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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TAI PAN Volume II / James Clavell
TAI PAN Volume II / James Clavell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

T A I   P A N

Volume II

Primeira Parte

 

As duas fragatas descarregaram sucessivamente a artilharia no primeiro dos fortes transversais ao Bogue, braço de água de dez milhas que guardava o acesso a Cantão. O Bogue era pesadamente fortificado, com suas altas fortalezas, além de ser também perigosamente estreito na embocadura, e as fragatas pareciam estar em desvantagem suicida. Havia pouco espaço para manobrar e os canhões dos fortes podiam manter facilmente os atacantes a queima-roupa, sob a mira de suas armas, enquanto eles seguiam de um lado para outro, tateando pela correnteza. Mas os canhões eram fixos sobre suas bases, não podendo girar, e séculos de administrações corruptas tinham deixado decair as fortificações. Assim, as inúteis balas de canhão dos fortes passavam a bombordo ou a estibordo das fragatas, sem causar danos.

Cúteres saíram das fragatas e os fuzileiros navais atacaram em terra. Os fortes foram tomados rapidamente e sem perdas, pois os defensores, sabendo-se perdidos, sabiamente se retiraram. Os fuzileiros inutilizaram os canhões e alguns deles ficaram para ocupar os fortes. O restante voltou para bordo, outra vez, e as fragatas se deslocaram para o norte uma milha, ali fazendo sucessivas descargas de artilharia sobre os próximos fortes, que foram tomados com igual facilidade.

Mais tarde, uma frota de juncos e de navios de disparo foi enviada contra eles, mas a frota foi afundada.

As duas fragatas podiam dizimar tantos juncos com essa facilidade por causa de sua potência de fogo superior, e devido ao fato de seu cordame e velas lhes darem velocidade em direção a todos os pontos do compasso, sempre que o vento soprava. Os juncos não podiam virar como uma fragata, e nem seguir a barlavento. Os juncos eram projetados para águas chinesas e ventos da monção, as fragatas para a gritante miséria do Canal Inglês, o Mar do Norte ou o Atlântico, onde a borrasca era um lugar-comum, e a tempestade um estilo de vida.

 

 

— É como atirar em patos sentados — disse o almirante, com desgosto.

— Sim — disse Struan. — Mas as perdas deles são leves e as nossas insignificantes.

— Uma vitória decisiva, o programa é esse — disse Longstaff.

— É isso que queremos. Horatio, lembre-me de pedir a Aristotle para registrar o ataque ao Bogue hoje.

— Sim, Excelência.

Estavam no tombadilho da nau capitania H.M.S. Vengeance, uma milha à ré das fragatas de tiro. Atrás, estava o corpo principal da força expedicionária. O China Cloud à frente — com May-may e as crianças secretamente a bordo.

— Estamos perdendo terreno, Almirante — disse Longstaff. — Não pode alcançar as fragatas?

O almirante conteve a raiva, esforçando-se para ser polido com Longstaff. Meses sob controle, meses de ordens e contra-ordens e uma guerra desprezível haviam-no deixado nauseado.

— Estamos com uma boa velocidade, senhor.

— Não é verdade. Andamos para a frente e para trás. Uma completa perda de tempo. Mande um sinal para o Nemesis. Ele pode nos rebocar.

— Rebocar minha nau capitania? — berrou o almirante, com o rosto e o pescoço vermelhos. — Aquela porcaria? Rebocar meu navio de linha com 74 canhões? Falou em rebocar?

— Sim, rebocar, meu querido amigo — disse Longstaff — porque assim chegaremos a Cantão bem mais depressa!

— Nunca, por Deus!

— Então, transferirei meu quartel-general para lá! Faça baixar um escaler. É ridículo todo esse ciúme. Um navio é um navio, a vela ou a vapor, e há uma guerra a ser ganha. Você pode vir para bordo quando quiser. Ficarei satisfeito se me acompanhar, Dirk. Vamos, Horatio.

 

Longstaff saiu pisando forte, exasperado com o almirante e suas atitudes insanas, com a disputa entre o Exército e a Marinha: disputa sobre quem estava no comando, quem tinha os pontos de vista mais respeitados, quem escolhia primeiro o espaço para querenagem ou para alojamento em Hong Kong, sé a guerra era marítima ou terrestre, e quem tinha a preferência, diante de quem. E ele estava ainda secretamente irritado com aquele demoniozinho esperto, Culum, que o enganara, fazendo-o vender o outeiro do Tai-Pan, na crença de que o Tai-Pan já aprovara a idéia — e assim colocara em risco a boa relação que construíra tão cuidadosamente com o perigoso Tai-Pan no curso de tantos anos, fazendo-o dobrar-se aos seus objetivos.

E Longstaff estava cansado de tentar estabelecer uma colônia, e cansado de receber pedidos e de ser injuriado, preso na armadilha da sórdida competição entre os negociantes. E estava furioso com os chineses, por ousarem repudiar o maravilhoso tratado que ele, e só ele, magnanimamente lhes oferecera. Diabo, pensou, aqui estou eu, carregando o peso da Ásia inteira em minhas costas, tomando todas as decisões, impedindo que se matem uns aos outros, travando uma guerra pela glória da Inglaterra, salvando seu comércio, por Deus, e que agradecimentos recebo? Deveria ter sido nomeado cavaleiro há anos! Depois, sua ira diminuiu, pois sabia que logo a Ásia se estabilizaria e, da segura colônia de Hong Kong, o poder britânico se disseminaria. Segundo a livre vontade do governador. Os governadores são nomeados cavaleiros. Sir William Longstaff — isto soava muito bem. E, como os governadores coloniais são comandantes-chefes de todas as forças coloniais, oficialmente, e, de acordo com a lei, legisladores — e representantes diretos da rainha — então ele podia cuidar dos almirantes e generais parlapatões arbitrariamente, e sem pressa. Malditos sejam todos eles, pensou, e se sentiu mais feliz.

Então Longstaff foi para bordo do Nemesis.

Struan foi com ele. Navio a vapor ou não, chegaria a Cantão primeiro.

Dentro de cinco dias, a esquadra estava ancorada em Whampoa, deixando atrás o rio dominado e seguro. Uma delegação de mercadores da Co-hong, enviada pelo novo vice-rei, Ching-so, chegou imediatamente para negociar. Mas, por sugestão de Struan, a delegação foi mandada embora sem ser recebida e, no dia seguinte, a Colônia foi novamente ocupada.

Quando os negociantes desembarcaram e chegaram à Colônia, seus antigos criados estavam esperando nas portas da frente de suas feitorias. Era como se a Colônia jamais tivesse sido abandonada. Nada fora tocado, na ausência deles. Nada estava faltando.

A praça foi destinada para as tendas de um destacamento dos militares, e Longstaff instalou seu quartel-general na feitoria da Casa Nobre. Outra delegação de mercadores da Co-hong chegou e foi mais uma vez mandada embora, como antes, enquanto laboriosos e elaborados preparativos começavam abertamente a envolver Cantão.

Dia e noite a Rua Hog e a Rua da Décima Terceira Feitoria eram ocupadas por uma multidão empenhada em comprar, vender, brigar e roubar. Floresciam os bordéis e as tavernas. Muitos homens morriam por bebedeira e alguns tinham as gargantas cortadas, enquanto outros, simplesmente, desapareciam. Os lojistas disputavam o espaço e os preços subiam ou caíam, mas mantendo sempre o nível máximo que o mercado podia suportar.

Novamente uma delegação procurou ser atendida por Longstaff, e mais uma vez Struan dominou Longstaff e ela foi mandada embora. Os.navios de linha se instalaram transversalmente no Rio Pérola e o Nemesis fumegava, calmamente, de um lado para outro, deixando o horror em sua esteira. Mas os juncos e as sampanas continuavam a fazer seu comércio pelo rio afora. O chá e a seda da temporada vinham do interior e entupiam os armazéns da Co-hong, que marginavam o rio.

Então Jin-qua chegou, à noite. Em segredo.

— Olá, Tai-Pan — disse ele, ao entrar na sala de jantar particular de Struan, carregado por seus escravos pessoais. — É bom vê-lo diante de mim. Por que não foi me visitar?

Os escravos o ajudaram a se sentar, curvaram-se e, depois, partiram. O ancião parecia mais velho do que nunca, com a pele mais enrugada. Mas seus olhos eram jovens e muito sábios. Usava uma túnica longa, azul-clara, calças de seda azul e sandálias macias nos pés pequenos. Um casaco leve de seda acolchoada protegia-o da umidade e do frio da noite de primavera. E, na cabeça, tinha um chapéu de muitas cores.

— Olá, Jin-qua. Mandarim Longstaff ficou aborrecido. Não quer que Tai-Pan veja amigo. Ayeee yah! Chá?

Struan deliberadamente recebera-o em mangas de camisa, pois queria que Jin-qua soubesse imediatamente, como estava muito zangado por causa da moeda de Wu Fang Choi. O chá foi servido e apareceram criados carregando bandejas com manjares que Struan encomendara especialmente.

Struan serviu Jin-qua e a si mesmo, com alguns dim sum.

— Comida muito boa — disse Jin-qua, sentado em sua cadeira, muito teso.

— Comida muito ruim — disse Struan, em tom de quem se desculpa, sabendo que era a melhor de Cantão. Um criado entrou com carvão e colocou-o no fogo, acrescentando alguns pauzinhos de madeira odorífera. O agradável perfume da madeira encheu o pequeno aposento.

Jin-qua comia os dim sum fastidiosamente, e bebia o vinho chinês, que estava aquecido — como todos os vinhos chineses — para se ajustar à temperatura correta. Ele se sentiu animado com o vinho e, ainda mais, com o conhecimento de que seu protegido Struan comportava-se perfeitamente, como faria um sutil adversário chinês. Servindo dim sum à noite, quando a tradição ditava que deviam ser comidos apenas no começo da tarde, Struan não apenas indicava com mais ênfase seu desagrado, mas o testava para ver’ quanto saberia do encontro de Struan com Wu Kwok.

E, embora Jin-qua tivesse ficado encantado com o fato de seu treinamento — ou antes, o treinamento oferecido por sua neta, Tchung May-may — estar dando frutos tão delicados, ele se sentiu atormentado por vagos pressentimentos. É o risco infinito que se corre, disse a si mesmo, quando se treina um bárbaro nos costumes civilizados. O estudante pode aprender bem demais e, antes de se perceber como, já dominou o professor. Tenha cuidado.

Então, Jin-qua não fez o que pretendia fazer: escolher o menor dos pastéis cozidos com recheio de camarão e oferecê-lo no meio do ar, repetindo o que Struan fizera no navio de Wu Kwok, gesto que teria indicado, com suprema sutileza, que ele sabia de tudo que acontecera na cabine de Wu Kwok. Em vez disso, pegou um dos pastéis fritos e colocou-o em seu próprio prato, comendo-o em seguida, placidamente. Sabia que era muito mais sábio, no momento, esconder o conhecimento. Mais tarde, se quisesse, poderia ajudar o Tai-Pan a evitar o perigo em que se encontrava e lhe mostrar como poderia evitar o desastre.

Enquanto mastigava o dim sum, refletiu sobre a profunda estupidez dos mandarins e dos manchus. Tolos! Desprezíveis comedores de esterco, filhos sem mãe idiotas! Que seus pênis encolham e suas tripas se encham de vermes!

Tudo fora planejado e executado tão engenhosamente, ele pensou. Manobramos os bárbaros para fazê-los entrar numa guerra — no lugar e ocasião de nossa própria escolha

— que resolveria seus problemas econômicos, mas não nos levaria, derrotados, a conceder nada importante. O comércio continuaria como antes, em Cantão apenas, e assim o Médio Reinado estaria ainda protegido dos bárbaros europeus invasores. E concederíamos apenas uma ilha fedorenta e cheia de moscas da qual, mal o primeiro cule pôs o pé em terra, já tínhamos começado a nos retirar.

E Jin-qua considerou a perfeição do esquema, que explorara a cobiça do imperador e seu temor de Ti-sen já ser uma ameaça ao trono, e fizera o imperador destruir seu próprio parente. Uma piada divina! Ti-sen ficara maravilhosamente preso na armadilha, e fora escolhido de maneira tão inteligente, e com tanta antecipação. O instrumento ideal para salvar o prestígio do imperador e da China. Mas, depois de anos de planejamento e paciência, e uma completa vitória sobre os inimigos do Médio Reinado, aquele filho da mãe — o imperador — tivera a fantástica e incrível estupidez de repudiar o tratado perfeito!Agora, os bárbaros ingleses estão zangados, e com razão. Eles perderam prestígio diante de sua demoníaca rainha e seus íntimos patetas. E agora teremos de começar tudo outra vez, e o antigo objetivo do Médio Reinado — de civilizar as áreas bárbaras da terra, de tirá-las da escuridão e trazê-las para a luz, com o mundo inteiro sob um só governo — terá de ser adiado.

Jin-qua não se importava de começar outra vez, porque sabia que o tempo eram séculos. Ficara só um pouco irritado pelo recuo desnecessário no tempo e pelo fato de ter sido desperdiçada uma soberba oportunidade.

Primeiro Cantão, ele disse a si próprio. Primeiro, nossa amada Cantão precisa ser resgatada. Qual será a soma mínima que poderei combinar? O mínimo?

Struan fervia. Esperava que Jin-qua pegasse um dos pastéis com recheio de camarão e lhe oferecesse, no meio do ar. Isto significa que ele não sabe. ainda que Wu Kwok entregou a primeira moeda? Claro que percebe a significação dos dim sum, não? Cuidado, rapazinho.

— Muitos navios atirando, hein? — falou Jin-qua, afinal.

— Longstaff tem muito mais, pode ter certeza. É muito ruim quando mandarim fica zangado.

— Ayeee yah — disse Jin-qua. — Mandarim Ching-so ficou muito zangado. Imperador diz que todos são como Ti-sen. — Passou o dedo de um lado para outro da garganta e riu – Phfft! Quando Longstaff não vai embora, fica guerreando... não tem comércio.

— Faz guerra, toma comércio. Longstaff está muito zangado.

— Quantos taéis ajudam fazer passar zanga, hein? — Jin-qua colocou as mãos nas mangas de seu casaco de seda verde, recostou-se e ficou esperando, pacientemente.

— Não sei. Talvez cem laques.

Jin-qua sabia que os cem poderiam ser reduzidos, amigavelmente, para cinqüenta. E cinqüenta laques por Cantão não era uma soma exagerada, quando a cidade se encontrava indefesa. Mesmo assim, fingiu horror. Depois, ouviu Struan dizer:

— Acrescente cem laques. De impostos.

— Acrescente cem o quê? — disse ele, com horror verdadeiro.

— Meus impostos — disse Struan, asperamente. — Não gosto de soma oferecida por cabeça de mulher escrava minha, de crianças minhas. Mandarim Ching-so muito ruim.

— Impostos sobre cabeça de crianças? Ayeee Yah! Maldito mandarim foi muito ruim, muito! — disse Jin-qua, fingindo pasmo.

Ele agradeceu ao seu pagode por já ter ouvido falar na recompensa e acertado a questão rápida e corretamente, tendo mandado notícia a respeito, por um intermediário, para a prostituta inglesa — e, assim, para Struan — pensando na eventualidade de alguém tentar receber a recompensa por May-may e as crianças, antes de estarem em segurança.

— Jin-qua ajeita! Não se preocupe, hein? Jin-qua ajeita para o amigo, dentro de poucos dias. Mandarim Ching-so muito malvado. Ruim, ruim, ruim.

— Muito ruim — disse Struan. — Difícil acertar, talvez, pode custar muitos loques.

Então, não acrescente cem loques. Acrescente duzentos!

— Jin-qua acerta para o amigo — disse Jin-qua, tranqüilizadoramente. — Não acrescente um, não acrescente dois! Acerto tudo depressa, depressa. — Sorriu, feliz, com a perfeita solução que já encontrara.

— Muito fácil. Pus outros nomes na lista de Ching-so. Mulher do Senhor de Um Olho Só e duas filhas.

— O quê? — explodiu Struan.

— O que tem de ruim, hein?

Qual a importância disso, ficou pensando Jin-qua. Conseguira uma troca simples — uma mulher bárbara sem valor e duas meninas sem valor, pertencentes ao homem empenhado em destruir Struan, em troca da segurança da família deste. O que havia de errado nisso? Como é possível entender o pensamento dos bárbaros?

Pelo amor de Deus, estava pensando Struan, como é possível entender esses demônios pagãos?

— Não gosto da lista — disse. — Nenhum filho meu, nenhum filho de Demônio de Um Olho Só, nenhum filho de ninguém. É muito ruim.

O seqüestro, sem dúvida, é muito, muito terrível, pensou Jin-qua, concordando, pois temia constantemente que ele ou seus filhos fossem seqüestrados e mantidos presos, em troca de resgate. Mas alguns nomes têm de ir na lista, em substituição. Quais?

— Jin-qua não põe meninas na lista, não se preocupe. Eu ajeito. Não se preocupe, hein? Struan disse:

— Acrescente duzentos impostos meus, de qualquer jeito. Jin-qua bebia seu chá.

— Amanhã Co-hong fala Longstaff, pode?

— Ching-so pode.

— Ching-so e Co-hong, hein?

— Amanhã Ching-so pode. Dia seguinte Co-hong pode. Discutam quantos taéis. Enquanto discutem, compramos e vendemos chá como sempre.

— Quando a discussão terminar, o comércio pode ser feito.— Comércio como sempre. Jin-qua discutiu, implorou, arrancou os cabelos e, finalmente, concordou. Já obtivera o acordo de Ching-so para começar a negociar imediatamente e entregara metade da soma combinada de impostos — a outra metade deveria ser paga dentro de seis meses. E já sugerira o artifício para salvar o prestígio que Ching-so usaria, a fim de se proteger da ira do imperador, por desobedecer ordens: as negociações seriam retardadas até o último navio estar cheio de chá, e já pago o último tael em barras de prata, ocasião em que Ching-so cairia sobre a Colônia, incendiando-a e pilhando-a, enviando em seguida navios armados contra as embarcações mercantes dos bárbaros, para expulsá-las do Rio Pérola. As transações comerciais envolveriam os bárbaros num falso senso de segurança e dariam tempo para que chegassem os reforços chineses, obviamente necessários. Assim, os bárbaros ficariam indefesos e Ching-so obteria uma grande vitória.

Jin-qua maravilhava-se com a beleza do plano. Pois sabia que os bárbaros não estariam indefesos. E a queima e o saque da Colônia os deixariam furiosos. Imediatamente, navegariam para o norte de Cantão e atacariam outra vez Pei Ho, portão de Pequim. E, no instante em que a frota aparecesse em Pei Ho, o imperador pediria paz outra vez, e o tratado seria colocado novamente em vigor. O tratado perfeito. Assim seria, porque o Tai-Pan queria o tratado perfeito. E “Pênis Óbvio”(Trocadilho com o nome de Longstaff

— NT) era apenas o cão do Tai-Pan.

Assim eu evito ter de resgatar nossa amada Cantão agora, evito pagar a outra metade dos impostos, porque claro que Ching-so e sua família estarão enfiados em esquifes, debaixo da terra, o lugar que lhes cabe — e que aquele odioso avarento fuquienês fique impotente, nos poucos últimos meses que lhe restam de vida! O “resgate” terá de ser pago para acalmar o imperador agora, e os bárbaros, mais tarde, tirarão o dinheiro do lucro do chá, da seda e do ópio da temporada. E deixarão atrás de si bastante lucro. Como a vida é maravilhosa e excitante!

— Não se preocupe com as crianças, hein? Jin-qua ajeita.

Struan levantou-se.

— Acrescente duzentos impostos meus. — E prosseguiu, com voz doce: — Jin-qua diz a Ching-so: “Toque num só fio de cabelo de filho meu, e Tai-Pan leva dragão marinho que cospe fogo. E ele engolirá Cantão, pode ter certeza.

Jin-qua sorriu, mas estremeceu, diante da ameaça. Praguejou durante todo o caminho de volta para casa. Agora, terei de empregar mais espiões e mais guardas, e gastar mais dinheiro, para proteger os filhos de Struan, não só contra os malditos e óbvios seqüestradores, mas também contra qualquer vagabundo que pensar, estupidamente, que pode ganhar um dólar fácil. Que inferno, que inferno, que inferno!

Ao chegar na segurança de seu lar, ele chutou sua concubina favorita e mandou colocar instrumentos de tortura nos polegares de duas escravas, sentindo-se, com isso, muito melhor. Mais tarde, escapuliu de casa e foi a um local secreto de encontro onde vestiu os trajes cerimoniais escarlates de seu posto. Ele era o Tai Shan Chu — Líder Supremo da Hung Mun Tong no sul da China. Ouviu de líderes de escalão inferior da Tong o primeiro relatório sobre a recém-formada sede em Hong Kong. E confirmou Gordon Chen como seu líder.

 

Então, para completa satisfação e alívio dos negociantes chineses e dos mercadores, começaram as transações comerciais. Todos os soldados, com exceção de uma força simbólica de cinqüenta homens, foram enviados de volta a Hong Kong. A frota voltou para o porto de partida, em Hong Kong. Mas o H.M.S. Nemesis continuou a patrulhar o rio, supervisionando os acessos a Cantão e mapeando todos os cursos da água que encontrou.

E a Colônia, e as vias marítimas em Whampoa, explodiram, com a frenética competição, noite e dia. Os navios mercantes tiveram de ser preparados para os delicados chás: tiveram os porões pintados de novo e o fundo do casco limpo e higienizado. Era preciso encontrar provisões para a viagem de volta. Tornava-se necessário fazer a separação do espaço para a carga.

Os negociantes que não possuíam navios próprios — e havia muitos deles — caíram sobre os proprietários de embarcações e lutaram por bons espaços para carga nas melhores delas. Preços exorbitantes pelos fretes foram cobrados, e alegremente pagos.

A Casa Nobre e Brock e Filhos haviam sempre comprado chá, seda e especiarias por conta própria. Mas, sendo sagazes, os Struans e Brocks também transportavam carga para outros, e agiam não só como expedidores, mas também como corretores, banqueiros e agentes comerciais, em viagens de volta à Inglaterra, ou de lá procedentes. Nestas, transportavam carga para outrem — produtos do algodão, fio e fibra de algodão principalmente, mas também tudo o que produzia o poder industrial da Inglaterra, e qualquer coisa julgada vendável por um negociante. Algumas vezes, navios de outras companhias inglesas lhes eram consignados, e eles aceitavam a responsabilidade de vender sua carga, fosse qual fosse, em comissão, na Ásia, e de encontrar uma carga para a viagem de volta, ainda em comissão. Em viagens de vinda, a única carga que os Struans e Brocks compravam era ópio, canhões, pólvora e metralha.

As barras de prata começaram a mudar de mãos, e Struan e Brock ganharam pequenas fortunas, fornecendo dinheiro à vista a outros negociantes e recebendo títulos bancários em Londres. Mas o dinheiro à vista só era entregue quando um navio e sua carga passavam a salvo pelo Bogue, permanecendo um dia em mar aberto.

Aquele ano, Struan passara por cima de Robb e mantivera todo o espaço de carga do Blue Cloud só para a Casa Nobre e todo o chá e a seda só para a casa. Quatrocentos e cinqüenta e nove mil libras de chá, cuidadosamente acondicionadas em caixas de cinqüenta libras, revestidas com cedro, e cinco mil e quinhentos fardos de seda começaram a encher os porões do Blue Cloud, interminavelmente: seiscentas mil libras esterlinas, caso fossem entregues em segurança na cidade de Londres, chegando primeiro; cento e sessenta mil libras de lucro, se o navio tivesse a dianteira.

E, aquele ano, Brock conservara toda a carga do Gray Witch. Deveria transportar meio milhão de libras de chá e quatro mil fardos de seda. Como Struan, Brock sabia que não dormiria bem até o paquete com a correspondência, dali a seis meses, trazer a notícia de que o navio chegara a salvo — e a venda fora tranqüila.

 

Longstaff estava coroado de orgulho por ter, sozinho, reaberto o comércio tão facilmente, e levado o Vice-rei Ching-so em pessoa à mesa de negociações.

— Mas, meu querido almirante, para que eu mandei embora três delegações, ora? Uma questão de prestígio. É preciso entender a mentalidade dos pagãos, com relação ao prestígio. Negociações e comércio, quase sem disparar um tiro! E o comércio, meu caro senhor, o comércio é o sangue necessário à vida da Inglaterra.

Ele cancelou o sítio a Cantão, o que eufureceu ainda mais o Exército e a Marinha. E repetiu o que Struan lhe advertira, e que ele, Longstaff, já dissera:

— Devemos ser magnânimos, senhores, para com os derrotados. E proteger os fracos. O comércio da Inglaterra não pode nadar no sangue dos indefesos, não é? As negociações serão encerradas em poucos dias e a Ásia estará estabilizada, de uma vez por todas.Mas as negociações não foram concluídas. Struan sabia que não poderia haver conclusão alguma em Cantão. Só em Pequim, ou no portão de Pequim. E ele ainda não queria conclusão alguma. Só comércio. A única coisa vital era conseguir o chá e a seda da temporada e vender o ópio. Com os lucros do ano de comércio, todas as casas de negócio se compensariam das perdas. O lucro os encorajaria a se sustentarem por mais um ano e se expandirem. O único lugar para esta expansão era Hong Kong. Lucros e comércio comprariam um tempo vital. Tempo para construir armazéns e docas e lares, na ilha que lhes servia como refúgio. Tempo até os ventos de verão tornarem outra vez possível o ataque ao norte. Tempo para suportar qualquer tempestade, até a próxima estação de comércio, no ano seguinte. Tempo e dinheiro para tornar Hong Kong segura — e transformá-la no degrau de acesso à Ásia.

 

Então Struan acalmou a impaciência de Longstaff, manteve as negociações em fogo brando e entrou em forte competição com Brock pelos melhores chás e sedas e os negócios mais convenientes de transporte de carga. Dezoito clíperes tinham de ser carregados e despachados. Era preciso lidar com dezoito tripulações e capitães.

Brock deu partida primeiro ao Gray Witch, e o navio rompeu as águas com os porões lotados. A última portinhola do Blue Cloud foi fechada um dia e meio mais tarde, e a embarcação saiu em perseguição à outra. Começava a corrida.

Gorth arengou e esbravejou, porque seu navio fora com um novo capitão, mas Brock mostrou-se inflexível. “Não será bom, com seu ferimento, e precisamos de você aqui.” Então Gorth, outra vez, faz planos para quando fosse o Tai-Pan. O Tai-Pan, por Deus. Ele voltou para bordo do Nemesis. Desde que o navio chegara ao porto passava todos os momentos livres dentro dele, aprendendo como pilotá-lo, como combatê-lo, o que faria a embarcação, e o que não faria. Pois sabia, como seu pai, que o Nemesis representava a morte da vela — e, com pagode, a morte da Casa Nobre. Ambos sabiam do horror de Struan aos vapores e, embora percebessem que a transição da vela para o vapor seria arriscada, decidiram apostar no futuro. O mesmo vento e a mesma maré que o Nemesis vencera, ao vir até o porto de Hong Kong, mais tarde levara o paquete de correspondência de volta para Inglaterra. Nele havia uma carta de Brock para seu filho Morgan. A carta cancelava a encomenda de dois clíperes, substituídos pelas duas primeiras quilhas da nova linha a vapor de Brock e Filhos. A Orient Queen Line.

 

— Tai-Pan — disse May-may, na escuridão de seu quarto de dormir, e no conforto de sua cama. — posso voltar a Macau? Por alguns dias? Levarei as crianças comigo.

— Você está cansada da Colônia?

— Não. Mas é difícil aqui, sem todas as roupas e brinquedos das crianças. Só por alguns poucos dias, está bem?

— Eu já lhe falei das recompensas e eu...

Ela calou suas palavras com um beijo e se aproximou mais do seu calor.

— Você tem um cheiro tão bom.

— E você também.

— Aquela Marry Sin-clair. Gostei dela.

— Ela... ela tem muita coragem.

— Foi estranho você mandar uma mulher. Não parece coisa sua.

— Não havia tempo para mandar outra pessoa.

— O cantonês e o mandarim que ela fala são fantasticamente bons.

— Isso é um segredo. Você não deve contar a ninguém.

— Claro, Tai-Pan.

A escuridão se tornou mais densa em torno de ambos e eles permaneceram perdidos em seus pensamentos.

— Você sempre dormiu sem roupa? — ela perguntou.

— Sim.

— Como não sente frio?

— Não sei. A Alta Escócia é mais fria do que aqui. Em menino, eu era muito pobre. Ela sorriu.

— Gosto de pensar em você menino. Mas você não é pobre, agora. E duas das três coisas estão realizadas. Não estão?

— Que coisas? — ele perguntou, consciente do perfume dela e do contato da seda que a envolvia.

— A primeira era pegar as barras de prata, lembra-se? A segunda, chegar a salvo em Hong Kong. Qual era a terceira?

Ela se virou de lado, movimentou uma das pernas por sobre as dele e ficou imóvel. Ele sentiu o contato da perna dela através da seda e esperou, com a garganta seca.

— Hong Kong ainda não está segura — disse ele.

A mão dela começou a se mover sobre ele.

— Com o comércio deste ano, não estará? Então, a segunda logo se cumprirá.

— Com pagode.

 

A mão dele começou a abrir a camisola dela, sem pressa, e sua mão começou a se mover sobre May-may. Ela ajudou-o a tirar a camisola e acendeu a vela, afastando os lençóis de seda. Olhou para ela, maravilhado — sua suave luminosidade, como porcelana em fusão.

— É excitante... você olhar para mim, e eu saber que lhe agrado — disse ela. E então eles fizeram amor, sem pressa. Mais tarde ela disse:

— Quando você volta para Hong Kong?

— Dentro de dez dias. — Dez dias, pensou ele. Então, haverá a escolha dos homens de Wu Kwok em Aberdeen e, na noite seguinte, o baile.

— Eu irei com você?

— Sim.

— A nova casa estará pronta, então?

— Sim. E você estará segura lá. — O braço dele repousava sobre o dorso dela e ele passou a ponta da língua sobre sua face e até o pescoço.

— Será bom viver em Hong Kong. Então eu poderei ver mais o meu professor. Há meses não tenho uma boa conversa com Gordon. Quem sabe não poderemos ter aulas semanais outra vez? Preciso aprender mais palavras, e melhores. Como está ele?

— Muito bem. Eu o vi pouco antes de partir. Depois de uma pausa, ela disse, gentilmente:

— Não é bom ter brigas com seu filho número um.

— Eu sei.

— Queimei três velas para que sua raiva voe para Java e você o perdoe. Quando você o perdoar, eu gostaria de conhecê-lo.

— Isto acontecerá, no devido tempo.

— Posso ir a Macau, antes de Hong Kong? Por favor. Eu seria muito cuidadosa. Deixaria as crianças aqui. Estariam seguras aqui.

— Por que Macau é tão importante?

— Preciso de algumas coisas e... tenho um segredo, um bom segredo, uma surpresa. Só uns poucos dias? Por favor. Você poderia mandar Mauss e alguns homens, se quiser.

— É perigoso demais.

— Não é perigoso agora — disse May-may, sabendo que seus nomes estavam fora da lista e cheia de pasmo, outra vez, por Struan não ter batido palmas, encantado, como ela fizera, quando ele lhe contara sobre a solução de Jin-qua para a lista. Ayeee yah, pensou ela, os europeus são muito estranhos. Muito. — Não há perigo agora. Mesmo assim, eu serei muito cuidadosa.

— O que é tão importante? Qual é o segredo?

— É uma surpresa. Eu lhe direi, muito em breve. Mas é segredo agora.

— Vou pensar a respeito. Agora, durma.

 

May-may relaxou, contente, sabendo que, em poucos dias, iria para Macau, sabendo que há muitas maneiras de uma mulher conseguir o que quer com seu homem — bom ou ruim, inteligente ou estúpido, forte ou fraco. Meu vestido de baile será o melhor de todos, ela disse a si mesma, cheia de excitação. Meu.Tai-Pan ficará orgulhoso de mim. Orgulhosíssimo. Orgulhoso o bastante para se casar comigo e fazer de mim a Suprema Senhora.

E seu último pensamento, antes que o doce sono a dominasse, foi sobre a criança que germinava em seu útero. Com apenas algumas semanas. Meu filho será homem, prometeu a si mesma. Um filho, para ele se orgulhar. Duas maravilhosas surpresas, para ele se orgulhar.

 

— Não entendo, Vargas — disse Struan, mal-humorado. — É melhor você tratar disso com Robb. Ele conhece as cifras melhor do que eu.

Os dois estavam no escritório particular de Struan, estudando o livro-mestre de escrituração. As janelas do escritório estavam abertas para o burburinho de Cantão e as moscas pululavam. Era um dia quente de primavera e o mau cheiro já aumentara consideravelmente, em comparação com seu baixo nível do inverno.

— Jin-qua está muito ansioso para receber o nosso pedido final, senhor, e...

— Eu sei disso. Mas até ele nos dar seu pedido final de ópio, não poderemos fazer isso com exatidão. Estamos oferecendo o melhor preço para o chá e o melhor para o ópio, então qual o motivo da demora?

— Não sei, senhor — disse Vargas. Ele não perguntou, como gostaria de ter feito, por que a Casa Nobre estava pagando dez por cento mais para o chá de Jin-qua, em comparação com o dos outros comerciantes, e vendendo o melhor ópio indiano Padwa para Jin-qua a dez por cento menos do que o preço corrente do mercado.

— Com mil demônios! — disse Struan.

Ele se serviu de um pouco de chá. Desejaria não ter permitido a May-may ir para Macau. Ele mandara com ela Ah Sam, Mauss e alguns de seus homens, para vigiá-los. Ela deveria ter voltado ontem, mas ainda não retornara. Claro que o fato não era incomum — o tempo necessário para a travessia de Macau à Colônia de Cantão não poderia jamais ser avaliado com precisão.E nem o de nenhuma viagem marítima. Tudo depende do vento, ele pensou, sardonicamente. Se ela estivesse num vapor fedorento, então seria diferente. Os vapores podem cumprir programas e esquecer ventos e marés, malditos sejam.

— Sim — ele respondeu, com rispidez, a uma batida na porta.

— Desculpe-me, Sr. Struan — disse Horatio, abrindo a porta. — Sua Excelência gostaria que o visitasse.

— O que há de errado?

— Talvez Sua Excelência queira dizer-lhe ele próprio, senhor. Está em seus alojamentos. Struan fechou o livro de escrituração.

— Vamos tratar disso com Robb, logo que voltarmos, Vargas. Você vai ao baile?

— Eu não teria paz nos próximos dez anos, senhor, se minha senhora, meu filho e minha filha mais velha não fossem.

— Vai buscá-los em Macau?

— Não, senhor. Irão para Hong Kong acompanhados por amigos. Eu irei diretamente daqui.

— Logo que Mauss voltar, mande-me notícia. — Struan saiu e Horatio acompanhou-o.

— Não posso agradecer-lhe suficientemente, Sr. Struan, pelo presente a Mary.

— O quê?

— O vestido de baile, senhor.

— Ah. Já viu o vestido que ela mandou fazer?

— Ah, não, senhor. Ela partiu para Macau no dia seguinte à venda de terras. Recebi uma carta sua ontem. Ela lhe manda os melhores votos.

 

Horatio sabia que o presente do vestido dava a Mary uma oportunidade muito boa de ganhar o prêmio. Embora existisse Shevaun. Se, pelo menos, Shevaun adoecesse! Nada sério, só para afastá-la, no dia. Então, Mary poderia ganhar os mil guinéus. Com esse dinheiro, eles poderiam fazer coisas maravilhosas! Voltar para sua terra, a fim de passar aquela estação. Viver esplendidamente. Ah, Deus, fazei com que ela ganhe o prêmio! Estou satisfeito por ela se encontrar fora de Hong Kong, enquanto eu estou aqui, disse a si mesmo. Assim fica fora do alcance de Glessing. Maldito. Fico imaginando se ele realmente pedirá a mão dela! Que topete! Ele e Culum... ah, Culum... pobre Culum.

Horatio permaneceu um passo atrás de Struan, enquanto subiam as escadas, de modo que não precisou esconder sua inquietação. Pobre, bravo Culum. Ele se lembrou de como Culum estava estranho, no dia seguinte à venda de terras. Ele e Mary procuraram e o encontraram a bordo do Resting Cloud. Culum os convidara para jantar e, toda vez que ele tentava levar a conversa para o Tai-Pan, esperando fazer as pazes entre eles, Culum mudava de assunto. Então, finalmente, Culum dissera:

— Vamos esquecer meu pai? Eu esqueci.

— Você não deve, Culum — dissera Mary. — Ele é um homem maravilhoso.

— Somos inimigos agora, Mary, por pior que isto seja. Não creio que ele vá mudar e, até ele mudar, eu não mudarei.

Pobre, bravo Culum, Horatio pensou. Eu sei o que é odiar um pai.

— Tai-Pan — ele disse, ao chegarem ao cais. — Mary e eu sentimos terrivelmente o

que aconteceu com relação ao outeiro. Mas ainda sentimos mais o que aconteceu entre o senhor e Culum. Culum, bom, tornou-se um grande amigo e...

— Obrigado pelo pensamento, Horatio, mas eu ficaria satisfeito se você não se referisse outra vez ao assunto.

Horatio e Struan atravessaram o cais em silêncio e entraram na ante-sala de Longstaff. Era ampla e rica. Um grande candelabro dominava o teto enfeitado e a reluzente mesa de conferências embaixo. Longstaff estava sentado à cabeceira da mesa, tendo ao lado o Almirante e o General Lord Rutledge-Cornhill.

— Bom-dia, senhores.

— É ótimo que tenha vindo unir-se a nós, Dirk — disse Longstaff. — Sente-se, meu querido amigo. Achei que seu conselho seria precioso.

— O que há de errado, Excelência?

— Bom, ah, eu pedi ao Sr. Brock para vir unir-se a nós, também. O assunto pode esperar até ele chegar, pois então não precisarei repetir-me, está bem? Xerez?

— Obrigado.

A porta se abriu e Brock entrou. Sua cautela aumentou quando viu Struan e os resplandecentes oficiais.

— Queria falar comigo, Excelência?

— Sim. Sente-se, por favor.

Brock fez um cumprimento de cabeça para Struan.

— Bom-dia, Dirk. Bom-dia, cavalheiros — acrescentou, sabendo que enfureceria ogeneral. Ficou sombriamente divertido com os acenos frios de cabeça que recebeu de volta.

— Chamei os dois para se unirem a nós — começou Longstaff — bom, além do fato de serem os líderes dos negociantes, não?... bom, seu conselho seria valioso. Parece que um grupo de anarquistas se estabeleceu em Hong Kong.

— O quê? — exclamou o general.

— Ora essa! — disse Brock, igualmente surpreso.

— Desprezíveis anarquistas, pode imaginar isso? Parece que mesmo os pagãos estão contaminados por esses demônios. Sim, se não tivermos cuidado, Hong Kong se tornará um foco. Que aborrecimento, não?

— Que tipo de anarquistas? — perguntou Struan. Anarquistas representavam problemas. E problemas interferiam no comércio.

— Essa, ah, qual é mesmo o nome, Horatio? Tang? Tung?

— Tong, senhor.

— Bom, essa tal Tong já está operando sob nossos narizes. É terrível.

— Operando em que sentido? — Struan perguntou, com impaciência.

— Talvez seja melhor começar do início, senhor — disse o almirante.

— Boa idéia. No encontro de hoje, o Vice-rei Ching-so estava muito preocupado. Ele disse que as autoridades chinesas tinham acabado de saber que esses anarquistas, uma sociedade secreta, haviam instalado seu quartel-general naquela podre monstruosidade, o Tai Ping Shan. Os anarquistas têm muitos, muitos nomes e eles... bom, é melhor você explicar a eles, Horatio.

— Ching-so disse que esse é um grupo de fanáticos revolucionários, empenhados na derrubada do imperador — começou Horatio. — Ele deu a Sua Excelência meia centena de nomes adotados pela sociedade: Partido Vermelho, Irmandade Vermelha, Sociedade do Céu e da Terra e assim por diante... é quase impossível traduzir alguns dos nomes para o inglês. Alguns a Chamam apenas “Hung Mun”, ou “Hung Tong” — tong significa “irmandade secreta”. — Ele se concentrou. — De qualquer maneira, esses homens são anarquistas do pior tipo. Ladrões, piratas, revolucionários. Há séculos, as autoridades tentam eliminá-los, mas sem sucesso. Segundo se supõe, têm um milhão de membros do sul da China. Possuem sedes próprias e suas cerimônias de iniciação são bárbaras. Eles incentivam a rebelião a qualquer pretexto e se nutrem do medo de seus irmãos. Pedem “dinheiro para proteção”. Toda prostituta, todo camponês, dono de terras ou cule... todos estão sujeitos a lhes pagar impostos. Quando não é pago o imposto, então há mortes e mutilações. Todo membro paga taxas... como um sindicato. Toda vez em que há descontentamento, a Tong incita os descontentes à rebelião. São fanáticos. Estupram, torturam e se espalham como uma epidemia.

— Já tinham ouvido falar nas sociedades secretas chinesas? — perguntou Struan. — Antes de Ching-so falar nisso?

— Não, senhor.— Os anarquistas são demônios, é isso mesmo — disse Brock, cheio de preocupação. — Esse é o tipo de maldade que os chineses apreciam.

Longstaff empurrou uma pequena insígnia vermelha, triangular, através da mesa. Havia nela dois caracteres chineses.

— O vice-rei disse que o triângulo é sempre o símbolo deles. Os caracteres nesta bandeira significam “Hong Kong”. De qualquer jeito, estamos diante de problemas, isto é certo. Ching-so quer mandar soldados para o Tai Ping Shan e passar todo mundo na espada.

— Você não concordou, não é?

— Deus do céu, não. Não toleramos nenhuma interferência em nossa ilha, por Júpiter. Eu lhe disse que não temos nenhum trato com anarquistas sob nossa bandeira e cuidaríamos deles imediatamente, à nossa própria maneira. Agora, o que devemos fazer?

— Expulsar todos os orientais de Hong Kong e acabar com a sociedade — disse o almirante.

— Isso é impossível, senhor — disse Struan. — E não seria vantajoso para nós.

— Sim — disse Brock. — Precisamos de trabalhadores, cules, criados. Precisamos muito deles.

— Há uma solução simples — disse o general, tomando uma pitada de rape. Era um homem taurino, de faces vermelhas, cabelo grisalho, rosto gasto. — Emitir uma ordem no sentido de que todos os integrantes dessa... como a chamou, Tong?... sejam enforcados.

— Ele espirrou. — Cuidarei de executar a ordem.

— Não se pode enforcar um chinês, senhor, só por querer derrubar uma dinastia estrangeira. É contra a lei inglesa — disse Struan.

— Dinastia estrangeira ou não — disse o almirante — instigar a rebelião contra o imperador de uma “potência amiga”... e será amiga muito em breve, por Deus, se pudermos cumprir a missão que nos foi determinada aqui pelo Governo... é contra a lei internacional. E a lei inglesa. Veja aqueles patifes dos cartistas, por Deus.

— Nós não os enforcamos por serem cartistas. Só quando são apanhados em atos de rebeldia ou infringindo a lei; e aí está certo! — Struan franziu a testa para o almirante. — A lei inglesa diz que o homem deve ter liberdade de expressão. E liberdade de associação política.

— Mas não associações que promovem a rebelião! — disse o general. — Você aprova a rebelião contra a autoridade legal?

— Isto é tão ridículo que não vou ter nem a cortesia de responder.

— Senhores, senhores — disse Longstaff. — Claro que não podemos enforcar todos os que forem... seja lá o que for. Mas, do mesmo jeito, não podemos deixar Hong Kong infestada de anarquistas, não é? Ou de malditas idéias sindicalistas.

— Pode ser um truque de Ching-so, para nos colocar sem ação — Struan olhou para Brock. — Já ouviu falar nas tongs?

— Não. Mas estou pensando que, se os Triangs extorquem tributos de todos, então vão extorquir o comércio e logo estarão tirando dinheiro de nós.

O general, com petulância, deu um piparote em alguma poeira inexistente na imaculada túnica escarlate de seu uniforme.

— Isto, obviamente, está na jurisdição dos militares, Excelência. Por que não emitir uma proclamação colocando-os fora da lei? E faremos o resto. Ou seja, aplicaremos as regras que aprendemos na índia. Ofereceremos uma recompensa por qualquer informação. Os nativos estão sempre prontos para vender facções rivais, bastando atirar-lhes uma moeda. Castigaremos a primeira dúzia, para servir de exemplo, e então não mais haverá problemas.

— Não se pode aplicar as regras indianas aqui — disse Struan.

— O senhor não tem experiência em administração, meu caro, então não pode dar nenhuma opinião. Nativos são nativos, e apenas isso. — O general deu uma olhada em Longstaff. — Esta é uma questão simples para os militares, senhor. Como Hong Kong logo será estabilizada como acantonamento militar, ficará em nossa esfera. Emita uma proclamação colocando-os fora da lei e será feita justiça.

O almirante bufou.

— Já disse mil vezes que Hong Kong deveria ficar sob a jurisdição do serviço superior. Se não comandarmos as vias marítimas, Hong Kong estará morta. Portanto, a posição da Marinha é sem paralelo. Isto deveria ficar sob nossa jurisdição.

— Os exércitos decidem as guerras, Almirante... como já disse repetidas vezes. As batalhas terrestres encerram as guerras. A Marinha liquidou as frotas de Bonaparte, é verdade, e fez a França passar fome. Mas, mesmo assim, foi preciso que encerrássemos o conflito, definitivamente. Como fizemos em Waterloo.

— Sem Trafalgar, não haveria nenhum Waterloo.

— Uma questão discutível, meu caro Almirante. Mas, vejamos a Ásia. Logo teremos os franceses, holandeses, espanhóis e russos atrás de nós, disputando nossa justa liderança na área. Sim, você pode dominar as vias marítimas, e graças a Deus que domina, mas, se Hong Kong não for militarmente indestrutível, então a Inglaterra não terá base nem para proteger suas frotas e nem para escapar ao inimigo.— A função principal de Hong Kong, senhor, é como empório comercial para a Ásia — disse Struan.

— Ah, eu entendo a importância do comércio, meu bom homem — disse o general, com impertinência. — Esta é uma discussão a respeito de estratégia e pouco tem a ver com o senhor.

— Se não fosse o comércio — disse Brock, com o rosto vermelho — não haveria razão para a presença de exércitos e frotas.

— Conversa fiada, meu bom homem. Vou lhe mostrar que...

— Estratégia ou não — disse Struan, em voz alta — Hong Kong é uma colônia e deve ficar sob as ordens de um ministro de Relações Exteriores, e isto será decidido pela Coroa. Sua Excelência agiu sabiamente, com relação à questão, e tenho certeza de que ele considera como vitais tanto a Marinha Real como os exércitos da rainha, para o futuro de Hong Kong. Como arsenal da Marinha Real, base militar e empório comercial — ele chutou Brock, disfarçadamente, por baixo da mesa — e como porto livre, o futuro da ilha está garantido.

Brock disfarçou um estremecimento e acrescentou, depressa:

— Ah, sim, na verdade! Um porto livre significa muito dinheiro para a Coroa, realmente. E renda para os melhores arsenais da Marinha e quartéis do mundo inteiro. Sua Excelência tem em seu coração os interesses de todos, cavalheiros. Um porto aberto será vantajoso para todos. Principalmente para a rainha, que Deus a abençoe.

— Tem toda razão, Sr. Brock — disse Longstaff. — Claro que precisamos tanto da Marinha como do Exército. O comércio é sangue vital para a Inglaterra, e o livre comércio será o próximo passo. Interessa a todos nós que Hong Kong prospere.

— Sua Excelência quer abrir a Ásia para todas as nações sem favor — disse Struan, escolhendo cuidadosamente as palavras, — Como isto poderia ser feito de melhor maneira do que com um porto livre? Guardado pelas forças de elite da Coroa.

— Desaprovo deixar os estrangeiros engordarem à nossa custa. — disse o almirante, bruscamente, e Struan sorriu para si mesmo vendo que ele abocanhava a isca. — Travamos guerras e as ganhamos, e temos de travar outras, porque a paz é sempre destruída nas conferências civis. Malditos sejam os estrangeiros, eu digo.

— Um sentimento apreciável, Almirante — disse Longstaff de maneira igualmente brusca — mas não muito prático. E quanto às “conferências civis”, é muito bom que os diplomatas sejam vis tos com pontos de vista amplos. A guerra, afinal, é apenas o braço longo da diplomacia. Quando todo resto falha.

— A “diplomacia” falhou aqui — disse o general — e então quanto mais rápido desembarcarmos forças na China, e implantarmos a lei e a ordem inglesas em toda a terra, melhor.

— A diplomacia não falhou, meu querido General. As negociações prosseguem, cautelosamente, e bem. Ah, por falar nisso, há trezentos milhões de chineses na China.

— Uma baioneta inglesa, senhor, vale mil lanças nativas. Deus do céu, controlamos a Índia com um punhado de homens e podemos fazer a mesma coisa aqui... e veja o benefício que nosso governo na índia trouxe para aqueles selvagens, hein? Vamos mostrar a bandeira em toda sua força, é isso que deve ser feito. Imediatamente.

— A China é uma nação, senhor — disse Struan. — Não dúzias, como acontece na índia. Não se pode aplicar as mesmas normas.

— Sem vias marítimas seguras, o Exército não poderia controlar a índia por uma semana — disse o almirante.

— Ridículo! Ora, poderíamos...

— Senhores, senhores — disse Longstaff, cansado — estamos discutindo os anarquistas. Qual o seu conselho, Almirante?

— Expulsar todos os orientais da ilha. Se querem trabalhadores, escolham mil, ou dois mil... quantos precisarem, na ilha... e excluam todos os outros.

— Senhor?

— Já dei minha opinião, senhor.

— Ah, sim. Sr. Brock?

— Penso como o senhor, Excelência, que Hong Kong é um porto livre e precisamos dos chineses, devemos cuidar nós próprios dos Triangs. Penso como o general... vamos enforcar qualquer desses Triangs que for apanhado instigando a rebelião. E como o almirante... não devemos desejar na ilha nenhuma ação traiçoeira contra o imperador. Sim, vamos declará-los foras-da-lei. E penso como você, Dirk, que não será legal enforcá­los, se estiverem agindo de maneira pacífica. Mas, qualquer um que sair da linha e, ao ser preso, for identificado como Triang... então vamos açoitá-lo, marcá-lo a fogo, expulsá-lo para sempre.

— Dirk? — perguntou Longstaff.

— Concordo com o Sr. Brock. Mas nada de açoite e nem de ferro em brasa. Isto pertence à Idade Média.

— Pelo que vi aqui, desses pagãos — disse o general, com desgosto — ainda estão na era do obscurantismo. Claro que têm de ser punidos, caso pertençam a um grupo fora-da-lei. O chicote é uma punição comum. Vamos fixar em cinqüenta chicotadas. E a marca com ferro em brasa na face é um castigo inglês correto e legal, para certos delitos. Vamos marcá-los, também. Mas é melhor enforcar a primeira dúzia que pegarmos, e se evaporarão como dervixes.

— Se os marcarem permanentemente — irrompeu Struan — jamais lhes darão uma oportunidade de se tornarem outra vez bons cidadãos.

— Bons cidadãos não se passam para sociedades secretas anarquistas, meu bom senhor — disse o general. — Mas, na verdade, só um cavalheiro apreciaria o valor desse conselho.

Struan sentiu o sangue subir-lhe ao rosto.

— Da próxima vez que fizer uma observação como essa, senhor, mandarei alguns padrinhos visitá-lo, e receberá uma bala entre os olhos.

Houve um silêncio horrorizado. Branco de susto, Longstaff deu pancadinhas na mesa.

— Proíbo ambos de continuarem com esse tipo de conversa. É proibido. — Ele puxou seu lenço de renda e enxugou o repentino suor da testa. Tinha a boca seca e amarga.

— Concordo plenamente, Excelência — disse o general. — E sugiro, além disso, que este problema seja decidido apenas pelas autoridades... o senhor, junto com o almirante e eu, deveríamos decidir este tipo de assunto. Não está no domínio dos comerciantes.

— Está tão cheio de vento, senhor General — disse Brock — que se peidasse aqui em Cantão, faria explodir o portão da Torre de Londres!

— Sr. Brock! — começou Longstaff. — O senhor não... O general ficou em pé de um salto.

— Agradeceria, meu bom senhor, se guardasse para si mesmo este tipo de observação.

— Não sou o seu bom senhor. Sou um negociante na China, por Deus, e quanto antes você souber disso, melhor. Acabou para sempre aquele tempo em que as pessoas como eu lambiam o rabo de vocês por causa de uma merda de título concedido, a verdade é esta, primeiro à puta do rei e depois ao bastardo do rei, ou então comprado com uma faca enfiada às costas do rei.

— Por Deus, peço satisfações. Meu padrinhos irão visitá-lo hoje!

— Não farão isso, senhor — disse Longstaff, batendo com a mão espalmada na mesa. — Se houver qualquer problema entre os dois, eu os mandarei de volta para a Inglaterra, sob guarda, e os denunciarei perante o Conselho Privado. Eu sou o plenipotenciário de Sua Majestade na Ásia e eu sou a lei. Por Deus, que coisa inconveniente. Vão pedir desculpas um ao outro! Eu lhes ordeno. Imediatamente.

O almirante escondeu seu divertimento sombrio. Horatio olhou de um rosto para o outro, com descrença. Brock estava consciente de que Longstaff tinha o poder de feri-lo e ele não queria nenhum duelo com o general. E, além disso, estava furioso por ter-se deixado arrastar para uma aberta hostilidade.

— Peço desculpas, senhor. Por chamá-lo de saco de peido.

— E eu peço desculpas porque recebi ordens.

— Acho que vamos encerrar a reunião, neste momento — disse Longstaff, bastante aliviado. — Sim. Obrigado por seus conselhos, cavalheiros. Vamos adiar a decisão. Daremos a todos nós tempo para pensar, hein?

O general colocou seu capacete de pele de urso, fez um cumprimento e se encaminhou para a porta, com as esporas e a espada tilintando.

— Ah, General, a propósito — disse Struan, em tom casual — ouvi dizer que a Marinha desafiou o Exército para uma luta.

O general parou no meio do caminho, com a mão na maçaneta da porta, e se eriçou ao se lembrar das observações que o almirante deliberadamente fizera a respeito de seus soldados.

— Sim. Mas temo que a luta não vá ser grande coisa.

— Por que, General? — perguntou o almirante, irado, lembrando-se das observações que o general deliberadamente fizera a respeito de seus esplêndidos marujos.

— Porque eu acho que nosso homem vai ganhar, senhor. Sem fazer muito esforço.

— Por que não realizam a luta no dia do baile? — sugeriu Struan. — Consideraríamos isto uma honra e ficaríamos satisfeitos em oferecer um prêmio. Digamos, cinqüenta guinéus.

— É muito generoso, Struan, mas não creio que o Exército esteja preparado na ocasião.

— No dia do baile, por Deus — disse o general, escarlate. — Cem guinéus para nosso homem!

— Feito — disseram o almirante e Brock, simultaneamente.

— Cem para ambos! — O general deu meia-volta e saiu, pavoneando-se.

Longstaff serviu-se de um pouco de xerez.

— Almirante?

— Não, obrigado, senhor. Acho que vou voltar para meu navio. — O almirante pegou sua espada, fez um cumprimento de cabeça para Struan e Brock, uma continência, e partiu.

— Xerez, senhores? Horatio, talvez você faça as honras?

— Certamente, Excelência — disse Horatio, satisfeito por ter alguma coisa para fazer.

— Obrigado — Brock esvaziou o copo e estendeu-o para ser novamente cheio. — O gosto está bom. Tem um paladar excelente, Excelência. Não é, Dirk, meu rapaz?

— Na verdade, preciso censurá-lo, Sr. Brock. Imperdoável, dizer coisas assim. Senhor...

— Sim, senhor — disse Brock, como quem se penitencia. — Tem razão. Eu estava errado. Temos sorte de tê-lo neste posto. Quando fará a proclamação sobre o porto livre?

— Bom, ah, não há pressa. É preciso cuidar daqueles malditos anarquistas.

— Por que não cuidar das duas coisas, ao mesmo tempo? — perguntou Struan. — Logo que voltar para Hong Kong. Por que não dar aos nossos súditos sino-britânicos o benefício da dúvida? Deporte-os, mas não os açoite e nem marque com ferro em brasa, para começo de conversa. É justo, hein, Tyler?

— Se você assim o diz e Sua Excelência concorda — Brock respondeu, expansivamente.

Os negócios tinham sido bons. E o Gray Witch estava já bem longe, e ia à frente. Prédios estavam sendo construídos no Vale Feliz. Havia uma hostilidade aberta entre Struan e Culum. E, agora, Hong Kong ia ser porto livre. Sim, Dirk, rapaz, ele disse a si próprio, estaticamente, você ainda serve para alguma coisa. É esperto como uma raposa. O porto livre compensa todas as suas maldades. E, em dois anos, nossos navios a vapor vão levar você à bancarrota.

— Sim — ele acrescentou — se ambos concordarem. Mas logo será preciso usar o açoite e o ferro em brasa.

— Ah, realmente espero que não — disse Longstaff. — É uma coisa muito desagradável. Mas, de qualquer maneira, a lei precisa ser cumprida e os delinqüentes punidos. Uma excelente solução, senhores, para os... como os chama, Sr. Brock? Ah, sim, Tríades. Nós os chamaremos Tríades, no futuro. Horatio, faça uma lista, em caracteres, corri os nomes da Tong que nos deu Sua Excelência, Ching-so, e nós a afixaremos junto com a proclamação. Vá tomando nota, enquanto eu penso: “Todas as tongs acima citadas estão fora da lei e serão conhecidas, no futuro, com o nome geral de ‘Tríades’. A punição por pertencer a uma Tríade é a imediata deportação e a entrega às autoridades chinesas. A punição por instigar rebelião aberta contra o governo de Sua Majestade Britânica, ou contra Sua Alteza, o Imperador dos Chineses, é enforcamento.”


 

A vila de Aberdeen estava escura, úmida e silenciosa sob a lua cheia. As ruas se achavam desertas e as portas das cabanas bem trancadas. Centenas de sampanas encontravam-se ancoradas nas águas paradas e lamacentas. E, embora estivessem tão amontoadas como as cabanas, não havia nenhum som ou movimento a bordo.

Struan permanecia em pé, no lugar previamente combinado, na encruzilhada da estrada nas imediações da vila, ao lado do poço. O poço tinha as bordas de pedra e Struan pendurara nelas três lanternas. Estava sozinho, e seu relógio de bolso de ouro lhe dizia que quase chegara a hora. Ficou imaginando se Wu Kwok e seus homens viriam da vila ou das sampanas, ou ainda dos morros desolados. Ou do mar.

Observou o mar. Nada se movia, a não ser as ondas. Em alguma parte, na escuridão, navegando à trinca, estava o China Cloud, com os tripulantes de prontidão. Era longe demais para aqueles que se encontravam a bordo observá-lo com nitidez, mas suficientemente perto para verem a luz das lanternas. As ordens de Struan eram no sentido de que, se as lanternas se apagassem bruscamente, os homens baixassem escaleres e viessem para terra com mosquetes e espadas.

As vozes abafadas do punhado de homens que trouxera consigo elevaram-se da praia, num fraco sopro. Eles estavam à espera, ao lado dos dois escaleres, armados e prontos, também observando a luz das lanternas. Ele ficou ouvindo com atenção, mas não conseguiu distinguir o que estava dizendo. Eu estaria mais seguro completamente sozinho, disse a si próprio. Não quero olhos indiscretos em cima disso. Mas desembarcar sozinho, sem guardas, seria loucura. Pior, eu estaria pondo à prova o meu pagode. Sim.

Ele se enrijeceu, quando um cão rosnou, no silêncio da vila. recuou atentamente à escuta, à procura de sombras em movimento. Mas não viu nenhuma e sabia que o cão estava apenas se exercitando. Recostou-se no poço e começou a relaxar, contente de estar de volta à ilha. Contente porque May-may e as crianças estavam seguras, na casa construída para eles no Vale Feliz.

Robb e Culum cuidaram habilmente de tudo, enquanto ele estava fora. A pequena casa, com altos muros em torno e fortes portões, ficara pronta. Duzentos e cinqüenta homens haviam trabalhado nela dia e noite.

Ainda faltavam muitos detalhes para serem cuidados, e o jardim inteiro para ser plantado, mas a casa em si estava habitável e quase toda mobiliada. Era construída de tijolos, tinha lareira e um telhado de madeira. Os quartos eram travejados. Muitas das paredes eram cobertas com papel, mas umas poucas haviam sido pintadas, e todas tinham janelas envidraçadas.

A casa ficava diante do mar e tinha uma suíte principal, sala de jantar e uma grande sala de visitas. E, a oeste, um abrigo em treliça, em torno de um jardim, separado do resto da casa. Ali ficavam os alojamentos de May-may e os aposentos das crianças, e, por trás, os quartos dos empregados.

Struan levara May-may, as crianças, e Ah Sam, a ama, para a casa com ele, na antevéspera, e os instalara lá. Um rapaz de confiança, cozinheiro, chamado Lim Din, e uma lavadeira, e makee-learnee, como eram chamados as ajudantes de cozinha, tinham vindo com ele de Cantão.

E, embora nenhum europeu tivesse visto May-may, a maioria deles tinha certeza de que o Tai-Pan trouxera sua amante para a primeira morada permanente em Hong Kong. Davam risadinhas entre si, ou o denunciavam, com sua inveja. Mas nada diziam às suas mulheres. No devido tempo, iam querer trazer suas próprias amantes e, quanto menos falassem, melhor. As mulheres que suspeitavam mantiveram-se caladas. Nada havia que pudessem fazer.

Struan ficara muito satisfeito com sua casa e com o progresso nos armazéns e na feitoria. E também com os resultados de sua frieza pública diante de Culum. Culum dissera-lhe às escondidas que já fora sondado inicialmente por Brock, e Wilf Tillman convidara-o para ir à bordo do caro navio de ópio da firma e o recebera principescamente.

Culum contara que o comércio fora discutido — e como o futuro da Ásia dependia vitalmente da cooperação, particularmente entre as raças anglo-saxônicas. E dissera que Shevaun estava na sala de jantar, muito bela e vivaz.

Um peixe saltou da água, permaneceu por um momento no ar, tornou a cair, e Struan ficou olhando por um momento, à escuta. Depois, relaxou outra vez e deixou a mente vaguear.

Shevaun seria um bom casamento para Culum, pensou Struan, sem emoção. Ou para ele próprio. Sim. Daria uma bela anfitriã e um acréscimo interessante aos banquetes que você oferecerá em Londres. Para lordes, ladies e membros do Parlamento. E ministros do Gabinete. Vai comprar para si próprio um título de baronete? Você poderia pagar dez vezes mais. Se o Blue Cloud chegar na Inglaterra primeiro. Ou em segundo e até em terceiro, bastando chegar a salvo. Se o comércio da temporada for concluído com segurança, então você pode comprar para si mesmo um título de conde.Shevaun é suficientemente jovem. Ela traria um dote útil e ligações políticas interessantes. E Jeff Cooper? Ele está loucamente apaixonado por ela. Se ela lhe disser não, é problema dele.

E May-rnay? Será que uma esposa chinesa barraria a você o acesso à nata? Certamente. Ela pesaria muito contra você. Está fora de cogitação.

Sem o tipo certo de esposa inglesa, a vida social será impossível. Os acertos diplomáticos são feitos sobretudo em salas de visita particulares, em meio ao luxo. Talvez a filha de um lorde, conde ou ministro de Gabinete? Espere até chegar à Inglaterra, hein? Há tempo suficiente.

Há mesmo?

Um cão latiu agudamente entre as sampanas e depois ganiu, enquanto outros se atiravam sobre ele. Os ruídos da briga mortal elevavam-se e decresciam até, finalmente, cessarem. Silêncio, outra vez, a não ser pelos furtivos rosnados, roçares de corpos e dilaceramentos na escuridão, enquanto os vencedores começavam a se alimentar.

Struan estava olhando as sampanas, de costas para as lanternas. Viu uma sombra se mover, outra, e logo um grupo de chineses foi saindo da vila flutuante e se reunindo na praia. Identificou Scragger. Struan segurou frouxamente sua pistola e esperou com calma, procurando Wu Kwok em meio à escuridão. Os homens vieram pela estrada, sem fazer ruído, com Scragger, cautelosamente, no meio. Pararam perto do poço e olharam fixamente para Struan. Todos eram jovens, no começo da casa dos vinte, e estavam vestidos com túnicas e calças negras, tinham nos pés sandálias com tiras de couro, e grandes chapéus de cule disfarçavam-lhes os rostos.

— Grande noite, Tai-Pan — disse Scragger, com voz baixa, em guarda, e preparado para uma retirada imediata.

— Onde está Wu Kwok?

— Mandou pedir desculpas, mas está muito ocupado. Aqui estão os cem. Faça a escolha e vamos embora, está bem?

— Diga-lhes para se dividirem em grupos de dez e tirarem a roupa.

— Tirar a roupa?

— Sim, tirar a roupa, pelo amor de Deus!

Scragger piscou para Struan. Depois, deu de ombros e voltou para perto dos homens, falando-lhes numa cantilena baixa. Os chineses conversaram baixinho e, depois, separaram-se às dezenas e tiraram as roupas.

Struan fez sinal para a primeira dezena e eles caminharam para a luz. De alguns grupos, escolheu um, de outros, dois ou três, de uns poucos, nenhum. Escolhia com o maior cuidado. Sabia que estava reunindo uma força-tarefa, a ponta de lança do seu avanço para o coração da China. Se conseguisse dobrá-los à sua vontade. Os homens que não conseguiam olhá-lo nos olhos eram imediatamente excluídos. Passava ao largo daqueles cujos rabichos eram maltratados e desgrenhados. Não eram considerados os que não tinham bom físico. Mas, aqueles cujos rostos eram pontilhados com marcas de varíola, ganhavam um ponto a seu favor — pois Struan sabia que a varíola assolava os navios em todos os mares e um homem já acometido pela doença e recuperado era imune e forte e sabia o valor da vida. Os que tinham ferimentos a faca bem cicatrizados eram favorecidos. Aqueles capazes de ficar nus sem se importar, ele aprovava. Mas, os que mostravam sua nudez com hostilidade, examinava cuidadosamente, sabendo que a violência e o mar são companheiros. Alguns, escolheu por causa do ódio em seus olhos e, alguns, apenas por causa de uma intuição que teve, ao lhes ver os rostos.

Scragger observava a seleção com impaciência crescente. Puxava sua faca e, repetidamente, atirava-a no pó. Afinal, Struan terminou.

— Esses são os homens que quero. Todos podem vestir-se, agora.

Scragger deu uma ordem e os homens se vestiram. Struan pegou um maço de papéis e entregou um deles a Scragger.

— Pode ler alto para eles.

— O que é isso?

— Um contrato regulamentar. Taxas de pagamento e termos para um serviço de cinco anos. Todos deverão assinar um.

— Não sei ler. E para que esse documento, hein? Wu Fang Choi disse a eles que ficariam com você por cinco anos. Struan entregou-lhe outra folha coberta com caracteres chineses.

— Dê isso a alguém que saiba ler. Cada qual assinará uma, ou então não os aceitarei e o acordo está cancelado.

— Quer fazer tudo bem direitinho, hein?

Scragger pegou o papel e chamou um chinês de baixa estatura, com marcas de varíola, que fora escolhido. O homem se adiantou e, pegando o papel, estudou-o à luz da lanterna. Scragger fez um sinal com o polegar para aqueles que haviam sido rejeitados, e eles •desapareceram nas sampanas.

O homem começou a ler.

— Como é o nome dele?

— Fong.

— Fong o quê?— Fong o que você quiser. Quem sabe qual é o verdadeiro nome desses macacos?

Os chineses ouviram Fong atentamente. A certa altura, explodiram numa onda de riso abafada e nervosa.

— Qual é a graça? — Scragger perguntou, em cantonês. Fong demorou muito tempo para explicar. Scragger virou-se para Struan.

— Que negócio é esse, hein? Eles precisam prometer que não vão fornicar e nem casar durante os cinco anos? Isto não é direito. O que acha que eles são?

— É uma cláusula justa e normal, Scragger. Todos os contratos têm a mesma cláusula.

— Não em papéis de marinheiros, por Deus.

— Eles vão ser capitães e oficiais, então precisam ter contratos. Para tornar legal sua situação.

— É muito impróprio, se quer saber minha opinião. Isto significa que não podem levar uma puta para a cama durante cinco anos?

— É apenas uma formalidade. Mas não podem casar. Scragger virou-se e fez um curto discurso. Outra vez, houve risos.

— Eu disse que eles precisam obedecer-lhe como a Deus Todo-Poderoso. Menos no que diz respeito à fornicação. — Enxugou o suor do rosto. — Wu Fang Choi disse a eles que seriam seus, por cinco anos. Então, não precisa se preocupar.

— Por que você está tão nervoso, hein?

— Por nada, por nada, eu lhe garanto.

 

Fong continuou a ler. Houve um silêncio e alguém pediu que uma cláusula fosse repetida. O interesse de Scragger aumentou. Era a respeito do pagamento. Os capitães em potencial receberiam cinqüenta libras no primeiro ano, setenta no segundo e no terceiro, cem quando alcançassem escalão de primeiro-imediato, e cento e cinqüenta ao terminarem sua formação. E teriam um sexto dos lucros dos navios que capitaneassem. Um bônus de vinte libras, se aprendessem inglês dentro de três meses.

— Cento e cinqüenta mangos é mais do que ganhariam em dez anos — disse Scragger.

— Quer um emprego?

— Estou satisfeito com meu atual emprego, muito obrigado. — Ele contorceu o rosto, quando teve um pensamento repentino.

— Wu Fang Choi não pagaria essa grana toda — disse.

— Ninguém vai lhe pedir. Esses homens vão fazer por merecer cada centavo, pode ter certeza. Ou então serão despedidos.

— O dinheiro não é meu, então pode pagar a eles quanto quiser e desperdiçar sua nota.

 

Quando Fong terminou de ler o documento, Struan fez cada homem escrever seu nome em caracteres, numa cópia. Todos os homens sabiam escrever. Ele fez cada um lambuzar a palma esquerda com tinta de carimbo e imprimir a palma no verso do papel.

— Para que é isso?

— Cada palma de mão é diferente da outra. Agora, eu conheço cada homem... seja qual for o seu nome. Onde estão os meninos?

— Quer que os homens vão para os botes?

— Sim. — Struan deu a Fong uma lanterna e fez sinal para que fosse até à praia. Os outros homens seguiram-no, em silêncio.

— A escolha e o negócio dos papéis foram muito inteligentes, Tai-Pan. Você é esperto mesmo. — Scragger chupava a ponta de sua faca, pensativamente. — Ouvi dizer que você deu uma boa lição em Brock. E também soube das barras de prata.

Struan deu uma olhada em Scragger, repentinamente suspeitoso.

— Havia europeus naquele ataque, segundo disse Brock. Você era um deles?

— Se eu tivesse recebido ordens de Wu Fang, Tai-Pan, não teria havido falha. Wu Fang Choi não gosta de falhas. Deve ter sido coisa de gente do local mesmo, os malditos. Terrível. — Scragger deu uma olhada na escuridão em torno. Quando se certificou de que estavam completamente sozinhos falou em tom de conspiração. — Wu Kwok é fuquienês. Ele vem de Quemoy, lá pelo alto da costa, sabe? Conhece a ilha?

— Sim.

— Na noite do solstício de verão, haverá um festival, Wu Kwok, com certeza, comparecerá. Tem alguma coisa a ver com seus ancestrais. — Os olhos de Scragger brilharam, malevolamente. — Se uma fragata ou duas estivessem passando por lá, ora, ele seria pegado como um maldito rato de esgoto numa barrica.

Struan sorriu, com desdém.

— Ah, seria sim!

— É verdade, eu lhe digo, por Deus. Você tem meu juramento, por Deus. Aquele patife me enganou e me fez jurar a você, quando era mentira, e não vou perdoar isso. O juramento de Scragger é tão bom quanto o seu!

— Sim. Claro. Acha que eu confiaria num homem que vende seu patrão como se fosse um rato?

— Ele não é meu patrão. Wu Fang Choi é meu chefe, e ninguém mais. Jurei lealdade a ele, a nenhum outro. Você tem meu juramento. Struan observou Scragger.

— Vou pensar a respeito da noite do festival.

— Você tem meu juramento. Quero que ele morra, por Deus. O juramento de um homem é tudo que tem, entre ele mesmo e a danação. Aquele porco desmentiu o meu, que Deus o amaldiçoe, e então quero que ele morra para pagar.

— Onde estão os meninos?

— Eles vão ser grã-finos, como você disse?

— Depressa, quero ir embora.

Scragger virou-se e assobiou para dentro da escuridão. Três pequenas sombras saíram das sampanas. Os meninos desceram cautelosamente a vacilante prancha de desembarque e pisaram em terra, subindo a estrada às pressas, em seguida. Os olhos de Struan se arregalaram, quando os meninos apareceram à luz. Um deles era chinês. Um eurasiano. E o último era um imundo pirralho inglês. O menino chinês estava ricamente vestido, tinha o rabicho grosso e bem entrançado. Carregava uma mala. Os outros dois estavam pateticamente vestidos, com sujas roupas de menino imitando as inglesas — casacos feitos em casa, velhas cartolas e calças e sapatos costurados em casa, toscamente. Sobre os ombros, cada um carregava um bastão com uma trouxa pendurada na ponta.

Todos os meninos tentavam desesperadamente — e sem conseguir — esconder sua ansiedade.

— Este é Wu Pak Chuk — disse Scragger. O menino chinês se curvou, nervosamente. — Ele é neto de Wu Fang Choi. Um dos netos, mas não filho de Wu Kwok. E esses são meus próprios filhos. — Ele apontou orgulhosamente para o pirralhinho, que piscou sem querer. — Este é Fred. Ele tem seis anos. E este é Bert, que tem sete.

Fez um leve sinal e ambos os meninos tiraram o chapéu, fizeram curvaturas e murmuraram alguma coisa, no meio de todo o pânico, olhando em seguida para o pai, a fim de ver se tinham feito tudo direito. Bert, o menino eurasiano, antes tinha o rabicho metido embaixo do chapéu, mas agora, com todo o nervosismo, o rabicho estava pendente às suas costas. O cabelo do pirralho estava sujo e, como o do seu pai, achava-se amarrado com um pedaço de cânhamo alcatroado, à nuca.

— Venham cá, rapazes — disse Struan, com pena.

O pirralho pegou a mão de seu meio-irmão e os dois adiantaram-se devagar. Pararam, quase sem conseguir respirar. O menino inglês limpou um fio de catarro do nariz, com as costas da mão.

— Você é Fred?

— Sim, Excelência — sussurrou, em voz quase inaudível.

— Fale alto, rapaz — disse Scragger, e o menino exclamou:

— Sim, Excelência, eu sou Fred.

— Eu sou Bert, Excelência. — O eurasiano recuou, quando Struan olhou para ele. Era um menino alto, bonito, com belos dentes e pele dourada. Tinha a estatura mais elevada dos três.

Struan olhou para Wu Pak. O menino baixou os olhos e riscou a terra com os pés.

— Ele não fala inglês?

— Não. Mas o Bert fala a língua dele. E Fred algumas palavras. A mãe de Bert é juquienesa. — O desajeitamento de Scragger piorou.

— Onde está sua mãe, Fred?

— Está morta, Excelência — disse o pirralho, num engasgo. — Ela está morta, senhorrr.

— Morreu há dois anos. O escorbuto a levou — disse Scragger.

— Há mulheres inglesas na frota de vocês?

— Algumas embarcações têm. Vão para lá, rapazes — disse, e seus filhos fugiram para onde ele estava apontando e ficaram duros feito pedras, num ponto onde não podiam ouvir o que se falava. Wu Pak hesitou e, depois, correu para perto deles, ficando bem juntinho.

Scragger baixou a voz.

— A mãe de Fred era prisioneira. Pegou dez anos de deportação por roubar carvão no mais frio do inverno. Fomos casados por um padre, na Austrália, mas ele era um renegado, e então talvez não valesse. Éramos casados, de qualquer maneira. Eu jurei a ela, antes que morresse, cuidar bem do menino.

Struan pegou outros papéis.

— Estes me dão a guarda dos meninos. Até terem vinte e um anos. Você pode assinar por seus filhos, mas como será com Wu Pak? Deveria ser assinado por um parente.

— Vou colocar minha marca em todos. Pode me dar uma cópia para eu mostrar a Wu Fang? O que eu assinei?

— Sim. Você pode levar um.

Struan começou a colocar os nomes, mas Scragger o deteve.

— Tai-Pan, não ponha Scragger nos meninos. Ponha outro nome. Qualquer um que você quiser. Não, não me diga qual — acrescentou, depressa. — Qualquer nome. Pense num bom nome.-O suor porejava em sua testa. Seus dedos tremiam, quando ele pegou o lápis e fez sua marca. — Fred deve me esquecer. E à sua mãe. Faça o melhor que puder por Bert, hein? A mãe dele é ainda minha mulher e ela não é ruim, para uma pagã. Faça o melhor que puder por eles, e terá um amigo pelo resto da vida. Faço o meu juramento. Ambos precisam ser ensinados a rezar direito suas orações. — Assoou o nariz nos dedos e os enxugou nas calças. — Wu Pak precisa escrever uma vez por mês a Jin-qua. Ah, sim, e você manda as contas para Jin-qua, pela escola e o resto. Uma vez por ano. Todos devem ir para a mesma escola e comer juntos.

Ele fez sinal para o menino chinês. Wu Pak adiantou-se, hesitante. Scragger fez um sinal com o polegar em direção aos botes e o menino foi embora, obedientemente. Depois, fez sinal para seus filhos.

— Agora eu vou embora, rapazes.

Os meninos correram até onde se encontrava, e se agarraram a ele, implorando-lhe para não mandá-los embora, com as lágrimas escorrendo e esmagados pelo terror. Mas ele os empurrou e forçou a voz a ficar dura.

— Vão embora, agora. Obedeçam ao Tai-Pan, aqui. Ele vai ser como um pai para vocês.

— Não nos mande embora, papai — disse Fred, em tom de lamentação. — Eu sou um bom menino. Bert e eu somos bons meninos. Papai, não nos mande embora.

Estavam perdidos na imensidão de sua dor, com os ombros soerguidos.

Scragger pigarreou ruidosamente e cuspiu. Depois de hesitar um segundo, puxou sua

faca e pegou o rabicho de Bert. O eurasiano gritou de horror e tentou libertar-se. Mas Scragger cortou o rabicho e esbofeteou o menino, que estava histérico, com força suficiente para fazê-lo sair do seu choque, mas sem machucá-lo.

— Ah, papai — disse Fred, tremulamente, com sua vozinha esganiçada — você sabia que Bert prometeu à mãe dele conservar o cabelo direito.

— É melhor eu fazer isso, Fred, antes que outra pessoa faça — disse Scragger, com a voz cheia de dor. — Bert não precisa disso, agora. Ele vai ser um grã-fino, como você.

— Não quero ser grã-fino, quero ficar em casa.

Scragger despenteou os cabelos de Bert pela última vez. E de Fred.

— Adeus, meus filhos — disse ele.

Saiu correndo e a noite o engoliu.


 

— Por que ir tão cedo, Tai-Pan? — perguntou May-may, sufocando um bocejo. — Duas horas de sono, a noite passada, não são suficientes para você. Vai perder seu vigor.

— Vamos, moça! E eu já lhe disse que não precisa me servir.

Struan empurrou o prato de seu desjejum e May-may lhe despejou mais chá. Era uma linda manhã. O sol lançava seus raios através das janelas de treliça e formava delicados desenhos no chão.

May-may tentou fechar os ouvidos às batidas e ao ruído de serras das contrações ao longo de toda a praia, no Vale Feliz, mas não conseguiu. O baralho era permanente e esmagador, noite e dia, desde que haviam chegado, três dias atrás.

— Há muita coisa para ser feita, e eu quero ter certeza de que os preparativos para o baile marcham bem — disse Struan.

— Vai começar uma hora antes do anoitecer.

May-may estremeceu de delícia, ao se lembrar do seu vestido secreto e de como era bonito.

— Tomar o desjejum ao amanhecer é um costume barbarista.

— Bárbaro — ele corrigiu. — E não está amanhecendo. São nove horas.

— Parece amanhecer. — Ela ajeitou mais confortavelmente seu robe de seda amarela, sentindo os bicos dos seios duros contra o tecido. — Quanto tempo vão demorar esses barulhos horrorosos?

— Vão parar dentro de mais ou menos um mês. E não há trabalho aos domingos, é claro — disse ele, quase sem escutá-la, pensando a respeito de tudo que teria de fazer naquele dia.

— É barulho demais — disse ela. — E tem alguma coisa errada nesta casa.

— O quê? — perguntou ele, distraído, sem escutar.

— Está dando uma má impressão, uma impressão péssima. Tem certeza de que o feng-shui está correto, hein?

— Feng o quê? — Ele ergueu os olhos, espantado, e prestou-lhe completa atenção. May-may estava horrorizada.

— Você não procurou um cavalheiro feng-shui?

— Quem é esse?

— Pelo sangue de Cristo, Tai-Pan! — ela disse, exasperada. — Você constrói uma casa e não consulta o feng-shui? Que loucura! Ayeee yah! Vou tratar disso hoje.

— O que faz o cavalheiro feng-shui — perguntou Struan — além de custar dinheiro?

— Verifica se o feng-shui está correto, é claro.

— E o que, pelo amor de Deus, é feng-shui?

— Se o feng-shui está ruim, os espíritos do mal entram na casa e a pessoa tem um mau pagode terrível e doenças terríveis. Se o feng-shui for bom, então não entram maus espíritos. Todos sabem a respeito do feng-shui.

— Você é uma boa cristã e não acredita em espíritos do mal e nem em bruxaria.

— Concordo plenamente, Tai-Pan, mas o feng-shui é tremendamente importante para as casas. Não se esqueça de que estamos na China, e na China...

— Muito bem, May-may — ele disse, com resignação. — Consiga um cavalheiro feng-shui para fazer bruxaria, se você precisa disso.

— Ele não faz bruxaria — ela disse, em tom de importância. — Verifica se a casa está em boa posição, diante das correntes do Céu-Terra-Ar. E de que não é construída num poço de dragão.

— Ah?

— Ah, meu bom Deus, como diz você, às vezes! Isso seria horrível, porque então o dragão que dorme na terra não poderia mais dormir em paz. Pelo sangue de Cristo, espero que não estejamos em seu pescoço! Ou na cabeça! Você poderia dormir com uma casa em seu pescoço, ou na cabeça? Claro que não! Se o sono do dragão for perturbado, claro que coisas muito terríveis acontecerão. Teríamos de nos mudar imediatamente.

— Ridículo!

— Muito ridículo, mas nós nos mudaríamos, de qualquer jeito. Eu, ah, eu protejo nós dois. Ah, sim. É muito importante a gente proteger nosso homem, e nossa família. Se a casa estiver construída em cima de um dragão, nós nos mudaremos.

— Então é melhor você dizer ao cavalheiro feng-shui para ter o cuidado de não encontrar nenhum dragão por aqui, por Deus. Ela fez um gesto de amuo com o queixo.

— O cavalheiro do feng-shui não vai ensinar você a pilotar um navio... por que você quer ensinar a ele alguma coisa a respeito de dragões, hein? Não é fácil ser um cavalheiro do feng-shui.

Struan ficou satisfeito de ver que May-may começava de novo a ser ela mesma. Notara que, desde a volta a Cantão, de Macau, e durante a viagem para Hong Kong, ela parecia ressentida e distraída. Particularmente nos últimos dias. E ela tinha razão, o barulho era muito desagradável.

— Bom, eu estou saindo.

— Seria correto eu convidar Marr-rry Sin-clcãr hoje?

— Sim. Mas não sei onde ela está... e nem se já voltou.

Ela está na nau capitania. Chegou ontem, com sua ama, Ah Tat, e seu vestido de baile. É preto e muito bonito. Vai custar a você duzentos dólares. Ayeee yah, se você me deixasse ajeitar o vestido, eu economizaria sessenta ou setenta dólares para você, pode ter certeza. A cabina dela é vizinha à do irmão.

— Como você sabe de tudo isso?

— Sua ama é a quarta filha da irmã da mãe de Ah Sam. De que adiantaria uma escrava insinuante como Ah Sam, se ela não mantivesse a mãe informada e nem tivesse contatos?

— Como a mãe de Ah Sam lhe contou?

— Ah, Tai-Pan, você é tão engraçado — exclamou May-may. — Não é a mãe de Ah Sam, sou eu. Todas as escravas chinesas chamam sua patroa de “Mãe”. Exatamente como ela chama você de “Pai”.

— É mesmo?

— Todas as escravas chamam o dono da casa de “Pai”. É um costume antigo e muito cortês. Então Ah Tat, escrava de Marry, contou a Ah Sam. Ah Sam, que é uma bobalhona preguiçosa e inútil, bem precisada de umas boas surras, então contou à sua “mãe”. A mim. É realmente muito simples. E, se você falasse um idioma chinês, chamaria Ah Sam de “Filha”.

— Para que você quer ver Mary?

— Ficar sem conversar dá muita solidão. Só falo cantonês, não se preocupe. Ela sabe que eu estou aqui.

— Como?

— Ah Sam contou a Ah Tat — ele disse, como se estivesse dando explicações a uma criança. — Naturalmente, uma notícia tão interessante, Ah Tat tinha de contar à sua mãe — ela contou a Marrry. Aquela puta velha da Ah Tat é uma mina de jade de segredos.

— Ah Tat é uma prostituta?

— Pelo sangue de Cristo, Tai-Pan, só estou falando em linguagem figurada. Você realmente devia voltar para a cama. Está muito tolo hoje de manhã. Ele terminou seu chá e empurrou o prato.

— Não é de admirar, ouvindo tantos disparates. Vou almoçar com Longstaff, então darei o recado a Mary. Que; hora eu devo marcar?

— Obrigada, Tai-Pan, não se incomode. Ah Sam será melhor. Assim ninguém saberá, a não ser as criadas e elas sabem tudo, de qualquer jeito, pode ter certeza.

 

Lim Din abriu a porta. Era o criado pessoal de Struan, além de cozinheiro, um homenzinho atarracado, na casa dos cinqüenta, muito limpo, com suas calças negras e túnica branca. Tinha um rosto redondo e feliz, e olhos penetrantes, astutos.

— Senhor, a senhorita e o senhor vieram visitar. Pode?

— Senhor o quê? — Struan estava espantado de alguém ser tão descortês a ponto de aparecer sem ser convidado. Lim Din encolheu os ombros.

— Senhor e senhorita. Quer ver que senhor, que senhorita?

— Ah, não se incomode — disse Struan, e se levantou da mesa.

— Está esperando convidados? — perguntou May-may.

— Não.

Struan saiu da sala e entrou na pequena ante-sala. Abriu a porta mais afastada e fechou-a atrás de si. Passou ao corredor que conduzia ao saguão e aos aposentos separados, na frente da casa. E, no momento em que chegou ao corredor, soube que um dos visitantes era Shevaun. Seu perfume, uma fragrância turca especial que só ela usava, havia mudado delicadamente a qualidade do ar.

Seu coração bateu mais rápido e sua raiva diminuiu, enquanto caminhava pelo corredor, com suas macias botas curtas de couro estalando contra o chão de pedra, e se encaminhava à sala de estar.

— Olá. Tai-Pan — disse Shevaun.

Shevaun tinha vinte anos e era graciosa como uma gazela. Usava o cabelo ruivo escuro, mais escuro do que o de Struan, em longos cachos. Seu busto volumoso, sob o vestido de veludo verde discretamente decotado, erguia-se sobre uma cintura muito delgada. Seus tornozelos e pés delicados apareciam sob uma dúzia de anáguas. Seu gorro era verde, e a sombrinha de um laranja forte.

Sim, pensou Struan, cada dia ela está mais bonita.

— Bom-dia, Shevaun, Wilf.

— Bom-dia. Desculpe aparecer sem ser convidado. — Wilf Tillman estava muito constrangido.

— Ah, vamos, tio — disse Shevaun, alegremente — é um bom e velho costume americano fazer votos de felicidades para casa.

— Não estamos na América, querida.

Tillman desejava estar, hoje. E que Shevaun estivesse casada, em segurança, com Jeff Cooper, e não mais sob sua responsabilidade. Maldita Shevaun. E maldito Jeff, ele pensou. Eu queria muito que o homem fizesse seu pedido formalmente. Então eu poderia, simplesmente, anunciar o casamento, e tudo acabaria bem. Mas toda essa indecisão em torno do assunto é ridícula. “Vamos dar tempo a ela. Há muito tempo”, Jeff está sempre dizendo. Mas eu sei muito bem que há muito pouco tempo, agora que Struan está viúvo. Tenho absoluta certeza de que Shevaun está caída pelo Tai-Pan. Por que outro motivo insistiria em vir aqui, hoje de manhã? Por que não pára de fazer perguntas a respeito dele?

Todo o caminho até à casa de Struan, ele estivera ponderando sobre a possível sabedoria de uma união entre Struan e Shevaun. Naturalmente, poderia haver vantagens financeiras definidas, mas Struan era totalmente oposto ao estilo de vida deles, na América — ele, simplesmente, não entenderia.

Com certeza, iria virar Shevaun contra nós, pensou Tillman. Forçaria as coisas, através dela. Jeff ficaria furioso com a perda dela e, provavelmente, romperia a sociedade Cooper-Tillman. Não há nada que eu possa fazer para impedir isso. Se a companhia se desfizer, não haverá dinheiro para o irmão John oferecer recepções tão luxuosas, em Washington. A política é cara e, sem um apoio político, a vida será muito difícil para a família. Além disso, precisamos de qualquer ajuda disponível para enfrentar os malditos Estados do Norte. Não, pelo amor de Deus. Shevaun vai casar com Jeff e não com o Tai-Pan, não há dúvida.

— Desculpe vir sem ser convidado — ele repetiu.

— São ambos muito bem-vindos. — Struan fez sinal a Lim Din, em direção ao garrafão de bebida e aos copos. — Xerez?

— Ah, obrigado, mas acho que já vamos — disse Tillman. Shevaun riu e seu nariz arrebitado se enrugou graciosamente.

— Mas mal acabamos de chegar. Eu queria ser a primeira a dar as boas-vindas a você e à sua casa, Tai-Pan — disse ela.

— Está dando. Sente-se. É bom ver você.

— Compramos alguns presentes para a casa. — Ela abriu a sacola e tirou um pequeno pão, um vidrinho de sal e uma garrafa de vinho. — É um velho costume, a fim de trazer sorte para a casa. Eu queria vir sozinha, mas o tio disse que seria de péssimo gosto. Não é absolutamente culpa dele.

— Estou feliz porque você veio. — Struan pegou o pão. Era dourado, com a massa fresca e cheirosa..— Cozinhei-o a noite passada. Struan partiu um pedaço e provou-o. — Excelente!

— Na verdade, você não precisava comer. É apenas simbólico. — Ela riu outra vez, pegou sua sacola e a sombrinha. — E, agora que já cumpri meu dever, nós vamos embora.

— Meus primeiros convidados não vão fazer uma coisa dessas. Eu insisto, pelo menos um xerez.

Lim Din ofereceu os copos. Shevaun pegou um e se instalou confortavelmente, enquanto Wilf Tillman franzia a testa. Lim Din afastou-se.

— Você realmente cozinhou o pão? Sozinha? — Struan perguntou.

— É muito importante uma moça saber cozinhar — ela disse, e devolveu-lhe o olhar, com um jeito desafiador. Tillman bebeu o xerez.

— Shevaun é uma boa cozinheira.

— Vou comer um pão por dia — disse Struan. Ele se sentou na poltrona de couro e ergueu o copo. — Muitos anos de vida!

— Para você também.

— Sua casa é bonita, Tai-Pan.

— Obrigado. Quando estiver terminada, eu gostaria de lhe mostrar todos os cômodos. — Struan sabia que ela estava curiosa para descobrir se os boatos a respeito de May-may eram verdadeiros. — Aristotle disse que você não estava bem a última vez em que a viu.

— Foi apenas um resfriado — ela disse.

— Vai mandar fazer outro retrato?

— Estou pensando nisso — disse ela, tranqüilamente. — O querido Sr. Quance. Admiro tanto os quadros dele. Titio e eu estamos tentando convencê-lo a passar uma temporada, como experiência, em Washington. Acho que ele ganharia uma fortuna.

— Nesse caso, eu acho que você teria um visitante. — Struan ficou imaginando se a inocência no rosto dela era fingida ou real. Olhou para Tillman. — Como vão os negócios?

— Excelentes, obrigado. Jeff volta de Cantão hoje à tarde. As coisas estão explodindo na Colônia. Você voltará para lá?

— Dentro de poucos dias.

— Ouvi dizer que o Blue Cloud e o Gray Witch estão empatando. Um de nossos navios, vindo de Cingapura, passou por eles há dois dias, em plena velocidade. Vai depender de sorte.

 

Enquanto os dois homens conversavam, polidamente, sobre questões comerciais, nenhum deles realmente interessado na opinião do outro, Shevaun bebia seu xerez e examinava Struan. Ele estava vestido com um terno de lã leve, bem cortado e elegante.

Você é um homem e tanto, ela pensou; talvez não saiba, Dirk Struan, mas vou casar com você. Fico imaginando como será sua amante oriental; sinto a presença dela na casa. Amante ou não, eu sou a moça para você. E, quando eu for sua mulher, você não vai precisar se afastar, por muito tempo. Por muitíssimo tempo.

— Bom, acho que já vamos — disse Tillman, e se levantou. — Mais uma vez, desculpe por chegar sem convite.

— São sempre bem-vindos.

— A propósito, Tai-Pan — disse Shevaun — pelo que eu soube, as senhoras não estão convidadas para a luta desta tarde. Quer apostar um guinéu no homem da Marinha por mim?

— Meu Deus, Shevaun — disse Tillman, chocado. — Você não deve dizer essas coisas! Não fica bem para uma moça!

— Você é muito desonesto — disse ela — e antiquado. Vocês homens apreciam uma luta, por que nós não deveríamos apreciar? Vocês homens gostam de jogar, mas nós não podemos, é?

— É uma boa pergunta, Shevaun. — Struan se divertia com o constrangimento de Tillman.

— Afinal, é um costume oriental. — Ela olhou inocentemente para Struan. — Ouvi dizer que os chineses jogam o tempo todo, especialmente as mulheres. Struan, complacentemente, ignorou a observação.

— Jogar é um mau hábito — disse Tillman.

— Concordo plenamente, tio. Quanto você já apostou?

— Uma coisa nada tem a ver com a outra.

Struan riu.

— Com sua permissão, Wilf, vamos satisfazê-la. Um guinéu na Marinha?

— Obrigada, Tai-Pan — disse ela, antes de Tillman poder responder, e estendeu a mão enluvada para Struan. — É apenas uma questão de princípio. Você é muito compreensivo.

Ele deixou que a mão dela repousasse na sua um momento mais do que o necessário e depois beijou-a, fascinado pelo pensamento de domá-la. Em seguida, levou os dois até a porta.

— Eu os verei esta noite.

— Se eu não ganhar aquele prêmio, ficarei desesperada. E também irei para a prisão, por dívidas.

— Você não irá, Shevaun, mas seu pobre pai e tio, que sofrem há tanto tempo, talvez vão mesmo — disse Tillman.

Quando partiram, Struan voltou para os alojamentos de May-may.Ela fitou-o, friamente.

— O que há de errado?

— Aquela maldita e melosa prostituta está atrás de você. É isso que está errado.

— Não seja tola e não fique aí praguejando! E como você a viu?

— Ora! Será que eu não tenho olhos? Não tenho nariz? Para que tanto estudei o projeto da casa, hein, horas a fio? Para que fosse planejada de modo a eu poder ver quem vem aqui e quem passa sem ser vista. Ora! Aquela putinha de merda está atrás de você, para casa!.

— Para casar — ele corrigiu.

— Beijando a mão dela, hein? Por que não beija minha mão? — Ela fechou o bule, com estrépito. — Por que ficou olhando para ela com os olhos de bezerro atrás da vaca, hein? Ayeee yah!

— Ayeee yah para você. E se fizer mais um comentário assim, eu lhe dou uma surra. Quer levar uma surra?

— Esses homi! — Ela atirou a cabeça para cima. — Esses homi!

— Homens... não homi. Eu já lhe disse isso mais de mil vezes.

— Esses homens! — May-may, toda trêmula, se serviu de um pouco de chá e depois bateu a xícara no pires e se levantou. — Ouvi dizer que os homi chineses jogam muito, ispicialmente as mulheres — ela disse, imitando Shevaun, erguendo o busto para lhe dar maior volume e balançando o traseiro. — E você fica sentado ali devorando os peito dela com o olhar. Pra meus peito você não olha, né?

Struan, tranqüilamente, depôs sua xícara de chá e se levantou. May-may refugiou-se do outro lado da mesa.

— Não estou dizendo nada, não se preocupe — disse, depressa.

— Foi o que eu pensei. — Ele, calmamente, acabou de tomar seu chá e ela ficou a olhá-lo, sem se mexer, mas pronta para fugir. Ele colocou a xícara no pires.

— Venha cá.

— Ah! Eu tenho medo quando seus olhos lançam fogo verde.

— Venha cá. Por favor — ele acrescentou, com doçura. Ela estava quase vesga de raiva e ele a achou parecida com um dos gatos siameses que vira em Bancoc. Tão rancorosa como eles, pensou.

Cautelosamente, ela se aproximou, sempre pronta para escapar, ou fazer uma investida, de unhas em riste. Ele, gentilmente, deu-lhe pancadinhas na face e se virou para a porta.

— Seja uma boa menina.

— Tai-Pan! — May-may, imperiosamente, estendeu a mão para ser beijada.

Fazendo força para não sorrir, ele voltou e, com galanteria, beijou-lhe a mão. Depois, forçou-a a se virar, sem tempo de se defender, e lhe deu uma forte palmada no traseiro. Ela arquejou, libertou-se com esforço das mãos dele e deu um pulo, para se proteger atrás da mesa. Ao se ver em segurança, atirou-lhe uma xícara. Esta se espatifou na parede, perto do ouvido dele, e ela pegou outra.

— Não atire isso!

Ela voltou a colocá-la sobre a mesa.

— Muito bem, garota. Uma, tudo bem. Duas já é demais. — Ele se virou para a porta.

— Só estou falando para proteger você — ela gritou. — Proteger daquela puta melosa, feia, com peitos de vaca velha!

— Obrigado, May-may — ele disse, fechando a porta atrás de si.

Ele fingiu seguir pelo corredor e depois ficou à escuta, tentando não rir. A xícara espatifou-se contra o outro lado da porta. O som foi seguido por uma torrente de pragas, depois o nome de Ah Sam e mais pragas.

Alegremente, ele saiu nas pontas dos pés.

 

O Vale Feliz inteiro pulsava de atividade e, enquanto Struan descia o leve declive que levava de sua casa em direção à praia, sentiu um grande orgulho. Muitas edificações estavam em início. As duas maiores eram as grandes feitorias de três andares da Casa Nobre e de Brock e Filhos uma em frente à outra na Estrada da Rainha — prédios enormes contendo armazéns, escritórios e apartamentos, do tipo preferido pelos comerciantes na China e parecidos com os existentes na Colônia de Cantão. No momento, eram apenas carcaças de andaimes externos de bambu, erguendo-se em direção ao céu, com centenas de trabalhadores chineses apinhados em torno. E, ao redor dessas estruturas dominantes, havia dúzias de outros prédios, moradias e desembarcadouros.

À distância, no meio do caminho até o Cabo Glessing, Struan via que o trabalho já começara no estaleiro; uma torrente interminável de cules empilhava pedras e rochas para formar o primeiro dos ancoradouros de águas profundas. Em frente à casinha do capitão de porto, já toda pronta, com exceção do telhado, estavam as muralhas de pedra da prisão, com mais da metade dos trabalhos concluídos. E ao lado do estaleiro, estava o primeiro quartel do exército, com seus andaimes.Struan virou-se em direção oeste, onde estava a série de grandes tendas que abrigavam a sede temporária da companhia. Haviam sido montadas nas imediações do vale. A igreja ainda não tivera sua construção iniciada embora Struan visse homens examinando o topo do outeiro.

— Bom-dia, Robb — disse ele, entrando na tenda.

— Bem-vindo à casa. — Robb não fizera a barba e havia manchas negras sob seus olhos. — Resolveu os problemas lá em Aberdeen?

— Sim. E por aqui, como vão as coisas?

— Bem e mal. Não se pode caminhar pela Estrada da Rainha sem que um montão de mendigos malcheirosos caia em cima da pessoa. E, pior do que isso, estamos trazendo dez mil tijolos de Macau por dia, em sampanas e juncos, e mais de dois mil somem, na manhã seguinte. — Atirou as mãos para cima, violentamente. — E não apenas tijolos... madeira, escrivaninhas, cimento, penas, papel... roubam tudo. Assim, nossos custos de construção vão dobrar. — Jogou uma lista de números — um presente para você... as cifras de custos de sua casa, até agora. Três vezes mais do que Vargas calculou.

— Por que tanto?

— Bom, você quis que fosse construída em três semanas.

— Por mil libras eu quase poderia comprar o quinto de um clíper, ora bolas!

— Se o Blue Cloud não chegar a Londres, estaremos com um terrível problema. Outra vez.

— Chegará.

— Gostaria de ser assim tão confiante — Robb respondeu, agressivamente. Struan sentou-se em sua escrivaninha.

— Qual é o verdadeiro problema, rapaz?

— Ah, não sei. Todo esse roubo, essa mendicância... e há coisas demais para fazer. E esse barulho maldito e constante. Estou cansado, eu acho. Não, não é verdade. Há duas coisas. Em primeiro lugar, Sarah. Ela está atrasada duas semanas e você não tem idéia de como uma mulher fica irritada, quando isto acontece, e a pobrezinha está com medo de morrer. Justificadamente. Não há nada que se possa fazer para ajudar, exceto dizer que tudo vai acabar bem. Além disso, há esse negócio de eu ter ficado. Não paramos de brigar. Ela está absolutamente decidida a ir embora, dentro de um ou dois meses... logo que estiver outra vez em condições.

— Você gostaria que eu conversasse com ela?

— Não. Nada poderá ajudar. Ela já decidiu e, quando Sarah decide, é definitivo. Claro que está encantada por termos ficado ricos de novo, mas vai embora assim mesmo. O baile não ajudou. .. ela está furiosa por se encontrar “grávida, gorda e feia”, como diz de si mesma. Nada que você disser fará a menor diferença.

— Isso é a “primeira” coisa. E a segunda?

— Culum. Você e Culum.

Struan olhou, através da porta da tenda, para o porto e os muitos navios ordenadamente ancorados.

— Ele parece estar muito bem.

— Não é isso que eu queria dizer.

— Deixe as coisas como estão, por enquanto.

— É uma situação muito ruim. Ruim para vocês dois e ruim para a casa.

— Deixe passar algum tempo, Robb.

— Eu estou lhe pedindo. Por favor, perdoe-o. Por favor.

— Deixe o tempo passar, Robb. — Struan virou-se. — Um tempinho.

— Muito bem, Dirk. — Robb enfiou as mãos nos bolsos. — O que aconteceu a noite passada em Aberdeen?

Struan contou-lhe e lhe deu os contratos e papéis de tutela. Mas nada disse a respeito de Wu Kwok, Quemoy e a noite do festival de verão. A noite iria acontecer enquanto ele ainda fosse Tai-Pan, e o que fazer com relação ao assunto era decisão do Tai-Pan — e só dele.

Robb ficou interessado.

— Onde estão os meninos, agora?

— A bordo do Resting Cloud. Deixei-os aos cuidados de Wolfgang. Os homens estão a bordo do China Cloud.

— É melhor mandarmos os meninos para nosso país, logo que possível. Se todos souberem que temos ligações com aqueles malditos piratas... bom, só Deus sabe que problemas teremos de enfrentar.

—O Thunder Cloud está quase cheio de carga. Dentro de quatro ou cinco dias, estará em condições de navegar. Irão nele.

— Vou mandá-los para Whampoa hoje.

— Não, rapaz. Eu mesmo os levarei, amanhã. É mais seguro. Tem muita coisa em jogo em Cantão, então é melhor eu voltar diretamente para lá. Quer ir também?

— Não posso, Dirk. Sarah está muito perto de ter criança. Por que não leva Culum?

— Há muita coisa para fazer aqui.

— Há muita coisa para ensinar a ele a respeito de chá, seda e navegação. Só faltam quatro meses.

— Está bem.

— Qual o seu plano, com relação aos homens?

— Em primeiro lugar, Wolfgang e Gordon vão ensinar-lhes inglês. Dentro de três meses, nós os colocaremos nos clíperes. Nunca mais de um no mesmo navio. E ponha sua esperta cabeça para funcionar, a fim de descobrir como conseguiremos que passem para o

nosso lado.

— Vou tentar. Fico imaginando que maldade Wu Kwok e Scragger estarão maquinando. Não confio neles, nem um pouquinho.

Sim, Struan pensou, imagino o que você faria, Robb, com relação à noite do festival... se soubesse. Você enviaria fragatas. Tendo certeza. E talvez as estivesse mandando para uma armadilha. Será que vou fazer isso? Não sei ainda.

Robb observou, através da porta da tenda, a atividade de construção.

— Se Deus ficar do nosso lado, nesta temporada, vamos alcançar uma grande dianteira, com relação a Brock.

— Sim. — Mas o que fazer com ele? E com Gorth?

— Acho que deveríamos aterrar um trecho de mar e estender os ancoradouros até águas profundas — disse Robb. — Tanto faz executar esses trabalhos agora como no próximo ano.

— Boa idéia, rapaz.

— Com licença, senhor — disse Cudahy, chegando às pressas — mas o senhor me disse para me apresentar imediatamente.

— Entre, Sr. Cudahy — disse Robb. — Como foram as coisas?

— Tudo num abrir e fechar de olhos, senhor. O paquete com a correspondência estava onde o senhor disse. Consegui uma lista dos passageiros, como o senhor queria. Interceptamos o navio ao largo de Pokliu Chau. Estará no porto dentro de três horas. — Cudahy sorriu e depôs um pequeno saco de correspondência. — Desculpe, senhor, mas como soube que o paquete estava chegando? Está adiantado um dia.

— Foi só um palpite, Sr. Cudahy — disse Robb. — Espere lá fora, por favor. — E começou a dar uma olhada em sua correspondência. Cudahy bateu continência e saiu.

— Foi uma idéia brilhante, essa sua — disse Robb — de colocar um vigia na montanha.

— Culum lembrou-se, não foi? — Struan ficou satisfeito, registrou a informação e ainda se sentiu mais satisfeito porque Robb e Culum haviam posto o plano em prática secretamente. — Como vocês trocam sinais?

— Escolhemos um dos funcionários, um sobrinho do velho Vargas, Jesus de Vargas, a fim de olhar para o topo da montanha, a cada quinze minutos. Com telescópio, naturalmente, e em segredo, é claro. Culum elaborou um sistema de sinais, com bandeiras. Agora, podemos dizer se o navio é um paquete, se é um dos nossos, ou de Brock ou de Cooper-Tillman.

 

Examinaram a correspondência. Os jornais e periódicos de três meses eles separaram, para desfrutar com calma. Livros, partituras musicais, peças de teatro, volumes sobre moda para Sarah, ou sobre aperfeiçoamentos náuticos, para Struan, papéis financeiros para Robb.

Em primeiro lugar, os negócios.

O preço das especiarias no mercado de Londres — gengibre, noz-moscada, pimenta e canela — subira apreciavelmente. O do melaço caíra. O preço para compra do chá, devido ao escasso abastecimento, aumentara cinqüenta por cento — o que significava, se

o Blue Cloud chegasse primeiro, que o lucro deles seria superior a duzentos e quarenta mil libras. Sérias perturbações cartistas haviam prejudicado a capacidade das fábricas de algodão do Lancashire e das minas de carvão galesas, o que significava que o custo do óleo de carvão para as lâmpadas iria subir, e o preço dos tecidos de algodão estaria mais alto do que o previsto. O preço do ópio em Calcutá baixara, porque havia supersafra. Então, Struan mudou as ordens dadas ao Sea Cloud, um de seus clíperes nas vias de Hong Kong, e enviou-o urgentemente para Manilha, a fim de receber uma carga de especiarias, em vez de ir a Whampoa, para pegar um carregamento de chá, e mandou em seguida o navio para a Inglaterra, a toda pressa, via Cabo da Boa Esperança. Robb deu instruções a Vargas para comprar todos os metros disponíveis de tecidos de algodão, de fio e linha de algodão, descarregar todos os seus estoques de melaço, e aumentar a encomenda de ópio a ser adquirido em Calcutá e descarregar seus estoques atuais, logo que possível,

E, antes do paquete de correspondência estar ancorado no porto, o Sea Cloud navegava para Manilha, enquanto em três horas de negócios já enriquecera potencialmente em quarenta mil guinéus. Pois em três horas haviam açambarcado o mercado, no tocante aos fornecimentos importados disponíveis de óleo para lâmpadas, mercadorias de algodão, fio e linha de algodão, e especiarias, além de contratarem antecipadamente todo espaço de carga disponível, em todos os navios americanos e ingleses — com exceção das embarcações de Brock e Filhos. Sabiam que, logo após o paquete ancorar e a notícia se espalhar, os compradores correriam às suas portas, a fim de obter algodão e especiarias e fretar navios para levarem tudo, às pressas, à Inglaterra. Ninguém sabia, a não ser os dois irmãos, que o Sea Cloud disparara com a vantagem de pelo menos um dia, e pegaria o melhor do mercado de Londres.— É uma pena que vá nos tomar dois dias, pelo menos, o atendimento às encomendas de todos os nossos clientes e o despacho dos navios para Manilha — disse Robb, alegremente.

— Que pena, Robb, que pena.

— Parece que fizemos um belo trabalho, esta manhã.

 

Estavam em pé, à porta da tenda, observando o paquete descer as âncoras. Em torno dele, apinhavam-se escaleres cheios de homens ansiosos para pegar sua correspondência. Struan deu uma olhada na lista de passageiros que chegavam.

— Meu Deus, veja isto! — Ele empurrou o papel.

Os olhos de Robb voaram pela lista de nomes. E se fixaram. H.R.H. Arquiduque Zergeyev.

— O que um prócer russo estará fazendo na Ásia, hein?

Robb continuou a ler. Esposas de negociantes, três mercadores que voltavam, nomes de homens que nada significavam para ele. Finalmente, chegou lá.

— Maureen Quance e família? — Ele riu, estrondosamente.

— Diabo, não é coisa para rir — disse Struan. — E o julgamento?

— Ah, meu Deus!

 

Há seis anos, a mulher de Aristotle entrara furiosa num navio em Macau, com destino à Inglaterra, acreditando — como todos eles acreditaram — que Aristotle, cujo terror por ela era mortal, fugira para lá. Mas em vez de fugir, ele estava escondido no Estabelecimento para Jovens Refinadas da Sra. Fortheringill — o “E & T”, como os moradores locais chamavam o bordel, as “Enguias Trepadoras”. Aristotle saíra do esconderijo uma semana depois de Maureen partir e só meses após voltara a si e se curara dos “eflúvios do álcool”, Os comerciantes atribuíram seus “eflúvios” a uma sobrecarga em sua recepção à casa. Mas ele negou, veementemente: “Quando alguém está num transe desses, por Deus, não tem nenhuma vontade de partilhar aquilo que, por falta de melhor palavra, só posso descrever como ‘quentão’. Deleitoso, certamente, mas ‘quentão’. Não, meus queridos e equivocados amigos, terror e “quentão’ não são “parceiros de cama.” Ninguém acreditou nele.

— O que faremos? — perguntou Robb.

— Se Aristotle ouvir falar nisso, certamente desaparecerá. Irá embora para Cantão e então estaremos perdidos. Precisamos encontrá-lo primeiro, e mantê-lo escondido até à noite.

— Onde está ele?

— Não sei. Despache grupos de busca. Todos os homens. Que o levem para bordo do Thunder Cloud, sob qualquer pretexto, e ali seja mantido até estarmos prontos para o julgamento. Mande Cudahy para bordo do paquete, imediatamente. Para dizer a Maureen que ela e a família são nossos hóspedes... coloquem-nos a bordo do pontão pequeno. Talvez seja possível mantê-la ocupada até amanhã.

— Você jamais conseguirá fazer isso. Ela sente o cheiro de Aristotle.

— Temos de tentar. Você está preparado para ser o juiz?

— E a luta? Ele não vai perder isso!

— Para fazer um retrato de Sarah, ou de uma das crianças, sim.

Robb saiu correndo.

Struan deu uma olhada em seu relógio. Ele ainda tinha uma hora, antes de precisar chegar à nau capitania. Mandou buscar Gordon Chen e lhe pediu para recrutar trinta chineses, a fim de ficarem como vigias.

— Acho que seria aconselhável, Tai-Pan, como precaução suplementar, ter vigias em sua casa, também — disse Gordon. — Eu ficaria mais satisfeito, se assim fosse.

— Boa idéia, Gordon. Aumente o número de homens para trinta e cinco.

— Temo que a maioria dos chineses vindos para o Tai Ping Shan seja gente de muito maus antecedentes. São quase todos procurados por crimes em Kwangtung e, bom, aqui em Hong Kong estão fora do alcance dos mandarins. — Tirou um rolo de pergaminho do fundo da manga. — Ah, a propósito, fiz um acerto com o Rei dos Mendigos para seu baile, esta noite. — Colocou o rolo sobre a escrivaninha. — Aqui está seu recibo. Posso ser reembolsado pelo compradore?

— Recibo? A troco de quê?

— Três taéis. Este modesto imposto garante que nenhum de seus convidados seja incomodado, esta noite. Também fiz um ajuste mensal muito razoável com ele... três taéis, em seu favor, para que os mendigos fiquem afastados dos limites de sua casa, e da Casa Nobre.

— Não vou pagar isso — explodiu Struan. — Não importa que Macau tenha seu Rei dos Mendigos, ou que todas as cidades da China também. Não vamos deixar que isso comece em Hong Kong, por Deus.

— Mas ele já está aqui, e organizado — disse Gordon Chen, com voz calma. — Que outra pessoa dará autorização para os mendigos? Quem será o responsável, senão ele? A quem se poderá pagar imposto, a fim de conseguir o tratamento especial devido a pessoas de riqueza e posição, como nós próprios? Imploro-lhe para reconsiderar, Tai-Pan. Eu lhe aconselharia, empenhadamente.Garanto-lhe que será dinheiro bem gasto. Pelo menos, experimente por um mês. Não é pedir muito. Então verá a sabedoria desse costume. Com certeza, também, irá servir como proteção para sua propriedade, porque os mendigos dão informações sobre ladrões. É muito necessário, acredite no que lhe digo.

— Está bem — disse Struan, afinal — mas por um mês, não mais.

Rubricou o recibo, sabendo que haveria uma taxa permanente para o Rei dos Mendigos. Não havia nenhuma maneira de combater o hábito, a não ser expulsando todos os chineses de Hong Kong

— Você pode pegar isso com Chen Sheng, amanhã.

— Obrigado.

— O que dá a esse homem, em particular, o direito de ser o Hei dos Mendigos, hein?

— Suponho que os outros confiam nele, Tai-Pan.

Gordon Chen fez uma anotação mental para falar com o homem aquela tarde, a fim de garantir que tudo ocorresse como fora planejado, durante o mês seguinte. Estava muito satisfeito, não apenas com o imposto muito baixo que negociara a favor de Struan — dois taéis, para esta noite, e dois taéis por mês, com o saldo de um tael para si próprio, como justo imposto — mas também por sua previdência, quando pediu a Jin-qua que fornecesse um “Rei” de Cantão. Este homem era o irmão mais jovem do Rei dos Mendigos de Cantão, o que significava ser ele um profissional, bem versado nos métodos de extrair o máximo com o mínimo esforço. E este homem, naturalmente, fora recrutado como funcionário de menor escalão da Hung Mun, na sede de Hong Kong. Um acerto perfeito, disse Gordon Chen a si próprio. O imposto dos mendigos seria uma parte valiosa e permanente das rendas da Tong. Então, ele ouviu seu pai fazer a pergunta pela qual estava esperando.

Já ouviu falar nas Tríades, Gordon?

— Li a proclamação, naturalmente — disse Gordon, com calma. — Por quê?

— Sabe algo a respeito?

— Bom, Tai-Pan, ouvi dizer que, historicamente, as sociedades secretas sempre foram uma forma de defesa contra invasores estrangeiros. E que têm muitos nomes.

— Fique de ouvidos atentos e me mantenha informado, em particular, a respeito do que fizerem, se chegarem a fazer algo. Outra coisa, tenho vinte recrutas chineses em minha frota. Vou treiná-los para imediatos. Você vai trabalhar com o Sr. Mauss ensinando-lhes inglês. E dez outros vão para a Inglaterra, a fim de serem treinados para construtores de navios.

— Sim, senhor.

Gordon ficou radiante. Trinta homens. Claro, trinta novos Tríades. Sim, o nome Tríade soava bem, melhor do que Hung Mun. E vinte desses homens, estrategicamente colocados nos navios da Casa Nobre, representariam um acréscimo imensamente valioso para o poder da sede. Ele se sentiu enormemente satisfeito consigo mesmo. O recrutamento fora ótimo. Todos os servos da Tríade foram colocados sob seu controle — pois, naturalmente, desde que os bárbaros estavam na Ásia, os criados eram membros da Tríade, escolhidos a dedo. Em seguida, Gordon ia formar uma liga de cules de navios, todos eles Tríades. A Liga Operária já estava em andamento avançado. Logo todos os trabalhadores e todos os chineses em Hong Kong seriam membros pagantes — para a glória de seu país e do bem comum. Sim, ele disse a si mesmo, cheio de excitação, aqui em Hong Kong, livres do temor dos mandarins, nós nos tornaremos a sede mais poderosa da China. E quando derrubarmos os manchus, a liderança da sede estará na linha de frente entre aqueles de quem o imperador ficará devedor. Morte aos Chings — que chegue logo

o tempo dos dirigentes por direito, nossa dinastia chinesa anterior, dos Mings.

— Quando poderei começar?

— Amanhã.

— Excelente. Pode ter certeza de que me empenharei. — Ele se curvou ligeiramente. — Talvez, quando lhe convier, eu tenha permissão para ajoelhar-me diante da Sra. T’chung e prestar-lhe meus respeitos. E às crianças. Há meses não os vejo.

— Claro, Gordon — disse Struan. — Venha amanhã, ao meio-dia. Por que não começa a dar lições semanais outra vez? Acho que seria bom para ela.

— Eu gostaria de fazer isso. E de conversar com as crianças. — Gordon tirou mais dois pergaminhos da manga. — Eu tenho as contas correspondentes ao mês passado, relativas ao nosso acordo particular. Gostaria de examinar as cifras?

— Sim.

Gordon abriu os pergaminhos. Um estava escrito em caracteres, outro em inglês.

— Estou satisfeito de poder informar, Tai-Pan, que, com base num investimento inicial de dez mil dólares, temos um lucro conjunto de seis mil e cinqüenta e oito dólares

e quarenta e dois centavos. Os olhos de Struan se arregalaram.

— É um ótimo lucro para um mês de comércio.— Eu estou bastante orgulhoso, também. Nossos investimentos em terras são também excelentes. Prometem grande lucro.

— Mas você não comprou terra nenhuma.

— Não em seu leilão. Mas, ah... andei comprando lotes na localidade de Tai Ping Shan. Foram aprovados pelo, ah... Departamento de Terras na semana passada. E possuímos grandes terrenos em torno da vila de Aberdeen e na Baía Deepwater.

— Mas ainda não foram postos à venda.

— São, ah... terras que estão em mãos de moradores locais, Tai-Pan. Direitos antigos. Comprei todos os títulos existentes, pelo menos todos que até agora descobri existirem.

— Mas isso não é legal, rapaz. Todas as terras são de propriedade da Coroa.

— Sim. Mas claro que alguns acordos terão de ser feitos para, ah... compensar os moradores da vila. Há anos estão aí e, bem... a Coroa é magnânima. — Seus olhos estavam cheios de inocência. — O Sr. Culum achou, segundo me pareceu, que Sua Excelência examinaria favoravelmente os títulos “validados”, creio que é esta a palavra, pelos anciãos da vila.

Fico imaginando que extensão dessa terra “validada” não pertence à vila e nem a ninguém, e nunca pertenceu, disse Struan a si próprio.

— Todos os nossos títulos são “validados”?

— Claro que sim, Tai-Pan, e isto foi verificado muito cuidadosamente. Senão, não teriam valor nenhum, não é? — Gordon sorriu. — Nossas terras estão em nome de ah... vários “testas-de-ferro” nossos, e não possuíamos abertamente, claro, propriedade alguma. Só os títulos originais. Os outros subtítulos, subsub e subsubsubtítulos podem passar pelo mais detalhado escrutínio. Fui muito cauteloso.

— Eu acho que você tem um grande futuro nos negócios, Gordon. — Ele examinou

o balancete minuciosamente. — Que item é este? Dois mil novecentos e setenta e oito dólares?

— São rendas de nossa propriedade no Tai Ping Shan.

— Você cometeu um engano. Segundo as datas que apresenta, esta conta cobre um período de rendas de dois meses, e você só possui a terra há um mês.

— Bom, Tai-Pan, logo que os chineses começaram a se instalar em nossas terras no Tai Ping Shan, comecei a lhes cobrar um imposto de serviço. O fato de não termos realmente adquirido a terra por um mês subseqüente não é da conta deles. Não é mesmo?

— Não. Só que se trata de uma fraude.

— Ah, não, senhor. Os fatos mostram o contrário. O ocupante que chegava queria, naturalmente, a melhor terra disponível para arrendar. Nós recebemos um pagamento à vista... e lhe demos o uso da terra antecipadamente, em boa fé. Ele ficava feliz porque estava pagando “aluguel”, pois, naturalmente, todos têm, de pagar aluguel. A soma é, na verdade, apenas uma taxa por serviço. Corri um grande risco ao fazer o serviço para eles. Se não tivermos conseguido comprar o lote e, assim, dar-lhes o benefício de um longo arrendamento, ora, com certeza teriam caído nas mãos de usuários, ladrões e bandoleiros.

Struan grunhiu.

— O que você planeja fazer com o resto do dinheiro?

— Se me dá permissão para pedir que seja paciente, eu gostaria de deixar este assunto para ser tratado no mês que vem. Continuarei a fazer uso do crédito que foi tão bondoso em me oferecer, mas com grande cautela.

Struan enrolou outra vez o pergaminho e entregou-o de volta.

— Ah, não, Tai-Pan, esta é sua cópia.

— Está bem.

Struan pensou por um momento; depois disse, com delicadeza:

— Ouvi dizer que os chineses estão acostumados a pedir dinheiro emprestado a altas taxas de juros. Confio que nossos investimentos não serão absolutamente usados desta maneira. — Seus olhos estavam fixos nos de Gordon. Houve um longo silêncio — A usura é mau negócio.

— Emprestar dinheiro é um negócio muito importante.

— Com taxas de juros razoáveis.

Gordon brincou com a extremidade de seu rabicho. — Um por cento a menos do que o costumeiro?

— Dois.

— Um e meio seria muito, muito justo.

 

— Sim. Muito justo. Você é um astuto homem de negócios, Gordon. Talvez no próximo ano eu possa melhorar o limite de crédito.

— Farei um esforço para obter lucros soberbos, apesar de sua decisão.

— Eu também aposto que você obterá, Gordon — disse Struan. Ele olhou através da porta da tenda e ficou surpreso ao ver que o mestre-d’armas dos fuzileiros navais corria em direção a eles.

— Sr. Struan? — O mestre-d’armas fez uma brusca continência. — Receba os cumprimentos de Sua Excelência, que lhe pede para ir encontrar-se com ele, imediatamente, na nau capitania.

Struan olhou para seu relógio. Não era tarde, mas ele não disse mais do que “Claro”.


 

Longstaff estava com as costas voltadas para a porta e olhava, através das janelas da cabina principal, para o paquete que trouxera a correspondência. Struan observou que a mesa de jantar estava posta para quatro pessoas. Sobre a escrivaninha havia muitos despachos oficiais.

— Bom-dia, Will.

— Olá, Dirk. — Longstaff virou-se e estendeu a mão, e Struan verificou que há meses ele não parecia tão jovem.

— Bom, isso é curioso, não?

— O quê? — perguntou Struan, sabendo que deveria ser o russo. Mas deixou Longstaff ter o prazer de lhe dizer. Ele também queria saber a opinião de Longstaff porque, embora estivesse deslocado na Ásia e fosse inútil como Capitão-Superintendente de Comércio, Struan sabia que os pontos de vista de Longstaff sobre as questões diplomáticas européias eram incisivos e extremamente sagazes.

 

Desde que Struan conseguira resolver o problema imediato de Aristotle e vira Robb levá-lo para bordo em segurança, ficara a pensar, perplexo, sobre a razão da chegada do russo. Achou-a estranhamente perturbadora, mas não sabia por quê.

— Você não deve ter sabido ainda, mas temos um convidado.

— Ah, quem?

— Um arquiduque, nada mais, nada menos. Um arquiduque russo. Alexi Zergeyev. Ele chegou no paquete que trouxe a correspondência. Struan fingiu surpresa.

— Por que teríamos tal “honra”, aqui na Ásia?

— Por que, realmente? — Longstaff esfregou as mãos, todo satisfeito. — Ele vem almoçar conosco. Clive está a escoltá-lo.

Clive Monsey era o vice-capitão-superintendente de comércio de Longstaff, funcionário público por profissão e, como Longstaff, designado pelo Ministério de Relações Exteriores. Normalmente as funções de Monsey prendiam-no em Macau, onde Longstaff mantinha seu quartel-general permanente.

— Há também alguns despachos interessantes — disse Longstaff.

O interesse de Struan aumentou. Sabia que nenhum deles continha a aprovação formal do Tratado de Chuenpi e a indicação de Longstaff como primeiro governador da Colônia de Hong Kong, porque a notícia do fim da guerra e da vitória mal estaria chegando à Inglaterra. Struan aceitou o xerez.

— Sobre o Oriente Médio? — perguntou, e prendeu a respiração.

— Sim. A crise acabou, graças a Deus! A França aceitou o acordo do Ministro de Relações Exteriores e não há mais temores de uma guerra generalizada. O sultão turco está tão grato pelo nosso apoio que assinou um tratado comercial conosco, cancelando todos os monopólios comerciais turcos, abrindo todo Império Otomano ao comércio britânico.

Struan deu um grito.

— Por tudo que há de mais sagrado! É a melhor notícia que ouço há muito tempo!

— Achei que você iria gostar — disse Longstaff.

 

A longa crise se relacionava com o Dardanelos, estreito que era controlado pelo Império Turco Otomano. Era a chave para a Europa mediterrânea e Um casus belli perpétuo entre as Grandes Potências — Inglaterra, França, Rússia, Áustria-Hungria e Prússia — porque o Dardanelos era um atalho para os navios de guerra russos penetrarem no vital Mediterrâneo, e também para belonaves de outras nações entrarem no Mar Negro e ameaçarem o fraco baixo-ventre da Rússia. Há oito anos, a Rússia compelira a Turquia a assinar um tratado que dava aos russos suzerania conjunta sobre o Dardanelos, e a tensão internacional tornara-se aguda, desde então. Mas, há três anos, Mehemet Ali, o arrivista soldado-paxá do Egito, apoiado pelos franceses, iniciara um ataque a Constantinopla, proclamando a si próprio Califa do Império Otomano. A França, aberta e delicadamente, apoiou-o contra o sultão. Mas um aliado francês no caminho de Dardanelos colocaria em risco os interesses das Grandes Potências restantes, e toda Europa prometia envolver-se imediatamente em conflito aberto outra vez.

O Ministro de Relações Exteriores britânico, Lord Cunnington, persuadira as Grandes Potências — além da França, e sem consultá-la — a usar sua influência ao lado do sultão contra Mehemet Ali. A França ficou furiosa e ameaçou fazer guerra. O acordo proposto era no sentido de que Mehemet Ali se retirasse para o Egito; recebesse suzerania sobre a Síria enquanto vivesse; fosse confirmado como governante independente do Egito; pagasse apenas um tributo anual nominal ao sultão turco; e, o que era o mais importante, o antigo domínio do Estreito de Dardanelos fosse garantido por todas as potências, em caráter definitivo — enquanto a Turquia estivesse em paz. o estreito permaneceria fechado a todos os navios de guerra, de todas as nações.

O fato de a França ter aceitado o proposto acordo e a retirada de seu aliado egípcio significava riquezas para a Casa Nobre.Agora, os complexos acordos financeiros nos quais Robb e Struan haviam apostado tanto, por dois anos, seriam solidificados. Sua potência comercial iria estender-se, através de tentáculos financeiros, até o coração das Grandes Potências, dando-lhes a segurança suficiente para enfrentar a contínua crise internacional e abrir enormes mercados novos para o chá e a seda. Além disso, se o interesse britânico agora dominava o Império Otomano, talvez sua produção de ópio fosse impedida. Sem o ópio turco para equilibrar seu extravasamento de barras de prata, as companhias americanas teriam de aumentar o comércio com a Inglaterra, e os laços mais íntimos que Struan desejava com a América se transformariam em realidade. Sim, disse Struan a si mesmo, feliz, este é um ótimo dia. Estava aturdido com o fato de Longstaff ter recebido as notícias oficiais antes dele; os informantes de Struan no Parlamento habitualmente o aconselhavam sobre importantes revelações como essa com grande antecipação.

— Isto é excelente — disse.

— Haverá paz por um longo tempo, agora. Desde que a França não tente mais nenhum truque.

— Ou a Áustria-Hungria. Ou a Prússia. Ou a Rússia.

— Sim. O que nos leva a Zergeyev. Por que um russo muito importante viria à Ásia nesta ocasião? E por que não tivemos nenhum aviso oficial e nem extra-oficial, hein? Quando controlamos todas as vias marítimas a leste da África?

— Talvez ele só esteja fazendo uma visita oficial ao Alasca russo, e veio via Cabo da Boa Esperança.

— Aposto cem guinéus que ele diz isso — observou Longstaff. Instalou-se confortavelmente numa cadeira e pôs os pés sobre a mesa. — Zergeyev é um nome importante em São Petersburgo. Vivi ali por cinco anos, quando era menino... meu pai foi diplomata na corte dos tzares. Tiranos, todos eles. O atual, Nicolau I, é típico.

— Zergeyev é importante em que sentido? — perguntou Struan, surpreso com o fato de Longstaff jamais ter mencionado São Petersburgo, em todos os anos durante os quais o conhecera.

— Grandes proprietários de terras. Aparentados com o tzar. Eles “possuem” dezenas de milhares de servos e centenas de vilas, pelo que me lembro. Eu me recordo de ter ouvido meu pai dizer que o Príncipe Zergeyev, deve ser da mesma família, era íntimo dos elementos da corte que cercavam o tzar e um dos homens mais poderosos da Rússia. É curioso encontrar um deles aqui, entre todos os lugares do mundo, não é?

— Acha que a Rússia vai tentar interferir na Ásia?— Eu diria que esse homem é conveniente demais para sua vinda ser uma simples coincidência. Agora que o status quo foi restaurado no Oriente Médio e o caso de Dardanelos resolvido, estoura um arquiduque!

— Acha que existe uma ligação? Longstaff riu, baixinho.

— Bom, o acordo referente ao Oriente Médio claramente detém os avanços da Rússia para oeste, mas o país ainda pode permitir-se sentar e esperar. A França está doida por uma briga, e a Prússia também. Aquele demônio da Áustria-Hungria, Metternich, enfrenta dificuldades para dominar as possessões italianas da nação, e está furioso com a França, e com a Inglaterra, por ajudarem os belgas a formarem seu próprio país, às expensas dos holandeses. Vai haver um grande problema entre a Inglaterra e a França, com relação à sucessão espanhola... a rainha espanhola está com doze anos e logo vai ser dada em casamento. Louis Philippe quer que seu indicado seja o marido dela, não podemos permitir uma união dos tronos da França e da Espanha. A Prússia quer estender seu domínio na Europa que, historicamente a França sempre considerou como seu direito exclusivo e divino. Ah, sim — ele acrescentou, com um sorriso — a Rússia pode permitir-se esperar. Quando o Império Otomano se dividir, ela calmamente tomará toda área dos Bálcãs. Romênia, Bulgária, Bessarábia, Sérvia. e também tudo que puder engolir do Império Austro-Húngaro. Claro que não podemos deixá-la fazer isso, então haverá uma guerra generalizada, a menos que os russos aceitem um acordo razoável. Então, do ponto de vista da Rússia, a Europa não representa atualmente nenhum perigo. A Rússia foi bloqueada efetivamente, mas isto não importa. Sua política histórica foi sempre conquistar pela esperteza... subornar os líderes do país e os líderes da oposição, se esta existir. Para estender o território através da “esfera de influência” e não com a guerra e, depois, obliterar os líderes e engolir o povo. Quando não houver ameaça do Ocidente, eu acho que os olhos dos russos irão voltar-se para leste. Porque eles acreditam ainda, que seu país tem uma posição divina na terra, e também, como a França e a Prússia, tem a missão, destinada por Deus, de dominar o mundo. Para leste, nenhuma Grande Potência fica entre ela e o Pacífico.

— Com exceção da China.

— E nós sabemos, você e eu, que a China é fraca e indefesa. Isto não representa vantagem para nós, não é? Uma China fraca e uma Rússia muito forte, talvez controlando a China?

— Não — disse Struan. — Assim ela poderia estrangular-nos à vontade. E à índia.Os dois homens ficaram em silêncio, cada qual perdido em seus próprios pensamentos.

— Mas, por que mandar para cá um homem importante? — perguntou Struan.

— Para nos testar. A resposta é clara, historicamente. A Rússia é uma semeadora de grãos do descontentamento e sempre será, até descobrir quais são as suas fronteiras naturais, do seu ponto de vista. Ela faz fronteiras com a China, pelo menos, segundo sabemos, então, deve haver problemas aí. Zergeyev está aqui para verificar nosso sucesso. Quanto mais fraca ele pensar que a China é, mais razão terão os russos para apressarem sua expansão em direção ao leste. Então, temos de tentar neutralizá-lo, despistá-lo, fazê-lo pensar que a China é muito forte. Vou precisar de toda ajuda que você puder me dar. Poderíamos convidá-lo para o baile, esta noite?

— Claro.

— Precisamos mostrar, de qualquer jeito, que a China pertence à esfera privada de influência de Sua Majestade... que o Governo de Sua Majestade não tolerará nenhuma interferência aqui.

 

A mente de Struan deu um salto para a frente, rapidamente. Quanto mais a Coroa estivesse envolvida na Ásia, mais ajudaria no plano básico — levar a China para a família das nações, como uma Grande Potência. Quanto mais forte fosse a China, treinada e assistida pela Inglaterra, melhor para o mundo em geral. Sim. E não podemos permitir uma interferência russa despótica, quando nos encontramos no limiar do sucesso.

Houve uma batida à porta e Clive Monsey apareceu no umbral. Era um homem magro, na metade de seus quarenta anos, quieto, modesto, com cabelo ralo e um grande nariz bulboso.

— Excelência -disse ele — posso apresentar-lhe Sua Alteza o Arquiduque Alexi Zergeyev? Longstaff e Struan levantaram-se. Longstaff encaminhou-se para o arquiduque e disse, em russo perfeito:

— Muito prazer em conhecê-lo, Alteza. Por favor, venha sentar-se. Fez uma boa viagem?

— Perfeita, Excelência — respondeu Zergeyev, sem demonstrar surpresa, e apertou a mão estendida, fazendo uma ligeira curvatura, com graça perfeita. — É muita generosidade sua convidar-me para almoçar, quando não tive a cortesia de lhe avisar da minha chegada. E, particularmente, sendo minha visita não oficial e nem programada.

— É uma felicidade para nós, Alteza.

— Eu esperava que fosse o filho do estimado amigo da Rússia, Sir Robert. Esta é uma coincidência muito afortunada.

— Sim, na verdade — disse Longstaff, laconicamente. — E como está seu pai, o príncipe? — perguntou, arriscando um palpite.

— Goza de boa saúde, tenho o prazer de dizer. E o seu?

— Morreu há alguns anos.

— Ah, sinto muito. Mas e sua mãe, Lady Longstaff?

— Muito bem de saúde, tenho o prazer de dizer.

 

Struan estava examinando o russo. Zergeyev era um belo homem, alto, vestido de maneira impecável e rica. Pômulos salientes e olhos azuis curiosos, ligeiramente oblíquos, davam-lhe ao rosto uma expressão exótica. A espada embainhada que tinha à cintura, sob

o casaco aberto, parecia pertencer àquele lugar. Em torno ao pescoço, sob sua imaculada gravata branca, havia uma discreta condecoração de alguma ordem, sobre uma fina fita escarlate. Não era um homem para se brigar, pensou Struan. Aposto que ele é um demônio com a espada e um demônio quando sua “honra” é ferida.

— Permita-me apresentar-lhe o Sr. Dirk Struan — disse Longstaff, em inglês.

O arquiduque estendeu a mão, sorriu e acrescentou num inglês com apenas levíssimo sotaque:

— Ah, Sr. Struan, o prazer é todo meu.

Struan apertou-lhe a mão e achou que o aperto de Zergeyev era de aço.

— O senhor me coloca em posição de desvantagem, Alteza — disse ele, sendo deliberadamente brusco e não diplomático. — Tenho a nítida impressão de que sabe muito a meu respeito, mas nada sei sobre o senhor.

Zergeyev riu.

— O Tai-Pan da Casa Nobre tem uma reputação que chega até São Petersburgo. Esperava ter o privilégio de conhecê-lo. E estou ansioso para conversar e lhe contar a meu respeito, se isto lhe interessa. — Ele sorriu para Longstaff. — É generoso demais para comigo, Excelência. Garanto-lhe que informarei a Sua Alteza o Tzar que o plenipotenciário de Sua Majestade Britânica é muito hospitaleiro. Agora que tive o prazer de conhecê-lo, vou retirar-me e permitir que continuem a tratar de questões de Estado.

— Ah, não, Alteza, por favor, nós o esperávamos para o almoço. — Longstaff animou-se com a tarefa para a qual havia sido preparado e da qual entendia. — Ficaríamos muito desapontados. E é completamente informal, como pode ver.

 

— Bem, obrigado. Eu consideraria uma honra.

A porta se abriu e um camaroteiro entrou com champanha gelado e copos. Ele ofereceu a bandeja a Zergeyev, depois a Longstaff e Struan e em seguida a Monsey.— A uma viagem segura para casa — disse Longstaff.

Beberam.

— Soberbo champanha, Excelência. Soberbo.

— Sente-se, por favor.

 

O almoço foi servido dentro de um protocolo impecável, Zergeyev sentado à direita de Longstaff e Struan à esquerda. Os camaroteiros trouxeram salsichas e ostras defumadas, presuntos de Yorkshire, um cozido borbulhante de carne recém-abatida, pernil assado de carneiro, batatas cozidas e repolho em picles.

— Sinto não ter caviar — disse Longstaff.

— Ficaria satisfeito em lhe oferecer um pouco, Excelência, logo que meu navio chegar. Tivemos a infelicidade de enfrentar uma tempestade no Estreito Sunda. Sofremos um rombo e arribamos em seu porto de Cingapura. O paquete estava partindo na mesma maré, e então comprei passagem para cá.

E assim evitou nos dar notícia antecipada, pensou Longstaff. O Estreito de Sunda significava uma viagem via Cabo da Boa Esperança. O que diabo pretendia ele?

— Ouvi dizer que o clima de Cingapura não é bom, Sr. Struan, nesta época do ano — dizia Zergeyev.

— Sim, é verdade — disse Struan. — Esta é sua primeira viagem para a Ásia, Alteza?

— Sim.

— Bom, talvez possamos tornar sua estada agradável. Estou dando um baile, esta noite. Ficaria honrado, se comparecesse. Isto lhe daria a oportunidade de conhecer a todos.

— É muita gentileza sua.

— Por quanto tempo planeja ficar?

— Só até meu navio chegar. Estou fazendo uma visita informal às nossas possessões no Alasca.

— O navio ficou muito danificado?

— Realmente não sei, Sr. Struan. Não tenho muita experiência dessas coisas. Virá para cá logo que possível.

— Então, vai precisar de acomodações — disse Struan. Ele suspeitava que Zergeyev sabia muito a respeito “dessas coisas” e que o “defeito” de seu navio seria uma maneira conveniente de variar a seu gosto a duração da permanência. Struan também tinha um palpite de que Cingapura seria o primeiro porto a ser tocado, numa viagem ao exterior partindo de São Petersburgo.

— Ficaremos satisfeitos de lhe oferecer uma suíte a bordo de um de nossos navios parados. Não será luxuosa, mas nos esforçaremos para lhe oferecer conforto.

— É uma gentileza imensa de sua parte. Somos apenas eu e quatro servos. Eles podem dormir em qualquer parte.

— Providenciarei para que fiquem bem instalados. Ah, obrigado — disse Struan ao camaroteiro, enquanto seu copo era outra vez cheio. — Trata-se de um brigue de quatro mastros?

— Três.

— Na verdade, prefiro os de três mastros. É muito mais fácil de manobrar em mar alto. As velas são mais fáceis de rizar. Tem sobrejoanetes e gáveas.

— O navio parece ter um número adequado de velas, Sr. Struan. Seja lá quais forem seus nomes.

 

Struan captara a imperceptível hesitação e teve certeza de que Zergeyev era um homem do mar. E por que desejaria esconder isto?

— Ouvi dizer que a crise do Oriente Médio foi resolvida — disse Zergeyev.

— Sim — respondeu Longstaff. — A notícia chegou pelo paquete.

— Que ótimo. A França foi muito sábia, desistindo de sua posição militante.

— A importância de Dardanelos para a Inglaterra é óbvia — disse Longstaff. — É vantajoso para todos nós manter a paz.

— É uma pena que a França e a Prússia, pelo que parece, tenham posições contrárias. E os Habsburgos. A Inglaterra e a Rússia são aliadas tradicionais e seus interesses se assemelham, É um pensamento feliz, o de que estaremos trabalhando mais próximos, no futuro.

— Sim — disse Longstaff, com brandura. — Claro que Paris está muito próxima de Londres.

— Não é uma pena que aquela gloriosa cidade sempre encontre, pelo que parece, os líderes mais estranhos? — disse Zergeyev. — Um belo povo, belo. Entretanto, seus líderes estão sempre inchados de vaidade e decididos a semear no mundo a discórdia.

— O grande problema do mundo, Alteza. A Europa, e como conter a vaidade dos príncipes. Claro, na Inglaterra temos a sorte de possuir um Parlamento, e o poder da Grã­Bretanha não é mais posto a serviço da guerra pelo capricho de um só homem.

— Sim. É uma grande e gloriosa experiência, adequada para os esplêndidos atributos de seu país, senhor. Mas não é adequada para todas as nações. Não foram os antigos gregos que concluíram ser a mais perfeita forma de governo uma ditadura benévola? O governo de um só homem?

— Benévola, sim. Mas eleita. Não um governante por direito divino.

— Quem pode dizer, com absoluta certeza, que o direito divino não existe?

— Ah, Alteza — disse Longstaff — ninguém questiona a existência de Deus. Só o direito de um rei fazer o que quer, quando quer, sem consultar o povo. Tivemos uma longa dinastia de reis ingleses “divinos”, que descobrimos serem falíveis. A falibilidade num líder é muito penosa. Não é? Eles derramam tanto sangue dos outros.

Zergeyev deu uma risadinha.

— Amo o humor dos ingleses. — Ele deu uma olhada em Struan. — É escocês, Sr. Struan?

— Sim. Britânico. Não há diferença entre os escoceses e os ingleses atualmente. — Ele bebeu seu vinho. — Estamos cansados de roubar o gado deles. Achamos que seria melhor roubar o país inteiro e então saímos da Escócia e marchamos para o sul.

Todos riram e beberam mais vinho. Longstaff divertiu-se ao ver que Monsey ficara silencioso durante toda a refeição, perturbado com a rudeza de Struan.

— O que acha, Sr. Struan? — disse Zergeyev. — Poderia dirigir a Casa Nobre discutindo com um “Parlamento”?

— Não, Alteza. Mas só coloco uma companhia em conflito... em competição, com outros negociantes. Arrisco apenas a mim e à minha companhia. Não a vida de outrem.

— Entretanto, há uma guerra, agora, com a China. Porque os pagãos tiveram a temeridade de interferir em seu comércio. Não é certo?

— Em parte. Claro, a decisão de entrar em guerra não chegou a ser minha.

— Claro. Meu ponto de vista era de que só o senhor tem o direito de operar uma vasta sociedade comercial, e esta é a maneira de agir mais eficiente. Governo de um só homem. Certo para uma companhia, uma frota, uma nação.

— Sim. Desde que seja bem-sucedido — disse Struan, brincando. Depois, acrescentou, com seriedade: — Talvez, no presente, o sistema parlamentar não seja adequado para a Rússia... e para alguns outros países, mas estou convencido de que jamais haverá paz neste mundo, até todas as nações terem o sistema parlamentar inglês e todos os povos o direito de votar, e nenhum homem sozinho volte outra vez a controlar os destinos de qualquer nação, seja por direito divino ou por direito obtido através dos votos estúpidos, de um eleitorado estúpido.

— Concordo — disse Zergeyev. — Sua hipótese é correta. Mas tem uma grande falha. O senhor supõe uma população mundial esclarecida, toda igualmente educada, toda próspera, o que é, naturalmente, impossível, não é? Deveria viajar pela Rússia, para ver como isto é impossível. E o senhor não faz concessões ao nacionalismo e às diferenças de fé. Se acrescentasse “até todas as nações serem cristãs”, então talvez estivesse certo. Mas, como pode imaginar que os católicos franceses fossem concordar com os protestantes ingleses? Ou a Igreja Ortodoxa Russa com os jesuítas espanhóis? Ou todos os que estão com as massas dos infiéis maometanos, e os que apóiam os miseráveis judeus, ou os idolatras e pagãos?

Struan respirou fundo.

— Estou satisfeito porque o senhor fez esta pergunta — disse ele, e se calou, deliberadamente.

— Vejo que teremos muitas discussões interessantes — disse Longstaff, descontraidamente. — Chá, Alteza? Há uma luta, dentro de uma hora. Se não estiver demasiado cansado, talvez goste de assistir a ela. Promete ser uma grande luta. A Marinha contra o Exército.

— Ficarei encantado, Excelência. Em quem aposta? Eu ficarei com a oposição.

— Um guinéu para a Marinha.

— Feito.

 

Depois do almoço, tomaram chá e fumaram charutos e, afinal, Monsey escoltou o arquiduque de volta para o paquete. Longstaff dispensou os camaroteiros.

— Acho que uma fragata deveria imediatamente fazer uma visita, “por acaso”, a Cingapura — disse ele a Struan.

— Pensei a mesma coisa, Will. Ele é um homem do mar, tenho certeza.

— Sim. Foi uma coisa muito inteligente, Dirk. — Longstaff brincou com a sua xícara. — E ele é um homem muito astuto. Um homem assim, provavelmente, teria o maior cuidado com documentos oficiais.

— Pensei a mesma coisa.

— Eu gostei de minha estada em São Petersburgo. Menos das longas horas na escola. Tive de aprender a ler e escrever em russo, bem como em francês, claro. Russo é uma língua muito difícil.

Struan se serviu de um pouco de chá.

— Você jamais gostou de lutas, não é, Will?

— Não. Acho que só o acompanharei até a terra e depois voltarei para bordo. A fim de tirar um cochilo. — Longstaff riu, secamente. — Preparar-me para as festividades de hoje à noite, hein?

Struan levantou-se.— Sim. E é melhor que eu pense em alguns grãos de descontentamento para eu próprio semear. Enquanto os camaroteiros tiravam a mesa, Longstaff ficou olhando distraidamente as folhas em sua xícara.

— Não — disse, impedindo que a levassem, bem como ao bule. — E providenciem para que eu não seja perturbado. Quero ser chamado dentro de uma hora.

— Sim, senhorrr.

Ele sufocou um bocejo, com a mente vagando, prazerosamente, na tranqüilidade da cabina. Puxa vida, estou encantado por Zergeyev se encontrar aqui. Agora, podemos gozar a vida, um pouquinho. Uma boa esgrima diplomática. Sondar-lhe a mente, o objetivo é este. Esquecer as incessantes irritações da Colônia, os malditos negociantes e o malfadado imperador e os filhos da mãe dos pagãos, um bando amaldiçoado de ladrões.

Abriu a porta de sua cabina particular e ficou confortavelmente deitado no beliche, com as mãos sob a cabeça. O que Dirk tinha dito? — perguntou a si mesmo. Ah, sementes do descontentamento. É uma boa maneira de colocar as coisas. Que sementes poderemos plantar? Sombrias insinuações sobre a potência da China? A imensidão de sua população? Que o Governo de Sua Majestade poderá anexar todo país, se qualquer potência se intrometer? As complicações do comércio do ópio? Chá?

Ele ouviu ruído de passos, em cima, enquanto mudava o turno e a banda de fuzileiros começava a praticar. Bocejou de novo e fechou os olhos, satisfeito. Não há nada como um cochilo depois do almoço, disse a si próprio. Graças a Deus sou um cavalheiro — não preciso plantar sementes de verdade, como um camponês fedorento, ou um lavrador sujo. Droga, imagine trabalhar com as mãos o dia inteiro! Semeando. Fazendo o cultivo. Com todo o esparramento de estéreo. Pensamento horripilante. Plantar as sementes diplomáticas é muito mais importante e uma tarefa de cavalheiro. Ora, onde estava eu? Ah, sim. Chá. A vida deve ter sido terrível, antes de termos o chá. Absolutamente terrível. Não posso entender como as pessoas existiam sem chá. É uma pena que não possa ser cultivado na Inglaterra. Isto evitaria uma série de problemas.

— Meu Deus do céu! — exclamou, e se sentou, teso. — Chá! Claro, chá! Esteve anos embaixo de seu nariz e você nunca viu! Você é um gênio!

Ele ficou tão excitado com sua idéia que pulou da cama e dançou uma giga. Depois, aliviou-se no urinol e foi para a cabina principal, onde se sentou à sua escrivaninha, com

o coração batendo forte. Você sabe como resolver o pesadelo da Inglaterra-China com relação ao desequilíbrio chá-barras de prata-ópio. Você sabe, ele disse a si mesmo, espantado e aterrorizado, com o brilhantismo e a simplicidade da idéia que a frase final de Struan deflagrara.

— Bom Deus, Dirk — disse, alto — se você soubesse. Você cortou sua própria garganta, e a de todos os negociantes na China, junto com você. Para a glória da. Grã­Bretanha e a minha imortalidade! Sim, é claro. Então é melhor você manter a boca fechada, advertiu a si mesmo. As paredes têm ouvidos.

A idéia era tão simples — destruir o monopólio de chá da China. Comprar, pedir ou roubar — com grande segredo — uma tonelada das sementes da planta do chá. Transportar as sementes, sub-repticiamente, para a Índia. Deve haver dúzias de áreas nas quais o chá floresceria. Dúzias. E, ainda no período da minha vida, as plantações poderão estar florescendo — e estaremos cultivando nosso próprio chá, em nosso próprio solo. Com chá nosso, não precisaremos mais de barras de prata e nem de ópio para pagar pelo chá da China. Os lucros sobre as vendas de chá indiano logo se igualarão, serão o dobro ou o triplo da venda do ópio, então isso não é problema. Cultivaremos o chá para o mundo e o venderemos para o mundo. A Coroa ganhará, com as rendas do chá fantasticamente aumentadas, pois, naturalmente, nós o cultivaremos de maneira mais barata e mais aperfeiçoada do que a China cultiva o seu chá. Ora, há os cérebros ingleses e tudo mais! E nós ganharemos em grandeza moral, por parar com o comércio do ópio. Os malditos contrabandistas de ópio serão postos para fora do negócio, pois, sem a alavanca do ópio, não terão nenhuma função útil e, então, poderemos proibir o ópio. A Índia ganhará imensamente. E a China ganhará, pois não haverá mais contrabando de ópio, e ela consome seu próprio chá, de qualquer maneira.

E você, William Longstaff — o único homem que pode executar tal plano — você ganhará um prestígio monumental. Com um pouco de sorte, um ducado oferecido por um Parlamento cheio de gratidão, pois você, e só você, solucionou o que não tinha solução.

Mas, em quem poderei confiar, para obter as sementes do chá? E como persuadir os chineses a vendê-las? Claro que eles adivinharão imediatamente as conseqüências. E em quem confiar para transportar as sementes em segurança? Não podemos usar um dos negociantes — eles me sabotariam imediatamente, se tivessem a menor suspeita! E, como colocar o Vice-Rei da Índia do meu lado, agora, para ele não roubar o crédito da idéia?

 

Quando os dois homens e seus auxiliares subiram no ringue construído perto da bandeira, no Cabo Glessing, fez-se um silêncio não rompido sequer por ruído de respiração, na massa de espectadores.

Ambos os lutadores eram troncudos, mal-encarados e de elevada estatura, no começo da casa dos vinte. E os dois tinham a cabeça raspada, para se proteger do puxão do outro. E, quando tiraram as camisas grossas, cada qual tinha a mesma ondulação de aço nos músculos proeminentes, e apresentava nas costas antigos sulcos de açoites.

Os lutadores formavam uma bela dupla, e todos sabiam que havia muita coisa em jogo. O almirante e o general haviam aprovado pessoalmente a escolha dos homens e os exortaram a ganhar. A honra de todo o Serviço estava sobre seus ombros, o dinheiro da poupança de seus companheiros. O futuro seria doce para o vencedor. Para o vencido, não haveria futuro.

Henry Hardy Hibbs trepou pela única corda e ficou em pé no centro do ringue, onde havia sido traçada a giz a marca do metro quadrado.

— Sua Excelência, Sua Alteza, senhoras e senhores cavalheiros — ele começou. — Uma luta decisiva entre, neste canto, Mestre Jem Grum, da Marinha Real...

Houve um grande viva, partindo da multidão de marinheiros, a leste, e apupos e obscenidades entre as fileiras numerosas de soldados ingleses e indianos, a oeste. Longstaff, o arquiduque, o almirante e o general estavam sentados no lugar de honra, ao norte do ringue, com uma guarda da honra de impassíveis fuzileiros navais a cercá-los. Atrás do arquiduque, estavam seus dois guarda-costas em libré, armados e vigilantes. Struan, Brock, Cooper, Tillman, Robb, Gorth e todos os tai-pans estavam sentados do lado sul e, atrás deles, se encontravam os negociantes de menor importância e os oficiais navais e do Exército, todos se acotovelando, para ver melhor. E, na periferia, havia a multidão sempre crescente de chineses que jorrava das choupanas do Tai Ping Shan, conversando, dando risadas, à espera.

— E, neste canto, representando o Exército Real, Sargento Bill Tinker...E, outra vez, roucos vivas o interromperam. Hibbs ergueu os braços e seu piolhento casaco de marinheiro descobriu-lhe a pança, semelhante a uma bola. Quando os vivas e vaias se extinguiram, ele bradou:

— As regras de luta vigentes em Londres... cada round terminará com uma queda. Haverá trinta segundos entre os rounds e, quando a sineta tocar, serão concedidos oito segundos para o homem voltar à competição e pisar na linha. Não serão permitidos chutes, cabeçadas e golpes abaixo da cintura, e nem estrangulamento. Quem não sair do canto, ou aquele cujos auxiliares atirarem a toalha, será o perdedor.

 

Fez um sinal, com ar de importância, para os ajudantes, que examinaram os punhos do lutador adversário, a fim de ver se estavam untados com sumo de nozes, como era de praxe, e não tinham presa nenhuma pedra, e examinaram as botas de luta, para verificar se as solas tinham apenas os três cravos regulamentares.

— Agora, apertem-se as mãos, e que vença o melhor!

Os lutadores foram para o centro do ringue, com os músculos dos ombros tremendo de excitação reprimida, os músculos da barriga tesos, narinas frementes ao respirarem o suor úmido e ácido do outro.

Eles pisaram na linha e tocaram-se as mãos. Depois, juntaram os punhos duros como rochas e esperaram, com reflexos instantâneos.

Hibbs e os ajudantes mergulharam por sob as cordas e saíram da frente.

— Alteza? — disse Longstaff, dando a honra a Zergeyev.

O arquiduque se ergueu e caminhou para a sineta de navio que se encontrava próxima ao ringue. Ele a fez soar, com o percussor, e um selvagem frenesi tomou conta da praia.

No instante em que a campanhia soou, os lutadores arremessaram-se um sobre o outro, com as pernas plantadas como carvalhos, e tão fortes como estas árvores, e os pés firmes na linha. Os nós dos dedos de Grum bateram no rosto de Tinker e deixaram um vergão sangrento, e o punho de Tinker mergulhou violentamente na barriga de Grum. Bateram incessantemente um no outro, impelidos pelo tumulto e por sua raiva e ódio. Não havia ciência alguma em sua luta, nenhuma tentativa para evitar os golpes.

Depois de oito minutos, seus corpos estavam manchados de escarlate, os rostos sangrentos. Ambos os homens tinham os narizes quebrados e os nós de seus dedos estavam em carne viva e escorregadios, cheios de suor e sangue. Ambos arquejavam, buscando recuperar o fôlego, com os peitos arfando como poderosos foles, e os dois tinham sangue na boca. Então, no nono minuto, Tinker desferiu um hook (gancho) que atingiu Grum na garganta, derrubando-o. O Exército deu vivas e a Marinha praguejou. Grum levantou-se fora de si com a raiva e a dor, e correu para seu inimigo, esquecendo-se de que o primeiro round acabara, esquecendo-se de tudo, a não ser de que tinha de matar aquele demônio. Pegou Tinker pela garganta e ficaram investindo um contra o outro, estrangulando-se, enquanto o Exército gritava: “Infração!” Os ajudantes apinharam-se no ringue e tentaram separar os lutadores, arrastando um para cada lado, e quase houve uma briga entre os soldados e os marinheiros e seus oficiais.

— Por Deus, Harry — gritou Glessing, sem se dirigir a ninguém em particular. — Aquele filho da mãe estrangulou nosso homem!

— E quem começou a confusão, por Deus? O round tinha terminado! — disse o Major Turnbull, começando a se irritar, a mão sobre a espada. Era um homem alto, de trinta e cinco anos, principal magistrado de Hong Kong. — Só porque você foi indicado como mestre do porto, acha que isto lhe dá o direito de mascarar uma infração?

— Não, por Deus! Mas não tente trazer toda a majestade de seu cargo para uma questão social. — Glessing deu-lhe as costas, e abriu caminho, por entre a multidão.

— Olá, Culum!

— Olá, George, Uma boa luta, não?

— Você viu aquele filho da mãe estrangular o nosso homem? — Acho que ele também foi estrangulado, não?

— Ah, não é esta a questão, por Deus!

Então o meio minuto acabou e os lutadores correram um para o outro.

O segundo e o terceiro rounds foram quase tão longos como o primeiro, e os espectadores sabiam que nenhum homem poderia suportar um castigo daqueles por muito tempo. No quarto round, um soco de esquerda pegou o soldado embaixo do ouvido e ele caiu sobre a lona. A sineta soou e os ajudantes agarraram seu homem. Depois do meio minuto de descanso, cruelmente breve, o soldado investiu para a linha, esmurrou o marinheiro, agarrou-o em seguida pelo peito e, selvagemente, atirou-o no chão. Depois, voltaram para o canto, outra vez, houve trinta segundos de intervalo e a luta começou de novo.

Round após round. Mais quedas, menos quedas.

No décimo quinto round, o punho de Tinker pegou no nariz quebrado de Grum. Irrompeu fogo na cabeça de Grum, cegando-o; ele gritou e deu socos descontroladamente, em pânico. Seu punho esquerdo acertou em. cheio, seus olhos clarearam um momento e ele viu que o inimigo estava desprotegido e trôpego e ouviu uma imensidão de gritos e vivas muito perto, e, entretanto, longe. Grum arremessou seu punho direito, cerrando-o como jamais o cerrara antes. Viu-o bater na barriga do soldado. Seu esquerdo foi em frente, atingiu o inimigo do lado do rosto, ele sentiu um ossinho de sua mão se espatifar, e então ficou sozinho. Houve, mais uma vez, um toque da maldita sineta e mãos o agarraram, alguém enfiou a garrafa de bebida em sua boca quebrada e ele bebeu muito, e vomitou a bebida cheia de sangue, e resmungou: “Que round é este, camarada?” e alguém disse: “É o décimo nono”, e ele voltou à luta, mais uma vez, e lá estava de novo o inimigo, ferindo-o, matando-o, e ele tinha de resistir, e ganhar ou morrer.

— Boa luta, hein, Dirk? — bradou Brock, em meio a toda excitação.

— Sim.

— Quer mudar de idéia e apostar?

— Não, obrigado, Tyler — disse-lhe Struan, pasmado com a bravura dos lutadores. Ambos se encontravam no limite de suas forças, muito castigados. A mão direita de Grum estava quase inútil, os olhos de Tinker mal se abriam. — Eu não gostaria de enfrentar nenhum deles num ringue, por Deus!

— Têm mais tutano do que ninguém! — riu Brock, mostrando seus dentes escuros e estragados. — Quem vai ganhar?

— Dê seu palpite. Mas aposto que jamais desistirão, não haverá toalha para nenhum dos dois.

— É verdade, por Deus!

Hibbs cantou: “Vigésimo quarto round”, e os lutadores arrastaram-se pesadamente para o centro do ringue, com as pernas emperradas, e socaram um ao outro. Mantinham­se em pé só pela força de vontade. Tinker desferiu um soco monstruoso pela esquerda, que teria derrubado um boi, mas o golpe deslizou pelo ombro de Grum e o outro escorregou e caiu. A Marinha deu vivas e o Exército rugiu, enquanto os ajudantes carregavam o soldado para seu canto. Quando o meio minuto acabou, o Exército observou, sem respiração. Tinker agarrar as cordas e se levantar. As veias de seu pescoço contorceram-se com o esforço, mas ele se ergueu sobre ambos os pés e se arrastou de volta para a linha.

Struan sentiu que alguém o espiava e, ao se voltar, viu o arquiduque acenando. Abriu caminho, contornando o ringue, e ficou imaginando, cheio de tensão, se Orlov, a quem ele enviara para “assistir” o arquiduque, na transferência para o pontão, burlara os criados e encontrara algum documento de valor.— Já escolheu o vencedor, Sr. Struan? — perguntou Zergeyev.

— Não, Alteza. — Struan deu uma olhada no almirante e no general. — Ambos os homens são uma honra para seus serviços, cavalheiros.

— O homem da Marinha tem muita coragem, por Deus, é notável — disse o general, jovialmente — mas acho que nosso homem tem ânimo para resistir.

— Não. Nosso homem é quem vai tocar a linha. Mas, por Deus, seu homem é bom, senhor. Uma honra para qualquer serviço.

— Por que não vem sentar-se conosco, Sr. Struan? — disse Zergeyev, indicando a cadeira vazia. — Talvez pudesse explicar aspectos da luta.

— Com sua licença, senhores — disse Struan, cortesmente, sentando-se. — Onde está Sua Excelência?

— Foi embora cedo, por Deus! — disse o general. — Falou algo a respeito de despachos. A sineta tocou de novo. Zergeyev mexeu-se inquieto na cadeira.

— Qual o maior número de rounds que uma luta já teve?

— Eu assisti à luta Burke-Byrne em 33 — disse o almirante, laconicamente. — Noventa e nove rounds. Pelo sangue de Cristo, aquela foi uma batalha esplêndida. Coragem fantástica! Byrne morreu, em conseqüência das pancadas que levou. Mas não desistiu, até o fim.

— Nenhum desses dois vai desistir também... já bateram um no outro até ficarem insensíveis — disse Struan. — Estão em condições equivalentes e são igualmente bravos. Eu diria que ambos já provaram seu valor.

— Mas, então, não haverá vencedor. Isto seria injusto, uma vacilação não provaria nada.

— É injusto matar um homem corajoso — disse Struan, calmamente. — Só a coragem está mantendo os dois em pé. — Virou-se para os outros. — Afinal, são ambos ingleses. Vamos poupá-los, para um inimigo de verdade.

Uma súbita irrupção de vivas distraiu o almirante e o general, mas não a Zergeyev.

— Isto soa quase como um desafio, Sr. Struan — ele disse, com um sorriso mortalmente calmo.

— Não, Alteza — disse Struan, afavelmente — apenas um fato. Honramos a coragem mas, num caso como este, ganhar é secundário para a preservação de sua dignidade como homens.

— O que diz, Almirante? — perguntou o general. — Struan tem certa razão? Qual é o round? Trigésimo quinto?

— Trigésimo sexto — disse Struan.

— Vamos estabelecer o limite da luta em cinqüenta. Alguém vai ter de ceder, antes disso... é impossível que permaneçam em pé até então. Mas, se puderem ambos tocar na linha no qüinquagésimo primeiro round, atiraremos a toalha juntos, hein? Declararemos empate. Hibbs poderá fazer o anúncio.

— Concordo. Mas seu homem não resistirá.

— Mais cem guinéus que sim, por Deus!

— Feito.

— Uma aposta, Sr. Struan? — disse o arquiduque, enquanto o almirante e o general, carrancudos, viraram-se e fizeram sinal para Hibbs. — Diga as paradas e escolha um homem,

— É nosso convidado, Alteza, então é privilégio seu escolher... se a parada lhe agradar, uma pergunta... respondida pelo perdedor, em segredo, esta noite. Jurando diante de Deus.

— Que tipo de pergunta? — indagou Zergeyev, lentamente.

— Qualquer coisa que o vencedor queira saber.

O arquiduque ficou tentado, mas cheio de grandes apreensões. Era um jogo monumental, mas valia a pena. Havia muita coisa que ele queria saber do Tai-Pan da Casa Nobre.

— Feito!

— Qual o seu escolhido?

Zergeyev apontou instantaneamente para o Mestre Grum.

— Coloco nele a minha honra! — E, imediatamente, gritou para o marinheiro: —Mate-o, por Deus!

O número de rounds aumentava. Quarenta e três. Quarenta e quatro. Quarenta e cinco. Quarenta e seis. Quarenta e sete, quarenta e oito, quarenta e nove. E, agora, os espectadores estavam quase tão exaustos como os lutadores.

Afinal, o soldado caiu. Tombou como um carvalho morto e o ruído de sua queda ressoou pela praia. O marinheiro, bêbado de dor, ainda dava socos a esmo no ar, procurando o inimigo. Então, ele também caiu, igualmente inerte. Os ajudantes carregaram os homens para seus cantos e o meio minuto expirou, e o Exército gritava para seu homem se levantar, e o general batia no chão do ringue, com o rosto vermelho, implorando a Tinker: “Levante-se, levante-se, pelo amor de Deus, rapaz!” E o almirante ficou carmesim, enquanto Grum se forçava a ficar em pé, cambaleando, em seu canto. “Toque na linha, rapaz, toque na linha!” E Struan exortava o soldado, e o arquiduque gritava frases de encorajamento, num paroxismo em russo-francês-inglês, para que o marinheiro tocasse a linha.

Cada lutador sabia que o outro estava derrotado. Ambos cambalearam até a linha e ficaram a se balançar, com os membros mortos e inúteis. Ambos levantaram os braços e tentaram tocar. Mas toda sua força havia desaparecido. Ambos caíram.

Último round.

A multidão ficou louca, pois era obviamente impossível para os dois lutadores saírem de seu canto em meio minuto e voltarem para a linha.

O gongo soou e, novamente, houve um silêncio sepulcral. Os lutadores ficaram desajeitadamente de pé, agarraram-se nas cordas e permaneceram em seus cantos, cambaleando. O marinheiro gemeu e deu o primeiro passo torturado, movendo um pé em direção à linha. Era seguida, após uma eternidade em suspense, outro. O soldado ainda estava em seu canto, tremendo e oscilando, quase a cair. Então, seu pé fez um arco para a frente, pateticamente, e houve uma gritaria furiosa — exortando, induzindo, implorando, rezando, praguejando, tudo a se misturar, num rugido final de excitação impossível, enquanto os dois homens avançavam cambaleando, polegada por polegada. De repente, o soldado deu uma reviravolta desamparada e quase escorregou, fazendo o general ficar a ponto de desmaiar. E aí o marinheiro deu uma guinada bêbada, e o almirante fechou os olhos, com o suor a lhe escorrer pelo rosto, e rezou.

Houve um pandemônio quando ambos os homens tocaram a linha, as toalhas voaram por sobre as cordas, e só quando o ringue se tornou um tumulto de homens que pulavam de um lado para outro foi que os lutadores tiveram certeza do fim do combate. E só então se permitiram mergulhar no pesadelo de dor, sem saber se eram vitoriosos ou vencidos — se estavam acordados ou mortos, sonhando ou vivos — sabendo apenas que haviam dado tudo.

— Pelas barbas de São Pedro — disse o arquiduque, com a voz rouca e dolorida e as roupas encharcadas de suor — foi a maior luta de todos os tempos.

Struan, também todo manchado de suor e exausto, puxou uma garrafa portátil e a ofereceu. Zergeyev inclinou-a e bebeu muito rum. Struan também bebeu e passou a garrafa ao almirante, que a deu ao general, e assim acabaram juntos a bebida.

— Pelo sangue de Cristo! — disse Struan, com voz roufenha. Pelo sangue de Cristo!

 

O sol já mergulhara atrás das montanhas, mas o porto ainda estava imerso numa luz dourada. Ah Sam tirou o binóculo dos olhos e se afastou às pressas, ansiosamente, do orifício de espia no muro do jardim. Correu através das pilhas de pedras e de terra que logo se transformariam num verdadeiro jardim e entrou voando por uma porta da sala de estar.

— Mamãe! O barco de papai está perto da praia — disse. — Opa, ele parece realmente muito zangado. May-may parou de costurar a anágua.

— Ele veio do China Cloud, ou do Resting Cloud?

— Do Resting Cloud. É melhor ir dar uma olhada.

May-may agarrou o binóculo, correu para o jardim, e ficou atrás da pequena janela de treliça, focalizando as ondas da praia. Deteve-se em Struan. Ele estava sentado no meio da chalupa, com o Leão e o Dragão drapejando à popa. Ah Sam tinha razão. Ele parecia realmente muito zangado.

Ela fechou e trancou a portinhola do orifício de espia e voltou correndo.

— Limpe isto e providencie para que tudo fique bem escondido. — E, quando Ah Sam levantou descuidadamente o vestido de baile e as anáguas, ela a beliscou na face, com força. — Não amarrote tudo, sua puta. Vale uma fortuna. Lim Din! — gritou. — Prepare o banho de papai, depressa, e providencie para que suas roupas sejam arrumadas de maneira adequada e não falte nada. Ah, sim, e se certifique de que o banho está quente. Apanhe o novo sabonete perfumado.

— Sim, mamãe.

— E tome cuidado. A raiva de papai está no rosto dele!

— Opa!

— Realmente, opa! É melhor aprontarem tudo para papai, senão ambos serão açoitados. E, se alguma coisa interferir em meu plano, todos dois passarão por torturas e eu os chicotearei até seus olhos caíram das órbitas. Vão!

Ah Sam e Lim Din saíram correndo. May-may entrou em seu quarto de dormir e se certificou de que não havia nenhum sinal do vestido de baile. Colocou perfume atrás das orelhas e se compôs. Ah, meu Deus. Não queria que ele estivesse mal-humorado, esta noite.

Struan caminhou irascivelmente em direção ao portão, no alto muro.Estendeu a mão para a maçaneta do portão, mas este foi aberto rapidamente por Lim Din, que sorria e fazia curvaturas.

— Que belo entardecer, hein, senhor?

Struan respondeu com um granindo sombrio.

Lim Din fechou o portão e saiu às pressas para a porta da frente, onde riu ainda e fez curvaturas mais profundas.

Struan, automaticamente, examinou o barômetro de navio pendurado na parede do saguão. Estava colocado numa suspensão Cardan e a fina coluna de mercúrio dentro do vidro registrava a agradável temperatura de 29.8.

Lim Din fechou a porta, suavemente, e disparou na frente de Struan pelo corredor, abrindo a porta do quarto de dormir. Struan entrou, fechou a porta com um chute e trancou-a. Os olhos de Lim Din se reviraram. Ele levou um momento para se recompor e, depois, evaporou-se na cozinha.

— Alguém vai ser chicoteado — ele sussurrou, apreensivo, para Ah Sam. — Isto é tão certo quanto a morte e os impostos.

— Não se preocupe com o demônio do nosso pai bárbaro — sussurrou Ah Sam, em resposta. — Aposto com você o salário da próxima semana que mamãe vai transformá-lo numa pombinha, dentro de um hora.

May-may apareceu à porta.

— O que vocês, seus escravos filhos da mãe, estão aí cochichando? — ela sibilou.

— Só rezando para papai não ficar zangado com a pobrezinha da nossa linda mãe — disse Ah Sam, com os olhos esbugalhados.

— Então ande depressa, sua puta de fala macia. Por cada palavra de zanga que ele me disser, você leva um beliscão!

 

Struan estava em pé, no centro do quarto de dormir, olhando para o lenço cheio de nós, volumoso e sujo, que acabara de tirar do bolso. Com mil demônios, o que faço agora?, perguntou a si mesmo.

Depois da luta, acompanhara o arquiduque até seus novos alojamentos, no Resting Cloud. E ficara aliviado quando Orlov lhe dissera, em particular, que não tivera problema algum para esquadrinhar a bagagem do arquiduque.

— Mas não há papel nenhum — dissera Orlov. — Havia uma pequena caixa-forte, mas o senhor disse para não quebrar nada, então deixei como estava. Tive tempo suficiente... os homens mantiveram os criados ocupados.

— Obrigado. Nenhuma palavra a respeito, agora.

— Pensa que sou louco! — dissera Orlov, com sua dignidade ofendida. — A propósito, a Sra. Quance e os cinco filhos estão instalados no pontão pequeno. E eu disse que Quance estava em Macau, e deveria chegar com a maré do meio-dia, amanhã. Tive um grande trabalho para fugir às malditas perguntas que ela fez. Ela é capaz de extrair uma resposta de um caranguejo.

Struan deixara Orlov e fora para a cabina dos meninos. Eles estavam limpos, agora, e vestiam roupas novas. Wolfgang ainda se encontrava em sua companhia, e não tinham medo dele. Struan lhes dissera que no dia seguinte iriam com ele para Cantão, onde ele os embarcaria num navio para a Inglaterra.

— Excelença — dissera o menininho inglês, quando ele se virava para ir embora — será que poderia falar com o senhor, em particular?

— Sim — dissera Struan, e levara o menino para outra cabina.

— Meu papá disse p’ra dar isto ao senhor, Excelença, e não dizê a ninguém, nem Sr. Wu Pak, nem mesmo Bert.

Os dedos de Fred tremiam, quando ele desfez a trouxa de pano ainda amarrada no cajado, abrindo-a. Continha uma pequena faca, um cachorro de pano e um lenço volumoso, amarrado com nós. Ele lhe passou o lenço, nervosamente, e para pasmo de Struan, virou as costas e fechou os olhos.

— O que está fazendo, Fred?

— Meu papá dizê que eu num devia olhá, e p’ra virá as costa, Excelença. P’ra num vê — respondeu Fred, com os olhos fechados.

Struan desamarrou o lenço e olhou, embasbacado, para seu conteúdo — brincos de rubi, pingentes de diamante, anéis cravejados de diamantes, um grande broche de esmeraldas e muitas fivelas de cinto de ouro, retorcidas, cheias de diamantes e de safiras. Tudo com um valor de quarenta a cinqüenta mil libras. Espólio de pirata.

— O que ele queria que eu fizesse com isto?

— Posso abri os olhos, Excelença? Não devia vê.

Struan tornou a amarrar o lenço e colocou-o no bolso de seu casaco naval.

— Sim. Agora, o que seu papai queria que eu fizesse com isto?

— Ele disse que era minha... esqueci a palavra. Era, era uma coisa parecida com “rança”, ou “anca”. — Os olhos de Fred se encheram de lágrimas. — Sou um bom menino, Excelença, mas esqueço as coisa.

Struan se agachou e segurou-o com firmeza, mas gentilmente.

— Não precisa chorar. Vamos pensar. Será que foi “herança”?

O menino olhou para Struan como se ele fosse um mágico.

— Sim. “Rança”. Como sabia?

— Não precisa chorar. Você é um homem. Homens não choram.

— O que é “rança”?

— É um presente, em geral dinheiro, de um pai para um filho.

Fred cogitou sobre isso por um longo tempo. Depois, disse:

— Por que meu papai disse p’ra não conta ao irmãozinho Bert?

— Não sei.

— Por que, Excelença?

— Talvez ele quisesse que você recebesse isto, e não Bert.

— Uma “rança” pode ser para muitos filhos?

— Sim.

— Eu e meu irmão Bert podemos dividi uma “rança”, se a gente tem uma?

— Sim. Se você tem uma.

— Ah, bom — disse o menino, enxugando as lágrimas. — Irmãozinho Bert é meu melhor amigo.

— Onde você e seu papai viviam? — perguntou Struan.

— Numa casa. Com a mãe de Bert.

— Onde era a casa, rapaz?

— Perto do mar. Perto dos navios.

— O lugar tinha nome?

— Ah, sim, era chamado “Porto”. A gente vivia numa casa no Porto — disse o menino, com orgulho. — Meu papai disse p’ra eu falá tudo com o senhor, de verdade.

— Vamos voltar agora, hein? A não ser que haja mais alguma coisa.

— Ah, sim. — Fred, depressa, tornou a amarrar a trouxa. — Meu papai disse para amarrar como antes. Segredo. E p’ra não contá. Eu estou pronto, Excelença.

 

Struan abriu outra vez o lenço. Pela morte de Cristo, o que vou fazer com este tesouro? Jogá-lo fora? Não posso fazer isto. Procurar os proprietários? Como? Podem ser espanhóis, franceses, americanos ou ingleses. E como vou explicar como consegui as jóias?

Ele foi até a grande cama de armação e afastou-a da parede. Notou que suas novas roupas de noite estavam estendidas, meticulosamente. Ajoelhou-se ao lado da cama. Uma caixa-forte de ferro estava cimentada no chão. Destrancou a caixa e depositou a pequena trouxa junto com seus papéis particulares. A Bíblia que continha as outras três metades de moedas atraiu-lhe o olhar e ele praguejou. Tornou a trancar a caixa e moveu a cama outra vez para seu lugar, caminhando, em seguida, em direção à porta.

— Lim Din!

Lim Din apareceu imediatamente, com os olhos vidrados e todo sorridente.

— Prepare meu banho, depressa!

— O banho já está pronto, senhor! Não se preocupe!

— Chá!

Lim Din sumiu. Struan atravessou o quarto de dormir, em direção ao quarto especial que fora reservado só para o banho e a toalete. Robb rira, ao ver os projetos. Mesmo assim, Struan insistira para que a inovação fosse executada exatamente segundo os planos.

A alta banheira de cobre fora instalada numa plataforma baixa’ e dela saía um cano que atravessava a parede e ia dar num poço fundo, cheio de pedras, cavado no jardim. Acima da banheira, um balde de ferro com orifícios estava suspenso das vigas. Outro cano dava no balde, saindo do tanque de água fresca, no teto. Havia uma torneira neste cano. A privada era um escrínio fechado, com uma tampa móvel e um balde removível, para os despojos noturnos.

A banheira já estava cheia de água quente. Struan tirou as roupas suadas e entrou no banho, satisfeito. Ficou deitado de costas e se ensaboou.

A porta do quarto se abriu e May-may entrou. Ah Sam a seguia, carregando uma bandeja com chá e dim sum quentes, tendo, logo atrás, Lim Din. Todos caminharam para dentro do banheiro, e Struan fechou os olhos, com silenciosa irritação; por mais que tivesse explicado e castigado, Ah Sam não conseguia entender que não devia entrar no banheiro, quando ele estava tomando banho.

— Olá, Tai-Pan — disse May-may, com um sorriso maravilhoso. Toda a irritação dele desapareceu. — Vamos tomar chá juntos — ela acrescentou.

— Ótimo — ele disse.

Lim Din pegou as roupas sujas e desapareceu. Ah Sam depôs a bandeja alegremente, pois sabia que ganhara sua aposta. Ela disse algo a May-may em cantonês, que fez May-may rir, e Ah Sam deu uma risadinha antes de correr para fora do banheiro e fechar a porta.

— Que diabo ela disse?

— Conversa de mulher!

Ele levantou a esponja para atirá-la, e May-may disse, depressa:.. — Ela falou que você é um homem muito bem-feito. .

— Por que, pelo amor de Deus, Ah Sam não entende que o banho é para ser tomado em particular?

— Ah Sam é muito particular, não se preocupe. Por que você tem vergonha, hein? Ela tem muito orgulho de você. Você não tem nada para se envergonhar. — Ela tirou o vestido e caminhou para dentro da banheira, sentando-se na outra extremidade. Então serviu o chá e o entregou.

— Obrigado. — Ele bebeu o chá e depois estendeu o braço e comeu um dos dim sum.

— A luta foi boa? — ela perguntou. Notou as cicatrizes malcuradas que seus dentes haviam feito no antebraço dele, e escondeu um sorriso.

— Excelente.

— Por que você está zangado?

— Sem razão. Estão bons — ele disse, comendo outro dos pastéis. Depois, sorriu para ela. — Você é linda e não posso imaginar uma maneira mais agradável de tomar chá.

— Você também é lindo.

— A casa já tem feng-shui?

— Quando é o julgamento dos vestidos?

— À meia-noite. Por quê? Ela encolheu os ombros.

— Meia hora antes da meia-noite, você voltará para cá?

— Por quê?

— Gosto de ver meu homem. De tirá-lo daquela descarada com peitos de vaca. — O pé dela escorregou por baixo d’água. Struan recuou diante do ataque íntimo e quase deixou cair seu chá. — Não faça isso, e tenha cuidado, por Deus. — Ele lhe interceptou a mão e riu. — Seja uma menina boazinha.

— Sim, Tai-Pan. Se você também tiver cuidado. — May-may sorriu docemente e deixou a mão descansar, tranqüila, na dele. — Você não olha para mim como olha para aquela mulher diabólica, nem mesmo quando estou sem roupa nenhuma. O que está errado com o meu busto?

— Seu busto é perfeito. Você é toda perfeita. Claro que é. Agora, pare de me aborrecer.

— Então você volta, meia hora antes?

— Faço qualquer coisa, em troca de paz. — Struan bebeu um pouco mais de chá. — Ah, sim. Você não me respondeu. A casa já tem feng-shui?

— Sim. — Ela pegou o sabão e começou a se ensaboar. Mas não disse mais nada.

— Tem ou não tem?

— Sim. — Outra vez ficou silenciosa, com uma exasperante e bela doçura a envolvê-la.

— O que aconteceu?

— Sinto muitíssimo, Tai-pan, mas estamos bem no globo ocular do dragão e precisamos nos mudar.

— Não vamos nos mudar e não se fala mais nisso.

Ela trauteou uma cançãozinha, enquanto terminava de usar o sabão. Lavou a espuma e olhou para ele, com os olhos muito abertos, toda gentil.

— Vire-se. Vou ensaboar suas costas — disse.

— Não vou me mexer — ele disse, com suspeita.

— Marrr-rry veio aqui hoje à tarde, e conversamos bastante.

— Não vou me mexer! Não se fala mais nisso.

— Realmente, Tai-Pan, não sou surda. Ouvi você muito bem, da primeira vez. Quer que eu esfregue suas costas ou não?

Ele virou as costas e ela começou a ensaboá-lo.

— Vamos nos mudar e não se fala mais nisso. Porque sua velha mãe decidiu — disse ela, em cantonês.

— O quê? — ele disse, movimentando um pouco o pescoço, apreciando o toque insinuante dela, enquanto suas mãos lhe massageavam deliciosamente os músculos dos ombros.

— Um velho provérbio cantonês: “Quando as andorinhas fazem seus ninhos, o sol sorri.”

— O que isto quer dizer?

— Exatamente o que diz. — Ela estava satisfeita consigo mesma. — É apenas um pensamento feliz, só isso. — Pegou um pouco de água e lavou a espuma de sabão. — Ah Sam, ahhhh!

Ah Sam entrou correndo, a carregar grandes toalhas. May-may se levantou e Ah Sam enrolou uma delas em torno de seu corpo e segurou a outra para Struan.

— Diga-lhe que farei isto eu próprio, por Deus! — disse ele. May-may traduziu e Ah Sam depôs a toalha, deu uma risadinha e saiu correndo. Struan saiu do banho e May-may embrulhou-o na toalha. Para surpresa sua, ele descobriu que estava aquecida.

— Disse a Ah Sam para “cozinhar” um pouco as toalhas, de hoje em diante -falou May-may. — É bom para a saúde.

— Ê muito agradável — ele disse, e se esfregou até ficar enxuto. Abriu a porta e descobriu que a cama havia sido arrumada e suas roupas novas postas sobre a cômoda.

— Você tem tempo para descansar um pouco — disse May-may e, quando ele começou a discutir, acrescentou, imperiosamente: — Você vai descansar! Struan deu uma olhada em seu relógio. Há bastante tempo, pensou, e então subiu na cama e se estirou, voluptuosamente.

 

May-may acenou para Ah Sam, que entrou no banheiro e fechou a porta. Ajoelhando-se, Ah Sam desatou os pés de May-may e os enxugou. Ela colocou pó nos pés e substituiu as ataduras por outras, limpas e secas, e calçou-lhes sandálias novas, bordadas.

— São tão lindas, mamãe — disse.

— Obrigada, Ah Sam. — May-may beliscou com ternura a bochecha de Ah Sam. — Mas, por favor, não faça tantas observações sobre os apêndices de papai.

— Eu só estava sendo cortês, e são muito dignos de respeito.

— Ah Sam soltou os cabelos de May-may e começou a escová-los.

— Normalmente, um pai ficaria muito satisfeito por ser elogiado. Realmente, não entendo nosso pai bárbaro, nem um pouquinho. Ele não me levou para a cama, nem uma só vez. Sou assim tão pouco atraente?

— Eu já lhe disse várias vezes que os pais bárbaros não levam para a cama todas as mulheres da casa — disse May-may, cansadamente. — Ele, simplesmente, não faria uma coisa dessas. É contra sua religião.

— É realmente muito mau pagode — fungou Ah Sam — ter um pai assim, tão dotado, e isso ser contra sua religião. May-may riu, e entregou-lhe a toalha.

— Vá embora, sua bajuladora. Traga chá, dentro de uma hora. Se chegar atrasada vou dar em você umas boas chicotadas!

Ah Sam fugiu.

May-may perfumou-se e, pensando no baile e em sua outra surpresa, cheia de excitação, entrou no quarto.

 

Liza Brock abriu a porta da cabina e foi para o beliche. Sentia suor frio escorrendo de suas axilas. Sabia que, para Tess, era agora ou nunca.

— Vamos, amor — disse ela, sacudindo Brock outra vez. — Está na hora de se levantar.

— Me deixe em paz. — Brock virou-se para o outro lado outra vez, suavemente embalado pela maré que balançava o casco do White Witch. — Quando chegar a hora eu me visto.

— Você tá dizendo isso faz meia hora. Levante, senão vai chegar atrasado. Brock bocejou e se estirou, erguendo-se no beliche.

— O sol nem se pôs ainda — ele disse, com os olhos turvos de sono, a espiar através da vigia.

— Gorth vai chegar logo e você queria estar pronto cedo. Vai ser preciso examinar os livros com o compradore. Você me pediu para lhe acordar.

— Está bem, chega, Liza.

Ele bocejou outra vez e olhou para Liza. Ela usava um vestido novo, de brocado de seda vermelho-escuro, com um grande pufe, deixando aparecerem muitas anáguas. Seu cabelo estava preso num coque.

— Você está muito elegante — disse ele, automaticamente, e se estirou outra vez.

Liza brincou com o grande chapéu de plumas que estava era suas mãos e, em seguida, o depôs.

— Vou ajudar você a se vestir — disse ela.

— Ora, o que é isso! Eu disse que minha roupa velha estava ótima — ele explodiu, ao ver suas roupas novas sobre a cadeira. — Você acha que o dinheiro é tão fácil de ganhar que pode ser gasto assim à vontade?

— Não, amor, você precisava de roupas novas e é necessário que esteja com seu melhor aspecto.

Ela ofereceu o pequeno espartilho que, segundo decretava a moda, o homem precisava usar para ficar com a cintura fina. Brock praguejou e saiu da cama. Depois de apertar o espartilho sobre sua roupa de baixo comprida, de lã, queixosamente, deixou-se ajudar a vestir suas roupas.

Mas, ao olhar para si próprio ao espelho, ficou satisfeitíssimo. A nova camisa pregueada crescia-lhe no peito e o casaco de veludo marrom, com lapelas bordadas a ouro, caía-lhe à perfeição — grande nos ombros e apertado na cintura. Suas calças brancas apertadas eram mantidas em caimento suave por correias, sob botas de festa negras, macias e lustrosas. Colete bordado em tom laranja, corrente de ouro e relógio no bolsinho.

— Meu Deus, você está parecendo o Rei da Inglaterra, amor!

Ele escovou a barba, deixando-a bem eriçada.

— Bom — disse ele, rudemente, tentando esconder seu prazer — talvez você tivesse razão. — Virou-se de perfil e alisou o veludo, para fazê-lo assentar bem sobre seu peito.

— Talvez pudesse ter ficado mais justo no peito, hein? Liza riu.

— Vamos com isso, rapaz — disse, com menos medo, agora — acho que o alfinete de rubi em sua gravata ficaria melhor do que o de diamante.

Ele mudou o alfinete e continuou a se admirar. Depois riu, segurou-a pela cintura e trauteou uma valsa, forçando-a a dançar.

— Você é a bela do baile, amor — disse.

Liza tentou ficar alegre, naquele momento, mas Brock viu em seus olhos que alguma coisa estava errada.

— O que há?

Ela puxou um lenço, enxugou o suor da testa e se sentou.

— Bom, é Tess.

— Ela está doente?

— Não. Nós vamos levá-la para o baile!

— Você está fora de si?

— Tenho um vestido pronto para ela... ah, é lindo... mandei ajeitar-lhe o cabelo e ela está à espera de sua aprovação antes de...

— Diga então a ela para ir para a cama, por Deus! Ela não vai para baile nenhum! Você mandou fazer um vestido para ela, não é? — e ele ergueu a mão para lhe bater. — Ouça um momento — disse Liza, com sua força a lhe dominar o medo. — Primeiro escute. Nagrek... e ela. O golpe parou no meio do ar.

— O que há, quanto a Nagrek?

— Foi sorte que ele tivesse morrido, aquela noite. Tess, bom, Tess, ela... — As lágrimas jorraram. — Eu não queria preocupar você, mas ela...

— Está grávida?

— Não. Fiquei aterrorizada durante todo o mês passado, desde que você foi para Cantão. Com medo de ter-me enganado. Mas o incômodo mensal dela começou na semana passada, graças a Deus, e então o medo acabou.

— Mas ela não é virgem? — ele perguntou, horrorizado.

— Ela ainda é virgem. — As lágrimas lhe escorriam pelo rosto. :— Então, pelo amor de Deus, se ela ainda é virgem, por que diabo você se preocupa? Calma, calma, Liza — disse ele, dando-lhe palmadinhas na face.

Liza — ela sabia — jamais poderia dizer-lhe que Tess não era realmente virgem. Mas agradeceu ao Senhor por deixá-la convencer a menina de que tinha sido, principalmente, imaginação dela, e ainda era pura como deve ser uma mocinha.

— Este mês passado foi terrível — disse ela. — Terrível. Mas foi uma advertência para nós, Tyler. Fiquei preocupada com você, com o fato de você não ver que ela está crescida, e estou com medo. Você não quer ver o que está diante de seus olhos. — Ele começou a falar, mas ela interrompeu, depressa. — Por favor, Tyler. Eu lhe imploro. Basta olhar para ela e, se você concordar que cresceu, então nós a levamos. Se você pensar de outra maneira, ela não irá. Eu disse a ela que a decisão era sua.

— Onde está Tess, agora?

— Na cabina principal.

— Espere aqui.

— Sim, amor.


 

Quando a noite se instalara firmemente sobre Hong Kong, Culum caminhou para a borda do convés, à popa do Thunder Cloud, e deu sinal. O canhão estrondeou e houve um momento de silêncio na frota. Ele olhou nervosamente em direção à costa no Vale Feliz. Sua excitação aumentou quando viu uma tremulação de luz, depois outra, e logo todo lote marinho 8 era um mar de luzes dançantes.

Os criados, na praia, corriam para acender as lanternas restantes. Centenas haviam sido colocadas em torno do grande círculo de pranchas bem aplainadas que formavam a pista de danças, e sua luminosidade era cálida e convidativa. Mesas e cadeiras estavam dispostas em grupos atraentes, com uma lâmpada e flores vindas de Macau em cada mesa. Mais lâmpadas se encontravam penduradas em cordas presas entre esguios bambus, perto das mesas de cavalete repletas de comida. Outras estavam acortinadas sobre os barris de vinhos portugueses e franceses, rum, conhaque, uísque, vinho branco seco e cerveja. Quarenta engradados de champanha se achavam no gelo, e à mão.

Criados corriam por toda parte, todos bem uniformizados, com calças negras e túnicas brancas, os rabichos dançando. Eles estavam sob a imperiosa supervisão de Chen Sheng, compradore da Casa Nobre. Ele era um homem de imensa pança, com trajes ricos e chapéu enfeitado com jóias. Um pedaço principesco de puro jade branco formava a fivela de seu cinto, e seus pés estavam metidos em botas de seda negra com solas brancas. Ele estava sentado, como uma aranha enorme, num assento no meio da pista de dança, e brincava com os cabelos compridos que nasciam numa pequena verruga em seu queixo. Um escravo particular abanava-o, dentro da noite amena.

Quando tudo, para satisfação sua, estava pronto, ele se levantou pesadamente e ergueu a mão. Os criados correram para suas posições e ficaram em pé, como estátuas, enquanto ele fazia uma última inspeção. Outro aceno de sua mão e um criado saiu correndo do círculo de luz na escuridão da praia, com uma vela na mão.

Houve, então, um monstruoso espocar de bichas, que durou vários minutos, e todos na frota e na praia correram para ver. Em seguida, surgiram bolas de fogo, luzes coloridas, mais barulho, fumaça, trovões e novas bichas. E rodas de fogo, e vulcões de fogo colorido. O trovejar continuou durante vários minutos e houve um ruído parecido com o de uma surriada da frota e uma centena de foguetes explodiu no céu. Suas caudas se ergueram e desapareceram. Depois de um momento de silêncio, todo céu explodiu em plumas escarlates, verdes, brancas e douradas. As penas foram caindo, majestosamente, e mergulharam no mar.

O criado acendeu a última vela e saiu às pressas. Fogo vermelho e verde serpenteou no grande andaime de bambu que logo estava em chamas, mostrando o Leão e o Dragão. A bandeira ardeu durante minutos e se extinguiu, com uma grande explosão, tão repentinamente como surgira.

Durante um momento, fez-se escuridão, enquanto um forte viva ecoava pelos morros em torno. Quando os olhos se ajustaram à escuridão, as luzes convidativas da pista de danças brilharam outra vez. E uma alegria expectante tomou conta de Hong Kong.

 

Shevaun gemia de agonia.

— Chega — ela implorou.

Sua criada apertou com mais força ainda os cordões do espartilho e colocou o joelho no traseiro de Shevaun.

— Solte a respiração — ordenou. E, quando Shevaun obedeceu, ela deu um puxão final nos cordões e os amarrou. Shevaun arquejou. — Pronto, querida — disse a empregada, que usava uma touca. — Está tudo pronto.

Era uma pequena e limpa irlandesa, com punhos de aço, e seu nome era Kathleen O’Rouke. Era babá e criada de Shevaun desde que esta usava cueiros, e ela a adorava. Seu cabelo castanho-escuro emoldurava um rosto agradável, com olhos sorridentes e queixo com covinha. Tinha trinta e oito anos.

Shevaun segurou-se numa cadeira, na cabina, e gemeu, mal conseguindo respirar.

— Vou desmaiar, antes do fim da festa. Kathleen pegou a fita e mediu a cintura de Shevaun.

— Dezessete polegadas e meia, minha Virgem Maria! E, quando você desmaiar, queridinha, caia bem graciosamente, e numa hora em que todos estiverem observando.Shevaun estava vestida com calças cheias de babados, as pernas metidas em meias de seda. O espartilho com ossos de baleia apertava-lhe os quadris, afinava violentamente sua cintura e subia até o busto, aumentando-o, forçando-o para cima.

— Preciso sentar um minuto — disse ela, com voz fraca. Kathleen pegou os sais perfumados e os agitou sob o nariz de Shevaun.

— Pronto, meu amorzinho. Logo que aquelas prostitutas a virem, você não vai se sentir fraca, de maneira nenhuma. Pela Virgem Santa Mãe de Deus e por José, você vai ser a mais bela do baile.

Houve uma forte batida à porta.

— Você não está pronta ainda, Shevaun? — gritou Tillman.

— Não, titio. Não vou demorar.

— Bom, se apresse, querida. Precisamos chegar lá antes de Sua Excelência! — saiu pisando forte. Kathleen deu uma risadinha baixa.

— Que homem tolo, minha queridinha. Ele não percebe que a pessoa precisa causar boa impressão.

 

Quance afastou suas tintas.

— Aí está!

— Excelente, Aristotle — disse Robb, e ergueu a pequena Karen, para ela olhar seu retrato. — Não é, Karen?

— Eu sou assim? — perguntou Karen, desapontada. — Está horrível.

— Está imortal, Karen — disse Quance, chocado. Ele tirou-a dos braços de Robb e segurou-a com força. — Olhe para o brilho soberbo de suas faces, a luz em seus olhos lindos, a felicidade que rodeia você como uma auréola. Pelas barbas de Alcazabedabra, está tão bom quanto você.

— Ah, bom. — Ela lhe deu um abraço, ele a colocou no chão, e ela olhou para a pintura outra vez. — Quem é Alcaza... de quem você falou?

— Um amigo meu — disse Quance, com gravidade. — Um amigo barbado que cuida dos pintores e das crianças bonitas.

— Está muito, muito bonito — disse Sarah, com o rosto distendido. — Agora vá embora, já passou da hora de ir dormir.

— É cedo — disse Karen, com um amuo. — E você prometeu que eu podia ficar acordada até papai ir. Quance sorriu, limpou os dedos com terebintina e despiu seu camisolão de pintor.

— Virei pegar minhas tintas amanhã, Robb.

— Claro.

— Bom, é melhor sairmos. — Quance alisou o seu espalhafatoso colete bordado em púrpura e vestiu seu casaco de seda dourada.

— Gosto do senhor, Sr. Quance — disse Karen. — O senhor é muito bonito, embora o quadro seja horrível. Ele riu, deu-lhe um abraço e colocou sua cartola.

— Vou ficar esperando na chalupa, Robb.

— Por que não mostra ao Sr. Quance o caminho, Karen? — disse Robb.

— Ah, sim — ela respondeu, e foi dançando para a porta. Quance seguiu-a com um pavão.

— Está se sentindo bem, Sarah? — perguntou Robb, com solicitude.

— Não — disse Sarah, friamente. — Mas isso não tem importância. É melhor você ir. Vai chegar atrasado.

— Eu fico, se isso ajudar para alguma coisa — disse Robb, tenso.

— A única coisa que ajuda é a chegada do bebê e do navio para voltar para casa. — Sarah, mal-humoradamente, afastou dos olhos uma mecha de cabelo liso. — E ir embora desta maldita ilha!

— Ah, não seja ridícula! — disse ele, sem conseguir conter-se, com a raiva engolindo sua decisão de não discutir. — Não tem nada a ver com Hong Kong!

— Desde que passou a ser nossa, não pararam os problemas — disse ela. — Você mudou, Dirk mudou, Culum, eu. Pelo amor de Deus, o que está acontecendo? Decidimos, finalmente, partir e entramos em bancarrota. Todos ficamos mortalmente assustados, brigando terrivelmente, e a pobre Ronalda e a família de Dirk morrem. Depois, as barras de prata nos salvam mas, ah, não, Dirk acua você, e você é fraco demais para escapar, então jura que vai ficar. Culum odeia Dirk e Dirk odeia Culum, e você fica estupidamente no meio, sem coragem de reivindicar os seus direitos e ir embora, para aproveitar a vida lá em nosso país. Nunca me atrasei num parto mas, desta vez, estou atrasada. Nunca me senti mal, antes, mas agora me sinto morta. Se você quer uma data para o início de todos os nossos problemas, é 26 de janeiro de 1841!

— Isso é uma tolice completa — ele retorquiu, furioso por ela ter articulado o que há muito estava fervendo, em fogo lento, em sua cabeça, e percebendo que, igualmente, amaldiçoara aquele dia, durante longas insônias, a meditar. — Tolice, superstição — acrescentou, mais para convencer a si mesmo do que a ela. — A peste aconteceu no ano passado. A corrida ao banco foi no ano passado. Simplesmente, não tivemos as notícias antes de chegar a Hong Kong. E não sou estúpido. Precisamos ter dinheiro, muito dinheiro, e um ano não é tanto tempo assim. Estou pensando em você e nas crianças. Preciso ficar. Já está tudo resolvido.

— Você já reservou nossa passagem para casa?

— Não.

— Então eu ficaria satisfeita se você providenciasse tudo, imediatamente. Não vou mudar de idéia, se é isso que você pensa.

— Não, Sarah — disse Robb, em tom gélido. — Não acho que você vá mudar de idéia. Estava esperando para ver como se sentia. Temos muitos navios disponíveis. Como você bem sabe.

— Daqui a um mês, eu estarei em condições e...

— Não estará, e ir depressa assim é perigoso. Tanto para você como para a criança.

— Então, talvez seja melhor você nos acompanhar até em casa.

— Não posso.

— Claro que não. Você tem coisas mais importantes para fazer. — O mau gênio de Sarah se manifestou. — Talvez você tenha outra puta paga pronta, à sua espera.

— Ah, cale a boca, pelo amor de Deus. Eu já lhe disse mais de mil vezes...

— Dirk já tem uma na ilha. Por que você seria diferente?

— Ele tem?

— E não tem?

Ficaram olhando um para o outro, a se detestarem.

— É melhor você ir — ela disse, e deu a volta.

 

A porta se abriu e Karen entrou, dançando, no quarto. Pulou nos braços do pai, depois correu para Sarah e beijou-a.

— Paizinho está acertando nosso navio para casa, querida — disse Sarah, sentindo que o bebê dava chutes violentos em seu útero. Sua hora estava, afinal, muito próxima, e ela foi apunhalada por um medo descabido. — Passaremos o Natal em casa, este ano. Não será maravilhoso? Haverá neve, cantos de Natal e presentes maravilhosos. E Papai Noel.

— Ah, que ótimo, adoro Papai Noel. O que é neve?

— Fica tudo branco... as árvores e as casas... é uma chuva que se torna gelo. É muito bonito e as lojas estarão cheias de brinquedos e de coisas lindas. — A voz de Sarah tremeu e Robb sentiu a punhalada que era seu tormento. — Será tão bom estar numa

cidade de verdade outra vez... e não num descampado.

— Vou sair agora — disse Robb, consumido de pesar, Ele beijou Sarah, de leve, e ela, imperceptivelmente, desviou o rosto, enfurecendo-o mais uma vez. Ele abraçou Karen e saiu.

 

Mary Sinclair deu os toques finais em seu penteado e pregou com alfinetes, no lugar certo, a pequena coroa de flores campestres que Glessing enviara.

Seu vestido — de xantungue de seda negra como azeviche, com pufes, muito gracioso — era usado sobre inúmeras anáguas, que farfalhavam quando ela se movimentava. O decote era elegante, exibindo suaves ombros nus e seios firmes.

Ela estudou a própria imagem, imparcialmente.

O rosto que a olhava do espelho, era estranho. Havia uma beleza imprópria nos olhos, e nenhuma cor nas faces. Os lábios estavam muito vermelhos e brilhantes.

Mary sabia que nunca estivera mais linda.

Ela suspirou e pegou o calendário. Mas já sabia que não havia mais necessidade de tornar a contar os dias. O total seria sempre o mesmo e a descoberta que a aturdira, aquela manhã, seria também a mesma — você está grávida.

Meu Deus, meu Deus, meu Deus.

 

Culum fez uma polida curvatura.

— Boa-noite — disse, automaticamente, e outro convidado se dissolveu na multidão festiva. Por quase uma hora estivera em pé, ao lado de seu pai e do tio, recebendo formalmente os convidados, e estava impaciente para que o ritual terminasse.

Observou a pista de dança. Entre os ombros nus, trajes multicoloridos, resplandecentes uniformes e os leques que se agitavam constantemente, espiou Mary Sinclair. Por um momento, ficou aborrecido de ver que ela estava conversando com Glessing. Mas ora, pensou, você não devia ter ciúmes. Mary é, obviamente, a mulher mais bonita entre as presentes, e George tem toda razão de estar com ela. Não o culpe nem um pouquinho.

Dois coretos haviam sido construídos de cada lado do círculo, um para a banda da Marinha e outro para a do Exército. Quando o general ouviu dizer que o almirante concordara em emprestar sua banda para a noitada, fizera o mesmo.

Os soldados, com uniformes escarlates, estavam tocando, agora. Todos se sentiam ansiosos para começar a dançar, mas tinham de esperar até Longstaff chegar. E ele estava atrasado, o que era uma prerrogativa sua.

Culum fez novas curvaturas para os convidados e notou, com alívio, que a fila estava escasseando. Deu uma olhada em direção à praia, onde uma fileira de lanternas guiava os convidados ao saírem de seus botes, e viu o escaler de Longstaff chegar à areia. Longstaff, o arquiduque e o almirante foram ajudados a desembarcar. Ótimo, pensou Culum. Não vai demorar muito, agora. Novamente, seus olhos vaguearam pela pista, e, desta vez, detiveram-se em Manoelita de Vargas. Ela o observava, por cima de seu leque.

Era muito bonita — pele alvíssima, olhos escuros, uma mantilha sobre o cabelo negro. Culum sorriu e fez uma leve curvatura. Os olhos de Manoelita semicerraram-se e ela agitou o leque, depois deu as costas. Culum prometeu a si mesmo que dançaria com ela pelo menos uma vez.

Ele espanou um pouco de poeira de suas lapelas, consciente de que estava vestido de acordo com a última moda inglesa, bem à frente da maioria dos homens, aquela noite. Seu casaco era azul-celeste, com lapelas de seda azul-escura, apertado na cintura e alargando­se sobre os quadris. A calça azul-clara, bem apertada, estava enfiada em meias-botas negras e macias. Seu cabelo descia em cachos sobre as orelhas e sobre o colarinho alto e engomado. O alfaiate de Robb fizera um trabalho muito bom, pensou. E tão barato! Ora, com cento e cinqüenta guinéus por mês poderia comprar dezenas de soberbos ternos e botas. A vida era maravilhosa.

Curvou-se para outro grupo de convidados que passava, deixando atrás um cheiro ácido de antigo suor coberto com perfume. Estranho, pensou. Agora sentia o cheiro das outras pessoas, e elas realmente fediam. Ficou espantado de não ter notado isto antes. Decerto se sentia melhor, muito melhor, desde que começara a tomar banho todo dia e a trocar de roupa. O Tai-Pan tinha razão.

Olhou para o pai, que estava absorto numa conversa com Morley Skinner. Culum teve consciência de que as pessoas o espiavam e sua expressão era hostil. No tocante aos convidados, não havia nenhum sinal de que o antagonismo entre pai e filho se abrandara. Na verdade, ele se aprofundara numa polidez fria. Desde que o jogo começara, Culum ia achando cada vez mais fácil levar avante o engodo em público. Seja honesto, Culum, disse a si mesmo. Você não o idolatra mais. Você ainda o respeita — mas ele é um herege, adúltero, uma influência perigosa. Então, você não está fingindo — você está frio. Frio e cauteloso.

— Vamos, Culum, rapaz — Robb sussurrou, desajeitadamente.

— O que é, tio?— Ah, nada. Só que esta noite é de comemoração.

— Ah, sim, é.

Culum percebeu a expressão perturbada nos olhos de Robb, nas nada disse e lhe deu as costas para cumprimentar outros convidados e espiar Mary e, ocasionalmente, Manoelita. Decidiu que não diria a Robb o que acontecera entre o Tai-Pan e ele, no alto da montanha.

— Você ainda não conhece meu sobrinho, Culum — ouviu Robb dizer. — Culum, esta é a Srta. Tess Brock.

Culum se virou. Seu coração deu um salto e ele se apaixonou.

Tess fazia uma mesura. A saia de seu vestido era ampla e fofa, de brocado de seda

branca, sobre anáguas cascateantes que irrompiam como espuma sob a bainha. Sua cintura era incrivelmente fina, abaixo do corpete decotado e empinado. Seu cabelo louro caía em macios cachos sobre os ombros nus. Culum viu que os olhos dela eram azuis e os lábios convidativos. E ela estava olhando para ele, como ele estava olhando para ela.

— É uma honra conhecê-la — ouviu a si próprio dizer, em voz irreal. — Talvez possa dar-me a honra da primeira dança.

— Obrigada, Sr. Struan — ouviu-a dizer, com a voz como um soar de sinos, e ela foi embora.

Liza estivera observando, cuidadosamente. Vira a expressão de Culum e a reação de Tess. Ah, Senhor, deixai que aconteça, fazei que aconteça, pensou, enquanto seguia Brock pela pista.

— Eu não reconheci a pequena Tess, e você? — Struan dizia a Robb.

Ele também observara o encontro entre seu filho e a garota dos Brocks, e sua mente estava fervendo, com as vantagens e perigos inerentes a uma união Culum-Tess. Meu Deus do céu!

— Não. Olhe para Brock. Ele está inchado de orgulho.

— Sim.

— E olhe para Mary. Eu jamais teria pensado que ela pudesse ficar tão... tão maravilhosa, também.

— Sim.

Struan observou Mary, por um momento. O vestido negro realçava a palidez luminosa e etérea de sua pele. Depois, ele examinou Manoelita. Em seguida, Tess outra vez. Ela sorria para Culum, que lhe respondia ao sorriso, com o mesmo ar abstrato. Meu Deus, pensou ele, Culum Struan e Tess Brock.

— Maldito Shakespeare — ele disse, involuntariamente.

— O que, Dirk?

— Nada. Eu diria que Mary está disputando mesmo o prêmio, com toda justiça.

— Ela não está na mesma classe, por Deus! — disse Quance, enquanto passava por perto, piscando. — Não com a Manoelita de Vargas.

— Ou Shevaun, eu aposto — disse Struan — quando se dignar a nos honrar com sua presença.

— Ah, a adorável Srta. Tillman. Ouvi dizer que está usando apenas calças e um tecido transparente. Nada mais! Grandes esferas de Júpiter, hein?

— Ah, Aristotle — disse Jeff Cooper, aproximando-se. — Posso falar rapidamente com você? É a respeito de uma encomenda de pintura.

— Que Deus abençoe a minha pobre alma! Realmente, não entendo o que deu em todo mundo — disse Quance, suspeitosamente. — O dia inteiro estou recebendo encomendas de pinturas.

— Percebemos de repente a perfeição do seu trabalho — disse Cooper, depressa.

— E já era tempo, por Deus, esta é a imortal verdade. Meu preço aumentou. Cinqüenta guinéus.

— Vamos discutir isso tomando um champanha, hein? — Cooper piscou sub­repticiamente para Struan, por sobre a cabeça de Quance, e arrastou o homenzinho.

Struan deu uma risadinha. Ele espalhara a notícia de que era preciso manter Quance ocupado e longe de tagarelas — até a hora do julgamento. E conseguira prender Maureen Quance a bordo do pequeno pontão, retirando todas as chalupas.

Naquele momento, Longstaff, o arquiduque e o almirante chegaram ao círculo de luz.

Houve um rufar de tambores e todos se levantaram, enquanto as bandas tocavam Deus Salve a Rainha. Em seguida executaram, vacilantes, o hino nacional russo, e afinal, Rule Britannia. Houve uma irrupção de aplausos.

— Foi muita consideração sua, Sr. Struan — disse Zergeyev.

— É um prazer. Alteza. Queremos que se sinta em casa. Struan sabia que todos os olhares estavam fixos em ambos e tinha certeza de que escolhera bem as suas roupas. Em contraste com todos os demais, usava negro, com exceção de uma pequena fita verde que prendia, na nuca, o seu cabelo comprido.

— Talvez queira abrir a primeira dança.

— Seria uma honra. Mas temo não conhecer nenhuma das damas.

Zergeyev usava um brilhante uniforme dos cossacos, com a túnica elegantemente colgada num ombro, uma espada embainhada no cinto cravejado de jóias. Dois criados em libré estavam obsequiosamente a serviço.— Isso será remediado com facilidade — disse Struan, alegremente. — Talvez queira escolher. Eu ficaria satisfeito em fazer a apresentação formal.

— Não seria cortês de minha parte. Talvez queira decidir quem me dará essa honra.

— Para me arrancarem os olhos? Está bem.

Ele se virou e começou a cruzar a pista. Manoelita seria a melhor escolha. Isto honraria muito a sociedade portuguesa, na qual a Casa Nobre e todos os negociantes confiavam, para fornecer funcionários, guarda-livros, almoxarifes — todos aqueles que fazem as companhias funcionarem. Mary Sinclair seria uma escolha quase igualmente boa, pois estava estranhamente misteriosa aquela noite, e era a mulher mais bela do salão. Mas nada seria ganho escolhendo-a, com exceção do apoio de Glessing. Struan notara como Glessing estava próximo, a seu serviço. Desde que se tornara mestre do porto, sua posição de influência aumentara. E ele seria um aliado muito útil.

Struan viu os olhos de Manoelita se arregalarem e Mary Sinclair prender a respiração, quando ele se encaminhou na direção das duas. Mas ele parou diante de Brock.

— Com sua permissão, Tyler, talvez Tess possa abrir a primeira dança, com o arquiduque? — Struan ficou satisfeito com a agitação provocada pelo espanto, que pôde perceber.

Brock fez um sinal afirmativo com a cabeça, corado de orgulho. Liza ficou extasiada. Tess corou e quase desmaiou. E Culum amaldiçoou e detestou seu pai e o abençoou por dar a honra a Tess. E todos os negociantes ficaram imaginando se o Tai-Pan estaria fazendo as pazes com Brock. E, se assim era, por quê?

— Eu não acredito — disse Glessing.

— Sim — concordou Cooper, preocupado, sabendo que a paz entre Brock e Struan não poderia ser benéfica para ele. — Não faz o menor sentido.

— Faz muito sentido — disse Mary. — Ela é a mais jovem e deve ter a honra.

— Há mais alguma coisa nisso, Srta. Sinclair — disse Glessing. — O Tai-Pan jamais faz nada sem pensar. Talvez ele espere que ela caia e quebre uma perna, ou algo assim. Ele odeia Brock.

— Acho que esse pensamento é muito pouco generoso, Capitão Glessing — disse Mary, abruptamente.

— Sim, é, e peço desculpas por dizer alto o que todo mundo está pensando. — Glessing lamentou sua estupidez, deveria ter percebido que uma inocência tão maravilhosa defenderia aquele demônio. — só estou irritado por que você é a mais bonita dama presente e, sem dúvida, deveria ter a honra.— É muito gentil. Mas não deve pensar que o Tai-Pan faz as coisas por maldade. Não é assim.

— Tem razão, e eu estou errado — disse Glessing. — Talvez eu possa ter a primeira dança... e levá-la para jantar. Então saberei que estou perdoado.

Há mais de um ano ela considerava George Glessing como um possível marido. Gostava dele, mas não o amava. Mas, agora estava tudo arruinado, pensou.

— Obrigada — disse ela. Baixou os olhos e agitou o leque. — Se prometer ser mais... mais gentil.

— Feito — disse Glessing, todo feliz. Struan conduzia Tess através da pista.

— Sabe valsar, garota?

Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça e tentou afastar os olhos do filho do Tai-Pan.

— Posso apresentar-lhe a Srta. Tess Brock, Alteza? Arquiduque Alexi Zergeyev.

Tess ficou paralisada, com os joelhos tremendo. Mas, lembrar Culum, e a maneira como a olhara, aumentou sua confiança e restabeleceu sua pose.

— Estou honrada, Alteza — disse, fazendo uma mesura.

O arquiduque curvou-se e, com galanteria, beijou-lhe a mão.

— A honra é minha, Srta. Brock.

— Fez uma viagem agradável? — ela perguntou, abanando-se.

— Sim, obrigado. — Ele olhou para Struan. — As jovens inglesas são todas assim tão lindas?

Mal ele acabara de falar, Shevaun irrompeu à luz, de braços dados com Tillman. Seu vestido era uma névoa de gaze verde, com a saia ampla, em forma de sino. A parte externa do traje tinha o comprimento do joelho, para destacar as fileiras formadas por uma dúzia de anáguas cascateantes, cor de esmeralda. Ela usava longas luvas verdes e havia penas de aves do paraíso em seu cabelo ruivo. Inacreditavelmente, seu corpete não tinha alças para sustentá-lo.

— Desculpe estarmos atrasados, Excelência, Sr. Struan — disse ela, fazendo uma mesura, em meio ao silêncio. — Mas quebrei uma fivela do sapato, exatamente na hora de sair.

Longstaff afastou os olhos curiosos do decote e ficou imaginando, como todo mundo, como diabo o vestido era sustentado, e se iria cair.

— A hora de sua chegada é sempre perfeita, Shevaun. — Ele se virou para Zergeyev. — Quero apresentar-lhe a Srta. Shevaun Tillman, da América. Ah, e o Sr. Tillman. Sua Alteza, Arquiduque Alexi Zergeyev.Ali em pé, esquecida, Tess observou Shevaun fazer nova mesura, e a detestou por tirar-lhe seu momento de glória. Era a primeira vez em que sentia ciúme de outra mulher. E a primeira em que pensava em si mesma como mulher, não como menina.

— Que belo vestido, Srta. Tillman — disse, com doçura. — Foi a senhorita mesma quem fez? Os olhos de Shevaun dardejaram raios, mas ela replicou, com a mesma doçura:

— Ah, não, querida, acho que não tenho o seu talento. — Sua cachorrinha safada.

— Pode me dar a honra da primeira dança, Shevaun? — perguntou Longstaff.

— É um prazer, Excelência. — Ela estava exultante com a inveja e ciúme que tinha provocado. — Tudo parece tão lindo, Tai-Pan. — Ela sorriu para Struan.

— Ah... obrigado — disse Struan. Ele se virou e fez sinal para o regente da banda da Marinha. O bastão baixou e então começaram os primeiros acordes excitantes de uma valsa vienense. Embora as valsas não fossem bem-vistas, eram as danças mais populares.

 

O arquiduque conduziu Tess para o centro da pista e Shevaun rezou para que Tess tropeçasse e caísse ou, melhor ainda, dançasse como uma vaca. Mas Tess flutuava como uma folha. Longstaff conduziu Shevaun. Enquanto ela girava, com maravilhosa graça, notou que Struan se dirigia para uma beldade portuguesa de olhos escuros, a quem nunca vira antes, e ficou furiosa. Mas, ao girar outra vez, viu que Struan levara Liza Brock para a pista e pensou. Ah, Tai-Pan, você é um homem esperto. Eu o amo por isto. Então seus olhos viram Tess e o arquiduque no centro da pista e ela guiou Longstaff, que dançava muito bem, para lá, sem que ele percebesse estar sendo guiado.

Culum, em pé a um canto, observava. Ele pegou uma taça de champanha e bebeu-a, sem lhe sentir o gosto, e, em seguida, curvou-se diante de Tess, convidando-a para a segunda dança.

Ele não notou que Brock franzia a testa e Liza, apressadamente, distraía-o. Nem a súbita curiosidade de Gorth.

Houve valsas, polcas, contradanças e galopes. Shevaun era cercada, no final de cada dança, e Manoelita também — mas com mais cautela. Culum dançou com Tess pela terceira vez, e quatro vezes por noite era o máximo permitido pelas convenções.

Na última dança antes da ceia, Struan abriu caminho através da multidão que cercava Shevaun.

— Senhores — disse ele com calma determinação — sinto muito, mas esta dança é prerrogativa do anfitrião.Os homens se lamentaram e deixaram que a levasse. Ele não esperou pela música e começou a conduzi-la para a pista. Jeff Cooper observava, com ciúme. A dança era sua.

— Eles combinam — disse ele a Tillman.

— Sim. Por que não faz logo seu pedido? Conhece meus pontos de vista. E os do meu irmão.

— Há tempo.

— Agora que Struan está descasado, não. Os olhos de Cooper se estreitaram.

— Você encorajaria essa união?

— Claro que não. Mas parece bastante evidente para mim que Shevaun está apaixonada pelo homem. — Depois, Tillman acrescentou, com irritação: — Já é tempo para ela se aquietar. Não tenho tido senão problemas, desde que ela chegou, e estou cansado de bancar o cão de guarda. Sei o que pensa, e então peça formalmente sua mão, vamos acabar com isso.

— Não, até eu ter certeza de que ela está pronta para me aceitar... e satisfeita com isto, por sua livre vontade. Ela não é uma escrava, para ser comprada e vendida.

— Concordo. Mas, ainda assim, é uma fêmea, uma menor, e fará o que seu pai e eu considerarmos ser do seu interesse. Devo confessar que não aprovo sua atitude, Jeff. Você está procurando problemas.

Cooper não respondeu. Olhou para Shevaun, com uma dor nos rins.

— Eles formam um casal perfeito — disse Mary, querendo desesperadamente ser Shevaun.

E, naquele momento, de repente, se sentiu impura — por causa de sua vida secreta, do filho e de Glessing. Ele fora tão terno aquela noite, terno e masculino, e muito inglês e muito puro. E ela quase chorou de dor, por causa de seu inútil amor pelo Tai-Pan.

— É verdade — disse Glessing. — Mas se houver justiça nesta terra, ganhará o prêmio, Srta. Sinclair.

Ela conseguiu sorrir e, outra vez, tentou descobrir quem seria o pai da criança — não que isto tivesse importância, porque o pai era chinês. Ter um bastardo chinês! Morrerei antes disto, disse a si própria. Daqui a dois ou três meses, vai começar a aparecer. Mas eu não estarei viva, para ver o horror e a reprovação nos rostos de todos. Seus olhos se encheram de lágrimas.

— Ora, Mary, o que é isso — disse Glessing, tocando-lhe no braço, com afeto. — Não deve chorar porque lhe fiz um elogio. Você é realmente a pessoa mais bonita aqui... e a mais bonita que eu já vi. É verdade.Ela enxugou as lágrimas, atrás do leque. E, através da névoa de terror, lembrou-se de May-may. Quem sabe May-may poderia ajudar? Talvez os chineses tenham remédios para abortar uma criança. Mas isto é assassinato. Assassinato. Não, é meu corpo, Deus não existe e se tiver o filho estarei perdida.

— Desculpe, George, querido — disse ela, mais em paz consigo mesma, agora que tomara a decisão. — Eu me senti mal, por um momento.

— Tem certeza de que está bem, agora?

— Ah, sim.

Glessing estava cheio de um amor protetor. Pobre menininha frágil, ele pensou. Precisa de alguém para tomar conta dela, e esse alguém sou eu. Só eu.

 

Struan parou no centro da pista.

— Eu estava imaginando quando teria a honra, Tai-Pan — Shevaun irradiava travessura.

— Esta dança é em sua honra, Shevaun — disse ele, com doçura.

Os primeiros acordes da música mais eletrizante da terra começaram a ser executados. Era a Kankana. Uma dança selvagem, buliçosa, barulhenta, de passos rápidos, que entrara rapidamente em voga em Paris e, na década de trinta, tomara de assalto as capitais da Europa, mas era proibida, como escandalosa, nos círculos mais seletos.

— Tai-Pan — ela disse, assombrada.

— Subornei o regente da banda — sussurrou Struan.

Ela hesitou mas, sentindo todos os olhares escandalizados fixados em si, descontraidamente pegou nos braços de Struan, com o ritmo da música a tomar conta de seu corpo.

— Bom, espero que nada vá cair — disse Struan.

— Se cair, você me protegerá, espero.

E os dois começaram a dar os passos movimentados. Shevaun se soltou dos braços de Struan, ergueu as saias e deu chutes para o alto, mostrando as calças. Houve um grito de alegria e todos os homens correram em busca de pares. Agora, todos dançavam e davam chutes, possuídos pelo ritmo contagiante e desenfreado.

A música os dominava. A todos.

Quando terminou, houve uma irrupção de aplausos e gritos contínuos de bis, e a banda voltou a tocar o mesmo número. Mary esqueceu o filho e Glessing decidiu que aquela noite ele pediria — exigiria, por Deus — que Horatio abençoasse o casamento. Os pares continuaram a girar, chutar, cheios de uma arquejante animação, até a música acabar. Os jovens se apinharam em torno de Struan e Shevaun, agradecendo a ele e parabenizando-a. Ela segurou o braço dele, possessivamente, e se abanou, muito satisfeita consigo mesma. Ele enxugou o suor da testa e ficou muito feliz porque os dois jogos dele haviam dado certo — Tess e a Kankana.

Todos voltaram para seus assentos e os criados começaram a carregar bandejas de comida para as mesas. Salmão defumado presunto defumado, peixe, ostras, mexilhões e salsichas. Frutas frescas que Chen Sheng transportara de uma lorcha recém-chegada de uma perigosa viagem de Manilha. Quartos de boi que acabara de ser abatido, comprados da Marinha, e assados em fogueiras ao ar livre. Porquinhos de leite. Pés de porco ao picles, em geléia doce.

— Juro — disse Zergeyev — jamais vi tanta comida e nem me divertia assim há anos, Sr. Struan.

— Ah, Alteza — disse Shevaun, erguendo uma sobrancelha — isto é positivamente comum para a Casa Nobre.

Struan riu, com os demais, e se sentou à cabeceira de uma mesa. Zergeyev estava à sua direita e Longstaff à esquerda, Shevaun ao lado do arquiduque e Mary Sinclair ao lado de Longstaff, Glessing atenciosamente perto. Na mesma mesa, encontravam-se Horatio, Aristotle, Manoelita e o almirante. Em seguida, Brock e Liza, e Jeff Cooper. Robb e Culum eram os anfitriões em mesas próprias.

Struan deu uma olhada em Aristotle e ficou imaginando como ele conseguira convencer Vargas a permitir que Manoelita fosse sua acompanhante, no jantar. Meu Deus, pensou, será que Manoelita é quem está posando para o quadro?

— A Kankana — dizia Longstaff — puxa vida. Um jogo diabólico e perigoso, Tai­Pan.

— Para muitas pessoas modernas, não, Excelência. Todos pareceram gostar muito.

— Mas, se a Srta. Tillman não tomasse a iniciativa — disse Zergeyev — duvido que qualquer um de nós tivesse a coragem.

— Que outra coisa poderia uma pessoa fazer, Alteza? — disse Shevaun. — A honra estava em jogo. — Ela se virou para Struan.

— Foi uma travessura muito grande, Tai-Pan.

— Sim — disse ele. — Com licença um momento, tenho de ver se meus convidados estão sendo bem atendidos.

Caminhou por entre as mesas, cumprimentando a todos. Quando chegou à mesa de Culum, houve um ligeiro silêncio e Culum ergueu os olhos... — Olá — disse ele.

— Está tudo bem, Culum?

— Sim, obrigado — Culum foi perfeitamente cortês, mas não havia calor. Gorth, sentado diante de Tess na mesa de Culum, riu por dentro. Struan se afastou.

 

Quando o jantar terminou, as damas se retiraram para a grande tenda que fora instalada para elas. Os homens reuniram-se às mesas e fumaram, beberam Porto, encantados por ficarem sós um momento. Relaxaram, falaram a respeito do aumento do preço das especiarias, e Robb e Struan fizeram acordos lucrativos com relação a elas e ao espaço para carga. Todos decidiram que Shevaun era a vencedora, mas Aristotle não parecia convencido.

— Se não der o prêmio a ela — disse Robb — ela o matará.

— Ah, Robb, querido inocente! — disse Aristotle. — Você está petrificado diante dos peitos dela... claro, são impecáveis... mas o concurso é para a mais bem-vestida, e não para a menos vestida!

— Mas o vestido dela é maravilhoso. De longe, o melhor.

— Pobre homem, você não tem olhos de pintor... e nem a responsabilidade de uma escolha imortal.

As apostas eram maiores em Shevaun. Mary era uma das favoritas. E Manoelita tinha seus adeptos.

— Você é a favor de quem, Culum? — perguntou Horatio.

— Da Srta. Sinclair, é claro — disse Culum, com galanteria, embora, segundo seu modo de ver, só uma dama merecesse a honra.

— Você é muito generoso — disse Horatio. Ele se virou, quando Mauss o chamou.

— Com licença, um momento.

Culum ficou sentado numa das mesas, contente de estar a sós com seus pensamentos. Tess Brock. Que belo nome! Como ela era bonita! Que bela dama. Ele viu Gorth, aproximando-se.

— Posso falar-lhe em particular, Struan? — disse Gorth.

— Claro. Por que não se senta? — Culum tentou esconder seu constrangimento.

— Obrigado. — Gorth sentou-se. Ele pôs suas mãos enormes sobre a mesa. — É melhor eu falar de maneira direta. Só sei fazer assim. É a respeito do meu pai e do seu. Eles são inimigos, isto é um fato. Não há nada que possamos fazer quanto a isso, eu e você. Mas, só porque são inimigos, não é necessário que nós também tenhamos de ser. Pelo menos, penso assim. A China é grande o suficiente para você e para mim. Pelo menos, é o que Penso. Estou cansado de ver os dois agindo de maneira estúpida. Como no caso do outeiro... por que cada qual tinha de arriscar o futuro da casa, por uma questão de prestigio? Se não tivermos cuidado, vamos ser arrastados para essa inimizade, você e eu, sem ter nenhum motivo para ódio. O que você diz? Vamos julgar por nós mesmos. O que meu pai acha, ou o que seu pai acha... bom isso é com eles. Vamos começar de maneira honesta, você e eu. Aberta. Talvez a gente possa ser amigo, quem sabe? Mas acho que não é uma coisa cristã nós nos odiarmos, só por causa de nossos pais. O que você diz?

— Concordo — disse Culum, perplexo com o oferecimento de amizade.

— Não estou dizendo que meu pai está errado, e o seu certo. Só digo que temos de tentar, como homens, viver a nossa própria vida, da melhor maneira que pudermos. — O rosto rude de Gorth se abriu num sorriso. — Você parece bastante chocado, rapaz.

— Desculpe. É só que... bom, sim, eu gostaria que fôssemos amigos. Nunca esperei que... bom, que você tivesse uma mente aberta.

— Está vendo? É exatamente isso que quero dizer, por Deus. Nós nunca dissemos um ao outro mais do que quatro palavrinhas em toda nossa vida e você já está pensando que eu o detesto. Ridículo.

— Sim.

— Não é fácil, o que nós vamos tentar. Não esqueça, nós viemos de vidas diferentes. Minha escola foi um navio. Eu já estava junto ao mastro com dez anos. Então, você tem de desculpar minhas maneiras e meu jeito de falar. Mesmo assim, sei mais a respeito do comércio na China do que a maioria das pessoas, e sou o melhor marinheiro nessas águas. Com exceção de meu pai... e daquele filho da mãe, Orlov.

— Orlov é tão bom assim?

— Sim. Aquele maldito foi gerado por um tubarão e parido por uma sereia. — Gorth pegou um pouco de sal derramado e, supersticiosamente, atirou-o por sobre o ombro. — Aquele patife me causa arrepios.

— A mim também — concordou Culum.

Gorth ficou silencioso por um momento e depois disse:

— Nossos pais não vão gostar nem um pouco de nós sermos amigos.

— Sim. Eu sei.

— Vou ser sincero com você, Struan. Foi Tess quem disse que esta noite era uma boa oportunidade para falar em particular com você. A idéia não foi inicialmente minha. De falar abertamente nesta noite. Mas fiquei satisfeito por isto ter sido dito. O que você acha? Vamos tentar, hein? Aqui está minha mão.

Culum apertou alegremente a mão oferecida.

 

Glessing estava bebendo conhaque, cheio de irritação, na pista, esperando com impaciência. Ele estivera à beira de interromper Horatio e Culum, quando Mauss o chamou. Por que você está assim tão diabolicamente nervoso? — perguntou a si mesmo. Não estou. Só ansioso para dizer logo isso. Por Júpiter, Mary está maravilhosa.

— Com licença, Capitão Glessing — disse o Major Turnbull, com firmeza, aproximando-se dele. Era um homem de olhos cinzentos, meticulosamente limpo, que levava seu cargo de primeiro magistrado de Hong Kong muito a sério. — Boa festa, não?

— Sim.

— Acho que agora é a oportunidade. Sua Excelência está livre. É melhor falarmos com ele, aproveitando a oportunidade.

— Está bem. — Glessing, automaticamente, ajeitou sua espada à cinta e seguiu Turnbull por entre as mesas, até interceptarem Longstaff.

— Pode nos dar um momento de atenção, Excelência? — disse Turnbull.

— Certamente.

— Desculpe trazer questões oficiais para um encontro social, mas é algo importante. Uma de nossas fragatas em patrulha capturou um bando de velhacos piratas.

— Excelente. Um caso evidente?

— Sim, Excelência. A Marinha apanhou os patifes ao sul, ao largo de Aberdeen. Estavam atacando um junco. Assassinaram a tripulação.

— Porcos malditos — disse Longstaff. — Já os julgou?

— Este é o problema — disse Turnbull. — O Capitão Glessing acha que deveria ser um Supremo Tribunal da Marinha... e eu acho que é um julgamento civil. Mas minha autoridade não abrange senão crimes menores e, certamente, não crimes capitais, de nenhum tipo. Este caso deverá ter juiz e júri próprios, e requer um inquérito judicial.

— É verdade. Mas não podemos ter um juiz, até sermos oficialmente uma colônia. E isto ainda vai demorar meses. Não podemos deixar ninguém acusado de qualquer crime na cadeia, sem um julgamento rápido e justo... isto é ilegal. — Longstaff pensou Por um momento. — Eu diria que é uma questão civil. Se o júri condenar, enviem-me os papéis e eu confirmarei a sentença. É melhor erigir o patíbulo em frente à cadeia.

— Não posso fazer isso, Excelência. Não seria legal. A lei é muito clara... só um juiz adequado poderia julgar um caso assim.

— Bom, não podemos manter homens acusados de crimes trancafiados indefinidamente, sem lhes dar um julgamento aberto e justo. O que sugere?

— Não sei, senhor.

— Que coisa aborrecida! — disse Longstaff. — Você está certo, naturalmente.

— Talvez seja o caso de entregá-los às autoridades chinesas, para que cuidem deles — disse Glessing, ansioso para ter a questão resolvida, a fim de poder conversar com Horatio.

— Desaprovo isso — disse Turnbull, bruscamente. — O crime foi cometido em águas britânicas.

— Concordo plenamente — disse Longstaff. — Por enquanto, mantenha presos todos os acusados, enquanto envio um despacho urgente para o Ministério de Relações Exteriores, pedindo orientação.

— Sim, Excelência. — Turnbull fez uma pausa. — E eu gostaria então, de receber fundos, para aumentar a prisão. Tenho dúzias de casos de roubo com violência e um deles de arrombamento e invasão com arma mortífera.

— Está bem — disse Longstaff, preguiçosamente. — Vamos discutir isso amanhã.

— Também gostaria de ter um encontro com V. Exa. amanhã — disse Glessing. — Preciso de algum dinheiro para contratar pilotos, e necessitamos estabelecer as tarifas para o porto e acostagem. Quero também autoridade para requisitar alguns rápidos caça­piratas. Há fortes rumores de que aquele demônio, Wu Fang Choi, está com uma frota no norte. Também preciso de autoridade para estender jurisdição sobre todas as águas de Hong Kong. Há necessidade urgente de padronizar as licenças do porto e questões similares.

— Muito bem, Capitão — disse Longstaff. — Ao meio-dia.

— E, em seguida, para Turnbull: — Às nove horas?

— Obrigado, Excelência.

Para lástima de Glessing, Longstaff se virou e caminhou em direção a Horatio. Meu Deus, pensou ele, nunca o encontrarei sozinho, esta noite.

 

Struan estava observando os navios ancorados e examinando o céu. Bom tempo, disse a si mesmo.

— É um belo porto, Sr. Struan — disse Zergeyev, em tom amistoso caminhando casualmente em sua direção.

— Sim. É bom termos nossas próprias águas, afinal. — Struan estava em guarda, mas suas maneiras eram descontraídas. — Hong Kong será, um dia, uma jóia perfeita na coroa da rainha.

— Vamos caminhar um pouco?

Struan começou a andar no mesmo ritmo do arquiduque, enquanto este seguia em direção ao mar.

— Pelo que soube, só obtiveram a ilha há pouco mais de dois meses. — O arquiduque fez um aceno de mão em direção ao início dos prédios em todo Vale Feliz. — Entretanto, têm quase uma cidade. Sua energia e indústria são espantosas.

— Bom, Alteza, se há algo a ser feito, não adianta esperar, não é?

— Não. Mas acho curioso, sendo a China tão fraca, que tenham tomado apenas um rochedo árido. Deve haver muitos outros prêmios importantes.

— Não estamos atrás de prêmios, na China. Apenas uma pequena base para querenar e reparar nossos navios. E eu diria que uma nação de trezentos milhões de habitantes nada tem de fraca.

— Então, com a guerra sem acabar, suponho que estão esperando reforços substanciais. Exércitos, não apenas alguns poucos milhares de homens. Frotas... e não trinta e tantos navios.

— Sua Excelência deve saber mais a respeito disso do que eu. Mas eu diria que qualquer potência que enfrenta a China terá diante de si uma longa luta. Sem os planos necessários e os homens necessários. — Struan fez um sinal em direção ao continente, do outro lado do porto. — A terra não tem limites.

— A Rússia não tem limites — disse Zergeyev. — Mas só em termos simbólicos. Na realidade, até mesmo a Rússia tem fronteiras. Com o Ártico, com o Himalaia. Com o Báltico e o Pacífico.

— Vocês tomaram terras ao norte? — Struan tentou disfarçar o pasmo em sua voz. Onde, pelo amor de Deus? Ao norte da Manchúria? A Manchúria? Ou a China, minha China?

— A Mãe Rússia se estende de um mar a outro. Governada por Deus, Tai-Pan — disse Zergeyev, com simplicidade. — Devia ver a terra da Mãe Rússia, para entender o que eu quero dizer. É negra e rica, cheia de vida. Entretanto, devastamos cento e cinqüenta milhas de nosso território, para conter Bonaparte e a Grande Armêe. O senhor pertence ao mar. Mas eu pertenço à terra. Eu lhe concedo o mar, Tai-Pan. — Os olhos de Zergeyev pareceram empanar-se. — Foi uma grande luta, a desta tarde. E um desafio interessante. Muito interessante.As rugas do rosto de Struan se aprofundaram, com seu sorriso.

— Pena que fosse empate. Agora jamais saberemos... não é, Alteza?... quem era o melhor homem.

— Gosto do senhor, Sr. Struan. Gostaria de ser seu amigo. Poderíamos prestar grandes serviços um ao outro.

— Será uma honra para mim ajudá-lo, de qualquer maneira.

Zergeyev riu, com os dentes reluzindo, muito brancos.

— Há tempo bastante. Uma vantagem que a Ásia tem sobre a Europa é sua avaliação de tempo. Minha família vem de Karaganda. Fica deste lado dos Urais, de modo que, talvez, em parte, eu seja asiático. Somos Kazaki. Algumas pessoas nos chamam “cossacos”.

— Não entendo. Os Urais?

— Uma cadeia de montanhas que corre do Ártico até o Mar Cáspio. Divide a Rússia em duas partes... leste e oeste.

— Sei muito pouco a respeito da Rússia.. . ou da Europa, diga-se de passagem — falou Struan.

— Deveria ir à Rússia. Dê-me seis meses de seu tempo e me deixe ser seu anfitrião. Há muita coisa para ver... cidades e mares de grama. Poderia ser uma experiência muito proveitosa. Grandes mercados para o chá e sedas e todo o tipo de mercadoria. — Seus olhos cintilaram. — E as mulheres são lindas.

— Estou um pouco ocupado esta semana, mas quem sabe na próxima?

— Ora, não vamos brincar, mas falar um pouco a sério. Por favor, examine o assunto. No próximo ano, no subseqüente. Acho que é muito importante. Para o senhor, para seu país e para o futuro. A Rússia e a Inglaterra jamais guerrearam uma com a outra. Durante séculos, fomos aliados, e temos diferenças com a França, nosso inimiga hereditária. A Rússia possui grandes recursos terrestres e milhões de pessoas, pessoas fortes. Vocês têm pouca terra, então precisam de seu Império, e nós somos a favor. Vocês governam os mares, e somos a favor. Vocês têm seu espantoso poderio industrial e a riqueza que ele traz. Estamos muito satisfeitos. Vocês têm mercadorias comerciais e os meios de entregá-las, e nós temos mercados. Mas também temos mercadorias que vocês podem usar; matéria-prima de que precisam para alimentar suas incríveis máquinas, e dar comida ao seu surpreendente povo. Juntos, somos imbatíveis. Juntos, podemos dominar a França. E o Sacro Império Romano, a Prússia e a infiel Turquia. Juntos, podemos manter a paz. E crescer e prosperar, para o benefício de todos.

— Sim — disse Struan, com a mesma seriedade. — Sou a favor disso. Mas você está falando em nível nacional. De um ponto de vista histórico. Isto não é prático. E eu não creio que possa culpar os franceses pela ambição de seus reis. Ou justificar a transformação dos turcos em cristãos com o uso da espada. Eu já dei minha opinião, durante o almoço. Em nível internacional, sem alguma forma de controle sobre os reis e rainhas, sempre teremos guerras. Sua Excelência disse muito bem. Os reis, e qualquer tipo de líderes, derramam o sangue dos outros. Para ser prático, há pouca coisa que eu possa fazer. Não opero em nível nacional e não tenho nenhum poder real no Parlamento, como sabe muito bem...

— Mas, a respeito da Ásia, sua opinião é cuidadosamente ouvida. E eu tenho grande poder em São Petersburgo. Struan deu uma longa tragada em seu charuto e, depois, soprou a fumaça.

— O que quer na Ásia?

— O que quer na China?

— Comerciar — disse Struan, imediatamente, mas muito em guarda, e com cuidado para não revelar seu verdadeiro objetivo. Existe uma diferença diabólica, disse ele a si próprio, entre a Ásia e a China.

— Eu poderia, talvez, garantir que a Casa Nobre tivesse uma autorização exclusiva de importar chá para o mercado de todas as Rússias. E, na viagem de volta, ficaria com todas as exportações de pele e trigo de todas as Rússias.

— Em troca de quê? — perguntou Struan, esmagado pela enormidade da oferta. Um monopólio assim significaria milhões. E uma posição de tal poder o situaria em boa colocação nos círculos políticos ingleses, dando-lhe enorme prestígio.

— Amizade — disse Zergeyev.

— Esta palavra tem uma variedade de significados, Alteza.

— Tem apenas um significado, Sr. Struan. Claro que há muitas maneiras através das quais um amigo pode ajudar o outro.

— Que ajuda específica iria especificamente, desejar, em troca de um acordo comercial específico, com a minha companhia? Zergeyev riu.

— São especificidades demais para uma noite só. Sr. Struan. Mas vale a pena pensar a respeito, e vale a pena considerar. E discutir numa oportunidade específica, hein? — Ele olhou o porto, e os navios que seguiam para o continente. — O senhor deveria ir à Rússia — repetiu.

 

— Quando quer isto traduzido. Excelência? — Horatio ergueu os olhos do papel que Longstaff lhe entregara.— A qualquer momento, querido amigo. Dentro dos próximos dias, que tal? Mas coloque os caracteres chineses sobre as palavras inglesas, hein?

— Sim, senhor. Deve ser enviado a alguém?

— Não. Simplesmente, devolva-o a mim. Claro, é um assunto particular.

Longstaff se afastou, satisfeito com a maneira como o projeto ia progredindo. A carta dizia: “Sua Excelência o Capitão Superintendente do Comércio Inglês quer comprar sementes de amora, num peso de cinqüenta libras, ou mil mudas, para serem entregues o mais rápido possível. “Tudo que ele teria de fazer, quando Horatio devolvesse o texto traduzido, era substituir “amoras” por “chá”. Ele podia fazer isto sozinho; os caracteres chineses que significavam chá estavam escritos em todas as caixas exportadas. Então, esperaria até decidir quem mereceria confiança suficiente para receber o papel.

Sozinho, Horatio leu outra vez a carta. Ora, por que Longstaff iria querer amoras? Havia dezenas de milhares de amoreiras, com seus bichos-da-seda, no sul da França, e seria simples conseguir sementes de lá. Mas não tão simples consegui-las na China. Será que Longstaff está planejando plantar um pomar com essas árvores, aqui? Mas, por que cinqüenta libras? É uma quantidade fantástica de sementes, e ele não é nenhum jardineiro. E por que dizer, bruscamente: “Claro que é um assunto particular”?

— Horatio?

— Ah, olá, George. Como vai?

— Bem, obrigado.

Horatio notou que Glessing estava suando, e pouco à vontade.

— O que há?

— Nada. É apenas que... bom... chega uma hora na vida de todo homem... quando ele deve... bom... a gente encontra alguém a quem... eu não estou explicando direito. É Mary. Quero me casar com ela, e desejo a sua bênção.

Horatio acalmou-se com esforço e disse o que decidira, antecipadamente, falar. Estava muito consciente da atenção de Glessing a Mary, aquela noite, e lembrava do olhar que tivera, naquele primeiro dia. Ele odiou Glessing por ousar complicar a sua vida e a de Mary, e ousar ter a impertinência de pensar que Mary consideraria, por um só instante, a sua proposta.

— Estou muito lisonjeado, Glessing. E Mary ficará também. Mas ela, bom, não creio que ela esteja ainda preparada para o casamento.

— Mas claro que está. E eu tenho belas perspectivas, meu avô vai deixar para mim a herdade. Ficarei em boas condições financeiras, e minhas expectativas quanto ao serviço são excelentes e...

— Calma, George. Precisamos considerar as coisas com muito cuidado. Você já discutiu o assunto com Mary?

— Meu Deus, não. Queria primeiro saber sua impressão. Claro.

— Bom, por que você não deixa o assunto comigo? Eu não tinha idéia de que suas intenções eram sérias. Acho que você vai precisar ter paciência comigo... sempre pensei em Mary como sendo mais jovem do que realmente é. Claro que ela não tem ainda a idade mínima para o consentimento — acrescentou, em tom despreocupado.

— Então você aprova, de maneira geral?

— Ah, sim... mas jamais me ocorreu que... bom, no devido tempo, quando ela tiver idade, tenho certeza de que receberá bem o seu pedido e ficará honrada com ele.

— Você acha que eu deveria esperar até ela ter vinte e um aos?

— Bom, só tenho em meu coração os interesses dela. É minha única irmã e, bom, somos muito unidos. Desde que papai morreu, eu a criei.

— Sim — disse Glessing, sentindo-se lisonjeado. — Foi um ótimo trabalho que você fez. E é muito decente de sua parte me considerar, ela é tão... bom, eu acho que ela é maravilhosa.

— Ainda assim, é melhor ser paciente. O casamento é um ato tão definitivo. Particularmente para alguém como Mary.

— Sim. Tem toda razão. Bom, vamos brindar ao futuro, hein? Não tenho pressa de... bom, mas gostaria de uma resposta formal. É preciso fazer planos, não?

— Claro. Vamos brindar ao futuro.

 

— Diabo — disse Brock, quando Gorth se aproximou dele. — Struan vai ficar com todos os centímetros de espaço de carga fora dos nossos navios. Como eles conseguiram isso? Esta manhã? Não é razoável!

— É quase como se ele tivesse sabido as notícias com antecipação... mas isto é impossível.

— Bom, não importa, por Deus — disse Brock, enfatuado por saber que tinha um navio viajando velozmente para Manilha, mas ignorando que o navio de Struan estava com horas de vantagem.

— Que dança, hein?

— Culum está muito encantado com a nossa Tess, papai.

— Sim... também notei isso. Está na hora de ela ir para casa.

— Não antes do julgamento. — Os olhos de Gorth arderam dentro dos de seu pai.

— Uma união entre eles seria muito boa para nós.

— Nunca, por Deus — disse Brock, severamente, com o rosto avermelhando-se.

— Eu digo sim, por Deus! Ouvi um boato... um de nossos funcionários portugueses escutou a notícia entre os Struans, o Tai-Pan vai voltar para a Inglaterra dentro de seis meses.

— O quê?

— Vai embora para sempre.

— Eu não acredito.

— Com aquele demônio fora, quem será o Tai-Pan, hein? Robb? — Gorth cuspiu, acintosamente. — Podemos engolir Robb. Antes do leilão de terras, eu diria que poderíamos mastigar Culum como porco salgado. Agora, não tenho certeza. Mas se Tess fosse a mulher dele... então seria Brock-Struan e Companhia. Depois de Robb. Culum será o Tai-Pan.

— Dirk nunca irá embora. Nunca. Você está louco. Só porque Culum dançou com ela, isto não quer dizer...

— Meta isto em sua cabeça, papai — interrompeu Gorth. — Um dia, Struan irá embora. Todo mundo sabe que ele quer ir para o Parlamento. Como você vai querer se aposentar. Um dia.

— Haverá tempo suficiente para isso, por Deus!

— Sim, mas um dia você vai se aposentar, não? Então, eu serei o Tai-Pan. — A voz de Gorth não era rude, mas calma e determinada. — Serei o Tai-Pan da Casa Nobre, por Deus, e não da segunda casa. O casamento de Culum e Tess ajeitará tudo de uma maneira inteligente.

— Dirk jamais irá embora — disse Brock, odiando Gorth por deixar implícito que ele falhara, onde Gorth seria bem-sucedido.

— Estou pensando em nós, papai! E em nossa casa. E em como você e eu andamos trabalhando noite e dia para derrotá-lo. E a respeito do futuro. Culum e Tess, seria perfeito — acrescentou Gorth, inflexivelmente.

Brock eriçou-se, com o desafio. Ele sabia que, no devido tempo, teria de passar as rédeas. Mas não tão rapidamente, por Deus! Porque, sem a casa, e sem ser o Tai-Pan da Brock, ele feneceria e morreria.

— O que faz você pensar que seria Brock-Struan? Por que não Struan-Brock, e ele sendo Tai-Pan, e você de fora?

— Não se preocupe, papai. Com você e aquele demônio Struan, é como a luta de hoje. Vocês são páreo, um para o outro. Ambos igualmente fortes e espertos. Mas eu e Culum? É diferente.

— Vou pensar a respeito do que você disse. E então decidirei.

— Claro, papai. Você é o Tai-Pan. Com pagode, será o Tai-pan da Casa Nobre antes de mim. — Gorth sorriu e caminhou em direção a Culum e Horatio.

Brock afrouxou o penso sobre o olho e observou o filho, tão alto, dinâmico e forte. Olhou para Culum e, depois, deu uma olhada em torno, procurando Struan. Viu o Tai-Pan em pé, sozinho, lá na praia, observando o porto. O amor de Brock por Tess e seu desejo de que ela fosse feliz estava contraposto à verdade do que Gorth dissera. E ele sabia, com igual verdade, que Gorth devoraria Culum, se surgisse um conflito entre eles — Gorth forçaria a disputa, no devido tempo. E isto era certo? Deixar Gorth devorar o marido que talvez Tess amasse?

Ficou imaginando o que realmente faria, se o amor florescesse — o que Struan faria. Isto resolveria nossa situação, disse a si mesmo. E não seria uma coisa errada, não é mesmo? Sim. Mas você sabe que o velho Dirk jamais sairá de Cathay — e nem você — e haverá um acerto de contas entre vocês dois.

Endureceu o coração, odiando Gorth por fazê-lo sentir-se velho. Sabendo que, mesmo assim, deveria acertar contas com o Tai-Pan. Porque Gorth contra Culum, com Struan vivo, não era páreo. Sabendo que, mesmo assim, deveria acertar contas com o Tai-Pan.

 

Struan dançou primeiro com Mary e ela gostou muito; sua força a acalmava e lhe dava coragem.

Em seguida, escolheu Shevaun. Ela se comprimia contra ele, para excitá-lo, mas não ao ponto de ser indelicada. Seu calor e perfume cercavam-no. Ele notou distraidamente que Mary era conduzida para fora da pista por Horatio e, quando se virou outra vez, viu que eles caminhavam em direção à praia. Então, ouviu as sinetas do navio. Onze e meia.

Hora de ver May-may. Quando a dança terminou, ele acompanhou Shevaun de volta à mesa.

— Você me desculpa por um momento, Shevaun?

— Claro, Dirk. Mas volte logo.

— Voltarei — ele disse.

 

— É uma bela noite — disse Mary, desajeitadamente.

— Sim. — Horatio segurava-lhe levemente o braço. — Queria dizer-lhe algo divertido. George me puxou de lado e pediu, formalmente, sua mão em casamento.

— Você está espantado por alguém querer casar comigo? — ela perguntou, friamente.

— Claro que não, Mary. Quero dizer que é absurdo ele pensar que você iria considerar um idiota como ele, é isso. Ela examinou seu leque e, depois, olhou para a noite, perturbada.

— Eu disse que achava que ele...

— Eu sei o que você disse, Horatio. — Ela o interrompeu, bruscamente. — Você foi gentil e se livrou dele falando em “tempo” e “minha querida irmã”. Acho que vou casar com George.

— Você não pode fazer isso! Você não pode gostar daquele chato o suficiente para pensar nele nem um só momento.

— Acho que vou casar com George. No Natal. Se houver um Natal.

— O que você quer dizer com isso... se houver um Natal?

— Nada, Horatio. Gosto dele o suficiente para casar com ele e eu... bom, acho que é tempo de partir. . — Não acredito nisso.

— Eu também não acredito. — Sua voz tremeu. — Mas, se George quer casar comigo... decidi que George é uma boa escolha para mim.

— Mas, Mary, eu preciso de você comigo. Eu a amo e você sabe...

Os olhos dela tiveram um relâmpago repentino e toda a amargura e a agonia contida há anos sufocaram-na.

— Não fale de amor comigo!

O rosto dele se tornou mortalmente pálido e seus lábios tremeram.

— Eu já pedi a Deus um milhão de vezes para nos perdoar.

— É um pouco tarde para pedir a Deus para “nos” perdoar, não?

 

Tudo começara depois de uma surra de chicote, quando ele era um menino e ela muito criança. Os dois subiram juntos na cama, agarrando-se um ao outro, para apagar o horror e a dor. Ela ficou confortada pelo calor de seus corpos e sentiu uma nova dor, que a fez esquecer o espancamento. Houve outras ocasiões, ocasiões felizes — ela criança demais para entender, mas Horatio, não. Depois, ele partira, para estudar na Inglaterra. Quando voltou, jamais se referiram ao que acontecera. Pois ambos já sabiam o significado daquilo.

— Juro por Deus que implorei perdão.

— Estou tão satisfeita, querido irmão. Mas não existe Deus — ela disse, com voz impessoal e cruel. — Eu lhe perdôo. Mas isto não me transforma numa virgem, não é?

— Mary, eu lhe suplico, por favor, pelo amor de Deus, por favor...

— Eu lhe perdôo tudo, querido irmão. Só não perdôo sua lamentável hipocrisia. Nós não pecamos... você pecou. Reze por sua própria alma... não pela minha.

— Rezo mais pela sua do que pela minha. Nós pecamos, que Deus nos ajude. Mas o Senhor perdoará. Ele perdoará, Mary.

— Este ano, com pagode, eu me casarei com George e esquecerei você, e esquecerei a Ásia.

— Você não tem a idade mínima para o consentimento. Você não pode ir. Sou seu tutor, de acordo com a lei. Não posso deixar você ir. Em tempo, você verá como isto é aconselhável. É o melhor para você. Proíbo você de partir. Aquele patife, não é suficientemente bom para você, está ouvindo? Você não irá!

— Quando eu decidir casar-me com Glessing — ela sibilou, com a voz a dilacerá-lo

— é melhor você dar sua maldita “aprovação” depressa porque, se não der, vou contar a todo mundo... não, contarei ao Tai-Pan primeiro, e ele irá atrás de você com um chicote. Nada tenho a perder... nada. E todas as suas malditas preces para um Deus não existente e para o doce Cristo de papai não vão ajudá-lo em nada. Porque Deus não existe, nunca existiu, nunca existirá, e Cristo era apenas um homem... um santo mas, ainda assim, um homem!

— Você não é Mary; você é — a voz dele fraquejou — você é o mal. Claro que Deus existe. Claro que temos almas. Você é uma herege. Você é um demônio! Foi você, e não eu! Ó Senhor Deus, perdoai-nos...

Mary esbofeteou-o.

— Pare, querido, irmão. Estou cansada de suas inúteis orações. Está ouvindo? Você fez minha carne ferver, durante anos. Porque eu sabia, pela luxúria em seus olhos, que você ainda desejava ir para a cama comigo. Ainda assim, entendia o que era incesto, e entendia antes mesmo de ter começado. — Ela riu, uma risada terrível. — Você é pior do que papai. Ele estava louco, com sua crença, mas você... você só finge acreditar. Espero que seu Deus exista. Porque ele vai fazer você arder no fogo do inferno para sempre. E que bons ventos o levem.

 

Ela se afastou. O irmão ficou a procurá-la com o olhar e depois correu, cegamente, pela noite adentro.


 

— Olá, senhor! — disse Lim Din, abrindo a porta com uma mesura.

— Olá, Lim Din — disse Struan, observando o barômetro. Bom tempo, 29.8. Excelente.

Começou a caminhar pelo corredor, mas Lim Din ficou no caminho e fez sinal, com ar importante, em direção à sala de estar.

— Senhola disse pia ir ali. Pode?

— Pode — Struan grunhiu.

Lim Din deu-lhe o conhaque, que já estava servido, e convidou-o, com outra mesura, a se sentar na cadeira de couro de encosto alto, afastando-se às pressas, em seguida. Struan colocou os pés sobre o escabelo estofado. A cadeira cheirava ligeiramente a mofo, a coisa velha e confortável, um odor que se misturava, agradavelmente, ao perfume de Shevaun, ainda parecendo rodeá-lo.

O relógio sobre o consolo da lareira marcava vinte minutos para as doze.Struan começou a trautear uma canção naval. Ouviu uma porta se abrir e um roçagar de seda que se aproximava. Esperando que May-may aparecesse à porta, ele outra vez a comparou com Shevaun. Estivera comparando as duas a noite inteira, tentando avaliá-las de maneira desapaixonada. Shevaun era um belo brinquedo, dinâmica, certamente, e cheia de vitalidade. Uma mulher que ele gostaria de domesticar, sim. E, como esposa, Shevaun seria uma soberba anfitriã — segura de si, inteligente e com a capacidade de abrir muitas portas. May-may constituía um jogo arriscado na Inglaterra — como esposa. Como amante, não. Sim, ele disse a si próprio. Ainda assim, vou casar com ela. Com o poder da Casa Nobre atrás de mim e uma autorização russa exclusiva em meu bolso, posso me arriscar a ignorar uma convenção e romper uma barreira quase intransponível entre Ocidente e Oriente. May-may provará, para além de todas as dúvidas — para sempre — entre as pessoas que realmente contam na sociedade, que o oriental é completamente digno de respeito. May-may, por si, apressará o dia da igualdade. E isto vai acontecer ainda durante minha vida.

Sim, ele exultou, de si para consigo, May-may é uma aposta maravilhosa. Juntos, poderemos fazer isso. Para sempre. Com pagode, Londres inteira cairá a seus pés.

E, então, a alegria dele se espatifou.

May-may estava em pé à porta, com um sorriso radiante no rosto, rodopiando. Seu vestido europeu era violentamente multicolorido, sobrecarregado de jóias, com a saia grande e cheia de pufes. Seu cabelo caía em cachos sobre os ombros nus e tinha um chapéu de plumas no cabelo. Estava horrorosa. Um pesadelo.

— Pelo sangue de Cristo!

Houve um silêncio horrível, enquanto eles olhavam um para o outro.

— É muito... bonito — ele disse, com voz pouco convincente, esmagado pela dor que apareceu nos olhos de May-may.

May-may estava fantasmagoricamente pálida, agora, a não ser pelas duas manchas escarlates que tinha no alto das faces. Sabia que perdera prestígio terrivelmente, diante de Struan. Cambaleou, quase desmaiando. Depois, gemeu e fugiu.

Struan saiu correndo atrás dela, pelo corredor. Invadiu os aposentos particulares de May-may. Mas o quarto de dormir estava trancado, para ele não entrar.

— May-may, garota, abra a porta!

Não houve resposta. Ficou furioso consigo mesmo, por não ter conseguido mascarar seus sentimentos, e por ter sido tão estúpido e despreparado. Claro que May-may desejaria ir ao baile, é lógico que todas as suas perguntas deveriam tê-lo advertido disto, naturalmente ela mandaria fazer um vestido de baile e — ah, Jesus Cristo!

— Abra a porta!

Outra vez, não houve resposta. Ele bateu os pés na porta, com toda força. Esta se abriu e ficou precariamente pendurada nas dobradiças quebradas. May-may estava em pé ao lado da cama, olhando para o chão.

— Você não devia ter trancado a porta, garota. Bom... bom, você... o vestido e você simplesmente me espantaram, por um momento. — Sabia que tinha de lhe devolver seu prestígio, senão ela morreria. Morreria de infelicidade, ou então se mataria. — Vamos — ele disse. — Nós vamos para o baile.

Quando ela caiu de joelhos, para se prosternar diante dele e lhe implorar perdão, o vestido atrapalhou-a e a fez tropeçar. May-may abriu a boca para falar, mas não saiu nenhum som. O chapéu de penas escorregou.

Struan correu para ela e começou a erguê-la. — Vamos, May-may, garota, você não deve fazer isso. Mas ela não queria ser ajudada a se levantar. Enterrou o rosto mais fundo no tapete e tentou enfiar as unhas no tecido.

Ele a levantou, desajeitadamente, e segurou-a. Ela não o olhava. Ele lhe segurou a mão, com firmeza.

— Vamos.

— O quê? — ela disse, estupidamente.

— Vamos para o baile.

Ele sabia que isto seria um desastre, para ele e para ela. Sabia que seria socialmente destruído e ela ridicularizada. Mas sabia também que deveria levá-la, senão o seu espírito morreria.

— Vamos — ele repetiu, com um toque de dor na voz. Mas ela continuou a olhar para o chão, tremendo.

Puxou-a, suavemente, mas ela quase caiu. Então ele, sombriamente, a levantou, e ela ficou em seus braços, um peso morto. Começou a carregá-la.

— Vamos, e este é o fim da questão.

— Espere — ela resmungou — eu preciso, eu, eu, o chapéu. Ele a pôs no chão e ela voltou para o quarto de dormir, com o andar trôpego enfeado pelo vestido. Struan sabia que nada seria outra vez exatamente como antes, entre eles. Ela cometera um erro horrível. Ele deveria ter previsto, sim, mas...

Viu que ela se lançava sobre o estilete, afiado como uma navalha, que usava para bordar. Alcançou-a exatamente quando ela começava a virá-lo em direção a si mesma, e agarrou o punho da faca. A ponta resvalou pelo osso de baleia no corpete de May-may. Ele atirou a faca para um lado e tentou segurá-la mas, vociferando em chinês, ela o empurrou e meteu as unhas no vestido, rasgando-o. Struan, depressa, virou-a e abriu os colchetes de gancho. May-may rompeu a parte da frente e lutou para sair do vestido e do corpete, rasgando em seguida as calças. Quando estava livre, pisoteou o vestido, gritando.

— Pare! — ele gritou, e a agarrou, mas ela o empurrou, tomada de fúria cega. – Pare!

Ele lhe bateu no rosto, com a mão aberta. Ela cambaleou, como se estivesse bêbada, e caiu atravessada na cama. Seus olhos se reviraram, e ela perdeu a consciência.

Struan levou um momento para se recuperar das marteladas nos ouvidos. Puxou as roupas de cama e cobriu May-may.

— Ah Sam! Lim Din!

Os dois rostos petrificados apareceram à porta quebrada.

— Chá... depressa! Não. Tragam conhaque.

Lim Din voltou com a garrafa. Struan ergueu May-may gentilmente e ajudou-a a beber. Ela ficou meio sufocada. Depois, seus olhos tremeram e se abriram. Olhou para ele, sem reconhecê-lo.

— Está bem, garota? Você está bem, May-may?

Ela não deu nenhum sinal de tê-lo escutado. Seu olhar assustado caiu sobre o vestido rasgado e ela se encolheu, deploravelmente. Um gemido lhe escapou dos lábios, e murmurou alguma coisa em chinês. Ah Sam avançou relutantemente, consumida pelo terror. Ela se ajoelhou e começou a pegar a roupa.

— O que ela disse? O que a senhora disse? — Struan mantinha os olhos em May-may, sem se desviarem.

— Para tocar fogo nas roupas endemoninhadas, senhor.

— Não toque fogo, Ah Sam. Ponha no meu quarto. Escondidas. Escondidas. Entendido?

— Entendido, senhor.

— Depois volte.

— Está bem, senhor.

Struan fez um aceno de mão, para Lim Din sair, e ele se afastou correndo.

— Vamos, garota — disse bondosamente, aterrorizado com a fixidez e a loucura do olhar dela. — Vista-se com suas roupas habituais. Você precisa ir ao baile. Eu quero que você conheça meus amigos.

Ele deu um passo em direção a ela, que recuou abruptamente, como uma cobra prestes a dar o bote. Ele parou. O rosto dela estava contorcido e seus dedos pareciam garras. Uma gota de saliva se formara num canto de sua boca. Seus olhos estavam aterrorizadores.

Sentiu medo dela. Vira o mesmo olhar em outros olhos. Nos olhos do fuzileiro, pouco antes de seu cérebro ser despedaçado, naquele primeiro dia em Hong Kong. Fez uma oração silenciosa ao Infinito e reuniu todas as suas forças.

— Eu a amo, May-may — ele disse suavemente, vezes repetidas, enquanto caminhava devagar de um lado para outro do quarto.

Cada vez mais perto. Devagar, tão devagarzinho. Ele se inclinou sobre ela, agora, e viu as garras prontas para atacarem. Ergueu as mãos e, suavemente, tocou-lhe o rosto.

— Eu a amo — repetiu. Seus olhos, perigosamente desprotegidos, sugestionavam-na com a imensidão de seu poder. — Preciso de você, garota, preciso de você.

A loucura que havia nos olhos dela transformou-se em agonia e May-may caiu soluçando em seus braços. Ele a segurou e agradeceu a Deus, fracamente.

— Sinto muito — ela gemeu.

— Não sinta, garota. Tudo bem, tudo bem.

Ele a carregou para a cama e ficou sentado com ela nos braços, embalando-a como se fosse uma criança.

— Tudo bem, tudo bem.

— Me deixe, agora. Está... tudo bem.

— Não vou fazer isso — ele disse. — Primeiro, se recomponha, depois você vai se vestir para ir ao baile. Ela abanou a cabeça, chorando.

— Não, não... posso. Eu... por favor...

Ela parou de chorar e, saindo de seus braços, ficou de pé, cambaleando. Struan pegou-a e a conduziu para a cama, ajudando-a a tirar o resto das roupas esfarrapadas. Cobriu-a bem com os lençóis. Ela ficou caída na cama, e fechou os olhos, exausta.

— Por favor. Estou bem, agora. Preciso... dormir. Vá embora.

Ele lhe acariciou a cabeça, gentilmente, afastando de seu rosto os cachos obscenos. Mais tarde, ele teve consciência de que Ah Sam estava à porta. A moça entrou no quarto, com as lágrimas a lhe escorrerem pelas faces.

— Pode ir, senhor — sussurrou. — Ah Sam vigia, não se incomode. Não tenha medo. Pode.

Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça, cheio de cansaço. May-may estava profundamente adormecida. Ah Sam ajoelhou-se ao lado da cama e suavemente, com ternura, acariciou a cabeça de May-may.

— Não tenha medo, senhor. Ah Sam vigia muito bem, até o senhor voltar. Struan saiu do quarto, nas pontas dos pés.

 

Culum foi o primeiro a cumprimentar Struan, quando ele voltou para o baile.

— Podemos começar o julgamento? — perguntou, bruscamente. Nada poderia destruir sua euforia com o amor recém-descoberto, e com o irmão dela, seu novo amigo. Mas ainda fazia o jogo.

— Você não devia ter esperado — respondeu Struan, com dureza. — Onde está Robb? Pelo sangue de Cristo, tenho de fazer tudo?

— Ele teve de ir embora. Chegou notícia de que as dores de parto de tia Sarah haviam começado. Parece que há algum problema.

— O quê?

— Não sei. Mas a Sra. Brock foi com ele, para ver se podia ajudar.

Culum se afastou. Struan mal notou que ele se fora. Sua preocupação com May-may voltou e, agora, estava sobrecarregada com a preocupação com Sarah e Robb. Mas Liz Brock era a melhor parteira da Ásia e, se fosse necessária qualquer ajuda, Sarah a teria.

Shevaun se aproximou, trazendo-lhe conhaque. Ela lhe entregou o copo sem uma só palavra e deu-lhe o braço, com delicadeza. Sabia que não havia necessidade de conversa. Numa ocasião assim, era melhor não dizer nada — pense quanto quiser, mas nada de perguntas. Pois mesmo a pessoa mais poderosa, ela sabia, precisava de um apoio silencioso, compreensivo e paciente, de vez em quando. Então, ficou à espera, deixando que sua presença o envolvesse.

Struan bebeu o conhaque, devagar. Seus olhos vaguearam pela multidão e ele viu que tudo estava bem — risos aqui e acolá, leques adejando, espadas a reluzirem. Observou Brock, em conversa particular com o arquiduque. Brock escutava e, ocasionalmente, acenava afirmativamente com a cabeça, por completo concentrado. Será que Zergeyev lhe oferecia a autorização? Mary abanava-se, ao lado de Glessing. Algo está errado ali, disse a si próprio. Tess, Culum e Gorth riam entre si. Ótimo.

E, quando Struan acabou o conhaque e se recompôs, olhou para Shevaun.

— Obrigado — disse, comparando o ridículo de May-may, em trajes e penteado europeus, com a perfeição de Shevaun. — Você é muito bonita e muito compreensiva.

Sua voz estava soturna e ela sabia que deveria ter sido algo relativo à sua amante. Não importa, pensou e segurou o braço dele, compassivamente.

— Estou bem, agora — disse ele.

— O Sr. Quance se aproxima — ela o advertiu, gentilmente. — Está na hora do julgamento. A luz verde dos olhos dele escureceu.

— Você é muito sensata, Shevaun, além de ser bonita.

Um agradecimento veio-lhe à ponta da língua, mas ela nada disse, limitando-se a mover ligeiramente o leque. Sentia que o conhaque, o silêncio e a compreensão — e, acima de tudo, o fato de não ter feito perguntas — haviam contribuído muito para levá-lo à beira de uma decisão.

— Ah, Tai-Pan, meu caro amigo — disse Quance, ao se aproximar, com os olhos cheios de alegria, um rubor alcoólico a envolvê-lo. — Está na hora do julgamento!

— Muito bem, Aristotle.

— Então, faça a comunicação, vamos saber o resultado!

— Sr. Quance! — Como um trovão, as palavras rasgaram a noite.

Todos se viraram, espantados. Quance gemeu alto.

Maureen Quance estava ali em pé, com seus olhos a reduzi-lo a pó. Era uma irlandesa alta, de ossos grandes, com um rosto como um pedaço de couro, nariz enorme e pernas sólidas como carvalhos. Tinha a mesma idade de Quance, mas era forte como um touro, o cabelo grisalho preso num coque desarrumado. Quando jovem, era atraente, mas agora, com a pança provocada pelas batatas e pela cerveja, tornara-se esmagadora.

— Muito boa-noite, Sr. Quance, meu bom rapaz — disse. — Sim, sou eu mesma, que Deus seja louvado!

Ela se arrastou pela pista de danças, sem se importar com os olhares e com o silêncio embaraçado, e ficou em pé diante de seu marido.

— Andei procurando por você, meu bom rapaz.

— Ah? — disse ele, com a voz num trêmulo falsete.

— Ah, sim. — Ela virou a cabeça. — Muito boa-noite, Sr. Struan, quero agradecer­lhe pela hospedagem e comida. Deus seja louvado, peguei o malvado.

— A senhora, ah... está com bom aspecto, Sra. Quance.

— Sim, na verdade me sinto maravilhosamente bem. Foi um abençoado milagre de São Patrício que enviou o navio nativo até onde eu me achava, e me guiou os passos a este recanto imortal. — Ela virou os olhos lúgubres para Aristotle, e ele tremeu. — Vamos nos despedir, meu querido!

— Mas, Sra. Quance — disse Struan, depressa, lembrando o julgamento. — O Sr. Quance tem algo que...

— Vamos dizer boa-noite — ela grunhiu. — Diga boa-noite, meu rapaz. — Boa-noite, Tai-Pan — guinchou Aristotle. Mansamente, deixou que Maureen o levasse pelo braço. Depois que haviam partido, todos morreram de rir.

— Pelo sangue de Cristo — disse Struan. — Pobre Aristotle.

— O que aconteceu com o Sr. Quance? — perguntou Zergeyev.

Struan explicou as tribulações domésticas de Aristotle.

— Talvez nós devêssemos socorrê-lo — disse Zergeyev. — Eu gostei muito dele. — Mas não podemos nos meter em briga de marido e mulher, não é?

— Acho que não. Mas quem julgará o concurso?

— Creio que vou ter de fazer isso.

Os olhos de Zergeyev semicerraram-se.

— Posso me apresentar como voluntário? Sendo um amigo?

Struan examinou-o. Depois, deu uma volta sobre os calcanhares e caminhou para o centro da pista. As bandas tocaram um alto acorde.

— Sua Excelência, Sua Alteza, senhoras e cavalheiros. Há um concurso para julgar a dama mais bem-vestida da noite. Temo que nosso imortal Quance tenha outro compromisso. Mas Sua Alteza o Arquiduque Zergeyev apresentou-se como voluntário para fazer a escolha. — Struan olhou para Zergeyev e começou a bater palmas. Seus aplausos foram acompanhados e houve um rugido de aprovação, enquanto Zergeyev avançava.

Zergeyev pegou a bolsa com os mil guinéus.

— A quem devo escolher, Tai-Pan? — perguntou, falando pelo canto da boca. — A Tillman para você, a Vargas para mim, a Sinclair porque é a mais misteriosa? Escolha quem deve ganhar.

— A escolha é sua, meu amigo — disse Struan e, com um sorriso calmo, se afastou.

Zergeyev esperou um momento, gozando o suspense da escolha. Sabia que devia escolher quem o Tai-Pan queria. Decidiu-se, atravessou a pista, curvou-se e depôs a bolsa de ouro aos pés dela.

— Acredito que isto lhe pertence, Srta. Brock.

Tess olhou para o arquiduque, atônita. Depois, corou, quando o silêncio foi rompido.

Houve um aplauso forte, e os que haviam apoiado Tess, em suas apostas, gritaram de satisfação. Shevaun aplaudiu junto com a multidão e conteve seu ressentimento. Sabia que era uma escolha sábia.

— A escolha política ideal, Tai-Pan — sussurrou, calmamente. — Você é muito esperto.

— A decisão foi do arquiduque, não minha.

— Outra razão para eu gostar de você, Tai-Pan. Você é um grande jogador e seu pagode é inacreditável.

— E você é uma mulher maravilhosa.

— Sim — ela disse, sem vaidade. — Compreendo a política muito bem. Meu pai, ou um de meus irmãos, será presidente dos Estados Unidos, um dia.

— Você devia estar na Europa — ele disse. — Aqui, você se desperdiça.

— Será mesmo? — os olhos dela o desafiaram.


 

Struan entrou tranqüilamente em casa. O amanhecer principiava. Lim Din dormia junto da porta e acordou espantado.

— Chá, senhor? Desjejum? — perguntou, sonolento.

— Vá para a cama, Lim Din — disse Struan, gentilmente. Enquanto Struan atravessava o corredor, deu uma olhada nasala de visitas e parou. May-may, pálida e imóvel, estava sentada na cadeira de couro, observando-o.

Quando ele entrou na sala, ela levantou-se e se curvou, graciosamente. Seu cabelo estava suspenso, puxado para trás, seus olhos amendoados eram delicados e tinha as sobrancelhas arqueadas. Usava um longo e flutuante vestido chinês.

— Como vai, moça? — ele perguntou.

— Obrigada, esta escrava está bem, agora. — A palidez e o verde-claro de seu vestido de seda aumentavam a imensidão de sua dignidade. — Quer beber conhaque?

— Não, obrigado.

— Chá?

Ele abanou a cabeça, pasmado com sua majestade. — Estou satisfeito de você se sentir melhor. Devia estar na cama.

— Esta escrava pede que lhe perdoe. Esta escrava...

— Você não é escrava, e nunca foi. E não há nada a perdoar, garota, então vá para a cama. Ela esperou, pacientemente, até ele terminar.

— Esta escrava lhe implora para escutar. Ela precisa dizer, à sua maneira, o que é preciso ser dito. Por favor, sente-se. Uma lágrima deslizou pelo canto de cada olho e escorreu sobre a brancura de suas faces. Ele se sentou, quase hipnotizado por ela.

— Esta escrava implora a seu amo para vendê-la.

— Você não é escrava, e não pode ser vendida ou comprada.

— Por favor, venda. Para qualquer pessoa. Para um bordel, ou para outro escravo.

— Você não está à venda.

— Esta escrava ofendeu-o além do suportável. Por favor, venda.

— Você não me ofendeu. — Ele se levantou, e sua voz estava metálica. — Agora, vá para a cama.

Ela caiu de joelhos e tocou a testa no colchão. .— Esta escrava sente vergonha diante de seu amo e senhor. Ela não pode viver aqui. Por favor, venda!

— Levante-se! — O rosto de Struan se endureceu.

Ela se levantou. Seu rosto estava cheio de sombras, etéreo.

— Você não está à venda, porque ninguém a possui. Você vai ficar aqui. Você não me ofendeu. Você me surpreendeu, só isso. Roupas européias não ficam bem em você. Das roupas que você usa, eu gosto. E gosto de você como você é. Mas, se não quer ficar, você é livre para ir embora.

Struan estava quase explodindo. Controle-se, disse a si mesmo, desesperado. Se perder a cabeça, agora, você a perderá para sempre.

— Vá para a cama.

— Deve vender esta escrava. Venda esta escrava ou lhe ordene para ir embora.

 

Struan percebeu que era inútil argumentar ou discutir com May-may. Você não pode tratá-la como européia, disse a si mesmo. Trate-a como se você fosse chinês. Mas como vou fazer isso? Não sei. Trate-a como uma mulher, ele ordenou a si mesmo, decidindo-se por uma tática.

Então explodiu, com raiva fingida.

— Você é uma miserável escrava, por Deus! E estou pensando em vender você na Rua das Lanternas — gritou, citando a pior das ruas com bordéis para marinheiros de Macau — muito embora eu não saiba quem vai querer comprar uma escrava sem préstimo feito você. Você só dá problema e estou pensando em entregar você aos leprosos. Sim, por Deus! Paguei oito mil taéis de boa prata por você, e como ousa me aborrecer? Fui enganado, por Deus! Você não vale nada! Escrava suja... não sei como suportei você todos esses anos! — Sacudiu o punho junto ao seu rosto, e ela se encolheu. — Não sou bom para você? Hein? Generoso? Hein? Hein? — Ele rugiu e ficou satisfeito, ao descobrir medo nos olhos dela — Diga lá!

— Sim, senhor — ela sussurrou, mordendo os lábios.

— Você ousa arranjar roupas feitas sem eu saber, e ousa usar essas roupas sem minha aprovação, por Deus? Responda, ousa?

— Sim, senhor.

— Vou vender você amanhã. Estou pensando em expulsá-la agora, sua miserável prostituta filha da mãe! Ajoelhe-se! Vamos, ajoelhe-se, por Deus! Ela empalideceu, diante da fúria dele, e se ajoelhou, depressa.

— E fique aí ajoelhada, até eu voltar!

Ele saiu correndo da sala e foi para o jardim. Puxou a faca e escolheu um bambu fino, de um bosque recém-plantado. Cortou-o brandiu-o no ar e voltou correndo para a sala de visitas.

— Tire a roupa, escrava miserável! Vou açoitar você até meus braços ficarem doendo.

Tremendo, ela tirou a roupa. Ele tomou o vestido de suas mãos e atirou para um canto.

— Deite-se aí. — Apontou para o escabelo estofado. Ela fez como ele lhe ordenara. — Por favor, não bata em mim com força demais... estou grávida de dois meses. — Ela enterrou a cabeça no escabelo.

Struan queria tomá-la nos braços, mas sabia que isto o faria perder prestígio diante dela. E chicoteá-la era a única maneira de devolver-lhe a dignidade.

Então bateu-lhe nas nádegas com o bambu. O suficiente para doer, mas não para causar danos. Logo ela estava gritando, chorando e se contorcendo, mas ele continuou. Duas vezes, deliberadamente, errou o alvo e bateu no couro, violentamente, causando um barulho terrificante, para impressionar Lim Din e Ah Sam que, ele sabia, deviam estar à escuta.

Depois de dez pancadas, fez uma pausa e disse a ela para ficar onde estava, indo, então, pegar a garrafa de conhaque. Bebeu muito, atirou a garrafa contra a parede e recomeçou a açoitá-la. Mas, sempre com muito cuidado.

Afinal, parou e levantou-a no ar.

— Vista-se, sua escrava miserável! — Quando ela já estava vestida, ele berrou: — Lim Din! Ah Sam!

Instantaneamente, eles apareceram à porta, tremendo.

— Por que não trazem chá e nem comida, seus miseráveis escravos! Vão pegar comida! Atirou o bambu para o lado da porta e se virou outra vez para May-May.

— Ajoelhe-se, sua filha da mãe!

Aterrorizada com a imensidão da fúria dele, ela obedeceu depressa.

— Limpe-se e volte para cá. Em trinta segundos, senão eu começo tudo de novo!

Lim Din serviu o chá e, embora estivesse perfeito, Struan disse que estava frio demais e jogou o bule contra a parede. May-may, Lim Din e Ah Sam saíram correndo e trouxeram mais.

A comida veio também com incrível velocidade, e Struan permitiu que May-may o servisse. Ela gemeu de dor e ele gritou: — Cale a boca, senão vou chicoteá-la para sempre!

Depois, ele ficou agourentamente silencioso e comeu, deixando a quietude torturá­los.

— Pegue o bambu! — ele gritou, quando terminou. May-may pegou o bambu e entregou-o a ele. Ele o empurrou contra seu estômago.

— Cama! — ordenou, com dureza, e Lim Din e Ah Sam fugiram, sentindo-se seguros por saber que o Tai-Pan perdoara sua Tai-tai, tendo esta ganho um prestígio ilimitado por suportar sua justa fúria.

May-may virou-se chorosa e seguiu pelo corredor, em direção aos seus aposentos, mas ele rosnou: — Minha cama, por Deus!

Ela correu para o quarto dele. Ele a seguiu, bateu a porta e trancou-a.

— Então, você está grávida. De quem é o filho?

— Seu, senhor — ela gemeu.

— Ele se sentou e estendeu um pé calçado com a bota.

— Vamos, depressa.Ela caiu de joelhos e puxou as botas, e depois ficou em pé, ao lado da cama.

— Como você ousa pensar que eu queria que você conhecesse meus amigos? Quando quiser levar você para fora da casa, eu lhe digo, por Deus!

— Sim, senhor.

— Lugar de mulher é em casa. Aqui!

— Sim, senhor.

Ele permitiu ao seu rosto abrandar-se um pouquinho.

— Assim é melhor, por Deus!

— Eu não queria ir para o baile — ela disse, num sussurro tímido. — Só queria me vestir como... Eu não queria ir para o baile. Quanto a ir para o baile... eu nunca quis. Só agradar. Desculpe. Sinto muito.

— Por que eu deveria perdoar você, hein? — Ele começou a se despir. — Hein?

— Não há razão. Nenhuma. — Agora ela estava chorando de causar dó, em silêncio. Mas ele sabia que, agora, em breve aquilo iria parar completamente.

— Talvez como você está grávida, eu possa lhe dar outra oportunidade. Mas é melhor ser filho homem, não uma menina inútil.

— Ah, sim... por favor, por favor. Por favor, perdoe. — Ela se ajoelhou e bateu a cabeça no chão.

Seu choro lhe despedaçava o coração, mas ele continuou a se despir, com ar sombrio. Depois, apagou a lanterna e se deitou. Ele a deixou em pé. Depois de um minuto ou dois, ele disse, asperamente:

— Venha para a cama. Estou com frio.

Mais tarde, quando não podia mais suportar vê-la chorando abraçou-a ternamente e a beijou.

— Você está perdoada, garota.

Ela chorou até dormir, nos braços dele.

 

Passaram-se semanas e a primavera se transformou em começo de verão. O sol ia ficando mais forte e a atmosfera tornava-se pesada de umidade. Os europeus, com seus trajes habituais e grossa roupa interna de lã — e vestidos cheios de pufes e espartilhos — sofriam muito. O suor secava nas axilas e nas virilhas e provocava o aparecimento de feridas inflamadas. Começaram as costumeiras doenças de verão — a diarréia de Cantão, a gripe de Macau, o mal asiático. Os que morriam eram pranteados. Os vivos, estoicamente, suportavam seus tormentos como se fossem tribulações inevitáveis, enviadas pelo bom Deus para atormentar a humanidade, e continuavam a fechar suas janelas para se proteger do ar que, todos acreditavam, carregava os gases nocivos emanados da terra no verão; e continuavam a permitir que seus médicos lhes receitassem purgantes, e lhes aplicassem sanguessugas, pois todos achavam ser aquela a única cura real para a doença; e continuavam a beber a água contaminada pelas moscas e a comer carnes infectadas; e continuavam a evitar o banho que, todos achavam, era perigoso para a saúde; e continuavam a rezar pelo frio do inverno, que outra vez purificaria a terra de seus venenos mais letais.

Por volta de junho, as epidemias tinham dizimado as fileiras do Exército. A temporada comercial quase terminara. Aquele ano, seriam ganhas grandes fortunas. Com pagode. Pois jamais a compra e a venda haviam sido tão extravagantes na Colônia de Cantão. Os negociantes, seus funcionários portugueses e compradores chineses, e os mercadores da Co-hong estavam todos exaustos com o calor, mas ainda mais devido às semanas de frenética atividade. Todos estavam prontos para relaxar, até começarem as compras de verão.

E aquele ano, afinal ao contrário de todos os anteriores, os europeus estavam ansiosos para passar o verão em seus próprios lares, em suas próprias terras em Hong Kong.

Suas famílias, em Hong Kong, já se haviam mudado das atravancadas cabinas dos navios para o Vale Feliz. A construção tivera um boom. A Cidade da Rainha já tomava forma — ruas, armazéns, prisão, docas, dois hotéis, tavernas e casas.

As tavernas que supriam os soldados ficavam perto das tendas, no Cabo Glessing. As que serviam aos marinheiros se situavam diante do ancoradouro, na Estrada da Rainha. Algumas eram mesmo tendas, estruturas toscas e provisórias. Outras, tinham caráter mais permanente.

Da Grã-Bretanha chegavam navios trazendo abastecimentos, parentes e amigos, e muitos estrangeiros. E cada maré trazia mais gente de Macau — portugueses, chineses, eurasianos, europeus -. mestres de velas, tecelões, alfaiates, funcionários, criados, negociantes, compradores e vendedores, cules, gente à procura de emprego ou cujos empregos os haviam forçado a ir para Hong Kong — todos os que serviam ao comércio da China, todos os que dele viviam ou tiravam seu sustento, artífices, jogadores e contrabandistas, punguistas e seqüestradores, ladrões, mendigos, piratas -. a escória de todas as nações. Eles também procuravam casa, ou começavam a construir casas e lojas. Botequins, bordéis, locais para fumar ópio começaram a infestar a Cidade da Rainha e a macular a Estrada da Rainha. O crime aumentou violentamente e a força policial, sendo

o que era, foi engolfada. A quarta-feira se tornou o dia dos açoites. Para divertimento dos justos, os criminosos presos eram publicamente açoitados, em frente à cadeia, como advertência para os maus.

A justiça britânica, embora rápida e dura, não parecia cruel aos chineses. Torturar publicamente, espancar até à morte, comprimir os polegares, mutilar, causar a perda de um ou dois olhos, uma ou duas mãos, um ou dois pés, marcar a ferro em brasa, cortar pedaços de carne, garrotear, cegar, arrancar a língua, esmagar os órgãos genitais — tudo isso eram punições chinesas convencionais. Os chineses não tinham julgamento por júri. Como Hong Kong estava além dos limites da justiça chinesa, todos os criminosos do continente que podiam escapar fugiam para a segurança do Tai Ping Shan e zombavam da moleza da lei bárbara.

E, enquanto a civilização florescia na ilha, o lixo começou a se juntar. E, com o lixo, vieram as moscas.

A água começou a se estagnar em barris atirados fora, em vasos e panelas quebrados. Ela se acumulava nos andaimes de bambu, nos jardins inacabados e no pântano raso na bacia do vale. Essas pequenas águas pútridas começaram a fervilhar de vida: larvas, que se tornavam mosquitos. Eram pequenos, frágeis e muito especiais — tão delicados que só voavam quando o sol se punha: o Anofeles.

E a população do Vale Feliz começou a morrer.

 

— Pelo amor de Deus, Culum, nada sei além do que você sabe. Há uma febre mortífera na Cidade da Rainha. Ninguém sabe o que a provoca e, agora, a pequena Karen contraiu a doença. Struan estava muito infeliz. Há uma semana não tinha notícias de May-may. Partira de Hong Kong há quase dois meses e só voltara numa rápida visita de dois dias, fazia algumas semanas, quando sua necessidade de ver May-may dominou-o. Ela florescia, sua gravidez não tinha nenhum enjôo e eles estavam mais satisfeitos um com o outro do que nunca.

— Graças a Deus nosso último navio foi embora e vamos deixar a Colônia amanhã!

— Tio Robb diz que é malária — disse Culum, exasperado, brandindo a carta de Robb que acabara de chegar.

Estava frenético de preocupação por causa de Tess. Ainda na véspera, recebera uma carta sua, dizendo que ela e sua irmã, bem como a mãe, se haviam mudado do navio para a feitoria de Brock, parcialmente pronta. Mas não fora feita nenhuma menção à malária.

— Qual a cura da malária?

— Que eu saiba, nenhuma. Não sou médico. E Robb diz que apenas poucos médicos acham que é malária. — Struan sacudiu o espanta-moscas com irritação. — “Malária” é a palavra latina que significa “mau ar”. É tudo que eu sei... ou qualquer pessoa sabe. Mãe de Deus, se o ar do Vale Feliz for ruim, estamos arruinados!

— Eu lhe disse para não construir ali — disse Culum enfurecido. — Detestei aquele vale desde a primeira vez em que o vi!

— Pelo sangue de Cristo, você está dizendo que já sabia antecipadamente da ruindade do ar?

— Não. Não quis dizer isso. Quis dizer... bom, detestei o lugar, é tudo.

Struan fechou violentamente a janela, para se proteger contra o mau cheiro que vinha da praça da Colônia e afastou mais moscas, com o abano. Rezou para que a febre não fosse malária. Se fosse, a epidemia poderia atingir a todos que dormissem no Vale Feliz. Todos sabiam que a terra, em alguns lugares do mundo, era envenenada pela malária e, por razão desconhecida, emitia à noite gases letais.

Segundo Robb, a febre começara misteriosamente há quatro semanas. Primeiro, atingira os trabalhadores chineses. Depois, acometera outras pessoas — um negociante europeu ali, uma criança acolá. Mas só no Vale Feliz. Em nenhum outro lugar de Hong Kong. Agora, quatrocentos ou quinhentos chineses estavam contaminados, e vinte ou trinta europeus. Os chineses se sentiam supersticiosamente assustados, certos de que os deuses os puniam por trabalharem em Hong Kong contra o decreto do imperador Só um aumento de salário os persuadira a voltar.

E, agora, a pequena Karen fora atingida. Robb terminava a carta assim: “Sarah e eu estamos desesperados. O curso da doença é insidiosa. Primeiro, uma febre horrível, durante meio-dia, depois uma recuperação, em seguida, uma recaída mais séria da febre, dentro de dois ou três dias. O ciclo é repetido inúmeras vezes sendo cada ataque pior do que o anterior. Os médicos deram a Karen o purgante calomelano mais forte que ousaram. E sangraram a pobre criança, mas não esperamos grandes resultados. Os cules morreram depois do terceiro ou quarto ataque. E Karen está tão fraca, depois do purgativo e da sangria, tão fraquinha. Que Deus nos ajude, mas acho que Karen está perdida.”

Struan caminhou em direção à porta. Meu Deus, primeiro o bebê, agora Karen! Sarah dera à luz um filho, Lochlin Ross, no dia seguinte ao baile, mas a criança nascera doente, com o braço esquerdo aleijado. O parto fora muito difícil e ela quase morrera. Mas escapara à temida enfermidade do pós-parto e, embora seu leite tivesse azedado e seu cabelo se tornasse grisalho, sua força aos poucos voltara. Quando Struan voltou para ver May-May, visitou Sarah. As rugas de angústia e amargura lhe marcavam profundamente o rosto e ela parecia uma velha. Struan ficou mais triste quando viu o bebê: com o braço esquerdo inutilizado, ele era doentio, chorava deploravelmente, e não havia expectativa de sobrevida. Fico imaginando se o bebê está morto, pensou Struan, ao abrir violentamente a porta; Robb não fala nele:

— Vargas!

— Sim, senhor?

— Já houve malária aqui em Macau?

— Não, senhor. — Vargas empalideceu. Seu filho e seu sobrinho trabalhavam para a Casa Nobre e agora viviam em Hong Kong. — Tem certeza de que é malária?

— Não. Apenas alguns dos médicos pensam assim. Nem todos. Vá procurar Mauss. Diga-lhe que quero ver Jin-qua, imediatamente. Com ele.

— Sim, senhor. Sua Excelência quer que jante com ele e com o arquiduque esta noite, às nove horas.

— Aceite, em meu nome.

— Sim, senhor.Struan fechou a porta e se sentou, sombriamente Usava uma camisa leve, sem gravata, bem como calças é botas leves. Os outros europeus achavam que ele estava louco por se arriscar a pegar os diabólicos resinados que, todos achavam, eram trazidos pelos ventos de verão.

— Não pode ser malária — disse ele. — Não é malária. Alguma outra coisa.

— A ilha é amaldiçoada.

— Agora, você está pensando como uma mulher — disse Struan.

— A febre não estava lá, antes dos cules chegarem. Livre-se dos cules e se livrará da epidemia. Eles a estão levando consigo. São os culpados.

— Como sabe disso, Culum? Admito que começou entre os cules. E concordo que vivem nas regiões baixas. E concordo que, como sabemos, só se pode pegar malária, respirando o ar noturno envenenado. Mas, por que só há febre no vale? Só o Vale Feliz tem ar ruim? Ar é ar, pelo amor de Cristo, e há uma ótima brisa soprando ali, a maior parte do dia e da noite. Não faz sentido.

— Faz muito bom sentido. É a vontade de Deus.

— Maldita seja uma resposta assim!

Culum se levantou.

— Eu lhe agradeceria se não blasfemasse.

— E eu lhe agradeceria se lembrasse que, não faz tanto tempo assim, os homens foram queimados na fogueira só por dizerem que a terra girava em torno do sol! Não é a vontade de Deus!

— Pense o que pensar, Deus tem uma interferência vital e contínua em nossas vidas. O fato de que a febre está no lugar onde escolhemos viver na Ásia é, eu acho, a vontade de Deus. Você não pode negar isso, porque não pode provar algo diferente, da mesma maneira como eu também não posso provar que isto é verdade. Mas acredito que é... a maioria acredita, e acho que devíamos abandonar o Vale Feliz.

— Se fizermos isso, abandonaremos Hong Kong.

— Podemos construir no terreno próximo ao Cabo Glessing.

— Você sabe quanto dinheiro nós, e todos os comerciantes, investimos no Vale Feliz?

— Sabe quanto dinheiro se pode gastar, quando se está a seis pés de profundidade no chão?

 

Struan observou friamente seu filho. Já fazia semanas que fora percebendo ser a hostilidade de Culum cada vez mais verdadeira. Mas não se incomodou com isso. Sabia que, quanto mais Culum aprendesse, mais procuraria pôr suas próprias idéias em prática e mais lutaria pelo poder. É justo, pensou, e ficou muito satisfeito com o desenvolvimento de Culum. Ao mesmo tempo sentiu-se preocupado com a segurança de Culum. Culum passava tempo demais em companhia de Gorth, com a mente perigosamente aberta.

Há dez dias, houvera uma briga cruel, que não levara a conclusão alguma. Culum declamara algumas teorias a respeito de navegação — obviamente opiniões de Gorth — e Struan discordara. Então, Culum falara na disputa entre Brock e Struan, e dissera que a geração mais jovem não cometeria os erros da mais velha. Que Gorth sabia não ser necessário para a geração mais jovem ficar aprisionada pela mais velha. Que Gorth e ele haviam concordado em esquecer toda inimizade, e ambos tentariam fazer as pazes entre seus pais. E, quando Struan começou a argumentar, Culum recusou-se a ouvir e saiu, furioso.

Além disso, havia o problema de Tess Brock.

Culum jamais falara dela a Struan. E nem ele com o filho. Mas sabia que Culum estava desesperado de saudade por ela e isto lhe obscurecia a mente. Struan lembrou-se de sua própria juventude e de como ansiara por Ronalda. Tudo parecia tão nítido, tão importante e tão limpo, naquela idade.

— Ah, Culum, rapaz, não se canse — ele disse, sem querer discutir com Culum. — O dia está quente e todos os ânimos exaltados. Sente-se e procure se acalmar. A pequena Karen está doente, e muitos de nossos amigos. Ouvi dizer que Tillman está com a febre, quem sabe quantos mais?

— E a Srta. Tillman?

— Acho que não.

— Gorth disse que vão fechar a feitoria deles amanhã. Ele vai passar o verão em Macau. Todos os Brocks vão.

— Nós vamos para Hong Kong. A feitoria aqui fica aberta.

— Gorth disse que seria melhor passar o verão em Macau. Ele tem uma casa lá.

Ainda temos propriedade lá, não? Struan remexeu-se em sua cadeira.

— Sim. Passe uma semana ou duas, se quiser. Passe em Macau. Mas quero você na Cidade da Rainha. E lhe direi outra vez, cuidado com as costas. Gorth não é seu amigo.

— E eu devo lhe dizer outra vez, acho que é.

— Ele está tentando enfraquecer você para, um dia, reduzi-lo a pó.

— Você está enganado. Eu o entendo. Eu gosto dele. Nós nos damos muito bem. Descobri que posso conversar com ele e aprecio sua companhia. Ambos sabemos que é difícil para você, e para o pai dele, compreender isso, mas... bom, é difícil de explicar.

— Eu compreendo Gorth muito bem, por Deus!

— Não vamos discutir isso — disse Culum.

— Acho que deveríamos discutir. Você está sob o fascínio de Gorth. Isto é fatal para um Struan.

— Você vê Gorth com outros olhos. Ele é meu amigo.

Struan abriu uma caixa, escolheu um charuto Havana e decidiu que chegara a hora.

— Acha que Brock aprovará que você se case com Tess?

Culum corou e disse, impulsivamente:

— Não vejo por que não. Gorth é a favor.

Você discutiu o assunto com Gorth?

— Não discuti com você. E nem com ninguém. Então, por que deveria falar a respeito com Gorth?

— Então, como sabe que ele aprova?

— Não sei. Simplesmente, ele diz sempre como eu e a Srta. Brock parecemos nos dar bem, como ela gosta de minha companhia, encorajando-me a escrever para ela, esse tipo de coisa.

— Você acha que eu não tenho direito algum de perguntar suas intenções para com Tess Brock?

— Tem o direito, certamente. Só que... bom, sim, pensei em casar com ela. Mas nunca disse isto a Gorth.

Culum parou, desajeitadamente, e esfregou a sobrancelha. Ficara abalado com a rapidez com que o Tai-Pan tocara no que era mais importante em sua mente, e, embora quisesse falar a respeito, não queria ver o seu amor maculado. Diabo, eu deveria estar preparado, pensou, e ouviu a si mesmo prosseguir, apressadamente, incapaz de parar.

— Mas não creio que meu... meu afeto pela Srta. Brock seja do interesse de ninguém, no momento. Nada foi dito, e não há nada... bom, o que sinto pela Srta. Brock é assunto meu.

— Sei que sua opinião é essa — disse Struan — mas isto não significa que você tenha razão. Já considerou que pode estar sendo usado?

— Pela Srta. Brock?

— Por Gorth. E por Brock.

— Você já considerou que seu ódio por eles contamina todos os seus julgamentos?

— Culum estava furioso.

— Sim. Já considerei isso. Mas e você, Culum? Já pensou que podem estar usando você?

— Vamos dizer que você tenha razão. Vamos dizer que eu me case com a Srta. Brock. Não será vantajoso, comercialmente, para você? Struan estava satisfeito por ver o problema abordado abertamente.

— Não. Porque Gorth o devorará, quando você for Tai-Pan. Ele tomará tudo que temos e destruirá você... para ficar com a Casa Nobre.

— Por que iria ele destruir o marido de sua irmã? Por que não juntaríamos as duas companhias... Brock e Struan? Eu dirijo os negócios, ele dirige os navios.

— E quem será o Tai-Pan?

— Podemos dividir isso, Gorth e eu.

— Só pode haver um Tai-Pan. Este é o próprio significado da palavra. É a lei.

— Mas sua lei não é, necessariamente, a minha lei. E nem a de Gorth. Podemos aprender com os erros dos outros. Fundir nossas companhias nos daria imensas vantagens.

— É o que Gorth tem em mente?

Struan ficou imaginando se cometera um erro, com relação a Culum. A fascinação de seu filho por Tess e sua confiança em Gorth seriam a chave para destruir a Casa Nobre e dar a Brock e Gorth tudo que eles queriam. Só faltam três meses para eu partir para a Inglaterra. Meu Deus!

— Ah, é? — ele perguntou.

— Nunca discutimos isso. Conversamos a respeito de comércio, navegação e companhias, esse tipo de coisa. E como fazer as pazes entre vocês dois. Mas uma fusão seria vantajosa, não?

— Com aqueles dois, não. Você não está na mesma classe. Ainda.

— Mas, um dia, estarei?

— Talvez. — Struan acendeu o charuto. — Você realmente acha que poderia controlar Gorth?

— Talvez eu não precisasse controlá-lo. Como ele não precisaria me controlar. Vamos dizer que eu, realmente, me case com a Srta. Brock. Gorth tem a sua companhia, nós temos a nossa. Separadas. Podemos ainda competir. Mas amistosamente. Sem ódio.

— O tom de voz de Culum se endureceu. — Vamos pensar, por um momento, em termos de um Tai-Pan. Brock tem uma filha adorada. Eu ganho as suas boas graças e também as de Gorth. Casando-me com ela, só estarei amaciando a animosidade de Brock com relação a mim, enquanto ganho experiência. Sempre acenando com a isca da fusão das companhias. Depois, posso espezinhá-los, quando eu estiver preparado. Uma manobra segura e bem armada. A moça que se dane. Apenas usá-la... para maior glória da Casa Nobre.

Struan não disse nada.

— Você não considerou essas possibilidades imparcialmente? — prosseguiu Culum. — Ah, esqueci que você é inteligente demais a não ter notado que estou apaixonado por ela.

— Sim — disse Struan. Ele sacudiu cuidadosamente a cinza do charuto, num cinzeiro de prata. — Pensei em você e em Tess “imparcialmente”.

— E qual foi sua conclusão?

— Que os perigos, para você, superam as vantagens.

— Então você desaprova totalmente que eu me case com ela?

— Desaprovo que você a ame. Mas o fato é que você a ama, ou acha que ama. E outro fato é que você se casará com ela, se puder. — Struan sugou, longamente, o charuto. — Acha que Brock aprovará?

— Não sei. Não creio que aprove, por Deus.

— Acho que sim, por Deus. -. Mas você, não?

— Eu já lhe disse uma vez, antes: sou o único homem nesta terra em que você pode confiar completamente. Desde que não se coloque deliberadamente contra a Casa.

— Mas acha que tal casamento é contra os interesses da companhia.

— Eu não disse isso. Disse que você não entendia os perigos. — Struan apagou o charuto e se levantou.

— Ela não tem idade. Você vai esperá-la, por cinco anos?

— Sim — disse ele, horrorizado com a enormidade de tempo. — Sim, por Deus! Você não sabe o que ela significa para mim. Ela é... bem, ela é a única moça que poderei realmente amar. Não vou mudar e você não entende, não pode entender. Sim, esperarei cinco anos. Estou apaixonado por ela.

— Ela está apaixonada por você?

— Não sei. Eu... ela parece gostar de mim. Rezo para que esteja. Ah, meu Deus do céu, o que vou fazer?

Graças a Deus eu não sou novamente jovem, Struan pensou, com pena. Agora eu sei que o amor é como o mar, algumas vezes calmo e outras tempestuoso; é perigoso, belo, mata e dá vida. Mas nunca o mesmo, sempre mutável. E único apenas por um curto período, diante do tempo.

— Você não fará nada, rapaz. Mas eu vou falar com Brock esta noite.

— Não — disse Culum, ansiosamente. — A vida é minha. Não quero que você...

— O que você quer fazer tem a ver com a minha vida, e a de Brock — interrompeu Struan. — Falarei com Brock.

— Então, você vai me ajudar?

Struan espantou uma mosca que lhe pousara no rosto.— E os vinte guinéus, Culum?

— O quê?

— O dinheiro para o meu caixão. As vinte moedas de ouro que Brock me deu e você guardou. Já esqueceu? Culum abriu a boca para dizer não, mas mudou de idéia.

— Sim, eu esqueci. Pelo menos, tinham saído de minha cabeça. — Sua angústia apareceu nas profundezas de seus olhos. — Por que eu mentiria para você? Quase menti. Isto é terrível.

— Sim — disse Struan, satisfeito por Culum ter passado por outro teste e aprendido outra lição.

— E as moedas?

— Nada. A não ser que deve lembrá-las. Brock é assim. Gorth é pior, porque ele não tem sequer a generosidade do pai.

 

Era quase meia-noite.

— Sente-se, Dirk — disse Brock, esfregando a barba. — Grogue, cerveja ou conhaque?

— Conhaque.

— Traga conhaque — ordenou Brock ao criado, e depois fez um sinal em direção à comida que estava na mesa, à luz trêmula das velas. — Coma alguma coisa, Dirk. — Cocou as axilas, que estavam grossas comas erupções chamadas de “brotoejas”. — Maldito clima! Por que diabo você não está sofrendo, como todos nós?

— Vivo de maneira correta — disse Struan, e estirou confortavelmente as pernas. — Eu já lhe disse um milhão de vezes. Se você tomar banho quatro vezes por dia, não vai ficar com brotoejas. Os piolhos desaparecerão e...

— Isso não tem nada a ver — disse Brock. — É tolice. É contra a natureza, por Deus! — Ele riu. — Aqueles que o consideram um parceiro do demo talvez estejam descobrindo por que você é do jeito que é. Hein? — Empurrou seu canecão de prata, de meio galão, em direção ao criado, que imediatamente o encheu, tirando cerveja do pequeno barril encostado a uma parede. Mosquetes e espadas estavam em armeiros, nas proximidades. — Mas você logo terá sua recompensa, hein, Dirk? — Brock apontou bruscamente o polegar para baixo.

Struan pegou o grande copo de cristal em forma de balão e cheirou o conhaque.

— Todos temos nossas recompensas, Tyler.

Struan manteve o conhaque próximo ao nariz para neutralizar o fedor da sala. Ficou imaginando se Tess fedia, como seu pai e sua mãe, e se Brock sabia a razão de sua visita. As janelas estavam bem fechadas, como proteção contra a noite e o monstruoso zumbido da praça lá embaixo.

Brock resmungou, ergueu o canecão bem cheio e bebeu avidamente. Estava usando seu habitual casaco naval de lá, roupa interna grossa, gravata alta e colete. Observou Struan, com frieza. Struan parecia não sentir calor e irradiava força, com sua camisa leve, calças brancas e meias-botas, os pêlos vermelhos-dourados de seu largo peito iluminados pelas velas.

— Você parece nu, rapaz. Que coisa desagradável.

— É a próxima moda, Tyler. Saúde! — Struan ergueu o copo e beberam.

— Por falar no diabo, ouvi dizer que Maureen Quance dobrou o pobre velho Aristotle. Segundo os boatos, vão embora na próxima maré.

— Ele fugirá, ou cortará a garganta, antes de fazer uma coisa dessas.

Brock gargalhou.

— Quando ela apareceu, de repente, no baile, eu ri como não ria desde que Mamãe prendeu os peitos na calandra da roupa lavada. — Fez um aceno de mão para o criado, que foi embora.

— Ouvi dizer que todos os navios já partiram.

— Sim. Uma grande temporada, não?

— Sim. E será melhor quando o Blue Witch chegar primeiro na cidade de Londres. Ouvi dizer que leva um dia de vantagem.

— Brock bebeu muita cerveja e suou copiosamente. — Jeff Cooper disse que seu último navio partiu, e então Whampoa está vazia.

— Você vai ficar em Cantão?

Brock abanou a cabeça.

— Vamos embora amanhã. Para a Cidade da Rainha e, depois, para Macau. Mas vamos manter este lugar aberto, não será como antes.

— Longstaff vai ficar. As negociações prosseguirão, suponho.

— Struan sentiu uma tensão no ar e sua inquietação aumentou.

— Você sabe que não serão alcançadas conclusões aqui. — Brock brincava com o penso que tinha sobre o olho. Soergueu-o e esfregou a órbita irregular, marcada por cicatrizes. O cordão que prendia o penso há anos cavara um nítido sulco vermelho em sua festa. — Gorth disse que a filha mais nova de Robb está com febre.

— Sim. Suponho que Culum tenha dito a ele.

— Sim. — Brock notou a aspereza na voz de Struan. Bebeu muita cerveja e enxugou a espuma dos bigodes com as costas da mão. — Senti muito ao saber. Mau pagode. — Bebeu outra vez.

— Seu garoto e o meu são como velhos companheiros de bordo.

— Vou ficar satisfeito ao embarcar outra vez. — Struan ignorou o escárnio. — Conversei longamente com Jin-qua, esta tarde. A respeito da febre. Nunca deu em Cantão, pelo que ele saiba.

— Se for verdadeiramente malária, então estamos com uma porção de problemas pela frente. — Brock estendeu o braço e pegou um peito de frango. — Sirva-se. Ouvi dizer que os preços dos cules subiram. Os custos estão subindo terrivelmente em Hong Kong.

— Não o suficiente para prejudicar. E a febre vai passar. Brock movimentou a pança, penosamente, e esvaziou o canecão.

— Queria falar comigo em particular? Para conversar sobre a febre?

— Não — disse Struan, sentindo-se sujo com o fedor, o perfume que Brock estava usando e o cheiro de cerveja velha. — Era a respeito de uma promessa há muito tempo feita por mim, de sair atrás de você com um chicote.

Brock pegou a campainha na mesa e a tocou com veemência. O som ecoou nas paredes. Quando a porta não se abriu imediatamente, tocou de novo.

— Aquele maldito macaco — disse. — Vai precisar de um bom chute no traseiro.

Aproximou-se do barril de cerveja e, após tornar a encher seu canecão, sentou-se outra vez e observou Struan. E esperou.

— De que se trata? — disse Brock, afinal.

— De Tess Brock.

— Hein? — Brock ficou pasmado com o fato de Struan querer precipitar a decisão com relação à que ele e, sem dúvida, também Struan, se haviam atormentado por tantas noites.

— Meu filho está apaixonado por ela.

Brock deu mais alguns goles na cerveja e enxugou a boca outra vez.

— Eles só se encontraram uma vez. No baile. Depois, houve passeios à tarde, com Liza e Lilibeth. Três.

— Sim. Mas ele está apaixonado por ela. Tem certeza de que está apaixonado por ela...

— Você tem certeza?

— Sim.

— E qual a sua impressão?

— De que é melhor falarmos sobre o assunto. Abertamente.

— Por que agora? — perguntou Brock, com suspeita, sua mente tentando descobrir a verdadeira resposta. — Ela é muito jovem, como sabe.

— Sim. Mas tem idade suficiente para casar.

Brock, pensativamente, brincava com o canecão, olhando para seu reflexo na prata polida. Ficou imaginando se decifrara corretamente Struan.

— Você está pedindo formalmente a mão de Tess para seu filho?

— É dever dele, não meu... fazer o pedido formal. Mas precisamos conversar informalmente. Primeiro.

— O que você pensa? — perguntou outra vez Brock. — Dessa união?

— Você já sabe. Sou contra. Não confio em você. Não confio em Gorth. Mas Culum pensa por si e ele se impôs a mim, e um pai não pode sempre fazer o filho agir como ele quer.

Brock ficou pensando a respeito de Gorth. Sua voz estava áspera, quando ele falou.

— Se você é tão contra ele, então meta um pouco de senso em sua cabeça ou então o mande embora para a Inglaterra, embarque-o. É fácil se livrar daquele jovem janota.

— Você sabe que estou preso numa armadilha — disse Struan, com amargura. — Você tem três filhos — Gorth, Morgan, Tom. Só tenho Culum, agora. Então, é ele quem tem de me suceder.

— Há Robb e seus filhos — disse Brock, satisfeito por ter interpretado corretamente o pensamento de Struan, e brincando com ele, agora, como se fosse um peixe no anzol.

— Você sabe a resposta para isso. Fiz a Casa Nobre, não foi Robb. O que você acha, hein?

Brock esvaziou o canecão, pensativamente. Outra vez, tocou a sineta. E, outra vez, nenhuma resposta.

— Eu vou fazer das tripas daquele macaco jarreteiras! — Levantou-se e começou a encher de novo seu canecão. — Também sou contra a união — disse Brock, asperamente. Viu um relâmpago de surpresa no rosto de Struan. — Mesmo assim — acrescentou Brock

— aceitarei seu filho, quando ele me pedir.

— Eu achei que aceitaria, por Deus! — Struan levantou-se, com os punhos cerrados.

— O dote dela será o mais rico da Ásia. Eles se casarão no próximo ano.

— Primeiro, quero ver você no inferno.

Os dois homens se encararam, agourentamente.

Brock viu o mesmo rosto cinzelado de há trinta anos, com a mesma vitalidade impregnando-o. A mesma qualidade indefinível que fazia todo seu ser reagir tão violentamente. Por Jesus Nosso Senhor, praguejou, não entendo como Vós pusestes este demônio em meu caminho. Só sei que o pusestes aí para ser destruído.

— Mais tarde, Dirk — disse ele. — Primeiro, eles se casam, tudo certinho. Você está numa armadilha, é certo. Não por minha causa, não fui eu quem atirou este mau pagode em sua cara. Mas andei pensando muito... como você... a respeito dos dois e de nós, e acho que é melhor para eles e melhor para nós.

— Sei o que tem em mente. E Gorth também.

— Quem sabe o que acontecerá, Dirk? Talvez haja uma fusão, no futuro.

— Enquanto eu estiver vivo, não.

— Por outro lado, talvez não haja fusão, e você conserva o que é seu e nós o que é nosso.

— Você não vai tomar a Casa Nobre e destruí-la, usando as saias de uma moça!

— Agora, me escute, por Deus! Você foi quem começou toda essa conversa! E disse para se falar abertamente, e eu não acabei. Então, você vai escutar, por Deus! A não ser que tenha perdido a coragem, como perdeu as boas maneiras e a cabeça.

— Está bem, Tyler. — Struan se serviu de outro conhaque, — Diga o que tem na cabeça. Brock relaxou um pouco, sentou-se e emborcou sua cerveja.

— Eu o odeio, e sempre odiarei. Também não confio em você. Estou mortalmente cansado de matar, mas juro por Jesus Cristo que o matarei, no dia em que o vir caminhando contra mim com um chicote na mão. Mas não vou começar essa briga. Não. Não quero matar você, só botar você nos eixos. Mas andei pensando que talvez os mais moços estejam endireitando o que nós... o que nós não pudemos endireitar. Então eu digo, seja o que tiver de ser. Se houver uma fusão, então haverá uma fusão. Vai depender deles... e não de mim e de você. Se não houver fusão... que eles também decidam isso. O que fizeram dependerá deles. Não de nós. Então eu digo que o casamento é bom.

Struan esvaziou seu copo e o empurrou sobre a mesa.

— Nunca pensei que você fosse tão desalmado a ponto de usar Tess, quando é tão contra a união quanto eu. Brock tornou a olhar para ele, sem raiva, agora.

— Não estou usando Tess, Dick. Esta é a verdade, diante de Deus. Ela está amando Culum, e esta é a mortal verdade. É a única razão por que estou falando assim. Estamos ambos na armadilha. Vamos dizer o óbvio. Ela é como Julieta, para seu Romeu, sim, por Deus, e é disso que eu tenho medo. E você também, se considerarmos a verdade. Eu não quero que a minha Tess acabe numa tumba de mármore porque eu o odeio. Ela o ama. E estou pensando nela!

— Não acredito nisso.

— E nem eu, por Deus! Mas Liza já me falou mais de meia dúzia de vezes a respeito de Tess. Ela disse que Tess está sonhando, suspirando e conversando a respeito do baile, mas só por causa de Culum. Tess já falou mais de dezesseis vezes ou mais a respeito do que Culum disse e Culum deixou de dizer, e o que ela disse a Culum, e como Culum estava ou deixava de estar, o que ele respondeu, até eu quase estourar. Ah, sim, ela o ama.

— Amor de adolescente. Não significa nada.

— Pelo Senhor Jesus Cristo, você é um homem duro de se convencer das coisas. Você está errado, Dirk. — Brock de repente se sentiu muito cansado e muito velho. Queria acabar com isso. — Se não fosse o baile, jamais teria acontecido. Você a escolheu para abrir a dança. Você a escolheu para ganhar o prêmio. Você...

— Eu não! A escolha foi de Zergeyev, não minha!

— Isso é verdade, por Deus?

— Sim.

Brock olhou demoradamente para Struan.

— Então talvez haja a mão de Deus nisto tudo. Tess não era a mais bem-vestida do baile. Eu sabia disso, todos sabiam disso, menos Culum e Tess. — Ele acabou seu canecão, e o depôs. — Eu lhe faço uma oferta: você não ama Culum como eu amo Tess, mas dê aos dois um bom vento, mar aberto e porto seguro, e eu farei a mesma coisa. O rapaz merece isso... ele salvou seu pescoço naquela questão do outeiro, porque, juro por Cristo que eu o teria estrangulado, por causa daquilo. Se é uma briga que você quer, você tem. Se eu conseguir um instrumento para quebrar você juro por Cristo que ainda quebro. Mas não aqueles dois. Vamos dar a eles bom vento, mar aberto e porto seguro, que Deus seja testemunha, hein?

 

Brock estendeu a mão.

A voz de Struan estava irritada.

— Vou apertar por Culum e Tess. Mas não por Gorth.

A maneira como Struan disse “Gorth” deu calafrios em Brock. Mas ele não retirou sua mão, embora soubesse que o acordo estava cheio de perigos. Apertaram-se as mãos, com firmeza.

— Vamos tomar mais uma bebida, para deixar as coisas bem firmadas — disse Brock — e então você pode ir para o inferno. — Ele pegou a sineta, tocou pela terceira vez e, quando ninguém apareceu, atirou-a contra a parede. — Lee Tang! — rugiu.

Sua voz teve um eco estranho.

Houve o som de passos a subir correndo a grande escadaria e o rosto assustado de um funcionário português apareceu.— Os criados todos desapareceram, senhor. Não consigo encontrá-los em parte alguma.

Struan correu para a janela. Os vendedores ambulantes, tendeiros, transeuntes e mendigos saíam silenciosamente da praça. Grupos de negociantes no jardim inglês estavam em pé, completamente imóveis, escutando e observando.

Struan virou-se e correu para os mosquetes e ele e Brock chegaram ao armeiro no mesmo instante.

— Mande todos descerem! — gritou Brock para o funcionário.

— Na minha feitoria, Tyler. Faça soar o alarma — disse Struan, e foi embora.

 

Dentro de uma hora, todos os negociantes e seus funcionários estavam aglomerados na feitoria de Struan e no jardim inglês, que ficava em frente. O destacamento de cinqüenta soldados estava armado, em posição de combate, junto ao portão. Seu oficial, o Capitão Oxford, mal completara vinte anos, e era um rapaz esguio e elegante, com um fino bigode louro.

Struan, Brock e Longstaff estavam no centro do jardim. Jeff Cooper e Zergeyev se encontravam próximos. A noite estava úmida, quente e pressaga.

— É melhor ordenar uma evacuação imediata, Excelência — disse Struan.

— Sim — concordou Brock.

— Não há necessidade de nos precipitarmos, cavalheiros — disse Longstaff. — Isto já aconteceu antes, não foi?

— Sim. Mas sempre tivemos algum tipo de advertência, da Co-hong ou dos mandarins. Jamais foi assim tão repentino. — Struan escutava atentamente os ruídos da noite, mas seus olhos contavam as lorchas ancoradas no cais. Bastantes para todos, pensou. — Não gosto do jeito da noite.

— Nem eu, por Deus — Brock cuspiu, furiosamente. — Vamos embarcar, eu digo.

— Não pensam, é claro, que haja algum perigo? — disse Longstaff.

— Não sei, Excelência. Mas algo me diz para sair daqui — disse Struan. — Ou, pelo menos, para embarcar. O comércio terminou, esta temporada, então podemos ir embora ou ficar, como preferirmos.

— Mas eles não ousariam nos atacar — zombou Longstaff. — Por que iriam fazer isso? O que ganhariam? As negociações estão indo tão bem. Ridículo.

— Estou apenas sugerindo que ponhamos em prática aquilo que está sempre dizendo, Excelência: é melhor estar preparado para qualquer eventualidade. Longstaff fez um sinal contrafeito para o oficial.

— Divida seus homens em três grupos. Guarde as entradas a leste e oeste e a Rua Hong. Impeça o acesso à praça até novas ordens.

— Sim, senhor.

Struan viu Culum, Horatio e Gorth juntos, perto de uma lanterna. Gorth explicava a Culum como carregar um mosquete, e o segundo ouvia atentamente. Gorth parecia forte, cheio de vitalidade e poderoso, perto de Culum. Struan desviou o olhar e viu Mauss nas sombras, conversando com um chinês alto a quem Struan jamais vira. Curioso, Struan se aproximou.

— Ouviu alguma coisa, Wolfgang?

— Não, Tai-Pan. Nenhum boato, nada. Horatio também não. Gott im Himmel, não entendo.

Struan examinava o chinês. O homem usava sujas roupas de camponês e parecia estar no início da casa dos trinta. Seus olhos tinham grossas pálpebras e eram penetrantes, e ele examinava Struan com igual curiosidade.

— Quem é ele?

— Hung Hsu Ch'un — disse Wolfgang, com muito orgulho. — Ele é Hakka. É batizado, Tai-Pan. Eu o batizei. É o melhor que eu já tive, Tai-Pan. Inteligente, estudioso e, entretanto, um camponês. Afinal, tenho um convertido, que espalhará a palavra de Deus... e me ajudará em Seu trabalho.

— É melhor dizer a ele que vá embora. Se houver problemas e os mandarins o pegarem conosco, você terá um convertido de menos.

— Eu já disse, mas ele respondeu: “Os caminhos do Senhor são estranhos e os homens de Deus não viram as costas para os pagãos.” Não se preocupe. Deus o protegerá e eu cuidarei dele com o risco de minha própria vida.

Struan fez um aceno de cabeça para o homem e voltou para junto de Longstaff e Brock.

— Eu vou para bordo — disse Brock — sem a menor dúvida.

— Tyler, mande Gorth e os homens dele reforçarem os soldados, ali. — Struan apontou para o centro da Rua Hong. — Eu irei para leste e darei cobertura a vocês, se houver problema. Você Pode recuar para cá.

— Cuide dos seus — disse Brock — que eu cuidarei dos meus. Você não é comandante-chefe, por Deus. — Fez sinal a Gorth. — Venha comigo. Almeida, você e o restante dos funcionários vão pegar os livros e se dirijam para bordo. — Ele e seu grupo saíram do jardim e atravessaram a praça.

— Culum!

— Sim, Tai-Pan?

— Limpe o cofre e vá para bordo da lorcha.

— Está bem. — Culum baixou a voz. — Falou com Brock?

— Sim. Agora não, rapaz. Depressa. Conversaremos mais tarde.

— Foi sim ou não?

 

Struan sentiu que os outros o observavam e, embora quisesse muito dizer a Culum o que fora conversado, o jardim não era o lugar para aquilo.

— Pela morte de Cristo, quer fazer o que eu lhe disse?

— Quero saber — disse Culum, com os olhos em brasa.

— E eu não estou preparado para, discutir seus problemas agora. Faça o que eu lhe disse! — Struan saiu correndo para a porta da frente. Jeff Cooper o deteve.

— Por que evacuar? Qual o motivo de toda essa pressa, Tai-Pan? — ele perguntou.

— Só cautela, Jeff. Você tem uma lorcha?

Sim.

— Ficarei satisfeito em dar espaço a qualquer um de seus homens que não tenha onde ficar. — Struan olhou para Zergeyev. — A vista do rio é bastante agradável, Alteza, se quiser vir conosco.

— Você sempre corre, quando a praça se esvazia e os criados desaparecem?

— Só quando tenho vontade. — Struan voltou, abrindo caminho entre a massa de homens. — Vargas, traga os livros para bordo, e todos os funcionários. Armados.

— Sim, senhor.

Quando os outros negociantes viram que Struan e Brock se preparavam para uma rápida retirada, apressadamente voltaram para suas feitorias, reuniram seus livros, registros de embarques e tudo que representava prova de suas temporadas de comércio — e, portanto, de seu futuro — e começaram a colocar tudo em seus barcos. Havia poucos tesouros com que se preocupar, pois a maior parte do comércio era feita com letras de câmbio — Brock e Struan já haviam mandado suas barras de prata de volta para Hong Kong.

Longstaff limpou sua escrivaninha particular e colocou seu livro de código e papéis secretos na caixa de despachos, unindo-se em seguida a Zergeyev, no jardim.

— Já fez as malas, Alteza?

— Não há nada de importância. Acho tudo isso extraordinário. Ou há perigo, ou não há. Se há perigo, por que seus soldados não estão aqui? Se não há nenhum, por que correr?

Longstaff riu.

— A mentalidade dos pagãos, meu caro senhor, é muito diferente da civilizada. O Governo de Sua Majestade lida com ela há mais de um século. Então, aprendemos a tratar dos negócios chineses. Claro — acrescentou, secamente — não estamos preocupados com a conquista, apenas com o comércio pacífico. Muito embora consideremos que esta área se encontra sob total influência britânica.

 

Struan examinava seu cofre, verificando se todos os papéis vitais estavam a bordo.

— Já fiz isso — disse Culum, ao entrar, pesadamente, no aposento, e bater a porta.

— Agora, qual foi a resposta, por Deus?

— Você está noivo — disse Struan, brandamente — por Deus! Culum ficou estupefato demais para conseguir falar.

— Brock está encantado em tê-lo por genro. Você pode casar-se no próximo ano.

— Brock disse sim?

— Sim. Parabéns. — Struan calmamente examinou a gaveta de sua escrivaninha e a trancou, satisfeito por sua conversa com Brock ter decorrido como ele planejara.

— Quer dizer que ele diz sim? E você diz sim?

— Sim. Você terá de lhe fazer o pedido formalmente, mas ele disse que o aceitará.

Temos de discutir o dote e detalhes mas, segundo ele, você poderá casar no próximo ano. Culum abraçou impulsivamente os ombros de Struan.

— Ah, papai, obrigado, obrigado. — Ele não notou que dissera “papai”. Mas Struan, sim.

Uma explosão de disparos rompeu o silêncio da noite. Struan e Culum correram para a janela em tempo de ver os primeiros integrantes de uma turba, na entrada oeste da praça, cambaleando sob a fuzilaria. As centenas de pessoas atrás empurravam os que se encontravam na dianteira e os soldados eram pateticamente engolfados, enquanto a torrente de chineses, aos gritos, jorrava para a extremidade da praça.

A multidão carregava tochas, machados e lanças — e estandartes da Tríade. Eles se lançaram sobre a feitoria situada mais a oeste, que pertencia aos americanos. Uma tocha foi atirada através de uma janela e as portas foram forçadas. A multidão começou a pilhar, incendiar e saquear o prédio.

Struan agarrou seu mosquete.

— Nenhuma palavra a respeito de Tess... mantenha tudo em grande segredo, até encontrar com Brock. — Eles correram para o saguão. — Mande isso para o inferno, Vargas — gritou, ao vê-lo vergado ao peso de duplicatas de faturas. — Vamos para bordo!

Vargas saiu correndo.

A praça, em frente à feitoria de Struan, e o jardim estavam cheios de negociantes em plena fuga para as lorchas. Alguns dos soldados encontravam-se estacionados no muro do jardim, prontos para se entrincheirarem, como recurso final, e Struan uniu-se a eles, a fim de ajudar a cobrir a retirada. Pelo canto do olho, viu Culum correr de volta para a feitoria, mas se distraiu quando a vanguarda da segunda turba irrompeu na Rua Hog. Os soldados que protegiam a entrada de sua feitoria dispararam um tiro e se retiraram, em boa ordem, para o jardim inglês, onde assumiram suas posições junto aos outros soldados, na defesa dos últimos negociantes que corriam para as embarcações. Os que já se encontravam nos navios tinham mosquetes prontos, mas a multidão só se concentrava nas feitorias da extremidade da praça e, o que era espantoso, prestava pouca atenção aos negociantes.

Struan ficou aliviado ao ver Cooper e os americanos a bordo de uma das lorchas. Pensara que se encontravam ainda em sua feitoria.

— Puxa vida, olhem para aqueles malandros — disse Longstaff, sem se dirigir a ninguém em particular, enquanto permanecia em pé, fora do jardim, e espiava a multidão marchando, de porretes na mão. Sabia que isto significava o fim das negociações, a guerra era inevitável. — As forças de Sua Majestade logo colocariam um ponto final a esta loucura.

Ele voltou para o jardim, pisando forte, e encontrou Zergeyev observando o tumulto, com seus dois criados de libré armados e nervosos a seu lado.

— Talvez queira se unir a mim a bordo, Alteza — ele disse, falando alto por causa do barulho. Longstaff sabia que, se Zergeyev fosse ferido, isto representaria um incidente internacional, que daria ao tzar um pretexto perfeito para mandar belonaves e exércitos, em represália, às águas chinesas. E isto não vai acontecer, disse a si próprio.

— Só há uma maneira de lidar com essa carniça. Acha que sua democracia irá funcionar com eles?

— Claro. É preciso dar-lhes tempo, não é? — Longstaff respondeu, descontraidamente. — Vamos para bordo, agora. Temos sorte, a noite está amena.Um dos criados russos disse algo a Zergeyev, que simplesmente olhou para ele. O criado empalideceu e ficou em silêncio.

— Se quiser, Excelência. — disse Zergeyev, para não ser derrotado pelo óbvio desprezo de Longstaff diante da multidão. — Mas acho que prefiro esperar pelo Tai-Pan.

— Tirou sua caixa de rapé e ofereceu-o, ficando satisfeito ao ver que seus dedos não estavam tremendo.

— Obrigado. — Longstaff pegou um pouco de rapé. — Maldito negócio, não é? — Caminhou até Struan. — Que diabo fez tudo isso começar, Dirk?

— Foram os mandarins, com certeza. Nunca houve uma multidão como essa antes. Nunca. É melhor ir para bordo.

 

Struan observava a praça. Os últimos negociantes embarcavam. Só Brock não aparecia. Gorth e seus homens ainda estavam protegendo a porta de sua feitoria, do lado leste, e Struan ficou enfurecido ao ver Gorth disparar contra a multidão saqueadora, que não o ameaçava diretamente.

Ficou tentado a ordenar uma retirada imediata; e então, na confusão, erguer seu mosquete e matar Gorth. Sabia que ninguém notaria, em meio ao pandemônio. Isto iria poupar-lhe um assassinato, no futuro. Mas Struan não disparou. Queria o prazer de ver o terror nos olhos de Gorth, quando o matasse.

Aqueles que se encontravam nas lorchas desatracaram, apressadamente, e muitas das embarcações seguiram pela correnteza. Estranhamente, a multidão ainda os ignorava.

Jorrava fumaça da feitoria Cooper-Tillman. O prédio todo acendeu como um pavio, quando uma rajada de vento o varreu, e as chamas lamberam a noite.

Struan viu Brock sair correndo de sua feitoria, com um mosquete numa mão, uma espada na outra, os bolsos inchados de papéis. Seu principal funcionário, Almeida, corria em frente, na direção da embarcação, vergado ao peso dos livros, com Brock, Gorth e os outros homens a protegê-lo, e então outra multidão chegou à entrada leste, engolfando os soldados, e Struan percebeu que era hora de correr.

— Vamos para bordo! — rugiu, virando-se para o portão do jardim. Parou, no meio do caminho. Zergeyev estava encostado no muro do jardim, com uma pistola numa mão e sua espada na outra. Longstaff encontrava-se a seu lado.

— Está na hora de correr! — gritou, por sobre o tumulto. Zergeyev riu.

— Qual é o caminho?

Houve uma violenta explosão, quando as chamas chegaram ao arsenal americano, eo prédio se espatifou, a cuspir destroços inflamados sobre a multidão, matando alguns e mutilando outros. Bandeiras da Tríade cruzaram a Rua Hog, e a multidão enlouquecida que fazia a pilhagem seguiu-as, invadindo sistematicamente as feitorias situadas a leste. Struan atravessava o portão, quando se lembrou de Culum. Gritou para seus homens que dessem cobertura e voltou correndo.

— Culum! Culum!

Culum desceu velozmente as escadas.

— Esqueci uma coisa — disse, e disparou para a lorchas. Zergeyev e Longstaff ainda estavam à espera, com os homens junto ao portão. Sua fuga foi bloqueada por uma terceira multidão, que irrompeu através da praça e caiu sobre a feitoria ao lado da deles, Struan apontou para o muro, e o escalaram, Culum caiu, mas Struan agarrou-o e o ergueu, e correram juntos para os barcos, com Zergeyev e Longstaff bem próximos.

A multidão deixou-os passar mas, quando começaram a correr pela praça, deixando livre o caminho para a feitoria, os líderes invadiram o jardim. Muitos levaram tochas. E caíram sobre a Casa Nobre.

Agora jorravam chamas da maior parte das feitorias, um teto afundou, com um grande suspiro, e mais chamas caíram sobre milhares de pessoas na praça.

Brock se encontrava no convés superior de sua lorcha, exortando, com xingamentos, a tripulação. Todos estavam armados e seus canhões apontavam para terra.

Em pé, à popa, Gorth viu as amarras serem soltas, dianteiras e traseiras. Quando a lorcha começou a se afastar do cais, Gorth pegou um mosquete, fez pontaria para os chineses apinhados à entrada de sua feitoria, e puxou o gatilho. Viu um homem cair e sorriu, diabolicamente. Pegou outro mosquete; então viu Struan e os outros correndo para a lorcha — com os chineses rodopiando na frente e atrás. Certificou-se de que ninguém o observava e fez pontaria, cuidadosamente. Struan estava entre Culum e Zergeyev, Longstaff ao lado. Gorth puxou o gatilho.

Zergeyev girou sobre si mesmo e caiu no chão.

Gorth pegou outro mosquete, mas Brock subiu correndo para a popa.

— Vá para a frente e ocupe posição junto aos canhões dianteiros! — gritou. — Não haverá tiros, até eu ordenar! — Empurrou Gorth, rugindo para seus homens. — Virem esse timão, por Deus! Soltem as rizes, vamos seguir a todo pano!

Ele olhou em direção à terra e viu Struan e Longstaff curvados sobre Zergeyev, com Culum ao lado dele, e a multidão investindo em direção a eles. Agarrou o mosquete que Gorth deixara cair, fez pontaria e disparou. Um dos líderes tombou e a multidão hesitou.

Struan içou Zergeyev num ombro.

— Disparem por sobre as cabeças deles! — ordenou.

Seus homens deram a volta, colocando-se em posições protetoras, e dispararam um tiro à queima-roupa. Os chineses que estavam à frente recuaram e os que se encontravam atrás fizeram pressão para a frente. A confusão histérica que se seguiu deu a Struan e aos seus homens tempo suficiente para chegarem ao barco.

Mauss estava esperando no cais, junto à lorcha, com o estranho convertido chinês nas imediações. Ambos se achavam armados. Mauss tinha uma Bíblia numa das mãos e uma espada na outra, e gritava:

— Bendito seja o Senhor, que Ele perdoe esses pobres pecadores. — Perfurava o ar com a lâmina e a multidão evitava-o.

Quando estavam todos a bordo e a lorcha no meio das águas, olharam para trás.

Toda a Colônia estava em chamas. As labaredas dançantes, a fumaça aos jorros e os

gritos diabólicos, tudo se misturava num verdadeiro inferno. Longstaff encontrava-se ajoelhado junto a Zergeyev, este deitado no tombadilho. Struan correu para eles.

— Vá para a frente! — rugiu para Mauss. — Fique de vigia!

Zergeyev estava branco de susto e segurava o lado direito da virilha. Sangue gotejava sob sua mão. Os criados gemiam de terror. Struan empurrou-os, para tirá-los do caminho, e rasgou a frente das calças de Zergeyev. Cortou a perna da calça. A bala de mosquete cortara fundo o estômago, obliquamente, descendo até uma fração de polegada acima de seu sexo, e depois entrara na coxa direita. O sangue escorria muito, mas não jorrava. Struan agradeceu a Deus porque a bala não havia perfurado o estômago, como pensara. Virou Zergeyev e o russo sufocou um gemido. A parte posterior de sua coxa estava ferida e sangrenta, no ponto em que a bala saíra. Struan, cautelosamente, sondou a ferida e tirou um pequeno pedaço de osso quebrado.

— Pegue lençóis, conhaque e um braseiro — gritou Struan para um marinheiro. — Alteza, pode movimentar sua perna direita?

Zergeyev mudou-a ligeiramente de posição e piscou de dor, mas a perna se moveu.

— Seu quadril está bem, eu acho, rapaz. Fique quieto, agora.

Quando os cobertores foram trazidos, envolveu neles Zergeyev e acomodou-o mais confortavelmente no assento atrás do timoneiro, dando-lhe, em seguida, conhaque.Quando o fogareiro chegou, Struan expôs a ferida ao ar e inundou-a com conhaque. Aqueceu sua faca nos carvões do braseiro.

— Segure-o, Will! Culum, ajude aqui. — Eles se ajoelharam, Longstaff junto aos pés, e Culum à cabeça.

Struan colocou a faca em brasa na ferida dianteira, o conhaque se inflamou e Zergeyev desmaiou. Struan cauterizou a ferida da frente e fez nela uma sondagem profunda e rápida, querendo agir bem rápido, agora que Zergeyev estava inconsciente. Ele

o virou e fez nova sondagem. O.cheiro de carne queimada encheu o ar. Longstaff voltou­se para o lado e vomitou, mas Culum resistiu e ajudou, até Longstaff tornar à posição anterior.

Struan tornou a aquecer a faca e despejou mais conhaque sobre o ferimento posterior, cauterizando-o em seguida de maneira profunda e completa. Sua cabeça doía com o mau cheiro e o suor escorria-lhe pelo queixo, mas suas mãos estavam firmes e ele sabia que, se não realizasse a queima com cuidado, o ferimento apodreceria e Zergeyev, certamente, morreria. Com tal ferida, nove entre dez homens morreriam.

Então, ele terminou sua tarefa.

Pôs ataduras em Zergeyev e lavou a própria boca com conhaque; seus eflúvios afastaram o cheiro de sangue e de carne queimada. Então ele deu grandes goles e examinou Zergeyev. Seu rosto estava acinzentado e lívido.

— Agora, ele está entregue ao seu próprio pagode — disse. — Você está bem, Culum?

— Sim. Acho que sim.

— Desça. Providencie rum quente para todos os homens. Verifique os abastecimentos. Você é o número dois a bordo, agora. Distribua tarefas para todos.

Culum saiu da popa.

Os dois criados russos estavam ajoelhados ao lado de Zergeyev. Um deles tocou

Struan e falou entrecortadamente, tudo indicava que estava lhe agradecendo. Struan lhes fez sinal para que ficassem junto de seu amo. Ele se espichou, cansadamente, colocou a mão no ombro de Longstaff, afastando-o, e se curvou sobre o ouvido de Longstaff.

— Viu mosquetes entre os chineses? Longstaff abanou a cabeça.

— Nenhum.

— E nem eu — disse Struan.

— Havia armas disparando por toda parte. — Longstaff estava pálido e muito preocupado. — Um desses acidentes infelizes. Struan nada disse, por um momento.

— Se ele morrer, haverá grandes problemas, hein?

— Vamos esperar que não morra, Dirk. — Longstaff mordeu o lábio. — Terei de avisar imediatamente do acidente o Ministro de Relações Exteriores. Vou ter de abrir um inquérito.

— Sim.

Longstaff olhou para o rosto cinzento como o de um cadáver. A respiração de Zergeyev era fraca.

— Que coisa mais aborrecida, não é?

— Pela posição do ferimento, e de onde ele estava quando caiu, não há dúvida de que a bala partiu de um dos nossos.

— Foi um desses infelizes acidentes.

— Sim. Mas a bala pode ter sido disparada com pontaria.

— Impossível. Quem iria querer matá-lo?

— Quem iria querer matar você? Ou Culum? Ou talvez eu? Estávamos todos muito próximos.

— Quem?

— Tenho uma dúzia de inimigos.

— Brock não mataria você a sangue-frio.

— Eu nunca disse isso. Ofereça uma recompensa a quem der informações. Alguém pode ter visto algo.

Juntos, observaram a Colônia. Estava bem distante, à popa, agora — apenas chamas e fumaça sobre os telhados de Cantão.

— É uma loucura uma pilhagem assim. Jamais aconteceu antes. Por que eles fariam isso? Por quê? — perguntou Longstaff.

— Não sei.

— Logo que chegarmos a Hong Kong, iremos para o norte... desta vez para os portões de Pequim, por Deus. O imperador vai lamentar muito ter ordenado isso.

— Sim. Mas, primeiro, organize um ataque imediato contra Cantão.

— Mas é uma perda de tempo, não é?

— Ataque ainda esta semana. Você não terá tempo de comunicar o fato ao nosso país. Sitie Cantão, outra vez. Seis milhões de taéis de resgate.

— Por quê?

— Você precisa de um mês ou mais para aprontar a frota, a fim de atacar o norte. O tempo não está bom ainda. Terá de esperar até os reforços chegarem. Quando deverão estar aqui?

— Dentro de um mês, ou de seis semanas.

— Ótimo. — O rosto de Struan se endureceu. — Enquanto isso, a Co-hong terá de encontrar seis milhões de taéis. Isto lhes ensinará a não nos fazerem advertências, por Deus! Você terá de fincar a bandeira aqui, antes de ir para o norte, senão perderemos prestígio. Se eles queimam a Colônia e tudo fica por isso mesmo jamais teremos segurança, no futuro. Ordene ao Nemesis que permaneça ao largo da cidade. Um ultimato de doze horas, senão você deixará Cantão em ruínas.

Zergeyev gemeu, e Struan se aproximou dele. O russo ainda estava em estado de choque, quase inconsciente.

Então Struan notou o chinês convertido de Mauss observando-o. O homem estava em pé no convés superior, ao lado da amurada a estibordo. Ele fez o sinal-da-cruz sobre Struan e fechou os olhos, começando silenciosamente a rezar.

 

Struan pulou do escaler sobre o novo cais da companhia, na Cidade da Rainha, e correu sobre ele em direção ao grande prédio de três andares, quase pronto. Sua coxeadura estava mais pronunciada, sobre o céu branco de calor. O Leão e o Dragão drapejavam no alto do mastro.

Notou que muitos prédios e casas menores estavam prontos, por todo Vale Feliz, e começara a edificação da igreja, sobre o outeiro; o ancoradouro de Brock, do outro lado da baía, estava concluído e a feitoria adjacente quase pronta. Outros prédios e residências ainda se encontravam envoltos por altos andaimes de bambu. A Estrada da Rainha era pavimentada com pedras.

Mas havia muito poucos cules trabalhando, embora a tarde mal começasse. O dia estava quente e muito úmido. Um agradável vento leste principiava a tocar o vale, levemente.

Entrou no saguão principal do prédio com a camisa colada às costas. Um funcionário português suado ergueu os olhos, espantado.

— Madre de Deus, Sr. Struan! Bom-dia, senhor. Não o esperávamos.

— Onde está o Sr. Robb?

— Lá em cima, senhor, mas lá...

Mas Struan já subia a escada correndo. O corredor do primeiro andar levava para norte, leste e oeste, dentro das profundezas do edifício. Muitas janelas davam para o mar e outras para a terra. A frota estava silenciosamente ancorada, e sua lorcha fora a primeira a voltar de Cantão.

Virou-se para leste e passou pela sala de jantar ainda não finada, com o ruído de seus passos provocando um efêmero eco na pedra não carpetada. Bateu numa porta e abriu-a.

A porta dava para uma espaçosa suíte. Estava apenas meio mobiliada — cadeiras, sofás, chão de pedra e pinturas de Quance na parede, belas tapeçarias, uma lareira vazia. Sarah estava sentada numa cadeira de encosto alto, junto a uma das janelas, com um leque de treliça de bambu na mão. Olhava para ele.

— Olá, Sarah.

— Olá, Dirk.

— Como vai Karen?

— Karen está morta.

Os olhos de Sarah eram azul-pálido e firmes, seu rosto estava corado e lustroso de suor. Seu cabelo tinha mechas brancas em torno das feições envelhecidas.

— Sinto muito, sinto muito — ele disse.

Sarah se abanava, distraidamente. A leve brisa causada pelo leque impeliu sobre seu rosto alguns fios de cabelo liso, mas ela não os afastou.

— Quando aconteceu? — ele perguntou.

— Há três dias. Talvez dois — ela disse, com a voz impassível. — Eu não sei.

O leque continuava a se movimentar, para adiante e para trás, como se tivesse mobilidade própria.

— E o menino?

— Ainda vivo. Lochlin ainda está vivo.

Struan limpou uma gotícula de suor do queixo, com os dedos.

— Somos os primeiros a voltar de Cantão. Incendiaram a Colônia. Recebemos a carta de Robb pouco antes de partirmos. Acabei de chegar.

— Eu vi seu escaler chegar à praia — ela disse.

— Onde está Robb? — ele perguntou. Ela fez sinal com o leque para uma porta e ele observou a magreza de seus pulsos estriados de veias azuis. Struan entrou no quarto de dormir. O aposento era amplo e a cama de armação, com dossel, havia sido feita com um desenho especial.

Robb jazia na cama, com os olhos fechados, o rosto cinzento e emaciado sobre o travesseiro manchado de suor.

— Robb? — chamou Struan. Mas seus olhos não se abriram, e ele tinha os lábios entreabertos. A alma de Struan se contorceu.

Tocou o rosto do irmão. Frio. A frieza da morte.

Um cão latiu próximo, e uma mosca adejou de encontro á vidraça. Struan virou-se e saiu do quarto, fechando silenciosamente .a porta. Sarah ainda estava sentada na cadeira de encosto alto. O leque se movimentava, lentamente. Para adiante e para trás. Para adiante e para trás. Ele a odiou, por não ter-lhe dito.

— Robb morreu há uma. hora — ela falou. — Há duas ou três horas, ou uma hora. Não me lembro. Antes de morrer, ele me deu um recado para você. Foi hoje de manhã, eu acho. Talvez de noite. Acho que foi esta manhã. Robb falou: “Diga a Dirk que eu nunca quis ser Tai-Pan.”

— Farei os acertos necessários, Sarah. É melhor você e os meninos irem para bordo do Resting Cloud.

— Eu fechei os olhos dele. E fechei os olhos de Karen. Quem vai fechar seus olhos, Tai-Pan? E quem fechará os meus?

 

Ele tomou as providências e, depois, subiu a pequena elevação que conduzia à sua casa. Estava pensando no primeiro dia em que Robb chegara a Macau.

— Dirk! Todos os seus problemas acabaram, eu cheguei! — dissera Robb, com seu maravilhoso sorriso. — Vamos destruir a Companhia das índias Orientais e esmagar Brock. Seremos verdadeiros nobres e iniciaremos uma dinastia que governará a Ásia para sempre! Há uma moça com quem vou casar! Sarah McGlenn. Tem quinze anos agora e me foi prometida. Vamos nos casar dentro de dois anos.

Diga-me, meu Deus, perguntou Struan, o que fizemos de errado? Como aconteceu? Por que as pessoas mudam? Por que as brigas, a violência, o ódio e a dor nascem da doçura, juventude, ternura e amor? E por quê? Assim acontece sempre. Com Sarah. Com Ronalda. E será a mesma coisa com Culum e Tess. Por quê?

Ele estava no portão do muro alto que rodeava sua casa. Abriu-o e olhou para a casa. Tudo estava silencioso: agourentamente silencioso. A palavra “malária” passou-lhe pela mente. Um vento leve mexeu com os altos bambus. O jardim estava bem plantado, agora: flores, arbustos, com abelhas em torno.

Subiu as escadas e abriu a porta. Mas não entrou logo. Ficou à escuta, no degrau de entrada. Não havia nenhuma risada de boas-vindas, e nem se ouvia a abafada ladainha da conversa dos criados. A casa parecia vazia.

Ele olhou para o barômetro — 29.8, bom tempo. Seguiu lentamente pelo corredor, o ar estranhamente carregado de incenso. Notou poeira onde não havia nenhuma, antes. O quarto das crianças se encontrava vazio. Nem camas e nem brinquedos.

Então, ele a viu através das janelas. Ela vinha do lado escondido do jardim, com flores cortadas na mão e uma sombrinha alaranjada a lhe proteger o rosto. Logo ele estava do lado de fora, e a apertava nos braços.

— Pelo sangue de Cristo, Tai-Pan, você esmagou minhas flores. — May-may depôs as flores e passou-lhe os braços pelo pescoço. — De onde você vem, hein? Tai-Pan, você está me apertando com força demais! Por favor. Por que está com uma cara tão estranha?

Ele a carregou e sentou-a num banco, ao sol. Ela ficou satisfeita em seus braços, feliz com a força dele e com o seu alívio ao vê-la. Sorriu para ele.

— Ah, sim. Você sentiu uma falta louca de mim, hein?

— Sim. Senti uma falta louca de você.

— Ótimo. Por que está infeliz? E por que, quando vejo você, você está sempre como quem viu um fantasma?

— Problemas, May-may. E pensei que tinha perdido você. Onde estão as crianças?

— Em Macau. Mandei-as para a casa de Chen Sheng, a fim de que a Irmã Mais Velha tomasse conta delas. Quando a febre começou, achei que isto seria aconselhável. Mandei-as com Marrr-rry Sinclair. Por que pensou que me tinha perdido, hein?

— Por nada. Quando as crianças partiram?

— Há uma semana. Marrr-rry ia tomar conta delas. Ela volta amanhã.

— Onde estão Ah Sam e Lim Din?

— Mandei os dois comprarem comida. Quando vimos sua lorcha, eu pensei, ayeee yah, a casa está terrivelmente suja e sem comidas, e então mandei que limpassem a casa depressa e fossem comprar comida, não se preocupe. — Ela atirou a cabeça para Irás. — Aqueles imprestáveis preguiçosos precisam de uma surra. Estou muito feliz por você ter voltado, Tai-Pan, ah, sim. O preço de tudo aumentou e não tenho dinheiro, então você precisa me dar mais, porque sustento todo clã de Lim Din e de Ah Sam. Ah, não me incomodo com a família deles, mas o clã inteiro? Mil vezes não, por Deus! Somos ricos, sim, mas não tão ricos assim, e precisamos guardar nossa riqueza, senão logo ficaremos sem tostão! — Ela franziu a testa, observando-o. — Que problemas?

— Robb morreu. E a pequena Karen.

Os olhos dela se arregalaram e sua felicidade acabou.

— Eu sabia a respeito da menina. Mas não do Irmão Robb Ouvi dizer que ele estava com febre... há três ou quatro dias. Mas não que tinha morrido. Quando aconteceu isso?

— Há algumas horas.

— É um terrível pagode. É melhor partirmos deste maldito vale.

— Não é maldito, garota. Mas, realmente, aqui existe a febre.

— Sim. E me perdoe por falar nisso outra vez, mas não esqueça que vivemos no globo ocular do dragão. — Seus olhos se reviraram para o alto e ela proferiu uma torrente de súplicas em cantonês e mandarim. Quando se acalmou outra vez, disse: -. Não se esqueça de que o nosso feng-shui aqui é horroroso e terrível.

Struan tinha de enfrentar o dilema que o sacudia há semanas. Se saísse do vale, todos sairiam; se ficasse, May-may poderia pegar a febre e morrer e ele jamais se arriscaria a isto. Se ele ficasse e ela fosse para Macau, morreriam outros, que poderiam ser poupados. Como salvar a todos da febre e, ao mesmo tempo, preservar a Cidade da Rainha e Hong Kong?

— Tai-Pan, ouvi dizer que você teve muitos problemas em Cantão.

Ele lhe contou o que acontecera.

— Que loucura. Por que a pilhagem, hein?

— Sim.

— Mas foi muito sábio não incendiarem a Colônia antes de terminada a temporada de comércio. Muito aconselhável. O que acontecerá agora? Vocês vão atacar Pequim?

— Primeiro, esmagaremos Cantão. Depois, Pequim.

— Por que Cantão, Tai-Pan? Foi o imperador, não foram eles. Apenas cumprem ordens.

— Sim. Mas deveriam ter-nos avisado de que havia problemas. Pagarão seis milhões de resgate, e depressa, senão ficarão sem a cidade, por Deus! Primeiro Cantão, depois o norte.

 

A testa de May-may se franziu mais. Sabia que deveria mandar um aviso ao seu avô, Jin-qua, a fim de preveni-lo. Porque a Co-hong deveria reunir toda a soma do resgate e, se Jin-qua não estivesse preparado, ficaria arruinado. Ela jamais mandara qualquer informação para seu avô, antes, e nunca usara seus conhecimentos clandestinamente. Mas, desta vez, sentiu que deveria. E o pensamento de que faria parte de uma intriga excitou-a muito. Afinal, disse a si própria, sem intrigas e sem segredos perde-se grande parte da alegria de viver. Fica imaginando por que aquela multidão saqueou, quando não havia necessidade de saquear. Que estupidez.— Prantearemos durante cem dias seu irmão? — ela perguntou.

— Não posso prantear tanto assim, garota — ele disse, exausto.

— Cem dias é o costume. Combinarei um funeral chinês com Gordon Chen. Cinqüenta pranteadores profissionais. Com tambores, matracas e bandeiras. Tio Robb terá um funeral lembrado durante anos. Não pouparemos gastos para isso. Então você ficará satisfeito, e os deuses ficarão satisfeitos.

— Não podemos fazer uma coisa dessas — disse ele, chocado. — Isto não é um funeral chinês. Não podemos contratar pranteadores profissionais!

— Então, como você honrará publicamente seu amado irmão, e lhe dará prestígio diante dos moradores de Hong Kong? Claro que deve haver pranteadores. Não somos a Casa Nobre? Podemos perder prestígio diante do mais insignificante cule? Além de ser uma inexplicável falta de educação e mau pagode, você simplesmente não pode fazer uma coisa dessas!

— Não é nosso costume, May-may. Fazemos as coisas de maneira diferente.

— Claro — ela disse, alegremente. — É justamente isso que eu quero dizer, Tai-Pan. Você cuida de seu prestígio com os bárbaros, mas eu farei o mesmo com meu povo. Prantearei em particular durante cem dias, pois claro que não posso ir a público, no seu funeral ou no funeral chinês. Vou me vestir com roupas brancas, que é a cor do luto. Mandarei fazer uma placa, como de hábito, e nos prosternaremos sobre ela, todas as noites. Então, no final dos cem dias, queimaremos a placa, como de hábito, e a alma do Irmão Robb renascerá em segurança, como de hábito. É pagode, Tai-Pan. Os deuses precisam disso, pode ter certeza.

Mas ele não a escutava. Estava dando tratos à bola, em busca de uma solução — como combater a febre, como manter o vale e como proteger Hong Kong?


 

Três dias depois, Robb foi enterrado, ao lado do túmulo de Karen. Wolfgang Mauss oficiou o serviço na igreja sem teto, sob um céu sem nuvens.Todos os tai-pans estavam presentes, exceto Wilf Tillman, que ainda se encontrava no pontão da Cooper-Tillman,

mais morto do que vivo, com a febre do Vale Feliz. Longstaff não foi ao serviço fúnebre.

Ele, o general e o almirante já haviam navegado para Cantão — com a frota, os navios para transporte de tropas e todos os soldados aptos. A disenteria dizimara suas fileiras. O

H.M.S Nemesis fora mandado antes.

Sarah estava sentada no primeiro banco de igreja falquejado Vestia-se de negro e seu véu era negro. Shevaun também estava de negro. Assim como Mary e Liza, Tess e as outras. Os homens também vestiam roupas escuras e suavam profusamente.

Struan levantou-se para ler o sermão e Shevaun fitou-o, intencionalmente. Ela lhe dera os pêsames na véspera, e sabia que nada mais havia a ser feito, agora. Dentro de uma ou duas semanas, tudo estaria bem outra vez. Agora que Robb morrera, ela teria de rever seus planos. Planejara casar-se com Struan rapidamente, e depois levá-lo embora: primeiro a Washington, para encontrar pessoas de grande importância, e depois a Londres, ao Parlamento — mas com a força somada a laços próximos com os americanos. Mais tarde, de volta a Washington, embaixador. Mas, agora, o plano seria retardado, porque ela sabia que ele não poderia partir, até Culum estar pronto para assumir.

Simultaneamente ao silencioso e sombrio funeral em que todos se vestiam de negro, no Vale Feliz, e do cortejo ao longo da Estrada da Rainha até o cemitério, uma ensurdecedora procissão fúnebre chinesa, todos com roupas brancas, percorria as ruelas do Tai Ping Shan, gritando aos deuses sobre a grande perda da Casa Nobre, berrando, gemendo, lamentando-se, com seus integrantes a rasgarem as próprias roupas e batucarem tambores.

E os moradores do Tai Ping Shan ficaram muito impressionados com as maneiras do Tai-Pan e a generosidade de sua casa. A estrutura de Gordon Chen aumentou, com o prestígio ganho por seu pai, pois nenhum dos habitantes do morro teria adivinhado que o Tai-Pan honraria assim os seus deuses e os seus costumes. Não que Gordon Chen precisasse de um aumento de prestígio. Já não era o maior proprietário de terras de Hong Kong, e os tentáculos de seu negócio não se estendiam em todas as direções? Já não possuía a maior parte dos prédios? E não explorava o negócio das liteiras? E três lavanderias? E catorze sampanas de pesca? Duas farmácias? Seis restaurantes? Dezenove bancas de engraxates? E lojas de roupas e sapatarias e oficinas para a fabricação de facas? E não possuía cinqüenta e um por cento da primeira fábrica de jóias com peritos entalhadores de Kwangtung, tanto trabalhando em metal como em madeira?Tudo isso além de seu grande negócio de agiotagem. Ayeee yah, e que agiota! Era quase inacreditável, mas ele era tão rico a ponto de emprestar dinheiro a um e meio por cento menos do que o habitual, tendo assim monopolizado o negócio. E se dizia que era sócio do próprio Tai-Pan e, com a morte de seu tio bárbaro, novas imensas riquezas iriam para suas mãos.

Entre os Tríades, Gordon Chen não precisava de nada para melhorar sua posição. Sabiam quem ele era e o obedeciam sem questionar. Mesmo assim, os Tríades que estavam na indústria da construção, no negócio da estiva, da limpeza e no recolhimento noturno de esterco humano, bem como nos negócios da pesca, cozinha e venda ambulante, lavanderias, criadagem e cules – eles também precisavam tomar dinheiro emprestado, de vez em quando, e necessitavam de casas onde morar; conseqüentemente, também ficaram cheios de dor com o fato do tio bárbaro de seu líder ter morrido e, com boa vontade, pagaram uma semana extra de impostos. Sabiam que era aconselhável ficar do lado do Tai-Pan do Tai Ping Shan; sabiam que parte do dinheiro era para pagar oferendas aos deuses — porquinhos de leite, pastéis, carne doce, carne cozida em inúmeras variedades, sampanas cheias de lagostas, camarões grandes, peixe e caranguejos, além de pães e montanhas de arroz; sabiam que, logo após os deuses terem benignamente olhado tal magnificência, as ofertas seriam distribuídas e eles próprios se banqueteariam, para satisfação até mesmo dos mais famintos.

Então, todas as pessoas gemiam alto, com os pranteadores, gozando muitíssimo o drama da morte, abençoando seu pagode por estarem vivos para prantear, para comer, para fazer amor, para ganhar dinheiro, para se tornar, talvez — com pagode — igualmente ricos e assim terem um prestígio tão colossal na morte, perante os seus vizinhos.

Gordon Chen acompanhou o cortejo. Estava muito solene e rasgou as roupas — mas com grande dignidade — e lamentou bem alto, perante os deuses, a grande perda que sofrera. O Rei dos Mendigos o acompanhou e, assim, ambos ganharam prestígio. E os deuses sorriram.

 

Quando o túmulo estava cheio com a seca terra estéril, Struan acompanhou Sarah ao escaler.

— Irei a bordo esta noite — disse.

Sem responder, Sarah sentou-se à popa do bote e virou as costas à ilha.

Quando o cúter ganhava distância, Struan dirigiu-se para o Vale Feliz.

Mendigos e cules com liteiras infestavam a rodovia. Mas não incomodaram o Tai-Pan; ele continuara a pagar o imposto mensal ao Rei dos Mendigos. Struan viu Culum sentado ao lado de Tess, no meio de todo o clã de Brock. Ele se aproximou do grupo e tirou o chapéu, cortesmente, para as senhoras. Olhou para Culum.

— Quer me acompanhar, Culum?

— Decerto — disse Culum.

Ele não falara com o pai desde a volta dos dois — inclusive a respeito de coisas importantes, como a maneira pela qual a morte de tio Robb afetaria seus planos, ou quando o noivado seria oficializado. Não era mais segredo que ele pedira, formalmente, a mão de Tess, em Whampoa, após a retirada de Cantão, e fora mal-humoradamente aceito. Também não era segredo que, por causa da repentina tragédia, os planos para o anúncio do compromisso haviam sido adiados.

Struan tirou o chapéu outra vez e se afastou, com Culum a seu lado.

Caminharam silenciosamente pela estrada. Outros que os haviam visto com os Brocks abanaram a cabeça, pasmados, mais uma vez, por Brock ter concordado com um casamento que, seguramente, era uma manobra do Tai-Pan.

— Bom-dia, Mary — disse Struan, quando Mary Sinclair se aproximou, tendo ao lado Glessing e Horatio. Parecia exausta e adoentada.

— Bom-dia, Tai Pan. Será que eu poderia fazer-lhe uma rápida visita, esta tarde? — ela perguntou. — Poderia dar-me alguns minutos de seu tempo?

— Sim, naturalmente. Por volta do entardecer? Em minha casa?

— Obrigada. Não posso dizer-lhe quanto senti... senti a perda que sofreu.

— Sim — disse Glessing. — Foi uma terrível falta de sorte. De algumas semanas para cá, ele fora ficando cada vez mais impressionado com Struan. Diabo, uma pessoa que pertencera à Marinha Real, que carregara pólvora em Trafalgar, merecia o maior respeito, por Deus! Quando Culum lhe contara, ele imediatamente indagou: “Em que navio?” E ficou espantado quando Culum disse: “Não sei, não perguntei.” Imaginou se o Tai-Pan não servira com seu pai. A pergunta lhe veio à ponta da língua, mas ele não podia fazê-la, porque Culum lhe contara o fato em particular.

— Sinto muitíssimo, Tai-Pan.

— Obrigado. Como vão as coisas com você?

Muito bem, obrigado. Há um trabalhão dos diabos para fazer, isto é verdade.

— Talvez fosse uma boa idéia colocar âncoras de tempestade para água profunda, nas naus capitanias. Glessing ficou de repente atento.

— Você pressente uma tempestade?

— Não. Mas é temporada de tufões. Algumas vezes chegam cedo, outras vezes tarde.

— Obrigado pela sugestão. Vou mandar começar a fazer isso, esta tarde.

Muito bem pensado, disse Glessing a si mesmo. O homem suporta bem tanta tragédia. E ele é tão esperto quanto o melhor dos marinheiros que já navegou pelos mares afora. Mary pensa maravilhas a respeito dele, e a opinião dela é valiosa, por Júpiter! E, por causa dele, a frota atacará Cantão, por Deus! Poucos dias após aqueles demônios ousarem incendiar a Colônia. Maldito seja o almirante! Por que aquele patife não me manda de volta para meu navio? Fico imaginando se eu ousaria pedir ao Tai-Pan que interferisse a meu favor.

— Vai unir-se à frota?

— Não sei. — Struan olhou para Horatio. — Quando você voltou, rapaz?

— A noite passada, Tai-Pan. Sua Excelência me mandou de volta, a fim de representá-lo no funeral. Tenho a honra de lhe dar os meus pêsames. Voltarei com a maré.

— Foi gentil da parte dele, e é uma gentileza sua. Cumprimente-o em meu nome.

— Ele estava muito ansioso para descobrir como está Sua Alteza.

— Passa razoavelmente. Encontra-se a bordo do China Cloud. Por que não lhe faz uma visita? Acho que tem o quadril lesado, mas não se pode afirmar isto, por enquanto. Verei você mais tarde, Mary.

Ele tirou o chapéu outra vez, e partiu com Culum. Struan ficou pensando em Mary. Suponho que ela quer falar-me a respeito das crianças. Espero que não haja nada errado. O que há com Horatio e Glessing? Parecem tensos e agitados.

 

— Posso visitá-la no hotel, Srta. Sinclair? — Glessing dizia. — Talvez queiram ambos almoçar comigo no cais.

— Gostaria de fazer isso, querido George — disse Mary — Mas Horatio não poderá nos acompanhar. — Antes de Horatio poder dizer qualquer coisa, acrescentou, tranqüilamente: — Meu querido irmão me disse que você lhe pediu formalmente minha mão em casamento.

Glessing ficou espantado.

— Ah, sim, é verdade. Espero... bom, sim.

— Eu gostaria de lhe dizer que aceito.

— Por Júpiter! — Glessing pegou-lhe a mão e a beijou. — Juro por Deus, Mary, por Lord Harry, por Júpiter! Juro... — Ele se virou para agradecer a Horatio. Sua alegria desapareceu — Pela morte de Cristo, o que há?

Os olhos de Horatio estavam malevolamente fixos em Mary Ele forçou um sorriso amarelo, mas não afastou os olhos da irmã

— Nada.

— Você não aprova? — a voz de Glessing estava tensa.

— Ah, sim, ele aprova, não é, querido irmão? — Mary interveio.

— É que... você é muito... muito jovem e...

— Mas aprova, não? E nos casaremos três dias antes do Natal. Será que isso lhe convém, George? Glessing ficou gelado, com a evidente animosidade entre irmão e irmã.

— Não é satisfatório, Horatio?

— Tenho certeza de que o Tai-Pan apreciará sua aprovação, Horatio.

Mary ficou satisfeita, por ter decidido casar com George. Agora, ela teria de se livrar do bebê. Se May-may não pudesse ajudar, precisaria pedir ao Tai-Pan o favor que ele lhe devia.

— Aceito, George — ela disse, num desafio, escondendo seu medo.

— Malditos sejam ambos! — Horatio se afastou.

— Em nome de Deus, o que há com ele? Isto significa que ele aprova? Ou não? — George perguntou, irado.

— Ele aprova, querido George. Não se preocupe. E, por favor, perdoe-me por ser tão brusca, mas eu queria que isto fosse dito agora.

— Não, Mary. Sinto muito. Não tinha idéia de que seu irmão fosse tão contrário. Se eu tivesse pensado, por um momento... bom, não teria sido tão precipitado.

Sua alegria por ser aceito foi sufocada pela dor que viu no rosto de Mary. E por sua fúria, sempre presente, de não se encontrar com a frota. Maldito almirante! Maldito seja este cargo em terra e maldito seja Sinclair. Como diabo posso um dia ter gostado daquele filho da mãe! Como ousou ele ser tão rude?

— Estou tão satisfeita por você se encontrar aqui, George — ele a ouviu dizer.Viu-a enxugar algumas lágrimas e sua felicidade voltou. Sem cargo em terra, não poderia jamais passar tanto tempo com Mary — Abençoou sua sorte. Ela o aceitara, e isto era tudo que importava. Deu-lhe o braço.

— Não chore mais — disse. — Este é o dia mais feliz de minha vida, vamos almoçar e comemorar. Jantaremos juntos esta noite... e almoçaremos e jantaremos juntos sempre, de agora em diante. Faremos a comunicação no próximo mês. De agora em diante, eu cuidarei de você. Se alguém a perturbar, terá de me dar satisfações, por Deus!

 

Struan e Culum bebiam conhaque no escritório situado na feitoria. A sala era grande, com chão de pedra. Havia nela uma escrivaninha lustrosa de teca e lanternas de navio, um barômetro num balanceiro, perto da porta de teca. Pinturas de Quance nas paredes, cadeiras e sofá de couro bem encerados, com um cheiro bom.

À janela, Struan observava o porto. A calma extensão parecia vazia, sem a frota e os navios para transporte de soldados. Dos clíperes, só permaneciam o China Cloud e o White Witch. Havia poucos navios mercantes que ainda não tinham encontrado carga completa para a Inglaterra, e vários navios em viagem de volta, recém-chegados com mercadorias encomendadas no ano passado.

Culum examinava a pintura sobre o consolo da lareira. Era o retrato de uma barqueira chinesa, usando casaco; sua beleza surpreendia. Carregava uma cesta sob o braço, e sorria.

Culum ficou imaginando se o boato era verdadeiro — aquela era a amante de seu pai, que vivia em sua casa, a algumas centenas de metros de distância.

— Não posso ir embora agora, como planejamos. Decidi ficar — disse Struan, sem

se virar da janela. Culum sentiu uma pontada de desapontamento.

— Eu poderia administrar as coisas. Tenho certeza de que poderia.

— Sim. No devido tempo.

Culum ficou maravilhado, outra vez, com a sabedoria de seu amigo Gorth. A noite passada, no tombadilho do White Witch, Gorth dissera:

— Tome nota, meu amigo. Ele jamais partirá, agora. Aposto o que você quiser, mas ele chamará você e lhe dirá que não vai embora. É terrível dizer uma coisa dessas, mas vamos ter de esperar pelo legado dos mortos.

— Mas eu não poderia resolver tudo sozinho. Como Tai-Pan, sozinho.

— Claro que poderia. Ora, se precisar de ajuda, eu o ajudarei em tudo. E papai também. Afinal de contas, Culum, você agora faz parte da família. Claro que resolveria tudo, por Deus! •Mas, se você disser isso, o Tai-Pan responderá: “Claro que pode, Culum. No devido tempo.”

— Acha, realmente, que eu poderia?

— Não tenho a menor sombra de dúvida. Qual é a dificuldade, hein? Você compra e vende, e seu compradore assume a maior parte do risco. Navios são navios, chá é chá e ópio é ópio. Um Tai-Pan toma decisões, apenas isso. É, principalmente, uma questão de bom senso. Ora, veja o que você fez com o outeiro! Decidiu de uma maneira muito inteligente. Você decidiu, não foi outra pessoa. E forçou-o a conversar com papai a respeito de Tess, e papai forçou-o a dar a você e a Tess uma oportunidade.

— Talvez eu pudesse dirigir a casa, se tudo estivesse tranqüilo. Mas não com Longstaff, com uma guerra e com Jin-qua.

— Eles não têm importância. E a guerra está fora de nosso controle, por mais que seu pai goste de fingir outra coisa. Quanto àquela velha raposa, Jin-qua, eu posso ajudar você a manter o macaco no seu galho. Não, Culum, temos de esperar até eles morrerem e isto é terrível, quando se é jovem, com novas idéias e tudo mais. Se nos dessem as rédeas agora, o que haveria de tão errado nisso? Nossos pais protegeriam nossa retaguarda, lá da Inglaterra e nós pediríamos ajuda, em qualquer necessidade. Não seria como se nós os expulsássemos. A casa seria deles, claro. Mas, jamais iriam acreditar nisso. Têm cocô nos miolos. Precisam conservar tudo para si mesmos, só assim serão felizes. Ele vai acalmar você, dizendo: “Você vai precisar de experiência, dois ou três anos”. Mas isto significa para sempre...

Culum olhou para as costas do pai.

— Eu poderia assumir, Tai-Pan. Struan virou-se para ele.

— E Longstaff? E Jin-qua, e a guerra?

— A guerra não depende de você, não é?

— Não. Mas, sem orientação, Longstaff nos teria destruído, já há uns dois anos.

— Se você partisse, bom... não estaria lavando as mãos com relação à casa, não é? Se acontecesse alguma coisa que eu não pudesse resolver, pediria imediatamente ajuda.

— Quando eu partir, rapaz, você terá de resolver tudo. A correspondência leva seis meses para ir à Inglaterra e voltar. Coisas demais poderiam ocorrer neste espaço de tempo. Você precisa de experiência. Não está preparado ainda.

— E, quando estarei?

— Depende de você.

— Você prometeu que eu seria Tai-Pan um ano depois... bom, um ano depois do tio Robb.

— Sim. Se estivesse preparado. Mas não está preparado para eu partir, como foi planejado. Brock e Gorth engoliriam você. Sim, disse Culum a si mesmo, Gorth tem razão, outra vez. Só esperando pela morte.

— Muito bem. O que posso fazer, para provar que sou capaz? .

— Nada mais do que está fazendo, rapaz. Você precisa de mais experiência. Dois anos, três... eu lhe direi, quando tiver certeza. Culum sabia que nada ganharia discutindo, naquela ocasião.

— Quer que eu assuma os departamentos do tio Robb?

— Sim. Mas, no momento, não encomende nada, na venda, e tampouco demita alguém sem a minha aprovação. Eu lhe darei uma carta específica, com instruções. Ajude Vargas a avaliar nossas perdas na Colônia e a pôr em ordem os livros.

— Quando acha que seria bom anunciar o noivado?

— Já discutiu o assunto com Brock?

— Só quando o encontrei em Whampoa. Ele sugeriu a noite do Festival de Verão.

Struan, repentinamente, lembrou-se de Scragger e do que dissera a respeito de Wu Kwok: que Wu Kwok cairia facilmente numa emboscada em Quemoy, no noite do Festival de Verão. Sabia que agora não tinha outra alternativa senão acreditar que Scragger falara a verdade, e ir atrás de Wu Kwok. A morte de Wu Kwok significaria um risco a menos para Culum se preocupar. E as outras três metades de moedas? Que favores maquiavélicos iriam pedir-lhe? E quando? Olhou para o calendário sobre sua escrivaninha. Aquele dia era 15 de junho. A noite do Festival de Verão seria dali a nove dias.

— Deixe para a noite do Festival. Mas, reunindo apenas um pequeno grupo. Só a família. — Acrescentou, com sutil ironia.

— Pensamos a respeito do presente de casamento que queremos que nos dê. Foi idéia de Tess. — Entregou uma folha de papel a Struan.

— Só um contrato solene de esquecer o passado e iniciar uma amizade. Para ser assinado pelos Brocks e pelos Struans.

— Já fiz a única barganha que farei com aqueles dois — disse Struan, devolvendo o papel, sem lê-lo.

— Gorth quer assinar, e ele disse que seu pai também.

— Aposto que Gorth quer mesmo, por Deus! Mas Tyler não assinará um papel desses.

— Se ele assinar, você assina?

— Não.

— Por favor.

— Não.

— Nossos filhos pertencerão a vocês dois e...

— Considerei os filhos com cuidado, Culum — interrompeu Struan. — E uma porção de outras coisas. Duvido muito que seus filhos vão ter um tio e um avô por parte de mãe, quando estiverem suficientemente crescidos para entender o que são essas coisas.

Culum caminhou irritado para a porta.

— Espere, Culum!

— Quer fazer o favor de nos dar o presente que pedimos, que imploramos?

— Não posso. Eles jamais honrarão um compromisso assim. Gorth e Brock querem tirar seu couro e... Culum bateu a porta na cara dele.

Struan bebeu outro conhaque e, depois, atirou o copo na lareira.

 

Aquela noite, Struan ficou acordado na cama de dossel, ao lado de May-may. As janelas estavam abertas para a lua e a brisa que trazia um cheiro estimulante de sal. Do lado de fora da grande rede que envolvia a cama, uns poucos mosquitos tentavam, incansavelmente, encontrar caminho para a comida do lado de dentro. Ao contrário da maioria dos europeus, Struan sempre usara um mosquiteiro. Jin-qua advertira-o de que era bom para a saúde, há muitos anos.

Struan estava pensando a respeito dos gases noturnos da malária, com medo de que ele e May-may os estivessem respirando, agora.

E ele estava preocupado com Sarah. Quando a vira, há algumas horas, ela lhe dissera que estava decidida a partir no primeiro navio.

— Você ainda não está bastante forte — comentara. — Nem Lochlin.

— Mesmo assim, vamos partir. Você acertará tudo, ou terei de fazer isto eu mesma? Tem uma cópia do testamento de Robb?

— Sim.

— Acabei de lê-la. Por que você deveria ficar como curador de suas ações na companhia, e não eu?

— Não é tarefa para uma mulher, Sarah! Mas você não precisa se preocupar. Receberá cada tostão.

— Meus advogados vão tratar disso, Tai-Pan.

Ele controlara sua raiva com esforço.

— A temporada é de tufões. Uma má ocasião para viajar para a Inglaterra. Espere até o outono. Estarão ambos mais fortes então.

— Partiremos imediatamente.

— Faça como quiser.

 

Ele fora ver Zergeyev. O ferimento do russo estava inflamado, mas não dera gangrena. Então, havia esperança. Em seguida, voltara a seu escritório e escrevera um despacho para Longstaff, informando-lhe ter ouvido dizer que o pirata Wu Kwok estaria em Quemoy, na noite do Festival de Verão, e que fragatas deveriam esperá-lo. Ele conhecia aquelas águas muito bem, e ficaria satisfeito de liderar a expedição, se o almirante assim o desejasse. Enviara o despacho a Horatio. E, pouco antes de partir para casa, os médicos do Exército foram vê-lo. Disseram-lhe que não, havia mais dúvidas. A febre do Vale Feliz era malária...

 

Ele se contorcia espasmodicamente na cama.

— Gosta de jogar gamão? — perguntou May-may, tão cansada e inquieta quanto ele.

— Não, obrigado, garota. Você também não consegue dormir?

— Não. Não se incomode — respondeu.

Estava preocupada com o Tai-Pan. Ele estava estranho, aquele dia. E ela se preocupava com Mary Sinclair. Aquela tarde, Mary chegara cedo, antes de Struan voltar. Mary contara-lhe a respeito do bebê e de sua vida secreta em Macau. Até mesmo sobre Horatio. E Glessing.

— Sinto muito — Mary dissera, em prantos. Ambas falavam mandarim, que preferiam ao cantonês. — Eu tinha de contar a alguém. Não há ninguém a quem eu possa pedir ajuda. Ninguém.

— Acalme-se, Marrr-rry, minha querida — dissera May-may. — Não chore. Primeiro, vamos tomar um pouco de chá e, depois, decidiremos o que fazer.

Então tomaram chá e May-may ficou espantada com os bárbaros e a maneira como encaravam a vida e o sexo.

— Que ajuda você precisa?

— Ajuda para... para me livrar da criança. Meu Deus, já está começando a aparecer.

— Mas, por que você não me pediu isso há semanas?

— Não tive coragem. Se eu não tivesse forçado a decisão, perante Horatio, ainda não teria coragem. Mas agora... o que posso fazer?

— Há quanto tempo está em seu útero?

— Quase três meses, menos uma semana.

— Não é bom, Marrr-rry. Pode ser muito perigoso, depois de dois meses. — May-may considerara as possíveis soluções para o problema de Mary e os perigos que acarretavam. — Vou mandar Ah Sam ao Tai Ping Shan. Ouvi dizer que existe ali um herbanário que poderá ajudá-la. Mas, entende que talvez seja muito perigoso?

— Sim. Se puder me ajudar, eu farei tudo. Tudo.

— Você é minha amiga. Os amigos devem ajudar um ao outro. Mas você não deve nunca, nunca contar a ninguém.

— Prometo, juro por Deus.

— Quando eu tiver as ervas, mandarei Ah Sam procurar sua criada, Ah Tat. Pode confiar nela?

— Sim.

— Quando é seu aniversário, Marrr-rry?

Por quê?

— O astrólogo terá de descobrir um dia auspicioso para tomar o remédio, claro. Mary dissera-lhe o dia e a hora.

— Onde você tomará o remédio? Não pode fazer isso no hotel... e nem aqui. Poderá demorar dias para você se recuperar.

— Em Macau. Irei para Macau. Para minha... casa particular. Será seguro lá. Sim, estarei segura lá.

— Esses remédios nem sempre funcionam, minha querida. E não são fáceis.

— Não tenho medo. Vai dar certo. Tem de dar certo — dissera Mary.

 

May-may revirava-se na cama.

— O que há de errado? — perguntou Struan.

— Nada, é só o bebê se mexendo.

Struan pôs a mão sobre a pequena redondeza em sua barriga.

— É melhor procurarmos um médico, para tomar conta de você.

— Não, obrigada, Tai-Pan, não se incomode. Nenhum desses demônios bárbaros, obrigada. Com relação a isso eu serei, como sempre, chinesa.

May-may ficou deitada de costas, aprazivelmente, satisfeita com seu bebê, triste por causa de Mary.

— Marrr-rry não parecia bem, não é? — disse, numa sondagem.

— Não. E aquela moça tem alguma coisa na cabeça. Ela lhe disse o que era? May-may não queria mentir, mas estava hesitante em contar a Struan algo que poderia, realmente, não ter nada a ver com ele. — Acho que ela está preocupada com o irmão.

— O que há com ele?

— Ela disse que quer casar com Glessing.

— Ah, sim. — Struan sabia que Mary viera, principalmente, ver May-may e não a ele. Mal lhe falara, a não ser para lhe agradecer por ter levado as crianças para Macau. — Suponho que Horatio não aprova, e então ela quer que eu converse com ele? Foi isso que veio falar?

— Não. O irmão aprova — disse May-may.

— É surpreendente.

— Por quê? Esse Glessing é um homem ruim?

— Não, garota. É só porque Mary e Horatio vivem muito unidos, há vários anos. Ele vai achar a vida muito solitária sem ela, aqui. — Struan ficou imaginando o que diria May-may, se soubesse da casa secreta de Mary em Macau. — Ela, provavelmente, está triste porque se preocupa com ele.

May-may nada disse e abanou a cabeça, tristemente, por causa dos problemas do homem e da mulher.

— Como vão os jovens namorados? — perguntou, tentando descobrir o que realmente o incomodava.

— Muito bem. — Nunca lhe contara o que ele e Brock tinham dito um ao outro.

— Decidiu o que fazer a respeito da febre diabólica?

— Ainda não. Acho que você deveria voltar para Macau.

— Sim, por favor, Tai-Pan. Mas não antes de você decidir a respeito de Hong Kong.

— Aqui é perigoso. Não quero que lhe aconteça nada.

— Pagode — ela disse, com um encolher de ombros. — Claro mie nosso feng-shui é muito ruim. — Pôs a mão sobre o peito dele e o acariciou, depois beijou-o suavemente.

— Uma vez você disse que havia três coisas que precisava fazer, antes de decidir a respeito de uma Tai-tai. Duas, eu sei. Qual era a terceira?

— Passar a Casa Nobre para mãos seguras — ele disse. Depois, contou-lhe o que Brock dissera, e sua discussão com Culum, naquele dia.

Ela ficou silenciosa, por um longo tempo, pensando com cuidado a respeito do problema que representava a terceira coisa. E, como a solução era tão fácil, escondeu-a profundamente no coração e falou, inocentemente:

— Eu disse que ajudaria você, com relação às duas primeiras, e pensaria a respeito da terceira. Esta terceira é demais para mim, não posso ajudar, como gostaria.

— Sim — disse Struan. — Não sei o que fazer. Pelo menos — ele acrescentou — só há uma solução.

— A solução do assassinato não é aconselhável — ela disse, com firmeza. — Perigosamente desaconselhável. Os Brocks vão esperar por isso. Todos. E você se arrisca a uma vingança de sua lei terrível, que pede estupidamente olho por olho, mesmo que alguém tenha olhos de louco. Para que serviria o dinheiro? Você não deve fazer isso, Tai-Pan. E lhe aconselho, aliás, a dar a seu filho e à nova filha o presente que eles desejam.

— Não posso fazer isso, por Deus! É como se eu próprio estivesse cortando a garganta de Culum.

— Ainda assim, é o meu conselho. E aconselho, além disso, um casamento o mais rápido possível.

— Isso está fora de questão — ele explodiu. — É de muito mau gosto, um insulto à memória de Robb, e ridículo.

— Concordo plenamente, Tai-Pan — disse May-may. — Mas segundo me lembro, de acordo com o costume bárbaro... que, desta vez, é igual ao sábio costume chinês, a moça vai para a casa do marido. Não é o contrário, hein? Então, quanto mais rápido a garota Brock se libertar do domínio de Gorth, logo os Brocks perderão o controle sobre seu filho.

— O quê?

— Claro! Por que o seu filho está assim louco? Ele precisa ir para a cama com ela o mais rápido possível. — A voz dela se elevou, quando Struan se sentou na cama. — Agora, não me dê argumentos, por Deus, mas escute e, depois, eu escutarei atentamente. É isso que o deixa completamente louco... o pobre rapaz está com frio e cansado, não tem ninguém com quem ir para a cama, à noite. É um fato. Por que não diz abertamente, hein? Eu digo abertamente. Ele está ardendo, freneticamente. Então escuta, babando-se, toda a conversa maluca de Gorth. Eu se fosse ele, faria a mesma coisa, porque irmão tem poder sobre irmã! Mas deixe seu filho Culum possuir a moça, e então será que vai passar hora após maldita hora escutando o irmão Gorth? Por Deus, não! Vai passar cada minuto na cama, trepando, se cansando, fazendo bebês, e detestará interrupções suas, de Brock ou de Gorth. — Ela o olhou, com doçura. — Não é?

— Sim — disse ele. — Eu a amo porque você é esperta.

— Você me ama porque eu ponho você maluco, mas eu sei fazer você dormir, eu ponho você para dormir, até você estourar. — Riu, muito satisfeita consigo mesma. — Em seguida: faça com que eles comecem a construir sua casa. Amanhã. Desvie os pensamentos deles para isso, afastando-os do fan-quai Gorth. Ela è jovem, hein? Então, pensar em sua própria casa será uma ocupação fantástica para sua mente. Isso irritará os Brocks e eles começarão a decidir que tipo de casa, etc, o que a aborrecerá, e a trará para mais perto de você, que lhe dá sua casa. Gorth vai se opor completamente a um casamento rápido, fazendo, assim, Culum voltar-se contra ele, porque perderá, como vocês dizem?... seu tronfo.

— Trunfo. — Ele a abraçou, encantado. — Você é fantástica! Eu deveria ter pensado nisso. Há outra venda de terras, na próxima semana. Vou comprar para você um lote marinho. Porque é sábia.

— Ora! — ela disse, zangada. — Acha que eu protejo meu homem em troca da suja terra de Hong Kong? Um único e miserável lote suburbano? Por taéis de prata? Por jades? O que você acha que é esta valiosíssima Tchung May-may, hein? Uma puta qualquer?

 

Ela tagarelou sem parar mas, com hesitação, acabou permitindo-lhe presenteá-la, orgulhosa por ele entender o valor da terra para uma pessoa civilizada, e grata por ele lhe dar tal prestígio, fingindo que não sabia como ela estava satisfeita.

O quarto se achava silencioso, agora, a não ser pelo zunir dos mosquitos.

May-may aninhou-se contra Struan e desviou seus pensamentos para uma solução da terceira coisa. Decidiu pensar a respeito em mandarim, e não em inglês, porque não sabia palavras suficientes para os matizes certos de significado. Como nuance, pensou ela. Como se iria dizer isso em bárbaro? Ou finesse? A solução para a terceira coisa requeria uma verdadeira nuance chinesa e perfeita finesse.

A solução é tão deliciosamente simples, ela disse a si própria, alegremente. Assassinar Gorth. Mandar assassiná-lo de uma maneira que ninguém suspeite que os assassinos não passam de assaltantes ou piratas. Se assim for feito, clandestinamente, um perigo para o meu Tai-Pan será afastado; Culum ficará protegido de um óbvio risco futuro; e o pai Brock nada poderá fazer, porque ainda está preso pela espantosa e inacreditável determinação que os bárbaros atribuem a um tal juramento “sagrado”. Tão simples. Mas cheio de perigo. Preciso ser muito cuidadosa. Se meu Tai-Pan chegar a descobrir, ele me levará perante um dos juizes bárbaros — aquele revoltante Mauss, provavelmente! Meu Tai-Pan me acusaria — até a mim, sua adorada concubina. E eu seria enforcada. Que ridículo!

Depois desse tempo todo, e com todos os meus estudos — aprendendo a língua deles, e tentando continuamente compreendê-los — certas atitudes dos bárbaros ainda estão absolutamente além do meu alcance. Como é ridículo ter a mesma lei para todos — ricos e pobres. De que adianta trabalhar e suar, para se tornar rico e poderoso?

Qual será a melhor maneira?, perguntou a si mesma. Sei muito pouco a respeito de assassinatos. Como fazer isso? Onde? Quando?

May-may ficou acordada a noite inteira. Ao amanhecer, decidiu a respeito do melhor procedimento. Então, dormiu suavemente.


 

Quando chegou o Festival de Verão, o Vale Feliz estava em completo desespero. A malária continuara a se disseminar, mas não havia nenhum padrão estabelecido para a epidemia. Nem todos na mesma casa eram contaminados. Nem todas as casas na mesma área era atingidas.

Os cules não iam para o Vale Feliz até o sol estar alto e voltavam ao Tai Ping Shan antes do anoitecer. Struan, Brock e todos os negociantes estavam quase loucos. Não havia nada que pudessem fazer — a não ser se mudar, e mudar-se representava uma calamidade. Ficar poderia significar um desastre pior. E, embora houvesse muitos que insistiam não ser possível responsabilizar pela malária ao solo envenenado e ao ar noturno poluído, só aqueles que dormiam no vale eram afetados. Os tementes a Deus acreditavam, como Culum, que a febre era a vontade divina, e redobraram suas súplicas ao Todo-Poderoso para protegê-los; os ateus davam de ombros, embora igualmente assustados, e diziam: Pagode. A fuga das famílias de volta para os navios tornava-se cada vez mais numerosa, e a Cidade da Rainha se transformou numa cidade-fantasma.

 

Mas este desespero não atingiu Longstaff. Ele voltara de Cantão na véspera, à noite, na nau capitania, embriagado com o sucesso, e vivia a bordo do navio, sem a menor intenção de residir no Vale Feliz, assim sabendo que se encontrava fora do alcance dos venenosos gases noturnos.

Conquistara tudo que estava decidido a conquistar — e ainda mais.

No dia seguinte ao início da investida a Cantão, os seis milhões de taéis de resgate que pedira foram plenamente pagos, e cancelara o ataque. Mas determinara imediatos preparativos para uma guerra ao norte, em escala completa. E, desta vez, não haveria interrupção — até o tratado ser ratificado. Dentro de poucas semanas, chegariam os prometidos reforços da índia. E então a armada navegaria para o norte, mais uma vez, para o Pei Ho — para Pequim — e o Oriente se abriria, de maneira definitiva.

— Sim, com toda certeza — Longstaff deu uma risadinha. Estava sozinho em seus aposentos no H.M.S. Vengeance, admirando a si próprio no espelho. — Você é realmente muito inteligente, meu querido amigo — disse a si mesmo, em voz alta. — Sim, realmente. Muito mais inteligente do que o Tai-Pan, e ele é a personificação da inteligência. — Depôs o espelho e esfregou água-de-colônia no rosto, olhando em seguida para o seu relógio de bolso. Struan deveria chegar dentro de poucos minutos. — Mesmo assim, não é preciso deixar sua mão direita saber o que a esquerda está fazendo, hein? — ele riu.

Longstaff mal podia acreditar que tivesse conseguido acertar a aquisição das sementes de chá com tanta facilidade. Pelo menos, lembrou a si próprio, satisfeito, Horatio conseguira. Fico imaginando por que o homem está tão perturbado com o desejo de sua irmã de casar com Glessing. Eu teria pensado que era um excelente casamento. Afinal de contas, ela é bastante mal-vestida e insignificante — embora estivesse lindíssima, no baile. Mas é uma sorte grande que ele deteste Glessing, não? E uma sorte grande que sempre tenha detestado o comércio de ópio. E foi muito inteligente a maneira como eu pus a idéia em sua cabeça — com a isca da remoção de Glessing.

— Puxa vida, Horatio — ele dissera, há uma semana, em Cantão — é um maldito negócio, esse comércio de ópio, não? E tudo porque temos de pagar barras de prata pelo chá. É uma pena que a índia Britânica não o cultive, não? Assim, não haveria necessidade de ópio. Simplesmente o proibiríamos, pouparíamos os pagãos para coisas melhores, não? Plantar sementes de bondade entre eles, em vez daquela droga maldita. Então, a frota poderia voltar para a Inglaterra e viveríamos em paz e tranqüilidade para sempre.

Dentro de dois dias Horatio o puxara de lado e, excitadamente, expusera a idéia de obter sementes de chá dos chineses e mandá-las para a índia. Ele ficara adequadamente espantado, mas permitira a Horatio convencê-lo das potencialidades da idéia.— Mas, por Deus, Horatio — dissera — como poderemos obter as sementes de chá?

— Este é meu plano: falarei em particular com o Vice-Rei Ching-so, Excelência. Direi que o senhor é um amante da jardinagem e teve a idéia de transformar Hong Kong num jardim. Pedirei cinqüenta libras de cada semente: de amora, algodão, arroz camélias e outras flores, bem como chás variados. Isto desviará sua atenção do chá, especificamente.

— Mas, Horatio, ele é um homem muito inteligente. Deve saber que poucas ou nenhuma dessas plantas crescerão em Hong Kong. Claro. Ele simplesmente vai achar que é uma estupidez dos bárbaros.

Horatio estava fora de si, de excitação.

— Mas, como você conseguiria fazer com que ele guardasse segredo sobre isso? Ching-so contaria aos mandarins, ou à Co-hong, e eles, certamente, contariam aos comerciantes. Você sabe que esses malditos piratas moveriam céus e terras para impedir o que você propõe. Com certeza adivinhariam quais as suas intenções. E o Tai-Pan? Você percebe, claro, que sua proposta iria colocá-lo fora do negócio.

— Ele é suficientemente rico agora, Excelência. Temos de acabar com o mal do ópio. É nosso dever.

— Sim, mas tanto chineses como europeus ficariam implacavelmente contra o plano. E, se Ching-so perceber o que você tem realmente em mente, como pode acontecer... então, bom, você nunca vai conseguir as sementes.

Horatio ficou pensando por um momento. Depois, disse:

— Sim. Mas se eu fosse prometer isso em troca do favor feito a mim... e eu só quero que o senhor, meu patrão, fique satisfeito com o presente-surpresa, então eu, que tenho de contar os caixotes de prata e assinar os papéis por eles, poderia deixar passar um caixote, e então ele, com certeza, guardaria esse segredo.

— Quanto vale um caixote?

— Quarenta mil taéis de prata.

— Mas a prata pertence ao Governo de Sua Majestade, Horatio.

— Claro. Em suas negociações, o senhor poderia “privadamente” garantir que haja um caixote extra, não oficial, e, assim, a Coroa não teria prejuízo. As sementes serão seu presente para o Governo de Sua Majestade, senhor. Eu ficaria honrado se dissesse que a idéia foi sua. Tenho certeza de que foi. Algo que me disse deflagrou-a em minha mente. E, com justiça, o senhor deverá receber o crédito. Afinal de contas, é o plenipotenciário.

— Mas, se seu plano for bem-sucedido, então você não apenas estará destruindo os negociantes na China, mas também a si próprio. Não faz sentido.

— O ópio é um vício terrível, senhor. Qualquer risco que corrermos é justificável. Mas meu emprego depende de seu sucesso, não do ópio.

— Se este plano for bem-sucedido, você está minando os próprios alicerces de Hong Kong.

— Mas demorará muitos anos para o chá vicejar em outro lugar. Hong Kong estará segura durante seu tempo, senhor. Hong Kong será ainda o empório do comércio asiático. Quem sabe o que acontecerá, no curso dos anos?

— Então, quer que eu investigue as possibilidades do cultivo do chá junto ao Vice-Rei da índia?

— Quem, senão o senhor, Excelência, poderia levar a idéia, a sua idéia, a uma execução perfeita? Relutantemente, deixara-se persuadir, e advertira a Horatio sobre a necessidade de

extremo segredo. Já no dia seguinte, Horatio informara, cheio de alegria:

— Ching-so concordou! Ele disse que, dentro de seis semanas a dois meses, os caixotes de sementes serão entregues em Hong Kong, Excelência. Agora, tudo que falta para tornar as coisas todas perfeitas, para mim, é o envio imediato de Glessing para nosso país. Creio que Mary está apenas totalmente apaixonada. É uma pena que ela não possa dispor de um ano, ou um pouco mais, para ter certeza absoluta quanto ao que está fazendo, fora do alcance da influência diária...

Longstaff dera outra risadinha, diante da transparente tentativa do jovem, de ser sutil. Escovou o cabelo, abriu a porta da cabina e foi para a casa de navegação. Procurou em meio aos papéis de seu cofre e descobriu a carta que Horatio traduzira, há semanas.

— Isto não é mais necessário — disse, alto. Rasgou o papel, debruçou-se por uma vigia e atirou os pedaços ao mar, observando-os enquanto se afastavam, a flutuar.

Talvez Glessing fosse enviado para a Inglaterra. A moça é menor e Horatio está numa posição muito difícil. Bom, vou pensar a respeito. Depois que as sementes estiveram em viagem para a índia.

Viu a chalupa de Struan, que se aproximava. Struan estava sentado, desconsoladamente, no meio da embarcação. A gravidade do Tai-Pan fez Longstaff lembrar a malária. Que diabo você vai fazer com relação a isso, hein? Arruína toda a estratégia de Hong Kong, não é?

 

Struan espiava através das vigias da popa, esperando pacientemente que Longstaff terminasse.

— Puxa vida, Dirk, era quase como se Ching-so soubesse que íamos pedir seis milhões de taéis. O resgate foi posto imediatamente à disposição. Até o último centavo. Ele quase pediu desculpas pelo saque da Colônia. Disse que foram aqueles malditos anarquistas, os Tríades. Já ordenou que seja feita uma investigação completa e espera poder destruí-los, de uma vez por todas. Parece que um dos líderes caiu-lhe nas mãos. Se ele não conseguir extrair alguma coisa do homem, é porque ninguém mais poderia. Prometeu dizer-me imediatamente os nomes dos Tríades aqui.

Struan afastou-se das vigias e se sentou numa poltrona funda, de couro.

— Muito bem, Will. Eu diria que você fez um trabalho notável.

Longstaff sentiu-se muito satisfeito.

— Devo dizer que as coisas saíram de acordo com o plano. Ah, a propósito. A informação que você mandou a respeito do pirata Wu Kwok. Eu teria preferido que você liderasse a flotilha, mas o almirante mostrou-se inflexível. E foi ele próprio.

— É privilégio dele. Vamos esperar que faça um bom serviço esta noite. Vou descansar um pouco mais, sabendo que aquele demônio naufragou.

— Muito bem.

— Agora, tudo que você tem de fazer é salvar Hong Kong, Will. Só você pode fazer isso — disse Struan rezando para que, mais uma vez, conseguisse fazer Longstaff executar o plano que afinal traçara, como único jeito para salvar todos eles. — Acho aconselhável que você ordene uma saída imediata do Vale Feliz.

— Deus do céu, Dirk — exclamou Longstaff — se eu fizer isso, bom... Será o equivalente a sair de Hong Kong!

— A Cidade da Rainha tem malária. Pelo menos, o Vale Feliz tem. Então, precisa ser abandonado. Longstaff, abalado, aspirou um pouco de rapé.

— Não posso ordenar a retirada. Isto me tornaria responsável por todas as perdas.

— Sim. Você decidiu usar os seis milhões de taéis para reembolsar a todos. — Meu Deus, não posso fazer isso! — Longstaff explodiu. — A prata pertence à Coroa. A Coroa, só a Coroa, pode decidir o que fazer com ela!

— Você decidiu que Hong Kong é valiosa demais para ser posta em risco. Sabe que precisamos nos mudar, depressa. É um gesto digno de um governador.

— Não posso absolutamente, Dirk! De maneira alguma. É impossível!

Struan aproximou-se do aparador e encheu dois copos de xerez.

— Todo seu futuro depende disso.

— Hein? Será? Como?

Struan deu-lhe um copo.

— Sua reputação na corte está ligada a Hong Kong. Toda sua política na Ásia, e isto significa a política da Coroa na Ásia, focaliza-se em Hong Kong. Com razão. Sem segurança para Hong Kong, o governador, que representa Sua Majestade, não poderá dominar a Ásia, como deveria. Sem uma cidade construída, não haverá segurança para você e nem para a Coroa. O Vale Feliz está morto. Então, uma nova cidade deverá ser construída, e depressa. — Struan bebeu o xerez, saboreando-o. — Se reembolsar imediatamente aqueles que construíram, restaurará imediatamente a confiança. Todos os negociantes se unirão em seu apoio... de que precisará, no futuro. Não esqueça, Will, muitos têm considerável influência na corte. É um gesto grandioso, digno de você. Além disso, o reembolso realmente estará sendo pago pelos chineses.

— Não entendo.

— Dentro de três meses, você estará nos portões de Pequim, comandante-chefe de uma força invencível. O custo da expedição será, digamos, de quatro milhões. Acrescente seis milhões pelos danos à Colônia. Dez milhões. Mas peça catorze milhões, que serão uma indenização justa. Os quatro milhões extras serão a base para o tesouro de seu governo em Hong Kong... um dos tesouros coloniais mais ricos do Império. Na realidade, em vez de catorze, você pedirá vinte milhões; os seis extras pagarão os seis que você, com sua astúcia, “investiu” em Hong Kong, em nome da Coroa. Não se esqueça, sem uma base segura, você não pode ousar fazer o ataque ao norte. Sem Hong Kong segura, a Inglaterra está morta na Ásia. Você estará pensando em todo o futuro da Inglaterra, Will. Os termos são esses!

Struan podia sentir a mente de Longstaff repassando as possibilidades. Esta era a única solução possível. O único caminho pelo qual todos poderiam salvar seu prestígio e salvar a ilha. E, no instante em que viu Longstaff abrir a boca para falar, disse:— Uma última coisa, Will. Você receberá o dinheiro de volta imediatamente, a maior parte dele.

— Hein?

— Faça logo uma venda de terras. Os lances pelos novos lotes serão frenéticos. Para onde vai o dinheiro? De volta ao seu tesouro governamental. Você ganha, de todas as maneiras. A terra que está vendendo não lhe custa nada. Você sabe como precisa desesperadamente de dinheiro, para todos os problemas do governo: salários, polícia, o palácio governamental, estradas, tribunais, instalações portuárias e mil outras coisas e, certamente, não pode usar o resgate para isso. Eu diria que seria a pincelada de gênio de um estadista. Você tem de tomar a decisão agora, porque é impossível para você esperar seis meses até um despacho chegar à Inglaterra e sua óbvia aprovação voltar para cá. Você salva Hong Kong, a preço de nada. Mas, acima de tudo, mostrará a Zergeyev, de maneira muito positiva, que a Inglaterra planeja ficar na Ásia, permanentemente. Eu acho, Will, que sua astúcia impressionaria todo o Gabinete. E, certamente, a Sua Majestade a Rainha. E honrarias permanentes resultariam dessa aprovação.

Soaram os oito toques de sino. Longstaff pegou seu relógio de pulso. Estava atrasado, e ele virou os ponteiros para o meio-dia, enquanto sua mente tentava encontrar uma falha no raciocínio de Struan. Não havia nenhuma, disse a si próprio. Sentiu-se contra-feito ao perceber que, se não fosse o Tai-Pan, nada teria feito, com relação à febre. A não ser ficar fora do vale, esperando que a cura chegasse. Ele também ficara perturbado com a epidemia, mas, bom, era mais importante ganhar a guerra em Cantão, primeiro.

Sim. Não há nenhuma falha. Diabo, você quase colocou em risco um futuro brilhante. Decerto, será ir além das instruções, mas os governadores e plenipotenciários têm poderes não escritos. Não podemos esperar até o próximo ano para implantar a vontade de Sua Majestade sobre os pagãos. Absolutamente, não. O esquema relativo às sementes de chá se enquadra muito bem no plano, e mostra um sentido de previsão em escala que até ultrapassa a do Tai-Pan.

Longstaff teve um fortíssimo impulso de contar a Struan a respeito das sementes. Mas se controlou.

— Acho que tem razão. Vou fazer uma comunicação, imediatamente.

— Por que não convoca uma reunião de tai-pans para amanhã? Dê-lhes dois dias para apresentar as contas da construção e da terra ao seu tesoureiro. Marque a nova venda de terras para daqui a uma semana. Isto lhe dará tempo para mandar demarcar os lotes. Suponho que desejará o novo local da cidade próximo ao Cabo Glessing­

— Sim. É exatamente o que eu penso. Aquele será o melhor lugar. Afinal, nós o consideramos há muito tempo. — Longstaff ergueu-se e se serviu de mais xerez, depois puxou o cordão do sino. — Como sempre, estou satisfeito por ouvir os seus conselhos, Dirk. Vai ficar para o almoço, não?

— É melhor eu ir embora. Sarah está partindo para a Inglaterra com a maré de amanhã, a bordo do Calcutta Mahrajah, e há muita coisa a ser feita.

— Foi muita má sorte. O caso de Robb e sua sobrinha.

A porta se abriu.

— Sim, senhorrr? — perguntou o mestre-d’armas.

— Pergunte ao general se vem almoçar comigo.

— Sim, senhorrr. Desculpe, senhorrr, mas a Sra. Quance está esperando para vê-lo. E o Sr. Quance. E há todas essas pessoas — ele deu a Longstaff uma longa lista de nomes

— que vieram marcar encontros. Devo dizer que está ocupado à Sra. Quance?

— Não. É melhor eu vê-la agora. Por favor, não vá ainda, Dirk. Acho que vou precisar de apoio moral.

Maureen Quance entrou. Aristotle Quance seguiu-a. Havia círculos negros sob seus olhos sem vida. Agora, ele era simplesmente um homenzinho desmazelado. Pois até suas roupas estavam sujas e sem graça.

— Bom-dia, Sra. Quance — disse Longstaff.

— Que os santos protejam Sua Excelência.

— Bom-dia, Excelência — disse Aristotle, com a voz mal audível, os olhos fixos no chão da cabina.

— Bom-dia, Tai-Pan — disse Maureen. — Sua conta será paga, com a graça de São Patrício, dentro de alguns dias.

— Não há pressa. Bom-dia, Aristotle.

Aristotle Quance, devagar, ergueu os olhos para Struan. Eles se encheram de lágrimas, quando percebeu o afeto no rosto de Struan.

— Ela quebrou todos os meus pincéis, Dirk — desabafou. — Hoje de manhã. Todos, E ela... ela atirou minhas tintas ao mar.

— É a respeito disso que viemos ver o senhor, Excelência — disse Maureen, com voz rouca. — O Sr. Quance decidiu desistir de toda essa tolice de pintura, afinal. Ele quer se ajeitar num bom emprego fixo. E foi a respeito do emprego que viemos falar a Sua Excelência. — Olhou para o marido e seu rosto demonstrou aborrecimento. — Qualquer coisa. Desde que seja fixa e dê um bom salário. — Tornou a se virar para Longstaff. — Talvez um bom emprego de escritório. O pobre Sr. Quance não tem muita experiência.

— Ah... é o que quer, Aristotle?

— Ela quebrou meus pincéis — disse Quance, desamparadamente. — Era tudo que eu possuía. Meus pincéis e tintas.

— Nós entramos em acordo, não foi meu caro? Em nome de tudo que é. sagrado? Hein? Parar com a pintura? Um bom emprego fixo e assumir suas responsabilidades para com a família, nada mais de vagabundagem.

— Sim — disse Aristotle, entorpecidamente.

— Eu ficaria satisfeito de oferecer um emprego, Sra. Quance — interveio Struan. — Preciso de um funcionário. O salário é de quinze xelins por semana. Oferecerei, de quebra, suas instalações no pontão, por um ano. Depois disso, ficarão por conta própria.

— Que os santos o protejam, Tai-Pan. Feito. Agora, agradeça ao Tai-Pan — disse Maureen.

— Obrigado, Tai-Pan.

— Esteja no escritório às sete, amanhã de manhã, Aristotle. Pontualmente.

— Ele estará lá, Tai-Pan, não se preocupe. Que as bênçãos de São Patrício lhe caiam sobre a cabeça, nesses tempos perturbados, por cuidar de uma pobre esposa e de seus filhos famintos. Bom-dia para ambos.

E foram embora. Longstaff serviu-se de uma dose dupla.

— Meu Deus! Eu nunca teria acreditado. Pobre, pobre Aristotle. Você realmente vai fazer de Aristotle Quance um funcionário de escritório?

— Sim. É melhor eu do que outra pessoa qualquer. Preciso de pessoal — Struan pôs

o chapéu na cabeça, muito satisfeito consigo mesmo. — Não me meto em briga de marido e mulher. Mas qualquer pessoa que faz isso com o velho Aristotle não tem direito ao título de “mulher”, por Deus!

Longstaff sorriu, de repente.

— Destaco uma nau capitania, se isto ajudar. E todos os recursos do Governo de Sua Majestade estão à sua disposição.

 

Struan correu para a praia. Fez sinal para uma liteira fechada e orientou os cules.

— Esperem, está bem? — disse, ao chegarem ao destino.

— Está bem, senhor.

Passou pelo surpreendido porteiro, na sala da casa. O aposento era atapetado — grandes sofás, cortinas de chintz, espelhos e bricabraque. Houve um farfalhar nos fundos, e depois, ruído de passos que se aproximavam. Uma pequena senhora idosa atravessou as cortinas de contas. Era limpa, engomada, com cabelos grisalhos, olhos grandes e óculos.

— Olá, Sra. Fortheringill — disse Struan, cortesmente.

— Olá, Tai-Pan, quanto prazer em vê-lo — disse ela. — Não tínhamos o prazer de sua companhia há muitos anos. É um pouco cedo para visitas, mas as moças estão se aprontando. — Ela sorriu e mostrou os dentes postiços, amarelos.

— Bom, sabe, Sra. Fortheringill...

— Compreendo perfeitamente, Tai-Pan — ela disse, com ar sábio. — Chega uma hora, na vida de todo homem, em que ele...

— Vim falar de um amigo meu.

— Não se preocupe, Tai-Pan, o sigilo é norma neste estabelecimento. Não precisa se preocupar. Num momentinho, será atendido. — Ela se levantou às pressas. — Moças! — gritou.

— Sente-se e escute! Vim falar de Aristotle!

— Ah, aquele pobre coitado se meteu numa tremenda confusão.

Struan lhe disse o que queria, e as moças ficaram tristes ao vê-lo ir embora.

Logo que ele chegou em casa, May-may disse:

— Por que você foi a um puteiro, hein?

Ele suspirou e lhe contou.

— Acha que acredito nisso, hein? — Os olhos dela estavam cheios de desprezo.

— Sim. É melhor acreditar.

— Acredito em você, Tai-Pan.

— Então pare de fazer essa cara de dragão! — ele entrou em seu quarto.

— Muito bem — disse May-may, fechando a porta atrás de ambos. — Agora vamos ver se você disse a verdade. Faça amor imediatamente. Estou desejando você loucamente, Tai-Pan.

— Obrigado, mas estou ocupado — ele disse, achando difícil não rir.

— Ayeeee yah que você está ocupado! — ela disse, começando a desabotoar seu pijama cor-de-mel. — Vamos fazer amor imediatamente. Logo verei se alguma puta tirou sua força, por Deus! E, então, sua velha mãe vai cuidar de você, por Deus!

— Você também está ocupada — disse Struan.

— Estou muito ocupada. — Ela saiu de dentro das calças de seda. Seus brincos tiniam como sinos. — E é melhor você se ocupar logo.

Ele a examinou e não deixou transparecer nem um pouco de sua felicidade. O estômago de May-may estava com uma bela curva, com a criança de quatro meses no útero. Ele a tomou depressa nos braços e beijou-a violentamente, deitando-se na cama e deixando que seu peso a esmagasse um pouco.

— Cuidado, Tai-Pan — ela disse, sem fôlego — não sou nenhuma de suas ossudas

gigantes bárbaras! Beijar não prova nada. Tire as roupas e então veremos a verdade. Ele a beijou de novo. Então ela disse, com voz diferente:

— Tire a roupa.

Ele se apoiou nos cotovelos, olhou para ela e, depois, esfregou o nariz contra o de May-may, sem a pressionar mais.

— Não há tempo, agora. Preciso ir a uma festa de noivado, e você tem de fazer as malas.

— Fazer as malas para quê? — ela perguntou, espantada.

— Vamos nos mudar para o Resting Cloud.

— Por quê?

— Nosso feng-shui está ruim aqui, garota.

— Ah, ótimo, que maravilha! — ela atirou os braços em torno do pescoço dele. — Ir mesmo embora daqui? Para sempre?

— Sim.

Ela o beijou, deslizou rapidamente para fora de seus braços e começou a se vestir.

— Pensei que você queria fazer amor — ele disse.

— Ora! Para que serve essa prova? Conheço você muito bem. Mesmo que tivesse andado com uma puta há uma hora, você é macho bastante para fingir e enganar sua pobre velha mãe. — Ela riu e atirou outra vez os braços em tomo do pescoço dele. — Ah, que bom deixar um feng-shui ruim. Vou fazer as malas correndo.

Ela correu à porta e gritou:

— Ah Sam-ahhhhhhh!

Ah Sam chegou às pressas, ansiosa, seguida por Lim Din e, depois de um tumulto, gritos e tagarelice, Ah Sam e Lim Din saíram a toda, invocando os deuses, com enorme e barulhenta excitação. May-may voltou, sentou-se na cama e se abanou com o leque.

— Já estou fazendo as malas — disse alegremente. — Agora, vou ajudar você a se vestir.

— Obrigado, eu mesmo posso fazer isso.

— Então, vou ficar espiando. Esfregue bem as costas. O banho está à espera. Estou muito alegre e cheia de benevolência, porque você decidiu ir embora.

 

Conversava animadamente, enquanto ele tirava a roupa. Após ele se banhar, ela gritou, pedindo toalhas quentes e, ao chegarem, enxugou-lhe as costas. O tempo todo, pensava se ele estivera com uma prostituta, após combinar as coisas referentes ao artistazinho engraçado que pintara um retrato seu tão lindo. Não que eu me incomode, disse a si mesma, esfregando-o vigorosamente. Só que ele não deveria ir a um desses lugares. Absolutamente não. Prejudica seu prestígio. E prejudica o meu. Muito ruim. Logo esses miseráveis criados vão começar a espalhar boatos de que eu não posso cuidar do meu homem. Ah, deuses, dai-me proteção contra os sujos boatos e a ele contra as sujas putas de todos os tipos.

Anoiteceu antes que ela, Ah Sam e Lim Din estivessem prontos e todos ficaram exaustos com o drama e a excitação da partida. Cules levaram a bagagem. Outros esperaram pacientemente, ao lado da liteira que a conduziria ao escaler.

May-may usava pesados véus. Ela ficou por um momento no portão do jardim, com Struan, e olhou para trás, para sua primeira casa em Hong Kong. Se não fosse o feng-shui ruim — e a febre era parte do feng-shui — teria detestado partir.

O crepúsculo estava agradável. Alguns mosquitos zumbiam em torno deles. Um se instalou em seu tornozelo, mas ela não notou.

O mosquito bebeu sangue até se fartar, e depois saiu voando.

 

Struan entrou na grande cabina do Withe Witch. Os Brocks estavam todos esperando por ele, exceto Lillibet, que já fora para a cama. Culum se encontrava ao lado de Tess.

— Boa-noite — disse Struan. — Sarah manda pedir desculpas. Ela não se sente bem.

— Bem-vindo a bordo — disse Brock, com voz rouca e carregada de preocupação, o rosto melancólico.

— Bom — disse Struan com uma risada — isto não é maneira de iniciar um evento feliz.

— Não é a ocasião, por Deus, como sabe muito bem. Estamos todos em bancarrota... pelo menos terrivelmente prejudicados pela maldita malária.

— Sim — disse Struan. Sorriu para Culum e Tess e, notando a inquietação dos dois, decidiu dar-lhes logo a boa notícia. — Segundo ouvi dizer, Longstaff vai ordenar que a Cidade da Rainha seja abandonada — comentou, despreocupadamente.

— Pelo sangue de Cristo! — explodiu Gorth. — Não podemos abandoná-la. Colocamos dinheiro demais na terra e nas construções. Não podemos abandonar aquilo. Se não fosse a maldita escolha que fez, daquele vale amaldiçoado, nós não...

— Cale a boca — disse Brock. Virou-se para Struan. — Você vai perder mais do que nós, por Deus, mas está com um sorriso nos lábios. Por quê?

— Papai — disse Tess, aterrorizada com a possibilidade de que a raiva estragasse a noite, e a inacreditável aceitação de Culum por seu pai — vamos beber alguma coisa? O champanha está fresco e pronto.

— Sim, claro, Tess, amor — disse Brock. — Mas não entende o que Dirk disse? Vamos perder uma quantidade terrível de dinheiro. Se tivermos de abandonar o local, então nosso futuro vai ser negro como breu. E o dele também, por Deus!

— O futuro da Casa Nobre será branco como os rochedos de Dover — disse Struan, tranqüilamente. — E não só o nosso, como o de vocês também. Longstaff vai reembolsar a todos nós do dinheiro que gastamos no Vale Feliz. Cada tostão. À vista.

— Não é possível! — exclamou Brock.

— É uma mentira, por Deus! — disse Gorth. Struan virou-se para ele. — Ouça um conselho, Gorth. Não me chame de mentiroso pela segunda vez. — Então, disse-lhe o que Longstaff pretendia fazer.

 

Culum ficou maravilhado com a perfeição do acerto. Viu claramente que, embora seu pai em nenhum momento insinuasse que influenciara a decisão de Longstaff, deveria ter colaborado para tudo ser ajeitado de maneira tão sutil. Lembrou-se de seu primeiro encontro com Longstaff, e de como seu pai manipulara o homem, como a um fantoche. A fé de Culum em si mesmo ficou abalada. Percebeu que as palavras de Gorth não eram completamente verdadeiras, ele nunca poderia dominar Longstaff como seu pai fizera — para salvá-los outra vez.

— É quase um milagre — disse, e segurou a mão de Tess.

— Por tudo que é sagrado, Tai-Pan — falou Gorth — retiro o que disse. Desculpe... eu estava sob o efeito do choque. Sim... eu lhe dou os parabéns.

— Dirk — começou Brock, com um sombrio bom humor — estou satisfeito... muito satisfeito, por ter você como parente. Você salvou nossa situação, Deus é testemunha.

— Não fiz nada. Foi idéia de Longstaff.

— Muito bem — disse Brock, sardonicamente.— Mais poder para ele. Liza, bebidas, por Deus! Dirk, você nos deu uma grande razão para comemorar esta noite. Você fez a noite, por Deus! Então, vamos beber e festejar. — Pegou uma taça de champanha, e depois de todos apanharem suas taças, ergueu a dele, num brinde. — Para Tess e Culum, que tenham sempre em sua vida mar calmo e porto seguro.

Todos beberam. Então Brock apertou a mão de Culum, Struan abraçou Tess e houve amizade entre todos.

Mas só temporariamente. Todos sabiam disso. Mas aquela noite estavam preparados para esquecer. Só Tess e Culum se sentiam seguros.

Todos se sentaram para jantar. Tess usava um vestido que favorecia sua silhueta juvenil, e Culum estava quase louco de adoração. Mais vinho foi servido, e houve novas risadas e brindes. Num momento de calma, Struan pegou um envelope grosso e entregou­ o a Culum. -Um pequeno presente para os dois.

— O que é? — perguntou Culum.

Abriu o envelope. Tess espichou o pescoço para ver também. O envelope continha um maço de papéis, um deles cheio de caracteres chineses.

— É a escritura de um lote de terra, logo acima do Cabo Glessing.

— Mas nunca houve venda de terras ali — disse Brock, com suspeita.

— Sua Excelência aprovou certos títulos de chineses da vila que possuíam terras antes de nos apoderarmos de Hong Kong. Este é um deles. Culum, agora você e Tess têm um acre juntos. A vista é muito bonita. Ah, sim, e junto com a escritura, há material de construção suficiente para uma casa com sete quartos, um jardim e um alpendre.

— Ah, Tai-Pan — disse Tess, com um sorriso cheio de felicidade — obrigada! Obrigada!

— Nossa própria terra? E nossa própria casa? É mesmo verdade? — perguntou Culum, tonto com a magnanimidade do pai.

— Sim, rapaz. Pensei que gostaria de começar a construir imediatamente. Marquei um encontro para ambos com nosso arquiteto amanhã, ao meio-dia. Para começar o projeto.

— Vamos partir para Macau amanhã — disse Gorth, com azedume.

— Mas, Gorth, você não se importaria de adiar a viagem por um ou dois dias, não é? — disse Culum. — Afinal, isto é muito importante...

— Ah, sim — disse Tess.

— ... e com a solução para o caso da Cidade da Rainha e a venda de terras... — Culum parou e se virou, cheio de excitação, para sua noiva. — Sousa é o melhor arquiteto do Oriente.

— Nosso arquiteto, Remédios, é melhor, eu acho — disse Brock, furioso consigo mesmo por não ter pensado em deixá-los construir sozinhos uma casa. Planejara dar-lhes uma das casas da companhia em Macau, como presente de casamento, bem longe da influência de Struan.

— Ah, sim, ele é muito bom, Sr. Brock — disse Culum, depressa, percebendo o ciúme. — Se não ficarmos satisfeitos com Sousa, então poderemos procurá-lo. — Depois, para Tess: — Você concorda? — e, em seguida, para Struan: — Não posso agradecer a você o bastante.

— Não agradeça, Culum. Os jovens devem ter um bom começo na vida e casa própria para morar. — Struan estava encantado com a maneira como provocara Gorth e Brock.

— Sim — disse Liza, com indulgência. — Por Deus, é uma grande verdade. Brock pegou o título e examinou-o.

— Tem certeza de que este documento é legal? — perguntou.

— Não é regular.

— Sim. — Longstaff confirmou-o. Oficialmente. Seu carimbo está na última página.

Brock franziu a testa para Gorth, e suas sobrancelhas cerradas formaram uma barra negra no rosto curtido.

— Andei pensando que talvez seja bom examinarmos esses títulos de propriedade nativos.

— Sim — disse Gorth. Ele olhou diretamente para Struan.

— Talvez não haja mais nenhum à venda, papai.

— Creio que há outros, Gorth — disse Struan, descontraidamente — se você estiver preparado para descobri-los. A propósito, Tyler, logo que os novos lotes de terra tiverem sido demarcados, talvez seja melhor discutirmos nossa posição.

— Também acho — disse Brock. — Como antes, Dirk. Mas você escolhe primeiro, desta vez. — Passou outra vez a escritura a Tess, que a acariciou.

— Culum, você ainda é vice-secretário colonial?

— Acho que sim. — Culum riu. — Embora meus deveres jamais tenham sido especificados. Por quê?

— Por nada.Struan terminou de beber seu vinho e decidiu que era hora.

— Agora que o Vale Feliz será abandonado e o problema resolvido, com a nova cidade a ser erguida na costa da Coroa, o futuro de Hong Kong está garantido.

— Sim — disse Brock, expansivamente, com um pouco de seu bom humor voltando. Agora que a Coroa se arrisca, junto conosco.

— Então, acho que não há necessidade de adiar o casamento. Proponho que Tess e

Culum se casem nó próximo mês.

Houve um silêncio impressionante.

O tempo pareceu parar, para todos eles. Culum ficou imaginando o que havia por trás do sorriso que Gorth ostentava com tanta dificuldade e por que o Tai-Pan escolhera o próximo mês — Ó Deus, permiti que seja no próximo mês.

Gorth sabia que o próximo mês eliminaria seu poder sobre Culum e que, por Deus, isto não deveria ser aceito. Diga papai o que disser, jurou, não haverá casamento rápido. No próximo ano, talvez. Sim, talvez. O que haverá na mente desse demônio?

Brock também tentava adivinhar o objetivo de Struan — porque deveria haver um objetivo, e não augurava nada de bom para ele e nem para Gorth. Seu instinto lhe disse, imediatamente, para retardar o casamento. Mas ele jurara diante de Deus dar aos dois um porto seguro — como também Struan — e sabia que um juramento assim seria cumprido por Struan, como por ele.

— Poderíamos mandar ler os primeiros proclamas no próximo domingo — disse Struan, rompendo deliberadamente a tensão. — Acho que o próximo domingo seria ótimo. — Sorriu para Tess: — Hein, garota?

— Ah, sim. Sim — ela disse, e segurou a mão de Culum.

— Não — disse Brock.

— É rápido demais — retrucou Gorth.

— Por quê? — perguntou Culum.

— Eu estava justamente pensando em você, Culum — disse Gorth apaziguadoramente — e na triste perda de seu tio. Seria uma pressa inconveniente, muito inconveniente.

— Liza, amor — disse Brock com voz rouca — damos licença a você e Tess. Iremos encontrar as duas depois do vinho do Porto.

 

Tess atirou os braços em torno de seu pescoço e sussurrou:

— Ah, por favor, papai — e os quatro homens foram deixados a sós.

Brock levantou-se, pesadamente, e pegou a garrafa de Porto. Encheu quatro copos e os entregou a todos. Struan bebeu o vinho, apreciativamente.

— Muito bom Porto, Tyler. — É do ano de 31.

— Um grande ano para o Porto. Fez-se outro silêncio.

— Não será conveniente adiar sua partida por alguns dias, Sr. Brock? — perguntou Culum, constrangido. — Quero dizer, se for possível... mas eu, decerto, gostaria que Tess visse a terra e conversasse com o arquiteto.

— Com o abandono do vale, a venda de terras e todo o resto, não vamos partir agora. Pelo menos — disse Brock — Gorth e eu não iremos. Liza e Tess e Lillibet deverão ir, logo que possível.Macau é mais saudável neste período do ano. E mais fresco, não é, Dirk?

— Sim. Macau está ótima agora — disse Struan, acendendo um charuto. — Ouvi dizer que o inquérito sobre o acidente sofrido pelo arquiduque será na próxima semana.

— Olhou inquisitiva-mente para Gorth.

— Foi mau pagode — disse Brock.

— Sim — repetiu Gorth. — Armas estavam sendo disparadas por toda parte.

— Sim — disse Struan. — Logo depois que ele foi atingido alguém disparou no cabeça da multidão.

— Fui eu — disse Brock.

— Obrigado, Tyler — disse Struan. — Você também estava na luta Gorth?

— Eu estava lá na frente, cuidando da navegação.

— Sim — disse Brock. Tentou lembrar se vira alguém disparando. Só recordou ter mandado Gorth para a frente. — Mau pagode. Essas multidões desenfreadas são uma coisa terrível, numa ocasião dessas ninguém sabe o que pode acontecer.

— Sim — disse Struan. Sabia que, se a bala fora disparada intencionalmente, Gorth era o culpado. E não Brock. — Uma dessas coisas que acontecem.

As lâmpadas a óleo pendentes do caibro do telhado oscilaram suavemente para bombordo do navio, enquanto o vento mudava um pouco de posição. Os homens do mar, Gorth, Brock e Struan, ficaram repentinamente alertas. Brock abriu uma vigia e cheirou a brisa. Gorth foi espiar o mar pelas vigias da popa e Struan se pós à escuta dos ruídos do navio.

— Não é nada — disse Brock. — O vento mudou de posição alguns graus, nada mais.

Struan foi até o passadiço, onde estava pendurado um barômetro. Marcava 29.8 firme. A pressão do ar só variara uma fração, em semanas.

— Está bastante firme — disse.

— Sim — replicou Brock. — Mas logo não estará mais firme e, então, teremos de usar reforços. Já reparei que você colocou bóias de tempestade ao largo do seu ancoradouro, em águas profundas.

— Sim. — Struan serviu-se de mais Porto e ofereceu a garrafa a Gorth. — Quer um pouco mais?

— Obrigado — disse Gorth.

— Está farejando tempestade para breve, Dirk?

— Não, Tyler. Mas gosto de ter algumas bóias prontas, para qualquer eventualidade. Glessing ordenou que sejam postas as da frota.

— Sim.

— Ouvi boatos de que ele vai casar com a jovem irmã de Sinclair.

— Parece que o casamento está no ar.

— Acho que serão muito felizes — disse Culum. — George a idolatra.

— Vai ser muito duro para Horatio — disse Gorth — ela deixá-lo assim de repente. É a única parente que ele tem. E ela é jovem, não tem a idade mínima para o consentimento.

— Quantos anos ela tem? — perguntou Culum.

— Dezenove — respondeu Struan. A tensão aumentou na cabina.

— Tess é muito jovem — disse Culum, com a voz angustiada. — Eu não queria magoá-la de nenhuma maneira. Muito embora... bom, será que podemos... O que acha, Sr. Brock? A respeito do casamento? No próximo mês? O que for melhor para Tess está bom para mim.

— Ela é muito jovem, rapaz — disse Brock, tonto, com o vinho — mas estou satisfeito por você dizer isso.

Gorth manteve a voz em tom gentil e firme. — Alguns poucos meses não vão perturbar vocês dois, hein, Culum? O próximo ano está a menos de seis meses de distância.

— Janeiro é daqui a sete meses, Gorth — disse Culum, com impaciência.

— Não cabe a mim decidir. O que for bom para vocês dois é bom para mim, eu digo. — Gorth esvaziou seu copo e se serviu de um pouco mais. — O que você diz, papai? — perguntou ele, deliberadamente colocando Brock em evidência.

— Vou pensar a respeito — disse Brock, examinando seu copo com cuidado. — Ela é muito menina. A pressa seria imprópria. Vocês se conheceram há menos de três meses e...

— Mas eu a amo, Sr. Brock — insistiu Culum. — Três meses ou três anos não fariam nenhuma diferença.

— Eu sei, rapaz — disse Brock, com benevolência. Ele se lembrou da alegria que tomara conta de Tess, quando lhe disse que aceitaria Culum. — Só estou pensando em seu bem, no bem dela. Preciso de tempo para decidir. — Para descobrir o que você tem em mente, Dirk, disse a si mesmo.

— Acho que seria muito bom para eles e para nós. — Struan sentia a felicidade que irradiava de Culum. — Tess é jovem, sim. Mas Liza era jovem também e, igualmente, a mãe de Culum. Casar jovem é bom. Eles têm dinheiro bastante. E um futuro de riqueza. Com pagode. Então eu digo que vai ser bom. Brock esfregou a testa com as costas da mão.

— Vou pensar. Depois lhe digo, Culum. É uma idéia inesperada, por isso preciso de tempo.

Culum sorriu, tocado pela sinceridade que havia na voz de Brock. Pela primeira vez, gostava dele, confiava nele.

— Claro — disse.

— De quanto tempo você acha que precisará, Tyler? — perguntou Struan, abruptamente. “Viu que Culum estava amolecendo, diante da falsa amabilidade deles, e sentiu que uma pressão os faria mostrar as verdadeiras intenções. — Não devemos manter os jovens como peixes no anzol, e haverá muita coisa a planejar. Temos de fazer deste casamento o maior que a Ásia já viu.

— Pelo que me lembro — disse Brock, rispidamente — é o pai da noiva quem a dá em casamento. E eu tenho plena competência para saber o que está certo e o que não está. — Sabia que Struan o tinha no anzol, e brincava com ele. — Então, qualquer plano para o casamento será nosso.

— Claro — disse Struan. — Quando dará a notícia a Culum?

— Breve. — Brock se levantou. — Vamos para a companhia das senhoras.

— Breve, mas quando, Tyler?

— Você ouviu o que papai disse — falou Gorth, acaloradamente. — Por que o irritar, hein?

Mas Struan ignorou-o, e continuou a olhar para Tyler.

Culum teve medo de que houvesse uma briga e isto mudasse completamente a

maneira de pensar de Brock, em relação a seu casamento. Ao mesmo tempo, queria saber quanto teria de esperar e ficou satisfeito por Struan estar pressionando Brock.

— Por favor — disse. — Tenho certeza de que o Sr. Brock não... de que ele considerará a idéia com cuidado. Vamos esquecer o assunto, por enquanto.

— O que você quer fazer é com você, Culum! — disse Struan, com fingida raiva. — Mas eu quero saber agora. Quero saber se você está sendo usado, ou se estão brincando de gato e rato com você, por Deus!

— Você disse uma coisa terrível — comentou Culum.

— Sim. Mas não tenho mais nada para tratar com você, no momento, então fique calado. — Struan tornou a se virar para Brock, sabendo que, ao repreender Culum, satisfizera tanto Brock como Gorth. — Quanto tempo, Tyler?

— Uma semana. Uma semana, nem mais, nem menos. — Brock olhou para Culum e, outra vez, sua voz era benevolente.— Não há mal em pedir tempo, rapaz, e nem mal em pedir uma resposta de homem para homem. Isto é correto. Uma semana, Dirk. Será que o prazo acalmará seus maus modos?

— Sim. Obrigado, Tyler. — Struan caminhou para a porta e abriu-a, amplamente.

— Passe primeiro, Dirk.

 

Seguro, no recolhimento de seus alojamentos a bordo do Resting Cloud, Struan disse a May-may tudo que acontecera. Ela ouviu com atenção, deliciada.

— Ah, bom, Tai-Pan. Muito bom. Ele tirou o casaco e ela o pendurou no armário. Um pergaminho enrolado caiu da manga de sua túnica. Ele o apanhou e olhou-o.

O pergaminho tinha uma delicada pintura chinesa, uma aquarela, com muitos caracteres. Era uma bela paisagem marinha e havia um homenzinho a se curvar diante de uma mulherzinha, abaixo de grandes montanhas enevoadas. Uma sampana flutuava ao largo da praia pedregosa.

— De onde veio isso?

— Ah Sam trouxe do Tai Ping Shan — disse ela.

— É bonito — ele disse.

— Sim — disse May-may, calmamente, de novo maravilhada com a sutileza de seu avô.

Ele enviara o pergaminho para um de seus agentes no Tai Ping Shan, de quem May-may comprava jade, às vezes. Ah Sam aceitara-o sem suspeitas, como um presente casual para sua patroa. E, embora May-may tivesse certeza de que Ah Sam e Lim Din haviam examinado a pintura e os caracteres muito cuidadosamente, sabia que jamais descobririam a existência de uma mensagem secreta. Estava muito bem oculta. Mesmo o carimbo particular, da família de seu avô, estava inteligentemente coberto com outro. E o verso — Seis ninhos sorriem para as águias, o verde fogo faz parte do amanhecer. E a flecha prenuncia filhotes de esperança — era tão simples e tão belo. Quem iria saber que ele lhe agradecia pela informação referente aos seis milhões de taéis; que “fogo verde” significava o Tai-Pan; e que ele lhe enviaria um mensageiro levando alguma forma de flecha como identificação, para ajudá-la de todas as maneiras possíveis.

— O que significam os caracteres? — perguntou Struan.

— É difícil traduzir, Tai-Pan. Não sei todas as palavras, mas está escrito — Seis ninhos de passarinhos sorriem para grandes Pássaros, o fogo verde está no amanhecer, flecha traz — ela franziu a testa, procurando a palavra em inglês — traz pequenos pássaros de esperança.

— Isto não faz sentido, por Deus! — Struan riu. Ela suspirou, toda feliz.

— Adoro você, Tai-Pan.

— E eu adoro você, May-may.

— Da próxima vez em que construir uma casa para nós, quer fazer o favor de chamar primeiro um cavalheiro do feng shui?


 

Ao amanhecer, Struan foi a bordo do Calcutta Mahrajah, o navio mercante que ia levar Sarah para a Inglaterra. A embarcação pertencia à Companhia das Índias Orientais. Deveria partir com a maré, dentro de três horas, e os marinheiros faziam os preparativos finais.

Struan desceu e bateu à porta do camarote particular de Sarah.

— Entre — ele a ouviu dizer.

— Bom-dia, Sarah.

Ele fechou a porta. A cabina era grande e confortável. Brinquedos, roupas, malas e sapatos estavam espalhados por toda parte. Lochlin encontrava-se lamentosamente semi­adormecido, num pequeno berço perto da vigia.

— Você já aprontou tudo, Sarah?

— Sim.

Ele pegou um envelope.

— É uma ordem de pagamento de cinco mil guinéus. Você receberá outro igual a cada dois meses.

— Você é muito generoso.

— O dinheiro é seu... pelo menos, é dinheiro de Robb, não meu. — Ele colocou o envelope sobre a mesa de carvalho. — Estou apenas cumprindo seu testamento. Já escrevi para que seja organizado o fundo de crédito que ele queria, e você receberá os papéis referentes a isso. Também pedi a papai para ir esperar o navio. Você gostaria de ocupar minha casa em Glasgow, até encontrar outra parecida?

— Não quero nada seu.

— Escrevi aos nossos banqueiros para aceitarem sua assinatura, mais uma vez seguindo as instruções de Robb, para a retirada de até cinco mil guinéus uma vez por ano, além do seu quinhão. Deve ter consciência de que é uma herdeira, e eu devo aconselhá-la a ser cuidadosa, pois muitos tentarão tomar-lhe a fortuna. Você é jovem e tem a vida pela frente...

— Não quero nenhum conselho seu, Dirk — disse Sarah em tom fulminante. — Quanto a tomarem o que é meu, sei cuidar de mim mesma. Sempre cuidei. E, a respeito de minha juventude, a olhei no espelho. Estou velha e feia. Sei disso, e você também. Estou gasta! E você fica sentado em seu maldito pedestal, jogando homem contra homem, mulher contra mulher. Está satisfeito por Ronalda ter morrido... ela deu tudo que podia, e ainda mais. E isto abre caminho maravilhosamente, para a próxima. Quem será? Shevaun? Mary Sinclair? Quem sabe a filha de um duque? Você sempre teve objetivos ambiciosos. Mas, quem quer que seja, será jovem e rica, e você a sugará até o bagaço, como fez com todos. Você se alimenta dos outros e nada dá em troca. Eu o amaldiçôo diante de Deus, e rezo para viver até cuspir em seu túmulo.

A criança começou a chorar, pateticamente, mas nenhum dos dois ouviu os gritos, enquanto olhavam um para o outro.

— Você se esquece de uma verdade, Sarah. Toda sua amargura vem de você achar que escolheu o irmão errado. E você tornou a vida de Robb um inferno, por causa disso. Struan abriu a porta e foi embora.

— Odeio a verdade — Sarah chorava para o vazio em torno dela.

 

Struan estava afundado, soturnamente, atrás de sua escrivaninha, no escritório da feitoria, odiando Sarah, mas compreendendo-a, e atormentado com a maldição dela.

— Será que me alimento dos outros? — disse alto, inadvertidamente. Olhou para o retrato de May-may. — Sim, suponho que sim. Será que é um erro? Eles não se alimentam de mim? O tempo todo? Quem está errado, May-may? Quem está certo?

Lembrou-se de Aristotle Quance.

— Vargas!

— Sim, senhor.

— Como vai o Sr. Quance?

— Está muito triste, senhor. Muito triste.

— Mande ele vir aqui, por favor.

Dentro em pouco, Quance aparecia à porta.

— Entre, Aristotle — disse Struan. — Feche a porta.

Quance fez como lhe fora ordenado e, depois, ficou em pé com um jeito infeliz, diante da escrivaninha. Struan falou, rapidamente.

— Aristotle, você não tem tempo a perder. Saia escondido da feitoria e vá até o cais. Há uma sampana esperando você. Embarque no Calcutta Mahrajah... vai partir dentro de uns poucos minutos.

— O que, Tai-Pan?

— A ajuda está aí, rapaz. Faça uma grande cena quando embarcar no Calcutta Mahrajah... acene, grite, enquanto estiver afastando-se do porto. Deixe todos saberem que você está a bordo.

— Deus lhe abençoe, Tai-Pan. — Um bruxuleio de luz voltou-lhe aos olhos. — Mas não quero partir da Ásia. Não posso ir embora.

— Há roupas de cule na sampana. Você pode passar para a lorcha do piloto, quando estiver fora do porto. Subornei a tripulação, mas não o piloto, então mantenha-se longe da vista dele.

— Com mil demônios! — Quance parecia ter crescido polegadas. — Mas... onde poderei esconder-me no Tai Ping Shan?

— A Sra. Fortheringill está à sua espera. Acertei uma permanência de dois meses. Mas você me deve o dinheiro que gastei, por Deus!

Quance atirou os braços em torno de Struan e soltou um berro, que Struan interrompeu.

— Pelo sangue de Cristo, tenha cuidado. Se Maureen tiver qualquer suspeita, vai tornar as nossas vidas um inferno e nunca irá embora.

— Tem toda razão — disse Quance, num sussurro gutural, e correu para a porta.

Parou logo. — Dinheiro! Vou precisar de dinheiro. Pode me emprestar algum, Tai-Pan? Struan já segurava uma pequena bolsa de ouro.

— Aqui tem cem guinéus. Vou acrescentar na sua conta.

A bolsa desapareceu no bolso de Quance. Aristotle abraçou Struan outra vez e atirou um beijo para o retrato sobre a lareira.

— Dez retratos da lindíssima May-may. Dez guinéus abaixo do meu preço normal,

por Deus. Ah, imortal Quance, eu o adoro! Livre! Livre, por Deus! Dançou uma Kankana e, depois, deu um grande salto e desapareceu.

 

May-may olhou para o bracelete de jade. Ela o levou para mais perto da luz do sol, que jorrava através da vigia, aberta, e examinou-o meticulosamente. Não se enganara quanto à seta que estava delicadamente entalhada nele, e nem quanto aos caracteres, que diziam: “Filhotes de esperança.”

— É um belo jade — ela disse, em mandarim.

— Obrigado, Suprema entre as Supremas — respondeu Gordon Chen, no mesmo idioma.

— Sim, muito lindo — respondeu May-may e devolveu-o a ele.

Gordon pegou o bracelete e gozou seu contato, por um momento, mas não tornou a colocá-lo em seu pulso. Em vez disso, atirou-o habilmente pela portinhola e ficou a observá-lo até desaparecer no mar.

— Eu ficaria honrado se o tivesse aceitado como presente, Suprema Senhora. Mas certos presentes pertencem à escuridão do mar.

— Você é muito sábio, meu filho — disse ela. — Mas não sou uma Suprema Senhora. Apenas uma concubina.

— Meu pai não tem esposa. Portanto, é a Suprema das Supremas.

May-may não respodeu. Ela ficara desconcertada, ao verificar que o mensageiro era Gordon Chen. E, não obstante o bracelete, decidiu ser muito cautelosa e falar através de enigmas, para o caso de ele ter interceptado o bracelete — como sabia também que Gordon Chen seria igualmente cauteloso e falaria através de enigmas.

— Quer chá?

— Seria muito trabalho, Mãe.

— Nenhum trabalho, meu filho — ela disse.

Foi para a cabina contígua. Gordon Chen seguiu-a e ficou maravilhado com a beleza de seu andar e com seus pequenos pés, a cabeça tonta com a delicadeza de seu perfume. Você a amou desde o primeiro momento em que a viu, disse para si próprio. Ela é uma criação sua, de certa maneira, pois foi você quem lhe deu a língua bárbara e pensamentos bárbaros.

Ele abençoou seu pagode por o Tai-Pan ser seu pai e seu respeito por ele ser imenso. Sabia que, sem este respeito, seu amor por May-may não poderia permanecer filial. O chá foi trazido e May-may dispensou Lim Din. Mas, por uma questão de decoro, permitiu a Ah Sam que ficasse. Sabia que Ah Sam não poderia entender o dialeto de Soochow, no qual recomeçou sua conversa com Gordon.

— Uma seta pode ser muito perigosa.

— Sim, Suprema Senhora, se estiver em mãos erradas. Está interessada na arte de atirar com o arco?

— Quando eu era muito pequena, costumávamos empinar papagaios, meus irmãos e eu. Uma vez, usei um arco, mas me assustou. Porém, suponho que, algumas vezes, o arco seja um presente dos deuses, e não represente perigo.

Gordon Chen pensou por um momento.

— Sim. Se estivéssemos nas mãos de um homem faminto, e ele quisesse caçar e atingir sua presa.

O leque de May-may movimentava-se graciosamente. Estava satisfeita por ele saber a maneira como sua mente funcionava; isto tornava a transferência de informações mais fácil e mais excitante.

— Um homem assim precisaria ser muito cuidadoso, se só tivesse uma possibilidade de atingir o alvo.

— É verdade, Suprema Senhora. Mas um caçador esperto tem muitas setas em sua aljava. — Que caça tinha de ser perseguida?, ele perguntou a si mesmo.

— Uma pobre mulher jamais poderá experimentar as alegrias masculinas da caça — ela disse, calmamente.

— O homem é o princípio yang... ele é o caçador, por escolha dos deuses. A mulher é o princípio yin... aquela para quem o caçador traz a comida a ser preparada.

— Os deuses são muito sábios. Muito. Ensinam ao caçador a caça que serve para alimentar e a que não serve.

Gordon Chen bebeu seu chá, delicadamente. Quererá ela dizer que deseja que alguém seja encontrado? Ou alguém seja caçado e morto? Quem será que ela quer encontrar? Quem sabe a última amante do tio Robb e sua filha? Provavelmente não, pois não haveria necessidade de tal sigilo — e, certamente, Jin-qua jamais me envolveria. Por todos os deuses, que poder tem esta mulher sobre a cabeça de Jin-qua? O que lhe fez, para forçá-lo a me ordenar — e, através de mim, todo o poder dos Tríades — a fazer o que ela quiser?

Então, um boato que ouvira assumiu seu sentido: o boato de que Jin-qua sabia, antes de todos os outros, que a frota voltaria imediatamente a Cantão, e não iria para o norte, como todos haviam suposto que faria. Ela deveria ter mandado a informação em particular a Jin-qua, e assim o colocara em posição de seu devedor! Ayeee yah, e que dívida! Saber antecipadamente de uma coisa dessas certamente poupara a Jin-qua três ou quatro milhões de taéis.

Seu respeito por May-may aumentou.

— Algumas vezes, o caçador tem de usar suas armas para se proteger contra os animais selvagens da floresta — disse, oferecendo-lhe uma abertura diferente. — É verdade, meu filho. — Seu leque se fechou abruptamente e ela estremeceu. — Que os deuses protejam uma pobre mulher contra esses males.

Então, ela quer que alguém seja morto, pensou Gordon. Examinou a xícara de porcelana e ficou imaginando quem.

— O pagode determina que o mal caminhe em muitos lugares. Elevados e baixos. No continente, nesta ilha.

— Sim, meu filho — disse May-may, e seu leque adejava, os lábios tremiam ligeiramente. — Até mesmo no mar. Até entre aqueles de nobre estirpe e os muito ricos. Terríveis são os caminhos dos deuses.

Gordon Chen quase deixou a xícara cair. Ele se virou de costas para May-may e tentou recompor seu espírito abalado. “Mar” e “de nobre estirpe” só poderiam significar duas pessoas. Longstaff ou o próprio Tai-Pan. Dragões da morte, ir de encontro a qualquer um dos dois precipitaria um holocausto! Seu estômago deu voltas. Mas por quê?

E seria o Tai-Pan? Não o meu pai, ó deuses. Não permiti que seja meu pai.

— Sim, Suprema Senhora — disse ele, com um traço de melancolia, pois sabia que seu juramento o comprometia a fazer qualquer coisa que ela ordenasse. — Os deuses têm caminhos terríveis.

May-may observara a repentina mudança em Gordon Chen e não conseguia entender

o motivo. Hesitou, desconcertada. Depois, levantou-se e caminhou para as vigias da popa.

A nau capitania estava tranqüilamente ancorada no porto, com sampanas a cercá-la, no mar cintilante. O China Cloud encontrava-se mais além, com âncoras de tempestade, tendo próximo o White Witch.

Os navios são tão lindos — ela disse. — Qual você acha mais interessante?

Ele se aproximou das vigias. Não pensou que poderia ser Longstaff. Não haveria nenhum objetivo nisso, não para ela. Para Jin-qua, talvez, mas não para ela.

— Acho que é aquele — disse ele, gravemente, fazendo um aceno de cabeça em

direção ao China Cloud. May-may arquejou e deixou cair o leque.

— Pelo sangue de Cristo — disse, em inglês. Ah Sam ergueu os olhos, por um momento, e May-may recuperou instantaneamente o controle. Gordon Chen pegou o leque e fez uma profunda curvatura ao devolvê-lo a ela.

— Obrigada — ela continuou, em dialeto Soochow. — Mas prefiro aquele navio. — Apontou com o leque para o White Witch. Ainda estava abalada por perceber, horrorizada, que Gordon Chen pensava ser seu desejo a morte do adorado Tai-Pan. — O outro é jade valiosíssimo. De valor incalculável, entende? Inviolável, por todos os deuses. Como ousa ter a impertinência de pensar de outra maneira?

O alívio dele foi palpável.

— Perdoe-me, Suprema Senhora. Eu me prosternaria mil vezes, em abjeto pedido de desculpas, aqui e agora, mas sua escrava poderia achar curioso — disse, numa apressada mistura de palavras em Soochow e Mandarim, deliberadamente misturadas. — Por um momento, um demônio entrou em minha tola cabeça e não a entendi claramente. Claro que jamais, jamais consideraria uma comparação entre esses navios, um contra o outro.

— Sim — ela disse. — Se um fio de corda de cânhamo, se uma lasca de madeira fossem tocados no outro, eu seguiria quem tivesse ousado desafiar uma coisa tão preciosa até às profundezas do inferno, e ali dilaceraria seus testículos e lhe arrancaria os olhos e o faria comer as próprias entranhas!

Gordon Chen piscou, mas manteve a voz em tom casual.

— Não tema, Suprema Senhora. Não tema, de maneira alguma. Eu me prosternarei cem vezes, em penitência, por não ter entendido a diferença entre jade e madeira. Eu não quero jamais sugerir... eu não quero que pense que não entendo.

— Ótimo.

— Se me dá licença agora, Suprema Senhora, vou cuidar dos meus negócios.

— Seu negócio não terminou — ela disse, rudemente. — E a boa educação sugere que tomemos mais chá. — Bateu palmas majestosamente para Ah Sam, e mandou-a trazer chá novo. E toalhas quentes. Quando Ah Sam voltou, May-may falou em cantonês:

— Ouvi dizer que muitos navios estarão partindo para Macau muito em breve — disse ela, e Gordon Chen, imediatamente, entendeu que Brock deveria ser liquidado em Macau, e imediatamente.

Ah Sam se animou.

— Acha que iremos? Ah, adoraria ver Macau outra vez. — Ela sorriu, timidamente, para Gordon Chen. — Conhece Macau, nobre senhor?

— Claro — ele disse.

Normalmente, uma escrava não teria ousado dirigir-se a ele. Mas sabia que Ah Sam era a confidente pessoal de May-may e sua escrava particular e, como tal, tinha múltiplos privilégios. Também a achou muito bonita — para uma barqueira Hoklo. Tornou a olhar para May-may.

— Infelizmente, não poderei ir este ano. Embora muitos de meus amigos naveguem sempre de cá para lá.

May-may fez um sinal afirmativo com a cabeça.— Ouvi dizer que a noite passada o filho bárbaro de Papai ficou noivo? Pode imaginar uma coisa dessas? Com a filha de seu inimigo. Gente extraordinária, esses bárbaros.

— Sim — disse Gordon, surpreso por May-may achar necessário tornar mais clara a remoção de Brock. Não iria ela querer a destruição de toda família, não? — Inacreditável.

— Não que eu me preocupe com o pai... ele é velho e, se os deuses forem— justos, seu pagode acabará em breve. — May-may atirou a cabeça para trás e fez tilintarem seus ornamentos de jade e prata. — Quanto à moça, suponho que fará bons filhos... embora, realmente, eu não possa imaginar o que qualquer homem possa apreciar naquela coisa de pernas grossas e peito de vaca.

— Sim — disse Gordon Chen, em tom amável.

Então, não é Brock quem deve ser morto. E nem a filha. Isto deixa de fora a mãe e o irmão. A mãe é bastante improvável; portanto, deverá ser o irmão. Gorth. Mas por que só

o irmão, por que só Gorth Brock? Por que não pai e filho? Obviamente, ambos são um perigo para o Tai-Pan. O respeito de Gordon por seu pai aumentou imensamente. Como era sutil fazer parecer que May-may era a instigadora do estratagema! Que sinuosidade deixar escapar uma sugestão a May-may, que foi a Jin-qua, que veio a mim! Que sutileza! Claro, disse a si próprio, isto significa que o Tai-Pan sabia que May-may passava informações secretas — deveria ter, deliberadamente, dado a ela informação, para colocar Jin-qua como seu devedor. Mas será que ele, conseqüentemente, sabe a respeito dos Tríades? E de mim? Claro que não.

Sentiu-se muito cansado. Sua mente estava esgotada de tanta excitação e perigo. E ele estava muito preocupado com a pressão crescente que os mandarins exerciam contra os Tríades em Kwangtung. E os Tríades de Macau. E até no Tai Ping Shan. Os mandarins contavam com muitos agentes entre os habitantes do morro e, embora a maior parte deles fosse conhecida e quatro já tivessem sido liquidados, a ansiedade provocada por sua presença pesava muito sobre ele. Se chegassem a saber que era o líder da Tríade de Hong Kong, jamais poderia voltar a Cantão, e sua vida aqui não valeria as fezes do proprietário de uma sampana.

Além disso, seus sentidos estavam dominados pelo sutil perfume de May-may e pela clamorosa sexualidade de Ah Sam. Gostaria de levar a criada para a cama, pensou. Mas isto não é aconselhável, e é perigoso. A não ser que a Mãe sugira. É melhor voltar correndo para o Tai Ping Shan, para os braços da concubina mais valiosa do morro. Por todos os deuses, ela quase vale os mil taéis que custou. Faremos amor dez vezes esta noite, de dez maneiras diferentes. Sorriu para si mesmo. Seja honesto Gordon, serão apenas três vezes. E três com pagode — mas como será maravilhoso!

— Sinto muito não poder ir para Macau — ele disse. — Suponho que todos os parentes de Papai, através do casamento, estarão indo, não? Particularmente o filho?

— Sim — disse May-may, com um doce suspiro, percebendo que sua mensagem agora estava clara — suponho que sim.

— Ah! — disse Ah Sam, com desprezo. — Haverá grande felicidade quando o filho partir de Hong Kong.

— Por quê? — perguntou May-may, com atenção, e Gordon Chen ficou igualmente alerta, sua fadiga desaparecendo. Ah Sam guardara a informação rara para uma ocasião importante como aquela.

— Esse filho é um verdadeiro demônio bárbaro. Ele vai para um dos bordéis bárbaros duas ou três vezes por semana. — Ela parou e serviu mais chá.

— Bom, continue, Ah Sam — disse ela, com impaciência.

— Ele as espanca — disse, em tom de importância.

— Talvez desagradem a ele — disse May-may. — Um bom espancamento jamais poderia magoar uma daquelas putas bárbaras.

— Sim. Mas ele as açoita e espezinha antes de se deitar com elas.

— Você quer dizer, todas as vezes? — perguntou May-may, com incredulidade.

— Todas as vezes — disse Ah Sam. — Ele paga pelo espancamento e depois pela... pela... bom, pela manipulação... pois o resto é apenas isso. Pffff! E então tudo acaba — estalou o dedo — assim!

— Ah! E como você sabe de tudo isso, hein? — perguntou May-may. — Acho que você merece um bom beliscão. Acho que você está inventando isso tudo, sua faladora!

— Claro que não, Mãe. Aquela madame bárbara... a velha feiticeira, com um nome incrível? A que tem olhos de vidro e os incríveis dentes que se deslocam?

— Fortheringill? — perguntou Gordon Chen.

— Exatamente, nobre senhor. Fortheringill. Bom, aquela madame tem a maior casa da Cidade da Rainha. Recentemente, ela comprou seis moças Hoklo e uma cantonesa. Uma das...

— Foram cinco moças Hoklo — disse Gordon Chen.

— Também está nesse negócio? — perguntou May-may, polidamente.

— Ah, sim — ele respondeu. — Tornou-se muito lucrativo.

— Continue, Ah Sam minha bonequinha.

— Bom, Mamãe, como eu estava dizendo, uma das moças Hoklo é parente de Ah Tat que, como sabe, é parente de minha mãe, e essa moça foi destacada para ser a parceira dele, por uma noite. Uma vez foi o bastante! — Ah Sam baixou a voz, ainda mais. — Ele quase a matou. Bateu-lhe na barriga e nas nádegas até sair sangue e, depois, forçou-a a fazer coisas esquisitas com o sexo. Depois...

— Que coisas esquisitas? — perguntou Gordon Chen, em igual sussurro, inclinando-se para mais perto.

— Sim — disse May-may — que coisas?

— Certamente não cabe a mim contar práticas tão estranhas e obscenas, ah, meu Deus, não, mas ela teve de usar todas as partes de seu corpo para satisfazer a ele.

— Todas?

— Todas, Mamãe. E com os terríveis espancamentos e a maneira como ele a mordeu e chutou e maltratou, a pobre moça quase morreu.

— Que extraordinário! — Depois, May-may disse a ela, rudemente: — Ainda acho que você está inventando, Ah Sam. Não tinha dito que isto era tudo — estalou os dedos, imperiosamente — pfff! e só isso, para ele?

— É isso mesmo. E ele sempre culpa, horrivelmente, a moça, embora não seja nunca por causa dela. Esse é o problema principal. Isso, e o fato de ser tão pequeno e mole. — Ah Sam ergueu as mãos para o céu e começou a se lamentar: — Que eu nunca tenha filhos, se menti! Que meus ancestrais sejam consumidos pelos vermes, se menti! Que meus ancestrais jamais descansem em paz, e nunca renasçam, se menti! Que...

— Ah, está bem, Ah Sam — disse May-may, irritada. — Acredito em você. Ah Sam, melindrosamente, voltou a tomar seu chá.

— Como ousaria mentir para minha soberba mãe, e seu nobre parente? Mas acho que os deuses, com certeza, irão punir uma fera bárbara como aquela!

— Sim — disse Gordon Chen.

E May-may sorriu para si mesma.

 

Aquela tarde, Struan embarcou no China Cloud. Enviou o Capitão Orlov para uma das lorchas e Zergeyev para alojamentos espaçosos no Resting Cloud. Mandou desfraldar todas as velas e soltar as amarras e saiu do porto, dirigindo-se a águas profundas.

Durante três dias, arremessou o China Cloud, como uma flecha, em direção a sudoeste, com as vergas rangendo, devido ao pano estar todo inflado.

Foi para o mar a fim de se purificar. Limpar as impurezas e as palavras de Sarah e a perda de Robb e Karen.

E abençoar May-may pela alegria que ela representava.

Foi para o seio do oceano como um amante afastado há uma eternidade, e o oceano lhe deu as boas-vindas com ventos e tempestade, mas controlados, jamais colocando em risco o navio e nem a ele, que o dirigia. O mar lhe ofertou generosamente sua riqueza, fortalecendo-o outra vez, dando-lhe vida, dando-lhe dignidade e abençoando-o como só o mar pode abençoar um homem, purificando-o como só o oceano pode purificar um homem.

Arremessava a si próprio como ao navio, sem dormir, testando os limites de sua força. E os turnos dos marinheiros se sucediam, com ele sempre a caminhar pelo tombadilho: de sol a sol, cantando baixinho para si mesmo, quase sem se alimentar. E sem falar jamais, exceto para exigir mais velocidade, ou ordenar que fosse substituído um jovem roto ou desfraldada outra vela. Arremessou-se para as profundezas do Pacífico, para o infinito.

No quarto dia, deu a volta e impeliu o navio, durante a metade do dia, em direção a noroeste. Depois, colocou-o à capa e desceu, fez a barba, tomou banho, dormiu durante um dia e uma noite e, na madrugada seguinte, comeu uma refeição completa. Em seguida, foi para o convés.

— Bom-dia, senhorrrr — disse Cudahy.

— Tome o curso de Hong Kong.

— Sim, senhorrrr.

 

Ficou no tombadilho o dia inteiro e parte da noite e, mais uma vez, dormiu. Ao amanhecer, observou o sol e fez uma marca no mapa, determinando outra vez que o navio fosse colocado à capa. Então mergulhou por sobre a amurada e...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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