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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TAMBORES DE OUTONO / Diana Gabaldon
TAMBORES DE OUTONO / Diana Gabaldon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

TAMBORES DE OUTONO

Primeira Parte

 

Nunca tive medo aos fantasmas. Depois de tudo, vivo com eles cada dia. Quando me Miro em um espelho, os olhos de minha mãe me devolvem o olhar e minha boca se curva com o sorriso que seduziu a meu bisavô para que eu tivesse meu destino.

Como vou temer o roce dessas mãos que se desvanecem, que se detêm sobre mim com um amor desconhecido?. Como vou ter medo daqueles que moldaram minha carne, deixando seu rastro para viver muito além da morte?.

Menos ainda poderia temer a esses fantasmas que roçam meus pensamentos ao passar. Todas as bibliotecas estão cheias deles. Posso agarrar um livro das prateleiras poeirentas e me apanharão os pensamentos de alguém morto faz tempo, mas ainda vivo em sua mortalha de palavras.

É obvio, não são os ordinários e acostumados fantasmas que turvam o sonho e aterram ao insone. Olhe para trás e acenda uma lanterna para iluminar os rincões apartados na escuridão. Escute as pisadas que ressonam detrás quando caminha sozinho.

Continuamente, os fantasmas revoam e passar através de nós, ocultando-se no futuro. Olhamos no espelho e vemos as sombras de outros rostos olhando através dos anos; vemos a silhueta da memória, erguida com firmeza na soleira vazia da porta. Por sangue e por eleição, criamos nossos fantasmas, perseguimos a nós mesmos.

Cada fantasma sai espontaneamente dos terrenos confusos do sonho e o silêncio.

Nossa mente racional diz: “Não, não é assim”.

Mas outra parte, uma parte mais antiga, sempre repete brandamente na escuridão: “Sim, mas poderia ser”.

Vamos e vamos pelo mistério, tratando de esquecer. Mas quando uma rajada de ar passa por uma habitação e agita meu cabelo, acredito que é minha mãe.

 

 

                                     MARAVILHOSO NOVO MUNDO

 

                   Um enforcado em Éden

Charleston, junho de 1.767

Escutei os tambores muito antes de poder vê-los. Os golpes ressonavam na boca de meu estômago como se eu também estivesse oca. As cabeças se voltavam e a gente ficava em silêncio olhando a rua East Bay, que se estendia da estrutura em construção da nova alfândega até os jardins do White Point.

O dia era caloroso inclusive para o Charleston no mês de junho. Os melhores sites estavam no dique, onde o ar circulava, mas aqui embaixo era como cozer-se vivo.

Naquele momento, era morbosamente consciente dos pescoços. Coloquei uma mão no meu e o percorri com os dedos. O pulso de minhas artérias carótidas pulsava ao mesmo ritmo que os tambores e, ao respirar, o ar úmido e quente obstruía minha garganta, me afogando. Baixei a mão e respirei profundamente. Foi um engano. O homem que tinha em frente não se banhou em meses. Também havia vários meninos, estirando-se boquiabertos para olhar para a rua enquanto seus pais, ansiosos, chamavam-nos. A menina mais próxima a mim tinha o pescoço como a parte branca de um caule de erva, elástico e suculento.

produziu-se um estremecimento entre a multidão quando a procissão da forca apareceu ao final da rua. Os tambores soaram mais forte.

-Onde está? -murmurou Fergus, estirando o pescoço para poder ver-. Sabia que teria que ter ido com ele!

-Tem que estar aqui.

Quis me pôr nas pontas dos pés, mas não me pareceu digno para o momento. Segui procurando ao redor. Sempre podia localizar ao Jamie entre a multidão; sua cabeça e ombros se sobressaíam por cima da maioria dos homens e seu cabelo refletia a luz como um brilho de ouro avermelhado. Entretanto, não havia rastro dele.

Primeiro apareceram as bandeiras, ondulando sobre as cabeças da agitada multidão, com as insígnias de Grã-Bretanha, da Real Colônia da Carolina do Sul e o escudo da família do lorde governador da colônia. Logo chegaram os tambores, partindo de dois em dois e alternando um golpe forte com outro mais amortecido. Era uma marcha lenta, sombria e inexorável. Uma marcha fúnebre, assim chamavam a aquela cadência em particular, muito adequada para as circunstâncias. O resto dos ruídos ficavam apagados pelo som dos tambores. A seguir partia o pelotão de casacas vermelhas, em meio dos quais se encontravam os prisioneiros. Eram três, com as mãos atadas por diante e unidos por uma cadeia que os uncía os pescoços com argolas de ferro.

-Esse é Gavin Hayes? Parece doente —murmurei ao Fergus.

-Está bêbado.

A voz suave vinha de minhas costas; dava-me a volta rapidamente e descobri ao Jamie com os olhos cravados na deprimente procissão.

A falta de equilíbrio do homenzinho entorpecia o progresso da marcha; seus tropeções obrigavam aos outros dois homens encadeados com ele a ziguezaguear para não cair. A impressão que davam era de três bêbados voltando para casa do botequim.

-Foi você? -perguntei em voz baixa para não chamar a atenção, embora poderia ter gritado e agitado os braços pois ninguém tinha olhos mais que para a cena que se desenvolvia ante nós.

-Pediu-me isso -respondeu-. E foi o melhor que pude fazer por ele.

-Brandy ou uísque? -perguntou Fergus.

-O homem é escocês, pequeno Fergus.

A voz do Jamie era tão tranqüila como a expressão de seu rosto, mas notei a tensão que ocultava.

-Uma eleição muito sábia. Com sorte, nem sequer se dará conta quando o enforcarem -murmurou Fergus.

O capitão do guarda tinha o rosto avermelhado pelo sol e a fúria; brilhava entre o branco de sua peruca e o metal de sua garganta. Gritou uma ordem enquanto os tambores continuavam seu sombrio rufo, e um soldado se apressou a desencadear aos prisioneiros. Hayes foi levantado sem cerimônia alguma por duas soldados e a procissão continuou mais ordenada.

Quando chegaram à forca, um carro com uma mula baixo os ramos de um grande carvalho, ninguém ria.

-Não precisa olhar -sussurrou Jamie—. Retorna ao carro.

Seu olhar estava cravado no Hayes, que se retorcia sujeito pelos soldados enquanto olhava confundido.

Quão último desejava era olhar. Mas tampouco ia deixar que Jamie passasse sozinho por tudo aquilo. Estava ali por causa do Gavin Hayes e eu estava por ele. Toquei-lhe a mão.

-Me vou ficar.

Jamie se ergueu, endireitando os ombros. Deu um passo adiante para ser visível em meio da gente. Se Hayes ainda estava sóbrio para ver algo, quão último veria neste mundo seria o rosto de um amigo.

Podia ver, pois enquanto o subiam ao carro torcia o pescoço com desespero.

-Gabhainn! A charaid! -gritou de repente Jamie.

Os olhos do Hayes o encontraram e deixou de lutar. Então os tambores começaram outra vez, com rufos parecidos.

O verdugo passou o laço pela cabeça calva e ajustou o nó, colocando-o debaixo da orelha. O capitão do guarda permaneceu erguido, com o sabre levantado.

de repente, o homem condenado se endireitou. Fixou os olhos no Jamie e abriu a boca como se fora a falar.

A espada brilhou com o sol da manhã e os tambores se detiveram com um rufo final.

Olhei ao Jamie; tinha o rosto pálido e os olhos muito abertos. De reojo pude ver o balanço da soga e o espasmo de um montão de roupa. Um forte aroma de urina e excrementos alagou o ar pesado. A um lado, Fergus observava impávido.

-Suponho que, depois de tudo, deu-se conta —murmurou com pena.

O corpo pendurava oscilando ligeiramente como um prumo.

Não tinha conhecido ao Gavin Hayes e não sentia dor pessoal por sua morte, mas me alegrava que tivesse sido rápida.

Olhei de esguelha, com a estranha sensação de ser uma intrusa.

O capitão do guarda, satisfeito ao comprovar que Hayes tinha morrido, fez um gesto com a espada para que subissem ao seguinte. Vi seu olhar percorrendo a fila e como se transformava em uma expressão ultrajada no mesmo momento em que se ouvia um grito entre a multidão e uma corrente de excitação se estendia com rapidez. As cabeças se voltavam e todos tratavam de ver.

—escapa!

—por ali!

—Detenham-no!

Era o terceiro prisioneiro, um homem jovem e alto, que aproveitou o momento da morte do Gavin para escapar. Os guardas que o vigiavam não tinham podido resistir à fascinação do linchamento.

O capitão do guarda gritava com o rosto congestionado; sua voz era apenas audível no meio do escândalo. O prisioneiro que ficava, muito assombrado, foi levado a quartel; depois os soldados começaram a organizar-se baixo as ordens do capitão.

Jamie me passou um braço pela cintura e me arrastou fora da maré humana.

—Será melhor procurar o Ian -disse Jamie. Lançou um olhar ao Fergus e torceu a cabeça para o patíbulo e seu triste carrega. -Reclama o corpo, quer? Encontraremo-nos mais tarde no botequim do Salgueiro.

-Crie que o apanharão? -perguntei enquanto nos abríamos passo entre a gente.

-Isso espero. Onde poderia ir?

-Hayes tinha família? -perguntei.

Jamie negou com a cabeça.

—O perguntei quando lhe levei o uísque. Disse-me que podia ser que um irmão seu ainda vivesse, mas não tinha idéia de onde estava. Foi deportado a Virginia, conforme acreditava Gavin, mas nunca soube nada.

-Duncan! -gritou Jamie; um homem alto e magro se voltou e levantou uma mão.

-MAC Duhh -disse, inclinando a cabeça para saudar o Jamie-. Senhora Claire.

Seu rosto alargado estava cheio de tristeza. O também tinha estado prisioneiro no Ardsmuir, com o Hayes e Jamie. Perdida-a de um braço por uma infecção evitou que o deportassem com os outros. Como não podiam vendê-lo para trabalhar, foi perdoado e posto em liberdade para que morrera de fome, mas Jamie o encontrou antes de que isto ocorresse.

-Deus acolha em seu seio ao pobre Gavin -disse Duncan, sacudindo a cabeça com pena.

Jamie murmurou uma resposta em gaélico.

-Assim seja. Bem, tenho que ir ao mole para arrumar o da passagem do Ian e logo pensaremos no enterro do Gavin. Primeiro tenho que encontrar ao moço.

Encaminhamo-nos para o mole. Uma coluna de casacas vermelhas partia rapidamente pela outra ponta, abrindo-se passo entre a multidão.

-Cuida seu moedeiro, Sassenach -murmurou Jamie em meu ouvido, me empurrando entre um escravo com turbante e um pregador guia de ruas subido a uma caixa.

Falava sobre o pecado e o arrependimento, mas o ruído lhe superava.

-Tenho-o costurado. -Tranqüilizei-lhe enquanto tocava a bolsita que pendurava em minha coxa—, E o teu?

Sorriu zombador e se jogou o chapéu fazia diante.

-Está onde deveria estar meu embornal. Enquanto não me encontre com uma prostituta de dedos rápidos, estará a salvo.

Olhei o ligeiro vulto da parte dianteira de seus calções e logo o observei. Alto, de costas largas, com facções bem definidas e o porte orgulhoso dos montanheses; atraía os olhares de todas as mulheres que passavam, até com seu brilhante cabelo coberto pelo discreto tricornio azul. Os calções, emprestados, eram muito ajustados e não faziam mais que melhorar seu aspecto geral, efeito que aumentava pelo fato de que Jamie não se dava conta.

-É uma tentação andante para as prostitutas -pinjente-. Fique perto, eu te protegerei.

Riu e me agarrou do braço enquanto nos detínhamos em um pequeno espaço livre.

-Ian! -gritou ao divisar a seu sobrinho entre a multidão.

Ao momento, um moço alto e fraco, com ar distraído, saiu de entre a gente, apartando uma mecha de cabelo castanho que lhe tampava os olhos e sonriendo alegremente.

-Tio Jaime, acreditei que nunca te encontraria! -exclamou-. Diabos, há muita mais gente aqui que no mercado do Edimburgo.

-Ian, sua alegria é indecente depois de ver enforcar a um homem.

-Ah, não, tio Jamie -disse-. Não vi como o penduravam.

-Duncan levantou uma sobrancelha e o moço se ruborizou-. Não é que tivesse medo, mas... queria fazer outra coisa.

Jamie sorriu e aplaudiu as costas do Ian.

-Não se preocupe, Ian; eu também tivesse desejado não vê-lo, mas Gavin era um amigo.

-Sei, tio. Lamento-o. -Uma faísca de compreensão iluminou os grandes olhos marrons do jovem, o único realmente bonito de sua cara. voltou-se para mim-. Foi muito horrível, tia?

-Sim -respondi-, mas já terminou.

-Vamos -interveio Jamie-. O navio deve estar ao final do mole.

Ian se encolheu de ombros, olhou-me e me ofereceu o braço.

Seguimos ao Jamie entre os depósitos, esquivando marinheiros, escravos, estivadores, passageiros, compradores e toda classe de vendedores. Charleston era um porto importante e os negócios deviam prosperar, a julgar pela quantidade de navios que foram e voltavam para a Europa durante a temporada.

O Bonnie Mary pertencia a um amigo do sobressaio do Jamie, Jared Fraser, quem se tinha instalado na França para fazer fortuna com o comércio do vinho e tinha tido muito êxito.

Se tínhamos sorte, o capitão permitiria que Ian viajasse até o Edimburgo pagando sua passagem trabalhando de grumete.

Ian não estava entusiasmado com a perspectiva, mas Jaime tinha decidido embarcar a seu sobrinho para Escócia à primeira oportunidade. Procurar um navio no Charleston foi, entre outras preocupações, a causa de que deixássemos Georgia, onde tínhamos chegado dois meses antes por acidente.

-Ainda estão a salvo as jóias da família?-murmurei.

-Incômodas, mas seguras -assegurou-me com uma careta-. Acredito que tivesse sido melhor que as escondesse em meu traseiro.

As jóias da família eram exatamente isso. Um furacão nos tinha miserável até a costa da Georgia e o único que ficava era um punhado de pedras preciosas de grande tamanho e valor. Confiava em que o capitão do Bonnie Mary apreciasse o suficiente ao Jared Fraser para aceitar ao Ian como grumete porque, de não ser assim, teria dificuldades com a passagem. Em teoria, o embornal do Jamie e meu bolsita continham uma fortuna considerável. Mas na prática, as pedras preciosas poderiam ser calhaus. Era uma forma fácil de transportar uma fortuna, mas o problema era as trocar por dinheiro.

Charleston era a primeira cidade com suficiente quantidade de comerciantes e banqueiros para poder trocar parte de nossa congelada fortuna.

Embora era difícil que algo permanecesse congelado durante muito tempo no Charleston e no verão, refleti.

As gotas de suor corriam por meu pescoço e molhavam minha regata.

Apesar de suas negativas, Jamie tinha insistido em entregar uma de nossas pedras ao senhor e a senhora Olivier, a bondosa gente que nos tinha agasalhado em sua casa, em sinal de agradecimento. Tinham-nos proporcionado o carro, dois cavalos, roupa limpa para a viagem, comida e um pouco de dinheiro.

Na bolsa já só ficavam seis xelins e três peniques, todo nosso dinheiro disponível.

-por aqui, tio Jamie -disse Ian-. Tenho algo que te ensinar.

-Do que se trata? -perguntou Jamie, esquivando a um grupo de suarentos escravos-. E como o conseguiste, seja o que seja, se não ter dinheiro?

-Não, não tenho dinheiro; foi com os jogo de dados.

-Jogo de dados! Ian, pelo amor de Deus, não pode jogar quando não tem nem um penique.

-Você o faz sempre, tio Jamie -assinalou o moço, detendo-se para nos esperar-. Tem-no feito em tudo os botequins e estalagens onde paramos.

-Mas eram cartas, Ian, não jogo de dados! E eu sei o que faço!

-Eu também -respondeu com ar presumido-. Ganhei, não?

-Pelo amor de Deus, Ian, me alegro de que não lhe tenham quebrado a cabeça até agora. me prometa que não jogará com os marinheiros. Em um navio não teria escapatória.

Mas Ian não lhe emprestava atenção; tinha chegado até um vulto escuro pacote com uma corda.

-É um cão —disse com orgulho.

-Ian —disse—, não é um cão. É um lobo. É um lobo muito grande, e acredito que deveria te liberar dele antes de que te remoa o traseiro.

O lobo dobrou uma orelha em minha direção com ar indiferente e a deixou cair. Seguiu ofegando pelo calor, com os grandes olhos de cor amarela fixas no Ian com uma intensidade que poderia tomar por devoção alguém que não se encontrou antes com um lobo. Eu o tinha feito.

Sem preocupar-se, Jamie inspecionou ao animal.

-Não é exatamente um lobo, verdade? -Muito interessado, estendeu a mão para o suposto cão para que farejasse seus nódulos-. É um animal muito bonito, Ian —afirmou, arranhando aquela costure com familiaridade debaixo do focinho. Os olhos amarelos se entrecerraron, possivelmente pelo prazer da carícia ou, segundo meu ponto de vista, antecipando uma dentada no nariz do Jamie-. Embora seja maior que um lobo: tem as patas mais largas e a cabeça e o peito mais largos.

-Sua mãe era um galgo irlandês. -Ian estava agachado ao lado do Jamie, explicando laborioso, enquanto lhe acariciava o enorme lombo de cor castanha com tons cinzentos-. escapou ao bosque estando em zelo e quando retornou para parir...

-OH, sim, já vejo.

Jamie cantarolava em gaélico, levantava uma das patas do monstro e examinava seus pezuñas peludas. As unhas eram curvas e mediam mais de cinco centímetros.

Olhei de esguelha ao Duncan, quem levantou as sobrancelhas, encolheu-se de ombros e suspirou. Ao Duncan não interessavam os cães.

-Jamie -pinjente.

-Balach Boidheach -disse Jamie ao lobo-. É um formoso animal.

-O que comerá? -perguntei, em voz mais alta do que tivesse querido.

Jamie deixou de acariciar ao animal.

-Temo-me que sua tia tem razão, Ian. Como o vamos alimentar?

-Isso não é problema, tio Jamie -assegurou Ian-. Caça para comer.

-Aqui? -Joguei um olhar aos depósitos-. Que caça? Meninos?

-É obvio que não, tia -respondeu ofendido-. Peixes.

Ao ver três rostos que o observavam com cepticismo, Ian abriu o focinho do animal com as duas mãos.

-Juro que é assim, tio Jamie! Pode cheirar seu fôlego.

-Mm... vou aceitar sua palavra, Ian. Mas de todos os modos, tome cuidado com seus dedos, moço!

Ian tinha solto o focinho do cão e das fauces lhe caía um jorro de saliva.

-Estou bem, tio -disse alegremente Ian, secando-as mãos nos calções—. Estou seguro de que não me vai morder. Seu nome é Cilindro.

-Bom, não importa como se chame, nem o que vírgula; não acredito que o capitão aceite o ter entre sua tripulação.

Ian não respondeu, mas a expressão de alegria de seu rosto não trocou. Em realidade, aumentou. Jamie lhe olhou, notou seu regozijo e ficou petrificado.

-Não -disse, horrorizado-, OH, não!

-Sim -respondeu Ian. Um amplo sorriso de satisfação se estendeu por seu rosto ossudo-. Partiu faz três dias, tio. chegamos muito tarde.

Jamie disse algo em gaélico que não entendi, mas que escandalizou ao Duncan.

-Sinto muito, tio. Tentarei não causar problemas, de verdade; posso trabalhar e ganhar o necessário para pagar minha comida.

O rosto do Jamie se adoçou ao olhar a seu sobrinho. Suspirou profundamente e lhe aplaudiu as costas.

-Não é que eu não queira, Ian. Sabe que nada eu gostaria mais que te ter comigo. Mas que diabos dirá sua mãe?

O brilho retornou ao rosto do moço.

-Não sei, tio —respondeu—, mas o dirá em Escócia e nós estamos aqui.

agachou-se para abraçar a Cilindro. O lobo pareceu surpreso pelo gesto mas em seguida tirou sua larga língua rosada e lambeu a orelha do Ian. Provando seu sabor, pensei com cinismo.

-Além disso -acrescentou o moço-, ela sabe que estou bem; você lhe escreveu desde a Georgia para lhe avisar de que estava contigo.

Jamie se permitiu um sorriso zombador.

-Não acredito que isso a reconforte. Conhece-me faz muito, sabe?

Suspirou, colocou-se o chapéu e se voltou para mim.

-Necessito um gole, Sassenach. vamos procurar esse botequim.

O botequim do Salgueiro era escura e com menos gente poderia ter sido fresca. Cilindro demonstrou imediatamente sua utilidade, abrindo-se passo entre a multidão com um leve grunhido. Era evidente que conhecia os botequins pois, depois de nos conseguir uma mesa em um rincão, pôs-se a dormir.

Longe do calor do sol e com uma grande jarra de cerveja negra, Jamie recuperou rapidamente seu aprumo.

-Temos duas possibilidades -disse, tornando-se para trás o cabelo suado-. Podemos ficar no Charleston o tempo suficiente para tratar de encontrar comprador para uma das pedras e talvez uma passagem para o Ian em outro navio. Ou podemos seguir pelo norte, para Cape Fear, e procurar um navio no Wilmington ou New Bern.

-Eu digo que vamos ao norte -disse Duncan sem vacilar-. Tem parentes em Cape Fear, não? Eu não gosto da idéia de ficar muito tempo entre desconhecidos.

-Vamos ao norte, tio! -interveio Ian antes de que Jaime pudesse responder-. A viagem pode ser perigoso e necessitará um homem mais como amparo, não é certo?

Jamie ocultou sua expressão com a jarra, mas eu vi que se estremecia. Realmente queria muito a seu sobrinho. O que acontecia era que Ian era o tipo de pessoa a que sempre lhe acontecia algo.

Um ano antes tinha sido seqüestrado por uns piratas e a necessidade de nos resgatá-lo tinha feito empreender a viagem até a América. Não lhe tinha acontecido nada ultimamente, mas sabia que Jamie estava ansioso por mandar a seu sobrinho, de quinze anos, a Escócia com sua mãe antes de que ocorresse qualquer outra coisa.

-Ah... seguro, Ian -disse Jamie, evitando me olhar embora pude detectar um sorriso-. Será de grande ajuda, estou seguro, mas...

-Ao melhor encontramos com os corte vermelhas! - exclamou Ian com os olhos dilatados-. Ou com animais selvagens, como ursos ou pumas, ou isso que os índios chamam mofetas.

Engasguei-me com a cerveja.

-Está bem, tia?

Ian se inclinou ansioso por me ajudar.

-Muito bem. -Então captei uma expressão de preocupação no rosto do Jamie-. As mofetas não são perigosas-murmuré, apoiando uma mão sobre seu joelho.

Embora era um caçador valente e habilidoso em suas montanhas nativas, ao Jamie preocupava a fauna desconhecida do Novo Mundo.

-Mmm. -A preocupação quase se apagou de seu rosto-. Pode ser. Mas e os outros animais? Não acredito que eu gostasse de me enfrentar a um urso ou a um grupo de selvagens só com isto -disse tocando o comprido faca que pendurava de seu cinturão.

A falta de armas tinha preocupado ao Jamie durante nossa viagem desde a Georgia e agora Ian havia tornado a lhe recordar o tema. Além disso da faca do Jamie, Fergus tinha uma pequena navalha que servia para cortar cordas. A viagem ao norte se fazia imprescindível, já que não tínhamos dinheiro. Cape Fear era o assentamento escocês maior das colônias, com muitos povos formados por imigrantes dos últimos vinte anos. E entre eles estavam os parentes do Jamie, que nos ofereceriam refúgio: um teto, uma cama e tempo para nos estabelecer neste novo lugar.

Jamie bebeu outro gole e fez um gesto ao Duncan.

-Devo dizer que estou de acordo contigo, Duncan. –tornou-se para trás apoiando-se contra a parede e Lançou um olhar indiferente pelo lugar-. Não sente uns olhos em suas costas?

-Os olhos de quem? -perguntei com um olhar nervoso.

-De qualquer, Sassenach -respondeu Jamie. Me olhou de esguelha e sorriu-. Não ponha cara de medo. Não estamos em perigo. Aqui não.

-Ainda não -disse Innes, servindo-se outra jarra de cerveja-. MAC Dubh chamou o Gavin quando o foram pendurar. Alguns têm que havê-lo notado, não é tão pequeno -acrescentou.

-E os granjeiros que vieram conosco desde a Georgia já teriam vendido sua mercadoria e devem estar em alguma botequim. Todos são homens honrados, mas falarão, Sassenach. É uma boa história, não? Os que apareceram com o furacão. E quantas são as possibilidades de que, ao menos um, pergunte-se o que trazíamos?

-Já vejo —murmurei.

Tínhamos atraído a atenção pública por nossa relação com um criminoso e já não podíamos passar por viajantes comuns.

Jamie levantou sua jarra e bebeu um bom gole, logo a deixou com um suspiro.

-Não, não seria inteligente ficar na cidade. vamos ocupar nos de enterrar decentemente ao Gavin e logo procuraremos um lugar seguro no bosque para dormir. Amanhã decidiremos se vamos ou ficamos.

A porta do botequim se abriu de repente e quatro casacas vermelhas se abriram passo entre a gente. Levavam o uniforme completo e o fuzil com a baioneta imersão fazia evidente que não estavam ali para tomar uma cerveja ou jogar aos jogo de dados.

Jamie parecia tranqüilo bebendo sua cerveja, mas a mão apoiada em minha coxa se esticou. Duncan, com mais dificuldade para dissimular seus sentimentos, inclinou a cabeça para ocultar sua expressão. Nenhum homem se sentia cômodo ante a presença dos casacas vermelhas, por muitas e boas razões.

Quando os soldados se dirigiam para a saída, a magra figura do Fergus se apertou contra a porta para evitar que o empurrassem.

Um dos soldados observou com interesse o brilho do gancho de ferro que Fergus usava para substituir sua mão esquerda. O olhou de esguelha e seguiu a seus companheiros.

Fergus caminhou entre a gente e se deixou cair no banco, ao lado do Ian. Estava irritado e acalorado.

-Asqueroso salaud—disse sem preâmbulos.

Jamie arqueou as sobrancelhas.

-O clérigo -explicou Fergus agarrando a jarra que Ian empurrava em sua direção para, ato seguido, esvaziá-la-. Quer dez xelins por enterrá-lo no cemitério. É uma igreja anglicana, é obvio, aqui não há Iglesias católicas.Imundo agiota! Sabe que não temos opção. O corpo agüentará até pôr-do-sol.

Fez gestos para atrair a atenção da mulher que servia.

-Disse a esse gordo seboso que você decidiria se pagaríamos ou não. depois de tudo, poderíamos enterrá-lo no bosque. Embora teríamos que conseguir uma pá –acrescentou com o rosto carrancudo-. Todos esses camponeses sabem que somos estrangeiros e tratarão de nos tirar até a última moeda.

A última moeda, um pouco perigosamente próximo à verdade. Tinha dinheiro suficiente para pagar uma comida decente e mantimentos para a viagem, talvez até para pagar um par de noites em uma estalagem. Isso era tudo. Vi o olhar do Jamie percorrendo o lugar, calculando as possibilidades de ganhar um pouco de dinheiro no jogo.

-O que tem feito com o Gavin? -perguntou Jamie.

Fergus moveu um ombro.

-Está no carro. Troquei as roupas que levava por um sudário e a trapera aceitou lavar o corpo como parte do trato.

-Sorriu fracamente-. Não se preocupe, senhor, está bem. por agora —acrescentou, levando a jarra a sua boca.

-Pobre Gavin.

Duncan Innes levantou sua jarra como uma saudação a seu camarada morto.

-Slainte -respondeu Jamie e levantou sua jarra.

-Não gostaria que o enterrassem no bosque.

-por que? -perguntei intrigada-. Acreditava que lhe daria o mesmo uma coisa que outra.

-OH, não, não podemos fazer isso, senhora Claire.

Duncan sacudia a cabeça com ênfase.

-Tinha-lhe medo à escuridão -explicou brandamente Jamie.

Voltei-me para olhá-lo e me sorriu-. Vivi com o Gavin Hayes quase tanto tempo como contigo, Sassenach, e em lugares com muito menos espaço.

-Tinha medo de estar sozinho na escuridão –interveio Duncan-. Tinha um medo mortal aos tannagach, os espíritos.

Seu comprido rosto sombrio mostrava uma expressão reflexiva e soube que estava rememorando a cela que tinha compartilhado com o Gavin e outros quarenta homens durante três largos anos.

-Recorda, MAC Dubh, o que nos contou uma noite sobre seu encontro com o tannasq?.

-É claro que sim, Duncan, e desejaria não fazê-lo. -Jamie se estremeceu pese ao calor-. Fiquei acordado parte da noite, depois de que terminasse sua história.

-E como foi, tio?

Ian o observava com os olhos muito abertos.

-Ah, bom, era a finais de um frio outono, nas montanhas, justo quando troca a estação e o ar anuncia que gelará ao amanhecer. Não como aqui. Bom, o filho do Gavin encerrou as vacas aquela noite, mas faltava uma; o moço a buscou pelas colinas e ladeiras, mas não pôde encontrá-la. Então Gavin o enviou a ordenhar às outras e saiu a procurá-la. »Andou certa distância e a cabana, que estava a suas costas, desapareceu; não podia ver a luz da janela e o único som era o do vento. meteu-se em um bosquecillo que viu através da névoa pensando que a vaca podia haver-se refugiado ali. Mas em realidade, era um círculo de árvores, com um montículo de pedras no centro.

Embora no botequim fazia calor, senti como me gelava as costas. Tinha visto aqueles antigos montículos nas montanhas de Escócia e eram fantasmales até em pleno dia.

-Gavin disse que se sentiu muito estranho. Conhecia o lugar; todos o conheciam e se mantinham afastados dali. Era um lugar estranho e parecia mais lúgubre pela escuridão e o frio. Estava feito com placas de rochas rodeadas de pedras que lhe deixavam ver a abertura negra da tumba. »Sabia que era um lugar onde os homens não deviam ir. Não tinha nenhum amuleto, unicamente uma cruz de madeira pendurando do pescoço; fez o sinal da cruz se com ela e se voltou para ir-se.

Jamie fez uma pausa para beber.

-Mas quando Gavin se afastava do montículo, ouviu passos a suas costas.

Ian tragou com dificuldade.

-Não se deu a volta para olhar -continuou Jamie-, mas sim seguiu caminhando enquanto os passos ressonavam detrás dele. Caminhou e caminhou através da noite escura e fria, procurando a luz da janela onde sua esposa sempre deixava uma vela acesa. Mas não aparecia e começou a temer que se perdeu. Os passos seguiam ressonando, até que finalmente não pôde suportá-lo mais e, sujeitando o crucifixo, deu-se a volta com um grito, disposto a enfrentar-se com o que fora.

-O que é o que viu?

Ian tinha as pupilas dilatadas, obscurecidas pelo álcool e o assombro. Jamie fez um gesto ao Duncan para que continuasse o relato.

-Disse que era a silhueta de um homem, mas sem corpo -explicou Duncan-. Tudo branco, como feito com névoa e com grandes buracos no lugar dos olhos, por onde lhe arrancariam a alma do corpo.

-Levantou a cruz ante sua cara e rezou em voz alta à a Santa Virgem -disse Jamie retomando a história-. E aquele ser não se aproximou mais, mas sim ficou ali, observando-o. Então começou a caminhar para trás, sem dá-la volta. Não sabia quanto caminhou, mas lhe tremiam as pernas pela fadiga quando finalmente divisou uma luz entre a bruma; ali estava sua cabana, com a vela na janela. Gritou de alegria e se dirigiu à porta, mas aquilo era mais rápido e lhe adiantou. Sua esposa o tinha estado esperando e quando lhe ouviu gritar, foi até a porta. Gavin, a gritos, disse-lhe que não saísse, que pelo amor de Deus procurasse um talismã para afastar o tannasq. Rápida como o vento, tirou a panela que estava debaixo da cama e um ramo de mirto pacote com uma cinta negra e vermelha, que tinha preparado para benzer as vacas. Arrojou a água contra a porta e aquilo retrocedeu. Gavin correu e, ao entrar, trancou a porta e permaneceu abraçado a sua esposa até o amanhecer. Deixaram que a vela ardesse toda a noite e Gavin não voltou a sair de sua casa depois da queda do sol; até que partiu para lutar pelo príncipe Tearlach. Agora, Gavin se foi à escuridão -concluiu Jamie-. Mas não o deixaremos fora do cemitério.

-Encontraram a vaca? -perguntou Fergus, com seu praticamente.

Jamie levantou uma sobrancelha para que Duncan respondesse.

-Ah, sim, fizeram-no! À manhã seguinte encontraram ao pobre animal talher de barro e pedras, com o olhar enlouquecido e os lombos machucados. -Nos olhou de esguelha antes de continuar-. Gavin dizia que parecia como se houvesse tornado do inferno.

-O que aconteceu com eles? -Ian deixou sua jarra sobre a mesa-. À esposa e ao filho do Gavin?

Os olhos do Jamie se encontraram com minha e sua mão me tocou a coxa. Sabia, sem que ninguém me houvesse isso dito, acontecido-o com a família do Hayes. Sem o valor e a determinação do Jamie, o mesmo me tivesse ocorrido e a nossa filha Brianna.

-Gavin não soube -disse Jamie com calma-. Nunca soube nada de sua esposa; deveu morrer de fome ou de frio. Seu filho desapareceu no Culloden. Sempre perguntava a todos pelo Archie Hayes, mas nunca obteve resposta sobre seu destino.

Jamie bebeu um gole de cerveja com os olhos fixos em um par de oficiais britânicos que estavam em um rincão.

-Às vezes confiava em que o moço tivesse sido capturado e deportado. Como seu irmão.

-Não havia nada nas listas? Eles tinham listas, não?

-É claro que sim -respondeu Jamie sem deixar de olhar aos soldados. Um pequeno sorriso de amargura apareceu em seu rosto-. Uma dessas listas me salvou, depois do Culloden, quando me perguntaram meu nome antes de me fuzilar. Mas um homem como Gavin não tinha possibilidades de ver as listas de mortos dos ingleses. E acredito que de ter podido, não o tivesse feito. Preferiria inteirar-se, se fosse seu filho?

Neguei com a cabeça e sorriu enquanto oprimia minha mão. depois de tudo, nossa filha estava a salvo. Fez um gesto a jovem garçonete, quem nos trouxe a comida evitando tropeçar com Cilindro. Ao notá-lo, Jamie Lançou um olhar dúbio ao animal que chamavam cão.

-Terá fome? Tenho que pedir pescado para ele?

-Ah, não, tio -assegurou Ian-. Cilindro procura seus próprios peixes.

Jamie arqueou as sobrancelhas e com um olhar a Cilindro, serve-se um prato de ostras cozidas.

-Que lástima que um homem como Gavin terminasse assim -lamentou-se Duncan, já quase bêbado-. Sem família que o chore, em uma terra selvagem, pendurado como um criminoso e a ponto de ser enterrado em qualquer site. Nem sequer terá uma oração fúnebre... Bom, terá um caithris por que não? -disse, olhando desafiante a seus companheiros.

Jamie não estava bêbado, mas tampouco totalmente sóbrio. Sorriu ao Duncan e levantou sua jarra.

-por que não? Mas terá que cantar você, Duncan. O resto não conhecia o Gavin e eu canto muito mal.

Duncan assentiu com autoridade e, sem prévio aviso, jogou a cabeça para trás e emitiu um horrível uivo. Saltei de meu assento, me atirando cerveja sobre a saia. Os paroquianos moveram seus bancos, ficaram em pé e tiraram as armas. Cilindro despertou com um ruidoso grunhido e olhou com olhos ferozes e ensinando os dentes.

Duncan cantou com sua ensurdecedora voz de barítono; o pouco que sabia de gaélico me permitiu traduzir: «Reunimo-nos para gemer e chorar aos céus a perda de nosso amigo, Gavin Hayes».

O coro repetia: «Escutem!». Ao Jamie, uniram-se Ian e Fergus.

Cilindro parecia indiferente aos cantos e ficou com as orelhas papa enquanto seu amo lhe acariciava a cabeça lhe acalmando.

A gente, ao ver que não havia nenhuma ameaça de violência, decidiu desfrutar de do espetáculo e acompanhar o coro.

Duncan, cada vez mais bêbado, Lançou um olhar maligno para os soldados da mesa próxima e começou a cantar insultos em gaélico contra os ingleses: «Malditos cães estrangeiros, comilões de carne morta que riem e regozijam pela morte de um homem bom. Que o mesmo diabo lhes busque na hora da morte para lhes levar direitos ao inferno».

Ian ficou pálido e Jamie Lançou um olhar ao Duncan, mas seguiram cantando o estribilho com o resto dos paroquianos.

Fergus, com uma súbita inspiração, levantou-se e passou o chapéu entre os clientes, quem, alegres pela cerveja, atiravam-lhe moedas, pagando pelo privilégio de que os condenassem ao inferno.

Eu tenho tão boa cabeça para a bebida como a maioria dos homens, mas uma bexiga mais pequena. Com a cabeça cheia de fumaça e ruído, tanto como de álcool, levantei-me para sair ao ar fresco do entardecer.

Dentro, o canto do Duncan tinha terminado. Uma voz de tenor, doce mas turvada pelo álcool, cantava uma melodia familiar que se ouvia por cima das conversações.

Uma vez que esvaziei minha taça, fiquei imóvel, esperando a que saíssem os homens.

 

                   Quando nos encontramos um fantasma

-Dez, onze, doze... e dois, e seis... uma libra, oito xelins, seis peniques e dois quartos de penique. -Fergus deixou cair, ceremoniosamente, a última moeda na bolsa, ajustou os cordões e a entregou ao Jaime-. E três botões –acrescentou-, mas me fico.

-Já arrumaste com o patrão o de nossa comida? -perguntou Jamie, sopesando a bolsita.

-Sim –disse-. Ficam quatro xelins e seis peniques, além do que juntou Fergus.

Este sorria com modéstia.

-Então temos o dinheiro necessário para o enterro –disse-. Levamos agora ao Monsieur Hayes ao clérigo, ou esperamos até manhã?

Jamie olhou o carro com o cenho franzido.

-Não acredito que esteja acordado a esta hora -comentou, olhando a lua-. Entretanto...

-Não quero ser grosseira -pinjente, com uma desculpa dirigida ao carro-. Mas se formos dormir no bosque, o aroma...

-A tia Claire tem razão -opinou Ian, esfregando-a nariz-. E se o deixamos na porta da estalagem, envolto no sudário?

A boca do Jamie se curvou em uma careta de diversão.

-Não -respondeu-. Não o vamos deixar aqui.

Balançou a bolsita e a guardou em seu casaco com gesto decidido.

-Enterraremo-lo nós mesmos -afirmou-. Fergus, pode ir ver se conseguir uma pá troca?

A curta viagem para a igreja, através das tranqüilas ruas do Charleston, foi menos solene que os habituais cortejos fúnebres, apesar da insistente repetição do Duncan das partes mais interessantes de seu canto fúnebre.

A igreja estava situada em uma rua tranqüila, a certa distância da casa mais próxima. Isso estava bem para evitar que nos vissem, mas também significava que o cemitério careceria de luz.

Grandes magnólias se sobressaíam por cima da entrada. Caminhar por ali era como passar entre cortinas de veludo negro, perfumadas pelo aroma dos pinheiros reaquecidos pelo sol. Nada mais afastado do ar puro das montanhas de Escócia. Alguns farrapos de névoa tampavam as escuras paredes de tijolo e desejei não recordar tão vividamente a história do Jamie sobre o fantasma.

-vamos procurar um lugar adequado. Fique e te ocupe dos cavalos, Duncan.

Jamie se baixou do carro e me agarrou do braço.

-Podemos encontrar um bom site ao lado do muro -disse, me guiando para a entrada-. Ian e eu cavaremos, você sustentará a luz e Fergus fará guarda.

-E Duncan? -perguntei, olhando para trás.

-Será o diretor dos solenes cantos fúnebres -respondeu Jamie com um toque de humor-. Cuidado com sua cabeça, Sassenach.

Automaticamente baixei a cabeça ante um ramo de magnolio; não sabia se Jamie podia ver realmente na escuridão ou se o fazia por instinto, mas nunca o vi tropeçar, por escuro que estivesse.

-Não crie que alguém suspeitará ao ver uma tumba recém cavada?

-Pode ser. Mas se o clérigo queria dinheiro para enterrar ao Gavin, não acredito que se incomode em desenterrá-lo grátis, não crie?

O jovem Ian apareceu de repente a meu lado, me sobressaltando.

-Há um espaço aberto ao lado da parede norte, tio Jaime -disse, falando em voz baixa-. Está muito escuro aqui, não?

A voz do moço soava insegura.

-Assim é, mas tenho um cabo de vela que me levei do botequim; espera um pouco.

ouviu-se o ruído do pederneira e o yesquero.

-É como a vigília de Páscoa -disse Jamie-. Uma vez assisti ao serviço, no Notre me Dê de Paris. Cuidado, Ian, há uma pedra! A igreja estava escura -continuou Jamie-, e quando já acreditava que não ia suportar o silêncio e a quantidade de gente o sacerdote começou a cantar Lumen Christi da porta, e os coroinhas, depois de acender o grande círio, foram acendendo suas velas. -Já podia ver suas mãos pelos brilhos do pederneira-. Então a igreja reviveu pelos milhares de velas acesas, mas foi o círio o que quebrou a escuridão.

Levantou a vela acesa, iluminando as tumbas.

-Lumen Christi -disse brandamente, inclinando a cabeça para uma coluna de granito com uma cruz- et requiescat in pasta, amice.

Sua voz já não tinha tom de brincadeira, falava com total seriedade e me senti extrañamente reconfortada. Sorriu-me e me entregou a vela.

-Busca um pau para fazer uma tocha, Sassenach -disse-. Ian e eu cavaremos por turnos.

Não estava nervosa, mas seguia me sentindo como uma profanadora de tumbas, sustentando a tocha baixo um pinheiro enquanto Ian e Jamie cavavam com as costas nuas brilhando pelo suor.

-Os estudantes de medicina estavam acostumada pagar para que lhes roubassem cadáveres recentes dos cemitérios -comentei, alcançando meu lenço ao Jamie enquanto se endireitava ofegando pelo esforço-. Era a única forma de poder fazer disecciones.

-Faziam-no ou o fazem?

Jamie me dirigiu um rápido olhar zombador. Por sorte, estava muito escuro para que o jovem Ian notasse meu intenso rubor. Não era a primeira vez que me equivocava, nem seria a última.

-Imagino que ainda o fazem -admiti.

-Também usam aos pobres e aos criminosos das prisões -interveio o jovem Ian, aproveitando para tomar uma pausa-. Papai me contou que uma vez o prenderam, levaram-no ao Edimburgo e o tiveram no Tolbooth. Estava na cela com outros três e alguém se estava morrendo de inanição. Deixou de tossir e pensaram que tinha morrido. Papai estava tão cansado, que rezou uma oração por sua alma e ficou dormido.

O moço fez uma pausa e se esfregou o nariz.

-despertou quando alguém lhe atirava das pernas e outro o levantava pelos braços. liberou-se, descobrindo a um médico e a dois homens que o tinham levado a hospital, à sala de disección. Papai dizia que não sabia quem estava mais horrorizado, se ele ou os que o tinham levado. Mas que o médico estava aborrecido porque lhe interessava seu corpo, com sua perna atalho.

Jamie riu, estirando os braços para descansar suas costas.

-Sim, conhecia essa história. depois disso, Ian dizia que todos os médicos eram uns ladrões de cadáveres e que não queria saber nada deles.

Sorriu-me; em meu tempo, eu era médica cirurgiã, mas aqui não era mais que uma curandeira com habilidade para usar ervas.

-Por sorte, não lhe tenho medo aos curandeiros -disse, inclinando-se para me beijar. Logo se endireitou e se deu a volta com um sorriso envergonhado.

Não o esperava mas, é obvio, reconheci-o. Era comum um súbito ataque de luxúria como resposta à presença da morte.

Jamie me tocou nas costas e me sobressaltei, agitando a tocha.

-Sente-se, Sassenach -disse, assinalando uma lápide-. Não deve permanecer tanto tempo em pé.

Tinha-me fraturado a morna durante o naufrágio e embora se curou rapidamente, a perna ainda me doía.

-Estou bem -pinjente, mas me dirigi para a lápide, roçando-o ao passar.

Embora irradiava calor e podia cheirar seu suor quando se evaporava, suas costas nua estava fria ao tato

Sua mão ficou em meu cotovelo ao me ajudar a me sentar sobre a pedra. Cilindro estava jogado; ao ofegar deixava cair gotas de saliva que brilhavam à luz da tocha. Os olhos amarelos me observavam com atenção.

-Nem te ocorra pensá-lo -disse-lhe, lhe devolvendo o olhar-. Se me remoer, colocarei-te o sapato na garganta até te afogar.

Respondeu-me com um grunhido surdo e seguiu atento a qualquer ruído.

Ian cravava a pá na terra e se secava o suor da cara. Deixou escapar um profundo suspiro e olhou ao Jamie com expressão de esgotamento.

-Está bem, espero que seja bastante profunda –respondeu Jamie ante o gesto do moço-. vou trazer para o Gavin.

O rosto do Fergus se crispou com um gesto de preocupação.

-Não te faz falta ajuda para trazer o corpo?

Seu desgosto era evidente. Jamie lhe sorriu com ironia.

-Arrumarei-me isso -disse-. Gavin era um homem pequeno. Mas pode trazer a tocha para nos iluminar.

-Eu também vou, tio! -Ian saiu do fosso com prontidão; suas costas ossuda brilhava pelo suor-. Se por acaso necessita ajuda -acrescentou ofegante.

-Tem medo da escuridão? -perguntou Fergus com sarcasmo.

-Pois fui-dijo simplesmente Ian-. Você não?

Fergus abriu a boca, com as sobrancelhas levantadas; logo se deu a volta e partiu sem responder.

-Não te parece que este lugar é terrível, tia? –murmurou Ian aproximando-se de mim enquanto seguíamos o resplendor da tocha do Fergus-. Não posso deixar de pensar na história que contou tio Jamie. Penso que agora que Gavin está morto, talvez a coisa geada..., quero dizer... Crie que poderia... vir a buscá-lo?

-Não -disse em um tom mais forte do normal. Aferrei a seu braço, nem tanto para me sustentar para lhe dar confiança-. Seguro que não.

Chegamos com bastante alivio ao círculo de luz que formava a tocha. Fazia calor, mas o ar era mais puro e se respirava melhor.

Para minha surpresa, Duncan seguia acordado. Reprimi um bocejo. Desejava terminar com aquela triste tarefa e ir dormir, embora fora sobre um montão de folhas.

Meu coração deu um salto. Todos gritaram ao mesmo tempo e os cavalos se moveram, sacudindo o carro. Cilindro lançou um grunhido, Ian uma exclamação de espanto e, quando olhei para onde assinalava, gritei. Uma pálida figura apareceu do carro, balançando-se.

Não pude ver mais, porque os acontecimentos se precipitaram. Cilindro se lançou a perseguir a figura, animado pelos gritos do Ian e Jaime. Logo se ouviu o grito do fantasma. A minhas costas, Fergus amaldiçoava em francês enquanto corria a procurar sua navalha. Jamie tinha deixado cair a tocha, que parecia a ponto de apagar-se. Caí de joelhos, em um intento desesperado por conservar a luz.

Fergus surgiu da escuridão com a navalha na mão e golpeou ao intruso na cabeça. Logo se voltou para o Ian e Cilindro.

-Você também, quieto! -ameaçou Fergus ao cão-. Quieto ou te rompo a cabeça!

Cilindro soprou, mostrando os dentes com um gesto que eu interpretei como «Você e quantos mais?», mas foi detido pelo Ian, quem o agarrou por cangote.

-De onde saiu? -perguntou Ian surpreso, tratando de olhar ao cansado sem soltar a Cilindro.

-Do inferno -afirmou Fergus-. E ali o convido a que volte.

-Do inferno, não, da forca. Não sabe quem é?

Jamie ficou em pé lentamente, limpando o pó dos calções. Respirava com dificuldade, mas não estava ferido. Olhou ao redor e perguntou:

-Onde está Duncan?

-Aqui, MAC Duhh -disse uma voz rouca na parte dianteira do carro-. Os cavalos não estavam muito contentes com a presença do Gavin e se incomodaram muito com a perspectiva da ressurreição. Eu também me surpreendi um pouco –acrescentou com sinceridade. Olhou a figura atirada no chão e aplaudiu a um dos cavalos-. Ah, não é mais que um patife!

Tinha-lhe entregue a tocha ao Ian e me ajoelhei para inspecionar as feridas de nosso visitante. Jamie tinha razão era o homem que se escapou para que não o enforcassem. Tinha uns trinta anos e um corpo forte e musculoso. Cheirava a prisão e a medo prolongado. O qual não tinha nada de estranho.

Agarrei-o de um braço e lhe ajudei a sentar-se. Gemeu e se levou uma mão à cabeça, entreabrindo os olhos ante a luz.

-Está bem? -perguntei.

-É você muito amável, senhora, mas poderia estar melhor.

Tinha um ligeiro acento irlandês em sua voz suave e profunda.

-Quanto faz que está no carro? -quis saber Duncan.

-Desde esta tarde. -O homem ficou de joelhos, enjoado pelos efeitos do golpe. voltou-se a tocar a cabeça e gemeu-. Subi-me pouco depois de que o gabacho colocasse ao pobre Gavin.

-E onde esteve antes? -perguntou Ian.

-Escondido debaixo da carreta da forca. Foi o único lugar onde pensei que não me buscariam. -ficou em pé com dificuldade e olhou ao Jamie-. Stephen Bonnet. Para lhe servir, senhor.

Não fez ameaça de estender a mão e Jamie tampouco.

-Senhor Bonnet...

Jamie lhe devolveu a inclinação de cabeça com rosto inexpressivo.

Bonnet tinha o que a gente chama «boa planta»: alto, só uns centímetros mais baixo que Jamie, fornido, com facções angulosas e arrumado. Estava tranqüilo, mas com os punhos semicerrados em gesto de alerta.

-por que crime lhe tinham condenado, senhor Bonnet? -perguntou Jamie.

Também parecia tranqüilo, embora tinha uma expressão de alerta muito semelhante a do Bonnet. Eram como dois cães que se observassem com as orelhas papa antes de decidir-se a brigar.

-Contrabando -respondeu Bonnet.

Jamie não respondeu e inclinou ligeiramente a cabeça. Arqueou uma sobrancelha a modo de pergunta.

-E pirataria.

Um músculo de sua boca se crispou em um intento de sorriso ou um involuntário rictus de medo.

-E matou alguma vez ao cometer seus delitos, senhor Bonnet?

O rosto do Jamie era inexpressivo, salvo por seus olhos atentos. Parece-me que duas vezes, dizia simplesmente seu olhar. Talvez três.

-A ninguém que não tratasse de me matar a mim primeiro -respondeu Bonnet.

Jamie contemplou ao Bonnet durante um momento, até que assentiu e deu um passo atrás.

-Então pode ir-se -disse com calma-. Nós não vamos impedir o.

Bonnet respirou aliviado e pude ver como se relaxava.

-Muito obrigado -disse. passou-se uma mão pela cara e voltou a respirar profundamente. Seus olhos verdes se moveram com rapidez, me percorrendo a mim, ao Fergus e ao Duncan-. Talvez queiram me ajudar.

Duncan, tranqüilizado pelas palavras do Jamie, lançou um grunhido de surpresa.

-lhe ajudar? A um ladrão?

-me ajudar -repetiu Bonnet-. Esta noite os soldados me vão procurar pelos caminhos. -Fez um gesto para o carro-. Vocês podem me esconder, se quiserem. -voltou-se para olhar ao Jamie e endireitou os ombros-. Estou-lhes pedindo ajuda, senhor, em nome do Gavin Hayes, que foi meu amigo, como o de vocês, e um ladrão, como eu.

Os homens lhe contemplaram em silêncio, assimilando a informação. Fergus olhou interrogativamente ao Jamie. A decisão era dela.

Jamie, depois de contemplar ao Bonnet, voltou-se para o Duncan.

-O que te parece, Duncan?

-Pela memória do Gavin -respondeu e se dirigiu para a entrada.

-Muito bem -disse Jamie.

Suspirou e se apartou o cabelo da cara.

-nos ajude a enterrar ao Gavin -disse a nossa novo hóspede- e logo iremos.

Uma hora mais tarde, a tumba do Gavin era um retângulo de terra recém removida.

-Tem que figurar seu nome -disse Jamie.

Com a ponta de sua faca, marcou cuidadosamente as letras do nome do Gavin e as datas em uma pedra branda.

Depois a esfreguei com fuligem da tocha e Ian a colocou entre uns calhaus. Jamie pôs em cima o cabo de vela que tinha pego do botequim.

Estávamos incômodos, sem saber como nos despedir, até que Jamie fez um gesto ao Fergus, quem acendeu uma ramita de pinheiro com minha tocha e prendeu a vela.

-Réquiem aeternam doa ei, et lux perpétua luceat ei... -disse Jamie com voz pausada.

O jovem Ian repetiu o mesmo em inglês e logo, sem uma palavra mais, saímos do cemitério.

 

A lua estava alta no céu quando chegamos ao posto de controle militar, fora das muralhas da cidade. Já tínhamos encontrado vários postos similares no caminho, entre o Savannah e Charleston, a maioria compostos por soldados aborrecidos que nos saudavam sem incomodar-se em controlar os passes que trazíamos da Georgia. Embora estávamos sujos e esfarrapados passávamos inadvertidos, já que muito poucos viajantes tinham melhor aspecto.

Entretanto, aquela noite era diferente. Havia oito soldados no posto de vigilância, não dois como era habitual, e todos estavam armados e alerta. As baionetas brilharam à luz da lua ao grito de «Alto! Nome e destino!». Um farol iluminou minha cara, me cegando por um momento.

-James Fraser, rumo ao Wilmington, com minha família e servidores.

A voz do Jamie era tranqüila e suas mãos sustentavam as rédeas com firmeza quando me entregou isso para procurar os passes em seu casaco.

Mantive a cabeça baixa, tratando de parecer cansada e indiferente.

-Viram a alguém pelo caminho, senhor?

O «senhor» foi dito a contra gosto, pois nossa roupa gasta destacava à luz do farol.

-Uma carruagem que se cruzou conosco. Vinha do povo e suponho que o terão visto -respondeu Jamie.

O sargento grunhiu e revisou com cuidado os documentos.

-O que é o que levam?

Devolveu-nos os passes e fez um gesto a um de seus subordinados para que revisasse o carro.

-Costure para a casa -respondeu Jamie, sempre com calma-. Meio veado e uma bolsa de sal. E um cadáver.

O soldado que tinha começado a revisar o carro se deteve de repente. O sargento levantou a cabeça bruscamente.

-Um quê?

-O corpo do homem que penduraram esta tarde. Conhecia-o e pedi permissão ao coronel Franklin para levar-lhe a seus parentes, no norte. Por isso viajamos de noite -acrescentou sutilmente.

-Já vejo. -O sargento aproximou o farol e olhou pensativo ao Jamie. Logo assentiu-. Já recordo. Você lhe chamou no último momento. Um amigo, então?

-Conheci-o faz tempo. Faz alguns anos.

O sargento assentiu sem deixar de olhar ao Jamie e fez um gesto a seu subordinado.

-Joga uma olhada, Griswold.

Griswold, de uns quatorze anos, demonstrou uma notável falta de entusiasmo ante a ordem, mas apartou a lona e levantou o farol para olhar no interior do carro. Tive que fazer um esforço para não me dar a volta e olhar.

-Sim, senhor, é um corpo -informou Griswold-. Com uma mortalha.

Deixou cair a lona com alívio e respirou profundamente.

-Baía a baioneta e crava-o -ordenou o sargento sem tirar os olhos do Jamie.

Devi me mover, porque o sargento me olhou de esguelha.

-vão sujar meu carro -queixou-se Jamie-. O homem estará bastante chateado depois de um dia ao sol, não crie?

O sargento soprou com impaciência.

-Então crava-o na perna. Vamos, Griswold!

Com um marcado ar de desgosto, Griswold preparou sua baioneta e ficou nas pontas dos pés para cumprir sua tarefa.

-Senhor, está bem morto -informou com alivio Griswold-. cravei com força a baioneta e não se moveu.

-Muito bem. -Despediu-se do jovem soldado com um gesto e se dirigiu ao Jamie-. Siga adiante, senhor Fraser. Mas, no futuro escolha seus amigos com mais cuidado.

Os nódulos do Jamie ficaram brancos pela tensão.

Cobrimos uma distância bastante larga antes de que alguém falasse.

-Está ferido, senhor Bonnet? -sussurrou Ian.

-Sim, esse maldito cachorrinho me cravou na coxa. –A voz do Bonnet era baixa mas tranqüila-. Graças a Deus, afastou-se antes de ver o sangue. Os mortos não sangram.

-Está ferido gravemente? Quer que vá examinar lhe?

-Não, muito obrigado, senhora. Enfaixei-me com o meia três-quartos e espero que seja suficiente.

-Acredita que poderá caminhar?

Jamie reduziu a marcha dos cavalos e se deu a volta para olhar a nossa hóspede.

-Com facilidade, não. Sinto muito, senhor.

Bonnet se dava conta do desejo do Jamie de livrar-se dele. Com alguma dificuldade, endireitou-se no carro, levantando o joelho da perna sã. Na escuridão quase não podia vê-lo, mas podia cheirar o sangue, mais forte que o aroma que despedia a mortalha do Gavin.

-Uma sugestão, senhor Fraser. Em três milhas chegaremos ao caminho do embarcadero. Mais à frente do caminho transversal há outro que leva a costa. Este nos levará até o bordo de um riacho com saída para mar. meus sócios ancorarão ali esta semana. Se me derem algumas provisões poderei esperá-los com razoável segurança.

-Sócios? Quer dizer piratas?

O tom do Ian tinha algo de chateio. depois de que os piratas o seqüestrassem em Escócia não os considerava nada românticos, como tivesse sido normal aos quinze anos.

-Isso depende de como o olhe, moço –respondeu Bonnet com humor-. Os governadores da Carolina seguro que nos consideram assim; os comerciantes do Wilmington e Charleston talvez nos olhem de outra forma.

Jamie soprou com desprezo.

-Contrabandistas, né? E com o que comercializam seus sócios?

-Com algo que tenha um preço que faça que valha a pena o risco. -O tom do Bonnet continuava sendo divertido mas agora estava tingido de cinismo-. Deseja algum premio por sua ajuda? Isso pode arrumar-se.

-Não o busco -respondeu Jamie com frieza-. Ajudei-lhe pela memória do Gavin e porque quis. Não vou procurar uma recompensa por esse serviço.

-Não quis lhe ofender, senhor.

-Não o fez -respondeu Jamie, cortante.

depois deste intercâmbio, a conversação terminou, embora Bonnet seguiu ajoelhado na parte de atrás, olhando por cima de meu ombro para o caminho escuro.

Jamie agarrou as rédeas com sua mão esquerda e me passou o outro braço para que descansasse sobre seu ombro. como sempre, sentia-me segura quando o tocava. Imediatamente me amodorré, conseqüência da combinação de profundo esgotamento e a impossibilidade de estar deitada.

Abri os olhos em uma ocasião e vi o Duncan Innes caminhando ao lado do carro, com a cabeça inclinada, sumido em profundos pensamentos. Logo os fechei novamente, mesclando os sucessos do dia com fragmentos de sonhos dispersos.

Despertei quando Jamie me sacudiu brandamente.

-Será melhor que vá atrás e te deite, Sassenach-disse-. Move-te muito e temo que termine dormindo no caminho.

Aceitei dormitada e me coloquei atrás, trocando o site ao Bonnet para me pôr perto do jovem Ian. Cheirava a umidade e a coisas piores. Ian tinha a cabeça apoiada em uma parte de veado, envolto com sua pele. Cilindro estava melhor, descansando sua cabeça sobre o estômago do Ian. Eu escolhi a bolsa de couro com sal. O couro me raspava a bochecha mas ao menos não cheirava mau.

Não posso dizer quanto tempo dormi, com um sonho profundo, esgotada pelo calor e todos os esforços do dia. Despertei quando trocou o ritmo do carro.

Bonnet e Jamie conversavam sobre voz baixa, com mais afabilidade, passada a primeira desconfiança.

-Você disse que me tinha salvado pela memória do Gavin e porque tinha querido -dizia Bonnet com voz suave mas audível por cima do ruído das rodas-. Se me perdoar a pergunta, o que quis dizer com isso, senhor?

Jamie não respondeu em seguida; quase voltei a dormir antes de que falasse.

-Ontem à noite não deveu dormir muito, não? Sabendo o que lhe esperava durante o dia...

Bonnet riu pelo baixo, sem muitas vontades.

-Certo -disse-, duvido que o esqueça.

-Eu tampouco. -Jamie disse algo em gaélico aos cavalos e diminuíram a marcha-. Em uma ocasião passei uma noite assim, sabendo que me foram pendurar pela manhã. E entretanto vivi, graças a alguém que correu um grande risco para me salvar.

-Já vejo -murmurou Bonnet-. Então você é um asgina ageli.

-Sim? Gesso o que é?

-É um término que usam os índios, os cherokee das montanhas. Aprendi-o de um que me servia de guia. Quer dizer «meio fantasma», alguém que devia morrer mas segue na terra: uma mulher que sobrevive a uma enfermidade mortal, um homem que escapa das mãos de seus inimigos. Dizem que tem um pé na terra e o outro no mundo dos espíritos. Pode falar com eles e ver os nunnahee, a Gente Pequena.

-Gente Pequena? Como os duendes?

Jamie parecia surpreso.

-Algo pelo estilo. Os indígenas dizem que os nunnahee vivem dentro das rochas, nas montanhas, e saem para ajudar a sua gente em tempo de guerra ou outras desgraças.

-Parecem os contos das montanhas de Escócia, o antigo folclore.

-Em efeito -respondeu divertido Bonnet-. Bom, por isso ouvi sobre os montanheses de Escócia, não há muita diferença entre sua conduta Bárbara e a dos corte vermelhas.

-Tolices -disse Jamie, sem indício de ofensa-. Os selvagens se comem o coração de seus inimigos, conforme ouvi. Eu prefiro um bom prato de aveia cozida.

-Você é das montanhas de Escócia? Bom, devo dizer que, para ser um bárbaro, encontro-o muito civilizado -assegurou Bonnet com voz risonha.

-Sinto-me extremamente agradecido por sua opinião, senhor -respondeu Jamie com a mesma amabilidade.

Quando nos detivemos, a lua estava por debaixo das árvores.

-Busca um lugar para dormir, Sassenach -disse Jamie, me ajudando a baixar do carro-. vou ocupar me das provisões de nossa hóspede para que fique em caminho, e de que os animais possam pastar.

-Não poderei dormir até que me banhe -pinjente, tocando minha roupa suja e suada-. Sinto-me horrível.

Meu cabelo estava pego pelo suor e me picava todo o corpo pela sujeira. A água, embora escura, parecia fria e tentadora. Jamie olhou o rio.

-Não posso dizer que te culpe. Mas vê com cuidado; Bonnet diz que o canal é muito profundo e a corrente muito forte.

-Ficarei perto da borda. -Assinalei uma curva do rio-. Vê esse lugar? Aí deve haver um remanso.

-Está bem. Vê com cuidado -disse outra vez e me apertou o braço a modo de despedida.

Quando ia partir me, uma figura apareceu ante mim; era nossa hóspede, com uma das pernas das calças manchada de sangre seca.

-Para servi-la, senhora -disse, fazendo uma incrível reverencia em que pese a sua perna ferida-. Posso lhe dizer agora adeus?

Estava mais perto de mim do que tivesse querido e tive que reprimir minha necessidade de dar um passo atrás.

-Sim, claro -pinjente-. Boa sorte, senhor Bonnet.

-Agradeço-lhe seus bons desejos -respondeu brandamente-. Mas tenho descoberto que, freqüentemente, é o homem o que se busca sua boa sorte. boa noite, senhora.

inclinou-se uma vez mais e partiu.

Jamie grunhiu para si.

-Bom, reconheço que tive minhas dúvidas com esse homem -disse como se respondesse uma pergunta que eu não lhe tinha feito-. Espero ter sido bando de coração e não falto de julgamento, por lhe ajudar.

-depois de tudo, não podia deixar que lhe pendurassem -pinjente.

-OH, sim. Podia -disse, me surpreendendo-. A Coroa não sempre se equivoca, Sassenach. A maioria das vezes, o homem que termina pendurado da corda é porque o merec. E eu não gostaria de pensar que ajudei a que um malfeitor ficasse em liberdade. -encolheu-se de ombros, apartando o cabelo da cara-. Bom, já parece. vá banhar te, Sassenach. Irei contigo logo que possa.

Pu-me nas pontas dos pés para beijá-lo e senti seu sorriso.

-Poderá esperar desperta, Sassenach?

-Todo o tempo que seja necessário -assegurei-. Mas date pressa, quer?

 

Baixo os salgueiros havia uma pequena esplanada coberta de erva. Tirei-me a roupa com lentidão, desfrutando da brisa, até que fiquei nua em meio da noite. Entrei na água com cuidado. Estava surpreendentemente fria, geada em contraste com o ar caloroso da noite. O fundo baixo meus pés era de barro, mas se transformava em areia fina. A água era fresca e doce. Bebi e me molhei a cara, limpando o pó de minha garganta e meu nariz.

Podia sentir o suave movimento da corrente golpeando minhas pantorrilhas e me empurrando para a borda. Mas ainda não estava lista para sair. Não tinha sabão; pu-me de joelhos, enxagüei-me o cabelo várias vezes e me esfreguei o corpo com areia até que minha pele ficou resplandecente.

Finalmente subi a uma plataforma rochosa e fiquei recostada, como uma sereia à luz da lua. O ar quente e as pedras reaquecidas pelo sol eram um delicioso alívio para meu corpo gelado. Sentia-me muito cansada e, ao mesmo tempo, muito viva, em um estado de semiconsciencia onde o pensamento diminui e as pequenas sensações físicas se magnificam.

O lugar parecia mágico. Um suave chapinho me fez olhar para a água. Nada se movia na superfície salvo os débeis resplendores das estrelas, como vaga-lumes apanhadas no tecido de uma aranha.

Enquanto observava, uma grande cabeça surgiu da água. Havia um peixe nas fauces de Cilindro, agitando-se até que o cão sacudiu a cabeça e o partiu. O enorme cão nadou lentamente até a borda, sacudiu sua pelagem e se afastou com o jantar pendurando da boca. deteve-se um momento, me olhando.

Como uma pintura primitiva, pensei; um pouco do Rousseau, com o contraste de sua profunda selvageria e uma imobilidade total.

O cão desapareceu e na borda não ficaram mais que as árvores, escondendo o que estivesse oculto atrás deles. E o que podia ser?, perguntei-me. Mais árvores, respondeu a parte lógica de minha mente. E muitas coisas mais.

depois de tudo, era um mundo novo, livre de temores e cheio de alegria agora que Jaime e eu estávamos juntos, com toda nossa vida por diante. Separação e dor ficavam atrás. Nem sequer pensar na Brianna me causava pesadumbre.

Sentia saudades muitíssimo e pensava nela continuamente, mas sabia que se encontrava a salvo em seu próprio tempo e isso convertia sua ausência em algo fácil de suportar.

Os insetos eram uma praga constante. Inspecionava a pele do Jaime cada manhã, tirava-lhe carrapatos vorazes e pulgas e lubrificava generosamente aos homens com suco de poleo e folhas de tabaco amassadas. Isso impedia que fossem devorados vivos pelas nuvens de mosquitos e zancudos, mas não repelia as hordas de insetos que os enlouqueciam metendo-se em orelhas, olhos, narizes e bocas.

Por estranho que pareça, a maioria dos insetos me deixavam tranqüila. Ian brincava, dizendo que o forte aroma das ervas que levava pendurando devia rechaçá-los. Mas eu pensava que era por outra coisa; mesmo que estava recém banhada, os insetos não mostravam interesse por mim.

Mas bem acreditava que era devido a uma particular manifestação da evolução que, supunha, protegia-me de resfriados e outras doenças menores.

-Ou possivelmente Ian tenha razão -disse em voz alta- e simplesmente tenho um aroma horrível.

Desejava que Jamie chegasse logo. Aqueles dias de viagem em carro, sentada a seu lado, observando as mudanças de seu corpo enquanto conduzia, os ângulos de seu rosto enquanto falava e sorria, eram suficientes para fazer que as mãos me ardessem pelo desejo de tocá-lo. Fazia vários dias que não fazíamos o amor.

Fechei os olhos, me acariciando com suavidade, desfrutando da sensação de crescente desejo.

-Onde diabos está, Jamie Fraser? -murmurei.

-Aqui -chegou a resposta de sua voz rouca.

Sobressaltei-me e abri os olhos de par em par. Estava parado em meio da corrente, a uns dois metros, com as coxas na água e os genitálias rígidos, escuros em contraste com o pálido brilho de seu corpo. Tinha o cabelo solto sobre os ombros, emoldurando um rosto pálido como o osso, com o olhar tão fixo e intenso como a do cão lobo. Uma profunda selvageria e uma imobilidade total.

Então se moveu para aproximar-se. Suas coxas estavam frios como a água quando me tocou, mas em poucos segundos se esquentou e aumentou seu ardor. Quando suas mãos tocaram minha pele, a cálida umidade molhou meus seios, que se incharam ao sentir a dureza de seu peito.

-Sua boca é úmida e escorregadia como seu sexo -murmurou e moveu a língua para lamber as gotitas de minha cara.

Notava a dureza da rocha que tinha debaixo.

-Não posso esperar -ofegou.

-Não o faça -respondi, rodeando sua cintura com minhas pernas-. Tinha ouvido falar de derreter-se de paixão -pinjente ofegando-, mas isto é ridículo.

Levantou a cabeça de meus peitos, fazendo um débil som ao apartar sua bochecha molhada. Riu e se voltou de lado.

-A puta, que calor faz!

Passou-me os braços ao redor e girou com a graça pesada de um tronco; rodamos pelo bordo da plataforma até cair à água.

 

Atiramo-nos sobre a rocha, frescos e úmidos, quase sem nos tocar, enquanto as últimas gotas de água se evaporavam de nossa pele. Ao outro lado do riacho, os salgueiros arrastavam suas folhas pela água, como ondulantes coroa negras contra o ocaso da lua.

Jamie viu que olhava o bosque e adivinhou meus pensamentos.

-Suponho que já não é como a última vez que esteve aqui.

-Bom, sim, um pouco. -Enlacei nossas mãos e acariciei seus ossudos nódulos com o polegar-. Os caminhos estavam asfaltados, não empedrados, talheres de uma matéria Lisa e dura, inventada por um escocês chamado MacAdam.

Grunhiu e me olhou com expressão zombadora.

-Então, haverá escoceses na América? Fabuloso.

Passei por cima seu comentário e continuei.

-Haverá muita classe de gente. Tudo estará ocupado, daqui até um lugar chamado Califórnia, na costa Oeste.

Mas por agora -estremeci-me, pese ao ar quente- são quarenta e oito mil quilômetros de terra virgem.

-Bom, nada, salvo milhares de selvagens sedentos de sangue -disse com praticamente-. E sem esquecer aos estranhos animais selvagens.

-Bom, sim, suponho que também -aceitei.

Era uma idéia inquietante. É obvio que sabia, de forma vaga e acadêmica, que os bosques estavam povoados por índios, ursos e outros habitantes do lugar; mas essa noção geral se via repentinamente substituída pela particular sensação de que podíamos, fácil e inesperadamente, nos encontrar cara a cara com algum daqueles residentes.

-O que aconteceu com eles? Com os índios selvagens? -perguntou Jamie com curiosidade enquanto, como eu, tratava de adivinhar o futuro entre as sombras-. Derrotaram-nos e os jogaram, não?

Senti outro calafrio e meus pés se crisparam.

-Sim, assim foi -respondi-. Mataram a muitíssimos e outros foram encarcerados.

-Bom, isso está bem.

-Suponho que depende do ponto de vista -disse com tom cortante-. Não acredito que os índios pensassem o mesmo.

-Não o duvido -respondeu-. Mas quando um maldito louco tenta me arrancar o couro cabeludo, não me preocupa muito seu ponto de vista, Sassenach.

-Bom, mas realmente não pode lhes culpar -protestei.

-Claro que posso -assegurou-me-. Se um desses brutos te arrancasse o couro cabeludo, é obvio que o culparia.

-Ah... mmm -esclareci-me garganta-. Bom, e se um grupo de desconhecidos aparece, trata de te matar e de te tirar a terra onde viveste sempre?

-Fizeram-no -afirmou com dureza—. Se não o tivessem feito, ainda estaria em Escócia, não é assim?

-Bom... -disse com certa insegurança-. Mas o que quero dizer é que, nessas circunstâncias, você também lutaria. Ou não?

Aspirou profundamente e soltou o ar pelo nariz.

-Se um inglês vier a minha casa e começa a me perseguir -disse cuidadosamente-, claro que brigarei contra ele. E não vacilarei em matá-lo. Mas não lhe arrancaria o cabelo, nem tampouco comeria suas partes íntimas. Não sou um selvagem, Sassenach.

-Eu não disse que fosse -protestei-. Tudo o que pinjente foi...

-Por outra parte -acrescentou com uma lógica inexorável-, não tenho intenções de matar a nenhum índio. Se não se meterem comigo, eu tampouco lhes incomodarei.

-Estou segura de que se sentirão aliviados quando o souberem -murmurei.

-Crie que te cansará de mim quando nos instalarmos? -murmurou.

-Estava-me perguntando o mesmo, sobre ti.

-Não. -E pude sentir o sorriso em sua voz-. Isso não passará, Sassenach.

-Como sabe? -perguntei.

-Não sabia -fez notar-. Mas estivemos casados três anos, e te desejei tanto o último dia como o primeiro. Talvez mais -disse brandamente, pensando, como eu, na última vez que tínhamos feito o amor, antes de cair à água.

Inclinei-me para beijá-lo. Tinha um gosto limpo e fresco, com um leve aroma a sexo.

-Eu também.

-Então, não se preocupe por isso, Sassenach; eu tampouco o farei. -Acariciou-me o cabelo, apartando os cachos molhados de minha frente-. Embora te conhecesse de toda a vida acredito que sempre te amaria. E apesar de todas as vezes que temos feito o amor, ainda me surpreende, como esta noite.

-Ah, sim? Mas o que é o que tenho feito? -contemplei-lhe, surpreendida.

-Ah... bom. Quero dizer... é que...

De repente, parecia tímido.

-Mmm?

Beijei a ponta de sua orelha.

-Né... quando cheguei a seu lado... o que estava fazendo... quero dizer... Estava fazendo o que penso?

Sorri na escuridão.

-Suponho que isso depende do que pense, não?

-Você sabe bem o que penso, Sassenach.

-Sei. E você sabe perfeitamente o que estava fazendo. Assim para que perguntas?

-Bom, é que... não acreditava que as mulheres fizessem essas coisas.

-Bom, os homens o fazem -assinalei-. Ou, ao menos, você o fazia. Contou-me que quando estava na prisão, você...

-Isso é diferente! depois de tudo, não podia fazer outra coisa.

-Não o tem feito em outras ocasiões?

-Sim, bom -murmurou, ruborizando-se-. Suponho que sim.

-Um súbito pensamento fez que seus olhos se dilatassem ao me olhar-. Tem-no feito... muitas vezes?

-Suponho que depende do que queira dizer com «muitas» -respondi com um toque de aspereza-. Sabe que fui viúva durante dois anos.

esfregou-se a boca com os nódulos, me examinando com interesse.

-Assim é isso. É só que, bem, não tinha pensado que as mulheres fizessem essas coisas. -A fascinação ultrapassava sua surpresa-. Pode terminar? Quero dizer, sem um homem?

Lancei uma gargalhada cujos ecos ressonaram entre as árvores.

-Sim, mas é muito mais bonito com um homem -assegurei.

Estirei-me para lhe tocar o peito e beijá-lo-. Muito mais –acrescentei com suavidade.

-Ah! -disse com alegria-. Isso está bem, verdade?

-Sinto-me como Eva -murmurei, observando a lua sobre a escuridão do bosque-. No Jardim do Éden.

Sua risada zombadora soou perto de meu umbigo.

-Então, suponho que eu sou Adão -disse Jamie- nas portas do Paraíso. -Voltou a cabeça para olhar com saudade para o desconhecido e logo apoiou a bochecha sobre meu ventre-. Mas desejaria saber se estou entrando ou saindo.

Ri-me, surpreendendo-o. Então, agarrei-lhe das orelhas lhe obrigando a cobrir meu corpo.

-Entrando -pinjente-. E depois de tudo, não vejo um anjo com sua espada levantada.

deixou-se cair sobre meu corpo, com sua pele calenturienta, e me estremeci.

-Não? –murmurou-. Suponho que não olhaste bem.

Então a espada entrou em meu corpo e me alagou com seu fogo. Os dois formamos uma fogueira, tão brilhante como as estrelas em uma noite do verão.

 

                                           PRETERITO IMPERFEITO

 

                       O gato do clérigo

Boston, Massachusetts, junho de 1969

-Brianna?

-Né? —incorporou-se, com o coração palpitante e o som de seu nome ressonando no ouvido-. Quem... o que?

-Estava dormida. Maldição, sabia que tinha mal a hora. Sinto muito. Chamo-te depois?

-Roger! -A descarga de adrenalina produzida pelo súbito despertar diminuiu, mas seu coração ainda pulsava apressado-. Não, não pendure! Já estou acordada.

esfregou-se a cara, tratando de endireitar o cordão do telefone e arrumar os lençóis.

-Está segura? Que hora é aí?

-Não sei, está muito escuro para ver o relógio -disse, ainda dormitada. Chegou-lhe uma risada entrecortada como resposta.

-Sinto-o muito; tratei de calcular a diferença horaria, mas me saiu mau. Não queria despertar.

-Está bem, de todos os modos tinha que despertar para atender o telefone -assegurou e pôs-se a rir.

-De acordo. Bem... -pôde sentir o sorriso em sua voz.

-Me alegro de ouvir sua voz, Roger -disse com suavidade.

Estava surpreendida de descobrir quanto gostava.

-A tua também eu gosto. -Parecia um pouco tímido-, Olhe, tenho a oportunidade de ir a uma conferência o mês próximo a Boston. Pensei em ir, se... maldição, não encontro a forma de lhe dizer isso Você gostaria de lombriga?

A moça apertou com força o telefone enquanto seu coração dava um salto.

-Sinto muito -disse imediatamente Roger antes de que respondesse-. Estou-te pondo em um compromisso, não? Olhe, me diga diretamente se não ter vontades.

-É obvio que quero verte.

-Ah. Então, não te incomoda? É que não respondeu minha carta. Acreditei que talvez havia dito algo...

-Não, não o fez. Lamento-o. É que justo...

-Está bem, não queria...

Suas frases se interromperam e ambos esperaram, com súbito acanhamento.

-Não queria te pressionar...

-Não queria ser...

Aconteceu de novo e, esta vez, Roger riu.

-Está tudo bem, então -disse Roger com firmeza-. De acordo?

A jovem não respondeu, fechando os olhos com uma indefinível sensação de alívio. Roger Wakefield era, provavelmente, a única pessoa no mundo que podia entendê-la; pelo que não se deu conta antes, era de quão importante era que lhe compreendessem.

-Estava sonhando quando soou o telefone.

-Sim?

-Com meu pai. -Lhe fez um nó na garganta, como cada vez que pronunciava essa palavra. O mesmo lhe ocorria com «mãe»-. Não podia ver sua cara. Caminhava com ele por um bosque, em algum lugar. Eu lhe seguia e ele me falava, mas tampouco podia ouvir o que me estava dizendo; apressava-me, tratando de lhe alcançar para poder ouvir, mas não o conseguia.

-Mas sabia que era seu pai?

-Sim, ou talvez acreditei, porque subia pelas montanhas. Estava acostumado a fazer isso com papai.

-Fazia-o? Eu também estava acostumado a fazê-lo com meu pai. Se alguma vez voltar para Escócia, levarei-te a um munro.

-Levará-me onde?

Roger riu e de repente começou a recordar, tornando-se para trás o cabelo negro, que não se cortava muito freqüentemente, com os olhos verde musgo entrecerrados. deu-se conta de que se esfregava o lábio com o polegar e se conteve. Tinha-a beijado ao despedir-se.

-Um munro é qualquer cúpula em Escócia, sempre que tiver mais de novecentos metros. Há tantas, que se trata de ver quantas pode subir. Os moços as colecionam, como figuritas ou caixas de fósforos.

-Onde está agora, em Escócia ou na Inglaterra? -perguntou interrompendo antes de que pudesse lhe responder-. Não, me deixe ver se posso adivinhar. Está em... Escócia. Está no Inverness.

-Certo. -A surpresa era evidente em sua voz-. Como sabe?

-Pronuncia mais os res quando fala com escoceses -disse-. Não o faz quando fala com ingleses. Dava-me conta disso quando fomos a Londres.

-E eu que tinha acreditado que tinha poderes psíquicos –disse rendo.

-Desejaria que estivesse aqui, agora -disse, impulsiva.

-Sério? -Pareceu surpreso e com um súbito acanhamento-. Ah, bom... Isso está bem, verdade?

-Roger, a causa pela que não te respondi...

-Não tem que preocupar-se por isso -disse rapidamente-. Estarei aí dentro de um mês e então poderemos falar. Bri, eu...

-Sim?

-Me alegro de que haja dito que sim.

 

depois de cortar a comunicação não pôde voltar a dormir; inquieta, baixou da cama e se dirigiu à cozinha do pequeno apartamento para procurar um copo de leite. Só depois de vários minutos de olhar ausente, frente à geladeira aberta, deu-se conta de que não estava vendo uma fila de potes de molho de tomate e latas semivacías. O que via eram pedras negras no pálido céu do amanhecer.

endireitou-se com uma pequena exclamação de impaciência e fechou a porta de repente. Teria que lhe haver escrito. De fato, tinha escrito, tinha-o feito várias vezes, intentos inconclusos que terminaram no cesto de papéis.

Sabia a causa, ou acreditava que sabia. Explicar-lhe com coerência ao Roger era outra coisa.

Estava o simples instinto do animal ferido; o impulso de correr e esconder-se para não ser machucado. Acontecido-o no ano anterior não era absolutamente culpa do Roger, mas estava intrinsecamente ligado a tudo.

Tinha sido muito tenro e bom depois, tratando-a como se estivesse de luto, que era como se sentia. Mas que estranho luto! Sua mãe se foi para sempre, embora (era sua esperança) não tinha morrido. E entretanto, em alguns momentos, era como quando morreu seu pai; acreditar em uma vida ditosa depois da morte, confiando, de todo coração, em que o ser amado estivesse seguro e contente, mas sem deixar de sofrer os torturas da perda e a solidão. Rezava por eles todos os dias, por sua mãe e seu pai, seus pais. Essa era a outra parte. Seu tio Joe sabia a verdade sobre seu pai, mas só Roger podia entender verdadeiramente o acontecido; só Roger tinha ouvido as pedras.

Ninguém podia passar por uma experiência assim sem ficar marcado. Nem ele, nem ela. depois de que Claire se fora, Roger queria que ela ficasse, mas não pôde. Tinha-lhe explicado que tinha coisas que fazer na América, ocupar-se de alguns assuntos, terminar seus estudos... Era verdade, mas o mais importante era que tinha que afastar-se; apartar-se de Escócia e do círculo de pedras, retornar a um lugar onde pudesse curar-se e começar a reconstruir sua vida. Se ficava com o Roger, não poderia esquecer o acontecido, nem sequer por um momento. E essa era a última razão, a peça final de seus quebra-cabeças.

Roger a tinha protegido e dado carinho. Sua mãe a deixou a seu cuidado e Roger tinha completo com esse dever. Mas o tinha feito para cumprir com sua promessa ao Claire, ou porque de verdade lhe importava?

-te afaste, assim poderá retornar e fazer as coisas bem -murmurou, fazendo uma careta ante essas palavras.

Desejava deixar atrás os sucessos do mês de novembro. Quando passasse o tempo suficiente, talvez eles poderiam voltar a encontrar-se. Não como atores secundários no drama da vida de seus pais, mas sim como protagonistas da obra que eles mesmos escolhessem.

Assim, se algo tinha que acontecer ela e Roger Wakefield, decididamente seria por sua própria eleição. Agora que parecia que ia ter a possibilidade de escolher, a perspectiva lhe produzia uma sensação de excitação na boca do estômago. passou-se a mão pela cara; já que não podia dormir, ficaria a trabalhar.

Acendeu o abajur do escritório e abriu os livros de cálculo. Uma pequena e inesperada gratificação por sua mudança de carreira foi o descobrimento dos efeitos calmantes das matemática.

Quando retornou a Boston, só na universidade, a engenharia lhe pareceu uma eleição muito mais segura que a história. Era algo sólido, imutável, tranqüilizador e ligado aos fatos da realidade. E, acima de tudo, controlável.

Lentamente, a lógica inexorável dos números foi construindo uma telaraña dentro de sua cabeça, apanhando todos os pensamentos fortuitos e envolvendo as emoções turbadoras como se fossem moscas. Só um pequeno pensamento tinha ficado livre, batendo as asas em sua mente como uma brilhante e diminuta mariposa: «Me alegro de que haja dito que sim». Ela também se alegrava.

 

                   Julho de 1969

-Fala como os Beatles? Ai, morro se fala como John Lennon! Já sabe como é. me volta louca!

-Não tem nada que ver com o John Lennon! –exclamou Brianna. Esquadrinhou o lugar, mas a porta de chegadas internacionais ainda estava vazia-. Não conhece a diferença entre alguém do Liverpool e um escocês?

-Não -disse despreocupadamente seu amiga Gayie enquanto agitava seu cabelo loiro-. Para mim, todos os ingleses falam igual. Poderia-os escutar toda a vida!

-Não é inglês! Já te disse que é escocês!

Gayie lançou um olhar ao Claire que dava a entender que, evidentemente, seu amiga estava louca.

-Escócia é parte da Inglaterra, busquei-o no mapa.

-Escócia é parte de Grã-Bretanha, não da Inglaterra.

-Qual é a diferença? por que o esperamos aqui? Nunca nos verá.

Brianna se alisou o cabelo. Estavam detrás de uma coluna porque não estava segura de se desejava que ele as visse.

Deixou que Gayie a levasse até a zona principal de recepção, enquanto seguia falando sem tom nem som. A língua de seu amiga tinha uma dobro vida; em classe, Gayie era capaz de elaborar um discurso frio e lógico, mas em sua vida social tagarelava sem cessar. Essa era a causa pela que Brianna tinha pedido ao Gayie que a acompanhasse ao aeroporto a procurar o Roger; evitaria silêncios incômodos na conversação.

-Já o tem feito com ele?

Olhou ao Gayie, sobressaltada.

-Se já tiver feito o que?

Gayie fechou os olhos.

-Jogar a colocar a pelotita no fossa. Francamente, Bri!

-Não. É obvio que não -disse, ruborizando-se.

-Bom, e o vais fazer?

-Gayie!

-Bom, tem seu próprio apartamento e ninguém vai A...

Naquele incômodo momento apareceu Roger Wakefield, vestindo uma camisa branca e alguém nos cubra gastos. Brianna ficou tão rígida ao lhe ver que Gayie voltou a cabeça para descobrir o motivo.

-Aaah -disse, encantada-. É ele? Parece um pirata!

Assim era; a Brianna tremeram os joelhos. Roger era o que sua mãe chamava um celta negro, com a pele cor oliva claro, o cabelo negro, pestanas negras entupidas e os olhos, que um esperava de cor azul, de um surpreendente verde profundo. Com o cabelo bastante largo, despenteado e barbudo, não só parecia um libertino, mas também também um ser perigoso.

Então Roger a viu e seu rosto se iluminou. A seu pesar, Brianna sentiu que sua cara se enchia com um grande sorriso. Esquecendo suas dúvidas, correu esquivando meninos e carros com bagagens.

encontraram-se a metade do caminho e quase a levantou do chão ao abraçá-la com tanta força para lhe romper as costelas. Beijou-a, deteve-se, beijou-a outra vez raspando-a com a barba. Cheirava a sabão e a suor e tinha sabor de uísque escocês. Brianna não queria que se detivera.

Soltou-a quando os dois ficaram sem fôlego.

-Ejem -disse uma voz perto da Brianna.

separou-se do Roger e descobriu ao Gayie sonriendo angelicalmente.

-Hoo-laa -disse-. Você deve ser Roger, porque se não fora assim, Roger sofreria uma comoção ao verte, não?

Olhou-o de cima abaixo, com evidente aprovação.

-E além disso toca o violão?

Brianna não tinha reparado no estojo que havia no chão. Roger o levantou, pendurando-lhe do ombro.

-Bom, estes são os feijões de minha viagem -disse dirigindo um sorriso ao Gayie, quem se levou uma mão ao coração em um simulado gesto de êxtase.

-Repete isso! -disse Gayie.

-Que repita o que? -Roger parecia intrigado.

-Feijões -interveio Brianna, pendurando do ombro uma das bolsas-. Quer ouvir seu acento. Gayie tem paixão pelo acento britânico. Ela é Gayie.

Assinalou a seu amiga com gesto de resignação.

-Ah, já me dou conta. -Roger se esclareceu garganta e olhando fixamente ao Gayie, disse uma frase com tudo os res, em seu acento escocês-, Está bem assim?

-Querem terminar com isso? -Brianna olhou zangada a seu amiga, que se tinha desabado teatralmente em uma das cadeiras de plástico-. Não faça conta -advertiu ao Roger, dirigindo-se para a porta-. O que quiseste dizer com o dos feijões? -perguntou, tratando de retomar uma conversação mais normal.

Roger riu, um pouco presunçoso.

-Bom, a conferência sobre história me paga a viagem, mas não se fazem cargo dos gastos. Assim que me arrumei isso para conseguir um trabalho com o que me costear isso

-Tocando o violão?

-Durante o dia, o respeitável historiador Roger Wakefield é um inofensivo acadêmico de Oxford. Mas, de noite, tira seu tartán e se converte no animado Roger MacKenzie!

-Quem?

Sorriu ante sua surpresa.

-Bom, interpreto canções folclóricas escocesas em festivais e recitais. vou cantar em um festival celta, nas montanhas, este fim de semana. Isso é tudo.

-Canções escocesas? Usa kilt quando canta? -Gayie ia ao outro lado do Roger.

-claro que sim. Como saberiam então que sou escocês se não o usasse?

-eu adoro os joelhos peludos -disse Gayie, sonhando-. Agora, me diga, é verdade isso que dizem de que os escoceses...

-vá procurar o carro -ordenou Brianna, entregando com brutalidade as chaves a seu amiga.

 

Gayie apoiou o queixo no guichê do carro, observando ao Roger, que entrava no hotel.

-Caramba, espero que não se barbeie antes de comer. eu adoro o aspecto dos homens quando estão um tempo sem barbear-se. O que será essa caixa tão grande?

-É seu bodhran -respondeu Brianna.

-Seu o que?

-É um tambor de guerra celta. Toca-o com alguma de suas canções.

Gayie juntou os lábios com gesto dúbio.

-Não quererá que eu lhe leve a esse festival, não? Quero dizer, você tem muitas coisas que fazer Y...

-Ja, ja. Crie que te vou deixar estar perto dele quando ficar seu kilt?.

Gayie suspirou e colocou a cabeça dentro do carro enquanto Brianna arrancava.

-Bom, talvez haja outros homens com kilt.

-É muito possível.

Gayie se apoiou no respaldo e olhou de esguelha a seu amiga.

-Então o vais fazer?

-Como vou ou seja o?.

Mas o sangue bulia baixo sua pele e a roupa lhe incomodava

-Bom, se não o fizer -disse Gayie, convencida-, é que está louca.

 

-O gato do clérigo é um... gato andrógino.

-O gato do clérigo é um... gato andarilho.

Brianna o olhou com uma sobrancelha levantada.

-É um jogo escocês -explicou Roger-, agora é seu turno com a letra «b».

-Está bem. O gato do clérigo é...

-Espera -interrompeu Roger, assinalando-. É por ali.

Com lentidão, Brianna saiu da estreita estrada para introduzir-se em um caminho mais estreito, com uma flecha em vermelho e branco que indicava «Festival Celta».

-É um encanto por me haver trazido até aqui acima -disse Roger-. Não sabia que estava tão longe, do contrário não lhe teria pedido isso.

A jovem lhe lançou um olhar divertido.

-Não está tão longe.

-São uns trezentos quilômetros!

Brianna sorriu com um toque zombador.

-Meu pai dizia que a diferença entre um norte-americano e um inglês é que um inglês acredita que cem quilômetros é um comprido caminho e um norte-americano acredita que cem anos é muito tempo.

Roger riu, surpreso.

-Vale, está bem. Então você é a norte-americana, suponho.

-Suponho -mas seu sorriso se desvaneceu.

O mesmo aconteceu com a conversação. Continuaram em silencio durante uns minutos, sem outro ruído que o do motor e o vento. Era um formoso dia de um caloroso verão.

-O gato do clérigo é um gato distante -disse finalmente Roger, com voz suave-. Hei dito algo mau?

Dirigiu-lhe um rápido olhar triste e um leve sorriso.

-O gato do clérigo é um gato fantasioso. Não, não é você.

-Apertou os lábios e diminuiu a marcha detrás de outro carro; logo se relaxou-. Não, perdão, é você, mas não é tua culpa.

Roger ficou rígido e se voltou para olhá-la.

-O gato do clérigo é um gato enigmático.

-O gato do clérigo é um gato molesto; não devi dizer nada, sinto muito.

Roger era o bastante prudente para não pressioná-la. longe disso, procurou debaixo do assento e tirou o recipiente térmico com chá quente e limão.

Brianna não tinha aspecto de inglesa, apesar de sua origem. Não podia dizer se a diferença era algo mais que a forma de vestir, mas o pensava. Os norte-americanos pareciam muito mais... o que? Vibrantes? Intensos? Só mais. Brianna Randall era decididamente mais.

-Olhe -disse bruscamente Brianna. Não se voltou para olhá-lo, antes bem cravou a vista na matrícula de Nova Pulôver do carro de diante-. Tenho que lhe explicar isso

-Não a mim.

Arqueou as sobrancelhas com irritação.

-Já quem, então? -Apertou os lábios e suspirou-. Sim, claro, de acordo, a mim também. Mas devo fazê-lo.

Roger sentia um gosto amargo no fundo da garganta. Seria agora quando lhe diria que era um engano que ele estivesse ali? Tinha-o pensado durante a viagem, enquanto cruzava o Atlântico, tratando de acomodar-se no pequeno assento do avião. Logo, quando a viu no vestíbulo do aeroporto, todas suas dúvidas se desvaneceram de repente.

Durante aquela semana a tinha visto um momento todos os dias; inclusive foram a um partido de beisebol no parque Fenway na quinta-feira pela tarde. O jogo lhe resultou desconcertante, mas adorou o entusiasmo da jovem. encontrou-se contando as horas que faltavam para sua marcha e, entretanto, esperando este dia, o único que passariam juntos. Isso não significava que ela sentisse o mesmo.

-Em Escócia -começou a lhe dizer Brianna-, quando tudo... aquilo aconteceu com minha mãe... esteve grandioso, Roger, realmente maravilhoso.

Não o olhava, mas Roger podia ver que lhe umedeciam os olhos debaixo das espessas pestanas avermelhadas.

-Não foi grande coisa -respondeu. Fechou as mãos para evitar tocá-la-. Estava interessado.

Brianna riu.

-Sim, arrumado a que sim. -Diminuiu a marcha e se voltou olhando o de frente. Embora estivessem bem abertos, seus olhos tinham um pouco parecido aos dos gatos-. tornaste a ir ao círculo de pedras? Ao Craigh na Dun?

-Não -disse cortante. Logo tossiu, e acrescentou como de passada. -Não vou muito freqüentemente ao Inverness; estamos a final de curso.

-Não será que o gato do clérigo é um gato nervoso? -perguntou, embora sonriendo brandamente.

-O gato do clérigo tem um medo terrível a esse lugar -disse com franqueza-. Não poria um pé ali, embora estivesse cheio de sardinhas.

Brianna começou a rir e a tensão entre eles se relaxou notavelmente.

-Eu tampouco -disse, respirando profundamente-. Mas lembrança. Todo o trabalho que tomou e logo, quando... quando ela... quando mamãe passou através...

mordeu-se o lábio e freou com brutalidade.

-Dá-te conta? -disse em voz baixa-. Estou contigo durante meia hora e tudo volta a começar. Faz seis meses que não falo de meus pais; começamos a jogar e em menos de um minuto nomeio aos dois. Isto aconteceu durante toda esta semana.

-Quando não respondeu minha carta, pensei que seria por algo assim.

-Não foi só por isso.

mordeu-se para não falar, mas já o havia dito e se ruborizou.

Roger se aproximou e, com gesto tenro, levantou a mecha que lhe cobria a cara.

-Estava terrivelmente apaixonada por ti -estalou, olhando para diante-. Mas não sabia se te comportava assim comigo porque mamãe lhe tinha pedido isso, ou se era...

-Ou era... -interrompeu, sonriendo ante o tímido olhar da jovem-. Definitivamente sim.

-Ah! -relaxou-se um pouco-. Bom. Bem.

Roger desejava agarrar sua mão, mas não queria ser o culpado de um acidente, assim que lhe aconteceu o braço por detrás e lhe roçou o ombro.

-De todos os modos, não me parecia bem; ou me jogava em seus braços ou ia. É o que fiz, mas não sabia como lhe explicar isso sem parecer uma idiota. E logo, quando me escreveu, foi pior. Estava como tola!

Roger se desabotoou o cinto de segurança.

-Se te beijar, chocará-te com o carro de diante?

-Não.

-Bem.

aproximou-se e, lhe agarrando o queixo com uma mão, beijou-a.

O carro estralou pelo caminho enlameado até o estacionamento.

Brianna respirava com lentidão e seu rubor tinha diminuído um pouco. Estacionou no lugar indicado, apagou o motor e permaneceu olhando à frente; tirou-se o cinto de segurança e se voltou para o Roger.

Vários minutos mais tarde, quando baixaram do carro, ao Roger lhe ocorreu pensar que Brianna tinha mencionado mais de uma vez a seus pais. Mas o problema real estava no pai, que cuidadosamente não tinha mencionado. «Grandioso -pensou, admirando distraídamente o corpo da jovem enquanto se agachava para abrir o capô-. Ela está tentando não pensar no Jaime Fraser. E onde diabos a traz?» Olhou de esguelha para a entrada, onde se agitavam a bandeira nacional a insígnia escocesa. Da ladeira da montanha chegava o som das gaitas de fole.

 

                     Uma rajada do passado

Acostumado como estava a trocar-se na parte de atrás de algum carro ou no privada de um botequim, o cuartito traseiro do cenário supunha para o Roger um luxo notável. «Isto é a América do Norte», pensou. tirou-se os nos cubra e os deixou cair ao chão. tirou-se a camisa pela cabeça, perguntando-se qual seria o nível de comodidades às que estava acostumada Brianna. Não sabia apreciar a roupa das mulheres (quanto podiam valer um par de calças?), mas sabia um pouco sobre carros. o da Brianna era um flamejante Mustang azul que, ao vê-lo, fez-lhe desejar conduzi-lo.

Era evidente que seus pais lhe tinham deixado médios para viver; confiava em que Claire Randall se ocupou disso. Mas esperava que não tanto como para que pudesse pensar que estava interessado em seu dinheiro. Ao recordar a seus pais, olhou o sobre de papel marrom. Devia entregar-lhe a Brianna?

O jogo do gato assustado quase resultou verdade, porque Brianna ficou pálida ao encontrar-se com a banda de gaiteiros dos highlanders, composta pelos Fraser oriundos do Canadá, que estavam ensaiando a todo pulmão detrás dos vestuários. Quando apresentou ao Bill Livingstone, um velho amigo, não foi o aspecto do gaiteiro maior o que a intimidou, a não ser a insígnia do clã dos Fraser que levava no peito. «Je suis prest», dizia. «Estou preparado.» «Ainda não está o suficientemente preparada», pensava Roger reprimindo as vontades de golpear-se por havê-la levado ali. Entretanto, a jovem lhe tinha assegurado que estaria bem e que daria uma volta pelo lugar enquanto ele se trocava e preparava para o espetáculo.

Seria melhor que se concentrasse, pensou, grampeando as fivelas de seu kilt na cintura e o quadril e estirando as médias de lã. Tinha que atuar ao começo da tarde durante quarenta e cinco minutos e logo, de noite, interpretaria um breve só durante o ceilidh. Tinha uma quantidade importante de canções em sua cabeça, mas sempre terei que ter em conta ao público. Com muitas mulheres, balida-las funcionavam bem; com maioria de homens, era melhor a música militar. As canções obscenas eram bem acolhidas uma vez o público tinha entrado em calor, sobre tudo depois de umas quantas cervejas.

Queria encontrar-se de novo com a Brianna, ter tempo para conversar um momento, lhe conseguir algo de comer e controlar que tivesse um bom site para ver o espetáculo. pendurou-se a capa de um ombro, ajustou-se o broche e se colocou a adaga e o embornal; já estava preparado. deteve-se um momento e saiu em busca da Brianna.

 

-Ooh! -exclamou dando voltas a seu redor, rendo-. Roger, está magnífico! -Sorriu com picardia-. Minha mãe sempre dizia que os homens com saia escocesa estavam irresistíveis e vejo que tinha razão.

deu-se conta de que tragava com dificuldade e teve vontades de abraçá-la, mas Brianna já se dirigiu para a zona onde serviam comida.

-Tem fome? estive olhando enquanto te trocava. Podemos escolher entre polvos, tacos, salsichas...

Agarrou-a do braço, atraindo-a para si para lhe ver a cara.

-Né! —disse com suavidade-, lamento-o. Se tivesse pensado que isto te ia impressionar tanto, não houvesse te trazido.

-Não passa nada. -Sorriu com mais ganha-. É... me alegro de ter vindo.

-De verdade?

-Estraga. Realmente. É... -Fez um gesto necessitado para o torvelinho de cor e ruídos que os rodeava-. É tão... escocês.

Roger teve vontades de rir; nada podia ser menos escocês que aquela montagem para turistas, com objetos e tradições semifalsificadas. Ao mesmo tempo, Brianna tinha razão: era singularmente escocês. Um exemplo do talento escocês para sobreviver e de sua habilidade para adaptar-se a algo.

Abraçou-a. Seu cabelo cheirava a limpo, como a erva fresca.

-Você também é escocesa, sabe -disse-lhe ao ouvido e a soltou.

Brilhavam-lhe os olhos, embora agora por uma emoção diferente.

-Suponho que tem razão -disse com um amplo sorriso-. Isso não significa que tenha que comer esse guisado de carneiro, não? Vi-o e acredito que prefiro provar o polvo.

Acreditou que brincava, mas não era assim. Um dos vendedores lhes explicou que parte do negócio era respeitar os costumes.

-Cada duas semanas, troca tudo. Nunca nos aborrecemos. Mas temos que trocar de comida se queremos vender, não importa a classe que seja. -O vendedor inspecionou a roupa do Roger com interesse-. Você é escocês ou só gosta de ficar saias?

Como já tinha ouvido muitas vezes brincadeiras semelhantes, Roger lhe dirigiu um olhar imperturbável.

-Bom, como estava acostumado a dizer meu avô -respondeu, marcando seu acento-, «quando puser seu kilt, moço, deve entender que é um homem!».

O homem fez um gesto de reconhecimento e Brianna abriu os olhos.

-Brincadeiras sobre kilts -murmurou-. Mierda, se começar a fazer essas brincadeiras, juro-te que vou e te deixo sozinho.

Roger sorriu zombador.

-Não me faria isso, né, menina? Ir e deixar a um homem, só porque há dito o que tem debaixo do kilt?.

Os olhos da Brianna se entrecerraron até ficar como dois triângulos azuis.

-Arrumado a que não leva nada debaixo -disse Brianna assinalando o embornal-. E suponho que tudo está em perfeitas condições -disse, exagerando o acento escocês.

Roger se ruborizo.

-supõe-se que tem que responder: «me dê a mão e te farei uma demonstração prática» -interveio o vendedor de comida-. Moço, ouvi-o cem vezes esta semana.

-Se ele o disser -respondeu Brianna com tom sombrio- irei e o deixarei abandonado nesta montanha. Pode ficar comendo polvo, não me importa.

Roger bebeu um gole da Coca-cola e, com grande sabedoria, permaneceu em silêncio.

 

Tiveram tempo de dar uma volta entre os postos dos vendedores. Roger não provocava mais que alguma ligeiro olhar de curiosidade; embora sua roupa era de melhor qualidade que a da maioria, não era estranha naquele lugar.

-por que MacKenzie? -perguntou Brianna-. Wakefield não soa bastante escocês? Ou crie que às pessoas de Oxford não gostaria... isto?

E com um gesto assinalou o que os rodeava.

Roger se encolheu de ombros.

-Em parte, sim. Mas também é meu sobrenome. Meus pais morreram durante a guerra, meu tio avô me adotou e me deu seu sobrenome. Mas me batizaram Roger Jeremiah MacKenzie.

-Jeremiah? -Não lançou uma gargalhada, mas se ruborizou pelo esforço-. Como o profeta do Antigo Testamento?

-Não te ria. -E a agarrou do braço-. Puseram-me isso por meu pai; o chamavam Jerry. Quando era pequeno mamãe me chamava Jemmy. Um antigo nome de família. Mas depois de tudo, podia ter sido pior. Poderiam me haver batizado Ambrose ou Conan.

Brianna estalou em uma gargalhada.

-Conan?

-Um nome celta perfeitamente respeitável, antes de que o usassem em tudo esses filmes. De todos os modos, Jeremiah parece ter sido eleito por bons motivos.

-E como é isso?

-É uma das histórias que papai (sempre chamei papai ao reverendo) estava acostumado a me contar percorrendo minha árvore genealógica e assinalando a meus parentes. Falava-me de minha bisavó Mary Oliohant, que viveu até os noventa e sete anos e se casou seis vezes. Todos seus maridos morreram por causas naturais, mas único que teve filhos foi com o Jeremiah MacKenzie por isso figurava na árvore genealógica. Parece ser que Jeremiah era o único que a levava a cama todas as noites.

-Pergunto-me que aconteceria os outros maridos –comento Brianna.

-Bom, ela não disse que não se deitasse com eles -disse Roger-. Mas não todas as noites.

-Com uma vez é suficiente para ficar embaraçada-dijo Brianna-. Ou ao menos, isso era o que minha mãe assegurava. Em minha classe de saúde, na secundária, desenhavam espermatozóides na piçarra correndo para um imenso ovo com caras maliciosas.

ruborizou-se de novo, mas era evidente que essas lembranças a divertiam.

-Deixando a um lado a questão de que os espermatozóides tivessem cara, o que tem que ver esse tema com a saúde?

-É um eufemismo norte-americano para algo que tenha que ver com o sexo –explicou-. Dão classes separadas. Para as garotas: «Os mistérios da vida» e «Dez formas de dizer não a um moço».

-E as classes dos meninos?

-Bom, não estou muito segura, porque não tinha irmãos que me contassem isso. Embora algumas de meus amigas sim tinham e um deles nos contou que aprendiam dezoito sinônimos diferentes de ereção.

-Um pouco muito útil -disse Roger, perguntando-se para que queriam tantos nomes. Por sorte, o embornal cobria uma multidão de pecados.

-Suponho que servirá para manter uma conversação... em certas circunstâncias.

A jovem tinha as bochechas ruborizadas. Roger podia sentir aquele calor em sua própria garganta e se imaginou que a gente começava a olhar os de reojo. Desde que tinha dezessete anos nenhuma garota o tinha posto em uma situação tão embaraçosa em público. Mas era muito agradável e, já que tinha começado, deixaria-a terminar.

-Mmm. Parece que não se fala muito, em certas circunstâncias.

-Imagino que saberá.

Não era uma pergunta. Então se deu conta do que ela queria saber. Aproximou-a mais.

-Se me está perguntando se a tive, a resposta é sim. Se te referir à atualidade, não.

-Se teve o que? -Tremiam-lhe os lábios, reprimindo a risada.

-Estava-me perguntando se tinha uma noiva na Inglaterra, não é verdade?

-Ah, sim?

-Não a tenho. Bom, quase a tive, mas nada sério. -Estavam na porta dos vestuários. Ia sendo hora de que fora a procurar seus instrumentos. deteve-se e a olhou-. E você? Tem algum?

Era o bastante alta para olhá-lo aos olhos e estavam tão perto que seus seios lhe roçaram o braço quando se voltou para olhá-lo cara a cara.

-Bom, sua bisavó se casou muitas vezes antes de ficar sozinha, não? -Acariciou-lhe o broche do ombro-. A verdade é que saio com alguns meninos. Mas nenhum é especialmente importante... ainda.

Agarrou-lhe os dedos e os levou aos lábios.

-lhe dê tempo ao tempo, menina -disse.

 

O público estava surpreendentemente tranqüilo, ao contrário que em um festival de rock. «É obvio -pensou a jovem-, não têm por que ser ruidosos já que não há violões elétricos nem amplificadores, só um pequeno microfone.» Mas seu coração pulsava com força sem necessidade de amplificadores.

-Toma -disse Roger, saindo bruscamente do vestuário com seu violão e seu tambor. Entregou-lhe um pequeno sobre de papel marrom-. Encontrei-o revisando papéis velhos de papai, no Inverness. Pensei que talvez as quereria ter.

Sabia que eram fotos, mas não as quis olhar em seguida. sentou-se a escutar ao Roger com o sobre lhe queimando os dedos.

Era bom; embora estava distraída podia dar-se conta que tinha talento. Sua voz de barítono era rica e profunda e sabia modulá-la. além das inflexões e a melodia, tinha a habilidade de relacionar-se com o público, olhar às pessoas aos olhos e comunicar-se através de suas canções. Ao cantar a última nota, olhou-a diretamente aos olhos e lhe sorriu.

-E esta fala sobre a famosa batalha do Prestonpans, quando o exército das terras altas de Escócia, com o Carlos Estuardo, derrotou às forças inglesas, muito mais numerosas, baixo o mando do general Jonathan Monopolize.

Houve um murmúrio de apreciação; era evidente que a canção era uma das mais populares.

Brianna sentiu que lhe arrepiava o pêlo, não pelo cantor, mas sim pela letra da canção.

-Não -sussurrou, apertando o sobre com dedos frios.

«Venham comigo, meus alegres homens.» Tinham estado ali; seus pais tinham estado ali. Seu pai foi o que atacou em Emprestem. As vozes se uniram formando um coro. Brianna teve um momento de pânico, que passou deixando-a comovida tanto pela emoção como pela música.

Algumas pessoas tratam de preservar o passado; outras escapam. E esse era o maior abismo entre ela e Roger. por que não o tinha visto antes?

Não sabia se Roger tinha detectado sua confusão, mas abandonou o perigoso território dos jacobitas para cantar «O lamento do MacPherson», com apenas uns acordes do violão como acompanhamento.

Agarrou o sobre, sopesando-o. Talvez deveria esperar a voltar para casa. Mas a curiosidade lutava contra sua resistência.

Roger não estava convencido de se devia lhe entregar aquelas fotos, tinha-o visto em seu olhar. Enquanto finalizava a canção, colocou os dedos no sobre e tirou várias fotos. Velhas fotos instantâneas em branco e negro, algo amareladas. Seus pais Frank e Claire Randall, absurdamente jovens e contentes.

Estavam em um jardim, com cadeiras e uma mesa com bebidas. Os rostos se viam com claridade, sorridentes e olhando-se aos olhos. Na última foto estavam a ponto de cortar o bolo de bodas.

-E por último, uma antiga canção que todos conhecem. diz-se que a escreveu um prisioneiro jacobita, caminho de Londres para que o pendurassem, e que a enviou a sua esposa nas montanhas de Escócia...

Cobriu as fotos com as mãos para evitar que alguém as visse. estremeceu-se. Fotos de umas bodas. Do dia das bodas.

É obvio, casaram-se em Escócia. O reverendo Wakefield não pôde celebrá-la porque não era católico, mas era um dos melhores amigos de seu pai; a recepção deveu realizar-se na reitoria. Sim. Espiando através de seus dedos, pôde descobrir partes conhecidas da antiga casa. Logo, a contra gosto, retirou a mão e olhou outra vez o jovem rosto de sua mãe. Dezoito. Claire se tinha casado com o Frank Randall aos dezoito anos. Talvez isso o explicasse. Como se pode saber, tão jovem, o que alguém quer? Mas Claire estava segura, ou acreditava está-lo. A frente ampla e a boca delicada não admitiam dúvidas; os grandes olhos luminosos estavam cravados em seu marido sem dúvidas nem temores. E entretanto...

Sem fixar-se onde pisava, Brianna saiu da fila e escapou antes de que pudessem ver suas lágrimas.

 

-Posso ficar contigo enquanto chamam os clãs –disse Roger-. Mas ao final tenho que participar. Estará bem?

-Sim, é obvio -respondeu com segurança-. Estou bem. Não se preocupe.

Olhou-a com ansiedade, mas não insistiu. Nenhum dos dois tinha mencionado sua precipitada saída. Quando terminou de saudar os que o felicitavam e pôde ir procurá-la, Brianna já tinha tido tempo de lavá-la cara no quarto de banho.

Tinha escurecido e a gente se dirigia aos postos de fora, ao pé da montanha.

-O que é a chamada dos clãs? -perguntou uma mulher a seu companheiro.

O homem se encolheu de ombros e Brianna olhou ao Roger para que o explicasse.

-Já o verá -disse sonriendo.

Tinha anoitecido e a lua ainda não saía. A montanha era uma massa escura no céu estrelado. Uma exclamação surgiu da multidão e, então, as notas de uma gaita de fole atravessaram o ar, silenciando todo o resto.

Um ponto de luz apareceu perto do topo da montanha. Enquanto olhavam, moveu-se para baixo e apareceu outro brilho. A música se fez mais forte e apareceu outra luz. Durante quase dez minutos a espera aumentava, a música se ia fazendo mais forte e as luzes se converteram em uma cadeia luminosa que baixava pela montanha.

Ao fundo da ladeira havia um atalho que descendia das árvores do topo. Brianna já o tinha visto antes. Naquele momento apareceu um homem entre as árvores, agitando uma tocha por cima da cabeça. Detrás ia o gaiteiro; o som da gaita de fole era tão forte que apagava as exclamações da multidão.

Enquanto baixavam pelo atalho para o claro, frente aos degraus, Brianna pôde ver uma larga fileira de homens, cada um levando uma tocha e vestidos com a roupa de chefes dos clãs. Eram bárbaros e esplêndidos, com a prata das espadas e adagas brilhando com brilhos avermelhados à luz das tochas.

As gaitas de fole calaram bruscamente e o primeiro dos homens se deteve ante os degraus. Levantou a tocha por cima da cabeça e gritou:

-Os Cameron estão aqui!

Exclamações de entusiasmo percorreram as tribunas; o homem arrojou a tocha no tonel cheio de querosene e o fogo se elevou com um rugido.

Outra vez se repetiu a cena.

-Os MacDonald estão aqui!

Gritos e aclamações de outros membros do clã.

-Os MacLachlan estão aqui!

-Os MacGillivray estão aqui!

Estava tão interessada no espetáculo que quase não emprestava atenção ao Roger. Então se adiantou outro homem.

-Os MacKenzie estão aqui!

-Tulach Ardi -uivou Roger, sobressaltando a Brianna.

-O que é isso?

-Isso -respondeu sonriendo- é o grito de guerra do clã dos MacKenzie.

-Sonha muito guerreiro.

-Os Campbell estão aqui! -Devia haver muitos Campbell, porque a resposta sacudiu os degraus. Como se essa fora o sinal que esperava, Roger ficou em pé e se colocou a capa.

-Encontramo-nos nos vestuários?.

Brianna assentiu e Roger se inclinou súbitamente e a beijou.

-Se por acaso tem dúvidas –disse-. O grito dos Fraser é Caisteal Dhuni.

Observou-o enquanto se afastava baixando pelos degraus como uma cabra Montes.

Sentia o peito oprimido pela fumaça e a emoção. Tinham morrido os clãs no Culloden? Sim, assim era; isto não eram mais que lembranças; estavam chamando fantasmas; os que estavam ali gritando com entusiasmo não eram parentes nem tinham terras nem casas, mas...

-Os Fraser estão aqui!

O pânico se apoderou dela e se aferrou a sua bolsa. «Não -pensou-. Ah, não. Eu não.»

Passado o momento, recuperou a respiração, mas a adrenalina ainda corria por suas veias.

Os Lindsay, os Gordon... até que, finalmente, os ecos do último grito cessaram. Brianna sujeitava sua bolsa como se temesse que fora a escapar. «Como pôde fazê-lo ela?», pensou; e logo, ao ver o Roger com o tambor na mão e a cabeça iluminada pelo fogo, pensou outra coisa: «Como impedi-lo?»

 

                     Duzentos anos depois

-Não leva posta a saia escocesa!

A boca do Gayie se curvou em um gesto de decepção.

-Século equivocado -respondeu Roger, sonriendo-. Muito exposto às correntes de ar para um passeio pela Lua.

-Tem que me ensinar a fazer isso -disse, inclinando-se para ele.

-A fazer o que?

-Fazer soar os res assim.

Juntou as sobrancelhas e tentou imitá-lo, produzindo um ruído parecido ao motor de uma lancha.

-Perr-fecto -disse, tratando de não rir-. Segue assim.

-Bom, ao menos haverá trazido o violão. -Nas pontas dos pés tratou de olhar por cima de seu ombro-. Ou esse fantástico tambor.

-Está no carro -interveio Brianna, aproximando-se do Roger-. Vamos ao aeroporto daqui.

-Ah, o que machuca, pensei que poderíamos dar uma volta e organizar uma festa com música, para celebrá-lo. Conhece «Esta terra é sua terra», Roger? Ou você gosta mais das canções protesto? Mas suponho que não, como é inglês, quero dizer, escocês. Vós não têm nada do que protestar, não?

Brianna dirigiu um olhar de exasperação a seu amiga.

-Onde está o tio Joe?

-No salão, esmurrando o televisor -disse Gayie-. Quer que entretenha ao Roger enquanto você o busca?

-Temos aqui na metade da Faculdade de Engenharia e não há ninguém que possa arrumar um maldito televisor?

O doutor Joseph Abernathy lançou um olhar acusador ao grupo de jovens que havia no salão.

-Isso é engenharia elétrica, papai -disse seu filho com orgulho-. Nós somos engenheiros mecânicos. lhe pedir a um engenheiro mecânico que arrume seu televisor em cor é como lhe pedir a um ginecologista que olhe... ai!

-Sinto muito -disse seu pai, olhando por cima de seus óculos de arreios de ouro-. Era seu pé, Lenny?

Lenny saltou pela habitação, agarrando-se um de seus grandes pés embainhado na sapatilha, com exagerados gestos de agonia enquanto todos riam.

-Bri, querida!

O médico descobriu a jovem e abandonou o televisor com o rosto radiante. Abraçou-a com entusiasmo sem ter em conta o fato de que ela era como dez centímetros mais alta. Soltou-a e olhou ao Roger, mostrando uma cautelosa cordialidade.

-Este é o apaixonado?

-Este é Roger Wakefield -disse Brianna, entrecerrando os olhos-. Roger, Joe Abernathy.

-Doutor Abernathy.

-me chame Joe.

estreitaram-se as mãos, avaliando-se mutuamente.

-Bri, querida, quer te ocupar desse traste e ver se consegue ressuscitá-lo?

Brianna olhou com incerteza o grande aparelho e rebuscou no bolso de seus nos cubra, de onde tirou uma navalha a Suíça.

-Bom, suponho que posso revisar as conexões.

-Abriu a folha do chave de fenda-. Quanto tempo temos?

-Meia hora, talvez -gritou um estudante da porta da cozinha. Lançou um olhar ao grupo reunido junto ao pequeno aparelho da mesa-. Ainda estamos com a missão de controle em Houston; hora prevista, trinta e quatro minutos.

Os comentários do repórter da televisão se intercalavam com as exclamações dos estudantes.

-Bem, bem -disse o doutor Abernathy, apoiando uma mão no ombro do Roger-. Temos tempo de sobra para um gole. Você bebe escocês, senhor Wakefield?

-me chame Roger.

Abernathy serve uma quantidade generosa do néctar cor âmbar e o alcançou.

-Imagino que não quererá água, Roger.

-Não.

Era da marca Lagavulin, algo assombroso em Boston.

-Me deu de presente isso Claire. A mãe do Bri. Era uma mulher com bom paladar para o uísque.

Moveu a cabeça com uma expressão de nostalgia.

-Slainte -disse Roger com calma e levantou sua taça antes de beber.

Abernathy fechou os olhos em silenciosa aprovação; se era pela mulher ou pelo uísque, Roger não podia dizê-lo.

-Água de vida, né? Acredito que isto pode levantar um morto.

Colocou a garrafa com respeito novamente na vitrine.

Quanto tinha contado Claire ao Abernathy? Bastante, supunha Roger.

-Já que o pai do Bri morreu, suponho que tenho que fazer as honras. Temos tempo para um interrogatório de terceiro grau antes de que alunissem, ou o fazemos mais breve?

-Roger levantou uma sobrancelha.

-Suas intenções -explicou o médico.

-OH. Estritamente honoráveis.

-Sim? Chamei ontem à noite ao Bri para saber se vinha hoje. Não respondeu ninguém.

-Fomos a um festival de música celta, nas montanhas.

-Estraga. Chamei de novo às onze da noite. E a meia-noite. Sem resposta. Bri está sozinha e é adorável. Não queria ver como alguém se aproveita disso, senhor Wakefield.

-Tampouco eu... doutor Abernathy. -Roger esvaziou sua taça e a deixou com um golpe. O calor fervia em suas bochechas e não era devido ao Lagavulin-. Se acreditar que eu...

-AQUI Houston -trovejou a televisão- CALMA NA BASE. VAMOS ALUNISSAR EM VINTE MINUTOS.

Os ocupantes da cozinha apareceram, brindando com seus refrescos. Brianna, ruborizada, ria sem fazer caso das felicitações enquanto guardava sua navalha. Abernathy pôs uma mão no braço do Roger para retê-lo.

-Falo a sério, senhor Wakefield -disse Abernathy em voz baixa para que não lhe ouvissem outros-. Não quero me inteirar de que tem feito infeliz a esta moça. Nunca.

Com cuidado, Roger conseguiu liberar seu braço.

-Acredita que não é feliz? -perguntou o mais educadamente possível.

-Não-oo -respondeu Abernathy, olhando-o de soslaio-. Justamente o contrário. É a forma em que a vejo esta noite o que me faz pensar que deveria lhe romper o nariz, em nome de seu pai.

Roger não pôde evitar olhá-la; era verdade. Como se tivesse um radar, Brianna voltou a cabeça para olhá-lo. Enquanto falava com o Gayie, seus olhos seguiam fixos nos do Roger.

O médico se esclareceu garganta de forma audível e Roger apartou a vista da Brianna para enfrentar-se com a expressão pensativa do Abernathy.

-OH -disse, em tom diferente-. Assim é isso.

Roger tinha o pescoço da camisa desabotoado, mas sentia como se levasse uma gravata ajustada. Olhou ao médico diretamente aos olhos.

-Fui-dijo-. Isso.

O doutor Abernathy procurou a garrafa do Lagavulin e encheu as duas taças.

-Claire disse que você gostava -disse resignado. Levantou sua taça-. Está bem. Slainte.

 

-Gira para o outro lado, Walter Cronkite está de cor alaranjada!

Lenny Abernathy se inclinou para mover o botão e a tela se voltou esverdeada.

-«Em dois minutos aproximadamente, o comandante Neil Armstrong e a tripulação do Apolo farão história; será a primeira vez que o homem chegue à Lua...»

O salão estava escuro e cheio de gente.

-Estou impressionado -murmurou Roger ao ouvido da Brianna-. Como o conseguiste?

Estava detrás dela, apoiado em uma prateleira da biblioteca e a sujeitava pelos quadris enquanto apoiava o queixo no ombro da jovem.

-Alguém tinha pisado na tomada -respondeu-. Simplesmente o voltei a conectar.

Roger riu e a beijou no pescoço.

-Tem o traseiro mais arrebitado do mundo -sussurrou.

A jovem não respondeu, mas deliberadamente apertou seu traseiro contra ele.

Na tela da televisão se viam fotos da bandeira que os astronautas foram colocar na Lua.

Olhou de esguelha pela habitação, mas Joe Abernathy estava tão hipnotizado como o resto.

Em duas horas tinha que ir-se; não tinham tempo para intimidades. A noite anterior, sabendo que jogavam com dinamite, tinham sido mais prudentes. perguntou-se se Abernathy lhe teria golpeado se tivesse admitido que Brianna tinha passado a noite com ele.

Tinha conduzido na viagem de volta das montanhas, lutando por manter-se no lado direito da estrada e nervoso por ter a Brianna tão perto. detiveram-se para tomar café, conversaram até passada a meia-noite, tocando-se constantemente, mãos, coxas, cabeças juntas. Quando chegaram a Boston, a cabeça da Brianna descansava pesadamente sobre seu ombro.

Incapaz de seguir conduzindo por ruas desconhecidas até o apartamento da Brianna, foi diretamente até seu hotel, subiu-a às escondidas, e a deitou em sua cama, onde ficou dormida ao momento.

Passou o resto da noite deitado, castamente, no chão, abafado com o casaco de lã da jovem. Ao amanhecer, levantou-se e se sentou em uma cadeira, alagado por seu aroma, observando-a silenciosamente enquanto a luz lhe mostrava seu rosto dormido.

Sim, foi assim.

Na televisão anunciavam a chegada da nave. O silêncio da habitação se quebrou por um suspiro coletivo. Roger sentiu que lhe arrepiava o cabelo da nuca.

-«Um... pequeno... passo para o homem» -dizia a voz-, «um salto gigante... para a humanidade».

Até a Brianna tinha esquecido todo o resto, inclinada para diante, apanhada no momento.

Era um bom dia para ser norte-americano.

Roger teve um instante de incerteza ao vê-los todos tão orgulhosos, com tanto ardor, e a Brianna tão integrada no assunto. Era um século diferente, duzentos anos desde ontem. Haveria um terreno comum para eles, um historiador e uma engenheira? Ele, olhando para trás, aos mistérios do passado; ela, para o futuro e seu brilho embriagador?

Então a habitação se encheu de exclamações de entusiasmo e Brianna se deu a volta para beijá-lo e abraçá-lo.

Roger pensou que talvez não importasse que suas direções fossem opostas, sempre que se encontrassem o um ao outro.

 

                                                     PIRATAS

 

                   Tropeço com uma hérnia

Junho de 1767

-Detesto os navios -disse Jamie com os dentes apertados-. Ódio os navios. Sinto pelos navios o mais profundo desprezo.

O tio do Jamie, Héctor Cameron, vivia em uma plantação chamada River Run, que ficava além do Cross Creek, que a sua vez estava rio acima, a certa distância do Wilmington; a uns trezentos quilômetros dali. Nessa época do ano a viagem em navio duraria entre quatro dias e uma semana, dependendo do vento. Se escolhíamos viajar por terra, a travessia duraria como mínimo duas semanas.

-Os rios não têm ondas -disse ao Jamie-. Além disso, se te enjoar, ainda tenho minhas agulhas.

Apalpei o bolso onde levava a caixa de marfim com as agulhas de ouro para praticar a acupuntura.

Jamie soprou com força, mas não disse nada mais. Não fomos ricos, mas tínhamos um pouco de dinheiro, resultado de um golpe de sorte durante o caminho. Viajando como ciganos por volta do norte do Charleston e acampando durante a noite, longe do caminho, tínhamos descoberto uma residência abandonada no bosque, quase oculta pela vegetação. Entre as novelo ficavam os restos de um horta de melocotoneros, com as frutas amadurecidas cheias de abelhas. Comemos tudo o que pudemos, dormimos ao socaire das ruínas e nos levantamos antes do amanhecer para encher o carro com a fruta dourada e suculenta, que fomos vendendo pelo caminho. Como conseqüência, chegamos ao Wilmington com as mãos pegajosas, uma bolsa de moedas (a maioria peniques) e um penetrante aroma de fermentação que nos alagava o cabelo, a pele e a roupa como se nos tivéssemos banhado em licor de pêssego.

-Toma isto -disse Jamie, me alcançando a pequena bolsa de couro com nossa fortuna-. Compra as provisões que possa... mas nada de pêssegos, né? E algumas costure para nos arrumar e não parecer uns mendigos quando nos apresentarmos ante meus parentes. Duncan e eu vamos tratar de vender o carro e os cavalos e procurar um navio. E se aqui há alguém parecido a um ourives, verei o que me oferece por uma das pedras.

-Tome cuidado, tio -interveio Ian, franzindo o cenho ante a quantidade e variedade de gente que perambulava pelo porto-. Leva a Cilindro para que te proteja.

-Ah, bom -Jamie lançou um olhar ao cão, que observava vigilante-. Vêem comigo, então, perrito. -Me olhou de esguelha antes de ir-se-. Talvez seria melhor que comprasse um pouco de pescado seco.

 

Wilmington era uma cidade pequena que, por causa de sua afortunada situação como porto marítimo na desembocadura de um rio navegável, gabava-se de ter não só um mercado de produtos agrícolas, com todo o necessário para a vida cotidiana e um embarcadero, mas também várias lojas que armazenavam artigos de luxo importados da Europa.

-Favas, muito bem -disse Fergus-. Eu gosto das favas. E pão, farinha, sal e manteiga de porco. Carne salgada, cerejas secas, maçãs frescas, todo isso está bem. Pescado, para mais segurança. Acredito que será necessário que consigamos agulhas e fio. Também uma escova -acrescentou, olhando meu cabelo que, por causa da umidade, fazia esforços para escapar de meu chapéu de asa larga-. E os remédios do farmacêutico, naturalmente. Mas encaixe?

-Encaixe -respondi com firmeza. Coloquei um pacote com três metros de encaixe de Bruxelas no canasto que levava Fergus-. E também um metro de cinta de seda de cada cor -expliquei à acalorada jovem que nos atendia-. A vermelha é para ti, Fergus, assim não te queixe; verde para o Ian; amarela para o Duncan e a azul escuro para o Jamie. E não, não é um gasto extravagante. Jamie não quer que pareçamos uns vagabundo ante seus tios.

-E o que passa contigo, tia? -perguntou Ian, sonriendo zombador-. Não pensará que os homens pareçam uns petimetres e você vá como um pobre pardal?

Fergus soprou, entre exasperado e divertido.

-Esta -disse, assinalando um cilindro de cinta cor rosa escuro.

-Essa cor é para uma menina -protestei.

-As mulheres nunca são muito majores para usar o rosa -respondeu com firmeza Fergus.

-Está bem, também a rosa.

Saímos à rua, carregados com canastos e bolsas de provisões. Olhei para o porto e vi a alta figura do Jamie, com Cilindro caminhando a seu lado.

Ian saudou, pegou um grito e Cilindro lhe aproximou veloz, agitando a cauda ao ver seu dono.

-meu deus -disse arrastando as palavras uma voz que vinha do alto-. É o cão maior que vi em minha vida.

-Dava-me a volta e vi um cavalheiro que se separava da porta do botequim e levantava o chapéu para me saudar-. Para servi-la, senhora. Espero, sinceramente, que não lhe interesse a carne humana.

Meu interlocutor era um dos homens mais altos que tinha visto em minha vida; media um cotovelo mais que Jamie.

-Não, alimenta-se de pescado -assegurei.

Ao ver que tinha que estirar o pescoço para lhe falar, agachou-se amavelmente. Então observei que tinha a barba negra e um nariz incongruentemente chata, acompanhada por uns olhos grandes e amáveis de cor avelã.

-Bom, isso me alegra. John Quincy Myers, para lhe servir, senhora -disse, com uma inclinação.

-Claire Fraser -respondi, lhe oferecendo a mão de uma vez que o olhava fascinada.

Agarrou meus dedos e os levou ao nariz, cheirou-os e me dedicou um amplo sorriso, encantadora, em que pese a que lhe faltava a metade dos dentes.

-É você uma mulher que, talvez, saiba de ervas?

-Mas como?.

-Uma senhora com habilidade para a jardinagem se ocupa de suas rosas; mas uma dama cujas mãos cheiram como resultado de sasafrás e a casquinha, tem que saber algo mais que fazer florescer seu novelo. Não está de acordo? -perguntou, com um olhar amistoso ao Ian, quem seguia a conversação com indubitável interesse.

-OH, sim -assegurou o moço-. A tia Claire é uma famosa curadora. Uma curandeira -disse, me olhando orgulhoso.

-De maneira que é assim, moço? Bem, então... -Os olhos do senhor Myers me enfocaram com interesse-. Que me matem se isto não é ter sorte! E eu que acreditava que ia ter que esperar até chegar às montanhas para procurar um chamán que me atendesse.

-Está doente, senhor Myers? -perguntei.

-Eu não diria doente -replicou. ergueu-se e começou a afrouxá-la camisa de pele de ante-. Não é gonorréia, nem pústulas francesas, porque já as vi. -Enquanto falava, lutava para afrouxá-los calções-. Mas essa maldita coisa que de repente aparece justo detrás de meu Pelotas... é muito incômodo, como se imaginará, embora só me dói quando monto a cavalo. Importaria-lhe jogar uma olhada e me dizer o que é o que posso fazer?

-Ah... -pinjente, com um olhar se desesperada para o Fergus.

-Posso ter o prazer de conhecer senhor John Myers? -perguntou uma educada voz com acento escocês.

O senhor Myers deixou de lutar com sua roupa e olhou de forma inquisitiva.

-Não posso dizer se for um prazer para você, senhor -respondeu com amabilidade-. Mas se busca ao Myers, já o encontrou.

Jamie se deteve junto a mim. Colocando-se estrategicamente entre os dois, fez uma inclinação formal, com o chapéu baixo o braço.

-James Fraser, para lhe servir, senhor. Disseram-me que lhe mencionasse o nome do Héctor Cameron como apresentação.

O senhor Myers observou a cabeça ruiva do Jamie com grande interesse.

-Escocês, verdade? Das montanhas?

-Sou escocês, sim, das terras altas.

-É parente do velho Héctor Cameron?

-É meu tio, por casamento, senhor, embora não tenho o gosto de conhecê-lo. Disseram-me que você o conhecia e que aceitaria nos guiar até sua plantação.

Os dois homens se examinavam de pés a cabeça, considerando o porte, a roupa e as armas.

-Seu tio, né? E sabe ele que você vai para ali?

Jamie sacudiu a cabeça.

-Não sei. Enviei-lhe uma carta desde a Georgia faz um mês, mas não há forma de saber se a recebeu.

-Não acredito -disse Myers, pensativo-. Já conheci a sua esposa. É seu filho?

Fez um gesto para o Ian.

-Meu sobrinho, Ian. Meu filho adotivo, Fergus. -Jamie fez as apresentações com um gesto da mão-. E um amigo, Duncan Innes, que logo estará conosco.

Myers assentiu com um grunhido e se decidiu.

-Bem, posso lhes conduzir até a plantação do Cameron sem problemas. Mas queria estar seguro de que era da família, embora, como o moço, tem um forte parecido com a viúva Cameron.

Jamie ergueu a cabeça súbitamente.

-A viúva Cameron?

-O velho Héctor teve uma enfermidade na garganta e morreu o inverno passado. Não acredito que receba correspondência onde quer que esteja agora.

E deixando o tema dos Cameron por assuntos de maior interesse pessoal, Myers voltou a ocupar-se de seus calções.

-Uma grande coisa púrpura -explicou-me-. Quase tão grande como uma de meu Pelotas. Não acreditará que, de repente, cresceu-me outra, não?

-Bom, não -pinjente, me mordendo o lábio-. Realmente o duvido.

Já quase tinha desatado o cordão e a gente se detinha para nos olhar.

-Por favor, não se incomode -pinjente-. Acredito que sei o que tem, é uma hérnia inguinal.

-É isso?

Pareceu impressionado e nada aborrecido com a notícia.

-Tenho que vê-lo para estar segura, mas não aqui -acrescentei, apressadamente-, embora acredite que é isso. É fácil de solucionar com uma operação, mas... -Vacilei, contemplando ao colosso- Realmente não poderia... quero dizer, você tem que estar dormido. Inconsciente. Tenho que cortar e lhe costurar de novo. Talvez, seria melhor se usasse um braguero.

Myers se arranhou o queixo, pensativo.

-Não, isso não me soa bem. Cortar... vocês ficarão aqui descansando antes de empreender viagem para a plantação do Cameron?

-Não muito -interveio Jamie com firmeza-. Queríamos ir rio acima, para a propriedade de minha tia, assim que consigamos um navio.

-Aaah! -O gigante o pensou um momento e logo assentiu com o rosto radiante-. Conheço o homem adequado para você, senhor. Neste momento vou procurar o Josh Freeman, no Sailor's Rest. O sol ainda está alto, assim não estará tão bêbado como para não poder tratar de negócios.

-Fez-me uma reverência-. E então, talvez sua esposa terá a bondade de me buscar naquele botequim e jogar um olhar a esta... esta moléstia.

Jamie observou ao gigante que se afastava pela rua.

-O que passa contigo, Sassenach?

-O que é o que passa comigo?

-O que é o que faz que, cada homem que conhece, queira tirá-los calções aos cinco minutos?

Fergus riu pelo baixo enquanto Ian se ruborizava.

-Bom, se você não souber, querido -respondi-, ninguém saberá. Mas parece que consegui um navio. E você, o que tem feito esta manhã?

 

Hábil como sempre, Jamie tinha encontrado um possível comprador para as pedras. E não só isso, mas também também um convite para jantar com o governador.

-O governador Tryon está no povo -explicou-. Em casa de um tal senhor Lillington. Esta manhã falei com um comerciante chamado MacEachern, quem apresentou a um homem chamado MacLeod, quem...

-Quem apresentou ao MacNeil, quem te levou a beber com o MacGregor, quem te falou sobre seu sobrinho Bethune...

Jamie riu com ironia por minha brincadeira ante as relações e parentescos dos escoceses.

-Era o secretário da esposa do governador -corrigiu-me- e se chama Murray. É o filho maior do Maggie, a prima de seu pai, Ian. Seu pai emigrou do Loch Linnhe depois da insurreição.

Edwin Murray, o secretário da esposa do governador, tinha recebido ao Jamie como a um parente (embora fora político) e com toda cordialidade lhe tinha conseguido um convite para aquela noite. Em realidade, nós queríamos conhecer barão Penzier, um nobre alemão de boa posição que também assistiria a aquele jantar. O barão era um homem de fortuna e bom gosto, com fama de colecionador.

-Bom, parece uma boa idéia -pinjente, não muito segura-. Mas acredito que deveria ir sozinho. Não posso ir a um jantar a casa do governador vestida assim.

-Mas eu te quero ali, Sassenach; pode ser que necessite uma distração.

-Falando de distração, quantas cervejas tomou para agradecer o convite?

-Seis, mas ele pagou a metade. Vamos, Sassenach; o jantar é às sete e temos que encontrar algo decente que nos pôr.

-Mas não podemos gastar...

-É um investimento -afirmou Jamie-. E além disso, o primo Edwin me adiantou um pouco a conta da venda da pedra.

 

O vestido fazia dois anos que tinha passado de moda para o critério cosmopolita da Jamaica, mas estava limpo, que era o principal.

Todos os quartos de convidados da casa do senhor Lillington estavam ocupados devido à festa; enviaram a um pequeno desvão que ficava em cima das quadras e que utilizava o primo Edwin. Mas não me queixei, porque as quadras estavam muito mais limpa que a estalagem onde tínhamos deixado a nossos companheiros. A senhora Lillington, amavelmente, ocupou-se de que me dessem uma tina com água quente e sabão perfumado. Um pouco mais importante que o mesmo vestido. Esperava não ter que voltar a ver nunca mais um pêssego.

Enquanto me arrumavam o vestido, tratei de aparecer pela janela para ver se Jamie aparecia. Mas os protestos da costureira me fizeram desistir.

O vestido não estava mau; era de seda cor nata, muito singelo e com aplicações nos quadris e a cintura. Com o encaixe de Bruxelas colocado nas mangas, poderia resultar adequado.

-Senhora, necessitará algo para que não fique nu o pescoço. Se não ter peruca nem touca, não poderia ficar uma cinta no cabelo?

-Uma cinta! -exclamei, recordando-. Sim, é uma boa idéia. Procura nessa cesta e encontrará uma que pode servir.

Entre as duas, engenhamo-nos isso para levantar meu cabelo e sujeitá-lo com a cinta rosada, deixando uns cachos de cabelo sobre minhas orelhas e minha frente.

-Não fica bem, verdade? -perguntei com preocupação.

-claro que sim, senhora! -assegurou a costureira-. Muito apropriado -disse, me olhando com rosto carrancudo-, embora deveria ficar algo para tampar a nudez do peito. Não tem nenhuma jóia que ficar?

-É esse o problema?

Voltamo-nos surpreendidas para ouvir a voz do Jamie, que aparecia a cabeça pela porta. Nenhuma das duas lhe tínhamos ouvido chegar. banhou-se e levava uma camisa limpa e uma gravata; e alguém lhe tinha penteado uma trança e a tinha sujeito com a cinta azul de seda. Seu casaco estava escovado e lhe tinham costurado botões dourados com uma pequena flor no centro.

-Muito bonitos -pinjente, tocando um.

-Os aluguei ao ourives -disse-. Mas servem. Quão mesmo isto, espero.

Tirou um lenço sujo de seu bolso, que continha uma magra cadeia de ouro.

-Não tinha tempo para outra coisa -disse muito concentrado na cadeia ao redor de meu pescoço-. Mas isto está bem, não te parece?                         .

O rubi pendurava justo no oco de meus seios, dando um tom rosado a minha pele branca.

-Me alegro de que tenha eleito esta -pinjente, acariciando a pedra.                      

Jamie observou o resto de meu vestido.

-Parece um bonito joalheiro, Sassenach. Uma boa distração, não?.

deu-se a volta, fez uma reverência e me ofereceu o braço.

-Terei o prazer de sua companhia durante o jantar, senhora?

 

                   Grandes perspectivas carregadas de perigo

Embora estava familiarizada com a boa vontade da gente do século XVIII na hora de comer algo que pudessem vencer fisicamente e arrastar até a mesa, não estava de acordo com a mania de apresentar pratos selvagens como se não tivessem passado pelos processos da caça e a cozinha, antes de servi-los no jantar.

Por isso contemplava aquele grande esturjão e seus grandes olhos com uma notável falta de apetite. Bebi outro sorvo de vinho e me voltei para meu companheiro de mesa, tratando de apartar a vista daqueles olhos saltados.

-!Que tipo mais impertinente! -estava dizendo o senhor Stanhope-. Em meio de nosso refrigério começou a falar de seus hemorroides e dos torturas que lhe causava o movimento da carruagem. E para que ninguém duvidasse, como prova, tirou um lenço manchado de sangue. Asseguro-lhe, senhora, que acabou com meu apetite.

Ao outro lado da mesa, Phillip Wylie fez uma careta de diversão.

-Cuide sua conversação, Stanhope, não seja que provoque um efeito similar. -E assinalou meu prato intacto-. Devo admitir que a vulgaridade de certos companheiros é um dos perigos dos transporte público.

Stanhope soprou, limpando-as miolos de sua gravata.

-É que agora não todos podem manter um chofer, em especial com os novos impostos. -Agitou, indignado, seu garfo-. Ao tabaco, ao vinho, ao brandy, muito bem. Mas aos periódicos! ouviram algo semelhante?

-Mas agora... -disse com paciência o primo Edwin- com a derrogação da lei das apólices...

Stanhope agarrou um dos pequenos caranguejos da bandeja e o agitou acusadoramente para o Edwin.

-Libera-te de um imposto e aparece outro para ocupar seu lugar.

-Você chegou recentemente das Antilhas, senhora Fraser? -O barão Penzier, do outro lado, aproveitou a oportunidade para intervir-. Duvido que esteja familiarizada com estes assuntos provincianos, ou que lhe interessem –acrescentou com um gesto de benevolência.

-Todo mundo está interessado pelos impostos -pinjente, me voltando ligeiramente para obter um melhor efeito com meu decote-. Ou não acredita que os impostos são o pagamento por uma sociedade civilizada? Embora depois de ter ouvido o senhor Stanhope... -fiz um gesto para o outro lado- talvez ele opine que o nível de civilização não está à altura da quantidade de impostos.

-Ja, ja! -Stanhope se afogou de risada-. Muito bom! Não está à altura de... ja, ja, não, certamente que não!

Phillip Wylie me dirigiu um olhar de reconhecimento.

-Procure não ser tão graciosa, senhora Fraser -disse-. Poderia causar a morte do pobre Stanhope.

-Ah, e qual é a percentagem atual de impostos? -perguntei para desviar a atenção do Stanhope.

-Tendo em conta os indiretos, diria que pode chegar a dois por cento das rendas totais, se se incluírem os impostos dos escravos. Some impostos sobre a terra e a colheita e possivelmente um pouco mais.

-Dois por cento! -Stanhope se engasgou; golpeando o peito exclamou-: Injusto! Simplesmente perverso!

Com vividas lembranças dos últimos formulários de Fazenda que tinha assinado, estive de acordo em que dois por cento constituía um verdadeiro ultraje; perguntava-me que se feito do ardente espírito dos contribuintes norte-americanos durante aquele intermédio de duzentos anos.

-Mas talvez deveríamos trocar de tema -disse ao ver que as cabeças começavam a voltar-se em nossa direção da outra ponta da mesa-. depois de tudo, falar de impostos em casa do governador é como mencionar a corda em casa do enforcado, não é assim?

Naquele momento, Stanhope voltou a engasgar-se com um caranguejo, mas por sorte não necessitou de minha assistência.

-Alguém mencionou os periódicos -comentei, uma vez que Stanhope se recuperou-. Faz tão pouco tempo que chegamos, que não vi nenhum. imprime-se algum periódico regular no Wilmington?

além de dar tempo ao Stanhope para que se repusera, tinha outros motivos para fazer a pergunta. Entre as poucas posses que Jamie tinha, figurava uma imprensa, em depósito no Edimburgo.

Resultou que no Wilmington havia duas imprensas, mas só uma delas, a cargo de um tal senhor Jonathan Gillette, editava regularmente um periódico.

-E muito em breve pode que deixe de ser regular –interveio com tom sombrio Stanhope-. Ouvi dizer que o senhor Gillette recebeu um aviso do Comitê de Segurança que...

-Tem um interesse especial, senhora Fraser? —interrogou cortesmente Wylie, lançando um rápido olhar a seu amigo-. ouvi que seu marido tem alguma conexão no Edimburgo com o negócio da imprensa.

-Bom, sim -pinjente, surpreendida de que soubesse tanto sobre nós-. Jamie era dono de uma imprensa, mas não se dedicava aos periódicos; imprimia livros, folhetos e coisas pelo estilo.

-Então, seu marido não tinha tendências políticas? Muito freqüentemente, os impressores descobrem que suas ferramentas terminam subordinadas a aqueles que querem expressar suas paixões no papel. Embora não necessariamente essas paixões sejam compartilhadas pelo impressor.

Soaram numerosos sinos de alarme. Wylie sabia, em realidade, algo sobre as conexões políticas do Jamie no Edimburgo (a maioria das quais tinham sido totalmente sediciosas), ou era só uma inocente conversação de sobremesa?

Jamie, na outra ponta da mesa, tinha ouvido seu nome e me sorriu antes de continuar sua conversação com o governador, já que o tinham sentado a sua direita. Não sabia se situação se devia ao senhor Lillington, quem estava à esquerda do governador e seguia a conversação com a inteligente expressão de um cão, ou à primo Edwin, sentado entre o Phillip Wylie e Judith, a irmã do Wylie, justo frente a mim.

-Ah um comerciante -comento Judith com tom significativo-. Sorriu-me, cuidando de não expor seus dentes, bastante deteriorados-. Mas como? -Fez um gesto, comparando a cinta de meu cabelo com sua elaborada peruca-. É a moda do Edimburgo, senhora Fraser? O que... original.

Seu irmão a olhou com desgosto.

-Tenho entendido que o senhor Fraser é o sobrinho da senhora Cameron, do River Run -disse afablemente-. Estou bem informado, senhora Fraser?

O barão, tão aborrecido com o tema dos periódicos como com o dos impostos, animou-se para ouvir o sobrenome Cameron.

-Do River Run? -perguntou-. Tem parentesco com a senhora Yocasta Cameron?

-É tia de meu marido —respondi—. A conhece?

-Em efeito! Uma mulher encantadora! -Um amplo sorriso levantou as bochechas pendentes do barão-. Faz muitos anos que sou um apreciado amigo da senhora Cameron e de seu marido, desgraçadamente falecido.

O barão se lançou a uma entusiasta descrição das maravilhas do River Run e eu aproveitei para aceitar um bolo de pescado com ostras e lagosta, em um molho cremoso. O senhor Lillington não tinha regulado esforços para impressionar ao governador.

Enquanto me jogava para trás para permitir que me servissem mais molho, adverti o olhar do Judith Wylie, quem não ocultava seu desgosto para mim. Sorri-lhe afablemente, mostrando todos meus dentes, em excelente estado, e me voltei para o barão com renovada confiança.

-Que pedra mais formosa, senhora Fraser! Permite-me que a veja de perto?

O barão se inclinou para mim, pondo seus dedos gordinhos entre meus seios.

-Claro -disse com presteza e desabotoei a cadeia, deixando cair o rubi em sua palma úmida.

O barão pareceu um pouco frustrado ao não poder examinar a pedra in situ, mas levantou a mão e entortou os olhos com a atitude de um perito, o qual era certo, já que tirou de seu bolso uma lupa de joalheiro e umas lentes de aumento.

-Verdadeiramente precioso -murmurou, movendo a pedra em sua mão.

Para muitas coisas não confiava no Geillis Duncan, mas estava segura de seu bom gosto pelas jóias. «Tem que ser uma pedra de primeira classe -havia-me dito para me explicar sua teoria da viagem através do tempo via pedras preciosas-. Grande e totalmente perfeita.»

O rubi era grande, é certo. E, quanto a sua perfeição, não tinha dúvidas. Se Geilie tinha crédulo naquela pedra para viajar até o futuro, era muito provável que pudesse nos levar até o Cross Creek.

 

Fechei a porta da habitação do primo Edwin e me apoiei nela, deixando que minha mandíbula se relaxasse, sem ter que sorrir. Agora podia me tirar o vestido e me liberar do espartilho e os sapatos.

Paz, solidão, nudez e silêncio. Não necessitava nada mais para fazer que minha felicidade fora completa, salvo um pouco de ar fresco. Assim abri a janela.

Fora, os hóspedes começavam a retirar-se; uma fila de carruagens os aguardavam no caminho de entrada. Chegavam-me fragmentos de despedidas, conversações e risadas.

-... muito inteligente, parece-me -chegou a voz educada do Wylie.

-Claro que é inteligente!

Os tons agudos de sua irmã demonstravam o valor que lhe dava à inteligência como atributo social.

-Bom, a inteligência em uma mulher pode tolerar-se, querida, sempre que também seja agradável à vista. Pela mesma razão, a uma mulher bela lhe pode perdoar a falta de inteligência sempre que tiver bastante sentido comum para fechar a boca e ocultá-lo.

Embora a senhorita Wylie não poderia ser acusada de inteligente, possuía a suficiente sensibilidade para dar-se conta da ironia. Soltou um bufido muito pouco adequado para uma dama.

-Tem mil anos -respondeu-. Muito agradável para contemplá-la. Embora deva dizer que a bagatela que levava no pescoço era realmente bonita.

-Seguro -interveio uma voz profunda que reconheci como pertencente ao Stanhope-. Embora em minha opinião, o que chamava a atenção era o engaste, mais que a jóia.

-Engaste? -A senhorita Wylie parecia desconcertada-. Não tinha nenhum engaste; a jóia pendurava em seu peito e já está.

-Seriamente? -disse imperturbável Stanhope-. Não me tinha dado conta.

Wylie soltou uma gargalhada que cortou bruscamente ante a aparição de outros convidados.

-Bom, se você não o fez, houve outros que sim o fizeram.

Vamos, ali está a carruagem.

Toquei outra vez o rubi, observando a marcha dos cavalos. Sim, outros o tinham notado; ainda sentia os olhos do barão em meu peito e pensei que seus interesses foram além das pedras preciosas.

Ficava uma só carruagem, com o condutor esperando ao lado dos cavalos. Uns vinte minutos mais tarde seu ocupante, o barão, saiu dando as boa noite.

Acreditei que Jamie subiria em seguida, mas os minutos passavam sem que ouvisse seus passos pela escada. Olhei a cama, mas não tinha vontades de me deitar. Finalmente, voltei a me pôr o vestido, sem me incomodar pelas meias e os sapatos.

Saí da habitação, baixei silenciosamente e atravessei a galeria coberta.

Podia ouvir o murmúrio de vozes masculinas enquanto passava nas pontas dos pés; a profunda voz do Jamie, com seu acento escocês, alternava com o tom inglês do governador, com a íntima cadência de uma conversação privada. Detive-me perto da porta. De ali podia ver o governador de costas a mim, acendendo um charuto.

Se Jamie me tinha visto, não o demonstrou. Seu rosto tinha sua habitual expressão de tranqüilidade e bom humor; por sua postura me dava conta de que estava depravado e em paz. Senti-me bem ao ver que tinha obtido o que queria.

-Um lugar chamado River Run -estava-lhe dizendo ao governador-. Acima nas colinas, passado Cross Creek.

-Conheço o lugar -observou o governador Tryon, um pouco surpreso-. Minha esposa e eu passamos vários dias no Cross Creek o ano passado. Fizemos uma viagem pela colônia quando me fiz cargo de seu governo. River Run não está no povo, acredito que mas bem está a metade do caminho das montanhas.

Jamie sorriu e apurou seu brandy.

-Sim, claro, é que minha família é das montanhas de Escócia, por isso nelas nos sentimos como em nosso lar.

-Já que estamos sozinhos, senhor Fraser, há algo que queria lhe propor. um pouco mais?

Sem esperar resposta, serve mais brandy.

-Muito obrigado, senhor.

-O jovem Edwin me disse que acaba de chegar às colônias. Está familiarizado com as condições da zona?

Jamie se encolheu de ombros.

-tratei que me inteirar de tudo o que pude, senhor -respondeu-. A que condições se refere?

-Carolina do Norte é uma terra de considerável riqueza -respondeu o governador- e, entretanto, não alcançou o mesmo nível de prosperidade que nossos vizinhos. Isto se deve, principalmente, à falta de trabalhadores que aproveitem estas oportunidades.

Como verá, não temos um grande porto, assim que os escravos devem trazer-se por terra a um elevado preço, desde a Carolina do Sul ou Virginia, e não podemos sonhar em competir com Boston ou Filadelfía em questão de contratos de trabalho. É política da Coroa e também minha, senhor Fraser, respirar os assentamentos em terras da Carolina do Norte por boas famílias, trabalhadoras e inteligentes, para fomentar a prosperidade e segurança de todos. Esta política foi benta com o êxito; durante os últimos trinta anos uma grande quantidade de montanheses de Escócia, com suas famílias, foram induzidos a afincarse aqui. Quando cheguei, assombrei-me ao encontrar os bancos de Cape Fear River cheios do MacNeill, Buchanan, Graham e Campbell.

O governador deu outra chupada a seu puro.

-Entretanto, ainda fica uma considerável quantidade de terra muito boa perto da montanha. Está um pouco afastada, mas como você dizia, para homens acostumados às montanhas de Escócia...                            

-Tinha ouvido algo sobre essas doações de terras, senhor -interrompeu Jamie- Mas não é obrigatório que os solicitantes sejam homens brancos, protestantes e de uns trinta anos de idade?

-Esses são os términos oficiais da Ata, sim.

O senhor Tryon se voltou e vi sua expressão; era a de um pescador quando nota que morderam a isca de peixe.

-A oferta é muito interessante -respondeu formalmente Jamie-. Entretanto, devo assinalar que não sou protestante, nem tampouco meus parentes.

O governador fez um gesto de desculpa e arqueou uma sobrancelha.

-Tampouco é negro nem judeu. vou falar lhe de cavalheiro a cavalheiro, pode ser? Com toda sinceridade, senhor Fraser, por um lado está a lei e por outro a armadilha. -Levantou sua taça com um amplo sorriso-. Estou convencido de que o compreende tão bem como eu.

-Possivelmente melhor -murmurou Jamie com um sorriso educado.

-Os dois nos compreendemos, senhor Fraser -disse com satisfação.

Jamie inclinou ligeiramente a cabeça.

-Então, não surgirão dificuldades com as qualificações daqueles que queiram aceitar sua oferta?

-Absolutamente -respondeu o governador deixando a taça com força-. O único necessário é que sejam homens sãs e capazes de trabalhar a terra, não peço nada mais. E o que não se pergunta não precisa dizer-se, não?

-Não todos os que aconteceram a insurreição tiveram minha sorte, Excelência -disse-. Meu filho adotivo sofreu a perda de uma mão e outro de meus homens perdeu um braço. Mas são homens de bom caráter e muito trabalhadores. Eu não poderia aceitar uma proposta que lhes deixasse fora.

O governador fez um gesto tirando importância ao assunto.

-Sempre que puderem ganhar o pão e não sejam uma carga para a comunidade, serão bem-vindos. Ah, e já que mencionou aos jacobitas, esses homens deverão jurar um voto de lealdade à Coroa, se é que não o têm feito já. Não quero lhe recordar acontecidas indignidades, nem ofender sua honra. Mas compreenderá que tenho o dever de perguntar-lhe Jamie sorriu, embora sem alegria.

-E suponho que o meu é lhe responder. Sim, sou um jacobita perdoado. E sim, fiz o juramento, como outros, que pagaram esse aprecio por suas vidas.

Bruscamente deixou sua taça quase enche, ficou em pé e saudou com uma inclinação.

-Já é muito tarde, Excelência. Devo lhe rogar que me perdoe.

-boa noite, senhor Fraser. Considerará minha oferta?

Não quis esperar a resposta, não precisava fazê-lo. Jaime ia considerar a oferta do governador. E que oferta! Recuperar o perdido em Escócia e mais ainda. Jamie não tinha nascido latifundiário, mas a morte de seu irmão maior o fez herdeiro do Lallybroch aos oito anos e o tinham educado para que fora responsável pela propriedade, para ocupar-se da terra e do bem-estar de seus habitantes. Logo apareceu Carlos Estuardo e sua louca marcha triunfal, uma cruzada que levou a seus seguidores à morte e à destruição.

E agora... recuperar tudo. Novas terras para o cultivo e a caça, e um grupo de famílias baixo seu amparo.

Não era a excitação o que fazia que minhas mãos suassem e meu coração pulsasse tão depressa; era o medo. Porque para conseguir homens, Jamie teria que retornar a Escócia. E em minha mente estava a imagem da lápide naquele cemitério escocês. James Alexander Malcolm MACKENZIE FRASER, dizia e debaixo, meu nome: «Amado marido do Claire».

Tinha sido enterrado em Escócia. Mas quando a vi, duzentos anos depois, não havia data na pedra.

-Ainda não -sussurrei, apertando os punhos-. Tive-o muito pouco tempo. Por favor, ainda não!

A modo de resposta, a porta se abriu e James Alexander Malcom MacKenzie Fraser entrou levando uma vela.

-É muito rápida descalça, Sassenach -disse, sonriendo-. Algum dia te ensinarei a caçar; seguro que o fará muito bem.

Não me desculpei por espiar, antes bem me apressei a lhe ajudar a tirá-la roupa.

-Melhor apaga a vela -indiquei-. Ou os mosquitos lhe comerão.

Cheirava a brandy e a tabaco, misturado com perfume de flores. Tinha estado caminhando pelo jardim. O fazia quando estava nervoso ou deprimido e agora não parecia deprimido.

Suspirou e se relaxou quando lhe tirei a casaca.

-Não sei como podem vestir-se assim, com este calor. Os selvagens parecem mais sensatos, vendo a pouca roupa que usam.

-E além disso é muito mais barato, embora menos estético. Imagina ao barão Penzier com um tanga. -Jamie riu, enquanto se tirava a camisa-. Você, em troca... -Sentei-me no bordo da janela, admirando a paisagem enquanto se tirava os calções-. E falando do barão...

-Trezentas libras esterlinas -respondeu, com soma satisfação. inclinou-se para me beijar-. Em grande parte, é devido a ti, Sassenach.

-Por meu valor como um atrativo adorno? -perguntei com secura.

-Não -respondeu com rapidez-. Por manter ocupados durante o jantar ao Wylie e seus amigos enquanto eu falava com o governador. E quanto ao de adorno... Stanhope quase deixa seus olhos pegos a seu decote, o muito asqueroso; ia dizer lhe...

-A discrição é a melhor parte do valor -pinjente, me pondo em pé para beijá-lo-. Embora não é algo que os escoceses tenham em muita consideração.

-Ah, bom, meu avô, o velho Simón, suponho que se poderia dizer que foi discreto ao final.

Não falava dos jacobitas, nem da insurreição, mas a conversação com o governador havia lhe trazida lembranças. Seu rosto estava em calma, mas seu olhar parecia perdida em outro tempo. No passado?, perguntei-me. Ou no futuro?

 

                     Homem de fortuna

-Detesto os navios!

Com essa sincera despedida ressonando em meus ouvidos, afastamo-nos pelas águas do porto do Wilmington.

Depois de dois dias de compras e preparativos, tínhamo-nos posto em caminho para o Cross Creek. Com o dinheiro obtido pela venda do rubi, não houve necessidade de vender os cavalos; Duncan viajava no carro com as coisas mais pesadas e com o Myers de companheiro para guiá-lo, e o resto fomos passageiros do capitão Freeman a bordo do Sally Ann, em uma viagem mais rápida e confortável.

Apesar de estar um pouco apertados, sentia-me contente. Eu gostava de estar na água, longe do canto de sereia do governador, embora fora por pouco tempo.

Jamie não estava contente.

-Está muito tranqüilo -comentei-. Talvez não te enjoe.

Observou a água cor chocolate com ar receoso e fechou os olhos quando outro navio levantou uma onda que se chocou contra nosso flanco.

-Talvez não —disse com um tom que indicava que era uma possibilidade remota.

-Quer as agulhas? É melhor que lhe ponha isso antes de que vomite.

estremeceu-se e abriu os olhos.

-Não -respondeu-. Me fale, Sassenach, afasta minha mente de meu estômago, quer?

-Está bem -disse com atitude serviçal-. Como é sua tia Yocasta?

-Não a vejo desde que tinha dois anos, assim que minhas lembranças não são muito confiáveis -respondeu distraído-. Crie que esse negro será capaz de pilotar o navio? Talvez deva ir ajudar o.

-Talvez não -pinjente, observando a balsa que se aproximava, aumentando a preocupação do Jamie-. Parece conhecer seu trabalho. Deixa-o tranqüilo. Então, não sabe muito sobre sua tia?

-Não- casou-se com um Cameron do Erracht e deixou Leoch um ano antes de que meus pais se casassem.

Não me olhava, seguia vigiando a balsa.

-E alguma vez foi visita o Lallybroch?

-Bom, John Cameron morreu de gripe e ela se casou com sua primo, Hugh Cameron do Aberfeldy, e então...

Fechou os olhos enquanto passava a balsa e nos saudavam gritos. Cilindro, com as patas dianteiras sobre o teto da cabine, ladrou até que Ian lhe deu uma palmada e lhe ordenou que calasse.

Jamie abriu um olho e ao ver que o perigo tinha passado abriu o outro e se relaxou.

-Sim, bom, Hugh morreu em uma caçada e então ela se casou com o Héctor Mor Cameron, do Loch Eilean.

-Parece ter um gosto especial pelos Cameron -pinjente fascinada-. Têm algo especial, além de ser propensos aos acidentes?

-Suponho que têm facilidade de palavra -respondeu com uma súbita careta zombadora-. Os Cameron são poetas e brincalhões. Algumas vezes, as duas coisas.

-Héctor Cameron era um poeta ou um palhaço?

-Agora nenhuma das duas coisas. Está morto, recorda?

Enquanto falava, acariciava-me a nuca.

-É maravilhoso -disse com um suspiro de satisfação-. O que me está fazendo, não que seu tio tenha morrido. Não te detenha. Como chegou a Carolina do Norte?

-É uma mulher muito escandalosa, Sassenach -disse, sussurrando a meu ouvido-. Sussurras igual quando te esfrego a nuca que quando... -Empurrou sua pélvis contra mim, em um gesto que não necessitava explicação- Mmm?

-Mmmm -respondi, lhe dando uma discreta patada no tornozelo-. Bem, se alguém escutar detrás da porta, suporá que me está esfregando a nuca, que é quão único fará até que saiamos daqui. Agora, me fale de seu defunto tio.

Seus dedos seguiam esfregando minhas costas enquanto recordava outra parte da história de sua família. Ao menos, sua mente estava longe de seu estômago.

Felizmente, e também por ser mais perspicaz ou mais cínico que seu famoso parente, Héctor Mor Cameron se preparou para a possibilidade do desastre dos Estuardo. Escapou ileso do Culloden e retornou a casa, onde rapidamente carregou a sua esposa, serventes e demais pertences em uma carruagem e partiram para o Edimburgo. Ali se embarcaram para a Carolina do Norte, escapando por muito pouco da perseguição da Coroa.

Uma vez no Novo Mundo, Héctor comprou uma grande quantidade de terra, despovoou o bosque, construiu uma casa e uma serraria, comprou escravos para que trabalhassem, fez plantar tabaco e (sem dúvida por causa de tanta indústria) sucumbiu a uma enfermidade da garganta, aos setenta e três anos.

Era evidente que Yocasta MacKenzie Cameron Cameron Cameron, conforme havia dito Myers, declinou voltar a casar-se e permanecia solteira como a senhora do River Run.

-Crie que o mensageiro com sua carta chegará antes que nós?

-Chegará antes que nós embora vá de joelhos –disse Ian, aparecendo súbitamente-. Demoraremos semanas se seguirmos assim. Disse-te que era melhor ir por terra, tio Jamie.

-Não se preocupe, Ian -acalmou-lhe Jamie, deixando meu pescoço por um momento-. Já terá tempo para ajudar. Espero que antes da noite possamos estar no Cross Creek.

Ian lhe dirigiu um olhar rancoroso e foi se incomodar ao capitão com perguntas sobre peles vermelhas e animais selvagens.

-Obrigado pela massagem -pinjente, olhando ao Jamie.

-Deixarei-te que me devolva o favor, Sassenach, quando anochezca.

-É claro que sim. -Agitei minhas pestanas com paquera-. E o que tenho que massagear quando anochezca?

-Quando anochezca? -perguntou Ian antes de que seu tio pudesse responder-. O que acontecerá então?

-Que te usarei como isca para os peixes -disse seu tio-. Pelo amor de Deus, não pode te estar aquieto, Ian? vá dormir ao sol, como esse animal; é um cão sensato.

-Dormir? -Ian olhou assombrado a seu tio-, Dormir?

-É o que faz a gente normal quando está cansada –pinjente com um bocejo.

-Mas não estou cansado, tia! -exclamou.

Jamie observou a seu sobrinho.

-Já veremos o que diz depois de um turno com a vara. Enquanto isso, talvez encontre algo para ocupar sua mente. Espera um pouco... -disse desaparecendo na cabine.

-Joder, que calor faz! -exclamou Ian, abanicándose-. O que faz tio Jamie?

-Só Deus sabe -respondi.

Jamie tinha subido a bordo uma grande cesta, mas não havia dito a ninguém o que continha. A noite anterior, enquanto eu dormia, tinha estado jogando às cartas. Supunha que tinha ganho alguns objetos que não quereria mostrar, para evitar as brincadeiras do Ian.

Ian tinha razão, fazia calor. Dirigi-me para a proa, onde Fergus estava com os braços cruzados. Parecia um magnífico mascarón.

-Ah, minha senhora! -Recebeu-me com um amplo sorriso-. Não é este um país esplêndido? Milord me disse que qualquer homem pode reclamar cinqüenta acres, sempre que construir uma casa e prometa trabalhar a terra durante dez anos. Imagine, cinqüenta acres.

-Bom, sim -pinjente, um pouco insegura-. Mas acredito que deverá escolher sua terra com cuidado. Algumas zonas não são muito boas para o cultivo.

Fergus não via as dificuldades. Seus olhos brilhavam, sonhadores.

-Talvez possa construir uma pequena casa -murmurou para si-. Assim enviaria a procurar o Marsali e a criatura na primavera.

reuniu-se conosco na Georgia, deixando a seu jovem algema grávida na Jamaica, aos cuidados de uns amigos.

-Está seguro de que não quer retornar a Jamaica para estar com o Marsali, Fergus?

Negou com a cabeça com determinação.

-Milord poderia me necessitar -explicou-. E serei mais útil aqui. Os meninos são assunto de mulheres. Além disso, quem sabe que perigos nos esperam neste lugar desconhecido?

Como resposta a sua retórica pergunta, as gaivotas surgiram como uma nuvem, voando sobre o rio e revelando o objeto de seu apetite.

por cima do fluxo lamacento flutuava a figura de um homem, sujeito a um poste por uma cadeia que lhe rodeava o peito, ou o que tinha sido seu peito.

junto a mim, Fergus murmurou em francês um pouco muito obsceno.

-Um pirata -comentou lacónicamente o capitão Freeman e lançou ao rio um escupitajo de tabaco-. Quando não os levam ao Charleston para pendurá-los, atam-nos a uma estaca com a maré baixa e deixam que o rio os leve.

-Há... há muitos?

Ian também o tinha visto e, embora já era grande para agarrar-se de minha mão, aproximou-se com seu rosto torrado repentinamente pálido.

-Já não há muitos. A Marinha tem feito um bom trabalho com eles.

-Olhe!

Ian, esquecendo sua dignidade, pendurou-se de meu braço. Havia movimento perto da borda e vimos o que tinha espantado aos pássaros.

Uma forma escamosa, de uns dois metros de comprimento, deslizava-se sobre a água, abrindo um sulco no barro.

-É um crocodilo -disse Fergus e, com desgosto, fez o gesto dos chifres.

-Não, não acredito -comentou Jamie a minhas costas.

Voltei-me; estava sobre o teto da cabine com um livro aberto na mão.

-Parece-me que é um jacaré. Aqui diz que comem carniça, não carne fresca. Quando apanham um homem ou uma ovelha, colocam a vítima na água até afogá-la, logo a arrastam até sua toca e a deixam até que se apodrece; lhes gosta assim. Como é lógico -acrescentou com um olhar sombrio à borda-, alguns têm a sorte de encontrar a comida preparada.

-Onde conseguiu esse livro? -perguntei sem apartar a vista da estaca.

-Jamie me alcançou isso.

-Deu-me isso o governador. Disse que podia resultar interessante para nossa viagem.

Olhei o título do livro: História natural da Carolina do Norte.

-Ah é o mais asqueroso que vi em minha vida! -exclamou Ian, observando horrorizado a cena da borda.

-Interessante -repeti, com os olhos muito fixos no livro-. Sim, espero que o seja.

Fergus, impermeável a qualquer classe de remilgos, observava os avanços do réptil com interesse.

-Um jacaré? Mas é igual a um crocodilo, não?

-Fui-dije com um calafrio, pese ao calor.

Dava-lhe as costas à costa. Já tinha visto de perto a um crocodilo nas Antilhas e não estava interessada em conhecer seus parentes.

Olhei de esguelha ao Jamie, mas já não estava interessado nem no jacaré nem no livro. Seus olhos olhavam rio acima com intensidade. Ao menos, tinha esquecido o enjôo.

 

O fluxo da maré nos alcançou uns dois quilômetros mais acima do Wilmington, acalmando os temores do Ian sobre nossa velocidade. O Cape Fear era um rio com marés e sua corrente diária levava dois terços de seu caudal quase até o Cross Creek.

Não íamos necessitar a vara até que cessasse a corrente, cinco ou seis horas mais tarde. Então poderíamos ancorar, passar a noite e esperar a seguinte enjoa; ou usar a vela se o vento era propício. A vara, tinham-me explicado, era necessária só em caso de que nos encontrássemos com bancos de areia ou em dias sem vento.

Uma sensação de pacífica sonolência se apoderou da embarcação. Ian e Fergus dormiam na proa enquanto Cilindro vigiava do teto. O capitão e seu ajudante tinham desaparecido na pequena cabine, onde ouvia o musical som do líquido que se serviam para beber.

Jamie também estava em sua cabine procurando algo em sua misteriosa cesta. Voltou com uma grande caixa de madeira nos braços.

-O que é isso? -perguntei, acariciando a caixa.

-Só um pequeno presente. -Não me olhava, mas tinha as orelhas tintas-. Abre-a, quer?

Era uma caixa pesada, larga e profunda, de madeira escura, com marcas que denotavam seu prolongado uso, o que não a fazia menos bela. Não tinha chave e a tampa se abriu com facilidade, deixando escapar uma rajada de aroma de cânfora.

Os instrumentos brilhavam baixo o sol, sujeitos sobre o veludo verde. Uma pequena serra, tesouras, três escalpelos: um com a folha redonda, outro reta e o terceiro com forma de colher; uma espátula chapeada; um tenáculo...

-Jamie! -Encantada, levantei uma varinha de ébano com uma bola envolta em veludo roído. Já tinha visto um antes, no Versalles, a versão do século XVIII de um martelo para reflexos-. Jamie! Que maravilha!

-Você gosta? —meneou-se, encantado.

-eu adoro! Olhe, há mais na tampa, debaixo desta lapela... -contemplei durante um momento os tubos, parafusos e espelhos soltos, até que minha mente juntou as peças-. Um microscópio! -Toquei-o com reverencia—. minha Mãe. Um microscópio.

-Há mais -assinalou-. A parte dianteira se abre e há umas pequenas gavetas.

Ali estavam, contendo entre outras coisas uma balança em miniatura com pesos de bronze, um morteiro e umas quantas botellitas de pedra e de vidro com plugue de cortiça.

-São uma preciosidade! —pinjente, agarrando o pequeno escalpelo. A madeira lustrosa da manga se ajustava a minha mão como se a tivessem esculpido a medida-. Jamie, muito obrigado!

-Então, você gosta? -Suas orelhas estavam vermelhas de prazer-. Pensei que você gostaria.

-Pergunto a quem terá pertencido isto.

-A mulher que me vendeu isso me disse que o dono também tinha deixado seu caderno; agarrei-o. Talvez esteja seu nome.

Tirou um caderno quadrado e largo, forrado em couro negro.

-Como na França tinha um, pensei que poderia querê-lo -explicou-. Naquele fazia desenhos e tomava notas do que via no hospital. Tem páginas escritas, mas há muitas em branco.

Abri-o; na primeira página estava escrito o nome: «Doutor Daniel Rawlings».

-O que lhe terá acontecido ao doutor Rawlings? Disse-te algo a mulher da caixa?

Jamie assentiu.

-O médico ficou em sua casa uma só noite. Disse que era da Virginia e que estava procurando um homem, que ela acredita que se chamava Garver. Aquela noite, o médico saiu depois de jantar e já não retornou.

Olhei-lhe assombrada.

-Não retornou? E ela não soube o que lhe tinha acontecido?

Jamie sacudiu a cabeça, afastando uma nuvem de mosquitos.

-Não. foi ver o delegado e ao juiz; o oficial o esteve procurando, mas não encontrou nem rastro dele. Buscaram-no durante uma semana e logo abandonaram a busca. Como não sabiam de que povo da Virginia era, tampouco puderam procurar mais à frente.

-Que coisa mais estranha. E quando desapareceu?

-Faz um ano. -Olhou-me, um pouco ansioso-, Importa-te? Refiro-me a utilizar suas coisas.

-Claro que não. Se fosse eu, quereria que as usasse outra pessoa. -Agarrei sua mão e a apertei sonriendo-. É um presente maravilhoso. Onde o encontrou?

Então, devolveu-me o sorriso.

-Vi a caixa quando fui visitar ourives. Tinha-a a esposa de este. Quando retornei para comprar alguma jóia, a mulher começou a me ensinar objetos, conversamos e me falou do médico Y... encolheu-se de ombros.

-por que queria comprar uma jóia? -olhei-lhe intrigada-. Ah. Foi haverenviado todo esse dinheiro ao Laoghaire? Não me importou, já lhe disse isso.

Desde bastante má vontade, tinha enviado uma parte importante do dinheiro da venda da pedra a Escócia. Era em pagamento da promessa feita ao Laoghaire MacKenzie (malditos sejam seus olhos) Fraser, com quem Jamie se casou pressionado por sua irmã acreditando que, embora eu não estava morta, não ia retornar nunca. Minha ressurreição tinha causado toda classe de complicações e Laoghaire era uma das principais. .

-Sim, é o que disse -respondeu com cinismo.

-Bom, quis dizer mais ou menos. -E ri-. Não podia deixar que essa horrível mulher morrera de fome, por mais tentadora que seja essa possibilidade.

-Não, não quereria o ter sobre minha consciência. Mas esse não era o motivo de que queria comprar um presente.

-Qual era, então?

A caixa era um peso agradável sobre meus joelhos e tocar sua madeira um prazer. Jamie olhou aos olhos; seu cabelo parecia soltar chamas pelo reflexo dos raios do sol.

-Hoje faz vinte e quatro anos que me casei contigo, Sassenach -disse brandamente-. Espero que não tenha motivo para lamentá-lo.

 

A borda do rio estava bordeada por plantações desde o Wilmington até o Cross Creek. Também havia terrenos boscosos e, cada pouco, pequenos embarcaderos de madeira médio escondidos pela vegetação.

Despertei pouco antes do amanhecer. Jamie, ao me mover, estirou-se médio dormido e me aproximou de seu corpo.

-Detenha -pinjente apartando suas mãos-. Recorda onde estamos!

Podia ouvir os gritos e latidos do Ian e Cilindro indo e vindo, assim como os ruídos procedentes da cabine anunciando a iminente aparição do capitão Freeman.

-Ah -disse Jamie, saindo do sonho-. Ah, sim. É uma lástima.

incorporou-se, agarrou meus seios entre suas mãos e se estirou voluptuosamente para mim, me dando uma detalhada idéia do que me estava perdendo.

 

Enquanto desfrutava de do sol da tarde folheando o caderno do doutor Rawlings, repleto de notas divertidas, instrutivas surpreendentes, ouvia a voz do Jamie lendo em grego a seu sobrinho.        

Ao aceitar a presença do Ian, Jamie se tinha feito cargo de sua educação. Enquanto viajávamos, procurava os momentos de descanso para lhe ensinar os conhecimentos básicos da gramática grega e latina e melhorar seus conhecimentos de matemática e francesa.

Ian tinha a mesma facilidade que seu tio para as matemática mas no referente a idiomas não era o mesmo.

Jamie tinha uma capacidade natural para aprender idiomas e dialetos. Além disso, tinha aprendido os clássicos na Universidade de Paris e, embora não sempre estava de acordo com alguns dos filósofos clássicos, considerava o Homero e ao Virgilio como seus amigos pessoais.

Ian falava gaélico e inglês desde menino e uma espécie de patois francês aprendido do Fergus, pensando que isso era mais que suficiente para suas necessidades. Realmente seu repertório de palavras malsoantes em seis ou sete idiomas era impressionante.

Jamie terminou de ler a passagem em grego e, com um suspiro claramente audível, indicou ao Ian que agarrasse o livro de latim que lhe tinha emprestado o governador Tryon. Como não recitavam, pude me concentrar nos apontamentos do caderno e me zangar, não pela primeira vez, ante um mal diagnóstico de uma enfermidade hepática.

Absorta na leitura, ia ouvindo de tanto em tanto os intentos do Ian, as correções do Jamie e sua crescente impaciência.

A fascinante descrição da amputação da mão de um homem ferido por um disparo de pistola foi interrompida bruscamente pelo Jamie, que devia ter chegado ao limite de sua paciência.

-Ian, seu latim envergonharia a um cão! Quanto ao grego, seria incapaz de diferenciar a água do vinho!

-Se eles o beberem, não é água -murmurou Ian com ar de rebeldia.

Fechei o caderno e me apressei a me levantar. Era provável que necessitassem meus serviços como juiz.

-Se, bom, mas não me importa muito...

-Isso, não te importa! Essa é a verdadeira lástima, nem sequer tem a gentileza de te envergonhar de sua ignorância!

Apareci a cabeça e vi o Jamie ardendo de indignação e ao Ian com ar confundido. À lombriga, o jovem tossiu e se esclareceu garganta.

-Bom, tio Jamie, se tivesse sabido que a vergonha ajudava, me teria esforçado por me ruborizar.

Tinha tal cara de arrependimento que não pude evitar rir. Jamie se voltou e à lombriga se acalmou um pouco.

-Assim não ajuda, Sassenach. Você estudou latim, não? Talvez deveria lhe ensinar.

Neguei com a cabeça.

-Tudo o que lembrança é Arma virumque grisalho. -Olhei de esguelha ao Ian e, sonriendo, fiz a tradução-: Com a arma deixei rígido ao cão.

Ian estalou em gargalhadas e Jamie me olhou com profunda desilusão. Logo sorriu com ironia e olhou ao Ian meneando a cabeça.

-Sinto te haver gritado, Ian. Mas tem boa cabeça e eu não gostaria que a desperdiçasse. meu filho, a sua idade eu estava em Paris estudando!

Ian olhou a água.

-Sim -respondeu-. E a minha idade, meu pai estava na França combatendo.

Surpreendeu-me um pouco, porque sabia que o pai do Ian tinha sido soldado na França, mas não que o tivesse sido desde tão jovem e tanto tempo. O jovem Ian tinha só quinze anos.

Jamie observou a seu sobrinho com o rosto algo carrancudo. Logo se aproximou do jovem.

-Isso já sabia -disse Jamie com calma-. Porque o segui, quatro anos mais tarde, quando me declararam fora da lei.

Ian levantou a vista, surpreso.

-Estiveram juntos na França?

-No FIandes. Durante mais de um ano, até que o feriram e o mandaram a casa. Brigamos no regimento de mercenários escoceses, baixo as ordens do Fergus MAC Leodhas.

Os olhos do Ian se aumentaram pelo interesse.

-Por isso Fergus tem esse nome?

Seu tio sorriu.

-Sim, o pus em lembrança do MAC Leodhas, um bom homem e um grande soldado. Seu pai não te falou dele?

-Nunca me disse nenhuma palavra. Soube que perdeu a perna lutando na França porque mamãe me contou isso quando o perguntei. Mas ele não me disse nada.

-Sim bom -disse Jamie, encolhendo-se de ombros- Suponho que uma vez que se instalou no Lallybroch, quis deixar atrás o passado. E além disso..

Vacilou, mas Ian insistiu.

-E além o que, tio Jamie?

Jamie olhou de esguelha a seu sobrinho.

-Bom, acredito que não queria lhes entusiasmar com histórias de batalhas e soldados para que não pensassem em seguir seu caminho. Seu pai e sua mãe queriam algo melhor para tí.

-Essa é uma idéia de mamãe -comentou com ar de desgosto-. Se fosse por ela, teria-me envolto em lãs e maço ao cordão de seu avental.

-É assim, não? E crie que se fosse agora a casa, envolveria-te em lãs e te cobriria de beijos?

Ian abandonou seu gesto de desdém.

-Bom, não -aceitou-. Acredito que me esfolaria.

-Vai conhecendo as mulheres, Ian -disse Jamie, rendo-. Embora não tanto como crie.

Ian nos olhou com cepticismo.

-E você, suponho que sabe tudo, não, tio Jamie?

Arqueei uma sobrancelha, convidando a que lhe respondesse, mas Jamie se limitou a rir.

-Um homem sábio é o que conhece os limites de seu conhecimento. Embora espere que seus limites cheguem um pouco mais longe -disse, me beijando na frente úmida.

Ian se encolheu de ombros com ar aborrecido.

-Eu não quero chegar a ser um cavalheiro. depois de tudo, o jovem Jamie e Michael não sabem ler em grego e vai muito bem.

Jamie se esfregou o nariz, olhando a seu sobrinho com ar pensativo.

-O jovem Jamie tem Lallybroch. E o pequeno esta Michael trabalhando com o Jared em Paris. Já estão colocados. Fizemos tudo o que pudemos por ambos, mas temamos muito pouco dinheiro para que viajassem ou estudassem quando tinham idade para isso. Não havia muito para escolher, não? Mas seus pais não queriam isso para ti se podiam te dar algo melhor. Queriam que chegasse a ser um homem com conhecimentos e influências, talvez um duine nasal.

Era uma expressão em gaélico que significava «homem de fortuna». Era o que tinha sido Jamie antes da insurreição. Mas não agora.

-Mmm. E fez o que seus pais queriam, tio Jamie? Ian observava a seu tio, porque se dava conta de que estava em terreno perigoso. Jamie tinha sido o dono do Lallybroch por direito próprio. Em um intento de salvar a propriedade de mãos da Coroa, tinha-a entregue legalmente a seu sobrinho Jamie.

-Disse-te que tinha inteligência, não? -respondeu com secura-, Mas já que perguntas... educaram-me para duas coisas, Ian. Para me ocupar de minha terra e de minha gente. E para cuidar de minha família. Fiz essas coisas o melhor que pude e o seguirei fazendo o melhor que possa.

Ian teve o bom gosto de mostrar-se envergonhado ante isso.

-Sim, claro, eu não quis... -murmurou, agachando a cabeça.

-Não te zangue, moço -interrompeu Jamie, lhe aplaudindo as costas e sonriendo burlonamente-. Pelo bem de sua mãe, chegará a ser alguém embora ambos morramos no intento. E agora acredito que é meu turno com a vara.

Olhou para onde o marinheiro negro movia a vara. E logo outra vez a seu sobrinho.

-Pensa nisso, moço. Filho menor ou não, não deve desperdiçar sua vida.

Então me sorriu com uma luminosidade que me chegou ao coração. Agarrou-me da mão e com a outra no coração, recitou:

 

                 Amo, amas, amar a uma moça,

                 alta e magra como uma tocha,

                 sua graça e atrativo

                 estão em genital e vocativo.

 

                 OH, que bela meu puella,

                 declinarei-a a toda ela,

                 e em um rincão rinconórum

                 beijarei-a in sécula seculorum.

 

                 Tibi dabo casamento,

                 doce ninfa de meu pensamento,

                 e com um pouco de sorte,

                 não te liberará de mim nem na morte.

 

Fez uma reverência ante mim, piscou solenemente para me piscar os olhos um olho e se afastou a pernadas.

 

                     Dois terços de um fantasma

A superfície do rio brilhava como o azeite pois a água estava tranqüila e sem fluxo. Estava sentada em um banco da coberta dianteira, observando a luz do único farol que, mais que refletir-se na água, parecia apanhada abaixo, movendo-se com o navio.

Na escuridão, algo rangeu a minhas costas e levantei a mão sem me dar a volta para olhar. A grande emano do Jamie se fechou sobre a minha, oprimiu-me isso e a soltou. O leve contato deixou meus dedos úmidos pelo suor.

deixou-se cair a meu lado suspirando, e se abriu o pescoço da camisa.

-Acredito que não pude respirar desde que saímos da Georgia -disse-. Cada vez que aspiro, parece que vou afogar me.

Ri-me; sentia as gotas de suor escorregando por meus seios.

-Dizem que no Cross Creek o ar é mais fresco. –Respirei profundamente para lhe demonstrar que podia fazê-lo-. Notas esse aroma maravilhoso no ar?

-Seria um bom cão, Sassenach. -apoiou-se na parede da cabine com um suspiro-. Não é estranho que Cilindro te admire.

O ruído das pezuñas sobre a coberta anunciou a chegada do cão, quem avançava com cuidado. tornou-se com um profundo suspiro. Cilindro sentia o mesmo desgosto pelos navios que Jamie.

-Olá, vêem -pinjente e estendi uma mão para que a farejasse e me permitisse lhe arranhar as orelhas-. Onde está seu dono, né?

-Na cabine, aprendendo novas formas de fazer armadilhas com as cartas -disse Jamie com ironia-. Só Deus sabe o que será desse moço. Se não lhe dispararem um tiro ou lhe golpeiam a cabeça em alguma botequim, voltará para casa com uma avestruz que tenha ganho nas cartas.

-É um bom menino -disse para lhe acalmar.

-É um homem -corrigiu-me.

-Mas sempre te escuta -protestei.

-Mmm. Espera a que ouça algo que não queira ouvir.

Jogou a cabeça para trás e fechou os olhos.

-Faz dois meses que lhe diz que tem que voltar para Escócia, e não acredito que goste de ouvir isso.

Jamie abriu um olho e me observou cinicamente.

-Está Ian em Escócia?

-Bom...

-Mmm -respondeu, fechando outra vez os olhos.

Cilindro levantou a cabeça com um grunhido e estirou as orelhas. Jamie abriu os olhos, olhou à borda e se incorporou bruscamente.

-Joder! É o rato maior que vi em minha vida!

-Não é um rato -pinjente rendo-. É uma doninha. Vê a cria sobre seu lombo?

Jamie e Cilindro observaram à doninha com idêntica expressão, calculando seu peso e velocidade. Era evidente que a doninha não considerava o navio como algo perigoso. Terminou de sacudir a água e se afastou entre os matagais com a ponta de sua cauda rosada iluminada por nossa luz.

Os dois caçadores deixaram escapar um suspiro e se relaxaram outra vez.

-Myers diz que são boas para comer -comentou Jaime com gesto pensativo.

Com um suspiro, procurei em meu bolso e lhe entreguei uma bolsa.

-O que é isto?

Inspecionou com interesse e colocou na palma de sua mão uns pequenos objetos cor castanha.

-Amendoins torrados -expliquei-. Crescem nestas terras. Encontrei um granjeiro que os vendia como comida para os porcos e a mulher da estalagem os torrou. lhes tire a casca antes de lhe comer isso

-Sou um ignorante, Sassenach, não um parvo.

Provou desconfiado e logo mastigou com prazer e me sorriu.

-Você gosta? Uma vez que nos instalemos farei manteiga de amendoim para lubrificar no pão.                          

-estive pensando, Sassenach -disse, comendo-se outro amendoim-. O que te pareceria se ficássemos por aqui?  

Pergunta-a não era totalmente inesperada. Não podíamos retornar a Escócia no momento. O jovem Ian, sim, mas não Jamie, devido a certas complicações, uma das quais se chamava Laoghaire MacKenzie.

-Não sei -respondi com lentidão-. Deixando a um lado aos índios e aos animais selvagens...

-Ah, bom -interrompeu, algo incômodo-. Myers me disse que não há problemas com eles.

-Sim, está bem. Mas recorda o que te contei, não? Sobre a Revolução. Estamos em 1767 e você ouviu a conversação no jantar do governador. dentro de nove anos, Jamie, tudo estalará.

Os dois tínhamos passado uma guerra e nenhum tomávamos a questão à ligeira. Apoiei minha mão em seu braço, lhe obrigando a me olhar.

-Eu tive razão... antes. Você sabe.

Como sabia o que ia acontecer no Culloden, havia-lhe dito o destino que esperava ao Carlos Estuardo e a sua gente.

E o que os dois soubéssemos não serve para nos salvar de vinte dolorosos anos de separação e o fantasma de uma filha a que nunca veria.

-Sim, é certo -disse, brandamente-. Mas então acreditávamos que podíamos trocar as coisas. Ou tentá-lo, ao menos. Mas aqui... -Fez um gesto, assinalando a terra que nos rodeava-. Posso pensar que não é meu assunto -disse simplesmente-. Nem para impedi-lo, nem para ajudar.

-Mas se vivermos aqui, será nosso assunto.

esfregou-se o lábio com gesto pensativo.

-Este é um lugar muito grande, Sassenach. Com o que temos viajado desde a Georgia, tivéssemos percorrido toda Escócia e Inglaterra juntas.

-Isso é certo -admiti.

Em Escócia não havia forma de escapar aos estragos da guerra. Aqui poderíamos encontrar um lugar que nos permitisse viver à margem.

Jamie me sorriu com a cabeça inclinada.

-Posso verte como a senhora de uma plantação, Sassenach. Se o governador me encontrar um comprador para as outras pedras acredito que teremos suficiente para enviar ao Laoghaire todo o dinheiro que lhe prometi e ainda ficará para comprar um bom site, a gente onde possamos ter êxito.

Agarrou minha mão direita entre as suas e esfregou minha aliança de casamento.

-Talvez algum dia possa te cobrir de sedas e jóias –disse com suavidade-. Não te pude dar muito, salvo um pequeno anel de prata e as pérolas de minha mãe.

-Deste-me muito mais que isso -pinjente, acariciando seu polegar-. Brianna, por exemplo.

Sorriu fracamente, olhando a coberta.

-Sim, isso é certo. Talvez ela seja a verdadeira razão para ficar. Este é seu site, não? -Levantou a mão, assinalando o rio, as árvores e o céu-. Ela nascerá aqui, viverá aqui...

-É certo -respondi. Acariciei-lhe o cabelo, tão parecido ao da Brianna-. Este será seu país.

Dele, de um modo que nunca o seria do Jamie ou meu por muito tempo que ficássemos aqui.

Permanecemos um momento em silêncio, muito juntos.

-Deixei-lhe as pérolas -pinjente por último-. Pareceu-me o correto. depois de tudo, é sua herança. O anel é tudo o que necessito.

-Dá meu hasia mille -sussurrou sonriendo.

me dê mil beijos. Era a inscrição do anel, uma entrevista de uma canção de amor de Procure-o. Inclinei-me para lhe beijar.

-Dein mille altera -pinjente.

Logo mil mais.

 

Perto da meia-noite, ancoramos para descansar. O tempo tinha trocado; ainda caloroso e úmido, o ar ameaçava tormenta. Segundo os cálculos do capitão Freeman, chegaríamos ao Cross Creek o dia seguinte de noite ou, como muito tarde, ao outro. Surpreendia-me descobrir que estava ansiosa por chegar; dois meses de viver pelos caminhos me tinham criado a necessidade de encontrar refúgio, embora fora temporário.

Jamie suspirou e se estremeceu em sonhos. Podia dormir bem em qualquer site, pois estava acostumado a fazê-lo em lugares tão díspares como cavernas úmidas ou as pedras frite da prisão. A coberta de madeira do navio, em comparação, devia ser bastante confortável.

Eu não era tão elástica nem estava tão endurecida, mas o cansaço se apoderou de mim e nem sequer meus pensamentos sobre o futuro puderam manter desperta.

Despertei confundida. Ainda estava escuro e se ouviam ruídos, gritos e latidos; a coberta tremia pela vibração de uns passos. Endireitei-me de um salto pensando que sonhava que nos tinham abordado os piratas.

Então minha mente se esclareceu e uma visão imprecisa me fez ver que realmente nos tinham abordado os piratas. Vozes desconhecidas gritavam ordens e se ouviam as fortes pisadas das botas. Jamie não estava.

Arrastei-me, sem me ocupar da roupa, e quase me choquei com um grupo de gente. ouviram-se gritos, um disparo e um golpe terrível. Ian estava atirado na coberta, sobre o corpo de Cilindro.

Um homem desconhecido, sem chapéu e despenteado, ficou em pé.

-Maldição! Quase me agarra!

Apontou ao cão com uma careta horrível no rosto.

Um homem alto apareceu de um nada e, com um gesto, baixou-lhe a arma antes de que disparasse.

-Não esbanje um disparo, estúpido. -Fez um gesto para o marinheiro negro e o capitão Freeman, este último visivelmente enfurecido-. Como vais lutar com uma arma descarregada?

Cilindro fazia um ruído estranho, um grunhido misturado com gemidos de dor, e pude ver uma mancha escura baixo seu corpo. Ian estava inclinado sobre o cão e lhe acariciava a cabeça. Levantou a vista com os olhos cheios de lágrimas.

-me ajude, tia! -pediu-. Por favor, me ajude! .

Movi-me impulsivamente. Então o homem alto deu um passo e levantou um braço para me deter.

-vou ajudar ao cão –disse.

-O que? -disse com tom ofendido o assaltante mais baixo.

O homem alto estava mascarado, todos o estavam. Percebi-o quando meus olhos se acostumaram à pouca luz. Quantos eram? Era impossível dizê-lo. Tive a sensação de que o homem alto sorria. Não respondeu, mas com um movimento de sua pistola, deixou-me fazer.

-Olá, moço -pinjente, me ajoelhando perto do cão-. Não remoa, é um bom perrito. Onde está ferido, Ian, sabe?

Ian negou com a cabeça, secando-as lágrimas.

-Por aqui embaixo, não posso lhe dar a volta.

Eu tampouco ia tentar fazê-lo. Procurei o pulso no pescoço, mas meus dedos se afundavam entre a pele. Em um arranque de inspiração, agarrei-lhe uma das patas dianteiras e a percorri com os dedos até o oco próximo às costelas.

E o encontrei; um pulso firme se detectava baixo meus dedos. Era um bom sinal. Outra era que Cilindro não tinha perdido o sentido e a pata estava em tensão e não frouxa como quando a ferida é grave.

-Não acredito que esteja muito mal, Ian -pinjente, aliviada-. Olhe, está-se movendo.

Cilindro se incorporou, sacudindo a cabeça com violência e deixando um reguero de sangue em coberta. Os grandes olhos amarelos se cravaram no homem de menor estatura; sua intenção era evidente.

-Cuidado! Ou o detém ou te juro que o Mato!

Ian, tirando-se rapidamente a camisa, envolveu a cabeça de Cilindro para lhe cegar e lhe forçar a ficar quieto.

-Quantos há a bordo?

O homem alto dirigiu o olhar para o capitão Freeman, que tinha a boca fechada. Apertando os dentes voltou a cabeça em minha direção.

Conhecia-a, conhecia aquela voz. Isto deveu refletir-se em minha cara, porque um momento depois se tirou a máscara.

-Quantos? -perguntou novamente Stephen Bonnet.

-Seis -pinjente. Não havia razão para não responder. Podia ver o Fergus na borda, com as mãos levantadas, enquanto um terceiro pirata o obrigava a voltar para navio a ponta de pistola. Jamie se tinha materializado na escuridão e estava a meu lado, com gesto turvo.

-Senhor Fraser -disse amavelmente Bonnet-. Que prazer voltar a vê-lo! Mas não tinha outro companheiro, senhor? O cavalheiro com um só braço?

-Não está aqui -foi a resposta cortante do Jamie.

-Jogarei uma olhada -disse o mais baixo, mas Bonnet lhe deteve com um gesto.

-vais duvidar da palavra de um cavalheiro como o senhor Fraser? Não, ficará vigiando a esta gente, Roberts. Eu vou fazer uma inspeção.

E, com um gesto para seu companheiro, desapareceu.

O me ocupar de Cilindro me tinha distraído momentaneamente. Uns ruídos que provinham da cabine me recordaram minha caixa de instrumentos médicos e me pus em pé.

-Espere! Onde vai? Detenha-se! vou disparar!

A voz do assaltante tinha uma nota perigosa, mas também de insegurança. Não me detive, mas sim me lancei para a cabine, chocando-se contra um quarto ladrão que estava revisando minha caixa.

-Não se atreva a tocá-la! -pinjente e, desentupindo um frasco, arrojei-lhe o conteúdo ao rosto.

Como quase todos os preparados do Rawlings, continha uma grande proporção de álcool. O homem ofegou e retrocedeu com os olhos irritados. Aproveitei a vantagem para agarrar uma garrafa de pedra e lhe golpear na cabeça. Levantei o braço para lhe dar outro golpe, mas uma mão firme sujeitou minha boneca.

-vou pedir lhe que me perdoe, querida senhora Fraser -disse uma voz conhecida, com acento irlandês-. Mas não posso deixar que lhe rompa a cabeça. Necessita-a para ficar o chapéu.

-Essa maldita cadela me golpeou!

O homem se agarrava a cabeça com gesto de dor. Bonnet me empurrou para a coberta, me dobrando um braço detrás das costas. Já quase tinha amanhecido e o rio brilhava como a prata. Desgraçadamente, a luz permitia que os assaltantes nos vissem melhor. O homem ao que tinha golpeado agarrou minha mão e atirou de meu anel.

-vou levar me isto!

Retirei a mão e quis lhe golpear, mas Bonnet me deteve com uma significativa tosse. Tinha a pistola colocada sobre a orelha esquerda do Ian.

-Melhor que o dê, senhora Fraser -indicou amavelmente-. Temo-me que o senhor Roberts merece uma pequena compensação pelo dano que você lhe causou.

Atirei do anel de ouro com as mãos tremendo pela fúria e o medo. o de prata me custou mais trabalho; parecia não querer separar-se de meu dedo. Os dois anéis estavam úmidos pelo suor e o metal parecia quente ante a frieza de meus dedos. -dê-me isso

O homem me empurrou com rudeza e estendeu uma mão imunda. Dispunha-me a entregar-lhe a contra gosto quando uma repentina inspiração fez que me levasse a mão à boca.

Um golpe fez que minha cabeça me chocasse contra a parede da cabine. Os dedos calosos daquele homem procuraram em minha boca para me tirar os anéis. Traguei com força, com saliva e também com sangue. Mordi-lhe e deu um grito. Um dos anéis saiu de minha boca e ouvi o ruído metálico que fez ao cair.

Em minha garganta sentia o outro.

-Cadela! vou cortar te o pescoço! Irá ao inferno sem os anéis, puta trapaceira!

Vi o rosto do homem deformado pela fúria e o súbito brilho da folha de uma faca. Então algo me golpeou e caí ao chão, esmagada pelo corpo do Jamie. Estava muito aturdida para me mover, embora tampouco tivesse podido fazê-lo pois o peito do Jamie apertava minha cabeça. Em meio dos gritos e a confusão, Jamie recebeu um golpe e gemeu. Outro golpe e outro gemido.

-Deixa-o, Roberts! Hei dito que o deixe!

A voz do Bonnet ressonava com autoridade.

-Mas ela... -começou a dizer Roberts, mas se viu interrompido por um golpe seco.

-Levante se, senhor Fraser. Sua esposa está a salvo e não porque o mereça.

A voz do Bonnet tinha uma mescla de brincadeira e irritação. Bonnet observou ao Jamie, quem se tinha posto em pé.

-Está louca -disse Bonnet, desapasionadamente-, mas suponho que a você não importa. -Fez um gesto e sorriu-. Estou obrigado a aproveitar a oportunidade de pagar minha dívida, senhor. Uma vida por uma vida, como diz o Santo Livro.

-nos pagar? -disse zangado Ian-. depois do que fizemos por você, rouba-nos e nos ataca, ferem minha tia e a meu cão e tem o valor de falar de pagamento?

Os olhos verde pálido do Bonnet se cravaram no Ian.

-Não conhece a Bíblia, moço? -Bonnet sacudiu a cabeça-. Uma mulher virtuosa vale mais que os rubis, seu valor é maior que o das pérolas.

Abriu a mão, ainda sonriendo, e à luz brilharam três gemas: uma esmeralda, uma safira e o fogo escuro do diamante.

-Estou seguro de que o senhor Fraser estará de acordo.

voltou-se para seus camaradas.

-Já temos o que devemos buscar -disse bruscamente-. Vamos.

Os quatro homens desapareceram entre os arbustos e ouvimos o relinchar de um cavalo. A bordo, tudo ficou em silêncio.

-Bastardos -o capitão Freeman cuspiu seu insulto e se voltou para o marinheiro-. Busca as varas.

Outros, lentamente, recuperaram-se. Fergus olhava de esguelha ao Jamie enquanto acendia o farol para desaparecer na cabine, onde ouvi que começava a ordenar as coisas. Ian permanecia sentado na coberta, ocupando-se de Cilindro.

Não queria olhar ao Jamie, assim que me ajoelhei junto ao Ian. Cilindro me observou, mas não se opôs a minha presença.

-Como vai? -perguntei com voz rouca.

Podia sentir o anel em minha garganta; incomodava-me e traguei várias vezes.

O jovem Ian levantou a vista. Tinha o rosto pálido, mas seus olhos estavam atentos.

-Acredito que está bem -disse brandamente-. Tia... está bem? ..Não está ferida?

-Não -pinjente e tratei de sorrir para lhe tranqüilizar-. Estou bem.  

Não olhei ao Jamie, mas podia sentir sua presença, ameaçadora como uma tormenta. Ian podia lhe ver por cima de meu ombro.

-Não te incomode, tia -disse Ian, tentando me consolar-. Tio Jamie não é dos que golpeiam.

Não estava tão segura, pelas vibrações que provinham do Jamie, mas esperava que Ian tivesse razão.

-Está muito zangado, não crie? -perguntei em voz baixa. Ian se encolheu de ombros.

-Bom, a última vez que me olhou dessa maneira, levou-me a parte de atrás da casa e me deu uma surra. Mas estou seguro de que não fará o mesmo contigo -apressou-se a dizer.

-Imagino que não -disse com tom sombrio.

-Tampouco são agradáveis as broncas do tio Jamie –disse Ian, sacudindo a cabeça com simpatia-. Eu prefiro que me dê uma surra.

Inclinei-me para o cão.

-Já tivemos bastante por hoje. deixou que sangrar?

Por debaixo do cabelo ensangüentado, a ferida aparecia surpreendentemente pequena: um talho na pele e no músculo perto do lombo. Cilindro agachou as orelhas e me ensinou os dentes enquanto o examinava, mas não protestou.

-Bom cão -murmurei-. Terá que lhe pôr um pouco de ungüento para manter afastadas às moscas.

-Vou buscá-lo, tia, sei onde está sua caixa. -Ian levantou o focinho de Cilindro apoiado em seu joelho e ficou em pé-, É esse verde que pôs ao Fergus no dedo do pé?

Assenti e o moço desapareceu na cabine, me deixando a sós com o estômago revolto, a garganta congestionada e dor de cabeça.

Jamie apareceu de entre as sombras. Pu-me rígida e Cilindro moveu as orelhas em posição de alerta, mas Jamie não manifestou intenções de me jogar pela amurada. Pelo contrário, inclinou-se para me inspecionar com rosto carrancudo.

-Como se sente, Sassenach? Não sei se estiver verde ou se for a luz.

-Estou bem. um pouco tremente, possivelmente.

Mais que um pouco. Minhas mãos não podiam estar quietas e sabia que meus joelhos não me sustentariam se tentava me pôr em pé. Traguei com força, tossi e me dava uns golpes no peito.

-É provável que seja minha imaginação, mas sinto como se tivesse o anel na garganta.

Olhou-me pensativo e logo se voltou para o Fergus, que acabava de sair da cabine e dava voltas por ali.

-lhe pergunte ao capitão se me emprestar sua pipa um momento, Fergus. -deu-se a volta e se afastou, retornando com uma jarra cheia de água.

Quis agarrá-la, agradecida, mas a apartou.

-Ainda não, Sassenach -disse-. Conseguiu-a? Sim, obrigado, Fergus. Busca um balde vazio, quer?

Agarrou a pipa de mãos do intrigado Fergus e esvaziou seu conteúdo na jarra de água. Ao terminar com essa tarefa, olhou-me de forma maligna.

-Não -pinjente-. OH, não!

-OH, sim -respondeu-. Vamos, Sassenach, isto terminará com suas moléstias.

-Eu... esperarei -expliquei. Cruzei-me de braços-. Obrigado de todos os modos.

Fergus havia tornado com o balde e nos olhava com as sobrancelhas arqueadas. Jamie colocou o balde a meu lado. Não se incomodou em tratar de me convencer. Apertou-me o nariz e quando abri a boca para respirar, derrubou-me o conteúdo da jarra.

-Traga -ordenou, tampando minha boca e desoyendo meus protestos.

Era muito mais forte que eu e não pensava me deixar. Tinha que tragar ou me afogar.

Traguei.

 

-Ficou como novo.

Jamie terminou de lustrar o anel de prata com sua camisa e o levantou, admirando-o à luz do farol.

-Isso é mais do que se pode dizer de mim -respondi com maldade. Estava recostada na coberta e, embora a corrente era aprazível, ainda me sentia enjoada-. É um maldito e sádico torturador, Jamie Fraser!

inclinou-se me apartando as mechas de cabelo que me tampavam a cara.

-Isso espero. Já tem força para me insultar, Sassenach, isso quer dizer que está melhor. Descansa um pouco, quer?

Beijou-me na frente e se sentou.

Uma vez passada a excitação e depois de ordená-lo tudo, os homens tinham ido à cabine para recuperar-se com a ajuda de uma garrafa de aguardente de maçã que o capitão Freeman tinha salvado dos piratas escondendo-a no barril de água. Uma pequena jarra com essa bebida esperava perto de minha cabeça. Ainda não me sentia com forças para tragar nada, mas o aroma de fruta era reconfortante.

Navegávamos impulsionados pelo vento, ansiosos por nos afastar, como se o perigo ainda rondasse por aquele lugar. Na cabine ressonavam algumas risadas e Cilindro respondia com um grunhido, da coberta; tudo estava voltando para a normalidade.

Uma suave brisa acariciou meu rosto, me secando o suor e agitando os cabelos do Jamie. As linhas de sua frente e o gesto de suas sobrancelhas me indicava que estava sumido em profundos pensamentos.

Não era muito difícil saber no que estava pensando. De repente, tínhamos passado de ricos (ou potencialmente ricos, ao menos) a pobres. Nossa bem equipada expedição se via reduzida a um saco de feijões e uma caixa com instrumental médico. em que pese a nosso desejo de não chegar como mendigos à porta da Yocasta Cameron, tínhamo-nos convertido em pouco mais que isso.

Nunca me tinha considerado uma pessoa que valorasse muito o dinheiro, mas esta forma violenta de nos arrancar a segurança me produzia uma sensação de vertigem, como se sofresse uma inevitável queda a um poço. Como afetaria ao Jamie, que não só sentia seu perigo e o meu, mas sim além disso a responsabilidade de muitas outras vistas?

Ian, Fergus, Marsali, Duncan, os habitantes do Lallybroch, inclusive aquela maldita Laoghaire. Não sabia se rir ou chorar ao pensar no dinheiro que Jamie lhe tinha enviado; aquela criatura vingativa estava agora muito melhor que nós.

Ao pensar na vingança, senti outra pontada que apagou todos meus outros temores. Jamie não era vingativo para ser escocês, mas nenhum highlander suportaria semelhante perda com silenciosa resignação; não só a perda da fortuna, mas também também da honra. O que se sentiria impulsionado a fazer agora?

Jamie contemplava fixamente a água escura. Via, talvez, a tumba onde influenciado pelo sentimentalismo alcoólico do Duncan, tinha aceito ajudar ao Bonnet a escapar?

-Não deve te culpar -pinjente, tocando seu joelho.

-E a quem culpo, se não? -disse tranqüilamente, sem me olhar-. Conheci homem pelo que era. Pude deixar que tivesse o destino que merecia, mas não o fiz. Fui um parvo.

-É bom. Que não é o mesmo.

-É parecido.

Bebeu da jarra com um profundo suspiro. Logo me ofereceu isso e aceitei.            

-Melhor?                    

Assenti. Agarrou minha mão e me deslizou o anel em um dedo, com o metal ainda quente pelo contato de sua mão.

-Terão-nos seguido desde o Charleston? -perguntei em voz alta.

Jamie negou com a cabeça. Seu cabelo, ainda solto, caía em mechas tampando parte de sua cara.

-Não acredito. Se tivesse sabido que tínhamos jóias, nos teria detido no caminho, antes de chegar ao Wilmington. Não, suponho que se inteirou por algum dos serventes do Lilhngton. Acreditei que estávamos a salvo ao nos afastar para o Cross Creek antes de que ninguém ouvisse falar das pedras preciosas. Mas alguém deveu falar: um criado, a costureira que te arrumou o vestido...

Seu rosto estava tranqüilo, mas sempre era assim quando ocultava uma forte emoção.

-Sinto-o por seu outro anel -disse.

-OH, não...

ia dizer «não importa», mas as palavras se detiveram em minha garganta ante a tira de consciência da perda.

Usava aquele anel de ouro desde fazia trinta anos; era o símbolo dos votos ditos, esquecidos, renovados e finalmente eximidos. Um símbolo do matrimônio, da família; de uma grande parte de minha vida. E a última lembrança do Frank, a quem, em que pese a tudo, eu tinha amado.

Jamie não disse nada. Agarrou minha mão e me esfregou os nódulos com o polegar. Eu tampouco falei. Suspirei profundamente e voltei meu rosto para popa; as árvores da borda se estremeciam com o vento. Uma gota me caiu na bochecha, mas não me movi. Minha mão parecia branca na do Jamie, com um aspecto desacostumbradamente frágil; era impressionante vê-la assim.

Oprimiu-me a outra mão, apertando o anel de prata em minha carne para me recordar o que significava.

Agarrei sua mão e a apertei contra meu coração. A chuva começou a cair com grandes gotas, mas nenhum dos dois nos movemos.

Sentia-me terrivelmente vulnerável e, de uma vez, totalmente segura. Mas sempre me acontecia o mesmo com o Jamie Fraser...

 

                                         RIVER RUN

 

                     Yocasta

Cross Creek, Carolina do Norte, junho de 1767

River Run estava na borda de Cape Fear, por cima da confluência que dava seu nome ao Cross Creek. O lugar ocupava uma superfície considerável e tinha um porto cheio de gente e grandes alpendres alinhados ao bordo da água. Enquanto o Sally Ann avançava lentamente, invadiu-nos um forte aroma de resina procedente do povo e do rio, envolto em uma massa de ar quente e úmido. -meu deus, é como respirar terebintina -queixou-se Ian, ofegando.

-É que é o que está respirando, homem -disse o negro com um sorriso.

-Assim é -disse o capitão Freeman-. Nesta época do ano vêm os vendedores do interior com alcatrão e terebintina; trazem-no em embarcações desde o Wilmington e o enviam ao sul, aos estaleiros do Charleston.

-Não acredito que tudo seja terebintina -disse Jamie. Não o cheira, Sassenach?

Aspirei com cautela. Havia algo mais no ar, um aroma quente e familiar.

-Rum? -perguntei.

-E conhaque. E também um pouco de oporto.

O largo nariz do Jamie se franziu. Olhei-o divertida.

-Não perdeste seu olfato de provador, verdade?

Vinte anos antes, tinha dirigido um negócio de vinhos em Paris, propriedade de sua primo Jared, e tanto seu nariz como seu paladar tinham sido o assombro das adegas parisienses.

Sorriu-me zombador.

-Espero poder distinguir um Mosela da urina de cavalo se o puser debaixo de meu nariz. Mas distinguir entre rum e terebintina não é nenhuma tolice, não?

Ian aspirou profundamente e deixou sair o ar em forma de tosse.

-Para mim têm o mesmo aroma -disse, sacudindo a cabeça.

-Bem, a próxima vez que queira um gole, darei-te terebintina -disse Jamie-. Resultará muito mais barato. E isso é tudo o que posso pagar agora -acrescentou, entre risadas. endireitou-se, arrumando-a camisa e a casaca-. Pareço um mendigo, Sassenach?

Era consciente de que a idéia de aparecer ante sua tia como um mendigo feria grandemente seu orgulho e o fato de que as circunstâncias lhe tivessem forçado a adotar esse papel, não o fazia mais suportável.

Examinei-o com cuidado. Pu-me nas pontas dos pés, endireitei-lhe o pescoço de encaixe e lhe tirei um penugem das costas.

-Está muito bem -sussurrei, sonriéndole-. Está muito bonito.

Contemplou-me surpreso e sua expressão de zombadora indiferença se converteu em um sorriso.

-É formosa, Sassenach. -inclinou-se e me beijou na frente-. Está tinta como uma maçã, muito bonita.

Endireitou-se, olhou de esguelha ao Ian e suspirou.

Ian era do tipo de pessoas que conseguia que suas roupas, sem importar a qualidade original nem o tempo que tivessem, parecessem tiradas de um cubo de lixo.

-O capitão Freeman diz que chegaremos em qualquer momento! -exclamou Ian, com olhos brilhantes de excitação-. O que criem que nos darão de comer?

Jamie olhou a seu sobrinho com desgosto.

-Espero que lhe dêem as sobras, como aos cães. Não tem casaca, Ian? Nem pente?

-Sim -respondeu Ian, olhando ao redor como se esperasse que os objetos se materializassem frente a ele-. Tinha uma casaca. Deve estar por aqui.

A casaca estava debaixo de um banco e a agarrou, não sem certa dificuldade, já que Cilindro se deu procuração dela para dormir mais cômodo.

-Contará-lhe à tia avó Yocasta o dos piratas? -perguntou.

Jamie olhou as costas do capitão Freeman. Era ingênuo pensar que não contaria a história em tudo os botequins do Cross Creek logo que se livrasse de nós. E em questão de dias, ou talvez de horas, a notícia chegaria à plantação do River Run.

-Sim o contarei -respondeu Jamie-. Mas não imediatamente Ian. Esperaremos que se acostume a nós.

 

O embarcadero do River Run se encontrava a certa distância do Cross Creek, separado do ruído e do ar fétido da cidade por várias milhas de rio e bosque.

depois de me ocupar de que Jamie, Ian e Fergus ficassem o melhor possível, com a ajuda de água, penteie e cintas, retirei-me à cabine, tirei-me a roupa imunda, lavei-me apressadamente e me pus o vestido de seda que tinha levado no jantar do governador.

Não podia fazer grande coisa com meu cabelo, assim que me sujeitei isso na parte de atrás, deixando que as pontas se enrolassem. Não precisava me preocupar com as jóias, pensei com tristeza esfregando o anel de prata para que brilhasse.

Quando saí da cabine, o embarcadero estava à vista. A diferença de outros moles que tínhamos passado, o do River Run era de madeira, sólido. Um moço negro estava sentado, agitando com aborrecimento suas pernas nuas.

Quando viu aproximar-se da Sally Ann, ficou em pé de um salto e saiu correndo, possivelmente para anunciar nossa chegada.

A embarcação se deteve no mole. junto à linha de árvores que bordeaba o rio se estendia um atalho de tijolo que subia através de um conjunto de jardins e prados, dividindo-se para rodear um par de estátuas de mármore com maciços de flores. Logo se voltava a unir até chegar a uma grande praça, frente a uma imponente casa de dois novelo com colunas e chaminés. A um lado dos maciços de flores havia um edifício em miniatura de mármore branco; pensei que podia tratar-se de alguma classe de mausoléu. Toquei-me o cabelo e reconsiderei minha opinião sobre o vestido que levava.

Descobri-a imediatamente entre a gente que saía da casa e baixava correndo pelo atalho. Até sem saber quem era, me teria dado conta de que estava ante uma MacKenzie. Tinha as bochechas ossudas, o ar vigoroso e a frente alta de seus irmãos Colum e Dougal. Como seu sobrinho e sua sobrinha neta, tinha a extraordinária estatura que os marcava a todos como descendentes do mesmo sangue. Era alta, ágil e andava com uma segurança que não encaixava com o branco de seus cabelos. Devia ter sido tão ruiva como Jamie, porque ainda ficavam restos daquele tintura avermelhado especial.

Não sabia o que Jamie pensava fazer ou dizer no primeiro encontro. Chegado o momento, deu um passo para a Yocasta MacKenzie e a abraçou, dizendo:

-Tia..., sou Jamie.

Quando a soltou e deu um passo atrás vi que seu rosto tinha uma expressão que nunca tinha visto antes: uma mescla de ansiedade, alegria e temor. Então pensei, com certa comoção, que Yocasta MacKenzie devia ser muito parecida com sua irmã maior, a mãe do Jamie.

Imaginei que tinha seus mesmos olhos cor azul profunda, embora não podia assegurá-lo porque estavam empanados pelas lágrimas e fechados pela risada. Tinha ao Jamie sujeito pela manga e lhe tocava a bochecha.

-!Jamie! -dizia uma e outra vez-. Jamie, pequeno Jamie! Estou muito contente de que tenha vindo, moço! –Tocou-lhe o cabelo com uma expressão de surpresa—. Deus bendito, mas se for um gigante! Deve ser tão alto como meu irmão Dougal!

A expressão de alegria do rosto do Jamie se atenuou um pouco, mas manteve seu sorriso quando se voltou para me apresentar.

-Tia, posso te apresentar a minha esposa? Ela é Claire.

Radiante, estendeu a mão imediatamente; agarrei-a reconhecendo aqueles dedos largos e fortes; seus nódulos estavam um pouco deformados pela idade, mas sua pele era suave e ao tato era surpreendentemente parecida com a da Brianna.

-Estou muito contente de te conhecer, querida —disse, me aproximando para me beijar na bochecha-. É muito formosa! –disse com admiração, enquanto seus largos dedos agarravam a manga de meu vestido.

-Muito obrigado -pinjente, mas já era o turno de apresentar ao Ian e Fergus.

Recebeu aos dois com carinhosos abraços e não quando Fergus lhe beijou a mão fazendo ornamento de sua melhor educação francesa.

-Venham -disse finalmente, secando-as bochechas úmidas com o dorso da mão-. Devei tomem uma taça de chá e a comer algo. Devem estar famintos depois da viagem. Ulises!

voltou-se, enquanto seu mordomo se adiantava e fazia uma reverência.

me chamou «lady», e ao Jaime «sir».

-Tudo está preparado, senhorita Eu -disse brandamente a sua patrã e lhe ofereceu o braço.

Começaram a subir pelo atalho e lhes seguimos para as portas do River Run, totalmente aberto para nos receber.

 

A casa era enorme e ventilada, com altos tetos e portas vidraças largas em todas as habitações da planta baixa. Captei brilhos de prata e cristal enquanto passávamos por um comilão grande e convencional, que fazia evidente que Héctor Cameron tinha tido muito êxito como dono da plantação.

Yocasta nos conduziu até sua sala privada, uma habitação mais pequena e íntima, bem mobiliada, mas com detalhes caseiros.

O mordomo nos escoltou até a sala, instalou a sua senhora e se voltou para um aparador, onde tinha uma coleção de jarras e garrafas.

-Tomaremos um gole para celebrar sua chegada, Jamie. -Yocasta agitou uma mão larga e magra em direção ao aparador-. Seguro que não provaste um uísque decente desde que saíste que Escócia.

Jamie riu, sentando-se frente a ela.

-Realmente, não, tia. Como o conseguiste?

Yocasta se encolheu de ombros e riu com alegria.

-Seu tio teve a sorte de conseguir uma boa quantidade faz uns anos. Comprou a metade da carga de vinho e uísque de um navio para vendê-lo, mas naquele momento o Parlamento ditou um decreto pelo qual se proibia vender bebidas mais fortes que a cerveja, reservando-se este direito a Coroa. Assim foi como terminamos com duzentas garrafas na adega!

Sem incomodar-se em olhar, estirou a mão e recebeu o copo do mordomo.

-Por ti, sobrinho, e por sua querida esposa, que encontrem um lar nesta casa. Slainte!

-Slainte mhar! -respondeu Jamie, e todos bebemos.

Era um bom uísque, suave como a seda e reconfortante como o brilho do sol.

-vou fazer que Ulises escreva esta noite avisando a sua irmã de sua chegada -disse Yocasta-. Deve estar muito preocupada com seu filho, pensando em todas as desgraças que lhe podiam ter acontecido durante a viagem.

Jamie deixou seu copo e se esclareceu garganta, preparando-se para a tarefa da confissão.

-Quanto a desgraças, tia, temo-me que devo te dizer...

Olhei para outro lado, para não aumentar seu desconforto enquanto explicava a perda de nossa fortuna. Yocasta escutava com atenção, deixando escapar sons de desconsolo quando lhe contava o encontro com os piratas.

-O que ser mais perverso! –exclamou-. Te pagar o favor dessa forma! Esse homem deveria ser enforcado!

-Bom, isso só é minha culpa, tia -respondeu Jamie com pesar-. Se não tivesse sido por mim, o teriam pendurado.

-Seja como for, sobrinho. Mas quero que considere River Run como seu lar; digo-o a sério. Você e os teus são bem-vindos aqui. E estou segura de que encontraremos a maneira de reparar essas perdas.

-Agradeço-lhe isso, tia -murmurou Jamie.

A conversação, felizmente, centrou-se no Jenny e na família do Lallybroch e o desconforto do Jamie foi atenuando-se pouco a pouco.

Fergus ficou em pé e, com diplomacia, desculpou-se enquanto Ian dava voltas pela habitação, agarrando objetos e voltando-os para deixar. Cilindro, aborrecido, farejava o lugar, observado com profundo desgosto pelo afetado mordomo.

A casa estava decorada com gosto e algo mais que simplicidade. Enquanto apreciava a graça e a elegância do ambiente, Ian se deteve bruscamente ante um quadro de grande tamanho.

-Tia Yocasta! -exclamou, voltando-se ansioso para ela-. Pintaste-o você? Está assinado com seu nome.

Seu rosto pareceu escurecer-se antes de voltar a sorrir.

-Uma paisagem montanhosa? Sim, é algo que sempre amei. Estava acostumado a ir com o Héctor, quando viajava para comercializar com couros. Acampávamos nas montanhas e acendíamos uma grande fogueira que os serventes mantinham noite e dia, como um sinal. Aos poucos dias, os selvagens corte vermelhas saíam do bosque e se sentavam ao redor da fogueira para falar, beber uísque e comercializar conosco. Eu me sentava com o caderno e o lápis-carvão e desenhava tudo o que via.

Fez um gesto para a outra ponta da sala.          

-Olhe o que está na esquina. Trata de descobrir ao índio que pintei escondido entre as árvores.

Yocasta terminou seu uísque e deixou o copo, rechaçando o oferecimento do mordomo sem olhar.

-Sim, amava a paisagem dessas montanhas. Não são tão escuras e áridas como as de Escócia, mas o sol nas rochas e a névoa entre as árvores me recordam Leoch.

Sacudiu a cabeça e sorriu ao Jamie, possivelmente forçando-se a isso.

-Mas este foi meu lar durante muito tempo, sobrinho, e espero que você também o queira considerar assim.

Não tínhamos muitas opções; Jamie inclinou a cabeça e murmurou algo como resposta. Mas Cilindro o interrompeu com um grunhido.

-O que acontece, cão? -perguntou Ian, aproximando-se do cão lobo-. Está cheirando algo?

Yocasta voltou a cabeça para a porta aberta.

-É uma mofeta -disse.

-Uma mofeta! -Ian a contemplou assombrado-, Aproximam-se tanto à casa?

Jamie se levantou e saiu a olhar.

-Tem armas na casa, tia?

-Sim -respondeu, boquiaberta-. Muitíssimas. Mas...

-Jamie -intervim-. As mofetas não são...

antes de que pudéssemos terminar as frases, Cilindro começou a grunhir a um maciço de flores.

-Cilindro!

Ian procurou alguma arma e agarrou o atiçador da chaminé.

-Espera, Ian -disse Jamie, lhe sujeitando do braço-. Olhe.

Com um grande sorriso, assinalou para o trabalhador de pedreira.

-Isso é uma mofeta? —perguntou Ian, incrédulo-. Mas se for muito pequena! -enrugou o nariz, com uma expressão entre divertida e decepcionada-. Puf E eu que acreditava que era um animal perigoso!

-Ian -pinjente, me refugiando detrás do Jamie-. Chama . As mofetas são perigosas.

-São-o?

Jamie me olhou intrigado.

-Ian, não! Deixa-o e vêem aqui!

Ian, curioso, tinha saído e cravava a mofeta com o atiçador. O animal, ofendido, levantou a cauda.

Ouvi o rangido de uma cadeira, voltei-me e vi que Yocasta se pôs em pé e olhava alarmada.

-O que acontece? O que estão fazendo?

Movia a cabeça de um lado a outro, como tratando de localizar algo na escuridão.

de repente, descobri a verdade: sua mão no braço do mordomo, sua forma de tocar o rosto do Jamie ao recebê-lo e a sombra que cobriu seu rosto quando Ian falou de suas pinturas. Yocasta Cameron era cega.

Um grito me fez voltar a me ocupar do que acontecia fora. Um aroma ácido invadiu a habitação e envolveu a todos.

Entre os grunhidos e gemidos soou a campainha da Yocasta.

-Ulises? -perguntou, com resignação-. Avisa na cozinha que jantaremos mais tarde.

 

-Felizmente estamos no verão -disse Yocasta, enquanto tomávamos o café da manhã ao dia seguinte-. Imaginam no inverno, com todas as portas fechadas?

Sorriu ensinando uns dentes em surpreendente bom estado para sua idade.

-Sim -murmurou Ian-. Por favor, posso comer mas torradas?.

Tanto ele como Cilindro tinham sido banhados no rio e esfregados com tomates, pois estes tinham uma substância que atenuava o mau aroma, embora não conseguiram neutralizá-lo por completo.

Talvez inspirada pela proximidade do Ian e o desejo de ar fresco, Yocasta sugeriu que podíamos ir ver os trabalhos que se realizavam no bosque.

-É um dia de viagem, ida e volta, mas acredito que o tempo seguirá sendo bom. Ouvem as abelhas? Elas nos dizem que o tempo será bom e caloroso.

-Tem você muito bom ouvido, senhora Cameron -disse cortesmente Fergus-. Mas se me permite agarrar um cavalo da quadra, preferiria ir até o povo.

Sabia que desejava enviar uma carta ao Marsali, já que a noite anterior lhe tinha ajudado a escrevê-la.

-É obvio que sim, Fergus -respondeu com um amável sorriso-.Como já vos pinjente, quero que considerem River Run como sua casa.

Yocasta pensava nos acompanhar no passeio. Uma criada chamada Fedra lhe pôs um tecido branco sobre os olhos, antes de lhe impregnar o chapéu.

-Não posso ver mais que um resplendor -explicou-nos-, Mas a luz do sol me faz mal, por isso me protejo os olhos para sair ao exterior. Estão preparados, queridos?

Para minha surpresa, um cavalo selado esperava a Yocasta e não uma carruagem, como eu supunha. O dom de comunicar-se com os cavalos era uma qualidade dos MacKenzie; a égua levantou a cabeça ao reconhecer a sua ama. Yocasta acariciou ao animal e lhe ofereceu uma maçã verde que aceitou com prazer.

-É meu doce Corinna -explicou-. Como está sua pata?-Com dedos peritos, tocou a pata até a altura do joelho, examinando uma cicatriz-, O que te parece, sobrinho? Está sã? Agüentará um dia de marcha?

Jamie estalou a língua e Corinna deu um passo para ele, reconhecendo a alguém que falava sua linguagem. Examinou-a e a fez caminhar.

-Estraga -disse-. Está bem. Como se feriu? .

-Parece ser que foi uma serpente, senhor -disse a moço, um jovem negro que observava ao Jamie com interesse.

-Mas é uma mordida de serpente? -pinjente, surpreendida-. Parece um rasgão, como se a pata tivesse ficado apanhada.

Olhou-me com as sobrancelhas arqueadas e assentiu com respeito.

-Sim, senhora, foi assim. Faz um mês ouvi uns ruídos no estábulo, como se se estivesse derrubando. Entrei e encontrei o cadáver de uma grande serpente venenosa esmagada baixo o pesebre. Corinna tinha a pata ensangüentada pelas lascas do mesmo. É uma égua muito valente! -disse com orgulho.

-A «grande serpente venenosa» acredito que media trinta centímetros -comentou-me Yocasta-. Ou talvez era só uma lombriga, mas a Corinna produzem terror as serpentes. Com apenas as ver enlouquece. -Fez um gesto para a moço de quadra e sorriu-. O pequeno Josh tampouco as tem em muita estima, não?

-Não, senhora. Tampouco eu gosto.

Ian não pôde conter sua curiosidade.

-De onde vem? -perguntou, observando ao jovem negro com fascinação.

-Que de onde venho? Não venho, ah, já entendo. Nasci rio acima, no imóvel do senhor George Burnett. A senhorita Eu me comprou faz dois anos, pela Páscoa.

River Run ocupava um extenso território, formado não só pela parte situada frente ao rio, mas também também por um grande bosque de pinheiros. Além disso, Héctor Cameron tinha adquirido, astutamente, umas terras atravessadas por um largo arroio, um de quão muitos desembocam no Cape Fear.

Assim estava provido, não só dos valiosos produtos da madeira, breu e terebintina, mas também dos meios adequados para transportá-los até o mercado. Não era estranho que River Run prosperasse. Yocasta nos disse que produziam pequenas quantidades de anil e tabaco, embora os fragrantes tabacales pelos que passávamos me pareceram algo mais que modestos.

-Há uma pequena serraria no rio -explicava Yocasta-, justo em cima da desembocadura do arroio. Ali serram e dão forma às pranchas, constróem tonéis e os enviam rio abaixo em barcaças, até o Wilmington. Pelo rio, a distância entre a casa e a serraria não é muita, mas preferi lhes ensinar algo mais do River Run. -Aspirou com prazer o aroma dos pinheiros-. Fazia tempo que não saía.

Parecia que River Run tinha muitos negócios com a Marinha a julgar pela conversação da Yocasta sobre mastros, varas, vigas, fitas de seda, breu e terebintina. Jamie cavalgava perto de sua tia, escutando suas detalhadas explicações, nos deixando ao Ian e a mim que lhes seguíssemos. Era evidente que tinha trabalhado, junto com seu marido, na construção do River Run. Perguntava-me como o faria, agora que estava sozinha.

-Olhe! -assinalou Ian-. O que é isso?

Obriguei a meu cavalo a lhe seguir até a árvore que assinalava. Tinham-lhe tirado uma grosa lâmina da casca.

-Estamos perto —disse Yocasta-. Essa árvore que estão vendo deve ser um terebinto, posso cheirar a terebintina. Yocasta aproximou da Corinna à árvore.

-Olhem -disse, tocando o fundo do corte, onde havia um oco-. Chamamo-lo a caixa; aqui se juntam a terebintina e a seiva. Está quase enche, assim muito em breve virá um escravo para tirá-la. Enquanto falava, um homem apareceu entre as árvores, era um escravo vestido com um tanga e conduzia uma mula branca com uma correia larga no lombo da que penduravam dois tonéis, um a cada lado. A mula se deteve e zurrou.

-Essa tem que ser Clarence -disse Yocasta em voz alta para fazer-se ouvir por cima do ruído-. Gosta de ver gente. Quem está com a mula? É você, Pompey?

-Estraga, senhora, sou.

afastou-se, dizendo algo que supus era um insulto à mula. Então vi que falava com dificuldade porque lhe faltava a metade da mandíbula.

Yocasta deveu notar minha impressão, ou simplesmente a esperava, porque se voltou para mim.

-Foi uma explosão de breu; por sorte não morreu. Vamos, estamos perto da serraria.

O contraste entre a atividade desdobrada para extrair a terebintina com a quietude do bosque era surpreendente. Havia um enorme claro cheio de gente, a maioria escravos semidesnudos, trabalhando ativamente.

-Há alguém nos barracos?

Yocasta voltou sua cabeça para mim.

Elevei-me nos estribos para olhar; perto de uma fila de barracos ruinosos destacava uma nota de cor: três homens com o uniforme da Marinha britânica e outro com uma casaca cor verde garrafa.

-Esse deve ser meu bom amigo Farquard Campbell –disse Yocasta, sonriendo satisfeita atrás de minha descrição-. Vêem, sobrinho, lhe eu gostaria de apresentar isso

Desde perto, Campbell resultou ser um homem de uns sessenta anos, de altura medeia, mas com a particular marca de dureza correosa que alguns escoceses mostram a essa idade. Campbell recebeu a Yocasta com prazer, inclinou-se cortesmente ante mim, saudou o Ian com um movimento de sobrancelhas e dirigiu toda a energia de seus ardilosos olhos cinzas ao Jamie.

-Estou muito contente de que esteja aqui, senhor Fraser -disse, estendendo a mão-. Realmente contente. ouvi falar muito de você desde que sua tia se inteirou de suas intenções de visitar River Run.

Sua alegria parecia tão sincera que sentiu saudades. Se Jaime notou algo estranho o ocultou depois de uma aparência cortês.

-Sinto-me adulado de que tenha gasto um momento de seu tempo para pensar em mim, senhor Campbell. -Jamie sorriu com simpatia e se inclinou ante os oficiais da Marinha-. Cavalheiros, também estou encantado de conhecê-los.

Aproveitando a ocasião, um deles, um tenente rechoncho e de rosto carrancudo chamado Wolff, fez as apresentações de seus dois subtenientes e depois das inclinações de cabeça voltaram para sua conversação, derrubando a atenção em uma discussão sobre medidas de tablones e galões.

Entretanto, Yocasta não mostrou a mais mínima intenção de ficar à margem.

-Vê com o Josh, querida –me disse. Ele lhe ensinará isso tudo. vou ficar me à sombra enquanto estes cavalheiros se ocupam de seus negócios. Temo-me que este calor é muito para mim.

além dos barracos, para o centro do claro, havia duas ou três grandes fogueiras e sobre elas, suspensas por uns trípodes, umas enormes panelas que fumegavam ao sol.

-Fervem a terebintina para obter breu -explicou Josh, me levando até uma das panelas-. Uma parte se aplica aos tonéis nesse estado -fez um gesto para os barracos, onde havia um carrinho de mão cheio de tonéis-, mas o resto se converte em breu. Os cavalheiros da Marinha nos fazem os pedidos do que vão necessitar.

Enquanto observava, um escravo saiu do bosque atirando de uma mula e se dirigiu para as panelas. Outro homem se aproximou de ajudar e juntos baixaram os tonéis e os esvaziaram, de um em um, na panela.

-Com exceção de se um pouco, senhora -disse Josh, me atirando do braço-. Salpica e poderia queimar-se.

depois de ter visto o homem do bosque, a bom seguro que não queria que me queimassem. Afastei-me olhando os barracos. Em pé, junto a uma parede, fora da vista dos homens, estava Yocasta Cameron. Tinha abandonado sua atitude de premeditado cansaço e era evidente que estava escutando tudo o que lhe interessava.

Josh viu a expressão de surpresa em meu rosto.

-A senhorita Eu detesta não poder encarregar-se das coisas -murmurou com pesar-. Eu nunca a vi, mas a jovem Fedra me contou o que ocorre quando o ama não pode dirigir algo: renega como um carreteiro e golpeia e chuta o que lhe põe por diante.

-Deve ser um espetáculo impressionante -murmurei-. Mas o que é o que não pode controlar? -Dava a impressão de que, cega ou não, Yocasta Cameron dirigia sua gente, sua casa e seus campos, sem nenhum problema.

-É a maldita Marinha. Não lhes contou por que veio hoje aqui?

antes de que pudesse entrar na fascinante questão de por que Yocasta Cameron queria dirigir à Marinha britânica, interrompeu-nos um grito de alarme da outra ponta do claro. Voltei-me para olhar e quase me choquei com um grupo de homens meio nus, que corriam aterrados para os barracos.

Se não era uma explosão, parecia-o; choviam partes de madeira queimada em meio de uma tremenda gritaria. Jamie e seus companheiros apareceram rapidamente.

-Está bem, Sassenach?

Agarrou-me do braço, me observando com ansiedade.

-Sim, estou bem -respondi confundida-. O que aconteceu?

-Não sei -respondeu e seguiu olhando ao redor-. Onde está Ian?

-Não sei. Não pensará que teve algo que ver com isto, verdade?

Limpei-me as partículas de carvão que adornavam meu vestido e segui ao Jaime até o grupo de escravos. Falavam uma mescla de gaélico, inglês e vários dialetos africanos.

Encontramos ao Ian com um dos jovens subtenientes.

-Tenho entendido que isto acontece freqüentemente -dizia o subteniente-. Embora eu não o tinha visto antes. Que surpreendente explosão, verdade?

-O que é o que acontece freqüentemente? -perguntei.

-A explosão do breu -explicou o jovem, dirigindo-se a mim. Era baixo, de bochechas rosadas e da idade do Ian-. Fazem fogo com carvão de lenha debaixo de uma grande panela de breu e o cobrem com terra e turfa para manter o calor, mas deixando acontecer o ar por umas gretas para que o fogo não se apague. O breu se reduz ao ferver e corre através de um tronco oco até o tonel. Vê?

-A dificuldade está em regular a corrente de ar –continuou o pequeno subteniente-. Se o ar for escasso, o fogo se apaga; se for excessivo, arde com tal energia que não se pode controlar e faz que estalem os vapores. Onde estará o escravo que devia ocupar do fogo? Espero que o pobre não esteja morto.

Não tinha feridos. Eu tinha controlado aos que nos rodeavam e tinham saído ilesos, ao menos por esta vez.

-Tia! -exclamou Jamie, recordando de repente a Yocasta.

voltou-se apressadamente para os barracos, mas se deteve aliviado. Estava ali, rígida e em pé, visível por seu vestido verde.

Quando nos aproximamos, descobri que estava furiosa. Durante a explosão, todos a tinham esquecido; incapaz de mover-se teve que esperar, indefesa, sem poder fazer nada.

Recordei o que me tinha contado Josh sobre o caráter da Yocasta mas era toda uma senhora e não ia fazer uma cena em público, por mais indignada que estivesse.

Josh se desculpou por não ter estado com ela, mas Yocasta lhe tirou importância, com brutalidade e impaciência.

-Farquard, onde está?

O senhor Campbell se aproximou e pôs a mão da Yocasta em seu braço.

-Não houve danos, querida -tranqüilizou-a-. Não feriu, só um tonel de breu destruído.

-Bem -respondeu, relaxando-se um pouco-. Onde está Byrnes? -perguntou-. Não ouvi sua voz.

-O contramestre? -perguntou o tenente Wolff, secando o suor do rosto-. Estava-me perguntando o mesmo.

-Espero que esteja no moinho -respondeu Campbell-. Um escravo me disse que tinham problemas com a folha principal da serra. Sem dúvida se está ocupando disso.

-Acredito que há uma cesta com o almoço -interveio Jamie-. Talvez sirva para que o tenente se refresque um pouco enquanto eu me ocupo disto.

Era a sugestão adequada para acalmar a Yocasta e o tenente Wolff se sentiu contente ante a possibilidade de almoçar.

-De acordo, sobrinho. -endireitou-se e com ar autoritário fez um gesto em direção à voz do Wolff-. Tenente, seria tão amável de me acompanhar?

 

Durante o almoço me inteirei de que as visitas do tenente eram periódicas, já que estavam redigindo um contrato para a compra e entrega de provisões navais. A tarefa do Wolf consistia em assinar e controlar este tipo de acordos com os donos das plantações, desde o Cross Creek até a fronteira da Virginia. O tenente Wolff decidia a plantação mais adequada.                                          

-Se em algo devo reconhecer a excelência escocesa -proclamava com pomposidade detrás tomar um bom gole de seu terceiro copo de uísque- é na produção de bebida.

Wolff fez um infrutífero intento de reprimir um arroto e se voltou para mim, convencido de seus encantos.

-Em muitos outros aspectos -continuou em tom confidencial- são lentos e teimosos, um par de rasgos que os faz inadequados para...

Naquele momento, o mais jovem dos subtenientes, vermelho de vergonha, derrubou uma fonte com maçãs, o que serve para que seu chefe não terminasse a frase, embora desgraçadamente, não para que deixasse de falar.

-Parece-me que você, em que pese a suas alianças, não é escocesa, não, senhora? Sua voz é mais melodiosa, sem rastro desse acento bárbaro.

-Ah..., obrigado -murmurei, me perguntando que ardil da incompetência administrativa tinha enviado à tenente a ocupar-se dos negócios da Marinha no vale do rio Cape Fear, possivelmente o lugar do Novo Mundo onde havia mais escoceses das montanhas.

Começava a entender o que tinha querido dizer Josh com isso da maldita Marinha.

A conversação continuou sem maiores incidentes, obrigado a que os dois subtenientes vigiavam a bebedeira de seu chefe. Tinham que ocupar-se de que chegasse são e salvo ao Cross Creek. Não sente saudades que necessitasse dois ajudantes.

-O senhor Fraser parece havê-lo solucionado tudo -murmurou o major dos ajudantes-. Não lhe parece, senhor?

-O que? Ah, sim, sem dúvida.

Wolff tinha perdido interesse por tudo o que não fora uísque. Era certo, Jamie, com a ajuda do Ian, tinha posta ordem no claro e organizado aos homens. Invejava-o; era preferível estar trabalhando que almoçar com o tenente Wolff.

-Sim, tem-no feito muito bem.

Os olhos ardilosos do Campbell percorreram o lugar e logo voltaram para a mesa. Observou ao Wolff e apertou a mão da Yocasta. Sem voltar a cabeça se dirigiu ao Josh, que aguardava em um rincão.                                  

-Ponha essa garrafa na alforja do tenente, moço -disse, dirigindo um encantador sorriso ao Wolff-. Não quero que se desperdice.

O Senhor Campbell se esclareceu garganta.

-Já que tem que ir-se logo, senhor, talvez poderíamos nos ocupar agora de seus requerimentos. Wolff pareceu um pouco surpreso para ouvir que devia partir, mas seus ajudantes começaram a preparar papéis e alforjas.

Wolff olhou com rosto carrancudo o papel que lhe punham diante.              

-Aqui, senhor -murmuro o ajudante major.

O tenente apurou sua taça e sorriu vagamente com o olhar perdido. O mais jovem dos ajudantes fechou os olhos com resignação.

-Bom, e por que não? -disse o tenente com temeridade e molhou a pluma para assinar.                          

 

-Não deseja te lavar e te trocar de roupa, sobrinho? –Yocasta franziu delicadamente o nariz-. Empresta a breu e carvão de lenha.

-Minha higiene pode esperar -respondeu- Primeiro, desejaria conhecer o significado desta pequena comédia. -Cravou os olhos no senhor Campbell-. Trouxeram-me para o bosque com o pretexto de cheirar a terebintina e antes de que me desse conta de onde estava, encontro-me sentado com a Marinha britânica, opinando sobre assuntos que não conheço enquanto me chutam por debaixo da mesa como se fora um macaco amestrado.

Yocasta sorriu e Campbell deixou escapar um suspiro.

-Aceite minhas desculpas, senhor Fraser, por isso parece um monstruoso engano para sua boa vontade. Ante sua chegada tão repentina não tivemos tempo de falar. Estive no Averasboro até ontem de noite; quando me avisaram de sua chegada já era muito tarde para cavalgar até aqui e lhe pôr à corrente das circunstâncias.

-Bom, como parece que agora temos um pouco de tempo, convido-lhe a que o faça -disse Jamie.

-por que não nos sentamos primeiro, sobrinho? -indicou Yocasta-. Levará-nos um pouco de tempo explicá-lo tudo e hoje foi um dia exaustivo.

Jamie respirou profundamente e pareceu algo mais tranqüilo.

-Quando queira, senhor Campbell.

-É um negócio com a Marinha -começou Campbell.

-É um negócio com o tenente Wolff, quererá dizer -corrigiu Yocasta, soprando com indignação.

-Para nosso objetivo é o mesmo. Eu, sabe bem –disse Campbell em tom cortante.

-A maior parte dos ganhos do River Run provêm, tal como há dito Yocasta, da venda da madeira e a terebintina e o melhor cliente é a Marinha britânica. Mas a Marinha já não é o que era -explicou Campbell, sacudindo a cabeça com pesadumbre-. Durante a guerra contra os franceses, qualquer homem que tivesse uma serraria era rica. Mas nos últimos dez anos se manteve a paz e não se constrói um navio novo há cinco anos.

Suspirou ante as desagradáveis conseqüências econômicas que a paz tinha tido para eles.

Embora a Marinha seguia necessitando breu, terebintina e mastros, agora podia escolher a quem o comprava.

Os contratos com a Marinha se renovavam trimestralmente e deviam ser controlados e aprovados por um oficial, neste caso Wolff. O oficial não era fácil de tratar e Héctor Cameron se encarregou dele, até sua morte.

-Héctor bebia com ele -explicou Yocasta com brutalidade-. E quando partia, colocava-lhe uma garrafa nas alforjas. Desgraçadamente a morte do Héctor influiu nos negócios. depois da morte do Cameron, o tenente Wolff foi apresentar lhe suas condolências à viúva. E ao dia seguinte retornou com uma proposta de matrimônio.

-Não era eu o que lhe interessava -disse Yocasta-. Era minha terra.

Jamie decidiu, com inteligência, não fazer comentários, mas observou a sua tia com renovado interesse. Cega ou não, era uma mulher surpreendente. além da beleza do corpo, emanava uma sensual vitalidade que causava efeitos visíveis no Campbell.

-Suponho que isso explica a conduta ofensiva do tenente durante o almoço -intervim-. Não há fúria como a da mulher despeitada, mas a dos homens não é muito distinta.

Yocasta voltou a cabeça, surpreendida (acredito que tinha esquecido que eu estava ali), mas Farquard Campbell riu.

-Tem razão, senhora Fraser -assegurou, com olhos faiscantes-. Os homens são muito frágeis quando jogam com nossos sentimentos.

Yocasta lançou um bufo muito pouco feminino.

-!Sentimentos! Esse homem não tem sentimentos mais que para o conteúdo de uma garrafa.

Jamie observava ao Campbell com maior interesse.

-Já que falamos de sentimentos, tia -disse-, posso perguntar pelos interesses de seu amigo?

Campbell lhe devolveu o olhar.

-Tenho uma esposa em casa, senhor -disse com secura- e oito filhos; o major talvez seja maior que você. Conheci o Héctor Cameron faz mais de trinta anos e farei tudo o que possa por sua esposa, pela amizade que unia a ele e a que une a ela.

-Farquard foi uma grande ajuda para mim, Jamie -disse com um toque de recriminação-. Não tivesse podido sair adiante sem sua ajuda depois da morte do pobre Héctor.

-Claro -disse Jamie, com um toque de cepticismo-. E estou seguro de que devo estar tão agradecido como o está minha tia. Mas sigo me perguntando qual é minha parte neste assunto.

Campbell tossiu discretamente e continuou com sua história. Yocasta se tinha afastado do Wolff, fingindo um desmaio, e não saiu de seu dormitório até que o tenente partiu ao Wilmington.

-Aquela vez, Byrnes preparou os contratos e bem que os complicou -assinalou Yocasta.                 .

-Ah, Byrnes, o capataz invisível. E onde estava esta manhã?

Um sorriso zombador apareceu no rosto do Campbell.

-Temo-me que o senhor Byrnes, embora habitualmente é um capataz competente, compartilha a mesma debilidade que o tenente Wolff. Mandei-o a procurar o serraria, mas o escravo retornou para me dizer que estava bêbado e não o podiam despertar.

Yocasta soprou de novo e Campbell a olhou afetuosamente antes de voltar-se para o Jamie.

-Sua tia só necessita que Ulises a ajude com os documentos para ser capaz de levar seus próprios assuntos. Entretanto, como terá observado, há problemas físicos que são importantes.

-Isso foi o que me assinalou o tenente Wolff -disse Yocasta, fazendo uma careta ante a lembrança-. Que não podia pensar em me ocupar de minha propriedade sendo só uma mulher e além cega. Não podia depender do Byrnes se não era capaz de ir ao bosque para controlar o que o homem fazia ou deixava de fazer.

-O qual é bastante certo -interveio Campbell com pesadumbre-, Entre nós há um provérbio: «A felicidade é ter um filho o bastante major para responsabilizar-se das coisas». Quando se trata de dinheiro ou escravos, não pode confiar em ninguém que não seja de seu sangue.

-E aí é onde aparece Jamie -pinjente-. Tenho razão?

-Fiz que Farquard informasse ao Wolff de que meu sobrinho tinha chegado para ocupar-se do River Run. Isso faria que obrasse com cautela –explicou-. Não se atreveria a me pressionar com um parente em casa, me protegendo.

-Já vejo. -Até a seu pesar, Jamie começava a divertir-se-. Então o tenente pensará que seus intentos de instalar-se aqui se irão ao traste com minha chegada. Não é estranho que lhe tenha cansado tão mal. Por isso disse acreditei que se estava colocando com os escoceses em geral.

-Imagino que agora será assim -disse Campbell.

Yocasta estirou a mão procurando a do Jamie instintivamente.

-Perdoa-me, sobrinho? -disse-. antes de que chegasse não conhecia seu caráter. Não podia me arriscar a que te negasse se lhe dizia isso antes. me diga que não me guarda rancor, Jamie, embora seja pela memória da doce Ellen.

Jamie oprimiu sua mão com carinho, assegurando que não lhe guardava nenhum rancor. De fato, alegrava-se de poder ajudá-la e sua tia podia contar com ele para o que fizesse falta.

O senhor Campbell resplandecia de alegria e tocou a campainha para que Ulises trouxesse o uísque especial.

Ao olhar aquele rosto, belo e cheio de expressividade apesar da cegueira, recordei o que uma vez Jamie me havia dito sobre as características de sua família.

-Os Fraser são teimosos como rochas e os MacKenzie encantados como as cotovias do campo, mas também ardilosos como as raposas.

 

-Onde estiveste? -perguntou Jamie, olhando ao Fergus de cima abaixo com severidade-. Não acredito que tenha tido o dinheiro suficiente para fazer o que parece que esteve fazendo.

-Encontrei-me com um par de franceses no povo, comerciantes de peles. Falavam muito pouco inglês, assim que lhes ajudei em seus negócios. Logo quiseram me convidar a compartilhar uma comida em sua estalagem... -Fez um gesto para lhe tirar importância e procurou uma carta que guardava em sua camisa-. Chegou ao Cross Creek para ti -disse, entregando-lhe ao Jamie.

O rosto do Jamie se iluminou ao vê-la e a abriu com certa ansiedade. Havia três cartas: em uma reconheci a letra de sua irmã; as outras dois pertenciam a outra pessoa.

-vou começar com o Ian -disse, agarrando a segunda carta com uma careta irônica-. Não estou seguro de querer ler o que me escreve Jenny sem um copo de uísque na mão.

Pu-me em pé e me coloquei detrás de sua cadeira para olhar por cima do ombro. A letra do Ian Murray era clara e grande, fácil de ler até a certa distância.

 

Querido irmão:

Aqui estamos todos bem e damos graças a Deus pelas notícias de sua chegada às colônias. Envio esta carta em nome da Yocasta Cameron, esperando que estejam em sua companhia.

Jenny te pede que saúdes afetuosamente à tia. Terá-te dado conta de que já recuperaste o afeto de minha esposa, pois deixou que fazer referências à castração, o qual deve ser um grande alívio para ti.    

Arrumamo-nos isso para alimentar a todos, embora a cevada sofreu muito pelo granizo e dois meninos morreram na aldeia por causa da disenteria.

Uma nota alegre: notícias do Michael de Paris, os negócios prosperam e pensa casar-se logo. E também o nascimento de meu último neto, Anthony Brian Montgomery Lyie. Seu pai, Paúl, é soldado e está na França. Maggie e o menino estão conosco.

Veio a nos visitar Simón, lorde Lovat, junto com seus companheiros. Outra vez está recrutando soldados para o regimento que comanda. Simón nos contou histórias sobre a reputação que adquiriram nas colônias por sua valentia na luta contra os índios e os malvados franceses, embora duvide muito da verdade de tudo o que diz.

 

Jamie riu zombador e deu a volta à folha. A carta continuava no mesmo tom, com notícias da família, toda classe de informações sobre a granja e assuntos da comarca. A emigração, escrevia Ian, tornou-se uma epidemia.

A segunda carta também estava escrita pelo Ian, mas punha «Pessoal» debaixo do selo azul.

-E isto o que será? -murmurou Jamie, rompendo o selo.

A carta começava sem introdução.

 

Agora, irmão, um assunto que me preocupa. Escrevo-te por separado para que possa compartilhar com o Ian a carta larga sem lhe ensinar esta.

Em sua última carta, falava de mandar ao Ian em um navio desde o Charleston. Se isso já aconteceu, é obvio que o receberemos com alegria. Entretanto, se não fora assim, nosso desejo é que permaneça contigo, se não ser uma moléstia para ti e para o Claire.

 

-Molesto para mim -murmurou Jamie e contemplou ao Ian pela janela, jogando e derrubando-se pela erva junto a Cilindro e dois jovens escravos.

Murmurou e seguiu lendo.

 

Mencionei ao Simón Fraser e a causa de sua presença aqui. Não lhe resulta difícil recrutar jovens que aceitem os xelins do Rei. O que outra possibilidade há aqui para eles? Pobreza e necessidade, sem esperança de melhorar. Para que vão se ficar aqui onde não têm nada para herdar e lhes proíbem o uso da roupa escocesa ou o direito a ter armas? por que não foram aproveitar a oportunidade de receber uma espada para lutar?

 

Jamie levantou a vista e me olhou com uma sobrancelha arqueada.

-Alguma vez teria pensado que Ian podia ser tão poético, verdade?.

 

O jovem Jamie e Michael estão bem, ao menos a nenhum dos duas os prova a vida de soldado. Mas Ian é diferente; já conhece moço e seu espírito de aventura, tão similar ao teu. Aqui não há trabalho para ele. E o que faria em um mundo que lhe oferece a possibilidade de escolher entre ser mendigo ou soldado?

Por isso, preferimos que fique contigo, se você o aceitar. No Novo Mundo terá mais oportunidades e, embora não fora assim, ao menos sua mãe se evitará a dor de ver partir para seu filho com o regimento.

Não posso pedir melhor tutor ou exemplo para ele que você mesmo. Sei que te estou pedindo um grande favor. Entretanto, espero que a situação também seja benéfica para tí, à parte, é obvio do «grande prazer» de gozar da companhia do Ian.

 

-Não é só um poeta, também é um humorista -fez notar Jamie.

 

Espero, irmão, que meus pensamentos lhe resultem claros, embora tema te ofender ao pedir este favor.

O que me preocupa é que, pese ao afeto que nos une, vi em seus olhos a mesma frieza de aço que têm os olhos do Simón. E isso tem feito que muitas vezes temesse por sua alma.

Não falei com o Jenny disso, mas ela também o viu. É uma mulher e, além disso, conhece-te melhor que eu. Acredito que essa foi a causa de que pusesse no caminho ao Laoghaire. Não acreditei que saísse mau, mas (havia uma larga tachadura). Tem sorte de ter ao Claire. Falei-te que o Simón; seu único laço com a humanidade, agora, é ocupar-se de seus homens. Esse homem tem fogo em seu interior, mas não tem coração. Espero que nunca tenha que dizer isso de ti ou do jovem Ian.

Deus benza a todos. Escreve logo que possa.

Desejamos ter notícias tuas e das exóticas regiões que agora habita.

Seu carinhoso irmão,

Ian Murrai

 

Com cuidado, Jamie dobrou a carta e a guardou no bolso.

-Mmm -foi seu comentário.

 

                 A lei do derramamento de sangue

Julho de 1767

Pouco a pouco, fui acostumando ao ritmo de vida do River Run. A presença dos escravos me turvava, mas era muito pouco o que podia fazer a respeito, salvo utilizar o menos possível seus serviços, me ocupando de minhas coisas.

No River Run se gabavam de ter um pequeno lugar onde se secavam as ervas e guardavam os remédios. A Yocasta adorou que eu queria utilizá-lo. Ela não tinha talento para os remédios, explicou com um encolhimento de ombros, e os escravos tampouco.

-Há uma mulher nova, que pode ter alguma habilidade nesse tema –disse-. Não é uma pulseira da casa; veio diretamente da África faz um par de meses e não tem maneiras, nem sabe falar. Tinha pensado em ensiná-la, mas já que está você aqui...

Enquanto passava parte do dia conversando com a Yocasta e tentando aprender dela a arte de fiar lã, Jamie estava com o Ulises que, além de ser os olhos da Yocasta e o mordomo da casa, levava as contas da plantação da morte do Héctor Cameron.

-Fez muito bom trabalho -disse-me Jamie em privado-. Se fosse um homem branco minha tia não teria tido problemas em que fora ele quem se encarregasse de seus assuntos. Mas sendo assim... -encolheu-se de ombros.

-Mas sendo assim, é uma sorte para ela que você esteja aqui -pinjente.                                              

-É o menos que posso fazer -respondeu com os olhos cravados nas botas que lustrava. Seus lábios se endureceram por um momento-. Por outra parte, tampouco tenho nada mais que fazer, verdade?

 

-Um jantar -declarou Yocasta, poucos dias depois-. Tenho que dar uma festa para lhes apresentar às pessoas do condado.

-Não faz falta, tia -disse brandamente Jamie, levantando a vista de seu livro-. Acredito que já conheci a maioria a semana passada na compra de madeiros. Ou ao menos à parte masculina -acrescentou com um sorriso.

-Não me importaria conhecer alguém mais -admiti-. Não é que não tenha muitas ocupações aqui -assegurei a Yocasta-, mas...

-Mas não das que lhe interessam -respondeu com um sorriso que suavizou o comentário-. Acredito que você não gosta de muito o trabalho com as agulhas.

-Claro que gosta das agulhas -assinalou Jamie, fechando seu livro e sonriéndome-. Mas ao Claire gosta mais costurar feridas. Suponho que esteve inquieta estes dias porque só teve uma cabeça golpeada e um caso de hemorroides.

-Ja, ja -pinjente, embora em realidade tinha razão-. Espero que Marsali esteja bem -disse para trocar de tema.

Fergus, convencido ao fim de que Jamie não o necessitaria por um tempo, foi-se rio abaixo, para o Wilmington, onde embarcaria rumo à Jamaica. Se tudo saía bem, retornaria na primavera com o Marsali e a criatura.

-Eu também -respondeu Jamie-. Disse ao Fergus...

Yocasta voltou a cabeça para a porta.

-O que acontece, Ulises?

Absorta na conversação, não tinha notado os passos no corredor. De novo, assombrou-me a acuidade do ouvido da Yocasta.

-O senhor Farquard Campbell -disse com calma o mordomo.

A familiaridade do Campbell com a casa ficou demonstrada, pensei, porque não esperou a que Ulises lhe convidasse a entrar.

-Eu, senhora Fraser -disse com uma leve inclinação para nos saudar-. Para lhe servir, senhor-disse dirigindo-se ao Jamie.

-O que acontece, Farquard? ocorreu algo?

Yocasta se inclinou com o rosto cheio de ansiedade..respondeu bruscamente-. Um acidente na serraria. vim a lhe pedir à senhora Fraser...

-Sim é obvio. Deixe que procure minha caixa. Ulises, pode fazer que alguém me traga um cavalo?

Pu-me em pé com rapidez, mas Campbell me deteve com um gesto.      

-Não é necessário que venha, senhora Fraser. Se seu marido pode trazer algumas de seus remédios, acredito que...

-Claro que vou -afirmei.

-!Não! -exclamou bruscamente e todos o olhamos. Seus olhos procuraram os do Jamie e fez uma careta-. Não é assunto para senhoras. Mas agradeceria muito sua companhia, senhor Fraser.

Yocasta se tinha posto em pé antes de que eu pudesse protestar, aferrando-se ao braço do Campbell.

-O que passou? -perguntou-. É um de meus negros? Byrnes fez algo?

Campbell olhou de esguelha ao Ulises e logo a Yocasta. Como se tivesse recebido uma ordem, o criado abandonou a habitação.

-É um assunto de derramamento de sangue. Eu -disse com calma-. Não sei de quem, nem como aconteceu, nem sequer a seriedade da ferida. O moço do MacNeill veio a me buscar. Quanto ao outro... -encolheu-se de ombros, vacilando-. É a lei.

-E você é o juiz! -estalou-. Pelo amor de Deus, não pode fazer nada?

-Não! -disse com brutalidade e logo, com mais amabilidade, repetiu-: Não. -Agarrou-lhe a mão e a sustentou com força-. Sabe que não posso. Se pudesse...

-Se pudesse, não o faria -disse com amargura. Liberou sua mão e deu um passo atrás com os punhos crispados-. Vê, então. Chamaram-lhe para que seja o juiz; vê e lhes dê o julgamento que querem.

Girou sobre seus talões e abandonou a habitação agitando sua saia com fúria.

Foi seguir, mas o deteve o ruído de uma portada. Deixou escapar um suspiro e se voltou para o Jamie.

-Vacilei antes de lhe pedir este favor, senhor Fraser, já que nos conhecemos pouco. Mas lhe agradeceria que me acompanhasse. Já que a senhora Cameron não poderá estar presente, você poderia representá-la neste assunto...              

-Mas qual é o assunto, senhor Campbell? –interrompeu Jamie.

-É a lei desta colônia. Se um negro atacar a uma pessoa branca e a faz sangrar, deve morrer por seu delito. -Fez uma pausa a contra gosto-. Felizmente, estas circunstâncias são pouco habituais. Mas quando ocorrem... -deteve-se com os lábios rígidos-. Devo ir. Quer vir, senhor Fraser?

-Irei -respondeu bruscamente.

Foi até o aparador e abriu a gaveta onde estavam guardadas as pistolas de duelo do defunto Héctor Cameron.

-Há algum perigo? -perguntei ao Campbell.

-Não posso dizer-lhe senhora Fraser -disse Campbell, encolhendo-se de ombros-. Donaid MacNeill só me disse que houve uma briga na serraria e que era um assunto relacionado com a lei de derramamento de sangue. Pediu-me que fora em seguida para julgar e presenciar a execução e foi se procurar aos outros proprietários antes de que pudesse lhe tirar mais informação.

-Execução? Quer dizer que têm a intenção de executar a um homem sem saber o que fez?

-Eu sei o que fez, senhora Fraser! -Campbell levantou a mandíbula, tragando com dificuldade em um esforço por controlar-se-. Peço-lhe perdão, senhora. Sei que você é nova aqui e encontrará nossos métodos duros, e inclusive desumanos, mas...

-Claro que os encontro desumanos! Que classe de lei é a que condena a um homem...?

-Um escravo.

-Um homem! Condená-lo sem um julgamento, sem uma investigação. Que classe de lei é essa?

-Uma má lei, senhora! -respondeu furioso-. Mas é a que há e eu sou o encarregado de que se cumpra. Senhor Fraser, está preparado?

-Sim, estou-o. -Jamie terminou de guardar as pistolas e as munições nos bolsos de seu casaco e se endireitou-, Sassenach, vou Y...

-!Jamie por favor! Não vá, não pode formar parte disto!

-Calma -apertou-me a mão-. Já sou parte disto. É a propriedade de minha tia e seus homens estão envoltos. O senhor Campbell tem razão, sou seu parente. É meu dever ir, ao menos para ver o que acontece. Estar ali...

Vacilou, como se fora a dizer algo mais, mas me oprimiu a mão e a soltou.

-Então, vou contigo -pinjente com tranqüilidade.

-Esperava que o fizesse, Sassenach. vá procurar sua caixa, quer? vou ocupar me dos cavalos.

 

Encontramo-nos com o Andrew MacNeill no caminho. Estava com seu cavalo à sombra de um castanho.

-Não o disse Campbell? -perguntou, olhando com desgosto ao Jamie-. Isto não é um assunto para mulheres, senhor Fraser.

-Vocês o chamam assunto de derramamento de sangue, não? -perguntou Jamie-. Minha esposa é ban-lighiche, viu a guerra e coisas piores. Se desejarem que eu vá, ela virá comigo.

MacNeill apertou os lábios, mas não discutiu mais.

-MacNeill, por favor, nos informe deste desgraçado assunto. -Campbell adiantou seu cavalo ficando entre o Jamie e MacNeill-. O senhor Fraser acaba de chegar, como já sabe, e seu moço só me disse que era um assunto de derramamento de sangue. Não conheço mais detalhes.

Contou-nos a história enquanto cavalgávamos: Byrnes, o capataz da serraria, tinha tido uma briga com um de quão escravos trabalhavam com a terebintina. Este último, armado com o comprido faca que utilizava em sua tarefa, tinha tentado resolver o assunto cortando a cabeça do Byrnes, mas solo conseguiu lhe cortar uma orelha.

-Foi como se descascasse um pinheiro -disse MacNeill com certa complacência-. Cortou-lhe a orelha e parte da cara. O certo é que não piorou muito a bolsa de pus que tem por cara.

Era evidente que Byrnes não estava muito bem visto pelos donos das plantações locais.

O capataz tinha pedido ajuda lançando alaridos. Entre dois clientes e vários escravos tinham podido submeter ao atacante. Uma vez estancada a ferida e o escravo encerrado em uma cabana, o jovem MacNeill (que tinha ido procurar uma serra e se encontrou, inesperadamente, no meio do drama) foi enviado imediatamente a dar a notícia nas plantações vizinhas.

-Você não deve saber -explicou Campbell, dirigindo-se ao Jaime- que quando executam a um escravo, avisa-se às plantações vizinhas para que todos os escravos atiram à execução. É uma boa maneira de impedir futuras desgraças.

-Já entendo -disse amavelmente Jamie-. Acredito que essa era a teoria da Coroa quando executou a meu avô no Tower Hill, depois da insurreição. E sem dúvida é muito efetivo, pois todos meus parentes se comportam bem após.

MacNeill captou a mensagem e sua nuca avermelhou até parecer o cangote de um peru. Campbell lançou uma risada curta e seca antes de dá-la volta.

-Que escravo foi?

-O jovem Donaid não o disse. Mas deve saber tão bem como eu que tem que ter sido esse patife do Rufus.

Campbell agachou a cabeça ao inteirar-se.

-Yocasta o sentirá muito quando se inteirar -murmurou.

-A culpa é dela -disse MacNeill, espantando brutalmente um tábano que se posou sobre sua bota-, Byrnes não é capaz de ocupar-se nem dos porcos e muito menos de dirigir negros. Hei-lhes isso dito muitas vezes.

-Sim, mas Héctor o contratou -protestou Campbell-. E ela não podia lhe jogar. O que ia fazer, dirigir ela sozinha o lugar?

-Há poucas coisas piores que uma mulher teimosa –disse MacNeill, um pouco mais alto do necessário-. Não podem culpar a ninguém, salvo a si mesmos, se ocorrer algo.

-Mas -intervim, elevando a voz para me fazer ouvir por cima do ruído dos cavalos-, se lhes ocorrer algo por causa de algum homem, a satisfação de lhe culpar a ele é a compensação adequada?

Jamie soprou divertido; Campbell lançou uma risada entrecortada e golpeou ao MacNeill nas costelas com o punho do látego.

-O que diz a isso, Andrew! -disse.

MacNeill não respondeu, mas seu pescoço ficou ainda mais vermelho. Continuamos em silêncio.

«Uma má lei», tinha-a chamado Campbell, mas apesar de todo a lei. Entretanto minhas mãos tremiam e suavam, não por pensar na atrocidade judicial, mas sim por me perguntar o que faria Jamie.

Não podia ler nada em seu rosto. Cavalgava depravado, com a mão esquerda nas rédeas e a direita sobre a coxa, perto do vulto da arma que guardava baixo seu casaco.

Nem sequer estava segura de que me consolasse que me tivesse permitido lhe acompanhar. Podia significar que não esperava ter que cometer nenhuma ação violenta. Então permitiria que seguissem adiante com a execução?

Era evidente que, tanto Campbell como MacNeill, consideravam que isto era problema do Jamie. Mas e ele? Considerava-o assim? Jamie não era um montanhês fechado, disse-me, era um homem culto, bem educado, que tinha viajado e sabia muito bem o que eu pensava sobre aquele assunto. Entretanto, tinha a terrível sensação de que minha opinião ia contar muito pouco no que fora que pensava fazer.

O chapéu do Jamie se enganchou em um ramo e saiu voando. Pude ver seu rosto antes de que o resgatasse para cobrir-se outra vez. Estava tenso e a ansiedade lhe marcava as linhas da cara. Pensei que tampouco ele sabia o que ia fazer; isso foi o que mais me assustou. Então chegamos ao bosque de pinheiros e foi como inundar-se nas profundidades de um mar verde e tranqüilo.

Enquanto me perguntava o que teriam feito com a orelha do Byrnes, surpreendeu-me um zumbido que não era devido às cigarras. Campbell, que ia à cabeça, deteve-se de repente a escutar e o resto o imitamos.

Eram vozes que chegavam de longe, muitíssimas vozes formando um zumbido profundo e enfurecido, como um enxame de abelhas.

Galopamos pela última ladeira para chegar até o claro da serraria. Estava cheio de gente: escravos, empregados, mulheres e meninos, formando redemoinhos-se entre as madeiras.

Então perdi a consciência da multidão e toda minha atenção se dirigiu para um lado da serraria, onde tinham instalado uma espécie de grua com polias, com um enorme gancho curvado para levantar os troncos.

O corpo de um homem negro estava empalado no gancho agitando-se como um verme. Havia um atoleiro na plataforma e seu aroma, doce e quente, estendia-se pelo ar.

Fiquei petrificada, incapaz de me mover. Havia outros homens na plataforma próxima, entre eles um pequeno, com a cabeça grotescamente enfaixada e manchas de sangue em um lado, rodeado por brancos e mulatos armados com paus e mosquetes que ameaçavam à multidão.

Não era porque desejassem aproximar-se, a não ser justamente o contrário; parecia haver uma urgência geral para afastar-se dali. As expressões dos rostos foram do medo ao desespero, passando pela ira..., ou era satisfação?

Farquard Campbell se aproximou da plataforma, seguido pelo MacNeill, agitando as mãos e gritando algo que não entendia aos homens armados com paus. Jamie chegou até a plataforma e subiu atrás deles, ajudando ao MacNeill.

Campbell se situou frente a Byrnes.

-... uma brutalidade inqualificável! -gritava.

Suas palavras chegavam entrecortadas, mas vi como assinalava enfaticamente o gancho. O escravo tinha deixado de debater-se e pendurava inerte.

Observei ao Jamie que, depois de avaliar os fatos, tirou as duas pistolas, comprovou que estivessem carregadas, deu um passo para diante e apoiou uma na cabeça enfaixada do Byrnes. O capataz ficou rígido.

-Baixa-o -ordenou Jamie ao valentão mais próximo, em voz o bastante forte para fazer-se ouvir por cima do tumulto-. Se não o fizer, voarei o que fica da cara de seu amigo. E logo...

Levantou a segunda pistola e apontou ao peito do homem.

O homem se moveu a contra gosto, com os olhos cravados na pistola. Agarrou a alavanca que controlava o mecanismo e o fez funcionar. O gancho descendeu lentamente e, quando o corpo chegou ao chão, ouviu-se um suspiro coletivo entre a gente.

Estava vivo e seu peito se movia com curtos ofegos. O gancho tinha atravessado o estômago, passando através da parte baixa da caixa torácica e saindo pela parte traseira dos rins. Sua pele tinha adquirido um aterrador azul cinzento e os lábios uma cor argilosa.

-Shh -pinjente brandamente.

Seus olhos, com as pupilas dilatadas, delatavam uma profunda incompreensão.

Não havia sangre em sua boca, o que indicava que os pulmões não tinham sido danificados. A respiração era ofegante mas rítmica, o diafragma também estava intacto. Minhas mãos o percorreram com suavidade enquanto minha mente tratava de avaliar os danos.

detrás de mim se desatou uma discussão; uma pequena parte de meu cérebro registrou que os companheiros do Byrnes, capatazes de duas plantações vizinhas, censuravam vigorosamente ao Campbell.

-... uma flagrante violação da lei! Terão que dar conta disto ante a Corte, cavalheiros, podem estar seguros de que será assim!

-Qual é o problema? -perguntou uma voz grave e mal-humorada-. Há derramamento de sangue... e mutilação! Byrnes tem seus direitos!

-Não para tomar esta decisão -interveio MacNeill-. Canalhas, isso é o que são, não são melhores que...

-Necessita algo, Sassenach?

Não o tinha ouvido chegar.

-Não sei-pinjente.

Ouvia as discussões, mas a única realidade estava baixo minhas mãos. Um pensamento nublou minha mente; não era seguro que pudesse manter ao homem com vida; em meio de meus pensamentos apareceu tudo o que podia sair mau: uma hemorragia ao tirar o gancho era o mais imediato. Hemorragias internas, intestino perfurado, peritonitis e várias possibilidades mais.

-Ilegalidade! -dizia Campbell; sua voz aumentava de tom com a discussão-. Não se pode tolerar, não importa qual seja a provocação. Podem estar seguros de que todos vocês terão que prestar contas sobre isto!

Ninguém emprestava atenção ao verdadeiro objeto da discussão. Só tinham acontecido uns segundos e tinha poucos mais para atuar. Coloquei uma mão sobre o braço do Jaime apartando sua atenção do debate.

-Se consigo lhe salvar, deixarão que viva? -perguntei em um sussurro.

Seu olhar percorreu aos homens que tinha a minhas costas, calculando as possibilidades.

-Não -disse, brandamente.

-me dê a terceira garrafa da esquerda -pinjente, assinalando minha caixa.

Tinha duas garrafas de álcool puro e outra de brandy. Derrubei uma boa dose de raiz em pó no brandy e o agitei. Logo me arraste até a cabeça do homem e apertei a garrafa contra seus lábios.

Embora seus olhos estavam frágeis, tratei de me olhar neles para que me visse. Para que?, perguntava-me enquanto o chamava por seu nome. Não podia lhe perguntar se esse era seu desejo, pois já tinha decidido por ele. Uma vez tomada a decisão já não podia pedir aprovação ou perdão.

Tragou. Uma vez. Dois. Os músculos que rodeavam sua boca se estremeceram e gotas de licor se deslizaram por sua pele. Outro gole e seu pescoço se relaxou, deixando cair pesadamente sua cabeça sobre meu braço.

Permaneci sentada, com os olhos fechados, sustentando sua cabeça e tomando o pulso por debaixo da orelha. acelerava-se, acalmava-se e voltava a acelerar-se. A descrição do livro de texto apareceu em minha mente. Intumescimento. Formigamento. Uma sensação na pele, como se fora picada como insetos. Náuseas, dor epigástrica. Respiração dificultosa, pele fria e úmida, palidez. Pulso débil e irregular, embora a mente permanece lúcida.

Tentei não ouvir, não sentir nada salvo o batimento do coração baixo meus dedos. Tratei com todas minhas forças de sossegar as vozes e os murmúrios, o calor, o pó e o aroma do sangue; quis esquecer onde estava e o que fazia. «Embora a mente permanece lúcida.» «Maldita seja -pensei—. É certo.»

 

                   A volta do John Quincy Myers

Yocasta profundamente afetada pelos acontecimentos da serraria, tinha declarado que, apesar de tudo, tinha a intenção de seguir adiante com a festa que tinha planejado.

-Fará-nos esquecer tanta tristeza -disse com firmeza-. Mandarei que Fedra te faça um vestido novo. É muito boa costureira.

Pensei que necessitaria algo mais que um vestido novo e um jantar para distrair minha mente, mas calei ao ver o olhar de aviso do Jamie.

Dada a falta de tempo e de tecido adequado, Yocasta decidiu que me arrumassem um de seus vestidos.

-Como fica, Fedra? -Yocasta me olhou com o rosto carrancudo, como se pudesse recuperar a vista por pura vontade-. Resultará?

-Está muito bem -respondeu a faxineira-. Ela é mais baixa que você, senhorita Eu, e tem algo menos de cintura. Mas seu busto é maior -acrescentou em tom mais baixo, sonriéndome.

-Sim, isso já sei -disse asperamente Yocasta, que tinha ouvido o comentário-. Curta o sutiã, podemos aumentá-lo com encaixe de Valência sobre seda verde. Agarra um pedaço dessa velha bata de meu marido; é da cor adequada.

-Tem uma memória notável das cores -pinjente, surpreendida.

-Lembrança muita bem esse vestido -respondeu, tocando brandamente a manga-. De que cor é seu cabelo, querida? Não lhe tinha perguntado isso. Imagino que deve ser loiro ou um pouco parecido, mas em realidade não sei. Por favor, não me diga que tem o cabelo moreno e a pele cítrica.

Sorriu, mas sua brincadeira soou como uma ordem.

-É castanho -pinjente, um pouco coibida, me tocando o cabelo-. Embora com mechas mais claras.

Franziu o sobrecenho, como se considerasse se podia ser aceitável ou não. voltou-se para a faxineira procurando ajuda.

-Está muito bem, senhorita Eu -disse Fedra, assentindo-. Muito bem. Tem a pele branca, branca como o leite, e o verde brilhante lhe favorece.

-Mmm. Mas as anáguas são de cor marfim. Não parecerá muito branca?

Eu não gostava que falassem como se eu fora um adorno defeituoso, mas me traguei as objeções.

-Não, senhora –disse-. Tem os maçãs do rosto altos e os olhos castanhos, mas não cria que são da cor do barro. Recorda esse livro que tem, com fotos de animais estranhos?

-Se te referir ao Relatório de uma exploração às Índias Ocidentais -disse Yocasta-, sim, recordo-o. Ulises me leu isso o mês passado. Quer dizer que a senhora Fraser recorda a uma das ilustrações? -riu divertida.

-Mmm. -Fedra não tinha afastado os olhos de mim-. Parece-se com o grande gato -disse me olhando fixamente-. Ao tigre que olhava entre a maleza.

Por um instante, o rosto da Yocasta demonstrou surpresa.

-Vá -disse renda-se.

Mas não voltou a me tocar.

 

Fiquei no vestíbulo arrumando o adorno de seda verde que havia sobre meu peito. A reputação da Fedra como costureira ficou demonstrada; o vestido ficava como uma luva e as franjas de cetim cor esmeralda brilhavam sobre as mais pálidas de cor marfim.

Ulises baixava pela escada com seu librea impecável. Movi-me e voltou a cabeça observando o movimento de minhas saias. Seus olhos se dilataram com uma expressão de admiração sincera. Baixei a vista e sorri. Então lhe ouvi ofegar. Levantei a cabeça e descobri que seus olhos seguiam muito abertos e demonstravam medo. Sua mão se aferrava com tanta força aos passamanes que seus nódulos brilhavam.              

-me perdoe, senhora -disse com voz sufocada, e passo rapidamente a meu lado com a cabeça baixa.

-Que diabos...? -disse em voz alta.

Então recordei o lugar e o tempo em que estávamos. depois de tanto tempo só em uma casa com uma senhora cega e sem amo, tornou-se descuidado. Tinha esquecido seu amparo básico e fundamental, o único amparo que tinha um escravo: um rosto inexpressivo que não manifestasse nunca seus pensamentos.

Não era estranho que se assustou ao dar-se conta de como me tinha cuidadoso. O mordomo tinha medo, embora comigo estava seguro pois me comportaria como se nada tivesse ocorrido e as coisas seguiriam como sempre. O som de uns passos na galeria interrompeu meus pensamentos.

Olhei para cima e fiquei boquiaberta.

Um highlander luzindo tudo seus ornamentos é algo impressionante, não importa a idade ou a aparência. Mas um montanhês alto, arrumado e na plenitude da vida, curta a respiração.

Não usava a saia escocesa da época do Culloden, mas seu corpo não tinha esquecido como levá-la.

-OH! -exclamei.

Por um momento o vi como a manhã em que nos casamos. A cor do tartán era quase o mesmo, quadros negros sobre um fundo vermelho e sujeito a suas costas com um broche de prata. A camisa era mais elegante, quão mesmo a casaca e a adaga com incrustações de ouro no punho que levava na cintura. Duine nasal era o que parecia, um homem de fortuna.

-Para servi-la, senhora -disse.

E descendeu o último lance da escada com um sorriso radiante.

-Estas estupendo -disse com um nó na garganta.

-Não está mau -aceitou sem falsa modéstia.

-É do Héctor Cameron?

Senti-me ridiculamente tímida ao tocar o punho da faca.

-Agora é meu. Deu-me isso Ulises com os melhores desejos de minha tia.

Captei algo estranho no tom de sua voz. Pese ao óbvio agradar de voltar-se para vestir assim, algo lhe turvava. Toquei-lhe a mão.

-O que anda mau?

-Eu não diria que nada vá mau. É só que...

interrompeu-se ante o som de uns passos na escada e me apartou para deixar passar a uma pulseira com um montão de roupa branca.

-Podemos falar aqui -murmurou-. Sassenach, poderia me fazer um favor durante o jantar? Se te fizer um sinal -e se atirou do lóbulo da orelha- poderá lhes distrair? Não importa o que faça, tomba o vinho, crava a seu companheiro de mesa com o garfo...

Fez-me uma careta zombadora e isso me tranqüilizou. O que lhe preocupava não era uma questão de vida ou morte.

-Posso fazê-lo -assegurei-lhe-. Mas o que...

abriu-se uma porta na galeria e a voz da Yocasta dando as últimas indicações a Fedra chegou até nós. Para ouvi-la, Jamie me beijou e se afastou rapidamente.

-É você, querida Claire?

Yocasta se deteve no último degrau, com a cabeça volta para mim.

-Assim é -respondi e lhe toquei o braço para que soubesse onde estava.

-Notei o aroma de cânfora do vestido -disse em resposta a minha pergunta não formulada enquanto me agarrava do cotovelo-. Pareceu-me escutar a voz do Jamie. Está por aqui?

-Não -respondi com convicção-. Acredito que foi a receber aos convidados.

-Ah! -Sua mão apertou meu braço e suspirou com uma mescla de satisfação e impaciência-. Não sou das que se lamentam ante o irreparável, mas juro que daria um de meus olhos se conseguisse ver com o outro ao Jamie com o tartán.

Sacudiu a cabeça e os diamantes de suas orelhas refletiram a luz. Levava um vestido de seda azul escuro que contrastava com seu brilhante cabelo branco.

-Ah, bem! Onde está Ulises?

-Aqui, senhora.

Tinha aparecido tão rápido que não lhe ouvi chegar.

-Vamos, pois -disse agarrando-se de seu braço.

Arrumei-me o cabelo e me preparei para conhecer os convidados da Yocasta. Tinha a sensação de que me apresentariam em uma bandeja de prata, com uma maçã na boca.

 

A lista de convidados podia ler-se como o Quem é quem de Cape Fear River, se é que existia aquele livro. Campbell, Maxwell, Buchanan, MacNeill, MacEachern... sobrenomes das montanhas, sobrenomes das ilhas. MacNeill de Barra Meadows, MacLeod do Islay... muitos dos sobrenomes dos donos de plantações tinham o sabor de seus orígenes, quão mesmo seu acento. O gaélico ressonava nos altos tetos.

Eram muito poucos quão convidados não eram escoceses: um qualquer, corpulento e sorridente, com o pitoresco nome do Hermon Husband; um cavalheiro alto e enxuto chamado Hunter e, para minha surpresa, Phillip Wylie, imaculadamente vestido, com peruca e empoeirado.

-Assim voltamos a nos encontrar, senhora Fraser –fez notar, retendo minha mão muito mais tempo do socialmente correto-, Confesso que estou encantado de voltar a vê-la!

-O que está fazendo aqui? -perguntei, quase com grosseria.

Sorriu com descaramento.

-Trouxe-me meu anfitrião, o nobre e poderoso senhor MacNeill de Barra Meadows, a quem acabo de comprar um excelente par de tordos. Permite-me lhe dizer, senhora, o bem que lhe sinta a cor verde?

-Suponho que não poderia evitá-lo.

-Isso, por não falar do efeito das luzes em sua pele. «Seu pescoço é uma torre de marfim» -citou, tocando a palma de minha mão com seu polegar de forma insinuante.

-Seu nariz é como a torre do Líbano, que olhe para Damasco -respondi, com um olhar significativo para seu nariz aristocráticamente pronunciada.

Lançou uma gargalhada, mas não partiu.

-Quantos anos tem? -perguntei, lhe olhando com seriedade

E tratando de que me soltasse a mão.

-Vinte e cinco, senhora -respondeu, surpreso-. Estou indecentemente ojeroso?

-Não, só desejava estar segura de que ia dizer lhe a verdade ao lhe informar de que tenho idade para ser sua mãe.

A notícia não pareceu lhe turvar no mais mínimo. Em troca, levantou minha mão até seus lábios e a oprimiu com ardor.

-Estou encantado -ofegou-. Posso chamá-la mama?.

Ulises estava detrás da Yocasta, a poucos passos dali. Liberei minha mão da do Wylie e dava um golpe no ombro ao mordomo.

-Ulises -pinjente-, seria tão amável de te assegurar de que o senhor Wylie se sente perto de mim no jantar?

-claro que sim, senhora, ocuparei-me disso -assegurou.

O senhor Wylie fez uma extravagante reverencia para demonstrar sua gratidão. Fiz-lhe um gesto com a mão, pensando em como ia desfrutar quando chegasse o momento de lhe cravar o garfo.

 

Não sei se foi sorte ou fruto de um plano, mas me encontrei sentada entre o senhor Wylie e o qualquer senhor Husband e frente ao senhor Hunter, que tampouco falava gaélico. Formávamos uma pequena ilha de ingleses em meio de muito turbulentos escoceses.

Jamie apareceu no último momento e se sentou na cabeceira, com a Yocasta a sua direita. Uma vez mais, voltei a me perguntar o que estava ocorrendo. Mantive o olhar fixo nele e um garfo preparado para a ação, mas chegamos ao terceiro prato sem que ocorresse nada.

-Você perguntava pelos reguladores, senhora Fraser? -Husband fez um gesto com a cabeça-. Devo lhe recomendar que pergunte ao senhor Hunter, pois os reguladores desfrutam dos benefícios de sua direção.

O senhor Hunter inclinou a cabeça ante o completo.

-Não somos mais que um grupo -disse com modéstia, deixando sua taça de vinho-. Em realidade, deveria me negar a qualquer título. Mas tenho a sorte de ter minha propriedade situada no lugar idôneo para reunimos.

-ouvimos que os reguladores são só uma chusma turbulenta -disse Wylie-. Sem lei e inclinados à violência contra os legalmente autorizados deputados da Coroa.

-Realmente não é assim -assinalou o senhor Husband, ainda com mansidão. Surpreendeu-me ouvir que aceitasse sua relação com os reguladores; talvez o movimento não era tão violento e anárquico como dizia Wylie-. Nós só procuramos justiça e isso não é algo que possa conseguir-se com a violência; porque onde aparece a violência, com toda segurança a justiça escapa.

-A justiça aparentemente se escapou! Ou essa é a impressão que me deu o juiz Dodgson quando falei com ele a semana passada. Ou é que se equivocou, senhor, ao identificar aos rufiões que invadiram seu escritório, lhe golpeando e lhe arrastando até a rua?

Wylie sorriu graciosamente ao Hunter.

-O juiz Dodgson -disse com claridade Hunter- é um agiota, um ladrão, uma desgraça para a lei Y...

Fazia um momento que ouvia ruídos fora, mas pensei que era alguma discussão na cozinha, separada da casa principal.

Mas agora os ruídos eram mais claros e uma voz familiar me distraiu das denúncias do senhor Hunter.

-Duncan!

Incorporei-me para me levantar e as cabeças dos que me rodeavam se voltaram.

As conversações se apagaram e todos emprestaram atenção ao que acontecia. Vi que Jamie jogava sua cadeira para trás, mas antes de que pudesse levantar-se, alguém apareceu na porta.

Era o gigantesco John Quincy Myers. Ocupava toda a soleira da dobro porta aberta e se inclinava baixo o marco, observando a reunião com os olhos injetados em sangue.

À lombriga fez uma careta de temeroso agradecimento.

-Está você aqui -disse com profunda satisfação-. Ela disse que devia estar bêbado antes de que me cortasse. Assim já estou bêbado.

Fez uma pausa balançando-se perigosamente enquanto levantava a garrafa. Deu um passo e se desabou. Duncan apareceu na porta e olhou a figura prostrada no chão; logo com ar de desculpa se dirigiu ao Jaime.

-Tentei lhe deter, MAC Dubh.

Levantei-me de meu assento e cheguei até o homem ao mesmo tempo que Jamie. Seguia-nos uma onda de curiosos convidados. Jamie me observou com as sobrancelhas arqueadas.

-Bom, disse que devia estar inconsciente -observou. inclinou-se sobre o gigante e lhe abriu um olho-. Acredito que ele já fez sua parte.

-O álcool não é um bom anestésico -pinjente, sacudindo a cabeça-. É um veneno. Deprime o sistema nervoso central e acrescenta ao perigo da operação a intoxicação alcoólica, o que pode lhe causar a morte.

-Não seria uma grande perda -disse alguém, mas lhe fizeram calar.

-Que lástima esbanjar tanto brandy -disse Wylie e todos riram-. ouvimos falar de sua habilidade, senhora Fraser. Agora tem a oportunidade de demonstrá-lo ante testemunhas!

Fez um gesto para os convidados.

-Deixe de chatear! -pinjente zangada.

-Aí, aí! -exclamou alguém, sem ocultar sua admiração.

Wylie piscou, surpreso, e ampliou o sorriso.

-Seus desejos são ordens para mim, senhora -murmurou, retirando-se.

Incorporei-me curvada pelas dúvidas. Podia funcionar. Tecnicamente, era uma operação singela e não demoraria mais que uns poucos minutos se não apareciam complicações. Observei o rosto do Jamie para procurar conselho. Estava ali, detrás de mim, e viu a pergunta em meus olhos. Bom, que demônios, ele queria uma distração.

-Melhor que o faça, Sassenach. -Jamie olhou o corpo prostrado-. Talvez não volte a ter o valor ou o dinheiro para embebedar-se desse modo outra vez.

A cabeça da Yocasta apareceu sobre as costas do MacNeill.

-Levem a salão -disse rapidamente.

Já tinha tomado a decisão por mim.

Não havia tempo para me trocar de roupa, assim que me deram um avental de açougueiro, feito de couro, para cobrir meu vestido e Fedra me levantou as mangas para me deixar os braços nus.

Para que tivesse mais luz trouxeram candelabros e velas. O salão se encheu de um aroma de cera que não conseguia ocultar a fragrância do mesmo Myers. Sem vacilar, agarrei o garrafão do aparador e orvalhei de brandy seu entrepierna, coberta por um escuro pêlo encaracolado.

-Oué maneira mais cara de matar piolhos -disse alguém ao observar o êxodo de pequenas formas com vida que caíam arrastadas pelo líquido.

-Ah mas morrerão contentes -disse uma voz, que reconheci como a do Ian- Trouxe-te a caixa, tia.

Abriu-a e a pôs a meu lado.

Tirei minha valiosa garrafa azul de álcool destilado e o escalpelo de folha reta. Sustentei a folha sobre um recipiente e lhe joguei álcool enquanto examinava a concorrência procurando ajudantes. Não ia ter problemas para encontrar voluntários. Todos tinham esquecido o jantar e faziam comentários.

Da cozinha chamaram dois corpulentos condutores de carruagens para sustentar as pernas do paciente. Andrew MacNeill e Farquard Campbell se ofereceram para sustentar os braços e o jovem Ian se colocou a um lado sustentando uma palmatória para ter luz suficiente. Jamie ocupou sua posição, como chefe anestesista, ao lado da cabeça do paciente com um copo cheio de uísque.

Controlei que tudo estivesse ali e que as agulhas para suturar estivessem preparadas, respirei profundamente e fiz um gesto a minha tropa.

-vamos começar.

Passei a folha pela chama da vela, como última esterilização, e fiz um corte. Nem muito profundo nem muito comprido, o suficiente para abrir a pele e deixar à vista o brilhante intestino.

Aumentei a incisão, lavei meus dedos no recipiente e os coloquei no corte, empurrando para cima. Myers se moveu com uma súbita convulsão e quase me fez cair.

-está despertando! -gritei ao Jamie-. Lhe dê mais, rápido!-Todas minhas dúvidas sobre o uso do álcool como anestésico estavam pressentem, mas era tarde para trocar de idéia.

Mantive meus dedos na incisão. Havia mais sangue da que tivesse desejado, assim limpei a zona com um trapo molhado em brandy. Sim, podia ver o bordo do músculo e uma fina capa de graxa amarela baixo a pele, separando o das fibras de cor vermelha escura.

O tempo se deteve. Embora era totalmente consciente de cada movimento, cada respiração, o atirar e empurrar da agulha enquanto apertava o anel inguinal, minhas mãos não me pertenciam. Minha voz era alta e clara ao dar ordens, que eram obedecidas imediatamente. Desde algum lugar de meu cérebro um pequeno observador controlava os progressos da operação. Até que tudo esteve preparado e o tempo começou a correr outra vez. Dava um passo atrás, cortando o laço que me unia ao paciente e me senti enjoada, com uma sensação de solidão.

-Feito -pinjente e o murmúrio se converteu em aplausos.

Tinha a sensação de estar intoxicada, me teria embebedado por osmose, graças ao contato com o Myers? Dava-me a volta com uma extravagante reverencia para os convidados.

Uma hora mais tarde me tinha embebedado por méritos próprios, vítima de uma dúzia de brinde em minha honra. Engenhei-me isso para escapar um momento com a desculpa de examinar ao paciente e subi ao quarto de convidados. Detive-me na galeria e me apoiei no corrimão para me tranqüilizar.

Se Jamie tinha querido uma distração, pensei um pouco atordoada, não podia ter pedido nada melhor. O que fora que tinha que acontecer, tinha acontecido. Mas o que era?

Myers estava profundamente dormido e a pulseira Betty moveu a cabeça, sonriendo.

-Está bem, senhora Claire –sussurrou-. Não despertariam nem com um revólver.

-Como vai? -disse uma voz.

De ter estado menos bêbada me teria sobressaltado. Mas em meu estado me limitei a me dar a volta... e descobri ao Jamie.

-Está bem -respondi-. Não poderia lhe matar nem com um canhão. É como você. -Joguei-me em seus braços e ocultei meu rosto em sua camisa-. Indestrutível.

Beijou-me na cabeça e me recolheu os cachos de cabelo que se despentearam durante a operação.

-Fez-o muito bem, Sassenach -sussurrou-. Muito bem feito, preciosa.

moveu-se brandamente, pressionando sua coxa contra ele.

-Necessita um pouco de ar, Sassenach..., e temos que falar. Pode lhe deixar um momento?

Joguei um olhar à cama e a seu dormido ocupante.

-Sim. Se Betty acessar a ficar com ele para nos assegurar de que não vomita e se afoga.

Olhei à pulseira que, acostumada às ordens e surpreendida por minha forma de pedir-lhe aceitou com gosto.

-me espere no jardim e procura não cair pelas escadas e te romper o pescoço, quer?

Agarrou-me o queixo e me beijou, rápida e profundamente, o que me fez sentir ao mesmo tempo mais sóbria e mais enjoada.

 

                   Um exame de consciência

Algo escuro caiu com um suave ruído no atalho. Detive-me bruscamente e me aferrei ao braço do Jamie.

-Uma rã -disse imperturbável-. Não as ouve cantar?

«Cantar» não era a palavra que eu escolheria para o coro que coaxava no canavial próximo ao rio. Estirou o pé e roçou a escura figura escondida.

-Brequequex, cro-ac, cro-ac, -recitou-. Brequequex, cro-ac!

A rã saltou, desaparecendo entre as novelo.

-Sempre soube que tinha um dom para os idiomas -pinjente divertida-. Embora não sabia que também falava a linguagem das rãs.

-Bom, não o falo muito bem -disse com modéstia-. Mas tenho um bom acento.

Ri, mas o instante de bom humor passou e seguimos caminhando juntos, embora com as mentes separadas por milhares de quilômetros.

Teria que ter estado esgotada, mas a adrenalina seguia correndo por minhas veias. Havia um banco baixo as árvores próximas ao mole, entre as sombras, e Jamie me conduziu até ele. sentou-se no banco de mármore com um profundo suspiro que me recordou que não era quão única tinha passado uma velada cheia de acontecimentos.

-Estamos sozinhos e ninguém nos observa –pinjente-. Quer me dizer que diabos passa?

-OH, sim! -endireitou-se-. Lhe devi dizer isso antes, mas não esperava que ela fizesse isso. -Procurou minha mão na escuridão-. Não é nada mau, como já te disse. Mas quando Ulises foi levar me a roupa, o broche e a adaga, disse-me que Yocasta faria um anúncio durante o jantar; diria a todos que me ia declarar herdeiro de... tudo isto.

Seu isto abrangeu a casa, os terrenos e todo o resto. Pude ver tudo desenvolvendo-se como, sem dúvida, Yocasta havia imaginando: Jamie sentado à cabeceira com o tartán, a adaga e o broche do Héctor Cameron (o broche com o juramento do clã dos Cameron: «Unir!») rodeado pelos velhos colegas e camaradas do Héctor, desejosos de que o jovem parente de seu amigo ocupasse seu lugar.

Se deixava que fizesse aquele anúncio, os leais escoceses, bem lubrificados pelo bom uísque do defunto, aclamariam-no como o senhor do River Run. Era um minucioso plano uso MacKenzie, pensei: audaz, teatral e sem ter em conta os desejos das pessoas implicadas.

-E se o tivesse feito -disse Jamie, fazendo-se eco de meus pensamentos com misteriosa exatidão-, haveria-me flanco muito declinar tal honra.

-Sim, muito.

ficou em pé repentinamente, muito inquieto para ficar sentado.

-por que lhe contou isso Ulises? -perguntei.

-pergunte-lhe isso a ti mesma, Sassenach -respondeu-. Quem é o amo agora no River Run?

-Ah? -pinjente e logo-: Ah!

-Sim, em efeito! -disse com secura-. Minha tia está cega, mas quem se ocupa das contas e de governar a casa? Ela pode decidir o que terá que fazer... mas quem diz quando terá que as fazer? Quem está sempre a seu lado para lhe dizer o que acontece, a quem deve escutar e em que opiniões deve confiar?

-Dou-me conta -pinjente pensativa-, Não pensará que está falseando as contas ou algo assim?                    

Esperava que não fora assim, pois eu gostava de muito o mordomo da Yocasta.

Jamie negou com a cabeça.

-revisei as contas e tudo está em ordem; em realidade, tudo está muito bem. Estou seguro de que é um homem honrado e um servente leal, mas não seria humano se aceitasse com alegria que o substitua um estranho. -Soltou um bufido-. Minha tia pode estar cega, mas seu homem negro vê com toda claridade. Não disse uma palavra para me acautelar nem para me persuadir de algo, só me disse o que minha tia ia fazer e logo me deixou decidir .

-Crie que ele sabia que não foi A...?

Detive-me, porque não estava segura do que ele desejava.

Não respondeu. Um frio sorvete me fez estremecer e me agarrei de seu braço enquanto caminhávamos. Pensei na tentação e no verme que jaz escondido baixo uma pele brilhante. A tentação não era só para ele, mas também para mim. Para ele a possibilidade de ser o que era por natureza, o que o destino lhe tinha negado. Tinha nascido e se criou para isso: a administração de uma grande propriedade, o cuidado da gente e de um lugar respeitável entre homens de valor, seus pares. E o mais importante: a restauração do clã e a família. «Já formo parte disto», havia dito.

Mas já tinha sido um latifundiário. Tinha-me falado pouco de seu passo pela prisão, mas algo ressonava em minha memória. Dos homens que compartilhavam seu confinamento, havia-me dito: «Eles eram meus. E o os ter é o que me mantinha com vida». E recordei o que Ian havia dito do Simón Fraser: «O cuidado de seus homens é agora seu único laço com a humanidade».

Sim, Jamie necessitava a seus homens. Homens para dirigir, para cuidar, para defender-se e lutar com eles. Mas não para ser seu dono.

De acordo, River Run era o jardim das delícias... mas eu tinha chamado amigo a um homem negro e tinha deixado a minha filha a seu cuidado.

Ao pensar no Joe Abernathy e na Brianna, deu-me a estranha sensação de que existiam em dois lugares de uma vez. Podia ver seus rostos em minha mente e ouvir suas vozes em meu interior. E entretanto, a realidade era o homem que estava a meu lado, com a cabeça inclinada e sumido em seus pensamentos. Essa era minha tentação: Jamie. O e não as camas brandas e as luxuosas habitações, os vestidos de seda ou a posição social. Era Jamie.

Se não aceitava a proposição da Yocasta, deveria fazer alguma outra coisa. E «alguma outra coisa» podia ser a perigosa tentação de o William Tryon. Desde seu ponto de vista, era melhor que a generosa oferta da Yocasta; o que fizesse seria totalmente dele, a herança que queria deixar a Brianna. Se vivia para realizá-lo.                                          

Eu seguia vivendo em dois planos diferentes. No primeiro ouvia o sussurro de seu kilt, sentia a cálida umidade de seu corpo, cheirava o aroma a almíscar que me fazia desejar despi-lo, apertar meu peito ao dele, atirá-lo entre as novelo e me pôr em cima.

Mas no outro plano, o da memória, cheirava os discos e o vento do mar e acariciava, não um homem vivo e quente, a não ser uma tumba com seu nome.

Não falei. Nenhum o fez.

Tínhamos dado uma volta completa e estávamos na borda do rio. Ali havia um pequeno bote com remos para um pescador solitário ou para dar um passeio.

-Quer que demos uma volta?

-Sim, por que não?

Pensei que devia ter o mesmo desejo que eu; afastar-se da Yocasta, pôr certa distância para pensar com claridade e sem perigo de interrupções.

antes de que pudesse baixar ao bote se voltou para mim, atraiu-me e me beijou brandamente; logo me abraçou com força, apoiando seu queixo em minha cabeça.

-Não sei o que fazer -disse em resposta a minhas perguntas não pronunciadas.

Subiu ao bote e me ofereceu a mão.

 

Permaneceu em silêncio enquanto avançávamos pelo rio.

-Não vais dizer nada? -perguntou bruscamente.

-Não sou eu a que tem que escolher -respondi, sentindo que me oprimia o peito.

-Não?

-Ela é sua tia. É sua vida. A eleição é tua.

-E você será uma espectadora? -grunhiu mais que falou enquanto remava rio acima-. Ou não é sua vida? Ou, depois de tudo, não pensa seguir comigo?

-O que quer dizer seguindo contigo?

Endireitei-me, surpreendida.

-Talvez seja muito para ti.

Tinha a cabeça inclinada e não podia ver seu rosto.

-Se referir ao que aconteceu na serraria...

-Não, isso não. -Dirigiu-me um falso sorriso-. Mortes e desastres não se preocupam tanto, Sassenach. Mas as coisas pequenas, dia detrás dia... Vejo-te te jogar para trás quando a criada negra te penteia ou quando o moço se leva seus sapatos para limpá-los, e vejo sua atitude escravos que trabalham no campo. Isso se preocupa, não?

-Sim... não posso ser proprietária de escravos. Já te disse...

-Sim, fez-o. -Deixou os remos e me olhou-. E se escolho fazer isto, Sassenach, seria capaz de ficar sem fazer nada? Porque nada se pode fazer até que minha tia mora. E talvez então tampouco.

-O que quer dizer?

-Ela não liberará a seus escravos, por que ia fazer o? E eu não poderei fazê-lo enquanto ela viva.

-Mas uma vez que herde o lugar...

de repente o entendi. Poderia viver, dia detrás dia, mês detrás mês, ano detrás ano tendo escravos? Já não poderia pretender me refugiar na idéia de que era só uma convidada, alguém de fora.

Mordi-me os lábios para não gritar minha negativa.

-E até então -seguiu-, sabe que um proprietário de escravos não pode liberá-los sem permissão da Assembléia?

-Como? por que não?

-Os donos das plantações têm medo a uma insurreição armada dos negros –disse-. Culparia-os? -acrescentou com ironia-. Os escravos não podem levar armas, só facas para trabalhar, e está a lei do derramamento de sangue para acautelar seu uso. -Sacudiu a cabeça-. Não, quão último permitiria a Assembléia é um grupo de negros livres soltos pela região. Se um homem quer liberar um escravo e lhe dão a permissão, o escravo livre deverá abandonar a colônia. Do contrário, podem capturá-lo e escravizá-lo outra vez.

-Estiveste-o pensando -pinjente lentamente.

-Você não?

Não respondi. Não, não tinha pensado nessa perspectiva. Não o tinha feito conscientemente porque não desejava me enfrentar a tal eleição.

-Suponho que seria uma grande oportunidade -disse com uma voz que soava forçada em meus ouvidos-. Estaria a cargo de tudo...

-Minha tia não é tola -interrompeu com voz cortante-. Nomeará-me seu herdeiro mas não ocuparei seu lugar. Utilizará-me para fazer as coisas que ela não pode, mas não seria mais que sua garra de gato. É certo que me pedirá minha opinião e escutará meus conselhos, mas não se fará nada que ela não queira.

Sacudiu a cabeça.

-Seu marido está morto. Quisesse-o muito ou pouco agora é a proprietária e não tem que dar contas a ninguém. Desfruta de muito do poder para desprezá-lo.

Suas asseverações sobre o caráter da Yocasta eram totalmente corretas. Aí estava a chave de seu plano. Necessitava um homem, mas era evidente que não queria um marido, alguém que lhe usurpasse o poder e lhe desse ordens.

Não, Jamie era a eleição perfeita: um homem forte, competente, capaz de conseguir o respeito de seus pares e a obediência de seus subordinados. Um homem digno de confiança para levar as terras e mandar aos homens. Além disso, era um homem ligado a ela pelo sangue mas sem poder e com a obrigação de cumprir suas ordens.

Sentia um nó na garganta enquanto lutava por falar. Não podia aceitar aquilo, mas tampouco podia aceitar a alternativa que ficava e impulsioná-lo a rechaçar a oferta da Yocasta sabendo que isso o enviaria a Escócia, a uma morte desconhecida.

-Não te posso dizer o que tem que fazer -pinjente.

A noite estava silenciosa.

-Seu rosto é meu coração, Sassenach -disse me acariciando o queixo-, e seu amor é minha alma. Mas tem razão, não pode ser minha consciência.

em que pese a tudo, senti que se aliviava seu espírito, como se me tivesse liberado de um peso indefinido..

-Me alegro -disse impulsivamente-, seria uma terrível carrega.

-Ah, sim? -Contemplou-me um pouco sobressaltado-, Crie que sou um malvado?

-É o melhor homem que conheci em minha vida -pinjente-. Só queria dizer... que é um grande esforço tratar de viver por duas pessoas, tratar de fazer que aceitem suas idéias do que é correto... como faz com os meninos.

-Realmente crie que sou um bom homem? -perguntou finalmente.

Havia uma nota em sua voz que não pude decifrar.

-Sim -respondi sem vacilar. E acrescentei brincando-: Você não?

Respondeu depois de uma larga pausa.

-Não, não acredito.

Olhei-o boquiaberta.

-Sou um homem violento e sei bem. -Estendeu suas mãos grandes e fortes-. E você sabe ou o deveria saber.

-Nunca tem feito nada se não lhe obrigaram!

-Não?

-Não acredito -pinjente, mas uma nuvem de dúvidas escureceu minhas palavras.

-Poria-me à mesma altura que a um homem como Stephen Bonnet? Ele diria que atuou por necessidade.

-Se crie que tem algo em comum com o Stephen Bonnet está totalmente equivocado -disse com firmeza.

encolheu-se de ombros com impaciência e se moveu inquieto.

-Não há muita diferença entre o Bonnet e eu, salvo que eu tenho um sentido da honra que lhe falta. O que outra coisa me separa de me converter em um ladrão? -quis saber-. Tenho mais de quarenta e cinco anos! Um homem deve assentar-se a essa idade, não? Deve ter uma casa, terra para alimentar-se e um pouco de dinheiro que guardar para a velhice.

Respirou profundamente.

-E eu não tenho nem casa nem terra nem dinheiro. Nem sequer uma vaca, uma ovelha, um porco ou uma cabra! Não tenho nem um recipiente para urinar!.

Deu um golpe com o punho fechado.

-Nem sequer sou dono da roupa que uso!

Houve um comprido silencio, interrompido pelo débil canto dos grilos.

-Tem-me -disse em voz baixa.

Não parecia muito.

Sua garganta deixou escapar um ruído que poderia ser uma risada ou um soluço.                                        

-Sim te tenho -disse com voz tremente-. E isso é um inferno, não é certo?

-É-o?

Estendeu a mão em um gesto de impaciência.

-Se se tratasse só de mim, que importância teria? Mas não só sou eu -disse com irritação-. Está você, estão Ian e Duncan, Fergus e Marsali... Que Deus me ajude, se até tenho que me ocupar do Laoghaire!

-Não o faça.

-Não o entende? -perguntou quase com desespero-. Poria o mundo a seus pés, Claire, e não tenho nada para te dar!

Jamie pensava sinceramente que isso era importante. Observei-o procurando as palavras adequadas e finalmente agarrei uma de suas mãos grandes e calosas, ajoelhei a seu lado e apoiei a cabeça sobre seu peito. Não me saíam as palavras mas tinha tomado uma decisão.

-Onde vá, irei; onde viva, viverei; seu povo será meu povo e seu Deus meu Deus. Quando morrer, eu morrerei e ali serei enterrada. Em uma colina de Escócia ou nos bosques do sul. Fará o que tenha que fazer e eu estarei aí.

 

Pensava que retornaríamos ao River Run, mas era evidente que aquela expedição era algo mais que um descanso. Continuamos rio acima. Jamie remava com força contra a corrente.

A sós com meus pensamentos podia escutar sua respiração e me perguntar o que faria. Se elegia ficar... bom, não seria tão difícil como ele pensava. Não ia subestimar a Yocasta Cameron, mas tampouco ao Jamie Fraser. Tanto Colum como Dougal MacKenzie trataram de lhe dobrar e não o conseguiram.

Dava-me conta de onde nos dirigíamos quando Jaime girou com um remo e cruzamos a corrente para a boca de um largo arroio. Nunca tinha chegado até ali pelo rio, mas Yocasta havia dito que não estava longe.

Não devia me surpreender. Se pensava enfrentar-se com seus demônios, estávamos no lugar mais apropriado.

-Os lugares muito concorridos durante o dia, sempre parecem fantasmales durante a noite -pinjente, em um esforço por romper o silêncio da serraria.

-Sim? -Jamie parecia abstraído-. Este tampouco eu gosto muito durante o dia.

Estremeci-me ante a lembrança.

-A mim tampouco. Só quis dizer...

-Byrnes morreu -disse sem me olhar.

-O capataz? Como? -pinjente, mais sacudida pela brutalidade que pela revelação-, Quando?

-Esta tarde. O mais jovem dos Campbell trouxe a notícia pouco antes da queda do sol.

-Como? -voltei a perguntar.

-Tétanos. Uma forma muito feia de morrer.

Nisso tinha razão. Nunca tinha visto morrer a ninguém de tétanos, mas conhecia bem os sintomas. Os espasmos aumentavam de intensidade e só cessavam no momento da morte.

-Tampouco é uma morte rápida -comentei. A suspeita se apoderou de mim-. Morrer de tétanos leva vários dias.

-Ao Byrnes levou cinco dias.

Já não havia rastro de humor em sua voz.

-foste ver lhe -disse com um toque de irritação-. Viu-o! E não me disse isso?

Haviam-me dito que Byrnes estava recuperando-se em um lugar «seguro» até que passassem os distúrbios.

-O que tivesse podido fazer? Pensei que me havia dito que o tétanos era algo que nem sequer em sua época se podia curar -disse sem me olhar.

-Não -pinjente-. Não, não lhe tivesse podido salvar. Mas poderia ter facilitado as coisas.

-Tivesse podido -disse tranqüilamente.

-E você não me deixou...

Detive-me recordando suas ausências durante a semana e suas respostas com evasivas.

tsío, não permiti que Campbell te mandasse a procurar -disse-. É a lei, Sassenach, e está a justiça. Conheço bem a diferença.

-Também existe a misericórdia.

Se alguém me tivesse perguntado, haveria dito que Jaime Fraser era um homem compassivo. Tinha-o sido. Mas os anos passados tinham sido duros e a compaixão é uma emoção que se gasta com facilidade em segundo que circunstâncias.

-Benditos sejam os misericordiosos -disse- porque eles encontrarão misericórdia. Byrnes não o era e não a encontrou. E quanto a mim, uma vez que Deus deu sua opinião sobre o homem, não me parece correto interferir.

-Crie que Deus lhe provocou o tétanos?

-Não me ocorre outro ser com capacidade para isso. Por outra parte, no que outro lugar procuraria justiça?

Não obtive resposta.

-me deveu dizer isso Embora acreditasse que não podia ajudar, não era teu assunto decidir...

-Não queria que fosse.

Havia uma nota de dureza em sua voz.

-Já sei que não! Mas não importa que você cria que Byrnes merecia sofrer O...

-Não me importava se Byrnes morria bem ou mau, mas não sou um monstro de crueldade! Não te afastei para lhe fazer sofrer, a não ser para te proteger.

Aliviou-me ouvi-lo mas minha fúria aumentou.

-Não era teu assunto decidi-lo. Se eu não for sua consciência, tampouco você deve ser a minha!

de repente me sujeitou uma boneca.

-Corresponde-me cuidar de ti!

Tratei de me soltar mas me sujeitou com força.

-Não sou uma menina que necessite amparo, nem tampouco uma idiota. Se havia alguma razão para que não fora, diga-me isso e te escutarei. Mas não pode decidir por mim. Isso não o suporto e você sabe!

-Não quero te dizer onde pode ir.

-Decidiu onde não podia ir e isso é o mesmo.

Agarrou-me dos braços e com sua força me fez sentir a fragilidade de meus ossos. «Sou um homem violento.»

Tinha-me sacudido antes um par de vezes e não me tinha gostado. Para lhe acautelar, em caso de que pensasse fazer o mesmo, coloquei um pé entre suas pernas e me preparei para levantar o joelho e golpear no lugar mais efetivo.

-Estava equivocado -disse.

Nervosa ante aquela atitude violenta tinha começado a levantar o pé quando ouvi o que dizia. antes de que pudesse me deter apertou as coxas sujeitando-o.

-Pinjente que estava equivocado, Sassenach -repetiu com um toque de impaciência na voz.

Senti vergonha e tratei de mover meu joelho, mas Jamie não separou as pernas.

-Não estará pensando em te liberar de mim? -perguntei com amabilidade.

-Não. vais escutar me agora?

-Suponho que sim -pinjente, com o mesmo tom cortês-. Acredito que não posso fazer outra coisa.

Estava o bastante perto para ver como sua boca se crispava, logo afrouxou a pressão de suas coxas.

-Esta é uma briga muito tola e você sabe tão bem como eu.

-Não, não sei. -Não estava tão furiosa mas não ia deixar que lhe tirasse importância-. Talvez não seja importante para ti, mas o é para mim. Não é uma tolice e você sabe, do contrário não teria admitido que estava equivocado.

Esta vez a crispação de sua boca foi mais pronunciada. Respirou profundamente e soltou meus ombros deixando cair as mãos.

-Bem. Devi te dizer o do Byrnes, admito-o. Mas se o tivesse feito, teria ido ver lhe embora te houvesse dito que era tétanos e sei que o era porque o vi antes. Embora não pudesse fazer nada, teria ido igualmente, verdade?

-Sim. Embora... sim, tivesse ido.

De fato, tampouco teria podido fazer nada pelo Byrnes.

-Teria que ter ido -pinjente mais amavelmente-. Sou médica. Não te dá conta?

-É obvio que me dou conta -disse com aspereza-. Crie que não te conheço, Sassenach? E sem esperar uma resposta continuou.

-falou-se sobre o que aconteceu na serraria. Com o homem moribundo como estava ninguém disse diretamente que você o tinha matado a propósito, embora esteja seguro de que o pensaram. Não que o tinha matado, mas talvez que lhe deixou morrer para lhe salvar da forca.

Contemplei-me as mãos quase tão pálidas como o cetim de meu vestido.

-E você, perguntou-lhe isso?

Olhou-me um pouco surpreso.

-Fez o que acreditava que era o melhor. -Deixou a um lado o assunto da morte do homem para insistir no ponto que lhe interessava-. Mas não era prudente que estivesse presente em duas mortes, não sei se te dá conta.

Dava-me conta e não pela primeira vez era consciente das sutis jogue a rede das que Jamie formava parte de uma forma em que eu nunca poderia. Aquele lugar era tão estranho para ele como para mim e, entretanto, Jamie não só sabia o que a gente dizia, pois qualquer podia inteirar-se no botequim ou o mercado, mas também o que pensavam. E o mais irritante era que sabia o que eu estava pensando.

-Assim já sabe -disse me olhando-. Sabia que Byrnes ia morrer e que você não podia fazer nada por ele. Entretanto, se te tivesse informado teria querido ir ver lhe. E atrás de sua morte talvez a gente não tivesse comentado nada sobre que dois homens tinham morrido em seus braços, mas...

-Mas o tivessem pensado -terminei por ele.

-A gente se fixa em ti, Sassenach.

Mordi-me o lábio. Para bem ou para mau, faziam-no e isso tinha estado perto de acabar comigo mais de uma vez. agarrou-se a um ramo para manter o equilíbrio e saltou sobre a erva.

-Disse-lhe à senhora Byrnes que lhe levaria as coisas de seu marido –disse-. Se não querer não é necessário que venha.

Agora sabia o que estava fazendo. Desejava vê-lo tudo antes de decidir-se; vê-lo tudo sabendo que podia ser dele. depois de tudo, pensei com amargura, o Diabo tinha insistido em acostumar-lhe tudo ao Jesus. Tinha-o levado até o topo do Templo para que visse todas as cidades do mundo. A única dificuldade era que se Jamie decidia arrojar-se não haveria uma legião de anjos para impedir que se estrelasse contra uma laje de granito em Escócia. Só estaria eu.

-Espera -pinjente saltando do bote-. Eu também vou.

 

A madeira ainda estava amontoada, ninguém havia meio doido nada da última vez que estive ali. Não podia ver o terreno baixo meus pés e Jamie me agarrava do braço para evitar que tropeçasse. Ele nunca tropeçava, claro. Possivelmente o ter vivido toda sua vida com a escuridão depois do pôr-do-sol lhe tinha dado uma espécie de radar. Como se fora um morcego.

Havia uma fogueira entre os barracos dos escravos. Era muito tarde e a maioria deviam estar dormindo. Nas Antilhas teria havido som de tambores e lamentações pelo companheiro morto. Ali o silêncio era absoluto.

-Têm medo -disse Jamie.                          

-Não sente saudades. Eu também.

-E eu -murmurou-, mas não aos fantasmas.

Agarrou meu braço e empurrou uma pequena porta antes de que pudesse lhe perguntar a que tinha medo ele. O silêncio do interior tinha consistência. Ao princípio, pensei que era como a misteriosa quietude das mariposas mortas, mas logo me dava conta da diferença. Era um silêncio vivo e o que fora que vivia nele não jazia imóvel. Pensei que cheirava a sangue e que esse aroma fazia espesso o ar.

Então respirei profundamente e com um frio horror percorrendo minhas costas pude cheirar o sangue, sangre fresca.

Aferrei-me do braço do Jamie. Ele também o tinha cheirado e seus músculos se esticaram baixo minha mão. Sem uma palavra se liberou dela e desapareceu.

Por um momento acreditei que se desvaneceu e senti pânico. Agitei as mãos no vazio e então me dava conta de que se tampou a cabeça com a capa ocultando assim a palidez de sua cara e o branco da camisa. Ouvi suas pegadas rápidas e fiquei sozinha.

Um gemido rasgou o ar e quase me parti o lábio ao me morder isso Onde estava Jamie? Desejava chamá-lo mas não me atrevia. Forcei os olhos para tratar de ver e me dava conta de que com meu vestido pálido era visível para qualquer que estivesse ali.

Outra vez chegou o gemido e me sobressaltei. Suavam-me as mãos. «Não pode ser», disse-me furiosa. Estava paralisada pelo terror e demorei uns instantes em me dar conta do que ouvia. O gemido provinha de algum lugar detrás de mim.

-Jamie! -gritei-. Onde está?

-Aqui, Sassenach. -A voz do Jamie me chegou tranqüila, com certa urgência-. Vêem.

Mas

Não era ele quem gemia. Aliviada, posto que os gemidos não eram do Jamie, lancei-me para a escuridão sem me importar de quem eram. Choquei-me com uma parede de madeira e procurei até encontrar uma porta aberta. Jamie tinha entrado no barraco do capataz.

Entrei e senti a mudança imediatamente. O ar era mais pesado e quente que na serraria. O estou acostumado a era de madeira e o aroma de sangue mais intenso.

-Onde está? -chamei de novo em voz baixa.

-Aqui, ao lado da cama. Vêem me ajudar, é uma moça.

Estava em um pequeno dormitório sem janelas. Jamie se tinha ajoelhado ao lado de uma cama estreita em que havia um corpo. Ao tocar soube que era uma mulher e que se estava sangrando. Procurei o pulso na garganta e não o encontrei. Seu único signo de vida era um leve movimento do peito baixo minha mão.

-Está bem -ouvi-me dizer, sem indício de pânico na voz, embora tinha razões para senti-lo-. Estamos aqui, não está sozinha. O que te passou? me pode dizer isso

-Né...

Foi um suspiro seguido de um ofego.

-Quem te tem feito isto? -A voz do Jamie era baixa mas cheia de urgência-. Me diga, quem?

-Né...

-Tudo está bem, não está sozinha. Jamie, lhe agarre a mão.

O desespero se apoderou de mim ao me dar conta do que acontecia.

-Já a tenho. Não se preocupe. Tudo irá bem.

-Né...

Não podia ajudá-la. Pus a mão entre suas coxas e notei que estava empapada e o sangue continuava saindo.

-Eu... morro...

-Acredito que lhe mataram, moça -disse-lhe Jamie muito brandamente-. Não nos vais dizer quem foi?

Sua respiração se fez mais forte.

-Sar... gento. Diga... a ele...

Respirava entrecortadamente e o sangue seguia gotejando.

-Farei-o -disse Jamie. Sua voz era um sussurro na escuridão-. Prometo que o farei.

Já não havia sons. Não podia ver o Jamie, mas notei que se inclinava.

-Deus te perdoe -sussurrou-. Descansa em paz.

 

Pude ouvir o zumbido ao entrar no barraco do capataz à manhã seguinte. Eram só duas habitações. A nossa direita estava o quarto maior, que tinha sido utilizado pelo Byrnes para viver e cozinhar, e à esquerda se encontrava o pequeno dormitório de que tinham saído os gemidos.

Jamie respirou profundamente, tampou-se a cara com a capa e empurrou a porta.

O que vimos parecia uma colcha de cor azul metalizada com salpicaduras verdes. Quando Jamie deu um passo, as moscas se elevaram zumbindo e abandonaram seu alimento. Dava um grito de asco e agitei as mãos para as espantar. Farquard Campbell lançou um bufido de desgosto, baixou a cabeça e me empurrou para poder entrar.

A pequena habitação carecia de janelas e a luz entrava somente pelas gretas das pranchas. A atmosfera era úmida e calorosa, como em um estufa tropical, e pesada pelo doce aroma de podre da morte.

Não tinha sido uma moça alta, seu corpo estava abafado pela manta com que a cobrimos a noite anterior. Sua cabeça parecia grande em comparação com seu corpo encolhido. Jaime espantou várias moscas e lhe tirou a manta manchada de sangue. Logo que tinha visto seu rosto a noite anterior. Era impossível determinar sua idade, salvo que não era velha, nem tampouco se era atrativa, embora para um homem deveu resultá-lo.

Os homens murmuravam entre eles inclinados sobre o cadáver. O senhor Campbell se voltou para mim com rosto preocupado.

-Está razoavelmente segura, senhora Fraser, da causa da morte?

-Sim -pinjente-. Baixei-lhe a saia mas deixei o resto como estava.

Tinha-a deixado onde a encontramos. Entre suas pernas havia uma brocheta de cozinha de mais de trinta centímetros de larga, coberta de sangue seca.

-Não... encontrei feridas no corpo -pinjente o mais delicadamente possível.

-Sim, já vejo. -O rosto do Campbell se relaxou um pouco-. Ah, bom, ao menos não é um caso de assassinato deliberado.

Abri a boca para responder, mas Jamie me acautelou com o olhar. Sem dar-se conta, Campbell continuou falando.

-A questão é se esta pobre mulher o fez ela sozinha ou a ajudou outra pessoa. Você o que pensa, senhora Fraser?

Jamie me olhou com os olhos entrecerrados. O aviso era desnecessário pois já o tínhamos discutido a noite anterior e tirado nossas próprias conclusões. Também tínhamos decidido não as compartilhar com as forças da lei e a ordem do Cross Creek.

-Estou segura de que o fez ela -disse com firmeza-. Leva pouco tempo morrer sangrada desta maneira e, como Jamie lhe disse, ainda estava viva quando a encontramos. Estávamos conversando fora quando ouvimos os gemidos. Ninguém tivesse podido sair sem que o víssemos.

O certo era que uma pessoa podia haver-se escondido facilmente na outra habitação e sair enquanto estávamos ocupados em atender à mulher. Se essa possibilidade não lhe ocorria ao senhor Campbell, não via razão para que eu lhe abrisse os olhos.

Jamie tinha adotado uma expressão o bastante séria para enfrentar-se ao Campbell, que sacudia a cabeça aflito.

-Ah, desafortunada moça! Mas suponho que devemos nos sentir aliviados já que ninguém compartilhou seu pecado.

-E o que passa com o pai do menino que ela quis tirar-se? -perguntei em tom azedo.

-Mmm... -disse surpreso Campbell e tossiu-. Como não sabemos se estava casada...

-Então, não conhecem esta mulher? -interveio Jamie antes de que eu pudesse fazer mais comentários imprudentes.

Campbell sacudiu a cabeça.

-Não era faxineira do senhor Buchanan nem dos MacNeill, disso estou seguro. Nem do juiz Alderdyce. Essas são as plantações mais próximas de onde pôde vir. Embora não entendo por que veio até este lugar para cometer este ato desesperado...

Ao Jamie e a mim também nos tinha ocorrido pensá-lo. Para evitar que Campbell desse outro passo nessa linha de investigação, Jamie interveio outra vez.

-Ela falou muito pouco mas mencionou a um «sargento». «lhe Diga ao sargento», foram suas palavras. Talvez você tenha idéia do que quis dizer.

-Acredito que há um sargento do exército a cargo do guarda do depósito real. Sim, seguro. Ah! Sem dúvida a mulher estava relacionada de alguma forma com esse estabelecimento militar. Essa é uma explicação. Entretanto, ainda me pergunto por que ela...

-Senhor Campbell, me perdoe, mas me temo que me estou enjoando -interrompi, apoiando uma mão em seu braço.

-Poderia acompanhar a minha esposa fora? -perguntou Jamie. Fez um gesto para a cama e a sua patética carga-. Eu me ocuparei da pobre moça.

-Rogo-lhe que não se preocupe, senhor Fraser –protestou Campbell, preparado para me acompanhar—. Meu servente pode ocupar do corpo.

-É a serraria de minha tia e portanto é meu problema -disse amavelmente mas com firmeza. Devo me ocupar eu.

 

Fedra esperava ao lado do carro.

-Disse-lhe que este lugar era mau -disse com ar de maliciosa satisfação-. Está branca como um lençol, senhora.

Alcançou-me o recipiente de vinho com especiarias franzindo o nariz.

-Tem pior aroma que ontem à noite e a vê mau. -deu-se a volta para observar ao Campbell, que falava com seu servente-. Encontrei a que a ajudou -disse Fedra em voz baixa.

-Está segura? Não teve muito tempo.

Tomei um gole de vinho e Fedra assentiu.

-Não necessitei muito tempo. Caminhando entre as casas vi uma porta aberta e coisas atiradas, como se alguém tivesse saído correndo. Perguntei quem vivia ali e me disseram que Poliyanne, mas que não sabiam onde se partiu. Ontem à noite estava ali durante o jantar e após ninguém a viu. -Seus olhos, cheios de perguntas, encontraram-se com meus-, Agora sabe o que terá que fazer?

Uma maldita pergunta para a que não tinha resposta.

-Todos os escravos devem saber que partiu. Quanto tempo passará antes de que outros saibam? Quem se ocupa dessas coisas, agora que Byrnes morreu?

Fedra se encolheu de ombros.

-Qualquer que pergunte o descobrirá. Mas o que tem que ocupar-se... -Fez um ligeiro gesto para o Jamie-. Suponho que é ele.

 

«Já sou parte disto.» Sabia inclusive antes do jantar interrompido. Sem nenhum anúncio formal, sem nenhum convite ou aceitação de seu papel, Jamie ocupava o lugar.

O servente do Campbell foi ajudar com o cadáver; Jamie se apoiou em um joelho e deixou o corpo no chão.

-Pode trazer as coisas do carro? -disse a Fedra.

Sem uma palavra, Fedra foi procurar as coisas que eu tinha reunido: uma manta, um balde, trapos limpos e um frasco com ervas. Eu fui reunir me com o Jamie.

-Tinha razão -disse-lhe em voz baixa-. A mulher que lhe ajudou se chamava Poliyanne e escapou durante a noite.

Fez uma careta esfregando-as mãos enquanto olhava por cima de seu ombro. Campbell observava o corpo com gesto de desgosto.

-te ocupe da moça, quer, Sassenach?

Com decisão foi em busca do Campbell.

 

Não tinha sentido conservar sua roupa, assim que a cortei para tirar-lhe Nua parecia ter uns vinte anos; estava mal alimentada, lhe marcavam as costelas e os braços e as pernas eram muito magros. em que pese a tudo, era surpreendentemente pesada e o rigor mortis dificultava seu manejo. Fedra e eu suávamos abundantemente antes de terminar a tarefa.

O trabalho evitava toda conversação e me deixava em paz com meus pensamentos, que não eram particularmente tranqüilizadores. Uma mulher que queria «desprender-se de uma criatura», como havia dito Jamie, se o ia fazer sozinha, faria-o em sua própria habitação e em sua própria cama. A única razão para que uma desconhecida chegasse até este remoto lugar, era encontrar-se com a pessoa que a ajudaria, uma pessoa que não podia ir onde ela vivia. Tínhamos que procurar uma pulseira nos barracos da serraria, alguma com reputação de parteira que as mulheres se recomendassem entre elas.

Estremeci-me pese ao calor. aplicaria-se a lei de derramamento de sangue neste caso? Era possível. Maldita mulher, pensei, mostrando irritação para tampar uma piedade inútil. Já não podia fazer nada por ela, salvo tratar de maquiar o desastre que tinha deixado e, talvez, tratar de salvar à outra atriz do drama: a desafortunada mulher que tinha cometido, sem querer, um assassinato tratando de ajudar e que agora podia pagar o engano com sua própria vida.

Jamie tinha pego a jarra de vinho e a intercambiava com o Campbell; os dois falavam acaloradamente e de tanto em tanto faziam gestos para a serraria ou para o rio e o povo.

O senhor Campbell ia partir quando me viu. Dirigiu-me uma saudação e eu lhe respondi com uma reverência e, aliviada, vi como se afastava.

Fedra também se deteve e observava a carruagem. Logo me olhou.

-Será melhor que o senhor Jamie encontre a essa Poliyanne antes da queda do sol. Há animais selvagens no pinar e o senhor Ulises diz que essa mulher valia duzentas libras quando a senhorita Yocasta a comprou. Não conhece os bosques. Poliyanne veio diretamente da África faz menos de um ano.

Fedra me tinha ajudado a descobrir ao Poliyanne, não porque confiasse em mim ou gostasse, mas sim porque eu era a esposa do amo. Devíamos encontrar ao Poliyanne e escondê-la. E Jamie, pensava ela, é obvio que o faria; era de sua propriedade ou da da Yocasta, o que ante os olhos da Fedra significava o mesmo.

Não havia nenhum sacerdote perto, assim que a enterrariam sem cerimônias. Para que necessitava dos ritos? Os funerais eram para consolo dos parentes e não parecia haver ninguém que a chorasse, pensei, porque de ter tido família, marido ou um amante, agora não estaria morta.

Jamie se tinha aproximado de nós. Sem uma palavra, levantou o corpo da moça morta e o colocou no carro. Não falou até que eu sentei a seu lado. Agitou as rédeas e estalou a língua.

-Vamos e procuremos o sargento -disse.

 

Tínhamos umas coisas das que nos ocupar antes. Retornamos ao River Run para deixar a Fedra e Jamie desapareceu para procurar o Duncan e trocar-se de roupa, enquanto eu ia controlar a meu paciente e a informar a Yocasta dos acontecimentos da manhã.

Não devi me preocupar: Farquard Campbell estava sentado bebendo chá com a Yocasta e John Myers; este, envolto em uma capa dos Cameron, estava atirado em uma poltrona de veludo comendo pãozinhos. A julgar pela desacostumada limpeza de suas pernas nuas, alguém se tinha aproveitado de seu temporário inconsciência para lhe dar um banho.

-Querida. -Yocasta voltou a cabeça para ouvir meus passos e sorriu, embora vi umas linhas de preocupação entre suas sobrancelhas-, Sente-se, criatura, e come algo; não descansaste em toda a noite e acredito que aconteceste uma manhã horrível.

Em outro momento me teria resultado divertido ou insultante que me chamassem «criatura», mas naquelas circunstâncias era extrañamente reconfortante. Deixei-me cair, agradecida, em uma poltrona e deixei que Ulises me servisse uma taça de chá, me perguntando o que lhe teria contado Farquard a Yocasta e que mais saberia.

Tinha a sensação de que poderia dormir uma semana inteira. Mas não havia descanso para nós. Jamie apareceu barbeado, penteado e com casaca e camisa limpa. Saudou o Campbell sem surpresa, pois deveu ter ouvido sua voz do corredor.

-Tia -disse beijando a bochecha da Yocasta, logo sorriu ao Myers-. Como vai tudo?

-Perfeito -assegurou Myers-. Embora acredite que deverei esperar um dia ou dois antes de voltar a montar a cavalo.

-Acredito -afirmou Jamie. Logo se voltou para a Yocasta-. Viu ao Duncan esta manhã, tia?

-Sim. Foi com o Ian a fazer um recado para mim. -Sorriu e agarrou ao Jamie da boneca-. É um homem encantador o senhor Innes, além de sagaz e ardiloso. Uma grande ajuda e um verdadeiro prazer falar com ele. Não o crie assim, sobrinho?.

Jamie a olhou com curiosidade e logo se fixou no Campbell, que evitou seu olhar.

-Pois sim -respondeu Jamie com secura-. Duncan é um homem muito capaz. E o jovem Ian se foi com ele?

-Sim, para fazer-se carrego de uns fardos -respondeu plácidamente Yocasta-. Necessita ao Duncan agora?

-Não -disse Jamie, olhando-a com calma-. Pode esperar.

-Bem -respondeu a tia-. Tomará o café da manhã então? Farquard, quer outro pãozinho?

-Ah, não, tenho coisas que fazer no povo; o melhor será que vá. -Campbell deixou sua taça, ficou em pé e nos saudou a Yocasta e a mim com uma inclinação-. Para as servir, senhoras. Senhor Fraser -acrescentou, arqueando a sobrancelha, e seguiu ao Ulises.

Jamie se sentou e agarrou uma torrada.

-Tia, encarregou ao Duncan ir em busca da pulseira?

-Assim é. -Voltou o rosto carrancudo com sua cega expressão-. Não te importa, verdade, Jamie? Já sei que Duncan é um de seus homens mas me pareceu um assunto urgente e não estava segura de quando foste retornar.

-O que te há dito Campbell?

Sabia o que estava pensando Jamie; o rígido e reto juiz do distrito não moveria um dedo para evitar um linchamento nem conspiraria para proteger a uma pulseira acusada de praticar abortos.

-Conheço o Farquard Campbell há vinte anos. Ouço melhor o que não diz que o que diz.

Myers tinha seguido a conversação com interesse.

-Não posso dizer que meus ouvidos sejam tão finos -fez notar apaciblemente-. Tudo o que ouvi foi que uma pobre mulher se matou na serraria por causa de um acidente por tratar de livrar-se de sua carga. Também disse que não a conhecia.

Sorriu-me docemente.

-Disso deduzo que a moça era uma desconhecida -observou Yocasta-. Farquard conhece toda a gente do povo e do rio tão bem como eu conheço minha própria gente. Não era a filha nem a faxineira de ninguém.

Deixou a taça e se apoiou na cadeira com um suspiro.

-Tudo vai sair bem -disse-. Come, que deve estar morto de fome.

Jamie a contemplava com a torrada na mão. Deixou-a no prato sem prová-la.

-Não posso dizer que tenha muito apetite, tia. As garotas mortas me afetam ao estômago.

levantou-se e ficou a casaca.

-Talvez não seja a filha nem a faxineira de ninguém, mas está tiragem no pátio coberta pelas moscas. Devo averiguar seu nome antes de enterrá-la.

Bebi o resto de meu chá.

-Sinto muito -desculpei-me-. Acredito que eu tampouco tenho fome.

Yocasta não se moveu nem trocou de expressão.

 

Era perto do meio-dia quando chegamos ao depósito da Coroa, ao final da rua Há.

-O que guardam aí? -perguntei ao Jamie, olhando com curiosidade a sólida edificação.

Jamie se encolheu de ombros enquanto se espantava as moscas que proliferavam com o calor.

-Tudo o que a Coroa considera valioso. Peles do interior, abastecimentos navais, breu e terebintina. Mas o posto de guarda é a causa do licor que têm armazenado.

-diria-se que agora não têm muito -pinjente, assinalando ao único guarda.

-Claro, os embarques de licor chegam desde o Wilmington uma vez ao mês. Campbell me disse que escolhem um dia diferente cada mês para evitar os roubos —disse com ar preocupado.

-Pensa que Campbell não acreditou que foi ela quem o fez?

Sem querer olhei para a parte traseira do carro. Jamie lançou um bufido zombador.

-É obvio que não, Sassenach, esse homem não é tolo, mas é um bom amigo de minha tia e não causará problemas se não ter necessidade. Confiemos em que a mulher não tenha a ninguém próximo que queira armar escândalo.

-Mostra-te muito insensível. Acreditei que pensava de forma diferente. Embora provavelmente tenha razão: se tivesse tido a alguém, agora não estaria morta.

Notou a amargura em minha voz e me olhou.

-Não quis ser tão duro, Sassenach —disse amavelmente-. Mas a pobre moça está morta. Quão único posso fazer é me ocupar de que seja enterrada decentemente. É da outra da que devo me ocupar, não te parece?

-Sei. É que... suponho que me sinto, de algum modo, responsável por ela.

-Eu também -respondeu-. Não tema, Sassenach, faremos o correto.

Atou os cavalos debaixo de um castanho e baixou do carro me oferecendo a mão.

Indicaram-nos que o sargento estava almoçando no botequim de em frente. Vi-o assim que entramos, sentado ante uma mesa perto da janela, com a camisa desabotoada e ar depravado ante uma jarra de cerveja e os restos de um bolo. Jamie me seguia e sua sombra tampou momentaneamente a luz da porta. O sargento levantou a vista naquele momento e empalideceu pela impressão.

-Sargento Murchison -disse Jamie com um gesto de amável surpresa, como se saudasse um conhecido-. Não acreditei que voltaria a vê-lo outra vez, ao menos neste mundo.

A expressão do sargento indicava que o sentimento era mútuo.

-Você! -exclamou.

Jamie se tirou o chapéu e inclinou a cabeça com cortesia.

-Para lhe servir, senhor.

Murchison se ia recuperando da impressão e em sua cara apareceu um ar depreciativo.

-Fraser. Perdão, agora é senhor Fraser, não?

-Assim é -respondeu Jamie com voz neutra, pese ao tom insultante do sargento, que começou a grampeá-la camisa sem deixar de olhar ao Jamie.

-Tinha ouvido que um homem chamado Fraser tinha vindo a pegar-se como uma sanguessuga à senhora Cameron do River Run -disse com um gesto desagradável nos lábios-. Esse deve ser você, não?

Os olhos do Jamie pareciam de gelo azul, embora seus lábios mostravam um agradável sorriso.

-A senhora Cameron é meu parente e estou aqui em seu nome.

-Seu parente. Bom, é fácil de dizer, não? A senhora está mais cega que um morcego, ou isso dizem. Não tem marido nem filhos. É uma boa presa para qualquer estelionatário que se faça passar por alguém da família. -O sargento baixou a cabeça e me observou sonriendo, uma vez mais dono de si mesmo-. Ela deve ser seu amante, não é assim?

Era uma maldade gratuita, um tiro ao azar, o homem quase não me tinha cuidadoso.

-É minha esposa, a senhora Fraser.

Pude ver como os dois dedos rígidos da mão direita do Jamie se agarravam às abas da casaca como único sinal de suas emoções. Inclinou a cabeça e arqueou as sobrancelhas, observando ao sargento com desapaixonado interesse.

-E qual dos dois é você, senhor? Peço-lhe perdão por minha má memória, mas lhe confesso que não o distingo de seu irmão.

O sargento se crispou como se lhe tivessem disparado.

-Maldito seja! -exclamou, engasgando-se com as palavras.

Naquele momento pareceu dar-se conta de que todos nos observavam com interesse. Com um olhar furioso agarrou o chapéu e se dirigiu para a porta, me empurrando ao passar e me fazendo cambalear.

Jamie me sujeitou de um braço e lhe seguiu. Fui atrás dele a tempo de ver como chamava o sargento.

-Murchison! Tenho que falar com você!

O soldado girou sobre seus talões.

-Falar, né? E o que tem que me dizer, senhor Fraser?

-Falar de sua capacidade profissional, sargento –respondeu Jamie com frieza. Fez um gesto para o carro-. Trouxemo-lhe um cadáver.

Por um segundo, o rosto do sargento permaneceu inexpressivo, logo olhou o carro cheio de moscas.

-Vá. -Era um profissional. Embora a hostilidade não tinha diminuído, empalideceu e relaxou seus punhos crispados-, Um cadáver? De quem?

-Não tenho nem idéia, senhor. Tinha a esperança de que você nos dissesse isso. Quer olhar?

Fez um gesto para o carro e depois de um momento de vacilação se dirigiu para ele.

O sargento não ocultou seus sentimentos. Talvez em sua profissão não era necessário. A impressão se via em seu rosto e Jamie pôde vê-lo tão bem como eu.

-Então, conhecia-a?

-Eu... ela... é... Sim, conhecia-a.

Fechou a boca, como se temesse falar mais da conta. uns quantos homens nos tinham seguido do botequim, logo todos saberiam o ocorrido na serraria.

-O que lhe passou? -perguntou o sargento, olhando outra vez a cara da morta.

Também ele apresentava uma palidez mortal.

-Então, conhecia-a? -perguntou de novo Jamie.

-Ela é... ela era... uma lavadeira. Lissa... Lissa Garver era seu nome. -O sargento falava mecanicamente, incapaz de apartar a vista do carro-. O que lhe passou?

-Tinha família no povo? Um marido, talvez?

-Esse não é problema dele, não? -disse, olhando fixamente ao Jaime-. Me diga o que lhe aconteceu.

Jamie o olhou sem pestañar.

-Quis desprender-se da criatura e lhe saiu mal –disse tranqüilamente-. Se tinha marido terá que dizer-lhe se não tinha família me ocuparei de que seja enterrada decentemente.

-Tinha a alguém -disse cortante Murchison-. Não precisa ocupar-se você. -esfregou-se a cara com violência, querendo afastar todo sentimento-. Vá a meu escritório, terá que fazer uma declaração.

 

O escritório estava vazio. Sem dúvida o empregado tinha ido procurar seu almoço. Sentei-me a esperar enquanto Jamie se passeava com impaciência.

-Maldita, maldita sorte -resmungou para si-. Tinha que ser Murchison.

-Conhece-lhe bem, não?

Olhou-me com uma careta de ironia.

-Bastante bem. Estava na guarnição da prisão do Ardsmuir.

-Já vejo. -Não podia existir afeto entre eles-. O que crie que faz aqui?

-Por isso sei, veio com os prisioneiros quando os trouxeram para vendê-los. Imagino que a Coroa não acreditou necessário levá-lo de novo a Inglaterra, pois aqui faziam falta soldados. Deveu ocorrer durante a guerra com a França.

-E o que disse sobre seu irmão?

Deixou escapar uma risada sem nenhum humor.

-Eram gêmeos. Chamavam-nos pequeno Billy e pequeno Bobby. Idênticos e não só no físico.

Fez uma pausa ordenando suas lembranças.

-Talvez conheça essa classe de homens que podem ser decentes quando estão sozinhos, mas que quando os juntas com outros como eles se voltam lobos.

-É um pouco cruel com os lobos -disse sonriendo-. Pensa em Cilindro. Mas sei o que quer dizer.

-Uns que quando estão juntos se convertem em animais. Em todos os exércitos há homens assim, porque é assim como funcionam os exércitos. Os homens fazem coisas terríveis quando estão em grupo, coisas que não sonhariam quando estão sozinhos.

-E os Murchison alguma vez estavam sozinhos? -perguntei com calma.

Fez um gesto de assentimento.

-Estavam sempre juntos. Se a gente tinha escrúpulos por algo, o outro não. E quando havia problemas, não se sabia a quem culpar.

Enquanto falava se passeava inquieto.

-Eu... os prisioneiros, podíamos nos queixar de maus entendimentos, mas os oficiais não podiam castigar aos duas por culpa de um e ninguém sabia qual era o que lhe tinha golpeado nas costelas ou lhe tinha feito outras coisas piores.

-Estão os dois aqui? -perguntei.

-Não -disse bruscamente-. Este é Billy. O pequeno Bobby morreu no Ardsmuir.

-Por sua reação suponho que não foi por causas naturais, não é certo? -perguntei.

-Não. -Suspirou e se encolheu de ombros-. Levavam-nos todas as manhãs à pedreira e retornávamos ao anoitecer. Em cada carro foram dois ou três guardas. Um dia, o pequeno Bobby Murchison era o encarregado. Saiu conosco pela manhã mas não retornou de noite. -Olhou de novo pela janela-. Havia um poço muito profundo no fundo da pedreira.

Seu tom indiferente era tão aterrador como o conteúdo da história. Senti um calafrio pese ao calor.

-Você...? -comecei, mas me colocou um dedo sobre os lábios e olhou para a porta.

Um momento depois, ouvi os passos que Jamie já tinha detectado. Era o sargento, não seu empregado. Lançou um olhar ao escritório vazio e procurou uma folha de papel e um tinteiro.

-Escriba -ordenou-. Onde a encontrou e o que aconteceu. Assine-o e ponha a data.

Jamie o contemplou com os olhos entrecerrados, mas não fez nenhum movimento para agarrar a pluma. Era canhoto, mas lhe tinham forçado a escrever com a direita, logo teve o problema nos dedos. Para ele, escrever era uma tarefa lenta e dificultosa e não ia humilhar se ante o sargento.

-Escriba -voltou a ordenar.

Os olhos do Jamie se esgotaram mais ainda se couber. antes de que pudesse responder me levantei e agarrei a pluma de mãos do sargento.

-Eu estive ali, me deixe fazê-lo .

A mão do Jamie se fechou sobre a minha antes de que pudesse molhar a pluma no tinteiro.

-Seu empregado poderá lombriga mais tarde, em casa de minha tia -disse ao Murchison-. Vêem comigo, Claire.

Sem esperar resposta do sargento, agarrou-me do cotovelo e me levantou. Estávamos fora antes de que soubesse o que tinha acontecido. O carro seguia baixo a árvore, mas já estava vazio.

 

-Está a salvo de momento, MAC Dubh, mas que diabos vamos fazer com ela?

Duncan se arranhou a barba. Ian e ele tinham acontecido três dias no bosque até que encontraram à pulseira Poliyanne.

-Não é fácil fazer que se mova -explicou Ian enquanto cortava um pedaço de presunto para dar-lhe a Cilindro-, A pobre mulher quase morre de medo quando Cilindro a farejou; demoramos muitíssimo em conseguir que se levantasse. Tampouco pudemos subi-la ao cavalo. Tive que sustentá-la para que não caísse.

-Temos que afastá-la de algum modo -disse Yocasta com ar pensativo-. Ontem Murchison esteve incomodando de novo na serraria. Farquard Campbell me mandou dizer que tinha estado dizendo que tinha sido um assassinato e que ia pedir homens para procurar à pulseira que o tinha feito.

-Pôde fazê-lo ela? -Ian olhou ao Jamie e a mim-. Quero dizer por acidente.

-Há três possibilidades: acidente, assassinato ou suicídio -pinjente-. Mas há formas muito mais fáceis para suicidarse, pode me acreditar. E não existe motivo para o assassinato, que nós saibamos.

-Seja o que seja -interveio Jamie-, se Murchison apanhar à pulseira a fará pendurar ou açoitar até que mora e para isso necessita um julgamento. Já arrumei com nosso amigo Myers a forma de tirá-la do distrito.

-Arrumou o que com o Myers? -perguntou Yocasta com tom agudo.

Jamie terminou de lubrificar manteiga em uma torrada e a entregou ao Duncan antes de responder.

-Nós levaremos a mulher até as montanhas-dijo-. Myers diz que os índios a acolherão. Conhece um bom lugar para ela, onde estará a salvo do pequeno Billy Murchison.

-Nós? -perguntei amavelmente-. Quais são «nós»?

Sorriu-me com ironia.

-Myers e eu, Sassenach. Preciso conhecer essa zona antes de que chegue o inverno e esta é uma boa oportunidade.

Myers é o melhor guia que posso encontrar.

-Levará-me contigo, verdade, tio? -Ian o olhou com ansiedade-, Necessitará ajuda com essa mulher, me acredite... parece um tonel.

Jamie sorriu a seu sobrinho.

-Sim, Ian. Suponho que poderemos levar outro homem.

-Ejem -disse com expressão maligna.

-Embora seja para que vigie a sua tia, Ian -continuou Jaime me devolvendo o olhar-. Sairemos em três dias, Sassenach..., se Myers pode montar para então.

 

Três dias não era muito tempo mas com a ajuda do Myers e Fedra meus preparativos se completaram sem problemas. Levava uma pequena caixa com remédios e instrumentos e as alforjas estavam cheias de mantimentos, mantas e utensílios de cozinha. O único assunto pendente era o da indumentária. Tinha cruzado as pontas de uma larga bandagem de seda por meu peito, as atando com um nó entre meus seios, e observava o resultado ante o espelho.

-O que é exatamente o que está fazendo, Sassenach? O que é isso, em nome de Deus?

Jamie, com os braços cruzados, estava apoiado na porta me observando com as sobrancelhas arqueadas.

-Estou-me fazendo um sutiã -disse com dignidade-. Não tenho a intenção de cavalgar pelas montanhas levando um vestido e tampouco quero ir com os peitos pendurando. É muito incômodo.

-Suponho-o. -Entrou na habitação e deu uma volta a meu redor mantendo certa distância e observando minhas pernas-. O que é isso?

-Você gosta?

Pus as mãos em meus quadris para me ajustar as calças de couro. O material o tinha conseguido de um dos amigos do Myers no Cross Creek, e Fedra os tinha feito para mim rendo histéricamente enquanto os costurava.

-Não -disse bruscamente-. Não vai com... com...

Fez um gesto sem poder dizer a palavra.

-Calças -terminei-. É obvio que posso, sempre usava calças em Boston. São muito práticos.

-Usava-os pela rua? -disse com incredulidade-. Onde a gente podia verte?

-O fazia -disse com aborrecimento-. Como a maioria das mulheres. por que não?

-por que não? -perguntou escandalizado-. Posso ver a forma de suas nádegas, maldita seja, e a fenda que há entre elas!

-Eu posso ver as tuas também -assinalei-. Vi seu traseiro com calças todos os dias, durante meses, mas ao vê-lo só de vez em quando avancei indecentemente sobre sua pessoa.

Sua boca se crispou sem saber se rir ou não. Aproveitando sua indecisão, aproximei-me e lhe sujeitei a cintura.

-Em realidade, é sua saia a que me faz desejar te atirar ao chão e te violar -disse-lhe-. Mas não lhe sintam mal as calças.

Então riu, inclinou-se e me beijou.

-tira-lhe isso disse, detendo-se para respirar.

-Mas...

-tira-lhe isso repetiu com firmeza. Deu um passo atrás-. Lhe pode pôr isso depois, Sassenach, mas se terá que violar a alguém, sou eu o que deve fazê-lo, não te parece?

 

                                       CAMPOS DE MORANGOS PARA SEMPRE

 

                   Fugir da fúria que vem

Agosto de 7767

Tinham escondido à mulher em um barraco da parte mais afastada dos campos de tabaco do Farquard Campbell. Era pouco provável que alguém o notasse, salvo os escravos do Campbell que sabiam, mas tomamos cuidado em chegar depois do pôr-do-sol.

A mulher se deslizou fora da cabana como um fantasma, encapuzada e envolta como se fora um pacote de contrabando, que é o que era em realidade. Levantou as pernas e tratou de subir ao cavalo. Era evidente que não tinha montado em sua vida. Myers tentou lhe dar as rédeas, mas ela não fez conta. Só juntava as mãos e gemia, aterrorizada.

Os homens se estavam pondo nervosos e olhavam a todas partes, esperando ver aparecer de um momento a outro ao sargento Murchison.

-Que monte comigo -sugeri-. Possivelmente assim se sinta mais segura.

Entre todos a desmontaram com certa dificuldade e a instalaram na garupa de meu cavalo. Cheirava a folhas frescas de tabaco, a narcóticos e a selva. agarrou-se de minha cintura como se lutasse por sua vida. Dava-lhe uma palmada nas mãos mas não se moveu nem deixou escapar nenhum som.

Não era estranho que estivesse aterrorizada, pensei, fazendo avançar a meu cavalo para seguir ao Myers. Era possível que não soubesse nada sobre o escândalo que Murchison tinha desatado no distrito, mas devia ter bastante claro o que lhe aconteceria se a apanhavam; com segurança tinha estado na serraria duas semanas antes.

Como alternativa a uma morte segura era preferível escapar e cair em braços dos corte vermelhas, mas não o tinha muito claro a julgar por seus estremecimentos. A mulher tiritava embora não fazia frio.

Quase me afoga ao me apertar quando Cilindro apareceu entre os arbustos como um demônio do bosque. Passou trotando a poucos centímetros de distância. A mulher ofegou e notei seu cálida respiração em meu pescoço. Toquei-lhe as mãos e lhe falei mas não me respondeu. Duncan havia dito que tinha nascido na África e falava muito pouco inglês, mas seguro que entenderia algumas palavras.

-Tudo sairá bem -pinjente-. Não tenha medo.

Ocupada com o cavalo e a passageira não tinha visto o Jamie, que apareceu de repente tão silencioso como Cilindro.

-Está bem, Sassenach? -perguntou brandamente, colocando uma mão sobre minha coxa.

-Acredito que sim -respondi. Fiz um gesto para as mãos que se aferravam a minha cintura-. Se não morrer afogada.

Jamie olhou e sorriu.

-Bom, ao menos não há perigo de que caia.

-Eu gostaria de poder lhe dizer algo, pobrecita. Está tão assustada... Crie que sabe onde a levamos?

-Não sei.

-Não conhece algum dialeto para lhe falar? -perguntei-. Claro que, se não a trouxeram das Antilhas, é possível que não o conheça.

Observou a minha passageira considerando a situação.

-Ah -disse-. Bem, há uma coisa que todos conhecem, venham de onde venham. -inclinou-se e oprimiu o pé da mulher-. Liberdade -disse e fez uma pausa-. Saorsa. Sabe o que te digo?

A mulher não afrouxou a pressão, mas sua respiração se converteu em um suspiro e me pareceu que assentia com a cabeça.

 

Os cavalos foram em fila, com o Myers à cabeça. O estreito atalho não era nem sequer um caminho para carros, mas ao menos nos permitia passar entre as árvores. Duvidava que o sargento Murchison, cego pela sede de vingança, seguisse-nos tão longe, se é que nos perseguia, mas a sensação de fuga era muito forte para passá-la por alto. Todos compartilhávamos, sem nomeá-la, a penetrante sensação de urgência e sem discuti-lo estávamos de acordo em cavalgar o máximo possível.

Minha companheira tinha perdido o medo ou simplesmente estava muito cansada para preocupar-se. depois de nos deter meia-noite para nos refrescar, permitiu que Ian e Myers a colocassem sobre o cavalo sem protestar. E embora não afrouxou a pressão sobre minha cintura, pareceu dormitar com a frente apoiada em minhas costas.

Detivemo-nos o amanhecer, desensillamos os cavalos, os maneamos e os deixamos comer em um prado. Acomodei-me junto ao Jamie sobre a erva e fiquei dormida.

Dormimos pesadamente enquanto durou o calor do dia e despertamos perto da queda do sol, sedentos e talheres de carrapatos. Estava profundamente agradecida porque os carrapatos compartilhavam com os mosquitos seu desgosto por meu sangue; mas tinha aprendido em nossa viagem ao norte a examinar ao Jamie e aos outros cada vez que dormíamos, já que sempre despertavam com intrusos.

-Puaj! -disse ao examinar um espécime do tamanho de uma uva e particularmente suculento que aninhava no pêlo do braço do Jamie-. Maldição, dá-me medo atirar desta, parece que vá arrebentar.

Jamie se encolheu de ombros enquanto se explorava o couro cabeludo.

-Deixa-a; enquanto te ocupa do resto talvez caia sozinha.

Myers e Ian pareciam arrumar-se as bem ajudando o um ao outro.

-Aqui há uma pequena -disse Jamie e me ensinou uma que tinha debaixo da orelha.

Estava tratando de tirar-lhe quando notei uma presença perto de meu cotovelo.

Quando acampamos estava muito cansada para me ocupar de nossa fugitiva e tinha suposto que não se afastaria.

Mas tinha ido até um arroio próximo e retornava com um balde de água. Deixou-o no chão, bebeu um gole e a cuspiu no braço do Jamie. Logo tirou o parasita com dedos ágeis, deixou-o cair na palma de sua mão, jogou-o com desprezo e se voltou para mim com ar de satisfação.

A imagem que tinha dela era uma bola torcida pela roupa. Mas agora me parecia uma das imagens da fertilidade que tinha visto nas Antilhas. Estendeu a mão e me ensinou uns pequenos objetos.

-Paw-paw -disse com uma voz tão profunda que Myers a contemplou assombrado.

Ela sorriu com acanhamento e disse algo que não entendi, embora soube que era gaélico.

-Diz que não deve tragar as sementes porque são venenosas -traduziu Jamie.

-Sim -assentiu Poliyanne-. Vêem-eno.

enxaguou-se outra vez a boca. Logo mastigou outras duas sementes e se dirigiu para o Myers.

Uma vez que comemos e estivemos preparados para partir, Poliyanne aceitou nervosa que a montassem em seu próprio cavalo. Seguia mostrando-se tímida com os homens, mas logo recuperou a confiança para me falar em uma mescla de gaélico, inglês e seu próprio idioma. Livre, ao menos de momento, do terror e sentindo-se bastante segura em nossa companhia emergiu sua personalidade efervescente e conversou enquanto cavalgávamos cotovelo com cotovelo, rendo de vez em quando e sem preocupar-se de se a entendia.

Só em uma ocasião se mostrou deprimida: quando passamos por um grande claro, onde a erva crescia em uma estranha forma ondulada, como se debaixo houvesse uma enorme serpente. Poliyanne permaneceu em silencio ao ver o lugar atirou das rédeas e deteve o cavalo. Aproximei-me para ajudá-la.

-Droch aite -murmurou, olhando de esguelha. Um mau lugar-. Djudju.

Franziu o sobrecenho e fez um gesto com a mão, algo contra o diabo, pensei.

-É um cemitério? —perguntei ao Myers, quem se tinha aproximado para ver o motivo de nossa parada.

-Eu não diria um cemitério -respondeu empurrando para trás seu chapéu-. Foi uma aldeia tuscarora, acredito. Ali -assinalou- estavam as casas.

-O que aconteceu?

Ian e Jamie também se detiveram para observar o lugar.

Myers, pensativo, arranhou-se a barba.

-Não sei com segurança. Pôde ser uma enfermidade que terminasse com todos eles. Embora o mais provável é que a causa do desaparecimento tenha sido uma guerra. Não é um site no que eu gostaria de ficar muito tempo.

Era evidente que Poliyanne pensava o mesmo.

Ao anoitecer, já tínhamos deixado atrás os pinheiros e os carvalhos das colinas. As árvores começaram a trocar e também o ar e o aroma eram diferentes. O aroma pesado da resina dos pinheiros deu passo a outros mais leves e variados. As folhas das árvores se mesclavam com os arbustos e as flores cresciam entre as gretas das rochas.

Ainda havia muita umidade, mas o ambiente não era tão caloroso.

À posta do sol do sexto dia já estávamos nas montanhas e o ar se enchia com o som da água que corria. Os arroios se entrecruzavam pelos vales escorrendo-se sobre as rochas, arrastando o musgo com o que formavam um delicado bordo verde. Quando dobramos pela ladeira de uma colina me detive surpreendida, de uma montanha distante, uma cascata saltava no ar caindo a um lugar desconhecido.

-Está olhando isso, não? -perguntou Ian, boquiaberto pelo assombro.

-É preciosa -aceitou Myers com a satisfação de um proprietário-. Não é a catarata maior que vi mas é impressionante.

Ian voltou a cabeça com os olhos bem abertos.

-Há-as maiores?

Myers riu com a risada ligeira dos montanheses.

-Moço, ainda não viu nada.

Acampamos para passar a noite em um terreno baixo, perto de um riacho com a corrente suficiente para que houvesse trutas. Jamie e Ian se lançaram para ele com entusiasmo, incomodando aos peixes com varinhas de salgueiro. Esperava que tivessem sorte, pois nossas provisões frescas eram escassas.

Sua natural vitalidade estava um pouco apagada. Imaginei que suas preocupações se deviam, ao menos em parte, a que era a última noite que passaríamos juntos. Tínhamos chegado ao limite das terras do Rei; ao dia seguinte Myers partiria para o norte para levá-la até a terra dos índios, onde veria a vida que lhe esperava.

O que pensaria? Tinha sobrevivido à viagem da África e à escravidão; imaginava que nada do que lhe esperava poderia ser pior.

Cilindro apareceu ante a luz do fogo sacudindo a água em todas direções. Dava-me conta de que se uniu à pesca.

-Vete, cão horrível -pinjente.

É obvio não me fez caso e se aproximou para me farejar grosseiramente, assegurando-se de que eu era quem acreditava, logo se voltou para dar o mesmo tratamento ao Poliyanne.

Sem trocar de expressão, a mulher lhe cuspiu em um olho.

Cilindro retrocedeu e sacudiu a cabeça olhando-a surpreso. Poliyanne me olhou e sorriu zombadora mostrando seus dentes brancos. Ri e decidi que não devia me preocupar. Alguém capaz de cuspir em um olho a um lobo poderia enfrentar-se aos índios, à vida selvagem e a algo.

 

-Nunca tinha visto tal quantidade de peixes -repetia Jamie por décima vez com cara de entusiasmo-. Saltavam pela água. Verdade, Ian?

Ian assentiu com o mesmo entusiasmo.

-Meu pai daria a perna por ver isto -disse-. Saltavam ao anzol, tia, de verdade!

-Os índios normalmente não se incomodam em usar fio e anzol -indicou Myers-. Fazem armadilhas para lhes deter e os pescam com um pau afiado.

Isso foi suficiente para o Ian. Qualquer menção sobre os índios provocava uma série de perguntas ansiosas. Uma vez que terminou de averiguar tudo sobre seus métodos de pesca, insistiu sobre a aldeia abandonada que tínhamos visto durante a viagem.

-Você disse que podia ter sido por causa da guerra –disse enquanto tirava os espinhos de uma parte de pescado quente e o dava a Cilindro, que o tragou sem esperar a que se esfriasse-. Foi na guerra com os franceses? Não sabia que tinham chegado tão ao sul.

-Não. -Myers negou com a cabeça-. Eu me referia à guerra da Tuscarora, como a chamávamos os brancos.

Explicou-nos que a guerra tinha consistido em um curto mas brutal conflito, ocorrido uns quarenta anos antes a causa do ataque contra uns colonos. O então governador da colônia enviou tropas como represália contra as aldeias tuscarora e o resultado foi que os colonos, muito melhor armados, devastaram a nação tuscarora.

-Agora só ficam sete aldeias e só na maior a população alcança os cem habitantes. -Fez um gesto de tristeza e nos explicou que não se extinguiram porque os mohawk os tinham adotado formalmente e agora formavam parte da poderosa liga iroquesa.

-por que os adotaram os mohawk? -perguntou Jamie-. Se forem tão ferozes como dizem não acredito que precisassem aliados.

-São ferozes, mas também são mortais. Os índios som homens sanguinários e também homens de honra -disse-, há grande quantidade de coisas pelas que matariam, algumas razoáveis e outras nem tanto. Matam por vingança e a única forma de deter a vingança de um mohawk é acabar com ele. Inclusive então, seu irmão, seu filho ou seu sobrinho lhe perseguirão.

passou-se a língua pelos lábios saboreando o uísque.

-Algumas vezes, os índios não matam por razões que nós consideramos importantes, especialmente quando há licor por meio.

-Parecem escoceses -murmurei ao Jamie, quem me devolveu um olhar cheia de frieza.

Myers levantou a garrafa de uísque e a fez girar entre suas mãos.

-Em ocasiões qualquer pode tomar um gole de mais e converter-se no pior dos homens, mas com os índios o primeiro gole já é suficiente. ouvi relatos de matanças por causa de homens enlouquecidos pela bebida.-Sacudiu a cabeça-. Dessa maneira, algumas tribos são virtualmente aniquiladas. Então adotam a outros para substituir aos que mataram ou morreram vítima de enfermidades. Outras vezes agarram prisioneiros, mas terminam por integrá-los em suas famílias e tratando-os como a iguais. É o que farão com ela -disse assinalando ao Poliyanne, que estava sentada ao lado do fogo sem emprestar atenção a seu bate-papo.

-Você fala mohawk, senhor Myers? -perguntou Ian.

-um pouco. —Myers se encolheu de ombros com modéstia-, Qualquer comerciante aprende umas poucas palavras aqui e lá.

-E ao Poliyanne pensa levá-la com os tuscarora? -perguntou Jamie enquanto cortava uma torta de milho.

-Estraga. São quatro ou cinco dias a cavalo -explicou Myers. voltou-se para mim e me sorriu para me dar confiança-. Ocuparei-me de deixá-la no lugar adequado, senhora Claire. não se preocupe com ela.

-Pergunto-me o que pensarão os índios quando a virem -disse Ian, olhando de esguelha à mulher-. Terão visto antes a uma mulher negra?

Myers riu ante a pergunta.

-Moço, há muitos tuscarora que não viram antes a uma pessoa branca. Poliyanne não causará mais impressão da que poderia causar sua tia e acredito que a encontrarão muito agraciada, porque gostam das mulheres gordinhas.

Era evidente que Myers compartilhava essa admiração, pois seus olhos a observavam com uma inocente luxúria. Ela também se deu conta e se produziu uma mudança extraordinária. Quase sem mover-se, centrou toda sua atenção no Myers, que tragava saliva ruidosamente.

Apartei a vista da cena e descobri que Jamie também olhava, entre preocupado e risonho. Dava-lhe uma cotovelada e o olhei com uma expressão que indicava: «Deve fazer algo!».

Então Jamie se esclareceu garganta, inclinou-se para diante e sacudiu o braço do Myers para tirar o de seu transe.

-Eu não gostaria de pensar que vão ter uma conduta imprópria com esta mulher -disse amavelmente, mas sublinhando a palavra «imprópria»-. Você garantirá sua segurança, verdade, senhor Myers ?

Myers sacudiu a cabeça sem compreender até que se deu conta do que lhe estava dizendo Jamie.

-Não! Quer dizer, sim. Os mohawk e os tuscarora deixam que suas mulheres escolham com quem deitar-se, inclusive com quem casar-se. Não existe a violação entre eles. Não, senhor, ninguém a tratará de forma imprópria, posso prometê-lo.

-Alegra-me ouvir isso.

Jamie me dirigiu um olhar que dizia: «Espero que esteja satisfeita». Lhe sorri com modéstia.

-Tio, o senhor Myers teve a amabilidade de me convidar a que vá com ele e a senhora Polly à aldeia a Índia. Assim me assegurarei de que a tratem bem.

-Você... -começou Jamie e se deteve.

Olhou-o de tal forma que podia ler seus pensamentos. Ian não tinha pedida permissão para ir; tinha anunciado diretamente que ia. Se Jamie o proibia teria que ser por um motivo de peso; se lhe dizia que era muito perigoso, significaria admitir que mandava à pulseira para o perigo e que não confiava no Myers e suas relações com os índios locais. Jamie estava apanhado; Ian tinha sabido fazê-lo muito bem.

Respirou ruidosamente e Ian sorriu.

Olhei ao outro lado do fogo. Poliyanne seguia ali, com os olhos cravados no Myers. Com um sorriso de convite, subiu lentamente uma mão até um de seus grandes seios com ar ausente.

Myers a contemplava enjoado, como um cervo assanhado pelo caçador.

Eu teria obrado de forma diferente?, pensei mais tarde, escutando os discretos ruídos que provinham das mantas do Myers. Se soubesse que minha vida dependia de um homem, não faria algo para me assegurar seu amparo frente a um perigo desconhecido?

Jamie me abraçou e voltou a ficar dormido. Possivelmente não havia grande diferencia. Era meu futuro mais seguro que o seu? Acaso minha vida não dependia de um homem ligado a mim, ao menos em parte, pelo desejo de meu corpo?

Não, não era o mesmo, havia diferenças. Por mais desconhecido que fora meu futuro, os laços entre o Jamie e eu eram muito mais profundos que os da carne. Havia outra grande diferencia: eu tinha eleito estar ali.

 

                   Nobres selvagens

Separamo-nos pela manhã. Jamie e Myers acordaram como nos reencontrar ao cabo de dez dias. Ao observar a assombrosa imensidão daqueles bosques e montanhas não pude imaginar como alguém podia encontrar um lugar determinado; só podia confiar no sentido de orientação do Jamie.

foram-se para o norte e nós para o sudoeste, seguindo o curso do arroio junto ao que tínhamos acampado.

Ao princípio todo parecia muito tranqüilo e extrañamente solitário. Mas em pouco tempo me acostumei à solidão e comecei a me relaxar e a me interessar pelo que nos rodeava.

depois de tudo, este poderia ser nosso lar.

-Sabe que não tinha visto uma vaga-lume até que fui viver a Boston? -pinjente, entusiasmada ao as ver brilhando como esmeraldas na erva-. Não há vaga-lumes em Escócia, verdade?

Jamie fez um gesto negativo, e se reclinou perezosamente sobre a erva, com um braço dobrado baixo a cabeça.

-Bonitas e pequenas -observou e suspirou de felicidade-. Este é meu momento favorito do dia. Quando vivia na cova, depois do Culloden, saía perto do anoitecer e me sentava em uma pedra a esperar que obscurecesse.

Tinha os olhos entrecerrados, observando as vaga-lumes.

-É só um momento, mas se sente como se fora a durar sempre. Estranho, não? -disse pensativo-. Quase pode ver a luz que se vai e entretanto não há um momento em que possa olhar e dizer: Agora! Já é de noite!

Fez um gesto para o claro que se abria entre as árvores.

-Lembra-te do pai Anselmo da abadia? -Levantei a vista e vi que a cor das folhas dos carvalhos se ia convertendo em um suave prateado-. Dizia que sempre há um momento do dia em que o tempo parece deter-se, mas que é diferente para cada pessoa. Ele pensava que podia ser a hora em que alguém tinha nascido.

Voltei a cabeça.

-Sabe quando nasceu? -perguntei-. Refiro-me à hora do dia.

Sorriu e se deu a volta para me olhar à cara.

-Sim, sei. Talvez tenha razão, porque nasci na hora do jantar, justo no crepúsculo de primeiro de maio. A que hora nasceu você, Sassenach?

-Não sei -respondi, sentindo a dor por minha família perdida-. Não estava em meu certidão de nascimento, e se o tio Lamb sabia, não me disse isso. Mas sei quando nasceu Brianna -acrescentei com alegria-. Nasceu às três e três minutos da madrugada. Havia um grande relógio na parede da sala de partos e me fixei.

face à pouca luz pude ver sua cara de surpresa.

-Estava acordada? Acreditei que me havia dito que às mulheres as drogam para que não sintam a dor.

-Quase sempre, mas eu não quis que me dessem nada.

-por que? -quis saber, incrédulo-. Nunca vi a uma mulher dar a luz, mas as ouvi em mais de uma ocasião. E maldita seja se entender por que alguém em seu são julgamento quer acontecer por isso.

-Bom... -Fiz uma pausa porque não desejava me pôr melodramática. Mas era a verdade-. Acreditava que ia morrer e não queria que ocorresse enquanto dormia.

Não se impressionou. Arqueou uma sobrancelha e soprou divertido.

-Você tivesse querido?

arranhou-se o nariz ainda divertido.

-Bom, quando me foram pendurar estive perto da morte e eu não gostei da espera. E quase me matam um par de vezes na batalha, mas então não me preocupava muito a forma de morrer, estava muito ocupado. E finalmente quase morro pelas feridas e a febre; então o desejava. Mas se me dão a escolher acredito que não me importaria morrer enquanto durmo. -Beijou-me brandamente-. Se for possível na cama, a seu lado e a uma idade muito avançada.

Tocou-me os lábios com sua língua e logo ficou em pé limpando-as folhas secas dos calções.

-vamos preparar a fogueira agora que ainda há luz para acender o pederneira. Quer trazer o pescado?

Coloquei o pescado molhado sobre a erva e me sentei sobre meus talões observando ao Jamie.

-Como crie que será? -perguntei de repente-. Morrer, refiro-me. «O homem é como a erva que se murcha e é jogada no fogo, é como as faíscas que voam para cima...» -citei com suavidade-. Crie que haverá algo depois?

-Não sei —disse finalmente-. Por um lado está o que diz a Igreja, mas... -Seus olhos seguiam fixos nas vaga-lumes-. Não, não posso dizê-lo, mas poderia estar bem.

Apertou sua bochecha contra minha cabeça e logo se levantou.

Eu também acreditava que poderia estar bem. Não sabíamos o que havia depois da vida, mas podia ser algo cheio de paz...

Jamie roçou meu ombro com sua mão e sorri sem abrir os olhos.

-Ai! -murmurou Jamie-. Cortei-me, sou um torpe.

Abri os olhos. Estava a um metro e meio de distância com a cabeça inclinada chupando o polegar que se cortou. Me pôs a carne de galinha.

-Jamie-disse.

Minha voz soou estranha inclusive a meus ouvidos.

-Sim?

-Há...? -Traguei saliva e o pêlo dos braços me arrepio-. Jamie, há alguém... algo... detrás de mim?

Seus olhos se fixaram nas sombras e se abriram surpreendidos. Não queria olhar por cima de meu ombro e me esmaguei contra o chão em um gesto que me salvou a vida.

Algo me golpeou nas costas e pisou em minha cabeça. Um grande urso negro se cambaleava pelo claro e suas patas pulverizavam os pequenos ramos da fogueira.

Médio cegada consegui ver o Jamie baixo o urso, que o cucaba o cangote com uma pata. Jamie tinha a cabeça baixo as fauces e tentava freneticamente apoiar um pé no chão. tirou-se as botas e as meias quando acampam e deixei escapar um gemido quando vi que um dos pés descalços pisava nos restos do fogo, levantando as brasas.

O urso arremetia tratando de livrar do peso que lhe pendurava do pescoço. Pareceu perder o equilíbrio e caiu pesadamente. Ouvi uma exclamação que não provinha do urso enquanto procurava enlouquecida algo que pudesse utilizar como arma. O urso ficou em pé agitando-se com violência e vi o rosto do Jamie deformado pelo esforço.

-Corre! -gritou.

O urso caiu outra vez sobre ele e desapareceu baixo cento e cinqüenta quilogramas de cabelo e músculos.

Com vagas lembranças do Mowgli e a Flor Vermelha, procurei no chão sem encontrar mais que ramitas inofensivas; então minha mão se deteve sobre algo frio e viscoso: o pescado abandonado a um lado.

-Ao diabo com Flor Vermelha -murmurei.

Agarrei uma das trutas pela cauda, corri e golpeei ao urso no focinho com todas minhas forças; este fechou a boca surpreso, torceu a cabeça e se lançou sobre mim a uma velocidade que não tinha acreditado possível. Retrocedi e tentei dar um último e valente golpe com o pescado antes de que o urso carregasse contra mim, com o peso morto do Jamie ainda pendurando de seu cangote.

Foi como ficar apanhada em um moinho de carne, naquele momento só sentia alguns golpes no corpo e a sensação de que me afogava uma enorme manta peluda. Logo se separou, me deixando atirada de costas, impregnada de aroma de urina de urso e piscando baixo o luzeiro da tarde que brilhava serenamente sobre minha cabeça.

Estava escuro, mas havia suficiente luz no firmamento para ver o que acontecia. O urso tinha cansado outra vez, mas em lugar de levantar-se rodava o lombo tratando de sujeitar-se com as patas. Ouvi um grunhido que não era do urso e me chegou o aroma do sangue.

-Jamie! -chiei.

Não recebi resposta. A massa que se contorsionaba continuava rodando para as árvores. Lentamente, respirando de forma entrecortada e entre grunhidos, Jamie saiu engatinhando para o claro. Sem me preocupar com os golpes recebidos corri para ele e caí de joelhos.

-Jamie! Está bem?

-Não -disse desabando-se em terra entre suaves ofegos.

-Cheira a matadouro -pinjente, enquanto lhe buscava o pulso no pescoço. Estava acelerado mas era forte. Uma onda de alívio me alagou-. O sangue é tua ou do urso?

-Se fosse minha, Sassenach, já estaria morto -disse, abrindo os olhos-. Embora se não o estou, não é graças a ti. -apoiou-se como pôde sobre suas mãos e joelhos, com um grunhido-. por que me golpeou com a truta enquanto lutava por minha vida?

-te esteja aquieto, caramba! -Não podia estar muito mal ferido se tratava de mover-se. Apalpei-lhe o torso-, Costelas rotas? -perguntei.

-Não. Mas se me faz cócegas, Sassenach, não me vai gostar -disse ofegando-. Estou bem, Sassenach -disse enquanto rechaçava meus intentos para lhe ajudar a sentar-se-. vá ver os cavalos, devem estar inquietos.

À lombriga relincharam encantados, em que pese a meu aroma de urina de urso. Das sombras chegavam uns gemidos quase humanos que me arrepiavam o pêlo da nuca. Quando terminei de acalmar aos cavalos, os gemidos já tinham cessado. Levei-os a claro do bosque, onde Jamie tinha aceso de novo o fogo.

-De verdade não está mal ferido? -perguntei, ainda preocupada.

Dirigiu-me um sorriso torcido.

-Golpeou-me nas costas mas não acredito que seja muito grave. Quer olhá-lo? -endireitou-se, estremecendo-se pela dor. Pergunto-me por que o terá feito -disse, movendo a cabeça para o cadáver do urso-. Myers disse que os ursos negros não atacam se não serem provocados.

-Talvez alguém o fez -sugeri-. E logo teve o bom sentido de escapar.

Despi suas costas e deixei escapar um assobio ante as marcas produzidas pelas garras do urso.

-Tão mal está?

Jamie tratou de ver-se-a, mas se deteve com um grunhido de dor.

-Não, mas está muito suja, terei que te lavar. –Coloquei uma panela com água no fogo, pensando o que outra coisa podia usar-. vou procurar uma planta de sagitária. Acredito que encontrarei alguma no arroio. -Alcancei-lhe a garrafa de cerveja e agarrei sua faca-. Estará bem?

Estava muito pálido e ainda tremia.

-Sim. Não se preocupe, Sassenach, a idéia de morrer dormindo em minha cama me parece mais doce agora que faz uma hora.

A lua se elevava brilhando sobre as árvores, o que me permitiu encontrar o lugar sem problemas. Meti-me na água geada para arrancar a planta, lavei-me a cara e retornei para o fogo me sentindo algo melhor.

Podia ver o Jamie sentado muito erguido, em uma postura que devia resultar dolorosa para suas feridas. Detive-me de repente, para ouvir sua voz.

-Claire? -Não voltou a cabeça; sua voz era tranqüila e não esperou minha resposta para continuar falando-. Te aproxime, Sassenach, coloca a faca em minha mão esquerda e fica aquieta.

Com o coração acelerado, dava os três passos que me permitiam ver por cima do Jamie. Ao outro lado do claro, dentro do rádio de luz do fogo, três índios bem armados permaneciam imóveis. Era evidente que o urso tinha sido provocado.

 

Os índios nos contemplavam com o mesmo interesse que nós a eles. Eram três, um maior e dois mais jovens, de uns vinte anos. «Um pai com seus filhos», pensei, pelo parecido que havia entre eles.

Observei suas armas com dissimulação. O major levava um antigo fuzil francês, daqueles que funcionavam com pederneira. Parecia que lhe exploraria na cara se disparava, mas confiei em que não o faria.

Um dos jovens levava um arco com flechas e os três tinham tochas de guerra de aspecto sinistro e largas facas no cinturão. Em comparação, o do Jamie parecia de brinquedo.

Certamente Jamie chegou à mesma conclusão que eu, porque se inclinou para diante e deixou a faca no chão, a seus pés. Logo estendeu as mãos vazias e se encolheu de ombros.

Os índios -lançaram umas risitas nervosas. O ruído era tão inofensivo que sorri a modo de resposta, em que pese a que meu estômago seguia encolhido pelos nervos. Quando vi que os ombros do Jamie se relaxavam me senti mais segura.

-Bonsoir, messieurs -disse-. Parlez-vous francais?

Os índios riram outra vez, olhando-se entre eles com acanhamento. O major avançou um passo e inclinou a cabeça.

-Não... francs —disse.

-Inglês? -perguntei esperançada.

Olhou-me interessado mas negou com a cabeça. Disse algo ininteligível a um dos jovens, que lhe respondeu no mesmo idioma. Logo se dirigiu ao Jamie e lhe perguntou algo arqueando as sobrancelhas.

Jamie sacudiu a cabeça sem entender, então um dos jovens assinalou a camisa manchada de sangre com gesto de interrogação.

-Sim, está ali -disse Jamie, assinalando o urso.

Sem mais pergunta desapareceram na escuridão, de onde nos chegaram suas exclamações de excitação.

-Não passa nada, Sassenach. Não nos farão mal, são caçadores. -Fechou os olhos e vi como o suor lhe cobria o rosto-. É uma sorte porque acredito que vou deprimir me.

-Nem o pense. Não te atreva a te deprimir e me deixar reveste com eles! -Fiz que baixasse a cabeça e respirasse profundamente-. Agora te endireite, que já voltam.

Retornaram arrastando o cadáver do urso. Jamie se secou o suor com um lenço. Seguia tremendo apesar da calidez da noite.

O índio major se aproximou de nós e assinalou primeira a faca do Jamie e logo o urso morto. Jamie assentiu com modéstia.

O índio inclinou a cabeça e estendeu as mãos em um gesto de respeito. Chamou um dos jovens, o qual se aproximou tirando uma bolsita de seu cinturão enquanto me apartava sem cerimônias e abria a camisa do Jamie para ver suas feridas. Derrubou a bolsa na palma de sua mão; caiu um pó grumoso sobre o que cuspiu copiosamente e aplicou a mescla nas feridas.

 

                   A primeira lei da termodinâmica

Despertei bruscamente depois de amanhecer, com picores na cabeça. Sem abrir os olhos investiguei com a mão. O movimento assustou a uma gralha que tinha estado me arrancando alguns cabelos. Arranhei-me e não pude evitar um sorriso recordando as vezes que me haviam dito que, quando me levantava, minha cabeça parecia um ninho de pássaros.

Os índios tinham desaparecido e com eles a cabeça do urso.

Meu pente estava na bolsita de pele de ante onde tinha meus objetos pessoais e algumas remédios de primeira necessidade. Sentei-me com cuidado para não despertar ao Jamie.

Estava deitado sobre suas costas, com as mãos cruzadas, tão pacífico como a efígie de um sarcófago. A oportunidade de ver dormir não era muito freqüente. Dormia como um gato, preparado para saltar ante qualquer ameaça. Habitualmente se levantava o amanhecer, enquanto eu ainda flutuava em sonhos.

Por uma vez não tinha pressa. Não tinha que alimentar um menino, nem vestir e mandar à escola a uma criatura, nem me esperavam no trabalho pacientes ou informe que escrever.

Meus cabelos roçavam minhas costas nua com um agradável comichão. Sonriendo me dava conta de que não o tinha imaginado. Estava segura de não me haver tirado a roupa ao me deitar. Levantei a manta e vi marcas de sangue seca em minhas coxas e no ventre. Sentia umidade entre as pernas. Passei-me um dedo e encontrei algo leitoso, com um aroma que não era o meu. Isso foi suficiente para recordar o que acreditava que tinha sido um sonho. Um enorme urso sobre meu corpo, o terror, a imobilidade e as suaves carícias, muito estranhas para ser as de um animal. E logo, em um momento de consciência, uma pele nua tocando a minha até chegar ao clímax, para finalmente me deslizar para o mundo dos sonhos com um suave ronco escocês em meus ouvidos.

-É normal que ainda durma -disse com tom acusador.

Não abriu os olhos, mas um suave e lento sorriso cruzou sua cara como resposta.

 

Os índios tinham deixado uma parte da carne do urso envolta em sua pele oleosa e pendurada dos ramos de uma árvore para que não perigasse ante as mofetas e os mapaches. Depois do café da manhã e de um apressado banho no arroio, Jamie estudou o rumo a seguir.

-Iremos para ali -disse, assinalando um distante pico azulado-. Vê como se marca um desfiladeiro? Ao outro lado está a terra dos índios; a nova linha do Tratado segue essa cordilheira.

-Realmente alguém fez um reconhecimento do terreno?

Escrutinei com incredulidade as montanhas que se elevavam ante nós dos vales. Entre a névoa da manhã surgiam como uma série interminável de miragens, com cores que foram do negro esverdeado ao azul e ao púrpura, os picos mais longínquos pareciam agulhas negras atravessando um céu de cristal.

-Sim. -Fez voltar-se para seu cavalo para que o sol lhe desse nas costas-. Têm que havê-lo feito para poder dizer com segurança qual é a terra que pode utilizar-se. Informei-me dos limites antes de que saíssemos do Wilmington e Myers me disse o mesmo: «O território que se situa a este lado da crista mais alta». Também o perguntei aos moços que jantaram conosco ontem à noite, só para estar seguro de que eles também sabiam. -Sorriu-me-. Lista, Sassenach?

-Mais que nunca -assegurei-lhe.

Tinha lavado sua camisa ou o que ficava dela no arroio e agora se secava baixo sua cadeira de montar. Ia semidesnudo, com as calças de couro e a capa atada à cintura, as largas cicatrizes deixadas pelo urso não estavam inflamadas e, pela forma em que se movia, ferida-las não deviam lhe doer.

Seu ânimo melhorava mais e mais enquanto nos afastávamos da planície. Não podia deixar de compartilhar sua alegria, mas ao mesmo tempo sentia um terror crescente pelo que aquilo podia significar.

No meio da amanhã chegamos às ladeiras. Estavam tão mastreadas que não se podia avançar. Para cima se via uma rocha quase vertical e ante ela um labirinto de ramos salpicados com cores douradas, verdes e castanhos. Atamos os cavalos perto de um arroio com a borda coberta de erva e seguimos a pé para diante e para cima, entrando naquele maldito bosque primitivo.

Alcançamos o topo de uma colina e encontramos outro ante nós e outro mais à frente. Não sabia o que estávamos procurando.

Seguimos pelo caminho, até encontrá-lo bloqueado por um bosquecillo de louros silvestres que, a certa distância, parecia um claro brilhante entre as coníferas escuras, mas de perto resultou possuir de uma maleza impenetrável.

Retrocedemos e baixamos. Baixo a sombra das árvores corria ar fresco e suspirei aliviada. Jamie me ouviu e se voltou sonriendo enquanto sujeitava um ramo para me deixar passar. O terreno estava talher de uma grosa capa de folhas e os espaços entre as árvores tinham um ar fantástico, como se o passar entre os troncos enormes pudesse nos transportar, de repente, a outra dimensão da realidade.

O cabelo do Jamie brilhava com os ocasionais raios de sol, como uma tocha que me iluminava para seguir através das sombras do bosque.

Subimos por um saliente de granito coberto de musgo e líquenes, seguimos o curso de um arroio que baixava, apartando as ervas altas que se enredavam em nossas pernas e esquivando os ramos de louros silvestres e de rododendros.

A nosso passo surgiam maravilhas: pequenas orquídeas e cogumelos brilhantes, vermelhos e negros, entre os troncos cansados.

As libélulas revoavam sobre a água como jóias que se desvaneciam na névoa.

Senti-me enjoada pela abundância e cativada pela beleza. O rosto do Jamie tinha a expressão de um homem que sabe que está sonhando e não deseja despertar. Paradoxalmente, enquanto melhor me sentia, também me sentia pior; contente e assustada. Este era o site do Jamie e seguro que ele o sentia tão bem como eu.

Pela tarde nos detivemos cedo para descansar e beber de um pequeno arroio que atravessava um claro do bosque. A terra baixo os arces estava coberta por uma grosa capa de folhas cor verde escura, entre as que divisei um súbito brilho vermelho.

-Morangos selvagens! -exclamei encantada.

Eram pequenas e de cor vermelha escura. Para as pautas da horticultura moderna resultavam muito azedas, quase amargas; mas depois da carne fria de urso e as duras tortas de milho resultavam deliciosas; uma fresca explosão de sabor em minha boca, e doces espetadas em minha língua.

Jamie apoiou as costas em um sicómoro e fechou os olhos ante o resplendor do sol da tarde. O pequeno claro retinha a luz como uma taça, limpa e tranqüila.

-O que te parece este lugar, Sassenach? -perguntou.

-Acredito que é muito belo. Não te parece?

Assentiu olhando entre as árvores.

-Estive pensando -disse Jamie, um pouco incômodo-. Há um arroio aqui no bosque. Essa pradaria daí abaixo... -Assinalou a cortina de alisos que protegiam a crista da verde ladeira-. Ao princípio serviria para uns poucos animais, logo a terra próxima ao rio poderia ser preparada para o cultivo. A elevação do terreno é adequada para uma boa drenagem. E ali...

Apanhado por suas visões ficou em pé assinalando algo. Olhei com cuidado; para mim, o lugar se diferenciava muito pouco de outros pelos que tínhamos passado nos últimos dias. Mas para o Jamie, com seus olhos de granjeiro, as casas, os currais e os campos semeados surgiam como os duendes dos cogumelos à sombra das árvores.

-Está pensando em que poderíamos nos estabelecer aqui? Aceitar a oferta do governador?

Olhou-me, detendo bruscamente suas especulações.

-Poderíamos -respondeu-. Sim...

interrompeu-se e me olhou de soslaio. Estava vermelho, mas naquele momento não tivesse podido dizer se era pelo sol ou o rubor do acanhamento.

-Crie nos signos, Sassenach?

-Que classe de signos? -perguntei com cautela.

Como resposta se inclinou, recolheu uma planta e a depositou em minha mão: as folhas eram verdes como pequenos leques, a flor branca com o caule magro e havia um morango a ponto de maturar.

-Estes. São os nossos, vê-o?

-Nossos?

-Quero dizer dos Fraser -explicou-. Os morangos sempre foram o emblema do clã. É o que significa o nome desde que Monsieur Fréseliére chegou da França com o rei Guillermo e recebeu, por seu trabalho, as terras nas montanhas de Escócia.

-Então, fostes guerreiros desde o começo?

-E também granjeiros.

A dúvida de seus olhos se transformou em sorriso.

Não disse o que estava pensando, mas lhe conhecia o suficiente para saber a idéia que cruzava sua mente. Já não havia clã Fraser, a não ser fragmentos disseminados, aqueles que tinham sobrevivido escapando. Os clãs tinham sido esmagados no Culloden e seus chefes sacrificados na batalha ou justiçados posteriormente.

Sorri-lhe lutando contra meu crescente desalento.

-Fréseliére, né? Senhor Strawberry? Cultivou-as ou somente gostava de comer-lhe

-Pelo um, pelo outro ou por ambas as coisas -respondeu com secura-. Ou talvez porque era ruivo.

Ri e ficou em cuclillas junto a mim.

-É uma planta extraordinária -disse, tocando o broto sobre minha mão aberta-. Flores, frutos e folhas, tudo junto ao mesmo tempo. As flores brancas são pela honra, a fruta vermelha pelo valor e as folhas verdes pela fidelidade.

Olhei-o com um nó na garganta.

-O fruto tem a forma de um coração -disse brandamente e me beijou.

Uma lágrima começou a rodar por minha bochecha. Jamie a secou, levantou-se, tirou-se a roupa e me sorriu, totalmente nu.

-Não há ninguém aqui –disse-. Ninguém salvo nós.

Poderia lhe haver dito que isso não era uma razão, mas sabia o que queria me dizer.

-No passado, os homens o faziam para fertilizar os campos -disse, me dando a mão para que me levantasse.

-Não vejo semeados.

E não estava segura de desejar que os houvesse alguma vez.

De todos os modos, tirei-me a roupa enquanto Jamie me olhava com gosto.

-Bom, não há dúvida de que primeiro deverei cortar umas poucas árvores. Mas isso pode esperar, não?

Fizemos uma cama com a capa e o manto e nos deitamos nus entre as ervas amarelas e o aroma dos morangos silvestres.

-E o que seria do Éden sem a serpente? -murmurei.

Seus olhos eram uns triângulos azuis, tão próximos que podia ver o negro de suas pupilas.

-Quereria comer comigo, mo chridhef O fruto da árvore do Bem e do Mal?

Tirei a língua e passei a ponta por seus lábios. estremeceu-se entre meus braços.

-Je suis prest, Monsieur Fréseliére -pinjente.

Inclinou a cabeça e sua boca se apoderou de um de meus mamilos, como se fora um dos morangos.

-Madame Fréseliére -sussurrou-. Je suis a votre service.

E então compartilhamos a fruta e as flores e as folhas verdes o cobriram tudo.

 

Permanecemos adormecidos até que as primeiras sombras tocaram nossos pés. Jamie se incorporou devagar e me tampou com a capa acreditando que estava dormida.

Dava-me a volta e o vi pouca distância dali, no limite do bosque, olhando o terreno em declive que ia para o rio

Sua única vestimenta era a capa sujeita à cintura. Com o cabelo solto sobre os ombros luzia como o selvagem highlander que era. O que tinha pensado que era uma armadilha para sua família e seu clã, era sua força. E o que tinha pensado que era minha força, minha solidão e minha falta de laços, era minha debilidade.

Havia resolvido não dizer nada, viver o momento e aceitar o que viesse. Mas o momento era este e não podia aceitá-lo. Vi que baixava a cabeça com determinação ao mesmo tempo que vi seu nome gravado na fria lápide. O terror e o desespero se apoderaram de mim.

Como se tivesse ouvido o eco de meu pensamento, voltou a cabeça para mim. O que fora que viu em meu rosto lhe fez aproximar-se apressadamente.

-O que acontece, Sassenach?

Não tinha sentido mentir, não quando podia lombriga.

-Tenho medo -estalei.

Olhou para detectar o perigo enquanto sua mão procurava a faca, mas lhe sujeitei o braço.

-Não é isso, Jamie. me abrace, por favor.

-Tudo está bem, a nighean donn -murmurou-. Estou aqui. O que é o que te assusta?

-Você -pinjente e me apertei com mais força. Seu coração ressonava baixo meu ouvido, forte e constante-. Dá-me medo pensar em ti, aqui, em nós vivendo...

-Medo? -perguntou-. Do que, Sassenach? -Seus braços me sustentaram com força-. Disse-te quando nos casamos que sempre te cuidaria. Dava-te três coisas aquele dia -disse brandamente, apertando minha cabeça contra seu ombro-. Meu nome, minha família e o amparo de meu corpo. Terá essas três coisas sempre, Sassenach, enquanto os duas estejamos com vida. Não importa onde. Não deixarei que passe fome nem fria, nem deixarei que nada te faça mal, nunca.

-Não tenho medo de nada disso -pinjente bruscamente-. Tenho medo de que morra; não poderei suportá-lo, Jamie. Não poderei!

tornou-se para trás surpreso e me olhou à cara.

-Bom, farei o que possa, Sassenach -disse-, mas já sabe que não tudo depende de mim nesse assunto.

Seu rosto estava sério, mas um lado de sua boca se curvava sem poder reprimi-lo.

-Não te ria! -pinjente furiosa-. Não te atreva a rir !

-Não, não o faço -assegurou-me, tratando de ficar sério.

-Está-o fazendo!

Golpeie-lhe no peito. Então começou a rir e eu segui lhe dando golpes com os punhos fechados.

-Sassenach, viu-me perto da morte uma dúzia de vezes e não te moveu um cabelo. por que está assim agora, quando nem sequer estou doente?

-Alguma vez me moveu um cabelo? -Observei-lhe com surpresa e fúria-. Acreditava que não me importava?

-Ah, bom, é obvio que sei que te importava. Mas nunca o pensei dessa maneira, admito-o.

-É obvio que não! E se o tivesse feito não teria havido diferença. É um... um... escocês!

Era a pior coisa que podia pensar em lhe dizer. E me apartei furiosa.

Mas, desgraçadamente, cravei-me algo no pé descalço e quase me caio ao tratar de me tirar o espinho. Uma mão forte me sujeitou o cotovelo.

Com toda dignidade comecei a me vestir enquanto Jamie me observava com os braços cruzados, sem fazer comentários.

-Quando Deus expulsou ao Adão do Paraíso, ao menos Eva se foi com ele -pinjente, falando comigo mesma.

-Estraga, isso é certo -disse depois de uma pausa cautelosa-, Né, não terá comido alguma das novelo que recolheu esta manhã, não? Suponho que não -acrescentou ao ver minha expressão-. Só me perguntava isso. Myers disse que algumas provocam pesadelos terríveis.

-Não tenho pesadelos -disse com mais firmeza da necessária.

Tinha-as, embora as novelo alucinógenas não tinham nada que ver.

Jamie suspirou.

-Quer me dizer do que está falando, Sassenach, ou prefere me fazer sofrer um pouco?

-Estou falando de ti -pinjente.

-por que?

-Porque é um maldito highlander com todas essas idéias sobre a honra, o valor e a fidelidade; sei que não pode evitá-lo e eu tampouco quero que o faça. Só que, maldição, isso te vai levar a Escócia, onde morrerá e não poderei fazer nada para evitá-lo.

-Escócia? -perguntou, como se houvesse dito uma loucura.

-Escócia! Onde está sua maldita tumba!

-Ah! -disse-. Já vejo. Crie que se for a Escócia, morrerei, já que ali está minha tumba. É isso?

Assenti, muito turvada para falar.

-Mmm. E por que pensa que vou a Escócia?

-E de onde diabos vais tirar colonos para estas terras? É obvio que irá a Escócia! Olhou-me. Esta vez o zangado era ele.

-Como pensa que poderia fazê-lo, Sassenach? Pude fazê-lo quando tinha as pedras preciosas. Mas agora? Talvez tenha dez libras a meu nome e som emprestadas. Irei voando como um pássaro? Trarei às pessoas caminhando sobre a água?

-Já pensará em algo -pinjente me sentindo uma desgraçada-. Sempre o faz.

-Não me tinha dado conta de que pensava que eu era Deus Todo-poderoso, Sassenach.

-Não, homem. Moisés, em todo caso.

Jamie, com as mãos nas costas, começou a passear.

-Não posso fazê-lo sozinho -disse com calma-. Nisso tem razão. Mas não acredito que tenha que ir a Escócia para procurar colonos.

-E a que outro lugar?

-Meus homens... os homens que estiveram comigo no Ardsmuir. Estão todos aqui.

-Mas não tem nem idéia de onde -protestei-. E além disso, trouxeram-nos faz anos! Já devem estar situados. Não vão deixar o tudo para vir ao fim do mundo contigo!

Sorriu-me com ironia.

-Você o fez, Sassenach.

Respirei profundamente. O peso do temor que tinha ocupado meu coração durante aquelas semanas tinha desaparecido.

-Pensarei em algo -disse, sonriendo ao ver as dúvidas e incertezas em meu rosto-. Sempre o faço, não?

Deixei escapar um comprido suspiro.

-Faz-o. Está seguro? Sua tia Yocasta...

-Não -respondeu-. Nunca.

Vacilei, me sentindo culpado.

-Não o fará... não é por mim? É pelo que disse sobre os escravos?

-Eu vivi como escravo, Claire -disse com a cabeça encurvada-. E não poderia viver sabendo que há um homem na terra que sente para mim o que eu senti para meus donos.

-Não vais deixar me? –perguntei-. Não vais morrer?

Sacudiu a cabeça e me oprimiu a mão.

-Você é meu valor, assim como eu sou sua consciência -sussurrou-. Você é meu coração e eu sua compaixão. Solos não somos nada. Não sabe, Sassenach?

-Sei -disse com voz tremente-. Por isso tenho tanto medo. Não quero voltar a ser meia pessoa, não poderia suportá-lo.

Agarrou-me entre seus braços e pude sentir como subia e baixava seu peito ao respirar.

-Mas não te dá conta de que a noção da morte entre nós é muito pouca coisa, Claire? -sussurrou.

Minhas mãos se fecharam contra seu peito. Não, não pensava que fora pouca coisa.

-Todo o tempo, quando me deixou depois do Culloden, estive morto, não é assim?

-Acreditei que estava morto. Por isso...

Suspirei profundamente e Jamie assentiu.

-dentro de duzentos anos seguro que estarei morto, Sassenach -disse sonriendo-. Por causa dos índios, os animais selvagens, uma praga, a corda da forca ou só pela bênção de uma idade avançada, mas estarei morto.

-Sim.

-E enquanto você estava ali, em seu próprio tempo... eu estava morto, não?

Assenti sem palavras. Inclusive agora posso olhar para trás e ver o abismo de desespero no que aquela partida me sumiu e de que saí subindo penosamente centímetro a centímetro.

-«O homem é como a erva do campo -citou, esfregando minhas mãos-. Hoje floresce; amanhã se seca e se atira ao forno.» Levantou o penacho verde e o levou aos lábios, para logo passá-lo por minha boca.

-Estava morto, Sassenach, e entretanto todo esse tempo te amei.

Fechei os olhos sentindo a leve coceira da erva em meus lábios.

-Eu também te amava -sussurrei-. Sempre o fiz.

-Enquanto meu corpo e o teu vivam, seremos uma só carne -sussurrou.

Seus dedos me tocaram o cabelo, o queixo, o pescoço e os peitos; respirei seu fôlego e o senti em minhas mãos.

-E quando meu corpo pereça, minha alma ainda será tua, Claire. Juro por minha esperança de ganhar o céu que não serei separado de ti. Nada se perde, Sassenach; só se transforma.

-Isso é a primeira lei da termodinâmica -pinjente me secando o nariz.

-Não -respondeu-. Isso é fé.

 

                                               Je t´aime

 

                     Em casa para as festas

Inverness, Escócia, 23 de dezembro de 1969

Controlou o horário de trens por décima vez e continuou dando voltas pelo vestíbulo da reitoria, muito inquieto para sentar-se. Ainda devia esperar uma hora.

A habitação estava semidesmantelada, montões de caixas de cartão por toda parte, sem nenhuma ordem. Tinha prometido deixar o lugar vazio para Ano Novo, salvo as coisas que Fiona queria ficar.

Desejava que a senhora Graham e o reverendo tivessem conhecido a Brianna, quão mesmo a jovem a eles. Sorriu ante a mesa da cozinha, recordando uma conversação em sua adolescência com as duas pessoas maiores quando ele, presa de um louco desejo não correspondido pela filha do dono do estanque, tinha-lhes perguntado como se sabia se a gente estava realmente apaixonado.

-Se tiver que te perguntar se está apaixonado, moço, então não o está -assegurou-lhe a senhora Graham-. E mantén suas garras longe da pequena Mavis ou seu pai te matará.

-Quando está apaixonado, Roger, sabe sem que lhe digam isso -atravessou o reverendo, colocando um dedo na massa da torta e retrocedendo, zombador, quando a senhora Graham lhe ameaçou com a colher.

Tinham razão. Sabia desde que conheceu a Brianna Randall. O que não sabia com segurança era se Brianna sentia o mesmo.

Não podia esperar mais. tocou-se o bolso para verificar que tinha as chaves, baixou as escadas e saiu a enfrentar-se com a chuva de inverno, que tinha começado justo depois do café da manhã. Diziam que uma ducha fria era o melhor remédio. Mas com o Mavis não tinha funcionado.

 

                     24 de dezembro de 1969

-O bolo de ameixas está no forno quente e o molho na panela. -Fiona lhe deu as instruções, colocando-se seu chapéu de lã de cor vermelha. Fiona era baixa e a seu lado parecia uma anã de jardim-. Não suba muito o fogo. Aqui estão as instruções para amanhã...

-Não se preocupe, Fiona -tranqüilizou-a-. Não vamos queimar a casa. Nem tampouco morreremos de fome.

Arqueou as sobrancelhas vacilando ante a porta. Seu noivo a esperava fora, sentado no carro com o motor em marcha, impaciente.

-Ah, bom. Está seguro de que não querem vir conosco? À mãe do Ernie não lhe importará. Estou segura de que não lhe parecerá bem que fiquem sozinhos em Natal...

-Não se preocupe, Fiona -disse empurrando-a para a porta-. E passa umas boas festas com o Ernie.

O som da buzina a fez olhar ao carro com indignação.

-Bom, já vou, vale?

voltou-se para o Roger e com um sorriso radiante jogou os braços ao pescoço e nas pontas dos pés lhe beijou nos lábios.

Deu um passo atrás e lhe piscou os olhos um olho.

-Isso ensinará ao Ernie -sussurrou-. Felizes Páscoas, Rog! -disse em voz alta e se foi rebolando até o carro.

Roger permaneceu no alpendre agitando a mão. abriu-se a porta e Brianna tirou a cabeça.

-O que está fazendo fora sem casaco? Está gelando!

Vacilou com a tentação de contar-lhe depois de tudo, era evidente que a relação da Fiona e Ernie ia vento em popa. Mas era véspera de Natal, recordou-se a si mesmo.

Pese ao céu escuro e a temperatura baixa, sentia calor. Sorriu-lhe.

-Estava me despedindo da Fiona -disse-. vamos ver se podemos preparar o almoço sem queimar a cozinha?

Prepararam uns sanduíches sem nenhum problema e retornaram ao estudo depois do almoço. A habitação já estava quase vazia, só ficavam umas poucas prateleiras com livros para embalar.

O grande escritório do reverendo tinha sido esvaziado e levado a garagem, as prateleiras também estavam virtualmente vazias e o painel de cortiça da parede livre de papéis, só tinha ficado um. Tinha-o deixado para o final.

-O que acontece esses? -Brianna assinalou um montão de livros que havia sobre a mesa-. Estão assinados mas não dedicados. Tem a série que dedicou a seu pai. Também quer estes? São primeiras edições.

Roger colheu com delicadeza um dos livros. Era a obra do Frank Randall; livros tão elegantemente escritos como apresentados.

-Deve guardá-los você, não te parece? -disse. Sem esperar resposta colocou um em uma caixa-. depois de tudo, é a obra de seu pai.

-Já os tenho –protestou-. Toneladas. Caixas e caixas.

-Mas suponho que não estarão assinados.

-Bom, não. —Agarrou outro e o abriu-. Está seguro de que não os quer, Roger?

-Claro -respondeu sonriendo-. Não se preocupe, não me faltam livros.

Brianna lançou uma gargalhada e guardou os livros na caixa.

Logo continuou com sua tarefa de limpá-los antes de embalá-los.

-Não vais sentir saudades este lugar? -perguntou. apartou-se uma mecha de cabelo dos olhos e assinalou a enorme habitação-, Cresceu aqui, não?

-Sim e sim -respondeu, colocando outra caixa sobre o montão que foram enviar à biblioteca da universidade-. Mas não tenho eleição.

-Suponho que não pode viver aqui -aceitou com pena-. Como está em Oxford a maioria do tempo... mas era necessário vendê-la?

-Não posso vendê-la. Esta casa não é minha.

-O que quer dizer com que não é tua?

-O que pinjente -respondeu-. Não é minha. A casa e o terreno pertencem à igreja; papai viveu aqui perto de cinqüenta anos, mas não era o dono. Pertence à administração da paróquia. O novo ministro não a quer. Tem dinheiro e uma esposa a que gosta das casas modernas, assim que a puseram em venda. Fiona e seu Ernie a vão comprar, que o céu lhes ajude.

-Para eles dois sozinhos?

-É troca e têm uma boa razão -acrescentou com ironia-. Ela quer ter muitos meninos e aqui há lugar para um exército, lhe posso assegurar isso As bodas será em fevereiro, por isso devo terminar a mudança já, para dar tempo aos pintores e aos da limpeza. Embora seja uma vergonha que te faça trabalhar durante as festas. Talvez poderíamos ir ao Fort William na segunda-feira.

Brianna agarrou outro livro mas não o colocou na caixa.

-Não me parece justo, embora me alegro de que fique Fiona.

Roger se encolheu de ombros.

-Não pensava me instalar no Inverness, nem era a casa de meus antepassados e tampouco podia cobrar entrada e fazer visitas guiadas pelo lugar.

Brianna sorriu e seguiu classificando livros.

-O reverendo tinha quase tantos livros como meus pais -disse-. Entre os livros de medicina de mamãe e os de história de papai, poderia-se abastecer uma biblioteca. É provável que me leve seis meses, quando voltar a CA.... quando retornar. –mordeu-se o lábio-. Disse a da imobiliária que podia pôr a casa em venda para o verão.

-Isso é o que te incomodava? -disse lentamente, observando seu rosto-. Estava pensando em te separar da casa onde cresceu, deixar seu lar para sempre?

-Se você pode fazê-lo, suponho que eu também poderei. Por outra parte -continuou com tom de resolução-, não é tão terrível. Mamãe se ocupou de quase tudo, encontrou um inquilino e deixou a casa alugada por um ano, assim me deixava tempo para decidir com calma o que faria sem me preocupar com ter a casa vazia. Mas é uma tolice que me fique, é muito grande para viver eu sozinha.

-Poderia te casar -deixou escapar sem pensá-lo.

-Suponho que poderia -respondeu e o olhou de esguelha, com uma espécie de sorriso-. Algum dia. Mas e se meu marido não quer viver em Boston?

de repente lhe ocorreu que a preocupação da Brianna pela perda da casa paroquial podia ser porque ela se viu vivendo ali.

-Quer ter filhos? -perguntou bruscamente.

Olhou-lhe surpreendida e logo riu.

-Os filhos únicos em geral querem ter famílias numerosas, não?

-Não lhe saberia dizer isso Mas sei que eu sim quero.

aproximou-se entre as caixas e a beijou.

-Eu também. Será melhor que terminemos de limpar isto.

-O que? -Demorou para compreender o sentido de suas palavras-. Bom, sim. Claro, suponho que sim.

Inclinou a cabeça e a voltou a beijar, esta vez lentamente.

Tinha-lhe passado um braço pela cintura e com a outra mão lhe acariciava o pescoço e o sedoso cabelo. Enquanto a beijava, desejava apoiá-la sobre o tapete Y...

Um breve golpe lhe fez levantar a cabeça.

-Quem é? -exclamou Brianna, com uma mão apoiada no peito.

Uma parede do estudo era um imenso ventanal, já que o reverendo tinha sido pintor e necessitava abundante luz, uma cara quadrada com bigode se esmagava contra um dos vidros, olhando com grande interesse.

-Esse -disse Roger entre dentes- é o carteiro, MacBeth. Que diabos está fazendo aqui esse velho descarado?

Como se tivesse ouvido sua pergunta, o senhor MacBeth deu um passo atrás, tirou uma carta de sua bolsa e a agitou com jovialidade ante eles.

-Uma carta -disse olhando a Brianna.

-por que não a deixou na rolha? -quis saber Roger-. Traga-a aqui.

O senhor MacBeth entregou a carta com aspecto de dignidade ofendida enquanto tentava ver a Brianna depois das costas do Roger.

-Poderia ser importante, não? Dos Estados Unidos. E é para a senhorita, não para ti, moço.

-Muito obrigado -disse Brianna sonriendo, ainda ruborizada.

Agarrou a carta e a olhou sem abri-la.

-De visita, não? -perguntou com entusiasmo-. Os dois sozinhos aqui, não?

Olhou a Brianna de cima abaixo com franco interesse.

-Não -disse Brianna, com expressão séria. Dobrou a carta e a guardou no bolso dos nos cubra-. Tio Angus está conosco, dormindo acima.

Roger se mordeu o lábio para não rir. Tio Angus era um brinquedo de pano roído que Brianna tinha encontrado e colocado no quarto de hóspedes, junto a sua boina escocesa.

O carteiro arqueou as sobrancelhas.

-Ah, já vejo. Também é norte-americano, seu tio Angus?

-Não, é do Aberdeen.

O senhor MacBeth estava encantado.

-Tem uma parte escocesa na família. Bom, devi imaginá-lo ao ver seu cabelo. É você uma garota muito bonita.

-Sim, bom. -Roger se esclareceu garganta-. Não queremos lhe distrair de seu trabalho, senhor MacBeth.

-Não há problema.

-Que tenha um bom dia, senhor MacBeth -disse Roger com certa ênfase.

-Você também, senhor Wakefield.

-vais ler a carta?

Brianna se ruborizou ao agarrá-la.

-Não é importante. Lerei-a logo.

Roger arqueou uma sobrancelha. Brianna se encolheu de ombros e abriu o sobre, tirando uma folha de papel.

-Disse-lhe isso, não era nada importante. Lê-a você mesmo.

«Não!», exclamou Brianna para si. Não era muito, uma informação da biblioteca de sua universidade para lhe dizer que o que ela tinha pedido não podia obtê-lo por esse meio, mas que podia procurar na coleção privada dos Estuardo, no anexo real da Universidade do Edimburgo.

-Deveu me dizer o que procurava -disse com calma-. Podia te haver ajudado.

encolheu-se de ombros levemente.

-Sei como fazer uma investigação histórica. Estava acostumado a ajudar a minha p... -interrompeu-se, mordendo o lábio.

-Sim, já vejo -disse e a agarrou do braço para levá-la à cozinha-. vou preparar o chá.

-Eu não gosto do chá -protestou.

-Necessita uma taça de chá -disse Roger com firmeza.

Colocou as taças, os pratos e uma garrafa de uísque.

-E tampouco eu gosto do uísque -disse Brianna.

-Sim eu gosto do uísque -disse-. Mas detesto beber sozinho. Fará-me companhia?

Sorriu-lhe, desejando que ela também o fizesse. Finalmente o fez.

sentou-se frente a ela e encheu sua taça até a metade.

-Ah. Glen Morangie. Seguro que não quer me acompanhar? Um chorrito em seu chá?

Negou com a cabeça; quando a água começou a ferver se levantou e preparou o chá. Roger se aproximou e lhe aconteceu os braços pela cintura.

-Não é algo para te envergonhar -disse brandamente-. Tem direito ou seja o tudo. Ao fim e ao cabo, Jamie Fraser era seu pai.

-Mas não o é... não realmente. Eu tive um pai. Frank Randall, ele era meu pai e eu lhe quero, queria-lhe. Não me parece correto procurar a outro, como se ele não fora suficiente, como...

-Não tem nada que ver com o Frank Randall nem com o que sinta por ele; era seu pai e nada poderá trocar isso. Mas é natural sentir curiosidade, querer saber.

-Alguma vez você quis saber?

agarrou-se a sua mão.

Roger respirou profundamente procurando consolo no uísque.

-Sim, sim, fiz-o. E acredito que você também o necessita. vamos sentar nos e te contarei.

Sabia o que se sentia ao ter perdido um pai, um pai desconhecido.

-Inventava histórias e por isso me brigavam no colégio. Mas precisava fazer que fora real. Dá-te conta? Por sorte, papai, o reverendo, entendeu o problema. Começou a me contar coisas sobre meu pai. Jerry MacKenzie foi um herói, de acordo, e lhe mataram. Mas o que o fazia real para mim eram as coisas simples, o que fazia de menino. Isso fez que sentisse saudades mais que nunca, porque então soube um pouco do que tinha perdido; mas tinha que saber.

-Algumas pessoas dizem que não pode sentir saudades o que nunca teve e que por isso é melhor não saber nada -disse Brianna.

-Algumas pessoas são tolas. Ou covardes.

-E sua mãe?

-Tenho algumas lembranças dela, tinha cinco anos quando morreu. Guardo algumas caixas na garagem com suas coisas, suas cartas. É como dizia papai: "Todos necessitamos uma historia». A minha está ali e sei que se a preciso posso encontrá-la.

Contemplou-a durante um momento.

-A estranhas muito? -disse-. Ao Claire.

-Eu... eu tenho medo de saber. Não é só ele, é ela também. Quero dizer, conheço a história do Jamie Fraser, pois ela me falava muito dele. Muito mais do que encontraria em arquivos históricos -acrescentou com um débil sorriso-. Mas mamãe... ao princípio tratei de pensar que se foi, como se fora uma viagem. Quando não pude fazê-lo mais, tratei de acreditar que estava morta. -Roger lhe alcançou um guardanapo para que se soasse o nariz-. Mas não é assim. Esse é o problema! A sinto falta de constantemente e sei que não a verei nunca mais, mas nem sequer está morta!. Como posso chorá-la como morta, quando acredito e espero que seja feliz onde eu a obriguei a ir?

Apurou o conteúdo de sua taça e tossiu.

-Por isso quero saber, entende-o? Quero encontrá-la, encontrá-los aos dois. Saber se ela estiver bem. Mas também penso que talvez, não queira saber. Porque e se descobrir que não está bem? E se descobrir algo horrível? E se ela estiver morta ou ele...?, bom isso não importaria canto, porque de todos os modos agora já está morto... Mas tenho que saber, sei que tenho que fazê-lo!

Deixou sua taça para que lhe servisse uísque e não esperou a que lhe acrescentasse chá. Bebeu um comprido trago.

-Assim estive procurando. Quando vi os livros de papai e sua assinatura, então todo me pareceu mau- Crie que estou equivocada?

-Não, mulher -disse carinhosamente-. Não está mau. Tem razão, deve saber. Ajudará-te. -ficou em pé e a levantou para abraçá-la-. Mas agora acredito que deveria descansar um momento.

Ajudou-a a subir as escadas e quando chegaram acima, Brianna se soltou e correu ao quarto de banho.

-Que desperdício do Glen Morangie. Se o tivesse sabido, tivesse-te dado um mais barato.

Brianna se derrubou na cama e permitiu que lhe tirasse os sapatos. ficou de lado, com o tio Angus nos braços.

-Disse-te que eu não gostava do chá -murmurou e ficou dormida.

 

Roger trabalhou um par de horas, guardando livros e fechando caixas. Logo se ocupou dos restos do chá, lavando e secando as taças; restos do velho Jogo de porcelana, com árvores e pagodes em branco e azul. Fiona teria tudo novo.

Em um impulso, agarrou as duas taças que tinham usado, envolveu-as e as levou a estudo para as guardar com suas coisas.

sentiu-se bastante tolo e, ao mesmo tempo, muito melhor. Olhou a seu redor; o estudo estava vazio, salvo pela folha de papel cravada na parede de cortiça. «Assim que fica sem sua casa?" Bom, tinha deixado sua casa fazia tempo, não?.

Mas lhe chateava. Muito mais do que tinha demonstrado a Brianna. Por isso tinha demorado canto em terminar de limpar a reitoria, tinha que reconhecê-lo. Com uma sensação de cerimônia lúgubre, arrancou a folha amarelada da parede de cortiça. Era sua árvore de família, uma carta genealógica feita pela mão do reverendo.

Gerações do MacKenzie. O reverendo conhecia poucas histórias individuais; a maioria da gente da lista só eram nomes. E a mais importante da lista, nem sequer isso, a mulher cujos olhos verdes Roger via cada manhã no espelho não estava em nenhuma parte daquela lista, por boas razões.

Os dedos do Roger se detiveram perto da parte superior da árvore. Ali estava ele, o suplantado: William Buccieigh MacKenzie. Tinham-no entregue a uns pais adotivos. Tinha sido o fruto ilegítimo, durante a guerra, do caudilho do clã Mackenzie e de uma bruxa condenada à fogueira. Dougal MacKenzie e a bruxa Geillis Duncan. Não era uma bruxa, é obvio, mas era tanto ou mais perigosa. Ele tinha seus olhos, ou ao menos isso dizia Claire. Teria herdado algo mais dela? A aterradora capacidade de viajar através das pedras passaria através de gerações de respeitáveis boiadeiros e marinheiros?

Bom, podia ajudar a Brianna em sua busca. E quanto a ele...

Roger colocou a folha em uma pasta e a guardou em uma caixa. Fechou a tampa de cartão e fez uma X com papel colado sobre a lapela.

-Isso é tudo -disse em voz alta, e saiu da habitação vazia.

 

Deteve-se no alto da escada, surpreso. Brianna se tinha banhado e agora estava no corredor, só com uma toalha.

Embora tinha visto mais dela no verão, com suas calças curtas e camisetas, a fragilidade do que a cobria excitava ao Roger. O saber que podia despi-la com um simples gesto e que estavam os dois sós na casa...

Deu um passo para ela e se deteve. Lhe tinha ouvido, mas passou um momento antes de que se voltasse. Não disse nada. limitou-se a olhá-lo, entreabrindo os olhos escuros. Levantou a cabeça enquanto Roger se aproximava e, com um gesto, tirou-se a toalha da cabeça.

Seus cabelos brilhavam como serpentes de bronze. Não era a beleza de uma Gorgona, mas sim de um espírito das águas, que trocava sua forma de cavalo com crinas de serpentes pela de uma mulher mágica.

-Ninfa -sussurrou na ruborizada bochecha-. Parece que tivesse saído das montanhas de Escócia.

Brianna lhe aconteceu os braços pelo pescoço, soltando a toalha, que ficou sujeita entre seus corpos.

Tinha as costas nua. Roger desejava cobri-la do frio, despir-se e lhe dar seu calor, ali mesmo, naquele ventoso corredor.

-Vapor -sussurrou-. Emana vapor.

A boca da Brianna se curvou em um sorriso.

-Você também, Roger, e isso que não te banhaste.

Sua mão fria estava no pescoço do Roger. Abriu a boca para dizer algo mais, mas a beijou, sentindo um calor úmido através de sua camisa.

Roger baixou a mão, apertando a curva de seu traseiro. Brianna se sobressaltou, perdeu o equilíbrio e os dois caíram, torpemente, em um esforço por manter-se em pé.

Os joelhos do Roger golpearam o chão e arrastou a Brianna com ele. A jovem caiu rendo. ia agarrar sua toalha, mas a abandonou, enquanto Roger voltava a beijá-la.

Acariciou-lhe um seio com uma mão enquanto baixava a outra, mas a deteve com um esforço. De que cor seria seu pêlo? Castanho avermelhado, como imaginava? Ou cobre e bronze como seu cabelo?

-Por favor -sussurrou a jovem-. Por favor, quero que siga.

-Não -disse Roger com voz rouca-. Não, não aqui. Não desta maneira.

Brianna se incorporou e se cobriu com a toalha. Roger lhe acariciou os lábios.

-Tem que ser melhor -sussurrou-. Quero fazê-lo melhor... a primeira vez.

Então, o aroma de sopa queimada subiu pela escada e os dois se sobressaltaram.

-Algo se queima! -disse Brianna e quis baixar, com a toalha de novo em seu lugar. Mas a deteve. Estava geada.

-Eu o farei —disse—. vá vestir te.

Jogou-lhe um rápido olhar e desapareceu.

 

Abaixo, Roger lutava com a sopa derramada enquanto se repreendia a si mesmo. O que tinha pensado fazer? lhe arrancar a toalha e atirá-la ao chão; diabos, ela devia pensar que era um violador!

O calor que sentia no peito não era devido à vergonha ou ao calor da cozinha. Era o calor da pele da Brianna, que ainda sentia. «Quero que siga», havia-lhe dito e o dizia a sério.

Desejava-a. Queria tudo dela, não só a cama, não só seu corpo. Queria tudo, para sempre. de repente, a frase bíblica «uma só carne", parecia-lhe algo imediato e muito real. Atirou os restos da sopa na pia. Não importa, comeriam no bar. Seria melhor sair de casa e afastar-se da tentação.

Um jantar, uma conversação informal e talvez uma caminhada pela borda do rio. Brianna queria ir aos serviços de Véspera de natal. depois disso...

depois disso, o pediria, de maneira formal. E ela o aceitaria, sabia que diria que sim. E então...

Bom, então poderiam retornar a casa, um lugar escuro e privado onde um amor novo apareceria no mundo.

Roger apagou a luz e saiu da cozinha. detrás dele, esquecida, chama-a do gás ardia azul e amarela na escuridão, firme e constante como os fogos do amor.

 

                     Luxúria imprópria

O reverendo Wakefield tinha sido um homem bondoso e ecumênico, tolerante com todas as opiniões religiosas e desejoso de abrigar doutrinas que sua congregação poderia encontrar ultrajantes ou diretamente blasfemas.

Entretanto, toda uma vida exposto à rigidez do presbiterianismo escocês e seus permanentes receios para todo o «apostólico romano», tinham deixado no Roger certa insegurança na hora de entrar em uma igreja católica, como se temesse que lhe atacassem pelas costas os padres estrangeiros para batizá-lo pela força.

Mas nada disso ocorreu enquanto seguia a Brianna ao interior da pequena igreja de pedra. Ao entrar, Brianna tirou da bolsa um pequeno véu negro de encaixe e o pôs na cabeça.

-Que é isso? -perguntou.

-Não sei como o chamam –respondeu-. usa-se na igreja se não levar chapéu ou véu. Em realidade, já não existe a obrigação de levá-lo, mas cresci com este costume. As mulheres não podiam entrar em uma igreja católica com a cabeça descoberta, já sabe.

-Não, não sabia -disse Roger, crescentemente interessado-, por que não?

-São Pablo, provavelmente, acreditava que as mulheres deviam cobrir o cabelo, para não ser objeto de luxúria imprópria. Um velho louco -acrescentou-. Mamãe sempre dizia que lhe tinha ojeriza às mulheres. Pensava que eram perigosas -disse com sorriso zombador.

-São-o.

Impulsivamente, inclinou-se e a beijou, sem fazer caso dos olhares da gente próxima.

Ela o olhou surpreendida, mas logo lhe devolveu o beijo, suave e rapidamente, Roger sentiu um murmúrio de censura, mas não lhe emprestou atenção.

-Na igreja e em Véspera de natal! -disse alguém com voz rouca.

-Bom, Annie, não é exatamente a igreja, é só a entrada.

-E ele é o filho do ministro!

Brianna se fez a um lado e lhe olhou, com a boca tremendo de risada.

Roger lhe devolveu o sorriso e tocou seu rosto radiante. Levava o colar de sua avó e sua pele refletia o brilho das pérolas.

-Senhor Wakefield, é você?

voltou-se e se encontrou com dois pares de olhos inquisitivos. Duas anciãs, de baixa estatura, agarradas do braço.

-Senhora McMurdo, senhora lhes Haja! Felizes Páscoas! -saudou sonriendo.

Conhecia-as de toda a vida.

-Então, vai a Roma, senhor Wakefield? –perguntou Chrissie McMurdo, enquanto seu amiga ria.

-Ainda não -respondeu Roger, ainda sonriendo-. Estou acompanhando a uma amiga. Conhecem a senhorita Randall?

As duas anciãs a olharam com franco curiosidade.

Para ambas, sua presença ali era uma declaração de suas intenções tão clara como se o tivesse publicado no periódico. Que lástima que Brianna não se desse conta. Ou se dava conta? A jovem o olhou de esguelha, com um sorriso especial, e lhe apertou o braço.

-É um prazer te conhecer, querida -disse a senhora McMurdo com a cabeça estirada para olhá-la-Que moça mais bonita e alta! -Olhou ao Roger com picardia-. Que sorte ter encontrado um moço para fazer casal, não?

O sino começou a soar e Roger agarrou a Brianna do braço. Frente a eles, Jessie Hayes se deu a volta para lhes dirigir um sorriso.

Brianna molhou tosse dedos na pilha de pedra e se fez o sinal da cruz. Roger encontrou que o gesto lhe era súbita e extrañamente familiar.

ficaram junto a uma família, enquanto alguém tocava no pequeno órgão. Logo a música se deteve e todos ficaram em pé enquanto a procissão entrava pelo corredor central.

Roger sentiu um ligeiro rechaço ante a mescla de ostentação e cânticos em latim. Entretanto, ao começar a missa, as coisas lhe pareceram mais normais; leituras da Bíblia e o acostumado sermão, agradavelmente aborrecido.

Para quando a congregação ficou em pé de novo, Roger tinha perdido toda sensação de estranheza. Observou a Brianna quando ia comungar e se deu conta de que tinha começado a rezar. Mas não era o ignóbil “me deixe possui-la". Era mais humilde, e esperava que aceitável, «me deixe merecê-la, me deixe amá-la como corresponde, me deixe cuidá-la».

Fez um gesto para o altar e se esclareceu garganta como se o tivessem surpreso em uma conversação privada.

Brianna retornou com 1os olhos muito abertos e um sorriso sonhador. ajoelhou-se e ele a imitou.

As vozes do coro lhe fizeram voltar para a realidade. Viu o sacerdote retirar-se com suas coroinhas, em meio de nuvens de incenso.

 

Brianna cantarolava enquanto foram caminho do rio.

-Apagou o gás, não?

-Sim -assegurou Roger-. Não se preocupe. Entre a cozinha e o aquecedor, que a reitoria não se incendiou até agora é uma prova do amparo divino.

Brianna riu.

Caminharam do braço junto ao rio Ness. Roger se sentia curiosamente vulnerável, como se tivesse perdido o calor e a segurança que tinha na igreja. Só nervos, pensou, e apertou o braço da Brianna com mais firmeza. Era o momento.

-Brianna.

Girou-a para tê-la frente a frente. Seu cabelo se agitou, brilhando baixo as luzes da rua.

-Desejo-te, Brianna -disse brandamente-. Amo-te. Quer te casar comigo?

Não respondeu, mas seu rosto trocou como a água quando lhe arroja uma pedra.

-Não queria que te dissesse isso. -Sentia que respirava gelo e se cravava em seu coração e seus pulmões-. Não queria ouvir isso,não?

Sacudiu a cabeça, sem dizer nada.

-Ah, bom. -Com um esforço, soltou-lhe a mão-. Está bem -disse, surpreso pela tranqüilidade de sua voz-. Não tem que preocupar-se.

ia seguir caminhando quando Brianna lhe deteve, lhe sujeitando do braço.

-Roger.

Teve que fazer um grande esforço para olhá-la; não queria consolo, nem desejava ouvir a oferta de «ser amigos». Mas se voltou e Brianna se apertou contra ele, agarrou-lhe a cabeça e lhe beijou com desespero.

Roger a agarrou das mãos e a apartou.

-A que está jogando?

A fúria era melhor que a sensação de vazio.

-Não estou jogando! Disse que me desejava. –Tragou ar-. Eu também te desejo. Não sabe? Não lhe hei isso dito esta tarde?

-Acreditei que assim era. -Olhou-a fixamente-. Que diabos quer dizer?

-Quero dizer que... que quero me deitar contigo -estalou.

-Mas não quer te casar comigo?

Negou com o rosto, branco como um lençol.

-Então não te casará comigo, mas quer joder comigo? Como pode dizer algo assim?

-Não use essa linguagem comigo!

-Linguagem? Você pode sugeri-lo, mas eu não posso pronunciar a palavra? Nunca me ofenderam tanto, nunca!

Brianna tremia e as mechas do cabelo lhe caíam pela cara.

-Não queria te insultar. Eu acreditei que desejava, que...

Agarrou-a dos braços e a atraiu para ele.

-Se tudo o que quisesse fora me deitar contigo, o teria feito uma dúzia de vezes o verão passado!

-Isso é o que você te crie!

soltou-se um braço e lhe deu uma bofetada, lhe agarrando por surpresa. Roger lhe sujeitou a mão e a beijou, com um beijo muito mais largo e intenso que antes.

-Isso é o que acredito -disse, soltando-a para respirar. secou-se a boca e deu um passo atrás, tremendo. Havia sangre em sua mão, tinha-lhe mordido e não havia sentido nada-. Mas não o fiz -disse, respirando com mais calma-. Isso não era o que queria e não é o que quero agora. -limpou-se o sangue da mão com a camisa-. Mas se não te importo o suficiente para te casar comigo, então tampouco me importa o suficiente para te colocar em minha cama!

-Claro que me importa!

-Já o vejo.

-Importa-me muito para me casar contigo, maldição!

-Que você o que?

-Porque quando me casar contigo, quando me casar com qualquer, tem que durar. Ouve-me? Se fizer um juramento assim, manterei-o, não importa quanto me custe!

As lágrimas rodavam por suas bochechas. Roger tirou um lenço do bolso e o deu.

-te soe o nariz, te limpe a cara e logo me diz de que diabos está falando.

Fez o que lhe dizia.

-Seu acento escocês aparece quando te zanga -disse com um tímido intento de sorriso, enquanto lhe devolvia o lenço.

-Não sente saudades -disse com exasperação-. Agora, me diga o que quer dizer e faz-o com claridade, antes de que me faça falar em gaélico.      

-Sabe falar gaélico?

Brianna ia recuperando-se.

-Sei, e se não querer aprender uma boa quantidade de expressões grosseiras... fala. Como pode me fazer semelhante oferta uma boa garota católica recém saída de missa? Acreditei que foi virgem.

-Sou-o! E isso o que tem que ver?

antes de que pudesse responder a semelhante atrocidade, a jovem seguiu adiante.

-Não me disse que não tinha estado com garotas? Eu sei que esteve!

-Sim, estive! Não queria me casar com elas e elas não queriam casar-se comigo. Não as amava, elas não me amavam. É a ti a quem amo, maldição!

apoiou-se no farol da rua, com as mãos nas costas, e olhou aos olhos.

-Acredito que eu também te amo.

-Ah. Mmm. E me diga, qual é o verbo principal, «acreditar» ou «amar»?

relaxou-se um pouco e tragou saliva.

-Ambos.

Levantou uma mão antes de que Roger começasse a falar.

-Amo-te..., acredito. Mas... mas não posso deixar de pensar no que aconteceu a minha mãe. Não quero que me aconteça o mesmo.

-Sua mãe? -O simples assombro deu passo a uma sensação de ofensa-. O que? Está pensando no maldito Jaime Fraser? Parece-te que não vais estar satisfeita com um aborrecido historiador... que vais necessitar uma grande paixão, como ela teve por ele e crie que talvez eu não lhe possa dar isso

-Não! Não estou pensando no Jamie Fraser!Estou pensando em meu pai! Lhe queria quando se casou com ele.,, vi-o nas fotos que me deu. Ela disse na pobreza e na riqueza, na saúde e na enfermidade e o dizia a sério. E logo... logo conheceu o Jamie Fraser e já não o pensou mais.

ficou em silêncio, procurando as palavras.

-Não a culpo, de verdade que não, não depois de havê-lo sabido. Não podia evitá-lo. Quando falava dele, dava-me conta de como o amava. Mas não te dá conta, Roger? Ela também amava a meu pai, mas algo aconteceu. Não o esperava e não foi por sua culpa, mas fez que faltasse a sua palavra. Não quero fazer isso, por nenhuma causa.

secou-se o nariz com a mão e Roger lhe devolveu o lenço em silêncio. secou-se as lágrimas e lhe olhou.

-Passará mais de um ano antes de que possamos estar juntos. Você não pode deixar Oxford; eu não posso deixar Boston até que obtenha meu título.

Desejava lhe dizer que ia renunciar ou que ela podia deixar seus estudos, mas não disse nada. Brianna tinha razão.

-E o que, se agora disser sim, e logo acontece algo? Se conhecer outra pessoa ou você conhece outra? -As lágrimas voltaram a correr por suas bochechas-.Não vou arriscar me a te machucar. Não o farei.

-Mas me ama agora? -Acariciou-lhe a bochecha-. Bri, ama-me?

Deu um passo atrás e, sem falar, tirou-se o casaco.

-Que estas diabos fazendo?

O assombro se somava a uma série de emoções, enquanto os pálidos dedos da jovem lhe baixavam muito devagar o fechamento da jaqueta.

O súbito frio desapareceu ante o calor do corpo da jovem que se apertava contra o seu.

Brianna não disse nada e ele tampouco. Podia sentir o corpo da jovem e uma corrente de desejo que o estremecia, como uma corrente elétrica.

O ruído de uns saltos altos ressonou no pavimento e uma rouquidão soou, tão forte que poderia ter despertado a um morto.

Roger apertou mais a Brianna e não se moveu. Em resposta, a jovem o abraçou com mais força e aproximou sua boca.

As duas anciãs amigas passaram de comprimento, comentando o bonito que era ser jovens e estar apaixonados.

-Esperarei -disse Roger e a soltou. Agarrou-lhe as mãos e a olhou aos olhos, agora suaves e claros-. Mas me escute. Terei-te toda ou não te terei.

«me deixe amá-la como é devido», disse em uma silenciosa oração. Não o havia dito muitas vezes a senhora Graham? “Tome cuidado com o que pede, moço, porque pode consegui-lo."

Pô-lhe a mão no peito.

-Não é só seu corpo o que quero, embora Deus sabe como o desejo. Mas quero te ter como minha esposa... ou não te terei. É sua eleição.

-Entendo -sussurrou.

O vento do rio era frio. Fechou-lhe o casaco e ao fazê-lo, sua mão roçou seu próprio bolso e tocou um pacote. Tinha pensado dar-lhe durante o jantar.

-Toma -disse, entregando-lhe Feliz Natal. Comprei-o no verão -disse enquanto ela tratava de abrir o pacote-. Agora parece que tivesse adivinhado o futuro, não?

Tirou um bracelete de prata com umas palavras gravadas. Roger a colocou e Brianna lhe deu a volta, para ler a inscrição.

Je t'amie— um peu... beaucoup... passionnément., ps du tout. Eu te amo... um pouco... muito- apaixonadamente... para nada.

Roger fez girar o bracelete, completando o círculo.

-Je t'aime-disse.

-Moi aussi -disse Brianna docemente, olhando-o-, Joyeux Noel

 

                                                 Na montanha

 

                   Benzer o lar

Setembro de 1767

Dormir baixo a lua e as estrelas nos braços de seu amante nu é o mais romântico que há. Dormir baixo um tosco teto, espremida entre um enorme marido molhado e um sobrinho igualmente grande e molhado, escutando a chuva que penetra entre os ramos e tratando de rechaçar as rabugices de um imenso cão, também molhado, era algo totalmente distinto.

Pu-me de joelhos e tratei de sair sem despertar a ninguém. Jamie grunhiu entre sonhos. Ian e Cilindro seguiam juntos, formando um barulho de cabelos e roupa.

Fora fazia frio e e! ar era tão afresco que quase me fez tossir. Descalça e com os pés gelados, baixei com cuidado para o arroio com uma panela baixo o braço. Ainda não tinha amanhecido e o bosque estava talher pela névoa e a luz azul cinzenta do crepúsculo, a misteriosa media luz que aparece nos dois extremos do dia, quando as pequenas criaturas saem a alimentar-se.

Jamie tinha razão ao sugerir que ficássemos na montanha em lugar de retornar ao Cross Creek. Era o começo do mês de setembro; segundo os cálculos do Myers íamos ter dois meses de bom tempo (relativamente bom, corrigi, olhando as nuvens) antes de que o frio nos obrigasse a construir um refúgio. Teríamos tempo suficiente para construir uma pequena cabana, caçar e nos preparar para passar o inverno.

-vamos ter que trabalhar duro -havia dito Jamie-. Será perigoso se a neve chegar antes de tempo ou se não posso caçar o suficiente. Não ficaremos se disser que não, Sassenach. Tem medo?

Medo era uma forma suave de dizê-lo, pois só de pensá-lo meu estômago se retorcia. Quando aceitei que nos instalássemos na colina, pensava que retornaríamos ao Cross Creek para passar o inverno e retornaríamos à montanha na primavera, com provisões e colonos para limpar o terreno e construir casas. Em lugar disso, estávamos completamente sós e a vários dias de viagem do assentamento de europeus mais próximo. Solos durante todo o inverno. Pela primeira vez recordei River Run com certa nostalgia: a água quente, as camas abrigadas, a comida abundante, a ordem, a limpeza,- e a segurança.

Conhecia o motivo pelo qual Jamie não desejava retornar. Viver da generosidade da Yocasta durante vários meses lhe ataria muito mais e seria mais difícil rechaçar sua oferta.

Sabia melhor que eu que Yocasta Cameron era uma MacKenzie. Tinha conhecido bastante a seus irmãos, Dougal e Colum, para ser muito cauteloso ante semelhante legado; os MacKenzie do Leoch não abandonam facilmente seus propósitos e não vacilam em conspirar para conseguir seus fins. Uma aranha cega podia tecer suas redes com mais segurança, dependendo exclusivamente de seu sentido do tato.

-Não é só pelo que há no River Run pelo que não quer retornar, verdade? -tinha-lhe perguntado. -É tão evidente?

-Bastante. Então me diga -insisti-, por que ficamos?

-Como posso te explicar o que significa a necessidade de espaço? A necessidade de sentir a neve e o ar das montanhas ao respirar, como quando Deus soprou sobre o Adão? De subir sentindo as rochas em minhas mãos e vendo os líquenes agüentando o vento e o sol? Para viver como um homem tenho que ter uma montanha -disse com simplicidade-. Confia em mim, Sassenach?

-Com minha vida -foi minha resposta.

-E com seu coração?.

-Sempre -sussurrei e, fechando os olhos, beijei-o.

 

Tudo ficou arrumado. Myers retornaria imediatamente ao Cross Creek e daria as instruções do Jamie ao Duncan, informaria a Yocasta de nosso bem-estar e procuraria comprar tudo o que pudesse com o resto de nosso dinheiro. Se tinha tempo, antes da primeira nevada retornaria com provisões do contrário o faria na primavera, tão ficaria conosco já que sua ajuda seria necessária na construção da cabana e para caçar.

O arroio tinha aumentado seu caudal por causa das chuvas e seria uns trinta centímetros mais alto que no dia anterior.

Ajoelhei-me, sentindo um rangido em minhas costas. Dormir sobre a terra aumentava a rigidez habitual das manhãs. Lavei-me a cara com abundante água fria e bebi um gole. Quando ao pouco me lleve a cabeça vi dois cervos bebendo ao outro lado, um pouco mais acima de onde eu estava. Permaneci imóvel para não lhes assustar, embora não demonstraram alarme por minha presença.

De repente, desapareceram. Não tinha visto como se davam a volta e punham-se a correr. em que pese a sua beleza etérea estava segura de não havê-los imaginado, pois ficavam os rastros escuros no barro da borda. Mas já se foram.

Não vi nem ouvi nada, mas senti como me arrepiava o cabelo.

Fique paralisada, meus olhos era quão único movia. Onde estava, o que acontecia?

O sol tinha saído, o verde das taças das árvores era apreciável e as rochas começavam a brilhar. Mas os pássaros estavam silenciosos e nada se movia salvo a água.

Estava a menos de dois metros de mim, apenas visível detrás de um arbusto. O som de seus lengüetazos ao beber água se perdia entre o ruído da corrente. Naquele momento levanto a larga cabeça e torceu uma orelha em direção a mim em que pese a que não tinha feito ruído. Poderia ouvir minha respiração?

Não era um medo consciente, a não ser puro instinto e um total assombro o que me tinha imobilizado ante a beleza do puma e sua proximidade. Ao me partir deixou com o sistema nervoso destroçado e tremendo; demorei vários minutos em poder me levantar. As mãos me tremiam tanto que, antes de poder enchê-la, derrubei a panela três vezes.

Havia-me dito que confiasse nele. O fazia? Sim, confiava e tinha muita sorte de poder fazê-lo, mas esperava que a próxima vez estivesse a meu lado. Por esta vez estava viva.

Quando abri os olhos, os pássaros cantavam de novo. Subi pelo atalho em direção ao claro, resistindo o impulso de voltar a vista atrás.

 

Jamie e Ian tinham destruído vários pinheiros altos e esbeltos no dia anterior, tinham-nos talhado em partes de três metros e médio e feito rodar costa abaixo. Agora estavam empilhados ao bordo de um pequeno claro, brilhando pela umidade.

Quando retornei com a panela cheia de água, Jamie esmagava a erva molhada, enquanto media com uma corda. Ian tinha preparado o fogo sobre uma grande pedra plaina; tinha adquirido do Jamie o costume de guardar um punhado de lenha seca no embornal, junto à pederneira e o elo.

-Faremos um pequeno abrigo -estava dizendo Jamie, com ar concentrado-. Construiremo-lo primeiro para poder dormir ali se volta a chover; mas é necessário que o façamos tão seguro como a cabana. Isso nos proporcionará um pouco de prática, em, Ian?

-Para que é... além da prática? -perguntei.

Levantou a vista e me sorriu.

-bom dia, Sassenach. dormiste bem?

-É obvio que não -pinjente-, Para que é o abrigo?

-Carne -respondeu-. Cavaremos um fosso pouco profundo e o encheremos de brasas para defumar tudo o que possamos conservar- Também faremos uma grade para utilizar o de secador; Ian viu como o faziam os índios para preparar o que eles chamam charque. Devemos ter um lugar seguro para que os animais não nos roubem a comida.

Parecia uma boa idéia, tendo em conta a classe de animais que pululavam pelo lugar. Minhas únicas dúvidas se centravam no processo de defumado. Tinha-o visto fazer em Escócia e sabia que a carne defumada necessita bastante atenção.

Não me resultou difícil adivinhar quem seria a encarregada dessa tarefa.

-De acordo -disse sem entusiasmo.

Jamie captou meu tom e me sorriu zombador.

-Este é o primeiro abrigo, Sassenach. O segundo será teu.          

-Meu?

Animei-me um pouco.

-Para suas ervas e novelo. Ocupam espaço, se mal não recordar. -Assinalou para o outro extremo do claro com o brilho da mania construtora em seus olhos- E Justo ali estará a cabana onde viveremos durante o inverno.

Para minha surpresa, acabaram as paredes do abrigo ao final do segundo dia v o cobriram grosseiramente com ramos, até que pudessem fazê-lo com telhas de madeira. As paredes estavam feitas com troncos magros, entre os que ficavam frestas e fendas. Entretanto, era o bastante grande como para que dormíssemos confortavelmente os três e Cilindro. Em um extremo havia um fossa rodeado de pedras onde se podia acender uma fogueira que fazia o lugar mais agradável. Tinham tirado a quantidade suficiente de ramos do teto para deixar um oco para a fumaça. Por este oco podia ver o luzeiro da tarde quando me acurrucaba sobre o Jamie e lhe escutava criticar sua destreza no trabalho.

-Olhe isso -disse mal-humorado, levantando o queixo para o rincão mais afastado-. Esse tronco está torcido, terei que endireitar toda a linha.

-Não acredito que importe aos cervos mortos -murmurei-. Vamos, me deixe ver essa mão. Suas mãos sempre tinham tido calos, mas podia sentir novas rugosidades ocasionadas por cortes e raspaduras. Tinha tantas lascas cravadas, que sua Palmas cravavam ao as tocar.

-Parece um puercoespín –disse-. Vêem, te aproxime do fogo, assim poderei ver bem para lhe tirar isso

Passou por cima do Ian, que dormia com a cabeça apoiada-y construíste este em dois dias, com uma tocha e uma faca. Não há um só prego! por que esperava que parecesse o palácio do Buckingham?

-Não cheguei a ver o palácio do Buckingham -disse mansamente-. Mas aceito o que me diz, Sassenach.

-Bem -pinjente e segui examinando sua palma para lhe tirar mais espinhos.

-Suponho que, ao menos, não se derrubará -disse depois de uma larga pausa.

Ficamos em silêncio, ouvindo o suave crepitar do fogo. Uma vez que terminei com sua mão esquerda, ocupei-me da direita.

-A casa estará sobre a colina -disse súbitamente-. Onde crescem os morangos silvestres.

-Sim? -murmurei-. Refere-te à cabana? Acreditei que ia estar ao lado do claro.

-Não, não a cabana. Uma bonita casa -explicou brandamente-. Com escada e janelas com cristais.

-Isso será magnífico.

Guardei a pinça na caixa.

-Com tetos altos e portas o bastante altas para que possa entrar sem me golpear a cabeça.

-Isso será maravilhoso -pinjente, recostando meu corpo sobre o seu.

ao longe, um lobo uivou e Cilindro levantou a cabeça, escutou e deixou escapar um suspiro.

-Com um quarto para mim e um estudo com prateleiras para os livros, para ti.

-Mmm. -Naquele momento, tinha um só livro que utilizávamos como guia: História natural da Carolina do Norte, publicado em 1733-. E uma cama -pinjente-. Poderá fazer uma cama, verdade?

-Tão boa como qualquer do palácio do Buckingham.

 

Myers, bendito seja seu coração bondoso e sua natureza leal, retornou aquele mesmo mês trazendo consigo três mulas carregadas com ferramentas, pequenos móveis, produtos necessários como sal e também ao Duncan Innes.

-Aqui?

Innes olhou com interesse para a pequena casa que tinha começado a tomar forma sobre a colina coberta dê morangos. Já tínhamos dois abrigos e um curral onde guardar os cavalos e outros animais.

Nesse momento, nosso gado consistia em um pequeno porco branco, que Jamie tinha obtido de um assentamento de moravos, a umas trinta milhas dali, trocando-o por uma bolsa de batata-doces doces que eu tinha recolhido e vassouras de ramitas de salgueiro feitas por mim. Como era muito pequeno para o curral, tinha vivido conosco no abrigo, onde rapidamente se feito amigo de Cilindro. Eu não estava tão afeiçoada com o animal.

-Sim. É uma terra boa, com muita água. Há arroios no bosque e o riacho o cruza de um extremo ao Outro.

Duncan tinha sido pescador, não granjeiro, mas assentiu com os olhos fixos na paisagem que Jamie enchia de futuras casas.

-Medi-o com passos -dizia Jamie-, embora devamos medir o de forma adequada logo que se possa. Mas tenho a descrição em minha cabeça. Por acaso trouxestes papel e tinta?

-Sim, e também outras coisas mais -disse Duncan. Sua cara larga e melancólica se iluminou com um sorriso-. A senhorita Eu me deu um colchão de plumas, pensou que não lhes viria mau.

-Um colchão de plumas? Que maravilha!

Imediatamente rechacei todo pensamento pouco generoso que tivesse tido para a Yocasta Cameron. Jamie fazia uma excelente cama, com madeira de carvalho e o somier trancado engenhosamente com cordas, mas não tínhamos mais que ramos de cedro como colchão, muito fragrantes mas cheias de vultos desagradáveis.

Meus pensamentos de luxuriosos quedas foram interrompidos pelos gritos do Ian e Myers. Vinham do bosque e Myers levava uma réstia de esquilos pendurado de seu cinturão.

Ian me apresentou com orgulho um enorme vulto negro que, inspecionado de perto, resultou ser um peru.

-O moço tem bom olho, senhora Claire -disse Myers com gestos de aprovação-. Os perus são animais muito matreiros. Nem sequer os índios os apanham com facilidade.

Era muito cedo para o dia de Ação de Obrigado, mas estava encantada com o ave, que seria o primeiro elemento substancial em nossa despensa. O mesmo acontecia ao Jamie, embora seu prazer vinha motivado pela cauda, que lhe proporcionaria uma boa provisão de plumas para escrever.

-Devo escrever ao governador -explicou durante a comida-, para lhe dizer que vou aceitar sua oferta e lhe fazer uma descrição do terreno.

Agarrou uma parte de torta e o mastigou distraído.

-Tome cuidado com as nozes -pinjente, um pouco nervosa-. Não quererá te romper um dente.

-Não se preocupe, Sassenach -murmurou Jamie e me sorriu-. Está muito boa. -E voltou sua atenção ao Duncan-. Uma vez que terminemos de comer, Duncan, poderíamos caminhar basta o rio para que escolha seu terreno?

O rosto do Innes empalideceu e logo se ruborizou com uma mescla de prazer e desconsolo.

-Meu terreno? Quer dizer minha terra, MacDubh?

Com um movimento involuntário, encurvou o ombro do lado que lhe faltava o braço.

-Sim, sua terra. -Sem lhe olhar, Jamie cravou uma batata-doce quente e começou a cortá-la-. Necessitarei-te para que atue como meu agente, Duncan, se quiser. E receberá seu pagamento. Agora, o que tinha pensado, se você o considerar justo, é solicitar um pedaço de terra a seu nome e, como não vais estar aqui para trabalhá-la, Ian e eu nos encarregaríamos de semear trigo e de construir um pequeno cercado. Quando chegar o momento, terá, se quiser, um lugar para te estabelecer- Crie que te convém?

-Mas... -começou e logo se deteve, tragando saliva-. Sim, MAC Dubh. Claro que me convém. -Desde que Jamie tinha começado a falar, o sorriso de incredulidade do Innes não se apagava-. Agente. -Tragou saliva outra vez enquanto agarrava uma das garrafas de cerveja que havia trazido-, E o que tenho que fazer, MacDubh.

-Duas coisas, Duncan. Primeiro, procurar colonos. -Jamie fez um gesto para o que seria nossa nova cabana-. Agora não posso ir daqui. E quero que encontre a todos os homens do Ardsmuir que possa. Muitos devem estar na Carolina do Norte ou do Sul. Busca os, lhes diga que estou aqui e vêem com todos os que possa para a primavera.

-Muito bem -respondeu Duncan-. E qual é a segunda?

Jamie me olhou e logo ao Duncan.

-Minha tia -disse-- Poderia ajudá-la, Duncan? Necessita um homem honrado, que possa tratar com esses bastardos da Marinha e que fale por ela nos negócios.

-Negócios? Mas eu não conheço...

-Não se preocupe -disse Jamie e sorriu a seu amigo-. Minha tia sabe muito bem o que terá que fazer. Ela te dirá o que terá que dizer e como fazê-lo, mas necessita um homem que o faça por ela. vou escrever lhe uma carta para que a entregue, lhe explicando que aceita te ocupar disso.

Enquanto conversavam, Ian tinha estado investigando nos fardos descarregados das mulas.

-O que é isto? -perguntou, a ninguém em particular.

Mostrou-nos uma peça de metal escuro, terminada em ponta e com rudimentares través anos –

-Ferro para o lar. -Duncan agarrou a peça e a entregou ao Jamie-. Foi idéia da senhorita Eu.

-Ah, sim? Isso está muito bem. -O rosto do Jamie estava bronzeado por tantos dias ao ar livre e, apesar de tudo, o rubor se estendeu por ele-. Guarda-o, Sassenach. Benzeremos nosso lar antes de que Duncan se vá.

Estava profundamente emocionado pelo presente, mas não o entendi até que Ian me explicou isso- Terei que enterrar uma peça de ferro debaixo de um novo lar para assegurar bênções e prosperidade na nova casa. Era a bênção da Yocasta para nossa empresa. Aceitava o que Jamie tinha decidido e lhe perdoava pelo que podia ter parecido um abandono. Envolvi a peça de ferro em meu lenço e a guardei no bolso.

 

Dois dias mais tarde benzemos o lar, ainda sem paredes. Myers se tinha tirado o chapéu por respeito e Ian se lavou a cara. Cilindro também estava presente, igual à pequena cerda branca em representação de nosso «rebanho», embora não lhe encontrava sentido a que a separassem de sua comida para participar de um ritual onde era evidente a falta da mesma.

Jamie, fazendo caso omisso dos dilaceradores gritos de chateio da cerda, empunhou e! pequena faca de ferro, riscou uma cruz e disse com calma:

 

                 Senhor, benze o mundo e tudo o que contém.

                 Senhor, benze a minha esposa e a meus filhos.

                 me benza quando me levanto cedo pela manhã

                 e quando me deito de noite.

 

Estirou o braço e me tocou com o ferro, logo ao Ian e, com um sorriso, a Cilindro e a cerdita, antes de continuar:

 

Senhor, protege a casa e a família.

Permite que o fogo de sua bênção esquilo para sempre entre nós.

 

Jamie se ajoelhou ao lado do lar e colocou o ferro no pequeno buraco feito ao efeito. Tampou-o e, entre os dois, agarramos a pedra sobre a que acenderíamos o fogo, e a colocamos cuidadosamente em seu lugar.

Teria que me haver sentido bastante ridícula em uma casa sem paredes, com a presença de um lobo e uma cerda e rodeados pela solidão e as brincadeiras de um pássaro bobo, em um ritual mas bem pagão. Mas não era assim.

Jamie permaneceu frente ao novo lar e estirou uma mão para me aproximar dele. Recordei uma casa abandonada que tínhamos visto em nossa viagem ao norte. Os donos daquele lugar teriam bento também o lar e, de todos os modos, teriam fracassado? A mão do Jamie oprimiu a minha em uma forma inconsciente de me dar segurança.

Em uma rocha plaina, fora da cabana, Duncan acendeu um pequeno fogo com a ajuda do Myers. Logo agarrou um tição e caminhou ao redor dos alicerces da cabana cantando em gaélico. Jamie traduzia para mim o que Duncan cantava. detinha-se em cada ponto cardeal para saudar aos quatro ventos» e balançava o tição, que jogava faíscas. Cilindro desaprovava esses efeitos com alguns bufidos, mas Ian o fez calar.

Duncan deu a volta três vezes, porque eram muitos os versos. Quando chegou ao final, perto do novo lar, dava-me conta de que Jamie tinha situado a cabana de forma que a chaminé dava ao norte; o sol da manhã esquentava meu ombro esquerdo e nossas sombras se estendiam fazia o oeste.

Duncan se deteve ante a futura chaminé e entregou o tição ao Jamie para que acendesse a pira de lenha. Ian lançou uma exclamação em gaélico ao elevá-la chama e houve um aplauso geral.

 

Mais tarde, vimos a partida do Duncan e Myers. Não foram ao Cross Creek, a não ser ao Mount Helicón, onde os escoceses da região tinham uma reunião anual em outono para dar obrigado pelas boas colheitas, intercambiar notícias, fazer negócios, celebrar matrimônios e batismos e manter vivos os laços entre clãs e famílias.

Yocasta e a gente de sua casa estariam ali; quão mesmo Farquard Campbell e Andrew MacNeill. Era o melhor lugar para que Duncan começasse a procurar os homens do Ardsmuir: o do Mount Helicón era o major dos encontros de escoceses, que chegavam desde a Carolina do Sul e Virginia.

-Estarei aqui para a primavera, MAC Dubh –prometeu Duncan ao Jamie-. Com todos os homens que possa encontrar. Entregarei suas cartas. -Deu um golpe ao embornal que lhe pendurava da cadeira e se colocou o chapéu para proteger do forte sol de setembro-. Digo-lhe algo a sua tia?

Jamie pensou por um momento. Já tinha escrito uma carta a Yocasta, que mais podia acrescentar?

-lhe diga que não a verei na reunião deste ano, nem talvez na do próximo. Mas no seguinte, estarei ali sem falta e minha gente me acompanhará. Boa viagem, Duncan!

A partida me deixou uma estranha sensação de desolação.

Duncan era nosso último laço com a civilização. Agora estávamos realmente sozinhos.

Bom, não totalmente sozinhos, corrigi-me. Tínhamos ao Ian, por não falar de Cilindro, a cerda, três cavalos e duas mulas que Duncan nos tinha deixado para arar na primavera. A contemplação da cena me levantou o ânimo. Em um mês, a cabana estaria terminada e teríamos um teto sólido sobre nossas cabeças. E logo...

-Más notícias, tia -senti a voz do Ian em meu ouvido-. A cerda se comeu o que ficava de seu bolo de nozes.

 

                 O corvo branco

Outubro de 1.767

-«Corpo, alma e mente» -disse Jamie, traduzindo enquanto se inclinava para agarrar o extremo de outro tronco-. «O corpo para as sensações, a alma para a ação e a mente para os princípios. Entretanto, a capacidade para a sensação também a tem o boi, não há animal selvagem que não obedeça seus impulsos, inclusive os homens que são ateus e traidores a sua pátria, O..." Cuidado, homem!

Ian, ame o aviso, deu um passo atrás com a tocha.

-“... ou chegam a perpetrar toda classe de baixezas detrás de portas fechadas, têm mentes para lhes guiar pelo claro atalho do dever” -resumiu Jamie das Meditações de Marco Aurelio.

-Eu sinto uns impulsos em minha barriga -disse Ian-. Isso é mau?

-Acredito que é uma sensação normal a estas horas -aceitou Jamie, grunhindo pelo esforço de colocar o tronco em seu lugar-. Um poquito à esquerda, Ian.

O tronco encaixou no entalhe e os dois homens deram um passo atrás, lançando um suspiro de alívio. Ian sorriu a seu tio.

-Isso quer dizer que você também tem fome, né?

Jamie lhe devolveu o sorriso zombador, mas antes de que pudesse responder. Cilindro levantou a cabeça com as orelhas erguidas e um grunhido surdo. Ian voltou a cabeça para olhar e se deteve antes de secá-la cara com a aba da camisa.

-Temos companhia, tio -disse assinalando o bosque.

-Não lhes preocupem -pinjente divertida-. É seu antigo companheiro de caçadas, vem com o traje de visita.

 

Nacognaweto, o índio dos tuscarora que tinha açoitado o urso que Jamie matou, esperou cortesmente à sombra de um castanho até estar seguro de que o tínhamos visto.

Então, saiu lentamente do bosque seguido, não por seus filhos esta vez, mas sim por três mulheres, duas delas com grandes fardos sobre as costas.

Uma, a mais jovem, não tinha mas de treze anos e a outra, de uns trinta, era evidentemente a mãe da menina. A terceira era muito major; não devia ser a avó, pensei ao ver seu cabelo branco e seu corpo curvado, mas sim pelo menos a bisavó.

Tinham vindo especialmente vestidos para a visita, Nacognaweco tinha as pernas nuas, calçava botinhas de couro e vestia calções até os joelhos e uma camisa de tecido rosado rodeada com uma esplêndida bandagem adornada com couro de puercoespín e Conchitas brancas e celestes. Em cima levava um colete de couro adornado com contas de cores e uma espécie de me turve solto de cor azul sobre seu cabelo despenteado, com duas plumas de corvo pendurando detrás de uma orelha. Esta imagem se completava com jóias de prata e conchas e um aro, vários colares, uma fivela e pequenos adornos em seu cabelo.

As mulheres foram algo menos adornadas, mas era evidente que era sua melhor roupa: vestidos soltos até os joelhos, botas de couro e meias-calças. Avançaram em fila e se detiveram metade de caminho.

-meu deus -murmurou Jamie-, parece uma embaixada. –passou-se a manga pela cara e deu uma cotovelada ao Ian-. Te ocupe de saudar, Ian, volto em seguida.

Ian, algo perplexo, avançou para receber aos índios, agitando uma mão em um cerimonioso gesto de bem-vinda. Jamie me agarrou do braço e me empurrou dentro da casa ao meio construir.

-O que...? -comecei, confundida.

-Vístete -interrompeu, empurrando a caixa da roupa para mim-. Ponha sua roupa mais chamativa. Temos que ser respeitosos.

«Chamativa» era algo que não figurava em meu vestuário, mas fiz o que pude. Pu-me um vestido amarelo e substituí o lenço branco por uma bordada com cerejas que me tinha enviado Yocasta.

As mulheres me observaram com a mesma fascinação que eu a elas, mas ficaram atrás enquanto Jamie e Nacognaweto se ocupavam do cerimonial de servir e beber o brandy, ritual no que Ian estava incluído. Só então Nacognaweto fez um gesto e a segunda mulher se aproximou, inclinando a cabeça em uma tímida saudação.

-Bonjour, messieurs, madame -disse brandamente, nos olhando a todos.

Seus olhos se fixaram em mim com franco curiosidade, observando cada detalhe de meu vestuário, por isso me senti com direito a fazer o mesmo. Mescla de sangue? Francesa?

-Je suis safemme -disse com uma graciosa inclinação de cabeça para o Nacognaweto. Suas palavras confirmaram minha hipótese sobre sua origem-. Je m 'appelle Gabríelle.

-Mmm... je m'appelle CÍaire -disse com um gesto um pouco menos gracioso-. S'IL vous piaÍt... -assinalei os troncos para que se sentassem, me perguntando se haveria suficiente guisado de esquilo.

Enquanto isso, Jamie observava ao Nacognaweto entre irritado e divertido.

-«.Não francês», não? -disse-. Nenhuma palavra, imagino!

O índio lhe dirigiu um olhar profundamente sério e indicou a sua esposa por gestos que continuasse as apresentações.

A mulher maior era Nayawenne. Não era a avó do Gabrielle, como tinha pensado, a não ser a do Nacognaweto. Era magra, com os pequenos ossos deformados pelo reumatismo e olhos brilhantes como os de um pardal, ao que se parecia muito. Levava uma bolsita de couro pendurando do pescoço, adornada com uma pedra verde furada para poder trespassá-la e com as plumas da cauda de um pássaro carpinteiro.

Tinha uma bolsa maior atada à cintura. Viu que observava as manchas verdes da bolsa e sorriu, mostrando dois grandes dentes amarelos.

A menina era, como tinha suposto, a filha do Gabrielle, mas não do Nacognaweto, pensei; não se pareciam em nada e se comportava timidamente com ele. Seu nome era Berta e os efeitos da mescla de sangue eram mais evidentes nela que em sua mãe; seu cabelo era escuro e sedoso, castanho escuro mais que negro, e sua cara era redonda e fresca, com a cútis de uma européia, embora seus olhos tinham a forma dos dos índios.

Uma vez terminadas as apresentações oficiais, Nacognaweto fez um gesto a Berta, a qual obedientemente agarrou o vulto que carregava e o abriu ante meus pés, deixando ver uma grande cesta de cabaças alaranjadas com raias verdes, uma réstia de pescados secos, uma cesta mais pequena com batata-doces e um grande punhado de espigas de milho de milho.

-minha mãe! -murmurei-. Que magnífica extravagância!

Todos me olharam sem compreender; tive que sorrir e deixar escapar exclamações de prazer e alegria pelos presentes.

Não nos serviria para passar todo o inverno, mas ajudaria a melhorar nossa dieta durante um par de meses.

Nacognaweto nos explicou, através do Gabrielle, que era um pequeno e insignificante presente pelo presente do urso, que tinha sido recebido com grande deleite em sua aldeia, onde o valor do Jamie (neste ponto, as mulheres deixaram de me olhar e riram entre dentes, demonstrando que conheciam o episódio do urso) tinha sido centro de admiração.

Enquanto Gabrielle fazia de tradutora, a anciã, desoyendo os mútuos cumpridos, aproximou-se furtivamente a mim.

Sem nenhuma intenção de me ofender me aplaudiu com familiaridade, tocando minhas roupas, levantando o bordo de meu vestido para examinar meus sapatos e fazendo comentários para si mesmo em um suave e rouco murmúrio, que foi aumentando, até alcançar um tom de assombro quando chegou a meu cabelo.

Tirei-me as forquilhas e o deixei solto. A anciã agarrou um cacho de cabelo, estirou-o, soltou-o e ficou a rir até ficar esgotada.

Os homens olharam em nossa direção. Jaime estava mostrando ao Nacognaweto a construção da casa. Para este tipo de conversação masculina não necessitavam tradução, assim Gabrielle ficou em liberdade para conversar comigo. Seu francês tinha um acento estranho e estava cheio de giros, mas não tivemos problemas para nos entender.

Em pouco tempo, descobri que Gabrielle era a filha de um francês que comercializava com peles e de uma mulher da tribo dos furões; era a segunda esposa do Nacognaweto que, a sua vez, era seu segundo marido. O primeiro e pai da Berta era outro francês que tinha morrido na guerra entre índios e franceses, dez anos atrás.                              

Viviam em uma aldeia chama Anna Ooka (mordi-me a parte interior de minhas bochechas para não rir; sem dúvida «Nova Berna» lhes teria divulgado muito peculiar) a dois dias de viagem para o noroeste. Gabrielle indicou a direção com uma graciosa inclinação de cabeça.

Enquanto falava com o Gabrielle e Berta, me ajudando com gestos, fui dando conta de que se estava produzindo uma comunicação com a anciã. Tinha a estranha sensação de que falava comigo e eu com ela, sem ter que pronunciar uma só palavra.

Vi que Jamie, ao outro lado do claro, oferecia ao Nacognaweto o resto da garrafa de brandy; era evidente que tinha chegado o momento de oferecer presentes em troca dos recebidos.

Entreguei ao Gabrielle o lenço bordado e a Berta uma forquilha com adornos de cores; as duas lançaram exclamações de prazer. Para o Nayawenne, entretanto, tinha algo diferente.

Tinha tido a sorte de encontrar na semana anterior quatro grandes raízes de ginseng. Busquei-as em minha caixa de remédios e as coloque entre suas mãos com um sorriso. Olhou-me, sorriu e desatando a bolsita de sua cintura me entregou isso. Não precisava abri-la; podia sentir as quatro formas, largas e toscas. Então eu também ri. Decididamente falávamos o mesmo idioma.

Por curiosidade e por um impulso que não poderia descrever, perguntei ao Gabrielle sobre a bolsita que levava a anciã como amuleto, confiando em que não fora uma falta de educação.

-Grandmere est... -vacilou, procurando a palavra correta em francês, mas eu já a conhecia.

-Ps docteur, et ps sorciére, magicienne. Elle est... -eu também vacilei, depois de tudo, não havia uma palavra adequada em francês.

-Nós dizemos que ela é uma cantor -disse Berta timidamente em francês-. Chamamo-la shaman; seu nome significa «pode ser, pode acontecer».

A anciã disse algo, fazendo um gesto para mim. As duas mulheres mais jovens olharam assombradas. Nayawenne inclino a cabeça, tirou-se a correia de couro e colocou a bolsita em minha mão.

Era tão pesada, que me afrouxou a boneca e quase a sotaque cair. Assombrada, fechei a mão. O couro gaseado conservava o calor de seu corpo. Por um momento, tive a impressão de que na bolsa havia algo vivo.

Meu rosto deveu mostrar meu assombro, pois a anciã se desternillaba de risada. Estendeu a mão e lhe devolvi o amuleto rapidamente. Gabrielle interveio cortesmente, me dizendo que a avó de seu marido estaria encantada de me ensinar as novelo úteis que cresciam nos arredores, se queria acompanhá-la.

Aceitei o convite e a anciã empreendeu o caminho, com uma agilidade incrível para seus anos.

Durante um momento caminhamos paralelas ao arroio, seguidas a uma respeitosa distância pelo Gabrielle e Berta, que se aproximavam quando as necessitávamos como intérpretes.

Mas a maior parte do tempo nos entendemos muito bem com gestos. Quando chegamos ao grande lago no que tinham pescado trutas Ian e Jamie, Nayawenne se deteve e fez um gesto para que Gabrielle se aproximasse, disse-lhe algo e se voltou fazia mim com ar de surpresa.

-A avó de meu marido diz que sonhou contigo, na lua cheia de faz dois meses.

-Comigo?

Gabrielle assentiu. Nayawenne apoiou sua mão em meu braço e olhou intensamente minha cara para ver o impacto das palavras do Gabrielle.

-Ela nos falou do sonho: tinha visto uma mulher com...

-Seus lábios se crisparam, recompôs sua expressão e se tocou as pontas de seu comprido cabelo murcho-. Três dias mais tarde meu marido e seu filho retornaram, contaram-nos que se encontraram no bosque contigo e com o lhes Mata isso

Berta me observava com grande interesse, jogando com uma mecha de seu cabelo.

-Ela disse imediatamente que tinha que verte, assim quando soubemos que estava aqui...

Impaciente por essas coisas sem importância, Nayawenne disse algo e assinalou com firmeza a água.          

-A avó de meu marido diz que o sonho ocorreu aqui.-Gabrielle assinalou o lago e me olhou com grande seriedade-.Encontrou-se contigo de noite. A lua estava na água e você te converteu em corvo branco, voou pela água e te tragou a lua.

-Seriamente?

Confiei em que não fora nada sinistro.

-O corvo branco voltou voando e lhe deixou um ovo na palma da mão. O ovo se abriu e dentro havia uma pedra brilhante. A avó de meu marido soube que era um fato mágico, que a pedra podia curar enfermidades.

Nayawenne inclinou a cabeça várias vezes e procurou no interior da bolsa.

-O dia depois do sonho, a avó de meu marido foi procurar raízes de kinnea e no caminho viu algo azul no barro, à borda do rio.

Nayawenne tirou um pequeno objeto e o deixou cair em minha mão. Era cristal de rocha, tosco, mas indubitavelmente uma pedra preciosa. O coração da rocha era de uma cor azul profunda.

-É uma safira, verdade?

-Safira? -Gabrielle saboreou a palavra-. Nós a chamamos... -vacilou, procurando a tradução correta- Pierre sanspenr.

-Uma pedra valente?

Nayawenne falou e esta vez tocou a Berta traduzir.

-A avó de meu pai diz que uma pedra assim evita que a gente tenha medo, fortalece o espírito e faz que sanem mais rápido. até agora, a pedra curou a duas pessoas com febre e um problema nos olhos que tinha meu irmão pequeno.

Gabrielle interveio na conversação: -A avó de meu marido deseja agradecer seu presente.

-Ah...!, lhe diga que me alegro de que goste.

Saudei a anciã e lhe devolvi a pedra azul. Guardou-a na bolsa e se ajustou o cordão ao redor do pescoço.

-A avó de meu marido diz que agora tem poderes curativos, mas que terá mais. Quando seu cabelo seja branco como o dela, alcançará todo seu poder.

A anciã retrocedeu e disse algo mais. Gabrielle me olhou de modo estranho.

-Diz que não deve preocupar-se; a enfermidade é enviada pelos deuses. Não será tua culpa.      

Observei assombrada à anciã, mas já se deu a volta.                            

-O que é o que não será minha culpa? -pergunte, mas a anciã se negou a dizer nada mais.

 

                   A noite em uma montanha nevada

Dezembro de 1767

O inverno se atrasava; finalmente a noite de 28 de novembro começou a nevar e quando despertamos encontramos o mundo transformado. As agulhas do grande abeto azul que havia detrás da cabana estavam congeladas.

Não tínhamos velas de cera, unicamente abajures de graxa, velas de junco e a luz do fogo, que ardia constantemente no lar. Levantávamo-nos com as primeiras luzes e nos deitávamos depois do jantar, igual às criaturas do bosque que nos rodeava.

Ainda não tínhamos ovelhas e, por conseguinte, não havia lã para cardar e fiar, nem roupa que tecer. Tampouco tínhamos colméia, nem cera para ferver e fazer velas. Não tinha ganho para cuidar, salvo os cavalos, as mulas e a pequena cerda, que tinha crescido grandemente, tanto em tamanho como em irritabilidade, e em conseqüência tinha sido desterrada a um compartimento privado em um rincão das quadras que Jamie tinha construído.

Myers nos tinha deixado uma pequena, mas útil, seleção de ferramentas. Às partes de ferro devíamos lhes colocar as mangas feitas de madeira do bosque. Havia uma tocha para descascar e outra para cortar, uma grade de arado para semear, furadeiras, escovas, formões, uma pequena foice, dois martelos e uma serra, uma tocha de dobro fio e uma serra, duas facas pequenas bem afiadas, um restelo e uma cunha.

Jamie e Ian tinham conseguido terminar o teto da cabana antes de que começasse a nevar; os abrigos eram menos importantes. Sempre havia troncos de madeira perto do rogo, junto à cunha, para que qualquer que tivesse tempo cortasse mais lenhos.

Myers também tinha deixado coisas para mim: um grande canasto de costura com agulhas, alfinetes, tesouras, novelos de linho e partes de linho, musselina e lã.

-Outra mais!

Jamie se sentou na cama, a meu lado.

-Outra o que? -perguntei meio dormida, abrindo um olho.

-Outra maldita goteira! Tem-me cansado na orelha, maldição!

Saiu da cama, foi até o fogo e acendeu uma varinha para ter luz. Levantou sua tocha procurando no teto a perversa goteira.

-Mmm?

Ian, que dormia em um soalho de madeira, deu-se a volta com um grunhido. Cilindro, que insistia em compartilhar a cama com seu amo, emitiu um breve bufido.

-Uma goteira -informei ao Ian, vigiando ao Jamie, pois não pensava permitir que queimasse meu precioso colchão de plumas.

-Sim? -disse Ian- Outra vez nevou?

-Parece que sim.

As janelas estavam cobertas com couros de cervo lubrificados com azeite e não se ouviam os ruídos do exterior, mas o ar tinha essa característica especial que aparece com a neve.

Jamie considerava as goteiras como uma afronta pessoal.

-Olhe! -exclamou-. Ali está. Vê-a?

Levantei o olhar para o teto. A luz da tocha mostrava a mancha de umidade. Nesse momento se formou uma gota e caiu sobre o travesseiro.

-Podemos correr um pouco a cama -sugeri sem muitas esperanças.

Já tinha passado por isso outras vezes.

Jamie se baixou da cama e empurrou ao Ian com um pé.

-te levante e golpeia onde está a goteira. Eu subirei acima.

Procurou o martelo, a bolsa de pregos e uma tocha e se dirigiu à porta.

-Não suba ao teto assim! -exclamei, me incorporando bruscamente-. É sua melhor camisa de lã!

deteve-se, olhou-me com expressão de resignação, tirou-se a camisa e a deixou no chão.                    

-Estará bem, tía-assegurou Ian com um bocejo.

depois de uma série de golpes a goteira ficou arrumada. De volta na cama, Jamie apertou seu corpo gelado contra o meu e ficou dormido com a satisfação de um homem que defendeu seu lar contra qualquer ameaça.

 

Nossa situação na montanha era frágil mas ao menos tínhamos um teto. Não tínhamos muita carne, pois tinha havido pouco tempo para caçar algo mais que coelhos e esquilos, mas sim muitos vegetais secos, nozes e uma pequena provisão de ervas que eu tinha secado. Servia para uma dieta escassa, mas, organizando-se com cuidado, poderíamos sobreviver até a primavera.

Tínhamos poucas atividades que realizar no exterior e ficava muito tempo para conversar, para nos contar histórias e para dormir. Jamie se dedicou a esculpir as peças de um xadrez e tratava de nos convencer ao Ian e a mim de que jogássemos com ele.

Ian e Cilindro sofriam a febre do fechamento e visitavam Anna Ooka com freqüência para sair de caça com os jovens da tribo, quem agradecia os benefícios da companhia de Cilindro.

-O moço fala o idioma dos índios muito melhor que o grego ou o latim -comentou Jamie, observando como se intercambiava cordiais insultos com um de seus companheiros de caça.

-Bom, se Marco Aurelio tivesse escrito sobre a caça dos porco porco-espinhos, estou segura de que teria encontrado um auditório mais atento -respondi para lhe acalmar.

Embora queria muito ao Ian, não me desgostavam suas freqüentes ausências, pois havia momentos em que, decididamente, três eram multidão.

Quando Ian não estava, deitávamo-nos e ficávamos conversando. Um dos temas favoritos do Jamie eram as histórias sobre a infância da Brianna.

-Falei-te sobre aquela vez que fui a sua escola a falar do que significa ser médico?

-Não -disse, acomodando-se a meu lado-, por que teve que fazê-lo?

-Era o dia dos Ofícios. Os professores convidam a gente de distintas profissões para que os meninos aprendam no que consistem. Por exemplo um advogado, Ou um veterinário, que é um médico de animais, ou um dentista, que se ocupa dos dentes...

-Os dentes? O que ouvirá coisa se pode fazer, além de tirá-los?

-Surpreenderia-te. Bom, não importa, o certo é que me convidavam porque então não era muito comum que uma mulher fora médica.

-E agora o é?

Jamie riu e lhe dava uma suave patada.

-Bom, depois foi muito mais normal. Enquanto estava com os meninos, perguntei-lhes se queriam me perguntar algo e a gente disse que sua mãe dizia que as mulheres que trabalhavam não eram melhores que as prostitutas; que seu dever era ficar em casa em lugar de lhe tirar o trabalho aos homens.

-Suponho que sua mãe não conheceria muitas prostitutas.

-Imagino que não. Nem tampouco muitas mulheres que trabalhassem. Então Brianna se levantou e lhe disse em voz bem alta: Te vais alegrar de que minha mãe seja médica, porque vais necessitar uma!». Pegou-lhe na cabeça com um livro e, quando caiu, atirou-se em cima e começou a lhe dar murros na boca.

-Que menina mais valente! E o professor lhe pegou?  

-Na escola não pegam aos meninos. Teve que escrever uma carta desculpando-se com o pequeno animal e ele teve que me escrever outra . Brianna pensou que era justo. A parte mais incômoda foi descobrir que o pai do menino era médico, um de meus colegas do hospital.

-E suponho que tinha o posto que ele queria.

-Como o adivinhaste?

-Olhe. -Notei seu fôlego quente e espesso no pescoço-. Disse-me que ela estudava história, como Frank Randall. Alguma vez quis ser médica, como você?

-Sim, quando era pequena. Estava acostumado a levá-la ao hospital e jogava com meu estetoscópio, mas logo trocou de idéia. Trocou muitas vezes, a maioria dos meninos o fazem.

-Fazem isso?

Era uma novidade para o Jamie. A maioria dos meninos de sua época se limitavam a adotar a profissão de seus pais ou estes escolhiam por eles o que deviam aprender.

Quando terminei minha lista de todas as ocupações do século XX, estávamos frente a frente com as pernas entrelaçadas.

-Nunca soube se realmente queria estudar história ou se o fez por agradar ao Frank. Queria-o muito e ele estava muito orgulhoso dela.

Fiz uma pausa; sua mão percorria minhas costas.

-Se ela seguir com a história, crie que nos encontrará? Refiro a se encontrará algo em algum livro.

Essa idéia não me tinha ocorrido. Por um momento fiquei imóvel.

-Não acredito. Não, a menos que façamos algo notável. Mas não temos muitas possibilidades aqui- E, de todos os modos, teria que procurar deliberadamente.

-Fará-o?

-Espero que não -pinjente finalmente-. Deve ter sua própria vida e não esbanjar o tempo em olhar para o passado.

-É uma mulher muito inteligente, Sassenach, mas te falta perspicácia. Embora possivelmente seja só modéstia.

-E o que te faz dizer isso? -perguntei, algo molesta.

-Disse que a moça é leal. Amava tanto a seu pai para fazer o que lhe gostava, inclusive depois de sua morte. Crie que te queria menos a ti?

-Não -pinjente finalmente, com voz apagada.

-Bom, então...

Agarrou-me dos quadris e brandamente se colocou sobre mim. Não falamos mais e os limites de nossos corpos desapareceram.

Foi algo lento e cheio de paz, seu corpo era tão meu como o minha era dele. Quando estávamos a ponto de dormir senti o quente fôlego do Jamie em meu pescoço.

-Ela procurará -disse com segurança.

 

Dois dias mais tarde aumentou algo a temperatura e Jamie, poseído pela febre do fechamento, decidiu sair a caçar. Ainda havia neve, mas era uma capa magra e acreditava que seria fácil andar pelas ladeiras. Eu não estava tão segura, pensava enquanto juntava neve para derretê-la. Mas confiava em que tivesse razão, já que nossas provisões diminuíam e não tínhamos carne desde fazia uma semana.

Levei a neve e a joguei no grande caldeirão, me sentindo, como sempre que o fazia, como uma bruxa.

Ao princípio não me preocupei quando Jamie não retornou. Quer dizer, preocupei-me (sempre o fazia quando saía durante tanto tempo), mas tratava de sossegar minha inquietação e de me enganar a mim mesma. E quando o sol começou a ocultar-se comecei a emprestar atenção a todos os ruídos que pudessem anunciar sua chegada.

Fazia frio na cabana e saí a procurar mais lenha. Em um par de horas a escuridão seria total.

Queria ter um bom fogo para a noite. Jamie voltaria gelado depois de um dia de caça em meio da neve.

-Maldito homem -disse em voz alta-, O que tem feito? Caçar um alce?.

O ouvir minha voz me fez sentir algo melhor. Preparei a sopa e a cabana se encheu ao momento de aroma de cebolas e alho, mas eu não tinha apetite. Fechei a porta, comi um pouco, arrumei o fogo e me deitei para dormir. Certamente Jamie se teria encontrado com os homens da Anna Ooka e teria acampado com eles. Sabia viver ao ar livre. Tinha passado vários anos em uma cova de Escócia!, respondia-me eu mesma com cinismo, onde a fera mais feroz é o gato Montes e a pior ameaça humana, os soldados ingleses!

-Tolices! -pinjente e me dava a volta na cama-. É um homem grande, está armado até os dentes e sabe muito bem o que tem que fazer se nevar!

O que faria?, perguntei-me. Procurar ou construir um lugar para proteger-se. Se não estava ferido, provavelmente não morreria congelado.

Se não estava ferido, se não o tinham ferido. supunha-se que os ursos dormiam profundamente; mas os lobos caçavam no inverno e os pumas também. Ao recordar meu encontro na borda do arroio, estremeci-me. Na cabana fazia calor, mas de repente meus pés e minhas mãos se gelaram.

Apartei as mantas, levantei-me e me vesti rapidamente sem pensar no que estava fazendo. Já tinha pensado muito. Dava graças a Deus por minhas botas recém engorduradas que me protegeriam da umidade durante um bom momento.

Jamie se tinha levado a tocha, assim tive que cortar uma parte de pinheiro com um berço e um maço, amaldiçoando por minha lentidão enquanto o fazia. Uma vez decidida a atuar, qualquer atraso me irritava. Atei-me à cintura uma bolsita com remédios, pu-me a capa, agarrei a tocha e minhas coisas e saí ao exterior.

Não fazia tão frio como temia. Uma vez em movimento me sentia abrigada.

Jamie era um homem corpulento, assim estava segura de poder seguir seus rastros quando as encontrasse. Passei os castanhos que circundavam nosso claro para o oeste e segui costa acima. Não tinha um bom sentido da orientação, mas podia distinguir se subia ou baixava. Jamie me tinha ensinado a procurar marcos, grandes e fixos. Olhei em direção às cascatas. Não podia as ouvir, já que o vento devia soprar em outra direção e eram como uma mancha branca na distância.

Jamie me tinha explicado que quando a gente ia caçar, o vento tinha que soprar para o caçador, para que a presa não pudesse cheirá-lo. Perguntava-me com desgosto quem poderia me cheirar na escuridão. Não tinha armas, salvo minha tocha.

A primeira armadilha estava colocada em uma pequena garganta, a uns duzentos metros custa acima da cabana. Tinha estado com o Jamie quando a colocou. Percorri várias vezes o lugar até que encontrei o que procurava, a marca escura de umas pegadas.

Com muita lentidão fui seguindo seus rastros de uma armadilha a outra. A neve caía com mais intensidade e isso me fez sentir insegura. Se a neve tampava os rastros antes de chegar a ele, como encontraria o caminho para retornar à cabana?

-Bem -murmurei-. Está perdida. E agora o que?.

Contive um ataque de pânico e fiquei imóvel para pensar. Não estava totalmente perdida. Ainda tinha os rastros do Jamie para me guiar, ao menos as teria até que a neve as tampasse. E se o encontrava poderíamos voltar para a cabana.

O fogo da tocha ardia perigosamente perto de minha mão. Tirei outra dos ramos seca e a acendi, atirando a brasa antes de que me queimasse os dedos.

A quarta armadilha não estava vazia, mas a lebre já estava morta. Sua rigidez podia ser causa do frio ou do rigor mortis. Tratei de pensar com lógica, passando por cima o frio que intumescia meus dedos e minha cara. Não havia rastros do Jamie e a lebre estava na armadilha. Muito bem, então não tinha chegado até ali. portanto, entre a última armadilha e esta, Jamie tinha deixado seu caminho. Onde tinha ido?.

Com urgência, retrocedi procurando as últimas pisadas. Levou-me um tempo as encontrar, minha segunda tocha estava pela metade quando as vi. deteve-se Y... onde tinha ido?

-Jamie! -gritei.

Chamei várias vezes, mas a neve parecia apagar minha voz. Escutei, mas não ouvi nada. Jamie não estava detrás, nem frente a mim. À esquerda então, ou à direita?

Detive-me escutar. Era um grito de resposta? Gritei outra vez, mas ninguém respondeu. Dava outro passo e uma rocha geada me fez escorregar por uma ladeira cheia de barro. O coração me acelerou. Não era um precipício como tinha pensado e a queda não foi mais que de um metro e médio. Não era isso o que fazia agitar meu coração, a não ser o que viam meus olhos abaixo, no terreno baixo. Os sinais de algo grande que tinha esmagado os arbustos e tinha seguido caindo recordaram as desagradáveis marca deixadas pela lebre que pendurava de meu cinturão.

Com a incerta luz de minha tocha segui um caminho entre umas rochas, através de um grupo de flores de inverno Y... encontrei-o atirado ao pé de uma grande pedra, meio talher pelas folhas, como se alguém tivesse querido lhe tampar. Não estava encolhido para esquentar-se, mas sim jazia com a cara esmagada contra o chão, com uma imobilidade mortal.

Deixei cair minha tocha e com um grito de horror me atirei sobre ele.

Jamie grunhiu e se agitou baixo meu corpo. Apartei-me, com uma mescla de alívio e terror. Não estava morto, mas estava ferido- Onde?

-Onde? -perguntei, atirando de sua capa enroscada ao redor do corpo-, Onde te feriste? Está sangrando, tem-te quebrado algo?

Não podia ver manchas de sangue, posto que tinha atirado minha tocha e se apagou. Jamie estava frio e quase não podia falar. Mas ouvi como pronunciava «costas», tirei-lhe a capa e lhe rasguei a camisa, o que lhe fez grunhir. Coloquei as mãos entre a roupa procurando o buraco da bala. Deveram lhe disparar pelas costas, pensei, embora não via o sangue. Onde estava a bala? Não encontrava nada; tinha as costas geada, mas não tinha feridas.

-É você, Sassenach? -perguntou com voz sonolenta.

-Sim, sou eu! O que te passou? -quis saber, quase com indignação-. Disse que lhe tinham disparado pelas costas!

-Não, não o disse. Porque não foi assim -assinalou com lógica. Parecia tranqüilo e quase dormitado-. Dá-me o ar nas costas, Poderia cobri-la, Sassenach?

Coloquei-lhe a roupa lhe fazendo gemer de novo.

-Que diabos te passou? -perguntei.

-Ah, bom. Não é nada sério. Mas não posso me mover.

Olhei-o fixamente.

-por que? Torceste-te o pé? Tem-te quebrado uma perna?

-Ah... não -parecia envergonhado-. Eu... a ti... desloquei-me a coluna.

-Que você o que?

-Já me passou Outra vez -assegurou-me-. Dura um par de dias.

-Suponho que não pensaria agüentar dois dias atirado aqui e coberto pela neve.

-Me ocorreu, mas não podia fazer nada a respeito.

Então me dava conta de que eu tampouco podia fazer muito. Assustei-me quando notei que podia estar perto do congelamento.

-Acordada! -pinjente, lhe sacudindo. Abriu os olhos e me sorriu-. Te mova! Jamie, tem que te mover!

-Não posso -disse com calma-. Já te disse que não posso.

Fechou os olhos outra vez.

Agarrei-lhe uma orelha e lhe cravei as unhas. Grunhiu e moveu a cabeça.

-Acordada. Não me ouve? Desperta agora mesmo! te mova, maldição! me dê a mão.

-Estou bem, só muito cansado –disse.

-Move os braços -ordenei-. Pode mover as pernas?

Suspirou e murmurou algo em gaélico. Muito lentamente começou a mover os braços. Custou-lhe mover as pernas, porque lhe davam espetadas nas costas e, de muito má vontade, agitou os pés.

-Segue te movendo -adverti. Incorporei-me com certa dificuldade-. Segue te movendo. Se te detiver, juro-te que te piso nas costas.

-Agarra a tocha -disse entre dentes e assinalou um grupo de árvores próximas com a cabeça-. Ramos- grandes, de dois metros. Curta quatro. -Respirava pesadamente, mas havia cor em seu rosto e lhe tocavam castanholas os dentes. Eram bons sinais e me alegrei.

-Bem -pinjente-. Ramos grandes, não?

E agarrei a tocha.

Assentiu estremecendo-se violentamente.

Escolhi os ramos mais baixa. Custou-me bastante porque tinha as mãos intumescidas pelo frio e a madeira estava verde e elástica. Finalmente cortei quatro ramos largos e cheias de folhas.

Arrastei-as até a rocha e encontrei ao Jamie metido entre as folhas, para proteger do frio. Baixo sua direção apoiei os ramos na rocha, cravando os extremos na terra para formar um pequeno refúgio triangular. Logo agarrei outra vez a tocha e cortei ramos de pinheiro e as coloquei junto com molhos de erva seca na parte superior. E, finalmente, ofegando pelo cansaço, arrastei-me ao lado do Jamie.

Cobrimo-nos com a capa e lhe aconteceu os braços pelo corpo. Logo comecei a tremer. Sentia-me aliviada mas tinha medo.

-Tudo vai sair bem, Sassenach -disse Jamie ao me sentir tremer-. Se estivermos juntos, tudo sairá bem.

-Sei -pinjente e apoiei minha cabeça sobre suas costas-. Quanto tempo faz que está aqui?

ia encolher se de ombros, mas o gesto lhe arrancou um gemido de dor.

-Um bom momento. Tinha passado o meio-dia quando me caí de uma rocha. Não era muito alta, mas ao apoiar o pé as costas fez falência e quão seguinte soube foi que estava atirado no barro, com a sensação de que me tinham parecido uma faca nas costas.

-me diga onde te dói -pinjente, confiando em que não lhe tivesse deslocado uma vértebra.

A espantosa possibilidade de que ficasse inválido para sempre cruzou por minha mente, junto com as considerações práticas sobre o que faria para lhe tirar dali. Teria que lhe deixar e lhe alimentar até que se recuperasse?

-Aqui -disse com um gemido-. Sim, é aqui. Se me mover, a dor corre pela parte de atrás da perna, como se passasse um arame ardendo.

Toquei-o com cuidado, com ambas as mãos, apertando e fazendo que levantasse uma perna e logo a outra.

-Disse que te tinha acontecido antes. Quando?

-Ai! Maldição, aí dói. Na prisão.

-A dor era no mesmo lugar?

-Sim.

Notei um nó no músculo da parte direita, justo debaixo do rim, e uma contractura nos extensores, os músculos largos que há ao lado do espinho dorsal. Por sua descrição do episódio anterior, estava segura de que só era um severo espasmo muscular. E para isso, o tratamento adequado era calor, repouso e um antiinflamatorio.

-Suponho que poderia tentá-lo com acupuntura -pinjente, pensando em voz alta-. Tenho as agulhas em minha bolsa Y...

-Sassenach -disse com calma-, posso suportar a dor, o frio e a fome. Mas não vou deixar que minha própria esposa me chave agulhas nas costas. Não poderia me oferecer um pouco de simpatia, em lugar disso?.

Ri e me apertei contra seu corpo.

-Né... que classe de simpatia te passa pela cabeça?

Sujeitou-me a mão para acautelar ulteriores avanços.

-Não é isso -respondeu.

-Poderia apartar sua mente da dor -quis mover os dedos e Jamie os sujeitou com mais força.

-Não o duvido, Sassenach -disse secamente-. Uma vez que retornemos a casa e tenha uma cama para me deitar e uma sopa quente em meu estômago, a idéia me parecerá tentadora. Mas agora, só de pensá-lo... Mulher, tem idéia do frite que estão suas mãos?

Apoiei minha bochecha em suas costas e ri.

Até que, finalmente, ficamos em silêncio escutando o som da neve. Estava escuro mas meus olhos se acostumaram e pude distinguir a cabeça do Jamie, seu cabelo e seu pescoço.

-Que hora crie que é? -perguntei. Eu não tinha nem idéia.

-Tarde -respondeu-. Embora falta bastante para o amanecer-acrescentou, adivinhando o que queria lhe perguntar-. É uma das noites mais largas do ano.

-Que sorte! -disse com desalento.

Tinha deixado de tremer, mas ainda não sentia os dedos dos pés. A respiração do Jamie se fez mais lenta e mais profunda.

-Não durma! -disse com ansiedade, lhe apertando o braço.

-Ai!por que não?

-Se dormimos poderíamos nos congelar e morrer.

-Não, não nos acontecerá. Fora está nevando e logo estaremos talheres.

-Já sei -pinjente, algo molesta-. E isso o que tem que ver?

-A neve está fria ao tocá-la -explicou com impaciência-, mas mantém o frio fora, atua como uma manta. Resulta muito mais quente uma casa coberta de neve que uma poda e exposta ao vento. Como crie que fazem os ursos para dormir durante o inverno e não congelar-se?

-Têm grande quantidade de graxa –protestei-. Acreditava que isso lhes mantinha quentes.

-Ja, ja -respondeu-. Bom, não precisa preocupar-se, né?

-Então, está seguro de que não vamos morrer congelados?

-Não -disse.

-Mmm. Bom, talvez seria melhor permanecer acordados um momento. Só se por acaso as moscas, né?

-Mas não vou seguir agitando os braços -disse com determinação-.E se me põe as mãos geladas no traseiro te juro que te estrangulo.

-Está bem, está bem. E se em lugar disso lhe conto um conto.

Aos montanheses gostava das histórias e Jaime não era uma exceção.

-Sim -disse com alegria-. Que classe de conto?

-Um conto de Natal. Sobre um senhor chamado Ebenezer Scrooge.

-Um inglês, suponho.

-Sim -respondi-. Fica aquieto e escuta.

Conhecia muito bem a história porque formava parte de nosso ritual natalino, do Frank, da Brianna e meu. Todos os anos liam por turnos antes de nos deitar o Conto de Natal de Dickens.

-«Deus benza a todos» -terminei e ficamos em silêncio.

A escuridão era major porque a neve havia talher todas as aberturas.

-Ponha suas mãos dentro de minha camisa, Sassenach -disse Jamie brandamente.                            

Oprimiu-me uma mão contra seu peito. Agora estava quente e seu coração pulsava com força baixo meus dedos.

-Dorme, a nighean donn, não vou deixar que te congele -disse.

 

Despertei bruscamente com a mão do Jamie apertando minha coxa.

-Shh, quieta -disse brandamente.

A luz tinha trocado. Já era de dia. Sons apagados provinham de fora. Ouvi um débil eco de vozes que Jamie deveu ter escutado antes e me agitei nervosa.

-Quieta! -disse outra vez com um feroz sussurro e me apertou a perna com mais força.

As vozes se aproximavam e se podiam entender as palavras. Eram índios que falavam um dialeto diferente ao tuscarora, com distinto ritmo.          

Tinha sentimentos opostos. Por um lado tinha chegado a ajuda que tanto necessitávamos, a julgar pelos sons eram vários homens, suficientes para mover ao Jamie com segurança. E por outro lado, devíamos atrair a atenção de um grupo de índios desconhecidos que podiam ser inimigos?

A julgar pela atitude do Jamie, parecia que não devíamos. apoiou-se em um cotovelo e tinha a faca na mão direita. Pensativo, arranhou-se o queixo enquanto tratava de ouvir as vozes que se aproximavam.

Os índios estavam ao outro lado da arvoredo e discutiam por algo. Uma idéia me pôs a carne de galinha, deviam ter visto os ramos cortados. Teria nevado o suficiente para cobrir meus rastros até nosso refúgio?

produziram-se movimentos entre as árvores e, de repente, apareceram, vestidos com couro e peles e alguns com capas ou mantas além de sua perneiras e botas. Levavam vultos com mantas e provisões e, a maioria, tinham o calçado para a neve pendurando das costas. Era evidente que a neve não era tão espessa como para que os necessitassem.

Foram armados com uns poucos fuzis e tochas de guerra penduravam dos cinturões. Seis, sete, oito... contei em silêncio enquanto apareciam em fila, cada homem pisando sobre os rastros do precedente. Um dos de atrás disse algo rendo e o de diante respondeu, mas suas palavras se perderam no vento.

Então me dava conta de que o vento devia soprar em nossa direção, trazendo o som de suas vozes. Não, nem sequer os cães poderiam cheiramos. Mas veriam os ramos de nosso refúgio?

O último homem apareceu ante nós. Era um jesuíta.

-Chama-os! -sussurrei-. São cristãos, têm que sê-lo para levar com eles a um sacerdote. Não nos farão mal.

-Não -respondeu-. Não, pode ser que sejam cristãos, mas... -Sacudiu a cabeça-. Não.

Não tinha sentido discutir com ele.- Fiz um gesto de resignação.

-Como está suas costas?

estirou-se e se deteve afogando um grito.

-Não muito bem, né? -pinjente, com uma mescla de simpatia e sarcasmo.

Olhou-me insultante e se deslizou em sua cama de folhas fechando os olhos.

-Imagino que já haveria pensado em uma forma engenhosa de baixar da montanha, não? -perguntei com amabilidade.

Abriu um olho.

-Não -disse fechando-o de novo.

Era um dia frio mas brilhante e o sol fazia que a neve das árvores caísse em forma de flocos. Agarrei um e o coloquei dentro de sua camisa. Deixou sair o ar entre seus dentes, abriu os olhos e me olhou com frieza.

-Estava pensando -informou-me.

-Sinto te interromper.

Movi-me e meu estômago fez ruído. o do Jamie já tinha protestado antes de forma contundente. Teríamos que começar a pensar no assunto da comida.

-Quieta -disse ofendido-. Bom -continuou-, esperará um pouco para te assegurar de que seus selvagens estejam longe e então irá à cabana Y...

-Não sei onde está.

Soltou um pequeno bufido de impaciência.

-Como me encontrou?

-Segui seus rastros -disse com certo orgulho-. Mas não acredito que possa fazê-lo de novo.

-Ah! -Pareceu impressionado-. Bom, muito engenhoso por sua parte, Sassenach. Mas não se preocupe, posso te dizer como encontrar o caminho.

-Bem. E depois o que?

-Trará um pouco de comida e uma manta. Em poucos dias poderei voltar a me mover,

-te deixar aqui? -Olhei-o zangada.

-Estarei bem.

-Comerão-lhe os lobos!

-Já o pensei -disse sem lhe dar importância-. O mais provável é que estejam ocupados com o alce.

-Que alce?

-que matei ontem. Disparei-lhe na nuca mas não morreu em seguida. Estava-o seguindo quando me caí, não acredito que tenha ido muito longe. Suponho que a neve cobriu o corpo, pois do contrário nossos amigos o teriam visto.

-Matou um alce que atrairá aos lobos como moscas e propõe ficar aqui te congelando, esperando a que cheguem. Imagino que pensará que quando voltarem pela segunda vez estará tão congelado que não te dará conta se começarem a te comer pelos pés.

-Não grite. Os selvagens podem estar perto.

ia fazer outros comentários quando Jamie me deteve acariciando minha bochecha.

-Claire -disse com afeto-, você não pode me mover. Não se pode fazer outra coisa.

-Sim se pode -pinjente, reprimindo um tremor em minha voz-. Fico contigo. Trarei mantas e comida mas não vou deixar te sozinho. vou trazer lenha e acenderei um fogo.

-Não há necessidade. me posso arrumar isso eu sozinho -insistiu.

-Mas eu não posso -pinjente, recordando as horas de espera na cabana.

Jamie se deu conta de que o dizia a sério e sorriu.

-Bom, então também poderia trazer uísque, se é que fica algo.

-Há meia garrafa -disse com alegria.

Rodeou-me com um braço e me apoiou sobre seu ombro. Estava razoavelmente quente baixo tas capas. Sua pele tinha um aroma quente e salgado e não pude resistir a pôr meus lábios no oco de sua garganta.

-Ah! -disse, estremecido-. Não faça isso!

-Você não gosta?

-Não, eu não gosto! Como poderia me gostar de? Faz-me sentir um formigamento na pele.

-Bom, pois eu gosto -protestei.

Olhou-me divertido.

-Você gosta?

-Sim -assegurei-lhe-. eu adoraria que me mordesse o pescoço.

Entrecerró os olhos com gesto de dúvida. Logo me moveu a cabeça, passou-me a língua pela garganta e brandamente me mordiscou o pescoço.

-Sua boca era cálida e suave e, aprovasse ou não o que estava fazendo, o fazia terrivelmente bem.                  

-Oooh! -pinjente e me estremeci de prazer.

Em um momento dado tive a estranha sensação de que alguém nos vigiava. Incorporei-me apoiada sobre as mãos e olhei através da tela de folhas. Não vi nada.

Jamie grunhiu.

-O que acontece? por que pára?

-Pareceu-me que tinha ouvido algo -pinjente e então ouvi uma risada diretamente em cima de minha cabeça.

Dava-me a volta entre as folhas e os ramos de pinheiro enquanto Jamie amaldiçoava e procurava sua pistola.

Do topo da rocha várias cabeças sorridentes nos espiavam. Eram Ian e quatro companheiros da Anna Ooka. Os índios riam como se tivessem visto algo incrivelmente gracioso.

-Que diabos está fazendo aqui, Ian?

-Voltava para casa para passar o Natal com vós, tio -disse Ian com um sorriso zombador.

Jamie olhou a seu sobrinho com marcado desgosto.

-Natal -disse-. Ora, farsante.

 

O alce se congelou durante a noite. Seus olhos cristalizados me produziram calafrios, não por sua morte, mas sim pela idéia de que Jamie também teria podido morrer do mesmo modo. Então este episódio se titulou "Escocês morto na neve», em lugar de «Alce congelado entre índios discutindo».

A discussão terminou de forma satisfatória. Ian me informou que tinham decidido retornar a Anna Ooka mas que nos ajudariam a chegar até casa em troca de compartilhar a carne do alce.

Tiraram-lhe as vísceras, cortaram-lhe a cabeça para aliviar o peso e dois dos homens penduraram o corpo de barriga para baixo com as patas atadas. Jamie os observava sombrio, era evidente que pensava que foram dar o mesmo tratamento. Mas Ian lhe assegurou que o levariam em um rastro. Viajavam a pé mas tinham uma mula para carregar as peles.

No caminho me lembrei do misterioso grupo de índios e me aproximei do Ian.

-Ian, justo antes de que você e seus amigos nos encontrassem vimos uns índios com um Sacerdote jesuíta. Acredito que não eram da Anna Ooka. Tem idéia dos quais poderiam ser?

-Sim, tia. Sei tudo sobre eles. Estávamo-los seguindo quando lhes encontramos.

Aqueles índios, disse-me, eram mohawk que vinham do norte. Os tuscarora tinham sido adotados pelos iroqueses uns cinqüenta anos atrás, tinham uma boa relação com os mohawk e se faziam visitas periódicas, tão formais como informais. Agora uma partida de jovens mohawk ia em busca de algemas.

-Uma mulher deve pertencer ao clã adequado –explicou Ian-. Se estiver no clã equivocado não pode casar-se.

-Como os MacDonald e os Campbell? -interveio Jamie interessado.

-Estraga, parecido -disse Ian com um sorriso-. Por isso levam o sacerdote com eles. Se encontrarem mulheres se casarão imediatamente e não terão que dormir em uma cama fria durante a volta.

-Então, são cristãos?

Ian se encolheu de ombros.

-Alguns. O jesuíta está com eles faz bastante tempo e muitos furões se converteram. Mas não tantos mohawk.

-Estiveram na Anna Ooka? -perguntei com curiosidade-, por que os seguiam você e seus amigos?

Ian soprou com desprezo.

-Podem ser aliados, tia, mas isso não significa que Nacognaweto e seus homens confiem neles. Inclusive as outras nações da liga iroquesa têm medo dos mohawk, cristãos ou não.

 

Era perto do pôr-do-sol quando avistamos a cabana. Tinha frio e estava cansada mas meu coração se animou ao ver nossa pequena propriedade. Uma das mulas, uma pequena criatura cinza chamada Clarence nos viu e zurrou entusiasmada, contagiando aos cavalos, ansiosos de receber comida.

-Os cavalos estão bem –disse Jamie, mais preocupado pelo bem-estar de quão animais eu, que só desejava um pouco de calor e comida.  

Convidamos aos amigos do Ian mas não aceitaram, deixaram ao Jamie na porta e se desvaneceram rapidamente para continuar a perseguição dos mohawk.

-Não gostam de ficar em casa de pessoas brancas -explicou Ian-. Dizem que cheiramos mau.

-Seriamente? -pinjente, recordando ao ancião que tinha conhecido na Anna Ooka, que cheirava como se fora talher de graxa de urso.

É como dizer que o morto se assusta do degolado.

 

Mais tarde, já com uns goles de uísque no corpo e em nossa própria cama, escutava os roncos pacíficos do Ian e observava as chamas do fogo.

-É bom estar em casa outra vez -pinjente.

-É-o -suspirou Jaime e me aproximou mais a ele-. Tive uns sonhos muito estranhos dormindo com aquele frio.

-Sim? O que sonhou?

-Toda classe de coisas. -Parecia um pouco envergonhado-. Sonhei com a Brianna uma e outra vez.

-Sério? -disse com assombro, pois eu também tinha sonhado com a Brianna em nosso refúgio gelado.

-Estava-me perguntando... -Jamie vacilou um momento-, Tem alguma marca de nascimento? E se a tem, havia-me isso dito?

-Tem-na mas não é visível -pinjente lentamente enquanto pensava-. Não acredito que lhe haja isso dito. Passaram anos até que eu a notei. É...

Sua mão me apertou o ombro para que me calasse.

-É uma pequena marca cor castanha, do tamanho de um diamante e justo debaixo de sua orelha esquerda. É assim?

-Sim. -Na cama fazia calor, mas um calafrio na nuca me fez estremecer-. Viu-a em seu sonho?

-Dava-lhe um beijo sobre ela -respondeu brandamente.

 

                     O resplendor de uma antiga chama

Oxford, setembro de 1970

-Ai, joder. -Roger tinha permanecido sobre aquela página até que as letras perderam seu significado, convertendo-se em ininteligíveis desenhos-. Maldita seja! -exclamou.

inclinou-se sobre o livro cobrindo-o com os antebraços e com os olhos fechados. sentia-se chateado e as Palmas de suas mãos estavam fritem e suadas. Por último, depois de tragar o sabor amargo que sentia na garganta, olhou outra vez. Ainda estava ali. Uma pequena notícia Aparecida em um periódico impresso em 13 de fevereiro de 1776 na colônia norte-americana da Carolina do Norte, na vila do Wilmington.

Com dor recebemos a notícia da morte do James MacKenzie Fraser e sua esposa, Claire Fraser, a conseqüência de um incêndio que destruiu sua casa na Colina do Fraser a noite de 21 de janeiro passado. O senhor Fraser, sobrinho do defunto Héctor Cameron da plantação do River Run, tinha nascido no Broch Tuarach, Escócia. Era muito conhecido e profundamente respeitado na colônia; não deixa filhos.

Mas os houve.

Roger tratou de aferrar-se a tênue esperança de que não fossem eles. depois de tudo. James Fraser era um nome muito comum. Mas não James MacKenzie Fraser, com uma esposa chamada Claire e nascidos no Broch Tuarach, Escócia.

assim, Claire o tinha encontrado. Tinha encontrado a seu galante highlander e desfrutado, ao menos, uns anos com ele. Esperava que tivessem sido bons. Claire Randall lhe tinha gostado de muito; não, isso era pouco; para ser sincero tinha que dizer que a tinha querido e lhe tinha desejado tão bem como a sua filha.

Mais que isso. Tinha desejado que encontrasse ao Jamie Fraser e que fora feliz com ele. Sabê-lo, ou mais exatamente, a esperança de que assim tivesse sido, era um pequeno talismã para ele, um testemunho de que o amor duradouro era possível, um amor tão forte para suportar separação e penúrias, o bastante forte para sobreviver ao tempo. Mas toda carne é mortal e nenhum amor pode superar esse fato.

agarrou-se ao bordo da mesa tratando de recuperar o controle. Tolo, disse-se. sentia-se tão necessitado como depois da morte do reverendo, como se se tivesse ficado de novo órfão.

Não podia dizer-lhe ao Bri, não podia. Isto supunha para ele um novo golpe. Ela conhecia o risco, é obvio, mas... não, nunca se tivesse imaginado algo assim.

A impressão começava a atenuar-se um pouco, mas a dor se instalou no fundo de seu estômago como uma úlcera. Era um intelectual e filho de um erudito. Tinha crescido rodeado de livros e desde sua infância estava convencido de que a letra escrita era sagrada. sentiu-se como um assassino quando tirou o canivete e o abriu, olhando de esguelha para assegurar-se de que ninguém o observava.

Atuava por instinto, como o homem que cobre os corpos depois de um acidente para tampar os rastros do desastre embora a tragédia seja impossível de tampar. Com a folha arranco escondido em seu bolso saiu da biblioteca e caminhou baixo a chuva pelas ruas de Oxford.

O passeio lhe tranqüilizou e pôde pensar racionalmente outra vez, deixar seus próprios sentimentos a um lado e planejar o que devia fazer para proteger a Brianna e lhe evitar uma dor muito mais profundo de que sentia ele.

Tinha controlado a informação bibliográfica do livro. Publicado em 1906 por uma pequena editorial inglesa, não era fácil de conseguir, embora Brianna podia encontrá-lo por seus próprios meios. Tampouco era uma fonte lógica onde consultar a classe de informação que procurava ela, pois se titulava Cantos e baladas do século XVIII. Mas sabia bem que a curiosidade do historiador pode conduzir a lugares inesperados.

Não havia forma de assegurar-se de que Brianna não chegasse a ver um exemplar do livro; podia ser o único que ficava ou podiam existir centenas de exemplares distribuídos pelas bibliotecas dos Estados Unidos, atuando como bombas relógio.

A dor de seu estômago piorava. Estava empapado e congelado. Em seu interior, um novo pensamento lhe produziu um intenso calafrio. Se Brianna o descobria, o que faria?

sentiria-se destroçada, sacudida pela dor. Mas e depois? Ele estava convencido de que as coisas do passado não podiam trocar-se; tudo o que Claire lhe tinha contado lhe tinha feito estar convencido disso. Claire e Jamie Fraser trataram de evitar a matança do Culloden sem nenhum resultado.

Ela tinha tratado de salvar a seu futuro marido, Frank, salvando a seu antepassado Jack Randall e tinha fracassado, mas descobriu que Jack não tinha sido o antepassado do Frank, só se tinha casado com a jovem grávida de seu irmão para legitimar assim à criatura depois da morte de este.

Não, o passado podia retorcer-se como uma serpente, mas não podia trocar-se. Entretanto, não estava seguro de que Brianna compartilhasse sua convicção.

«Como se pode estar de luto por um viajante do tempo?», tinha-lhe perguntado Brianna. Se lhe mostrava a notícia do livro poderia chorar por eles. O saber o a danificaria terrivelmente, mas se curaria e poderia deixar atrás o passado. Se não fora... se não fora pelas pedras do Craigh na Dun. O círculo de pedras e a aterradora possibilidade que representava. Claire tinha passado através delas dois anos antes, na antiga festa do fogo do Samhain, o primeiro dia de novembro.

Roger se estremeceu e não pelo trio. Cada vez que pensava nisso o pêlo da nuca lhe arrepiava. Tinha sido uma manhã clara de um outono aprazível. Era a madrugada da festa de Todos os Santos e nada turvava a paz da colina coberta de erva, onde o círculo de pedras permanecia vigilante. Nada até que Claire tocou a grande pedra gretada e se desvaneceu para o passado. Aquele dia, a terra pareceu desintegrar-se baixo seus pés e o ar o arrastou com um rugido que ressonou em sua cabeça como um cañonazo. Tinha-lhe cegado uma rajada de luz a que seguiu uma profunda escuridão.

Em um ato reflito tinha pego a mão da Brianna e a tinha apertado. Foi como se lhe atirassem água geada desde trezentos metros de altura, a vertigem foi tão terrível e a impressão tão intensa que não pôde sentir outra coisa. Cego e surdo, privado de seus sentidos, teve dois últimos pensamentos: "Estou-me morrendo —pensou com calma e logo—: Não a solte».

O sol do amanhecer tinha esboçado um brilhante caminho através da greta pela que tinha passado Claire. Quando finalmente Roger levantou a cabeça, o sol do entardecer brilhava com tons dourados e lavanda detrás da pedra, negra agora contra o céu brilhante.

Estava em cima de Brianna, protegendo-a com seu corpo.

A jovem estava inconsciente mas respirava, com o rosto terrivelmente pálido em contraste com o vermelho escuro de seu cabelo. Era inútil tentar arrastá-la até o carro. Brianna, digna filha de seu pai, media quase metro oitenta, uns poucos centímetros menos que Roger.

ficou com a cabeça da jovem apoiada sobre suas pernas, tiritando e lhe acariciando a cara até que à posta do sol Brianna abriu os olhos azuis e escuros como o céu e sussurrou:

-foi-se?

-Tudo foi bem -tinha sussurrado Roger como resposta, enquanto lhe beijava a frente-. Tudo foi bem, eu te cuidarei.

E o dizia a sério. Mas como?

 

Já tinha escurecido quando retornou a sua habitação. tirou-se a roupa molhada e ficou nu, com a toalha na mão, contemplando seu escritório e a caixa de madeira onde guardava as cartas da Brianna. Faria algo para lhe evitar essa dor. E faria muito mais para salvar a da ameaça das pedras.

Claire havia tornado atrás, esperava, desde 1968 a 1766 e tinha morrido em 1776. Agora estavam em 1970. Uma pessoa que viajasse agora poderia chegar em 1768. Haveria tempo. Isso era o pior de tudo, que haveria tempo.

Se Brianna pensasse como ele ou se a pudesse convencer de que o passado não pode trocar-se, poderia viver durante os próximos sete anos, sabendo que a janela da oportunidade se estava fechando, que sua única possibilidade de conhecer seu pai e de ver de novo a sua mãe desaparecia dia detrás dia? Uma coisa era deixá-la ir saber onde estava ou o que lhe tinha acontecido e outra muito distinta era sabê-lo explicitamente e não fazer nada por evitá-lo.

Conhecia a Brianna desde fazia mais de dois anos, embora tinham estado juntos só uns poucos meses. Entretanto, conheciam-se muito em alguns aspectos, Como não ia ser assim, depois de compartilhar tal experiência? Também estavam as cartas e as breves férias que lhe deixavam com uma mescla de encantamento e frustração.

Sim, conhecia a Brianna. Era tranqüila mas possuía uma feroz determinação que não a deixaria render-se ante a dor sem antes lutar. E, embora era cautelosa, uma vez que tinha decidido algo atuava com horrível diligencia. Se decidia arriscar-se a fazer a viagem, não poderia detê-la. O único que lhe aterrorizava mais ainda era pensar que podia perder a Brianna antes de havê-la tido de verdade. Nunca lhe tinha mentido. Mas enquanto a impressão e a dor se aplacavam lentamente, em sua mente se ia formando um plano.

Uma carta podia fazê-lo. Teria que ser um processo lento de sugestão e amável disuasión. Pensou que não seria difícil, além do relatório sobre o incêndio da imprensa do Fraser no Edimburgo, não tinha encontrado nada em um ano de busca em Ardia. Ao pensar nas chamas se estremeceu involuntariamente. Agora sabia por que tinham emigrado pouco depois, embora não tinha encontrado seus rastros nos registros dos navios que tinha investigado.

Poderia lhe sugerir que já era hora de abandonar. Deixar que o passado descansasse e que os vivos enterrem aos mortos.

Seguir procurando poderia converter-se em uma obsessão. Com muita sutileza poderia lhe sugerir que não era saudável olhar tanto para o passado, que tinha chegado o momento de olhar para o futuro. Que nenhum de seus pais estaria de acordo em que desperdiçasse sua vida em uma busca inútil.

«Eu te cuidarei», havia-lhe dito e assim o pensava. Ocultar uma verdade perigosa era o mesmo que mentir? Bom, se era assim, então mentiria. Dar o consentimento para fazer algo mau era um pecado, tinha ouvido de menino. Estava disposto a arriscar sua alma por ela e o faria de boa vontade.

Procurou um lápis em uma gaveta. Logo se deteve, inclinou-se e colocou dois dedos no bolso das calças molhadas. A folha estava enrugada e empapada, quase destruída. Com mão firme a rompeu em pedacinhos, sem lhe importar o frio suor que corria por sua cara.

 

                   A caveira debaixo da casca

Havia- dito ao Jamie que não me importava viver longe da civilização. Onde houvesse gente haveria trabalho para uma curadora.

Duncan tinha completo com seu encargo e retornou na primavera de 1768 com oito homens que tinham estado no Ardsmuir. Tinham chegado com suas famílias, preparados para instalar-se na Colina do Fraser, como agora chamavam o lugar. O assentamento contava já com umas trinta pessoas, por isso a necessidade de meus serviços se fez imediata para suturar feridas e curar febres, abrir forúnculos e raspar gengivas infectadas. Duas das mulheres estavam grávidas e tive a alegria de ajudar a nascer a duas saudáveis criaturas, um menino e uma menina, ambos a começos da primavera.

Minha fama (se se pode chamar assim) como curadora, muito em breve se estendeu fora de nossa pequena colônia e me encontrei requerida desde lugares cada vez mais longínquos. Atendi enfermidades em granjas isoladas, disseminadas em cinqüenta quilômetros à redonda de um terreno montanhoso. Também ia alguma vez com o Ian até a Anna Ooka, para ver o Nayawenne e retornar com cestas e potes cheios de ervas que me podiam resultar úteis.

Ao princípio Jamie tinha insistido em que ele ou Ian acompanhariam aos lugares mais afastados, mas muito em breve ficou claro que nenhum dos dois podia apartar-se das tarefas da granja. Assim que cada vez mais freqüentemente ia sozinha quando algum desconhecido aparecia súbitamente no pátio de entrada perguntando por uma curadora ou uma parteira.

Nunca pedia que me pagassem, mas sempre me ofereciam algo e como fomos pobres, todo nos vênia bem.

Meus pacientes provinham de vários lugares e muitos não falavam nem inglês nem francês. Encontrava-me com alemães luteranos, quaisquer, escoceses e irlandeses e um grande assentamento de nativos da Moravia que falavam um peculiar dialeto europeu. Em geral me arrumava isso com um intérprete e no pior dos casos utilizava a linguagem dos gestos para me fazer entender.

 

Agosto de 1768

Estava congelada até os ossos. em que pese a meus esforços por conservar a capa bem apertada, o vento a separava de meu corpo e a fazia revoar, castigando a cabeça do moço que caminhava a meu lado e me obrigando a me inclinar. A chuva era mais fria que a neve e antes de chegar ao arroio do Mueller já estava empapada.

Tommy Mueller fixou a vista na corrente. Os ombros encurvados quase tocavam a asa do chapéu que tinha metido até as orelhas. Pude ver a dúvida em toda a atitude de seu corpo e me inclinei lhe gritando na orelha:

-Fique aqui!

Sacudiu a cabeça me dizendo algo que não pude ouvir.

-Volta! -gritei.

O moço assinalou com energia a granja e estirou a mão para agarrar as rédeas de meu cavalo. Era evidente que pensava que era muito perigoso e pretendia que retornasse a sua casa e esperasse a que passasse a tormenta.

A idéia de ficar apanhada durante uma semana em uma casa com quatro habitações v os dez Mueller nela foi suficiente para me impulsionar à imprudência. Arranquei as rédeas das mãos do Tommy e me dava a volta, o cavalo movia a cabeça de um lado a outro, molesto pela chuva, e pisava com cuidado no barro escorregadio.

Dirigi-me para a parte mais alta da borda, onde uma capa de grosas folhas facilitava o caminho, fiz um gesto ao Tommy para que se separasse do caminho e me inclinei, afundando os cotovelos na bolsa de cevada que levava na cadeira como pagamento pelos serviços emprestados. O cavalo estava tão ansioso como eu e saímos como se nos atirássemos por um tobogã. Depois de uma sacudida caímos na água geada e finalmente conseguimos sair, jorrando água como um coador.

Olhei para penhor e vi o Tommy Mueller ao outro lado com a boca aberta. Não podia soltar as rédeas para saudá-lo, assim que lhe fiz uma cerimoniosa inclinação de cabeça, apertei os talões e pus rumo a casa.

Tinha estado na cabana dos Mueller durante três dias, me ocupando da Petronella, que com dezoito anos estava a ponto de dar a luz por primeira e última vez, segundo a jovem.

Freddy, seu marido de dezessete anos, tinha tentado entrar na habitação ao segundo dia, mas recebeu tal série de invectivas em alemão por parte da Petronella que teve que retornar ao refúgio dos homens, com as orelhas tintas pela mortificação. Entretanto, poucas horas mais tarde o encontrei com aspecto rejuvenescido, ajoelhado ao lado da cama de sua esposa e com o rosto tão branco como o lençol que cobria a sua filha recém-nascida.

Contemplava a cabecita e olhava a sua esposa.

-Ist sie nicht wunderschon? -disse brandamente Petronella.

Freddy assentiu e logo apoiou a cabeça em seu regaço e começou a chorar. Todas as mulheres sorriram com benevolência e partiram a preparar a comida. Esta era uma das gratificações das visitas aos Mueller. Esperava que Jamie e Ian, em minha ausência, prepararam-se um pouco adequado para comer. Estávamos a finais do verão mas ainda não tinha chegado o tempo da colheita. Nas prateleiras da despensa ainda temamos queijo, pescado em salmoura e bolsas de farinha, milho, arroz, aveia, feijões e cevada.

Jamie podia cozinhar o que caçava; eu tinha dedicado meus melhores esforços para iniciar ao Ian nos mistérios da elaboração da aveia; mas sendo homens suspeitava que não foram se incomodar e acabariam comendo carne seca e cebolas crudas.

O vento se acalmou ao resguardo da colina, mas a chuva me golpeava com força e o caminho era traiçoeiro.

Notava o desconforto do cavalo e como suas patas escorregavam a cada passo.

-Bom menino -disse em tom conciliador-. Segue assim, é um bom moço.

As orelhas do cavalo apenas se moveram e seguiu com a cabeça encurvada e pisando com cuidado.

O cavalo não tinha nome, bom, em realidade sim o tinha mas eu não o conhecia. O homem que o tinha vendido ao Jamie tinha dado um nome alemão que, segundo Jamie, não era apropriado para o cavalo de uma dama. Pensava que seu verdadeiro nome se revelaria com o tempo.

Pouco depois se deteve por razões óbvias. Uma correnteza que baixava a colina cobria o atalho. Permaneci imóvel e jorrando água. Não havia caminho. A minha direita a colina se elevava quase perpendicularmente e à esquerda se inclinava em forma tão escarpada que baixar tivesse sido um suicídio. Amaldiçoando pelo baixo fiz retroceder ao cavalo sem nome.

Se não tivesse sido pela enchente do arroio teria retornado com os Mueller, deixando que Jamie e Ian as arrumassem sozinhos por um tempo. Mas agora não tinha eleição: ou encontrava outro caminho para voltar para casa ou ficava aqui e me afogava.

Encontrei um lugar onde a ladeira da colina deixava um pequeno passo, uma depressão entre dois «chifres» de granito. De ali via os contrafortes e o oco azul do vale. Ao outro lado, as nuvens ocultavam os topos das montanhas, a chuva e a escuridão se interrompiam por ocasionais relâmpagos.

O passo por este lado da colina era bom, rochoso mas não muito íngreme. Tomei nota da localização de um grande arbusto de amoras, como referência futura, mas não me detive. Se tinha sorte estaria em casa ao anoitecer.

Para me distrair das gotas frite que caíam por meu pescoço, comecei a fazer um inventário mental de minha despensa. O que faria para jantar quando chegasse a casa?

Sobressaltei-me; face ao capuz e meu cabelo abundante, as gotas de chuva me golpeavam como pedras. Então me dava conta de que granizaba. O cavalo sacudiu a cabeça em um esforço por escapar das pedras; Atirei das rédeas apressadamente e o levei baixo um grande castanho. As folhas nos protegeriam.                                        

-Bem. -Com certa dificuldade dí uma palmada ao cavalo para tranqüilizá-lo-. Devagar. Estaremos bem sempre que não nos caia um raio.

Essa frase deveu ter refrescado a memória de alguém. Uma silenciosa forquilha de luz percorreu o céu escuro desde além de Roam Mountain. Poucos segundos depois o som de um trovão agitou as folhas que nos protegiam. Outros raios atravessaram o céu em zonas mais afastadas, seguidos do retumbar dos trovões. Tratava de acalmar ao cavalo quando se repetiu outra vez. Um raio iluminou a colina escura e me deixou ver a silhueta das orelhas erguidas do cavalo. Juraria que a terra tremeu quando o cavalo deixou escapar um agudo relincho e atirou das rédeas.

Não tive consciência da queda. Passei de estar atirando das rédeas, com o cavalo apavorado e tratando de escapar, a ver-me tiragem de costas tratando de respirar.

Os ecos do impacto percorreram meu corpo. Ofegava e tremia. Tratei de ficar aquieta com os olhos fechados, me concentrando na respiração e tratando de fazer um inventário de meus maus.

A chuva caía sobre minha cara, que estava tão intumescida como minhas mãos. Mas meus braços se moviam e podia respirar um pouco melhor. A perna esquerda me doía mas não parecia nada sério, só uma raspadura no joelho. Rodei para um lado, dificultada pelo peso da água que tinha absorvido minha roupa, que por sua grossura me tinha salvado de males maiores.

Então ouvi um relincho audível por cima do rugido do trovão. Olhei fazia acima e vi a cabeça do cavalo por cima de um grande arbusto,

Tínhamos estado parados ao bordo de um pequeno precipício, oculto pelos matagais. O pânico tinha levado a cavalo até o bordo, mas sentiu o perigo e se deteve, não sem antes me deixar cair.

-Maldito descarado! -exclamei. Perguntei-me se o nome em alemão não quereria dizer isso-. Podia-me ter quebrado o pescoço!

Limpei-me o barro da cara e olhei procurando uma maneira de subir. Não havia nenhum caminho.

Permaneci quase imóvel tratando de pensar. Ninguém sabia onde estava, nem sequer eu, e ninguém me buscaria até passado um tempo, Jamie pensaria que estava ainda com os Mueller por causa da chuva, estes não tinham motivos para duvidar de minha chegada a casa e, se os tinham, tampouco podiam me buscar por causa das inundações. Quando alguém pudesse fazê-lo tudo meus rastros estariam apagados.

Não estava ferida, isso já era algo. Mas estava sem cavalo, sozinha, sem comida, perdida e empapada. Do único que estava segura era de que não morreria de sede.

Ainda chovia e as gotas rodavam por mim nariz com monótona regularidade. Coxeando por meu joelho golpeado e amaldiçoando, baixei pela ladeira até o bordo do arroio. Não havia mais que rochas molhadas. Entretanto, a certa distância, vi algo que podia me oferecer alguma possibilidade de refúgio.

Um grande cedro vermelho tinha cansado ao outro lado do arroio e se via o enorme matagal de suas raízes. A cavidade que tinha deixado não seria um amparo total, mas parecia melhor que estar a céu aberto ou agachada entre os arbustos. Não me parei a pensar que aquele refúgio também podia atrair a ursos, pumas e outros animais selvagens. Por sorte não foi assim.

Era um espaço de metro e meio de comprimento pela mesma de largura, escuro, molhado e frio. O teto o formavam as grandes raízes mescladas com a terra arenosa. Parecia sólido e no chão a terra estava úmida mas não se formou barro.

Esgotada, arrastei-me até o fundo, coloquei meus sapatos molhados a um lado e pus-se a dormir.

Sonhei que estava dando a luz. Não sentia dor, via sair a cabeça como se estivesse entre minhas próprias coxas; parteira e mãe ao mesmo tempo. Agarrei à criatura nua entre meus braços, ainda manchada com o sangue das duas, e a entreguei a seu pai. A dava ao Frank, mas foi Jamie quem a recebeu e disse «é preciosa».

Então despertei e me voltei a dormir procurando algo que tinha perdido. Acordada e dormida, perseguida através dos bosques por alguém desconhecido e temível. Acordada e dormida, com uma faca na mão, vermelho pelo sangue, mas de quem, não sabia.

Despertou um aroma de queimado e me sentei de repente. A chuva tinha parado e supus que me tinha depenado o silêncio. O aroma de fumaça ainda persistia em meu nariz, assim não era parte do sonho.

Apareci a cabeça com cautela, como um caracol saindo de sua concha. O céu era de uma cor cinza púrpura, com raias alaranjadas sobre as montanhas. A queda do sol estava próxima e a escuridão chegava aos vales.

Saí engatinhando e olhei ao redor. O riacho tinha crescido e o ruído da corrente era o único som. Frente a mim havia uma pequena colina com um grande álamo balsâmico no topo, a fonte da fumaça. A árvore tinha sido golpeado por um raio. Uma metade tinha ainda as folhas verdes, mas a outra metade estava enegrecida. Farrapos de fumaça branca subiam como fantasmas e vermelhas linhas de fogo brilhavam detrás da casca negra.

Procurei meus sapatos mas não os pude encontrar na escuridão. Aproximei-me da árvore procurando calor, maravilhoso calor. Durante um momento nem sequer tentei pensar, simplesmente permaneci ali, sentindo que minha pele geada se esquentava. Mas quando o sangue começou a circular começaram a me doer os golpes e também apareceu a fome. Fazia muito que tinha tomado o café da manhã.

A escuridão aumentava e seguia perdida. Olhei para a colina oposto, não havia rastro do maldito cavalo.

-Traidor -murmurei-. Provavelmente se foi com uma manada de alces.

Minhas roupas estavam muitos secas mas a temperatura baixava, ia ser uma fria noite. O que seria melhor: passar a noite perto da árvore queimada ou retornar a meu esconderijo enquanto ainda se pudesse ver?

Decidiu-me um ruído a minhas costas. Agora a árvore se esfriou. Não havia fogo para me proteger dos caçadores noturnos. Sem fogo e sem armas, minha única defesa era ficar escondida durante a noite, como os coelhos e os ratos. De todos os modos tinha que voltar a procurar meus sapatos.

Sem muitas vontades de me apartar dos últimos restos de calor, retornei até a árvore cansada. Ao me agachar vi uma mancha pálida na terra escura do rincão. Estirei a mão e não encontrei o tato do couro de meus mocasines, a não ser algo duro e suave.

Meu instinto tinha detectado a realidade daquele objeto antes de que meu cérebro encontrasse a palavra e apartei a mão.

Fiquei sentada com o coração acelerado. Então a curiosidade pôde mais que o temor atávico e comecei a escavar.

Era uma caveira completa, com a mandíbula inferior ainda sujeita por restos de ligamentos. Conservava também um fragmento de vértebra rota no começo do pescoço.

Como tinha chegado até ali? Meu instinto respondeu: violência, embora meu cérebro não estava muito longe daquela idéia. Um explorador podia morrer de uma enfermidade, de fome ou por múltiplos perigos (tratei de passar por cima os ruídos de meu estômago), mas não terminaria enterrado baixo uma árvore.

Os cherokee e os tuscarora enterravam a seus mortos, mas não em um simples oco e a partes. Borde-os comprimidos da vértebra rota revelavam a triste historia de seu proprietário.

-Alguém te tinha antipatia, não é certo? -pinjente-. Arrancou-te a cabeça.

Perguntava-me se o resto estaria também ali. Passei-me uma mão pela cara, pensando; depois de tudo não tinha nada melhor que fazer, não ia a nenhum site antes do amanhecer e não tinha vontades de dormir detrás descobrir a meu companheiro.

Deixei a caveira a um lado e comecei a cavar. A terra arenosa era suave e resultava fácil escavar nela, mas depois de uns poucos minutos os dedos e os nódulos me esfolaram; arrastei-me procurando um pau para continuar, mas choquei com algo duro; pensei que não podia ser um osso, nem tampouco algo metálico. Uma pedra, decidi, tocando aquela forma ovalada. Uma pedra do rio? Não, a superfície era muito suave, mas com algum relevo, embora ao tato não podia saber o que era.

Segui cavando sem êxito. Guardei-me a pedra no bolso, sentei-me sobre os talões e me esfreguei as mãos na saia. Ao menos o exercício me tinha feito entrar em calor. Agarrei a caveira. Embora fora horrível me fazia companhia, uma distração para tão difícil situação. ia ser uma larga noite.

Perguntava-me por que tinha pensado que a caveira pertencia a um índio e não a um europeu; possivelmente se devia à pedra.

Havia uma luz no topo. Um pequeno resplendor que ia crescendo. Ao princípio pensei que era a árvore, alguma brasa que se reavivou, mas naquele momento começou a mover-se e foi descendendo lentamente para mim, flutuando justo por cima dos arbustos.

Levantei-me, me dando conta de que não levava os sapatos. Busquei-os com desespero mas não estavam ali. Agarrei a caveira e fiquei descalça, frente à luz.

Observei como se aproximava. Aterrei-me à caveira. Não era exatamente uma arma, mas tampouco tema muito claro que o que se aproximava pudesse ser detido por facas ou pistolas.

Não era somente o estado do tempo o que fazia extremamente improvável que alguém saísse a passear pelo bosque com uma tocha acesa. A luz não ardia como uma tocha de pinheiro ou uma lanterna de azeite. Não titilava, tinha um brilho firme e constante. aproximava-se da velocidade de alguém caminhando. Eu tinha visto antes o fogo do Santelmo, no mar. Embora também era misterioso, seu chiado azul aquoso não se parecia em nada à pálida luz que se aproximava.

Não tinha cor nem brilhos, era só um brilho espectral. Quando a gente do Cross Creek mencionava as luzes da montanha, chamavam-nas gás do pântano. «Ja! -disse-me-. Gás do pântano!"

A luz se moveu entre uns arbustos e apareceu ante mim. Não era gás do pântano. Era um homem alto vestido unicamente com um tanga, Levava o corpo pintado com raias vermelhas no peito, nos braços e nas pernas e o rosto todo de negro, do queixo até a frente. Seu cabelo estava engordurado e penteado em um penacho de que saíam duas plumas de peru.

Oculta na escuridão de meu refúgio não me podia ver. A tocha que levava o banhava com uma suave luz, iluminando seu peito e costas sem cabelo e escurecendo as órbitas de seus olhos. Mas ele sabia que eu estava ali. Não me atrevi a me mover. Permaneceu a uns quatro metros e olhou diretamente à escuridão onde me encontrava, como se fora pleno dia. Não sei quanto tempo estive assim, até que me dava conta de que já não tinha medo.

-O que quer? -pinjente, notando que tínhamos cercado uma espécie de comunicação sem palavras.

Nada coerente passava entre nós, mas era evidente que algo passava.

Respirei profundamente, sentindo de repente uma grande vitalidade. Terra e ar, pensei de repente, e também fogo e ar. E ali estava eu, entre todos os elementos e a sua mercê.

-O que quer? -perguntei outra vez, me sentindo indefesa- Não posso fazer nada por você. Sei que está aí, posso vê-lo. Mas isso é tudo.

Nada se moveu nem se disseram palavras. Mas o pensamento se formou claramente em minha mente, com uma voz que não era a minha.

«Isto é suficiente», disse.

Sem pressa, deu-se a volta e partiu. Ao pouco tempo a luz de sua tocha desapareceu como se não tivesse existido nunca.

-OH -pinjente um pouco desconcertada-. Meu deus.

Tremiam-me as pernas e me sentei, protegendo com a saia a quase esquecida caveira. Permaneci assim durante um bom momento, mas não aconteceu nada mais.

Tratava de encontrar um sentido ao acontecido, mas não havia nada que entender porque em realidade não tinha acontecido nada. Entretanto, estava segura de que ele tinha estado ali. A sensação de sua presença me dava um pouco de consolo, até que finalmente fiquei dormida sobre as folhas.

Tive um sonho inquieto a causa da fria e a fome, uma procissão de imagens desarticuladas: árvores queimadas, ardendo como tochas. Jazia baixo a chuva com a garganta atalho e o sangue quente pulsando em meu peito representava um estranho consolo para minha carne geada. Meus dedos estavam intumescidos e incapazes de mover-se.

Despertaram os batimentos do coração de meu coração. depois de um momento dormi outra vez e segui com meus sonhos. Os lobos uivavam cada vez mais perto. Um homem estava em pé ao lado de uma árvore lhe sangrem e sobre sua cabeça cortada se erguia uma crista de cabelo negro gordurento. Tinha olhos profundos e um sorriso fragmentado; o sangue que saía de seu peito brilhava mais que a da árvore. Os lobos continuavam aproximando-se, uivando e gemendo. Senti que meu braço me chocava contra algo úmido e brando que logo esfregava minha cara. Abri os olhos. Uns grandes olhos amarelos me contemplavam; gritei e dava um golpe. O animal retrocedeu com um bufido. Despertei tremendo; já tinha amanhecido e a luz me permitiu ver a silhueta grande e negra de... de Cilindro.

-Que diabos faz aqui?

As grandes mãos do Jamie me tiraram de meu esconderijo e me apalparam com ansiedade, procurando feridas.

-Está bem? Maldita seja, Sassenach, está bem?

-Não –disse-. Sim.

E comecei a chorar. Não durou muito, foi a impressão do alívio. Tratei de explicar-lhe mas não me ouvia. Agarrou-me em seus braços para me levar até o arroio.

-Vamos, te acalme -disse me abraçando com força-. Vale, mchridhe, já está a salvo.

Ainda estava confundida pelo sonho e o frio. Sua voz me soava estranha e difícil de entender. Mas seu quente abraço era algo real.

-Espera -pinjente-. Espera, esqueci-me. Tenho que...

-Tio Jamie, olhe isto!

Jamie se deu a volta sem deixar de me sujeitar. Ian estava na entrada do refúgio com a caveira levantada.

Senti que Jamie ficava rígido.

-Sassenach, o que é isso?

-Quem, deveria dizer -pinjente-. Não sei. Não deixe que Cilindro a agarre, não gostaria.

Jamie me olhou franzindo o cenho.

-Está segura de que está bem, Sassenach?

-Não. Tenho fritou e estou morta de fome. Não haverão trazido algo para comer, não? -perguntei ansiosa-. Mataria por uns ovos.

-Não -respondeu enquanto procurava em seu embornal-. Não tive tempo de me preocupar com a comida, mas tenho um pouco de brandy. Toma, Sassenach, irá bem. -Arqueando uma sobrancelha acrescentou-: Poderia me dizer que diabos fazia em meio de um nada?

Sentei-me em uma rocha e bebi agradecida. Jamie permaneceu com uma mão apoiada sobre meu ombro.

-Quanto tempo leva aqui, Sassenach?

-Toda a noite -respondi, tremendo outra vez-. Desde antes do meio-dia, quando esse maldito cavalo, cujo nome deveria ser Judas, atirou-me desde essa rocha. Mas como diabos me encontraste? -perguntei-. Algum dos Mueller me seguiu Y...? Não me diga que esse maldito cavalo lhes trouxe até aqui, como se fora Rin-tin-tin ou Lassie.

-Rin-tin-tin? Lassie? Parecem nomes de vacas –disse Ian-, mas foi Cilindro, não o cavalo, quem nos trouxe até aqui.

Assinalou ao cão com orgulho e este te devolveu o olhar com dignidade, como se todos os dias fizesse coisas semelhantes.

-Mas se não viram o cavalo -perguntei confundida-, como souberam que me tinha ido de casa dos Mueller? E como pôde Cilindro...? -detive-me o ver que os dois homens se olhavam.

Ian se encolheu de ombros e assentiu olhando ao Jamie. Este se agachou e levantou o bordo de minhas saias para tocar meus pés descalços com suas grandes mãos.

-Tem os pés gelados, Sassenach -disse com calma-. Onde perdeste os sapatos?

-por ali -pinjente assinalando a árvore cansada-. Ainda devem estar. Tirei-me isso para cruzar o arroio, logo os pus ali e não os pude encontrar na escuridão.

-Não estão, tia -disse Ian.

Seu tom era tão estranho que o olhei surpreendida.

-Não, não estão -disse Jamie com a cabeça inclinada. E começou a me explicar como tinham conseguido me encontrar-: Estava dormido quando enlouqueceu de repente. -Sem levantar a vista fez um gesto para Cilindro-. Ladrava e uivava enquanto golpeava a porta como se o Diabo estivesse fora.

-Gritei-lhe e tratei de acalmá-lo -interveio Ian-, mas não podia detê-lo de maneira nenhuma.

-Estava convencido de que tinha enlouquecido e tênia medo de que nos atacasse, assim que disse ao Ian que abrisse a porta para que saísse.

Jamie se sentou sobre os talões e olhou meus pés com rosto preocupado.

-Bom, e estava o Diabo fora? -perguntei com rabugice.

Jamie sacudiu a cabeça.

-Procuramos por toda parte e não encontramos nada, salvo isto -procurou em seu embornal e tirou meus sapatos. Levantou a vista e me olhou-- Estavam no degrau da porta.

Me arrepiou todo o pêlo do corpo. Levantei a garrafa e bebi o último gole.

-Cilindro saiu correndo como um galgo -disse Ian, continuando a história-. Mas ao momento retornou e começou a farejar seus sapatos e a gemer.

Jamie me colocou os sapatos e pude ver o medo em seus olhos.

-Acreditei que podia estar morta. Cinzenta -disse brandamente. Ian continuou, entusiasmado com a história.

-Meu inteligente cão estava igual a quando cheira um coelho, assim que nos pusemos a roupa, apagamos o fogo e o seguimos. -Acariciou as orelhas de Cilindro com orgulhoso afeto-, E estava aqui!

O brandy me fazia zumbir os ouvidos e me enjoava, mas conservava o suficiente sentido para me dar conta de que se Cilindro tinha seguido meus rastros... alguém tinha caminhado com meus sapatos.

-Viram alguém pelo caminho? -perguntei.

-Não, tía-respondeu Ian, ficando de repente sério-, Você viu algo?

-Sim -respondi-, mas lhes direi isso mais tarde. Agora acredito que me converterei em cabaça. Retornemos a casa.

 

Jamie havia trazido cavalos, mas era impossível lhes fazer baixar até o terreno baixo, assim que nos vimos forçados a passar pela borda do arroio e chapinhar pelas partes pouco profundas, para logo subir trabalhosamente por uma costa rochosa até o saliente onde estavam atados os cavalos. Por meu estado, Jamie e Ian tiveram que me levar como se fora um pacote. Em uma das paradas para descansar, Jamie tinha tratado de me fazer beber; queixei-me, porque em meu estado o excesso de álcool podia me provocar um desmaio.

-Se te deprimir -disse- será mais singelo carregar contigo. É como tirar um bezerro de um pântano.

-Sinto muito -respondi.

Fiquei tiragem no chão com os olhos fechados e com a esperança de não ter que vomitar. O céu se movia em uma direção e meu estômago na outra.

-Fora, cão! -disse Ian.

Abri um olho para ver o que acontecia e vi o Ian apartando a Cilindro da caveira, que eu tinha insistido que trouxessem.

-O que pensa fazer com o Príncipe Encantado? -perguntou Jamie, lançando um olhar crítica a minha aquisição. Logo me olhou sonriendo. Como te encontra, Sassenach?

-Mejor-assegurei me incorporando.

Ainda estava um pouco enjoada, mas o brandy me dava uma sensação prazenteira.

-Suponho que deveríamos levá-lo a casa e lhe dar cristã sepultura, não?.

Ian contemplou a caveira com dúvidas.

-Não acredito que nos agradecesse isso, não deve ser cristão -disse com a vivido lembrança do homem que tinha visto no terreno baixo.

Embora era certo que alguns índios se converteram graças ao trabalho dos missionários, aquele cavalheiro em particular, nu, com o rosto pintado e o cabelo cheio de plumas, tinha-me dado a impressão de que era tão pagão como parecia.

Procurei em meu bolso com os dedos intumescidos.

-Isto estava enterrado com ele -comentei quando consegui tirar a pedra.

Tinha forma irregular e era da metade de! tamanho da palma de minha mão. Uma cara era arredondada e a outra plaina, nesta tinha gravado algo com forma de espiral. Mas não foi isso o que chamou a atenção do Jamie e Ian.

-O que é isso? -perguntou Ian com temor.

-É uma opala endiabladamente grande -comentou Jamie. Logo me olhou-. Dizem que as opalas são pedras de má sorte, Sassenach.

Pensei que brincava, mas parecia inseguro. Apesar de ser um homem cultivado e que tinha viajado muito, continuava tendo o espírito de um highlander carregado de superstições, embora não o demonstrasse freqüentemente. «Ja -disse-me-, você passou a noite com um fantasma e crie que ele é supersticioso?»

-Tolices -disse com mais convicção da que sentia.

-Bom, não sempre dão má sorte, tio Jamie –assinalou Ian-. Minha mãe tem um anel com uma pequena opala que lhe deixou sua mãe, muito mais pequeno que este! -Ian tocou a pedra com respeito-. Dizia que a opala tomava algo de seu dono. Quando uma opala tinha pertencido a uma boa pessoa, tudo ia bem e dava boa sorte. Mas se não...

encolheu-se de ombros.

-Ah, bom -disse Jamie e moveu a cabeça em direção à caveira. Se pertenceu a este tipo não deu muita sorte.

-Ao menos -assinalei-, sabemos que ninguém o matou por essa pedra.

-Talvez não a quiseram porque sabiam que lhes daria má sorte -sugeriu Ian-. Possivelmente deveríamos deixá-la, tia.

Esfreguei-me o nariz e olhei ao Jamie.

-É provável que tenha valor -pinjente.

-Ah.

Os dois se olharam um momento, lutando entre a superstição e o pragmatismo.

-Bom -disse finalmente Jamie-. Suponho que não nos passará nada por guardá-la durante um tempo. -Sorriu-, Me deixe levá-la, Sassenach; se me cair um raio pode atirá-la.

-A ensinarei ao Nayawenne -pinjente-. Ao menos saberá o que significa a gravura.

-Boa idéia, Sassenach -aprovou Jamie-. E se o destino final do Príncipe Encantado teve algo que ver com ela, pode guardar-lhe com minhas bênções. -Assinalou um grupo de arces-. Os cavalos estão ali. Pode caminhar, Sassenach?

-Não estou segura. Parece-me que estou algo bêbada.

-Não, tia -disse Ian-. Meu pai diz que nunca está bêbado enquanto possa te ter em pé.

Jamie riu e se colocou a capa no ombro.

-Meu pai estava acostumado a dizer que um não estava bêbado se podia encontrar o traseiro com as duas mãos.

Olhou meu traseiro, mas o pensou melhor e não disse nada mais.

Ian lançou uma gargalhada, logo tossiu e ficou sério.

-Ah, bom. Não está muito longe, tia. Está segura de que não pode caminhar?

-Eu não vou levar a de novo, isso lhe asseguro isso -apressou-se a responder Jamie-. Não quero me romper as costas.

-Agarrou a caveira com a ponta dos dedos e a colocou sobre minha saia-. Espera aqui com seu amigo, Sassenach. Ian e eu vamos procurar os cavalos.

 

Chegamos à Colina do Fraser a primeira hora da tarde. Tinha passado frio, tinha-me molhado e não tinha comido desde fazia quase dois dias; sentia-me enjoada, estado que tinha aumentado pelo brandy e os esforços por explicar os sucessos da noite anterior ao Jamie e ao Ian. À luz do dia e em meu estado todo aquilo parecia irreal. portanto, quando chegamos ao claro acreditei que a fumaça da chaminé era uma alucinação, até que o aroma de madeira queimada chegou a meu nariz.

-Acreditei que havia dito que apagou o fogo -disse ao Jamie-. Por sorte não queimou a casa.

-Fiz-o -respondeu-. Há alguém. Conhece o cavalo, Ian?

Ian se içou nos estribos para olhar.

-Caramba, é o malvado animal da tia! -disse surpreso-. E um grande pintalgado está com ele!

O recém batizado Judas estava no curral, desensillado e em companhia de outro cavalo.

-Sabe de quem é? —perguntei.

-Não, mas é um amigo -disse Jamie-. Deu de comer aos animais e ordenhou a cabra. Vamos, Sassenach. Meteremo-lhe na cama e tomará um chá.

Tinham ouvido nossa chegada. abriu-se a porta da cabana e saiu Duncan Innes.

-Ah! Está aqui, MAC Dubh. O que passou? cheguei esta manhã... -Então me viu e ficou pálido de surpresa-. Claire! tiveste um acidente? Preocupei-me quando encontrei o cavalo com a caixa na cadeira.

-Sim, tive um acidente, mas estou bem -pinjente tratando de me manter direita.

-À cama -disse Jamie com firmeza, me sustentando pelos braços-. Agora.

-Primeiro um banho -respondi.

-Sassenach, come e vete à cama. Pode te banhar amanhã.

-Não. Quero água quente.

Não tinha forças para discutir, mas estava decidida. Não ia deitar me suja para ter que lavar os lençóis depois.

Jamie me olhou com fúria e fez um gesto de resignação.

-Então, água quente e uma panela -disse-. Ian, traz lenha e a dá ao Duncan e te ocupe dos porcos. vou esfregar a sua tia.

-Posso me esfregar sozinha!

-Isso é o que você te crie.

Tinha razão, meus dedos estavam rígidos e teve que me despir. Sentir a água quente em meus pés machucados foi algo maravilhoso. Cansada e meio bêbada como estava, derretia-me enquanto Jamie me lavava da cabeça aos pés.

-Onde te fez isso, Sassenach? -disse, tocando meu joelho esquerda.

-Bom... isso foi quando me caí do cavalo.

-Poderia te haver quebrado o pescoço!

-Isso pensei -pinjente fechando os olhos.

-Teria que havê-lo pensado melhor, Sassenach, e não ter estado ali sozinha...

-Não pude evitá-lo -pinjente abrindo os olhos-. O caminho estava alagado, tive que dar a volta.

Olhou-me com fúria, com os olhos como escuras gretas azuis.

-Em primeiro lugar, não deveu deixar a casa dos Mueller com essa chuva! Não tem bastante sentido comum para saber como foste encontrar o terreno?

-Bom... Como ia ou seja? Além disso...

-te esteja aquieta! -ordenou-. Não quero discutir contigo!.

Levantei a vista para olhá-lo.

-Que diabos quer? por que me grita? Eu não fiz nada mau!

-Não, não o fez -aceitou-. Mas me assustou muito, Sassenach, e tenho vontades de te arreganhar, mereça-o ou não.

-por que não me repreende em gaélico? -pinjente-. Acalmará-te e eu não entenderei quase nada.

Soltou um bufido de desprezo e me inundou a cabeça na água.

-Espero que não ponha malote por dormir à intempérie com a roupa molhada.

-A roupa molhada e o frio não causam enfermidades -informei-lhe.

Arqueou as sobrancelhas.

-Ah, não?

-Não. Já lhe hei isso dito antes. São os gérmenes os que causam a enfermidade. Se não estive exposta a nenhum germe, não me porei doente.

-Ah, gérrrrmenes -disse com voz afetada-. Tem um bonito traseiro! Então, por que há mais enfermidades no inverno que na primavera? Os gérmenes se produzem pelo frio?

-Não exatamente.

me sentindo absurdamente coibida, agarrei a colcha para me cobrir, mas Jamie me agarrou por braço e me empurrou para ele.

-Vêem -disse sem nenhuma necessidade.

antes de que pudesse dizer nada, estava-me beijando.

Quando me soltou quase me desabo.

-À cama -disse outra vez.

-Mmm -respondi lhe demonstrando que não pensava ir sozinha.

-Não -disse tratando de afastar-se, mas não o soltei-. Meu pai me disse que nunca me aproveitasse de uma mulher que está mal por causa da bebida.

-Mas eu não estou mau, estou melhor -assegurei-. Além disso -Executei uma lenta contorção-. Acredito que disse que se a gente podia tocar o traseiro com as mãos não estava bêbado.

Olhou-me surpreso.

-Sinto ter que lhe dizer isso Sassenach, mas não é seu traseiro o que toucas, a não ser o meu.

-É igual -assegurei-lhe-. Estamos casados. Uma mesma carne, disse-o o sacerdote.

Fez um último intento.

-Não deveria comer algo? Deve estar morta de fome.

-Mmm -pinjente. Escondi meu rosto em sua camisa e o mordi brandamente-. Esfomeada.

 

-O que é isso? -perguntei, observando os pálidos grãos que flutuavam na superfície do líquido.

Parecia um jarro cheio de vermes afogados.

-Cevada -disse Ian, olhando com orgulho como se fora seu primeiro filho recém-nascido-. Preparei-a eu; tirei-a da bolsa que trouxe dos Mueller.

-Muito obrigado -pinjente e tomei um gole com precaução.

Pese ao aroma, não acreditava que o tivesse preparado em seu sapato-. Muito bom. Muito amável, Ian.

ficou avermelhado de satisfação.

-Não é nada. E há muito mais, tia. Ou prefere um pedaço de queijo? Posso tirar as partes verdes.

-Não, não, assim está bem -pinjente rapidamente-, Ah... por que não sai e tráficos de caçar esquilos ou coelhos? Estou segura de que estarei bem para preparar o jantar.

Sorriu e sua cara se iluminou.

-Me alegro de ouvi-lo, tia -disse-. Deveria ter visto o que comíamos enquanto você não estava!

Deixou-me recostada sobre os travesseiros, pensando no que podia fazer com o conteúdo do jarro. Jamie me tinha levado a cama sem majores protesta. Tinha-me deixado dormir para ir saudar o Duncan e lhe oferecer a hospitalidade da casa.

A caveira estava sobre meu escritório, ao lado de um vaso com flores e meu caderno. Isso me espabiló. O parto que tinha atendido na granja do Mueller me parecia algo vago e longínquo, pensei que era melhor que anotasse os detalhes enquanto pudesse recordá-los.

Saí da cama e me cambaleando cheguei até a chaminé, onde derrubei o conteúdo do jarro na panela. Ian tinha preparado o suficiente para alimentar um regimento, sempre que fora de escoceses.

A bolsa de cevada estava aberta. Tinha que pôr o grão a secar ou se apodreceria. Mim joelho protestou um pouco enquanto ia procurar uma grande cesta e me ajoelhava para esparramar o grão úmido.

-Então, é fácil de dirigir, Duncan? -A voz do Jaime me chegava claramente através da janela- É um bruto grande e forte, mas tem olhos de bom.

-É um bom moço -disse Duncan, com uma inconfundível nota de orgulho em sua voz-, E muito obediente. A senhorita Eu fez que seu caballerizo o escolhesse no mercado do Wilmington, disse-lhe que queria um cavalo que se dirigisse com uma só mão.

-Mmm. Sim, bom, é uma adorável criatura.

Jamie tinha nascido sobre um cavalo e podia dirigi-los sem usar as mãos. Mas Duncan era um pescador e não lhe faria notar sua inexperiência. Devia ser uma forma de assinalar algo mais. Duncan o captaria?

-É de ti de quem ela espera ajuda, MAC Dubh, e sabe bem.

O tom do Duncan era seco. Tinha captado a insinuação do Jamie.

-Não hei dito o contrário, Duncan.

A voz do Jamie era tranqüila.

-Mmm.

Sorri. Duncan era tão bom como Jamie na arte escocesa da eloqüência silenciosa. Um som particular que indicava o ter entendido o insulto do Jamie ao lhe reprovar que aceitasse o cavalo da Yocasta. E o desejo de aceitar a desculpa pelo insulto.

-Pensaste-o, então? -Duncan trocou bruscamente de tema-. Será Sinclair ou Geordie Chisholm? -Sem lhe dar tempo a responder, continuou falando de uma forma que deixava claro que já o havia dito antes-. É certo que Sinclair é tonelero, mas Geordie é um bom moço, muito trabalhador, e tem dois filhos pequenos. Sinclair é solteiro, assim não necessitará muito para instalar-se, mas...

-Necessitará tornos e ferramentas, ferro e madeira -interrompeu Jaime-. Pode dormir em sua oficina, é certo, mas necessitará a oficina. E acredito que custará muito comprar tudo o que necessita. Geordie necessitará um pouco de comida para sua família, mas isso podemos dar-lhe E para começar não necessitará mais que umas poucas ferramentas. Tem uma tocha, não?

-Assim é, está no contrato. Mas agora é a temporada da semeia, MacDubh. Com a limpeza...

-Já sei -respondeu Jamie, um pouco irritado-. Fui eu o que semeou cinco acres de grão faz um mês. E primeiro tive que limpar o terreno, -Enquanto Duncan o passava bem no River Run, conversando nos botequins e passeando em seu cavalo novo. Ouvi-o e o mesmo aconteceu com o Duncan. O silêncio falava mais alto que as palavras.

-Sua tia Eu te enviou um regalito.

-Ah, sim?

-Uma garrafa de uísque.

Havia um sorriso na voz do Duncan, a que Jamie respondeu com uma risada desinteressada.

-Ah, sim? -repetiu com tom diferente-. É muito amável.

-vamos procurar a. Um traguito não te fará mal.

-Não, claro -disse Jamie arrependido-. Não dormi ontem à noite e não me encontro bem. Deve desculpar minhas maneiras, Duncan.

-Não falemos disso.

Ouvi um som, como se uma mão aplaudisse um ombro, e logo se foram juntos.

O que tivesse sido do Duncan se Jamie não lhe tivesse encontrado e procurado um site para ele? Em Escócia não havia nada para um pescador sem braço. Mas este era o Novo Mundo e, embora havia riscos, também havia novas possibilidades para viver. Não era estranho que Jamie se preocupasse sobre quem teria as melhores oportunidades. Sinclair, o tonelero, ou Chisholm, o granjeiro?

Duncan já tinha encontrado trinta dos homens do Ardsmuir e nos tínhamos ficado com vinte, colocando-os em boas terras perto do rio, baixo o apadrinhamento do Jamie.

 

Quando se acabaram todos nossos recursos, Jamie pediu dinheiro emprestado e foi com ele aos botequins, ao lado do rio. Esteve jogando durante três noites, cuadriplicó seu dinheiro e evitou que o apunhalassem, como soube mais tarde. Fiquei muda ao ver o comprido talho que cruzava o peitilho de seu casaco quando voltou. depois de barbear-se e lavar-se, foi devolver o dinheiro aos donos das plantações vizinhas, acrescentando a seu agradecimento o pagamento dos interesses. E ainda ficou suficiente para comprar sementes para semear, outra mula, uma cabra e alguns porcos.

Não lhe perguntei; remendei seu casaco e o contemplei enquanto dormia depois de devolver o dinheiro. Agarrei-lhe uma mão e percorri as linhas da palma. As linhas da cabeça e o coração eram largas e profundas. Quantas vistas jaziam naquelas dobras?

A minha. a de seus colonos. a do Fergus e Marsali, que tinham chegado da Jamaica com o Germaine, gordo, loiro e encantador, e que tinha a seu pai na palma de sua gorda manita.

Ao pensar neles olhei involuntariamente pela janela. Ian e Jamie os tinham ajudado a construir uma pequena cabana a menos de dois quilômetros da nossa. Algumas vezes, Marsali vinha caminhando a me visitar com o menino. Como sentia nostalgia pelo Bri, o pequeno Germaine representava o substituto do neto que nunca veria.

Suspirei e tratei de afastar aqueles pensamentos.

Terminei de estender os grãos e dirigi a meu escritório. Abri meu caderno forrado de couro e comecei a anotar os detalhes do parto. Foi um trabalho comprido, mas normal. Sem complicações no nascimento, a única coisa incomum tinha sido a membrana...

Deixei de escrever e sacudi a cabeça. O filho da Petronella não nasceu com a membrana que envolve ao feto. Foi no sonho, pensei; tinha misturado os dois partos. Era Brianna a que tinha nascido com a membrana.

Os escoceses a chamavam "capuz da sorte». Diziam que dava amparo para não afogar-se. E alguns meninos eram bentos com uma segunda visão. Mas fora sorte ou não, Brianna nunca tinha manifestado signos daquele estranho «conhecimento» celta. Sabia o que representava minha forma peculiar de segunda visão, o conhecimento de certas coisas que vão acontecer, para lhe desejar a outra pessoa suas complicações.

Olhei a página. Sem me dar conta, tinha desenhado a cabeça de uma menina, o cabelo e os traços de um nariz largo.

Além disso, não tinha rosto. Não era uma artista, não tinha o dom da Brianna para o desenho. Sua imagem estava em meu coração.

Pela primeira vez senti certa simpatia pela Yocasta Cameron e seu desejo de um herdeiro: alguém que ficasse para ocupar seu lugar e dar testemunho de que sua vida não tinha sido em vão. Não desejava que Brianna estivesse aqui, mas isso não significava que não a sentisse falta de.

Terminei minhas notas e fiquei sentada durante um momento. Sábia que tinha que ir preparar o jantar, mas o cansaço me deixava incapaz de me mover. Doíam-me todos os músculos e o moratón do joelho. O que realmente desejava era voltar para a cama. Mas em lugar disso agarrei a caveira e acariciei o crânio arredondado. Tinha que admitir que era um adorno macabro no escritório, mas me sentia ligada a ela. Então recordei a voz do professor Raymond em Paris.

-Simpatia? -havia dito, tocando uma caveira-. É uma emoção incomum para senti-la por um osso, Madonna.

Mas sabia o que eu queria dizer, porque quando lhe perguntei por aquelas caveiras, sorriu ao me responder que eram uma espécie de companhia.

Agora também o entendia, porque o cavalheiro da caveira tinha sido uma companhia para mim em um lugar escuro e solitário. De novo me perguntei se teria algo que ver com a aparição que vi na montanha, o índio com a cara grafite de negro.

O fantasma, se é que o era, não tinha sorrido nem falado em voz alta. Não tinha visto seus dentes, o que tivesse sido meu único ponto de comparação com a caveira que tinha entre minhas mãos. Levantei-a para examiná-la à luz. Dava-lhe a volta para examinar os molares e fiquei geada. Pese ao calor do fogo tive frio, o mesmo frio que quando estava perdida na montanha. A luz do sol tinha feito brilhar o anel de prata de minha mão e o empastelamento de chumbo de meu defunto companheiro. Olhei-a fixamente e a deixei com cuidado sobre o escritório, como se fora muito frágil.

-meu deus -disse aos olhos vazios e ao sorriso torcido-. Quem foi?

-Quem crie que pôde ser?

Jamie tocou a caveira cautelosamente. Duncan tinha ido à privada e Ian estava com os porcos, assim aproveitei aquele momento para explicar-lhe

-Não tenho nem idéia. Salvo, é obvio, que teve que ser alguém... como eu.

Estremeci-me e Jamie me olhou com ar preocupado.

-Não te terá resfriado, verdade, Sassenach?

-Não. -Sorri fracamente-. Mas é como se alguém tivesse pisado em minha tumba.

Jamie agarrou o lenço pendurado na porta e me pôs isso. Deixou tas mãos sobre meus ombros, cálidas e consoladoras.

-Isso significa algo, não? -perguntou com calma-. Significa que há outro... lugar. Talvez perto.

Outro círculo de pedras ou um pouco parecido. Também tinha pensado isso e me estremeci outra vez. Jamie olhou a caveira com ar pensativo, logo tirou um lenço e o colocou sobre os olhos vazios.

-Enterrarei-o depois do jantar -disse.

-Já, o jantar. -Tratei de enfocar meus pensamentos na comida-. Sim, vou ver se encontro ovos. Farão-se rápido.

-Não se preocupe, Sassenach. -Jamie inspecionou a panela posta no lar-. Podemos comer isso.

-Puf -pinjente e Jamie me sorriu zombador.

-Não há nada mau nessa sopa de cevada, não?

-Caso que o seja -respondi, olhando com desgosto a panela- E falando de cevada, terá que tirar a dessa bolsa para que se seque.

-Sim? -perguntou distraído-. Sim, farei-o. -carregou-se a bolsa à costas. deteve-se na porta olhando a caveira-, Disse que não acreditava que fora cristão. -Olhou-me com curiosidade-, por que crie isso, Sassenach?

Vacilei, mas não havia tempo de lhe contar o sonho, se é que tinha sido isso. Podia ouvir a conversação do Ian e Duncan aproximando-se da casa.

-Não há uma razão especial -pinjente encolhendo os ombros.

-Ah, bom. Então, vamos conceder lhe o benefício da dúvida.

 

                   Escrever cartas: a grande arte do amor

Oxford, março de 1971

Roger supunha que no Inverness choveria tanto como em Oxford, mas nunca lhe tinha importado a chuva do norte. O frio vento de Escócia, soprando no Moray Firth, era estimulante e a chuva vivificava e refrescava o espírito.

Mas isso era em Escócia, quando Brianna estava com ele. Agora que ela estava na América do Norte e ele na Inglaterra, Oxford era frio e opaco, com ruas e edifícios cinzas como cinzas de fogos apagados. A chuva jorrava pelos ombros de sua toga de professor; deteve-se procurando o amparo da casita do porteiro para sacudi-la roupa.

-Há cartas? -perguntou.

-Isso acredito, senhor Wakefield. Espere um segundo.

Martín desapareceu em seu santuário interior deixando ao Roger ocupado em ler os nomes dos membros da faculdade mortos na guerra, colocados em uma placa.

Desde que tinha conhecido a Brianna e a sua mãe tinha descoberto que o passado, muito freqüentemente, tem um rosto turbadoramente humano.

-Aqui tem, senhor Wakefield. -Martín se inclinou por cima do mostrador com um molho de cartas-. chegou uma de Estados Unidos-añadió com uma piscada.

Roger sorriu como resposta enquanto um calor se estendia por seu corpo, acabando com o frio daquele dia chuvoso.

-vamos ver logo a sua noiva, senhor Wakefield?

Martín estirou o pescoço espiando abertamente o sobre com selos dos Estados Unidos. O porteiro tinha conhecido a Brianna quando ela esteve ali com o Roger, justo antes de Natal, e tinha cansado prendado de seu encanto.

-Isso espero. Talvez no verão. Obrigado!

voltou-se fazia a escada, sustentando as cartas com cuidado debaixo da manga de sua túnica enquanto procurava a chave. Tinha uma sensação mescla de júbilo e desalento ao pensar no verão. Brianna havia dito que voltaria em Julho, mas para julho faltavam quatro meses. Quando estava de mau humor não acreditava que pudesse agüentar nem quatro dias.

 

Roger dobrou a carta outra vez e a guardou em um bolso perto de seu coração. Brianna lhe escrevia várias vezes à semana, desde notas breves a largas cartas e todas lhe deixavam um quente fulgor que lhe durava até que chegava a seguinte.

Ao mesmo tempo, naquela época, suas cartas eram de algum jeito insatisfactorias. Seguiam sendo calidamente afetuosas, sempre assinava «com amor» e dizia que sentia saudades e queria estar com ele.

Talvez fora natural, uma progressão normal, à medida que se foram conhecendo cada vez mais; não se podiam escrever cartas apaixonadas todos os dias e ser sinceros.

Sem dúvida era sua imaginação a que o fazia pensar que Brianna estava distante em suas cãs. Mordeu o sanduíche e o mastigou distraído, pensando nos últimos artigos que Fiona lhe tinha ensinado. Agora que era uma mulher casada, considerava-se uma perita em assuntos matrimoniais e punha um fraternal interesse no desigual curso do idílio do Roger.

Enviava-lhe constantemente recortes de revistas de mulheres. A última era um artigo titulado: «Como intrigar a um homem". Em outro aconselhava: «compara seus interesses». “Se lhe gostar do futebol e lhe aborrece, pense que ele não é aborrecido e fale do tema.”

Roger sorriu um pouco sombrio. Tinha compartilhado os interesses da Brianna. Se seguir os rastros de seus pais através de sua história arrepiante se considerava um passatempo, tinha completo. Entretanto, era pouco o que podia compartilhar com ela.

perguntou-se se Brianna leria artigos semelhantes em revistas norte-americanas, mas descartou a idéia. Brianna Randall era incapaz de jogar a aqueles jogos tolos, igual a ele.

Não, ela não ia tratar o de outra forma para aumentar seu interesse- Que sentido teria? Seguro que ela sabia quanto lhe importava. Mas saberia? Inseguro, Roger recordou outro dos conselhos da revista: «Não suponha que ele pode ler sua mente. lhe dê uma pista de como se sente você».

Roger deu outra dentada ao sanduíche e o mastigou. Bom, lhe tinha dado um sinal. Tinha despido sua alma e ela se colocou em um avião para ir-se a Boston.

-Não seja muito agressivo -murmurou soltando um bufido.

A mulher que estava a seu lado olhou e se afastou um pouco. Roger suspirou e deixou o resto do sanduíche sobre a bandeja de plástico. Procurou uma taça do que no comilão chamavam café, mas não bebeu. voltou-se a sentar com a taça entre as mãos, absorvendo seu calor.

O problema era que enquanto acreditava que tinha triunfado em afastar a atenção da Brianna do passado, era incapaz de fazê-lo ele. Claire e aquele maldito highlander o obcecavam; pela fascinação que lhe provocavam, pareciam sua própria família. «Sempre deve ser sincero», dizia outra das entrevistas. Se o tivesse sido, se a tivesse ajudado a descobrir tudo, talvez o fantasma do Jamie Fraser agora estaria tranqüilo e Roger também.

-Vete ao inferno! -murmurou para si mesmo.

A mulher sentada a seu lado deixou a taça na bandeja e se levantou.

-você vá-se ao inferno! -disse, e se afastou.

Roger a contemplou durante um momento.

-Não tema -disse-. Acredito que já estou nele.

 

                   Aparece uma serpente

Outubro de 1768

Em princípio não tenho objeções contra as serpentes. Comem ratos, o que é algo louvável, algumas são decorativas e a maioria são o bastante ardilosas para manter-se fora do caminho. Vive e deixa viver era minha atitude básica.

Mas essa era a teoria. Na prática, tinha toda aula de objeções contra a enorme serpente que estava enrolada no assento do privada. Além do fato de que naquele momento me incomodava enormemente, não era útil comendo ratos e esteticamente tampouco era agradável, já que era cinza com manchas escuras.

Mas minha maior objeção era o fato de que era uma serpente de cascavel. Suponho que era uma sorte que o fora, porque o ruído das cascavéis impediu que me sentasse sobre ela na tênue luz do amanhecer.

O primeiro som me deixou geada; parada no pequeno privada estendi um pé para trás procurando a soleira. À serpente isso não gostou; fiquei imóvel enquanto seu zumbido aumentava. Podia ver a puma de sua cauda vibrando, movendo-se como um grosso dedo amarelo.

Entretanto, não podia ficar ali para sempre. Deixando a um lado outras considerações, a impressão de ver a serpente não tinha diminuído a urgência de minhas funções corporais.

Tinha a vaga noção de que as serpentes eram surdas; talvez poderia gritar pedindo auxílio. Mas e se não era assim? Havia uma história do Sherlock Holmes onde uma serpente respondia a um assobio. Pode que o assobio lhe parecesse inofensivo. Com precaução, franzi os lábios e soprei. Não saiu outra coisa que uma fraca corrente de ar.

-Claire? -disse uma voz intrigada a minhas costas-. Que diabos está fazendo?

Saltei ante a voz e o mesmo fez a serpente, ou ao menos se moveu súbitamente no que pareceu um iminente ataque.

-Há uma maldita serpente -disse entre dentes, tratando de não mover os lábios.

-Bom, por que fica parada? te faça a um lado e a tirarei.

Os passos do Jamie se aproximaram. A serpente também o ouviu; era evidente que não era surda e aumentou seus cascabeleos.

-Ah! -disse Jamie em tom diferente-. Fica aquieta, Sassenach.

Não tive tempo de responder a sua advertência porque uma pedra grande passou roçando meu quadril e golpeou à serpente; esta se retorceu e caiu no desculpado com um plaf!

Não felicitei ao vitorioso guerreiro, mas sim saí correndo para o bosque mais próximo. Aos poucos minutos retornei mais tranqüila e encontrei ao Jamie e ao Ian juntos no privada considerando o tamanho, o menor em cuclillas no banco, com uma tocha, e o tio inclinando-se sobre o buraco esquadrinhando as profundidades.

-Aqui, posso ver algo; aproxima a luz.

Jamie se incorporou para baixar a tocha.

-Aí está! Vejo-a! -gritou Ian.

As duas cabeças se juntaram e se chocaram com o ruído de melões partidos. Jamie baixou a tocha até que caiu no buraco e se apagou. um pouco de fumaça subiu como incenso.

-Ainda está viva? -perguntei com ansiedade.

Jamie abriu um olho e me olhou entre os dedos com os que se sujeitava a cabeça.

-Minha cabeça está bem, obrigado –disse-. Espero que meus ouvidos deixem de soar para na próxima semana.

-Vamos, vamos -pinjente conciliadora-. Faria falta um martelo especial para romper seu crânio. me deixe ver.

Tinha um galo debaixo do nascimento do cabelo, mas não havia sangue.

Beije o galo e lhe dava uma palmada na cabeça.

-Não vais morrer -pinjente-. Não por isso.

-Ah, bem -disse com secura-. Talvez mora pela picada da serpente a próxima vez que me sente a fazer minhas necessidades.

-O que vais fazer a respeito? -perguntei.

Arqueou uma sobrancelha.

-Eu? por que tenho que fazer algo?

-Não pode deixar que fique aí!

-por que não? -disse arqueando a outra sobrancelha.

Ian se arranhava a cabeça com ar ausente, até que encontrou o galo e se sobressaltou.

-Bom, não sei, tio Jamie -disse dúbio-. Se quer deixar seu Pelotas pendurando sobre uma serpente é seu problema, mas só de pensá-lome põem os cabelos de ponta. Como é de grande?

-Bastante grande, devo admiti-lo.

Jamie flexionou a boneca mostrando seu antebraço para lhe dar uma idéia.

-Né! -disse Ian.

-Sabe se saltarem? -colaborei.

-Sim, sei. -Olhou-me com cinismo-. E como quer tirá-la?

-Posso lhe disparar com sua pistola -ofereceu Ian, fascinado pela possibilidade de poder usar as apreciadas pistolas do Jamie-. Não precisamos tirá-la se podemos matá-la.

-pode-se... ah... ver? -perguntei com prudência.

-Não muito. Há uns centímetros de imundície no fossa; não acredito que se veja bem para apontar e detestaria perder um disparo.

-Podemos convidar a todos os Hansen para jantar, servir cerveja e afogar à serpente -sugeri, mencionando a nossa ampla família vizinha.

Ian se afogou com a risada e Jamie me olhou com seriedade e se dirigiu ao bosque.

-Pensarei algo -disse-. Depois do café da manhã.

 

Por sorte o café da manhã não foi um grande problema, já que as galinhas tinham posto ovos e o pão se assou bem. A manteiga ainda estava confinada no fundo da despensa, baixo a custódia de uma cerdita recém-nascida, mas Ian as engenhou para tirar um pote de geléia da prateleira enquanto eu tratava de detê-la com a vassoura.

-Necessito uma vassoura nova -comentei, enquanto preparava os ovos-. Talvez baixe esta manhã até os salgueiros do arroio.

-Mmm.

Jaime estendeu a mão para procurar a bandeja com pão. Toda sua atenção se centrava no livro que estava lendo: História natural da Carolina do Norte, do Bricknell.

-Aqui está -disse-. Sabia que tinha visto algo sobre as serpentes de cascavel. -Encontrou o pão e o usou para acompanhar uma porção de ovo. depois de tragar leu em voz alta-: “Os índios com freqüência arrancam os dentes das serpentes para que não possam fazer mal ao morder. A operação se realiza facilmente: atando um trapo vermelho na ponta de um cano largo e oco, provocando assim à serpente, até que o remói".

-Tem algum trapo vermelho, tia? -perguntou Ian, tragando uma parte de ovo com café de chicória.

Neguei com a cabeça.

-Esse é um bom livro, tio Jaime -disse Ian com aprovação-. Diz algo mais sobre as serpentes?

-Bom, aqui há algo sobre como as serpentes encantam aos esquilos e os coelhos.

Jaime tocou seu prato e o encontrou vazio. Empurrei-lhe a fonte com pão-doces.

-E não diz nada sobre como tratar a porcos viciosos?

-Eu me ocuparei dos porcos -murmurou-, Não há mais ovos?

-Há, mas são para nossa hóspede do celeiro.

Pus duas fatias de pão na pequena cesta que estava preparando e agarrei a garrafa com a infusão que tinha deixado descansar durante a noite. Podia lhe ajudar e não lhe faria mau. Em um impulso, levei-me o amuleto que me tinha agradável a anciã Nayawenne; talvez isso daria confiança ao doente. Como a infusão, não lhe faria mal.

Nossa inesperado hóspede era um forasteiro; um tuscarora de uma aldeia do norte. Tinha chegado à granja vários dias atrás como membro de uma partida de caça desde a Amia Ooka, seguindo os rastros de um urso.

Tínhamo-lhes devotado comida e bebida; alguns dos caçadores do grupo eram amigos do Ian; durante a comida notei que aquele homem tinha um olhar especial, sem brilho. Ao examinar o de perto, cheguei à conclusão de que tinha o sarampo, uma enfermidade alarmante para a época.

Insistiu em partir com seus companheiros, mas dois deles o trouxeram de volta poucas horas mais tarde, confuso e delirante.

Era alarmantemente contagioso. Fiz-lhe uma cama no novo celeiro e obriguei a seus companheiros a lavar-se no arroio, antes de partir, o que certamente consideraram uma tolice.

O índio estava de lado e nem se moveu para me olhar.

-Comment seja vai? -pinjente me ajoelhando junto a ao.

Não me respondeu, não era necessário. Por sua respiração podia diagnosticar pneumonia, coisa que confirmei nada mais vê-lo. Tratei de lhe convencer para que comesse, pois o necessitava desesperadamente, mas nem se incomodou em mover a cara. A garrafa com água que lhe tinha deixado estava vazia. antes de repor-lhe tentei lhe dar a beber a infusão. Tragou um pouco e se deteve- Então lhe dava água e bebeu sedento.

Fui ao arroio para enchê-la de novo. Quando retornei, em um arranque de inspiração, agarrei o amuleto e me ajoelhei.

Não sabia qual era a cerimônia adequada mas tinha sido médica o tempo suficiente para conhecer o poder da sugestão. Não era melhor que os antibióticos, mas sem dúvida era melhor que nada.

Levantei o amuleto e recitei solenemente o primeiro que me veio à mente, que resultou ser o tratamento para a sífilis em latim do doutor Rawlings. Completei mim ritual benzendo a garrafa com a infusão e logo a aproximei do paciente. Quase hipnotizado abriu a boca e bebeu.

Tampei-lhe com a manta, deixei a comida a um lado e me parti com uma mescla de esperança e sensação de fraude.

Caminhei com lentidão ao lado do arroio, alerta a algo que pudesse me resultar útil. Era uma época do ano muito temprana para encontrar muitas novelo medicinais. As melhores eram novelo fortes e velhas, mas também estavam as flores e os frutos ou as sementes que tinham substâncias utilizáveis.

Meti-me no arroio para tirar um lindo conjunto de rabo-de-cavalo e um tentador arbusto de folhas verdes aromáticas. Movi-me com os ritmos da água e o vento, passando a ser parte da lenta e perfeita ordem do universo.

Ao chegar à curva dos salgueiros ouvi um chiado além das árvores. Tinha ouvido ruídos similares produzidos por animais, mas podia reconhecer a voz humana quando a ouvia.

Abri-me caminho entre os ramos até chegar a um claro. Um menino saltava, golpeando-se enlouquecido nas pernas.

-O que...? -comecei a dizer.

Levantou a vista e me olhou com seus olhos azuis cheios de surpresa por minha aparição.

Não estava mais surpreso que eu. Devia ter onze ou doze anos e era alto e magro, com um arbusto de cabelo castanho avermelhado. Seus olhos azuis olhavam a ambos os lados de um nariz reta, tão familiar para mim como a palma de minha mão, embora sabia que nunca tinha visto antes a aquele menino.

-Sanguessugas -pinjente. A calma profissional tinha superado minha comoção pessoal. «Não pode ser», dizia-me mesma e ao mesmo tempo sabia que era-. São sanguessugas, não lhe farão mal.

-Sei o que são! -disse-. Tira-me isso estremeceu-se de asco-. São odiosas!

-Não tão odiosas. Têm sua utilidade -pinjente, começando a me recuperar da impressão.

-Não me importa a utilidade que tenham! -uivou, paleando com frustração-, As ódio, tira-me isso

-Bom, deixa de brigar com elas -pinjente cortante-. Sente-se e eu me ocuparei de tudo.

Vacilou, me olhando com receio, até que a contra gosto se sentou em uma rocha e estendeu suas pernas ante mim.

-as tire já! -ordenou.

-Ao seu devido tempo -respondi-, De onde vem?

Olhou-me desconcertado.

-Você não vive por aqui -disse com total segurança-. De onde vem?

-Ah... dormimos em um lugar chamado Salena, faz três noites. Essa foi a última cidade que vi. -Agitou as pernas-. Hei-te dito que as tire!

Havia vários métodos para as tirar, a maioria mais dolorosos que as próprias sanguessugas. Tinha três em uma perna e quatro na outra. Um dos pequenos animais estava gordo, a ponto de explorar. Apertei-o com a unha do polegar contra minha mão e arrebentou jorrando sangue.

O moço a contemplou pálido e tremente.

-Não quero desperdiçá-la -expliquei.

fui procurar a cesta que tinha deixado baixo os ramos e vi sua casaca, os sapatos e as médias. As fivelas dos sapatos eram de prata e a casaca estava bem atalho, com um estilo inhabitual ao norte do Charleston. Não necessitava mais confirmação.

Coloquei a sanguessuga em um punhado de barro e a envolvi com folhas úmidas. As mãos me tremiam. O idiota! Desprezível malvado... Que diabos lhe tinha induzido a trazê-lo aqui? E o que faria Jamie?

Aproximei-me do moço e me ajoelhei para lhe tirar outra sanguessuga.

-Onde está seu padrasto? -perguntei bruscamente.

Poucas coisas podiam distrair sua atenção de suas pernas, mas isto o fez. Sua cabeça se levantou de repente e me contemplou assombrado.

-Conhece-me? -perguntou com um ar de arrogância que em outras circunstâncias teria sido divertido.

-Tudo o que sei sobre ti é que seu nome de pilha é William. Tenho razão?

Minhas mãos se crisparam e tive a esperança de me haver equivocado. Se era William, isso não era tudo o que sabia sobre ele, mas era bastante para começar.

Suas bochechas se ruborizaram e seus olhos se arrumaram das sanguessugas para observar a quem lhe tratava com tanta familiaridade, e que parecia uma bruxa desgrenhada e com as saias levantadas.      

-Sim, assim é -disse-. William visconde Ashness, nono conde do Ellesmere.

-Todo isso? -pinjente amavelmente-. Que agradável.

Agarrei uma sanguessuga mas não a pude arrancar. O moço deixou escapar um grito.

-Deixa-a! -disse-. vai se partir!

-Pode ser -admiti. Pu-me em pé e me baixei as saias—, Vêem -pinjente lhe oferecendo a mão-. Levarei-te a casa. Se lhes puser sal cairão imediatamente.

Não aceitou a mão e ficou em pé. Olhou como se procurasse a alguém.

-Papai -explicou ao ver minha expressão-. Perdemo-nos e me disse que o esperasse no arroio. ia assegurar se de que levávamos a direção correta. Não quero que se alarme se voltar e não me encontra.

-Não se preocupe. Imagino que terá encontrado a casa; não está longe.

Era a única casa que havia naquela zona e estava ao final de um atalho bem marcado. Era evidente que lorde John tinha deixado ao menino para ver primeiro ao Jamie e acautelá-lo.

Muito considerado. Meus lábios se crisparam involuntariamente.

-São os Fraser? —perguntou o moço-. viemos a ver o James Fraser.

-Eu sou a senhora Fraser -pinjente e lhe sorri. «Sua madrasta», pude ter acrescentado, mas não o fiz-. Vêem.

Seguiu-me apressadamente através das árvores, quase me pisando os talões em direção à casa.

Abandonei a busca de epítetos adequados para insultar a lorde John Grei e tratei de pensar no que fazer, mas não havia nada que pudesse fazer.

William, visconde Ashness, nono conde do Ellesmere. Ou o que ele acreditava que era. «E o que te propõe fazer –pensei enfurecida com lorde John Grei-, quando descobrir que é o filho bastardo de um criminoso escocês indultado? E o mais importante, o que ia fazer o escocês?»

Detive-me e o moço tropeçou comigo.

-Sinto muito -murmurei-. Pareceu-me ver uma serpente.

Continuei com meus pensamentos. teria o trazido para lhe revelar seu parentesco? Quereria lhe deixar aqui, com o Jamie.. conosco?

Embora a idéia me alarmava, não encaixava com a personalidade do homem que tinha conhecido na Jamaica. Podia ter motivos razoáveis para que eu não gostasse de John Grei; sempre é difícil mostrar bons sentimentos para o homem que tem uma paixão homossexual pelo marido de uma; mas devo admitir que não conhecia sinais de maldade ou crueldade em seu caráter. Pelo contrário, tinha-me parecido um homem honorável, sensível e bondoso, ao menos até que conheci sua debilidade pelo Jamie.

E se ao vê-los juntos o parecido os delatava? Não, tranqüilizei-me. Seria alto, mas agora era ainda muito magro e seu cabelo era mais escuro que o do Jamie. Tinha os olhos dos Fraser e algo na forma de sua cabeça e nos ombros erguidos que me fazia pensar em.., Bri. Foi como uma corrente elétrica. parecia-se muito ao Jamie, mas era minha lembrança da Brianna o que me tinha feito reconhecê-lo imediatamente.

Era dez anos menor mas suas facções eram muito mais parecidas com as dela que às do Jamie.

Apressei-me porque não queria que chegasse à cabana antes que eu. Sentia uma mescla de ansiedade pelo Jamie e fúria contra John Grei, mas acima de tudo grande curiosidade e no fundo uma pontada de nostalgia por minha filha, cujo rosto não voltaria a ver.

Jamie e lorde John estavam sentados em um banco ao lado da porta. Para ouvir nossos passos, Jamie se levantou e olhou para o bosque. Tinha tido tempo de preparar-se. Seu olhar passou com indiferença pelo moço e se voltou para mim.

-Vamos, Claire. encontraste a outro de nossos visitantes. Enviei ao Ian para que o buscasse. Recorda a lorde John?

-Como ia esquecer o? -pinjente, lhe dedicando um sorriso luminoso.

Sua boca tremeu, mas fez uma profunda inclinação.

-Para servi-la, senhora Fraser. -Olhou ao moço com o cenho franzido ante sua aparência-. Posso lhe apresentar a meu enteado, lorde Ellesmere? William, vejo que já conheceste a nossa encantadora anfitriã, quer saudar nosso anfitrião, o capitão Fraser?

O moço quase bailoteaba, mas para ouvir aquilo se endireitou e fez uma rápida reverência.

-Para lhe servir, capitão -disse e me lançou um olhar de sofrimento.

-Poderiam nos desculpar? -pinjente amavelmente.

Agarrando ao moço do braço, entrei com ele na cabana e fechei a porta ame o rosto assombrado dos homens.

William se sentou no banco que lhe assinalei e estirou as pernas.

-Rápido! -disse-. Por favor, rápido!

Não havia sal moído, assim com a faca cortei uma peça do bloco e a coloquei no morteiro, amassando-a até conseguir os grãos desejados, que pus sobre as sanguessugas.

-É muito duro para as pobres -disse ao ver cair à primeira-. Mas funciona.

Recolhi aqueles pequenos insetos e os atirei ao fogo, logo me ajoelhei com a cabeça inclinada, lhe dando tempo a recompor sua expressão.

-Agora me deixe me ocupar das picadas.

Limpei o sangue e lavei as feridas com vinagre e uma erva especial para deter as hemorragias.

Deixou escapar um trêmulo suspiro de alívio.

-Não é que tenha medo de... do sangue -disse com um tom jactancioso que fez evidente qual era seu temor-. É que são umas criaturas asquerosas.

-São umas cositas detestáveis -pinjente.

Incorporei-me, agarrei um trapo limpo, molhei-o na água e sem formalidades lhe lavei a cara. Logo, sem perguntar, agarrei minha escova e comecei a lhe pentear.

Tinha um redemoinho no cocuruto; senti certa vertigem ao comprovar que era igual ao do Jamie.

-perdi minha cinta -disse, olhando ao redor como se pudesse materializar-se.

-Eu te emprestarei uma.

Quando terminei lhe atei uma cinta amarela e tive a estranha sensação de estar lhe protegendo.

Tinha conhecido sua existência poucos anos antes e se tinha pensado nele, tinha sido com curiosidade e um pouco de ressentimento. Mas agora o grande parecido com minha filha e com o Jaime ou o simples feito de me haver ocupado dele, produzia-me a estranha sensação de uma preocupação quase possessiva por ele.

abriu-se a porta e Jamie apareceu a cabeça.

-Vai tudo bem? -perguntou.

Seus olhos se posaram no menino com amável preocupação, mas pude ver a tensão na mão que sujeitava a porta.

-Sim –disse-. Crie que lorde John quererá tomar algo?

Pus a panela ao fogo para fazer chá e, com um suspiro, tirei a última fogaça de pão que pensava usar para meus experimentos de obtenção de penicilina. Pensando que a situação o justificava, também tirei nossa última garrafa de brandy. Logo pus a geléia na mesa, explicando que a manteiga estava, desgraçadamente, baixo a custódia da cerda.

-Cerda?-disse William confundido.

-Na despensa -pinjente assinalando a porta fechada.

-por que guardam ...? -começou a dizer, mas fechou a boca.

Era evidente que seu padrasto o havia paleado por debaixo da mesa enquanto sorria amavelmente ante sua taça de chá-

-É muito amável por nos haver recebido, senhora Fraser -disse lorde John, lançando um olhar de advertência ao menino-. Devo me desculpar por nossa chegada inesperada; espero não incomodá-la muito.

-De maneira nenhuma -respondi, enquanto pensava onde foram dormir.    

William podia fazê-lo com o Ian no abrigo, mas a idéia de dormir com o Jamie e com lorde John no mesmo quarto...

Então Ian, com seu habitual instinto para as comidas, apareceu. Foi apresentado com uma série de confusas explicações e inclinações de cabeça, até que conseguiram derrubar a bule.

Usando isto como desculpa, mandei ao Ian a que ensinasse ao William as atrações do bosque e o arroio e lhes dava uns sanduíches e uma garrafa de cidra. Já livre de sua presença, servi o brandy e olhei ao John Grei.

-O que está fazendo aqui? -disse sem mais preâmbulos.

-Não vim com a intenção de seduzir a seu marido, posso assegurar-lhe

-John!

O punho do Jamie golpeou a mesa e fez tremer as taças. Suas bochechas estavam tintas.

-Perdão -disse John Grei com o rosto branco-. Peço-lhe desculpas, senhora. foi imperdoável. Entretanto, devo assinalar que do primeiro momento me olhe como se me tivesse encontrado deitado com um conhecido maricas.

-Lamento-o -suspirei-. A próxima vez me avise antes para poder trocar de expressão.

ficou em pé e foi até a janela.

-Minha esposa morreu -disse bruscamente-. No navio, entre a Inglaterra e Jamaica. Vinha a reunir-se comigo.

-Sinto-o muito -disse Jamie-. O menino ia com ela?

-Sim. -Lorde John se voltou e a luz do sol iluminou sua cabeça-. Willie estava... muito afeiçoado com o Isobel. Era a única mãe que tinha conhecido.

A verdadeira mãe do Willie, Geneva Dunsany, tinha morrido no parto. Seu suposto pai, o conde do Ellesmere, morreu o mesmo dia em um acidente. Isso era o que Jamie me tinha contado. Também que Isobel, a irmã da Geneva, feito-se cargo do menino e que John Grei se casou com ela quando o menino tinha seis anos; foi então quando Jamie deixou seu trabalho com os Dunsany.

-Sinto-o muito -disse com sinceridade.

Grei me olhou e fez um leve gesto de reconhecimento.

-Meu período como governador estava a ponto de terminar; tinha a intenção de me instalar na ilha se o clima resultava bom para minha família. Mas... -encolheu-se de ombros-. Willie ficou muito triste depois da morte de sua mãe e me pareceu oportuno tratar de lhe distrair. apresentou-se uma ocasião quase imediatamente. As posses de minha esposa incluíam uma grande propriedade na Virginia que agora é do William e recebi notícias do comissionado da plantação pedindo instruções.

Grei se aproximou da mesa, ocupou seu assento e prosseguiu:

-Não podia decidir nada sem ver a propriedade e avaliar as condições. Assim decidi que navegaríamos até o Charleston e de ali viajaríamos por terra até a Virginia. Confiava em que a experiência poderia apartar ao William de sua dor e acredito que está dando resultado. Nestas últimas semanas tive o prazer de lhe ver mais contente.

Abri a boca para dizer que a Colina do Fraser se encontrava fora de seu caminho, mas o pensei melhor e calei.

Como se me tivesse adivinhado o pensamento me sorriu com ironia.

-Onde está a plantação? -perguntou Jaime.

-A cidade mais próxima se chama Lynchburg, no rio James -disse lorde John, me olhando zombador-. Em realidade, não são mais que uns poucos dias os que perdemos para vir aqui. -Fixou sua atenção no Jamie-. Disse ao Willie que foi um velho amigo de minha época de soldado. Espero que não te incomode o engano.

Jamie sacudiu a cabeça com uma careta.

-É um engano? Nestas circunstâncias não posso pensar em me incomodar e não é do todo falso.

-Crie que te recordará?-perguntei ao Jamie.

Tinha trabalhado na quadra da propriedade da família do Willie como prisioneiro de guerra.

-Não acredito. Tinha seis anos quando fui do Helwater, o que para um menino é muito tempo. E não há razão para que me relacione com uma moço de quadra chamado MacKenzie.

-me diga -disse com um súbito impulso-. Não quero incomodar, mas... sabe do que morreu sua esposa?

-Como? -Pareceu assombrado, mas se recuperou imediatamente-, Sua criada me disse que morreu de fluxo sangrento. Acredito que não foi... uma morte fácil.

Fluxo sangrento, né? Aquela descrição abrangia da disenteria até o cólera.

-Havia algum médico? Alguém a bordo que se ocupasse dela?

-Sim. Onde quer ir parar, senhora?

-Não é nada. Perguntava-me se for possível que Willie visse como usavam sanguessugas.

Um brilho de compreensão cruzou seu rosto.

-Já vejo. Não o tinha pensado...

Naquele momento vi o Ian fazendo gestos da porta.

-Quer algo, Ian? -perguntei, interrompendo a sir John.

-Não, obrigado, tia. É só que... -Olhou com desespero ao Jamie-. Sinto muito, tio, sei que não devi lhe deixar, mas...

-O que? -Alarmado pelo tom de voz do Ian, Jamie ficou em pé-, O que tem feito?

-Bom, verá. Sua Senhoria me perguntou pelo privada e lhe contei o da serpente e que seria melhor que fora ao bosque. Isso fez, mas quis ver a serpente Y... Y...

-Não lhe terá picado? -perguntou Jamie com ansiedade.

-Não. -Ian pareceu surpreso-. Não víamos nada porque estava muito escuro, assim levantamos a tampa. Então pudemos ver a serpente e a cravamos com um ramo largo; movia-se como põe no livro, mas não parecia que fora a morder. Y... Y... -Olhou de esguelha a lorde John e tragou ruidosamente-. Foi minha culpa. Contei-lhe que eu tinha pensado em lhe disparar e Sua Senhoria disse que podia tirar a pistola de seu pai. E então...

-Ian -disse Jamie-, me diga já o que lhe tem feito ao moço. Não lhe terá disparado por engano?

-É obvio que não! -exclamou ofendido.

-Seria tão amável de me dizer onde está meu filho? -interveio lorde John-

-Está no fundo do privada -disse com um profundo suspiro-. Tem uma corda, tio Jamie?

Com uma admirável economia de palavras e movimentos, Jamie chegou até a porta e desapareceu seguido por lorde John.

-Está ali com a serpente? -perguntei enquanto procurava algo que me servisse de torniquete, se por acaso fora necessário.

-Não, tia -respondeu Ian-. Como o ia deixar com a serpente? Melhor vou ayudar-acrescentou e desapareceu.

Corri atrás dele e encontrei ao Jamie e lorde John costas contra costas na porta do privada conversando com as profundidades. Pu-me nas pontas dos pés para olhar por cima do ombro de lorde John. Vi um ramo que me sobressaía do buraco.

Contive a respiração. Lorde Ellesmere fazia sair parte do conteúdo e o aroma era insuportável-

-Diz que não está ferido -disse Jamie, tirando um cilindro de corda.

-Bem -pinjente-. E onde está a serpente?

-foi para esse lado -disse Ian, assinalando o atalho-. Não conseguiu lhe dar com o disparo, eu lhe peguei com o ramo e a condenada se enrolou nela e avançou. Assustei-me, choquei-me com ele Y... bom, assim aconteceu.

Tratando de evitar o olhar do Jamie, inclinou-se para gritar: -!Né! Me alegro de que não te rompesse o pescoço!

Jamie lhe dirigiu um olhar indicativo sobre que pescoço terei que romper, mas Ian se fez prudentemente a um lado. Por sorte, a água do fundo tinha diminuído o golpe. Aparentemente o nono conde do Ellesmere tinha cansado de barriga para baixo. Tiraram-no sem problemas e o depositaram no atalho. Lorde John o contemplava tratando de ocultar um sorriso, até que seus ombros começaram a sacudir-se.

-Que notícias traz dos infernos, Perséfone? -disse, incapaz de conter a risada.

Talher de sujeira, seus olhos azuis tinham uma expressão assassina. Era uma expressão dos Fraser. A meu lado, Ian teve um repentino sobressalto. Seu olhar ia do conde ao Jamie, logo se cruzou com a meu e seu rosto se voltou totalmente inexpressivo.

Jamie e lorde John se citavam frases em grego e riam como loucos. William bufava, igual ao fazia Jamie quando não agüentava mais, enquanto Ian se movia inquieto.

-Ejem -pinjente, esclarecendo minha garganta-. Se me permitirem, cavalheiros, embora não sei filosofia grega, há um pequeno epigrama que sei de cor.

Entreguei ao William o bote com sabão líquido que havia trazido em lugar do torniquete.

-Píndaro –disse-. A água é o melhor.

Um breve brilho de gratidão apareceu entre a imundície. Sua Senhoria me fez uma inclinação, deu-se a volta, olhou duvidoso ao Ian e correu fada o arroio. Parecia ter perdido os sapatos.

-Pobre -disse Ian, sacudindo a cabeça-. Demorará dias em tirar-se esse aroma.

-Sem dúvida -respondeu lorde John abandonando a poesia grega por preocupações mais materiais—. A propósito, sabe o que passou com minha pistola? A que usou William antes do desafortunado acidente.

-Ah. -Ian lhe olhou incômodo. Levantou o queixo em direção à privada-. Eu... bom, temo-me...

-Já vejo.

Lorde John se esfregou o queixo impecavelmente barbeado. Jamie cravou o olhar no Ian.

-Ah... -disse Ian, retrocedendo.

-Vê -ordenou Jamie em um tom que não admitia discussão.

-Mas... -disse Ian.

-Já -disse lhe dando a corda.

A noz do moço se agitou. Olhou-me com os olhos espantados de um coelho.                

-Primeiro te tire a roupa -pinjente serviçal-. Não queremos ter que queimá-la, não te parece?.

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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