conseguia me fazer enrubescer.

— Ah, aí está. — Ele passou o dedo por meu rosto enrugado e sorriu, satisfeito demais consigo mesmo. — Não perdi meu encanto.

— Como se isso fosse possível, para o mestre da sedução verbal — provoquei.

Seu humor mudou para a insolência num piscar de olhos.

— Você logo verá que isso é mais do que conversinha, minha rosa.

Fiquei ainda mais vermelha, sentindo-me mais jovem do que nunca. Ele sempre causava esse efeito em mim. Sempre fez com que eu me sentisse viva e desejável. Exceto pelas vezes que ele me desafiava ou me deixava furiosa.

Ele se recostou em seu lugar, as asas erguidas.

— Seu corpo está cansado. Deixe-me fazer isso por você, para você poder descansar — tentou ele uma última vez.

— Você me ensinou a ser forte e astuciosa. Devo dar sozinha este último salto para dentro da toca do coelho. — Uma sensação inesperada de vulnerabilidade me fez tremer. Peguei minha xícara de chá para absorver seu calor. — Mas você estará lá para me pegar?

— Estarei lá esperando um beijo arrasador para compensar todos os meus problemas — respondeu ele sem hesitar.

Sorrindo, peguei o jogo de xadrez. Morfeu ficou observando atentamente eu animar as peças para que atuassem no meu grandioso plano de deixar o reino humano e esconder meus vestígios com a ajuda do meu conselheiro real, além de pedaços de osso fornecidos pelas fadas, um saco de cinzas, dois trajes de disfarce, uma mosca comum e um punhado de duendes. Enquanto eu falava, seu olho adornado com joias brilhava num tom esverdeado — incomodado, mas esperançoso. A ansiedade que emanava dele era visceral.

Era inconcebível que tivéssemos um relacionamento de sessenta e três anos — platônico — sem um quê de tensão. Apesar de ele gostar muito de me ver andar na ponta dos pés na corda bamba da sedução contida, ele manteve seu juramento e respeitou minha decisão de ser fiel a Jeb. Ele esperou três anos, enquanto eu sofria a morte do meu marido mortal e preparava minha família para minha partida iminente. Era essa a profundidade do respeito dele por mim. Ele teve meu respeito em troca. E muito mais...

Agora chegou o dia de recompensá-lo por sua paciência e estou começando a me arrepender por não deixá-lo planejar minha morte... por não deixá-lo controlar o espetáculo. Provavelmente, tudo seria muito mais fácil. Eu já estaria em seus braços e em sua cama — uma jovem rainha borboleta, governando meu reino, embriagada de poder, loucura e paixão.

Não. Eu consigo. Posso provar que sou capaz, calculista e forte, como todas as boas rainhas deveriam ser.

O único papel de Morfeu no meu plano era mandar o Rábido com o antídoto. Assim que meu cúmplice chegar, tudo se encaixará e fugirei para o País das Maravilhas. Como um corpo não pode ser exumado depois de reduzido a cinzas, ninguém saberá que ainda estou viva e apenas fui embora deste mundo para sempre.

Uma pontada de tristeza segue-se a esse pensamento quando finalmente me dou conta. Acabou. Estou pronta para dar um fim... para começar meu futuro imortal. Vivi uma vida plena aqui. Minha família é saudável e feliz. Estamos no auge. Todos os sonhos humanos foram realizados e meu coração está firme e forte novamente.

Se bem que, por causa disso, há muita coisa a ser deixada para trás. Não há nada inconcluso, mas ainda assim é difícil dizer adeus para sempre. Assim que a coroa for colocada em minha cabeça para dar início à minha imortalidade, não terei de usá-la constantemente para manter minha juventude, mas terei de ficar no País das Maravilhas. Como Marfim uma vez me disse, o tempo é complicado ao se passar pelo portal a fim de retornar ao mundo humano... há de se imaginar uma hora específica, ou o relógio retrocede e o portal deixará você no mesmo momento de sua passagem.

Se eu tentar cruzar as fronteiras para o reino humano depois de partir, voltarei para sempre a este momento e terei oitenta anos para sempre, ou automaticamente envelhecerei todo o tempo que se passou e virarei pó na hora. Acrescente-se a isso o fato de eu estar morta aos olhos de todos — jamais poderia explicar meu reaparecimento sem causar terror e confusão — e ir e voltar não será mais uma opção.

Uma muralha impenetrável está prestes a se erguer entre mim e minha família, deixando-nos sem nada além de memórias.

O rosto de Jeb reapareceu em minha mente antes que eu pudesse impedir... como seus olhos verdes brilhantes me encararam pouco antes de ele os fechar na morte. Como eles estavam tão cheios de amor e gratidão por todos os sonhos que compartilhamos.

Sinto algo crescer na minha garganta e uma dor atrás dos olhos. No meu peito, a pequena identidade de metal parece uma pilha de tijolos.

Pare. Não posso fazer isso agora. Tenho de me concentrar na fuga. Morfeu tinha razão. Pensar naqueles que amei só vai me atrapalhar. Vou manter as lembranças sob controle... esquecer como encarei a morte da mamãe e do papai, como achei que jamais superaria a dor. Como Jeb foi meu porto seguro, como sempre. Assim como fui para ele, quando a mãe dele morreu.

É fútil pensar nessas coisas agora, porque, assim que Jeb morreu, todo o mundo se distorceu — adquiriu uma nova forma que eu não reconhecia. As coisas cotidianas se tornaram estranhas e desagradáveis. Com a morte dele, eu não fazia parte de mais nada.

Minha metamorfose estava completa assim que meu marido mortal deixou de respirar. Só o que me restava agora era sair do meu velho casulo.

Um cheiro novo entra em meu entorno de papelão — loção pós-barba ou desodorante —, me obrigando a voltar ao presente enquanto dois homens conversam do lado de fora do caixão.

— Última da noite, Frank?

— É isso, Brian. Chegou há algumas horas. Só entrega. E é para se apressar com ela. Quer que eu fique e ajude?

Tenho dificuldade para respirar. Meu plano não permite duas testemunhas. Só uma. Enquanto espero pela resposta do operador do crematório, meu coração se encolhe dentro de mim, cheio de medo. O órgão parece tremer, apesar de não haver pulsação em meus pulsos ou ouvidos. Só uma vibração fria e indiscernível por trás do meu esterno, como gelatina gelada retirada da fôrma.

— Não — diz finalmente Brian, mexendo em alguns papéis. — Posso fazer isso de olhos fechados.

A ironia é risível. Se tudo sair como planejado, ele não só terá seus olhos fechados, como também estará dormindo e sonhando.

— Vá para casa e fique com sua família — conclui Brian. — Diga a Melanie e às crianças que mandei um oi.

— Entendi. Até amanhã.

As portas se fecham com um rangido e o alívio toma conta de mim, mas por pouco tempo. Os cliques e claques da esteira mecanizada balançam as paredes de papelão do meu caixão e agitam meus ossos rígidos. Sinto um balançar leve sob minha coluna enquanto meu caixão segue por uma esteira com rolos de metal. À medida que estes se movem, as chamas crepitam mais alto, aquecendo meus pés no ponto onde a parede sob a sola dos meus pés se aproxima perigosamente da entrada do incinerador.

Era para o Rábido estar aqui antes que o forno de temperatura controlada estivesse quente o bastante para acionar o mecanismo de abertura. As coisas estão acontecendo fora da sequência e rápido demais. Meus músculos doem e ganham vida, mas estão rígidos como aço. Imóveis. Um vislumbre de outra lembrança me arrepia: quando a Rainha Vermelha controlou meu corpo naquele último dia em Qualquer Outro Lugar. Quando eu era uma marionete dela. Sinto-me tão impotente agora quanto naquele tempo.

Estou prestes a ser envolta em chamas. Meu corpo não vai sobreviver. De todo modo, preciso sobreviver. Prometi voltar como eu mesma. Inteira. É uma promessa que não posso quebrar. Morfeu esperou demais por meu retorno. Não posso decepcioná-lo.

A dúvida ergue sua cabeça horrível: o que farei? Não consigo me mover, não consigo me livrar... não sem o antídoto. Um vazio dói por trás dos meus canais lacrimais enquanto desejo que uma enchente me liberte e encha toda a minha caixa com um oceano de lágrimas para me salvar do fogo. Mas meus olhos podiam muito bem estar cheios de areia.

Chega de drama, meu amor. Use sua mágica. Improvise e encontre uma forma de escapar.

Não tenho certeza se é a voz de Morfeu na minha cabeça ou se é minha própria voz. Ouvi o sotaque dele e sua insistência tantas vezes ao longo da vida que eles estão entranhados em mim como se fossem meus.

Seja qual for o caso, isso desperta minha determinação. Há um motivo para eu ter vindo a este lugar na noite passada, quando tudo estava escuro e em silêncio: para poder anotar mentalmente todas as coisas que poderia animar se precisasse. Para poder entender a logística do forno crematório. Para poder usar minha mágica às cegas.

Concentro-me no maquinário da esteira. Aprendi uma coisa ou outra sendo esposa de um mecânico. As molas do mecanismo se contraem enquanto as imagino se retraindo. O movimento aciona as amarras e a porta de metal se fecha com um baque. Minha caixa para imediatamente ao atingir o obstáculo.

— Você só pode estar brincando comigo — resmunga Brian. Ele mexe na maçaneta da porta e bate nas dobradiças. — Pronto. Agora, sim.

Ele empurra meu caixão de volta para a esteira de metal, criando espaço para a dobradiça se abrir. Minha mente procura outra forma de detê-lo quando o ouço gritar “Mas o que é que...?”, pouco antes de ouvir o som do seu corpo caindo no chão. O caixão bate na porta fechada novamente.

— Rainha Alyssa — uma voz fina soa do outro lado do papelão.

Nikki, sua fadinha maravilhosa. Um formigamento se irradia pelos meus lábios, o fantasma de um sorriso esperando para se abrir. Meus dedos dos pés se dobrariam de empolgação, não fosse minha paralisia.

A tampa do caixão se abre e as asas de vinte fadas pairam ao redor do meu rosto — lufadinhas de vento com cheiro de canela e baunilha.

Mãozinhas do tamanho de joaninhas seguram minhas pálpebras, abrindo-as diante de um brilho âmbar. Ainda não consigo virar a cabeça, mas pela minha visão periférica a galhada do Rábido aparece sobre a borda do caixão, seguida por um par de olhos rosados brilhantes.

— Atrasado estou — desculpa-se ele.

Tento menear a cabeça, mas não consigo.

Todo o seu rosto aparece diante de mim.

— Arrumá-la, Alteza. Levá-la para casa, finalmente.

Casa. A palavra passeia por minha mente, cheia de promessas e esperanças. Imagino-me voando com Morfeu pelos cenários bizarros e irregulares do País das Maravilhas. Como vai ser bom me sentir pertencente a um lugar de novo. Fazer parte e nunca ter de abandonar ninguém novamente.

O Rábido estica o braço magro e derrama em minha garganta algo de uma garrafa vermelha. Um leve toque de frutas vermelhas misturado a menta arde em minha língua. Meu coração ganha vida, batendo com tanta força contra meu esterno que eu perco o fôlego. Em pouco tempo, sou capaz de abrir os olhos sem a ajuda das fadas. Elas se dispersam com risadinhas e pairam ao redor do adormecido operador do crematório, caído no chão de cimento.

Pisco com força e rapidez. Meus canais lacrimais funcionam e meus olhos se enchem de água. O sal fere e coça.

Depois, meus dedos dos pés e das mãos latejam e os músculos despertam, moles e resistentes, como elásticos esticados demais. Enquanto me sento, minhas velhas articulações estalam.

O Rábido sobe na beirada da inclinação e segura o caixão, mantendo-o ao meu nível.

— Perdoe o Branco Rábido. Para todo o sempre, ao seu lado estarei.

Acaricio sua cabeça macia.

— Nenhum perdão é necessário. O que importa é que você está aqui agora. Alguém o viu saindo do banheiro?

O Rábido faz que não.

— A mosca no muro ficou de olho no futuro. — Ele ri da rima e aponta para a parte de cima da porta que ostenta a única janela do salão. A mosca anda pelo vidro do outro lado, numa demonstração de sua devoção inabalável.

O Rábido abre o sorriso sorrateiro que aprendi a apreciar, enquanto sua mão esquelética me entrega uma mochilinha. Olho dentro e está tudo ali: meu colar com o rubi, minha aliança de casamento, os trajes de disfarce, um saco de cinzas e pedacinhos de osso, uma muda de roupa, uma faca e três lembranças da minha vida humana que serão as únicas coisas que levarei comigo ao transpor os limites do País das Maravilhas.

Primeiro, coloco o colar em volta do pescoço e aperto a chave contra o peito, saboreando o poder que ela contém.

O operador do crematório ronca no chão. Ele parece com frio e nada confortável, mas sei que não está. Seus sonhos são cálidos e sensuais. As fadas voam ao redor dele, as asas batendo à velocidade de beija-flores, enquanto elas espalham partículas que são como dentes-de-leão cheios de feromônios. As sementinhas caem sobre o rosto sorridente do homem, levando seu inconsciente a imaginar as fantasias mais carnais. Torço o nariz, com vergonha até de imaginar o que ele está sonhando. Ele provavelmente vai ter uma ressaca de sonhos por uma semana.

Ainda que ele não vá sofrer nenhum efeito físico duradouro, as fadas estão explorando os pensamentos secretos dele. Quando eu era mais nova, teria me arrependido de tê-lo usado em meu plano. Agora, não. Quando ele acordar, daqui a mais ou menos uma hora, sua dor de cabeça insuportável o impedirá de questionar como conseguiu me cremar enquanto ele dormia. Ele só irá querer uma aspirina e sua cama macia em casa.

O fim justifica os meios.

Uso a faca para cortar uma abertura na lateral do caixão e tirar minhas pernas, lenta e cuidadosamente. Não consigo me mover tão rápido quanto antes. Meus pés descalços tocam o chão frio, o vestido de papel fazendo barulho. O Rábido se vira de costas enquanto tiro o vestido e o jogo dentro da caixa, depois visto um moletom e botas cinza — as roupas mais confortáveis e discretas do meu armário. Repreendo-me por me esquecer das roupas íntimas, mas não importa o que estou vestindo agora, porque no País das Maravilhas Morfeu encheu todos os armários do castelo com camisolas e lingeries de renda, cetim e veludo — um guarda-roupa digno de uma rainha.

Hoje, o disfarce esconderá meu traje simplório. Coloco o pé no tecido mágico. Para virar uma camaleoa, só preciso vestir o capuz e me concentrar nos arredores, meu corpo refletindo o cenário de fundo.

Mas primeiro...

Sem eu nem pedir, o Rábido me entrega o saco de cinzas e ossos e minha aliança de casamento. Olho o anel. Jeb o fez para mim quando tinha a capacidade mágica de pintar coisas e lhes dar vida. Quando sua musa se tornou uma entidade viva. Ele me serviu tanto como anel de noivado quanto como anel de casamento e era indestrutível. Pelo menos era o que pensávamos. A única vez que ele perdeu um de seus doze diamantes foi por descuido da minha mágica, quando eu a estava praticando.

Estava do lado de fora da nossa casa de campo, tentando fazer o salgueiro dançar, quando o diamante caiu na grama. Procuramos e procuramos, mas nunca o encontramos. Depois de uma semana, ele apareceu de novo, nascendo do solo na forma de uma flor parecida com vidro. Era como se o diamante fosse uma semente, tendo dentro de si a força da criação mágica de Jeb.

O cheiro de terra presente na lembrança dá lugar ao cheiro do propano do forno. Abro o saco e derramo as cinzas e ossos no caixão, mantendo os movimentos metódicos e precisos para a nostalgia não tomar conta de mim novamente.

Depois de esvaziar o saco, beijo minha aliança e a coloco em cima do montículo.

— Rábido, derreta isso com sua mágica.

Meu conselheiro real se aproxima, olha pela abertura e estreita seus olhos brilhantes até que eles irradiem um calor vermelho. Enquanto ele se concentra, as faixas de prata se fundem, reduzindo os onze diamantes a cinzas.

Coloco a placa de identificação dentro do caixão e leio o que está gravado no aço: Alyssa Victoria Gardner Holt. Sinto um nó na garganta. É a última vez que meu nome humano me definirá.

Reposicionando a tampa, ordeno que o mecanismo da porta funcione. Entrefecho os olhos diante do calor e das chamas, enquanto as portas se abrem o bastante para eu empurrar o caixão pela esteira, a porta se fechando em seguida. Ela se fecha completamente, tanto que nem mesmo se pode ver o brilho alaranjado lá dentro.

Alguns segundos mais e eu estaria presa ali. Agora, depois que o papelão se queimar todo, vai parecer que eu estava. As prateleiras de metal na parede contêm vários cubinhos de papelão. Dentro estão os restos mortais dos corpos que vieram antes de mim e agora esperam ser transferidos para suas urnas.

Mas meus “restos mortais” são únicos. Os diamantes de Jeb esperam lá dentro — sementinhas mágicas. Quando as cinzas forem lançadas no lugar onde as dele foram absorvidas na terra sob nosso salgueiro, flores nascerão, uma parte dele e minha. Unindo o que restou de nosso lado humano, numa última homenagem a toda a beleza que ele criou durante a vida.

Seguro-me para não chorar e pego a mochila enquanto o Rábido veste outro traje de disfarce, o qual encolhe até caber em seu corpo de coelho. Mentalmente, pergunto à mosca se o corredor está livre.

Ela responde num sussurro:

Está tudo bem, Rainha Alyssa...

Os outros humanos se foram. Não há nada além de umas traças por aqui.

Desnecessário ficar invisível, então.

— Nikki — sussurro, e a fadinha balança as asas, soltando a dose final de pó de fada no homem adormecido. Então ela reúne suas companheiras e nos segue porta afora. O banheiro fica a poucos passos do outro lado do corredor comprido e escuro. Sigo tomando cuidado para não esmagar as traças que caminham perto dos meus pés e dos pés do Rábido. Sorrio ao ver os insetos acompanhados de uma fila enorme de baratas, besouros e aranhas.

Rainha Alyssa! Rainha Alyssa! Tão triste vê-la partir...

A mosca voa ao redor da minha cabeça, acrescentando suas despedidas à confusão.

— Sentirei saudade de vocês também — digo, lutando contra uma onda de melancolia. Será a última vez que ouvirei esses cumprimentos confusos e zunidores. No País das Maravilhas, os insetos são... bem diferentes. Menos inócuos e bonzinhos. Alguns são maus e letais, e nada pequenos. Mas conheço todos os segredos deles e todas as suas fraquezas — graças ao sábio guardião do País das Maravilhas.

Nosso desfile entra no banheiro e para diante do espelho. Em vez de me ater à minha aparência velha e enrugada, imagino o relógio de sol que cobre a toca do coelho em um jardim londrino. O vidro racha como gelo no lago e, no reflexo entrequebrado, o relógio de sol aparece, marcado por uma réstia de pôr do sol rosa. É cedo e ninguém ocupa a trilha ainda. Como precaução, visto o capuz e o Rábido faz o mesmo.

Só precisamos de um ou dois pensamentos sobre nossas cercanias e seremos invisíveis.

Usando minha chave, miro numa fissura na forma de buraco de fechadura, minúsculo e intrincado.

O portal se abre. O Rábido me cutuca com seus dedos magros e entrelaço meus dedos aos dele. Junto com as fadas e nossos insetos companheiros, passamos pela abertura liquefeita. Uma brisa fria me atinge, assim como o cheiro de mato e rosas cobertos de orvalho reluzente.

Os botões de rosa dizem:

Bem-vinda, Majestade. Os anos ficaram para trás. Logo você estará desabrochando como nós novamente.

Sorrio. O Rábido me puxa rumo ao relógio de sol que já expõe a toca do coelho. Ele está ansioso para ir embora. Mais insetos se juntaram a nós; alguns pelo terreno: besouros, centopeias e escorpiões; outros pela brisa: borboletas, mariposas, vaga-lumes...

Saem em enxame do mato e ficam dando a volta em mim e em meu conselheiro real — um arco-íris encantado, espesso e brilhante, sob a luz rosada do céu.

As borboletas cantam:

Vida longa à Rainha Alyssa. Que você seja para sempre jovem, louca e livre.

Muitos deles pousam sobre mim, as asas acariciando meu rosto e pescoço através do traje de disfarce, e percebo que não terei mais de me tornar invisível. Meus amigos insetos estão aqui para me dar proteção, como sempre estiveram.

O Rábido me solta, seus dedos de cadáver tocando os meus enquanto ele segue as fadas e mergulha na toca do coelho sem olhar para trás.

— Atrase-se não, Majesta-a-a-ade — o grito do Rábido ecoa até mim, afastando-se mais e mais à medida que ele desce, sem peso, como uma pena ao vento.

Ao contrário do meu séquito interior, não consigo ir embora sem uma olhada para trás.

Paro, olhando em meio à nuvem de milhares de asinhas adejando diante da paisagem tremeluzente no horizonte. Meu peito se aperta.

Pego as lembrancinhas da minha mochila. Três garrafas de vidro decoradas: a primeira cheia de pedrinhas, a segunda com conchas e a última com um pó prateado. Uma olhada nas três e as lembranças contra as quais eu lutava iluminam minha mente, graciosa e lentamente, como a aurora invadindo o mundo imóvel que desperta.


CONTINUA

A MARIPOSA NO ESPELHO


Capítulo 1


As Maquinações
da Mariposa

— Tem certeza, Morfeu?

— Tenho — respondeu Morfeu, tirando as luvas e enfiando-as no casaco. — Você, entretanto, parece que precisa ser convencida.

A magia pulsava nervosamente na ponta de seus dedos, uma luz azul pulsante logo abaixo da pele. Por causa da ponte de ferro que havia lá fora, seus poderes estavam limitados a alguns truques inofensivos, mas suficientes para dar o seu recado, se necessário.

O besouro-tapete — que de tão grande chegava à altura dos ombros de Morfeu, depois de este haver tomado uma poção encolhedora — engoliu em seco por trás de suas muitas mandíbulas estalantes. Sua pele carpetada tremia.

— Não, não. Por favor, o senhor interpretou mal as minhas ressalvas. — Os braços ramosos do inseto vibravam enquanto ele folheava as marcações em ordem alfabética de sua prancheta, as quais continham todas as lembranças perdidas no País das Maravilhas. — É que ficar espiando os momentos esquecidos de um ser humano parece uma maneira tediosa de se passar uma tarde, só isso...

Morfeu mudou de posição, e suas asas lançaram uma sombra sobre a cara do besouro.

— Ah, mas este humano, em especial, tem muito a me ensinar.

Esse humano, em especial, havia conseguido capturar algo que Morfeu desejava mais que tudo neste mundo.

— Sente-se — disse o inseto, apontando para uma cadeira branca de vinil —, e eu prepararei as memórias para o senhor.

Morfeu jogou as asas para o lado, sentou-se e deu uma tragada no narguilé fornecido por seu anfitrião como cortesia. O tabaco doce e fresco passou ardendo pela sua garganta. Ele soprou baforadas de fumaça no ar, formando com elas o rosto de Alyssa. Era fácil imaginar o modo como seus olhos sempre se cobriam de um azul gélido quando ela o via, cheios de excitação e temor ao mesmo tempo. Adorava isso nela: a sagacidade de seus instintos intraterrenos alertando-a a não confiar nele, suavizada pelas emoções humanas forjadas durante a infância que passaram juntos.

Antes dela, Morfeu levara a vida em solidão, sem nunca precisar de ninguém. Ele não fazia a menor ideia do feitiço que ela lhe lançara. Ela era mais que uma decepção, sempre jurando devoção ao lado errado. Seu encanto, porém, era inegável. Principalmente quando ela o desafiava ou o encarava com sua indignação de justiceira, o que a deixava com os lábios deliciosamente posicionados quando rangia os dentes.

Morfeu colocou o narguilé de lado, embora a sensação de queimação em seu peito não tivesse nenhuma relação com o fumo. Alyssa era a única que poderia aplacar o incêndio que havia ali, pois fora ela quem havia atiçado aquelas chamas.

Os dois tinham passado cinco anos juntos — como amigos de infância —, até que a mãe dela a arrancou dele, Alyssa sangrando e ferida, e ele ficara se remoendo de remorso e com culpa por causa de um juramento imprudente que havia feito, no qual prometeu se manter longe dela.

Manter-se afastado da amiga fez com que ele sentisse o gosto da solidão pela primeira vez. Mesmo todos os anos de claustrofobia que ele passara aprisionado em um casulo antes de encontrá-la... nem mesmo eles o prepararam para o sofrimento da ausência dela.

Então, por fim, ela havia voltado para ele, fazendo-o reviver todos os antigos sentimentos que ele pensava ter dominado. Daquela vez, também, tudo foi muito rápido. Ela partira novamente, por escolha própria. Restaram a dor e a solidão excruciantes. Debilitantes.

Havia apenas seis meses que ela partira do País das Maravilhas, e ele não compreendia este vazio corrosivo que só poderia ser preenchido pelo toque dela, por seu perfume, sua voz. As solitárias criaturas mágicas não ligavam para essas bobagens; não precisavam de companhia, abominavam a bagagem emocional. Sua afeição e lealdade pertenciam ao agreste País das Maravilhas e a nada nem a ninguém mais.

Então o que ela havia feito para mudar isso?

Ultimamente, cada vez que ele via o próprio reflexo, não mais reconhecia a Mariposa no espelho. Estava incompleto, enfraquecido; e menosprezava isso.

O menosprezo era ainda maior porque ele havia se esforçado tanto para cortejá-la, enquanto ela oferecia seu afeto a um reles mortal.

Morfeu suprimiu um rosnado. Ele não conseguia compreender a sorte de Jebediah, como um humano podia ter tanto poder sobre uma rainha intraterrena. Como um simples rapaz era capaz de controlar um coração real e mestiço tão multifacetado, um espírito propenso ao pandemônio e à loucura. Jebediah puxava Alyssa para baixo, acorrentando-a ao tédio e à banalidade do reino humano.

Ela precisa ser libertada.

Morfeu havia considerado a possibilidade de matar seu rival, mas Alyssa jamais o perdoaria. Não. Chegara o momento de tomar medidas criativas.

Se Morfeu soubesse no que Jebediah havia pensando durante sua jornada pelo País das Maravilhas — todos os momentos em que ele se sentiu mais aterrorizado, mais desanimado —, conheceria as fraquezas e as forças do mortal, intimamente. Ele saberia como enfraquecer Jebediah, contrapondo-o a si mesmo.

Essas fraquezas o derrotariam melhor do que Morfeu o faria. E depois, quando tivesse destruído a confiança de Alyssa em seu cavaleiro mortal, Morfeu estaria lá para confortá-la e conquistá-la.

Voltaria a ouvir a risada de Alyssa do modo como ela ria quando os dois eram crianças, e teria de novo a oportunidade de ser presenteado com o seu sorriso deslumbrante.

Ele voltaria a ser completo.

— Por aqui, por favor — pediu o besouro para que Morfeu o seguisse.

Morfeu tirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo. Quando o inseto abriu a porta para um compartimento de memórias sem janelas, o cheiro de amêndoas vindo de uma travessa de biscoitos de luar fresquinhos que estava em uma mesa de canto se espargiu no ar. Havia uma chaise-longue na cor creme colocada contra a parede, e uma ornamentada luminária de piso feita de latão iluminava o espaço com uma luz discreta.

Morfeu concentrou-se no pequeno palco do outro lado do compartimento. Sentiu o coração palpitar de ansiedade num ritmo profundo e firme. As cortinas de veludo vermelho aguardavam o momento de se abrirem para mostrar as memórias de Jebediah na tela prateada.

— Como o senhor entrará na cabeça do rapaz para visitar suas lembranças perdidas, sou obrigado pelas normas a avisar-lhe que... as emoções humanas podem ser muito poderosas... podem nos fazer ver as coisas sob uma perspectiva totalmente diferente — advertiu o besouro.

— Estou contando com isso. — Morfeu deu um sorriso afetado. — Conhece aquele ditado sobre amigos e inimigos?

O besouro coçou a pele enrugada.

— Hum... mantenha seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda?

Morfeu acomodou-se na cadeira estofada e alisou a calça risca de giz ao cruzar as pernas apoiando um tornozelo sobre o outro.

— Melhor ainda é se colocar no lugar de seu inimigo. É a melhor maneira de controlar seus passos. Ou de apagá-los, caso tenha a oportunidade.

O besouro, voltando a tremer, esticou o braço fininho e apertou um botão na parede. As cortinas do palco se abriram, revelando uma tela de cinema.

— Imagine o rosto do rapaz enquanto olha para a tela em branco e vivenciará o passado dele como se fosse hoje.

As palavras do besouro eram ensaiadas, até mesmo mecânicas, mas a pulsação de Morfeu ficou acelerada. Ele esperou o besouro desligar a luz. Assim que o inseto saiu e fechou a porta, o corpo de Morfeu desmembrou-se nas juntas, flutuando pela escuridão como se fosse feito de partículas de pó. Todos os seus pedaços se uniram novamente na tela prateada, em cores vivas e cinematográficas, até que ele entrou na cabeça de Jebediah, apropriando-se do seu corpo, sentindo suas emoções.

Naquele momento, Morfeu entregou-se à experiência e, pela primeira vez na vida, passou a ver as coisas como um humano.


Capítulo 2


Primeira Lembrança —
Kriptonita

Jeb acordou em uma cama suspensa.

Estava nu. Por que estava nu?

Antes que esse fato pudesse ser totalmente registrado, trinta fadas ou mais, do tamanho de mariposas, surgiram do ar, acariciando cada parte do seu corpo e sussurrando-lhe. Ele tentou mexer os braços e pernas. As asas das fadas — que batiam na velocidade das asas de um beija-flor — liberavam partículas parecidas com as pétalas delicadas de um dente-de-leão, que, de alguma maneira, o imobilizaram. As sementes exalavam um perfume de canela e baunilha que foi inundando sua consciência, até que a sala ficou totalmente fora de foco.

Quando a névoa se dissipou, ele estava em sua cama, em casa. A noite adentrava pela janela e Taelor estava em cima dele, seminua. A unhas pintadas à moda francesinha percorreram os pelos de seu peito e abdômen, dirigindo-se ao cós de sua calça jeans.

Aquilo não podia ser verdade. Taelor e ele tinham brigado antes do baile de formatura, haviam terminado tudo.

Com delicadeza, ele a virou, colocando-a debaixo dele, e apoiou-se nos cotovelos, afastando o cabelo do rosto dela. Mas não foram os olhos de Taelor que encontraram os dele. Foram os olhos gélidos e azuis de Alyssa — encarando-o com um ar de admiração e inocência. Os dedos dele pareciam grandes e desajeitados nas têmporas dela.

A Al na cama dele?

Não. Isso não podia acontecer. Alyssa nem havia beijado homem algum. E Jeb nunca tinha sido o primeiro de nenhuma garota.

A Al era intocável para ele. Ela já passara por muitos episódios turbulentos em sua vida. E ele não era exatamente um exemplo de estabilidade.

Ele tirou as mãos dela e ficou de joelhos.

— Jeb, você não me quer? — perguntou Al, passando a mão no peito dele.

Ele não conseguiu responder. Seus dedos coçavam e pareciam esticar-se, como se estivessem crescendo. Ele ergueu as mãos sob o luar, observando, horrorizado, seus dedos caírem, um por um, e se metamorfosearem em lagartas. As lagartas, então, avançaram lentamente na direção de Alyssa, e ele não conseguia fazer nada para detê-las. Jeb caiu de costas na cama, com as mãos sobre o rosto, olhando fixa e incredulamente para os tocos crus e cheios de sangue onde antes estavam seus dedos.

Gritando, Alyssa tentou sair do colchão, mas as lagartas a pegaram, arrastando-se por sua pele e tecendo teias, até que restou somente uma forma se agitando dentro de um casulo.

— Soltem ela! — gritou Jeb. Uma luz lampejou em seus olhos, e então ele já não mais se encontrava em sua cama. Estava em algum lugar da mansão de Morfeu, e as fadas percorriam sua pele, hipnotizando-o... usando algum tipo de feromônio alucinógeno.

Elas estão me segurando aqui para que o Morfeu fique sozinho com a Al. No instante em que a realidade foi percebida, o feitiço foi quebrado.

Jeb pulou rápido da cama suspensa e saiu da nuvem de sedução de suas captoras. Pegando um travesseiro, ele se cobriu.

— Quero alguma coisa para vestir!

As fadas flutuavam no ar, seus olhos de libélula observando-o.

Havia várias cestas douradas no chão perto dos pés dele. Jeb chutou uma. Suas pequenas captoras se espalharam pelo ar, em histeria coletiva.

Gossamer, a fada predileta de Morfeu, designou cinco delas para pegar os morangos que rolaram. Elas contaram as frutas uma por uma e as colocaram de volta na cesta.

Jeb chutou outra cesta cheia de contas de óleo perfumado. Outras cinco fadas lançaram-se ao chão para pegar tudo, parando para contar cada conta antes de guardá-la.

Em pouco tempo, ela já havia chutado todas as cestas. Algumas estavam cheias de pétalas de flores, outras continham loção, outras, ainda, uvas. Ao virá-las, ele conseguira manter a maioria de suas captoras preocupada. Apenas Gossamer e outras duas ainda pairavam em torno de sua cabeça.

— Me deem algo para vestir — repetiu ele —, ou vou começar a tirar as plumas dos travesseiros. Vocês não estão em número suficiente para limpar uma sujeira dessas.

— Ele não está respondendo ao nosso feitiço — murmurou uma das fadas para Gossamer, com seus olhos de inseto voltados para Jeb.

— E nem à nossa magia — acrescentou a outra, amuada. — Eu conjurei uma moça das lembranças dele, mas seu subconsciente conseguiu escapar.

— Sim, este aqui é, sem dúvida, um desafio — concordou Gossamer, numa voz que tilintava feito um sino. Depois de mandar as outras duas fadas recolherem o conteúdo da última cesta, ela ofereceu a Jeb um robe de seda.

Ele se virou de costas e enfiou a peça de roupa no corpo, assimilando os arredores.

Morfeu o colocara em uma prisão opulenta. A sala era toda revestida de piso de mármore preto que refletia a luz laranja dos candelabros. Ele já estava bem familiarizado com o ponto focal: um colchão circular balançante preso por correntes douradas no centro do teto côncavo. Peles e almofadas forravam a cama, perfumadas por pétalas de rosa.

Apesar de todos esses confortos, faltava a essa sala um detalhe muito importante: uma saída. Não havia portas, janelas ou qualquer outra abertura à vista.

Paredes convexas — pintadas em cor de lavanda escura — eram cobertas por parreiras que se estendiam por toda a sua circunferência, entrando e saindo do reboco e se entrelaçando nos candelabros acesos. Frutas brotavam das vinhas. De quando em quando, as uvas explodiam espontaneamente e pingavam seu suco dentro de bacias de pedra posicionadas ao longo das paredes para apanhá-lo. E, delas, um líquido viscoso e purpúreo era drenado para dentro de fontes — um abastecimento constante de vinho de fadas com aroma adocicado.

Ele se lembrava vagamente de ter provado o vinho ao chegar. Desconfiado, tentou resistir, mas estava com muita sede. Era impossível saber que tipo de magia havia no líquido.

Jeb gemeu e esfregou o rosto. Quanto tempo teria passado bêbado e enfeitiçado? Ele acabara sendo inútil para Alyssa, assim como o pai dele teria sido.

— Onde ela está? — perguntou ele, ignorando a harpa que tocava sozinha, a qual, na tentativa de abafar-lhe a voz, começou a tocar mais alto. — Me diga o que Morfeu está fazendo com ela.

Minúscula, reluzente e confiante, Gossamer acomodou-se em uma almofada de cetim, passou a mão pelo colchão ao seu lado e cruzou as pernas apoiando os tornozelos verdes um sobre o outro.

— Talvez você não perceba o que nós, as fadas, somos capazes de fazer. Temos séculos de prática. Podemos lhe mostrar um êxtase com o qual você sempre sonhou.

Jeb a olhou de cima a baixo e ajustou a faixa de cetim em sua cintura.

— Me desculpe, não sonho com coisas verdes.

Ele encontrou a mochila de Alyssa debaixo da cama e a puxou. Jeb havia notado alguma coisa dentro dela anteriormente, quando a vasculhara em busca de outra coisa: uma pulseira de ferro forjado que ela provavelmente havia enfiado na mochila quando ainda estava na escola e ficara esquecida ali. Ele havia pesquisado muito as fadas quando começou a pintá-las, e sabia que elas não gostavam de ferro — se a lenda fosse verdadeira.

Jeb jogou a mochila sobre o colchão. Os cobertores de pele encresparam-se feito uma onda gigante e derrubaram Gossamer de sua almofada. Acionando suas asas com rapidez, ela pousou sobre o ombro de Jeb.

— Se é Alyssa que inspira suas paixões, podemos realizar essa fantasia. — Gossamer bateu palmas. As outras largaram seus postos de limpeza e se apressaram a formar um círculo em volta de Jeb. Uma onda de enjoo lhe invadiu o estômago quando todas as fadas assumiram a aparência de Alyssa — réplicas perfeitas em miniatura, com cabelo platinado e roupas sensuais de skatista. Elas liberaram novamente suas sementes de feromônios, cegando-o com o perfume de Alyssa, doce como néctar.

Brandindo uma almofada, Jeb rompeu a ilusão e dissipou as sementes. As fadas saíram aos guinchos e foram se esconder nas vinhas das paredes, com seus corpos brilhantes parecendo cordões de luz branca e piscante.

Gossamer pairou no ar acima dele, ralhando.

— Já chega! Informem o nosso mestre de que o mortal é leal à garota. Não podemos seduzi-lo para que volte ao seu mundo sem ela.

Jeb ficou resmungando, enquanto as fadas se esgueiravam por buracos do tamanho de ervilhas, na parede onde as vinhas entravam e saíam. Se ao menos ele pudesse passar por aquelas pequenas saídas também... Chegou a pensar em usar a poção encolhedora que ele e Alyssa tinham encontrado quando chegaram ao País das Maravilhas, mas ela o deixaria tão pequeno quanto suas captoras, e ele ficaria indefeso contra Morfeu. A impotência lhe fervia as entranhas, tão profunda como a que ele sentia quando era criança, escondendo-se em um armário até que passassem os ataques de fúria do pai.

Ele cerrou os dentes. Tinha de haver uma passagem escondida em algum lugar por trás das vinhas. Elas o tinham trazido para cá; devia haver uma saída.

Subitamente, ele deu um pulo para a parede mais próxima e arrancou algumas vinhas, lançando-as para todos os lados. O diminuto guincho de surpresa de Gossamer não o intimidou.

Uvas explodiam em suas mãos, libertando seu aroma potente e denso. As plantas viscosas cortavam seus dedos feito arames. Jeb aceitou a dor. Era algo que podia controlar — diferentemente do tormento dos cigarros acesos que seu pai lhe enfiava na pele, ou dos punhos que lhe socavam o rosto e o estômago. O cheiro da nicotina, o gosto de sangue. Imaginação ou não, eles alimentaram o selvagem em sua alma.

Ele mergulhou numa espiral vermelha de fúria e devastou a sala. Quando finalmente voltou a si e recostou-se na cama, ficou chocado com os estragos que causara.

Arfando e suando, ele cuidou dos cortes nas junções dos dedos e vasculhou os destroços à procura de Gossamer. Será que a tinha machucado? Se sim, talvez fosse mesmo filho de seu pai.

Jeb cerrou os punhos, descontente consigo mesmo.

— Gossamer? — Ele se encolheu ao ouvir a própria voz, rude e inflamada de emoção.

Um rufar de asas mexeu uma das correntes que prendiam a cama ao teto. Ele respirou, aliviado ao ver a fada. Embora parecesse meio idiota importar-se, já que estava prestes a usar a pulseira de ferro de Alyssa contra ela.

Gossamer pousou no chão ao lado das vinhas rasgadas e das cestas que ele tinha derrubado de novo; seus ombros estavam caídos, em demonstração de derrota. Provavelmente, ela não sabia por onde começar a calcular todos os conteúdos derramados.

Jeb começou a vasculhar a mochila. A harpa havia parado de tocar, e o silêncio o incomodava feito o ruído dos ponteiros de um relógio. Cada segundo que ele passava longe de Alyssa deixava-a mais vulnerável a Morfeu.

Seus dedos finalmente encontraram um metal frio. Ele jogou a pulseira de ferro na direção de Gossamer, mas mantendo alguma distância, na esperança de enfraquecê-la sem machucá-la.

Ela gritou e lançou-se ao ar, se debatendo.

— Por favor... afaste isso.

— Não até eu conseguir algumas respostas. — Jeb segurou uma das asas dela entre o indicador e o polegar, levando-a para a cama e sentando-a sobre uma almofada, tomando o cuidado de manter a pulseira próxima o bastante para intimidá-la. — Basta cooperar, que eu não vou machucá-la.

— Já está machucando. — Ela gemeu, com a pele esverdeada já tingida de turquesa. — Não posso usar minha magia... — Gossamer bateu as mãos no próprio rosto. — Vai me deixar... horrível. Abster-me. — Sua voz ficou mais calma, como se estivesse falando consigo mesma, e, rangendo os dentes, continuou: — Abster-me até a ameaça de dor e contaminação passar.

Jeb franziu a testa.

— Então o ferro vira seus poderes contra vocês? É a arma perfeita para usar contra seu chefe.

— Um objeto desse tamanho... só funciona com os menores de nossa espécie.

Jeb curvou-se, aproximando ainda mais a pulseira dela.

— Muito bem, então considere isso um detector de mentiras. Toda vez que eu perceber que você está fingindo, aproximarei o ferro. Onde está a Al, e o que o seu chefe repugnante está fazendo com ela?

A cor da fada mudou para um verde azulado. Ela rolou sobre a almofada, as asas lutando para bater. Gossamer as puxou por cima dos ombros até a altura do peito, cruzando-as, como se quisesse conter a sua magia.

— A sua Alyssa está confortável e sendo bem cuidada. Morfeu está zelando pelo sono dela...

Jeb soltou um grunhido. Na noite passada, ele havia zelado pelo sono dela, no barco. Mudara a posição do corpo dela para que pudesse olhá-la de frente e fazer uma promessa, mesmo que Alyssa estivesse sonolenta demais para ouvi-lo. Jeb havia prometido que a protegeria, que a levaria para casa a salvo. E não iria quebrar sua promessa agora.

Ele precisou resistir ao desejo de destruir a sala novamente.

— Como eu saio daqui?

— Apenas o Morfeu tem os meios para abrir a passagem.

Jeb inclinou-se para a frente, com o nariz quase tocando o rosto de Gossamer enquanto segurava a pulseira sobre a cabeça dela, como se fosse um objeto corrosivo.

— Está dizendo que estou preso aqui até que aquela barata de asas decida me soltar? Ele vai fazer a Al enfrentar o País das Maravilhas sozinha?

Ela choramingou, levando a mão à testa.

— Não. Como você provou ser leal, ele permitirá que a acompanhe em sua jornada. Você comparecerá ao banquete e traçarão os planos.

— Banquete?

— A apresentação de Alyssa. Morfeu deseja exibi-la aos outros.

— Que outros?

Gossamer deixou-se cair, formando um monte de cor púrpura e em seguida saiu depressa de seu poleiro. Ela puxou alguma coisa de dentro da almofada — um desenho de Al que Jeb não se lembrava de ter feito. Lentamente, Gossamer levantou os joelhos e estudou as linhas.

— Você fez isto enquanto estava sob nosso feitiço. Tem poder dentro de seu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Você captou o interior de Alyssa com perfeição.

— Esse desenho é pura fantasia — resmungou Jeb. Ele colocou a pulseira de ferro sobre o papel ao lado de Gossamer.

Ela rolou para o meio do desenho, tentando escapar do metal.

— Há mais verdade nesta aparência de Alyssa do que em qualquer coisa que possam me forçar a falar.

Jeb puxou o desenho, fazendo Gossamer e a pulseira de ferro rolarem por cima da pelugem. Ele estendeu o desenho sobre uma almofada e percorreu as linhas de carvão com o dedo. A imagem era igual a todos os outros desenhos de fadas que ele havia feito de Al ao longo dos anos, mas, ainda assim, não poderia ser mais diferente da garota que ele conhecia.

Ele a desenhara com o cabelo preso no alto da cabeça. Al nunca usava o cabelo daquele jeito. Um vestido preto de alcinhas realçava suas curvas. Nem morta ela seria vista em um vestido tão convencional. E a única coisa que se parecia com ela eram as luvas de renda preta sem dedos que cobriam as cicatrizes da palma das mãos.

Fora isso, o desenho era uma fantasia completa. Sentada em um banco de jardim, Al segurava uma rosa. Rímel e lágrimas escorriam em curvas graciosas por seu rosto. Pensando bem, se parecia com a maquiagem dela na última vez que ele a vira.

Ele ainda não conseguia entender por que, depois de quase se afogar em um oceano de lágrimas, o rímel de Alyssa não havia borrado. Apertando os olhos, ele estudou o par de asas translúcidas abertas nas costas dela. As membranas finas tremeluziam sob o único raio de sol que atravessava as nuvens. As asas faziam com que se sentisse estranho, mas Jeb não conseguia perceber a razão.

Talvez porque elas lembrassem as asas de Morfeu, embora tivessem uma cor totalmente diferente. As têmporas de Jeb latejaram. Nada poderia ser pior do que Alyssa sozinha com aquele homem-inseto. Aquele doido tinha algum tipo de poder sobre ela, havia entrado em sua cabeça quando ela era pequena. O subconsciente pode ser muito poderoso, e se Morfeu ainda tivesse acesso aos sonhos da Al...

— Como posso derrotá-lo? — perguntou Jeb com um nó na garganta.

Os olhos bulbosos de Gossamer voltaram-se para os dele. Ela estava fraca demais para se arrastar para longe da pulseira, que agora roçava sua coxa.

— Ele não será derrotado. Há anos ele espera por este dia.

Jeb fez cara feia.

— Muito bem, ele é o Super-Homem. Mas todo mundo tem a sua kriptonita. Algo de que sente medo.

— O confinamento — Gossamer deixou escapar, e, diante da confissão, seu corpo escureceu até ficar da cor de um machucado.

— Como assim?

Gossamer levou o dorso da mão à testa.

— Por favor... está muito perto... o ferro... está drenando minha energia.

Jeb caiu de costas no colchão e afastou a pulseira da fada. Equilibrando-o entre os dedos, ele estudou o ferro sob a luz das velas. A pulseira o lembrou de seu piercing de ferro e da primeira vez que Al o vira, sua reação de entusiasmo. Ela havia implorado para tocá-lo e fez várias perguntas sobre o processo de colocação de um piercing. Seu entusiasmo e ingenuidade, suas inseguranças... Morfeu não hesitaria em usar qualquer uma dessas coisas, ou todas elas, para manipulá-la.

Jeb precisava convencer Al a sair do País das Maravilhas, a esquecer esta jornada para quebrar a maldição de sua família, a qualquer custo. Algo muito tenebroso estava à espreita, bem perto dela, como no sonho que ele tivera. E Jeb podia sentir que, fosse lá o que estivesse para acontecer, estava se aproximando.

— Então vocês querem que ela conserte os erros da Alice original, certo? E se eu consertá-los? — Jeb tentou raciocinar. — Vocês enviam a Al para casa e deixam que eu cuide de tudo?

— Impossível — respondeu Gossamer num sussurro arfante, voltando à cor verde-clara. Engatinhando na direção do desenho, ela passou a pequenina mão sobre a rosa. — Ela já passou nos testes e provou ser a escolhida.

— Testes? Está se referindo a encontrar a toca do coelho para o País das Maravilhas e secar o oceano de lágrimas?

Gossamer fez que sim.

— Mas eu ajudei a fazer isso.

— É por ela que ele esperava. Não por você.

Jeb levantou a pulseira de ferro uma última vez.

— O que ele realmente quer dela?

Antes que Gossamer pudesse responder, o teto abobadado começou a tremer. Pedaços espessos de gesso despencaram no solo. Jeb colocou uma almofada sobre a cabeça e uma mão sobre Gossamer para protegê-la dos detritos. O teto se abriu nas emendas, fazendo a cama balançar e puxando as correntes em direções opostas, de modo que o colchão subiu vários centímetros.

Depois que os tremores passaram, Jeb olhou para cima. A silhueta escura de Morfeu apareceu em uma abertura no teto.

Sutileza era um dos últimos itens na lista de prioridades desse cara.

— Já te disseram que você é muito escandaloso? — rosnou Jeb.

Morfeu inclinou-se para olhar a sala destruída.

— Já te disseram que você é um péssimo hóspede?

Parte da responsabilidade daquela bagunça era da grandiosa entrada de seu aprisionador, mas Jeb mordeu a língua, não querendo arriscar sua oportunidade de ver Al.

Morfeu relaxou.

— Alyssa o aguarda na sala dos espelhos. E, por favor, tome um banho e faça a barba. Você será apresentado aos nossos convidados do banquete como um cavaleiro élfico, então precisa parecer como tal. Gossamer lhe dirá como se comportar adequadamente. — Morfeu largou algumas roupas e botas, que fizeram um ruído ao atingir o chão. — Aí está seu uniforme. — Ele fez uma pausa e apontou para as correntes. — Que pena que você não tenha asas e nenhuma magia intraterrena. Terá que sair daí sozinho. E posso assegurar que não será nada fácil.

Os músculos de Jeb se retesaram quando Morfeu sumiu de vista; ele sabia que o aviso se referia a muito mais do que sair daquela sala.


Capítulo 3


Segunda Lembrança —
Carnificina

Jeb limpou o suor da testa. Morfeu estava certo. A escalada para sair de sua prisão dourada seria mesmo difícil. Mas isso não significava nada se comparado à jornada pelo País das Maravilhas que ele e Alyssa haviam cumprido desde então. O dia inteiro tinha sido um desafio atrás do outro, com o perigo e a morte aguardando em cada esquina. E agora ele havia perdido a Al. Os dois tinham se separado pouco antes de ela completar o teste final. Al ficou enfrentando as irmãs Twid no cemitério, sozinha, e ele ficou preso aqui no fundo do abismo.

A noite já havia caído quando ele atingiu o solo, e foi uma transição extremamente rápida, como se alguém tivesse apagado a luz.

Jeb sentiu os músculos do corpo endurecerem. Odiava pensar na Al sozinha naquele mundo insano depois de anoitecer. E, mais uma vez, ela provou ser forte o bastante para encarar quase tudo. No final, foi ela quem o salvara mais de uma vez...

Ele se lembrou dela pairando acima dele — um brilho selvagem, flutuando com a graça de uma libélula. Ver as asas dela brotarem tinha sido ao mesmo tempo assustador e milagroso. Jeb mal conseguiu respirar enquanto observava a transformação.

Falando sinceramente, Jeb ainda não tinha recuperado o fôlego de quando ela o levara para dentro do abismo e ele gritara: “Você é minha corda de segurança!”, antes de ela subir ainda mais alto para o céu. Ele não deveria ter colocado tanta pressão sobre ela para salvá-lo; tinha que ter feito o que conseguisse para sair de lá por si próprio e encontrá-la no meio do caminho. Do contrário, ela nunca se perdoaria se algo saísse errado.

A carcaça de um pássaro Jubjub havia amortecido sua queda. Ele limpou nas calças a gosma pegajosa que tinha entre os dedos, torcendo o nariz diante dos restos malcheirosos do exército que os perseguia e acabou caindo no abismo. Jeb procurou ficar de pé na escuridão. Suas botas produziam sons de sucção toda vez que ele pisava. Ele nunca tivera fricotes; qualquer aversão a sangue e violência havia sido expurgada — uma dessensibilização gradual que era reforçada sempre que ele se olhava no espelho e via suas bochechas e olhos inchados, grandes e cheios de sangue, que nem um bife malpassado.

Contudo, sem uma centelha de luz para guiá-lo, a carnificina aos seus pés parecia mais viva do que morta. Sua imaginação trazia arquivos de todos os tipos, de filmes de zumbis a demônios e assombrações. Seu estômago queimava de náusea. Jeb sentiu-se aliviado ao perceber que os assobios que ouvia dentro do abismo eram produzidos pelo vento. E não havia ruídos de correntes fantasmagóricas nem gemidos de mortos-vivos.

Além disso, seu verdadeiro inimigo era o tempo, mais perigoso do que qualquer coisa que pudesse imaginar. A Al ainda tinha de cumprir a última tarefa no cemitério. E, depois, eles ainda tinham de encontrar um ao outro.

Ele se forçou a avançar às cegas até sua mão alcançar a parede do abismo. Antes de descer totalmente, Jeb viu que a mochila de Al tinha ficado presa em uma pedra saliente próxima ao chão. Se conseguisse encontrá-la, poderia contar com uma lanterna. Tateando a superfície áspera da pedra, ele levantava seus pés por sobre os obstáculos, tocando os cadáveres com os dedos dos pés para mensurar a largura de cada passo.

Com os cotovelos esbarrando nas pedras, Jeb observou o céu. Um pequeno aglomerado de estrelas brigava com as nuvens, aparecendo para iluminar levemente o lugar ao seu redor, tornando possível que ele continuasse sem esbarrar no falecido exército da rainha. Uma brisa úmida levantava a poeira feito pequenos tornados. Logo choveria. E, neste lugar, era possível que, literalmente, chovesse a cântaros — daqueles temporais ruidosos, torrenciais.

Um calafrio que não tinha nada a ver com a tempestade iminente lhe percorreu a espinha e obscureceu qualquer sentimento bom que ele poderia ter encontrado naquele pensamento. Qual era a razão de todos esses “testes” de Morfeu? Toda vez que a Al conseguia se sair bem em um desses testes, sua forma intraterrena tornava-se mais acentuada. Será que o intuito era transformá-la completamente para que não pudesse mais voltar ao reino humano?

Fios de cabelo caíram sobre seu rosto, e Jeb os afastou.

Morfeu afirmara que tudo o que ele mais queria era que Alyssa voltasse ao seu lugar. Sua casa. Jeb esperava que ele estivesse se referindo ao mundo deles, o reino humano. Mas e se a Al não estivesse sob nenhuma maldição, no final das contas?

Ele se lembrou de sua pesquisa sobre fadas, na qual descobriu que elas eram criaturas chamadas de changelings — as crias das fadas secretamente deixadas no lugar de bebês humanos roubados. Alice Liddell, a tataravó de Al, teria sido uma changeling? Quem sabe foi por isso que ela encontrou, quando criança, a toca do coelho — por instinto. Isso significaria, de alguma estranha maneira, que aqui era a casa de Al.

Jeb parou com as especulações. Elas só levavam a mais dúvidas.

Ele tinha encontrado a mochila. Abriu-a, tirou a lanterna e colocou a mochila nos ombros.

Ao fechar o zíper, ele acendeu a lanterna e percorreu o cenário com fachos de luz. Os guardas destruídos pareciam cartas de baralho amarrotadas. Brinquedos descartados. Até mesmo os pássaros Jubjub poderiam se passar por brinquedos infantis com o enchimento extrapolando para fora.

Com a mochila ajeitada no corpo, Jeb percorreu a circunferência do abismo sem encontrar nenhuma abertura. Pedras que haviam caído bloqueavam qualquer possível passagem que ele tentasse. Era como se ele tivesse caído dentro de um tubo gigante. Não havia nenhuma outra saída a não ser subindo.

Jeb apontou a luz para o gramado a cerca de vinte andares acima — a clareira onde Alyssa havia pousado. Estava determinado a encontrá-la antes de Morfeu, mesmo que tivesse de escalar as pedras pontiagudas no escuro e sem uma corda de segurança.

Ele havia acabado de apoiar a lanterna entre os lábios e escorar o pé em um rochedo para tomar impulso quando ouviu uma voz com um sotaque britânico familiar.

— Ao trabalho, homens. Precisamos contar todos antes que as irmãs Twid enviem sua brigada de duendes para recolher os mortos.

Morfeu.

Jeb desceu e quase colidiu com o intraterreno alado, que tinha aparecido do nada, como se tivesse aberto um zíper no ar e passado por ele. Cavaleiros élficos faziam fila atrás dele, entre vinte e trinta, carregando lanternas e usando o mesmo uniforme de Jeb, só que menos esfarrapado e sujo. Eles passaram sem nem olhar para Jeb, extremamente concentrados na contagem dos corpos.

— Ora, ora, pseudocavaleiro. — Morfeu riu com desdém.

Cada pedacinho de Jeb ansiava por apagar aquele sorriso arrogante e socar aquele rosto. Mas ele estava em desvantagem. Se quisesse sair desse fosso para encontrar a Al, teria de bancar o bonzinho.

— Detesto dizer isso, mas é bom vê-lo, senhor Mariposa. — Jeb guardou a lanterna. — Vejo que pegou o espelho para vir aqui.

— Eu só viajo de espelho. — Morfeu ergueu a lanterna e examinou as roupas esfarrapadas de Jeb. — Tem a vantagem de não estragar tanto as roupas. E vou lhe contar outro segredo: se eu mantiver as asas daquele lado do plano — ele apontou com o polegar para as suas costas, onde metade de seus apêndices não era visível —, a abertura fica acessível para nossa viagem de volta.

Jeb forçou um sorriso.

— É bom saber.

Perfeito, na verdade. Ele poderia voltar com a trupe de elfos e depois tomar o expresso na sala de espelhos para encontrar a Al. Mas primeiro teria de distrair Morfeu, baixar a guarda dele. Jeb perguntou:

— Esse chapéu é novo?

Morfeu ficou radiante.

— Que gentil de sua parte ter notado. É meu chapéu da Insurreição. Ainda não havia tido a oportunidade de usá-lo antes. — Com o dedo, bateu em várias mariposas que formavam a guirlanda na aba do chapéu e depois se inclinou e fez conchinha no ouvido de Jeb para sussurrar um segredo. — As asas vermelhas representam derramamento de sangue.

— Ãh-hã. — Jeb cerrou a mandíbula diante do indesejado bafo quente no lóbulo de sua orelha. Depois, olhou para os cavaleiros, discerníveis somente por suas lanternas flutuando na escuridão atrás dele. — Então, está planejando um motim com o exército da rainha de Marfim?

Morfeu apertou o ombro de Jeb.

— Eu sempre soube que era mais esperto do que os mortais comuns.

Os músculos de Jeb contraíram-se ao contato.

— O que significa que você estava mandando a Al para uma missão absurda só para se divertir.

Cuidado. Jeb não poderia deixar sua desconfiança transparecer. Pelo menos não ainda. Em vez disso, ele se inclinou para ajustar os cadarços das botas e respirou fundo antes de se reerguer.

Morfeu apertou sua gravata vermelha.

— Todas as tarefas que pedi à Alyssa tinham um propósito. — Ele deu um passo para o lado quando alguém mais passou pelo portal do espelho: um esqueleto do tamanho de um duende, com antenas e olhos cor-de-rosa brilhantes, metido em um colete vermelho.

— Rábido Branco? — sussurrou Jeb, incrédulo. Nada daquilo fazia sentido. O Rábido era da corte Vermelha. Por que estava aqui?

— Qual é o relatório? — Morfeu agachou-se para ficar na altura do Rábido, ainda mantendo as asas enfiadas no portal invisível do espelho.

O pequeno intraterreno apertou as mãos enluvadas e olhou para Jeb, sua cabeça careca refletindo o brilho suave da lanterna de Morfeu.

— Um de nós, você é?

Morfeu sorriu e respondeu por Jeb.

— É claro que é. Ele ajudou a nossa Alyssa a conquistar o grande e cruel exército Vermelho, não lembra?

Coçando a antena esquerda, o Rábido fez que sim.

— Rainha Grenadine neutralizada está. Nos portões da frente e de trás, o castelo guardado está pelos regimentos três e sete. Flanqueando a rainha, um círculo de cinco. Sem esquecer da coroa e seu guardador.

— Ah, sim. O bandersnatch. Bem, quando Alyssa tiver trazido seu prêmio do cemitério das irmãs Twid, nada mais terei a temer daquela besta medonha. Fez um bom trabalho, senhor Branco. — Morfeu deu uma batidinha na aba do chapéu.

O Rábido bateu os tornozelos cadavéricos um no outro, depois se curvou e lançou um olhar penetrante para Jeb, antes de pular novamente para o portal.

— Ele é o seu espião — murmurou Jeb, sentindo-se idiota por não ter adivinhado antes.

— Sim.

— Então todas as vezes que o esqueletinho ameaçou a Al, matando-a de susto, era só para manter a aparência de lealdade à Rainha Grenadine?

— Os melhores espiões são aqueles que jogam dos dois lados com o mesmo vigor.

A distância, Jeb avaliou as lanternas que balançavam. O tilintar dos cabos de metal e o pisar de botas eclipsavam o suave lamento do vento.

— Certo. Já que estamos abrindo o jogo...

O comentário de Morfeu o interrompeu.

— Que trocadilho mais delicioso, considerando a posição em que estamos. — A lanterna dele apontou para os cadáveres dos guardas de carta.

Jeb ignorou a piada mórbida.

— Eu ia perguntar por que o Rábido se voltou contra a corte Vermelha.

— Ele era o conselheiro real da Rainha Vermelha quando Alice nos visitou. Deseja ver a verdadeira herdeira no trono tanto quanto eu.

— Verdadeira herdeira. — Jeb chutou um punhado de terra com uma bota, sentindo o peito apertado. — Então tudo isso é para destronar Grenadine e abrir caminho para uma nova rainha.

— Sim. — A lanterna iluminou o rosto de Morfeu, numa expressão de indulgência sonhadora. — E estamos muito perto. Em breve, ela ocupará o trono que é e sempre foi o lugar dela.

O lugar dela. Uma hipótese se formava na mente de Jeb, uma ideia ultrajante e incompreensível, mas, de qualquer maneira, a resposta óbvia para todas as dúvidas que ele vinha remoendo. Todas as dúvidas, exceto uma...

— Mas, primeiro — interviu Morfeu, varrendo o ar com um gesto desdenhoso —, temos que ter certeza do que iremos enfrentar quando atacarmos o castelo. Você e Alyssa conseguiram eliminar boa parte da oposição com seus fantásticos movimentos de pés. Estamos aqui para avaliar se os números batem com os que o Rábido reportou. Devemos ter certeza que Grenadine não tem outras cartas escondidas na manga. — Ele bateu nas costas de Jeb. — Viu o trocadilho? “Cartas na manga?” — E deu uma gargalhada.

Jeb não deu nem um risinho.

— Ah, corta essa. Os guardas dela são de cartas. É uma piada como a que você fez antes, só que mais inteligente.

— Ah, sim, entendi — retrucou Jeb.

O riso de Morfeu se dissipou.

— Você não é um namorado muito divertido.

— Você não leva nada a sério? A Al está correndo perigo — Jeb deixou escapar.

— Bobagem. Ela é gloriosamente capaz! Você nunca a viu voando? É claro que viu! Estava pendurado na corrente que ela segurava. — Morfeu voltou a lanterna para a própria cabeça, num arroubo de celebração. — Não foi uma bela visão, presenciá-la transformando-se no que realmente é? Igual a uma princesa de contos de fadas. — Ele lançou um olhar dissimulado para Jeb. — Não concorda?

Princesa de contos de fadas. Lá estava, saindo da boca do próprio Morfeu, zombando de Jeb por não perceber desde o início. Jeb apertou as alças da mochila para evitar dar um soco na laringe de Morfeu.

Morfeu abaixou a lanterna e depois tirou luvas prateadas de sua lapela.

— Não se sinta desprezado, cavaleiro mortal. Sua contribuição não passará despercebida. E eu sempre pago minhas dívidas. Então, o tirarei desta vala da morte para demonstrar minha gratidão.

— Você pode me agradecer me deixando ajudar a Al. Ela vai terminar a tarefa muito mais depressa comigo do lado — Jeb conseguiu dizer, sentindo um nó nas cordas vocais. Se conseguisse chegar até Al, talvez os dois pudessem se esconder de Morfeu no cemitério das irmãs Twid, até encontrarem uma maneira de escapar.

— Sinto muito — retrucou Morfeu, vestindo as luvas e acenando para que os cavaleiros élficos retornassem. — Ela precisa fazer isso sozinha. Você a verá em breve; todos nós vamos nos reencontrar. Uma grande família feliz.

— Não! — exclamou Jeb, perdendo o controle. Ele investiu, mas os elfos foram mais rápidos e o contiveram, com os dedos machucando seus cotovelos feridos. — Deixe-a sair do País das Maravilhas, seu filho de inseto...

Morfeu pressionou um dedo contra a boca de Jeb.

— Ah-há! Essa, você já usou.

Jeb puxou a cabeça para trás, deixando o dedo do intraterreno suspenso no ar.

Sob a luz da lanterna, as joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficaram escuras, da cor de sangue seco.

— Ora, ora. Isso são modos de tratar seu salvador? — Ele fez cara amuada. — Além do mais, como posso deixar Alyssa sair se ela não está comigo? Da última vez que soube, ela estava entrando no jardim das almas. Mas, quando terminar por lá, ela virá ao meu encontro. Ela ainda tem um papel muito importante a desempenhar.

— Certo. Porque ela é a herdeira do trono. — Jeb ouviu, incrédulo, suas próprias palavras ecoarem, como se tivessem saído da boca de outra pessoa. — Não sei como, mas é ela.

— Bravo! — Morfeu aplaudiu. — Estão vendo o que eu disse, irmãos cavaleiros? — Olhando para os cavaleiros por cima do ombro de Jeb, Morfeu deu tapinhas no peito em cima da gravata vermelha, como se estivesse tomado pela emoção. — Mais esperto que um mortal comum. Pena que tenha as limitações físicas de um.

— Não importa. Ela está fora do seu alcance. — rebateu Jeb, dando um tranco nos elfos; havia muitos o segurando, contudo. — Ela deve estar dentro do cemitério agora, e não pode forçá-la a fazer nada. Você mesmo disse que as Twids não deixam você entrar.

— É verdade. Mas ela encontrará, sozinha, o caminho para o castelo. No momento em que ela perceber que estou mantendo presa a coisa que ela mais ama no mundo, virá rastejando para mim, com as asas a reboque.

Morfeu levantou uma mão e fez um sinal.

Os cavaleiros élficos soltaram Jeb. Ele girou sobre o calcanhar e atirou a mochila sobre eles, dispersando o grupo feito pinos de boliche. Esticando o braço, ele bateu o punho na testa de Morfeu, desequilibrando-o. Um dos cavaleiros se esforçou para permanecer no lugar e manter o espelho aberto. Antes que Jeb pudesse se catapultar e atravessá-lo, raios de luz azul grudaram em sua pele e roupas, feito eletricidade estática. Eles o arrastaram, controlando-o como se fosse um fantoche, até ele ficar de frente para Morfeu. Os raios vinham da ponta dos dedos do intraterreno.

Morfeu aproximou-se.

Jeb tentou recuar, mas seus músculos travaram, ficaram paralisados.

— Durma — disse Morfeu num tom simples, e levou a mão azul fluorescente à testa de Jeb, cujo corpo foi percorrido por uma luz pulsante. Ele sentiu um gosto doce, parecido com leite e mel, e depois sentiu o aroma de lavanda. Com os dedos apertando o tecido macio da camisa de Morfeu, Jeb lutou para manter-se acordado. Mas a luz era muito reconfortante... muito suave... muito calorosa. Contra sua vontade, suas pálpebras ficaram cada vez mais pesadas e ele caiu no chão, em sono profundo.


Capítulo 4


Terceira Lembrança —
Engaiolado

O crânio de Jeb latejava, e havia sangue saindo de seu couro cabeludo e entrando em seus olhos.

Ele limpou o líquido viscoso e focou no lugar à sua volta. Morfeu o tinha trazido para o castelo Vermelho depois de colocá-lo sob o feitiço do sono. Largou-o dentro de uma gaiola na masmorra. Jeb não queria ter tomado a poção encolhedora quando acordou, mas o homem-inseto havia lhe dado um ultimato.

Primeiro, ele havia ameaçado matar a Al. Mas Jeb rebateu, dizendo que o homem estava blefando, pois sabia que ela era indispensável. Depois, Morfeu usara de outra arma, ameaçando fazer com que a frágil mãe de Al ultrapassasse o limite da loucura. Isso, ele faria.

A Al havia lutado muito para salvar a mãe. Ela morreria se a perdesse para a loucura. Então, Jeb não hesitou em levar o frasco aos lábios.

Seu corpo balançava, mas não devido aos efeitos colaterais da poção. A plataforma debaixo dele oscilava por causa de suas tentativas de abrir as barras de sua prisão usando a cabeça — uma atitude desesperada que havia resultado em nada além de um corte logo acima da testa. A magia de Morfeu — um fio elétrico e azul — mantinha a porta da gaiola fechada e imóvel.

— Que bela coisa você fez, não? — entoou uma voz feminina e irritante. — Morfeu escolhe quem tem o poder de suprimir sua magia. Obviamente, você não é um dos escolhidos.

Jeb fez cara feia para sua companheira de prisão. Era uma lóri — um intraterreno parecido com um periquito, mas normalmente do tamanho de um ser humano. Como os dois tinham encolhido, a única coisa que a distinguia dos pássaros do mundo humano eram as túnicas de cetim cor de creme com estampas jacquard colocadas sobre suas asas, corpo e pernas, e seu rosto humanoide enfiado no meio de plumas vermelhas, como se fosse uma máscara. Ele foi cutucado por um bico mais parecido com o chifre de um rinoceronte, posicionado no lugar onde deveria haver um nariz. Os lábios da criatura se agitavam furiosamente.

O pior de tudo era que a voz dela poderia derrubar a Torre de Pisa com uma sílaba. Quando falava, era como se alguém tivesse implantado cirurgicamente alto-falantes nos ouvidos de Jeb e travado o volume no “mais surdo que uma porta”. Ela era uma das muitas razões pelas quais ele tentava sair da gaiola com tanta insistência.

A luz bruxuleante das velas na parede iluminava seu ar de arrogância e deixava o resto da masmorra nas sombras. Depois que a voz da lóri parou de ecoar, Jeb investiu:

— Olhe aqui, Lorina. Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu marido. — Ele apontou a criatura que roncava abaixo da gaiola, de aparência tão estranha quanto à da esposa, com o corpo de um dodô, cabeça de homem e mãos que se projetavam da ponta de suas asas atarracadas. — Foi ele quem manteve Alice Liddell presa em uma gaiola igual a esta aqui, muitos anos atrás. É por culpa dele que a minha namorada é a única que pode destronar a sua rainha. Será que já lhe ocorreu que é por isso que vocês estão presos?

— O Charlie não fez nada disso! — berrou a lóri, pairando dentro da gaiola. — Alguma vez já lhe passou pela cabeça que o Morfeu é um cara de pau mentiroso?

Só em todos os segundos de todas as horas. Jeb apoiou-se nas barras. Seus joelhos cederam, enfraquecidos pelas tentativas de abri-las usando cada músculo de seu corpo. Ele desabou sobre o piso de metal, empurrando uma fatia de pera já amarelada que estava ao seu lado, feito um pequeno sofá. A gaiola era um pequenino forte inexpugnável. Mas não importava. As barras poderiam ser feitas de espaguete cru, e mesmo assim ele não conseguiria ajudar a Al. Mesmo que escapasse, com este tamanho, Jeb não conseguiria derrotar ninguém.

Charlie, o marido dodô de Lorina, não poderia ajudar muito. Ele estava preso por algemas e correntes de ferro e cochilava recostado na parede. Embora a gaiola estivesse pendurada bem perto da cabeça do dodô, não havia nada que Charlie pudesse fazer.

Provavelmente, Morfeu havia lançado no homem-pássaro gigante o mesmo feitiço do sono que jogara em Jeb, mas Charlie já estava se libertando dele.

Lorina acomodou-se no poleiro no centro da gaiola, balançando sobre a cabeça de Jeb feito uma acrobata no trapézio. A cara dela estava tão vermelha quanto as suas penas, o que fazia as espadas e copas estampadas nas bochechas quase desaparecerem.

— Como vamos ficar exilados nestas instalações fedendo a urina, terá bastante tempo para ouvir a verdade — bramiu ela.

Jeb esfregou a cabeça para apaziguar a dor lancinante.

— Se puder baixar a voz uns dois decibéis, eu agradeceria.

— Abaixar minha voz?

— Aaaii. — Jeb enterrou o rosto nas mãos.

O trapézio em miniatura rangia a cada balanço, piorando a poluição sonora.

— Para a sua informação, minha rainha adora o som da minha voz. Ela até o elogia...

O ronco do dodô parou, e ele estalou os lábios.

— Isso é porque ela protege os ouvidos com cera de abelha, Ó, Mais Adorável das Loucas.

— Seu mentiroso! — retrucou Lorina, balançando o poleiro tão depressa que Jeb achou que ia vomitar.

— Estou preso com correntes de ferro — avisou Charlie depois de um bocejo. — Não tenho forças para mentir. — Em seguida, pegou novamente no sono.

Isso pareceu calar Lorina, pelo menos temporariamente.

Jeb aproveitou o silêncio para pensar. A esta altura, Morfeu já deve ter contado a Al sobre sua verdadeira linhagem, sobre o que espera dela. Deve estar tão chocada... tão apavorada. Jeb ansiava tanto abraçá-la que era como se houvesse uma bigorna lhe pressionando o peito.

Aquele mariposo deveria ter contado a verdade desde o começo. Ela nunca escolheria ficar. Mas Morfeu sabia disso, e a manipulou sob o pretexto de que ela poderia curar a maldição da própria família. Jeb queria arrancar as asas pretas de Morfeu e enfiá-las goela abaixo por tê-la enganado, porque não havia cura para o parentesco, e ele sabia muito bem disso.

— Foi a Vermelha quem colocou Alice na gaiola. — A lóri voltou à carga. — Não o Charlie.

— Mas o seu marido escolheu mantê-la presa na gaiola — acrescentou Jeb, mesmo sabendo que não deveria. Ele cobriu as orelhas para a estrondosa refutação, mas Lorina só soltou um suspiro.

— Não. O Charlie tentou fazer a coisa certa pela menina — disse ela, consideravelmente mais ponderada agora. — Ele planejava mandar Alice de volta para o reino humano sem a Vermelha saber, mas a rainha descobriu e os arrastou para uma caverna nos picos mais altos e mais remotos do País das Maravilhas, sem que nenhum de nós soubesse. Ela deixou o Charlie com a vítima dela para poder encenar seu plano mestre, sabendo que Alice seria cuidada por um prisioneiro que nunca poderia escapar. Porque, como você deve saber, os dodôs não podem voar. Ela me privou de meu marido durante anos. Ele era prisioneiro, assim como a mortal.

— Se isso te ajuda a dormir de noite, tudo bem, passarinha.

Uma comoção de poeira e asas, jacquard e cetim, subitamente surgiu e o atacou.

— Você pode mostrar algum respeito e ouvir?!

Jeb levantou as mãos para se defender.

— Está bem. Shhhh. Eu vou ouvir.

Não havia nada mais que ele pudesse fazer. Morfeu lhe dissera que, assim que Alyssa fosse coroada rainha, ela abriria o portal para o reino humano. Acreditando ou não nisso, Jeb não poderia fazer nada a não ser ter esperança. Ele não tinha nenhum poder ali. E ter consciência disso lhe devorava as entranhas a cada minuto.

Acomodada diante de Jeb sob um monte de tecido luxuoso, a lóri olhou por entre as barras e resmungou alguma coisa para o marido que dormia.

— Seu velho e imprestável fezzerjub. Eu é que tenho que te proteger. Nem sei por que me casei com você.

O dodô resfolegou e murmurou, sonolento:

— Porque se casar com o bobo da corte era a única maneira de ter uma posição na corte Vermelha, Ó, Senhora das Nênias. — E o ronco voltou.

— Viu como deu certo? — resmungou ela, fazendo beicinho com os lábios vermelhos em forma de coração, sob a curva de seu bico. — Aquele Rábido ossudo e seu coração negro de pedra. — Ela alisou as penas da nuca e cobriu-as com uma rede decorada por lantejoulas.

Jeb estendeu a mão para pegar o dedal cheio de água que seu captor havia deixado ao lado da fatia de pera. Em suas mãos, ele era do tamanho de uma caneca de café. Ele o passou para sua colega de cela, que o pegou com as asas e deu alguns goles.

— Me diga uma coisa, Lori. Se o que você está dizendo é verdade... — Observando a atitude defensiva na cara bicuda, ele refez a pergunta para poupar os ouvidos. — Como você escolheu compartilhar o seu lado da história, talvez pudesse me dizer de que maneira Morfeu teve participação na prisão de Alice.

Ela sacudiu as gotículas de seus lábios.

— Não teve participação nenhuma. Ele gostava muito de Alice e teria feito qualquer coisa para que ela chegasse em casa sã e salva. Mas, na hora em que ele lhe ofereceu seu conselho como lagarta, alertando-a para que evitasse o castelo da Rainha Vermelha a todo custo, sua metamorfose aconteceu. Quando ele emergiu, totalmente transformado, e soube o que havia acontecido com Alice, ficou furioso.

— Está tentando me dizer que ele possui alguma consciência?

— Pelo menos no que dizia respeito a Alice, sim. — A lóri ajustou a suntuosa túnica que ficava escorregando devido à falta de ombros. — Morfeu usou todos os seus recursos de magia e acabou encontrando ela e meu marido escondidos nas cavernas dos picos mais altos do País das Maravilhas. Infelizmente, já era tarde demais para Alice. — Lorina devolveu o dedal a Jeb, agora com metade da água.

Jeb endireitou o corpo, fazendo a gaiola balançar.

— Então por que ele quer ajudar a Rainha Vermelha a colocar outra rainha no trono, quando ele deveria odiá-la por ter mantido Alice presa em uma gaiola por tantos anos?

— Talvez ele esteja bravo por Grenadine não ter tentado encontrar Alice assim que esta foi capturada. Mas Grenadine perdeu sua fita de memória e esqueceu a criança.

— Um bom regente teria mais do que uma fita para lembrá-la; teria se certificado de que tudo e todos estavam em seu lugar.

— A minha rainha é uma boa regente!

Jeb encolheu-se com o urro agudíssimo.

O ronco do dodô parou.

— Minha vociferante esposa diz a verdade, rapaz. Morfeu parece guardar ressentimento pelo que ele acredita ser negligência, mesmo tendo sido somente um descuido.

Jeb balançou a cabeça diante de todas as falhas que havia no raciocínio de todos.

— Não. Há mais coisas nessa história.

— Você tem bons instintos, cavaleiro mortal.

Jeb olhou para cima, na direção da voz tilintada. Uma luz brilhante flutuou pela pequena janela e entrou pela pesada porta da masmorra. Jeb levantou-se e agarrou as barras da gaiola, inclinando a cabeça para ver melhor.

Gossamer.

A pequena fada adejou para perto e sussurrou algo para o mágico fio azul que fixava a porta de arame, entrando na gaiola. O fio azul deu um nó em si mesmo depois de ela fechar o trinco.

Ela cintilava feito pequenos fogos de artifício ao pairar no lugar, estudando Jeb com uma expressão de solidariedade.

Como os dois agora tinham o mesmo tamanho, Jeb se lembrou de uma pintura que vira certa vez, de um artista tcheco, Viktor Olivia. O pintor era famoso por retratar uma fada que seduzia homens, levando-os a se embebedarem com absinto. Gossamer personificava essa criatura: uma forma feminina perfeita coberta de poeira verde, e nua, com escamas brilhantes cobrindo-a como um biquíni minúsculo.

Ele havia sentido, quando saiu da sala de espelhos, que Gossamer estava do lado dele e de Alyssa.

— Você veio ajudar — lançou ele, esperançoso.

Uma chave de cobre, da mesma cor dos olhos dela e quase do comprimento total de seu torso, pendia de seu pescoço. Seu olhar caiu para os pés delicados, como se estivesse lutando contra si mesma.

— Eu teria vindo mais cedo, mas Morfeu está sempre vigiando o espelho. Agora que ele está com Alyssa, preparando-a para a coroação, estará ocupado demais para ficar de olho no resto de nós... até o fim.

— O fim? — Jeb apertou a barra ao lado dela, concentrado em seu olhar de libélula. — Você tem que me contar tudo.

A fada olhou para Lorina, que estava se esticando para a porta de arame.

— Você sabe muito bem que não tem o poder de sair desta gaiola, a menos que eu a abra para você.

Bufando, a lóri voltou a voar para o trapézio.

Gossamer conduziu Jeb para a fatia de pera e os dois se sentaram. Seu perfume frutado se impunha sobre o fedor da masmorra e o acalmou o suficiente para ele poder ouvi-la.

A fada colocou as mãos sobre as de Jeb, que descansavam sobre os joelhos.

— Eu já traí meu mestre o bastante vindo até aqui, e sua ira será enorme. Eu só posso dizer que, dentro de uma hora, Alyssa estará comprometida para sempre, amarrada ao País das Maravilhas para toda a eternidade. Morfeu planejou tudo para enviá-lo de volta, cavaleiro mortal... mas sem ela.

Uma veia na têmpora de Jeb começou a se contorcer feito uma serpente em uma bandeja quente. Ele deu um pulo para cima e bateu a cabeça nas barras novamente, tentando amolecer o fio azul, incapaz de controlar a fúria exasperada que lhe fervia por dentro. Mais sangue escorreu por sua têmpora.

— Você tem que me soltar! Preciso impedir isso!

— Sim, sim! Nós também! — intervieram o dodô e sua esposa, em coro. — Temos que ajudar a Rainha Grenadine a manter a coroa!

— Naturalmente — afirmou Gossamer, pegando a mão de Jeb e puxando-o para perto dela. — Vocês todos terão a oportunidade de lutar e de mostrar a sua lealdade.

— Mas não posso lutar assim. — Jeb chutou uma semente do tamanho de seu pé. — Você trouxe algum bolo do crescimento?

— Não. Não é a força de seu corpo que salvará Alyssa, e sim a força de seu coração de artista. Mas eu posso assegurar que não sairá deste lugar em sua forma atual.

A lóri desceu de seu poleiro e ralhou com a fada.

— Agora, me escute, sua lacraiazinha. Este rapaz não tem papel nenhum. Ele é, no máximo, coadjuvante. Eu sou a criada da rainha, e Charlie é o bobo da corte. Nós deveríamos ser a sua prioridade. Somos honoráveis membros da corte, os únicos que podem dar um basta nesta paródia!

Acelerando as asas até virarem um borrão enevoado, Gossamer flutuou e colocou as mãos nos quadris.

— Quanto ao seu papel, Lorina: você pode abrir as correntes de seu marido, pois preciso falar com o mortal a sós e tenho pouca tolerância ao ferro. — Ela abriu a porta da gaiola e lhe deu a chave.

A lóri esvoaçou-se veloz, numa comoção de exibicionismo e má vontade.

— Venha, venha, Doçura Selvagem — chamou Charlie, encorajando a esposa enquanto ela flutuava em torno dele, subindo e descendo, incapaz de manter-se firme em alguma altura. — Apresse-se, por favor. O ferro está me dando fisgadas. Poxa vida! Não é tão difícil assim... tente novamente!

A cara de Lorina ficou ainda mais vermelha.

— Tente, com a ponta da asa, usar uma chave do mesmo tamanho que a sua cabeça, seu meleca! Alguns de nós não foram abençoados com dedos, sabia?

Enquanto o casal se ocupava, Gossamer sentava-se novamente ao lado de Jeb.

— Você disse que meu coração de artista pode salvar Alyssa. Naquele quarto na mansão de Morfeu, também... você disse que eu tenho o poder dentro de meu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Minha namorada está prestes a morrer para mim e para a família dela. Não pode haver escuridão maior — sussurrou Jeb com lágrimas de frustração que lhe surgiram nos cantos dos olhos.

— Morreria por ela, cavaleiro mortal?

A espinha de Jeb se retesou. No passado, toda vez que ele protegera Alyssa, sempre se jogara sem nem pestanejar. Seria capaz de morrer por ela?

Quando o pai de Jeb morreu em um acidente, foi Alyssa quem o salvou. Ele não conseguia acreditar que tinha chegado a pensar em morar em Londres sem ela. Precisava dela, todos os dias. De seu sorriso compreensivo, de como ela fez suas cicatrizes parecerem medalhas de mérito sob seu toque, e de seus olhos incríveis. Mesmo tendo passado por tantas provações quanto ele, havia uma luz dentro dela que nunca se enfraquecia. E essa luz não somente a tornava linda por fora, mas também permitia que ela trouxesse vida aos incríveis mosaicos que fazia.

Era essa luz — tanto a interna quanto a externa — que o tinha levado a desenhá-la e pintá-la tantas e tantas vezes.

Ele olhou para Gossamer, quase incapaz de conter a emoção, agora que havia encontrado uma saída.

— Ela é minha melhor amiga.

Minha musa, meu pincel, minha arte, meu coração. Tudo isso estará morto sem ela.

Esfregando o rosto, ele limpou o líquido que havia caído de seus olhos e escorrido pelo rosto:

— Eu a amo. Sim, eu morreria por ela. É isso que preciso fazer?

A fada o encarava sem piscar.

— Está disposto a ir além da morte? A se perder de todos, até de você mesmo, em um lugar onde as lembranças se esvaem em uma maré escura como tinta? Pois, para libertar Alyssa, você terá que tomar o lugar da Rainha de Marfim na caixa linguardarte onde ela se encontra presa.

Jeb lembrou-se da água escura dentro da caixa que ele havia visto na sala dos espelhos da mansão de Morfeu e da cabeça fantasmagórica que havia lá dentro, e seu coração disparou. O sentimento de autopreservação o invadiu e sua mente começou a tentar encontrar outra maneira. Mas, bem lá no fundo, ele sabia que não havia alternativa e que o tempo de Al estava se esgotando. Ele só lamentava não poder dizer a ela, nem uma única vez, com sua própria voz, como se sentia, antes de ser trancado para sempre.

— Aceito.

— E assim será. — Gossamer ficou de pé e estendeu os braços. Fraco e entorpecido, Jeb aceitou seu abraço. Ela o apertou com força e voou com ele para fora da gaiola, pousando no chão. — O mortal concordou em ser o herói de seu reino. Procurem honrar sua bravura — disparou as palavras para Lorina.

Lorina havia conseguido soltar o marido. Ela se sentou no ombro dele, abanando-se com uma asa. Com os olhos arregalados, ela aquiesceu em silêncio — a demonstração mais sincera de louvor que poderia ter oferecido. O dodô ajoelhou-se ao lado de Jeb, uma presença enorme e plumada.

— Teremos uma dívida eterna para com você, rapaz. O que podemos fazer para ajudar?

Gossamer apontou para um canto da masmorra, onde um cobertor de juta cobria uma cama, chegando até o chão.

— Tragam-me o que está debaixo daquela cama.

Entorpecido por uma mistura de incredulidade e temor, Jeb observou o dodô trazer a caixa linguardarte.

Lorina ficou perplexa.

— Morfeu manteve a Marfim escondida aqui?

Gossamer assentiu.

— Por sugestão do Rábido. Ele disse que este era o único lugar no castelo onde ninguém viria à procura dela.

Depois de pedir a Charlie que abrisse a tampa e arrumasse uma pedra onde eles pudessem subir para ver lá dentro, Gossamer pediu ao estranho casal que se afastasse um pouco para que ela e Jeb tivessem um pouco de privacidade.

Jeb afagou as rosas brancas aveludadas que adornavam o exterior da caixa, fascinado pela beleza do rosto da Marfim quando este veio à tona. O olhar cristalizado de assombro dela passava dele para a fada, e voltava — cautelosamente curioso. Ele estremeceu ao pensar que tomaria o lugar dela.

Tinha mesmo que fazer isso?

Jeb sentiu que Gossamer observava seu semblante.

— Devo perguntar uma última vez se está seguro de sua decisão — indagou ela. — Porque, como você está escolhendo ser trancado, e selando essa escolha com seu sangue, a caixa nunca o libertará. Ninguém poderá salvá-lo. Você está oferecendo sua eternidade pela da Marfim, uma rainha que você nem sequer conhece.

Jeb sentiu um nó na garganta.

— Não. Estou trocando a minha eternidade pela da Al.

Gossamer sorriu com ternura.

— Em seus sonhos, vi certa vez que você teme não ser bom o bastante para a menina. Depois de tal sacrifício, ninguém poderá questionar seu valor como homem nem seu amor por ela. — Ela o beijou no rosto, deixando um calor que penetrou seu coração e conseguiu derreter uma pequena porção do terror congelante que lá se escondia.

Gossamer deu-lhe um pincel e recuou.

— Agora, use o poder que somente você pode exercer. Pinte as rosas com o seu sangue.

Jeb foi tomado por uma tontura. Murmurou coisas... sem sentido, temerosas... palavras agonizantes que ele sabia serem as últimas.

Depois, canalizou a raiva, o terror e o desejo por um futuro que ele nunca teria para as estocadas do pincel. Cada botão branco, tingiu-os de vermelho até perder-se dentro das sombras de seu trabalho, e fundiu-se à sua obra-prima, tornando-se um só.


Capítulo 5


A Decisão da Mariposa

A cena se estendeu e ficou turva enquanto Morfeu era arrastado para fora das lembranças de Jebediah e depositado de volta na chaise-longue. A escuridão deixava a sala pesada, mas ele nem se mexeu para ligar a luminária. O cenário completamente enegrecido parecia combinar com os pensamentos obscuros que lhe cruzavam a mente.

Ele passou o dedo pela coxa, acompanhando as listras do tecido risca de giz e alisando as rugas.

Por que se sentia tão aborrecido? Ele havia encontrado exatamente o que esperava encontrar. As fraquezas de Jebediah estavam à mostra: um ódio que poderia facilmente ser manipulado, um sentimento de impotência alimentado por um pai violento e crítico, um ciúme que provocava um sentimento temerário de proteção e que lhe custaria a própria vida.

O que Morfeu não tinha esperado encontrar, entretanto, era tanta semelhança entre ele e o rapaz. Os demônios do passado atormentado de Jebediah não eram muito diferentes dos seus. Ele sempre se surpreendera sentindo inveja dos humanos... por nunca ter tido o carinho de um pai ou de uma mãe. Simplesmente por ocupar seu lugar no mundo, ele também compreendia o medo de talvez nunca chegar a conhecer completamente a confiança e a afeição de outra pessoa.

Contudo, no passado, Morfeu nunca havia considerado isso uma coisa ruim. Ele apreciava ser uma alma reclusa e independente. Por vezes, até se vangloriava, quando lhe convinha ser o centro das atenções, naturalmente. Mas a atenção, a afeição ou a confiança não eram coisas de que ele precisava. Não até aparecer Alyssa. Depois que ela escolheu ignorá-lo, ele não conseguiu funcionar... sentiu-se desastrado e incompetente.

E agora, depois de colocar-se no lugar de Jebediah, Morfeu compreendia, mais até do que desejava, como o lado humano de Alyssa funcionava. Embora metade dela tivesse asas e pudesse flutuar sobre as inseguranças e trivialidades dos mortais, a outra metade tinha seus alicerces nas coisas que qualquer outro humano ansiava: confiança e segurança.

Tendo visto a coragem e a engenhosidade de Jebediah, bem como sua lealdade a Alyssa, Morfeu soube, sem sombra de dúvida, que aquilo era exatamente o que o rapaz oferecia a ela: uma rede de segurança e emoção que a salvaria caso a queda fosse muito alta.

Não era de admirar que ela fosse tão cativada por ele. Não era de admirar que ele exercesse poder sobre ela. Diabos, o próprio Morfeu ficou morbidamente fascinado pelos honoráveis traços morais do rapaz, incomuns em um humano tão machucado. Morfeu ficou tentado a recuar e deixar Jebediah ter seu momento de felicidade. Alguns poderiam até dizer que ele o havia merecido por desejar abdicar de seu futuro, de suas lembranças e de sua vida por Alyssa.

Morfeu rosnou e caiu para a frente com os punhos cerrados, tentando suavizar o estranho peso em seu peito. O rapaz não ficaria aqui para sempre. Era um mortal. Um dia, morreria de velho, no mínimo, e Alyssa voltaria a ser um alvo fácil.

Alvo fácil.

A mandíbula de Morfeu se contraiu. O romance não era uma coisa justa. Nem era um jogo. Era guerra. E, como em qualquer outro campo de batalha, não lhe cabiam a compaixão e a misericórdia.

O besouro-tapete estava certo. As emoções humanas eram coisas imprevisíveis e poderosas. Elas haviam penetrado na cabeça de Morfeu, enfraquecido sua determinação.

Com os cotovelos nos joelhos, ele levantou as mãos com as palmas para cima, incapaz de ver a silhueta delas no escuro. Ele conjurou um pouco de magia na ponta dos dedos, em bolas elétricas de plasma do tamanho de ervilhas, e depois enviou as esferas para todos os cantos da sala, os raios azuis deixando rastros como eletricidade estática. Elas subiram pelas paredes e em seguida se uniram na forma de uma mulher. A luz pulsava em ritmo hipnótico.

Imaginar Jebediah com Alyssa, mostrando a ela os caminhos do amor, domando seu espírito selvagem com suas corriqueiras convenções humanas, tudo isso queimou a garganta de Morfeu com o sabor amargo da inveja.

Ele não queria que o lado selvagem de Alyssa fosse dominado por nenhum outro homem, não desejava compartilhar nenhuma parte dela. Morfeu desejava os dois lados: sua inocência e seu espírito desafiador.

Que graça poderia haver na dependência? Que espontaneidade poderia haver em um mundo previsível? Ele poderia lhe oferecer uma eternidade de desafios e paixão, de momentos ternos e calmos nas profundezas de chamas vibrantes e tempestades devastadoras — a tranquilidade em meio ao caos.

O lugar dela era com ele, usando trajes de soberana. Ele tinha tanto a ensinar-lhe sobre o reino intraterreno, sobre as glórias da manipulação e da loucura. Se Morfeu alimentasse o faminto lado intraterreno de Alyssa, suas inseguranças e inibições humanas diminuiriam e, com o tempo, poderiam desaparecer. Ela nunca mais ansiaria pelo amor seguro de Jebediah.

Morfeu invocou sua magia de volta, recolhendo as espirais de luz azul até ficar novamente envolto na escuridão. Suas asas varreram o chão quando ele se levantou, e ele as ergueu num arco que quase tocava o teto.

Nada mais de deliberações. Ele tinha tentado fazer o que era justo em instâncias passadas e, sem exceção, isso sempre o prejudicara. Podia ignorar a pontada de culpa que lhe agitava o peito, mas não podia abdicar de suas necessidades pelas necessidades de Jebediah. Ele nunca mais seria ele mesmo sem Alyssa ao lado — a chama para sua Mariposa. Morfeu não pararia até que ela voltasse para o lugar que lhe pertencia, no País das Maravilhas.

Para vencer, ele jogaria sujo, colheria os despojos do coração dela do modo como fosse necessário, não importava quanto isso custasse ao rapaz mortal. Afinal, este era o modo intraterreno. Fazer menos que isso faria de Morfeu um humano. E ele sabia, agora mais do que nunca, que essa era a última coisa que jamais desejou ser.


SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS
Epígrafe

ÀS VEZES PENSO EM SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS ANTES DO CAFÉ DA MANHÃ.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Um

Mortalidade

Capítulo 1

Deportação

Algumas pessoas podem dizer que é impossível morrer e viver para contar. São as pessoas que nunca experimentaram a mágica. Quanto a mim, sou tataraneta da Alice que inspirou Lewis Carroll. Acreditei no inacreditável por mais de sessenta e quatro anos, desde que tinha dezesseis e descobri que o País das Maravilhas era real e cheio de seres caprichosos, misteriosos e loucos, governados por acordos e enigmas. Ainda assim, às vezes, por mais que você acredite no impossível, as coisas não saem como você as planejou. Toda mágica pode encontrar um obstáculo de vez em quando.

Por exemplo, nunca esperei que meu cadáver acabasse numa caixa de sapatos. É isso que os caixões crematórios me lembram... uma caixa de papelão do tamanho de uma pessoa. O caixão não é muito confortável. Não há a forração de veludo para suavizar a base de madeira. Nenhuma almofada para acomodar minha coluna curvada. E nada de roupas, além de um vestido de papel para cobrir minha pele velha e enrugada.

O cheiro de papelão se fixa ao meu nariz e as rodas de aço da maca giram ao longo do corredor, rangendo em algum lugar sob mim, junto a passos familiares. Sinto a transição do ambiente fresco e de temperatura controlada onde o legista atestou minha “morteza” (como os seres do País das Maravilhas diriam). Ele, então, pôs uma identificação de aço inoxidável no meu peito e fechou uma tampa sobre mim, me prendendo na escuridão.

A maca sacode ao entrar num lugar muito mais quente. O cheiro de ovo podre do propano confirma nossa localização. Já visitei este lugar. Nos últimos meses visitei vários crematórios, quando não havia ninguém por perto, de madrugada. Para conhecer melhor o gigantesco forno de tijolos à vista que estaria esperando para queimar minha carne. Para encontrar o projeto perfeito, com um banheiro e um espelho de corpo todo do outro lado do salão.

Assim que optei pelo crematório do Pleasance Rest Cemetery, me preparei para morrer.

Meu plano original era usar Tetrodotoxina. Em doses pequenas, subletais, ela deixa a vítima num estado de quase morte por dias, permitindo que ela mantenha a consciência. Morfeu, porém, não concordava. Ele disse que a margem de erro entre o estado de quase morte e a morte de verdade era pequena demais no mundo mortal e não algo com o que se brincar. Ele não queria que eu arriscasse. Então, ofereceu uma substituto do País das Maravilhas: uma poção que funciona quase da mesma forma, mas que tem um antídoto cem por cento garantido.

Bebi a dose de quase morte nesta manhã e, dez horas mais tarde, ainda sinto o gosto amargo e anestésico, como cravos dançando no fundo da garrafa de vinagre. Não consigo morder a língua para aliviar o efeito. A mágica me deixou catatônica — meus olhos fechados e imóveis, meus batimentos e respiração reduzidos a um ronronar indetectável por quaisquer instrumentos humanos.

Meu lado intraterreno se remexe dentro do meu crânio, me garantindo que isso vai dar certo, mas meu lado humano instintivamente se encolhe quando o medo tranca minha garganta. Não posso gritar para dizer a todos que estou viva. Minhas cordas vocais não vão funcionar. A claustrofobia, minha velha inimiga, me deixa toda arrepiada. Sei o que está acontecendo ao meu redor, apesar de não conseguir abrir os olhos ou mover meus membros. Todos os cheiros, sons e sensações táteis são ampliados por minha incapacidade de reação.

Os paramédicos que atenderam, nesta manhã, à chamada de emergência da minha neta de vinte e sete anos me declararam morta — fulminada por um ataque cardíaco. Foi insuportável ouvi-la chorar e gritar. Isso despertou lembranças da minha maior perda — da morte de Jeb, três anos antes. Uma faca ainda é cravada no meu peito sempre que me lembro do nosso último adeus.

Mas Jeb me mandou ser firme. E ensinei aos meus netos o mesmo — sempre encarar as coisas. Ela ficará bem. Não tenho dúvida disso porque ela é muito parecida comigo, para além de seus cabelos loiros, olhos azuis e curiosidade. Ela é teimosa, leal e uma sobrevivente.

Assim que os paramédicos levaram meu corpo ao necrotério, tudo funcionou como o previsto.

Minha família sabia que cemitério eu escolhera e as quatro exigências do meu testamento: nada de exibição pública do meu corpo, nada de velório, cremação em doze horas depois da minha morte e a dispersão das minhas cinzas no mesmo local onde as de Jeb foram jogadas, sob o salgueiro em nossa casa de campo. A árvore tinha um significado especial, por ter sido gerada de uma mudinha do salgueiro que dividia os quintais da nossa casa quando éramos crianças.

Tais pedidos nada convencionais não abalaram minha família, considerando que me tornei uma mulher muito excêntrica.

Depois da morte de Jeb, eles me viram vagar pela casa de campo, reunindo os mosaicos que fiz ao longo da vida, cheios de paisagens bizarras e místicas — com títulos como A Batida do Coração do Inverno, Dunas de Xadrez e O Ventre do Monstro —, e guardando-os no sótão, ao lado de outras quinquilharias, incluindo um anúncio de um passeio pelo Tâmisa, em Londres. As últimas coisas que guardei ali foram duas chaves: uma que pertencia à minha mãe, e era capaz de transformar qualquer espelho num portal, e outra que podia abrir o jardim das almas do País das Maravilhas. Esta última foi um presente dado a Jeb, depois que ele desistiu da sua musa, de modo a satisfazer a necessidade do reino interior por sonhos vívidos e cheios de imaginação, conectando nossos mundos em paz ao longo do processo. Ele desistiu do que fez dele único, a fim de manter as crianças humanas seguras. Um ato de coragem que seus filhos e netos jamais tiveram o privilégio de saber. Era essa a lembrancinha de que eu tinha mais dificuldade para me desapegar, porque era uma homenagem à coragem e ao caráter nobre de Jeb — as duas coisas que eu mais amava nele. No entanto, como Rainha Vermelha do País das Maravilhas, eu não tinha motivo para guardar chave tão sagrada.

Escondi tudo num baú no sótão e o tranquei. Então pus a chave do baú em meio às páginas da minha velha coleção de Lewis Carroll. Jeb e eu éramos donos da casa e do terreno que a cercava, e insistimos, em nossos testamentos, para que o lugar permanecesse sempre com a família. Assim, se nossos descendentes um dia precisassem me encontrar, poderiam. Eles só precisam procurar as pistas, como um dia eu fiz. Seguir meus passos e acreditar no impossível — em contos de fadas e desejos e mágicas.

Sempre os mantive no escuro quanto ao nosso legado, dando-lhes uma chance de viver uma vida normal. Até mesmo ordenei que os insetos e flores ficassem em silêncio. Agora sou a única capaz de ouvir esses sons do mundo interior, e as coisas continuarão assim enquanto eu estiver reinando como a Rainha Vermelha. Contudo, se algum familiar procurar com presteza, vai encontrar a verdade que escondi para eles.

Em todos esses anos, eles aceitaram meus caprichos porque sempre os respeitei e os amei incondicionalmente. E agora conto com a lealdade deles. Todo o meu plano de morrer depende da execução do meu testamento.

A cremação era a única forma de evitar que drenassem meu sangue, bombeassem formol em minhas veias e cerzissem minhas pálpebras — todos aqueles procedimentos mórbidos e intrusivos para embalsamar e preservar o corpo mortal. Fui abençoada ao longo dos meus oitenta anos de vida humana com saúde e uma mente aguçada. Nunca precisei de marca-passo e não tenho próteses, implantes ou dentaduras, então não há nada que possa explodir no forno. Isso significa que não haverá incisões nem extrações. Era importante que eu permanecesse intacta — por dentro e por fora.

Todavia, se o Rábido Branco não se apressasse e chegasse aqui com o antídoto para me tirar deste estado, nada importaria. Vou virar um monte de cinzas. E Morfeu terá de encontrar um lar novo para meu espírito eterno... um novo corpo para eu habitar.

Ele ficará furioso se isso acontecer e nunca me deixará esquecer isso. Uma eternidade é muito, muito tempo para ouvir eu avisei, entoado continuamente com um marcado sotaque londrino.

— Não me importo — disse ele há duas semanas, enquanto discutíamos meu êxodo do reino humano e tomávamos chá durante uma das minhas visitas ao País das Maravilhas em sonho. Ele levou a xícara à boca, seu rosto curioso perfeito e jovem como sempre. Ele bebeu e deixou a xícara de lado novamente. — Muitas coisas podem dar errado. Devo estar lá para executar meu plano.

— Vou agir sozinha — declarei. Estudei a cama com dossel e a lareira instaladas na diagonal em relação a enormes poltronas vitorianas ao lado de uma mesa oval, buscando conforto no cenário. — E vamos seguir meu plano. — Aqueles seriam meus últimos instantes no reino humano. Tinha de ser de acordo com a minha vontade. Contive uma descarga de tristeza e tentei exibir o mesmo controle que Morfeu exibia com sua xícara de chá, mas o líquido quente molhou minha mão velha quando meu pulso tremeu. Gritei.

— Alyssa, por favor. Permita-me. — Com seus dedos lisos e elegantes, ele cuidadosamente segurou meus dedos enrugados, limpando o chá e acariciando a mão queimada com um guardanapo.

Permita-me. Nós dois sabíamos que ele falava de outras coisas além da limpeza do chá derramado.

Tantos anos passamos juntos nos meus sonhos — e tantos outros na nossa infância —, com Morfeu me treinando e me ensinando sobre meu reino e o mundo. Não havia oportunidades para ficarmos sozinhos, já que ele mantinha o véu do sono descoberto para eu poder interagir com o Rábido, Chessie, Marfim, as criaturas e meus súditos.

Isso mudou quando fiquei viúva. Realizava meus deveres reais todas as noites e lutava para ser forte, até que meu luto pela morte de Jeb ficou tão intenso que as lágrimas se acumulavam em meus cílios, me cegando. Morfeu — sentindo minha vergonha, porque rainhas não choram — insistia que era hora do chá, que tomávamos sozinhos nos aposentos reais que um dia pertenceria a nós como rei e rainha.

Ali, na nossa solidão, escondidos de olhos predadores e cercados por exuberantes tapetes vermelhos e cortinas douradas, eu me perdia em minha dor. Permita-me, dizia ele. Estendendo os braços, ele me abraçava enquanto eu chorava. Noite após noite, durante um ano, até que finalmente não conseguia mais chorar.

Pouco depois, a atenção de Morfeu mudou. Seus carinhos se tornaram menos confortantes e mais íntimos. Estava constrangida demais para reagir, tímida demais em meu corpo velho.

Um ser místico eternamente jovem cortejando uma velha — teria rido do absurdo disso, não estivesse tão afetada pela devoção cega dele e pela intensidade do seu amor.

— Mesmo que usássemos seu plano... — Morfeu falava baixinho e de mau humor ao esfregar o guardanapo entre meus dedos, enxugando os resquícios de chá. — ... ainda assim eu deveria estar lá nas coxias, para supervisionar o espetáculo.

Franzi a testa para ele. Sua teimosia, juntamente com a dança dos vaga-lumes em seus cabelos desgrenhados e seus traços bizarramente belos, me fez lembrar outra noite em que nos sentamos neste quarto juntos — há várias décadas —, quando ele tentou me convencer a usar a coroa de rubi pela primeira vez. Quando tentei convencê-lo a me devolver meu desejo para eu poder fugir do País das Maravilhas, curar a maldição da minha família e manter Jeb em segurança. Eu era uma pessoa diferente na época, cheia de juventude, aspirações humanas e inocência.

Nosso quarto real se tornou uma lembrança dolorosa da velhice e decrepitude. Ansiava criar lembranças novas aqui, depois de desistir de tentar superar a beleza caótica do País das Maravilhas, quando fui coroada rainha de novo e permaneceria com dezesseis anos para sempre — jovem, cheia de energia e tão sedutora quanto o homem alado que governaria ao meu lado.

Até então, eu não me encaixava. Eu era uma foto deixada ao sol e chuva, minhas cores vibrantes se desbotando melancolicamente e ganhando um tom amarelado. Meus poderes intraterrenos ainda eram fortes, mas estavam presos num vaso gasto pelo tempo. Meus ombros pareciam curvados e pesados demais, eu raramente usava minhas asas. Do que mais sentia falta era voar.

Eu me perguntava se era assim que a Rainha Vermelha se sentiu no fim e por que ela permitiu que Morfeu a convencesse a voltar ao País das Maravilhas, abandonando seus descendentes semi-humanos. Por fim, foi plano dela voltar, apesar de não querer fazer aquela jornada sozinha. Ela brigou com Morfeu, dando início a uma série de eventos e manipulações que acabaram por me levar à coroa e me tornar rainha. Algo pelo qual aprendi a agradecer, apesar de na época ter reclamado do presente. Demorei muito para admirar totalmente a preciosa imortalidade, e jamais desvalorizaria isso novamente.

Depois que Morfeu terminou de limpar o chá derramado, tirei a mão da dele e timidamente cobri meu pescoço com o lenço de seda, tentando esconder minhas peles murchas. As pessoas diziam que eu era linda para a minha idade. Que parecia ao menos vinte anos mais nova. Todavia, em comparação à beleza sobrenatural e imutável de Morfeu, eu me sentia velha.

— Não quero você lá — insisti, determinada a mantê-lo distante da casa funerária. — Já basta você ter me visto murchar como uma uva-passa ao longo dos anos. — Até minha voz soava enferrujada, como se as palavras jorrassem da minha garganta e língua em porções cáusticas.

Morfeu apoiou os cotovelos na toalha da mesa, aproximando-se ao máximo com o jogo de chá entre nós. Seus cabelos azuis tocaram-lhe os ombros, animados e encantados — um contraste marcante com as ondas brancas reduzidas a um coque preso atrás da minha cabeça.

— Você está no fim de sua crisálida, meu amor. Esta etapa é a mais difícil, acredite. Uma batalha furiosa e incômoda de identidade, antes de se libertar e se transformar na criatura de luz e criatividade que sempre foi seu destino. Posso mantê-la atenta. Para evitar quaisquer... distrações.

Ele olhou para minha aliança, que eu ainda não tinha tirado. Aquilo se tornara mais do que um símbolo da nossa devoção. Tornara-se um símbolo da minha vida humana, e eu pretendia usá-la até deixar tudo para trás.

Com o dedinho, Morfeu circulou a aliança, cuidando para não tocar os diamantes ou o suporte de prata que os mantinha no lugar.

— É importante que você não permita nada que a impeça de dar o salto final. Você sofreu a perda daqueles que se foram há tanto tempo. Eles estão em paz. Deixe que a paz deles lhe dê paz. Senão, você será afetada... incapaz de agir com a mente ágil. O foco é fundamental para que qualquer um dos planos funcione.

— Já sei disso — respondo, um aperto no peito dolorido. — Você tem medo de que eu fique senil. De eu não ser capaz de lidar com isso.

Ele suspirou, acariciando meu polegar com o dele.

— Não senil. Nostálgica. Acontece a humanos. Você mesma me contou, enquanto eu a via amadurecer do refinamento à sabedoria.

— Refinamento. — Tentei um sorriso hesitante diante do esforço dele em me encantar. — É assim que vocês falam hoje em dia?

Ele me encarou sem hesitar.

— Seus olhos não perderam a incandescência; nem a mente, a inteligência. Você não é ingênua. Você é minha torta de ameixa, e sempre foi. Já lhe disse isso repetidas vezes, não é?

Ao menos uma vez por noite nos meus sonhos, Querida Mariposa.

Não respondi em voz alta, assim como não revelei minhas maiores inseguranças: estava com vergonha de ele me ver tão decadente... Não suportava a ideia de ele ter qualquer lembrança de mim como um cadáver naquele caixão de papelão — assim como eu vi Jeb depois da morte dele, antes de ser cremado.

— Uma rainha não deveria exigir resgate — sentencio. Ainda o encaro, maravilhada com aquelas íris coloridas que devolvem a mim o mesmo olhar de nossa infância, cheio de surpresa e afeto. De certa forma, ele via para além do meu corpo velho e enxergava a menina que fui, e eu queria muito conseguir me ver como ele me via. — Uma rainha deve merecer o respeito do seu reino e de seus súditos. E a admiração do rei.

Ele pegou minha mão novamente e beijou cada um dos nós dos dedos cheios de artrite.

— Ah, eu lhe garanto Você sempre mereceu isso. Na verdade, planejo mostrar-lhe a profundidade de minha admiração. — A palavra profundidade saiu de sua garganta como um urro. — Ainda que sejam necessárias várias vezes para convencê-la, finalmente chegará o momento de você ser minha.

Meu rosto ficou vermelho. Apesar de todos os anos em que ele me elogiou e me provocou com insinuações, e a despeito de tudo o que vivi como mãe, esposa e avó mortal, ele ainda conseguia me fazer enrubescer.

— Ah, aí está. — Ele passou o dedo por meu rosto enrugado e sorriu, satisfeito demais consigo mesmo. — Não perdi meu encanto.

— Como se isso fosse possível, para o mestre da sedução verbal — provoquei.

Seu humor mudou para a insolência num piscar de olhos.

— Você logo verá que isso é mais do que conversinha, minha rosa.

Fiquei ainda mais vermelha, sentindo-me mais jovem do que nunca. Ele sempre causava esse efeito em mim. Sempre fez com que eu me sentisse viva e desejável. Exceto pelas vezes que ele me desafiava ou me deixava furiosa.

Ele se recostou em seu lugar, as asas erguidas.

— Seu corpo está cansado. Deixe-me fazer isso por você, para você poder descansar — tentou ele uma última vez.

— Você me ensinou a ser forte e astuciosa. Devo dar sozinha este último salto para dentro da toca do coelho. — Uma sensação inesperada de vulnerabilidade me fez tremer. Peguei minha xícara de chá para absorver seu calor. — Mas você estará lá para me pegar?

— Estarei lá esperando um beijo arrasador para compensar todos os meus problemas — respondeu ele sem hesitar.

Sorrindo, peguei o jogo de xadrez. Morfeu ficou observando atentamente eu animar as peças para que atuassem no meu grandioso plano de deixar o reino humano e esconder meus vestígios com a ajuda do meu conselheiro real, além de pedaços de osso fornecidos pelas fadas, um saco de cinzas, dois trajes de disfarce, uma mosca comum e um punhado de duendes. Enquanto eu falava, seu olho adornado com joias brilhava num tom esverdeado — incomodado, mas esperançoso. A ansiedade que emanava dele era visceral.

Era inconcebível que tivéssemos um relacionamento de sessenta e três anos — platônico — sem um quê de tensão. Apesar de ele gostar muito de me ver andar na ponta dos pés na corda bamba da sedução contida, ele manteve seu juramento e respeitou minha decisão de ser fiel a Jeb. Ele esperou três anos, enquanto eu sofria a morte do meu marido mortal e preparava minha família para minha partida iminente. Era essa a profundidade do respeito dele por mim. Ele teve meu respeito em troca. E muito mais...

Agora chegou o dia de recompensá-lo por sua paciência e estou começando a me arrepender por não deixá-lo planejar minha morte... por não deixá-lo controlar o espetáculo. Provavelmente, tudo seria muito mais fácil. Eu já estaria em seus braços e em sua cama — uma jovem rainha borboleta, governando meu reino, embriagada de poder, loucura e paixão.

Não. Eu consigo. Posso provar que sou capaz, calculista e forte, como todas as boas rainhas deveriam ser.

O único papel de Morfeu no meu plano era mandar o Rábido com o antídoto. Assim que meu cúmplice chegar, tudo se encaixará e fugirei para o País das Maravilhas. Como um corpo não pode ser exumado depois de reduzido a cinzas, ninguém saberá que ainda estou viva e apenas fui embora deste mundo para sempre.

Uma pontada de tristeza segue-se a esse pensamento quando finalmente me dou conta. Acabou. Estou pronta para dar um fim... para começar meu futuro imortal. Vivi uma vida plena aqui. Minha família é saudável e feliz. Estamos no auge. Todos os sonhos humanos foram realizados e meu coração está firme e forte novamente.

Se bem que, por causa disso, há muita coisa a ser deixada para trás. Não há nada inconcluso, mas ainda assim é difícil dizer adeus para sempre. Assim que a coroa for colocada em minha cabeça para dar início à minha imortalidade, não terei de usá-la constantemente para manter minha juventude, mas terei de ficar no País das Maravilhas. Como Marfim uma vez me disse, o tempo é complicado ao se passar pelo portal a fim de retornar ao mundo humano... há de se imaginar uma hora específica, ou o relógio retrocede e o portal deixará você no mesmo momento de sua passagem.

Se eu tentar cruzar as fronteiras para o reino humano depois de partir, voltarei para sempre a este momento e terei oitenta anos para sempre, ou automaticamente envelhecerei todo o tempo que se passou e virarei pó na hora. Acrescente-se a isso o fato de eu estar morta aos olhos de todos — jamais poderia explicar meu reaparecimento sem causar terror e confusão — e ir e voltar não será mais uma opção.

Uma muralha impenetrável está prestes a se erguer entre mim e minha família, deixando-nos sem nada além de memórias.

O rosto de Jeb reapareceu em minha mente antes que eu pudesse impedir... como seus olhos verdes brilhantes me encararam pouco antes de ele os fechar na morte. Como eles estavam tão cheios de amor e gratidão por todos os sonhos que compartilhamos.

Sinto algo crescer na minha garganta e uma dor atrás dos olhos. No meu peito, a pequena identidade de metal parece uma pilha de tijolos.

Pare. Não posso fazer isso agora. Tenho de me concentrar na fuga. Morfeu tinha razão. Pensar naqueles que amei só vai me atrapalhar. Vou manter as lembranças sob controle... esquecer como encarei a morte da mamãe e do papai, como achei que jamais superaria a dor. Como Jeb foi meu porto seguro, como sempre. Assim como fui para ele, quando a mãe dele morreu.

É fútil pensar nessas coisas agora, porque, assim que Jeb morreu, todo o mundo se distorceu — adquiriu uma nova forma que eu não reconhecia. As coisas cotidianas se tornaram estranhas e desagradáveis. Com a morte dele, eu não fazia parte de mais nada.

Minha metamorfose estava completa assim que meu marido mortal deixou de respirar. Só o que me restava agora era sair do meu velho casulo.

Um cheiro novo entra em meu entorno de papelão — loção pós-barba ou desodorante —, me obrigando a voltar ao presente enquanto dois homens conversam do lado de fora do caixão.

— Última da noite, Frank?

— É isso, Brian. Chegou há algumas horas. Só entrega. E é para se apressar com ela. Quer que eu fique e ajude?

Tenho dificuldade para respirar. Meu plano não permite duas testemunhas. Só uma. Enquanto espero pela resposta do operador do crematório, meu coração se encolhe dentro de mim, cheio de medo. O órgão parece tremer, apesar de não haver pulsação em meus pulsos ou ouvidos. Só uma vibração fria e indiscernível por trás do meu esterno, como gelatina gelada retirada da fôrma.

— Não — diz finalmente Brian, mexendo em alguns papéis. — Posso fazer isso de olhos fechados.

A ironia é risível. Se tudo sair como planejado, ele não só terá seus olhos fechados, como também estará dormindo e sonhando.

— Vá para casa e fique com sua família — conclui Brian. — Diga a Melanie e às crianças que mandei um oi.

— Entendi. Até amanhã.

As portas se fecham com um rangido e o alívio toma conta de mim, mas por pouco tempo. Os cliques e claques da esteira mecanizada balançam as paredes de papelão do meu caixão e agitam meus ossos rígidos. Sinto um balançar leve sob minha coluna enquanto meu caixão segue por uma esteira com rolos de metal. À medida que estes se movem, as chamas crepitam mais alto, aquecendo meus pés no ponto onde a parede sob a sola dos meus pés se aproxima perigosamente da entrada do incinerador.

Era para o Rábido estar aqui antes que o forno de temperatura controlada estivesse quente o bastante para acionar o mecanismo de abertura. As coisas estão acontecendo fora da sequência e rápido demais. Meus músculos doem e ganham vida, mas estão rígidos como aço. Imóveis. Um vislumbre de outra lembrança me arrepia: quando a Rainha Vermelha controlou meu corpo naquele último dia em Qualquer Outro Lugar. Quando eu era uma marionete dela. Sinto-me tão impotente agora quanto naquele tempo.

Estou prestes a ser envolta em chamas. Meu corpo não vai sobreviver. De todo modo, preciso sobreviver. Prometi voltar como eu mesma. Inteira. É uma promessa que não posso quebrar. Morfeu esperou demais por meu retorno. Não posso decepcioná-lo.

A dúvida ergue sua cabeça horrível: o que farei? Não consigo me mover, não consigo me livrar... não sem o antídoto. Um vazio dói por trás dos meus canais lacrimais enquanto desejo que uma enchente me liberte e encha toda a minha caixa com um oceano de lágrimas para me salvar do fogo. Mas meus olhos podiam muito bem estar cheios de areia.

Chega de drama, meu amor. Use sua mágica. Improvise e encontre uma forma de escapar.

Não tenho certeza se é a voz de Morfeu na minha cabeça ou se é minha própria voz. Ouvi o sotaque dele e sua insistência tantas vezes ao longo da vida que eles estão entranhados em mim como se fossem meus.

Seja qual for o caso, isso desperta minha determinação. Há um motivo para eu ter vindo a este lugar na noite passada, quando tudo estava escuro e em silêncio: para poder anotar mentalmente todas as coisas que poderia animar se precisasse. Para poder entender a logística do forno crematório. Para poder usar minha mágica às cegas.

Concentro-me no maquinário da esteira. Aprendi uma coisa ou outra sendo esposa de um mecânico. As molas do mecanismo se contraem enquanto as imagino se retraindo. O movimento aciona as amarras e a porta de metal se fecha com um baque. Minha caixa para imediatamente ao atingir o obstáculo.

— Você só pode estar brincando comigo — resmunga Brian. Ele mexe na maçaneta da porta e bate nas dobradiças. — Pronto. Agora, sim.

Ele empurra meu caixão de volta para a esteira de metal, criando espaço para a dobradiça se abrir. Minha mente procura outra forma de detê-lo quando o ouço gritar “Mas o que é que...?”, pouco antes de ouvir o som do seu corpo caindo no chão. O caixão bate na porta fechada novamente.

— Rainha Alyssa — uma voz fina soa do outro lado do papelão.

Nikki, sua fadinha maravilhosa. Um formigamento se irradia pelos meus lábios, o fantasma de um sorriso esperando para se abrir. Meus dedos dos pés se dobrariam de empolgação, não fosse minha paralisia.

A tampa do caixão se abre e as asas de vinte fadas pairam ao redor do meu rosto — lufadinhas de vento com cheiro de canela e baunilha.

Mãozinhas do tamanho de joaninhas seguram minhas pálpebras, abrindo-as diante de um brilho âmbar. Ainda não consigo virar a cabeça, mas pela minha visão periférica a galhada do Rábido aparece sobre a borda do caixão, seguida por um par de olhos rosados brilhantes.

— Atrasado estou — desculpa-se ele.

Tento menear a cabeça, mas não consigo.

Todo o seu rosto aparece diante de mim.

— Arrumá-la, Alteza. Levá-la para casa, finalmente.

Casa. A palavra passeia por minha mente, cheia de promessas e esperanças. Imagino-me voando com Morfeu pelos cenários bizarros e irregulares do País das Maravilhas. Como vai ser bom me sentir pertencente a um lugar de novo. Fazer parte e nunca ter de abandonar ninguém novamente.

O Rábido estica o braço magro e derrama em minha garganta algo de uma garrafa vermelha. Um leve toque de frutas vermelhas misturado a menta arde em minha língua. Meu coração ganha vida, batendo com tanta força contra meu esterno que eu perco o fôlego. Em pouco tempo, sou capaz de abrir os olhos sem a ajuda das fadas. Elas se dispersam com risadinhas e pairam ao redor do adormecido operador do crematório, caído no chão de cimento.

Pisco com força e rapidez. Meus canais lacrimais funcionam e meus olhos se enchem de água. O sal fere e coça.

Depois, meus dedos dos pés e das mãos latejam e os músculos despertam, moles e resistentes, como elásticos esticados demais. Enquanto me sento, minhas velhas articulações estalam.

O Rábido sobe na beirada da inclinação e segura o caixão, mantendo-o ao meu nível.

— Perdoe o Branco Rábido. Para todo o sempre, ao seu lado estarei.

Acaricio sua cabeça macia.

— Nenhum perdão é necessário. O que importa é que você está aqui agora. Alguém o viu saindo do banheiro?

O Rábido faz que não.

— A mosca no muro ficou de olho no futuro. — Ele ri da rima e aponta para a parte de cima da porta que ostenta a única janela do salão. A mosca anda pelo vidro do outro lado, numa demonstração de sua devoção inabalável.

O Rábido abre o sorriso sorrateiro que aprendi a apreciar, enquanto sua mão esquelética me entrega uma mochilinha. Olho dentro e está tudo ali: meu colar com o rubi, minha aliança de casamento, os trajes de disfarce, um saco de cinzas e pedacinhos de osso, uma muda de roupa, uma faca e três lembranças da minha vida humana que serão as únicas coisas que levarei comigo ao transpor os limites do País das Maravilhas.

Primeiro, coloco o colar em volta do pescoço e aperto a chave contra o peito, saboreando o poder que ela contém.

O operador do crematório ronca no chão. Ele parece com frio e nada confortável, mas sei que não está. Seus sonhos são cálidos e sensuais. As fadas voam ao redor dele, as asas batendo à velocidade de beija-flores, enquanto elas espalham partículas que são como dentes-de-leão cheios de feromônios. As sementinhas caem sobre o rosto sorridente do homem, levando seu inconsciente a imaginar as fantasias mais carnais. Torço o nariz, com vergonha até de imaginar o que ele está sonhando. Ele provavelmente vai ter uma ressaca de sonhos por uma semana.

Ainda que ele não vá sofrer nenhum efeito físico duradouro, as fadas estão explorando os pensamentos secretos dele. Quando eu era mais nova, teria me arrependido de tê-lo usado em meu plano. Agora, não. Quando ele acordar, daqui a mais ou menos uma hora, sua dor de cabeça insuportável o impedirá de questionar como conseguiu me cremar enquanto ele dormia. Ele só irá querer uma aspirina e sua cama macia em casa.

O fim justifica os meios.

Uso a faca para cortar uma abertura na lateral do caixão e tirar minhas pernas, lenta e cuidadosamente. Não consigo me mover tão rápido quanto antes. Meus pés descalços tocam o chão frio, o vestido de papel fazendo barulho. O Rábido se vira de costas enquanto tiro o vestido e o jogo dentro da caixa, depois visto um moletom e botas cinza — as roupas mais confortáveis e discretas do meu armário. Repreendo-me por me esquecer das roupas íntimas, mas não importa o que estou vestindo agora, porque no País das Maravilhas Morfeu encheu todos os armários do castelo com camisolas e lingeries de renda, cetim e veludo — um guarda-roupa digno de uma rainha.

Hoje, o disfarce esconderá meu traje simplório. Coloco o pé no tecido mágico. Para virar uma camaleoa, só preciso vestir o capuz e me concentrar nos arredores, meu corpo refletindo o cenário de fundo.

Mas primeiro...

Sem eu nem pedir, o Rábido me entrega o saco de cinzas e ossos e minha aliança de casamento. Olho o anel. Jeb o fez para mim quando tinha a capacidade mágica de pintar coisas e lhes dar vida. Quando sua musa se tornou uma entidade viva. Ele me serviu tanto como anel de noivado quanto como anel de casamento e era indestrutível. Pelo menos era o que pensávamos. A única vez que ele perdeu um de seus doze diamantes foi por descuido da minha mágica, quando eu a estava praticando.

Estava do lado de fora da nossa casa de campo, tentando fazer o salgueiro dançar, quando o diamante caiu na grama. Procuramos e procuramos, mas nunca o encontramos. Depois de uma semana, ele apareceu de novo, nascendo do solo na forma de uma flor parecida com vidro. Era como se o diamante fosse uma semente, tendo dentro de si a força da criação mágica de Jeb.

O cheiro de terra presente na lembrança dá lugar ao cheiro do propano do forno. Abro o saco e derramo as cinzas e ossos no caixão, mantendo os movimentos metódicos e precisos para a nostalgia não tomar conta de mim novamente.

Depois de esvaziar o saco, beijo minha aliança e a coloco em cima do montículo.

— Rábido, derreta isso com sua mágica.

Meu conselheiro real se aproxima, olha pela abertura e estreita seus olhos brilhantes até que eles irradiem um calor vermelho. Enquanto ele se concentra, as faixas de prata se fundem, reduzindo os onze diamantes a cinzas.

Coloco a placa de identificação dentro do caixão e leio o que está gravado no aço: Alyssa Victoria Gardner Holt. Sinto um nó na garganta. É a última vez que meu nome humano me definirá.

Reposicionando a tampa, ordeno que o mecanismo da porta funcione. Entrefecho os olhos diante do calor e das chamas, enquanto as portas se abrem o bastante para eu empurrar o caixão pela esteira, a porta se fechando em seguida. Ela se fecha completamente, tanto que nem mesmo se pode ver o brilho alaranjado lá dentro.

Alguns segundos mais e eu estaria presa ali. Agora, depois que o papelão se queimar todo, vai parecer que eu estava. As prateleiras de metal na parede contêm vários cubinhos de papelão. Dentro estão os restos mortais dos corpos que vieram antes de mim e agora esperam ser transferidos para suas urnas.

Mas meus “restos mortais” são únicos. Os diamantes de Jeb esperam lá dentro — sementinhas mágicas. Quando as cinzas forem lançadas no lugar onde as dele foram absorvidas na terra sob nosso salgueiro, flores nascerão, uma parte dele e minha. Unindo o que restou de nosso lado humano, numa última homenagem a toda a beleza que ele criou durante a vida.

Seguro-me para não chorar e pego a mochila enquanto o Rábido veste outro traje de disfarce, o qual encolhe até caber em seu corpo de coelho. Mentalmente, pergunto à mosca se o corredor está livre.

Ela responde num sussurro:

Está tudo bem, Rainha Alyssa...

Os outros humanos se foram. Não há nada além de umas traças por aqui.

Desnecessário ficar invisível, então.

— Nikki — sussurro, e a fadinha balança as asas, soltando a dose final de pó de fada no homem adormecido. Então ela reúne suas companheiras e nos segue porta afora. O banheiro fica a poucos passos do outro lado do corredor comprido e escuro. Sigo tomando cuidado para não esmagar as traças que caminham perto dos meus pés e dos pés do Rábido. Sorrio ao ver os insetos acompanhados de uma fila enorme de baratas, besouros e aranhas.

Rainha Alyssa! Rainha Alyssa! Tão triste vê-la partir...

A mosca voa ao redor da minha cabeça, acrescentando suas despedidas à confusão.

— Sentirei saudade de vocês também — digo, lutando contra uma onda de melancolia. Será a última vez que ouvirei esses cumprimentos confusos e zunidores. No País das Maravilhas, os insetos são... bem diferentes. Menos inócuos e bonzinhos. Alguns são maus e letais, e nada pequenos. Mas conheço todos os segredos deles e todas as suas fraquezas — graças ao sábio guardião do País das Maravilhas.

Nosso desfile entra no banheiro e para diante do espelho. Em vez de me ater à minha aparência velha e enrugada, imagino o relógio de sol que cobre a toca do coelho em um jardim londrino. O vidro racha como gelo no lago e, no reflexo entrequebrado, o relógio de sol aparece, marcado por uma réstia de pôr do sol rosa. É cedo e ninguém ocupa a trilha ainda. Como precaução, visto o capuz e o Rábido faz o mesmo.

Só precisamos de um ou dois pensamentos sobre nossas cercanias e seremos invisíveis.

Usando minha chave, miro numa fissura na forma de buraco de fechadura, minúsculo e intrincado.

O portal se abre. O Rábido me cutuca com seus dedos magros e entrelaço meus dedos aos dele. Junto com as fadas e nossos insetos companheiros, passamos pela abertura liquefeita. Uma brisa fria me atinge, assim como o cheiro de mato e rosas cobertos de orvalho reluzente.

Os botões de rosa dizem:

Bem-vinda, Majestade. Os anos ficaram para trás. Logo você estará desabrochando como nós novamente.

Sorrio. O Rábido me puxa rumo ao relógio de sol que já expõe a toca do coelho. Ele está ansioso para ir embora. Mais insetos se juntaram a nós; alguns pelo terreno: besouros, centopeias e escorpiões; outros pela brisa: borboletas, mariposas, vaga-lumes...

Saem em enxame do mato e ficam dando a volta em mim e em meu conselheiro real — um arco-íris encantado, espesso e brilhante, sob a luz rosada do céu.

As borboletas cantam:

Vida longa à Rainha Alyssa. Que você seja para sempre jovem, louca e livre.

Muitos deles pousam sobre mim, as asas acariciando meu rosto e pescoço através do traje de disfarce, e percebo que não terei mais de me tornar invisível. Meus amigos insetos estão aqui para me dar proteção, como sempre estiveram.

O Rábido me solta, seus dedos de cadáver tocando os meus enquanto ele segue as fadas e mergulha na toca do coelho sem olhar para trás.

— Atrase-se não, Majesta-a-a-ade — o grito do Rábido ecoa até mim, afastando-se mais e mais à medida que ele desce, sem peso, como uma pena ao vento.

Ao contrário do meu séquito interior, não consigo ir embora sem uma olhada para trás.

Paro, olhando em meio à nuvem de milhares de asinhas adejando diante da paisagem tremeluzente no horizonte. Meu peito se aperta.

Pego as lembrancinhas da minha mochila. Três garrafas de vidro decoradas: a primeira cheia de pedrinhas, a segunda com conchas e a última com um pó prateado. Uma olhada nas três e as lembranças contra as quais eu lutava iluminam minha mente, graciosa e lentamente, como a aurora invadindo o mundo imóvel que desperta.


CONTINUA

A MARIPOSA NO ESPELHO


Capítulo 1


As Maquinações
da Mariposa

— Tem certeza, Morfeu?

— Tenho — respondeu Morfeu, tirando as luvas e enfiando-as no casaco. — Você, entretanto, parece que precisa ser convencida.

A magia pulsava nervosamente na ponta de seus dedos, uma luz azul pulsante logo abaixo da pele. Por causa da ponte de ferro que havia lá fora, seus poderes estavam limitados a alguns truques inofensivos, mas suficientes para dar o seu recado, se necessário.

O besouro-tapete — que de tão grande chegava à altura dos ombros de Morfeu, depois de este haver tomado uma poção encolhedora — engoliu em seco por trás de suas muitas mandíbulas estalantes. Sua pele carpetada tremia.

— Não, não. Por favor, o senhor interpretou mal as minhas ressalvas. — Os braços ramosos do inseto vibravam enquanto ele folheava as marcações em ordem alfabética de sua prancheta, as quais continham todas as lembranças perdidas no País das Maravilhas. — É que ficar espiando os momentos esquecidos de um ser humano parece uma maneira tediosa de se passar uma tarde, só isso...

Morfeu mudou de posição, e suas asas lançaram uma sombra sobre a cara do besouro.

— Ah, mas este humano, em especial, tem muito a me ensinar.

Esse humano, em especial, havia conseguido capturar algo que Morfeu desejava mais que tudo neste mundo.

— Sente-se — disse o inseto, apontando para uma cadeira branca de vinil —, e eu prepararei as memórias para o senhor.

Morfeu jogou as asas para o lado, sentou-se e deu uma tragada no narguilé fornecido por seu anfitrião como cortesia. O tabaco doce e fresco passou ardendo pela sua garganta. Ele soprou baforadas de fumaça no ar, formando com elas o rosto de Alyssa. Era fácil imaginar o modo como seus olhos sempre se cobriam de um azul gélido quando ela o via, cheios de excitação e temor ao mesmo tempo. Adorava isso nela: a sagacidade de seus instintos intraterrenos alertando-a a não confiar nele, suavizada pelas emoções humanas forjadas durante a infância que passaram juntos.

Antes dela, Morfeu levara a vida em solidão, sem nunca precisar de ninguém. Ele não fazia a menor ideia do feitiço que ela lhe lançara. Ela era mais que uma decepção, sempre jurando devoção ao lado errado. Seu encanto, porém, era inegável. Principalmente quando ela o desafiava ou o encarava com sua indignação de justiceira, o que a deixava com os lábios deliciosamente posicionados quando rangia os dentes.

Morfeu colocou o narguilé de lado, embora a sensação de queimação em seu peito não tivesse nenhuma relação com o fumo. Alyssa era a única que poderia aplacar o incêndio que havia ali, pois fora ela quem havia atiçado aquelas chamas.

Os dois tinham passado cinco anos juntos — como amigos de infância —, até que a mãe dela a arrancou dele, Alyssa sangrando e ferida, e ele ficara se remoendo de remorso e com culpa por causa de um juramento imprudente que havia feito, no qual prometeu se manter longe dela.

Manter-se afastado da amiga fez com que ele sentisse o gosto da solidão pela primeira vez. Mesmo todos os anos de claustrofobia que ele passara aprisionado em um casulo antes de encontrá-la... nem mesmo eles o prepararam para o sofrimento da ausência dela.

Então, por fim, ela havia voltado para ele, fazendo-o reviver todos os antigos sentimentos que ele pensava ter dominado. Daquela vez, também, tudo foi muito rápido. Ela partira novamente, por escolha própria. Restaram a dor e a solidão excruciantes. Debilitantes.

Havia apenas seis meses que ela partira do País das Maravilhas, e ele não compreendia este vazio corrosivo que só poderia ser preenchido pelo toque dela, por seu perfume, sua voz. As solitárias criaturas mágicas não ligavam para essas bobagens; não precisavam de companhia, abominavam a bagagem emocional. Sua afeição e lealdade pertenciam ao agreste País das Maravilhas e a nada nem a ninguém mais.

Então o que ela havia feito para mudar isso?

Ultimamente, cada vez que ele via o próprio reflexo, não mais reconhecia a Mariposa no espelho. Estava incompleto, enfraquecido; e menosprezava isso.

O menosprezo era ainda maior porque ele havia se esforçado tanto para cortejá-la, enquanto ela oferecia seu afeto a um reles mortal.

Morfeu suprimiu um rosnado. Ele não conseguia compreender a sorte de Jebediah, como um humano podia ter tanto poder sobre uma rainha intraterrena. Como um simples rapaz era capaz de controlar um coração real e mestiço tão multifacetado, um espírito propenso ao pandemônio e à loucura. Jebediah puxava Alyssa para baixo, acorrentando-a ao tédio e à banalidade do reino humano.

Ela precisa ser libertada.

Morfeu havia considerado a possibilidade de matar seu rival, mas Alyssa jamais o perdoaria. Não. Chegara o momento de tomar medidas criativas.

Se Morfeu soubesse no que Jebediah havia pensando durante sua jornada pelo País das Maravilhas — todos os momentos em que ele se sentiu mais aterrorizado, mais desanimado —, conheceria as fraquezas e as forças do mortal, intimamente. Ele saberia como enfraquecer Jebediah, contrapondo-o a si mesmo.

Essas fraquezas o derrotariam melhor do que Morfeu o faria. E depois, quando tivesse destruído a confiança de Alyssa em seu cavaleiro mortal, Morfeu estaria lá para confortá-la e conquistá-la.

Voltaria a ouvir a risada de Alyssa do modo como ela ria quando os dois eram crianças, e teria de novo a oportunidade de ser presenteado com o seu sorriso deslumbrante.

Ele voltaria a ser completo.

— Por aqui, por favor — pediu o besouro para que Morfeu o seguisse.

Morfeu tirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo. Quando o inseto abriu a porta para um compartimento de memórias sem janelas, o cheiro de amêndoas vindo de uma travessa de biscoitos de luar fresquinhos que estava em uma mesa de canto se espargiu no ar. Havia uma chaise-longue na cor creme colocada contra a parede, e uma ornamentada luminária de piso feita de latão iluminava o espaço com uma luz discreta.

Morfeu concentrou-se no pequeno palco do outro lado do compartimento. Sentiu o coração palpitar de ansiedade num ritmo profundo e firme. As cortinas de veludo vermelho aguardavam o momento de se abrirem para mostrar as memórias de Jebediah na tela prateada.

— Como o senhor entrará na cabeça do rapaz para visitar suas lembranças perdidas, sou obrigado pelas normas a avisar-lhe que... as emoções humanas podem ser muito poderosas... podem nos fazer ver as coisas sob uma perspectiva totalmente diferente — advertiu o besouro.

— Estou contando com isso. — Morfeu deu um sorriso afetado. — Conhece aquele ditado sobre amigos e inimigos?

O besouro coçou a pele enrugada.

— Hum... mantenha seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda?

Morfeu acomodou-se na cadeira estofada e alisou a calça risca de giz ao cruzar as pernas apoiando um tornozelo sobre o outro.

— Melhor ainda é se colocar no lugar de seu inimigo. É a melhor maneira de controlar seus passos. Ou de apagá-los, caso tenha a oportunidade.

O besouro, voltando a tremer, esticou o braço fininho e apertou um botão na parede. As cortinas do palco se abriram, revelando uma tela de cinema.

— Imagine o rosto do rapaz enquanto olha para a tela em branco e vivenciará o passado dele como se fosse hoje.

As palavras do besouro eram ensaiadas, até mesmo mecânicas, mas a pulsação de Morfeu ficou acelerada. Ele esperou o besouro desligar a luz. Assim que o inseto saiu e fechou a porta, o corpo de Morfeu desmembrou-se nas juntas, flutuando pela escuridão como se fosse feito de partículas de pó. Todos os seus pedaços se uniram novamente na tela prateada, em cores vivas e cinematográficas, até que ele entrou na cabeça de Jebediah, apropriando-se do seu corpo, sentindo suas emoções.

Naquele momento, Morfeu entregou-se à experiência e, pela primeira vez na vida, passou a ver as coisas como um humano.


Capítulo 2


Primeira Lembrança —
Kriptonita

Jeb acordou em uma cama suspensa.

Estava nu. Por que estava nu?

Antes que esse fato pudesse ser totalmente registrado, trinta fadas ou mais, do tamanho de mariposas, surgiram do ar, acariciando cada parte do seu corpo e sussurrando-lhe. Ele tentou mexer os braços e pernas. As asas das fadas — que batiam na velocidade das asas de um beija-flor — liberavam partículas parecidas com as pétalas delicadas de um dente-de-leão, que, de alguma maneira, o imobilizaram. As sementes exalavam um perfume de canela e baunilha que foi inundando sua consciência, até que a sala ficou totalmente fora de foco.

Quando a névoa se dissipou, ele estava em sua cama, em casa. A noite adentrava pela janela e Taelor estava em cima dele, seminua. A unhas pintadas à moda francesinha percorreram os pelos de seu peito e abdômen, dirigindo-se ao cós de sua calça jeans.

Aquilo não podia ser verdade. Taelor e ele tinham brigado antes do baile de formatura, haviam terminado tudo.

Com delicadeza, ele a virou, colocando-a debaixo dele, e apoiou-se nos cotovelos, afastando o cabelo do rosto dela. Mas não foram os olhos de Taelor que encontraram os dele. Foram os olhos gélidos e azuis de Alyssa — encarando-o com um ar de admiração e inocência. Os dedos dele pareciam grandes e desajeitados nas têmporas dela.

A Al na cama dele?

Não. Isso não podia acontecer. Alyssa nem havia beijado homem algum. E Jeb nunca tinha sido o primeiro de nenhuma garota.

A Al era intocável para ele. Ela já passara por muitos episódios turbulentos em sua vida. E ele não era exatamente um exemplo de estabilidade.

Ele tirou as mãos dela e ficou de joelhos.

— Jeb, você não me quer? — perguntou Al, passando a mão no peito dele.

Ele não conseguiu responder. Seus dedos coçavam e pareciam esticar-se, como se estivessem crescendo. Ele ergueu as mãos sob o luar, observando, horrorizado, seus dedos caírem, um por um, e se metamorfosearem em lagartas. As lagartas, então, avançaram lentamente na direção de Alyssa, e ele não conseguia fazer nada para detê-las. Jeb caiu de costas na cama, com as mãos sobre o rosto, olhando fixa e incredulamente para os tocos crus e cheios de sangue onde antes estavam seus dedos.

Gritando, Alyssa tentou sair do colchão, mas as lagartas a pegaram, arrastando-se por sua pele e tecendo teias, até que restou somente uma forma se agitando dentro de um casulo.

— Soltem ela! — gritou Jeb. Uma luz lampejou em seus olhos, e então ele já não mais se encontrava em sua cama. Estava em algum lugar da mansão de Morfeu, e as fadas percorriam sua pele, hipnotizando-o... usando algum tipo de feromônio alucinógeno.

Elas estão me segurando aqui para que o Morfeu fique sozinho com a Al. No instante em que a realidade foi percebida, o feitiço foi quebrado.

Jeb pulou rápido da cama suspensa e saiu da nuvem de sedução de suas captoras. Pegando um travesseiro, ele se cobriu.

— Quero alguma coisa para vestir!

As fadas flutuavam no ar, seus olhos de libélula observando-o.

Havia várias cestas douradas no chão perto dos pés dele. Jeb chutou uma. Suas pequenas captoras se espalharam pelo ar, em histeria coletiva.

Gossamer, a fada predileta de Morfeu, designou cinco delas para pegar os morangos que rolaram. Elas contaram as frutas uma por uma e as colocaram de volta na cesta.

Jeb chutou outra cesta cheia de contas de óleo perfumado. Outras cinco fadas lançaram-se ao chão para pegar tudo, parando para contar cada conta antes de guardá-la.

Em pouco tempo, ela já havia chutado todas as cestas. Algumas estavam cheias de pétalas de flores, outras continham loção, outras, ainda, uvas. Ao virá-las, ele conseguira manter a maioria de suas captoras preocupada. Apenas Gossamer e outras duas ainda pairavam em torno de sua cabeça.

— Me deem algo para vestir — repetiu ele —, ou vou começar a tirar as plumas dos travesseiros. Vocês não estão em número suficiente para limpar uma sujeira dessas.

— Ele não está respondendo ao nosso feitiço — murmurou uma das fadas para Gossamer, com seus olhos de inseto voltados para Jeb.

— E nem à nossa magia — acrescentou a outra, amuada. — Eu conjurei uma moça das lembranças dele, mas seu subconsciente conseguiu escapar.

— Sim, este aqui é, sem dúvida, um desafio — concordou Gossamer, numa voz que tilintava feito um sino. Depois de mandar as outras duas fadas recolherem o conteúdo da última cesta, ela ofereceu a Jeb um robe de seda.

Ele se virou de costas e enfiou a peça de roupa no corpo, assimilando os arredores.

Morfeu o colocara em uma prisão opulenta. A sala era toda revestida de piso de mármore preto que refletia a luz laranja dos candelabros. Ele já estava bem familiarizado com o ponto focal: um colchão circular balançante preso por correntes douradas no centro do teto côncavo. Peles e almofadas forravam a cama, perfumadas por pétalas de rosa.

Apesar de todos esses confortos, faltava a essa sala um detalhe muito importante: uma saída. Não havia portas, janelas ou qualquer outra abertura à vista.

Paredes convexas — pintadas em cor de lavanda escura — eram cobertas por parreiras que se estendiam por toda a sua circunferência, entrando e saindo do reboco e se entrelaçando nos candelabros acesos. Frutas brotavam das vinhas. De quando em quando, as uvas explodiam espontaneamente e pingavam seu suco dentro de bacias de pedra posicionadas ao longo das paredes para apanhá-lo. E, delas, um líquido viscoso e purpúreo era drenado para dentro de fontes — um abastecimento constante de vinho de fadas com aroma adocicado.

Ele se lembrava vagamente de ter provado o vinho ao chegar. Desconfiado, tentou resistir, mas estava com muita sede. Era impossível saber que tipo de magia havia no líquido.

Jeb gemeu e esfregou o rosto. Quanto tempo teria passado bêbado e enfeitiçado? Ele acabara sendo inútil para Alyssa, assim como o pai dele teria sido.

— Onde ela está? — perguntou ele, ignorando a harpa que tocava sozinha, a qual, na tentativa de abafar-lhe a voz, começou a tocar mais alto. — Me diga o que Morfeu está fazendo com ela.

Minúscula, reluzente e confiante, Gossamer acomodou-se em uma almofada de cetim, passou a mão pelo colchão ao seu lado e cruzou as pernas apoiando os tornozelos verdes um sobre o outro.

— Talvez você não perceba o que nós, as fadas, somos capazes de fazer. Temos séculos de prática. Podemos lhe mostrar um êxtase com o qual você sempre sonhou.

Jeb a olhou de cima a baixo e ajustou a faixa de cetim em sua cintura.

— Me desculpe, não sonho com coisas verdes.

Ele encontrou a mochila de Alyssa debaixo da cama e a puxou. Jeb havia notado alguma coisa dentro dela anteriormente, quando a vasculhara em busca de outra coisa: uma pulseira de ferro forjado que ela provavelmente havia enfiado na mochila quando ainda estava na escola e ficara esquecida ali. Ele havia pesquisado muito as fadas quando começou a pintá-las, e sabia que elas não gostavam de ferro — se a lenda fosse verdadeira.

Jeb jogou a mochila sobre o colchão. Os cobertores de pele encresparam-se feito uma onda gigante e derrubaram Gossamer de sua almofada. Acionando suas asas com rapidez, ela pousou sobre o ombro de Jeb.

— Se é Alyssa que inspira suas paixões, podemos realizar essa fantasia. — Gossamer bateu palmas. As outras largaram seus postos de limpeza e se apressaram a formar um círculo em volta de Jeb. Uma onda de enjoo lhe invadiu o estômago quando todas as fadas assumiram a aparência de Alyssa — réplicas perfeitas em miniatura, com cabelo platinado e roupas sensuais de skatista. Elas liberaram novamente suas sementes de feromônios, cegando-o com o perfume de Alyssa, doce como néctar.

Brandindo uma almofada, Jeb rompeu a ilusão e dissipou as sementes. As fadas saíram aos guinchos e foram se esconder nas vinhas das paredes, com seus corpos brilhantes parecendo cordões de luz branca e piscante.

Gossamer pairou no ar acima dele, ralhando.

— Já chega! Informem o nosso mestre de que o mortal é leal à garota. Não podemos seduzi-lo para que volte ao seu mundo sem ela.

Jeb ficou resmungando, enquanto as fadas se esgueiravam por buracos do tamanho de ervilhas, na parede onde as vinhas entravam e saíam. Se ao menos ele pudesse passar por aquelas pequenas saídas também... Chegou a pensar em usar a poção encolhedora que ele e Alyssa tinham encontrado quando chegaram ao País das Maravilhas, mas ela o deixaria tão pequeno quanto suas captoras, e ele ficaria indefeso contra Morfeu. A impotência lhe fervia as entranhas, tão profunda como a que ele sentia quando era criança, escondendo-se em um armário até que passassem os ataques de fúria do pai.

Ele cerrou os dentes. Tinha de haver uma passagem escondida em algum lugar por trás das vinhas. Elas o tinham trazido para cá; devia haver uma saída.

Subitamente, ele deu um pulo para a parede mais próxima e arrancou algumas vinhas, lançando-as para todos os lados. O diminuto guincho de surpresa de Gossamer não o intimidou.

Uvas explodiam em suas mãos, libertando seu aroma potente e denso. As plantas viscosas cortavam seus dedos feito arames. Jeb aceitou a dor. Era algo que podia controlar — diferentemente do tormento dos cigarros acesos que seu pai lhe enfiava na pele, ou dos punhos que lhe socavam o rosto e o estômago. O cheiro da nicotina, o gosto de sangue. Imaginação ou não, eles alimentaram o selvagem em sua alma.

Ele mergulhou numa espiral vermelha de fúria e devastou a sala. Quando finalmente voltou a si e recostou-se na cama, ficou chocado com os estragos que causara.

Arfando e suando, ele cuidou dos cortes nas junções dos dedos e vasculhou os destroços à procura de Gossamer. Será que a tinha machucado? Se sim, talvez fosse mesmo filho de seu pai.

Jeb cerrou os punhos, descontente consigo mesmo.

— Gossamer? — Ele se encolheu ao ouvir a própria voz, rude e inflamada de emoção.

Um rufar de asas mexeu uma das correntes que prendiam a cama ao teto. Ele respirou, aliviado ao ver a fada. Embora parecesse meio idiota importar-se, já que estava prestes a usar a pulseira de ferro de Alyssa contra ela.

Gossamer pousou no chão ao lado das vinhas rasgadas e das cestas que ele tinha derrubado de novo; seus ombros estavam caídos, em demonstração de derrota. Provavelmente, ela não sabia por onde começar a calcular todos os conteúdos derramados.

Jeb começou a vasculhar a mochila. A harpa havia parado de tocar, e o silêncio o incomodava feito o ruído dos ponteiros de um relógio. Cada segundo que ele passava longe de Alyssa deixava-a mais vulnerável a Morfeu.

Seus dedos finalmente encontraram um metal frio. Ele jogou a pulseira de ferro na direção de Gossamer, mas mantendo alguma distância, na esperança de enfraquecê-la sem machucá-la.

Ela gritou e lançou-se ao ar, se debatendo.

— Por favor... afaste isso.

— Não até eu conseguir algumas respostas. — Jeb segurou uma das asas dela entre o indicador e o polegar, levando-a para a cama e sentando-a sobre uma almofada, tomando o cuidado de manter a pulseira próxima o bastante para intimidá-la. — Basta cooperar, que eu não vou machucá-la.

— Já está machucando. — Ela gemeu, com a pele esverdeada já tingida de turquesa. — Não posso usar minha magia... — Gossamer bateu as mãos no próprio rosto. — Vai me deixar... horrível. Abster-me. — Sua voz ficou mais calma, como se estivesse falando consigo mesma, e, rangendo os dentes, continuou: — Abster-me até a ameaça de dor e contaminação passar.

Jeb franziu a testa.

— Então o ferro vira seus poderes contra vocês? É a arma perfeita para usar contra seu chefe.

— Um objeto desse tamanho... só funciona com os menores de nossa espécie.

Jeb curvou-se, aproximando ainda mais a pulseira dela.

— Muito bem, então considere isso um detector de mentiras. Toda vez que eu perceber que você está fingindo, aproximarei o ferro. Onde está a Al, e o que o seu chefe repugnante está fazendo com ela?

A cor da fada mudou para um verde azulado. Ela rolou sobre a almofada, as asas lutando para bater. Gossamer as puxou por cima dos ombros até a altura do peito, cruzando-as, como se quisesse conter a sua magia.

— A sua Alyssa está confortável e sendo bem cuidada. Morfeu está zelando pelo sono dela...

Jeb soltou um grunhido. Na noite passada, ele havia zelado pelo sono dela, no barco. Mudara a posição do corpo dela para que pudesse olhá-la de frente e fazer uma promessa, mesmo que Alyssa estivesse sonolenta demais para ouvi-lo. Jeb havia prometido que a protegeria, que a levaria para casa a salvo. E não iria quebrar sua promessa agora.

Ele precisou resistir ao desejo de destruir a sala novamente.

— Como eu saio daqui?

— Apenas o Morfeu tem os meios para abrir a passagem.

Jeb inclinou-se para a frente, com o nariz quase tocando o rosto de Gossamer enquanto segurava a pulseira sobre a cabeça dela, como se fosse um objeto corrosivo.

— Está dizendo que estou preso aqui até que aquela barata de asas decida me soltar? Ele vai fazer a Al enfrentar o País das Maravilhas sozinha?

Ela choramingou, levando a mão à testa.

— Não. Como você provou ser leal, ele permitirá que a acompanhe em sua jornada. Você comparecerá ao banquete e traçarão os planos.

— Banquete?

— A apresentação de Alyssa. Morfeu deseja exibi-la aos outros.

— Que outros?

Gossamer deixou-se cair, formando um monte de cor púrpura e em seguida saiu depressa de seu poleiro. Ela puxou alguma coisa de dentro da almofada — um desenho de Al que Jeb não se lembrava de ter feito. Lentamente, Gossamer levantou os joelhos e estudou as linhas.

— Você fez isto enquanto estava sob nosso feitiço. Tem poder dentro de seu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Você captou o interior de Alyssa com perfeição.

— Esse desenho é pura fantasia — resmungou Jeb. Ele colocou a pulseira de ferro sobre o papel ao lado de Gossamer.

Ela rolou para o meio do desenho, tentando escapar do metal.

— Há mais verdade nesta aparência de Alyssa do que em qualquer coisa que possam me forçar a falar.

Jeb puxou o desenho, fazendo Gossamer e a pulseira de ferro rolarem por cima da pelugem. Ele estendeu o desenho sobre uma almofada e percorreu as linhas de carvão com o dedo. A imagem era igual a todos os outros desenhos de fadas que ele havia feito de Al ao longo dos anos, mas, ainda assim, não poderia ser mais diferente da garota que ele conhecia.

Ele a desenhara com o cabelo preso no alto da cabeça. Al nunca usava o cabelo daquele jeito. Um vestido preto de alcinhas realçava suas curvas. Nem morta ela seria vista em um vestido tão convencional. E a única coisa que se parecia com ela eram as luvas de renda preta sem dedos que cobriam as cicatrizes da palma das mãos.

Fora isso, o desenho era uma fantasia completa. Sentada em um banco de jardim, Al segurava uma rosa. Rímel e lágrimas escorriam em curvas graciosas por seu rosto. Pensando bem, se parecia com a maquiagem dela na última vez que ele a vira.

Ele ainda não conseguia entender por que, depois de quase se afogar em um oceano de lágrimas, o rímel de Alyssa não havia borrado. Apertando os olhos, ele estudou o par de asas translúcidas abertas nas costas dela. As membranas finas tremeluziam sob o único raio de sol que atravessava as nuvens. As asas faziam com que se sentisse estranho, mas Jeb não conseguia perceber a razão.

Talvez porque elas lembrassem as asas de Morfeu, embora tivessem uma cor totalmente diferente. As têmporas de Jeb latejaram. Nada poderia ser pior do que Alyssa sozinha com aquele homem-inseto. Aquele doido tinha algum tipo de poder sobre ela, havia entrado em sua cabeça quando ela era pequena. O subconsciente pode ser muito poderoso, e se Morfeu ainda tivesse acesso aos sonhos da Al...

— Como posso derrotá-lo? — perguntou Jeb com um nó na garganta.

Os olhos bulbosos de Gossamer voltaram-se para os dele. Ela estava fraca demais para se arrastar para longe da pulseira, que agora roçava sua coxa.

— Ele não será derrotado. Há anos ele espera por este dia.

Jeb fez cara feia.

— Muito bem, ele é o Super-Homem. Mas todo mundo tem a sua kriptonita. Algo de que sente medo.

— O confinamento — Gossamer deixou escapar, e, diante da confissão, seu corpo escureceu até ficar da cor de um machucado.

— Como assim?

Gossamer levou o dorso da mão à testa.

— Por favor... está muito perto... o ferro... está drenando minha energia.

Jeb caiu de costas no colchão e afastou a pulseira da fada. Equilibrando-o entre os dedos, ele estudou o ferro sob a luz das velas. A pulseira o lembrou de seu piercing de ferro e da primeira vez que Al o vira, sua reação de entusiasmo. Ela havia implorado para tocá-lo e fez várias perguntas sobre o processo de colocação de um piercing. Seu entusiasmo e ingenuidade, suas inseguranças... Morfeu não hesitaria em usar qualquer uma dessas coisas, ou todas elas, para manipulá-la.

Jeb precisava convencer Al a sair do País das Maravilhas, a esquecer esta jornada para quebrar a maldição de sua família, a qualquer custo. Algo muito tenebroso estava à espreita, bem perto dela, como no sonho que ele tivera. E Jeb podia sentir que, fosse lá o que estivesse para acontecer, estava se aproximando.

— Então vocês querem que ela conserte os erros da Alice original, certo? E se eu consertá-los? — Jeb tentou raciocinar. — Vocês enviam a Al para casa e deixam que eu cuide de tudo?

— Impossível — respondeu Gossamer num sussurro arfante, voltando à cor verde-clara. Engatinhando na direção do desenho, ela passou a pequenina mão sobre a rosa. — Ela já passou nos testes e provou ser a escolhida.

— Testes? Está se referindo a encontrar a toca do coelho para o País das Maravilhas e secar o oceano de lágrimas?

Gossamer fez que sim.

— Mas eu ajudei a fazer isso.

— É por ela que ele esperava. Não por você.

Jeb levantou a pulseira de ferro uma última vez.

— O que ele realmente quer dela?

Antes que Gossamer pudesse responder, o teto abobadado começou a tremer. Pedaços espessos de gesso despencaram no solo. Jeb colocou uma almofada sobre a cabeça e uma mão sobre Gossamer para protegê-la dos detritos. O teto se abriu nas emendas, fazendo a cama balançar e puxando as correntes em direções opostas, de modo que o colchão subiu vários centímetros.

Depois que os tremores passaram, Jeb olhou para cima. A silhueta escura de Morfeu apareceu em uma abertura no teto.

Sutileza era um dos últimos itens na lista de prioridades desse cara.

— Já te disseram que você é muito escandaloso? — rosnou Jeb.

Morfeu inclinou-se para olhar a sala destruída.

— Já te disseram que você é um péssimo hóspede?

Parte da responsabilidade daquela bagunça era da grandiosa entrada de seu aprisionador, mas Jeb mordeu a língua, não querendo arriscar sua oportunidade de ver Al.

Morfeu relaxou.

— Alyssa o aguarda na sala dos espelhos. E, por favor, tome um banho e faça a barba. Você será apresentado aos nossos convidados do banquete como um cavaleiro élfico, então precisa parecer como tal. Gossamer lhe dirá como se comportar adequadamente. — Morfeu largou algumas roupas e botas, que fizeram um ruído ao atingir o chão. — Aí está seu uniforme. — Ele fez uma pausa e apontou para as correntes. — Que pena que você não tenha asas e nenhuma magia intraterrena. Terá que sair daí sozinho. E posso assegurar que não será nada fácil.

Os músculos de Jeb se retesaram quando Morfeu sumiu de vista; ele sabia que o aviso se referia a muito mais do que sair daquela sala.


Capítulo 3


Segunda Lembrança —
Carnificina

Jeb limpou o suor da testa. Morfeu estava certo. A escalada para sair de sua prisão dourada seria mesmo difícil. Mas isso não significava nada se comparado à jornada pelo País das Maravilhas que ele e Alyssa haviam cumprido desde então. O dia inteiro tinha sido um desafio atrás do outro, com o perigo e a morte aguardando em cada esquina. E agora ele havia perdido a Al. Os dois tinham se separado pouco antes de ela completar o teste final. Al ficou enfrentando as irmãs Twid no cemitério, sozinha, e ele ficou preso aqui no fundo do abismo.

A noite já havia caído quando ele atingiu o solo, e foi uma transição extremamente rápida, como se alguém tivesse apagado a luz.

Jeb sentiu os músculos do corpo endurecerem. Odiava pensar na Al sozinha naquele mundo insano depois de anoitecer. E, mais uma vez, ela provou ser forte o bastante para encarar quase tudo. No final, foi ela quem o salvara mais de uma vez...

Ele se lembrou dela pairando acima dele — um brilho selvagem, flutuando com a graça de uma libélula. Ver as asas dela brotarem tinha sido ao mesmo tempo assustador e milagroso. Jeb mal conseguiu respirar enquanto observava a transformação.

Falando sinceramente, Jeb ainda não tinha recuperado o fôlego de quando ela o levara para dentro do abismo e ele gritara: “Você é minha corda de segurança!”, antes de ela subir ainda mais alto para o céu. Ele não deveria ter colocado tanta pressão sobre ela para salvá-lo; tinha que ter feito o que conseguisse para sair de lá por si próprio e encontrá-la no meio do caminho. Do contrário, ela nunca se perdoaria se algo saísse errado.

A carcaça de um pássaro Jubjub havia amortecido sua queda. Ele limpou nas calças a gosma pegajosa que tinha entre os dedos, torcendo o nariz diante dos restos malcheirosos do exército que os perseguia e acabou caindo no abismo. Jeb procurou ficar de pé na escuridão. Suas botas produziam sons de sucção toda vez que ele pisava. Ele nunca tivera fricotes; qualquer aversão a sangue e violência havia sido expurgada — uma dessensibilização gradual que era reforçada sempre que ele se olhava no espelho e via suas bochechas e olhos inchados, grandes e cheios de sangue, que nem um bife malpassado.

Contudo, sem uma centelha de luz para guiá-lo, a carnificina aos seus pés parecia mais viva do que morta. Sua imaginação trazia arquivos de todos os tipos, de filmes de zumbis a demônios e assombrações. Seu estômago queimava de náusea. Jeb sentiu-se aliviado ao perceber que os assobios que ouvia dentro do abismo eram produzidos pelo vento. E não havia ruídos de correntes fantasmagóricas nem gemidos de mortos-vivos.

Além disso, seu verdadeiro inimigo era o tempo, mais perigoso do que qualquer coisa que pudesse imaginar. A Al ainda tinha de cumprir a última tarefa no cemitério. E, depois, eles ainda tinham de encontrar um ao outro.

Ele se forçou a avançar às cegas até sua mão alcançar a parede do abismo. Antes de descer totalmente, Jeb viu que a mochila de Al tinha ficado presa em uma pedra saliente próxima ao chão. Se conseguisse encontrá-la, poderia contar com uma lanterna. Tateando a superfície áspera da pedra, ele levantava seus pés por sobre os obstáculos, tocando os cadáveres com os dedos dos pés para mensurar a largura de cada passo.

Com os cotovelos esbarrando nas pedras, Jeb observou o céu. Um pequeno aglomerado de estrelas brigava com as nuvens, aparecendo para iluminar levemente o lugar ao seu redor, tornando possível que ele continuasse sem esbarrar no falecido exército da rainha. Uma brisa úmida levantava a poeira feito pequenos tornados. Logo choveria. E, neste lugar, era possível que, literalmente, chovesse a cântaros — daqueles temporais ruidosos, torrenciais.

Um calafrio que não tinha nada a ver com a tempestade iminente lhe percorreu a espinha e obscureceu qualquer sentimento bom que ele poderia ter encontrado naquele pensamento. Qual era a razão de todos esses “testes” de Morfeu? Toda vez que a Al conseguia se sair bem em um desses testes, sua forma intraterrena tornava-se mais acentuada. Será que o intuito era transformá-la completamente para que não pudesse mais voltar ao reino humano?

Fios de cabelo caíram sobre seu rosto, e Jeb os afastou.

Morfeu afirmara que tudo o que ele mais queria era que Alyssa voltasse ao seu lugar. Sua casa. Jeb esperava que ele estivesse se referindo ao mundo deles, o reino humano. Mas e se a Al não estivesse sob nenhuma maldição, no final das contas?

Ele se lembrou de sua pesquisa sobre fadas, na qual descobriu que elas eram criaturas chamadas de changelings — as crias das fadas secretamente deixadas no lugar de bebês humanos roubados. Alice Liddell, a tataravó de Al, teria sido uma changeling? Quem sabe foi por isso que ela encontrou, quando criança, a toca do coelho — por instinto. Isso significaria, de alguma estranha maneira, que aqui era a casa de Al.

Jeb parou com as especulações. Elas só levavam a mais dúvidas.

Ele tinha encontrado a mochila. Abriu-a, tirou a lanterna e colocou a mochila nos ombros.

Ao fechar o zíper, ele acendeu a lanterna e percorreu o cenário com fachos de luz. Os guardas destruídos pareciam cartas de baralho amarrotadas. Brinquedos descartados. Até mesmo os pássaros Jubjub poderiam se passar por brinquedos infantis com o enchimento extrapolando para fora.

Com a mochila ajeitada no corpo, Jeb percorreu a circunferência do abismo sem encontrar nenhuma abertura. Pedras que haviam caído bloqueavam qualquer possível passagem que ele tentasse. Era como se ele tivesse caído dentro de um tubo gigante. Não havia nenhuma outra saída a não ser subindo.

Jeb apontou a luz para o gramado a cerca de vinte andares acima — a clareira onde Alyssa havia pousado. Estava determinado a encontrá-la antes de Morfeu, mesmo que tivesse de escalar as pedras pontiagudas no escuro e sem uma corda de segurança.

Ele havia acabado de apoiar a lanterna entre os lábios e escorar o pé em um rochedo para tomar impulso quando ouviu uma voz com um sotaque britânico familiar.

— Ao trabalho, homens. Precisamos contar todos antes que as irmãs Twid enviem sua brigada de duendes para recolher os mortos.

Morfeu.

Jeb desceu e quase colidiu com o intraterreno alado, que tinha aparecido do nada, como se tivesse aberto um zíper no ar e passado por ele. Cavaleiros élficos faziam fila atrás dele, entre vinte e trinta, carregando lanternas e usando o mesmo uniforme de Jeb, só que menos esfarrapado e sujo. Eles passaram sem nem olhar para Jeb, extremamente concentrados na contagem dos corpos.

— Ora, ora, pseudocavaleiro. — Morfeu riu com desdém.

Cada pedacinho de Jeb ansiava por apagar aquele sorriso arrogante e socar aquele rosto. Mas ele estava em desvantagem. Se quisesse sair desse fosso para encontrar a Al, teria de bancar o bonzinho.

— Detesto dizer isso, mas é bom vê-lo, senhor Mariposa. — Jeb guardou a lanterna. — Vejo que pegou o espelho para vir aqui.

— Eu só viajo de espelho. — Morfeu ergueu a lanterna e examinou as roupas esfarrapadas de Jeb. — Tem a vantagem de não estragar tanto as roupas. E vou lhe contar outro segredo: se eu mantiver as asas daquele lado do plano — ele apontou com o polegar para as suas costas, onde metade de seus apêndices não era visível —, a abertura fica acessível para nossa viagem de volta.

Jeb forçou um sorriso.

— É bom saber.

Perfeito, na verdade. Ele poderia voltar com a trupe de elfos e depois tomar o expresso na sala de espelhos para encontrar a Al. Mas primeiro teria de distrair Morfeu, baixar a guarda dele. Jeb perguntou:

— Esse chapéu é novo?

Morfeu ficou radiante.

— Que gentil de sua parte ter notado. É meu chapéu da Insurreição. Ainda não havia tido a oportunidade de usá-lo antes. — Com o dedo, bateu em várias mariposas que formavam a guirlanda na aba do chapéu e depois se inclinou e fez conchinha no ouvido de Jeb para sussurrar um segredo. — As asas vermelhas representam derramamento de sangue.

— Ãh-hã. — Jeb cerrou a mandíbula diante do indesejado bafo quente no lóbulo de sua orelha. Depois, olhou para os cavaleiros, discerníveis somente por suas lanternas flutuando na escuridão atrás dele. — Então, está planejando um motim com o exército da rainha de Marfim?

Morfeu apertou o ombro de Jeb.

— Eu sempre soube que era mais esperto do que os mortais comuns.

Os músculos de Jeb contraíram-se ao contato.

— O que significa que você estava mandando a Al para uma missão absurda só para se divertir.

Cuidado. Jeb não poderia deixar sua desconfiança transparecer. Pelo menos não ainda. Em vez disso, ele se inclinou para ajustar os cadarços das botas e respirou fundo antes de se reerguer.

Morfeu apertou sua gravata vermelha.

— Todas as tarefas que pedi à Alyssa tinham um propósito. — Ele deu um passo para o lado quando alguém mais passou pelo portal do espelho: um esqueleto do tamanho de um duende, com antenas e olhos cor-de-rosa brilhantes, metido em um colete vermelho.

— Rábido Branco? — sussurrou Jeb, incrédulo. Nada daquilo fazia sentido. O Rábido era da corte Vermelha. Por que estava aqui?

— Qual é o relatório? — Morfeu agachou-se para ficar na altura do Rábido, ainda mantendo as asas enfiadas no portal invisível do espelho.

O pequeno intraterreno apertou as mãos enluvadas e olhou para Jeb, sua cabeça careca refletindo o brilho suave da lanterna de Morfeu.

— Um de nós, você é?

Morfeu sorriu e respondeu por Jeb.

— É claro que é. Ele ajudou a nossa Alyssa a conquistar o grande e cruel exército Vermelho, não lembra?

Coçando a antena esquerda, o Rábido fez que sim.

— Rainha Grenadine neutralizada está. Nos portões da frente e de trás, o castelo guardado está pelos regimentos três e sete. Flanqueando a rainha, um círculo de cinco. Sem esquecer da coroa e seu guardador.

— Ah, sim. O bandersnatch. Bem, quando Alyssa tiver trazido seu prêmio do cemitério das irmãs Twid, nada mais terei a temer daquela besta medonha. Fez um bom trabalho, senhor Branco. — Morfeu deu uma batidinha na aba do chapéu.

O Rábido bateu os tornozelos cadavéricos um no outro, depois se curvou e lançou um olhar penetrante para Jeb, antes de pular novamente para o portal.

— Ele é o seu espião — murmurou Jeb, sentindo-se idiota por não ter adivinhado antes.

— Sim.

— Então todas as vezes que o esqueletinho ameaçou a Al, matando-a de susto, era só para manter a aparência de lealdade à Rainha Grenadine?

— Os melhores espiões são aqueles que jogam dos dois lados com o mesmo vigor.

A distância, Jeb avaliou as lanternas que balançavam. O tilintar dos cabos de metal e o pisar de botas eclipsavam o suave lamento do vento.

— Certo. Já que estamos abrindo o jogo...

O comentário de Morfeu o interrompeu.

— Que trocadilho mais delicioso, considerando a posição em que estamos. — A lanterna dele apontou para os cadáveres dos guardas de carta.

Jeb ignorou a piada mórbida.

— Eu ia perguntar por que o Rábido se voltou contra a corte Vermelha.

— Ele era o conselheiro real da Rainha Vermelha quando Alice nos visitou. Deseja ver a verdadeira herdeira no trono tanto quanto eu.

— Verdadeira herdeira. — Jeb chutou um punhado de terra com uma bota, sentindo o peito apertado. — Então tudo isso é para destronar Grenadine e abrir caminho para uma nova rainha.

— Sim. — A lanterna iluminou o rosto de Morfeu, numa expressão de indulgência sonhadora. — E estamos muito perto. Em breve, ela ocupará o trono que é e sempre foi o lugar dela.

O lugar dela. Uma hipótese se formava na mente de Jeb, uma ideia ultrajante e incompreensível, mas, de qualquer maneira, a resposta óbvia para todas as dúvidas que ele vinha remoendo. Todas as dúvidas, exceto uma...

— Mas, primeiro — interviu Morfeu, varrendo o ar com um gesto desdenhoso —, temos que ter certeza do que iremos enfrentar quando atacarmos o castelo. Você e Alyssa conseguiram eliminar boa parte da oposição com seus fantásticos movimentos de pés. Estamos aqui para avaliar se os números batem com os que o Rábido reportou. Devemos ter certeza que Grenadine não tem outras cartas escondidas na manga. — Ele bateu nas costas de Jeb. — Viu o trocadilho? “Cartas na manga?” — E deu uma gargalhada.

Jeb não deu nem um risinho.

— Ah, corta essa. Os guardas dela são de cartas. É uma piada como a que você fez antes, só que mais inteligente.

— Ah, sim, entendi — retrucou Jeb.

O riso de Morfeu se dissipou.

— Você não é um namorado muito divertido.

— Você não leva nada a sério? A Al está correndo perigo — Jeb deixou escapar.

— Bobagem. Ela é gloriosamente capaz! Você nunca a viu voando? É claro que viu! Estava pendurado na corrente que ela segurava. — Morfeu voltou a lanterna para a própria cabeça, num arroubo de celebração. — Não foi uma bela visão, presenciá-la transformando-se no que realmente é? Igual a uma princesa de contos de fadas. — Ele lançou um olhar dissimulado para Jeb. — Não concorda?

Princesa de contos de fadas. Lá estava, saindo da boca do próprio Morfeu, zombando de Jeb por não perceber desde o início. Jeb apertou as alças da mochila para evitar dar um soco na laringe de Morfeu.

Morfeu abaixou a lanterna e depois tirou luvas prateadas de sua lapela.

— Não se sinta desprezado, cavaleiro mortal. Sua contribuição não passará despercebida. E eu sempre pago minhas dívidas. Então, o tirarei desta vala da morte para demonstrar minha gratidão.

— Você pode me agradecer me deixando ajudar a Al. Ela vai terminar a tarefa muito mais depressa comigo do lado — Jeb conseguiu dizer, sentindo um nó nas cordas vocais. Se conseguisse chegar até Al, talvez os dois pudessem se esconder de Morfeu no cemitério das irmãs Twid, até encontrarem uma maneira de escapar.

— Sinto muito — retrucou Morfeu, vestindo as luvas e acenando para que os cavaleiros élficos retornassem. — Ela precisa fazer isso sozinha. Você a verá em breve; todos nós vamos nos reencontrar. Uma grande família feliz.

— Não! — exclamou Jeb, perdendo o controle. Ele investiu, mas os elfos foram mais rápidos e o contiveram, com os dedos machucando seus cotovelos feridos. — Deixe-a sair do País das Maravilhas, seu filho de inseto...

Morfeu pressionou um dedo contra a boca de Jeb.

— Ah-há! Essa, você já usou.

Jeb puxou a cabeça para trás, deixando o dedo do intraterreno suspenso no ar.

Sob a luz da lanterna, as joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficaram escuras, da cor de sangue seco.

— Ora, ora. Isso são modos de tratar seu salvador? — Ele fez cara amuada. — Além do mais, como posso deixar Alyssa sair se ela não está comigo? Da última vez que soube, ela estava entrando no jardim das almas. Mas, quando terminar por lá, ela virá ao meu encontro. Ela ainda tem um papel muito importante a desempenhar.

— Certo. Porque ela é a herdeira do trono. — Jeb ouviu, incrédulo, suas próprias palavras ecoarem, como se tivessem saído da boca de outra pessoa. — Não sei como, mas é ela.

— Bravo! — Morfeu aplaudiu. — Estão vendo o que eu disse, irmãos cavaleiros? — Olhando para os cavaleiros por cima do ombro de Jeb, Morfeu deu tapinhas no peito em cima da gravata vermelha, como se estivesse tomado pela emoção. — Mais esperto que um mortal comum. Pena que tenha as limitações físicas de um.

— Não importa. Ela está fora do seu alcance. — rebateu Jeb, dando um tranco nos elfos; havia muitos o segurando, contudo. — Ela deve estar dentro do cemitério agora, e não pode forçá-la a fazer nada. Você mesmo disse que as Twids não deixam você entrar.

— É verdade. Mas ela encontrará, sozinha, o caminho para o castelo. No momento em que ela perceber que estou mantendo presa a coisa que ela mais ama no mundo, virá rastejando para mim, com as asas a reboque.

Morfeu levantou uma mão e fez um sinal.

Os cavaleiros élficos soltaram Jeb. Ele girou sobre o calcanhar e atirou a mochila sobre eles, dispersando o grupo feito pinos de boliche. Esticando o braço, ele bateu o punho na testa de Morfeu, desequilibrando-o. Um dos cavaleiros se esforçou para permanecer no lugar e manter o espelho aberto. Antes que Jeb pudesse se catapultar e atravessá-lo, raios de luz azul grudaram em sua pele e roupas, feito eletricidade estática. Eles o arrastaram, controlando-o como se fosse um fantoche, até ele ficar de frente para Morfeu. Os raios vinham da ponta dos dedos do intraterreno.

Morfeu aproximou-se.

Jeb tentou recuar, mas seus músculos travaram, ficaram paralisados.

— Durma — disse Morfeu num tom simples, e levou a mão azul fluorescente à testa de Jeb, cujo corpo foi percorrido por uma luz pulsante. Ele sentiu um gosto doce, parecido com leite e mel, e depois sentiu o aroma de lavanda. Com os dedos apertando o tecido macio da camisa de Morfeu, Jeb lutou para manter-se acordado. Mas a luz era muito reconfortante... muito suave... muito calorosa. Contra sua vontade, suas pálpebras ficaram cada vez mais pesadas e ele caiu no chão, em sono profundo.


Capítulo 4


Terceira Lembrança —
Engaiolado

O crânio de Jeb latejava, e havia sangue saindo de seu couro cabeludo e entrando em seus olhos.

Ele limpou o líquido viscoso e focou no lugar à sua volta. Morfeu o tinha trazido para o castelo Vermelho depois de colocá-lo sob o feitiço do sono. Largou-o dentro de uma gaiola na masmorra. Jeb não queria ter tomado a poção encolhedora quando acordou, mas o homem-inseto havia lhe dado um ultimato.

Primeiro, ele havia ameaçado matar a Al. Mas Jeb rebateu, dizendo que o homem estava blefando, pois sabia que ela era indispensável. Depois, Morfeu usara de outra arma, ameaçando fazer com que a frágil mãe de Al ultrapassasse o limite da loucura. Isso, ele faria.

A Al havia lutado muito para salvar a mãe. Ela morreria se a perdesse para a loucura. Então, Jeb não hesitou em levar o frasco aos lábios.

Seu corpo balançava, mas não devido aos efeitos colaterais da poção. A plataforma debaixo dele oscilava por causa de suas tentativas de abrir as barras de sua prisão usando a cabeça — uma atitude desesperada que havia resultado em nada além de um corte logo acima da testa. A magia de Morfeu — um fio elétrico e azul — mantinha a porta da gaiola fechada e imóvel.

— Que bela coisa você fez, não? — entoou uma voz feminina e irritante. — Morfeu escolhe quem tem o poder de suprimir sua magia. Obviamente, você não é um dos escolhidos.

Jeb fez cara feia para sua companheira de prisão. Era uma lóri — um intraterreno parecido com um periquito, mas normalmente do tamanho de um ser humano. Como os dois tinham encolhido, a única coisa que a distinguia dos pássaros do mundo humano eram as túnicas de cetim cor de creme com estampas jacquard colocadas sobre suas asas, corpo e pernas, e seu rosto humanoide enfiado no meio de plumas vermelhas, como se fosse uma máscara. Ele foi cutucado por um bico mais parecido com o chifre de um rinoceronte, posicionado no lugar onde deveria haver um nariz. Os lábios da criatura se agitavam furiosamente.

O pior de tudo era que a voz dela poderia derrubar a Torre de Pisa com uma sílaba. Quando falava, era como se alguém tivesse implantado cirurgicamente alto-falantes nos ouvidos de Jeb e travado o volume no “mais surdo que uma porta”. Ela era uma das muitas razões pelas quais ele tentava sair da gaiola com tanta insistência.

A luz bruxuleante das velas na parede iluminava seu ar de arrogância e deixava o resto da masmorra nas sombras. Depois que a voz da lóri parou de ecoar, Jeb investiu:

— Olhe aqui, Lorina. Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu marido. — Ele apontou a criatura que roncava abaixo da gaiola, de aparência tão estranha quanto à da esposa, com o corpo de um dodô, cabeça de homem e mãos que se projetavam da ponta de suas asas atarracadas. — Foi ele quem manteve Alice Liddell presa em uma gaiola igual a esta aqui, muitos anos atrás. É por culpa dele que a minha namorada é a única que pode destronar a sua rainha. Será que já lhe ocorreu que é por isso que vocês estão presos?

— O Charlie não fez nada disso! — berrou a lóri, pairando dentro da gaiola. — Alguma vez já lhe passou pela cabeça que o Morfeu é um cara de pau mentiroso?

Só em todos os segundos de todas as horas. Jeb apoiou-se nas barras. Seus joelhos cederam, enfraquecidos pelas tentativas de abri-las usando cada músculo de seu corpo. Ele desabou sobre o piso de metal, empurrando uma fatia de pera já amarelada que estava ao seu lado, feito um pequeno sofá. A gaiola era um pequenino forte inexpugnável. Mas não importava. As barras poderiam ser feitas de espaguete cru, e mesmo assim ele não conseguiria ajudar a Al. Mesmo que escapasse, com este tamanho, Jeb não conseguiria derrotar ninguém.

Charlie, o marido dodô de Lorina, não poderia ajudar muito. Ele estava preso por algemas e correntes de ferro e cochilava recostado na parede. Embora a gaiola estivesse pendurada bem perto da cabeça do dodô, não havia nada que Charlie pudesse fazer.

Provavelmente, Morfeu havia lançado no homem-pássaro gigante o mesmo feitiço do sono que jogara em Jeb, mas Charlie já estava se libertando dele.

Lorina acomodou-se no poleiro no centro da gaiola, balançando sobre a cabeça de Jeb feito uma acrobata no trapézio. A cara dela estava tão vermelha quanto as suas penas, o que fazia as espadas e copas estampadas nas bochechas quase desaparecerem.

— Como vamos ficar exilados nestas instalações fedendo a urina, terá bastante tempo para ouvir a verdade — bramiu ela.

Jeb esfregou a cabeça para apaziguar a dor lancinante.

— Se puder baixar a voz uns dois decibéis, eu agradeceria.

— Abaixar minha voz?

— Aaaii. — Jeb enterrou o rosto nas mãos.

O trapézio em miniatura rangia a cada balanço, piorando a poluição sonora.

— Para a sua informação, minha rainha adora o som da minha voz. Ela até o elogia...

O ronco do dodô parou, e ele estalou os lábios.

— Isso é porque ela protege os ouvidos com cera de abelha, Ó, Mais Adorável das Loucas.

— Seu mentiroso! — retrucou Lorina, balançando o poleiro tão depressa que Jeb achou que ia vomitar.

— Estou preso com correntes de ferro — avisou Charlie depois de um bocejo. — Não tenho forças para mentir. — Em seguida, pegou novamente no sono.

Isso pareceu calar Lorina, pelo menos temporariamente.

Jeb aproveitou o silêncio para pensar. A esta altura, Morfeu já deve ter contado a Al sobre sua verdadeira linhagem, sobre o que espera dela. Deve estar tão chocada... tão apavorada. Jeb ansiava tanto abraçá-la que era como se houvesse uma bigorna lhe pressionando o peito.

Aquele mariposo deveria ter contado a verdade desde o começo. Ela nunca escolheria ficar. Mas Morfeu sabia disso, e a manipulou sob o pretexto de que ela poderia curar a maldição da própria família. Jeb queria arrancar as asas pretas de Morfeu e enfiá-las goela abaixo por tê-la enganado, porque não havia cura para o parentesco, e ele sabia muito bem disso.

— Foi a Vermelha quem colocou Alice na gaiola. — A lóri voltou à carga. — Não o Charlie.

— Mas o seu marido escolheu mantê-la presa na gaiola — acrescentou Jeb, mesmo sabendo que não deveria. Ele cobriu as orelhas para a estrondosa refutação, mas Lorina só soltou um suspiro.

— Não. O Charlie tentou fazer a coisa certa pela menina — disse ela, consideravelmente mais ponderada agora. — Ele planejava mandar Alice de volta para o reino humano sem a Vermelha saber, mas a rainha descobriu e os arrastou para uma caverna nos picos mais altos e mais remotos do País das Maravilhas, sem que nenhum de nós soubesse. Ela deixou o Charlie com a vítima dela para poder encenar seu plano mestre, sabendo que Alice seria cuidada por um prisioneiro que nunca poderia escapar. Porque, como você deve saber, os dodôs não podem voar. Ela me privou de meu marido durante anos. Ele era prisioneiro, assim como a mortal.

— Se isso te ajuda a dormir de noite, tudo bem, passarinha.

Uma comoção de poeira e asas, jacquard e cetim, subitamente surgiu e o atacou.

— Você pode mostrar algum respeito e ouvir?!

Jeb levantou as mãos para se defender.

— Está bem. Shhhh. Eu vou ouvir.

Não havia nada mais que ele pudesse fazer. Morfeu lhe dissera que, assim que Alyssa fosse coroada rainha, ela abriria o portal para o reino humano. Acreditando ou não nisso, Jeb não poderia fazer nada a não ser ter esperança. Ele não tinha nenhum poder ali. E ter consciência disso lhe devorava as entranhas a cada minuto.

Acomodada diante de Jeb sob um monte de tecido luxuoso, a lóri olhou por entre as barras e resmungou alguma coisa para o marido que dormia.

— Seu velho e imprestável fezzerjub. Eu é que tenho que te proteger. Nem sei por que me casei com você.

O dodô resfolegou e murmurou, sonolento:

— Porque se casar com o bobo da corte era a única maneira de ter uma posição na corte Vermelha, Ó, Senhora das Nênias. — E o ronco voltou.

— Viu como deu certo? — resmungou ela, fazendo beicinho com os lábios vermelhos em forma de coração, sob a curva de seu bico. — Aquele Rábido ossudo e seu coração negro de pedra. — Ela alisou as penas da nuca e cobriu-as com uma rede decorada por lantejoulas.

Jeb estendeu a mão para pegar o dedal cheio de água que seu captor havia deixado ao lado da fatia de pera. Em suas mãos, ele era do tamanho de uma caneca de café. Ele o passou para sua colega de cela, que o pegou com as asas e deu alguns goles.

— Me diga uma coisa, Lori. Se o que você está dizendo é verdade... — Observando a atitude defensiva na cara bicuda, ele refez a pergunta para poupar os ouvidos. — Como você escolheu compartilhar o seu lado da história, talvez pudesse me dizer de que maneira Morfeu teve participação na prisão de Alice.

Ela sacudiu as gotículas de seus lábios.

— Não teve participação nenhuma. Ele gostava muito de Alice e teria feito qualquer coisa para que ela chegasse em casa sã e salva. Mas, na hora em que ele lhe ofereceu seu conselho como lagarta, alertando-a para que evitasse o castelo da Rainha Vermelha a todo custo, sua metamorfose aconteceu. Quando ele emergiu, totalmente transformado, e soube o que havia acontecido com Alice, ficou furioso.

— Está tentando me dizer que ele possui alguma consciência?

— Pelo menos no que dizia respeito a Alice, sim. — A lóri ajustou a suntuosa túnica que ficava escorregando devido à falta de ombros. — Morfeu usou todos os seus recursos de magia e acabou encontrando ela e meu marido escondidos nas cavernas dos picos mais altos do País das Maravilhas. Infelizmente, já era tarde demais para Alice. — Lorina devolveu o dedal a Jeb, agora com metade da água.

Jeb endireitou o corpo, fazendo a gaiola balançar.

— Então por que ele quer ajudar a Rainha Vermelha a colocar outra rainha no trono, quando ele deveria odiá-la por ter mantido Alice presa em uma gaiola por tantos anos?

— Talvez ele esteja bravo por Grenadine não ter tentado encontrar Alice assim que esta foi capturada. Mas Grenadine perdeu sua fita de memória e esqueceu a criança.

— Um bom regente teria mais do que uma fita para lembrá-la; teria se certificado de que tudo e todos estavam em seu lugar.

— A minha rainha é uma boa regente!

Jeb encolheu-se com o urro agudíssimo.

O ronco do dodô parou.

— Minha vociferante esposa diz a verdade, rapaz. Morfeu parece guardar ressentimento pelo que ele acredita ser negligência, mesmo tendo sido somente um descuido.

Jeb balançou a cabeça diante de todas as falhas que havia no raciocínio de todos.

— Não. Há mais coisas nessa história.

— Você tem bons instintos, cavaleiro mortal.

Jeb olhou para cima, na direção da voz tilintada. Uma luz brilhante flutuou pela pequena janela e entrou pela pesada porta da masmorra. Jeb levantou-se e agarrou as barras da gaiola, inclinando a cabeça para ver melhor.

Gossamer.

A pequena fada adejou para perto e sussurrou algo para o mágico fio azul que fixava a porta de arame, entrando na gaiola. O fio azul deu um nó em si mesmo depois de ela fechar o trinco.

Ela cintilava feito pequenos fogos de artifício ao pairar no lugar, estudando Jeb com uma expressão de solidariedade.

Como os dois agora tinham o mesmo tamanho, Jeb se lembrou de uma pintura que vira certa vez, de um artista tcheco, Viktor Olivia. O pintor era famoso por retratar uma fada que seduzia homens, levando-os a se embebedarem com absinto. Gossamer personificava essa criatura: uma forma feminina perfeita coberta de poeira verde, e nua, com escamas brilhantes cobrindo-a como um biquíni minúsculo.

Ele havia sentido, quando saiu da sala de espelhos, que Gossamer estava do lado dele e de Alyssa.

— Você veio ajudar — lançou ele, esperançoso.

Uma chave de cobre, da mesma cor dos olhos dela e quase do comprimento total de seu torso, pendia de seu pescoço. Seu olhar caiu para os pés delicados, como se estivesse lutando contra si mesma.

— Eu teria vindo mais cedo, mas Morfeu está sempre vigiando o espelho. Agora que ele está com Alyssa, preparando-a para a coroação, estará ocupado demais para ficar de olho no resto de nós... até o fim.

— O fim? — Jeb apertou a barra ao lado dela, concentrado em seu olhar de libélula. — Você tem que me contar tudo.

A fada olhou para Lorina, que estava se esticando para a porta de arame.

— Você sabe muito bem que não tem o poder de sair desta gaiola, a menos que eu a abra para você.

Bufando, a lóri voltou a voar para o trapézio.

Gossamer conduziu Jeb para a fatia de pera e os dois se sentaram. Seu perfume frutado se impunha sobre o fedor da masmorra e o acalmou o suficiente para ele poder ouvi-la.

A fada colocou as mãos sobre as de Jeb, que descansavam sobre os joelhos.

— Eu já traí meu mestre o bastante vindo até aqui, e sua ira será enorme. Eu só posso dizer que, dentro de uma hora, Alyssa estará comprometida para sempre, amarrada ao País das Maravilhas para toda a eternidade. Morfeu planejou tudo para enviá-lo de volta, cavaleiro mortal... mas sem ela.

Uma veia na têmpora de Jeb começou a se contorcer feito uma serpente em uma bandeja quente. Ele deu um pulo para cima e bateu a cabeça nas barras novamente, tentando amolecer o fio azul, incapaz de controlar a fúria exasperada que lhe fervia por dentro. Mais sangue escorreu por sua têmpora.

— Você tem que me soltar! Preciso impedir isso!

— Sim, sim! Nós também! — intervieram o dodô e sua esposa, em coro. — Temos que ajudar a Rainha Grenadine a manter a coroa!

— Naturalmente — afirmou Gossamer, pegando a mão de Jeb e puxando-o para perto dela. — Vocês todos terão a oportunidade de lutar e de mostrar a sua lealdade.

— Mas não posso lutar assim. — Jeb chutou uma semente do tamanho de seu pé. — Você trouxe algum bolo do crescimento?

— Não. Não é a força de seu corpo que salvará Alyssa, e sim a força de seu coração de artista. Mas eu posso assegurar que não sairá deste lugar em sua forma atual.

A lóri desceu de seu poleiro e ralhou com a fada.

— Agora, me escute, sua lacraiazinha. Este rapaz não tem papel nenhum. Ele é, no máximo, coadjuvante. Eu sou a criada da rainha, e Charlie é o bobo da corte. Nós deveríamos ser a sua prioridade. Somos honoráveis membros da corte, os únicos que podem dar um basta nesta paródia!

Acelerando as asas até virarem um borrão enevoado, Gossamer flutuou e colocou as mãos nos quadris.

— Quanto ao seu papel, Lorina: você pode abrir as correntes de seu marido, pois preciso falar com o mortal a sós e tenho pouca tolerância ao ferro. — Ela abriu a porta da gaiola e lhe deu a chave.

A lóri esvoaçou-se veloz, numa comoção de exibicionismo e má vontade.

— Venha, venha, Doçura Selvagem — chamou Charlie, encorajando a esposa enquanto ela flutuava em torno dele, subindo e descendo, incapaz de manter-se firme em alguma altura. — Apresse-se, por favor. O ferro está me dando fisgadas. Poxa vida! Não é tão difícil assim... tente novamente!

A cara de Lorina ficou ainda mais vermelha.

— Tente, com a ponta da asa, usar uma chave do mesmo tamanho que a sua cabeça, seu meleca! Alguns de nós não foram abençoados com dedos, sabia?

Enquanto o casal se ocupava, Gossamer sentava-se novamente ao lado de Jeb.

— Você disse que meu coração de artista pode salvar Alyssa. Naquele quarto na mansão de Morfeu, também... você disse que eu tenho o poder dentro de meu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Minha namorada está prestes a morrer para mim e para a família dela. Não pode haver escuridão maior — sussurrou Jeb com lágrimas de frustração que lhe surgiram nos cantos dos olhos.

— Morreria por ela, cavaleiro mortal?

A espinha de Jeb se retesou. No passado, toda vez que ele protegera Alyssa, sempre se jogara sem nem pestanejar. Seria capaz de morrer por ela?

Quando o pai de Jeb morreu em um acidente, foi Alyssa quem o salvou. Ele não conseguia acreditar que tinha chegado a pensar em morar em Londres sem ela. Precisava dela, todos os dias. De seu sorriso compreensivo, de como ela fez suas cicatrizes parecerem medalhas de mérito sob seu toque, e de seus olhos incríveis. Mesmo tendo passado por tantas provações quanto ele, havia uma luz dentro dela que nunca se enfraquecia. E essa luz não somente a tornava linda por fora, mas também permitia que ela trouxesse vida aos incríveis mosaicos que fazia.

Era essa luz — tanto a interna quanto a externa — que o tinha levado a desenhá-la e pintá-la tantas e tantas vezes.

Ele olhou para Gossamer, quase incapaz de conter a emoção, agora que havia encontrado uma saída.

— Ela é minha melhor amiga.

Minha musa, meu pincel, minha arte, meu coração. Tudo isso estará morto sem ela.

Esfregando o rosto, ele limpou o líquido que havia caído de seus olhos e escorrido pelo rosto:

— Eu a amo. Sim, eu morreria por ela. É isso que preciso fazer?

A fada o encarava sem piscar.

— Está disposto a ir além da morte? A se perder de todos, até de você mesmo, em um lugar onde as lembranças se esvaem em uma maré escura como tinta? Pois, para libertar Alyssa, você terá que tomar o lugar da Rainha de Marfim na caixa linguardarte onde ela se encontra presa.

Jeb lembrou-se da água escura dentro da caixa que ele havia visto na sala dos espelhos da mansão de Morfeu e da cabeça fantasmagórica que havia lá dentro, e seu coração disparou. O sentimento de autopreservação o invadiu e sua mente começou a tentar encontrar outra maneira. Mas, bem lá no fundo, ele sabia que não havia alternativa e que o tempo de Al estava se esgotando. Ele só lamentava não poder dizer a ela, nem uma única vez, com sua própria voz, como se sentia, antes de ser trancado para sempre.

— Aceito.

— E assim será. — Gossamer ficou de pé e estendeu os braços. Fraco e entorpecido, Jeb aceitou seu abraço. Ela o apertou com força e voou com ele para fora da gaiola, pousando no chão. — O mortal concordou em ser o herói de seu reino. Procurem honrar sua bravura — disparou as palavras para Lorina.

Lorina havia conseguido soltar o marido. Ela se sentou no ombro dele, abanando-se com uma asa. Com os olhos arregalados, ela aquiesceu em silêncio — a demonstração mais sincera de louvor que poderia ter oferecido. O dodô ajoelhou-se ao lado de Jeb, uma presença enorme e plumada.

— Teremos uma dívida eterna para com você, rapaz. O que podemos fazer para ajudar?

Gossamer apontou para um canto da masmorra, onde um cobertor de juta cobria uma cama, chegando até o chão.

— Tragam-me o que está debaixo daquela cama.

Entorpecido por uma mistura de incredulidade e temor, Jeb observou o dodô trazer a caixa linguardarte.

Lorina ficou perplexa.

— Morfeu manteve a Marfim escondida aqui?

Gossamer assentiu.

— Por sugestão do Rábido. Ele disse que este era o único lugar no castelo onde ninguém viria à procura dela.

Depois de pedir a Charlie que abrisse a tampa e arrumasse uma pedra onde eles pudessem subir para ver lá dentro, Gossamer pediu ao estranho casal que se afastasse um pouco para que ela e Jeb tivessem um pouco de privacidade.

Jeb afagou as rosas brancas aveludadas que adornavam o exterior da caixa, fascinado pela beleza do rosto da Marfim quando este veio à tona. O olhar cristalizado de assombro dela passava dele para a fada, e voltava — cautelosamente curioso. Ele estremeceu ao pensar que tomaria o lugar dela.

Tinha mesmo que fazer isso?

Jeb sentiu que Gossamer observava seu semblante.

— Devo perguntar uma última vez se está seguro de sua decisão — indagou ela. — Porque, como você está escolhendo ser trancado, e selando essa escolha com seu sangue, a caixa nunca o libertará. Ninguém poderá salvá-lo. Você está oferecendo sua eternidade pela da Marfim, uma rainha que você nem sequer conhece.

Jeb sentiu um nó na garganta.

— Não. Estou trocando a minha eternidade pela da Al.

Gossamer sorriu com ternura.

— Em seus sonhos, vi certa vez que você teme não ser bom o bastante para a menina. Depois de tal sacrifício, ninguém poderá questionar seu valor como homem nem seu amor por ela. — Ela o beijou no rosto, deixando um calor que penetrou seu coração e conseguiu derreter uma pequena porção do terror congelante que lá se escondia.

Gossamer deu-lhe um pincel e recuou.

— Agora, use o poder que somente você pode exercer. Pinte as rosas com o seu sangue.

Jeb foi tomado por uma tontura. Murmurou coisas... sem sentido, temerosas... palavras agonizantes que ele sabia serem as últimas.

Depois, canalizou a raiva, o terror e o desejo por um futuro que ele nunca teria para as estocadas do pincel. Cada botão branco, tingiu-os de vermelho até perder-se dentro das sombras de seu trabalho, e fundiu-se à sua obra-prima, tornando-se um só.


Capítulo 5


A Decisão da Mariposa

A cena se estendeu e ficou turva enquanto Morfeu era arrastado para fora das lembranças de Jebediah e depositado de volta na chaise-longue. A escuridão deixava a sala pesada, mas ele nem se mexeu para ligar a luminária. O cenário completamente enegrecido parecia combinar com os pensamentos obscuros que lhe cruzavam a mente.

Ele passou o dedo pela coxa, acompanhando as listras do tecido risca de giz e alisando as rugas.

Por que se sentia tão aborrecido? Ele havia encontrado exatamente o que esperava encontrar. As fraquezas de Jebediah estavam à mostra: um ódio que poderia facilmente ser manipulado, um sentimento de impotência alimentado por um pai violento e crítico, um ciúme que provocava um sentimento temerário de proteção e que lhe custaria a própria vida.

O que Morfeu não tinha esperado encontrar, entretanto, era tanta semelhança entre ele e o rapaz. Os demônios do passado atormentado de Jebediah não eram muito diferentes dos seus. Ele sempre se surpreendera sentindo inveja dos humanos... por nunca ter tido o carinho de um pai ou de uma mãe. Simplesmente por ocupar seu lugar no mundo, ele também compreendia o medo de talvez nunca chegar a conhecer completamente a confiança e a afeição de outra pessoa.

Contudo, no passado, Morfeu nunca havia considerado isso uma coisa ruim. Ele apreciava ser uma alma reclusa e independente. Por vezes, até se vangloriava, quando lhe convinha ser o centro das atenções, naturalmente. Mas a atenção, a afeição ou a confiança não eram coisas de que ele precisava. Não até aparecer Alyssa. Depois que ela escolheu ignorá-lo, ele não conseguiu funcionar... sentiu-se desastrado e incompetente.

E agora, depois de colocar-se no lugar de Jebediah, Morfeu compreendia, mais até do que desejava, como o lado humano de Alyssa funcionava. Embora metade dela tivesse asas e pudesse flutuar sobre as inseguranças e trivialidades dos mortais, a outra metade tinha seus alicerces nas coisas que qualquer outro humano ansiava: confiança e segurança.

Tendo visto a coragem e a engenhosidade de Jebediah, bem como sua lealdade a Alyssa, Morfeu soube, sem sombra de dúvida, que aquilo era exatamente o que o rapaz oferecia a ela: uma rede de segurança e emoção que a salvaria caso a queda fosse muito alta.

Não era de admirar que ela fosse tão cativada por ele. Não era de admirar que ele exercesse poder sobre ela. Diabos, o próprio Morfeu ficou morbidamente fascinado pelos honoráveis traços morais do rapaz, incomuns em um humano tão machucado. Morfeu ficou tentado a recuar e deixar Jebediah ter seu momento de felicidade. Alguns poderiam até dizer que ele o havia merecido por desejar abdicar de seu futuro, de suas lembranças e de sua vida por Alyssa.

Morfeu rosnou e caiu para a frente com os punhos cerrados, tentando suavizar o estranho peso em seu peito. O rapaz não ficaria aqui para sempre. Era um mortal. Um dia, morreria de velho, no mínimo, e Alyssa voltaria a ser um alvo fácil.

Alvo fácil.

A mandíbula de Morfeu se contraiu. O romance não era uma coisa justa. Nem era um jogo. Era guerra. E, como em qualquer outro campo de batalha, não lhe cabiam a compaixão e a misericórdia.

O besouro-tapete estava certo. As emoções humanas eram coisas imprevisíveis e poderosas. Elas haviam penetrado na cabeça de Morfeu, enfraquecido sua determinação.

Com os cotovelos nos joelhos, ele levantou as mãos com as palmas para cima, incapaz de ver a silhueta delas no escuro. Ele conjurou um pouco de magia na ponta dos dedos, em bolas elétricas de plasma do tamanho de ervilhas, e depois enviou as esferas para todos os cantos da sala, os raios azuis deixando rastros como eletricidade estática. Elas subiram pelas paredes e em seguida se uniram na forma de uma mulher. A luz pulsava em ritmo hipnótico.

Imaginar Jebediah com Alyssa, mostrando a ela os caminhos do amor, domando seu espírito selvagem com suas corriqueiras convenções humanas, tudo isso queimou a garganta de Morfeu com o sabor amargo da inveja.

Ele não queria que o lado selvagem de Alyssa fosse dominado por nenhum outro homem, não desejava compartilhar nenhuma parte dela. Morfeu desejava os dois lados: sua inocência e seu espírito desafiador.

Que graça poderia haver na dependência? Que espontaneidade poderia haver em um mundo previsível? Ele poderia lhe oferecer uma eternidade de desafios e paixão, de momentos ternos e calmos nas profundezas de chamas vibrantes e tempestades devastadoras — a tranquilidade em meio ao caos.

O lugar dela era com ele, usando trajes de soberana. Ele tinha tanto a ensinar-lhe sobre o reino intraterreno, sobre as glórias da manipulação e da loucura. Se Morfeu alimentasse o faminto lado intraterreno de Alyssa, suas inseguranças e inibições humanas diminuiriam e, com o tempo, poderiam desaparecer. Ela nunca mais ansiaria pelo amor seguro de Jebediah.

Morfeu invocou sua magia de volta, recolhendo as espirais de luz azul até ficar novamente envolto na escuridão. Suas asas varreram o chão quando ele se levantou, e ele as ergueu num arco que quase tocava o teto.

Nada mais de deliberações. Ele tinha tentado fazer o que era justo em instâncias passadas e, sem exceção, isso sempre o prejudicara. Podia ignorar a pontada de culpa que lhe agitava o peito, mas não podia abdicar de suas necessidades pelas necessidades de Jebediah. Ele nunca mais seria ele mesmo sem Alyssa ao lado — a chama para sua Mariposa. Morfeu não pararia até que ela voltasse para o lugar que lhe pertencia, no País das Maravilhas.

Para vencer, ele jogaria sujo, colheria os despojos do coração dela do modo como fosse necessário, não importava quanto isso custasse ao rapaz mortal. Afinal, este era o modo intraterreno. Fazer menos que isso faria de Morfeu um humano. E ele sabia, agora mais do que nunca, que essa era a última coisa que jamais desejou ser.


SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS
Epígrafe

ÀS VEZES PENSO EM SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS ANTES DO CAFÉ DA MANHÃ.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Um

Mortalidade

Capítulo 1

Deportação

Algumas pessoas podem dizer que é impossível morrer e viver para contar. São as pessoas que nunca experimentaram a mágica. Quanto a mim, sou tataraneta da Alice que inspirou Lewis Carroll. Acreditei no inacreditável por mais de sessenta e quatro anos, desde que tinha dezesseis e descobri que o País das Maravilhas era real e cheio de seres caprichosos, misteriosos e loucos, governados por acordos e enigmas. Ainda assim, às vezes, por mais que você acredite no impossível, as coisas não saem como você as planejou. Toda mágica pode encontrar um obstáculo de vez em quando.

Por exemplo, nunca esperei que meu cadáver acabasse numa caixa de sapatos. É isso que os caixões crematórios me lembram... uma caixa de papelão do tamanho de uma pessoa. O caixão não é muito confortável. Não há a forração de veludo para suavizar a base de madeira. Nenhuma almofada para acomodar minha coluna curvada. E nada de roupas, além de um vestido de papel para cobrir minha pele velha e enrugada.

O cheiro de papelão se fixa ao meu nariz e as rodas de aço da maca giram ao longo do corredor, rangendo em algum lugar sob mim, junto a passos familiares. Sinto a transição do ambiente fresco e de temperatura controlada onde o legista atestou minha “morteza” (como os seres do País das Maravilhas diriam). Ele, então, pôs uma identificação de aço inoxidável no meu peito e fechou uma tampa sobre mim, me prendendo na escuridão.

A maca sacode ao entrar num lugar muito mais quente. O cheiro de ovo podre do propano confirma nossa localização. Já visitei este lugar. Nos últimos meses visitei vários crematórios, quando não havia ninguém por perto, de madrugada. Para conhecer melhor o gigantesco forno de tijolos à vista que estaria esperando para queimar minha carne. Para encontrar o projeto perfeito, com um banheiro e um espelho de corpo todo do outro lado do salão.

Assim que optei pelo crematório do Pleasance Rest Cemetery, me preparei para morrer.

Meu plano original era usar Tetrodotoxina. Em doses pequenas, subletais, ela deixa a vítima num estado de quase morte por dias, permitindo que ela mantenha a consciência. Morfeu, porém, não concordava. Ele disse que a margem de erro entre o estado de quase morte e a morte de verdade era pequena demais no mundo mortal e não algo com o que se brincar. Ele não queria que eu arriscasse. Então, ofereceu uma substituto do País das Maravilhas: uma poção que funciona quase da mesma forma, mas que tem um antídoto cem por cento garantido.

Bebi a dose de quase morte nesta manhã e, dez horas mais tarde, ainda sinto o gosto amargo e anestésico, como cravos dançando no fundo da garrafa de vinagre. Não consigo morder a língua para aliviar o efeito. A mágica me deixou catatônica — meus olhos fechados e imóveis, meus batimentos e respiração reduzidos a um ronronar indetectável por quaisquer instrumentos humanos.

Meu lado intraterreno se remexe dentro do meu crânio, me garantindo que isso vai dar certo, mas meu lado humano instintivamente se encolhe quando o medo tranca minha garganta. Não posso gritar para dizer a todos que estou viva. Minhas cordas vocais não vão funcionar. A claustrofobia, minha velha inimiga, me deixa toda arrepiada. Sei o que está acontecendo ao meu redor, apesar de não conseguir abrir os olhos ou mover meus membros. Todos os cheiros, sons e sensações táteis são ampliados por minha incapacidade de reação.

Os paramédicos que atenderam, nesta manhã, à chamada de emergência da minha neta de vinte e sete anos me declararam morta — fulminada por um ataque cardíaco. Foi insuportável ouvi-la chorar e gritar. Isso despertou lembranças da minha maior perda — da morte de Jeb, três anos antes. Uma faca ainda é cravada no meu peito sempre que me lembro do nosso último adeus.

Mas Jeb me mandou ser firme. E ensinei aos meus netos o mesmo — sempre encarar as coisas. Ela ficará bem. Não tenho dúvida disso porque ela é muito parecida comigo, para além de seus cabelos loiros, olhos azuis e curiosidade. Ela é teimosa, leal e uma sobrevivente.

Assim que os paramédicos levaram meu corpo ao necrotério, tudo funcionou como o previsto.

Minha família sabia que cemitério eu escolhera e as quatro exigências do meu testamento: nada de exibição pública do meu corpo, nada de velório, cremação em doze horas depois da minha morte e a dispersão das minhas cinzas no mesmo local onde as de Jeb foram jogadas, sob o salgueiro em nossa casa de campo. A árvore tinha um significado especial, por ter sido gerada de uma mudinha do salgueiro que dividia os quintais da nossa casa quando éramos crianças.

Tais pedidos nada convencionais não abalaram minha família, considerando que me tornei uma mulher muito excêntrica.

Depois da morte de Jeb, eles me viram vagar pela casa de campo, reunindo os mosaicos que fiz ao longo da vida, cheios de paisagens bizarras e místicas — com títulos como A Batida do Coração do Inverno, Dunas de Xadrez e O Ventre do Monstro —, e guardando-os no sótão, ao lado de outras quinquilharias, incluindo um anúncio de um passeio pelo Tâmisa, em Londres. As últimas coisas que guardei ali foram duas chaves: uma que pertencia à minha mãe, e era capaz de transformar qualquer espelho num portal, e outra que podia abrir o jardim das almas do País das Maravilhas. Esta última foi um presente dado a Jeb, depois que ele desistiu da sua musa, de modo a satisfazer a necessidade do reino interior por sonhos vívidos e cheios de imaginação, conectando nossos mundos em paz ao longo do processo. Ele desistiu do que fez dele único, a fim de manter as crianças humanas seguras. Um ato de coragem que seus filhos e netos jamais tiveram o privilégio de saber. Era essa a lembrancinha de que eu tinha mais dificuldade para me desapegar, porque era uma homenagem à coragem e ao caráter nobre de Jeb — as duas coisas que eu mais amava nele. No entanto, como Rainha Vermelha do País das Maravilhas, eu não tinha motivo para guardar chave tão sagrada.

Escondi tudo num baú no sótão e o tranquei. Então pus a chave do baú em meio às páginas da minha velha coleção de Lewis Carroll. Jeb e eu éramos donos da casa e do terreno que a cercava, e insistimos, em nossos testamentos, para que o lugar permanecesse sempre com a família. Assim, se nossos descendentes um dia precisassem me encontrar, poderiam. Eles só precisam procurar as pistas, como um dia eu fiz. Seguir meus passos e acreditar no impossível — em contos de fadas e desejos e mágicas.

Sempre os mantive no escuro quanto ao nosso legado, dando-lhes uma chance de viver uma vida normal. Até mesmo ordenei que os insetos e flores ficassem em silêncio. Agora sou a única capaz de ouvir esses sons do mundo interior, e as coisas continuarão assim enquanto eu estiver reinando como a Rainha Vermelha. Contudo, se algum familiar procurar com presteza, vai encontrar a verdade que escondi para eles.

Em todos esses anos, eles aceitaram meus caprichos porque sempre os respeitei e os amei incondicionalmente. E agora conto com a lealdade deles. Todo o meu plano de morrer depende da execução do meu testamento.

A cremação era a única forma de evitar que drenassem meu sangue, bombeassem formol em minhas veias e cerzissem minhas pálpebras — todos aqueles procedimentos mórbidos e intrusivos para embalsamar e preservar o corpo mortal. Fui abençoada ao longo dos meus oitenta anos de vida humana com saúde e uma mente aguçada. Nunca precisei de marca-passo e não tenho próteses, implantes ou dentaduras, então não há nada que possa explodir no forno. Isso significa que não haverá incisões nem extrações. Era importante que eu permanecesse intacta — por dentro e por fora.

Todavia, se o Rábido Branco não se apressasse e chegasse aqui com o antídoto para me tirar deste estado, nada importaria. Vou virar um monte de cinzas. E Morfeu terá de encontrar um lar novo para meu espírito eterno... um novo corpo para eu habitar.

Ele ficará furioso se isso acontecer e nunca me deixará esquecer isso. Uma eternidade é muito, muito tempo para ouvir eu avisei, entoado continuamente com um marcado sotaque londrino.

— Não me importo — disse ele há duas semanas, enquanto discutíamos meu êxodo do reino humano e tomávamos chá durante uma das minhas visitas ao País das Maravilhas em sonho. Ele levou a xícara à boca, seu rosto curioso perfeito e jovem como sempre. Ele bebeu e deixou a xícara de lado novamente. — Muitas coisas podem dar errado. Devo estar lá para executar meu plano.

— Vou agir sozinha — declarei. Estudei a cama com dossel e a lareira instaladas na diagonal em relação a enormes poltronas vitorianas ao lado de uma mesa oval, buscando conforto no cenário. — E vamos seguir meu plano. — Aqueles seriam meus últimos instantes no reino humano. Tinha de ser de acordo com a minha vontade. Contive uma descarga de tristeza e tentei exibir o mesmo controle que Morfeu exibia com sua xícara de chá, mas o líquido quente molhou minha mão velha quando meu pulso tremeu. Gritei.

— Alyssa, por favor. Permita-me. — Com seus dedos lisos e elegantes, ele cuidadosamente segurou meus dedos enrugados, limpando o chá e acariciando a mão queimada com um guardanapo.

Permita-me. Nós dois sabíamos que ele falava de outras coisas além da limpeza do chá derramado.

Tantos anos passamos juntos nos meus sonhos — e tantos outros na nossa infância —, com Morfeu me treinando e me ensinando sobre meu reino e o mundo. Não havia oportunidades para ficarmos sozinhos, já que ele mantinha o véu do sono descoberto para eu poder interagir com o Rábido, Chessie, Marfim, as criaturas e meus súditos.

Isso mudou quando fiquei viúva. Realizava meus deveres reais todas as noites e lutava para ser forte, até que meu luto pela morte de Jeb ficou tão intenso que as lágrimas se acumulavam em meus cílios, me cegando. Morfeu — sentindo minha vergonha, porque rainhas não choram — insistia que era hora do chá, que tomávamos sozinhos nos aposentos reais que um dia pertenceria a nós como rei e rainha.

Ali, na nossa solidão, escondidos de olhos predadores e cercados por exuberantes tapetes vermelhos e cortinas douradas, eu me perdia em minha dor. Permita-me, dizia ele. Estendendo os braços, ele me abraçava enquanto eu chorava. Noite após noite, durante um ano, até que finalmente não conseguia mais chorar.

Pouco depois, a atenção de Morfeu mudou. Seus carinhos se tornaram menos confortantes e mais íntimos. Estava constrangida demais para reagir, tímida demais em meu corpo velho.

Um ser místico eternamente jovem cortejando uma velha — teria rido do absurdo disso, não estivesse tão afetada pela devoção cega dele e pela intensidade do seu amor.

— Mesmo que usássemos seu plano... — Morfeu falava baixinho e de mau humor ao esfregar o guardanapo entre meus dedos, enxugando os resquícios de chá. — ... ainda assim eu deveria estar lá nas coxias, para supervisionar o espetáculo.

Franzi a testa para ele. Sua teimosia, juntamente com a dança dos vaga-lumes em seus cabelos desgrenhados e seus traços bizarramente belos, me fez lembrar outra noite em que nos sentamos neste quarto juntos — há várias décadas —, quando ele tentou me convencer a usar a coroa de rubi pela primeira vez. Quando tentei convencê-lo a me devolver meu desejo para eu poder fugir do País das Maravilhas, curar a maldição da minha família e manter Jeb em segurança. Eu era uma pessoa diferente na época, cheia de juventude, aspirações humanas e inocência.

Nosso quarto real se tornou uma lembrança dolorosa da velhice e decrepitude. Ansiava criar lembranças novas aqui, depois de desistir de tentar superar a beleza caótica do País das Maravilhas, quando fui coroada rainha de novo e permaneceria com dezesseis anos para sempre — jovem, cheia de energia e tão sedutora quanto o homem alado que governaria ao meu lado.

Até então, eu não me encaixava. Eu era uma foto deixada ao sol e chuva, minhas cores vibrantes se desbotando melancolicamente e ganhando um tom amarelado. Meus poderes intraterrenos ainda eram fortes, mas estavam presos num vaso gasto pelo tempo. Meus ombros pareciam curvados e pesados demais, eu raramente usava minhas asas. Do que mais sentia falta era voar.

Eu me perguntava se era assim que a Rainha Vermelha se sentiu no fim e por que ela permitiu que Morfeu a convencesse a voltar ao País das Maravilhas, abandonando seus descendentes semi-humanos. Por fim, foi plano dela voltar, apesar de não querer fazer aquela jornada sozinha. Ela brigou com Morfeu, dando início a uma série de eventos e manipulações que acabaram por me levar à coroa e me tornar rainha. Algo pelo qual aprendi a agradecer, apesar de na época ter reclamado do presente. Demorei muito para admirar totalmente a preciosa imortalidade, e jamais desvalorizaria isso novamente.

Depois que Morfeu terminou de limpar o chá derramado, tirei a mão da dele e timidamente cobri meu pescoço com o lenço de seda, tentando esconder minhas peles murchas. As pessoas diziam que eu era linda para a minha idade. Que parecia ao menos vinte anos mais nova. Todavia, em comparação à beleza sobrenatural e imutável de Morfeu, eu me sentia velha.

— Não quero você lá — insisti, determinada a mantê-lo distante da casa funerária. — Já basta você ter me visto murchar como uma uva-passa ao longo dos anos. — Até minha voz soava enferrujada, como se as palavras jorrassem da minha garganta e língua em porções cáusticas.

Morfeu apoiou os cotovelos na toalha da mesa, aproximando-se ao máximo com o jogo de chá entre nós. Seus cabelos azuis tocaram-lhe os ombros, animados e encantados — um contraste marcante com as ondas brancas reduzidas a um coque preso atrás da minha cabeça.

— Você está no fim de sua crisálida, meu amor. Esta etapa é a mais difícil, acredite. Uma batalha furiosa e incômoda de identidade, antes de se libertar e se transformar na criatura de luz e criatividade que sempre foi seu destino. Posso mantê-la atenta. Para evitar quaisquer... distrações.

Ele olhou para minha aliança, que eu ainda não tinha tirado. Aquilo se tornara mais do que um símbolo da nossa devoção. Tornara-se um símbolo da minha vida humana, e eu pretendia usá-la até deixar tudo para trás.

Com o dedinho, Morfeu circulou a aliança, cuidando para não tocar os diamantes ou o suporte de prata que os mantinha no lugar.

— É importante que você não permita nada que a impeça de dar o salto final. Você sofreu a perda daqueles que se foram há tanto tempo. Eles estão em paz. Deixe que a paz deles lhe dê paz. Senão, você será afetada... incapaz de agir com a mente ágil. O foco é fundamental para que qualquer um dos planos funcione.

— Já sei disso — respondo, um aperto no peito dolorido. — Você tem medo de que eu fique senil. De eu não ser capaz de lidar com isso.

Ele suspirou, acariciando meu polegar com o dele.

— Não senil. Nostálgica. Acontece a humanos. Você mesma me contou, enquanto eu a via amadurecer do refinamento à sabedoria.

— Refinamento. — Tentei um sorriso hesitante diante do esforço dele em me encantar. — É assim que vocês falam hoje em dia?

Ele me encarou sem hesitar.

— Seus olhos não perderam a incandescência; nem a mente, a inteligência. Você não é ingênua. Você é minha torta de ameixa, e sempre foi. Já lhe disse isso repetidas vezes, não é?

Ao menos uma vez por noite nos meus sonhos, Querida Mariposa.

Não respondi em voz alta, assim como não revelei minhas maiores inseguranças: estava com vergonha de ele me ver tão decadente... Não suportava a ideia de ele ter qualquer lembrança de mim como um cadáver naquele caixão de papelão — assim como eu vi Jeb depois da morte dele, antes de ser cremado.

— Uma rainha não deveria exigir resgate — sentencio. Ainda o encaro, maravilhada com aquelas íris coloridas que devolvem a mim o mesmo olhar de nossa infância, cheio de surpresa e afeto. De certa forma, ele via para além do meu corpo velho e enxergava a menina que fui, e eu queria muito conseguir me ver como ele me via. — Uma rainha deve merecer o respeito do seu reino e de seus súditos. E a admiração do rei.

Ele pegou minha mão novamente e beijou cada um dos nós dos dedos cheios de artrite.

— Ah, eu lhe garanto Você sempre mereceu isso. Na verdade, planejo mostrar-lhe a profundidade de minha admiração. — A palavra profundidade saiu de sua garganta como um urro. — Ainda que sejam necessárias várias vezes para convencê-la, finalmente chegará o momento de você ser minha.

Meu rosto ficou vermelho. Apesar de todos os anos em que ele me elogiou e me provocou com insinuações, e a despeito de tudo o que vivi como mãe, esposa e avó mortal, ele ainda conseguia me fazer enrubescer.

— Ah, aí está. — Ele passou o dedo por meu rosto enrugado e sorriu, satisfeito demais consigo mesmo. — Não perdi meu encanto.

— Como se isso fosse possível, para o mestre da sedução verbal — provoquei.

Seu humor mudou para a insolência num piscar de olhos.

— Você logo verá que isso é mais do que conversinha, minha rosa.

Fiquei ainda mais vermelha, sentindo-me mais jovem do que nunca. Ele sempre causava esse efeito em mim. Sempre fez com que eu me sentisse viva e desejável. Exceto pelas vezes que ele me desafiava ou me deixava furiosa.

Ele se recostou em seu lugar, as asas erguidas.

— Seu corpo está cansado. Deixe-me fazer isso por você, para você poder descansar — tentou ele uma última vez.

— Você me ensinou a ser forte e astuciosa. Devo dar sozinha este último salto para dentro da toca do coelho. — Uma sensação inesperada de vulnerabilidade me fez tremer. Peguei minha xícara de chá para absorver seu calor. — Mas você estará lá para me pegar?

— Estarei lá esperando um beijo arrasador para compensar todos os meus problemas — respondeu ele sem hesitar.

Sorrindo, peguei o jogo de xadrez. Morfeu ficou observando atentamente eu animar as peças para que atuassem no meu grandioso plano de deixar o reino humano e esconder meus vestígios com a ajuda do meu conselheiro real, além de pedaços de osso fornecidos pelas fadas, um saco de cinzas, dois trajes de disfarce, uma mosca comum e um punhado de duendes. Enquanto eu falava, seu olho adornado com joias brilhava num tom esverdeado — incomodado, mas esperançoso. A ansiedade que emanava dele era visceral.

Era inconcebível que tivéssemos um relacionamento de sessenta e três anos — platônico — sem um quê de tensão. Apesar de ele gostar muito de me ver andar na ponta dos pés na corda bamba da sedução contida, ele manteve seu juramento e respeitou minha decisão de ser fiel a Jeb. Ele esperou três anos, enquanto eu sofria a morte do meu marido mortal e preparava minha família para minha partida iminente. Era essa a profundidade do respeito dele por mim. Ele teve meu respeito em troca. E muito mais...

Agora chegou o dia de recompensá-lo por sua paciência e estou começando a me arrepender por não deixá-lo planejar minha morte... por não deixá-lo controlar o espetáculo. Provavelmente, tudo seria muito mais fácil. Eu já estaria em seus braços e em sua cama — uma jovem rainha borboleta, governando meu reino, embriagada de poder, loucura e paixão.

Não. Eu consigo. Posso provar que sou capaz, calculista e forte, como todas as boas rainhas deveriam ser.

O único papel de Morfeu no meu plano era mandar o Rábido com o antídoto. Assim que meu cúmplice chegar, tudo se encaixará e fugirei para o País das Maravilhas. Como um corpo não pode ser exumado depois de reduzido a cinzas, ninguém saberá que ainda estou viva e apenas fui embora deste mundo para sempre.

Uma pontada de tristeza segue-se a esse pensamento quando finalmente me dou conta. Acabou. Estou pronta para dar um fim... para começar meu futuro imortal. Vivi uma vida plena aqui. Minha família é saudável e feliz. Estamos no auge. Todos os sonhos humanos foram realizados e meu coração está firme e forte novamente.

Se bem que, por causa disso, há muita coisa a ser deixada para trás. Não há nada inconcluso, mas ainda assim é difícil dizer adeus para sempre. Assim que a coroa for colocada em minha cabeça para dar início à minha imortalidade, não terei de usá-la constantemente para manter minha juventude, mas terei de ficar no País das Maravilhas. Como Marfim uma vez me disse, o tempo é complicado ao se passar pelo portal a fim de retornar ao mundo humano... há de se imaginar uma hora específica, ou o relógio retrocede e o portal deixará você no mesmo momento de sua passagem.

Se eu tentar cruzar as fronteiras para o reino humano depois de partir, voltarei para sempre a este momento e terei oitenta anos para sempre, ou automaticamente envelhecerei todo o tempo que se passou e virarei pó na hora. Acrescente-se a isso o fato de eu estar morta aos olhos de todos — jamais poderia explicar meu reaparecimento sem causar terror e confusão — e ir e voltar não será mais uma opção.

Uma muralha impenetrável está prestes a se erguer entre mim e minha família, deixando-nos sem nada além de memórias.

O rosto de Jeb reapareceu em minha mente antes que eu pudesse impedir... como seus olhos verdes brilhantes me encararam pouco antes de ele os fechar na morte. Como eles estavam tão cheios de amor e gratidão por todos os sonhos que compartilhamos.

Sinto algo crescer na minha garganta e uma dor atrás dos olhos. No meu peito, a pequena identidade de metal parece uma pilha de tijolos.

Pare. Não posso fazer isso agora. Tenho de me concentrar na fuga. Morfeu tinha razão. Pensar naqueles que amei só vai me atrapalhar. Vou manter as lembranças sob controle... esquecer como encarei a morte da mamãe e do papai, como achei que jamais superaria a dor. Como Jeb foi meu porto seguro, como sempre. Assim como fui para ele, quando a mãe dele morreu.

É fútil pensar nessas coisas agora, porque, assim que Jeb morreu, todo o mundo se distorceu — adquiriu uma nova forma que eu não reconhecia. As coisas cotidianas se tornaram estranhas e desagradáveis. Com a morte dele, eu não fazia parte de mais nada.

Minha metamorfose estava completa assim que meu marido mortal deixou de respirar. Só o que me restava agora era sair do meu velho casulo.

Um cheiro novo entra em meu entorno de papelão — loção pós-barba ou desodorante —, me obrigando a voltar ao presente enquanto dois homens conversam do lado de fora do caixão.

— Última da noite, Frank?

— É isso, Brian. Chegou há algumas horas. Só entrega. E é para se apressar com ela. Quer que eu fique e ajude?

Tenho dificuldade para respirar. Meu plano não permite duas testemunhas. Só uma. Enquanto espero pela resposta do operador do crematório, meu coração se encolhe dentro de mim, cheio de medo. O órgão parece tremer, apesar de não haver pulsação em meus pulsos ou ouvidos. Só uma vibração fria e indiscernível por trás do meu esterno, como gelatina gelada retirada da fôrma.

— Não — diz finalmente Brian, mexendo em alguns papéis. — Posso fazer isso de olhos fechados.

A ironia é risível. Se tudo sair como planejado, ele não só terá seus olhos fechados, como também estará dormindo e sonhando.

— Vá para casa e fique com sua família — conclui Brian. — Diga a Melanie e às crianças que mandei um oi.

— Entendi. Até amanhã.

As portas se fecham com um rangido e o alívio toma conta de mim, mas por pouco tempo. Os cliques e claques da esteira mecanizada balançam as paredes de papelão do meu caixão e agitam meus ossos rígidos. Sinto um balançar leve sob minha coluna enquanto meu caixão segue por uma esteira com rolos de metal. À medida que estes se movem, as chamas crepitam mais alto, aquecendo meus pés no ponto onde a parede sob a sola dos meus pés se aproxima perigosamente da entrada do incinerador.

Era para o Rábido estar aqui antes que o forno de temperatura controlada estivesse quente o bastante para acionar o mecanismo de abertura. As coisas estão acontecendo fora da sequência e rápido demais. Meus músculos doem e ganham vida, mas estão rígidos como aço. Imóveis. Um vislumbre de outra lembrança me arrepia: quando a Rainha Vermelha controlou meu corpo naquele último dia em Qualquer Outro Lugar. Quando eu era uma marionete dela. Sinto-me tão impotente agora quanto naquele tempo.

Estou prestes a ser envolta em chamas. Meu corpo não vai sobreviver. De todo modo, preciso sobreviver. Prometi voltar como eu mesma. Inteira. É uma promessa que não posso quebrar. Morfeu esperou demais por meu retorno. Não posso decepcioná-lo.

A dúvida ergue sua cabeça horrível: o que farei? Não consigo me mover, não consigo me livrar... não sem o antídoto. Um vazio dói por trás dos meus canais lacrimais enquanto desejo que uma enchente me liberte e encha toda a minha caixa com um oceano de lágrimas para me salvar do fogo. Mas meus olhos podiam muito bem estar cheios de areia.

Chega de drama, meu amor. Use sua mágica. Improvise e encontre uma forma de escapar.

Não tenho certeza se é a voz de Morfeu na minha cabeça ou se é minha própria voz. Ouvi o sotaque dele e sua insistência tantas vezes ao longo da vida que eles estão entranhados em mim como se fossem meus.

Seja qual for o caso, isso desperta minha determinação. Há um motivo para eu ter vindo a este lugar na noite passada, quando tudo estava escuro e em silêncio: para poder anotar mentalmente todas as coisas que poderia animar se precisasse. Para poder entender a logística do forno crematório. Para poder usar minha mágica às cegas.

Concentro-me no maquinário da esteira. Aprendi uma coisa ou outra sendo esposa de um mecânico. As molas do mecanismo se contraem enquanto as imagino se retraindo. O movimento aciona as amarras e a porta de metal se fecha com um baque. Minha caixa para imediatamente ao atingir o obstáculo.

— Você só pode estar brincando comigo — resmunga Brian. Ele mexe na maçaneta da porta e bate nas dobradiças. — Pronto. Agora, sim.

Ele empurra meu caixão de volta para a esteira de metal, criando espaço para a dobradiça se abrir. Minha mente procura outra forma de detê-lo quando o ouço gritar “Mas o que é que...?”, pouco antes de ouvir o som do seu corpo caindo no chão. O caixão bate na porta fechada novamente.

— Rainha Alyssa — uma voz fina soa do outro lado do papelão.

Nikki, sua fadinha maravilhosa. Um formigamento se irradia pelos meus lábios, o fantasma de um sorriso esperando para se abrir. Meus dedos dos pés se dobrariam de empolgação, não fosse minha paralisia.

A tampa do caixão se abre e as asas de vinte fadas pairam ao redor do meu rosto — lufadinhas de vento com cheiro de canela e baunilha.

Mãozinhas do tamanho de joaninhas seguram minhas pálpebras, abrindo-as diante de um brilho âmbar. Ainda não consigo virar a cabeça, mas pela minha visão periférica a galhada do Rábido aparece sobre a borda do caixão, seguida por um par de olhos rosados brilhantes.

— Atrasado estou — desculpa-se ele.

Tento menear a cabeça, mas não consigo.

Todo o seu rosto aparece diante de mim.

— Arrumá-la, Alteza. Levá-la para casa, finalmente.

Casa. A palavra passeia por minha mente, cheia de promessas e esperanças. Imagino-me voando com Morfeu pelos cenários bizarros e irregulares do País das Maravilhas. Como vai ser bom me sentir pertencente a um lugar de novo. Fazer parte e nunca ter de abandonar ninguém novamente.

O Rábido estica o braço magro e derrama em minha garganta algo de uma garrafa vermelha. Um leve toque de frutas vermelhas misturado a menta arde em minha língua. Meu coração ganha vida, batendo com tanta força contra meu esterno que eu perco o fôlego. Em pouco tempo, sou capaz de abrir os olhos sem a ajuda das fadas. Elas se dispersam com risadinhas e pairam ao redor do adormecido operador do crematório, caído no chão de cimento.

Pisco com força e rapidez. Meus canais lacrimais funcionam e meus olhos se enchem de água. O sal fere e coça.

Depois, meus dedos dos pés e das mãos latejam e os músculos despertam, moles e resistentes, como elásticos esticados demais. Enquanto me sento, minhas velhas articulações estalam.

O Rábido sobe na beirada da inclinação e segura o caixão, mantendo-o ao meu nível.

— Perdoe o Branco Rábido. Para todo o sempre, ao seu lado estarei.

Acaricio sua cabeça macia.

— Nenhum perdão é necessário. O que importa é que você está aqui agora. Alguém o viu saindo do banheiro?

O Rábido faz que não.

— A mosca no muro ficou de olho no futuro. — Ele ri da rima e aponta para a parte de cima da porta que ostenta a única janela do salão. A mosca anda pelo vidro do outro lado, numa demonstração de sua devoção inabalável.

O Rábido abre o sorriso sorrateiro que aprendi a apreciar, enquanto sua mão esquelética me entrega uma mochilinha. Olho dentro e está tudo ali: meu colar com o rubi, minha aliança de casamento, os trajes de disfarce, um saco de cinzas e pedacinhos de osso, uma muda de roupa, uma faca e três lembranças da minha vida humana que serão as únicas coisas que levarei comigo ao transpor os limites do País das Maravilhas.

Primeiro, coloco o colar em volta do pescoço e aperto a chave contra o peito, saboreando o poder que ela contém.

O operador do crematório ronca no chão. Ele parece com frio e nada confortável, mas sei que não está. Seus sonhos são cálidos e sensuais. As fadas voam ao redor dele, as asas batendo à velocidade de beija-flores, enquanto elas espalham partículas que são como dentes-de-leão cheios de feromônios. As sementinhas caem sobre o rosto sorridente do homem, levando seu inconsciente a imaginar as fantasias mais carnais. Torço o nariz, com vergonha até de imaginar o que ele está sonhando. Ele provavelmente vai ter uma ressaca de sonhos por uma semana.

Ainda que ele não vá sofrer nenhum efeito físico duradouro, as fadas estão explorando os pensamentos secretos dele. Quando eu era mais nova, teria me arrependido de tê-lo usado em meu plano. Agora, não. Quando ele acordar, daqui a mais ou menos uma hora, sua dor de cabeça insuportável o impedirá de questionar como conseguiu me cremar enquanto ele dormia. Ele só irá querer uma aspirina e sua cama macia em casa.

O fim justifica os meios.

Uso a faca para cortar uma abertura na lateral do caixão e tirar minhas pernas, lenta e cuidadosamente. Não consigo me mover tão rápido quanto antes. Meus pés descalços tocam o chão frio, o vestido de papel fazendo barulho. O Rábido se vira de costas enquanto tiro o vestido e o jogo dentro da caixa, depois visto um moletom e botas cinza — as roupas mais confortáveis e discretas do meu armário. Repreendo-me por me esquecer das roupas íntimas, mas não importa o que estou vestindo agora, porque no País das Maravilhas Morfeu encheu todos os armários do castelo com camisolas e lingeries de renda, cetim e veludo — um guarda-roupa digno de uma rainha.

Hoje, o disfarce esconderá meu traje simplório. Coloco o pé no tecido mágico. Para virar uma camaleoa, só preciso vestir o capuz e me concentrar nos arredores, meu corpo refletindo o cenário de fundo.

Mas primeiro...

Sem eu nem pedir, o Rábido me entrega o saco de cinzas e ossos e minha aliança de casamento. Olho o anel. Jeb o fez para mim quando tinha a capacidade mágica de pintar coisas e lhes dar vida. Quando sua musa se tornou uma entidade viva. Ele me serviu tanto como anel de noivado quanto como anel de casamento e era indestrutível. Pelo menos era o que pensávamos. A única vez que ele perdeu um de seus doze diamantes foi por descuido da minha mágica, quando eu a estava praticando.

Estava do lado de fora da nossa casa de campo, tentando fazer o salgueiro dançar, quando o diamante caiu na grama. Procuramos e procuramos, mas nunca o encontramos. Depois de uma semana, ele apareceu de novo, nascendo do solo na forma de uma flor parecida com vidro. Era como se o diamante fosse uma semente, tendo dentro de si a força da criação mágica de Jeb.

O cheiro de terra presente na lembrança dá lugar ao cheiro do propano do forno. Abro o saco e derramo as cinzas e ossos no caixão, mantendo os movimentos metódicos e precisos para a nostalgia não tomar conta de mim novamente.

Depois de esvaziar o saco, beijo minha aliança e a coloco em cima do montículo.

— Rábido, derreta isso com sua mágica.

Meu conselheiro real se aproxima, olha pela abertura e estreita seus olhos brilhantes até que eles irradiem um calor vermelho. Enquanto ele se concentra, as faixas de prata se fundem, reduzindo os onze diamantes a cinzas.

Coloco a placa de identificação dentro do caixão e leio o que está gravado no aço: Alyssa Victoria Gardner Holt. Sinto um nó na garganta. É a última vez que meu nome humano me definirá.

Reposicionando a tampa, ordeno que o mecanismo da porta funcione. Entrefecho os olhos diante do calor e das chamas, enquanto as portas se abrem o bastante para eu empurrar o caixão pela esteira, a porta se fechando em seguida. Ela se fecha completamente, tanto que nem mesmo se pode ver o brilho alaranjado lá dentro.

Alguns segundos mais e eu estaria presa ali. Agora, depois que o papelão se queimar todo, vai parecer que eu estava. As prateleiras de metal na parede contêm vários cubinhos de papelão. Dentro estão os restos mortais dos corpos que vieram antes de mim e agora esperam ser transferidos para suas urnas.

Mas meus “restos mortais” são únicos. Os diamantes de Jeb esperam lá dentro — sementinhas mágicas. Quando as cinzas forem lançadas no lugar onde as dele foram absorvidas na terra sob nosso salgueiro, flores nascerão, uma parte dele e minha. Unindo o que restou de nosso lado humano, numa última homenagem a toda a beleza que ele criou durante a vida.

Seguro-me para não chorar e pego a mochila enquanto o Rábido veste outro traje de disfarce, o qual encolhe até caber em seu corpo de coelho. Mentalmente, pergunto à mosca se o corredor está livre.

Ela responde num sussurro:

Está tudo bem, Rainha Alyssa...

Os outros humanos se foram. Não há nada além de umas traças por aqui.

Desnecessário ficar invisível, então.

— Nikki — sussurro, e a fadinha balança as asas, soltando a dose final de pó de fada no homem adormecido. Então ela reúne suas companheiras e nos segue porta afora. O banheiro fica a poucos passos do outro lado do corredor comprido e escuro. Sigo tomando cuidado para não esmagar as traças que caminham perto dos meus pés e dos pés do Rábido. Sorrio ao ver os insetos acompanhados de uma fila enorme de baratas, besouros e aranhas.

Rainha Alyssa! Rainha Alyssa! Tão triste vê-la partir...

A mosca voa ao redor da minha cabeça, acrescentando suas despedidas à confusão.

— Sentirei saudade de vocês também — digo, lutando contra uma onda de melancolia. Será a última vez que ouvirei esses cumprimentos confusos e zunidores. No País das Maravilhas, os insetos são... bem diferentes. Menos inócuos e bonzinhos. Alguns são maus e letais, e nada pequenos. Mas conheço todos os segredos deles e todas as suas fraquezas — graças ao sábio guardião do País das Maravilhas.

Nosso desfile entra no banheiro e para diante do espelho. Em vez de me ater à minha aparência velha e enrugada, imagino o relógio de sol que cobre a toca do coelho em um jardim londrino. O vidro racha como gelo no lago e, no reflexo entrequebrado, o relógio de sol aparece, marcado por uma réstia de pôr do sol rosa. É cedo e ninguém ocupa a trilha ainda. Como precaução, visto o capuz e o Rábido faz o mesmo.

Só precisamos de um ou dois pensamentos sobre nossas cercanias e seremos invisíveis.

Usando minha chave, miro numa fissura na forma de buraco de fechadura, minúsculo e intrincado.

O portal se abre. O Rábido me cutuca com seus dedos magros e entrelaço meus dedos aos dele. Junto com as fadas e nossos insetos companheiros, passamos pela abertura liquefeita. Uma brisa fria me atinge, assim como o cheiro de mato e rosas cobertos de orvalho reluzente.

Os botões de rosa dizem:

Bem-vinda, Majestade. Os anos ficaram para trás. Logo você estará desabrochando como nós novamente.

Sorrio. O Rábido me puxa rumo ao relógio de sol que já expõe a toca do coelho. Ele está ansioso para ir embora. Mais insetos se juntaram a nós; alguns pelo terreno: besouros, centopeias e escorpiões; outros pela brisa: borboletas, mariposas, vaga-lumes...

Saem em enxame do mato e ficam dando a volta em mim e em meu conselheiro real — um arco-íris encantado, espesso e brilhante, sob a luz rosada do céu.

As borboletas cantam:

Vida longa à Rainha Alyssa. Que você seja para sempre jovem, louca e livre.

Muitos deles pousam sobre mim, as asas acariciando meu rosto e pescoço através do traje de disfarce, e percebo que não terei mais de me tornar invisível. Meus amigos insetos estão aqui para me dar proteção, como sempre estiveram.

O Rábido me solta, seus dedos de cadáver tocando os meus enquanto ele segue as fadas e mergulha na toca do coelho sem olhar para trás.

— Atrase-se não, Majesta-a-a-ade — o grito do Rábido ecoa até mim, afastando-se mais e mais à medida que ele desce, sem peso, como uma pena ao vento.

Ao contrário do meu séquito interior, não consigo ir embora sem uma olhada para trás.

Paro, olhando em meio à nuvem de milhares de asinhas adejando diante da paisagem tremeluzente no horizonte. Meu peito se aperta.

Pego as lembrancinhas da minha mochila. Três garrafas de vidro decoradas: a primeira cheia de pedrinhas, a segunda com conchas e a última com um pó prateado. Uma olhada nas três e as lembranças contra as quais eu lutava iluminam minha mente, graciosa e lentamente, como a aurora invadindo o mundo imóvel que desperta.


CONTINUA

A MARIPOSA NO ESPELHO


Capítulo 1


As Maquinações
da Mariposa

— Tem certeza, Morfeu?

— Tenho — respondeu Morfeu, tirando as luvas e enfiando-as no casaco. — Você, entretanto, parece que precisa ser convencida.

A magia pulsava nervosamente na ponta de seus dedos, uma luz azul pulsante logo abaixo da pele. Por causa da ponte de ferro que havia lá fora, seus poderes estavam limitados a alguns truques inofensivos, mas suficientes para dar o seu recado, se necessário.

O besouro-tapete — que de tão grande chegava à altura dos ombros de Morfeu, depois de este haver tomado uma poção encolhedora — engoliu em seco por trás de suas muitas mandíbulas estalantes. Sua pele carpetada tremia.

— Não, não. Por favor, o senhor interpretou mal as minhas ressalvas. — Os braços ramosos do inseto vibravam enquanto ele folheava as marcações em ordem alfabética de sua prancheta, as quais continham todas as lembranças perdidas no País das Maravilhas. — É que ficar espiando os momentos esquecidos de um ser humano parece uma maneira tediosa de se passar uma tarde, só isso...

Morfeu mudou de posição, e suas asas lançaram uma sombra sobre a cara do besouro.

— Ah, mas este humano, em especial, tem muito a me ensinar.

Esse humano, em especial, havia conseguido capturar algo que Morfeu desejava mais que tudo neste mundo.

— Sente-se — disse o inseto, apontando para uma cadeira branca de vinil —, e eu prepararei as memórias para o senhor.

Morfeu jogou as asas para o lado, sentou-se e deu uma tragada no narguilé fornecido por seu anfitrião como cortesia. O tabaco doce e fresco passou ardendo pela sua garganta. Ele soprou baforadas de fumaça no ar, formando com elas o rosto de Alyssa. Era fácil imaginar o modo como seus olhos sempre se cobriam de um azul gélido quando ela o via, cheios de excitação e temor ao mesmo tempo. Adorava isso nela: a sagacidade de seus instintos intraterrenos alertando-a a não confiar nele, suavizada pelas emoções humanas forjadas durante a infância que passaram juntos.

Antes dela, Morfeu levara a vida em solidão, sem nunca precisar de ninguém. Ele não fazia a menor ideia do feitiço que ela lhe lançara. Ela era mais que uma decepção, sempre jurando devoção ao lado errado. Seu encanto, porém, era inegável. Principalmente quando ela o desafiava ou o encarava com sua indignação de justiceira, o que a deixava com os lábios deliciosamente posicionados quando rangia os dentes.

Morfeu colocou o narguilé de lado, embora a sensação de queimação em seu peito não tivesse nenhuma relação com o fumo. Alyssa era a única que poderia aplacar o incêndio que havia ali, pois fora ela quem havia atiçado aquelas chamas.

Os dois tinham passado cinco anos juntos — como amigos de infância —, até que a mãe dela a arrancou dele, Alyssa sangrando e ferida, e ele ficara se remoendo de remorso e com culpa por causa de um juramento imprudente que havia feito, no qual prometeu se manter longe dela.

Manter-se afastado da amiga fez com que ele sentisse o gosto da solidão pela primeira vez. Mesmo todos os anos de claustrofobia que ele passara aprisionado em um casulo antes de encontrá-la... nem mesmo eles o prepararam para o sofrimento da ausência dela.

Então, por fim, ela havia voltado para ele, fazendo-o reviver todos os antigos sentimentos que ele pensava ter dominado. Daquela vez, também, tudo foi muito rápido. Ela partira novamente, por escolha própria. Restaram a dor e a solidão excruciantes. Debilitantes.

Havia apenas seis meses que ela partira do País das Maravilhas, e ele não compreendia este vazio corrosivo que só poderia ser preenchido pelo toque dela, por seu perfume, sua voz. As solitárias criaturas mágicas não ligavam para essas bobagens; não precisavam de companhia, abominavam a bagagem emocional. Sua afeição e lealdade pertenciam ao agreste País das Maravilhas e a nada nem a ninguém mais.

Então o que ela havia feito para mudar isso?

Ultimamente, cada vez que ele via o próprio reflexo, não mais reconhecia a Mariposa no espelho. Estava incompleto, enfraquecido; e menosprezava isso.

O menosprezo era ainda maior porque ele havia se esforçado tanto para cortejá-la, enquanto ela oferecia seu afeto a um reles mortal.

Morfeu suprimiu um rosnado. Ele não conseguia compreender a sorte de Jebediah, como um humano podia ter tanto poder sobre uma rainha intraterrena. Como um simples rapaz era capaz de controlar um coração real e mestiço tão multifacetado, um espírito propenso ao pandemônio e à loucura. Jebediah puxava Alyssa para baixo, acorrentando-a ao tédio e à banalidade do reino humano.

Ela precisa ser libertada.

Morfeu havia considerado a possibilidade de matar seu rival, mas Alyssa jamais o perdoaria. Não. Chegara o momento de tomar medidas criativas.

Se Morfeu soubesse no que Jebediah havia pensando durante sua jornada pelo País das Maravilhas — todos os momentos em que ele se sentiu mais aterrorizado, mais desanimado —, conheceria as fraquezas e as forças do mortal, intimamente. Ele saberia como enfraquecer Jebediah, contrapondo-o a si mesmo.

Essas fraquezas o derrotariam melhor do que Morfeu o faria. E depois, quando tivesse destruído a confiança de Alyssa em seu cavaleiro mortal, Morfeu estaria lá para confortá-la e conquistá-la.

Voltaria a ouvir a risada de Alyssa do modo como ela ria quando os dois eram crianças, e teria de novo a oportunidade de ser presenteado com o seu sorriso deslumbrante.

Ele voltaria a ser completo.

— Por aqui, por favor — pediu o besouro para que Morfeu o seguisse.

Morfeu tirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo. Quando o inseto abriu a porta para um compartimento de memórias sem janelas, o cheiro de amêndoas vindo de uma travessa de biscoitos de luar fresquinhos que estava em uma mesa de canto se espargiu no ar. Havia uma chaise-longue na cor creme colocada contra a parede, e uma ornamentada luminária de piso feita de latão iluminava o espaço com uma luz discreta.

Morfeu concentrou-se no pequeno palco do outro lado do compartimento. Sentiu o coração palpitar de ansiedade num ritmo profundo e firme. As cortinas de veludo vermelho aguardavam o momento de se abrirem para mostrar as memórias de Jebediah na tela prateada.

— Como o senhor entrará na cabeça do rapaz para visitar suas lembranças perdidas, sou obrigado pelas normas a avisar-lhe que... as emoções humanas podem ser muito poderosas... podem nos fazer ver as coisas sob uma perspectiva totalmente diferente — advertiu o besouro.

— Estou contando com isso. — Morfeu deu um sorriso afetado. — Conhece aquele ditado sobre amigos e inimigos?

O besouro coçou a pele enrugada.

— Hum... mantenha seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda?

Morfeu acomodou-se na cadeira estofada e alisou a calça risca de giz ao cruzar as pernas apoiando um tornozelo sobre o outro.

— Melhor ainda é se colocar no lugar de seu inimigo. É a melhor maneira de controlar seus passos. Ou de apagá-los, caso tenha a oportunidade.

O besouro, voltando a tremer, esticou o braço fininho e apertou um botão na parede. As cortinas do palco se abriram, revelando uma tela de cinema.

— Imagine o rosto do rapaz enquanto olha para a tela em branco e vivenciará o passado dele como se fosse hoje.

As palavras do besouro eram ensaiadas, até mesmo mecânicas, mas a pulsação de Morfeu ficou acelerada. Ele esperou o besouro desligar a luz. Assim que o inseto saiu e fechou a porta, o corpo de Morfeu desmembrou-se nas juntas, flutuando pela escuridão como se fosse feito de partículas de pó. Todos os seus pedaços se uniram novamente na tela prateada, em cores vivas e cinematográficas, até que ele entrou na cabeça de Jebediah, apropriando-se do seu corpo, sentindo suas emoções.

Naquele momento, Morfeu entregou-se à experiência e, pela primeira vez na vida, passou a ver as coisas como um humano.


Capítulo 2


Primeira Lembrança —
Kriptonita

Jeb acordou em uma cama suspensa.

Estava nu. Por que estava nu?

Antes que esse fato pudesse ser totalmente registrado, trinta fadas ou mais, do tamanho de mariposas, surgiram do ar, acariciando cada parte do seu corpo e sussurrando-lhe. Ele tentou mexer os braços e pernas. As asas das fadas — que batiam na velocidade das asas de um beija-flor — liberavam partículas parecidas com as pétalas delicadas de um dente-de-leão, que, de alguma maneira, o imobilizaram. As sementes exalavam um perfume de canela e baunilha que foi inundando sua consciência, até que a sala ficou totalmente fora de foco.

Quando a névoa se dissipou, ele estava em sua cama, em casa. A noite adentrava pela janela e Taelor estava em cima dele, seminua. A unhas pintadas à moda francesinha percorreram os pelos de seu peito e abdômen, dirigindo-se ao cós de sua calça jeans.

Aquilo não podia ser verdade. Taelor e ele tinham brigado antes do baile de formatura, haviam terminado tudo.

Com delicadeza, ele a virou, colocando-a debaixo dele, e apoiou-se nos cotovelos, afastando o cabelo do rosto dela. Mas não foram os olhos de Taelor que encontraram os dele. Foram os olhos gélidos e azuis de Alyssa — encarando-o com um ar de admiração e inocência. Os dedos dele pareciam grandes e desajeitados nas têmporas dela.

A Al na cama dele?

Não. Isso não podia acontecer. Alyssa nem havia beijado homem algum. E Jeb nunca tinha sido o primeiro de nenhuma garota.

A Al era intocável para ele. Ela já passara por muitos episódios turbulentos em sua vida. E ele não era exatamente um exemplo de estabilidade.

Ele tirou as mãos dela e ficou de joelhos.

— Jeb, você não me quer? — perguntou Al, passando a mão no peito dele.

Ele não conseguiu responder. Seus dedos coçavam e pareciam esticar-se, como se estivessem crescendo. Ele ergueu as mãos sob o luar, observando, horrorizado, seus dedos caírem, um por um, e se metamorfosearem em lagartas. As lagartas, então, avançaram lentamente na direção de Alyssa, e ele não conseguia fazer nada para detê-las. Jeb caiu de costas na cama, com as mãos sobre o rosto, olhando fixa e incredulamente para os tocos crus e cheios de sangue onde antes estavam seus dedos.

Gritando, Alyssa tentou sair do colchão, mas as lagartas a pegaram, arrastando-se por sua pele e tecendo teias, até que restou somente uma forma se agitando dentro de um casulo.

— Soltem ela! — gritou Jeb. Uma luz lampejou em seus olhos, e então ele já não mais se encontrava em sua cama. Estava em algum lugar da mansão de Morfeu, e as fadas percorriam sua pele, hipnotizando-o... usando algum tipo de feromônio alucinógeno.

Elas estão me segurando aqui para que o Morfeu fique sozinho com a Al. No instante em que a realidade foi percebida, o feitiço foi quebrado.

Jeb pulou rápido da cama suspensa e saiu da nuvem de sedução de suas captoras. Pegando um travesseiro, ele se cobriu.

— Quero alguma coisa para vestir!

As fadas flutuavam no ar, seus olhos de libélula observando-o.

Havia várias cestas douradas no chão perto dos pés dele. Jeb chutou uma. Suas pequenas captoras se espalharam pelo ar, em histeria coletiva.

Gossamer, a fada predileta de Morfeu, designou cinco delas para pegar os morangos que rolaram. Elas contaram as frutas uma por uma e as colocaram de volta na cesta.

Jeb chutou outra cesta cheia de contas de óleo perfumado. Outras cinco fadas lançaram-se ao chão para pegar tudo, parando para contar cada conta antes de guardá-la.

Em pouco tempo, ela já havia chutado todas as cestas. Algumas estavam cheias de pétalas de flores, outras continham loção, outras, ainda, uvas. Ao virá-las, ele conseguira manter a maioria de suas captoras preocupada. Apenas Gossamer e outras duas ainda pairavam em torno de sua cabeça.

— Me deem algo para vestir — repetiu ele —, ou vou começar a tirar as plumas dos travesseiros. Vocês não estão em número suficiente para limpar uma sujeira dessas.

— Ele não está respondendo ao nosso feitiço — murmurou uma das fadas para Gossamer, com seus olhos de inseto voltados para Jeb.

— E nem à nossa magia — acrescentou a outra, amuada. — Eu conjurei uma moça das lembranças dele, mas seu subconsciente conseguiu escapar.

— Sim, este aqui é, sem dúvida, um desafio — concordou Gossamer, numa voz que tilintava feito um sino. Depois de mandar as outras duas fadas recolherem o conteúdo da última cesta, ela ofereceu a Jeb um robe de seda.

Ele se virou de costas e enfiou a peça de roupa no corpo, assimilando os arredores.

Morfeu o colocara em uma prisão opulenta. A sala era toda revestida de piso de mármore preto que refletia a luz laranja dos candelabros. Ele já estava bem familiarizado com o ponto focal: um colchão circular balançante preso por correntes douradas no centro do teto côncavo. Peles e almofadas forravam a cama, perfumadas por pétalas de rosa.

Apesar de todos esses confortos, faltava a essa sala um detalhe muito importante: uma saída. Não havia portas, janelas ou qualquer outra abertura à vista.

Paredes convexas — pintadas em cor de lavanda escura — eram cobertas por parreiras que se estendiam por toda a sua circunferência, entrando e saindo do reboco e se entrelaçando nos candelabros acesos. Frutas brotavam das vinhas. De quando em quando, as uvas explodiam espontaneamente e pingavam seu suco dentro de bacias de pedra posicionadas ao longo das paredes para apanhá-lo. E, delas, um líquido viscoso e purpúreo era drenado para dentro de fontes — um abastecimento constante de vinho de fadas com aroma adocicado.

Ele se lembrava vagamente de ter provado o vinho ao chegar. Desconfiado, tentou resistir, mas estava com muita sede. Era impossível saber que tipo de magia havia no líquido.

Jeb gemeu e esfregou o rosto. Quanto tempo teria passado bêbado e enfeitiçado? Ele acabara sendo inútil para Alyssa, assim como o pai dele teria sido.

— Onde ela está? — perguntou ele, ignorando a harpa que tocava sozinha, a qual, na tentativa de abafar-lhe a voz, começou a tocar mais alto. — Me diga o que Morfeu está fazendo com ela.

Minúscula, reluzente e confiante, Gossamer acomodou-se em uma almofada de cetim, passou a mão pelo colchão ao seu lado e cruzou as pernas apoiando os tornozelos verdes um sobre o outro.

— Talvez você não perceba o que nós, as fadas, somos capazes de fazer. Temos séculos de prática. Podemos lhe mostrar um êxtase com o qual você sempre sonhou.

Jeb a olhou de cima a baixo e ajustou a faixa de cetim em sua cintura.

— Me desculpe, não sonho com coisas verdes.

Ele encontrou a mochila de Alyssa debaixo da cama e a puxou. Jeb havia notado alguma coisa dentro dela anteriormente, quando a vasculhara em busca de outra coisa: uma pulseira de ferro forjado que ela provavelmente havia enfiado na mochila quando ainda estava na escola e ficara esquecida ali. Ele havia pesquisado muito as fadas quando começou a pintá-las, e sabia que elas não gostavam de ferro — se a lenda fosse verdadeira.

Jeb jogou a mochila sobre o colchão. Os cobertores de pele encresparam-se feito uma onda gigante e derrubaram Gossamer de sua almofada. Acionando suas asas com rapidez, ela pousou sobre o ombro de Jeb.

— Se é Alyssa que inspira suas paixões, podemos realizar essa fantasia. — Gossamer bateu palmas. As outras largaram seus postos de limpeza e se apressaram a formar um círculo em volta de Jeb. Uma onda de enjoo lhe invadiu o estômago quando todas as fadas assumiram a aparência de Alyssa — réplicas perfeitas em miniatura, com cabelo platinado e roupas sensuais de skatista. Elas liberaram novamente suas sementes de feromônios, cegando-o com o perfume de Alyssa, doce como néctar.

Brandindo uma almofada, Jeb rompeu a ilusão e dissipou as sementes. As fadas saíram aos guinchos e foram se esconder nas vinhas das paredes, com seus corpos brilhantes parecendo cordões de luz branca e piscante.

Gossamer pairou no ar acima dele, ralhando.

— Já chega! Informem o nosso mestre de que o mortal é leal à garota. Não podemos seduzi-lo para que volte ao seu mundo sem ela.

Jeb ficou resmungando, enquanto as fadas se esgueiravam por buracos do tamanho de ervilhas, na parede onde as vinhas entravam e saíam. Se ao menos ele pudesse passar por aquelas pequenas saídas também... Chegou a pensar em usar a poção encolhedora que ele e Alyssa tinham encontrado quando chegaram ao País das Maravilhas, mas ela o deixaria tão pequeno quanto suas captoras, e ele ficaria indefeso contra Morfeu. A impotência lhe fervia as entranhas, tão profunda como a que ele sentia quando era criança, escondendo-se em um armário até que passassem os ataques de fúria do pai.

Ele cerrou os dentes. Tinha de haver uma passagem escondida em algum lugar por trás das vinhas. Elas o tinham trazido para cá; devia haver uma saída.

Subitamente, ele deu um pulo para a parede mais próxima e arrancou algumas vinhas, lançando-as para todos os lados. O diminuto guincho de surpresa de Gossamer não o intimidou.

Uvas explodiam em suas mãos, libertando seu aroma potente e denso. As plantas viscosas cortavam seus dedos feito arames. Jeb aceitou a dor. Era algo que podia controlar — diferentemente do tormento dos cigarros acesos que seu pai lhe enfiava na pele, ou dos punhos que lhe socavam o rosto e o estômago. O cheiro da nicotina, o gosto de sangue. Imaginação ou não, eles alimentaram o selvagem em sua alma.

Ele mergulhou numa espiral vermelha de fúria e devastou a sala. Quando finalmente voltou a si e recostou-se na cama, ficou chocado com os estragos que causara.

Arfando e suando, ele cuidou dos cortes nas junções dos dedos e vasculhou os destroços à procura de Gossamer. Será que a tinha machucado? Se sim, talvez fosse mesmo filho de seu pai.

Jeb cerrou os punhos, descontente consigo mesmo.

— Gossamer? — Ele se encolheu ao ouvir a própria voz, rude e inflamada de emoção.

Um rufar de asas mexeu uma das correntes que prendiam a cama ao teto. Ele respirou, aliviado ao ver a fada. Embora parecesse meio idiota importar-se, já que estava prestes a usar a pulseira de ferro de Alyssa contra ela.

Gossamer pousou no chão ao lado das vinhas rasgadas e das cestas que ele tinha derrubado de novo; seus ombros estavam caídos, em demonstração de derrota. Provavelmente, ela não sabia por onde começar a calcular todos os conteúdos derramados.

Jeb começou a vasculhar a mochila. A harpa havia parado de tocar, e o silêncio o incomodava feito o ruído dos ponteiros de um relógio. Cada segundo que ele passava longe de Alyssa deixava-a mais vulnerável a Morfeu.

Seus dedos finalmente encontraram um metal frio. Ele jogou a pulseira de ferro na direção de Gossamer, mas mantendo alguma distância, na esperança de enfraquecê-la sem machucá-la.

Ela gritou e lançou-se ao ar, se debatendo.

— Por favor... afaste isso.

— Não até eu conseguir algumas respostas. — Jeb segurou uma das asas dela entre o indicador e o polegar, levando-a para a cama e sentando-a sobre uma almofada, tomando o cuidado de manter a pulseira próxima o bastante para intimidá-la. — Basta cooperar, que eu não vou machucá-la.

— Já está machucando. — Ela gemeu, com a pele esverdeada já tingida de turquesa. — Não posso usar minha magia... — Gossamer bateu as mãos no próprio rosto. — Vai me deixar... horrível. Abster-me. — Sua voz ficou mais calma, como se estivesse falando consigo mesma, e, rangendo os dentes, continuou: — Abster-me até a ameaça de dor e contaminação passar.

Jeb franziu a testa.

— Então o ferro vira seus poderes contra vocês? É a arma perfeita para usar contra seu chefe.

— Um objeto desse tamanho... só funciona com os menores de nossa espécie.

Jeb curvou-se, aproximando ainda mais a pulseira dela.

— Muito bem, então considere isso um detector de mentiras. Toda vez que eu perceber que você está fingindo, aproximarei o ferro. Onde está a Al, e o que o seu chefe repugnante está fazendo com ela?

A cor da fada mudou para um verde azulado. Ela rolou sobre a almofada, as asas lutando para bater. Gossamer as puxou por cima dos ombros até a altura do peito, cruzando-as, como se quisesse conter a sua magia.

— A sua Alyssa está confortável e sendo bem cuidada. Morfeu está zelando pelo sono dela...

Jeb soltou um grunhido. Na noite passada, ele havia zelado pelo sono dela, no barco. Mudara a posição do corpo dela para que pudesse olhá-la de frente e fazer uma promessa, mesmo que Alyssa estivesse sonolenta demais para ouvi-lo. Jeb havia prometido que a protegeria, que a levaria para casa a salvo. E não iria quebrar sua promessa agora.

Ele precisou resistir ao desejo de destruir a sala novamente.

— Como eu saio daqui?

— Apenas o Morfeu tem os meios para abrir a passagem.

Jeb inclinou-se para a frente, com o nariz quase tocando o rosto de Gossamer enquanto segurava a pulseira sobre a cabeça dela, como se fosse um objeto corrosivo.

— Está dizendo que estou preso aqui até que aquela barata de asas decida me soltar? Ele vai fazer a Al enfrentar o País das Maravilhas sozinha?

Ela choramingou, levando a mão à testa.

— Não. Como você provou ser leal, ele permitirá que a acompanhe em sua jornada. Você comparecerá ao banquete e traçarão os planos.

— Banquete?

— A apresentação de Alyssa. Morfeu deseja exibi-la aos outros.

— Que outros?

Gossamer deixou-se cair, formando um monte de cor púrpura e em seguida saiu depressa de seu poleiro. Ela puxou alguma coisa de dentro da almofada — um desenho de Al que Jeb não se lembrava de ter feito. Lentamente, Gossamer levantou os joelhos e estudou as linhas.

— Você fez isto enquanto estava sob nosso feitiço. Tem poder dentro de seu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Você captou o interior de Alyssa com perfeição.

— Esse desenho é pura fantasia — resmungou Jeb. Ele colocou a pulseira de ferro sobre o papel ao lado de Gossamer.

Ela rolou para o meio do desenho, tentando escapar do metal.

— Há mais verdade nesta aparência de Alyssa do que em qualquer coisa que possam me forçar a falar.

Jeb puxou o desenho, fazendo Gossamer e a pulseira de ferro rolarem por cima da pelugem. Ele estendeu o desenho sobre uma almofada e percorreu as linhas de carvão com o dedo. A imagem era igual a todos os outros desenhos de fadas que ele havia feito de Al ao longo dos anos, mas, ainda assim, não poderia ser mais diferente da garota que ele conhecia.

Ele a desenhara com o cabelo preso no alto da cabeça. Al nunca usava o cabelo daquele jeito. Um vestido preto de alcinhas realçava suas curvas. Nem morta ela seria vista em um vestido tão convencional. E a única coisa que se parecia com ela eram as luvas de renda preta sem dedos que cobriam as cicatrizes da palma das mãos.

Fora isso, o desenho era uma fantasia completa. Sentada em um banco de jardim, Al segurava uma rosa. Rímel e lágrimas escorriam em curvas graciosas por seu rosto. Pensando bem, se parecia com a maquiagem dela na última vez que ele a vira.

Ele ainda não conseguia entender por que, depois de quase se afogar em um oceano de lágrimas, o rímel de Alyssa não havia borrado. Apertando os olhos, ele estudou o par de asas translúcidas abertas nas costas dela. As membranas finas tremeluziam sob o único raio de sol que atravessava as nuvens. As asas faziam com que se sentisse estranho, mas Jeb não conseguia perceber a razão.

Talvez porque elas lembrassem as asas de Morfeu, embora tivessem uma cor totalmente diferente. As têmporas de Jeb latejaram. Nada poderia ser pior do que Alyssa sozinha com aquele homem-inseto. Aquele doido tinha algum tipo de poder sobre ela, havia entrado em sua cabeça quando ela era pequena. O subconsciente pode ser muito poderoso, e se Morfeu ainda tivesse acesso aos sonhos da Al...

— Como posso derrotá-lo? — perguntou Jeb com um nó na garganta.

Os olhos bulbosos de Gossamer voltaram-se para os dele. Ela estava fraca demais para se arrastar para longe da pulseira, que agora roçava sua coxa.

— Ele não será derrotado. Há anos ele espera por este dia.

Jeb fez cara feia.

— Muito bem, ele é o Super-Homem. Mas todo mundo tem a sua kriptonita. Algo de que sente medo.

— O confinamento — Gossamer deixou escapar, e, diante da confissão, seu corpo escureceu até ficar da cor de um machucado.

— Como assim?

Gossamer levou o dorso da mão à testa.

— Por favor... está muito perto... o ferro... está drenando minha energia.

Jeb caiu de costas no colchão e afastou a pulseira da fada. Equilibrando-o entre os dedos, ele estudou o ferro sob a luz das velas. A pulseira o lembrou de seu piercing de ferro e da primeira vez que Al o vira, sua reação de entusiasmo. Ela havia implorado para tocá-lo e fez várias perguntas sobre o processo de colocação de um piercing. Seu entusiasmo e ingenuidade, suas inseguranças... Morfeu não hesitaria em usar qualquer uma dessas coisas, ou todas elas, para manipulá-la.

Jeb precisava convencer Al a sair do País das Maravilhas, a esquecer esta jornada para quebrar a maldição de sua família, a qualquer custo. Algo muito tenebroso estava à espreita, bem perto dela, como no sonho que ele tivera. E Jeb podia sentir que, fosse lá o que estivesse para acontecer, estava se aproximando.

— Então vocês querem que ela conserte os erros da Alice original, certo? E se eu consertá-los? — Jeb tentou raciocinar. — Vocês enviam a Al para casa e deixam que eu cuide de tudo?

— Impossível — respondeu Gossamer num sussurro arfante, voltando à cor verde-clara. Engatinhando na direção do desenho, ela passou a pequenina mão sobre a rosa. — Ela já passou nos testes e provou ser a escolhida.

— Testes? Está se referindo a encontrar a toca do coelho para o País das Maravilhas e secar o oceano de lágrimas?

Gossamer fez que sim.

— Mas eu ajudei a fazer isso.

— É por ela que ele esperava. Não por você.

Jeb levantou a pulseira de ferro uma última vez.

— O que ele realmente quer dela?

Antes que Gossamer pudesse responder, o teto abobadado começou a tremer. Pedaços espessos de gesso despencaram no solo. Jeb colocou uma almofada sobre a cabeça e uma mão sobre Gossamer para protegê-la dos detritos. O teto se abriu nas emendas, fazendo a cama balançar e puxando as correntes em direções opostas, de modo que o colchão subiu vários centímetros.

Depois que os tremores passaram, Jeb olhou para cima. A silhueta escura de Morfeu apareceu em uma abertura no teto.

Sutileza era um dos últimos itens na lista de prioridades desse cara.

— Já te disseram que você é muito escandaloso? — rosnou Jeb.

Morfeu inclinou-se para olhar a sala destruída.

— Já te disseram que você é um péssimo hóspede?

Parte da responsabilidade daquela bagunça era da grandiosa entrada de seu aprisionador, mas Jeb mordeu a língua, não querendo arriscar sua oportunidade de ver Al.

Morfeu relaxou.

— Alyssa o aguarda na sala dos espelhos. E, por favor, tome um banho e faça a barba. Você será apresentado aos nossos convidados do banquete como um cavaleiro élfico, então precisa parecer como tal. Gossamer lhe dirá como se comportar adequadamente. — Morfeu largou algumas roupas e botas, que fizeram um ruído ao atingir o chão. — Aí está seu uniforme. — Ele fez uma pausa e apontou para as correntes. — Que pena que você não tenha asas e nenhuma magia intraterrena. Terá que sair daí sozinho. E posso assegurar que não será nada fácil.

Os músculos de Jeb se retesaram quando Morfeu sumiu de vista; ele sabia que o aviso se referia a muito mais do que sair daquela sala.


Capítulo 3


Segunda Lembrança —
Carnificina

Jeb limpou o suor da testa. Morfeu estava certo. A escalada para sair de sua prisão dourada seria mesmo difícil. Mas isso não significava nada se comparado à jornada pelo País das Maravilhas que ele e Alyssa haviam cumprido desde então. O dia inteiro tinha sido um desafio atrás do outro, com o perigo e a morte aguardando em cada esquina. E agora ele havia perdido a Al. Os dois tinham se separado pouco antes de ela completar o teste final. Al ficou enfrentando as irmãs Twid no cemitério, sozinha, e ele ficou preso aqui no fundo do abismo.

A noite já havia caído quando ele atingiu o solo, e foi uma transição extremamente rápida, como se alguém tivesse apagado a luz.

Jeb sentiu os músculos do corpo endurecerem. Odiava pensar na Al sozinha naquele mundo insano depois de anoitecer. E, mais uma vez, ela provou ser forte o bastante para encarar quase tudo. No final, foi ela quem o salvara mais de uma vez...

Ele se lembrou dela pairando acima dele — um brilho selvagem, flutuando com a graça de uma libélula. Ver as asas dela brotarem tinha sido ao mesmo tempo assustador e milagroso. Jeb mal conseguiu respirar enquanto observava a transformação.

Falando sinceramente, Jeb ainda não tinha recuperado o fôlego de quando ela o levara para dentro do abismo e ele gritara: “Você é minha corda de segurança!”, antes de ela subir ainda mais alto para o céu. Ele não deveria ter colocado tanta pressão sobre ela para salvá-lo; tinha que ter feito o que conseguisse para sair de lá por si próprio e encontrá-la no meio do caminho. Do contrário, ela nunca se perdoaria se algo saísse errado.

A carcaça de um pássaro Jubjub havia amortecido sua queda. Ele limpou nas calças a gosma pegajosa que tinha entre os dedos, torcendo o nariz diante dos restos malcheirosos do exército que os perseguia e acabou caindo no abismo. Jeb procurou ficar de pé na escuridão. Suas botas produziam sons de sucção toda vez que ele pisava. Ele nunca tivera fricotes; qualquer aversão a sangue e violência havia sido expurgada — uma dessensibilização gradual que era reforçada sempre que ele se olhava no espelho e via suas bochechas e olhos inchados, grandes e cheios de sangue, que nem um bife malpassado.

Contudo, sem uma centelha de luz para guiá-lo, a carnificina aos seus pés parecia mais viva do que morta. Sua imaginação trazia arquivos de todos os tipos, de filmes de zumbis a demônios e assombrações. Seu estômago queimava de náusea. Jeb sentiu-se aliviado ao perceber que os assobios que ouvia dentro do abismo eram produzidos pelo vento. E não havia ruídos de correntes fantasmagóricas nem gemidos de mortos-vivos.

Além disso, seu verdadeiro inimigo era o tempo, mais perigoso do que qualquer coisa que pudesse imaginar. A Al ainda tinha de cumprir a última tarefa no cemitério. E, depois, eles ainda tinham de encontrar um ao outro.

Ele se forçou a avançar às cegas até sua mão alcançar a parede do abismo. Antes de descer totalmente, Jeb viu que a mochila de Al tinha ficado presa em uma pedra saliente próxima ao chão. Se conseguisse encontrá-la, poderia contar com uma lanterna. Tateando a superfície áspera da pedra, ele levantava seus pés por sobre os obstáculos, tocando os cadáveres com os dedos dos pés para mensurar a largura de cada passo.

Com os cotovelos esbarrando nas pedras, Jeb observou o céu. Um pequeno aglomerado de estrelas brigava com as nuvens, aparecendo para iluminar levemente o lugar ao seu redor, tornando possível que ele continuasse sem esbarrar no falecido exército da rainha. Uma brisa úmida levantava a poeira feito pequenos tornados. Logo choveria. E, neste lugar, era possível que, literalmente, chovesse a cântaros — daqueles temporais ruidosos, torrenciais.

Um calafrio que não tinha nada a ver com a tempestade iminente lhe percorreu a espinha e obscureceu qualquer sentimento bom que ele poderia ter encontrado naquele pensamento. Qual era a razão de todos esses “testes” de Morfeu? Toda vez que a Al conseguia se sair bem em um desses testes, sua forma intraterrena tornava-se mais acentuada. Será que o intuito era transformá-la completamente para que não pudesse mais voltar ao reino humano?

Fios de cabelo caíram sobre seu rosto, e Jeb os afastou.

Morfeu afirmara que tudo o que ele mais queria era que Alyssa voltasse ao seu lugar. Sua casa. Jeb esperava que ele estivesse se referindo ao mundo deles, o reino humano. Mas e se a Al não estivesse sob nenhuma maldição, no final das contas?

Ele se lembrou de sua pesquisa sobre fadas, na qual descobriu que elas eram criaturas chamadas de changelings — as crias das fadas secretamente deixadas no lugar de bebês humanos roubados. Alice Liddell, a tataravó de Al, teria sido uma changeling? Quem sabe foi por isso que ela encontrou, quando criança, a toca do coelho — por instinto. Isso significaria, de alguma estranha maneira, que aqui era a casa de Al.

Jeb parou com as especulações. Elas só levavam a mais dúvidas.

Ele tinha encontrado a mochila. Abriu-a, tirou a lanterna e colocou a mochila nos ombros.

Ao fechar o zíper, ele acendeu a lanterna e percorreu o cenário com fachos de luz. Os guardas destruídos pareciam cartas de baralho amarrotadas. Brinquedos descartados. Até mesmo os pássaros Jubjub poderiam se passar por brinquedos infantis com o enchimento extrapolando para fora.

Com a mochila ajeitada no corpo, Jeb percorreu a circunferência do abismo sem encontrar nenhuma abertura. Pedras que haviam caído bloqueavam qualquer possível passagem que ele tentasse. Era como se ele tivesse caído dentro de um tubo gigante. Não havia nenhuma outra saída a não ser subindo.

Jeb apontou a luz para o gramado a cerca de vinte andares acima — a clareira onde Alyssa havia pousado. Estava determinado a encontrá-la antes de Morfeu, mesmo que tivesse de escalar as pedras pontiagudas no escuro e sem uma corda de segurança.

Ele havia acabado de apoiar a lanterna entre os lábios e escorar o pé em um rochedo para tomar impulso quando ouviu uma voz com um sotaque britânico familiar.

— Ao trabalho, homens. Precisamos contar todos antes que as irmãs Twid enviem sua brigada de duendes para recolher os mortos.

Morfeu.

Jeb desceu e quase colidiu com o intraterreno alado, que tinha aparecido do nada, como se tivesse aberto um zíper no ar e passado por ele. Cavaleiros élficos faziam fila atrás dele, entre vinte e trinta, carregando lanternas e usando o mesmo uniforme de Jeb, só que menos esfarrapado e sujo. Eles passaram sem nem olhar para Jeb, extremamente concentrados na contagem dos corpos.

— Ora, ora, pseudocavaleiro. — Morfeu riu com desdém.

Cada pedacinho de Jeb ansiava por apagar aquele sorriso arrogante e socar aquele rosto. Mas ele estava em desvantagem. Se quisesse sair desse fosso para encontrar a Al, teria de bancar o bonzinho.

— Detesto dizer isso, mas é bom vê-lo, senhor Mariposa. — Jeb guardou a lanterna. — Vejo que pegou o espelho para vir aqui.

— Eu só viajo de espelho. — Morfeu ergueu a lanterna e examinou as roupas esfarrapadas de Jeb. — Tem a vantagem de não estragar tanto as roupas. E vou lhe contar outro segredo: se eu mantiver as asas daquele lado do plano — ele apontou com o polegar para as suas costas, onde metade de seus apêndices não era visível —, a abertura fica acessível para nossa viagem de volta.

Jeb forçou um sorriso.

— É bom saber.

Perfeito, na verdade. Ele poderia voltar com a trupe de elfos e depois tomar o expresso na sala de espelhos para encontrar a Al. Mas primeiro teria de distrair Morfeu, baixar a guarda dele. Jeb perguntou:

— Esse chapéu é novo?

Morfeu ficou radiante.

— Que gentil de sua parte ter notado. É meu chapéu da Insurreição. Ainda não havia tido a oportunidade de usá-lo antes. — Com o dedo, bateu em várias mariposas que formavam a guirlanda na aba do chapéu e depois se inclinou e fez conchinha no ouvido de Jeb para sussurrar um segredo. — As asas vermelhas representam derramamento de sangue.

— Ãh-hã. — Jeb cerrou a mandíbula diante do indesejado bafo quente no lóbulo de sua orelha. Depois, olhou para os cavaleiros, discerníveis somente por suas lanternas flutuando na escuridão atrás dele. — Então, está planejando um motim com o exército da rainha de Marfim?

Morfeu apertou o ombro de Jeb.

— Eu sempre soube que era mais esperto do que os mortais comuns.

Os músculos de Jeb contraíram-se ao contato.

— O que significa que você estava mandando a Al para uma missão absurda só para se divertir.

Cuidado. Jeb não poderia deixar sua desconfiança transparecer. Pelo menos não ainda. Em vez disso, ele se inclinou para ajustar os cadarços das botas e respirou fundo antes de se reerguer.

Morfeu apertou sua gravata vermelha.

— Todas as tarefas que pedi à Alyssa tinham um propósito. — Ele deu um passo para o lado quando alguém mais passou pelo portal do espelho: um esqueleto do tamanho de um duende, com antenas e olhos cor-de-rosa brilhantes, metido em um colete vermelho.

— Rábido Branco? — sussurrou Jeb, incrédulo. Nada daquilo fazia sentido. O Rábido era da corte Vermelha. Por que estava aqui?

— Qual é o relatório? — Morfeu agachou-se para ficar na altura do Rábido, ainda mantendo as asas enfiadas no portal invisível do espelho.

O pequeno intraterreno apertou as mãos enluvadas e olhou para Jeb, sua cabeça careca refletindo o brilho suave da lanterna de Morfeu.

— Um de nós, você é?

Morfeu sorriu e respondeu por Jeb.

— É claro que é. Ele ajudou a nossa Alyssa a conquistar o grande e cruel exército Vermelho, não lembra?

Coçando a antena esquerda, o Rábido fez que sim.

— Rainha Grenadine neutralizada está. Nos portões da frente e de trás, o castelo guardado está pelos regimentos três e sete. Flanqueando a rainha, um círculo de cinco. Sem esquecer da coroa e seu guardador.

— Ah, sim. O bandersnatch. Bem, quando Alyssa tiver trazido seu prêmio do cemitério das irmãs Twid, nada mais terei a temer daquela besta medonha. Fez um bom trabalho, senhor Branco. — Morfeu deu uma batidinha na aba do chapéu.

O Rábido bateu os tornozelos cadavéricos um no outro, depois se curvou e lançou um olhar penetrante para Jeb, antes de pular novamente para o portal.

— Ele é o seu espião — murmurou Jeb, sentindo-se idiota por não ter adivinhado antes.

— Sim.

— Então todas as vezes que o esqueletinho ameaçou a Al, matando-a de susto, era só para manter a aparência de lealdade à Rainha Grenadine?

— Os melhores espiões são aqueles que jogam dos dois lados com o mesmo vigor.

A distância, Jeb avaliou as lanternas que balançavam. O tilintar dos cabos de metal e o pisar de botas eclipsavam o suave lamento do vento.

— Certo. Já que estamos abrindo o jogo...

O comentário de Morfeu o interrompeu.

— Que trocadilho mais delicioso, considerando a posição em que estamos. — A lanterna dele apontou para os cadáveres dos guardas de carta.

Jeb ignorou a piada mórbida.

— Eu ia perguntar por que o Rábido se voltou contra a corte Vermelha.

— Ele era o conselheiro real da Rainha Vermelha quando Alice nos visitou. Deseja ver a verdadeira herdeira no trono tanto quanto eu.

— Verdadeira herdeira. — Jeb chutou um punhado de terra com uma bota, sentindo o peito apertado. — Então tudo isso é para destronar Grenadine e abrir caminho para uma nova rainha.

— Sim. — A lanterna iluminou o rosto de Morfeu, numa expressão de indulgência sonhadora. — E estamos muito perto. Em breve, ela ocupará o trono que é e sempre foi o lugar dela.

O lugar dela. Uma hipótese se formava na mente de Jeb, uma ideia ultrajante e incompreensível, mas, de qualquer maneira, a resposta óbvia para todas as dúvidas que ele vinha remoendo. Todas as dúvidas, exceto uma...

— Mas, primeiro — interviu Morfeu, varrendo o ar com um gesto desdenhoso —, temos que ter certeza do que iremos enfrentar quando atacarmos o castelo. Você e Alyssa conseguiram eliminar boa parte da oposição com seus fantásticos movimentos de pés. Estamos aqui para avaliar se os números batem com os que o Rábido reportou. Devemos ter certeza que Grenadine não tem outras cartas escondidas na manga. — Ele bateu nas costas de Jeb. — Viu o trocadilho? “Cartas na manga?” — E deu uma gargalhada.

Jeb não deu nem um risinho.

— Ah, corta essa. Os guardas dela são de cartas. É uma piada como a que você fez antes, só que mais inteligente.

— Ah, sim, entendi — retrucou Jeb.

O riso de Morfeu se dissipou.

— Você não é um namorado muito divertido.

— Você não leva nada a sério? A Al está correndo perigo — Jeb deixou escapar.

— Bobagem. Ela é gloriosamente capaz! Você nunca a viu voando? É claro que viu! Estava pendurado na corrente que ela segurava. — Morfeu voltou a lanterna para a própria cabeça, num arroubo de celebração. — Não foi uma bela visão, presenciá-la transformando-se no que realmente é? Igual a uma princesa de contos de fadas. — Ele lançou um olhar dissimulado para Jeb. — Não concorda?

Princesa de contos de fadas. Lá estava, saindo da boca do próprio Morfeu, zombando de Jeb por não perceber desde o início. Jeb apertou as alças da mochila para evitar dar um soco na laringe de Morfeu.

Morfeu abaixou a lanterna e depois tirou luvas prateadas de sua lapela.

— Não se sinta desprezado, cavaleiro mortal. Sua contribuição não passará despercebida. E eu sempre pago minhas dívidas. Então, o tirarei desta vala da morte para demonstrar minha gratidão.

— Você pode me agradecer me deixando ajudar a Al. Ela vai terminar a tarefa muito mais depressa comigo do lado — Jeb conseguiu dizer, sentindo um nó nas cordas vocais. Se conseguisse chegar até Al, talvez os dois pudessem se esconder de Morfeu no cemitério das irmãs Twid, até encontrarem uma maneira de escapar.

— Sinto muito — retrucou Morfeu, vestindo as luvas e acenando para que os cavaleiros élficos retornassem. — Ela precisa fazer isso sozinha. Você a verá em breve; todos nós vamos nos reencontrar. Uma grande família feliz.

— Não! — exclamou Jeb, perdendo o controle. Ele investiu, mas os elfos foram mais rápidos e o contiveram, com os dedos machucando seus cotovelos feridos. — Deixe-a sair do País das Maravilhas, seu filho de inseto...

Morfeu pressionou um dedo contra a boca de Jeb.

— Ah-há! Essa, você já usou.

Jeb puxou a cabeça para trás, deixando o dedo do intraterreno suspenso no ar.

Sob a luz da lanterna, as joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficaram escuras, da cor de sangue seco.

— Ora, ora. Isso são modos de tratar seu salvador? — Ele fez cara amuada. — Além do mais, como posso deixar Alyssa sair se ela não está comigo? Da última vez que soube, ela estava entrando no jardim das almas. Mas, quando terminar por lá, ela virá ao meu encontro. Ela ainda tem um papel muito importante a desempenhar.

— Certo. Porque ela é a herdeira do trono. — Jeb ouviu, incrédulo, suas próprias palavras ecoarem, como se tivessem saído da boca de outra pessoa. — Não sei como, mas é ela.

— Bravo! — Morfeu aplaudiu. — Estão vendo o que eu disse, irmãos cavaleiros? — Olhando para os cavaleiros por cima do ombro de Jeb, Morfeu deu tapinhas no peito em cima da gravata vermelha, como se estivesse tomado pela emoção. — Mais esperto que um mortal comum. Pena que tenha as limitações físicas de um.

— Não importa. Ela está fora do seu alcance. — rebateu Jeb, dando um tranco nos elfos; havia muitos o segurando, contudo. — Ela deve estar dentro do cemitério agora, e não pode forçá-la a fazer nada. Você mesmo disse que as Twids não deixam você entrar.

— É verdade. Mas ela encontrará, sozinha, o caminho para o castelo. No momento em que ela perceber que estou mantendo presa a coisa que ela mais ama no mundo, virá rastejando para mim, com as asas a reboque.

Morfeu levantou uma mão e fez um sinal.

Os cavaleiros élficos soltaram Jeb. Ele girou sobre o calcanhar e atirou a mochila sobre eles, dispersando o grupo feito pinos de boliche. Esticando o braço, ele bateu o punho na testa de Morfeu, desequilibrando-o. Um dos cavaleiros se esforçou para permanecer no lugar e manter o espelho aberto. Antes que Jeb pudesse se catapultar e atravessá-lo, raios de luz azul grudaram em sua pele e roupas, feito eletricidade estática. Eles o arrastaram, controlando-o como se fosse um fantoche, até ele ficar de frente para Morfeu. Os raios vinham da ponta dos dedos do intraterreno.

Morfeu aproximou-se.

Jeb tentou recuar, mas seus músculos travaram, ficaram paralisados.

— Durma — disse Morfeu num tom simples, e levou a mão azul fluorescente à testa de Jeb, cujo corpo foi percorrido por uma luz pulsante. Ele sentiu um gosto doce, parecido com leite e mel, e depois sentiu o aroma de lavanda. Com os dedos apertando o tecido macio da camisa de Morfeu, Jeb lutou para manter-se acordado. Mas a luz era muito reconfortante... muito suave... muito calorosa. Contra sua vontade, suas pálpebras ficaram cada vez mais pesadas e ele caiu no chão, em sono profundo.


Capítulo 4


Terceira Lembrança —
Engaiolado

O crânio de Jeb latejava, e havia sangue saindo de seu couro cabeludo e entrando em seus olhos.

Ele limpou o líquido viscoso e focou no lugar à sua volta. Morfeu o tinha trazido para o castelo Vermelho depois de colocá-lo sob o feitiço do sono. Largou-o dentro de uma gaiola na masmorra. Jeb não queria ter tomado a poção encolhedora quando acordou, mas o homem-inseto havia lhe dado um ultimato.

Primeiro, ele havia ameaçado matar a Al. Mas Jeb rebateu, dizendo que o homem estava blefando, pois sabia que ela era indispensável. Depois, Morfeu usara de outra arma, ameaçando fazer com que a frágil mãe de Al ultrapassasse o limite da loucura. Isso, ele faria.

A Al havia lutado muito para salvar a mãe. Ela morreria se a perdesse para a loucura. Então, Jeb não hesitou em levar o frasco aos lábios.

Seu corpo balançava, mas não devido aos efeitos colaterais da poção. A plataforma debaixo dele oscilava por causa de suas tentativas de abrir as barras de sua prisão usando a cabeça — uma atitude desesperada que havia resultado em nada além de um corte logo acima da testa. A magia de Morfeu — um fio elétrico e azul — mantinha a porta da gaiola fechada e imóvel.

— Que bela coisa você fez, não? — entoou uma voz feminina e irritante. — Morfeu escolhe quem tem o poder de suprimir sua magia. Obviamente, você não é um dos escolhidos.

Jeb fez cara feia para sua companheira de prisão. Era uma lóri — um intraterreno parecido com um periquito, mas normalmente do tamanho de um ser humano. Como os dois tinham encolhido, a única coisa que a distinguia dos pássaros do mundo humano eram as túnicas de cetim cor de creme com estampas jacquard colocadas sobre suas asas, corpo e pernas, e seu rosto humanoide enfiado no meio de plumas vermelhas, como se fosse uma máscara. Ele foi cutucado por um bico mais parecido com o chifre de um rinoceronte, posicionado no lugar onde deveria haver um nariz. Os lábios da criatura se agitavam furiosamente.

O pior de tudo era que a voz dela poderia derrubar a Torre de Pisa com uma sílaba. Quando falava, era como se alguém tivesse implantado cirurgicamente alto-falantes nos ouvidos de Jeb e travado o volume no “mais surdo que uma porta”. Ela era uma das muitas razões pelas quais ele tentava sair da gaiola com tanta insistência.

A luz bruxuleante das velas na parede iluminava seu ar de arrogância e deixava o resto da masmorra nas sombras. Depois que a voz da lóri parou de ecoar, Jeb investiu:

— Olhe aqui, Lorina. Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu marido. — Ele apontou a criatura que roncava abaixo da gaiola, de aparência tão estranha quanto à da esposa, com o corpo de um dodô, cabeça de homem e mãos que se projetavam da ponta de suas asas atarracadas. — Foi ele quem manteve Alice Liddell presa em uma gaiola igual a esta aqui, muitos anos atrás. É por culpa dele que a minha namorada é a única que pode destronar a sua rainha. Será que já lhe ocorreu que é por isso que vocês estão presos?

— O Charlie não fez nada disso! — berrou a lóri, pairando dentro da gaiola. — Alguma vez já lhe passou pela cabeça que o Morfeu é um cara de pau mentiroso?

Só em todos os segundos de todas as horas. Jeb apoiou-se nas barras. Seus joelhos cederam, enfraquecidos pelas tentativas de abri-las usando cada músculo de seu corpo. Ele desabou sobre o piso de metal, empurrando uma fatia de pera já amarelada que estava ao seu lado, feito um pequeno sofá. A gaiola era um pequenino forte inexpugnável. Mas não importava. As barras poderiam ser feitas de espaguete cru, e mesmo assim ele não conseguiria ajudar a Al. Mesmo que escapasse, com este tamanho, Jeb não conseguiria derrotar ninguém.

Charlie, o marido dodô de Lorina, não poderia ajudar muito. Ele estava preso por algemas e correntes de ferro e cochilava recostado na parede. Embora a gaiola estivesse pendurada bem perto da cabeça do dodô, não havia nada que Charlie pudesse fazer.

Provavelmente, Morfeu havia lançado no homem-pássaro gigante o mesmo feitiço do sono que jogara em Jeb, mas Charlie já estava se libertando dele.

Lorina acomodou-se no poleiro no centro da gaiola, balançando sobre a cabeça de Jeb feito uma acrobata no trapézio. A cara dela estava tão vermelha quanto as suas penas, o que fazia as espadas e copas estampadas nas bochechas quase desaparecerem.

— Como vamos ficar exilados nestas instalações fedendo a urina, terá bastante tempo para ouvir a verdade — bramiu ela.

Jeb esfregou a cabeça para apaziguar a dor lancinante.

— Se puder baixar a voz uns dois decibéis, eu agradeceria.

— Abaixar minha voz?

— Aaaii. — Jeb enterrou o rosto nas mãos.

O trapézio em miniatura rangia a cada balanço, piorando a poluição sonora.

— Para a sua informação, minha rainha adora o som da minha voz. Ela até o elogia...

O ronco do dodô parou, e ele estalou os lábios.

— Isso é porque ela protege os ouvidos com cera de abelha, Ó, Mais Adorável das Loucas.

— Seu mentiroso! — retrucou Lorina, balançando o poleiro tão depressa que Jeb achou que ia vomitar.

— Estou preso com correntes de ferro — avisou Charlie depois de um bocejo. — Não tenho forças para mentir. — Em seguida, pegou novamente no sono.

Isso pareceu calar Lorina, pelo menos temporariamente.

Jeb aproveitou o silêncio para pensar. A esta altura, Morfeu já deve ter contado a Al sobre sua verdadeira linhagem, sobre o que espera dela. Deve estar tão chocada... tão apavorada. Jeb ansiava tanto abraçá-la que era como se houvesse uma bigorna lhe pressionando o peito.

Aquele mariposo deveria ter contado a verdade desde o começo. Ela nunca escolheria ficar. Mas Morfeu sabia disso, e a manipulou sob o pretexto de que ela poderia curar a maldição da própria família. Jeb queria arrancar as asas pretas de Morfeu e enfiá-las goela abaixo por tê-la enganado, porque não havia cura para o parentesco, e ele sabia muito bem disso.

— Foi a Vermelha quem colocou Alice na gaiola. — A lóri voltou à carga. — Não o Charlie.

— Mas o seu marido escolheu mantê-la presa na gaiola — acrescentou Jeb, mesmo sabendo que não deveria. Ele cobriu as orelhas para a estrondosa refutação, mas Lorina só soltou um suspiro.

— Não. O Charlie tentou fazer a coisa certa pela menina — disse ela, consideravelmente mais ponderada agora. — Ele planejava mandar Alice de volta para o reino humano sem a Vermelha saber, mas a rainha descobriu e os arrastou para uma caverna nos picos mais altos e mais remotos do País das Maravilhas, sem que nenhum de nós soubesse. Ela deixou o Charlie com a vítima dela para poder encenar seu plano mestre, sabendo que Alice seria cuidada por um prisioneiro que nunca poderia escapar. Porque, como você deve saber, os dodôs não podem voar. Ela me privou de meu marido durante anos. Ele era prisioneiro, assim como a mortal.

— Se isso te ajuda a dormir de noite, tudo bem, passarinha.

Uma comoção de poeira e asas, jacquard e cetim, subitamente surgiu e o atacou.

— Você pode mostrar algum respeito e ouvir?!

Jeb levantou as mãos para se defender.

— Está bem. Shhhh. Eu vou ouvir.

Não havia nada mais que ele pudesse fazer. Morfeu lhe dissera que, assim que Alyssa fosse coroada rainha, ela abriria o portal para o reino humano. Acreditando ou não nisso, Jeb não poderia fazer nada a não ser ter esperança. Ele não tinha nenhum poder ali. E ter consciência disso lhe devorava as entranhas a cada minuto.

Acomodada diante de Jeb sob um monte de tecido luxuoso, a lóri olhou por entre as barras e resmungou alguma coisa para o marido que dormia.

— Seu velho e imprestável fezzerjub. Eu é que tenho que te proteger. Nem sei por que me casei com você.

O dodô resfolegou e murmurou, sonolento:

— Porque se casar com o bobo da corte era a única maneira de ter uma posição na corte Vermelha, Ó, Senhora das Nênias. — E o ronco voltou.

— Viu como deu certo? — resmungou ela, fazendo beicinho com os lábios vermelhos em forma de coração, sob a curva de seu bico. — Aquele Rábido ossudo e seu coração negro de pedra. — Ela alisou as penas da nuca e cobriu-as com uma rede decorada por lantejoulas.

Jeb estendeu a mão para pegar o dedal cheio de água que seu captor havia deixado ao lado da fatia de pera. Em suas mãos, ele era do tamanho de uma caneca de café. Ele o passou para sua colega de cela, que o pegou com as asas e deu alguns goles.

— Me diga uma coisa, Lori. Se o que você está dizendo é verdade... — Observando a atitude defensiva na cara bicuda, ele refez a pergunta para poupar os ouvidos. — Como você escolheu compartilhar o seu lado da história, talvez pudesse me dizer de que maneira Morfeu teve participação na prisão de Alice.

Ela sacudiu as gotículas de seus lábios.

— Não teve participação nenhuma. Ele gostava muito de Alice e teria feito qualquer coisa para que ela chegasse em casa sã e salva. Mas, na hora em que ele lhe ofereceu seu conselho como lagarta, alertando-a para que evitasse o castelo da Rainha Vermelha a todo custo, sua metamorfose aconteceu. Quando ele emergiu, totalmente transformado, e soube o que havia acontecido com Alice, ficou furioso.

— Está tentando me dizer que ele possui alguma consciência?

— Pelo menos no que dizia respeito a Alice, sim. — A lóri ajustou a suntuosa túnica que ficava escorregando devido à falta de ombros. — Morfeu usou todos os seus recursos de magia e acabou encontrando ela e meu marido escondidos nas cavernas dos picos mais altos do País das Maravilhas. Infelizmente, já era tarde demais para Alice. — Lorina devolveu o dedal a Jeb, agora com metade da água.

Jeb endireitou o corpo, fazendo a gaiola balançar.

— Então por que ele quer ajudar a Rainha Vermelha a colocar outra rainha no trono, quando ele deveria odiá-la por ter mantido Alice presa em uma gaiola por tantos anos?

— Talvez ele esteja bravo por Grenadine não ter tentado encontrar Alice assim que esta foi capturada. Mas Grenadine perdeu sua fita de memória e esqueceu a criança.

— Um bom regente teria mais do que uma fita para lembrá-la; teria se certificado de que tudo e todos estavam em seu lugar.

— A minha rainha é uma boa regente!

Jeb encolheu-se com o urro agudíssimo.

O ronco do dodô parou.

— Minha vociferante esposa diz a verdade, rapaz. Morfeu parece guardar ressentimento pelo que ele acredita ser negligência, mesmo tendo sido somente um descuido.

Jeb balançou a cabeça diante de todas as falhas que havia no raciocínio de todos.

— Não. Há mais coisas nessa história.

— Você tem bons instintos, cavaleiro mortal.

Jeb olhou para cima, na direção da voz tilintada. Uma luz brilhante flutuou pela pequena janela e entrou pela pesada porta da masmorra. Jeb levantou-se e agarrou as barras da gaiola, inclinando a cabeça para ver melhor.

Gossamer.

A pequena fada adejou para perto e sussurrou algo para o mágico fio azul que fixava a porta de arame, entrando na gaiola. O fio azul deu um nó em si mesmo depois de ela fechar o trinco.

Ela cintilava feito pequenos fogos de artifício ao pairar no lugar, estudando Jeb com uma expressão de solidariedade.

Como os dois agora tinham o mesmo tamanho, Jeb se lembrou de uma pintura que vira certa vez, de um artista tcheco, Viktor Olivia. O pintor era famoso por retratar uma fada que seduzia homens, levando-os a se embebedarem com absinto. Gossamer personificava essa criatura: uma forma feminina perfeita coberta de poeira verde, e nua, com escamas brilhantes cobrindo-a como um biquíni minúsculo.

Ele havia sentido, quando saiu da sala de espelhos, que Gossamer estava do lado dele e de Alyssa.

— Você veio ajudar — lançou ele, esperançoso.

Uma chave de cobre, da mesma cor dos olhos dela e quase do comprimento total de seu torso, pendia de seu pescoço. Seu olhar caiu para os pés delicados, como se estivesse lutando contra si mesma.

— Eu teria vindo mais cedo, mas Morfeu está sempre vigiando o espelho. Agora que ele está com Alyssa, preparando-a para a coroação, estará ocupado demais para ficar de olho no resto de nós... até o fim.

— O fim? — Jeb apertou a barra ao lado dela, concentrado em seu olhar de libélula. — Você tem que me contar tudo.

A fada olhou para Lorina, que estava se esticando para a porta de arame.

— Você sabe muito bem que não tem o poder de sair desta gaiola, a menos que eu a abra para você.

Bufando, a lóri voltou a voar para o trapézio.

Gossamer conduziu Jeb para a fatia de pera e os dois se sentaram. Seu perfume frutado se impunha sobre o fedor da masmorra e o acalmou o suficiente para ele poder ouvi-la.

A fada colocou as mãos sobre as de Jeb, que descansavam sobre os joelhos.

— Eu já traí meu mestre o bastante vindo até aqui, e sua ira será enorme. Eu só posso dizer que, dentro de uma hora, Alyssa estará comprometida para sempre, amarrada ao País das Maravilhas para toda a eternidade. Morfeu planejou tudo para enviá-lo de volta, cavaleiro mortal... mas sem ela.

Uma veia na têmpora de Jeb começou a se contorcer feito uma serpente em uma bandeja quente. Ele deu um pulo para cima e bateu a cabeça nas barras novamente, tentando amolecer o fio azul, incapaz de controlar a fúria exasperada que lhe fervia por dentro. Mais sangue escorreu por sua têmpora.

— Você tem que me soltar! Preciso impedir isso!

— Sim, sim! Nós também! — intervieram o dodô e sua esposa, em coro. — Temos que ajudar a Rainha Grenadine a manter a coroa!

— Naturalmente — afirmou Gossamer, pegando a mão de Jeb e puxando-o para perto dela. — Vocês todos terão a oportunidade de lutar e de mostrar a sua lealdade.

— Mas não posso lutar assim. — Jeb chutou uma semente do tamanho de seu pé. — Você trouxe algum bolo do crescimento?

— Não. Não é a força de seu corpo que salvará Alyssa, e sim a força de seu coração de artista. Mas eu posso assegurar que não sairá deste lugar em sua forma atual.

A lóri desceu de seu poleiro e ralhou com a fada.

— Agora, me escute, sua lacraiazinha. Este rapaz não tem papel nenhum. Ele é, no máximo, coadjuvante. Eu sou a criada da rainha, e Charlie é o bobo da corte. Nós deveríamos ser a sua prioridade. Somos honoráveis membros da corte, os únicos que podem dar um basta nesta paródia!

Acelerando as asas até virarem um borrão enevoado, Gossamer flutuou e colocou as mãos nos quadris.

— Quanto ao seu papel, Lorina: você pode abrir as correntes de seu marido, pois preciso falar com o mortal a sós e tenho pouca tolerância ao ferro. — Ela abriu a porta da gaiola e lhe deu a chave.

A lóri esvoaçou-se veloz, numa comoção de exibicionismo e má vontade.

— Venha, venha, Doçura Selvagem — chamou Charlie, encorajando a esposa enquanto ela flutuava em torno dele, subindo e descendo, incapaz de manter-se firme em alguma altura. — Apresse-se, por favor. O ferro está me dando fisgadas. Poxa vida! Não é tão difícil assim... tente novamente!

A cara de Lorina ficou ainda mais vermelha.

— Tente, com a ponta da asa, usar uma chave do mesmo tamanho que a sua cabeça, seu meleca! Alguns de nós não foram abençoados com dedos, sabia?

Enquanto o casal se ocupava, Gossamer sentava-se novamente ao lado de Jeb.

— Você disse que meu coração de artista pode salvar Alyssa. Naquele quarto na mansão de Morfeu, também... você disse que eu tenho o poder dentro de meu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Minha namorada está prestes a morrer para mim e para a família dela. Não pode haver escuridão maior — sussurrou Jeb com lágrimas de frustração que lhe surgiram nos cantos dos olhos.

— Morreria por ela, cavaleiro mortal?

A espinha de Jeb se retesou. No passado, toda vez que ele protegera Alyssa, sempre se jogara sem nem pestanejar. Seria capaz de morrer por ela?

Quando o pai de Jeb morreu em um acidente, foi Alyssa quem o salvou. Ele não conseguia acreditar que tinha chegado a pensar em morar em Londres sem ela. Precisava dela, todos os dias. De seu sorriso compreensivo, de como ela fez suas cicatrizes parecerem medalhas de mérito sob seu toque, e de seus olhos incríveis. Mesmo tendo passado por tantas provações quanto ele, havia uma luz dentro dela que nunca se enfraquecia. E essa luz não somente a tornava linda por fora, mas também permitia que ela trouxesse vida aos incríveis mosaicos que fazia.

Era essa luz — tanto a interna quanto a externa — que o tinha levado a desenhá-la e pintá-la tantas e tantas vezes.

Ele olhou para Gossamer, quase incapaz de conter a emoção, agora que havia encontrado uma saída.

— Ela é minha melhor amiga.

Minha musa, meu pincel, minha arte, meu coração. Tudo isso estará morto sem ela.

Esfregando o rosto, ele limpou o líquido que havia caído de seus olhos e escorrido pelo rosto:

— Eu a amo. Sim, eu morreria por ela. É isso que preciso fazer?

A fada o encarava sem piscar.

— Está disposto a ir além da morte? A se perder de todos, até de você mesmo, em um lugar onde as lembranças se esvaem em uma maré escura como tinta? Pois, para libertar Alyssa, você terá que tomar o lugar da Rainha de Marfim na caixa linguardarte onde ela se encontra presa.

Jeb lembrou-se da água escura dentro da caixa que ele havia visto na sala dos espelhos da mansão de Morfeu e da cabeça fantasmagórica que havia lá dentro, e seu coração disparou. O sentimento de autopreservação o invadiu e sua mente começou a tentar encontrar outra maneira. Mas, bem lá no fundo, ele sabia que não havia alternativa e que o tempo de Al estava se esgotando. Ele só lamentava não poder dizer a ela, nem uma única vez, com sua própria voz, como se sentia, antes de ser trancado para sempre.

— Aceito.

— E assim será. — Gossamer ficou de pé e estendeu os braços. Fraco e entorpecido, Jeb aceitou seu abraço. Ela o apertou com força e voou com ele para fora da gaiola, pousando no chão. — O mortal concordou em ser o herói de seu reino. Procurem honrar sua bravura — disparou as palavras para Lorina.

Lorina havia conseguido soltar o marido. Ela se sentou no ombro dele, abanando-se com uma asa. Com os olhos arregalados, ela aquiesceu em silêncio — a demonstração mais sincera de louvor que poderia ter oferecido. O dodô ajoelhou-se ao lado de Jeb, uma presença enorme e plumada.

— Teremos uma dívida eterna para com você, rapaz. O que podemos fazer para ajudar?

Gossamer apontou para um canto da masmorra, onde um cobertor de juta cobria uma cama, chegando até o chão.

— Tragam-me o que está debaixo daquela cama.

Entorpecido por uma mistura de incredulidade e temor, Jeb observou o dodô trazer a caixa linguardarte.

Lorina ficou perplexa.

— Morfeu manteve a Marfim escondida aqui?

Gossamer assentiu.

— Por sugestão do Rábido. Ele disse que este era o único lugar no castelo onde ninguém viria à procura dela.

Depois de pedir a Charlie que abrisse a tampa e arrumasse uma pedra onde eles pudessem subir para ver lá dentro, Gossamer pediu ao estranho casal que se afastasse um pouco para que ela e Jeb tivessem um pouco de privacidade.

Jeb afagou as rosas brancas aveludadas que adornavam o exterior da caixa, fascinado pela beleza do rosto da Marfim quando este veio à tona. O olhar cristalizado de assombro dela passava dele para a fada, e voltava — cautelosamente curioso. Ele estremeceu ao pensar que tomaria o lugar dela.

Tinha mesmo que fazer isso?

Jeb sentiu que Gossamer observava seu semblante.

— Devo perguntar uma última vez se está seguro de sua decisão — indagou ela. — Porque, como você está escolhendo ser trancado, e selando essa escolha com seu sangue, a caixa nunca o libertará. Ninguém poderá salvá-lo. Você está oferecendo sua eternidade pela da Marfim, uma rainha que você nem sequer conhece.

Jeb sentiu um nó na garganta.

— Não. Estou trocando a minha eternidade pela da Al.

Gossamer sorriu com ternura.

— Em seus sonhos, vi certa vez que você teme não ser bom o bastante para a menina. Depois de tal sacrifício, ninguém poderá questionar seu valor como homem nem seu amor por ela. — Ela o beijou no rosto, deixando um calor que penetrou seu coração e conseguiu derreter uma pequena porção do terror congelante que lá se escondia.

Gossamer deu-lhe um pincel e recuou.

— Agora, use o poder que somente você pode exercer. Pinte as rosas com o seu sangue.

Jeb foi tomado por uma tontura. Murmurou coisas... sem sentido, temerosas... palavras agonizantes que ele sabia serem as últimas.

Depois, canalizou a raiva, o terror e o desejo por um futuro que ele nunca teria para as estocadas do pincel. Cada botão branco, tingiu-os de vermelho até perder-se dentro das sombras de seu trabalho, e fundiu-se à sua obra-prima, tornando-se um só.


Capítulo 5


A Decisão da Mariposa

A cena se estendeu e ficou turva enquanto Morfeu era arrastado para fora das lembranças de Jebediah e depositado de volta na chaise-longue. A escuridão deixava a sala pesada, mas ele nem se mexeu para ligar a luminária. O cenário completamente enegrecido parecia combinar com os pensamentos obscuros que lhe cruzavam a mente.

Ele passou o dedo pela coxa, acompanhando as listras do tecido risca de giz e alisando as rugas.

Por que se sentia tão aborrecido? Ele havia encontrado exatamente o que esperava encontrar. As fraquezas de Jebediah estavam à mostra: um ódio que poderia facilmente ser manipulado, um sentimento de impotência alimentado por um pai violento e crítico, um ciúme que provocava um sentimento temerário de proteção e que lhe custaria a própria vida.

O que Morfeu não tinha esperado encontrar, entretanto, era tanta semelhança entre ele e o rapaz. Os demônios do passado atormentado de Jebediah não eram muito diferentes dos seus. Ele sempre se surpreendera sentindo inveja dos humanos... por nunca ter tido o carinho de um pai ou de uma mãe. Simplesmente por ocupar seu lugar no mundo, ele também compreendia o medo de talvez nunca chegar a conhecer completamente a confiança e a afeição de outra pessoa.

Contudo, no passado, Morfeu nunca havia considerado isso uma coisa ruim. Ele apreciava ser uma alma reclusa e independente. Por vezes, até se vangloriava, quando lhe convinha ser o centro das atenções, naturalmente. Mas a atenção, a afeição ou a confiança não eram coisas de que ele precisava. Não até aparecer Alyssa. Depois que ela escolheu ignorá-lo, ele não conseguiu funcionar... sentiu-se desastrado e incompetente.

E agora, depois de colocar-se no lugar de Jebediah, Morfeu compreendia, mais até do que desejava, como o lado humano de Alyssa funcionava. Embora metade dela tivesse asas e pudesse flutuar sobre as inseguranças e trivialidades dos mortais, a outra metade tinha seus alicerces nas coisas que qualquer outro humano ansiava: confiança e segurança.

Tendo visto a coragem e a engenhosidade de Jebediah, bem como sua lealdade a Alyssa, Morfeu soube, sem sombra de dúvida, que aquilo era exatamente o que o rapaz oferecia a ela: uma rede de segurança e emoção que a salvaria caso a queda fosse muito alta.

Não era de admirar que ela fosse tão cativada por ele. Não era de admirar que ele exercesse poder sobre ela. Diabos, o próprio Morfeu ficou morbidamente fascinado pelos honoráveis traços morais do rapaz, incomuns em um humano tão machucado. Morfeu ficou tentado a recuar e deixar Jebediah ter seu momento de felicidade. Alguns poderiam até dizer que ele o havia merecido por desejar abdicar de seu futuro, de suas lembranças e de sua vida por Alyssa.

Morfeu rosnou e caiu para a frente com os punhos cerrados, tentando suavizar o estranho peso em seu peito. O rapaz não ficaria aqui para sempre. Era um mortal. Um dia, morreria de velho, no mínimo, e Alyssa voltaria a ser um alvo fácil.

Alvo fácil.

A mandíbula de Morfeu se contraiu. O romance não era uma coisa justa. Nem era um jogo. Era guerra. E, como em qualquer outro campo de batalha, não lhe cabiam a compaixão e a misericórdia.

O besouro-tapete estava certo. As emoções humanas eram coisas imprevisíveis e poderosas. Elas haviam penetrado na cabeça de Morfeu, enfraquecido sua determinação.

Com os cotovelos nos joelhos, ele levantou as mãos com as palmas para cima, incapaz de ver a silhueta delas no escuro. Ele conjurou um pouco de magia na ponta dos dedos, em bolas elétricas de plasma do tamanho de ervilhas, e depois enviou as esferas para todos os cantos da sala, os raios azuis deixando rastros como eletricidade estática. Elas subiram pelas paredes e em seguida se uniram na forma de uma mulher. A luz pulsava em ritmo hipnótico.

Imaginar Jebediah com Alyssa, mostrando a ela os caminhos do amor, domando seu espírito selvagem com suas corriqueiras convenções humanas, tudo isso queimou a garganta de Morfeu com o sabor amargo da inveja.

Ele não queria que o lado selvagem de Alyssa fosse dominado por nenhum outro homem, não desejava compartilhar nenhuma parte dela. Morfeu desejava os dois lados: sua inocência e seu espírito desafiador.

Que graça poderia haver na dependência? Que espontaneidade poderia haver em um mundo previsível? Ele poderia lhe oferecer uma eternidade de desafios e paixão, de momentos ternos e calmos nas profundezas de chamas vibrantes e tempestades devastadoras — a tranquilidade em meio ao caos.

O lugar dela era com ele, usando trajes de soberana. Ele tinha tanto a ensinar-lhe sobre o reino intraterreno, sobre as glórias da manipulação e da loucura. Se Morfeu alimentasse o faminto lado intraterreno de Alyssa, suas inseguranças e inibições humanas diminuiriam e, com o tempo, poderiam desaparecer. Ela nunca mais ansiaria pelo amor seguro de Jebediah.

Morfeu invocou sua magia de volta, recolhendo as espirais de luz azul até ficar novamente envolto na escuridão. Suas asas varreram o chão quando ele se levantou, e ele as ergueu num arco que quase tocava o teto.

Nada mais de deliberações. Ele tinha tentado fazer o que era justo em instâncias passadas e, sem exceção, isso sempre o prejudicara. Podia ignorar a pontada de culpa que lhe agitava o peito, mas não podia abdicar de suas necessidades pelas necessidades de Jebediah. Ele nunca mais seria ele mesmo sem Alyssa ao lado — a chama para sua Mariposa. Morfeu não pararia até que ela voltasse para o lugar que lhe pertencia, no País das Maravilhas.

Para vencer, ele jogaria sujo, colheria os despojos do coração dela do modo como fosse necessário, não importava quanto isso custasse ao rapaz mortal. Afinal, este era o modo intraterreno. Fazer menos que isso faria de Morfeu um humano. E ele sabia, agora mais do que nunca, que essa era a última coisa que jamais desejou ser.


SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS
Epígrafe

ÀS VEZES PENSO EM SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS ANTES DO CAFÉ DA MANHÃ.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Um

Mortalidade

Capítulo 1

Deportação

Algumas pessoas podem dizer que é impossível morrer e viver para contar. São as pessoas que nunca experimentaram a mágica. Quanto a mim, sou tataraneta da Alice que inspirou Lewis Carroll. Acreditei no inacreditável por mais de sessenta e quatro anos, desde que tinha dezesseis e descobri que o País das Maravilhas era real e cheio de seres caprichosos, misteriosos e loucos, governados por acordos e enigmas. Ainda assim, às vezes, por mais que você acredite no impossível, as coisas não saem como você as planejou. Toda mágica pode encontrar um obstáculo de vez em quando.

Por exemplo, nunca esperei que meu cadáver acabasse numa caixa de sapatos. É isso que os caixões crematórios me lembram... uma caixa de papelão do tamanho de uma pessoa. O caixão não é muito confortável. Não há a forração de veludo para suavizar a base de madeira. Nenhuma almofada para acomodar minha coluna curvada. E nada de roupas, além de um vestido de papel para cobrir minha pele velha e enrugada.

O cheiro de papelão se fixa ao meu nariz e as rodas de aço da maca giram ao longo do corredor, rangendo em algum lugar sob mim, junto a passos familiares. Sinto a transição do ambiente fresco e de temperatura controlada onde o legista atestou minha “morteza” (como os seres do País das Maravilhas diriam). Ele, então, pôs uma identificação de aço inoxidável no meu peito e fechou uma tampa sobre mim, me prendendo na escuridão.

A maca sacode ao entrar num lugar muito mais quente. O cheiro de ovo podre do propano confirma nossa localização. Já visitei este lugar. Nos últimos meses visitei vários crematórios, quando não havia ninguém por perto, de madrugada. Para conhecer melhor o gigantesco forno de tijolos à vista que estaria esperando para queimar minha carne. Para encontrar o projeto perfeito, com um banheiro e um espelho de corpo todo do outro lado do salão.

Assim que optei pelo crematório do Pleasance Rest Cemetery, me preparei para morrer.

Meu plano original era usar Tetrodotoxina. Em doses pequenas, subletais, ela deixa a vítima num estado de quase morte por dias, permitindo que ela mantenha a consciência. Morfeu, porém, não concordava. Ele disse que a margem de erro entre o estado de quase morte e a morte de verdade era pequena demais no mundo mortal e não algo com o que se brincar. Ele não queria que eu arriscasse. Então, ofereceu uma substituto do País das Maravilhas: uma poção que funciona quase da mesma forma, mas que tem um antídoto cem por cento garantido.

Bebi a dose de quase morte nesta manhã e, dez horas mais tarde, ainda sinto o gosto amargo e anestésico, como cravos dançando no fundo da garrafa de vinagre. Não consigo morder a língua para aliviar o efeito. A mágica me deixou catatônica — meus olhos fechados e imóveis, meus batimentos e respiração reduzidos a um ronronar indetectável por quaisquer instrumentos humanos.

Meu lado intraterreno se remexe dentro do meu crânio, me garantindo que isso vai dar certo, mas meu lado humano instintivamente se encolhe quando o medo tranca minha garganta. Não posso gritar para dizer a todos que estou viva. Minhas cordas vocais não vão funcionar. A claustrofobia, minha velha inimiga, me deixa toda arrepiada. Sei o que está acontecendo ao meu redor, apesar de não conseguir abrir os olhos ou mover meus membros. Todos os cheiros, sons e sensações táteis são ampliados por minha incapacidade de reação.

Os paramédicos que atenderam, nesta manhã, à chamada de emergência da minha neta de vinte e sete anos me declararam morta — fulminada por um ataque cardíaco. Foi insuportável ouvi-la chorar e gritar. Isso despertou lembranças da minha maior perda — da morte de Jeb, três anos antes. Uma faca ainda é cravada no meu peito sempre que me lembro do nosso último adeus.

Mas Jeb me mandou ser firme. E ensinei aos meus netos o mesmo — sempre encarar as coisas. Ela ficará bem. Não tenho dúvida disso porque ela é muito parecida comigo, para além de seus cabelos loiros, olhos azuis e curiosidade. Ela é teimosa, leal e uma sobrevivente.

Assim que os paramédicos levaram meu corpo ao necrotério, tudo funcionou como o previsto.

Minha família sabia que cemitério eu escolhera e as quatro exigências do meu testamento: nada de exibição pública do meu corpo, nada de velório, cremação em doze horas depois da minha morte e a dispersão das minhas cinzas no mesmo local onde as de Jeb foram jogadas, sob o salgueiro em nossa casa de campo. A árvore tinha um significado especial, por ter sido gerada de uma mudinha do salgueiro que dividia os quintais da nossa casa quando éramos crianças.

Tais pedidos nada convencionais não abalaram minha família, considerando que me tornei uma mulher muito excêntrica.

Depois da morte de Jeb, eles me viram vagar pela casa de campo, reunindo os mosaicos que fiz ao longo da vida, cheios de paisagens bizarras e místicas — com títulos como A Batida do Coração do Inverno, Dunas de Xadrez e O Ventre do Monstro —, e guardando-os no sótão, ao lado de outras quinquilharias, incluindo um anúncio de um passeio pelo Tâmisa, em Londres. As últimas coisas que guardei ali foram duas chaves: uma que pertencia à minha mãe, e era capaz de transformar qualquer espelho num portal, e outra que podia abrir o jardim das almas do País das Maravilhas. Esta última foi um presente dado a Jeb, depois que ele desistiu da sua musa, de modo a satisfazer a necessidade do reino interior por sonhos vívidos e cheios de imaginação, conectando nossos mundos em paz ao longo do processo. Ele desistiu do que fez dele único, a fim de manter as crianças humanas seguras. Um ato de coragem que seus filhos e netos jamais tiveram o privilégio de saber. Era essa a lembrancinha de que eu tinha mais dificuldade para me desapegar, porque era uma homenagem à coragem e ao caráter nobre de Jeb — as duas coisas que eu mais amava nele. No entanto, como Rainha Vermelha do País das Maravilhas, eu não tinha motivo para guardar chave tão sagrada.

Escondi tudo num baú no sótão e o tranquei. Então pus a chave do baú em meio às páginas da minha velha coleção de Lewis Carroll. Jeb e eu éramos donos da casa e do terreno que a cercava, e insistimos, em nossos testamentos, para que o lugar permanecesse sempre com a família. Assim, se nossos descendentes um dia precisassem me encontrar, poderiam. Eles só precisam procurar as pistas, como um dia eu fiz. Seguir meus passos e acreditar no impossível — em contos de fadas e desejos e mágicas.

Sempre os mantive no escuro quanto ao nosso legado, dando-lhes uma chance de viver uma vida normal. Até mesmo ordenei que os insetos e flores ficassem em silêncio. Agora sou a única capaz de ouvir esses sons do mundo interior, e as coisas continuarão assim enquanto eu estiver reinando como a Rainha Vermelha. Contudo, se algum familiar procurar com presteza, vai encontrar a verdade que escondi para eles.

Em todos esses anos, eles aceitaram meus caprichos porque sempre os respeitei e os amei incondicionalmente. E agora conto com a lealdade deles. Todo o meu plano de morrer depende da execução do meu testamento.

A cremação era a única forma de evitar que drenassem meu sangue, bombeassem formol em minhas veias e cerzissem minhas pálpebras — todos aqueles procedimentos mórbidos e intrusivos para embalsamar e preservar o corpo mortal. Fui abençoada ao longo dos meus oitenta anos de vida humana com saúde e uma mente aguçada. Nunca precisei de marca-passo e não tenho próteses, implantes ou dentaduras, então não há nada que possa explodir no forno. Isso significa que não haverá incisões nem extrações. Era importante que eu permanecesse intacta — por dentro e por fora.

Todavia, se o Rábido Branco não se apressasse e chegasse aqui com o antídoto para me tirar deste estado, nada importaria. Vou virar um monte de cinzas. E Morfeu terá de encontrar um lar novo para meu espírito eterno... um novo corpo para eu habitar.

Ele ficará furioso se isso acontecer e nunca me deixará esquecer isso. Uma eternidade é muito, muito tempo para ouvir eu avisei, entoado continuamente com um marcado sotaque londrino.

— Não me importo — disse ele há duas semanas, enquanto discutíamos meu êxodo do reino humano e tomávamos chá durante uma das minhas visitas ao País das Maravilhas em sonho. Ele levou a xícara à boca, seu rosto curioso perfeito e jovem como sempre. Ele bebeu e deixou a xícara de lado novamente. — Muitas coisas podem dar errado. Devo estar lá para executar meu plano.

— Vou agir sozinha — declarei. Estudei a cama com dossel e a lareira instaladas na diagonal em relação a enormes poltronas vitorianas ao lado de uma mesa oval, buscando conforto no cenário. — E vamos seguir meu plano. — Aqueles seriam meus últimos instantes no reino humano. Tinha de ser de acordo com a minha vontade. Contive uma descarga de tristeza e tentei exibir o mesmo controle que Morfeu exibia com sua xícara de chá, mas o líquido quente molhou minha mão velha quando meu pulso tremeu. Gritei.

— Alyssa, por favor. Permita-me. — Com seus dedos lisos e elegantes, ele cuidadosamente segurou meus dedos enrugados, limpando o chá e acariciando a mão queimada com um guardanapo.

Permita-me. Nós dois sabíamos que ele falava de outras coisas além da limpeza do chá derramado.

Tantos anos passamos juntos nos meus sonhos — e tantos outros na nossa infância —, com Morfeu me treinando e me ensinando sobre meu reino e o mundo. Não havia oportunidades para ficarmos sozinhos, já que ele mantinha o véu do sono descoberto para eu poder interagir com o Rábido, Chessie, Marfim, as criaturas e meus súditos.

Isso mudou quando fiquei viúva. Realizava meus deveres reais todas as noites e lutava para ser forte, até que meu luto pela morte de Jeb ficou tão intenso que as lágrimas se acumulavam em meus cílios, me cegando. Morfeu — sentindo minha vergonha, porque rainhas não choram — insistia que era hora do chá, que tomávamos sozinhos nos aposentos reais que um dia pertenceria a nós como rei e rainha.

Ali, na nossa solidão, escondidos de olhos predadores e cercados por exuberantes tapetes vermelhos e cortinas douradas, eu me perdia em minha dor. Permita-me, dizia ele. Estendendo os braços, ele me abraçava enquanto eu chorava. Noite após noite, durante um ano, até que finalmente não conseguia mais chorar.

Pouco depois, a atenção de Morfeu mudou. Seus carinhos se tornaram menos confortantes e mais íntimos. Estava constrangida demais para reagir, tímida demais em meu corpo velho.

Um ser místico eternamente jovem cortejando uma velha — teria rido do absurdo disso, não estivesse tão afetada pela devoção cega dele e pela intensidade do seu amor.

— Mesmo que usássemos seu plano... — Morfeu falava baixinho e de mau humor ao esfregar o guardanapo entre meus dedos, enxugando os resquícios de chá. — ... ainda assim eu deveria estar lá nas coxias, para supervisionar o espetáculo.

Franzi a testa para ele. Sua teimosia, juntamente com a dança dos vaga-lumes em seus cabelos desgrenhados e seus traços bizarramente belos, me fez lembrar outra noite em que nos sentamos neste quarto juntos — há várias décadas —, quando ele tentou me convencer a usar a coroa de rubi pela primeira vez. Quando tentei convencê-lo a me devolver meu desejo para eu poder fugir do País das Maravilhas, curar a maldição da minha família e manter Jeb em segurança. Eu era uma pessoa diferente na época, cheia de juventude, aspirações humanas e inocência.

Nosso quarto real se tornou uma lembrança dolorosa da velhice e decrepitude. Ansiava criar lembranças novas aqui, depois de desistir de tentar superar a beleza caótica do País das Maravilhas, quando fui coroada rainha de novo e permaneceria com dezesseis anos para sempre — jovem, cheia de energia e tão sedutora quanto o homem alado que governaria ao meu lado.

Até então, eu não me encaixava. Eu era uma foto deixada ao sol e chuva, minhas cores vibrantes se desbotando melancolicamente e ganhando um tom amarelado. Meus poderes intraterrenos ainda eram fortes, mas estavam presos num vaso gasto pelo tempo. Meus ombros pareciam curvados e pesados demais, eu raramente usava minhas asas. Do que mais sentia falta era voar.

Eu me perguntava se era assim que a Rainha Vermelha se sentiu no fim e por que ela permitiu que Morfeu a convencesse a voltar ao País das Maravilhas, abandonando seus descendentes semi-humanos. Por fim, foi plano dela voltar, apesar de não querer fazer aquela jornada sozinha. Ela brigou com Morfeu, dando início a uma série de eventos e manipulações que acabaram por me levar à coroa e me tornar rainha. Algo pelo qual aprendi a agradecer, apesar de na época ter reclamado do presente. Demorei muito para admirar totalmente a preciosa imortalidade, e jamais desvalorizaria isso novamente.

Depois que Morfeu terminou de limpar o chá derramado, tirei a mão da dele e timidamente cobri meu pescoço com o lenço de seda, tentando esconder minhas peles murchas. As pessoas diziam que eu era linda para a minha idade. Que parecia ao menos vinte anos mais nova. Todavia, em comparação à beleza sobrenatural e imutável de Morfeu, eu me sentia velha.

— Não quero você lá — insisti, determinada a mantê-lo distante da casa funerária. — Já basta você ter me visto murchar como uma uva-passa ao longo dos anos. — Até minha voz soava enferrujada, como se as palavras jorrassem da minha garganta e língua em porções cáusticas.

Morfeu apoiou os cotovelos na toalha da mesa, aproximando-se ao máximo com o jogo de chá entre nós. Seus cabelos azuis tocaram-lhe os ombros, animados e encantados — um contraste marcante com as ondas brancas reduzidas a um coque preso atrás da minha cabeça.

— Você está no fim de sua crisálida, meu amor. Esta etapa é a mais difícil, acredite. Uma batalha furiosa e incômoda de identidade, antes de se libertar e se transformar na criatura de luz e criatividade que sempre foi seu destino. Posso mantê-la atenta. Para evitar quaisquer... distrações.

Ele olhou para minha aliança, que eu ainda não tinha tirado. Aquilo se tornara mais do que um símbolo da nossa devoção. Tornara-se um símbolo da minha vida humana, e eu pretendia usá-la até deixar tudo para trás.

Com o dedinho, Morfeu circulou a aliança, cuidando para não tocar os diamantes ou o suporte de prata que os mantinha no lugar.

— É importante que você não permita nada que a impeça de dar o salto final. Você sofreu a perda daqueles que se foram há tanto tempo. Eles estão em paz. Deixe que a paz deles lhe dê paz. Senão, você será afetada... incapaz de agir com a mente ágil. O foco é fundamental para que qualquer um dos planos funcione.

— Já sei disso — respondo, um aperto no peito dolorido. — Você tem medo de que eu fique senil. De eu não ser capaz de lidar com isso.

Ele suspirou, acariciando meu polegar com o dele.

— Não senil. Nostálgica. Acontece a humanos. Você mesma me contou, enquanto eu a via amadurecer do refinamento à sabedoria.

— Refinamento. — Tentei um sorriso hesitante diante do esforço dele em me encantar. — É assim que vocês falam hoje em dia?

Ele me encarou sem hesitar.

— Seus olhos não perderam a incandescência; nem a mente, a inteligência. Você não é ingênua. Você é minha torta de ameixa, e sempre foi. Já lhe disse isso repetidas vezes, não é?

Ao menos uma vez por noite nos meus sonhos, Querida Mariposa.

Não respondi em voz alta, assim como não revelei minhas maiores inseguranças: estava com vergonha de ele me ver tão decadente... Não suportava a ideia de ele ter qualquer lembrança de mim como um cadáver naquele caixão de papelão — assim como eu vi Jeb depois da morte dele, antes de ser cremado.

— Uma rainha não deveria exigir resgate — sentencio. Ainda o encaro, maravilhada com aquelas íris coloridas que devolvem a mim o mesmo olhar de nossa infância, cheio de surpresa e afeto. De certa forma, ele via para além do meu corpo velho e enxergava a menina que fui, e eu queria muito conseguir me ver como ele me via. — Uma rainha deve merecer o respeito do seu reino e de seus súditos. E a admiração do rei.

Ele pegou minha mão novamente e beijou cada um dos nós dos dedos cheios de artrite.

— Ah, eu lhe garanto Você sempre mereceu isso. Na verdade, planejo mostrar-lhe a profundidade de minha admiração. — A palavra profundidade saiu de sua garganta como um urro. — Ainda que sejam necessárias várias vezes para convencê-la, finalmente chegará o momento de você ser minha.

Meu rosto ficou vermelho. Apesar de todos os anos em que ele me elogiou e me provocou com insinuações, e a despeito de tudo o que vivi como mãe, esposa e avó mortal, ele ainda conseguia me fazer enrubescer.

— Ah, aí está. — Ele passou o dedo por meu rosto enrugado e sorriu, satisfeito demais consigo mesmo. — Não perdi meu encanto.

— Como se isso fosse possível, para o mestre da sedução verbal — provoquei.

Seu humor mudou para a insolência num piscar de olhos.

— Você logo verá que isso é mais do que conversinha, minha rosa.

Fiquei ainda mais vermelha, sentindo-me mais jovem do que nunca. Ele sempre causava esse efeito em mim. Sempre fez com que eu me sentisse viva e desejável. Exceto pelas vezes que ele me desafiava ou me deixava furiosa.

Ele se recostou em seu lugar, as asas erguidas.

— Seu corpo está cansado. Deixe-me fazer isso por você, para você poder descansar — tentou ele uma última vez.

— Você me ensinou a ser forte e astuciosa. Devo dar sozinha este último salto para dentro da toca do coelho. — Uma sensação inesperada de vulnerabilidade me fez tremer. Peguei minha xícara de chá para absorver seu calor. — Mas você estará lá para me pegar?

— Estarei lá esperando um beijo arrasador para compensar todos os meus problemas — respondeu ele sem hesitar.

Sorrindo, peguei o jogo de xadrez. Morfeu ficou observando atentamente eu animar as peças para que atuassem no meu grandioso plano de deixar o reino humano e esconder meus vestígios com a ajuda do meu conselheiro real, além de pedaços de osso fornecidos pelas fadas, um saco de cinzas, dois trajes de disfarce, uma mosca comum e um punhado de duendes. Enquanto eu falava, seu olho adornado com joias brilhava num tom esverdeado — incomodado, mas esperançoso. A ansiedade que emanava dele era visceral.

Era inconcebível que tivéssemos um relacionamento de sessenta e três anos — platônico — sem um quê de tensão. Apesar de ele gostar muito de me ver andar na ponta dos pés na corda bamba da sedução contida, ele manteve seu juramento e respeitou minha decisão de ser fiel a Jeb. Ele esperou três anos, enquanto eu sofria a morte do meu marido mortal e preparava minha família para minha partida iminente. Era essa a profundidade do respeito dele por mim. Ele teve meu respeito em troca. E muito mais...

Agora chegou o dia de recompensá-lo por sua paciência e estou começando a me arrepender por não deixá-lo planejar minha morte... por não deixá-lo controlar o espetáculo. Provavelmente, tudo seria muito mais fácil. Eu já estaria em seus braços e em sua cama — uma jovem rainha borboleta, governando meu reino, embriagada de poder, loucura e paixão.

Não. Eu consigo. Posso provar que sou capaz, calculista e forte, como todas as boas rainhas deveriam ser.

O único papel de Morfeu no meu plano era mandar o Rábido com o antídoto. Assim que meu cúmplice chegar, tudo se encaixará e fugirei para o País das Maravilhas. Como um corpo não pode ser exumado depois de reduzido a cinzas, ninguém saberá que ainda estou viva e apenas fui embora deste mundo para sempre.

Uma pontada de tristeza segue-se a esse pensamento quando finalmente me dou conta. Acabou. Estou pronta para dar um fim... para começar meu futuro imortal. Vivi uma vida plena aqui. Minha família é saudável e feliz. Estamos no auge. Todos os sonhos humanos foram realizados e meu coração está firme e forte novamente.

Se bem que, por causa disso, há muita coisa a ser deixada para trás. Não há nada inconcluso, mas ainda assim é difícil dizer adeus para sempre. Assim que a coroa for colocada em minha cabeça para dar início à minha imortalidade, não terei de usá-la constantemente para manter minha juventude, mas terei de ficar no País das Maravilhas. Como Marfim uma vez me disse, o tempo é complicado ao se passar pelo portal a fim de retornar ao mundo humano... há de se imaginar uma hora específica, ou o relógio retrocede e o portal deixará você no mesmo momento de sua passagem.

Se eu tentar cruzar as fronteiras para o reino humano depois de partir, voltarei para sempre a este momento e terei oitenta anos para sempre, ou automaticamente envelhecerei todo o tempo que se passou e virarei pó na hora. Acrescente-se a isso o fato de eu estar morta aos olhos de todos — jamais poderia explicar meu reaparecimento sem causar terror e confusão — e ir e voltar não será mais uma opção.

Uma muralha impenetrável está prestes a se erguer entre mim e minha família, deixando-nos sem nada além de memórias.

O rosto de Jeb reapareceu em minha mente antes que eu pudesse impedir... como seus olhos verdes brilhantes me encararam pouco antes de ele os fechar na morte. Como eles estavam tão cheios de amor e gratidão por todos os sonhos que compartilhamos.

Sinto algo crescer na minha garganta e uma dor atrás dos olhos. No meu peito, a pequena identidade de metal parece uma pilha de tijolos.

Pare. Não posso fazer isso agora. Tenho de me concentrar na fuga. Morfeu tinha razão. Pensar naqueles que amei só vai me atrapalhar. Vou manter as lembranças sob controle... esquecer como encarei a morte da mamãe e do papai, como achei que jamais superaria a dor. Como Jeb foi meu porto seguro, como sempre. Assim como fui para ele, quando a mãe dele morreu.

É fútil pensar nessas coisas agora, porque, assim que Jeb morreu, todo o mundo se distorceu — adquiriu uma nova forma que eu não reconhecia. As coisas cotidianas se tornaram estranhas e desagradáveis. Com a morte dele, eu não fazia parte de mais nada.

Minha metamorfose estava completa assim que meu marido mortal deixou de respirar. Só o que me restava agora era sair do meu velho casulo.

Um cheiro novo entra em meu entorno de papelão — loção pós-barba ou desodorante —, me obrigando a voltar ao presente enquanto dois homens conversam do lado de fora do caixão.

— Última da noite, Frank?

— É isso, Brian. Chegou há algumas horas. Só entrega. E é para se apressar com ela. Quer que eu fique e ajude?

Tenho dificuldade para respirar. Meu plano não permite duas testemunhas. Só uma. Enquanto espero pela resposta do operador do crematório, meu coração se encolhe dentro de mim, cheio de medo. O órgão parece tremer, apesar de não haver pulsação em meus pulsos ou ouvidos. Só uma vibração fria e indiscernível por trás do meu esterno, como gelatina gelada retirada da fôrma.

— Não — diz finalmente Brian, mexendo em alguns papéis. — Posso fazer isso de olhos fechados.

A ironia é risível. Se tudo sair como planejado, ele não só terá seus olhos fechados, como também estará dormindo e sonhando.

— Vá para casa e fique com sua família — conclui Brian. — Diga a Melanie e às crianças que mandei um oi.

— Entendi. Até amanhã.

As portas se fecham com um rangido e o alívio toma conta de mim, mas por pouco tempo. Os cliques e claques da esteira mecanizada balançam as paredes de papelão do meu caixão e agitam meus ossos rígidos. Sinto um balançar leve sob minha coluna enquanto meu caixão segue por uma esteira com rolos de metal. À medida que estes se movem, as chamas crepitam mais alto, aquecendo meus pés no ponto onde a parede sob a sola dos meus pés se aproxima perigosamente da entrada do incinerador.

Era para o Rábido estar aqui antes que o forno de temperatura controlada estivesse quente o bastante para acionar o mecanismo de abertura. As coisas estão acontecendo fora da sequência e rápido demais. Meus músculos doem e ganham vida, mas estão rígidos como aço. Imóveis. Um vislumbre de outra lembrança me arrepia: quando a Rainha Vermelha controlou meu corpo naquele último dia em Qualquer Outro Lugar. Quando eu era uma marionete dela. Sinto-me tão impotente agora quanto naquele tempo.

Estou prestes a ser envolta em chamas. Meu corpo não vai sobreviver. De todo modo, preciso sobreviver. Prometi voltar como eu mesma. Inteira. É uma promessa que não posso quebrar. Morfeu esperou demais por meu retorno. Não posso decepcioná-lo.

A dúvida ergue sua cabeça horrível: o que farei? Não consigo me mover, não consigo me livrar... não sem o antídoto. Um vazio dói por trás dos meus canais lacrimais enquanto desejo que uma enchente me liberte e encha toda a minha caixa com um oceano de lágrimas para me salvar do fogo. Mas meus olhos podiam muito bem estar cheios de areia.

Chega de drama, meu amor. Use sua mágica. Improvise e encontre uma forma de escapar.

Não tenho certeza se é a voz de Morfeu na minha cabeça ou se é minha própria voz. Ouvi o sotaque dele e sua insistência tantas vezes ao longo da vida que eles estão entranhados em mim como se fossem meus.

Seja qual for o caso, isso desperta minha determinação. Há um motivo para eu ter vindo a este lugar na noite passada, quando tudo estava escuro e em silêncio: para poder anotar mentalmente todas as coisas que poderia animar se precisasse. Para poder entender a logística do forno crematório. Para poder usar minha mágica às cegas.

Concentro-me no maquinário da esteira. Aprendi uma coisa ou outra sendo esposa de um mecânico. As molas do mecanismo se contraem enquanto as imagino se retraindo. O movimento aciona as amarras e a porta de metal se fecha com um baque. Minha caixa para imediatamente ao atingir o obstáculo.

— Você só pode estar brincando comigo — resmunga Brian. Ele mexe na maçaneta da porta e bate nas dobradiças. — Pronto. Agora, sim.

Ele empurra meu caixão de volta para a esteira de metal, criando espaço para a dobradiça se abrir. Minha mente procura outra forma de detê-lo quando o ouço gritar “Mas o que é que...?”, pouco antes de ouvir o som do seu corpo caindo no chão. O caixão bate na porta fechada novamente.

— Rainha Alyssa — uma voz fina soa do outro lado do papelão.

Nikki, sua fadinha maravilhosa. Um formigamento se irradia pelos meus lábios, o fantasma de um sorriso esperando para se abrir. Meus dedos dos pés se dobrariam de empolgação, não fosse minha paralisia.

A tampa do caixão se abre e as asas de vinte fadas pairam ao redor do meu rosto — lufadinhas de vento com cheiro de canela e baunilha.

Mãozinhas do tamanho de joaninhas seguram minhas pálpebras, abrindo-as diante de um brilho âmbar. Ainda não consigo virar a cabeça, mas pela minha visão periférica a galhada do Rábido aparece sobre a borda do caixão, seguida por um par de olhos rosados brilhantes.

— Atrasado estou — desculpa-se ele.

Tento menear a cabeça, mas não consigo.

Todo o seu rosto aparece diante de mim.

— Arrumá-la, Alteza. Levá-la para casa, finalmente.

Casa. A palavra passeia por minha mente, cheia de promessas e esperanças. Imagino-me voando com Morfeu pelos cenários bizarros e irregulares do País das Maravilhas. Como vai ser bom me sentir pertencente a um lugar de novo. Fazer parte e nunca ter de abandonar ninguém novamente.

O Rábido estica o braço magro e derrama em minha garganta algo de uma garrafa vermelha. Um leve toque de frutas vermelhas misturado a menta arde em minha língua. Meu coração ganha vida, batendo com tanta força contra meu esterno que eu perco o fôlego. Em pouco tempo, sou capaz de abrir os olhos sem a ajuda das fadas. Elas se dispersam com risadinhas e pairam ao redor do adormecido operador do crematório, caído no chão de cimento.

Pisco com força e rapidez. Meus canais lacrimais funcionam e meus olhos se enchem de água. O sal fere e coça.

Depois, meus dedos dos pés e das mãos latejam e os músculos despertam, moles e resistentes, como elásticos esticados demais. Enquanto me sento, minhas velhas articulações estalam.

O Rábido sobe na beirada da inclinação e segura o caixão, mantendo-o ao meu nível.

— Perdoe o Branco Rábido. Para todo o sempre, ao seu lado estarei.

Acaricio sua cabeça macia.

— Nenhum perdão é necessário. O que importa é que você está aqui agora. Alguém o viu saindo do banheiro?

O Rábido faz que não.

— A mosca no muro ficou de olho no futuro. — Ele ri da rima e aponta para a parte de cima da porta que ostenta a única janela do salão. A mosca anda pelo vidro do outro lado, numa demonstração de sua devoção inabalável.

O Rábido abre o sorriso sorrateiro que aprendi a apreciar, enquanto sua mão esquelética me entrega uma mochilinha. Olho dentro e está tudo ali: meu colar com o rubi, minha aliança de casamento, os trajes de disfarce, um saco de cinzas e pedacinhos de osso, uma muda de roupa, uma faca e três lembranças da minha vida humana que serão as únicas coisas que levarei comigo ao transpor os limites do País das Maravilhas.

Primeiro, coloco o colar em volta do pescoço e aperto a chave contra o peito, saboreando o poder que ela contém.

O operador do crematório ronca no chão. Ele parece com frio e nada confortável, mas sei que não está. Seus sonhos são cálidos e sensuais. As fadas voam ao redor dele, as asas batendo à velocidade de beija-flores, enquanto elas espalham partículas que são como dentes-de-leão cheios de feromônios. As sementinhas caem sobre o rosto sorridente do homem, levando seu inconsciente a imaginar as fantasias mais carnais. Torço o nariz, com vergonha até de imaginar o que ele está sonhando. Ele provavelmente vai ter uma ressaca de sonhos por uma semana.

Ainda que ele não vá sofrer nenhum efeito físico duradouro, as fadas estão explorando os pensamentos secretos dele. Quando eu era mais nova, teria me arrependido de tê-lo usado em meu plano. Agora, não. Quando ele acordar, daqui a mais ou menos uma hora, sua dor de cabeça insuportável o impedirá de questionar como conseguiu me cremar enquanto ele dormia. Ele só irá querer uma aspirina e sua cama macia em casa.

O fim justifica os meios.

Uso a faca para cortar uma abertura na lateral do caixão e tirar minhas pernas, lenta e cuidadosamente. Não consigo me mover tão rápido quanto antes. Meus pés descalços tocam o chão frio, o vestido de papel fazendo barulho. O Rábido se vira de costas enquanto tiro o vestido e o jogo dentro da caixa, depois visto um moletom e botas cinza — as roupas mais confortáveis e discretas do meu armário. Repreendo-me por me esquecer das roupas íntimas, mas não importa o que estou vestindo agora, porque no País das Maravilhas Morfeu encheu todos os armários do castelo com camisolas e lingeries de renda, cetim e veludo — um guarda-roupa digno de uma rainha.

Hoje, o disfarce esconderá meu traje simplório. Coloco o pé no tecido mágico. Para virar uma camaleoa, só preciso vestir o capuz e me concentrar nos arredores, meu corpo refletindo o cenário de fundo.

Mas primeiro...

Sem eu nem pedir, o Rábido me entrega o saco de cinzas e ossos e minha aliança de casamento. Olho o anel. Jeb o fez para mim quando tinha a capacidade mágica de pintar coisas e lhes dar vida. Quando sua musa se tornou uma entidade viva. Ele me serviu tanto como anel de noivado quanto como anel de casamento e era indestrutível. Pelo menos era o que pensávamos. A única vez que ele perdeu um de seus doze diamantes foi por descuido da minha mágica, quando eu a estava praticando.

Estava do lado de fora da nossa casa de campo, tentando fazer o salgueiro dançar, quando o diamante caiu na grama. Procuramos e procuramos, mas nunca o encontramos. Depois de uma semana, ele apareceu de novo, nascendo do solo na forma de uma flor parecida com vidro. Era como se o diamante fosse uma semente, tendo dentro de si a força da criação mágica de Jeb.

O cheiro de terra presente na lembrança dá lugar ao cheiro do propano do forno. Abro o saco e derramo as cinzas e ossos no caixão, mantendo os movimentos metódicos e precisos para a nostalgia não tomar conta de mim novamente.

Depois de esvaziar o saco, beijo minha aliança e a coloco em cima do montículo.

— Rábido, derreta isso com sua mágica.

Meu conselheiro real se aproxima, olha pela abertura e estreita seus olhos brilhantes até que eles irradiem um calor vermelho. Enquanto ele se concentra, as faixas de prata se fundem, reduzindo os onze diamantes a cinzas.

Coloco a placa de identificação dentro do caixão e leio o que está gravado no aço: Alyssa Victoria Gardner Holt. Sinto um nó na garganta. É a última vez que meu nome humano me definirá.

Reposicionando a tampa, ordeno que o mecanismo da porta funcione. Entrefecho os olhos diante do calor e das chamas, enquanto as portas se abrem o bastante para eu empurrar o caixão pela esteira, a porta se fechando em seguida. Ela se fecha completamente, tanto que nem mesmo se pode ver o brilho alaranjado lá dentro.

Alguns segundos mais e eu estaria presa ali. Agora, depois que o papelão se queimar todo, vai parecer que eu estava. As prateleiras de metal na parede contêm vários cubinhos de papelão. Dentro estão os restos mortais dos corpos que vieram antes de mim e agora esperam ser transferidos para suas urnas.

Mas meus “restos mortais” são únicos. Os diamantes de Jeb esperam lá dentro — sementinhas mágicas. Quando as cinzas forem lançadas no lugar onde as dele foram absorvidas na terra sob nosso salgueiro, flores nascerão, uma parte dele e minha. Unindo o que restou de nosso lado humano, numa última homenagem a toda a beleza que ele criou durante a vida.

Seguro-me para não chorar e pego a mochila enquanto o Rábido veste outro traje de disfarce, o qual encolhe até caber em seu corpo de coelho. Mentalmente, pergunto à mosca se o corredor está livre.

Ela responde num sussurro:

Está tudo bem, Rainha Alyssa...

Os outros humanos se foram. Não há nada além de umas traças por aqui.

Desnecessário ficar invisível, então.

— Nikki — sussurro, e a fadinha balança as asas, soltando a dose final de pó de fada no homem adormecido. Então ela reúne suas companheiras e nos segue porta afora. O banheiro fica a poucos passos do outro lado do corredor comprido e escuro. Sigo tomando cuidado para não esmagar as traças que caminham perto dos meus pés e dos pés do Rábido. Sorrio ao ver os insetos acompanhados de uma fila enorme de baratas, besouros e aranhas.

Rainha Alyssa! Rainha Alyssa! Tão triste vê-la partir...

A mosca voa ao redor da minha cabeça, acrescentando suas despedidas à confusão.

— Sentirei saudade de vocês também — digo, lutando contra uma onda de melancolia. Será a última vez que ouvirei esses cumprimentos confusos e zunidores. No País das Maravilhas, os insetos são... bem diferentes. Menos inócuos e bonzinhos. Alguns são maus e letais, e nada pequenos. Mas conheço todos os segredos deles e todas as suas fraquezas — graças ao sábio guardião do País das Maravilhas.

Nosso desfile entra no banheiro e para diante do espelho. Em vez de me ater à minha aparência velha e enrugada, imagino o relógio de sol que cobre a toca do coelho em um jardim londrino. O vidro racha como gelo no lago e, no reflexo entrequebrado, o relógio de sol aparece, marcado por uma réstia de pôr do sol rosa. É cedo e ninguém ocupa a trilha ainda. Como precaução, visto o capuz e o Rábido faz o mesmo.

Só precisamos de um ou dois pensamentos sobre nossas cercanias e seremos invisíveis.

Usando minha chave, miro numa fissura na forma de buraco de fechadura, minúsculo e intrincado.

O portal se abre. O Rábido me cutuca com seus dedos magros e entrelaço meus dedos aos dele. Junto com as fadas e nossos insetos companheiros, passamos pela abertura liquefeita. Uma brisa fria me atinge, assim como o cheiro de mato e rosas cobertos de orvalho reluzente.

Os botões de rosa dizem:

Bem-vinda, Majestade. Os anos ficaram para trás. Logo você estará desabrochando como nós novamente.

Sorrio. O Rábido me puxa rumo ao relógio de sol que já expõe a toca do coelho. Ele está ansioso para ir embora. Mais insetos se juntaram a nós; alguns pelo terreno: besouros, centopeias e escorpiões; outros pela brisa: borboletas, mariposas, vaga-lumes...

Saem em enxame do mato e ficam dando a volta em mim e em meu conselheiro real — um arco-íris encantado, espesso e brilhante, sob a luz rosada do céu.

As borboletas cantam:

Vida longa à Rainha Alyssa. Que você seja para sempre jovem, louca e livre.

Muitos deles pousam sobre mim, as asas acariciando meu rosto e pescoço através do traje de disfarce, e percebo que não terei mais de me tornar invisível. Meus amigos insetos estão aqui para me dar proteção, como sempre estiveram.

O Rábido me solta, seus dedos de cadáver tocando os meus enquanto ele segue as fadas e mergulha na toca do coelho sem olhar para trás.

— Atrase-se não, Majesta-a-a-ade — o grito do Rábido ecoa até mim, afastando-se mais e mais à medida que ele desce, sem peso, como uma pena ao vento.

Ao contrário do meu séquito interior, não consigo ir embora sem uma olhada para trás.

Paro, olhando em meio à nuvem de milhares de asinhas adejando diante da paisagem tremeluzente no horizonte. Meu peito se aperta.

Pego as lembrancinhas da minha mochila. Três garrafas de vidro decoradas: a primeira cheia de pedrinhas, a segunda com conchas e a última com um pó prateado. Uma olhada nas três e as lembranças contra as quais eu lutava iluminam minha mente, graciosa e lentamente, como a aurora invadindo o mundo imóvel que desperta.


CONTINUA

A MARIPOSA NO ESPELHO


Capítulo 1


As Maquinações
da Mariposa

— Tem certeza, Morfeu?

— Tenho — respondeu Morfeu, tirando as luvas e enfiando-as no casaco. — Você, entretanto, parece que precisa ser convencida.

A magia pulsava nervosamente na ponta de seus dedos, uma luz azul pulsante logo abaixo da pele. Por causa da ponte de ferro que havia lá fora, seus poderes estavam limitados a alguns truques inofensivos, mas suficientes para dar o seu recado, se necessário.

O besouro-tapete — que de tão grande chegava à altura dos ombros de Morfeu, depois de este haver tomado uma poção encolhedora — engoliu em seco por trás de suas muitas mandíbulas estalantes. Sua pele carpetada tremia.

— Não, não. Por favor, o senhor interpretou mal as minhas ressalvas. — Os braços ramosos do inseto vibravam enquanto ele folheava as marcações em ordem alfabética de sua prancheta, as quais continham todas as lembranças perdidas no País das Maravilhas. — É que ficar espiando os momentos esquecidos de um ser humano parece uma maneira tediosa de se passar uma tarde, só isso...

Morfeu mudou de posição, e suas asas lançaram uma sombra sobre a cara do besouro.

— Ah, mas este humano, em especial, tem muito a me ensinar.

Esse humano, em especial, havia conseguido capturar algo que Morfeu desejava mais que tudo neste mundo.

— Sente-se — disse o inseto, apontando para uma cadeira branca de vinil —, e eu prepararei as memórias para o senhor.

Morfeu jogou as asas para o lado, sentou-se e deu uma tragada no narguilé fornecido por seu anfitrião como cortesia. O tabaco doce e fresco passou ardendo pela sua garganta. Ele soprou baforadas de fumaça no ar, formando com elas o rosto de Alyssa. Era fácil imaginar o modo como seus olhos sempre se cobriam de um azul gélido quando ela o via, cheios de excitação e temor ao mesmo tempo. Adorava isso nela: a sagacidade de seus instintos intraterrenos alertando-a a não confiar nele, suavizada pelas emoções humanas forjadas durante a infância que passaram juntos.

Antes dela, Morfeu levara a vida em solidão, sem nunca precisar de ninguém. Ele não fazia a menor ideia do feitiço que ela lhe lançara. Ela era mais que uma decepção, sempre jurando devoção ao lado errado. Seu encanto, porém, era inegável. Principalmente quando ela o desafiava ou o encarava com sua indignação de justiceira, o que a deixava com os lábios deliciosamente posicionados quando rangia os dentes.

Morfeu colocou o narguilé de lado, embora a sensação de queimação em seu peito não tivesse nenhuma relação com o fumo. Alyssa era a única que poderia aplacar o incêndio que havia ali, pois fora ela quem havia atiçado aquelas chamas.

Os dois tinham passado cinco anos juntos — como amigos de infância —, até que a mãe dela a arrancou dele, Alyssa sangrando e ferida, e ele ficara se remoendo de remorso e com culpa por causa de um juramento imprudente que havia feito, no qual prometeu se manter longe dela.

Manter-se afastado da amiga fez com que ele sentisse o gosto da solidão pela primeira vez. Mesmo todos os anos de claustrofobia que ele passara aprisionado em um casulo antes de encontrá-la... nem mesmo eles o prepararam para o sofrimento da ausência dela.

Então, por fim, ela havia voltado para ele, fazendo-o reviver todos os antigos sentimentos que ele pensava ter dominado. Daquela vez, também, tudo foi muito rápido. Ela partira novamente, por escolha própria. Restaram a dor e a solidão excruciantes. Debilitantes.

Havia apenas seis meses que ela partira do País das Maravilhas, e ele não compreendia este vazio corrosivo que só poderia ser preenchido pelo toque dela, por seu perfume, sua voz. As solitárias criaturas mágicas não ligavam para essas bobagens; não precisavam de companhia, abominavam a bagagem emocional. Sua afeição e lealdade pertenciam ao agreste País das Maravilhas e a nada nem a ninguém mais.

Então o que ela havia feito para mudar isso?

Ultimamente, cada vez que ele via o próprio reflexo, não mais reconhecia a Mariposa no espelho. Estava incompleto, enfraquecido; e menosprezava isso.

O menosprezo era ainda maior porque ele havia se esforçado tanto para cortejá-la, enquanto ela oferecia seu afeto a um reles mortal.

Morfeu suprimiu um rosnado. Ele não conseguia compreender a sorte de Jebediah, como um humano podia ter tanto poder sobre uma rainha intraterrena. Como um simples rapaz era capaz de controlar um coração real e mestiço tão multifacetado, um espírito propenso ao pandemônio e à loucura. Jebediah puxava Alyssa para baixo, acorrentando-a ao tédio e à banalidade do reino humano.

Ela precisa ser libertada.

Morfeu havia considerado a possibilidade de matar seu rival, mas Alyssa jamais o perdoaria. Não. Chegara o momento de tomar medidas criativas.

Se Morfeu soubesse no que Jebediah havia pensando durante sua jornada pelo País das Maravilhas — todos os momentos em que ele se sentiu mais aterrorizado, mais desanimado —, conheceria as fraquezas e as forças do mortal, intimamente. Ele saberia como enfraquecer Jebediah, contrapondo-o a si mesmo.

Essas fraquezas o derrotariam melhor do que Morfeu o faria. E depois, quando tivesse destruído a confiança de Alyssa em seu cavaleiro mortal, Morfeu estaria lá para confortá-la e conquistá-la.

Voltaria a ouvir a risada de Alyssa do modo como ela ria quando os dois eram crianças, e teria de novo a oportunidade de ser presenteado com o seu sorriso deslumbrante.

Ele voltaria a ser completo.

— Por aqui, por favor — pediu o besouro para que Morfeu o seguisse.

Morfeu tirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo. Quando o inseto abriu a porta para um compartimento de memórias sem janelas, o cheiro de amêndoas vindo de uma travessa de biscoitos de luar fresquinhos que estava em uma mesa de canto se espargiu no ar. Havia uma chaise-longue na cor creme colocada contra a parede, e uma ornamentada luminária de piso feita de latão iluminava o espaço com uma luz discreta.

Morfeu concentrou-se no pequeno palco do outro lado do compartimento. Sentiu o coração palpitar de ansiedade num ritmo profundo e firme. As cortinas de veludo vermelho aguardavam o momento de se abrirem para mostrar as memórias de Jebediah na tela prateada.

— Como o senhor entrará na cabeça do rapaz para visitar suas lembranças perdidas, sou obrigado pelas normas a avisar-lhe que... as emoções humanas podem ser muito poderosas... podem nos fazer ver as coisas sob uma perspectiva totalmente diferente — advertiu o besouro.

— Estou contando com isso. — Morfeu deu um sorriso afetado. — Conhece aquele ditado sobre amigos e inimigos?

O besouro coçou a pele enrugada.

— Hum... mantenha seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda?

Morfeu acomodou-se na cadeira estofada e alisou a calça risca de giz ao cruzar as pernas apoiando um tornozelo sobre o outro.

— Melhor ainda é se colocar no lugar de seu inimigo. É a melhor maneira de controlar seus passos. Ou de apagá-los, caso tenha a oportunidade.

O besouro, voltando a tremer, esticou o braço fininho e apertou um botão na parede. As cortinas do palco se abriram, revelando uma tela de cinema.

— Imagine o rosto do rapaz enquanto olha para a tela em branco e vivenciará o passado dele como se fosse hoje.

As palavras do besouro eram ensaiadas, até mesmo mecânicas, mas a pulsação de Morfeu ficou acelerada. Ele esperou o besouro desligar a luz. Assim que o inseto saiu e fechou a porta, o corpo de Morfeu desmembrou-se nas juntas, flutuando pela escuridão como se fosse feito de partículas de pó. Todos os seus pedaços se uniram novamente na tela prateada, em cores vivas e cinematográficas, até que ele entrou na cabeça de Jebediah, apropriando-se do seu corpo, sentindo suas emoções.

Naquele momento, Morfeu entregou-se à experiência e, pela primeira vez na vida, passou a ver as coisas como um humano.


Capítulo 2


Primeira Lembrança —
Kriptonita

Jeb acordou em uma cama suspensa.

Estava nu. Por que estava nu?

Antes que esse fato pudesse ser totalmente registrado, trinta fadas ou mais, do tamanho de mariposas, surgiram do ar, acariciando cada parte do seu corpo e sussurrando-lhe. Ele tentou mexer os braços e pernas. As asas das fadas — que batiam na velocidade das asas de um beija-flor — liberavam partículas parecidas com as pétalas delicadas de um dente-de-leão, que, de alguma maneira, o imobilizaram. As sementes exalavam um perfume de canela e baunilha que foi inundando sua consciência, até que a sala ficou totalmente fora de foco.

Quando a névoa se dissipou, ele estava em sua cama, em casa. A noite adentrava pela janela e Taelor estava em cima dele, seminua. A unhas pintadas à moda francesinha percorreram os pelos de seu peito e abdômen, dirigindo-se ao cós de sua calça jeans.

Aquilo não podia ser verdade. Taelor e ele tinham brigado antes do baile de formatura, haviam terminado tudo.

Com delicadeza, ele a virou, colocando-a debaixo dele, e apoiou-se nos cotovelos, afastando o cabelo do rosto dela. Mas não foram os olhos de Taelor que encontraram os dele. Foram os olhos gélidos e azuis de Alyssa — encarando-o com um ar de admiração e inocência. Os dedos dele pareciam grandes e desajeitados nas têmporas dela.

A Al na cama dele?

Não. Isso não podia acontecer. Alyssa nem havia beijado homem algum. E Jeb nunca tinha sido o primeiro de nenhuma garota.

A Al era intocável para ele. Ela já passara por muitos episódios turbulentos em sua vida. E ele não era exatamente um exemplo de estabilidade.

Ele tirou as mãos dela e ficou de joelhos.

— Jeb, você não me quer? — perguntou Al, passando a mão no peito dele.

Ele não conseguiu responder. Seus dedos coçavam e pareciam esticar-se, como se estivessem crescendo. Ele ergueu as mãos sob o luar, observando, horrorizado, seus dedos caírem, um por um, e se metamorfosearem em lagartas. As lagartas, então, avançaram lentamente na direção de Alyssa, e ele não conseguia fazer nada para detê-las. Jeb caiu de costas na cama, com as mãos sobre o rosto, olhando fixa e incredulamente para os tocos crus e cheios de sangue onde antes estavam seus dedos.

Gritando, Alyssa tentou sair do colchão, mas as lagartas a pegaram, arrastando-se por sua pele e tecendo teias, até que restou somente uma forma se agitando dentro de um casulo.

— Soltem ela! — gritou Jeb. Uma luz lampejou em seus olhos, e então ele já não mais se encontrava em sua cama. Estava em algum lugar da mansão de Morfeu, e as fadas percorriam sua pele, hipnotizando-o... usando algum tipo de feromônio alucinógeno.

Elas estão me segurando aqui para que o Morfeu fique sozinho com a Al. No instante em que a realidade foi percebida, o feitiço foi quebrado.

Jeb pulou rápido da cama suspensa e saiu da nuvem de sedução de suas captoras. Pegando um travesseiro, ele se cobriu.

— Quero alguma coisa para vestir!

As fadas flutuavam no ar, seus olhos de libélula observando-o.

Havia várias cestas douradas no chão perto dos pés dele. Jeb chutou uma. Suas pequenas captoras se espalharam pelo ar, em histeria coletiva.

Gossamer, a fada predileta de Morfeu, designou cinco delas para pegar os morangos que rolaram. Elas contaram as frutas uma por uma e as colocaram de volta na cesta.

Jeb chutou outra cesta cheia de contas de óleo perfumado. Outras cinco fadas lançaram-se ao chão para pegar tudo, parando para contar cada conta antes de guardá-la.

Em pouco tempo, ela já havia chutado todas as cestas. Algumas estavam cheias de pétalas de flores, outras continham loção, outras, ainda, uvas. Ao virá-las, ele conseguira manter a maioria de suas captoras preocupada. Apenas Gossamer e outras duas ainda pairavam em torno de sua cabeça.

— Me deem algo para vestir — repetiu ele —, ou vou começar a tirar as plumas dos travesseiros. Vocês não estão em número suficiente para limpar uma sujeira dessas.

— Ele não está respondendo ao nosso feitiço — murmurou uma das fadas para Gossamer, com seus olhos de inseto voltados para Jeb.

— E nem à nossa magia — acrescentou a outra, amuada. — Eu conjurei uma moça das lembranças dele, mas seu subconsciente conseguiu escapar.

— Sim, este aqui é, sem dúvida, um desafio — concordou Gossamer, numa voz que tilintava feito um sino. Depois de mandar as outras duas fadas recolherem o conteúdo da última cesta, ela ofereceu a Jeb um robe de seda.

Ele se virou de costas e enfiou a peça de roupa no corpo, assimilando os arredores.

Morfeu o colocara em uma prisão opulenta. A sala era toda revestida de piso de mármore preto que refletia a luz laranja dos candelabros. Ele já estava bem familiarizado com o ponto focal: um colchão circular balançante preso por correntes douradas no centro do teto côncavo. Peles e almofadas forravam a cama, perfumadas por pétalas de rosa.

Apesar de todos esses confortos, faltava a essa sala um detalhe muito importante: uma saída. Não havia portas, janelas ou qualquer outra abertura à vista.

Paredes convexas — pintadas em cor de lavanda escura — eram cobertas por parreiras que se estendiam por toda a sua circunferência, entrando e saindo do reboco e se entrelaçando nos candelabros acesos. Frutas brotavam das vinhas. De quando em quando, as uvas explodiam espontaneamente e pingavam seu suco dentro de bacias de pedra posicionadas ao longo das paredes para apanhá-lo. E, delas, um líquido viscoso e purpúreo era drenado para dentro de fontes — um abastecimento constante de vinho de fadas com aroma adocicado.

Ele se lembrava vagamente de ter provado o vinho ao chegar. Desconfiado, tentou resistir, mas estava com muita sede. Era impossível saber que tipo de magia havia no líquido.

Jeb gemeu e esfregou o rosto. Quanto tempo teria passado bêbado e enfeitiçado? Ele acabara sendo inútil para Alyssa, assim como o pai dele teria sido.

— Onde ela está? — perguntou ele, ignorando a harpa que tocava sozinha, a qual, na tentativa de abafar-lhe a voz, começou a tocar mais alto. — Me diga o que Morfeu está fazendo com ela.

Minúscula, reluzente e confiante, Gossamer acomodou-se em uma almofada de cetim, passou a mão pelo colchão ao seu lado e cruzou as pernas apoiando os tornozelos verdes um sobre o outro.

— Talvez você não perceba o que nós, as fadas, somos capazes de fazer. Temos séculos de prática. Podemos lhe mostrar um êxtase com o qual você sempre sonhou.

Jeb a olhou de cima a baixo e ajustou a faixa de cetim em sua cintura.

— Me desculpe, não sonho com coisas verdes.

Ele encontrou a mochila de Alyssa debaixo da cama e a puxou. Jeb havia notado alguma coisa dentro dela anteriormente, quando a vasculhara em busca de outra coisa: uma pulseira de ferro forjado que ela provavelmente havia enfiado na mochila quando ainda estava na escola e ficara esquecida ali. Ele havia pesquisado muito as fadas quando começou a pintá-las, e sabia que elas não gostavam de ferro — se a lenda fosse verdadeira.

Jeb jogou a mochila sobre o colchão. Os cobertores de pele encresparam-se feito uma onda gigante e derrubaram Gossamer de sua almofada. Acionando suas asas com rapidez, ela pousou sobre o ombro de Jeb.

— Se é Alyssa que inspira suas paixões, podemos realizar essa fantasia. — Gossamer bateu palmas. As outras largaram seus postos de limpeza e se apressaram a formar um círculo em volta de Jeb. Uma onda de enjoo lhe invadiu o estômago quando todas as fadas assumiram a aparência de Alyssa — réplicas perfeitas em miniatura, com cabelo platinado e roupas sensuais de skatista. Elas liberaram novamente suas sementes de feromônios, cegando-o com o perfume de Alyssa, doce como néctar.

Brandindo uma almofada, Jeb rompeu a ilusão e dissipou as sementes. As fadas saíram aos guinchos e foram se esconder nas vinhas das paredes, com seus corpos brilhantes parecendo cordões de luz branca e piscante.

Gossamer pairou no ar acima dele, ralhando.

— Já chega! Informem o nosso mestre de que o mortal é leal à garota. Não podemos seduzi-lo para que volte ao seu mundo sem ela.

Jeb ficou resmungando, enquanto as fadas se esgueiravam por buracos do tamanho de ervilhas, na parede onde as vinhas entravam e saíam. Se ao menos ele pudesse passar por aquelas pequenas saídas também... Chegou a pensar em usar a poção encolhedora que ele e Alyssa tinham encontrado quando chegaram ao País das Maravilhas, mas ela o deixaria tão pequeno quanto suas captoras, e ele ficaria indefeso contra Morfeu. A impotência lhe fervia as entranhas, tão profunda como a que ele sentia quando era criança, escondendo-se em um armário até que passassem os ataques de fúria do pai.

Ele cerrou os dentes. Tinha de haver uma passagem escondida em algum lugar por trás das vinhas. Elas o tinham trazido para cá; devia haver uma saída.

Subitamente, ele deu um pulo para a parede mais próxima e arrancou algumas vinhas, lançando-as para todos os lados. O diminuto guincho de surpresa de Gossamer não o intimidou.

Uvas explodiam em suas mãos, libertando seu aroma potente e denso. As plantas viscosas cortavam seus dedos feito arames. Jeb aceitou a dor. Era algo que podia controlar — diferentemente do tormento dos cigarros acesos que seu pai lhe enfiava na pele, ou dos punhos que lhe socavam o rosto e o estômago. O cheiro da nicotina, o gosto de sangue. Imaginação ou não, eles alimentaram o selvagem em sua alma.

Ele mergulhou numa espiral vermelha de fúria e devastou a sala. Quando finalmente voltou a si e recostou-se na cama, ficou chocado com os estragos que causara.

Arfando e suando, ele cuidou dos cortes nas junções dos dedos e vasculhou os destroços à procura de Gossamer. Será que a tinha machucado? Se sim, talvez fosse mesmo filho de seu pai.

Jeb cerrou os punhos, descontente consigo mesmo.

— Gossamer? — Ele se encolheu ao ouvir a própria voz, rude e inflamada de emoção.

Um rufar de asas mexeu uma das correntes que prendiam a cama ao teto. Ele respirou, aliviado ao ver a fada. Embora parecesse meio idiota importar-se, já que estava prestes a usar a pulseira de ferro de Alyssa contra ela.

Gossamer pousou no chão ao lado das vinhas rasgadas e das cestas que ele tinha derrubado de novo; seus ombros estavam caídos, em demonstração de derrota. Provavelmente, ela não sabia por onde começar a calcular todos os conteúdos derramados.

Jeb começou a vasculhar a mochila. A harpa havia parado de tocar, e o silêncio o incomodava feito o ruído dos ponteiros de um relógio. Cada segundo que ele passava longe de Alyssa deixava-a mais vulnerável a Morfeu.

Seus dedos finalmente encontraram um metal frio. Ele jogou a pulseira de ferro na direção de Gossamer, mas mantendo alguma distância, na esperança de enfraquecê-la sem machucá-la.

Ela gritou e lançou-se ao ar, se debatendo.

— Por favor... afaste isso.

— Não até eu conseguir algumas respostas. — Jeb segurou uma das asas dela entre o indicador e o polegar, levando-a para a cama e sentando-a sobre uma almofada, tomando o cuidado de manter a pulseira próxima o bastante para intimidá-la. — Basta cooperar, que eu não vou machucá-la.

— Já está machucando. — Ela gemeu, com a pele esverdeada já tingida de turquesa. — Não posso usar minha magia... — Gossamer bateu as mãos no próprio rosto. — Vai me deixar... horrível. Abster-me. — Sua voz ficou mais calma, como se estivesse falando consigo mesma, e, rangendo os dentes, continuou: — Abster-me até a ameaça de dor e contaminação passar.

Jeb franziu a testa.

— Então o ferro vira seus poderes contra vocês? É a arma perfeita para usar contra seu chefe.

— Um objeto desse tamanho... só funciona com os menores de nossa espécie.

Jeb curvou-se, aproximando ainda mais a pulseira dela.

— Muito bem, então considere isso um detector de mentiras. Toda vez que eu perceber que você está fingindo, aproximarei o ferro. Onde está a Al, e o que o seu chefe repugnante está fazendo com ela?

A cor da fada mudou para um verde azulado. Ela rolou sobre a almofada, as asas lutando para bater. Gossamer as puxou por cima dos ombros até a altura do peito, cruzando-as, como se quisesse conter a sua magia.

— A sua Alyssa está confortável e sendo bem cuidada. Morfeu está zelando pelo sono dela...

Jeb soltou um grunhido. Na noite passada, ele havia zelado pelo sono dela, no barco. Mudara a posição do corpo dela para que pudesse olhá-la de frente e fazer uma promessa, mesmo que Alyssa estivesse sonolenta demais para ouvi-lo. Jeb havia prometido que a protegeria, que a levaria para casa a salvo. E não iria quebrar sua promessa agora.

Ele precisou resistir ao desejo de destruir a sala novamente.

— Como eu saio daqui?

— Apenas o Morfeu tem os meios para abrir a passagem.

Jeb inclinou-se para a frente, com o nariz quase tocando o rosto de Gossamer enquanto segurava a pulseira sobre a cabeça dela, como se fosse um objeto corrosivo.

— Está dizendo que estou preso aqui até que aquela barata de asas decida me soltar? Ele vai fazer a Al enfrentar o País das Maravilhas sozinha?

Ela choramingou, levando a mão à testa.

— Não. Como você provou ser leal, ele permitirá que a acompanhe em sua jornada. Você comparecerá ao banquete e traçarão os planos.

— Banquete?

— A apresentação de Alyssa. Morfeu deseja exibi-la aos outros.

— Que outros?

Gossamer deixou-se cair, formando um monte de cor púrpura e em seguida saiu depressa de seu poleiro. Ela puxou alguma coisa de dentro da almofada — um desenho de Al que Jeb não se lembrava de ter feito. Lentamente, Gossamer levantou os joelhos e estudou as linhas.

— Você fez isto enquanto estava sob nosso feitiço. Tem poder dentro de seu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Você captou o interior de Alyssa com perfeição.

— Esse desenho é pura fantasia — resmungou Jeb. Ele colocou a pulseira de ferro sobre o papel ao lado de Gossamer.

Ela rolou para o meio do desenho, tentando escapar do metal.

— Há mais verdade nesta aparência de Alyssa do que em qualquer coisa que possam me forçar a falar.

Jeb puxou o desenho, fazendo Gossamer e a pulseira de ferro rolarem por cima da pelugem. Ele estendeu o desenho sobre uma almofada e percorreu as linhas de carvão com o dedo. A imagem era igual a todos os outros desenhos de fadas que ele havia feito de Al ao longo dos anos, mas, ainda assim, não poderia ser mais diferente da garota que ele conhecia.

Ele a desenhara com o cabelo preso no alto da cabeça. Al nunca usava o cabelo daquele jeito. Um vestido preto de alcinhas realçava suas curvas. Nem morta ela seria vista em um vestido tão convencional. E a única coisa que se parecia com ela eram as luvas de renda preta sem dedos que cobriam as cicatrizes da palma das mãos.

Fora isso, o desenho era uma fantasia completa. Sentada em um banco de jardim, Al segurava uma rosa. Rímel e lágrimas escorriam em curvas graciosas por seu rosto. Pensando bem, se parecia com a maquiagem dela na última vez que ele a vira.

Ele ainda não conseguia entender por que, depois de quase se afogar em um oceano de lágrimas, o rímel de Alyssa não havia borrado. Apertando os olhos, ele estudou o par de asas translúcidas abertas nas costas dela. As membranas finas tremeluziam sob o único raio de sol que atravessava as nuvens. As asas faziam com que se sentisse estranho, mas Jeb não conseguia perceber a razão.

Talvez porque elas lembrassem as asas de Morfeu, embora tivessem uma cor totalmente diferente. As têmporas de Jeb latejaram. Nada poderia ser pior do que Alyssa sozinha com aquele homem-inseto. Aquele doido tinha algum tipo de poder sobre ela, havia entrado em sua cabeça quando ela era pequena. O subconsciente pode ser muito poderoso, e se Morfeu ainda tivesse acesso aos sonhos da Al...

— Como posso derrotá-lo? — perguntou Jeb com um nó na garganta.

Os olhos bulbosos de Gossamer voltaram-se para os dele. Ela estava fraca demais para se arrastar para longe da pulseira, que agora roçava sua coxa.

— Ele não será derrotado. Há anos ele espera por este dia.

Jeb fez cara feia.

— Muito bem, ele é o Super-Homem. Mas todo mundo tem a sua kriptonita. Algo de que sente medo.

— O confinamento — Gossamer deixou escapar, e, diante da confissão, seu corpo escureceu até ficar da cor de um machucado.

— Como assim?

Gossamer levou o dorso da mão à testa.

— Por favor... está muito perto... o ferro... está drenando minha energia.

Jeb caiu de costas no colchão e afastou a pulseira da fada. Equilibrando-o entre os dedos, ele estudou o ferro sob a luz das velas. A pulseira o lembrou de seu piercing de ferro e da primeira vez que Al o vira, sua reação de entusiasmo. Ela havia implorado para tocá-lo e fez várias perguntas sobre o processo de colocação de um piercing. Seu entusiasmo e ingenuidade, suas inseguranças... Morfeu não hesitaria em usar qualquer uma dessas coisas, ou todas elas, para manipulá-la.

Jeb precisava convencer Al a sair do País das Maravilhas, a esquecer esta jornada para quebrar a maldição de sua família, a qualquer custo. Algo muito tenebroso estava à espreita, bem perto dela, como no sonho que ele tivera. E Jeb podia sentir que, fosse lá o que estivesse para acontecer, estava se aproximando.

— Então vocês querem que ela conserte os erros da Alice original, certo? E se eu consertá-los? — Jeb tentou raciocinar. — Vocês enviam a Al para casa e deixam que eu cuide de tudo?

— Impossível — respondeu Gossamer num sussurro arfante, voltando à cor verde-clara. Engatinhando na direção do desenho, ela passou a pequenina mão sobre a rosa. — Ela já passou nos testes e provou ser a escolhida.

— Testes? Está se referindo a encontrar a toca do coelho para o País das Maravilhas e secar o oceano de lágrimas?

Gossamer fez que sim.

— Mas eu ajudei a fazer isso.

— É por ela que ele esperava. Não por você.

Jeb levantou a pulseira de ferro uma última vez.

— O que ele realmente quer dela?

Antes que Gossamer pudesse responder, o teto abobadado começou a tremer. Pedaços espessos de gesso despencaram no solo. Jeb colocou uma almofada sobre a cabeça e uma mão sobre Gossamer para protegê-la dos detritos. O teto se abriu nas emendas, fazendo a cama balançar e puxando as correntes em direções opostas, de modo que o colchão subiu vários centímetros.

Depois que os tremores passaram, Jeb olhou para cima. A silhueta escura de Morfeu apareceu em uma abertura no teto.

Sutileza era um dos últimos itens na lista de prioridades desse cara.

— Já te disseram que você é muito escandaloso? — rosnou Jeb.

Morfeu inclinou-se para olhar a sala destruída.

— Já te disseram que você é um péssimo hóspede?

Parte da responsabilidade daquela bagunça era da grandiosa entrada de seu aprisionador, mas Jeb mordeu a língua, não querendo arriscar sua oportunidade de ver Al.

Morfeu relaxou.

— Alyssa o aguarda na sala dos espelhos. E, por favor, tome um banho e faça a barba. Você será apresentado aos nossos convidados do banquete como um cavaleiro élfico, então precisa parecer como tal. Gossamer lhe dirá como se comportar adequadamente. — Morfeu largou algumas roupas e botas, que fizeram um ruído ao atingir o chão. — Aí está seu uniforme. — Ele fez uma pausa e apontou para as correntes. — Que pena que você não tenha asas e nenhuma magia intraterrena. Terá que sair daí sozinho. E posso assegurar que não será nada fácil.

Os músculos de Jeb se retesaram quando Morfeu sumiu de vista; ele sabia que o aviso se referia a muito mais do que sair daquela sala.


Capítulo 3


Segunda Lembrança —
Carnificina

Jeb limpou o suor da testa. Morfeu estava certo. A escalada para sair de sua prisão dourada seria mesmo difícil. Mas isso não significava nada se comparado à jornada pelo País das Maravilhas que ele e Alyssa haviam cumprido desde então. O dia inteiro tinha sido um desafio atrás do outro, com o perigo e a morte aguardando em cada esquina. E agora ele havia perdido a Al. Os dois tinham se separado pouco antes de ela completar o teste final. Al ficou enfrentando as irmãs Twid no cemitério, sozinha, e ele ficou preso aqui no fundo do abismo.

A noite já havia caído quando ele atingiu o solo, e foi uma transição extremamente rápida, como se alguém tivesse apagado a luz.

Jeb sentiu os músculos do corpo endurecerem. Odiava pensar na Al sozinha naquele mundo insano depois de anoitecer. E, mais uma vez, ela provou ser forte o bastante para encarar quase tudo. No final, foi ela quem o salvara mais de uma vez...

Ele se lembrou dela pairando acima dele — um brilho selvagem, flutuando com a graça de uma libélula. Ver as asas dela brotarem tinha sido ao mesmo tempo assustador e milagroso. Jeb mal conseguiu respirar enquanto observava a transformação.

Falando sinceramente, Jeb ainda não tinha recuperado o fôlego de quando ela o levara para dentro do abismo e ele gritara: “Você é minha corda de segurança!”, antes de ela subir ainda mais alto para o céu. Ele não deveria ter colocado tanta pressão sobre ela para salvá-lo; tinha que ter feito o que conseguisse para sair de lá por si próprio e encontrá-la no meio do caminho. Do contrário, ela nunca se perdoaria se algo saísse errado.

A carcaça de um pássaro Jubjub havia amortecido sua queda. Ele limpou nas calças a gosma pegajosa que tinha entre os dedos, torcendo o nariz diante dos restos malcheirosos do exército que os perseguia e acabou caindo no abismo. Jeb procurou ficar de pé na escuridão. Suas botas produziam sons de sucção toda vez que ele pisava. Ele nunca tivera fricotes; qualquer aversão a sangue e violência havia sido expurgada — uma dessensibilização gradual que era reforçada sempre que ele se olhava no espelho e via suas bochechas e olhos inchados, grandes e cheios de sangue, que nem um bife malpassado.

Contudo, sem uma centelha de luz para guiá-lo, a carnificina aos seus pés parecia mais viva do que morta. Sua imaginação trazia arquivos de todos os tipos, de filmes de zumbis a demônios e assombrações. Seu estômago queimava de náusea. Jeb sentiu-se aliviado ao perceber que os assobios que ouvia dentro do abismo eram produzidos pelo vento. E não havia ruídos de correntes fantasmagóricas nem gemidos de mortos-vivos.

Além disso, seu verdadeiro inimigo era o tempo, mais perigoso do que qualquer coisa que pudesse imaginar. A Al ainda tinha de cumprir a última tarefa no cemitério. E, depois, eles ainda tinham de encontrar um ao outro.

Ele se forçou a avançar às cegas até sua mão alcançar a parede do abismo. Antes de descer totalmente, Jeb viu que a mochila de Al tinha ficado presa em uma pedra saliente próxima ao chão. Se conseguisse encontrá-la, poderia contar com uma lanterna. Tateando a superfície áspera da pedra, ele levantava seus pés por sobre os obstáculos, tocando os cadáveres com os dedos dos pés para mensurar a largura de cada passo.

Com os cotovelos esbarrando nas pedras, Jeb observou o céu. Um pequeno aglomerado de estrelas brigava com as nuvens, aparecendo para iluminar levemente o lugar ao seu redor, tornando possível que ele continuasse sem esbarrar no falecido exército da rainha. Uma brisa úmida levantava a poeira feito pequenos tornados. Logo choveria. E, neste lugar, era possível que, literalmente, chovesse a cântaros — daqueles temporais ruidosos, torrenciais.

Um calafrio que não tinha nada a ver com a tempestade iminente lhe percorreu a espinha e obscureceu qualquer sentimento bom que ele poderia ter encontrado naquele pensamento. Qual era a razão de todos esses “testes” de Morfeu? Toda vez que a Al conseguia se sair bem em um desses testes, sua forma intraterrena tornava-se mais acentuada. Será que o intuito era transformá-la completamente para que não pudesse mais voltar ao reino humano?

Fios de cabelo caíram sobre seu rosto, e Jeb os afastou.

Morfeu afirmara que tudo o que ele mais queria era que Alyssa voltasse ao seu lugar. Sua casa. Jeb esperava que ele estivesse se referindo ao mundo deles, o reino humano. Mas e se a Al não estivesse sob nenhuma maldição, no final das contas?

Ele se lembrou de sua pesquisa sobre fadas, na qual descobriu que elas eram criaturas chamadas de changelings — as crias das fadas secretamente deixadas no lugar de bebês humanos roubados. Alice Liddell, a tataravó de Al, teria sido uma changeling? Quem sabe foi por isso que ela encontrou, quando criança, a toca do coelho — por instinto. Isso significaria, de alguma estranha maneira, que aqui era a casa de Al.

Jeb parou com as especulações. Elas só levavam a mais dúvidas.

Ele tinha encontrado a mochila. Abriu-a, tirou a lanterna e colocou a mochila nos ombros.

Ao fechar o zíper, ele acendeu a lanterna e percorreu o cenário com fachos de luz. Os guardas destruídos pareciam cartas de baralho amarrotadas. Brinquedos descartados. Até mesmo os pássaros Jubjub poderiam se passar por brinquedos infantis com o enchimento extrapolando para fora.

Com a mochila ajeitada no corpo, Jeb percorreu a circunferência do abismo sem encontrar nenhuma abertura. Pedras que haviam caído bloqueavam qualquer possível passagem que ele tentasse. Era como se ele tivesse caído dentro de um tubo gigante. Não havia nenhuma outra saída a não ser subindo.

Jeb apontou a luz para o gramado a cerca de vinte andares acima — a clareira onde Alyssa havia pousado. Estava determinado a encontrá-la antes de Morfeu, mesmo que tivesse de escalar as pedras pontiagudas no escuro e sem uma corda de segurança.

Ele havia acabado de apoiar a lanterna entre os lábios e escorar o pé em um rochedo para tomar impulso quando ouviu uma voz com um sotaque britânico familiar.

— Ao trabalho, homens. Precisamos contar todos antes que as irmãs Twid enviem sua brigada de duendes para recolher os mortos.

Morfeu.

Jeb desceu e quase colidiu com o intraterreno alado, que tinha aparecido do nada, como se tivesse aberto um zíper no ar e passado por ele. Cavaleiros élficos faziam fila atrás dele, entre vinte e trinta, carregando lanternas e usando o mesmo uniforme de Jeb, só que menos esfarrapado e sujo. Eles passaram sem nem olhar para Jeb, extremamente concentrados na contagem dos corpos.

— Ora, ora, pseudocavaleiro. — Morfeu riu com desdém.

Cada pedacinho de Jeb ansiava por apagar aquele sorriso arrogante e socar aquele rosto. Mas ele estava em desvantagem. Se quisesse sair desse fosso para encontrar a Al, teria de bancar o bonzinho.

— Detesto dizer isso, mas é bom vê-lo, senhor Mariposa. — Jeb guardou a lanterna. — Vejo que pegou o espelho para vir aqui.

— Eu só viajo de espelho. — Morfeu ergueu a lanterna e examinou as roupas esfarrapadas de Jeb. — Tem a vantagem de não estragar tanto as roupas. E vou lhe contar outro segredo: se eu mantiver as asas daquele lado do plano — ele apontou com o polegar para as suas costas, onde metade de seus apêndices não era visível —, a abertura fica acessível para nossa viagem de volta.

Jeb forçou um sorriso.

— É bom saber.

Perfeito, na verdade. Ele poderia voltar com a trupe de elfos e depois tomar o expresso na sala de espelhos para encontrar a Al. Mas primeiro teria de distrair Morfeu, baixar a guarda dele. Jeb perguntou:

— Esse chapéu é novo?

Morfeu ficou radiante.

— Que gentil de sua parte ter notado. É meu chapéu da Insurreição. Ainda não havia tido a oportunidade de usá-lo antes. — Com o dedo, bateu em várias mariposas que formavam a guirlanda na aba do chapéu e depois se inclinou e fez conchinha no ouvido de Jeb para sussurrar um segredo. — As asas vermelhas representam derramamento de sangue.

— Ãh-hã. — Jeb cerrou a mandíbula diante do indesejado bafo quente no lóbulo de sua orelha. Depois, olhou para os cavaleiros, discerníveis somente por suas lanternas flutuando na escuridão atrás dele. — Então, está planejando um motim com o exército da rainha de Marfim?

Morfeu apertou o ombro de Jeb.

— Eu sempre soube que era mais esperto do que os mortais comuns.

Os músculos de Jeb contraíram-se ao contato.

— O que significa que você estava mandando a Al para uma missão absurda só para se divertir.

Cuidado. Jeb não poderia deixar sua desconfiança transparecer. Pelo menos não ainda. Em vez disso, ele se inclinou para ajustar os cadarços das botas e respirou fundo antes de se reerguer.

Morfeu apertou sua gravata vermelha.

— Todas as tarefas que pedi à Alyssa tinham um propósito. — Ele deu um passo para o lado quando alguém mais passou pelo portal do espelho: um esqueleto do tamanho de um duende, com antenas e olhos cor-de-rosa brilhantes, metido em um colete vermelho.

— Rábido Branco? — sussurrou Jeb, incrédulo. Nada daquilo fazia sentido. O Rábido era da corte Vermelha. Por que estava aqui?

— Qual é o relatório? — Morfeu agachou-se para ficar na altura do Rábido, ainda mantendo as asas enfiadas no portal invisível do espelho.

O pequeno intraterreno apertou as mãos enluvadas e olhou para Jeb, sua cabeça careca refletindo o brilho suave da lanterna de Morfeu.

— Um de nós, você é?

Morfeu sorriu e respondeu por Jeb.

— É claro que é. Ele ajudou a nossa Alyssa a conquistar o grande e cruel exército Vermelho, não lembra?

Coçando a antena esquerda, o Rábido fez que sim.

— Rainha Grenadine neutralizada está. Nos portões da frente e de trás, o castelo guardado está pelos regimentos três e sete. Flanqueando a rainha, um círculo de cinco. Sem esquecer da coroa e seu guardador.

— Ah, sim. O bandersnatch. Bem, quando Alyssa tiver trazido seu prêmio do cemitério das irmãs Twid, nada mais terei a temer daquela besta medonha. Fez um bom trabalho, senhor Branco. — Morfeu deu uma batidinha na aba do chapéu.

O Rábido bateu os tornozelos cadavéricos um no outro, depois se curvou e lançou um olhar penetrante para Jeb, antes de pular novamente para o portal.

— Ele é o seu espião — murmurou Jeb, sentindo-se idiota por não ter adivinhado antes.

— Sim.

— Então todas as vezes que o esqueletinho ameaçou a Al, matando-a de susto, era só para manter a aparência de lealdade à Rainha Grenadine?

— Os melhores espiões são aqueles que jogam dos dois lados com o mesmo vigor.

A distância, Jeb avaliou as lanternas que balançavam. O tilintar dos cabos de metal e o pisar de botas eclipsavam o suave lamento do vento.

— Certo. Já que estamos abrindo o jogo...

O comentário de Morfeu o interrompeu.

— Que trocadilho mais delicioso, considerando a posição em que estamos. — A lanterna dele apontou para os cadáveres dos guardas de carta.

Jeb ignorou a piada mórbida.

— Eu ia perguntar por que o Rábido se voltou contra a corte Vermelha.

— Ele era o conselheiro real da Rainha Vermelha quando Alice nos visitou. Deseja ver a verdadeira herdeira no trono tanto quanto eu.

— Verdadeira herdeira. — Jeb chutou um punhado de terra com uma bota, sentindo o peito apertado. — Então tudo isso é para destronar Grenadine e abrir caminho para uma nova rainha.

— Sim. — A lanterna iluminou o rosto de Morfeu, numa expressão de indulgência sonhadora. — E estamos muito perto. Em breve, ela ocupará o trono que é e sempre foi o lugar dela.

O lugar dela. Uma hipótese se formava na mente de Jeb, uma ideia ultrajante e incompreensível, mas, de qualquer maneira, a resposta óbvia para todas as dúvidas que ele vinha remoendo. Todas as dúvidas, exceto uma...

— Mas, primeiro — interviu Morfeu, varrendo o ar com um gesto desdenhoso —, temos que ter certeza do que iremos enfrentar quando atacarmos o castelo. Você e Alyssa conseguiram eliminar boa parte da oposição com seus fantásticos movimentos de pés. Estamos aqui para avaliar se os números batem com os que o Rábido reportou. Devemos ter certeza que Grenadine não tem outras cartas escondidas na manga. — Ele bateu nas costas de Jeb. — Viu o trocadilho? “Cartas na manga?” — E deu uma gargalhada.

Jeb não deu nem um risinho.

— Ah, corta essa. Os guardas dela são de cartas. É uma piada como a que você fez antes, só que mais inteligente.

— Ah, sim, entendi — retrucou Jeb.

O riso de Morfeu se dissipou.

— Você não é um namorado muito divertido.

— Você não leva nada a sério? A Al está correndo perigo — Jeb deixou escapar.

— Bobagem. Ela é gloriosamente capaz! Você nunca a viu voando? É claro que viu! Estava pendurado na corrente que ela segurava. — Morfeu voltou a lanterna para a própria cabeça, num arroubo de celebração. — Não foi uma bela visão, presenciá-la transformando-se no que realmente é? Igual a uma princesa de contos de fadas. — Ele lançou um olhar dissimulado para Jeb. — Não concorda?

Princesa de contos de fadas. Lá estava, saindo da boca do próprio Morfeu, zombando de Jeb por não perceber desde o início. Jeb apertou as alças da mochila para evitar dar um soco na laringe de Morfeu.

Morfeu abaixou a lanterna e depois tirou luvas prateadas de sua lapela.

— Não se sinta desprezado, cavaleiro mortal. Sua contribuição não passará despercebida. E eu sempre pago minhas dívidas. Então, o tirarei desta vala da morte para demonstrar minha gratidão.

— Você pode me agradecer me deixando ajudar a Al. Ela vai terminar a tarefa muito mais depressa comigo do lado — Jeb conseguiu dizer, sentindo um nó nas cordas vocais. Se conseguisse chegar até Al, talvez os dois pudessem se esconder de Morfeu no cemitério das irmãs Twid, até encontrarem uma maneira de escapar.

— Sinto muito — retrucou Morfeu, vestindo as luvas e acenando para que os cavaleiros élficos retornassem. — Ela precisa fazer isso sozinha. Você a verá em breve; todos nós vamos nos reencontrar. Uma grande família feliz.

— Não! — exclamou Jeb, perdendo o controle. Ele investiu, mas os elfos foram mais rápidos e o contiveram, com os dedos machucando seus cotovelos feridos. — Deixe-a sair do País das Maravilhas, seu filho de inseto...

Morfeu pressionou um dedo contra a boca de Jeb.

— Ah-há! Essa, você já usou.

Jeb puxou a cabeça para trás, deixando o dedo do intraterreno suspenso no ar.

Sob a luz da lanterna, as joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficaram escuras, da cor de sangue seco.

— Ora, ora. Isso são modos de tratar seu salvador? — Ele fez cara amuada. — Além do mais, como posso deixar Alyssa sair se ela não está comigo? Da última vez que soube, ela estava entrando no jardim das almas. Mas, quando terminar por lá, ela virá ao meu encontro. Ela ainda tem um papel muito importante a desempenhar.

— Certo. Porque ela é a herdeira do trono. — Jeb ouviu, incrédulo, suas próprias palavras ecoarem, como se tivessem saído da boca de outra pessoa. — Não sei como, mas é ela.

— Bravo! — Morfeu aplaudiu. — Estão vendo o que eu disse, irmãos cavaleiros? — Olhando para os cavaleiros por cima do ombro de Jeb, Morfeu deu tapinhas no peito em cima da gravata vermelha, como se estivesse tomado pela emoção. — Mais esperto que um mortal comum. Pena que tenha as limitações físicas de um.

— Não importa. Ela está fora do seu alcance. — rebateu Jeb, dando um tranco nos elfos; havia muitos o segurando, contudo. — Ela deve estar dentro do cemitério agora, e não pode forçá-la a fazer nada. Você mesmo disse que as Twids não deixam você entrar.

— É verdade. Mas ela encontrará, sozinha, o caminho para o castelo. No momento em que ela perceber que estou mantendo presa a coisa que ela mais ama no mundo, virá rastejando para mim, com as asas a reboque.

Morfeu levantou uma mão e fez um sinal.

Os cavaleiros élficos soltaram Jeb. Ele girou sobre o calcanhar e atirou a mochila sobre eles, dispersando o grupo feito pinos de boliche. Esticando o braço, ele bateu o punho na testa de Morfeu, desequilibrando-o. Um dos cavaleiros se esforçou para permanecer no lugar e manter o espelho aberto. Antes que Jeb pudesse se catapultar e atravessá-lo, raios de luz azul grudaram em sua pele e roupas, feito eletricidade estática. Eles o arrastaram, controlando-o como se fosse um fantoche, até ele ficar de frente para Morfeu. Os raios vinham da ponta dos dedos do intraterreno.

Morfeu aproximou-se.

Jeb tentou recuar, mas seus músculos travaram, ficaram paralisados.

— Durma — disse Morfeu num tom simples, e levou a mão azul fluorescente à testa de Jeb, cujo corpo foi percorrido por uma luz pulsante. Ele sentiu um gosto doce, parecido com leite e mel, e depois sentiu o aroma de lavanda. Com os dedos apertando o tecido macio da camisa de Morfeu, Jeb lutou para manter-se acordado. Mas a luz era muito reconfortante... muito suave... muito calorosa. Contra sua vontade, suas pálpebras ficaram cada vez mais pesadas e ele caiu no chão, em sono profundo.


Capítulo 4


Terceira Lembrança —
Engaiolado

O crânio de Jeb latejava, e havia sangue saindo de seu couro cabeludo e entrando em seus olhos.

Ele limpou o líquido viscoso e focou no lugar à sua volta. Morfeu o tinha trazido para o castelo Vermelho depois de colocá-lo sob o feitiço do sono. Largou-o dentro de uma gaiola na masmorra. Jeb não queria ter tomado a poção encolhedora quando acordou, mas o homem-inseto havia lhe dado um ultimato.

Primeiro, ele havia ameaçado matar a Al. Mas Jeb rebateu, dizendo que o homem estava blefando, pois sabia que ela era indispensável. Depois, Morfeu usara de outra arma, ameaçando fazer com que a frágil mãe de Al ultrapassasse o limite da loucura. Isso, ele faria.

A Al havia lutado muito para salvar a mãe. Ela morreria se a perdesse para a loucura. Então, Jeb não hesitou em levar o frasco aos lábios.

Seu corpo balançava, mas não devido aos efeitos colaterais da poção. A plataforma debaixo dele oscilava por causa de suas tentativas de abrir as barras de sua prisão usando a cabeça — uma atitude desesperada que havia resultado em nada além de um corte logo acima da testa. A magia de Morfeu — um fio elétrico e azul — mantinha a porta da gaiola fechada e imóvel.

— Que bela coisa você fez, não? — entoou uma voz feminina e irritante. — Morfeu escolhe quem tem o poder de suprimir sua magia. Obviamente, você não é um dos escolhidos.

Jeb fez cara feia para sua companheira de prisão. Era uma lóri — um intraterreno parecido com um periquito, mas normalmente do tamanho de um ser humano. Como os dois tinham encolhido, a única coisa que a distinguia dos pássaros do mundo humano eram as túnicas de cetim cor de creme com estampas jacquard colocadas sobre suas asas, corpo e pernas, e seu rosto humanoide enfiado no meio de plumas vermelhas, como se fosse uma máscara. Ele foi cutucado por um bico mais parecido com o chifre de um rinoceronte, posicionado no lugar onde deveria haver um nariz. Os lábios da criatura se agitavam furiosamente.

O pior de tudo era que a voz dela poderia derrubar a Torre de Pisa com uma sílaba. Quando falava, era como se alguém tivesse implantado cirurgicamente alto-falantes nos ouvidos de Jeb e travado o volume no “mais surdo que uma porta”. Ela era uma das muitas razões pelas quais ele tentava sair da gaiola com tanta insistência.

A luz bruxuleante das velas na parede iluminava seu ar de arrogância e deixava o resto da masmorra nas sombras. Depois que a voz da lóri parou de ecoar, Jeb investiu:

— Olhe aqui, Lorina. Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu marido. — Ele apontou a criatura que roncava abaixo da gaiola, de aparência tão estranha quanto à da esposa, com o corpo de um dodô, cabeça de homem e mãos que se projetavam da ponta de suas asas atarracadas. — Foi ele quem manteve Alice Liddell presa em uma gaiola igual a esta aqui, muitos anos atrás. É por culpa dele que a minha namorada é a única que pode destronar a sua rainha. Será que já lhe ocorreu que é por isso que vocês estão presos?

— O Charlie não fez nada disso! — berrou a lóri, pairando dentro da gaiola. — Alguma vez já lhe passou pela cabeça que o Morfeu é um cara de pau mentiroso?

Só em todos os segundos de todas as horas. Jeb apoiou-se nas barras. Seus joelhos cederam, enfraquecidos pelas tentativas de abri-las usando cada músculo de seu corpo. Ele desabou sobre o piso de metal, empurrando uma fatia de pera já amarelada que estava ao seu lado, feito um pequeno sofá. A gaiola era um pequenino forte inexpugnável. Mas não importava. As barras poderiam ser feitas de espaguete cru, e mesmo assim ele não conseguiria ajudar a Al. Mesmo que escapasse, com este tamanho, Jeb não conseguiria derrotar ninguém.

Charlie, o marido dodô de Lorina, não poderia ajudar muito. Ele estava preso por algemas e correntes de ferro e cochilava recostado na parede. Embora a gaiola estivesse pendurada bem perto da cabeça do dodô, não havia nada que Charlie pudesse fazer.

Provavelmente, Morfeu havia lançado no homem-pássaro gigante o mesmo feitiço do sono que jogara em Jeb, mas Charlie já estava se libertando dele.

Lorina acomodou-se no poleiro no centro da gaiola, balançando sobre a cabeça de Jeb feito uma acrobata no trapézio. A cara dela estava tão vermelha quanto as suas penas, o que fazia as espadas e copas estampadas nas bochechas quase desaparecerem.

— Como vamos ficar exilados nestas instalações fedendo a urina, terá bastante tempo para ouvir a verdade — bramiu ela.

Jeb esfregou a cabeça para apaziguar a dor lancinante.

— Se puder baixar a voz uns dois decibéis, eu agradeceria.

— Abaixar minha voz?

— Aaaii. — Jeb enterrou o rosto nas mãos.

O trapézio em miniatura rangia a cada balanço, piorando a poluição sonora.

— Para a sua informação, minha rainha adora o som da minha voz. Ela até o elogia...

O ronco do dodô parou, e ele estalou os lábios.

— Isso é porque ela protege os ouvidos com cera de abelha, Ó, Mais Adorável das Loucas.

— Seu mentiroso! — retrucou Lorina, balançando o poleiro tão depressa que Jeb achou que ia vomitar.

— Estou preso com correntes de ferro — avisou Charlie depois de um bocejo. — Não tenho forças para mentir. — Em seguida, pegou novamente no sono.

Isso pareceu calar Lorina, pelo menos temporariamente.

Jeb aproveitou o silêncio para pensar. A esta altura, Morfeu já deve ter contado a Al sobre sua verdadeira linhagem, sobre o que espera dela. Deve estar tão chocada... tão apavorada. Jeb ansiava tanto abraçá-la que era como se houvesse uma bigorna lhe pressionando o peito.

Aquele mariposo deveria ter contado a verdade desde o começo. Ela nunca escolheria ficar. Mas Morfeu sabia disso, e a manipulou sob o pretexto de que ela poderia curar a maldição da própria família. Jeb queria arrancar as asas pretas de Morfeu e enfiá-las goela abaixo por tê-la enganado, porque não havia cura para o parentesco, e ele sabia muito bem disso.

— Foi a Vermelha quem colocou Alice na gaiola. — A lóri voltou à carga. — Não o Charlie.

— Mas o seu marido escolheu mantê-la presa na gaiola — acrescentou Jeb, mesmo sabendo que não deveria. Ele cobriu as orelhas para a estrondosa refutação, mas Lorina só soltou um suspiro.

— Não. O Charlie tentou fazer a coisa certa pela menina — disse ela, consideravelmente mais ponderada agora. — Ele planejava mandar Alice de volta para o reino humano sem a Vermelha saber, mas a rainha descobriu e os arrastou para uma caverna nos picos mais altos e mais remotos do País das Maravilhas, sem que nenhum de nós soubesse. Ela deixou o Charlie com a vítima dela para poder encenar seu plano mestre, sabendo que Alice seria cuidada por um prisioneiro que nunca poderia escapar. Porque, como você deve saber, os dodôs não podem voar. Ela me privou de meu marido durante anos. Ele era prisioneiro, assim como a mortal.

— Se isso te ajuda a dormir de noite, tudo bem, passarinha.

Uma comoção de poeira e asas, jacquard e cetim, subitamente surgiu e o atacou.

— Você pode mostrar algum respeito e ouvir?!

Jeb levantou as mãos para se defender.

— Está bem. Shhhh. Eu vou ouvir.

Não havia nada mais que ele pudesse fazer. Morfeu lhe dissera que, assim que Alyssa fosse coroada rainha, ela abriria o portal para o reino humano. Acreditando ou não nisso, Jeb não poderia fazer nada a não ser ter esperança. Ele não tinha nenhum poder ali. E ter consciência disso lhe devorava as entranhas a cada minuto.

Acomodada diante de Jeb sob um monte de tecido luxuoso, a lóri olhou por entre as barras e resmungou alguma coisa para o marido que dormia.

— Seu velho e imprestável fezzerjub. Eu é que tenho que te proteger. Nem sei por que me casei com você.

O dodô resfolegou e murmurou, sonolento:

— Porque se casar com o bobo da corte era a única maneira de ter uma posição na corte Vermelha, Ó, Senhora das Nênias. — E o ronco voltou.

— Viu como deu certo? — resmungou ela, fazendo beicinho com os lábios vermelhos em forma de coração, sob a curva de seu bico. — Aquele Rábido ossudo e seu coração negro de pedra. — Ela alisou as penas da nuca e cobriu-as com uma rede decorada por lantejoulas.

Jeb estendeu a mão para pegar o dedal cheio de água que seu captor havia deixado ao lado da fatia de pera. Em suas mãos, ele era do tamanho de uma caneca de café. Ele o passou para sua colega de cela, que o pegou com as asas e deu alguns goles.

— Me diga uma coisa, Lori. Se o que você está dizendo é verdade... — Observando a atitude defensiva na cara bicuda, ele refez a pergunta para poupar os ouvidos. — Como você escolheu compartilhar o seu lado da história, talvez pudesse me dizer de que maneira Morfeu teve participação na prisão de Alice.

Ela sacudiu as gotículas de seus lábios.

— Não teve participação nenhuma. Ele gostava muito de Alice e teria feito qualquer coisa para que ela chegasse em casa sã e salva. Mas, na hora em que ele lhe ofereceu seu conselho como lagarta, alertando-a para que evitasse o castelo da Rainha Vermelha a todo custo, sua metamorfose aconteceu. Quando ele emergiu, totalmente transformado, e soube o que havia acontecido com Alice, ficou furioso.

— Está tentando me dizer que ele possui alguma consciência?

— Pelo menos no que dizia respeito a Alice, sim. — A lóri ajustou a suntuosa túnica que ficava escorregando devido à falta de ombros. — Morfeu usou todos os seus recursos de magia e acabou encontrando ela e meu marido escondidos nas cavernas dos picos mais altos do País das Maravilhas. Infelizmente, já era tarde demais para Alice. — Lorina devolveu o dedal a Jeb, agora com metade da água.

Jeb endireitou o corpo, fazendo a gaiola balançar.

— Então por que ele quer ajudar a Rainha Vermelha a colocar outra rainha no trono, quando ele deveria odiá-la por ter mantido Alice presa em uma gaiola por tantos anos?

— Talvez ele esteja bravo por Grenadine não ter tentado encontrar Alice assim que esta foi capturada. Mas Grenadine perdeu sua fita de memória e esqueceu a criança.

— Um bom regente teria mais do que uma fita para lembrá-la; teria se certificado de que tudo e todos estavam em seu lugar.

— A minha rainha é uma boa regente!

Jeb encolheu-se com o urro agudíssimo.

O ronco do dodô parou.

— Minha vociferante esposa diz a verdade, rapaz. Morfeu parece guardar ressentimento pelo que ele acredita ser negligência, mesmo tendo sido somente um descuido.

Jeb balançou a cabeça diante de todas as falhas que havia no raciocínio de todos.

— Não. Há mais coisas nessa história.

— Você tem bons instintos, cavaleiro mortal.

Jeb olhou para cima, na direção da voz tilintada. Uma luz brilhante flutuou pela pequena janela e entrou pela pesada porta da masmorra. Jeb levantou-se e agarrou as barras da gaiola, inclinando a cabeça para ver melhor.

Gossamer.

A pequena fada adejou para perto e sussurrou algo para o mágico fio azul que fixava a porta de arame, entrando na gaiola. O fio azul deu um nó em si mesmo depois de ela fechar o trinco.

Ela cintilava feito pequenos fogos de artifício ao pairar no lugar, estudando Jeb com uma expressão de solidariedade.

Como os dois agora tinham o mesmo tamanho, Jeb se lembrou de uma pintura que vira certa vez, de um artista tcheco, Viktor Olivia. O pintor era famoso por retratar uma fada que seduzia homens, levando-os a se embebedarem com absinto. Gossamer personificava essa criatura: uma forma feminina perfeita coberta de poeira verde, e nua, com escamas brilhantes cobrindo-a como um biquíni minúsculo.

Ele havia sentido, quando saiu da sala de espelhos, que Gossamer estava do lado dele e de Alyssa.

— Você veio ajudar — lançou ele, esperançoso.

Uma chave de cobre, da mesma cor dos olhos dela e quase do comprimento total de seu torso, pendia de seu pescoço. Seu olhar caiu para os pés delicados, como se estivesse lutando contra si mesma.

— Eu teria vindo mais cedo, mas Morfeu está sempre vigiando o espelho. Agora que ele está com Alyssa, preparando-a para a coroação, estará ocupado demais para ficar de olho no resto de nós... até o fim.

— O fim? — Jeb apertou a barra ao lado dela, concentrado em seu olhar de libélula. — Você tem que me contar tudo.

A fada olhou para Lorina, que estava se esticando para a porta de arame.

— Você sabe muito bem que não tem o poder de sair desta gaiola, a menos que eu a abra para você.

Bufando, a lóri voltou a voar para o trapézio.

Gossamer conduziu Jeb para a fatia de pera e os dois se sentaram. Seu perfume frutado se impunha sobre o fedor da masmorra e o acalmou o suficiente para ele poder ouvi-la.

A fada colocou as mãos sobre as de Jeb, que descansavam sobre os joelhos.

— Eu já traí meu mestre o bastante vindo até aqui, e sua ira será enorme. Eu só posso dizer que, dentro de uma hora, Alyssa estará comprometida para sempre, amarrada ao País das Maravilhas para toda a eternidade. Morfeu planejou tudo para enviá-lo de volta, cavaleiro mortal... mas sem ela.

Uma veia na têmpora de Jeb começou a se contorcer feito uma serpente em uma bandeja quente. Ele deu um pulo para cima e bateu a cabeça nas barras novamente, tentando amolecer o fio azul, incapaz de controlar a fúria exasperada que lhe fervia por dentro. Mais sangue escorreu por sua têmpora.

— Você tem que me soltar! Preciso impedir isso!

— Sim, sim! Nós também! — intervieram o dodô e sua esposa, em coro. — Temos que ajudar a Rainha Grenadine a manter a coroa!

— Naturalmente — afirmou Gossamer, pegando a mão de Jeb e puxando-o para perto dela. — Vocês todos terão a oportunidade de lutar e de mostrar a sua lealdade.

— Mas não posso lutar assim. — Jeb chutou uma semente do tamanho de seu pé. — Você trouxe algum bolo do crescimento?

— Não. Não é a força de seu corpo que salvará Alyssa, e sim a força de seu coração de artista. Mas eu posso assegurar que não sairá deste lugar em sua forma atual.

A lóri desceu de seu poleiro e ralhou com a fada.

— Agora, me escute, sua lacraiazinha. Este rapaz não tem papel nenhum. Ele é, no máximo, coadjuvante. Eu sou a criada da rainha, e Charlie é o bobo da corte. Nós deveríamos ser a sua prioridade. Somos honoráveis membros da corte, os únicos que podem dar um basta nesta paródia!

Acelerando as asas até virarem um borrão enevoado, Gossamer flutuou e colocou as mãos nos quadris.

— Quanto ao seu papel, Lorina: você pode abrir as correntes de seu marido, pois preciso falar com o mortal a sós e tenho pouca tolerância ao ferro. — Ela abriu a porta da gaiola e lhe deu a chave.

A lóri esvoaçou-se veloz, numa comoção de exibicionismo e má vontade.

— Venha, venha, Doçura Selvagem — chamou Charlie, encorajando a esposa enquanto ela flutuava em torno dele, subindo e descendo, incapaz de manter-se firme em alguma altura. — Apresse-se, por favor. O ferro está me dando fisgadas. Poxa vida! Não é tão difícil assim... tente novamente!

A cara de Lorina ficou ainda mais vermelha.

— Tente, com a ponta da asa, usar uma chave do mesmo tamanho que a sua cabeça, seu meleca! Alguns de nós não foram abençoados com dedos, sabia?

Enquanto o casal se ocupava, Gossamer sentava-se novamente ao lado de Jeb.

— Você disse que meu coração de artista pode salvar Alyssa. Naquele quarto na mansão de Morfeu, também... você disse que eu tenho o poder dentro de meu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Minha namorada está prestes a morrer para mim e para a família dela. Não pode haver escuridão maior — sussurrou Jeb com lágrimas de frustração que lhe surgiram nos cantos dos olhos.

— Morreria por ela, cavaleiro mortal?

A espinha de Jeb se retesou. No passado, toda vez que ele protegera Alyssa, sempre se jogara sem nem pestanejar. Seria capaz de morrer por ela?

Quando o pai de Jeb morreu em um acidente, foi Alyssa quem o salvou. Ele não conseguia acreditar que tinha chegado a pensar em morar em Londres sem ela. Precisava dela, todos os dias. De seu sorriso compreensivo, de como ela fez suas cicatrizes parecerem medalhas de mérito sob seu toque, e de seus olhos incríveis. Mesmo tendo passado por tantas provações quanto ele, havia uma luz dentro dela que nunca se enfraquecia. E essa luz não somente a tornava linda por fora, mas também permitia que ela trouxesse vida aos incríveis mosaicos que fazia.

Era essa luz — tanto a interna quanto a externa — que o tinha levado a desenhá-la e pintá-la tantas e tantas vezes.

Ele olhou para Gossamer, quase incapaz de conter a emoção, agora que havia encontrado uma saída.

— Ela é minha melhor amiga.

Minha musa, meu pincel, minha arte, meu coração. Tudo isso estará morto sem ela.

Esfregando o rosto, ele limpou o líquido que havia caído de seus olhos e escorrido pelo rosto:

— Eu a amo. Sim, eu morreria por ela. É isso que preciso fazer?

A fada o encarava sem piscar.

— Está disposto a ir além da morte? A se perder de todos, até de você mesmo, em um lugar onde as lembranças se esvaem em uma maré escura como tinta? Pois, para libertar Alyssa, você terá que tomar o lugar da Rainha de Marfim na caixa linguardarte onde ela se encontra presa.

Jeb lembrou-se da água escura dentro da caixa que ele havia visto na sala dos espelhos da mansão de Morfeu e da cabeça fantasmagórica que havia lá dentro, e seu coração disparou. O sentimento de autopreservação o invadiu e sua mente começou a tentar encontrar outra maneira. Mas, bem lá no fundo, ele sabia que não havia alternativa e que o tempo de Al estava se esgotando. Ele só lamentava não poder dizer a ela, nem uma única vez, com sua própria voz, como se sentia, antes de ser trancado para sempre.

— Aceito.

— E assim será. — Gossamer ficou de pé e estendeu os braços. Fraco e entorpecido, Jeb aceitou seu abraço. Ela o apertou com força e voou com ele para fora da gaiola, pousando no chão. — O mortal concordou em ser o herói de seu reino. Procurem honrar sua bravura — disparou as palavras para Lorina.

Lorina havia conseguido soltar o marido. Ela se sentou no ombro dele, abanando-se com uma asa. Com os olhos arregalados, ela aquiesceu em silêncio — a demonstração mais sincera de louvor que poderia ter oferecido. O dodô ajoelhou-se ao lado de Jeb, uma presença enorme e plumada.

— Teremos uma dívida eterna para com você, rapaz. O que podemos fazer para ajudar?

Gossamer apontou para um canto da masmorra, onde um cobertor de juta cobria uma cama, chegando até o chão.

— Tragam-me o que está debaixo daquela cama.

Entorpecido por uma mistura de incredulidade e temor, Jeb observou o dodô trazer a caixa linguardarte.

Lorina ficou perplexa.

— Morfeu manteve a Marfim escondida aqui?

Gossamer assentiu.

— Por sugestão do Rábido. Ele disse que este era o único lugar no castelo onde ninguém viria à procura dela.

Depois de pedir a Charlie que abrisse a tampa e arrumasse uma pedra onde eles pudessem subir para ver lá dentro, Gossamer pediu ao estranho casal que se afastasse um pouco para que ela e Jeb tivessem um pouco de privacidade.

Jeb afagou as rosas brancas aveludadas que adornavam o exterior da caixa, fascinado pela beleza do rosto da Marfim quando este veio à tona. O olhar cristalizado de assombro dela passava dele para a fada, e voltava — cautelosamente curioso. Ele estremeceu ao pensar que tomaria o lugar dela.

Tinha mesmo que fazer isso?

Jeb sentiu que Gossamer observava seu semblante.

— Devo perguntar uma última vez se está seguro de sua decisão — indagou ela. — Porque, como você está escolhendo ser trancado, e selando essa escolha com seu sangue, a caixa nunca o libertará. Ninguém poderá salvá-lo. Você está oferecendo sua eternidade pela da Marfim, uma rainha que você nem sequer conhece.

Jeb sentiu um nó na garganta.

— Não. Estou trocando a minha eternidade pela da Al.

Gossamer sorriu com ternura.

— Em seus sonhos, vi certa vez que você teme não ser bom o bastante para a menina. Depois de tal sacrifício, ninguém poderá questionar seu valor como homem nem seu amor por ela. — Ela o beijou no rosto, deixando um calor que penetrou seu coração e conseguiu derreter uma pequena porção do terror congelante que lá se escondia.

Gossamer deu-lhe um pincel e recuou.

— Agora, use o poder que somente você pode exercer. Pinte as rosas com o seu sangue.

Jeb foi tomado por uma tontura. Murmurou coisas... sem sentido, temerosas... palavras agonizantes que ele sabia serem as últimas.

Depois, canalizou a raiva, o terror e o desejo por um futuro que ele nunca teria para as estocadas do pincel. Cada botão branco, tingiu-os de vermelho até perder-se dentro das sombras de seu trabalho, e fundiu-se à sua obra-prima, tornando-se um só.


Capítulo 5


A Decisão da Mariposa

A cena se estendeu e ficou turva enquanto Morfeu era arrastado para fora das lembranças de Jebediah e depositado de volta na chaise-longue. A escuridão deixava a sala pesada, mas ele nem se mexeu para ligar a luminária. O cenário completamente enegrecido parecia combinar com os pensamentos obscuros que lhe cruzavam a mente.

Ele passou o dedo pela coxa, acompanhando as listras do tecido risca de giz e alisando as rugas.

Por que se sentia tão aborrecido? Ele havia encontrado exatamente o que esperava encontrar. As fraquezas de Jebediah estavam à mostra: um ódio que poderia facilmente ser manipulado, um sentimento de impotência alimentado por um pai violento e crítico, um ciúme que provocava um sentimento temerário de proteção e que lhe custaria a própria vida.

O que Morfeu não tinha esperado encontrar, entretanto, era tanta semelhança entre ele e o rapaz. Os demônios do passado atormentado de Jebediah não eram muito diferentes dos seus. Ele sempre se surpreendera sentindo inveja dos humanos... por nunca ter tido o carinho de um pai ou de uma mãe. Simplesmente por ocupar seu lugar no mundo, ele também compreendia o medo de talvez nunca chegar a conhecer completamente a confiança e a afeição de outra pessoa.

Contudo, no passado, Morfeu nunca havia considerado isso uma coisa ruim. Ele apreciava ser uma alma reclusa e independente. Por vezes, até se vangloriava, quando lhe convinha ser o centro das atenções, naturalmente. Mas a atenção, a afeição ou a confiança não eram coisas de que ele precisava. Não até aparecer Alyssa. Depois que ela escolheu ignorá-lo, ele não conseguiu funcionar... sentiu-se desastrado e incompetente.

E agora, depois de colocar-se no lugar de Jebediah, Morfeu compreendia, mais até do que desejava, como o lado humano de Alyssa funcionava. Embora metade dela tivesse asas e pudesse flutuar sobre as inseguranças e trivialidades dos mortais, a outra metade tinha seus alicerces nas coisas que qualquer outro humano ansiava: confiança e segurança.

Tendo visto a coragem e a engenhosidade de Jebediah, bem como sua lealdade a Alyssa, Morfeu soube, sem sombra de dúvida, que aquilo era exatamente o que o rapaz oferecia a ela: uma rede de segurança e emoção que a salvaria caso a queda fosse muito alta.

Não era de admirar que ela fosse tão cativada por ele. Não era de admirar que ele exercesse poder sobre ela. Diabos, o próprio Morfeu ficou morbidamente fascinado pelos honoráveis traços morais do rapaz, incomuns em um humano tão machucado. Morfeu ficou tentado a recuar e deixar Jebediah ter seu momento de felicidade. Alguns poderiam até dizer que ele o havia merecido por desejar abdicar de seu futuro, de suas lembranças e de sua vida por Alyssa.

Morfeu rosnou e caiu para a frente com os punhos cerrados, tentando suavizar o estranho peso em seu peito. O rapaz não ficaria aqui para sempre. Era um mortal. Um dia, morreria de velho, no mínimo, e Alyssa voltaria a ser um alvo fácil.

Alvo fácil.

A mandíbula de Morfeu se contraiu. O romance não era uma coisa justa. Nem era um jogo. Era guerra. E, como em qualquer outro campo de batalha, não lhe cabiam a compaixão e a misericórdia.

O besouro-tapete estava certo. As emoções humanas eram coisas imprevisíveis e poderosas. Elas haviam penetrado na cabeça de Morfeu, enfraquecido sua determinação.

Com os cotovelos nos joelhos, ele levantou as mãos com as palmas para cima, incapaz de ver a silhueta delas no escuro. Ele conjurou um pouco de magia na ponta dos dedos, em bolas elétricas de plasma do tamanho de ervilhas, e depois enviou as esferas para todos os cantos da sala, os raios azuis deixando rastros como eletricidade estática. Elas subiram pelas paredes e em seguida se uniram na forma de uma mulher. A luz pulsava em ritmo hipnótico.

Imaginar Jebediah com Alyssa, mostrando a ela os caminhos do amor, domando seu espírito selvagem com suas corriqueiras convenções humanas, tudo isso queimou a garganta de Morfeu com o sabor amargo da inveja.

Ele não queria que o lado selvagem de Alyssa fosse dominado por nenhum outro homem, não desejava compartilhar nenhuma parte dela. Morfeu desejava os dois lados: sua inocência e seu espírito desafiador.

Que graça poderia haver na dependência? Que espontaneidade poderia haver em um mundo previsível? Ele poderia lhe oferecer uma eternidade de desafios e paixão, de momentos ternos e calmos nas profundezas de chamas vibrantes e tempestades devastadoras — a tranquilidade em meio ao caos.

O lugar dela era com ele, usando trajes de soberana. Ele tinha tanto a ensinar-lhe sobre o reino intraterreno, sobre as glórias da manipulação e da loucura. Se Morfeu alimentasse o faminto lado intraterreno de Alyssa, suas inseguranças e inibições humanas diminuiriam e, com o tempo, poderiam desaparecer. Ela nunca mais ansiaria pelo amor seguro de Jebediah.

Morfeu invocou sua magia de volta, recolhendo as espirais de luz azul até ficar novamente envolto na escuridão. Suas asas varreram o chão quando ele se levantou, e ele as ergueu num arco que quase tocava o teto.

Nada mais de deliberações. Ele tinha tentado fazer o que era justo em instâncias passadas e, sem exceção, isso sempre o prejudicara. Podia ignorar a pontada de culpa que lhe agitava o peito, mas não podia abdicar de suas necessidades pelas necessidades de Jebediah. Ele nunca mais seria ele mesmo sem Alyssa ao lado — a chama para sua Mariposa. Morfeu não pararia até que ela voltasse para o lugar que lhe pertencia, no País das Maravilhas.

Para vencer, ele jogaria sujo, colheria os despojos do coração dela do modo como fosse necessário, não importava quanto isso custasse ao rapaz mortal. Afinal, este era o modo intraterreno. Fazer menos que isso faria de Morfeu um humano. E ele sabia, agora mais do que nunca, que essa era a última coisa que jamais desejou ser.


SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS
Epígrafe

ÀS VEZES PENSO EM SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS ANTES DO CAFÉ DA MANHÃ.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Um

Mortalidade

Capítulo 1

Deportação

Algumas pessoas podem dizer que é impossível morrer e viver para contar. São as pessoas que nunca experimentaram a mágica. Quanto a mim, sou tataraneta da Alice que inspirou Lewis Carroll. Acreditei no inacreditável por mais de sessenta e quatro anos, desde que tinha dezesseis e descobri que o País das Maravilhas era real e cheio de seres caprichosos, misteriosos e loucos, governados por acordos e enigmas. Ainda assim, às vezes, por mais que você acredite no impossível, as coisas não saem como você as planejou. Toda mágica pode encontrar um obstáculo de vez em quando.

Por exemplo, nunca esperei que meu cadáver acabasse numa caixa de sapatos. É isso que os caixões crematórios me lembram... uma caixa de papelão do tamanho de uma pessoa. O caixão não é muito confortável. Não há a forração de veludo para suavizar a base de madeira. Nenhuma almofada para acomodar minha coluna curvada. E nada de roupas, além de um vestido de papel para cobrir minha pele velha e enrugada.

O cheiro de papelão se fixa ao meu nariz e as rodas de aço da maca giram ao longo do corredor, rangendo em algum lugar sob mim, junto a passos familiares. Sinto a transição do ambiente fresco e de temperatura controlada onde o legista atestou minha “morteza” (como os seres do País das Maravilhas diriam). Ele, então, pôs uma identificação de aço inoxidável no meu peito e fechou uma tampa sobre mim, me prendendo na escuridão.

A maca sacode ao entrar num lugar muito mais quente. O cheiro de ovo podre do propano confirma nossa localização. Já visitei este lugar. Nos últimos meses visitei vários crematórios, quando não havia ninguém por perto, de madrugada. Para conhecer melhor o gigantesco forno de tijolos à vista que estaria esperando para queimar minha carne. Para encontrar o projeto perfeito, com um banheiro e um espelho de corpo todo do outro lado do salão.

Assim que optei pelo crematório do Pleasance Rest Cemetery, me preparei para morrer.

Meu plano original era usar Tetrodotoxina. Em doses pequenas, subletais, ela deixa a vítima num estado de quase morte por dias, permitindo que ela mantenha a consciência. Morfeu, porém, não concordava. Ele disse que a margem de erro entre o estado de quase morte e a morte de verdade era pequena demais no mundo mortal e não algo com o que se brincar. Ele não queria que eu arriscasse. Então, ofereceu uma substituto do País das Maravilhas: uma poção que funciona quase da mesma forma, mas que tem um antídoto cem por cento garantido.

Bebi a dose de quase morte nesta manhã e, dez horas mais tarde, ainda sinto o gosto amargo e anestésico, como cravos dançando no fundo da garrafa de vinagre. Não consigo morder a língua para aliviar o efeito. A mágica me deixou catatônica — meus olhos fechados e imóveis, meus batimentos e respiração reduzidos a um ronronar indetectável por quaisquer instrumentos humanos.

Meu lado intraterreno se remexe dentro do meu crânio, me garantindo que isso vai dar certo, mas meu lado humano instintivamente se encolhe quando o medo tranca minha garganta. Não posso gritar para dizer a todos que estou viva. Minhas cordas vocais não vão funcionar. A claustrofobia, minha velha inimiga, me deixa toda arrepiada. Sei o que está acontecendo ao meu redor, apesar de não conseguir abrir os olhos ou mover meus membros. Todos os cheiros, sons e sensações táteis são ampliados por minha incapacidade de reação.

Os paramédicos que atenderam, nesta manhã, à chamada de emergência da minha neta de vinte e sete anos me declararam morta — fulminada por um ataque cardíaco. Foi insuportável ouvi-la chorar e gritar. Isso despertou lembranças da minha maior perda — da morte de Jeb, três anos antes. Uma faca ainda é cravada no meu peito sempre que me lembro do nosso último adeus.

Mas Jeb me mandou ser firme. E ensinei aos meus netos o mesmo — sempre encarar as coisas. Ela ficará bem. Não tenho dúvida disso porque ela é muito parecida comigo, para além de seus cabelos loiros, olhos azuis e curiosidade. Ela é teimosa, leal e uma sobrevivente.

Assim que os paramédicos levaram meu corpo ao necrotério, tudo funcionou como o previsto.

Minha família sabia que cemitério eu escolhera e as quatro exigências do meu testamento: nada de exibição pública do meu corpo, nada de velório, cremação em doze horas depois da minha morte e a dispersão das minhas cinzas no mesmo local onde as de Jeb foram jogadas, sob o salgueiro em nossa casa de campo. A árvore tinha um significado especial, por ter sido gerada de uma mudinha do salgueiro que dividia os quintais da nossa casa quando éramos crianças.

Tais pedidos nada convencionais não abalaram minha família, considerando que me tornei uma mulher muito excêntrica.

Depois da morte de Jeb, eles me viram vagar pela casa de campo, reunindo os mosaicos que fiz ao longo da vida, cheios de paisagens bizarras e místicas — com títulos como A Batida do Coração do Inverno, Dunas de Xadrez e O Ventre do Monstro —, e guardando-os no sótão, ao lado de outras quinquilharias, incluindo um anúncio de um passeio pelo Tâmisa, em Londres. As últimas coisas que guardei ali foram duas chaves: uma que pertencia à minha mãe, e era capaz de transformar qualquer espelho num portal, e outra que podia abrir o jardim das almas do País das Maravilhas. Esta última foi um presente dado a Jeb, depois que ele desistiu da sua musa, de modo a satisfazer a necessidade do reino interior por sonhos vívidos e cheios de imaginação, conectando nossos mundos em paz ao longo do processo. Ele desistiu do que fez dele único, a fim de manter as crianças humanas seguras. Um ato de coragem que seus filhos e netos jamais tiveram o privilégio de saber. Era essa a lembrancinha de que eu tinha mais dificuldade para me desapegar, porque era uma homenagem à coragem e ao caráter nobre de Jeb — as duas coisas que eu mais amava nele. No entanto, como Rainha Vermelha do País das Maravilhas, eu não tinha motivo para guardar chave tão sagrada.

Escondi tudo num baú no sótão e o tranquei. Então pus a chave do baú em meio às páginas da minha velha coleção de Lewis Carroll. Jeb e eu éramos donos da casa e do terreno que a cercava, e insistimos, em nossos testamentos, para que o lugar permanecesse sempre com a família. Assim, se nossos descendentes um dia precisassem me encontrar, poderiam. Eles só precisam procurar as pistas, como um dia eu fiz. Seguir meus passos e acreditar no impossível — em contos de fadas e desejos e mágicas.

Sempre os mantive no escuro quanto ao nosso legado, dando-lhes uma chance de viver uma vida normal. Até mesmo ordenei que os insetos e flores ficassem em silêncio. Agora sou a única capaz de ouvir esses sons do mundo interior, e as coisas continuarão assim enquanto eu estiver reinando como a Rainha Vermelha. Contudo, se algum familiar procurar com presteza, vai encontrar a verdade que escondi para eles.

Em todos esses anos, eles aceitaram meus caprichos porque sempre os respeitei e os amei incondicionalmente. E agora conto com a lealdade deles. Todo o meu plano de morrer depende da execução do meu testamento.

A cremação era a única forma de evitar que drenassem meu sangue, bombeassem formol em minhas veias e cerzissem minhas pálpebras — todos aqueles procedimentos mórbidos e intrusivos para embalsamar e preservar o corpo mortal. Fui abençoada ao longo dos meus oitenta anos de vida humana com saúde e uma mente aguçada. Nunca precisei de marca-passo e não tenho próteses, implantes ou dentaduras, então não há nada que possa explodir no forno. Isso significa que não haverá incisões nem extrações. Era importante que eu permanecesse intacta — por dentro e por fora.

Todavia, se o Rábido Branco não se apressasse e chegasse aqui com o antídoto para me tirar deste estado, nada importaria. Vou virar um monte de cinzas. E Morfeu terá de encontrar um lar novo para meu espírito eterno... um novo corpo para eu habitar.

Ele ficará furioso se isso acontecer e nunca me deixará esquecer isso. Uma eternidade é muito, muito tempo para ouvir eu avisei, entoado continuamente com um marcado sotaque londrino.

— Não me importo — disse ele há duas semanas, enquanto discutíamos meu êxodo do reino humano e tomávamos chá durante uma das minhas visitas ao País das Maravilhas em sonho. Ele levou a xícara à boca, seu rosto curioso perfeito e jovem como sempre. Ele bebeu e deixou a xícara de lado novamente. — Muitas coisas podem dar errado. Devo estar lá para executar meu plano.

— Vou agir sozinha — declarei. Estudei a cama com dossel e a lareira instaladas na diagonal em relação a enormes poltronas vitorianas ao lado de uma mesa oval, buscando conforto no cenário. — E vamos seguir meu plano. — Aqueles seriam meus últimos instantes no reino humano. Tinha de ser de acordo com a minha vontade. Contive uma descarga de tristeza e tentei exibir o mesmo controle que Morfeu exibia com sua xícara de chá, mas o líquido quente molhou minha mão velha quando meu pulso tremeu. Gritei.

— Alyssa, por favor. Permita-me. — Com seus dedos lisos e elegantes, ele cuidadosamente segurou meus dedos enrugados, limpando o chá e acariciando a mão queimada com um guardanapo.

Permita-me. Nós dois sabíamos que ele falava de outras coisas além da limpeza do chá derramado.

Tantos anos passamos juntos nos meus sonhos — e tantos outros na nossa infância —, com Morfeu me treinando e me ensinando sobre meu reino e o mundo. Não havia oportunidades para ficarmos sozinhos, já que ele mantinha o véu do sono descoberto para eu poder interagir com o Rábido, Chessie, Marfim, as criaturas e meus súditos.

Isso mudou quando fiquei viúva. Realizava meus deveres reais todas as noites e lutava para ser forte, até que meu luto pela morte de Jeb ficou tão intenso que as lágrimas se acumulavam em meus cílios, me cegando. Morfeu — sentindo minha vergonha, porque rainhas não choram — insistia que era hora do chá, que tomávamos sozinhos nos aposentos reais que um dia pertenceria a nós como rei e rainha.

Ali, na nossa solidão, escondidos de olhos predadores e cercados por exuberantes tapetes vermelhos e cortinas douradas, eu me perdia em minha dor. Permita-me, dizia ele. Estendendo os braços, ele me abraçava enquanto eu chorava. Noite após noite, durante um ano, até que finalmente não conseguia mais chorar.

Pouco depois, a atenção de Morfeu mudou. Seus carinhos se tornaram menos confortantes e mais íntimos. Estava constrangida demais para reagir, tímida demais em meu corpo velho.

Um ser místico eternamente jovem cortejando uma velha — teria rido do absurdo disso, não estivesse tão afetada pela devoção cega dele e pela intensidade do seu amor.

— Mesmo que usássemos seu plano... — Morfeu falava baixinho e de mau humor ao esfregar o guardanapo entre meus dedos, enxugando os resquícios de chá. — ... ainda assim eu deveria estar lá nas coxias, para supervisionar o espetáculo.

Franzi a testa para ele. Sua teimosia, juntamente com a dança dos vaga-lumes em seus cabelos desgrenhados e seus traços bizarramente belos, me fez lembrar outra noite em que nos sentamos neste quarto juntos — há várias décadas —, quando ele tentou me convencer a usar a coroa de rubi pela primeira vez. Quando tentei convencê-lo a me devolver meu desejo para eu poder fugir do País das Maravilhas, curar a maldição da minha família e manter Jeb em segurança. Eu era uma pessoa diferente na época, cheia de juventude, aspirações humanas e inocência.

Nosso quarto real se tornou uma lembrança dolorosa da velhice e decrepitude. Ansiava criar lembranças novas aqui, depois de desistir de tentar superar a beleza caótica do País das Maravilhas, quando fui coroada rainha de novo e permaneceria com dezesseis anos para sempre — jovem, cheia de energia e tão sedutora quanto o homem alado que governaria ao meu lado.

Até então, eu não me encaixava. Eu era uma foto deixada ao sol e chuva, minhas cores vibrantes se desbotando melancolicamente e ganhando um tom amarelado. Meus poderes intraterrenos ainda eram fortes, mas estavam presos num vaso gasto pelo tempo. Meus ombros pareciam curvados e pesados demais, eu raramente usava minhas asas. Do que mais sentia falta era voar.

Eu me perguntava se era assim que a Rainha Vermelha se sentiu no fim e por que ela permitiu que Morfeu a convencesse a voltar ao País das Maravilhas, abandonando seus descendentes semi-humanos. Por fim, foi plano dela voltar, apesar de não querer fazer aquela jornada sozinha. Ela brigou com Morfeu, dando início a uma série de eventos e manipulações que acabaram por me levar à coroa e me tornar rainha. Algo pelo qual aprendi a agradecer, apesar de na época ter reclamado do presente. Demorei muito para admirar totalmente a preciosa imortalidade, e jamais desvalorizaria isso novamente.

Depois que Morfeu terminou de limpar o chá derramado, tirei a mão da dele e timidamente cobri meu pescoço com o lenço de seda, tentando esconder minhas peles murchas. As pessoas diziam que eu era linda para a minha idade. Que parecia ao menos vinte anos mais nova. Todavia, em comparação à beleza sobrenatural e imutável de Morfeu, eu me sentia velha.

— Não quero você lá — insisti, determinada a mantê-lo distante da casa funerária. — Já basta você ter me visto murchar como uma uva-passa ao longo dos anos. — Até minha voz soava enferrujada, como se as palavras jorrassem da minha garganta e língua em porções cáusticas.

Morfeu apoiou os cotovelos na toalha da mesa, aproximando-se ao máximo com o jogo de chá entre nós. Seus cabelos azuis tocaram-lhe os ombros, animados e encantados — um contraste marcante com as ondas brancas reduzidas a um coque preso atrás da minha cabeça.

— Você está no fim de sua crisálida, meu amor. Esta etapa é a mais difícil, acredite. Uma batalha furiosa e incômoda de identidade, antes de se libertar e se transformar na criatura de luz e criatividade que sempre foi seu destino. Posso mantê-la atenta. Para evitar quaisquer... distrações.

Ele olhou para minha aliança, que eu ainda não tinha tirado. Aquilo se tornara mais do que um símbolo da nossa devoção. Tornara-se um símbolo da minha vida humana, e eu pretendia usá-la até deixar tudo para trás.

Com o dedinho, Morfeu circulou a aliança, cuidando para não tocar os diamantes ou o suporte de prata que os mantinha no lugar.

— É importante que você não permita nada que a impeça de dar o salto final. Você sofreu a perda daqueles que se foram há tanto tempo. Eles estão em paz. Deixe que a paz deles lhe dê paz. Senão, você será afetada... incapaz de agir com a mente ágil. O foco é fundamental para que qualquer um dos planos funcione.

— Já sei disso — respondo, um aperto no peito dolorido. — Você tem medo de que eu fique senil. De eu não ser capaz de lidar com isso.

Ele suspirou, acariciando meu polegar com o dele.

— Não senil. Nostálgica. Acontece a humanos. Você mesma me contou, enquanto eu a via amadurecer do refinamento à sabedoria.

— Refinamento. — Tentei um sorriso hesitante diante do esforço dele em me encantar. — É assim que vocês falam hoje em dia?

Ele me encarou sem hesitar.

— Seus olhos não perderam a incandescência; nem a mente, a inteligência. Você não é ingênua. Você é minha torta de ameixa, e sempre foi. Já lhe disse isso repetidas vezes, não é?

Ao menos uma vez por noite nos meus sonhos, Querida Mariposa.

Não respondi em voz alta, assim como não revelei minhas maiores inseguranças: estava com vergonha de ele me ver tão decadente... Não suportava a ideia de ele ter qualquer lembrança de mim como um cadáver naquele caixão de papelão — assim como eu vi Jeb depois da morte dele, antes de ser cremado.

— Uma rainha não deveria exigir resgate — sentencio. Ainda o encaro, maravilhada com aquelas íris coloridas que devolvem a mim o mesmo olhar de nossa infância, cheio de surpresa e afeto. De certa forma, ele via para além do meu corpo velho e enxergava a menina que fui, e eu queria muito conseguir me ver como ele me via. — Uma rainha deve merecer o respeito do seu reino e de seus súditos. E a admiração do rei.

Ele pegou minha mão novamente e beijou cada um dos nós dos dedos cheios de artrite.

— Ah, eu lhe garanto Você sempre mereceu isso. Na verdade, planejo mostrar-lhe a profundidade de minha admiração. — A palavra profundidade saiu de sua garganta como um urro. — Ainda que sejam necessárias várias vezes para convencê-la, finalmente chegará o momento de você ser minha.

Meu rosto ficou vermelho. Apesar de todos os anos em que ele me elogiou e me provocou com insinuações, e a despeito de tudo o que vivi como mãe, esposa e avó mortal, ele ainda conseguia me fazer enrubescer.

— Ah, aí está. — Ele passou o dedo por meu rosto enrugado e sorriu, satisfeito demais consigo mesmo. — Não perdi meu encanto.

— Como se isso fosse possível, para o mestre da sedução verbal — provoquei.

Seu humor mudou para a insolência num piscar de olhos.

— Você logo verá que isso é mais do que conversinha, minha rosa.

Fiquei ainda mais vermelha, sentindo-me mais jovem do que nunca. Ele sempre causava esse efeito em mim. Sempre fez com que eu me sentisse viva e desejável. Exceto pelas vezes que ele me desafiava ou me deixava furiosa.

Ele se recostou em seu lugar, as asas erguidas.

— Seu corpo está cansado. Deixe-me fazer isso por você, para você poder descansar — tentou ele uma última vez.

— Você me ensinou a ser forte e astuciosa. Devo dar sozinha este último salto para dentro da toca do coelho. — Uma sensação inesperada de vulnerabilidade me fez tremer. Peguei minha xícara de chá para absorver seu calor. — Mas você estará lá para me pegar?

— Estarei lá esperando um beijo arrasador para compensar todos os meus problemas — respondeu ele sem hesitar.

Sorrindo, peguei o jogo de xadrez. Morfeu ficou observando atentamente eu animar as peças para que atuassem no meu grandioso plano de deixar o reino humano e esconder meus vestígios com a ajuda do meu conselheiro real, além de pedaços de osso fornecidos pelas fadas, um saco de cinzas, dois trajes de disfarce, uma mosca comum e um punhado de duendes. Enquanto eu falava, seu olho adornado com joias brilhava num tom esverdeado — incomodado, mas esperançoso. A ansiedade que emanava dele era visceral.

Era inconcebível que tivéssemos um relacionamento de sessenta e três anos — platônico — sem um quê de tensão. Apesar de ele gostar muito de me ver andar na ponta dos pés na corda bamba da sedução contida, ele manteve seu juramento e respeitou minha decisão de ser fiel a Jeb. Ele esperou três anos, enquanto eu sofria a morte do meu marido mortal e preparava minha família para minha partida iminente. Era essa a profundidade do respeito dele por mim. Ele teve meu respeito em troca. E muito mais...

Agora chegou o dia de recompensá-lo por sua paciência e estou começando a me arrepender por não deixá-lo planejar minha morte... por não deixá-lo controlar o espetáculo. Provavelmente, tudo seria muito mais fácil. Eu já estaria em seus braços e em sua cama — uma jovem rainha borboleta, governando meu reino, embriagada de poder, loucura e paixão.

Não. Eu consigo. Posso provar que sou capaz, calculista e forte, como todas as boas rainhas deveriam ser.

O único papel de Morfeu no meu plano era mandar o Rábido com o antídoto. Assim que meu cúmplice chegar, tudo se encaixará e fugirei para o País das Maravilhas. Como um corpo não pode ser exumado depois de reduzido a cinzas, ninguém saberá que ainda estou viva e apenas fui embora deste mundo para sempre.

Uma pontada de tristeza segue-se a esse pensamento quando finalmente me dou conta. Acabou. Estou pronta para dar um fim... para começar meu futuro imortal. Vivi uma vida plena aqui. Minha família é saudável e feliz. Estamos no auge. Todos os sonhos humanos foram realizados e meu coração está firme e forte novamente.

Se bem que, por causa disso, há muita coisa a ser deixada para trás. Não há nada inconcluso, mas ainda assim é difícil dizer adeus para sempre. Assim que a coroa for colocada em minha cabeça para dar início à minha imortalidade, não terei de usá-la constantemente para manter minha juventude, mas terei de ficar no País das Maravilhas. Como Marfim uma vez me disse, o tempo é complicado ao se passar pelo portal a fim de retornar ao mundo humano... há de se imaginar uma hora específica, ou o relógio retrocede e o portal deixará você no mesmo momento de sua passagem.

Se eu tentar cruzar as fronteiras para o reino humano depois de partir, voltarei para sempre a este momento e terei oitenta anos para sempre, ou automaticamente envelhecerei todo o tempo que se passou e virarei pó na hora. Acrescente-se a isso o fato de eu estar morta aos olhos de todos — jamais poderia explicar meu reaparecimento sem causar terror e confusão — e ir e voltar não será mais uma opção.

Uma muralha impenetrável está prestes a se erguer entre mim e minha família, deixando-nos sem nada além de memórias.

O rosto de Jeb reapareceu em minha mente antes que eu pudesse impedir... como seus olhos verdes brilhantes me encararam pouco antes de ele os fechar na morte. Como eles estavam tão cheios de amor e gratidão por todos os sonhos que compartilhamos.

Sinto algo crescer na minha garganta e uma dor atrás dos olhos. No meu peito, a pequena identidade de metal parece uma pilha de tijolos.

Pare. Não posso fazer isso agora. Tenho de me concentrar na fuga. Morfeu tinha razão. Pensar naqueles que amei só vai me atrapalhar. Vou manter as lembranças sob controle... esquecer como encarei a morte da mamãe e do papai, como achei que jamais superaria a dor. Como Jeb foi meu porto seguro, como sempre. Assim como fui para ele, quando a mãe dele morreu.

É fútil pensar nessas coisas agora, porque, assim que Jeb morreu, todo o mundo se distorceu — adquiriu uma nova forma que eu não reconhecia. As coisas cotidianas se tornaram estranhas e desagradáveis. Com a morte dele, eu não fazia parte de mais nada.

Minha metamorfose estava completa assim que meu marido mortal deixou de respirar. Só o que me restava agora era sair do meu velho casulo.

Um cheiro novo entra em meu entorno de papelão — loção pós-barba ou desodorante —, me obrigando a voltar ao presente enquanto dois homens conversam do lado de fora do caixão.

— Última da noite, Frank?

— É isso, Brian. Chegou há algumas horas. Só entrega. E é para se apressar com ela. Quer que eu fique e ajude?

Tenho dificuldade para respirar. Meu plano não permite duas testemunhas. Só uma. Enquanto espero pela resposta do operador do crematório, meu coração se encolhe dentro de mim, cheio de medo. O órgão parece tremer, apesar de não haver pulsação em meus pulsos ou ouvidos. Só uma vibração fria e indiscernível por trás do meu esterno, como gelatina gelada retirada da fôrma.

— Não — diz finalmente Brian, mexendo em alguns papéis. — Posso fazer isso de olhos fechados.

A ironia é risível. Se tudo sair como planejado, ele não só terá seus olhos fechados, como também estará dormindo e sonhando.

— Vá para casa e fique com sua família — conclui Brian. — Diga a Melanie e às crianças que mandei um oi.

— Entendi. Até amanhã.

As portas se fecham com um rangido e o alívio toma conta de mim, mas por pouco tempo. Os cliques e claques da esteira mecanizada balançam as paredes de papelão do meu caixão e agitam meus ossos rígidos. Sinto um balançar leve sob minha coluna enquanto meu caixão segue por uma esteira com rolos de metal. À medida que estes se movem, as chamas crepitam mais alto, aquecendo meus pés no ponto onde a parede sob a sola dos meus pés se aproxima perigosamente da entrada do incinerador.

Era para o Rábido estar aqui antes que o forno de temperatura controlada estivesse quente o bastante para acionar o mecanismo de abertura. As coisas estão acontecendo fora da sequência e rápido demais. Meus músculos doem e ganham vida, mas estão rígidos como aço. Imóveis. Um vislumbre de outra lembrança me arrepia: quando a Rainha Vermelha controlou meu corpo naquele último dia em Qualquer Outro Lugar. Quando eu era uma marionete dela. Sinto-me tão impotente agora quanto naquele tempo.

Estou prestes a ser envolta em chamas. Meu corpo não vai sobreviver. De todo modo, preciso sobreviver. Prometi voltar como eu mesma. Inteira. É uma promessa que não posso quebrar. Morfeu esperou demais por meu retorno. Não posso decepcioná-lo.

A dúvida ergue sua cabeça horrível: o que farei? Não consigo me mover, não consigo me livrar... não sem o antídoto. Um vazio dói por trás dos meus canais lacrimais enquanto desejo que uma enchente me liberte e encha toda a minha caixa com um oceano de lágrimas para me salvar do fogo. Mas meus olhos podiam muito bem estar cheios de areia.

Chega de drama, meu amor. Use sua mágica. Improvise e encontre uma forma de escapar.

Não tenho certeza se é a voz de Morfeu na minha cabeça ou se é minha própria voz. Ouvi o sotaque dele e sua insistência tantas vezes ao longo da vida que eles estão entranhados em mim como se fossem meus.

Seja qual for o caso, isso desperta minha determinação. Há um motivo para eu ter vindo a este lugar na noite passada, quando tudo estava escuro e em silêncio: para poder anotar mentalmente todas as coisas que poderia animar se precisasse. Para poder entender a logística do forno crematório. Para poder usar minha mágica às cegas.

Concentro-me no maquinário da esteira. Aprendi uma coisa ou outra sendo esposa de um mecânico. As molas do mecanismo se contraem enquanto as imagino se retraindo. O movimento aciona as amarras e a porta de metal se fecha com um baque. Minha caixa para imediatamente ao atingir o obstáculo.

— Você só pode estar brincando comigo — resmunga Brian. Ele mexe na maçaneta da porta e bate nas dobradiças. — Pronto. Agora, sim.

Ele empurra meu caixão de volta para a esteira de metal, criando espaço para a dobradiça se abrir. Minha mente procura outra forma de detê-lo quando o ouço gritar “Mas o que é que...?”, pouco antes de ouvir o som do seu corpo caindo no chão. O caixão bate na porta fechada novamente.

— Rainha Alyssa — uma voz fina soa do outro lado do papelão.

Nikki, sua fadinha maravilhosa. Um formigamento se irradia pelos meus lábios, o fantasma de um sorriso esperando para se abrir. Meus dedos dos pés se dobrariam de empolgação, não fosse minha paralisia.

A tampa do caixão se abre e as asas de vinte fadas pairam ao redor do meu rosto — lufadinhas de vento com cheiro de canela e baunilha.

Mãozinhas do tamanho de joaninhas seguram minhas pálpebras, abrindo-as diante de um brilho âmbar. Ainda não consigo virar a cabeça, mas pela minha visão periférica a galhada do Rábido aparece sobre a borda do caixão, seguida por um par de olhos rosados brilhantes.

— Atrasado estou — desculpa-se ele.

Tento menear a cabeça, mas não consigo.

Todo o seu rosto aparece diante de mim.

— Arrumá-la, Alteza. Levá-la para casa, finalmente.

Casa. A palavra passeia por minha mente, cheia de promessas e esperanças. Imagino-me voando com Morfeu pelos cenários bizarros e irregulares do País das Maravilhas. Como vai ser bom me sentir pertencente a um lugar de novo. Fazer parte e nunca ter de abandonar ninguém novamente.

O Rábido estica o braço magro e derrama em minha garganta algo de uma garrafa vermelha. Um leve toque de frutas vermelhas misturado a menta arde em minha língua. Meu coração ganha vida, batendo com tanta força contra meu esterno que eu perco o fôlego. Em pouco tempo, sou capaz de abrir os olhos sem a ajuda das fadas. Elas se dispersam com risadinhas e pairam ao redor do adormecido operador do crematório, caído no chão de cimento.

Pisco com força e rapidez. Meus canais lacrimais funcionam e meus olhos se enchem de água. O sal fere e coça.

Depois, meus dedos dos pés e das mãos latejam e os músculos despertam, moles e resistentes, como elásticos esticados demais. Enquanto me sento, minhas velhas articulações estalam.

O Rábido sobe na beirada da inclinação e segura o caixão, mantendo-o ao meu nível.

— Perdoe o Branco Rábido. Para todo o sempre, ao seu lado estarei.

Acaricio sua cabeça macia.

— Nenhum perdão é necessário. O que importa é que você está aqui agora. Alguém o viu saindo do banheiro?

O Rábido faz que não.

— A mosca no muro ficou de olho no futuro. — Ele ri da rima e aponta para a parte de cima da porta que ostenta a única janela do salão. A mosca anda pelo vidro do outro lado, numa demonstração de sua devoção inabalável.

O Rábido abre o sorriso sorrateiro que aprendi a apreciar, enquanto sua mão esquelética me entrega uma mochilinha. Olho dentro e está tudo ali: meu colar com o rubi, minha aliança de casamento, os trajes de disfarce, um saco de cinzas e pedacinhos de osso, uma muda de roupa, uma faca e três lembranças da minha vida humana que serão as únicas coisas que levarei comigo ao transpor os limites do País das Maravilhas.

Primeiro, coloco o colar em volta do pescoço e aperto a chave contra o peito, saboreando o poder que ela contém.

O operador do crematório ronca no chão. Ele parece com frio e nada confortável, mas sei que não está. Seus sonhos são cálidos e sensuais. As fadas voam ao redor dele, as asas batendo à velocidade de beija-flores, enquanto elas espalham partículas que são como dentes-de-leão cheios de feromônios. As sementinhas caem sobre o rosto sorridente do homem, levando seu inconsciente a imaginar as fantasias mais carnais. Torço o nariz, com vergonha até de imaginar o que ele está sonhando. Ele provavelmente vai ter uma ressaca de sonhos por uma semana.

Ainda que ele não vá sofrer nenhum efeito físico duradouro, as fadas estão explorando os pensamentos secretos dele. Quando eu era mais nova, teria me arrependido de tê-lo usado em meu plano. Agora, não. Quando ele acordar, daqui a mais ou menos uma hora, sua dor de cabeça insuportável o impedirá de questionar como conseguiu me cremar enquanto ele dormia. Ele só irá querer uma aspirina e sua cama macia em casa.

O fim justifica os meios.

Uso a faca para cortar uma abertura na lateral do caixão e tirar minhas pernas, lenta e cuidadosamente. Não consigo me mover tão rápido quanto antes. Meus pés descalços tocam o chão frio, o vestido de papel fazendo barulho. O Rábido se vira de costas enquanto tiro o vestido e o jogo dentro da caixa, depois visto um moletom e botas cinza — as roupas mais confortáveis e discretas do meu armário. Repreendo-me por me esquecer das roupas íntimas, mas não importa o que estou vestindo agora, porque no País das Maravilhas Morfeu encheu todos os armários do castelo com camisolas e lingeries de renda, cetim e veludo — um guarda-roupa digno de uma rainha.

Hoje, o disfarce esconderá meu traje simplório. Coloco o pé no tecido mágico. Para virar uma camaleoa, só preciso vestir o capuz e me concentrar nos arredores, meu corpo refletindo o cenário de fundo.

Mas primeiro...

Sem eu nem pedir, o Rábido me entrega o saco de cinzas e ossos e minha aliança de casamento. Olho o anel. Jeb o fez para mim quando tinha a capacidade mágica de pintar coisas e lhes dar vida. Quando sua musa se tornou uma entidade viva. Ele me serviu tanto como anel de noivado quanto como anel de casamento e era indestrutível. Pelo menos era o que pensávamos. A única vez que ele perdeu um de seus doze diamantes foi por descuido da minha mágica, quando eu a estava praticando.

Estava do lado de fora da nossa casa de campo, tentando fazer o salgueiro dançar, quando o diamante caiu na grama. Procuramos e procuramos, mas nunca o encontramos. Depois de uma semana, ele apareceu de novo, nascendo do solo na forma de uma flor parecida com vidro. Era como se o diamante fosse uma semente, tendo dentro de si a força da criação mágica de Jeb.

O cheiro de terra presente na lembrança dá lugar ao cheiro do propano do forno. Abro o saco e derramo as cinzas e ossos no caixão, mantendo os movimentos metódicos e precisos para a nostalgia não tomar conta de mim novamente.

Depois de esvaziar o saco, beijo minha aliança e a coloco em cima do montículo.

— Rábido, derreta isso com sua mágica.

Meu conselheiro real se aproxima, olha pela abertura e estreita seus olhos brilhantes até que eles irradiem um calor vermelho. Enquanto ele se concentra, as faixas de prata se fundem, reduzindo os onze diamantes a cinzas.

Coloco a placa de identificação dentro do caixão e leio o que está gravado no aço: Alyssa Victoria Gardner Holt. Sinto um nó na garganta. É a última vez que meu nome humano me definirá.

Reposicionando a tampa, ordeno que o mecanismo da porta funcione. Entrefecho os olhos diante do calor e das chamas, enquanto as portas se abrem o bastante para eu empurrar o caixão pela esteira, a porta se fechando em seguida. Ela se fecha completamente, tanto que nem mesmo se pode ver o brilho alaranjado lá dentro.

Alguns segundos mais e eu estaria presa ali. Agora, depois que o papelão se queimar todo, vai parecer que eu estava. As prateleiras de metal na parede contêm vários cubinhos de papelão. Dentro estão os restos mortais dos corpos que vieram antes de mim e agora esperam ser transferidos para suas urnas.

Mas meus “restos mortais” são únicos. Os diamantes de Jeb esperam lá dentro — sementinhas mágicas. Quando as cinzas forem lançadas no lugar onde as dele foram absorvidas na terra sob nosso salgueiro, flores nascerão, uma parte dele e minha. Unindo o que restou de nosso lado humano, numa última homenagem a toda a beleza que ele criou durante a vida.

Seguro-me para não chorar e pego a mochila enquanto o Rábido veste outro traje de disfarce, o qual encolhe até caber em seu corpo de coelho. Mentalmente, pergunto à mosca se o corredor está livre.

Ela responde num sussurro:

Está tudo bem, Rainha Alyssa...

Os outros humanos se foram. Não há nada além de umas traças por aqui.

Desnecessário ficar invisível, então.

— Nikki — sussurro, e a fadinha balança as asas, soltando a dose final de pó de fada no homem adormecido. Então ela reúne suas companheiras e nos segue porta afora. O banheiro fica a poucos passos do outro lado do corredor comprido e escuro. Sigo tomando cuidado para não esmagar as traças que caminham perto dos meus pés e dos pés do Rábido. Sorrio ao ver os insetos acompanhados de uma fila enorme de baratas, besouros e aranhas.

Rainha Alyssa! Rainha Alyssa! Tão triste vê-la partir...

A mosca voa ao redor da minha cabeça, acrescentando suas despedidas à confusão.

— Sentirei saudade de vocês também — digo, lutando contra uma onda de melancolia. Será a última vez que ouvirei esses cumprimentos confusos e zunidores. No País das Maravilhas, os insetos são... bem diferentes. Menos inócuos e bonzinhos. Alguns são maus e letais, e nada pequenos. Mas conheço todos os segredos deles e todas as suas fraquezas — graças ao sábio guardião do País das Maravilhas.

Nosso desfile entra no banheiro e para diante do espelho. Em vez de me ater à minha aparência velha e enrugada, imagino o relógio de sol que cobre a toca do coelho em um jardim londrino. O vidro racha como gelo no lago e, no reflexo entrequebrado, o relógio de sol aparece, marcado por uma réstia de pôr do sol rosa. É cedo e ninguém ocupa a trilha ainda. Como precaução, visto o capuz e o Rábido faz o mesmo.

Só precisamos de um ou dois pensamentos sobre nossas cercanias e seremos invisíveis.

Usando minha chave, miro numa fissura na forma de buraco de fechadura, minúsculo e intrincado.

O portal se abre. O Rábido me cutuca com seus dedos magros e entrelaço meus dedos aos dele. Junto com as fadas e nossos insetos companheiros, passamos pela abertura liquefeita. Uma brisa fria me atinge, assim como o cheiro de mato e rosas cobertos de orvalho reluzente.

Os botões de rosa dizem:

Bem-vinda, Majestade. Os anos ficaram para trás. Logo você estará desabrochando como nós novamente.

Sorrio. O Rábido me puxa rumo ao relógio de sol que já expõe a toca do coelho. Ele está ansioso para ir embora. Mais insetos se juntaram a nós; alguns pelo terreno: besouros, centopeias e escorpiões; outros pela brisa: borboletas, mariposas, vaga-lumes...

Saem em enxame do mato e ficam dando a volta em mim e em meu conselheiro real — um arco-íris encantado, espesso e brilhante, sob a luz rosada do céu.

As borboletas cantam:

Vida longa à Rainha Alyssa. Que você seja para sempre jovem, louca e livre.

Muitos deles pousam sobre mim, as asas acariciando meu rosto e pescoço através do traje de disfarce, e percebo que não terei mais de me tornar invisível. Meus amigos insetos estão aqui para me dar proteção, como sempre estiveram.

O Rábido me solta, seus dedos de cadáver tocando os meus enquanto ele segue as fadas e mergulha na toca do coelho sem olhar para trás.

— Atrase-se não, Majesta-a-a-ade — o grito do Rábido ecoa até mim, afastando-se mais e mais à medida que ele desce, sem peso, como uma pena ao vento.

Ao contrário do meu séquito interior, não consigo ir embora sem uma olhada para trás.

Paro, olhando em meio à nuvem de milhares de asinhas adejando diante da paisagem tremeluzente no horizonte. Meu peito se aperta.

Pego as lembrancinhas da minha mochila. Três garrafas de vidro decoradas: a primeira cheia de pedrinhas, a segunda com conchas e a última com um pó prateado. Uma olhada nas três e as lembranças contra as quais eu lutava iluminam minha mente, graciosa e lentamente, como a aurora invadindo o mundo imóvel que desperta.


CONTINUA

A MARIPOSA NO ESPELHO


Capítulo 1


As Maquinações
da Mariposa

— Tem certeza, Morfeu?

— Tenho — respondeu Morfeu, tirando as luvas e enfiando-as no casaco. — Você, entretanto, parece que precisa ser convencida.

A magia pulsava nervosamente na ponta de seus dedos, uma luz azul pulsante logo abaixo da pele. Por causa da ponte de ferro que havia lá fora, seus poderes estavam limitados a alguns truques inofensivos, mas suficientes para dar o seu recado, se necessário.

O besouro-tapete — que de tão grande chegava à altura dos ombros de Morfeu, depois de este haver tomado uma poção encolhedora — engoliu em seco por trás de suas muitas mandíbulas estalantes. Sua pele carpetada tremia.

— Não, não. Por favor, o senhor interpretou mal as minhas ressalvas. — Os braços ramosos do inseto vibravam enquanto ele folheava as marcações em ordem alfabética de sua prancheta, as quais continham todas as lembranças perdidas no País das Maravilhas. — É que ficar espiando os momentos esquecidos de um ser humano parece uma maneira tediosa de se passar uma tarde, só isso...

Morfeu mudou de posição, e suas asas lançaram uma sombra sobre a cara do besouro.

— Ah, mas este humano, em especial, tem muito a me ensinar.

Esse humano, em especial, havia conseguido capturar algo que Morfeu desejava mais que tudo neste mundo.

— Sente-se — disse o inseto, apontando para uma cadeira branca de vinil —, e eu prepararei as memórias para o senhor.

Morfeu jogou as asas para o lado, sentou-se e deu uma tragada no narguilé fornecido por seu anfitrião como cortesia. O tabaco doce e fresco passou ardendo pela sua garganta. Ele soprou baforadas de fumaça no ar, formando com elas o rosto de Alyssa. Era fácil imaginar o modo como seus olhos sempre se cobriam de um azul gélido quando ela o via, cheios de excitação e temor ao mesmo tempo. Adorava isso nela: a sagacidade de seus instintos intraterrenos alertando-a a não confiar nele, suavizada pelas emoções humanas forjadas durante a infância que passaram juntos.

Antes dela, Morfeu levara a vida em solidão, sem nunca precisar de ninguém. Ele não fazia a menor ideia do feitiço que ela lhe lançara. Ela era mais que uma decepção, sempre jurando devoção ao lado errado. Seu encanto, porém, era inegável. Principalmente quando ela o desafiava ou o encarava com sua indignação de justiceira, o que a deixava com os lábios deliciosamente posicionados quando rangia os dentes.

Morfeu colocou o narguilé de lado, embora a sensação de queimação em seu peito não tivesse nenhuma relação com o fumo. Alyssa era a única que poderia aplacar o incêndio que havia ali, pois fora ela quem havia atiçado aquelas chamas.

Os dois tinham passado cinco anos juntos — como amigos de infância —, até que a mãe dela a arrancou dele, Alyssa sangrando e ferida, e ele ficara se remoendo de remorso e com culpa por causa de um juramento imprudente que havia feito, no qual prometeu se manter longe dela.

Manter-se afastado da amiga fez com que ele sentisse o gosto da solidão pela primeira vez. Mesmo todos os anos de claustrofobia que ele passara aprisionado em um casulo antes de encontrá-la... nem mesmo eles o prepararam para o sofrimento da ausência dela.

Então, por fim, ela havia voltado para ele, fazendo-o reviver todos os antigos sentimentos que ele pensava ter dominado. Daquela vez, também, tudo foi muito rápido. Ela partira novamente, por escolha própria. Restaram a dor e a solidão excruciantes. Debilitantes.

Havia apenas seis meses que ela partira do País das Maravilhas, e ele não compreendia este vazio corrosivo que só poderia ser preenchido pelo toque dela, por seu perfume, sua voz. As solitárias criaturas mágicas não ligavam para essas bobagens; não precisavam de companhia, abominavam a bagagem emocional. Sua afeição e lealdade pertenciam ao agreste País das Maravilhas e a nada nem a ninguém mais.

Então o que ela havia feito para mudar isso?

Ultimamente, cada vez que ele via o próprio reflexo, não mais reconhecia a Mariposa no espelho. Estava incompleto, enfraquecido; e menosprezava isso.

O menosprezo era ainda maior porque ele havia se esforçado tanto para cortejá-la, enquanto ela oferecia seu afeto a um reles mortal.

Morfeu suprimiu um rosnado. Ele não conseguia compreender a sorte de Jebediah, como um humano podia ter tanto poder sobre uma rainha intraterrena. Como um simples rapaz era capaz de controlar um coração real e mestiço tão multifacetado, um espírito propenso ao pandemônio e à loucura. Jebediah puxava Alyssa para baixo, acorrentando-a ao tédio e à banalidade do reino humano.

Ela precisa ser libertada.

Morfeu havia considerado a possibilidade de matar seu rival, mas Alyssa jamais o perdoaria. Não. Chegara o momento de tomar medidas criativas.

Se Morfeu soubesse no que Jebediah havia pensando durante sua jornada pelo País das Maravilhas — todos os momentos em que ele se sentiu mais aterrorizado, mais desanimado —, conheceria as fraquezas e as forças do mortal, intimamente. Ele saberia como enfraquecer Jebediah, contrapondo-o a si mesmo.

Essas fraquezas o derrotariam melhor do que Morfeu o faria. E depois, quando tivesse destruído a confiança de Alyssa em seu cavaleiro mortal, Morfeu estaria lá para confortá-la e conquistá-la.

Voltaria a ouvir a risada de Alyssa do modo como ela ria quando os dois eram crianças, e teria de novo a oportunidade de ser presenteado com o seu sorriso deslumbrante.

Ele voltaria a ser completo.

— Por aqui, por favor — pediu o besouro para que Morfeu o seguisse.

Morfeu tirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo. Quando o inseto abriu a porta para um compartimento de memórias sem janelas, o cheiro de amêndoas vindo de uma travessa de biscoitos de luar fresquinhos que estava em uma mesa de canto se espargiu no ar. Havia uma chaise-longue na cor creme colocada contra a parede, e uma ornamentada luminária de piso feita de latão iluminava o espaço com uma luz discreta.

Morfeu concentrou-se no pequeno palco do outro lado do compartimento. Sentiu o coração palpitar de ansiedade num ritmo profundo e firme. As cortinas de veludo vermelho aguardavam o momento de se abrirem para mostrar as memórias de Jebediah na tela prateada.

— Como o senhor entrará na cabeça do rapaz para visitar suas lembranças perdidas, sou obrigado pelas normas a avisar-lhe que... as emoções humanas podem ser muito poderosas... podem nos fazer ver as coisas sob uma perspectiva totalmente diferente — advertiu o besouro.

— Estou contando com isso. — Morfeu deu um sorriso afetado. — Conhece aquele ditado sobre amigos e inimigos?

O besouro coçou a pele enrugada.

— Hum... mantenha seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda?

Morfeu acomodou-se na cadeira estofada e alisou a calça risca de giz ao cruzar as pernas apoiando um tornozelo sobre o outro.

— Melhor ainda é se colocar no lugar de seu inimigo. É a melhor maneira de controlar seus passos. Ou de apagá-los, caso tenha a oportunidade.

O besouro, voltando a tremer, esticou o braço fininho e apertou um botão na parede. As cortinas do palco se abriram, revelando uma tela de cinema.

— Imagine o rosto do rapaz enquanto olha para a tela em branco e vivenciará o passado dele como se fosse hoje.

As palavras do besouro eram ensaiadas, até mesmo mecânicas, mas a pulsação de Morfeu ficou acelerada. Ele esperou o besouro desligar a luz. Assim que o inseto saiu e fechou a porta, o corpo de Morfeu desmembrou-se nas juntas, flutuando pela escuridão como se fosse feito de partículas de pó. Todos os seus pedaços se uniram novamente na tela prateada, em cores vivas e cinematográficas, até que ele entrou na cabeça de Jebediah, apropriando-se do seu corpo, sentindo suas emoções.

Naquele momento, Morfeu entregou-se à experiência e, pela primeira vez na vida, passou a ver as coisas como um humano.


Capítulo 2


Primeira Lembrança —
Kriptonita

Jeb acordou em uma cama suspensa.

Estava nu. Por que estava nu?

Antes que esse fato pudesse ser totalmente registrado, trinta fadas ou mais, do tamanho de mariposas, surgiram do ar, acariciando cada parte do seu corpo e sussurrando-lhe. Ele tentou mexer os braços e pernas. As asas das fadas — que batiam na velocidade das asas de um beija-flor — liberavam partículas parecidas com as pétalas delicadas de um dente-de-leão, que, de alguma maneira, o imobilizaram. As sementes exalavam um perfume de canela e baunilha que foi inundando sua consciência, até que a sala ficou totalmente fora de foco.

Quando a névoa se dissipou, ele estava em sua cama, em casa. A noite adentrava pela janela e Taelor estava em cima dele, seminua. A unhas pintadas à moda francesinha percorreram os pelos de seu peito e abdômen, dirigindo-se ao cós de sua calça jeans.

Aquilo não podia ser verdade. Taelor e ele tinham brigado antes do baile de formatura, haviam terminado tudo.

Com delicadeza, ele a virou, colocando-a debaixo dele, e apoiou-se nos cotovelos, afastando o cabelo do rosto dela. Mas não foram os olhos de Taelor que encontraram os dele. Foram os olhos gélidos e azuis de Alyssa — encarando-o com um ar de admiração e inocência. Os dedos dele pareciam grandes e desajeitados nas têmporas dela.

A Al na cama dele?

Não. Isso não podia acontecer. Alyssa nem havia beijado homem algum. E Jeb nunca tinha sido o primeiro de nenhuma garota.

A Al era intocável para ele. Ela já passara por muitos episódios turbulentos em sua vida. E ele não era exatamente um exemplo de estabilidade.

Ele tirou as mãos dela e ficou de joelhos.

— Jeb, você não me quer? — perguntou Al, passando a mão no peito dele.

Ele não conseguiu responder. Seus dedos coçavam e pareciam esticar-se, como se estivessem crescendo. Ele ergueu as mãos sob o luar, observando, horrorizado, seus dedos caírem, um por um, e se metamorfosearem em lagartas. As lagartas, então, avançaram lentamente na direção de Alyssa, e ele não conseguia fazer nada para detê-las. Jeb caiu de costas na cama, com as mãos sobre o rosto, olhando fixa e incredulamente para os tocos crus e cheios de sangue onde antes estavam seus dedos.

Gritando, Alyssa tentou sair do colchão, mas as lagartas a pegaram, arrastando-se por sua pele e tecendo teias, até que restou somente uma forma se agitando dentro de um casulo.

— Soltem ela! — gritou Jeb. Uma luz lampejou em seus olhos, e então ele já não mais se encontrava em sua cama. Estava em algum lugar da mansão de Morfeu, e as fadas percorriam sua pele, hipnotizando-o... usando algum tipo de feromônio alucinógeno.

Elas estão me segurando aqui para que o Morfeu fique sozinho com a Al. No instante em que a realidade foi percebida, o feitiço foi quebrado.

Jeb pulou rápido da cama suspensa e saiu da nuvem de sedução de suas captoras. Pegando um travesseiro, ele se cobriu.

— Quero alguma coisa para vestir!

As fadas flutuavam no ar, seus olhos de libélula observando-o.

Havia várias cestas douradas no chão perto dos pés dele. Jeb chutou uma. Suas pequenas captoras se espalharam pelo ar, em histeria coletiva.

Gossamer, a fada predileta de Morfeu, designou cinco delas para pegar os morangos que rolaram. Elas contaram as frutas uma por uma e as colocaram de volta na cesta.

Jeb chutou outra cesta cheia de contas de óleo perfumado. Outras cinco fadas lançaram-se ao chão para pegar tudo, parando para contar cada conta antes de guardá-la.

Em pouco tempo, ela já havia chutado todas as cestas. Algumas estavam cheias de pétalas de flores, outras continham loção, outras, ainda, uvas. Ao virá-las, ele conseguira manter a maioria de suas captoras preocupada. Apenas Gossamer e outras duas ainda pairavam em torno de sua cabeça.

— Me deem algo para vestir — repetiu ele —, ou vou começar a tirar as plumas dos travesseiros. Vocês não estão em número suficiente para limpar uma sujeira dessas.

— Ele não está respondendo ao nosso feitiço — murmurou uma das fadas para Gossamer, com seus olhos de inseto voltados para Jeb.

— E nem à nossa magia — acrescentou a outra, amuada. — Eu conjurei uma moça das lembranças dele, mas seu subconsciente conseguiu escapar.

— Sim, este aqui é, sem dúvida, um desafio — concordou Gossamer, numa voz que tilintava feito um sino. Depois de mandar as outras duas fadas recolherem o conteúdo da última cesta, ela ofereceu a Jeb um robe de seda.

Ele se virou de costas e enfiou a peça de roupa no corpo, assimilando os arredores.

Morfeu o colocara em uma prisão opulenta. A sala era toda revestida de piso de mármore preto que refletia a luz laranja dos candelabros. Ele já estava bem familiarizado com o ponto focal: um colchão circular balançante preso por correntes douradas no centro do teto côncavo. Peles e almofadas forravam a cama, perfumadas por pétalas de rosa.

Apesar de todos esses confortos, faltava a essa sala um detalhe muito importante: uma saída. Não havia portas, janelas ou qualquer outra abertura à vista.

Paredes convexas — pintadas em cor de lavanda escura — eram cobertas por parreiras que se estendiam por toda a sua circunferência, entrando e saindo do reboco e se entrelaçando nos candelabros acesos. Frutas brotavam das vinhas. De quando em quando, as uvas explodiam espontaneamente e pingavam seu suco dentro de bacias de pedra posicionadas ao longo das paredes para apanhá-lo. E, delas, um líquido viscoso e purpúreo era drenado para dentro de fontes — um abastecimento constante de vinho de fadas com aroma adocicado.

Ele se lembrava vagamente de ter provado o vinho ao chegar. Desconfiado, tentou resistir, mas estava com muita sede. Era impossível saber que tipo de magia havia no líquido.

Jeb gemeu e esfregou o rosto. Quanto tempo teria passado bêbado e enfeitiçado? Ele acabara sendo inútil para Alyssa, assim como o pai dele teria sido.

— Onde ela está? — perguntou ele, ignorando a harpa que tocava sozinha, a qual, na tentativa de abafar-lhe a voz, começou a tocar mais alto. — Me diga o que Morfeu está fazendo com ela.

Minúscula, reluzente e confiante, Gossamer acomodou-se em uma almofada de cetim, passou a mão pelo colchão ao seu lado e cruzou as pernas apoiando os tornozelos verdes um sobre o outro.

— Talvez você não perceba o que nós, as fadas, somos capazes de fazer. Temos séculos de prática. Podemos lhe mostrar um êxtase com o qual você sempre sonhou.

Jeb a olhou de cima a baixo e ajustou a faixa de cetim em sua cintura.

— Me desculpe, não sonho com coisas verdes.

Ele encontrou a mochila de Alyssa debaixo da cama e a puxou. Jeb havia notado alguma coisa dentro dela anteriormente, quando a vasculhara em busca de outra coisa: uma pulseira de ferro forjado que ela provavelmente havia enfiado na mochila quando ainda estava na escola e ficara esquecida ali. Ele havia pesquisado muito as fadas quando começou a pintá-las, e sabia que elas não gostavam de ferro — se a lenda fosse verdadeira.

Jeb jogou a mochila sobre o colchão. Os cobertores de pele encresparam-se feito uma onda gigante e derrubaram Gossamer de sua almofada. Acionando suas asas com rapidez, ela pousou sobre o ombro de Jeb.

— Se é Alyssa que inspira suas paixões, podemos realizar essa fantasia. — Gossamer bateu palmas. As outras largaram seus postos de limpeza e se apressaram a formar um círculo em volta de Jeb. Uma onda de enjoo lhe invadiu o estômago quando todas as fadas assumiram a aparência de Alyssa — réplicas perfeitas em miniatura, com cabelo platinado e roupas sensuais de skatista. Elas liberaram novamente suas sementes de feromônios, cegando-o com o perfume de Alyssa, doce como néctar.

Brandindo uma almofada, Jeb rompeu a ilusão e dissipou as sementes. As fadas saíram aos guinchos e foram se esconder nas vinhas das paredes, com seus corpos brilhantes parecendo cordões de luz branca e piscante.

Gossamer pairou no ar acima dele, ralhando.

— Já chega! Informem o nosso mestre de que o mortal é leal à garota. Não podemos seduzi-lo para que volte ao seu mundo sem ela.

Jeb ficou resmungando, enquanto as fadas se esgueiravam por buracos do tamanho de ervilhas, na parede onde as vinhas entravam e saíam. Se ao menos ele pudesse passar por aquelas pequenas saídas também... Chegou a pensar em usar a poção encolhedora que ele e Alyssa tinham encontrado quando chegaram ao País das Maravilhas, mas ela o deixaria tão pequeno quanto suas captoras, e ele ficaria indefeso contra Morfeu. A impotência lhe fervia as entranhas, tão profunda como a que ele sentia quando era criança, escondendo-se em um armário até que passassem os ataques de fúria do pai.

Ele cerrou os dentes. Tinha de haver uma passagem escondida em algum lugar por trás das vinhas. Elas o tinham trazido para cá; devia haver uma saída.

Subitamente, ele deu um pulo para a parede mais próxima e arrancou algumas vinhas, lançando-as para todos os lados. O diminuto guincho de surpresa de Gossamer não o intimidou.

Uvas explodiam em suas mãos, libertando seu aroma potente e denso. As plantas viscosas cortavam seus dedos feito arames. Jeb aceitou a dor. Era algo que podia controlar — diferentemente do tormento dos cigarros acesos que seu pai lhe enfiava na pele, ou dos punhos que lhe socavam o rosto e o estômago. O cheiro da nicotina, o gosto de sangue. Imaginação ou não, eles alimentaram o selvagem em sua alma.

Ele mergulhou numa espiral vermelha de fúria e devastou a sala. Quando finalmente voltou a si e recostou-se na cama, ficou chocado com os estragos que causara.

Arfando e suando, ele cuidou dos cortes nas junções dos dedos e vasculhou os destroços à procura de Gossamer. Será que a tinha machucado? Se sim, talvez fosse mesmo filho de seu pai.

Jeb cerrou os punhos, descontente consigo mesmo.

— Gossamer? — Ele se encolheu ao ouvir a própria voz, rude e inflamada de emoção.

Um rufar de asas mexeu uma das correntes que prendiam a cama ao teto. Ele respirou, aliviado ao ver a fada. Embora parecesse meio idiota importar-se, já que estava prestes a usar a pulseira de ferro de Alyssa contra ela.

Gossamer pousou no chão ao lado das vinhas rasgadas e das cestas que ele tinha derrubado de novo; seus ombros estavam caídos, em demonstração de derrota. Provavelmente, ela não sabia por onde começar a calcular todos os conteúdos derramados.

Jeb começou a vasculhar a mochila. A harpa havia parado de tocar, e o silêncio o incomodava feito o ruído dos ponteiros de um relógio. Cada segundo que ele passava longe de Alyssa deixava-a mais vulnerável a Morfeu.

Seus dedos finalmente encontraram um metal frio. Ele jogou a pulseira de ferro na direção de Gossamer, mas mantendo alguma distância, na esperança de enfraquecê-la sem machucá-la.

Ela gritou e lançou-se ao ar, se debatendo.

— Por favor... afaste isso.

— Não até eu conseguir algumas respostas. — Jeb segurou uma das asas dela entre o indicador e o polegar, levando-a para a cama e sentando-a sobre uma almofada, tomando o cuidado de manter a pulseira próxima o bastante para intimidá-la. — Basta cooperar, que eu não vou machucá-la.

— Já está machucando. — Ela gemeu, com a pele esverdeada já tingida de turquesa. — Não posso usar minha magia... — Gossamer bateu as mãos no próprio rosto. — Vai me deixar... horrível. Abster-me. — Sua voz ficou mais calma, como se estivesse falando consigo mesma, e, rangendo os dentes, continuou: — Abster-me até a ameaça de dor e contaminação passar.

Jeb franziu a testa.

— Então o ferro vira seus poderes contra vocês? É a arma perfeita para usar contra seu chefe.

— Um objeto desse tamanho... só funciona com os menores de nossa espécie.

Jeb curvou-se, aproximando ainda mais a pulseira dela.

— Muito bem, então considere isso um detector de mentiras. Toda vez que eu perceber que você está fingindo, aproximarei o ferro. Onde está a Al, e o que o seu chefe repugnante está fazendo com ela?

A cor da fada mudou para um verde azulado. Ela rolou sobre a almofada, as asas lutando para bater. Gossamer as puxou por cima dos ombros até a altura do peito, cruzando-as, como se quisesse conter a sua magia.

— A sua Alyssa está confortável e sendo bem cuidada. Morfeu está zelando pelo sono dela...

Jeb soltou um grunhido. Na noite passada, ele havia zelado pelo sono dela, no barco. Mudara a posição do corpo dela para que pudesse olhá-la de frente e fazer uma promessa, mesmo que Alyssa estivesse sonolenta demais para ouvi-lo. Jeb havia prometido que a protegeria, que a levaria para casa a salvo. E não iria quebrar sua promessa agora.

Ele precisou resistir ao desejo de destruir a sala novamente.

— Como eu saio daqui?

— Apenas o Morfeu tem os meios para abrir a passagem.

Jeb inclinou-se para a frente, com o nariz quase tocando o rosto de Gossamer enquanto segurava a pulseira sobre a cabeça dela, como se fosse um objeto corrosivo.

— Está dizendo que estou preso aqui até que aquela barata de asas decida me soltar? Ele vai fazer a Al enfrentar o País das Maravilhas sozinha?

Ela choramingou, levando a mão à testa.

— Não. Como você provou ser leal, ele permitirá que a acompanhe em sua jornada. Você comparecerá ao banquete e traçarão os planos.

— Banquete?

— A apresentação de Alyssa. Morfeu deseja exibi-la aos outros.

— Que outros?

Gossamer deixou-se cair, formando um monte de cor púrpura e em seguida saiu depressa de seu poleiro. Ela puxou alguma coisa de dentro da almofada — um desenho de Al que Jeb não se lembrava de ter feito. Lentamente, Gossamer levantou os joelhos e estudou as linhas.

— Você fez isto enquanto estava sob nosso feitiço. Tem poder dentro de seu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Você captou o interior de Alyssa com perfeição.

— Esse desenho é pura fantasia — resmungou Jeb. Ele colocou a pulseira de ferro sobre o papel ao lado de Gossamer.

Ela rolou para o meio do desenho, tentando escapar do metal.

— Há mais verdade nesta aparência de Alyssa do que em qualquer coisa que possam me forçar a falar.

Jeb puxou o desenho, fazendo Gossamer e a pulseira de ferro rolarem por cima da pelugem. Ele estendeu o desenho sobre uma almofada e percorreu as linhas de carvão com o dedo. A imagem era igual a todos os outros desenhos de fadas que ele havia feito de Al ao longo dos anos, mas, ainda assim, não poderia ser mais diferente da garota que ele conhecia.

Ele a desenhara com o cabelo preso no alto da cabeça. Al nunca usava o cabelo daquele jeito. Um vestido preto de alcinhas realçava suas curvas. Nem morta ela seria vista em um vestido tão convencional. E a única coisa que se parecia com ela eram as luvas de renda preta sem dedos que cobriam as cicatrizes da palma das mãos.

Fora isso, o desenho era uma fantasia completa. Sentada em um banco de jardim, Al segurava uma rosa. Rímel e lágrimas escorriam em curvas graciosas por seu rosto. Pensando bem, se parecia com a maquiagem dela na última vez que ele a vira.

Ele ainda não conseguia entender por que, depois de quase se afogar em um oceano de lágrimas, o rímel de Alyssa não havia borrado. Apertando os olhos, ele estudou o par de asas translúcidas abertas nas costas dela. As membranas finas tremeluziam sob o único raio de sol que atravessava as nuvens. As asas faziam com que se sentisse estranho, mas Jeb não conseguia perceber a razão.

Talvez porque elas lembrassem as asas de Morfeu, embora tivessem uma cor totalmente diferente. As têmporas de Jeb latejaram. Nada poderia ser pior do que Alyssa sozinha com aquele homem-inseto. Aquele doido tinha algum tipo de poder sobre ela, havia entrado em sua cabeça quando ela era pequena. O subconsciente pode ser muito poderoso, e se Morfeu ainda tivesse acesso aos sonhos da Al...

— Como posso derrotá-lo? — perguntou Jeb com um nó na garganta.

Os olhos bulbosos de Gossamer voltaram-se para os dele. Ela estava fraca demais para se arrastar para longe da pulseira, que agora roçava sua coxa.

— Ele não será derrotado. Há anos ele espera por este dia.

Jeb fez cara feia.

— Muito bem, ele é o Super-Homem. Mas todo mundo tem a sua kriptonita. Algo de que sente medo.

— O confinamento — Gossamer deixou escapar, e, diante da confissão, seu corpo escureceu até ficar da cor de um machucado.

— Como assim?

Gossamer levou o dorso da mão à testa.

— Por favor... está muito perto... o ferro... está drenando minha energia.

Jeb caiu de costas no colchão e afastou a pulseira da fada. Equilibrando-o entre os dedos, ele estudou o ferro sob a luz das velas. A pulseira o lembrou de seu piercing de ferro e da primeira vez que Al o vira, sua reação de entusiasmo. Ela havia implorado para tocá-lo e fez várias perguntas sobre o processo de colocação de um piercing. Seu entusiasmo e ingenuidade, suas inseguranças... Morfeu não hesitaria em usar qualquer uma dessas coisas, ou todas elas, para manipulá-la.

Jeb precisava convencer Al a sair do País das Maravilhas, a esquecer esta jornada para quebrar a maldição de sua família, a qualquer custo. Algo muito tenebroso estava à espreita, bem perto dela, como no sonho que ele tivera. E Jeb podia sentir que, fosse lá o que estivesse para acontecer, estava se aproximando.

— Então vocês querem que ela conserte os erros da Alice original, certo? E se eu consertá-los? — Jeb tentou raciocinar. — Vocês enviam a Al para casa e deixam que eu cuide de tudo?

— Impossível — respondeu Gossamer num sussurro arfante, voltando à cor verde-clara. Engatinhando na direção do desenho, ela passou a pequenina mão sobre a rosa. — Ela já passou nos testes e provou ser a escolhida.

— Testes? Está se referindo a encontrar a toca do coelho para o País das Maravilhas e secar o oceano de lágrimas?

Gossamer fez que sim.

— Mas eu ajudei a fazer isso.

— É por ela que ele esperava. Não por você.

Jeb levantou a pulseira de ferro uma última vez.

— O que ele realmente quer dela?

Antes que Gossamer pudesse responder, o teto abobadado começou a tremer. Pedaços espessos de gesso despencaram no solo. Jeb colocou uma almofada sobre a cabeça e uma mão sobre Gossamer para protegê-la dos detritos. O teto se abriu nas emendas, fazendo a cama balançar e puxando as correntes em direções opostas, de modo que o colchão subiu vários centímetros.

Depois que os tremores passaram, Jeb olhou para cima. A silhueta escura de Morfeu apareceu em uma abertura no teto.

Sutileza era um dos últimos itens na lista de prioridades desse cara.

— Já te disseram que você é muito escandaloso? — rosnou Jeb.

Morfeu inclinou-se para olhar a sala destruída.

— Já te disseram que você é um péssimo hóspede?

Parte da responsabilidade daquela bagunça era da grandiosa entrada de seu aprisionador, mas Jeb mordeu a língua, não querendo arriscar sua oportunidade de ver Al.

Morfeu relaxou.

— Alyssa o aguarda na sala dos espelhos. E, por favor, tome um banho e faça a barba. Você será apresentado aos nossos convidados do banquete como um cavaleiro élfico, então precisa parecer como tal. Gossamer lhe dirá como se comportar adequadamente. — Morfeu largou algumas roupas e botas, que fizeram um ruído ao atingir o chão. — Aí está seu uniforme. — Ele fez uma pausa e apontou para as correntes. — Que pena que você não tenha asas e nenhuma magia intraterrena. Terá que sair daí sozinho. E posso assegurar que não será nada fácil.

Os músculos de Jeb se retesaram quando Morfeu sumiu de vista; ele sabia que o aviso se referia a muito mais do que sair daquela sala.


Capítulo 3


Segunda Lembrança —
Carnificina

Jeb limpou o suor da testa. Morfeu estava certo. A escalada para sair de sua prisão dourada seria mesmo difícil. Mas isso não significava nada se comparado à jornada pelo País das Maravilhas que ele e Alyssa haviam cumprido desde então. O dia inteiro tinha sido um desafio atrás do outro, com o perigo e a morte aguardando em cada esquina. E agora ele havia perdido a Al. Os dois tinham se separado pouco antes de ela completar o teste final. Al ficou enfrentando as irmãs Twid no cemitério, sozinha, e ele ficou preso aqui no fundo do abismo.

A noite já havia caído quando ele atingiu o solo, e foi uma transição extremamente rápida, como se alguém tivesse apagado a luz.

Jeb sentiu os músculos do corpo endurecerem. Odiava pensar na Al sozinha naquele mundo insano depois de anoitecer. E, mais uma vez, ela provou ser forte o bastante para encarar quase tudo. No final, foi ela quem o salvara mais de uma vez...

Ele se lembrou dela pairando acima dele — um brilho selvagem, flutuando com a graça de uma libélula. Ver as asas dela brotarem tinha sido ao mesmo tempo assustador e milagroso. Jeb mal conseguiu respirar enquanto observava a transformação.

Falando sinceramente, Jeb ainda não tinha recuperado o fôlego de quando ela o levara para dentro do abismo e ele gritara: “Você é minha corda de segurança!”, antes de ela subir ainda mais alto para o céu. Ele não deveria ter colocado tanta pressão sobre ela para salvá-lo; tinha que ter feito o que conseguisse para sair de lá por si próprio e encontrá-la no meio do caminho. Do contrário, ela nunca se perdoaria se algo saísse errado.

A carcaça de um pássaro Jubjub havia amortecido sua queda. Ele limpou nas calças a gosma pegajosa que tinha entre os dedos, torcendo o nariz diante dos restos malcheirosos do exército que os perseguia e acabou caindo no abismo. Jeb procurou ficar de pé na escuridão. Suas botas produziam sons de sucção toda vez que ele pisava. Ele nunca tivera fricotes; qualquer aversão a sangue e violência havia sido expurgada — uma dessensibilização gradual que era reforçada sempre que ele se olhava no espelho e via suas bochechas e olhos inchados, grandes e cheios de sangue, que nem um bife malpassado.

Contudo, sem uma centelha de luz para guiá-lo, a carnificina aos seus pés parecia mais viva do que morta. Sua imaginação trazia arquivos de todos os tipos, de filmes de zumbis a demônios e assombrações. Seu estômago queimava de náusea. Jeb sentiu-se aliviado ao perceber que os assobios que ouvia dentro do abismo eram produzidos pelo vento. E não havia ruídos de correntes fantasmagóricas nem gemidos de mortos-vivos.

Além disso, seu verdadeiro inimigo era o tempo, mais perigoso do que qualquer coisa que pudesse imaginar. A Al ainda tinha de cumprir a última tarefa no cemitério. E, depois, eles ainda tinham de encontrar um ao outro.

Ele se forçou a avançar às cegas até sua mão alcançar a parede do abismo. Antes de descer totalmente, Jeb viu que a mochila de Al tinha ficado presa em uma pedra saliente próxima ao chão. Se conseguisse encontrá-la, poderia contar com uma lanterna. Tateando a superfície áspera da pedra, ele levantava seus pés por sobre os obstáculos, tocando os cadáveres com os dedos dos pés para mensurar a largura de cada passo.

Com os cotovelos esbarrando nas pedras, Jeb observou o céu. Um pequeno aglomerado de estrelas brigava com as nuvens, aparecendo para iluminar levemente o lugar ao seu redor, tornando possível que ele continuasse sem esbarrar no falecido exército da rainha. Uma brisa úmida levantava a poeira feito pequenos tornados. Logo choveria. E, neste lugar, era possível que, literalmente, chovesse a cântaros — daqueles temporais ruidosos, torrenciais.

Um calafrio que não tinha nada a ver com a tempestade iminente lhe percorreu a espinha e obscureceu qualquer sentimento bom que ele poderia ter encontrado naquele pensamento. Qual era a razão de todos esses “testes” de Morfeu? Toda vez que a Al conseguia se sair bem em um desses testes, sua forma intraterrena tornava-se mais acentuada. Será que o intuito era transformá-la completamente para que não pudesse mais voltar ao reino humano?

Fios de cabelo caíram sobre seu rosto, e Jeb os afastou.

Morfeu afirmara que tudo o que ele mais queria era que Alyssa voltasse ao seu lugar. Sua casa. Jeb esperava que ele estivesse se referindo ao mundo deles, o reino humano. Mas e se a Al não estivesse sob nenhuma maldição, no final das contas?

Ele se lembrou de sua pesquisa sobre fadas, na qual descobriu que elas eram criaturas chamadas de changelings — as crias das fadas secretamente deixadas no lugar de bebês humanos roubados. Alice Liddell, a tataravó de Al, teria sido uma changeling? Quem sabe foi por isso que ela encontrou, quando criança, a toca do coelho — por instinto. Isso significaria, de alguma estranha maneira, que aqui era a casa de Al.

Jeb parou com as especulações. Elas só levavam a mais dúvidas.

Ele tinha encontrado a mochila. Abriu-a, tirou a lanterna e colocou a mochila nos ombros.

Ao fechar o zíper, ele acendeu a lanterna e percorreu o cenário com fachos de luz. Os guardas destruídos pareciam cartas de baralho amarrotadas. Brinquedos descartados. Até mesmo os pássaros Jubjub poderiam se passar por brinquedos infantis com o enchimento extrapolando para fora.

Com a mochila ajeitada no corpo, Jeb percorreu a circunferência do abismo sem encontrar nenhuma abertura. Pedras que haviam caído bloqueavam qualquer possível passagem que ele tentasse. Era como se ele tivesse caído dentro de um tubo gigante. Não havia nenhuma outra saída a não ser subindo.

Jeb apontou a luz para o gramado a cerca de vinte andares acima — a clareira onde Alyssa havia pousado. Estava determinado a encontrá-la antes de Morfeu, mesmo que tivesse de escalar as pedras pontiagudas no escuro e sem uma corda de segurança.

Ele havia acabado de apoiar a lanterna entre os lábios e escorar o pé em um rochedo para tomar impulso quando ouviu uma voz com um sotaque britânico familiar.

— Ao trabalho, homens. Precisamos contar todos antes que as irmãs Twid enviem sua brigada de duendes para recolher os mortos.

Morfeu.

Jeb desceu e quase colidiu com o intraterreno alado, que tinha aparecido do nada, como se tivesse aberto um zíper no ar e passado por ele. Cavaleiros élficos faziam fila atrás dele, entre vinte e trinta, carregando lanternas e usando o mesmo uniforme de Jeb, só que menos esfarrapado e sujo. Eles passaram sem nem olhar para Jeb, extremamente concentrados na contagem dos corpos.

— Ora, ora, pseudocavaleiro. — Morfeu riu com desdém.

Cada pedacinho de Jeb ansiava por apagar aquele sorriso arrogante e socar aquele rosto. Mas ele estava em desvantagem. Se quisesse sair desse fosso para encontrar a Al, teria de bancar o bonzinho.

— Detesto dizer isso, mas é bom vê-lo, senhor Mariposa. — Jeb guardou a lanterna. — Vejo que pegou o espelho para vir aqui.

— Eu só viajo de espelho. — Morfeu ergueu a lanterna e examinou as roupas esfarrapadas de Jeb. — Tem a vantagem de não estragar tanto as roupas. E vou lhe contar outro segredo: se eu mantiver as asas daquele lado do plano — ele apontou com o polegar para as suas costas, onde metade de seus apêndices não era visível —, a abertura fica acessível para nossa viagem de volta.

Jeb forçou um sorriso.

— É bom saber.

Perfeito, na verdade. Ele poderia voltar com a trupe de elfos e depois tomar o expresso na sala de espelhos para encontrar a Al. Mas primeiro teria de distrair Morfeu, baixar a guarda dele. Jeb perguntou:

— Esse chapéu é novo?

Morfeu ficou radiante.

— Que gentil de sua parte ter notado. É meu chapéu da Insurreição. Ainda não havia tido a oportunidade de usá-lo antes. — Com o dedo, bateu em várias mariposas que formavam a guirlanda na aba do chapéu e depois se inclinou e fez conchinha no ouvido de Jeb para sussurrar um segredo. — As asas vermelhas representam derramamento de sangue.

— Ãh-hã. — Jeb cerrou a mandíbula diante do indesejado bafo quente no lóbulo de sua orelha. Depois, olhou para os cavaleiros, discerníveis somente por suas lanternas flutuando na escuridão atrás dele. — Então, está planejando um motim com o exército da rainha de Marfim?

Morfeu apertou o ombro de Jeb.

— Eu sempre soube que era mais esperto do que os mortais comuns.

Os músculos de Jeb contraíram-se ao contato.

— O que significa que você estava mandando a Al para uma missão absurda só para se divertir.

Cuidado. Jeb não poderia deixar sua desconfiança transparecer. Pelo menos não ainda. Em vez disso, ele se inclinou para ajustar os cadarços das botas e respirou fundo antes de se reerguer.

Morfeu apertou sua gravata vermelha.

— Todas as tarefas que pedi à Alyssa tinham um propósito. — Ele deu um passo para o lado quando alguém mais passou pelo portal do espelho: um esqueleto do tamanho de um duende, com antenas e olhos cor-de-rosa brilhantes, metido em um colete vermelho.

— Rábido Branco? — sussurrou Jeb, incrédulo. Nada daquilo fazia sentido. O Rábido era da corte Vermelha. Por que estava aqui?

— Qual é o relatório? — Morfeu agachou-se para ficar na altura do Rábido, ainda mantendo as asas enfiadas no portal invisível do espelho.

O pequeno intraterreno apertou as mãos enluvadas e olhou para Jeb, sua cabeça careca refletindo o brilho suave da lanterna de Morfeu.

— Um de nós, você é?

Morfeu sorriu e respondeu por Jeb.

— É claro que é. Ele ajudou a nossa Alyssa a conquistar o grande e cruel exército Vermelho, não lembra?

Coçando a antena esquerda, o Rábido fez que sim.

— Rainha Grenadine neutralizada está. Nos portões da frente e de trás, o castelo guardado está pelos regimentos três e sete. Flanqueando a rainha, um círculo de cinco. Sem esquecer da coroa e seu guardador.

— Ah, sim. O bandersnatch. Bem, quando Alyssa tiver trazido seu prêmio do cemitério das irmãs Twid, nada mais terei a temer daquela besta medonha. Fez um bom trabalho, senhor Branco. — Morfeu deu uma batidinha na aba do chapéu.

O Rábido bateu os tornozelos cadavéricos um no outro, depois se curvou e lançou um olhar penetrante para Jeb, antes de pular novamente para o portal.

— Ele é o seu espião — murmurou Jeb, sentindo-se idiota por não ter adivinhado antes.

— Sim.

— Então todas as vezes que o esqueletinho ameaçou a Al, matando-a de susto, era só para manter a aparência de lealdade à Rainha Grenadine?

— Os melhores espiões são aqueles que jogam dos dois lados com o mesmo vigor.

A distância, Jeb avaliou as lanternas que balançavam. O tilintar dos cabos de metal e o pisar de botas eclipsavam o suave lamento do vento.

— Certo. Já que estamos abrindo o jogo...

O comentário de Morfeu o interrompeu.

— Que trocadilho mais delicioso, considerando a posição em que estamos. — A lanterna dele apontou para os cadáveres dos guardas de carta.

Jeb ignorou a piada mórbida.

— Eu ia perguntar por que o Rábido se voltou contra a corte Vermelha.

— Ele era o conselheiro real da Rainha Vermelha quando Alice nos visitou. Deseja ver a verdadeira herdeira no trono tanto quanto eu.

— Verdadeira herdeira. — Jeb chutou um punhado de terra com uma bota, sentindo o peito apertado. — Então tudo isso é para destronar Grenadine e abrir caminho para uma nova rainha.

— Sim. — A lanterna iluminou o rosto de Morfeu, numa expressão de indulgência sonhadora. — E estamos muito perto. Em breve, ela ocupará o trono que é e sempre foi o lugar dela.

O lugar dela. Uma hipótese se formava na mente de Jeb, uma ideia ultrajante e incompreensível, mas, de qualquer maneira, a resposta óbvia para todas as dúvidas que ele vinha remoendo. Todas as dúvidas, exceto uma...

— Mas, primeiro — interviu Morfeu, varrendo o ar com um gesto desdenhoso —, temos que ter certeza do que iremos enfrentar quando atacarmos o castelo. Você e Alyssa conseguiram eliminar boa parte da oposição com seus fantásticos movimentos de pés. Estamos aqui para avaliar se os números batem com os que o Rábido reportou. Devemos ter certeza que Grenadine não tem outras cartas escondidas na manga. — Ele bateu nas costas de Jeb. — Viu o trocadilho? “Cartas na manga?” — E deu uma gargalhada.

Jeb não deu nem um risinho.

— Ah, corta essa. Os guardas dela são de cartas. É uma piada como a que você fez antes, só que mais inteligente.

— Ah, sim, entendi — retrucou Jeb.

O riso de Morfeu se dissipou.

— Você não é um namorado muito divertido.

— Você não leva nada a sério? A Al está correndo perigo — Jeb deixou escapar.

— Bobagem. Ela é gloriosamente capaz! Você nunca a viu voando? É claro que viu! Estava pendurado na corrente que ela segurava. — Morfeu voltou a lanterna para a própria cabeça, num arroubo de celebração. — Não foi uma bela visão, presenciá-la transformando-se no que realmente é? Igual a uma princesa de contos de fadas. — Ele lançou um olhar dissimulado para Jeb. — Não concorda?

Princesa de contos de fadas. Lá estava, saindo da boca do próprio Morfeu, zombando de Jeb por não perceber desde o início. Jeb apertou as alças da mochila para evitar dar um soco na laringe de Morfeu.

Morfeu abaixou a lanterna e depois tirou luvas prateadas de sua lapela.

— Não se sinta desprezado, cavaleiro mortal. Sua contribuição não passará despercebida. E eu sempre pago minhas dívidas. Então, o tirarei desta vala da morte para demonstrar minha gratidão.

— Você pode me agradecer me deixando ajudar a Al. Ela vai terminar a tarefa muito mais depressa comigo do lado — Jeb conseguiu dizer, sentindo um nó nas cordas vocais. Se conseguisse chegar até Al, talvez os dois pudessem se esconder de Morfeu no cemitério das irmãs Twid, até encontrarem uma maneira de escapar.

— Sinto muito — retrucou Morfeu, vestindo as luvas e acenando para que os cavaleiros élficos retornassem. — Ela precisa fazer isso sozinha. Você a verá em breve; todos nós vamos nos reencontrar. Uma grande família feliz.

— Não! — exclamou Jeb, perdendo o controle. Ele investiu, mas os elfos foram mais rápidos e o contiveram, com os dedos machucando seus cotovelos feridos. — Deixe-a sair do País das Maravilhas, seu filho de inseto...

Morfeu pressionou um dedo contra a boca de Jeb.

— Ah-há! Essa, você já usou.

Jeb puxou a cabeça para trás, deixando o dedo do intraterreno suspenso no ar.

Sob a luz da lanterna, as joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficaram escuras, da cor de sangue seco.

— Ora, ora. Isso são modos de tratar seu salvador? — Ele fez cara amuada. — Além do mais, como posso deixar Alyssa sair se ela não está comigo? Da última vez que soube, ela estava entrando no jardim das almas. Mas, quando terminar por lá, ela virá ao meu encontro. Ela ainda tem um papel muito importante a desempenhar.

— Certo. Porque ela é a herdeira do trono. — Jeb ouviu, incrédulo, suas próprias palavras ecoarem, como se tivessem saído da boca de outra pessoa. — Não sei como, mas é ela.

— Bravo! — Morfeu aplaudiu. — Estão vendo o que eu disse, irmãos cavaleiros? — Olhando para os cavaleiros por cima do ombro de Jeb, Morfeu deu tapinhas no peito em cima da gravata vermelha, como se estivesse tomado pela emoção. — Mais esperto que um mortal comum. Pena que tenha as limitações físicas de um.

— Não importa. Ela está fora do seu alcance. — rebateu Jeb, dando um tranco nos elfos; havia muitos o segurando, contudo. — Ela deve estar dentro do cemitério agora, e não pode forçá-la a fazer nada. Você mesmo disse que as Twids não deixam você entrar.

— É verdade. Mas ela encontrará, sozinha, o caminho para o castelo. No momento em que ela perceber que estou mantendo presa a coisa que ela mais ama no mundo, virá rastejando para mim, com as asas a reboque.

Morfeu levantou uma mão e fez um sinal.

Os cavaleiros élficos soltaram Jeb. Ele girou sobre o calcanhar e atirou a mochila sobre eles, dispersando o grupo feito pinos de boliche. Esticando o braço, ele bateu o punho na testa de Morfeu, desequilibrando-o. Um dos cavaleiros se esforçou para permanecer no lugar e manter o espelho aberto. Antes que Jeb pudesse se catapultar e atravessá-lo, raios de luz azul grudaram em sua pele e roupas, feito eletricidade estática. Eles o arrastaram, controlando-o como se fosse um fantoche, até ele ficar de frente para Morfeu. Os raios vinham da ponta dos dedos do intraterreno.

Morfeu aproximou-se.

Jeb tentou recuar, mas seus músculos travaram, ficaram paralisados.

— Durma — disse Morfeu num tom simples, e levou a mão azul fluorescente à testa de Jeb, cujo corpo foi percorrido por uma luz pulsante. Ele sentiu um gosto doce, parecido com leite e mel, e depois sentiu o aroma de lavanda. Com os dedos apertando o tecido macio da camisa de Morfeu, Jeb lutou para manter-se acordado. Mas a luz era muito reconfortante... muito suave... muito calorosa. Contra sua vontade, suas pálpebras ficaram cada vez mais pesadas e ele caiu no chão, em sono profundo.


Capítulo 4


Terceira Lembrança —
Engaiolado

O crânio de Jeb latejava, e havia sangue saindo de seu couro cabeludo e entrando em seus olhos.

Ele limpou o líquido viscoso e focou no lugar à sua volta. Morfeu o tinha trazido para o castelo Vermelho depois de colocá-lo sob o feitiço do sono. Largou-o dentro de uma gaiola na masmorra. Jeb não queria ter tomado a poção encolhedora quando acordou, mas o homem-inseto havia lhe dado um ultimato.

Primeiro, ele havia ameaçado matar a Al. Mas Jeb rebateu, dizendo que o homem estava blefando, pois sabia que ela era indispensável. Depois, Morfeu usara de outra arma, ameaçando fazer com que a frágil mãe de Al ultrapassasse o limite da loucura. Isso, ele faria.

A Al havia lutado muito para salvar a mãe. Ela morreria se a perdesse para a loucura. Então, Jeb não hesitou em levar o frasco aos lábios.

Seu corpo balançava, mas não devido aos efeitos colaterais da poção. A plataforma debaixo dele oscilava por causa de suas tentativas de abrir as barras de sua prisão usando a cabeça — uma atitude desesperada que havia resultado em nada além de um corte logo acima da testa. A magia de Morfeu — um fio elétrico e azul — mantinha a porta da gaiola fechada e imóvel.

— Que bela coisa você fez, não? — entoou uma voz feminina e irritante. — Morfeu escolhe quem tem o poder de suprimir sua magia. Obviamente, você não é um dos escolhidos.

Jeb fez cara feia para sua companheira de prisão. Era uma lóri — um intraterreno parecido com um periquito, mas normalmente do tamanho de um ser humano. Como os dois tinham encolhido, a única coisa que a distinguia dos pássaros do mundo humano eram as túnicas de cetim cor de creme com estampas jacquard colocadas sobre suas asas, corpo e pernas, e seu rosto humanoide enfiado no meio de plumas vermelhas, como se fosse uma máscara. Ele foi cutucado por um bico mais parecido com o chifre de um rinoceronte, posicionado no lugar onde deveria haver um nariz. Os lábios da criatura se agitavam furiosamente.

O pior de tudo era que a voz dela poderia derrubar a Torre de Pisa com uma sílaba. Quando falava, era como se alguém tivesse implantado cirurgicamente alto-falantes nos ouvidos de Jeb e travado o volume no “mais surdo que uma porta”. Ela era uma das muitas razões pelas quais ele tentava sair da gaiola com tanta insistência.

A luz bruxuleante das velas na parede iluminava seu ar de arrogância e deixava o resto da masmorra nas sombras. Depois que a voz da lóri parou de ecoar, Jeb investiu:

— Olhe aqui, Lorina. Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu marido. — Ele apontou a criatura que roncava abaixo da gaiola, de aparência tão estranha quanto à da esposa, com o corpo de um dodô, cabeça de homem e mãos que se projetavam da ponta de suas asas atarracadas. — Foi ele quem manteve Alice Liddell presa em uma gaiola igual a esta aqui, muitos anos atrás. É por culpa dele que a minha namorada é a única que pode destronar a sua rainha. Será que já lhe ocorreu que é por isso que vocês estão presos?

— O Charlie não fez nada disso! — berrou a lóri, pairando dentro da gaiola. — Alguma vez já lhe passou pela cabeça que o Morfeu é um cara de pau mentiroso?

Só em todos os segundos de todas as horas. Jeb apoiou-se nas barras. Seus joelhos cederam, enfraquecidos pelas tentativas de abri-las usando cada músculo de seu corpo. Ele desabou sobre o piso de metal, empurrando uma fatia de pera já amarelada que estava ao seu lado, feito um pequeno sofá. A gaiola era um pequenino forte inexpugnável. Mas não importava. As barras poderiam ser feitas de espaguete cru, e mesmo assim ele não conseguiria ajudar a Al. Mesmo que escapasse, com este tamanho, Jeb não conseguiria derrotar ninguém.

Charlie, o marido dodô de Lorina, não poderia ajudar muito. Ele estava preso por algemas e correntes de ferro e cochilava recostado na parede. Embora a gaiola estivesse pendurada bem perto da cabeça do dodô, não havia nada que Charlie pudesse fazer.

Provavelmente, Morfeu havia lançado no homem-pássaro gigante o mesmo feitiço do sono que jogara em Jeb, mas Charlie já estava se libertando dele.

Lorina acomodou-se no poleiro no centro da gaiola, balançando sobre a cabeça de Jeb feito uma acrobata no trapézio. A cara dela estava tão vermelha quanto as suas penas, o que fazia as espadas e copas estampadas nas bochechas quase desaparecerem.

— Como vamos ficar exilados nestas instalações fedendo a urina, terá bastante tempo para ouvir a verdade — bramiu ela.

Jeb esfregou a cabeça para apaziguar a dor lancinante.

— Se puder baixar a voz uns dois decibéis, eu agradeceria.

— Abaixar minha voz?

— Aaaii. — Jeb enterrou o rosto nas mãos.

O trapézio em miniatura rangia a cada balanço, piorando a poluição sonora.

— Para a sua informação, minha rainha adora o som da minha voz. Ela até o elogia...

O ronco do dodô parou, e ele estalou os lábios.

— Isso é porque ela protege os ouvidos com cera de abelha, Ó, Mais Adorável das Loucas.

— Seu mentiroso! — retrucou Lorina, balançando o poleiro tão depressa que Jeb achou que ia vomitar.

— Estou preso com correntes de ferro — avisou Charlie depois de um bocejo. — Não tenho forças para mentir. — Em seguida, pegou novamente no sono.

Isso pareceu calar Lorina, pelo menos temporariamente.

Jeb aproveitou o silêncio para pensar. A esta altura, Morfeu já deve ter contado a Al sobre sua verdadeira linhagem, sobre o que espera dela. Deve estar tão chocada... tão apavorada. Jeb ansiava tanto abraçá-la que era como se houvesse uma bigorna lhe pressionando o peito.

Aquele mariposo deveria ter contado a verdade desde o começo. Ela nunca escolheria ficar. Mas Morfeu sabia disso, e a manipulou sob o pretexto de que ela poderia curar a maldição da própria família. Jeb queria arrancar as asas pretas de Morfeu e enfiá-las goela abaixo por tê-la enganado, porque não havia cura para o parentesco, e ele sabia muito bem disso.

— Foi a Vermelha quem colocou Alice na gaiola. — A lóri voltou à carga. — Não o Charlie.

— Mas o seu marido escolheu mantê-la presa na gaiola — acrescentou Jeb, mesmo sabendo que não deveria. Ele cobriu as orelhas para a estrondosa refutação, mas Lorina só soltou um suspiro.

— Não. O Charlie tentou fazer a coisa certa pela menina — disse ela, consideravelmente mais ponderada agora. — Ele planejava mandar Alice de volta para o reino humano sem a Vermelha saber, mas a rainha descobriu e os arrastou para uma caverna nos picos mais altos e mais remotos do País das Maravilhas, sem que nenhum de nós soubesse. Ela deixou o Charlie com a vítima dela para poder encenar seu plano mestre, sabendo que Alice seria cuidada por um prisioneiro que nunca poderia escapar. Porque, como você deve saber, os dodôs não podem voar. Ela me privou de meu marido durante anos. Ele era prisioneiro, assim como a mortal.

— Se isso te ajuda a dormir de noite, tudo bem, passarinha.

Uma comoção de poeira e asas, jacquard e cetim, subitamente surgiu e o atacou.

— Você pode mostrar algum respeito e ouvir?!

Jeb levantou as mãos para se defender.

— Está bem. Shhhh. Eu vou ouvir.

Não havia nada mais que ele pudesse fazer. Morfeu lhe dissera que, assim que Alyssa fosse coroada rainha, ela abriria o portal para o reino humano. Acreditando ou não nisso, Jeb não poderia fazer nada a não ser ter esperança. Ele não tinha nenhum poder ali. E ter consciência disso lhe devorava as entranhas a cada minuto.

Acomodada diante de Jeb sob um monte de tecido luxuoso, a lóri olhou por entre as barras e resmungou alguma coisa para o marido que dormia.

— Seu velho e imprestável fezzerjub. Eu é que tenho que te proteger. Nem sei por que me casei com você.

O dodô resfolegou e murmurou, sonolento:

— Porque se casar com o bobo da corte era a única maneira de ter uma posição na corte Vermelha, Ó, Senhora das Nênias. — E o ronco voltou.

— Viu como deu certo? — resmungou ela, fazendo beicinho com os lábios vermelhos em forma de coração, sob a curva de seu bico. — Aquele Rábido ossudo e seu coração negro de pedra. — Ela alisou as penas da nuca e cobriu-as com uma rede decorada por lantejoulas.

Jeb estendeu a mão para pegar o dedal cheio de água que seu captor havia deixado ao lado da fatia de pera. Em suas mãos, ele era do tamanho de uma caneca de café. Ele o passou para sua colega de cela, que o pegou com as asas e deu alguns goles.

— Me diga uma coisa, Lori. Se o que você está dizendo é verdade... — Observando a atitude defensiva na cara bicuda, ele refez a pergunta para poupar os ouvidos. — Como você escolheu compartilhar o seu lado da história, talvez pudesse me dizer de que maneira Morfeu teve participação na prisão de Alice.

Ela sacudiu as gotículas de seus lábios.

— Não teve participação nenhuma. Ele gostava muito de Alice e teria feito qualquer coisa para que ela chegasse em casa sã e salva. Mas, na hora em que ele lhe ofereceu seu conselho como lagarta, alertando-a para que evitasse o castelo da Rainha Vermelha a todo custo, sua metamorfose aconteceu. Quando ele emergiu, totalmente transformado, e soube o que havia acontecido com Alice, ficou furioso.

— Está tentando me dizer que ele possui alguma consciência?

— Pelo menos no que dizia respeito a Alice, sim. — A lóri ajustou a suntuosa túnica que ficava escorregando devido à falta de ombros. — Morfeu usou todos os seus recursos de magia e acabou encontrando ela e meu marido escondidos nas cavernas dos picos mais altos do País das Maravilhas. Infelizmente, já era tarde demais para Alice. — Lorina devolveu o dedal a Jeb, agora com metade da água.

Jeb endireitou o corpo, fazendo a gaiola balançar.

— Então por que ele quer ajudar a Rainha Vermelha a colocar outra rainha no trono, quando ele deveria odiá-la por ter mantido Alice presa em uma gaiola por tantos anos?

— Talvez ele esteja bravo por Grenadine não ter tentado encontrar Alice assim que esta foi capturada. Mas Grenadine perdeu sua fita de memória e esqueceu a criança.

— Um bom regente teria mais do que uma fita para lembrá-la; teria se certificado de que tudo e todos estavam em seu lugar.

— A minha rainha é uma boa regente!

Jeb encolheu-se com o urro agudíssimo.

O ronco do dodô parou.

— Minha vociferante esposa diz a verdade, rapaz. Morfeu parece guardar ressentimento pelo que ele acredita ser negligência, mesmo tendo sido somente um descuido.

Jeb balançou a cabeça diante de todas as falhas que havia no raciocínio de todos.

— Não. Há mais coisas nessa história.

— Você tem bons instintos, cavaleiro mortal.

Jeb olhou para cima, na direção da voz tilintada. Uma luz brilhante flutuou pela pequena janela e entrou pela pesada porta da masmorra. Jeb levantou-se e agarrou as barras da gaiola, inclinando a cabeça para ver melhor.

Gossamer.

A pequena fada adejou para perto e sussurrou algo para o mágico fio azul que fixava a porta de arame, entrando na gaiola. O fio azul deu um nó em si mesmo depois de ela fechar o trinco.

Ela cintilava feito pequenos fogos de artifício ao pairar no lugar, estudando Jeb com uma expressão de solidariedade.

Como os dois agora tinham o mesmo tamanho, Jeb se lembrou de uma pintura que vira certa vez, de um artista tcheco, Viktor Olivia. O pintor era famoso por retratar uma fada que seduzia homens, levando-os a se embebedarem com absinto. Gossamer personificava essa criatura: uma forma feminina perfeita coberta de poeira verde, e nua, com escamas brilhantes cobrindo-a como um biquíni minúsculo.

Ele havia sentido, quando saiu da sala de espelhos, que Gossamer estava do lado dele e de Alyssa.

— Você veio ajudar — lançou ele, esperançoso.

Uma chave de cobre, da mesma cor dos olhos dela e quase do comprimento total de seu torso, pendia de seu pescoço. Seu olhar caiu para os pés delicados, como se estivesse lutando contra si mesma.

— Eu teria vindo mais cedo, mas Morfeu está sempre vigiando o espelho. Agora que ele está com Alyssa, preparando-a para a coroação, estará ocupado demais para ficar de olho no resto de nós... até o fim.

— O fim? — Jeb apertou a barra ao lado dela, concentrado em seu olhar de libélula. — Você tem que me contar tudo.

A fada olhou para Lorina, que estava se esticando para a porta de arame.

— Você sabe muito bem que não tem o poder de sair desta gaiola, a menos que eu a abra para você.

Bufando, a lóri voltou a voar para o trapézio.

Gossamer conduziu Jeb para a fatia de pera e os dois se sentaram. Seu perfume frutado se impunha sobre o fedor da masmorra e o acalmou o suficiente para ele poder ouvi-la.

A fada colocou as mãos sobre as de Jeb, que descansavam sobre os joelhos.

— Eu já traí meu mestre o bastante vindo até aqui, e sua ira será enorme. Eu só posso dizer que, dentro de uma hora, Alyssa estará comprometida para sempre, amarrada ao País das Maravilhas para toda a eternidade. Morfeu planejou tudo para enviá-lo de volta, cavaleiro mortal... mas sem ela.

Uma veia na têmpora de Jeb começou a se contorcer feito uma serpente em uma bandeja quente. Ele deu um pulo para cima e bateu a cabeça nas barras novamente, tentando amolecer o fio azul, incapaz de controlar a fúria exasperada que lhe fervia por dentro. Mais sangue escorreu por sua têmpora.

— Você tem que me soltar! Preciso impedir isso!

— Sim, sim! Nós também! — intervieram o dodô e sua esposa, em coro. — Temos que ajudar a Rainha Grenadine a manter a coroa!

— Naturalmente — afirmou Gossamer, pegando a mão de Jeb e puxando-o para perto dela. — Vocês todos terão a oportunidade de lutar e de mostrar a sua lealdade.

— Mas não posso lutar assim. — Jeb chutou uma semente do tamanho de seu pé. — Você trouxe algum bolo do crescimento?

— Não. Não é a força de seu corpo que salvará Alyssa, e sim a força de seu coração de artista. Mas eu posso assegurar que não sairá deste lugar em sua forma atual.

A lóri desceu de seu poleiro e ralhou com a fada.

— Agora, me escute, sua lacraiazinha. Este rapaz não tem papel nenhum. Ele é, no máximo, coadjuvante. Eu sou a criada da rainha, e Charlie é o bobo da corte. Nós deveríamos ser a sua prioridade. Somos honoráveis membros da corte, os únicos que podem dar um basta nesta paródia!

Acelerando as asas até virarem um borrão enevoado, Gossamer flutuou e colocou as mãos nos quadris.

— Quanto ao seu papel, Lorina: você pode abrir as correntes de seu marido, pois preciso falar com o mortal a sós e tenho pouca tolerância ao ferro. — Ela abriu a porta da gaiola e lhe deu a chave.

A lóri esvoaçou-se veloz, numa comoção de exibicionismo e má vontade.

— Venha, venha, Doçura Selvagem — chamou Charlie, encorajando a esposa enquanto ela flutuava em torno dele, subindo e descendo, incapaz de manter-se firme em alguma altura. — Apresse-se, por favor. O ferro está me dando fisgadas. Poxa vida! Não é tão difícil assim... tente novamente!

A cara de Lorina ficou ainda mais vermelha.

— Tente, com a ponta da asa, usar uma chave do mesmo tamanho que a sua cabeça, seu meleca! Alguns de nós não foram abençoados com dedos, sabia?

Enquanto o casal se ocupava, Gossamer sentava-se novamente ao lado de Jeb.

— Você disse que meu coração de artista pode salvar Alyssa. Naquele quarto na mansão de Morfeu, também... você disse que eu tenho o poder dentro de meu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Minha namorada está prestes a morrer para mim e para a família dela. Não pode haver escuridão maior — sussurrou Jeb com lágrimas de frustração que lhe surgiram nos cantos dos olhos.

— Morreria por ela, cavaleiro mortal?

A espinha de Jeb se retesou. No passado, toda vez que ele protegera Alyssa, sempre se jogara sem nem pestanejar. Seria capaz de morrer por ela?

Quando o pai de Jeb morreu em um acidente, foi Alyssa quem o salvou. Ele não conseguia acreditar que tinha chegado a pensar em morar em Londres sem ela. Precisava dela, todos os dias. De seu sorriso compreensivo, de como ela fez suas cicatrizes parecerem medalhas de mérito sob seu toque, e de seus olhos incríveis. Mesmo tendo passado por tantas provações quanto ele, havia uma luz dentro dela que nunca se enfraquecia. E essa luz não somente a tornava linda por fora, mas também permitia que ela trouxesse vida aos incríveis mosaicos que fazia.

Era essa luz — tanto a interna quanto a externa — que o tinha levado a desenhá-la e pintá-la tantas e tantas vezes.

Ele olhou para Gossamer, quase incapaz de conter a emoção, agora que havia encontrado uma saída.

— Ela é minha melhor amiga.

Minha musa, meu pincel, minha arte, meu coração. Tudo isso estará morto sem ela.

Esfregando o rosto, ele limpou o líquido que havia caído de seus olhos e escorrido pelo rosto:

— Eu a amo. Sim, eu morreria por ela. É isso que preciso fazer?

A fada o encarava sem piscar.

— Está disposto a ir além da morte? A se perder de todos, até de você mesmo, em um lugar onde as lembranças se esvaem em uma maré escura como tinta? Pois, para libertar Alyssa, você terá que tomar o lugar da Rainha de Marfim na caixa linguardarte onde ela se encontra presa.

Jeb lembrou-se da água escura dentro da caixa que ele havia visto na sala dos espelhos da mansão de Morfeu e da cabeça fantasmagórica que havia lá dentro, e seu coração disparou. O sentimento de autopreservação o invadiu e sua mente começou a tentar encontrar outra maneira. Mas, bem lá no fundo, ele sabia que não havia alternativa e que o tempo de Al estava se esgotando. Ele só lamentava não poder dizer a ela, nem uma única vez, com sua própria voz, como se sentia, antes de ser trancado para sempre.

— Aceito.

— E assim será. — Gossamer ficou de pé e estendeu os braços. Fraco e entorpecido, Jeb aceitou seu abraço. Ela o apertou com força e voou com ele para fora da gaiola, pousando no chão. — O mortal concordou em ser o herói de seu reino. Procurem honrar sua bravura — disparou as palavras para Lorina.

Lorina havia conseguido soltar o marido. Ela se sentou no ombro dele, abanando-se com uma asa. Com os olhos arregalados, ela aquiesceu em silêncio — a demonstração mais sincera de louvor que poderia ter oferecido. O dodô ajoelhou-se ao lado de Jeb, uma presença enorme e plumada.

— Teremos uma dívida eterna para com você, rapaz. O que podemos fazer para ajudar?

Gossamer apontou para um canto da masmorra, onde um cobertor de juta cobria uma cama, chegando até o chão.

— Tragam-me o que está debaixo daquela cama.

Entorpecido por uma mistura de incredulidade e temor, Jeb observou o dodô trazer a caixa linguardarte.

Lorina ficou perplexa.

— Morfeu manteve a Marfim escondida aqui?

Gossamer assentiu.

— Por sugestão do Rábido. Ele disse que este era o único lugar no castelo onde ninguém viria à procura dela.

Depois de pedir a Charlie que abrisse a tampa e arrumasse uma pedra onde eles pudessem subir para ver lá dentro, Gossamer pediu ao estranho casal que se afastasse um pouco para que ela e Jeb tivessem um pouco de privacidade.

Jeb afagou as rosas brancas aveludadas que adornavam o exterior da caixa, fascinado pela beleza do rosto da Marfim quando este veio à tona. O olhar cristalizado de assombro dela passava dele para a fada, e voltava — cautelosamente curioso. Ele estremeceu ao pensar que tomaria o lugar dela.

Tinha mesmo que fazer isso?

Jeb sentiu que Gossamer observava seu semblante.

— Devo perguntar uma última vez se está seguro de sua decisão — indagou ela. — Porque, como você está escolhendo ser trancado, e selando essa escolha com seu sangue, a caixa nunca o libertará. Ninguém poderá salvá-lo. Você está oferecendo sua eternidade pela da Marfim, uma rainha que você nem sequer conhece.

Jeb sentiu um nó na garganta.

— Não. Estou trocando a minha eternidade pela da Al.

Gossamer sorriu com ternura.

— Em seus sonhos, vi certa vez que você teme não ser bom o bastante para a menina. Depois de tal sacrifício, ninguém poderá questionar seu valor como homem nem seu amor por ela. — Ela o beijou no rosto, deixando um calor que penetrou seu coração e conseguiu derreter uma pequena porção do terror congelante que lá se escondia.

Gossamer deu-lhe um pincel e recuou.

— Agora, use o poder que somente você pode exercer. Pinte as rosas com o seu sangue.

Jeb foi tomado por uma tontura. Murmurou coisas... sem sentido, temerosas... palavras agonizantes que ele sabia serem as últimas.

Depois, canalizou a raiva, o terror e o desejo por um futuro que ele nunca teria para as estocadas do pincel. Cada botão branco, tingiu-os de vermelho até perder-se dentro das sombras de seu trabalho, e fundiu-se à sua obra-prima, tornando-se um só.


Capítulo 5


A Decisão da Mariposa

A cena se estendeu e ficou turva enquanto Morfeu era arrastado para fora das lembranças de Jebediah e depositado de volta na chaise-longue. A escuridão deixava a sala pesada, mas ele nem se mexeu para ligar a luminária. O cenário completamente enegrecido parecia combinar com os pensamentos obscuros que lhe cruzavam a mente.

Ele passou o dedo pela coxa, acompanhando as listras do tecido risca de giz e alisando as rugas.

Por que se sentia tão aborrecido? Ele havia encontrado exatamente o que esperava encontrar. As fraquezas de Jebediah estavam à mostra: um ódio que poderia facilmente ser manipulado, um sentimento de impotência alimentado por um pai violento e crítico, um ciúme que provocava um sentimento temerário de proteção e que lhe custaria a própria vida.

O que Morfeu não tinha esperado encontrar, entretanto, era tanta semelhança entre ele e o rapaz. Os demônios do passado atormentado de Jebediah não eram muito diferentes dos seus. Ele sempre se surpreendera sentindo inveja dos humanos... por nunca ter tido o carinho de um pai ou de uma mãe. Simplesmente por ocupar seu lugar no mundo, ele também compreendia o medo de talvez nunca chegar a conhecer completamente a confiança e a afeição de outra pessoa.

Contudo, no passado, Morfeu nunca havia considerado isso uma coisa ruim. Ele apreciava ser uma alma reclusa e independente. Por vezes, até se vangloriava, quando lhe convinha ser o centro das atenções, naturalmente. Mas a atenção, a afeição ou a confiança não eram coisas de que ele precisava. Não até aparecer Alyssa. Depois que ela escolheu ignorá-lo, ele não conseguiu funcionar... sentiu-se desastrado e incompetente.

E agora, depois de colocar-se no lugar de Jebediah, Morfeu compreendia, mais até do que desejava, como o lado humano de Alyssa funcionava. Embora metade dela tivesse asas e pudesse flutuar sobre as inseguranças e trivialidades dos mortais, a outra metade tinha seus alicerces nas coisas que qualquer outro humano ansiava: confiança e segurança.

Tendo visto a coragem e a engenhosidade de Jebediah, bem como sua lealdade a Alyssa, Morfeu soube, sem sombra de dúvida, que aquilo era exatamente o que o rapaz oferecia a ela: uma rede de segurança e emoção que a salvaria caso a queda fosse muito alta.

Não era de admirar que ela fosse tão cativada por ele. Não era de admirar que ele exercesse poder sobre ela. Diabos, o próprio Morfeu ficou morbidamente fascinado pelos honoráveis traços morais do rapaz, incomuns em um humano tão machucado. Morfeu ficou tentado a recuar e deixar Jebediah ter seu momento de felicidade. Alguns poderiam até dizer que ele o havia merecido por desejar abdicar de seu futuro, de suas lembranças e de sua vida por Alyssa.

Morfeu rosnou e caiu para a frente com os punhos cerrados, tentando suavizar o estranho peso em seu peito. O rapaz não ficaria aqui para sempre. Era um mortal. Um dia, morreria de velho, no mínimo, e Alyssa voltaria a ser um alvo fácil.

Alvo fácil.

A mandíbula de Morfeu se contraiu. O romance não era uma coisa justa. Nem era um jogo. Era guerra. E, como em qualquer outro campo de batalha, não lhe cabiam a compaixão e a misericórdia.

O besouro-tapete estava certo. As emoções humanas eram coisas imprevisíveis e poderosas. Elas haviam penetrado na cabeça de Morfeu, enfraquecido sua determinação.

Com os cotovelos nos joelhos, ele levantou as mãos com as palmas para cima, incapaz de ver a silhueta delas no escuro. Ele conjurou um pouco de magia na ponta dos dedos, em bolas elétricas de plasma do tamanho de ervilhas, e depois enviou as esferas para todos os cantos da sala, os raios azuis deixando rastros como eletricidade estática. Elas subiram pelas paredes e em seguida se uniram na forma de uma mulher. A luz pulsava em ritmo hipnótico.

Imaginar Jebediah com Alyssa, mostrando a ela os caminhos do amor, domando seu espírito selvagem com suas corriqueiras convenções humanas, tudo isso queimou a garganta de Morfeu com o sabor amargo da inveja.

Ele não queria que o lado selvagem de Alyssa fosse dominado por nenhum outro homem, não desejava compartilhar nenhuma parte dela. Morfeu desejava os dois lados: sua inocência e seu espírito desafiador.

Que graça poderia haver na dependência? Que espontaneidade poderia haver em um mundo previsível? Ele poderia lhe oferecer uma eternidade de desafios e paixão, de momentos ternos e calmos nas profundezas de chamas vibrantes e tempestades devastadoras — a tranquilidade em meio ao caos.

O lugar dela era com ele, usando trajes de soberana. Ele tinha tanto a ensinar-lhe sobre o reino intraterreno, sobre as glórias da manipulação e da loucura. Se Morfeu alimentasse o faminto lado intraterreno de Alyssa, suas inseguranças e inibições humanas diminuiriam e, com o tempo, poderiam desaparecer. Ela nunca mais ansiaria pelo amor seguro de Jebediah.

Morfeu invocou sua magia de volta, recolhendo as espirais de luz azul até ficar novamente envolto na escuridão. Suas asas varreram o chão quando ele se levantou, e ele as ergueu num arco que quase tocava o teto.

Nada mais de deliberações. Ele tinha tentado fazer o que era justo em instâncias passadas e, sem exceção, isso sempre o prejudicara. Podia ignorar a pontada de culpa que lhe agitava o peito, mas não podia abdicar de suas necessidades pelas necessidades de Jebediah. Ele nunca mais seria ele mesmo sem Alyssa ao lado — a chama para sua Mariposa. Morfeu não pararia até que ela voltasse para o lugar que lhe pertencia, no País das Maravilhas.

Para vencer, ele jogaria sujo, colheria os despojos do coração dela do modo como fosse necessário, não importava quanto isso custasse ao rapaz mortal. Afinal, este era o modo intraterreno. Fazer menos que isso faria de Morfeu um humano. E ele sabia, agora mais do que nunca, que essa era a última coisa que jamais desejou ser.


SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS
Epígrafe

ÀS VEZES PENSO EM SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS ANTES DO CAFÉ DA MANHÃ.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Um

Mortalidade

Capítulo 1

Deportação

Algumas pessoas podem dizer que é impossível morrer e viver para contar. São as pessoas que nunca experimentaram a mágica. Quanto a mim, sou tataraneta da Alice que inspirou Lewis Carroll. Acreditei no inacreditável por mais de sessenta e quatro anos, desde que tinha dezesseis e descobri que o País das Maravilhas era real e cheio de seres caprichosos, misteriosos e loucos, governados por acordos e enigmas. Ainda assim, às vezes, por mais que você acredite no impossível, as coisas não saem como você as planejou. Toda mágica pode encontrar um obstáculo de vez em quando.

Por exemplo, nunca esperei que meu cadáver acabasse numa caixa de sapatos. É isso que os caixões crematórios me lembram... uma caixa de papelão do tamanho de uma pessoa. O caixão não é muito confortável. Não há a forração de veludo para suavizar a base de madeira. Nenhuma almofada para acomodar minha coluna curvada. E nada de roupas, além de um vestido de papel para cobrir minha pele velha e enrugada.

O cheiro de papelão se fixa ao meu nariz e as rodas de aço da maca giram ao longo do corredor, rangendo em algum lugar sob mim, junto a passos familiares. Sinto a transição do ambiente fresco e de temperatura controlada onde o legista atestou minha “morteza” (como os seres do País das Maravilhas diriam). Ele, então, pôs uma identificação de aço inoxidável no meu peito e fechou uma tampa sobre mim, me prendendo na escuridão.

A maca sacode ao entrar num lugar muito mais quente. O cheiro de ovo podre do propano confirma nossa localização. Já visitei este lugar. Nos últimos meses visitei vários crematórios, quando não havia ninguém por perto, de madrugada. Para conhecer melhor o gigantesco forno de tijolos à vista que estaria esperando para queimar minha carne. Para encontrar o projeto perfeito, com um banheiro e um espelho de corpo todo do outro lado do salão.

Assim que optei pelo crematório do Pleasance Rest Cemetery, me preparei para morrer.

Meu plano original era usar Tetrodotoxina. Em doses pequenas, subletais, ela deixa a vítima num estado de quase morte por dias, permitindo que ela mantenha a consciência. Morfeu, porém, não concordava. Ele disse que a margem de erro entre o estado de quase morte e a morte de verdade era pequena demais no mundo mortal e não algo com o que se brincar. Ele não queria que eu arriscasse. Então, ofereceu uma substituto do País das Maravilhas: uma poção que funciona quase da mesma forma, mas que tem um antídoto cem por cento garantido.

Bebi a dose de quase morte nesta manhã e, dez horas mais tarde, ainda sinto o gosto amargo e anestésico, como cravos dançando no fundo da garrafa de vinagre. Não consigo morder a língua para aliviar o efeito. A mágica me deixou catatônica — meus olhos fechados e imóveis, meus batimentos e respiração reduzidos a um ronronar indetectável por quaisquer instrumentos humanos.

Meu lado intraterreno se remexe dentro do meu crânio, me garantindo que isso vai dar certo, mas meu lado humano instintivamente se encolhe quando o medo tranca minha garganta. Não posso gritar para dizer a todos que estou viva. Minhas cordas vocais não vão funcionar. A claustrofobia, minha velha inimiga, me deixa toda arrepiada. Sei o que está acontecendo ao meu redor, apesar de não conseguir abrir os olhos ou mover meus membros. Todos os cheiros, sons e sensações táteis são ampliados por minha incapacidade de reação.

Os paramédicos que atenderam, nesta manhã, à chamada de emergência da minha neta de vinte e sete anos me declararam morta — fulminada por um ataque cardíaco. Foi insuportável ouvi-la chorar e gritar. Isso despertou lembranças da minha maior perda — da morte de Jeb, três anos antes. Uma faca ainda é cravada no meu peito sempre que me lembro do nosso último adeus.

Mas Jeb me mandou ser firme. E ensinei aos meus netos o mesmo — sempre encarar as coisas. Ela ficará bem. Não tenho dúvida disso porque ela é muito parecida comigo, para além de seus cabelos loiros, olhos azuis e curiosidade. Ela é teimosa, leal e uma sobrevivente.

Assim que os paramédicos levaram meu corpo ao necrotério, tudo funcionou como o previsto.

Minha família sabia que cemitério eu escolhera e as quatro exigências do meu testamento: nada de exibição pública do meu corpo, nada de velório, cremação em doze horas depois da minha morte e a dispersão das minhas cinzas no mesmo local onde as de Jeb foram jogadas, sob o salgueiro em nossa casa de campo. A árvore tinha um significado especial, por ter sido gerada de uma mudinha do salgueiro que dividia os quintais da nossa casa quando éramos crianças.

Tais pedidos nada convencionais não abalaram minha família, considerando que me tornei uma mulher muito excêntrica.

Depois da morte de Jeb, eles me viram vagar pela casa de campo, reunindo os mosaicos que fiz ao longo da vida, cheios de paisagens bizarras e místicas — com títulos como A Batida do Coração do Inverno, Dunas de Xadrez e O Ventre do Monstro —, e guardando-os no sótão, ao lado de outras quinquilharias, incluindo um anúncio de um passeio pelo Tâmisa, em Londres. As últimas coisas que guardei ali foram duas chaves: uma que pertencia à minha mãe, e era capaz de transformar qualquer espelho num portal, e outra que podia abrir o jardim das almas do País das Maravilhas. Esta última foi um presente dado a Jeb, depois que ele desistiu da sua musa, de modo a satisfazer a necessidade do reino interior por sonhos vívidos e cheios de imaginação, conectando nossos mundos em paz ao longo do processo. Ele desistiu do que fez dele único, a fim de manter as crianças humanas seguras. Um ato de coragem que seus filhos e netos jamais tiveram o privilégio de saber. Era essa a lembrancinha de que eu tinha mais dificuldade para me desapegar, porque era uma homenagem à coragem e ao caráter nobre de Jeb — as duas coisas que eu mais amava nele. No entanto, como Rainha Vermelha do País das Maravilhas, eu não tinha motivo para guardar chave tão sagrada.

Escondi tudo num baú no sótão e o tranquei. Então pus a chave do baú em meio às páginas da minha velha coleção de Lewis Carroll. Jeb e eu éramos donos da casa e do terreno que a cercava, e insistimos, em nossos testamentos, para que o lugar permanecesse sempre com a família. Assim, se nossos descendentes um dia precisassem me encontrar, poderiam. Eles só precisam procurar as pistas, como um dia eu fiz. Seguir meus passos e acreditar no impossível — em contos de fadas e desejos e mágicas.

Sempre os mantive no escuro quanto ao nosso legado, dando-lhes uma chance de viver uma vida normal. Até mesmo ordenei que os insetos e flores ficassem em silêncio. Agora sou a única capaz de ouvir esses sons do mundo interior, e as coisas continuarão assim enquanto eu estiver reinando como a Rainha Vermelha. Contudo, se algum familiar procurar com presteza, vai encontrar a verdade que escondi para eles.

Em todos esses anos, eles aceitaram meus caprichos porque sempre os respeitei e os amei incondicionalmente. E agora conto com a lealdade deles. Todo o meu plano de morrer depende da execução do meu testamento.

A cremação era a única forma de evitar que drenassem meu sangue, bombeassem formol em minhas veias e cerzissem minhas pálpebras — todos aqueles procedimentos mórbidos e intrusivos para embalsamar e preservar o corpo mortal. Fui abençoada ao longo dos meus oitenta anos de vida humana com saúde e uma mente aguçada. Nunca precisei de marca-passo e não tenho próteses, implantes ou dentaduras, então não há nada que possa explodir no forno. Isso significa que não haverá incisões nem extrações. Era importante que eu permanecesse intacta — por dentro e por fora.

Todavia, se o Rábido Branco não se apressasse e chegasse aqui com o antídoto para me tirar deste estado, nada importaria. Vou virar um monte de cinzas. E Morfeu terá de encontrar um lar novo para meu espírito eterno... um novo corpo para eu habitar.

Ele ficará furioso se isso acontecer e nunca me deixará esquecer isso. Uma eternidade é muito, muito tempo para ouvir eu avisei, entoado continuamente com um marcado sotaque londrino.

— Não me importo — disse ele há duas semanas, enquanto discutíamos meu êxodo do reino humano e tomávamos chá durante uma das minhas visitas ao País das Maravilhas em sonho. Ele levou a xícara à boca, seu rosto curioso perfeito e jovem como sempre. Ele bebeu e deixou a xícara de lado novamente. — Muitas coisas podem dar errado. Devo estar lá para executar meu plano.

— Vou agir sozinha — declarei. Estudei a cama com dossel e a lareira instaladas na diagonal em relação a enormes poltronas vitorianas ao lado de uma mesa oval, buscando conforto no cenário. — E vamos seguir meu plano. — Aqueles seriam meus últimos instantes no reino humano. Tinha de ser de acordo com a minha vontade. Contive uma descarga de tristeza e tentei exibir o mesmo controle que Morfeu exibia com sua xícara de chá, mas o líquido quente molhou minha mão velha quando meu pulso tremeu. Gritei.

— Alyssa, por favor. Permita-me. — Com seus dedos lisos e elegantes, ele cuidadosamente segurou meus dedos enrugados, limpando o chá e acariciando a mão queimada com um guardanapo.

Permita-me. Nós dois sabíamos que ele falava de outras coisas além da limpeza do chá derramado.

Tantos anos passamos juntos nos meus sonhos — e tantos outros na nossa infância —, com Morfeu me treinando e me ensinando sobre meu reino e o mundo. Não havia oportunidades para ficarmos sozinhos, já que ele mantinha o véu do sono descoberto para eu poder interagir com o Rábido, Chessie, Marfim, as criaturas e meus súditos.

Isso mudou quando fiquei viúva. Realizava meus deveres reais todas as noites e lutava para ser forte, até que meu luto pela morte de Jeb ficou tão intenso que as lágrimas se acumulavam em meus cílios, me cegando. Morfeu — sentindo minha vergonha, porque rainhas não choram — insistia que era hora do chá, que tomávamos sozinhos nos aposentos reais que um dia pertenceria a nós como rei e rainha.

Ali, na nossa solidão, escondidos de olhos predadores e cercados por exuberantes tapetes vermelhos e cortinas douradas, eu me perdia em minha dor. Permita-me, dizia ele. Estendendo os braços, ele me abraçava enquanto eu chorava. Noite após noite, durante um ano, até que finalmente não conseguia mais chorar.

Pouco depois, a atenção de Morfeu mudou. Seus carinhos se tornaram menos confortantes e mais íntimos. Estava constrangida demais para reagir, tímida demais em meu corpo velho.

Um ser místico eternamente jovem cortejando uma velha — teria rido do absurdo disso, não estivesse tão afetada pela devoção cega dele e pela intensidade do seu amor.

— Mesmo que usássemos seu plano... — Morfeu falava baixinho e de mau humor ao esfregar o guardanapo entre meus dedos, enxugando os resquícios de chá. — ... ainda assim eu deveria estar lá nas coxias, para supervisionar o espetáculo.

Franzi a testa para ele. Sua teimosia, juntamente com a dança dos vaga-lumes em seus cabelos desgrenhados e seus traços bizarramente belos, me fez lembrar outra noite em que nos sentamos neste quarto juntos — há várias décadas —, quando ele tentou me convencer a usar a coroa de rubi pela primeira vez. Quando tentei convencê-lo a me devolver meu desejo para eu poder fugir do País das Maravilhas, curar a maldição da minha família e manter Jeb em segurança. Eu era uma pessoa diferente na época, cheia de juventude, aspirações humanas e inocência.

Nosso quarto real se tornou uma lembrança dolorosa da velhice e decrepitude. Ansiava criar lembranças novas aqui, depois de desistir de tentar superar a beleza caótica do País das Maravilhas, quando fui coroada rainha de novo e permaneceria com dezesseis anos para sempre — jovem, cheia de energia e tão sedutora quanto o homem alado que governaria ao meu lado.

Até então, eu não me encaixava. Eu era uma foto deixada ao sol e chuva, minhas cores vibrantes se desbotando melancolicamente e ganhando um tom amarelado. Meus poderes intraterrenos ainda eram fortes, mas estavam presos num vaso gasto pelo tempo. Meus ombros pareciam curvados e pesados demais, eu raramente usava minhas asas. Do que mais sentia falta era voar.

Eu me perguntava se era assim que a Rainha Vermelha se sentiu no fim e por que ela permitiu que Morfeu a convencesse a voltar ao País das Maravilhas, abandonando seus descendentes semi-humanos. Por fim, foi plano dela voltar, apesar de não querer fazer aquela jornada sozinha. Ela brigou com Morfeu, dando início a uma série de eventos e manipulações que acabaram por me levar à coroa e me tornar rainha. Algo pelo qual aprendi a agradecer, apesar de na época ter reclamado do presente. Demorei muito para admirar totalmente a preciosa imortalidade, e jamais desvalorizaria isso novamente.

Depois que Morfeu terminou de limpar o chá derramado, tirei a mão da dele e timidamente cobri meu pescoço com o lenço de seda, tentando esconder minhas peles murchas. As pessoas diziam que eu era linda para a minha idade. Que parecia ao menos vinte anos mais nova. Todavia, em comparação à beleza sobrenatural e imutável de Morfeu, eu me sentia velha.

— Não quero você lá — insisti, determinada a mantê-lo distante da casa funerária. — Já basta você ter me visto murchar como uma uva-passa ao longo dos anos. — Até minha voz soava enferrujada, como se as palavras jorrassem da minha garganta e língua em porções cáusticas.

Morfeu apoiou os cotovelos na toalha da mesa, aproximando-se ao máximo com o jogo de chá entre nós. Seus cabelos azuis tocaram-lhe os ombros, animados e encantados — um contraste marcante com as ondas brancas reduzidas a um coque preso atrás da minha cabeça.

— Você está no fim de sua crisálida, meu amor. Esta etapa é a mais difícil, acredite. Uma batalha furiosa e incômoda de identidade, antes de se libertar e se transformar na criatura de luz e criatividade que sempre foi seu destino. Posso mantê-la atenta. Para evitar quaisquer... distrações.

Ele olhou para minha aliança, que eu ainda não tinha tirado. Aquilo se tornara mais do que um símbolo da nossa devoção. Tornara-se um símbolo da minha vida humana, e eu pretendia usá-la até deixar tudo para trás.

Com o dedinho, Morfeu circulou a aliança, cuidando para não tocar os diamantes ou o suporte de prata que os mantinha no lugar.

— É importante que você não permita nada que a impeça de dar o salto final. Você sofreu a perda daqueles que se foram há tanto tempo. Eles estão em paz. Deixe que a paz deles lhe dê paz. Senão, você será afetada... incapaz de agir com a mente ágil. O foco é fundamental para que qualquer um dos planos funcione.

— Já sei disso — respondo, um aperto no peito dolorido. — Você tem medo de que eu fique senil. De eu não ser capaz de lidar com isso.

Ele suspirou, acariciando meu polegar com o dele.

— Não senil. Nostálgica. Acontece a humanos. Você mesma me contou, enquanto eu a via amadurecer do refinamento à sabedoria.

— Refinamento. — Tentei um sorriso hesitante diante do esforço dele em me encantar. — É assim que vocês falam hoje em dia?

Ele me encarou sem hesitar.

— Seus olhos não perderam a incandescência; nem a mente, a inteligência. Você não é ingênua. Você é minha torta de ameixa, e sempre foi. Já lhe disse isso repetidas vezes, não é?

Ao menos uma vez por noite nos meus sonhos, Querida Mariposa.

Não respondi em voz alta, assim como não revelei minhas maiores inseguranças: estava com vergonha de ele me ver tão decadente... Não suportava a ideia de ele ter qualquer lembrança de mim como um cadáver naquele caixão de papelão — assim como eu vi Jeb depois da morte dele, antes de ser cremado.

— Uma rainha não deveria exigir resgate — sentencio. Ainda o encaro, maravilhada com aquelas íris coloridas que devolvem a mim o mesmo olhar de nossa infância, cheio de surpresa e afeto. De certa forma, ele via para além do meu corpo velho e enxergava a menina que fui, e eu queria muito conseguir me ver como ele me via. — Uma rainha deve merecer o respeito do seu reino e de seus súditos. E a admiração do rei.

Ele pegou minha mão novamente e beijou cada um dos nós dos dedos cheios de artrite.

— Ah, eu lhe garanto Você sempre mereceu isso. Na verdade, planejo mostrar-lhe a profundidade de minha admiração. — A palavra profundidade saiu de sua garganta como um urro. — Ainda que sejam necessárias várias vezes para convencê-la, finalmente chegará o momento de você ser minha.

Meu rosto ficou vermelho. Apesar de todos os anos em que ele me elogiou e me provocou com insinuações, e a despeito de tudo o que vivi como mãe, esposa e avó mortal, ele ainda conseguia me fazer enrubescer.

— Ah, aí está. — Ele passou o dedo por meu rosto enrugado e sorriu, satisfeito demais consigo mesmo. — Não perdi meu encanto.

— Como se isso fosse possível, para o mestre da sedução verbal — provoquei.

Seu humor mudou para a insolência num piscar de olhos.

— Você logo verá que isso é mais do que conversinha, minha rosa.

Fiquei ainda mais vermelha, sentindo-me mais jovem do que nunca. Ele sempre causava esse efeito em mim. Sempre fez com que eu me sentisse viva e desejável. Exceto pelas vezes que ele me desafiava ou me deixava furiosa.

Ele se recostou em seu lugar, as asas erguidas.

— Seu corpo está cansado. Deixe-me fazer isso por você, para você poder descansar — tentou ele uma última vez.

— Você me ensinou a ser forte e astuciosa. Devo dar sozinha este último salto para dentro da toca do coelho. — Uma sensação inesperada de vulnerabilidade me fez tremer. Peguei minha xícara de chá para absorver seu calor. — Mas você estará lá para me pegar?

— Estarei lá esperando um beijo arrasador para compensar todos os meus problemas — respondeu ele sem hesitar.

Sorrindo, peguei o jogo de xadrez. Morfeu ficou observando atentamente eu animar as peças para que atuassem no meu grandioso plano de deixar o reino humano e esconder meus vestígios com a ajuda do meu conselheiro real, além de pedaços de osso fornecidos pelas fadas, um saco de cinzas, dois trajes de disfarce, uma mosca comum e um punhado de duendes. Enquanto eu falava, seu olho adornado com joias brilhava num tom esverdeado — incomodado, mas esperançoso. A ansiedade que emanava dele era visceral.

Era inconcebível que tivéssemos um relacionamento de sessenta e três anos — platônico — sem um quê de tensão. Apesar de ele gostar muito de me ver andar na ponta dos pés na corda bamba da sedução contida, ele manteve seu juramento e respeitou minha decisão de ser fiel a Jeb. Ele esperou três anos, enquanto eu sofria a morte do meu marido mortal e preparava minha família para minha partida iminente. Era essa a profundidade do respeito dele por mim. Ele teve meu respeito em troca. E muito mais...

Agora chegou o dia de recompensá-lo por sua paciência e estou começando a me arrepender por não deixá-lo planejar minha morte... por não deixá-lo controlar o espetáculo. Provavelmente, tudo seria muito mais fácil. Eu já estaria em seus braços e em sua cama — uma jovem rainha borboleta, governando meu reino, embriagada de poder, loucura e paixão.

Não. Eu consigo. Posso provar que sou capaz, calculista e forte, como todas as boas rainhas deveriam ser.

O único papel de Morfeu no meu plano era mandar o Rábido com o antídoto. Assim que meu cúmplice chegar, tudo se encaixará e fugirei para o País das Maravilhas. Como um corpo não pode ser exumado depois de reduzido a cinzas, ninguém saberá que ainda estou viva e apenas fui embora deste mundo para sempre.

Uma pontada de tristeza segue-se a esse pensamento quando finalmente me dou conta. Acabou. Estou pronta para dar um fim... para começar meu futuro imortal. Vivi uma vida plena aqui. Minha família é saudável e feliz. Estamos no auge. Todos os sonhos humanos foram realizados e meu coração está firme e forte novamente.

Se bem que, por causa disso, há muita coisa a ser deixada para trás. Não há nada inconcluso, mas ainda assim é difícil dizer adeus para sempre. Assim que a coroa for colocada em minha cabeça para dar início à minha imortalidade, não terei de usá-la constantemente para manter minha juventude, mas terei de ficar no País das Maravilhas. Como Marfim uma vez me disse, o tempo é complicado ao se passar pelo portal a fim de retornar ao mundo humano... há de se imaginar uma hora específica, ou o relógio retrocede e o portal deixará você no mesmo momento de sua passagem.

Se eu tentar cruzar as fronteiras para o reino humano depois de partir, voltarei para sempre a este momento e terei oitenta anos para sempre, ou automaticamente envelhecerei todo o tempo que se passou e virarei pó na hora. Acrescente-se a isso o fato de eu estar morta aos olhos de todos — jamais poderia explicar meu reaparecimento sem causar terror e confusão — e ir e voltar não será mais uma opção.

Uma muralha impenetrável está prestes a se erguer entre mim e minha família, deixando-nos sem nada além de memórias.

O rosto de Jeb reapareceu em minha mente antes que eu pudesse impedir... como seus olhos verdes brilhantes me encararam pouco antes de ele os fechar na morte. Como eles estavam tão cheios de amor e gratidão por todos os sonhos que compartilhamos.

Sinto algo crescer na minha garganta e uma dor atrás dos olhos. No meu peito, a pequena identidade de metal parece uma pilha de tijolos.

Pare. Não posso fazer isso agora. Tenho de me concentrar na fuga. Morfeu tinha razão. Pensar naqueles que amei só vai me atrapalhar. Vou manter as lembranças sob controle... esquecer como encarei a morte da mamãe e do papai, como achei que jamais superaria a dor. Como Jeb foi meu porto seguro, como sempre. Assim como fui para ele, quando a mãe dele morreu.

É fútil pensar nessas coisas agora, porque, assim que Jeb morreu, todo o mundo se distorceu — adquiriu uma nova forma que eu não reconhecia. As coisas cotidianas se tornaram estranhas e desagradáveis. Com a morte dele, eu não fazia parte de mais nada.

Minha metamorfose estava completa assim que meu marido mortal deixou de respirar. Só o que me restava agora era sair do meu velho casulo.

Um cheiro novo entra em meu entorno de papelão — loção pós-barba ou desodorante —, me obrigando a voltar ao presente enquanto dois homens conversam do lado de fora do caixão.

— Última da noite, Frank?

— É isso, Brian. Chegou há algumas horas. Só entrega. E é para se apressar com ela. Quer que eu fique e ajude?

Tenho dificuldade para respirar. Meu plano não permite duas testemunhas. Só uma. Enquanto espero pela resposta do operador do crematório, meu coração se encolhe dentro de mim, cheio de medo. O órgão parece tremer, apesar de não haver pulsação em meus pulsos ou ouvidos. Só uma vibração fria e indiscernível por trás do meu esterno, como gelatina gelada retirada da fôrma.

— Não — diz finalmente Brian, mexendo em alguns papéis. — Posso fazer isso de olhos fechados.

A ironia é risível. Se tudo sair como planejado, ele não só terá seus olhos fechados, como também estará dormindo e sonhando.

— Vá para casa e fique com sua família — conclui Brian. — Diga a Melanie e às crianças que mandei um oi.

— Entendi. Até amanhã.

As portas se fecham com um rangido e o alívio toma conta de mim, mas por pouco tempo. Os cliques e claques da esteira mecanizada balançam as paredes de papelão do meu caixão e agitam meus ossos rígidos. Sinto um balançar leve sob minha coluna enquanto meu caixão segue por uma esteira com rolos de metal. À medida que estes se movem, as chamas crepitam mais alto, aquecendo meus pés no ponto onde a parede sob a sola dos meus pés se aproxima perigosamente da entrada do incinerador.

Era para o Rábido estar aqui antes que o forno de temperatura controlada estivesse quente o bastante para acionar o mecanismo de abertura. As coisas estão acontecendo fora da sequência e rápido demais. Meus músculos doem e ganham vida, mas estão rígidos como aço. Imóveis. Um vislumbre de outra lembrança me arrepia: quando a Rainha Vermelha controlou meu corpo naquele último dia em Qualquer Outro Lugar. Quando eu era uma marionete dela. Sinto-me tão impotente agora quanto naquele tempo.

Estou prestes a ser envolta em chamas. Meu corpo não vai sobreviver. De todo modo, preciso sobreviver. Prometi voltar como eu mesma. Inteira. É uma promessa que não posso quebrar. Morfeu esperou demais por meu retorno. Não posso decepcioná-lo.

A dúvida ergue sua cabeça horrível: o que farei? Não consigo me mover, não consigo me livrar... não sem o antídoto. Um vazio dói por trás dos meus canais lacrimais enquanto desejo que uma enchente me liberte e encha toda a minha caixa com um oceano de lágrimas para me salvar do fogo. Mas meus olhos podiam muito bem estar cheios de areia.

Chega de drama, meu amor. Use sua mágica. Improvise e encontre uma forma de escapar.

Não tenho certeza se é a voz de Morfeu na minha cabeça ou se é minha própria voz. Ouvi o sotaque dele e sua insistência tantas vezes ao longo da vida que eles estão entranhados em mim como se fossem meus.

Seja qual for o caso, isso desperta minha determinação. Há um motivo para eu ter vindo a este lugar na noite passada, quando tudo estava escuro e em silêncio: para poder anotar mentalmente todas as coisas que poderia animar se precisasse. Para poder entender a logística do forno crematório. Para poder usar minha mágica às cegas.

Concentro-me no maquinário da esteira. Aprendi uma coisa ou outra sendo esposa de um mecânico. As molas do mecanismo se contraem enquanto as imagino se retraindo. O movimento aciona as amarras e a porta de metal se fecha com um baque. Minha caixa para imediatamente ao atingir o obstáculo.

— Você só pode estar brincando comigo — resmunga Brian. Ele mexe na maçaneta da porta e bate nas dobradiças. — Pronto. Agora, sim.

Ele empurra meu caixão de volta para a esteira de metal, criando espaço para a dobradiça se abrir. Minha mente procura outra forma de detê-lo quando o ouço gritar “Mas o que é que...?”, pouco antes de ouvir o som do seu corpo caindo no chão. O caixão bate na porta fechada novamente.

— Rainha Alyssa — uma voz fina soa do outro lado do papelão.

Nikki, sua fadinha maravilhosa. Um formigamento se irradia pelos meus lábios, o fantasma de um sorriso esperando para se abrir. Meus dedos dos pés se dobrariam de empolgação, não fosse minha paralisia.

A tampa do caixão se abre e as asas de vinte fadas pairam ao redor do meu rosto — lufadinhas de vento com cheiro de canela e baunilha.

Mãozinhas do tamanho de joaninhas seguram minhas pálpebras, abrindo-as diante de um brilho âmbar. Ainda não consigo virar a cabeça, mas pela minha visão periférica a galhada do Rábido aparece sobre a borda do caixão, seguida por um par de olhos rosados brilhantes.

— Atrasado estou — desculpa-se ele.

Tento menear a cabeça, mas não consigo.

Todo o seu rosto aparece diante de mim.

— Arrumá-la, Alteza. Levá-la para casa, finalmente.

Casa. A palavra passeia por minha mente, cheia de promessas e esperanças. Imagino-me voando com Morfeu pelos cenários bizarros e irregulares do País das Maravilhas. Como vai ser bom me sentir pertencente a um lugar de novo. Fazer parte e nunca ter de abandonar ninguém novamente.

O Rábido estica o braço magro e derrama em minha garganta algo de uma garrafa vermelha. Um leve toque de frutas vermelhas misturado a menta arde em minha língua. Meu coração ganha vida, batendo com tanta força contra meu esterno que eu perco o fôlego. Em pouco tempo, sou capaz de abrir os olhos sem a ajuda das fadas. Elas se dispersam com risadinhas e pairam ao redor do adormecido operador do crematório, caído no chão de cimento.

Pisco com força e rapidez. Meus canais lacrimais funcionam e meus olhos se enchem de água. O sal fere e coça.

Depois, meus dedos dos pés e das mãos latejam e os músculos despertam, moles e resistentes, como elásticos esticados demais. Enquanto me sento, minhas velhas articulações estalam.

O Rábido sobe na beirada da inclinação e segura o caixão, mantendo-o ao meu nível.

— Perdoe o Branco Rábido. Para todo o sempre, ao seu lado estarei.

Acaricio sua cabeça macia.

— Nenhum perdão é necessário. O que importa é que você está aqui agora. Alguém o viu saindo do banheiro?

O Rábido faz que não.

— A mosca no muro ficou de olho no futuro. — Ele ri da rima e aponta para a parte de cima da porta que ostenta a única janela do salão. A mosca anda pelo vidro do outro lado, numa demonstração de sua devoção inabalável.

O Rábido abre o sorriso sorrateiro que aprendi a apreciar, enquanto sua mão esquelética me entrega uma mochilinha. Olho dentro e está tudo ali: meu colar com o rubi, minha aliança de casamento, os trajes de disfarce, um saco de cinzas e pedacinhos de osso, uma muda de roupa, uma faca e três lembranças da minha vida humana que serão as únicas coisas que levarei comigo ao transpor os limites do País das Maravilhas.

Primeiro, coloco o colar em volta do pescoço e aperto a chave contra o peito, saboreando o poder que ela contém.

O operador do crematório ronca no chão. Ele parece com frio e nada confortável, mas sei que não está. Seus sonhos são cálidos e sensuais. As fadas voam ao redor dele, as asas batendo à velocidade de beija-flores, enquanto elas espalham partículas que são como dentes-de-leão cheios de feromônios. As sementinhas caem sobre o rosto sorridente do homem, levando seu inconsciente a imaginar as fantasias mais carnais. Torço o nariz, com vergonha até de imaginar o que ele está sonhando. Ele provavelmente vai ter uma ressaca de sonhos por uma semana.

Ainda que ele não vá sofrer nenhum efeito físico duradouro, as fadas estão explorando os pensamentos secretos dele. Quando eu era mais nova, teria me arrependido de tê-lo usado em meu plano. Agora, não. Quando ele acordar, daqui a mais ou menos uma hora, sua dor de cabeça insuportável o impedirá de questionar como conseguiu me cremar enquanto ele dormia. Ele só irá querer uma aspirina e sua cama macia em casa.

O fim justifica os meios.

Uso a faca para cortar uma abertura na lateral do caixão e tirar minhas pernas, lenta e cuidadosamente. Não consigo me mover tão rápido quanto antes. Meus pés descalços tocam o chão frio, o vestido de papel fazendo barulho. O Rábido se vira de costas enquanto tiro o vestido e o jogo dentro da caixa, depois visto um moletom e botas cinza — as roupas mais confortáveis e discretas do meu armário. Repreendo-me por me esquecer das roupas íntimas, mas não importa o que estou vestindo agora, porque no País das Maravilhas Morfeu encheu todos os armários do castelo com camisolas e lingeries de renda, cetim e veludo — um guarda-roupa digno de uma rainha.

Hoje, o disfarce esconderá meu traje simplório. Coloco o pé no tecido mágico. Para virar uma camaleoa, só preciso vestir o capuz e me concentrar nos arredores, meu corpo refletindo o cenário de fundo.

Mas primeiro...

Sem eu nem pedir, o Rábido me entrega o saco de cinzas e ossos e minha aliança de casamento. Olho o anel. Jeb o fez para mim quando tinha a capacidade mágica de pintar coisas e lhes dar vida. Quando sua musa se tornou uma entidade viva. Ele me serviu tanto como anel de noivado quanto como anel de casamento e era indestrutível. Pelo menos era o que pensávamos. A única vez que ele perdeu um de seus doze diamantes foi por descuido da minha mágica, quando eu a estava praticando.

Estava do lado de fora da nossa casa de campo, tentando fazer o salgueiro dançar, quando o diamante caiu na grama. Procuramos e procuramos, mas nunca o encontramos. Depois de uma semana, ele apareceu de novo, nascendo do solo na forma de uma flor parecida com vidro. Era como se o diamante fosse uma semente, tendo dentro de si a força da criação mágica de Jeb.

O cheiro de terra presente na lembrança dá lugar ao cheiro do propano do forno. Abro o saco e derramo as cinzas e ossos no caixão, mantendo os movimentos metódicos e precisos para a nostalgia não tomar conta de mim novamente.

Depois de esvaziar o saco, beijo minha aliança e a coloco em cima do montículo.

— Rábido, derreta isso com sua mágica.

Meu conselheiro real se aproxima, olha pela abertura e estreita seus olhos brilhantes até que eles irradiem um calor vermelho. Enquanto ele se concentra, as faixas de prata se fundem, reduzindo os onze diamantes a cinzas.

Coloco a placa de identificação dentro do caixão e leio o que está gravado no aço: Alyssa Victoria Gardner Holt. Sinto um nó na garganta. É a última vez que meu nome humano me definirá.

Reposicionando a tampa, ordeno que o mecanismo da porta funcione. Entrefecho os olhos diante do calor e das chamas, enquanto as portas se abrem o bastante para eu empurrar o caixão pela esteira, a porta se fechando em seguida. Ela se fecha completamente, tanto que nem mesmo se pode ver o brilho alaranjado lá dentro.

Alguns segundos mais e eu estaria presa ali. Agora, depois que o papelão se queimar todo, vai parecer que eu estava. As prateleiras de metal na parede contêm vários cubinhos de papelão. Dentro estão os restos mortais dos corpos que vieram antes de mim e agora esperam ser transferidos para suas urnas.

Mas meus “restos mortais” são únicos. Os diamantes de Jeb esperam lá dentro — sementinhas mágicas. Quando as cinzas forem lançadas no lugar onde as dele foram absorvidas na terra sob nosso salgueiro, flores nascerão, uma parte dele e minha. Unindo o que restou de nosso lado humano, numa última homenagem a toda a beleza que ele criou durante a vida.

Seguro-me para não chorar e pego a mochila enquanto o Rábido veste outro traje de disfarce, o qual encolhe até caber em seu corpo de coelho. Mentalmente, pergunto à mosca se o corredor está livre.

Ela responde num sussurro:

Está tudo bem, Rainha Alyssa...

Os outros humanos se foram. Não há nada além de umas traças por aqui.

Desnecessário ficar invisível, então.

— Nikki — sussurro, e a fadinha balança as asas, soltando a dose final de pó de fada no homem adormecido. Então ela reúne suas companheiras e nos segue porta afora. O banheiro fica a poucos passos do outro lado do corredor comprido e escuro. Sigo tomando cuidado para não esmagar as traças que caminham perto dos meus pés e dos pés do Rábido. Sorrio ao ver os insetos acompanhados de uma fila enorme de baratas, besouros e aranhas.

Rainha Alyssa! Rainha Alyssa! Tão triste vê-la partir...

A mosca voa ao redor da minha cabeça, acrescentando suas despedidas à confusão.

— Sentirei saudade de vocês também — digo, lutando contra uma onda de melancolia. Será a última vez que ouvirei esses cumprimentos confusos e zunidores. No País das Maravilhas, os insetos são... bem diferentes. Menos inócuos e bonzinhos. Alguns são maus e letais, e nada pequenos. Mas conheço todos os segredos deles e todas as suas fraquezas — graças ao sábio guardião do País das Maravilhas.

Nosso desfile entra no banheiro e para diante do espelho. Em vez de me ater à minha aparência velha e enrugada, imagino o relógio de sol que cobre a toca do coelho em um jardim londrino. O vidro racha como gelo no lago e, no reflexo entrequebrado, o relógio de sol aparece, marcado por uma réstia de pôr do sol rosa. É cedo e ninguém ocupa a trilha ainda. Como precaução, visto o capuz e o Rábido faz o mesmo.

Só precisamos de um ou dois pensamentos sobre nossas cercanias e seremos invisíveis.

Usando minha chave, miro numa fissura na forma de buraco de fechadura, minúsculo e intrincado.

O portal se abre. O Rábido me cutuca com seus dedos magros e entrelaço meus dedos aos dele. Junto com as fadas e nossos insetos companheiros, passamos pela abertura liquefeita. Uma brisa fria me atinge, assim como o cheiro de mato e rosas cobertos de orvalho reluzente.

Os botões de rosa dizem:

Bem-vinda, Majestade. Os anos ficaram para trás. Logo você estará desabrochando como nós novamente.

Sorrio. O Rábido me puxa rumo ao relógio de sol que já expõe a toca do coelho. Ele está ansioso para ir embora. Mais insetos se juntaram a nós; alguns pelo terreno: besouros, centopeias e escorpiões; outros pela brisa: borboletas, mariposas, vaga-lumes...

Saem em enxame do mato e ficam dando a volta em mim e em meu conselheiro real — um arco-íris encantado, espesso e brilhante, sob a luz rosada do céu.

As borboletas cantam:

Vida longa à Rainha Alyssa. Que você seja para sempre jovem, louca e livre.

Muitos deles pousam sobre mim, as asas acariciando meu rosto e pescoço através do traje de disfarce, e percebo que não terei mais de me tornar invisível. Meus amigos insetos estão aqui para me dar proteção, como sempre estiveram.

O Rábido me solta, seus dedos de cadáver tocando os meus enquanto ele segue as fadas e mergulha na toca do coelho sem olhar para trás.

— Atrase-se não, Majesta-a-a-ade — o grito do Rábido ecoa até mim, afastando-se mais e mais à medida que ele desce, sem peso, como uma pena ao vento.

Ao contrário do meu séquito interior, não consigo ir embora sem uma olhada para trás.

Paro, olhando em meio à nuvem de milhares de asinhas adejando diante da paisagem tremeluzente no horizonte. Meu peito se aperta.

Pego as lembrancinhas da minha mochila. Três garrafas de vidro decoradas: a primeira cheia de pedrinhas, a segunda com conchas e a última com um pó prateado. Uma olhada nas três e as lembranças contra as quais eu lutava iluminam minha mente, graciosa e lentamente, como a aurora invadindo o mundo imóvel que desperta.


CONTINUA

A MARIPOSA NO ESPELHO


Capítulo 1


As Maquinações
da Mariposa

— Tem certeza, Morfeu?

— Tenho — respondeu Morfeu, tirando as luvas e enfiando-as no casaco. — Você, entretanto, parece que precisa ser convencida.

A magia pulsava nervosamente na ponta de seus dedos, uma luz azul pulsante logo abaixo da pele. Por causa da ponte de ferro que havia lá fora, seus poderes estavam limitados a alguns truques inofensivos, mas suficientes para dar o seu recado, se necessário.

O besouro-tapete — que de tão grande chegava à altura dos ombros de Morfeu, depois de este haver tomado uma poção encolhedora — engoliu em seco por trás de suas muitas mandíbulas estalantes. Sua pele carpetada tremia.

— Não, não. Por favor, o senhor interpretou mal as minhas ressalvas. — Os braços ramosos do inseto vibravam enquanto ele folheava as marcações em ordem alfabética de sua prancheta, as quais continham todas as lembranças perdidas no País das Maravilhas. — É que ficar espiando os momentos esquecidos de um ser humano parece uma maneira tediosa de se passar uma tarde, só isso...

Morfeu mudou de posição, e suas asas lançaram uma sombra sobre a cara do besouro.

— Ah, mas este humano, em especial, tem muito a me ensinar.

Esse humano, em especial, havia conseguido capturar algo que Morfeu desejava mais que tudo neste mundo.

— Sente-se — disse o inseto, apontando para uma cadeira branca de vinil —, e eu prepararei as memórias para o senhor.

Morfeu jogou as asas para o lado, sentou-se e deu uma tragada no narguilé fornecido por seu anfitrião como cortesia. O tabaco doce e fresco passou ardendo pela sua garganta. Ele soprou baforadas de fumaça no ar, formando com elas o rosto de Alyssa. Era fácil imaginar o modo como seus olhos sempre se cobriam de um azul gélido quando ela o via, cheios de excitação e temor ao mesmo tempo. Adorava isso nela: a sagacidade de seus instintos intraterrenos alertando-a a não confiar nele, suavizada pelas emoções humanas forjadas durante a infância que passaram juntos.

Antes dela, Morfeu levara a vida em solidão, sem nunca precisar de ninguém. Ele não fazia a menor ideia do feitiço que ela lhe lançara. Ela era mais que uma decepção, sempre jurando devoção ao lado errado. Seu encanto, porém, era inegável. Principalmente quando ela o desafiava ou o encarava com sua indignação de justiceira, o que a deixava com os lábios deliciosamente posicionados quando rangia os dentes.

Morfeu colocou o narguilé de lado, embora a sensação de queimação em seu peito não tivesse nenhuma relação com o fumo. Alyssa era a única que poderia aplacar o incêndio que havia ali, pois fora ela quem havia atiçado aquelas chamas.

Os dois tinham passado cinco anos juntos — como amigos de infância —, até que a mãe dela a arrancou dele, Alyssa sangrando e ferida, e ele ficara se remoendo de remorso e com culpa por causa de um juramento imprudente que havia feito, no qual prometeu se manter longe dela.

Manter-se afastado da amiga fez com que ele sentisse o gosto da solidão pela primeira vez. Mesmo todos os anos de claustrofobia que ele passara aprisionado em um casulo antes de encontrá-la... nem mesmo eles o prepararam para o sofrimento da ausência dela.

Então, por fim, ela havia voltado para ele, fazendo-o reviver todos os antigos sentimentos que ele pensava ter dominado. Daquela vez, também, tudo foi muito rápido. Ela partira novamente, por escolha própria. Restaram a dor e a solidão excruciantes. Debilitantes.

Havia apenas seis meses que ela partira do País das Maravilhas, e ele não compreendia este vazio corrosivo que só poderia ser preenchido pelo toque dela, por seu perfume, sua voz. As solitárias criaturas mágicas não ligavam para essas bobagens; não precisavam de companhia, abominavam a bagagem emocional. Sua afeição e lealdade pertenciam ao agreste País das Maravilhas e a nada nem a ninguém mais.

Então o que ela havia feito para mudar isso?

Ultimamente, cada vez que ele via o próprio reflexo, não mais reconhecia a Mariposa no espelho. Estava incompleto, enfraquecido; e menosprezava isso.

O menosprezo era ainda maior porque ele havia se esforçado tanto para cortejá-la, enquanto ela oferecia seu afeto a um reles mortal.

Morfeu suprimiu um rosnado. Ele não conseguia compreender a sorte de Jebediah, como um humano podia ter tanto poder sobre uma rainha intraterrena. Como um simples rapaz era capaz de controlar um coração real e mestiço tão multifacetado, um espírito propenso ao pandemônio e à loucura. Jebediah puxava Alyssa para baixo, acorrentando-a ao tédio e à banalidade do reino humano.

Ela precisa ser libertada.

Morfeu havia considerado a possibilidade de matar seu rival, mas Alyssa jamais o perdoaria. Não. Chegara o momento de tomar medidas criativas.

Se Morfeu soubesse no que Jebediah havia pensando durante sua jornada pelo País das Maravilhas — todos os momentos em que ele se sentiu mais aterrorizado, mais desanimado —, conheceria as fraquezas e as forças do mortal, intimamente. Ele saberia como enfraquecer Jebediah, contrapondo-o a si mesmo.

Essas fraquezas o derrotariam melhor do que Morfeu o faria. E depois, quando tivesse destruído a confiança de Alyssa em seu cavaleiro mortal, Morfeu estaria lá para confortá-la e conquistá-la.

Voltaria a ouvir a risada de Alyssa do modo como ela ria quando os dois eram crianças, e teria de novo a oportunidade de ser presenteado com o seu sorriso deslumbrante.

Ele voltaria a ser completo.

— Por aqui, por favor — pediu o besouro para que Morfeu o seguisse.

Morfeu tirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo. Quando o inseto abriu a porta para um compartimento de memórias sem janelas, o cheiro de amêndoas vindo de uma travessa de biscoitos de luar fresquinhos que estava em uma mesa de canto se espargiu no ar. Havia uma chaise-longue na cor creme colocada contra a parede, e uma ornamentada luminária de piso feita de latão iluminava o espaço com uma luz discreta.

Morfeu concentrou-se no pequeno palco do outro lado do compartimento. Sentiu o coração palpitar de ansiedade num ritmo profundo e firme. As cortinas de veludo vermelho aguardavam o momento de se abrirem para mostrar as memórias de Jebediah na tela prateada.

— Como o senhor entrará na cabeça do rapaz para visitar suas lembranças perdidas, sou obrigado pelas normas a avisar-lhe que... as emoções humanas podem ser muito poderosas... podem nos fazer ver as coisas sob uma perspectiva totalmente diferente — advertiu o besouro.

— Estou contando com isso. — Morfeu deu um sorriso afetado. — Conhece aquele ditado sobre amigos e inimigos?

O besouro coçou a pele enrugada.

— Hum... mantenha seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda?

Morfeu acomodou-se na cadeira estofada e alisou a calça risca de giz ao cruzar as pernas apoiando um tornozelo sobre o outro.

— Melhor ainda é se colocar no lugar de seu inimigo. É a melhor maneira de controlar seus passos. Ou de apagá-los, caso tenha a oportunidade.

O besouro, voltando a tremer, esticou o braço fininho e apertou um botão na parede. As cortinas do palco se abriram, revelando uma tela de cinema.

— Imagine o rosto do rapaz enquanto olha para a tela em branco e vivenciará o passado dele como se fosse hoje.

As palavras do besouro eram ensaiadas, até mesmo mecânicas, mas a pulsação de Morfeu ficou acelerada. Ele esperou o besouro desligar a luz. Assim que o inseto saiu e fechou a porta, o corpo de Morfeu desmembrou-se nas juntas, flutuando pela escuridão como se fosse feito de partículas de pó. Todos os seus pedaços se uniram novamente na tela prateada, em cores vivas e cinematográficas, até que ele entrou na cabeça de Jebediah, apropriando-se do seu corpo, sentindo suas emoções.

Naquele momento, Morfeu entregou-se à experiência e, pela primeira vez na vida, passou a ver as coisas como um humano.


Capítulo 2


Primeira Lembrança —
Kriptonita

Jeb acordou em uma cama suspensa.

Estava nu. Por que estava nu?

Antes que esse fato pudesse ser totalmente registrado, trinta fadas ou mais, do tamanho de mariposas, surgiram do ar, acariciando cada parte do seu corpo e sussurrando-lhe. Ele tentou mexer os braços e pernas. As asas das fadas — que batiam na velocidade das asas de um beija-flor — liberavam partículas parecidas com as pétalas delicadas de um dente-de-leão, que, de alguma maneira, o imobilizaram. As sementes exalavam um perfume de canela e baunilha que foi inundando sua consciência, até que a sala ficou totalmente fora de foco.

Quando a névoa se dissipou, ele estava em sua cama, em casa. A noite adentrava pela janela e Taelor estava em cima dele, seminua. A unhas pintadas à moda francesinha percorreram os pelos de seu peito e abdômen, dirigindo-se ao cós de sua calça jeans.

Aquilo não podia ser verdade. Taelor e ele tinham brigado antes do baile de formatura, haviam terminado tudo.

Com delicadeza, ele a virou, colocando-a debaixo dele, e apoiou-se nos cotovelos, afastando o cabelo do rosto dela. Mas não foram os olhos de Taelor que encontraram os dele. Foram os olhos gélidos e azuis de Alyssa — encarando-o com um ar de admiração e inocência. Os dedos dele pareciam grandes e desajeitados nas têmporas dela.

A Al na cama dele?

Não. Isso não podia acontecer. Alyssa nem havia beijado homem algum. E Jeb nunca tinha sido o primeiro de nenhuma garota.

A Al era intocável para ele. Ela já passara por muitos episódios turbulentos em sua vida. E ele não era exatamente um exemplo de estabilidade.

Ele tirou as mãos dela e ficou de joelhos.

— Jeb, você não me quer? — perguntou Al, passando a mão no peito dele.

Ele não conseguiu responder. Seus dedos coçavam e pareciam esticar-se, como se estivessem crescendo. Ele ergueu as mãos sob o luar, observando, horrorizado, seus dedos caírem, um por um, e se metamorfosearem em lagartas. As lagartas, então, avançaram lentamente na direção de Alyssa, e ele não conseguia fazer nada para detê-las. Jeb caiu de costas na cama, com as mãos sobre o rosto, olhando fixa e incredulamente para os tocos crus e cheios de sangue onde antes estavam seus dedos.

Gritando, Alyssa tentou sair do colchão, mas as lagartas a pegaram, arrastando-se por sua pele e tecendo teias, até que restou somente uma forma se agitando dentro de um casulo.

— Soltem ela! — gritou Jeb. Uma luz lampejou em seus olhos, e então ele já não mais se encontrava em sua cama. Estava em algum lugar da mansão de Morfeu, e as fadas percorriam sua pele, hipnotizando-o... usando algum tipo de feromônio alucinógeno.

Elas estão me segurando aqui para que o Morfeu fique sozinho com a Al. No instante em que a realidade foi percebida, o feitiço foi quebrado.

Jeb pulou rápido da cama suspensa e saiu da nuvem de sedução de suas captoras. Pegando um travesseiro, ele se cobriu.

— Quero alguma coisa para vestir!

As fadas flutuavam no ar, seus olhos de libélula observando-o.

Havia várias cestas douradas no chão perto dos pés dele. Jeb chutou uma. Suas pequenas captoras se espalharam pelo ar, em histeria coletiva.

Gossamer, a fada predileta de Morfeu, designou cinco delas para pegar os morangos que rolaram. Elas contaram as frutas uma por uma e as colocaram de volta na cesta.

Jeb chutou outra cesta cheia de contas de óleo perfumado. Outras cinco fadas lançaram-se ao chão para pegar tudo, parando para contar cada conta antes de guardá-la.

Em pouco tempo, ela já havia chutado todas as cestas. Algumas estavam cheias de pétalas de flores, outras continham loção, outras, ainda, uvas. Ao virá-las, ele conseguira manter a maioria de suas captoras preocupada. Apenas Gossamer e outras duas ainda pairavam em torno de sua cabeça.

— Me deem algo para vestir — repetiu ele —, ou vou começar a tirar as plumas dos travesseiros. Vocês não estão em número suficiente para limpar uma sujeira dessas.

— Ele não está respondendo ao nosso feitiço — murmurou uma das fadas para Gossamer, com seus olhos de inseto voltados para Jeb.

— E nem à nossa magia — acrescentou a outra, amuada. — Eu conjurei uma moça das lembranças dele, mas seu subconsciente conseguiu escapar.

— Sim, este aqui é, sem dúvida, um desafio — concordou Gossamer, numa voz que tilintava feito um sino. Depois de mandar as outras duas fadas recolherem o conteúdo da última cesta, ela ofereceu a Jeb um robe de seda.

Ele se virou de costas e enfiou a peça de roupa no corpo, assimilando os arredores.

Morfeu o colocara em uma prisão opulenta. A sala era toda revestida de piso de mármore preto que refletia a luz laranja dos candelabros. Ele já estava bem familiarizado com o ponto focal: um colchão circular balançante preso por correntes douradas no centro do teto côncavo. Peles e almofadas forravam a cama, perfumadas por pétalas de rosa.

Apesar de todos esses confortos, faltava a essa sala um detalhe muito importante: uma saída. Não havia portas, janelas ou qualquer outra abertura à vista.

Paredes convexas — pintadas em cor de lavanda escura — eram cobertas por parreiras que se estendiam por toda a sua circunferência, entrando e saindo do reboco e se entrelaçando nos candelabros acesos. Frutas brotavam das vinhas. De quando em quando, as uvas explodiam espontaneamente e pingavam seu suco dentro de bacias de pedra posicionadas ao longo das paredes para apanhá-lo. E, delas, um líquido viscoso e purpúreo era drenado para dentro de fontes — um abastecimento constante de vinho de fadas com aroma adocicado.

Ele se lembrava vagamente de ter provado o vinho ao chegar. Desconfiado, tentou resistir, mas estava com muita sede. Era impossível saber que tipo de magia havia no líquido.

Jeb gemeu e esfregou o rosto. Quanto tempo teria passado bêbado e enfeitiçado? Ele acabara sendo inútil para Alyssa, assim como o pai dele teria sido.

— Onde ela está? — perguntou ele, ignorando a harpa que tocava sozinha, a qual, na tentativa de abafar-lhe a voz, começou a tocar mais alto. — Me diga o que Morfeu está fazendo com ela.

Minúscula, reluzente e confiante, Gossamer acomodou-se em uma almofada de cetim, passou a mão pelo colchão ao seu lado e cruzou as pernas apoiando os tornozelos verdes um sobre o outro.

— Talvez você não perceba o que nós, as fadas, somos capazes de fazer. Temos séculos de prática. Podemos lhe mostrar um êxtase com o qual você sempre sonhou.

Jeb a olhou de cima a baixo e ajustou a faixa de cetim em sua cintura.

— Me desculpe, não sonho com coisas verdes.

Ele encontrou a mochila de Alyssa debaixo da cama e a puxou. Jeb havia notado alguma coisa dentro dela anteriormente, quando a vasculhara em busca de outra coisa: uma pulseira de ferro forjado que ela provavelmente havia enfiado na mochila quando ainda estava na escola e ficara esquecida ali. Ele havia pesquisado muito as fadas quando começou a pintá-las, e sabia que elas não gostavam de ferro — se a lenda fosse verdadeira.

Jeb jogou a mochila sobre o colchão. Os cobertores de pele encresparam-se feito uma onda gigante e derrubaram Gossamer de sua almofada. Acionando suas asas com rapidez, ela pousou sobre o ombro de Jeb.

— Se é Alyssa que inspira suas paixões, podemos realizar essa fantasia. — Gossamer bateu palmas. As outras largaram seus postos de limpeza e se apressaram a formar um círculo em volta de Jeb. Uma onda de enjoo lhe invadiu o estômago quando todas as fadas assumiram a aparência de Alyssa — réplicas perfeitas em miniatura, com cabelo platinado e roupas sensuais de skatista. Elas liberaram novamente suas sementes de feromônios, cegando-o com o perfume de Alyssa, doce como néctar.

Brandindo uma almofada, Jeb rompeu a ilusão e dissipou as sementes. As fadas saíram aos guinchos e foram se esconder nas vinhas das paredes, com seus corpos brilhantes parecendo cordões de luz branca e piscante.

Gossamer pairou no ar acima dele, ralhando.

— Já chega! Informem o nosso mestre de que o mortal é leal à garota. Não podemos seduzi-lo para que volte ao seu mundo sem ela.

Jeb ficou resmungando, enquanto as fadas se esgueiravam por buracos do tamanho de ervilhas, na parede onde as vinhas entravam e saíam. Se ao menos ele pudesse passar por aquelas pequenas saídas também... Chegou a pensar em usar a poção encolhedora que ele e Alyssa tinham encontrado quando chegaram ao País das Maravilhas, mas ela o deixaria tão pequeno quanto suas captoras, e ele ficaria indefeso contra Morfeu. A impotência lhe fervia as entranhas, tão profunda como a que ele sentia quando era criança, escondendo-se em um armário até que passassem os ataques de fúria do pai.

Ele cerrou os dentes. Tinha de haver uma passagem escondida em algum lugar por trás das vinhas. Elas o tinham trazido para cá; devia haver uma saída.

Subitamente, ele deu um pulo para a parede mais próxima e arrancou algumas vinhas, lançando-as para todos os lados. O diminuto guincho de surpresa de Gossamer não o intimidou.

Uvas explodiam em suas mãos, libertando seu aroma potente e denso. As plantas viscosas cortavam seus dedos feito arames. Jeb aceitou a dor. Era algo que podia controlar — diferentemente do tormento dos cigarros acesos que seu pai lhe enfiava na pele, ou dos punhos que lhe socavam o rosto e o estômago. O cheiro da nicotina, o gosto de sangue. Imaginação ou não, eles alimentaram o selvagem em sua alma.

Ele mergulhou numa espiral vermelha de fúria e devastou a sala. Quando finalmente voltou a si e recostou-se na cama, ficou chocado com os estragos que causara.

Arfando e suando, ele cuidou dos cortes nas junções dos dedos e vasculhou os destroços à procura de Gossamer. Será que a tinha machucado? Se sim, talvez fosse mesmo filho de seu pai.

Jeb cerrou os punhos, descontente consigo mesmo.

— Gossamer? — Ele se encolheu ao ouvir a própria voz, rude e inflamada de emoção.

Um rufar de asas mexeu uma das correntes que prendiam a cama ao teto. Ele respirou, aliviado ao ver a fada. Embora parecesse meio idiota importar-se, já que estava prestes a usar a pulseira de ferro de Alyssa contra ela.

Gossamer pousou no chão ao lado das vinhas rasgadas e das cestas que ele tinha derrubado de novo; seus ombros estavam caídos, em demonstração de derrota. Provavelmente, ela não sabia por onde começar a calcular todos os conteúdos derramados.

Jeb começou a vasculhar a mochila. A harpa havia parado de tocar, e o silêncio o incomodava feito o ruído dos ponteiros de um relógio. Cada segundo que ele passava longe de Alyssa deixava-a mais vulnerável a Morfeu.

Seus dedos finalmente encontraram um metal frio. Ele jogou a pulseira de ferro na direção de Gossamer, mas mantendo alguma distância, na esperança de enfraquecê-la sem machucá-la.

Ela gritou e lançou-se ao ar, se debatendo.

— Por favor... afaste isso.

— Não até eu conseguir algumas respostas. — Jeb segurou uma das asas dela entre o indicador e o polegar, levando-a para a cama e sentando-a sobre uma almofada, tomando o cuidado de manter a pulseira próxima o bastante para intimidá-la. — Basta cooperar, que eu não vou machucá-la.

— Já está machucando. — Ela gemeu, com a pele esverdeada já tingida de turquesa. — Não posso usar minha magia... — Gossamer bateu as mãos no próprio rosto. — Vai me deixar... horrível. Abster-me. — Sua voz ficou mais calma, como se estivesse falando consigo mesma, e, rangendo os dentes, continuou: — Abster-me até a ameaça de dor e contaminação passar.

Jeb franziu a testa.

— Então o ferro vira seus poderes contra vocês? É a arma perfeita para usar contra seu chefe.

— Um objeto desse tamanho... só funciona com os menores de nossa espécie.

Jeb curvou-se, aproximando ainda mais a pulseira dela.

— Muito bem, então considere isso um detector de mentiras. Toda vez que eu perceber que você está fingindo, aproximarei o ferro. Onde está a Al, e o que o seu chefe repugnante está fazendo com ela?

A cor da fada mudou para um verde azulado. Ela rolou sobre a almofada, as asas lutando para bater. Gossamer as puxou por cima dos ombros até a altura do peito, cruzando-as, como se quisesse conter a sua magia.

— A sua Alyssa está confortável e sendo bem cuidada. Morfeu está zelando pelo sono dela...

Jeb soltou um grunhido. Na noite passada, ele havia zelado pelo sono dela, no barco. Mudara a posição do corpo dela para que pudesse olhá-la de frente e fazer uma promessa, mesmo que Alyssa estivesse sonolenta demais para ouvi-lo. Jeb havia prometido que a protegeria, que a levaria para casa a salvo. E não iria quebrar sua promessa agora.

Ele precisou resistir ao desejo de destruir a sala novamente.

— Como eu saio daqui?

— Apenas o Morfeu tem os meios para abrir a passagem.

Jeb inclinou-se para a frente, com o nariz quase tocando o rosto de Gossamer enquanto segurava a pulseira sobre a cabeça dela, como se fosse um objeto corrosivo.

— Está dizendo que estou preso aqui até que aquela barata de asas decida me soltar? Ele vai fazer a Al enfrentar o País das Maravilhas sozinha?

Ela choramingou, levando a mão à testa.

— Não. Como você provou ser leal, ele permitirá que a acompanhe em sua jornada. Você comparecerá ao banquete e traçarão os planos.

— Banquete?

— A apresentação de Alyssa. Morfeu deseja exibi-la aos outros.

— Que outros?

Gossamer deixou-se cair, formando um monte de cor púrpura e em seguida saiu depressa de seu poleiro. Ela puxou alguma coisa de dentro da almofada — um desenho de Al que Jeb não se lembrava de ter feito. Lentamente, Gossamer levantou os joelhos e estudou as linhas.

— Você fez isto enquanto estava sob nosso feitiço. Tem poder dentro de seu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Você captou o interior de Alyssa com perfeição.

— Esse desenho é pura fantasia — resmungou Jeb. Ele colocou a pulseira de ferro sobre o papel ao lado de Gossamer.

Ela rolou para o meio do desenho, tentando escapar do metal.

— Há mais verdade nesta aparência de Alyssa do que em qualquer coisa que possam me forçar a falar.

Jeb puxou o desenho, fazendo Gossamer e a pulseira de ferro rolarem por cima da pelugem. Ele estendeu o desenho sobre uma almofada e percorreu as linhas de carvão com o dedo. A imagem era igual a todos os outros desenhos de fadas que ele havia feito de Al ao longo dos anos, mas, ainda assim, não poderia ser mais diferente da garota que ele conhecia.

Ele a desenhara com o cabelo preso no alto da cabeça. Al nunca usava o cabelo daquele jeito. Um vestido preto de alcinhas realçava suas curvas. Nem morta ela seria vista em um vestido tão convencional. E a única coisa que se parecia com ela eram as luvas de renda preta sem dedos que cobriam as cicatrizes da palma das mãos.

Fora isso, o desenho era uma fantasia completa. Sentada em um banco de jardim, Al segurava uma rosa. Rímel e lágrimas escorriam em curvas graciosas por seu rosto. Pensando bem, se parecia com a maquiagem dela na última vez que ele a vira.

Ele ainda não conseguia entender por que, depois de quase se afogar em um oceano de lágrimas, o rímel de Alyssa não havia borrado. Apertando os olhos, ele estudou o par de asas translúcidas abertas nas costas dela. As membranas finas tremeluziam sob o único raio de sol que atravessava as nuvens. As asas faziam com que se sentisse estranho, mas Jeb não conseguia perceber a razão.

Talvez porque elas lembrassem as asas de Morfeu, embora tivessem uma cor totalmente diferente. As têmporas de Jeb latejaram. Nada poderia ser pior do que Alyssa sozinha com aquele homem-inseto. Aquele doido tinha algum tipo de poder sobre ela, havia entrado em sua cabeça quando ela era pequena. O subconsciente pode ser muito poderoso, e se Morfeu ainda tivesse acesso aos sonhos da Al...

— Como posso derrotá-lo? — perguntou Jeb com um nó na garganta.

Os olhos bulbosos de Gossamer voltaram-se para os dele. Ela estava fraca demais para se arrastar para longe da pulseira, que agora roçava sua coxa.

— Ele não será derrotado. Há anos ele espera por este dia.

Jeb fez cara feia.

— Muito bem, ele é o Super-Homem. Mas todo mundo tem a sua kriptonita. Algo de que sente medo.

— O confinamento — Gossamer deixou escapar, e, diante da confissão, seu corpo escureceu até ficar da cor de um machucado.

— Como assim?

Gossamer levou o dorso da mão à testa.

— Por favor... está muito perto... o ferro... está drenando minha energia.

Jeb caiu de costas no colchão e afastou a pulseira da fada. Equilibrando-o entre os dedos, ele estudou o ferro sob a luz das velas. A pulseira o lembrou de seu piercing de ferro e da primeira vez que Al o vira, sua reação de entusiasmo. Ela havia implorado para tocá-lo e fez várias perguntas sobre o processo de colocação de um piercing. Seu entusiasmo e ingenuidade, suas inseguranças... Morfeu não hesitaria em usar qualquer uma dessas coisas, ou todas elas, para manipulá-la.

Jeb precisava convencer Al a sair do País das Maravilhas, a esquecer esta jornada para quebrar a maldição de sua família, a qualquer custo. Algo muito tenebroso estava à espreita, bem perto dela, como no sonho que ele tivera. E Jeb podia sentir que, fosse lá o que estivesse para acontecer, estava se aproximando.

— Então vocês querem que ela conserte os erros da Alice original, certo? E se eu consertá-los? — Jeb tentou raciocinar. — Vocês enviam a Al para casa e deixam que eu cuide de tudo?

— Impossível — respondeu Gossamer num sussurro arfante, voltando à cor verde-clara. Engatinhando na direção do desenho, ela passou a pequenina mão sobre a rosa. — Ela já passou nos testes e provou ser a escolhida.

— Testes? Está se referindo a encontrar a toca do coelho para o País das Maravilhas e secar o oceano de lágrimas?

Gossamer fez que sim.

— Mas eu ajudei a fazer isso.

— É por ela que ele esperava. Não por você.

Jeb levantou a pulseira de ferro uma última vez.

— O que ele realmente quer dela?

Antes que Gossamer pudesse responder, o teto abobadado começou a tremer. Pedaços espessos de gesso despencaram no solo. Jeb colocou uma almofada sobre a cabeça e uma mão sobre Gossamer para protegê-la dos detritos. O teto se abriu nas emendas, fazendo a cama balançar e puxando as correntes em direções opostas, de modo que o colchão subiu vários centímetros.

Depois que os tremores passaram, Jeb olhou para cima. A silhueta escura de Morfeu apareceu em uma abertura no teto.

Sutileza era um dos últimos itens na lista de prioridades desse cara.

— Já te disseram que você é muito escandaloso? — rosnou Jeb.

Morfeu inclinou-se para olhar a sala destruída.

— Já te disseram que você é um péssimo hóspede?

Parte da responsabilidade daquela bagunça era da grandiosa entrada de seu aprisionador, mas Jeb mordeu a língua, não querendo arriscar sua oportunidade de ver Al.

Morfeu relaxou.

— Alyssa o aguarda na sala dos espelhos. E, por favor, tome um banho e faça a barba. Você será apresentado aos nossos convidados do banquete como um cavaleiro élfico, então precisa parecer como tal. Gossamer lhe dirá como se comportar adequadamente. — Morfeu largou algumas roupas e botas, que fizeram um ruído ao atingir o chão. — Aí está seu uniforme. — Ele fez uma pausa e apontou para as correntes. — Que pena que você não tenha asas e nenhuma magia intraterrena. Terá que sair daí sozinho. E posso assegurar que não será nada fácil.

Os músculos de Jeb se retesaram quando Morfeu sumiu de vista; ele sabia que o aviso se referia a muito mais do que sair daquela sala.


Capítulo 3


Segunda Lembrança —
Carnificina

Jeb limpou o suor da testa. Morfeu estava certo. A escalada para sair de sua prisão dourada seria mesmo difícil. Mas isso não significava nada se comparado à jornada pelo País das Maravilhas que ele e Alyssa haviam cumprido desde então. O dia inteiro tinha sido um desafio atrás do outro, com o perigo e a morte aguardando em cada esquina. E agora ele havia perdido a Al. Os dois tinham se separado pouco antes de ela completar o teste final. Al ficou enfrentando as irmãs Twid no cemitério, sozinha, e ele ficou preso aqui no fundo do abismo.

A noite já havia caído quando ele atingiu o solo, e foi uma transição extremamente rápida, como se alguém tivesse apagado a luz.

Jeb sentiu os músculos do corpo endurecerem. Odiava pensar na Al sozinha naquele mundo insano depois de anoitecer. E, mais uma vez, ela provou ser forte o bastante para encarar quase tudo. No final, foi ela quem o salvara mais de uma vez...

Ele se lembrou dela pairando acima dele — um brilho selvagem, flutuando com a graça de uma libélula. Ver as asas dela brotarem tinha sido ao mesmo tempo assustador e milagroso. Jeb mal conseguiu respirar enquanto observava a transformação.

Falando sinceramente, Jeb ainda não tinha recuperado o fôlego de quando ela o levara para dentro do abismo e ele gritara: “Você é minha corda de segurança!”, antes de ela subir ainda mais alto para o céu. Ele não deveria ter colocado tanta pressão sobre ela para salvá-lo; tinha que ter feito o que conseguisse para sair de lá por si próprio e encontrá-la no meio do caminho. Do contrário, ela nunca se perdoaria se algo saísse errado.

A carcaça de um pássaro Jubjub havia amortecido sua queda. Ele limpou nas calças a gosma pegajosa que tinha entre os dedos, torcendo o nariz diante dos restos malcheirosos do exército que os perseguia e acabou caindo no abismo. Jeb procurou ficar de pé na escuridão. Suas botas produziam sons de sucção toda vez que ele pisava. Ele nunca tivera fricotes; qualquer aversão a sangue e violência havia sido expurgada — uma dessensibilização gradual que era reforçada sempre que ele se olhava no espelho e via suas bochechas e olhos inchados, grandes e cheios de sangue, que nem um bife malpassado.

Contudo, sem uma centelha de luz para guiá-lo, a carnificina aos seus pés parecia mais viva do que morta. Sua imaginação trazia arquivos de todos os tipos, de filmes de zumbis a demônios e assombrações. Seu estômago queimava de náusea. Jeb sentiu-se aliviado ao perceber que os assobios que ouvia dentro do abismo eram produzidos pelo vento. E não havia ruídos de correntes fantasmagóricas nem gemidos de mortos-vivos.

Além disso, seu verdadeiro inimigo era o tempo, mais perigoso do que qualquer coisa que pudesse imaginar. A Al ainda tinha de cumprir a última tarefa no cemitério. E, depois, eles ainda tinham de encontrar um ao outro.

Ele se forçou a avançar às cegas até sua mão alcançar a parede do abismo. Antes de descer totalmente, Jeb viu que a mochila de Al tinha ficado presa em uma pedra saliente próxima ao chão. Se conseguisse encontrá-la, poderia contar com uma lanterna. Tateando a superfície áspera da pedra, ele levantava seus pés por sobre os obstáculos, tocando os cadáveres com os dedos dos pés para mensurar a largura de cada passo.

Com os cotovelos esbarrando nas pedras, Jeb observou o céu. Um pequeno aglomerado de estrelas brigava com as nuvens, aparecendo para iluminar levemente o lugar ao seu redor, tornando possível que ele continuasse sem esbarrar no falecido exército da rainha. Uma brisa úmida levantava a poeira feito pequenos tornados. Logo choveria. E, neste lugar, era possível que, literalmente, chovesse a cântaros — daqueles temporais ruidosos, torrenciais.

Um calafrio que não tinha nada a ver com a tempestade iminente lhe percorreu a espinha e obscureceu qualquer sentimento bom que ele poderia ter encontrado naquele pensamento. Qual era a razão de todos esses “testes” de Morfeu? Toda vez que a Al conseguia se sair bem em um desses testes, sua forma intraterrena tornava-se mais acentuada. Será que o intuito era transformá-la completamente para que não pudesse mais voltar ao reino humano?

Fios de cabelo caíram sobre seu rosto, e Jeb os afastou.

Morfeu afirmara que tudo o que ele mais queria era que Alyssa voltasse ao seu lugar. Sua casa. Jeb esperava que ele estivesse se referindo ao mundo deles, o reino humano. Mas e se a Al não estivesse sob nenhuma maldição, no final das contas?

Ele se lembrou de sua pesquisa sobre fadas, na qual descobriu que elas eram criaturas chamadas de changelings — as crias das fadas secretamente deixadas no lugar de bebês humanos roubados. Alice Liddell, a tataravó de Al, teria sido uma changeling? Quem sabe foi por isso que ela encontrou, quando criança, a toca do coelho — por instinto. Isso significaria, de alguma estranha maneira, que aqui era a casa de Al.

Jeb parou com as especulações. Elas só levavam a mais dúvidas.

Ele tinha encontrado a mochila. Abriu-a, tirou a lanterna e colocou a mochila nos ombros.

Ao fechar o zíper, ele acendeu a lanterna e percorreu o cenário com fachos de luz. Os guardas destruídos pareciam cartas de baralho amarrotadas. Brinquedos descartados. Até mesmo os pássaros Jubjub poderiam se passar por brinquedos infantis com o enchimento extrapolando para fora.

Com a mochila ajeitada no corpo, Jeb percorreu a circunferência do abismo sem encontrar nenhuma abertura. Pedras que haviam caído bloqueavam qualquer possível passagem que ele tentasse. Era como se ele tivesse caído dentro de um tubo gigante. Não havia nenhuma outra saída a não ser subindo.

Jeb apontou a luz para o gramado a cerca de vinte andares acima — a clareira onde Alyssa havia pousado. Estava determinado a encontrá-la antes de Morfeu, mesmo que tivesse de escalar as pedras pontiagudas no escuro e sem uma corda de segurança.

Ele havia acabado de apoiar a lanterna entre os lábios e escorar o pé em um rochedo para tomar impulso quando ouviu uma voz com um sotaque britânico familiar.

— Ao trabalho, homens. Precisamos contar todos antes que as irmãs Twid enviem sua brigada de duendes para recolher os mortos.

Morfeu.

Jeb desceu e quase colidiu com o intraterreno alado, que tinha aparecido do nada, como se tivesse aberto um zíper no ar e passado por ele. Cavaleiros élficos faziam fila atrás dele, entre vinte e trinta, carregando lanternas e usando o mesmo uniforme de Jeb, só que menos esfarrapado e sujo. Eles passaram sem nem olhar para Jeb, extremamente concentrados na contagem dos corpos.

— Ora, ora, pseudocavaleiro. — Morfeu riu com desdém.

Cada pedacinho de Jeb ansiava por apagar aquele sorriso arrogante e socar aquele rosto. Mas ele estava em desvantagem. Se quisesse sair desse fosso para encontrar a Al, teria de bancar o bonzinho.

— Detesto dizer isso, mas é bom vê-lo, senhor Mariposa. — Jeb guardou a lanterna. — Vejo que pegou o espelho para vir aqui.

— Eu só viajo de espelho. — Morfeu ergueu a lanterna e examinou as roupas esfarrapadas de Jeb. — Tem a vantagem de não estragar tanto as roupas. E vou lhe contar outro segredo: se eu mantiver as asas daquele lado do plano — ele apontou com o polegar para as suas costas, onde metade de seus apêndices não era visível —, a abertura fica acessível para nossa viagem de volta.

Jeb forçou um sorriso.

— É bom saber.

Perfeito, na verdade. Ele poderia voltar com a trupe de elfos e depois tomar o expresso na sala de espelhos para encontrar a Al. Mas primeiro teria de distrair Morfeu, baixar a guarda dele. Jeb perguntou:

— Esse chapéu é novo?

Morfeu ficou radiante.

— Que gentil de sua parte ter notado. É meu chapéu da Insurreição. Ainda não havia tido a oportunidade de usá-lo antes. — Com o dedo, bateu em várias mariposas que formavam a guirlanda na aba do chapéu e depois se inclinou e fez conchinha no ouvido de Jeb para sussurrar um segredo. — As asas vermelhas representam derramamento de sangue.

— Ãh-hã. — Jeb cerrou a mandíbula diante do indesejado bafo quente no lóbulo de sua orelha. Depois, olhou para os cavaleiros, discerníveis somente por suas lanternas flutuando na escuridão atrás dele. — Então, está planejando um motim com o exército da rainha de Marfim?

Morfeu apertou o ombro de Jeb.

— Eu sempre soube que era mais esperto do que os mortais comuns.

Os músculos de Jeb contraíram-se ao contato.

— O que significa que você estava mandando a Al para uma missão absurda só para se divertir.

Cuidado. Jeb não poderia deixar sua desconfiança transparecer. Pelo menos não ainda. Em vez disso, ele se inclinou para ajustar os cadarços das botas e respirou fundo antes de se reerguer.

Morfeu apertou sua gravata vermelha.

— Todas as tarefas que pedi à Alyssa tinham um propósito. — Ele deu um passo para o lado quando alguém mais passou pelo portal do espelho: um esqueleto do tamanho de um duende, com antenas e olhos cor-de-rosa brilhantes, metido em um colete vermelho.

— Rábido Branco? — sussurrou Jeb, incrédulo. Nada daquilo fazia sentido. O Rábido era da corte Vermelha. Por que estava aqui?

— Qual é o relatório? — Morfeu agachou-se para ficar na altura do Rábido, ainda mantendo as asas enfiadas no portal invisível do espelho.

O pequeno intraterreno apertou as mãos enluvadas e olhou para Jeb, sua cabeça careca refletindo o brilho suave da lanterna de Morfeu.

— Um de nós, você é?

Morfeu sorriu e respondeu por Jeb.

— É claro que é. Ele ajudou a nossa Alyssa a conquistar o grande e cruel exército Vermelho, não lembra?

Coçando a antena esquerda, o Rábido fez que sim.

— Rainha Grenadine neutralizada está. Nos portões da frente e de trás, o castelo guardado está pelos regimentos três e sete. Flanqueando a rainha, um círculo de cinco. Sem esquecer da coroa e seu guardador.

— Ah, sim. O bandersnatch. Bem, quando Alyssa tiver trazido seu prêmio do cemitério das irmãs Twid, nada mais terei a temer daquela besta medonha. Fez um bom trabalho, senhor Branco. — Morfeu deu uma batidinha na aba do chapéu.

O Rábido bateu os tornozelos cadavéricos um no outro, depois se curvou e lançou um olhar penetrante para Jeb, antes de pular novamente para o portal.

— Ele é o seu espião — murmurou Jeb, sentindo-se idiota por não ter adivinhado antes.

— Sim.

— Então todas as vezes que o esqueletinho ameaçou a Al, matando-a de susto, era só para manter a aparência de lealdade à Rainha Grenadine?

— Os melhores espiões são aqueles que jogam dos dois lados com o mesmo vigor.

A distância, Jeb avaliou as lanternas que balançavam. O tilintar dos cabos de metal e o pisar de botas eclipsavam o suave lamento do vento.

— Certo. Já que estamos abrindo o jogo...

O comentário de Morfeu o interrompeu.

— Que trocadilho mais delicioso, considerando a posição em que estamos. — A lanterna dele apontou para os cadáveres dos guardas de carta.

Jeb ignorou a piada mórbida.

— Eu ia perguntar por que o Rábido se voltou contra a corte Vermelha.

— Ele era o conselheiro real da Rainha Vermelha quando Alice nos visitou. Deseja ver a verdadeira herdeira no trono tanto quanto eu.

— Verdadeira herdeira. — Jeb chutou um punhado de terra com uma bota, sentindo o peito apertado. — Então tudo isso é para destronar Grenadine e abrir caminho para uma nova rainha.

— Sim. — A lanterna iluminou o rosto de Morfeu, numa expressão de indulgência sonhadora. — E estamos muito perto. Em breve, ela ocupará o trono que é e sempre foi o lugar dela.

O lugar dela. Uma hipótese se formava na mente de Jeb, uma ideia ultrajante e incompreensível, mas, de qualquer maneira, a resposta óbvia para todas as dúvidas que ele vinha remoendo. Todas as dúvidas, exceto uma...

— Mas, primeiro — interviu Morfeu, varrendo o ar com um gesto desdenhoso —, temos que ter certeza do que iremos enfrentar quando atacarmos o castelo. Você e Alyssa conseguiram eliminar boa parte da oposição com seus fantásticos movimentos de pés. Estamos aqui para avaliar se os números batem com os que o Rábido reportou. Devemos ter certeza que Grenadine não tem outras cartas escondidas na manga. — Ele bateu nas costas de Jeb. — Viu o trocadilho? “Cartas na manga?” — E deu uma gargalhada.

Jeb não deu nem um risinho.

— Ah, corta essa. Os guardas dela são de cartas. É uma piada como a que você fez antes, só que mais inteligente.

— Ah, sim, entendi — retrucou Jeb.

O riso de Morfeu se dissipou.

— Você não é um namorado muito divertido.

— Você não leva nada a sério? A Al está correndo perigo — Jeb deixou escapar.

— Bobagem. Ela é gloriosamente capaz! Você nunca a viu voando? É claro que viu! Estava pendurado na corrente que ela segurava. — Morfeu voltou a lanterna para a própria cabeça, num arroubo de celebração. — Não foi uma bela visão, presenciá-la transformando-se no que realmente é? Igual a uma princesa de contos de fadas. — Ele lançou um olhar dissimulado para Jeb. — Não concorda?

Princesa de contos de fadas. Lá estava, saindo da boca do próprio Morfeu, zombando de Jeb por não perceber desde o início. Jeb apertou as alças da mochila para evitar dar um soco na laringe de Morfeu.

Morfeu abaixou a lanterna e depois tirou luvas prateadas de sua lapela.

— Não se sinta desprezado, cavaleiro mortal. Sua contribuição não passará despercebida. E eu sempre pago minhas dívidas. Então, o tirarei desta vala da morte para demonstrar minha gratidão.

— Você pode me agradecer me deixando ajudar a Al. Ela vai terminar a tarefa muito mais depressa comigo do lado — Jeb conseguiu dizer, sentindo um nó nas cordas vocais. Se conseguisse chegar até Al, talvez os dois pudessem se esconder de Morfeu no cemitério das irmãs Twid, até encontrarem uma maneira de escapar.

— Sinto muito — retrucou Morfeu, vestindo as luvas e acenando para que os cavaleiros élficos retornassem. — Ela precisa fazer isso sozinha. Você a verá em breve; todos nós vamos nos reencontrar. Uma grande família feliz.

— Não! — exclamou Jeb, perdendo o controle. Ele investiu, mas os elfos foram mais rápidos e o contiveram, com os dedos machucando seus cotovelos feridos. — Deixe-a sair do País das Maravilhas, seu filho de inseto...

Morfeu pressionou um dedo contra a boca de Jeb.

— Ah-há! Essa, você já usou.

Jeb puxou a cabeça para trás, deixando o dedo do intraterreno suspenso no ar.

Sob a luz da lanterna, as joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficaram escuras, da cor de sangue seco.

— Ora, ora. Isso são modos de tratar seu salvador? — Ele fez cara amuada. — Além do mais, como posso deixar Alyssa sair se ela não está comigo? Da última vez que soube, ela estava entrando no jardim das almas. Mas, quando terminar por lá, ela virá ao meu encontro. Ela ainda tem um papel muito importante a desempenhar.

— Certo. Porque ela é a herdeira do trono. — Jeb ouviu, incrédulo, suas próprias palavras ecoarem, como se tivessem saído da boca de outra pessoa. — Não sei como, mas é ela.

— Bravo! — Morfeu aplaudiu. — Estão vendo o que eu disse, irmãos cavaleiros? — Olhando para os cavaleiros por cima do ombro de Jeb, Morfeu deu tapinhas no peito em cima da gravata vermelha, como se estivesse tomado pela emoção. — Mais esperto que um mortal comum. Pena que tenha as limitações físicas de um.

— Não importa. Ela está fora do seu alcance. — rebateu Jeb, dando um tranco nos elfos; havia muitos o segurando, contudo. — Ela deve estar dentro do cemitério agora, e não pode forçá-la a fazer nada. Você mesmo disse que as Twids não deixam você entrar.

— É verdade. Mas ela encontrará, sozinha, o caminho para o castelo. No momento em que ela perceber que estou mantendo presa a coisa que ela mais ama no mundo, virá rastejando para mim, com as asas a reboque.

Morfeu levantou uma mão e fez um sinal.

Os cavaleiros élficos soltaram Jeb. Ele girou sobre o calcanhar e atirou a mochila sobre eles, dispersando o grupo feito pinos de boliche. Esticando o braço, ele bateu o punho na testa de Morfeu, desequilibrando-o. Um dos cavaleiros se esforçou para permanecer no lugar e manter o espelho aberto. Antes que Jeb pudesse se catapultar e atravessá-lo, raios de luz azul grudaram em sua pele e roupas, feito eletricidade estática. Eles o arrastaram, controlando-o como se fosse um fantoche, até ele ficar de frente para Morfeu. Os raios vinham da ponta dos dedos do intraterreno.

Morfeu aproximou-se.

Jeb tentou recuar, mas seus músculos travaram, ficaram paralisados.

— Durma — disse Morfeu num tom simples, e levou a mão azul fluorescente à testa de Jeb, cujo corpo foi percorrido por uma luz pulsante. Ele sentiu um gosto doce, parecido com leite e mel, e depois sentiu o aroma de lavanda. Com os dedos apertando o tecido macio da camisa de Morfeu, Jeb lutou para manter-se acordado. Mas a luz era muito reconfortante... muito suave... muito calorosa. Contra sua vontade, suas pálpebras ficaram cada vez mais pesadas e ele caiu no chão, em sono profundo.


Capítulo 4


Terceira Lembrança —
Engaiolado

O crânio de Jeb latejava, e havia sangue saindo de seu couro cabeludo e entrando em seus olhos.

Ele limpou o líquido viscoso e focou no lugar à sua volta. Morfeu o tinha trazido para o castelo Vermelho depois de colocá-lo sob o feitiço do sono. Largou-o dentro de uma gaiola na masmorra. Jeb não queria ter tomado a poção encolhedora quando acordou, mas o homem-inseto havia lhe dado um ultimato.

Primeiro, ele havia ameaçado matar a Al. Mas Jeb rebateu, dizendo que o homem estava blefando, pois sabia que ela era indispensável. Depois, Morfeu usara de outra arma, ameaçando fazer com que a frágil mãe de Al ultrapassasse o limite da loucura. Isso, ele faria.

A Al havia lutado muito para salvar a mãe. Ela morreria se a perdesse para a loucura. Então, Jeb não hesitou em levar o frasco aos lábios.

Seu corpo balançava, mas não devido aos efeitos colaterais da poção. A plataforma debaixo dele oscilava por causa de suas tentativas de abrir as barras de sua prisão usando a cabeça — uma atitude desesperada que havia resultado em nada além de um corte logo acima da testa. A magia de Morfeu — um fio elétrico e azul — mantinha a porta da gaiola fechada e imóvel.

— Que bela coisa você fez, não? — entoou uma voz feminina e irritante. — Morfeu escolhe quem tem o poder de suprimir sua magia. Obviamente, você não é um dos escolhidos.

Jeb fez cara feia para sua companheira de prisão. Era uma lóri — um intraterreno parecido com um periquito, mas normalmente do tamanho de um ser humano. Como os dois tinham encolhido, a única coisa que a distinguia dos pássaros do mundo humano eram as túnicas de cetim cor de creme com estampas jacquard colocadas sobre suas asas, corpo e pernas, e seu rosto humanoide enfiado no meio de plumas vermelhas, como se fosse uma máscara. Ele foi cutucado por um bico mais parecido com o chifre de um rinoceronte, posicionado no lugar onde deveria haver um nariz. Os lábios da criatura se agitavam furiosamente.

O pior de tudo era que a voz dela poderia derrubar a Torre de Pisa com uma sílaba. Quando falava, era como se alguém tivesse implantado cirurgicamente alto-falantes nos ouvidos de Jeb e travado o volume no “mais surdo que uma porta”. Ela era uma das muitas razões pelas quais ele tentava sair da gaiola com tanta insistência.

A luz bruxuleante das velas na parede iluminava seu ar de arrogância e deixava o resto da masmorra nas sombras. Depois que a voz da lóri parou de ecoar, Jeb investiu:

— Olhe aqui, Lorina. Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu marido. — Ele apontou a criatura que roncava abaixo da gaiola, de aparência tão estranha quanto à da esposa, com o corpo de um dodô, cabeça de homem e mãos que se projetavam da ponta de suas asas atarracadas. — Foi ele quem manteve Alice Liddell presa em uma gaiola igual a esta aqui, muitos anos atrás. É por culpa dele que a minha namorada é a única que pode destronar a sua rainha. Será que já lhe ocorreu que é por isso que vocês estão presos?

— O Charlie não fez nada disso! — berrou a lóri, pairando dentro da gaiola. — Alguma vez já lhe passou pela cabeça que o Morfeu é um cara de pau mentiroso?

Só em todos os segundos de todas as horas. Jeb apoiou-se nas barras. Seus joelhos cederam, enfraquecidos pelas tentativas de abri-las usando cada músculo de seu corpo. Ele desabou sobre o piso de metal, empurrando uma fatia de pera já amarelada que estava ao seu lado, feito um pequeno sofá. A gaiola era um pequenino forte inexpugnável. Mas não importava. As barras poderiam ser feitas de espaguete cru, e mesmo assim ele não conseguiria ajudar a Al. Mesmo que escapasse, com este tamanho, Jeb não conseguiria derrotar ninguém.

Charlie, o marido dodô de Lorina, não poderia ajudar muito. Ele estava preso por algemas e correntes de ferro e cochilava recostado na parede. Embora a gaiola estivesse pendurada bem perto da cabeça do dodô, não havia nada que Charlie pudesse fazer.

Provavelmente, Morfeu havia lançado no homem-pássaro gigante o mesmo feitiço do sono que jogara em Jeb, mas Charlie já estava se libertando dele.

Lorina acomodou-se no poleiro no centro da gaiola, balançando sobre a cabeça de Jeb feito uma acrobata no trapézio. A cara dela estava tão vermelha quanto as suas penas, o que fazia as espadas e copas estampadas nas bochechas quase desaparecerem.

— Como vamos ficar exilados nestas instalações fedendo a urina, terá bastante tempo para ouvir a verdade — bramiu ela.

Jeb esfregou a cabeça para apaziguar a dor lancinante.

— Se puder baixar a voz uns dois decibéis, eu agradeceria.

— Abaixar minha voz?

— Aaaii. — Jeb enterrou o rosto nas mãos.

O trapézio em miniatura rangia a cada balanço, piorando a poluição sonora.

— Para a sua informação, minha rainha adora o som da minha voz. Ela até o elogia...

O ronco do dodô parou, e ele estalou os lábios.

— Isso é porque ela protege os ouvidos com cera de abelha, Ó, Mais Adorável das Loucas.

— Seu mentiroso! — retrucou Lorina, balançando o poleiro tão depressa que Jeb achou que ia vomitar.

— Estou preso com correntes de ferro — avisou Charlie depois de um bocejo. — Não tenho forças para mentir. — Em seguida, pegou novamente no sono.

Isso pareceu calar Lorina, pelo menos temporariamente.

Jeb aproveitou o silêncio para pensar. A esta altura, Morfeu já deve ter contado a Al sobre sua verdadeira linhagem, sobre o que espera dela. Deve estar tão chocada... tão apavorada. Jeb ansiava tanto abraçá-la que era como se houvesse uma bigorna lhe pressionando o peito.

Aquele mariposo deveria ter contado a verdade desde o começo. Ela nunca escolheria ficar. Mas Morfeu sabia disso, e a manipulou sob o pretexto de que ela poderia curar a maldição da própria família. Jeb queria arrancar as asas pretas de Morfeu e enfiá-las goela abaixo por tê-la enganado, porque não havia cura para o parentesco, e ele sabia muito bem disso.

— Foi a Vermelha quem colocou Alice na gaiola. — A lóri voltou à carga. — Não o Charlie.

— Mas o seu marido escolheu mantê-la presa na gaiola — acrescentou Jeb, mesmo sabendo que não deveria. Ele cobriu as orelhas para a estrondosa refutação, mas Lorina só soltou um suspiro.

— Não. O Charlie tentou fazer a coisa certa pela menina — disse ela, consideravelmente mais ponderada agora. — Ele planejava mandar Alice de volta para o reino humano sem a Vermelha saber, mas a rainha descobriu e os arrastou para uma caverna nos picos mais altos e mais remotos do País das Maravilhas, sem que nenhum de nós soubesse. Ela deixou o Charlie com a vítima dela para poder encenar seu plano mestre, sabendo que Alice seria cuidada por um prisioneiro que nunca poderia escapar. Porque, como você deve saber, os dodôs não podem voar. Ela me privou de meu marido durante anos. Ele era prisioneiro, assim como a mortal.

— Se isso te ajuda a dormir de noite, tudo bem, passarinha.

Uma comoção de poeira e asas, jacquard e cetim, subitamente surgiu e o atacou.

— Você pode mostrar algum respeito e ouvir?!

Jeb levantou as mãos para se defender.

— Está bem. Shhhh. Eu vou ouvir.

Não havia nada mais que ele pudesse fazer. Morfeu lhe dissera que, assim que Alyssa fosse coroada rainha, ela abriria o portal para o reino humano. Acreditando ou não nisso, Jeb não poderia fazer nada a não ser ter esperança. Ele não tinha nenhum poder ali. E ter consciência disso lhe devorava as entranhas a cada minuto.

Acomodada diante de Jeb sob um monte de tecido luxuoso, a lóri olhou por entre as barras e resmungou alguma coisa para o marido que dormia.

— Seu velho e imprestável fezzerjub. Eu é que tenho que te proteger. Nem sei por que me casei com você.

O dodô resfolegou e murmurou, sonolento:

— Porque se casar com o bobo da corte era a única maneira de ter uma posição na corte Vermelha, Ó, Senhora das Nênias. — E o ronco voltou.

— Viu como deu certo? — resmungou ela, fazendo beicinho com os lábios vermelhos em forma de coração, sob a curva de seu bico. — Aquele Rábido ossudo e seu coração negro de pedra. — Ela alisou as penas da nuca e cobriu-as com uma rede decorada por lantejoulas.

Jeb estendeu a mão para pegar o dedal cheio de água que seu captor havia deixado ao lado da fatia de pera. Em suas mãos, ele era do tamanho de uma caneca de café. Ele o passou para sua colega de cela, que o pegou com as asas e deu alguns goles.

— Me diga uma coisa, Lori. Se o que você está dizendo é verdade... — Observando a atitude defensiva na cara bicuda, ele refez a pergunta para poupar os ouvidos. — Como você escolheu compartilhar o seu lado da história, talvez pudesse me dizer de que maneira Morfeu teve participação na prisão de Alice.

Ela sacudiu as gotículas de seus lábios.

— Não teve participação nenhuma. Ele gostava muito de Alice e teria feito qualquer coisa para que ela chegasse em casa sã e salva. Mas, na hora em que ele lhe ofereceu seu conselho como lagarta, alertando-a para que evitasse o castelo da Rainha Vermelha a todo custo, sua metamorfose aconteceu. Quando ele emergiu, totalmente transformado, e soube o que havia acontecido com Alice, ficou furioso.

— Está tentando me dizer que ele possui alguma consciência?

— Pelo menos no que dizia respeito a Alice, sim. — A lóri ajustou a suntuosa túnica que ficava escorregando devido à falta de ombros. — Morfeu usou todos os seus recursos de magia e acabou encontrando ela e meu marido escondidos nas cavernas dos picos mais altos do País das Maravilhas. Infelizmente, já era tarde demais para Alice. — Lorina devolveu o dedal a Jeb, agora com metade da água.

Jeb endireitou o corpo, fazendo a gaiola balançar.

— Então por que ele quer ajudar a Rainha Vermelha a colocar outra rainha no trono, quando ele deveria odiá-la por ter mantido Alice presa em uma gaiola por tantos anos?

— Talvez ele esteja bravo por Grenadine não ter tentado encontrar Alice assim que esta foi capturada. Mas Grenadine perdeu sua fita de memória e esqueceu a criança.

— Um bom regente teria mais do que uma fita para lembrá-la; teria se certificado de que tudo e todos estavam em seu lugar.

— A minha rainha é uma boa regente!

Jeb encolheu-se com o urro agudíssimo.

O ronco do dodô parou.

— Minha vociferante esposa diz a verdade, rapaz. Morfeu parece guardar ressentimento pelo que ele acredita ser negligência, mesmo tendo sido somente um descuido.

Jeb balançou a cabeça diante de todas as falhas que havia no raciocínio de todos.

— Não. Há mais coisas nessa história.

— Você tem bons instintos, cavaleiro mortal.

Jeb olhou para cima, na direção da voz tilintada. Uma luz brilhante flutuou pela pequena janela e entrou pela pesada porta da masmorra. Jeb levantou-se e agarrou as barras da gaiola, inclinando a cabeça para ver melhor.

Gossamer.

A pequena fada adejou para perto e sussurrou algo para o mágico fio azul que fixava a porta de arame, entrando na gaiola. O fio azul deu um nó em si mesmo depois de ela fechar o trinco.

Ela cintilava feito pequenos fogos de artifício ao pairar no lugar, estudando Jeb com uma expressão de solidariedade.

Como os dois agora tinham o mesmo tamanho, Jeb se lembrou de uma pintura que vira certa vez, de um artista tcheco, Viktor Olivia. O pintor era famoso por retratar uma fada que seduzia homens, levando-os a se embebedarem com absinto. Gossamer personificava essa criatura: uma forma feminina perfeita coberta de poeira verde, e nua, com escamas brilhantes cobrindo-a como um biquíni minúsculo.

Ele havia sentido, quando saiu da sala de espelhos, que Gossamer estava do lado dele e de Alyssa.

— Você veio ajudar — lançou ele, esperançoso.

Uma chave de cobre, da mesma cor dos olhos dela e quase do comprimento total de seu torso, pendia de seu pescoço. Seu olhar caiu para os pés delicados, como se estivesse lutando contra si mesma.

— Eu teria vindo mais cedo, mas Morfeu está sempre vigiando o espelho. Agora que ele está com Alyssa, preparando-a para a coroação, estará ocupado demais para ficar de olho no resto de nós... até o fim.

— O fim? — Jeb apertou a barra ao lado dela, concentrado em seu olhar de libélula. — Você tem que me contar tudo.

A fada olhou para Lorina, que estava se esticando para a porta de arame.

— Você sabe muito bem que não tem o poder de sair desta gaiola, a menos que eu a abra para você.

Bufando, a lóri voltou a voar para o trapézio.

Gossamer conduziu Jeb para a fatia de pera e os dois se sentaram. Seu perfume frutado se impunha sobre o fedor da masmorra e o acalmou o suficiente para ele poder ouvi-la.

A fada colocou as mãos sobre as de Jeb, que descansavam sobre os joelhos.

— Eu já traí meu mestre o bastante vindo até aqui, e sua ira será enorme. Eu só posso dizer que, dentro de uma hora, Alyssa estará comprometida para sempre, amarrada ao País das Maravilhas para toda a eternidade. Morfeu planejou tudo para enviá-lo de volta, cavaleiro mortal... mas sem ela.

Uma veia na têmpora de Jeb começou a se contorcer feito uma serpente em uma bandeja quente. Ele deu um pulo para cima e bateu a cabeça nas barras novamente, tentando amolecer o fio azul, incapaz de controlar a fúria exasperada que lhe fervia por dentro. Mais sangue escorreu por sua têmpora.

— Você tem que me soltar! Preciso impedir isso!

— Sim, sim! Nós também! — intervieram o dodô e sua esposa, em coro. — Temos que ajudar a Rainha Grenadine a manter a coroa!

— Naturalmente — afirmou Gossamer, pegando a mão de Jeb e puxando-o para perto dela. — Vocês todos terão a oportunidade de lutar e de mostrar a sua lealdade.

— Mas não posso lutar assim. — Jeb chutou uma semente do tamanho de seu pé. — Você trouxe algum bolo do crescimento?

— Não. Não é a força de seu corpo que salvará Alyssa, e sim a força de seu coração de artista. Mas eu posso assegurar que não sairá deste lugar em sua forma atual.

A lóri desceu de seu poleiro e ralhou com a fada.

— Agora, me escute, sua lacraiazinha. Este rapaz não tem papel nenhum. Ele é, no máximo, coadjuvante. Eu sou a criada da rainha, e Charlie é o bobo da corte. Nós deveríamos ser a sua prioridade. Somos honoráveis membros da corte, os únicos que podem dar um basta nesta paródia!

Acelerando as asas até virarem um borrão enevoado, Gossamer flutuou e colocou as mãos nos quadris.

— Quanto ao seu papel, Lorina: você pode abrir as correntes de seu marido, pois preciso falar com o mortal a sós e tenho pouca tolerância ao ferro. — Ela abriu a porta da gaiola e lhe deu a chave.

A lóri esvoaçou-se veloz, numa comoção de exibicionismo e má vontade.

— Venha, venha, Doçura Selvagem — chamou Charlie, encorajando a esposa enquanto ela flutuava em torno dele, subindo e descendo, incapaz de manter-se firme em alguma altura. — Apresse-se, por favor. O ferro está me dando fisgadas. Poxa vida! Não é tão difícil assim... tente novamente!

A cara de Lorina ficou ainda mais vermelha.

— Tente, com a ponta da asa, usar uma chave do mesmo tamanho que a sua cabeça, seu meleca! Alguns de nós não foram abençoados com dedos, sabia?

Enquanto o casal se ocupava, Gossamer sentava-se novamente ao lado de Jeb.

— Você disse que meu coração de artista pode salvar Alyssa. Naquele quarto na mansão de Morfeu, também... você disse que eu tenho o poder dentro de meu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Minha namorada está prestes a morrer para mim e para a família dela. Não pode haver escuridão maior — sussurrou Jeb com lágrimas de frustração que lhe surgiram nos cantos dos olhos.

— Morreria por ela, cavaleiro mortal?

A espinha de Jeb se retesou. No passado, toda vez que ele protegera Alyssa, sempre se jogara sem nem pestanejar. Seria capaz de morrer por ela?

Quando o pai de Jeb morreu em um acidente, foi Alyssa quem o salvou. Ele não conseguia acreditar que tinha chegado a pensar em morar em Londres sem ela. Precisava dela, todos os dias. De seu sorriso compreensivo, de como ela fez suas cicatrizes parecerem medalhas de mérito sob seu toque, e de seus olhos incríveis. Mesmo tendo passado por tantas provações quanto ele, havia uma luz dentro dela que nunca se enfraquecia. E essa luz não somente a tornava linda por fora, mas também permitia que ela trouxesse vida aos incríveis mosaicos que fazia.

Era essa luz — tanto a interna quanto a externa — que o tinha levado a desenhá-la e pintá-la tantas e tantas vezes.

Ele olhou para Gossamer, quase incapaz de conter a emoção, agora que havia encontrado uma saída.

— Ela é minha melhor amiga.

Minha musa, meu pincel, minha arte, meu coração. Tudo isso estará morto sem ela.

Esfregando o rosto, ele limpou o líquido que havia caído de seus olhos e escorrido pelo rosto:

— Eu a amo. Sim, eu morreria por ela. É isso que preciso fazer?

A fada o encarava sem piscar.

— Está disposto a ir além da morte? A se perder de todos, até de você mesmo, em um lugar onde as lembranças se esvaem em uma maré escura como tinta? Pois, para libertar Alyssa, você terá que tomar o lugar da Rainha de Marfim na caixa linguardarte onde ela se encontra presa.

Jeb lembrou-se da água escura dentro da caixa que ele havia visto na sala dos espelhos da mansão de Morfeu e da cabeça fantasmagórica que havia lá dentro, e seu coração disparou. O sentimento de autopreservação o invadiu e sua mente começou a tentar encontrar outra maneira. Mas, bem lá no fundo, ele sabia que não havia alternativa e que o tempo de Al estava se esgotando. Ele só lamentava não poder dizer a ela, nem uma única vez, com sua própria voz, como se sentia, antes de ser trancado para sempre.

— Aceito.

— E assim será. — Gossamer ficou de pé e estendeu os braços. Fraco e entorpecido, Jeb aceitou seu abraço. Ela o apertou com força e voou com ele para fora da gaiola, pousando no chão. — O mortal concordou em ser o herói de seu reino. Procurem honrar sua bravura — disparou as palavras para Lorina.

Lorina havia conseguido soltar o marido. Ela se sentou no ombro dele, abanando-se com uma asa. Com os olhos arregalados, ela aquiesceu em silêncio — a demonstração mais sincera de louvor que poderia ter oferecido. O dodô ajoelhou-se ao lado de Jeb, uma presença enorme e plumada.

— Teremos uma dívida eterna para com você, rapaz. O que podemos fazer para ajudar?

Gossamer apontou para um canto da masmorra, onde um cobertor de juta cobria uma cama, chegando até o chão.

— Tragam-me o que está debaixo daquela cama.

Entorpecido por uma mistura de incredulidade e temor, Jeb observou o dodô trazer a caixa linguardarte.

Lorina ficou perplexa.

— Morfeu manteve a Marfim escondida aqui?

Gossamer assentiu.

— Por sugestão do Rábido. Ele disse que este era o único lugar no castelo onde ninguém viria à procura dela.

Depois de pedir a Charlie que abrisse a tampa e arrumasse uma pedra onde eles pudessem subir para ver lá dentro, Gossamer pediu ao estranho casal que se afastasse um pouco para que ela e Jeb tivessem um pouco de privacidade.

Jeb afagou as rosas brancas aveludadas que adornavam o exterior da caixa, fascinado pela beleza do rosto da Marfim quando este veio à tona. O olhar cristalizado de assombro dela passava dele para a fada, e voltava — cautelosamente curioso. Ele estremeceu ao pensar que tomaria o lugar dela.

Tinha mesmo que fazer isso?

Jeb sentiu que Gossamer observava seu semblante.

— Devo perguntar uma última vez se está seguro de sua decisão — indagou ela. — Porque, como você está escolhendo ser trancado, e selando essa escolha com seu sangue, a caixa nunca o libertará. Ninguém poderá salvá-lo. Você está oferecendo sua eternidade pela da Marfim, uma rainha que você nem sequer conhece.

Jeb sentiu um nó na garganta.

— Não. Estou trocando a minha eternidade pela da Al.

Gossamer sorriu com ternura.

— Em seus sonhos, vi certa vez que você teme não ser bom o bastante para a menina. Depois de tal sacrifício, ninguém poderá questionar seu valor como homem nem seu amor por ela. — Ela o beijou no rosto, deixando um calor que penetrou seu coração e conseguiu derreter uma pequena porção do terror congelante que lá se escondia.

Gossamer deu-lhe um pincel e recuou.

— Agora, use o poder que somente você pode exercer. Pinte as rosas com o seu sangue.

Jeb foi tomado por uma tontura. Murmurou coisas... sem sentido, temerosas... palavras agonizantes que ele sabia serem as últimas.

Depois, canalizou a raiva, o terror e o desejo por um futuro que ele nunca teria para as estocadas do pincel. Cada botão branco, tingiu-os de vermelho até perder-se dentro das sombras de seu trabalho, e fundiu-se à sua obra-prima, tornando-se um só.


Capítulo 5


A Decisão da Mariposa

A cena se estendeu e ficou turva enquanto Morfeu era arrastado para fora das lembranças de Jebediah e depositado de volta na chaise-longue. A escuridão deixava a sala pesada, mas ele nem se mexeu para ligar a luminária. O cenário completamente enegrecido parecia combinar com os pensamentos obscuros que lhe cruzavam a mente.

Ele passou o dedo pela coxa, acompanhando as listras do tecido risca de giz e alisando as rugas.

Por que se sentia tão aborrecido? Ele havia encontrado exatamente o que esperava encontrar. As fraquezas de Jebediah estavam à mostra: um ódio que poderia facilmente ser manipulado, um sentimento de impotência alimentado por um pai violento e crítico, um ciúme que provocava um sentimento temerário de proteção e que lhe custaria a própria vida.

O que Morfeu não tinha esperado encontrar, entretanto, era tanta semelhança entre ele e o rapaz. Os demônios do passado atormentado de Jebediah não eram muito diferentes dos seus. Ele sempre se surpreendera sentindo inveja dos humanos... por nunca ter tido o carinho de um pai ou de uma mãe. Simplesmente por ocupar seu lugar no mundo, ele também compreendia o medo de talvez nunca chegar a conhecer completamente a confiança e a afeição de outra pessoa.

Contudo, no passado, Morfeu nunca havia considerado isso uma coisa ruim. Ele apreciava ser uma alma reclusa e independente. Por vezes, até se vangloriava, quando lhe convinha ser o centro das atenções, naturalmente. Mas a atenção, a afeição ou a confiança não eram coisas de que ele precisava. Não até aparecer Alyssa. Depois que ela escolheu ignorá-lo, ele não conseguiu funcionar... sentiu-se desastrado e incompetente.

E agora, depois de colocar-se no lugar de Jebediah, Morfeu compreendia, mais até do que desejava, como o lado humano de Alyssa funcionava. Embora metade dela tivesse asas e pudesse flutuar sobre as inseguranças e trivialidades dos mortais, a outra metade tinha seus alicerces nas coisas que qualquer outro humano ansiava: confiança e segurança.

Tendo visto a coragem e a engenhosidade de Jebediah, bem como sua lealdade a Alyssa, Morfeu soube, sem sombra de dúvida, que aquilo era exatamente o que o rapaz oferecia a ela: uma rede de segurança e emoção que a salvaria caso a queda fosse muito alta.

Não era de admirar que ela fosse tão cativada por ele. Não era de admirar que ele exercesse poder sobre ela. Diabos, o próprio Morfeu ficou morbidamente fascinado pelos honoráveis traços morais do rapaz, incomuns em um humano tão machucado. Morfeu ficou tentado a recuar e deixar Jebediah ter seu momento de felicidade. Alguns poderiam até dizer que ele o havia merecido por desejar abdicar de seu futuro, de suas lembranças e de sua vida por Alyssa.

Morfeu rosnou e caiu para a frente com os punhos cerrados, tentando suavizar o estranho peso em seu peito. O rapaz não ficaria aqui para sempre. Era um mortal. Um dia, morreria de velho, no mínimo, e Alyssa voltaria a ser um alvo fácil.

Alvo fácil.

A mandíbula de Morfeu se contraiu. O romance não era uma coisa justa. Nem era um jogo. Era guerra. E, como em qualquer outro campo de batalha, não lhe cabiam a compaixão e a misericórdia.

O besouro-tapete estava certo. As emoções humanas eram coisas imprevisíveis e poderosas. Elas haviam penetrado na cabeça de Morfeu, enfraquecido sua determinação.

Com os cotovelos nos joelhos, ele levantou as mãos com as palmas para cima, incapaz de ver a silhueta delas no escuro. Ele conjurou um pouco de magia na ponta dos dedos, em bolas elétricas de plasma do tamanho de ervilhas, e depois enviou as esferas para todos os cantos da sala, os raios azuis deixando rastros como eletricidade estática. Elas subiram pelas paredes e em seguida se uniram na forma de uma mulher. A luz pulsava em ritmo hipnótico.

Imaginar Jebediah com Alyssa, mostrando a ela os caminhos do amor, domando seu espírito selvagem com suas corriqueiras convenções humanas, tudo isso queimou a garganta de Morfeu com o sabor amargo da inveja.

Ele não queria que o lado selvagem de Alyssa fosse dominado por nenhum outro homem, não desejava compartilhar nenhuma parte dela. Morfeu desejava os dois lados: sua inocência e seu espírito desafiador.

Que graça poderia haver na dependência? Que espontaneidade poderia haver em um mundo previsível? Ele poderia lhe oferecer uma eternidade de desafios e paixão, de momentos ternos e calmos nas profundezas de chamas vibrantes e tempestades devastadoras — a tranquilidade em meio ao caos.

O lugar dela era com ele, usando trajes de soberana. Ele tinha tanto a ensinar-lhe sobre o reino intraterreno, sobre as glórias da manipulação e da loucura. Se Morfeu alimentasse o faminto lado intraterreno de Alyssa, suas inseguranças e inibições humanas diminuiriam e, com o tempo, poderiam desaparecer. Ela nunca mais ansiaria pelo amor seguro de Jebediah.

Morfeu invocou sua magia de volta, recolhendo as espirais de luz azul até ficar novamente envolto na escuridão. Suas asas varreram o chão quando ele se levantou, e ele as ergueu num arco que quase tocava o teto.

Nada mais de deliberações. Ele tinha tentado fazer o que era justo em instâncias passadas e, sem exceção, isso sempre o prejudicara. Podia ignorar a pontada de culpa que lhe agitava o peito, mas não podia abdicar de suas necessidades pelas necessidades de Jebediah. Ele nunca mais seria ele mesmo sem Alyssa ao lado — a chama para sua Mariposa. Morfeu não pararia até que ela voltasse para o lugar que lhe pertencia, no País das Maravilhas.

Para vencer, ele jogaria sujo, colheria os despojos do coração dela do modo como fosse necessário, não importava quanto isso custasse ao rapaz mortal. Afinal, este era o modo intraterreno. Fazer menos que isso faria de Morfeu um humano. E ele sabia, agora mais do que nunca, que essa era a última coisa que jamais desejou ser.


SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS
Epígrafe

ÀS VEZES PENSO EM SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS ANTES DO CAFÉ DA MANHÃ.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Um

Mortalidade

Capítulo 1

Deportação

Algumas pessoas podem dizer que é impossível morrer e viver para contar. São as pessoas que nunca experimentaram a mágica. Quanto a mim, sou tataraneta da Alice que inspirou Lewis Carroll. Acreditei no inacreditável por mais de sessenta e quatro anos, desde que tinha dezesseis e descobri que o País das Maravilhas era real e cheio de seres caprichosos, misteriosos e loucos, governados por acordos e enigmas. Ainda assim, às vezes, por mais que você acredite no impossível, as coisas não saem como você as planejou. Toda mágica pode encontrar um obstáculo de vez em quando.

Por exemplo, nunca esperei que meu cadáver acabasse numa caixa de sapatos. É isso que os caixões crematórios me lembram... uma caixa de papelão do tamanho de uma pessoa. O caixão não é muito confortável. Não há a forração de veludo para suavizar a base de madeira. Nenhuma almofada para acomodar minha coluna curvada. E nada de roupas, além de um vestido de papel para cobrir minha pele velha e enrugada.

O cheiro de papelão se fixa ao meu nariz e as rodas de aço da maca giram ao longo do corredor, rangendo em algum lugar sob mim, junto a passos familiares. Sinto a transição do ambiente fresco e de temperatura controlada onde o legista atestou minha “morteza” (como os seres do País das Maravilhas diriam). Ele, então, pôs uma identificação de aço inoxidável no meu peito e fechou uma tampa sobre mim, me prendendo na escuridão.

A maca sacode ao entrar num lugar muito mais quente. O cheiro de ovo podre do propano confirma nossa localização. Já visitei este lugar. Nos últimos meses visitei vários crematórios, quando não havia ninguém por perto, de madrugada. Para conhecer melhor o gigantesco forno de tijolos à vista que estaria esperando para queimar minha carne. Para encontrar o projeto perfeito, com um banheiro e um espelho de corpo todo do outro lado do salão.

Assim que optei pelo crematório do Pleasance Rest Cemetery, me preparei para morrer.

Meu plano original era usar Tetrodotoxina. Em doses pequenas, subletais, ela deixa a vítima num estado de quase morte por dias, permitindo que ela mantenha a consciência. Morfeu, porém, não concordava. Ele disse que a margem de erro entre o estado de quase morte e a morte de verdade era pequena demais no mundo mortal e não algo com o que se brincar. Ele não queria que eu arriscasse. Então, ofereceu uma substituto do País das Maravilhas: uma poção que funciona quase da mesma forma, mas que tem um antídoto cem por cento garantido.

Bebi a dose de quase morte nesta manhã e, dez horas mais tarde, ainda sinto o gosto amargo e anestésico, como cravos dançando no fundo da garrafa de vinagre. Não consigo morder a língua para aliviar o efeito. A mágica me deixou catatônica — meus olhos fechados e imóveis, meus batimentos e respiração reduzidos a um ronronar indetectável por quaisquer instrumentos humanos.

Meu lado intraterreno se remexe dentro do meu crânio, me garantindo que isso vai dar certo, mas meu lado humano instintivamente se encolhe quando o medo tranca minha garganta. Não posso gritar para dizer a todos que estou viva. Minhas cordas vocais não vão funcionar. A claustrofobia, minha velha inimiga, me deixa toda arrepiada. Sei o que está acontecendo ao meu redor, apesar de não conseguir abrir os olhos ou mover meus membros. Todos os cheiros, sons e sensações táteis são ampliados por minha incapacidade de reação.

Os paramédicos que atenderam, nesta manhã, à chamada de emergência da minha neta de vinte e sete anos me declararam morta — fulminada por um ataque cardíaco. Foi insuportável ouvi-la chorar e gritar. Isso despertou lembranças da minha maior perda — da morte de Jeb, três anos antes. Uma faca ainda é cravada no meu peito sempre que me lembro do nosso último adeus.

Mas Jeb me mandou ser firme. E ensinei aos meus netos o mesmo — sempre encarar as coisas. Ela ficará bem. Não tenho dúvida disso porque ela é muito parecida comigo, para além de seus cabelos loiros, olhos azuis e curiosidade. Ela é teimosa, leal e uma sobrevivente.

Assim que os paramédicos levaram meu corpo ao necrotério, tudo funcionou como o previsto.

Minha família sabia que cemitério eu escolhera e as quatro exigências do meu testamento: nada de exibição pública do meu corpo, nada de velório, cremação em doze horas depois da minha morte e a dispersão das minhas cinzas no mesmo local onde as de Jeb foram jogadas, sob o salgueiro em nossa casa de campo. A árvore tinha um significado especial, por ter sido gerada de uma mudinha do salgueiro que dividia os quintais da nossa casa quando éramos crianças.

Tais pedidos nada convencionais não abalaram minha família, considerando que me tornei uma mulher muito excêntrica.

Depois da morte de Jeb, eles me viram vagar pela casa de campo, reunindo os mosaicos que fiz ao longo da vida, cheios de paisagens bizarras e místicas — com títulos como A Batida do Coração do Inverno, Dunas de Xadrez e O Ventre do Monstro —, e guardando-os no sótão, ao lado de outras quinquilharias, incluindo um anúncio de um passeio pelo Tâmisa, em Londres. As últimas coisas que guardei ali foram duas chaves: uma que pertencia à minha mãe, e era capaz de transformar qualquer espelho num portal, e outra que podia abrir o jardim das almas do País das Maravilhas. Esta última foi um presente dado a Jeb, depois que ele desistiu da sua musa, de modo a satisfazer a necessidade do reino interior por sonhos vívidos e cheios de imaginação, conectando nossos mundos em paz ao longo do processo. Ele desistiu do que fez dele único, a fim de manter as crianças humanas seguras. Um ato de coragem que seus filhos e netos jamais tiveram o privilégio de saber. Era essa a lembrancinha de que eu tinha mais dificuldade para me desapegar, porque era uma homenagem à coragem e ao caráter nobre de Jeb — as duas coisas que eu mais amava nele. No entanto, como Rainha Vermelha do País das Maravilhas, eu não tinha motivo para guardar chave tão sagrada.

Escondi tudo num baú no sótão e o tranquei. Então pus a chave do baú em meio às páginas da minha velha coleção de Lewis Carroll. Jeb e eu éramos donos da casa e do terreno que a cercava, e insistimos, em nossos testamentos, para que o lugar permanecesse sempre com a família. Assim, se nossos descendentes um dia precisassem me encontrar, poderiam. Eles só precisam procurar as pistas, como um dia eu fiz. Seguir meus passos e acreditar no impossível — em contos de fadas e desejos e mágicas.

Sempre os mantive no escuro quanto ao nosso legado, dando-lhes uma chance de viver uma vida normal. Até mesmo ordenei que os insetos e flores ficassem em silêncio. Agora sou a única capaz de ouvir esses sons do mundo interior, e as coisas continuarão assim enquanto eu estiver reinando como a Rainha Vermelha. Contudo, se algum familiar procurar com presteza, vai encontrar a verdade que escondi para eles.

Em todos esses anos, eles aceitaram meus caprichos porque sempre os respeitei e os amei incondicionalmente. E agora conto com a lealdade deles. Todo o meu plano de morrer depende da execução do meu testamento.

A cremação era a única forma de evitar que drenassem meu sangue, bombeassem formol em minhas veias e cerzissem minhas pálpebras — todos aqueles procedimentos mórbidos e intrusivos para embalsamar e preservar o corpo mortal. Fui abençoada ao longo dos meus oitenta anos de vida humana com saúde e uma mente aguçada. Nunca precisei de marca-passo e não tenho próteses, implantes ou dentaduras, então não há nada que possa explodir no forno. Isso significa que não haverá incisões nem extrações. Era importante que eu permanecesse intacta — por dentro e por fora.

Todavia, se o Rábido Branco não se apressasse e chegasse aqui com o antídoto para me tirar deste estado, nada importaria. Vou virar um monte de cinzas. E Morfeu terá de encontrar um lar novo para meu espírito eterno... um novo corpo para eu habitar.

Ele ficará furioso se isso acontecer e nunca me deixará esquecer isso. Uma eternidade é muito, muito tempo para ouvir eu avisei, entoado continuamente com um marcado sotaque londrino.

— Não me importo — disse ele há duas semanas, enquanto discutíamos meu êxodo do reino humano e tomávamos chá durante uma das minhas visitas ao País das Maravilhas em sonho. Ele levou a xícara à boca, seu rosto curioso perfeito e jovem como sempre. Ele bebeu e deixou a xícara de lado novamente. — Muitas coisas podem dar errado. Devo estar lá para executar meu plano.

— Vou agir sozinha — declarei. Estudei a cama com dossel e a lareira instaladas na diagonal em relação a enormes poltronas vitorianas ao lado de uma mesa oval, buscando conforto no cenário. — E vamos seguir meu plano. — Aqueles seriam meus últimos instantes no reino humano. Tinha de ser de acordo com a minha vontade. Contive uma descarga de tristeza e tentei exibir o mesmo controle que Morfeu exibia com sua xícara de chá, mas o líquido quente molhou minha mão velha quando meu pulso tremeu. Gritei.

— Alyssa, por favor. Permita-me. — Com seus dedos lisos e elegantes, ele cuidadosamente segurou meus dedos enrugados, limpando o chá e acariciando a mão queimada com um guardanapo.

Permita-me. Nós dois sabíamos que ele falava de outras coisas além da limpeza do chá derramado.

Tantos anos passamos juntos nos meus sonhos — e tantos outros na nossa infância —, com Morfeu me treinando e me ensinando sobre meu reino e o mundo. Não havia oportunidades para ficarmos sozinhos, já que ele mantinha o véu do sono descoberto para eu poder interagir com o Rábido, Chessie, Marfim, as criaturas e meus súditos.

Isso mudou quando fiquei viúva. Realizava meus deveres reais todas as noites e lutava para ser forte, até que meu luto pela morte de Jeb ficou tão intenso que as lágrimas se acumulavam em meus cílios, me cegando. Morfeu — sentindo minha vergonha, porque rainhas não choram — insistia que era hora do chá, que tomávamos sozinhos nos aposentos reais que um dia pertenceria a nós como rei e rainha.

Ali, na nossa solidão, escondidos de olhos predadores e cercados por exuberantes tapetes vermelhos e cortinas douradas, eu me perdia em minha dor. Permita-me, dizia ele. Estendendo os braços, ele me abraçava enquanto eu chorava. Noite após noite, durante um ano, até que finalmente não conseguia mais chorar.

Pouco depois, a atenção de Morfeu mudou. Seus carinhos se tornaram menos confortantes e mais íntimos. Estava constrangida demais para reagir, tímida demais em meu corpo velho.

Um ser místico eternamente jovem cortejando uma velha — teria rido do absurdo disso, não estivesse tão afetada pela devoção cega dele e pela intensidade do seu amor.

— Mesmo que usássemos seu plano... — Morfeu falava baixinho e de mau humor ao esfregar o guardanapo entre meus dedos, enxugando os resquícios de chá. — ... ainda assim eu deveria estar lá nas coxias, para supervisionar o espetáculo.

Franzi a testa para ele. Sua teimosia, juntamente com a dança dos vaga-lumes em seus cabelos desgrenhados e seus traços bizarramente belos, me fez lembrar outra noite em que nos sentamos neste quarto juntos — há várias décadas —, quando ele tentou me convencer a usar a coroa de rubi pela primeira vez. Quando tentei convencê-lo a me devolver meu desejo para eu poder fugir do País das Maravilhas, curar a maldição da minha família e manter Jeb em segurança. Eu era uma pessoa diferente na época, cheia de juventude, aspirações humanas e inocência.

Nosso quarto real se tornou uma lembrança dolorosa da velhice e decrepitude. Ansiava criar lembranças novas aqui, depois de desistir de tentar superar a beleza caótica do País das Maravilhas, quando fui coroada rainha de novo e permaneceria com dezesseis anos para sempre — jovem, cheia de energia e tão sedutora quanto o homem alado que governaria ao meu lado.

Até então, eu não me encaixava. Eu era uma foto deixada ao sol e chuva, minhas cores vibrantes se desbotando melancolicamente e ganhando um tom amarelado. Meus poderes intraterrenos ainda eram fortes, mas estavam presos num vaso gasto pelo tempo. Meus ombros pareciam curvados e pesados demais, eu raramente usava minhas asas. Do que mais sentia falta era voar.

Eu me perguntava se era assim que a Rainha Vermelha se sentiu no fim e por que ela permitiu que Morfeu a convencesse a voltar ao País das Maravilhas, abandonando seus descendentes semi-humanos. Por fim, foi plano dela voltar, apesar de não querer fazer aquela jornada sozinha. Ela brigou com Morfeu, dando início a uma série de eventos e manipulações que acabaram por me levar à coroa e me tornar rainha. Algo pelo qual aprendi a agradecer, apesar de na época ter reclamado do presente. Demorei muito para admirar totalmente a preciosa imortalidade, e jamais desvalorizaria isso novamente.

Depois que Morfeu terminou de limpar o chá derramado, tirei a mão da dele e timidamente cobri meu pescoço com o lenço de seda, tentando esconder minhas peles murchas. As pessoas diziam que eu era linda para a minha idade. Que parecia ao menos vinte anos mais nova. Todavia, em comparação à beleza sobrenatural e imutável de Morfeu, eu me sentia velha.

— Não quero você lá — insisti, determinada a mantê-lo distante da casa funerária. — Já basta você ter me visto murchar como uma uva-passa ao longo dos anos. — Até minha voz soava enferrujada, como se as palavras jorrassem da minha garganta e língua em porções cáusticas.

Morfeu apoiou os cotovelos na toalha da mesa, aproximando-se ao máximo com o jogo de chá entre nós. Seus cabelos azuis tocaram-lhe os ombros, animados e encantados — um contraste marcante com as ondas brancas reduzidas a um coque preso atrás da minha cabeça.

— Você está no fim de sua crisálida, meu amor. Esta etapa é a mais difícil, acredite. Uma batalha furiosa e incômoda de identidade, antes de se libertar e se transformar na criatura de luz e criatividade que sempre foi seu destino. Posso mantê-la atenta. Para evitar quaisquer... distrações.

Ele olhou para minha aliança, que eu ainda não tinha tirado. Aquilo se tornara mais do que um símbolo da nossa devoção. Tornara-se um símbolo da minha vida humana, e eu pretendia usá-la até deixar tudo para trás.

Com o dedinho, Morfeu circulou a aliança, cuidando para não tocar os diamantes ou o suporte de prata que os mantinha no lugar.

— É importante que você não permita nada que a impeça de dar o salto final. Você sofreu a perda daqueles que se foram há tanto tempo. Eles estão em paz. Deixe que a paz deles lhe dê paz. Senão, você será afetada... incapaz de agir com a mente ágil. O foco é fundamental para que qualquer um dos planos funcione.

— Já sei disso — respondo, um aperto no peito dolorido. — Você tem medo de que eu fique senil. De eu não ser capaz de lidar com isso.

Ele suspirou, acariciando meu polegar com o dele.

— Não senil. Nostálgica. Acontece a humanos. Você mesma me contou, enquanto eu a via amadurecer do refinamento à sabedoria.

— Refinamento. — Tentei um sorriso hesitante diante do esforço dele em me encantar. — É assim que vocês falam hoje em dia?

Ele me encarou sem hesitar.

— Seus olhos não perderam a incandescência; nem a mente, a inteligência. Você não é ingênua. Você é minha torta de ameixa, e sempre foi. Já lhe disse isso repetidas vezes, não é?

Ao menos uma vez por noite nos meus sonhos, Querida Mariposa.

Não respondi em voz alta, assim como não revelei minhas maiores inseguranças: estava com vergonha de ele me ver tão decadente... Não suportava a ideia de ele ter qualquer lembrança de mim como um cadáver naquele caixão de papelão — assim como eu vi Jeb depois da morte dele, antes de ser cremado.

— Uma rainha não deveria exigir resgate — sentencio. Ainda o encaro, maravilhada com aquelas íris coloridas que devolvem a mim o mesmo olhar de nossa infância, cheio de surpresa e afeto. De certa forma, ele via para além do meu corpo velho e enxergava a menina que fui, e eu queria muito conseguir me ver como ele me via. — Uma rainha deve merecer o respeito do seu reino e de seus súditos. E a admiração do rei.

Ele pegou minha mão novamente e beijou cada um dos nós dos dedos cheios de artrite.

— Ah, eu lhe garanto Você sempre mereceu isso. Na verdade, planejo mostrar-lhe a profundidade de minha admiração. — A palavra profundidade saiu de sua garganta como um urro. — Ainda que sejam necessárias várias vezes para convencê-la, finalmente chegará o momento de você ser minha.

Meu rosto ficou vermelho. Apesar de todos os anos em que ele me elogiou e me provocou com insinuações, e a despeito de tudo o que vivi como mãe, esposa e avó mortal, ele ainda conseguia me fazer enrubescer.

— Ah, aí está. — Ele passou o dedo por meu rosto enrugado e sorriu, satisfeito demais consigo mesmo. — Não perdi meu encanto.

— Como se isso fosse possível, para o mestre da sedução verbal — provoquei.

Seu humor mudou para a insolência num piscar de olhos.

— Você logo verá que isso é mais do que conversinha, minha rosa.

Fiquei ainda mais vermelha, sentindo-me mais jovem do que nunca. Ele sempre causava esse efeito em mim. Sempre fez com que eu me sentisse viva e desejável. Exceto pelas vezes que ele me desafiava ou me deixava furiosa.

Ele se recostou em seu lugar, as asas erguidas.

— Seu corpo está cansado. Deixe-me fazer isso por você, para você poder descansar — tentou ele uma última vez.

— Você me ensinou a ser forte e astuciosa. Devo dar sozinha este último salto para dentro da toca do coelho. — Uma sensação inesperada de vulnerabilidade me fez tremer. Peguei minha xícara de chá para absorver seu calor. — Mas você estará lá para me pegar?

— Estarei lá esperando um beijo arrasador para compensar todos os meus problemas — respondeu ele sem hesitar.

Sorrindo, peguei o jogo de xadrez. Morfeu ficou observando atentamente eu animar as peças para que atuassem no meu grandioso plano de deixar o reino humano e esconder meus vestígios com a ajuda do meu conselheiro real, além de pedaços de osso fornecidos pelas fadas, um saco de cinzas, dois trajes de disfarce, uma mosca comum e um punhado de duendes. Enquanto eu falava, seu olho adornado com joias brilhava num tom esverdeado — incomodado, mas esperançoso. A ansiedade que emanava dele era visceral.

Era inconcebível que tivéssemos um relacionamento de sessenta e três anos — platônico — sem um quê de tensão. Apesar de ele gostar muito de me ver andar na ponta dos pés na corda bamba da sedução contida, ele manteve seu juramento e respeitou minha decisão de ser fiel a Jeb. Ele esperou três anos, enquanto eu sofria a morte do meu marido mortal e preparava minha família para minha partida iminente. Era essa a profundidade do respeito dele por mim. Ele teve meu respeito em troca. E muito mais...

Agora chegou o dia de recompensá-lo por sua paciência e estou começando a me arrepender por não deixá-lo planejar minha morte... por não deixá-lo controlar o espetáculo. Provavelmente, tudo seria muito mais fácil. Eu já estaria em seus braços e em sua cama — uma jovem rainha borboleta, governando meu reino, embriagada de poder, loucura e paixão.

Não. Eu consigo. Posso provar que sou capaz, calculista e forte, como todas as boas rainhas deveriam ser.

O único papel de Morfeu no meu plano era mandar o Rábido com o antídoto. Assim que meu cúmplice chegar, tudo se encaixará e fugirei para o País das Maravilhas. Como um corpo não pode ser exumado depois de reduzido a cinzas, ninguém saberá que ainda estou viva e apenas fui embora deste mundo para sempre.

Uma pontada de tristeza segue-se a esse pensamento quando finalmente me dou conta. Acabou. Estou pronta para dar um fim... para começar meu futuro imortal. Vivi uma vida plena aqui. Minha família é saudável e feliz. Estamos no auge. Todos os sonhos humanos foram realizados e meu coração está firme e forte novamente.

Se bem que, por causa disso, há muita coisa a ser deixada para trás. Não há nada inconcluso, mas ainda assim é difícil dizer adeus para sempre. Assim que a coroa for colocada em minha cabeça para dar início à minha imortalidade, não terei de usá-la constantemente para manter minha juventude, mas terei de ficar no País das Maravilhas. Como Marfim uma vez me disse, o tempo é complicado ao se passar pelo portal a fim de retornar ao mundo humano... há de se imaginar uma hora específica, ou o relógio retrocede e o portal deixará você no mesmo momento de sua passagem.

Se eu tentar cruzar as fronteiras para o reino humano depois de partir, voltarei para sempre a este momento e terei oitenta anos para sempre, ou automaticamente envelhecerei todo o tempo que se passou e virarei pó na hora. Acrescente-se a isso o fato de eu estar morta aos olhos de todos — jamais poderia explicar meu reaparecimento sem causar terror e confusão — e ir e voltar não será mais uma opção.

Uma muralha impenetrável está prestes a se erguer entre mim e minha família, deixando-nos sem nada além de memórias.

O rosto de Jeb reapareceu em minha mente antes que eu pudesse impedir... como seus olhos verdes brilhantes me encararam pouco antes de ele os fechar na morte. Como eles estavam tão cheios de amor e gratidão por todos os sonhos que compartilhamos.

Sinto algo crescer na minha garganta e uma dor atrás dos olhos. No meu peito, a pequena identidade de metal parece uma pilha de tijolos.

Pare. Não posso fazer isso agora. Tenho de me concentrar na fuga. Morfeu tinha razão. Pensar naqueles que amei só vai me atrapalhar. Vou manter as lembranças sob controle... esquecer como encarei a morte da mamãe e do papai, como achei que jamais superaria a dor. Como Jeb foi meu porto seguro, como sempre. Assim como fui para ele, quando a mãe dele morreu.

É fútil pensar nessas coisas agora, porque, assim que Jeb morreu, todo o mundo se distorceu — adquiriu uma nova forma que eu não reconhecia. As coisas cotidianas se tornaram estranhas e desagradáveis. Com a morte dele, eu não fazia parte de mais nada.

Minha metamorfose estava completa assim que meu marido mortal deixou de respirar. Só o que me restava agora era sair do meu velho casulo.

Um cheiro novo entra em meu entorno de papelão — loção pós-barba ou desodorante —, me obrigando a voltar ao presente enquanto dois homens conversam do lado de fora do caixão.

— Última da noite, Frank?

— É isso, Brian. Chegou há algumas horas. Só entrega. E é para se apressar com ela. Quer que eu fique e ajude?

Tenho dificuldade para respirar. Meu plano não permite duas testemunhas. Só uma. Enquanto espero pela resposta do operador do crematório, meu coração se encolhe dentro de mim, cheio de medo. O órgão parece tremer, apesar de não haver pulsação em meus pulsos ou ouvidos. Só uma vibração fria e indiscernível por trás do meu esterno, como gelatina gelada retirada da fôrma.

— Não — diz finalmente Brian, mexendo em alguns papéis. — Posso fazer isso de olhos fechados.

A ironia é risível. Se tudo sair como planejado, ele não só terá seus olhos fechados, como também estará dormindo e sonhando.

— Vá para casa e fique com sua família — conclui Brian. — Diga a Melanie e às crianças que mandei um oi.

— Entendi. Até amanhã.

As portas se fecham com um rangido e o alívio toma conta de mim, mas por pouco tempo. Os cliques e claques da esteira mecanizada balançam as paredes de papelão do meu caixão e agitam meus ossos rígidos. Sinto um balançar leve sob minha coluna enquanto meu caixão segue por uma esteira com rolos de metal. À medida que estes se movem, as chamas crepitam mais alto, aquecendo meus pés no ponto onde a parede sob a sola dos meus pés se aproxima perigosamente da entrada do incinerador.

Era para o Rábido estar aqui antes que o forno de temperatura controlada estivesse quente o bastante para acionar o mecanismo de abertura. As coisas estão acontecendo fora da sequência e rápido demais. Meus músculos doem e ganham vida, mas estão rígidos como aço. Imóveis. Um vislumbre de outra lembrança me arrepia: quando a Rainha Vermelha controlou meu corpo naquele último dia em Qualquer Outro Lugar. Quando eu era uma marionete dela. Sinto-me tão impotente agora quanto naquele tempo.

Estou prestes a ser envolta em chamas. Meu corpo não vai sobreviver. De todo modo, preciso sobreviver. Prometi voltar como eu mesma. Inteira. É uma promessa que não posso quebrar. Morfeu esperou demais por meu retorno. Não posso decepcioná-lo.

A dúvida ergue sua cabeça horrível: o que farei? Não consigo me mover, não consigo me livrar... não sem o antídoto. Um vazio dói por trás dos meus canais lacrimais enquanto desejo que uma enchente me liberte e encha toda a minha caixa com um oceano de lágrimas para me salvar do fogo. Mas meus olhos podiam muito bem estar cheios de areia.

Chega de drama, meu amor. Use sua mágica. Improvise e encontre uma forma de escapar.

Não tenho certeza se é a voz de Morfeu na minha cabeça ou se é minha própria voz. Ouvi o sotaque dele e sua insistência tantas vezes ao longo da vida que eles estão entranhados em mim como se fossem meus.

Seja qual for o caso, isso desperta minha determinação. Há um motivo para eu ter vindo a este lugar na noite passada, quando tudo estava escuro e em silêncio: para poder anotar mentalmente todas as coisas que poderia animar se precisasse. Para poder entender a logística do forno crematório. Para poder usar minha mágica às cegas.

Concentro-me no maquinário da esteira. Aprendi uma coisa ou outra sendo esposa de um mecânico. As molas do mecanismo se contraem enquanto as imagino se retraindo. O movimento aciona as amarras e a porta de metal se fecha com um baque. Minha caixa para imediatamente ao atingir o obstáculo.

— Você só pode estar brincando comigo — resmunga Brian. Ele mexe na maçaneta da porta e bate nas dobradiças. — Pronto. Agora, sim.

Ele empurra meu caixão de volta para a esteira de metal, criando espaço para a dobradiça se abrir. Minha mente procura outra forma de detê-lo quando o ouço gritar “Mas o que é que...?”, pouco antes de ouvir o som do seu corpo caindo no chão. O caixão bate na porta fechada novamente.

— Rainha Alyssa — uma voz fina soa do outro lado do papelão.

Nikki, sua fadinha maravilhosa. Um formigamento se irradia pelos meus lábios, o fantasma de um sorriso esperando para se abrir. Meus dedos dos pés se dobrariam de empolgação, não fosse minha paralisia.

A tampa do caixão se abre e as asas de vinte fadas pairam ao redor do meu rosto — lufadinhas de vento com cheiro de canela e baunilha.

Mãozinhas do tamanho de joaninhas seguram minhas pálpebras, abrindo-as diante de um brilho âmbar. Ainda não consigo virar a cabeça, mas pela minha visão periférica a galhada do Rábido aparece sobre a borda do caixão, seguida por um par de olhos rosados brilhantes.

— Atrasado estou — desculpa-se ele.

Tento menear a cabeça, mas não consigo.

Todo o seu rosto aparece diante de mim.

— Arrumá-la, Alteza. Levá-la para casa, finalmente.

Casa. A palavra passeia por minha mente, cheia de promessas e esperanças. Imagino-me voando com Morfeu pelos cenários bizarros e irregulares do País das Maravilhas. Como vai ser bom me sentir pertencente a um lugar de novo. Fazer parte e nunca ter de abandonar ninguém novamente.

O Rábido estica o braço magro e derrama em minha garganta algo de uma garrafa vermelha. Um leve toque de frutas vermelhas misturado a menta arde em minha língua. Meu coração ganha vida, batendo com tanta força contra meu esterno que eu perco o fôlego. Em pouco tempo, sou capaz de abrir os olhos sem a ajuda das fadas. Elas se dispersam com risadinhas e pairam ao redor do adormecido operador do crematório, caído no chão de cimento.

Pisco com força e rapidez. Meus canais lacrimais funcionam e meus olhos se enchem de água. O sal fere e coça.

Depois, meus dedos dos pés e das mãos latejam e os músculos despertam, moles e resistentes, como elásticos esticados demais. Enquanto me sento, minhas velhas articulações estalam.

O Rábido sobe na beirada da inclinação e segura o caixão, mantendo-o ao meu nível.

— Perdoe o Branco Rábido. Para todo o sempre, ao seu lado estarei.

Acaricio sua cabeça macia.

— Nenhum perdão é necessário. O que importa é que você está aqui agora. Alguém o viu saindo do banheiro?

O Rábido faz que não.

— A mosca no muro ficou de olho no futuro. — Ele ri da rima e aponta para a parte de cima da porta que ostenta a única janela do salão. A mosca anda pelo vidro do outro lado, numa demonstração de sua devoção inabalável.

O Rábido abre o sorriso sorrateiro que aprendi a apreciar, enquanto sua mão esquelética me entrega uma mochilinha. Olho dentro e está tudo ali: meu colar com o rubi, minha aliança de casamento, os trajes de disfarce, um saco de cinzas e pedacinhos de osso, uma muda de roupa, uma faca e três lembranças da minha vida humana que serão as únicas coisas que levarei comigo ao transpor os limites do País das Maravilhas.

Primeiro, coloco o colar em volta do pescoço e aperto a chave contra o peito, saboreando o poder que ela contém.

O operador do crematório ronca no chão. Ele parece com frio e nada confortável, mas sei que não está. Seus sonhos são cálidos e sensuais. As fadas voam ao redor dele, as asas batendo à velocidade de beija-flores, enquanto elas espalham partículas que são como dentes-de-leão cheios de feromônios. As sementinhas caem sobre o rosto sorridente do homem, levando seu inconsciente a imaginar as fantasias mais carnais. Torço o nariz, com vergonha até de imaginar o que ele está sonhando. Ele provavelmente vai ter uma ressaca de sonhos por uma semana.

Ainda que ele não vá sofrer nenhum efeito físico duradouro, as fadas estão explorando os pensamentos secretos dele. Quando eu era mais nova, teria me arrependido de tê-lo usado em meu plano. Agora, não. Quando ele acordar, daqui a mais ou menos uma hora, sua dor de cabeça insuportável o impedirá de questionar como conseguiu me cremar enquanto ele dormia. Ele só irá querer uma aspirina e sua cama macia em casa.

O fim justifica os meios.

Uso a faca para cortar uma abertura na lateral do caixão e tirar minhas pernas, lenta e cuidadosamente. Não consigo me mover tão rápido quanto antes. Meus pés descalços tocam o chão frio, o vestido de papel fazendo barulho. O Rábido se vira de costas enquanto tiro o vestido e o jogo dentro da caixa, depois visto um moletom e botas cinza — as roupas mais confortáveis e discretas do meu armário. Repreendo-me por me esquecer das roupas íntimas, mas não importa o que estou vestindo agora, porque no País das Maravilhas Morfeu encheu todos os armários do castelo com camisolas e lingeries de renda, cetim e veludo — um guarda-roupa digno de uma rainha.

Hoje, o disfarce esconderá meu traje simplório. Coloco o pé no tecido mágico. Para virar uma camaleoa, só preciso vestir o capuz e me concentrar nos arredores, meu corpo refletindo o cenário de fundo.

Mas primeiro...

Sem eu nem pedir, o Rábido me entrega o saco de cinzas e ossos e minha aliança de casamento. Olho o anel. Jeb o fez para mim quando tinha a capacidade mágica de pintar coisas e lhes dar vida. Quando sua musa se tornou uma entidade viva. Ele me serviu tanto como anel de noivado quanto como anel de casamento e era indestrutível. Pelo menos era o que pensávamos. A única vez que ele perdeu um de seus doze diamantes foi por descuido da minha mágica, quando eu a estava praticando.

Estava do lado de fora da nossa casa de campo, tentando fazer o salgueiro dançar, quando o diamante caiu na grama. Procuramos e procuramos, mas nunca o encontramos. Depois de uma semana, ele apareceu de novo, nascendo do solo na forma de uma flor parecida com vidro. Era como se o diamante fosse uma semente, tendo dentro de si a força da criação mágica de Jeb.

O cheiro de terra presente na lembrança dá lugar ao cheiro do propano do forno. Abro o saco e derramo as cinzas e ossos no caixão, mantendo os movimentos metódicos e precisos para a nostalgia não tomar conta de mim novamente.

Depois de esvaziar o saco, beijo minha aliança e a coloco em cima do montículo.

— Rábido, derreta isso com sua mágica.

Meu conselheiro real se aproxima, olha pela abertura e estreita seus olhos brilhantes até que eles irradiem um calor vermelho. Enquanto ele se concentra, as faixas de prata se fundem, reduzindo os onze diamantes a cinzas.

Coloco a placa de identificação dentro do caixão e leio o que está gravado no aço: Alyssa Victoria Gardner Holt. Sinto um nó na garganta. É a última vez que meu nome humano me definirá.

Reposicionando a tampa, ordeno que o mecanismo da porta funcione. Entrefecho os olhos diante do calor e das chamas, enquanto as portas se abrem o bastante para eu empurrar o caixão pela esteira, a porta se fechando em seguida. Ela se fecha completamente, tanto que nem mesmo se pode ver o brilho alaranjado lá dentro.

Alguns segundos mais e eu estaria presa ali. Agora, depois que o papelão se queimar todo, vai parecer que eu estava. As prateleiras de metal na parede contêm vários cubinhos de papelão. Dentro estão os restos mortais dos corpos que vieram antes de mim e agora esperam ser transferidos para suas urnas.

Mas meus “restos mortais” são únicos. Os diamantes de Jeb esperam lá dentro — sementinhas mágicas. Quando as cinzas forem lançadas no lugar onde as dele foram absorvidas na terra sob nosso salgueiro, flores nascerão, uma parte dele e minha. Unindo o que restou de nosso lado humano, numa última homenagem a toda a beleza que ele criou durante a vida.

Seguro-me para não chorar e pego a mochila enquanto o Rábido veste outro traje de disfarce, o qual encolhe até caber em seu corpo de coelho. Mentalmente, pergunto à mosca se o corredor está livre.

Ela responde num sussurro:

Está tudo bem, Rainha Alyssa...

Os outros humanos se foram. Não há nada além de umas traças por aqui.

Desnecessário ficar invisível, então.

— Nikki — sussurro, e a fadinha balança as asas, soltando a dose final de pó de fada no homem adormecido. Então ela reúne suas companheiras e nos segue porta afora. O banheiro fica a poucos passos do outro lado do corredor comprido e escuro. Sigo tomando cuidado para não esmagar as traças que caminham perto dos meus pés e dos pés do Rábido. Sorrio ao ver os insetos acompanhados de uma fila enorme de baratas, besouros e aranhas.

Rainha Alyssa! Rainha Alyssa! Tão triste vê-la partir...

A mosca voa ao redor da minha cabeça, acrescentando suas despedidas à confusão.

— Sentirei saudade de vocês também — digo, lutando contra uma onda de melancolia. Será a última vez que ouvirei esses cumprimentos confusos e zunidores. No País das Maravilhas, os insetos são... bem diferentes. Menos inócuos e bonzinhos. Alguns são maus e letais, e nada pequenos. Mas conheço todos os segredos deles e todas as suas fraquezas — graças ao sábio guardião do País das Maravilhas.

Nosso desfile entra no banheiro e para diante do espelho. Em vez de me ater à minha aparência velha e enrugada, imagino o relógio de sol que cobre a toca do coelho em um jardim londrino. O vidro racha como gelo no lago e, no reflexo entrequebrado, o relógio de sol aparece, marcado por uma réstia de pôr do sol rosa. É cedo e ninguém ocupa a trilha ainda. Como precaução, visto o capuz e o Rábido faz o mesmo.

Só precisamos de um ou dois pensamentos sobre nossas cercanias e seremos invisíveis.

Usando minha chave, miro numa fissura na forma de buraco de fechadura, minúsculo e intrincado.

O portal se abre. O Rábido me cutuca com seus dedos magros e entrelaço meus dedos aos dele. Junto com as fadas e nossos insetos companheiros, passamos pela abertura liquefeita. Uma brisa fria me atinge, assim como o cheiro de mato e rosas cobertos de orvalho reluzente.

Os botões de rosa dizem:

Bem-vinda, Majestade. Os anos ficaram para trás. Logo você estará desabrochando como nós novamente.

Sorrio. O Rábido me puxa rumo ao relógio de sol que já expõe a toca do coelho. Ele está ansioso para ir embora. Mais insetos se juntaram a nós; alguns pelo terreno: besouros, centopeias e escorpiões; outros pela brisa: borboletas, mariposas, vaga-lumes...

Saem em enxame do mato e ficam dando a volta em mim e em meu conselheiro real — um arco-íris encantado, espesso e brilhante, sob a luz rosada do céu.

As borboletas cantam:

Vida longa à Rainha Alyssa. Que você seja para sempre jovem, louca e livre.

Muitos deles pousam sobre mim, as asas acariciando meu rosto e pescoço através do traje de disfarce, e percebo que não terei mais de me tornar invisível. Meus amigos insetos estão aqui para me dar proteção, como sempre estiveram.

O Rábido me solta, seus dedos de cadáver tocando os meus enquanto ele segue as fadas e mergulha na toca do coelho sem olhar para trás.

— Atrase-se não, Majesta-a-a-ade — o grito do Rábido ecoa até mim, afastando-se mais e mais à medida que ele desce, sem peso, como uma pena ao vento.

Ao contrário do meu séquito interior, não consigo ir embora sem uma olhada para trás.

Paro, olhando em meio à nuvem de milhares de asinhas adejando diante da paisagem tremeluzente no horizonte. Meu peito se aperta.

Pego as lembrancinhas da minha mochila. Três garrafas de vidro decoradas: a primeira cheia de pedrinhas, a segunda com conchas e a última com um pó prateado. Uma olhada nas três e as lembranças contra as quais eu lutava iluminam minha mente, graciosa e lentamente, como a aurora invadindo o mundo imóvel que desperta.


CONTINUA

A MARIPOSA NO ESPELHO


Capítulo 1


As Maquinações
da Mariposa

— Tem certeza, Morfeu?

— Tenho — respondeu Morfeu, tirando as luvas e enfiando-as no casaco. — Você, entretanto, parece que precisa ser convencida.

A magia pulsava nervosamente na ponta de seus dedos, uma luz azul pulsante logo abaixo da pele. Por causa da ponte de ferro que havia lá fora, seus poderes estavam limitados a alguns truques inofensivos, mas suficientes para dar o seu recado, se necessário.

O besouro-tapete — que de tão grande chegava à altura dos ombros de Morfeu, depois de este haver tomado uma poção encolhedora — engoliu em seco por trás de suas muitas mandíbulas estalantes. Sua pele carpetada tremia.

— Não, não. Por favor, o senhor interpretou mal as minhas ressalvas. — Os braços ramosos do inseto vibravam enquanto ele folheava as marcações em ordem alfabética de sua prancheta, as quais continham todas as lembranças perdidas no País das Maravilhas. — É que ficar espiando os momentos esquecidos de um ser humano parece uma maneira tediosa de se passar uma tarde, só isso...

Morfeu mudou de posição, e suas asas lançaram uma sombra sobre a cara do besouro.

— Ah, mas este humano, em especial, tem muito a me ensinar.

Esse humano, em especial, havia conseguido capturar algo que Morfeu desejava mais que tudo neste mundo.

— Sente-se — disse o inseto, apontando para uma cadeira branca de vinil —, e eu prepararei as memórias para o senhor.

Morfeu jogou as asas para o lado, sentou-se e deu uma tragada no narguilé fornecido por seu anfitrião como cortesia. O tabaco doce e fresco passou ardendo pela sua garganta. Ele soprou baforadas de fumaça no ar, formando com elas o rosto de Alyssa. Era fácil imaginar o modo como seus olhos sempre se cobriam de um azul gélido quando ela o via, cheios de excitação e temor ao mesmo tempo. Adorava isso nela: a sagacidade de seus instintos intraterrenos alertando-a a não confiar nele, suavizada pelas emoções humanas forjadas durante a infância que passaram juntos.

Antes dela, Morfeu levara a vida em solidão, sem nunca precisar de ninguém. Ele não fazia a menor ideia do feitiço que ela lhe lançara. Ela era mais que uma decepção, sempre jurando devoção ao lado errado. Seu encanto, porém, era inegável. Principalmente quando ela o desafiava ou o encarava com sua indignação de justiceira, o que a deixava com os lábios deliciosamente posicionados quando rangia os dentes.

Morfeu colocou o narguilé de lado, embora a sensação de queimação em seu peito não tivesse nenhuma relação com o fumo. Alyssa era a única que poderia aplacar o incêndio que havia ali, pois fora ela quem havia atiçado aquelas chamas.

Os dois tinham passado cinco anos juntos — como amigos de infância —, até que a mãe dela a arrancou dele, Alyssa sangrando e ferida, e ele ficara se remoendo de remorso e com culpa por causa de um juramento imprudente que havia feito, no qual prometeu se manter longe dela.

Manter-se afastado da amiga fez com que ele sentisse o gosto da solidão pela primeira vez. Mesmo todos os anos de claustrofobia que ele passara aprisionado em um casulo antes de encontrá-la... nem mesmo eles o prepararam para o sofrimento da ausência dela.

Então, por fim, ela havia voltado para ele, fazendo-o reviver todos os antigos sentimentos que ele pensava ter dominado. Daquela vez, também, tudo foi muito rápido. Ela partira novamente, por escolha própria. Restaram a dor e a solidão excruciantes. Debilitantes.

Havia apenas seis meses que ela partira do País das Maravilhas, e ele não compreendia este vazio corrosivo que só poderia ser preenchido pelo toque dela, por seu perfume, sua voz. As solitárias criaturas mágicas não ligavam para essas bobagens; não precisavam de companhia, abominavam a bagagem emocional. Sua afeição e lealdade pertenciam ao agreste País das Maravilhas e a nada nem a ninguém mais.

Então o que ela havia feito para mudar isso?

Ultimamente, cada vez que ele via o próprio reflexo, não mais reconhecia a Mariposa no espelho. Estava incompleto, enfraquecido; e menosprezava isso.

O menosprezo era ainda maior porque ele havia se esforçado tanto para cortejá-la, enquanto ela oferecia seu afeto a um reles mortal.

Morfeu suprimiu um rosnado. Ele não conseguia compreender a sorte de Jebediah, como um humano podia ter tanto poder sobre uma rainha intraterrena. Como um simples rapaz era capaz de controlar um coração real e mestiço tão multifacetado, um espírito propenso ao pandemônio e à loucura. Jebediah puxava Alyssa para baixo, acorrentando-a ao tédio e à banalidade do reino humano.

Ela precisa ser libertada.

Morfeu havia considerado a possibilidade de matar seu rival, mas Alyssa jamais o perdoaria. Não. Chegara o momento de tomar medidas criativas.

Se Morfeu soubesse no que Jebediah havia pensando durante sua jornada pelo País das Maravilhas — todos os momentos em que ele se sentiu mais aterrorizado, mais desanimado —, conheceria as fraquezas e as forças do mortal, intimamente. Ele saberia como enfraquecer Jebediah, contrapondo-o a si mesmo.

Essas fraquezas o derrotariam melhor do que Morfeu o faria. E depois, quando tivesse destruído a confiança de Alyssa em seu cavaleiro mortal, Morfeu estaria lá para confortá-la e conquistá-la.

Voltaria a ouvir a risada de Alyssa do modo como ela ria quando os dois eram crianças, e teria de novo a oportunidade de ser presenteado com o seu sorriso deslumbrante.

Ele voltaria a ser completo.

— Por aqui, por favor — pediu o besouro para que Morfeu o seguisse.

Morfeu tirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo. Quando o inseto abriu a porta para um compartimento de memórias sem janelas, o cheiro de amêndoas vindo de uma travessa de biscoitos de luar fresquinhos que estava em uma mesa de canto se espargiu no ar. Havia uma chaise-longue na cor creme colocada contra a parede, e uma ornamentada luminária de piso feita de latão iluminava o espaço com uma luz discreta.

Morfeu concentrou-se no pequeno palco do outro lado do compartimento. Sentiu o coração palpitar de ansiedade num ritmo profundo e firme. As cortinas de veludo vermelho aguardavam o momento de se abrirem para mostrar as memórias de Jebediah na tela prateada.

— Como o senhor entrará na cabeça do rapaz para visitar suas lembranças perdidas, sou obrigado pelas normas a avisar-lhe que... as emoções humanas podem ser muito poderosas... podem nos fazer ver as coisas sob uma perspectiva totalmente diferente — advertiu o besouro.

— Estou contando com isso. — Morfeu deu um sorriso afetado. — Conhece aquele ditado sobre amigos e inimigos?

O besouro coçou a pele enrugada.

— Hum... mantenha seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda?

Morfeu acomodou-se na cadeira estofada e alisou a calça risca de giz ao cruzar as pernas apoiando um tornozelo sobre o outro.

— Melhor ainda é se colocar no lugar de seu inimigo. É a melhor maneira de controlar seus passos. Ou de apagá-los, caso tenha a oportunidade.

O besouro, voltando a tremer, esticou o braço fininho e apertou um botão na parede. As cortinas do palco se abriram, revelando uma tela de cinema.

— Imagine o rosto do rapaz enquanto olha para a tela em branco e vivenciará o passado dele como se fosse hoje.

As palavras do besouro eram ensaiadas, até mesmo mecânicas, mas a pulsação de Morfeu ficou acelerada. Ele esperou o besouro desligar a luz. Assim que o inseto saiu e fechou a porta, o corpo de Morfeu desmembrou-se nas juntas, flutuando pela escuridão como se fosse feito de partículas de pó. Todos os seus pedaços se uniram novamente na tela prateada, em cores vivas e cinematográficas, até que ele entrou na cabeça de Jebediah, apropriando-se do seu corpo, sentindo suas emoções.

Naquele momento, Morfeu entregou-se à experiência e, pela primeira vez na vida, passou a ver as coisas como um humano.


Capítulo 2


Primeira Lembrança —
Kriptonita

Jeb acordou em uma cama suspensa.

Estava nu. Por que estava nu?

Antes que esse fato pudesse ser totalmente registrado, trinta fadas ou mais, do tamanho de mariposas, surgiram do ar, acariciando cada parte do seu corpo e sussurrando-lhe. Ele tentou mexer os braços e pernas. As asas das fadas — que batiam na velocidade das asas de um beija-flor — liberavam partículas parecidas com as pétalas delicadas de um dente-de-leão, que, de alguma maneira, o imobilizaram. As sementes exalavam um perfume de canela e baunilha que foi inundando sua consciência, até que a sala ficou totalmente fora de foco.

Quando a névoa se dissipou, ele estava em sua cama, em casa. A noite adentrava pela janela e Taelor estava em cima dele, seminua. A unhas pintadas à moda francesinha percorreram os pelos de seu peito e abdômen, dirigindo-se ao cós de sua calça jeans.

Aquilo não podia ser verdade. Taelor e ele tinham brigado antes do baile de formatura, haviam terminado tudo.

Com delicadeza, ele a virou, colocando-a debaixo dele, e apoiou-se nos cotovelos, afastando o cabelo do rosto dela. Mas não foram os olhos de Taelor que encontraram os dele. Foram os olhos gélidos e azuis de Alyssa — encarando-o com um ar de admiração e inocência. Os dedos dele pareciam grandes e desajeitados nas têmporas dela.

A Al na cama dele?

Não. Isso não podia acontecer. Alyssa nem havia beijado homem algum. E Jeb nunca tinha sido o primeiro de nenhuma garota.

A Al era intocável para ele. Ela já passara por muitos episódios turbulentos em sua vida. E ele não era exatamente um exemplo de estabilidade.

Ele tirou as mãos dela e ficou de joelhos.

— Jeb, você não me quer? — perguntou Al, passando a mão no peito dele.

Ele não conseguiu responder. Seus dedos coçavam e pareciam esticar-se, como se estivessem crescendo. Ele ergueu as mãos sob o luar, observando, horrorizado, seus dedos caírem, um por um, e se metamorfosearem em lagartas. As lagartas, então, avançaram lentamente na direção de Alyssa, e ele não conseguia fazer nada para detê-las. Jeb caiu de costas na cama, com as mãos sobre o rosto, olhando fixa e incredulamente para os tocos crus e cheios de sangue onde antes estavam seus dedos.

Gritando, Alyssa tentou sair do colchão, mas as lagartas a pegaram, arrastando-se por sua pele e tecendo teias, até que restou somente uma forma se agitando dentro de um casulo.

— Soltem ela! — gritou Jeb. Uma luz lampejou em seus olhos, e então ele já não mais se encontrava em sua cama. Estava em algum lugar da mansão de Morfeu, e as fadas percorriam sua pele, hipnotizando-o... usando algum tipo de feromônio alucinógeno.

Elas estão me segurando aqui para que o Morfeu fique sozinho com a Al. No instante em que a realidade foi percebida, o feitiço foi quebrado.

Jeb pulou rápido da cama suspensa e saiu da nuvem de sedução de suas captoras. Pegando um travesseiro, ele se cobriu.

— Quero alguma coisa para vestir!

As fadas flutuavam no ar, seus olhos de libélula observando-o.

Havia várias cestas douradas no chão perto dos pés dele. Jeb chutou uma. Suas pequenas captoras se espalharam pelo ar, em histeria coletiva.

Gossamer, a fada predileta de Morfeu, designou cinco delas para pegar os morangos que rolaram. Elas contaram as frutas uma por uma e as colocaram de volta na cesta.

Jeb chutou outra cesta cheia de contas de óleo perfumado. Outras cinco fadas lançaram-se ao chão para pegar tudo, parando para contar cada conta antes de guardá-la.

Em pouco tempo, ela já havia chutado todas as cestas. Algumas estavam cheias de pétalas de flores, outras continham loção, outras, ainda, uvas. Ao virá-las, ele conseguira manter a maioria de suas captoras preocupada. Apenas Gossamer e outras duas ainda pairavam em torno de sua cabeça.

— Me deem algo para vestir — repetiu ele —, ou vou começar a tirar as plumas dos travesseiros. Vocês não estão em número suficiente para limpar uma sujeira dessas.

— Ele não está respondendo ao nosso feitiço — murmurou uma das fadas para Gossamer, com seus olhos de inseto voltados para Jeb.

— E nem à nossa magia — acrescentou a outra, amuada. — Eu conjurei uma moça das lembranças dele, mas seu subconsciente conseguiu escapar.

— Sim, este aqui é, sem dúvida, um desafio — concordou Gossamer, numa voz que tilintava feito um sino. Depois de mandar as outras duas fadas recolherem o conteúdo da última cesta, ela ofereceu a Jeb um robe de seda.

Ele se virou de costas e enfiou a peça de roupa no corpo, assimilando os arredores.

Morfeu o colocara em uma prisão opulenta. A sala era toda revestida de piso de mármore preto que refletia a luz laranja dos candelabros. Ele já estava bem familiarizado com o ponto focal: um colchão circular balançante preso por correntes douradas no centro do teto côncavo. Peles e almofadas forravam a cama, perfumadas por pétalas de rosa.

Apesar de todos esses confortos, faltava a essa sala um detalhe muito importante: uma saída. Não havia portas, janelas ou qualquer outra abertura à vista.

Paredes convexas — pintadas em cor de lavanda escura — eram cobertas por parreiras que se estendiam por toda a sua circunferência, entrando e saindo do reboco e se entrelaçando nos candelabros acesos. Frutas brotavam das vinhas. De quando em quando, as uvas explodiam espontaneamente e pingavam seu suco dentro de bacias de pedra posicionadas ao longo das paredes para apanhá-lo. E, delas, um líquido viscoso e purpúreo era drenado para dentro de fontes — um abastecimento constante de vinho de fadas com aroma adocicado.

Ele se lembrava vagamente de ter provado o vinho ao chegar. Desconfiado, tentou resistir, mas estava com muita sede. Era impossível saber que tipo de magia havia no líquido.

Jeb gemeu e esfregou o rosto. Quanto tempo teria passado bêbado e enfeitiçado? Ele acabara sendo inútil para Alyssa, assim como o pai dele teria sido.

— Onde ela está? — perguntou ele, ignorando a harpa que tocava sozinha, a qual, na tentativa de abafar-lhe a voz, começou a tocar mais alto. — Me diga o que Morfeu está fazendo com ela.

Minúscula, reluzente e confiante, Gossamer acomodou-se em uma almofada de cetim, passou a mão pelo colchão ao seu lado e cruzou as pernas apoiando os tornozelos verdes um sobre o outro.

— Talvez você não perceba o que nós, as fadas, somos capazes de fazer. Temos séculos de prática. Podemos lhe mostrar um êxtase com o qual você sempre sonhou.

Jeb a olhou de cima a baixo e ajustou a faixa de cetim em sua cintura.

— Me desculpe, não sonho com coisas verdes.

Ele encontrou a mochila de Alyssa debaixo da cama e a puxou. Jeb havia notado alguma coisa dentro dela anteriormente, quando a vasculhara em busca de outra coisa: uma pulseira de ferro forjado que ela provavelmente havia enfiado na mochila quando ainda estava na escola e ficara esquecida ali. Ele havia pesquisado muito as fadas quando começou a pintá-las, e sabia que elas não gostavam de ferro — se a lenda fosse verdadeira.

Jeb jogou a mochila sobre o colchão. Os cobertores de pele encresparam-se feito uma onda gigante e derrubaram Gossamer de sua almofada. Acionando suas asas com rapidez, ela pousou sobre o ombro de Jeb.

— Se é Alyssa que inspira suas paixões, podemos realizar essa fantasia. — Gossamer bateu palmas. As outras largaram seus postos de limpeza e se apressaram a formar um círculo em volta de Jeb. Uma onda de enjoo lhe invadiu o estômago quando todas as fadas assumiram a aparência de Alyssa — réplicas perfeitas em miniatura, com cabelo platinado e roupas sensuais de skatista. Elas liberaram novamente suas sementes de feromônios, cegando-o com o perfume de Alyssa, doce como néctar.

Brandindo uma almofada, Jeb rompeu a ilusão e dissipou as sementes. As fadas saíram aos guinchos e foram se esconder nas vinhas das paredes, com seus corpos brilhantes parecendo cordões de luz branca e piscante.

Gossamer pairou no ar acima dele, ralhando.

— Já chega! Informem o nosso mestre de que o mortal é leal à garota. Não podemos seduzi-lo para que volte ao seu mundo sem ela.

Jeb ficou resmungando, enquanto as fadas se esgueiravam por buracos do tamanho de ervilhas, na parede onde as vinhas entravam e saíam. Se ao menos ele pudesse passar por aquelas pequenas saídas também... Chegou a pensar em usar a poção encolhedora que ele e Alyssa tinham encontrado quando chegaram ao País das Maravilhas, mas ela o deixaria tão pequeno quanto suas captoras, e ele ficaria indefeso contra Morfeu. A impotência lhe fervia as entranhas, tão profunda como a que ele sentia quando era criança, escondendo-se em um armário até que passassem os ataques de fúria do pai.

Ele cerrou os dentes. Tinha de haver uma passagem escondida em algum lugar por trás das vinhas. Elas o tinham trazido para cá; devia haver uma saída.

Subitamente, ele deu um pulo para a parede mais próxima e arrancou algumas vinhas, lançando-as para todos os lados. O diminuto guincho de surpresa de Gossamer não o intimidou.

Uvas explodiam em suas mãos, libertando seu aroma potente e denso. As plantas viscosas cortavam seus dedos feito arames. Jeb aceitou a dor. Era algo que podia controlar — diferentemente do tormento dos cigarros acesos que seu pai lhe enfiava na pele, ou dos punhos que lhe socavam o rosto e o estômago. O cheiro da nicotina, o gosto de sangue. Imaginação ou não, eles alimentaram o selvagem em sua alma.

Ele mergulhou numa espiral vermelha de fúria e devastou a sala. Quando finalmente voltou a si e recostou-se na cama, ficou chocado com os estragos que causara.

Arfando e suando, ele cuidou dos cortes nas junções dos dedos e vasculhou os destroços à procura de Gossamer. Será que a tinha machucado? Se sim, talvez fosse mesmo filho de seu pai.

Jeb cerrou os punhos, descontente consigo mesmo.

— Gossamer? — Ele se encolheu ao ouvir a própria voz, rude e inflamada de emoção.

Um rufar de asas mexeu uma das correntes que prendiam a cama ao teto. Ele respirou, aliviado ao ver a fada. Embora parecesse meio idiota importar-se, já que estava prestes a usar a pulseira de ferro de Alyssa contra ela.

Gossamer pousou no chão ao lado das vinhas rasgadas e das cestas que ele tinha derrubado de novo; seus ombros estavam caídos, em demonstração de derrota. Provavelmente, ela não sabia por onde começar a calcular todos os conteúdos derramados.

Jeb começou a vasculhar a mochila. A harpa havia parado de tocar, e o silêncio o incomodava feito o ruído dos ponteiros de um relógio. Cada segundo que ele passava longe de Alyssa deixava-a mais vulnerável a Morfeu.

Seus dedos finalmente encontraram um metal frio. Ele jogou a pulseira de ferro na direção de Gossamer, mas mantendo alguma distância, na esperança de enfraquecê-la sem machucá-la.

Ela gritou e lançou-se ao ar, se debatendo.

— Por favor... afaste isso.

— Não até eu conseguir algumas respostas. — Jeb segurou uma das asas dela entre o indicador e o polegar, levando-a para a cama e sentando-a sobre uma almofada, tomando o cuidado de manter a pulseira próxima o bastante para intimidá-la. — Basta cooperar, que eu não vou machucá-la.

— Já está machucando. — Ela gemeu, com a pele esverdeada já tingida de turquesa. — Não posso usar minha magia... — Gossamer bateu as mãos no próprio rosto. — Vai me deixar... horrível. Abster-me. — Sua voz ficou mais calma, como se estivesse falando consigo mesma, e, rangendo os dentes, continuou: — Abster-me até a ameaça de dor e contaminação passar.

Jeb franziu a testa.

— Então o ferro vira seus poderes contra vocês? É a arma perfeita para usar contra seu chefe.

— Um objeto desse tamanho... só funciona com os menores de nossa espécie.

Jeb curvou-se, aproximando ainda mais a pulseira dela.

— Muito bem, então considere isso um detector de mentiras. Toda vez que eu perceber que você está fingindo, aproximarei o ferro. Onde está a Al, e o que o seu chefe repugnante está fazendo com ela?

A cor da fada mudou para um verde azulado. Ela rolou sobre a almofada, as asas lutando para bater. Gossamer as puxou por cima dos ombros até a altura do peito, cruzando-as, como se quisesse conter a sua magia.

— A sua Alyssa está confortável e sendo bem cuidada. Morfeu está zelando pelo sono dela...

Jeb soltou um grunhido. Na noite passada, ele havia zelado pelo sono dela, no barco. Mudara a posição do corpo dela para que pudesse olhá-la de frente e fazer uma promessa, mesmo que Alyssa estivesse sonolenta demais para ouvi-lo. Jeb havia prometido que a protegeria, que a levaria para casa a salvo. E não iria quebrar sua promessa agora.

Ele precisou resistir ao desejo de destruir a sala novamente.

— Como eu saio daqui?

— Apenas o Morfeu tem os meios para abrir a passagem.

Jeb inclinou-se para a frente, com o nariz quase tocando o rosto de Gossamer enquanto segurava a pulseira sobre a cabeça dela, como se fosse um objeto corrosivo.

— Está dizendo que estou preso aqui até que aquela barata de asas decida me soltar? Ele vai fazer a Al enfrentar o País das Maravilhas sozinha?

Ela choramingou, levando a mão à testa.

— Não. Como você provou ser leal, ele permitirá que a acompanhe em sua jornada. Você comparecerá ao banquete e traçarão os planos.

— Banquete?

— A apresentação de Alyssa. Morfeu deseja exibi-la aos outros.

— Que outros?

Gossamer deixou-se cair, formando um monte de cor púrpura e em seguida saiu depressa de seu poleiro. Ela puxou alguma coisa de dentro da almofada — um desenho de Al que Jeb não se lembrava de ter feito. Lentamente, Gossamer levantou os joelhos e estudou as linhas.

— Você fez isto enquanto estava sob nosso feitiço. Tem poder dentro de seu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Você captou o interior de Alyssa com perfeição.

— Esse desenho é pura fantasia — resmungou Jeb. Ele colocou a pulseira de ferro sobre o papel ao lado de Gossamer.

Ela rolou para o meio do desenho, tentando escapar do metal.

— Há mais verdade nesta aparência de Alyssa do que em qualquer coisa que possam me forçar a falar.

Jeb puxou o desenho, fazendo Gossamer e a pulseira de ferro rolarem por cima da pelugem. Ele estendeu o desenho sobre uma almofada e percorreu as linhas de carvão com o dedo. A imagem era igual a todos os outros desenhos de fadas que ele havia feito de Al ao longo dos anos, mas, ainda assim, não poderia ser mais diferente da garota que ele conhecia.

Ele a desenhara com o cabelo preso no alto da cabeça. Al nunca usava o cabelo daquele jeito. Um vestido preto de alcinhas realçava suas curvas. Nem morta ela seria vista em um vestido tão convencional. E a única coisa que se parecia com ela eram as luvas de renda preta sem dedos que cobriam as cicatrizes da palma das mãos.

Fora isso, o desenho era uma fantasia completa. Sentada em um banco de jardim, Al segurava uma rosa. Rímel e lágrimas escorriam em curvas graciosas por seu rosto. Pensando bem, se parecia com a maquiagem dela na última vez que ele a vira.

Ele ainda não conseguia entender por que, depois de quase se afogar em um oceano de lágrimas, o rímel de Alyssa não havia borrado. Apertando os olhos, ele estudou o par de asas translúcidas abertas nas costas dela. As membranas finas tremeluziam sob o único raio de sol que atravessava as nuvens. As asas faziam com que se sentisse estranho, mas Jeb não conseguia perceber a razão.

Talvez porque elas lembrassem as asas de Morfeu, embora tivessem uma cor totalmente diferente. As têmporas de Jeb latejaram. Nada poderia ser pior do que Alyssa sozinha com aquele homem-inseto. Aquele doido tinha algum tipo de poder sobre ela, havia entrado em sua cabeça quando ela era pequena. O subconsciente pode ser muito poderoso, e se Morfeu ainda tivesse acesso aos sonhos da Al...

— Como posso derrotá-lo? — perguntou Jeb com um nó na garganta.

Os olhos bulbosos de Gossamer voltaram-se para os dele. Ela estava fraca demais para se arrastar para longe da pulseira, que agora roçava sua coxa.

— Ele não será derrotado. Há anos ele espera por este dia.

Jeb fez cara feia.

— Muito bem, ele é o Super-Homem. Mas todo mundo tem a sua kriptonita. Algo de que sente medo.

— O confinamento — Gossamer deixou escapar, e, diante da confissão, seu corpo escureceu até ficar da cor de um machucado.

— Como assim?

Gossamer levou o dorso da mão à testa.

— Por favor... está muito perto... o ferro... está drenando minha energia.

Jeb caiu de costas no colchão e afastou a pulseira da fada. Equilibrando-o entre os dedos, ele estudou o ferro sob a luz das velas. A pulseira o lembrou de seu piercing de ferro e da primeira vez que Al o vira, sua reação de entusiasmo. Ela havia implorado para tocá-lo e fez várias perguntas sobre o processo de colocação de um piercing. Seu entusiasmo e ingenuidade, suas inseguranças... Morfeu não hesitaria em usar qualquer uma dessas coisas, ou todas elas, para manipulá-la.

Jeb precisava convencer Al a sair do País das Maravilhas, a esquecer esta jornada para quebrar a maldição de sua família, a qualquer custo. Algo muito tenebroso estava à espreita, bem perto dela, como no sonho que ele tivera. E Jeb podia sentir que, fosse lá o que estivesse para acontecer, estava se aproximando.

— Então vocês querem que ela conserte os erros da Alice original, certo? E se eu consertá-los? — Jeb tentou raciocinar. — Vocês enviam a Al para casa e deixam que eu cuide de tudo?

— Impossível — respondeu Gossamer num sussurro arfante, voltando à cor verde-clara. Engatinhando na direção do desenho, ela passou a pequenina mão sobre a rosa. — Ela já passou nos testes e provou ser a escolhida.

— Testes? Está se referindo a encontrar a toca do coelho para o País das Maravilhas e secar o oceano de lágrimas?

Gossamer fez que sim.

— Mas eu ajudei a fazer isso.

— É por ela que ele esperava. Não por você.

Jeb levantou a pulseira de ferro uma última vez.

— O que ele realmente quer dela?

Antes que Gossamer pudesse responder, o teto abobadado começou a tremer. Pedaços espessos de gesso despencaram no solo. Jeb colocou uma almofada sobre a cabeça e uma mão sobre Gossamer para protegê-la dos detritos. O teto se abriu nas emendas, fazendo a cama balançar e puxando as correntes em direções opostas, de modo que o colchão subiu vários centímetros.

Depois que os tremores passaram, Jeb olhou para cima. A silhueta escura de Morfeu apareceu em uma abertura no teto.

Sutileza era um dos últimos itens na lista de prioridades desse cara.

— Já te disseram que você é muito escandaloso? — rosnou Jeb.

Morfeu inclinou-se para olhar a sala destruída.

— Já te disseram que você é um péssimo hóspede?

Parte da responsabilidade daquela bagunça era da grandiosa entrada de seu aprisionador, mas Jeb mordeu a língua, não querendo arriscar sua oportunidade de ver Al.

Morfeu relaxou.

— Alyssa o aguarda na sala dos espelhos. E, por favor, tome um banho e faça a barba. Você será apresentado aos nossos convidados do banquete como um cavaleiro élfico, então precisa parecer como tal. Gossamer lhe dirá como se comportar adequadamente. — Morfeu largou algumas roupas e botas, que fizeram um ruído ao atingir o chão. — Aí está seu uniforme. — Ele fez uma pausa e apontou para as correntes. — Que pena que você não tenha asas e nenhuma magia intraterrena. Terá que sair daí sozinho. E posso assegurar que não será nada fácil.

Os músculos de Jeb se retesaram quando Morfeu sumiu de vista; ele sabia que o aviso se referia a muito mais do que sair daquela sala.


Capítulo 3


Segunda Lembrança —
Carnificina

Jeb limpou o suor da testa. Morfeu estava certo. A escalada para sair de sua prisão dourada seria mesmo difícil. Mas isso não significava nada se comparado à jornada pelo País das Maravilhas que ele e Alyssa haviam cumprido desde então. O dia inteiro tinha sido um desafio atrás do outro, com o perigo e a morte aguardando em cada esquina. E agora ele havia perdido a Al. Os dois tinham se separado pouco antes de ela completar o teste final. Al ficou enfrentando as irmãs Twid no cemitério, sozinha, e ele ficou preso aqui no fundo do abismo.

A noite já havia caído quando ele atingiu o solo, e foi uma transição extremamente rápida, como se alguém tivesse apagado a luz.

Jeb sentiu os músculos do corpo endurecerem. Odiava pensar na Al sozinha naquele mundo insano depois de anoitecer. E, mais uma vez, ela provou ser forte o bastante para encarar quase tudo. No final, foi ela quem o salvara mais de uma vez...

Ele se lembrou dela pairando acima dele — um brilho selvagem, flutuando com a graça de uma libélula. Ver as asas dela brotarem tinha sido ao mesmo tempo assustador e milagroso. Jeb mal conseguiu respirar enquanto observava a transformação.

Falando sinceramente, Jeb ainda não tinha recuperado o fôlego de quando ela o levara para dentro do abismo e ele gritara: “Você é minha corda de segurança!”, antes de ela subir ainda mais alto para o céu. Ele não deveria ter colocado tanta pressão sobre ela para salvá-lo; tinha que ter feito o que conseguisse para sair de lá por si próprio e encontrá-la no meio do caminho. Do contrário, ela nunca se perdoaria se algo saísse errado.

A carcaça de um pássaro Jubjub havia amortecido sua queda. Ele limpou nas calças a gosma pegajosa que tinha entre os dedos, torcendo o nariz diante dos restos malcheirosos do exército que os perseguia e acabou caindo no abismo. Jeb procurou ficar de pé na escuridão. Suas botas produziam sons de sucção toda vez que ele pisava. Ele nunca tivera fricotes; qualquer aversão a sangue e violência havia sido expurgada — uma dessensibilização gradual que era reforçada sempre que ele se olhava no espelho e via suas bochechas e olhos inchados, grandes e cheios de sangue, que nem um bife malpassado.

Contudo, sem uma centelha de luz para guiá-lo, a carnificina aos seus pés parecia mais viva do que morta. Sua imaginação trazia arquivos de todos os tipos, de filmes de zumbis a demônios e assombrações. Seu estômago queimava de náusea. Jeb sentiu-se aliviado ao perceber que os assobios que ouvia dentro do abismo eram produzidos pelo vento. E não havia ruídos de correntes fantasmagóricas nem gemidos de mortos-vivos.

Além disso, seu verdadeiro inimigo era o tempo, mais perigoso do que qualquer coisa que pudesse imaginar. A Al ainda tinha de cumprir a última tarefa no cemitério. E, depois, eles ainda tinham de encontrar um ao outro.

Ele se forçou a avançar às cegas até sua mão alcançar a parede do abismo. Antes de descer totalmente, Jeb viu que a mochila de Al tinha ficado presa em uma pedra saliente próxima ao chão. Se conseguisse encontrá-la, poderia contar com uma lanterna. Tateando a superfície áspera da pedra, ele levantava seus pés por sobre os obstáculos, tocando os cadáveres com os dedos dos pés para mensurar a largura de cada passo.

Com os cotovelos esbarrando nas pedras, Jeb observou o céu. Um pequeno aglomerado de estrelas brigava com as nuvens, aparecendo para iluminar levemente o lugar ao seu redor, tornando possível que ele continuasse sem esbarrar no falecido exército da rainha. Uma brisa úmida levantava a poeira feito pequenos tornados. Logo choveria. E, neste lugar, era possível que, literalmente, chovesse a cântaros — daqueles temporais ruidosos, torrenciais.

Um calafrio que não tinha nada a ver com a tempestade iminente lhe percorreu a espinha e obscureceu qualquer sentimento bom que ele poderia ter encontrado naquele pensamento. Qual era a razão de todos esses “testes” de Morfeu? Toda vez que a Al conseguia se sair bem em um desses testes, sua forma intraterrena tornava-se mais acentuada. Será que o intuito era transformá-la completamente para que não pudesse mais voltar ao reino humano?

Fios de cabelo caíram sobre seu rosto, e Jeb os afastou.

Morfeu afirmara que tudo o que ele mais queria era que Alyssa voltasse ao seu lugar. Sua casa. Jeb esperava que ele estivesse se referindo ao mundo deles, o reino humano. Mas e se a Al não estivesse sob nenhuma maldição, no final das contas?

Ele se lembrou de sua pesquisa sobre fadas, na qual descobriu que elas eram criaturas chamadas de changelings — as crias das fadas secretamente deixadas no lugar de bebês humanos roubados. Alice Liddell, a tataravó de Al, teria sido uma changeling? Quem sabe foi por isso que ela encontrou, quando criança, a toca do coelho — por instinto. Isso significaria, de alguma estranha maneira, que aqui era a casa de Al.

Jeb parou com as especulações. Elas só levavam a mais dúvidas.

Ele tinha encontrado a mochila. Abriu-a, tirou a lanterna e colocou a mochila nos ombros.

Ao fechar o zíper, ele acendeu a lanterna e percorreu o cenário com fachos de luz. Os guardas destruídos pareciam cartas de baralho amarrotadas. Brinquedos descartados. Até mesmo os pássaros Jubjub poderiam se passar por brinquedos infantis com o enchimento extrapolando para fora.

Com a mochila ajeitada no corpo, Jeb percorreu a circunferência do abismo sem encontrar nenhuma abertura. Pedras que haviam caído bloqueavam qualquer possível passagem que ele tentasse. Era como se ele tivesse caído dentro de um tubo gigante. Não havia nenhuma outra saída a não ser subindo.

Jeb apontou a luz para o gramado a cerca de vinte andares acima — a clareira onde Alyssa havia pousado. Estava determinado a encontrá-la antes de Morfeu, mesmo que tivesse de escalar as pedras pontiagudas no escuro e sem uma corda de segurança.

Ele havia acabado de apoiar a lanterna entre os lábios e escorar o pé em um rochedo para tomar impulso quando ouviu uma voz com um sotaque britânico familiar.

— Ao trabalho, homens. Precisamos contar todos antes que as irmãs Twid enviem sua brigada de duendes para recolher os mortos.

Morfeu.

Jeb desceu e quase colidiu com o intraterreno alado, que tinha aparecido do nada, como se tivesse aberto um zíper no ar e passado por ele. Cavaleiros élficos faziam fila atrás dele, entre vinte e trinta, carregando lanternas e usando o mesmo uniforme de Jeb, só que menos esfarrapado e sujo. Eles passaram sem nem olhar para Jeb, extremamente concentrados na contagem dos corpos.

— Ora, ora, pseudocavaleiro. — Morfeu riu com desdém.

Cada pedacinho de Jeb ansiava por apagar aquele sorriso arrogante e socar aquele rosto. Mas ele estava em desvantagem. Se quisesse sair desse fosso para encontrar a Al, teria de bancar o bonzinho.

— Detesto dizer isso, mas é bom vê-lo, senhor Mariposa. — Jeb guardou a lanterna. — Vejo que pegou o espelho para vir aqui.

— Eu só viajo de espelho. — Morfeu ergueu a lanterna e examinou as roupas esfarrapadas de Jeb. — Tem a vantagem de não estragar tanto as roupas. E vou lhe contar outro segredo: se eu mantiver as asas daquele lado do plano — ele apontou com o polegar para as suas costas, onde metade de seus apêndices não era visível —, a abertura fica acessível para nossa viagem de volta.

Jeb forçou um sorriso.

— É bom saber.

Perfeito, na verdade. Ele poderia voltar com a trupe de elfos e depois tomar o expresso na sala de espelhos para encontrar a Al. Mas primeiro teria de distrair Morfeu, baixar a guarda dele. Jeb perguntou:

— Esse chapéu é novo?

Morfeu ficou radiante.

— Que gentil de sua parte ter notado. É meu chapéu da Insurreição. Ainda não havia tido a oportunidade de usá-lo antes. — Com o dedo, bateu em várias mariposas que formavam a guirlanda na aba do chapéu e depois se inclinou e fez conchinha no ouvido de Jeb para sussurrar um segredo. — As asas vermelhas representam derramamento de sangue.

— Ãh-hã. — Jeb cerrou a mandíbula diante do indesejado bafo quente no lóbulo de sua orelha. Depois, olhou para os cavaleiros, discerníveis somente por suas lanternas flutuando na escuridão atrás dele. — Então, está planejando um motim com o exército da rainha de Marfim?

Morfeu apertou o ombro de Jeb.

— Eu sempre soube que era mais esperto do que os mortais comuns.

Os músculos de Jeb contraíram-se ao contato.

— O que significa que você estava mandando a Al para uma missão absurda só para se divertir.

Cuidado. Jeb não poderia deixar sua desconfiança transparecer. Pelo menos não ainda. Em vez disso, ele se inclinou para ajustar os cadarços das botas e respirou fundo antes de se reerguer.

Morfeu apertou sua gravata vermelha.

— Todas as tarefas que pedi à Alyssa tinham um propósito. — Ele deu um passo para o lado quando alguém mais passou pelo portal do espelho: um esqueleto do tamanho de um duende, com antenas e olhos cor-de-rosa brilhantes, metido em um colete vermelho.

— Rábido Branco? — sussurrou Jeb, incrédulo. Nada daquilo fazia sentido. O Rábido era da corte Vermelha. Por que estava aqui?

— Qual é o relatório? — Morfeu agachou-se para ficar na altura do Rábido, ainda mantendo as asas enfiadas no portal invisível do espelho.

O pequeno intraterreno apertou as mãos enluvadas e olhou para Jeb, sua cabeça careca refletindo o brilho suave da lanterna de Morfeu.

— Um de nós, você é?

Morfeu sorriu e respondeu por Jeb.

— É claro que é. Ele ajudou a nossa Alyssa a conquistar o grande e cruel exército Vermelho, não lembra?

Coçando a antena esquerda, o Rábido fez que sim.

— Rainha Grenadine neutralizada está. Nos portões da frente e de trás, o castelo guardado está pelos regimentos três e sete. Flanqueando a rainha, um círculo de cinco. Sem esquecer da coroa e seu guardador.

— Ah, sim. O bandersnatch. Bem, quando Alyssa tiver trazido seu prêmio do cemitério das irmãs Twid, nada mais terei a temer daquela besta medonha. Fez um bom trabalho, senhor Branco. — Morfeu deu uma batidinha na aba do chapéu.

O Rábido bateu os tornozelos cadavéricos um no outro, depois se curvou e lançou um olhar penetrante para Jeb, antes de pular novamente para o portal.

— Ele é o seu espião — murmurou Jeb, sentindo-se idiota por não ter adivinhado antes.

— Sim.

— Então todas as vezes que o esqueletinho ameaçou a Al, matando-a de susto, era só para manter a aparência de lealdade à Rainha Grenadine?

— Os melhores espiões são aqueles que jogam dos dois lados com o mesmo vigor.

A distância, Jeb avaliou as lanternas que balançavam. O tilintar dos cabos de metal e o pisar de botas eclipsavam o suave lamento do vento.

— Certo. Já que estamos abrindo o jogo...

O comentário de Morfeu o interrompeu.

— Que trocadilho mais delicioso, considerando a posição em que estamos. — A lanterna dele apontou para os cadáveres dos guardas de carta.

Jeb ignorou a piada mórbida.

— Eu ia perguntar por que o Rábido se voltou contra a corte Vermelha.

— Ele era o conselheiro real da Rainha Vermelha quando Alice nos visitou. Deseja ver a verdadeira herdeira no trono tanto quanto eu.

— Verdadeira herdeira. — Jeb chutou um punhado de terra com uma bota, sentindo o peito apertado. — Então tudo isso é para destronar Grenadine e abrir caminho para uma nova rainha.

— Sim. — A lanterna iluminou o rosto de Morfeu, numa expressão de indulgência sonhadora. — E estamos muito perto. Em breve, ela ocupará o trono que é e sempre foi o lugar dela.

O lugar dela. Uma hipótese se formava na mente de Jeb, uma ideia ultrajante e incompreensível, mas, de qualquer maneira, a resposta óbvia para todas as dúvidas que ele vinha remoendo. Todas as dúvidas, exceto uma...

— Mas, primeiro — interviu Morfeu, varrendo o ar com um gesto desdenhoso —, temos que ter certeza do que iremos enfrentar quando atacarmos o castelo. Você e Alyssa conseguiram eliminar boa parte da oposição com seus fantásticos movimentos de pés. Estamos aqui para avaliar se os números batem com os que o Rábido reportou. Devemos ter certeza que Grenadine não tem outras cartas escondidas na manga. — Ele bateu nas costas de Jeb. — Viu o trocadilho? “Cartas na manga?” — E deu uma gargalhada.

Jeb não deu nem um risinho.

— Ah, corta essa. Os guardas dela são de cartas. É uma piada como a que você fez antes, só que mais inteligente.

— Ah, sim, entendi — retrucou Jeb.

O riso de Morfeu se dissipou.

— Você não é um namorado muito divertido.

— Você não leva nada a sério? A Al está correndo perigo — Jeb deixou escapar.

— Bobagem. Ela é gloriosamente capaz! Você nunca a viu voando? É claro que viu! Estava pendurado na corrente que ela segurava. — Morfeu voltou a lanterna para a própria cabeça, num arroubo de celebração. — Não foi uma bela visão, presenciá-la transformando-se no que realmente é? Igual a uma princesa de contos de fadas. — Ele lançou um olhar dissimulado para Jeb. — Não concorda?

Princesa de contos de fadas. Lá estava, saindo da boca do próprio Morfeu, zombando de Jeb por não perceber desde o início. Jeb apertou as alças da mochila para evitar dar um soco na laringe de Morfeu.

Morfeu abaixou a lanterna e depois tirou luvas prateadas de sua lapela.

— Não se sinta desprezado, cavaleiro mortal. Sua contribuição não passará despercebida. E eu sempre pago minhas dívidas. Então, o tirarei desta vala da morte para demonstrar minha gratidão.

— Você pode me agradecer me deixando ajudar a Al. Ela vai terminar a tarefa muito mais depressa comigo do lado — Jeb conseguiu dizer, sentindo um nó nas cordas vocais. Se conseguisse chegar até Al, talvez os dois pudessem se esconder de Morfeu no cemitério das irmãs Twid, até encontrarem uma maneira de escapar.

— Sinto muito — retrucou Morfeu, vestindo as luvas e acenando para que os cavaleiros élficos retornassem. — Ela precisa fazer isso sozinha. Você a verá em breve; todos nós vamos nos reencontrar. Uma grande família feliz.

— Não! — exclamou Jeb, perdendo o controle. Ele investiu, mas os elfos foram mais rápidos e o contiveram, com os dedos machucando seus cotovelos feridos. — Deixe-a sair do País das Maravilhas, seu filho de inseto...

Morfeu pressionou um dedo contra a boca de Jeb.

— Ah-há! Essa, você já usou.

Jeb puxou a cabeça para trás, deixando o dedo do intraterreno suspenso no ar.

Sob a luz da lanterna, as joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficaram escuras, da cor de sangue seco.

— Ora, ora. Isso são modos de tratar seu salvador? — Ele fez cara amuada. — Além do mais, como posso deixar Alyssa sair se ela não está comigo? Da última vez que soube, ela estava entrando no jardim das almas. Mas, quando terminar por lá, ela virá ao meu encontro. Ela ainda tem um papel muito importante a desempenhar.

— Certo. Porque ela é a herdeira do trono. — Jeb ouviu, incrédulo, suas próprias palavras ecoarem, como se tivessem saído da boca de outra pessoa. — Não sei como, mas é ela.

— Bravo! — Morfeu aplaudiu. — Estão vendo o que eu disse, irmãos cavaleiros? — Olhando para os cavaleiros por cima do ombro de Jeb, Morfeu deu tapinhas no peito em cima da gravata vermelha, como se estivesse tomado pela emoção. — Mais esperto que um mortal comum. Pena que tenha as limitações físicas de um.

— Não importa. Ela está fora do seu alcance. — rebateu Jeb, dando um tranco nos elfos; havia muitos o segurando, contudo. — Ela deve estar dentro do cemitério agora, e não pode forçá-la a fazer nada. Você mesmo disse que as Twids não deixam você entrar.

— É verdade. Mas ela encontrará, sozinha, o caminho para o castelo. No momento em que ela perceber que estou mantendo presa a coisa que ela mais ama no mundo, virá rastejando para mim, com as asas a reboque.

Morfeu levantou uma mão e fez um sinal.

Os cavaleiros élficos soltaram Jeb. Ele girou sobre o calcanhar e atirou a mochila sobre eles, dispersando o grupo feito pinos de boliche. Esticando o braço, ele bateu o punho na testa de Morfeu, desequilibrando-o. Um dos cavaleiros se esforçou para permanecer no lugar e manter o espelho aberto. Antes que Jeb pudesse se catapultar e atravessá-lo, raios de luz azul grudaram em sua pele e roupas, feito eletricidade estática. Eles o arrastaram, controlando-o como se fosse um fantoche, até ele ficar de frente para Morfeu. Os raios vinham da ponta dos dedos do intraterreno.

Morfeu aproximou-se.

Jeb tentou recuar, mas seus músculos travaram, ficaram paralisados.

— Durma — disse Morfeu num tom simples, e levou a mão azul fluorescente à testa de Jeb, cujo corpo foi percorrido por uma luz pulsante. Ele sentiu um gosto doce, parecido com leite e mel, e depois sentiu o aroma de lavanda. Com os dedos apertando o tecido macio da camisa de Morfeu, Jeb lutou para manter-se acordado. Mas a luz era muito reconfortante... muito suave... muito calorosa. Contra sua vontade, suas pálpebras ficaram cada vez mais pesadas e ele caiu no chão, em sono profundo.


Capítulo 4


Terceira Lembrança —
Engaiolado

O crânio de Jeb latejava, e havia sangue saindo de seu couro cabeludo e entrando em seus olhos.

Ele limpou o líquido viscoso e focou no lugar à sua volta. Morfeu o tinha trazido para o castelo Vermelho depois de colocá-lo sob o feitiço do sono. Largou-o dentro de uma gaiola na masmorra. Jeb não queria ter tomado a poção encolhedora quando acordou, mas o homem-inseto havia lhe dado um ultimato.

Primeiro, ele havia ameaçado matar a Al. Mas Jeb rebateu, dizendo que o homem estava blefando, pois sabia que ela era indispensável. Depois, Morfeu usara de outra arma, ameaçando fazer com que a frágil mãe de Al ultrapassasse o limite da loucura. Isso, ele faria.

A Al havia lutado muito para salvar a mãe. Ela morreria se a perdesse para a loucura. Então, Jeb não hesitou em levar o frasco aos lábios.

Seu corpo balançava, mas não devido aos efeitos colaterais da poção. A plataforma debaixo dele oscilava por causa de suas tentativas de abrir as barras de sua prisão usando a cabeça — uma atitude desesperada que havia resultado em nada além de um corte logo acima da testa. A magia de Morfeu — um fio elétrico e azul — mantinha a porta da gaiola fechada e imóvel.

— Que bela coisa você fez, não? — entoou uma voz feminina e irritante. — Morfeu escolhe quem tem o poder de suprimir sua magia. Obviamente, você não é um dos escolhidos.

Jeb fez cara feia para sua companheira de prisão. Era uma lóri — um intraterreno parecido com um periquito, mas normalmente do tamanho de um ser humano. Como os dois tinham encolhido, a única coisa que a distinguia dos pássaros do mundo humano eram as túnicas de cetim cor de creme com estampas jacquard colocadas sobre suas asas, corpo e pernas, e seu rosto humanoide enfiado no meio de plumas vermelhas, como se fosse uma máscara. Ele foi cutucado por um bico mais parecido com o chifre de um rinoceronte, posicionado no lugar onde deveria haver um nariz. Os lábios da criatura se agitavam furiosamente.

O pior de tudo era que a voz dela poderia derrubar a Torre de Pisa com uma sílaba. Quando falava, era como se alguém tivesse implantado cirurgicamente alto-falantes nos ouvidos de Jeb e travado o volume no “mais surdo que uma porta”. Ela era uma das muitas razões pelas quais ele tentava sair da gaiola com tanta insistência.

A luz bruxuleante das velas na parede iluminava seu ar de arrogância e deixava o resto da masmorra nas sombras. Depois que a voz da lóri parou de ecoar, Jeb investiu:

— Olhe aqui, Lorina. Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu marido. — Ele apontou a criatura que roncava abaixo da gaiola, de aparência tão estranha quanto à da esposa, com o corpo de um dodô, cabeça de homem e mãos que se projetavam da ponta de suas asas atarracadas. — Foi ele quem manteve Alice Liddell presa em uma gaiola igual a esta aqui, muitos anos atrás. É por culpa dele que a minha namorada é a única que pode destronar a sua rainha. Será que já lhe ocorreu que é por isso que vocês estão presos?

— O Charlie não fez nada disso! — berrou a lóri, pairando dentro da gaiola. — Alguma vez já lhe passou pela cabeça que o Morfeu é um cara de pau mentiroso?

Só em todos os segundos de todas as horas. Jeb apoiou-se nas barras. Seus joelhos cederam, enfraquecidos pelas tentativas de abri-las usando cada músculo de seu corpo. Ele desabou sobre o piso de metal, empurrando uma fatia de pera já amarelada que estava ao seu lado, feito um pequeno sofá. A gaiola era um pequenino forte inexpugnável. Mas não importava. As barras poderiam ser feitas de espaguete cru, e mesmo assim ele não conseguiria ajudar a Al. Mesmo que escapasse, com este tamanho, Jeb não conseguiria derrotar ninguém.

Charlie, o marido dodô de Lorina, não poderia ajudar muito. Ele estava preso por algemas e correntes de ferro e cochilava recostado na parede. Embora a gaiola estivesse pendurada bem perto da cabeça do dodô, não havia nada que Charlie pudesse fazer.

Provavelmente, Morfeu havia lançado no homem-pássaro gigante o mesmo feitiço do sono que jogara em Jeb, mas Charlie já estava se libertando dele.

Lorina acomodou-se no poleiro no centro da gaiola, balançando sobre a cabeça de Jeb feito uma acrobata no trapézio. A cara dela estava tão vermelha quanto as suas penas, o que fazia as espadas e copas estampadas nas bochechas quase desaparecerem.

— Como vamos ficar exilados nestas instalações fedendo a urina, terá bastante tempo para ouvir a verdade — bramiu ela.

Jeb esfregou a cabeça para apaziguar a dor lancinante.

— Se puder baixar a voz uns dois decibéis, eu agradeceria.

— Abaixar minha voz?

— Aaaii. — Jeb enterrou o rosto nas mãos.

O trapézio em miniatura rangia a cada balanço, piorando a poluição sonora.

— Para a sua informação, minha rainha adora o som da minha voz. Ela até o elogia...

O ronco do dodô parou, e ele estalou os lábios.

— Isso é porque ela protege os ouvidos com cera de abelha, Ó, Mais Adorável das Loucas.

— Seu mentiroso! — retrucou Lorina, balançando o poleiro tão depressa que Jeb achou que ia vomitar.

— Estou preso com correntes de ferro — avisou Charlie depois de um bocejo. — Não tenho forças para mentir. — Em seguida, pegou novamente no sono.

Isso pareceu calar Lorina, pelo menos temporariamente.

Jeb aproveitou o silêncio para pensar. A esta altura, Morfeu já deve ter contado a Al sobre sua verdadeira linhagem, sobre o que espera dela. Deve estar tão chocada... tão apavorada. Jeb ansiava tanto abraçá-la que era como se houvesse uma bigorna lhe pressionando o peito.

Aquele mariposo deveria ter contado a verdade desde o começo. Ela nunca escolheria ficar. Mas Morfeu sabia disso, e a manipulou sob o pretexto de que ela poderia curar a maldição da própria família. Jeb queria arrancar as asas pretas de Morfeu e enfiá-las goela abaixo por tê-la enganado, porque não havia cura para o parentesco, e ele sabia muito bem disso.

— Foi a Vermelha quem colocou Alice na gaiola. — A lóri voltou à carga. — Não o Charlie.

— Mas o seu marido escolheu mantê-la presa na gaiola — acrescentou Jeb, mesmo sabendo que não deveria. Ele cobriu as orelhas para a estrondosa refutação, mas Lorina só soltou um suspiro.

— Não. O Charlie tentou fazer a coisa certa pela menina — disse ela, consideravelmente mais ponderada agora. — Ele planejava mandar Alice de volta para o reino humano sem a Vermelha saber, mas a rainha descobriu e os arrastou para uma caverna nos picos mais altos e mais remotos do País das Maravilhas, sem que nenhum de nós soubesse. Ela deixou o Charlie com a vítima dela para poder encenar seu plano mestre, sabendo que Alice seria cuidada por um prisioneiro que nunca poderia escapar. Porque, como você deve saber, os dodôs não podem voar. Ela me privou de meu marido durante anos. Ele era prisioneiro, assim como a mortal.

— Se isso te ajuda a dormir de noite, tudo bem, passarinha.

Uma comoção de poeira e asas, jacquard e cetim, subitamente surgiu e o atacou.

— Você pode mostrar algum respeito e ouvir?!

Jeb levantou as mãos para se defender.

— Está bem. Shhhh. Eu vou ouvir.

Não havia nada mais que ele pudesse fazer. Morfeu lhe dissera que, assim que Alyssa fosse coroada rainha, ela abriria o portal para o reino humano. Acreditando ou não nisso, Jeb não poderia fazer nada a não ser ter esperança. Ele não tinha nenhum poder ali. E ter consciência disso lhe devorava as entranhas a cada minuto.

Acomodada diante de Jeb sob um monte de tecido luxuoso, a lóri olhou por entre as barras e resmungou alguma coisa para o marido que dormia.

— Seu velho e imprestável fezzerjub. Eu é que tenho que te proteger. Nem sei por que me casei com você.

O dodô resfolegou e murmurou, sonolento:

— Porque se casar com o bobo da corte era a única maneira de ter uma posição na corte Vermelha, Ó, Senhora das Nênias. — E o ronco voltou.

— Viu como deu certo? — resmungou ela, fazendo beicinho com os lábios vermelhos em forma de coração, sob a curva de seu bico. — Aquele Rábido ossudo e seu coração negro de pedra. — Ela alisou as penas da nuca e cobriu-as com uma rede decorada por lantejoulas.

Jeb estendeu a mão para pegar o dedal cheio de água que seu captor havia deixado ao lado da fatia de pera. Em suas mãos, ele era do tamanho de uma caneca de café. Ele o passou para sua colega de cela, que o pegou com as asas e deu alguns goles.

— Me diga uma coisa, Lori. Se o que você está dizendo é verdade... — Observando a atitude defensiva na cara bicuda, ele refez a pergunta para poupar os ouvidos. — Como você escolheu compartilhar o seu lado da história, talvez pudesse me dizer de que maneira Morfeu teve participação na prisão de Alice.

Ela sacudiu as gotículas de seus lábios.

— Não teve participação nenhuma. Ele gostava muito de Alice e teria feito qualquer coisa para que ela chegasse em casa sã e salva. Mas, na hora em que ele lhe ofereceu seu conselho como lagarta, alertando-a para que evitasse o castelo da Rainha Vermelha a todo custo, sua metamorfose aconteceu. Quando ele emergiu, totalmente transformado, e soube o que havia acontecido com Alice, ficou furioso.

— Está tentando me dizer que ele possui alguma consciência?

— Pelo menos no que dizia respeito a Alice, sim. — A lóri ajustou a suntuosa túnica que ficava escorregando devido à falta de ombros. — Morfeu usou todos os seus recursos de magia e acabou encontrando ela e meu marido escondidos nas cavernas dos picos mais altos do País das Maravilhas. Infelizmente, já era tarde demais para Alice. — Lorina devolveu o dedal a Jeb, agora com metade da água.

Jeb endireitou o corpo, fazendo a gaiola balançar.

— Então por que ele quer ajudar a Rainha Vermelha a colocar outra rainha no trono, quando ele deveria odiá-la por ter mantido Alice presa em uma gaiola por tantos anos?

— Talvez ele esteja bravo por Grenadine não ter tentado encontrar Alice assim que esta foi capturada. Mas Grenadine perdeu sua fita de memória e esqueceu a criança.

— Um bom regente teria mais do que uma fita para lembrá-la; teria se certificado de que tudo e todos estavam em seu lugar.

— A minha rainha é uma boa regente!

Jeb encolheu-se com o urro agudíssimo.

O ronco do dodô parou.

— Minha vociferante esposa diz a verdade, rapaz. Morfeu parece guardar ressentimento pelo que ele acredita ser negligência, mesmo tendo sido somente um descuido.

Jeb balançou a cabeça diante de todas as falhas que havia no raciocínio de todos.

— Não. Há mais coisas nessa história.

— Você tem bons instintos, cavaleiro mortal.

Jeb olhou para cima, na direção da voz tilintada. Uma luz brilhante flutuou pela pequena janela e entrou pela pesada porta da masmorra. Jeb levantou-se e agarrou as barras da gaiola, inclinando a cabeça para ver melhor.

Gossamer.

A pequena fada adejou para perto e sussurrou algo para o mágico fio azul que fixava a porta de arame, entrando na gaiola. O fio azul deu um nó em si mesmo depois de ela fechar o trinco.

Ela cintilava feito pequenos fogos de artifício ao pairar no lugar, estudando Jeb com uma expressão de solidariedade.

Como os dois agora tinham o mesmo tamanho, Jeb se lembrou de uma pintura que vira certa vez, de um artista tcheco, Viktor Olivia. O pintor era famoso por retratar uma fada que seduzia homens, levando-os a se embebedarem com absinto. Gossamer personificava essa criatura: uma forma feminina perfeita coberta de poeira verde, e nua, com escamas brilhantes cobrindo-a como um biquíni minúsculo.

Ele havia sentido, quando saiu da sala de espelhos, que Gossamer estava do lado dele e de Alyssa.

— Você veio ajudar — lançou ele, esperançoso.

Uma chave de cobre, da mesma cor dos olhos dela e quase do comprimento total de seu torso, pendia de seu pescoço. Seu olhar caiu para os pés delicados, como se estivesse lutando contra si mesma.

— Eu teria vindo mais cedo, mas Morfeu está sempre vigiando o espelho. Agora que ele está com Alyssa, preparando-a para a coroação, estará ocupado demais para ficar de olho no resto de nós... até o fim.

— O fim? — Jeb apertou a barra ao lado dela, concentrado em seu olhar de libélula. — Você tem que me contar tudo.

A fada olhou para Lorina, que estava se esticando para a porta de arame.

— Você sabe muito bem que não tem o poder de sair desta gaiola, a menos que eu a abra para você.

Bufando, a lóri voltou a voar para o trapézio.

Gossamer conduziu Jeb para a fatia de pera e os dois se sentaram. Seu perfume frutado se impunha sobre o fedor da masmorra e o acalmou o suficiente para ele poder ouvi-la.

A fada colocou as mãos sobre as de Jeb, que descansavam sobre os joelhos.

— Eu já traí meu mestre o bastante vindo até aqui, e sua ira será enorme. Eu só posso dizer que, dentro de uma hora, Alyssa estará comprometida para sempre, amarrada ao País das Maravilhas para toda a eternidade. Morfeu planejou tudo para enviá-lo de volta, cavaleiro mortal... mas sem ela.

Uma veia na têmpora de Jeb começou a se contorcer feito uma serpente em uma bandeja quente. Ele deu um pulo para cima e bateu a cabeça nas barras novamente, tentando amolecer o fio azul, incapaz de controlar a fúria exasperada que lhe fervia por dentro. Mais sangue escorreu por sua têmpora.

— Você tem que me soltar! Preciso impedir isso!

— Sim, sim! Nós também! — intervieram o dodô e sua esposa, em coro. — Temos que ajudar a Rainha Grenadine a manter a coroa!

— Naturalmente — afirmou Gossamer, pegando a mão de Jeb e puxando-o para perto dela. — Vocês todos terão a oportunidade de lutar e de mostrar a sua lealdade.

— Mas não posso lutar assim. — Jeb chutou uma semente do tamanho de seu pé. — Você trouxe algum bolo do crescimento?

— Não. Não é a força de seu corpo que salvará Alyssa, e sim a força de seu coração de artista. Mas eu posso assegurar que não sairá deste lugar em sua forma atual.

A lóri desceu de seu poleiro e ralhou com a fada.

— Agora, me escute, sua lacraiazinha. Este rapaz não tem papel nenhum. Ele é, no máximo, coadjuvante. Eu sou a criada da rainha, e Charlie é o bobo da corte. Nós deveríamos ser a sua prioridade. Somos honoráveis membros da corte, os únicos que podem dar um basta nesta paródia!

Acelerando as asas até virarem um borrão enevoado, Gossamer flutuou e colocou as mãos nos quadris.

— Quanto ao seu papel, Lorina: você pode abrir as correntes de seu marido, pois preciso falar com o mortal a sós e tenho pouca tolerância ao ferro. — Ela abriu a porta da gaiola e lhe deu a chave.

A lóri esvoaçou-se veloz, numa comoção de exibicionismo e má vontade.

— Venha, venha, Doçura Selvagem — chamou Charlie, encorajando a esposa enquanto ela flutuava em torno dele, subindo e descendo, incapaz de manter-se firme em alguma altura. — Apresse-se, por favor. O ferro está me dando fisgadas. Poxa vida! Não é tão difícil assim... tente novamente!

A cara de Lorina ficou ainda mais vermelha.

— Tente, com a ponta da asa, usar uma chave do mesmo tamanho que a sua cabeça, seu meleca! Alguns de nós não foram abençoados com dedos, sabia?

Enquanto o casal se ocupava, Gossamer sentava-se novamente ao lado de Jeb.

— Você disse que meu coração de artista pode salvar Alyssa. Naquele quarto na mansão de Morfeu, também... você disse que eu tenho o poder dentro de meu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Minha namorada está prestes a morrer para mim e para a família dela. Não pode haver escuridão maior — sussurrou Jeb com lágrimas de frustração que lhe surgiram nos cantos dos olhos.

— Morreria por ela, cavaleiro mortal?

A espinha de Jeb se retesou. No passado, toda vez que ele protegera Alyssa, sempre se jogara sem nem pestanejar. Seria capaz de morrer por ela?

Quando o pai de Jeb morreu em um acidente, foi Alyssa quem o salvou. Ele não conseguia acreditar que tinha chegado a pensar em morar em Londres sem ela. Precisava dela, todos os dias. De seu sorriso compreensivo, de como ela fez suas cicatrizes parecerem medalhas de mérito sob seu toque, e de seus olhos incríveis. Mesmo tendo passado por tantas provações quanto ele, havia uma luz dentro dela que nunca se enfraquecia. E essa luz não somente a tornava linda por fora, mas também permitia que ela trouxesse vida aos incríveis mosaicos que fazia.

Era essa luz — tanto a interna quanto a externa — que o tinha levado a desenhá-la e pintá-la tantas e tantas vezes.

Ele olhou para Gossamer, quase incapaz de conter a emoção, agora que havia encontrado uma saída.

— Ela é minha melhor amiga.

Minha musa, meu pincel, minha arte, meu coração. Tudo isso estará morto sem ela.

Esfregando o rosto, ele limpou o líquido que havia caído de seus olhos e escorrido pelo rosto:

— Eu a amo. Sim, eu morreria por ela. É isso que preciso fazer?

A fada o encarava sem piscar.

— Está disposto a ir além da morte? A se perder de todos, até de você mesmo, em um lugar onde as lembranças se esvaem em uma maré escura como tinta? Pois, para libertar Alyssa, você terá que tomar o lugar da Rainha de Marfim na caixa linguardarte onde ela se encontra presa.

Jeb lembrou-se da água escura dentro da caixa que ele havia visto na sala dos espelhos da mansão de Morfeu e da cabeça fantasmagórica que havia lá dentro, e seu coração disparou. O sentimento de autopreservação o invadiu e sua mente começou a tentar encontrar outra maneira. Mas, bem lá no fundo, ele sabia que não havia alternativa e que o tempo de Al estava se esgotando. Ele só lamentava não poder dizer a ela, nem uma única vez, com sua própria voz, como se sentia, antes de ser trancado para sempre.

— Aceito.

— E assim será. — Gossamer ficou de pé e estendeu os braços. Fraco e entorpecido, Jeb aceitou seu abraço. Ela o apertou com força e voou com ele para fora da gaiola, pousando no chão. — O mortal concordou em ser o herói de seu reino. Procurem honrar sua bravura — disparou as palavras para Lorina.

Lorina havia conseguido soltar o marido. Ela se sentou no ombro dele, abanando-se com uma asa. Com os olhos arregalados, ela aquiesceu em silêncio — a demonstração mais sincera de louvor que poderia ter oferecido. O dodô ajoelhou-se ao lado de Jeb, uma presença enorme e plumada.

— Teremos uma dívida eterna para com você, rapaz. O que podemos fazer para ajudar?

Gossamer apontou para um canto da masmorra, onde um cobertor de juta cobria uma cama, chegando até o chão.

— Tragam-me o que está debaixo daquela cama.

Entorpecido por uma mistura de incredulidade e temor, Jeb observou o dodô trazer a caixa linguardarte.

Lorina ficou perplexa.

— Morfeu manteve a Marfim escondida aqui?

Gossamer assentiu.

— Por sugestão do Rábido. Ele disse que este era o único lugar no castelo onde ninguém viria à procura dela.

Depois de pedir a Charlie que abrisse a tampa e arrumasse uma pedra onde eles pudessem subir para ver lá dentro, Gossamer pediu ao estranho casal que se afastasse um pouco para que ela e Jeb tivessem um pouco de privacidade.

Jeb afagou as rosas brancas aveludadas que adornavam o exterior da caixa, fascinado pela beleza do rosto da Marfim quando este veio à tona. O olhar cristalizado de assombro dela passava dele para a fada, e voltava — cautelosamente curioso. Ele estremeceu ao pensar que tomaria o lugar dela.

Tinha mesmo que fazer isso?

Jeb sentiu que Gossamer observava seu semblante.

— Devo perguntar uma última vez se está seguro de sua decisão — indagou ela. — Porque, como você está escolhendo ser trancado, e selando essa escolha com seu sangue, a caixa nunca o libertará. Ninguém poderá salvá-lo. Você está oferecendo sua eternidade pela da Marfim, uma rainha que você nem sequer conhece.

Jeb sentiu um nó na garganta.

— Não. Estou trocando a minha eternidade pela da Al.

Gossamer sorriu com ternura.

— Em seus sonhos, vi certa vez que você teme não ser bom o bastante para a menina. Depois de tal sacrifício, ninguém poderá questionar seu valor como homem nem seu amor por ela. — Ela o beijou no rosto, deixando um calor que penetrou seu coração e conseguiu derreter uma pequena porção do terror congelante que lá se escondia.

Gossamer deu-lhe um pincel e recuou.

— Agora, use o poder que somente você pode exercer. Pinte as rosas com o seu sangue.

Jeb foi tomado por uma tontura. Murmurou coisas... sem sentido, temerosas... palavras agonizantes que ele sabia serem as últimas.

Depois, canalizou a raiva, o terror e o desejo por um futuro que ele nunca teria para as estocadas do pincel. Cada botão branco, tingiu-os de vermelho até perder-se dentro das sombras de seu trabalho, e fundiu-se à sua obra-prima, tornando-se um só.


Capítulo 5


A Decisão da Mariposa

A cena se estendeu e ficou turva enquanto Morfeu era arrastado para fora das lembranças de Jebediah e depositado de volta na chaise-longue. A escuridão deixava a sala pesada, mas ele nem se mexeu para ligar a luminária. O cenário completamente enegrecido parecia combinar com os pensamentos obscuros que lhe cruzavam a mente.

Ele passou o dedo pela coxa, acompanhando as listras do tecido risca de giz e alisando as rugas.

Por que se sentia tão aborrecido? Ele havia encontrado exatamente o que esperava encontrar. As fraquezas de Jebediah estavam à mostra: um ódio que poderia facilmente ser manipulado, um sentimento de impotência alimentado por um pai violento e crítico, um ciúme que provocava um sentimento temerário de proteção e que lhe custaria a própria vida.

O que Morfeu não tinha esperado encontrar, entretanto, era tanta semelhança entre ele e o rapaz. Os demônios do passado atormentado de Jebediah não eram muito diferentes dos seus. Ele sempre se surpreendera sentindo inveja dos humanos... por nunca ter tido o carinho de um pai ou de uma mãe. Simplesmente por ocupar seu lugar no mundo, ele também compreendia o medo de talvez nunca chegar a conhecer completamente a confiança e a afeição de outra pessoa.

Contudo, no passado, Morfeu nunca havia considerado isso uma coisa ruim. Ele apreciava ser uma alma reclusa e independente. Por vezes, até se vangloriava, quando lhe convinha ser o centro das atenções, naturalmente. Mas a atenção, a afeição ou a confiança não eram coisas de que ele precisava. Não até aparecer Alyssa. Depois que ela escolheu ignorá-lo, ele não conseguiu funcionar... sentiu-se desastrado e incompetente.

E agora, depois de colocar-se no lugar de Jebediah, Morfeu compreendia, mais até do que desejava, como o lado humano de Alyssa funcionava. Embora metade dela tivesse asas e pudesse flutuar sobre as inseguranças e trivialidades dos mortais, a outra metade tinha seus alicerces nas coisas que qualquer outro humano ansiava: confiança e segurança.

Tendo visto a coragem e a engenhosidade de Jebediah, bem como sua lealdade a Alyssa, Morfeu soube, sem sombra de dúvida, que aquilo era exatamente o que o rapaz oferecia a ela: uma rede de segurança e emoção que a salvaria caso a queda fosse muito alta.

Não era de admirar que ela fosse tão cativada por ele. Não era de admirar que ele exercesse poder sobre ela. Diabos, o próprio Morfeu ficou morbidamente fascinado pelos honoráveis traços morais do rapaz, incomuns em um humano tão machucado. Morfeu ficou tentado a recuar e deixar Jebediah ter seu momento de felicidade. Alguns poderiam até dizer que ele o havia merecido por desejar abdicar de seu futuro, de suas lembranças e de sua vida por Alyssa.

Morfeu rosnou e caiu para a frente com os punhos cerrados, tentando suavizar o estranho peso em seu peito. O rapaz não ficaria aqui para sempre. Era um mortal. Um dia, morreria de velho, no mínimo, e Alyssa voltaria a ser um alvo fácil.

Alvo fácil.

A mandíbula de Morfeu se contraiu. O romance não era uma coisa justa. Nem era um jogo. Era guerra. E, como em qualquer outro campo de batalha, não lhe cabiam a compaixão e a misericórdia.

O besouro-tapete estava certo. As emoções humanas eram coisas imprevisíveis e poderosas. Elas haviam penetrado na cabeça de Morfeu, enfraquecido sua determinação.

Com os cotovelos nos joelhos, ele levantou as mãos com as palmas para cima, incapaz de ver a silhueta delas no escuro. Ele conjurou um pouco de magia na ponta dos dedos, em bolas elétricas de plasma do tamanho de ervilhas, e depois enviou as esferas para todos os cantos da sala, os raios azuis deixando rastros como eletricidade estática. Elas subiram pelas paredes e em seguida se uniram na forma de uma mulher. A luz pulsava em ritmo hipnótico.

Imaginar Jebediah com Alyssa, mostrando a ela os caminhos do amor, domando seu espírito selvagem com suas corriqueiras convenções humanas, tudo isso queimou a garganta de Morfeu com o sabor amargo da inveja.

Ele não queria que o lado selvagem de Alyssa fosse dominado por nenhum outro homem, não desejava compartilhar nenhuma parte dela. Morfeu desejava os dois lados: sua inocência e seu espírito desafiador.

Que graça poderia haver na dependência? Que espontaneidade poderia haver em um mundo previsível? Ele poderia lhe oferecer uma eternidade de desafios e paixão, de momentos ternos e calmos nas profundezas de chamas vibrantes e tempestades devastadoras — a tranquilidade em meio ao caos.

O lugar dela era com ele, usando trajes de soberana. Ele tinha tanto a ensinar-lhe sobre o reino intraterreno, sobre as glórias da manipulação e da loucura. Se Morfeu alimentasse o faminto lado intraterreno de Alyssa, suas inseguranças e inibições humanas diminuiriam e, com o tempo, poderiam desaparecer. Ela nunca mais ansiaria pelo amor seguro de Jebediah.

Morfeu invocou sua magia de volta, recolhendo as espirais de luz azul até ficar novamente envolto na escuridão. Suas asas varreram o chão quando ele se levantou, e ele as ergueu num arco que quase tocava o teto.

Nada mais de deliberações. Ele tinha tentado fazer o que era justo em instâncias passadas e, sem exceção, isso sempre o prejudicara. Podia ignorar a pontada de culpa que lhe agitava o peito, mas não podia abdicar de suas necessidades pelas necessidades de Jebediah. Ele nunca mais seria ele mesmo sem Alyssa ao lado — a chama para sua Mariposa. Morfeu não pararia até que ela voltasse para o lugar que lhe pertencia, no País das Maravilhas.

Para vencer, ele jogaria sujo, colheria os despojos do coração dela do modo como fosse necessário, não importava quanto isso custasse ao rapaz mortal. Afinal, este era o modo intraterreno. Fazer menos que isso faria de Morfeu um humano. E ele sabia, agora mais do que nunca, que essa era a última coisa que jamais desejou ser.


SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS
Epígrafe

ÀS VEZES PENSO EM SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS ANTES DO CAFÉ DA MANHÃ.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Um

Mortalidade

Capítulo 1

Deportação

Algumas pessoas podem dizer que é impossível morrer e viver para contar. São as pessoas que nunca experimentaram a mágica. Quanto a mim, sou tataraneta da Alice que inspirou Lewis Carroll. Acreditei no inacreditável por mais de sessenta e quatro anos, desde que tinha dezesseis e descobri que o País das Maravilhas era real e cheio de seres caprichosos, misteriosos e loucos, governados por acordos e enigmas. Ainda assim, às vezes, por mais que você acredite no impossível, as coisas não saem como você as planejou. Toda mágica pode encontrar um obstáculo de vez em quando.

Por exemplo, nunca esperei que meu cadáver acabasse numa caixa de sapatos. É isso que os caixões crematórios me lembram... uma caixa de papelão do tamanho de uma pessoa. O caixão não é muito confortável. Não há a forração de veludo para suavizar a base de madeira. Nenhuma almofada para acomodar minha coluna curvada. E nada de roupas, além de um vestido de papel para cobrir minha pele velha e enrugada.

O cheiro de papelão se fixa ao meu nariz e as rodas de aço da maca giram ao longo do corredor, rangendo em algum lugar sob mim, junto a passos familiares. Sinto a transição do ambiente fresco e de temperatura controlada onde o legista atestou minha “morteza” (como os seres do País das Maravilhas diriam). Ele, então, pôs uma identificação de aço inoxidável no meu peito e fechou uma tampa sobre mim, me prendendo na escuridão.

A maca sacode ao entrar num lugar muito mais quente. O cheiro de ovo podre do propano confirma nossa localização. Já visitei este lugar. Nos últimos meses visitei vários crematórios, quando não havia ninguém por perto, de madrugada. Para conhecer melhor o gigantesco forno de tijolos à vista que estaria esperando para queimar minha carne. Para encontrar o projeto perfeito, com um banheiro e um espelho de corpo todo do outro lado do salão.

Assim que optei pelo crematório do Pleasance Rest Cemetery, me preparei para morrer.

Meu plano original era usar Tetrodotoxina. Em doses pequenas, subletais, ela deixa a vítima num estado de quase morte por dias, permitindo que ela mantenha a consciência. Morfeu, porém, não concordava. Ele disse que a margem de erro entre o estado de quase morte e a morte de verdade era pequena demais no mundo mortal e não algo com o que se brincar. Ele não queria que eu arriscasse. Então, ofereceu uma substituto do País das Maravilhas: uma poção que funciona quase da mesma forma, mas que tem um antídoto cem por cento garantido.

Bebi a dose de quase morte nesta manhã e, dez horas mais tarde, ainda sinto o gosto amargo e anestésico, como cravos dançando no fundo da garrafa de vinagre. Não consigo morder a língua para aliviar o efeito. A mágica me deixou catatônica — meus olhos fechados e imóveis, meus batimentos e respiração reduzidos a um ronronar indetectável por quaisquer instrumentos humanos.

Meu lado intraterreno se remexe dentro do meu crânio, me garantindo que isso vai dar certo, mas meu lado humano instintivamente se encolhe quando o medo tranca minha garganta. Não posso gritar para dizer a todos que estou viva. Minhas cordas vocais não vão funcionar. A claustrofobia, minha velha inimiga, me deixa toda arrepiada. Sei o que está acontecendo ao meu redor, apesar de não conseguir abrir os olhos ou mover meus membros. Todos os cheiros, sons e sensações táteis são ampliados por minha incapacidade de reação.

Os paramédicos que atenderam, nesta manhã, à chamada de emergência da minha neta de vinte e sete anos me declararam morta — fulminada por um ataque cardíaco. Foi insuportável ouvi-la chorar e gritar. Isso despertou lembranças da minha maior perda — da morte de Jeb, três anos antes. Uma faca ainda é cravada no meu peito sempre que me lembro do nosso último adeus.

Mas Jeb me mandou ser firme. E ensinei aos meus netos o mesmo — sempre encarar as coisas. Ela ficará bem. Não tenho dúvida disso porque ela é muito parecida comigo, para além de seus cabelos loiros, olhos azuis e curiosidade. Ela é teimosa, leal e uma sobrevivente.

Assim que os paramédicos levaram meu corpo ao necrotério, tudo funcionou como o previsto.

Minha família sabia que cemitério eu escolhera e as quatro exigências do meu testamento: nada de exibição pública do meu corpo, nada de velório, cremação em doze horas depois da minha morte e a dispersão das minhas cinzas no mesmo local onde as de Jeb foram jogadas, sob o salgueiro em nossa casa de campo. A árvore tinha um significado especial, por ter sido gerada de uma mudinha do salgueiro que dividia os quintais da nossa casa quando éramos crianças.

Tais pedidos nada convencionais não abalaram minha família, considerando que me tornei uma mulher muito excêntrica.

Depois da morte de Jeb, eles me viram vagar pela casa de campo, reunindo os mosaicos que fiz ao longo da vida, cheios de paisagens bizarras e místicas — com títulos como A Batida do Coração do Inverno, Dunas de Xadrez e O Ventre do Monstro —, e guardando-os no sótão, ao lado de outras quinquilharias, incluindo um anúncio de um passeio pelo Tâmisa, em Londres. As últimas coisas que guardei ali foram duas chaves: uma que pertencia à minha mãe, e era capaz de transformar qualquer espelho num portal, e outra que podia abrir o jardim das almas do País das Maravilhas. Esta última foi um presente dado a Jeb, depois que ele desistiu da sua musa, de modo a satisfazer a necessidade do reino interior por sonhos vívidos e cheios de imaginação, conectando nossos mundos em paz ao longo do processo. Ele desistiu do que fez dele único, a fim de manter as crianças humanas seguras. Um ato de coragem que seus filhos e netos jamais tiveram o privilégio de saber. Era essa a lembrancinha de que eu tinha mais dificuldade para me desapegar, porque era uma homenagem à coragem e ao caráter nobre de Jeb — as duas coisas que eu mais amava nele. No entanto, como Rainha Vermelha do País das Maravilhas, eu não tinha motivo para guardar chave tão sagrada.

Escondi tudo num baú no sótão e o tranquei. Então pus a chave do baú em meio às páginas da minha velha coleção de Lewis Carroll. Jeb e eu éramos donos da casa e do terreno que a cercava, e insistimos, em nossos testamentos, para que o lugar permanecesse sempre com a família. Assim, se nossos descendentes um dia precisassem me encontrar, poderiam. Eles só precisam procurar as pistas, como um dia eu fiz. Seguir meus passos e acreditar no impossível — em contos de fadas e desejos e mágicas.

Sempre os mantive no escuro quanto ao nosso legado, dando-lhes uma chance de viver uma vida normal. Até mesmo ordenei que os insetos e flores ficassem em silêncio. Agora sou a única capaz de ouvir esses sons do mundo interior, e as coisas continuarão assim enquanto eu estiver reinando como a Rainha Vermelha. Contudo, se algum familiar procurar com presteza, vai encontrar a verdade que escondi para eles.

Em todos esses anos, eles aceitaram meus caprichos porque sempre os respeitei e os amei incondicionalmente. E agora conto com a lealdade deles. Todo o meu plano de morrer depende da execução do meu testamento.

A cremação era a única forma de evitar que drenassem meu sangue, bombeassem formol em minhas veias e cerzissem minhas pálpebras — todos aqueles procedimentos mórbidos e intrusivos para embalsamar e preservar o corpo mortal. Fui abençoada ao longo dos meus oitenta anos de vida humana com saúde e uma mente aguçada. Nunca precisei de marca-passo e não tenho próteses, implantes ou dentaduras, então não há nada que possa explodir no forno. Isso significa que não haverá incisões nem extrações. Era importante que eu permanecesse intacta — por dentro e por fora.

Todavia, se o Rábido Branco não se apressasse e chegasse aqui com o antídoto para me tirar deste estado, nada importaria. Vou virar um monte de cinzas. E Morfeu terá de encontrar um lar novo para meu espírito eterno... um novo corpo para eu habitar.

Ele ficará furioso se isso acontecer e nunca me deixará esquecer isso. Uma eternidade é muito, muito tempo para ouvir eu avisei, entoado continuamente com um marcado sotaque londrino.

— Não me importo — disse ele há duas semanas, enquanto discutíamos meu êxodo do reino humano e tomávamos chá durante uma das minhas visitas ao País das Maravilhas em sonho. Ele levou a xícara à boca, seu rosto curioso perfeito e jovem como sempre. Ele bebeu e deixou a xícara de lado novamente. — Muitas coisas podem dar errado. Devo estar lá para executar meu plano.

— Vou agir sozinha — declarei. Estudei a cama com dossel e a lareira instaladas na diagonal em relação a enormes poltronas vitorianas ao lado de uma mesa oval, buscando conforto no cenário. — E vamos seguir meu plano. — Aqueles seriam meus últimos instantes no reino humano. Tinha de ser de acordo com a minha vontade. Contive uma descarga de tristeza e tentei exibir o mesmo controle que Morfeu exibia com sua xícara de chá, mas o líquido quente molhou minha mão velha quando meu pulso tremeu. Gritei.

— Alyssa, por favor. Permita-me. — Com seus dedos lisos e elegantes, ele cuidadosamente segurou meus dedos enrugados, limpando o chá e acariciando a mão queimada com um guardanapo.

Permita-me. Nós dois sabíamos que ele falava de outras coisas além da limpeza do chá derramado.

Tantos anos passamos juntos nos meus sonhos — e tantos outros na nossa infância —, com Morfeu me treinando e me ensinando sobre meu reino e o mundo. Não havia oportunidades para ficarmos sozinhos, já que ele mantinha o véu do sono descoberto para eu poder interagir com o Rábido, Chessie, Marfim, as criaturas e meus súditos.

Isso mudou quando fiquei viúva. Realizava meus deveres reais todas as noites e lutava para ser forte, até que meu luto pela morte de Jeb ficou tão intenso que as lágrimas se acumulavam em meus cílios, me cegando. Morfeu — sentindo minha vergonha, porque rainhas não choram — insistia que era hora do chá, que tomávamos sozinhos nos aposentos reais que um dia pertenceria a nós como rei e rainha.

Ali, na nossa solidão, escondidos de olhos predadores e cercados por exuberantes tapetes vermelhos e cortinas douradas, eu me perdia em minha dor. Permita-me, dizia ele. Estendendo os braços, ele me abraçava enquanto eu chorava. Noite após noite, durante um ano, até que finalmente não conseguia mais chorar.

Pouco depois, a atenção de Morfeu mudou. Seus carinhos se tornaram menos confortantes e mais íntimos. Estava constrangida demais para reagir, tímida demais em meu corpo velho.

Um ser místico eternamente jovem cortejando uma velha — teria rido do absurdo disso, não estivesse tão afetada pela devoção cega dele e pela intensidade do seu amor.

— Mesmo que usássemos seu plano... — Morfeu falava baixinho e de mau humor ao esfregar o guardanapo entre meus dedos, enxugando os resquícios de chá. — ... ainda assim eu deveria estar lá nas coxias, para supervisionar o espetáculo.

Franzi a testa para ele. Sua teimosia, juntamente com a dança dos vaga-lumes em seus cabelos desgrenhados e seus traços bizarramente belos, me fez lembrar outra noite em que nos sentamos neste quarto juntos — há várias décadas —, quando ele tentou me convencer a usar a coroa de rubi pela primeira vez. Quando tentei convencê-lo a me devolver meu desejo para eu poder fugir do País das Maravilhas, curar a maldição da minha família e manter Jeb em segurança. Eu era uma pessoa diferente na época, cheia de juventude, aspirações humanas e inocência.

Nosso quarto real se tornou uma lembrança dolorosa da velhice e decrepitude. Ansiava criar lembranças novas aqui, depois de desistir de tentar superar a beleza caótica do País das Maravilhas, quando fui coroada rainha de novo e permaneceria com dezesseis anos para sempre — jovem, cheia de energia e tão sedutora quanto o homem alado que governaria ao meu lado.

Até então, eu não me encaixava. Eu era uma foto deixada ao sol e chuva, minhas cores vibrantes se desbotando melancolicamente e ganhando um tom amarelado. Meus poderes intraterrenos ainda eram fortes, mas estavam presos num vaso gasto pelo tempo. Meus ombros pareciam curvados e pesados demais, eu raramente usava minhas asas. Do que mais sentia falta era voar.

Eu me perguntava se era assim que a Rainha Vermelha se sentiu no fim e por que ela permitiu que Morfeu a convencesse a voltar ao País das Maravilhas, abandonando seus descendentes semi-humanos. Por fim, foi plano dela voltar, apesar de não querer fazer aquela jornada sozinha. Ela brigou com Morfeu, dando início a uma série de eventos e manipulações que acabaram por me levar à coroa e me tornar rainha. Algo pelo qual aprendi a agradecer, apesar de na época ter reclamado do presente. Demorei muito para admirar totalmente a preciosa imortalidade, e jamais desvalorizaria isso novamente.

Depois que Morfeu terminou de limpar o chá derramado, tirei a mão da dele e timidamente cobri meu pescoço com o lenço de seda, tentando esconder minhas peles murchas. As pessoas diziam que eu era linda para a minha idade. Que parecia ao menos vinte anos mais nova. Todavia, em comparação à beleza sobrenatural e imutável de Morfeu, eu me sentia velha.

— Não quero você lá — insisti, determinada a mantê-lo distante da casa funerária. — Já basta você ter me visto murchar como uma uva-passa ao longo dos anos. — Até minha voz soava enferrujada, como se as palavras jorrassem da minha garganta e língua em porções cáusticas.

Morfeu apoiou os cotovelos na toalha da mesa, aproximando-se ao máximo com o jogo de chá entre nós. Seus cabelos azuis tocaram-lhe os ombros, animados e encantados — um contraste marcante com as ondas brancas reduzidas a um coque preso atrás da minha cabeça.

— Você está no fim de sua crisálida, meu amor. Esta etapa é a mais difícil, acredite. Uma batalha furiosa e incômoda de identidade, antes de se libertar e se transformar na criatura de luz e criatividade que sempre foi seu destino. Posso mantê-la atenta. Para evitar quaisquer... distrações.

Ele olhou para minha aliança, que eu ainda não tinha tirado. Aquilo se tornara mais do que um símbolo da nossa devoção. Tornara-se um símbolo da minha vida humana, e eu pretendia usá-la até deixar tudo para trás.

Com o dedinho, Morfeu circulou a aliança, cuidando para não tocar os diamantes ou o suporte de prata que os mantinha no lugar.

— É importante que você não permita nada que a impeça de dar o salto final. Você sofreu a perda daqueles que se foram há tanto tempo. Eles estão em paz. Deixe que a paz deles lhe dê paz. Senão, você será afetada... incapaz de agir com a mente ágil. O foco é fundamental para que qualquer um dos planos funcione.

— Já sei disso — respondo, um aperto no peito dolorido. — Você tem medo de que eu fique senil. De eu não ser capaz de lidar com isso.

Ele suspirou, acariciando meu polegar com o dele.

— Não senil. Nostálgica. Acontece a humanos. Você mesma me contou, enquanto eu a via amadurecer do refinamento à sabedoria.

— Refinamento. — Tentei um sorriso hesitante diante do esforço dele em me encantar. — É assim que vocês falam hoje em dia?

Ele me encarou sem hesitar.

— Seus olhos não perderam a incandescência; nem a mente, a inteligência. Você não é ingênua. Você é minha torta de ameixa, e sempre foi. Já lhe disse isso repetidas vezes, não é?

Ao menos uma vez por noite nos meus sonhos, Querida Mariposa.

Não respondi em voz alta, assim como não revelei minhas maiores inseguranças: estava com vergonha de ele me ver tão decadente... Não suportava a ideia de ele ter qualquer lembrança de mim como um cadáver naquele caixão de papelão — assim como eu vi Jeb depois da morte dele, antes de ser cremado.

— Uma rainha não deveria exigir resgate — sentencio. Ainda o encaro, maravilhada com aquelas íris coloridas que devolvem a mim o mesmo olhar de nossa infância, cheio de surpresa e afeto. De certa forma, ele via para além do meu corpo velho e enxergava a menina que fui, e eu queria muito conseguir me ver como ele me via. — Uma rainha deve merecer o respeito do seu reino e de seus súditos. E a admiração do rei.

Ele pegou minha mão novamente e beijou cada um dos nós dos dedos cheios de artrite.

— Ah, eu lhe garanto Você sempre mereceu isso. Na verdade, planejo mostrar-lhe a profundidade de minha admiração. — A palavra profundidade saiu de sua garganta como um urro. — Ainda que sejam necessárias várias vezes para convencê-la, finalmente chegará o momento de você ser minha.

Meu rosto ficou vermelho. Apesar de todos os anos em que ele me elogiou e me provocou com insinuações, e a despeito de tudo o que vivi como mãe, esposa e avó mortal, ele ainda conseguia me fazer enrubescer.

— Ah, aí está. — Ele passou o dedo por meu rosto enrugado e sorriu, satisfeito demais consigo mesmo. — Não perdi meu encanto.

— Como se isso fosse possível, para o mestre da sedução verbal — provoquei.

Seu humor mudou para a insolência num piscar de olhos.

— Você logo verá que isso é mais do que conversinha, minha rosa.

Fiquei ainda mais vermelha, sentindo-me mais jovem do que nunca. Ele sempre causava esse efeito em mim. Sempre fez com que eu me sentisse viva e desejável. Exceto pelas vezes que ele me desafiava ou me deixava furiosa.

Ele se recostou em seu lugar, as asas erguidas.

— Seu corpo está cansado. Deixe-me fazer isso por você, para você poder descansar — tentou ele uma última vez.

— Você me ensinou a ser forte e astuciosa. Devo dar sozinha este último salto para dentro da toca do coelho. — Uma sensação inesperada de vulnerabilidade me fez tremer. Peguei minha xícara de chá para absorver seu calor. — Mas você estará lá para me pegar?

— Estarei lá esperando um beijo arrasador para compensar todos os meus problemas — respondeu ele sem hesitar.

Sorrindo, peguei o jogo de xadrez. Morfeu ficou observando atentamente eu animar as peças para que atuassem no meu grandioso plano de deixar o reino humano e esconder meus vestígios com a ajuda do meu conselheiro real, além de pedaços de osso fornecidos pelas fadas, um saco de cinzas, dois trajes de disfarce, uma mosca comum e um punhado de duendes. Enquanto eu falava, seu olho adornado com joias brilhava num tom esverdeado — incomodado, mas esperançoso. A ansiedade que emanava dele era visceral.

Era inconcebível que tivéssemos um relacionamento de sessenta e três anos — platônico — sem um quê de tensão. Apesar de ele gostar muito de me ver andar na ponta dos pés na corda bamba da sedução contida, ele manteve seu juramento e respeitou minha decisão de ser fiel a Jeb. Ele esperou três anos, enquanto eu sofria a morte do meu marido mortal e preparava minha família para minha partida iminente. Era essa a profundidade do respeito dele por mim. Ele teve meu respeito em troca. E muito mais...

Agora chegou o dia de recompensá-lo por sua paciência e estou começando a me arrepender por não deixá-lo planejar minha morte... por não deixá-lo controlar o espetáculo. Provavelmente, tudo seria muito mais fácil. Eu já estaria em seus braços e em sua cama — uma jovem rainha borboleta, governando meu reino, embriagada de poder, loucura e paixão.

Não. Eu consigo. Posso provar que sou capaz, calculista e forte, como todas as boas rainhas deveriam ser.

O único papel de Morfeu no meu plano era mandar o Rábido com o antídoto. Assim que meu cúmplice chegar, tudo se encaixará e fugirei para o País das Maravilhas. Como um corpo não pode ser exumado depois de reduzido a cinzas, ninguém saberá que ainda estou viva e apenas fui embora deste mundo para sempre.

Uma pontada de tristeza segue-se a esse pensamento quando finalmente me dou conta. Acabou. Estou pronta para dar um fim... para começar meu futuro imortal. Vivi uma vida plena aqui. Minha família é saudável e feliz. Estamos no auge. Todos os sonhos humanos foram realizados e meu coração está firme e forte novamente.

Se bem que, por causa disso, há muita coisa a ser deixada para trás. Não há nada inconcluso, mas ainda assim é difícil dizer adeus para sempre. Assim que a coroa for colocada em minha cabeça para dar início à minha imortalidade, não terei de usá-la constantemente para manter minha juventude, mas terei de ficar no País das Maravilhas. Como Marfim uma vez me disse, o tempo é complicado ao se passar pelo portal a fim de retornar ao mundo humano... há de se imaginar uma hora específica, ou o relógio retrocede e o portal deixará você no mesmo momento de sua passagem.

Se eu tentar cruzar as fronteiras para o reino humano depois de partir, voltarei para sempre a este momento e terei oitenta anos para sempre, ou automaticamente envelhecerei todo o tempo que se passou e virarei pó na hora. Acrescente-se a isso o fato de eu estar morta aos olhos de todos — jamais poderia explicar meu reaparecimento sem causar terror e confusão — e ir e voltar não será mais uma opção.

Uma muralha impenetrável está prestes a se erguer entre mim e minha família, deixando-nos sem nada além de memórias.

O rosto de Jeb reapareceu em minha mente antes que eu pudesse impedir... como seus olhos verdes brilhantes me encararam pouco antes de ele os fechar na morte. Como eles estavam tão cheios de amor e gratidão por todos os sonhos que compartilhamos.

Sinto algo crescer na minha garganta e uma dor atrás dos olhos. No meu peito, a pequena identidade de metal parece uma pilha de tijolos.

Pare. Não posso fazer isso agora. Tenho de me concentrar na fuga. Morfeu tinha razão. Pensar naqueles que amei só vai me atrapalhar. Vou manter as lembranças sob controle... esquecer como encarei a morte da mamãe e do papai, como achei que jamais superaria a dor. Como Jeb foi meu porto seguro, como sempre. Assim como fui para ele, quando a mãe dele morreu.

É fútil pensar nessas coisas agora, porque, assim que Jeb morreu, todo o mundo se distorceu — adquiriu uma nova forma que eu não reconhecia. As coisas cotidianas se tornaram estranhas e desagradáveis. Com a morte dele, eu não fazia parte de mais nada.

Minha metamorfose estava completa assim que meu marido mortal deixou de respirar. Só o que me restava agora era sair do meu velho casulo.

Um cheiro novo entra em meu entorno de papelão — loção pós-barba ou desodorante —, me obrigando a voltar ao presente enquanto dois homens conversam do lado de fora do caixão.

— Última da noite, Frank?

— É isso, Brian. Chegou há algumas horas. Só entrega. E é para se apressar com ela. Quer que eu fique e ajude?

Tenho dificuldade para respirar. Meu plano não permite duas testemunhas. Só uma. Enquanto espero pela resposta do operador do crematório, meu coração se encolhe dentro de mim, cheio de medo. O órgão parece tremer, apesar de não haver pulsação em meus pulsos ou ouvidos. Só uma vibração fria e indiscernível por trás do meu esterno, como gelatina gelada retirada da fôrma.

— Não — diz finalmente Brian, mexendo em alguns papéis. — Posso fazer isso de olhos fechados.

A ironia é risível. Se tudo sair como planejado, ele não só terá seus olhos fechados, como também estará dormindo e sonhando.

— Vá para casa e fique com sua família — conclui Brian. — Diga a Melanie e às crianças que mandei um oi.

— Entendi. Até amanhã.

As portas se fecham com um rangido e o alívio toma conta de mim, mas por pouco tempo. Os cliques e claques da esteira mecanizada balançam as paredes de papelão do meu caixão e agitam meus ossos rígidos. Sinto um balançar leve sob minha coluna enquanto meu caixão segue por uma esteira com rolos de metal. À medida que estes se movem, as chamas crepitam mais alto, aquecendo meus pés no ponto onde a parede sob a sola dos meus pés se aproxima perigosamente da entrada do incinerador.

Era para o Rábido estar aqui antes que o forno de temperatura controlada estivesse quente o bastante para acionar o mecanismo de abertura. As coisas estão acontecendo fora da sequência e rápido demais. Meus músculos doem e ganham vida, mas estão rígidos como aço. Imóveis. Um vislumbre de outra lembrança me arrepia: quando a Rainha Vermelha controlou meu corpo naquele último dia em Qualquer Outro Lugar. Quando eu era uma marionete dela. Sinto-me tão impotente agora quanto naquele tempo.

Estou prestes a ser envolta em chamas. Meu corpo não vai sobreviver. De todo modo, preciso sobreviver. Prometi voltar como eu mesma. Inteira. É uma promessa que não posso quebrar. Morfeu esperou demais por meu retorno. Não posso decepcioná-lo.

A dúvida ergue sua cabeça horrível: o que farei? Não consigo me mover, não consigo me livrar... não sem o antídoto. Um vazio dói por trás dos meus canais lacrimais enquanto desejo que uma enchente me liberte e encha toda a minha caixa com um oceano de lágrimas para me salvar do fogo. Mas meus olhos podiam muito bem estar cheios de areia.

Chega de drama, meu amor. Use sua mágica. Improvise e encontre uma forma de escapar.

Não tenho certeza se é a voz de Morfeu na minha cabeça ou se é minha própria voz. Ouvi o sotaque dele e sua insistência tantas vezes ao longo da vida que eles estão entranhados em mim como se fossem meus.

Seja qual for o caso, isso desperta minha determinação. Há um motivo para eu ter vindo a este lugar na noite passada, quando tudo estava escuro e em silêncio: para poder anotar mentalmente todas as coisas que poderia animar se precisasse. Para poder entender a logística do forno crematório. Para poder usar minha mágica às cegas.

Concentro-me no maquinário da esteira. Aprendi uma coisa ou outra sendo esposa de um mecânico. As molas do mecanismo se contraem enquanto as imagino se retraindo. O movimento aciona as amarras e a porta de metal se fecha com um baque. Minha caixa para imediatamente ao atingir o obstáculo.

— Você só pode estar brincando comigo — resmunga Brian. Ele mexe na maçaneta da porta e bate nas dobradiças. — Pronto. Agora, sim.

Ele empurra meu caixão de volta para a esteira de metal, criando espaço para a dobradiça se abrir. Minha mente procura outra forma de detê-lo quando o ouço gritar “Mas o que é que...?”, pouco antes de ouvir o som do seu corpo caindo no chão. O caixão bate na porta fechada novamente.

— Rainha Alyssa — uma voz fina soa do outro lado do papelão.

Nikki, sua fadinha maravilhosa. Um formigamento se irradia pelos meus lábios, o fantasma de um sorriso esperando para se abrir. Meus dedos dos pés se dobrariam de empolgação, não fosse minha paralisia.

A tampa do caixão se abre e as asas de vinte fadas pairam ao redor do meu rosto — lufadinhas de vento com cheiro de canela e baunilha.

Mãozinhas do tamanho de joaninhas seguram minhas pálpebras, abrindo-as diante de um brilho âmbar. Ainda não consigo virar a cabeça, mas pela minha visão periférica a galhada do Rábido aparece sobre a borda do caixão, seguida por um par de olhos rosados brilhantes.

— Atrasado estou — desculpa-se ele.

Tento menear a cabeça, mas não consigo.

Todo o seu rosto aparece diante de mim.

— Arrumá-la, Alteza. Levá-la para casa, finalmente.

Casa. A palavra passeia por minha mente, cheia de promessas e esperanças. Imagino-me voando com Morfeu pelos cenários bizarros e irregulares do País das Maravilhas. Como vai ser bom me sentir pertencente a um lugar de novo. Fazer parte e nunca ter de abandonar ninguém novamente.

O Rábido estica o braço magro e derrama em minha garganta algo de uma garrafa vermelha. Um leve toque de frutas vermelhas misturado a menta arde em minha língua. Meu coração ganha vida, batendo com tanta força contra meu esterno que eu perco o fôlego. Em pouco tempo, sou capaz de abrir os olhos sem a ajuda das fadas. Elas se dispersam com risadinhas e pairam ao redor do adormecido operador do crematório, caído no chão de cimento.

Pisco com força e rapidez. Meus canais lacrimais funcionam e meus olhos se enchem de água. O sal fere e coça.

Depois, meus dedos dos pés e das mãos latejam e os músculos despertam, moles e resistentes, como elásticos esticados demais. Enquanto me sento, minhas velhas articulações estalam.

O Rábido sobe na beirada da inclinação e segura o caixão, mantendo-o ao meu nível.

— Perdoe o Branco Rábido. Para todo o sempre, ao seu lado estarei.

Acaricio sua cabeça macia.

— Nenhum perdão é necessário. O que importa é que você está aqui agora. Alguém o viu saindo do banheiro?

O Rábido faz que não.

— A mosca no muro ficou de olho no futuro. — Ele ri da rima e aponta para a parte de cima da porta que ostenta a única janela do salão. A mosca anda pelo vidro do outro lado, numa demonstração de sua devoção inabalável.

O Rábido abre o sorriso sorrateiro que aprendi a apreciar, enquanto sua mão esquelética me entrega uma mochilinha. Olho dentro e está tudo ali: meu colar com o rubi, minha aliança de casamento, os trajes de disfarce, um saco de cinzas e pedacinhos de osso, uma muda de roupa, uma faca e três lembranças da minha vida humana que serão as únicas coisas que levarei comigo ao transpor os limites do País das Maravilhas.

Primeiro, coloco o colar em volta do pescoço e aperto a chave contra o peito, saboreando o poder que ela contém.

O operador do crematório ronca no chão. Ele parece com frio e nada confortável, mas sei que não está. Seus sonhos são cálidos e sensuais. As fadas voam ao redor dele, as asas batendo à velocidade de beija-flores, enquanto elas espalham partículas que são como dentes-de-leão cheios de feromônios. As sementinhas caem sobre o rosto sorridente do homem, levando seu inconsciente a imaginar as fantasias mais carnais. Torço o nariz, com vergonha até de imaginar o que ele está sonhando. Ele provavelmente vai ter uma ressaca de sonhos por uma semana.

Ainda que ele não vá sofrer nenhum efeito físico duradouro, as fadas estão explorando os pensamentos secretos dele. Quando eu era mais nova, teria me arrependido de tê-lo usado em meu plano. Agora, não. Quando ele acordar, daqui a mais ou menos uma hora, sua dor de cabeça insuportável o impedirá de questionar como conseguiu me cremar enquanto ele dormia. Ele só irá querer uma aspirina e sua cama macia em casa.

O fim justifica os meios.

Uso a faca para cortar uma abertura na lateral do caixão e tirar minhas pernas, lenta e cuidadosamente. Não consigo me mover tão rápido quanto antes. Meus pés descalços tocam o chão frio, o vestido de papel fazendo barulho. O Rábido se vira de costas enquanto tiro o vestido e o jogo dentro da caixa, depois visto um moletom e botas cinza — as roupas mais confortáveis e discretas do meu armário. Repreendo-me por me esquecer das roupas íntimas, mas não importa o que estou vestindo agora, porque no País das Maravilhas Morfeu encheu todos os armários do castelo com camisolas e lingeries de renda, cetim e veludo — um guarda-roupa digno de uma rainha.

Hoje, o disfarce esconderá meu traje simplório. Coloco o pé no tecido mágico. Para virar uma camaleoa, só preciso vestir o capuz e me concentrar nos arredores, meu corpo refletindo o cenário de fundo.

Mas primeiro...

Sem eu nem pedir, o Rábido me entrega o saco de cinzas e ossos e minha aliança de casamento. Olho o anel. Jeb o fez para mim quando tinha a capacidade mágica de pintar coisas e lhes dar vida. Quando sua musa se tornou uma entidade viva. Ele me serviu tanto como anel de noivado quanto como anel de casamento e era indestrutível. Pelo menos era o que pensávamos. A única vez que ele perdeu um de seus doze diamantes foi por descuido da minha mágica, quando eu a estava praticando.

Estava do lado de fora da nossa casa de campo, tentando fazer o salgueiro dançar, quando o diamante caiu na grama. Procuramos e procuramos, mas nunca o encontramos. Depois de uma semana, ele apareceu de novo, nascendo do solo na forma de uma flor parecida com vidro. Era como se o diamante fosse uma semente, tendo dentro de si a força da criação mágica de Jeb.

O cheiro de terra presente na lembrança dá lugar ao cheiro do propano do forno. Abro o saco e derramo as cinzas e ossos no caixão, mantendo os movimentos metódicos e precisos para a nostalgia não tomar conta de mim novamente.

Depois de esvaziar o saco, beijo minha aliança e a coloco em cima do montículo.

— Rábido, derreta isso com sua mágica.

Meu conselheiro real se aproxima, olha pela abertura e estreita seus olhos brilhantes até que eles irradiem um calor vermelho. Enquanto ele se concentra, as faixas de prata se fundem, reduzindo os onze diamantes a cinzas.

Coloco a placa de identificação dentro do caixão e leio o que está gravado no aço: Alyssa Victoria Gardner Holt. Sinto um nó na garganta. É a última vez que meu nome humano me definirá.

Reposicionando a tampa, ordeno que o mecanismo da porta funcione. Entrefecho os olhos diante do calor e das chamas, enquanto as portas se abrem o bastante para eu empurrar o caixão pela esteira, a porta se fechando em seguida. Ela se fecha completamente, tanto que nem mesmo se pode ver o brilho alaranjado lá dentro.

Alguns segundos mais e eu estaria presa ali. Agora, depois que o papelão se queimar todo, vai parecer que eu estava. As prateleiras de metal na parede contêm vários cubinhos de papelão. Dentro estão os restos mortais dos corpos que vieram antes de mim e agora esperam ser transferidos para suas urnas.

Mas meus “restos mortais” são únicos. Os diamantes de Jeb esperam lá dentro — sementinhas mágicas. Quando as cinzas forem lançadas no lugar onde as dele foram absorvidas na terra sob nosso salgueiro, flores nascerão, uma parte dele e minha. Unindo o que restou de nosso lado humano, numa última homenagem a toda a beleza que ele criou durante a vida.

Seguro-me para não chorar e pego a mochila enquanto o Rábido veste outro traje de disfarce, o qual encolhe até caber em seu corpo de coelho. Mentalmente, pergunto à mosca se o corredor está livre.

Ela responde num sussurro:

Está tudo bem, Rainha Alyssa...

Os outros humanos se foram. Não há nada além de umas traças por aqui.

Desnecessário ficar invisível, então.

— Nikki — sussurro, e a fadinha balança as asas, soltando a dose final de pó de fada no homem adormecido. Então ela reúne suas companheiras e nos segue porta afora. O banheiro fica a poucos passos do outro lado do corredor comprido e escuro. Sigo tomando cuidado para não esmagar as traças que caminham perto dos meus pés e dos pés do Rábido. Sorrio ao ver os insetos acompanhados de uma fila enorme de baratas, besouros e aranhas.

Rainha Alyssa! Rainha Alyssa! Tão triste vê-la partir...

A mosca voa ao redor da minha cabeça, acrescentando suas despedidas à confusão.

— Sentirei saudade de vocês também — digo, lutando contra uma onda de melancolia. Será a última vez que ouvirei esses cumprimentos confusos e zunidores. No País das Maravilhas, os insetos são... bem diferentes. Menos inócuos e bonzinhos. Alguns são maus e letais, e nada pequenos. Mas conheço todos os segredos deles e todas as suas fraquezas — graças ao sábio guardião do País das Maravilhas.

Nosso desfile entra no banheiro e para diante do espelho. Em vez de me ater à minha aparência velha e enrugada, imagino o relógio de sol que cobre a toca do coelho em um jardim londrino. O vidro racha como gelo no lago e, no reflexo entrequebrado, o relógio de sol aparece, marcado por uma réstia de pôr do sol rosa. É cedo e ninguém ocupa a trilha ainda. Como precaução, visto o capuz e o Rábido faz o mesmo.

Só precisamos de um ou dois pensamentos sobre nossas cercanias e seremos invisíveis.

Usando minha chave, miro numa fissura na forma de buraco de fechadura, minúsculo e intrincado.

O portal se abre. O Rábido me cutuca com seus dedos magros e entrelaço meus dedos aos dele. Junto com as fadas e nossos insetos companheiros, passamos pela abertura liquefeita. Uma brisa fria me atinge, assim como o cheiro de mato e rosas cobertos de orvalho reluzente.

Os botões de rosa dizem:

Bem-vinda, Majestade. Os anos ficaram para trás. Logo você estará desabrochando como nós novamente.

Sorrio. O Rábido me puxa rumo ao relógio de sol que já expõe a toca do coelho. Ele está ansioso para ir embora. Mais insetos se juntaram a nós; alguns pelo terreno: besouros, centopeias e escorpiões; outros pela brisa: borboletas, mariposas, vaga-lumes...

Saem em enxame do mato e ficam dando a volta em mim e em meu conselheiro real — um arco-íris encantado, espesso e brilhante, sob a luz rosada do céu.

As borboletas cantam:

Vida longa à Rainha Alyssa. Que você seja para sempre jovem, louca e livre.

Muitos deles pousam sobre mim, as asas acariciando meu rosto e pescoço através do traje de disfarce, e percebo que não terei mais de me tornar invisível. Meus amigos insetos estão aqui para me dar proteção, como sempre estiveram.

O Rábido me solta, seus dedos de cadáver tocando os meus enquanto ele segue as fadas e mergulha na toca do coelho sem olhar para trás.

— Atrase-se não, Majesta-a-a-ade — o grito do Rábido ecoa até mim, afastando-se mais e mais à medida que ele desce, sem peso, como uma pena ao vento.

Ao contrário do meu séquito interior, não consigo ir embora sem uma olhada para trás.

Paro, olhando em meio à nuvem de milhares de asinhas adejando diante da paisagem tremeluzente no horizonte. Meu peito se aperta.

Pego as lembrancinhas da minha mochila. Três garrafas de vidro decoradas: a primeira cheia de pedrinhas, a segunda com conchas e a última com um pó prateado. Uma olhada nas três e as lembranças contra as quais eu lutava iluminam minha mente, graciosa e lentamente, como a aurora invadindo o mundo imóvel que desperta.


CONTINUA

A MARIPOSA NO ESPELHO


Capítulo 1


As Maquinações
da Mariposa

— Tem certeza, Morfeu?

— Tenho — respondeu Morfeu, tirando as luvas e enfiando-as no casaco. — Você, entretanto, parece que precisa ser convencida.

A magia pulsava nervosamente na ponta de seus dedos, uma luz azul pulsante logo abaixo da pele. Por causa da ponte de ferro que havia lá fora, seus poderes estavam limitados a alguns truques inofensivos, mas suficientes para dar o seu recado, se necessário.

O besouro-tapete — que de tão grande chegava à altura dos ombros de Morfeu, depois de este haver tomado uma poção encolhedora — engoliu em seco por trás de suas muitas mandíbulas estalantes. Sua pele carpetada tremia.

— Não, não. Por favor, o senhor interpretou mal as minhas ressalvas. — Os braços ramosos do inseto vibravam enquanto ele folheava as marcações em ordem alfabética de sua prancheta, as quais continham todas as lembranças perdidas no País das Maravilhas. — É que ficar espiando os momentos esquecidos de um ser humano parece uma maneira tediosa de se passar uma tarde, só isso...

Morfeu mudou de posição, e suas asas lançaram uma sombra sobre a cara do besouro.

— Ah, mas este humano, em especial, tem muito a me ensinar.

Esse humano, em especial, havia conseguido capturar algo que Morfeu desejava mais que tudo neste mundo.

— Sente-se — disse o inseto, apontando para uma cadeira branca de vinil —, e eu prepararei as memórias para o senhor.

Morfeu jogou as asas para o lado, sentou-se e deu uma tragada no narguilé fornecido por seu anfitrião como cortesia. O tabaco doce e fresco passou ardendo pela sua garganta. Ele soprou baforadas de fumaça no ar, formando com elas o rosto de Alyssa. Era fácil imaginar o modo como seus olhos sempre se cobriam de um azul gélido quando ela o via, cheios de excitação e temor ao mesmo tempo. Adorava isso nela: a sagacidade de seus instintos intraterrenos alertando-a a não confiar nele, suavizada pelas emoções humanas forjadas durante a infância que passaram juntos.

Antes dela, Morfeu levara a vida em solidão, sem nunca precisar de ninguém. Ele não fazia a menor ideia do feitiço que ela lhe lançara. Ela era mais que uma decepção, sempre jurando devoção ao lado errado. Seu encanto, porém, era inegável. Principalmente quando ela o desafiava ou o encarava com sua indignação de justiceira, o que a deixava com os lábios deliciosamente posicionados quando rangia os dentes.

Morfeu colocou o narguilé de lado, embora a sensação de queimação em seu peito não tivesse nenhuma relação com o fumo. Alyssa era a única que poderia aplacar o incêndio que havia ali, pois fora ela quem havia atiçado aquelas chamas.

Os dois tinham passado cinco anos juntos — como amigos de infância —, até que a mãe dela a arrancou dele, Alyssa sangrando e ferida, e ele ficara se remoendo de remorso e com culpa por causa de um juramento imprudente que havia feito, no qual prometeu se manter longe dela.

Manter-se afastado da amiga fez com que ele sentisse o gosto da solidão pela primeira vez. Mesmo todos os anos de claustrofobia que ele passara aprisionado em um casulo antes de encontrá-la... nem mesmo eles o prepararam para o sofrimento da ausência dela.

Então, por fim, ela havia voltado para ele, fazendo-o reviver todos os antigos sentimentos que ele pensava ter dominado. Daquela vez, também, tudo foi muito rápido. Ela partira novamente, por escolha própria. Restaram a dor e a solidão excruciantes. Debilitantes.

Havia apenas seis meses que ela partira do País das Maravilhas, e ele não compreendia este vazio corrosivo que só poderia ser preenchido pelo toque dela, por seu perfume, sua voz. As solitárias criaturas mágicas não ligavam para essas bobagens; não precisavam de companhia, abominavam a bagagem emocional. Sua afeição e lealdade pertenciam ao agreste País das Maravilhas e a nada nem a ninguém mais.

Então o que ela havia feito para mudar isso?

Ultimamente, cada vez que ele via o próprio reflexo, não mais reconhecia a Mariposa no espelho. Estava incompleto, enfraquecido; e menosprezava isso.

O menosprezo era ainda maior porque ele havia se esforçado tanto para cortejá-la, enquanto ela oferecia seu afeto a um reles mortal.

Morfeu suprimiu um rosnado. Ele não conseguia compreender a sorte de Jebediah, como um humano podia ter tanto poder sobre uma rainha intraterrena. Como um simples rapaz era capaz de controlar um coração real e mestiço tão multifacetado, um espírito propenso ao pandemônio e à loucura. Jebediah puxava Alyssa para baixo, acorrentando-a ao tédio e à banalidade do reino humano.

Ela precisa ser libertada.

Morfeu havia considerado a possibilidade de matar seu rival, mas Alyssa jamais o perdoaria. Não. Chegara o momento de tomar medidas criativas.

Se Morfeu soubesse no que Jebediah havia pensando durante sua jornada pelo País das Maravilhas — todos os momentos em que ele se sentiu mais aterrorizado, mais desanimado —, conheceria as fraquezas e as forças do mortal, intimamente. Ele saberia como enfraquecer Jebediah, contrapondo-o a si mesmo.

Essas fraquezas o derrotariam melhor do que Morfeu o faria. E depois, quando tivesse destruído a confiança de Alyssa em seu cavaleiro mortal, Morfeu estaria lá para confortá-la e conquistá-la.

Voltaria a ouvir a risada de Alyssa do modo como ela ria quando os dois eram crianças, e teria de novo a oportunidade de ser presenteado com o seu sorriso deslumbrante.

Ele voltaria a ser completo.

— Por aqui, por favor — pediu o besouro para que Morfeu o seguisse.

Morfeu tirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo. Quando o inseto abriu a porta para um compartimento de memórias sem janelas, o cheiro de amêndoas vindo de uma travessa de biscoitos de luar fresquinhos que estava em uma mesa de canto se espargiu no ar. Havia uma chaise-longue na cor creme colocada contra a parede, e uma ornamentada luminária de piso feita de latão iluminava o espaço com uma luz discreta.

Morfeu concentrou-se no pequeno palco do outro lado do compartimento. Sentiu o coração palpitar de ansiedade num ritmo profundo e firme. As cortinas de veludo vermelho aguardavam o momento de se abrirem para mostrar as memórias de Jebediah na tela prateada.

— Como o senhor entrará na cabeça do rapaz para visitar suas lembranças perdidas, sou obrigado pelas normas a avisar-lhe que... as emoções humanas podem ser muito poderosas... podem nos fazer ver as coisas sob uma perspectiva totalmente diferente — advertiu o besouro.

— Estou contando com isso. — Morfeu deu um sorriso afetado. — Conhece aquele ditado sobre amigos e inimigos?

O besouro coçou a pele enrugada.

— Hum... mantenha seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda?

Morfeu acomodou-se na cadeira estofada e alisou a calça risca de giz ao cruzar as pernas apoiando um tornozelo sobre o outro.

— Melhor ainda é se colocar no lugar de seu inimigo. É a melhor maneira de controlar seus passos. Ou de apagá-los, caso tenha a oportunidade.

O besouro, voltando a tremer, esticou o braço fininho e apertou um botão na parede. As cortinas do palco se abriram, revelando uma tela de cinema.

— Imagine o rosto do rapaz enquanto olha para a tela em branco e vivenciará o passado dele como se fosse hoje.

As palavras do besouro eram ensaiadas, até mesmo mecânicas, mas a pulsação de Morfeu ficou acelerada. Ele esperou o besouro desligar a luz. Assim que o inseto saiu e fechou a porta, o corpo de Morfeu desmembrou-se nas juntas, flutuando pela escuridão como se fosse feito de partículas de pó. Todos os seus pedaços se uniram novamente na tela prateada, em cores vivas e cinematográficas, até que ele entrou na cabeça de Jebediah, apropriando-se do seu corpo, sentindo suas emoções.

Naquele momento, Morfeu entregou-se à experiência e, pela primeira vez na vida, passou a ver as coisas como um humano.


Capítulo 2


Primeira Lembrança —
Kriptonita

Jeb acordou em uma cama suspensa.

Estava nu. Por que estava nu?

Antes que esse fato pudesse ser totalmente registrado, trinta fadas ou mais, do tamanho de mariposas, surgiram do ar, acariciando cada parte do seu corpo e sussurrando-lhe. Ele tentou mexer os braços e pernas. As asas das fadas — que batiam na velocidade das asas de um beija-flor — liberavam partículas parecidas com as pétalas delicadas de um dente-de-leão, que, de alguma maneira, o imobilizaram. As sementes exalavam um perfume de canela e baunilha que foi inundando sua consciência, até que a sala ficou totalmente fora de foco.

Quando a névoa se dissipou, ele estava em sua cama, em casa. A noite adentrava pela janela e Taelor estava em cima dele, seminua. A unhas pintadas à moda francesinha percorreram os pelos de seu peito e abdômen, dirigindo-se ao cós de sua calça jeans.

Aquilo não podia ser verdade. Taelor e ele tinham brigado antes do baile de formatura, haviam terminado tudo.

Com delicadeza, ele a virou, colocando-a debaixo dele, e apoiou-se nos cotovelos, afastando o cabelo do rosto dela. Mas não foram os olhos de Taelor que encontraram os dele. Foram os olhos gélidos e azuis de Alyssa — encarando-o com um ar de admiração e inocência. Os dedos dele pareciam grandes e desajeitados nas têmporas dela.

A Al na cama dele?

Não. Isso não podia acontecer. Alyssa nem havia beijado homem algum. E Jeb nunca tinha sido o primeiro de nenhuma garota.

A Al era intocável para ele. Ela já passara por muitos episódios turbulentos em sua vida. E ele não era exatamente um exemplo de estabilidade.

Ele tirou as mãos dela e ficou de joelhos.

— Jeb, você não me quer? — perguntou Al, passando a mão no peito dele.

Ele não conseguiu responder. Seus dedos coçavam e pareciam esticar-se, como se estivessem crescendo. Ele ergueu as mãos sob o luar, observando, horrorizado, seus dedos caírem, um por um, e se metamorfosearem em lagartas. As lagartas, então, avançaram lentamente na direção de Alyssa, e ele não conseguia fazer nada para detê-las. Jeb caiu de costas na cama, com as mãos sobre o rosto, olhando fixa e incredulamente para os tocos crus e cheios de sangue onde antes estavam seus dedos.

Gritando, Alyssa tentou sair do colchão, mas as lagartas a pegaram, arrastando-se por sua pele e tecendo teias, até que restou somente uma forma se agitando dentro de um casulo.

— Soltem ela! — gritou Jeb. Uma luz lampejou em seus olhos, e então ele já não mais se encontrava em sua cama. Estava em algum lugar da mansão de Morfeu, e as fadas percorriam sua pele, hipnotizando-o... usando algum tipo de feromônio alucinógeno.

Elas estão me segurando aqui para que o Morfeu fique sozinho com a Al. No instante em que a realidade foi percebida, o feitiço foi quebrado.

Jeb pulou rápido da cama suspensa e saiu da nuvem de sedução de suas captoras. Pegando um travesseiro, ele se cobriu.

— Quero alguma coisa para vestir!

As fadas flutuavam no ar, seus olhos de libélula observando-o.

Havia várias cestas douradas no chão perto dos pés dele. Jeb chutou uma. Suas pequenas captoras se espalharam pelo ar, em histeria coletiva.

Gossamer, a fada predileta de Morfeu, designou cinco delas para pegar os morangos que rolaram. Elas contaram as frutas uma por uma e as colocaram de volta na cesta.

Jeb chutou outra cesta cheia de contas de óleo perfumado. Outras cinco fadas lançaram-se ao chão para pegar tudo, parando para contar cada conta antes de guardá-la.

Em pouco tempo, ela já havia chutado todas as cestas. Algumas estavam cheias de pétalas de flores, outras continham loção, outras, ainda, uvas. Ao virá-las, ele conseguira manter a maioria de suas captoras preocupada. Apenas Gossamer e outras duas ainda pairavam em torno de sua cabeça.

— Me deem algo para vestir — repetiu ele —, ou vou começar a tirar as plumas dos travesseiros. Vocês não estão em número suficiente para limpar uma sujeira dessas.

— Ele não está respondendo ao nosso feitiço — murmurou uma das fadas para Gossamer, com seus olhos de inseto voltados para Jeb.

— E nem à nossa magia — acrescentou a outra, amuada. — Eu conjurei uma moça das lembranças dele, mas seu subconsciente conseguiu escapar.

— Sim, este aqui é, sem dúvida, um desafio — concordou Gossamer, numa voz que tilintava feito um sino. Depois de mandar as outras duas fadas recolherem o conteúdo da última cesta, ela ofereceu a Jeb um robe de seda.

Ele se virou de costas e enfiou a peça de roupa no corpo, assimilando os arredores.

Morfeu o colocara em uma prisão opulenta. A sala era toda revestida de piso de mármore preto que refletia a luz laranja dos candelabros. Ele já estava bem familiarizado com o ponto focal: um colchão circular balançante preso por correntes douradas no centro do teto côncavo. Peles e almofadas forravam a cama, perfumadas por pétalas de rosa.

Apesar de todos esses confortos, faltava a essa sala um detalhe muito importante: uma saída. Não havia portas, janelas ou qualquer outra abertura à vista.

Paredes convexas — pintadas em cor de lavanda escura — eram cobertas por parreiras que se estendiam por toda a sua circunferência, entrando e saindo do reboco e se entrelaçando nos candelabros acesos. Frutas brotavam das vinhas. De quando em quando, as uvas explodiam espontaneamente e pingavam seu suco dentro de bacias de pedra posicionadas ao longo das paredes para apanhá-lo. E, delas, um líquido viscoso e purpúreo era drenado para dentro de fontes — um abastecimento constante de vinho de fadas com aroma adocicado.

Ele se lembrava vagamente de ter provado o vinho ao chegar. Desconfiado, tentou resistir, mas estava com muita sede. Era impossível saber que tipo de magia havia no líquido.

Jeb gemeu e esfregou o rosto. Quanto tempo teria passado bêbado e enfeitiçado? Ele acabara sendo inútil para Alyssa, assim como o pai dele teria sido.

— Onde ela está? — perguntou ele, ignorando a harpa que tocava sozinha, a qual, na tentativa de abafar-lhe a voz, começou a tocar mais alto. — Me diga o que Morfeu está fazendo com ela.

Minúscula, reluzente e confiante, Gossamer acomodou-se em uma almofada de cetim, passou a mão pelo colchão ao seu lado e cruzou as pernas apoiando os tornozelos verdes um sobre o outro.

— Talvez você não perceba o que nós, as fadas, somos capazes de fazer. Temos séculos de prática. Podemos lhe mostrar um êxtase com o qual você sempre sonhou.

Jeb a olhou de cima a baixo e ajustou a faixa de cetim em sua cintura.

— Me desculpe, não sonho com coisas verdes.

Ele encontrou a mochila de Alyssa debaixo da cama e a puxou. Jeb havia notado alguma coisa dentro dela anteriormente, quando a vasculhara em busca de outra coisa: uma pulseira de ferro forjado que ela provavelmente havia enfiado na mochila quando ainda estava na escola e ficara esquecida ali. Ele havia pesquisado muito as fadas quando começou a pintá-las, e sabia que elas não gostavam de ferro — se a lenda fosse verdadeira.

Jeb jogou a mochila sobre o colchão. Os cobertores de pele encresparam-se feito uma onda gigante e derrubaram Gossamer de sua almofada. Acionando suas asas com rapidez, ela pousou sobre o ombro de Jeb.

— Se é Alyssa que inspira suas paixões, podemos realizar essa fantasia. — Gossamer bateu palmas. As outras largaram seus postos de limpeza e se apressaram a formar um círculo em volta de Jeb. Uma onda de enjoo lhe invadiu o estômago quando todas as fadas assumiram a aparência de Alyssa — réplicas perfeitas em miniatura, com cabelo platinado e roupas sensuais de skatista. Elas liberaram novamente suas sementes de feromônios, cegando-o com o perfume de Alyssa, doce como néctar.

Brandindo uma almofada, Jeb rompeu a ilusão e dissipou as sementes. As fadas saíram aos guinchos e foram se esconder nas vinhas das paredes, com seus corpos brilhantes parecendo cordões de luz branca e piscante.

Gossamer pairou no ar acima dele, ralhando.

— Já chega! Informem o nosso mestre de que o mortal é leal à garota. Não podemos seduzi-lo para que volte ao seu mundo sem ela.

Jeb ficou resmungando, enquanto as fadas se esgueiravam por buracos do tamanho de ervilhas, na parede onde as vinhas entravam e saíam. Se ao menos ele pudesse passar por aquelas pequenas saídas também... Chegou a pensar em usar a poção encolhedora que ele e Alyssa tinham encontrado quando chegaram ao País das Maravilhas, mas ela o deixaria tão pequeno quanto suas captoras, e ele ficaria indefeso contra Morfeu. A impotência lhe fervia as entranhas, tão profunda como a que ele sentia quando era criança, escondendo-se em um armário até que passassem os ataques de fúria do pai.

Ele cerrou os dentes. Tinha de haver uma passagem escondida em algum lugar por trás das vinhas. Elas o tinham trazido para cá; devia haver uma saída.

Subitamente, ele deu um pulo para a parede mais próxima e arrancou algumas vinhas, lançando-as para todos os lados. O diminuto guincho de surpresa de Gossamer não o intimidou.

Uvas explodiam em suas mãos, libertando seu aroma potente e denso. As plantas viscosas cortavam seus dedos feito arames. Jeb aceitou a dor. Era algo que podia controlar — diferentemente do tormento dos cigarros acesos que seu pai lhe enfiava na pele, ou dos punhos que lhe socavam o rosto e o estômago. O cheiro da nicotina, o gosto de sangue. Imaginação ou não, eles alimentaram o selvagem em sua alma.

Ele mergulhou numa espiral vermelha de fúria e devastou a sala. Quando finalmente voltou a si e recostou-se na cama, ficou chocado com os estragos que causara.

Arfando e suando, ele cuidou dos cortes nas junções dos dedos e vasculhou os destroços à procura de Gossamer. Será que a tinha machucado? Se sim, talvez fosse mesmo filho de seu pai.

Jeb cerrou os punhos, descontente consigo mesmo.

— Gossamer? — Ele se encolheu ao ouvir a própria voz, rude e inflamada de emoção.

Um rufar de asas mexeu uma das correntes que prendiam a cama ao teto. Ele respirou, aliviado ao ver a fada. Embora parecesse meio idiota importar-se, já que estava prestes a usar a pulseira de ferro de Alyssa contra ela.

Gossamer pousou no chão ao lado das vinhas rasgadas e das cestas que ele tinha derrubado de novo; seus ombros estavam caídos, em demonstração de derrota. Provavelmente, ela não sabia por onde começar a calcular todos os conteúdos derramados.

Jeb começou a vasculhar a mochila. A harpa havia parado de tocar, e o silêncio o incomodava feito o ruído dos ponteiros de um relógio. Cada segundo que ele passava longe de Alyssa deixava-a mais vulnerável a Morfeu.

Seus dedos finalmente encontraram um metal frio. Ele jogou a pulseira de ferro na direção de Gossamer, mas mantendo alguma distância, na esperança de enfraquecê-la sem machucá-la.

Ela gritou e lançou-se ao ar, se debatendo.

— Por favor... afaste isso.

— Não até eu conseguir algumas respostas. — Jeb segurou uma das asas dela entre o indicador e o polegar, levando-a para a cama e sentando-a sobre uma almofada, tomando o cuidado de manter a pulseira próxima o bastante para intimidá-la. — Basta cooperar, que eu não vou machucá-la.

— Já está machucando. — Ela gemeu, com a pele esverdeada já tingida de turquesa. — Não posso usar minha magia... — Gossamer bateu as mãos no próprio rosto. — Vai me deixar... horrível. Abster-me. — Sua voz ficou mais calma, como se estivesse falando consigo mesma, e, rangendo os dentes, continuou: — Abster-me até a ameaça de dor e contaminação passar.

Jeb franziu a testa.

— Então o ferro vira seus poderes contra vocês? É a arma perfeita para usar contra seu chefe.

— Um objeto desse tamanho... só funciona com os menores de nossa espécie.

Jeb curvou-se, aproximando ainda mais a pulseira dela.

— Muito bem, então considere isso um detector de mentiras. Toda vez que eu perceber que você está fingindo, aproximarei o ferro. Onde está a Al, e o que o seu chefe repugnante está fazendo com ela?

A cor da fada mudou para um verde azulado. Ela rolou sobre a almofada, as asas lutando para bater. Gossamer as puxou por cima dos ombros até a altura do peito, cruzando-as, como se quisesse conter a sua magia.

— A sua Alyssa está confortável e sendo bem cuidada. Morfeu está zelando pelo sono dela...

Jeb soltou um grunhido. Na noite passada, ele havia zelado pelo sono dela, no barco. Mudara a posição do corpo dela para que pudesse olhá-la de frente e fazer uma promessa, mesmo que Alyssa estivesse sonolenta demais para ouvi-lo. Jeb havia prometido que a protegeria, que a levaria para casa a salvo. E não iria quebrar sua promessa agora.

Ele precisou resistir ao desejo de destruir a sala novamente.

— Como eu saio daqui?

— Apenas o Morfeu tem os meios para abrir a passagem.

Jeb inclinou-se para a frente, com o nariz quase tocando o rosto de Gossamer enquanto segurava a pulseira sobre a cabeça dela, como se fosse um objeto corrosivo.

— Está dizendo que estou preso aqui até que aquela barata de asas decida me soltar? Ele vai fazer a Al enfrentar o País das Maravilhas sozinha?

Ela choramingou, levando a mão à testa.

— Não. Como você provou ser leal, ele permitirá que a acompanhe em sua jornada. Você comparecerá ao banquete e traçarão os planos.

— Banquete?

— A apresentação de Alyssa. Morfeu deseja exibi-la aos outros.

— Que outros?

Gossamer deixou-se cair, formando um monte de cor púrpura e em seguida saiu depressa de seu poleiro. Ela puxou alguma coisa de dentro da almofada — um desenho de Al que Jeb não se lembrava de ter feito. Lentamente, Gossamer levantou os joelhos e estudou as linhas.

— Você fez isto enquanto estava sob nosso feitiço. Tem poder dentro de seu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Você captou o interior de Alyssa com perfeição.

— Esse desenho é pura fantasia — resmungou Jeb. Ele colocou a pulseira de ferro sobre o papel ao lado de Gossamer.

Ela rolou para o meio do desenho, tentando escapar do metal.

— Há mais verdade nesta aparência de Alyssa do que em qualquer coisa que possam me forçar a falar.

Jeb puxou o desenho, fazendo Gossamer e a pulseira de ferro rolarem por cima da pelugem. Ele estendeu o desenho sobre uma almofada e percorreu as linhas de carvão com o dedo. A imagem era igual a todos os outros desenhos de fadas que ele havia feito de Al ao longo dos anos, mas, ainda assim, não poderia ser mais diferente da garota que ele conhecia.

Ele a desenhara com o cabelo preso no alto da cabeça. Al nunca usava o cabelo daquele jeito. Um vestido preto de alcinhas realçava suas curvas. Nem morta ela seria vista em um vestido tão convencional. E a única coisa que se parecia com ela eram as luvas de renda preta sem dedos que cobriam as cicatrizes da palma das mãos.

Fora isso, o desenho era uma fantasia completa. Sentada em um banco de jardim, Al segurava uma rosa. Rímel e lágrimas escorriam em curvas graciosas por seu rosto. Pensando bem, se parecia com a maquiagem dela na última vez que ele a vira.

Ele ainda não conseguia entender por que, depois de quase se afogar em um oceano de lágrimas, o rímel de Alyssa não havia borrado. Apertando os olhos, ele estudou o par de asas translúcidas abertas nas costas dela. As membranas finas tremeluziam sob o único raio de sol que atravessava as nuvens. As asas faziam com que se sentisse estranho, mas Jeb não conseguia perceber a razão.

Talvez porque elas lembrassem as asas de Morfeu, embora tivessem uma cor totalmente diferente. As têmporas de Jeb latejaram. Nada poderia ser pior do que Alyssa sozinha com aquele homem-inseto. Aquele doido tinha algum tipo de poder sobre ela, havia entrado em sua cabeça quando ela era pequena. O subconsciente pode ser muito poderoso, e se Morfeu ainda tivesse acesso aos sonhos da Al...

— Como posso derrotá-lo? — perguntou Jeb com um nó na garganta.

Os olhos bulbosos de Gossamer voltaram-se para os dele. Ela estava fraca demais para se arrastar para longe da pulseira, que agora roçava sua coxa.

— Ele não será derrotado. Há anos ele espera por este dia.

Jeb fez cara feia.

— Muito bem, ele é o Super-Homem. Mas todo mundo tem a sua kriptonita. Algo de que sente medo.

— O confinamento — Gossamer deixou escapar, e, diante da confissão, seu corpo escureceu até ficar da cor de um machucado.

— Como assim?

Gossamer levou o dorso da mão à testa.

— Por favor... está muito perto... o ferro... está drenando minha energia.

Jeb caiu de costas no colchão e afastou a pulseira da fada. Equilibrando-o entre os dedos, ele estudou o ferro sob a luz das velas. A pulseira o lembrou de seu piercing de ferro e da primeira vez que Al o vira, sua reação de entusiasmo. Ela havia implorado para tocá-lo e fez várias perguntas sobre o processo de colocação de um piercing. Seu entusiasmo e ingenuidade, suas inseguranças... Morfeu não hesitaria em usar qualquer uma dessas coisas, ou todas elas, para manipulá-la.

Jeb precisava convencer Al a sair do País das Maravilhas, a esquecer esta jornada para quebrar a maldição de sua família, a qualquer custo. Algo muito tenebroso estava à espreita, bem perto dela, como no sonho que ele tivera. E Jeb podia sentir que, fosse lá o que estivesse para acontecer, estava se aproximando.

— Então vocês querem que ela conserte os erros da Alice original, certo? E se eu consertá-los? — Jeb tentou raciocinar. — Vocês enviam a Al para casa e deixam que eu cuide de tudo?

— Impossível — respondeu Gossamer num sussurro arfante, voltando à cor verde-clara. Engatinhando na direção do desenho, ela passou a pequenina mão sobre a rosa. — Ela já passou nos testes e provou ser a escolhida.

— Testes? Está se referindo a encontrar a toca do coelho para o País das Maravilhas e secar o oceano de lágrimas?

Gossamer fez que sim.

— Mas eu ajudei a fazer isso.

— É por ela que ele esperava. Não por você.

Jeb levantou a pulseira de ferro uma última vez.

— O que ele realmente quer dela?

Antes que Gossamer pudesse responder, o teto abobadado começou a tremer. Pedaços espessos de gesso despencaram no solo. Jeb colocou uma almofada sobre a cabeça e uma mão sobre Gossamer para protegê-la dos detritos. O teto se abriu nas emendas, fazendo a cama balançar e puxando as correntes em direções opostas, de modo que o colchão subiu vários centímetros.

Depois que os tremores passaram, Jeb olhou para cima. A silhueta escura de Morfeu apareceu em uma abertura no teto.

Sutileza era um dos últimos itens na lista de prioridades desse cara.

— Já te disseram que você é muito escandaloso? — rosnou Jeb.

Morfeu inclinou-se para olhar a sala destruída.

— Já te disseram que você é um péssimo hóspede?

Parte da responsabilidade daquela bagunça era da grandiosa entrada de seu aprisionador, mas Jeb mordeu a língua, não querendo arriscar sua oportunidade de ver Al.

Morfeu relaxou.

— Alyssa o aguarda na sala dos espelhos. E, por favor, tome um banho e faça a barba. Você será apresentado aos nossos convidados do banquete como um cavaleiro élfico, então precisa parecer como tal. Gossamer lhe dirá como se comportar adequadamente. — Morfeu largou algumas roupas e botas, que fizeram um ruído ao atingir o chão. — Aí está seu uniforme. — Ele fez uma pausa e apontou para as correntes. — Que pena que você não tenha asas e nenhuma magia intraterrena. Terá que sair daí sozinho. E posso assegurar que não será nada fácil.

Os músculos de Jeb se retesaram quando Morfeu sumiu de vista; ele sabia que o aviso se referia a muito mais do que sair daquela sala.


Capítulo 3


Segunda Lembrança —
Carnificina

Jeb limpou o suor da testa. Morfeu estava certo. A escalada para sair de sua prisão dourada seria mesmo difícil. Mas isso não significava nada se comparado à jornada pelo País das Maravilhas que ele e Alyssa haviam cumprido desde então. O dia inteiro tinha sido um desafio atrás do outro, com o perigo e a morte aguardando em cada esquina. E agora ele havia perdido a Al. Os dois tinham se separado pouco antes de ela completar o teste final. Al ficou enfrentando as irmãs Twid no cemitério, sozinha, e ele ficou preso aqui no fundo do abismo.

A noite já havia caído quando ele atingiu o solo, e foi uma transição extremamente rápida, como se alguém tivesse apagado a luz.

Jeb sentiu os músculos do corpo endurecerem. Odiava pensar na Al sozinha naquele mundo insano depois de anoitecer. E, mais uma vez, ela provou ser forte o bastante para encarar quase tudo. No final, foi ela quem o salvara mais de uma vez...

Ele se lembrou dela pairando acima dele — um brilho selvagem, flutuando com a graça de uma libélula. Ver as asas dela brotarem tinha sido ao mesmo tempo assustador e milagroso. Jeb mal conseguiu respirar enquanto observava a transformação.

Falando sinceramente, Jeb ainda não tinha recuperado o fôlego de quando ela o levara para dentro do abismo e ele gritara: “Você é minha corda de segurança!”, antes de ela subir ainda mais alto para o céu. Ele não deveria ter colocado tanta pressão sobre ela para salvá-lo; tinha que ter feito o que conseguisse para sair de lá por si próprio e encontrá-la no meio do caminho. Do contrário, ela nunca se perdoaria se algo saísse errado.

A carcaça de um pássaro Jubjub havia amortecido sua queda. Ele limpou nas calças a gosma pegajosa que tinha entre os dedos, torcendo o nariz diante dos restos malcheirosos do exército que os perseguia e acabou caindo no abismo. Jeb procurou ficar de pé na escuridão. Suas botas produziam sons de sucção toda vez que ele pisava. Ele nunca tivera fricotes; qualquer aversão a sangue e violência havia sido expurgada — uma dessensibilização gradual que era reforçada sempre que ele se olhava no espelho e via suas bochechas e olhos inchados, grandes e cheios de sangue, que nem um bife malpassado.

Contudo, sem uma centelha de luz para guiá-lo, a carnificina aos seus pés parecia mais viva do que morta. Sua imaginação trazia arquivos de todos os tipos, de filmes de zumbis a demônios e assombrações. Seu estômago queimava de náusea. Jeb sentiu-se aliviado ao perceber que os assobios que ouvia dentro do abismo eram produzidos pelo vento. E não havia ruídos de correntes fantasmagóricas nem gemidos de mortos-vivos.

Além disso, seu verdadeiro inimigo era o tempo, mais perigoso do que qualquer coisa que pudesse imaginar. A Al ainda tinha de cumprir a última tarefa no cemitério. E, depois, eles ainda tinham de encontrar um ao outro.

Ele se forçou a avançar às cegas até sua mão alcançar a parede do abismo. Antes de descer totalmente, Jeb viu que a mochila de Al tinha ficado presa em uma pedra saliente próxima ao chão. Se conseguisse encontrá-la, poderia contar com uma lanterna. Tateando a superfície áspera da pedra, ele levantava seus pés por sobre os obstáculos, tocando os cadáveres com os dedos dos pés para mensurar a largura de cada passo.

Com os cotovelos esbarrando nas pedras, Jeb observou o céu. Um pequeno aglomerado de estrelas brigava com as nuvens, aparecendo para iluminar levemente o lugar ao seu redor, tornando possível que ele continuasse sem esbarrar no falecido exército da rainha. Uma brisa úmida levantava a poeira feito pequenos tornados. Logo choveria. E, neste lugar, era possível que, literalmente, chovesse a cântaros — daqueles temporais ruidosos, torrenciais.

Um calafrio que não tinha nada a ver com a tempestade iminente lhe percorreu a espinha e obscureceu qualquer sentimento bom que ele poderia ter encontrado naquele pensamento. Qual era a razão de todos esses “testes” de Morfeu? Toda vez que a Al conseguia se sair bem em um desses testes, sua forma intraterrena tornava-se mais acentuada. Será que o intuito era transformá-la completamente para que não pudesse mais voltar ao reino humano?

Fios de cabelo caíram sobre seu rosto, e Jeb os afastou.

Morfeu afirmara que tudo o que ele mais queria era que Alyssa voltasse ao seu lugar. Sua casa. Jeb esperava que ele estivesse se referindo ao mundo deles, o reino humano. Mas e se a Al não estivesse sob nenhuma maldição, no final das contas?

Ele se lembrou de sua pesquisa sobre fadas, na qual descobriu que elas eram criaturas chamadas de changelings — as crias das fadas secretamente deixadas no lugar de bebês humanos roubados. Alice Liddell, a tataravó de Al, teria sido uma changeling? Quem sabe foi por isso que ela encontrou, quando criança, a toca do coelho — por instinto. Isso significaria, de alguma estranha maneira, que aqui era a casa de Al.

Jeb parou com as especulações. Elas só levavam a mais dúvidas.

Ele tinha encontrado a mochila. Abriu-a, tirou a lanterna e colocou a mochila nos ombros.

Ao fechar o zíper, ele acendeu a lanterna e percorreu o cenário com fachos de luz. Os guardas destruídos pareciam cartas de baralho amarrotadas. Brinquedos descartados. Até mesmo os pássaros Jubjub poderiam se passar por brinquedos infantis com o enchimento extrapolando para fora.

Com a mochila ajeitada no corpo, Jeb percorreu a circunferência do abismo sem encontrar nenhuma abertura. Pedras que haviam caído bloqueavam qualquer possível passagem que ele tentasse. Era como se ele tivesse caído dentro de um tubo gigante. Não havia nenhuma outra saída a não ser subindo.

Jeb apontou a luz para o gramado a cerca de vinte andares acima — a clareira onde Alyssa havia pousado. Estava determinado a encontrá-la antes de Morfeu, mesmo que tivesse de escalar as pedras pontiagudas no escuro e sem uma corda de segurança.

Ele havia acabado de apoiar a lanterna entre os lábios e escorar o pé em um rochedo para tomar impulso quando ouviu uma voz com um sotaque britânico familiar.

— Ao trabalho, homens. Precisamos contar todos antes que as irmãs Twid enviem sua brigada de duendes para recolher os mortos.

Morfeu.

Jeb desceu e quase colidiu com o intraterreno alado, que tinha aparecido do nada, como se tivesse aberto um zíper no ar e passado por ele. Cavaleiros élficos faziam fila atrás dele, entre vinte e trinta, carregando lanternas e usando o mesmo uniforme de Jeb, só que menos esfarrapado e sujo. Eles passaram sem nem olhar para Jeb, extremamente concentrados na contagem dos corpos.

— Ora, ora, pseudocavaleiro. — Morfeu riu com desdém.

Cada pedacinho de Jeb ansiava por apagar aquele sorriso arrogante e socar aquele rosto. Mas ele estava em desvantagem. Se quisesse sair desse fosso para encontrar a Al, teria de bancar o bonzinho.

— Detesto dizer isso, mas é bom vê-lo, senhor Mariposa. — Jeb guardou a lanterna. — Vejo que pegou o espelho para vir aqui.

— Eu só viajo de espelho. — Morfeu ergueu a lanterna e examinou as roupas esfarrapadas de Jeb. — Tem a vantagem de não estragar tanto as roupas. E vou lhe contar outro segredo: se eu mantiver as asas daquele lado do plano — ele apontou com o polegar para as suas costas, onde metade de seus apêndices não era visível —, a abertura fica acessível para nossa viagem de volta.

Jeb forçou um sorriso.

— É bom saber.

Perfeito, na verdade. Ele poderia voltar com a trupe de elfos e depois tomar o expresso na sala de espelhos para encontrar a Al. Mas primeiro teria de distrair Morfeu, baixar a guarda dele. Jeb perguntou:

— Esse chapéu é novo?

Morfeu ficou radiante.

— Que gentil de sua parte ter notado. É meu chapéu da Insurreição. Ainda não havia tido a oportunidade de usá-lo antes. — Com o dedo, bateu em várias mariposas que formavam a guirlanda na aba do chapéu e depois se inclinou e fez conchinha no ouvido de Jeb para sussurrar um segredo. — As asas vermelhas representam derramamento de sangue.

— Ãh-hã. — Jeb cerrou a mandíbula diante do indesejado bafo quente no lóbulo de sua orelha. Depois, olhou para os cavaleiros, discerníveis somente por suas lanternas flutuando na escuridão atrás dele. — Então, está planejando um motim com o exército da rainha de Marfim?

Morfeu apertou o ombro de Jeb.

— Eu sempre soube que era mais esperto do que os mortais comuns.

Os músculos de Jeb contraíram-se ao contato.

— O que significa que você estava mandando a Al para uma missão absurda só para se divertir.

Cuidado. Jeb não poderia deixar sua desconfiança transparecer. Pelo menos não ainda. Em vez disso, ele se inclinou para ajustar os cadarços das botas e respirou fundo antes de se reerguer.

Morfeu apertou sua gravata vermelha.

— Todas as tarefas que pedi à Alyssa tinham um propósito. — Ele deu um passo para o lado quando alguém mais passou pelo portal do espelho: um esqueleto do tamanho de um duende, com antenas e olhos cor-de-rosa brilhantes, metido em um colete vermelho.

— Rábido Branco? — sussurrou Jeb, incrédulo. Nada daquilo fazia sentido. O Rábido era da corte Vermelha. Por que estava aqui?

— Qual é o relatório? — Morfeu agachou-se para ficar na altura do Rábido, ainda mantendo as asas enfiadas no portal invisível do espelho.

O pequeno intraterreno apertou as mãos enluvadas e olhou para Jeb, sua cabeça careca refletindo o brilho suave da lanterna de Morfeu.

— Um de nós, você é?

Morfeu sorriu e respondeu por Jeb.

— É claro que é. Ele ajudou a nossa Alyssa a conquistar o grande e cruel exército Vermelho, não lembra?

Coçando a antena esquerda, o Rábido fez que sim.

— Rainha Grenadine neutralizada está. Nos portões da frente e de trás, o castelo guardado está pelos regimentos três e sete. Flanqueando a rainha, um círculo de cinco. Sem esquecer da coroa e seu guardador.

— Ah, sim. O bandersnatch. Bem, quando Alyssa tiver trazido seu prêmio do cemitério das irmãs Twid, nada mais terei a temer daquela besta medonha. Fez um bom trabalho, senhor Branco. — Morfeu deu uma batidinha na aba do chapéu.

O Rábido bateu os tornozelos cadavéricos um no outro, depois se curvou e lançou um olhar penetrante para Jeb, antes de pular novamente para o portal.

— Ele é o seu espião — murmurou Jeb, sentindo-se idiota por não ter adivinhado antes.

— Sim.

— Então todas as vezes que o esqueletinho ameaçou a Al, matando-a de susto, era só para manter a aparência de lealdade à Rainha Grenadine?

— Os melhores espiões são aqueles que jogam dos dois lados com o mesmo vigor.

A distância, Jeb avaliou as lanternas que balançavam. O tilintar dos cabos de metal e o pisar de botas eclipsavam o suave lamento do vento.

— Certo. Já que estamos abrindo o jogo...

O comentário de Morfeu o interrompeu.

— Que trocadilho mais delicioso, considerando a posição em que estamos. — A lanterna dele apontou para os cadáveres dos guardas de carta.

Jeb ignorou a piada mórbida.

— Eu ia perguntar por que o Rábido se voltou contra a corte Vermelha.

— Ele era o conselheiro real da Rainha Vermelha quando Alice nos visitou. Deseja ver a verdadeira herdeira no trono tanto quanto eu.

— Verdadeira herdeira. — Jeb chutou um punhado de terra com uma bota, sentindo o peito apertado. — Então tudo isso é para destronar Grenadine e abrir caminho para uma nova rainha.

— Sim. — A lanterna iluminou o rosto de Morfeu, numa expressão de indulgência sonhadora. — E estamos muito perto. Em breve, ela ocupará o trono que é e sempre foi o lugar dela.

O lugar dela. Uma hipótese se formava na mente de Jeb, uma ideia ultrajante e incompreensível, mas, de qualquer maneira, a resposta óbvia para todas as dúvidas que ele vinha remoendo. Todas as dúvidas, exceto uma...

— Mas, primeiro — interviu Morfeu, varrendo o ar com um gesto desdenhoso —, temos que ter certeza do que iremos enfrentar quando atacarmos o castelo. Você e Alyssa conseguiram eliminar boa parte da oposição com seus fantásticos movimentos de pés. Estamos aqui para avaliar se os números batem com os que o Rábido reportou. Devemos ter certeza que Grenadine não tem outras cartas escondidas na manga. — Ele bateu nas costas de Jeb. — Viu o trocadilho? “Cartas na manga?” — E deu uma gargalhada.

Jeb não deu nem um risinho.

— Ah, corta essa. Os guardas dela são de cartas. É uma piada como a que você fez antes, só que mais inteligente.

— Ah, sim, entendi — retrucou Jeb.

O riso de Morfeu se dissipou.

— Você não é um namorado muito divertido.

— Você não leva nada a sério? A Al está correndo perigo — Jeb deixou escapar.

— Bobagem. Ela é gloriosamente capaz! Você nunca a viu voando? É claro que viu! Estava pendurado na corrente que ela segurava. — Morfeu voltou a lanterna para a própria cabeça, num arroubo de celebração. — Não foi uma bela visão, presenciá-la transformando-se no que realmente é? Igual a uma princesa de contos de fadas. — Ele lançou um olhar dissimulado para Jeb. — Não concorda?

Princesa de contos de fadas. Lá estava, saindo da boca do próprio Morfeu, zombando de Jeb por não perceber desde o início. Jeb apertou as alças da mochila para evitar dar um soco na laringe de Morfeu.

Morfeu abaixou a lanterna e depois tirou luvas prateadas de sua lapela.

— Não se sinta desprezado, cavaleiro mortal. Sua contribuição não passará despercebida. E eu sempre pago minhas dívidas. Então, o tirarei desta vala da morte para demonstrar minha gratidão.

— Você pode me agradecer me deixando ajudar a Al. Ela vai terminar a tarefa muito mais depressa comigo do lado — Jeb conseguiu dizer, sentindo um nó nas cordas vocais. Se conseguisse chegar até Al, talvez os dois pudessem se esconder de Morfeu no cemitério das irmãs Twid, até encontrarem uma maneira de escapar.

— Sinto muito — retrucou Morfeu, vestindo as luvas e acenando para que os cavaleiros élficos retornassem. — Ela precisa fazer isso sozinha. Você a verá em breve; todos nós vamos nos reencontrar. Uma grande família feliz.

— Não! — exclamou Jeb, perdendo o controle. Ele investiu, mas os elfos foram mais rápidos e o contiveram, com os dedos machucando seus cotovelos feridos. — Deixe-a sair do País das Maravilhas, seu filho de inseto...

Morfeu pressionou um dedo contra a boca de Jeb.

— Ah-há! Essa, você já usou.

Jeb puxou a cabeça para trás, deixando o dedo do intraterreno suspenso no ar.

Sob a luz da lanterna, as joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficaram escuras, da cor de sangue seco.

— Ora, ora. Isso são modos de tratar seu salvador? — Ele fez cara amuada. — Além do mais, como posso deixar Alyssa sair se ela não está comigo? Da última vez que soube, ela estava entrando no jardim das almas. Mas, quando terminar por lá, ela virá ao meu encontro. Ela ainda tem um papel muito importante a desempenhar.

— Certo. Porque ela é a herdeira do trono. — Jeb ouviu, incrédulo, suas próprias palavras ecoarem, como se tivessem saído da boca de outra pessoa. — Não sei como, mas é ela.

— Bravo! — Morfeu aplaudiu. — Estão vendo o que eu disse, irmãos cavaleiros? — Olhando para os cavaleiros por cima do ombro de Jeb, Morfeu deu tapinhas no peito em cima da gravata vermelha, como se estivesse tomado pela emoção. — Mais esperto que um mortal comum. Pena que tenha as limitações físicas de um.

— Não importa. Ela está fora do seu alcance. — rebateu Jeb, dando um tranco nos elfos; havia muitos o segurando, contudo. — Ela deve estar dentro do cemitério agora, e não pode forçá-la a fazer nada. Você mesmo disse que as Twids não deixam você entrar.

— É verdade. Mas ela encontrará, sozinha, o caminho para o castelo. No momento em que ela perceber que estou mantendo presa a coisa que ela mais ama no mundo, virá rastejando para mim, com as asas a reboque.

Morfeu levantou uma mão e fez um sinal.

Os cavaleiros élficos soltaram Jeb. Ele girou sobre o calcanhar e atirou a mochila sobre eles, dispersando o grupo feito pinos de boliche. Esticando o braço, ele bateu o punho na testa de Morfeu, desequilibrando-o. Um dos cavaleiros se esforçou para permanecer no lugar e manter o espelho aberto. Antes que Jeb pudesse se catapultar e atravessá-lo, raios de luz azul grudaram em sua pele e roupas, feito eletricidade estática. Eles o arrastaram, controlando-o como se fosse um fantoche, até ele ficar de frente para Morfeu. Os raios vinham da ponta dos dedos do intraterreno.

Morfeu aproximou-se.

Jeb tentou recuar, mas seus músculos travaram, ficaram paralisados.

— Durma — disse Morfeu num tom simples, e levou a mão azul fluorescente à testa de Jeb, cujo corpo foi percorrido por uma luz pulsante. Ele sentiu um gosto doce, parecido com leite e mel, e depois sentiu o aroma de lavanda. Com os dedos apertando o tecido macio da camisa de Morfeu, Jeb lutou para manter-se acordado. Mas a luz era muito reconfortante... muito suave... muito calorosa. Contra sua vontade, suas pálpebras ficaram cada vez mais pesadas e ele caiu no chão, em sono profundo.


Capítulo 4


Terceira Lembrança —
Engaiolado

O crânio de Jeb latejava, e havia sangue saindo de seu couro cabeludo e entrando em seus olhos.

Ele limpou o líquido viscoso e focou no lugar à sua volta. Morfeu o tinha trazido para o castelo Vermelho depois de colocá-lo sob o feitiço do sono. Largou-o dentro de uma gaiola na masmorra. Jeb não queria ter tomado a poção encolhedora quando acordou, mas o homem-inseto havia lhe dado um ultimato.

Primeiro, ele havia ameaçado matar a Al. Mas Jeb rebateu, dizendo que o homem estava blefando, pois sabia que ela era indispensável. Depois, Morfeu usara de outra arma, ameaçando fazer com que a frágil mãe de Al ultrapassasse o limite da loucura. Isso, ele faria.

A Al havia lutado muito para salvar a mãe. Ela morreria se a perdesse para a loucura. Então, Jeb não hesitou em levar o frasco aos lábios.

Seu corpo balançava, mas não devido aos efeitos colaterais da poção. A plataforma debaixo dele oscilava por causa de suas tentativas de abrir as barras de sua prisão usando a cabeça — uma atitude desesperada que havia resultado em nada além de um corte logo acima da testa. A magia de Morfeu — um fio elétrico e azul — mantinha a porta da gaiola fechada e imóvel.

— Que bela coisa você fez, não? — entoou uma voz feminina e irritante. — Morfeu escolhe quem tem o poder de suprimir sua magia. Obviamente, você não é um dos escolhidos.

Jeb fez cara feia para sua companheira de prisão. Era uma lóri — um intraterreno parecido com um periquito, mas normalmente do tamanho de um ser humano. Como os dois tinham encolhido, a única coisa que a distinguia dos pássaros do mundo humano eram as túnicas de cetim cor de creme com estampas jacquard colocadas sobre suas asas, corpo e pernas, e seu rosto humanoide enfiado no meio de plumas vermelhas, como se fosse uma máscara. Ele foi cutucado por um bico mais parecido com o chifre de um rinoceronte, posicionado no lugar onde deveria haver um nariz. Os lábios da criatura se agitavam furiosamente.

O pior de tudo era que a voz dela poderia derrubar a Torre de Pisa com uma sílaba. Quando falava, era como se alguém tivesse implantado cirurgicamente alto-falantes nos ouvidos de Jeb e travado o volume no “mais surdo que uma porta”. Ela era uma das muitas razões pelas quais ele tentava sair da gaiola com tanta insistência.

A luz bruxuleante das velas na parede iluminava seu ar de arrogância e deixava o resto da masmorra nas sombras. Depois que a voz da lóri parou de ecoar, Jeb investiu:

— Olhe aqui, Lorina. Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu marido. — Ele apontou a criatura que roncava abaixo da gaiola, de aparência tão estranha quanto à da esposa, com o corpo de um dodô, cabeça de homem e mãos que se projetavam da ponta de suas asas atarracadas. — Foi ele quem manteve Alice Liddell presa em uma gaiola igual a esta aqui, muitos anos atrás. É por culpa dele que a minha namorada é a única que pode destronar a sua rainha. Será que já lhe ocorreu que é por isso que vocês estão presos?

— O Charlie não fez nada disso! — berrou a lóri, pairando dentro da gaiola. — Alguma vez já lhe passou pela cabeça que o Morfeu é um cara de pau mentiroso?

Só em todos os segundos de todas as horas. Jeb apoiou-se nas barras. Seus joelhos cederam, enfraquecidos pelas tentativas de abri-las usando cada músculo de seu corpo. Ele desabou sobre o piso de metal, empurrando uma fatia de pera já amarelada que estava ao seu lado, feito um pequeno sofá. A gaiola era um pequenino forte inexpugnável. Mas não importava. As barras poderiam ser feitas de espaguete cru, e mesmo assim ele não conseguiria ajudar a Al. Mesmo que escapasse, com este tamanho, Jeb não conseguiria derrotar ninguém.

Charlie, o marido dodô de Lorina, não poderia ajudar muito. Ele estava preso por algemas e correntes de ferro e cochilava recostado na parede. Embora a gaiola estivesse pendurada bem perto da cabeça do dodô, não havia nada que Charlie pudesse fazer.

Provavelmente, Morfeu havia lançado no homem-pássaro gigante o mesmo feitiço do sono que jogara em Jeb, mas Charlie já estava se libertando dele.

Lorina acomodou-se no poleiro no centro da gaiola, balançando sobre a cabeça de Jeb feito uma acrobata no trapézio. A cara dela estava tão vermelha quanto as suas penas, o que fazia as espadas e copas estampadas nas bochechas quase desaparecerem.

— Como vamos ficar exilados nestas instalações fedendo a urina, terá bastante tempo para ouvir a verdade — bramiu ela.

Jeb esfregou a cabeça para apaziguar a dor lancinante.

— Se puder baixar a voz uns dois decibéis, eu agradeceria.

— Abaixar minha voz?

— Aaaii. — Jeb enterrou o rosto nas mãos.

O trapézio em miniatura rangia a cada balanço, piorando a poluição sonora.

— Para a sua informação, minha rainha adora o som da minha voz. Ela até o elogia...

O ronco do dodô parou, e ele estalou os lábios.

— Isso é porque ela protege os ouvidos com cera de abelha, Ó, Mais Adorável das Loucas.

— Seu mentiroso! — retrucou Lorina, balançando o poleiro tão depressa que Jeb achou que ia vomitar.

— Estou preso com correntes de ferro — avisou Charlie depois de um bocejo. — Não tenho forças para mentir. — Em seguida, pegou novamente no sono.

Isso pareceu calar Lorina, pelo menos temporariamente.

Jeb aproveitou o silêncio para pensar. A esta altura, Morfeu já deve ter contado a Al sobre sua verdadeira linhagem, sobre o que espera dela. Deve estar tão chocada... tão apavorada. Jeb ansiava tanto abraçá-la que era como se houvesse uma bigorna lhe pressionando o peito.

Aquele mariposo deveria ter contado a verdade desde o começo. Ela nunca escolheria ficar. Mas Morfeu sabia disso, e a manipulou sob o pretexto de que ela poderia curar a maldição da própria família. Jeb queria arrancar as asas pretas de Morfeu e enfiá-las goela abaixo por tê-la enganado, porque não havia cura para o parentesco, e ele sabia muito bem disso.

— Foi a Vermelha quem colocou Alice na gaiola. — A lóri voltou à carga. — Não o Charlie.

— Mas o seu marido escolheu mantê-la presa na gaiola — acrescentou Jeb, mesmo sabendo que não deveria. Ele cobriu as orelhas para a estrondosa refutação, mas Lorina só soltou um suspiro.

— Não. O Charlie tentou fazer a coisa certa pela menina — disse ela, consideravelmente mais ponderada agora. — Ele planejava mandar Alice de volta para o reino humano sem a Vermelha saber, mas a rainha descobriu e os arrastou para uma caverna nos picos mais altos e mais remotos do País das Maravilhas, sem que nenhum de nós soubesse. Ela deixou o Charlie com a vítima dela para poder encenar seu plano mestre, sabendo que Alice seria cuidada por um prisioneiro que nunca poderia escapar. Porque, como você deve saber, os dodôs não podem voar. Ela me privou de meu marido durante anos. Ele era prisioneiro, assim como a mortal.

— Se isso te ajuda a dormir de noite, tudo bem, passarinha.

Uma comoção de poeira e asas, jacquard e cetim, subitamente surgiu e o atacou.

— Você pode mostrar algum respeito e ouvir?!

Jeb levantou as mãos para se defender.

— Está bem. Shhhh. Eu vou ouvir.

Não havia nada mais que ele pudesse fazer. Morfeu lhe dissera que, assim que Alyssa fosse coroada rainha, ela abriria o portal para o reino humano. Acreditando ou não nisso, Jeb não poderia fazer nada a não ser ter esperança. Ele não tinha nenhum poder ali. E ter consciência disso lhe devorava as entranhas a cada minuto.

Acomodada diante de Jeb sob um monte de tecido luxuoso, a lóri olhou por entre as barras e resmungou alguma coisa para o marido que dormia.

— Seu velho e imprestável fezzerjub. Eu é que tenho que te proteger. Nem sei por que me casei com você.

O dodô resfolegou e murmurou, sonolento:

— Porque se casar com o bobo da corte era a única maneira de ter uma posição na corte Vermelha, Ó, Senhora das Nênias. — E o ronco voltou.

— Viu como deu certo? — resmungou ela, fazendo beicinho com os lábios vermelhos em forma de coração, sob a curva de seu bico. — Aquele Rábido ossudo e seu coração negro de pedra. — Ela alisou as penas da nuca e cobriu-as com uma rede decorada por lantejoulas.

Jeb estendeu a mão para pegar o dedal cheio de água que seu captor havia deixado ao lado da fatia de pera. Em suas mãos, ele era do tamanho de uma caneca de café. Ele o passou para sua colega de cela, que o pegou com as asas e deu alguns goles.

— Me diga uma coisa, Lori. Se o que você está dizendo é verdade... — Observando a atitude defensiva na cara bicuda, ele refez a pergunta para poupar os ouvidos. — Como você escolheu compartilhar o seu lado da história, talvez pudesse me dizer de que maneira Morfeu teve participação na prisão de Alice.

Ela sacudiu as gotículas de seus lábios.

— Não teve participação nenhuma. Ele gostava muito de Alice e teria feito qualquer coisa para que ela chegasse em casa sã e salva. Mas, na hora em que ele lhe ofereceu seu conselho como lagarta, alertando-a para que evitasse o castelo da Rainha Vermelha a todo custo, sua metamorfose aconteceu. Quando ele emergiu, totalmente transformado, e soube o que havia acontecido com Alice, ficou furioso.

— Está tentando me dizer que ele possui alguma consciência?

— Pelo menos no que dizia respeito a Alice, sim. — A lóri ajustou a suntuosa túnica que ficava escorregando devido à falta de ombros. — Morfeu usou todos os seus recursos de magia e acabou encontrando ela e meu marido escondidos nas cavernas dos picos mais altos do País das Maravilhas. Infelizmente, já era tarde demais para Alice. — Lorina devolveu o dedal a Jeb, agora com metade da água.

Jeb endireitou o corpo, fazendo a gaiola balançar.

— Então por que ele quer ajudar a Rainha Vermelha a colocar outra rainha no trono, quando ele deveria odiá-la por ter mantido Alice presa em uma gaiola por tantos anos?

— Talvez ele esteja bravo por Grenadine não ter tentado encontrar Alice assim que esta foi capturada. Mas Grenadine perdeu sua fita de memória e esqueceu a criança.

— Um bom regente teria mais do que uma fita para lembrá-la; teria se certificado de que tudo e todos estavam em seu lugar.

— A minha rainha é uma boa regente!

Jeb encolheu-se com o urro agudíssimo.

O ronco do dodô parou.

— Minha vociferante esposa diz a verdade, rapaz. Morfeu parece guardar ressentimento pelo que ele acredita ser negligência, mesmo tendo sido somente um descuido.

Jeb balançou a cabeça diante de todas as falhas que havia no raciocínio de todos.

— Não. Há mais coisas nessa história.

— Você tem bons instintos, cavaleiro mortal.

Jeb olhou para cima, na direção da voz tilintada. Uma luz brilhante flutuou pela pequena janela e entrou pela pesada porta da masmorra. Jeb levantou-se e agarrou as barras da gaiola, inclinando a cabeça para ver melhor.

Gossamer.

A pequena fada adejou para perto e sussurrou algo para o mágico fio azul que fixava a porta de arame, entrando na gaiola. O fio azul deu um nó em si mesmo depois de ela fechar o trinco.

Ela cintilava feito pequenos fogos de artifício ao pairar no lugar, estudando Jeb com uma expressão de solidariedade.

Como os dois agora tinham o mesmo tamanho, Jeb se lembrou de uma pintura que vira certa vez, de um artista tcheco, Viktor Olivia. O pintor era famoso por retratar uma fada que seduzia homens, levando-os a se embebedarem com absinto. Gossamer personificava essa criatura: uma forma feminina perfeita coberta de poeira verde, e nua, com escamas brilhantes cobrindo-a como um biquíni minúsculo.

Ele havia sentido, quando saiu da sala de espelhos, que Gossamer estava do lado dele e de Alyssa.

— Você veio ajudar — lançou ele, esperançoso.

Uma chave de cobre, da mesma cor dos olhos dela e quase do comprimento total de seu torso, pendia de seu pescoço. Seu olhar caiu para os pés delicados, como se estivesse lutando contra si mesma.

— Eu teria vindo mais cedo, mas Morfeu está sempre vigiando o espelho. Agora que ele está com Alyssa, preparando-a para a coroação, estará ocupado demais para ficar de olho no resto de nós... até o fim.

— O fim? — Jeb apertou a barra ao lado dela, concentrado em seu olhar de libélula. — Você tem que me contar tudo.

A fada olhou para Lorina, que estava se esticando para a porta de arame.

— Você sabe muito bem que não tem o poder de sair desta gaiola, a menos que eu a abra para você.

Bufando, a lóri voltou a voar para o trapézio.

Gossamer conduziu Jeb para a fatia de pera e os dois se sentaram. Seu perfume frutado se impunha sobre o fedor da masmorra e o acalmou o suficiente para ele poder ouvi-la.

A fada colocou as mãos sobre as de Jeb, que descansavam sobre os joelhos.

— Eu já traí meu mestre o bastante vindo até aqui, e sua ira será enorme. Eu só posso dizer que, dentro de uma hora, Alyssa estará comprometida para sempre, amarrada ao País das Maravilhas para toda a eternidade. Morfeu planejou tudo para enviá-lo de volta, cavaleiro mortal... mas sem ela.

Uma veia na têmpora de Jeb começou a se contorcer feito uma serpente em uma bandeja quente. Ele deu um pulo para cima e bateu a cabeça nas barras novamente, tentando amolecer o fio azul, incapaz de controlar a fúria exasperada que lhe fervia por dentro. Mais sangue escorreu por sua têmpora.

— Você tem que me soltar! Preciso impedir isso!

— Sim, sim! Nós também! — intervieram o dodô e sua esposa, em coro. — Temos que ajudar a Rainha Grenadine a manter a coroa!

— Naturalmente — afirmou Gossamer, pegando a mão de Jeb e puxando-o para perto dela. — Vocês todos terão a oportunidade de lutar e de mostrar a sua lealdade.

— Mas não posso lutar assim. — Jeb chutou uma semente do tamanho de seu pé. — Você trouxe algum bolo do crescimento?

— Não. Não é a força de seu corpo que salvará Alyssa, e sim a força de seu coração de artista. Mas eu posso assegurar que não sairá deste lugar em sua forma atual.

A lóri desceu de seu poleiro e ralhou com a fada.

— Agora, me escute, sua lacraiazinha. Este rapaz não tem papel nenhum. Ele é, no máximo, coadjuvante. Eu sou a criada da rainha, e Charlie é o bobo da corte. Nós deveríamos ser a sua prioridade. Somos honoráveis membros da corte, os únicos que podem dar um basta nesta paródia!

Acelerando as asas até virarem um borrão enevoado, Gossamer flutuou e colocou as mãos nos quadris.

— Quanto ao seu papel, Lorina: você pode abrir as correntes de seu marido, pois preciso falar com o mortal a sós e tenho pouca tolerância ao ferro. — Ela abriu a porta da gaiola e lhe deu a chave.

A lóri esvoaçou-se veloz, numa comoção de exibicionismo e má vontade.

— Venha, venha, Doçura Selvagem — chamou Charlie, encorajando a esposa enquanto ela flutuava em torno dele, subindo e descendo, incapaz de manter-se firme em alguma altura. — Apresse-se, por favor. O ferro está me dando fisgadas. Poxa vida! Não é tão difícil assim... tente novamente!

A cara de Lorina ficou ainda mais vermelha.

— Tente, com a ponta da asa, usar uma chave do mesmo tamanho que a sua cabeça, seu meleca! Alguns de nós não foram abençoados com dedos, sabia?

Enquanto o casal se ocupava, Gossamer sentava-se novamente ao lado de Jeb.

— Você disse que meu coração de artista pode salvar Alyssa. Naquele quarto na mansão de Morfeu, também... você disse que eu tenho o poder dentro de meu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Minha namorada está prestes a morrer para mim e para a família dela. Não pode haver escuridão maior — sussurrou Jeb com lágrimas de frustração que lhe surgiram nos cantos dos olhos.

— Morreria por ela, cavaleiro mortal?

A espinha de Jeb se retesou. No passado, toda vez que ele protegera Alyssa, sempre se jogara sem nem pestanejar. Seria capaz de morrer por ela?

Quando o pai de Jeb morreu em um acidente, foi Alyssa quem o salvou. Ele não conseguia acreditar que tinha chegado a pensar em morar em Londres sem ela. Precisava dela, todos os dias. De seu sorriso compreensivo, de como ela fez suas cicatrizes parecerem medalhas de mérito sob seu toque, e de seus olhos incríveis. Mesmo tendo passado por tantas provações quanto ele, havia uma luz dentro dela que nunca se enfraquecia. E essa luz não somente a tornava linda por fora, mas também permitia que ela trouxesse vida aos incríveis mosaicos que fazia.

Era essa luz — tanto a interna quanto a externa — que o tinha levado a desenhá-la e pintá-la tantas e tantas vezes.

Ele olhou para Gossamer, quase incapaz de conter a emoção, agora que havia encontrado uma saída.

— Ela é minha melhor amiga.

Minha musa, meu pincel, minha arte, meu coração. Tudo isso estará morto sem ela.

Esfregando o rosto, ele limpou o líquido que havia caído de seus olhos e escorrido pelo rosto:

— Eu a amo. Sim, eu morreria por ela. É isso que preciso fazer?

A fada o encarava sem piscar.

— Está disposto a ir além da morte? A se perder de todos, até de você mesmo, em um lugar onde as lembranças se esvaem em uma maré escura como tinta? Pois, para libertar Alyssa, você terá que tomar o lugar da Rainha de Marfim na caixa linguardarte onde ela se encontra presa.

Jeb lembrou-se da água escura dentro da caixa que ele havia visto na sala dos espelhos da mansão de Morfeu e da cabeça fantasmagórica que havia lá dentro, e seu coração disparou. O sentimento de autopreservação o invadiu e sua mente começou a tentar encontrar outra maneira. Mas, bem lá no fundo, ele sabia que não havia alternativa e que o tempo de Al estava se esgotando. Ele só lamentava não poder dizer a ela, nem uma única vez, com sua própria voz, como se sentia, antes de ser trancado para sempre.

— Aceito.

— E assim será. — Gossamer ficou de pé e estendeu os braços. Fraco e entorpecido, Jeb aceitou seu abraço. Ela o apertou com força e voou com ele para fora da gaiola, pousando no chão. — O mortal concordou em ser o herói de seu reino. Procurem honrar sua bravura — disparou as palavras para Lorina.

Lorina havia conseguido soltar o marido. Ela se sentou no ombro dele, abanando-se com uma asa. Com os olhos arregalados, ela aquiesceu em silêncio — a demonstração mais sincera de louvor que poderia ter oferecido. O dodô ajoelhou-se ao lado de Jeb, uma presença enorme e plumada.

— Teremos uma dívida eterna para com você, rapaz. O que podemos fazer para ajudar?

Gossamer apontou para um canto da masmorra, onde um cobertor de juta cobria uma cama, chegando até o chão.

— Tragam-me o que está debaixo daquela cama.

Entorpecido por uma mistura de incredulidade e temor, Jeb observou o dodô trazer a caixa linguardarte.

Lorina ficou perplexa.

— Morfeu manteve a Marfim escondida aqui?

Gossamer assentiu.

— Por sugestão do Rábido. Ele disse que este era o único lugar no castelo onde ninguém viria à procura dela.

Depois de pedir a Charlie que abrisse a tampa e arrumasse uma pedra onde eles pudessem subir para ver lá dentro, Gossamer pediu ao estranho casal que se afastasse um pouco para que ela e Jeb tivessem um pouco de privacidade.

Jeb afagou as rosas brancas aveludadas que adornavam o exterior da caixa, fascinado pela beleza do rosto da Marfim quando este veio à tona. O olhar cristalizado de assombro dela passava dele para a fada, e voltava — cautelosamente curioso. Ele estremeceu ao pensar que tomaria o lugar dela.

Tinha mesmo que fazer isso?

Jeb sentiu que Gossamer observava seu semblante.

— Devo perguntar uma última vez se está seguro de sua decisão — indagou ela. — Porque, como você está escolhendo ser trancado, e selando essa escolha com seu sangue, a caixa nunca o libertará. Ninguém poderá salvá-lo. Você está oferecendo sua eternidade pela da Marfim, uma rainha que você nem sequer conhece.

Jeb sentiu um nó na garganta.

— Não. Estou trocando a minha eternidade pela da Al.

Gossamer sorriu com ternura.

— Em seus sonhos, vi certa vez que você teme não ser bom o bastante para a menina. Depois de tal sacrifício, ninguém poderá questionar seu valor como homem nem seu amor por ela. — Ela o beijou no rosto, deixando um calor que penetrou seu coração e conseguiu derreter uma pequena porção do terror congelante que lá se escondia.

Gossamer deu-lhe um pincel e recuou.

— Agora, use o poder que somente você pode exercer. Pinte as rosas com o seu sangue.

Jeb foi tomado por uma tontura. Murmurou coisas... sem sentido, temerosas... palavras agonizantes que ele sabia serem as últimas.

Depois, canalizou a raiva, o terror e o desejo por um futuro que ele nunca teria para as estocadas do pincel. Cada botão branco, tingiu-os de vermelho até perder-se dentro das sombras de seu trabalho, e fundiu-se à sua obra-prima, tornando-se um só.


Capítulo 5


A Decisão da Mariposa

A cena se estendeu e ficou turva enquanto Morfeu era arrastado para fora das lembranças de Jebediah e depositado de volta na chaise-longue. A escuridão deixava a sala pesada, mas ele nem se mexeu para ligar a luminária. O cenário completamente enegrecido parecia combinar com os pensamentos obscuros que lhe cruzavam a mente.

Ele passou o dedo pela coxa, acompanhando as listras do tecido risca de giz e alisando as rugas.

Por que se sentia tão aborrecido? Ele havia encontrado exatamente o que esperava encontrar. As fraquezas de Jebediah estavam à mostra: um ódio que poderia facilmente ser manipulado, um sentimento de impotência alimentado por um pai violento e crítico, um ciúme que provocava um sentimento temerário de proteção e que lhe custaria a própria vida.

O que Morfeu não tinha esperado encontrar, entretanto, era tanta semelhança entre ele e o rapaz. Os demônios do passado atormentado de Jebediah não eram muito diferentes dos seus. Ele sempre se surpreendera sentindo inveja dos humanos... por nunca ter tido o carinho de um pai ou de uma mãe. Simplesmente por ocupar seu lugar no mundo, ele também compreendia o medo de talvez nunca chegar a conhecer completamente a confiança e a afeição de outra pessoa.

Contudo, no passado, Morfeu nunca havia considerado isso uma coisa ruim. Ele apreciava ser uma alma reclusa e independente. Por vezes, até se vangloriava, quando lhe convinha ser o centro das atenções, naturalmente. Mas a atenção, a afeição ou a confiança não eram coisas de que ele precisava. Não até aparecer Alyssa. Depois que ela escolheu ignorá-lo, ele não conseguiu funcionar... sentiu-se desastrado e incompetente.

E agora, depois de colocar-se no lugar de Jebediah, Morfeu compreendia, mais até do que desejava, como o lado humano de Alyssa funcionava. Embora metade dela tivesse asas e pudesse flutuar sobre as inseguranças e trivialidades dos mortais, a outra metade tinha seus alicerces nas coisas que qualquer outro humano ansiava: confiança e segurança.

Tendo visto a coragem e a engenhosidade de Jebediah, bem como sua lealdade a Alyssa, Morfeu soube, sem sombra de dúvida, que aquilo era exatamente o que o rapaz oferecia a ela: uma rede de segurança e emoção que a salvaria caso a queda fosse muito alta.

Não era de admirar que ela fosse tão cativada por ele. Não era de admirar que ele exercesse poder sobre ela. Diabos, o próprio Morfeu ficou morbidamente fascinado pelos honoráveis traços morais do rapaz, incomuns em um humano tão machucado. Morfeu ficou tentado a recuar e deixar Jebediah ter seu momento de felicidade. Alguns poderiam até dizer que ele o havia merecido por desejar abdicar de seu futuro, de suas lembranças e de sua vida por Alyssa.

Morfeu rosnou e caiu para a frente com os punhos cerrados, tentando suavizar o estranho peso em seu peito. O rapaz não ficaria aqui para sempre. Era um mortal. Um dia, morreria de velho, no mínimo, e Alyssa voltaria a ser um alvo fácil.

Alvo fácil.

A mandíbula de Morfeu se contraiu. O romance não era uma coisa justa. Nem era um jogo. Era guerra. E, como em qualquer outro campo de batalha, não lhe cabiam a compaixão e a misericórdia.

O besouro-tapete estava certo. As emoções humanas eram coisas imprevisíveis e poderosas. Elas haviam penetrado na cabeça de Morfeu, enfraquecido sua determinação.

Com os cotovelos nos joelhos, ele levantou as mãos com as palmas para cima, incapaz de ver a silhueta delas no escuro. Ele conjurou um pouco de magia na ponta dos dedos, em bolas elétricas de plasma do tamanho de ervilhas, e depois enviou as esferas para todos os cantos da sala, os raios azuis deixando rastros como eletricidade estática. Elas subiram pelas paredes e em seguida se uniram na forma de uma mulher. A luz pulsava em ritmo hipnótico.

Imaginar Jebediah com Alyssa, mostrando a ela os caminhos do amor, domando seu espírito selvagem com suas corriqueiras convenções humanas, tudo isso queimou a garganta de Morfeu com o sabor amargo da inveja.

Ele não queria que o lado selvagem de Alyssa fosse dominado por nenhum outro homem, não desejava compartilhar nenhuma parte dela. Morfeu desejava os dois lados: sua inocência e seu espírito desafiador.

Que graça poderia haver na dependência? Que espontaneidade poderia haver em um mundo previsível? Ele poderia lhe oferecer uma eternidade de desafios e paixão, de momentos ternos e calmos nas profundezas de chamas vibrantes e tempestades devastadoras — a tranquilidade em meio ao caos.

O lugar dela era com ele, usando trajes de soberana. Ele tinha tanto a ensinar-lhe sobre o reino intraterreno, sobre as glórias da manipulação e da loucura. Se Morfeu alimentasse o faminto lado intraterreno de Alyssa, suas inseguranças e inibições humanas diminuiriam e, com o tempo, poderiam desaparecer. Ela nunca mais ansiaria pelo amor seguro de Jebediah.

Morfeu invocou sua magia de volta, recolhendo as espirais de luz azul até ficar novamente envolto na escuridão. Suas asas varreram o chão quando ele se levantou, e ele as ergueu num arco que quase tocava o teto.

Nada mais de deliberações. Ele tinha tentado fazer o que era justo em instâncias passadas e, sem exceção, isso sempre o prejudicara. Podia ignorar a pontada de culpa que lhe agitava o peito, mas não podia abdicar de suas necessidades pelas necessidades de Jebediah. Ele nunca mais seria ele mesmo sem Alyssa ao lado — a chama para sua Mariposa. Morfeu não pararia até que ela voltasse para o lugar que lhe pertencia, no País das Maravilhas.

Para vencer, ele jogaria sujo, colheria os despojos do coração dela do modo como fosse necessário, não importava quanto isso custasse ao rapaz mortal. Afinal, este era o modo intraterreno. Fazer menos que isso faria de Morfeu um humano. E ele sabia, agora mais do que nunca, que essa era a última coisa que jamais desejou ser.


SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS
Epígrafe

ÀS VEZES PENSO EM SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS ANTES DO CAFÉ DA MANHÃ.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Um

Mortalidade

Capítulo 1

Deportação

Algumas pessoas podem dizer que é impossível morrer e viver para contar. São as pessoas que nunca experimentaram a mágica. Quanto a mim, sou tataraneta da Alice que inspirou Lewis Carroll. Acreditei no inacreditável por mais de sessenta e quatro anos, desde que tinha dezesseis e descobri que o País das Maravilhas era real e cheio de seres caprichosos, misteriosos e loucos, governados por acordos e enigmas. Ainda assim, às vezes, por mais que você acredite no impossível, as coisas não saem como você as planejou. Toda mágica pode encontrar um obstáculo de vez em quando.

Por exemplo, nunca esperei que meu cadáver acabasse numa caixa de sapatos. É isso que os caixões crematórios me lembram... uma caixa de papelão do tamanho de uma pessoa. O caixão não é muito confortável. Não há a forração de veludo para suavizar a base de madeira. Nenhuma almofada para acomodar minha coluna curvada. E nada de roupas, além de um vestido de papel para cobrir minha pele velha e enrugada.

O cheiro de papelão se fixa ao meu nariz e as rodas de aço da maca giram ao longo do corredor, rangendo em algum lugar sob mim, junto a passos familiares. Sinto a transição do ambiente fresco e de temperatura controlada onde o legista atestou minha “morteza” (como os seres do País das Maravilhas diriam). Ele, então, pôs uma identificação de aço inoxidável no meu peito e fechou uma tampa sobre mim, me prendendo na escuridão.

A maca sacode ao entrar num lugar muito mais quente. O cheiro de ovo podre do propano confirma nossa localização. Já visitei este lugar. Nos últimos meses visitei vários crematórios, quando não havia ninguém por perto, de madrugada. Para conhecer melhor o gigantesco forno de tijolos à vista que estaria esperando para queimar minha carne. Para encontrar o projeto perfeito, com um banheiro e um espelho de corpo todo do outro lado do salão.

Assim que optei pelo crematório do Pleasance Rest Cemetery, me preparei para morrer.

Meu plano original era usar Tetrodotoxina. Em doses pequenas, subletais, ela deixa a vítima num estado de quase morte por dias, permitindo que ela mantenha a consciência. Morfeu, porém, não concordava. Ele disse que a margem de erro entre o estado de quase morte e a morte de verdade era pequena demais no mundo mortal e não algo com o que se brincar. Ele não queria que eu arriscasse. Então, ofereceu uma substituto do País das Maravilhas: uma poção que funciona quase da mesma forma, mas que tem um antídoto cem por cento garantido.

Bebi a dose de quase morte nesta manhã e, dez horas mais tarde, ainda sinto o gosto amargo e anestésico, como cravos dançando no fundo da garrafa de vinagre. Não consigo morder a língua para aliviar o efeito. A mágica me deixou catatônica — meus olhos fechados e imóveis, meus batimentos e respiração reduzidos a um ronronar indetectável por quaisquer instrumentos humanos.

Meu lado intraterreno se remexe dentro do meu crânio, me garantindo que isso vai dar certo, mas meu lado humano instintivamente se encolhe quando o medo tranca minha garganta. Não posso gritar para dizer a todos que estou viva. Minhas cordas vocais não vão funcionar. A claustrofobia, minha velha inimiga, me deixa toda arrepiada. Sei o que está acontecendo ao meu redor, apesar de não conseguir abrir os olhos ou mover meus membros. Todos os cheiros, sons e sensações táteis são ampliados por minha incapacidade de reação.

Os paramédicos que atenderam, nesta manhã, à chamada de emergência da minha neta de vinte e sete anos me declararam morta — fulminada por um ataque cardíaco. Foi insuportável ouvi-la chorar e gritar. Isso despertou lembranças da minha maior perda — da morte de Jeb, três anos antes. Uma faca ainda é cravada no meu peito sempre que me lembro do nosso último adeus.

Mas Jeb me mandou ser firme. E ensinei aos meus netos o mesmo — sempre encarar as coisas. Ela ficará bem. Não tenho dúvida disso porque ela é muito parecida comigo, para além de seus cabelos loiros, olhos azuis e curiosidade. Ela é teimosa, leal e uma sobrevivente.

Assim que os paramédicos levaram meu corpo ao necrotério, tudo funcionou como o previsto.

Minha família sabia que cemitério eu escolhera e as quatro exigências do meu testamento: nada de exibição pública do meu corpo, nada de velório, cremação em doze horas depois da minha morte e a dispersão das minhas cinzas no mesmo local onde as de Jeb foram jogadas, sob o salgueiro em nossa casa de campo. A árvore tinha um significado especial, por ter sido gerada de uma mudinha do salgueiro que dividia os quintais da nossa casa quando éramos crianças.

Tais pedidos nada convencionais não abalaram minha família, considerando que me tornei uma mulher muito excêntrica.

Depois da morte de Jeb, eles me viram vagar pela casa de campo, reunindo os mosaicos que fiz ao longo da vida, cheios de paisagens bizarras e místicas — com títulos como A Batida do Coração do Inverno, Dunas de Xadrez e O Ventre do Monstro —, e guardando-os no sótão, ao lado de outras quinquilharias, incluindo um anúncio de um passeio pelo Tâmisa, em Londres. As últimas coisas que guardei ali foram duas chaves: uma que pertencia à minha mãe, e era capaz de transformar qualquer espelho num portal, e outra que podia abrir o jardim das almas do País das Maravilhas. Esta última foi um presente dado a Jeb, depois que ele desistiu da sua musa, de modo a satisfazer a necessidade do reino interior por sonhos vívidos e cheios de imaginação, conectando nossos mundos em paz ao longo do processo. Ele desistiu do que fez dele único, a fim de manter as crianças humanas seguras. Um ato de coragem que seus filhos e netos jamais tiveram o privilégio de saber. Era essa a lembrancinha de que eu tinha mais dificuldade para me desapegar, porque era uma homenagem à coragem e ao caráter nobre de Jeb — as duas coisas que eu mais amava nele. No entanto, como Rainha Vermelha do País das Maravilhas, eu não tinha motivo para guardar chave tão sagrada.

Escondi tudo num baú no sótão e o tranquei. Então pus a chave do baú em meio às páginas da minha velha coleção de Lewis Carroll. Jeb e eu éramos donos da casa e do terreno que a cercava, e insistimos, em nossos testamentos, para que o lugar permanecesse sempre com a família. Assim, se nossos descendentes um dia precisassem me encontrar, poderiam. Eles só precisam procurar as pistas, como um dia eu fiz. Seguir meus passos e acreditar no impossível — em contos de fadas e desejos e mágicas.

Sempre os mantive no escuro quanto ao nosso legado, dando-lhes uma chance de viver uma vida normal. Até mesmo ordenei que os insetos e flores ficassem em silêncio. Agora sou a única capaz de ouvir esses sons do mundo interior, e as coisas continuarão assim enquanto eu estiver reinando como a Rainha Vermelha. Contudo, se algum familiar procurar com presteza, vai encontrar a verdade que escondi para eles.

Em todos esses anos, eles aceitaram meus caprichos porque sempre os respeitei e os amei incondicionalmente. E agora conto com a lealdade deles. Todo o meu plano de morrer depende da execução do meu testamento.

A cremação era a única forma de evitar que drenassem meu sangue, bombeassem formol em minhas veias e cerzissem minhas pálpebras — todos aqueles procedimentos mórbidos e intrusivos para embalsamar e preservar o corpo mortal. Fui abençoada ao longo dos meus oitenta anos de vida humana com saúde e uma mente aguçada. Nunca precisei de marca-passo e não tenho próteses, implantes ou dentaduras, então não há nada que possa explodir no forno. Isso significa que não haverá incisões nem extrações. Era importante que eu permanecesse intacta — por dentro e por fora.

Todavia, se o Rábido Branco não se apressasse e chegasse aqui com o antídoto para me tirar deste estado, nada importaria. Vou virar um monte de cinzas. E Morfeu terá de encontrar um lar novo para meu espírito eterno... um novo corpo para eu habitar.

Ele ficará furioso se isso acontecer e nunca me deixará esquecer isso. Uma eternidade é muito, muito tempo para ouvir eu avisei, entoado continuamente com um marcado sotaque londrino.

— Não me importo — disse ele há duas semanas, enquanto discutíamos meu êxodo do reino humano e tomávamos chá durante uma das minhas visitas ao País das Maravilhas em sonho. Ele levou a xícara à boca, seu rosto curioso perfeito e jovem como sempre. Ele bebeu e deixou a xícara de lado novamente. — Muitas coisas podem dar errado. Devo estar lá para executar meu plano.

— Vou agir sozinha — declarei. Estudei a cama com dossel e a lareira instaladas na diagonal em relação a enormes poltronas vitorianas ao lado de uma mesa oval, buscando conforto no cenário. — E vamos seguir meu plano. — Aqueles seriam meus últimos instantes no reino humano. Tinha de ser de acordo com a minha vontade. Contive uma descarga de tristeza e tentei exibir o mesmo controle que Morfeu exibia com sua xícara de chá, mas o líquido quente molhou minha mão velha quando meu pulso tremeu. Gritei.

— Alyssa, por favor. Permita-me. — Com seus dedos lisos e elegantes, ele cuidadosamente segurou meus dedos enrugados, limpando o chá e acariciando a mão queimada com um guardanapo.

Permita-me. Nós dois sabíamos que ele falava de outras coisas além da limpeza do chá derramado.

Tantos anos passamos juntos nos meus sonhos — e tantos outros na nossa infância —, com Morfeu me treinando e me ensinando sobre meu reino e o mundo. Não havia oportunidades para ficarmos sozinhos, já que ele mantinha o véu do sono descoberto para eu poder interagir com o Rábido, Chessie, Marfim, as criaturas e meus súditos.

Isso mudou quando fiquei viúva. Realizava meus deveres reais todas as noites e lutava para ser forte, até que meu luto pela morte de Jeb ficou tão intenso que as lágrimas se acumulavam em meus cílios, me cegando. Morfeu — sentindo minha vergonha, porque rainhas não choram — insistia que era hora do chá, que tomávamos sozinhos nos aposentos reais que um dia pertenceria a nós como rei e rainha.

Ali, na nossa solidão, escondidos de olhos predadores e cercados por exuberantes tapetes vermelhos e cortinas douradas, eu me perdia em minha dor. Permita-me, dizia ele. Estendendo os braços, ele me abraçava enquanto eu chorava. Noite após noite, durante um ano, até que finalmente não conseguia mais chorar.

Pouco depois, a atenção de Morfeu mudou. Seus carinhos se tornaram menos confortantes e mais íntimos. Estava constrangida demais para reagir, tímida demais em meu corpo velho.

Um ser místico eternamente jovem cortejando uma velha — teria rido do absurdo disso, não estivesse tão afetada pela devoção cega dele e pela intensidade do seu amor.

— Mesmo que usássemos seu plano... — Morfeu falava baixinho e de mau humor ao esfregar o guardanapo entre meus dedos, enxugando os resquícios de chá. — ... ainda assim eu deveria estar lá nas coxias, para supervisionar o espetáculo.

Franzi a testa para ele. Sua teimosia, juntamente com a dança dos vaga-lumes em seus cabelos desgrenhados e seus traços bizarramente belos, me fez lembrar outra noite em que nos sentamos neste quarto juntos — há várias décadas —, quando ele tentou me convencer a usar a coroa de rubi pela primeira vez. Quando tentei convencê-lo a me devolver meu desejo para eu poder fugir do País das Maravilhas, curar a maldição da minha família e manter Jeb em segurança. Eu era uma pessoa diferente na época, cheia de juventude, aspirações humanas e inocência.

Nosso quarto real se tornou uma lembrança dolorosa da velhice e decrepitude. Ansiava criar lembranças novas aqui, depois de desistir de tentar superar a beleza caótica do País das Maravilhas, quando fui coroada rainha de novo e permaneceria com dezesseis anos para sempre — jovem, cheia de energia e tão sedutora quanto o homem alado que governaria ao meu lado.

Até então, eu não me encaixava. Eu era uma foto deixada ao sol e chuva, minhas cores vibrantes se desbotando melancolicamente e ganhando um tom amarelado. Meus poderes intraterrenos ainda eram fortes, mas estavam presos num vaso gasto pelo tempo. Meus ombros pareciam curvados e pesados demais, eu raramente usava minhas asas. Do que mais sentia falta era voar.

Eu me perguntava se era assim que a Rainha Vermelha se sentiu no fim e por que ela permitiu que Morfeu a convencesse a voltar ao País das Maravilhas, abandonando seus descendentes semi-humanos. Por fim, foi plano dela voltar, apesar de não querer fazer aquela jornada sozinha. Ela brigou com Morfeu, dando início a uma série de eventos e manipulações que acabaram por me levar à coroa e me tornar rainha. Algo pelo qual aprendi a agradecer, apesar de na época ter reclamado do presente. Demorei muito para admirar totalmente a preciosa imortalidade, e jamais desvalorizaria isso novamente.

Depois que Morfeu terminou de limpar o chá derramado, tirei a mão da dele e timidamente cobri meu pescoço com o lenço de seda, tentando esconder minhas peles murchas. As pessoas diziam que eu era linda para a minha idade. Que parecia ao menos vinte anos mais nova. Todavia, em comparação à beleza sobrenatural e imutável de Morfeu, eu me sentia velha.

— Não quero você lá — insisti, determinada a mantê-lo distante da casa funerária. — Já basta você ter me visto murchar como uma uva-passa ao longo dos anos. — Até minha voz soava enferrujada, como se as palavras jorrassem da minha garganta e língua em porções cáusticas.

Morfeu apoiou os cotovelos na toalha da mesa, aproximando-se ao máximo com o jogo de chá entre nós. Seus cabelos azuis tocaram-lhe os ombros, animados e encantados — um contraste marcante com as ondas brancas reduzidas a um coque preso atrás da minha cabeça.

— Você está no fim de sua crisálida, meu amor. Esta etapa é a mais difícil, acredite. Uma batalha furiosa e incômoda de identidade, antes de se libertar e se transformar na criatura de luz e criatividade que sempre foi seu destino. Posso mantê-la atenta. Para evitar quaisquer... distrações.

Ele olhou para minha aliança, que eu ainda não tinha tirado. Aquilo se tornara mais do que um símbolo da nossa devoção. Tornara-se um símbolo da minha vida humana, e eu pretendia usá-la até deixar tudo para trás.

Com o dedinho, Morfeu circulou a aliança, cuidando para não tocar os diamantes ou o suporte de prata que os mantinha no lugar.

— É importante que você não permita nada que a impeça de dar o salto final. Você sofreu a perda daqueles que se foram há tanto tempo. Eles estão em paz. Deixe que a paz deles lhe dê paz. Senão, você será afetada... incapaz de agir com a mente ágil. O foco é fundamental para que qualquer um dos planos funcione.

— Já sei disso — respondo, um aperto no peito dolorido. — Você tem medo de que eu fique senil. De eu não ser capaz de lidar com isso.

Ele suspirou, acariciando meu polegar com o dele.

— Não senil. Nostálgica. Acontece a humanos. Você mesma me contou, enquanto eu a via amadurecer do refinamento à sabedoria.

— Refinamento. — Tentei um sorriso hesitante diante do esforço dele em me encantar. — É assim que vocês falam hoje em dia?

Ele me encarou sem hesitar.

— Seus olhos não perderam a incandescência; nem a mente, a inteligência. Você não é ingênua. Você é minha torta de ameixa, e sempre foi. Já lhe disse isso repetidas vezes, não é?

Ao menos uma vez por noite nos meus sonhos, Querida Mariposa.

Não respondi em voz alta, assim como não revelei minhas maiores inseguranças: estava com vergonha de ele me ver tão decadente... Não suportava a ideia de ele ter qualquer lembrança de mim como um cadáver naquele caixão de papelão — assim como eu vi Jeb depois da morte dele, antes de ser cremado.

— Uma rainha não deveria exigir resgate — sentencio. Ainda o encaro, maravilhada com aquelas íris coloridas que devolvem a mim o mesmo olhar de nossa infância, cheio de surpresa e afeto. De certa forma, ele via para além do meu corpo velho e enxergava a menina que fui, e eu queria muito conseguir me ver como ele me via. — Uma rainha deve merecer o respeito do seu reino e de seus súditos. E a admiração do rei.

Ele pegou minha mão novamente e beijou cada um dos nós dos dedos cheios de artrite.

— Ah, eu lhe garanto Você sempre mereceu isso. Na verdade, planejo mostrar-lhe a profundidade de minha admiração. — A palavra profundidade saiu de sua garganta como um urro. — Ainda que sejam necessárias várias vezes para convencê-la, finalmente chegará o momento de você ser minha.

Meu rosto ficou vermelho. Apesar de todos os anos em que ele me elogiou e me provocou com insinuações, e a despeito de tudo o que vivi como mãe, esposa e avó mortal, ele ainda conseguia me fazer enrubescer.

— Ah, aí está. — Ele passou o dedo por meu rosto enrugado e sorriu, satisfeito demais consigo mesmo. — Não perdi meu encanto.

— Como se isso fosse possível, para o mestre da sedução verbal — provoquei.

Seu humor mudou para a insolência num piscar de olhos.

— Você logo verá que isso é mais do que conversinha, minha rosa.

Fiquei ainda mais vermelha, sentindo-me mais jovem do que nunca. Ele sempre causava esse efeito em mim. Sempre fez com que eu me sentisse viva e desejável. Exceto pelas vezes que ele me desafiava ou me deixava furiosa.

Ele se recostou em seu lugar, as asas erguidas.

— Seu corpo está cansado. Deixe-me fazer isso por você, para você poder descansar — tentou ele uma última vez.

— Você me ensinou a ser forte e astuciosa. Devo dar sozinha este último salto para dentro da toca do coelho. — Uma sensação inesperada de vulnerabilidade me fez tremer. Peguei minha xícara de chá para absorver seu calor. — Mas você estará lá para me pegar?

— Estarei lá esperando um beijo arrasador para compensar todos os meus problemas — respondeu ele sem hesitar.

Sorrindo, peguei o jogo de xadrez. Morfeu ficou observando atentamente eu animar as peças para que atuassem no meu grandioso plano de deixar o reino humano e esconder meus vestígios com a ajuda do meu conselheiro real, além de pedaços de osso fornecidos pelas fadas, um saco de cinzas, dois trajes de disfarce, uma mosca comum e um punhado de duendes. Enquanto eu falava, seu olho adornado com joias brilhava num tom esverdeado — incomodado, mas esperançoso. A ansiedade que emanava dele era visceral.

Era inconcebível que tivéssemos um relacionamento de sessenta e três anos — platônico — sem um quê de tensão. Apesar de ele gostar muito de me ver andar na ponta dos pés na corda bamba da sedução contida, ele manteve seu juramento e respeitou minha decisão de ser fiel a Jeb. Ele esperou três anos, enquanto eu sofria a morte do meu marido mortal e preparava minha família para minha partida iminente. Era essa a profundidade do respeito dele por mim. Ele teve meu respeito em troca. E muito mais...

Agora chegou o dia de recompensá-lo por sua paciência e estou começando a me arrepender por não deixá-lo planejar minha morte... por não deixá-lo controlar o espetáculo. Provavelmente, tudo seria muito mais fácil. Eu já estaria em seus braços e em sua cama — uma jovem rainha borboleta, governando meu reino, embriagada de poder, loucura e paixão.

Não. Eu consigo. Posso provar que sou capaz, calculista e forte, como todas as boas rainhas deveriam ser.

O único papel de Morfeu no meu plano era mandar o Rábido com o antídoto. Assim que meu cúmplice chegar, tudo se encaixará e fugirei para o País das Maravilhas. Como um corpo não pode ser exumado depois de reduzido a cinzas, ninguém saberá que ainda estou viva e apenas fui embora deste mundo para sempre.

Uma pontada de tristeza segue-se a esse pensamento quando finalmente me dou conta. Acabou. Estou pronta para dar um fim... para começar meu futuro imortal. Vivi uma vida plena aqui. Minha família é saudável e feliz. Estamos no auge. Todos os sonhos humanos foram realizados e meu coração está firme e forte novamente.

Se bem que, por causa disso, há muita coisa a ser deixada para trás. Não há nada inconcluso, mas ainda assim é difícil dizer adeus para sempre. Assim que a coroa for colocada em minha cabeça para dar início à minha imortalidade, não terei de usá-la constantemente para manter minha juventude, mas terei de ficar no País das Maravilhas. Como Marfim uma vez me disse, o tempo é complicado ao se passar pelo portal a fim de retornar ao mundo humano... há de se imaginar uma hora específica, ou o relógio retrocede e o portal deixará você no mesmo momento de sua passagem.

Se eu tentar cruzar as fronteiras para o reino humano depois de partir, voltarei para sempre a este momento e terei oitenta anos para sempre, ou automaticamente envelhecerei todo o tempo que se passou e virarei pó na hora. Acrescente-se a isso o fato de eu estar morta aos olhos de todos — jamais poderia explicar meu reaparecimento sem causar terror e confusão — e ir e voltar não será mais uma opção.

Uma muralha impenetrável está prestes a se erguer entre mim e minha família, deixando-nos sem nada além de memórias.

O rosto de Jeb reapareceu em minha mente antes que eu pudesse impedir... como seus olhos verdes brilhantes me encararam pouco antes de ele os fechar na morte. Como eles estavam tão cheios de amor e gratidão por todos os sonhos que compartilhamos.

Sinto algo crescer na minha garganta e uma dor atrás dos olhos. No meu peito, a pequena identidade de metal parece uma pilha de tijolos.

Pare. Não posso fazer isso agora. Tenho de me concentrar na fuga. Morfeu tinha razão. Pensar naqueles que amei só vai me atrapalhar. Vou manter as lembranças sob controle... esquecer como encarei a morte da mamãe e do papai, como achei que jamais superaria a dor. Como Jeb foi meu porto seguro, como sempre. Assim como fui para ele, quando a mãe dele morreu.

É fútil pensar nessas coisas agora, porque, assim que Jeb morreu, todo o mundo se distorceu — adquiriu uma nova forma que eu não reconhecia. As coisas cotidianas se tornaram estranhas e desagradáveis. Com a morte dele, eu não fazia parte de mais nada.

Minha metamorfose estava completa assim que meu marido mortal deixou de respirar. Só o que me restava agora era sair do meu velho casulo.

Um cheiro novo entra em meu entorno de papelão — loção pós-barba ou desodorante —, me obrigando a voltar ao presente enquanto dois homens conversam do lado de fora do caixão.

— Última da noite, Frank?

— É isso, Brian. Chegou há algumas horas. Só entrega. E é para se apressar com ela. Quer que eu fique e ajude?

Tenho dificuldade para respirar. Meu plano não permite duas testemunhas. Só uma. Enquanto espero pela resposta do operador do crematório, meu coração se encolhe dentro de mim, cheio de medo. O órgão parece tremer, apesar de não haver pulsação em meus pulsos ou ouvidos. Só uma vibração fria e indiscernível por trás do meu esterno, como gelatina gelada retirada da fôrma.

— Não — diz finalmente Brian, mexendo em alguns papéis. — Posso fazer isso de olhos fechados.

A ironia é risível. Se tudo sair como planejado, ele não só terá seus olhos fechados, como também estará dormindo e sonhando.

— Vá para casa e fique com sua família — conclui Brian. — Diga a Melanie e às crianças que mandei um oi.

— Entendi. Até amanhã.

As portas se fecham com um rangido e o alívio toma conta de mim, mas por pouco tempo. Os cliques e claques da esteira mecanizada balançam as paredes de papelão do meu caixão e agitam meus ossos rígidos. Sinto um balançar leve sob minha coluna enquanto meu caixão segue por uma esteira com rolos de metal. À medida que estes se movem, as chamas crepitam mais alto, aquecendo meus pés no ponto onde a parede sob a sola dos meus pés se aproxima perigosamente da entrada do incinerador.

Era para o Rábido estar aqui antes que o forno de temperatura controlada estivesse quente o bastante para acionar o mecanismo de abertura. As coisas estão acontecendo fora da sequência e rápido demais. Meus músculos doem e ganham vida, mas estão rígidos como aço. Imóveis. Um vislumbre de outra lembrança me arrepia: quando a Rainha Vermelha controlou meu corpo naquele último dia em Qualquer Outro Lugar. Quando eu era uma marionete dela. Sinto-me tão impotente agora quanto naquele tempo.

Estou prestes a ser envolta em chamas. Meu corpo não vai sobreviver. De todo modo, preciso sobreviver. Prometi voltar como eu mesma. Inteira. É uma promessa que não posso quebrar. Morfeu esperou demais por meu retorno. Não posso decepcioná-lo.

A dúvida ergue sua cabeça horrível: o que farei? Não consigo me mover, não consigo me livrar... não sem o antídoto. Um vazio dói por trás dos meus canais lacrimais enquanto desejo que uma enchente me liberte e encha toda a minha caixa com um oceano de lágrimas para me salvar do fogo. Mas meus olhos podiam muito bem estar cheios de areia.

Chega de drama, meu amor. Use sua mágica. Improvise e encontre uma forma de escapar.

Não tenho certeza se é a voz de Morfeu na minha cabeça ou se é minha própria voz. Ouvi o sotaque dele e sua insistência tantas vezes ao longo da vida que eles estão entranhados em mim como se fossem meus.

Seja qual for o caso, isso desperta minha determinação. Há um motivo para eu ter vindo a este lugar na noite passada, quando tudo estava escuro e em silêncio: para poder anotar mentalmente todas as coisas que poderia animar se precisasse. Para poder entender a logística do forno crematório. Para poder usar minha mágica às cegas.

Concentro-me no maquinário da esteira. Aprendi uma coisa ou outra sendo esposa de um mecânico. As molas do mecanismo se contraem enquanto as imagino se retraindo. O movimento aciona as amarras e a porta de metal se fecha com um baque. Minha caixa para imediatamente ao atingir o obstáculo.

— Você só pode estar brincando comigo — resmunga Brian. Ele mexe na maçaneta da porta e bate nas dobradiças. — Pronto. Agora, sim.

Ele empurra meu caixão de volta para a esteira de metal, criando espaço para a dobradiça se abrir. Minha mente procura outra forma de detê-lo quando o ouço gritar “Mas o que é que...?”, pouco antes de ouvir o som do seu corpo caindo no chão. O caixão bate na porta fechada novamente.

— Rainha Alyssa — uma voz fina soa do outro lado do papelão.

Nikki, sua fadinha maravilhosa. Um formigamento se irradia pelos meus lábios, o fantasma de um sorriso esperando para se abrir. Meus dedos dos pés se dobrariam de empolgação, não fosse minha paralisia.

A tampa do caixão se abre e as asas de vinte fadas pairam ao redor do meu rosto — lufadinhas de vento com cheiro de canela e baunilha.

Mãozinhas do tamanho de joaninhas seguram minhas pálpebras, abrindo-as diante de um brilho âmbar. Ainda não consigo virar a cabeça, mas pela minha visão periférica a galhada do Rábido aparece sobre a borda do caixão, seguida por um par de olhos rosados brilhantes.

— Atrasado estou — desculpa-se ele.

Tento menear a cabeça, mas não consigo.

Todo o seu rosto aparece diante de mim.

— Arrumá-la, Alteza. Levá-la para casa, finalmente.

Casa. A palavra passeia por minha mente, cheia de promessas e esperanças. Imagino-me voando com Morfeu pelos cenários bizarros e irregulares do País das Maravilhas. Como vai ser bom me sentir pertencente a um lugar de novo. Fazer parte e nunca ter de abandonar ninguém novamente.

O Rábido estica o braço magro e derrama em minha garganta algo de uma garrafa vermelha. Um leve toque de frutas vermelhas misturado a menta arde em minha língua. Meu coração ganha vida, batendo com tanta força contra meu esterno que eu perco o fôlego. Em pouco tempo, sou capaz de abrir os olhos sem a ajuda das fadas. Elas se dispersam com risadinhas e pairam ao redor do adormecido operador do crematório, caído no chão de cimento.

Pisco com força e rapidez. Meus canais lacrimais funcionam e meus olhos se enchem de água. O sal fere e coça.

Depois, meus dedos dos pés e das mãos latejam e os músculos despertam, moles e resistentes, como elásticos esticados demais. Enquanto me sento, minhas velhas articulações estalam.

O Rábido sobe na beirada da inclinação e segura o caixão, mantendo-o ao meu nível.

— Perdoe o Branco Rábido. Para todo o sempre, ao seu lado estarei.

Acaricio sua cabeça macia.

— Nenhum perdão é necessário. O que importa é que você está aqui agora. Alguém o viu saindo do banheiro?

O Rábido faz que não.

— A mosca no muro ficou de olho no futuro. — Ele ri da rima e aponta para a parte de cima da porta que ostenta a única janela do salão. A mosca anda pelo vidro do outro lado, numa demonstração de sua devoção inabalável.

O Rábido abre o sorriso sorrateiro que aprendi a apreciar, enquanto sua mão esquelética me entrega uma mochilinha. Olho dentro e está tudo ali: meu colar com o rubi, minha aliança de casamento, os trajes de disfarce, um saco de cinzas e pedacinhos de osso, uma muda de roupa, uma faca e três lembranças da minha vida humana que serão as únicas coisas que levarei comigo ao transpor os limites do País das Maravilhas.

Primeiro, coloco o colar em volta do pescoço e aperto a chave contra o peito, saboreando o poder que ela contém.

O operador do crematório ronca no chão. Ele parece com frio e nada confortável, mas sei que não está. Seus sonhos são cálidos e sensuais. As fadas voam ao redor dele, as asas batendo à velocidade de beija-flores, enquanto elas espalham partículas que são como dentes-de-leão cheios de feromônios. As sementinhas caem sobre o rosto sorridente do homem, levando seu inconsciente a imaginar as fantasias mais carnais. Torço o nariz, com vergonha até de imaginar o que ele está sonhando. Ele provavelmente vai ter uma ressaca de sonhos por uma semana.

Ainda que ele não vá sofrer nenhum efeito físico duradouro, as fadas estão explorando os pensamentos secretos dele. Quando eu era mais nova, teria me arrependido de tê-lo usado em meu plano. Agora, não. Quando ele acordar, daqui a mais ou menos uma hora, sua dor de cabeça insuportável o impedirá de questionar como conseguiu me cremar enquanto ele dormia. Ele só irá querer uma aspirina e sua cama macia em casa.

O fim justifica os meios.

Uso a faca para cortar uma abertura na lateral do caixão e tirar minhas pernas, lenta e cuidadosamente. Não consigo me mover tão rápido quanto antes. Meus pés descalços tocam o chão frio, o vestido de papel fazendo barulho. O Rábido se vira de costas enquanto tiro o vestido e o jogo dentro da caixa, depois visto um moletom e botas cinza — as roupas mais confortáveis e discretas do meu armário. Repreendo-me por me esquecer das roupas íntimas, mas não importa o que estou vestindo agora, porque no País das Maravilhas Morfeu encheu todos os armários do castelo com camisolas e lingeries de renda, cetim e veludo — um guarda-roupa digno de uma rainha.

Hoje, o disfarce esconderá meu traje simplório. Coloco o pé no tecido mágico. Para virar uma camaleoa, só preciso vestir o capuz e me concentrar nos arredores, meu corpo refletindo o cenário de fundo.

Mas primeiro...

Sem eu nem pedir, o Rábido me entrega o saco de cinzas e ossos e minha aliança de casamento. Olho o anel. Jeb o fez para mim quando tinha a capacidade mágica de pintar coisas e lhes dar vida. Quando sua musa se tornou uma entidade viva. Ele me serviu tanto como anel de noivado quanto como anel de casamento e era indestrutível. Pelo menos era o que pensávamos. A única vez que ele perdeu um de seus doze diamantes foi por descuido da minha mágica, quando eu a estava praticando.

Estava do lado de fora da nossa casa de campo, tentando fazer o salgueiro dançar, quando o diamante caiu na grama. Procuramos e procuramos, mas nunca o encontramos. Depois de uma semana, ele apareceu de novo, nascendo do solo na forma de uma flor parecida com vidro. Era como se o diamante fosse uma semente, tendo dentro de si a força da criação mágica de Jeb.

O cheiro de terra presente na lembrança dá lugar ao cheiro do propano do forno. Abro o saco e derramo as cinzas e ossos no caixão, mantendo os movimentos metódicos e precisos para a nostalgia não tomar conta de mim novamente.

Depois de esvaziar o saco, beijo minha aliança e a coloco em cima do montículo.

— Rábido, derreta isso com sua mágica.

Meu conselheiro real se aproxima, olha pela abertura e estreita seus olhos brilhantes até que eles irradiem um calor vermelho. Enquanto ele se concentra, as faixas de prata se fundem, reduzindo os onze diamantes a cinzas.

Coloco a placa de identificação dentro do caixão e leio o que está gravado no aço: Alyssa Victoria Gardner Holt. Sinto um nó na garganta. É a última vez que meu nome humano me definirá.

Reposicionando a tampa, ordeno que o mecanismo da porta funcione. Entrefecho os olhos diante do calor e das chamas, enquanto as portas se abrem o bastante para eu empurrar o caixão pela esteira, a porta se fechando em seguida. Ela se fecha completamente, tanto que nem mesmo se pode ver o brilho alaranjado lá dentro.

Alguns segundos mais e eu estaria presa ali. Agora, depois que o papelão se queimar todo, vai parecer que eu estava. As prateleiras de metal na parede contêm vários cubinhos de papelão. Dentro estão os restos mortais dos corpos que vieram antes de mim e agora esperam ser transferidos para suas urnas.

Mas meus “restos mortais” são únicos. Os diamantes de Jeb esperam lá dentro — sementinhas mágicas. Quando as cinzas forem lançadas no lugar onde as dele foram absorvidas na terra sob nosso salgueiro, flores nascerão, uma parte dele e minha. Unindo o que restou de nosso lado humano, numa última homenagem a toda a beleza que ele criou durante a vida.

Seguro-me para não chorar e pego a mochila enquanto o Rábido veste outro traje de disfarce, o qual encolhe até caber em seu corpo de coelho. Mentalmente, pergunto à mosca se o corredor está livre.

Ela responde num sussurro:

Está tudo bem, Rainha Alyssa...

Os outros humanos se foram. Não há nada além de umas traças por aqui.

Desnecessário ficar invisível, então.

— Nikki — sussurro, e a fadinha balança as asas, soltando a dose final de pó de fada no homem adormecido. Então ela reúne suas companheiras e nos segue porta afora. O banheiro fica a poucos passos do outro lado do corredor comprido e escuro. Sigo tomando cuidado para não esmagar as traças que caminham perto dos meus pés e dos pés do Rábido. Sorrio ao ver os insetos acompanhados de uma fila enorme de baratas, besouros e aranhas.

Rainha Alyssa! Rainha Alyssa! Tão triste vê-la partir...

A mosca voa ao redor da minha cabeça, acrescentando suas despedidas à confusão.

— Sentirei saudade de vocês também — digo, lutando contra uma onda de melancolia. Será a última vez que ouvirei esses cumprimentos confusos e zunidores. No País das Maravilhas, os insetos são... bem diferentes. Menos inócuos e bonzinhos. Alguns são maus e letais, e nada pequenos. Mas conheço todos os segredos deles e todas as suas fraquezas — graças ao sábio guardião do País das Maravilhas.

Nosso desfile entra no banheiro e para diante do espelho. Em vez de me ater à minha aparência velha e enrugada, imagino o relógio de sol que cobre a toca do coelho em um jardim londrino. O vidro racha como gelo no lago e, no reflexo entrequebrado, o relógio de sol aparece, marcado por uma réstia de pôr do sol rosa. É cedo e ninguém ocupa a trilha ainda. Como precaução, visto o capuz e o Rábido faz o mesmo.

Só precisamos de um ou dois pensamentos sobre nossas cercanias e seremos invisíveis.

Usando minha chave, miro numa fissura na forma de buraco de fechadura, minúsculo e intrincado.

O portal se abre. O Rábido me cutuca com seus dedos magros e entrelaço meus dedos aos dele. Junto com as fadas e nossos insetos companheiros, passamos pela abertura liquefeita. Uma brisa fria me atinge, assim como o cheiro de mato e rosas cobertos de orvalho reluzente.

Os botões de rosa dizem:

Bem-vinda, Majestade. Os anos ficaram para trás. Logo você estará desabrochando como nós novamente.

Sorrio. O Rábido me puxa rumo ao relógio de sol que já expõe a toca do coelho. Ele está ansioso para ir embora. Mais insetos se juntaram a nós; alguns pelo terreno: besouros, centopeias e escorpiões; outros pela brisa: borboletas, mariposas, vaga-lumes...

Saem em enxame do mato e ficam dando a volta em mim e em meu conselheiro real — um arco-íris encantado, espesso e brilhante, sob a luz rosada do céu.

As borboletas cantam:

Vida longa à Rainha Alyssa. Que você seja para sempre jovem, louca e livre.

Muitos deles pousam sobre mim, as asas acariciando meu rosto e pescoço através do traje de disfarce, e percebo que não terei mais de me tornar invisível. Meus amigos insetos estão aqui para me dar proteção, como sempre estiveram.

O Rábido me solta, seus dedos de cadáver tocando os meus enquanto ele segue as fadas e mergulha na toca do coelho sem olhar para trás.

— Atrase-se não, Majesta-a-a-ade — o grito do Rábido ecoa até mim, afastando-se mais e mais à medida que ele desce, sem peso, como uma pena ao vento.

Ao contrário do meu séquito interior, não consigo ir embora sem uma olhada para trás.

Paro, olhando em meio à nuvem de milhares de asinhas adejando diante da paisagem tremeluzente no horizonte. Meu peito se aperta.

Pego as lembrancinhas da minha mochila. Três garrafas de vidro decoradas: a primeira cheia de pedrinhas, a segunda com conchas e a última com um pó prateado. Uma olhada nas três e as lembranças contra as quais eu lutava iluminam minha mente, graciosa e lentamente, como a aurora invadindo o mundo imóvel que desperta.


CONTINUA

A MARIPOSA NO ESPELHO


Capítulo 1


As Maquinações
da Mariposa

— Tem certeza, Morfeu?

— Tenho — respondeu Morfeu, tirando as luvas e enfiando-as no casaco. — Você, entretanto, parece que precisa ser convencida.

A magia pulsava nervosamente na ponta de seus dedos, uma luz azul pulsante logo abaixo da pele. Por causa da ponte de ferro que havia lá fora, seus poderes estavam limitados a alguns truques inofensivos, mas suficientes para dar o seu recado, se necessário.

O besouro-tapete — que de tão grande chegava à altura dos ombros de Morfeu, depois de este haver tomado uma poção encolhedora — engoliu em seco por trás de suas muitas mandíbulas estalantes. Sua pele carpetada tremia.

— Não, não. Por favor, o senhor interpretou mal as minhas ressalvas. — Os braços ramosos do inseto vibravam enquanto ele folheava as marcações em ordem alfabética de sua prancheta, as quais continham todas as lembranças perdidas no País das Maravilhas. — É que ficar espiando os momentos esquecidos de um ser humano parece uma maneira tediosa de se passar uma tarde, só isso...

Morfeu mudou de posição, e suas asas lançaram uma sombra sobre a cara do besouro.

— Ah, mas este humano, em especial, tem muito a me ensinar.

Esse humano, em especial, havia conseguido capturar algo que Morfeu desejava mais que tudo neste mundo.

— Sente-se — disse o inseto, apontando para uma cadeira branca de vinil —, e eu prepararei as memórias para o senhor.

Morfeu jogou as asas para o lado, sentou-se e deu uma tragada no narguilé fornecido por seu anfitrião como cortesia. O tabaco doce e fresco passou ardendo pela sua garganta. Ele soprou baforadas de fumaça no ar, formando com elas o rosto de Alyssa. Era fácil imaginar o modo como seus olhos sempre se cobriam de um azul gélido quando ela o via, cheios de excitação e temor ao mesmo tempo. Adorava isso nela: a sagacidade de seus instintos intraterrenos alertando-a a não confiar nele, suavizada pelas emoções humanas forjadas durante a infância que passaram juntos.

Antes dela, Morfeu levara a vida em solidão, sem nunca precisar de ninguém. Ele não fazia a menor ideia do feitiço que ela lhe lançara. Ela era mais que uma decepção, sempre jurando devoção ao lado errado. Seu encanto, porém, era inegável. Principalmente quando ela o desafiava ou o encarava com sua indignação de justiceira, o que a deixava com os lábios deliciosamente posicionados quando rangia os dentes.

Morfeu colocou o narguilé de lado, embora a sensação de queimação em seu peito não tivesse nenhuma relação com o fumo. Alyssa era a única que poderia aplacar o incêndio que havia ali, pois fora ela quem havia atiçado aquelas chamas.

Os dois tinham passado cinco anos juntos — como amigos de infância —, até que a mãe dela a arrancou dele, Alyssa sangrando e ferida, e ele ficara se remoendo de remorso e com culpa por causa de um juramento imprudente que havia feito, no qual prometeu se manter longe dela.

Manter-se afastado da amiga fez com que ele sentisse o gosto da solidão pela primeira vez. Mesmo todos os anos de claustrofobia que ele passara aprisionado em um casulo antes de encontrá-la... nem mesmo eles o prepararam para o sofrimento da ausência dela.

Então, por fim, ela havia voltado para ele, fazendo-o reviver todos os antigos sentimentos que ele pensava ter dominado. Daquela vez, também, tudo foi muito rápido. Ela partira novamente, por escolha própria. Restaram a dor e a solidão excruciantes. Debilitantes.

Havia apenas seis meses que ela partira do País das Maravilhas, e ele não compreendia este vazio corrosivo que só poderia ser preenchido pelo toque dela, por seu perfume, sua voz. As solitárias criaturas mágicas não ligavam para essas bobagens; não precisavam de companhia, abominavam a bagagem emocional. Sua afeição e lealdade pertenciam ao agreste País das Maravilhas e a nada nem a ninguém mais.

Então o que ela havia feito para mudar isso?

Ultimamente, cada vez que ele via o próprio reflexo, não mais reconhecia a Mariposa no espelho. Estava incompleto, enfraquecido; e menosprezava isso.

O menosprezo era ainda maior porque ele havia se esforçado tanto para cortejá-la, enquanto ela oferecia seu afeto a um reles mortal.

Morfeu suprimiu um rosnado. Ele não conseguia compreender a sorte de Jebediah, como um humano podia ter tanto poder sobre uma rainha intraterrena. Como um simples rapaz era capaz de controlar um coração real e mestiço tão multifacetado, um espírito propenso ao pandemônio e à loucura. Jebediah puxava Alyssa para baixo, acorrentando-a ao tédio e à banalidade do reino humano.

Ela precisa ser libertada.

Morfeu havia considerado a possibilidade de matar seu rival, mas Alyssa jamais o perdoaria. Não. Chegara o momento de tomar medidas criativas.

Se Morfeu soubesse no que Jebediah havia pensando durante sua jornada pelo País das Maravilhas — todos os momentos em que ele se sentiu mais aterrorizado, mais desanimado —, conheceria as fraquezas e as forças do mortal, intimamente. Ele saberia como enfraquecer Jebediah, contrapondo-o a si mesmo.

Essas fraquezas o derrotariam melhor do que Morfeu o faria. E depois, quando tivesse destruído a confiança de Alyssa em seu cavaleiro mortal, Morfeu estaria lá para confortá-la e conquistá-la.

Voltaria a ouvir a risada de Alyssa do modo como ela ria quando os dois eram crianças, e teria de novo a oportunidade de ser presenteado com o seu sorriso deslumbrante.

Ele voltaria a ser completo.

— Por aqui, por favor — pediu o besouro para que Morfeu o seguisse.

Morfeu tirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo. Quando o inseto abriu a porta para um compartimento de memórias sem janelas, o cheiro de amêndoas vindo de uma travessa de biscoitos de luar fresquinhos que estava em uma mesa de canto se espargiu no ar. Havia uma chaise-longue na cor creme colocada contra a parede, e uma ornamentada luminária de piso feita de latão iluminava o espaço com uma luz discreta.

Morfeu concentrou-se no pequeno palco do outro lado do compartimento. Sentiu o coração palpitar de ansiedade num ritmo profundo e firme. As cortinas de veludo vermelho aguardavam o momento de se abrirem para mostrar as memórias de Jebediah na tela prateada.

— Como o senhor entrará na cabeça do rapaz para visitar suas lembranças perdidas, sou obrigado pelas normas a avisar-lhe que... as emoções humanas podem ser muito poderosas... podem nos fazer ver as coisas sob uma perspectiva totalmente diferente — advertiu o besouro.

— Estou contando com isso. — Morfeu deu um sorriso afetado. — Conhece aquele ditado sobre amigos e inimigos?

O besouro coçou a pele enrugada.

— Hum... mantenha seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda?

Morfeu acomodou-se na cadeira estofada e alisou a calça risca de giz ao cruzar as pernas apoiando um tornozelo sobre o outro.

— Melhor ainda é se colocar no lugar de seu inimigo. É a melhor maneira de controlar seus passos. Ou de apagá-los, caso tenha a oportunidade.

O besouro, voltando a tremer, esticou o braço fininho e apertou um botão na parede. As cortinas do palco se abriram, revelando uma tela de cinema.

— Imagine o rosto do rapaz enquanto olha para a tela em branco e vivenciará o passado dele como se fosse hoje.

As palavras do besouro eram ensaiadas, até mesmo mecânicas, mas a pulsação de Morfeu ficou acelerada. Ele esperou o besouro desligar a luz. Assim que o inseto saiu e fechou a porta, o corpo de Morfeu desmembrou-se nas juntas, flutuando pela escuridão como se fosse feito de partículas de pó. Todos os seus pedaços se uniram novamente na tela prateada, em cores vivas e cinematográficas, até que ele entrou na cabeça de Jebediah, apropriando-se do seu corpo, sentindo suas emoções.

Naquele momento, Morfeu entregou-se à experiência e, pela primeira vez na vida, passou a ver as coisas como um humano.


Capítulo 2


Primeira Lembrança —
Kriptonita

Jeb acordou em uma cama suspensa.

Estava nu. Por que estava nu?

Antes que esse fato pudesse ser totalmente registrado, trinta fadas ou mais, do tamanho de mariposas, surgiram do ar, acariciando cada parte do seu corpo e sussurrando-lhe. Ele tentou mexer os braços e pernas. As asas das fadas — que batiam na velocidade das asas de um beija-flor — liberavam partículas parecidas com as pétalas delicadas de um dente-de-leão, que, de alguma maneira, o imobilizaram. As sementes exalavam um perfume de canela e baunilha que foi inundando sua consciência, até que a sala ficou totalmente fora de foco.

Quando a névoa se dissipou, ele estava em sua cama, em casa. A noite adentrava pela janela e Taelor estava em cima dele, seminua. A unhas pintadas à moda francesinha percorreram os pelos de seu peito e abdômen, dirigindo-se ao cós de sua calça jeans.

Aquilo não podia ser verdade. Taelor e ele tinham brigado antes do baile de formatura, haviam terminado tudo.

Com delicadeza, ele a virou, colocando-a debaixo dele, e apoiou-se nos cotovelos, afastando o cabelo do rosto dela. Mas não foram os olhos de Taelor que encontraram os dele. Foram os olhos gélidos e azuis de Alyssa — encarando-o com um ar de admiração e inocência. Os dedos dele pareciam grandes e desajeitados nas têmporas dela.

A Al na cama dele?

Não. Isso não podia acontecer. Alyssa nem havia beijado homem algum. E Jeb nunca tinha sido o primeiro de nenhuma garota.

A Al era intocável para ele. Ela já passara por muitos episódios turbulentos em sua vida. E ele não era exatamente um exemplo de estabilidade.

Ele tirou as mãos dela e ficou de joelhos.

— Jeb, você não me quer? — perguntou Al, passando a mão no peito dele.

Ele não conseguiu responder. Seus dedos coçavam e pareciam esticar-se, como se estivessem crescendo. Ele ergueu as mãos sob o luar, observando, horrorizado, seus dedos caírem, um por um, e se metamorfosearem em lagartas. As lagartas, então, avançaram lentamente na direção de Alyssa, e ele não conseguia fazer nada para detê-las. Jeb caiu de costas na cama, com as mãos sobre o rosto, olhando fixa e incredulamente para os tocos crus e cheios de sangue onde antes estavam seus dedos.

Gritando, Alyssa tentou sair do colchão, mas as lagartas a pegaram, arrastando-se por sua pele e tecendo teias, até que restou somente uma forma se agitando dentro de um casulo.

— Soltem ela! — gritou Jeb. Uma luz lampejou em seus olhos, e então ele já não mais se encontrava em sua cama. Estava em algum lugar da mansão de Morfeu, e as fadas percorriam sua pele, hipnotizando-o... usando algum tipo de feromônio alucinógeno.

Elas estão me segurando aqui para que o Morfeu fique sozinho com a Al. No instante em que a realidade foi percebida, o feitiço foi quebrado.

Jeb pulou rápido da cama suspensa e saiu da nuvem de sedução de suas captoras. Pegando um travesseiro, ele se cobriu.

— Quero alguma coisa para vestir!

As fadas flutuavam no ar, seus olhos de libélula observando-o.

Havia várias cestas douradas no chão perto dos pés dele. Jeb chutou uma. Suas pequenas captoras se espalharam pelo ar, em histeria coletiva.

Gossamer, a fada predileta de Morfeu, designou cinco delas para pegar os morangos que rolaram. Elas contaram as frutas uma por uma e as colocaram de volta na cesta.

Jeb chutou outra cesta cheia de contas de óleo perfumado. Outras cinco fadas lançaram-se ao chão para pegar tudo, parando para contar cada conta antes de guardá-la.

Em pouco tempo, ela já havia chutado todas as cestas. Algumas estavam cheias de pétalas de flores, outras continham loção, outras, ainda, uvas. Ao virá-las, ele conseguira manter a maioria de suas captoras preocupada. Apenas Gossamer e outras duas ainda pairavam em torno de sua cabeça.

— Me deem algo para vestir — repetiu ele —, ou vou começar a tirar as plumas dos travesseiros. Vocês não estão em número suficiente para limpar uma sujeira dessas.

— Ele não está respondendo ao nosso feitiço — murmurou uma das fadas para Gossamer, com seus olhos de inseto voltados para Jeb.

— E nem à nossa magia — acrescentou a outra, amuada. — Eu conjurei uma moça das lembranças dele, mas seu subconsciente conseguiu escapar.

— Sim, este aqui é, sem dúvida, um desafio — concordou Gossamer, numa voz que tilintava feito um sino. Depois de mandar as outras duas fadas recolherem o conteúdo da última cesta, ela ofereceu a Jeb um robe de seda.

Ele se virou de costas e enfiou a peça de roupa no corpo, assimilando os arredores.

Morfeu o colocara em uma prisão opulenta. A sala era toda revestida de piso de mármore preto que refletia a luz laranja dos candelabros. Ele já estava bem familiarizado com o ponto focal: um colchão circular balançante preso por correntes douradas no centro do teto côncavo. Peles e almofadas forravam a cama, perfumadas por pétalas de rosa.

Apesar de todos esses confortos, faltava a essa sala um detalhe muito importante: uma saída. Não havia portas, janelas ou qualquer outra abertura à vista.

Paredes convexas — pintadas em cor de lavanda escura — eram cobertas por parreiras que se estendiam por toda a sua circunferência, entrando e saindo do reboco e se entrelaçando nos candelabros acesos. Frutas brotavam das vinhas. De quando em quando, as uvas explodiam espontaneamente e pingavam seu suco dentro de bacias de pedra posicionadas ao longo das paredes para apanhá-lo. E, delas, um líquido viscoso e purpúreo era drenado para dentro de fontes — um abastecimento constante de vinho de fadas com aroma adocicado.

Ele se lembrava vagamente de ter provado o vinho ao chegar. Desconfiado, tentou resistir, mas estava com muita sede. Era impossível saber que tipo de magia havia no líquido.

Jeb gemeu e esfregou o rosto. Quanto tempo teria passado bêbado e enfeitiçado? Ele acabara sendo inútil para Alyssa, assim como o pai dele teria sido.

— Onde ela está? — perguntou ele, ignorando a harpa que tocava sozinha, a qual, na tentativa de abafar-lhe a voz, começou a tocar mais alto. — Me diga o que Morfeu está fazendo com ela.

Minúscula, reluzente e confiante, Gossamer acomodou-se em uma almofada de cetim, passou a mão pelo colchão ao seu lado e cruzou as pernas apoiando os tornozelos verdes um sobre o outro.

— Talvez você não perceba o que nós, as fadas, somos capazes de fazer. Temos séculos de prática. Podemos lhe mostrar um êxtase com o qual você sempre sonhou.

Jeb a olhou de cima a baixo e ajustou a faixa de cetim em sua cintura.

— Me desculpe, não sonho com coisas verdes.

Ele encontrou a mochila de Alyssa debaixo da cama e a puxou. Jeb havia notado alguma coisa dentro dela anteriormente, quando a vasculhara em busca de outra coisa: uma pulseira de ferro forjado que ela provavelmente havia enfiado na mochila quando ainda estava na escola e ficara esquecida ali. Ele havia pesquisado muito as fadas quando começou a pintá-las, e sabia que elas não gostavam de ferro — se a lenda fosse verdadeira.

Jeb jogou a mochila sobre o colchão. Os cobertores de pele encresparam-se feito uma onda gigante e derrubaram Gossamer de sua almofada. Acionando suas asas com rapidez, ela pousou sobre o ombro de Jeb.

— Se é Alyssa que inspira suas paixões, podemos realizar essa fantasia. — Gossamer bateu palmas. As outras largaram seus postos de limpeza e se apressaram a formar um círculo em volta de Jeb. Uma onda de enjoo lhe invadiu o estômago quando todas as fadas assumiram a aparência de Alyssa — réplicas perfeitas em miniatura, com cabelo platinado e roupas sensuais de skatista. Elas liberaram novamente suas sementes de feromônios, cegando-o com o perfume de Alyssa, doce como néctar.

Brandindo uma almofada, Jeb rompeu a ilusão e dissipou as sementes. As fadas saíram aos guinchos e foram se esconder nas vinhas das paredes, com seus corpos brilhantes parecendo cordões de luz branca e piscante.

Gossamer pairou no ar acima dele, ralhando.

— Já chega! Informem o nosso mestre de que o mortal é leal à garota. Não podemos seduzi-lo para que volte ao seu mundo sem ela.

Jeb ficou resmungando, enquanto as fadas se esgueiravam por buracos do tamanho de ervilhas, na parede onde as vinhas entravam e saíam. Se ao menos ele pudesse passar por aquelas pequenas saídas também... Chegou a pensar em usar a poção encolhedora que ele e Alyssa tinham encontrado quando chegaram ao País das Maravilhas, mas ela o deixaria tão pequeno quanto suas captoras, e ele ficaria indefeso contra Morfeu. A impotência lhe fervia as entranhas, tão profunda como a que ele sentia quando era criança, escondendo-se em um armário até que passassem os ataques de fúria do pai.

Ele cerrou os dentes. Tinha de haver uma passagem escondida em algum lugar por trás das vinhas. Elas o tinham trazido para cá; devia haver uma saída.

Subitamente, ele deu um pulo para a parede mais próxima e arrancou algumas vinhas, lançando-as para todos os lados. O diminuto guincho de surpresa de Gossamer não o intimidou.

Uvas explodiam em suas mãos, libertando seu aroma potente e denso. As plantas viscosas cortavam seus dedos feito arames. Jeb aceitou a dor. Era algo que podia controlar — diferentemente do tormento dos cigarros acesos que seu pai lhe enfiava na pele, ou dos punhos que lhe socavam o rosto e o estômago. O cheiro da nicotina, o gosto de sangue. Imaginação ou não, eles alimentaram o selvagem em sua alma.

Ele mergulhou numa espiral vermelha de fúria e devastou a sala. Quando finalmente voltou a si e recostou-se na cama, ficou chocado com os estragos que causara.

Arfando e suando, ele cuidou dos cortes nas junções dos dedos e vasculhou os destroços à procura de Gossamer. Será que a tinha machucado? Se sim, talvez fosse mesmo filho de seu pai.

Jeb cerrou os punhos, descontente consigo mesmo.

— Gossamer? — Ele se encolheu ao ouvir a própria voz, rude e inflamada de emoção.

Um rufar de asas mexeu uma das correntes que prendiam a cama ao teto. Ele respirou, aliviado ao ver a fada. Embora parecesse meio idiota importar-se, já que estava prestes a usar a pulseira de ferro de Alyssa contra ela.

Gossamer pousou no chão ao lado das vinhas rasgadas e das cestas que ele tinha derrubado de novo; seus ombros estavam caídos, em demonstração de derrota. Provavelmente, ela não sabia por onde começar a calcular todos os conteúdos derramados.

Jeb começou a vasculhar a mochila. A harpa havia parado de tocar, e o silêncio o incomodava feito o ruído dos ponteiros de um relógio. Cada segundo que ele passava longe de Alyssa deixava-a mais vulnerável a Morfeu.

Seus dedos finalmente encontraram um metal frio. Ele jogou a pulseira de ferro na direção de Gossamer, mas mantendo alguma distância, na esperança de enfraquecê-la sem machucá-la.

Ela gritou e lançou-se ao ar, se debatendo.

— Por favor... afaste isso.

— Não até eu conseguir algumas respostas. — Jeb segurou uma das asas dela entre o indicador e o polegar, levando-a para a cama e sentando-a sobre uma almofada, tomando o cuidado de manter a pulseira próxima o bastante para intimidá-la. — Basta cooperar, que eu não vou machucá-la.

— Já está machucando. — Ela gemeu, com a pele esverdeada já tingida de turquesa. — Não posso usar minha magia... — Gossamer bateu as mãos no próprio rosto. — Vai me deixar... horrível. Abster-me. — Sua voz ficou mais calma, como se estivesse falando consigo mesma, e, rangendo os dentes, continuou: — Abster-me até a ameaça de dor e contaminação passar.

Jeb franziu a testa.

— Então o ferro vira seus poderes contra vocês? É a arma perfeita para usar contra seu chefe.

— Um objeto desse tamanho... só funciona com os menores de nossa espécie.

Jeb curvou-se, aproximando ainda mais a pulseira dela.

— Muito bem, então considere isso um detector de mentiras. Toda vez que eu perceber que você está fingindo, aproximarei o ferro. Onde está a Al, e o que o seu chefe repugnante está fazendo com ela?

A cor da fada mudou para um verde azulado. Ela rolou sobre a almofada, as asas lutando para bater. Gossamer as puxou por cima dos ombros até a altura do peito, cruzando-as, como se quisesse conter a sua magia.

— A sua Alyssa está confortável e sendo bem cuidada. Morfeu está zelando pelo sono dela...

Jeb soltou um grunhido. Na noite passada, ele havia zelado pelo sono dela, no barco. Mudara a posição do corpo dela para que pudesse olhá-la de frente e fazer uma promessa, mesmo que Alyssa estivesse sonolenta demais para ouvi-lo. Jeb havia prometido que a protegeria, que a levaria para casa a salvo. E não iria quebrar sua promessa agora.

Ele precisou resistir ao desejo de destruir a sala novamente.

— Como eu saio daqui?

— Apenas o Morfeu tem os meios para abrir a passagem.

Jeb inclinou-se para a frente, com o nariz quase tocando o rosto de Gossamer enquanto segurava a pulseira sobre a cabeça dela, como se fosse um objeto corrosivo.

— Está dizendo que estou preso aqui até que aquela barata de asas decida me soltar? Ele vai fazer a Al enfrentar o País das Maravilhas sozinha?

Ela choramingou, levando a mão à testa.

— Não. Como você provou ser leal, ele permitirá que a acompanhe em sua jornada. Você comparecerá ao banquete e traçarão os planos.

— Banquete?

— A apresentação de Alyssa. Morfeu deseja exibi-la aos outros.

— Que outros?

Gossamer deixou-se cair, formando um monte de cor púrpura e em seguida saiu depressa de seu poleiro. Ela puxou alguma coisa de dentro da almofada — um desenho de Al que Jeb não se lembrava de ter feito. Lentamente, Gossamer levantou os joelhos e estudou as linhas.

— Você fez isto enquanto estava sob nosso feitiço. Tem poder dentro de seu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Você captou o interior de Alyssa com perfeição.

— Esse desenho é pura fantasia — resmungou Jeb. Ele colocou a pulseira de ferro sobre o papel ao lado de Gossamer.

Ela rolou para o meio do desenho, tentando escapar do metal.

— Há mais verdade nesta aparência de Alyssa do que em qualquer coisa que possam me forçar a falar.

Jeb puxou o desenho, fazendo Gossamer e a pulseira de ferro rolarem por cima da pelugem. Ele estendeu o desenho sobre uma almofada e percorreu as linhas de carvão com o dedo. A imagem era igual a todos os outros desenhos de fadas que ele havia feito de Al ao longo dos anos, mas, ainda assim, não poderia ser mais diferente da garota que ele conhecia.

Ele a desenhara com o cabelo preso no alto da cabeça. Al nunca usava o cabelo daquele jeito. Um vestido preto de alcinhas realçava suas curvas. Nem morta ela seria vista em um vestido tão convencional. E a única coisa que se parecia com ela eram as luvas de renda preta sem dedos que cobriam as cicatrizes da palma das mãos.

Fora isso, o desenho era uma fantasia completa. Sentada em um banco de jardim, Al segurava uma rosa. Rímel e lágrimas escorriam em curvas graciosas por seu rosto. Pensando bem, se parecia com a maquiagem dela na última vez que ele a vira.

Ele ainda não conseguia entender por que, depois de quase se afogar em um oceano de lágrimas, o rímel de Alyssa não havia borrado. Apertando os olhos, ele estudou o par de asas translúcidas abertas nas costas dela. As membranas finas tremeluziam sob o único raio de sol que atravessava as nuvens. As asas faziam com que se sentisse estranho, mas Jeb não conseguia perceber a razão.

Talvez porque elas lembrassem as asas de Morfeu, embora tivessem uma cor totalmente diferente. As têmporas de Jeb latejaram. Nada poderia ser pior do que Alyssa sozinha com aquele homem-inseto. Aquele doido tinha algum tipo de poder sobre ela, havia entrado em sua cabeça quando ela era pequena. O subconsciente pode ser muito poderoso, e se Morfeu ainda tivesse acesso aos sonhos da Al...

— Como posso derrotá-lo? — perguntou Jeb com um nó na garganta.

Os olhos bulbosos de Gossamer voltaram-se para os dele. Ela estava fraca demais para se arrastar para longe da pulseira, que agora roçava sua coxa.

— Ele não será derrotado. Há anos ele espera por este dia.

Jeb fez cara feia.

— Muito bem, ele é o Super-Homem. Mas todo mundo tem a sua kriptonita. Algo de que sente medo.

— O confinamento — Gossamer deixou escapar, e, diante da confissão, seu corpo escureceu até ficar da cor de um machucado.

— Como assim?

Gossamer levou o dorso da mão à testa.

— Por favor... está muito perto... o ferro... está drenando minha energia.

Jeb caiu de costas no colchão e afastou a pulseira da fada. Equilibrando-o entre os dedos, ele estudou o ferro sob a luz das velas. A pulseira o lembrou de seu piercing de ferro e da primeira vez que Al o vira, sua reação de entusiasmo. Ela havia implorado para tocá-lo e fez várias perguntas sobre o processo de colocação de um piercing. Seu entusiasmo e ingenuidade, suas inseguranças... Morfeu não hesitaria em usar qualquer uma dessas coisas, ou todas elas, para manipulá-la.

Jeb precisava convencer Al a sair do País das Maravilhas, a esquecer esta jornada para quebrar a maldição de sua família, a qualquer custo. Algo muito tenebroso estava à espreita, bem perto dela, como no sonho que ele tivera. E Jeb podia sentir que, fosse lá o que estivesse para acontecer, estava se aproximando.

— Então vocês querem que ela conserte os erros da Alice original, certo? E se eu consertá-los? — Jeb tentou raciocinar. — Vocês enviam a Al para casa e deixam que eu cuide de tudo?

— Impossível — respondeu Gossamer num sussurro arfante, voltando à cor verde-clara. Engatinhando na direção do desenho, ela passou a pequenina mão sobre a rosa. — Ela já passou nos testes e provou ser a escolhida.

— Testes? Está se referindo a encontrar a toca do coelho para o País das Maravilhas e secar o oceano de lágrimas?

Gossamer fez que sim.

— Mas eu ajudei a fazer isso.

— É por ela que ele esperava. Não por você.

Jeb levantou a pulseira de ferro uma última vez.

— O que ele realmente quer dela?

Antes que Gossamer pudesse responder, o teto abobadado começou a tremer. Pedaços espessos de gesso despencaram no solo. Jeb colocou uma almofada sobre a cabeça e uma mão sobre Gossamer para protegê-la dos detritos. O teto se abriu nas emendas, fazendo a cama balançar e puxando as correntes em direções opostas, de modo que o colchão subiu vários centímetros.

Depois que os tremores passaram, Jeb olhou para cima. A silhueta escura de Morfeu apareceu em uma abertura no teto.

Sutileza era um dos últimos itens na lista de prioridades desse cara.

— Já te disseram que você é muito escandaloso? — rosnou Jeb.

Morfeu inclinou-se para olhar a sala destruída.

— Já te disseram que você é um péssimo hóspede?

Parte da responsabilidade daquela bagunça era da grandiosa entrada de seu aprisionador, mas Jeb mordeu a língua, não querendo arriscar sua oportunidade de ver Al.

Morfeu relaxou.

— Alyssa o aguarda na sala dos espelhos. E, por favor, tome um banho e faça a barba. Você será apresentado aos nossos convidados do banquete como um cavaleiro élfico, então precisa parecer como tal. Gossamer lhe dirá como se comportar adequadamente. — Morfeu largou algumas roupas e botas, que fizeram um ruído ao atingir o chão. — Aí está seu uniforme. — Ele fez uma pausa e apontou para as correntes. — Que pena que você não tenha asas e nenhuma magia intraterrena. Terá que sair daí sozinho. E posso assegurar que não será nada fácil.

Os músculos de Jeb se retesaram quando Morfeu sumiu de vista; ele sabia que o aviso se referia a muito mais do que sair daquela sala.


Capítulo 3


Segunda Lembrança —
Carnificina

Jeb limpou o suor da testa. Morfeu estava certo. A escalada para sair de sua prisão dourada seria mesmo difícil. Mas isso não significava nada se comparado à jornada pelo País das Maravilhas que ele e Alyssa haviam cumprido desde então. O dia inteiro tinha sido um desafio atrás do outro, com o perigo e a morte aguardando em cada esquina. E agora ele havia perdido a Al. Os dois tinham se separado pouco antes de ela completar o teste final. Al ficou enfrentando as irmãs Twid no cemitério, sozinha, e ele ficou preso aqui no fundo do abismo.

A noite já havia caído quando ele atingiu o solo, e foi uma transição extremamente rápida, como se alguém tivesse apagado a luz.

Jeb sentiu os músculos do corpo endurecerem. Odiava pensar na Al sozinha naquele mundo insano depois de anoitecer. E, mais uma vez, ela provou ser forte o bastante para encarar quase tudo. No final, foi ela quem o salvara mais de uma vez...

Ele se lembrou dela pairando acima dele — um brilho selvagem, flutuando com a graça de uma libélula. Ver as asas dela brotarem tinha sido ao mesmo tempo assustador e milagroso. Jeb mal conseguiu respirar enquanto observava a transformação.

Falando sinceramente, Jeb ainda não tinha recuperado o fôlego de quando ela o levara para dentro do abismo e ele gritara: “Você é minha corda de segurança!”, antes de ela subir ainda mais alto para o céu. Ele não deveria ter colocado tanta pressão sobre ela para salvá-lo; tinha que ter feito o que conseguisse para sair de lá por si próprio e encontrá-la no meio do caminho. Do contrário, ela nunca se perdoaria se algo saísse errado.

A carcaça de um pássaro Jubjub havia amortecido sua queda. Ele limpou nas calças a gosma pegajosa que tinha entre os dedos, torcendo o nariz diante dos restos malcheirosos do exército que os perseguia e acabou caindo no abismo. Jeb procurou ficar de pé na escuridão. Suas botas produziam sons de sucção toda vez que ele pisava. Ele nunca tivera fricotes; qualquer aversão a sangue e violência havia sido expurgada — uma dessensibilização gradual que era reforçada sempre que ele se olhava no espelho e via suas bochechas e olhos inchados, grandes e cheios de sangue, que nem um bife malpassado.

Contudo, sem uma centelha de luz para guiá-lo, a carnificina aos seus pés parecia mais viva do que morta. Sua imaginação trazia arquivos de todos os tipos, de filmes de zumbis a demônios e assombrações. Seu estômago queimava de náusea. Jeb sentiu-se aliviado ao perceber que os assobios que ouvia dentro do abismo eram produzidos pelo vento. E não havia ruídos de correntes fantasmagóricas nem gemidos de mortos-vivos.

Além disso, seu verdadeiro inimigo era o tempo, mais perigoso do que qualquer coisa que pudesse imaginar. A Al ainda tinha de cumprir a última tarefa no cemitério. E, depois, eles ainda tinham de encontrar um ao outro.

Ele se forçou a avançar às cegas até sua mão alcançar a parede do abismo. Antes de descer totalmente, Jeb viu que a mochila de Al tinha ficado presa em uma pedra saliente próxima ao chão. Se conseguisse encontrá-la, poderia contar com uma lanterna. Tateando a superfície áspera da pedra, ele levantava seus pés por sobre os obstáculos, tocando os cadáveres com os dedos dos pés para mensurar a largura de cada passo.

Com os cotovelos esbarrando nas pedras, Jeb observou o céu. Um pequeno aglomerado de estrelas brigava com as nuvens, aparecendo para iluminar levemente o lugar ao seu redor, tornando possível que ele continuasse sem esbarrar no falecido exército da rainha. Uma brisa úmida levantava a poeira feito pequenos tornados. Logo choveria. E, neste lugar, era possível que, literalmente, chovesse a cântaros — daqueles temporais ruidosos, torrenciais.

Um calafrio que não tinha nada a ver com a tempestade iminente lhe percorreu a espinha e obscureceu qualquer sentimento bom que ele poderia ter encontrado naquele pensamento. Qual era a razão de todos esses “testes” de Morfeu? Toda vez que a Al conseguia se sair bem em um desses testes, sua forma intraterrena tornava-se mais acentuada. Será que o intuito era transformá-la completamente para que não pudesse mais voltar ao reino humano?

Fios de cabelo caíram sobre seu rosto, e Jeb os afastou.

Morfeu afirmara que tudo o que ele mais queria era que Alyssa voltasse ao seu lugar. Sua casa. Jeb esperava que ele estivesse se referindo ao mundo deles, o reino humano. Mas e se a Al não estivesse sob nenhuma maldição, no final das contas?

Ele se lembrou de sua pesquisa sobre fadas, na qual descobriu que elas eram criaturas chamadas de changelings — as crias das fadas secretamente deixadas no lugar de bebês humanos roubados. Alice Liddell, a tataravó de Al, teria sido uma changeling? Quem sabe foi por isso que ela encontrou, quando criança, a toca do coelho — por instinto. Isso significaria, de alguma estranha maneira, que aqui era a casa de Al.

Jeb parou com as especulações. Elas só levavam a mais dúvidas.

Ele tinha encontrado a mochila. Abriu-a, tirou a lanterna e colocou a mochila nos ombros.

Ao fechar o zíper, ele acendeu a lanterna e percorreu o cenário com fachos de luz. Os guardas destruídos pareciam cartas de baralho amarrotadas. Brinquedos descartados. Até mesmo os pássaros Jubjub poderiam se passar por brinquedos infantis com o enchimento extrapolando para fora.

Com a mochila ajeitada no corpo, Jeb percorreu a circunferência do abismo sem encontrar nenhuma abertura. Pedras que haviam caído bloqueavam qualquer possível passagem que ele tentasse. Era como se ele tivesse caído dentro de um tubo gigante. Não havia nenhuma outra saída a não ser subindo.

Jeb apontou a luz para o gramado a cerca de vinte andares acima — a clareira onde Alyssa havia pousado. Estava determinado a encontrá-la antes de Morfeu, mesmo que tivesse de escalar as pedras pontiagudas no escuro e sem uma corda de segurança.

Ele havia acabado de apoiar a lanterna entre os lábios e escorar o pé em um rochedo para tomar impulso quando ouviu uma voz com um sotaque britânico familiar.

— Ao trabalho, homens. Precisamos contar todos antes que as irmãs Twid enviem sua brigada de duendes para recolher os mortos.

Morfeu.

Jeb desceu e quase colidiu com o intraterreno alado, que tinha aparecido do nada, como se tivesse aberto um zíper no ar e passado por ele. Cavaleiros élficos faziam fila atrás dele, entre vinte e trinta, carregando lanternas e usando o mesmo uniforme de Jeb, só que menos esfarrapado e sujo. Eles passaram sem nem olhar para Jeb, extremamente concentrados na contagem dos corpos.

— Ora, ora, pseudocavaleiro. — Morfeu riu com desdém.

Cada pedacinho de Jeb ansiava por apagar aquele sorriso arrogante e socar aquele rosto. Mas ele estava em desvantagem. Se quisesse sair desse fosso para encontrar a Al, teria de bancar o bonzinho.

— Detesto dizer isso, mas é bom vê-lo, senhor Mariposa. — Jeb guardou a lanterna. — Vejo que pegou o espelho para vir aqui.

— Eu só viajo de espelho. — Morfeu ergueu a lanterna e examinou as roupas esfarrapadas de Jeb. — Tem a vantagem de não estragar tanto as roupas. E vou lhe contar outro segredo: se eu mantiver as asas daquele lado do plano — ele apontou com o polegar para as suas costas, onde metade de seus apêndices não era visível —, a abertura fica acessível para nossa viagem de volta.

Jeb forçou um sorriso.

— É bom saber.

Perfeito, na verdade. Ele poderia voltar com a trupe de elfos e depois tomar o expresso na sala de espelhos para encontrar a Al. Mas primeiro teria de distrair Morfeu, baixar a guarda dele. Jeb perguntou:

— Esse chapéu é novo?

Morfeu ficou radiante.

— Que gentil de sua parte ter notado. É meu chapéu da Insurreição. Ainda não havia tido a oportunidade de usá-lo antes. — Com o dedo, bateu em várias mariposas que formavam a guirlanda na aba do chapéu e depois se inclinou e fez conchinha no ouvido de Jeb para sussurrar um segredo. — As asas vermelhas representam derramamento de sangue.

— Ãh-hã. — Jeb cerrou a mandíbula diante do indesejado bafo quente no lóbulo de sua orelha. Depois, olhou para os cavaleiros, discerníveis somente por suas lanternas flutuando na escuridão atrás dele. — Então, está planejando um motim com o exército da rainha de Marfim?

Morfeu apertou o ombro de Jeb.

— Eu sempre soube que era mais esperto do que os mortais comuns.

Os músculos de Jeb contraíram-se ao contato.

— O que significa que você estava mandando a Al para uma missão absurda só para se divertir.

Cuidado. Jeb não poderia deixar sua desconfiança transparecer. Pelo menos não ainda. Em vez disso, ele se inclinou para ajustar os cadarços das botas e respirou fundo antes de se reerguer.

Morfeu apertou sua gravata vermelha.

— Todas as tarefas que pedi à Alyssa tinham um propósito. — Ele deu um passo para o lado quando alguém mais passou pelo portal do espelho: um esqueleto do tamanho de um duende, com antenas e olhos cor-de-rosa brilhantes, metido em um colete vermelho.

— Rábido Branco? — sussurrou Jeb, incrédulo. Nada daquilo fazia sentido. O Rábido era da corte Vermelha. Por que estava aqui?

— Qual é o relatório? — Morfeu agachou-se para ficar na altura do Rábido, ainda mantendo as asas enfiadas no portal invisível do espelho.

O pequeno intraterreno apertou as mãos enluvadas e olhou para Jeb, sua cabeça careca refletindo o brilho suave da lanterna de Morfeu.

— Um de nós, você é?

Morfeu sorriu e respondeu por Jeb.

— É claro que é. Ele ajudou a nossa Alyssa a conquistar o grande e cruel exército Vermelho, não lembra?

Coçando a antena esquerda, o Rábido fez que sim.

— Rainha Grenadine neutralizada está. Nos portões da frente e de trás, o castelo guardado está pelos regimentos três e sete. Flanqueando a rainha, um círculo de cinco. Sem esquecer da coroa e seu guardador.

— Ah, sim. O bandersnatch. Bem, quando Alyssa tiver trazido seu prêmio do cemitério das irmãs Twid, nada mais terei a temer daquela besta medonha. Fez um bom trabalho, senhor Branco. — Morfeu deu uma batidinha na aba do chapéu.

O Rábido bateu os tornozelos cadavéricos um no outro, depois se curvou e lançou um olhar penetrante para Jeb, antes de pular novamente para o portal.

— Ele é o seu espião — murmurou Jeb, sentindo-se idiota por não ter adivinhado antes.

— Sim.

— Então todas as vezes que o esqueletinho ameaçou a Al, matando-a de susto, era só para manter a aparência de lealdade à Rainha Grenadine?

— Os melhores espiões são aqueles que jogam dos dois lados com o mesmo vigor.

A distância, Jeb avaliou as lanternas que balançavam. O tilintar dos cabos de metal e o pisar de botas eclipsavam o suave lamento do vento.

— Certo. Já que estamos abrindo o jogo...

O comentário de Morfeu o interrompeu.

— Que trocadilho mais delicioso, considerando a posição em que estamos. — A lanterna dele apontou para os cadáveres dos guardas de carta.

Jeb ignorou a piada mórbida.

— Eu ia perguntar por que o Rábido se voltou contra a corte Vermelha.

— Ele era o conselheiro real da Rainha Vermelha quando Alice nos visitou. Deseja ver a verdadeira herdeira no trono tanto quanto eu.

— Verdadeira herdeira. — Jeb chutou um punhado de terra com uma bota, sentindo o peito apertado. — Então tudo isso é para destronar Grenadine e abrir caminho para uma nova rainha.

— Sim. — A lanterna iluminou o rosto de Morfeu, numa expressão de indulgência sonhadora. — E estamos muito perto. Em breve, ela ocupará o trono que é e sempre foi o lugar dela.

O lugar dela. Uma hipótese se formava na mente de Jeb, uma ideia ultrajante e incompreensível, mas, de qualquer maneira, a resposta óbvia para todas as dúvidas que ele vinha remoendo. Todas as dúvidas, exceto uma...

— Mas, primeiro — interviu Morfeu, varrendo o ar com um gesto desdenhoso —, temos que ter certeza do que iremos enfrentar quando atacarmos o castelo. Você e Alyssa conseguiram eliminar boa parte da oposição com seus fantásticos movimentos de pés. Estamos aqui para avaliar se os números batem com os que o Rábido reportou. Devemos ter certeza que Grenadine não tem outras cartas escondidas na manga. — Ele bateu nas costas de Jeb. — Viu o trocadilho? “Cartas na manga?” — E deu uma gargalhada.

Jeb não deu nem um risinho.

— Ah, corta essa. Os guardas dela são de cartas. É uma piada como a que você fez antes, só que mais inteligente.

— Ah, sim, entendi — retrucou Jeb.

O riso de Morfeu se dissipou.

— Você não é um namorado muito divertido.

— Você não leva nada a sério? A Al está correndo perigo — Jeb deixou escapar.

— Bobagem. Ela é gloriosamente capaz! Você nunca a viu voando? É claro que viu! Estava pendurado na corrente que ela segurava. — Morfeu voltou a lanterna para a própria cabeça, num arroubo de celebração. — Não foi uma bela visão, presenciá-la transformando-se no que realmente é? Igual a uma princesa de contos de fadas. — Ele lançou um olhar dissimulado para Jeb. — Não concorda?

Princesa de contos de fadas. Lá estava, saindo da boca do próprio Morfeu, zombando de Jeb por não perceber desde o início. Jeb apertou as alças da mochila para evitar dar um soco na laringe de Morfeu.

Morfeu abaixou a lanterna e depois tirou luvas prateadas de sua lapela.

— Não se sinta desprezado, cavaleiro mortal. Sua contribuição não passará despercebida. E eu sempre pago minhas dívidas. Então, o tirarei desta vala da morte para demonstrar minha gratidão.

— Você pode me agradecer me deixando ajudar a Al. Ela vai terminar a tarefa muito mais depressa comigo do lado — Jeb conseguiu dizer, sentindo um nó nas cordas vocais. Se conseguisse chegar até Al, talvez os dois pudessem se esconder de Morfeu no cemitério das irmãs Twid, até encontrarem uma maneira de escapar.

— Sinto muito — retrucou Morfeu, vestindo as luvas e acenando para que os cavaleiros élficos retornassem. — Ela precisa fazer isso sozinha. Você a verá em breve; todos nós vamos nos reencontrar. Uma grande família feliz.

— Não! — exclamou Jeb, perdendo o controle. Ele investiu, mas os elfos foram mais rápidos e o contiveram, com os dedos machucando seus cotovelos feridos. — Deixe-a sair do País das Maravilhas, seu filho de inseto...

Morfeu pressionou um dedo contra a boca de Jeb.

— Ah-há! Essa, você já usou.

Jeb puxou a cabeça para trás, deixando o dedo do intraterreno suspenso no ar.

Sob a luz da lanterna, as joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficaram escuras, da cor de sangue seco.

— Ora, ora. Isso são modos de tratar seu salvador? — Ele fez cara amuada. — Além do mais, como posso deixar Alyssa sair se ela não está comigo? Da última vez que soube, ela estava entrando no jardim das almas. Mas, quando terminar por lá, ela virá ao meu encontro. Ela ainda tem um papel muito importante a desempenhar.

— Certo. Porque ela é a herdeira do trono. — Jeb ouviu, incrédulo, suas próprias palavras ecoarem, como se tivessem saído da boca de outra pessoa. — Não sei como, mas é ela.

— Bravo! — Morfeu aplaudiu. — Estão vendo o que eu disse, irmãos cavaleiros? — Olhando para os cavaleiros por cima do ombro de Jeb, Morfeu deu tapinhas no peito em cima da gravata vermelha, como se estivesse tomado pela emoção. — Mais esperto que um mortal comum. Pena que tenha as limitações físicas de um.

— Não importa. Ela está fora do seu alcance. — rebateu Jeb, dando um tranco nos elfos; havia muitos o segurando, contudo. — Ela deve estar dentro do cemitério agora, e não pode forçá-la a fazer nada. Você mesmo disse que as Twids não deixam você entrar.

— É verdade. Mas ela encontrará, sozinha, o caminho para o castelo. No momento em que ela perceber que estou mantendo presa a coisa que ela mais ama no mundo, virá rastejando para mim, com as asas a reboque.

Morfeu levantou uma mão e fez um sinal.

Os cavaleiros élficos soltaram Jeb. Ele girou sobre o calcanhar e atirou a mochila sobre eles, dispersando o grupo feito pinos de boliche. Esticando o braço, ele bateu o punho na testa de Morfeu, desequilibrando-o. Um dos cavaleiros se esforçou para permanecer no lugar e manter o espelho aberto. Antes que Jeb pudesse se catapultar e atravessá-lo, raios de luz azul grudaram em sua pele e roupas, feito eletricidade estática. Eles o arrastaram, controlando-o como se fosse um fantoche, até ele ficar de frente para Morfeu. Os raios vinham da ponta dos dedos do intraterreno.

Morfeu aproximou-se.

Jeb tentou recuar, mas seus músculos travaram, ficaram paralisados.

— Durma — disse Morfeu num tom simples, e levou a mão azul fluorescente à testa de Jeb, cujo corpo foi percorrido por uma luz pulsante. Ele sentiu um gosto doce, parecido com leite e mel, e depois sentiu o aroma de lavanda. Com os dedos apertando o tecido macio da camisa de Morfeu, Jeb lutou para manter-se acordado. Mas a luz era muito reconfortante... muito suave... muito calorosa. Contra sua vontade, suas pálpebras ficaram cada vez mais pesadas e ele caiu no chão, em sono profundo.


Capítulo 4


Terceira Lembrança —
Engaiolado

O crânio de Jeb latejava, e havia sangue saindo de seu couro cabeludo e entrando em seus olhos.

Ele limpou o líquido viscoso e focou no lugar à sua volta. Morfeu o tinha trazido para o castelo Vermelho depois de colocá-lo sob o feitiço do sono. Largou-o dentro de uma gaiola na masmorra. Jeb não queria ter tomado a poção encolhedora quando acordou, mas o homem-inseto havia lhe dado um ultimato.

Primeiro, ele havia ameaçado matar a Al. Mas Jeb rebateu, dizendo que o homem estava blefando, pois sabia que ela era indispensável. Depois, Morfeu usara de outra arma, ameaçando fazer com que a frágil mãe de Al ultrapassasse o limite da loucura. Isso, ele faria.

A Al havia lutado muito para salvar a mãe. Ela morreria se a perdesse para a loucura. Então, Jeb não hesitou em levar o frasco aos lábios.

Seu corpo balançava, mas não devido aos efeitos colaterais da poção. A plataforma debaixo dele oscilava por causa de suas tentativas de abrir as barras de sua prisão usando a cabeça — uma atitude desesperada que havia resultado em nada além de um corte logo acima da testa. A magia de Morfeu — um fio elétrico e azul — mantinha a porta da gaiola fechada e imóvel.

— Que bela coisa você fez, não? — entoou uma voz feminina e irritante. — Morfeu escolhe quem tem o poder de suprimir sua magia. Obviamente, você não é um dos escolhidos.

Jeb fez cara feia para sua companheira de prisão. Era uma lóri — um intraterreno parecido com um periquito, mas normalmente do tamanho de um ser humano. Como os dois tinham encolhido, a única coisa que a distinguia dos pássaros do mundo humano eram as túnicas de cetim cor de creme com estampas jacquard colocadas sobre suas asas, corpo e pernas, e seu rosto humanoide enfiado no meio de plumas vermelhas, como se fosse uma máscara. Ele foi cutucado por um bico mais parecido com o chifre de um rinoceronte, posicionado no lugar onde deveria haver um nariz. Os lábios da criatura se agitavam furiosamente.

O pior de tudo era que a voz dela poderia derrubar a Torre de Pisa com uma sílaba. Quando falava, era como se alguém tivesse implantado cirurgicamente alto-falantes nos ouvidos de Jeb e travado o volume no “mais surdo que uma porta”. Ela era uma das muitas razões pelas quais ele tentava sair da gaiola com tanta insistência.

A luz bruxuleante das velas na parede iluminava seu ar de arrogância e deixava o resto da masmorra nas sombras. Depois que a voz da lóri parou de ecoar, Jeb investiu:

— Olhe aqui, Lorina. Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu marido. — Ele apontou a criatura que roncava abaixo da gaiola, de aparência tão estranha quanto à da esposa, com o corpo de um dodô, cabeça de homem e mãos que se projetavam da ponta de suas asas atarracadas. — Foi ele quem manteve Alice Liddell presa em uma gaiola igual a esta aqui, muitos anos atrás. É por culpa dele que a minha namorada é a única que pode destronar a sua rainha. Será que já lhe ocorreu que é por isso que vocês estão presos?

— O Charlie não fez nada disso! — berrou a lóri, pairando dentro da gaiola. — Alguma vez já lhe passou pela cabeça que o Morfeu é um cara de pau mentiroso?

Só em todos os segundos de todas as horas. Jeb apoiou-se nas barras. Seus joelhos cederam, enfraquecidos pelas tentativas de abri-las usando cada músculo de seu corpo. Ele desabou sobre o piso de metal, empurrando uma fatia de pera já amarelada que estava ao seu lado, feito um pequeno sofá. A gaiola era um pequenino forte inexpugnável. Mas não importava. As barras poderiam ser feitas de espaguete cru, e mesmo assim ele não conseguiria ajudar a Al. Mesmo que escapasse, com este tamanho, Jeb não conseguiria derrotar ninguém.

Charlie, o marido dodô de Lorina, não poderia ajudar muito. Ele estava preso por algemas e correntes de ferro e cochilava recostado na parede. Embora a gaiola estivesse pendurada bem perto da cabeça do dodô, não havia nada que Charlie pudesse fazer.

Provavelmente, Morfeu havia lançado no homem-pássaro gigante o mesmo feitiço do sono que jogara em Jeb, mas Charlie já estava se libertando dele.

Lorina acomodou-se no poleiro no centro da gaiola, balançando sobre a cabeça de Jeb feito uma acrobata no trapézio. A cara dela estava tão vermelha quanto as suas penas, o que fazia as espadas e copas estampadas nas bochechas quase desaparecerem.

— Como vamos ficar exilados nestas instalações fedendo a urina, terá bastante tempo para ouvir a verdade — bramiu ela.

Jeb esfregou a cabeça para apaziguar a dor lancinante.

— Se puder baixar a voz uns dois decibéis, eu agradeceria.

— Abaixar minha voz?

— Aaaii. — Jeb enterrou o rosto nas mãos.

O trapézio em miniatura rangia a cada balanço, piorando a poluição sonora.

— Para a sua informação, minha rainha adora o som da minha voz. Ela até o elogia...

O ronco do dodô parou, e ele estalou os lábios.

— Isso é porque ela protege os ouvidos com cera de abelha, Ó, Mais Adorável das Loucas.

— Seu mentiroso! — retrucou Lorina, balançando o poleiro tão depressa que Jeb achou que ia vomitar.

— Estou preso com correntes de ferro — avisou Charlie depois de um bocejo. — Não tenho forças para mentir. — Em seguida, pegou novamente no sono.

Isso pareceu calar Lorina, pelo menos temporariamente.

Jeb aproveitou o silêncio para pensar. A esta altura, Morfeu já deve ter contado a Al sobre sua verdadeira linhagem, sobre o que espera dela. Deve estar tão chocada... tão apavorada. Jeb ansiava tanto abraçá-la que era como se houvesse uma bigorna lhe pressionando o peito.

Aquele mariposo deveria ter contado a verdade desde o começo. Ela nunca escolheria ficar. Mas Morfeu sabia disso, e a manipulou sob o pretexto de que ela poderia curar a maldição da própria família. Jeb queria arrancar as asas pretas de Morfeu e enfiá-las goela abaixo por tê-la enganado, porque não havia cura para o parentesco, e ele sabia muito bem disso.

— Foi a Vermelha quem colocou Alice na gaiola. — A lóri voltou à carga. — Não o Charlie.

— Mas o seu marido escolheu mantê-la presa na gaiola — acrescentou Jeb, mesmo sabendo que não deveria. Ele cobriu as orelhas para a estrondosa refutação, mas Lorina só soltou um suspiro.

— Não. O Charlie tentou fazer a coisa certa pela menina — disse ela, consideravelmente mais ponderada agora. — Ele planejava mandar Alice de volta para o reino humano sem a Vermelha saber, mas a rainha descobriu e os arrastou para uma caverna nos picos mais altos e mais remotos do País das Maravilhas, sem que nenhum de nós soubesse. Ela deixou o Charlie com a vítima dela para poder encenar seu plano mestre, sabendo que Alice seria cuidada por um prisioneiro que nunca poderia escapar. Porque, como você deve saber, os dodôs não podem voar. Ela me privou de meu marido durante anos. Ele era prisioneiro, assim como a mortal.

— Se isso te ajuda a dormir de noite, tudo bem, passarinha.

Uma comoção de poeira e asas, jacquard e cetim, subitamente surgiu e o atacou.

— Você pode mostrar algum respeito e ouvir?!

Jeb levantou as mãos para se defender.

— Está bem. Shhhh. Eu vou ouvir.

Não havia nada mais que ele pudesse fazer. Morfeu lhe dissera que, assim que Alyssa fosse coroada rainha, ela abriria o portal para o reino humano. Acreditando ou não nisso, Jeb não poderia fazer nada a não ser ter esperança. Ele não tinha nenhum poder ali. E ter consciência disso lhe devorava as entranhas a cada minuto.

Acomodada diante de Jeb sob um monte de tecido luxuoso, a lóri olhou por entre as barras e resmungou alguma coisa para o marido que dormia.

— Seu velho e imprestável fezzerjub. Eu é que tenho que te proteger. Nem sei por que me casei com você.

O dodô resfolegou e murmurou, sonolento:

— Porque se casar com o bobo da corte era a única maneira de ter uma posição na corte Vermelha, Ó, Senhora das Nênias. — E o ronco voltou.

— Viu como deu certo? — resmungou ela, fazendo beicinho com os lábios vermelhos em forma de coração, sob a curva de seu bico. — Aquele Rábido ossudo e seu coração negro de pedra. — Ela alisou as penas da nuca e cobriu-as com uma rede decorada por lantejoulas.

Jeb estendeu a mão para pegar o dedal cheio de água que seu captor havia deixado ao lado da fatia de pera. Em suas mãos, ele era do tamanho de uma caneca de café. Ele o passou para sua colega de cela, que o pegou com as asas e deu alguns goles.

— Me diga uma coisa, Lori. Se o que você está dizendo é verdade... — Observando a atitude defensiva na cara bicuda, ele refez a pergunta para poupar os ouvidos. — Como você escolheu compartilhar o seu lado da história, talvez pudesse me dizer de que maneira Morfeu teve participação na prisão de Alice.

Ela sacudiu as gotículas de seus lábios.

— Não teve participação nenhuma. Ele gostava muito de Alice e teria feito qualquer coisa para que ela chegasse em casa sã e salva. Mas, na hora em que ele lhe ofereceu seu conselho como lagarta, alertando-a para que evitasse o castelo da Rainha Vermelha a todo custo, sua metamorfose aconteceu. Quando ele emergiu, totalmente transformado, e soube o que havia acontecido com Alice, ficou furioso.

— Está tentando me dizer que ele possui alguma consciência?

— Pelo menos no que dizia respeito a Alice, sim. — A lóri ajustou a suntuosa túnica que ficava escorregando devido à falta de ombros. — Morfeu usou todos os seus recursos de magia e acabou encontrando ela e meu marido escondidos nas cavernas dos picos mais altos do País das Maravilhas. Infelizmente, já era tarde demais para Alice. — Lorina devolveu o dedal a Jeb, agora com metade da água.

Jeb endireitou o corpo, fazendo a gaiola balançar.

— Então por que ele quer ajudar a Rainha Vermelha a colocar outra rainha no trono, quando ele deveria odiá-la por ter mantido Alice presa em uma gaiola por tantos anos?

— Talvez ele esteja bravo por Grenadine não ter tentado encontrar Alice assim que esta foi capturada. Mas Grenadine perdeu sua fita de memória e esqueceu a criança.

— Um bom regente teria mais do que uma fita para lembrá-la; teria se certificado de que tudo e todos estavam em seu lugar.

— A minha rainha é uma boa regente!

Jeb encolheu-se com o urro agudíssimo.

O ronco do dodô parou.

— Minha vociferante esposa diz a verdade, rapaz. Morfeu parece guardar ressentimento pelo que ele acredita ser negligência, mesmo tendo sido somente um descuido.

Jeb balançou a cabeça diante de todas as falhas que havia no raciocínio de todos.

— Não. Há mais coisas nessa história.

— Você tem bons instintos, cavaleiro mortal.

Jeb olhou para cima, na direção da voz tilintada. Uma luz brilhante flutuou pela pequena janela e entrou pela pesada porta da masmorra. Jeb levantou-se e agarrou as barras da gaiola, inclinando a cabeça para ver melhor.

Gossamer.

A pequena fada adejou para perto e sussurrou algo para o mágico fio azul que fixava a porta de arame, entrando na gaiola. O fio azul deu um nó em si mesmo depois de ela fechar o trinco.

Ela cintilava feito pequenos fogos de artifício ao pairar no lugar, estudando Jeb com uma expressão de solidariedade.

Como os dois agora tinham o mesmo tamanho, Jeb se lembrou de uma pintura que vira certa vez, de um artista tcheco, Viktor Olivia. O pintor era famoso por retratar uma fada que seduzia homens, levando-os a se embebedarem com absinto. Gossamer personificava essa criatura: uma forma feminina perfeita coberta de poeira verde, e nua, com escamas brilhantes cobrindo-a como um biquíni minúsculo.

Ele havia sentido, quando saiu da sala de espelhos, que Gossamer estava do lado dele e de Alyssa.

— Você veio ajudar — lançou ele, esperançoso.

Uma chave de cobre, da mesma cor dos olhos dela e quase do comprimento total de seu torso, pendia de seu pescoço. Seu olhar caiu para os pés delicados, como se estivesse lutando contra si mesma.

— Eu teria vindo mais cedo, mas Morfeu está sempre vigiando o espelho. Agora que ele está com Alyssa, preparando-a para a coroação, estará ocupado demais para ficar de olho no resto de nós... até o fim.

— O fim? — Jeb apertou a barra ao lado dela, concentrado em seu olhar de libélula. — Você tem que me contar tudo.

A fada olhou para Lorina, que estava se esticando para a porta de arame.

— Você sabe muito bem que não tem o poder de sair desta gaiola, a menos que eu a abra para você.

Bufando, a lóri voltou a voar para o trapézio.

Gossamer conduziu Jeb para a fatia de pera e os dois se sentaram. Seu perfume frutado se impunha sobre o fedor da masmorra e o acalmou o suficiente para ele poder ouvi-la.

A fada colocou as mãos sobre as de Jeb, que descansavam sobre os joelhos.

— Eu já traí meu mestre o bastante vindo até aqui, e sua ira será enorme. Eu só posso dizer que, dentro de uma hora, Alyssa estará comprometida para sempre, amarrada ao País das Maravilhas para toda a eternidade. Morfeu planejou tudo para enviá-lo de volta, cavaleiro mortal... mas sem ela.

Uma veia na têmpora de Jeb começou a se contorcer feito uma serpente em uma bandeja quente. Ele deu um pulo para cima e bateu a cabeça nas barras novamente, tentando amolecer o fio azul, incapaz de controlar a fúria exasperada que lhe fervia por dentro. Mais sangue escorreu por sua têmpora.

— Você tem que me soltar! Preciso impedir isso!

— Sim, sim! Nós também! — intervieram o dodô e sua esposa, em coro. — Temos que ajudar a Rainha Grenadine a manter a coroa!

— Naturalmente — afirmou Gossamer, pegando a mão de Jeb e puxando-o para perto dela. — Vocês todos terão a oportunidade de lutar e de mostrar a sua lealdade.

— Mas não posso lutar assim. — Jeb chutou uma semente do tamanho de seu pé. — Você trouxe algum bolo do crescimento?

— Não. Não é a força de seu corpo que salvará Alyssa, e sim a força de seu coração de artista. Mas eu posso assegurar que não sairá deste lugar em sua forma atual.

A lóri desceu de seu poleiro e ralhou com a fada.

— Agora, me escute, sua lacraiazinha. Este rapaz não tem papel nenhum. Ele é, no máximo, coadjuvante. Eu sou a criada da rainha, e Charlie é o bobo da corte. Nós deveríamos ser a sua prioridade. Somos honoráveis membros da corte, os únicos que podem dar um basta nesta paródia!

Acelerando as asas até virarem um borrão enevoado, Gossamer flutuou e colocou as mãos nos quadris.

— Quanto ao seu papel, Lorina: você pode abrir as correntes de seu marido, pois preciso falar com o mortal a sós e tenho pouca tolerância ao ferro. — Ela abriu a porta da gaiola e lhe deu a chave.

A lóri esvoaçou-se veloz, numa comoção de exibicionismo e má vontade.

— Venha, venha, Doçura Selvagem — chamou Charlie, encorajando a esposa enquanto ela flutuava em torno dele, subindo e descendo, incapaz de manter-se firme em alguma altura. — Apresse-se, por favor. O ferro está me dando fisgadas. Poxa vida! Não é tão difícil assim... tente novamente!

A cara de Lorina ficou ainda mais vermelha.

— Tente, com a ponta da asa, usar uma chave do mesmo tamanho que a sua cabeça, seu meleca! Alguns de nós não foram abençoados com dedos, sabia?

Enquanto o casal se ocupava, Gossamer sentava-se novamente ao lado de Jeb.

— Você disse que meu coração de artista pode salvar Alyssa. Naquele quarto na mansão de Morfeu, também... você disse que eu tenho o poder dentro de meu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Minha namorada está prestes a morrer para mim e para a família dela. Não pode haver escuridão maior — sussurrou Jeb com lágrimas de frustração que lhe surgiram nos cantos dos olhos.

— Morreria por ela, cavaleiro mortal?

A espinha de Jeb se retesou. No passado, toda vez que ele protegera Alyssa, sempre se jogara sem nem pestanejar. Seria capaz de morrer por ela?

Quando o pai de Jeb morreu em um acidente, foi Alyssa quem o salvou. Ele não conseguia acreditar que tinha chegado a pensar em morar em Londres sem ela. Precisava dela, todos os dias. De seu sorriso compreensivo, de como ela fez suas cicatrizes parecerem medalhas de mérito sob seu toque, e de seus olhos incríveis. Mesmo tendo passado por tantas provações quanto ele, havia uma luz dentro dela que nunca se enfraquecia. E essa luz não somente a tornava linda por fora, mas também permitia que ela trouxesse vida aos incríveis mosaicos que fazia.

Era essa luz — tanto a interna quanto a externa — que o tinha levado a desenhá-la e pintá-la tantas e tantas vezes.

Ele olhou para Gossamer, quase incapaz de conter a emoção, agora que havia encontrado uma saída.

— Ela é minha melhor amiga.

Minha musa, meu pincel, minha arte, meu coração. Tudo isso estará morto sem ela.

Esfregando o rosto, ele limpou o líquido que havia caído de seus olhos e escorrido pelo rosto:

— Eu a amo. Sim, eu morreria por ela. É isso que preciso fazer?

A fada o encarava sem piscar.

— Está disposto a ir além da morte? A se perder de todos, até de você mesmo, em um lugar onde as lembranças se esvaem em uma maré escura como tinta? Pois, para libertar Alyssa, você terá que tomar o lugar da Rainha de Marfim na caixa linguardarte onde ela se encontra presa.

Jeb lembrou-se da água escura dentro da caixa que ele havia visto na sala dos espelhos da mansão de Morfeu e da cabeça fantasmagórica que havia lá dentro, e seu coração disparou. O sentimento de autopreservação o invadiu e sua mente começou a tentar encontrar outra maneira. Mas, bem lá no fundo, ele sabia que não havia alternativa e que o tempo de Al estava se esgotando. Ele só lamentava não poder dizer a ela, nem uma única vez, com sua própria voz, como se sentia, antes de ser trancado para sempre.

— Aceito.

— E assim será. — Gossamer ficou de pé e estendeu os braços. Fraco e entorpecido, Jeb aceitou seu abraço. Ela o apertou com força e voou com ele para fora da gaiola, pousando no chão. — O mortal concordou em ser o herói de seu reino. Procurem honrar sua bravura — disparou as palavras para Lorina.

Lorina havia conseguido soltar o marido. Ela se sentou no ombro dele, abanando-se com uma asa. Com os olhos arregalados, ela aquiesceu em silêncio — a demonstração mais sincera de louvor que poderia ter oferecido. O dodô ajoelhou-se ao lado de Jeb, uma presença enorme e plumada.

— Teremos uma dívida eterna para com você, rapaz. O que podemos fazer para ajudar?

Gossamer apontou para um canto da masmorra, onde um cobertor de juta cobria uma cama, chegando até o chão.

— Tragam-me o que está debaixo daquela cama.

Entorpecido por uma mistura de incredulidade e temor, Jeb observou o dodô trazer a caixa linguardarte.

Lorina ficou perplexa.

— Morfeu manteve a Marfim escondida aqui?

Gossamer assentiu.

— Por sugestão do Rábido. Ele disse que este era o único lugar no castelo onde ninguém viria à procura dela.

Depois de pedir a Charlie que abrisse a tampa e arrumasse uma pedra onde eles pudessem subir para ver lá dentro, Gossamer pediu ao estranho casal que se afastasse um pouco para que ela e Jeb tivessem um pouco de privacidade.

Jeb afagou as rosas brancas aveludadas que adornavam o exterior da caixa, fascinado pela beleza do rosto da Marfim quando este veio à tona. O olhar cristalizado de assombro dela passava dele para a fada, e voltava — cautelosamente curioso. Ele estremeceu ao pensar que tomaria o lugar dela.

Tinha mesmo que fazer isso?

Jeb sentiu que Gossamer observava seu semblante.

— Devo perguntar uma última vez se está seguro de sua decisão — indagou ela. — Porque, como você está escolhendo ser trancado, e selando essa escolha com seu sangue, a caixa nunca o libertará. Ninguém poderá salvá-lo. Você está oferecendo sua eternidade pela da Marfim, uma rainha que você nem sequer conhece.

Jeb sentiu um nó na garganta.

— Não. Estou trocando a minha eternidade pela da Al.

Gossamer sorriu com ternura.

— Em seus sonhos, vi certa vez que você teme não ser bom o bastante para a menina. Depois de tal sacrifício, ninguém poderá questionar seu valor como homem nem seu amor por ela. — Ela o beijou no rosto, deixando um calor que penetrou seu coração e conseguiu derreter uma pequena porção do terror congelante que lá se escondia.

Gossamer deu-lhe um pincel e recuou.

— Agora, use o poder que somente você pode exercer. Pinte as rosas com o seu sangue.

Jeb foi tomado por uma tontura. Murmurou coisas... sem sentido, temerosas... palavras agonizantes que ele sabia serem as últimas.

Depois, canalizou a raiva, o terror e o desejo por um futuro que ele nunca teria para as estocadas do pincel. Cada botão branco, tingiu-os de vermelho até perder-se dentro das sombras de seu trabalho, e fundiu-se à sua obra-prima, tornando-se um só.


Capítulo 5


A Decisão da Mariposa

A cena se estendeu e ficou turva enquanto Morfeu era arrastado para fora das lembranças de Jebediah e depositado de volta na chaise-longue. A escuridão deixava a sala pesada, mas ele nem se mexeu para ligar a luminária. O cenário completamente enegrecido parecia combinar com os pensamentos obscuros que lhe cruzavam a mente.

Ele passou o dedo pela coxa, acompanhando as listras do tecido risca de giz e alisando as rugas.

Por que se sentia tão aborrecido? Ele havia encontrado exatamente o que esperava encontrar. As fraquezas de Jebediah estavam à mostra: um ódio que poderia facilmente ser manipulado, um sentimento de impotência alimentado por um pai violento e crítico, um ciúme que provocava um sentimento temerário de proteção e que lhe custaria a própria vida.

O que Morfeu não tinha esperado encontrar, entretanto, era tanta semelhança entre ele e o rapaz. Os demônios do passado atormentado de Jebediah não eram muito diferentes dos seus. Ele sempre se surpreendera sentindo inveja dos humanos... por nunca ter tido o carinho de um pai ou de uma mãe. Simplesmente por ocupar seu lugar no mundo, ele também compreendia o medo de talvez nunca chegar a conhecer completamente a confiança e a afeição de outra pessoa.

Contudo, no passado, Morfeu nunca havia considerado isso uma coisa ruim. Ele apreciava ser uma alma reclusa e independente. Por vezes, até se vangloriava, quando lhe convinha ser o centro das atenções, naturalmente. Mas a atenção, a afeição ou a confiança não eram coisas de que ele precisava. Não até aparecer Alyssa. Depois que ela escolheu ignorá-lo, ele não conseguiu funcionar... sentiu-se desastrado e incompetente.

E agora, depois de colocar-se no lugar de Jebediah, Morfeu compreendia, mais até do que desejava, como o lado humano de Alyssa funcionava. Embora metade dela tivesse asas e pudesse flutuar sobre as inseguranças e trivialidades dos mortais, a outra metade tinha seus alicerces nas coisas que qualquer outro humano ansiava: confiança e segurança.

Tendo visto a coragem e a engenhosidade de Jebediah, bem como sua lealdade a Alyssa, Morfeu soube, sem sombra de dúvida, que aquilo era exatamente o que o rapaz oferecia a ela: uma rede de segurança e emoção que a salvaria caso a queda fosse muito alta.

Não era de admirar que ela fosse tão cativada por ele. Não era de admirar que ele exercesse poder sobre ela. Diabos, o próprio Morfeu ficou morbidamente fascinado pelos honoráveis traços morais do rapaz, incomuns em um humano tão machucado. Morfeu ficou tentado a recuar e deixar Jebediah ter seu momento de felicidade. Alguns poderiam até dizer que ele o havia merecido por desejar abdicar de seu futuro, de suas lembranças e de sua vida por Alyssa.

Morfeu rosnou e caiu para a frente com os punhos cerrados, tentando suavizar o estranho peso em seu peito. O rapaz não ficaria aqui para sempre. Era um mortal. Um dia, morreria de velho, no mínimo, e Alyssa voltaria a ser um alvo fácil.

Alvo fácil.

A mandíbula de Morfeu se contraiu. O romance não era uma coisa justa. Nem era um jogo. Era guerra. E, como em qualquer outro campo de batalha, não lhe cabiam a compaixão e a misericórdia.

O besouro-tapete estava certo. As emoções humanas eram coisas imprevisíveis e poderosas. Elas haviam penetrado na cabeça de Morfeu, enfraquecido sua determinação.

Com os cotovelos nos joelhos, ele levantou as mãos com as palmas para cima, incapaz de ver a silhueta delas no escuro. Ele conjurou um pouco de magia na ponta dos dedos, em bolas elétricas de plasma do tamanho de ervilhas, e depois enviou as esferas para todos os cantos da sala, os raios azuis deixando rastros como eletricidade estática. Elas subiram pelas paredes e em seguida se uniram na forma de uma mulher. A luz pulsava em ritmo hipnótico.

Imaginar Jebediah com Alyssa, mostrando a ela os caminhos do amor, domando seu espírito selvagem com suas corriqueiras convenções humanas, tudo isso queimou a garganta de Morfeu com o sabor amargo da inveja.

Ele não queria que o lado selvagem de Alyssa fosse dominado por nenhum outro homem, não desejava compartilhar nenhuma parte dela. Morfeu desejava os dois lados: sua inocência e seu espírito desafiador.

Que graça poderia haver na dependência? Que espontaneidade poderia haver em um mundo previsível? Ele poderia lhe oferecer uma eternidade de desafios e paixão, de momentos ternos e calmos nas profundezas de chamas vibrantes e tempestades devastadoras — a tranquilidade em meio ao caos.

O lugar dela era com ele, usando trajes de soberana. Ele tinha tanto a ensinar-lhe sobre o reino intraterreno, sobre as glórias da manipulação e da loucura. Se Morfeu alimentasse o faminto lado intraterreno de Alyssa, suas inseguranças e inibições humanas diminuiriam e, com o tempo, poderiam desaparecer. Ela nunca mais ansiaria pelo amor seguro de Jebediah.

Morfeu invocou sua magia de volta, recolhendo as espirais de luz azul até ficar novamente envolto na escuridão. Suas asas varreram o chão quando ele se levantou, e ele as ergueu num arco que quase tocava o teto.

Nada mais de deliberações. Ele tinha tentado fazer o que era justo em instâncias passadas e, sem exceção, isso sempre o prejudicara. Podia ignorar a pontada de culpa que lhe agitava o peito, mas não podia abdicar de suas necessidades pelas necessidades de Jebediah. Ele nunca mais seria ele mesmo sem Alyssa ao lado — a chama para sua Mariposa. Morfeu não pararia até que ela voltasse para o lugar que lhe pertencia, no País das Maravilhas.

Para vencer, ele jogaria sujo, colheria os despojos do coração dela do modo como fosse necessário, não importava quanto isso custasse ao rapaz mortal. Afinal, este era o modo intraterreno. Fazer menos que isso faria de Morfeu um humano. E ele sabia, agora mais do que nunca, que essa era a última coisa que jamais desejou ser.


SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS
Epígrafe

ÀS VEZES PENSO EM SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS ANTES DO CAFÉ DA MANHÃ.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Um

Mortalidade

Capítulo 1

Deportação

Algumas pessoas podem dizer que é impossível morrer e viver para contar. São as pessoas que nunca experimentaram a mágica. Quanto a mim, sou tataraneta da Alice que inspirou Lewis Carroll. Acreditei no inacreditável por mais de sessenta e quatro anos, desde que tinha dezesseis e descobri que o País das Maravilhas era real e cheio de seres caprichosos, misteriosos e loucos, governados por acordos e enigmas. Ainda assim, às vezes, por mais que você acredite no impossível, as coisas não saem como você as planejou. Toda mágica pode encontrar um obstáculo de vez em quando.

Por exemplo, nunca esperei que meu cadáver acabasse numa caixa de sapatos. É isso que os caixões crematórios me lembram... uma caixa de papelão do tamanho de uma pessoa. O caixão não é muito confortável. Não há a forração de veludo para suavizar a base de madeira. Nenhuma almofada para acomodar minha coluna curvada. E nada de roupas, além de um vestido de papel para cobrir minha pele velha e enrugada.

O cheiro de papelão se fixa ao meu nariz e as rodas de aço da maca giram ao longo do corredor, rangendo em algum lugar sob mim, junto a passos familiares. Sinto a transição do ambiente fresco e de temperatura controlada onde o legista atestou minha “morteza” (como os seres do País das Maravilhas diriam). Ele, então, pôs uma identificação de aço inoxidável no meu peito e fechou uma tampa sobre mim, me prendendo na escuridão.

A maca sacode ao entrar num lugar muito mais quente. O cheiro de ovo podre do propano confirma nossa localização. Já visitei este lugar. Nos últimos meses visitei vários crematórios, quando não havia ninguém por perto, de madrugada. Para conhecer melhor o gigantesco forno de tijolos à vista que estaria esperando para queimar minha carne. Para encontrar o projeto perfeito, com um banheiro e um espelho de corpo todo do outro lado do salão.

Assim que optei pelo crematório do Pleasance Rest Cemetery, me preparei para morrer.

Meu plano original era usar Tetrodotoxina. Em doses pequenas, subletais, ela deixa a vítima num estado de quase morte por dias, permitindo que ela mantenha a consciência. Morfeu, porém, não concordava. Ele disse que a margem de erro entre o estado de quase morte e a morte de verdade era pequena demais no mundo mortal e não algo com o que se brincar. Ele não queria que eu arriscasse. Então, ofereceu uma substituto do País das Maravilhas: uma poção que funciona quase da mesma forma, mas que tem um antídoto cem por cento garantido.

Bebi a dose de quase morte nesta manhã e, dez horas mais tarde, ainda sinto o gosto amargo e anestésico, como cravos dançando no fundo da garrafa de vinagre. Não consigo morder a língua para aliviar o efeito. A mágica me deixou catatônica — meus olhos fechados e imóveis, meus batimentos e respiração reduzidos a um ronronar indetectável por quaisquer instrumentos humanos.

Meu lado intraterreno se remexe dentro do meu crânio, me garantindo que isso vai dar certo, mas meu lado humano instintivamente se encolhe quando o medo tranca minha garganta. Não posso gritar para dizer a todos que estou viva. Minhas cordas vocais não vão funcionar. A claustrofobia, minha velha inimiga, me deixa toda arrepiada. Sei o que está acontecendo ao meu redor, apesar de não conseguir abrir os olhos ou mover meus membros. Todos os cheiros, sons e sensações táteis são ampliados por minha incapacidade de reação.

Os paramédicos que atenderam, nesta manhã, à chamada de emergência da minha neta de vinte e sete anos me declararam morta — fulminada por um ataque cardíaco. Foi insuportável ouvi-la chorar e gritar. Isso despertou lembranças da minha maior perda — da morte de Jeb, três anos antes. Uma faca ainda é cravada no meu peito sempre que me lembro do nosso último adeus.

Mas Jeb me mandou ser firme. E ensinei aos meus netos o mesmo — sempre encarar as coisas. Ela ficará bem. Não tenho dúvida disso porque ela é muito parecida comigo, para além de seus cabelos loiros, olhos azuis e curiosidade. Ela é teimosa, leal e uma sobrevivente.

Assim que os paramédicos levaram meu corpo ao necrotério, tudo funcionou como o previsto.

Minha família sabia que cemitério eu escolhera e as quatro exigências do meu testamento: nada de exibição pública do meu corpo, nada de velório, cremação em doze horas depois da minha morte e a dispersão das minhas cinzas no mesmo local onde as de Jeb foram jogadas, sob o salgueiro em nossa casa de campo. A árvore tinha um significado especial, por ter sido gerada de uma mudinha do salgueiro que dividia os quintais da nossa casa quando éramos crianças.

Tais pedidos nada convencionais não abalaram minha família, considerando que me tornei uma mulher muito excêntrica.

Depois da morte de Jeb, eles me viram vagar pela casa de campo, reunindo os mosaicos que fiz ao longo da vida, cheios de paisagens bizarras e místicas — com títulos como A Batida do Coração do Inverno, Dunas de Xadrez e O Ventre do Monstro —, e guardando-os no sótão, ao lado de outras quinquilharias, incluindo um anúncio de um passeio pelo Tâmisa, em Londres. As últimas coisas que guardei ali foram duas chaves: uma que pertencia à minha mãe, e era capaz de transformar qualquer espelho num portal, e outra que podia abrir o jardim das almas do País das Maravilhas. Esta última foi um presente dado a Jeb, depois que ele desistiu da sua musa, de modo a satisfazer a necessidade do reino interior por sonhos vívidos e cheios de imaginação, conectando nossos mundos em paz ao longo do processo. Ele desistiu do que fez dele único, a fim de manter as crianças humanas seguras. Um ato de coragem que seus filhos e netos jamais tiveram o privilégio de saber. Era essa a lembrancinha de que eu tinha mais dificuldade para me desapegar, porque era uma homenagem à coragem e ao caráter nobre de Jeb — as duas coisas que eu mais amava nele. No entanto, como Rainha Vermelha do País das Maravilhas, eu não tinha motivo para guardar chave tão sagrada.

Escondi tudo num baú no sótão e o tranquei. Então pus a chave do baú em meio às páginas da minha velha coleção de Lewis Carroll. Jeb e eu éramos donos da casa e do terreno que a cercava, e insistimos, em nossos testamentos, para que o lugar permanecesse sempre com a família. Assim, se nossos descendentes um dia precisassem me encontrar, poderiam. Eles só precisam procurar as pistas, como um dia eu fiz. Seguir meus passos e acreditar no impossível — em contos de fadas e desejos e mágicas.

Sempre os mantive no escuro quanto ao nosso legado, dando-lhes uma chance de viver uma vida normal. Até mesmo ordenei que os insetos e flores ficassem em silêncio. Agora sou a única capaz de ouvir esses sons do mundo interior, e as coisas continuarão assim enquanto eu estiver reinando como a Rainha Vermelha. Contudo, se algum familiar procurar com presteza, vai encontrar a verdade que escondi para eles.

Em todos esses anos, eles aceitaram meus caprichos porque sempre os respeitei e os amei incondicionalmente. E agora conto com a lealdade deles. Todo o meu plano de morrer depende da execução do meu testamento.

A cremação era a única forma de evitar que drenassem meu sangue, bombeassem formol em minhas veias e cerzissem minhas pálpebras — todos aqueles procedimentos mórbidos e intrusivos para embalsamar e preservar o corpo mortal. Fui abençoada ao longo dos meus oitenta anos de vida humana com saúde e uma mente aguçada. Nunca precisei de marca-passo e não tenho próteses, implantes ou dentaduras, então não há nada que possa explodir no forno. Isso significa que não haverá incisões nem extrações. Era importante que eu permanecesse intacta — por dentro e por fora.

Todavia, se o Rábido Branco não se apressasse e chegasse aqui com o antídoto para me tirar deste estado, nada importaria. Vou virar um monte de cinzas. E Morfeu terá de encontrar um lar novo para meu espírito eterno... um novo corpo para eu habitar.

Ele ficará furioso se isso acontecer e nunca me deixará esquecer isso. Uma eternidade é muito, muito tempo para ouvir eu avisei, entoado continuamente com um marcado sotaque londrino.

— Não me importo — disse ele há duas semanas, enquanto discutíamos meu êxodo do reino humano e tomávamos chá durante uma das minhas visitas ao País das Maravilhas em sonho. Ele levou a xícara à boca, seu rosto curioso perfeito e jovem como sempre. Ele bebeu e deixou a xícara de lado novamente. — Muitas coisas podem dar errado. Devo estar lá para executar meu plano.

— Vou agir sozinha — declarei. Estudei a cama com dossel e a lareira instaladas na diagonal em relação a enormes poltronas vitorianas ao lado de uma mesa oval, buscando conforto no cenário. — E vamos seguir meu plano. — Aqueles seriam meus últimos instantes no reino humano. Tinha de ser de acordo com a minha vontade. Contive uma descarga de tristeza e tentei exibir o mesmo controle que Morfeu exibia com sua xícara de chá, mas o líquido quente molhou minha mão velha quando meu pulso tremeu. Gritei.

— Alyssa, por favor. Permita-me. — Com seus dedos lisos e elegantes, ele cuidadosamente segurou meus dedos enrugados, limpando o chá e acariciando a mão queimada com um guardanapo.

Permita-me. Nós dois sabíamos que ele falava de outras coisas além da limpeza do chá derramado.

Tantos anos passamos juntos nos meus sonhos — e tantos outros na nossa infância —, com Morfeu me treinando e me ensinando sobre meu reino e o mundo. Não havia oportunidades para ficarmos sozinhos, já que ele mantinha o véu do sono descoberto para eu poder interagir com o Rábido, Chessie, Marfim, as criaturas e meus súditos.

Isso mudou quando fiquei viúva. Realizava meus deveres reais todas as noites e lutava para ser forte, até que meu luto pela morte de Jeb ficou tão intenso que as lágrimas se acumulavam em meus cílios, me cegando. Morfeu — sentindo minha vergonha, porque rainhas não choram — insistia que era hora do chá, que tomávamos sozinhos nos aposentos reais que um dia pertenceria a nós como rei e rainha.

Ali, na nossa solidão, escondidos de olhos predadores e cercados por exuberantes tapetes vermelhos e cortinas douradas, eu me perdia em minha dor. Permita-me, dizia ele. Estendendo os braços, ele me abraçava enquanto eu chorava. Noite após noite, durante um ano, até que finalmente não conseguia mais chorar.

Pouco depois, a atenção de Morfeu mudou. Seus carinhos se tornaram menos confortantes e mais íntimos. Estava constrangida demais para reagir, tímida demais em meu corpo velho.

Um ser místico eternamente jovem cortejando uma velha — teria rido do absurdo disso, não estivesse tão afetada pela devoção cega dele e pela intensidade do seu amor.

— Mesmo que usássemos seu plano... — Morfeu falava baixinho e de mau humor ao esfregar o guardanapo entre meus dedos, enxugando os resquícios de chá. — ... ainda assim eu deveria estar lá nas coxias, para supervisionar o espetáculo.

Franzi a testa para ele. Sua teimosia, juntamente com a dança dos vaga-lumes em seus cabelos desgrenhados e seus traços bizarramente belos, me fez lembrar outra noite em que nos sentamos neste quarto juntos — há várias décadas —, quando ele tentou me convencer a usar a coroa de rubi pela primeira vez. Quando tentei convencê-lo a me devolver meu desejo para eu poder fugir do País das Maravilhas, curar a maldição da minha família e manter Jeb em segurança. Eu era uma pessoa diferente na época, cheia de juventude, aspirações humanas e inocência.

Nosso quarto real se tornou uma lembrança dolorosa da velhice e decrepitude. Ansiava criar lembranças novas aqui, depois de desistir de tentar superar a beleza caótica do País das Maravilhas, quando fui coroada rainha de novo e permaneceria com dezesseis anos para sempre — jovem, cheia de energia e tão sedutora quanto o homem alado que governaria ao meu lado.

Até então, eu não me encaixava. Eu era uma foto deixada ao sol e chuva, minhas cores vibrantes se desbotando melancolicamente e ganhando um tom amarelado. Meus poderes intraterrenos ainda eram fortes, mas estavam presos num vaso gasto pelo tempo. Meus ombros pareciam curvados e pesados demais, eu raramente usava minhas asas. Do que mais sentia falta era voar.

Eu me perguntava se era assim que a Rainha Vermelha se sentiu no fim e por que ela permitiu que Morfeu a convencesse a voltar ao País das Maravilhas, abandonando seus descendentes semi-humanos. Por fim, foi plano dela voltar, apesar de não querer fazer aquela jornada sozinha. Ela brigou com Morfeu, dando início a uma série de eventos e manipulações que acabaram por me levar à coroa e me tornar rainha. Algo pelo qual aprendi a agradecer, apesar de na época ter reclamado do presente. Demorei muito para admirar totalmente a preciosa imortalidade, e jamais desvalorizaria isso novamente.

Depois que Morfeu terminou de limpar o chá derramado, tirei a mão da dele e timidamente cobri meu pescoço com o lenço de seda, tentando esconder minhas peles murchas. As pessoas diziam que eu era linda para a minha idade. Que parecia ao menos vinte anos mais nova. Todavia, em comparação à beleza sobrenatural e imutável de Morfeu, eu me sentia velha.

— Não quero você lá — insisti, determinada a mantê-lo distante da casa funerária. — Já basta você ter me visto murchar como uma uva-passa ao longo dos anos. — Até minha voz soava enferrujada, como se as palavras jorrassem da minha garganta e língua em porções cáusticas.

Morfeu apoiou os cotovelos na toalha da mesa, aproximando-se ao máximo com o jogo de chá entre nós. Seus cabelos azuis tocaram-lhe os ombros, animados e encantados — um contraste marcante com as ondas brancas reduzidas a um coque preso atrás da minha cabeça.

— Você está no fim de sua crisálida, meu amor. Esta etapa é a mais difícil, acredite. Uma batalha furiosa e incômoda de identidade, antes de se libertar e se transformar na criatura de luz e criatividade que sempre foi seu destino. Posso mantê-la atenta. Para evitar quaisquer... distrações.

Ele olhou para minha aliança, que eu ainda não tinha tirado. Aquilo se tornara mais do que um símbolo da nossa devoção. Tornara-se um símbolo da minha vida humana, e eu pretendia usá-la até deixar tudo para trás.

Com o dedinho, Morfeu circulou a aliança, cuidando para não tocar os diamantes ou o suporte de prata que os mantinha no lugar.

— É importante que você não permita nada que a impeça de dar o salto final. Você sofreu a perda daqueles que se foram há tanto tempo. Eles estão em paz. Deixe que a paz deles lhe dê paz. Senão, você será afetada... incapaz de agir com a mente ágil. O foco é fundamental para que qualquer um dos planos funcione.

— Já sei disso — respondo, um aperto no peito dolorido. — Você tem medo de que eu fique senil. De eu não ser capaz de lidar com isso.

Ele suspirou, acariciando meu polegar com o dele.

— Não senil. Nostálgica. Acontece a humanos. Você mesma me contou, enquanto eu a via amadurecer do refinamento à sabedoria.

— Refinamento. — Tentei um sorriso hesitante diante do esforço dele em me encantar. — É assim que vocês falam hoje em dia?

Ele me encarou sem hesitar.

— Seus olhos não perderam a incandescência; nem a mente, a inteligência. Você não é ingênua. Você é minha torta de ameixa, e sempre foi. Já lhe disse isso repetidas vezes, não é?

Ao menos uma vez por noite nos meus sonhos, Querida Mariposa.

Não respondi em voz alta, assim como não revelei minhas maiores inseguranças: estava com vergonha de ele me ver tão decadente... Não suportava a ideia de ele ter qualquer lembrança de mim como um cadáver naquele caixão de papelão — assim como eu vi Jeb depois da morte dele, antes de ser cremado.

— Uma rainha não deveria exigir resgate — sentencio. Ainda o encaro, maravilhada com aquelas íris coloridas que devolvem a mim o mesmo olhar de nossa infância, cheio de surpresa e afeto. De certa forma, ele via para além do meu corpo velho e enxergava a menina que fui, e eu queria muito conseguir me ver como ele me via. — Uma rainha deve merecer o respeito do seu reino e de seus súditos. E a admiração do rei.

Ele pegou minha mão novamente e beijou cada um dos nós dos dedos cheios de artrite.

— Ah, eu lhe garanto Você sempre mereceu isso. Na verdade, planejo mostrar-lhe a profundidade de minha admiração. — A palavra profundidade saiu de sua garganta como um urro. — Ainda que sejam necessárias várias vezes para convencê-la, finalmente chegará o momento de você ser minha.

Meu rosto ficou vermelho. Apesar de todos os anos em que ele me elogiou e me provocou com insinuações, e a despeito de tudo o que vivi como mãe, esposa e avó mortal, ele ainda conseguia me fazer enrubescer.

— Ah, aí está. — Ele passou o dedo por meu rosto enrugado e sorriu, satisfeito demais consigo mesmo. — Não perdi meu encanto.

— Como se isso fosse possível, para o mestre da sedução verbal — provoquei.

Seu humor mudou para a insolência num piscar de olhos.

— Você logo verá que isso é mais do que conversinha, minha rosa.

Fiquei ainda mais vermelha, sentindo-me mais jovem do que nunca. Ele sempre causava esse efeito em mim. Sempre fez com que eu me sentisse viva e desejável. Exceto pelas vezes que ele me desafiava ou me deixava furiosa.

Ele se recostou em seu lugar, as asas erguidas.

— Seu corpo está cansado. Deixe-me fazer isso por você, para você poder descansar — tentou ele uma última vez.

— Você me ensinou a ser forte e astuciosa. Devo dar sozinha este último salto para dentro da toca do coelho. — Uma sensação inesperada de vulnerabilidade me fez tremer. Peguei minha xícara de chá para absorver seu calor. — Mas você estará lá para me pegar?

— Estarei lá esperando um beijo arrasador para compensar todos os meus problemas — respondeu ele sem hesitar.

Sorrindo, peguei o jogo de xadrez. Morfeu ficou observando atentamente eu animar as peças para que atuassem no meu grandioso plano de deixar o reino humano e esconder meus vestígios com a ajuda do meu conselheiro real, além de pedaços de osso fornecidos pelas fadas, um saco de cinzas, dois trajes de disfarce, uma mosca comum e um punhado de duendes. Enquanto eu falava, seu olho adornado com joias brilhava num tom esverdeado — incomodado, mas esperançoso. A ansiedade que emanava dele era visceral.

Era inconcebível que tivéssemos um relacionamento de sessenta e três anos — platônico — sem um quê de tensão. Apesar de ele gostar muito de me ver andar na ponta dos pés na corda bamba da sedução contida, ele manteve seu juramento e respeitou minha decisão de ser fiel a Jeb. Ele esperou três anos, enquanto eu sofria a morte do meu marido mortal e preparava minha família para minha partida iminente. Era essa a profundidade do respeito dele por mim. Ele teve meu respeito em troca. E muito mais...

Agora chegou o dia de recompensá-lo por sua paciência e estou começando a me arrepender por não deixá-lo planejar minha morte... por não deixá-lo controlar o espetáculo. Provavelmente, tudo seria muito mais fácil. Eu já estaria em seus braços e em sua cama — uma jovem rainha borboleta, governando meu reino, embriagada de poder, loucura e paixão.

Não. Eu consigo. Posso provar que sou capaz, calculista e forte, como todas as boas rainhas deveriam ser.

O único papel de Morfeu no meu plano era mandar o Rábido com o antídoto. Assim que meu cúmplice chegar, tudo se encaixará e fugirei para o País das Maravilhas. Como um corpo não pode ser exumado depois de reduzido a cinzas, ninguém saberá que ainda estou viva e apenas fui embora deste mundo para sempre.

Uma pontada de tristeza segue-se a esse pensamento quando finalmente me dou conta. Acabou. Estou pronta para dar um fim... para começar meu futuro imortal. Vivi uma vida plena aqui. Minha família é saudável e feliz. Estamos no auge. Todos os sonhos humanos foram realizados e meu coração está firme e forte novamente.

Se bem que, por causa disso, há muita coisa a ser deixada para trás. Não há nada inconcluso, mas ainda assim é difícil dizer adeus para sempre. Assim que a coroa for colocada em minha cabeça para dar início à minha imortalidade, não terei de usá-la constantemente para manter minha juventude, mas terei de ficar no País das Maravilhas. Como Marfim uma vez me disse, o tempo é complicado ao se passar pelo portal a fim de retornar ao mundo humano... há de se imaginar uma hora específica, ou o relógio retrocede e o portal deixará você no mesmo momento de sua passagem.

Se eu tentar cruzar as fronteiras para o reino humano depois de partir, voltarei para sempre a este momento e terei oitenta anos para sempre, ou automaticamente envelhecerei todo o tempo que se passou e virarei pó na hora. Acrescente-se a isso o fato de eu estar morta aos olhos de todos — jamais poderia explicar meu reaparecimento sem causar terror e confusão — e ir e voltar não será mais uma opção.

Uma muralha impenetrável está prestes a se erguer entre mim e minha família, deixando-nos sem nada além de memórias.

O rosto de Jeb reapareceu em minha mente antes que eu pudesse impedir... como seus olhos verdes brilhantes me encararam pouco antes de ele os fechar na morte. Como eles estavam tão cheios de amor e gratidão por todos os sonhos que compartilhamos.

Sinto algo crescer na minha garganta e uma dor atrás dos olhos. No meu peito, a pequena identidade de metal parece uma pilha de tijolos.

Pare. Não posso fazer isso agora. Tenho de me concentrar na fuga. Morfeu tinha razão. Pensar naqueles que amei só vai me atrapalhar. Vou manter as lembranças sob controle... esquecer como encarei a morte da mamãe e do papai, como achei que jamais superaria a dor. Como Jeb foi meu porto seguro, como sempre. Assim como fui para ele, quando a mãe dele morreu.

É fútil pensar nessas coisas agora, porque, assim que Jeb morreu, todo o mundo se distorceu — adquiriu uma nova forma que eu não reconhecia. As coisas cotidianas se tornaram estranhas e desagradáveis. Com a morte dele, eu não fazia parte de mais nada.

Minha metamorfose estava completa assim que meu marido mortal deixou de respirar. Só o que me restava agora era sair do meu velho casulo.

Um cheiro novo entra em meu entorno de papelão — loção pós-barba ou desodorante —, me obrigando a voltar ao presente enquanto dois homens conversam do lado de fora do caixão.

— Última da noite, Frank?

— É isso, Brian. Chegou há algumas horas. Só entrega. E é para se apressar com ela. Quer que eu fique e ajude?

Tenho dificuldade para respirar. Meu plano não permite duas testemunhas. Só uma. Enquanto espero pela resposta do operador do crematório, meu coração se encolhe dentro de mim, cheio de medo. O órgão parece tremer, apesar de não haver pulsação em meus pulsos ou ouvidos. Só uma vibração fria e indiscernível por trás do meu esterno, como gelatina gelada retirada da fôrma.

— Não — diz finalmente Brian, mexendo em alguns papéis. — Posso fazer isso de olhos fechados.

A ironia é risível. Se tudo sair como planejado, ele não só terá seus olhos fechados, como também estará dormindo e sonhando.

— Vá para casa e fique com sua família — conclui Brian. — Diga a Melanie e às crianças que mandei um oi.

— Entendi. Até amanhã.

As portas se fecham com um rangido e o alívio toma conta de mim, mas por pouco tempo. Os cliques e claques da esteira mecanizada balançam as paredes de papelão do meu caixão e agitam meus ossos rígidos. Sinto um balançar leve sob minha coluna enquanto meu caixão segue por uma esteira com rolos de metal. À medida que estes se movem, as chamas crepitam mais alto, aquecendo meus pés no ponto onde a parede sob a sola dos meus pés se aproxima perigosamente da entrada do incinerador.

Era para o Rábido estar aqui antes que o forno de temperatura controlada estivesse quente o bastante para acionar o mecanismo de abertura. As coisas estão acontecendo fora da sequência e rápido demais. Meus músculos doem e ganham vida, mas estão rígidos como aço. Imóveis. Um vislumbre de outra lembrança me arrepia: quando a Rainha Vermelha controlou meu corpo naquele último dia em Qualquer Outro Lugar. Quando eu era uma marionete dela. Sinto-me tão impotente agora quanto naquele tempo.

Estou prestes a ser envolta em chamas. Meu corpo não vai sobreviver. De todo modo, preciso sobreviver. Prometi voltar como eu mesma. Inteira. É uma promessa que não posso quebrar. Morfeu esperou demais por meu retorno. Não posso decepcioná-lo.

A dúvida ergue sua cabeça horrível: o que farei? Não consigo me mover, não consigo me livrar... não sem o antídoto. Um vazio dói por trás dos meus canais lacrimais enquanto desejo que uma enchente me liberte e encha toda a minha caixa com um oceano de lágrimas para me salvar do fogo. Mas meus olhos podiam muito bem estar cheios de areia.

Chega de drama, meu amor. Use sua mágica. Improvise e encontre uma forma de escapar.

Não tenho certeza se é a voz de Morfeu na minha cabeça ou se é minha própria voz. Ouvi o sotaque dele e sua insistência tantas vezes ao longo da vida que eles estão entranhados em mim como se fossem meus.

Seja qual for o caso, isso desperta minha determinação. Há um motivo para eu ter vindo a este lugar na noite passada, quando tudo estava escuro e em silêncio: para poder anotar mentalmente todas as coisas que poderia animar se precisasse. Para poder entender a logística do forno crematório. Para poder usar minha mágica às cegas.

Concentro-me no maquinário da esteira. Aprendi uma coisa ou outra sendo esposa de um mecânico. As molas do mecanismo se contraem enquanto as imagino se retraindo. O movimento aciona as amarras e a porta de metal se fecha com um baque. Minha caixa para imediatamente ao atingir o obstáculo.

— Você só pode estar brincando comigo — resmunga Brian. Ele mexe na maçaneta da porta e bate nas dobradiças. — Pronto. Agora, sim.

Ele empurra meu caixão de volta para a esteira de metal, criando espaço para a dobradiça se abrir. Minha mente procura outra forma de detê-lo quando o ouço gritar “Mas o que é que...?”, pouco antes de ouvir o som do seu corpo caindo no chão. O caixão bate na porta fechada novamente.

— Rainha Alyssa — uma voz fina soa do outro lado do papelão.

Nikki, sua fadinha maravilhosa. Um formigamento se irradia pelos meus lábios, o fantasma de um sorriso esperando para se abrir. Meus dedos dos pés se dobrariam de empolgação, não fosse minha paralisia.

A tampa do caixão se abre e as asas de vinte fadas pairam ao redor do meu rosto — lufadinhas de vento com cheiro de canela e baunilha.

Mãozinhas do tamanho de joaninhas seguram minhas pálpebras, abrindo-as diante de um brilho âmbar. Ainda não consigo virar a cabeça, mas pela minha visão periférica a galhada do Rábido aparece sobre a borda do caixão, seguida por um par de olhos rosados brilhantes.

— Atrasado estou — desculpa-se ele.

Tento menear a cabeça, mas não consigo.

Todo o seu rosto aparece diante de mim.

— Arrumá-la, Alteza. Levá-la para casa, finalmente.

Casa. A palavra passeia por minha mente, cheia de promessas e esperanças. Imagino-me voando com Morfeu pelos cenários bizarros e irregulares do País das Maravilhas. Como vai ser bom me sentir pertencente a um lugar de novo. Fazer parte e nunca ter de abandonar ninguém novamente.

O Rábido estica o braço magro e derrama em minha garganta algo de uma garrafa vermelha. Um leve toque de frutas vermelhas misturado a menta arde em minha língua. Meu coração ganha vida, batendo com tanta força contra meu esterno que eu perco o fôlego. Em pouco tempo, sou capaz de abrir os olhos sem a ajuda das fadas. Elas se dispersam com risadinhas e pairam ao redor do adormecido operador do crematório, caído no chão de cimento.

Pisco com força e rapidez. Meus canais lacrimais funcionam e meus olhos se enchem de água. O sal fere e coça.

Depois, meus dedos dos pés e das mãos latejam e os músculos despertam, moles e resistentes, como elásticos esticados demais. Enquanto me sento, minhas velhas articulações estalam.

O Rábido sobe na beirada da inclinação e segura o caixão, mantendo-o ao meu nível.

— Perdoe o Branco Rábido. Para todo o sempre, ao seu lado estarei.

Acaricio sua cabeça macia.

— Nenhum perdão é necessário. O que importa é que você está aqui agora. Alguém o viu saindo do banheiro?

O Rábido faz que não.

— A mosca no muro ficou de olho no futuro. — Ele ri da rima e aponta para a parte de cima da porta que ostenta a única janela do salão. A mosca anda pelo vidro do outro lado, numa demonstração de sua devoção inabalável.

O Rábido abre o sorriso sorrateiro que aprendi a apreciar, enquanto sua mão esquelética me entrega uma mochilinha. Olho dentro e está tudo ali: meu colar com o rubi, minha aliança de casamento, os trajes de disfarce, um saco de cinzas e pedacinhos de osso, uma muda de roupa, uma faca e três lembranças da minha vida humana que serão as únicas coisas que levarei comigo ao transpor os limites do País das Maravilhas.

Primeiro, coloco o colar em volta do pescoço e aperto a chave contra o peito, saboreando o poder que ela contém.

O operador do crematório ronca no chão. Ele parece com frio e nada confortável, mas sei que não está. Seus sonhos são cálidos e sensuais. As fadas voam ao redor dele, as asas batendo à velocidade de beija-flores, enquanto elas espalham partículas que são como dentes-de-leão cheios de feromônios. As sementinhas caem sobre o rosto sorridente do homem, levando seu inconsciente a imaginar as fantasias mais carnais. Torço o nariz, com vergonha até de imaginar o que ele está sonhando. Ele provavelmente vai ter uma ressaca de sonhos por uma semana.

Ainda que ele não vá sofrer nenhum efeito físico duradouro, as fadas estão explorando os pensamentos secretos dele. Quando eu era mais nova, teria me arrependido de tê-lo usado em meu plano. Agora, não. Quando ele acordar, daqui a mais ou menos uma hora, sua dor de cabeça insuportável o impedirá de questionar como conseguiu me cremar enquanto ele dormia. Ele só irá querer uma aspirina e sua cama macia em casa.

O fim justifica os meios.

Uso a faca para cortar uma abertura na lateral do caixão e tirar minhas pernas, lenta e cuidadosamente. Não consigo me mover tão rápido quanto antes. Meus pés descalços tocam o chão frio, o vestido de papel fazendo barulho. O Rábido se vira de costas enquanto tiro o vestido e o jogo dentro da caixa, depois visto um moletom e botas cinza — as roupas mais confortáveis e discretas do meu armário. Repreendo-me por me esquecer das roupas íntimas, mas não importa o que estou vestindo agora, porque no País das Maravilhas Morfeu encheu todos os armários do castelo com camisolas e lingeries de renda, cetim e veludo — um guarda-roupa digno de uma rainha.

Hoje, o disfarce esconderá meu traje simplório. Coloco o pé no tecido mágico. Para virar uma camaleoa, só preciso vestir o capuz e me concentrar nos arredores, meu corpo refletindo o cenário de fundo.

Mas primeiro...

Sem eu nem pedir, o Rábido me entrega o saco de cinzas e ossos e minha aliança de casamento. Olho o anel. Jeb o fez para mim quando tinha a capacidade mágica de pintar coisas e lhes dar vida. Quando sua musa se tornou uma entidade viva. Ele me serviu tanto como anel de noivado quanto como anel de casamento e era indestrutível. Pelo menos era o que pensávamos. A única vez que ele perdeu um de seus doze diamantes foi por descuido da minha mágica, quando eu a estava praticando.

Estava do lado de fora da nossa casa de campo, tentando fazer o salgueiro dançar, quando o diamante caiu na grama. Procuramos e procuramos, mas nunca o encontramos. Depois de uma semana, ele apareceu de novo, nascendo do solo na forma de uma flor parecida com vidro. Era como se o diamante fosse uma semente, tendo dentro de si a força da criação mágica de Jeb.

O cheiro de terra presente na lembrança dá lugar ao cheiro do propano do forno. Abro o saco e derramo as cinzas e ossos no caixão, mantendo os movimentos metódicos e precisos para a nostalgia não tomar conta de mim novamente.

Depois de esvaziar o saco, beijo minha aliança e a coloco em cima do montículo.

— Rábido, derreta isso com sua mágica.

Meu conselheiro real se aproxima, olha pela abertura e estreita seus olhos brilhantes até que eles irradiem um calor vermelho. Enquanto ele se concentra, as faixas de prata se fundem, reduzindo os onze diamantes a cinzas.

Coloco a placa de identificação dentro do caixão e leio o que está gravado no aço: Alyssa Victoria Gardner Holt. Sinto um nó na garganta. É a última vez que meu nome humano me definirá.

Reposicionando a tampa, ordeno que o mecanismo da porta funcione. Entrefecho os olhos diante do calor e das chamas, enquanto as portas se abrem o bastante para eu empurrar o caixão pela esteira, a porta se fechando em seguida. Ela se fecha completamente, tanto que nem mesmo se pode ver o brilho alaranjado lá dentro.

Alguns segundos mais e eu estaria presa ali. Agora, depois que o papelão se queimar todo, vai parecer que eu estava. As prateleiras de metal na parede contêm vários cubinhos de papelão. Dentro estão os restos mortais dos corpos que vieram antes de mim e agora esperam ser transferidos para suas urnas.

Mas meus “restos mortais” são únicos. Os diamantes de Jeb esperam lá dentro — sementinhas mágicas. Quando as cinzas forem lançadas no lugar onde as dele foram absorvidas na terra sob nosso salgueiro, flores nascerão, uma parte dele e minha. Unindo o que restou de nosso lado humano, numa última homenagem a toda a beleza que ele criou durante a vida.

Seguro-me para não chorar e pego a mochila enquanto o Rábido veste outro traje de disfarce, o qual encolhe até caber em seu corpo de coelho. Mentalmente, pergunto à mosca se o corredor está livre.

Ela responde num sussurro:

Está tudo bem, Rainha Alyssa...

Os outros humanos se foram. Não há nada além de umas traças por aqui.

Desnecessário ficar invisível, então.

— Nikki — sussurro, e a fadinha balança as asas, soltando a dose final de pó de fada no homem adormecido. Então ela reúne suas companheiras e nos segue porta afora. O banheiro fica a poucos passos do outro lado do corredor comprido e escuro. Sigo tomando cuidado para não esmagar as traças que caminham perto dos meus pés e dos pés do Rábido. Sorrio ao ver os insetos acompanhados de uma fila enorme de baratas, besouros e aranhas.

Rainha Alyssa! Rainha Alyssa! Tão triste vê-la partir...

A mosca voa ao redor da minha cabeça, acrescentando suas despedidas à confusão.

— Sentirei saudade de vocês também — digo, lutando contra uma onda de melancolia. Será a última vez que ouvirei esses cumprimentos confusos e zunidores. No País das Maravilhas, os insetos são... bem diferentes. Menos inócuos e bonzinhos. Alguns são maus e letais, e nada pequenos. Mas conheço todos os segredos deles e todas as suas fraquezas — graças ao sábio guardião do País das Maravilhas.

Nosso desfile entra no banheiro e para diante do espelho. Em vez de me ater à minha aparência velha e enrugada, imagino o relógio de sol que cobre a toca do coelho em um jardim londrino. O vidro racha como gelo no lago e, no reflexo entrequebrado, o relógio de sol aparece, marcado por uma réstia de pôr do sol rosa. É cedo e ninguém ocupa a trilha ainda. Como precaução, visto o capuz e o Rábido faz o mesmo.

Só precisamos de um ou dois pensamentos sobre nossas cercanias e seremos invisíveis.

Usando minha chave, miro numa fissura na forma de buraco de fechadura, minúsculo e intrincado.

O portal se abre. O Rábido me cutuca com seus dedos magros e entrelaço meus dedos aos dele. Junto com as fadas e nossos insetos companheiros, passamos pela abertura liquefeita. Uma brisa fria me atinge, assim como o cheiro de mato e rosas cobertos de orvalho reluzente.

Os botões de rosa dizem:

Bem-vinda, Majestade. Os anos ficaram para trás. Logo você estará desabrochando como nós novamente.

Sorrio. O Rábido me puxa rumo ao relógio de sol que já expõe a toca do coelho. Ele está ansioso para ir embora. Mais insetos se juntaram a nós; alguns pelo terreno: besouros, centopeias e escorpiões; outros pela brisa: borboletas, mariposas, vaga-lumes...

Saem em enxame do mato e ficam dando a volta em mim e em meu conselheiro real — um arco-íris encantado, espesso e brilhante, sob a luz rosada do céu.

As borboletas cantam:

Vida longa à Rainha Alyssa. Que você seja para sempre jovem, louca e livre.

Muitos deles pousam sobre mim, as asas acariciando meu rosto e pescoço através do traje de disfarce, e percebo que não terei mais de me tornar invisível. Meus amigos insetos estão aqui para me dar proteção, como sempre estiveram.

O Rábido me solta, seus dedos de cadáver tocando os meus enquanto ele segue as fadas e mergulha na toca do coelho sem olhar para trás.

— Atrase-se não, Majesta-a-a-ade — o grito do Rábido ecoa até mim, afastando-se mais e mais à medida que ele desce, sem peso, como uma pena ao vento.

Ao contrário do meu séquito interior, não consigo ir embora sem uma olhada para trás.

Paro, olhando em meio à nuvem de milhares de asinhas adejando diante da paisagem tremeluzente no horizonte. Meu peito se aperta.

Pego as lembrancinhas da minha mochila. Três garrafas de vidro decoradas: a primeira cheia de pedrinhas, a segunda com conchas e a última com um pó prateado. Uma olhada nas três e as lembranças contra as quais eu lutava iluminam minha mente, graciosa e lentamente, como a aurora invadindo o mundo imóvel que desperta.


CONTINUA

A MARIPOSA NO ESPELHO


Capítulo 1


As Maquinações
da Mariposa

— Tem certeza, Morfeu?

— Tenho — respondeu Morfeu, tirando as luvas e enfiando-as no casaco. — Você, entretanto, parece que precisa ser convencida.

A magia pulsava nervosamente na ponta de seus dedos, uma luz azul pulsante logo abaixo da pele. Por causa da ponte de ferro que havia lá fora, seus poderes estavam limitados a alguns truques inofensivos, mas suficientes para dar o seu recado, se necessário.

O besouro-tapete — que de tão grande chegava à altura dos ombros de Morfeu, depois de este haver tomado uma poção encolhedora — engoliu em seco por trás de suas muitas mandíbulas estalantes. Sua pele carpetada tremia.

— Não, não. Por favor, o senhor interpretou mal as minhas ressalvas. — Os braços ramosos do inseto vibravam enquanto ele folheava as marcações em ordem alfabética de sua prancheta, as quais continham todas as lembranças perdidas no País das Maravilhas. — É que ficar espiando os momentos esquecidos de um ser humano parece uma maneira tediosa de se passar uma tarde, só isso...

Morfeu mudou de posição, e suas asas lançaram uma sombra sobre a cara do besouro.

— Ah, mas este humano, em especial, tem muito a me ensinar.

Esse humano, em especial, havia conseguido capturar algo que Morfeu desejava mais que tudo neste mundo.

— Sente-se — disse o inseto, apontando para uma cadeira branca de vinil —, e eu prepararei as memórias para o senhor.

Morfeu jogou as asas para o lado, sentou-se e deu uma tragada no narguilé fornecido por seu anfitrião como cortesia. O tabaco doce e fresco passou ardendo pela sua garganta. Ele soprou baforadas de fumaça no ar, formando com elas o rosto de Alyssa. Era fácil imaginar o modo como seus olhos sempre se cobriam de um azul gélido quando ela o via, cheios de excitação e temor ao mesmo tempo. Adorava isso nela: a sagacidade de seus instintos intraterrenos alertando-a a não confiar nele, suavizada pelas emoções humanas forjadas durante a infância que passaram juntos.

Antes dela, Morfeu levara a vida em solidão, sem nunca precisar de ninguém. Ele não fazia a menor ideia do feitiço que ela lhe lançara. Ela era mais que uma decepção, sempre jurando devoção ao lado errado. Seu encanto, porém, era inegável. Principalmente quando ela o desafiava ou o encarava com sua indignação de justiceira, o que a deixava com os lábios deliciosamente posicionados quando rangia os dentes.

Morfeu colocou o narguilé de lado, embora a sensação de queimação em seu peito não tivesse nenhuma relação com o fumo. Alyssa era a única que poderia aplacar o incêndio que havia ali, pois fora ela quem havia atiçado aquelas chamas.

Os dois tinham passado cinco anos juntos — como amigos de infância —, até que a mãe dela a arrancou dele, Alyssa sangrando e ferida, e ele ficara se remoendo de remorso e com culpa por causa de um juramento imprudente que havia feito, no qual prometeu se manter longe dela.

Manter-se afastado da amiga fez com que ele sentisse o gosto da solidão pela primeira vez. Mesmo todos os anos de claustrofobia que ele passara aprisionado em um casulo antes de encontrá-la... nem mesmo eles o prepararam para o sofrimento da ausência dela.

Então, por fim, ela havia voltado para ele, fazendo-o reviver todos os antigos sentimentos que ele pensava ter dominado. Daquela vez, também, tudo foi muito rápido. Ela partira novamente, por escolha própria. Restaram a dor e a solidão excruciantes. Debilitantes.

Havia apenas seis meses que ela partira do País das Maravilhas, e ele não compreendia este vazio corrosivo que só poderia ser preenchido pelo toque dela, por seu perfume, sua voz. As solitárias criaturas mágicas não ligavam para essas bobagens; não precisavam de companhia, abominavam a bagagem emocional. Sua afeição e lealdade pertenciam ao agreste País das Maravilhas e a nada nem a ninguém mais.

Então o que ela havia feito para mudar isso?

Ultimamente, cada vez que ele via o próprio reflexo, não mais reconhecia a Mariposa no espelho. Estava incompleto, enfraquecido; e menosprezava isso.

O menosprezo era ainda maior porque ele havia se esforçado tanto para cortejá-la, enquanto ela oferecia seu afeto a um reles mortal.

Morfeu suprimiu um rosnado. Ele não conseguia compreender a sorte de Jebediah, como um humano podia ter tanto poder sobre uma rainha intraterrena. Como um simples rapaz era capaz de controlar um coração real e mestiço tão multifacetado, um espírito propenso ao pandemônio e à loucura. Jebediah puxava Alyssa para baixo, acorrentando-a ao tédio e à banalidade do reino humano.

Ela precisa ser libertada.

Morfeu havia considerado a possibilidade de matar seu rival, mas Alyssa jamais o perdoaria. Não. Chegara o momento de tomar medidas criativas.

Se Morfeu soubesse no que Jebediah havia pensando durante sua jornada pelo País das Maravilhas — todos os momentos em que ele se sentiu mais aterrorizado, mais desanimado —, conheceria as fraquezas e as forças do mortal, intimamente. Ele saberia como enfraquecer Jebediah, contrapondo-o a si mesmo.

Essas fraquezas o derrotariam melhor do que Morfeu o faria. E depois, quando tivesse destruído a confiança de Alyssa em seu cavaleiro mortal, Morfeu estaria lá para confortá-la e conquistá-la.

Voltaria a ouvir a risada de Alyssa do modo como ela ria quando os dois eram crianças, e teria de novo a oportunidade de ser presenteado com o seu sorriso deslumbrante.

Ele voltaria a ser completo.

— Por aqui, por favor — pediu o besouro para que Morfeu o seguisse.

Morfeu tirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo. Quando o inseto abriu a porta para um compartimento de memórias sem janelas, o cheiro de amêndoas vindo de uma travessa de biscoitos de luar fresquinhos que estava em uma mesa de canto se espargiu no ar. Havia uma chaise-longue na cor creme colocada contra a parede, e uma ornamentada luminária de piso feita de latão iluminava o espaço com uma luz discreta.

Morfeu concentrou-se no pequeno palco do outro lado do compartimento. Sentiu o coração palpitar de ansiedade num ritmo profundo e firme. As cortinas de veludo vermelho aguardavam o momento de se abrirem para mostrar as memórias de Jebediah na tela prateada.

— Como o senhor entrará na cabeça do rapaz para visitar suas lembranças perdidas, sou obrigado pelas normas a avisar-lhe que... as emoções humanas podem ser muito poderosas... podem nos fazer ver as coisas sob uma perspectiva totalmente diferente — advertiu o besouro.

— Estou contando com isso. — Morfeu deu um sorriso afetado. — Conhece aquele ditado sobre amigos e inimigos?

O besouro coçou a pele enrugada.

— Hum... mantenha seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda?

Morfeu acomodou-se na cadeira estofada e alisou a calça risca de giz ao cruzar as pernas apoiando um tornozelo sobre o outro.

— Melhor ainda é se colocar no lugar de seu inimigo. É a melhor maneira de controlar seus passos. Ou de apagá-los, caso tenha a oportunidade.

O besouro, voltando a tremer, esticou o braço fininho e apertou um botão na parede. As cortinas do palco se abriram, revelando uma tela de cinema.

— Imagine o rosto do rapaz enquanto olha para a tela em branco e vivenciará o passado dele como se fosse hoje.

As palavras do besouro eram ensaiadas, até mesmo mecânicas, mas a pulsação de Morfeu ficou acelerada. Ele esperou o besouro desligar a luz. Assim que o inseto saiu e fechou a porta, o corpo de Morfeu desmembrou-se nas juntas, flutuando pela escuridão como se fosse feito de partículas de pó. Todos os seus pedaços se uniram novamente na tela prateada, em cores vivas e cinematográficas, até que ele entrou na cabeça de Jebediah, apropriando-se do seu corpo, sentindo suas emoções.

Naquele momento, Morfeu entregou-se à experiência e, pela primeira vez na vida, passou a ver as coisas como um humano.


Capítulo 2


Primeira Lembrança —
Kriptonita

Jeb acordou em uma cama suspensa.

Estava nu. Por que estava nu?

Antes que esse fato pudesse ser totalmente registrado, trinta fadas ou mais, do tamanho de mariposas, surgiram do ar, acariciando cada parte do seu corpo e sussurrando-lhe. Ele tentou mexer os braços e pernas. As asas das fadas — que batiam na velocidade das asas de um beija-flor — liberavam partículas parecidas com as pétalas delicadas de um dente-de-leão, que, de alguma maneira, o imobilizaram. As sementes exalavam um perfume de canela e baunilha que foi inundando sua consciência, até que a sala ficou totalmente fora de foco.

Quando a névoa se dissipou, ele estava em sua cama, em casa. A noite adentrava pela janela e Taelor estava em cima dele, seminua. A unhas pintadas à moda francesinha percorreram os pelos de seu peito e abdômen, dirigindo-se ao cós de sua calça jeans.

Aquilo não podia ser verdade. Taelor e ele tinham brigado antes do baile de formatura, haviam terminado tudo.

Com delicadeza, ele a virou, colocando-a debaixo dele, e apoiou-se nos cotovelos, afastando o cabelo do rosto dela. Mas não foram os olhos de Taelor que encontraram os dele. Foram os olhos gélidos e azuis de Alyssa — encarando-o com um ar de admiração e inocência. Os dedos dele pareciam grandes e desajeitados nas têmporas dela.

A Al na cama dele?

Não. Isso não podia acontecer. Alyssa nem havia beijado homem algum. E Jeb nunca tinha sido o primeiro de nenhuma garota.

A Al era intocável para ele. Ela já passara por muitos episódios turbulentos em sua vida. E ele não era exatamente um exemplo de estabilidade.

Ele tirou as mãos dela e ficou de joelhos.

— Jeb, você não me quer? — perguntou Al, passando a mão no peito dele.

Ele não conseguiu responder. Seus dedos coçavam e pareciam esticar-se, como se estivessem crescendo. Ele ergueu as mãos sob o luar, observando, horrorizado, seus dedos caírem, um por um, e se metamorfosearem em lagartas. As lagartas, então, avançaram lentamente na direção de Alyssa, e ele não conseguia fazer nada para detê-las. Jeb caiu de costas na cama, com as mãos sobre o rosto, olhando fixa e incredulamente para os tocos crus e cheios de sangue onde antes estavam seus dedos.

Gritando, Alyssa tentou sair do colchão, mas as lagartas a pegaram, arrastando-se por sua pele e tecendo teias, até que restou somente uma forma se agitando dentro de um casulo.

— Soltem ela! — gritou Jeb. Uma luz lampejou em seus olhos, e então ele já não mais se encontrava em sua cama. Estava em algum lugar da mansão de Morfeu, e as fadas percorriam sua pele, hipnotizando-o... usando algum tipo de feromônio alucinógeno.

Elas estão me segurando aqui para que o Morfeu fique sozinho com a Al. No instante em que a realidade foi percebida, o feitiço foi quebrado.

Jeb pulou rápido da cama suspensa e saiu da nuvem de sedução de suas captoras. Pegando um travesseiro, ele se cobriu.

— Quero alguma coisa para vestir!

As fadas flutuavam no ar, seus olhos de libélula observando-o.

Havia várias cestas douradas no chão perto dos pés dele. Jeb chutou uma. Suas pequenas captoras se espalharam pelo ar, em histeria coletiva.

Gossamer, a fada predileta de Morfeu, designou cinco delas para pegar os morangos que rolaram. Elas contaram as frutas uma por uma e as colocaram de volta na cesta.

Jeb chutou outra cesta cheia de contas de óleo perfumado. Outras cinco fadas lançaram-se ao chão para pegar tudo, parando para contar cada conta antes de guardá-la.

Em pouco tempo, ela já havia chutado todas as cestas. Algumas estavam cheias de pétalas de flores, outras continham loção, outras, ainda, uvas. Ao virá-las, ele conseguira manter a maioria de suas captoras preocupada. Apenas Gossamer e outras duas ainda pairavam em torno de sua cabeça.

— Me deem algo para vestir — repetiu ele —, ou vou começar a tirar as plumas dos travesseiros. Vocês não estão em número suficiente para limpar uma sujeira dessas.

— Ele não está respondendo ao nosso feitiço — murmurou uma das fadas para Gossamer, com seus olhos de inseto voltados para Jeb.

— E nem à nossa magia — acrescentou a outra, amuada. — Eu conjurei uma moça das lembranças dele, mas seu subconsciente conseguiu escapar.

— Sim, este aqui é, sem dúvida, um desafio — concordou Gossamer, numa voz que tilintava feito um sino. Depois de mandar as outras duas fadas recolherem o conteúdo da última cesta, ela ofereceu a Jeb um robe de seda.

Ele se virou de costas e enfiou a peça de roupa no corpo, assimilando os arredores.

Morfeu o colocara em uma prisão opulenta. A sala era toda revestida de piso de mármore preto que refletia a luz laranja dos candelabros. Ele já estava bem familiarizado com o ponto focal: um colchão circular balançante preso por correntes douradas no centro do teto côncavo. Peles e almofadas forravam a cama, perfumadas por pétalas de rosa.

Apesar de todos esses confortos, faltava a essa sala um detalhe muito importante: uma saída. Não havia portas, janelas ou qualquer outra abertura à vista.

Paredes convexas — pintadas em cor de lavanda escura — eram cobertas por parreiras que se estendiam por toda a sua circunferência, entrando e saindo do reboco e se entrelaçando nos candelabros acesos. Frutas brotavam das vinhas. De quando em quando, as uvas explodiam espontaneamente e pingavam seu suco dentro de bacias de pedra posicionadas ao longo das paredes para apanhá-lo. E, delas, um líquido viscoso e purpúreo era drenado para dentro de fontes — um abastecimento constante de vinho de fadas com aroma adocicado.

Ele se lembrava vagamente de ter provado o vinho ao chegar. Desconfiado, tentou resistir, mas estava com muita sede. Era impossível saber que tipo de magia havia no líquido.

Jeb gemeu e esfregou o rosto. Quanto tempo teria passado bêbado e enfeitiçado? Ele acabara sendo inútil para Alyssa, assim como o pai dele teria sido.

— Onde ela está? — perguntou ele, ignorando a harpa que tocava sozinha, a qual, na tentativa de abafar-lhe a voz, começou a tocar mais alto. — Me diga o que Morfeu está fazendo com ela.

Minúscula, reluzente e confiante, Gossamer acomodou-se em uma almofada de cetim, passou a mão pelo colchão ao seu lado e cruzou as pernas apoiando os tornozelos verdes um sobre o outro.

— Talvez você não perceba o que nós, as fadas, somos capazes de fazer. Temos séculos de prática. Podemos lhe mostrar um êxtase com o qual você sempre sonhou.

Jeb a olhou de cima a baixo e ajustou a faixa de cetim em sua cintura.

— Me desculpe, não sonho com coisas verdes.

Ele encontrou a mochila de Alyssa debaixo da cama e a puxou. Jeb havia notado alguma coisa dentro dela anteriormente, quando a vasculhara em busca de outra coisa: uma pulseira de ferro forjado que ela provavelmente havia enfiado na mochila quando ainda estava na escola e ficara esquecida ali. Ele havia pesquisado muito as fadas quando começou a pintá-las, e sabia que elas não gostavam de ferro — se a lenda fosse verdadeira.

Jeb jogou a mochila sobre o colchão. Os cobertores de pele encresparam-se feito uma onda gigante e derrubaram Gossamer de sua almofada. Acionando suas asas com rapidez, ela pousou sobre o ombro de Jeb.

— Se é Alyssa que inspira suas paixões, podemos realizar essa fantasia. — Gossamer bateu palmas. As outras largaram seus postos de limpeza e se apressaram a formar um círculo em volta de Jeb. Uma onda de enjoo lhe invadiu o estômago quando todas as fadas assumiram a aparência de Alyssa — réplicas perfeitas em miniatura, com cabelo platinado e roupas sensuais de skatista. Elas liberaram novamente suas sementes de feromônios, cegando-o com o perfume de Alyssa, doce como néctar.

Brandindo uma almofada, Jeb rompeu a ilusão e dissipou as sementes. As fadas saíram aos guinchos e foram se esconder nas vinhas das paredes, com seus corpos brilhantes parecendo cordões de luz branca e piscante.

Gossamer pairou no ar acima dele, ralhando.

— Já chega! Informem o nosso mestre de que o mortal é leal à garota. Não podemos seduzi-lo para que volte ao seu mundo sem ela.

Jeb ficou resmungando, enquanto as fadas se esgueiravam por buracos do tamanho de ervilhas, na parede onde as vinhas entravam e saíam. Se ao menos ele pudesse passar por aquelas pequenas saídas também... Chegou a pensar em usar a poção encolhedora que ele e Alyssa tinham encontrado quando chegaram ao País das Maravilhas, mas ela o deixaria tão pequeno quanto suas captoras, e ele ficaria indefeso contra Morfeu. A impotência lhe fervia as entranhas, tão profunda como a que ele sentia quando era criança, escondendo-se em um armário até que passassem os ataques de fúria do pai.

Ele cerrou os dentes. Tinha de haver uma passagem escondida em algum lugar por trás das vinhas. Elas o tinham trazido para cá; devia haver uma saída.

Subitamente, ele deu um pulo para a parede mais próxima e arrancou algumas vinhas, lançando-as para todos os lados. O diminuto guincho de surpresa de Gossamer não o intimidou.

Uvas explodiam em suas mãos, libertando seu aroma potente e denso. As plantas viscosas cortavam seus dedos feito arames. Jeb aceitou a dor. Era algo que podia controlar — diferentemente do tormento dos cigarros acesos que seu pai lhe enfiava na pele, ou dos punhos que lhe socavam o rosto e o estômago. O cheiro da nicotina, o gosto de sangue. Imaginação ou não, eles alimentaram o selvagem em sua alma.

Ele mergulhou numa espiral vermelha de fúria e devastou a sala. Quando finalmente voltou a si e recostou-se na cama, ficou chocado com os estragos que causara.

Arfando e suando, ele cuidou dos cortes nas junções dos dedos e vasculhou os destroços à procura de Gossamer. Será que a tinha machucado? Se sim, talvez fosse mesmo filho de seu pai.

Jeb cerrou os punhos, descontente consigo mesmo.

— Gossamer? — Ele se encolheu ao ouvir a própria voz, rude e inflamada de emoção.

Um rufar de asas mexeu uma das correntes que prendiam a cama ao teto. Ele respirou, aliviado ao ver a fada. Embora parecesse meio idiota importar-se, já que estava prestes a usar a pulseira de ferro de Alyssa contra ela.

Gossamer pousou no chão ao lado das vinhas rasgadas e das cestas que ele tinha derrubado de novo; seus ombros estavam caídos, em demonstração de derrota. Provavelmente, ela não sabia por onde começar a calcular todos os conteúdos derramados.

Jeb começou a vasculhar a mochila. A harpa havia parado de tocar, e o silêncio o incomodava feito o ruído dos ponteiros de um relógio. Cada segundo que ele passava longe de Alyssa deixava-a mais vulnerável a Morfeu.

Seus dedos finalmente encontraram um metal frio. Ele jogou a pulseira de ferro na direção de Gossamer, mas mantendo alguma distância, na esperança de enfraquecê-la sem machucá-la.

Ela gritou e lançou-se ao ar, se debatendo.

— Por favor... afaste isso.

— Não até eu conseguir algumas respostas. — Jeb segurou uma das asas dela entre o indicador e o polegar, levando-a para a cama e sentando-a sobre uma almofada, tomando o cuidado de manter a pulseira próxima o bastante para intimidá-la. — Basta cooperar, que eu não vou machucá-la.

— Já está machucando. — Ela gemeu, com a pele esverdeada já tingida de turquesa. — Não posso usar minha magia... — Gossamer bateu as mãos no próprio rosto. — Vai me deixar... horrível. Abster-me. — Sua voz ficou mais calma, como se estivesse falando consigo mesma, e, rangendo os dentes, continuou: — Abster-me até a ameaça de dor e contaminação passar.

Jeb franziu a testa.

— Então o ferro vira seus poderes contra vocês? É a arma perfeita para usar contra seu chefe.

— Um objeto desse tamanho... só funciona com os menores de nossa espécie.

Jeb curvou-se, aproximando ainda mais a pulseira dela.

— Muito bem, então considere isso um detector de mentiras. Toda vez que eu perceber que você está fingindo, aproximarei o ferro. Onde está a Al, e o que o seu chefe repugnante está fazendo com ela?

A cor da fada mudou para um verde azulado. Ela rolou sobre a almofada, as asas lutando para bater. Gossamer as puxou por cima dos ombros até a altura do peito, cruzando-as, como se quisesse conter a sua magia.

— A sua Alyssa está confortável e sendo bem cuidada. Morfeu está zelando pelo sono dela...

Jeb soltou um grunhido. Na noite passada, ele havia zelado pelo sono dela, no barco. Mudara a posição do corpo dela para que pudesse olhá-la de frente e fazer uma promessa, mesmo que Alyssa estivesse sonolenta demais para ouvi-lo. Jeb havia prometido que a protegeria, que a levaria para casa a salvo. E não iria quebrar sua promessa agora.

Ele precisou resistir ao desejo de destruir a sala novamente.

— Como eu saio daqui?

— Apenas o Morfeu tem os meios para abrir a passagem.

Jeb inclinou-se para a frente, com o nariz quase tocando o rosto de Gossamer enquanto segurava a pulseira sobre a cabeça dela, como se fosse um objeto corrosivo.

— Está dizendo que estou preso aqui até que aquela barata de asas decida me soltar? Ele vai fazer a Al enfrentar o País das Maravilhas sozinha?

Ela choramingou, levando a mão à testa.

— Não. Como você provou ser leal, ele permitirá que a acompanhe em sua jornada. Você comparecerá ao banquete e traçarão os planos.

— Banquete?

— A apresentação de Alyssa. Morfeu deseja exibi-la aos outros.

— Que outros?

Gossamer deixou-se cair, formando um monte de cor púrpura e em seguida saiu depressa de seu poleiro. Ela puxou alguma coisa de dentro da almofada — um desenho de Al que Jeb não se lembrava de ter feito. Lentamente, Gossamer levantou os joelhos e estudou as linhas.

— Você fez isto enquanto estava sob nosso feitiço. Tem poder dentro de seu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Você captou o interior de Alyssa com perfeição.

— Esse desenho é pura fantasia — resmungou Jeb. Ele colocou a pulseira de ferro sobre o papel ao lado de Gossamer.

Ela rolou para o meio do desenho, tentando escapar do metal.

— Há mais verdade nesta aparência de Alyssa do que em qualquer coisa que possam me forçar a falar.

Jeb puxou o desenho, fazendo Gossamer e a pulseira de ferro rolarem por cima da pelugem. Ele estendeu o desenho sobre uma almofada e percorreu as linhas de carvão com o dedo. A imagem era igual a todos os outros desenhos de fadas que ele havia feito de Al ao longo dos anos, mas, ainda assim, não poderia ser mais diferente da garota que ele conhecia.

Ele a desenhara com o cabelo preso no alto da cabeça. Al nunca usava o cabelo daquele jeito. Um vestido preto de alcinhas realçava suas curvas. Nem morta ela seria vista em um vestido tão convencional. E a única coisa que se parecia com ela eram as luvas de renda preta sem dedos que cobriam as cicatrizes da palma das mãos.

Fora isso, o desenho era uma fantasia completa. Sentada em um banco de jardim, Al segurava uma rosa. Rímel e lágrimas escorriam em curvas graciosas por seu rosto. Pensando bem, se parecia com a maquiagem dela na última vez que ele a vira.

Ele ainda não conseguia entender por que, depois de quase se afogar em um oceano de lágrimas, o rímel de Alyssa não havia borrado. Apertando os olhos, ele estudou o par de asas translúcidas abertas nas costas dela. As membranas finas tremeluziam sob o único raio de sol que atravessava as nuvens. As asas faziam com que se sentisse estranho, mas Jeb não conseguia perceber a razão.

Talvez porque elas lembrassem as asas de Morfeu, embora tivessem uma cor totalmente diferente. As têmporas de Jeb latejaram. Nada poderia ser pior do que Alyssa sozinha com aquele homem-inseto. Aquele doido tinha algum tipo de poder sobre ela, havia entrado em sua cabeça quando ela era pequena. O subconsciente pode ser muito poderoso, e se Morfeu ainda tivesse acesso aos sonhos da Al...

— Como posso derrotá-lo? — perguntou Jeb com um nó na garganta.

Os olhos bulbosos de Gossamer voltaram-se para os dele. Ela estava fraca demais para se arrastar para longe da pulseira, que agora roçava sua coxa.

— Ele não será derrotado. Há anos ele espera por este dia.

Jeb fez cara feia.

— Muito bem, ele é o Super-Homem. Mas todo mundo tem a sua kriptonita. Algo de que sente medo.

— O confinamento — Gossamer deixou escapar, e, diante da confissão, seu corpo escureceu até ficar da cor de um machucado.

— Como assim?

Gossamer levou o dorso da mão à testa.

— Por favor... está muito perto... o ferro... está drenando minha energia.

Jeb caiu de costas no colchão e afastou a pulseira da fada. Equilibrando-o entre os dedos, ele estudou o ferro sob a luz das velas. A pulseira o lembrou de seu piercing de ferro e da primeira vez que Al o vira, sua reação de entusiasmo. Ela havia implorado para tocá-lo e fez várias perguntas sobre o processo de colocação de um piercing. Seu entusiasmo e ingenuidade, suas inseguranças... Morfeu não hesitaria em usar qualquer uma dessas coisas, ou todas elas, para manipulá-la.

Jeb precisava convencer Al a sair do País das Maravilhas, a esquecer esta jornada para quebrar a maldição de sua família, a qualquer custo. Algo muito tenebroso estava à espreita, bem perto dela, como no sonho que ele tivera. E Jeb podia sentir que, fosse lá o que estivesse para acontecer, estava se aproximando.

— Então vocês querem que ela conserte os erros da Alice original, certo? E se eu consertá-los? — Jeb tentou raciocinar. — Vocês enviam a Al para casa e deixam que eu cuide de tudo?

— Impossível — respondeu Gossamer num sussurro arfante, voltando à cor verde-clara. Engatinhando na direção do desenho, ela passou a pequenina mão sobre a rosa. — Ela já passou nos testes e provou ser a escolhida.

— Testes? Está se referindo a encontrar a toca do coelho para o País das Maravilhas e secar o oceano de lágrimas?

Gossamer fez que sim.

— Mas eu ajudei a fazer isso.

— É por ela que ele esperava. Não por você.

Jeb levantou a pulseira de ferro uma última vez.

— O que ele realmente quer dela?

Antes que Gossamer pudesse responder, o teto abobadado começou a tremer. Pedaços espessos de gesso despencaram no solo. Jeb colocou uma almofada sobre a cabeça e uma mão sobre Gossamer para protegê-la dos detritos. O teto se abriu nas emendas, fazendo a cama balançar e puxando as correntes em direções opostas, de modo que o colchão subiu vários centímetros.

Depois que os tremores passaram, Jeb olhou para cima. A silhueta escura de Morfeu apareceu em uma abertura no teto.

Sutileza era um dos últimos itens na lista de prioridades desse cara.

— Já te disseram que você é muito escandaloso? — rosnou Jeb.

Morfeu inclinou-se para olhar a sala destruída.

— Já te disseram que você é um péssimo hóspede?

Parte da responsabilidade daquela bagunça era da grandiosa entrada de seu aprisionador, mas Jeb mordeu a língua, não querendo arriscar sua oportunidade de ver Al.

Morfeu relaxou.

— Alyssa o aguarda na sala dos espelhos. E, por favor, tome um banho e faça a barba. Você será apresentado aos nossos convidados do banquete como um cavaleiro élfico, então precisa parecer como tal. Gossamer lhe dirá como se comportar adequadamente. — Morfeu largou algumas roupas e botas, que fizeram um ruído ao atingir o chão. — Aí está seu uniforme. — Ele fez uma pausa e apontou para as correntes. — Que pena que você não tenha asas e nenhuma magia intraterrena. Terá que sair daí sozinho. E posso assegurar que não será nada fácil.

Os músculos de Jeb se retesaram quando Morfeu sumiu de vista; ele sabia que o aviso se referia a muito mais do que sair daquela sala.


Capítulo 3


Segunda Lembrança —
Carnificina

Jeb limpou o suor da testa. Morfeu estava certo. A escalada para sair de sua prisão dourada seria mesmo difícil. Mas isso não significava nada se comparado à jornada pelo País das Maravilhas que ele e Alyssa haviam cumprido desde então. O dia inteiro tinha sido um desafio atrás do outro, com o perigo e a morte aguardando em cada esquina. E agora ele havia perdido a Al. Os dois tinham se separado pouco antes de ela completar o teste final. Al ficou enfrentando as irmãs Twid no cemitério, sozinha, e ele ficou preso aqui no fundo do abismo.

A noite já havia caído quando ele atingiu o solo, e foi uma transição extremamente rápida, como se alguém tivesse apagado a luz.

Jeb sentiu os músculos do corpo endurecerem. Odiava pensar na Al sozinha naquele mundo insano depois de anoitecer. E, mais uma vez, ela provou ser forte o bastante para encarar quase tudo. No final, foi ela quem o salvara mais de uma vez...

Ele se lembrou dela pairando acima dele — um brilho selvagem, flutuando com a graça de uma libélula. Ver as asas dela brotarem tinha sido ao mesmo tempo assustador e milagroso. Jeb mal conseguiu respirar enquanto observava a transformação.

Falando sinceramente, Jeb ainda não tinha recuperado o fôlego de quando ela o levara para dentro do abismo e ele gritara: “Você é minha corda de segurança!”, antes de ela subir ainda mais alto para o céu. Ele não deveria ter colocado tanta pressão sobre ela para salvá-lo; tinha que ter feito o que conseguisse para sair de lá por si próprio e encontrá-la no meio do caminho. Do contrário, ela nunca se perdoaria se algo saísse errado.

A carcaça de um pássaro Jubjub havia amortecido sua queda. Ele limpou nas calças a gosma pegajosa que tinha entre os dedos, torcendo o nariz diante dos restos malcheirosos do exército que os perseguia e acabou caindo no abismo. Jeb procurou ficar de pé na escuridão. Suas botas produziam sons de sucção toda vez que ele pisava. Ele nunca tivera fricotes; qualquer aversão a sangue e violência havia sido expurgada — uma dessensibilização gradual que era reforçada sempre que ele se olhava no espelho e via suas bochechas e olhos inchados, grandes e cheios de sangue, que nem um bife malpassado.

Contudo, sem uma centelha de luz para guiá-lo, a carnificina aos seus pés parecia mais viva do que morta. Sua imaginação trazia arquivos de todos os tipos, de filmes de zumbis a demônios e assombrações. Seu estômago queimava de náusea. Jeb sentiu-se aliviado ao perceber que os assobios que ouvia dentro do abismo eram produzidos pelo vento. E não havia ruídos de correntes fantasmagóricas nem gemidos de mortos-vivos.

Além disso, seu verdadeiro inimigo era o tempo, mais perigoso do que qualquer coisa que pudesse imaginar. A Al ainda tinha de cumprir a última tarefa no cemitério. E, depois, eles ainda tinham de encontrar um ao outro.

Ele se forçou a avançar às cegas até sua mão alcançar a parede do abismo. Antes de descer totalmente, Jeb viu que a mochila de Al tinha ficado presa em uma pedra saliente próxima ao chão. Se conseguisse encontrá-la, poderia contar com uma lanterna. Tateando a superfície áspera da pedra, ele levantava seus pés por sobre os obstáculos, tocando os cadáveres com os dedos dos pés para mensurar a largura de cada passo.

Com os cotovelos esbarrando nas pedras, Jeb observou o céu. Um pequeno aglomerado de estrelas brigava com as nuvens, aparecendo para iluminar levemente o lugar ao seu redor, tornando possível que ele continuasse sem esbarrar no falecido exército da rainha. Uma brisa úmida levantava a poeira feito pequenos tornados. Logo choveria. E, neste lugar, era possível que, literalmente, chovesse a cântaros — daqueles temporais ruidosos, torrenciais.

Um calafrio que não tinha nada a ver com a tempestade iminente lhe percorreu a espinha e obscureceu qualquer sentimento bom que ele poderia ter encontrado naquele pensamento. Qual era a razão de todos esses “testes” de Morfeu? Toda vez que a Al conseguia se sair bem em um desses testes, sua forma intraterrena tornava-se mais acentuada. Será que o intuito era transformá-la completamente para que não pudesse mais voltar ao reino humano?

Fios de cabelo caíram sobre seu rosto, e Jeb os afastou.

Morfeu afirmara que tudo o que ele mais queria era que Alyssa voltasse ao seu lugar. Sua casa. Jeb esperava que ele estivesse se referindo ao mundo deles, o reino humano. Mas e se a Al não estivesse sob nenhuma maldição, no final das contas?

Ele se lembrou de sua pesquisa sobre fadas, na qual descobriu que elas eram criaturas chamadas de changelings — as crias das fadas secretamente deixadas no lugar de bebês humanos roubados. Alice Liddell, a tataravó de Al, teria sido uma changeling? Quem sabe foi por isso que ela encontrou, quando criança, a toca do coelho — por instinto. Isso significaria, de alguma estranha maneira, que aqui era a casa de Al.

Jeb parou com as especulações. Elas só levavam a mais dúvidas.

Ele tinha encontrado a mochila. Abriu-a, tirou a lanterna e colocou a mochila nos ombros.

Ao fechar o zíper, ele acendeu a lanterna e percorreu o cenário com fachos de luz. Os guardas destruídos pareciam cartas de baralho amarrotadas. Brinquedos descartados. Até mesmo os pássaros Jubjub poderiam se passar por brinquedos infantis com o enchimento extrapolando para fora.

Com a mochila ajeitada no corpo, Jeb percorreu a circunferência do abismo sem encontrar nenhuma abertura. Pedras que haviam caído bloqueavam qualquer possível passagem que ele tentasse. Era como se ele tivesse caído dentro de um tubo gigante. Não havia nenhuma outra saída a não ser subindo.

Jeb apontou a luz para o gramado a cerca de vinte andares acima — a clareira onde Alyssa havia pousado. Estava determinado a encontrá-la antes de Morfeu, mesmo que tivesse de escalar as pedras pontiagudas no escuro e sem uma corda de segurança.

Ele havia acabado de apoiar a lanterna entre os lábios e escorar o pé em um rochedo para tomar impulso quando ouviu uma voz com um sotaque britânico familiar.

— Ao trabalho, homens. Precisamos contar todos antes que as irmãs Twid enviem sua brigada de duendes para recolher os mortos.

Morfeu.

Jeb desceu e quase colidiu com o intraterreno alado, que tinha aparecido do nada, como se tivesse aberto um zíper no ar e passado por ele. Cavaleiros élficos faziam fila atrás dele, entre vinte e trinta, carregando lanternas e usando o mesmo uniforme de Jeb, só que menos esfarrapado e sujo. Eles passaram sem nem olhar para Jeb, extremamente concentrados na contagem dos corpos.

— Ora, ora, pseudocavaleiro. — Morfeu riu com desdém.

Cada pedacinho de Jeb ansiava por apagar aquele sorriso arrogante e socar aquele rosto. Mas ele estava em desvantagem. Se quisesse sair desse fosso para encontrar a Al, teria de bancar o bonzinho.

— Detesto dizer isso, mas é bom vê-lo, senhor Mariposa. — Jeb guardou a lanterna. — Vejo que pegou o espelho para vir aqui.

— Eu só viajo de espelho. — Morfeu ergueu a lanterna e examinou as roupas esfarrapadas de Jeb. — Tem a vantagem de não estragar tanto as roupas. E vou lhe contar outro segredo: se eu mantiver as asas daquele lado do plano — ele apontou com o polegar para as suas costas, onde metade de seus apêndices não era visível —, a abertura fica acessível para nossa viagem de volta.

Jeb forçou um sorriso.

— É bom saber.

Perfeito, na verdade. Ele poderia voltar com a trupe de elfos e depois tomar o expresso na sala de espelhos para encontrar a Al. Mas primeiro teria de distrair Morfeu, baixar a guarda dele. Jeb perguntou:

— Esse chapéu é novo?

Morfeu ficou radiante.

— Que gentil de sua parte ter notado. É meu chapéu da Insurreição. Ainda não havia tido a oportunidade de usá-lo antes. — Com o dedo, bateu em várias mariposas que formavam a guirlanda na aba do chapéu e depois se inclinou e fez conchinha no ouvido de Jeb para sussurrar um segredo. — As asas vermelhas representam derramamento de sangue.

— Ãh-hã. — Jeb cerrou a mandíbula diante do indesejado bafo quente no lóbulo de sua orelha. Depois, olhou para os cavaleiros, discerníveis somente por suas lanternas flutuando na escuridão atrás dele. — Então, está planejando um motim com o exército da rainha de Marfim?

Morfeu apertou o ombro de Jeb.

— Eu sempre soube que era mais esperto do que os mortais comuns.

Os músculos de Jeb contraíram-se ao contato.

— O que significa que você estava mandando a Al para uma missão absurda só para se divertir.

Cuidado. Jeb não poderia deixar sua desconfiança transparecer. Pelo menos não ainda. Em vez disso, ele se inclinou para ajustar os cadarços das botas e respirou fundo antes de se reerguer.

Morfeu apertou sua gravata vermelha.

— Todas as tarefas que pedi à Alyssa tinham um propósito. — Ele deu um passo para o lado quando alguém mais passou pelo portal do espelho: um esqueleto do tamanho de um duende, com antenas e olhos cor-de-rosa brilhantes, metido em um colete vermelho.

— Rábido Branco? — sussurrou Jeb, incrédulo. Nada daquilo fazia sentido. O Rábido era da corte Vermelha. Por que estava aqui?

— Qual é o relatório? — Morfeu agachou-se para ficar na altura do Rábido, ainda mantendo as asas enfiadas no portal invisível do espelho.

O pequeno intraterreno apertou as mãos enluvadas e olhou para Jeb, sua cabeça careca refletindo o brilho suave da lanterna de Morfeu.

— Um de nós, você é?

Morfeu sorriu e respondeu por Jeb.

— É claro que é. Ele ajudou a nossa Alyssa a conquistar o grande e cruel exército Vermelho, não lembra?

Coçando a antena esquerda, o Rábido fez que sim.

— Rainha Grenadine neutralizada está. Nos portões da frente e de trás, o castelo guardado está pelos regimentos três e sete. Flanqueando a rainha, um círculo de cinco. Sem esquecer da coroa e seu guardador.

— Ah, sim. O bandersnatch. Bem, quando Alyssa tiver trazido seu prêmio do cemitério das irmãs Twid, nada mais terei a temer daquela besta medonha. Fez um bom trabalho, senhor Branco. — Morfeu deu uma batidinha na aba do chapéu.

O Rábido bateu os tornozelos cadavéricos um no outro, depois se curvou e lançou um olhar penetrante para Jeb, antes de pular novamente para o portal.

— Ele é o seu espião — murmurou Jeb, sentindo-se idiota por não ter adivinhado antes.

— Sim.

— Então todas as vezes que o esqueletinho ameaçou a Al, matando-a de susto, era só para manter a aparência de lealdade à Rainha Grenadine?

— Os melhores espiões são aqueles que jogam dos dois lados com o mesmo vigor.

A distância, Jeb avaliou as lanternas que balançavam. O tilintar dos cabos de metal e o pisar de botas eclipsavam o suave lamento do vento.

— Certo. Já que estamos abrindo o jogo...

O comentário de Morfeu o interrompeu.

— Que trocadilho mais delicioso, considerando a posição em que estamos. — A lanterna dele apontou para os cadáveres dos guardas de carta.

Jeb ignorou a piada mórbida.

— Eu ia perguntar por que o Rábido se voltou contra a corte Vermelha.

— Ele era o conselheiro real da Rainha Vermelha quando Alice nos visitou. Deseja ver a verdadeira herdeira no trono tanto quanto eu.

— Verdadeira herdeira. — Jeb chutou um punhado de terra com uma bota, sentindo o peito apertado. — Então tudo isso é para destronar Grenadine e abrir caminho para uma nova rainha.

— Sim. — A lanterna iluminou o rosto de Morfeu, numa expressão de indulgência sonhadora. — E estamos muito perto. Em breve, ela ocupará o trono que é e sempre foi o lugar dela.

O lugar dela. Uma hipótese se formava na mente de Jeb, uma ideia ultrajante e incompreensível, mas, de qualquer maneira, a resposta óbvia para todas as dúvidas que ele vinha remoendo. Todas as dúvidas, exceto uma...

— Mas, primeiro — interviu Morfeu, varrendo o ar com um gesto desdenhoso —, temos que ter certeza do que iremos enfrentar quando atacarmos o castelo. Você e Alyssa conseguiram eliminar boa parte da oposição com seus fantásticos movimentos de pés. Estamos aqui para avaliar se os números batem com os que o Rábido reportou. Devemos ter certeza que Grenadine não tem outras cartas escondidas na manga. — Ele bateu nas costas de Jeb. — Viu o trocadilho? “Cartas na manga?” — E deu uma gargalhada.

Jeb não deu nem um risinho.

— Ah, corta essa. Os guardas dela são de cartas. É uma piada como a que você fez antes, só que mais inteligente.

— Ah, sim, entendi — retrucou Jeb.

O riso de Morfeu se dissipou.

— Você não é um namorado muito divertido.

— Você não leva nada a sério? A Al está correndo perigo — Jeb deixou escapar.

— Bobagem. Ela é gloriosamente capaz! Você nunca a viu voando? É claro que viu! Estava pendurado na corrente que ela segurava. — Morfeu voltou a lanterna para a própria cabeça, num arroubo de celebração. — Não foi uma bela visão, presenciá-la transformando-se no que realmente é? Igual a uma princesa de contos de fadas. — Ele lançou um olhar dissimulado para Jeb. — Não concorda?

Princesa de contos de fadas. Lá estava, saindo da boca do próprio Morfeu, zombando de Jeb por não perceber desde o início. Jeb apertou as alças da mochila para evitar dar um soco na laringe de Morfeu.

Morfeu abaixou a lanterna e depois tirou luvas prateadas de sua lapela.

— Não se sinta desprezado, cavaleiro mortal. Sua contribuição não passará despercebida. E eu sempre pago minhas dívidas. Então, o tirarei desta vala da morte para demonstrar minha gratidão.

— Você pode me agradecer me deixando ajudar a Al. Ela vai terminar a tarefa muito mais depressa comigo do lado — Jeb conseguiu dizer, sentindo um nó nas cordas vocais. Se conseguisse chegar até Al, talvez os dois pudessem se esconder de Morfeu no cemitério das irmãs Twid, até encontrarem uma maneira de escapar.

— Sinto muito — retrucou Morfeu, vestindo as luvas e acenando para que os cavaleiros élficos retornassem. — Ela precisa fazer isso sozinha. Você a verá em breve; todos nós vamos nos reencontrar. Uma grande família feliz.

— Não! — exclamou Jeb, perdendo o controle. Ele investiu, mas os elfos foram mais rápidos e o contiveram, com os dedos machucando seus cotovelos feridos. — Deixe-a sair do País das Maravilhas, seu filho de inseto...

Morfeu pressionou um dedo contra a boca de Jeb.

— Ah-há! Essa, você já usou.

Jeb puxou a cabeça para trás, deixando o dedo do intraterreno suspenso no ar.

Sob a luz da lanterna, as joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficaram escuras, da cor de sangue seco.

— Ora, ora. Isso são modos de tratar seu salvador? — Ele fez cara amuada. — Além do mais, como posso deixar Alyssa sair se ela não está comigo? Da última vez que soube, ela estava entrando no jardim das almas. Mas, quando terminar por lá, ela virá ao meu encontro. Ela ainda tem um papel muito importante a desempenhar.

— Certo. Porque ela é a herdeira do trono. — Jeb ouviu, incrédulo, suas próprias palavras ecoarem, como se tivessem saído da boca de outra pessoa. — Não sei como, mas é ela.

— Bravo! — Morfeu aplaudiu. — Estão vendo o que eu disse, irmãos cavaleiros? — Olhando para os cavaleiros por cima do ombro de Jeb, Morfeu deu tapinhas no peito em cima da gravata vermelha, como se estivesse tomado pela emoção. — Mais esperto que um mortal comum. Pena que tenha as limitações físicas de um.

— Não importa. Ela está fora do seu alcance. — rebateu Jeb, dando um tranco nos elfos; havia muitos o segurando, contudo. — Ela deve estar dentro do cemitério agora, e não pode forçá-la a fazer nada. Você mesmo disse que as Twids não deixam você entrar.

— É verdade. Mas ela encontrará, sozinha, o caminho para o castelo. No momento em que ela perceber que estou mantendo presa a coisa que ela mais ama no mundo, virá rastejando para mim, com as asas a reboque.

Morfeu levantou uma mão e fez um sinal.

Os cavaleiros élficos soltaram Jeb. Ele girou sobre o calcanhar e atirou a mochila sobre eles, dispersando o grupo feito pinos de boliche. Esticando o braço, ele bateu o punho na testa de Morfeu, desequilibrando-o. Um dos cavaleiros se esforçou para permanecer no lugar e manter o espelho aberto. Antes que Jeb pudesse se catapultar e atravessá-lo, raios de luz azul grudaram em sua pele e roupas, feito eletricidade estática. Eles o arrastaram, controlando-o como se fosse um fantoche, até ele ficar de frente para Morfeu. Os raios vinham da ponta dos dedos do intraterreno.

Morfeu aproximou-se.

Jeb tentou recuar, mas seus músculos travaram, ficaram paralisados.

— Durma — disse Morfeu num tom simples, e levou a mão azul fluorescente à testa de Jeb, cujo corpo foi percorrido por uma luz pulsante. Ele sentiu um gosto doce, parecido com leite e mel, e depois sentiu o aroma de lavanda. Com os dedos apertando o tecido macio da camisa de Morfeu, Jeb lutou para manter-se acordado. Mas a luz era muito reconfortante... muito suave... muito calorosa. Contra sua vontade, suas pálpebras ficaram cada vez mais pesadas e ele caiu no chão, em sono profundo.


Capítulo 4


Terceira Lembrança —
Engaiolado

O crânio de Jeb latejava, e havia sangue saindo de seu couro cabeludo e entrando em seus olhos.

Ele limpou o líquido viscoso e focou no lugar à sua volta. Morfeu o tinha trazido para o castelo Vermelho depois de colocá-lo sob o feitiço do sono. Largou-o dentro de uma gaiola na masmorra. Jeb não queria ter tomado a poção encolhedora quando acordou, mas o homem-inseto havia lhe dado um ultimato.

Primeiro, ele havia ameaçado matar a Al. Mas Jeb rebateu, dizendo que o homem estava blefando, pois sabia que ela era indispensável. Depois, Morfeu usara de outra arma, ameaçando fazer com que a frágil mãe de Al ultrapassasse o limite da loucura. Isso, ele faria.

A Al havia lutado muito para salvar a mãe. Ela morreria se a perdesse para a loucura. Então, Jeb não hesitou em levar o frasco aos lábios.

Seu corpo balançava, mas não devido aos efeitos colaterais da poção. A plataforma debaixo dele oscilava por causa de suas tentativas de abrir as barras de sua prisão usando a cabeça — uma atitude desesperada que havia resultado em nada além de um corte logo acima da testa. A magia de Morfeu — um fio elétrico e azul — mantinha a porta da gaiola fechada e imóvel.

— Que bela coisa você fez, não? — entoou uma voz feminina e irritante. — Morfeu escolhe quem tem o poder de suprimir sua magia. Obviamente, você não é um dos escolhidos.

Jeb fez cara feia para sua companheira de prisão. Era uma lóri — um intraterreno parecido com um periquito, mas normalmente do tamanho de um ser humano. Como os dois tinham encolhido, a única coisa que a distinguia dos pássaros do mundo humano eram as túnicas de cetim cor de creme com estampas jacquard colocadas sobre suas asas, corpo e pernas, e seu rosto humanoide enfiado no meio de plumas vermelhas, como se fosse uma máscara. Ele foi cutucado por um bico mais parecido com o chifre de um rinoceronte, posicionado no lugar onde deveria haver um nariz. Os lábios da criatura se agitavam furiosamente.

O pior de tudo era que a voz dela poderia derrubar a Torre de Pisa com uma sílaba. Quando falava, era como se alguém tivesse implantado cirurgicamente alto-falantes nos ouvidos de Jeb e travado o volume no “mais surdo que uma porta”. Ela era uma das muitas razões pelas quais ele tentava sair da gaiola com tanta insistência.

A luz bruxuleante das velas na parede iluminava seu ar de arrogância e deixava o resto da masmorra nas sombras. Depois que a voz da lóri parou de ecoar, Jeb investiu:

— Olhe aqui, Lorina. Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu marido. — Ele apontou a criatura que roncava abaixo da gaiola, de aparência tão estranha quanto à da esposa, com o corpo de um dodô, cabeça de homem e mãos que se projetavam da ponta de suas asas atarracadas. — Foi ele quem manteve Alice Liddell presa em uma gaiola igual a esta aqui, muitos anos atrás. É por culpa dele que a minha namorada é a única que pode destronar a sua rainha. Será que já lhe ocorreu que é por isso que vocês estão presos?

— O Charlie não fez nada disso! — berrou a lóri, pairando dentro da gaiola. — Alguma vez já lhe passou pela cabeça que o Morfeu é um cara de pau mentiroso?

Só em todos os segundos de todas as horas. Jeb apoiou-se nas barras. Seus joelhos cederam, enfraquecidos pelas tentativas de abri-las usando cada músculo de seu corpo. Ele desabou sobre o piso de metal, empurrando uma fatia de pera já amarelada que estava ao seu lado, feito um pequeno sofá. A gaiola era um pequenino forte inexpugnável. Mas não importava. As barras poderiam ser feitas de espaguete cru, e mesmo assim ele não conseguiria ajudar a Al. Mesmo que escapasse, com este tamanho, Jeb não conseguiria derrotar ninguém.

Charlie, o marido dodô de Lorina, não poderia ajudar muito. Ele estava preso por algemas e correntes de ferro e cochilava recostado na parede. Embora a gaiola estivesse pendurada bem perto da cabeça do dodô, não havia nada que Charlie pudesse fazer.

Provavelmente, Morfeu havia lançado no homem-pássaro gigante o mesmo feitiço do sono que jogara em Jeb, mas Charlie já estava se libertando dele.

Lorina acomodou-se no poleiro no centro da gaiola, balançando sobre a cabeça de Jeb feito uma acrobata no trapézio. A cara dela estava tão vermelha quanto as suas penas, o que fazia as espadas e copas estampadas nas bochechas quase desaparecerem.

— Como vamos ficar exilados nestas instalações fedendo a urina, terá bastante tempo para ouvir a verdade — bramiu ela.

Jeb esfregou a cabeça para apaziguar a dor lancinante.

— Se puder baixar a voz uns dois decibéis, eu agradeceria.

— Abaixar minha voz?

— Aaaii. — Jeb enterrou o rosto nas mãos.

O trapézio em miniatura rangia a cada balanço, piorando a poluição sonora.

— Para a sua informação, minha rainha adora o som da minha voz. Ela até o elogia...

O ronco do dodô parou, e ele estalou os lábios.

— Isso é porque ela protege os ouvidos com cera de abelha, Ó, Mais Adorável das Loucas.

— Seu mentiroso! — retrucou Lorina, balançando o poleiro tão depressa que Jeb achou que ia vomitar.

— Estou preso com correntes de ferro — avisou Charlie depois de um bocejo. — Não tenho forças para mentir. — Em seguida, pegou novamente no sono.

Isso pareceu calar Lorina, pelo menos temporariamente.

Jeb aproveitou o silêncio para pensar. A esta altura, Morfeu já deve ter contado a Al sobre sua verdadeira linhagem, sobre o que espera dela. Deve estar tão chocada... tão apavorada. Jeb ansiava tanto abraçá-la que era como se houvesse uma bigorna lhe pressionando o peito.

Aquele mariposo deveria ter contado a verdade desde o começo. Ela nunca escolheria ficar. Mas Morfeu sabia disso, e a manipulou sob o pretexto de que ela poderia curar a maldição da própria família. Jeb queria arrancar as asas pretas de Morfeu e enfiá-las goela abaixo por tê-la enganado, porque não havia cura para o parentesco, e ele sabia muito bem disso.

— Foi a Vermelha quem colocou Alice na gaiola. — A lóri voltou à carga. — Não o Charlie.

— Mas o seu marido escolheu mantê-la presa na gaiola — acrescentou Jeb, mesmo sabendo que não deveria. Ele cobriu as orelhas para a estrondosa refutação, mas Lorina só soltou um suspiro.

— Não. O Charlie tentou fazer a coisa certa pela menina — disse ela, consideravelmente mais ponderada agora. — Ele planejava mandar Alice de volta para o reino humano sem a Vermelha saber, mas a rainha descobriu e os arrastou para uma caverna nos picos mais altos e mais remotos do País das Maravilhas, sem que nenhum de nós soubesse. Ela deixou o Charlie com a vítima dela para poder encenar seu plano mestre, sabendo que Alice seria cuidada por um prisioneiro que nunca poderia escapar. Porque, como você deve saber, os dodôs não podem voar. Ela me privou de meu marido durante anos. Ele era prisioneiro, assim como a mortal.

— Se isso te ajuda a dormir de noite, tudo bem, passarinha.

Uma comoção de poeira e asas, jacquard e cetim, subitamente surgiu e o atacou.

— Você pode mostrar algum respeito e ouvir?!

Jeb levantou as mãos para se defender.

— Está bem. Shhhh. Eu vou ouvir.

Não havia nada mais que ele pudesse fazer. Morfeu lhe dissera que, assim que Alyssa fosse coroada rainha, ela abriria o portal para o reino humano. Acreditando ou não nisso, Jeb não poderia fazer nada a não ser ter esperança. Ele não tinha nenhum poder ali. E ter consciência disso lhe devorava as entranhas a cada minuto.

Acomodada diante de Jeb sob um monte de tecido luxuoso, a lóri olhou por entre as barras e resmungou alguma coisa para o marido que dormia.

— Seu velho e imprestável fezzerjub. Eu é que tenho que te proteger. Nem sei por que me casei com você.

O dodô resfolegou e murmurou, sonolento:

— Porque se casar com o bobo da corte era a única maneira de ter uma posição na corte Vermelha, Ó, Senhora das Nênias. — E o ronco voltou.

— Viu como deu certo? — resmungou ela, fazendo beicinho com os lábios vermelhos em forma de coração, sob a curva de seu bico. — Aquele Rábido ossudo e seu coração negro de pedra. — Ela alisou as penas da nuca e cobriu-as com uma rede decorada por lantejoulas.

Jeb estendeu a mão para pegar o dedal cheio de água que seu captor havia deixado ao lado da fatia de pera. Em suas mãos, ele era do tamanho de uma caneca de café. Ele o passou para sua colega de cela, que o pegou com as asas e deu alguns goles.

— Me diga uma coisa, Lori. Se o que você está dizendo é verdade... — Observando a atitude defensiva na cara bicuda, ele refez a pergunta para poupar os ouvidos. — Como você escolheu compartilhar o seu lado da história, talvez pudesse me dizer de que maneira Morfeu teve participação na prisão de Alice.

Ela sacudiu as gotículas de seus lábios.

— Não teve participação nenhuma. Ele gostava muito de Alice e teria feito qualquer coisa para que ela chegasse em casa sã e salva. Mas, na hora em que ele lhe ofereceu seu conselho como lagarta, alertando-a para que evitasse o castelo da Rainha Vermelha a todo custo, sua metamorfose aconteceu. Quando ele emergiu, totalmente transformado, e soube o que havia acontecido com Alice, ficou furioso.

— Está tentando me dizer que ele possui alguma consciência?

— Pelo menos no que dizia respeito a Alice, sim. — A lóri ajustou a suntuosa túnica que ficava escorregando devido à falta de ombros. — Morfeu usou todos os seus recursos de magia e acabou encontrando ela e meu marido escondidos nas cavernas dos picos mais altos do País das Maravilhas. Infelizmente, já era tarde demais para Alice. — Lorina devolveu o dedal a Jeb, agora com metade da água.

Jeb endireitou o corpo, fazendo a gaiola balançar.

— Então por que ele quer ajudar a Rainha Vermelha a colocar outra rainha no trono, quando ele deveria odiá-la por ter mantido Alice presa em uma gaiola por tantos anos?

— Talvez ele esteja bravo por Grenadine não ter tentado encontrar Alice assim que esta foi capturada. Mas Grenadine perdeu sua fita de memória e esqueceu a criança.

— Um bom regente teria mais do que uma fita para lembrá-la; teria se certificado de que tudo e todos estavam em seu lugar.

— A minha rainha é uma boa regente!

Jeb encolheu-se com o urro agudíssimo.

O ronco do dodô parou.

— Minha vociferante esposa diz a verdade, rapaz. Morfeu parece guardar ressentimento pelo que ele acredita ser negligência, mesmo tendo sido somente um descuido.

Jeb balançou a cabeça diante de todas as falhas que havia no raciocínio de todos.

— Não. Há mais coisas nessa história.

— Você tem bons instintos, cavaleiro mortal.

Jeb olhou para cima, na direção da voz tilintada. Uma luz brilhante flutuou pela pequena janela e entrou pela pesada porta da masmorra. Jeb levantou-se e agarrou as barras da gaiola, inclinando a cabeça para ver melhor.

Gossamer.

A pequena fada adejou para perto e sussurrou algo para o mágico fio azul que fixava a porta de arame, entrando na gaiola. O fio azul deu um nó em si mesmo depois de ela fechar o trinco.

Ela cintilava feito pequenos fogos de artifício ao pairar no lugar, estudando Jeb com uma expressão de solidariedade.

Como os dois agora tinham o mesmo tamanho, Jeb se lembrou de uma pintura que vira certa vez, de um artista tcheco, Viktor Olivia. O pintor era famoso por retratar uma fada que seduzia homens, levando-os a se embebedarem com absinto. Gossamer personificava essa criatura: uma forma feminina perfeita coberta de poeira verde, e nua, com escamas brilhantes cobrindo-a como um biquíni minúsculo.

Ele havia sentido, quando saiu da sala de espelhos, que Gossamer estava do lado dele e de Alyssa.

— Você veio ajudar — lançou ele, esperançoso.

Uma chave de cobre, da mesma cor dos olhos dela e quase do comprimento total de seu torso, pendia de seu pescoço. Seu olhar caiu para os pés delicados, como se estivesse lutando contra si mesma.

— Eu teria vindo mais cedo, mas Morfeu está sempre vigiando o espelho. Agora que ele está com Alyssa, preparando-a para a coroação, estará ocupado demais para ficar de olho no resto de nós... até o fim.

— O fim? — Jeb apertou a barra ao lado dela, concentrado em seu olhar de libélula. — Você tem que me contar tudo.

A fada olhou para Lorina, que estava se esticando para a porta de arame.

— Você sabe muito bem que não tem o poder de sair desta gaiola, a menos que eu a abra para você.

Bufando, a lóri voltou a voar para o trapézio.

Gossamer conduziu Jeb para a fatia de pera e os dois se sentaram. Seu perfume frutado se impunha sobre o fedor da masmorra e o acalmou o suficiente para ele poder ouvi-la.

A fada colocou as mãos sobre as de Jeb, que descansavam sobre os joelhos.

— Eu já traí meu mestre o bastante vindo até aqui, e sua ira será enorme. Eu só posso dizer que, dentro de uma hora, Alyssa estará comprometida para sempre, amarrada ao País das Maravilhas para toda a eternidade. Morfeu planejou tudo para enviá-lo de volta, cavaleiro mortal... mas sem ela.

Uma veia na têmpora de Jeb começou a se contorcer feito uma serpente em uma bandeja quente. Ele deu um pulo para cima e bateu a cabeça nas barras novamente, tentando amolecer o fio azul, incapaz de controlar a fúria exasperada que lhe fervia por dentro. Mais sangue escorreu por sua têmpora.

— Você tem que me soltar! Preciso impedir isso!

— Sim, sim! Nós também! — intervieram o dodô e sua esposa, em coro. — Temos que ajudar a Rainha Grenadine a manter a coroa!

— Naturalmente — afirmou Gossamer, pegando a mão de Jeb e puxando-o para perto dela. — Vocês todos terão a oportunidade de lutar e de mostrar a sua lealdade.

— Mas não posso lutar assim. — Jeb chutou uma semente do tamanho de seu pé. — Você trouxe algum bolo do crescimento?

— Não. Não é a força de seu corpo que salvará Alyssa, e sim a força de seu coração de artista. Mas eu posso assegurar que não sairá deste lugar em sua forma atual.

A lóri desceu de seu poleiro e ralhou com a fada.

— Agora, me escute, sua lacraiazinha. Este rapaz não tem papel nenhum. Ele é, no máximo, coadjuvante. Eu sou a criada da rainha, e Charlie é o bobo da corte. Nós deveríamos ser a sua prioridade. Somos honoráveis membros da corte, os únicos que podem dar um basta nesta paródia!

Acelerando as asas até virarem um borrão enevoado, Gossamer flutuou e colocou as mãos nos quadris.

— Quanto ao seu papel, Lorina: você pode abrir as correntes de seu marido, pois preciso falar com o mortal a sós e tenho pouca tolerância ao ferro. — Ela abriu a porta da gaiola e lhe deu a chave.

A lóri esvoaçou-se veloz, numa comoção de exibicionismo e má vontade.

— Venha, venha, Doçura Selvagem — chamou Charlie, encorajando a esposa enquanto ela flutuava em torno dele, subindo e descendo, incapaz de manter-se firme em alguma altura. — Apresse-se, por favor. O ferro está me dando fisgadas. Poxa vida! Não é tão difícil assim... tente novamente!

A cara de Lorina ficou ainda mais vermelha.

— Tente, com a ponta da asa, usar uma chave do mesmo tamanho que a sua cabeça, seu meleca! Alguns de nós não foram abençoados com dedos, sabia?

Enquanto o casal se ocupava, Gossamer sentava-se novamente ao lado de Jeb.

— Você disse que meu coração de artista pode salvar Alyssa. Naquele quarto na mansão de Morfeu, também... você disse que eu tenho o poder dentro de meu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Minha namorada está prestes a morrer para mim e para a família dela. Não pode haver escuridão maior — sussurrou Jeb com lágrimas de frustração que lhe surgiram nos cantos dos olhos.

— Morreria por ela, cavaleiro mortal?

A espinha de Jeb se retesou. No passado, toda vez que ele protegera Alyssa, sempre se jogara sem nem pestanejar. Seria capaz de morrer por ela?

Quando o pai de Jeb morreu em um acidente, foi Alyssa quem o salvou. Ele não conseguia acreditar que tinha chegado a pensar em morar em Londres sem ela. Precisava dela, todos os dias. De seu sorriso compreensivo, de como ela fez suas cicatrizes parecerem medalhas de mérito sob seu toque, e de seus olhos incríveis. Mesmo tendo passado por tantas provações quanto ele, havia uma luz dentro dela que nunca se enfraquecia. E essa luz não somente a tornava linda por fora, mas também permitia que ela trouxesse vida aos incríveis mosaicos que fazia.

Era essa luz — tanto a interna quanto a externa — que o tinha levado a desenhá-la e pintá-la tantas e tantas vezes.

Ele olhou para Gossamer, quase incapaz de conter a emoção, agora que havia encontrado uma saída.

— Ela é minha melhor amiga.

Minha musa, meu pincel, minha arte, meu coração. Tudo isso estará morto sem ela.

Esfregando o rosto, ele limpou o líquido que havia caído de seus olhos e escorrido pelo rosto:

— Eu a amo. Sim, eu morreria por ela. É isso que preciso fazer?

A fada o encarava sem piscar.

— Está disposto a ir além da morte? A se perder de todos, até de você mesmo, em um lugar onde as lembranças se esvaem em uma maré escura como tinta? Pois, para libertar Alyssa, você terá que tomar o lugar da Rainha de Marfim na caixa linguardarte onde ela se encontra presa.

Jeb lembrou-se da água escura dentro da caixa que ele havia visto na sala dos espelhos da mansão de Morfeu e da cabeça fantasmagórica que havia lá dentro, e seu coração disparou. O sentimento de autopreservação o invadiu e sua mente começou a tentar encontrar outra maneira. Mas, bem lá no fundo, ele sabia que não havia alternativa e que o tempo de Al estava se esgotando. Ele só lamentava não poder dizer a ela, nem uma única vez, com sua própria voz, como se sentia, antes de ser trancado para sempre.

— Aceito.

— E assim será. — Gossamer ficou de pé e estendeu os braços. Fraco e entorpecido, Jeb aceitou seu abraço. Ela o apertou com força e voou com ele para fora da gaiola, pousando no chão. — O mortal concordou em ser o herói de seu reino. Procurem honrar sua bravura — disparou as palavras para Lorina.

Lorina havia conseguido soltar o marido. Ela se sentou no ombro dele, abanando-se com uma asa. Com os olhos arregalados, ela aquiesceu em silêncio — a demonstração mais sincera de louvor que poderia ter oferecido. O dodô ajoelhou-se ao lado de Jeb, uma presença enorme e plumada.

— Teremos uma dívida eterna para com você, rapaz. O que podemos fazer para ajudar?

Gossamer apontou para um canto da masmorra, onde um cobertor de juta cobria uma cama, chegando até o chão.

— Tragam-me o que está debaixo daquela cama.

Entorpecido por uma mistura de incredulidade e temor, Jeb observou o dodô trazer a caixa linguardarte.

Lorina ficou perplexa.

— Morfeu manteve a Marfim escondida aqui?

Gossamer assentiu.

— Por sugestão do Rábido. Ele disse que este era o único lugar no castelo onde ninguém viria à procura dela.

Depois de pedir a Charlie que abrisse a tampa e arrumasse uma pedra onde eles pudessem subir para ver lá dentro, Gossamer pediu ao estranho casal que se afastasse um pouco para que ela e Jeb tivessem um pouco de privacidade.

Jeb afagou as rosas brancas aveludadas que adornavam o exterior da caixa, fascinado pela beleza do rosto da Marfim quando este veio à tona. O olhar cristalizado de assombro dela passava dele para a fada, e voltava — cautelosamente curioso. Ele estremeceu ao pensar que tomaria o lugar dela.

Tinha mesmo que fazer isso?

Jeb sentiu que Gossamer observava seu semblante.

— Devo perguntar uma última vez se está seguro de sua decisão — indagou ela. — Porque, como você está escolhendo ser trancado, e selando essa escolha com seu sangue, a caixa nunca o libertará. Ninguém poderá salvá-lo. Você está oferecendo sua eternidade pela da Marfim, uma rainha que você nem sequer conhece.

Jeb sentiu um nó na garganta.

— Não. Estou trocando a minha eternidade pela da Al.

Gossamer sorriu com ternura.

— Em seus sonhos, vi certa vez que você teme não ser bom o bastante para a menina. Depois de tal sacrifício, ninguém poderá questionar seu valor como homem nem seu amor por ela. — Ela o beijou no rosto, deixando um calor que penetrou seu coração e conseguiu derreter uma pequena porção do terror congelante que lá se escondia.

Gossamer deu-lhe um pincel e recuou.

— Agora, use o poder que somente você pode exercer. Pinte as rosas com o seu sangue.

Jeb foi tomado por uma tontura. Murmurou coisas... sem sentido, temerosas... palavras agonizantes que ele sabia serem as últimas.

Depois, canalizou a raiva, o terror e o desejo por um futuro que ele nunca teria para as estocadas do pincel. Cada botão branco, tingiu-os de vermelho até perder-se dentro das sombras de seu trabalho, e fundiu-se à sua obra-prima, tornando-se um só.


Capítulo 5


A Decisão da Mariposa

A cena se estendeu e ficou turva enquanto Morfeu era arrastado para fora das lembranças de Jebediah e depositado de volta na chaise-longue. A escuridão deixava a sala pesada, mas ele nem se mexeu para ligar a luminária. O cenário completamente enegrecido parecia combinar com os pensamentos obscuros que lhe cruzavam a mente.

Ele passou o dedo pela coxa, acompanhando as listras do tecido risca de giz e alisando as rugas.

Por que se sentia tão aborrecido? Ele havia encontrado exatamente o que esperava encontrar. As fraquezas de Jebediah estavam à mostra: um ódio que poderia facilmente ser manipulado, um sentimento de impotência alimentado por um pai violento e crítico, um ciúme que provocava um sentimento temerário de proteção e que lhe custaria a própria vida.

O que Morfeu não tinha esperado encontrar, entretanto, era tanta semelhança entre ele e o rapaz. Os demônios do passado atormentado de Jebediah não eram muito diferentes dos seus. Ele sempre se surpreendera sentindo inveja dos humanos... por nunca ter tido o carinho de um pai ou de uma mãe. Simplesmente por ocupar seu lugar no mundo, ele também compreendia o medo de talvez nunca chegar a conhecer completamente a confiança e a afeição de outra pessoa.

Contudo, no passado, Morfeu nunca havia considerado isso uma coisa ruim. Ele apreciava ser uma alma reclusa e independente. Por vezes, até se vangloriava, quando lhe convinha ser o centro das atenções, naturalmente. Mas a atenção, a afeição ou a confiança não eram coisas de que ele precisava. Não até aparecer Alyssa. Depois que ela escolheu ignorá-lo, ele não conseguiu funcionar... sentiu-se desastrado e incompetente.

E agora, depois de colocar-se no lugar de Jebediah, Morfeu compreendia, mais até do que desejava, como o lado humano de Alyssa funcionava. Embora metade dela tivesse asas e pudesse flutuar sobre as inseguranças e trivialidades dos mortais, a outra metade tinha seus alicerces nas coisas que qualquer outro humano ansiava: confiança e segurança.

Tendo visto a coragem e a engenhosidade de Jebediah, bem como sua lealdade a Alyssa, Morfeu soube, sem sombra de dúvida, que aquilo era exatamente o que o rapaz oferecia a ela: uma rede de segurança e emoção que a salvaria caso a queda fosse muito alta.

Não era de admirar que ela fosse tão cativada por ele. Não era de admirar que ele exercesse poder sobre ela. Diabos, o próprio Morfeu ficou morbidamente fascinado pelos honoráveis traços morais do rapaz, incomuns em um humano tão machucado. Morfeu ficou tentado a recuar e deixar Jebediah ter seu momento de felicidade. Alguns poderiam até dizer que ele o havia merecido por desejar abdicar de seu futuro, de suas lembranças e de sua vida por Alyssa.

Morfeu rosnou e caiu para a frente com os punhos cerrados, tentando suavizar o estranho peso em seu peito. O rapaz não ficaria aqui para sempre. Era um mortal. Um dia, morreria de velho, no mínimo, e Alyssa voltaria a ser um alvo fácil.

Alvo fácil.

A mandíbula de Morfeu se contraiu. O romance não era uma coisa justa. Nem era um jogo. Era guerra. E, como em qualquer outro campo de batalha, não lhe cabiam a compaixão e a misericórdia.

O besouro-tapete estava certo. As emoções humanas eram coisas imprevisíveis e poderosas. Elas haviam penetrado na cabeça de Morfeu, enfraquecido sua determinação.

Com os cotovelos nos joelhos, ele levantou as mãos com as palmas para cima, incapaz de ver a silhueta delas no escuro. Ele conjurou um pouco de magia na ponta dos dedos, em bolas elétricas de plasma do tamanho de ervilhas, e depois enviou as esferas para todos os cantos da sala, os raios azuis deixando rastros como eletricidade estática. Elas subiram pelas paredes e em seguida se uniram na forma de uma mulher. A luz pulsava em ritmo hipnótico.

Imaginar Jebediah com Alyssa, mostrando a ela os caminhos do amor, domando seu espírito selvagem com suas corriqueiras convenções humanas, tudo isso queimou a garganta de Morfeu com o sabor amargo da inveja.

Ele não queria que o lado selvagem de Alyssa fosse dominado por nenhum outro homem, não desejava compartilhar nenhuma parte dela. Morfeu desejava os dois lados: sua inocência e seu espírito desafiador.

Que graça poderia haver na dependência? Que espontaneidade poderia haver em um mundo previsível? Ele poderia lhe oferecer uma eternidade de desafios e paixão, de momentos ternos e calmos nas profundezas de chamas vibrantes e tempestades devastadoras — a tranquilidade em meio ao caos.

O lugar dela era com ele, usando trajes de soberana. Ele tinha tanto a ensinar-lhe sobre o reino intraterreno, sobre as glórias da manipulação e da loucura. Se Morfeu alimentasse o faminto lado intraterreno de Alyssa, suas inseguranças e inibições humanas diminuiriam e, com o tempo, poderiam desaparecer. Ela nunca mais ansiaria pelo amor seguro de Jebediah.

Morfeu invocou sua magia de volta, recolhendo as espirais de luz azul até ficar novamente envolto na escuridão. Suas asas varreram o chão quando ele se levantou, e ele as ergueu num arco que quase tocava o teto.

Nada mais de deliberações. Ele tinha tentado fazer o que era justo em instâncias passadas e, sem exceção, isso sempre o prejudicara. Podia ignorar a pontada de culpa que lhe agitava o peito, mas não podia abdicar de suas necessidades pelas necessidades de Jebediah. Ele nunca mais seria ele mesmo sem Alyssa ao lado — a chama para sua Mariposa. Morfeu não pararia até que ela voltasse para o lugar que lhe pertencia, no País das Maravilhas.

Para vencer, ele jogaria sujo, colheria os despojos do coração dela do modo como fosse necessário, não importava quanto isso custasse ao rapaz mortal. Afinal, este era o modo intraterreno. Fazer menos que isso faria de Morfeu um humano. E ele sabia, agora mais do que nunca, que essa era a última coisa que jamais desejou ser.


SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS
Epígrafe

ÀS VEZES PENSO EM SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS ANTES DO CAFÉ DA MANHÃ.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Um

Mortalidade

Capítulo 1

Deportação

Algumas pessoas podem dizer que é impossível morrer e viver para contar. São as pessoas que nunca experimentaram a mágica. Quanto a mim, sou tataraneta da Alice que inspirou Lewis Carroll. Acreditei no inacreditável por mais de sessenta e quatro anos, desde que tinha dezesseis e descobri que o País das Maravilhas era real e cheio de seres caprichosos, misteriosos e loucos, governados por acordos e enigmas. Ainda assim, às vezes, por mais que você acredite no impossível, as coisas não saem como você as planejou. Toda mágica pode encontrar um obstáculo de vez em quando.

Por exemplo, nunca esperei que meu cadáver acabasse numa caixa de sapatos. É isso que os caixões crematórios me lembram... uma caixa de papelão do tamanho de uma pessoa. O caixão não é muito confortável. Não há a forração de veludo para suavizar a base de madeira. Nenhuma almofada para acomodar minha coluna curvada. E nada de roupas, além de um vestido de papel para cobrir minha pele velha e enrugada.

O cheiro de papelão se fixa ao meu nariz e as rodas de aço da maca giram ao longo do corredor, rangendo em algum lugar sob mim, junto a passos familiares. Sinto a transição do ambiente fresco e de temperatura controlada onde o legista atestou minha “morteza” (como os seres do País das Maravilhas diriam). Ele, então, pôs uma identificação de aço inoxidável no meu peito e fechou uma tampa sobre mim, me prendendo na escuridão.

A maca sacode ao entrar num lugar muito mais quente. O cheiro de ovo podre do propano confirma nossa localização. Já visitei este lugar. Nos últimos meses visitei vários crematórios, quando não havia ninguém por perto, de madrugada. Para conhecer melhor o gigantesco forno de tijolos à vista que estaria esperando para queimar minha carne. Para encontrar o projeto perfeito, com um banheiro e um espelho de corpo todo do outro lado do salão.

Assim que optei pelo crematório do Pleasance Rest Cemetery, me preparei para morrer.

Meu plano original era usar Tetrodotoxina. Em doses pequenas, subletais, ela deixa a vítima num estado de quase morte por dias, permitindo que ela mantenha a consciência. Morfeu, porém, não concordava. Ele disse que a margem de erro entre o estado de quase morte e a morte de verdade era pequena demais no mundo mortal e não algo com o que se brincar. Ele não queria que eu arriscasse. Então, ofereceu uma substituto do País das Maravilhas: uma poção que funciona quase da mesma forma, mas que tem um antídoto cem por cento garantido.

Bebi a dose de quase morte nesta manhã e, dez horas mais tarde, ainda sinto o gosto amargo e anestésico, como cravos dançando no fundo da garrafa de vinagre. Não consigo morder a língua para aliviar o efeito. A mágica me deixou catatônica — meus olhos fechados e imóveis, meus batimentos e respiração reduzidos a um ronronar indetectável por quaisquer instrumentos humanos.

Meu lado intraterreno se remexe dentro do meu crânio, me garantindo que isso vai dar certo, mas meu lado humano instintivamente se encolhe quando o medo tranca minha garganta. Não posso gritar para dizer a todos que estou viva. Minhas cordas vocais não vão funcionar. A claustrofobia, minha velha inimiga, me deixa toda arrepiada. Sei o que está acontecendo ao meu redor, apesar de não conseguir abrir os olhos ou mover meus membros. Todos os cheiros, sons e sensações táteis são ampliados por minha incapacidade de reação.

Os paramédicos que atenderam, nesta manhã, à chamada de emergência da minha neta de vinte e sete anos me declararam morta — fulminada por um ataque cardíaco. Foi insuportável ouvi-la chorar e gritar. Isso despertou lembranças da minha maior perda — da morte de Jeb, três anos antes. Uma faca ainda é cravada no meu peito sempre que me lembro do nosso último adeus.

Mas Jeb me mandou ser firme. E ensinei aos meus netos o mesmo — sempre encarar as coisas. Ela ficará bem. Não tenho dúvida disso porque ela é muito parecida comigo, para além de seus cabelos loiros, olhos azuis e curiosidade. Ela é teimosa, leal e uma sobrevivente.

Assim que os paramédicos levaram meu corpo ao necrotério, tudo funcionou como o previsto.

Minha família sabia que cemitério eu escolhera e as quatro exigências do meu testamento: nada de exibição pública do meu corpo, nada de velório, cremação em doze horas depois da minha morte e a dispersão das minhas cinzas no mesmo local onde as de Jeb foram jogadas, sob o salgueiro em nossa casa de campo. A árvore tinha um significado especial, por ter sido gerada de uma mudinha do salgueiro que dividia os quintais da nossa casa quando éramos crianças.

Tais pedidos nada convencionais não abalaram minha família, considerando que me tornei uma mulher muito excêntrica.

Depois da morte de Jeb, eles me viram vagar pela casa de campo, reunindo os mosaicos que fiz ao longo da vida, cheios de paisagens bizarras e místicas — com títulos como A Batida do Coração do Inverno, Dunas de Xadrez e O Ventre do Monstro —, e guardando-os no sótão, ao lado de outras quinquilharias, incluindo um anúncio de um passeio pelo Tâmisa, em Londres. As últimas coisas que guardei ali foram duas chaves: uma que pertencia à minha mãe, e era capaz de transformar qualquer espelho num portal, e outra que podia abrir o jardim das almas do País das Maravilhas. Esta última foi um presente dado a Jeb, depois que ele desistiu da sua musa, de modo a satisfazer a necessidade do reino interior por sonhos vívidos e cheios de imaginação, conectando nossos mundos em paz ao longo do processo. Ele desistiu do que fez dele único, a fim de manter as crianças humanas seguras. Um ato de coragem que seus filhos e netos jamais tiveram o privilégio de saber. Era essa a lembrancinha de que eu tinha mais dificuldade para me desapegar, porque era uma homenagem à coragem e ao caráter nobre de Jeb — as duas coisas que eu mais amava nele. No entanto, como Rainha Vermelha do País das Maravilhas, eu não tinha motivo para guardar chave tão sagrada.

Escondi tudo num baú no sótão e o tranquei. Então pus a chave do baú em meio às páginas da minha velha coleção de Lewis Carroll. Jeb e eu éramos donos da casa e do terreno que a cercava, e insistimos, em nossos testamentos, para que o lugar permanecesse sempre com a família. Assim, se nossos descendentes um dia precisassem me encontrar, poderiam. Eles só precisam procurar as pistas, como um dia eu fiz. Seguir meus passos e acreditar no impossível — em contos de fadas e desejos e mágicas.

Sempre os mantive no escuro quanto ao nosso legado, dando-lhes uma chance de viver uma vida normal. Até mesmo ordenei que os insetos e flores ficassem em silêncio. Agora sou a única capaz de ouvir esses sons do mundo interior, e as coisas continuarão assim enquanto eu estiver reinando como a Rainha Vermelha. Contudo, se algum familiar procurar com presteza, vai encontrar a verdade que escondi para eles.

Em todos esses anos, eles aceitaram meus caprichos porque sempre os respeitei e os amei incondicionalmente. E agora conto com a lealdade deles. Todo o meu plano de morrer depende da execução do meu testamento.

A cremação era a única forma de evitar que drenassem meu sangue, bombeassem formol em minhas veias e cerzissem minhas pálpebras — todos aqueles procedimentos mórbidos e intrusivos para embalsamar e preservar o corpo mortal. Fui abençoada ao longo dos meus oitenta anos de vida humana com saúde e uma mente aguçada. Nunca precisei de marca-passo e não tenho próteses, implantes ou dentaduras, então não há nada que possa explodir no forno. Isso significa que não haverá incisões nem extrações. Era importante que eu permanecesse intacta — por dentro e por fora.

Todavia, se o Rábido Branco não se apressasse e chegasse aqui com o antídoto para me tirar deste estado, nada importaria. Vou virar um monte de cinzas. E Morfeu terá de encontrar um lar novo para meu espírito eterno... um novo corpo para eu habitar.

Ele ficará furioso se isso acontecer e nunca me deixará esquecer isso. Uma eternidade é muito, muito tempo para ouvir eu avisei, entoado continuamente com um marcado sotaque londrino.

— Não me importo — disse ele há duas semanas, enquanto discutíamos meu êxodo do reino humano e tomávamos chá durante uma das minhas visitas ao País das Maravilhas em sonho. Ele levou a xícara à boca, seu rosto curioso perfeito e jovem como sempre. Ele bebeu e deixou a xícara de lado novamente. — Muitas coisas podem dar errado. Devo estar lá para executar meu plano.

— Vou agir sozinha — declarei. Estudei a cama com dossel e a lareira instaladas na diagonal em relação a enormes poltronas vitorianas ao lado de uma mesa oval, buscando conforto no cenário. — E vamos seguir meu plano. — Aqueles seriam meus últimos instantes no reino humano. Tinha de ser de acordo com a minha vontade. Contive uma descarga de tristeza e tentei exibir o mesmo controle que Morfeu exibia com sua xícara de chá, mas o líquido quente molhou minha mão velha quando meu pulso tremeu. Gritei.

— Alyssa, por favor. Permita-me. — Com seus dedos lisos e elegantes, ele cuidadosamente segurou meus dedos enrugados, limpando o chá e acariciando a mão queimada com um guardanapo.

Permita-me. Nós dois sabíamos que ele falava de outras coisas além da limpeza do chá derramado.

Tantos anos passamos juntos nos meus sonhos — e tantos outros na nossa infância —, com Morfeu me treinando e me ensinando sobre meu reino e o mundo. Não havia oportunidades para ficarmos sozinhos, já que ele mantinha o véu do sono descoberto para eu poder interagir com o Rábido, Chessie, Marfim, as criaturas e meus súditos.

Isso mudou quando fiquei viúva. Realizava meus deveres reais todas as noites e lutava para ser forte, até que meu luto pela morte de Jeb ficou tão intenso que as lágrimas se acumulavam em meus cílios, me cegando. Morfeu — sentindo minha vergonha, porque rainhas não choram — insistia que era hora do chá, que tomávamos sozinhos nos aposentos reais que um dia pertenceria a nós como rei e rainha.

Ali, na nossa solidão, escondidos de olhos predadores e cercados por exuberantes tapetes vermelhos e cortinas douradas, eu me perdia em minha dor. Permita-me, dizia ele. Estendendo os braços, ele me abraçava enquanto eu chorava. Noite após noite, durante um ano, até que finalmente não conseguia mais chorar.

Pouco depois, a atenção de Morfeu mudou. Seus carinhos se tornaram menos confortantes e mais íntimos. Estava constrangida demais para reagir, tímida demais em meu corpo velho.

Um ser místico eternamente jovem cortejando uma velha — teria rido do absurdo disso, não estivesse tão afetada pela devoção cega dele e pela intensidade do seu amor.

— Mesmo que usássemos seu plano... — Morfeu falava baixinho e de mau humor ao esfregar o guardanapo entre meus dedos, enxugando os resquícios de chá. — ... ainda assim eu deveria estar lá nas coxias, para supervisionar o espetáculo.

Franzi a testa para ele. Sua teimosia, juntamente com a dança dos vaga-lumes em seus cabelos desgrenhados e seus traços bizarramente belos, me fez lembrar outra noite em que nos sentamos neste quarto juntos — há várias décadas —, quando ele tentou me convencer a usar a coroa de rubi pela primeira vez. Quando tentei convencê-lo a me devolver meu desejo para eu poder fugir do País das Maravilhas, curar a maldição da minha família e manter Jeb em segurança. Eu era uma pessoa diferente na época, cheia de juventude, aspirações humanas e inocência.

Nosso quarto real se tornou uma lembrança dolorosa da velhice e decrepitude. Ansiava criar lembranças novas aqui, depois de desistir de tentar superar a beleza caótica do País das Maravilhas, quando fui coroada rainha de novo e permaneceria com dezesseis anos para sempre — jovem, cheia de energia e tão sedutora quanto o homem alado que governaria ao meu lado.

Até então, eu não me encaixava. Eu era uma foto deixada ao sol e chuva, minhas cores vibrantes se desbotando melancolicamente e ganhando um tom amarelado. Meus poderes intraterrenos ainda eram fortes, mas estavam presos num vaso gasto pelo tempo. Meus ombros pareciam curvados e pesados demais, eu raramente usava minhas asas. Do que mais sentia falta era voar.

Eu me perguntava se era assim que a Rainha Vermelha se sentiu no fim e por que ela permitiu que Morfeu a convencesse a voltar ao País das Maravilhas, abandonando seus descendentes semi-humanos. Por fim, foi plano dela voltar, apesar de não querer fazer aquela jornada sozinha. Ela brigou com Morfeu, dando início a uma série de eventos e manipulações que acabaram por me levar à coroa e me tornar rainha. Algo pelo qual aprendi a agradecer, apesar de na época ter reclamado do presente. Demorei muito para admirar totalmente a preciosa imortalidade, e jamais desvalorizaria isso novamente.

Depois que Morfeu terminou de limpar o chá derramado, tirei a mão da dele e timidamente cobri meu pescoço com o lenço de seda, tentando esconder minhas peles murchas. As pessoas diziam que eu era linda para a minha idade. Que parecia ao menos vinte anos mais nova. Todavia, em comparação à beleza sobrenatural e imutável de Morfeu, eu me sentia velha.

— Não quero você lá — insisti, determinada a mantê-lo distante da casa funerária. — Já basta você ter me visto murchar como uma uva-passa ao longo dos anos. — Até minha voz soava enferrujada, como se as palavras jorrassem da minha garganta e língua em porções cáusticas.

Morfeu apoiou os cotovelos na toalha da mesa, aproximando-se ao máximo com o jogo de chá entre nós. Seus cabelos azuis tocaram-lhe os ombros, animados e encantados — um contraste marcante com as ondas brancas reduzidas a um coque preso atrás da minha cabeça.

— Você está no fim de sua crisálida, meu amor. Esta etapa é a mais difícil, acredite. Uma batalha furiosa e incômoda de identidade, antes de se libertar e se transformar na criatura de luz e criatividade que sempre foi seu destino. Posso mantê-la atenta. Para evitar quaisquer... distrações.

Ele olhou para minha aliança, que eu ainda não tinha tirado. Aquilo se tornara mais do que um símbolo da nossa devoção. Tornara-se um símbolo da minha vida humana, e eu pretendia usá-la até deixar tudo para trás.

Com o dedinho, Morfeu circulou a aliança, cuidando para não tocar os diamantes ou o suporte de prata que os mantinha no lugar.

— É importante que você não permita nada que a impeça de dar o salto final. Você sofreu a perda daqueles que se foram há tanto tempo. Eles estão em paz. Deixe que a paz deles lhe dê paz. Senão, você será afetada... incapaz de agir com a mente ágil. O foco é fundamental para que qualquer um dos planos funcione.

— Já sei disso — respondo, um aperto no peito dolorido. — Você tem medo de que eu fique senil. De eu não ser capaz de lidar com isso.

Ele suspirou, acariciando meu polegar com o dele.

— Não senil. Nostálgica. Acontece a humanos. Você mesma me contou, enquanto eu a via amadurecer do refinamento à sabedoria.

— Refinamento. — Tentei um sorriso hesitante diante do esforço dele em me encantar. — É assim que vocês falam hoje em dia?

Ele me encarou sem hesitar.

— Seus olhos não perderam a incandescência; nem a mente, a inteligência. Você não é ingênua. Você é minha torta de ameixa, e sempre foi. Já lhe disse isso repetidas vezes, não é?

Ao menos uma vez por noite nos meus sonhos, Querida Mariposa.

Não respondi em voz alta, assim como não revelei minhas maiores inseguranças: estava com vergonha de ele me ver tão decadente... Não suportava a ideia de ele ter qualquer lembrança de mim como um cadáver naquele caixão de papelão — assim como eu vi Jeb depois da morte dele, antes de ser cremado.

— Uma rainha não deveria exigir resgate — sentencio. Ainda o encaro, maravilhada com aquelas íris coloridas que devolvem a mim o mesmo olhar de nossa infância, cheio de surpresa e afeto. De certa forma, ele via para além do meu corpo velho e enxergava a menina que fui, e eu queria muito conseguir me ver como ele me via. — Uma rainha deve merecer o respeito do seu reino e de seus súditos. E a admiração do rei.

Ele pegou minha mão novamente e beijou cada um dos nós dos dedos cheios de artrite.

— Ah, eu lhe garanto Você sempre mereceu isso. Na verdade, planejo mostrar-lhe a profundidade de minha admiração. — A palavra profundidade saiu de sua garganta como um urro. — Ainda que sejam necessárias várias vezes para convencê-la, finalmente chegará o momento de você ser minha.

Meu rosto ficou vermelho. Apesar de todos os anos em que ele me elogiou e me provocou com insinuações, e a despeito de tudo o que vivi como mãe, esposa e avó mortal, ele ainda conseguia me fazer enrubescer.

— Ah, aí está. — Ele passou o dedo por meu rosto enrugado e sorriu, satisfeito demais consigo mesmo. — Não perdi meu encanto.

— Como se isso fosse possível, para o mestre da sedução verbal — provoquei.

Seu humor mudou para a insolência num piscar de olhos.

— Você logo verá que isso é mais do que conversinha, minha rosa.

Fiquei ainda mais vermelha, sentindo-me mais jovem do que nunca. Ele sempre causava esse efeito em mim. Sempre fez com que eu me sentisse viva e desejável. Exceto pelas vezes que ele me desafiava ou me deixava furiosa.

Ele se recostou em seu lugar, as asas erguidas.

— Seu corpo está cansado. Deixe-me fazer isso por você, para você poder descansar — tentou ele uma última vez.

— Você me ensinou a ser forte e astuciosa. Devo dar sozinha este último salto para dentro da toca do coelho. — Uma sensação inesperada de vulnerabilidade me fez tremer. Peguei minha xícara de chá para absorver seu calor. — Mas você estará lá para me pegar?

— Estarei lá esperando um beijo arrasador para compensar todos os meus problemas — respondeu ele sem hesitar.

Sorrindo, peguei o jogo de xadrez. Morfeu ficou observando atentamente eu animar as peças para que atuassem no meu grandioso plano de deixar o reino humano e esconder meus vestígios com a ajuda do meu conselheiro real, além de pedaços de osso fornecidos pelas fadas, um saco de cinzas, dois trajes de disfarce, uma mosca comum e um punhado de duendes. Enquanto eu falava, seu olho adornado com joias brilhava num tom esverdeado — incomodado, mas esperançoso. A ansiedade que emanava dele era visceral.

Era inconcebível que tivéssemos um relacionamento de sessenta e três anos — platônico — sem um quê de tensão. Apesar de ele gostar muito de me ver andar na ponta dos pés na corda bamba da sedução contida, ele manteve seu juramento e respeitou minha decisão de ser fiel a Jeb. Ele esperou três anos, enquanto eu sofria a morte do meu marido mortal e preparava minha família para minha partida iminente. Era essa a profundidade do respeito dele por mim. Ele teve meu respeito em troca. E muito mais...

Agora chegou o dia de recompensá-lo por sua paciência e estou começando a me arrepender por não deixá-lo planejar minha morte... por não deixá-lo controlar o espetáculo. Provavelmente, tudo seria muito mais fácil. Eu já estaria em seus braços e em sua cama — uma jovem rainha borboleta, governando meu reino, embriagada de poder, loucura e paixão.

Não. Eu consigo. Posso provar que sou capaz, calculista e forte, como todas as boas rainhas deveriam ser.

O único papel de Morfeu no meu plano era mandar o Rábido com o antídoto. Assim que meu cúmplice chegar, tudo se encaixará e fugirei para o País das Maravilhas. Como um corpo não pode ser exumado depois de reduzido a cinzas, ninguém saberá que ainda estou viva e apenas fui embora deste mundo para sempre.

Uma pontada de tristeza segue-se a esse pensamento quando finalmente me dou conta. Acabou. Estou pronta para dar um fim... para começar meu futuro imortal. Vivi uma vida plena aqui. Minha família é saudável e feliz. Estamos no auge. Todos os sonhos humanos foram realizados e meu coração está firme e forte novamente.

Se bem que, por causa disso, há muita coisa a ser deixada para trás. Não há nada inconcluso, mas ainda assim é difícil dizer adeus para sempre. Assim que a coroa for colocada em minha cabeça para dar início à minha imortalidade, não terei de usá-la constantemente para manter minha juventude, mas terei de ficar no País das Maravilhas. Como Marfim uma vez me disse, o tempo é complicado ao se passar pelo portal a fim de retornar ao mundo humano... há de se imaginar uma hora específica, ou o relógio retrocede e o portal deixará você no mesmo momento de sua passagem.

Se eu tentar cruzar as fronteiras para o reino humano depois de partir, voltarei para sempre a este momento e terei oitenta anos para sempre, ou automaticamente envelhecerei todo o tempo que se passou e virarei pó na hora. Acrescente-se a isso o fato de eu estar morta aos olhos de todos — jamais poderia explicar meu reaparecimento sem causar terror e confusão — e ir e voltar não será mais uma opção.

Uma muralha impenetrável está prestes a se erguer entre mim e minha família, deixando-nos sem nada além de memórias.

O rosto de Jeb reapareceu em minha mente antes que eu pudesse impedir... como seus olhos verdes brilhantes me encararam pouco antes de ele os fechar na morte. Como eles estavam tão cheios de amor e gratidão por todos os sonhos que compartilhamos.

Sinto algo crescer na minha garganta e uma dor atrás dos olhos. No meu peito, a pequena identidade de metal parece uma pilha de tijolos.

Pare. Não posso fazer isso agora. Tenho de me concentrar na fuga. Morfeu tinha razão. Pensar naqueles que amei só vai me atrapalhar. Vou manter as lembranças sob controle... esquecer como encarei a morte da mamãe e do papai, como achei que jamais superaria a dor. Como Jeb foi meu porto seguro, como sempre. Assim como fui para ele, quando a mãe dele morreu.

É fútil pensar nessas coisas agora, porque, assim que Jeb morreu, todo o mundo se distorceu — adquiriu uma nova forma que eu não reconhecia. As coisas cotidianas se tornaram estranhas e desagradáveis. Com a morte dele, eu não fazia parte de mais nada.

Minha metamorfose estava completa assim que meu marido mortal deixou de respirar. Só o que me restava agora era sair do meu velho casulo.

Um cheiro novo entra em meu entorno de papelão — loção pós-barba ou desodorante —, me obrigando a voltar ao presente enquanto dois homens conversam do lado de fora do caixão.

— Última da noite, Frank?

— É isso, Brian. Chegou há algumas horas. Só entrega. E é para se apressar com ela. Quer que eu fique e ajude?

Tenho dificuldade para respirar. Meu plano não permite duas testemunhas. Só uma. Enquanto espero pela resposta do operador do crematório, meu coração se encolhe dentro de mim, cheio de medo. O órgão parece tremer, apesar de não haver pulsação em meus pulsos ou ouvidos. Só uma vibração fria e indiscernível por trás do meu esterno, como gelatina gelada retirada da fôrma.

— Não — diz finalmente Brian, mexendo em alguns papéis. — Posso fazer isso de olhos fechados.

A ironia é risível. Se tudo sair como planejado, ele não só terá seus olhos fechados, como também estará dormindo e sonhando.

— Vá para casa e fique com sua família — conclui Brian. — Diga a Melanie e às crianças que mandei um oi.

— Entendi. Até amanhã.

As portas se fecham com um rangido e o alívio toma conta de mim, mas por pouco tempo. Os cliques e claques da esteira mecanizada balançam as paredes de papelão do meu caixão e agitam meus ossos rígidos. Sinto um balançar leve sob minha coluna enquanto meu caixão segue por uma esteira com rolos de metal. À medida que estes se movem, as chamas crepitam mais alto, aquecendo meus pés no ponto onde a parede sob a sola dos meus pés se aproxima perigosamente da entrada do incinerador.

Era para o Rábido estar aqui antes que o forno de temperatura controlada estivesse quente o bastante para acionar o mecanismo de abertura. As coisas estão acontecendo fora da sequência e rápido demais. Meus músculos doem e ganham vida, mas estão rígidos como aço. Imóveis. Um vislumbre de outra lembrança me arrepia: quando a Rainha Vermelha controlou meu corpo naquele último dia em Qualquer Outro Lugar. Quando eu era uma marionete dela. Sinto-me tão impotente agora quanto naquele tempo.

Estou prestes a ser envolta em chamas. Meu corpo não vai sobreviver. De todo modo, preciso sobreviver. Prometi voltar como eu mesma. Inteira. É uma promessa que não posso quebrar. Morfeu esperou demais por meu retorno. Não posso decepcioná-lo.

A dúvida ergue sua cabeça horrível: o que farei? Não consigo me mover, não consigo me livrar... não sem o antídoto. Um vazio dói por trás dos meus canais lacrimais enquanto desejo que uma enchente me liberte e encha toda a minha caixa com um oceano de lágrimas para me salvar do fogo. Mas meus olhos podiam muito bem estar cheios de areia.

Chega de drama, meu amor. Use sua mágica. Improvise e encontre uma forma de escapar.

Não tenho certeza se é a voz de Morfeu na minha cabeça ou se é minha própria voz. Ouvi o sotaque dele e sua insistência tantas vezes ao longo da vida que eles estão entranhados em mim como se fossem meus.

Seja qual for o caso, isso desperta minha determinação. Há um motivo para eu ter vindo a este lugar na noite passada, quando tudo estava escuro e em silêncio: para poder anotar mentalmente todas as coisas que poderia animar se precisasse. Para poder entender a logística do forno crematório. Para poder usar minha mágica às cegas.

Concentro-me no maquinário da esteira. Aprendi uma coisa ou outra sendo esposa de um mecânico. As molas do mecanismo se contraem enquanto as imagino se retraindo. O movimento aciona as amarras e a porta de metal se fecha com um baque. Minha caixa para imediatamente ao atingir o obstáculo.

— Você só pode estar brincando comigo — resmunga Brian. Ele mexe na maçaneta da porta e bate nas dobradiças. — Pronto. Agora, sim.

Ele empurra meu caixão de volta para a esteira de metal, criando espaço para a dobradiça se abrir. Minha mente procura outra forma de detê-lo quando o ouço gritar “Mas o que é que...?”, pouco antes de ouvir o som do seu corpo caindo no chão. O caixão bate na porta fechada novamente.

— Rainha Alyssa — uma voz fina soa do outro lado do papelão.

Nikki, sua fadinha maravilhosa. Um formigamento se irradia pelos meus lábios, o fantasma de um sorriso esperando para se abrir. Meus dedos dos pés se dobrariam de empolgação, não fosse minha paralisia.

A tampa do caixão se abre e as asas de vinte fadas pairam ao redor do meu rosto — lufadinhas de vento com cheiro de canela e baunilha.

Mãozinhas do tamanho de joaninhas seguram minhas pálpebras, abrindo-as diante de um brilho âmbar. Ainda não consigo virar a cabeça, mas pela minha visão periférica a galhada do Rábido aparece sobre a borda do caixão, seguida por um par de olhos rosados brilhantes.

— Atrasado estou — desculpa-se ele.

Tento menear a cabeça, mas não consigo.

Todo o seu rosto aparece diante de mim.

— Arrumá-la, Alteza. Levá-la para casa, finalmente.

Casa. A palavra passeia por minha mente, cheia de promessas e esperanças. Imagino-me voando com Morfeu pelos cenários bizarros e irregulares do País das Maravilhas. Como vai ser bom me sentir pertencente a um lugar de novo. Fazer parte e nunca ter de abandonar ninguém novamente.

O Rábido estica o braço magro e derrama em minha garganta algo de uma garrafa vermelha. Um leve toque de frutas vermelhas misturado a menta arde em minha língua. Meu coração ganha vida, batendo com tanta força contra meu esterno que eu perco o fôlego. Em pouco tempo, sou capaz de abrir os olhos sem a ajuda das fadas. Elas se dispersam com risadinhas e pairam ao redor do adormecido operador do crematório, caído no chão de cimento.

Pisco com força e rapidez. Meus canais lacrimais funcionam e meus olhos se enchem de água. O sal fere e coça.

Depois, meus dedos dos pés e das mãos latejam e os músculos despertam, moles e resistentes, como elásticos esticados demais. Enquanto me sento, minhas velhas articulações estalam.

O Rábido sobe na beirada da inclinação e segura o caixão, mantendo-o ao meu nível.

— Perdoe o Branco Rábido. Para todo o sempre, ao seu lado estarei.

Acaricio sua cabeça macia.

— Nenhum perdão é necessário. O que importa é que você está aqui agora. Alguém o viu saindo do banheiro?

O Rábido faz que não.

— A mosca no muro ficou de olho no futuro. — Ele ri da rima e aponta para a parte de cima da porta que ostenta a única janela do salão. A mosca anda pelo vidro do outro lado, numa demonstração de sua devoção inabalável.

O Rábido abre o sorriso sorrateiro que aprendi a apreciar, enquanto sua mão esquelética me entrega uma mochilinha. Olho dentro e está tudo ali: meu colar com o rubi, minha aliança de casamento, os trajes de disfarce, um saco de cinzas e pedacinhos de osso, uma muda de roupa, uma faca e três lembranças da minha vida humana que serão as únicas coisas que levarei comigo ao transpor os limites do País das Maravilhas.

Primeiro, coloco o colar em volta do pescoço e aperto a chave contra o peito, saboreando o poder que ela contém.

O operador do crematório ronca no chão. Ele parece com frio e nada confortável, mas sei que não está. Seus sonhos são cálidos e sensuais. As fadas voam ao redor dele, as asas batendo à velocidade de beija-flores, enquanto elas espalham partículas que são como dentes-de-leão cheios de feromônios. As sementinhas caem sobre o rosto sorridente do homem, levando seu inconsciente a imaginar as fantasias mais carnais. Torço o nariz, com vergonha até de imaginar o que ele está sonhando. Ele provavelmente vai ter uma ressaca de sonhos por uma semana.

Ainda que ele não vá sofrer nenhum efeito físico duradouro, as fadas estão explorando os pensamentos secretos dele. Quando eu era mais nova, teria me arrependido de tê-lo usado em meu plano. Agora, não. Quando ele acordar, daqui a mais ou menos uma hora, sua dor de cabeça insuportável o impedirá de questionar como conseguiu me cremar enquanto ele dormia. Ele só irá querer uma aspirina e sua cama macia em casa.

O fim justifica os meios.

Uso a faca para cortar uma abertura na lateral do caixão e tirar minhas pernas, lenta e cuidadosamente. Não consigo me mover tão rápido quanto antes. Meus pés descalços tocam o chão frio, o vestido de papel fazendo barulho. O Rábido se vira de costas enquanto tiro o vestido e o jogo dentro da caixa, depois visto um moletom e botas cinza — as roupas mais confortáveis e discretas do meu armário. Repreendo-me por me esquecer das roupas íntimas, mas não importa o que estou vestindo agora, porque no País das Maravilhas Morfeu encheu todos os armários do castelo com camisolas e lingeries de renda, cetim e veludo — um guarda-roupa digno de uma rainha.

Hoje, o disfarce esconderá meu traje simplório. Coloco o pé no tecido mágico. Para virar uma camaleoa, só preciso vestir o capuz e me concentrar nos arredores, meu corpo refletindo o cenário de fundo.

Mas primeiro...

Sem eu nem pedir, o Rábido me entrega o saco de cinzas e ossos e minha aliança de casamento. Olho o anel. Jeb o fez para mim quando tinha a capacidade mágica de pintar coisas e lhes dar vida. Quando sua musa se tornou uma entidade viva. Ele me serviu tanto como anel de noivado quanto como anel de casamento e era indestrutível. Pelo menos era o que pensávamos. A única vez que ele perdeu um de seus doze diamantes foi por descuido da minha mágica, quando eu a estava praticando.

Estava do lado de fora da nossa casa de campo, tentando fazer o salgueiro dançar, quando o diamante caiu na grama. Procuramos e procuramos, mas nunca o encontramos. Depois de uma semana, ele apareceu de novo, nascendo do solo na forma de uma flor parecida com vidro. Era como se o diamante fosse uma semente, tendo dentro de si a força da criação mágica de Jeb.

O cheiro de terra presente na lembrança dá lugar ao cheiro do propano do forno. Abro o saco e derramo as cinzas e ossos no caixão, mantendo os movimentos metódicos e precisos para a nostalgia não tomar conta de mim novamente.

Depois de esvaziar o saco, beijo minha aliança e a coloco em cima do montículo.

— Rábido, derreta isso com sua mágica.

Meu conselheiro real se aproxima, olha pela abertura e estreita seus olhos brilhantes até que eles irradiem um calor vermelho. Enquanto ele se concentra, as faixas de prata se fundem, reduzindo os onze diamantes a cinzas.

Coloco a placa de identificação dentro do caixão e leio o que está gravado no aço: Alyssa Victoria Gardner Holt. Sinto um nó na garganta. É a última vez que meu nome humano me definirá.

Reposicionando a tampa, ordeno que o mecanismo da porta funcione. Entrefecho os olhos diante do calor e das chamas, enquanto as portas se abrem o bastante para eu empurrar o caixão pela esteira, a porta se fechando em seguida. Ela se fecha completamente, tanto que nem mesmo se pode ver o brilho alaranjado lá dentro.

Alguns segundos mais e eu estaria presa ali. Agora, depois que o papelão se queimar todo, vai parecer que eu estava. As prateleiras de metal na parede contêm vários cubinhos de papelão. Dentro estão os restos mortais dos corpos que vieram antes de mim e agora esperam ser transferidos para suas urnas.

Mas meus “restos mortais” são únicos. Os diamantes de Jeb esperam lá dentro — sementinhas mágicas. Quando as cinzas forem lançadas no lugar onde as dele foram absorvidas na terra sob nosso salgueiro, flores nascerão, uma parte dele e minha. Unindo o que restou de nosso lado humano, numa última homenagem a toda a beleza que ele criou durante a vida.

Seguro-me para não chorar e pego a mochila enquanto o Rábido veste outro traje de disfarce, o qual encolhe até caber em seu corpo de coelho. Mentalmente, pergunto à mosca se o corredor está livre.

Ela responde num sussurro:

Está tudo bem, Rainha Alyssa...

Os outros humanos se foram. Não há nada além de umas traças por aqui.

Desnecessário ficar invisível, então.

— Nikki — sussurro, e a fadinha balança as asas, soltando a dose final de pó de fada no homem adormecido. Então ela reúne suas companheiras e nos segue porta afora. O banheiro fica a poucos passos do outro lado do corredor comprido e escuro. Sigo tomando cuidado para não esmagar as traças que caminham perto dos meus pés e dos pés do Rábido. Sorrio ao ver os insetos acompanhados de uma fila enorme de baratas, besouros e aranhas.

Rainha Alyssa! Rainha Alyssa! Tão triste vê-la partir...

A mosca voa ao redor da minha cabeça, acrescentando suas despedidas à confusão.

— Sentirei saudade de vocês também — digo, lutando contra uma onda de melancolia. Será a última vez que ouvirei esses cumprimentos confusos e zunidores. No País das Maravilhas, os insetos são... bem diferentes. Menos inócuos e bonzinhos. Alguns são maus e letais, e nada pequenos. Mas conheço todos os segredos deles e todas as suas fraquezas — graças ao sábio guardião do País das Maravilhas.

Nosso desfile entra no banheiro e para diante do espelho. Em vez de me ater à minha aparência velha e enrugada, imagino o relógio de sol que cobre a toca do coelho em um jardim londrino. O vidro racha como gelo no lago e, no reflexo entrequebrado, o relógio de sol aparece, marcado por uma réstia de pôr do sol rosa. É cedo e ninguém ocupa a trilha ainda. Como precaução, visto o capuz e o Rábido faz o mesmo.

Só precisamos de um ou dois pensamentos sobre nossas cercanias e seremos invisíveis.

Usando minha chave, miro numa fissura na forma de buraco de fechadura, minúsculo e intrincado.

O portal se abre. O Rábido me cutuca com seus dedos magros e entrelaço meus dedos aos dele. Junto com as fadas e nossos insetos companheiros, passamos pela abertura liquefeita. Uma brisa fria me atinge, assim como o cheiro de mato e rosas cobertos de orvalho reluzente.

Os botões de rosa dizem:

Bem-vinda, Majestade. Os anos ficaram para trás. Logo você estará desabrochando como nós novamente.

Sorrio. O Rábido me puxa rumo ao relógio de sol que já expõe a toca do coelho. Ele está ansioso para ir embora. Mais insetos se juntaram a nós; alguns pelo terreno: besouros, centopeias e escorpiões; outros pela brisa: borboletas, mariposas, vaga-lumes...

Saem em enxame do mato e ficam dando a volta em mim e em meu conselheiro real — um arco-íris encantado, espesso e brilhante, sob a luz rosada do céu.

As borboletas cantam:

Vida longa à Rainha Alyssa. Que você seja para sempre jovem, louca e livre.

Muitos deles pousam sobre mim, as asas acariciando meu rosto e pescoço através do traje de disfarce, e percebo que não terei mais de me tornar invisível. Meus amigos insetos estão aqui para me dar proteção, como sempre estiveram.

O Rábido me solta, seus dedos de cadáver tocando os meus enquanto ele segue as fadas e mergulha na toca do coelho sem olhar para trás.

— Atrase-se não, Majesta-a-a-ade — o grito do Rábido ecoa até mim, afastando-se mais e mais à medida que ele desce, sem peso, como uma pena ao vento.

Ao contrário do meu séquito interior, não consigo ir embora sem uma olhada para trás.

Paro, olhando em meio à nuvem de milhares de asinhas adejando diante da paisagem tremeluzente no horizonte. Meu peito se aperta.

Pego as lembrancinhas da minha mochila. Três garrafas de vidro decoradas: a primeira cheia de pedrinhas, a segunda com conchas e a última com um pó prateado. Uma olhada nas três e as lembranças contra as quais eu lutava iluminam minha mente, graciosa e lentamente, como a aurora invadindo o mundo imóvel que desperta.


CONTINUA

A MARIPOSA NO ESPELHO


Capítulo 1


As Maquinações
da Mariposa

— Tem certeza, Morfeu?

— Tenho — respondeu Morfeu, tirando as luvas e enfiando-as no casaco. — Você, entretanto, parece que precisa ser convencida.

A magia pulsava nervosamente na ponta de seus dedos, uma luz azul pulsante logo abaixo da pele. Por causa da ponte de ferro que havia lá fora, seus poderes estavam limitados a alguns truques inofensivos, mas suficientes para dar o seu recado, se necessário.

O besouro-tapete — que de tão grande chegava à altura dos ombros de Morfeu, depois de este haver tomado uma poção encolhedora — engoliu em seco por trás de suas muitas mandíbulas estalantes. Sua pele carpetada tremia.

— Não, não. Por favor, o senhor interpretou mal as minhas ressalvas. — Os braços ramosos do inseto vibravam enquanto ele folheava as marcações em ordem alfabética de sua prancheta, as quais continham todas as lembranças perdidas no País das Maravilhas. — É que ficar espiando os momentos esquecidos de um ser humano parece uma maneira tediosa de se passar uma tarde, só isso...

Morfeu mudou de posição, e suas asas lançaram uma sombra sobre a cara do besouro.

— Ah, mas este humano, em especial, tem muito a me ensinar.

Esse humano, em especial, havia conseguido capturar algo que Morfeu desejava mais que tudo neste mundo.

— Sente-se — disse o inseto, apontando para uma cadeira branca de vinil —, e eu prepararei as memórias para o senhor.

Morfeu jogou as asas para o lado, sentou-se e deu uma tragada no narguilé fornecido por seu anfitrião como cortesia. O tabaco doce e fresco passou ardendo pela sua garganta. Ele soprou baforadas de fumaça no ar, formando com elas o rosto de Alyssa. Era fácil imaginar o modo como seus olhos sempre se cobriam de um azul gélido quando ela o via, cheios de excitação e temor ao mesmo tempo. Adorava isso nela: a sagacidade de seus instintos intraterrenos alertando-a a não confiar nele, suavizada pelas emoções humanas forjadas durante a infância que passaram juntos.

Antes dela, Morfeu levara a vida em solidão, sem nunca precisar de ninguém. Ele não fazia a menor ideia do feitiço que ela lhe lançara. Ela era mais que uma decepção, sempre jurando devoção ao lado errado. Seu encanto, porém, era inegável. Principalmente quando ela o desafiava ou o encarava com sua indignação de justiceira, o que a deixava com os lábios deliciosamente posicionados quando rangia os dentes.

Morfeu colocou o narguilé de lado, embora a sensação de queimação em seu peito não tivesse nenhuma relação com o fumo. Alyssa era a única que poderia aplacar o incêndio que havia ali, pois fora ela quem havia atiçado aquelas chamas.

Os dois tinham passado cinco anos juntos — como amigos de infância —, até que a mãe dela a arrancou dele, Alyssa sangrando e ferida, e ele ficara se remoendo de remorso e com culpa por causa de um juramento imprudente que havia feito, no qual prometeu se manter longe dela.

Manter-se afastado da amiga fez com que ele sentisse o gosto da solidão pela primeira vez. Mesmo todos os anos de claustrofobia que ele passara aprisionado em um casulo antes de encontrá-la... nem mesmo eles o prepararam para o sofrimento da ausência dela.

Então, por fim, ela havia voltado para ele, fazendo-o reviver todos os antigos sentimentos que ele pensava ter dominado. Daquela vez, também, tudo foi muito rápido. Ela partira novamente, por escolha própria. Restaram a dor e a solidão excruciantes. Debilitantes.

Havia apenas seis meses que ela partira do País das Maravilhas, e ele não compreendia este vazio corrosivo que só poderia ser preenchido pelo toque dela, por seu perfume, sua voz. As solitárias criaturas mágicas não ligavam para essas bobagens; não precisavam de companhia, abominavam a bagagem emocional. Sua afeição e lealdade pertenciam ao agreste País das Maravilhas e a nada nem a ninguém mais.

Então o que ela havia feito para mudar isso?

Ultimamente, cada vez que ele via o próprio reflexo, não mais reconhecia a Mariposa no espelho. Estava incompleto, enfraquecido; e menosprezava isso.

O menosprezo era ainda maior porque ele havia se esforçado tanto para cortejá-la, enquanto ela oferecia seu afeto a um reles mortal.

Morfeu suprimiu um rosnado. Ele não conseguia compreender a sorte de Jebediah, como um humano podia ter tanto poder sobre uma rainha intraterrena. Como um simples rapaz era capaz de controlar um coração real e mestiço tão multifacetado, um espírito propenso ao pandemônio e à loucura. Jebediah puxava Alyssa para baixo, acorrentando-a ao tédio e à banalidade do reino humano.

Ela precisa ser libertada.

Morfeu havia considerado a possibilidade de matar seu rival, mas Alyssa jamais o perdoaria. Não. Chegara o momento de tomar medidas criativas.

Se Morfeu soubesse no que Jebediah havia pensando durante sua jornada pelo País das Maravilhas — todos os momentos em que ele se sentiu mais aterrorizado, mais desanimado —, conheceria as fraquezas e as forças do mortal, intimamente. Ele saberia como enfraquecer Jebediah, contrapondo-o a si mesmo.

Essas fraquezas o derrotariam melhor do que Morfeu o faria. E depois, quando tivesse destruído a confiança de Alyssa em seu cavaleiro mortal, Morfeu estaria lá para confortá-la e conquistá-la.

Voltaria a ouvir a risada de Alyssa do modo como ela ria quando os dois eram crianças, e teria de novo a oportunidade de ser presenteado com o seu sorriso deslumbrante.

Ele voltaria a ser completo.

— Por aqui, por favor — pediu o besouro para que Morfeu o seguisse.

Morfeu tirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo. Quando o inseto abriu a porta para um compartimento de memórias sem janelas, o cheiro de amêndoas vindo de uma travessa de biscoitos de luar fresquinhos que estava em uma mesa de canto se espargiu no ar. Havia uma chaise-longue na cor creme colocada contra a parede, e uma ornamentada luminária de piso feita de latão iluminava o espaço com uma luz discreta.

Morfeu concentrou-se no pequeno palco do outro lado do compartimento. Sentiu o coração palpitar de ansiedade num ritmo profundo e firme. As cortinas de veludo vermelho aguardavam o momento de se abrirem para mostrar as memórias de Jebediah na tela prateada.

— Como o senhor entrará na cabeça do rapaz para visitar suas lembranças perdidas, sou obrigado pelas normas a avisar-lhe que... as emoções humanas podem ser muito poderosas... podem nos fazer ver as coisas sob uma perspectiva totalmente diferente — advertiu o besouro.

— Estou contando com isso. — Morfeu deu um sorriso afetado. — Conhece aquele ditado sobre amigos e inimigos?

O besouro coçou a pele enrugada.

— Hum... mantenha seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda?

Morfeu acomodou-se na cadeira estofada e alisou a calça risca de giz ao cruzar as pernas apoiando um tornozelo sobre o outro.

— Melhor ainda é se colocar no lugar de seu inimigo. É a melhor maneira de controlar seus passos. Ou de apagá-los, caso tenha a oportunidade.

O besouro, voltando a tremer, esticou o braço fininho e apertou um botão na parede. As cortinas do palco se abriram, revelando uma tela de cinema.

— Imagine o rosto do rapaz enquanto olha para a tela em branco e vivenciará o passado dele como se fosse hoje.

As palavras do besouro eram ensaiadas, até mesmo mecânicas, mas a pulsação de Morfeu ficou acelerada. Ele esperou o besouro desligar a luz. Assim que o inseto saiu e fechou a porta, o corpo de Morfeu desmembrou-se nas juntas, flutuando pela escuridão como se fosse feito de partículas de pó. Todos os seus pedaços se uniram novamente na tela prateada, em cores vivas e cinematográficas, até que ele entrou na cabeça de Jebediah, apropriando-se do seu corpo, sentindo suas emoções.

Naquele momento, Morfeu entregou-se à experiência e, pela primeira vez na vida, passou a ver as coisas como um humano.


Capítulo 2


Primeira Lembrança —
Kriptonita

Jeb acordou em uma cama suspensa.

Estava nu. Por que estava nu?

Antes que esse fato pudesse ser totalmente registrado, trinta fadas ou mais, do tamanho de mariposas, surgiram do ar, acariciando cada parte do seu corpo e sussurrando-lhe. Ele tentou mexer os braços e pernas. As asas das fadas — que batiam na velocidade das asas de um beija-flor — liberavam partículas parecidas com as pétalas delicadas de um dente-de-leão, que, de alguma maneira, o imobilizaram. As sementes exalavam um perfume de canela e baunilha que foi inundando sua consciência, até que a sala ficou totalmente fora de foco.

Quando a névoa se dissipou, ele estava em sua cama, em casa. A noite adentrava pela janela e Taelor estava em cima dele, seminua. A unhas pintadas à moda francesinha percorreram os pelos de seu peito e abdômen, dirigindo-se ao cós de sua calça jeans.

Aquilo não podia ser verdade. Taelor e ele tinham brigado antes do baile de formatura, haviam terminado tudo.

Com delicadeza, ele a virou, colocando-a debaixo dele, e apoiou-se nos cotovelos, afastando o cabelo do rosto dela. Mas não foram os olhos de Taelor que encontraram os dele. Foram os olhos gélidos e azuis de Alyssa — encarando-o com um ar de admiração e inocência. Os dedos dele pareciam grandes e desajeitados nas têmporas dela.

A Al na cama dele?

Não. Isso não podia acontecer. Alyssa nem havia beijado homem algum. E Jeb nunca tinha sido o primeiro de nenhuma garota.

A Al era intocável para ele. Ela já passara por muitos episódios turbulentos em sua vida. E ele não era exatamente um exemplo de estabilidade.

Ele tirou as mãos dela e ficou de joelhos.

— Jeb, você não me quer? — perguntou Al, passando a mão no peito dele.

Ele não conseguiu responder. Seus dedos coçavam e pareciam esticar-se, como se estivessem crescendo. Ele ergueu as mãos sob o luar, observando, horrorizado, seus dedos caírem, um por um, e se metamorfosearem em lagartas. As lagartas, então, avançaram lentamente na direção de Alyssa, e ele não conseguia fazer nada para detê-las. Jeb caiu de costas na cama, com as mãos sobre o rosto, olhando fixa e incredulamente para os tocos crus e cheios de sangue onde antes estavam seus dedos.

Gritando, Alyssa tentou sair do colchão, mas as lagartas a pegaram, arrastando-se por sua pele e tecendo teias, até que restou somente uma forma se agitando dentro de um casulo.

— Soltem ela! — gritou Jeb. Uma luz lampejou em seus olhos, e então ele já não mais se encontrava em sua cama. Estava em algum lugar da mansão de Morfeu, e as fadas percorriam sua pele, hipnotizando-o... usando algum tipo de feromônio alucinógeno.

Elas estão me segurando aqui para que o Morfeu fique sozinho com a Al. No instante em que a realidade foi percebida, o feitiço foi quebrado.

Jeb pulou rápido da cama suspensa e saiu da nuvem de sedução de suas captoras. Pegando um travesseiro, ele se cobriu.

— Quero alguma coisa para vestir!

As fadas flutuavam no ar, seus olhos de libélula observando-o.

Havia várias cestas douradas no chão perto dos pés dele. Jeb chutou uma. Suas pequenas captoras se espalharam pelo ar, em histeria coletiva.

Gossamer, a fada predileta de Morfeu, designou cinco delas para pegar os morangos que rolaram. Elas contaram as frutas uma por uma e as colocaram de volta na cesta.

Jeb chutou outra cesta cheia de contas de óleo perfumado. Outras cinco fadas lançaram-se ao chão para pegar tudo, parando para contar cada conta antes de guardá-la.

Em pouco tempo, ela já havia chutado todas as cestas. Algumas estavam cheias de pétalas de flores, outras continham loção, outras, ainda, uvas. Ao virá-las, ele conseguira manter a maioria de suas captoras preocupada. Apenas Gossamer e outras duas ainda pairavam em torno de sua cabeça.

— Me deem algo para vestir — repetiu ele —, ou vou começar a tirar as plumas dos travesseiros. Vocês não estão em número suficiente para limpar uma sujeira dessas.

— Ele não está respondendo ao nosso feitiço — murmurou uma das fadas para Gossamer, com seus olhos de inseto voltados para Jeb.

— E nem à nossa magia — acrescentou a outra, amuada. — Eu conjurei uma moça das lembranças dele, mas seu subconsciente conseguiu escapar.

— Sim, este aqui é, sem dúvida, um desafio — concordou Gossamer, numa voz que tilintava feito um sino. Depois de mandar as outras duas fadas recolherem o conteúdo da última cesta, ela ofereceu a Jeb um robe de seda.

Ele se virou de costas e enfiou a peça de roupa no corpo, assimilando os arredores.

Morfeu o colocara em uma prisão opulenta. A sala era toda revestida de piso de mármore preto que refletia a luz laranja dos candelabros. Ele já estava bem familiarizado com o ponto focal: um colchão circular balançante preso por correntes douradas no centro do teto côncavo. Peles e almofadas forravam a cama, perfumadas por pétalas de rosa.

Apesar de todos esses confortos, faltava a essa sala um detalhe muito importante: uma saída. Não havia portas, janelas ou qualquer outra abertura à vista.

Paredes convexas — pintadas em cor de lavanda escura — eram cobertas por parreiras que se estendiam por toda a sua circunferência, entrando e saindo do reboco e se entrelaçando nos candelabros acesos. Frutas brotavam das vinhas. De quando em quando, as uvas explodiam espontaneamente e pingavam seu suco dentro de bacias de pedra posicionadas ao longo das paredes para apanhá-lo. E, delas, um líquido viscoso e purpúreo era drenado para dentro de fontes — um abastecimento constante de vinho de fadas com aroma adocicado.

Ele se lembrava vagamente de ter provado o vinho ao chegar. Desconfiado, tentou resistir, mas estava com muita sede. Era impossível saber que tipo de magia havia no líquido.

Jeb gemeu e esfregou o rosto. Quanto tempo teria passado bêbado e enfeitiçado? Ele acabara sendo inútil para Alyssa, assim como o pai dele teria sido.

— Onde ela está? — perguntou ele, ignorando a harpa que tocava sozinha, a qual, na tentativa de abafar-lhe a voz, começou a tocar mais alto. — Me diga o que Morfeu está fazendo com ela.

Minúscula, reluzente e confiante, Gossamer acomodou-se em uma almofada de cetim, passou a mão pelo colchão ao seu lado e cruzou as pernas apoiando os tornozelos verdes um sobre o outro.

— Talvez você não perceba o que nós, as fadas, somos capazes de fazer. Temos séculos de prática. Podemos lhe mostrar um êxtase com o qual você sempre sonhou.

Jeb a olhou de cima a baixo e ajustou a faixa de cetim em sua cintura.

— Me desculpe, não sonho com coisas verdes.

Ele encontrou a mochila de Alyssa debaixo da cama e a puxou. Jeb havia notado alguma coisa dentro dela anteriormente, quando a vasculhara em busca de outra coisa: uma pulseira de ferro forjado que ela provavelmente havia enfiado na mochila quando ainda estava na escola e ficara esquecida ali. Ele havia pesquisado muito as fadas quando começou a pintá-las, e sabia que elas não gostavam de ferro — se a lenda fosse verdadeira.

Jeb jogou a mochila sobre o colchão. Os cobertores de pele encresparam-se feito uma onda gigante e derrubaram Gossamer de sua almofada. Acionando suas asas com rapidez, ela pousou sobre o ombro de Jeb.

— Se é Alyssa que inspira suas paixões, podemos realizar essa fantasia. — Gossamer bateu palmas. As outras largaram seus postos de limpeza e se apressaram a formar um círculo em volta de Jeb. Uma onda de enjoo lhe invadiu o estômago quando todas as fadas assumiram a aparência de Alyssa — réplicas perfeitas em miniatura, com cabelo platinado e roupas sensuais de skatista. Elas liberaram novamente suas sementes de feromônios, cegando-o com o perfume de Alyssa, doce como néctar.

Brandindo uma almofada, Jeb rompeu a ilusão e dissipou as sementes. As fadas saíram aos guinchos e foram se esconder nas vinhas das paredes, com seus corpos brilhantes parecendo cordões de luz branca e piscante.

Gossamer pairou no ar acima dele, ralhando.

— Já chega! Informem o nosso mestre de que o mortal é leal à garota. Não podemos seduzi-lo para que volte ao seu mundo sem ela.

Jeb ficou resmungando, enquanto as fadas se esgueiravam por buracos do tamanho de ervilhas, na parede onde as vinhas entravam e saíam. Se ao menos ele pudesse passar por aquelas pequenas saídas também... Chegou a pensar em usar a poção encolhedora que ele e Alyssa tinham encontrado quando chegaram ao País das Maravilhas, mas ela o deixaria tão pequeno quanto suas captoras, e ele ficaria indefeso contra Morfeu. A impotência lhe fervia as entranhas, tão profunda como a que ele sentia quando era criança, escondendo-se em um armário até que passassem os ataques de fúria do pai.

Ele cerrou os dentes. Tinha de haver uma passagem escondida em algum lugar por trás das vinhas. Elas o tinham trazido para cá; devia haver uma saída.

Subitamente, ele deu um pulo para a parede mais próxima e arrancou algumas vinhas, lançando-as para todos os lados. O diminuto guincho de surpresa de Gossamer não o intimidou.

Uvas explodiam em suas mãos, libertando seu aroma potente e denso. As plantas viscosas cortavam seus dedos feito arames. Jeb aceitou a dor. Era algo que podia controlar — diferentemente do tormento dos cigarros acesos que seu pai lhe enfiava na pele, ou dos punhos que lhe socavam o rosto e o estômago. O cheiro da nicotina, o gosto de sangue. Imaginação ou não, eles alimentaram o selvagem em sua alma.

Ele mergulhou numa espiral vermelha de fúria e devastou a sala. Quando finalmente voltou a si e recostou-se na cama, ficou chocado com os estragos que causara.

Arfando e suando, ele cuidou dos cortes nas junções dos dedos e vasculhou os destroços à procura de Gossamer. Será que a tinha machucado? Se sim, talvez fosse mesmo filho de seu pai.

Jeb cerrou os punhos, descontente consigo mesmo.

— Gossamer? — Ele se encolheu ao ouvir a própria voz, rude e inflamada de emoção.

Um rufar de asas mexeu uma das correntes que prendiam a cama ao teto. Ele respirou, aliviado ao ver a fada. Embora parecesse meio idiota importar-se, já que estava prestes a usar a pulseira de ferro de Alyssa contra ela.

Gossamer pousou no chão ao lado das vinhas rasgadas e das cestas que ele tinha derrubado de novo; seus ombros estavam caídos, em demonstração de derrota. Provavelmente, ela não sabia por onde começar a calcular todos os conteúdos derramados.

Jeb começou a vasculhar a mochila. A harpa havia parado de tocar, e o silêncio o incomodava feito o ruído dos ponteiros de um relógio. Cada segundo que ele passava longe de Alyssa deixava-a mais vulnerável a Morfeu.

Seus dedos finalmente encontraram um metal frio. Ele jogou a pulseira de ferro na direção de Gossamer, mas mantendo alguma distância, na esperança de enfraquecê-la sem machucá-la.

Ela gritou e lançou-se ao ar, se debatendo.

— Por favor... afaste isso.

— Não até eu conseguir algumas respostas. — Jeb segurou uma das asas dela entre o indicador e o polegar, levando-a para a cama e sentando-a sobre uma almofada, tomando o cuidado de manter a pulseira próxima o bastante para intimidá-la. — Basta cooperar, que eu não vou machucá-la.

— Já está machucando. — Ela gemeu, com a pele esverdeada já tingida de turquesa. — Não posso usar minha magia... — Gossamer bateu as mãos no próprio rosto. — Vai me deixar... horrível. Abster-me. — Sua voz ficou mais calma, como se estivesse falando consigo mesma, e, rangendo os dentes, continuou: — Abster-me até a ameaça de dor e contaminação passar.

Jeb franziu a testa.

— Então o ferro vira seus poderes contra vocês? É a arma perfeita para usar contra seu chefe.

— Um objeto desse tamanho... só funciona com os menores de nossa espécie.

Jeb curvou-se, aproximando ainda mais a pulseira dela.

— Muito bem, então considere isso um detector de mentiras. Toda vez que eu perceber que você está fingindo, aproximarei o ferro. Onde está a Al, e o que o seu chefe repugnante está fazendo com ela?

A cor da fada mudou para um verde azulado. Ela rolou sobre a almofada, as asas lutando para bater. Gossamer as puxou por cima dos ombros até a altura do peito, cruzando-as, como se quisesse conter a sua magia.

— A sua Alyssa está confortável e sendo bem cuidada. Morfeu está zelando pelo sono dela...

Jeb soltou um grunhido. Na noite passada, ele havia zelado pelo sono dela, no barco. Mudara a posição do corpo dela para que pudesse olhá-la de frente e fazer uma promessa, mesmo que Alyssa estivesse sonolenta demais para ouvi-lo. Jeb havia prometido que a protegeria, que a levaria para casa a salvo. E não iria quebrar sua promessa agora.

Ele precisou resistir ao desejo de destruir a sala novamente.

— Como eu saio daqui?

— Apenas o Morfeu tem os meios para abrir a passagem.

Jeb inclinou-se para a frente, com o nariz quase tocando o rosto de Gossamer enquanto segurava a pulseira sobre a cabeça dela, como se fosse um objeto corrosivo.

— Está dizendo que estou preso aqui até que aquela barata de asas decida me soltar? Ele vai fazer a Al enfrentar o País das Maravilhas sozinha?

Ela choramingou, levando a mão à testa.

— Não. Como você provou ser leal, ele permitirá que a acompanhe em sua jornada. Você comparecerá ao banquete e traçarão os planos.

— Banquete?

— A apresentação de Alyssa. Morfeu deseja exibi-la aos outros.

— Que outros?

Gossamer deixou-se cair, formando um monte de cor púrpura e em seguida saiu depressa de seu poleiro. Ela puxou alguma coisa de dentro da almofada — um desenho de Al que Jeb não se lembrava de ter feito. Lentamente, Gossamer levantou os joelhos e estudou as linhas.

— Você fez isto enquanto estava sob nosso feitiço. Tem poder dentro de seu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Você captou o interior de Alyssa com perfeição.

— Esse desenho é pura fantasia — resmungou Jeb. Ele colocou a pulseira de ferro sobre o papel ao lado de Gossamer.

Ela rolou para o meio do desenho, tentando escapar do metal.

— Há mais verdade nesta aparência de Alyssa do que em qualquer coisa que possam me forçar a falar.

Jeb puxou o desenho, fazendo Gossamer e a pulseira de ferro rolarem por cima da pelugem. Ele estendeu o desenho sobre uma almofada e percorreu as linhas de carvão com o dedo. A imagem era igual a todos os outros desenhos de fadas que ele havia feito de Al ao longo dos anos, mas, ainda assim, não poderia ser mais diferente da garota que ele conhecia.

Ele a desenhara com o cabelo preso no alto da cabeça. Al nunca usava o cabelo daquele jeito. Um vestido preto de alcinhas realçava suas curvas. Nem morta ela seria vista em um vestido tão convencional. E a única coisa que se parecia com ela eram as luvas de renda preta sem dedos que cobriam as cicatrizes da palma das mãos.

Fora isso, o desenho era uma fantasia completa. Sentada em um banco de jardim, Al segurava uma rosa. Rímel e lágrimas escorriam em curvas graciosas por seu rosto. Pensando bem, se parecia com a maquiagem dela na última vez que ele a vira.

Ele ainda não conseguia entender por que, depois de quase se afogar em um oceano de lágrimas, o rímel de Alyssa não havia borrado. Apertando os olhos, ele estudou o par de asas translúcidas abertas nas costas dela. As membranas finas tremeluziam sob o único raio de sol que atravessava as nuvens. As asas faziam com que se sentisse estranho, mas Jeb não conseguia perceber a razão.

Talvez porque elas lembrassem as asas de Morfeu, embora tivessem uma cor totalmente diferente. As têmporas de Jeb latejaram. Nada poderia ser pior do que Alyssa sozinha com aquele homem-inseto. Aquele doido tinha algum tipo de poder sobre ela, havia entrado em sua cabeça quando ela era pequena. O subconsciente pode ser muito poderoso, e se Morfeu ainda tivesse acesso aos sonhos da Al...

— Como posso derrotá-lo? — perguntou Jeb com um nó na garganta.

Os olhos bulbosos de Gossamer voltaram-se para os dele. Ela estava fraca demais para se arrastar para longe da pulseira, que agora roçava sua coxa.

— Ele não será derrotado. Há anos ele espera por este dia.

Jeb fez cara feia.

— Muito bem, ele é o Super-Homem. Mas todo mundo tem a sua kriptonita. Algo de que sente medo.

— O confinamento — Gossamer deixou escapar, e, diante da confissão, seu corpo escureceu até ficar da cor de um machucado.

— Como assim?

Gossamer levou o dorso da mão à testa.

— Por favor... está muito perto... o ferro... está drenando minha energia.

Jeb caiu de costas no colchão e afastou a pulseira da fada. Equilibrando-o entre os dedos, ele estudou o ferro sob a luz das velas. A pulseira o lembrou de seu piercing de ferro e da primeira vez que Al o vira, sua reação de entusiasmo. Ela havia implorado para tocá-lo e fez várias perguntas sobre o processo de colocação de um piercing. Seu entusiasmo e ingenuidade, suas inseguranças... Morfeu não hesitaria em usar qualquer uma dessas coisas, ou todas elas, para manipulá-la.

Jeb precisava convencer Al a sair do País das Maravilhas, a esquecer esta jornada para quebrar a maldição de sua família, a qualquer custo. Algo muito tenebroso estava à espreita, bem perto dela, como no sonho que ele tivera. E Jeb podia sentir que, fosse lá o que estivesse para acontecer, estava se aproximando.

— Então vocês querem que ela conserte os erros da Alice original, certo? E se eu consertá-los? — Jeb tentou raciocinar. — Vocês enviam a Al para casa e deixam que eu cuide de tudo?

— Impossível — respondeu Gossamer num sussurro arfante, voltando à cor verde-clara. Engatinhando na direção do desenho, ela passou a pequenina mão sobre a rosa. — Ela já passou nos testes e provou ser a escolhida.

— Testes? Está se referindo a encontrar a toca do coelho para o País das Maravilhas e secar o oceano de lágrimas?

Gossamer fez que sim.

— Mas eu ajudei a fazer isso.

— É por ela que ele esperava. Não por você.

Jeb levantou a pulseira de ferro uma última vez.

— O que ele realmente quer dela?

Antes que Gossamer pudesse responder, o teto abobadado começou a tremer. Pedaços espessos de gesso despencaram no solo. Jeb colocou uma almofada sobre a cabeça e uma mão sobre Gossamer para protegê-la dos detritos. O teto se abriu nas emendas, fazendo a cama balançar e puxando as correntes em direções opostas, de modo que o colchão subiu vários centímetros.

Depois que os tremores passaram, Jeb olhou para cima. A silhueta escura de Morfeu apareceu em uma abertura no teto.

Sutileza era um dos últimos itens na lista de prioridades desse cara.

— Já te disseram que você é muito escandaloso? — rosnou Jeb.

Morfeu inclinou-se para olhar a sala destruída.

— Já te disseram que você é um péssimo hóspede?

Parte da responsabilidade daquela bagunça era da grandiosa entrada de seu aprisionador, mas Jeb mordeu a língua, não querendo arriscar sua oportunidade de ver Al.

Morfeu relaxou.

— Alyssa o aguarda na sala dos espelhos. E, por favor, tome um banho e faça a barba. Você será apresentado aos nossos convidados do banquete como um cavaleiro élfico, então precisa parecer como tal. Gossamer lhe dirá como se comportar adequadamente. — Morfeu largou algumas roupas e botas, que fizeram um ruído ao atingir o chão. — Aí está seu uniforme. — Ele fez uma pausa e apontou para as correntes. — Que pena que você não tenha asas e nenhuma magia intraterrena. Terá que sair daí sozinho. E posso assegurar que não será nada fácil.

Os músculos de Jeb se retesaram quando Morfeu sumiu de vista; ele sabia que o aviso se referia a muito mais do que sair daquela sala.


Capítulo 3


Segunda Lembrança —
Carnificina

Jeb limpou o suor da testa. Morfeu estava certo. A escalada para sair de sua prisão dourada seria mesmo difícil. Mas isso não significava nada se comparado à jornada pelo País das Maravilhas que ele e Alyssa haviam cumprido desde então. O dia inteiro tinha sido um desafio atrás do outro, com o perigo e a morte aguardando em cada esquina. E agora ele havia perdido a Al. Os dois tinham se separado pouco antes de ela completar o teste final. Al ficou enfrentando as irmãs Twid no cemitério, sozinha, e ele ficou preso aqui no fundo do abismo.

A noite já havia caído quando ele atingiu o solo, e foi uma transição extremamente rápida, como se alguém tivesse apagado a luz.

Jeb sentiu os músculos do corpo endurecerem. Odiava pensar na Al sozinha naquele mundo insano depois de anoitecer. E, mais uma vez, ela provou ser forte o bastante para encarar quase tudo. No final, foi ela quem o salvara mais de uma vez...

Ele se lembrou dela pairando acima dele — um brilho selvagem, flutuando com a graça de uma libélula. Ver as asas dela brotarem tinha sido ao mesmo tempo assustador e milagroso. Jeb mal conseguiu respirar enquanto observava a transformação.

Falando sinceramente, Jeb ainda não tinha recuperado o fôlego de quando ela o levara para dentro do abismo e ele gritara: “Você é minha corda de segurança!”, antes de ela subir ainda mais alto para o céu. Ele não deveria ter colocado tanta pressão sobre ela para salvá-lo; tinha que ter feito o que conseguisse para sair de lá por si próprio e encontrá-la no meio do caminho. Do contrário, ela nunca se perdoaria se algo saísse errado.

A carcaça de um pássaro Jubjub havia amortecido sua queda. Ele limpou nas calças a gosma pegajosa que tinha entre os dedos, torcendo o nariz diante dos restos malcheirosos do exército que os perseguia e acabou caindo no abismo. Jeb procurou ficar de pé na escuridão. Suas botas produziam sons de sucção toda vez que ele pisava. Ele nunca tivera fricotes; qualquer aversão a sangue e violência havia sido expurgada — uma dessensibilização gradual que era reforçada sempre que ele se olhava no espelho e via suas bochechas e olhos inchados, grandes e cheios de sangue, que nem um bife malpassado.

Contudo, sem uma centelha de luz para guiá-lo, a carnificina aos seus pés parecia mais viva do que morta. Sua imaginação trazia arquivos de todos os tipos, de filmes de zumbis a demônios e assombrações. Seu estômago queimava de náusea. Jeb sentiu-se aliviado ao perceber que os assobios que ouvia dentro do abismo eram produzidos pelo vento. E não havia ruídos de correntes fantasmagóricas nem gemidos de mortos-vivos.

Além disso, seu verdadeiro inimigo era o tempo, mais perigoso do que qualquer coisa que pudesse imaginar. A Al ainda tinha de cumprir a última tarefa no cemitério. E, depois, eles ainda tinham de encontrar um ao outro.

Ele se forçou a avançar às cegas até sua mão alcançar a parede do abismo. Antes de descer totalmente, Jeb viu que a mochila de Al tinha ficado presa em uma pedra saliente próxima ao chão. Se conseguisse encontrá-la, poderia contar com uma lanterna. Tateando a superfície áspera da pedra, ele levantava seus pés por sobre os obstáculos, tocando os cadáveres com os dedos dos pés para mensurar a largura de cada passo.

Com os cotovelos esbarrando nas pedras, Jeb observou o céu. Um pequeno aglomerado de estrelas brigava com as nuvens, aparecendo para iluminar levemente o lugar ao seu redor, tornando possível que ele continuasse sem esbarrar no falecido exército da rainha. Uma brisa úmida levantava a poeira feito pequenos tornados. Logo choveria. E, neste lugar, era possível que, literalmente, chovesse a cântaros — daqueles temporais ruidosos, torrenciais.

Um calafrio que não tinha nada a ver com a tempestade iminente lhe percorreu a espinha e obscureceu qualquer sentimento bom que ele poderia ter encontrado naquele pensamento. Qual era a razão de todos esses “testes” de Morfeu? Toda vez que a Al conseguia se sair bem em um desses testes, sua forma intraterrena tornava-se mais acentuada. Será que o intuito era transformá-la completamente para que não pudesse mais voltar ao reino humano?

Fios de cabelo caíram sobre seu rosto, e Jeb os afastou.

Morfeu afirmara que tudo o que ele mais queria era que Alyssa voltasse ao seu lugar. Sua casa. Jeb esperava que ele estivesse se referindo ao mundo deles, o reino humano. Mas e se a Al não estivesse sob nenhuma maldição, no final das contas?

Ele se lembrou de sua pesquisa sobre fadas, na qual descobriu que elas eram criaturas chamadas de changelings — as crias das fadas secretamente deixadas no lugar de bebês humanos roubados. Alice Liddell, a tataravó de Al, teria sido uma changeling? Quem sabe foi por isso que ela encontrou, quando criança, a toca do coelho — por instinto. Isso significaria, de alguma estranha maneira, que aqui era a casa de Al.

Jeb parou com as especulações. Elas só levavam a mais dúvidas.

Ele tinha encontrado a mochila. Abriu-a, tirou a lanterna e colocou a mochila nos ombros.

Ao fechar o zíper, ele acendeu a lanterna e percorreu o cenário com fachos de luz. Os guardas destruídos pareciam cartas de baralho amarrotadas. Brinquedos descartados. Até mesmo os pássaros Jubjub poderiam se passar por brinquedos infantis com o enchimento extrapolando para fora.

Com a mochila ajeitada no corpo, Jeb percorreu a circunferência do abismo sem encontrar nenhuma abertura. Pedras que haviam caído bloqueavam qualquer possível passagem que ele tentasse. Era como se ele tivesse caído dentro de um tubo gigante. Não havia nenhuma outra saída a não ser subindo.

Jeb apontou a luz para o gramado a cerca de vinte andares acima — a clareira onde Alyssa havia pousado. Estava determinado a encontrá-la antes de Morfeu, mesmo que tivesse de escalar as pedras pontiagudas no escuro e sem uma corda de segurança.

Ele havia acabado de apoiar a lanterna entre os lábios e escorar o pé em um rochedo para tomar impulso quando ouviu uma voz com um sotaque britânico familiar.

— Ao trabalho, homens. Precisamos contar todos antes que as irmãs Twid enviem sua brigada de duendes para recolher os mortos.

Morfeu.

Jeb desceu e quase colidiu com o intraterreno alado, que tinha aparecido do nada, como se tivesse aberto um zíper no ar e passado por ele. Cavaleiros élficos faziam fila atrás dele, entre vinte e trinta, carregando lanternas e usando o mesmo uniforme de Jeb, só que menos esfarrapado e sujo. Eles passaram sem nem olhar para Jeb, extremamente concentrados na contagem dos corpos.

— Ora, ora, pseudocavaleiro. — Morfeu riu com desdém.

Cada pedacinho de Jeb ansiava por apagar aquele sorriso arrogante e socar aquele rosto. Mas ele estava em desvantagem. Se quisesse sair desse fosso para encontrar a Al, teria de bancar o bonzinho.

— Detesto dizer isso, mas é bom vê-lo, senhor Mariposa. — Jeb guardou a lanterna. — Vejo que pegou o espelho para vir aqui.

— Eu só viajo de espelho. — Morfeu ergueu a lanterna e examinou as roupas esfarrapadas de Jeb. — Tem a vantagem de não estragar tanto as roupas. E vou lhe contar outro segredo: se eu mantiver as asas daquele lado do plano — ele apontou com o polegar para as suas costas, onde metade de seus apêndices não era visível —, a abertura fica acessível para nossa viagem de volta.

Jeb forçou um sorriso.

— É bom saber.

Perfeito, na verdade. Ele poderia voltar com a trupe de elfos e depois tomar o expresso na sala de espelhos para encontrar a Al. Mas primeiro teria de distrair Morfeu, baixar a guarda dele. Jeb perguntou:

— Esse chapéu é novo?

Morfeu ficou radiante.

— Que gentil de sua parte ter notado. É meu chapéu da Insurreição. Ainda não havia tido a oportunidade de usá-lo antes. — Com o dedo, bateu em várias mariposas que formavam a guirlanda na aba do chapéu e depois se inclinou e fez conchinha no ouvido de Jeb para sussurrar um segredo. — As asas vermelhas representam derramamento de sangue.

— Ãh-hã. — Jeb cerrou a mandíbula diante do indesejado bafo quente no lóbulo de sua orelha. Depois, olhou para os cavaleiros, discerníveis somente por suas lanternas flutuando na escuridão atrás dele. — Então, está planejando um motim com o exército da rainha de Marfim?

Morfeu apertou o ombro de Jeb.

— Eu sempre soube que era mais esperto do que os mortais comuns.

Os músculos de Jeb contraíram-se ao contato.

— O que significa que você estava mandando a Al para uma missão absurda só para se divertir.

Cuidado. Jeb não poderia deixar sua desconfiança transparecer. Pelo menos não ainda. Em vez disso, ele se inclinou para ajustar os cadarços das botas e respirou fundo antes de se reerguer.

Morfeu apertou sua gravata vermelha.

— Todas as tarefas que pedi à Alyssa tinham um propósito. — Ele deu um passo para o lado quando alguém mais passou pelo portal do espelho: um esqueleto do tamanho de um duende, com antenas e olhos cor-de-rosa brilhantes, metido em um colete vermelho.

— Rábido Branco? — sussurrou Jeb, incrédulo. Nada daquilo fazia sentido. O Rábido era da corte Vermelha. Por que estava aqui?

— Qual é o relatório? — Morfeu agachou-se para ficar na altura do Rábido, ainda mantendo as asas enfiadas no portal invisível do espelho.

O pequeno intraterreno apertou as mãos enluvadas e olhou para Jeb, sua cabeça careca refletindo o brilho suave da lanterna de Morfeu.

— Um de nós, você é?

Morfeu sorriu e respondeu por Jeb.

— É claro que é. Ele ajudou a nossa Alyssa a conquistar o grande e cruel exército Vermelho, não lembra?

Coçando a antena esquerda, o Rábido fez que sim.

— Rainha Grenadine neutralizada está. Nos portões da frente e de trás, o castelo guardado está pelos regimentos três e sete. Flanqueando a rainha, um círculo de cinco. Sem esquecer da coroa e seu guardador.

— Ah, sim. O bandersnatch. Bem, quando Alyssa tiver trazido seu prêmio do cemitério das irmãs Twid, nada mais terei a temer daquela besta medonha. Fez um bom trabalho, senhor Branco. — Morfeu deu uma batidinha na aba do chapéu.

O Rábido bateu os tornozelos cadavéricos um no outro, depois se curvou e lançou um olhar penetrante para Jeb, antes de pular novamente para o portal.

— Ele é o seu espião — murmurou Jeb, sentindo-se idiota por não ter adivinhado antes.

— Sim.

— Então todas as vezes que o esqueletinho ameaçou a Al, matando-a de susto, era só para manter a aparência de lealdade à Rainha Grenadine?

— Os melhores espiões são aqueles que jogam dos dois lados com o mesmo vigor.

A distância, Jeb avaliou as lanternas que balançavam. O tilintar dos cabos de metal e o pisar de botas eclipsavam o suave lamento do vento.

— Certo. Já que estamos abrindo o jogo...

O comentário de Morfeu o interrompeu.

— Que trocadilho mais delicioso, considerando a posição em que estamos. — A lanterna dele apontou para os cadáveres dos guardas de carta.

Jeb ignorou a piada mórbida.

— Eu ia perguntar por que o Rábido se voltou contra a corte Vermelha.

— Ele era o conselheiro real da Rainha Vermelha quando Alice nos visitou. Deseja ver a verdadeira herdeira no trono tanto quanto eu.

— Verdadeira herdeira. — Jeb chutou um punhado de terra com uma bota, sentindo o peito apertado. — Então tudo isso é para destronar Grenadine e abrir caminho para uma nova rainha.

— Sim. — A lanterna iluminou o rosto de Morfeu, numa expressão de indulgência sonhadora. — E estamos muito perto. Em breve, ela ocupará o trono que é e sempre foi o lugar dela.

O lugar dela. Uma hipótese se formava na mente de Jeb, uma ideia ultrajante e incompreensível, mas, de qualquer maneira, a resposta óbvia para todas as dúvidas que ele vinha remoendo. Todas as dúvidas, exceto uma...

— Mas, primeiro — interviu Morfeu, varrendo o ar com um gesto desdenhoso —, temos que ter certeza do que iremos enfrentar quando atacarmos o castelo. Você e Alyssa conseguiram eliminar boa parte da oposição com seus fantásticos movimentos de pés. Estamos aqui para avaliar se os números batem com os que o Rábido reportou. Devemos ter certeza que Grenadine não tem outras cartas escondidas na manga. — Ele bateu nas costas de Jeb. — Viu o trocadilho? “Cartas na manga?” — E deu uma gargalhada.

Jeb não deu nem um risinho.

— Ah, corta essa. Os guardas dela são de cartas. É uma piada como a que você fez antes, só que mais inteligente.

— Ah, sim, entendi — retrucou Jeb.

O riso de Morfeu se dissipou.

— Você não é um namorado muito divertido.

— Você não leva nada a sério? A Al está correndo perigo — Jeb deixou escapar.

— Bobagem. Ela é gloriosamente capaz! Você nunca a viu voando? É claro que viu! Estava pendurado na corrente que ela segurava. — Morfeu voltou a lanterna para a própria cabeça, num arroubo de celebração. — Não foi uma bela visão, presenciá-la transformando-se no que realmente é? Igual a uma princesa de contos de fadas. — Ele lançou um olhar dissimulado para Jeb. — Não concorda?

Princesa de contos de fadas. Lá estava, saindo da boca do próprio Morfeu, zombando de Jeb por não perceber desde o início. Jeb apertou as alças da mochila para evitar dar um soco na laringe de Morfeu.

Morfeu abaixou a lanterna e depois tirou luvas prateadas de sua lapela.

— Não se sinta desprezado, cavaleiro mortal. Sua contribuição não passará despercebida. E eu sempre pago minhas dívidas. Então, o tirarei desta vala da morte para demonstrar minha gratidão.

— Você pode me agradecer me deixando ajudar a Al. Ela vai terminar a tarefa muito mais depressa comigo do lado — Jeb conseguiu dizer, sentindo um nó nas cordas vocais. Se conseguisse chegar até Al, talvez os dois pudessem se esconder de Morfeu no cemitério das irmãs Twid, até encontrarem uma maneira de escapar.

— Sinto muito — retrucou Morfeu, vestindo as luvas e acenando para que os cavaleiros élficos retornassem. — Ela precisa fazer isso sozinha. Você a verá em breve; todos nós vamos nos reencontrar. Uma grande família feliz.

— Não! — exclamou Jeb, perdendo o controle. Ele investiu, mas os elfos foram mais rápidos e o contiveram, com os dedos machucando seus cotovelos feridos. — Deixe-a sair do País das Maravilhas, seu filho de inseto...

Morfeu pressionou um dedo contra a boca de Jeb.

— Ah-há! Essa, você já usou.

Jeb puxou a cabeça para trás, deixando o dedo do intraterreno suspenso no ar.

Sob a luz da lanterna, as joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficaram escuras, da cor de sangue seco.

— Ora, ora. Isso são modos de tratar seu salvador? — Ele fez cara amuada. — Além do mais, como posso deixar Alyssa sair se ela não está comigo? Da última vez que soube, ela estava entrando no jardim das almas. Mas, quando terminar por lá, ela virá ao meu encontro. Ela ainda tem um papel muito importante a desempenhar.

— Certo. Porque ela é a herdeira do trono. — Jeb ouviu, incrédulo, suas próprias palavras ecoarem, como se tivessem saído da boca de outra pessoa. — Não sei como, mas é ela.

— Bravo! — Morfeu aplaudiu. — Estão vendo o que eu disse, irmãos cavaleiros? — Olhando para os cavaleiros por cima do ombro de Jeb, Morfeu deu tapinhas no peito em cima da gravata vermelha, como se estivesse tomado pela emoção. — Mais esperto que um mortal comum. Pena que tenha as limitações físicas de um.

— Não importa. Ela está fora do seu alcance. — rebateu Jeb, dando um tranco nos elfos; havia muitos o segurando, contudo. — Ela deve estar dentro do cemitério agora, e não pode forçá-la a fazer nada. Você mesmo disse que as Twids não deixam você entrar.

— É verdade. Mas ela encontrará, sozinha, o caminho para o castelo. No momento em que ela perceber que estou mantendo presa a coisa que ela mais ama no mundo, virá rastejando para mim, com as asas a reboque.

Morfeu levantou uma mão e fez um sinal.

Os cavaleiros élficos soltaram Jeb. Ele girou sobre o calcanhar e atirou a mochila sobre eles, dispersando o grupo feito pinos de boliche. Esticando o braço, ele bateu o punho na testa de Morfeu, desequilibrando-o. Um dos cavaleiros se esforçou para permanecer no lugar e manter o espelho aberto. Antes que Jeb pudesse se catapultar e atravessá-lo, raios de luz azul grudaram em sua pele e roupas, feito eletricidade estática. Eles o arrastaram, controlando-o como se fosse um fantoche, até ele ficar de frente para Morfeu. Os raios vinham da ponta dos dedos do intraterreno.

Morfeu aproximou-se.

Jeb tentou recuar, mas seus músculos travaram, ficaram paralisados.

— Durma — disse Morfeu num tom simples, e levou a mão azul fluorescente à testa de Jeb, cujo corpo foi percorrido por uma luz pulsante. Ele sentiu um gosto doce, parecido com leite e mel, e depois sentiu o aroma de lavanda. Com os dedos apertando o tecido macio da camisa de Morfeu, Jeb lutou para manter-se acordado. Mas a luz era muito reconfortante... muito suave... muito calorosa. Contra sua vontade, suas pálpebras ficaram cada vez mais pesadas e ele caiu no chão, em sono profundo.


Capítulo 4


Terceira Lembrança —
Engaiolado

O crânio de Jeb latejava, e havia sangue saindo de seu couro cabeludo e entrando em seus olhos.

Ele limpou o líquido viscoso e focou no lugar à sua volta. Morfeu o tinha trazido para o castelo Vermelho depois de colocá-lo sob o feitiço do sono. Largou-o dentro de uma gaiola na masmorra. Jeb não queria ter tomado a poção encolhedora quando acordou, mas o homem-inseto havia lhe dado um ultimato.

Primeiro, ele havia ameaçado matar a Al. Mas Jeb rebateu, dizendo que o homem estava blefando, pois sabia que ela era indispensável. Depois, Morfeu usara de outra arma, ameaçando fazer com que a frágil mãe de Al ultrapassasse o limite da loucura. Isso, ele faria.

A Al havia lutado muito para salvar a mãe. Ela morreria se a perdesse para a loucura. Então, Jeb não hesitou em levar o frasco aos lábios.

Seu corpo balançava, mas não devido aos efeitos colaterais da poção. A plataforma debaixo dele oscilava por causa de suas tentativas de abrir as barras de sua prisão usando a cabeça — uma atitude desesperada que havia resultado em nada além de um corte logo acima da testa. A magia de Morfeu — um fio elétrico e azul — mantinha a porta da gaiola fechada e imóvel.

— Que bela coisa você fez, não? — entoou uma voz feminina e irritante. — Morfeu escolhe quem tem o poder de suprimir sua magia. Obviamente, você não é um dos escolhidos.

Jeb fez cara feia para sua companheira de prisão. Era uma lóri — um intraterreno parecido com um periquito, mas normalmente do tamanho de um ser humano. Como os dois tinham encolhido, a única coisa que a distinguia dos pássaros do mundo humano eram as túnicas de cetim cor de creme com estampas jacquard colocadas sobre suas asas, corpo e pernas, e seu rosto humanoide enfiado no meio de plumas vermelhas, como se fosse uma máscara. Ele foi cutucado por um bico mais parecido com o chifre de um rinoceronte, posicionado no lugar onde deveria haver um nariz. Os lábios da criatura se agitavam furiosamente.

O pior de tudo era que a voz dela poderia derrubar a Torre de Pisa com uma sílaba. Quando falava, era como se alguém tivesse implantado cirurgicamente alto-falantes nos ouvidos de Jeb e travado o volume no “mais surdo que uma porta”. Ela era uma das muitas razões pelas quais ele tentava sair da gaiola com tanta insistência.

A luz bruxuleante das velas na parede iluminava seu ar de arrogância e deixava o resto da masmorra nas sombras. Depois que a voz da lóri parou de ecoar, Jeb investiu:

— Olhe aqui, Lorina. Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu marido. — Ele apontou a criatura que roncava abaixo da gaiola, de aparência tão estranha quanto à da esposa, com o corpo de um dodô, cabeça de homem e mãos que se projetavam da ponta de suas asas atarracadas. — Foi ele quem manteve Alice Liddell presa em uma gaiola igual a esta aqui, muitos anos atrás. É por culpa dele que a minha namorada é a única que pode destronar a sua rainha. Será que já lhe ocorreu que é por isso que vocês estão presos?

— O Charlie não fez nada disso! — berrou a lóri, pairando dentro da gaiola. — Alguma vez já lhe passou pela cabeça que o Morfeu é um cara de pau mentiroso?

Só em todos os segundos de todas as horas. Jeb apoiou-se nas barras. Seus joelhos cederam, enfraquecidos pelas tentativas de abri-las usando cada músculo de seu corpo. Ele desabou sobre o piso de metal, empurrando uma fatia de pera já amarelada que estava ao seu lado, feito um pequeno sofá. A gaiola era um pequenino forte inexpugnável. Mas não importava. As barras poderiam ser feitas de espaguete cru, e mesmo assim ele não conseguiria ajudar a Al. Mesmo que escapasse, com este tamanho, Jeb não conseguiria derrotar ninguém.

Charlie, o marido dodô de Lorina, não poderia ajudar muito. Ele estava preso por algemas e correntes de ferro e cochilava recostado na parede. Embora a gaiola estivesse pendurada bem perto da cabeça do dodô, não havia nada que Charlie pudesse fazer.

Provavelmente, Morfeu havia lançado no homem-pássaro gigante o mesmo feitiço do sono que jogara em Jeb, mas Charlie já estava se libertando dele.

Lorina acomodou-se no poleiro no centro da gaiola, balançando sobre a cabeça de Jeb feito uma acrobata no trapézio. A cara dela estava tão vermelha quanto as suas penas, o que fazia as espadas e copas estampadas nas bochechas quase desaparecerem.

— Como vamos ficar exilados nestas instalações fedendo a urina, terá bastante tempo para ouvir a verdade — bramiu ela.

Jeb esfregou a cabeça para apaziguar a dor lancinante.

— Se puder baixar a voz uns dois decibéis, eu agradeceria.

— Abaixar minha voz?

— Aaaii. — Jeb enterrou o rosto nas mãos.

O trapézio em miniatura rangia a cada balanço, piorando a poluição sonora.

— Para a sua informação, minha rainha adora o som da minha voz. Ela até o elogia...

O ronco do dodô parou, e ele estalou os lábios.

— Isso é porque ela protege os ouvidos com cera de abelha, Ó, Mais Adorável das Loucas.

— Seu mentiroso! — retrucou Lorina, balançando o poleiro tão depressa que Jeb achou que ia vomitar.

— Estou preso com correntes de ferro — avisou Charlie depois de um bocejo. — Não tenho forças para mentir. — Em seguida, pegou novamente no sono.

Isso pareceu calar Lorina, pelo menos temporariamente.

Jeb aproveitou o silêncio para pensar. A esta altura, Morfeu já deve ter contado a Al sobre sua verdadeira linhagem, sobre o que espera dela. Deve estar tão chocada... tão apavorada. Jeb ansiava tanto abraçá-la que era como se houvesse uma bigorna lhe pressionando o peito.

Aquele mariposo deveria ter contado a verdade desde o começo. Ela nunca escolheria ficar. Mas Morfeu sabia disso, e a manipulou sob o pretexto de que ela poderia curar a maldição da própria família. Jeb queria arrancar as asas pretas de Morfeu e enfiá-las goela abaixo por tê-la enganado, porque não havia cura para o parentesco, e ele sabia muito bem disso.

— Foi a Vermelha quem colocou Alice na gaiola. — A lóri voltou à carga. — Não o Charlie.

— Mas o seu marido escolheu mantê-la presa na gaiola — acrescentou Jeb, mesmo sabendo que não deveria. Ele cobriu as orelhas para a estrondosa refutação, mas Lorina só soltou um suspiro.

— Não. O Charlie tentou fazer a coisa certa pela menina — disse ela, consideravelmente mais ponderada agora. — Ele planejava mandar Alice de volta para o reino humano sem a Vermelha saber, mas a rainha descobriu e os arrastou para uma caverna nos picos mais altos e mais remotos do País das Maravilhas, sem que nenhum de nós soubesse. Ela deixou o Charlie com a vítima dela para poder encenar seu plano mestre, sabendo que Alice seria cuidada por um prisioneiro que nunca poderia escapar. Porque, como você deve saber, os dodôs não podem voar. Ela me privou de meu marido durante anos. Ele era prisioneiro, assim como a mortal.

— Se isso te ajuda a dormir de noite, tudo bem, passarinha.

Uma comoção de poeira e asas, jacquard e cetim, subitamente surgiu e o atacou.

— Você pode mostrar algum respeito e ouvir?!

Jeb levantou as mãos para se defender.

— Está bem. Shhhh. Eu vou ouvir.

Não havia nada mais que ele pudesse fazer. Morfeu lhe dissera que, assim que Alyssa fosse coroada rainha, ela abriria o portal para o reino humano. Acreditando ou não nisso, Jeb não poderia fazer nada a não ser ter esperança. Ele não tinha nenhum poder ali. E ter consciência disso lhe devorava as entranhas a cada minuto.

Acomodada diante de Jeb sob um monte de tecido luxuoso, a lóri olhou por entre as barras e resmungou alguma coisa para o marido que dormia.

— Seu velho e imprestável fezzerjub. Eu é que tenho que te proteger. Nem sei por que me casei com você.

O dodô resfolegou e murmurou, sonolento:

— Porque se casar com o bobo da corte era a única maneira de ter uma posição na corte Vermelha, Ó, Senhora das Nênias. — E o ronco voltou.

— Viu como deu certo? — resmungou ela, fazendo beicinho com os lábios vermelhos em forma de coração, sob a curva de seu bico. — Aquele Rábido ossudo e seu coração negro de pedra. — Ela alisou as penas da nuca e cobriu-as com uma rede decorada por lantejoulas.

Jeb estendeu a mão para pegar o dedal cheio de água que seu captor havia deixado ao lado da fatia de pera. Em suas mãos, ele era do tamanho de uma caneca de café. Ele o passou para sua colega de cela, que o pegou com as asas e deu alguns goles.

— Me diga uma coisa, Lori. Se o que você está dizendo é verdade... — Observando a atitude defensiva na cara bicuda, ele refez a pergunta para poupar os ouvidos. — Como você escolheu compartilhar o seu lado da história, talvez pudesse me dizer de que maneira Morfeu teve participação na prisão de Alice.

Ela sacudiu as gotículas de seus lábios.

— Não teve participação nenhuma. Ele gostava muito de Alice e teria feito qualquer coisa para que ela chegasse em casa sã e salva. Mas, na hora em que ele lhe ofereceu seu conselho como lagarta, alertando-a para que evitasse o castelo da Rainha Vermelha a todo custo, sua metamorfose aconteceu. Quando ele emergiu, totalmente transformado, e soube o que havia acontecido com Alice, ficou furioso.

— Está tentando me dizer que ele possui alguma consciência?

— Pelo menos no que dizia respeito a Alice, sim. — A lóri ajustou a suntuosa túnica que ficava escorregando devido à falta de ombros. — Morfeu usou todos os seus recursos de magia e acabou encontrando ela e meu marido escondidos nas cavernas dos picos mais altos do País das Maravilhas. Infelizmente, já era tarde demais para Alice. — Lorina devolveu o dedal a Jeb, agora com metade da água.

Jeb endireitou o corpo, fazendo a gaiola balançar.

— Então por que ele quer ajudar a Rainha Vermelha a colocar outra rainha no trono, quando ele deveria odiá-la por ter mantido Alice presa em uma gaiola por tantos anos?

— Talvez ele esteja bravo por Grenadine não ter tentado encontrar Alice assim que esta foi capturada. Mas Grenadine perdeu sua fita de memória e esqueceu a criança.

— Um bom regente teria mais do que uma fita para lembrá-la; teria se certificado de que tudo e todos estavam em seu lugar.

— A minha rainha é uma boa regente!

Jeb encolheu-se com o urro agudíssimo.

O ronco do dodô parou.

— Minha vociferante esposa diz a verdade, rapaz. Morfeu parece guardar ressentimento pelo que ele acredita ser negligência, mesmo tendo sido somente um descuido.

Jeb balançou a cabeça diante de todas as falhas que havia no raciocínio de todos.

— Não. Há mais coisas nessa história.

— Você tem bons instintos, cavaleiro mortal.

Jeb olhou para cima, na direção da voz tilintada. Uma luz brilhante flutuou pela pequena janela e entrou pela pesada porta da masmorra. Jeb levantou-se e agarrou as barras da gaiola, inclinando a cabeça para ver melhor.

Gossamer.

A pequena fada adejou para perto e sussurrou algo para o mágico fio azul que fixava a porta de arame, entrando na gaiola. O fio azul deu um nó em si mesmo depois de ela fechar o trinco.

Ela cintilava feito pequenos fogos de artifício ao pairar no lugar, estudando Jeb com uma expressão de solidariedade.

Como os dois agora tinham o mesmo tamanho, Jeb se lembrou de uma pintura que vira certa vez, de um artista tcheco, Viktor Olivia. O pintor era famoso por retratar uma fada que seduzia homens, levando-os a se embebedarem com absinto. Gossamer personificava essa criatura: uma forma feminina perfeita coberta de poeira verde, e nua, com escamas brilhantes cobrindo-a como um biquíni minúsculo.

Ele havia sentido, quando saiu da sala de espelhos, que Gossamer estava do lado dele e de Alyssa.

— Você veio ajudar — lançou ele, esperançoso.

Uma chave de cobre, da mesma cor dos olhos dela e quase do comprimento total de seu torso, pendia de seu pescoço. Seu olhar caiu para os pés delicados, como se estivesse lutando contra si mesma.

— Eu teria vindo mais cedo, mas Morfeu está sempre vigiando o espelho. Agora que ele está com Alyssa, preparando-a para a coroação, estará ocupado demais para ficar de olho no resto de nós... até o fim.

— O fim? — Jeb apertou a barra ao lado dela, concentrado em seu olhar de libélula. — Você tem que me contar tudo.

A fada olhou para Lorina, que estava se esticando para a porta de arame.

— Você sabe muito bem que não tem o poder de sair desta gaiola, a menos que eu a abra para você.

Bufando, a lóri voltou a voar para o trapézio.

Gossamer conduziu Jeb para a fatia de pera e os dois se sentaram. Seu perfume frutado se impunha sobre o fedor da masmorra e o acalmou o suficiente para ele poder ouvi-la.

A fada colocou as mãos sobre as de Jeb, que descansavam sobre os joelhos.

— Eu já traí meu mestre o bastante vindo até aqui, e sua ira será enorme. Eu só posso dizer que, dentro de uma hora, Alyssa estará comprometida para sempre, amarrada ao País das Maravilhas para toda a eternidade. Morfeu planejou tudo para enviá-lo de volta, cavaleiro mortal... mas sem ela.

Uma veia na têmpora de Jeb começou a se contorcer feito uma serpente em uma bandeja quente. Ele deu um pulo para cima e bateu a cabeça nas barras novamente, tentando amolecer o fio azul, incapaz de controlar a fúria exasperada que lhe fervia por dentro. Mais sangue escorreu por sua têmpora.

— Você tem que me soltar! Preciso impedir isso!

— Sim, sim! Nós também! — intervieram o dodô e sua esposa, em coro. — Temos que ajudar a Rainha Grenadine a manter a coroa!

— Naturalmente — afirmou Gossamer, pegando a mão de Jeb e puxando-o para perto dela. — Vocês todos terão a oportunidade de lutar e de mostrar a sua lealdade.

— Mas não posso lutar assim. — Jeb chutou uma semente do tamanho de seu pé. — Você trouxe algum bolo do crescimento?

— Não. Não é a força de seu corpo que salvará Alyssa, e sim a força de seu coração de artista. Mas eu posso assegurar que não sairá deste lugar em sua forma atual.

A lóri desceu de seu poleiro e ralhou com a fada.

— Agora, me escute, sua lacraiazinha. Este rapaz não tem papel nenhum. Ele é, no máximo, coadjuvante. Eu sou a criada da rainha, e Charlie é o bobo da corte. Nós deveríamos ser a sua prioridade. Somos honoráveis membros da corte, os únicos que podem dar um basta nesta paródia!

Acelerando as asas até virarem um borrão enevoado, Gossamer flutuou e colocou as mãos nos quadris.

— Quanto ao seu papel, Lorina: você pode abrir as correntes de seu marido, pois preciso falar com o mortal a sós e tenho pouca tolerância ao ferro. — Ela abriu a porta da gaiola e lhe deu a chave.

A lóri esvoaçou-se veloz, numa comoção de exibicionismo e má vontade.

— Venha, venha, Doçura Selvagem — chamou Charlie, encorajando a esposa enquanto ela flutuava em torno dele, subindo e descendo, incapaz de manter-se firme em alguma altura. — Apresse-se, por favor. O ferro está me dando fisgadas. Poxa vida! Não é tão difícil assim... tente novamente!

A cara de Lorina ficou ainda mais vermelha.

— Tente, com a ponta da asa, usar uma chave do mesmo tamanho que a sua cabeça, seu meleca! Alguns de nós não foram abençoados com dedos, sabia?

Enquanto o casal se ocupava, Gossamer sentava-se novamente ao lado de Jeb.

— Você disse que meu coração de artista pode salvar Alyssa. Naquele quarto na mansão de Morfeu, também... você disse que eu tenho o poder dentro de meu coração de artista, uma luz que pode iluminar qualquer escuridão. Minha namorada está prestes a morrer para mim e para a família dela. Não pode haver escuridão maior — sussurrou Jeb com lágrimas de frustração que lhe surgiram nos cantos dos olhos.

— Morreria por ela, cavaleiro mortal?

A espinha de Jeb se retesou. No passado, toda vez que ele protegera Alyssa, sempre se jogara sem nem pestanejar. Seria capaz de morrer por ela?

Quando o pai de Jeb morreu em um acidente, foi Alyssa quem o salvou. Ele não conseguia acreditar que tinha chegado a pensar em morar em Londres sem ela. Precisava dela, todos os dias. De seu sorriso compreensivo, de como ela fez suas cicatrizes parecerem medalhas de mérito sob seu toque, e de seus olhos incríveis. Mesmo tendo passado por tantas provações quanto ele, havia uma luz dentro dela que nunca se enfraquecia. E essa luz não somente a tornava linda por fora, mas também permitia que ela trouxesse vida aos incríveis mosaicos que fazia.

Era essa luz — tanto a interna quanto a externa — que o tinha levado a desenhá-la e pintá-la tantas e tantas vezes.

Ele olhou para Gossamer, quase incapaz de conter a emoção, agora que havia encontrado uma saída.

— Ela é minha melhor amiga.

Minha musa, meu pincel, minha arte, meu coração. Tudo isso estará morto sem ela.

Esfregando o rosto, ele limpou o líquido que havia caído de seus olhos e escorrido pelo rosto:

— Eu a amo. Sim, eu morreria por ela. É isso que preciso fazer?

A fada o encarava sem piscar.

— Está disposto a ir além da morte? A se perder de todos, até de você mesmo, em um lugar onde as lembranças se esvaem em uma maré escura como tinta? Pois, para libertar Alyssa, você terá que tomar o lugar da Rainha de Marfim na caixa linguardarte onde ela se encontra presa.

Jeb lembrou-se da água escura dentro da caixa que ele havia visto na sala dos espelhos da mansão de Morfeu e da cabeça fantasmagórica que havia lá dentro, e seu coração disparou. O sentimento de autopreservação o invadiu e sua mente começou a tentar encontrar outra maneira. Mas, bem lá no fundo, ele sabia que não havia alternativa e que o tempo de Al estava se esgotando. Ele só lamentava não poder dizer a ela, nem uma única vez, com sua própria voz, como se sentia, antes de ser trancado para sempre.

— Aceito.

— E assim será. — Gossamer ficou de pé e estendeu os braços. Fraco e entorpecido, Jeb aceitou seu abraço. Ela o apertou com força e voou com ele para fora da gaiola, pousando no chão. — O mortal concordou em ser o herói de seu reino. Procurem honrar sua bravura — disparou as palavras para Lorina.

Lorina havia conseguido soltar o marido. Ela se sentou no ombro dele, abanando-se com uma asa. Com os olhos arregalados, ela aquiesceu em silêncio — a demonstração mais sincera de louvor que poderia ter oferecido. O dodô ajoelhou-se ao lado de Jeb, uma presença enorme e plumada.

— Teremos uma dívida eterna para com você, rapaz. O que podemos fazer para ajudar?

Gossamer apontou para um canto da masmorra, onde um cobertor de juta cobria uma cama, chegando até o chão.

— Tragam-me o que está debaixo daquela cama.

Entorpecido por uma mistura de incredulidade e temor, Jeb observou o dodô trazer a caixa linguardarte.

Lorina ficou perplexa.

— Morfeu manteve a Marfim escondida aqui?

Gossamer assentiu.

— Por sugestão do Rábido. Ele disse que este era o único lugar no castelo onde ninguém viria à procura dela.

Depois de pedir a Charlie que abrisse a tampa e arrumasse uma pedra onde eles pudessem subir para ver lá dentro, Gossamer pediu ao estranho casal que se afastasse um pouco para que ela e Jeb tivessem um pouco de privacidade.

Jeb afagou as rosas brancas aveludadas que adornavam o exterior da caixa, fascinado pela beleza do rosto da Marfim quando este veio à tona. O olhar cristalizado de assombro dela passava dele para a fada, e voltava — cautelosamente curioso. Ele estremeceu ao pensar que tomaria o lugar dela.

Tinha mesmo que fazer isso?

Jeb sentiu que Gossamer observava seu semblante.

— Devo perguntar uma última vez se está seguro de sua decisão — indagou ela. — Porque, como você está escolhendo ser trancado, e selando essa escolha com seu sangue, a caixa nunca o libertará. Ninguém poderá salvá-lo. Você está oferecendo sua eternidade pela da Marfim, uma rainha que você nem sequer conhece.

Jeb sentiu um nó na garganta.

— Não. Estou trocando a minha eternidade pela da Al.

Gossamer sorriu com ternura.

— Em seus sonhos, vi certa vez que você teme não ser bom o bastante para a menina. Depois de tal sacrifício, ninguém poderá questionar seu valor como homem nem seu amor por ela. — Ela o beijou no rosto, deixando um calor que penetrou seu coração e conseguiu derreter uma pequena porção do terror congelante que lá se escondia.

Gossamer deu-lhe um pincel e recuou.

— Agora, use o poder que somente você pode exercer. Pinte as rosas com o seu sangue.

Jeb foi tomado por uma tontura. Murmurou coisas... sem sentido, temerosas... palavras agonizantes que ele sabia serem as últimas.

Depois, canalizou a raiva, o terror e o desejo por um futuro que ele nunca teria para as estocadas do pincel. Cada botão branco, tingiu-os de vermelho até perder-se dentro das sombras de seu trabalho, e fundiu-se à sua obra-prima, tornando-se um só.


Capítulo 5


A Decisão da Mariposa

A cena se estendeu e ficou turva enquanto Morfeu era arrastado para fora das lembranças de Jebediah e depositado de volta na chaise-longue. A escuridão deixava a sala pesada, mas ele nem se mexeu para ligar a luminária. O cenário completamente enegrecido parecia combinar com os pensamentos obscuros que lhe cruzavam a mente.

Ele passou o dedo pela coxa, acompanhando as listras do tecido risca de giz e alisando as rugas.

Por que se sentia tão aborrecido? Ele havia encontrado exatamente o que esperava encontrar. As fraquezas de Jebediah estavam à mostra: um ódio que poderia facilmente ser manipulado, um sentimento de impotência alimentado por um pai violento e crítico, um ciúme que provocava um sentimento temerário de proteção e que lhe custaria a própria vida.

O que Morfeu não tinha esperado encontrar, entretanto, era tanta semelhança entre ele e o rapaz. Os demônios do passado atormentado de Jebediah não eram muito diferentes dos seus. Ele sempre se surpreendera sentindo inveja dos humanos... por nunca ter tido o carinho de um pai ou de uma mãe. Simplesmente por ocupar seu lugar no mundo, ele também compreendia o medo de talvez nunca chegar a conhecer completamente a confiança e a afeição de outra pessoa.

Contudo, no passado, Morfeu nunca havia considerado isso uma coisa ruim. Ele apreciava ser uma alma reclusa e independente. Por vezes, até se vangloriava, quando lhe convinha ser o centro das atenções, naturalmente. Mas a atenção, a afeição ou a confiança não eram coisas de que ele precisava. Não até aparecer Alyssa. Depois que ela escolheu ignorá-lo, ele não conseguiu funcionar... sentiu-se desastrado e incompetente.

E agora, depois de colocar-se no lugar de Jebediah, Morfeu compreendia, mais até do que desejava, como o lado humano de Alyssa funcionava. Embora metade dela tivesse asas e pudesse flutuar sobre as inseguranças e trivialidades dos mortais, a outra metade tinha seus alicerces nas coisas que qualquer outro humano ansiava: confiança e segurança.

Tendo visto a coragem e a engenhosidade de Jebediah, bem como sua lealdade a Alyssa, Morfeu soube, sem sombra de dúvida, que aquilo era exatamente o que o rapaz oferecia a ela: uma rede de segurança e emoção que a salvaria caso a queda fosse muito alta.

Não era de admirar que ela fosse tão cativada por ele. Não era de admirar que ele exercesse poder sobre ela. Diabos, o próprio Morfeu ficou morbidamente fascinado pelos honoráveis traços morais do rapaz, incomuns em um humano tão machucado. Morfeu ficou tentado a recuar e deixar Jebediah ter seu momento de felicidade. Alguns poderiam até dizer que ele o havia merecido por desejar abdicar de seu futuro, de suas lembranças e de sua vida por Alyssa.

Morfeu rosnou e caiu para a frente com os punhos cerrados, tentando suavizar o estranho peso em seu peito. O rapaz não ficaria aqui para sempre. Era um mortal. Um dia, morreria de velho, no mínimo, e Alyssa voltaria a ser um alvo fácil.

Alvo fácil.

A mandíbula de Morfeu se contraiu. O romance não era uma coisa justa. Nem era um jogo. Era guerra. E, como em qualquer outro campo de batalha, não lhe cabiam a compaixão e a misericórdia.

O besouro-tapete estava certo. As emoções humanas eram coisas imprevisíveis e poderosas. Elas haviam penetrado na cabeça de Morfeu, enfraquecido sua determinação.

Com os cotovelos nos joelhos, ele levantou as mãos com as palmas para cima, incapaz de ver a silhueta delas no escuro. Ele conjurou um pouco de magia na ponta dos dedos, em bolas elétricas de plasma do tamanho de ervilhas, e depois enviou as esferas para todos os cantos da sala, os raios azuis deixando rastros como eletricidade estática. Elas subiram pelas paredes e em seguida se uniram na forma de uma mulher. A luz pulsava em ritmo hipnótico.

Imaginar Jebediah com Alyssa, mostrando a ela os caminhos do amor, domando seu espírito selvagem com suas corriqueiras convenções humanas, tudo isso queimou a garganta de Morfeu com o sabor amargo da inveja.

Ele não queria que o lado selvagem de Alyssa fosse dominado por nenhum outro homem, não desejava compartilhar nenhuma parte dela. Morfeu desejava os dois lados: sua inocência e seu espírito desafiador.

Que graça poderia haver na dependência? Que espontaneidade poderia haver em um mundo previsível? Ele poderia lhe oferecer uma eternidade de desafios e paixão, de momentos ternos e calmos nas profundezas de chamas vibrantes e tempestades devastadoras — a tranquilidade em meio ao caos.

O lugar dela era com ele, usando trajes de soberana. Ele tinha tanto a ensinar-lhe sobre o reino intraterreno, sobre as glórias da manipulação e da loucura. Se Morfeu alimentasse o faminto lado intraterreno de Alyssa, suas inseguranças e inibições humanas diminuiriam e, com o tempo, poderiam desaparecer. Ela nunca mais ansiaria pelo amor seguro de Jebediah.

Morfeu invocou sua magia de volta, recolhendo as espirais de luz azul até ficar novamente envolto na escuridão. Suas asas varreram o chão quando ele se levantou, e ele as ergueu num arco que quase tocava o teto.

Nada mais de deliberações. Ele tinha tentado fazer o que era justo em instâncias passadas e, sem exceção, isso sempre o prejudicara. Podia ignorar a pontada de culpa que lhe agitava o peito, mas não podia abdicar de suas necessidades pelas necessidades de Jebediah. Ele nunca mais seria ele mesmo sem Alyssa ao lado — a chama para sua Mariposa. Morfeu não pararia até que ela voltasse para o lugar que lhe pertencia, no País das Maravilhas.

Para vencer, ele jogaria sujo, colheria os despojos do coração dela do modo como fosse necessário, não importava quanto isso custasse ao rapaz mortal. Afinal, este era o modo intraterreno. Fazer menos que isso faria de Morfeu um humano. E ele sabia, agora mais do que nunca, que essa era a última coisa que jamais desejou ser.


SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS
Epígrafe

ÀS VEZES PENSO EM SEIS COISAS IMPOSSÍVEIS ANTES DO CAFÉ DA MANHÃ.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Um

Mortalidade

Capítulo 1

Deportação

Algumas pessoas podem dizer que é impossível morrer e viver para contar. São as pessoas que nunca experimentaram a mágica. Quanto a mim, sou tataraneta da Alice que inspirou Lewis Carroll. Acreditei no inacreditável por mais de sessenta e quatro anos, desde que tinha dezesseis e descobri que o País das Maravilhas era real e cheio de seres caprichosos, misteriosos e loucos, governados por acordos e enigmas. Ainda assim, às vezes, por mais que você acredite no impossível, as coisas não saem como você as planejou. Toda mágica pode encontrar um obstáculo de vez em quando.

Por exemplo, nunca esperei que meu cadáver acabasse numa caixa de sapatos. É isso que os caixões crematórios me lembram... uma caixa de papelão do tamanho de uma pessoa. O caixão não é muito confortável. Não há a forração de veludo para suavizar a base de madeira. Nenhuma almofada para acomodar minha coluna curvada. E nada de roupas, além de um vestido de papel para cobrir minha pele velha e enrugada.

O cheiro de papelão se fixa ao meu nariz e as rodas de aço da maca giram ao longo do corredor, rangendo em algum lugar sob mim, junto a passos familiares. Sinto a transição do ambiente fresco e de temperatura controlada onde o legista atestou minha “morteza” (como os seres do País das Maravilhas diriam). Ele, então, pôs uma identificação de aço inoxidável no meu peito e fechou uma tampa sobre mim, me prendendo na escuridão.

A maca sacode ao entrar num lugar muito mais quente. O cheiro de ovo podre do propano confirma nossa localização. Já visitei este lugar. Nos últimos meses visitei vários crematórios, quando não havia ninguém por perto, de madrugada. Para conhecer melhor o gigantesco forno de tijolos à vista que estaria esperando para queimar minha carne. Para encontrar o projeto perfeito, com um banheiro e um espelho de corpo todo do outro lado do salão.

Assim que optei pelo crematório do Pleasance Rest Cemetery, me preparei para morrer.

Meu plano original era usar Tetrodotoxina. Em doses pequenas, subletais, ela deixa a vítima num estado de quase morte por dias, permitindo que ela mantenha a consciência. Morfeu, porém, não concordava. Ele disse que a margem de erro entre o estado de quase morte e a morte de verdade era pequena demais no mundo mortal e não algo com o que se brincar. Ele não queria que eu arriscasse. Então, ofereceu uma substituto do País das Maravilhas: uma poção que funciona quase da mesma forma, mas que tem um antídoto cem por cento garantido.

Bebi a dose de quase morte nesta manhã e, dez horas mais tarde, ainda sinto o gosto amargo e anestésico, como cravos dançando no fundo da garrafa de vinagre. Não consigo morder a língua para aliviar o efeito. A mágica me deixou catatônica — meus olhos fechados e imóveis, meus batimentos e respiração reduzidos a um ronronar indetectável por quaisquer instrumentos humanos.

Meu lado intraterreno se remexe dentro do meu crânio, me garantindo que isso vai dar certo, mas meu lado humano instintivamente se encolhe quando o medo tranca minha garganta. Não posso gritar para dizer a todos que estou viva. Minhas cordas vocais não vão funcionar. A claustrofobia, minha velha inimiga, me deixa toda arrepiada. Sei o que está acontecendo ao meu redor, apesar de não conseguir abrir os olhos ou mover meus membros. Todos os cheiros, sons e sensações táteis são ampliados por minha incapacidade de reação.

Os paramédicos que atenderam, nesta manhã, à chamada de emergência da minha neta de vinte e sete anos me declararam morta — fulminada por um ataque cardíaco. Foi insuportável ouvi-la chorar e gritar. Isso despertou lembranças da minha maior perda — da morte de Jeb, três anos antes. Uma faca ainda é cravada no meu peito sempre que me lembro do nosso último adeus.

Mas Jeb me mandou ser firme. E ensinei aos meus netos o mesmo — sempre encarar as coisas. Ela ficará bem. Não tenho dúvida disso porque ela é muito parecida comigo, para além de seus cabelos loiros, olhos azuis e curiosidade. Ela é teimosa, leal e uma sobrevivente.

Assim que os paramédicos levaram meu corpo ao necrotério, tudo funcionou como o previsto.

Minha família sabia que cemitério eu escolhera e as quatro exigências do meu testamento: nada de exibição pública do meu corpo, nada de velório, cremação em doze horas depois da minha morte e a dispersão das minhas cinzas no mesmo local onde as de Jeb foram jogadas, sob o salgueiro em nossa casa de campo. A árvore tinha um significado especial, por ter sido gerada de uma mudinha do salgueiro que dividia os quintais da nossa casa quando éramos crianças.

Tais pedidos nada convencionais não abalaram minha família, considerando que me tornei uma mulher muito excêntrica.

Depois da morte de Jeb, eles me viram vagar pela casa de campo, reunindo os mosaicos que fiz ao longo da vida, cheios de paisagens bizarras e místicas — com títulos como A Batida do Coração do Inverno, Dunas de Xadrez e O Ventre do Monstro —, e guardando-os no sótão, ao lado de outras quinquilharias, incluindo um anúncio de um passeio pelo Tâmisa, em Londres. As últimas coisas que guardei ali foram duas chaves: uma que pertencia à minha mãe, e era capaz de transformar qualquer espelho num portal, e outra que podia abrir o jardim das almas do País das Maravilhas. Esta última foi um presente dado a Jeb, depois que ele desistiu da sua musa, de modo a satisfazer a necessidade do reino interior por sonhos vívidos e cheios de imaginação, conectando nossos mundos em paz ao longo do processo. Ele desistiu do que fez dele único, a fim de manter as crianças humanas seguras. Um ato de coragem que seus filhos e netos jamais tiveram o privilégio de saber. Era essa a lembrancinha de que eu tinha mais dificuldade para me desapegar, porque era uma homenagem à coragem e ao caráter nobre de Jeb — as duas coisas que eu mais amava nele. No entanto, como Rainha Vermelha do País das Maravilhas, eu não tinha motivo para guardar chave tão sagrada.

Escondi tudo num baú no sótão e o tranquei. Então pus a chave do baú em meio às páginas da minha velha coleção de Lewis Carroll. Jeb e eu éramos donos da casa e do terreno que a cercava, e insistimos, em nossos testamentos, para que o lugar permanecesse sempre com a família. Assim, se nossos descendentes um dia precisassem me encontrar, poderiam. Eles só precisam procurar as pistas, como um dia eu fiz. Seguir meus passos e acreditar no impossível — em contos de fadas e desejos e mágicas.

Sempre os mantive no escuro quanto ao nosso legado, dando-lhes uma chance de viver uma vida normal. Até mesmo ordenei que os insetos e flores ficassem em silêncio. Agora sou a única capaz de ouvir esses sons do mundo interior, e as coisas continuarão assim enquanto eu estiver reinando como a Rainha Vermelha. Contudo, se algum familiar procurar com presteza, vai encontrar a verdade que escondi para eles.

Em todos esses anos, eles aceitaram meus caprichos porque sempre os respeitei e os amei incondicionalmente. E agora conto com a lealdade deles. Todo o meu plano de morrer depende da execução do meu testamento.

A cremação era a única forma de evitar que drenassem meu sangue, bombeassem formol em minhas veias e cerzissem minhas pálpebras — todos aqueles procedimentos mórbidos e intrusivos para embalsamar e preservar o corpo mortal. Fui abençoada ao longo dos meus oitenta anos de vida humana com saúde e uma mente aguçada. Nunca precisei de marca-passo e não tenho próteses, implantes ou dentaduras, então não há nada que possa explodir no forno. Isso significa que não haverá incisões nem extrações. Era importante que eu permanecesse intacta — por dentro e por fora.

Todavia, se o Rábido Branco não se apressasse e chegasse aqui com o antídoto para me tirar deste estado, nada importaria. Vou virar um monte de cinzas. E Morfeu terá de encontrar um lar novo para meu espírito eterno... um novo corpo para eu habitar.

Ele ficará furioso se isso acontecer e nunca me deixará esquecer isso. Uma eternidade é muito, muito tempo para ouvir eu avisei, entoado continuamente com um marcado sotaque londrino.

— Não me importo — disse ele há duas semanas, enquanto discutíamos meu êxodo do reino humano e tomávamos chá durante uma das minhas visitas ao País das Maravilhas em sonho. Ele levou a xícara à boca, seu rosto curioso perfeito e jovem como sempre. Ele bebeu e deixou a xícara de lado novamente. — Muitas coisas podem dar errado. Devo estar lá para executar meu plano.

— Vou agir sozinha — declarei. Estudei a cama com dossel e a lareira instaladas na diagonal em relação a enormes poltronas vitorianas ao lado de uma mesa oval, buscando conforto no cenário. — E vamos seguir meu plano. — Aqueles seriam meus últimos instantes no reino humano. Tinha de ser de acordo com a minha vontade. Contive uma descarga de tristeza e tentei exibir o mesmo controle que Morfeu exibia com sua xícara de chá, mas o líquido quente molhou minha mão velha quando meu pulso tremeu. Gritei.

— Alyssa, por favor. Permita-me. — Com seus dedos lisos e elegantes, ele cuidadosamente segurou meus dedos enrugados, limpando o chá e acariciando a mão queimada com um guardanapo.

Permita-me. Nós dois sabíamos que ele falava de outras coisas além da limpeza do chá derramado.

Tantos anos passamos juntos nos meus sonhos — e tantos outros na nossa infância —, com Morfeu me treinando e me ensinando sobre meu reino e o mundo. Não havia oportunidades para ficarmos sozinhos, já que ele mantinha o véu do sono descoberto para eu poder interagir com o Rábido, Chessie, Marfim, as criaturas e meus súditos.

Isso mudou quando fiquei viúva. Realizava meus deveres reais todas as noites e lutava para ser forte, até que meu luto pela morte de Jeb ficou tão intenso que as lágrimas se acumulavam em meus cílios, me cegando. Morfeu — sentindo minha vergonha, porque rainhas não choram — insistia que era hora do chá, que tomávamos sozinhos nos aposentos reais que um dia pertenceria a nós como rei e rainha.

Ali, na nossa solidão, escondidos de olhos predadores e cercados por exuberantes tapetes vermelhos e cortinas douradas, eu me perdia em minha dor. Permita-me, dizia ele. Estendendo os braços, ele me abraçava enquanto eu chorava. Noite após noite, durante um ano, até que finalmente não conseguia mais chorar.

Pouco depois, a atenção de Morfeu mudou. Seus carinhos se tornaram menos confortantes e mais íntimos. Estava constrangida demais para reagir, tímida demais em meu corpo velho.

Um ser místico eternamente jovem cortejando uma velha — teria rido do absurdo disso, não estivesse tão afetada pela devoção cega dele e pela intensidade do seu amor.

— Mesmo que usássemos seu plano... — Morfeu falava baixinho e de mau humor ao esfregar o guardanapo entre meus dedos, enxugando os resquícios de chá. — ... ainda assim eu deveria estar lá nas coxias, para supervisionar o espetáculo.

Franzi a testa para ele. Sua teimosia, juntamente com a dança dos vaga-lumes em seus cabelos desgrenhados e seus traços bizarramente belos, me fez lembrar outra noite em que nos sentamos neste quarto juntos — há várias décadas —, quando ele tentou me convencer a usar a coroa de rubi pela primeira vez. Quando tentei convencê-lo a me devolver meu desejo para eu poder fugir do País das Maravilhas, curar a maldição da minha família e manter Jeb em segurança. Eu era uma pessoa diferente na época, cheia de juventude, aspirações humanas e inocência.

Nosso quarto real se tornou uma lembrança dolorosa da velhice e decrepitude. Ansiava criar lembranças novas aqui, depois de desistir de tentar superar a beleza caótica do País das Maravilhas, quando fui coroada rainha de novo e permaneceria com dezesseis anos para sempre — jovem, cheia de energia e tão sedutora quanto o homem alado que governaria ao meu lado.

Até então, eu não me encaixava. Eu era uma foto deixada ao sol e chuva, minhas cores vibrantes se desbotando melancolicamente e ganhando um tom amarelado. Meus poderes intraterrenos ainda eram fortes, mas estavam presos num vaso gasto pelo tempo. Meus ombros pareciam curvados e pesados demais, eu raramente usava minhas asas. Do que mais sentia falta era voar.

Eu me perguntava se era assim que a Rainha Vermelha se sentiu no fim e por que ela permitiu que Morfeu a convencesse a voltar ao País das Maravilhas, abandonando seus descendentes semi-humanos. Por fim, foi plano dela voltar, apesar de não querer fazer aquela jornada sozinha. Ela brigou com Morfeu, dando início a uma série de eventos e manipulações que acabaram por me levar à coroa e me tornar rainha. Algo pelo qual aprendi a agradecer, apesar de na época ter reclamado do presente. Demorei muito para admirar totalmente a preciosa imortalidade, e jamais desvalorizaria isso novamente.

Depois que Morfeu terminou de limpar o chá derramado, tirei a mão da dele e timidamente cobri meu pescoço com o lenço de seda, tentando esconder minhas peles murchas. As pessoas diziam que eu era linda para a minha idade. Que parecia ao menos vinte anos mais nova. Todavia, em comparação à beleza sobrenatural e imutável de Morfeu, eu me sentia velha.

— Não quero você lá — insisti, determinada a mantê-lo distante da casa funerária. — Já basta você ter me visto murchar como uma uva-passa ao longo dos anos. — Até minha voz soava enferrujada, como se as palavras jorrassem da minha garganta e língua em porções cáusticas.

Morfeu apoiou os cotovelos na toalha da mesa, aproximando-se ao máximo com o jogo de chá entre nós. Seus cabelos azuis tocaram-lhe os ombros, animados e encantados — um contraste marcante com as ondas brancas reduzidas a um coque preso atrás da minha cabeça.

— Você está no fim de sua crisálida, meu amor. Esta etapa é a mais difícil, acredite. Uma batalha furiosa e incômoda de identidade, antes de se libertar e se transformar na criatura de luz e criatividade que sempre foi seu destino. Posso mantê-la atenta. Para evitar quaisquer... distrações.

Ele olhou para minha aliança, que eu ainda não tinha tirado. Aquilo se tornara mais do que um símbolo da nossa devoção. Tornara-se um símbolo da minha vida humana, e eu pretendia usá-la até deixar tudo para trás.

Com o dedinho, Morfeu circulou a aliança, cuidando para não tocar os diamantes ou o suporte de prata que os mantinha no lugar.

— É importante que você não permita nada que a impeça de dar o salto final. Você sofreu a perda daqueles que se foram há tanto tempo. Eles estão em paz. Deixe que a paz deles lhe dê paz. Senão, você será afetada... incapaz de agir com a mente ágil. O foco é fundamental para que qualquer um dos planos funcione.

— Já sei disso — respondo, um aperto no peito dolorido. — Você tem medo de que eu fique senil. De eu não ser capaz de lidar com isso.

Ele suspirou, acariciando meu polegar com o dele.

— Não senil. Nostálgica. Acontece a humanos. Você mesma me contou, enquanto eu a via amadurecer do refinamento à sabedoria.

— Refinamento. — Tentei um sorriso hesitante diante do esforço dele em me encantar. — É assim que vocês falam hoje em dia?

Ele me encarou sem hesitar.

— Seus olhos não perderam a incandescência; nem a mente, a inteligência. Você não é ingênua. Você é minha torta de ameixa, e sempre foi. Já lhe disse isso repetidas vezes, não é?

Ao menos uma vez por noite nos meus sonhos, Querida Mariposa.

Não respondi em voz alta, assim como não revelei minhas maiores inseguranças: estava com vergonha de ele me ver tão decadente... Não suportava a ideia de ele ter qualquer lembrança de mim como um cadáver naquele caixão de papelão — assim como eu vi Jeb depois da morte dele, antes de ser cremado.

— Uma rainha não deveria exigir resgate — sentencio. Ainda o encaro, maravilhada com aquelas íris coloridas que devolvem a mim o mesmo olhar de nossa infância, cheio de surpresa e afeto. De certa forma, ele via para além do meu corpo velho e enxergava a menina que fui, e eu queria muito conseguir me ver como ele me via. — Uma rainha deve merecer o respeito do seu reino e de seus súditos. E a admiração do rei.

Ele pegou minha mão novamente e beijou cada um dos nós dos dedos cheios de artrite.

— Ah, eu lhe garanto Você sempre mereceu isso. Na verdade, planejo mostrar-lhe a profundidade de minha admiração. — A palavra profundidade saiu de sua garganta como um urro. — Ainda que sejam necessárias várias vezes para convencê-la, finalmente chegará o momento de você ser minha.

Meu rosto ficou vermelho. Apesar de todos os anos em que ele me elogiou e me provocou com insinuações, e a despeito de tudo o que vivi como mãe, esposa e avó mortal, ele ainda conseguia me fazer enrubescer.

— Ah, aí está. — Ele passou o dedo por meu rosto enrugado e sorriu, satisfeito demais consigo mesmo. — Não perdi meu encanto.

— Como se isso fosse possível, para o mestre da sedução verbal — provoquei.

Seu humor mudou para a insolência num piscar de olhos.

— Você logo verá que isso é mais do que conversinha, minha rosa.

Fiquei ainda mais vermelha, sentindo-me mais jovem do que nunca. Ele sempre causava esse efeito em mim. Sempre fez com que eu me sentisse viva e desejável. Exceto pelas vezes que ele me desafiava ou me deixava furiosa.

Ele se recostou em seu lugar, as asas erguidas.

— Seu corpo está cansado. Deixe-me fazer isso por você, para você poder descansar — tentou ele uma última vez.

— Você me ensinou a ser forte e astuciosa. Devo dar sozinha este último salto para dentro da toca do coelho. — Uma sensação inesperada de vulnerabilidade me fez tremer. Peguei minha xícara de chá para absorver seu calor. — Mas você estará lá para me pegar?

— Estarei lá esperando um beijo arrasador para compensar todos os meus problemas — respondeu ele sem hesitar.

Sorrindo, peguei o jogo de xadrez. Morfeu ficou observando atentamente eu animar as peças para que atuassem no meu grandioso plano de deixar o reino humano e esconder meus vestígios com a ajuda do meu conselheiro real, além de pedaços de osso fornecidos pelas fadas, um saco de cinzas, dois trajes de disfarce, uma mosca comum e um punhado de duendes. Enquanto eu falava, seu olho adornado com joias brilhava num tom esverdeado — incomodado, mas esperançoso. A ansiedade que emanava dele era visceral.

Era inconcebível que tivéssemos um relacionamento de sessenta e três anos — platônico — sem um quê de tensão. Apesar de ele gostar muito de me ver andar na ponta dos pés na corda bamba da sedução contida, ele manteve seu juramento e respeitou minha decisão de ser fiel a Jeb. Ele esperou três anos, enquanto eu sofria a morte do meu marido mortal e preparava minha família para minha partida iminente. Era essa a profundidade do respeito dele por mim. Ele teve meu respeito em troca. E muito mais...

Agora chegou o dia de recompensá-lo por sua paciência e estou começando a me arrepender por não deixá-lo planejar minha morte... por não deixá-lo controlar o espetáculo. Provavelmente, tudo seria muito mais fácil. Eu já estaria em seus braços e em sua cama — uma jovem rainha borboleta, governando meu reino, embriagada de poder, loucura e paixão.

Não. Eu consigo. Posso provar que sou capaz, calculista e forte, como todas as boas rainhas deveriam ser.

O único papel de Morfeu no meu plano era mandar o Rábido com o antídoto. Assim que meu cúmplice chegar, tudo se encaixará e fugirei para o País das Maravilhas. Como um corpo não pode ser exumado depois de reduzido a cinzas, ninguém saberá que ainda estou viva e apenas fui embora deste mundo para sempre.

Uma pontada de tristeza segue-se a esse pensamento quando finalmente me dou conta. Acabou. Estou pronta para dar um fim... para começar meu futuro imortal. Vivi uma vida plena aqui. Minha família é saudável e feliz. Estamos no auge. Todos os sonhos humanos foram realizados e meu coração está firme e forte novamente.

Se bem que, por causa disso, há muita coisa a ser deixada para trás. Não há nada inconcluso, mas ainda assim é difícil dizer adeus para sempre. Assim que a coroa for colocada em minha cabeça para dar início à minha imortalidade, não terei de usá-la constantemente para manter minha juventude, mas terei de ficar no País das Maravilhas. Como Marfim uma vez me disse, o tempo é complicado ao se passar pelo portal a fim de retornar ao mundo humano... há de se imaginar uma hora específica, ou o relógio retrocede e o portal deixará você no mesmo momento de sua passagem.

Se eu tentar cruzar as fronteiras para o reino humano depois de partir, voltarei para sempre a este momento e terei oitenta anos para sempre, ou automaticamente envelhecerei todo o tempo que se passou e virarei pó na hora. Acrescente-se a isso o fato de eu estar morta aos olhos de todos — jamais poderia explicar meu reaparecimento sem causar terror e confusão — e ir e voltar não será mais uma opção.

Uma muralha impenetrável está prestes a se erguer entre mim e minha família, deixando-nos sem nada além de memórias.

O rosto de Jeb reapareceu em minha mente antes que eu pudesse impedir... como seus olhos verdes brilhantes me encararam pouco antes de ele os fechar na morte. Como eles estavam tão cheios de amor e gratidão por todos os sonhos que compartilhamos.

Sinto algo crescer na minha garganta e uma dor atrás dos olhos. No meu peito, a pequena identidade de metal parece uma pilha de tijolos.

Pare. Não posso fazer isso agora. Tenho de me concentrar na fuga. Morfeu tinha razão. Pensar naqueles que amei só vai me atrapalhar. Vou manter as lembranças sob controle... esquecer como encarei a morte da mamãe e do papai, como achei que jamais superaria a dor. Como Jeb foi meu porto seguro, como sempre. Assim como fui para ele, quando a mãe dele morreu.

É fútil pensar nessas coisas agora, porque, assim que Jeb morreu, todo o mundo se distorceu — adquiriu uma nova forma que eu não reconhecia. As coisas cotidianas se tornaram estranhas e desagradáveis. Com a morte dele, eu não fazia parte de mais nada.

Minha metamorfose estava completa assim que meu marido mortal deixou de respirar. Só o que me restava agora era sair do meu velho casulo.

Um cheiro novo entra em meu entorno de papelão — loção pós-barba ou desodorante —, me obrigando a voltar ao presente enquanto dois homens conversam do lado de fora do caixão.

— Última da noite, Frank?

— É isso, Brian. Chegou há algumas horas. Só entrega. E é para se apressar com ela. Quer que eu fique e ajude?

Tenho dificuldade para respirar. Meu plano não permite duas testemunhas. Só uma. Enquanto espero pela resposta do operador do crematório, meu coração se encolhe dentro de mim, cheio de medo. O órgão parece tremer, apesar de não haver pulsação em meus pulsos ou ouvidos. Só uma vibração fria e indiscernível por trás do meu esterno, como gelatina gelada retirada da fôrma.

— Não — diz finalmente Brian, mexendo em alguns papéis. — Posso fazer isso de olhos fechados.

A ironia é risível. Se tudo sair como planejado, ele não só terá seus olhos fechados, como também estará dormindo e sonhando.

— Vá para casa e fique com sua família — conclui Brian. — Diga a Melanie e às crianças que mandei um oi.

— Entendi. Até amanhã.

As portas se fecham com um rangido e o alívio toma conta de mim, mas por pouco tempo. Os cliques e claques da esteira mecanizada balançam as paredes de papelão do meu caixão e agitam meus ossos rígidos. Sinto um balançar leve sob minha coluna enquanto meu caixão segue por uma esteira com rolos de metal. À medida que estes se movem, as chamas crepitam mais alto, aquecendo meus pés no ponto onde a parede sob a sola dos meus pés se aproxima perigosamente da entrada do incinerador.

Era para o Rábido estar aqui antes que o forno de temperatura controlada estivesse quente o bastante para acionar o mecanismo de abertura. As coisas estão acontecendo fora da sequência e rápido demais. Meus músculos doem e ganham vida, mas estão rígidos como aço. Imóveis. Um vislumbre de outra lembrança me arrepia: quando a Rainha Vermelha controlou meu corpo naquele último dia em Qualquer Outro Lugar. Quando eu era uma marionete dela. Sinto-me tão impotente agora quanto naquele tempo.

Estou prestes a ser envolta em chamas. Meu corpo não vai sobreviver. De todo modo, preciso sobreviver. Prometi voltar como eu mesma. Inteira. É uma promessa que não posso quebrar. Morfeu esperou demais por meu retorno. Não posso decepcioná-lo.

A dúvida ergue sua cabeça horrível: o que farei? Não consigo me mover, não consigo me livrar... não sem o antídoto. Um vazio dói por trás dos meus canais lacrimais enquanto desejo que uma enchente me liberte e encha toda a minha caixa com um oceano de lágrimas para me salvar do fogo. Mas meus olhos podiam muito bem estar cheios de areia.

Chega de drama, meu amor. Use sua mágica. Improvise e encontre uma forma de escapar.

Não tenho certeza se é a voz de Morfeu na minha cabeça ou se é minha própria voz. Ouvi o sotaque dele e sua insistência tantas vezes ao longo da vida que eles estão entranhados em mim como se fossem meus.

Seja qual for o caso, isso desperta minha determinação. Há um motivo para eu ter vindo a este lugar na noite passada, quando tudo estava escuro e em silêncio: para poder anotar mentalmente todas as coisas que poderia animar se precisasse. Para poder entender a logística do forno crematório. Para poder usar minha mágica às cegas.

Concentro-me no maquinário da esteira. Aprendi uma coisa ou outra sendo esposa de um mecânico. As molas do mecanismo se contraem enquanto as imagino se retraindo. O movimento aciona as amarras e a porta de metal se fecha com um baque. Minha caixa para imediatamente ao atingir o obstáculo.

— Você só pode estar brincando comigo — resmunga Brian. Ele mexe na maçaneta da porta e bate nas dobradiças. — Pronto. Agora, sim.

Ele empurra meu caixão de volta para a esteira de metal, criando espaço para a dobradiça se abrir. Minha mente procura outra forma de detê-lo quando o ouço gritar “Mas o que é que...?”, pouco antes de ouvir o som do seu corpo caindo no chão. O caixão bate na porta fechada novamente.

— Rainha Alyssa — uma voz fina soa do outro lado do papelão.

Nikki, sua fadinha maravilhosa. Um formigamento se irradia pelos meus lábios, o fantasma de um sorriso esperando para se abrir. Meus dedos dos pés se dobrariam de empolgação, não fosse minha paralisia.

A tampa do caixão se abre e as asas de vinte fadas pairam ao redor do meu rosto — lufadinhas de vento com cheiro de canela e baunilha.

Mãozinhas do tamanho de joaninhas seguram minhas pálpebras, abrindo-as diante de um brilho âmbar. Ainda não consigo virar a cabeça, mas pela minha visão periférica a galhada do Rábido aparece sobre a borda do caixão, seguida por um par de olhos rosados brilhantes.

— Atrasado estou — desculpa-se ele.

Tento menear a cabeça, mas não consigo.

Todo o seu rosto aparece diante de mim.

— Arrumá-la, Alteza. Levá-la para casa, finalmente.

Casa. A palavra passeia por minha mente, cheia de promessas e esperanças. Imagino-me voando com Morfeu pelos cenários bizarros e irregulares do País das Maravilhas. Como vai ser bom me sentir pertencente a um lugar de novo. Fazer parte e nunca ter de abandonar ninguém novamente.

O Rábido estica o braço magro e derrama em minha garganta algo de uma garrafa vermelha. Um leve toque de frutas vermelhas misturado a menta arde em minha língua. Meu coração ganha vida, batendo com tanta força contra meu esterno que eu perco o fôlego. Em pouco tempo, sou capaz de abrir os olhos sem a ajuda das fadas. Elas se dispersam com risadinhas e pairam ao redor do adormecido operador do crematório, caído no chão de cimento.

Pisco com força e rapidez. Meus canais lacrimais funcionam e meus olhos se enchem de água. O sal fere e coça.

Depois, meus dedos dos pés e das mãos latejam e os músculos despertam, moles e resistentes, como elásticos esticados demais. Enquanto me sento, minhas velhas articulações estalam.

O Rábido sobe na beirada da inclinação e segura o caixão, mantendo-o ao meu nível.

— Perdoe o Branco Rábido. Para todo o sempre, ao seu lado estarei.

Acaricio sua cabeça macia.

— Nenhum perdão é necessário. O que importa é que você está aqui agora. Alguém o viu saindo do banheiro?

O Rábido faz que não.

— A mosca no muro ficou de olho no futuro. — Ele ri da rima e aponta para a parte de cima da porta que ostenta a única janela do salão. A mosca anda pelo vidro do outro lado, numa demonstração de sua devoção inabalável.

O Rábido abre o sorriso sorrateiro que aprendi a apreciar, enquanto sua mão esquelética me entrega uma mochilinha. Olho dentro e está tudo ali: meu colar com o rubi, minha aliança de casamento, os trajes de disfarce, um saco de cinzas e pedacinhos de osso, uma muda de roupa, uma faca e três lembranças da minha vida humana que serão as únicas coisas que levarei comigo ao transpor os limites do País das Maravilhas.

Primeiro, coloco o colar em volta do pescoço e aperto a chave contra o peito, saboreando o poder que ela contém.

O operador do crematório ronca no chão. Ele parece com frio e nada confortável, mas sei que não está. Seus sonhos são cálidos e sensuais. As fadas voam ao redor dele, as asas batendo à velocidade de beija-flores, enquanto elas espalham partículas que são como dentes-de-leão cheios de feromônios. As sementinhas caem sobre o rosto sorridente do homem, levando seu inconsciente a imaginar as fantasias mais carnais. Torço o nariz, com vergonha até de imaginar o que ele está sonhando. Ele provavelmente vai ter uma ressaca de sonhos por uma semana.

Ainda que ele não vá sofrer nenhum efeito físico duradouro, as fadas estão explorando os pensamentos secretos dele. Quando eu era mais nova, teria me arrependido de tê-lo usado em meu plano. Agora, não. Quando ele acordar, daqui a mais ou menos uma hora, sua dor de cabeça insuportável o impedirá de questionar como conseguiu me cremar enquanto ele dormia. Ele só irá querer uma aspirina e sua cama macia em casa.

O fim justifica os meios.

Uso a faca para cortar uma abertura na lateral do caixão e tirar minhas pernas, lenta e cuidadosamente. Não consigo me mover tão rápido quanto antes. Meus pés descalços tocam o chão frio, o vestido de papel fazendo barulho. O Rábido se vira de costas enquanto tiro o vestido e o jogo dentro da caixa, depois visto um moletom e botas cinza — as roupas mais confortáveis e discretas do meu armário. Repreendo-me por me esquecer das roupas íntimas, mas não importa o que estou vestindo agora, porque no País das Maravilhas Morfeu encheu todos os armários do castelo com camisolas e lingeries de renda, cetim e veludo — um guarda-roupa digno de uma rainha.

Hoje, o disfarce esconderá meu traje simplório. Coloco o pé no tecido mágico. Para virar uma camaleoa, só preciso vestir o capuz e me concentrar nos arredores, meu corpo refletindo o cenário de fundo.

Mas primeiro...

Sem eu nem pedir, o Rábido me entrega o saco de cinzas e ossos e minha aliança de casamento. Olho o anel. Jeb o fez para mim quando tinha a capacidade mágica de pintar coisas e lhes dar vida. Quando sua musa se tornou uma entidade viva. Ele me serviu tanto como anel de noivado quanto como anel de casamento e era indestrutível. Pelo menos era o que pensávamos. A única vez que ele perdeu um de seus doze diamantes foi por descuido da minha mágica, quando eu a estava praticando.

Estava do lado de fora da nossa casa de campo, tentando fazer o salgueiro dançar, quando o diamante caiu na grama. Procuramos e procuramos, mas nunca o encontramos. Depois de uma semana, ele apareceu de novo, nascendo do solo na forma de uma flor parecida com vidro. Era como se o diamante fosse uma semente, tendo dentro de si a força da criação mágica de Jeb.

O cheiro de terra presente na lembrança dá lugar ao cheiro do propano do forno. Abro o saco e derramo as cinzas e ossos no caixão, mantendo os movimentos metódicos e precisos para a nostalgia não tomar conta de mim novamente.

Depois de esvaziar o saco, beijo minha aliança e a coloco em cima do montículo.

— Rábido, derreta isso com sua mágica.

Meu conselheiro real se aproxima, olha pela abertura e estreita seus olhos brilhantes até que eles irradiem um calor vermelho. Enquanto ele se concentra, as faixas de prata se fundem, reduzindo os onze diamantes a cinzas.

Coloco a placa de identificação dentro do caixão e leio o que está gravado no aço: Alyssa Victoria Gardner Holt. Sinto um nó na garganta. É a última vez que meu nome humano me definirá.

Reposicionando a tampa, ordeno que o mecanismo da porta funcione. Entrefecho os olhos diante do calor e das chamas, enquanto as portas se abrem o bastante para eu empurrar o caixão pela esteira, a porta se fechando em seguida. Ela se fecha completamente, tanto que nem mesmo se pode ver o brilho alaranjado lá dentro.

Alguns segundos mais e eu estaria presa ali. Agora, depois que o papelão se queimar todo, vai parecer que eu estava. As prateleiras de metal na parede contêm vários cubinhos de papelão. Dentro estão os restos mortais dos corpos que vieram antes de mim e agora esperam ser transferidos para suas urnas.

Mas meus “restos mortais” são únicos. Os diamantes de Jeb esperam lá dentro — sementinhas mágicas. Quando as cinzas forem lançadas no lugar onde as dele foram absorvidas na terra sob nosso salgueiro, flores nascerão, uma parte dele e minha. Unindo o que restou de nosso lado humano, numa última homenagem a toda a beleza que ele criou durante a vida.

Seguro-me para não chorar e pego a mochila enquanto o Rábido veste outro traje de disfarce, o qual encolhe até caber em seu corpo de coelho. Mentalmente, pergunto à mosca se o corredor está livre.

Ela responde num sussurro:

Está tudo bem, Rainha Alyssa...

Os outros humanos se foram. Não há nada além de umas traças por aqui.

Desnecessário ficar invisível, então.

— Nikki — sussurro, e a fadinha balança as asas, soltando a dose final de pó de fada no homem adormecido. Então ela reúne suas companheiras e nos segue porta afora. O banheiro fica a poucos passos do outro lado do corredor comprido e escuro. Sigo tomando cuidado para não esmagar as traças que caminham perto dos meus pés e dos pés do Rábido. Sorrio ao ver os insetos acompanhados de uma fila enorme de baratas, besouros e aranhas.

Rainha Alyssa! Rainha Alyssa! Tão triste vê-la partir...

A mosca voa ao redor da minha cabeça, acrescentando suas despedidas à confusão.

— Sentirei saudade de vocês também — digo, lutando contra uma onda de melancolia. Será a última vez que ouvirei esses cumprimentos confusos e zunidores. No País das Maravilhas, os insetos são... bem diferentes. Menos inócuos e bonzinhos. Alguns são maus e letais, e nada pequenos. Mas conheço todos os segredos deles e todas as suas fraquezas — graças ao sábio guardião do País das Maravilhas.

Nosso desfile entra no banheiro e para diante do espelho. Em vez de me ater à minha aparência velha e enrugada, imagino o relógio de sol que cobre a toca do coelho em um jardim londrino. O vidro racha como gelo no lago e, no reflexo entrequebrado, o relógio de sol aparece, marcado por uma réstia de pôr do sol rosa. É cedo e ninguém ocupa a trilha ainda. Como precaução, visto o capuz e o Rábido faz o mesmo.

Só precisamos de um ou dois pensamentos sobre nossas cercanias e seremos invisíveis.

Usando minha chave, miro numa fissura na forma de buraco de fechadura, minúsculo e intrincado.

O portal se abre. O Rábido me cutuca com seus dedos magros e entrelaço meus dedos aos dele. Junto com as fadas e nossos insetos companheiros, passamos pela abertura liquefeita. Uma brisa fria me atinge, assim como o cheiro de mato e rosas cobertos de orvalho reluzente.

Os botões de rosa dizem:

Bem-vinda, Majestade. Os anos ficaram para trás. Logo você estará desabrochando como nós novamente.

Sorrio. O Rábido me puxa rumo ao relógio de sol que já expõe a toca do coelho. Ele está ansioso para ir embora. Mais insetos se juntaram a nós; alguns pelo terreno: besouros, centopeias e escorpiões; outros pela brisa: borboletas, mariposas, vaga-lumes...

Saem em enxame do mato e ficam dando a volta em mim e em meu conselheiro real — um arco-íris encantado, espesso e brilhante, sob a luz rosada do céu.

As borboletas cantam:

Vida longa à Rainha Alyssa. Que você seja para sempre jovem, louca e livre.

Muitos deles pousam sobre mim, as asas acariciando meu rosto e pescoço através do traje de disfarce, e percebo que não terei mais de me tornar invisível. Meus amigos insetos estão aqui para me dar proteção, como sempre estiveram.

O Rábido me solta, seus dedos de cadáver tocando os meus enquanto ele segue as fadas e mergulha na toca do coelho sem olhar para trás.

— Atrase-se não, Majesta-a-a-ade — o grito do Rábido ecoa até mim, afastando-se mais e mais à medida que ele desce, sem peso, como uma pena ao vento.

Ao contrário do meu séquito interior, não consigo ir embora sem uma olhada para trás.

Paro, olhando em meio à nuvem de milhares de asinhas adejando diante da paisagem tremeluzente no horizonte. Meu peito se aperta.

Pego as lembrancinhas da minha mochila. Três garrafas de vidro decoradas: a primeira cheia de pedrinhas, a segunda com conchas e a última com um pó prateado. Uma olhada nas três e as lembranças contra as quais eu lutava iluminam minha mente, graciosa e lentamente, como a aurora invadindo o mundo imóvel que desperta.

 

 


CONTINUA