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Capítulo 2
Auge
PRIMEIRA MEMÓRIA: PEDRAS
Sessenta e três anos antes...
É manhã no País das Maravilhas e Morfeu está me acompanhando de volta ao castelo da Marfim, onde minha família e Jeb esperam para passar comigo pelo portal, de modo que eu possa viver o restante da minha vida humana.
Meu acompanhante está pensativo e quieto, suas feições duras como pedra. Não trocamos nenhuma palavra durante o trajeto encantado. O som das asas da mariposa criando uma trilha no céu só intensifica o silêncio constrangido.
Sinto um aperto no peito, como se meu coração estivesse tentando alcançá-lo. Sei que, se olhasse sob o tecido sedoso do meu vestido preto e sob o paletó que ele insistiu em usar para se aquecer, o órgão estaria brilhando em tom violeta. Ontem mesmo, meu coração estava dividido ao meio — os lados humano e interior se matando — por causa da maldição que a Rainha Vermelha jogou sobre mim. Jeb e Morfeu intervieram, combinaram suas mágicas e me curaram com suturas encantadas. Eles salvaram minha vida com o amor. Meu corpo entende isso de alguma forma primitiva e eu jamais esquecerei. Meu coração está ligado aos dois agora, formando um elo que vai além de qualquer explicação humana.
Contudo, mesmo sem esse elo, eu era capaz de decifrar as joias no rosto de Morfeu e de saber no que ele está pensando. Acordei mais cedo em sua cama e o encontrei sentado na beirada do colchão, acariciando os cabelos nas minhas têmporas. Antes mesmo de poder lhe dar bom-dia, ele me beijou na testa e se afastou, dizendo que o café da manhã estava pronto.
Passamos a noite juntos, mas nada físico aconteceu entre nós. Nada acontecerá por muitos anos. Não até eu ter vivido minha vida humana com Jeb.
Deixei minha posição sobre fidelidade bem clara; mesmo assim, Morfeu deixou claro que não vai facilitar as coisas. Apesar de seus desafios penderem como fios soltos, o respeito que estabelecemos está firmemente junto a mim. Sei que ele jamais me pediria que traísse os humanos que amo — porque isso é parte de quem sou —, por mais que ele sofra ao recuar e me deixar em paz.
Depois de visitar as paisagens do País das Maravilhas juntos, noite passada, eu o entendo como nunca o entendi antes. E é o mesmo para ele, porque assim que chegamos e ele segura minha mão para eu descer da carruagem, não hesita em me acompanhar até a entrada de gelo onde Jeb me aguarda no topo da escadaria coberta de cristais de neve.
Prendo a respiração ao vê-lo. Ele está usando um smoking azul-marinho completo, com uma camisa violeta que complementa seus cabelos ondulados escuros e o tom oliva de sua pele. A mesma camisa transformada em cueca em Qualquer Outro Lugar.
O smoking está exatamente como na noite da festa de formatura: teias falsas, listras sujas e rasgões colocados estrategicamente no paletó e nas calças. Por um momento, sou levada de volta ao Submundo, onde o vi pela primeira vez esperando por nós na noite de formatura na entrada dos funcionários, e sua expressão magoada diante da minha traição. Jamais provocarei um olhar daqueles novamente.
Estranho. Da última vez que vi o smoking, foi com o dublê de Jeb em Qualquer Outro Lugar. Quando CC caiu na piscina de medos, as roupas se desintegraram. Jeb deve tê-las consertado antes de desistir do seu talento para sempre.
Talvez tenha sido sentimentalismo, porque a irmã dele é quem fez o smoking, ou provavelmente porque ele queria estar usando algo conhecido quando passássemos pelo portal e voltássemos à vida de sua família.
Ainda assim, mesmo usando roupas do reino humano, ele parece triste e deslocado ao esperar que eu suba as escadas. Ficar ali de pé à luz do dia, vendo as belas paisagens que ele criou neste mundo, deve ter sido horrível. Desistir de sua musa deve ser a coisa mais sofrida que ele já fez. E ele fez isso sem hesitar, para ajudar a equilibrar o País das Maravilhas... para alimentar as almas insaciáveis da Irmã Dois com seus sonhos artísticos.
Não tenho certeza se ele pensou nas consequências desse sacrifício. Mas estarei aqui para ajudá-lo a passar por isso.
Enquanto Morfeu e eu subimos a escada a caminho de Jeb, passamos por seres intraterrenos que vieram acompanhar minha partida. Alguns deles são inesperados.
Hubert, decorado e lustrado como um ovo Fabergé numa vitrine de Páscoa, estende a pata de louva-a-deus para cumprimentar Morfeu.
— Ainda é mais fácil para mim odiá-la — diz o homem-ovo para Morfeu, como se eu não estivesse por perto. — Rainha sabe-tudo. Nada de educação ou cultura naquela cabeçorra dela. Ainda assim ela conseguiu provar que eu estava errado. Tinha tanta certeza de que ela acabaria num caixão. Que decepção. — Apesar do sarcasmo, seus olhos amarelados refletiam admiração. Para minha surpresa, ele me oferece, por toda a vida, um suprimento de ovos beneditinos em seu ilustre hotel mágico, se um dia eu o visitasse.
Depois, cumprimentamos os estranhos seres intraterrenos clandestinos que ficaram presos no trem da memória três dias antes. Todos fazem reverência e me agradecem por abrir a toca do coelho para eles poderem voltar para casa. Meu nariz coça quase a ponto de me fazer espirrar quando passamos pelos coelhinhos de pó.
Bill, o Lagarto, nos para no meio do caminho. Ele estende dois trajes de disfarce que pedi a Grenadine que o devolvesse.
— Desculpe por ter perdido um... por tê-los roubado, antes de mais nada — sussurro, envergonhada.
Ele balança a cabeça reptiliana e mostra a língua comprida.
— Sou um súdito da Corte Vermelha. Assim, eles pertencem a você, Majestade. Seus talentos como ladra perdem apenas para o uso da sua mágica. Você os usará agora melhor do que eu jamais os usaria.
Impressionada, coloco a mão no peito. Sob meu vestido, o colar com a chave que abre meu reino pressiona minha pele.
— Mesmo?
Bill estende os trajes.
Olho para Morfeu.
Ele sorri e faz que sim, me encorajando a pegar o tecido transparente. Eu o guardo debaixo do braço e agradeço ao lagarto, que se curva para nos deixar passar. O Rábido está esperando por nós no degrau de cima — usando casacão e calças vermelhas. Ele abre os braços para levar os trajes para mim. Meu conselheiro cavalheiro. Ao subirmos, acaricio a pele macia entre seus chifres.
Guardas elfos se enfileiram na segunda metade da escada, dos dois lados. Eles sacam as espadas e tocam as pontas delas no topo das cabeças, formando um corredor prateado brilhante.
Jeb me aguarda no fim, tenso como se o fato de não poder correr até mim o estivesse matando.
Enquanto Morfeu e eu subimos a escada sob as sombras das espadas, meneio a cabeça para Jeb, num sinal de reconhecimento. As bolsas sob seus expressivos olhos verdes provam a falta de sono. As doze horas que passamos separados devem ter sido uma tortura. Por mais forte que ele estivesse quando demos boa-noite, é óbvio que ele temia que fossem despedidas de verdade. Que eu decidisse passar meu futuro no reino humano sozinha, sem ele.
Não posso estar no mesmo mundo que ele todos os dias sem tê-lo na minha vida. Nós nos amamos. Nós dois queremos a mesma coisa. Vamos dividir esses sonhos e envelhecer juntos. Uma vida mortal é preciosa e curta em comparação à eternidade. Ela deve ser vivida e nunca desperdiçada. Algo que Morfeu agora entende como nunca antes, senão não estaria me deixando partir sem lutar.
Sinto o rosto adormecer, menos pelo frio e mais pela situação insuportavelmente incômoda na qual coloquei os dois. Eu me lembro de que esta é a pior parte... que, depois que eu passar pelo portal e entrar no reino humano, minhas duas vidas vão se misturar e ao mesmo tempo jamais se cruzarão, a não ser que seja necessário à segurança ou ao bem-estar de alguém. Foi com o que concordamos.
Uma cama de gelo se gruda na sola das minhas botas assim que subo o último degrau. Os cavaleiros elfos nos saúdam e guardam as espadas nas bainhas de couro. O sangue que lhes decora os rostos e têmporas brilha como fruta contra o cenário branco que os cerca. Batendo os calcanhares, eles descem as escadas para cercar o castelo e assumir seus postos.
Franzindo a testa, Morfeu oferece minha mão a Jeb. É um gesto estranho, grandioso e cheio de dignidade, como se ele caminhasse comigo pela nave e me entregasse em casamento. De certa forma, é. Durante uma vida humana.
Suas asas farfalham quando Jeb segura minha mão, um espasmo involuntário. Ele está lutando para não pegar minha mão de volta.
— Você conhece o protocolo... se algo acontecer ao seu corpo no seu mundo, você ou Alison devem entrar em contato comigo imediatamente. O espírito de Alyssa deve ser protegido para sobreviver.
Jeb faz que sim com a cabeça.
— Entendi. — A resposta dele é sucinta e seu tom de voz, controlado, mas a preocupação em sua expressão o entrega. É algo em que não gostamos de pensar, algo que esperamos que nunca tenha de ser resolvido.
O olhar rosa do Rábido se vira para mim, seu rosto branco entusiasmado. Eu o mando porta afora para resgatá-lo de ter de tratar de assunto tão mórbido.
Morfeu espera pelo toque dos ossos para desaparecer dentro do castelo, depois pega um par de luvas do bolso, colocando-as na mão.
— E acho que é desnecessário lhe dizer para tratá-la como uma rainha — resmunga ele para Jeb.
Jeb entrelaça nossos dedos.
— Assim como é perda de tempo lhe pedir que abandone as táticas de sedução nos sonhos dela.
— É ciúme o que ouço em sua voz, belo e falso elfo? Nunca tema. Ainda pensarei nela todos os dias, enquanto ela estiver com você.
— Prefiro que você pense em mim todas as noites, quando ela estiver com você. — Jeb me ajuda a tirar dos ombros o casaco de Morfeu, substituindo-o pelo paletó do seu smoking, ainda quente do calor do seu corpo. — Enviarei uma coruja como lembrete. — Ele devolve o casaco a Morfeu.
Morfeu pega o casaco e o dobra no braço, alisando-o. Ele ri uma risada triste e vazia.
— Vou sentir falta das suas tentativas equivocadas de fazer trocadilhos.
Jeb abre um sorriso forçado.
— Não tanto quanto eu sentirei falta de sua condescendência pomposa.
Eles se encaram, uma mistura de distração e comedimento em suas expressões. Um respeito de má vontade une a tensão — uma ligação que aumentou sem eles perceberem ou encorajarem, durante o mês que eles passaram juntos em Qualquer Outro Lugar.
— Vocês dois querem ficar sozinhos? — pergunto, desesperada para que ponham um fim ao estranho diálogo.
Morfeu estreita os olhos.
— Eu a verei hoje à noite, Alyssa. E, a partir de agora, quando você estiver comigo, espero que sua mente seja como era na nossa infância. Atenta às questões do País das Maravilhas, e não à confusão do reino mortal. Lide com as coisas daqui para que elas não sejam uma distração quando você voltar às suas obrigações reais. Tem certeza de que não precisa da minha ajuda para limpar todas as bagunças? Tenho certa prática no manejo de humanos. — A risadinha arrogante que ele lança para Jeb está cheia de insinuações.
— Entendemos, Mariposinha — diz Jeb. — Entendo as sensibilidades inocentes deles melhor do que você. — Ele arqueia a sobrancelha, expressando sua própria mensagem cifrada.
Ouve-se um baque abafado na enorme porta cristalizada. Jeb e eu olhamos para trás, para o ponto de onde nossos pais estão espiando. Ambos parecem belos e descansados, mas também ansiosos.
Meneio a cabeça num cumprimento e eles acenam e então recuam para dar privacidade a nós três.
Jeb se vira, seu braço me segurando pela cintura.
— Você vem nos visitar, Morfeu?
Morfeu encara enfaticamente Jeb. Suas marcas de joias brilham numa paleta pastel, como um pôr do sol reluzente. A resolução pisca dentro de seu olhar carregado.
— Não quero chegar nem perto do portal. Já tive o bastante do seu reino estagnado para esta vida e um pouco mais.
— Espero que você esteja falando sério — diz Jeb. A frase não é ferina, só sincera.
— Ah, com certeza falo. Exceto pela parte preciosa do seu mundo, que um dia pertencerá somente a mim. — Morfeu ergue o chapéu na minha direção e as mariposas cinza-azuladas na borda tremem como se fizessem reverência. Ele se vira e desce as escadas, as asas se arrastando pela neve como uma capa, e parte de mim sofre com uma tristeza profunda.
Um vento ganha força, gerando um redemoinho de neve.
É melhor estarmos saindo pelo portal da Marfim. Esta partida sofrida seria acrescida dos rostos de todos os meus súditos me olhando. Noite passada, ao visitar o Castelo Vermelho, optei por não me despedir deles. Eu me sentiria fadada demais e de certa forma estranha. Consolo-me em saber que eu verei a eles e Morfeu em meus sonhos.
Depois que a carruagem movida a mariposas decola, Jeb se vira para me encarar. Ele leva minha mão à boca e acaricia os nós dos dedos. Seu olhar intenso passa por todos os meus traços, dos olhos ao nariz e lábios, como se estudasse uma pintura novamente.
O silêncio revira meu estômago.
— Você vai perguntar?
— Perguntar o quê? — diz ele contra a minha mão.
— Se algo aconteceu. — Meu tempo com Morfeu parece algo privado e secreto, mas se Jeb, para reaver a calma, precisar ouvir sobre o que conversamos e os lugares que visitamos, me abrirei e serei honesta.
Jeb entrelaça nossos dedos novamente.
— Você segurou minha mão hoje e está ao meu lado. Isso me diz tudo o que preciso saber. Você é uma rainha e tem responsabilidades. — A admiração por trás de suas palavras me surpreende, mas não deveria. Não levando em conta os laços emocionais dele com meu mundo. — Não preciso saber de tudo sempre que você volta. Você me diria se algo nos afetasse ou afetasse sua vida.
Sorrio, surpresa com a fé dele.
— Diria. Direi. E obrigada.
Ele cuidadosamente segura os cabelos à minha nuca e junta nossas testas.
— Eu é que agradeço. — Sua voz, grossa e rouca de emoção, forma uma névoa entre nós. — Obrigado por voltar para mim.
Acaricio seu rosto e a pouca barba em seu queixo.
— Certo, não vou me sentir como se você precisasse de uma atualização sempre. Mas, por favor, não pense que você precisa agradecer todas as manhãs em que eu acordar ao seu lado. Quero que sejamos normais.
— Normais. — Ele recua e ri, as covinhas finalmente aparecendo. — Isso vindo de uma menina que ganhou asas e que me deu um colossal chá de cueca enquanto surfávamos nas areias do País das Maravilhas. Quando é que isso foi normal, hein?
Bufo, lembrando-me de que não podia carregá-lo pelo precipício e tive de deixá-lo para trás, que, por mais que ele estivesse com tanto medo quanto eu, ele me fez rir e me deu forças para que eu fizesse o que julgava impossível. Como agora.
O sorriso desaparece aos poucos, fazendo seu piercing nos lábios brilhar à luz. Eu o toco, acariciando o metal quente, de modo que seu bigode pinica meu dedo.
Esse ato íntimo e sensual me atinge com uma verdade quase que inconcebível: não há nada se colocando entre nós dois agora. Nossa vida juntos começará hoje, assim que cruzarmos a fronteira. Estou ao mesmo tempo feliz e emocionada.
— Estou pronta para minha aliança — consigo dizer em meio ao nó na garganta.
Sua expressão ganha sobriedade. Tirando a corrente por baixo da camisa, ele a passa pela cabeça e tira o anel. Com os olhos nos meus, ele coloca o anel de prata na minha mão direita, onde ele permanecerá até que ele o coloque na minha mão esquerda depois de declararmos nossos votos maritais. Os diamantes brilham — um coração alado — e meu coração parece bater asas como se pudesse voar.
O anel se encaixa perfeitamente ao meu dedo e parece um cartão de boas-vindas.
— Você sempre foi minha segurança — sussurra Jeb, colocando o polegar na covinha do meu queixo e me puxando para um beijo carinhoso e doce. Passo a mão pelos cabelos dele e o saboreio, ele sem perfume ou tinta ou terebintina. Só ele. Humano, masculino. Jebediah Holt.
Eu poderia me afogar na doçura da simplicidade.
Com nossos peitos unidos, meu coração costurado brilha e cantarola, tentando diminuir o espaço entre nós. Seu corpo fica tenso, como se ele sentisse a atração.
Ele interrompe o beijo e segura minha cabeça contra seu corpo, a barba por fazer em seu rosto arranhando minha têmpora.
— Tenho algo para lhe mostrar. — Seus lábios acariciam minha orelha e me aquecem toda. — Quis esperar até que estivéssemos juntos. Até que estivéssemos sozinhos. Mas acho que você precisa ver agora. — Ele pega algo do bolso e revela o que parece uma bolinha de gude, apesar de ser macia como uma pérola de banho.
— Um desejo? — Enxugo as lágrimas do meu rosto com o dorso da mão, surpresa. — Como? Quando?
— Noite passada, na festa da Marfim, depois da nossa dança lenta. Um furão me puxou... lambeu meu rosto para me agradecer pelo que fiz pelo País das Maravilhas.
— Ah, meu Deus. Então foi por isso que você saiu mais cedo?
Ele rola a bolinha na palma da mão.
— Estava prestes a me acabar de chorar. — Ele segura a lágrima brilhante contra a luz. — Não poderia permitir que a Rainha Vermelha me visse berrar como uma menininha.
Solto uma risada inesperada, alheia em meio à confusão inesperada de emoções.
Jeb franze a testa, pensativo.
— Podemos usar isso para nos ajudar a arrumar as coisas no reino humano.
Meu sorriso de felicidade desaparece.
— Não. Este desejo só pode ser usado para você.
— Fiquei envolvida com Morfeu por um mês. A única coisa que aprendi é que a mágica é flexível. É tudo uma questão de estilo.
Balanço a cabeça e cubro a mão dele, escondendo sua lágrima.
— Mágica é preciosa. Você tem de guardar isso, Jeb. Você pode desejar tantas coisas! — Paro, porque nós dois sabemos que há duas coisas monumentais que não podemos pedir. Ele não pode recuperar sua musa sem desequilibrar o País das Maravilhas de novo. E não pode pedir para vivermos para sempre. A mágica não mudará quem se é por dentro. Ele optou por perder sua imortalidade abdicando dos poderes da Vermelha. Ele é mortal e não há como mudar isso agora. — Jeb, não desperdice o poder. Guarde para algo importante.
Ele fica mais sombrio e sei que já esteve enfrentando os mesmos pensamentos. Ele guarda o desejo no bolso e trava a mandíbula.
Antes que possamos dizer algo, as portas do castelo se abrem e a mamãe e o papai surgem. Fico chocada ao vê-la usando o mesmo vestido de costas expostas usado na festa de formatura. Apesar de o chiffon da saia e as mangas estarem avariados por causa da luta dela com o coveiro de oito patas do País das Maravilhas, o vestido ainda está intacto.
Franzo a testa, pensando em tudo.
— Espere aí. — Aponto para ela e para Jeb. — Então... vocês estão usando as mesmas roupas que usavam quando desapareceram. Isso é um plano?
— Sim. Jeb pensou nisso — responde a mamãe. — Ainda precisamos pensar nos detalhes. Mas primeiro... — Ela e o papai me puxam para um abraço.
Depois de um abraço longo e apertado, celebramos as notícias. O papai brinca com Jeb, dizendo que ele quase teve de vender um rim para comprar o anel de noivado da mamãe, no que esta lhe dá uma cutucada, fazendo-o soltar um ganido. E então ela segura cuidadosamente minha mão direita para admirar meu dedo anelar.
Ela olha meu rosto. Sei o que ela está vendo: a mesma ansiedade pela vida humana que ela sentiu com o papai depois de salvá-lo da Irmã Dois. O sorriso dela é tão cheio de esperança que eu poderia estar olhando diretamente para o sol.
Quando ela se vira para dar um abraço de improviso em Jeb, o papai me puxa de lado.
— Borboleta — diz ele, ajeitando uma mecha solta de cabelo atrás da minha orelha.
— Papai — falo, segurando a mão dele e mantendo-a perto do meu rosto.
Ele balança a cabeça.
— Em meio a toda esta loucura... Não tive a oportunidade de dizer quanto tenho orgulho de você, Alyssa Victoria Gardner. — A ternura em seus olhos castanhos me lembra de como nós dois enfrentamos o mundo juntos na minha infância e de como sempre me senti segura. Se ao menos eu soubesse que minha vida era protegida por um cavaleiro de verdade. — Minha menininha é uma rainha. Uma rainha do País das Maravilhas.
Sorrio.
— Ligeiramente diferente das minhas versões fantasiosas, não?
O papai ri e me beija na cabeça.
— Pode-se dizer isso. Mais como uma ninja.
Solto um riso e dou-lhe um abraço, aconchegando-me em seu calor e força.
— Está pronta para ir para casa? — pergunta ele, acariciando minhas costas.
— Bom, não exatamente casa — emenda a mamãe, voltando ao meu lado. — Temos de fazer um desvio.
— Desvio? — pergunto, enquanto ela e eu entramos de braços dados no castelo, com os caras atrás de nós. Nossos sapatos batem no chão vítreo. A Marfim está no alto da escadaria de cristal, onde o portal me aguarda no fim de um corredor. O Rábido está ao lado dela, com Finley do outro lado, a mão às costas, sob as asas.
— A casa de Jeb vai ser a primeira parada — responde a mamãe enquanto subimos os primeiros degraus.
Fico intrigada por um instante, até que me cai a ficha de tal manobra.
— Para podermos descobrir se há alguma atividade policial em nossa casa. Muito inteligente.
— Mais do que isso — corrige o papai atrás de mim. — Vamos precisar de ajuda externa para explicar a ausência da mamãe e de Jeb por um mês, assim como sua fuga do sanatório. Se não fizermos isso, posso ser preso por ajudá-la a fugir enquanto você era suspeita do desaparecimento deles.
— Ajuda de quem? — pergunto, segurando-me ao corrimão frio de vidro. Isso está começando a parecer mais complicado e perigoso do que eu imaginava. Nunca pensei no papai sendo preso. Talvez devêssemos ter levado Morfeu a sério em sua oferta.
— Ajuda de alguém que esteja trabalhando com a polícia na investigação — responde a mamãe. — Uma pessoa que não seja suspeita e tenha a confiança de todos por estar sofrendo a morte do irmão e da melhor amiga desde que foram dados como desaparecidos.
Meu sangue se intensifica em meus pulsos ao olhar para trás e ver Jeb subindo a escada ao lado do papai.
— Você não está falando de...
O sol entra pelas paredes cristalizadas e ressalta os traços de Jeb, ampliando a resolução cautelosa ali.
— A não ser que você pense em outra forma, Al — diz ele, uma referência óbvia ao desejo no meu bolso. — Vamos ter de contar a verdade a Jen. Tudo.
Apesar de não falar em voz alta, não estou disposta a deixar Jeb abdicar de seu desejo por ninguém nem nada. Depois da violência que ela enfrentou na vida, Jenara é durona. Ela também acredita no poder dos cristais, em vodu, tábuas Ouija e tarô. Ela está a um milímetro de ser considerada louca. Torná-la um ser intraterreno honorário é a coisa mais lógica nesta situação ilógica. E, sinceramente, vai ser bom deixar de esconder meu lado País das Maravilhas da minha melhor amiga. Ela vai ser minha cunhada. Nossa vida familiar será menos complicada se pudermos falar abertamente sobre tudo.
Antes de passarmos pelo portal e entrarmos no reino humano, a mamãe, o papai, Jeb e eu discutimos o plano, já que temos lugares diferentes para ir.
Noite passada, depois que reabri os portais, durante meu passeio com Morfeu, e enquanto Jeb estava implorando um desejo, mamãe e papai foram ao reino humano e fizeram o reconhecimento. Da segurança do nosso sótão, eles esperaram para ter certeza de que a casa estava vazia e entraram na internet, reunindo todas as notícias possíveis sobre a tragédia no Submundo na noite da festa de formatura, o desaparecimento da mamãe e de Jeb, que aparentemente estava relacionado a isso, e minha fuga do sanatório um mês depois.
Um mandado de prisão foi expedido para mim e meu pai vinte e quatro horas depois da nossa partida. Éramos oficialmente procurados há três dias.
A informação mais útil foi a entrevista recente do sr. Traemont para o jornal local sobre a devastação de seu centro de atividades — paredes de concreto derrubadas, desabamento e vazamento de água. Ele levou duas semanas somente para avaliar completamente os danos. Chamou uma equipe de construção que originalmente transformara o velho e abandonado silo de sal no Submundo, para que pudessem dar pistas sobre o que deflagrou o acidente. Depois de analisarem as plantas, eles chegaram à conclusão de que, no alicerce, possivelmente havia um ponto fraco provocado pela mineração de sal décadas antes. O buraco que se abriu sugou tudo para um dos túneis de mineração sob a caverna subterrânea.
A conclusão fazia mais sentido do que a verdade que ninguém via: a rainha do País das Maravilhas deu vazão a uma nuvem de espíritos de pesadelo que sugaram o centro de atividades para a toca do coelho com tanta força que metade da caverna implodiu.
Como certa vez eu disse a Morfeu, muitos humanos preferem acreditar que estão sozinhos no Universo a admitir que pode haver uma plateia sobrenatural. E como ele comentou: o ego das pessoas é a própria fraqueza delas.
Com o acidente, o Submundo foi abandonado — todas as entradas para a gigantesca caverna foram condenadas e lacradas com fita policial para a segurança do público. É aqui que entra a ideia de Jeb. Ele disse que, meses antes do início da construção do centro de atividades, os túneis de mineração foram usados para guardar itens bélicos para uma base militar próxima: lenços umedecidos, kits de primeiros socorros, pentes, xampu, desodorante em pó, pasta de dentes, caixas de refeições desidratadas, sacos de sopa e garrafas de água. Ele viu isso dentro de um túnel depois que começou a trabalhar no local, e os suprimentos ainda tinham de ser retirados de lá.
Obrigada, procrastinação. O caráter humano nos deu nosso álibi perfeito.
Só tínhamos que magicamente remover pedras e destroços para entrar num dos túneis. Lá, podíamos montar a cena, como se a mamãe e Jeb tivessem ficado presos por um mês, vivendo à base de suprimentos militares. Era tão simples que beirava à perfeição. O fato de ninguém ter considerado essa possibilidade era inacreditável. Eles estavam tão ocupados investigando o suposto envolvimento da menina louca que não exploraram nenhuma outra teoria.
Quando a mim e ao papai, nossa história seria igualmente simples: consegui pegar as chaves dele e fugi do sanatório usando a entrada de jardinagem naquele dia, enquanto estávamos sem vigilância no jardim. Ele não teve tempo de pedir ajuda, então me perseguiu e subiu na caçamba do caminhão que eu dirigia. Eu o levei ao Submundo... e, lá, refiz meus passos na noite da festa de formatura. Depois de ver a destruição, uma lembrança horrível tomou conta de mim — a visão de Jeb e da mamãe sendo engolidos por uma avalanche de pedras e cimento.
Tive de suprimir isso... foi traumatizante demais encarar a morte deles.
Só que eles não estavam mortos. Porque, enquanto eu e o papai chorávamos na escuridão em meio aos destroços, ouvimos um barulho e o seguimos até um monte de pedras cobrindo uma abertura. Conseguimos cavar e nos reunimos a Jeb e à mamãe — mas a abertura era instável e mais rochas e pedras nos isolaram novamente: os quatro presos juntos.
Foi ali que o papai e eu estivemos nos últimos três dias.
A ideia de Jeb era brilhante. Até Morfeu teria ficado impressionado.
Então tínhamos um plano que só exigia minha mágica e a da mamãe e os dois trajes de disfarce. Fora isso, precisávamos de um catalisador: alguém para dar a dica da nossa localização aos policiais.
Era aí que entravam Jenara e a tábua Ouija.
Apesar de ser manhã no País das Maravilhas, é noite no reino humano. Envoltos em trajes de disfarce, meus pais entram primeiro no portal, parando na nossa casa para pegar um dos uniformes do papai e o traje de sanatório que mamãe tinha guardado, que será para mim. Estaremos usando as roupas nas quais fomos vistos pela última vez, para fazer o plano dar certo. Depois que a mamãe e o papai entrarem em casa, a próxima parada será no Submundo, para montar o cenário da nossa grandiosa revelação.
Jeb segura minha mão e me endireita, enquanto o Rábido e eu passamos com ele pelo espelho comprido atrás da porta do quarto de Jenara. Ele dá para uma janela que reflete a Marfim e Finley acenando adeus.
Antes de entrarmos, garantimos que Jenara não estivesse no quarto. Vamos ter de contar isso a ela aos poucos. Ela já ficará suficientemente chocada ao nos ver vivos e intactos.
Quando ela estiver pronta, eu lhe mostrarei meus poderes e características intraterrenos. O Rábido está aqui como suporte, para o caso de ela precisar de mais provas que não minhas asas para se convencer de que o País das Maravilhas é real.
Escondo meu colar com a chave. As tiras verticais rosas e brancas da parede de Jenara brilham com um tom prateado, folheado pelo luar que entra pelas cortinas translúcidas da janela arqueada. Silhuetas de trepadeiras de flores negras se prolongam pelo teto — sombras imaculadas pintadas pela mão hábil de Jeb há alguns anos. Um mural digno de um museu.
Eu o pego olhando para o mural antes de ficar sério e desviar o olhar. A tristeza na ação me dá um aperto no peito.
— Jeb. — Paro atrás dele e o abraço, a boca contra as roupas que envolvem seus ombros largos. — Você encontrará seu caminho. Prometo... você ainda tem tanto a oferecer a este mundo.
Ele fica tenso, mas cruza os braços, segurando meus cotovelos.
— Não sei direito como esquecer algo que antes me manteve são.
— Você não precisa esquecer. Esta parte sua ainda está intacta. Em molduras, pintada em paredes, desenhada em pedaços de papel. Sua musa vive aqui, por meio das pessoas que ficam felizes com sua obra de arte todos os dias. Isso é mais mágico do que tudo. Deixe que isso o mantenha são até encontrar um novo caminho.
Ele me vira de modo que ficamos de frente um para o outro e me beija.
— Você é muito inteligente para um ser intraterreno.
Eu rio.
— E você é bem durão para um humano. — Abaixo a cabeça dele para outro beijo.
O Rábido nos chama e nos encara com os olhos arregalados e fascinados.
Constrangida, recuo. O alívio momentâneo foi bom, mas sei que não será fácil passar por cima de tudo o que Jeb perdeu. É algo com o que lidaremos juntos, dia a dia, até ele reencontrar seu caminho.
Por enquanto, temos de cuidar desta situação com Jenara.
Jeb pigarreia, obviamente pensando na mesma coisa.
— Então acho que eu deveria olhar a casa.
— Você acha que ela está trabalhando? — Tiro minhas botas para permitir que o tapete rosa macio acaricie os dedos dos meus pés.
Ele abre a porta do quarto de Jenara e olha o corredor.
— Sei que a mamãe está. Ela sempre pega os turnos da noite. Vocês dois esperam aqui.
Assim que ele sai, deixando a porta aberta atrás de si, o Rábido sobe na cama de Jenara. Seus dedos magros enrugam o edredom preto e branco. A poeira rosa me lembra de como Jen e eu brincávamos de nos fantasiar neste quarto. De como inventávamos vestidos de noiva com lençóis e fronhas, contávamos segredos, comíamos bobagem e ficávamos acordadas até tarde.
Isso parece ter acontecido há tanto tempo.
Dois manequins brancos e sem rosto ficam diante da janela dela com luminárias em suas cabeças como chapéus. Jeb mexeu no interior e instalou lâmpadas nos crânios para criar abajures para o aniversário de quinze anos dela.
Acendo um deles, lançando uma luz branca estelar pelo piso de madeira e pela colcha da cama de Jenara.
— Ooooh. — O Rábido se levanta no colchão e dança em meio às formas criadas pela luminária. Encaro o espelho, vendo o reflexo dele no vidro. Ele é como uma bailarina macabra num globo de neve. Tão deslocado no quarto cheio de coisas normais e humanas.
Então vejo meu próprio reflexo. Minhas marcas intraterrenas nos olhos ainda não desapareceram completamente. Minha pele brilha e, se meu cabelo não estivesse preso numa trança, ele estaria agitado — vivo e encantado.
Sou uma alienígena.
Pensando bem, somos todos alienígenas agora. Até Jeb. Depois do que passamos e vimos, esta tranquilidade parece mais perigosa do que o caos que enfrentamos. Eu me pergunto se é assim que soldados se sentem depois de voltarem da guerra. Como eles superam? Como eles aprendem a fazer parte da comunidade novamente? A se sentirem seguros de novo?
Os zumbidos de alguns insetos interrompem minhas reflexões, um consolo bem-vindo. Fecho os olhos por um instante, mas os abro assim que um grito agudo do outro extremo do corredor me faz dar um salto.
Espanto o Rábido da cama e o mando para o armário.
— Não saia a não ser que eu o chame, sim?
Ele faz que sim, se escondendo numa pilha de acessórios de costura — mantas, cintos e tecidos — no chão.
Fico parada, os braços ao lado do corpo... presa.
O choro histérico de Jenara se aproxima à medida que Jeb a acompanha até a porta entreaberta. Ele fala num tom de voz carinhoso, tão baixinho que mal consigo ouvir o que ele diz. Meu coração bate em sincronia com as dobradiças que se abrem.
Quando eles entram, ela está abraçada a ele, segurando o colarinho da camisa, a cabeça contra seu corpo e o rosto escondido sob um véu de cabelos rosa molhados — recém-saídos do banho. Jeb deve tê-la surpreendido assim que ela saía do banheiro. Seu pijama verde de cetim me faz lembrar festas e jogos divertidos passados.
Sinto tanta saudade dela.
— Jen? — murmuro hesitantemente, sem saber o que dizer em seguida.
Ao ouvir minha voz, ela vira a cabeça na minha direção.
— A-Al? — Seu rosto rosado fica inchado quando ela tenta conter o choro. Ela perde a batalha e grita, correndo na minha direção.
Estendo o braço para abraçá-la e caímos no colchão juntas, as molas balançando sob nossos corpos. Recuperando o fôlego, me enterro no cheiro cítrico e doce de seu xampu. Um sorriso se irradia do meu coração para meus lábios e eu a abraço com força, lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Lágrimas dela ou minhas... não importa. A sensação é maravilhosa.
Jeb esfrega as costas dela.
— J.
— Não, não, não, não. — Ela chora de encontro ao meu pescoço. — Não me acorde. Estou sonhando, estou sonhando.
Ele coloca um dos joelhos na cama, ao lado de nossos corpos unidos, e a preocupação em seus olhos basta para me fazer esquecer que um dia partimos.
— Tudo bem, Jen. Não é um sonho — garanto a ela. — Estamos aqui.
Jeb acaricia a cabeça dela, intencionalmente tocando meu rosto com um dos dedos ao longo do processo. Ele não quer magoar a irmã — ele passou anos demais protegendo-a. Mas ele sabe que é o melhor para todos nós a longo prazo.
Ainda assim, é óbvio que ele está lutando e perdido, como o menininho que um dia foi.
Seguro a mão dele e o puxo, de modo que seu corpo caia ao meu lado direito. Ele se aninha tão próximo que seu hálito toca minha orelha. Coloca seu braço sobre mim e Jen, de forma que fico espremida entre as duas pessoas de que mais gosto. Juntos, nós três choramos e rimos até soluçarmos.
Pela primeira vez em semanas, estamos reunidos. Uma família.
Esta sensação. Talvez... é assim que voltamos ao normal.
Assim que Jenara se acalma, ela se senta, tentando recuperar o fôlego.
— Onde vocês estiveram? Procuramos em todos os lugares! — A acusação é direcionada a Jeb. — Achamos que vocês...
— Sinto muito. — Jeb se ajoelha, interrompendo-a antes que ela possa admitir que pensava no pior.
Fico onde estava, a coluna apoiada no colchão. Com medo de me mover.
— Al, talvez a gente devesse lhe contar tudo de uma só vez — diz Jeb, a voz trêmula.
— Incluindo como mandei você para lá? — Procuro as palavras certas e tropeço terrivelmente.
Verde e úmido, o olhar de Jenara recai sobre mim.
— Ãhn? — Sua expressão mostra que ela compreende. — Espere. — Ela sai da cama e se levanta, tonta mas determinada. — A polícia tinha razão? Você sempre soube onde ele estava? Mas por que você não...? — Ela chora de novo. — E quanto à sua mãe? Cadê ela? E seu pai? O que está havendo?
Estudo o rosto dela, manchado de lágrimas, seus cabelos rosa molhando a parte de cima do pijama, as três sardinhas no nariz. Ela parece tão vulnerável. Queremos mesmo envolvê-la nisso? Não haverá volta se o fizermos.
Jeb me obriga a me sentar.
— Você é a única que pode lhe mostrar. Faça-a entender.
Engulo em seco.
— Não sei nem por onde começar.
— Mais ou menos por aqui. — Ele passa o dedo pelas alças do meu vestido que revelam minhas omoplatas nuas. Meus botões de asa se arrepiam ao toque dele.
Fico com o rosto em chamas.
— Mas não posso simplesmente... precisamos prepará-la.
Jenara recua lentamente até a porta.
— Me preparar? Vocês estão me assustando. Vou chamar a mamãe. — A campainha toca e ela para, a expressão se iluminando. — Corbin — murmura ela, e se vira para o corredor para deixá-lo entrar.
— Não, J. — Jeb tenta impedi-la, mas ela o ignora.
— Espere, Jen! — Saio da cama. — Corb não pode estar aqui para isso.
— Por que não? — Ela se vira, as mãos na cintura. — Ele esteve aqui enquanto Jeb estava desaparecido. E enquanto você estava internada. Ele me ama, Al. Ele cuidou de mim e da mamãe. Tudo o que você me contar, pode contar a ele. — Ela se vira e atravessa a porta do quarto.
— Nós... nós fomos ao País das Maravilhas! — digo de uma vez, fazendo-a parar. Ela dá meia-volta no corredor, boquiaberta.
— Mostre suas asas — acrescenta Jeb, estreitando os olhos. Seus cílios compridos lançam sombras sobre seu rosto e as luminárias brilham em sua pele, fazendo-o parecer tão intraterreno quanto eu.
— Asas? — pergunta Jenara, voltando ao quarto. — Sério, mano? Você a quer trancada no sanatório de novo? Você não faz ideia do que ela passou enquanto eles tentavam tirar o País das Maravilhas da mente dela. Não dê vazão ao delírio dela!
— Al... — Jeb me leva até ela. — Você vai ter de se expor. Não há outra forma de fazer alguém acreditar. Eu precisei de um acidente na toca do coelho.
Ao ouvir a palavra coelho, o Rábido sai do armário, sua forma esquelética enrolada em mantas e cintos. Ele tropeça em Jeb, e os dois caem no chão. O Rábido se aproxima de mim ainda caído, parecendo uma lagarta louca com apenas seus chifres e olhos rosa expostos.
— Rábido, o Branco, sou eu! — Anuncia ele com sua voz fina, virando-se e tentando se libertar.
Jeb xinga e Jenara grita tão alto que todos os outros sons parecem abafados, como se meus ouvidos estivessem dentro de uma concha.
A porta da frente se abre e passos soam no corredor. Jeb se levanta para fechar a porta, mas é tarde demais. Corbin aparece ofegante, os cabelos loiros arruivados reluzindo sob a luz fraca. Ele traz uma chave na mão. Seus olhos recaem sobre o Rábido, que conseguiu se livrar dos acessórios do armário de Jenara e está ali de pé, exibindo toda a sua decrepitude intraterrena.
A criaturinha abre os braços com um floreio.
— Ta-da! — grita ele, com espuma saindo pela boca. Faço uma cara feia para o espetáculo. Morfeu deve ter lhe ensinado isso.
— O que está havendo? — pergunta Corbin com seu pesado sotaque sulista, segurando Jenara pelo cotovelo e puxando seu corpo trêmulo para o corredor.
Jeb franze a testa, atento à chave na mão de Corbin.
— Estava prestes a perguntar a mesma coisa. Por que você tem uma chave da nossa casa, Corb? Desde quando você mora com minha irmã?
Encaro Jeb. O meu lado intraterreno ri alto antes de eu conseguir me segurar, divertindo-me com o ridículo da situação toda. Parece que todos somos controlados por instintos. Para Jeb, dar à irmã e ao melhor amigo o maior susto da vida deles é algo que pega carona em seu instinto protetor de irmão mais velho.
O choro audível de Jenara traz meu lado travesso de volta. Pego o roupão da cadeira perto da mesinha de canto e o jogo para o Rábido. Ele resmunga e o cheiro de tecido queimado pontua o ar enquanto seus olhos se transformam em duas órbitas vermelhas por baixo, criando buracos fumegantes no pano.
— Nada de fogo, Rábido! — repreendo.
Ele “desliga” os olhos e se abaixa.
— Jeb? Al? — murmura Corbin, como se só agora tivesse nos notado. Ele parece perigosamente perto de desmaiar. As sardas em seu nariz parecem escuras contra o rosto pálido. Seu olhar azul intenso permanece fixo no Rábido agachado e agitado sob o roupão. — Onde vocês... como vocês...? Aquela coisa. Tem que ser um robô... certo?
— Rábido não robô é! — Meu conselheiro real reclama por baixo do seu esconderijo, ofendido.
— Para dentro do armário — ordeno. O Rábido resmunga algo indecifrável e desaparece, arrastando o roupão queimado atrás de si como a cauda de um vestido de noiva.
Jeb e eu trocamos olhares.
— Há sempre poções do esquecimento — sugiro.
Ele bufa, estudando Corbin e Jenara apoiados contra a parede do lado de fora do quarto, confusos e trêmulos para além de qualquer descrição.
— Perder suas memórias não é a única coisa que vai acontecer. Confie em mim.
— Então vamos contar a ele também — acrescento. — Isso, ou ele esquece e o mandamos para casa.
— Não vou a lugar nenhum sem a Jen — declara Corbin, a cor voltando ao seu rosto. Ele segura Jenara junto de si, enquanto ela esconde o nariz na camisa dele, tentando respirar normalmente.
Os lábios de Jeb ganham um sorriso lento e ousado.
— Não vai a lugar nenhum hoje à noite? Então você está planejando se dedicar a ela por mais um ou dois dias?
Corbin fica sério.
— Que tal para sempre? — Ele a abraça com mais força, puxando Jenara para tão perto que a calça do pijama dela adere em sua calça jeans, estalando por causa da estática.
— Para sempre é muito tempo — retruca Jeb, e a nota de tristeza na afirmação revira minhas entranhas, como se elas fossem uma harpa tocada pelos dedos dele. Fungando, Jenara se vira para olhar para o irmão, confusa. O humor de Jeb muda novamente e ele balança negativamente a cabeça, em um gesto de amor. — Parece que você arranjou um cavaleiro branco, mana.
Pego Jeb pelo pulso, no ponto onde uma cicatriz saliente substituiu sua tatuagem.
— Você não tem ideia de como esses dois são teimosos, não é?
Ele ri baixinho e entrelaça nossos dedos.
— Então, Corb. Quer fazer parte da nossa família? Que tal oficializarmos as coisas?
Corbin e Jenara estreitam os olhos em nossa direção, a respiração presa. A casa fica mortalmente silenciosa. Não se pode ouvir nada além do sussurro de uns insetinhos — numa frequência com a qual somente eu estou sintonizada — e dos resmungos do Rábido no armário.
Jeb ergue minha mão e beija minha aliança de noivado.
— O que vocês dois precisam saber sobre Al? — pergunta ele à nossa plateia. — Aquele sanatório nunca teve a chance de curá-la. Veja só, você pode tirar a menina do País das Maravilhas, mas não pode tirar o País das Maravilhas da menina. — Minha mão se separa da dele enquanto ele recua para me dar espaço. — Mostre o que você tem, rainha-fada.
Abro meu sorriso mais majestoso. E ali, no meio do quarto com faixas cor-de-rosa, com minha melhor amiga e o amor da sua vida de olhos arregalados, abro minhas asas intraterrenas e confesso todas as minhas mentiras.
SEGUNDA MEMÓRIA: CONCHAS
Quatro anos antes...
PLEASANCE, TX., 29 DE JUN. — Dois moradores de Pleasance dados como desaparecidos há um mês, juntamente com outros dois que desapareceram na última quarta-feira, foram encontrados vivos na manhã de sábado, apenas com ferimentos superficiais, presos num túnel de mineração que desabou sob um parque condenado.
Outra moradora, irmã de um dos desaparecidos e amiga dos demais, disse suspeitar da localização das pessoas depois de receber uma dica com sua tábua Ouija, de acordo com o policial Riley Hughes.
“Normalmente, não dou muito valor às bobagens espirituais”, disse Hughes. “Mas a menina ajudou a nossa investigação durante todo o mês de busca por seu irmão e vizinhos. Ela insistiu para que a gente ao menos desse uma olhada. Como vários desabamentos ocorreram no lugar às vésperas da festa de formatura da Pleasance High, e considerando que esse era o último lugar onde os desaparecidos foram vistos, achamos que valia a pena. Fomos lá sem esperar encontrar nada. Ponto para as conversas fiadas.
— Al, você está brincando comigo? — A voz fina de Jenara tira minha atenção do artigo de jornal de quatro anos atrás. Ao meu lado no sofá, uma ornamentada garrafa de vidro cheia de pedras que peguei durante nosso “resgate” do Submundo. Esfrego as têmporas, tonta por causa da viagem pela estrada da memória.
Jen atravessa a porta correndo e a fecha atrás de si.
— Não acredito que você ainda não pôs nem sua meia-calça! O que você tem? Vinte e um anos e já mostrando sinais de senilidade? Talvez você precise de um pouco de ar.
Ela abre a janela atrás de mim. Uma brisa salgada entra, abrindo as cortinas azuis com estampa de estrela-do-mar sobre minha cabeça. Meus cabelos esvoaçam, as ondas platinadas tocando meus ombros nus e meu espartilho branco de renda.
Passo a mão na borda da minha calcinha também de renda, surpresa por estar só de roupa íntima. O que eu estava fazendo antes de me sentar? Primeiro, comi o bolinho de aniversário que minha mãe deixou ao lado do cartão no criado-mudo.
Como se animada por meus pensamentos, a fôrma de papel do bolinho voa até o chão com uma lufada de vento e chega até os pés descalços de Jen. Ela o pega e franze a testa para mim.
— Hummm?
— Bolinho da minha mãe. — Lambo os lábios, ainda sentindo o sabor da cobertura azul de mel e anis.
Jenara amassa o papel e o joga no lixo.
— Então isso é você desanimadinha depois da euforia do açúcar?
— Talvez? — Tento me lembrar do restante da tarde. Depois do meu lanche, peguei o roupão para me vestir. Ao mexer na minha mala em busca do colar novo que tomei emprestado de Jenara para hoje, fui distraída pelas lembranças que trouxe comigo. De certa forma, acabei no sofá sob a janela, com um caderno e uma garrafa na mão.
Estudei o artigo de jornal novamente. Isso sou mesmo eu ficando deprimida depois de comer um monte de açúcar ou é outra coisa?
Sinto-me tão estranha. Meu corpo e mente estão relaxados, mas meu sangue é o oposto. Ele corre veloz nas veias sob minha pele — corredeiras jorrando de milhares de afluentes.
— Vamos lá, zumbizinho, me mostre algum sinal de vida — provoca Jen. — O sol vai se pôr em uma hora e ainda temos de ajeitar seu cabelo e maquiagem. E, para sua informação, aquela mancha de cobertura nos seus lábios não conta como seu “algo azul”. Para isso é que serve o elástico. Como vamos tirar isso? — O olhar dela se volta para a garrafa de pedras perto da minha coxa. Ela a pega e balança diante de mim. — Inacreditável. O Jeb está lá com Corbin enchendo os pés de areia, caminhando pelo litoral para verificar cada detalhe. E você aí, nostálgica.
Jenara falou de outras coisas além dos detalhes do casamento. Ela teve de abandonar um desfile de moda em Nova York dois dias antes do previsto para chegar a tempo disso. Ela esteve em contato constante com sua sócia, e a linha de roupa delas está fazendo barulho. Tenho a sensação de que a carreira dela está prestes a decolar para valer. Tentamos planejar o casamento de acordo com a agenda dela, mas esta era a única semana disponível da casa de praia. Então chegamos a um acordo e escolhemos o final do desfile. Eu disse que ela não precisava vir, mas ela respondeu que morreria se perdesse.
Mesmo agora, com ela me atacando com seu olhar verde mais severo, sei que não há outro lugar onde ela preferisse estar. Ela é uma visão da suavidade com seu vestido comprido florido. Seus cabelos rosa estão presos no alto da cabeça num coque chique. Rosas-anãs azuis estão colocadas em espaços estratégicos, formando uma auréola. Poucas mechas rosa se curvam em seu pescoço.
— Você está perfeita — digo a ela, encantada.
Ela tenta conter o sorriso e revira os olhos.
— Queria poder dizer o mesmo de você.
— Corb já a viu? — Minha pergunta é retórica. Os dois estão juntos há anos e, agora que Corb quase terminou a faculdade de publicidade, ele planeja se mudar com ela para Nova York no fim do verão.
No mês passado, ele pediu “a mão dela em casamento”. Usando uma armadura de malha de metal medieval, ele veio ao nosso duplex numa carruagem puxada por cavalos. Jeb o ajudou a reformar um velho Chevy que encontraram num ferro-velho. Eles pegaram o chassi e tiraram tudo, transformando-o numa charrete leve o bastante para ser puxada por dois cavalos brancos que Corbin pegou emprestados de um amigo. Depois de acrescentar arreios firmes, de substituir os pneus por rodas de madeira e de pintar a carcaça com um branco brilhoso com uma faixa vermelha, eles tinham a carruagem texana perfeita. Quando Corbin estacionou diante da casa de Jen com três dúzias de rosas na mão e lhe pediu que fossem ver o pôr do sol, ela quase desmaiou.
Era antiquado e moderno e, ah, tão lindo.
Perdida em sua própria nostalgia, Jenara admira o anel de noivado em seu dedo. Seu sorriso desabrocha, juntamente com uma atraente vermelhidão no rosto.
— Meu noivo aprova minha mais recente criação. Mas você é quem está prestes a ficar sob os holofotes. — Ela joga a garrafa cheia de pedras na minha mala aberta e vai ao armário pegar meu vestido. Jeb e eu decidimos que as belas criações de Jenara adquiriram uma má reputação na formatura e mereciam aparecer numa lembrança boa.
Ao longo das últimas semanas, Jenara realizou um ótimo trabalho costurando tecidos e retalhos com apliques diversos — um deles ela encontrou num antiquário, então isso era meu “algo velho”. Quaisquer manchas foram disfarçadas com corante de flores seguido por um toque brilhante. Agora o vestido branco sem alcinhas parece novinho. Ou tão novo quanto um vestido de noiva vintage pode parecer depois de ser modificado para se assemelhar a um tecido recém-tirado do túmulo.
— Vamos, Al, depressa! — repreende-me Jenara, perdendo a paciência.
Eu resmungo algo como resposta.
Ela joga a meia-calça lilás acinzentada na minha direção e ela voa por sobre minha cabeça, cercando-me como uma nuvem perfumada.
— Vou preparar a maquiagem — avisa ela. Ouve-se um barulho quando ela coloca a bolsa de maquiagem na mesinha, ao lado do cartão de aniversário da mamãe. — Talvez removedor de esmalte funcione com seus lábios.
Torço o nariz.
— Eca... sério?
Ela dá de ombros.
— Situações de desespero exigem medidas nojentas. — Do outro lado da redinha cobrindo meu rosto, ela escolhe sombras, delineadores, pincéis e blush.
Meu corpo parece leve, como uma nuvem flutuando. Em parte é felicidade... em parte, nervosismo... e alguma coisa mais. Algo que nunca senti antes.
Ou será que já?
A pele ao redor dos meus olhos dói, assim como a pele em minhas omoplatas.
Risadas abafadas e passos são ouvidos através da parede fina da sala de estar. A casa de praia que meu pai alugou tem sete quartos, um loft e quatro banheiros e meio, mas ainda assim não é grande o bastante para nossos convidados. Não consigo nem imaginar como ela ficará cheia depois que todos chegarem.
Reunindo energia, afasto a meia-calça e guardo o artigo de jornal de novo no caderno de recortes. Sinto-me tentada a folhear as outras páginas. A olhar as imagens de nossas exposições de arte — pinturas de edição limitada que Jeb jamais conseguirá replicar e meus mosaicos de vidros coloridos —, juntamente com fotos tolas dos últimos quatro Halloweens, Natais, piqueniques de verão, guerras de bolas de neve e pegadinhas universitárias. Só uma última olhada em nosso tempo juntos como noivos, capturado entre camadas de filme de polipropileno, antes de darmos início ao capítulo seguinte num novo caderno de recortes, decorado com cetim branco e um colarzinho de pérolas.
Toda a minha pele se avermelha, pensando no que vem depois da cerimônia. Não foi fácil esperar nos últimos anos, mas a vida já era bem complicada, tendo de enfrentar a dor de Jeb por ter perdido sua habilidade artística, indo para a faculdade e equilibrando meus deveres reais no País das Maravilhas com nossa vida humana. Nunca parecia a hora certa, até agora. Nós nos ajustamos a nossos novos papéis, aprendemos a fazer concessões sendo honestos e sempre estivemos emocionalmente presentes um para o outro. E, depois do compromisso físico de hoje à noite, nosso elo será inquebrável.
Não há forma melhor de dar início à nossa nova vida juntos do que isso: os braços fortes dele segurando meu corpo nu enquanto acaricio as cicatrizes do seu peito com o dedo, curando suas feridas a um só toque.
— Do que é que você tá rindo, Al?
Levanto a cabeça, sorrindo, apesar de tentar me conter.
Jenara bufa.
— Você não vale nada hoje, sabia? Supere isso. — Ela tira o caderno da minha mão. — A maioria das damas de honra não precisa usar seus talentos como vidente para preparar a noiva. Você vai me pagar mais por isso, não é?
Ergo as pernas para ela poder me ajudar com a meia-calça.
— Claro. Dez mil vezes mais do que o salário que combinamos.
— Humm, dez mil vezes zero... Sabia que deveria ter pedido a um advogado que desse uma olhada no contrato. — Ela segura a roupa enquanto enfio o pé, depois segura minha mão para me tirar do sofá.
Ao ajeitar o elástico sob o espartilho na cintura — de modo que a combinação caia abaixa dos joelhos —, aquela dorzinha entre os ombros aumenta e vira uma sensação de queimação. Antes que eu perceba que são meus brotos de asa, eles se abrem: um branco opaco, brilhando com joias coloridas, ocupando o espaço como asas de uma borboleta recém-saída do casulo.
Eu grito.
Jenara perde o fôlego, os olhos arregalados como moedas.
— Al, o que é isso? Você não pode fazer isso agora!
— Eu... não quis fazer isso! — Meu grito reverbera ao nosso redor.
— Shh. — Ela fecha minha boca com a mão e olha para a parede fina. Como não ouvimos nada além do zumbido das conversas dos convidados na sala ao lado, ela tira a mão. — Certo... Você terá uma audiência dentro de uma hora. Recolha as asas.
Tento, mas as asas não se movem.
— Não está dando certo. — Tento mais uma vez. — Não consigo. — Meu coração bate forte.
A expressão de Jen parece ainda mais preocupada.
— Ah, claro. Você está brilhando. E seus olhos... sério que você não está fazendo isso de propósito?
Faço que não com a cabeça. Milhares de pontinhos de luz se refletem no rosto de Jenara e nas paredes amareladas de sol que nos cercam. Levo os dedos ao rosto, imaginando marcas negras como as listras de um tigre sob meus cílios inferiores, parecidas com as de Morfeu sem as joias.
— Minhas marcas... estão muito evidentes?
O olhar de Jenara está fixo ao meu.
— Não são apenas as marcas, Al. São suas íris. Elas estão... roxas.
— Roxas?
Jen faz que sim.
— E não é um tom sutil... é muito estranho.
Sinto um frio na barriga.
— Isso não pode estar acontecendo. — Meus cabelos começam a se levantar, uma dança provocativa de mágica.
— Merda! — exclama Jenara depois que algumas mechas a alcançam. — Isso é tipo uma gripe intraterrena ou coisa assim?
— Eu... eu não sei. — Com os dedos trêmulos, seguro as mechas e as prendo na nuca. — O que vamos fazer? — O pânico reveste minhas cordas vocais, deixando-me rouca, como se tivesse engolido uma lixa líquida.
Jenara esfrega as mãos.
— Bom, você pode prender o cabelo no alto e podemos dizer que fomos criativas com sua maquiagem. O véu vai esconder seus olhos durante a cerimônia. Depois, você pode dizer às pessoas que está fazendo experiências com lentes de contato. Mas as asas... Eu acho que é impossível disfarçá-las.
Não há espelho para eu ver o tamanho da minha imagem intraterrena, por motivos óbvios. Não queria nenhuma surpresa nas festividades de hoje, então optei pelo quarto menor pela ausência de espelho, confiando que Jen fizesse minha maquiagem e me tornasse apresentável para o casamento. O lado ruim de escolher este quarto é que não há tranca na porta, o que agora me deixa ainda mais vulnerável e acessível.
Maldita reflexão tardia.
A vermelhidão no rosto da minha dama de honra ganha um tom de ansiedade.
— Vou chamar sua mãe. — Ela começa a sair, mas para. — Só... fique aqui e cuide da porta. Tente se acalmar. Vamos dar um jeito nisso, sim? Nada vai estragar isso.
Faço que sim, mas apenas para ela ficar tranquila. Como isso pode não arruinar as coisas? Não posso encarar nossos convidados humanos com todas as minhas características sujas do País das Maravilhas expostas! Isso não é a noite da festa de formatura no Submundo. Ter asas numa praia não pode ser explicado com a mesma facilidade do que usá-las como fantasia sob luzes mortiças.
Depois que Jenara sai, coloco a cadeira sob a maçaneta e puxo a asa sobre meu ombro. As joias piscam numa confusão de cores, como as marcas oculares de Morfeu quando ele está ansioso ou perplexo. Há algum tempo, descobri que meu humor, como o dele, se mostra por meio das minhas joias. É algo que Morfeu mantinha para si mesmo e um dos motivos por que ele gosta de ter minhas asas à mostra... para ele poder saber o que estou sentindo.
Mas sou eu quem decide quando abri-las. Tenho lidado com meus aspectos intraterrenos tranquilamente desde que voltei ao reino humano. Nunca perdi o controle. Há alguma travessura em andamento aqui. E tudo começou com o bolinho azul com sabor de anis e mel.
Anis... um sabor surpreendentemente semelhante a alcaçuz. Cigarro de alcaçuz.
Ranjo os dentes.
— Morfeu.
Noite passada, antes de voltar dos meus sonhos, eu o abracei, algo que não faço com frequência. Estabelecemos limites claros para o contato físico, a fim de honrar minha vida humana. Mas ele andava mal-humorado com meus súditos, o que raramente acontece, e sabia que ele estava escondendo seus sentimentos quanto ao meu casamento. Então quis consolá-lo, quis garantir que a paciência dele não passasse despercebida nem desvalorizada.
Ele me abraçou de volta por uns cinco segundos, depois me afastou. Ao olhar para mim, sua expressão era algo bem distante da tristeza ou preocupação. Era o exato oposto, o que nunca é um bom sinal.
— Decidi dar a você e a seu noivo um presente amanhã, frutinha — disse ele, abrindo a mão. Uma esfera azulada ganhou vida na palma de sua mão e depois alçou voo, pairando entre nós. — Como Jebediah abdicou de sua capacidade de sonhar com o País das Maravilhas, você pode compartilhar seus sonhos em segredo na sua lua de mel. Você não virá ao País das Maravilhas esta noite. Em vez disso, Jebediah pode entrar com você e seus sonhos pertencerão somente a ele. Mas somente se ele se provar digno de se casar com a rainha-fada.
Antes de poder pegar a luz azulada, Morfeu me expulsou do meu sonho.
Minhas mãos agarram a meia-calça cobrindo minhas coxas. Quando acordei neste quarto, pela manhã, pensei em contar a Jeb as palavras enigmáticas de Morfeu, mas não estava com meu celular porque Jenara se esforçou ao máximo para manter seu irmão distante de mim até a cerimônia.
Não há tempo a perder. Ele precisa ser avisado de que Morfeu criou outro teste para mim. Ou melhor, para ele.
Vou até a mesa para dar uma segunda olhada no cartão de aniversário da minha mãe, manobrando as asas pela mobília arranjada em ângulos estranhos no quarto pequeno demais. Ergo o cartão, estudando-o cuidadosamente. Para além da corujinha bonita na capa — sutil — e da inscrição “Queeeeem faz aniversário hoje?” dentro, há a assinatura da mamãe impressa. Ela sempre assina cartões com letra cursiva. Por que não tinha percebido isso? Ou o fato de o papai não ter assinado também? Pensando bem, eu deveria ter percebido tudo isso, porque não era para ter abaixado a guarda. Morfeu me treinou melhor do que isso.
Mas ele sabia que eu estaria distraída com meu cérebro focado no casamento. Ele contava com isso. E, para piorar as coisas, não havia insetos por perto para me alertar. A casa de praia foi fumigada há uma semana por causa de uma infestação de formigas e o silêncio era ensurdecedor desde que chegamos. Suspeito que ele tenha o dedo nisso também. Ainda assim, ele está cumprindo sua promessa de não se colocar entre mim e Jeb porque conseguiu fazer com que minhas características intraterrenas é que causassem todos os problemas.
Estou quase impressionada, mas isso não é nada perto da ansiedade revirando minhas entranhas. Como pude ser tão descuidada?
— Maldita mariposa inteligente — xingo, esperando ouvir um eco da risada arrogante na minha mente. Como não ouço nada, fico séria e rasgo o cartão ao meio, com raiva por não encontrar respostas ali. — Certo, você me pegou. Mas fique sabendo que você o está subestimando — digo em voz alta, na esperança de que Morfeu ao menos esteja ouvindo. Minha voz soa firme e confiante, apesar das lágrimas de nervosismo queimando em meus olhos. — Jeb vai encontrar uma forma de resolver isso...
— Tem razão, Al. — A voz grossa e determinada de Jeb me atinge por trás, uma corrente elétrica iluminando todas as minhas terminações nervosas.
Viro-me para ver uma rosa branca pela porta entreaberta.
— Deixe-me entrar.
Quase tropeçando nas minhas asas, corro e puxo a cadeira para o meio do quarto, e depois recuo para lhe dar espaço.
Ele entra — pingando no que restou do seu smoking de formatura — e fecha a porta. Ele se apoia nela e me encara. Areia e gotas de água brilham em seus braços, onde ele enrolou as mangas da camisa até os cotovelos. A camisa semiabotoada expõe seu peito reluzente. As calças azul-marinho estão enroladas também até o meio da canela. Ele deve ter deixado o paletó azul de veludo lá fora, pendurado para secar.
— Jen tentou me contar sobre seus olhos — murmura ele antes de eu poder perguntar o que aconteceu às roupas dele. — Mas não há paleta de artista, não há comparação neste mundo para esta cor. Al, você está tão linda.
Estava pensando o mesmo que ele.
— E você está tão molhado — digo, estúpida. É difícil pensar em meio à luz amena que reflete sua pele cor de oliva, o labret prateado e os rebeldes cachos escuros pingando água por sua testa e seu nariz.
Ele não responde, ocupado demais em me analisar com seu olhar profundo e úmido. Se Jenara estivesse aqui, ela insistiria para eu cobrir meu espartilho e calcinha. Não, ela insistiria para eu expulsá-lo. Mas ficar longe dele desde o jantar da noite passada já era muito tempo. Até mesmo a cadeira entre nós dois parece uma montanha. Eu deveria movê-la, mas ele me deixou paralisada. Seu olhar percorre todo o meu corpo — um carinho mental tão íntimo e completo quanto um carinho real seria.
— Talvez a gente não devesse ter escolhido um casamento na praia — provoco, tentando conter minha imaginação fértil.
O sorriso sensual resultante de Jeb revela seu incisivo torto que espero que nossos futuros filhos e filhas herdem.
— Digo, levando em conta nossas experiências passadas com enormes corpos de água.
Eu rio.
Ele ri também, mas então fica sério.
— Nós nos reencontramos numa praia em Qualquer Outro Lugar. Você me fez uma promessa lá. Faz sentido eu lhe fazer uma promessa numa praia também. Não importa o que aconteça antes ou durante nosso casamento. Não importa que tipo de dificuldades Morfeu pôs em seu caminho hoje, tudo isso vale a pena. Nós valemos a pena. E vamos provar isso para ele.
Nunca o vi tão confiante ou... enérgico.
— Espere aí, você... Você está gostando disso? — Esboço um sorriso hesitante.
Ele dá de ombros e cheira a rosa branca na mão.
— Gosto de um desafio.
— Morfeu vai odiar que não pode provocá-lo.
— Psssh. Nós dois sabemos que ele adora quando eu aceito o desafio.
Balanço a cabeça, sorrindo. É um consolo estranho perceber como eles se conhecem e se compreendem bem hoje em dia.
— Então foi ele quem o fez cair na água?
Jeb obriga seu olhar a subir do meu corpo seminu para meu rosto.
— Bom, tecnicamente não foi ele. Ele está cumprindo a promessa de ficar longe do nosso mundo. Corb estava arrumando a almofadinha de carregar as alianças quando algo mordeu seu dedão do pé e ele derrubou as alianças. Uma lagosta de pedra surgiu na areia, as pegou e desapareceu nas ondas.
— Uma lagosta de pedra de verdade? Como as de Qualquer Outro Lugar?
Jeb enfia o cabo da rosa no bolso, então segura a camisa pela cintura e começa a desabotoá-la completamente.
— Sim. Pintei algumas para o País das Maravilhas antes de irmos embora, quando reinventei as paisagens. Morfeu as pediu. Não há dúvida de que foi ele quem mandou aquela lagosta de pedra para cá.
É difícil acompanhar a conversa porque só consigo ver as roupas molhadas grudadas no corpo musculoso de Jeb a cada movimento.
— Então... você mergulhou no oceano para recuperar as alianças?
— Tentei, mas não consegui pegar a ladra. — Ele tira o tecido ensopado dos ombros e braços, revelando uma barriga de tanquinho molhada e gotículas presas nos pelos de seu peito. — Pedi à sua mãe que entrasse em contato com a Marfim pelo espelho do quarto dela. Ela tinha uma flauta mágica no castelo. Eu a vi lá. Descobri que o instrumento funciona nos moluscos do nosso mundo também. Eles trazem as lagostas até a praia. Os anéis agora estão seguros. Corb vai manter a almofada com ele até a cerimônia.
Penso nos moluscos que conhecemos no País das Maravilhas na nossa primeira visita... como toquei uma flauta que os convocava e lhes dava ordens. Como, num só movimento, eles vieram nos resgatar quando estávamos sendo perseguidos por um exército e levaram nossos perseguidores para longe, numa confusão de conchas batendo-se umas nas outras. Sou ainda mais grata agora do que antes. Só espero que ninguém tenha visto nada.
— Não se preocupe com os convidados — tranquiliza Jeb, como se lesse meus pensamentos. — Seu pai manteve todos ocupados. Ele os levou por um passeio ao outro lado da praia, onde os barcos ficam ancorados.
O alívio toma conta de mim. Mas por pouco tempo, considerando que todos vão me ver em breve.
— Não devemos falar do elefante voador na sala? — pergunto, batendo as asas.
Jeb joga a camisa molhada no braço da cadeira de madeira. Seu pomo de adão se move quando ele engole em seco lentamente.
— Você se refere ao fato de você ser a mulher mais radiante e mágica que já vi?
Mulher... Acho que ele nunca me chamou assim. Seu olhar é tão intenso que minhas pernas fraquejam. Aproximo-me da cama, precisando de apoio contra elas.
Seu olhar se detém nos meus lábios azuis.
Eu os esfrego.
— Foi uma bobagem. Comi um bolinho que veio do nada... Sei que não devo comer nada estranho.
— Não. Morfeu teria encontrado uma maneira de fazer isso com ou sem você comendo o bolinho. Ele está deixando claro uma coisa. Provei meu valor como marido do seu lado humano depois de quase morrer por você mais de uma vez. Mas ele quer que eu seja digno do seu lado intraterreno também.
Fico boquiaberta
— Foi o que ele disse no meu sonho!
Jeb tira a rosa do bolso e arranca uma das pétalas.
— Compartilhei da mágica dele uma vez. Sei como ele pensa. Ele provou seu amor por seu lado humano ao não deixar a Marfim coroá-la e destruí-la. Então ele quer que eu prove meu valor como ele provou o dele. Não tenho problemas com isso. Será uma honra me casar com você hoje, diante de Deus e de todos, com suas asas e outros atributos intraterrenos à mostra.
Por mais sinceros e admiráveis que sejam os sentimentos dele, não consigo compreender a lógica de tudo.
— Mas isso... — Abro as asas às minhas costas e elas lançam sombras sobre nós dois. — Não sei como encarar uma plateia de humanos sem me entregar. É impossível.
— Nada é impossível. Você me ensinou isso há muito tempo. Pelo lado bom, sabemos que o efeito do bolinho é temporário. Morfeu se importa demais com seu coração para colocá-lo em risco arruinando sua capacidade de viver uma vida de realizações aqui.
Mordisco meu polegar, tomando o cuidado para não estragar o meticuloso trabalho de manicure de Jenara.
— Temporário pode ser qualquer coisa entre algumas horas e todo um dia.
— Verdade. O efeito vai permanecer ao menos durante a cerimônia. Mas podemos lidar com isso. Só deixe que eu me preocupe com o que todos pensam ou veem. Vou dar um jeito nisso com criatividade humana e um toque de mágica.
Um toque de mágica.
— Espere um pouco... você não vai usar seu desejo, não é?
— Não. Prometo a você que eu saberei a hora certa de usá-lo. Sua mãe e Corb estão levando os portais-espelhos a algumas lojas de fantasias.
— Para quê?
— Surpresa. — Ele olha para a porta atrás e depois se volta para mim. — Tenho que sair antes que a Jen volte. Eu deveria apenas deixar minha camisa pendurada na maçaneta para ela limpar as manchas e passá-la. Ela vai ficar louca se souber que vi você antes do casamento... mas queria lhe dar os parabéns pelo aniversário. — Ele estende a rosa, um pouco distante demais para eu pegá-la.
— Chegue mais perto — peço.
Sua mandíbula bem barbeada treme.
— Já foi ruim o bastante tê-la visto. Vai saber a confusão que vou provocar se tocar em você.
— Vamos descobrir.
A expressão dele ganha força e desejo. Ele joga a cadeira para o lado e se aproxima de mim.
As lufadas de vento carregam o perfume dele misturado ao da rosa. Ele para a poucos centímetros de distância, a mão livre tamborilando ao lado do corpo, como se pensasse nas alternativas. Uma tensão doce e torturante se estabelece entre nós dois — como a calmaria antes de uma tempestade de raios. Três mechas de cabelo se soltam do nó na minha nuca e o envolvem junto com a rosa. Uma mecha traz a rosa até mim e eu a pego com a mão direita.
Jeb observa, encantado.
Tento conter as outras mechas que se prendem nele, mas ele segura meus pulsos e leva minhas mãos à boca.
— Deixe estar — murmura ele contra minhas cicatrizes e leva a mão à minha nuca para soltar o restante das mechas. — Você sabe que eu a amo assim. — Sua voz arranha, áspera e rouca.
Meus cabelos nos cercam, furiosos para se libertarem. Eles dão a volta nos bíceps, ombros e cintura dele. Com força e cuidado, unem nossos corpos seminus, e os lábios dele encontram os meus. Ele tem sabor de oceano, cidra e chocolate. Ele andou experimentando a comida da festa.
Solto a rosa e passo as mãos em seu peito. A pele dele está molhada e quente, e seus músculos se contraem.
— Isso vale qualquer azar — sussurro contra sua boca cheia e macia, retribuindo seus beijos quentes.
— Nunca tivemos sorte mesmo — sussurra ele de volta, nos derrubando na cama, mas tomando cuidado para não esmagar minhas asas. — Mas somos muito bons em fazermos nossa sorte.
Ele me deita de costas, o peso dele me prendendo na mais deliciosa das armadilhas. Seu joelho abre caminho entre minhas pernas, as calças molhadas esbarrando em minha calcinha. Uma brisa sopra sobre nós dois, gelada em minha pele nua. É tão estranho queimar como um forno, mas ainda assim ficar arrepiada.
As mãos de Jeb pairam sobre minhas curvas — um território íntimo que ele conhece, mas que ainda tem de explorar completamente.
— Você está com frio — diz ele, enquanto sua boca avança pela carne gelada do meu pescoço.
Sinto meus ossos se liquefazendo e meu sangue virando lava.
— Longe disso — respondo, ofegante.
Com os olhos cheios de desejo, ele vira para o lado, me soltando. Põe a mão nas minhas costas e puxa um canto do lençol lavanda e azul-turquesa, cobrindo meu corpo e as asas e separando nossa pele.
Eu gemo.
— Jeb. Não quero nada nos separando.
Seus dedos contornam meus lábios.
— Depois da cerimônia, não haverá nada. Você será minha hoje à noite e será como sonhamos.
Meu corpo se incendeia, faíscas de ansiedade iluminando todas as partes do meu corpo que ele já tocou. Estou prestes a lhe dizer que será ainda melhor do que imaginamos — porque ele pode literalmente compartilhar meus sonhos se adiarmos o casamento —, quando a porta se abre.
— Ah, o que é isso? — grita Jenara.
Jeb se levanta apressadamente e me lança um sorriso tímido, enquanto sua irmã o expulsa do quarto.
— Eles voltaram? Eles encontraram tudo? — pergunta ele antes de ela lhe dar um empurrão.
Jenara faz uma cara feia.
— Sim, sim. Não que isso importe, agora que você provocou o destino ao vê-la.
Mais uma vez, Jeb põe a cabeça para dentro do quarto e ri para mim.
— Como se o destino tivesse algo a ver com a rainha-fada.
Sorrio de volta, ainda saboreando os beijos dele.
— Me encontra na praia ao pôr do sol? — pergunta ele.
— Nem mesmo um ataque de pássaros Jubjub me impediria — respondo.
Ele ri e desaparece, me deixando com uma dama de honra mal-humorada, mil perguntas e um coração iluminado.
CONTINUA
Capítulo 2
Auge
PRIMEIRA MEMÓRIA: PEDRAS
Sessenta e três anos antes...
É manhã no País das Maravilhas e Morfeu está me acompanhando de volta ao castelo da Marfim, onde minha família e Jeb esperam para passar comigo pelo portal, de modo que eu possa viver o restante da minha vida humana.
Meu acompanhante está pensativo e quieto, suas feições duras como pedra. Não trocamos nenhuma palavra durante o trajeto encantado. O som das asas da mariposa criando uma trilha no céu só intensifica o silêncio constrangido.
Sinto um aperto no peito, como se meu coração estivesse tentando alcançá-lo. Sei que, se olhasse sob o tecido sedoso do meu vestido preto e sob o paletó que ele insistiu em usar para se aquecer, o órgão estaria brilhando em tom violeta. Ontem mesmo, meu coração estava dividido ao meio — os lados humano e interior se matando — por causa da maldição que a Rainha Vermelha jogou sobre mim. Jeb e Morfeu intervieram, combinaram suas mágicas e me curaram com suturas encantadas. Eles salvaram minha vida com o amor. Meu corpo entende isso de alguma forma primitiva e eu jamais esquecerei. Meu coração está ligado aos dois agora, formando um elo que vai além de qualquer explicação humana.
Contudo, mesmo sem esse elo, eu era capaz de decifrar as joias no rosto de Morfeu e de saber no que ele está pensando. Acordei mais cedo em sua cama e o encontrei sentado na beirada do colchão, acariciando os cabelos nas minhas têmporas. Antes mesmo de poder lhe dar bom-dia, ele me beijou na testa e se afastou, dizendo que o café da manhã estava pronto.
Passamos a noite juntos, mas nada físico aconteceu entre nós. Nada acontecerá por muitos anos. Não até eu ter vivido minha vida humana com Jeb.
Deixei minha posição sobre fidelidade bem clara; mesmo assim, Morfeu deixou claro que não vai facilitar as coisas. Apesar de seus desafios penderem como fios soltos, o respeito que estabelecemos está firmemente junto a mim. Sei que ele jamais me pediria que traísse os humanos que amo — porque isso é parte de quem sou —, por mais que ele sofra ao recuar e me deixar em paz.
Depois de visitar as paisagens do País das Maravilhas juntos, noite passada, eu o entendo como nunca o entendi antes. E é o mesmo para ele, porque assim que chegamos e ele segura minha mão para eu descer da carruagem, não hesita em me acompanhar até a entrada de gelo onde Jeb me aguarda no topo da escadaria coberta de cristais de neve.
Prendo a respiração ao vê-lo. Ele está usando um smoking azul-marinho completo, com uma camisa violeta que complementa seus cabelos ondulados escuros e o tom oliva de sua pele. A mesma camisa transformada em cueca em Qualquer Outro Lugar.
O smoking está exatamente como na noite da festa de formatura: teias falsas, listras sujas e rasgões colocados estrategicamente no paletó e nas calças. Por um momento, sou levada de volta ao Submundo, onde o vi pela primeira vez esperando por nós na noite de formatura na entrada dos funcionários, e sua expressão magoada diante da minha traição. Jamais provocarei um olhar daqueles novamente.
Estranho. Da última vez que vi o smoking, foi com o dublê de Jeb em Qualquer Outro Lugar. Quando CC caiu na piscina de medos, as roupas se desintegraram. Jeb deve tê-las consertado antes de desistir do seu talento para sempre.
Talvez tenha sido sentimentalismo, porque a irmã dele é quem fez o smoking, ou provavelmente porque ele queria estar usando algo conhecido quando passássemos pelo portal e voltássemos à vida de sua família.
Ainda assim, mesmo usando roupas do reino humano, ele parece triste e deslocado ao esperar que eu suba as escadas. Ficar ali de pé à luz do dia, vendo as belas paisagens que ele criou neste mundo, deve ter sido horrível. Desistir de sua musa deve ser a coisa mais sofrida que ele já fez. E ele fez isso sem hesitar, para ajudar a equilibrar o País das Maravilhas... para alimentar as almas insaciáveis da Irmã Dois com seus sonhos artísticos.
Não tenho certeza se ele pensou nas consequências desse sacrifício. Mas estarei aqui para ajudá-lo a passar por isso.
Enquanto Morfeu e eu subimos a escada a caminho de Jeb, passamos por seres intraterrenos que vieram acompanhar minha partida. Alguns deles são inesperados.
Hubert, decorado e lustrado como um ovo Fabergé numa vitrine de Páscoa, estende a pata de louva-a-deus para cumprimentar Morfeu.
— Ainda é mais fácil para mim odiá-la — diz o homem-ovo para Morfeu, como se eu não estivesse por perto. — Rainha sabe-tudo. Nada de educação ou cultura naquela cabeçorra dela. Ainda assim ela conseguiu provar que eu estava errado. Tinha tanta certeza de que ela acabaria num caixão. Que decepção. — Apesar do sarcasmo, seus olhos amarelados refletiam admiração. Para minha surpresa, ele me oferece, por toda a vida, um suprimento de ovos beneditinos em seu ilustre hotel mágico, se um dia eu o visitasse.
Depois, cumprimentamos os estranhos seres intraterrenos clandestinos que ficaram presos no trem da memória três dias antes. Todos fazem reverência e me agradecem por abrir a toca do coelho para eles poderem voltar para casa. Meu nariz coça quase a ponto de me fazer espirrar quando passamos pelos coelhinhos de pó.
Bill, o Lagarto, nos para no meio do caminho. Ele estende dois trajes de disfarce que pedi a Grenadine que o devolvesse.
— Desculpe por ter perdido um... por tê-los roubado, antes de mais nada — sussurro, envergonhada.
Ele balança a cabeça reptiliana e mostra a língua comprida.
— Sou um súdito da Corte Vermelha. Assim, eles pertencem a você, Majestade. Seus talentos como ladra perdem apenas para o uso da sua mágica. Você os usará agora melhor do que eu jamais os usaria.
Impressionada, coloco a mão no peito. Sob meu vestido, o colar com a chave que abre meu reino pressiona minha pele.
— Mesmo?
Bill estende os trajes.
Olho para Morfeu.
Ele sorri e faz que sim, me encorajando a pegar o tecido transparente. Eu o guardo debaixo do braço e agradeço ao lagarto, que se curva para nos deixar passar. O Rábido está esperando por nós no degrau de cima — usando casacão e calças vermelhas. Ele abre os braços para levar os trajes para mim. Meu conselheiro cavalheiro. Ao subirmos, acaricio a pele macia entre seus chifres.
Guardas elfos se enfileiram na segunda metade da escada, dos dois lados. Eles sacam as espadas e tocam as pontas delas no topo das cabeças, formando um corredor prateado brilhante.
Jeb me aguarda no fim, tenso como se o fato de não poder correr até mim o estivesse matando.
Enquanto Morfeu e eu subimos a escada sob as sombras das espadas, meneio a cabeça para Jeb, num sinal de reconhecimento. As bolsas sob seus expressivos olhos verdes provam a falta de sono. As doze horas que passamos separados devem ter sido uma tortura. Por mais forte que ele estivesse quando demos boa-noite, é óbvio que ele temia que fossem despedidas de verdade. Que eu decidisse passar meu futuro no reino humano sozinha, sem ele.
Não posso estar no mesmo mundo que ele todos os dias sem tê-lo na minha vida. Nós nos amamos. Nós dois queremos a mesma coisa. Vamos dividir esses sonhos e envelhecer juntos. Uma vida mortal é preciosa e curta em comparação à eternidade. Ela deve ser vivida e nunca desperdiçada. Algo que Morfeu agora entende como nunca antes, senão não estaria me deixando partir sem lutar.
Sinto o rosto adormecer, menos pelo frio e mais pela situação insuportavelmente incômoda na qual coloquei os dois. Eu me lembro de que esta é a pior parte... que, depois que eu passar pelo portal e entrar no reino humano, minhas duas vidas vão se misturar e ao mesmo tempo jamais se cruzarão, a não ser que seja necessário à segurança ou ao bem-estar de alguém. Foi com o que concordamos.
Uma cama de gelo se gruda na sola das minhas botas assim que subo o último degrau. Os cavaleiros elfos nos saúdam e guardam as espadas nas bainhas de couro. O sangue que lhes decora os rostos e têmporas brilha como fruta contra o cenário branco que os cerca. Batendo os calcanhares, eles descem as escadas para cercar o castelo e assumir seus postos.
Franzindo a testa, Morfeu oferece minha mão a Jeb. É um gesto estranho, grandioso e cheio de dignidade, como se ele caminhasse comigo pela nave e me entregasse em casamento. De certa forma, é. Durante uma vida humana.
Suas asas farfalham quando Jeb segura minha mão, um espasmo involuntário. Ele está lutando para não pegar minha mão de volta.
— Você conhece o protocolo... se algo acontecer ao seu corpo no seu mundo, você ou Alison devem entrar em contato comigo imediatamente. O espírito de Alyssa deve ser protegido para sobreviver.
Jeb faz que sim com a cabeça.
— Entendi. — A resposta dele é sucinta e seu tom de voz, controlado, mas a preocupação em sua expressão o entrega. É algo em que não gostamos de pensar, algo que esperamos que nunca tenha de ser resolvido.
O olhar rosa do Rábido se vira para mim, seu rosto branco entusiasmado. Eu o mando porta afora para resgatá-lo de ter de tratar de assunto tão mórbido.
Morfeu espera pelo toque dos ossos para desaparecer dentro do castelo, depois pega um par de luvas do bolso, colocando-as na mão.
— E acho que é desnecessário lhe dizer para tratá-la como uma rainha — resmunga ele para Jeb.
Jeb entrelaça nossos dedos.
— Assim como é perda de tempo lhe pedir que abandone as táticas de sedução nos sonhos dela.
— É ciúme o que ouço em sua voz, belo e falso elfo? Nunca tema. Ainda pensarei nela todos os dias, enquanto ela estiver com você.
— Prefiro que você pense em mim todas as noites, quando ela estiver com você. — Jeb me ajuda a tirar dos ombros o casaco de Morfeu, substituindo-o pelo paletó do seu smoking, ainda quente do calor do seu corpo. — Enviarei uma coruja como lembrete. — Ele devolve o casaco a Morfeu.
Morfeu pega o casaco e o dobra no braço, alisando-o. Ele ri uma risada triste e vazia.
— Vou sentir falta das suas tentativas equivocadas de fazer trocadilhos.
Jeb abre um sorriso forçado.
— Não tanto quanto eu sentirei falta de sua condescendência pomposa.
Eles se encaram, uma mistura de distração e comedimento em suas expressões. Um respeito de má vontade une a tensão — uma ligação que aumentou sem eles perceberem ou encorajarem, durante o mês que eles passaram juntos em Qualquer Outro Lugar.
— Vocês dois querem ficar sozinhos? — pergunto, desesperada para que ponham um fim ao estranho diálogo.
Morfeu estreita os olhos.
— Eu a verei hoje à noite, Alyssa. E, a partir de agora, quando você estiver comigo, espero que sua mente seja como era na nossa infância. Atenta às questões do País das Maravilhas, e não à confusão do reino mortal. Lide com as coisas daqui para que elas não sejam uma distração quando você voltar às suas obrigações reais. Tem certeza de que não precisa da minha ajuda para limpar todas as bagunças? Tenho certa prática no manejo de humanos. — A risadinha arrogante que ele lança para Jeb está cheia de insinuações.
— Entendemos, Mariposinha — diz Jeb. — Entendo as sensibilidades inocentes deles melhor do que você. — Ele arqueia a sobrancelha, expressando sua própria mensagem cifrada.
Ouve-se um baque abafado na enorme porta cristalizada. Jeb e eu olhamos para trás, para o ponto de onde nossos pais estão espiando. Ambos parecem belos e descansados, mas também ansiosos.
Meneio a cabeça num cumprimento e eles acenam e então recuam para dar privacidade a nós três.
Jeb se vira, seu braço me segurando pela cintura.
— Você vem nos visitar, Morfeu?
Morfeu encara enfaticamente Jeb. Suas marcas de joias brilham numa paleta pastel, como um pôr do sol reluzente. A resolução pisca dentro de seu olhar carregado.
— Não quero chegar nem perto do portal. Já tive o bastante do seu reino estagnado para esta vida e um pouco mais.
— Espero que você esteja falando sério — diz Jeb. A frase não é ferina, só sincera.
— Ah, com certeza falo. Exceto pela parte preciosa do seu mundo, que um dia pertencerá somente a mim. — Morfeu ergue o chapéu na minha direção e as mariposas cinza-azuladas na borda tremem como se fizessem reverência. Ele se vira e desce as escadas, as asas se arrastando pela neve como uma capa, e parte de mim sofre com uma tristeza profunda.
Um vento ganha força, gerando um redemoinho de neve.
É melhor estarmos saindo pelo portal da Marfim. Esta partida sofrida seria acrescida dos rostos de todos os meus súditos me olhando. Noite passada, ao visitar o Castelo Vermelho, optei por não me despedir deles. Eu me sentiria fadada demais e de certa forma estranha. Consolo-me em saber que eu verei a eles e Morfeu em meus sonhos.
Depois que a carruagem movida a mariposas decola, Jeb se vira para me encarar. Ele leva minha mão à boca e acaricia os nós dos dedos. Seu olhar intenso passa por todos os meus traços, dos olhos ao nariz e lábios, como se estudasse uma pintura novamente.
O silêncio revira meu estômago.
— Você vai perguntar?
— Perguntar o quê? — diz ele contra a minha mão.
— Se algo aconteceu. — Meu tempo com Morfeu parece algo privado e secreto, mas se Jeb, para reaver a calma, precisar ouvir sobre o que conversamos e os lugares que visitamos, me abrirei e serei honesta.
Jeb entrelaça nossos dedos novamente.
— Você segurou minha mão hoje e está ao meu lado. Isso me diz tudo o que preciso saber. Você é uma rainha e tem responsabilidades. — A admiração por trás de suas palavras me surpreende, mas não deveria. Não levando em conta os laços emocionais dele com meu mundo. — Não preciso saber de tudo sempre que você volta. Você me diria se algo nos afetasse ou afetasse sua vida.
Sorrio, surpresa com a fé dele.
— Diria. Direi. E obrigada.
Ele cuidadosamente segura os cabelos à minha nuca e junta nossas testas.
— Eu é que agradeço. — Sua voz, grossa e rouca de emoção, forma uma névoa entre nós. — Obrigado por voltar para mim.
Acaricio seu rosto e a pouca barba em seu queixo.
— Certo, não vou me sentir como se você precisasse de uma atualização sempre. Mas, por favor, não pense que você precisa agradecer todas as manhãs em que eu acordar ao seu lado. Quero que sejamos normais.
— Normais. — Ele recua e ri, as covinhas finalmente aparecendo. — Isso vindo de uma menina que ganhou asas e que me deu um colossal chá de cueca enquanto surfávamos nas areias do País das Maravilhas. Quando é que isso foi normal, hein?
Bufo, lembrando-me de que não podia carregá-lo pelo precipício e tive de deixá-lo para trás, que, por mais que ele estivesse com tanto medo quanto eu, ele me fez rir e me deu forças para que eu fizesse o que julgava impossível. Como agora.
O sorriso desaparece aos poucos, fazendo seu piercing nos lábios brilhar à luz. Eu o toco, acariciando o metal quente, de modo que seu bigode pinica meu dedo.
Esse ato íntimo e sensual me atinge com uma verdade quase que inconcebível: não há nada se colocando entre nós dois agora. Nossa vida juntos começará hoje, assim que cruzarmos a fronteira. Estou ao mesmo tempo feliz e emocionada.
— Estou pronta para minha aliança — consigo dizer em meio ao nó na garganta.
Sua expressão ganha sobriedade. Tirando a corrente por baixo da camisa, ele a passa pela cabeça e tira o anel. Com os olhos nos meus, ele coloca o anel de prata na minha mão direita, onde ele permanecerá até que ele o coloque na minha mão esquerda depois de declararmos nossos votos maritais. Os diamantes brilham — um coração alado — e meu coração parece bater asas como se pudesse voar.
O anel se encaixa perfeitamente ao meu dedo e parece um cartão de boas-vindas.
— Você sempre foi minha segurança — sussurra Jeb, colocando o polegar na covinha do meu queixo e me puxando para um beijo carinhoso e doce. Passo a mão pelos cabelos dele e o saboreio, ele sem perfume ou tinta ou terebintina. Só ele. Humano, masculino. Jebediah Holt.
Eu poderia me afogar na doçura da simplicidade.
Com nossos peitos unidos, meu coração costurado brilha e cantarola, tentando diminuir o espaço entre nós. Seu corpo fica tenso, como se ele sentisse a atração.
Ele interrompe o beijo e segura minha cabeça contra seu corpo, a barba por fazer em seu rosto arranhando minha têmpora.
— Tenho algo para lhe mostrar. — Seus lábios acariciam minha orelha e me aquecem toda. — Quis esperar até que estivéssemos juntos. Até que estivéssemos sozinhos. Mas acho que você precisa ver agora. — Ele pega algo do bolso e revela o que parece uma bolinha de gude, apesar de ser macia como uma pérola de banho.
— Um desejo? — Enxugo as lágrimas do meu rosto com o dorso da mão, surpresa. — Como? Quando?
— Noite passada, na festa da Marfim, depois da nossa dança lenta. Um furão me puxou... lambeu meu rosto para me agradecer pelo que fiz pelo País das Maravilhas.
— Ah, meu Deus. Então foi por isso que você saiu mais cedo?
Ele rola a bolinha na palma da mão.
— Estava prestes a me acabar de chorar. — Ele segura a lágrima brilhante contra a luz. — Não poderia permitir que a Rainha Vermelha me visse berrar como uma menininha.
Solto uma risada inesperada, alheia em meio à confusão inesperada de emoções.
Jeb franze a testa, pensativo.
— Podemos usar isso para nos ajudar a arrumar as coisas no reino humano.
Meu sorriso de felicidade desaparece.
— Não. Este desejo só pode ser usado para você.
— Fiquei envolvida com Morfeu por um mês. A única coisa que aprendi é que a mágica é flexível. É tudo uma questão de estilo.
Balanço a cabeça e cubro a mão dele, escondendo sua lágrima.
— Mágica é preciosa. Você tem de guardar isso, Jeb. Você pode desejar tantas coisas! — Paro, porque nós dois sabemos que há duas coisas monumentais que não podemos pedir. Ele não pode recuperar sua musa sem desequilibrar o País das Maravilhas de novo. E não pode pedir para vivermos para sempre. A mágica não mudará quem se é por dentro. Ele optou por perder sua imortalidade abdicando dos poderes da Vermelha. Ele é mortal e não há como mudar isso agora. — Jeb, não desperdice o poder. Guarde para algo importante.
Ele fica mais sombrio e sei que já esteve enfrentando os mesmos pensamentos. Ele guarda o desejo no bolso e trava a mandíbula.
Antes que possamos dizer algo, as portas do castelo se abrem e a mamãe e o papai surgem. Fico chocada ao vê-la usando o mesmo vestido de costas expostas usado na festa de formatura. Apesar de o chiffon da saia e as mangas estarem avariados por causa da luta dela com o coveiro de oito patas do País das Maravilhas, o vestido ainda está intacto.
Franzo a testa, pensando em tudo.
— Espere aí. — Aponto para ela e para Jeb. — Então... vocês estão usando as mesmas roupas que usavam quando desapareceram. Isso é um plano?
— Sim. Jeb pensou nisso — responde a mamãe. — Ainda precisamos pensar nos detalhes. Mas primeiro... — Ela e o papai me puxam para um abraço.
Depois de um abraço longo e apertado, celebramos as notícias. O papai brinca com Jeb, dizendo que ele quase teve de vender um rim para comprar o anel de noivado da mamãe, no que esta lhe dá uma cutucada, fazendo-o soltar um ganido. E então ela segura cuidadosamente minha mão direita para admirar meu dedo anelar.
Ela olha meu rosto. Sei o que ela está vendo: a mesma ansiedade pela vida humana que ela sentiu com o papai depois de salvá-lo da Irmã Dois. O sorriso dela é tão cheio de esperança que eu poderia estar olhando diretamente para o sol.
Quando ela se vira para dar um abraço de improviso em Jeb, o papai me puxa de lado.
— Borboleta — diz ele, ajeitando uma mecha solta de cabelo atrás da minha orelha.
— Papai — falo, segurando a mão dele e mantendo-a perto do meu rosto.
Ele balança a cabeça.
— Em meio a toda esta loucura... Não tive a oportunidade de dizer quanto tenho orgulho de você, Alyssa Victoria Gardner. — A ternura em seus olhos castanhos me lembra de como nós dois enfrentamos o mundo juntos na minha infância e de como sempre me senti segura. Se ao menos eu soubesse que minha vida era protegida por um cavaleiro de verdade. — Minha menininha é uma rainha. Uma rainha do País das Maravilhas.
Sorrio.
— Ligeiramente diferente das minhas versões fantasiosas, não?
O papai ri e me beija na cabeça.
— Pode-se dizer isso. Mais como uma ninja.
Solto um riso e dou-lhe um abraço, aconchegando-me em seu calor e força.
— Está pronta para ir para casa? — pergunta ele, acariciando minhas costas.
— Bom, não exatamente casa — emenda a mamãe, voltando ao meu lado. — Temos de fazer um desvio.
— Desvio? — pergunto, enquanto ela e eu entramos de braços dados no castelo, com os caras atrás de nós. Nossos sapatos batem no chão vítreo. A Marfim está no alto da escadaria de cristal, onde o portal me aguarda no fim de um corredor. O Rábido está ao lado dela, com Finley do outro lado, a mão às costas, sob as asas.
— A casa de Jeb vai ser a primeira parada — responde a mamãe enquanto subimos os primeiros degraus.
Fico intrigada por um instante, até que me cai a ficha de tal manobra.
— Para podermos descobrir se há alguma atividade policial em nossa casa. Muito inteligente.
— Mais do que isso — corrige o papai atrás de mim. — Vamos precisar de ajuda externa para explicar a ausência da mamãe e de Jeb por um mês, assim como sua fuga do sanatório. Se não fizermos isso, posso ser preso por ajudá-la a fugir enquanto você era suspeita do desaparecimento deles.
— Ajuda de quem? — pergunto, segurando-me ao corrimão frio de vidro. Isso está começando a parecer mais complicado e perigoso do que eu imaginava. Nunca pensei no papai sendo preso. Talvez devêssemos ter levado Morfeu a sério em sua oferta.
— Ajuda de alguém que esteja trabalhando com a polícia na investigação — responde a mamãe. — Uma pessoa que não seja suspeita e tenha a confiança de todos por estar sofrendo a morte do irmão e da melhor amiga desde que foram dados como desaparecidos.
Meu sangue se intensifica em meus pulsos ao olhar para trás e ver Jeb subindo a escada ao lado do papai.
— Você não está falando de...
O sol entra pelas paredes cristalizadas e ressalta os traços de Jeb, ampliando a resolução cautelosa ali.
— A não ser que você pense em outra forma, Al — diz ele, uma referência óbvia ao desejo no meu bolso. — Vamos ter de contar a verdade a Jen. Tudo.
Apesar de não falar em voz alta, não estou disposta a deixar Jeb abdicar de seu desejo por ninguém nem nada. Depois da violência que ela enfrentou na vida, Jenara é durona. Ela também acredita no poder dos cristais, em vodu, tábuas Ouija e tarô. Ela está a um milímetro de ser considerada louca. Torná-la um ser intraterreno honorário é a coisa mais lógica nesta situação ilógica. E, sinceramente, vai ser bom deixar de esconder meu lado País das Maravilhas da minha melhor amiga. Ela vai ser minha cunhada. Nossa vida familiar será menos complicada se pudermos falar abertamente sobre tudo.
Antes de passarmos pelo portal e entrarmos no reino humano, a mamãe, o papai, Jeb e eu discutimos o plano, já que temos lugares diferentes para ir.
Noite passada, depois que reabri os portais, durante meu passeio com Morfeu, e enquanto Jeb estava implorando um desejo, mamãe e papai foram ao reino humano e fizeram o reconhecimento. Da segurança do nosso sótão, eles esperaram para ter certeza de que a casa estava vazia e entraram na internet, reunindo todas as notícias possíveis sobre a tragédia no Submundo na noite da festa de formatura, o desaparecimento da mamãe e de Jeb, que aparentemente estava relacionado a isso, e minha fuga do sanatório um mês depois.
Um mandado de prisão foi expedido para mim e meu pai vinte e quatro horas depois da nossa partida. Éramos oficialmente procurados há três dias.
A informação mais útil foi a entrevista recente do sr. Traemont para o jornal local sobre a devastação de seu centro de atividades — paredes de concreto derrubadas, desabamento e vazamento de água. Ele levou duas semanas somente para avaliar completamente os danos. Chamou uma equipe de construção que originalmente transformara o velho e abandonado silo de sal no Submundo, para que pudessem dar pistas sobre o que deflagrou o acidente. Depois de analisarem as plantas, eles chegaram à conclusão de que, no alicerce, possivelmente havia um ponto fraco provocado pela mineração de sal décadas antes. O buraco que se abriu sugou tudo para um dos túneis de mineração sob a caverna subterrânea.
A conclusão fazia mais sentido do que a verdade que ninguém via: a rainha do País das Maravilhas deu vazão a uma nuvem de espíritos de pesadelo que sugaram o centro de atividades para a toca do coelho com tanta força que metade da caverna implodiu.
Como certa vez eu disse a Morfeu, muitos humanos preferem acreditar que estão sozinhos no Universo a admitir que pode haver uma plateia sobrenatural. E como ele comentou: o ego das pessoas é a própria fraqueza delas.
Com o acidente, o Submundo foi abandonado — todas as entradas para a gigantesca caverna foram condenadas e lacradas com fita policial para a segurança do público. É aqui que entra a ideia de Jeb. Ele disse que, meses antes do início da construção do centro de atividades, os túneis de mineração foram usados para guardar itens bélicos para uma base militar próxima: lenços umedecidos, kits de primeiros socorros, pentes, xampu, desodorante em pó, pasta de dentes, caixas de refeições desidratadas, sacos de sopa e garrafas de água. Ele viu isso dentro de um túnel depois que começou a trabalhar no local, e os suprimentos ainda tinham de ser retirados de lá.
Obrigada, procrastinação. O caráter humano nos deu nosso álibi perfeito.
Só tínhamos que magicamente remover pedras e destroços para entrar num dos túneis. Lá, podíamos montar a cena, como se a mamãe e Jeb tivessem ficado presos por um mês, vivendo à base de suprimentos militares. Era tão simples que beirava à perfeição. O fato de ninguém ter considerado essa possibilidade era inacreditável. Eles estavam tão ocupados investigando o suposto envolvimento da menina louca que não exploraram nenhuma outra teoria.
Quando a mim e ao papai, nossa história seria igualmente simples: consegui pegar as chaves dele e fugi do sanatório usando a entrada de jardinagem naquele dia, enquanto estávamos sem vigilância no jardim. Ele não teve tempo de pedir ajuda, então me perseguiu e subiu na caçamba do caminhão que eu dirigia. Eu o levei ao Submundo... e, lá, refiz meus passos na noite da festa de formatura. Depois de ver a destruição, uma lembrança horrível tomou conta de mim — a visão de Jeb e da mamãe sendo engolidos por uma avalanche de pedras e cimento.
Tive de suprimir isso... foi traumatizante demais encarar a morte deles.
Só que eles não estavam mortos. Porque, enquanto eu e o papai chorávamos na escuridão em meio aos destroços, ouvimos um barulho e o seguimos até um monte de pedras cobrindo uma abertura. Conseguimos cavar e nos reunimos a Jeb e à mamãe — mas a abertura era instável e mais rochas e pedras nos isolaram novamente: os quatro presos juntos.
Foi ali que o papai e eu estivemos nos últimos três dias.
A ideia de Jeb era brilhante. Até Morfeu teria ficado impressionado.
Então tínhamos um plano que só exigia minha mágica e a da mamãe e os dois trajes de disfarce. Fora isso, precisávamos de um catalisador: alguém para dar a dica da nossa localização aos policiais.
Era aí que entravam Jenara e a tábua Ouija.
Apesar de ser manhã no País das Maravilhas, é noite no reino humano. Envoltos em trajes de disfarce, meus pais entram primeiro no portal, parando na nossa casa para pegar um dos uniformes do papai e o traje de sanatório que mamãe tinha guardado, que será para mim. Estaremos usando as roupas nas quais fomos vistos pela última vez, para fazer o plano dar certo. Depois que a mamãe e o papai entrarem em casa, a próxima parada será no Submundo, para montar o cenário da nossa grandiosa revelação.
Jeb segura minha mão e me endireita, enquanto o Rábido e eu passamos com ele pelo espelho comprido atrás da porta do quarto de Jenara. Ele dá para uma janela que reflete a Marfim e Finley acenando adeus.
Antes de entrarmos, garantimos que Jenara não estivesse no quarto. Vamos ter de contar isso a ela aos poucos. Ela já ficará suficientemente chocada ao nos ver vivos e intactos.
Quando ela estiver pronta, eu lhe mostrarei meus poderes e características intraterrenos. O Rábido está aqui como suporte, para o caso de ela precisar de mais provas que não minhas asas para se convencer de que o País das Maravilhas é real.
Escondo meu colar com a chave. As tiras verticais rosas e brancas da parede de Jenara brilham com um tom prateado, folheado pelo luar que entra pelas cortinas translúcidas da janela arqueada. Silhuetas de trepadeiras de flores negras se prolongam pelo teto — sombras imaculadas pintadas pela mão hábil de Jeb há alguns anos. Um mural digno de um museu.
Eu o pego olhando para o mural antes de ficar sério e desviar o olhar. A tristeza na ação me dá um aperto no peito.
— Jeb. — Paro atrás dele e o abraço, a boca contra as roupas que envolvem seus ombros largos. — Você encontrará seu caminho. Prometo... você ainda tem tanto a oferecer a este mundo.
Ele fica tenso, mas cruza os braços, segurando meus cotovelos.
— Não sei direito como esquecer algo que antes me manteve são.
— Você não precisa esquecer. Esta parte sua ainda está intacta. Em molduras, pintada em paredes, desenhada em pedaços de papel. Sua musa vive aqui, por meio das pessoas que ficam felizes com sua obra de arte todos os dias. Isso é mais mágico do que tudo. Deixe que isso o mantenha são até encontrar um novo caminho.
Ele me vira de modo que ficamos de frente um para o outro e me beija.
— Você é muito inteligente para um ser intraterreno.
Eu rio.
— E você é bem durão para um humano. — Abaixo a cabeça dele para outro beijo.
O Rábido nos chama e nos encara com os olhos arregalados e fascinados.
Constrangida, recuo. O alívio momentâneo foi bom, mas sei que não será fácil passar por cima de tudo o que Jeb perdeu. É algo com o que lidaremos juntos, dia a dia, até ele reencontrar seu caminho.
Por enquanto, temos de cuidar desta situação com Jenara.
Jeb pigarreia, obviamente pensando na mesma coisa.
— Então acho que eu deveria olhar a casa.
— Você acha que ela está trabalhando? — Tiro minhas botas para permitir que o tapete rosa macio acaricie os dedos dos meus pés.
Ele abre a porta do quarto de Jenara e olha o corredor.
— Sei que a mamãe está. Ela sempre pega os turnos da noite. Vocês dois esperam aqui.
Assim que ele sai, deixando a porta aberta atrás de si, o Rábido sobe na cama de Jenara. Seus dedos magros enrugam o edredom preto e branco. A poeira rosa me lembra de como Jen e eu brincávamos de nos fantasiar neste quarto. De como inventávamos vestidos de noiva com lençóis e fronhas, contávamos segredos, comíamos bobagem e ficávamos acordadas até tarde.
Isso parece ter acontecido há tanto tempo.
Dois manequins brancos e sem rosto ficam diante da janela dela com luminárias em suas cabeças como chapéus. Jeb mexeu no interior e instalou lâmpadas nos crânios para criar abajures para o aniversário de quinze anos dela.
Acendo um deles, lançando uma luz branca estelar pelo piso de madeira e pela colcha da cama de Jenara.
— Ooooh. — O Rábido se levanta no colchão e dança em meio às formas criadas pela luminária. Encaro o espelho, vendo o reflexo dele no vidro. Ele é como uma bailarina macabra num globo de neve. Tão deslocado no quarto cheio de coisas normais e humanas.
Então vejo meu próprio reflexo. Minhas marcas intraterrenas nos olhos ainda não desapareceram completamente. Minha pele brilha e, se meu cabelo não estivesse preso numa trança, ele estaria agitado — vivo e encantado.
Sou uma alienígena.
Pensando bem, somos todos alienígenas agora. Até Jeb. Depois do que passamos e vimos, esta tranquilidade parece mais perigosa do que o caos que enfrentamos. Eu me pergunto se é assim que soldados se sentem depois de voltarem da guerra. Como eles superam? Como eles aprendem a fazer parte da comunidade novamente? A se sentirem seguros de novo?
Os zumbidos de alguns insetos interrompem minhas reflexões, um consolo bem-vindo. Fecho os olhos por um instante, mas os abro assim que um grito agudo do outro extremo do corredor me faz dar um salto.
Espanto o Rábido da cama e o mando para o armário.
— Não saia a não ser que eu o chame, sim?
Ele faz que sim, se escondendo numa pilha de acessórios de costura — mantas, cintos e tecidos — no chão.
Fico parada, os braços ao lado do corpo... presa.
O choro histérico de Jenara se aproxima à medida que Jeb a acompanha até a porta entreaberta. Ele fala num tom de voz carinhoso, tão baixinho que mal consigo ouvir o que ele diz. Meu coração bate em sincronia com as dobradiças que se abrem.
Quando eles entram, ela está abraçada a ele, segurando o colarinho da camisa, a cabeça contra seu corpo e o rosto escondido sob um véu de cabelos rosa molhados — recém-saídos do banho. Jeb deve tê-la surpreendido assim que ela saía do banheiro. Seu pijama verde de cetim me faz lembrar festas e jogos divertidos passados.
Sinto tanta saudade dela.
— Jen? — murmuro hesitantemente, sem saber o que dizer em seguida.
Ao ouvir minha voz, ela vira a cabeça na minha direção.
— A-Al? — Seu rosto rosado fica inchado quando ela tenta conter o choro. Ela perde a batalha e grita, correndo na minha direção.
Estendo o braço para abraçá-la e caímos no colchão juntas, as molas balançando sob nossos corpos. Recuperando o fôlego, me enterro no cheiro cítrico e doce de seu xampu. Um sorriso se irradia do meu coração para meus lábios e eu a abraço com força, lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Lágrimas dela ou minhas... não importa. A sensação é maravilhosa.
Jeb esfrega as costas dela.
— J.
— Não, não, não, não. — Ela chora de encontro ao meu pescoço. — Não me acorde. Estou sonhando, estou sonhando.
Ele coloca um dos joelhos na cama, ao lado de nossos corpos unidos, e a preocupação em seus olhos basta para me fazer esquecer que um dia partimos.
— Tudo bem, Jen. Não é um sonho — garanto a ela. — Estamos aqui.
Jeb acaricia a cabeça dela, intencionalmente tocando meu rosto com um dos dedos ao longo do processo. Ele não quer magoar a irmã — ele passou anos demais protegendo-a. Mas ele sabe que é o melhor para todos nós a longo prazo.
Ainda assim, é óbvio que ele está lutando e perdido, como o menininho que um dia foi.
Seguro a mão dele e o puxo, de modo que seu corpo caia ao meu lado direito. Ele se aninha tão próximo que seu hálito toca minha orelha. Coloca seu braço sobre mim e Jen, de forma que fico espremida entre as duas pessoas de que mais gosto. Juntos, nós três choramos e rimos até soluçarmos.
Pela primeira vez em semanas, estamos reunidos. Uma família.
Esta sensação. Talvez... é assim que voltamos ao normal.
Assim que Jenara se acalma, ela se senta, tentando recuperar o fôlego.
— Onde vocês estiveram? Procuramos em todos os lugares! — A acusação é direcionada a Jeb. — Achamos que vocês...
— Sinto muito. — Jeb se ajoelha, interrompendo-a antes que ela possa admitir que pensava no pior.
Fico onde estava, a coluna apoiada no colchão. Com medo de me mover.
— Al, talvez a gente devesse lhe contar tudo de uma só vez — diz Jeb, a voz trêmula.
— Incluindo como mandei você para lá? — Procuro as palavras certas e tropeço terrivelmente.
Verde e úmido, o olhar de Jenara recai sobre mim.
— Ãhn? — Sua expressão mostra que ela compreende. — Espere. — Ela sai da cama e se levanta, tonta mas determinada. — A polícia tinha razão? Você sempre soube onde ele estava? Mas por que você não...? — Ela chora de novo. — E quanto à sua mãe? Cadê ela? E seu pai? O que está havendo?
Estudo o rosto dela, manchado de lágrimas, seus cabelos rosa molhando a parte de cima do pijama, as três sardinhas no nariz. Ela parece tão vulnerável. Queremos mesmo envolvê-la nisso? Não haverá volta se o fizermos.
Jeb me obriga a me sentar.
— Você é a única que pode lhe mostrar. Faça-a entender.
Engulo em seco.
— Não sei nem por onde começar.
— Mais ou menos por aqui. — Ele passa o dedo pelas alças do meu vestido que revelam minhas omoplatas nuas. Meus botões de asa se arrepiam ao toque dele.
Fico com o rosto em chamas.
— Mas não posso simplesmente... precisamos prepará-la.
Jenara recua lentamente até a porta.
— Me preparar? Vocês estão me assustando. Vou chamar a mamãe. — A campainha toca e ela para, a expressão se iluminando. — Corbin — murmura ela, e se vira para o corredor para deixá-lo entrar.
— Não, J. — Jeb tenta impedi-la, mas ela o ignora.
— Espere, Jen! — Saio da cama. — Corb não pode estar aqui para isso.
— Por que não? — Ela se vira, as mãos na cintura. — Ele esteve aqui enquanto Jeb estava desaparecido. E enquanto você estava internada. Ele me ama, Al. Ele cuidou de mim e da mamãe. Tudo o que você me contar, pode contar a ele. — Ela se vira e atravessa a porta do quarto.
— Nós... nós fomos ao País das Maravilhas! — digo de uma vez, fazendo-a parar. Ela dá meia-volta no corredor, boquiaberta.
— Mostre suas asas — acrescenta Jeb, estreitando os olhos. Seus cílios compridos lançam sombras sobre seu rosto e as luminárias brilham em sua pele, fazendo-o parecer tão intraterreno quanto eu.
— Asas? — pergunta Jenara, voltando ao quarto. — Sério, mano? Você a quer trancada no sanatório de novo? Você não faz ideia do que ela passou enquanto eles tentavam tirar o País das Maravilhas da mente dela. Não dê vazão ao delírio dela!
— Al... — Jeb me leva até ela. — Você vai ter de se expor. Não há outra forma de fazer alguém acreditar. Eu precisei de um acidente na toca do coelho.
Ao ouvir a palavra coelho, o Rábido sai do armário, sua forma esquelética enrolada em mantas e cintos. Ele tropeça em Jeb, e os dois caem no chão. O Rábido se aproxima de mim ainda caído, parecendo uma lagarta louca com apenas seus chifres e olhos rosa expostos.
— Rábido, o Branco, sou eu! — Anuncia ele com sua voz fina, virando-se e tentando se libertar.
Jeb xinga e Jenara grita tão alto que todos os outros sons parecem abafados, como se meus ouvidos estivessem dentro de uma concha.
A porta da frente se abre e passos soam no corredor. Jeb se levanta para fechar a porta, mas é tarde demais. Corbin aparece ofegante, os cabelos loiros arruivados reluzindo sob a luz fraca. Ele traz uma chave na mão. Seus olhos recaem sobre o Rábido, que conseguiu se livrar dos acessórios do armário de Jenara e está ali de pé, exibindo toda a sua decrepitude intraterrena.
A criaturinha abre os braços com um floreio.
— Ta-da! — grita ele, com espuma saindo pela boca. Faço uma cara feia para o espetáculo. Morfeu deve ter lhe ensinado isso.
— O que está havendo? — pergunta Corbin com seu pesado sotaque sulista, segurando Jenara pelo cotovelo e puxando seu corpo trêmulo para o corredor.
Jeb franze a testa, atento à chave na mão de Corbin.
— Estava prestes a perguntar a mesma coisa. Por que você tem uma chave da nossa casa, Corb? Desde quando você mora com minha irmã?
Encaro Jeb. O meu lado intraterreno ri alto antes de eu conseguir me segurar, divertindo-me com o ridículo da situação toda. Parece que todos somos controlados por instintos. Para Jeb, dar à irmã e ao melhor amigo o maior susto da vida deles é algo que pega carona em seu instinto protetor de irmão mais velho.
O choro audível de Jenara traz meu lado travesso de volta. Pego o roupão da cadeira perto da mesinha de canto e o jogo para o Rábido. Ele resmunga e o cheiro de tecido queimado pontua o ar enquanto seus olhos se transformam em duas órbitas vermelhas por baixo, criando buracos fumegantes no pano.
— Nada de fogo, Rábido! — repreendo.
Ele “desliga” os olhos e se abaixa.
— Jeb? Al? — murmura Corbin, como se só agora tivesse nos notado. Ele parece perigosamente perto de desmaiar. As sardas em seu nariz parecem escuras contra o rosto pálido. Seu olhar azul intenso permanece fixo no Rábido agachado e agitado sob o roupão. — Onde vocês... como vocês...? Aquela coisa. Tem que ser um robô... certo?
— Rábido não robô é! — Meu conselheiro real reclama por baixo do seu esconderijo, ofendido.
— Para dentro do armário — ordeno. O Rábido resmunga algo indecifrável e desaparece, arrastando o roupão queimado atrás de si como a cauda de um vestido de noiva.
Jeb e eu trocamos olhares.
— Há sempre poções do esquecimento — sugiro.
Ele bufa, estudando Corbin e Jenara apoiados contra a parede do lado de fora do quarto, confusos e trêmulos para além de qualquer descrição.
— Perder suas memórias não é a única coisa que vai acontecer. Confie em mim.
— Então vamos contar a ele também — acrescento. — Isso, ou ele esquece e o mandamos para casa.
— Não vou a lugar nenhum sem a Jen — declara Corbin, a cor voltando ao seu rosto. Ele segura Jenara junto de si, enquanto ela esconde o nariz na camisa dele, tentando respirar normalmente.
Os lábios de Jeb ganham um sorriso lento e ousado.
— Não vai a lugar nenhum hoje à noite? Então você está planejando se dedicar a ela por mais um ou dois dias?
Corbin fica sério.
— Que tal para sempre? — Ele a abraça com mais força, puxando Jenara para tão perto que a calça do pijama dela adere em sua calça jeans, estalando por causa da estática.
— Para sempre é muito tempo — retruca Jeb, e a nota de tristeza na afirmação revira minhas entranhas, como se elas fossem uma harpa tocada pelos dedos dele. Fungando, Jenara se vira para olhar para o irmão, confusa. O humor de Jeb muda novamente e ele balança negativamente a cabeça, em um gesto de amor. — Parece que você arranjou um cavaleiro branco, mana.
Pego Jeb pelo pulso, no ponto onde uma cicatriz saliente substituiu sua tatuagem.
— Você não tem ideia de como esses dois são teimosos, não é?
Ele ri baixinho e entrelaça nossos dedos.
— Então, Corb. Quer fazer parte da nossa família? Que tal oficializarmos as coisas?
Corbin e Jenara estreitam os olhos em nossa direção, a respiração presa. A casa fica mortalmente silenciosa. Não se pode ouvir nada além do sussurro de uns insetinhos — numa frequência com a qual somente eu estou sintonizada — e dos resmungos do Rábido no armário.
Jeb ergue minha mão e beija minha aliança de noivado.
— O que vocês dois precisam saber sobre Al? — pergunta ele à nossa plateia. — Aquele sanatório nunca teve a chance de curá-la. Veja só, você pode tirar a menina do País das Maravilhas, mas não pode tirar o País das Maravilhas da menina. — Minha mão se separa da dele enquanto ele recua para me dar espaço. — Mostre o que você tem, rainha-fada.
Abro meu sorriso mais majestoso. E ali, no meio do quarto com faixas cor-de-rosa, com minha melhor amiga e o amor da sua vida de olhos arregalados, abro minhas asas intraterrenas e confesso todas as minhas mentiras.
SEGUNDA MEMÓRIA: CONCHAS
Quatro anos antes...
PLEASANCE, TX., 29 DE JUN. — Dois moradores de Pleasance dados como desaparecidos há um mês, juntamente com outros dois que desapareceram na última quarta-feira, foram encontrados vivos na manhã de sábado, apenas com ferimentos superficiais, presos num túnel de mineração que desabou sob um parque condenado.
Outra moradora, irmã de um dos desaparecidos e amiga dos demais, disse suspeitar da localização das pessoas depois de receber uma dica com sua tábua Ouija, de acordo com o policial Riley Hughes.
“Normalmente, não dou muito valor às bobagens espirituais”, disse Hughes. “Mas a menina ajudou a nossa investigação durante todo o mês de busca por seu irmão e vizinhos. Ela insistiu para que a gente ao menos desse uma olhada. Como vários desabamentos ocorreram no lugar às vésperas da festa de formatura da Pleasance High, e considerando que esse era o último lugar onde os desaparecidos foram vistos, achamos que valia a pena. Fomos lá sem esperar encontrar nada. Ponto para as conversas fiadas.
— Al, você está brincando comigo? — A voz fina de Jenara tira minha atenção do artigo de jornal de quatro anos atrás. Ao meu lado no sofá, uma ornamentada garrafa de vidro cheia de pedras que peguei durante nosso “resgate” do Submundo. Esfrego as têmporas, tonta por causa da viagem pela estrada da memória.
Jen atravessa a porta correndo e a fecha atrás de si.
— Não acredito que você ainda não pôs nem sua meia-calça! O que você tem? Vinte e um anos e já mostrando sinais de senilidade? Talvez você precise de um pouco de ar.
Ela abre a janela atrás de mim. Uma brisa salgada entra, abrindo as cortinas azuis com estampa de estrela-do-mar sobre minha cabeça. Meus cabelos esvoaçam, as ondas platinadas tocando meus ombros nus e meu espartilho branco de renda.
Passo a mão na borda da minha calcinha também de renda, surpresa por estar só de roupa íntima. O que eu estava fazendo antes de me sentar? Primeiro, comi o bolinho de aniversário que minha mãe deixou ao lado do cartão no criado-mudo.
Como se animada por meus pensamentos, a fôrma de papel do bolinho voa até o chão com uma lufada de vento e chega até os pés descalços de Jen. Ela o pega e franze a testa para mim.
— Hummm?
— Bolinho da minha mãe. — Lambo os lábios, ainda sentindo o sabor da cobertura azul de mel e anis.
Jenara amassa o papel e o joga no lixo.
— Então isso é você desanimadinha depois da euforia do açúcar?
— Talvez? — Tento me lembrar do restante da tarde. Depois do meu lanche, peguei o roupão para me vestir. Ao mexer na minha mala em busca do colar novo que tomei emprestado de Jenara para hoje, fui distraída pelas lembranças que trouxe comigo. De certa forma, acabei no sofá sob a janela, com um caderno e uma garrafa na mão.
Estudei o artigo de jornal novamente. Isso sou mesmo eu ficando deprimida depois de comer um monte de açúcar ou é outra coisa?
Sinto-me tão estranha. Meu corpo e mente estão relaxados, mas meu sangue é o oposto. Ele corre veloz nas veias sob minha pele — corredeiras jorrando de milhares de afluentes.
— Vamos lá, zumbizinho, me mostre algum sinal de vida — provoca Jen. — O sol vai se pôr em uma hora e ainda temos de ajeitar seu cabelo e maquiagem. E, para sua informação, aquela mancha de cobertura nos seus lábios não conta como seu “algo azul”. Para isso é que serve o elástico. Como vamos tirar isso? — O olhar dela se volta para a garrafa de pedras perto da minha coxa. Ela a pega e balança diante de mim. — Inacreditável. O Jeb está lá com Corbin enchendo os pés de areia, caminhando pelo litoral para verificar cada detalhe. E você aí, nostálgica.
Jenara falou de outras coisas além dos detalhes do casamento. Ela teve de abandonar um desfile de moda em Nova York dois dias antes do previsto para chegar a tempo disso. Ela esteve em contato constante com sua sócia, e a linha de roupa delas está fazendo barulho. Tenho a sensação de que a carreira dela está prestes a decolar para valer. Tentamos planejar o casamento de acordo com a agenda dela, mas esta era a única semana disponível da casa de praia. Então chegamos a um acordo e escolhemos o final do desfile. Eu disse que ela não precisava vir, mas ela respondeu que morreria se perdesse.
Mesmo agora, com ela me atacando com seu olhar verde mais severo, sei que não há outro lugar onde ela preferisse estar. Ela é uma visão da suavidade com seu vestido comprido florido. Seus cabelos rosa estão presos no alto da cabeça num coque chique. Rosas-anãs azuis estão colocadas em espaços estratégicos, formando uma auréola. Poucas mechas rosa se curvam em seu pescoço.
— Você está perfeita — digo a ela, encantada.
Ela tenta conter o sorriso e revira os olhos.
— Queria poder dizer o mesmo de você.
— Corb já a viu? — Minha pergunta é retórica. Os dois estão juntos há anos e, agora que Corb quase terminou a faculdade de publicidade, ele planeja se mudar com ela para Nova York no fim do verão.
No mês passado, ele pediu “a mão dela em casamento”. Usando uma armadura de malha de metal medieval, ele veio ao nosso duplex numa carruagem puxada por cavalos. Jeb o ajudou a reformar um velho Chevy que encontraram num ferro-velho. Eles pegaram o chassi e tiraram tudo, transformando-o numa charrete leve o bastante para ser puxada por dois cavalos brancos que Corbin pegou emprestados de um amigo. Depois de acrescentar arreios firmes, de substituir os pneus por rodas de madeira e de pintar a carcaça com um branco brilhoso com uma faixa vermelha, eles tinham a carruagem texana perfeita. Quando Corbin estacionou diante da casa de Jen com três dúzias de rosas na mão e lhe pediu que fossem ver o pôr do sol, ela quase desmaiou.
Era antiquado e moderno e, ah, tão lindo.
Perdida em sua própria nostalgia, Jenara admira o anel de noivado em seu dedo. Seu sorriso desabrocha, juntamente com uma atraente vermelhidão no rosto.
— Meu noivo aprova minha mais recente criação. Mas você é quem está prestes a ficar sob os holofotes. — Ela joga a garrafa cheia de pedras na minha mala aberta e vai ao armário pegar meu vestido. Jeb e eu decidimos que as belas criações de Jenara adquiriram uma má reputação na formatura e mereciam aparecer numa lembrança boa.
Ao longo das últimas semanas, Jenara realizou um ótimo trabalho costurando tecidos e retalhos com apliques diversos — um deles ela encontrou num antiquário, então isso era meu “algo velho”. Quaisquer manchas foram disfarçadas com corante de flores seguido por um toque brilhante. Agora o vestido branco sem alcinhas parece novinho. Ou tão novo quanto um vestido de noiva vintage pode parecer depois de ser modificado para se assemelhar a um tecido recém-tirado do túmulo.
— Vamos, Al, depressa! — repreende-me Jenara, perdendo a paciência.
Eu resmungo algo como resposta.
Ela joga a meia-calça lilás acinzentada na minha direção e ela voa por sobre minha cabeça, cercando-me como uma nuvem perfumada.
— Vou preparar a maquiagem — avisa ela. Ouve-se um barulho quando ela coloca a bolsa de maquiagem na mesinha, ao lado do cartão de aniversário da mamãe. — Talvez removedor de esmalte funcione com seus lábios.
Torço o nariz.
— Eca... sério?
Ela dá de ombros.
— Situações de desespero exigem medidas nojentas. — Do outro lado da redinha cobrindo meu rosto, ela escolhe sombras, delineadores, pincéis e blush.
Meu corpo parece leve, como uma nuvem flutuando. Em parte é felicidade... em parte, nervosismo... e alguma coisa mais. Algo que nunca senti antes.
Ou será que já?
A pele ao redor dos meus olhos dói, assim como a pele em minhas omoplatas.
Risadas abafadas e passos são ouvidos através da parede fina da sala de estar. A casa de praia que meu pai alugou tem sete quartos, um loft e quatro banheiros e meio, mas ainda assim não é grande o bastante para nossos convidados. Não consigo nem imaginar como ela ficará cheia depois que todos chegarem.
Reunindo energia, afasto a meia-calça e guardo o artigo de jornal de novo no caderno de recortes. Sinto-me tentada a folhear as outras páginas. A olhar as imagens de nossas exposições de arte — pinturas de edição limitada que Jeb jamais conseguirá replicar e meus mosaicos de vidros coloridos —, juntamente com fotos tolas dos últimos quatro Halloweens, Natais, piqueniques de verão, guerras de bolas de neve e pegadinhas universitárias. Só uma última olhada em nosso tempo juntos como noivos, capturado entre camadas de filme de polipropileno, antes de darmos início ao capítulo seguinte num novo caderno de recortes, decorado com cetim branco e um colarzinho de pérolas.
Toda a minha pele se avermelha, pensando no que vem depois da cerimônia. Não foi fácil esperar nos últimos anos, mas a vida já era bem complicada, tendo de enfrentar a dor de Jeb por ter perdido sua habilidade artística, indo para a faculdade e equilibrando meus deveres reais no País das Maravilhas com nossa vida humana. Nunca parecia a hora certa, até agora. Nós nos ajustamos a nossos novos papéis, aprendemos a fazer concessões sendo honestos e sempre estivemos emocionalmente presentes um para o outro. E, depois do compromisso físico de hoje à noite, nosso elo será inquebrável.
Não há forma melhor de dar início à nossa nova vida juntos do que isso: os braços fortes dele segurando meu corpo nu enquanto acaricio as cicatrizes do seu peito com o dedo, curando suas feridas a um só toque.
— Do que é que você tá rindo, Al?
Levanto a cabeça, sorrindo, apesar de tentar me conter.
Jenara bufa.
— Você não vale nada hoje, sabia? Supere isso. — Ela tira o caderno da minha mão. — A maioria das damas de honra não precisa usar seus talentos como vidente para preparar a noiva. Você vai me pagar mais por isso, não é?
Ergo as pernas para ela poder me ajudar com a meia-calça.
— Claro. Dez mil vezes mais do que o salário que combinamos.
— Humm, dez mil vezes zero... Sabia que deveria ter pedido a um advogado que desse uma olhada no contrato. — Ela segura a roupa enquanto enfio o pé, depois segura minha mão para me tirar do sofá.
Ao ajeitar o elástico sob o espartilho na cintura — de modo que a combinação caia abaixa dos joelhos —, aquela dorzinha entre os ombros aumenta e vira uma sensação de queimação. Antes que eu perceba que são meus brotos de asa, eles se abrem: um branco opaco, brilhando com joias coloridas, ocupando o espaço como asas de uma borboleta recém-saída do casulo.
Eu grito.
Jenara perde o fôlego, os olhos arregalados como moedas.
— Al, o que é isso? Você não pode fazer isso agora!
— Eu... não quis fazer isso! — Meu grito reverbera ao nosso redor.
— Shh. — Ela fecha minha boca com a mão e olha para a parede fina. Como não ouvimos nada além do zumbido das conversas dos convidados na sala ao lado, ela tira a mão. — Certo... Você terá uma audiência dentro de uma hora. Recolha as asas.
Tento, mas as asas não se movem.
— Não está dando certo. — Tento mais uma vez. — Não consigo. — Meu coração bate forte.
A expressão de Jen parece ainda mais preocupada.
— Ah, claro. Você está brilhando. E seus olhos... sério que você não está fazendo isso de propósito?
Faço que não com a cabeça. Milhares de pontinhos de luz se refletem no rosto de Jenara e nas paredes amareladas de sol que nos cercam. Levo os dedos ao rosto, imaginando marcas negras como as listras de um tigre sob meus cílios inferiores, parecidas com as de Morfeu sem as joias.
— Minhas marcas... estão muito evidentes?
O olhar de Jenara está fixo ao meu.
— Não são apenas as marcas, Al. São suas íris. Elas estão... roxas.
— Roxas?
Jen faz que sim.
— E não é um tom sutil... é muito estranho.
Sinto um frio na barriga.
— Isso não pode estar acontecendo. — Meus cabelos começam a se levantar, uma dança provocativa de mágica.
— Merda! — exclama Jenara depois que algumas mechas a alcançam. — Isso é tipo uma gripe intraterrena ou coisa assim?
— Eu... eu não sei. — Com os dedos trêmulos, seguro as mechas e as prendo na nuca. — O que vamos fazer? — O pânico reveste minhas cordas vocais, deixando-me rouca, como se tivesse engolido uma lixa líquida.
Jenara esfrega as mãos.
— Bom, você pode prender o cabelo no alto e podemos dizer que fomos criativas com sua maquiagem. O véu vai esconder seus olhos durante a cerimônia. Depois, você pode dizer às pessoas que está fazendo experiências com lentes de contato. Mas as asas... Eu acho que é impossível disfarçá-las.
Não há espelho para eu ver o tamanho da minha imagem intraterrena, por motivos óbvios. Não queria nenhuma surpresa nas festividades de hoje, então optei pelo quarto menor pela ausência de espelho, confiando que Jen fizesse minha maquiagem e me tornasse apresentável para o casamento. O lado ruim de escolher este quarto é que não há tranca na porta, o que agora me deixa ainda mais vulnerável e acessível.
Maldita reflexão tardia.
A vermelhidão no rosto da minha dama de honra ganha um tom de ansiedade.
— Vou chamar sua mãe. — Ela começa a sair, mas para. — Só... fique aqui e cuide da porta. Tente se acalmar. Vamos dar um jeito nisso, sim? Nada vai estragar isso.
Faço que sim, mas apenas para ela ficar tranquila. Como isso pode não arruinar as coisas? Não posso encarar nossos convidados humanos com todas as minhas características sujas do País das Maravilhas expostas! Isso não é a noite da festa de formatura no Submundo. Ter asas numa praia não pode ser explicado com a mesma facilidade do que usá-las como fantasia sob luzes mortiças.
Depois que Jenara sai, coloco a cadeira sob a maçaneta e puxo a asa sobre meu ombro. As joias piscam numa confusão de cores, como as marcas oculares de Morfeu quando ele está ansioso ou perplexo. Há algum tempo, descobri que meu humor, como o dele, se mostra por meio das minhas joias. É algo que Morfeu mantinha para si mesmo e um dos motivos por que ele gosta de ter minhas asas à mostra... para ele poder saber o que estou sentindo.
Mas sou eu quem decide quando abri-las. Tenho lidado com meus aspectos intraterrenos tranquilamente desde que voltei ao reino humano. Nunca perdi o controle. Há alguma travessura em andamento aqui. E tudo começou com o bolinho azul com sabor de anis e mel.
Anis... um sabor surpreendentemente semelhante a alcaçuz. Cigarro de alcaçuz.
Ranjo os dentes.
— Morfeu.
Noite passada, antes de voltar dos meus sonhos, eu o abracei, algo que não faço com frequência. Estabelecemos limites claros para o contato físico, a fim de honrar minha vida humana. Mas ele andava mal-humorado com meus súditos, o que raramente acontece, e sabia que ele estava escondendo seus sentimentos quanto ao meu casamento. Então quis consolá-lo, quis garantir que a paciência dele não passasse despercebida nem desvalorizada.
Ele me abraçou de volta por uns cinco segundos, depois me afastou. Ao olhar para mim, sua expressão era algo bem distante da tristeza ou preocupação. Era o exato oposto, o que nunca é um bom sinal.
— Decidi dar a você e a seu noivo um presente amanhã, frutinha — disse ele, abrindo a mão. Uma esfera azulada ganhou vida na palma de sua mão e depois alçou voo, pairando entre nós. — Como Jebediah abdicou de sua capacidade de sonhar com o País das Maravilhas, você pode compartilhar seus sonhos em segredo na sua lua de mel. Você não virá ao País das Maravilhas esta noite. Em vez disso, Jebediah pode entrar com você e seus sonhos pertencerão somente a ele. Mas somente se ele se provar digno de se casar com a rainha-fada.
Antes de poder pegar a luz azulada, Morfeu me expulsou do meu sonho.
Minhas mãos agarram a meia-calça cobrindo minhas coxas. Quando acordei neste quarto, pela manhã, pensei em contar a Jeb as palavras enigmáticas de Morfeu, mas não estava com meu celular porque Jenara se esforçou ao máximo para manter seu irmão distante de mim até a cerimônia.
Não há tempo a perder. Ele precisa ser avisado de que Morfeu criou outro teste para mim. Ou melhor, para ele.
Vou até a mesa para dar uma segunda olhada no cartão de aniversário da minha mãe, manobrando as asas pela mobília arranjada em ângulos estranhos no quarto pequeno demais. Ergo o cartão, estudando-o cuidadosamente. Para além da corujinha bonita na capa — sutil — e da inscrição “Queeeeem faz aniversário hoje?” dentro, há a assinatura da mamãe impressa. Ela sempre assina cartões com letra cursiva. Por que não tinha percebido isso? Ou o fato de o papai não ter assinado também? Pensando bem, eu deveria ter percebido tudo isso, porque não era para ter abaixado a guarda. Morfeu me treinou melhor do que isso.
Mas ele sabia que eu estaria distraída com meu cérebro focado no casamento. Ele contava com isso. E, para piorar as coisas, não havia insetos por perto para me alertar. A casa de praia foi fumigada há uma semana por causa de uma infestação de formigas e o silêncio era ensurdecedor desde que chegamos. Suspeito que ele tenha o dedo nisso também. Ainda assim, ele está cumprindo sua promessa de não se colocar entre mim e Jeb porque conseguiu fazer com que minhas características intraterrenas é que causassem todos os problemas.
Estou quase impressionada, mas isso não é nada perto da ansiedade revirando minhas entranhas. Como pude ser tão descuidada?
— Maldita mariposa inteligente — xingo, esperando ouvir um eco da risada arrogante na minha mente. Como não ouço nada, fico séria e rasgo o cartão ao meio, com raiva por não encontrar respostas ali. — Certo, você me pegou. Mas fique sabendo que você o está subestimando — digo em voz alta, na esperança de que Morfeu ao menos esteja ouvindo. Minha voz soa firme e confiante, apesar das lágrimas de nervosismo queimando em meus olhos. — Jeb vai encontrar uma forma de resolver isso...
— Tem razão, Al. — A voz grossa e determinada de Jeb me atinge por trás, uma corrente elétrica iluminando todas as minhas terminações nervosas.
Viro-me para ver uma rosa branca pela porta entreaberta.
— Deixe-me entrar.
Quase tropeçando nas minhas asas, corro e puxo a cadeira para o meio do quarto, e depois recuo para lhe dar espaço.
Ele entra — pingando no que restou do seu smoking de formatura — e fecha a porta. Ele se apoia nela e me encara. Areia e gotas de água brilham em seus braços, onde ele enrolou as mangas da camisa até os cotovelos. A camisa semiabotoada expõe seu peito reluzente. As calças azul-marinho estão enroladas também até o meio da canela. Ele deve ter deixado o paletó azul de veludo lá fora, pendurado para secar.
— Jen tentou me contar sobre seus olhos — murmura ele antes de eu poder perguntar o que aconteceu às roupas dele. — Mas não há paleta de artista, não há comparação neste mundo para esta cor. Al, você está tão linda.
Estava pensando o mesmo que ele.
— E você está tão molhado — digo, estúpida. É difícil pensar em meio à luz amena que reflete sua pele cor de oliva, o labret prateado e os rebeldes cachos escuros pingando água por sua testa e seu nariz.
Ele não responde, ocupado demais em me analisar com seu olhar profundo e úmido. Se Jenara estivesse aqui, ela insistiria para eu cobrir meu espartilho e calcinha. Não, ela insistiria para eu expulsá-lo. Mas ficar longe dele desde o jantar da noite passada já era muito tempo. Até mesmo a cadeira entre nós dois parece uma montanha. Eu deveria movê-la, mas ele me deixou paralisada. Seu olhar percorre todo o meu corpo — um carinho mental tão íntimo e completo quanto um carinho real seria.
— Talvez a gente não devesse ter escolhido um casamento na praia — provoco, tentando conter minha imaginação fértil.
O sorriso sensual resultante de Jeb revela seu incisivo torto que espero que nossos futuros filhos e filhas herdem.
— Digo, levando em conta nossas experiências passadas com enormes corpos de água.
Eu rio.
Ele ri também, mas então fica sério.
— Nós nos reencontramos numa praia em Qualquer Outro Lugar. Você me fez uma promessa lá. Faz sentido eu lhe fazer uma promessa numa praia também. Não importa o que aconteça antes ou durante nosso casamento. Não importa que tipo de dificuldades Morfeu pôs em seu caminho hoje, tudo isso vale a pena. Nós valemos a pena. E vamos provar isso para ele.
Nunca o vi tão confiante ou... enérgico.
— Espere aí, você... Você está gostando disso? — Esboço um sorriso hesitante.
Ele dá de ombros e cheira a rosa branca na mão.
— Gosto de um desafio.
— Morfeu vai odiar que não pode provocá-lo.
— Psssh. Nós dois sabemos que ele adora quando eu aceito o desafio.
Balanço a cabeça, sorrindo. É um consolo estranho perceber como eles se conhecem e se compreendem bem hoje em dia.
— Então foi ele quem o fez cair na água?
Jeb obriga seu olhar a subir do meu corpo seminu para meu rosto.
— Bom, tecnicamente não foi ele. Ele está cumprindo a promessa de ficar longe do nosso mundo. Corb estava arrumando a almofadinha de carregar as alianças quando algo mordeu seu dedão do pé e ele derrubou as alianças. Uma lagosta de pedra surgiu na areia, as pegou e desapareceu nas ondas.
— Uma lagosta de pedra de verdade? Como as de Qualquer Outro Lugar?
Jeb enfia o cabo da rosa no bolso, então segura a camisa pela cintura e começa a desabotoá-la completamente.
— Sim. Pintei algumas para o País das Maravilhas antes de irmos embora, quando reinventei as paisagens. Morfeu as pediu. Não há dúvida de que foi ele quem mandou aquela lagosta de pedra para cá.
É difícil acompanhar a conversa porque só consigo ver as roupas molhadas grudadas no corpo musculoso de Jeb a cada movimento.
— Então... você mergulhou no oceano para recuperar as alianças?
— Tentei, mas não consegui pegar a ladra. — Ele tira o tecido ensopado dos ombros e braços, revelando uma barriga de tanquinho molhada e gotículas presas nos pelos de seu peito. — Pedi à sua mãe que entrasse em contato com a Marfim pelo espelho do quarto dela. Ela tinha uma flauta mágica no castelo. Eu a vi lá. Descobri que o instrumento funciona nos moluscos do nosso mundo também. Eles trazem as lagostas até a praia. Os anéis agora estão seguros. Corb vai manter a almofada com ele até a cerimônia.
Penso nos moluscos que conhecemos no País das Maravilhas na nossa primeira visita... como toquei uma flauta que os convocava e lhes dava ordens. Como, num só movimento, eles vieram nos resgatar quando estávamos sendo perseguidos por um exército e levaram nossos perseguidores para longe, numa confusão de conchas batendo-se umas nas outras. Sou ainda mais grata agora do que antes. Só espero que ninguém tenha visto nada.
— Não se preocupe com os convidados — tranquiliza Jeb, como se lesse meus pensamentos. — Seu pai manteve todos ocupados. Ele os levou por um passeio ao outro lado da praia, onde os barcos ficam ancorados.
O alívio toma conta de mim. Mas por pouco tempo, considerando que todos vão me ver em breve.
— Não devemos falar do elefante voador na sala? — pergunto, batendo as asas.
Jeb joga a camisa molhada no braço da cadeira de madeira. Seu pomo de adão se move quando ele engole em seco lentamente.
— Você se refere ao fato de você ser a mulher mais radiante e mágica que já vi?
Mulher... Acho que ele nunca me chamou assim. Seu olhar é tão intenso que minhas pernas fraquejam. Aproximo-me da cama, precisando de apoio contra elas.
Seu olhar se detém nos meus lábios azuis.
Eu os esfrego.
— Foi uma bobagem. Comi um bolinho que veio do nada... Sei que não devo comer nada estranho.
— Não. Morfeu teria encontrado uma maneira de fazer isso com ou sem você comendo o bolinho. Ele está deixando claro uma coisa. Provei meu valor como marido do seu lado humano depois de quase morrer por você mais de uma vez. Mas ele quer que eu seja digno do seu lado intraterreno também.
Fico boquiaberta
— Foi o que ele disse no meu sonho!
Jeb tira a rosa do bolso e arranca uma das pétalas.
— Compartilhei da mágica dele uma vez. Sei como ele pensa. Ele provou seu amor por seu lado humano ao não deixar a Marfim coroá-la e destruí-la. Então ele quer que eu prove meu valor como ele provou o dele. Não tenho problemas com isso. Será uma honra me casar com você hoje, diante de Deus e de todos, com suas asas e outros atributos intraterrenos à mostra.
Por mais sinceros e admiráveis que sejam os sentimentos dele, não consigo compreender a lógica de tudo.
— Mas isso... — Abro as asas às minhas costas e elas lançam sombras sobre nós dois. — Não sei como encarar uma plateia de humanos sem me entregar. É impossível.
— Nada é impossível. Você me ensinou isso há muito tempo. Pelo lado bom, sabemos que o efeito do bolinho é temporário. Morfeu se importa demais com seu coração para colocá-lo em risco arruinando sua capacidade de viver uma vida de realizações aqui.
Mordisco meu polegar, tomando o cuidado para não estragar o meticuloso trabalho de manicure de Jenara.
— Temporário pode ser qualquer coisa entre algumas horas e todo um dia.
— Verdade. O efeito vai permanecer ao menos durante a cerimônia. Mas podemos lidar com isso. Só deixe que eu me preocupe com o que todos pensam ou veem. Vou dar um jeito nisso com criatividade humana e um toque de mágica.
Um toque de mágica.
— Espere um pouco... você não vai usar seu desejo, não é?
— Não. Prometo a você que eu saberei a hora certa de usá-lo. Sua mãe e Corb estão levando os portais-espelhos a algumas lojas de fantasias.
— Para quê?
— Surpresa. — Ele olha para a porta atrás e depois se volta para mim. — Tenho que sair antes que a Jen volte. Eu deveria apenas deixar minha camisa pendurada na maçaneta para ela limpar as manchas e passá-la. Ela vai ficar louca se souber que vi você antes do casamento... mas queria lhe dar os parabéns pelo aniversário. — Ele estende a rosa, um pouco distante demais para eu pegá-la.
— Chegue mais perto — peço.
Sua mandíbula bem barbeada treme.
— Já foi ruim o bastante tê-la visto. Vai saber a confusão que vou provocar se tocar em você.
— Vamos descobrir.
A expressão dele ganha força e desejo. Ele joga a cadeira para o lado e se aproxima de mim.
As lufadas de vento carregam o perfume dele misturado ao da rosa. Ele para a poucos centímetros de distância, a mão livre tamborilando ao lado do corpo, como se pensasse nas alternativas. Uma tensão doce e torturante se estabelece entre nós dois — como a calmaria antes de uma tempestade de raios. Três mechas de cabelo se soltam do nó na minha nuca e o envolvem junto com a rosa. Uma mecha traz a rosa até mim e eu a pego com a mão direita.
Jeb observa, encantado.
Tento conter as outras mechas que se prendem nele, mas ele segura meus pulsos e leva minhas mãos à boca.
— Deixe estar — murmura ele contra minhas cicatrizes e leva a mão à minha nuca para soltar o restante das mechas. — Você sabe que eu a amo assim. — Sua voz arranha, áspera e rouca.
Meus cabelos nos cercam, furiosos para se libertarem. Eles dão a volta nos bíceps, ombros e cintura dele. Com força e cuidado, unem nossos corpos seminus, e os lábios dele encontram os meus. Ele tem sabor de oceano, cidra e chocolate. Ele andou experimentando a comida da festa.
Solto a rosa e passo as mãos em seu peito. A pele dele está molhada e quente, e seus músculos se contraem.
— Isso vale qualquer azar — sussurro contra sua boca cheia e macia, retribuindo seus beijos quentes.
— Nunca tivemos sorte mesmo — sussurra ele de volta, nos derrubando na cama, mas tomando cuidado para não esmagar minhas asas. — Mas somos muito bons em fazermos nossa sorte.
Ele me deita de costas, o peso dele me prendendo na mais deliciosa das armadilhas. Seu joelho abre caminho entre minhas pernas, as calças molhadas esbarrando em minha calcinha. Uma brisa sopra sobre nós dois, gelada em minha pele nua. É tão estranho queimar como um forno, mas ainda assim ficar arrepiada.
As mãos de Jeb pairam sobre minhas curvas — um território íntimo que ele conhece, mas que ainda tem de explorar completamente.
— Você está com frio — diz ele, enquanto sua boca avança pela carne gelada do meu pescoço.
Sinto meus ossos se liquefazendo e meu sangue virando lava.
— Longe disso — respondo, ofegante.
Com os olhos cheios de desejo, ele vira para o lado, me soltando. Põe a mão nas minhas costas e puxa um canto do lençol lavanda e azul-turquesa, cobrindo meu corpo e as asas e separando nossa pele.
Eu gemo.
— Jeb. Não quero nada nos separando.
Seus dedos contornam meus lábios.
— Depois da cerimônia, não haverá nada. Você será minha hoje à noite e será como sonhamos.
Meu corpo se incendeia, faíscas de ansiedade iluminando todas as partes do meu corpo que ele já tocou. Estou prestes a lhe dizer que será ainda melhor do que imaginamos — porque ele pode literalmente compartilhar meus sonhos se adiarmos o casamento —, quando a porta se abre.
— Ah, o que é isso? — grita Jenara.
Jeb se levanta apressadamente e me lança um sorriso tímido, enquanto sua irmã o expulsa do quarto.
— Eles voltaram? Eles encontraram tudo? — pergunta ele antes de ela lhe dar um empurrão.
Jenara faz uma cara feia.
— Sim, sim. Não que isso importe, agora que você provocou o destino ao vê-la.
Mais uma vez, Jeb põe a cabeça para dentro do quarto e ri para mim.
— Como se o destino tivesse algo a ver com a rainha-fada.
Sorrio de volta, ainda saboreando os beijos dele.
— Me encontra na praia ao pôr do sol? — pergunta ele.
— Nem mesmo um ataque de pássaros Jubjub me impediria — respondo.
Ele ri e desaparece, me deixando com uma dama de honra mal-humorada, mil perguntas e um coração iluminado.
CONTINUA
Capítulo 2
Auge
PRIMEIRA MEMÓRIA: PEDRAS
Sessenta e três anos antes...
É manhã no País das Maravilhas e Morfeu está me acompanhando de volta ao castelo da Marfim, onde minha família e Jeb esperam para passar comigo pelo portal, de modo que eu possa viver o restante da minha vida humana.
Meu acompanhante está pensativo e quieto, suas feições duras como pedra. Não trocamos nenhuma palavra durante o trajeto encantado. O som das asas da mariposa criando uma trilha no céu só intensifica o silêncio constrangido.
Sinto um aperto no peito, como se meu coração estivesse tentando alcançá-lo. Sei que, se olhasse sob o tecido sedoso do meu vestido preto e sob o paletó que ele insistiu em usar para se aquecer, o órgão estaria brilhando em tom violeta. Ontem mesmo, meu coração estava dividido ao meio — os lados humano e interior se matando — por causa da maldição que a Rainha Vermelha jogou sobre mim. Jeb e Morfeu intervieram, combinaram suas mágicas e me curaram com suturas encantadas. Eles salvaram minha vida com o amor. Meu corpo entende isso de alguma forma primitiva e eu jamais esquecerei. Meu coração está ligado aos dois agora, formando um elo que vai além de qualquer explicação humana.
Contudo, mesmo sem esse elo, eu era capaz de decifrar as joias no rosto de Morfeu e de saber no que ele está pensando. Acordei mais cedo em sua cama e o encontrei sentado na beirada do colchão, acariciando os cabelos nas minhas têmporas. Antes mesmo de poder lhe dar bom-dia, ele me beijou na testa e se afastou, dizendo que o café da manhã estava pronto.
Passamos a noite juntos, mas nada físico aconteceu entre nós. Nada acontecerá por muitos anos. Não até eu ter vivido minha vida humana com Jeb.
Deixei minha posição sobre fidelidade bem clara; mesmo assim, Morfeu deixou claro que não vai facilitar as coisas. Apesar de seus desafios penderem como fios soltos, o respeito que estabelecemos está firmemente junto a mim. Sei que ele jamais me pediria que traísse os humanos que amo — porque isso é parte de quem sou —, por mais que ele sofra ao recuar e me deixar em paz.
Depois de visitar as paisagens do País das Maravilhas juntos, noite passada, eu o entendo como nunca o entendi antes. E é o mesmo para ele, porque assim que chegamos e ele segura minha mão para eu descer da carruagem, não hesita em me acompanhar até a entrada de gelo onde Jeb me aguarda no topo da escadaria coberta de cristais de neve.
Prendo a respiração ao vê-lo. Ele está usando um smoking azul-marinho completo, com uma camisa violeta que complementa seus cabelos ondulados escuros e o tom oliva de sua pele. A mesma camisa transformada em cueca em Qualquer Outro Lugar.
O smoking está exatamente como na noite da festa de formatura: teias falsas, listras sujas e rasgões colocados estrategicamente no paletó e nas calças. Por um momento, sou levada de volta ao Submundo, onde o vi pela primeira vez esperando por nós na noite de formatura na entrada dos funcionários, e sua expressão magoada diante da minha traição. Jamais provocarei um olhar daqueles novamente.
Estranho. Da última vez que vi o smoking, foi com o dublê de Jeb em Qualquer Outro Lugar. Quando CC caiu na piscina de medos, as roupas se desintegraram. Jeb deve tê-las consertado antes de desistir do seu talento para sempre.
Talvez tenha sido sentimentalismo, porque a irmã dele é quem fez o smoking, ou provavelmente porque ele queria estar usando algo conhecido quando passássemos pelo portal e voltássemos à vida de sua família.
Ainda assim, mesmo usando roupas do reino humano, ele parece triste e deslocado ao esperar que eu suba as escadas. Ficar ali de pé à luz do dia, vendo as belas paisagens que ele criou neste mundo, deve ter sido horrível. Desistir de sua musa deve ser a coisa mais sofrida que ele já fez. E ele fez isso sem hesitar, para ajudar a equilibrar o País das Maravilhas... para alimentar as almas insaciáveis da Irmã Dois com seus sonhos artísticos.
Não tenho certeza se ele pensou nas consequências desse sacrifício. Mas estarei aqui para ajudá-lo a passar por isso.
Enquanto Morfeu e eu subimos a escada a caminho de Jeb, passamos por seres intraterrenos que vieram acompanhar minha partida. Alguns deles são inesperados.
Hubert, decorado e lustrado como um ovo Fabergé numa vitrine de Páscoa, estende a pata de louva-a-deus para cumprimentar Morfeu.
— Ainda é mais fácil para mim odiá-la — diz o homem-ovo para Morfeu, como se eu não estivesse por perto. — Rainha sabe-tudo. Nada de educação ou cultura naquela cabeçorra dela. Ainda assim ela conseguiu provar que eu estava errado. Tinha tanta certeza de que ela acabaria num caixão. Que decepção. — Apesar do sarcasmo, seus olhos amarelados refletiam admiração. Para minha surpresa, ele me oferece, por toda a vida, um suprimento de ovos beneditinos em seu ilustre hotel mágico, se um dia eu o visitasse.
Depois, cumprimentamos os estranhos seres intraterrenos clandestinos que ficaram presos no trem da memória três dias antes. Todos fazem reverência e me agradecem por abrir a toca do coelho para eles poderem voltar para casa. Meu nariz coça quase a ponto de me fazer espirrar quando passamos pelos coelhinhos de pó.
Bill, o Lagarto, nos para no meio do caminho. Ele estende dois trajes de disfarce que pedi a Grenadine que o devolvesse.
— Desculpe por ter perdido um... por tê-los roubado, antes de mais nada — sussurro, envergonhada.
Ele balança a cabeça reptiliana e mostra a língua comprida.
— Sou um súdito da Corte Vermelha. Assim, eles pertencem a você, Majestade. Seus talentos como ladra perdem apenas para o uso da sua mágica. Você os usará agora melhor do que eu jamais os usaria.
Impressionada, coloco a mão no peito. Sob meu vestido, o colar com a chave que abre meu reino pressiona minha pele.
— Mesmo?
Bill estende os trajes.
Olho para Morfeu.
Ele sorri e faz que sim, me encorajando a pegar o tecido transparente. Eu o guardo debaixo do braço e agradeço ao lagarto, que se curva para nos deixar passar. O Rábido está esperando por nós no degrau de cima — usando casacão e calças vermelhas. Ele abre os braços para levar os trajes para mim. Meu conselheiro cavalheiro. Ao subirmos, acaricio a pele macia entre seus chifres.
Guardas elfos se enfileiram na segunda metade da escada, dos dois lados. Eles sacam as espadas e tocam as pontas delas no topo das cabeças, formando um corredor prateado brilhante.
Jeb me aguarda no fim, tenso como se o fato de não poder correr até mim o estivesse matando.
Enquanto Morfeu e eu subimos a escada sob as sombras das espadas, meneio a cabeça para Jeb, num sinal de reconhecimento. As bolsas sob seus expressivos olhos verdes provam a falta de sono. As doze horas que passamos separados devem ter sido uma tortura. Por mais forte que ele estivesse quando demos boa-noite, é óbvio que ele temia que fossem despedidas de verdade. Que eu decidisse passar meu futuro no reino humano sozinha, sem ele.
Não posso estar no mesmo mundo que ele todos os dias sem tê-lo na minha vida. Nós nos amamos. Nós dois queremos a mesma coisa. Vamos dividir esses sonhos e envelhecer juntos. Uma vida mortal é preciosa e curta em comparação à eternidade. Ela deve ser vivida e nunca desperdiçada. Algo que Morfeu agora entende como nunca antes, senão não estaria me deixando partir sem lutar.
Sinto o rosto adormecer, menos pelo frio e mais pela situação insuportavelmente incômoda na qual coloquei os dois. Eu me lembro de que esta é a pior parte... que, depois que eu passar pelo portal e entrar no reino humano, minhas duas vidas vão se misturar e ao mesmo tempo jamais se cruzarão, a não ser que seja necessário à segurança ou ao bem-estar de alguém. Foi com o que concordamos.
Uma cama de gelo se gruda na sola das minhas botas assim que subo o último degrau. Os cavaleiros elfos nos saúdam e guardam as espadas nas bainhas de couro. O sangue que lhes decora os rostos e têmporas brilha como fruta contra o cenário branco que os cerca. Batendo os calcanhares, eles descem as escadas para cercar o castelo e assumir seus postos.
Franzindo a testa, Morfeu oferece minha mão a Jeb. É um gesto estranho, grandioso e cheio de dignidade, como se ele caminhasse comigo pela nave e me entregasse em casamento. De certa forma, é. Durante uma vida humana.
Suas asas farfalham quando Jeb segura minha mão, um espasmo involuntário. Ele está lutando para não pegar minha mão de volta.
— Você conhece o protocolo... se algo acontecer ao seu corpo no seu mundo, você ou Alison devem entrar em contato comigo imediatamente. O espírito de Alyssa deve ser protegido para sobreviver.
Jeb faz que sim com a cabeça.
— Entendi. — A resposta dele é sucinta e seu tom de voz, controlado, mas a preocupação em sua expressão o entrega. É algo em que não gostamos de pensar, algo que esperamos que nunca tenha de ser resolvido.
O olhar rosa do Rábido se vira para mim, seu rosto branco entusiasmado. Eu o mando porta afora para resgatá-lo de ter de tratar de assunto tão mórbido.
Morfeu espera pelo toque dos ossos para desaparecer dentro do castelo, depois pega um par de luvas do bolso, colocando-as na mão.
— E acho que é desnecessário lhe dizer para tratá-la como uma rainha — resmunga ele para Jeb.
Jeb entrelaça nossos dedos.
— Assim como é perda de tempo lhe pedir que abandone as táticas de sedução nos sonhos dela.
— É ciúme o que ouço em sua voz, belo e falso elfo? Nunca tema. Ainda pensarei nela todos os dias, enquanto ela estiver com você.
— Prefiro que você pense em mim todas as noites, quando ela estiver com você. — Jeb me ajuda a tirar dos ombros o casaco de Morfeu, substituindo-o pelo paletó do seu smoking, ainda quente do calor do seu corpo. — Enviarei uma coruja como lembrete. — Ele devolve o casaco a Morfeu.
Morfeu pega o casaco e o dobra no braço, alisando-o. Ele ri uma risada triste e vazia.
— Vou sentir falta das suas tentativas equivocadas de fazer trocadilhos.
Jeb abre um sorriso forçado.
— Não tanto quanto eu sentirei falta de sua condescendência pomposa.
Eles se encaram, uma mistura de distração e comedimento em suas expressões. Um respeito de má vontade une a tensão — uma ligação que aumentou sem eles perceberem ou encorajarem, durante o mês que eles passaram juntos em Qualquer Outro Lugar.
— Vocês dois querem ficar sozinhos? — pergunto, desesperada para que ponham um fim ao estranho diálogo.
Morfeu estreita os olhos.
— Eu a verei hoje à noite, Alyssa. E, a partir de agora, quando você estiver comigo, espero que sua mente seja como era na nossa infância. Atenta às questões do País das Maravilhas, e não à confusão do reino mortal. Lide com as coisas daqui para que elas não sejam uma distração quando você voltar às suas obrigações reais. Tem certeza de que não precisa da minha ajuda para limpar todas as bagunças? Tenho certa prática no manejo de humanos. — A risadinha arrogante que ele lança para Jeb está cheia de insinuações.
— Entendemos, Mariposinha — diz Jeb. — Entendo as sensibilidades inocentes deles melhor do que você. — Ele arqueia a sobrancelha, expressando sua própria mensagem cifrada.
Ouve-se um baque abafado na enorme porta cristalizada. Jeb e eu olhamos para trás, para o ponto de onde nossos pais estão espiando. Ambos parecem belos e descansados, mas também ansiosos.
Meneio a cabeça num cumprimento e eles acenam e então recuam para dar privacidade a nós três.
Jeb se vira, seu braço me segurando pela cintura.
— Você vem nos visitar, Morfeu?
Morfeu encara enfaticamente Jeb. Suas marcas de joias brilham numa paleta pastel, como um pôr do sol reluzente. A resolução pisca dentro de seu olhar carregado.
— Não quero chegar nem perto do portal. Já tive o bastante do seu reino estagnado para esta vida e um pouco mais.
— Espero que você esteja falando sério — diz Jeb. A frase não é ferina, só sincera.
— Ah, com certeza falo. Exceto pela parte preciosa do seu mundo, que um dia pertencerá somente a mim. — Morfeu ergue o chapéu na minha direção e as mariposas cinza-azuladas na borda tremem como se fizessem reverência. Ele se vira e desce as escadas, as asas se arrastando pela neve como uma capa, e parte de mim sofre com uma tristeza profunda.
Um vento ganha força, gerando um redemoinho de neve.
É melhor estarmos saindo pelo portal da Marfim. Esta partida sofrida seria acrescida dos rostos de todos os meus súditos me olhando. Noite passada, ao visitar o Castelo Vermelho, optei por não me despedir deles. Eu me sentiria fadada demais e de certa forma estranha. Consolo-me em saber que eu verei a eles e Morfeu em meus sonhos.
Depois que a carruagem movida a mariposas decola, Jeb se vira para me encarar. Ele leva minha mão à boca e acaricia os nós dos dedos. Seu olhar intenso passa por todos os meus traços, dos olhos ao nariz e lábios, como se estudasse uma pintura novamente.
O silêncio revira meu estômago.
— Você vai perguntar?
— Perguntar o quê? — diz ele contra a minha mão.
— Se algo aconteceu. — Meu tempo com Morfeu parece algo privado e secreto, mas se Jeb, para reaver a calma, precisar ouvir sobre o que conversamos e os lugares que visitamos, me abrirei e serei honesta.
Jeb entrelaça nossos dedos novamente.
— Você segurou minha mão hoje e está ao meu lado. Isso me diz tudo o que preciso saber. Você é uma rainha e tem responsabilidades. — A admiração por trás de suas palavras me surpreende, mas não deveria. Não levando em conta os laços emocionais dele com meu mundo. — Não preciso saber de tudo sempre que você volta. Você me diria se algo nos afetasse ou afetasse sua vida.
Sorrio, surpresa com a fé dele.
— Diria. Direi. E obrigada.
Ele cuidadosamente segura os cabelos à minha nuca e junta nossas testas.
— Eu é que agradeço. — Sua voz, grossa e rouca de emoção, forma uma névoa entre nós. — Obrigado por voltar para mim.
Acaricio seu rosto e a pouca barba em seu queixo.
— Certo, não vou me sentir como se você precisasse de uma atualização sempre. Mas, por favor, não pense que você precisa agradecer todas as manhãs em que eu acordar ao seu lado. Quero que sejamos normais.
— Normais. — Ele recua e ri, as covinhas finalmente aparecendo. — Isso vindo de uma menina que ganhou asas e que me deu um colossal chá de cueca enquanto surfávamos nas areias do País das Maravilhas. Quando é que isso foi normal, hein?
Bufo, lembrando-me de que não podia carregá-lo pelo precipício e tive de deixá-lo para trás, que, por mais que ele estivesse com tanto medo quanto eu, ele me fez rir e me deu forças para que eu fizesse o que julgava impossível. Como agora.
O sorriso desaparece aos poucos, fazendo seu piercing nos lábios brilhar à luz. Eu o toco, acariciando o metal quente, de modo que seu bigode pinica meu dedo.
Esse ato íntimo e sensual me atinge com uma verdade quase que inconcebível: não há nada se colocando entre nós dois agora. Nossa vida juntos começará hoje, assim que cruzarmos a fronteira. Estou ao mesmo tempo feliz e emocionada.
— Estou pronta para minha aliança — consigo dizer em meio ao nó na garganta.
Sua expressão ganha sobriedade. Tirando a corrente por baixo da camisa, ele a passa pela cabeça e tira o anel. Com os olhos nos meus, ele coloca o anel de prata na minha mão direita, onde ele permanecerá até que ele o coloque na minha mão esquerda depois de declararmos nossos votos maritais. Os diamantes brilham — um coração alado — e meu coração parece bater asas como se pudesse voar.
O anel se encaixa perfeitamente ao meu dedo e parece um cartão de boas-vindas.
— Você sempre foi minha segurança — sussurra Jeb, colocando o polegar na covinha do meu queixo e me puxando para um beijo carinhoso e doce. Passo a mão pelos cabelos dele e o saboreio, ele sem perfume ou tinta ou terebintina. Só ele. Humano, masculino. Jebediah Holt.
Eu poderia me afogar na doçura da simplicidade.
Com nossos peitos unidos, meu coração costurado brilha e cantarola, tentando diminuir o espaço entre nós. Seu corpo fica tenso, como se ele sentisse a atração.
Ele interrompe o beijo e segura minha cabeça contra seu corpo, a barba por fazer em seu rosto arranhando minha têmpora.
— Tenho algo para lhe mostrar. — Seus lábios acariciam minha orelha e me aquecem toda. — Quis esperar até que estivéssemos juntos. Até que estivéssemos sozinhos. Mas acho que você precisa ver agora. — Ele pega algo do bolso e revela o que parece uma bolinha de gude, apesar de ser macia como uma pérola de banho.
— Um desejo? — Enxugo as lágrimas do meu rosto com o dorso da mão, surpresa. — Como? Quando?
— Noite passada, na festa da Marfim, depois da nossa dança lenta. Um furão me puxou... lambeu meu rosto para me agradecer pelo que fiz pelo País das Maravilhas.
— Ah, meu Deus. Então foi por isso que você saiu mais cedo?
Ele rola a bolinha na palma da mão.
— Estava prestes a me acabar de chorar. — Ele segura a lágrima brilhante contra a luz. — Não poderia permitir que a Rainha Vermelha me visse berrar como uma menininha.
Solto uma risada inesperada, alheia em meio à confusão inesperada de emoções.
Jeb franze a testa, pensativo.
— Podemos usar isso para nos ajudar a arrumar as coisas no reino humano.
Meu sorriso de felicidade desaparece.
— Não. Este desejo só pode ser usado para você.
— Fiquei envolvida com Morfeu por um mês. A única coisa que aprendi é que a mágica é flexível. É tudo uma questão de estilo.
Balanço a cabeça e cubro a mão dele, escondendo sua lágrima.
— Mágica é preciosa. Você tem de guardar isso, Jeb. Você pode desejar tantas coisas! — Paro, porque nós dois sabemos que há duas coisas monumentais que não podemos pedir. Ele não pode recuperar sua musa sem desequilibrar o País das Maravilhas de novo. E não pode pedir para vivermos para sempre. A mágica não mudará quem se é por dentro. Ele optou por perder sua imortalidade abdicando dos poderes da Vermelha. Ele é mortal e não há como mudar isso agora. — Jeb, não desperdice o poder. Guarde para algo importante.
Ele fica mais sombrio e sei que já esteve enfrentando os mesmos pensamentos. Ele guarda o desejo no bolso e trava a mandíbula.
Antes que possamos dizer algo, as portas do castelo se abrem e a mamãe e o papai surgem. Fico chocada ao vê-la usando o mesmo vestido de costas expostas usado na festa de formatura. Apesar de o chiffon da saia e as mangas estarem avariados por causa da luta dela com o coveiro de oito patas do País das Maravilhas, o vestido ainda está intacto.
Franzo a testa, pensando em tudo.
— Espere aí. — Aponto para ela e para Jeb. — Então... vocês estão usando as mesmas roupas que usavam quando desapareceram. Isso é um plano?
— Sim. Jeb pensou nisso — responde a mamãe. — Ainda precisamos pensar nos detalhes. Mas primeiro... — Ela e o papai me puxam para um abraço.
Depois de um abraço longo e apertado, celebramos as notícias. O papai brinca com Jeb, dizendo que ele quase teve de vender um rim para comprar o anel de noivado da mamãe, no que esta lhe dá uma cutucada, fazendo-o soltar um ganido. E então ela segura cuidadosamente minha mão direita para admirar meu dedo anelar.
Ela olha meu rosto. Sei o que ela está vendo: a mesma ansiedade pela vida humana que ela sentiu com o papai depois de salvá-lo da Irmã Dois. O sorriso dela é tão cheio de esperança que eu poderia estar olhando diretamente para o sol.
Quando ela se vira para dar um abraço de improviso em Jeb, o papai me puxa de lado.
— Borboleta — diz ele, ajeitando uma mecha solta de cabelo atrás da minha orelha.
— Papai — falo, segurando a mão dele e mantendo-a perto do meu rosto.
Ele balança a cabeça.
— Em meio a toda esta loucura... Não tive a oportunidade de dizer quanto tenho orgulho de você, Alyssa Victoria Gardner. — A ternura em seus olhos castanhos me lembra de como nós dois enfrentamos o mundo juntos na minha infância e de como sempre me senti segura. Se ao menos eu soubesse que minha vida era protegida por um cavaleiro de verdade. — Minha menininha é uma rainha. Uma rainha do País das Maravilhas.
Sorrio.
— Ligeiramente diferente das minhas versões fantasiosas, não?
O papai ri e me beija na cabeça.
— Pode-se dizer isso. Mais como uma ninja.
Solto um riso e dou-lhe um abraço, aconchegando-me em seu calor e força.
— Está pronta para ir para casa? — pergunta ele, acariciando minhas costas.
— Bom, não exatamente casa — emenda a mamãe, voltando ao meu lado. — Temos de fazer um desvio.
— Desvio? — pergunto, enquanto ela e eu entramos de braços dados no castelo, com os caras atrás de nós. Nossos sapatos batem no chão vítreo. A Marfim está no alto da escadaria de cristal, onde o portal me aguarda no fim de um corredor. O Rábido está ao lado dela, com Finley do outro lado, a mão às costas, sob as asas.
— A casa de Jeb vai ser a primeira parada — responde a mamãe enquanto subimos os primeiros degraus.
Fico intrigada por um instante, até que me cai a ficha de tal manobra.
— Para podermos descobrir se há alguma atividade policial em nossa casa. Muito inteligente.
— Mais do que isso — corrige o papai atrás de mim. — Vamos precisar de ajuda externa para explicar a ausência da mamãe e de Jeb por um mês, assim como sua fuga do sanatório. Se não fizermos isso, posso ser preso por ajudá-la a fugir enquanto você era suspeita do desaparecimento deles.
— Ajuda de quem? — pergunto, segurando-me ao corrimão frio de vidro. Isso está começando a parecer mais complicado e perigoso do que eu imaginava. Nunca pensei no papai sendo preso. Talvez devêssemos ter levado Morfeu a sério em sua oferta.
— Ajuda de alguém que esteja trabalhando com a polícia na investigação — responde a mamãe. — Uma pessoa que não seja suspeita e tenha a confiança de todos por estar sofrendo a morte do irmão e da melhor amiga desde que foram dados como desaparecidos.
Meu sangue se intensifica em meus pulsos ao olhar para trás e ver Jeb subindo a escada ao lado do papai.
— Você não está falando de...
O sol entra pelas paredes cristalizadas e ressalta os traços de Jeb, ampliando a resolução cautelosa ali.
— A não ser que você pense em outra forma, Al — diz ele, uma referência óbvia ao desejo no meu bolso. — Vamos ter de contar a verdade a Jen. Tudo.
Apesar de não falar em voz alta, não estou disposta a deixar Jeb abdicar de seu desejo por ninguém nem nada. Depois da violência que ela enfrentou na vida, Jenara é durona. Ela também acredita no poder dos cristais, em vodu, tábuas Ouija e tarô. Ela está a um milímetro de ser considerada louca. Torná-la um ser intraterreno honorário é a coisa mais lógica nesta situação ilógica. E, sinceramente, vai ser bom deixar de esconder meu lado País das Maravilhas da minha melhor amiga. Ela vai ser minha cunhada. Nossa vida familiar será menos complicada se pudermos falar abertamente sobre tudo.
Antes de passarmos pelo portal e entrarmos no reino humano, a mamãe, o papai, Jeb e eu discutimos o plano, já que temos lugares diferentes para ir.
Noite passada, depois que reabri os portais, durante meu passeio com Morfeu, e enquanto Jeb estava implorando um desejo, mamãe e papai foram ao reino humano e fizeram o reconhecimento. Da segurança do nosso sótão, eles esperaram para ter certeza de que a casa estava vazia e entraram na internet, reunindo todas as notícias possíveis sobre a tragédia no Submundo na noite da festa de formatura, o desaparecimento da mamãe e de Jeb, que aparentemente estava relacionado a isso, e minha fuga do sanatório um mês depois.
Um mandado de prisão foi expedido para mim e meu pai vinte e quatro horas depois da nossa partida. Éramos oficialmente procurados há três dias.
A informação mais útil foi a entrevista recente do sr. Traemont para o jornal local sobre a devastação de seu centro de atividades — paredes de concreto derrubadas, desabamento e vazamento de água. Ele levou duas semanas somente para avaliar completamente os danos. Chamou uma equipe de construção que originalmente transformara o velho e abandonado silo de sal no Submundo, para que pudessem dar pistas sobre o que deflagrou o acidente. Depois de analisarem as plantas, eles chegaram à conclusão de que, no alicerce, possivelmente havia um ponto fraco provocado pela mineração de sal décadas antes. O buraco que se abriu sugou tudo para um dos túneis de mineração sob a caverna subterrânea.
A conclusão fazia mais sentido do que a verdade que ninguém via: a rainha do País das Maravilhas deu vazão a uma nuvem de espíritos de pesadelo que sugaram o centro de atividades para a toca do coelho com tanta força que metade da caverna implodiu.
Como certa vez eu disse a Morfeu, muitos humanos preferem acreditar que estão sozinhos no Universo a admitir que pode haver uma plateia sobrenatural. E como ele comentou: o ego das pessoas é a própria fraqueza delas.
Com o acidente, o Submundo foi abandonado — todas as entradas para a gigantesca caverna foram condenadas e lacradas com fita policial para a segurança do público. É aqui que entra a ideia de Jeb. Ele disse que, meses antes do início da construção do centro de atividades, os túneis de mineração foram usados para guardar itens bélicos para uma base militar próxima: lenços umedecidos, kits de primeiros socorros, pentes, xampu, desodorante em pó, pasta de dentes, caixas de refeições desidratadas, sacos de sopa e garrafas de água. Ele viu isso dentro de um túnel depois que começou a trabalhar no local, e os suprimentos ainda tinham de ser retirados de lá.
Obrigada, procrastinação. O caráter humano nos deu nosso álibi perfeito.
Só tínhamos que magicamente remover pedras e destroços para entrar num dos túneis. Lá, podíamos montar a cena, como se a mamãe e Jeb tivessem ficado presos por um mês, vivendo à base de suprimentos militares. Era tão simples que beirava à perfeição. O fato de ninguém ter considerado essa possibilidade era inacreditável. Eles estavam tão ocupados investigando o suposto envolvimento da menina louca que não exploraram nenhuma outra teoria.
Quando a mim e ao papai, nossa história seria igualmente simples: consegui pegar as chaves dele e fugi do sanatório usando a entrada de jardinagem naquele dia, enquanto estávamos sem vigilância no jardim. Ele não teve tempo de pedir ajuda, então me perseguiu e subiu na caçamba do caminhão que eu dirigia. Eu o levei ao Submundo... e, lá, refiz meus passos na noite da festa de formatura. Depois de ver a destruição, uma lembrança horrível tomou conta de mim — a visão de Jeb e da mamãe sendo engolidos por uma avalanche de pedras e cimento.
Tive de suprimir isso... foi traumatizante demais encarar a morte deles.
Só que eles não estavam mortos. Porque, enquanto eu e o papai chorávamos na escuridão em meio aos destroços, ouvimos um barulho e o seguimos até um monte de pedras cobrindo uma abertura. Conseguimos cavar e nos reunimos a Jeb e à mamãe — mas a abertura era instável e mais rochas e pedras nos isolaram novamente: os quatro presos juntos.
Foi ali que o papai e eu estivemos nos últimos três dias.
A ideia de Jeb era brilhante. Até Morfeu teria ficado impressionado.
Então tínhamos um plano que só exigia minha mágica e a da mamãe e os dois trajes de disfarce. Fora isso, precisávamos de um catalisador: alguém para dar a dica da nossa localização aos policiais.
Era aí que entravam Jenara e a tábua Ouija.
Apesar de ser manhã no País das Maravilhas, é noite no reino humano. Envoltos em trajes de disfarce, meus pais entram primeiro no portal, parando na nossa casa para pegar um dos uniformes do papai e o traje de sanatório que mamãe tinha guardado, que será para mim. Estaremos usando as roupas nas quais fomos vistos pela última vez, para fazer o plano dar certo. Depois que a mamãe e o papai entrarem em casa, a próxima parada será no Submundo, para montar o cenário da nossa grandiosa revelação.
Jeb segura minha mão e me endireita, enquanto o Rábido e eu passamos com ele pelo espelho comprido atrás da porta do quarto de Jenara. Ele dá para uma janela que reflete a Marfim e Finley acenando adeus.
Antes de entrarmos, garantimos que Jenara não estivesse no quarto. Vamos ter de contar isso a ela aos poucos. Ela já ficará suficientemente chocada ao nos ver vivos e intactos.
Quando ela estiver pronta, eu lhe mostrarei meus poderes e características intraterrenos. O Rábido está aqui como suporte, para o caso de ela precisar de mais provas que não minhas asas para se convencer de que o País das Maravilhas é real.
Escondo meu colar com a chave. As tiras verticais rosas e brancas da parede de Jenara brilham com um tom prateado, folheado pelo luar que entra pelas cortinas translúcidas da janela arqueada. Silhuetas de trepadeiras de flores negras se prolongam pelo teto — sombras imaculadas pintadas pela mão hábil de Jeb há alguns anos. Um mural digno de um museu.
Eu o pego olhando para o mural antes de ficar sério e desviar o olhar. A tristeza na ação me dá um aperto no peito.
— Jeb. — Paro atrás dele e o abraço, a boca contra as roupas que envolvem seus ombros largos. — Você encontrará seu caminho. Prometo... você ainda tem tanto a oferecer a este mundo.
Ele fica tenso, mas cruza os braços, segurando meus cotovelos.
— Não sei direito como esquecer algo que antes me manteve são.
— Você não precisa esquecer. Esta parte sua ainda está intacta. Em molduras, pintada em paredes, desenhada em pedaços de papel. Sua musa vive aqui, por meio das pessoas que ficam felizes com sua obra de arte todos os dias. Isso é mais mágico do que tudo. Deixe que isso o mantenha são até encontrar um novo caminho.
Ele me vira de modo que ficamos de frente um para o outro e me beija.
— Você é muito inteligente para um ser intraterreno.
Eu rio.
— E você é bem durão para um humano. — Abaixo a cabeça dele para outro beijo.
O Rábido nos chama e nos encara com os olhos arregalados e fascinados.
Constrangida, recuo. O alívio momentâneo foi bom, mas sei que não será fácil passar por cima de tudo o que Jeb perdeu. É algo com o que lidaremos juntos, dia a dia, até ele reencontrar seu caminho.
Por enquanto, temos de cuidar desta situação com Jenara.
Jeb pigarreia, obviamente pensando na mesma coisa.
— Então acho que eu deveria olhar a casa.
— Você acha que ela está trabalhando? — Tiro minhas botas para permitir que o tapete rosa macio acaricie os dedos dos meus pés.
Ele abre a porta do quarto de Jenara e olha o corredor.
— Sei que a mamãe está. Ela sempre pega os turnos da noite. Vocês dois esperam aqui.
Assim que ele sai, deixando a porta aberta atrás de si, o Rábido sobe na cama de Jenara. Seus dedos magros enrugam o edredom preto e branco. A poeira rosa me lembra de como Jen e eu brincávamos de nos fantasiar neste quarto. De como inventávamos vestidos de noiva com lençóis e fronhas, contávamos segredos, comíamos bobagem e ficávamos acordadas até tarde.
Isso parece ter acontecido há tanto tempo.
Dois manequins brancos e sem rosto ficam diante da janela dela com luminárias em suas cabeças como chapéus. Jeb mexeu no interior e instalou lâmpadas nos crânios para criar abajures para o aniversário de quinze anos dela.
Acendo um deles, lançando uma luz branca estelar pelo piso de madeira e pela colcha da cama de Jenara.
— Ooooh. — O Rábido se levanta no colchão e dança em meio às formas criadas pela luminária. Encaro o espelho, vendo o reflexo dele no vidro. Ele é como uma bailarina macabra num globo de neve. Tão deslocado no quarto cheio de coisas normais e humanas.
Então vejo meu próprio reflexo. Minhas marcas intraterrenas nos olhos ainda não desapareceram completamente. Minha pele brilha e, se meu cabelo não estivesse preso numa trança, ele estaria agitado — vivo e encantado.
Sou uma alienígena.
Pensando bem, somos todos alienígenas agora. Até Jeb. Depois do que passamos e vimos, esta tranquilidade parece mais perigosa do que o caos que enfrentamos. Eu me pergunto se é assim que soldados se sentem depois de voltarem da guerra. Como eles superam? Como eles aprendem a fazer parte da comunidade novamente? A se sentirem seguros de novo?
Os zumbidos de alguns insetos interrompem minhas reflexões, um consolo bem-vindo. Fecho os olhos por um instante, mas os abro assim que um grito agudo do outro extremo do corredor me faz dar um salto.
Espanto o Rábido da cama e o mando para o armário.
— Não saia a não ser que eu o chame, sim?
Ele faz que sim, se escondendo numa pilha de acessórios de costura — mantas, cintos e tecidos — no chão.
Fico parada, os braços ao lado do corpo... presa.
O choro histérico de Jenara se aproxima à medida que Jeb a acompanha até a porta entreaberta. Ele fala num tom de voz carinhoso, tão baixinho que mal consigo ouvir o que ele diz. Meu coração bate em sincronia com as dobradiças que se abrem.
Quando eles entram, ela está abraçada a ele, segurando o colarinho da camisa, a cabeça contra seu corpo e o rosto escondido sob um véu de cabelos rosa molhados — recém-saídos do banho. Jeb deve tê-la surpreendido assim que ela saía do banheiro. Seu pijama verde de cetim me faz lembrar festas e jogos divertidos passados.
Sinto tanta saudade dela.
— Jen? — murmuro hesitantemente, sem saber o que dizer em seguida.
Ao ouvir minha voz, ela vira a cabeça na minha direção.
— A-Al? — Seu rosto rosado fica inchado quando ela tenta conter o choro. Ela perde a batalha e grita, correndo na minha direção.
Estendo o braço para abraçá-la e caímos no colchão juntas, as molas balançando sob nossos corpos. Recuperando o fôlego, me enterro no cheiro cítrico e doce de seu xampu. Um sorriso se irradia do meu coração para meus lábios e eu a abraço com força, lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Lágrimas dela ou minhas... não importa. A sensação é maravilhosa.
Jeb esfrega as costas dela.
— J.
— Não, não, não, não. — Ela chora de encontro ao meu pescoço. — Não me acorde. Estou sonhando, estou sonhando.
Ele coloca um dos joelhos na cama, ao lado de nossos corpos unidos, e a preocupação em seus olhos basta para me fazer esquecer que um dia partimos.
— Tudo bem, Jen. Não é um sonho — garanto a ela. — Estamos aqui.
Jeb acaricia a cabeça dela, intencionalmente tocando meu rosto com um dos dedos ao longo do processo. Ele não quer magoar a irmã — ele passou anos demais protegendo-a. Mas ele sabe que é o melhor para todos nós a longo prazo.
Ainda assim, é óbvio que ele está lutando e perdido, como o menininho que um dia foi.
Seguro a mão dele e o puxo, de modo que seu corpo caia ao meu lado direito. Ele se aninha tão próximo que seu hálito toca minha orelha. Coloca seu braço sobre mim e Jen, de forma que fico espremida entre as duas pessoas de que mais gosto. Juntos, nós três choramos e rimos até soluçarmos.
Pela primeira vez em semanas, estamos reunidos. Uma família.
Esta sensação. Talvez... é assim que voltamos ao normal.
Assim que Jenara se acalma, ela se senta, tentando recuperar o fôlego.
— Onde vocês estiveram? Procuramos em todos os lugares! — A acusação é direcionada a Jeb. — Achamos que vocês...
— Sinto muito. — Jeb se ajoelha, interrompendo-a antes que ela possa admitir que pensava no pior.
Fico onde estava, a coluna apoiada no colchão. Com medo de me mover.
— Al, talvez a gente devesse lhe contar tudo de uma só vez — diz Jeb, a voz trêmula.
— Incluindo como mandei você para lá? — Procuro as palavras certas e tropeço terrivelmente.
Verde e úmido, o olhar de Jenara recai sobre mim.
— Ãhn? — Sua expressão mostra que ela compreende. — Espere. — Ela sai da cama e se levanta, tonta mas determinada. — A polícia tinha razão? Você sempre soube onde ele estava? Mas por que você não...? — Ela chora de novo. — E quanto à sua mãe? Cadê ela? E seu pai? O que está havendo?
Estudo o rosto dela, manchado de lágrimas, seus cabelos rosa molhando a parte de cima do pijama, as três sardinhas no nariz. Ela parece tão vulnerável. Queremos mesmo envolvê-la nisso? Não haverá volta se o fizermos.
Jeb me obriga a me sentar.
— Você é a única que pode lhe mostrar. Faça-a entender.
Engulo em seco.
— Não sei nem por onde começar.
— Mais ou menos por aqui. — Ele passa o dedo pelas alças do meu vestido que revelam minhas omoplatas nuas. Meus botões de asa se arrepiam ao toque dele.
Fico com o rosto em chamas.
— Mas não posso simplesmente... precisamos prepará-la.
Jenara recua lentamente até a porta.
— Me preparar? Vocês estão me assustando. Vou chamar a mamãe. — A campainha toca e ela para, a expressão se iluminando. — Corbin — murmura ela, e se vira para o corredor para deixá-lo entrar.
— Não, J. — Jeb tenta impedi-la, mas ela o ignora.
— Espere, Jen! — Saio da cama. — Corb não pode estar aqui para isso.
— Por que não? — Ela se vira, as mãos na cintura. — Ele esteve aqui enquanto Jeb estava desaparecido. E enquanto você estava internada. Ele me ama, Al. Ele cuidou de mim e da mamãe. Tudo o que você me contar, pode contar a ele. — Ela se vira e atravessa a porta do quarto.
— Nós... nós fomos ao País das Maravilhas! — digo de uma vez, fazendo-a parar. Ela dá meia-volta no corredor, boquiaberta.
— Mostre suas asas — acrescenta Jeb, estreitando os olhos. Seus cílios compridos lançam sombras sobre seu rosto e as luminárias brilham em sua pele, fazendo-o parecer tão intraterreno quanto eu.
— Asas? — pergunta Jenara, voltando ao quarto. — Sério, mano? Você a quer trancada no sanatório de novo? Você não faz ideia do que ela passou enquanto eles tentavam tirar o País das Maravilhas da mente dela. Não dê vazão ao delírio dela!
— Al... — Jeb me leva até ela. — Você vai ter de se expor. Não há outra forma de fazer alguém acreditar. Eu precisei de um acidente na toca do coelho.
Ao ouvir a palavra coelho, o Rábido sai do armário, sua forma esquelética enrolada em mantas e cintos. Ele tropeça em Jeb, e os dois caem no chão. O Rábido se aproxima de mim ainda caído, parecendo uma lagarta louca com apenas seus chifres e olhos rosa expostos.
— Rábido, o Branco, sou eu! — Anuncia ele com sua voz fina, virando-se e tentando se libertar.
Jeb xinga e Jenara grita tão alto que todos os outros sons parecem abafados, como se meus ouvidos estivessem dentro de uma concha.
A porta da frente se abre e passos soam no corredor. Jeb se levanta para fechar a porta, mas é tarde demais. Corbin aparece ofegante, os cabelos loiros arruivados reluzindo sob a luz fraca. Ele traz uma chave na mão. Seus olhos recaem sobre o Rábido, que conseguiu se livrar dos acessórios do armário de Jenara e está ali de pé, exibindo toda a sua decrepitude intraterrena.
A criaturinha abre os braços com um floreio.
— Ta-da! — grita ele, com espuma saindo pela boca. Faço uma cara feia para o espetáculo. Morfeu deve ter lhe ensinado isso.
— O que está havendo? — pergunta Corbin com seu pesado sotaque sulista, segurando Jenara pelo cotovelo e puxando seu corpo trêmulo para o corredor.
Jeb franze a testa, atento à chave na mão de Corbin.
— Estava prestes a perguntar a mesma coisa. Por que você tem uma chave da nossa casa, Corb? Desde quando você mora com minha irmã?
Encaro Jeb. O meu lado intraterreno ri alto antes de eu conseguir me segurar, divertindo-me com o ridículo da situação toda. Parece que todos somos controlados por instintos. Para Jeb, dar à irmã e ao melhor amigo o maior susto da vida deles é algo que pega carona em seu instinto protetor de irmão mais velho.
O choro audível de Jenara traz meu lado travesso de volta. Pego o roupão da cadeira perto da mesinha de canto e o jogo para o Rábido. Ele resmunga e o cheiro de tecido queimado pontua o ar enquanto seus olhos se transformam em duas órbitas vermelhas por baixo, criando buracos fumegantes no pano.
— Nada de fogo, Rábido! — repreendo.
Ele “desliga” os olhos e se abaixa.
— Jeb? Al? — murmura Corbin, como se só agora tivesse nos notado. Ele parece perigosamente perto de desmaiar. As sardas em seu nariz parecem escuras contra o rosto pálido. Seu olhar azul intenso permanece fixo no Rábido agachado e agitado sob o roupão. — Onde vocês... como vocês...? Aquela coisa. Tem que ser um robô... certo?
— Rábido não robô é! — Meu conselheiro real reclama por baixo do seu esconderijo, ofendido.
— Para dentro do armário — ordeno. O Rábido resmunga algo indecifrável e desaparece, arrastando o roupão queimado atrás de si como a cauda de um vestido de noiva.
Jeb e eu trocamos olhares.
— Há sempre poções do esquecimento — sugiro.
Ele bufa, estudando Corbin e Jenara apoiados contra a parede do lado de fora do quarto, confusos e trêmulos para além de qualquer descrição.
— Perder suas memórias não é a única coisa que vai acontecer. Confie em mim.
— Então vamos contar a ele também — acrescento. — Isso, ou ele esquece e o mandamos para casa.
— Não vou a lugar nenhum sem a Jen — declara Corbin, a cor voltando ao seu rosto. Ele segura Jenara junto de si, enquanto ela esconde o nariz na camisa dele, tentando respirar normalmente.
Os lábios de Jeb ganham um sorriso lento e ousado.
— Não vai a lugar nenhum hoje à noite? Então você está planejando se dedicar a ela por mais um ou dois dias?
Corbin fica sério.
— Que tal para sempre? — Ele a abraça com mais força, puxando Jenara para tão perto que a calça do pijama dela adere em sua calça jeans, estalando por causa da estática.
— Para sempre é muito tempo — retruca Jeb, e a nota de tristeza na afirmação revira minhas entranhas, como se elas fossem uma harpa tocada pelos dedos dele. Fungando, Jenara se vira para olhar para o irmão, confusa. O humor de Jeb muda novamente e ele balança negativamente a cabeça, em um gesto de amor. — Parece que você arranjou um cavaleiro branco, mana.
Pego Jeb pelo pulso, no ponto onde uma cicatriz saliente substituiu sua tatuagem.
— Você não tem ideia de como esses dois são teimosos, não é?
Ele ri baixinho e entrelaça nossos dedos.
— Então, Corb. Quer fazer parte da nossa família? Que tal oficializarmos as coisas?
Corbin e Jenara estreitam os olhos em nossa direção, a respiração presa. A casa fica mortalmente silenciosa. Não se pode ouvir nada além do sussurro de uns insetinhos — numa frequência com a qual somente eu estou sintonizada — e dos resmungos do Rábido no armário.
Jeb ergue minha mão e beija minha aliança de noivado.
— O que vocês dois precisam saber sobre Al? — pergunta ele à nossa plateia. — Aquele sanatório nunca teve a chance de curá-la. Veja só, você pode tirar a menina do País das Maravilhas, mas não pode tirar o País das Maravilhas da menina. — Minha mão se separa da dele enquanto ele recua para me dar espaço. — Mostre o que você tem, rainha-fada.
Abro meu sorriso mais majestoso. E ali, no meio do quarto com faixas cor-de-rosa, com minha melhor amiga e o amor da sua vida de olhos arregalados, abro minhas asas intraterrenas e confesso todas as minhas mentiras.
SEGUNDA MEMÓRIA: CONCHAS
Quatro anos antes...
PLEASANCE, TX., 29 DE JUN. — Dois moradores de Pleasance dados como desaparecidos há um mês, juntamente com outros dois que desapareceram na última quarta-feira, foram encontrados vivos na manhã de sábado, apenas com ferimentos superficiais, presos num túnel de mineração que desabou sob um parque condenado.
Outra moradora, irmã de um dos desaparecidos e amiga dos demais, disse suspeitar da localização das pessoas depois de receber uma dica com sua tábua Ouija, de acordo com o policial Riley Hughes.
“Normalmente, não dou muito valor às bobagens espirituais”, disse Hughes. “Mas a menina ajudou a nossa investigação durante todo o mês de busca por seu irmão e vizinhos. Ela insistiu para que a gente ao menos desse uma olhada. Como vários desabamentos ocorreram no lugar às vésperas da festa de formatura da Pleasance High, e considerando que esse era o último lugar onde os desaparecidos foram vistos, achamos que valia a pena. Fomos lá sem esperar encontrar nada. Ponto para as conversas fiadas.
— Al, você está brincando comigo? — A voz fina de Jenara tira minha atenção do artigo de jornal de quatro anos atrás. Ao meu lado no sofá, uma ornamentada garrafa de vidro cheia de pedras que peguei durante nosso “resgate” do Submundo. Esfrego as têmporas, tonta por causa da viagem pela estrada da memória.
Jen atravessa a porta correndo e a fecha atrás de si.
— Não acredito que você ainda não pôs nem sua meia-calça! O que você tem? Vinte e um anos e já mostrando sinais de senilidade? Talvez você precise de um pouco de ar.
Ela abre a janela atrás de mim. Uma brisa salgada entra, abrindo as cortinas azuis com estampa de estrela-do-mar sobre minha cabeça. Meus cabelos esvoaçam, as ondas platinadas tocando meus ombros nus e meu espartilho branco de renda.
Passo a mão na borda da minha calcinha também de renda, surpresa por estar só de roupa íntima. O que eu estava fazendo antes de me sentar? Primeiro, comi o bolinho de aniversário que minha mãe deixou ao lado do cartão no criado-mudo.
Como se animada por meus pensamentos, a fôrma de papel do bolinho voa até o chão com uma lufada de vento e chega até os pés descalços de Jen. Ela o pega e franze a testa para mim.
— Hummm?
— Bolinho da minha mãe. — Lambo os lábios, ainda sentindo o sabor da cobertura azul de mel e anis.
Jenara amassa o papel e o joga no lixo.
— Então isso é você desanimadinha depois da euforia do açúcar?
— Talvez? — Tento me lembrar do restante da tarde. Depois do meu lanche, peguei o roupão para me vestir. Ao mexer na minha mala em busca do colar novo que tomei emprestado de Jenara para hoje, fui distraída pelas lembranças que trouxe comigo. De certa forma, acabei no sofá sob a janela, com um caderno e uma garrafa na mão.
Estudei o artigo de jornal novamente. Isso sou mesmo eu ficando deprimida depois de comer um monte de açúcar ou é outra coisa?
Sinto-me tão estranha. Meu corpo e mente estão relaxados, mas meu sangue é o oposto. Ele corre veloz nas veias sob minha pele — corredeiras jorrando de milhares de afluentes.
— Vamos lá, zumbizinho, me mostre algum sinal de vida — provoca Jen. — O sol vai se pôr em uma hora e ainda temos de ajeitar seu cabelo e maquiagem. E, para sua informação, aquela mancha de cobertura nos seus lábios não conta como seu “algo azul”. Para isso é que serve o elástico. Como vamos tirar isso? — O olhar dela se volta para a garrafa de pedras perto da minha coxa. Ela a pega e balança diante de mim. — Inacreditável. O Jeb está lá com Corbin enchendo os pés de areia, caminhando pelo litoral para verificar cada detalhe. E você aí, nostálgica.
Jenara falou de outras coisas além dos detalhes do casamento. Ela teve de abandonar um desfile de moda em Nova York dois dias antes do previsto para chegar a tempo disso. Ela esteve em contato constante com sua sócia, e a linha de roupa delas está fazendo barulho. Tenho a sensação de que a carreira dela está prestes a decolar para valer. Tentamos planejar o casamento de acordo com a agenda dela, mas esta era a única semana disponível da casa de praia. Então chegamos a um acordo e escolhemos o final do desfile. Eu disse que ela não precisava vir, mas ela respondeu que morreria se perdesse.
Mesmo agora, com ela me atacando com seu olhar verde mais severo, sei que não há outro lugar onde ela preferisse estar. Ela é uma visão da suavidade com seu vestido comprido florido. Seus cabelos rosa estão presos no alto da cabeça num coque chique. Rosas-anãs azuis estão colocadas em espaços estratégicos, formando uma auréola. Poucas mechas rosa se curvam em seu pescoço.
— Você está perfeita — digo a ela, encantada.
Ela tenta conter o sorriso e revira os olhos.
— Queria poder dizer o mesmo de você.
— Corb já a viu? — Minha pergunta é retórica. Os dois estão juntos há anos e, agora que Corb quase terminou a faculdade de publicidade, ele planeja se mudar com ela para Nova York no fim do verão.
No mês passado, ele pediu “a mão dela em casamento”. Usando uma armadura de malha de metal medieval, ele veio ao nosso duplex numa carruagem puxada por cavalos. Jeb o ajudou a reformar um velho Chevy que encontraram num ferro-velho. Eles pegaram o chassi e tiraram tudo, transformando-o numa charrete leve o bastante para ser puxada por dois cavalos brancos que Corbin pegou emprestados de um amigo. Depois de acrescentar arreios firmes, de substituir os pneus por rodas de madeira e de pintar a carcaça com um branco brilhoso com uma faixa vermelha, eles tinham a carruagem texana perfeita. Quando Corbin estacionou diante da casa de Jen com três dúzias de rosas na mão e lhe pediu que fossem ver o pôr do sol, ela quase desmaiou.
Era antiquado e moderno e, ah, tão lindo.
Perdida em sua própria nostalgia, Jenara admira o anel de noivado em seu dedo. Seu sorriso desabrocha, juntamente com uma atraente vermelhidão no rosto.
— Meu noivo aprova minha mais recente criação. Mas você é quem está prestes a ficar sob os holofotes. — Ela joga a garrafa cheia de pedras na minha mala aberta e vai ao armário pegar meu vestido. Jeb e eu decidimos que as belas criações de Jenara adquiriram uma má reputação na formatura e mereciam aparecer numa lembrança boa.
Ao longo das últimas semanas, Jenara realizou um ótimo trabalho costurando tecidos e retalhos com apliques diversos — um deles ela encontrou num antiquário, então isso era meu “algo velho”. Quaisquer manchas foram disfarçadas com corante de flores seguido por um toque brilhante. Agora o vestido branco sem alcinhas parece novinho. Ou tão novo quanto um vestido de noiva vintage pode parecer depois de ser modificado para se assemelhar a um tecido recém-tirado do túmulo.
— Vamos, Al, depressa! — repreende-me Jenara, perdendo a paciência.
Eu resmungo algo como resposta.
Ela joga a meia-calça lilás acinzentada na minha direção e ela voa por sobre minha cabeça, cercando-me como uma nuvem perfumada.
— Vou preparar a maquiagem — avisa ela. Ouve-se um barulho quando ela coloca a bolsa de maquiagem na mesinha, ao lado do cartão de aniversário da mamãe. — Talvez removedor de esmalte funcione com seus lábios.
Torço o nariz.
— Eca... sério?
Ela dá de ombros.
— Situações de desespero exigem medidas nojentas. — Do outro lado da redinha cobrindo meu rosto, ela escolhe sombras, delineadores, pincéis e blush.
Meu corpo parece leve, como uma nuvem flutuando. Em parte é felicidade... em parte, nervosismo... e alguma coisa mais. Algo que nunca senti antes.
Ou será que já?
A pele ao redor dos meus olhos dói, assim como a pele em minhas omoplatas.
Risadas abafadas e passos são ouvidos através da parede fina da sala de estar. A casa de praia que meu pai alugou tem sete quartos, um loft e quatro banheiros e meio, mas ainda assim não é grande o bastante para nossos convidados. Não consigo nem imaginar como ela ficará cheia depois que todos chegarem.
Reunindo energia, afasto a meia-calça e guardo o artigo de jornal de novo no caderno de recortes. Sinto-me tentada a folhear as outras páginas. A olhar as imagens de nossas exposições de arte — pinturas de edição limitada que Jeb jamais conseguirá replicar e meus mosaicos de vidros coloridos —, juntamente com fotos tolas dos últimos quatro Halloweens, Natais, piqueniques de verão, guerras de bolas de neve e pegadinhas universitárias. Só uma última olhada em nosso tempo juntos como noivos, capturado entre camadas de filme de polipropileno, antes de darmos início ao capítulo seguinte num novo caderno de recortes, decorado com cetim branco e um colarzinho de pérolas.
Toda a minha pele se avermelha, pensando no que vem depois da cerimônia. Não foi fácil esperar nos últimos anos, mas a vida já era bem complicada, tendo de enfrentar a dor de Jeb por ter perdido sua habilidade artística, indo para a faculdade e equilibrando meus deveres reais no País das Maravilhas com nossa vida humana. Nunca parecia a hora certa, até agora. Nós nos ajustamos a nossos novos papéis, aprendemos a fazer concessões sendo honestos e sempre estivemos emocionalmente presentes um para o outro. E, depois do compromisso físico de hoje à noite, nosso elo será inquebrável.
Não há forma melhor de dar início à nossa nova vida juntos do que isso: os braços fortes dele segurando meu corpo nu enquanto acaricio as cicatrizes do seu peito com o dedo, curando suas feridas a um só toque.
— Do que é que você tá rindo, Al?
Levanto a cabeça, sorrindo, apesar de tentar me conter.
Jenara bufa.
— Você não vale nada hoje, sabia? Supere isso. — Ela tira o caderno da minha mão. — A maioria das damas de honra não precisa usar seus talentos como vidente para preparar a noiva. Você vai me pagar mais por isso, não é?
Ergo as pernas para ela poder me ajudar com a meia-calça.
— Claro. Dez mil vezes mais do que o salário que combinamos.
— Humm, dez mil vezes zero... Sabia que deveria ter pedido a um advogado que desse uma olhada no contrato. — Ela segura a roupa enquanto enfio o pé, depois segura minha mão para me tirar do sofá.
Ao ajeitar o elástico sob o espartilho na cintura — de modo que a combinação caia abaixa dos joelhos —, aquela dorzinha entre os ombros aumenta e vira uma sensação de queimação. Antes que eu perceba que são meus brotos de asa, eles se abrem: um branco opaco, brilhando com joias coloridas, ocupando o espaço como asas de uma borboleta recém-saída do casulo.
Eu grito.
Jenara perde o fôlego, os olhos arregalados como moedas.
— Al, o que é isso? Você não pode fazer isso agora!
— Eu... não quis fazer isso! — Meu grito reverbera ao nosso redor.
— Shh. — Ela fecha minha boca com a mão e olha para a parede fina. Como não ouvimos nada além do zumbido das conversas dos convidados na sala ao lado, ela tira a mão. — Certo... Você terá uma audiência dentro de uma hora. Recolha as asas.
Tento, mas as asas não se movem.
— Não está dando certo. — Tento mais uma vez. — Não consigo. — Meu coração bate forte.
A expressão de Jen parece ainda mais preocupada.
— Ah, claro. Você está brilhando. E seus olhos... sério que você não está fazendo isso de propósito?
Faço que não com a cabeça. Milhares de pontinhos de luz se refletem no rosto de Jenara e nas paredes amareladas de sol que nos cercam. Levo os dedos ao rosto, imaginando marcas negras como as listras de um tigre sob meus cílios inferiores, parecidas com as de Morfeu sem as joias.
— Minhas marcas... estão muito evidentes?
O olhar de Jenara está fixo ao meu.
— Não são apenas as marcas, Al. São suas íris. Elas estão... roxas.
— Roxas?
Jen faz que sim.
— E não é um tom sutil... é muito estranho.
Sinto um frio na barriga.
— Isso não pode estar acontecendo. — Meus cabelos começam a se levantar, uma dança provocativa de mágica.
— Merda! — exclama Jenara depois que algumas mechas a alcançam. — Isso é tipo uma gripe intraterrena ou coisa assim?
— Eu... eu não sei. — Com os dedos trêmulos, seguro as mechas e as prendo na nuca. — O que vamos fazer? — O pânico reveste minhas cordas vocais, deixando-me rouca, como se tivesse engolido uma lixa líquida.
Jenara esfrega as mãos.
— Bom, você pode prender o cabelo no alto e podemos dizer que fomos criativas com sua maquiagem. O véu vai esconder seus olhos durante a cerimônia. Depois, você pode dizer às pessoas que está fazendo experiências com lentes de contato. Mas as asas... Eu acho que é impossível disfarçá-las.
Não há espelho para eu ver o tamanho da minha imagem intraterrena, por motivos óbvios. Não queria nenhuma surpresa nas festividades de hoje, então optei pelo quarto menor pela ausência de espelho, confiando que Jen fizesse minha maquiagem e me tornasse apresentável para o casamento. O lado ruim de escolher este quarto é que não há tranca na porta, o que agora me deixa ainda mais vulnerável e acessível.
Maldita reflexão tardia.
A vermelhidão no rosto da minha dama de honra ganha um tom de ansiedade.
— Vou chamar sua mãe. — Ela começa a sair, mas para. — Só... fique aqui e cuide da porta. Tente se acalmar. Vamos dar um jeito nisso, sim? Nada vai estragar isso.
Faço que sim, mas apenas para ela ficar tranquila. Como isso pode não arruinar as coisas? Não posso encarar nossos convidados humanos com todas as minhas características sujas do País das Maravilhas expostas! Isso não é a noite da festa de formatura no Submundo. Ter asas numa praia não pode ser explicado com a mesma facilidade do que usá-las como fantasia sob luzes mortiças.
Depois que Jenara sai, coloco a cadeira sob a maçaneta e puxo a asa sobre meu ombro. As joias piscam numa confusão de cores, como as marcas oculares de Morfeu quando ele está ansioso ou perplexo. Há algum tempo, descobri que meu humor, como o dele, se mostra por meio das minhas joias. É algo que Morfeu mantinha para si mesmo e um dos motivos por que ele gosta de ter minhas asas à mostra... para ele poder saber o que estou sentindo.
Mas sou eu quem decide quando abri-las. Tenho lidado com meus aspectos intraterrenos tranquilamente desde que voltei ao reino humano. Nunca perdi o controle. Há alguma travessura em andamento aqui. E tudo começou com o bolinho azul com sabor de anis e mel.
Anis... um sabor surpreendentemente semelhante a alcaçuz. Cigarro de alcaçuz.
Ranjo os dentes.
— Morfeu.
Noite passada, antes de voltar dos meus sonhos, eu o abracei, algo que não faço com frequência. Estabelecemos limites claros para o contato físico, a fim de honrar minha vida humana. Mas ele andava mal-humorado com meus súditos, o que raramente acontece, e sabia que ele estava escondendo seus sentimentos quanto ao meu casamento. Então quis consolá-lo, quis garantir que a paciência dele não passasse despercebida nem desvalorizada.
Ele me abraçou de volta por uns cinco segundos, depois me afastou. Ao olhar para mim, sua expressão era algo bem distante da tristeza ou preocupação. Era o exato oposto, o que nunca é um bom sinal.
— Decidi dar a você e a seu noivo um presente amanhã, frutinha — disse ele, abrindo a mão. Uma esfera azulada ganhou vida na palma de sua mão e depois alçou voo, pairando entre nós. — Como Jebediah abdicou de sua capacidade de sonhar com o País das Maravilhas, você pode compartilhar seus sonhos em segredo na sua lua de mel. Você não virá ao País das Maravilhas esta noite. Em vez disso, Jebediah pode entrar com você e seus sonhos pertencerão somente a ele. Mas somente se ele se provar digno de se casar com a rainha-fada.
Antes de poder pegar a luz azulada, Morfeu me expulsou do meu sonho.
Minhas mãos agarram a meia-calça cobrindo minhas coxas. Quando acordei neste quarto, pela manhã, pensei em contar a Jeb as palavras enigmáticas de Morfeu, mas não estava com meu celular porque Jenara se esforçou ao máximo para manter seu irmão distante de mim até a cerimônia.
Não há tempo a perder. Ele precisa ser avisado de que Morfeu criou outro teste para mim. Ou melhor, para ele.
Vou até a mesa para dar uma segunda olhada no cartão de aniversário da minha mãe, manobrando as asas pela mobília arranjada em ângulos estranhos no quarto pequeno demais. Ergo o cartão, estudando-o cuidadosamente. Para além da corujinha bonita na capa — sutil — e da inscrição “Queeeeem faz aniversário hoje?” dentro, há a assinatura da mamãe impressa. Ela sempre assina cartões com letra cursiva. Por que não tinha percebido isso? Ou o fato de o papai não ter assinado também? Pensando bem, eu deveria ter percebido tudo isso, porque não era para ter abaixado a guarda. Morfeu me treinou melhor do que isso.
Mas ele sabia que eu estaria distraída com meu cérebro focado no casamento. Ele contava com isso. E, para piorar as coisas, não havia insetos por perto para me alertar. A casa de praia foi fumigada há uma semana por causa de uma infestação de formigas e o silêncio era ensurdecedor desde que chegamos. Suspeito que ele tenha o dedo nisso também. Ainda assim, ele está cumprindo sua promessa de não se colocar entre mim e Jeb porque conseguiu fazer com que minhas características intraterrenas é que causassem todos os problemas.
Estou quase impressionada, mas isso não é nada perto da ansiedade revirando minhas entranhas. Como pude ser tão descuidada?
— Maldita mariposa inteligente — xingo, esperando ouvir um eco da risada arrogante na minha mente. Como não ouço nada, fico séria e rasgo o cartão ao meio, com raiva por não encontrar respostas ali. — Certo, você me pegou. Mas fique sabendo que você o está subestimando — digo em voz alta, na esperança de que Morfeu ao menos esteja ouvindo. Minha voz soa firme e confiante, apesar das lágrimas de nervosismo queimando em meus olhos. — Jeb vai encontrar uma forma de resolver isso...
— Tem razão, Al. — A voz grossa e determinada de Jeb me atinge por trás, uma corrente elétrica iluminando todas as minhas terminações nervosas.
Viro-me para ver uma rosa branca pela porta entreaberta.
— Deixe-me entrar.
Quase tropeçando nas minhas asas, corro e puxo a cadeira para o meio do quarto, e depois recuo para lhe dar espaço.
Ele entra — pingando no que restou do seu smoking de formatura — e fecha a porta. Ele se apoia nela e me encara. Areia e gotas de água brilham em seus braços, onde ele enrolou as mangas da camisa até os cotovelos. A camisa semiabotoada expõe seu peito reluzente. As calças azul-marinho estão enroladas também até o meio da canela. Ele deve ter deixado o paletó azul de veludo lá fora, pendurado para secar.
— Jen tentou me contar sobre seus olhos — murmura ele antes de eu poder perguntar o que aconteceu às roupas dele. — Mas não há paleta de artista, não há comparação neste mundo para esta cor. Al, você está tão linda.
Estava pensando o mesmo que ele.
— E você está tão molhado — digo, estúpida. É difícil pensar em meio à luz amena que reflete sua pele cor de oliva, o labret prateado e os rebeldes cachos escuros pingando água por sua testa e seu nariz.
Ele não responde, ocupado demais em me analisar com seu olhar profundo e úmido. Se Jenara estivesse aqui, ela insistiria para eu cobrir meu espartilho e calcinha. Não, ela insistiria para eu expulsá-lo. Mas ficar longe dele desde o jantar da noite passada já era muito tempo. Até mesmo a cadeira entre nós dois parece uma montanha. Eu deveria movê-la, mas ele me deixou paralisada. Seu olhar percorre todo o meu corpo — um carinho mental tão íntimo e completo quanto um carinho real seria.
— Talvez a gente não devesse ter escolhido um casamento na praia — provoco, tentando conter minha imaginação fértil.
O sorriso sensual resultante de Jeb revela seu incisivo torto que espero que nossos futuros filhos e filhas herdem.
— Digo, levando em conta nossas experiências passadas com enormes corpos de água.
Eu rio.
Ele ri também, mas então fica sério.
— Nós nos reencontramos numa praia em Qualquer Outro Lugar. Você me fez uma promessa lá. Faz sentido eu lhe fazer uma promessa numa praia também. Não importa o que aconteça antes ou durante nosso casamento. Não importa que tipo de dificuldades Morfeu pôs em seu caminho hoje, tudo isso vale a pena. Nós valemos a pena. E vamos provar isso para ele.
Nunca o vi tão confiante ou... enérgico.
— Espere aí, você... Você está gostando disso? — Esboço um sorriso hesitante.
Ele dá de ombros e cheira a rosa branca na mão.
— Gosto de um desafio.
— Morfeu vai odiar que não pode provocá-lo.
— Psssh. Nós dois sabemos que ele adora quando eu aceito o desafio.
Balanço a cabeça, sorrindo. É um consolo estranho perceber como eles se conhecem e se compreendem bem hoje em dia.
— Então foi ele quem o fez cair na água?
Jeb obriga seu olhar a subir do meu corpo seminu para meu rosto.
— Bom, tecnicamente não foi ele. Ele está cumprindo a promessa de ficar longe do nosso mundo. Corb estava arrumando a almofadinha de carregar as alianças quando algo mordeu seu dedão do pé e ele derrubou as alianças. Uma lagosta de pedra surgiu na areia, as pegou e desapareceu nas ondas.
— Uma lagosta de pedra de verdade? Como as de Qualquer Outro Lugar?
Jeb enfia o cabo da rosa no bolso, então segura a camisa pela cintura e começa a desabotoá-la completamente.
— Sim. Pintei algumas para o País das Maravilhas antes de irmos embora, quando reinventei as paisagens. Morfeu as pediu. Não há dúvida de que foi ele quem mandou aquela lagosta de pedra para cá.
É difícil acompanhar a conversa porque só consigo ver as roupas molhadas grudadas no corpo musculoso de Jeb a cada movimento.
— Então... você mergulhou no oceano para recuperar as alianças?
— Tentei, mas não consegui pegar a ladra. — Ele tira o tecido ensopado dos ombros e braços, revelando uma barriga de tanquinho molhada e gotículas presas nos pelos de seu peito. — Pedi à sua mãe que entrasse em contato com a Marfim pelo espelho do quarto dela. Ela tinha uma flauta mágica no castelo. Eu a vi lá. Descobri que o instrumento funciona nos moluscos do nosso mundo também. Eles trazem as lagostas até a praia. Os anéis agora estão seguros. Corb vai manter a almofada com ele até a cerimônia.
Penso nos moluscos que conhecemos no País das Maravilhas na nossa primeira visita... como toquei uma flauta que os convocava e lhes dava ordens. Como, num só movimento, eles vieram nos resgatar quando estávamos sendo perseguidos por um exército e levaram nossos perseguidores para longe, numa confusão de conchas batendo-se umas nas outras. Sou ainda mais grata agora do que antes. Só espero que ninguém tenha visto nada.
— Não se preocupe com os convidados — tranquiliza Jeb, como se lesse meus pensamentos. — Seu pai manteve todos ocupados. Ele os levou por um passeio ao outro lado da praia, onde os barcos ficam ancorados.
O alívio toma conta de mim. Mas por pouco tempo, considerando que todos vão me ver em breve.
— Não devemos falar do elefante voador na sala? — pergunto, batendo as asas.
Jeb joga a camisa molhada no braço da cadeira de madeira. Seu pomo de adão se move quando ele engole em seco lentamente.
— Você se refere ao fato de você ser a mulher mais radiante e mágica que já vi?
Mulher... Acho que ele nunca me chamou assim. Seu olhar é tão intenso que minhas pernas fraquejam. Aproximo-me da cama, precisando de apoio contra elas.
Seu olhar se detém nos meus lábios azuis.
Eu os esfrego.
— Foi uma bobagem. Comi um bolinho que veio do nada... Sei que não devo comer nada estranho.
— Não. Morfeu teria encontrado uma maneira de fazer isso com ou sem você comendo o bolinho. Ele está deixando claro uma coisa. Provei meu valor como marido do seu lado humano depois de quase morrer por você mais de uma vez. Mas ele quer que eu seja digno do seu lado intraterreno também.
Fico boquiaberta
— Foi o que ele disse no meu sonho!
Jeb tira a rosa do bolso e arranca uma das pétalas.
— Compartilhei da mágica dele uma vez. Sei como ele pensa. Ele provou seu amor por seu lado humano ao não deixar a Marfim coroá-la e destruí-la. Então ele quer que eu prove meu valor como ele provou o dele. Não tenho problemas com isso. Será uma honra me casar com você hoje, diante de Deus e de todos, com suas asas e outros atributos intraterrenos à mostra.
Por mais sinceros e admiráveis que sejam os sentimentos dele, não consigo compreender a lógica de tudo.
— Mas isso... — Abro as asas às minhas costas e elas lançam sombras sobre nós dois. — Não sei como encarar uma plateia de humanos sem me entregar. É impossível.
— Nada é impossível. Você me ensinou isso há muito tempo. Pelo lado bom, sabemos que o efeito do bolinho é temporário. Morfeu se importa demais com seu coração para colocá-lo em risco arruinando sua capacidade de viver uma vida de realizações aqui.
Mordisco meu polegar, tomando o cuidado para não estragar o meticuloso trabalho de manicure de Jenara.
— Temporário pode ser qualquer coisa entre algumas horas e todo um dia.
— Verdade. O efeito vai permanecer ao menos durante a cerimônia. Mas podemos lidar com isso. Só deixe que eu me preocupe com o que todos pensam ou veem. Vou dar um jeito nisso com criatividade humana e um toque de mágica.
Um toque de mágica.
— Espere um pouco... você não vai usar seu desejo, não é?
— Não. Prometo a você que eu saberei a hora certa de usá-lo. Sua mãe e Corb estão levando os portais-espelhos a algumas lojas de fantasias.
— Para quê?
— Surpresa. — Ele olha para a porta atrás e depois se volta para mim. — Tenho que sair antes que a Jen volte. Eu deveria apenas deixar minha camisa pendurada na maçaneta para ela limpar as manchas e passá-la. Ela vai ficar louca se souber que vi você antes do casamento... mas queria lhe dar os parabéns pelo aniversário. — Ele estende a rosa, um pouco distante demais para eu pegá-la.
— Chegue mais perto — peço.
Sua mandíbula bem barbeada treme.
— Já foi ruim o bastante tê-la visto. Vai saber a confusão que vou provocar se tocar em você.
— Vamos descobrir.
A expressão dele ganha força e desejo. Ele joga a cadeira para o lado e se aproxima de mim.
As lufadas de vento carregam o perfume dele misturado ao da rosa. Ele para a poucos centímetros de distância, a mão livre tamborilando ao lado do corpo, como se pensasse nas alternativas. Uma tensão doce e torturante se estabelece entre nós dois — como a calmaria antes de uma tempestade de raios. Três mechas de cabelo se soltam do nó na minha nuca e o envolvem junto com a rosa. Uma mecha traz a rosa até mim e eu a pego com a mão direita.
Jeb observa, encantado.
Tento conter as outras mechas que se prendem nele, mas ele segura meus pulsos e leva minhas mãos à boca.
— Deixe estar — murmura ele contra minhas cicatrizes e leva a mão à minha nuca para soltar o restante das mechas. — Você sabe que eu a amo assim. — Sua voz arranha, áspera e rouca.
Meus cabelos nos cercam, furiosos para se libertarem. Eles dão a volta nos bíceps, ombros e cintura dele. Com força e cuidado, unem nossos corpos seminus, e os lábios dele encontram os meus. Ele tem sabor de oceano, cidra e chocolate. Ele andou experimentando a comida da festa.
Solto a rosa e passo as mãos em seu peito. A pele dele está molhada e quente, e seus músculos se contraem.
— Isso vale qualquer azar — sussurro contra sua boca cheia e macia, retribuindo seus beijos quentes.
— Nunca tivemos sorte mesmo — sussurra ele de volta, nos derrubando na cama, mas tomando cuidado para não esmagar minhas asas. — Mas somos muito bons em fazermos nossa sorte.
Ele me deita de costas, o peso dele me prendendo na mais deliciosa das armadilhas. Seu joelho abre caminho entre minhas pernas, as calças molhadas esbarrando em minha calcinha. Uma brisa sopra sobre nós dois, gelada em minha pele nua. É tão estranho queimar como um forno, mas ainda assim ficar arrepiada.
As mãos de Jeb pairam sobre minhas curvas — um território íntimo que ele conhece, mas que ainda tem de explorar completamente.
— Você está com frio — diz ele, enquanto sua boca avança pela carne gelada do meu pescoço.
Sinto meus ossos se liquefazendo e meu sangue virando lava.
— Longe disso — respondo, ofegante.
Com os olhos cheios de desejo, ele vira para o lado, me soltando. Põe a mão nas minhas costas e puxa um canto do lençol lavanda e azul-turquesa, cobrindo meu corpo e as asas e separando nossa pele.
Eu gemo.
— Jeb. Não quero nada nos separando.
Seus dedos contornam meus lábios.
— Depois da cerimônia, não haverá nada. Você será minha hoje à noite e será como sonhamos.
Meu corpo se incendeia, faíscas de ansiedade iluminando todas as partes do meu corpo que ele já tocou. Estou prestes a lhe dizer que será ainda melhor do que imaginamos — porque ele pode literalmente compartilhar meus sonhos se adiarmos o casamento —, quando a porta se abre.
— Ah, o que é isso? — grita Jenara.
Jeb se levanta apressadamente e me lança um sorriso tímido, enquanto sua irmã o expulsa do quarto.
— Eles voltaram? Eles encontraram tudo? — pergunta ele antes de ela lhe dar um empurrão.
Jenara faz uma cara feia.
— Sim, sim. Não que isso importe, agora que você provocou o destino ao vê-la.
Mais uma vez, Jeb põe a cabeça para dentro do quarto e ri para mim.
— Como se o destino tivesse algo a ver com a rainha-fada.
Sorrio de volta, ainda saboreando os beijos dele.
— Me encontra na praia ao pôr do sol? — pergunta ele.
— Nem mesmo um ataque de pássaros Jubjub me impediria — respondo.
Ele ri e desaparece, me deixando com uma dama de honra mal-humorada, mil perguntas e um coração iluminado.
CONTINUA
Capítulo 2
Auge
PRIMEIRA MEMÓRIA: PEDRAS
Sessenta e três anos antes...
É manhã no País das Maravilhas e Morfeu está me acompanhando de volta ao castelo da Marfim, onde minha família e Jeb esperam para passar comigo pelo portal, de modo que eu possa viver o restante da minha vida humana.
Meu acompanhante está pensativo e quieto, suas feições duras como pedra. Não trocamos nenhuma palavra durante o trajeto encantado. O som das asas da mariposa criando uma trilha no céu só intensifica o silêncio constrangido.
Sinto um aperto no peito, como se meu coração estivesse tentando alcançá-lo. Sei que, se olhasse sob o tecido sedoso do meu vestido preto e sob o paletó que ele insistiu em usar para se aquecer, o órgão estaria brilhando em tom violeta. Ontem mesmo, meu coração estava dividido ao meio — os lados humano e interior se matando — por causa da maldição que a Rainha Vermelha jogou sobre mim. Jeb e Morfeu intervieram, combinaram suas mágicas e me curaram com suturas encantadas. Eles salvaram minha vida com o amor. Meu corpo entende isso de alguma forma primitiva e eu jamais esquecerei. Meu coração está ligado aos dois agora, formando um elo que vai além de qualquer explicação humana.
Contudo, mesmo sem esse elo, eu era capaz de decifrar as joias no rosto de Morfeu e de saber no que ele está pensando. Acordei mais cedo em sua cama e o encontrei sentado na beirada do colchão, acariciando os cabelos nas minhas têmporas. Antes mesmo de poder lhe dar bom-dia, ele me beijou na testa e se afastou, dizendo que o café da manhã estava pronto.
Passamos a noite juntos, mas nada físico aconteceu entre nós. Nada acontecerá por muitos anos. Não até eu ter vivido minha vida humana com Jeb.
Deixei minha posição sobre fidelidade bem clara; mesmo assim, Morfeu deixou claro que não vai facilitar as coisas. Apesar de seus desafios penderem como fios soltos, o respeito que estabelecemos está firmemente junto a mim. Sei que ele jamais me pediria que traísse os humanos que amo — porque isso é parte de quem sou —, por mais que ele sofra ao recuar e me deixar em paz.
Depois de visitar as paisagens do País das Maravilhas juntos, noite passada, eu o entendo como nunca o entendi antes. E é o mesmo para ele, porque assim que chegamos e ele segura minha mão para eu descer da carruagem, não hesita em me acompanhar até a entrada de gelo onde Jeb me aguarda no topo da escadaria coberta de cristais de neve.
Prendo a respiração ao vê-lo. Ele está usando um smoking azul-marinho completo, com uma camisa violeta que complementa seus cabelos ondulados escuros e o tom oliva de sua pele. A mesma camisa transformada em cueca em Qualquer Outro Lugar.
O smoking está exatamente como na noite da festa de formatura: teias falsas, listras sujas e rasgões colocados estrategicamente no paletó e nas calças. Por um momento, sou levada de volta ao Submundo, onde o vi pela primeira vez esperando por nós na noite de formatura na entrada dos funcionários, e sua expressão magoada diante da minha traição. Jamais provocarei um olhar daqueles novamente.
Estranho. Da última vez que vi o smoking, foi com o dublê de Jeb em Qualquer Outro Lugar. Quando CC caiu na piscina de medos, as roupas se desintegraram. Jeb deve tê-las consertado antes de desistir do seu talento para sempre.
Talvez tenha sido sentimentalismo, porque a irmã dele é quem fez o smoking, ou provavelmente porque ele queria estar usando algo conhecido quando passássemos pelo portal e voltássemos à vida de sua família.
Ainda assim, mesmo usando roupas do reino humano, ele parece triste e deslocado ao esperar que eu suba as escadas. Ficar ali de pé à luz do dia, vendo as belas paisagens que ele criou neste mundo, deve ter sido horrível. Desistir de sua musa deve ser a coisa mais sofrida que ele já fez. E ele fez isso sem hesitar, para ajudar a equilibrar o País das Maravilhas... para alimentar as almas insaciáveis da Irmã Dois com seus sonhos artísticos.
Não tenho certeza se ele pensou nas consequências desse sacrifício. Mas estarei aqui para ajudá-lo a passar por isso.
Enquanto Morfeu e eu subimos a escada a caminho de Jeb, passamos por seres intraterrenos que vieram acompanhar minha partida. Alguns deles são inesperados.
Hubert, decorado e lustrado como um ovo Fabergé numa vitrine de Páscoa, estende a pata de louva-a-deus para cumprimentar Morfeu.
— Ainda é mais fácil para mim odiá-la — diz o homem-ovo para Morfeu, como se eu não estivesse por perto. — Rainha sabe-tudo. Nada de educação ou cultura naquela cabeçorra dela. Ainda assim ela conseguiu provar que eu estava errado. Tinha tanta certeza de que ela acabaria num caixão. Que decepção. — Apesar do sarcasmo, seus olhos amarelados refletiam admiração. Para minha surpresa, ele me oferece, por toda a vida, um suprimento de ovos beneditinos em seu ilustre hotel mágico, se um dia eu o visitasse.
Depois, cumprimentamos os estranhos seres intraterrenos clandestinos que ficaram presos no trem da memória três dias antes. Todos fazem reverência e me agradecem por abrir a toca do coelho para eles poderem voltar para casa. Meu nariz coça quase a ponto de me fazer espirrar quando passamos pelos coelhinhos de pó.
Bill, o Lagarto, nos para no meio do caminho. Ele estende dois trajes de disfarce que pedi a Grenadine que o devolvesse.
— Desculpe por ter perdido um... por tê-los roubado, antes de mais nada — sussurro, envergonhada.
Ele balança a cabeça reptiliana e mostra a língua comprida.
— Sou um súdito da Corte Vermelha. Assim, eles pertencem a você, Majestade. Seus talentos como ladra perdem apenas para o uso da sua mágica. Você os usará agora melhor do que eu jamais os usaria.
Impressionada, coloco a mão no peito. Sob meu vestido, o colar com a chave que abre meu reino pressiona minha pele.
— Mesmo?
Bill estende os trajes.
Olho para Morfeu.
Ele sorri e faz que sim, me encorajando a pegar o tecido transparente. Eu o guardo debaixo do braço e agradeço ao lagarto, que se curva para nos deixar passar. O Rábido está esperando por nós no degrau de cima — usando casacão e calças vermelhas. Ele abre os braços para levar os trajes para mim. Meu conselheiro cavalheiro. Ao subirmos, acaricio a pele macia entre seus chifres.
Guardas elfos se enfileiram na segunda metade da escada, dos dois lados. Eles sacam as espadas e tocam as pontas delas no topo das cabeças, formando um corredor prateado brilhante.
Jeb me aguarda no fim, tenso como se o fato de não poder correr até mim o estivesse matando.
Enquanto Morfeu e eu subimos a escada sob as sombras das espadas, meneio a cabeça para Jeb, num sinal de reconhecimento. As bolsas sob seus expressivos olhos verdes provam a falta de sono. As doze horas que passamos separados devem ter sido uma tortura. Por mais forte que ele estivesse quando demos boa-noite, é óbvio que ele temia que fossem despedidas de verdade. Que eu decidisse passar meu futuro no reino humano sozinha, sem ele.
Não posso estar no mesmo mundo que ele todos os dias sem tê-lo na minha vida. Nós nos amamos. Nós dois queremos a mesma coisa. Vamos dividir esses sonhos e envelhecer juntos. Uma vida mortal é preciosa e curta em comparação à eternidade. Ela deve ser vivida e nunca desperdiçada. Algo que Morfeu agora entende como nunca antes, senão não estaria me deixando partir sem lutar.
Sinto o rosto adormecer, menos pelo frio e mais pela situação insuportavelmente incômoda na qual coloquei os dois. Eu me lembro de que esta é a pior parte... que, depois que eu passar pelo portal e entrar no reino humano, minhas duas vidas vão se misturar e ao mesmo tempo jamais se cruzarão, a não ser que seja necessário à segurança ou ao bem-estar de alguém. Foi com o que concordamos.
Uma cama de gelo se gruda na sola das minhas botas assim que subo o último degrau. Os cavaleiros elfos nos saúdam e guardam as espadas nas bainhas de couro. O sangue que lhes decora os rostos e têmporas brilha como fruta contra o cenário branco que os cerca. Batendo os calcanhares, eles descem as escadas para cercar o castelo e assumir seus postos.
Franzindo a testa, Morfeu oferece minha mão a Jeb. É um gesto estranho, grandioso e cheio de dignidade, como se ele caminhasse comigo pela nave e me entregasse em casamento. De certa forma, é. Durante uma vida humana.
Suas asas farfalham quando Jeb segura minha mão, um espasmo involuntário. Ele está lutando para não pegar minha mão de volta.
— Você conhece o protocolo... se algo acontecer ao seu corpo no seu mundo, você ou Alison devem entrar em contato comigo imediatamente. O espírito de Alyssa deve ser protegido para sobreviver.
Jeb faz que sim com a cabeça.
— Entendi. — A resposta dele é sucinta e seu tom de voz, controlado, mas a preocupação em sua expressão o entrega. É algo em que não gostamos de pensar, algo que esperamos que nunca tenha de ser resolvido.
O olhar rosa do Rábido se vira para mim, seu rosto branco entusiasmado. Eu o mando porta afora para resgatá-lo de ter de tratar de assunto tão mórbido.
Morfeu espera pelo toque dos ossos para desaparecer dentro do castelo, depois pega um par de luvas do bolso, colocando-as na mão.
— E acho que é desnecessário lhe dizer para tratá-la como uma rainha — resmunga ele para Jeb.
Jeb entrelaça nossos dedos.
— Assim como é perda de tempo lhe pedir que abandone as táticas de sedução nos sonhos dela.
— É ciúme o que ouço em sua voz, belo e falso elfo? Nunca tema. Ainda pensarei nela todos os dias, enquanto ela estiver com você.
— Prefiro que você pense em mim todas as noites, quando ela estiver com você. — Jeb me ajuda a tirar dos ombros o casaco de Morfeu, substituindo-o pelo paletó do seu smoking, ainda quente do calor do seu corpo. — Enviarei uma coruja como lembrete. — Ele devolve o casaco a Morfeu.
Morfeu pega o casaco e o dobra no braço, alisando-o. Ele ri uma risada triste e vazia.
— Vou sentir falta das suas tentativas equivocadas de fazer trocadilhos.
Jeb abre um sorriso forçado.
— Não tanto quanto eu sentirei falta de sua condescendência pomposa.
Eles se encaram, uma mistura de distração e comedimento em suas expressões. Um respeito de má vontade une a tensão — uma ligação que aumentou sem eles perceberem ou encorajarem, durante o mês que eles passaram juntos em Qualquer Outro Lugar.
— Vocês dois querem ficar sozinhos? — pergunto, desesperada para que ponham um fim ao estranho diálogo.
Morfeu estreita os olhos.
— Eu a verei hoje à noite, Alyssa. E, a partir de agora, quando você estiver comigo, espero que sua mente seja como era na nossa infância. Atenta às questões do País das Maravilhas, e não à confusão do reino mortal. Lide com as coisas daqui para que elas não sejam uma distração quando você voltar às suas obrigações reais. Tem certeza de que não precisa da minha ajuda para limpar todas as bagunças? Tenho certa prática no manejo de humanos. — A risadinha arrogante que ele lança para Jeb está cheia de insinuações.
— Entendemos, Mariposinha — diz Jeb. — Entendo as sensibilidades inocentes deles melhor do que você. — Ele arqueia a sobrancelha, expressando sua própria mensagem cifrada.
Ouve-se um baque abafado na enorme porta cristalizada. Jeb e eu olhamos para trás, para o ponto de onde nossos pais estão espiando. Ambos parecem belos e descansados, mas também ansiosos.
Meneio a cabeça num cumprimento e eles acenam e então recuam para dar privacidade a nós três.
Jeb se vira, seu braço me segurando pela cintura.
— Você vem nos visitar, Morfeu?
Morfeu encara enfaticamente Jeb. Suas marcas de joias brilham numa paleta pastel, como um pôr do sol reluzente. A resolução pisca dentro de seu olhar carregado.
— Não quero chegar nem perto do portal. Já tive o bastante do seu reino estagnado para esta vida e um pouco mais.
— Espero que você esteja falando sério — diz Jeb. A frase não é ferina, só sincera.
— Ah, com certeza falo. Exceto pela parte preciosa do seu mundo, que um dia pertencerá somente a mim. — Morfeu ergue o chapéu na minha direção e as mariposas cinza-azuladas na borda tremem como se fizessem reverência. Ele se vira e desce as escadas, as asas se arrastando pela neve como uma capa, e parte de mim sofre com uma tristeza profunda.
Um vento ganha força, gerando um redemoinho de neve.
É melhor estarmos saindo pelo portal da Marfim. Esta partida sofrida seria acrescida dos rostos de todos os meus súditos me olhando. Noite passada, ao visitar o Castelo Vermelho, optei por não me despedir deles. Eu me sentiria fadada demais e de certa forma estranha. Consolo-me em saber que eu verei a eles e Morfeu em meus sonhos.
Depois que a carruagem movida a mariposas decola, Jeb se vira para me encarar. Ele leva minha mão à boca e acaricia os nós dos dedos. Seu olhar intenso passa por todos os meus traços, dos olhos ao nariz e lábios, como se estudasse uma pintura novamente.
O silêncio revira meu estômago.
— Você vai perguntar?
— Perguntar o quê? — diz ele contra a minha mão.
— Se algo aconteceu. — Meu tempo com Morfeu parece algo privado e secreto, mas se Jeb, para reaver a calma, precisar ouvir sobre o que conversamos e os lugares que visitamos, me abrirei e serei honesta.
Jeb entrelaça nossos dedos novamente.
— Você segurou minha mão hoje e está ao meu lado. Isso me diz tudo o que preciso saber. Você é uma rainha e tem responsabilidades. — A admiração por trás de suas palavras me surpreende, mas não deveria. Não levando em conta os laços emocionais dele com meu mundo. — Não preciso saber de tudo sempre que você volta. Você me diria se algo nos afetasse ou afetasse sua vida.
Sorrio, surpresa com a fé dele.
— Diria. Direi. E obrigada.
Ele cuidadosamente segura os cabelos à minha nuca e junta nossas testas.
— Eu é que agradeço. — Sua voz, grossa e rouca de emoção, forma uma névoa entre nós. — Obrigado por voltar para mim.
Acaricio seu rosto e a pouca barba em seu queixo.
— Certo, não vou me sentir como se você precisasse de uma atualização sempre. Mas, por favor, não pense que você precisa agradecer todas as manhãs em que eu acordar ao seu lado. Quero que sejamos normais.
— Normais. — Ele recua e ri, as covinhas finalmente aparecendo. — Isso vindo de uma menina que ganhou asas e que me deu um colossal chá de cueca enquanto surfávamos nas areias do País das Maravilhas. Quando é que isso foi normal, hein?
Bufo, lembrando-me de que não podia carregá-lo pelo precipício e tive de deixá-lo para trás, que, por mais que ele estivesse com tanto medo quanto eu, ele me fez rir e me deu forças para que eu fizesse o que julgava impossível. Como agora.
O sorriso desaparece aos poucos, fazendo seu piercing nos lábios brilhar à luz. Eu o toco, acariciando o metal quente, de modo que seu bigode pinica meu dedo.
Esse ato íntimo e sensual me atinge com uma verdade quase que inconcebível: não há nada se colocando entre nós dois agora. Nossa vida juntos começará hoje, assim que cruzarmos a fronteira. Estou ao mesmo tempo feliz e emocionada.
— Estou pronta para minha aliança — consigo dizer em meio ao nó na garganta.
Sua expressão ganha sobriedade. Tirando a corrente por baixo da camisa, ele a passa pela cabeça e tira o anel. Com os olhos nos meus, ele coloca o anel de prata na minha mão direita, onde ele permanecerá até que ele o coloque na minha mão esquerda depois de declararmos nossos votos maritais. Os diamantes brilham — um coração alado — e meu coração parece bater asas como se pudesse voar.
O anel se encaixa perfeitamente ao meu dedo e parece um cartão de boas-vindas.
— Você sempre foi minha segurança — sussurra Jeb, colocando o polegar na covinha do meu queixo e me puxando para um beijo carinhoso e doce. Passo a mão pelos cabelos dele e o saboreio, ele sem perfume ou tinta ou terebintina. Só ele. Humano, masculino. Jebediah Holt.
Eu poderia me afogar na doçura da simplicidade.
Com nossos peitos unidos, meu coração costurado brilha e cantarola, tentando diminuir o espaço entre nós. Seu corpo fica tenso, como se ele sentisse a atração.
Ele interrompe o beijo e segura minha cabeça contra seu corpo, a barba por fazer em seu rosto arranhando minha têmpora.
— Tenho algo para lhe mostrar. — Seus lábios acariciam minha orelha e me aquecem toda. — Quis esperar até que estivéssemos juntos. Até que estivéssemos sozinhos. Mas acho que você precisa ver agora. — Ele pega algo do bolso e revela o que parece uma bolinha de gude, apesar de ser macia como uma pérola de banho.
— Um desejo? — Enxugo as lágrimas do meu rosto com o dorso da mão, surpresa. — Como? Quando?
— Noite passada, na festa da Marfim, depois da nossa dança lenta. Um furão me puxou... lambeu meu rosto para me agradecer pelo que fiz pelo País das Maravilhas.
— Ah, meu Deus. Então foi por isso que você saiu mais cedo?
Ele rola a bolinha na palma da mão.
— Estava prestes a me acabar de chorar. — Ele segura a lágrima brilhante contra a luz. — Não poderia permitir que a Rainha Vermelha me visse berrar como uma menininha.
Solto uma risada inesperada, alheia em meio à confusão inesperada de emoções.
Jeb franze a testa, pensativo.
— Podemos usar isso para nos ajudar a arrumar as coisas no reino humano.
Meu sorriso de felicidade desaparece.
— Não. Este desejo só pode ser usado para você.
— Fiquei envolvida com Morfeu por um mês. A única coisa que aprendi é que a mágica é flexível. É tudo uma questão de estilo.
Balanço a cabeça e cubro a mão dele, escondendo sua lágrima.
— Mágica é preciosa. Você tem de guardar isso, Jeb. Você pode desejar tantas coisas! — Paro, porque nós dois sabemos que há duas coisas monumentais que não podemos pedir. Ele não pode recuperar sua musa sem desequilibrar o País das Maravilhas de novo. E não pode pedir para vivermos para sempre. A mágica não mudará quem se é por dentro. Ele optou por perder sua imortalidade abdicando dos poderes da Vermelha. Ele é mortal e não há como mudar isso agora. — Jeb, não desperdice o poder. Guarde para algo importante.
Ele fica mais sombrio e sei que já esteve enfrentando os mesmos pensamentos. Ele guarda o desejo no bolso e trava a mandíbula.
Antes que possamos dizer algo, as portas do castelo se abrem e a mamãe e o papai surgem. Fico chocada ao vê-la usando o mesmo vestido de costas expostas usado na festa de formatura. Apesar de o chiffon da saia e as mangas estarem avariados por causa da luta dela com o coveiro de oito patas do País das Maravilhas, o vestido ainda está intacto.
Franzo a testa, pensando em tudo.
— Espere aí. — Aponto para ela e para Jeb. — Então... vocês estão usando as mesmas roupas que usavam quando desapareceram. Isso é um plano?
— Sim. Jeb pensou nisso — responde a mamãe. — Ainda precisamos pensar nos detalhes. Mas primeiro... — Ela e o papai me puxam para um abraço.
Depois de um abraço longo e apertado, celebramos as notícias. O papai brinca com Jeb, dizendo que ele quase teve de vender um rim para comprar o anel de noivado da mamãe, no que esta lhe dá uma cutucada, fazendo-o soltar um ganido. E então ela segura cuidadosamente minha mão direita para admirar meu dedo anelar.
Ela olha meu rosto. Sei o que ela está vendo: a mesma ansiedade pela vida humana que ela sentiu com o papai depois de salvá-lo da Irmã Dois. O sorriso dela é tão cheio de esperança que eu poderia estar olhando diretamente para o sol.
Quando ela se vira para dar um abraço de improviso em Jeb, o papai me puxa de lado.
— Borboleta — diz ele, ajeitando uma mecha solta de cabelo atrás da minha orelha.
— Papai — falo, segurando a mão dele e mantendo-a perto do meu rosto.
Ele balança a cabeça.
— Em meio a toda esta loucura... Não tive a oportunidade de dizer quanto tenho orgulho de você, Alyssa Victoria Gardner. — A ternura em seus olhos castanhos me lembra de como nós dois enfrentamos o mundo juntos na minha infância e de como sempre me senti segura. Se ao menos eu soubesse que minha vida era protegida por um cavaleiro de verdade. — Minha menininha é uma rainha. Uma rainha do País das Maravilhas.
Sorrio.
— Ligeiramente diferente das minhas versões fantasiosas, não?
O papai ri e me beija na cabeça.
— Pode-se dizer isso. Mais como uma ninja.
Solto um riso e dou-lhe um abraço, aconchegando-me em seu calor e força.
— Está pronta para ir para casa? — pergunta ele, acariciando minhas costas.
— Bom, não exatamente casa — emenda a mamãe, voltando ao meu lado. — Temos de fazer um desvio.
— Desvio? — pergunto, enquanto ela e eu entramos de braços dados no castelo, com os caras atrás de nós. Nossos sapatos batem no chão vítreo. A Marfim está no alto da escadaria de cristal, onde o portal me aguarda no fim de um corredor. O Rábido está ao lado dela, com Finley do outro lado, a mão às costas, sob as asas.
— A casa de Jeb vai ser a primeira parada — responde a mamãe enquanto subimos os primeiros degraus.
Fico intrigada por um instante, até que me cai a ficha de tal manobra.
— Para podermos descobrir se há alguma atividade policial em nossa casa. Muito inteligente.
— Mais do que isso — corrige o papai atrás de mim. — Vamos precisar de ajuda externa para explicar a ausência da mamãe e de Jeb por um mês, assim como sua fuga do sanatório. Se não fizermos isso, posso ser preso por ajudá-la a fugir enquanto você era suspeita do desaparecimento deles.
— Ajuda de quem? — pergunto, segurando-me ao corrimão frio de vidro. Isso está começando a parecer mais complicado e perigoso do que eu imaginava. Nunca pensei no papai sendo preso. Talvez devêssemos ter levado Morfeu a sério em sua oferta.
— Ajuda de alguém que esteja trabalhando com a polícia na investigação — responde a mamãe. — Uma pessoa que não seja suspeita e tenha a confiança de todos por estar sofrendo a morte do irmão e da melhor amiga desde que foram dados como desaparecidos.
Meu sangue se intensifica em meus pulsos ao olhar para trás e ver Jeb subindo a escada ao lado do papai.
— Você não está falando de...
O sol entra pelas paredes cristalizadas e ressalta os traços de Jeb, ampliando a resolução cautelosa ali.
— A não ser que você pense em outra forma, Al — diz ele, uma referência óbvia ao desejo no meu bolso. — Vamos ter de contar a verdade a Jen. Tudo.
Apesar de não falar em voz alta, não estou disposta a deixar Jeb abdicar de seu desejo por ninguém nem nada. Depois da violência que ela enfrentou na vida, Jenara é durona. Ela também acredita no poder dos cristais, em vodu, tábuas Ouija e tarô. Ela está a um milímetro de ser considerada louca. Torná-la um ser intraterreno honorário é a coisa mais lógica nesta situação ilógica. E, sinceramente, vai ser bom deixar de esconder meu lado País das Maravilhas da minha melhor amiga. Ela vai ser minha cunhada. Nossa vida familiar será menos complicada se pudermos falar abertamente sobre tudo.
Antes de passarmos pelo portal e entrarmos no reino humano, a mamãe, o papai, Jeb e eu discutimos o plano, já que temos lugares diferentes para ir.
Noite passada, depois que reabri os portais, durante meu passeio com Morfeu, e enquanto Jeb estava implorando um desejo, mamãe e papai foram ao reino humano e fizeram o reconhecimento. Da segurança do nosso sótão, eles esperaram para ter certeza de que a casa estava vazia e entraram na internet, reunindo todas as notícias possíveis sobre a tragédia no Submundo na noite da festa de formatura, o desaparecimento da mamãe e de Jeb, que aparentemente estava relacionado a isso, e minha fuga do sanatório um mês depois.
Um mandado de prisão foi expedido para mim e meu pai vinte e quatro horas depois da nossa partida. Éramos oficialmente procurados há três dias.
A informação mais útil foi a entrevista recente do sr. Traemont para o jornal local sobre a devastação de seu centro de atividades — paredes de concreto derrubadas, desabamento e vazamento de água. Ele levou duas semanas somente para avaliar completamente os danos. Chamou uma equipe de construção que originalmente transformara o velho e abandonado silo de sal no Submundo, para que pudessem dar pistas sobre o que deflagrou o acidente. Depois de analisarem as plantas, eles chegaram à conclusão de que, no alicerce, possivelmente havia um ponto fraco provocado pela mineração de sal décadas antes. O buraco que se abriu sugou tudo para um dos túneis de mineração sob a caverna subterrânea.
A conclusão fazia mais sentido do que a verdade que ninguém via: a rainha do País das Maravilhas deu vazão a uma nuvem de espíritos de pesadelo que sugaram o centro de atividades para a toca do coelho com tanta força que metade da caverna implodiu.
Como certa vez eu disse a Morfeu, muitos humanos preferem acreditar que estão sozinhos no Universo a admitir que pode haver uma plateia sobrenatural. E como ele comentou: o ego das pessoas é a própria fraqueza delas.
Com o acidente, o Submundo foi abandonado — todas as entradas para a gigantesca caverna foram condenadas e lacradas com fita policial para a segurança do público. É aqui que entra a ideia de Jeb. Ele disse que, meses antes do início da construção do centro de atividades, os túneis de mineração foram usados para guardar itens bélicos para uma base militar próxima: lenços umedecidos, kits de primeiros socorros, pentes, xampu, desodorante em pó, pasta de dentes, caixas de refeições desidratadas, sacos de sopa e garrafas de água. Ele viu isso dentro de um túnel depois que começou a trabalhar no local, e os suprimentos ainda tinham de ser retirados de lá.
Obrigada, procrastinação. O caráter humano nos deu nosso álibi perfeito.
Só tínhamos que magicamente remover pedras e destroços para entrar num dos túneis. Lá, podíamos montar a cena, como se a mamãe e Jeb tivessem ficado presos por um mês, vivendo à base de suprimentos militares. Era tão simples que beirava à perfeição. O fato de ninguém ter considerado essa possibilidade era inacreditável. Eles estavam tão ocupados investigando o suposto envolvimento da menina louca que não exploraram nenhuma outra teoria.
Quando a mim e ao papai, nossa história seria igualmente simples: consegui pegar as chaves dele e fugi do sanatório usando a entrada de jardinagem naquele dia, enquanto estávamos sem vigilância no jardim. Ele não teve tempo de pedir ajuda, então me perseguiu e subiu na caçamba do caminhão que eu dirigia. Eu o levei ao Submundo... e, lá, refiz meus passos na noite da festa de formatura. Depois de ver a destruição, uma lembrança horrível tomou conta de mim — a visão de Jeb e da mamãe sendo engolidos por uma avalanche de pedras e cimento.
Tive de suprimir isso... foi traumatizante demais encarar a morte deles.
Só que eles não estavam mortos. Porque, enquanto eu e o papai chorávamos na escuridão em meio aos destroços, ouvimos um barulho e o seguimos até um monte de pedras cobrindo uma abertura. Conseguimos cavar e nos reunimos a Jeb e à mamãe — mas a abertura era instável e mais rochas e pedras nos isolaram novamente: os quatro presos juntos.
Foi ali que o papai e eu estivemos nos últimos três dias.
A ideia de Jeb era brilhante. Até Morfeu teria ficado impressionado.
Então tínhamos um plano que só exigia minha mágica e a da mamãe e os dois trajes de disfarce. Fora isso, precisávamos de um catalisador: alguém para dar a dica da nossa localização aos policiais.
Era aí que entravam Jenara e a tábua Ouija.
Apesar de ser manhã no País das Maravilhas, é noite no reino humano. Envoltos em trajes de disfarce, meus pais entram primeiro no portal, parando na nossa casa para pegar um dos uniformes do papai e o traje de sanatório que mamãe tinha guardado, que será para mim. Estaremos usando as roupas nas quais fomos vistos pela última vez, para fazer o plano dar certo. Depois que a mamãe e o papai entrarem em casa, a próxima parada será no Submundo, para montar o cenário da nossa grandiosa revelação.
Jeb segura minha mão e me endireita, enquanto o Rábido e eu passamos com ele pelo espelho comprido atrás da porta do quarto de Jenara. Ele dá para uma janela que reflete a Marfim e Finley acenando adeus.
Antes de entrarmos, garantimos que Jenara não estivesse no quarto. Vamos ter de contar isso a ela aos poucos. Ela já ficará suficientemente chocada ao nos ver vivos e intactos.
Quando ela estiver pronta, eu lhe mostrarei meus poderes e características intraterrenos. O Rábido está aqui como suporte, para o caso de ela precisar de mais provas que não minhas asas para se convencer de que o País das Maravilhas é real.
Escondo meu colar com a chave. As tiras verticais rosas e brancas da parede de Jenara brilham com um tom prateado, folheado pelo luar que entra pelas cortinas translúcidas da janela arqueada. Silhuetas de trepadeiras de flores negras se prolongam pelo teto — sombras imaculadas pintadas pela mão hábil de Jeb há alguns anos. Um mural digno de um museu.
Eu o pego olhando para o mural antes de ficar sério e desviar o olhar. A tristeza na ação me dá um aperto no peito.
— Jeb. — Paro atrás dele e o abraço, a boca contra as roupas que envolvem seus ombros largos. — Você encontrará seu caminho. Prometo... você ainda tem tanto a oferecer a este mundo.
Ele fica tenso, mas cruza os braços, segurando meus cotovelos.
— Não sei direito como esquecer algo que antes me manteve são.
— Você não precisa esquecer. Esta parte sua ainda está intacta. Em molduras, pintada em paredes, desenhada em pedaços de papel. Sua musa vive aqui, por meio das pessoas que ficam felizes com sua obra de arte todos os dias. Isso é mais mágico do que tudo. Deixe que isso o mantenha são até encontrar um novo caminho.
Ele me vira de modo que ficamos de frente um para o outro e me beija.
— Você é muito inteligente para um ser intraterreno.
Eu rio.
— E você é bem durão para um humano. — Abaixo a cabeça dele para outro beijo.
O Rábido nos chama e nos encara com os olhos arregalados e fascinados.
Constrangida, recuo. O alívio momentâneo foi bom, mas sei que não será fácil passar por cima de tudo o que Jeb perdeu. É algo com o que lidaremos juntos, dia a dia, até ele reencontrar seu caminho.
Por enquanto, temos de cuidar desta situação com Jenara.
Jeb pigarreia, obviamente pensando na mesma coisa.
— Então acho que eu deveria olhar a casa.
— Você acha que ela está trabalhando? — Tiro minhas botas para permitir que o tapete rosa macio acaricie os dedos dos meus pés.
Ele abre a porta do quarto de Jenara e olha o corredor.
— Sei que a mamãe está. Ela sempre pega os turnos da noite. Vocês dois esperam aqui.
Assim que ele sai, deixando a porta aberta atrás de si, o Rábido sobe na cama de Jenara. Seus dedos magros enrugam o edredom preto e branco. A poeira rosa me lembra de como Jen e eu brincávamos de nos fantasiar neste quarto. De como inventávamos vestidos de noiva com lençóis e fronhas, contávamos segredos, comíamos bobagem e ficávamos acordadas até tarde.
Isso parece ter acontecido há tanto tempo.
Dois manequins brancos e sem rosto ficam diante da janela dela com luminárias em suas cabeças como chapéus. Jeb mexeu no interior e instalou lâmpadas nos crânios para criar abajures para o aniversário de quinze anos dela.
Acendo um deles, lançando uma luz branca estelar pelo piso de madeira e pela colcha da cama de Jenara.
— Ooooh. — O Rábido se levanta no colchão e dança em meio às formas criadas pela luminária. Encaro o espelho, vendo o reflexo dele no vidro. Ele é como uma bailarina macabra num globo de neve. Tão deslocado no quarto cheio de coisas normais e humanas.
Então vejo meu próprio reflexo. Minhas marcas intraterrenas nos olhos ainda não desapareceram completamente. Minha pele brilha e, se meu cabelo não estivesse preso numa trança, ele estaria agitado — vivo e encantado.
Sou uma alienígena.
Pensando bem, somos todos alienígenas agora. Até Jeb. Depois do que passamos e vimos, esta tranquilidade parece mais perigosa do que o caos que enfrentamos. Eu me pergunto se é assim que soldados se sentem depois de voltarem da guerra. Como eles superam? Como eles aprendem a fazer parte da comunidade novamente? A se sentirem seguros de novo?
Os zumbidos de alguns insetos interrompem minhas reflexões, um consolo bem-vindo. Fecho os olhos por um instante, mas os abro assim que um grito agudo do outro extremo do corredor me faz dar um salto.
Espanto o Rábido da cama e o mando para o armário.
— Não saia a não ser que eu o chame, sim?
Ele faz que sim, se escondendo numa pilha de acessórios de costura — mantas, cintos e tecidos — no chão.
Fico parada, os braços ao lado do corpo... presa.
O choro histérico de Jenara se aproxima à medida que Jeb a acompanha até a porta entreaberta. Ele fala num tom de voz carinhoso, tão baixinho que mal consigo ouvir o que ele diz. Meu coração bate em sincronia com as dobradiças que se abrem.
Quando eles entram, ela está abraçada a ele, segurando o colarinho da camisa, a cabeça contra seu corpo e o rosto escondido sob um véu de cabelos rosa molhados — recém-saídos do banho. Jeb deve tê-la surpreendido assim que ela saía do banheiro. Seu pijama verde de cetim me faz lembrar festas e jogos divertidos passados.
Sinto tanta saudade dela.
— Jen? — murmuro hesitantemente, sem saber o que dizer em seguida.
Ao ouvir minha voz, ela vira a cabeça na minha direção.
— A-Al? — Seu rosto rosado fica inchado quando ela tenta conter o choro. Ela perde a batalha e grita, correndo na minha direção.
Estendo o braço para abraçá-la e caímos no colchão juntas, as molas balançando sob nossos corpos. Recuperando o fôlego, me enterro no cheiro cítrico e doce de seu xampu. Um sorriso se irradia do meu coração para meus lábios e eu a abraço com força, lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Lágrimas dela ou minhas... não importa. A sensação é maravilhosa.
Jeb esfrega as costas dela.
— J.
— Não, não, não, não. — Ela chora de encontro ao meu pescoço. — Não me acorde. Estou sonhando, estou sonhando.
Ele coloca um dos joelhos na cama, ao lado de nossos corpos unidos, e a preocupação em seus olhos basta para me fazer esquecer que um dia partimos.
— Tudo bem, Jen. Não é um sonho — garanto a ela. — Estamos aqui.
Jeb acaricia a cabeça dela, intencionalmente tocando meu rosto com um dos dedos ao longo do processo. Ele não quer magoar a irmã — ele passou anos demais protegendo-a. Mas ele sabe que é o melhor para todos nós a longo prazo.
Ainda assim, é óbvio que ele está lutando e perdido, como o menininho que um dia foi.
Seguro a mão dele e o puxo, de modo que seu corpo caia ao meu lado direito. Ele se aninha tão próximo que seu hálito toca minha orelha. Coloca seu braço sobre mim e Jen, de forma que fico espremida entre as duas pessoas de que mais gosto. Juntos, nós três choramos e rimos até soluçarmos.
Pela primeira vez em semanas, estamos reunidos. Uma família.
Esta sensação. Talvez... é assim que voltamos ao normal.
Assim que Jenara se acalma, ela se senta, tentando recuperar o fôlego.
— Onde vocês estiveram? Procuramos em todos os lugares! — A acusação é direcionada a Jeb. — Achamos que vocês...
— Sinto muito. — Jeb se ajoelha, interrompendo-a antes que ela possa admitir que pensava no pior.
Fico onde estava, a coluna apoiada no colchão. Com medo de me mover.
— Al, talvez a gente devesse lhe contar tudo de uma só vez — diz Jeb, a voz trêmula.
— Incluindo como mandei você para lá? — Procuro as palavras certas e tropeço terrivelmente.
Verde e úmido, o olhar de Jenara recai sobre mim.
— Ãhn? — Sua expressão mostra que ela compreende. — Espere. — Ela sai da cama e se levanta, tonta mas determinada. — A polícia tinha razão? Você sempre soube onde ele estava? Mas por que você não...? — Ela chora de novo. — E quanto à sua mãe? Cadê ela? E seu pai? O que está havendo?
Estudo o rosto dela, manchado de lágrimas, seus cabelos rosa molhando a parte de cima do pijama, as três sardinhas no nariz. Ela parece tão vulnerável. Queremos mesmo envolvê-la nisso? Não haverá volta se o fizermos.
Jeb me obriga a me sentar.
— Você é a única que pode lhe mostrar. Faça-a entender.
Engulo em seco.
— Não sei nem por onde começar.
— Mais ou menos por aqui. — Ele passa o dedo pelas alças do meu vestido que revelam minhas omoplatas nuas. Meus botões de asa se arrepiam ao toque dele.
Fico com o rosto em chamas.
— Mas não posso simplesmente... precisamos prepará-la.
Jenara recua lentamente até a porta.
— Me preparar? Vocês estão me assustando. Vou chamar a mamãe. — A campainha toca e ela para, a expressão se iluminando. — Corbin — murmura ela, e se vira para o corredor para deixá-lo entrar.
— Não, J. — Jeb tenta impedi-la, mas ela o ignora.
— Espere, Jen! — Saio da cama. — Corb não pode estar aqui para isso.
— Por que não? — Ela se vira, as mãos na cintura. — Ele esteve aqui enquanto Jeb estava desaparecido. E enquanto você estava internada. Ele me ama, Al. Ele cuidou de mim e da mamãe. Tudo o que você me contar, pode contar a ele. — Ela se vira e atravessa a porta do quarto.
— Nós... nós fomos ao País das Maravilhas! — digo de uma vez, fazendo-a parar. Ela dá meia-volta no corredor, boquiaberta.
— Mostre suas asas — acrescenta Jeb, estreitando os olhos. Seus cílios compridos lançam sombras sobre seu rosto e as luminárias brilham em sua pele, fazendo-o parecer tão intraterreno quanto eu.
— Asas? — pergunta Jenara, voltando ao quarto. — Sério, mano? Você a quer trancada no sanatório de novo? Você não faz ideia do que ela passou enquanto eles tentavam tirar o País das Maravilhas da mente dela. Não dê vazão ao delírio dela!
— Al... — Jeb me leva até ela. — Você vai ter de se expor. Não há outra forma de fazer alguém acreditar. Eu precisei de um acidente na toca do coelho.
Ao ouvir a palavra coelho, o Rábido sai do armário, sua forma esquelética enrolada em mantas e cintos. Ele tropeça em Jeb, e os dois caem no chão. O Rábido se aproxima de mim ainda caído, parecendo uma lagarta louca com apenas seus chifres e olhos rosa expostos.
— Rábido, o Branco, sou eu! — Anuncia ele com sua voz fina, virando-se e tentando se libertar.
Jeb xinga e Jenara grita tão alto que todos os outros sons parecem abafados, como se meus ouvidos estivessem dentro de uma concha.
A porta da frente se abre e passos soam no corredor. Jeb se levanta para fechar a porta, mas é tarde demais. Corbin aparece ofegante, os cabelos loiros arruivados reluzindo sob a luz fraca. Ele traz uma chave na mão. Seus olhos recaem sobre o Rábido, que conseguiu se livrar dos acessórios do armário de Jenara e está ali de pé, exibindo toda a sua decrepitude intraterrena.
A criaturinha abre os braços com um floreio.
— Ta-da! — grita ele, com espuma saindo pela boca. Faço uma cara feia para o espetáculo. Morfeu deve ter lhe ensinado isso.
— O que está havendo? — pergunta Corbin com seu pesado sotaque sulista, segurando Jenara pelo cotovelo e puxando seu corpo trêmulo para o corredor.
Jeb franze a testa, atento à chave na mão de Corbin.
— Estava prestes a perguntar a mesma coisa. Por que você tem uma chave da nossa casa, Corb? Desde quando você mora com minha irmã?
Encaro Jeb. O meu lado intraterreno ri alto antes de eu conseguir me segurar, divertindo-me com o ridículo da situação toda. Parece que todos somos controlados por instintos. Para Jeb, dar à irmã e ao melhor amigo o maior susto da vida deles é algo que pega carona em seu instinto protetor de irmão mais velho.
O choro audível de Jenara traz meu lado travesso de volta. Pego o roupão da cadeira perto da mesinha de canto e o jogo para o Rábido. Ele resmunga e o cheiro de tecido queimado pontua o ar enquanto seus olhos se transformam em duas órbitas vermelhas por baixo, criando buracos fumegantes no pano.
— Nada de fogo, Rábido! — repreendo.
Ele “desliga” os olhos e se abaixa.
— Jeb? Al? — murmura Corbin, como se só agora tivesse nos notado. Ele parece perigosamente perto de desmaiar. As sardas em seu nariz parecem escuras contra o rosto pálido. Seu olhar azul intenso permanece fixo no Rábido agachado e agitado sob o roupão. — Onde vocês... como vocês...? Aquela coisa. Tem que ser um robô... certo?
— Rábido não robô é! — Meu conselheiro real reclama por baixo do seu esconderijo, ofendido.
— Para dentro do armário — ordeno. O Rábido resmunga algo indecifrável e desaparece, arrastando o roupão queimado atrás de si como a cauda de um vestido de noiva.
Jeb e eu trocamos olhares.
— Há sempre poções do esquecimento — sugiro.
Ele bufa, estudando Corbin e Jenara apoiados contra a parede do lado de fora do quarto, confusos e trêmulos para além de qualquer descrição.
— Perder suas memórias não é a única coisa que vai acontecer. Confie em mim.
— Então vamos contar a ele também — acrescento. — Isso, ou ele esquece e o mandamos para casa.
— Não vou a lugar nenhum sem a Jen — declara Corbin, a cor voltando ao seu rosto. Ele segura Jenara junto de si, enquanto ela esconde o nariz na camisa dele, tentando respirar normalmente.
Os lábios de Jeb ganham um sorriso lento e ousado.
— Não vai a lugar nenhum hoje à noite? Então você está planejando se dedicar a ela por mais um ou dois dias?
Corbin fica sério.
— Que tal para sempre? — Ele a abraça com mais força, puxando Jenara para tão perto que a calça do pijama dela adere em sua calça jeans, estalando por causa da estática.
— Para sempre é muito tempo — retruca Jeb, e a nota de tristeza na afirmação revira minhas entranhas, como se elas fossem uma harpa tocada pelos dedos dele. Fungando, Jenara se vira para olhar para o irmão, confusa. O humor de Jeb muda novamente e ele balança negativamente a cabeça, em um gesto de amor. — Parece que você arranjou um cavaleiro branco, mana.
Pego Jeb pelo pulso, no ponto onde uma cicatriz saliente substituiu sua tatuagem.
— Você não tem ideia de como esses dois são teimosos, não é?
Ele ri baixinho e entrelaça nossos dedos.
— Então, Corb. Quer fazer parte da nossa família? Que tal oficializarmos as coisas?
Corbin e Jenara estreitam os olhos em nossa direção, a respiração presa. A casa fica mortalmente silenciosa. Não se pode ouvir nada além do sussurro de uns insetinhos — numa frequência com a qual somente eu estou sintonizada — e dos resmungos do Rábido no armário.
Jeb ergue minha mão e beija minha aliança de noivado.
— O que vocês dois precisam saber sobre Al? — pergunta ele à nossa plateia. — Aquele sanatório nunca teve a chance de curá-la. Veja só, você pode tirar a menina do País das Maravilhas, mas não pode tirar o País das Maravilhas da menina. — Minha mão se separa da dele enquanto ele recua para me dar espaço. — Mostre o que você tem, rainha-fada.
Abro meu sorriso mais majestoso. E ali, no meio do quarto com faixas cor-de-rosa, com minha melhor amiga e o amor da sua vida de olhos arregalados, abro minhas asas intraterrenas e confesso todas as minhas mentiras.
SEGUNDA MEMÓRIA: CONCHAS
Quatro anos antes...
PLEASANCE, TX., 29 DE JUN. — Dois moradores de Pleasance dados como desaparecidos há um mês, juntamente com outros dois que desapareceram na última quarta-feira, foram encontrados vivos na manhã de sábado, apenas com ferimentos superficiais, presos num túnel de mineração que desabou sob um parque condenado.
Outra moradora, irmã de um dos desaparecidos e amiga dos demais, disse suspeitar da localização das pessoas depois de receber uma dica com sua tábua Ouija, de acordo com o policial Riley Hughes.
“Normalmente, não dou muito valor às bobagens espirituais”, disse Hughes. “Mas a menina ajudou a nossa investigação durante todo o mês de busca por seu irmão e vizinhos. Ela insistiu para que a gente ao menos desse uma olhada. Como vários desabamentos ocorreram no lugar às vésperas da festa de formatura da Pleasance High, e considerando que esse era o último lugar onde os desaparecidos foram vistos, achamos que valia a pena. Fomos lá sem esperar encontrar nada. Ponto para as conversas fiadas.
— Al, você está brincando comigo? — A voz fina de Jenara tira minha atenção do artigo de jornal de quatro anos atrás. Ao meu lado no sofá, uma ornamentada garrafa de vidro cheia de pedras que peguei durante nosso “resgate” do Submundo. Esfrego as têmporas, tonta por causa da viagem pela estrada da memória.
Jen atravessa a porta correndo e a fecha atrás de si.
— Não acredito que você ainda não pôs nem sua meia-calça! O que você tem? Vinte e um anos e já mostrando sinais de senilidade? Talvez você precise de um pouco de ar.
Ela abre a janela atrás de mim. Uma brisa salgada entra, abrindo as cortinas azuis com estampa de estrela-do-mar sobre minha cabeça. Meus cabelos esvoaçam, as ondas platinadas tocando meus ombros nus e meu espartilho branco de renda.
Passo a mão na borda da minha calcinha também de renda, surpresa por estar só de roupa íntima. O que eu estava fazendo antes de me sentar? Primeiro, comi o bolinho de aniversário que minha mãe deixou ao lado do cartão no criado-mudo.
Como se animada por meus pensamentos, a fôrma de papel do bolinho voa até o chão com uma lufada de vento e chega até os pés descalços de Jen. Ela o pega e franze a testa para mim.
— Hummm?
— Bolinho da minha mãe. — Lambo os lábios, ainda sentindo o sabor da cobertura azul de mel e anis.
Jenara amassa o papel e o joga no lixo.
— Então isso é você desanimadinha depois da euforia do açúcar?
— Talvez? — Tento me lembrar do restante da tarde. Depois do meu lanche, peguei o roupão para me vestir. Ao mexer na minha mala em busca do colar novo que tomei emprestado de Jenara para hoje, fui distraída pelas lembranças que trouxe comigo. De certa forma, acabei no sofá sob a janela, com um caderno e uma garrafa na mão.
Estudei o artigo de jornal novamente. Isso sou mesmo eu ficando deprimida depois de comer um monte de açúcar ou é outra coisa?
Sinto-me tão estranha. Meu corpo e mente estão relaxados, mas meu sangue é o oposto. Ele corre veloz nas veias sob minha pele — corredeiras jorrando de milhares de afluentes.
— Vamos lá, zumbizinho, me mostre algum sinal de vida — provoca Jen. — O sol vai se pôr em uma hora e ainda temos de ajeitar seu cabelo e maquiagem. E, para sua informação, aquela mancha de cobertura nos seus lábios não conta como seu “algo azul”. Para isso é que serve o elástico. Como vamos tirar isso? — O olhar dela se volta para a garrafa de pedras perto da minha coxa. Ela a pega e balança diante de mim. — Inacreditável. O Jeb está lá com Corbin enchendo os pés de areia, caminhando pelo litoral para verificar cada detalhe. E você aí, nostálgica.
Jenara falou de outras coisas além dos detalhes do casamento. Ela teve de abandonar um desfile de moda em Nova York dois dias antes do previsto para chegar a tempo disso. Ela esteve em contato constante com sua sócia, e a linha de roupa delas está fazendo barulho. Tenho a sensação de que a carreira dela está prestes a decolar para valer. Tentamos planejar o casamento de acordo com a agenda dela, mas esta era a única semana disponível da casa de praia. Então chegamos a um acordo e escolhemos o final do desfile. Eu disse que ela não precisava vir, mas ela respondeu que morreria se perdesse.
Mesmo agora, com ela me atacando com seu olhar verde mais severo, sei que não há outro lugar onde ela preferisse estar. Ela é uma visão da suavidade com seu vestido comprido florido. Seus cabelos rosa estão presos no alto da cabeça num coque chique. Rosas-anãs azuis estão colocadas em espaços estratégicos, formando uma auréola. Poucas mechas rosa se curvam em seu pescoço.
— Você está perfeita — digo a ela, encantada.
Ela tenta conter o sorriso e revira os olhos.
— Queria poder dizer o mesmo de você.
— Corb já a viu? — Minha pergunta é retórica. Os dois estão juntos há anos e, agora que Corb quase terminou a faculdade de publicidade, ele planeja se mudar com ela para Nova York no fim do verão.
No mês passado, ele pediu “a mão dela em casamento”. Usando uma armadura de malha de metal medieval, ele veio ao nosso duplex numa carruagem puxada por cavalos. Jeb o ajudou a reformar um velho Chevy que encontraram num ferro-velho. Eles pegaram o chassi e tiraram tudo, transformando-o numa charrete leve o bastante para ser puxada por dois cavalos brancos que Corbin pegou emprestados de um amigo. Depois de acrescentar arreios firmes, de substituir os pneus por rodas de madeira e de pintar a carcaça com um branco brilhoso com uma faixa vermelha, eles tinham a carruagem texana perfeita. Quando Corbin estacionou diante da casa de Jen com três dúzias de rosas na mão e lhe pediu que fossem ver o pôr do sol, ela quase desmaiou.
Era antiquado e moderno e, ah, tão lindo.
Perdida em sua própria nostalgia, Jenara admira o anel de noivado em seu dedo. Seu sorriso desabrocha, juntamente com uma atraente vermelhidão no rosto.
— Meu noivo aprova minha mais recente criação. Mas você é quem está prestes a ficar sob os holofotes. — Ela joga a garrafa cheia de pedras na minha mala aberta e vai ao armário pegar meu vestido. Jeb e eu decidimos que as belas criações de Jenara adquiriram uma má reputação na formatura e mereciam aparecer numa lembrança boa.
Ao longo das últimas semanas, Jenara realizou um ótimo trabalho costurando tecidos e retalhos com apliques diversos — um deles ela encontrou num antiquário, então isso era meu “algo velho”. Quaisquer manchas foram disfarçadas com corante de flores seguido por um toque brilhante. Agora o vestido branco sem alcinhas parece novinho. Ou tão novo quanto um vestido de noiva vintage pode parecer depois de ser modificado para se assemelhar a um tecido recém-tirado do túmulo.
— Vamos, Al, depressa! — repreende-me Jenara, perdendo a paciência.
Eu resmungo algo como resposta.
Ela joga a meia-calça lilás acinzentada na minha direção e ela voa por sobre minha cabeça, cercando-me como uma nuvem perfumada.
— Vou preparar a maquiagem — avisa ela. Ouve-se um barulho quando ela coloca a bolsa de maquiagem na mesinha, ao lado do cartão de aniversário da mamãe. — Talvez removedor de esmalte funcione com seus lábios.
Torço o nariz.
— Eca... sério?
Ela dá de ombros.
— Situações de desespero exigem medidas nojentas. — Do outro lado da redinha cobrindo meu rosto, ela escolhe sombras, delineadores, pincéis e blush.
Meu corpo parece leve, como uma nuvem flutuando. Em parte é felicidade... em parte, nervosismo... e alguma coisa mais. Algo que nunca senti antes.
Ou será que já?
A pele ao redor dos meus olhos dói, assim como a pele em minhas omoplatas.
Risadas abafadas e passos são ouvidos através da parede fina da sala de estar. A casa de praia que meu pai alugou tem sete quartos, um loft e quatro banheiros e meio, mas ainda assim não é grande o bastante para nossos convidados. Não consigo nem imaginar como ela ficará cheia depois que todos chegarem.
Reunindo energia, afasto a meia-calça e guardo o artigo de jornal de novo no caderno de recortes. Sinto-me tentada a folhear as outras páginas. A olhar as imagens de nossas exposições de arte — pinturas de edição limitada que Jeb jamais conseguirá replicar e meus mosaicos de vidros coloridos —, juntamente com fotos tolas dos últimos quatro Halloweens, Natais, piqueniques de verão, guerras de bolas de neve e pegadinhas universitárias. Só uma última olhada em nosso tempo juntos como noivos, capturado entre camadas de filme de polipropileno, antes de darmos início ao capítulo seguinte num novo caderno de recortes, decorado com cetim branco e um colarzinho de pérolas.
Toda a minha pele se avermelha, pensando no que vem depois da cerimônia. Não foi fácil esperar nos últimos anos, mas a vida já era bem complicada, tendo de enfrentar a dor de Jeb por ter perdido sua habilidade artística, indo para a faculdade e equilibrando meus deveres reais no País das Maravilhas com nossa vida humana. Nunca parecia a hora certa, até agora. Nós nos ajustamos a nossos novos papéis, aprendemos a fazer concessões sendo honestos e sempre estivemos emocionalmente presentes um para o outro. E, depois do compromisso físico de hoje à noite, nosso elo será inquebrável.
Não há forma melhor de dar início à nossa nova vida juntos do que isso: os braços fortes dele segurando meu corpo nu enquanto acaricio as cicatrizes do seu peito com o dedo, curando suas feridas a um só toque.
— Do que é que você tá rindo, Al?
Levanto a cabeça, sorrindo, apesar de tentar me conter.
Jenara bufa.
— Você não vale nada hoje, sabia? Supere isso. — Ela tira o caderno da minha mão. — A maioria das damas de honra não precisa usar seus talentos como vidente para preparar a noiva. Você vai me pagar mais por isso, não é?
Ergo as pernas para ela poder me ajudar com a meia-calça.
— Claro. Dez mil vezes mais do que o salário que combinamos.
— Humm, dez mil vezes zero... Sabia que deveria ter pedido a um advogado que desse uma olhada no contrato. — Ela segura a roupa enquanto enfio o pé, depois segura minha mão para me tirar do sofá.
Ao ajeitar o elástico sob o espartilho na cintura — de modo que a combinação caia abaixa dos joelhos —, aquela dorzinha entre os ombros aumenta e vira uma sensação de queimação. Antes que eu perceba que são meus brotos de asa, eles se abrem: um branco opaco, brilhando com joias coloridas, ocupando o espaço como asas de uma borboleta recém-saída do casulo.
Eu grito.
Jenara perde o fôlego, os olhos arregalados como moedas.
— Al, o que é isso? Você não pode fazer isso agora!
— Eu... não quis fazer isso! — Meu grito reverbera ao nosso redor.
— Shh. — Ela fecha minha boca com a mão e olha para a parede fina. Como não ouvimos nada além do zumbido das conversas dos convidados na sala ao lado, ela tira a mão. — Certo... Você terá uma audiência dentro de uma hora. Recolha as asas.
Tento, mas as asas não se movem.
— Não está dando certo. — Tento mais uma vez. — Não consigo. — Meu coração bate forte.
A expressão de Jen parece ainda mais preocupada.
— Ah, claro. Você está brilhando. E seus olhos... sério que você não está fazendo isso de propósito?
Faço que não com a cabeça. Milhares de pontinhos de luz se refletem no rosto de Jenara e nas paredes amareladas de sol que nos cercam. Levo os dedos ao rosto, imaginando marcas negras como as listras de um tigre sob meus cílios inferiores, parecidas com as de Morfeu sem as joias.
— Minhas marcas... estão muito evidentes?
O olhar de Jenara está fixo ao meu.
— Não são apenas as marcas, Al. São suas íris. Elas estão... roxas.
— Roxas?
Jen faz que sim.
— E não é um tom sutil... é muito estranho.
Sinto um frio na barriga.
— Isso não pode estar acontecendo. — Meus cabelos começam a se levantar, uma dança provocativa de mágica.
— Merda! — exclama Jenara depois que algumas mechas a alcançam. — Isso é tipo uma gripe intraterrena ou coisa assim?
— Eu... eu não sei. — Com os dedos trêmulos, seguro as mechas e as prendo na nuca. — O que vamos fazer? — O pânico reveste minhas cordas vocais, deixando-me rouca, como se tivesse engolido uma lixa líquida.
Jenara esfrega as mãos.
— Bom, você pode prender o cabelo no alto e podemos dizer que fomos criativas com sua maquiagem. O véu vai esconder seus olhos durante a cerimônia. Depois, você pode dizer às pessoas que está fazendo experiências com lentes de contato. Mas as asas... Eu acho que é impossível disfarçá-las.
Não há espelho para eu ver o tamanho da minha imagem intraterrena, por motivos óbvios. Não queria nenhuma surpresa nas festividades de hoje, então optei pelo quarto menor pela ausência de espelho, confiando que Jen fizesse minha maquiagem e me tornasse apresentável para o casamento. O lado ruim de escolher este quarto é que não há tranca na porta, o que agora me deixa ainda mais vulnerável e acessível.
Maldita reflexão tardia.
A vermelhidão no rosto da minha dama de honra ganha um tom de ansiedade.
— Vou chamar sua mãe. — Ela começa a sair, mas para. — Só... fique aqui e cuide da porta. Tente se acalmar. Vamos dar um jeito nisso, sim? Nada vai estragar isso.
Faço que sim, mas apenas para ela ficar tranquila. Como isso pode não arruinar as coisas? Não posso encarar nossos convidados humanos com todas as minhas características sujas do País das Maravilhas expostas! Isso não é a noite da festa de formatura no Submundo. Ter asas numa praia não pode ser explicado com a mesma facilidade do que usá-las como fantasia sob luzes mortiças.
Depois que Jenara sai, coloco a cadeira sob a maçaneta e puxo a asa sobre meu ombro. As joias piscam numa confusão de cores, como as marcas oculares de Morfeu quando ele está ansioso ou perplexo. Há algum tempo, descobri que meu humor, como o dele, se mostra por meio das minhas joias. É algo que Morfeu mantinha para si mesmo e um dos motivos por que ele gosta de ter minhas asas à mostra... para ele poder saber o que estou sentindo.
Mas sou eu quem decide quando abri-las. Tenho lidado com meus aspectos intraterrenos tranquilamente desde que voltei ao reino humano. Nunca perdi o controle. Há alguma travessura em andamento aqui. E tudo começou com o bolinho azul com sabor de anis e mel.
Anis... um sabor surpreendentemente semelhante a alcaçuz. Cigarro de alcaçuz.
Ranjo os dentes.
— Morfeu.
Noite passada, antes de voltar dos meus sonhos, eu o abracei, algo que não faço com frequência. Estabelecemos limites claros para o contato físico, a fim de honrar minha vida humana. Mas ele andava mal-humorado com meus súditos, o que raramente acontece, e sabia que ele estava escondendo seus sentimentos quanto ao meu casamento. Então quis consolá-lo, quis garantir que a paciência dele não passasse despercebida nem desvalorizada.
Ele me abraçou de volta por uns cinco segundos, depois me afastou. Ao olhar para mim, sua expressão era algo bem distante da tristeza ou preocupação. Era o exato oposto, o que nunca é um bom sinal.
— Decidi dar a você e a seu noivo um presente amanhã, frutinha — disse ele, abrindo a mão. Uma esfera azulada ganhou vida na palma de sua mão e depois alçou voo, pairando entre nós. — Como Jebediah abdicou de sua capacidade de sonhar com o País das Maravilhas, você pode compartilhar seus sonhos em segredo na sua lua de mel. Você não virá ao País das Maravilhas esta noite. Em vez disso, Jebediah pode entrar com você e seus sonhos pertencerão somente a ele. Mas somente se ele se provar digno de se casar com a rainha-fada.
Antes de poder pegar a luz azulada, Morfeu me expulsou do meu sonho.
Minhas mãos agarram a meia-calça cobrindo minhas coxas. Quando acordei neste quarto, pela manhã, pensei em contar a Jeb as palavras enigmáticas de Morfeu, mas não estava com meu celular porque Jenara se esforçou ao máximo para manter seu irmão distante de mim até a cerimônia.
Não há tempo a perder. Ele precisa ser avisado de que Morfeu criou outro teste para mim. Ou melhor, para ele.
Vou até a mesa para dar uma segunda olhada no cartão de aniversário da minha mãe, manobrando as asas pela mobília arranjada em ângulos estranhos no quarto pequeno demais. Ergo o cartão, estudando-o cuidadosamente. Para além da corujinha bonita na capa — sutil — e da inscrição “Queeeeem faz aniversário hoje?” dentro, há a assinatura da mamãe impressa. Ela sempre assina cartões com letra cursiva. Por que não tinha percebido isso? Ou o fato de o papai não ter assinado também? Pensando bem, eu deveria ter percebido tudo isso, porque não era para ter abaixado a guarda. Morfeu me treinou melhor do que isso.
Mas ele sabia que eu estaria distraída com meu cérebro focado no casamento. Ele contava com isso. E, para piorar as coisas, não havia insetos por perto para me alertar. A casa de praia foi fumigada há uma semana por causa de uma infestação de formigas e o silêncio era ensurdecedor desde que chegamos. Suspeito que ele tenha o dedo nisso também. Ainda assim, ele está cumprindo sua promessa de não se colocar entre mim e Jeb porque conseguiu fazer com que minhas características intraterrenas é que causassem todos os problemas.
Estou quase impressionada, mas isso não é nada perto da ansiedade revirando minhas entranhas. Como pude ser tão descuidada?
— Maldita mariposa inteligente — xingo, esperando ouvir um eco da risada arrogante na minha mente. Como não ouço nada, fico séria e rasgo o cartão ao meio, com raiva por não encontrar respostas ali. — Certo, você me pegou. Mas fique sabendo que você o está subestimando — digo em voz alta, na esperança de que Morfeu ao menos esteja ouvindo. Minha voz soa firme e confiante, apesar das lágrimas de nervosismo queimando em meus olhos. — Jeb vai encontrar uma forma de resolver isso...
— Tem razão, Al. — A voz grossa e determinada de Jeb me atinge por trás, uma corrente elétrica iluminando todas as minhas terminações nervosas.
Viro-me para ver uma rosa branca pela porta entreaberta.
— Deixe-me entrar.
Quase tropeçando nas minhas asas, corro e puxo a cadeira para o meio do quarto, e depois recuo para lhe dar espaço.
Ele entra — pingando no que restou do seu smoking de formatura — e fecha a porta. Ele se apoia nela e me encara. Areia e gotas de água brilham em seus braços, onde ele enrolou as mangas da camisa até os cotovelos. A camisa semiabotoada expõe seu peito reluzente. As calças azul-marinho estão enroladas também até o meio da canela. Ele deve ter deixado o paletó azul de veludo lá fora, pendurado para secar.
— Jen tentou me contar sobre seus olhos — murmura ele antes de eu poder perguntar o que aconteceu às roupas dele. — Mas não há paleta de artista, não há comparação neste mundo para esta cor. Al, você está tão linda.
Estava pensando o mesmo que ele.
— E você está tão molhado — digo, estúpida. É difícil pensar em meio à luz amena que reflete sua pele cor de oliva, o labret prateado e os rebeldes cachos escuros pingando água por sua testa e seu nariz.
Ele não responde, ocupado demais em me analisar com seu olhar profundo e úmido. Se Jenara estivesse aqui, ela insistiria para eu cobrir meu espartilho e calcinha. Não, ela insistiria para eu expulsá-lo. Mas ficar longe dele desde o jantar da noite passada já era muito tempo. Até mesmo a cadeira entre nós dois parece uma montanha. Eu deveria movê-la, mas ele me deixou paralisada. Seu olhar percorre todo o meu corpo — um carinho mental tão íntimo e completo quanto um carinho real seria.
— Talvez a gente não devesse ter escolhido um casamento na praia — provoco, tentando conter minha imaginação fértil.
O sorriso sensual resultante de Jeb revela seu incisivo torto que espero que nossos futuros filhos e filhas herdem.
— Digo, levando em conta nossas experiências passadas com enormes corpos de água.
Eu rio.
Ele ri também, mas então fica sério.
— Nós nos reencontramos numa praia em Qualquer Outro Lugar. Você me fez uma promessa lá. Faz sentido eu lhe fazer uma promessa numa praia também. Não importa o que aconteça antes ou durante nosso casamento. Não importa que tipo de dificuldades Morfeu pôs em seu caminho hoje, tudo isso vale a pena. Nós valemos a pena. E vamos provar isso para ele.
Nunca o vi tão confiante ou... enérgico.
— Espere aí, você... Você está gostando disso? — Esboço um sorriso hesitante.
Ele dá de ombros e cheira a rosa branca na mão.
— Gosto de um desafio.
— Morfeu vai odiar que não pode provocá-lo.
— Psssh. Nós dois sabemos que ele adora quando eu aceito o desafio.
Balanço a cabeça, sorrindo. É um consolo estranho perceber como eles se conhecem e se compreendem bem hoje em dia.
— Então foi ele quem o fez cair na água?
Jeb obriga seu olhar a subir do meu corpo seminu para meu rosto.
— Bom, tecnicamente não foi ele. Ele está cumprindo a promessa de ficar longe do nosso mundo. Corb estava arrumando a almofadinha de carregar as alianças quando algo mordeu seu dedão do pé e ele derrubou as alianças. Uma lagosta de pedra surgiu na areia, as pegou e desapareceu nas ondas.
— Uma lagosta de pedra de verdade? Como as de Qualquer Outro Lugar?
Jeb enfia o cabo da rosa no bolso, então segura a camisa pela cintura e começa a desabotoá-la completamente.
— Sim. Pintei algumas para o País das Maravilhas antes de irmos embora, quando reinventei as paisagens. Morfeu as pediu. Não há dúvida de que foi ele quem mandou aquela lagosta de pedra para cá.
É difícil acompanhar a conversa porque só consigo ver as roupas molhadas grudadas no corpo musculoso de Jeb a cada movimento.
— Então... você mergulhou no oceano para recuperar as alianças?
— Tentei, mas não consegui pegar a ladra. — Ele tira o tecido ensopado dos ombros e braços, revelando uma barriga de tanquinho molhada e gotículas presas nos pelos de seu peito. — Pedi à sua mãe que entrasse em contato com a Marfim pelo espelho do quarto dela. Ela tinha uma flauta mágica no castelo. Eu a vi lá. Descobri que o instrumento funciona nos moluscos do nosso mundo também. Eles trazem as lagostas até a praia. Os anéis agora estão seguros. Corb vai manter a almofada com ele até a cerimônia.
Penso nos moluscos que conhecemos no País das Maravilhas na nossa primeira visita... como toquei uma flauta que os convocava e lhes dava ordens. Como, num só movimento, eles vieram nos resgatar quando estávamos sendo perseguidos por um exército e levaram nossos perseguidores para longe, numa confusão de conchas batendo-se umas nas outras. Sou ainda mais grata agora do que antes. Só espero que ninguém tenha visto nada.
— Não se preocupe com os convidados — tranquiliza Jeb, como se lesse meus pensamentos. — Seu pai manteve todos ocupados. Ele os levou por um passeio ao outro lado da praia, onde os barcos ficam ancorados.
O alívio toma conta de mim. Mas por pouco tempo, considerando que todos vão me ver em breve.
— Não devemos falar do elefante voador na sala? — pergunto, batendo as asas.
Jeb joga a camisa molhada no braço da cadeira de madeira. Seu pomo de adão se move quando ele engole em seco lentamente.
— Você se refere ao fato de você ser a mulher mais radiante e mágica que já vi?
Mulher... Acho que ele nunca me chamou assim. Seu olhar é tão intenso que minhas pernas fraquejam. Aproximo-me da cama, precisando de apoio contra elas.
Seu olhar se detém nos meus lábios azuis.
Eu os esfrego.
— Foi uma bobagem. Comi um bolinho que veio do nada... Sei que não devo comer nada estranho.
— Não. Morfeu teria encontrado uma maneira de fazer isso com ou sem você comendo o bolinho. Ele está deixando claro uma coisa. Provei meu valor como marido do seu lado humano depois de quase morrer por você mais de uma vez. Mas ele quer que eu seja digno do seu lado intraterreno também.
Fico boquiaberta
— Foi o que ele disse no meu sonho!
Jeb tira a rosa do bolso e arranca uma das pétalas.
— Compartilhei da mágica dele uma vez. Sei como ele pensa. Ele provou seu amor por seu lado humano ao não deixar a Marfim coroá-la e destruí-la. Então ele quer que eu prove meu valor como ele provou o dele. Não tenho problemas com isso. Será uma honra me casar com você hoje, diante de Deus e de todos, com suas asas e outros atributos intraterrenos à mostra.
Por mais sinceros e admiráveis que sejam os sentimentos dele, não consigo compreender a lógica de tudo.
— Mas isso... — Abro as asas às minhas costas e elas lançam sombras sobre nós dois. — Não sei como encarar uma plateia de humanos sem me entregar. É impossível.
— Nada é impossível. Você me ensinou isso há muito tempo. Pelo lado bom, sabemos que o efeito do bolinho é temporário. Morfeu se importa demais com seu coração para colocá-lo em risco arruinando sua capacidade de viver uma vida de realizações aqui.
Mordisco meu polegar, tomando o cuidado para não estragar o meticuloso trabalho de manicure de Jenara.
— Temporário pode ser qualquer coisa entre algumas horas e todo um dia.
— Verdade. O efeito vai permanecer ao menos durante a cerimônia. Mas podemos lidar com isso. Só deixe que eu me preocupe com o que todos pensam ou veem. Vou dar um jeito nisso com criatividade humana e um toque de mágica.
Um toque de mágica.
— Espere um pouco... você não vai usar seu desejo, não é?
— Não. Prometo a você que eu saberei a hora certa de usá-lo. Sua mãe e Corb estão levando os portais-espelhos a algumas lojas de fantasias.
— Para quê?
— Surpresa. — Ele olha para a porta atrás e depois se volta para mim. — Tenho que sair antes que a Jen volte. Eu deveria apenas deixar minha camisa pendurada na maçaneta para ela limpar as manchas e passá-la. Ela vai ficar louca se souber que vi você antes do casamento... mas queria lhe dar os parabéns pelo aniversário. — Ele estende a rosa, um pouco distante demais para eu pegá-la.
— Chegue mais perto — peço.
Sua mandíbula bem barbeada treme.
— Já foi ruim o bastante tê-la visto. Vai saber a confusão que vou provocar se tocar em você.
— Vamos descobrir.
A expressão dele ganha força e desejo. Ele joga a cadeira para o lado e se aproxima de mim.
As lufadas de vento carregam o perfume dele misturado ao da rosa. Ele para a poucos centímetros de distância, a mão livre tamborilando ao lado do corpo, como se pensasse nas alternativas. Uma tensão doce e torturante se estabelece entre nós dois — como a calmaria antes de uma tempestade de raios. Três mechas de cabelo se soltam do nó na minha nuca e o envolvem junto com a rosa. Uma mecha traz a rosa até mim e eu a pego com a mão direita.
Jeb observa, encantado.
Tento conter as outras mechas que se prendem nele, mas ele segura meus pulsos e leva minhas mãos à boca.
— Deixe estar — murmura ele contra minhas cicatrizes e leva a mão à minha nuca para soltar o restante das mechas. — Você sabe que eu a amo assim. — Sua voz arranha, áspera e rouca.
Meus cabelos nos cercam, furiosos para se libertarem. Eles dão a volta nos bíceps, ombros e cintura dele. Com força e cuidado, unem nossos corpos seminus, e os lábios dele encontram os meus. Ele tem sabor de oceano, cidra e chocolate. Ele andou experimentando a comida da festa.
Solto a rosa e passo as mãos em seu peito. A pele dele está molhada e quente, e seus músculos se contraem.
— Isso vale qualquer azar — sussurro contra sua boca cheia e macia, retribuindo seus beijos quentes.
— Nunca tivemos sorte mesmo — sussurra ele de volta, nos derrubando na cama, mas tomando cuidado para não esmagar minhas asas. — Mas somos muito bons em fazermos nossa sorte.
Ele me deita de costas, o peso dele me prendendo na mais deliciosa das armadilhas. Seu joelho abre caminho entre minhas pernas, as calças molhadas esbarrando em minha calcinha. Uma brisa sopra sobre nós dois, gelada em minha pele nua. É tão estranho queimar como um forno, mas ainda assim ficar arrepiada.
As mãos de Jeb pairam sobre minhas curvas — um território íntimo que ele conhece, mas que ainda tem de explorar completamente.
— Você está com frio — diz ele, enquanto sua boca avança pela carne gelada do meu pescoço.
Sinto meus ossos se liquefazendo e meu sangue virando lava.
— Longe disso — respondo, ofegante.
Com os olhos cheios de desejo, ele vira para o lado, me soltando. Põe a mão nas minhas costas e puxa um canto do lençol lavanda e azul-turquesa, cobrindo meu corpo e as asas e separando nossa pele.
Eu gemo.
— Jeb. Não quero nada nos separando.
Seus dedos contornam meus lábios.
— Depois da cerimônia, não haverá nada. Você será minha hoje à noite e será como sonhamos.
Meu corpo se incendeia, faíscas de ansiedade iluminando todas as partes do meu corpo que ele já tocou. Estou prestes a lhe dizer que será ainda melhor do que imaginamos — porque ele pode literalmente compartilhar meus sonhos se adiarmos o casamento —, quando a porta se abre.
— Ah, o que é isso? — grita Jenara.
Jeb se levanta apressadamente e me lança um sorriso tímido, enquanto sua irmã o expulsa do quarto.
— Eles voltaram? Eles encontraram tudo? — pergunta ele antes de ela lhe dar um empurrão.
Jenara faz uma cara feia.
— Sim, sim. Não que isso importe, agora que você provocou o destino ao vê-la.
Mais uma vez, Jeb põe a cabeça para dentro do quarto e ri para mim.
— Como se o destino tivesse algo a ver com a rainha-fada.
Sorrio de volta, ainda saboreando os beijos dele.
— Me encontra na praia ao pôr do sol? — pergunta ele.
— Nem mesmo um ataque de pássaros Jubjub me impediria — respondo.
Ele ri e desaparece, me deixando com uma dama de honra mal-humorada, mil perguntas e um coração iluminado.
CONTINUA
Capítulo 2
Auge
PRIMEIRA MEMÓRIA: PEDRAS
Sessenta e três anos antes...
É manhã no País das Maravilhas e Morfeu está me acompanhando de volta ao castelo da Marfim, onde minha família e Jeb esperam para passar comigo pelo portal, de modo que eu possa viver o restante da minha vida humana.
Meu acompanhante está pensativo e quieto, suas feições duras como pedra. Não trocamos nenhuma palavra durante o trajeto encantado. O som das asas da mariposa criando uma trilha no céu só intensifica o silêncio constrangido.
Sinto um aperto no peito, como se meu coração estivesse tentando alcançá-lo. Sei que, se olhasse sob o tecido sedoso do meu vestido preto e sob o paletó que ele insistiu em usar para se aquecer, o órgão estaria brilhando em tom violeta. Ontem mesmo, meu coração estava dividido ao meio — os lados humano e interior se matando — por causa da maldição que a Rainha Vermelha jogou sobre mim. Jeb e Morfeu intervieram, combinaram suas mágicas e me curaram com suturas encantadas. Eles salvaram minha vida com o amor. Meu corpo entende isso de alguma forma primitiva e eu jamais esquecerei. Meu coração está ligado aos dois agora, formando um elo que vai além de qualquer explicação humana.
Contudo, mesmo sem esse elo, eu era capaz de decifrar as joias no rosto de Morfeu e de saber no que ele está pensando. Acordei mais cedo em sua cama e o encontrei sentado na beirada do colchão, acariciando os cabelos nas minhas têmporas. Antes mesmo de poder lhe dar bom-dia, ele me beijou na testa e se afastou, dizendo que o café da manhã estava pronto.
Passamos a noite juntos, mas nada físico aconteceu entre nós. Nada acontecerá por muitos anos. Não até eu ter vivido minha vida humana com Jeb.
Deixei minha posição sobre fidelidade bem clara; mesmo assim, Morfeu deixou claro que não vai facilitar as coisas. Apesar de seus desafios penderem como fios soltos, o respeito que estabelecemos está firmemente junto a mim. Sei que ele jamais me pediria que traísse os humanos que amo — porque isso é parte de quem sou —, por mais que ele sofra ao recuar e me deixar em paz.
Depois de visitar as paisagens do País das Maravilhas juntos, noite passada, eu o entendo como nunca o entendi antes. E é o mesmo para ele, porque assim que chegamos e ele segura minha mão para eu descer da carruagem, não hesita em me acompanhar até a entrada de gelo onde Jeb me aguarda no topo da escadaria coberta de cristais de neve.
Prendo a respiração ao vê-lo. Ele está usando um smoking azul-marinho completo, com uma camisa violeta que complementa seus cabelos ondulados escuros e o tom oliva de sua pele. A mesma camisa transformada em cueca em Qualquer Outro Lugar.
O smoking está exatamente como na noite da festa de formatura: teias falsas, listras sujas e rasgões colocados estrategicamente no paletó e nas calças. Por um momento, sou levada de volta ao Submundo, onde o vi pela primeira vez esperando por nós na noite de formatura na entrada dos funcionários, e sua expressão magoada diante da minha traição. Jamais provocarei um olhar daqueles novamente.
Estranho. Da última vez que vi o smoking, foi com o dublê de Jeb em Qualquer Outro Lugar. Quando CC caiu na piscina de medos, as roupas se desintegraram. Jeb deve tê-las consertado antes de desistir do seu talento para sempre.
Talvez tenha sido sentimentalismo, porque a irmã dele é quem fez o smoking, ou provavelmente porque ele queria estar usando algo conhecido quando passássemos pelo portal e voltássemos à vida de sua família.
Ainda assim, mesmo usando roupas do reino humano, ele parece triste e deslocado ao esperar que eu suba as escadas. Ficar ali de pé à luz do dia, vendo as belas paisagens que ele criou neste mundo, deve ter sido horrível. Desistir de sua musa deve ser a coisa mais sofrida que ele já fez. E ele fez isso sem hesitar, para ajudar a equilibrar o País das Maravilhas... para alimentar as almas insaciáveis da Irmã Dois com seus sonhos artísticos.
Não tenho certeza se ele pensou nas consequências desse sacrifício. Mas estarei aqui para ajudá-lo a passar por isso.
Enquanto Morfeu e eu subimos a escada a caminho de Jeb, passamos por seres intraterrenos que vieram acompanhar minha partida. Alguns deles são inesperados.
Hubert, decorado e lustrado como um ovo Fabergé numa vitrine de Páscoa, estende a pata de louva-a-deus para cumprimentar Morfeu.
— Ainda é mais fácil para mim odiá-la — diz o homem-ovo para Morfeu, como se eu não estivesse por perto. — Rainha sabe-tudo. Nada de educação ou cultura naquela cabeçorra dela. Ainda assim ela conseguiu provar que eu estava errado. Tinha tanta certeza de que ela acabaria num caixão. Que decepção. — Apesar do sarcasmo, seus olhos amarelados refletiam admiração. Para minha surpresa, ele me oferece, por toda a vida, um suprimento de ovos beneditinos em seu ilustre hotel mágico, se um dia eu o visitasse.
Depois, cumprimentamos os estranhos seres intraterrenos clandestinos que ficaram presos no trem da memória três dias antes. Todos fazem reverência e me agradecem por abrir a toca do coelho para eles poderem voltar para casa. Meu nariz coça quase a ponto de me fazer espirrar quando passamos pelos coelhinhos de pó.
Bill, o Lagarto, nos para no meio do caminho. Ele estende dois trajes de disfarce que pedi a Grenadine que o devolvesse.
— Desculpe por ter perdido um... por tê-los roubado, antes de mais nada — sussurro, envergonhada.
Ele balança a cabeça reptiliana e mostra a língua comprida.
— Sou um súdito da Corte Vermelha. Assim, eles pertencem a você, Majestade. Seus talentos como ladra perdem apenas para o uso da sua mágica. Você os usará agora melhor do que eu jamais os usaria.
Impressionada, coloco a mão no peito. Sob meu vestido, o colar com a chave que abre meu reino pressiona minha pele.
— Mesmo?
Bill estende os trajes.
Olho para Morfeu.
Ele sorri e faz que sim, me encorajando a pegar o tecido transparente. Eu o guardo debaixo do braço e agradeço ao lagarto, que se curva para nos deixar passar. O Rábido está esperando por nós no degrau de cima — usando casacão e calças vermelhas. Ele abre os braços para levar os trajes para mim. Meu conselheiro cavalheiro. Ao subirmos, acaricio a pele macia entre seus chifres.
Guardas elfos se enfileiram na segunda metade da escada, dos dois lados. Eles sacam as espadas e tocam as pontas delas no topo das cabeças, formando um corredor prateado brilhante.
Jeb me aguarda no fim, tenso como se o fato de não poder correr até mim o estivesse matando.
Enquanto Morfeu e eu subimos a escada sob as sombras das espadas, meneio a cabeça para Jeb, num sinal de reconhecimento. As bolsas sob seus expressivos olhos verdes provam a falta de sono. As doze horas que passamos separados devem ter sido uma tortura. Por mais forte que ele estivesse quando demos boa-noite, é óbvio que ele temia que fossem despedidas de verdade. Que eu decidisse passar meu futuro no reino humano sozinha, sem ele.
Não posso estar no mesmo mundo que ele todos os dias sem tê-lo na minha vida. Nós nos amamos. Nós dois queremos a mesma coisa. Vamos dividir esses sonhos e envelhecer juntos. Uma vida mortal é preciosa e curta em comparação à eternidade. Ela deve ser vivida e nunca desperdiçada. Algo que Morfeu agora entende como nunca antes, senão não estaria me deixando partir sem lutar.
Sinto o rosto adormecer, menos pelo frio e mais pela situação insuportavelmente incômoda na qual coloquei os dois. Eu me lembro de que esta é a pior parte... que, depois que eu passar pelo portal e entrar no reino humano, minhas duas vidas vão se misturar e ao mesmo tempo jamais se cruzarão, a não ser que seja necessário à segurança ou ao bem-estar de alguém. Foi com o que concordamos.
Uma cama de gelo se gruda na sola das minhas botas assim que subo o último degrau. Os cavaleiros elfos nos saúdam e guardam as espadas nas bainhas de couro. O sangue que lhes decora os rostos e têmporas brilha como fruta contra o cenário branco que os cerca. Batendo os calcanhares, eles descem as escadas para cercar o castelo e assumir seus postos.
Franzindo a testa, Morfeu oferece minha mão a Jeb. É um gesto estranho, grandioso e cheio de dignidade, como se ele caminhasse comigo pela nave e me entregasse em casamento. De certa forma, é. Durante uma vida humana.
Suas asas farfalham quando Jeb segura minha mão, um espasmo involuntário. Ele está lutando para não pegar minha mão de volta.
— Você conhece o protocolo... se algo acontecer ao seu corpo no seu mundo, você ou Alison devem entrar em contato comigo imediatamente. O espírito de Alyssa deve ser protegido para sobreviver.
Jeb faz que sim com a cabeça.
— Entendi. — A resposta dele é sucinta e seu tom de voz, controlado, mas a preocupação em sua expressão o entrega. É algo em que não gostamos de pensar, algo que esperamos que nunca tenha de ser resolvido.
O olhar rosa do Rábido se vira para mim, seu rosto branco entusiasmado. Eu o mando porta afora para resgatá-lo de ter de tratar de assunto tão mórbido.
Morfeu espera pelo toque dos ossos para desaparecer dentro do castelo, depois pega um par de luvas do bolso, colocando-as na mão.
— E acho que é desnecessário lhe dizer para tratá-la como uma rainha — resmunga ele para Jeb.
Jeb entrelaça nossos dedos.
— Assim como é perda de tempo lhe pedir que abandone as táticas de sedução nos sonhos dela.
— É ciúme o que ouço em sua voz, belo e falso elfo? Nunca tema. Ainda pensarei nela todos os dias, enquanto ela estiver com você.
— Prefiro que você pense em mim todas as noites, quando ela estiver com você. — Jeb me ajuda a tirar dos ombros o casaco de Morfeu, substituindo-o pelo paletó do seu smoking, ainda quente do calor do seu corpo. — Enviarei uma coruja como lembrete. — Ele devolve o casaco a Morfeu.
Morfeu pega o casaco e o dobra no braço, alisando-o. Ele ri uma risada triste e vazia.
— Vou sentir falta das suas tentativas equivocadas de fazer trocadilhos.
Jeb abre um sorriso forçado.
— Não tanto quanto eu sentirei falta de sua condescendência pomposa.
Eles se encaram, uma mistura de distração e comedimento em suas expressões. Um respeito de má vontade une a tensão — uma ligação que aumentou sem eles perceberem ou encorajarem, durante o mês que eles passaram juntos em Qualquer Outro Lugar.
— Vocês dois querem ficar sozinhos? — pergunto, desesperada para que ponham um fim ao estranho diálogo.
Morfeu estreita os olhos.
— Eu a verei hoje à noite, Alyssa. E, a partir de agora, quando você estiver comigo, espero que sua mente seja como era na nossa infância. Atenta às questões do País das Maravilhas, e não à confusão do reino mortal. Lide com as coisas daqui para que elas não sejam uma distração quando você voltar às suas obrigações reais. Tem certeza de que não precisa da minha ajuda para limpar todas as bagunças? Tenho certa prática no manejo de humanos. — A risadinha arrogante que ele lança para Jeb está cheia de insinuações.
— Entendemos, Mariposinha — diz Jeb. — Entendo as sensibilidades inocentes deles melhor do que você. — Ele arqueia a sobrancelha, expressando sua própria mensagem cifrada.
Ouve-se um baque abafado na enorme porta cristalizada. Jeb e eu olhamos para trás, para o ponto de onde nossos pais estão espiando. Ambos parecem belos e descansados, mas também ansiosos.
Meneio a cabeça num cumprimento e eles acenam e então recuam para dar privacidade a nós três.
Jeb se vira, seu braço me segurando pela cintura.
— Você vem nos visitar, Morfeu?
Morfeu encara enfaticamente Jeb. Suas marcas de joias brilham numa paleta pastel, como um pôr do sol reluzente. A resolução pisca dentro de seu olhar carregado.
— Não quero chegar nem perto do portal. Já tive o bastante do seu reino estagnado para esta vida e um pouco mais.
— Espero que você esteja falando sério — diz Jeb. A frase não é ferina, só sincera.
— Ah, com certeza falo. Exceto pela parte preciosa do seu mundo, que um dia pertencerá somente a mim. — Morfeu ergue o chapéu na minha direção e as mariposas cinza-azuladas na borda tremem como se fizessem reverência. Ele se vira e desce as escadas, as asas se arrastando pela neve como uma capa, e parte de mim sofre com uma tristeza profunda.
Um vento ganha força, gerando um redemoinho de neve.
É melhor estarmos saindo pelo portal da Marfim. Esta partida sofrida seria acrescida dos rostos de todos os meus súditos me olhando. Noite passada, ao visitar o Castelo Vermelho, optei por não me despedir deles. Eu me sentiria fadada demais e de certa forma estranha. Consolo-me em saber que eu verei a eles e Morfeu em meus sonhos.
Depois que a carruagem movida a mariposas decola, Jeb se vira para me encarar. Ele leva minha mão à boca e acaricia os nós dos dedos. Seu olhar intenso passa por todos os meus traços, dos olhos ao nariz e lábios, como se estudasse uma pintura novamente.
O silêncio revira meu estômago.
— Você vai perguntar?
— Perguntar o quê? — diz ele contra a minha mão.
— Se algo aconteceu. — Meu tempo com Morfeu parece algo privado e secreto, mas se Jeb, para reaver a calma, precisar ouvir sobre o que conversamos e os lugares que visitamos, me abrirei e serei honesta.
Jeb entrelaça nossos dedos novamente.
— Você segurou minha mão hoje e está ao meu lado. Isso me diz tudo o que preciso saber. Você é uma rainha e tem responsabilidades. — A admiração por trás de suas palavras me surpreende, mas não deveria. Não levando em conta os laços emocionais dele com meu mundo. — Não preciso saber de tudo sempre que você volta. Você me diria se algo nos afetasse ou afetasse sua vida.
Sorrio, surpresa com a fé dele.
— Diria. Direi. E obrigada.
Ele cuidadosamente segura os cabelos à minha nuca e junta nossas testas.
— Eu é que agradeço. — Sua voz, grossa e rouca de emoção, forma uma névoa entre nós. — Obrigado por voltar para mim.
Acaricio seu rosto e a pouca barba em seu queixo.
— Certo, não vou me sentir como se você precisasse de uma atualização sempre. Mas, por favor, não pense que você precisa agradecer todas as manhãs em que eu acordar ao seu lado. Quero que sejamos normais.
— Normais. — Ele recua e ri, as covinhas finalmente aparecendo. — Isso vindo de uma menina que ganhou asas e que me deu um colossal chá de cueca enquanto surfávamos nas areias do País das Maravilhas. Quando é que isso foi normal, hein?
Bufo, lembrando-me de que não podia carregá-lo pelo precipício e tive de deixá-lo para trás, que, por mais que ele estivesse com tanto medo quanto eu, ele me fez rir e me deu forças para que eu fizesse o que julgava impossível. Como agora.
O sorriso desaparece aos poucos, fazendo seu piercing nos lábios brilhar à luz. Eu o toco, acariciando o metal quente, de modo que seu bigode pinica meu dedo.
Esse ato íntimo e sensual me atinge com uma verdade quase que inconcebível: não há nada se colocando entre nós dois agora. Nossa vida juntos começará hoje, assim que cruzarmos a fronteira. Estou ao mesmo tempo feliz e emocionada.
— Estou pronta para minha aliança — consigo dizer em meio ao nó na garganta.
Sua expressão ganha sobriedade. Tirando a corrente por baixo da camisa, ele a passa pela cabeça e tira o anel. Com os olhos nos meus, ele coloca o anel de prata na minha mão direita, onde ele permanecerá até que ele o coloque na minha mão esquerda depois de declararmos nossos votos maritais. Os diamantes brilham — um coração alado — e meu coração parece bater asas como se pudesse voar.
O anel se encaixa perfeitamente ao meu dedo e parece um cartão de boas-vindas.
— Você sempre foi minha segurança — sussurra Jeb, colocando o polegar na covinha do meu queixo e me puxando para um beijo carinhoso e doce. Passo a mão pelos cabelos dele e o saboreio, ele sem perfume ou tinta ou terebintina. Só ele. Humano, masculino. Jebediah Holt.
Eu poderia me afogar na doçura da simplicidade.
Com nossos peitos unidos, meu coração costurado brilha e cantarola, tentando diminuir o espaço entre nós. Seu corpo fica tenso, como se ele sentisse a atração.
Ele interrompe o beijo e segura minha cabeça contra seu corpo, a barba por fazer em seu rosto arranhando minha têmpora.
— Tenho algo para lhe mostrar. — Seus lábios acariciam minha orelha e me aquecem toda. — Quis esperar até que estivéssemos juntos. Até que estivéssemos sozinhos. Mas acho que você precisa ver agora. — Ele pega algo do bolso e revela o que parece uma bolinha de gude, apesar de ser macia como uma pérola de banho.
— Um desejo? — Enxugo as lágrimas do meu rosto com o dorso da mão, surpresa. — Como? Quando?
— Noite passada, na festa da Marfim, depois da nossa dança lenta. Um furão me puxou... lambeu meu rosto para me agradecer pelo que fiz pelo País das Maravilhas.
— Ah, meu Deus. Então foi por isso que você saiu mais cedo?
Ele rola a bolinha na palma da mão.
— Estava prestes a me acabar de chorar. — Ele segura a lágrima brilhante contra a luz. — Não poderia permitir que a Rainha Vermelha me visse berrar como uma menininha.
Solto uma risada inesperada, alheia em meio à confusão inesperada de emoções.
Jeb franze a testa, pensativo.
— Podemos usar isso para nos ajudar a arrumar as coisas no reino humano.
Meu sorriso de felicidade desaparece.
— Não. Este desejo só pode ser usado para você.
— Fiquei envolvida com Morfeu por um mês. A única coisa que aprendi é que a mágica é flexível. É tudo uma questão de estilo.
Balanço a cabeça e cubro a mão dele, escondendo sua lágrima.
— Mágica é preciosa. Você tem de guardar isso, Jeb. Você pode desejar tantas coisas! — Paro, porque nós dois sabemos que há duas coisas monumentais que não podemos pedir. Ele não pode recuperar sua musa sem desequilibrar o País das Maravilhas de novo. E não pode pedir para vivermos para sempre. A mágica não mudará quem se é por dentro. Ele optou por perder sua imortalidade abdicando dos poderes da Vermelha. Ele é mortal e não há como mudar isso agora. — Jeb, não desperdice o poder. Guarde para algo importante.
Ele fica mais sombrio e sei que já esteve enfrentando os mesmos pensamentos. Ele guarda o desejo no bolso e trava a mandíbula.
Antes que possamos dizer algo, as portas do castelo se abrem e a mamãe e o papai surgem. Fico chocada ao vê-la usando o mesmo vestido de costas expostas usado na festa de formatura. Apesar de o chiffon da saia e as mangas estarem avariados por causa da luta dela com o coveiro de oito patas do País das Maravilhas, o vestido ainda está intacto.
Franzo a testa, pensando em tudo.
— Espere aí. — Aponto para ela e para Jeb. — Então... vocês estão usando as mesmas roupas que usavam quando desapareceram. Isso é um plano?
— Sim. Jeb pensou nisso — responde a mamãe. — Ainda precisamos pensar nos detalhes. Mas primeiro... — Ela e o papai me puxam para um abraço.
Depois de um abraço longo e apertado, celebramos as notícias. O papai brinca com Jeb, dizendo que ele quase teve de vender um rim para comprar o anel de noivado da mamãe, no que esta lhe dá uma cutucada, fazendo-o soltar um ganido. E então ela segura cuidadosamente minha mão direita para admirar meu dedo anelar.
Ela olha meu rosto. Sei o que ela está vendo: a mesma ansiedade pela vida humana que ela sentiu com o papai depois de salvá-lo da Irmã Dois. O sorriso dela é tão cheio de esperança que eu poderia estar olhando diretamente para o sol.
Quando ela se vira para dar um abraço de improviso em Jeb, o papai me puxa de lado.
— Borboleta — diz ele, ajeitando uma mecha solta de cabelo atrás da minha orelha.
— Papai — falo, segurando a mão dele e mantendo-a perto do meu rosto.
Ele balança a cabeça.
— Em meio a toda esta loucura... Não tive a oportunidade de dizer quanto tenho orgulho de você, Alyssa Victoria Gardner. — A ternura em seus olhos castanhos me lembra de como nós dois enfrentamos o mundo juntos na minha infância e de como sempre me senti segura. Se ao menos eu soubesse que minha vida era protegida por um cavaleiro de verdade. — Minha menininha é uma rainha. Uma rainha do País das Maravilhas.
Sorrio.
— Ligeiramente diferente das minhas versões fantasiosas, não?
O papai ri e me beija na cabeça.
— Pode-se dizer isso. Mais como uma ninja.
Solto um riso e dou-lhe um abraço, aconchegando-me em seu calor e força.
— Está pronta para ir para casa? — pergunta ele, acariciando minhas costas.
— Bom, não exatamente casa — emenda a mamãe, voltando ao meu lado. — Temos de fazer um desvio.
— Desvio? — pergunto, enquanto ela e eu entramos de braços dados no castelo, com os caras atrás de nós. Nossos sapatos batem no chão vítreo. A Marfim está no alto da escadaria de cristal, onde o portal me aguarda no fim de um corredor. O Rábido está ao lado dela, com Finley do outro lado, a mão às costas, sob as asas.
— A casa de Jeb vai ser a primeira parada — responde a mamãe enquanto subimos os primeiros degraus.
Fico intrigada por um instante, até que me cai a ficha de tal manobra.
— Para podermos descobrir se há alguma atividade policial em nossa casa. Muito inteligente.
— Mais do que isso — corrige o papai atrás de mim. — Vamos precisar de ajuda externa para explicar a ausência da mamãe e de Jeb por um mês, assim como sua fuga do sanatório. Se não fizermos isso, posso ser preso por ajudá-la a fugir enquanto você era suspeita do desaparecimento deles.
— Ajuda de quem? — pergunto, segurando-me ao corrimão frio de vidro. Isso está começando a parecer mais complicado e perigoso do que eu imaginava. Nunca pensei no papai sendo preso. Talvez devêssemos ter levado Morfeu a sério em sua oferta.
— Ajuda de alguém que esteja trabalhando com a polícia na investigação — responde a mamãe. — Uma pessoa que não seja suspeita e tenha a confiança de todos por estar sofrendo a morte do irmão e da melhor amiga desde que foram dados como desaparecidos.
Meu sangue se intensifica em meus pulsos ao olhar para trás e ver Jeb subindo a escada ao lado do papai.
— Você não está falando de...
O sol entra pelas paredes cristalizadas e ressalta os traços de Jeb, ampliando a resolução cautelosa ali.
— A não ser que você pense em outra forma, Al — diz ele, uma referência óbvia ao desejo no meu bolso. — Vamos ter de contar a verdade a Jen. Tudo.
Apesar de não falar em voz alta, não estou disposta a deixar Jeb abdicar de seu desejo por ninguém nem nada. Depois da violência que ela enfrentou na vida, Jenara é durona. Ela também acredita no poder dos cristais, em vodu, tábuas Ouija e tarô. Ela está a um milímetro de ser considerada louca. Torná-la um ser intraterreno honorário é a coisa mais lógica nesta situação ilógica. E, sinceramente, vai ser bom deixar de esconder meu lado País das Maravilhas da minha melhor amiga. Ela vai ser minha cunhada. Nossa vida familiar será menos complicada se pudermos falar abertamente sobre tudo.
Antes de passarmos pelo portal e entrarmos no reino humano, a mamãe, o papai, Jeb e eu discutimos o plano, já que temos lugares diferentes para ir.
Noite passada, depois que reabri os portais, durante meu passeio com Morfeu, e enquanto Jeb estava implorando um desejo, mamãe e papai foram ao reino humano e fizeram o reconhecimento. Da segurança do nosso sótão, eles esperaram para ter certeza de que a casa estava vazia e entraram na internet, reunindo todas as notícias possíveis sobre a tragédia no Submundo na noite da festa de formatura, o desaparecimento da mamãe e de Jeb, que aparentemente estava relacionado a isso, e minha fuga do sanatório um mês depois.
Um mandado de prisão foi expedido para mim e meu pai vinte e quatro horas depois da nossa partida. Éramos oficialmente procurados há três dias.
A informação mais útil foi a entrevista recente do sr. Traemont para o jornal local sobre a devastação de seu centro de atividades — paredes de concreto derrubadas, desabamento e vazamento de água. Ele levou duas semanas somente para avaliar completamente os danos. Chamou uma equipe de construção que originalmente transformara o velho e abandonado silo de sal no Submundo, para que pudessem dar pistas sobre o que deflagrou o acidente. Depois de analisarem as plantas, eles chegaram à conclusão de que, no alicerce, possivelmente havia um ponto fraco provocado pela mineração de sal décadas antes. O buraco que se abriu sugou tudo para um dos túneis de mineração sob a caverna subterrânea.
A conclusão fazia mais sentido do que a verdade que ninguém via: a rainha do País das Maravilhas deu vazão a uma nuvem de espíritos de pesadelo que sugaram o centro de atividades para a toca do coelho com tanta força que metade da caverna implodiu.
Como certa vez eu disse a Morfeu, muitos humanos preferem acreditar que estão sozinhos no Universo a admitir que pode haver uma plateia sobrenatural. E como ele comentou: o ego das pessoas é a própria fraqueza delas.
Com o acidente, o Submundo foi abandonado — todas as entradas para a gigantesca caverna foram condenadas e lacradas com fita policial para a segurança do público. É aqui que entra a ideia de Jeb. Ele disse que, meses antes do início da construção do centro de atividades, os túneis de mineração foram usados para guardar itens bélicos para uma base militar próxima: lenços umedecidos, kits de primeiros socorros, pentes, xampu, desodorante em pó, pasta de dentes, caixas de refeições desidratadas, sacos de sopa e garrafas de água. Ele viu isso dentro de um túnel depois que começou a trabalhar no local, e os suprimentos ainda tinham de ser retirados de lá.
Obrigada, procrastinação. O caráter humano nos deu nosso álibi perfeito.
Só tínhamos que magicamente remover pedras e destroços para entrar num dos túneis. Lá, podíamos montar a cena, como se a mamãe e Jeb tivessem ficado presos por um mês, vivendo à base de suprimentos militares. Era tão simples que beirava à perfeição. O fato de ninguém ter considerado essa possibilidade era inacreditável. Eles estavam tão ocupados investigando o suposto envolvimento da menina louca que não exploraram nenhuma outra teoria.
Quando a mim e ao papai, nossa história seria igualmente simples: consegui pegar as chaves dele e fugi do sanatório usando a entrada de jardinagem naquele dia, enquanto estávamos sem vigilância no jardim. Ele não teve tempo de pedir ajuda, então me perseguiu e subiu na caçamba do caminhão que eu dirigia. Eu o levei ao Submundo... e, lá, refiz meus passos na noite da festa de formatura. Depois de ver a destruição, uma lembrança horrível tomou conta de mim — a visão de Jeb e da mamãe sendo engolidos por uma avalanche de pedras e cimento.
Tive de suprimir isso... foi traumatizante demais encarar a morte deles.
Só que eles não estavam mortos. Porque, enquanto eu e o papai chorávamos na escuridão em meio aos destroços, ouvimos um barulho e o seguimos até um monte de pedras cobrindo uma abertura. Conseguimos cavar e nos reunimos a Jeb e à mamãe — mas a abertura era instável e mais rochas e pedras nos isolaram novamente: os quatro presos juntos.
Foi ali que o papai e eu estivemos nos últimos três dias.
A ideia de Jeb era brilhante. Até Morfeu teria ficado impressionado.
Então tínhamos um plano que só exigia minha mágica e a da mamãe e os dois trajes de disfarce. Fora isso, precisávamos de um catalisador: alguém para dar a dica da nossa localização aos policiais.
Era aí que entravam Jenara e a tábua Ouija.
Apesar de ser manhã no País das Maravilhas, é noite no reino humano. Envoltos em trajes de disfarce, meus pais entram primeiro no portal, parando na nossa casa para pegar um dos uniformes do papai e o traje de sanatório que mamãe tinha guardado, que será para mim. Estaremos usando as roupas nas quais fomos vistos pela última vez, para fazer o plano dar certo. Depois que a mamãe e o papai entrarem em casa, a próxima parada será no Submundo, para montar o cenário da nossa grandiosa revelação.
Jeb segura minha mão e me endireita, enquanto o Rábido e eu passamos com ele pelo espelho comprido atrás da porta do quarto de Jenara. Ele dá para uma janela que reflete a Marfim e Finley acenando adeus.
Antes de entrarmos, garantimos que Jenara não estivesse no quarto. Vamos ter de contar isso a ela aos poucos. Ela já ficará suficientemente chocada ao nos ver vivos e intactos.
Quando ela estiver pronta, eu lhe mostrarei meus poderes e características intraterrenos. O Rábido está aqui como suporte, para o caso de ela precisar de mais provas que não minhas asas para se convencer de que o País das Maravilhas é real.
Escondo meu colar com a chave. As tiras verticais rosas e brancas da parede de Jenara brilham com um tom prateado, folheado pelo luar que entra pelas cortinas translúcidas da janela arqueada. Silhuetas de trepadeiras de flores negras se prolongam pelo teto — sombras imaculadas pintadas pela mão hábil de Jeb há alguns anos. Um mural digno de um museu.
Eu o pego olhando para o mural antes de ficar sério e desviar o olhar. A tristeza na ação me dá um aperto no peito.
— Jeb. — Paro atrás dele e o abraço, a boca contra as roupas que envolvem seus ombros largos. — Você encontrará seu caminho. Prometo... você ainda tem tanto a oferecer a este mundo.
Ele fica tenso, mas cruza os braços, segurando meus cotovelos.
— Não sei direito como esquecer algo que antes me manteve são.
— Você não precisa esquecer. Esta parte sua ainda está intacta. Em molduras, pintada em paredes, desenhada em pedaços de papel. Sua musa vive aqui, por meio das pessoas que ficam felizes com sua obra de arte todos os dias. Isso é mais mágico do que tudo. Deixe que isso o mantenha são até encontrar um novo caminho.
Ele me vira de modo que ficamos de frente um para o outro e me beija.
— Você é muito inteligente para um ser intraterreno.
Eu rio.
— E você é bem durão para um humano. — Abaixo a cabeça dele para outro beijo.
O Rábido nos chama e nos encara com os olhos arregalados e fascinados.
Constrangida, recuo. O alívio momentâneo foi bom, mas sei que não será fácil passar por cima de tudo o que Jeb perdeu. É algo com o que lidaremos juntos, dia a dia, até ele reencontrar seu caminho.
Por enquanto, temos de cuidar desta situação com Jenara.
Jeb pigarreia, obviamente pensando na mesma coisa.
— Então acho que eu deveria olhar a casa.
— Você acha que ela está trabalhando? — Tiro minhas botas para permitir que o tapete rosa macio acaricie os dedos dos meus pés.
Ele abre a porta do quarto de Jenara e olha o corredor.
— Sei que a mamãe está. Ela sempre pega os turnos da noite. Vocês dois esperam aqui.
Assim que ele sai, deixando a porta aberta atrás de si, o Rábido sobe na cama de Jenara. Seus dedos magros enrugam o edredom preto e branco. A poeira rosa me lembra de como Jen e eu brincávamos de nos fantasiar neste quarto. De como inventávamos vestidos de noiva com lençóis e fronhas, contávamos segredos, comíamos bobagem e ficávamos acordadas até tarde.
Isso parece ter acontecido há tanto tempo.
Dois manequins brancos e sem rosto ficam diante da janela dela com luminárias em suas cabeças como chapéus. Jeb mexeu no interior e instalou lâmpadas nos crânios para criar abajures para o aniversário de quinze anos dela.
Acendo um deles, lançando uma luz branca estelar pelo piso de madeira e pela colcha da cama de Jenara.
— Ooooh. — O Rábido se levanta no colchão e dança em meio às formas criadas pela luminária. Encaro o espelho, vendo o reflexo dele no vidro. Ele é como uma bailarina macabra num globo de neve. Tão deslocado no quarto cheio de coisas normais e humanas.
Então vejo meu próprio reflexo. Minhas marcas intraterrenas nos olhos ainda não desapareceram completamente. Minha pele brilha e, se meu cabelo não estivesse preso numa trança, ele estaria agitado — vivo e encantado.
Sou uma alienígena.
Pensando bem, somos todos alienígenas agora. Até Jeb. Depois do que passamos e vimos, esta tranquilidade parece mais perigosa do que o caos que enfrentamos. Eu me pergunto se é assim que soldados se sentem depois de voltarem da guerra. Como eles superam? Como eles aprendem a fazer parte da comunidade novamente? A se sentirem seguros de novo?
Os zumbidos de alguns insetos interrompem minhas reflexões, um consolo bem-vindo. Fecho os olhos por um instante, mas os abro assim que um grito agudo do outro extremo do corredor me faz dar um salto.
Espanto o Rábido da cama e o mando para o armário.
— Não saia a não ser que eu o chame, sim?
Ele faz que sim, se escondendo numa pilha de acessórios de costura — mantas, cintos e tecidos — no chão.
Fico parada, os braços ao lado do corpo... presa.
O choro histérico de Jenara se aproxima à medida que Jeb a acompanha até a porta entreaberta. Ele fala num tom de voz carinhoso, tão baixinho que mal consigo ouvir o que ele diz. Meu coração bate em sincronia com as dobradiças que se abrem.
Quando eles entram, ela está abraçada a ele, segurando o colarinho da camisa, a cabeça contra seu corpo e o rosto escondido sob um véu de cabelos rosa molhados — recém-saídos do banho. Jeb deve tê-la surpreendido assim que ela saía do banheiro. Seu pijama verde de cetim me faz lembrar festas e jogos divertidos passados.
Sinto tanta saudade dela.
— Jen? — murmuro hesitantemente, sem saber o que dizer em seguida.
Ao ouvir minha voz, ela vira a cabeça na minha direção.
— A-Al? — Seu rosto rosado fica inchado quando ela tenta conter o choro. Ela perde a batalha e grita, correndo na minha direção.
Estendo o braço para abraçá-la e caímos no colchão juntas, as molas balançando sob nossos corpos. Recuperando o fôlego, me enterro no cheiro cítrico e doce de seu xampu. Um sorriso se irradia do meu coração para meus lábios e eu a abraço com força, lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Lágrimas dela ou minhas... não importa. A sensação é maravilhosa.
Jeb esfrega as costas dela.
— J.
— Não, não, não, não. — Ela chora de encontro ao meu pescoço. — Não me acorde. Estou sonhando, estou sonhando.
Ele coloca um dos joelhos na cama, ao lado de nossos corpos unidos, e a preocupação em seus olhos basta para me fazer esquecer que um dia partimos.
— Tudo bem, Jen. Não é um sonho — garanto a ela. — Estamos aqui.
Jeb acaricia a cabeça dela, intencionalmente tocando meu rosto com um dos dedos ao longo do processo. Ele não quer magoar a irmã — ele passou anos demais protegendo-a. Mas ele sabe que é o melhor para todos nós a longo prazo.
Ainda assim, é óbvio que ele está lutando e perdido, como o menininho que um dia foi.
Seguro a mão dele e o puxo, de modo que seu corpo caia ao meu lado direito. Ele se aninha tão próximo que seu hálito toca minha orelha. Coloca seu braço sobre mim e Jen, de forma que fico espremida entre as duas pessoas de que mais gosto. Juntos, nós três choramos e rimos até soluçarmos.
Pela primeira vez em semanas, estamos reunidos. Uma família.
Esta sensação. Talvez... é assim que voltamos ao normal.
Assim que Jenara se acalma, ela se senta, tentando recuperar o fôlego.
— Onde vocês estiveram? Procuramos em todos os lugares! — A acusação é direcionada a Jeb. — Achamos que vocês...
— Sinto muito. — Jeb se ajoelha, interrompendo-a antes que ela possa admitir que pensava no pior.
Fico onde estava, a coluna apoiada no colchão. Com medo de me mover.
— Al, talvez a gente devesse lhe contar tudo de uma só vez — diz Jeb, a voz trêmula.
— Incluindo como mandei você para lá? — Procuro as palavras certas e tropeço terrivelmente.
Verde e úmido, o olhar de Jenara recai sobre mim.
— Ãhn? — Sua expressão mostra que ela compreende. — Espere. — Ela sai da cama e se levanta, tonta mas determinada. — A polícia tinha razão? Você sempre soube onde ele estava? Mas por que você não...? — Ela chora de novo. — E quanto à sua mãe? Cadê ela? E seu pai? O que está havendo?
Estudo o rosto dela, manchado de lágrimas, seus cabelos rosa molhando a parte de cima do pijama, as três sardinhas no nariz. Ela parece tão vulnerável. Queremos mesmo envolvê-la nisso? Não haverá volta se o fizermos.
Jeb me obriga a me sentar.
— Você é a única que pode lhe mostrar. Faça-a entender.
Engulo em seco.
— Não sei nem por onde começar.
— Mais ou menos por aqui. — Ele passa o dedo pelas alças do meu vestido que revelam minhas omoplatas nuas. Meus botões de asa se arrepiam ao toque dele.
Fico com o rosto em chamas.
— Mas não posso simplesmente... precisamos prepará-la.
Jenara recua lentamente até a porta.
— Me preparar? Vocês estão me assustando. Vou chamar a mamãe. — A campainha toca e ela para, a expressão se iluminando. — Corbin — murmura ela, e se vira para o corredor para deixá-lo entrar.
— Não, J. — Jeb tenta impedi-la, mas ela o ignora.
— Espere, Jen! — Saio da cama. — Corb não pode estar aqui para isso.
— Por que não? — Ela se vira, as mãos na cintura. — Ele esteve aqui enquanto Jeb estava desaparecido. E enquanto você estava internada. Ele me ama, Al. Ele cuidou de mim e da mamãe. Tudo o que você me contar, pode contar a ele. — Ela se vira e atravessa a porta do quarto.
— Nós... nós fomos ao País das Maravilhas! — digo de uma vez, fazendo-a parar. Ela dá meia-volta no corredor, boquiaberta.
— Mostre suas asas — acrescenta Jeb, estreitando os olhos. Seus cílios compridos lançam sombras sobre seu rosto e as luminárias brilham em sua pele, fazendo-o parecer tão intraterreno quanto eu.
— Asas? — pergunta Jenara, voltando ao quarto. — Sério, mano? Você a quer trancada no sanatório de novo? Você não faz ideia do que ela passou enquanto eles tentavam tirar o País das Maravilhas da mente dela. Não dê vazão ao delírio dela!
— Al... — Jeb me leva até ela. — Você vai ter de se expor. Não há outra forma de fazer alguém acreditar. Eu precisei de um acidente na toca do coelho.
Ao ouvir a palavra coelho, o Rábido sai do armário, sua forma esquelética enrolada em mantas e cintos. Ele tropeça em Jeb, e os dois caem no chão. O Rábido se aproxima de mim ainda caído, parecendo uma lagarta louca com apenas seus chifres e olhos rosa expostos.
— Rábido, o Branco, sou eu! — Anuncia ele com sua voz fina, virando-se e tentando se libertar.
Jeb xinga e Jenara grita tão alto que todos os outros sons parecem abafados, como se meus ouvidos estivessem dentro de uma concha.
A porta da frente se abre e passos soam no corredor. Jeb se levanta para fechar a porta, mas é tarde demais. Corbin aparece ofegante, os cabelos loiros arruivados reluzindo sob a luz fraca. Ele traz uma chave na mão. Seus olhos recaem sobre o Rábido, que conseguiu se livrar dos acessórios do armário de Jenara e está ali de pé, exibindo toda a sua decrepitude intraterrena.
A criaturinha abre os braços com um floreio.
— Ta-da! — grita ele, com espuma saindo pela boca. Faço uma cara feia para o espetáculo. Morfeu deve ter lhe ensinado isso.
— O que está havendo? — pergunta Corbin com seu pesado sotaque sulista, segurando Jenara pelo cotovelo e puxando seu corpo trêmulo para o corredor.
Jeb franze a testa, atento à chave na mão de Corbin.
— Estava prestes a perguntar a mesma coisa. Por que você tem uma chave da nossa casa, Corb? Desde quando você mora com minha irmã?
Encaro Jeb. O meu lado intraterreno ri alto antes de eu conseguir me segurar, divertindo-me com o ridículo da situação toda. Parece que todos somos controlados por instintos. Para Jeb, dar à irmã e ao melhor amigo o maior susto da vida deles é algo que pega carona em seu instinto protetor de irmão mais velho.
O choro audível de Jenara traz meu lado travesso de volta. Pego o roupão da cadeira perto da mesinha de canto e o jogo para o Rábido. Ele resmunga e o cheiro de tecido queimado pontua o ar enquanto seus olhos se transformam em duas órbitas vermelhas por baixo, criando buracos fumegantes no pano.
— Nada de fogo, Rábido! — repreendo.
Ele “desliga” os olhos e se abaixa.
— Jeb? Al? — murmura Corbin, como se só agora tivesse nos notado. Ele parece perigosamente perto de desmaiar. As sardas em seu nariz parecem escuras contra o rosto pálido. Seu olhar azul intenso permanece fixo no Rábido agachado e agitado sob o roupão. — Onde vocês... como vocês...? Aquela coisa. Tem que ser um robô... certo?
— Rábido não robô é! — Meu conselheiro real reclama por baixo do seu esconderijo, ofendido.
— Para dentro do armário — ordeno. O Rábido resmunga algo indecifrável e desaparece, arrastando o roupão queimado atrás de si como a cauda de um vestido de noiva.
Jeb e eu trocamos olhares.
— Há sempre poções do esquecimento — sugiro.
Ele bufa, estudando Corbin e Jenara apoiados contra a parede do lado de fora do quarto, confusos e trêmulos para além de qualquer descrição.
— Perder suas memórias não é a única coisa que vai acontecer. Confie em mim.
— Então vamos contar a ele também — acrescento. — Isso, ou ele esquece e o mandamos para casa.
— Não vou a lugar nenhum sem a Jen — declara Corbin, a cor voltando ao seu rosto. Ele segura Jenara junto de si, enquanto ela esconde o nariz na camisa dele, tentando respirar normalmente.
Os lábios de Jeb ganham um sorriso lento e ousado.
— Não vai a lugar nenhum hoje à noite? Então você está planejando se dedicar a ela por mais um ou dois dias?
Corbin fica sério.
— Que tal para sempre? — Ele a abraça com mais força, puxando Jenara para tão perto que a calça do pijama dela adere em sua calça jeans, estalando por causa da estática.
— Para sempre é muito tempo — retruca Jeb, e a nota de tristeza na afirmação revira minhas entranhas, como se elas fossem uma harpa tocada pelos dedos dele. Fungando, Jenara se vira para olhar para o irmão, confusa. O humor de Jeb muda novamente e ele balança negativamente a cabeça, em um gesto de amor. — Parece que você arranjou um cavaleiro branco, mana.
Pego Jeb pelo pulso, no ponto onde uma cicatriz saliente substituiu sua tatuagem.
— Você não tem ideia de como esses dois são teimosos, não é?
Ele ri baixinho e entrelaça nossos dedos.
— Então, Corb. Quer fazer parte da nossa família? Que tal oficializarmos as coisas?
Corbin e Jenara estreitam os olhos em nossa direção, a respiração presa. A casa fica mortalmente silenciosa. Não se pode ouvir nada além do sussurro de uns insetinhos — numa frequência com a qual somente eu estou sintonizada — e dos resmungos do Rábido no armário.
Jeb ergue minha mão e beija minha aliança de noivado.
— O que vocês dois precisam saber sobre Al? — pergunta ele à nossa plateia. — Aquele sanatório nunca teve a chance de curá-la. Veja só, você pode tirar a menina do País das Maravilhas, mas não pode tirar o País das Maravilhas da menina. — Minha mão se separa da dele enquanto ele recua para me dar espaço. — Mostre o que você tem, rainha-fada.
Abro meu sorriso mais majestoso. E ali, no meio do quarto com faixas cor-de-rosa, com minha melhor amiga e o amor da sua vida de olhos arregalados, abro minhas asas intraterrenas e confesso todas as minhas mentiras.
SEGUNDA MEMÓRIA: CONCHAS
Quatro anos antes...
PLEASANCE, TX., 29 DE JUN. — Dois moradores de Pleasance dados como desaparecidos há um mês, juntamente com outros dois que desapareceram na última quarta-feira, foram encontrados vivos na manhã de sábado, apenas com ferimentos superficiais, presos num túnel de mineração que desabou sob um parque condenado.
Outra moradora, irmã de um dos desaparecidos e amiga dos demais, disse suspeitar da localização das pessoas depois de receber uma dica com sua tábua Ouija, de acordo com o policial Riley Hughes.
“Normalmente, não dou muito valor às bobagens espirituais”, disse Hughes. “Mas a menina ajudou a nossa investigação durante todo o mês de busca por seu irmão e vizinhos. Ela insistiu para que a gente ao menos desse uma olhada. Como vários desabamentos ocorreram no lugar às vésperas da festa de formatura da Pleasance High, e considerando que esse era o último lugar onde os desaparecidos foram vistos, achamos que valia a pena. Fomos lá sem esperar encontrar nada. Ponto para as conversas fiadas.
— Al, você está brincando comigo? — A voz fina de Jenara tira minha atenção do artigo de jornal de quatro anos atrás. Ao meu lado no sofá, uma ornamentada garrafa de vidro cheia de pedras que peguei durante nosso “resgate” do Submundo. Esfrego as têmporas, tonta por causa da viagem pela estrada da memória.
Jen atravessa a porta correndo e a fecha atrás de si.
— Não acredito que você ainda não pôs nem sua meia-calça! O que você tem? Vinte e um anos e já mostrando sinais de senilidade? Talvez você precise de um pouco de ar.
Ela abre a janela atrás de mim. Uma brisa salgada entra, abrindo as cortinas azuis com estampa de estrela-do-mar sobre minha cabeça. Meus cabelos esvoaçam, as ondas platinadas tocando meus ombros nus e meu espartilho branco de renda.
Passo a mão na borda da minha calcinha também de renda, surpresa por estar só de roupa íntima. O que eu estava fazendo antes de me sentar? Primeiro, comi o bolinho de aniversário que minha mãe deixou ao lado do cartão no criado-mudo.
Como se animada por meus pensamentos, a fôrma de papel do bolinho voa até o chão com uma lufada de vento e chega até os pés descalços de Jen. Ela o pega e franze a testa para mim.
— Hummm?
— Bolinho da minha mãe. — Lambo os lábios, ainda sentindo o sabor da cobertura azul de mel e anis.
Jenara amassa o papel e o joga no lixo.
— Então isso é você desanimadinha depois da euforia do açúcar?
— Talvez? — Tento me lembrar do restante da tarde. Depois do meu lanche, peguei o roupão para me vestir. Ao mexer na minha mala em busca do colar novo que tomei emprestado de Jenara para hoje, fui distraída pelas lembranças que trouxe comigo. De certa forma, acabei no sofá sob a janela, com um caderno e uma garrafa na mão.
Estudei o artigo de jornal novamente. Isso sou mesmo eu ficando deprimida depois de comer um monte de açúcar ou é outra coisa?
Sinto-me tão estranha. Meu corpo e mente estão relaxados, mas meu sangue é o oposto. Ele corre veloz nas veias sob minha pele — corredeiras jorrando de milhares de afluentes.
— Vamos lá, zumbizinho, me mostre algum sinal de vida — provoca Jen. — O sol vai se pôr em uma hora e ainda temos de ajeitar seu cabelo e maquiagem. E, para sua informação, aquela mancha de cobertura nos seus lábios não conta como seu “algo azul”. Para isso é que serve o elástico. Como vamos tirar isso? — O olhar dela se volta para a garrafa de pedras perto da minha coxa. Ela a pega e balança diante de mim. — Inacreditável. O Jeb está lá com Corbin enchendo os pés de areia, caminhando pelo litoral para verificar cada detalhe. E você aí, nostálgica.
Jenara falou de outras coisas além dos detalhes do casamento. Ela teve de abandonar um desfile de moda em Nova York dois dias antes do previsto para chegar a tempo disso. Ela esteve em contato constante com sua sócia, e a linha de roupa delas está fazendo barulho. Tenho a sensação de que a carreira dela está prestes a decolar para valer. Tentamos planejar o casamento de acordo com a agenda dela, mas esta era a única semana disponível da casa de praia. Então chegamos a um acordo e escolhemos o final do desfile. Eu disse que ela não precisava vir, mas ela respondeu que morreria se perdesse.
Mesmo agora, com ela me atacando com seu olhar verde mais severo, sei que não há outro lugar onde ela preferisse estar. Ela é uma visão da suavidade com seu vestido comprido florido. Seus cabelos rosa estão presos no alto da cabeça num coque chique. Rosas-anãs azuis estão colocadas em espaços estratégicos, formando uma auréola. Poucas mechas rosa se curvam em seu pescoço.
— Você está perfeita — digo a ela, encantada.
Ela tenta conter o sorriso e revira os olhos.
— Queria poder dizer o mesmo de você.
— Corb já a viu? — Minha pergunta é retórica. Os dois estão juntos há anos e, agora que Corb quase terminou a faculdade de publicidade, ele planeja se mudar com ela para Nova York no fim do verão.
No mês passado, ele pediu “a mão dela em casamento”. Usando uma armadura de malha de metal medieval, ele veio ao nosso duplex numa carruagem puxada por cavalos. Jeb o ajudou a reformar um velho Chevy que encontraram num ferro-velho. Eles pegaram o chassi e tiraram tudo, transformando-o numa charrete leve o bastante para ser puxada por dois cavalos brancos que Corbin pegou emprestados de um amigo. Depois de acrescentar arreios firmes, de substituir os pneus por rodas de madeira e de pintar a carcaça com um branco brilhoso com uma faixa vermelha, eles tinham a carruagem texana perfeita. Quando Corbin estacionou diante da casa de Jen com três dúzias de rosas na mão e lhe pediu que fossem ver o pôr do sol, ela quase desmaiou.
Era antiquado e moderno e, ah, tão lindo.
Perdida em sua própria nostalgia, Jenara admira o anel de noivado em seu dedo. Seu sorriso desabrocha, juntamente com uma atraente vermelhidão no rosto.
— Meu noivo aprova minha mais recente criação. Mas você é quem está prestes a ficar sob os holofotes. — Ela joga a garrafa cheia de pedras na minha mala aberta e vai ao armário pegar meu vestido. Jeb e eu decidimos que as belas criações de Jenara adquiriram uma má reputação na formatura e mereciam aparecer numa lembrança boa.
Ao longo das últimas semanas, Jenara realizou um ótimo trabalho costurando tecidos e retalhos com apliques diversos — um deles ela encontrou num antiquário, então isso era meu “algo velho”. Quaisquer manchas foram disfarçadas com corante de flores seguido por um toque brilhante. Agora o vestido branco sem alcinhas parece novinho. Ou tão novo quanto um vestido de noiva vintage pode parecer depois de ser modificado para se assemelhar a um tecido recém-tirado do túmulo.
— Vamos, Al, depressa! — repreende-me Jenara, perdendo a paciência.
Eu resmungo algo como resposta.
Ela joga a meia-calça lilás acinzentada na minha direção e ela voa por sobre minha cabeça, cercando-me como uma nuvem perfumada.
— Vou preparar a maquiagem — avisa ela. Ouve-se um barulho quando ela coloca a bolsa de maquiagem na mesinha, ao lado do cartão de aniversário da mamãe. — Talvez removedor de esmalte funcione com seus lábios.
Torço o nariz.
— Eca... sério?
Ela dá de ombros.
— Situações de desespero exigem medidas nojentas. — Do outro lado da redinha cobrindo meu rosto, ela escolhe sombras, delineadores, pincéis e blush.
Meu corpo parece leve, como uma nuvem flutuando. Em parte é felicidade... em parte, nervosismo... e alguma coisa mais. Algo que nunca senti antes.
Ou será que já?
A pele ao redor dos meus olhos dói, assim como a pele em minhas omoplatas.
Risadas abafadas e passos são ouvidos através da parede fina da sala de estar. A casa de praia que meu pai alugou tem sete quartos, um loft e quatro banheiros e meio, mas ainda assim não é grande o bastante para nossos convidados. Não consigo nem imaginar como ela ficará cheia depois que todos chegarem.
Reunindo energia, afasto a meia-calça e guardo o artigo de jornal de novo no caderno de recortes. Sinto-me tentada a folhear as outras páginas. A olhar as imagens de nossas exposições de arte — pinturas de edição limitada que Jeb jamais conseguirá replicar e meus mosaicos de vidros coloridos —, juntamente com fotos tolas dos últimos quatro Halloweens, Natais, piqueniques de verão, guerras de bolas de neve e pegadinhas universitárias. Só uma última olhada em nosso tempo juntos como noivos, capturado entre camadas de filme de polipropileno, antes de darmos início ao capítulo seguinte num novo caderno de recortes, decorado com cetim branco e um colarzinho de pérolas.
Toda a minha pele se avermelha, pensando no que vem depois da cerimônia. Não foi fácil esperar nos últimos anos, mas a vida já era bem complicada, tendo de enfrentar a dor de Jeb por ter perdido sua habilidade artística, indo para a faculdade e equilibrando meus deveres reais no País das Maravilhas com nossa vida humana. Nunca parecia a hora certa, até agora. Nós nos ajustamos a nossos novos papéis, aprendemos a fazer concessões sendo honestos e sempre estivemos emocionalmente presentes um para o outro. E, depois do compromisso físico de hoje à noite, nosso elo será inquebrável.
Não há forma melhor de dar início à nossa nova vida juntos do que isso: os braços fortes dele segurando meu corpo nu enquanto acaricio as cicatrizes do seu peito com o dedo, curando suas feridas a um só toque.
— Do que é que você tá rindo, Al?
Levanto a cabeça, sorrindo, apesar de tentar me conter.
Jenara bufa.
— Você não vale nada hoje, sabia? Supere isso. — Ela tira o caderno da minha mão. — A maioria das damas de honra não precisa usar seus talentos como vidente para preparar a noiva. Você vai me pagar mais por isso, não é?
Ergo as pernas para ela poder me ajudar com a meia-calça.
— Claro. Dez mil vezes mais do que o salário que combinamos.
— Humm, dez mil vezes zero... Sabia que deveria ter pedido a um advogado que desse uma olhada no contrato. — Ela segura a roupa enquanto enfio o pé, depois segura minha mão para me tirar do sofá.
Ao ajeitar o elástico sob o espartilho na cintura — de modo que a combinação caia abaixa dos joelhos —, aquela dorzinha entre os ombros aumenta e vira uma sensação de queimação. Antes que eu perceba que são meus brotos de asa, eles se abrem: um branco opaco, brilhando com joias coloridas, ocupando o espaço como asas de uma borboleta recém-saída do casulo.
Eu grito.
Jenara perde o fôlego, os olhos arregalados como moedas.
— Al, o que é isso? Você não pode fazer isso agora!
— Eu... não quis fazer isso! — Meu grito reverbera ao nosso redor.
— Shh. — Ela fecha minha boca com a mão e olha para a parede fina. Como não ouvimos nada além do zumbido das conversas dos convidados na sala ao lado, ela tira a mão. — Certo... Você terá uma audiência dentro de uma hora. Recolha as asas.
Tento, mas as asas não se movem.
— Não está dando certo. — Tento mais uma vez. — Não consigo. — Meu coração bate forte.
A expressão de Jen parece ainda mais preocupada.
— Ah, claro. Você está brilhando. E seus olhos... sério que você não está fazendo isso de propósito?
Faço que não com a cabeça. Milhares de pontinhos de luz se refletem no rosto de Jenara e nas paredes amareladas de sol que nos cercam. Levo os dedos ao rosto, imaginando marcas negras como as listras de um tigre sob meus cílios inferiores, parecidas com as de Morfeu sem as joias.
— Minhas marcas... estão muito evidentes?
O olhar de Jenara está fixo ao meu.
— Não são apenas as marcas, Al. São suas íris. Elas estão... roxas.
— Roxas?
Jen faz que sim.
— E não é um tom sutil... é muito estranho.
Sinto um frio na barriga.
— Isso não pode estar acontecendo. — Meus cabelos começam a se levantar, uma dança provocativa de mágica.
— Merda! — exclama Jenara depois que algumas mechas a alcançam. — Isso é tipo uma gripe intraterrena ou coisa assim?
— Eu... eu não sei. — Com os dedos trêmulos, seguro as mechas e as prendo na nuca. — O que vamos fazer? — O pânico reveste minhas cordas vocais, deixando-me rouca, como se tivesse engolido uma lixa líquida.
Jenara esfrega as mãos.
— Bom, você pode prender o cabelo no alto e podemos dizer que fomos criativas com sua maquiagem. O véu vai esconder seus olhos durante a cerimônia. Depois, você pode dizer às pessoas que está fazendo experiências com lentes de contato. Mas as asas... Eu acho que é impossível disfarçá-las.
Não há espelho para eu ver o tamanho da minha imagem intraterrena, por motivos óbvios. Não queria nenhuma surpresa nas festividades de hoje, então optei pelo quarto menor pela ausência de espelho, confiando que Jen fizesse minha maquiagem e me tornasse apresentável para o casamento. O lado ruim de escolher este quarto é que não há tranca na porta, o que agora me deixa ainda mais vulnerável e acessível.
Maldita reflexão tardia.
A vermelhidão no rosto da minha dama de honra ganha um tom de ansiedade.
— Vou chamar sua mãe. — Ela começa a sair, mas para. — Só... fique aqui e cuide da porta. Tente se acalmar. Vamos dar um jeito nisso, sim? Nada vai estragar isso.
Faço que sim, mas apenas para ela ficar tranquila. Como isso pode não arruinar as coisas? Não posso encarar nossos convidados humanos com todas as minhas características sujas do País das Maravilhas expostas! Isso não é a noite da festa de formatura no Submundo. Ter asas numa praia não pode ser explicado com a mesma facilidade do que usá-las como fantasia sob luzes mortiças.
Depois que Jenara sai, coloco a cadeira sob a maçaneta e puxo a asa sobre meu ombro. As joias piscam numa confusão de cores, como as marcas oculares de Morfeu quando ele está ansioso ou perplexo. Há algum tempo, descobri que meu humor, como o dele, se mostra por meio das minhas joias. É algo que Morfeu mantinha para si mesmo e um dos motivos por que ele gosta de ter minhas asas à mostra... para ele poder saber o que estou sentindo.
Mas sou eu quem decide quando abri-las. Tenho lidado com meus aspectos intraterrenos tranquilamente desde que voltei ao reino humano. Nunca perdi o controle. Há alguma travessura em andamento aqui. E tudo começou com o bolinho azul com sabor de anis e mel.
Anis... um sabor surpreendentemente semelhante a alcaçuz. Cigarro de alcaçuz.
Ranjo os dentes.
— Morfeu.
Noite passada, antes de voltar dos meus sonhos, eu o abracei, algo que não faço com frequência. Estabelecemos limites claros para o contato físico, a fim de honrar minha vida humana. Mas ele andava mal-humorado com meus súditos, o que raramente acontece, e sabia que ele estava escondendo seus sentimentos quanto ao meu casamento. Então quis consolá-lo, quis garantir que a paciência dele não passasse despercebida nem desvalorizada.
Ele me abraçou de volta por uns cinco segundos, depois me afastou. Ao olhar para mim, sua expressão era algo bem distante da tristeza ou preocupação. Era o exato oposto, o que nunca é um bom sinal.
— Decidi dar a você e a seu noivo um presente amanhã, frutinha — disse ele, abrindo a mão. Uma esfera azulada ganhou vida na palma de sua mão e depois alçou voo, pairando entre nós. — Como Jebediah abdicou de sua capacidade de sonhar com o País das Maravilhas, você pode compartilhar seus sonhos em segredo na sua lua de mel. Você não virá ao País das Maravilhas esta noite. Em vez disso, Jebediah pode entrar com você e seus sonhos pertencerão somente a ele. Mas somente se ele se provar digno de se casar com a rainha-fada.
Antes de poder pegar a luz azulada, Morfeu me expulsou do meu sonho.
Minhas mãos agarram a meia-calça cobrindo minhas coxas. Quando acordei neste quarto, pela manhã, pensei em contar a Jeb as palavras enigmáticas de Morfeu, mas não estava com meu celular porque Jenara se esforçou ao máximo para manter seu irmão distante de mim até a cerimônia.
Não há tempo a perder. Ele precisa ser avisado de que Morfeu criou outro teste para mim. Ou melhor, para ele.
Vou até a mesa para dar uma segunda olhada no cartão de aniversário da minha mãe, manobrando as asas pela mobília arranjada em ângulos estranhos no quarto pequeno demais. Ergo o cartão, estudando-o cuidadosamente. Para além da corujinha bonita na capa — sutil — e da inscrição “Queeeeem faz aniversário hoje?” dentro, há a assinatura da mamãe impressa. Ela sempre assina cartões com letra cursiva. Por que não tinha percebido isso? Ou o fato de o papai não ter assinado também? Pensando bem, eu deveria ter percebido tudo isso, porque não era para ter abaixado a guarda. Morfeu me treinou melhor do que isso.
Mas ele sabia que eu estaria distraída com meu cérebro focado no casamento. Ele contava com isso. E, para piorar as coisas, não havia insetos por perto para me alertar. A casa de praia foi fumigada há uma semana por causa de uma infestação de formigas e o silêncio era ensurdecedor desde que chegamos. Suspeito que ele tenha o dedo nisso também. Ainda assim, ele está cumprindo sua promessa de não se colocar entre mim e Jeb porque conseguiu fazer com que minhas características intraterrenas é que causassem todos os problemas.
Estou quase impressionada, mas isso não é nada perto da ansiedade revirando minhas entranhas. Como pude ser tão descuidada?
— Maldita mariposa inteligente — xingo, esperando ouvir um eco da risada arrogante na minha mente. Como não ouço nada, fico séria e rasgo o cartão ao meio, com raiva por não encontrar respostas ali. — Certo, você me pegou. Mas fique sabendo que você o está subestimando — digo em voz alta, na esperança de que Morfeu ao menos esteja ouvindo. Minha voz soa firme e confiante, apesar das lágrimas de nervosismo queimando em meus olhos. — Jeb vai encontrar uma forma de resolver isso...
— Tem razão, Al. — A voz grossa e determinada de Jeb me atinge por trás, uma corrente elétrica iluminando todas as minhas terminações nervosas.
Viro-me para ver uma rosa branca pela porta entreaberta.
— Deixe-me entrar.
Quase tropeçando nas minhas asas, corro e puxo a cadeira para o meio do quarto, e depois recuo para lhe dar espaço.
Ele entra — pingando no que restou do seu smoking de formatura — e fecha a porta. Ele se apoia nela e me encara. Areia e gotas de água brilham em seus braços, onde ele enrolou as mangas da camisa até os cotovelos. A camisa semiabotoada expõe seu peito reluzente. As calças azul-marinho estão enroladas também até o meio da canela. Ele deve ter deixado o paletó azul de veludo lá fora, pendurado para secar.
— Jen tentou me contar sobre seus olhos — murmura ele antes de eu poder perguntar o que aconteceu às roupas dele. — Mas não há paleta de artista, não há comparação neste mundo para esta cor. Al, você está tão linda.
Estava pensando o mesmo que ele.
— E você está tão molhado — digo, estúpida. É difícil pensar em meio à luz amena que reflete sua pele cor de oliva, o labret prateado e os rebeldes cachos escuros pingando água por sua testa e seu nariz.
Ele não responde, ocupado demais em me analisar com seu olhar profundo e úmido. Se Jenara estivesse aqui, ela insistiria para eu cobrir meu espartilho e calcinha. Não, ela insistiria para eu expulsá-lo. Mas ficar longe dele desde o jantar da noite passada já era muito tempo. Até mesmo a cadeira entre nós dois parece uma montanha. Eu deveria movê-la, mas ele me deixou paralisada. Seu olhar percorre todo o meu corpo — um carinho mental tão íntimo e completo quanto um carinho real seria.
— Talvez a gente não devesse ter escolhido um casamento na praia — provoco, tentando conter minha imaginação fértil.
O sorriso sensual resultante de Jeb revela seu incisivo torto que espero que nossos futuros filhos e filhas herdem.
— Digo, levando em conta nossas experiências passadas com enormes corpos de água.
Eu rio.
Ele ri também, mas então fica sério.
— Nós nos reencontramos numa praia em Qualquer Outro Lugar. Você me fez uma promessa lá. Faz sentido eu lhe fazer uma promessa numa praia também. Não importa o que aconteça antes ou durante nosso casamento. Não importa que tipo de dificuldades Morfeu pôs em seu caminho hoje, tudo isso vale a pena. Nós valemos a pena. E vamos provar isso para ele.
Nunca o vi tão confiante ou... enérgico.
— Espere aí, você... Você está gostando disso? — Esboço um sorriso hesitante.
Ele dá de ombros e cheira a rosa branca na mão.
— Gosto de um desafio.
— Morfeu vai odiar que não pode provocá-lo.
— Psssh. Nós dois sabemos que ele adora quando eu aceito o desafio.
Balanço a cabeça, sorrindo. É um consolo estranho perceber como eles se conhecem e se compreendem bem hoje em dia.
— Então foi ele quem o fez cair na água?
Jeb obriga seu olhar a subir do meu corpo seminu para meu rosto.
— Bom, tecnicamente não foi ele. Ele está cumprindo a promessa de ficar longe do nosso mundo. Corb estava arrumando a almofadinha de carregar as alianças quando algo mordeu seu dedão do pé e ele derrubou as alianças. Uma lagosta de pedra surgiu na areia, as pegou e desapareceu nas ondas.
— Uma lagosta de pedra de verdade? Como as de Qualquer Outro Lugar?
Jeb enfia o cabo da rosa no bolso, então segura a camisa pela cintura e começa a desabotoá-la completamente.
— Sim. Pintei algumas para o País das Maravilhas antes de irmos embora, quando reinventei as paisagens. Morfeu as pediu. Não há dúvida de que foi ele quem mandou aquela lagosta de pedra para cá.
É difícil acompanhar a conversa porque só consigo ver as roupas molhadas grudadas no corpo musculoso de Jeb a cada movimento.
— Então... você mergulhou no oceano para recuperar as alianças?
— Tentei, mas não consegui pegar a ladra. — Ele tira o tecido ensopado dos ombros e braços, revelando uma barriga de tanquinho molhada e gotículas presas nos pelos de seu peito. — Pedi à sua mãe que entrasse em contato com a Marfim pelo espelho do quarto dela. Ela tinha uma flauta mágica no castelo. Eu a vi lá. Descobri que o instrumento funciona nos moluscos do nosso mundo também. Eles trazem as lagostas até a praia. Os anéis agora estão seguros. Corb vai manter a almofada com ele até a cerimônia.
Penso nos moluscos que conhecemos no País das Maravilhas na nossa primeira visita... como toquei uma flauta que os convocava e lhes dava ordens. Como, num só movimento, eles vieram nos resgatar quando estávamos sendo perseguidos por um exército e levaram nossos perseguidores para longe, numa confusão de conchas batendo-se umas nas outras. Sou ainda mais grata agora do que antes. Só espero que ninguém tenha visto nada.
— Não se preocupe com os convidados — tranquiliza Jeb, como se lesse meus pensamentos. — Seu pai manteve todos ocupados. Ele os levou por um passeio ao outro lado da praia, onde os barcos ficam ancorados.
O alívio toma conta de mim. Mas por pouco tempo, considerando que todos vão me ver em breve.
— Não devemos falar do elefante voador na sala? — pergunto, batendo as asas.
Jeb joga a camisa molhada no braço da cadeira de madeira. Seu pomo de adão se move quando ele engole em seco lentamente.
— Você se refere ao fato de você ser a mulher mais radiante e mágica que já vi?
Mulher... Acho que ele nunca me chamou assim. Seu olhar é tão intenso que minhas pernas fraquejam. Aproximo-me da cama, precisando de apoio contra elas.
Seu olhar se detém nos meus lábios azuis.
Eu os esfrego.
— Foi uma bobagem. Comi um bolinho que veio do nada... Sei que não devo comer nada estranho.
— Não. Morfeu teria encontrado uma maneira de fazer isso com ou sem você comendo o bolinho. Ele está deixando claro uma coisa. Provei meu valor como marido do seu lado humano depois de quase morrer por você mais de uma vez. Mas ele quer que eu seja digno do seu lado intraterreno também.
Fico boquiaberta
— Foi o que ele disse no meu sonho!
Jeb tira a rosa do bolso e arranca uma das pétalas.
— Compartilhei da mágica dele uma vez. Sei como ele pensa. Ele provou seu amor por seu lado humano ao não deixar a Marfim coroá-la e destruí-la. Então ele quer que eu prove meu valor como ele provou o dele. Não tenho problemas com isso. Será uma honra me casar com você hoje, diante de Deus e de todos, com suas asas e outros atributos intraterrenos à mostra.
Por mais sinceros e admiráveis que sejam os sentimentos dele, não consigo compreender a lógica de tudo.
— Mas isso... — Abro as asas às minhas costas e elas lançam sombras sobre nós dois. — Não sei como encarar uma plateia de humanos sem me entregar. É impossível.
— Nada é impossível. Você me ensinou isso há muito tempo. Pelo lado bom, sabemos que o efeito do bolinho é temporário. Morfeu se importa demais com seu coração para colocá-lo em risco arruinando sua capacidade de viver uma vida de realizações aqui.
Mordisco meu polegar, tomando o cuidado para não estragar o meticuloso trabalho de manicure de Jenara.
— Temporário pode ser qualquer coisa entre algumas horas e todo um dia.
— Verdade. O efeito vai permanecer ao menos durante a cerimônia. Mas podemos lidar com isso. Só deixe que eu me preocupe com o que todos pensam ou veem. Vou dar um jeito nisso com criatividade humana e um toque de mágica.
Um toque de mágica.
— Espere um pouco... você não vai usar seu desejo, não é?
— Não. Prometo a você que eu saberei a hora certa de usá-lo. Sua mãe e Corb estão levando os portais-espelhos a algumas lojas de fantasias.
— Para quê?
— Surpresa. — Ele olha para a porta atrás e depois se volta para mim. — Tenho que sair antes que a Jen volte. Eu deveria apenas deixar minha camisa pendurada na maçaneta para ela limpar as manchas e passá-la. Ela vai ficar louca se souber que vi você antes do casamento... mas queria lhe dar os parabéns pelo aniversário. — Ele estende a rosa, um pouco distante demais para eu pegá-la.
— Chegue mais perto — peço.
Sua mandíbula bem barbeada treme.
— Já foi ruim o bastante tê-la visto. Vai saber a confusão que vou provocar se tocar em você.
— Vamos descobrir.
A expressão dele ganha força e desejo. Ele joga a cadeira para o lado e se aproxima de mim.
As lufadas de vento carregam o perfume dele misturado ao da rosa. Ele para a poucos centímetros de distância, a mão livre tamborilando ao lado do corpo, como se pensasse nas alternativas. Uma tensão doce e torturante se estabelece entre nós dois — como a calmaria antes de uma tempestade de raios. Três mechas de cabelo se soltam do nó na minha nuca e o envolvem junto com a rosa. Uma mecha traz a rosa até mim e eu a pego com a mão direita.
Jeb observa, encantado.
Tento conter as outras mechas que se prendem nele, mas ele segura meus pulsos e leva minhas mãos à boca.
— Deixe estar — murmura ele contra minhas cicatrizes e leva a mão à minha nuca para soltar o restante das mechas. — Você sabe que eu a amo assim. — Sua voz arranha, áspera e rouca.
Meus cabelos nos cercam, furiosos para se libertarem. Eles dão a volta nos bíceps, ombros e cintura dele. Com força e cuidado, unem nossos corpos seminus, e os lábios dele encontram os meus. Ele tem sabor de oceano, cidra e chocolate. Ele andou experimentando a comida da festa.
Solto a rosa e passo as mãos em seu peito. A pele dele está molhada e quente, e seus músculos se contraem.
— Isso vale qualquer azar — sussurro contra sua boca cheia e macia, retribuindo seus beijos quentes.
— Nunca tivemos sorte mesmo — sussurra ele de volta, nos derrubando na cama, mas tomando cuidado para não esmagar minhas asas. — Mas somos muito bons em fazermos nossa sorte.
Ele me deita de costas, o peso dele me prendendo na mais deliciosa das armadilhas. Seu joelho abre caminho entre minhas pernas, as calças molhadas esbarrando em minha calcinha. Uma brisa sopra sobre nós dois, gelada em minha pele nua. É tão estranho queimar como um forno, mas ainda assim ficar arrepiada.
As mãos de Jeb pairam sobre minhas curvas — um território íntimo que ele conhece, mas que ainda tem de explorar completamente.
— Você está com frio — diz ele, enquanto sua boca avança pela carne gelada do meu pescoço.
Sinto meus ossos se liquefazendo e meu sangue virando lava.
— Longe disso — respondo, ofegante.
Com os olhos cheios de desejo, ele vira para o lado, me soltando. Põe a mão nas minhas costas e puxa um canto do lençol lavanda e azul-turquesa, cobrindo meu corpo e as asas e separando nossa pele.
Eu gemo.
— Jeb. Não quero nada nos separando.
Seus dedos contornam meus lábios.
— Depois da cerimônia, não haverá nada. Você será minha hoje à noite e será como sonhamos.
Meu corpo se incendeia, faíscas de ansiedade iluminando todas as partes do meu corpo que ele já tocou. Estou prestes a lhe dizer que será ainda melhor do que imaginamos — porque ele pode literalmente compartilhar meus sonhos se adiarmos o casamento —, quando a porta se abre.
— Ah, o que é isso? — grita Jenara.
Jeb se levanta apressadamente e me lança um sorriso tímido, enquanto sua irmã o expulsa do quarto.
— Eles voltaram? Eles encontraram tudo? — pergunta ele antes de ela lhe dar um empurrão.
Jenara faz uma cara feia.
— Sim, sim. Não que isso importe, agora que você provocou o destino ao vê-la.
Mais uma vez, Jeb põe a cabeça para dentro do quarto e ri para mim.
— Como se o destino tivesse algo a ver com a rainha-fada.
Sorrio de volta, ainda saboreando os beijos dele.
— Me encontra na praia ao pôr do sol? — pergunta ele.
— Nem mesmo um ataque de pássaros Jubjub me impediria — respondo.
Ele ri e desaparece, me deixando com uma dama de honra mal-humorada, mil perguntas e um coração iluminado.
CONTINUA
Capítulo 2
Auge
PRIMEIRA MEMÓRIA: PEDRAS
Sessenta e três anos antes...
É manhã no País das Maravilhas e Morfeu está me acompanhando de volta ao castelo da Marfim, onde minha família e Jeb esperam para passar comigo pelo portal, de modo que eu possa viver o restante da minha vida humana.
Meu acompanhante está pensativo e quieto, suas feições duras como pedra. Não trocamos nenhuma palavra durante o trajeto encantado. O som das asas da mariposa criando uma trilha no céu só intensifica o silêncio constrangido.
Sinto um aperto no peito, como se meu coração estivesse tentando alcançá-lo. Sei que, se olhasse sob o tecido sedoso do meu vestido preto e sob o paletó que ele insistiu em usar para se aquecer, o órgão estaria brilhando em tom violeta. Ontem mesmo, meu coração estava dividido ao meio — os lados humano e interior se matando — por causa da maldição que a Rainha Vermelha jogou sobre mim. Jeb e Morfeu intervieram, combinaram suas mágicas e me curaram com suturas encantadas. Eles salvaram minha vida com o amor. Meu corpo entende isso de alguma forma primitiva e eu jamais esquecerei. Meu coração está ligado aos dois agora, formando um elo que vai além de qualquer explicação humana.
Contudo, mesmo sem esse elo, eu era capaz de decifrar as joias no rosto de Morfeu e de saber no que ele está pensando. Acordei mais cedo em sua cama e o encontrei sentado na beirada do colchão, acariciando os cabelos nas minhas têmporas. Antes mesmo de poder lhe dar bom-dia, ele me beijou na testa e se afastou, dizendo que o café da manhã estava pronto.
Passamos a noite juntos, mas nada físico aconteceu entre nós. Nada acontecerá por muitos anos. Não até eu ter vivido minha vida humana com Jeb.
Deixei minha posição sobre fidelidade bem clara; mesmo assim, Morfeu deixou claro que não vai facilitar as coisas. Apesar de seus desafios penderem como fios soltos, o respeito que estabelecemos está firmemente junto a mim. Sei que ele jamais me pediria que traísse os humanos que amo — porque isso é parte de quem sou —, por mais que ele sofra ao recuar e me deixar em paz.
Depois de visitar as paisagens do País das Maravilhas juntos, noite passada, eu o entendo como nunca o entendi antes. E é o mesmo para ele, porque assim que chegamos e ele segura minha mão para eu descer da carruagem, não hesita em me acompanhar até a entrada de gelo onde Jeb me aguarda no topo da escadaria coberta de cristais de neve.
Prendo a respiração ao vê-lo. Ele está usando um smoking azul-marinho completo, com uma camisa violeta que complementa seus cabelos ondulados escuros e o tom oliva de sua pele. A mesma camisa transformada em cueca em Qualquer Outro Lugar.
O smoking está exatamente como na noite da festa de formatura: teias falsas, listras sujas e rasgões colocados estrategicamente no paletó e nas calças. Por um momento, sou levada de volta ao Submundo, onde o vi pela primeira vez esperando por nós na noite de formatura na entrada dos funcionários, e sua expressão magoada diante da minha traição. Jamais provocarei um olhar daqueles novamente.
Estranho. Da última vez que vi o smoking, foi com o dublê de Jeb em Qualquer Outro Lugar. Quando CC caiu na piscina de medos, as roupas se desintegraram. Jeb deve tê-las consertado antes de desistir do seu talento para sempre.
Talvez tenha sido sentimentalismo, porque a irmã dele é quem fez o smoking, ou provavelmente porque ele queria estar usando algo conhecido quando passássemos pelo portal e voltássemos à vida de sua família.
Ainda assim, mesmo usando roupas do reino humano, ele parece triste e deslocado ao esperar que eu suba as escadas. Ficar ali de pé à luz do dia, vendo as belas paisagens que ele criou neste mundo, deve ter sido horrível. Desistir de sua musa deve ser a coisa mais sofrida que ele já fez. E ele fez isso sem hesitar, para ajudar a equilibrar o País das Maravilhas... para alimentar as almas insaciáveis da Irmã Dois com seus sonhos artísticos.
Não tenho certeza se ele pensou nas consequências desse sacrifício. Mas estarei aqui para ajudá-lo a passar por isso.
Enquanto Morfeu e eu subimos a escada a caminho de Jeb, passamos por seres intraterrenos que vieram acompanhar minha partida. Alguns deles são inesperados.
Hubert, decorado e lustrado como um ovo Fabergé numa vitrine de Páscoa, estende a pata de louva-a-deus para cumprimentar Morfeu.
— Ainda é mais fácil para mim odiá-la — diz o homem-ovo para Morfeu, como se eu não estivesse por perto. — Rainha sabe-tudo. Nada de educação ou cultura naquela cabeçorra dela. Ainda assim ela conseguiu provar que eu estava errado. Tinha tanta certeza de que ela acabaria num caixão. Que decepção. — Apesar do sarcasmo, seus olhos amarelados refletiam admiração. Para minha surpresa, ele me oferece, por toda a vida, um suprimento de ovos beneditinos em seu ilustre hotel mágico, se um dia eu o visitasse.
Depois, cumprimentamos os estranhos seres intraterrenos clandestinos que ficaram presos no trem da memória três dias antes. Todos fazem reverência e me agradecem por abrir a toca do coelho para eles poderem voltar para casa. Meu nariz coça quase a ponto de me fazer espirrar quando passamos pelos coelhinhos de pó.
Bill, o Lagarto, nos para no meio do caminho. Ele estende dois trajes de disfarce que pedi a Grenadine que o devolvesse.
— Desculpe por ter perdido um... por tê-los roubado, antes de mais nada — sussurro, envergonhada.
Ele balança a cabeça reptiliana e mostra a língua comprida.
— Sou um súdito da Corte Vermelha. Assim, eles pertencem a você, Majestade. Seus talentos como ladra perdem apenas para o uso da sua mágica. Você os usará agora melhor do que eu jamais os usaria.
Impressionada, coloco a mão no peito. Sob meu vestido, o colar com a chave que abre meu reino pressiona minha pele.
— Mesmo?
Bill estende os trajes.
Olho para Morfeu.
Ele sorri e faz que sim, me encorajando a pegar o tecido transparente. Eu o guardo debaixo do braço e agradeço ao lagarto, que se curva para nos deixar passar. O Rábido está esperando por nós no degrau de cima — usando casacão e calças vermelhas. Ele abre os braços para levar os trajes para mim. Meu conselheiro cavalheiro. Ao subirmos, acaricio a pele macia entre seus chifres.
Guardas elfos se enfileiram na segunda metade da escada, dos dois lados. Eles sacam as espadas e tocam as pontas delas no topo das cabeças, formando um corredor prateado brilhante.
Jeb me aguarda no fim, tenso como se o fato de não poder correr até mim o estivesse matando.
Enquanto Morfeu e eu subimos a escada sob as sombras das espadas, meneio a cabeça para Jeb, num sinal de reconhecimento. As bolsas sob seus expressivos olhos verdes provam a falta de sono. As doze horas que passamos separados devem ter sido uma tortura. Por mais forte que ele estivesse quando demos boa-noite, é óbvio que ele temia que fossem despedidas de verdade. Que eu decidisse passar meu futuro no reino humano sozinha, sem ele.
Não posso estar no mesmo mundo que ele todos os dias sem tê-lo na minha vida. Nós nos amamos. Nós dois queremos a mesma coisa. Vamos dividir esses sonhos e envelhecer juntos. Uma vida mortal é preciosa e curta em comparação à eternidade. Ela deve ser vivida e nunca desperdiçada. Algo que Morfeu agora entende como nunca antes, senão não estaria me deixando partir sem lutar.
Sinto o rosto adormecer, menos pelo frio e mais pela situação insuportavelmente incômoda na qual coloquei os dois. Eu me lembro de que esta é a pior parte... que, depois que eu passar pelo portal e entrar no reino humano, minhas duas vidas vão se misturar e ao mesmo tempo jamais se cruzarão, a não ser que seja necessário à segurança ou ao bem-estar de alguém. Foi com o que concordamos.
Uma cama de gelo se gruda na sola das minhas botas assim que subo o último degrau. Os cavaleiros elfos nos saúdam e guardam as espadas nas bainhas de couro. O sangue que lhes decora os rostos e têmporas brilha como fruta contra o cenário branco que os cerca. Batendo os calcanhares, eles descem as escadas para cercar o castelo e assumir seus postos.
Franzindo a testa, Morfeu oferece minha mão a Jeb. É um gesto estranho, grandioso e cheio de dignidade, como se ele caminhasse comigo pela nave e me entregasse em casamento. De certa forma, é. Durante uma vida humana.
Suas asas farfalham quando Jeb segura minha mão, um espasmo involuntário. Ele está lutando para não pegar minha mão de volta.
— Você conhece o protocolo... se algo acontecer ao seu corpo no seu mundo, você ou Alison devem entrar em contato comigo imediatamente. O espírito de Alyssa deve ser protegido para sobreviver.
Jeb faz que sim com a cabeça.
— Entendi. — A resposta dele é sucinta e seu tom de voz, controlado, mas a preocupação em sua expressão o entrega. É algo em que não gostamos de pensar, algo que esperamos que nunca tenha de ser resolvido.
O olhar rosa do Rábido se vira para mim, seu rosto branco entusiasmado. Eu o mando porta afora para resgatá-lo de ter de tratar de assunto tão mórbido.
Morfeu espera pelo toque dos ossos para desaparecer dentro do castelo, depois pega um par de luvas do bolso, colocando-as na mão.
— E acho que é desnecessário lhe dizer para tratá-la como uma rainha — resmunga ele para Jeb.
Jeb entrelaça nossos dedos.
— Assim como é perda de tempo lhe pedir que abandone as táticas de sedução nos sonhos dela.
— É ciúme o que ouço em sua voz, belo e falso elfo? Nunca tema. Ainda pensarei nela todos os dias, enquanto ela estiver com você.
— Prefiro que você pense em mim todas as noites, quando ela estiver com você. — Jeb me ajuda a tirar dos ombros o casaco de Morfeu, substituindo-o pelo paletó do seu smoking, ainda quente do calor do seu corpo. — Enviarei uma coruja como lembrete. — Ele devolve o casaco a Morfeu.
Morfeu pega o casaco e o dobra no braço, alisando-o. Ele ri uma risada triste e vazia.
— Vou sentir falta das suas tentativas equivocadas de fazer trocadilhos.
Jeb abre um sorriso forçado.
— Não tanto quanto eu sentirei falta de sua condescendência pomposa.
Eles se encaram, uma mistura de distração e comedimento em suas expressões. Um respeito de má vontade une a tensão — uma ligação que aumentou sem eles perceberem ou encorajarem, durante o mês que eles passaram juntos em Qualquer Outro Lugar.
— Vocês dois querem ficar sozinhos? — pergunto, desesperada para que ponham um fim ao estranho diálogo.
Morfeu estreita os olhos.
— Eu a verei hoje à noite, Alyssa. E, a partir de agora, quando você estiver comigo, espero que sua mente seja como era na nossa infância. Atenta às questões do País das Maravilhas, e não à confusão do reino mortal. Lide com as coisas daqui para que elas não sejam uma distração quando você voltar às suas obrigações reais. Tem certeza de que não precisa da minha ajuda para limpar todas as bagunças? Tenho certa prática no manejo de humanos. — A risadinha arrogante que ele lança para Jeb está cheia de insinuações.
— Entendemos, Mariposinha — diz Jeb. — Entendo as sensibilidades inocentes deles melhor do que você. — Ele arqueia a sobrancelha, expressando sua própria mensagem cifrada.
Ouve-se um baque abafado na enorme porta cristalizada. Jeb e eu olhamos para trás, para o ponto de onde nossos pais estão espiando. Ambos parecem belos e descansados, mas também ansiosos.
Meneio a cabeça num cumprimento e eles acenam e então recuam para dar privacidade a nós três.
Jeb se vira, seu braço me segurando pela cintura.
— Você vem nos visitar, Morfeu?
Morfeu encara enfaticamente Jeb. Suas marcas de joias brilham numa paleta pastel, como um pôr do sol reluzente. A resolução pisca dentro de seu olhar carregado.
— Não quero chegar nem perto do portal. Já tive o bastante do seu reino estagnado para esta vida e um pouco mais.
— Espero que você esteja falando sério — diz Jeb. A frase não é ferina, só sincera.
— Ah, com certeza falo. Exceto pela parte preciosa do seu mundo, que um dia pertencerá somente a mim. — Morfeu ergue o chapéu na minha direção e as mariposas cinza-azuladas na borda tremem como se fizessem reverência. Ele se vira e desce as escadas, as asas se arrastando pela neve como uma capa, e parte de mim sofre com uma tristeza profunda.
Um vento ganha força, gerando um redemoinho de neve.
É melhor estarmos saindo pelo portal da Marfim. Esta partida sofrida seria acrescida dos rostos de todos os meus súditos me olhando. Noite passada, ao visitar o Castelo Vermelho, optei por não me despedir deles. Eu me sentiria fadada demais e de certa forma estranha. Consolo-me em saber que eu verei a eles e Morfeu em meus sonhos.
Depois que a carruagem movida a mariposas decola, Jeb se vira para me encarar. Ele leva minha mão à boca e acaricia os nós dos dedos. Seu olhar intenso passa por todos os meus traços, dos olhos ao nariz e lábios, como se estudasse uma pintura novamente.
O silêncio revira meu estômago.
— Você vai perguntar?
— Perguntar o quê? — diz ele contra a minha mão.
— Se algo aconteceu. — Meu tempo com Morfeu parece algo privado e secreto, mas se Jeb, para reaver a calma, precisar ouvir sobre o que conversamos e os lugares que visitamos, me abrirei e serei honesta.
Jeb entrelaça nossos dedos novamente.
— Você segurou minha mão hoje e está ao meu lado. Isso me diz tudo o que preciso saber. Você é uma rainha e tem responsabilidades. — A admiração por trás de suas palavras me surpreende, mas não deveria. Não levando em conta os laços emocionais dele com meu mundo. — Não preciso saber de tudo sempre que você volta. Você me diria se algo nos afetasse ou afetasse sua vida.
Sorrio, surpresa com a fé dele.
— Diria. Direi. E obrigada.
Ele cuidadosamente segura os cabelos à minha nuca e junta nossas testas.
— Eu é que agradeço. — Sua voz, grossa e rouca de emoção, forma uma névoa entre nós. — Obrigado por voltar para mim.
Acaricio seu rosto e a pouca barba em seu queixo.
— Certo, não vou me sentir como se você precisasse de uma atualização sempre. Mas, por favor, não pense que você precisa agradecer todas as manhãs em que eu acordar ao seu lado. Quero que sejamos normais.
— Normais. — Ele recua e ri, as covinhas finalmente aparecendo. — Isso vindo de uma menina que ganhou asas e que me deu um colossal chá de cueca enquanto surfávamos nas areias do País das Maravilhas. Quando é que isso foi normal, hein?
Bufo, lembrando-me de que não podia carregá-lo pelo precipício e tive de deixá-lo para trás, que, por mais que ele estivesse com tanto medo quanto eu, ele me fez rir e me deu forças para que eu fizesse o que julgava impossível. Como agora.
O sorriso desaparece aos poucos, fazendo seu piercing nos lábios brilhar à luz. Eu o toco, acariciando o metal quente, de modo que seu bigode pinica meu dedo.
Esse ato íntimo e sensual me atinge com uma verdade quase que inconcebível: não há nada se colocando entre nós dois agora. Nossa vida juntos começará hoje, assim que cruzarmos a fronteira. Estou ao mesmo tempo feliz e emocionada.
— Estou pronta para minha aliança — consigo dizer em meio ao nó na garganta.
Sua expressão ganha sobriedade. Tirando a corrente por baixo da camisa, ele a passa pela cabeça e tira o anel. Com os olhos nos meus, ele coloca o anel de prata na minha mão direita, onde ele permanecerá até que ele o coloque na minha mão esquerda depois de declararmos nossos votos maritais. Os diamantes brilham — um coração alado — e meu coração parece bater asas como se pudesse voar.
O anel se encaixa perfeitamente ao meu dedo e parece um cartão de boas-vindas.
— Você sempre foi minha segurança — sussurra Jeb, colocando o polegar na covinha do meu queixo e me puxando para um beijo carinhoso e doce. Passo a mão pelos cabelos dele e o saboreio, ele sem perfume ou tinta ou terebintina. Só ele. Humano, masculino. Jebediah Holt.
Eu poderia me afogar na doçura da simplicidade.
Com nossos peitos unidos, meu coração costurado brilha e cantarola, tentando diminuir o espaço entre nós. Seu corpo fica tenso, como se ele sentisse a atração.
Ele interrompe o beijo e segura minha cabeça contra seu corpo, a barba por fazer em seu rosto arranhando minha têmpora.
— Tenho algo para lhe mostrar. — Seus lábios acariciam minha orelha e me aquecem toda. — Quis esperar até que estivéssemos juntos. Até que estivéssemos sozinhos. Mas acho que você precisa ver agora. — Ele pega algo do bolso e revela o que parece uma bolinha de gude, apesar de ser macia como uma pérola de banho.
— Um desejo? — Enxugo as lágrimas do meu rosto com o dorso da mão, surpresa. — Como? Quando?
— Noite passada, na festa da Marfim, depois da nossa dança lenta. Um furão me puxou... lambeu meu rosto para me agradecer pelo que fiz pelo País das Maravilhas.
— Ah, meu Deus. Então foi por isso que você saiu mais cedo?
Ele rola a bolinha na palma da mão.
— Estava prestes a me acabar de chorar. — Ele segura a lágrima brilhante contra a luz. — Não poderia permitir que a Rainha Vermelha me visse berrar como uma menininha.
Solto uma risada inesperada, alheia em meio à confusão inesperada de emoções.
Jeb franze a testa, pensativo.
— Podemos usar isso para nos ajudar a arrumar as coisas no reino humano.
Meu sorriso de felicidade desaparece.
— Não. Este desejo só pode ser usado para você.
— Fiquei envolvida com Morfeu por um mês. A única coisa que aprendi é que a mágica é flexível. É tudo uma questão de estilo.
Balanço a cabeça e cubro a mão dele, escondendo sua lágrima.
— Mágica é preciosa. Você tem de guardar isso, Jeb. Você pode desejar tantas coisas! — Paro, porque nós dois sabemos que há duas coisas monumentais que não podemos pedir. Ele não pode recuperar sua musa sem desequilibrar o País das Maravilhas de novo. E não pode pedir para vivermos para sempre. A mágica não mudará quem se é por dentro. Ele optou por perder sua imortalidade abdicando dos poderes da Vermelha. Ele é mortal e não há como mudar isso agora. — Jeb, não desperdice o poder. Guarde para algo importante.
Ele fica mais sombrio e sei que já esteve enfrentando os mesmos pensamentos. Ele guarda o desejo no bolso e trava a mandíbula.
Antes que possamos dizer algo, as portas do castelo se abrem e a mamãe e o papai surgem. Fico chocada ao vê-la usando o mesmo vestido de costas expostas usado na festa de formatura. Apesar de o chiffon da saia e as mangas estarem avariados por causa da luta dela com o coveiro de oito patas do País das Maravilhas, o vestido ainda está intacto.
Franzo a testa, pensando em tudo.
— Espere aí. — Aponto para ela e para Jeb. — Então... vocês estão usando as mesmas roupas que usavam quando desapareceram. Isso é um plano?
— Sim. Jeb pensou nisso — responde a mamãe. — Ainda precisamos pensar nos detalhes. Mas primeiro... — Ela e o papai me puxam para um abraço.
Depois de um abraço longo e apertado, celebramos as notícias. O papai brinca com Jeb, dizendo que ele quase teve de vender um rim para comprar o anel de noivado da mamãe, no que esta lhe dá uma cutucada, fazendo-o soltar um ganido. E então ela segura cuidadosamente minha mão direita para admirar meu dedo anelar.
Ela olha meu rosto. Sei o que ela está vendo: a mesma ansiedade pela vida humana que ela sentiu com o papai depois de salvá-lo da Irmã Dois. O sorriso dela é tão cheio de esperança que eu poderia estar olhando diretamente para o sol.
Quando ela se vira para dar um abraço de improviso em Jeb, o papai me puxa de lado.
— Borboleta — diz ele, ajeitando uma mecha solta de cabelo atrás da minha orelha.
— Papai — falo, segurando a mão dele e mantendo-a perto do meu rosto.
Ele balança a cabeça.
— Em meio a toda esta loucura... Não tive a oportunidade de dizer quanto tenho orgulho de você, Alyssa Victoria Gardner. — A ternura em seus olhos castanhos me lembra de como nós dois enfrentamos o mundo juntos na minha infância e de como sempre me senti segura. Se ao menos eu soubesse que minha vida era protegida por um cavaleiro de verdade. — Minha menininha é uma rainha. Uma rainha do País das Maravilhas.
Sorrio.
— Ligeiramente diferente das minhas versões fantasiosas, não?
O papai ri e me beija na cabeça.
— Pode-se dizer isso. Mais como uma ninja.
Solto um riso e dou-lhe um abraço, aconchegando-me em seu calor e força.
— Está pronta para ir para casa? — pergunta ele, acariciando minhas costas.
— Bom, não exatamente casa — emenda a mamãe, voltando ao meu lado. — Temos de fazer um desvio.
— Desvio? — pergunto, enquanto ela e eu entramos de braços dados no castelo, com os caras atrás de nós. Nossos sapatos batem no chão vítreo. A Marfim está no alto da escadaria de cristal, onde o portal me aguarda no fim de um corredor. O Rábido está ao lado dela, com Finley do outro lado, a mão às costas, sob as asas.
— A casa de Jeb vai ser a primeira parada — responde a mamãe enquanto subimos os primeiros degraus.
Fico intrigada por um instante, até que me cai a ficha de tal manobra.
— Para podermos descobrir se há alguma atividade policial em nossa casa. Muito inteligente.
— Mais do que isso — corrige o papai atrás de mim. — Vamos precisar de ajuda externa para explicar a ausência da mamãe e de Jeb por um mês, assim como sua fuga do sanatório. Se não fizermos isso, posso ser preso por ajudá-la a fugir enquanto você era suspeita do desaparecimento deles.
— Ajuda de quem? — pergunto, segurando-me ao corrimão frio de vidro. Isso está começando a parecer mais complicado e perigoso do que eu imaginava. Nunca pensei no papai sendo preso. Talvez devêssemos ter levado Morfeu a sério em sua oferta.
— Ajuda de alguém que esteja trabalhando com a polícia na investigação — responde a mamãe. — Uma pessoa que não seja suspeita e tenha a confiança de todos por estar sofrendo a morte do irmão e da melhor amiga desde que foram dados como desaparecidos.
Meu sangue se intensifica em meus pulsos ao olhar para trás e ver Jeb subindo a escada ao lado do papai.
— Você não está falando de...
O sol entra pelas paredes cristalizadas e ressalta os traços de Jeb, ampliando a resolução cautelosa ali.
— A não ser que você pense em outra forma, Al — diz ele, uma referência óbvia ao desejo no meu bolso. — Vamos ter de contar a verdade a Jen. Tudo.
Apesar de não falar em voz alta, não estou disposta a deixar Jeb abdicar de seu desejo por ninguém nem nada. Depois da violência que ela enfrentou na vida, Jenara é durona. Ela também acredita no poder dos cristais, em vodu, tábuas Ouija e tarô. Ela está a um milímetro de ser considerada louca. Torná-la um ser intraterreno honorário é a coisa mais lógica nesta situação ilógica. E, sinceramente, vai ser bom deixar de esconder meu lado País das Maravilhas da minha melhor amiga. Ela vai ser minha cunhada. Nossa vida familiar será menos complicada se pudermos falar abertamente sobre tudo.
Antes de passarmos pelo portal e entrarmos no reino humano, a mamãe, o papai, Jeb e eu discutimos o plano, já que temos lugares diferentes para ir.
Noite passada, depois que reabri os portais, durante meu passeio com Morfeu, e enquanto Jeb estava implorando um desejo, mamãe e papai foram ao reino humano e fizeram o reconhecimento. Da segurança do nosso sótão, eles esperaram para ter certeza de que a casa estava vazia e entraram na internet, reunindo todas as notícias possíveis sobre a tragédia no Submundo na noite da festa de formatura, o desaparecimento da mamãe e de Jeb, que aparentemente estava relacionado a isso, e minha fuga do sanatório um mês depois.
Um mandado de prisão foi expedido para mim e meu pai vinte e quatro horas depois da nossa partida. Éramos oficialmente procurados há três dias.
A informação mais útil foi a entrevista recente do sr. Traemont para o jornal local sobre a devastação de seu centro de atividades — paredes de concreto derrubadas, desabamento e vazamento de água. Ele levou duas semanas somente para avaliar completamente os danos. Chamou uma equipe de construção que originalmente transformara o velho e abandonado silo de sal no Submundo, para que pudessem dar pistas sobre o que deflagrou o acidente. Depois de analisarem as plantas, eles chegaram à conclusão de que, no alicerce, possivelmente havia um ponto fraco provocado pela mineração de sal décadas antes. O buraco que se abriu sugou tudo para um dos túneis de mineração sob a caverna subterrânea.
A conclusão fazia mais sentido do que a verdade que ninguém via: a rainha do País das Maravilhas deu vazão a uma nuvem de espíritos de pesadelo que sugaram o centro de atividades para a toca do coelho com tanta força que metade da caverna implodiu.
Como certa vez eu disse a Morfeu, muitos humanos preferem acreditar que estão sozinhos no Universo a admitir que pode haver uma plateia sobrenatural. E como ele comentou: o ego das pessoas é a própria fraqueza delas.
Com o acidente, o Submundo foi abandonado — todas as entradas para a gigantesca caverna foram condenadas e lacradas com fita policial para a segurança do público. É aqui que entra a ideia de Jeb. Ele disse que, meses antes do início da construção do centro de atividades, os túneis de mineração foram usados para guardar itens bélicos para uma base militar próxima: lenços umedecidos, kits de primeiros socorros, pentes, xampu, desodorante em pó, pasta de dentes, caixas de refeições desidratadas, sacos de sopa e garrafas de água. Ele viu isso dentro de um túnel depois que começou a trabalhar no local, e os suprimentos ainda tinham de ser retirados de lá.
Obrigada, procrastinação. O caráter humano nos deu nosso álibi perfeito.
Só tínhamos que magicamente remover pedras e destroços para entrar num dos túneis. Lá, podíamos montar a cena, como se a mamãe e Jeb tivessem ficado presos por um mês, vivendo à base de suprimentos militares. Era tão simples que beirava à perfeição. O fato de ninguém ter considerado essa possibilidade era inacreditável. Eles estavam tão ocupados investigando o suposto envolvimento da menina louca que não exploraram nenhuma outra teoria.
Quando a mim e ao papai, nossa história seria igualmente simples: consegui pegar as chaves dele e fugi do sanatório usando a entrada de jardinagem naquele dia, enquanto estávamos sem vigilância no jardim. Ele não teve tempo de pedir ajuda, então me perseguiu e subiu na caçamba do caminhão que eu dirigia. Eu o levei ao Submundo... e, lá, refiz meus passos na noite da festa de formatura. Depois de ver a destruição, uma lembrança horrível tomou conta de mim — a visão de Jeb e da mamãe sendo engolidos por uma avalanche de pedras e cimento.
Tive de suprimir isso... foi traumatizante demais encarar a morte deles.
Só que eles não estavam mortos. Porque, enquanto eu e o papai chorávamos na escuridão em meio aos destroços, ouvimos um barulho e o seguimos até um monte de pedras cobrindo uma abertura. Conseguimos cavar e nos reunimos a Jeb e à mamãe — mas a abertura era instável e mais rochas e pedras nos isolaram novamente: os quatro presos juntos.
Foi ali que o papai e eu estivemos nos últimos três dias.
A ideia de Jeb era brilhante. Até Morfeu teria ficado impressionado.
Então tínhamos um plano que só exigia minha mágica e a da mamãe e os dois trajes de disfarce. Fora isso, precisávamos de um catalisador: alguém para dar a dica da nossa localização aos policiais.
Era aí que entravam Jenara e a tábua Ouija.
Apesar de ser manhã no País das Maravilhas, é noite no reino humano. Envoltos em trajes de disfarce, meus pais entram primeiro no portal, parando na nossa casa para pegar um dos uniformes do papai e o traje de sanatório que mamãe tinha guardado, que será para mim. Estaremos usando as roupas nas quais fomos vistos pela última vez, para fazer o plano dar certo. Depois que a mamãe e o papai entrarem em casa, a próxima parada será no Submundo, para montar o cenário da nossa grandiosa revelação.
Jeb segura minha mão e me endireita, enquanto o Rábido e eu passamos com ele pelo espelho comprido atrás da porta do quarto de Jenara. Ele dá para uma janela que reflete a Marfim e Finley acenando adeus.
Antes de entrarmos, garantimos que Jenara não estivesse no quarto. Vamos ter de contar isso a ela aos poucos. Ela já ficará suficientemente chocada ao nos ver vivos e intactos.
Quando ela estiver pronta, eu lhe mostrarei meus poderes e características intraterrenos. O Rábido está aqui como suporte, para o caso de ela precisar de mais provas que não minhas asas para se convencer de que o País das Maravilhas é real.
Escondo meu colar com a chave. As tiras verticais rosas e brancas da parede de Jenara brilham com um tom prateado, folheado pelo luar que entra pelas cortinas translúcidas da janela arqueada. Silhuetas de trepadeiras de flores negras se prolongam pelo teto — sombras imaculadas pintadas pela mão hábil de Jeb há alguns anos. Um mural digno de um museu.
Eu o pego olhando para o mural antes de ficar sério e desviar o olhar. A tristeza na ação me dá um aperto no peito.
— Jeb. — Paro atrás dele e o abraço, a boca contra as roupas que envolvem seus ombros largos. — Você encontrará seu caminho. Prometo... você ainda tem tanto a oferecer a este mundo.
Ele fica tenso, mas cruza os braços, segurando meus cotovelos.
— Não sei direito como esquecer algo que antes me manteve são.
— Você não precisa esquecer. Esta parte sua ainda está intacta. Em molduras, pintada em paredes, desenhada em pedaços de papel. Sua musa vive aqui, por meio das pessoas que ficam felizes com sua obra de arte todos os dias. Isso é mais mágico do que tudo. Deixe que isso o mantenha são até encontrar um novo caminho.
Ele me vira de modo que ficamos de frente um para o outro e me beija.
— Você é muito inteligente para um ser intraterreno.
Eu rio.
— E você é bem durão para um humano. — Abaixo a cabeça dele para outro beijo.
O Rábido nos chama e nos encara com os olhos arregalados e fascinados.
Constrangida, recuo. O alívio momentâneo foi bom, mas sei que não será fácil passar por cima de tudo o que Jeb perdeu. É algo com o que lidaremos juntos, dia a dia, até ele reencontrar seu caminho.
Por enquanto, temos de cuidar desta situação com Jenara.
Jeb pigarreia, obviamente pensando na mesma coisa.
— Então acho que eu deveria olhar a casa.
— Você acha que ela está trabalhando? — Tiro minhas botas para permitir que o tapete rosa macio acaricie os dedos dos meus pés.
Ele abre a porta do quarto de Jenara e olha o corredor.
— Sei que a mamãe está. Ela sempre pega os turnos da noite. Vocês dois esperam aqui.
Assim que ele sai, deixando a porta aberta atrás de si, o Rábido sobe na cama de Jenara. Seus dedos magros enrugam o edredom preto e branco. A poeira rosa me lembra de como Jen e eu brincávamos de nos fantasiar neste quarto. De como inventávamos vestidos de noiva com lençóis e fronhas, contávamos segredos, comíamos bobagem e ficávamos acordadas até tarde.
Isso parece ter acontecido há tanto tempo.
Dois manequins brancos e sem rosto ficam diante da janela dela com luminárias em suas cabeças como chapéus. Jeb mexeu no interior e instalou lâmpadas nos crânios para criar abajures para o aniversário de quinze anos dela.
Acendo um deles, lançando uma luz branca estelar pelo piso de madeira e pela colcha da cama de Jenara.
— Ooooh. — O Rábido se levanta no colchão e dança em meio às formas criadas pela luminária. Encaro o espelho, vendo o reflexo dele no vidro. Ele é como uma bailarina macabra num globo de neve. Tão deslocado no quarto cheio de coisas normais e humanas.
Então vejo meu próprio reflexo. Minhas marcas intraterrenas nos olhos ainda não desapareceram completamente. Minha pele brilha e, se meu cabelo não estivesse preso numa trança, ele estaria agitado — vivo e encantado.
Sou uma alienígena.
Pensando bem, somos todos alienígenas agora. Até Jeb. Depois do que passamos e vimos, esta tranquilidade parece mais perigosa do que o caos que enfrentamos. Eu me pergunto se é assim que soldados se sentem depois de voltarem da guerra. Como eles superam? Como eles aprendem a fazer parte da comunidade novamente? A se sentirem seguros de novo?
Os zumbidos de alguns insetos interrompem minhas reflexões, um consolo bem-vindo. Fecho os olhos por um instante, mas os abro assim que um grito agudo do outro extremo do corredor me faz dar um salto.
Espanto o Rábido da cama e o mando para o armário.
— Não saia a não ser que eu o chame, sim?
Ele faz que sim, se escondendo numa pilha de acessórios de costura — mantas, cintos e tecidos — no chão.
Fico parada, os braços ao lado do corpo... presa.
O choro histérico de Jenara se aproxima à medida que Jeb a acompanha até a porta entreaberta. Ele fala num tom de voz carinhoso, tão baixinho que mal consigo ouvir o que ele diz. Meu coração bate em sincronia com as dobradiças que se abrem.
Quando eles entram, ela está abraçada a ele, segurando o colarinho da camisa, a cabeça contra seu corpo e o rosto escondido sob um véu de cabelos rosa molhados — recém-saídos do banho. Jeb deve tê-la surpreendido assim que ela saía do banheiro. Seu pijama verde de cetim me faz lembrar festas e jogos divertidos passados.
Sinto tanta saudade dela.
— Jen? — murmuro hesitantemente, sem saber o que dizer em seguida.
Ao ouvir minha voz, ela vira a cabeça na minha direção.
— A-Al? — Seu rosto rosado fica inchado quando ela tenta conter o choro. Ela perde a batalha e grita, correndo na minha direção.
Estendo o braço para abraçá-la e caímos no colchão juntas, as molas balançando sob nossos corpos. Recuperando o fôlego, me enterro no cheiro cítrico e doce de seu xampu. Um sorriso se irradia do meu coração para meus lábios e eu a abraço com força, lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Lágrimas dela ou minhas... não importa. A sensação é maravilhosa.
Jeb esfrega as costas dela.
— J.
— Não, não, não, não. — Ela chora de encontro ao meu pescoço. — Não me acorde. Estou sonhando, estou sonhando.
Ele coloca um dos joelhos na cama, ao lado de nossos corpos unidos, e a preocupação em seus olhos basta para me fazer esquecer que um dia partimos.
— Tudo bem, Jen. Não é um sonho — garanto a ela. — Estamos aqui.
Jeb acaricia a cabeça dela, intencionalmente tocando meu rosto com um dos dedos ao longo do processo. Ele não quer magoar a irmã — ele passou anos demais protegendo-a. Mas ele sabe que é o melhor para todos nós a longo prazo.
Ainda assim, é óbvio que ele está lutando e perdido, como o menininho que um dia foi.
Seguro a mão dele e o puxo, de modo que seu corpo caia ao meu lado direito. Ele se aninha tão próximo que seu hálito toca minha orelha. Coloca seu braço sobre mim e Jen, de forma que fico espremida entre as duas pessoas de que mais gosto. Juntos, nós três choramos e rimos até soluçarmos.
Pela primeira vez em semanas, estamos reunidos. Uma família.
Esta sensação. Talvez... é assim que voltamos ao normal.
Assim que Jenara se acalma, ela se senta, tentando recuperar o fôlego.
— Onde vocês estiveram? Procuramos em todos os lugares! — A acusação é direcionada a Jeb. — Achamos que vocês...
— Sinto muito. — Jeb se ajoelha, interrompendo-a antes que ela possa admitir que pensava no pior.
Fico onde estava, a coluna apoiada no colchão. Com medo de me mover.
— Al, talvez a gente devesse lhe contar tudo de uma só vez — diz Jeb, a voz trêmula.
— Incluindo como mandei você para lá? — Procuro as palavras certas e tropeço terrivelmente.
Verde e úmido, o olhar de Jenara recai sobre mim.
— Ãhn? — Sua expressão mostra que ela compreende. — Espere. — Ela sai da cama e se levanta, tonta mas determinada. — A polícia tinha razão? Você sempre soube onde ele estava? Mas por que você não...? — Ela chora de novo. — E quanto à sua mãe? Cadê ela? E seu pai? O que está havendo?
Estudo o rosto dela, manchado de lágrimas, seus cabelos rosa molhando a parte de cima do pijama, as três sardinhas no nariz. Ela parece tão vulnerável. Queremos mesmo envolvê-la nisso? Não haverá volta se o fizermos.
Jeb me obriga a me sentar.
— Você é a única que pode lhe mostrar. Faça-a entender.
Engulo em seco.
— Não sei nem por onde começar.
— Mais ou menos por aqui. — Ele passa o dedo pelas alças do meu vestido que revelam minhas omoplatas nuas. Meus botões de asa se arrepiam ao toque dele.
Fico com o rosto em chamas.
— Mas não posso simplesmente... precisamos prepará-la.
Jenara recua lentamente até a porta.
— Me preparar? Vocês estão me assustando. Vou chamar a mamãe. — A campainha toca e ela para, a expressão se iluminando. — Corbin — murmura ela, e se vira para o corredor para deixá-lo entrar.
— Não, J. — Jeb tenta impedi-la, mas ela o ignora.
— Espere, Jen! — Saio da cama. — Corb não pode estar aqui para isso.
— Por que não? — Ela se vira, as mãos na cintura. — Ele esteve aqui enquanto Jeb estava desaparecido. E enquanto você estava internada. Ele me ama, Al. Ele cuidou de mim e da mamãe. Tudo o que você me contar, pode contar a ele. — Ela se vira e atravessa a porta do quarto.
— Nós... nós fomos ao País das Maravilhas! — digo de uma vez, fazendo-a parar. Ela dá meia-volta no corredor, boquiaberta.
— Mostre suas asas — acrescenta Jeb, estreitando os olhos. Seus cílios compridos lançam sombras sobre seu rosto e as luminárias brilham em sua pele, fazendo-o parecer tão intraterreno quanto eu.
— Asas? — pergunta Jenara, voltando ao quarto. — Sério, mano? Você a quer trancada no sanatório de novo? Você não faz ideia do que ela passou enquanto eles tentavam tirar o País das Maravilhas da mente dela. Não dê vazão ao delírio dela!
— Al... — Jeb me leva até ela. — Você vai ter de se expor. Não há outra forma de fazer alguém acreditar. Eu precisei de um acidente na toca do coelho.
Ao ouvir a palavra coelho, o Rábido sai do armário, sua forma esquelética enrolada em mantas e cintos. Ele tropeça em Jeb, e os dois caem no chão. O Rábido se aproxima de mim ainda caído, parecendo uma lagarta louca com apenas seus chifres e olhos rosa expostos.
— Rábido, o Branco, sou eu! — Anuncia ele com sua voz fina, virando-se e tentando se libertar.
Jeb xinga e Jenara grita tão alto que todos os outros sons parecem abafados, como se meus ouvidos estivessem dentro de uma concha.
A porta da frente se abre e passos soam no corredor. Jeb se levanta para fechar a porta, mas é tarde demais. Corbin aparece ofegante, os cabelos loiros arruivados reluzindo sob a luz fraca. Ele traz uma chave na mão. Seus olhos recaem sobre o Rábido, que conseguiu se livrar dos acessórios do armário de Jenara e está ali de pé, exibindo toda a sua decrepitude intraterrena.
A criaturinha abre os braços com um floreio.
— Ta-da! — grita ele, com espuma saindo pela boca. Faço uma cara feia para o espetáculo. Morfeu deve ter lhe ensinado isso.
— O que está havendo? — pergunta Corbin com seu pesado sotaque sulista, segurando Jenara pelo cotovelo e puxando seu corpo trêmulo para o corredor.
Jeb franze a testa, atento à chave na mão de Corbin.
— Estava prestes a perguntar a mesma coisa. Por que você tem uma chave da nossa casa, Corb? Desde quando você mora com minha irmã?
Encaro Jeb. O meu lado intraterreno ri alto antes de eu conseguir me segurar, divertindo-me com o ridículo da situação toda. Parece que todos somos controlados por instintos. Para Jeb, dar à irmã e ao melhor amigo o maior susto da vida deles é algo que pega carona em seu instinto protetor de irmão mais velho.
O choro audível de Jenara traz meu lado travesso de volta. Pego o roupão da cadeira perto da mesinha de canto e o jogo para o Rábido. Ele resmunga e o cheiro de tecido queimado pontua o ar enquanto seus olhos se transformam em duas órbitas vermelhas por baixo, criando buracos fumegantes no pano.
— Nada de fogo, Rábido! — repreendo.
Ele “desliga” os olhos e se abaixa.
— Jeb? Al? — murmura Corbin, como se só agora tivesse nos notado. Ele parece perigosamente perto de desmaiar. As sardas em seu nariz parecem escuras contra o rosto pálido. Seu olhar azul intenso permanece fixo no Rábido agachado e agitado sob o roupão. — Onde vocês... como vocês...? Aquela coisa. Tem que ser um robô... certo?
— Rábido não robô é! — Meu conselheiro real reclama por baixo do seu esconderijo, ofendido.
— Para dentro do armário — ordeno. O Rábido resmunga algo indecifrável e desaparece, arrastando o roupão queimado atrás de si como a cauda de um vestido de noiva.
Jeb e eu trocamos olhares.
— Há sempre poções do esquecimento — sugiro.
Ele bufa, estudando Corbin e Jenara apoiados contra a parede do lado de fora do quarto, confusos e trêmulos para além de qualquer descrição.
— Perder suas memórias não é a única coisa que vai acontecer. Confie em mim.
— Então vamos contar a ele também — acrescento. — Isso, ou ele esquece e o mandamos para casa.
— Não vou a lugar nenhum sem a Jen — declara Corbin, a cor voltando ao seu rosto. Ele segura Jenara junto de si, enquanto ela esconde o nariz na camisa dele, tentando respirar normalmente.
Os lábios de Jeb ganham um sorriso lento e ousado.
— Não vai a lugar nenhum hoje à noite? Então você está planejando se dedicar a ela por mais um ou dois dias?
Corbin fica sério.
— Que tal para sempre? — Ele a abraça com mais força, puxando Jenara para tão perto que a calça do pijama dela adere em sua calça jeans, estalando por causa da estática.
— Para sempre é muito tempo — retruca Jeb, e a nota de tristeza na afirmação revira minhas entranhas, como se elas fossem uma harpa tocada pelos dedos dele. Fungando, Jenara se vira para olhar para o irmão, confusa. O humor de Jeb muda novamente e ele balança negativamente a cabeça, em um gesto de amor. — Parece que você arranjou um cavaleiro branco, mana.
Pego Jeb pelo pulso, no ponto onde uma cicatriz saliente substituiu sua tatuagem.
— Você não tem ideia de como esses dois são teimosos, não é?
Ele ri baixinho e entrelaça nossos dedos.
— Então, Corb. Quer fazer parte da nossa família? Que tal oficializarmos as coisas?
Corbin e Jenara estreitam os olhos em nossa direção, a respiração presa. A casa fica mortalmente silenciosa. Não se pode ouvir nada além do sussurro de uns insetinhos — numa frequência com a qual somente eu estou sintonizada — e dos resmungos do Rábido no armário.
Jeb ergue minha mão e beija minha aliança de noivado.
— O que vocês dois precisam saber sobre Al? — pergunta ele à nossa plateia. — Aquele sanatório nunca teve a chance de curá-la. Veja só, você pode tirar a menina do País das Maravilhas, mas não pode tirar o País das Maravilhas da menina. — Minha mão se separa da dele enquanto ele recua para me dar espaço. — Mostre o que você tem, rainha-fada.
Abro meu sorriso mais majestoso. E ali, no meio do quarto com faixas cor-de-rosa, com minha melhor amiga e o amor da sua vida de olhos arregalados, abro minhas asas intraterrenas e confesso todas as minhas mentiras.
SEGUNDA MEMÓRIA: CONCHAS
Quatro anos antes...
PLEASANCE, TX., 29 DE JUN. — Dois moradores de Pleasance dados como desaparecidos há um mês, juntamente com outros dois que desapareceram na última quarta-feira, foram encontrados vivos na manhã de sábado, apenas com ferimentos superficiais, presos num túnel de mineração que desabou sob um parque condenado.
Outra moradora, irmã de um dos desaparecidos e amiga dos demais, disse suspeitar da localização das pessoas depois de receber uma dica com sua tábua Ouija, de acordo com o policial Riley Hughes.
“Normalmente, não dou muito valor às bobagens espirituais”, disse Hughes. “Mas a menina ajudou a nossa investigação durante todo o mês de busca por seu irmão e vizinhos. Ela insistiu para que a gente ao menos desse uma olhada. Como vários desabamentos ocorreram no lugar às vésperas da festa de formatura da Pleasance High, e considerando que esse era o último lugar onde os desaparecidos foram vistos, achamos que valia a pena. Fomos lá sem esperar encontrar nada. Ponto para as conversas fiadas.
— Al, você está brincando comigo? — A voz fina de Jenara tira minha atenção do artigo de jornal de quatro anos atrás. Ao meu lado no sofá, uma ornamentada garrafa de vidro cheia de pedras que peguei durante nosso “resgate” do Submundo. Esfrego as têmporas, tonta por causa da viagem pela estrada da memória.
Jen atravessa a porta correndo e a fecha atrás de si.
— Não acredito que você ainda não pôs nem sua meia-calça! O que você tem? Vinte e um anos e já mostrando sinais de senilidade? Talvez você precise de um pouco de ar.
Ela abre a janela atrás de mim. Uma brisa salgada entra, abrindo as cortinas azuis com estampa de estrela-do-mar sobre minha cabeça. Meus cabelos esvoaçam, as ondas platinadas tocando meus ombros nus e meu espartilho branco de renda.
Passo a mão na borda da minha calcinha também de renda, surpresa por estar só de roupa íntima. O que eu estava fazendo antes de me sentar? Primeiro, comi o bolinho de aniversário que minha mãe deixou ao lado do cartão no criado-mudo.
Como se animada por meus pensamentos, a fôrma de papel do bolinho voa até o chão com uma lufada de vento e chega até os pés descalços de Jen. Ela o pega e franze a testa para mim.
— Hummm?
— Bolinho da minha mãe. — Lambo os lábios, ainda sentindo o sabor da cobertura azul de mel e anis.
Jenara amassa o papel e o joga no lixo.
— Então isso é você desanimadinha depois da euforia do açúcar?
— Talvez? — Tento me lembrar do restante da tarde. Depois do meu lanche, peguei o roupão para me vestir. Ao mexer na minha mala em busca do colar novo que tomei emprestado de Jenara para hoje, fui distraída pelas lembranças que trouxe comigo. De certa forma, acabei no sofá sob a janela, com um caderno e uma garrafa na mão.
Estudei o artigo de jornal novamente. Isso sou mesmo eu ficando deprimida depois de comer um monte de açúcar ou é outra coisa?
Sinto-me tão estranha. Meu corpo e mente estão relaxados, mas meu sangue é o oposto. Ele corre veloz nas veias sob minha pele — corredeiras jorrando de milhares de afluentes.
— Vamos lá, zumbizinho, me mostre algum sinal de vida — provoca Jen. — O sol vai se pôr em uma hora e ainda temos de ajeitar seu cabelo e maquiagem. E, para sua informação, aquela mancha de cobertura nos seus lábios não conta como seu “algo azul”. Para isso é que serve o elástico. Como vamos tirar isso? — O olhar dela se volta para a garrafa de pedras perto da minha coxa. Ela a pega e balança diante de mim. — Inacreditável. O Jeb está lá com Corbin enchendo os pés de areia, caminhando pelo litoral para verificar cada detalhe. E você aí, nostálgica.
Jenara falou de outras coisas além dos detalhes do casamento. Ela teve de abandonar um desfile de moda em Nova York dois dias antes do previsto para chegar a tempo disso. Ela esteve em contato constante com sua sócia, e a linha de roupa delas está fazendo barulho. Tenho a sensação de que a carreira dela está prestes a decolar para valer. Tentamos planejar o casamento de acordo com a agenda dela, mas esta era a única semana disponível da casa de praia. Então chegamos a um acordo e escolhemos o final do desfile. Eu disse que ela não precisava vir, mas ela respondeu que morreria se perdesse.
Mesmo agora, com ela me atacando com seu olhar verde mais severo, sei que não há outro lugar onde ela preferisse estar. Ela é uma visão da suavidade com seu vestido comprido florido. Seus cabelos rosa estão presos no alto da cabeça num coque chique. Rosas-anãs azuis estão colocadas em espaços estratégicos, formando uma auréola. Poucas mechas rosa se curvam em seu pescoço.
— Você está perfeita — digo a ela, encantada.
Ela tenta conter o sorriso e revira os olhos.
— Queria poder dizer o mesmo de você.
— Corb já a viu? — Minha pergunta é retórica. Os dois estão juntos há anos e, agora que Corb quase terminou a faculdade de publicidade, ele planeja se mudar com ela para Nova York no fim do verão.
No mês passado, ele pediu “a mão dela em casamento”. Usando uma armadura de malha de metal medieval, ele veio ao nosso duplex numa carruagem puxada por cavalos. Jeb o ajudou a reformar um velho Chevy que encontraram num ferro-velho. Eles pegaram o chassi e tiraram tudo, transformando-o numa charrete leve o bastante para ser puxada por dois cavalos brancos que Corbin pegou emprestados de um amigo. Depois de acrescentar arreios firmes, de substituir os pneus por rodas de madeira e de pintar a carcaça com um branco brilhoso com uma faixa vermelha, eles tinham a carruagem texana perfeita. Quando Corbin estacionou diante da casa de Jen com três dúzias de rosas na mão e lhe pediu que fossem ver o pôr do sol, ela quase desmaiou.
Era antiquado e moderno e, ah, tão lindo.
Perdida em sua própria nostalgia, Jenara admira o anel de noivado em seu dedo. Seu sorriso desabrocha, juntamente com uma atraente vermelhidão no rosto.
— Meu noivo aprova minha mais recente criação. Mas você é quem está prestes a ficar sob os holofotes. — Ela joga a garrafa cheia de pedras na minha mala aberta e vai ao armário pegar meu vestido. Jeb e eu decidimos que as belas criações de Jenara adquiriram uma má reputação na formatura e mereciam aparecer numa lembrança boa.
Ao longo das últimas semanas, Jenara realizou um ótimo trabalho costurando tecidos e retalhos com apliques diversos — um deles ela encontrou num antiquário, então isso era meu “algo velho”. Quaisquer manchas foram disfarçadas com corante de flores seguido por um toque brilhante. Agora o vestido branco sem alcinhas parece novinho. Ou tão novo quanto um vestido de noiva vintage pode parecer depois de ser modificado para se assemelhar a um tecido recém-tirado do túmulo.
— Vamos, Al, depressa! — repreende-me Jenara, perdendo a paciência.
Eu resmungo algo como resposta.
Ela joga a meia-calça lilás acinzentada na minha direção e ela voa por sobre minha cabeça, cercando-me como uma nuvem perfumada.
— Vou preparar a maquiagem — avisa ela. Ouve-se um barulho quando ela coloca a bolsa de maquiagem na mesinha, ao lado do cartão de aniversário da mamãe. — Talvez removedor de esmalte funcione com seus lábios.
Torço o nariz.
— Eca... sério?
Ela dá de ombros.
— Situações de desespero exigem medidas nojentas. — Do outro lado da redinha cobrindo meu rosto, ela escolhe sombras, delineadores, pincéis e blush.
Meu corpo parece leve, como uma nuvem flutuando. Em parte é felicidade... em parte, nervosismo... e alguma coisa mais. Algo que nunca senti antes.
Ou será que já?
A pele ao redor dos meus olhos dói, assim como a pele em minhas omoplatas.
Risadas abafadas e passos são ouvidos através da parede fina da sala de estar. A casa de praia que meu pai alugou tem sete quartos, um loft e quatro banheiros e meio, mas ainda assim não é grande o bastante para nossos convidados. Não consigo nem imaginar como ela ficará cheia depois que todos chegarem.
Reunindo energia, afasto a meia-calça e guardo o artigo de jornal de novo no caderno de recortes. Sinto-me tentada a folhear as outras páginas. A olhar as imagens de nossas exposições de arte — pinturas de edição limitada que Jeb jamais conseguirá replicar e meus mosaicos de vidros coloridos —, juntamente com fotos tolas dos últimos quatro Halloweens, Natais, piqueniques de verão, guerras de bolas de neve e pegadinhas universitárias. Só uma última olhada em nosso tempo juntos como noivos, capturado entre camadas de filme de polipropileno, antes de darmos início ao capítulo seguinte num novo caderno de recortes, decorado com cetim branco e um colarzinho de pérolas.
Toda a minha pele se avermelha, pensando no que vem depois da cerimônia. Não foi fácil esperar nos últimos anos, mas a vida já era bem complicada, tendo de enfrentar a dor de Jeb por ter perdido sua habilidade artística, indo para a faculdade e equilibrando meus deveres reais no País das Maravilhas com nossa vida humana. Nunca parecia a hora certa, até agora. Nós nos ajustamos a nossos novos papéis, aprendemos a fazer concessões sendo honestos e sempre estivemos emocionalmente presentes um para o outro. E, depois do compromisso físico de hoje à noite, nosso elo será inquebrável.
Não há forma melhor de dar início à nossa nova vida juntos do que isso: os braços fortes dele segurando meu corpo nu enquanto acaricio as cicatrizes do seu peito com o dedo, curando suas feridas a um só toque.
— Do que é que você tá rindo, Al?
Levanto a cabeça, sorrindo, apesar de tentar me conter.
Jenara bufa.
— Você não vale nada hoje, sabia? Supere isso. — Ela tira o caderno da minha mão. — A maioria das damas de honra não precisa usar seus talentos como vidente para preparar a noiva. Você vai me pagar mais por isso, não é?
Ergo as pernas para ela poder me ajudar com a meia-calça.
— Claro. Dez mil vezes mais do que o salário que combinamos.
— Humm, dez mil vezes zero... Sabia que deveria ter pedido a um advogado que desse uma olhada no contrato. — Ela segura a roupa enquanto enfio o pé, depois segura minha mão para me tirar do sofá.
Ao ajeitar o elástico sob o espartilho na cintura — de modo que a combinação caia abaixa dos joelhos —, aquela dorzinha entre os ombros aumenta e vira uma sensação de queimação. Antes que eu perceba que são meus brotos de asa, eles se abrem: um branco opaco, brilhando com joias coloridas, ocupando o espaço como asas de uma borboleta recém-saída do casulo.
Eu grito.
Jenara perde o fôlego, os olhos arregalados como moedas.
— Al, o que é isso? Você não pode fazer isso agora!
— Eu... não quis fazer isso! — Meu grito reverbera ao nosso redor.
— Shh. — Ela fecha minha boca com a mão e olha para a parede fina. Como não ouvimos nada além do zumbido das conversas dos convidados na sala ao lado, ela tira a mão. — Certo... Você terá uma audiência dentro de uma hora. Recolha as asas.
Tento, mas as asas não se movem.
— Não está dando certo. — Tento mais uma vez. — Não consigo. — Meu coração bate forte.
A expressão de Jen parece ainda mais preocupada.
— Ah, claro. Você está brilhando. E seus olhos... sério que você não está fazendo isso de propósito?
Faço que não com a cabeça. Milhares de pontinhos de luz se refletem no rosto de Jenara e nas paredes amareladas de sol que nos cercam. Levo os dedos ao rosto, imaginando marcas negras como as listras de um tigre sob meus cílios inferiores, parecidas com as de Morfeu sem as joias.
— Minhas marcas... estão muito evidentes?
O olhar de Jenara está fixo ao meu.
— Não são apenas as marcas, Al. São suas íris. Elas estão... roxas.
— Roxas?
Jen faz que sim.
— E não é um tom sutil... é muito estranho.
Sinto um frio na barriga.
— Isso não pode estar acontecendo. — Meus cabelos começam a se levantar, uma dança provocativa de mágica.
— Merda! — exclama Jenara depois que algumas mechas a alcançam. — Isso é tipo uma gripe intraterrena ou coisa assim?
— Eu... eu não sei. — Com os dedos trêmulos, seguro as mechas e as prendo na nuca. — O que vamos fazer? — O pânico reveste minhas cordas vocais, deixando-me rouca, como se tivesse engolido uma lixa líquida.
Jenara esfrega as mãos.
— Bom, você pode prender o cabelo no alto e podemos dizer que fomos criativas com sua maquiagem. O véu vai esconder seus olhos durante a cerimônia. Depois, você pode dizer às pessoas que está fazendo experiências com lentes de contato. Mas as asas... Eu acho que é impossível disfarçá-las.
Não há espelho para eu ver o tamanho da minha imagem intraterrena, por motivos óbvios. Não queria nenhuma surpresa nas festividades de hoje, então optei pelo quarto menor pela ausência de espelho, confiando que Jen fizesse minha maquiagem e me tornasse apresentável para o casamento. O lado ruim de escolher este quarto é que não há tranca na porta, o que agora me deixa ainda mais vulnerável e acessível.
Maldita reflexão tardia.
A vermelhidão no rosto da minha dama de honra ganha um tom de ansiedade.
— Vou chamar sua mãe. — Ela começa a sair, mas para. — Só... fique aqui e cuide da porta. Tente se acalmar. Vamos dar um jeito nisso, sim? Nada vai estragar isso.
Faço que sim, mas apenas para ela ficar tranquila. Como isso pode não arruinar as coisas? Não posso encarar nossos convidados humanos com todas as minhas características sujas do País das Maravilhas expostas! Isso não é a noite da festa de formatura no Submundo. Ter asas numa praia não pode ser explicado com a mesma facilidade do que usá-las como fantasia sob luzes mortiças.
Depois que Jenara sai, coloco a cadeira sob a maçaneta e puxo a asa sobre meu ombro. As joias piscam numa confusão de cores, como as marcas oculares de Morfeu quando ele está ansioso ou perplexo. Há algum tempo, descobri que meu humor, como o dele, se mostra por meio das minhas joias. É algo que Morfeu mantinha para si mesmo e um dos motivos por que ele gosta de ter minhas asas à mostra... para ele poder saber o que estou sentindo.
Mas sou eu quem decide quando abri-las. Tenho lidado com meus aspectos intraterrenos tranquilamente desde que voltei ao reino humano. Nunca perdi o controle. Há alguma travessura em andamento aqui. E tudo começou com o bolinho azul com sabor de anis e mel.
Anis... um sabor surpreendentemente semelhante a alcaçuz. Cigarro de alcaçuz.
Ranjo os dentes.
— Morfeu.
Noite passada, antes de voltar dos meus sonhos, eu o abracei, algo que não faço com frequência. Estabelecemos limites claros para o contato físico, a fim de honrar minha vida humana. Mas ele andava mal-humorado com meus súditos, o que raramente acontece, e sabia que ele estava escondendo seus sentimentos quanto ao meu casamento. Então quis consolá-lo, quis garantir que a paciência dele não passasse despercebida nem desvalorizada.
Ele me abraçou de volta por uns cinco segundos, depois me afastou. Ao olhar para mim, sua expressão era algo bem distante da tristeza ou preocupação. Era o exato oposto, o que nunca é um bom sinal.
— Decidi dar a você e a seu noivo um presente amanhã, frutinha — disse ele, abrindo a mão. Uma esfera azulada ganhou vida na palma de sua mão e depois alçou voo, pairando entre nós. — Como Jebediah abdicou de sua capacidade de sonhar com o País das Maravilhas, você pode compartilhar seus sonhos em segredo na sua lua de mel. Você não virá ao País das Maravilhas esta noite. Em vez disso, Jebediah pode entrar com você e seus sonhos pertencerão somente a ele. Mas somente se ele se provar digno de se casar com a rainha-fada.
Antes de poder pegar a luz azulada, Morfeu me expulsou do meu sonho.
Minhas mãos agarram a meia-calça cobrindo minhas coxas. Quando acordei neste quarto, pela manhã, pensei em contar a Jeb as palavras enigmáticas de Morfeu, mas não estava com meu celular porque Jenara se esforçou ao máximo para manter seu irmão distante de mim até a cerimônia.
Não há tempo a perder. Ele precisa ser avisado de que Morfeu criou outro teste para mim. Ou melhor, para ele.
Vou até a mesa para dar uma segunda olhada no cartão de aniversário da minha mãe, manobrando as asas pela mobília arranjada em ângulos estranhos no quarto pequeno demais. Ergo o cartão, estudando-o cuidadosamente. Para além da corujinha bonita na capa — sutil — e da inscrição “Queeeeem faz aniversário hoje?” dentro, há a assinatura da mamãe impressa. Ela sempre assina cartões com letra cursiva. Por que não tinha percebido isso? Ou o fato de o papai não ter assinado também? Pensando bem, eu deveria ter percebido tudo isso, porque não era para ter abaixado a guarda. Morfeu me treinou melhor do que isso.
Mas ele sabia que eu estaria distraída com meu cérebro focado no casamento. Ele contava com isso. E, para piorar as coisas, não havia insetos por perto para me alertar. A casa de praia foi fumigada há uma semana por causa de uma infestação de formigas e o silêncio era ensurdecedor desde que chegamos. Suspeito que ele tenha o dedo nisso também. Ainda assim, ele está cumprindo sua promessa de não se colocar entre mim e Jeb porque conseguiu fazer com que minhas características intraterrenas é que causassem todos os problemas.
Estou quase impressionada, mas isso não é nada perto da ansiedade revirando minhas entranhas. Como pude ser tão descuidada?
— Maldita mariposa inteligente — xingo, esperando ouvir um eco da risada arrogante na minha mente. Como não ouço nada, fico séria e rasgo o cartão ao meio, com raiva por não encontrar respostas ali. — Certo, você me pegou. Mas fique sabendo que você o está subestimando — digo em voz alta, na esperança de que Morfeu ao menos esteja ouvindo. Minha voz soa firme e confiante, apesar das lágrimas de nervosismo queimando em meus olhos. — Jeb vai encontrar uma forma de resolver isso...
— Tem razão, Al. — A voz grossa e determinada de Jeb me atinge por trás, uma corrente elétrica iluminando todas as minhas terminações nervosas.
Viro-me para ver uma rosa branca pela porta entreaberta.
— Deixe-me entrar.
Quase tropeçando nas minhas asas, corro e puxo a cadeira para o meio do quarto, e depois recuo para lhe dar espaço.
Ele entra — pingando no que restou do seu smoking de formatura — e fecha a porta. Ele se apoia nela e me encara. Areia e gotas de água brilham em seus braços, onde ele enrolou as mangas da camisa até os cotovelos. A camisa semiabotoada expõe seu peito reluzente. As calças azul-marinho estão enroladas também até o meio da canela. Ele deve ter deixado o paletó azul de veludo lá fora, pendurado para secar.
— Jen tentou me contar sobre seus olhos — murmura ele antes de eu poder perguntar o que aconteceu às roupas dele. — Mas não há paleta de artista, não há comparação neste mundo para esta cor. Al, você está tão linda.
Estava pensando o mesmo que ele.
— E você está tão molhado — digo, estúpida. É difícil pensar em meio à luz amena que reflete sua pele cor de oliva, o labret prateado e os rebeldes cachos escuros pingando água por sua testa e seu nariz.
Ele não responde, ocupado demais em me analisar com seu olhar profundo e úmido. Se Jenara estivesse aqui, ela insistiria para eu cobrir meu espartilho e calcinha. Não, ela insistiria para eu expulsá-lo. Mas ficar longe dele desde o jantar da noite passada já era muito tempo. Até mesmo a cadeira entre nós dois parece uma montanha. Eu deveria movê-la, mas ele me deixou paralisada. Seu olhar percorre todo o meu corpo — um carinho mental tão íntimo e completo quanto um carinho real seria.
— Talvez a gente não devesse ter escolhido um casamento na praia — provoco, tentando conter minha imaginação fértil.
O sorriso sensual resultante de Jeb revela seu incisivo torto que espero que nossos futuros filhos e filhas herdem.
— Digo, levando em conta nossas experiências passadas com enormes corpos de água.
Eu rio.
Ele ri também, mas então fica sério.
— Nós nos reencontramos numa praia em Qualquer Outro Lugar. Você me fez uma promessa lá. Faz sentido eu lhe fazer uma promessa numa praia também. Não importa o que aconteça antes ou durante nosso casamento. Não importa que tipo de dificuldades Morfeu pôs em seu caminho hoje, tudo isso vale a pena. Nós valemos a pena. E vamos provar isso para ele.
Nunca o vi tão confiante ou... enérgico.
— Espere aí, você... Você está gostando disso? — Esboço um sorriso hesitante.
Ele dá de ombros e cheira a rosa branca na mão.
— Gosto de um desafio.
— Morfeu vai odiar que não pode provocá-lo.
— Psssh. Nós dois sabemos que ele adora quando eu aceito o desafio.
Balanço a cabeça, sorrindo. É um consolo estranho perceber como eles se conhecem e se compreendem bem hoje em dia.
— Então foi ele quem o fez cair na água?
Jeb obriga seu olhar a subir do meu corpo seminu para meu rosto.
— Bom, tecnicamente não foi ele. Ele está cumprindo a promessa de ficar longe do nosso mundo. Corb estava arrumando a almofadinha de carregar as alianças quando algo mordeu seu dedão do pé e ele derrubou as alianças. Uma lagosta de pedra surgiu na areia, as pegou e desapareceu nas ondas.
— Uma lagosta de pedra de verdade? Como as de Qualquer Outro Lugar?
Jeb enfia o cabo da rosa no bolso, então segura a camisa pela cintura e começa a desabotoá-la completamente.
— Sim. Pintei algumas para o País das Maravilhas antes de irmos embora, quando reinventei as paisagens. Morfeu as pediu. Não há dúvida de que foi ele quem mandou aquela lagosta de pedra para cá.
É difícil acompanhar a conversa porque só consigo ver as roupas molhadas grudadas no corpo musculoso de Jeb a cada movimento.
— Então... você mergulhou no oceano para recuperar as alianças?
— Tentei, mas não consegui pegar a ladra. — Ele tira o tecido ensopado dos ombros e braços, revelando uma barriga de tanquinho molhada e gotículas presas nos pelos de seu peito. — Pedi à sua mãe que entrasse em contato com a Marfim pelo espelho do quarto dela. Ela tinha uma flauta mágica no castelo. Eu a vi lá. Descobri que o instrumento funciona nos moluscos do nosso mundo também. Eles trazem as lagostas até a praia. Os anéis agora estão seguros. Corb vai manter a almofada com ele até a cerimônia.
Penso nos moluscos que conhecemos no País das Maravilhas na nossa primeira visita... como toquei uma flauta que os convocava e lhes dava ordens. Como, num só movimento, eles vieram nos resgatar quando estávamos sendo perseguidos por um exército e levaram nossos perseguidores para longe, numa confusão de conchas batendo-se umas nas outras. Sou ainda mais grata agora do que antes. Só espero que ninguém tenha visto nada.
— Não se preocupe com os convidados — tranquiliza Jeb, como se lesse meus pensamentos. — Seu pai manteve todos ocupados. Ele os levou por um passeio ao outro lado da praia, onde os barcos ficam ancorados.
O alívio toma conta de mim. Mas por pouco tempo, considerando que todos vão me ver em breve.
— Não devemos falar do elefante voador na sala? — pergunto, batendo as asas.
Jeb joga a camisa molhada no braço da cadeira de madeira. Seu pomo de adão se move quando ele engole em seco lentamente.
— Você se refere ao fato de você ser a mulher mais radiante e mágica que já vi?
Mulher... Acho que ele nunca me chamou assim. Seu olhar é tão intenso que minhas pernas fraquejam. Aproximo-me da cama, precisando de apoio contra elas.
Seu olhar se detém nos meus lábios azuis.
Eu os esfrego.
— Foi uma bobagem. Comi um bolinho que veio do nada... Sei que não devo comer nada estranho.
— Não. Morfeu teria encontrado uma maneira de fazer isso com ou sem você comendo o bolinho. Ele está deixando claro uma coisa. Provei meu valor como marido do seu lado humano depois de quase morrer por você mais de uma vez. Mas ele quer que eu seja digno do seu lado intraterreno também.
Fico boquiaberta
— Foi o que ele disse no meu sonho!
Jeb tira a rosa do bolso e arranca uma das pétalas.
— Compartilhei da mágica dele uma vez. Sei como ele pensa. Ele provou seu amor por seu lado humano ao não deixar a Marfim coroá-la e destruí-la. Então ele quer que eu prove meu valor como ele provou o dele. Não tenho problemas com isso. Será uma honra me casar com você hoje, diante de Deus e de todos, com suas asas e outros atributos intraterrenos à mostra.
Por mais sinceros e admiráveis que sejam os sentimentos dele, não consigo compreender a lógica de tudo.
— Mas isso... — Abro as asas às minhas costas e elas lançam sombras sobre nós dois. — Não sei como encarar uma plateia de humanos sem me entregar. É impossível.
— Nada é impossível. Você me ensinou isso há muito tempo. Pelo lado bom, sabemos que o efeito do bolinho é temporário. Morfeu se importa demais com seu coração para colocá-lo em risco arruinando sua capacidade de viver uma vida de realizações aqui.
Mordisco meu polegar, tomando o cuidado para não estragar o meticuloso trabalho de manicure de Jenara.
— Temporário pode ser qualquer coisa entre algumas horas e todo um dia.
— Verdade. O efeito vai permanecer ao menos durante a cerimônia. Mas podemos lidar com isso. Só deixe que eu me preocupe com o que todos pensam ou veem. Vou dar um jeito nisso com criatividade humana e um toque de mágica.
Um toque de mágica.
— Espere um pouco... você não vai usar seu desejo, não é?
— Não. Prometo a você que eu saberei a hora certa de usá-lo. Sua mãe e Corb estão levando os portais-espelhos a algumas lojas de fantasias.
— Para quê?
— Surpresa. — Ele olha para a porta atrás e depois se volta para mim. — Tenho que sair antes que a Jen volte. Eu deveria apenas deixar minha camisa pendurada na maçaneta para ela limpar as manchas e passá-la. Ela vai ficar louca se souber que vi você antes do casamento... mas queria lhe dar os parabéns pelo aniversário. — Ele estende a rosa, um pouco distante demais para eu pegá-la.
— Chegue mais perto — peço.
Sua mandíbula bem barbeada treme.
— Já foi ruim o bastante tê-la visto. Vai saber a confusão que vou provocar se tocar em você.
— Vamos descobrir.
A expressão dele ganha força e desejo. Ele joga a cadeira para o lado e se aproxima de mim.
As lufadas de vento carregam o perfume dele misturado ao da rosa. Ele para a poucos centímetros de distância, a mão livre tamborilando ao lado do corpo, como se pensasse nas alternativas. Uma tensão doce e torturante se estabelece entre nós dois — como a calmaria antes de uma tempestade de raios. Três mechas de cabelo se soltam do nó na minha nuca e o envolvem junto com a rosa. Uma mecha traz a rosa até mim e eu a pego com a mão direita.
Jeb observa, encantado.
Tento conter as outras mechas que se prendem nele, mas ele segura meus pulsos e leva minhas mãos à boca.
— Deixe estar — murmura ele contra minhas cicatrizes e leva a mão à minha nuca para soltar o restante das mechas. — Você sabe que eu a amo assim. — Sua voz arranha, áspera e rouca.
Meus cabelos nos cercam, furiosos para se libertarem. Eles dão a volta nos bíceps, ombros e cintura dele. Com força e cuidado, unem nossos corpos seminus, e os lábios dele encontram os meus. Ele tem sabor de oceano, cidra e chocolate. Ele andou experimentando a comida da festa.
Solto a rosa e passo as mãos em seu peito. A pele dele está molhada e quente, e seus músculos se contraem.
— Isso vale qualquer azar — sussurro contra sua boca cheia e macia, retribuindo seus beijos quentes.
— Nunca tivemos sorte mesmo — sussurra ele de volta, nos derrubando na cama, mas tomando cuidado para não esmagar minhas asas. — Mas somos muito bons em fazermos nossa sorte.
Ele me deita de costas, o peso dele me prendendo na mais deliciosa das armadilhas. Seu joelho abre caminho entre minhas pernas, as calças molhadas esbarrando em minha calcinha. Uma brisa sopra sobre nós dois, gelada em minha pele nua. É tão estranho queimar como um forno, mas ainda assim ficar arrepiada.
As mãos de Jeb pairam sobre minhas curvas — um território íntimo que ele conhece, mas que ainda tem de explorar completamente.
— Você está com frio — diz ele, enquanto sua boca avança pela carne gelada do meu pescoço.
Sinto meus ossos se liquefazendo e meu sangue virando lava.
— Longe disso — respondo, ofegante.
Com os olhos cheios de desejo, ele vira para o lado, me soltando. Põe a mão nas minhas costas e puxa um canto do lençol lavanda e azul-turquesa, cobrindo meu corpo e as asas e separando nossa pele.
Eu gemo.
— Jeb. Não quero nada nos separando.
Seus dedos contornam meus lábios.
— Depois da cerimônia, não haverá nada. Você será minha hoje à noite e será como sonhamos.
Meu corpo se incendeia, faíscas de ansiedade iluminando todas as partes do meu corpo que ele já tocou. Estou prestes a lhe dizer que será ainda melhor do que imaginamos — porque ele pode literalmente compartilhar meus sonhos se adiarmos o casamento —, quando a porta se abre.
— Ah, o que é isso? — grita Jenara.
Jeb se levanta apressadamente e me lança um sorriso tímido, enquanto sua irmã o expulsa do quarto.
— Eles voltaram? Eles encontraram tudo? — pergunta ele antes de ela lhe dar um empurrão.
Jenara faz uma cara feia.
— Sim, sim. Não que isso importe, agora que você provocou o destino ao vê-la.
Mais uma vez, Jeb põe a cabeça para dentro do quarto e ri para mim.
— Como se o destino tivesse algo a ver com a rainha-fada.
Sorrio de volta, ainda saboreando os beijos dele.
— Me encontra na praia ao pôr do sol? — pergunta ele.
— Nem mesmo um ataque de pássaros Jubjub me impediria — respondo.
Ele ri e desaparece, me deixando com uma dama de honra mal-humorada, mil perguntas e um coração iluminado.
CONTINUA
Capítulo 2
Auge
PRIMEIRA MEMÓRIA: PEDRAS
Sessenta e três anos antes...
É manhã no País das Maravilhas e Morfeu está me acompanhando de volta ao castelo da Marfim, onde minha família e Jeb esperam para passar comigo pelo portal, de modo que eu possa viver o restante da minha vida humana.
Meu acompanhante está pensativo e quieto, suas feições duras como pedra. Não trocamos nenhuma palavra durante o trajeto encantado. O som das asas da mariposa criando uma trilha no céu só intensifica o silêncio constrangido.
Sinto um aperto no peito, como se meu coração estivesse tentando alcançá-lo. Sei que, se olhasse sob o tecido sedoso do meu vestido preto e sob o paletó que ele insistiu em usar para se aquecer, o órgão estaria brilhando em tom violeta. Ontem mesmo, meu coração estava dividido ao meio — os lados humano e interior se matando — por causa da maldição que a Rainha Vermelha jogou sobre mim. Jeb e Morfeu intervieram, combinaram suas mágicas e me curaram com suturas encantadas. Eles salvaram minha vida com o amor. Meu corpo entende isso de alguma forma primitiva e eu jamais esquecerei. Meu coração está ligado aos dois agora, formando um elo que vai além de qualquer explicação humana.
Contudo, mesmo sem esse elo, eu era capaz de decifrar as joias no rosto de Morfeu e de saber no que ele está pensando. Acordei mais cedo em sua cama e o encontrei sentado na beirada do colchão, acariciando os cabelos nas minhas têmporas. Antes mesmo de poder lhe dar bom-dia, ele me beijou na testa e se afastou, dizendo que o café da manhã estava pronto.
Passamos a noite juntos, mas nada físico aconteceu entre nós. Nada acontecerá por muitos anos. Não até eu ter vivido minha vida humana com Jeb.
Deixei minha posição sobre fidelidade bem clara; mesmo assim, Morfeu deixou claro que não vai facilitar as coisas. Apesar de seus desafios penderem como fios soltos, o respeito que estabelecemos está firmemente junto a mim. Sei que ele jamais me pediria que traísse os humanos que amo — porque isso é parte de quem sou —, por mais que ele sofra ao recuar e me deixar em paz.
Depois de visitar as paisagens do País das Maravilhas juntos, noite passada, eu o entendo como nunca o entendi antes. E é o mesmo para ele, porque assim que chegamos e ele segura minha mão para eu descer da carruagem, não hesita em me acompanhar até a entrada de gelo onde Jeb me aguarda no topo da escadaria coberta de cristais de neve.
Prendo a respiração ao vê-lo. Ele está usando um smoking azul-marinho completo, com uma camisa violeta que complementa seus cabelos ondulados escuros e o tom oliva de sua pele. A mesma camisa transformada em cueca em Qualquer Outro Lugar.
O smoking está exatamente como na noite da festa de formatura: teias falsas, listras sujas e rasgões colocados estrategicamente no paletó e nas calças. Por um momento, sou levada de volta ao Submundo, onde o vi pela primeira vez esperando por nós na noite de formatura na entrada dos funcionários, e sua expressão magoada diante da minha traição. Jamais provocarei um olhar daqueles novamente.
Estranho. Da última vez que vi o smoking, foi com o dublê de Jeb em Qualquer Outro Lugar. Quando CC caiu na piscina de medos, as roupas se desintegraram. Jeb deve tê-las consertado antes de desistir do seu talento para sempre.
Talvez tenha sido sentimentalismo, porque a irmã dele é quem fez o smoking, ou provavelmente porque ele queria estar usando algo conhecido quando passássemos pelo portal e voltássemos à vida de sua família.
Ainda assim, mesmo usando roupas do reino humano, ele parece triste e deslocado ao esperar que eu suba as escadas. Ficar ali de pé à luz do dia, vendo as belas paisagens que ele criou neste mundo, deve ter sido horrível. Desistir de sua musa deve ser a coisa mais sofrida que ele já fez. E ele fez isso sem hesitar, para ajudar a equilibrar o País das Maravilhas... para alimentar as almas insaciáveis da Irmã Dois com seus sonhos artísticos.
Não tenho certeza se ele pensou nas consequências desse sacrifício. Mas estarei aqui para ajudá-lo a passar por isso.
Enquanto Morfeu e eu subimos a escada a caminho de Jeb, passamos por seres intraterrenos que vieram acompanhar minha partida. Alguns deles são inesperados.
Hubert, decorado e lustrado como um ovo Fabergé numa vitrine de Páscoa, estende a pata de louva-a-deus para cumprimentar Morfeu.
— Ainda é mais fácil para mim odiá-la — diz o homem-ovo para Morfeu, como se eu não estivesse por perto. — Rainha sabe-tudo. Nada de educação ou cultura naquela cabeçorra dela. Ainda assim ela conseguiu provar que eu estava errado. Tinha tanta certeza de que ela acabaria num caixão. Que decepção. — Apesar do sarcasmo, seus olhos amarelados refletiam admiração. Para minha surpresa, ele me oferece, por toda a vida, um suprimento de ovos beneditinos em seu ilustre hotel mágico, se um dia eu o visitasse.
Depois, cumprimentamos os estranhos seres intraterrenos clandestinos que ficaram presos no trem da memória três dias antes. Todos fazem reverência e me agradecem por abrir a toca do coelho para eles poderem voltar para casa. Meu nariz coça quase a ponto de me fazer espirrar quando passamos pelos coelhinhos de pó.
Bill, o Lagarto, nos para no meio do caminho. Ele estende dois trajes de disfarce que pedi a Grenadine que o devolvesse.
— Desculpe por ter perdido um... por tê-los roubado, antes de mais nada — sussurro, envergonhada.
Ele balança a cabeça reptiliana e mostra a língua comprida.
— Sou um súdito da Corte Vermelha. Assim, eles pertencem a você, Majestade. Seus talentos como ladra perdem apenas para o uso da sua mágica. Você os usará agora melhor do que eu jamais os usaria.
Impressionada, coloco a mão no peito. Sob meu vestido, o colar com a chave que abre meu reino pressiona minha pele.
— Mesmo?
Bill estende os trajes.
Olho para Morfeu.
Ele sorri e faz que sim, me encorajando a pegar o tecido transparente. Eu o guardo debaixo do braço e agradeço ao lagarto, que se curva para nos deixar passar. O Rábido está esperando por nós no degrau de cima — usando casacão e calças vermelhas. Ele abre os braços para levar os trajes para mim. Meu conselheiro cavalheiro. Ao subirmos, acaricio a pele macia entre seus chifres.
Guardas elfos se enfileiram na segunda metade da escada, dos dois lados. Eles sacam as espadas e tocam as pontas delas no topo das cabeças, formando um corredor prateado brilhante.
Jeb me aguarda no fim, tenso como se o fato de não poder correr até mim o estivesse matando.
Enquanto Morfeu e eu subimos a escada sob as sombras das espadas, meneio a cabeça para Jeb, num sinal de reconhecimento. As bolsas sob seus expressivos olhos verdes provam a falta de sono. As doze horas que passamos separados devem ter sido uma tortura. Por mais forte que ele estivesse quando demos boa-noite, é óbvio que ele temia que fossem despedidas de verdade. Que eu decidisse passar meu futuro no reino humano sozinha, sem ele.
Não posso estar no mesmo mundo que ele todos os dias sem tê-lo na minha vida. Nós nos amamos. Nós dois queremos a mesma coisa. Vamos dividir esses sonhos e envelhecer juntos. Uma vida mortal é preciosa e curta em comparação à eternidade. Ela deve ser vivida e nunca desperdiçada. Algo que Morfeu agora entende como nunca antes, senão não estaria me deixando partir sem lutar.
Sinto o rosto adormecer, menos pelo frio e mais pela situação insuportavelmente incômoda na qual coloquei os dois. Eu me lembro de que esta é a pior parte... que, depois que eu passar pelo portal e entrar no reino humano, minhas duas vidas vão se misturar e ao mesmo tempo jamais se cruzarão, a não ser que seja necessário à segurança ou ao bem-estar de alguém. Foi com o que concordamos.
Uma cama de gelo se gruda na sola das minhas botas assim que subo o último degrau. Os cavaleiros elfos nos saúdam e guardam as espadas nas bainhas de couro. O sangue que lhes decora os rostos e têmporas brilha como fruta contra o cenário branco que os cerca. Batendo os calcanhares, eles descem as escadas para cercar o castelo e assumir seus postos.
Franzindo a testa, Morfeu oferece minha mão a Jeb. É um gesto estranho, grandioso e cheio de dignidade, como se ele caminhasse comigo pela nave e me entregasse em casamento. De certa forma, é. Durante uma vida humana.
Suas asas farfalham quando Jeb segura minha mão, um espasmo involuntário. Ele está lutando para não pegar minha mão de volta.
— Você conhece o protocolo... se algo acontecer ao seu corpo no seu mundo, você ou Alison devem entrar em contato comigo imediatamente. O espírito de Alyssa deve ser protegido para sobreviver.
Jeb faz que sim com a cabeça.
— Entendi. — A resposta dele é sucinta e seu tom de voz, controlado, mas a preocupação em sua expressão o entrega. É algo em que não gostamos de pensar, algo que esperamos que nunca tenha de ser resolvido.
O olhar rosa do Rábido se vira para mim, seu rosto branco entusiasmado. Eu o mando porta afora para resgatá-lo de ter de tratar de assunto tão mórbido.
Morfeu espera pelo toque dos ossos para desaparecer dentro do castelo, depois pega um par de luvas do bolso, colocando-as na mão.
— E acho que é desnecessário lhe dizer para tratá-la como uma rainha — resmunga ele para Jeb.
Jeb entrelaça nossos dedos.
— Assim como é perda de tempo lhe pedir que abandone as táticas de sedução nos sonhos dela.
— É ciúme o que ouço em sua voz, belo e falso elfo? Nunca tema. Ainda pensarei nela todos os dias, enquanto ela estiver com você.
— Prefiro que você pense em mim todas as noites, quando ela estiver com você. — Jeb me ajuda a tirar dos ombros o casaco de Morfeu, substituindo-o pelo paletó do seu smoking, ainda quente do calor do seu corpo. — Enviarei uma coruja como lembrete. — Ele devolve o casaco a Morfeu.
Morfeu pega o casaco e o dobra no braço, alisando-o. Ele ri uma risada triste e vazia.
— Vou sentir falta das suas tentativas equivocadas de fazer trocadilhos.
Jeb abre um sorriso forçado.
— Não tanto quanto eu sentirei falta de sua condescendência pomposa.
Eles se encaram, uma mistura de distração e comedimento em suas expressões. Um respeito de má vontade une a tensão — uma ligação que aumentou sem eles perceberem ou encorajarem, durante o mês que eles passaram juntos em Qualquer Outro Lugar.
— Vocês dois querem ficar sozinhos? — pergunto, desesperada para que ponham um fim ao estranho diálogo.
Morfeu estreita os olhos.
— Eu a verei hoje à noite, Alyssa. E, a partir de agora, quando você estiver comigo, espero que sua mente seja como era na nossa infância. Atenta às questões do País das Maravilhas, e não à confusão do reino mortal. Lide com as coisas daqui para que elas não sejam uma distração quando você voltar às suas obrigações reais. Tem certeza de que não precisa da minha ajuda para limpar todas as bagunças? Tenho certa prática no manejo de humanos. — A risadinha arrogante que ele lança para Jeb está cheia de insinuações.
— Entendemos, Mariposinha — diz Jeb. — Entendo as sensibilidades inocentes deles melhor do que você. — Ele arqueia a sobrancelha, expressando sua própria mensagem cifrada.
Ouve-se um baque abafado na enorme porta cristalizada. Jeb e eu olhamos para trás, para o ponto de onde nossos pais estão espiando. Ambos parecem belos e descansados, mas também ansiosos.
Meneio a cabeça num cumprimento e eles acenam e então recuam para dar privacidade a nós três.
Jeb se vira, seu braço me segurando pela cintura.
— Você vem nos visitar, Morfeu?
Morfeu encara enfaticamente Jeb. Suas marcas de joias brilham numa paleta pastel, como um pôr do sol reluzente. A resolução pisca dentro de seu olhar carregado.
— Não quero chegar nem perto do portal. Já tive o bastante do seu reino estagnado para esta vida e um pouco mais.
— Espero que você esteja falando sério — diz Jeb. A frase não é ferina, só sincera.
— Ah, com certeza falo. Exceto pela parte preciosa do seu mundo, que um dia pertencerá somente a mim. — Morfeu ergue o chapéu na minha direção e as mariposas cinza-azuladas na borda tremem como se fizessem reverência. Ele se vira e desce as escadas, as asas se arrastando pela neve como uma capa, e parte de mim sofre com uma tristeza profunda.
Um vento ganha força, gerando um redemoinho de neve.
É melhor estarmos saindo pelo portal da Marfim. Esta partida sofrida seria acrescida dos rostos de todos os meus súditos me olhando. Noite passada, ao visitar o Castelo Vermelho, optei por não me despedir deles. Eu me sentiria fadada demais e de certa forma estranha. Consolo-me em saber que eu verei a eles e Morfeu em meus sonhos.
Depois que a carruagem movida a mariposas decola, Jeb se vira para me encarar. Ele leva minha mão à boca e acaricia os nós dos dedos. Seu olhar intenso passa por todos os meus traços, dos olhos ao nariz e lábios, como se estudasse uma pintura novamente.
O silêncio revira meu estômago.
— Você vai perguntar?
— Perguntar o quê? — diz ele contra a minha mão.
— Se algo aconteceu. — Meu tempo com Morfeu parece algo privado e secreto, mas se Jeb, para reaver a calma, precisar ouvir sobre o que conversamos e os lugares que visitamos, me abrirei e serei honesta.
Jeb entrelaça nossos dedos novamente.
— Você segurou minha mão hoje e está ao meu lado. Isso me diz tudo o que preciso saber. Você é uma rainha e tem responsabilidades. — A admiração por trás de suas palavras me surpreende, mas não deveria. Não levando em conta os laços emocionais dele com meu mundo. — Não preciso saber de tudo sempre que você volta. Você me diria se algo nos afetasse ou afetasse sua vida.
Sorrio, surpresa com a fé dele.
— Diria. Direi. E obrigada.
Ele cuidadosamente segura os cabelos à minha nuca e junta nossas testas.
— Eu é que agradeço. — Sua voz, grossa e rouca de emoção, forma uma névoa entre nós. — Obrigado por voltar para mim.
Acaricio seu rosto e a pouca barba em seu queixo.
— Certo, não vou me sentir como se você precisasse de uma atualização sempre. Mas, por favor, não pense que você precisa agradecer todas as manhãs em que eu acordar ao seu lado. Quero que sejamos normais.
— Normais. — Ele recua e ri, as covinhas finalmente aparecendo. — Isso vindo de uma menina que ganhou asas e que me deu um colossal chá de cueca enquanto surfávamos nas areias do País das Maravilhas. Quando é que isso foi normal, hein?
Bufo, lembrando-me de que não podia carregá-lo pelo precipício e tive de deixá-lo para trás, que, por mais que ele estivesse com tanto medo quanto eu, ele me fez rir e me deu forças para que eu fizesse o que julgava impossível. Como agora.
O sorriso desaparece aos poucos, fazendo seu piercing nos lábios brilhar à luz. Eu o toco, acariciando o metal quente, de modo que seu bigode pinica meu dedo.
Esse ato íntimo e sensual me atinge com uma verdade quase que inconcebível: não há nada se colocando entre nós dois agora. Nossa vida juntos começará hoje, assim que cruzarmos a fronteira. Estou ao mesmo tempo feliz e emocionada.
— Estou pronta para minha aliança — consigo dizer em meio ao nó na garganta.
Sua expressão ganha sobriedade. Tirando a corrente por baixo da camisa, ele a passa pela cabeça e tira o anel. Com os olhos nos meus, ele coloca o anel de prata na minha mão direita, onde ele permanecerá até que ele o coloque na minha mão esquerda depois de declararmos nossos votos maritais. Os diamantes brilham — um coração alado — e meu coração parece bater asas como se pudesse voar.
O anel se encaixa perfeitamente ao meu dedo e parece um cartão de boas-vindas.
— Você sempre foi minha segurança — sussurra Jeb, colocando o polegar na covinha do meu queixo e me puxando para um beijo carinhoso e doce. Passo a mão pelos cabelos dele e o saboreio, ele sem perfume ou tinta ou terebintina. Só ele. Humano, masculino. Jebediah Holt.
Eu poderia me afogar na doçura da simplicidade.
Com nossos peitos unidos, meu coração costurado brilha e cantarola, tentando diminuir o espaço entre nós. Seu corpo fica tenso, como se ele sentisse a atração.
Ele interrompe o beijo e segura minha cabeça contra seu corpo, a barba por fazer em seu rosto arranhando minha têmpora.
— Tenho algo para lhe mostrar. — Seus lábios acariciam minha orelha e me aquecem toda. — Quis esperar até que estivéssemos juntos. Até que estivéssemos sozinhos. Mas acho que você precisa ver agora. — Ele pega algo do bolso e revela o que parece uma bolinha de gude, apesar de ser macia como uma pérola de banho.
— Um desejo? — Enxugo as lágrimas do meu rosto com o dorso da mão, surpresa. — Como? Quando?
— Noite passada, na festa da Marfim, depois da nossa dança lenta. Um furão me puxou... lambeu meu rosto para me agradecer pelo que fiz pelo País das Maravilhas.
— Ah, meu Deus. Então foi por isso que você saiu mais cedo?
Ele rola a bolinha na palma da mão.
— Estava prestes a me acabar de chorar. — Ele segura a lágrima brilhante contra a luz. — Não poderia permitir que a Rainha Vermelha me visse berrar como uma menininha.
Solto uma risada inesperada, alheia em meio à confusão inesperada de emoções.
Jeb franze a testa, pensativo.
— Podemos usar isso para nos ajudar a arrumar as coisas no reino humano.
Meu sorriso de felicidade desaparece.
— Não. Este desejo só pode ser usado para você.
— Fiquei envolvida com Morfeu por um mês. A única coisa que aprendi é que a mágica é flexível. É tudo uma questão de estilo.
Balanço a cabeça e cubro a mão dele, escondendo sua lágrima.
— Mágica é preciosa. Você tem de guardar isso, Jeb. Você pode desejar tantas coisas! — Paro, porque nós dois sabemos que há duas coisas monumentais que não podemos pedir. Ele não pode recuperar sua musa sem desequilibrar o País das Maravilhas de novo. E não pode pedir para vivermos para sempre. A mágica não mudará quem se é por dentro. Ele optou por perder sua imortalidade abdicando dos poderes da Vermelha. Ele é mortal e não há como mudar isso agora. — Jeb, não desperdice o poder. Guarde para algo importante.
Ele fica mais sombrio e sei que já esteve enfrentando os mesmos pensamentos. Ele guarda o desejo no bolso e trava a mandíbula.
Antes que possamos dizer algo, as portas do castelo se abrem e a mamãe e o papai surgem. Fico chocada ao vê-la usando o mesmo vestido de costas expostas usado na festa de formatura. Apesar de o chiffon da saia e as mangas estarem avariados por causa da luta dela com o coveiro de oito patas do País das Maravilhas, o vestido ainda está intacto.
Franzo a testa, pensando em tudo.
— Espere aí. — Aponto para ela e para Jeb. — Então... vocês estão usando as mesmas roupas que usavam quando desapareceram. Isso é um plano?
— Sim. Jeb pensou nisso — responde a mamãe. — Ainda precisamos pensar nos detalhes. Mas primeiro... — Ela e o papai me puxam para um abraço.
Depois de um abraço longo e apertado, celebramos as notícias. O papai brinca com Jeb, dizendo que ele quase teve de vender um rim para comprar o anel de noivado da mamãe, no que esta lhe dá uma cutucada, fazendo-o soltar um ganido. E então ela segura cuidadosamente minha mão direita para admirar meu dedo anelar.
Ela olha meu rosto. Sei o que ela está vendo: a mesma ansiedade pela vida humana que ela sentiu com o papai depois de salvá-lo da Irmã Dois. O sorriso dela é tão cheio de esperança que eu poderia estar olhando diretamente para o sol.
Quando ela se vira para dar um abraço de improviso em Jeb, o papai me puxa de lado.
— Borboleta — diz ele, ajeitando uma mecha solta de cabelo atrás da minha orelha.
— Papai — falo, segurando a mão dele e mantendo-a perto do meu rosto.
Ele balança a cabeça.
— Em meio a toda esta loucura... Não tive a oportunidade de dizer quanto tenho orgulho de você, Alyssa Victoria Gardner. — A ternura em seus olhos castanhos me lembra de como nós dois enfrentamos o mundo juntos na minha infância e de como sempre me senti segura. Se ao menos eu soubesse que minha vida era protegida por um cavaleiro de verdade. — Minha menininha é uma rainha. Uma rainha do País das Maravilhas.
Sorrio.
— Ligeiramente diferente das minhas versões fantasiosas, não?
O papai ri e me beija na cabeça.
— Pode-se dizer isso. Mais como uma ninja.
Solto um riso e dou-lhe um abraço, aconchegando-me em seu calor e força.
— Está pronta para ir para casa? — pergunta ele, acariciando minhas costas.
— Bom, não exatamente casa — emenda a mamãe, voltando ao meu lado. — Temos de fazer um desvio.
— Desvio? — pergunto, enquanto ela e eu entramos de braços dados no castelo, com os caras atrás de nós. Nossos sapatos batem no chão vítreo. A Marfim está no alto da escadaria de cristal, onde o portal me aguarda no fim de um corredor. O Rábido está ao lado dela, com Finley do outro lado, a mão às costas, sob as asas.
— A casa de Jeb vai ser a primeira parada — responde a mamãe enquanto subimos os primeiros degraus.
Fico intrigada por um instante, até que me cai a ficha de tal manobra.
— Para podermos descobrir se há alguma atividade policial em nossa casa. Muito inteligente.
— Mais do que isso — corrige o papai atrás de mim. — Vamos precisar de ajuda externa para explicar a ausência da mamãe e de Jeb por um mês, assim como sua fuga do sanatório. Se não fizermos isso, posso ser preso por ajudá-la a fugir enquanto você era suspeita do desaparecimento deles.
— Ajuda de quem? — pergunto, segurando-me ao corrimão frio de vidro. Isso está começando a parecer mais complicado e perigoso do que eu imaginava. Nunca pensei no papai sendo preso. Talvez devêssemos ter levado Morfeu a sério em sua oferta.
— Ajuda de alguém que esteja trabalhando com a polícia na investigação — responde a mamãe. — Uma pessoa que não seja suspeita e tenha a confiança de todos por estar sofrendo a morte do irmão e da melhor amiga desde que foram dados como desaparecidos.
Meu sangue se intensifica em meus pulsos ao olhar para trás e ver Jeb subindo a escada ao lado do papai.
— Você não está falando de...
O sol entra pelas paredes cristalizadas e ressalta os traços de Jeb, ampliando a resolução cautelosa ali.
— A não ser que você pense em outra forma, Al — diz ele, uma referência óbvia ao desejo no meu bolso. — Vamos ter de contar a verdade a Jen. Tudo.
Apesar de não falar em voz alta, não estou disposta a deixar Jeb abdicar de seu desejo por ninguém nem nada. Depois da violência que ela enfrentou na vida, Jenara é durona. Ela também acredita no poder dos cristais, em vodu, tábuas Ouija e tarô. Ela está a um milímetro de ser considerada louca. Torná-la um ser intraterreno honorário é a coisa mais lógica nesta situação ilógica. E, sinceramente, vai ser bom deixar de esconder meu lado País das Maravilhas da minha melhor amiga. Ela vai ser minha cunhada. Nossa vida familiar será menos complicada se pudermos falar abertamente sobre tudo.
Antes de passarmos pelo portal e entrarmos no reino humano, a mamãe, o papai, Jeb e eu discutimos o plano, já que temos lugares diferentes para ir.
Noite passada, depois que reabri os portais, durante meu passeio com Morfeu, e enquanto Jeb estava implorando um desejo, mamãe e papai foram ao reino humano e fizeram o reconhecimento. Da segurança do nosso sótão, eles esperaram para ter certeza de que a casa estava vazia e entraram na internet, reunindo todas as notícias possíveis sobre a tragédia no Submundo na noite da festa de formatura, o desaparecimento da mamãe e de Jeb, que aparentemente estava relacionado a isso, e minha fuga do sanatório um mês depois.
Um mandado de prisão foi expedido para mim e meu pai vinte e quatro horas depois da nossa partida. Éramos oficialmente procurados há três dias.
A informação mais útil foi a entrevista recente do sr. Traemont para o jornal local sobre a devastação de seu centro de atividades — paredes de concreto derrubadas, desabamento e vazamento de água. Ele levou duas semanas somente para avaliar completamente os danos. Chamou uma equipe de construção que originalmente transformara o velho e abandonado silo de sal no Submundo, para que pudessem dar pistas sobre o que deflagrou o acidente. Depois de analisarem as plantas, eles chegaram à conclusão de que, no alicerce, possivelmente havia um ponto fraco provocado pela mineração de sal décadas antes. O buraco que se abriu sugou tudo para um dos túneis de mineração sob a caverna subterrânea.
A conclusão fazia mais sentido do que a verdade que ninguém via: a rainha do País das Maravilhas deu vazão a uma nuvem de espíritos de pesadelo que sugaram o centro de atividades para a toca do coelho com tanta força que metade da caverna implodiu.
Como certa vez eu disse a Morfeu, muitos humanos preferem acreditar que estão sozinhos no Universo a admitir que pode haver uma plateia sobrenatural. E como ele comentou: o ego das pessoas é a própria fraqueza delas.
Com o acidente, o Submundo foi abandonado — todas as entradas para a gigantesca caverna foram condenadas e lacradas com fita policial para a segurança do público. É aqui que entra a ideia de Jeb. Ele disse que, meses antes do início da construção do centro de atividades, os túneis de mineração foram usados para guardar itens bélicos para uma base militar próxima: lenços umedecidos, kits de primeiros socorros, pentes, xampu, desodorante em pó, pasta de dentes, caixas de refeições desidratadas, sacos de sopa e garrafas de água. Ele viu isso dentro de um túnel depois que começou a trabalhar no local, e os suprimentos ainda tinham de ser retirados de lá.
Obrigada, procrastinação. O caráter humano nos deu nosso álibi perfeito.
Só tínhamos que magicamente remover pedras e destroços para entrar num dos túneis. Lá, podíamos montar a cena, como se a mamãe e Jeb tivessem ficado presos por um mês, vivendo à base de suprimentos militares. Era tão simples que beirava à perfeição. O fato de ninguém ter considerado essa possibilidade era inacreditável. Eles estavam tão ocupados investigando o suposto envolvimento da menina louca que não exploraram nenhuma outra teoria.
Quando a mim e ao papai, nossa história seria igualmente simples: consegui pegar as chaves dele e fugi do sanatório usando a entrada de jardinagem naquele dia, enquanto estávamos sem vigilância no jardim. Ele não teve tempo de pedir ajuda, então me perseguiu e subiu na caçamba do caminhão que eu dirigia. Eu o levei ao Submundo... e, lá, refiz meus passos na noite da festa de formatura. Depois de ver a destruição, uma lembrança horrível tomou conta de mim — a visão de Jeb e da mamãe sendo engolidos por uma avalanche de pedras e cimento.
Tive de suprimir isso... foi traumatizante demais encarar a morte deles.
Só que eles não estavam mortos. Porque, enquanto eu e o papai chorávamos na escuridão em meio aos destroços, ouvimos um barulho e o seguimos até um monte de pedras cobrindo uma abertura. Conseguimos cavar e nos reunimos a Jeb e à mamãe — mas a abertura era instável e mais rochas e pedras nos isolaram novamente: os quatro presos juntos.
Foi ali que o papai e eu estivemos nos últimos três dias.
A ideia de Jeb era brilhante. Até Morfeu teria ficado impressionado.
Então tínhamos um plano que só exigia minha mágica e a da mamãe e os dois trajes de disfarce. Fora isso, precisávamos de um catalisador: alguém para dar a dica da nossa localização aos policiais.
Era aí que entravam Jenara e a tábua Ouija.
Apesar de ser manhã no País das Maravilhas, é noite no reino humano. Envoltos em trajes de disfarce, meus pais entram primeiro no portal, parando na nossa casa para pegar um dos uniformes do papai e o traje de sanatório que mamãe tinha guardado, que será para mim. Estaremos usando as roupas nas quais fomos vistos pela última vez, para fazer o plano dar certo. Depois que a mamãe e o papai entrarem em casa, a próxima parada será no Submundo, para montar o cenário da nossa grandiosa revelação.
Jeb segura minha mão e me endireita, enquanto o Rábido e eu passamos com ele pelo espelho comprido atrás da porta do quarto de Jenara. Ele dá para uma janela que reflete a Marfim e Finley acenando adeus.
Antes de entrarmos, garantimos que Jenara não estivesse no quarto. Vamos ter de contar isso a ela aos poucos. Ela já ficará suficientemente chocada ao nos ver vivos e intactos.
Quando ela estiver pronta, eu lhe mostrarei meus poderes e características intraterrenos. O Rábido está aqui como suporte, para o caso de ela precisar de mais provas que não minhas asas para se convencer de que o País das Maravilhas é real.
Escondo meu colar com a chave. As tiras verticais rosas e brancas da parede de Jenara brilham com um tom prateado, folheado pelo luar que entra pelas cortinas translúcidas da janela arqueada. Silhuetas de trepadeiras de flores negras se prolongam pelo teto — sombras imaculadas pintadas pela mão hábil de Jeb há alguns anos. Um mural digno de um museu.
Eu o pego olhando para o mural antes de ficar sério e desviar o olhar. A tristeza na ação me dá um aperto no peito.
— Jeb. — Paro atrás dele e o abraço, a boca contra as roupas que envolvem seus ombros largos. — Você encontrará seu caminho. Prometo... você ainda tem tanto a oferecer a este mundo.
Ele fica tenso, mas cruza os braços, segurando meus cotovelos.
— Não sei direito como esquecer algo que antes me manteve são.
— Você não precisa esquecer. Esta parte sua ainda está intacta. Em molduras, pintada em paredes, desenhada em pedaços de papel. Sua musa vive aqui, por meio das pessoas que ficam felizes com sua obra de arte todos os dias. Isso é mais mágico do que tudo. Deixe que isso o mantenha são até encontrar um novo caminho.
Ele me vira de modo que ficamos de frente um para o outro e me beija.
— Você é muito inteligente para um ser intraterreno.
Eu rio.
— E você é bem durão para um humano. — Abaixo a cabeça dele para outro beijo.
O Rábido nos chama e nos encara com os olhos arregalados e fascinados.
Constrangida, recuo. O alívio momentâneo foi bom, mas sei que não será fácil passar por cima de tudo o que Jeb perdeu. É algo com o que lidaremos juntos, dia a dia, até ele reencontrar seu caminho.
Por enquanto, temos de cuidar desta situação com Jenara.
Jeb pigarreia, obviamente pensando na mesma coisa.
— Então acho que eu deveria olhar a casa.
— Você acha que ela está trabalhando? — Tiro minhas botas para permitir que o tapete rosa macio acaricie os dedos dos meus pés.
Ele abre a porta do quarto de Jenara e olha o corredor.
— Sei que a mamãe está. Ela sempre pega os turnos da noite. Vocês dois esperam aqui.
Assim que ele sai, deixando a porta aberta atrás de si, o Rábido sobe na cama de Jenara. Seus dedos magros enrugam o edredom preto e branco. A poeira rosa me lembra de como Jen e eu brincávamos de nos fantasiar neste quarto. De como inventávamos vestidos de noiva com lençóis e fronhas, contávamos segredos, comíamos bobagem e ficávamos acordadas até tarde.
Isso parece ter acontecido há tanto tempo.
Dois manequins brancos e sem rosto ficam diante da janela dela com luminárias em suas cabeças como chapéus. Jeb mexeu no interior e instalou lâmpadas nos crânios para criar abajures para o aniversário de quinze anos dela.
Acendo um deles, lançando uma luz branca estelar pelo piso de madeira e pela colcha da cama de Jenara.
— Ooooh. — O Rábido se levanta no colchão e dança em meio às formas criadas pela luminária. Encaro o espelho, vendo o reflexo dele no vidro. Ele é como uma bailarina macabra num globo de neve. Tão deslocado no quarto cheio de coisas normais e humanas.
Então vejo meu próprio reflexo. Minhas marcas intraterrenas nos olhos ainda não desapareceram completamente. Minha pele brilha e, se meu cabelo não estivesse preso numa trança, ele estaria agitado — vivo e encantado.
Sou uma alienígena.
Pensando bem, somos todos alienígenas agora. Até Jeb. Depois do que passamos e vimos, esta tranquilidade parece mais perigosa do que o caos que enfrentamos. Eu me pergunto se é assim que soldados se sentem depois de voltarem da guerra. Como eles superam? Como eles aprendem a fazer parte da comunidade novamente? A se sentirem seguros de novo?
Os zumbidos de alguns insetos interrompem minhas reflexões, um consolo bem-vindo. Fecho os olhos por um instante, mas os abro assim que um grito agudo do outro extremo do corredor me faz dar um salto.
Espanto o Rábido da cama e o mando para o armário.
— Não saia a não ser que eu o chame, sim?
Ele faz que sim, se escondendo numa pilha de acessórios de costura — mantas, cintos e tecidos — no chão.
Fico parada, os braços ao lado do corpo... presa.
O choro histérico de Jenara se aproxima à medida que Jeb a acompanha até a porta entreaberta. Ele fala num tom de voz carinhoso, tão baixinho que mal consigo ouvir o que ele diz. Meu coração bate em sincronia com as dobradiças que se abrem.
Quando eles entram, ela está abraçada a ele, segurando o colarinho da camisa, a cabeça contra seu corpo e o rosto escondido sob um véu de cabelos rosa molhados — recém-saídos do banho. Jeb deve tê-la surpreendido assim que ela saía do banheiro. Seu pijama verde de cetim me faz lembrar festas e jogos divertidos passados.
Sinto tanta saudade dela.
— Jen? — murmuro hesitantemente, sem saber o que dizer em seguida.
Ao ouvir minha voz, ela vira a cabeça na minha direção.
— A-Al? — Seu rosto rosado fica inchado quando ela tenta conter o choro. Ela perde a batalha e grita, correndo na minha direção.
Estendo o braço para abraçá-la e caímos no colchão juntas, as molas balançando sob nossos corpos. Recuperando o fôlego, me enterro no cheiro cítrico e doce de seu xampu. Um sorriso se irradia do meu coração para meus lábios e eu a abraço com força, lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Lágrimas dela ou minhas... não importa. A sensação é maravilhosa.
Jeb esfrega as costas dela.
— J.
— Não, não, não, não. — Ela chora de encontro ao meu pescoço. — Não me acorde. Estou sonhando, estou sonhando.
Ele coloca um dos joelhos na cama, ao lado de nossos corpos unidos, e a preocupação em seus olhos basta para me fazer esquecer que um dia partimos.
— Tudo bem, Jen. Não é um sonho — garanto a ela. — Estamos aqui.
Jeb acaricia a cabeça dela, intencionalmente tocando meu rosto com um dos dedos ao longo do processo. Ele não quer magoar a irmã — ele passou anos demais protegendo-a. Mas ele sabe que é o melhor para todos nós a longo prazo.
Ainda assim, é óbvio que ele está lutando e perdido, como o menininho que um dia foi.
Seguro a mão dele e o puxo, de modo que seu corpo caia ao meu lado direito. Ele se aninha tão próximo que seu hálito toca minha orelha. Coloca seu braço sobre mim e Jen, de forma que fico espremida entre as duas pessoas de que mais gosto. Juntos, nós três choramos e rimos até soluçarmos.
Pela primeira vez em semanas, estamos reunidos. Uma família.
Esta sensação. Talvez... é assim que voltamos ao normal.
Assim que Jenara se acalma, ela se senta, tentando recuperar o fôlego.
— Onde vocês estiveram? Procuramos em todos os lugares! — A acusação é direcionada a Jeb. — Achamos que vocês...
— Sinto muito. — Jeb se ajoelha, interrompendo-a antes que ela possa admitir que pensava no pior.
Fico onde estava, a coluna apoiada no colchão. Com medo de me mover.
— Al, talvez a gente devesse lhe contar tudo de uma só vez — diz Jeb, a voz trêmula.
— Incluindo como mandei você para lá? — Procuro as palavras certas e tropeço terrivelmente.
Verde e úmido, o olhar de Jenara recai sobre mim.
— Ãhn? — Sua expressão mostra que ela compreende. — Espere. — Ela sai da cama e se levanta, tonta mas determinada. — A polícia tinha razão? Você sempre soube onde ele estava? Mas por que você não...? — Ela chora de novo. — E quanto à sua mãe? Cadê ela? E seu pai? O que está havendo?
Estudo o rosto dela, manchado de lágrimas, seus cabelos rosa molhando a parte de cima do pijama, as três sardinhas no nariz. Ela parece tão vulnerável. Queremos mesmo envolvê-la nisso? Não haverá volta se o fizermos.
Jeb me obriga a me sentar.
— Você é a única que pode lhe mostrar. Faça-a entender.
Engulo em seco.
— Não sei nem por onde começar.
— Mais ou menos por aqui. — Ele passa o dedo pelas alças do meu vestido que revelam minhas omoplatas nuas. Meus botões de asa se arrepiam ao toque dele.
Fico com o rosto em chamas.
— Mas não posso simplesmente... precisamos prepará-la.
Jenara recua lentamente até a porta.
— Me preparar? Vocês estão me assustando. Vou chamar a mamãe. — A campainha toca e ela para, a expressão se iluminando. — Corbin — murmura ela, e se vira para o corredor para deixá-lo entrar.
— Não, J. — Jeb tenta impedi-la, mas ela o ignora.
— Espere, Jen! — Saio da cama. — Corb não pode estar aqui para isso.
— Por que não? — Ela se vira, as mãos na cintura. — Ele esteve aqui enquanto Jeb estava desaparecido. E enquanto você estava internada. Ele me ama, Al. Ele cuidou de mim e da mamãe. Tudo o que você me contar, pode contar a ele. — Ela se vira e atravessa a porta do quarto.
— Nós... nós fomos ao País das Maravilhas! — digo de uma vez, fazendo-a parar. Ela dá meia-volta no corredor, boquiaberta.
— Mostre suas asas — acrescenta Jeb, estreitando os olhos. Seus cílios compridos lançam sombras sobre seu rosto e as luminárias brilham em sua pele, fazendo-o parecer tão intraterreno quanto eu.
— Asas? — pergunta Jenara, voltando ao quarto. — Sério, mano? Você a quer trancada no sanatório de novo? Você não faz ideia do que ela passou enquanto eles tentavam tirar o País das Maravilhas da mente dela. Não dê vazão ao delírio dela!
— Al... — Jeb me leva até ela. — Você vai ter de se expor. Não há outra forma de fazer alguém acreditar. Eu precisei de um acidente na toca do coelho.
Ao ouvir a palavra coelho, o Rábido sai do armário, sua forma esquelética enrolada em mantas e cintos. Ele tropeça em Jeb, e os dois caem no chão. O Rábido se aproxima de mim ainda caído, parecendo uma lagarta louca com apenas seus chifres e olhos rosa expostos.
— Rábido, o Branco, sou eu! — Anuncia ele com sua voz fina, virando-se e tentando se libertar.
Jeb xinga e Jenara grita tão alto que todos os outros sons parecem abafados, como se meus ouvidos estivessem dentro de uma concha.
A porta da frente se abre e passos soam no corredor. Jeb se levanta para fechar a porta, mas é tarde demais. Corbin aparece ofegante, os cabelos loiros arruivados reluzindo sob a luz fraca. Ele traz uma chave na mão. Seus olhos recaem sobre o Rábido, que conseguiu se livrar dos acessórios do armário de Jenara e está ali de pé, exibindo toda a sua decrepitude intraterrena.
A criaturinha abre os braços com um floreio.
— Ta-da! — grita ele, com espuma saindo pela boca. Faço uma cara feia para o espetáculo. Morfeu deve ter lhe ensinado isso.
— O que está havendo? — pergunta Corbin com seu pesado sotaque sulista, segurando Jenara pelo cotovelo e puxando seu corpo trêmulo para o corredor.
Jeb franze a testa, atento à chave na mão de Corbin.
— Estava prestes a perguntar a mesma coisa. Por que você tem uma chave da nossa casa, Corb? Desde quando você mora com minha irmã?
Encaro Jeb. O meu lado intraterreno ri alto antes de eu conseguir me segurar, divertindo-me com o ridículo da situação toda. Parece que todos somos controlados por instintos. Para Jeb, dar à irmã e ao melhor amigo o maior susto da vida deles é algo que pega carona em seu instinto protetor de irmão mais velho.
O choro audível de Jenara traz meu lado travesso de volta. Pego o roupão da cadeira perto da mesinha de canto e o jogo para o Rábido. Ele resmunga e o cheiro de tecido queimado pontua o ar enquanto seus olhos se transformam em duas órbitas vermelhas por baixo, criando buracos fumegantes no pano.
— Nada de fogo, Rábido! — repreendo.
Ele “desliga” os olhos e se abaixa.
— Jeb? Al? — murmura Corbin, como se só agora tivesse nos notado. Ele parece perigosamente perto de desmaiar. As sardas em seu nariz parecem escuras contra o rosto pálido. Seu olhar azul intenso permanece fixo no Rábido agachado e agitado sob o roupão. — Onde vocês... como vocês...? Aquela coisa. Tem que ser um robô... certo?
— Rábido não robô é! — Meu conselheiro real reclama por baixo do seu esconderijo, ofendido.
— Para dentro do armário — ordeno. O Rábido resmunga algo indecifrável e desaparece, arrastando o roupão queimado atrás de si como a cauda de um vestido de noiva.
Jeb e eu trocamos olhares.
— Há sempre poções do esquecimento — sugiro.
Ele bufa, estudando Corbin e Jenara apoiados contra a parede do lado de fora do quarto, confusos e trêmulos para além de qualquer descrição.
— Perder suas memórias não é a única coisa que vai acontecer. Confie em mim.
— Então vamos contar a ele também — acrescento. — Isso, ou ele esquece e o mandamos para casa.
— Não vou a lugar nenhum sem a Jen — declara Corbin, a cor voltando ao seu rosto. Ele segura Jenara junto de si, enquanto ela esconde o nariz na camisa dele, tentando respirar normalmente.
Os lábios de Jeb ganham um sorriso lento e ousado.
— Não vai a lugar nenhum hoje à noite? Então você está planejando se dedicar a ela por mais um ou dois dias?
Corbin fica sério.
— Que tal para sempre? — Ele a abraça com mais força, puxando Jenara para tão perto que a calça do pijama dela adere em sua calça jeans, estalando por causa da estática.
— Para sempre é muito tempo — retruca Jeb, e a nota de tristeza na afirmação revira minhas entranhas, como se elas fossem uma harpa tocada pelos dedos dele. Fungando, Jenara se vira para olhar para o irmão, confusa. O humor de Jeb muda novamente e ele balança negativamente a cabeça, em um gesto de amor. — Parece que você arranjou um cavaleiro branco, mana.
Pego Jeb pelo pulso, no ponto onde uma cicatriz saliente substituiu sua tatuagem.
— Você não tem ideia de como esses dois são teimosos, não é?
Ele ri baixinho e entrelaça nossos dedos.
— Então, Corb. Quer fazer parte da nossa família? Que tal oficializarmos as coisas?
Corbin e Jenara estreitam os olhos em nossa direção, a respiração presa. A casa fica mortalmente silenciosa. Não se pode ouvir nada além do sussurro de uns insetinhos — numa frequência com a qual somente eu estou sintonizada — e dos resmungos do Rábido no armário.
Jeb ergue minha mão e beija minha aliança de noivado.
— O que vocês dois precisam saber sobre Al? — pergunta ele à nossa plateia. — Aquele sanatório nunca teve a chance de curá-la. Veja só, você pode tirar a menina do País das Maravilhas, mas não pode tirar o País das Maravilhas da menina. — Minha mão se separa da dele enquanto ele recua para me dar espaço. — Mostre o que você tem, rainha-fada.
Abro meu sorriso mais majestoso. E ali, no meio do quarto com faixas cor-de-rosa, com minha melhor amiga e o amor da sua vida de olhos arregalados, abro minhas asas intraterrenas e confesso todas as minhas mentiras.
SEGUNDA MEMÓRIA: CONCHAS
Quatro anos antes...
PLEASANCE, TX., 29 DE JUN. — Dois moradores de Pleasance dados como desaparecidos há um mês, juntamente com outros dois que desapareceram na última quarta-feira, foram encontrados vivos na manhã de sábado, apenas com ferimentos superficiais, presos num túnel de mineração que desabou sob um parque condenado.
Outra moradora, irmã de um dos desaparecidos e amiga dos demais, disse suspeitar da localização das pessoas depois de receber uma dica com sua tábua Ouija, de acordo com o policial Riley Hughes.
“Normalmente, não dou muito valor às bobagens espirituais”, disse Hughes. “Mas a menina ajudou a nossa investigação durante todo o mês de busca por seu irmão e vizinhos. Ela insistiu para que a gente ao menos desse uma olhada. Como vários desabamentos ocorreram no lugar às vésperas da festa de formatura da Pleasance High, e considerando que esse era o último lugar onde os desaparecidos foram vistos, achamos que valia a pena. Fomos lá sem esperar encontrar nada. Ponto para as conversas fiadas.
— Al, você está brincando comigo? — A voz fina de Jenara tira minha atenção do artigo de jornal de quatro anos atrás. Ao meu lado no sofá, uma ornamentada garrafa de vidro cheia de pedras que peguei durante nosso “resgate” do Submundo. Esfrego as têmporas, tonta por causa da viagem pela estrada da memória.
Jen atravessa a porta correndo e a fecha atrás de si.
— Não acredito que você ainda não pôs nem sua meia-calça! O que você tem? Vinte e um anos e já mostrando sinais de senilidade? Talvez você precise de um pouco de ar.
Ela abre a janela atrás de mim. Uma brisa salgada entra, abrindo as cortinas azuis com estampa de estrela-do-mar sobre minha cabeça. Meus cabelos esvoaçam, as ondas platinadas tocando meus ombros nus e meu espartilho branco de renda.
Passo a mão na borda da minha calcinha também de renda, surpresa por estar só de roupa íntima. O que eu estava fazendo antes de me sentar? Primeiro, comi o bolinho de aniversário que minha mãe deixou ao lado do cartão no criado-mudo.
Como se animada por meus pensamentos, a fôrma de papel do bolinho voa até o chão com uma lufada de vento e chega até os pés descalços de Jen. Ela o pega e franze a testa para mim.
— Hummm?
— Bolinho da minha mãe. — Lambo os lábios, ainda sentindo o sabor da cobertura azul de mel e anis.
Jenara amassa o papel e o joga no lixo.
— Então isso é você desanimadinha depois da euforia do açúcar?
— Talvez? — Tento me lembrar do restante da tarde. Depois do meu lanche, peguei o roupão para me vestir. Ao mexer na minha mala em busca do colar novo que tomei emprestado de Jenara para hoje, fui distraída pelas lembranças que trouxe comigo. De certa forma, acabei no sofá sob a janela, com um caderno e uma garrafa na mão.
Estudei o artigo de jornal novamente. Isso sou mesmo eu ficando deprimida depois de comer um monte de açúcar ou é outra coisa?
Sinto-me tão estranha. Meu corpo e mente estão relaxados, mas meu sangue é o oposto. Ele corre veloz nas veias sob minha pele — corredeiras jorrando de milhares de afluentes.
— Vamos lá, zumbizinho, me mostre algum sinal de vida — provoca Jen. — O sol vai se pôr em uma hora e ainda temos de ajeitar seu cabelo e maquiagem. E, para sua informação, aquela mancha de cobertura nos seus lábios não conta como seu “algo azul”. Para isso é que serve o elástico. Como vamos tirar isso? — O olhar dela se volta para a garrafa de pedras perto da minha coxa. Ela a pega e balança diante de mim. — Inacreditável. O Jeb está lá com Corbin enchendo os pés de areia, caminhando pelo litoral para verificar cada detalhe. E você aí, nostálgica.
Jenara falou de outras coisas além dos detalhes do casamento. Ela teve de abandonar um desfile de moda em Nova York dois dias antes do previsto para chegar a tempo disso. Ela esteve em contato constante com sua sócia, e a linha de roupa delas está fazendo barulho. Tenho a sensação de que a carreira dela está prestes a decolar para valer. Tentamos planejar o casamento de acordo com a agenda dela, mas esta era a única semana disponível da casa de praia. Então chegamos a um acordo e escolhemos o final do desfile. Eu disse que ela não precisava vir, mas ela respondeu que morreria se perdesse.
Mesmo agora, com ela me atacando com seu olhar verde mais severo, sei que não há outro lugar onde ela preferisse estar. Ela é uma visão da suavidade com seu vestido comprido florido. Seus cabelos rosa estão presos no alto da cabeça num coque chique. Rosas-anãs azuis estão colocadas em espaços estratégicos, formando uma auréola. Poucas mechas rosa se curvam em seu pescoço.
— Você está perfeita — digo a ela, encantada.
Ela tenta conter o sorriso e revira os olhos.
— Queria poder dizer o mesmo de você.
— Corb já a viu? — Minha pergunta é retórica. Os dois estão juntos há anos e, agora que Corb quase terminou a faculdade de publicidade, ele planeja se mudar com ela para Nova York no fim do verão.
No mês passado, ele pediu “a mão dela em casamento”. Usando uma armadura de malha de metal medieval, ele veio ao nosso duplex numa carruagem puxada por cavalos. Jeb o ajudou a reformar um velho Chevy que encontraram num ferro-velho. Eles pegaram o chassi e tiraram tudo, transformando-o numa charrete leve o bastante para ser puxada por dois cavalos brancos que Corbin pegou emprestados de um amigo. Depois de acrescentar arreios firmes, de substituir os pneus por rodas de madeira e de pintar a carcaça com um branco brilhoso com uma faixa vermelha, eles tinham a carruagem texana perfeita. Quando Corbin estacionou diante da casa de Jen com três dúzias de rosas na mão e lhe pediu que fossem ver o pôr do sol, ela quase desmaiou.
Era antiquado e moderno e, ah, tão lindo.
Perdida em sua própria nostalgia, Jenara admira o anel de noivado em seu dedo. Seu sorriso desabrocha, juntamente com uma atraente vermelhidão no rosto.
— Meu noivo aprova minha mais recente criação. Mas você é quem está prestes a ficar sob os holofotes. — Ela joga a garrafa cheia de pedras na minha mala aberta e vai ao armário pegar meu vestido. Jeb e eu decidimos que as belas criações de Jenara adquiriram uma má reputação na formatura e mereciam aparecer numa lembrança boa.
Ao longo das últimas semanas, Jenara realizou um ótimo trabalho costurando tecidos e retalhos com apliques diversos — um deles ela encontrou num antiquário, então isso era meu “algo velho”. Quaisquer manchas foram disfarçadas com corante de flores seguido por um toque brilhante. Agora o vestido branco sem alcinhas parece novinho. Ou tão novo quanto um vestido de noiva vintage pode parecer depois de ser modificado para se assemelhar a um tecido recém-tirado do túmulo.
— Vamos, Al, depressa! — repreende-me Jenara, perdendo a paciência.
Eu resmungo algo como resposta.
Ela joga a meia-calça lilás acinzentada na minha direção e ela voa por sobre minha cabeça, cercando-me como uma nuvem perfumada.
— Vou preparar a maquiagem — avisa ela. Ouve-se um barulho quando ela coloca a bolsa de maquiagem na mesinha, ao lado do cartão de aniversário da mamãe. — Talvez removedor de esmalte funcione com seus lábios.
Torço o nariz.
— Eca... sério?
Ela dá de ombros.
— Situações de desespero exigem medidas nojentas. — Do outro lado da redinha cobrindo meu rosto, ela escolhe sombras, delineadores, pincéis e blush.
Meu corpo parece leve, como uma nuvem flutuando. Em parte é felicidade... em parte, nervosismo... e alguma coisa mais. Algo que nunca senti antes.
Ou será que já?
A pele ao redor dos meus olhos dói, assim como a pele em minhas omoplatas.
Risadas abafadas e passos são ouvidos através da parede fina da sala de estar. A casa de praia que meu pai alugou tem sete quartos, um loft e quatro banheiros e meio, mas ainda assim não é grande o bastante para nossos convidados. Não consigo nem imaginar como ela ficará cheia depois que todos chegarem.
Reunindo energia, afasto a meia-calça e guardo o artigo de jornal de novo no caderno de recortes. Sinto-me tentada a folhear as outras páginas. A olhar as imagens de nossas exposições de arte — pinturas de edição limitada que Jeb jamais conseguirá replicar e meus mosaicos de vidros coloridos —, juntamente com fotos tolas dos últimos quatro Halloweens, Natais, piqueniques de verão, guerras de bolas de neve e pegadinhas universitárias. Só uma última olhada em nosso tempo juntos como noivos, capturado entre camadas de filme de polipropileno, antes de darmos início ao capítulo seguinte num novo caderno de recortes, decorado com cetim branco e um colarzinho de pérolas.
Toda a minha pele se avermelha, pensando no que vem depois da cerimônia. Não foi fácil esperar nos últimos anos, mas a vida já era bem complicada, tendo de enfrentar a dor de Jeb por ter perdido sua habilidade artística, indo para a faculdade e equilibrando meus deveres reais no País das Maravilhas com nossa vida humana. Nunca parecia a hora certa, até agora. Nós nos ajustamos a nossos novos papéis, aprendemos a fazer concessões sendo honestos e sempre estivemos emocionalmente presentes um para o outro. E, depois do compromisso físico de hoje à noite, nosso elo será inquebrável.
Não há forma melhor de dar início à nossa nova vida juntos do que isso: os braços fortes dele segurando meu corpo nu enquanto acaricio as cicatrizes do seu peito com o dedo, curando suas feridas a um só toque.
— Do que é que você tá rindo, Al?
Levanto a cabeça, sorrindo, apesar de tentar me conter.
Jenara bufa.
— Você não vale nada hoje, sabia? Supere isso. — Ela tira o caderno da minha mão. — A maioria das damas de honra não precisa usar seus talentos como vidente para preparar a noiva. Você vai me pagar mais por isso, não é?
Ergo as pernas para ela poder me ajudar com a meia-calça.
— Claro. Dez mil vezes mais do que o salário que combinamos.
— Humm, dez mil vezes zero... Sabia que deveria ter pedido a um advogado que desse uma olhada no contrato. — Ela segura a roupa enquanto enfio o pé, depois segura minha mão para me tirar do sofá.
Ao ajeitar o elástico sob o espartilho na cintura — de modo que a combinação caia abaixa dos joelhos —, aquela dorzinha entre os ombros aumenta e vira uma sensação de queimação. Antes que eu perceba que são meus brotos de asa, eles se abrem: um branco opaco, brilhando com joias coloridas, ocupando o espaço como asas de uma borboleta recém-saída do casulo.
Eu grito.
Jenara perde o fôlego, os olhos arregalados como moedas.
— Al, o que é isso? Você não pode fazer isso agora!
— Eu... não quis fazer isso! — Meu grito reverbera ao nosso redor.
— Shh. — Ela fecha minha boca com a mão e olha para a parede fina. Como não ouvimos nada além do zumbido das conversas dos convidados na sala ao lado, ela tira a mão. — Certo... Você terá uma audiência dentro de uma hora. Recolha as asas.
Tento, mas as asas não se movem.
— Não está dando certo. — Tento mais uma vez. — Não consigo. — Meu coração bate forte.
A expressão de Jen parece ainda mais preocupada.
— Ah, claro. Você está brilhando. E seus olhos... sério que você não está fazendo isso de propósito?
Faço que não com a cabeça. Milhares de pontinhos de luz se refletem no rosto de Jenara e nas paredes amareladas de sol que nos cercam. Levo os dedos ao rosto, imaginando marcas negras como as listras de um tigre sob meus cílios inferiores, parecidas com as de Morfeu sem as joias.
— Minhas marcas... estão muito evidentes?
O olhar de Jenara está fixo ao meu.
— Não são apenas as marcas, Al. São suas íris. Elas estão... roxas.
— Roxas?
Jen faz que sim.
— E não é um tom sutil... é muito estranho.
Sinto um frio na barriga.
— Isso não pode estar acontecendo. — Meus cabelos começam a se levantar, uma dança provocativa de mágica.
— Merda! — exclama Jenara depois que algumas mechas a alcançam. — Isso é tipo uma gripe intraterrena ou coisa assim?
— Eu... eu não sei. — Com os dedos trêmulos, seguro as mechas e as prendo na nuca. — O que vamos fazer? — O pânico reveste minhas cordas vocais, deixando-me rouca, como se tivesse engolido uma lixa líquida.
Jenara esfrega as mãos.
— Bom, você pode prender o cabelo no alto e podemos dizer que fomos criativas com sua maquiagem. O véu vai esconder seus olhos durante a cerimônia. Depois, você pode dizer às pessoas que está fazendo experiências com lentes de contato. Mas as asas... Eu acho que é impossível disfarçá-las.
Não há espelho para eu ver o tamanho da minha imagem intraterrena, por motivos óbvios. Não queria nenhuma surpresa nas festividades de hoje, então optei pelo quarto menor pela ausência de espelho, confiando que Jen fizesse minha maquiagem e me tornasse apresentável para o casamento. O lado ruim de escolher este quarto é que não há tranca na porta, o que agora me deixa ainda mais vulnerável e acessível.
Maldita reflexão tardia.
A vermelhidão no rosto da minha dama de honra ganha um tom de ansiedade.
— Vou chamar sua mãe. — Ela começa a sair, mas para. — Só... fique aqui e cuide da porta. Tente se acalmar. Vamos dar um jeito nisso, sim? Nada vai estragar isso.
Faço que sim, mas apenas para ela ficar tranquila. Como isso pode não arruinar as coisas? Não posso encarar nossos convidados humanos com todas as minhas características sujas do País das Maravilhas expostas! Isso não é a noite da festa de formatura no Submundo. Ter asas numa praia não pode ser explicado com a mesma facilidade do que usá-las como fantasia sob luzes mortiças.
Depois que Jenara sai, coloco a cadeira sob a maçaneta e puxo a asa sobre meu ombro. As joias piscam numa confusão de cores, como as marcas oculares de Morfeu quando ele está ansioso ou perplexo. Há algum tempo, descobri que meu humor, como o dele, se mostra por meio das minhas joias. É algo que Morfeu mantinha para si mesmo e um dos motivos por que ele gosta de ter minhas asas à mostra... para ele poder saber o que estou sentindo.
Mas sou eu quem decide quando abri-las. Tenho lidado com meus aspectos intraterrenos tranquilamente desde que voltei ao reino humano. Nunca perdi o controle. Há alguma travessura em andamento aqui. E tudo começou com o bolinho azul com sabor de anis e mel.
Anis... um sabor surpreendentemente semelhante a alcaçuz. Cigarro de alcaçuz.
Ranjo os dentes.
— Morfeu.
Noite passada, antes de voltar dos meus sonhos, eu o abracei, algo que não faço com frequência. Estabelecemos limites claros para o contato físico, a fim de honrar minha vida humana. Mas ele andava mal-humorado com meus súditos, o que raramente acontece, e sabia que ele estava escondendo seus sentimentos quanto ao meu casamento. Então quis consolá-lo, quis garantir que a paciência dele não passasse despercebida nem desvalorizada.
Ele me abraçou de volta por uns cinco segundos, depois me afastou. Ao olhar para mim, sua expressão era algo bem distante da tristeza ou preocupação. Era o exato oposto, o que nunca é um bom sinal.
— Decidi dar a você e a seu noivo um presente amanhã, frutinha — disse ele, abrindo a mão. Uma esfera azulada ganhou vida na palma de sua mão e depois alçou voo, pairando entre nós. — Como Jebediah abdicou de sua capacidade de sonhar com o País das Maravilhas, você pode compartilhar seus sonhos em segredo na sua lua de mel. Você não virá ao País das Maravilhas esta noite. Em vez disso, Jebediah pode entrar com você e seus sonhos pertencerão somente a ele. Mas somente se ele se provar digno de se casar com a rainha-fada.
Antes de poder pegar a luz azulada, Morfeu me expulsou do meu sonho.
Minhas mãos agarram a meia-calça cobrindo minhas coxas. Quando acordei neste quarto, pela manhã, pensei em contar a Jeb as palavras enigmáticas de Morfeu, mas não estava com meu celular porque Jenara se esforçou ao máximo para manter seu irmão distante de mim até a cerimônia.
Não há tempo a perder. Ele precisa ser avisado de que Morfeu criou outro teste para mim. Ou melhor, para ele.
Vou até a mesa para dar uma segunda olhada no cartão de aniversário da minha mãe, manobrando as asas pela mobília arranjada em ângulos estranhos no quarto pequeno demais. Ergo o cartão, estudando-o cuidadosamente. Para além da corujinha bonita na capa — sutil — e da inscrição “Queeeeem faz aniversário hoje?” dentro, há a assinatura da mamãe impressa. Ela sempre assina cartões com letra cursiva. Por que não tinha percebido isso? Ou o fato de o papai não ter assinado também? Pensando bem, eu deveria ter percebido tudo isso, porque não era para ter abaixado a guarda. Morfeu me treinou melhor do que isso.
Mas ele sabia que eu estaria distraída com meu cérebro focado no casamento. Ele contava com isso. E, para piorar as coisas, não havia insetos por perto para me alertar. A casa de praia foi fumigada há uma semana por causa de uma infestação de formigas e o silêncio era ensurdecedor desde que chegamos. Suspeito que ele tenha o dedo nisso também. Ainda assim, ele está cumprindo sua promessa de não se colocar entre mim e Jeb porque conseguiu fazer com que minhas características intraterrenas é que causassem todos os problemas.
Estou quase impressionada, mas isso não é nada perto da ansiedade revirando minhas entranhas. Como pude ser tão descuidada?
— Maldita mariposa inteligente — xingo, esperando ouvir um eco da risada arrogante na minha mente. Como não ouço nada, fico séria e rasgo o cartão ao meio, com raiva por não encontrar respostas ali. — Certo, você me pegou. Mas fique sabendo que você o está subestimando — digo em voz alta, na esperança de que Morfeu ao menos esteja ouvindo. Minha voz soa firme e confiante, apesar das lágrimas de nervosismo queimando em meus olhos. — Jeb vai encontrar uma forma de resolver isso...
— Tem razão, Al. — A voz grossa e determinada de Jeb me atinge por trás, uma corrente elétrica iluminando todas as minhas terminações nervosas.
Viro-me para ver uma rosa branca pela porta entreaberta.
— Deixe-me entrar.
Quase tropeçando nas minhas asas, corro e puxo a cadeira para o meio do quarto, e depois recuo para lhe dar espaço.
Ele entra — pingando no que restou do seu smoking de formatura — e fecha a porta. Ele se apoia nela e me encara. Areia e gotas de água brilham em seus braços, onde ele enrolou as mangas da camisa até os cotovelos. A camisa semiabotoada expõe seu peito reluzente. As calças azul-marinho estão enroladas também até o meio da canela. Ele deve ter deixado o paletó azul de veludo lá fora, pendurado para secar.
— Jen tentou me contar sobre seus olhos — murmura ele antes de eu poder perguntar o que aconteceu às roupas dele. — Mas não há paleta de artista, não há comparação neste mundo para esta cor. Al, você está tão linda.
Estava pensando o mesmo que ele.
— E você está tão molhado — digo, estúpida. É difícil pensar em meio à luz amena que reflete sua pele cor de oliva, o labret prateado e os rebeldes cachos escuros pingando água por sua testa e seu nariz.
Ele não responde, ocupado demais em me analisar com seu olhar profundo e úmido. Se Jenara estivesse aqui, ela insistiria para eu cobrir meu espartilho e calcinha. Não, ela insistiria para eu expulsá-lo. Mas ficar longe dele desde o jantar da noite passada já era muito tempo. Até mesmo a cadeira entre nós dois parece uma montanha. Eu deveria movê-la, mas ele me deixou paralisada. Seu olhar percorre todo o meu corpo — um carinho mental tão íntimo e completo quanto um carinho real seria.
— Talvez a gente não devesse ter escolhido um casamento na praia — provoco, tentando conter minha imaginação fértil.
O sorriso sensual resultante de Jeb revela seu incisivo torto que espero que nossos futuros filhos e filhas herdem.
— Digo, levando em conta nossas experiências passadas com enormes corpos de água.
Eu rio.
Ele ri também, mas então fica sério.
— Nós nos reencontramos numa praia em Qualquer Outro Lugar. Você me fez uma promessa lá. Faz sentido eu lhe fazer uma promessa numa praia também. Não importa o que aconteça antes ou durante nosso casamento. Não importa que tipo de dificuldades Morfeu pôs em seu caminho hoje, tudo isso vale a pena. Nós valemos a pena. E vamos provar isso para ele.
Nunca o vi tão confiante ou... enérgico.
— Espere aí, você... Você está gostando disso? — Esboço um sorriso hesitante.
Ele dá de ombros e cheira a rosa branca na mão.
— Gosto de um desafio.
— Morfeu vai odiar que não pode provocá-lo.
— Psssh. Nós dois sabemos que ele adora quando eu aceito o desafio.
Balanço a cabeça, sorrindo. É um consolo estranho perceber como eles se conhecem e se compreendem bem hoje em dia.
— Então foi ele quem o fez cair na água?
Jeb obriga seu olhar a subir do meu corpo seminu para meu rosto.
— Bom, tecnicamente não foi ele. Ele está cumprindo a promessa de ficar longe do nosso mundo. Corb estava arrumando a almofadinha de carregar as alianças quando algo mordeu seu dedão do pé e ele derrubou as alianças. Uma lagosta de pedra surgiu na areia, as pegou e desapareceu nas ondas.
— Uma lagosta de pedra de verdade? Como as de Qualquer Outro Lugar?
Jeb enfia o cabo da rosa no bolso, então segura a camisa pela cintura e começa a desabotoá-la completamente.
— Sim. Pintei algumas para o País das Maravilhas antes de irmos embora, quando reinventei as paisagens. Morfeu as pediu. Não há dúvida de que foi ele quem mandou aquela lagosta de pedra para cá.
É difícil acompanhar a conversa porque só consigo ver as roupas molhadas grudadas no corpo musculoso de Jeb a cada movimento.
— Então... você mergulhou no oceano para recuperar as alianças?
— Tentei, mas não consegui pegar a ladra. — Ele tira o tecido ensopado dos ombros e braços, revelando uma barriga de tanquinho molhada e gotículas presas nos pelos de seu peito. — Pedi à sua mãe que entrasse em contato com a Marfim pelo espelho do quarto dela. Ela tinha uma flauta mágica no castelo. Eu a vi lá. Descobri que o instrumento funciona nos moluscos do nosso mundo também. Eles trazem as lagostas até a praia. Os anéis agora estão seguros. Corb vai manter a almofada com ele até a cerimônia.
Penso nos moluscos que conhecemos no País das Maravilhas na nossa primeira visita... como toquei uma flauta que os convocava e lhes dava ordens. Como, num só movimento, eles vieram nos resgatar quando estávamos sendo perseguidos por um exército e levaram nossos perseguidores para longe, numa confusão de conchas batendo-se umas nas outras. Sou ainda mais grata agora do que antes. Só espero que ninguém tenha visto nada.
— Não se preocupe com os convidados — tranquiliza Jeb, como se lesse meus pensamentos. — Seu pai manteve todos ocupados. Ele os levou por um passeio ao outro lado da praia, onde os barcos ficam ancorados.
O alívio toma conta de mim. Mas por pouco tempo, considerando que todos vão me ver em breve.
— Não devemos falar do elefante voador na sala? — pergunto, batendo as asas.
Jeb joga a camisa molhada no braço da cadeira de madeira. Seu pomo de adão se move quando ele engole em seco lentamente.
— Você se refere ao fato de você ser a mulher mais radiante e mágica que já vi?
Mulher... Acho que ele nunca me chamou assim. Seu olhar é tão intenso que minhas pernas fraquejam. Aproximo-me da cama, precisando de apoio contra elas.
Seu olhar se detém nos meus lábios azuis.
Eu os esfrego.
— Foi uma bobagem. Comi um bolinho que veio do nada... Sei que não devo comer nada estranho.
— Não. Morfeu teria encontrado uma maneira de fazer isso com ou sem você comendo o bolinho. Ele está deixando claro uma coisa. Provei meu valor como marido do seu lado humano depois de quase morrer por você mais de uma vez. Mas ele quer que eu seja digno do seu lado intraterreno também.
Fico boquiaberta
— Foi o que ele disse no meu sonho!
Jeb tira a rosa do bolso e arranca uma das pétalas.
— Compartilhei da mágica dele uma vez. Sei como ele pensa. Ele provou seu amor por seu lado humano ao não deixar a Marfim coroá-la e destruí-la. Então ele quer que eu prove meu valor como ele provou o dele. Não tenho problemas com isso. Será uma honra me casar com você hoje, diante de Deus e de todos, com suas asas e outros atributos intraterrenos à mostra.
Por mais sinceros e admiráveis que sejam os sentimentos dele, não consigo compreender a lógica de tudo.
— Mas isso... — Abro as asas às minhas costas e elas lançam sombras sobre nós dois. — Não sei como encarar uma plateia de humanos sem me entregar. É impossível.
— Nada é impossível. Você me ensinou isso há muito tempo. Pelo lado bom, sabemos que o efeito do bolinho é temporário. Morfeu se importa demais com seu coração para colocá-lo em risco arruinando sua capacidade de viver uma vida de realizações aqui.
Mordisco meu polegar, tomando o cuidado para não estragar o meticuloso trabalho de manicure de Jenara.
— Temporário pode ser qualquer coisa entre algumas horas e todo um dia.
— Verdade. O efeito vai permanecer ao menos durante a cerimônia. Mas podemos lidar com isso. Só deixe que eu me preocupe com o que todos pensam ou veem. Vou dar um jeito nisso com criatividade humana e um toque de mágica.
Um toque de mágica.
— Espere um pouco... você não vai usar seu desejo, não é?
— Não. Prometo a você que eu saberei a hora certa de usá-lo. Sua mãe e Corb estão levando os portais-espelhos a algumas lojas de fantasias.
— Para quê?
— Surpresa. — Ele olha para a porta atrás e depois se volta para mim. — Tenho que sair antes que a Jen volte. Eu deveria apenas deixar minha camisa pendurada na maçaneta para ela limpar as manchas e passá-la. Ela vai ficar louca se souber que vi você antes do casamento... mas queria lhe dar os parabéns pelo aniversário. — Ele estende a rosa, um pouco distante demais para eu pegá-la.
— Chegue mais perto — peço.
Sua mandíbula bem barbeada treme.
— Já foi ruim o bastante tê-la visto. Vai saber a confusão que vou provocar se tocar em você.
— Vamos descobrir.
A expressão dele ganha força e desejo. Ele joga a cadeira para o lado e se aproxima de mim.
As lufadas de vento carregam o perfume dele misturado ao da rosa. Ele para a poucos centímetros de distância, a mão livre tamborilando ao lado do corpo, como se pensasse nas alternativas. Uma tensão doce e torturante se estabelece entre nós dois — como a calmaria antes de uma tempestade de raios. Três mechas de cabelo se soltam do nó na minha nuca e o envolvem junto com a rosa. Uma mecha traz a rosa até mim e eu a pego com a mão direita.
Jeb observa, encantado.
Tento conter as outras mechas que se prendem nele, mas ele segura meus pulsos e leva minhas mãos à boca.
— Deixe estar — murmura ele contra minhas cicatrizes e leva a mão à minha nuca para soltar o restante das mechas. — Você sabe que eu a amo assim. — Sua voz arranha, áspera e rouca.
Meus cabelos nos cercam, furiosos para se libertarem. Eles dão a volta nos bíceps, ombros e cintura dele. Com força e cuidado, unem nossos corpos seminus, e os lábios dele encontram os meus. Ele tem sabor de oceano, cidra e chocolate. Ele andou experimentando a comida da festa.
Solto a rosa e passo as mãos em seu peito. A pele dele está molhada e quente, e seus músculos se contraem.
— Isso vale qualquer azar — sussurro contra sua boca cheia e macia, retribuindo seus beijos quentes.
— Nunca tivemos sorte mesmo — sussurra ele de volta, nos derrubando na cama, mas tomando cuidado para não esmagar minhas asas. — Mas somos muito bons em fazermos nossa sorte.
Ele me deita de costas, o peso dele me prendendo na mais deliciosa das armadilhas. Seu joelho abre caminho entre minhas pernas, as calças molhadas esbarrando em minha calcinha. Uma brisa sopra sobre nós dois, gelada em minha pele nua. É tão estranho queimar como um forno, mas ainda assim ficar arrepiada.
As mãos de Jeb pairam sobre minhas curvas — um território íntimo que ele conhece, mas que ainda tem de explorar completamente.
— Você está com frio — diz ele, enquanto sua boca avança pela carne gelada do meu pescoço.
Sinto meus ossos se liquefazendo e meu sangue virando lava.
— Longe disso — respondo, ofegante.
Com os olhos cheios de desejo, ele vira para o lado, me soltando. Põe a mão nas minhas costas e puxa um canto do lençol lavanda e azul-turquesa, cobrindo meu corpo e as asas e separando nossa pele.
Eu gemo.
— Jeb. Não quero nada nos separando.
Seus dedos contornam meus lábios.
— Depois da cerimônia, não haverá nada. Você será minha hoje à noite e será como sonhamos.
Meu corpo se incendeia, faíscas de ansiedade iluminando todas as partes do meu corpo que ele já tocou. Estou prestes a lhe dizer que será ainda melhor do que imaginamos — porque ele pode literalmente compartilhar meus sonhos se adiarmos o casamento —, quando a porta se abre.
— Ah, o que é isso? — grita Jenara.
Jeb se levanta apressadamente e me lança um sorriso tímido, enquanto sua irmã o expulsa do quarto.
— Eles voltaram? Eles encontraram tudo? — pergunta ele antes de ela lhe dar um empurrão.
Jenara faz uma cara feia.
— Sim, sim. Não que isso importe, agora que você provocou o destino ao vê-la.
Mais uma vez, Jeb põe a cabeça para dentro do quarto e ri para mim.
— Como se o destino tivesse algo a ver com a rainha-fada.
Sorrio de volta, ainda saboreando os beijos dele.
— Me encontra na praia ao pôr do sol? — pergunta ele.
— Nem mesmo um ataque de pássaros Jubjub me impediria — respondo.
Ele ri e desaparece, me deixando com uma dama de honra mal-humorada, mil perguntas e um coração iluminado.