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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TEMPESTADE DE CRISTAL / Morgan Rhodes
TEMPESTADE DE CRISTAL / Morgan Rhodes

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

MAGNUS e CLEO são forçados a testar a força de seu amor quando Gaius retorna à Mítica dizendo não mais ser o Rei Sanguinário, mas, sim, um homem mudado buscando rendenção.
LUCIA, grávida do filho de um Vigilante, escapou das garras do Deus do Fogo. Seus poderes estão enfraquecendo enquanto ela segue em frente para completar a profecia que manterá seu bebê a salvo...
JONAS volta para Mítica com um plano para tirar Amara do poder, mas o destino toma às rédeas quando ele vai em direção à bela princesa Lucia e se junta a ela em sua perigosa jornada.
AMARA tomou o trono de Mítica, mas sem uma forma de liberar a magia da água presa em seu cristal roubado, ela nunca será capaz de encontrar glória e conseguir sua doce vingança.
E qual tipo de escuridão cairá - e quem estará salvo - depois que o Príncipe Ashur revelar o perigoso preço que ele pagou para enganar a morte?

 

 

 


 

 

 


Dezessete anos antes
Depois de ler a mensagem, Gaius amassou o pergaminho e caiu de joelhos. Uma confusão de pensamentos e lembranças dominava sua mente. Tantas escolhas. Tantas perdas.
Tantos arrependimentos.
Ele não sabia quanto tempo levara para o som reverberante de passos tirá-lo de seu devaneio doloroso. A mãozinha de seu filho de dois anos, Magnus, tocou seu braço. Sua esposa, Althea, estava do outro
lado do quarto, bloqueando a luz da janela.
- Papai?
Com a vista embaçada, Gaius olhou para Magnus. Em vez de responder, ele puxou o pequeno corpo do garoto para perto e tentou se consolar no abraço do filho.
- O que estava escrito naquela mensagem para chateá-lo tanto? - Althea perguntou com frieza, olhando para Gaius com ar de superioridade.
A garganta dele ficou apertada, como se lutasse para falar a verdade. Finalmente, ele se afastou do filho e olhou para a esposa.
- Ela está morta - disse Gaius, com palavras secas e frágeis como folhas secas.
- Quem está morta?
Ele não queria responder. Não queria falar com a esposa naquele momento, principalmente sobre aquele assunto.
- Papai? - Magnus chamou de novo, confuso, e Gaius encarou os olhos brilhantes do filho. - Por que está tão triste, papai?
Ele envolveu o rosto da criança com suas mãos.
- Está tudo bem - ele garantiu ao menino. - Está tudo bem, meu filho.
Althea rangeu os dentes, com um olhar desprovido de bondade.
- Recomponha-se para que nenhum criado o veja desse jeito, Gaius.
E se algum visse?, ele pensou. Althea sempre se preocupava demais com aparências e opiniões alheias, não importava de quem. O apreço de Gaius pela atenção aos detalhes e pela compostura majestosa da esposa
com frequência se sobressaía à apatia generalizada que sentia por ela, mas, naquele momento, só conseguia odiá-la.
- Leve Magnus - ele disse, levantando-se e encarando a mulher com severidade. - E mande chamar minha mãe. Preciso vê-la imediatamente.
Ela franziu a testa.
- Mas, Gaius...
- Agora - ele gritou.
Com um suspiro impaciente, Althea pegou Magnus pela mão e o tirou do quarto.
Gaius começou a andar de um lado para o outro, da pesada porta de carvalho com a doutrina limeriana "força, fé, e sabedoria" entalhada na superfície até as janelas com vista para o Mar Prateado. Finalmente,
ele parou e olhou em silêncio para as águas frias que batiam nos penhascos logo abaixo da janela do palácio.
Não demorou muito para a porta se abrir, e ele se virou para encarar sua mãe. A expressão de sofrimento em seu rosto deixava as sobrancelhas franzidas. Linhas finas abriam-se ao redor de seus olhos acinzentados.
- Meu querido - Selia Damora disse. - O que aconteceu?
Ele mostrou o pergaminho amassado. Sua mãe se aproximou, pegou a correspondência da mão dele e passou os olhos pela curta mensagem.
- Entendo - ela disse, com uma expressão fechada.
- Queime isso.
- Muito bem. - Usando magia do fogo, ela incendiou o pergaminho. Gaius observou a mensagem se transformar em cinzas e cair no chão.
- Como posso ajudar? - ela perguntou com um tom de voz calmo e suave.
- A senhora me ofereceu uma coisa uma vez, uma coisa poderosa... - ele respondeu, agarrando o tecido da camisa sobre o peito. - A senhora disse que poderia remover essa maldita fraqueza de mim de uma vez
por todas. Para me ajudar a esquecer... ela.
O olhar solene de Selia encontrou o dele.
- Ela morreu dando à luz uma filha de outro homem. Um homem que ela escolheu bem depois que vocês se distanciaram. Estou surpresa que você não tenha conseguido superar tudo isso.
- Mesmo assim, não consigo. - Ele não ia implorar. Não se humilharia daquela forma diante da mulher mais forte e mais poderosa que conhecia. - Vai me ajudar ou não? É uma pergunta simples, mãe.
Selia cerrou os lábios.
- Não, não é nada simples. Toda magia tem um preço, principalmente esse tipo de magia negra.
- Não importa. Eu pago qualquer preço. Quero ser forte diante de qualquer desafio que se apresentar. Quero ser tão forte quanto a senhora sempre acreditou que eu poderia ser.
Sua mãe ficou em silêncio por um instante. Ela se virou na direção das janelas.
- Tem certeza absoluta? - ela perguntou.
- Sim. - A palavra saiu como o sibilo de uma cobra.
Ela assentiu e saiu do quarto para pegar o que Gaius havia pedido - ou melhor, implorado. Ao voltar, segurava o mesmo frasco de poção que havia lhe oferecido anos atrás - uma poção, ela dissera, que tornaria
forte tanto seu corpo quanto sua mente. Eliminaria sua fraqueza. Afiaria seu foco e o ajudaria a obter tudo o que sempre quis.
E, o mais importante, a poção também o ajudaria a deixar seu amor por Elena Corso definitivamente onde deveria ficar: no passado.
Ele pegou o recipiente que a mãe segurava e encarou o frasco de vidro azul. Para um objeto tão pequeno, parecia incrivelmente pesado em sua mão.
- Você precisa ter certeza - Selia lhe disse com seriedade. - Os efeitos dessa poção o acompanharão até o dia de sua morte. Assim que tomá-la, nunca mais vai se sentir como se sente agora. A mudança será
irrevogável.
- Sim - ele assentiu, rangendo os dentes. - Uma mudança para melhor.
Ele abriu o frasco, levou-o aos lábios e, antes que se permitisse duvidar, bebeu o líquido denso e morno em um só gole.
- A dor vai durar apenas um instante - Selia explicou.
Ele franziu a testa.
- Dor?
E lá estava: uma queimação repentina, como se ele tivesse engolido lava derretida. A magia negra fluiu por seu corpo, queimando tudo o que havia de fraco e desprezível. Ele ouviu os próprios gritos de
angústia quando o frasco caiu de sua mão e se partiu no chão de pedra.
Gaius Damora tentou aceitar cada momento de agonia enquanto suas fraquezas remanescentes eram queimadas, suas lembranças de Elena transformavam-se em brasas, e o desejo pelo poder supremo crescia dentro
dele como uma fênix renascendo das cinzas.
1
JONAS
KRAESHIA
Do outro lado do mar, em Mítica, havia uma princesa dourada que Jonas queria salvar.
E um deus do fogo que ele precisava destruir.
No entanto, havia um obstáculo em seu caminho nas docas kraeshianas, consumindo um tempo que Jonas não podia perder.
- Achei que você tinha dito que ele havia sido morto pela irmã - Jonas disse a Nic em voz baixa.
- E foi. - A voz de Nic não era mais que um sussurro, enquanto passava as duas mãos pelos cabelos ruivos e despenteados. - Eu vi com meus próprios olhos.
- Então como isso é possível?
- Eu... eu não sei.
O príncipe Ashur Cortas parou a apenas alguns passos de distância. Encarou Jonas e Nic com seus olhos azul-prateados semicerrados, que contrastavam com a pele escura como o brilho de uma lâmina ao anoitecer.
Os únicos sons ouvidos por um longo momento foram o grasnado de uma ave marinha que mergulhava para pegar um peixe e a batida constante da água contra o navio limeriano, com suas velas pretas e vermelhas.
- Nicolo - o príncipe de cabelos negros disse com um aceno de cabeça. - Sei que deve estar confuso em me ver novamente.
- Eu... eu... o quê...? - Foi a única resposta de Nic. As sardas em seu nariz e em suas bochechas se destacavam sobre a pele branca. Ele respirou fundo, trêmulo. - Não é possível.
Ashur arqueou a sobrancelha escura para o garoto, hesitando apenas um segundo antes de falar:
- Em meus vinte e um anos de vida, aprendi que pouquíssimas coisas neste mundo são impossíveis.
- Eu vi você morrer. - A última palavra soou como se tivesse sido arrancada dolorosamente da garganta de Nic. - O que foi aquilo? Apenas mais uma mentira? Mais um truque? Mais um plano que não sentiu necessidade
de me contar?
Jonas ficou surpreso que Nic ousasse falar com tanta insolência com um membro da realeza. Não que ele respeitasse muito os membros da família real, mas Nic tinha passado tempo o bastante no palácio auraniano,
lado a lado com a princesa, para saber que não era prudente ser grosseiro.
- Não foi mentira. O que aconteceu no templo não foi nenhum truque. - Ashur passou os olhos pelo navio limeriano, pronto para partir das docas cheias e movimentadas de Joia do Império. - Explico melhor
quando nós estivermos no mar.
Jonas arregalou os olhos diante do tom autoritário e confiante do príncipe.
- Quando nós estivermos no mar? - ele repetiu.
- Sim, eu vou com vocês.
- Se pretende fazer isso - Jonas disse, cruzando os braços -, vai ter que se explicar melhor agora.
Ashur olhou para ele.
- Quem é você?
Jonas não desviou o olhar.
- Sou a pessoa que decide quem entra neste navio. E quem não entra.
- Você sabe quem eu sou? - Ashur perguntou.
- Sei muito bem. Você é o irmão de Amara Cortas, que aparentemente se tornou a imperatriz sanguinária de grande parte deste mundo maldito. E, de acordo com o Nic, você deveria estar morto.
Uma figura familiar apareceu atrás de Ashur, chamando a atenção de Jonas.
Taran Ranus havia deixado as docas apenas alguns minutos antes, para se preparar rapidamente para uma viagem não planejada a Mítica. Mas já estava de volta. Conforme se aproximava, o rebelde desembainhou
uma espada da cintura.
- Ora, ora - Taran disse ao levar a ponta da espada até a garganta de Ashur. - Príncipe Ashur. Que surpresa agradável tê-lo entre nós esta manhã, justo quando meus amigos estão trabalhando para derrubar
o reinado de sua família.
- Deu para perceber que estão trabalhando mesmo com o caos generalizado por toda Joia - Ashur comentou, com tom e conduta surpreendentemente serenos.
- Por que voltou? Por que não ficou no exterior buscando tesouros sem sentido como todos dizem que aprecia fazer?
Buscando tesouros? Jonas trocou um olhar ansioso com Nic. Parecia que poucos estavam cientes de que o príncipe tinha sido dado como morto.
- As circunstâncias do meu retorno não são da sua conta.
- Você está em Kraeshia por causa do... - Nic começou, mas hesitou logo em seguida. - Do... do que aconteceu com sua família? Deve estar sabendo, não?
- Sim, estou. - A expressão de Ashur obscureceu. - Mas não é por isso que estou aqui.
Taran riu.
- Como verdadeiro herdeiro do trono, talvez você seja uma excelente ferramenta de negociação com sua avó, agora que sua irmã se casou com o inimigo e viajou.
Ashur achou graça.
- Se é o que você pensa, então não conhece nada sobre o desejo de poder dela nem de minha irmã. É fácil ver que seus rebeldes estão em desvantagem numérica. O levante de vocês vai ser tão efetivo quanto
o piado de um passarinho recém-nascido à sombra de um gato selvagem. O que vocês realmente precisam fazer é entrar neste navio e partir enquanto podem.
O sorriso irônico de Taran desapareceu. Seus olhos castanhos se encheram de indignação.
- Você não pode me dizer o que fazer.
Jonas estava desconfortável com o comportamento de Ashur. Ele não parecia afetado pelas últimas notícias sobre o massacre de quase toda sua família. Não era possível dizer se Ashur sofria pela perda ou
se a celebrava. Ou será que ele apenas não sentia nada?
- Abaixe a arma, Taran - Jonas resmungou, depois soltou um suspiro. - Por que voltou tão cedo, afinal? Não tinha pertences para buscar?
Taran não cedeu. Manteve a ponta afiada da espada pressionada contra a garganta de Ashur.
- As estradas estão bloqueadas. Vovó Cortas decidiu que todos os rebeldes devem ser assassinados imediatamente. Como explodimos o calabouço da cidade ontem, não há local para deixar os prisioneiros.
- Mais um motivo para irmos embora agora - Nic insistiu.
- Concordo com Nicolo - Ashur disse.
O grasnado furioso de um pássaro chamou a atenção de Jonas. Ele protegeu os olhos do sol e virou para o falcão dourado que sobrevoava o navio.
Olivia estava ficando impaciente. E não era a única.
Ele se esforçou para se manter calmo. Não podia correr o risco de tomar decisões precipitadas.
No mesmo instante, uma imagem de Lysandra surgiu em sua mente, junto com o som de sua risada. "Sem decisões precipitadas? Desde quando?", ela teria dito.
Desde que eu não consegui salvá-la e você morreu.
Dispersando a dor, Jonas voltou sua concentração para o príncipe.
- Se pretende embarcar neste navio - ele disse -, explique como conseguiu ressurgir dos mortos e chegar até um grupo de rebeldes como se tivesse saído apenas para tomar uma caneca de cerveja.
- Ressurgir dos mortos? - Taran repetiu, passando de furioso a confuso.
Ignorando Taran, Jonas procurou sinais de intimidação no comportamento do príncipe. Algo que indicasse que ele temia pela própria vida, que estava desesperado para fugir de sua terra natal. Mas seus olhos
claros só mostravam serenidade.
Era perturbador, na verdade.
- Já ouviu falar da lenda da fênix? - Ashur perguntou com naturalidade.
- Claro que sim - Nic respondeu. - É um pássaro mítico que ressurgiu das cinzas das chamas que originalmente o mataram. É o símbolo de Kraeshia, que mostra a força do império e sua capacidade de desafiar
a própria morte.
Ashur assentiu.
- Sim.
Jonas arqueou as sobrancelhas.
- Sério? - ele disse.
Nic deu de ombros.
- Fiz uma aula sobre mitos estrangeiros com Cleo uma vez. Prestei mais atenção do que ela. - Ele lançou um olhar desconfiado para Ashur. - O que tem essa lenda?
- Existe também uma lenda sobre um mortal destinado a fazer o mesmo: voltar dos mortos para unir o mundo. Minha avó sempre acreditou que minha irmã seria essa fênix. Quando Amara era bebê, ela morreu por
um breve instante, mas voltou à vida, graças a uma poção de ressurreição que nossa mãe lhe deu. Pouco tempo atrás, quando fiquei sabendo dessa história, encomendei a mesma poção para mim. Não tenho certeza
se de fato acreditava que funcionaria, mas funcionou. E quando levantei ao amanhecer, no templo onde havia morrido na noite anterior pelas mãos de minha irmã, me dei conta da verdade.
- Que verdade? - Jonas questionou quando Ashur ficou em silêncio.
Ashur o encarou nos olhos.
- Eu sou a fênix. É a minha sina salvar este mundo de seu atual destino, e preciso começar contendo minha irmã e sua necessidade sinistra de seguir cegamente os passos de meu pai.
O príncipe ficou em silêncio de novo enquanto seus três ouvintes o encaravam. Taran foi o primeiro a rir.
- Membros da família real sempre se acham tão importantes - ele zombou. - Lendas sobre heróis que desafiam a morte são tão antigas quanto as lendas sobre os próprios Vigilantes. - Taran olhou para Jonas.
- Vou cortar a cabeça dele. Se ele levantar depois disso, aí passo a acreditar.
Jonas não achou que Taran estivesse falando sério, mas não quis arriscar.
- Abaixe a arma - Jonas resmungou. - Não vou falar de novo.
Taran inclinou a cabeça.
- Não recebo ordens suas.
- Quer viajar neste navio? Então, sim, você recebe ordens minhas.
Ainda assim, Taran não cedeu, e seu olhar se tornou ainda mais desafiador.
- Está causando problemas para Jonas, Ranus? - A voz de Felix ecoou pouco antes de ele parar ao lado de Jonas.
Jonas ficou grato por Felix Gaebras - com toda sua altura e seus músculos - estar a seu lado. Ex-membro do Clã da Naja, grupo de assassinos que trabalhava para o rei Gaius, não por acaso Felix conseguia
produzir uma sombra letal e intimidadora.
Mas Taran era igualmente letal e intimidador.
- Quer saber dos meus problemas? - Taran finalmente abaixou a espada, depois indicou com a cabeça o príncipe ressuscitado. - Este é o príncipe Ashur Cortas.
Com o olho bom, Felix contemplou o príncipe com ceticismo. Depois de passar a última semana preso, sendo torturado sem dó nem piedade por envenenar a família real kraeshiana - crime pelo qual Amara o havia
culpado -, aquele era seu único olho; o outro estava coberto por um tapa-olho preto.
- Você não devia estar morto?
- Ele está. - Até então, Nic tinha ficado bem quieto, sem tirar os olhos do príncipe, com uma expressão ao mesmo tempo perplexa e confusa.
- Não estou - Ashur explicou pacientemente a Nic.
- Pode ser um truque. - Nic franziu a testa, concentrado, enquanto observava o príncipe com cuidado. - Talvez você tenha feito alguma bruxaria com magia do ar suficiente para mudar sua aparência.
Ashur arqueou uma das sobrancelhas escuras, como se achasse graça.
- Acho difícil.
- Bruxaria é coisa de mulher - Taran argumentou.
- Nem sempre - Ashur respondeu. - Existiram algumas exceções notáveis no decorrer dos séculos.
- Você está tentando soar convincente ou não? - Jonas perguntou com firmeza.
- Ele é irmão de Amara - Felix vociferou. - Vamos matá-lo de uma vez e acabar logo com isso.
- Sim - Taran assentiu. - Nisso estamos de acordo.
Ashur suspirou, e, pela primeira vez, percebeu-se um quê de impaciência. Apesar das ameaças, ele manteve a atenção em Nic.
- Entendo sua hesitação em acreditar em mim, Nicolo. Me lembro de sua hesitação aquele dia na Cidade de Ouro, quando saiu da taverna... A Fera, acho que esse era o nome. Você estava bêbado, perdido, e
olhou para mim naquela viela como se eu pudesse matá-lo com as duas lâminas que carregava. Mas não matei, não é mesmo? Em vez disso, você se lembra do que eu fiz?
O rosto pálido de Nic corou instantaneamente, e ele limpou a garganta.
- É ele - Nic disse rapidamente. - Não sei como, mas... é ele. Vamos.
Jonas analisou o rosto de Nic, sem saber se deveria acreditar naquela afirmação, mesmo vindo de alguém em quem havia começado a confiar. Seus instintos lhe diziam que Nic não estava mentindo.
E se Ashur queria dar um basta aos planos nefastos da irmã, acreditando ser a tal fênix lendária ressurgida dos mortos, fosse verdade ou não, poderia muito bem ser um elemento vantajoso para o grupo.
Ele ficou imaginando o que Lys diria sobre aquela situação.
Não, Jonas sabia. Ela provavelmente teria cravado uma flecha no príncipe assim que ele aparecesse.
O brilho da espada de Taran chamou sua atenção mais uma vez.
- Se não abaixar essa arma, vou ter que pedir para o Felix cortar seu braço.
Taran riu, um som oscilante que cortou o ar frio da manhã.
- Gostaria de vê-lo tentar.
- Gostaria mesmo? - Felix perguntou. - Minha visão não está tão boa quanto era, mas eu acho... na verdade, eu sei que poderia fazer isso bem rápido. Talvez você nem sentisse dor. - Ele deu uma risada sinistra
enquanto desembainhava a espada. - Espera aí, o que estou falando? É claro que a dor vai ser terrível! Não sou aliado de nenhum Cortas, mas se Jonas quer que o príncipe continue respirando, ele vai continuar
respirando. Entendeu?
Os dois jovens se encararam durante minutos tensos. Finalmente, Taran guardou a espada.
- Está bem - ele disse por entre dentes. O sorriso forçado não combinava com a fúria intensa em seus olhos.
Sem dizer mais nenhuma palavra, ele passou por Felix e embarcou.
- Obrigado - Jonas disse a Felix em voz baixa.
Felix observou a partida de Taran com um olhar desgostoso.
- Você sabe que ele vai ser um problema, não sabe?
- Sei.
- Ótimo. - Felix olhou para o navio limeriano. - A propósito, mencionei que fico muito enjoado no mar, principalmente ao pensar no irmão morto-vivo de Amara a bordo? Então, se nosso novo amigo Taran tentar
cortar minha garganta enquanto eu estiver vomitando, vou culpar você.
- Entendido. - Jonas olhou para Nic e para Ashur com desconfiança. - Muito bem, seja qual for o destino que nos aguarda, vamos partir para Mítica. Todos nós.
- Achei que você não acreditasse em destino - Nic murmurou enquanto subiam pela prancha de embarque.
- Não acredito - Jonas disse.
Mas, para ser sincero, apenas uma pequena parte dele ainda pensava assim.
2
MAGNUS
LIMEROS
O sol nascia no leste enquanto Magnus esperava o pai morrer ao pé do íngreme penhasco. Ele observava tenso enquanto a poça de sangue que se formava ao redor da cabeça do rei aumentava, tornando-se uma
enorme mancha carmesim sobre a superfície do lago congelado.
Magnus tentou invocar algum sentimento além do ódio que tinha por Gaius Damora. Mas não conseguiu.
Seu pai tinha sido um tirano sádico durante toda a vida. Tinha entregado seu reino para um inimigo como se não passasse de uma bugiganga sem importância. Tinha ordenado em segredo o assassinato da própria
esposa, mãe de Magnus, porque ela estava no caminho do poder que ele ansiava. E, pouco antes de cair do penhasco, o rei estava prestes a acabar com a vida do próprio filho e herdeiro.
Magnus deu um pulo quando a mão de Cleo encostou nele.
- Não podemos ficar aqui - ela disse em voz baixa. - Não vai demorar até sermos descobertos.
- Eu sei. - Magnus olhou para os quatro guardas limerianos que estavam por perto, aguardando ordens. Queria saber exatamente o que dizer a eles.
- Se nos apressarmos, podemos chegar às docas de Pico do Corvo no fim do dia. Chegaremos a Auranos em uma semana. Lá podemos conseguir a ajuda dos rebeldes que não vão ficar parados enquanto Amara tira
tudo de nós.
- Isso faz de mim um rebelde também? - ele perguntou, quase conseguindo achar graça daquela declaração.
- Acho que você é um rebelde há mais tempo do que gostaria de admitir. Mas, sim, podemos ser rebeldes juntos.
Algo se agitou dentro de Magnus ao ouvir as palavras dela, um calor que ele reprimia havia muito tempo.
O rei - com a ajuda de Magnus - tinha destruído a vida de Cleo, e ainda assim ela ficou ao lado dele. Destemida. Corajosa.
Esperançosa.
Magnus se perguntava se aquilo não passava de um sonho febril, se aquela versão perfeita da princesa podia desaparecer assim que o sol surgisse no céu. Mas quando amanhecia, ela ainda estava a seu lado.
Cleo não era um sonho.
Magnus olhou para ela. O dia anterior tinha sido uma mistura de desespero e medo. Tinha sido o pior dia de sua vida, virado de cabeça para baixo no momento em que ele finalmente a encontrou no bosque,
viva e lutando com todas as forças para sobreviver.
Ele tinha confessado seu amor por Cleo em um conjunto patético de palavras confusas, e ela não dera as costas a ele enojada. A linda princesa dourada que tinha perdido tanto... ela tinha dito que o amava
também.
Ainda não parecia possível.
- Magnus? - Cleo o chamou gentilmente quando ele não respondeu de imediato. - O que você acha? Devemos ir para Pico do Corvo?
Ele estava prestes a responder, quando o rei soltou um suspiro trêmulo.
- Magnus...
Ele se virou imediatamente para o rosto do pai. Os olhos do rei estavam abertos, e o braço, alguns centímetros levantados, como se tentasse alcançar o filho.
Impossível. Magnus se obrigou a não cambalear para longe do homem em choque.
- Você já devia estar morto - Magnus disse, a garganta dolorosamente apertada.
O rei emitiu um som estranho, parecido com uma tosse, e se Magnus não estivesse vendo a situação, juraria que parecia uma risada.
- Receio... que não seja... tão simples - o rei disse, nervoso.
Magnus podia ver os olhos de Cleo queimando de ódio ao virar para o homem.
- Por que disse o nome da minha mãe?
O rei virou para ela com os olhos semicerrados. Ele passou a língua sobre os lábios secos, mas não respondeu.
Magnus olhou para Cleo surpreso. O rei tinha dito o nome de Elena no que pareciam seus últimos suspiros. Será que estava mesmo se referindo à rainha Elena Bellos?
- Responda - ela exigiu. - Por que disse o nome dela quando olhou para mim? Você disse que sentia muito. Sente muito por quê? O que fez com ela para precisar se desculpar?
- Ah, querida princesa... se você soubesse... - As palavras do rei já não soavam como suspiros moribundos, e sim como uma declaração letárgica de alguém que estava acordando de um sono profundo.
Os guardas tinham se aproximado ao ouvir a voz do rei.
Enzo ficou boquiaberto quando o rei Gaius pressionou as mãos contra a neve manchada de sangue e levantou a cabeça do solo gelado.
- Que magia negra é essa? - O guarda virou os olhos arregalados para Magnus e abaixou a cabeça imediatamente. - Peço perdão, vossa alteza.
- Não é necessário se desculpar. É um questionamento excelente. - Relutante, Magnus puxou a espada e a segurou com o máximo de firmeza possível junto ao peito do rei. - Você deveria estar irreparavelmente
acabado, como um pássaro que bateu no vidro de uma janela. Que tipo de magia negra é essa, pai? E é forte o bastante para salvá-lo de uma lâmina de aço afiada?
O rei o encarou com um sorriso forçado.
- Você acabaria tão facilmente com um homem cuja vida está por um fio?
- Se esse homem for você, sim - Magnus respondeu.
Seu pai estava indefeso, fraco, machucado e ensanguentado. Seria a morte mais fácil da vida de Magnus. E merecida. Muito merecida.
Um golpe, um pequeno gesto, poderia acabar com aquilo. Por que, então, o braço com que segurava a espada parecia preso a uma pedra, incapaz de se mover?
- O cristal da terra... - Cleo sussurrou, tocando o bolso do próprio manto, onde havia guardado a esfera. - Ele o curou. É isso que ele faz?
- Eu não sei - Magnus admitiu.
- Acho que a magia da Tétrade não tem nada a ver com isso. - O rei já estava sentado, as pernas esticadas. Ele olhou para as próprias mãos arranhadas, ensanguentadas por segurar a beirada do penhasco.
Gaius tirou um par de luvas pretas do manto rasgado. Vestiu-as, fazendo uma careta pelo esforço. - Quando caí, senti as terras sombrias tentando me alcançar, prontas para reivindicar outro demônio para
o lado delas. Quando cheguei ao chão, senti meus ossos estilhaçando. Você tem razão: eu deveria estar morto.
- Mas, ainda assim, está sentado e falando - Cleo disse sem rodeios.
- Estou. - O rei se virou para ela. - Você deve estar se esforçando muito para se conter nesse momento, princesa, para não implorar para meu filho acabar com a minha vida.
Ela franziu a testa.
- Se eu não achasse que seus guardas o matariam logo depois, faria isso.
Magnus olhou para os guardas silenciosos que os cercavam. Todos tinham a espada em punho e uma expressão tensa.
- Belo argumento. - O rei respirou fundo. - Guardas, ouçam: vocês vão obedecer aos comandos de Magnus Damora a partir de agora. Ele não será considerado responsável por nada que aconteceu, ou vai acontecer,
comigo.
Os guardas se encararam, confusos, até que Enzo assentiu.
- Muito bem, vossa alteza - ele disse.
- Que farsa é essa? - Cleo vociferou. - Acha que nós vamos acreditar em alguma coisa que diz?
O rei sorriu.
- Nós. Que adorável que vocês dois tenham atravessado esse perigoso labirinto juntos e saído dele de mãos dadas. Há quanto tempo estão tramando contra mim? Não tinha ideia de que fui tão cego.
Magnus ignorou a tentativa do rei de desestabilizá-lo.
- Se isso não tem a ver com a magia da Tétrade, o que é?
Desconsiderado a espada que Magnus segurava, o rei, trêmulo, levantou-se devagar.
- Melenia disse que eu estava destinado à imortalidade, que eu seria um deus. - Ele soltou uma risada curta e amarga. - Por um tempo, realmente acreditei nela.
- Responda à droga da minha pergunta - Magnus resmungou. Ele forçou a lâmina para a frente, deixando um leve arranhão no pescoço do rei.
Gaius recuou, e sua expressão ficou sombria por um instante.
- Existe apenas uma pessoa responsável pela magia que me ajudou a sobreviver hoje. Sua avó.
Magnus não acreditou nele.
- Que bruxa comum poderia possuir uma magia tão forte assim?
- Nunca houve nada comum em Selia Damora.
- Espera que acreditemos em alguma coisa que diz? - Cleo perguntou.
O rei olhou para a garota sem um pingo de bondade nos olhos.
- Não, eu não esperaria que uma criança entendesse as complexidades da vida e da morte.
- Ah, não? - Ela estava com os punhos cerrados. - Se tivesse uma espada neste momento, eu o mataria com minhas próprias mãos.
O rei riu.
- Você com certeza poderia tentar.
- Você já parece morto. - Magnus se deu conta da verdade de suas palavras enquanto as pronunciava. Seu pai estava pálido como um cadáver. A pele solta, em tom acinzentado, os hematomas em matizes de marrom
e roxo, o sangue tão escuro que parecia preto. - Acho que a magia de cura da minha avó não era tão forte quanto você gostaria de acreditar.
- Isso não é magia de cura. - Sua testa brilhava com suor, apesar do ar gelado da manhã. - Apenas prolongou o inevitável.
Magnus franziu a testa.
- Explique.
- Quando o pouco de magia que resta em mim desaparecer, vou morrer.
A declaração direta de seu pai o deixou ainda mais confuso.
- Ele está mentindo - Cleo disse por entre os dentes. - Não se deixe enganar. Se não é magia da terra, então é magia de sangue que mantém o coração dele batendo.
Magnus virou para os guardas e observou as expressões confusas antes de voltar sua atenção ao pai.
- Se isso é verdade, quanto tempo ainda tem?
- Não sei. - Ele inspirou, e Magnus ouviu de novo indícios de dor em sua respiração. - Com sorte, tempo suficiente para consertar alguns erros que cometi. Pelo menos os mais recentes.
Magnus virou o rosto, indignado.
- Infelizmente, não temos tempo para repassar uma lista interminável como essa.
- Você tem razão. - Gaius encarou Magnus por sobre a espada. - Talvez eu só consiga consertar um, então. Para derrotar Amara e recuperar Mítica, vamos precisar liberar o poder total da Tétrade.
- Precisamos do sangue de Lucia e do sangue de um imortal para isso.
- Sim.
- Não tenho ideia de onde encontrá-la.
A decepção tomou conta do rosto pálido do rei.
- Preciso visitar minha mãe imediatamente. Ela vai usar sua magia para encontrar Lucia. Eu não confiaria em nenhuma outra bruxa.
- Visitá-la imediatamente? Como? - Magnus franziu a testa. - A vovó está morta há mais de doze anos.
- Não, ela está bem viva.
Ele olhou para o rei, em choque. As lembranças que tinha de sua avó eram escassas, vislumbres indistintos de sua infância e de uma mulher com cabelo preto e olhar frio. Uma mulher que tinha falecido pouco
depois da morte de seu avô.
- Ele está tentando confundir você. - Cleo pegou a mão de Magnus, afastando-o do pai o suficiente para que ele e os guardas não pudessem ouvi-los. - Precisamos ir para Auranos. Lá vamos conseguir ajuda.
Ajuda de quem podemos confiar, sem questionamentos nem dúvidas. As pessoas leais ao meu pai não vão considerá-lo culpado pelos crimes do rei, eu prometo.
Ele balançou a cabeça.
- Esta não é uma guerra que pode ser vencida por alguns rebeldes. Amara se tornou muito poderosa, conseguiu muita coisa sem esforço. Precisamos encontrar Lucia.
- E se conseguirmos encontrá-la? O que vai acontecer? Ela nos odeia.
- Ela está confusa - Magnus disse, com o rosto de sua irmã mais nova em mente. - Sofrendo. Ela se sente traída e enganada. Se souber que seu lar está em risco, ela vai nos ajudar.
- Tem certeza?
Se Magnus fosse sincero consigo mesmo, teria de admitir que não tinha certeza de mais nada.
- Você deve ir para Auranos sem mim - ele pronunciou as palavras, ao mesmo tempo desagradáveis e necessárias. - Ainda não posso ir. Preciso cuidar disso até o fim.
Ela assentiu.
- Parece um bom plano.
O coração dele se contorceu em um nó odioso.
- Estou feliz que tenha concordado.
- Está mesmo, não está? - Os olhos azul-celeste de Cleo brilhavam um fogo frio, e Magnus quase se assustou com as duras palavras que vieram em seguida. - Você acha que depois de tudo isso...? - Ela jogou
as mãos para o alto em vez de finalizar a sentença. - Você é completamente impossível, sabia? Não vou sair daqui sem você, seu idiota.
Ele arqueou as sobrancelhas.
- Idiota?
- E estamos conversados. Entendeu?
Magnus a encarou, mais uma vez perplexo com a garota e tudo o que ela dizia.
- Cleo...
- Não, chega de discussão - ela o interrompeu abruptamente. - Agora, se me der licença, preciso esfriar a cabeça. Longe dele. - Cleo lançou a última palavra para o rei e, com um olhar feroz, foi embora
com os braços cruzados.
- Agora vejo a paixão que existe entre vocês - o rei disse ao se aproximar do filho, retorcendo os lábios de desgosto. - Que adorável.
- Cale a boca - Magnus vociferou.
O rei manteve o olhar na princesa, que andava de um lado para o outro, nervosa, mas perto. Depois, virou-se para os guardas.
- Preciso falar com meu filho em particular. Saiam.
Os quatro guardas obedeceram a ordem imediatamente e se afastaram.
- Em particular? - Magnus zombou. - Não acho que nada que me disser agora vá ficar entre nós.
- Não? Mesmo se for a respeito de sua princesa dourada?
Magnus levou a mão ao punho da espada no mesmo instante, tomado pela fúria.
- Se ousar ameaçar a vida dela de novo...
- É um alerta, não uma ameaça. - Seu pai o observava com pouca paciência. - A garota é amaldiçoada.
Magnus teve certeza de que não tinha ouvido direito.
- Amaldiçoada?
- Muitos anos atrás, o pai dela se envolveu com uma bruxa poderosa. Uma bruxa que não aceitou muito bem a notícia do casamento dele com Elena Corso. Ela a amaldiçoou e a seus futuros filhos com a morte
no parto. Elena quase morreu dando à luz a primeira filha.
- Mas não morreu.
- Não, ela morreu no parto da segunda.
Magnus já tinha ouvido sobre o trágico destino da ex-rainha de Auranos e visto retratos da linda mãe de Cleo nos corredores do palácio dourado. Mas aquilo não podia ser verdade.
- Dizem que ela sofreu muito até finalmente falecer. - A voz do rei estava extremamente rouca. - Mas ela foi forte o suficiente para ver o rosto de sua recém-nascida e dar a ela o nome de uma deusa desprezível
e hedonista antes de ser levada pela morte. E a maldição da bruxa sem dúvida foi passada para a filha.
Magnus encarou o pai com total descrença.
- Você está mentindo.
O rei franziu a testa para Magnus.
- Por que eu mentiria?
- Por que você mentiria?! - ele repetiu, com uma risada seca subindo pela garganta. - Ah, não sei. Talvez porque deseje me manipular constantemente, apenas para sua satisfação?
- Se é o que pensa... - O rei apontou na direção de Cleo, que conversava com Enzo e lançava olhares impacientes para Magnus e ele. A barra do vestido vermelho que usava aparecia sob o tecido verde-escuro
do manto roubado de um guarda kraeshiano na noite anterior. - Engravide-a e vai testemunhar sua morte agonizante, deitada sobre uma grande poça do próprio sangue, ao trazer ao mundo sua prole.
Magnus quase parou de respirar. O que o pai afirmava não podia ser verdade.
Mas e se fosse?
Cleo começou a andar na direção deles, sem capuz, o longo cabelo loiro sobre os ombros.
- Bruxas lançam feitiços - Gaius disse a Magnus em voz baixa. - Mas bruxas também são conhecidas por quebrar feitiços. Mais um motivo para vocês virem visitar sua avó comigo.
- Você tentou nos matar.
- Sim, tentei. Então a decisão do que fazer cabe a você.
Cleo parou ao lado de Magnus com Enzo e franziu a testa, alternando o olhar entre pai e filho.
- O que foi? Sem planos para me esconder em Auranos, espero.
A terrível imagem de Cleo deitada sobre lençóis ensanguentados não saía da cabeça de Magnus. Ela com o olhar vidrado, sem vida, enquanto um bebê de olhos azul-celeste não parava de chorar pela mãe.
- Não, princesa - Magnus disse. - Você deixou sua opinião sobre isso bem clara, mesmo que eu discorde completamente. Quero reencontrar minha avó depois de todos esses anos. Ela vai usar sua magia para
nos ajudar a encontrar Lucia, o que vai nos ajudar a recuperar Mítica. Está de acordo?
Cleo não disse nada por um instante, pensativa.
- Sim, acho que faz sentido procurar a ajuda de outra Damora, embora a ideia me cause extrema repulsa. - Ela piscou. - Magnus, você ficou muito pálido. Está tudo bem?
- Está - ele disse com rigidez. - Vamos partir agora.
- Amara com certeza vai querer saber onde eu fui parar - disse o rei. - Isso pode causar problemas.
Magnus suspirou.
- Muito bem. Invente desculpas para deixar a companhia de sua noiva. No entanto, se tentar me enganar, pai, garanto que sua morte virá muito antes do previsto.
3
AMARA
LIMEROS
A imperatriz Amara Cortas estava sentada em uma cadeira dourada entalhada, no salão principal - menor do que o tolerável - da quinta. Era um trono temporário, mas servia bem para ela olhar com facilidade
para baixo, na direção dos dois homens muito diferentes que se ajoelhavam em sua presença.
Carlos era o capitão da guarda kraeshiana, um homem de pele bronzeada, cabelo preto e ombros muito largos. Ele tinha mais músculos do que os suficientes para preencher o uniforme kraeshiano verde-escuro.
Os fechos dourados, que prendiam a capa preta, brilhavam à luz das velas.
Lorde Kurtis Cirillo era mais jovem, mais magro, mais pálido, com cabelo escuro e olhos verdes. Embora Amara preferisse um castelo maior para passar seus dias, aquela quinta tinha a melhor casa em quilômetros,
e pertencia ao pai de Kurtis, lorde Gareth.
- Levantem-se - ela ordenou, e os homens a obedeceram.
Os dois aguardavam o sinal para dar as últimas notícias sobre o cerco do dia anterior e a tomada do palácio limeriano.
Enquanto reorganizava seus pensamentos, Amara se encolheu por causa do doloroso machucado atrás da cabeça, adquirido na noite anterior. O gelo que segurava junto ao ferimento tinha começado a derreter.
- Dentre as doze baixas, havia alguém importante? - ela finalmente perguntou. Ela se virou para Kurtis, que saberia distinguir nobres de homens de menor importância muito melhor do que o guarda.
- Não, vossa graça - Kurtis respondeu de imediato. - A maioria era de soldados e guardas limerianos, alguns criados. Apenas aqueles que tentaram fazer oposição.
- Ótimo.
Doze mortos não era um número inaceitável, considerando quantas pessoas supostamente estiveram no palácio para testemunhar o discurso da princesa Cleiona na hora do cerco. Pelo relato de Carlos, três mil
cidadãos de vilarejos próximos haviam se deslocado para ouvir aquela garota odiosa espalhar mais de suas mentiras.
Ela passou os olhos pelas faixas vermelhas e pretas que ocupavam as paredes de pedra com o brasão da família Cirillo: três cobras entrelaçadas. Para um reino de gelo e neve, com pouca vida selvagem até
onde Amara tinha notado, os limerianos pareciam valorizar muito as imagens de serpentes.
- Vossa graça... - Kurtis chamou com uma voz estridente.
- Sim, lorde Kurtis?
O jovem parecia aflito - sua boca retorcida já tinha se tornado familiar a Amara em seu pouco tempo em Mítica. Ela se perguntou se aquela era a expressão permanente do grão-vassalo ou se era resultado
do desafortunado ferimento que sofrera pouco antes de se conhecerem. Havia curativos novos no coto sangrento em seu punho, onde antes ficava a mão direita.
- Estou hesitante em tocar em um assunto com que Carlos acredita que não devemos incomodá-la.
- Hã? - Ela olhou surpresa para o guarda, que virou para Kurtis com ódio explícito. - O que é?
- Ouvi conversas preocupantes sobre seu reinado entre seus soldados...
- Meu lorde - Carlos chamou -, se há algum problema com os homens que comando, eu mesmo posso falar com a imperatriz. Essa questão não requer a opinião de um limeriano.
Kurtis zombou dele, como se insultado pela brusquidão de Carlos.
- A imperatriz não merece saber que seus próprios soldados dizem que preferem abandonar os postos em vez de serem governados por... - ele hesitou, mas apenas por um instante - ... uma mulher?
Amara se esforçou para manter a calma enquanto entregava o saco com gelo derretido para uma criada.
- Carlos, isso é verdade?
O guarda parecia pronto para cuspir fogo.
- Sim, vossa graça.
- E ainda acha que não é motivo de preocupação?
- Conversas são conversas. Ninguém tomou nenhuma atitude até agora para deixar esta missão e voltar a Kraeshia. E se alguém fizer isso, será severamente punido.
Ela analisou o rosto do militar, um homem que tinha sido leal a seu pai não muito tempo atrás.
- Como você se sente em me ver como a primeira governante de Kraeshia? Vai continuar obedecendo minhas ordens sem desejar abandonar o posto?
Ele endireitou os ombros gigantescos.
- Sou leal a Kraeshia, vossa graça, então sou leal a quem estiver ocupando o trono. Posso garantir que tenho controle sobre meus homens.
- Sim, mas a questão é: eu tenho? - Era esse o motivo de ela ainda não ter comemorado a vitória ao se tornar imperatriz. O controle que exercia parecia frágil, como gelo recém-congelado sobre um lago.
Não havia como saber ao certo se arrebentaria no instante em que fosse submetido a alguma pressão.
Mais uma razão pela qual necessitava que a magia de seu cristal da água fosse libertada. A pequena esfera de água-marinha escondida no bolso de um de seus vestidos no guarda-roupa não tinha nenhuma utilidade
no momento. Ela precisava descobrir como desencadear a poderosa magia de seu interior.
- Vossa graça - Kurtis chamou, e ela não pôde deixar de notar que a expressão dele havia se suavizado um pouco depois de dar a notícia que Carlos preferia esconder. - Também ouvi os soldados falando sobre
uma possível volta do príncipe Ashur de suas viagens.
- Ah, é? E o que tem isso? - A dor irradiou do ferimento em sua cabeça. Ela queria deitar pelo resto do dia, descansar e se curar, mas uma imperatriz não podia demonstrar nem mesmo uma parcela mínima de
fraqueza.
- Por ser seu irmão mais velho, acreditam que o príncipe Ashur vai assumir como imperador. Acreditam que sua posição é apenas temporária. E acham que, assim que a notícia sobre as mortes de sua família
chegar aos ouvidos dele, onde quer que esteja, Ashur retornará sem hesitação.
Amara respirou fundo e contou mentalmente até dez, bem devagar.
Depois contou até vinte antes de colocar um pequeno sorriso no rosto.
- Isso também é verdade? - ela perguntou a Carlos com a maior gentileza que conseguiu.
O rosto do guarda parecia ter virado pedra.
- É, vossa graça.
- Sinceramente, espero que estejam certos - ela disse. - Ashur certamente é o primeiro na linha de sucessão para o trono, antes de mim. Então é claro que vou abdicar do título no instante em que ele aparecer.
Poderemos fazer o luto pela perda de nossa família juntos.
- Vossa graça - Carlos disse, fazendo uma reverência, as sobrancelhas grudadas. - Seu luto é compartilhado por todos nós. Seu pai e seus irmãos eram todos grandes homens.
- De fato eram.
Mas mesmo grandes homens podiam ser vencidos pelo veneno.
Amara estava tentando ao máximo não se sentir um escorpião peçonhento que atraía vítimas inocentes para sua toca. Ela sabia que não era a vilã na história de sua vida. Era a heroína. Uma rainha. Uma imperatriz.
Mas sem o respeito dos soldados de que necessitava para expandir seu reino, ela não tinha nada. Carlos podia não acreditar na importância de alguns boatos divergentes, mas logo virariam a voz de uma rebelião
completa.
Por enquanto, apesar de seu título, Amara tinha que agir com cuidado até ter a magia necessária para dar conta de seu recém-descoberto poder.
Um dia, muito em breve, Amara Cortas não responderia a nenhum homem, nunca mais. Eles responderiam a ela.
E se estavam contando com o retorno de seu irmão para expulsar a garota do trono que havia tomado com força e sacrifício, ficariam extremamente decepcionados.
Afinal, um dos sacrifícios havia sido o próprio Ashur.
- Estou grata que tenha decidido me contar isso - ela se dirigiu a Kurtis de novo. - E se meu irmão chegar, por favor, saibam que o receberei de braços abertos. - Quando Kurtis se curvou, ela voltou o
olhar decepcionado para o guarda que pretendia manter as conversas sobre traição em segredo. - Carlos, qual o status da busca pela princesa Cleiona?
- Doze homens, incluindo o rei, ainda estão procurando, vossa graça.
Menos de um ano atrás, antes de ser incorporada à família real que conquistou seu reino ao se casar com Magnus, Cleo era uma princesa mimada que vivia uma vida de excessos em Aurelia. Amara sabia que ela
era, na verdade, uma garota exigente e difícil, apesar do comportamento alegre e radiante que apresentava socialmente.
Na noite anterior, a nova imperatriz tinha cometido o erro de subestimar a princesa e lhe oferecer sua amizade. Amara rapidamente se arrependera.
O ímpeto de sobrevivência de Cleo quase se igualava ao seu próprio.
- Dobre o número de guardas - ela instruiu. - Ela não pode ter ido muito longe.
Carlos se curvou.
- Como desejar, vossa alteza.
- Na verdade, tenho certeza de que a princesa congelou e está sob um metro de neve agora. - A voz do rei Gaius roubou a atenção de Amara. Ela ergueu os olhos para ver que o homem havia entrado no salão
e se aproximava devagar, acompanhado de dois de seus guardas.
Kurtis e Carlos imediatamente se curvaram diante do rei.
Amara vislumbrou Gaius e arregalou os olhos, chocada. O rosto dele estava machucado, cheio de cortes e arranhões. Havia uma palidez doentia em sua pele. O pescoço estava sujo de sangue, que também estava
presente nas dobras das mãos e debaixo das unhas, já seco.
- Carlos, vá buscar um médico agora! - ela ordenou ao se levantar do trono para encontrar o rei no meio do grande salão.
- Não - Gaius disse, levantando a mão. - Isso não será necessário.
Na noite anterior, quando saiu para procurar a princesa, ele era um homem bonito, alto e forte, com cabelo escuro e olhos castanhos profundos, embora às vezes cruéis; mas naquele momento parecia ter saído
da própria cova.
Amara acenou com a cabeça para Carlos fazer o que ela havia pedido, e o guarda saiu do salão no mesmo instante.
- O que aconteceu com você? - ela perguntou, acrescentando preocupação, e não apenas choque, a seu tom de voz.
O rei massageou o ombro, demonstrando muita dor.
- Sofri uma queda horrível enquanto procurava a princesa. - Ele ficou tenso. - Mas estou bem.
Uma mentira deslavada.
Gaius passou os olhos pelo grão-vassalo, atendo-se ao ferimento.
- Pelo amor da deusa, rapaz! O que aconteceu com você?
Kurtis olhou para o coto envolto em curativos, e seu rosto corou, trêmulo.
- Ontem, quando tentei escoltar a esposa de seu filho para fora do palácio, ele tentou me impedir.
- Ele cortou sua mão.
- Sim - Kurtis admitiu. - E acredito que seja um crime digno de punição. Afinal, eu só estava seguindo suas ordens.
- Preciso sentar. - Gaius fez sinal para um dos guardas de uniforme vermelho lhe trazer uma cadeira e praticamente desabou sobre ela. Amara o observava, cada vez mais surpresa. Aquele não era um homem
que costumava demonstrar qualquer tipo de fraqueza. Aquilo teria sido o resultado de uma queda?
Se estivesse à beira da morte por qualquer motivo, ela precisava que Gaius lhe dissesse como revelar a magia do cristal da Tétrade antes que fosse tarde demais.
- Sim - Gaius continuou, com uma voz fraca. - Magnus certamente tomou algumas decisões questionáveis nos últimos tempos.
Amara tentou mais uma vez.
- Gaius, insisto que seja examinado por um médico.
- E insisto que estou bem. Vamos mudar de assunto, para um muito mais interessante. - Ele fez sinal para um dos guardas. - Enzo, traga a garota.
O guarda deixou o salão e voltou alguns instantes depois com uma bela jovem de cabelo curto e escuro.
- Esta - o rei passou os olhos pela garota - é Nerissa Florens.
Amara arregalou os olhos, encontrando certo humor na apresentação inesperada.
- Nunca ganhei uma garota de presente antes.
- Você precisa de uma criada. Nerissa cuidava da princesa Cleiona e era muito habilidosa em sua função, ouvi dizer.
Em vez do incômodo provocado por ter sido presenteada com uma pessoa qualquer, Amara descobriu-se curiosa.
- Suponho que isso signifique que você é leal à princesa.
- Pelo contrário, vossa alteza - Nerissa respondeu com firmeza. - Sou leal apenas a meu rei.
Amara observou a garota com atenção e a analisou de cima a baixo. Cabelo curto não era um estilo comum nem em Kraeshia nem em Mítica. Transmitia a imagem de alguém que não tinha tempo para vaidade. Ainda
assim, Nerissa era bastante atraente. Ela tinha um nariz delicado, olhos grandes e determinados, e um rubor no rosto bronzeado. Tinha uma postura altiva, muito mais altiva do que qualquer criada que Amara
já tinha visto.
Ela finalmente assentiu.
- Muito bem, Nerissa, estou mesmo precisando de uma criada habilidosa. No entanto, se você diz que é leal apena ao rei, vou precisar que transfira essa lealdade para mim agora. Gaius?
- Sim, é claro - o rei respondeu sem hesitar. - Nerissa, Amara é sua única preocupação a partir de agora. Cuide dela e satisfaça todas as suas necessidades.
Nerissa abaixou a cabeça.
- Sim, vossa alteza.
Amara continuou a avaliar a garota, que não devia ser muito mais velha do que ela própria com seus dezenove anos.
- Você não parece ter medo de mim.
- Deveria, vossa alteza?
- O palácio onde você ganhava seu sustento foi tomado por um exército inimigo; seu príncipe e sua princesa foram depostos. E aqui está você, diante de seus conquistadores. Sim, acho que deveria demonstrar
um pouco de medo.
- Aprendi há muito tempo, vossa graça, que não importa o que eu possa estar sentindo, devo demonstrar apenas força. Peço desculpas se essa filosofia não for aceitável.
Amara observou a garota por mais alguns instantes, pensando que as duas tinham muito em comum.
- Tudo bem, Nerissa. Estou ansiosa para saber mais sobre sua temporada com a princesa.
- Sim, vossa graça.
- Ótimo - disse o rei. - Agora que isso está resolvido, lorde Kurtis...
- Sim, vossa majestade? - Kurtis endireitou a postura como um soldado sob os holofotes.
- Enquanto eu estiver fora, gostaria que cuidasse dos preparativos para realocar a imperatriz no palácio limeriano. A quinta de seu pai pode ficar um pouco apertada e, claro, não tem o tipo de acomodação
que minha esposa merece. Quando eu voltar, espero encontrá-los lá.
Kurtis se curvou.
- Farei exatamente o que está pedindo, vossa majestade.
Amara observava o rei cada vez mais confusa.
- Aonde você vai?
Gaius gemeu ao levantar da cadeira, fazendo o esforço de um homem com o dobro de sua idade para ficar de pé.
- Preciso liderar a busca pelo meu filho.
- Muito pelo contrário - ela disse. - O que você precisa é descansar na cama e deixar o tempo curá-lo da queda.
- Mais uma vez - ele disse com firmeza -, me vejo em desacordo com minha nova esposa.
Ela manteve um sorriso no rosto.
- Posso falar com você? A sós? - Amara pediu com o máximo de doçura possível.
- É claro - ele disse, sinalizando para um guarda, que logo abriu a porta e escoltou todos para fora. Quando a sala ficou vazia, Amara fechou os olhos e respirou fundo várias vezes, tentando se obrigar
a conduzir a conversa com delicadeza.
- Se insiste em sair nessa busca - ela disse -, acho que deve deixar o cristal do ar comigo, por segurança.
Talvez a delicadeza estivesse além de suas habilidades específicas.
Mas Gaius não se deixou intimidar.
- Acho que não - ele apenas respondeu.
Amara sentiu um nó nas entranhas.
- Por que não?
Ele arqueou a sobrancelha escura.
- Ah, por favor! Admito que posso não estar em minha melhor forma no momento, mas não sou idiota.
Era o que parecia.
- Você não confia em mim.
- Não, nem um pouco, na verdade.
Amara tentou conter a frustração. O rei não fazia ideia de que ela também possuía uma parte da Tétrade, e ela não tinha a menor intenção de contar.
- Vou conquistar sua confiança.
- E vou conquistar a sua. Um dia.
Ela diminuiu a pequena distância que havia entre eles e segurou as mãos do rei, notando a expressão de dor.
- Podemos começar hoje. Compartilhe comigo o segredo para liberar a magia. A resposta está aqui, sei disso. Aqui em Mítica.
- Não tentei esconder isso.
Ela não tinha parado de pensar no assunto durante a viagem, enquanto atravessavam o Mar Prateado. Tanto tempo para pensar, para se preocupar, para planejar...
- Só posso imaginar que sua filha seja parte disso, assim como foi essencial para encontrar os cristais no início.
A expressão dele se fechou.
- É isso que você acha?
- Sim. - Ela não temeria aquele homem e sua reputação violenta quando contrariado. Amara era a única a ser temida naquela sala, naquele reino e, um dia, em todo o mundo. - Talvez seja Lucia e não Magnus
que você esteja procurando nessa jornada inoportuna.
- Minha filha fugiu para se casar com o tutor e pode estar em qualquer lugar.
- Estou certa, não estou? - Um sorriso tomou conta de seu rosto. - Lucia é a chave de tudo. Sua profecia vai muito além do que eu já imaginava. Não fique carrancudo, Gaius. Eu disse que você podia confiar
em mim, e pode. Vou provar. Vamos encontrá-la juntos.
- Quero encontrá-la, mas garanto que minha filha não é a peça que falta nesse quebra-cabeça que você busca.
Amara não conseguiria uma confirmação dele sobre essa questão. Não hoje, e talvez nunca. Ela se forçou a sorrir com doçura e assentir.
- Muito bem. Serei paciente, então, e vou me concentrar na mudança para o palácio enquanto você estiver fora.
Ele a observou com atenção, encarando seus olhos com tanta intensidade que ela não conseguia saber se Gaius estava tentando memorizar seu rosto ou ler seus pensamentos. Amara prendeu a respiração enquanto
esperava ele falar.
- Volto assim que possível. - Ele a puxou para mais perto e lhe deu um beijo no rosto. Ela se forçou a não se esquivar diante do cheiro evidente de morte que exalava dele.
Gaius manteve o olhar fixo nela por mais um instante, depois virou e saiu da sala sem dizer mais nada.
Ela sentou no trono, esperando Carlos voltar com ajuda médica. Assim que o guarda entrou com uma médica, Amara dispensou a mulher e o chamou.
Carlos se ajoelhou a seus pés, fitando o chão.
- Vossa graça, percebo que devia ter lhe contado o que lorde Kurtis contou. Garanto que está tudo bem e não acredito que haja motivos para se preocupar.
- Levante. - Quando ele obedeceu, Amara não se deu ao trabalho de sorrir. Sorrisos eram exaustivos quando não eram genuínos. - Você vai me contar tudo de agora em diante, mesmo o que não parecer importante.
Se tal transgressão se repetir... - As palavras "mando arrancar sua pele" estavam na ponta de sua língua, mas ela optou por não as dizer em voz alta. - ... vou ficar muito zangada.
- Sim, vossa graça. - Ele piscou. - Isso é tudo?
- Não. - Irritada, ela passou a mão pelo machucado em sua cabeça, imaginando quanto tempo demoraria para melhorar. - O rei vai partir em breve para procurar o filho. Quero que mande dois ou três de nossos
melhores homens atrás dele.
- Para ajudar?
- Não. - Aquilo mereceu um sorriso genuíno. - Para dar um flagra na mentira de meu novo marido.
4
LUCIA
SANTUÁRIO
Conforme se aproximava aos poucos da cidade de cristal, que até então só tinha visto em sonhos, Lucia se lembrou de um conselho de sua mãe. Tinha sido dado antes de um banquete. Ela não tinha mais de dez
anos e queria desesperadamente ficar em seu quarto lendo em vez de comparecer ao evento. Lucia sempre evitara ao máximo reuniões sociais, certa de que ninguém gostava dela, de que todos achavam a filha
do rei Gaius uma garota estranha e pouco interessante, com quem não desejavam perder seu tempo valioso.
"É quando estamos mais inseguros", sua mãe havia lhe dito, "que devemos parecer mais confiantes. Demonstrar fraqueza é permitir que os outros se aproveitem disso. Agora, penteie o cabelo, levante a cabeça
e finja que é a pessoa mais poderosa do salão."
Lucia agora se dava conta, com um baque inesperado de solidariedade no coração, de que aquilo era exatamente o que a rainha Althea Damora tinha feito todos os dias de sua vida.
Ela não percebera na época, mas era um conselho de fato excelente.
Levantando a cabeça, endireitando os ombros e pensando que era mais poderosa e confiante do que qualquer um poderia imaginar, Lucia apertou o passo e atravessou a paisagem verde e viçosa do Santuário,
na direção da cidade, onde encontraria Timotheus e pediria sua ajuda.
Se ele dissesse não e a mandasse embora, o mundo mortal certamente pereceria.
Quanto mais se aproximava, mais a cidade se tornava impressionante. Ela não sabia como os cidadãos do Santuário chamavam esse lugar, nem mesmo se tinha nome. Ela o chamava de cidade de cristal porque,
de longe, no prado em que caminhava, a metrópole parecia se elevar da grama verde-esmeralda, reluzindo como um tesouro inesperado em contraste com o céu azul sem nuvens. Não era um tesouro como as pessoas
consideravam ser o palácio auraniano, feito com filamentos de ouro. Em vez disso, a cidade era branca e cintilante, etérea de ponta a ponta, composta por pináculos e torres de várias alturas. A imagem
diante dela parecia uma ilustração intricada tirada de um livro de histórias roubado.
Ela se esforçou para manter a compostura, mesmo que quisesse ficar ali parada, boquiaberta com a vista.
Lucia se permitia pensar apenas em uma coisa naquele momento: encontrar Timotheus.
O imortal a havia alertado sobre Kyan. Foi um alerta que ela tolamente ignorara. Kyan a havia convencido totalmente de suas próprias dificuldades - dificuldades que, naquele momento, Lucia havia comparado
às suas próprias. Ela estava tão cega pela sede de vingança e pelo ódio quando finalmente encontrara Timotheus que nem mesmo a verdade mais gritante poderia ter atravessado a parede de aço que ela havia
construído em volta de si, muito menos chegado ao seu coração ou à sua mente.
Não, ela não estava pronta para ouvir a verdade naquele momento.
Se ao menos pudesse ter mais certeza de que estava pronta para ouvi-la agora...
Ela chegou ao fim do prado e parou diante da passagem que levava à cidade de cristal. Por um instante, Lucia simplesmente ficou parada ali, de olhos fechados, respirando.
- Timotheus despreza você - ela sussurrou. Então, depois de respirar fundo mais uma vez, ela deu um passo em frente e entrou na cidade. - E, se for necessário, você vai se ajoelhar e implorar pela ajuda
dele.
A ideia de implorar não lhe caía muito bem. Como filha do rei Gaius, Lucia nunca havia precisado implorar por nada nem uma única vez em seus dezessete anos de vida. Sentia um gosto amargo só de pensar
em precisar fazer isso.
Mas ela engoliria o resto de orgulho que lhe restava e o faria. Não havia outra opção.
A própria passagem arqueada e brilhante que levava à cidade a fazia se sentir pequena e, ao atravessá-la, Lucia viu seus olhos arregalados refletidos sobre a superfície. O arco tinha símbolos gravados
- rabiscos e linhas que ela não compreendia, mas lhe faziam sentir alguma coisa. Um calafrio e um tremor percorreram seu corpo da cabeça aos pés, paralisando-a por um instante. Depois ela se aproximou
mais da superfície da passagem, pressionando a mão hesitantemente sobre uma das marcas.
Teve a mesma sensação mais uma vez - ela sentiu o poder do portal na ponta dos dedos. Lucia recolheu a mão, lembrando o monólito de cristal nas Montanhas Proibidas, com a diferença de que tinha sentido
uma onda quente daquela vez. Ela sabia que podia ter absorvido aquela magia para ajudar Kyan a retirar Timotheus do Santuário, para sua ruína.
A magia que estava ali era o oposto - fria em vez de quente. Se deixasse a mão sobre a superfície da passagem, ela poderia ter roubado a magia do mesmo modo como Ioannes a ensinara a roubar a de Melenia?
O pensamento a fez estremecer, mas Lucia ignorou e seguiu em frente, passando sob o arco e entrando de vez na cidade de cristal.
À primeira vista, era difícil absorver a paisagem da cidade. Era tão brilhante que ela protegeu os olhos da luz com as mãos. De longe, a cidade parecia feita de diamantes. Ao se aproximar, Lucia viu uma
cidade com construções brancas e estruturas que iam até o céu. Os caminhos eram cobertos por pequenas pedras iridescentes, e ela seguiu uma das trilhas para adentrar mais na cidade.
Ainda não tinha visto nenhum ser vivo naquele lugar, nem pássaro nem pessoa. Ela notou uma estranheza ali. Um silêncio que desafiava até as regras mais rígidas do funcionário mais severo da biblioteca
do palácio limeriano.
O único som que conseguia ouvir eram as batidas do próprio coração.
- Onde está todo mundo? - Seu sussurro soou mais como um grito, quase a assustando.
Lucia apertou as mãos e se lembrou mais uma vez do conselho de sua mãe: fingir estar confiante.
Então continuou andando pelo lugar. Todas as construções pareciam quase idênticas, polidas e brilhantes, mas Lucia não conseguia distinguir o que era cada uma.
Ainda assim, a cidade parecia estranhamente familiar.
O labirinto de gelo, ela pensou. A cidade parecia uma versão maior do labirinto de gelo das terras do palácio limeriano, que um amigo de seu pai tinha lhe dado de presente em seu aniversário de dez anos.
E, dando-se conta com uma sensação ruim, Lucia já estava perdida nele.
- Quem é você, mortal? E como chegou aqui?
Lucia se assustou com a voz, como se um trovão a acordasse de um sono profundo. Em uma fração de segundos, ela virou e invocou sua magia sem pensar.
No mesmo instante, uma chama se acendeu em seu punho direito. Ela tentou não ficar consternada por escolher, inconscientemente, se defender com o elemento de Kyan.
O motivo de seus instintos de defesa estava diante dela: uma jovem assustada, vestindo uma longa túnica branca, a observava. Seu cabelo era vermelho como o fogo que ardia na mão de Lucia.
Uma imortal, bela e eternamente jovem.
Assim que a imortal viu o fogo, seus olhos se arregalaram em choque.
- Eu sei quem você é.
Dando um passo trêmulo para trás, Lucia extinguiu as chamas.
- Sabe? Então quem eu sou?
Quando o fogo deu lugar à fumaça, a garota pareceu se recompor, piscando rapidamente.
- A feiticeira renascida.
- Talvez eu seja apenas uma bruxa.
- Uma bruxa mortal nunca conseguiria entrar na cidade sagrada. Nenhum mortal jamais entrou nesta cidade.
A última coisa que ela queria era assustar alguém, especialmente a imortal que poderia ajudá-la a encontrar Timotheus naquela cidade labiríntica. Nas últimas semanas, violência e intimidação - sem contar
sua recém-adquirida habilidade mágica de extrair a verdade dos mortais - tinham sido as ferramentas cruciais para sobreviver, e parecia que ela ainda estava muito longe de acabar com aquele hábito.
- Então não há motivos para negar quem eu sou - Lucia respondeu devagar e cuidadosamente.
Um sorriso se abriu no rosto da imortal, espantando o medo dela.
- Melenia disse que você andaria entre nós de novo.
O nome deixou Lucia tensa.
- Disse?
A imortal assentiu.
- Ela prometeu que vamos poder sair daqui em breve e ser livres para ir e vir como desejarmos, finalmente, depois de todos esses séculos.
Melenia parecia ter feito muitas promessas para muitas pessoas.
Antes de Lucia matá-la.
Ela respirou fundo, tentando esquecer as lembranças da imortal má para se concentrar por completo no momento presente.
- Qual é o seu nome? - ela perguntou.
- Mia.
Embora a garota parecesse doce e amigável até então, Lucia não se permitiria esquecer que Mia era uma imortal que não envelhecia, uma Vigilante que não nascera de uma relação humana, mas criada a partir
da magia elementar.
- Meu nome é Lucia. - Ela endireitou os ombros, levantou a cabeça e tentou se sentir poderosa. - Estou aqui porque preciso falar com Timotheus. Sabe onde ele está?
- Sei, claro. - Mia assentiu, mas a menção àquele nome ofuscou seu olhar e uma expressão de desgosto apareceu em seu belo rosto. - Estou indo agora para a praça da cidade, onde ele convocou uma reunião.
Timotheus concordou em sair de sua vida de solidão e nos dar alguns instantes de seu tempo para responder nossas perguntas - ela comentou com um desdém que Lucia não teria deixado de notar nem se fosse
surda.
A confirmação de que ele estava ali, de que o imortal não havia desaparecido de repente justo quando ela mais precisava dele, fez Lucia suspirar aliviada.
- Quero estar lá para ouvir o que ele vai dizer - Lucia disse. Talvez ele fosse alertar os outros a respeito dela, se já não o tivesse feito, assim como a ameaça do deus do fogo.
Ela sabia que os imortais tinham visões sobre o futuro e podiam receber profecias, um dom - ou maldição, Timotheus pensava - que ela havia herdado de Eva, a feiticeira original. Timotheus podia até entrar
nos sonhos de Lucia, como Ioannes fazia, e nesses sonhos podia ler a mente dela. Era possível que o imortal soubesse de tudo o que ela já tinha feito, que tivesse seguido todos os passos que ela já havia
dado.
O pensamento a fez se retrair de vergonha e constrangimento.
- Não quero que Timotheus me veja ainda - ela disse a Mia. - E não quero alarmar nenhum de seus amigos com minha presença repentina em seu mundo. Pode me ajudar?
Mia concordou.
- Claro que sim. No entanto, para que não seja notada, vou ter que lhe emprestar minha túnica.
Lucia olhou para si mesma. O manto vermelho-escuro com que viajava estava rasgado e chamuscado graças a sua batalha com Kyan, e a fazia se destacar naquela cidade luminosa, como uma mancha de sangue sobre
a neve.
- Sim, isso ajudaria.
Mia tirou dos ombros a linda túnica branca, feita de um tecido brilhante elaborado com primor. Embaixo, usava um vestido prateado igualmente delicado, com pequenos cristais bordados, que revelavam seus
braços e envolviam seu corpo.
Lucia olhou para ela surpresa.
- Você se veste de maneira muito mais requintada do que qualquer pessoa que eu já tenha visto em banquetes luxuosos.
- É mesmo? - Mia sorriu, e seus olhos brilharam de prazer. - Já testemunhei reuniões de mortais na forma de falcão, mas nunca cheguei perto o suficiente para de fato vivenciar esses grandes eventos.
- Talvez eu leve você a um desses eventos algum dia, em agradecimento pela ajuda de hoje - Lucia disse, vestindo rapidamente a túnica sobre a roupa.
- Seria maravilhoso. - Mia hesitou, como se não soubesse ao certo o que fazer em seguida, depois deu o braço para Lucia. - Venha comigo.
Se soubesse pelo que era responsável, Lucia duvidava que Mia seria tão receptiva. Em todos os lugares onde estivera com Kyan, Lucia havia deixado um rastro de morte e destruição. Ela tinha fugido de sua
família, odiando-os por esconder verdades importantes durante toda sua vida - sobre a profecia e sua magia, e sobre o fato de ter sido roubada de sua família biológica. Ela não tinha amigos nem aliados,
não tinha posses além das roupas que vestia - roupas mais apropriadas a uma camponesa do que a uma princesa.
Não, não era totalmente verdade. Ela tinha outra posse muito importante: seu anel. Lucia olhou para o dedo indicador, no qual usava um anel de filigrana com uma grande pedra roxa.
Se não fosse pelo anel, estaria morta.
Mais um motivo para estar ali e ter a oportunidade de conversar com Timotheus pessoalmente.
Mia a conduziu para o interior da cidade. Ela a seguiu, vestindo o capuz da túnica branca sobre o longo cabelo escuro. As duas caminharam sozinhas por um bom tempo até que, finalmente, Lucia começou a
ver outras pessoas. Muitas usavam túnicas como a que Mia havia lhe dado, e todas iam na mesma direção. Disfarçada como um deles, ninguém prestou atenção nela. Lucia pôde continuar a observar os imortais
e sua cidade radiante sem interrupção.
Todos os seres ali eram belos, um mais do que o outro. Nem mesmo o mais atraente dos mortais podia competir com essas criaturas. A pele deles, de todos os tons, do mais pálido alabastro até o mais intenso
ébano, irradiava uma luz que parecia brilhar de dentro para fora. Os olhos eram como joias brilhantes de todas as cores, e os cabelos pareciam finos fios dos metais mais preciosos.
Como deve ser estranho viver em um mundo em que todas as pessoas e todas as coisas são perfeitas, ela pensou.
Ioannes era belo assim - ela tinha visto em seus sonhos. Quando ele se exilou e se tornou mortal, aquele brilho desapareceu. Ele se tornou mais tridimensional, com ângulos mais tortos. Tornou-se mais real.
Ela agora percebia que tinha gostado daquilo - da transformação do Ioannes imortal para o Ioannes real - mais do que tinha se dado conta na época. Estar apaixonada por alguém tão perfeito teria se tornado
cansativo depois de um tempo.
Lucia rangeu os dentes quando levas de lembranças espontâneas emergiam. Uma onda de luto e raiva tomou conta dela enquanto era confrontada pelas mesmas lembranças que havia tentando esquecer nas últimas
semanas.
Ioannes, por fim, tinha sacrificado a própria vida para salvar a dela.
Mas do momento em que o conheceu, do primeiro sonho para o qual a atraiu, ele a estava enganando e usando por ordens mágicas de Melenia, tentando descobrir seus segredos e a manipulando para despertar
a Tétrade.
Não, ela pensou, e com aquela única palavra firme, forçou as lembranças a desaparecer. Lucia jurou que não pensaria nele. Nem agora, nem nunca mais. Não se pudesse evitar.
Elas chegaram a uma grande clareira no centro da cidade. O chão era pavimentado com ladrilhos refletores. Lucia se lembrou do espelho em seus aposentos no palácio, no qual se olhava enquanto as criadas
a arrumavam até sua beleza ser do agrado de sua mãe. Sem tirar o capuz, ficou observando enquanto duzentos imortais convergiam para a clareira.
- Este lugar é como a praça pública de onde venho - ela disse em voz baixa.
- Nos encontramos aqui para as reuniões, e Melenia costumava falar da torre regularmente, para animar nossos dias. Até que ela desapareceu...
Lucia mordeu a língua. Nem mesmo o tom confuso e temeroso de Mia a faria se arrepender de ter acabado com a vida da imortal anciã.
Ela olhou para o cilindro de cristal liso no centro da clareira. A estrutura era tão alta que não era possível enxergar o topo.
- O que é isso?
- Os anciãos moram nessa torre. Timotheus não sai desde que Ioannes se exilou para o mundo mortal. Muitos acreditam que ele esteja de luto.
Dessa vez, os dentes de Lucia se cravaram tão fundo na língua que quase tiraram sangue.
- Quantos anciãos vivem aqui? - ela perguntou. Lucia percebeu que aprender sobre esse novo lugar a estava ajudando a acalmar a mente e a impedindo de pensar no passado.
- Originalmente, eram seis.
- E agora?
- É uma das perguntas que temos para Timotheus. - A expressão de Mia ficou severa. - E é bom que hoje ele tenha respostas.
- Ou o quê? O que acontece se Timotheus não aparecer com as respostas certas? E se essa multidão não ficar satisfeita?
Mia observou os outros que cercavam a base da torre de cristal, ocupando apenas uma fração do espaço disponível na praça.
- Muitos acham que o tempo dos anciãos já chegou ao fim. Por ordens deles, procuramos a Tétrade, e para muitos isso não passou de uma missão inútil, com a intenção apenas de nos distrair da verdade.
- Que verdade?
Mia balançou a cabeça, parecendo tensa.
- O fato de você estar aqui me dá esperança de estarem errados.
Lucia estava prestes a fazer mais perguntas, tentando descobrir o que Mia ocultava, mas, antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, ouviu-se uma agitação entre as pessoas e gritos zangados.
Ela levantou os olhos, com a cabeça ainda coberta pelo capuz. Quase perdeu o fôlego quando a superfície lisa da torre de cristal piscou e se encheu de luz. Então a imagem clara de Timotheus apareceu sobre
a superfície clara, com o rosto tão grande quanto a altura de três homens.
Ela ficou boquiaberta ao ver a inesperada projeção mágica.
A imagem de Timotheus levantou as mãos, com o rosto sério, quando a multidão de Vigilantes, incluindo Mia, começou a entoar algumas palavras que Lucia não conseguia entender, em uma língua que nunca tinha
ouvido antes. O som fez os arrepios que sentiu nos portões retornarem, e ela envolveu o corpo com os braços, tentando não tremer.
Timotheus esperou até o cântico terminar e o grupo se calar.
- Vocês pediram para me ver - ele disse, em voz alta e confiante. - Aqui estou. Sei que têm perguntas e preocupações. Espero acalmar a mente de vocês.
A multidão tinha ficado em silêncio após o cântico; a cidade parecia tão parada e vazia quanto quando ela chegou.
- Vocês querem saber mais sobre o paradeiro de anciãos e imortais desaparecidos. Querem saber por que inutilizei o portal para o mundo mortal, de modo que vocês não podem mais sair daqui, mesmo na forma
de falcão. Querem saber por que não saí desta torre nos últimos dias.
Lucia observou o rosto de Mia e dos outros imortais, os olhares petrificados sobre a imagem gigantesca e brilhante de Timotheus, como se fosse um deus onipotente que os havia transformado em estátuas de
mármore mudas e imóveis.
Ela nunca tinha pensado em perguntar a Ioannes qual era a diferença entre a magia de um ancião e a de outros imortais. Mas agora via que anciãos como Timotheus exerciam domínio total sobre os outros. A
multidão estava hipnotizada por ele - todos completamente parados enquanto ele falava.
Ainda assim, ele não tinha controle sobre a resistência que brilhava naqueles olhos.
A imagem de Timotheus não tremeluzia como uma vela; ela se mantinha sólida e clara. E Lucia lembrou de novo que ele se parecia tanto com Ioannes que os dois, se fossem mortais, poderiam ser confundidos
como irmãos de sangue.
- Danaus e Stephanos. Melenia. Phaedra, Ioannes e Olivia. Todos subtraídos de nossos já diminutos números. Vocês temem que eu tenha planejado todos esses desaparecimentos recentes, mas estão errados. Vocês
acreditam que deveríamos estar procurando nossos desaparecidos no mundo mortal, mas eu não os deixo sair. O que estou fazendo - Timotheus continuou -, o que eu fiz... se deve a um grande perigo que surgiu
no mundo mortal, um perigo que afeta tudo o que nos esforçamos tanto para proteger. Considerando que restam tão poucos de nós, fiz apenas o necessário para proteger vocês. E só peço que confiem em mim
por mais um tempo, antes que tudo seja revelado.
Suas palavras não ajudaram a suavizar o olhar ardente no rosto dos imortais. Lucia não ficou surpresa. Ela tinha escutado centenas de discursos de seu pai no decorrer dos anos. Ele era um verdadeiro mestre
na arte da oratória, mesmo quando estava diante de uma multidão que o desprezava.
O rei Gaius sabia quando mentir, quando dar falsas esperanças e quando fazer promessas de ouro que, frequentemente, não significavam nada.
Ainda assim, esses discursos, realizados em momentos-chave, eram mais do que suficientes para evitar motins. Mais do que suficientes para manter os limerianos sob controle e o número de rebeldes baixo.
As pessoas se apegavam à possibilidade de esperança.
Timotheus não falava de esperança. Ele dizia a verdade, mas sem dar detalhes, fazendo-o soar mais como um mentiroso tentando ocultar suas transgressões do que o Rei Sanguinário soaria.
E, ao que parecia, ele ainda não tinha terminado.
- Todos vocês viram com os próprios olhos que nosso mundo está morrendo. Cada dia mais, as folhas estão ficando marrons e secas. Apesar das profecias sobre a magia de Eva retornar para nós, vocês começaram
a acreditar nisso como um sinal do fim. Mas vocês estão errados. A feiticeira renasceu. E, neste exato momento, ela está entre vocês.
Lucia ficou boquiaberta quando os grandes olhos projetados de Timotheus pareceram encará-la diretamente.
E os imortais que não tinham se movido nem falado desde o início do discurso de Timotheus começaram a arregalar os olhos, em choque.
Uma onda de pânico tomou conta de Lucia, e de repente foi como se não existisse uma quantidade de vestimentas brancas suficiente capaz de impedi-la de se sentir completamente nua.
- Antes do fardo das visões ser carregado por mim - Timotheus disse para a multidão -, era Eva que carregava esse peso e previu que uma menina nascida no mundo mortal se tornaria tão poderosa quanto uma
feiticeira imortal. Agora posso confirmar que Lucia Eva Damora é a feiticeira que esperamos por um milênio. Lucia, revele-se.
O silêncio continuou a reinar na praça espelhada, uma inquietação assombrosa que parecia consumir Lucia, pressionando-a por todos os lados. Um fio frio de suor escorria por suas costas.
Com o coração acelerado, ela mais uma vez apegou-se fortemente ao conselho de sua mãe - um conselho que lhe causara ressentimentos por muitos anos.
Finja estar confiante mesmo quando não estiver.
Finja ser corajosa mesmo quando estiver com tanto medo a ponto de só querer fugir.
Seja convincente nessa atuação, e ninguém notará a diferença.
Com esse pensamento, Lucia levantou a cabeça e abaixou o capuz da túnica emprestada. Todos os olhos pararam sobre ela no mesmo instante, seguidos de um espanto coletivo quando os imortais foram libertados
da magia que Timotheus tinha usado para deixá-los tão imóveis e silenciosos.
Então, um por um, os rostos belos e reluzentes encheram-se de admiração. Cada imortal, incluindo Mia, surpreenderam Lucia ao caírem de joelhos diante dela.
5
CLEO
LIMEROS
Cleo, Magnus e os outros dois guardas atravessaram cuidadosamente a superfície do lago congelado até o alto do penhasco. Lá, Cleo fez uma careta ao olhar para o barranco e calcular a queda do rei até o
fundo - uma queda que ela também teria sofrido se Magnus não a tivesse puxado de volta.
Ela se virou para Magnus, pronta para expor suas preocupações sobre os planos do rei em voz alta, mas algo a impediu. Magnus estava sangrando.
Ela imediatamente puxou uma tira de tecido da barra do vestido vermelho - que, graças às desventuras do dia anterior, já tinha vários rasgos - e pegou o braço machucado dele.
Magnus se virou, surpreso.
- O que foi?
- Você está machucado.
Ele olhou para a manga de seu manto preto, rasgada até a pele, e relaxou.
- É só um arranhão.
Cleo olhou para os guardas de uniforme vermelho que combinavam perfeitamente com a cor de seu vestido. Eles estavam a uns dez passos de distância, conversando em voz baixa. Ela podia imaginar os assuntos:
poções de bruxas, magia elementar, reis mortos voltando à vida...
A princesa preferia se concentrar em algo tangível naquele momento.
- Fique parado - ela disse, ignorando o protesto de Magnus. - Na verdade, deixe-me ver melhor o ferimento. Quero ter certeza de que não é muito sério.
Relutante, Magnus tirou o manto dos ombros e arregaçou a manga da túnica. Cleo recuou involuntariamente ao ver o machucado sangrando, mas se recompôs em um instante e começou a cobri-lo com a faixa de
seda.
Ele a observava com interesse.
- Você tem muito mais jeito com isso do que eu imaginava. Já tratou de ferimentos antes?
- Uma vez. - Foi tudo o que ela disse, preferindo se concentrar na tarefa.
- Uma vez - ele repetiu. - Você fez curativos no ferimento de quem?
Cleo ajeitou com cuidado as pontas do tecido no curativo improvisado e encarou os olhos do príncipe.
- Ninguém importante.
- Então vou tentar adivinhar. Jonas? Parece que ele é a pessoa com maior probabilidade de se machucar a qualquer momento.
Ela limpou a garganta.
- Acho que há assuntos mais urgentes para discutirmos no momento do que o rebelde.
- Então foi Jonas. - Ele soltou um suspiro. - Muito bem, isso é assunto para outro momento.
- Ou nunca - ela disse.
- Ou nunca - ele concordou.
O rei tinha deixado instruções. Dirigindo-se somente para Magnus - para Cleo, apenas lançou olhares de desprezo - ele dissera que os encontraria aquela noite em uma hospedaria do vilarejo a meio dia de
viagem em sentido leste. Gaius explicara que o vilarejo ficava no caminho para onde estava sua mãe.
Para Cleo, tudo o que o rei dizia eram mentiras.
- Tem certeza de que não posso convencê-la a ir para Auranos? - Magnus perguntou, admirando o curativo improvisado que ela havia feito em seu braço. - Você ficaria mais segura lá.
- Ah, sim, é tudo o que quero no momento. Ficar sã e salva e totalmente fora do caminho. Talvez você possa mandar esses guardas comigo para garantir que eu faça exatamente o que mandarem.
Ele arqueou as sobrancelhas e voltou a atenção para o rosto dela, em vez das mãos.
- Sei que está chateada.
Ela só conseguiu soltar uma risada vazia diante do eufemismo.
- Aquele homem - ela apontou na direção em que o rei e os guardas tinham seguido para voltar à quinta onde Amara estava - será responsável pela morte de nós dois. Na verdade, ele quase já foi!
- Eu sei.
- Ah, sabe? Que maravilha! É de fato maravilhoso. - Ela começou a andar de um lado para o outro com passos curtos e preocupados. - Ele está mentindo para nós. Você deve saber disso.
- Acho que conheço meu pai. Melhor do que qualquer outra pessoa, com certeza.
- E então? Está esperando que ele sinta peso na consciência? Que de repente decida mudar seus hábitos? Que, magicamente, escolha ser a solução para todos os nossos problemas?
- Não. Eu disse que o conheço, o que significa que não confio nele. As pessoas não mudam, não tão rápido. Não sem antes terem provado que são capazes de mudar. Ele foi duro, cruel e ambicioso durante toda
minha vida... - Ele franziu a testa e ficou em silêncio de novo, percorrendo o lago congelado lá embaixo com o olhar.
- O que foi? - Cleo perguntou com o máximo de delicadeza para não o desencorajar. O modo como franziu a testa... ele devia ter se lembrado de alguma coisa.
- Tenho essas lembranças... São muito confusas e distantes. Nem consigo ter certeza se são lembranças ou sonhos. Eu era pequeno, mal conseguia andar sozinho. Lembro de ter um pai que não era nem um pouco
frio como minha mãe. Que me contava histórias antes de dormir.
- Histórias sobre demônios, guerras e tortura?
- Não. Na verdade... - Ele voltou a franzir a testa. - Lembro de uma sobre... um dragão. Mas era um dragão cordial.
Ela o encarou sem entender.
- Um dragão cordial?
Ele deu de ombros.
- Talvez tenha sido apenas um sonho. Muitas coisas do meu passado parecem sonhos agora... - Ele parou de falar, e sua expressão ficou séria. - Não quero que se envolva nisso. Como posso convencê-la a ir
para Auranos?
- Não pode, e essa é a última vez que falaremos sobre isso. Estou nessa jornada com você, Magnus. Não importa o que acontecer.
- Por quê?
Cleo olhou para ele, sentimental.
- Você sabe por quê - ela disse com suavidade.
O rosto dele foi tomado pela dor.
- Essa linguagem cifrada sempre me confundiu. Talvez você ainda não confie o suficiente em mim para falar com clareza.
- Achei que já tivéssemos deixado essas preocupações de lado.
- Em parte, talvez. Mas está tentando me convencer de que não achou que eu não fosse obedecer ao comando do meu pai e acabar com sua vida na beira daquele penhasco? Porque não vai conseguir. Eu vi nos
seus olhos o medo, a decepção. Você acreditou que eu a mataria só para cair nas graças dele de novo.
Os guardas não estavam perto o suficiente para ouvir, mas mesmo assim aquela discussão parecia mais apropriada para um momento mais privado.
De qualquer forma, ele tinha pedido para Cleo ser franca.
- Admito, você foi muito convincente.
- Eu estava tentando ser convincente, uma vez que a vida de nós dois estava em risco. Mas você não me ouviu? Eu a chamei de Cleiona, e esperava que percebesse isso como um sinal para não duvidar de mim.
- Ele balançou a cabeça. - Mas, ao mesmo tempo, por que não duvidaria? Não dei muitos motivos para confiar em mim.
Magnus encarou o chão, a testa franzida, até levantar a cabeça e encará-la nos olhos.
- Você está determinada a ir comigo até minha avó.
Cleo assentiu.
- Ela pode ser a resposta para tudo.
Ele rangeu os dentes.
- Espero que esteja certa.
Então a bruxa encontraria sua irmã, eles iriam atrás dela e implorariam para Lucia ajudá-los a livrar Mítica de Amara. Cleo tinha que admitir que não gostava da ideia de contar com a ajuda da jovem feiticeira.
- Você realmente acha que sua irmã vai nos ajudar? - ela perguntou. - Da última vez que a vimos... - Ela estremeceu ao se lembrar de Lucia e Kyan chegando de surpresa no palácio limeriano. Kyan quase matou
Magnus com sua magia do fogo.
Lucia o havia impedido, mas depois virou as costas para o irmão quando ele lhe pediu para ficar.
- Espero que ela ajude - Magnus respondeu com firmeza. - Essa escuridão que surgiu com a magia de Lucia... não é ela de verdade. A irmã que eu conheço é gentil e doce. Ela vai bem nos estudos, muito melhor
do que eu, e devora todos os livros que vê pela frente. E sei que ela se preocupa com Mítica e seu povo. Quando souber de tudo o que Amara está pretendendo, ela vai usar seus elementia para acabar com
isso.
- Bem - Cleo disse, esforçando-se muito para ignorar o veneno que vazava de seu peito ao ouvir tais elogios fraternos -, ela parece perfeita, não é?
- É claro que ela não é perfeita. Ninguém é. - Ele esboçou um sorriso. - Mas Lucia Damora chega bem perto disso.
- Que pena, então, que ela esteja sob a influência de Kyan atualmente.
- Sim. - A pequena alegria que havia em seu olhar desapareceu e foi substituída por dureza. - Ele está com o cristal do fogo. Você, com o da terra. Amara tem o da água. Meu pai está com o do ar há um bom
tempo.
De repente, Cleo deixou de se preocupar com todas as outras coisas.
- Há quanto tempo ele está com o cristal? Ou talvez seja melhor perguntar: por que eu não sabia disso até agora?
Magnus piscou.
- Tenho certeza de que já mencionei isso antes.
- Não, sem dúvida não.
- Hum... Sei que alguém estava presente quando recebi a notícia. Nic, talvez.
Ela não conseguia acreditar no que estava ouvindo.
- Nic sabe que o rei está com o cristal do ar, e nenhum de vocês me falou?
- Jonas também sabe.
Ela ficou boquiaberta.
- Isso é inaceitável!
- Peço desculpas, princesa, mas faz menos de um dia que concordamos em compartilhar mais do que ódio e desconfiança.
As lembranças do chalé no bosque voltaram a ela no mesmo instante: uma noite de medo e sobrevivência que levou a um encontro muito inesperado.
Cleo mordeu o lábio, deixando de lado sua indignação.
- Minha cabeça ainda está girando com tudo o que aconteceu.
- A minha também.
Ela olhou para os guardas e viu que um deles andava de um lado para o outro, agitado.
- Vamos para o ponto de encontro - ela disse com firmeza. Abriu a parte da frente do manto e olhou para o vestido carmim. - Espero encontrar roupas novas no vilarejo. Isso é tudo o que tenho, e está rasgado.
Magnus passou os olhos devagar por ela.
- Sim. Me lembro de rasgar esse vestido.
O rosto de Cleo ficou quente.
- Ele devia ser queimado.
- Não, esse vestido nunca será destruído. Será exibido por toda a eternidade. - Ele curvou os lábios em um sorriso. - Mas concordo, você precisa de vestimentas melhores para viajar. A cor é um tanto quanto...
chamativa.
Ela sentiu o calor de Magnus quando ele deslizou a mão por seu braço, observando o vestido que Nerissa tinha encontrado no palácio para Cleo usar durante o discurso.
Quanto mais Magnus se aproximava, mais o coração dela acelerava.
- Talvez possamos discutir isso mais tarde, na hospedaria, ou em nosso... quarto? - ela disse em voz baixa.
Então, de uma hora para a outra, Magnus tirou as mãos dela. Ela sentiu uma onda repentina de ar frio quando ele deu um passo para trás.
- Na verdade, vou garantir que nos deem aposentos separados.
Ela franziu a testa:
- Separados?
- Eu e você não dividiremos o quarto tão cedo.
Cleo o encarou confusa por um longo momento, sem encontrar sentido em suas palavras.
- Não entendo. Por quê? Depois da noite passada, eu achei...
- Achou errado. - O rosto dele ficou muito pálido. - Eu não colocaria sua vida em risco.
Magnus falava em enigmas que ela não conseguia decifrar.
- Por que minha vida estaria em risco se compartilhássemos um quarto? - Ela observou a expressão atormentada dele, que passou a mão pelo cabelo. - Magnus, converse comigo. Qual é o problema?
- Você não sabe?
- É óbvio que não. Me diga!
Com relutância, ele atendeu o pedido.
- Sua mãe morreu no parto por causa da maldição de uma bruxa. E é por causa dessa maldição que você também vai morrer se ficar grávida.
Cleo só conseguiu encará-lo, absolutamente chocada.
- Seu pai disse isso?
Ele assentiu, tenso.
- E você simplesmente acreditou nessa história ridícula?
- Não fale como se fosse uma tolice qualquer. Não sou idiota, sei que existe a possibilidade de que ele esteja mentindo. Mas ainda assim me recuso a correr o risco.
- Que risco? - Ela franziu a testa, sentindo-se idiota por não entender.
Ele a segurou pelos ombros com firmeza, encarando-a com intensidade.
- O risco de perder você.
A confusão dela se desfez, substituída por um calor crescente no coração.
- Ah...
- Minha avó é uma bruxa. Se existe mesmo uma maldição em você, ela vai desfazê-la.
Parecia impossível que ela nunca tivesse ouvido falar de algo tão sério, mas seu pai sempre fora reservado, em especial no que dizia respeito à magia. Ele nunca havia contado a Cleo que tinha mandado uma
bruxa lançar um feitiço de proteção sobre a entrada do palácio auraniano, o qual Lucia foi poderosa o bastante para quebrar.
Talvez tivesse lidado com esse assunto da mesma forma.
Cleo começou a pensar em sua mãe, e seu coração se partiu ao lembrar da mulher que nunca conheceu, destinada a morrer dando vida a ela.
- Se isso for verdade - ela disse depois de um instante, ainda se recusando a acreditar por completo em uma possibilidade tão absurda -, ouvi falar de outros métodos para evitar uma gravidez.
- Não vou arriscar sua vida até a maldição ser quebrada. E não dou a mínima se meu pai estiver mentindo para mim. Não vou correr o risco de que ele esteja certo. Entendeu? - A voz de Magnus ficou mais
grave e baixa, fazendo-a sentir um arrepio.
Ela assentiu.
- Entendi.
Poderia ser verdade? Ela odiava pensar que a mínima possibilidade pudesse existir. Por que seu pai não tinha mencionado algo tão horrível?
Ela precisava de respostas, tanto quanto Magnus. Mais um motivo para visitarem a avó bruxa.
Cleo notou que o guarda que estava agitado de repente se aproximou deles.
- Vossa alteza... - ele chamou.
Cleo tirou os olhos de Magnus para virar para o guarda, chocada ao ver que ele havia desembainhado a espada e a apontava para eles.
Magnus deixou Cleo atrás de si.
- O que é isso? - ele perguntou.
O guarda balançou a cabeça, parecendo tenso e um pouco exaltado.
- Acho que não posso cumprir as ordens do rei. A imperatriz e seu exército estão no controle de Mítica agora. Os limerianos não têm mais influência sobre seu próprio futuro. Continuar aliado àqueles que
enganam e se opõem à imperatriz seria cometer traição. Dessa forma, preciso entregá-los a ela.
Cleo o encarou com perplexidade.
- Seu covarde repugnante!
Ele lançou um olhar seco para ela.
- Sou limeriano. Você é inimiga, não importa com quem tenha se casado. Você - ele disse, retorcendo a palavra com desgosto - é o motivo de tudo o que cultivamos em Limeros por gerações ter sido destruído.
- Minha nossa, você me atribui muito mais poder do que de fato tenho. - Ela endireitou os ombros e semicerrou os olhos. - Abaixe a espada imediatamente e talvez eu não exija sua execução.
- Não recebo ordens de nenhum auraniano.
- Você recebe ordens de mim? - Magnus perguntou em um tom ácido.
- Receberia - o guarda respondeu. - Se tivesse algum poder por aqui.
Com os punhos cerrados, Magnus deu um passo à frente, mas o guarda respondeu encostando a espada no pescoço da princesa. O medo deixou Cleo boquiaberta.
- Ao menos sabe o meu nome, vossa alteza? - O guarda olhou para ele com desprezo. - A imperatriz sabe. Ela sabe o nome de todo mundo.
- Amara Cortas sem dúvida tem uma habilidade incrível de lembrar fatos inúteis. - Magnus olhou para ele com raiva. - E então? Pretende nos fazer marchar até ela? Espera que ela aceite o generoso presente
de braços abertos e o indique para capitão da guarda? Não seja idiota.
- Não sou idiota. Não mais. Agora, venham comigo. Se resistirem, vão morrer.
O guarda então gemeu quando a ponta de uma espada atravessou seu peito. Ele perdeu o equilíbrio e caiu no chão.
Atrás dele estava o outro guarda, limpando de sua espada o sangue do colega com um lenço. Ele olhou para o guarda caído com repulsa.
- Criatura fraca. Tive que ouvir suas baboseiras, seus planos... Discordei de tudo. Por favor, perdoe sua deslealdade, vossa alteza.
Embora estivesse tão aliviada que suas pernas quase cederam, Cleo trocou um olhar preocupado com Magnus.
- Qual é o seu nome? - Magnus perguntou ao guarda de cabelo escuro.
- Milo Iagaris, vossa alteza.
- Você tem minha mais profunda gratidão por essa intervenção. Suponho que possamos contar com a sua lealdade?
Milo assentiu.
- Até o fim.
Cleo soltou a respiração que nem tinha percebido que estava segurando.
- Obrigada, Milo - ela disse, lançando um olhar de ódio para o guarda morto caído a seus pés. - Agora, vamos deixar esse traidor para trás.
Cleo usou o manto verde para esconder o vermelho chamativo de seu vestido e o cabelo claro durante a jornada até o vilarejo.
Depois de horas de viagem incluindo várias formas de transporte, como caminhada, carroça e cavalo, ela, Magnus e Milo chegaram ao seu destino, exaustos. Por sorte, a esposa do dono da hospedaria era costureira,
e Cleo conseguiu algumas roupas simples com ela. Então, mantendo sua palavra, Magnus acompanhou Cleo a seu quarto individual.
Exausta demais para discutir mais sobre a maldição, Cleo trancou a porta, caiu sobre a cama dura e adormeceu no mesmo instante.
A luz do sol da manhã a acordou de maneira abrupta e, assim que abriu os olhos, Cleo os protegeu bloqueando a claridade com as mãos. Logo depois, a costureira bateu na porta, trazendo uma bacia de água
morna para ela se lavar. Cleo ficou grata por finalmente poder se livrar da sujeira que havia se acumulado em sua pele durante as andanças. Depois de limpa, ela colocou seu novo e simples vestido de algodão
e passou os minutos seguintes se esforçando para desembaraçar o cabelo com um pente de prata deixado ao lado da bacia.
Quando terminou, a princesa olhou para o próprio reflexo, esperando se deparar com alguém completamente diferente. Parecia que muita coisa havia mudado em poucos dias. Mas ali, no espelho, viu apenas a
mesma Cleo de sempre. Cabelo dourado, olhos azuis-esverdeados que tinham perdido apenas um pouco do cansaço que começou a tomar conta deles apenas um ano atrás, aos dezessete anos recém-completados.
Ela deu as costas para o espelho com um suspiro e estendeu a mão até a cadeira onde estava pendurado o manto roubado de um guarda kraeshiano durante a fuga da quinta que Amara tinha tomado emprestada.
Ela o inspecionou sob a claridade, procurando rasgos, mas ficou satisfeita ao ver que estava intacto.
Suas únicas posses eram um vestido emprestado, um manto roubado e uma esfera de obsidiana.
E, claro, as lembranças.
Antes que tivesse a oportunidade de considerar tudo o que havia perdido no decorrer do último ano, foi interrompida por um ronco forte do estômago.
Quando foi a última vez que ela tinha comido? Para ser sincera, não conseguia se lembrar.
Cleo saiu do quarto e espiou o corredor, tentando adivinhar em que quarto Magnus estaria. Ela protegeu o rosto com o capuz do manto, caso alguém que estivesse por ali naquele início de manhã a reconhecesse,
depois desceu a escadaria de madeira rangente que levava ao andar de baixo da hospedaria, em busca do desjejum.
A primeira pessoa que encontrou na sala de jantar vazia era alta, tinha ombros largos e cabelo escuro. Vestia um manto preto e, de costas para ela, observava o centro do vilarejo pelas janelas da frente.
Magnus.
Ela logo foi na direção dele e tocou seu braço.
Em vez de Magnus, o rei Gaius se virou para ela. Cleo recolheu a mão como se tivesse sido queimada. E imediatamente deu um passo para trás, para em seguida conseguir conter o choque inicial e retomar a
compostura.
- Bom dia, princesa - ele disse. Seu rosto estava tão pálido quanto no dia anterior, ainda machucado, com círculos escuros sob os olhos.
Fale, ela ordenou a si mesma. Diga alguma coisa para ele não achar que você está com medo.
Gaius arqueou a sobrancelha escura.
- O gato comeu sua língua?
Droga, ele se parecia tanto com Magnus nas sombras da hospedaria... Só de pensar, o estômago dela se revirava de repulsa.
- Não - ela disse sem se abalar enquanto ajustava melhor o manto sobre os ombros. - Mas eu o aconselharia a manter distância se quiser conservar a sua.
- Uma ameaça vazia - ele disse, irônico. - Que previsível.
- Se me der licença, vou voltar para meu quarto.
- Você até poderia. - Ele foi até a mesa mais próxima, que logo seria ocupada por hóspedes famintos, e sentou, gemendo como se o movimento lhe causasse dor. - Ou talvez seja uma boa hora para conversarmos.
- Não existe boa hora para isso.
O rei recostou na cadeira e a observou em silêncio por um instante.
- Emilia foi a abençoada com a beleza singular da mãe dela. Mas você... você certamente herdou seu fogo.
Ouvir aquela cobra mencionar o nome de sua mãe mais uma vez revirou seu estômago.
- Você não respondeu à minha pergunta antes. Como conheceu minha mãe? Por que o nome dela estava em seus lábios em seus últimos instantes de vida?
Ele sorriu.
- Dizer o nome dela foi um erro.
- Ainda está evitando a pergunta.
- Acredito que talvez essa seja a conversa mais longa que já tivemos, princesa.
- Diga a verdade - ela o interrompeu. - Ou será que não consegue?
- Ah, a curiosidade... É uma fera perigosa que leva as pessoas por vielas escuras até um destino incerto. - Ele passou os olhos pelo rosto dela, franzindo o cenho. - Elena e eu já fomos amigos.
Cleo riu, surpreendendo-se com o som agudo da própria risada.
- Amigos?
- Não acredita em mim?
- Não acredito que tenha qualquer amigo, muito menos que minha mãe tenha sido um deles.
- Era uma outra época, antes de eu ser rei ou ela ser rainha. Às vezes parece que faz um milhão de anos.
- Não acredito que foi amigo da minha mãe.
- Não importa se acredita ou não. Acabou há muito tempo.
Cleo virou as costas, indignada por ele ousar tentar alegar algo do tipo. Sua mãe nunca escolheria passar seu tempo com alguém tão vil quanto Gaius Damora.
- Agora sou eu que vou fazer uma pergunta, princesa - ele disse, levantando e se posicionando entre ela e a escadaria.
Cleo se virou devagar e lançou um olhar com o máximo de arrogância possível.
- O quê?
- O que você quer com meu filho? - ele perguntou.
Ela o encarou.
- Como é que é?
- Você me ouviu. Pretende continuar usando Magnus para benefício próprio? Se sim, meus parabéns. Você fez um ótimo trabalho voltando-o contra mim. As várias fraquezas dele sempre foram uma decepção, mas
isso... - Ele balançou a cabeça. - Você tem alguma ideia do que ele abriu mão por você?
- Você não sabe nada sobre isso.
Gaius zombou dela.
- Sei que pouco tempo atrás meu filho aspirava ser um líder, disposto a fazer o que fosse preciso para atingir seu maior potencial algum dia. Não sou cego. Vi como a cabeça dele foi virada rapidamente
por sua beleza. Mas a beleza é fugaz, e o poder é para sempre. Esse sacrifício, essas escolhas centradas em você que ele fez nos últimos tempos... Não entendo a lógica dele. Não mesmo.
- Então talvez você seja cego.
- Ele não enxerga tudo que está em jogo. Só enxerga o que está acontecendo no momento, diante de seus olhos. Mas você enxerga, não é? Você sabe como quer que sua vida seja daqui a dez, vinte, cinquenta
anos... Você nunca desistiu do desejo de recuperar o trono. Admito que subestimei sua determinação, o que foi um erro grave.
- Por que eu não desejaria retomar o que é meu por direito?
- Cuidado, princesa - ele disse.
- Não é a primeira vez que me diz isso. Não sei se está fazendo um alerta ou uma ameaça desta vez.
- É um alerta.
- Assim como o alerta sobre a maldição que minha mãe passou para mim?
- Sim, exatamente. Você não acredita? - Ele se aproximou. - Me encare nos olhos e me diga se estou mentindo sobre algo tão importante. Sua mãe foi amaldiçoada por uma bruxa odiosa e morreu dando à luz
a você por causa dessa maldição.
Cleo parou um momento para analisar o rei que mentia com tanta facilidade. Se fosse outra pessoa, qualquer um, ela estaria preocupada com sua saúde. Mesmo durante a conversa curta e desagradável que tiveram,
o rosto dele ficou mais pálido, a voz, mais seca e rouca. Seus ombros largos estavam curvados.
Ela comemorou seu declínio assim como comemoraria sua morte. Se o rei esperava algo diferente dela, ficaria extremamente decepcionado.
Mas seus olhos - nítidos, firmes, cruéis - não traziam nenhuma decepção visível.
- Você consegue ver a verdade - ele disse com a voz áspera. - Elena podia também, frequentemente, quando se tratava de mim. Ela me conhecia melhor do que qualquer um.
- Você não merece falar o nome dela.
- Essa é uma acusação séria, princesa. Principalmente considerando que foi você que a matou.
Os olhos de Cleo começaram a arder quando o peso da culpa que ela sempre carregou dentro de si - de que sua vida tenha custado a morte de sua mãe - surgiu em seu peito e a sufocou.
- Se o que está dizendo é verdade, foi a maldição que a matou.
- A maldição sem dúvida ajudou. Mas foi você que tirou a vida de Elena. Sua irmã não conseguiu, mas você, sim.
Cada palavra era como um golpe.
- Chega! Não vou ficar nem mais um segundo aqui, permitindo que me insulte, me intimide e minta para mim. Escute com atenção: se tentar fazer algum mal a mim ou a Magnus de novo, prometo matá-lo com minhas
próprias mãos.
Com isso, Cleo se virou e foi na direção das escadas, sem se preocupar se teria que esperar mais uma eternidade pelo desjejum. Ela se recusava a ficar um segundo sequer na presença hostil do Rei Sanguinário.
- E você me escute, princesa. - A voz de Gaius a perseguiu como um odor malcheiroso. - Esse amor que acha que sente por meu filho? Vai chegar o dia em que você terá que escolher entre Magnus e o poder.
E eu sei, sem sombra de dúvida, que vai escolher o poder.
6
JONAS
MAR PRATEADO
No terceiro dia no mar, Jonas estava com Nic na proa do navio do Rei Sanguinário, as velas pretas e vermelhas recebendo o vento que os levaria de volta a Mítica em mais quatro dias. Olivia, em forma de
falcão, o vigiava de cima, como fazia durante a maior parte do dia, com as grandes asas prateadas abertas enquanto planava.
Ele desejava se transformar em falcão também para poder retornar bem mais rápido. A vida a bordo de um navio não era para ele; o balanço constante sob seus pés era desnorteante e fazia seu estômago revirar.
Mas, era preciso admitir, estava melhor do que alguns outros. Felix estava pendurado na amurada à direita, o rosto com um péssimo tom esverdeado.
- Ele não estava brincando quando disse que enjoava em navios - Nic disse.
- Não mesmo - Jonas respondeu.
- Estou com pena dele.
- Ele vai sobreviver.
- Assassino terrível, você disse? Ele não era matador de aluguel do rei Gaius?
- Isso mesmo. Ex-assassino terrível que trabalhava para o rei Gaius. Atualmente luta por uma boa causa ao embarcar em um caminho longo e árduo rumo à redenção. E também vomita o café da manhã no mar como
oferenda para os peixes que possam nos ajudar.
- Vocês sabem que estou ouvindo tudo, não sabem? - Felix conseguiu dizer, ainda agarrado à amurada do navio.
Jonas tentou conter um sorriso, o primeiro que surgia em muito tempo.
- Sim, nós sabemos.
- Não tem graça - Felix resmungou.
- Não estou rindo. Não alto, pelo menos.
Felix disse algo ininteligível, mas inquestionavelmente desagradável, depois resmungou:
- Alguém pode, por favor, me matar e acabar com esse sofrimento?
- Eu me ofereço - disse Taran ao descer da gávea. Ele tinha insistido em subir a bordo, tirando o lugar de um membro da tripulação, para ficar de olho em qualquer navio kraeshiano.
- Cale a boca - Felix retrucou. Em seguida, sua expressão ficou tensa, e ele se jogou de novo contra a amurada para vomitar.
Jonas fez uma careta.
- Posso fazer alguma coisa para ajudar?
- Apenas... me deixe... morrer...
- Muito bem. - Ele deu as costas para o amigo mareado e viu Taran pegar a espada que tinha deixado perto do mastro. - O que você pretende fazer agora, posso perguntar?
- Vou afiar minha espada.
- Parece que está afiando essa lâmina desde que zarpamos.
Taran olhou para ele.
- E...?
- Deve ser a lâmina mais afiada do mundo, pronta para matar quem merece - Nic disse, compartilhando um olhar de cumplicidade com Taran. - Muito bem.
Jonas suspirou e pegou Nic pelo braço, levando-o para onde Taran não pudesse ouvir.
- Precisamos conversar.
Nic se desvencilhou de Jonas.
- Conversar sobre o quê?
- Seu ódio por Magnus está te consumindo, e isso está se tornando um problema.
A expressão de Nic se fechou.
- Sério? Que estranho você dizer isso, uma vez que não menciono o nome daquele canalha há dias. Além disso, desde quando você se tornou guarda-costas de sua majestade?
A ideia soava ridícula.
- Não sou nada disso. Mas o príncipe me mandou para Kraeshia para matar o pai. Estamos aliados a ele.
- Você pode estar aliado àquele monstro, mas eu não estou. - O rosto de Nic corou ao apontar na direção de Taran. - Magnus matou o irmão dele. Sua suposta aliança não tem nada a ver comigo nem com ele.
Jonas tinha ouvido falar sobre a morte de Theon Ranus e de como o ex-guarda auraniano estava envolvido com Cleo antes de Magnus matá-lo pelas costas.
Mais um motivo para Cleo desprezar Magnus, ele pensou. Ele não fazia ideia de nada disso, mas o fato de Cleo ter perdido alguém importante... assim como Jonas perdera Lys... só o fazia se sentir mais próximo
dela.
Taran tinha todo o direito de querer se vingar do príncipe, mas aquilo não passava de uma distração do problema maior, Amara e o rei, as três esferas mágicas de cristal que aprisionavam deuses elementares,
e a necessidade do próprio Jonas de se vingar do deus do fogo por matar Lysandra.
- Tudo bem - Jonas disse, coçando o peito distraidamente. - Você e Taran podem fazer o que quiserem com o príncipe. Mas não quero me envolver nisso.
- Combinado.
Jonas passou os olhos pelo convés e avistou Taran, Felix e alguns membros da tripulação, mas notou que faltava uma pessoa.
- Onde está aquele outro príncipe com quem temos que nos preocupar?
Nic não respondeu por um instante.
- Deve estar em seus aposentos, meditando ou o que quer que a fênix da profecia faça para passar o tempo quando está em alto-mar.
A cada dia que passava, Jonas tinha mais certeza de que permitir a presença de Ashur no navio tinha sido um erro. Na melhor das hipóteses, ele era apenas o irmão desorientado da imperatriz louca por poder,
que tinha usado e manipulado Felix até quase matá-lo. Na pior, ele era completamente maluco e acabaria matando todos.
Jonas nunca tinha sido muito otimista.
- Você acredita que a lenda é verdadeira? - Jonas perguntou.
- Não sei - Nic disse, revelando exaustão e tristeza na voz. - A única certeza que tenho é que o vi morrer, e agora ele está aqui, vivo, a bordo do mesmo navio que nós.
- Você já ouviu aquela lenda antes? De alguém que voltou dos mortos para ser o salvador do mundo?
Nic deu de ombros.
- Quando eu era criança, lembro de ter lido uma história parecida. Mas existem milhares de lendas que não são verdadeiras.
- A lenda dos Vigilantes é verdadeira - Jonas comentou.
- Sim, e é possível que essa história da fênix também seja. - Ele notou que Jonas ainda coçava o peito. - Você está com alergia?
Jonas fez uma careta.
- Não. Acho que esta longa viagem a Mítica está me fazendo coçar de impaciência. - Ele fez uma pausa. - Ouça, você conhece o príncipe Ashur melhor do que qualquer um de nós, não conhece?
- Bem, eu o conheço há mais tempo - Nic explicou.
- Preciso saber mais sobre os planos dele. Se ele o vir como amigo, vai confiar em você. Você precisa descobrir o verdadeiro motivo para ele não ter simplesmente ido atrás da irmã malvada e tomado seu
lugar de direito como imperador.
- Posso dizer o motivo: Amara tentaria matá-lo mais uma vez. Além disso, acho que ele não vai gostar de ser interrompido enquanto está meditando.
A palavra "meditando" enfurecia Jonas. Era o que o chefe Basilius dizia estar fazendo quando acreditava ser um feiticeiro profetizado que salvaria o mundo.
Ele tinha certeza de que a crença do chefe tinha a ver com a profecia da princesa Lucia, mas talvez essa lenda da fênix tivesse um alcance maior em Paelsia.
- Fale com Ashur - Jonas disse. - Peça orientação a ele. Recupere a amizade de vocês.
- Está dizendo que quer que eu o espione para você.
- Sim, exatamente.
Nic soltou um suspiro longo e trêmulo.
Jonas franziu a testa.
- A menos que haja algum motivo para você preferir evitá-lo. Preciso saber de alguma coisa?
- Não, não - Nic disse, talvez um pouco rápido demais, Jonas achou. - Vou fazer isso agora mesmo. Vou ver quais os planos dele. Pode contar comigo Jonas. Tudo o que eu tiver que fazer para garantir a segurança
de Cleo, farei.
Jonas assentiu.
- Fico feliz em saber.
Ele observou Nic assentir e sair, com passos hesitantes no início, mas mais resolutos ao virar um corredor e desaparecer.
- Tem alguma coisa entre esses dois - Felix disse, chegando por trás de Jonas. - Não sei o que é, mas vou descobrir.
O cheiro azedo de vômito atingiu Jonas como um tapa e, instintivamente, ele cobriu o nariz com a manga da camisa e olhou feio para o amigo.
- Você está fedendo - ele disse.
Felix deu de ombros.
- Desculpe.
- Você disse que vai descobrir o que está acontecendo entre Nic e Ashur?
- Sim.
- Amizades podem ser confusas... Principalmente quando envolvem membros da realeza.
- Não posso opinar. Nunca fui amigo de ninguém da realeza.
- E Amara? - Jonas se arrependeu da pergunta assim que a proferiu. O rosto de Felix foi tomado por uma expressão dura, acabando com qualquer suavidade e alegria. - Peço desculpas. Esqueça que mencionei
o nome dela.
- Gostaria de ser capaz de esquecer que ela existe. - Um músculo no lado direito do rosto de Felix se contraiu. Ele passou a mão pelo tapa-olho enquanto seu olho bom ficava vidrado e reflexivo.
Era o mesmo olhar perturbador e vazio que Jonas já tinha visto várias vezes no rosto do amigo. Era o olhar que Felix assumia pouco antes de matar alguém.
Olivia tinha curado os ferimentos superficiais de Felix, mas algumas feridas iam além da pele e dos ossos.
O jovem que Jonas tinha encontrado naquele calabouço escuro não era o Felix de que ele se lembrava. Quando foi resgatado, havia alívio em seu olhar, mas também uma angústia profunda. E aquela angústia
permanecia.
- Se está preocupado que eu ainda tenha sentimentos por ela, pode ficar tranquilo - Felix finalmente disse. - Eu ficaria feliz em rasgá-la ao meio com minhas próprias mãos se tivesse a oportunidade.
Jonas apoiou a mão sobre o ombro de Felix.
- Você vai ter sua vingança.
Felix riu sem achar graça.
- Sim, esse é o plano. Se eu conseguir pôr as mãos nela, e depois pôr as mãos naquele cretino ser do fogo também ... Bom, seria tudo o que eu poderia esperar do que sobrou desta minha vida desgraçada.
- Kyan é perigoso. - Jonas ainda não tinha descoberto como lidar com o deus do fogo. Na verdade, ele ainda precisava se acostumar com a ideia de um cristal da Tétrade transfigurado em carne e osso.
- É? Eu também sou. - Felix estalou os dedos. - Só preciso de alguns minutos com ele. Se parece um homem, anda e fala como um homem, deve ter um coração como um homem, um que eu possa arrancar de dentro
do peito.
- Você morreria antes de conseguir encostar um dedo nele.
- Então ficarei feliz de me encontrar com Lys no além muito antes do que imaginava.
Jonas surpreendeu a si mesmo ao soltar uma gargalhada, o que lhe rendeu um olhar julgador e fulminante de Felix.
- Lys ficaria surpresa em saber o quanto você se importava com ela.
- Não só me importava com Lys. Eu a amava.
- Claro que amava. - O que aconteceu com Lysandra ainda era uma ferida aberta. Até mesmo o nome dela dito por outra pessoa o fazia se encolher. - Você mal a conhecia.
- Eu sei o que sentia. Não acredita em mim?
Jonas sabia que seria melhor não perder a compostura entrando em uma discussão sobre Lys, mas temia estar perto demais do limite para se controlar.
- Se realmente a amava, talvez devesse ter ficado por perto para protegê-la.
Felix franziu a testa, tornando seu olhar ainda mais ameaçador.
- Você não vai querer discutir isso comigo agora.
- Talvez eu queira. Afinal, você de repente veio dizer que a amava. - Jonas o encarou por um instante longo e silencioso, e sua testa foi ficando quente. - Mas fui eu que tive que ficar lá e vê-la morrer.
- Sim, você a viu morrer. Se estivesse comigo, sabe que Lys ainda estaria viva. - Felix deu um passo ameaçador na direção dele, e Jonas viu seu olhar se tornar vazio como do assassino habilidoso que era.
Mas Jonas não sentiu medo. A conversa logo fez a indignação se acender dentro dele.
- Amor verdadeiro, não é? Estava pensando em Lys enquanto ia para a cama com Amara? Ou só fez isso depois que ficou sabendo que ela estava morta?
Ele só viu o punho de Felix depois que já tinha atingido seu nariz. Ouviu um estalo, sentiu uma onda de dor e depois o sangue quente escorrendo pelo rosto.
- Sabe o que é pior? Lys não me amava, ela amava você - Felix vociferou. - E você a deixou morrer, seu inútil de merda!
A dor intensa do nariz quebrado - das acusações de Felix, da lembrança dos terríveis momentos finais de Lys - atingiu Jonas como uma bola de canhão. Em vez de cair de joelhos devido à dor, ele cerrou os
punhos e lançou um olhar de ódio puro para aquele que o acusava, por tornar tudo ainda mais doloroso do que já era.
De repente, sem Jonas fazer um único movimento, Felix começou a respirar com dificuldade. O olhar convencido desapareceu de seu rosto e então ele voou para trás, como se um gigante invisível o tivesse
levantado do convés de madeira do navio e o arremessado como um boneco de pano. Felix teve que se segurar na amurada para não cair no mar.
- Que droga é essa? - A voz de Taran gritou atrás de Jonas. - O que aconteceu?
Jonas não conseguia encontrar palavras para responder. Só foi capaz de olhar para baixo, para seus punhos cerrados. Sob a fraca luz do anoitecer, ele percebeu, perplexo, que estavam brilhando.
Ele virou para Taran com os olhos arregalados. Taran, segurando a espada com pouca firmeza, encarou Felix, boquiaberto.
Ele não notou os punhos brilhantes de Jonas.
Felix se levantou com cuidado, sem tirar os olhos de Jonas, milhares de perguntas por fazer guardadas em sua expressão confusa.
Sem dizer nada, Jonas se virou e foi às pressas para sua cabine, tropeçando nos próprios pés.
Ele abriu a porta e no mesmo instante foi até um espelho manchado que ficava num canto do cômodo, perto da pequena escotilha.
Suas mãos, embora não brilhassem mais, tremiam violentamente.
O peito de Jonas queimava e se revirava, a sensação de um monte de vermes tentando perfurar seu coração. Ele agarrou a camisa e a rasgou, sem se preocupar em desabotoá-la, para expor as criaturas que o
atormentavam.
Mas não havia nada.
Em vez disso, havia uma marca. Uma marca que não estava lá antes. Uma espiral do tamanho do punho de um homem, no centro de seu peito.
A marca de um Vigilante.
O som de um suspiro agudo desviou sua atenção do reflexo no espelho para a porta aberta. Lá estava Olivia, agora na forma mortal, envolta em uma túnica cinza-escuro.
- O que está acontecendo comigo, Olivia? - ele conseguiu perguntar.
Os olhos verde-esmeralda de Olivia estavam arregalados e brilhantes enquanto ela alternava o olhar entre o peito descoberto de Jonas e seu rosto.
- Ah, Jonas... - ela sussurrou. - Timotheus estava certo.
- O que é esta marca em mim?
Ela respirou fundo e fechou os olhos com uma calma forçada. Depois, levantou um pouco o queixo e o encarou bem nos olhos.
- Sinto muito.
Ele estava prestes a perguntar por que quando a imagem de Olivia ficou borrada e escurecida nas bordas.
Jonas percebeu ter caído, mas sentiu o chão duro no rosto por um breve momento antes de perder a consciência.
7
LUCIA
SANTUÁRIO
Antes que a imagem grande e brilhante de Timotheus desaparecesse da torre, ele pediu para Mia escoltar Lucia até o interior de sua morada. Enquanto outros imortais ajoelhavam diante dela, Lucia seguiu
nervosa a Vigilante até a base da residência do ancião. Uma porta na superfície da torre, invisível antes que se chegasse a um braço de distância, se abriu.
A torre em si tinha cinquenta passos de circunferência e era desprovida de móveis no andar térreo. Aliás, era desprovida de tudo, à exceção de paredes lisas e brancas e de um piso espelhado igual ao que
havia do lado de fora. Ela acompanhou Mia até uma sala tão pequena que era praticamente possível tocar todas as paredes abrindo os braços. Lucia olhou relutante para as portas de cristal opaco quando se
fecharam.
- Você pode falar agora? - Lucia arriscou perguntar. - Ou ainda está sob o encanto de Timotheus?
- Posso falar - Mia disse em voz baixa. - E, no pouco tempo que temos juntas, devo insistir que tenha cuidado.
Lucia analisou o rosto da imortal, franzindo a testa para seu tom de voz preocupado.
- O que quer dizer com isso?
- Precisamos que a profecia seja verdadeira, que seja provada, e você finalmente chegou. Mas agora me preocupo que aconteça com você o que aconteceu com Melenia, seja lá o que Timotheus fez com ela. Tome
cuidado com ele. Independentemente do que possa nos dizer, não confiamos mais nele.
Lucia se esforçou para encontrar as palavras certas, para acalmar a mente de Mia explicando que Timotheus não tinha ferido Melenia, que a anciã tinha escolhido o próprio destino ao ser gananciosa, maliciosa
e cruel, mas as portas de cristal se abriram antes que ela pudesse dizer qualquer coisa.
As duas não estavam mais no andar térreo. Lucia passou pelas portas e entrou em outra sala branca, que era do tamanho de todos os aposentos de seu palácio combinados. Das janelas no outro extremo da sala,
que iam do chão ao teto, Lucia podia ver toda a cidade - a praça espelhada, o labirinto intricado de construções de cristal e as colinas verdes para além dos portões.
A feiticeira se virou e viu apenas um vislumbre da imortal antes de as portas se fecharem. Ela correu até lá, pressionando as mãos contra a superfície lisa, tentando reabri-las.
- Como chegou até aqui, Lucia?
A voz de Timotheus a paralisou, até que ela se virou lentamente. Do outro lado da sala - e não mais em uma imagem bidimensional projetada - estava o último ancião imortal.
Ela não tinha certeza se devia ficar aliviada por estar em sua presença ou impressionada pela magia que tinha testemunhado naquele dia.
- Tenho certeza de que está surpreso em me ver aqui, mas...
Timotheus levantou a mão brilhante e, com um movimento, arremessou-a para a lateral direita em alta velocidade. Ela bateu com força contra a parede. Embora seus pés estivessem firmes no chão, Lucia descobriu
que estava presa ali, como se uma força invisível a pressionasse.
Então Timotheus levantou a mão de novo com os olhos semicerrados, e os pés dela saíram do chão. Sua garganta ficou apertada, e de repente ela não conseguia respirar.
- Não sei que magia negra você usou para viajar até aqui - Timotheus vociferou -, mas achou mesmo que poderia simplesmente entrar na minha cidade e me matar? Que eu não tentaria me defender? Você é mais
ingênua do que eu imaginava!
- Nã...não! - Lucia lutou contra o braço invisível que a estrangulava. - Não... foi... por... isso... - Ela tentou pronunciar as palavras, tentou se explicar, mas não tinha fôlego para falar.
Ele não demonstrava nenhuma bondade.
- Você já deixou seus planos bem claros para mim em seus sonhos. Mas você não sabe de nada, criança. Prefere acreditar nos devaneios de um monstro do que nos próprios olhos e ouvidos. E agora me vejo em
uma situação um tanto difícil. Meus companheiros imortais acreditam que você é a salvação pela qual esperam há mil anos. Mal sabem que você não passa de uma decepção.
Com o fio de força que ainda tinha, Lucia invocou a própria magia. Cerrando os punhos, ela conjurou o fogo, e as chamas se elevaram de suas duas mãos enquanto ela olhava furiosamente para a figura que
tinha acabado de arremessá-la como uma boneca de pano. Lembrando-se das lições mais importantes de Ioannes, ela focou inteiramente em absorver a magia de Timotheus, e não em resistir a ela. Respirando
fundo, ela inspirou a magia do ar que a prendia à parede e, quando o aperto em seu pescoço começou a se afrouxar, descobriu que roubar a magia daquele imortal era quase tão fácil quanto cheirar uma rosa
no pátio do palácio auraniano.
Pouco depois, seus pés estavam de volta ao chão.
Ela o observou com cuidado, os punhos flamejantes.
- Você pensa o pior de mim, e não posso culpá-lo por isso. Mas alguma vez teve alguma visão em que eu o matava?
- Vou extinguir suas chamas patéticas - ele disse, ignorando a pergunta dela. Um pequeno tornado de ar girava em volta das mãos dele.
- E vou roubar seu ar e sufocá-lo com ele pouco antes de incendiá-lo.
Um sinal de preocupação surgiu no olhar dele. Perceber que o imortal a temia aumentou a confiança de Lucia, e sua magia do fogo ardeu ainda mais.
- Kyan lhe ensinou muita coisa - ele disse.
- Sim. Mais do que imagina. E eu que achava que você sabia tudo!
- Estou lisonjeado que você achasse isso.
- Não fique. - Lucia se concentrou em controlar as trevas e então apagou as chamas. - Não vim aqui para matá-lo.
Ele inclinou a cabeça como único sinal de surpresa.
- Então por que veio, feiticeira? Como é possível que tenha vindo? E onde está seu querido amigo?
De novo, os olhos de Lucia começaram a arder, e ela ficou horrorizada ao perceber que estava prestes a chorar. Ela se forçou a conter as lágrimas, sabendo que o sucesso daquele encontro dependia de que
se mantivesse forte.
- Kyan está morto - ela disse, apegando-se à sua determinação. - Eu vi quem ele realmente era... o que ele realmente era, e me dei conta de que estava errada. Todo esse tempo, eu estava errada sobre ele.
Estava errada em ajudá-lo. Não sabia que ele queria destruir o mundo.
A expressão de Timotheus não mudou.
- Talvez não, mas sabia que ele queria me matar. E concordou em ajudá-lo.
- Não estou aqui para matar você, juro. Você tinha razão em me alertar. - Ela passou a mão pela pedra roxa e fria de seu anel. - Se não fosse por este anel, eu estaria morta. Ele destruiu a forma monstruosa
de fogo que Kyan assumiu, e quando dei por mim... eu... eu estava aqui.
Lucia manteve um fluxo rápido de palavras sem deixar espaço para resposta, contando a Timotheus tudo o que podia sobre o tempo que passara com Kyan. Ela falara sobre a jornada nas Montanhas Proibidas no
leste de Paelsia, onde encontraram o monólito de cristal escondido embaixo de uma cobertura de pedra negra. O monólito estava repleto de poder - um poder que Kyan queria usar para atrair Timotheus para
fora do Santuário. Na fantasia de Kyan, Lucia drenaria a magia dele, como havia feito com a de Melenia, deixando-o vulnerável e fácil de matar. Então Kyan e seus irmãos elementares estariam livres das
esferas de cristal para sempre, sem nenhum imortal ancião vivo para devolvê-los às suas prisões.
Lucia disse a Timotheus que tinha sentido pena de Kyan, usado por causa de sua magia durante toda sua existência. Que ansiava ter a família ao seu lado e a chance de realmente viver.
- Mas isso não era tudo o que ele queria - ela disse, quase sussurrando ao chegar ao fim da história. - Ele via fraqueza em todos os mortais, uma fraqueza que lhe causava repulsa. Queria queimar tudo,
reduzir tudo e todos a cinzas, para que o mundo pudesse recomeçar como parte de sua busca pela perfeição. Os outros deuses da Tétrade com certeza querem a mesma coisa.
Finalmente, ela olhou para Timotheus, esperando encontrar um rosto chocado. Mas só encontrou cansaço e compreensão em seus olhos.
- Eu entendo - ele disse.
Sentindo-se fortificada pela reação gentil do imortal, Lucia continuou.
- Suponho que a explosão de magia que o matou tenha despertado algo no monólito, abrindo um portal que me trouxe até aqui. Quando me dei conta de onde estava, soube que precisava encontrar você. É o único
que pode me ajudar.
- Ajudar com o quê, Lucia?
Ela sentiu as constrangedoras lágrimas quentes escorrendo pelo rosto.
- A consertar o que eu fiz - ela disse com a voz falha, rendendo-se ao choro. - Eu sinto muito... Sinto tanto. Estava errada e... quase ajudei Kyan a destruir tudo. Não sobraria nada no mundo, graças à
minha estupidez. Não haveria lugar seguro no mundo para meu filho crescer.
Timotheus ficou em silêncio, olhando para Lucia com curiosidade.
- Seu filho?
Lucia fungou, e a surpresa à reação dele serviu para acalmar seu choro.
- Meu filho. Meu e de Ioannes.
Timotheus piscou.
- Você está grávida?
Lucia secou os olhos com a manga da túnica emprestada.
- Você não sabia? Foi você que indicou que essa seria a causa da minha magia estar desaparecendo. Você me disse no último sonho em que estivemos juntos que o poder de Eva desapareceu quando ela ficou grávida
de um filho metade mortal. Deve ter previsto isso!
Timotheus piscou mais uma vez e sentou na cadeira branquíssima que havia ao seu lado.
- Não previ nada parecido com isso.
- Deve ser por isso que estou aqui. Certo? Sou mortal, mas o bebê... meu bebê pode ser metade imortal. - Ela balançou a cabeça. - O que não entendo direito, já que Ioannes se tornou mortal ao se exilar.
- Exilados ainda têm magia dentro de si em seu mundo, mesmo que ela comece a desaparecer no momento em que saem daqui. Isso, combinado à sua magia, é... possível. Mas não entendo por que não enxerguei
isso antes. - Ele a encarou nos olhos enquanto se esforçava para levantar. - Usei minha magia em você. Posso tê-la ferido. Ferido o bebê. Você está bem? Precisa sentar?
Lucia recusou.
- Estou bem. - Ela passou a mão sobre a barriga reta. - Ainda está bem no início. Fico enjoada todas as manhãs, mas é só.
Timotheus abriu um pequeno sorriso.
- Você fez bem em me procurar.
Finalmente, ela relaxou a tensão que ainda restava em seus músculos.
- Fico feliz que concorde.
O raro sorriso dele logo sumiu.
- Kyan não está morto.
Ela o encarou.
- O quê?
Timotheus estendeu a mão. Um instante depois, uma chama surgiu sobre sua palma.
- O fogo é eterno. Não pode viver ou morrer; só pode ser contido. Kyan é a magia do fogo. E se a magia do fogo ainda existe, então ele também existe.
Lucia levou a mão à boca aberta, e seu coração, que tinha acabado de se acalmar, disparou de novo.
- O que vamos fazer? Como podemos detê-lo?
- Conter, não deter. Ele precisa ser aprisionado novamente.
- Como?
Ele não respondeu. Em vez disso, virou-se e foi até as grandes janelas. Lucia logo o seguiu.
Naquele instante, um pensamento terrível lhe ocorreu.
- Kyan acreditava que você era o único que poderia aprisioná-lo de novo. Mas você não sabe como fazer isso, não é? Eva devia saber, mas você não sabe.
Ela viu a tensão tomar conta dos ombros de Timotheus enquanto ele se mantinha em silêncio, os olhos fixos no Santuário, além das muralhas da cidade.
- Todo esse tempo... - ela murmurou, tentando conter sua frustração crescente por não ter todas as respostas de que precisava. - Todo esse tempo, pensei que suas pistas vagas e seus enigmas tinham a função
de me irritar, de brincar comigo enquanto você esperava o momento exato para atacar. Mas agora entendo por que não podia me dizer nada real. Você não tem todas as respostas.
- Tenho muito menos do que gostaria de ter - ele disse por entre os dentes.
- Estamos correndo perigo, não estamos?
Timotheus olhou para a garota a seu lado.
- Sim, estamos. Como você acreditava em mim, eu acreditava que você saberia como deter essa magia que ameaça destruir a nós todos. Que o vasto conhecimento de Eva tivesse, de alguma forma, entrado em sua
teimosa mente mortal.
Ele tinha um grande talento para fazer quase tudo o que dizia soar como um insulto. Lucia preferiu ignorar o último.
- Não entrou. Pelo menos não ainda.
Ele assentiu.
- Sei que seu anel é poderoso. Eva o usou enquanto lidava com a Tétrade e nunca foi corrompida por seus elementos.
- Corrompida... como Cleiona e Valoria. Tenho minha própria visão e vi... acho que vi que o que aconteceu. Elas tocaram os cristais e... a magia... ela... - Lucia balançou cabeça.
- A magia tomou conta delas - Timotheus completou a frase, assentindo. - A magia as modificou, e as jogou para fora de nosso mundo para sempre. Depois da grande batalha mil anos atrás, a Tétrade se perdeu
entre os mundos. E os cristais continuaram perdidos durante todos esses séculos. Até você aparecer. Melenia também foi corrompida, mas de um modo diferente. Apesar de tantas alegações de poder e inteligência,
quando ela tocou a esfera de âmbar, o ser que agora se autodenomina Kyan foi capaz de se comunicar com ela. Ele a manipulou a fazer o que queria.
Lucia mal podia acreditar nas palavras dele, mas depois de conhecer o deus do fogo, elas faziam sentido de uma maneira repugnante.
- Ela disse que o amava, que tinha esperado por ele durante todos esses séculos. Mas quando se encontraram, ele a descartou como se não significasse nada.
- Não estou nem um pouco surpreso. O fogo é incapaz de amar, ele apenas consome. - Timotheus a observou em silêncio por um instante. - Por causa de seu anel, Kyan vai estar enfraquecido. Você precisa encontrar
a esfera de âmbar antes que ele recupere a força.
- Nunca vi essa esfera.
- Eu arriscaria dizer que Kyan manteria algo tão importante consigo. Aquela esfera é uma de suas poucas fraquezas, e permitir que ela caia nas mãos de outra pessoa seria criar uma oportunidade para seu
aprisionamento. Portanto, você precisa encontrá-la. O primeiro lugar a procurar seria o local onde vocês travaram a batalha.
Ela assentiu com firmeza.
- Tem certeza disso?
- Receio que não existam certezas em situações como esta - ele admitiu.
- É o que estou aprendendo. Principalmente em relação a Melenia. - Ela se recusava a sentir qualquer empatia pela imortal de coração partido, mas agora a compreendia de uma maneira mais profunda. Ela não
tinha se tornado uma deusa como Cleiona e Valoria. Sua corrupção tinha resultado em uma devoção a Kyan, o que a transformou em uma ferramenta manipulada e, quando não precisou mais dela, descartada como
lixo.
Ioannes não tinha dispensado Lucia, mas ela conhecia muito bem a sensação de ser usada e manipulada.
- Melenia era esperta e talentosa antes de ser corrompida, muito antes de se voltar contra Eva - Timotheus continuou. - Ela era uma das poucas entre os que restaram que conhecia o segredo que devo guardar
sobre esse mundo. O segredo que me mantém preso aqui.
- Que segredo?
- As folhas - ele disse. Ele tirou das dobras de seu manto uma única folha marrom, enrugada e morta. Lucia a pegou da mão dele, e a folha se desintegrou com a mínima pressão que suas mãos criaram.
Ela deu de ombros.
- Folhas secas. Acontece.
- Não aqui. É um sinal, um pequeno sinal, de que a magia está desaparecendo. Mesmo com a Tétrade encontrada e espalhada por Mítica, é tarde demais para impedir.
- Impedir o quê?
- Este mundo... O que restou dele... - Ele fez uma pausa, e quando Lucia estava certa de que o imortal não ia continuar, acompanhou o olhar dele na direção da vegetação que havia além dos arcos da cidade,
das colinas e dos vales que pareciam não ter fim.
- O que restou dele? - ela repetiu, sem entender. - Não entendi bem o que isso quer dizer.
- Meus companheiros imortais entram em pânico ao ver uma folha morta, sem imaginar que podia ser muito, muito pior. - Ele virou para Lucia com uma expressão amarga, e ela o encarou. - Você precisa saber
o que poderia acontecer com seu mundo. Olhe mais uma vez para o meu belo Santuário.
Lucia piscou, depois virou mais uma vez para aquela paisagem impecável. Só que agora, para além da cidade, o verde que tinha admirado já não ia tão longe quanto antes. Dois quilômetros, talvez três, depois
dos portões da cidade, o solo se transformava em terra seca e escurecida. E, como a lateral irregular de um penhasco, desaparecia totalmente. O céu azul tinha se transformado em uma superfície de escuridão
completa, sem nenhuma estrela.
O Santuário consistia na cidade e, talvez, menos de dois quilômetros de vegetação. Tudo o que ia além disso estava destruído.
- O que aconteceu? - ela disse com a voz abafada.
- Um imortal chamado Damen foi criado ao mesmo tempo que Eva, mas com o poder de matar. Ele agia apenas movido por uma necessidade ardente de destruição, assim como o deus do fogo. A única diferença é
que Kyan não tem poder real de escolha sobre quem é e o que deseja. Damen teve escolha e optou por nos prejudicar. Tentou acabar conosco. E, finalmente, tantos anos depois de seu ataque, não sobrou magia
suficiente aqui para sustentar o pouco que resta deste mundo em declínio. Sem a Tétrade para reabastecer a vida deste mundo, o Santuário reduziu-se a este mero fragmento, com apenas uma fração de minha
espécie ainda existente. Uso minha magia para ocultar a verdade dos outros e tentar manter o que resta desse mundo pelo máximo de tempo que puder.
Ninguém deveria carregar um fardo tão terrível sozinho, ela pensou, nauseada só com a ideia que ele havia compartilhado.
- A Tétrade. Se os cristais forem trazidos de volta para cá, isso o ajudaria?
Ele inclinou a cabeça.
- Não vai consertar o que já se foi, mas salvaria o que restou.
Lucia assentiu, sentindo uma determinação crescer dentro dela.
- Então é isso que preciso fazer. Preciso encontrar e aprisionar Kyan, esteja onde estiver, localizar as outras esferas da Tétrade e trazê-las de volta para cá. Então meu mundo e o Santuário estarão a
salvo.
É claro que ela sabia que não seria tão fácil quanto parecia.
Timotheus não sorriu com a sugestão, mas um vestígio de esperança brilhou em seus olhos.
- Você vai dizer alguma coisa? - Lucia perguntou quando Timotheus ficou tão silencioso e imóvel quanto seus companheiros imortais durante o discurso. - Ou vai me direcionar ao portal mais próximo para
eu voltar ao mundo mortal?
- Você deve ter me ouvido dizer antes que desativei todos os portais.
Ela esperou.
- Então... reative um deles.
- Sem outros anciãos, vai demorar.
- Minha magia poderia ajudar.
- Não. Precisa ser a minha. Você deve poupar a sua para quando encontrar Kyan. - Ele fez um sinal com a cabeça, como se acenasse para si mesmo. - Você vai ficar aqui na torre. Descanse. Coma. Recupere
suas forças. Assim que possível, prometo ajudá-la a retornar a seu mundo para tentar fazer o que for necessário para salvar a todos nós. Se é o que realmente deseja.
Era o que desejava. Lucia nunca tinha desejado alguma coisa com tanta certeza.
8
MAGNUS
LIMEROS
- Diga, pai - Magnus disse, segurando firme as rédeas do cavalo. - Você escondeu minha avó em um bloco de gelo? É onde ela viveu por todos esses anos?
O rei não respondeu, e Magnus não esperava que respondesse. Ele estava em silêncio desde o início da viagem, que já durava meio dia. Tinham conseguido cinco cavalos com o dono da hospedaria antes de partir
naquela manhã, e cavalgavam em fila, com o rei e Milo à frente, Magnus no meio e Enzo e Cleo atrás.
Ele preferia cavalgar na frente da princesa. Sem observá-la o tempo todo, conseguia pensar sem se distrair. Até então, Magnus sabia que estavam seguindo na direção leste, mas não fazia ideia de qual seria
o destino final.
Será que os quatro homens que os seguiam sabiam?
Quando o rei exigiu descansar perto de um rio, Enzo e Milo começaram a fazer uma pequena fogueira. Magnus desceu do cavalo e se aproximou do pai. Ele estava preocupado por que Gaius parecia pior - seu
rosto estava pálido como a neve sobre a qual pisavam, tão branco que dava para ver as veias azuis e arroxeadas sob sua pele.
- Amara mandou alguns soldados nos seguir - ele disse.
- Eu sei - o rei respondeu.
- Pretende fazer alguma coisa a respeito? Imagino que sua nova esposa não ficaria feliz em saber que você mentiu sobre os motivos dessa viagem.
- Tenho certeza de que minha nova esposa ficaria surpresa se eu não tivesse mentido. - O rei fez um sinal com a cabeça para Enzo e Milo. - Cuidem deles.
Os guardas assentiram, montando os cavalos e saindo a galope sem perder tempo.
Magnus sabia perfeitamente bem o que "cuidem deles" significava, e não se opôs.
- Até onde vamos viajar? - ele perguntou.
- Estamos indo para os Glaciares - o rei respondeu.
Magnus arregalou os olhos.
- Os Glaciares? Então parece que minha teoria do bloco de gelo não estava tão errada, afinal.
Os Glaciares eram uma faixa de terra perto da Costa do Granito, composta basicamente por brejos congelados e vales gélidos. Era o lugar mais frio de Limeros. O gelo ali nunca derretia, nem quando os habitantes
do oeste vivenciavam a breve estação temperada que chamavam de verão. Havia apenas um vilarejo localizado nos Glaciares, e Magnus presumiu que aquela cidadezinha congelada devia ser onde Selia Damora estivera
escondida esse tempo todo.
O rei não deu mais informações. Ele virou as costas para Magnus e foi encher seu odre no rio. Magnus foi até Cleo, que protegia o rosto com o manto forrado de pele.
- Como você aguenta essa temperatura por tanto tempo? - ela perguntou.
Ele mal tinha notado o frio.
- Deve ser meu coração congelado.
- Pensei que o gelo tinha derretido pelo menos um pouco nas beiradas.
- Ah, não. - Magnus não conseguiu conter um sorriso. - Todos os limerianos têm corações congelados. Derretemos até virar poças d'água em locais como Auranos, com aquele calor implacável.
- Você está me fazendo sentir falta de Auranos. Eu adoro aquele calor. E as árvores, as flores... flores por todo lado. E o pátio do palácio... - A voz dela falhou, e Magnus pôde ver a melancolia em seus
olhos. Ela sentou sobre um tronco caído, tirando as luvas para aquecer as mãos na fogueira. Magnus sentou ao lado dela, sem perder o pai de vista.
- Existem pátios em Limeros - ele disse.
Ela balançou a cabeça.
- Não é a mesma coisa. Nem chega perto.
- É verdade. Está com sede? - Ele ofereceu seu odre a Cleo.
Ela olhou com desconfiança.
- Isso está cheio de água ou vinho?
- Infelizmente, água.
- Que pena. Um pouco de vinho seria bom para aquecer.
- Concordo plenamente.
Os dedos enluvados de Magnus roçaram os de Cleo quando ela tirou o odre da mão dele. Ela deu um longo gole e o devolveu.
- Enzo e Milo foram matar os homens que estão nos seguindo, não foram?
- Foram. Isso incomoda você?
- Acho que você deve ter esquecido que não sou a mesma garota que eu era mais de um ano atrás, que teria tremido ao saber de tamanha violência.
Ele arqueou a sobrancelha.
- E agora?
- Sem mais tremores. Só um leve arrepio.
Magnus sentiu vontade de envolvê-la para ajudá-la a se aquecer, mas manteve o foco na fogueira diante deles.
- Não se preocupe. Logo voltaremos a montar os cavalos, rumo aos ainda mais gélidos Glaciares. - Ele pegou um graveto e atiçou a pequena fogueira com ele.
- Quanto tempo até chegarmos lá?
- Um dia. No máximo dois, se meu pai não cair do cavalo.
- Não me importaria de testemunhar isso.
Ele sorriu ao pensar naquela imagem.
- Nem eu.
- O que sabe sobre sua avó? Sei que não a vê há muitos anos, mas se lembra de alguma coisa que possa ser útil?
Ele tentou pensar em sua infância, época que ele não gostava de relembrar.
- Eu não tinha mais de cinco ou seis anos quando presumi que ela estava morta... Foi logo depois que meu avô foi enterrado. Não consigo me lembrar de ninguém me dizendo aquilo diretamente, mas eu já tinha
percebido que quando as pessoas desapareciam de repente costumava significar que estavam mortas. Lembro de uma mulher de cabelo escuro e com uma mecha branca bem aqui... - Ele passou a mão em um cacho
do cabelo de Cleo, caído sobre a testa, desejando não estar usando luvas de couro para poder tocá-la de verdade. - E lembro que ela sempre usava um pingente prateado de cobras entrelaçadas.
- Adorável.
- Na verdade, eu gostava.
- Eu já imaginava. - Ela abriu um sorriso, que desapareceu rapidamente. - Acha que seu pai está com o cristal do ar neste exato momento?
O rei estava agachado perto do rio, de cabeça baixa, como se não tivesse forças para mantê-la erguida. Magnus observava aquela versão frágil do homem que temera a vida toda.
- Provavelmente não. Deve tê-lo escondido em algum lugar antes de sair. - Ele inclinou a cabeça, reconsiderando a pergunta. - Mas, ao mesmo tempo, ele teria medo que alguém pudesse encontrá-lo, então é
provável que o tenha trazido.
- Então quer dizer que não faz ideia.
- É exatamente isso que quero dizer. - Ele riu baixo. - Você está com o seu cristal, no entanto.
Cleo estendeu a mão para mostrar a esfera de obsidiana.
- Ele salvou nossa vida - ela afirmou, observando a pedra negra. - Sabemos que funciona. Nós o vimos causar dois terremotos. Mas preciso de mais. Precisamos de mais.
- Conseguiremos mais - ele garantiu. - Meu pai não nos traria até aqui se não achasse que minha avó poderia ser útil. E eu não teria vindo se não achasse que ela poderia ajudar a quebrar essa terrível
maldição lançada sobre você.
O rosto dela se fechou com a lembrança.
- Veremos. Claramente é possível liberar a magia se Lucia estiver envolvida. Ela ajudou Kyan a canalizar o poder do cristal do fogo.
Pensar naquilo causava uma dor quase física em Magnus.
- Talvez. Mas não temos certeza disso.
- Não consigo pensar em outra razão para ele ser capaz de uma magia como aquela.
- Se for isso mesmo, Lucia poderia fazer o mesmo por nós - ele disse.
- Temo que você seja irremediavelmente otimista quando se trata de sua irmã.
Magnus engoliu em seco.
- Temo que você esteja certa, mas não quer dizer que eu esteja errado.
Não demorou para Enzo e Milo voltarem, indicando para o rei que a ordem havia sido cumprida.
Devagar e com a ajuda de Milo, Gaius voltou a montar o cavalo, e o grupo seguiu caminho.
Acabaram viajando por três dias, parando frequentemente para o rei descansar, e passando por pequenos vilarejos cobertos de neve e cidades incrustadas no gelo. Ainda não havia soldados de Amara patrulhando
aquele extremo leste, então não foi preciso tentar se esconder daqueles que poderiam avisar a imperatriz que o rei Gaius estava viajando ao lado de Magnus e de Cleo.
Justo quando Magnus estava pronto para exigir mais respostas do pai - respostas que tinha certeza de que não receberia -, eles chegaram a um vilarejo nos Glaciares chamado Scalia. Não parecia diferente
dos outros pelos quais haviam passado, mas, ainda assim, Magnus teve a sensação de que algo tinha mudado. Seu pai agora cavalgava com os ombros eretos.
Eles seguiram o rei, que os levava por uma fileira de casinhas de pedra idênticas. Saía fumaça de todas as chaminés, tão densa no ar frígido que parecia bolas de algodão.
O rei desmontou do cavalo e então olhou pra Magnus.
- Venha comigo.
- Parece que chegamos - Magnus disse a Cleo.
- Até que enfim - a princesa disse. Apesar do tom de voz seco, Magnus notou que havia esperança nos olhos dela.
Eles acompanharam o rei, que se aproximou da porta da segunda casa à esquerda. Gaius parou por um instante, endireitando a postura. Magnus ficou chocado ao ver hesitação em seu pai. Finalmente, o rei respirou
fundo, levantou o punho fechado e bateu três vezes na porta.
Levou um tempo até a porta se abrir e uma mulher olhar para eles. Ela arregalou os olhos imediatamente.
- Gaius - ela disse, com uma voz fraca.
Era ela: a avó de Magnus. Estava diferente - mais velha, claro. O cabelo preto tinha ficado cinza-escuro, mas a mecha branca ainda estava lá.
- Mãe - Gaius respondeu, desprovido de emoção.
O olhar dela passou pelo rei e parou em Magnus e Cleo.
- Que surpresa.
- Sem dúvida - disse o rei.
O olhar de Selia retornou ao rei.
- Gaius, meu querido, o que aconteceu com você? - Antes que ele pudesse responder, ela abriu mais a porta. - Entrem, por favor. Todos vocês.
O rei fez sinal para Milo e Enzo esperarem do lado de fora, montando guarda, mas ele, Magnus e Cleo entraram na casinha.
- Por favor, sentem. - Selia indicou algumas cadeiras modestas em volta de uma pequena mesa de madeira. - Me diga por que parece tão doente.
O rei sentou rigidamente em uma das cadeiras.
- Primeiro, caso não o reconheça, este é seu neto.
- Magnus - ela disse, assentindo. - Claro, eu reconheceria você em qualquer lugar. Você mudou pouco. - Ela franziu a testa ao passar a mão pelo rosto dele, encarando a cicatriz.
- Acredite, eu mudei muito - ele disse. - Esta é a princesa Cleiona Bellos, de Auranos. Minha... esposa. - Pela primeira vez desde o casamento forçado dos dois, ele não sentiu amargura nem ressentimento
ao dizer aquela palavra.
- Cleiona Bellos. - O olhar analítico da mulher seguiu devagar para a princesa. - Filha mais nova de Elena e Corvin.
- Sim - o rei sibilou.
Selia arqueou a sobrancelha.
- Você não adotou o nome Damora ao se casar com meu neto?
- Não. Preferi continuar honrando o nome de minha família, já que sou a última Bellos que sobrou - Cleo respondeu.
- Acho que é compreensível. - Selia voltou a atenção ao rei. - Agora, conte como ficou nesse estado deplorável, meu filho. Suponho que este seja o motivo desta visita tão inesperada.
Magnus não notou acusação na voz dela, apenas preocupação.
- Um dos motivos - o rei admitiu. Então, em seguida, contou rapidamente sobre sua queda do penhasco, sem dar detalhes específicos do motivo da queda.
Selia praticamente desabou sobre uma cadeira ao fim da história.
- Então temos muito pouco tempo. Eu temia que esse dia chegasse e só me restava rezar para a deusa para que viesse até mim quando acontecesse.
- Sabe o que fazer? - o rei perguntou.
- Acredito que sim. Só espero que possa ser feito a tempo.
- Por que está aqui? - Magnus finalmente verbalizou seus pensamentos. - Por que desapareceu durante todos esses anos para viver aqui, em Scalia, um dos lugares mais indesejáveis de Limeros?
Selia olhou para ele com perplexidade.
- Seu pai não te contou?
- Não. Mas, para falar a verdade, meu pai não é muito de falar. Pensei que a senhora estivesse morta. - Ele rangeu os dentes, zangado mais uma vez por não saber daquele segredo por tanto tempo. - Obviamente,
não está.
- Não, não estou - ela concordou. - Estou exilada.
Magnus lançou um olhar para o rei.
- Por qual motivo?
- Foi escolha dela - o rei respondeu, enfraquecido. - Algumas pessoas do conselho real exigiram a execução dela; aqueles que acreditam até hoje que a execução foi feita de maneira privada. Em vez disso,
sua avó veio morar aqui. E aqui ficou por todos esses anos sem que ninguém no vilarejo - ou no palácio - soubesse.
- Por que alguém exigiria sua execução? - Magnus perguntou, trocando olhares confusos com Cleo.
- Porque - Selia começou a explicar lentamente - eu confessei ter envenenado meu marido.
Magnus balançou a cabeça, perplexo.
- Mas eu vi meu pai envenená-lo!
- Viu? - Ela o observava com interesse. - Então viu o veneno que dei para ele. Gaius não podia levar a culpa e assumir o trono, então facilitei as coisas para que ele pudesse assumir o reinado de maneira
muito melhor do que Davidus. - Ela explicou com tanta simplicidade que parecia falar sobre o clima. - Não tem sido tão ruim, na verdade. Às vezes esta cidadezinha é insuportavelmente fria, mas é agradável
na maior parte dos dias. Tenho amigos aqui, o que me ajuda a passar o tempo depois da última visita rápida de meu filho. Quando foi, Gaius? Cinco anos atrás?
- Seis - Gaius respondeu.
- Sabina me visitou duas vezes desde então.
- A senhora era mentora dela. Não estou surpreso.
Cleo se manteve em silêncio, mas Magnus sabia que ela estava arquivando informações naquela linda cabecinha loira.
- Não temos mais tempo para conversas - Selia levantou. - Precisamos partir neste instante para a cidade de Basilia.
- O quê? - Magnus olhou para o pai.
- Fica no oeste de Paelsia.
O rei também pareceu surpreso.
- É uma longa viagem. E acabamos de chegar aqui.
- Sim, e agora precisamos partir. Tenho um amigo nessa cidade que pode fornecer a magia de que necessito para ajudar você antes que seja tarde demais.
- O que preciso mais do que isso, mãe, é sua magia para nos ajudar a encontrar Lucia. Ela desapareceu quando mais precisamos dela.
- Então a profecia era verdadeira - Selia sussurrou. - E você só me fala isso agora? Eu poderia tê-la ajudado como ajudei Sabina.
- Preferi tutores que não soubessem da profecia.
Ela não disse nada por um instante, depois assentiu.
- Você fez bem em ser cuidadoso com ela. No entanto, encontrar sua localização atual será um desafio. Depois de tantos anos me escondendo, minha magia foi enfraquecendo até quase se tornar inútil. A resposta
para isso também está em Basilia. Vamos para lá obter o necessário para os próximos passos do plano. - Ela segurou as mãos do rei, sorrindo. - Finalmente tudo está entrando nos conformes. Mas preciso que
você esteja bem.
- Nunca soube que a senhora era bruxa - Magnus disse, optando por permanecer o máximo possível em silêncio até aquele momento, observando e escutando.
Selia olhou para ele.
- Contei esse segredo a poucas pessoas.
- E a senhora acha que vai conseguir restaurar seus elementia?
Ela assentiu.
- Não senti necessidade de fazer isso por anos, mas, para encontrar minha neta, para conseguir a magia necessária para curar meu filho... vai valer a pena.
- Meu pai me contou há pouco tempo sobre uma maldição... - Ele olhou para Cleo, cuja expressão era lúgubre.
Selia arregalou os olhos.
- Sim, é claro. A trágica maldição sobre Elena Bellos. Sinto muito por sua perda, Cleiona.
Cleo aceitou os pêsames.
- Eu também. Gostaria muito de ter conhecido minha mãe.
- Claro que gostaria. Mesmo com minha magia enfraquecida, ainda posso sentir essa poderosa maldição à sua volta quando me concentro. Não vou dizer que vai ser fácil, mas prometo fazer todo o possível para
quebrá-la quando minha magia se fortalecer.
O nó no peito de Magnus finalmente se afrouxou um pouco.
- Ótimo.
Ele viu alívio nos olhos de Cleo.
- Obrigada - ela disse.
- O que é essa magia que existe em Basilia e pode me ajudar? - Gaius perguntou enquanto Selia pegou uma sacola de lona e começou a enchê-la com alguns pertences.
- A magia que já pertenceu aos próprios imortais - ela respondeu. - Um objeto de muito poder que poucos sabem que existe.
- E que objeto é esse? - Magnus perguntou.
- Chama-se pedra sanguínea. Vamos encontrá-la juntos e, quando conseguirmos, tenho certeza de que vai devolver seu pai à sua antiga magnitude.
- Parece um tesouro valioso - o rei disse. - Que a senhora nunca mencionou para mim antes.
- Não contei tudo o que sei para você, Gaius.
- Tenho certeza de que não.
A voz deles se tornou um eco distante enquanto Magnus refletia sobre a existência dessa pedra sanguínea - outra pedra imbuída de grande poder e magia e que poderia, supostamente, curar até mesmo alguém
que já parecia morto e enterrado.
Esqueça seu pai, Magnus pensou. Aquela era uma magia que ele queria para si próprio.
9
AMARA
LIMEROS
Desde criança, Amara sempre gostara de dar longas caminhadas no esplendor tropical de Joia do Império, desfrutando de suas cores vibrantes e do clima ameno, frequentemente com Ashur ao seu lado. O beijo
da luz do sol lhe dava uma esperança renovada quando seu pai era muito cruel ou seus irmãos, Dastan e Elan, ignoravam sua existência. Em Kraeshia, ninguém precisava usar mantos forrados com pele grossa
nem se aconchegar perto de fogueiras para não congelar.
Sim, ela sentia saudade de casa, desesperadamente, e desejava retornar assim que conseguisse o que procurava. Então daria adeus àquele reino congelado e implacável de uma vez por todas.
Amara virou as costas para a enorme janela do salão principal, emoldurada com cristais de gelo, que dava para as dependências cobertas de gelo da quinta, para encarar Kurtis. Ele tinha entrado no salão
para trazer as notícias do dia e estava ajoelhado diante dela, os braços cheios de papéis.
- Levante e fale, lorde Kurtis - ela ordenou enquanto se dirigia ao pequeno trono.
- Os preparativos estão sendo feitos para sua mudança para o palácio limeriano amanhã, vossa graça - ele começou.
- Excelente. - Gaius tinha sugerido a mudança três dias atrás, antes de sua partida, e ela preferia não ficar na quinta mais tempo do que o necessário.
Ela se esforçou para ter paciência enquanto Kurtis lutava, com apenas uma mão, para examinar a pilha de papéis.
- Meus homens relataram alguma coisa sobre a localização atual de meu marido? - ela perguntou.
Ele passou os olhos por mais algumas folhas de pergaminho antes de responder.
- Não, vossa graça. Ainda não.
- É mesmo? Nada?
- Não. - Ele abriu um pequeno sorriso. - Mas tenho certeza de que ele ficaria satisfeito em saber que sua esposa está tão ansiosa por seu retorno.
- Sim, claro. - Amara o observou em silêncio por um instante, ainda tentando decidir se tinha passado a valorizar a presença dele nos últimos dias. Segundo Gaius, e o próprio Kurtis, o jovem tinha sido
um grão-vassalo respeitável, que comandara Limeros durante meses até Magnus chegar e tirar todo o seu poder.
Amara observou o coto do braço direito de Kurtis. Apesar dos curativos novos, uma mancha de sangue começava a aparecer.
- Que outras notícias você tem aí? - ela perguntou, tomando um gole de sidra do cálice que Nerissa tinha providenciado mais cedo.
- Meu pai, lorde Gareth, enviou uma mensagem.
- Leia para mim.
Ele desenrolou o pergaminho, deixando vários outros papéis caírem no chão.
- "Grande imperatriz, em primeiro lugar, minhas profundas congratulações pelo casamento com o rei Gaius, um verdadeiro e caro amigo meu. Ele me avisou sobre a atual situação em Mítica, e desejo que saiba
que entendo e aproveito a chance para servir à minha gloriosa nova imperatriz de todas as formas que possa necessitar."
Sim, Amara pensou com ironia, tenho certeza disso, já que a alternativa seria a morte ou a prisão.
- "Por ora" - Kurtis continuou -, "a menos que exija meus serviços em outro lugar, vou permanecer no palácio auraniano, na Cidade de Ouro. Por favor, saiba que receberei todo e qualquer kraeshiano como
amigo e aliado."
- Muito bem. - Amara presenteou Kurtis com um pequeno sorriso quando ele terminou. - Seu pai parece um bom homem, como você. Muito receptivo a mudanças inesperadas.
Kurtis retribuiu com um sorriso exagerado, indicando que tinha interpretado a observação irônica como um elogio.
- Ambos temos um talento especial para reconhecer a grandeza em um líder.
- Muito prudente de sua parte - ela comentou, já enojada pelo comentário bajulador de Kurtis.
De canto de olho, Amara viu Nerissa entrar no salão com uma bandeja com comida e vinho. A garota deixou-a calmamente sobre uma mesa. Quando Kurtis fez um sinal imediato para que ela saísse, Amara virou
para a porta.
- Fique - Amara ordenou. - Quero falar com você.
Nerissa se curvou.
- Sim, imperatriz.
- Lorde Kurtis, isso é tudo o que tem para me dizer?
Kurtis ficou tenso.
- Tenho muitos outros papéis para ler.
- Sim, mas contêm algo importante? - Ela arqueou a sobrancelha e esperou. - Vital? Alguma notícia de meus soldados à beira de uma revolta? Ou notícias da chegada iminente do príncipe Ashur?
- Não, vossa graça.
- Então pode nos deixar a sós.
- Sim, vossa graça. - Sem dizer mais nada, Kurtis abaixou a cabeça e saiu da sala. Nos poucos dias desde que conhecera o grão-vassalo, Amara havia notado uma coisa importante: ele acatava ordens muito
bem.
Nerissa aguardava na porta.
Amara levantou do trono e alisou a saia ao se aproximar da garota.
- Traga o vinho e venha comigo.
Nerissa fez o que lhe foi pedido, e Amara a conduziu a seus aposentos, uma série de cômodos muito mais confortáveis e menos formais.
- Por favor, sente - ela disse.
Nerissa hesitou por alguns instantes antes de sentar ao lado de Amara, que tinha escolhido uma poltrona estofada de veludo em frente ao espelho da penteadeira.
Cleo sabia muita coisa sobre a Tétrade. Havia uma possibilidade de sua criada ter escutado algo que pudesse ajudar Amara, principalmente sobre a importância de Lucia. Amara pretendia arrancar tudo o que
Nerissa pudesse saber.
- Não tivemos chance de conversar em particular desde que foi destinada a me servir - Amara disse. - Tem muita coisa em você que me deixa curiosa, Nerissa Florens.
- É uma honra que esteja curiosa a respeito de alguém como eu - Nerissa respondeu com educação.
- Florens... É um nome incomum para um mítico, não é?
- Um tanto quanto incomum, sim. Mas minha família não é de Mítica. Não originalmente. Minha mãe me trouxe para cá quando eu era pequena.
- E seu pai?
- Foi morto em uma batalha quando minha cidade natal foi invadida.
Amara ficou um pouco boquiaberta.
- Você fala com tanta franqueza e sem emoção. Parece kraeshiana como eu.
Os cantos da boca de Nerissa se retorceram, quase formando um sorriso.
- Minhas origens não são mais kraeshianas que míticas, ainda que seu pai tenha feito o possível para mudar isso. Minha família era das Ilhas Gavenos.
- Ah, sim. - Aquilo fazia muito sentido. "Florens" parecia muito com os sobrenomes comuns nas Ilhas Gavenos, um grupo de pequenos reinos que o pai de Amara tinha conquistado com facilidade quando ela era
criança. - Fico surpresa que tenha decidido revelar isso para mim.
- Não fique, vossa majestade. Não guardo rancor de algo que seu pai fez mais de quinze anos atrás. - Nerissa suspirou. - Segundo minha mãe, nossa terra era um lugar horrível antes de se tornar parte do
Império Kraeshiano. A guerra nos deu um motivo para partir.
- Mas seu pai...
- Ele era um bruto. Espancava minha mãe com frequência. Fazia o mesmo comigo quando eu era pequena. Embora, felizmente, eu não tenha lembranças disso. Foi uma benção e não uma maldição termos sido obrigadas
a começar uma nova vida em Mítica.
- Sua mãe deve ser uma mulher muito corajosa para assumir um desafio desses sozinha.
- Ela era. - Nerissa sorriu um pouco, e seus olhos castanho-claros foram para longe ao se lembrar. - Ela me ensinou tudo o que sei. Infelizmente, faleceu há quatro anos.
- Sinto muito por sua perda - Amara disse com sinceridade. - Estou curiosa para saber o que, especificamente, essa mulher tão formidável lhe ensinou.
Nerissa arregalou os olhos.
- Posso ser sincera, imperatriz?
- Sempre - Amara respondeu e teve que se forçar a não se aproximar muito da nova companheira.
- A coisa mais importante que ela me ensinou foi a como conseguir tudo o que eu quiser.
- É uma habilidade muito valiosa.
- Sim, sem dúvida se provou útil.
- E como ela sugeria que você fizesse isso? - Amara perguntou com curiosidade.
- Dando aos homens o que eles querem primeiro - Nerissa disse com um sorriso. - Depois que fugimos das ilhas, minha mãe virou cortesã. Uma cortesã muito bem-sucedida. - Vendo o olhar chocado de Amara,
ela deu de ombros. - Durante minha infância, um dia normal para ela era cheio de atividades que fariam a maioria das pessoas corarem.
Amara teve que rir.
- Bem, isso foi um tanto quanto inesperado, mas, para ser sincera, admirável. Acho que gostaria de ter conhecido sua mãe.
Amara também gostaria de ter conhecido a própria mãe, aquela que deu a vida por ela. Mulheres fortes e corajosas deviam ser celebradas e lembradas, e não descartadas e esquecidas.
Amara notava esse tipo de força em Nerissa. Afinal, ela devia ter feito alguma coisa certa para chegar tão longe ilesa.
- Preciso perguntar, presumindo que você estivesse no palácio durante o cerco, como veio parar aqui na quinta? O rei a trouxe para cá de imediato?
- Não, quem fez isso foi seu guarda, Enzo - Nerissa disse de maneira trivial. - Ele estava preocupado com meu bem-estar.
- Muito mais do que com o de todas as outras criadas do palácio?
- Ah, sim. - Nerissa olhou para ela com um sorriso travesso. - Depois da ocupação, Enzo me trouxe para cá para trabalhar em outra parte da quinta. Quando percebeu que eu estava aqui, o rei me escolheu
para servi-la. Fazer Enzo acreditar que somos muito mais próximos do que na verdade somos me beneficiou muito, não é verdade?
- De fato, eu diria que sim. - Amara começou a abrir um sorriso. - Temos mais em comum do que eu poderia imaginar.
- Temos?
Amara assentiu.
- Eu gostaria de usar essa sua habilidade especial para conhecer melhor meus soldados e descobrir o que dizem sobre mim. Para ser específica, gostaria de saber se têm alguma intenção de desafiar uma ordem
vinda de uma imperatriz, e não de um imperador.
Nerissa franziu os lábios por um breve momento antes de falar.
- Os homens kraeshianos não são tão abertos a essas mudanças, são?
- Acho que só vou descobrir isso com o tempo, mas gostaria muito de ter conhecimento prévio de qualquer motim.
- Com certeza farei o possível.
- Obrigada. - Amara observou Nerissa, esperando ver sinais de relutância ou hesitação diante do que havia pedido, mas não notou nada. - Entendo por que os homens gostam de você, Nerissa. Você é muito bonita.
- Obrigada, vossa graça. - Nerissa ergueu o olhar e fitou Amara. - Devo servir o vinho?
- Sim, por favor. Sirva uma taça para cada uma de nós. - Amara ficou observando enquanto a garota cumpria a ordem, imaginando-a fazer o mesmo por Cleo e Magnus. - Quantas criadas Cleo tinha?
- Em Auranos, várias garotas limerianas foram designadas a ela, mas nenhuma era de seu agrado. Depois que cheguei, ela não precisou de mais ninguém.
- Claro. Me conte, ela está apaixonada pelo príncipe Magnus? Eu achava que não, já que pouco tempo atrás ele era inimigo dela, mas agora não tenho tanta certeza, tendo em vista os rumos de seu último discurso.
Nerissa entregou um cálice de vinho a Amara e recostou no assento, bebendo do próprio cálice.
- Apaixonada? Não tenho certeza. Atração, sem dúvida. Apesar de parecer inocente, sei que a princesa é uma excelente manipuladora. - Ela desviou o olhar. - Eu não devia estar dizendo essas coisas.
Amara tocou a mão dela.
- Não, por favor. Você deve falar livremente comigo. Nada do que diz será usado contra você. Está bem?
Nerissa assentiu.
- Sim, vossa graça.
- Diga, a princesa alguma vez mencionou alguma coisa sobre onde está Lucia Damora? Elas estiveram em contato em algum momento desde que Lucia fugiu para se casar?
Nerissa franziu a testa.
- Só sei que a princesa Lucia fugiu com seu tutor e que foi um grande escândalo. Que eu saiba, ninguém mais a viu desde então... A menos que se dê ouvido aos rumores.
Amara tirou os olhos do vinho e encarou o rosto da adorável garota.
- Que rumores?
- De que o rei escondeu a verdade durante todos esses anos, de que sua filha é uma bruxa. E há rumores recentes sobre uma bruxa que está viajando por Mítica e matando todos os que aparecem em seu caminho,
queimando vilarejos inteiros.
Amara também tinha ouvido tais rumores.
- Acha que é Lucia?
A garota deu de ombros.
- É mais provável que seja exagero dos aldeãos, procurando formas de explicar uma fagulha perdida que incendiou a cidade. Mas não tenho certeza de nada, claro.
A garota não tinha nenhuma informação útil no momento, mas Amara tinha apreciado a conversa. Ela estendeu o braço e segurou a mão de Nerissa.
- Obrigada por conversar comigo. Com certeza você me provou seu valor hoje, e prometo não esquecer disso.
Em um movimento fluido, ao mesmo tempo gracioso e ousado, Nerissa entrelaçou os dedos aos de Amara.
- Fico feliz em ajudar como for necessário, imperatriz.
Amara olhou em choque para as mãos dadas, mas não recuou. O calor de Nerissa penetrou sua pele, e ela se deu conta de como tinha passado frio aquela manhã.
- É muito bom saber disso. - Amara fez uma pausa, considerando, cada vez mais interessada, a adorável jovem diante dela. - Os próximos dias serão desafiadores, e é bom saber que tenho alguém em quem posso
confiar.
- Tem, sim.
Finalmente, e com um pouco de relutância, Amara soltou a mão de Nerissa e a apoiou com delicadeza sobre o cálice.
- Pode ir agora.
Nerissa abaixou a cabeça. Amara a viu se levantar de maneira graciosa e seguir devagar na direção da porta. Ela parou e olhou para trás.
- Estarei por perto, caso precise. Sempre que precisar.
Sem dizer outra palavra, a garota saiu.
Amara ficou ali sentada por um tempo, refletindo sobre sua conversa com a intrigante Nerissa enquanto terminava de tomar seu cálice de vinho.
Sozinha em seus aposentos pela primeira vez naquele dia, Amara levantou e foi até o guarda-roupa. Passou a mão pelas dobras de seu manto verde-esmeralda e tirou o maior tesouro que possuía. Segurando-a
com as duas mãos, encarou a esfera de água-marinha.
O cristal da água.
- Exatamente da mesma cor dos olhos de Cleo - Amara disse em voz alta, notando essa semelhança no tom azul brilhante do cristal pela primeira vez. - Que irritante.
Ela observou os filamentos pretos e sombreados de pura magia da água girando dentro da esfera.
- Lucia sabe como libertá-lo? - ela sussurrou junto ao tesouro. - Ou você não passa de uma pedra tão decepcionantemente inútil quanto tentadora?
Algo quente roçou seus ombros. Ela agarrou o cristal frio e passou os olhos pelo quarto, franzindo a testa.
- O que foi isso? - disse em voz alta.
Lá estava de novo: uma brisa quente passando e a acariciando, dessa vez na direção oposta.
- Imperatriz...
O coração dela disparou.
Rapidamente, Amara guardou a esfera no esconderijo. Andou pelo quarto, procurando a origem daquela voz assustadora e da brisa quente que arrepiou os pelos de sua nuca.
Ela ouviu um estrondo vindo da lareira no canto do quarto. Amara se virou e ficou boquiaberta. O fogo que os criados tinham acendido ao amanhecer tinha se reduzido a brasas. Agora, ardia novamente, com
uma força maior do que ela já havia visto. O olhar trêmulo de Amara foi para além da lareira. Uma chama dançava sobre o pavio de todas as velas do aparador - as velas, de algum modo, tinham se acendido
sozinhas.
Amara respirou fundo desesperada e depois se esqueceu por completo de como respirar. A visão que tivera no navio que a levara a Limeros voltou a aparecer em sua mente, vívida, nítida e assombrosa. Ashur,
o irmão que ela tinha matado, voltando dos mortos para se vingar.
- Ashur? - ela perguntou com cautela.
- Não sou Ashur.
Amara ficou imóvel como um cadáver ao ouvir a voz grave e masculina que ecoava por seu quarto misteriosamente tomado pelo fogo. Era uma voz sem corpo - a única coisa de que Amara tinha certeza era de que
não havia mais ninguém no quarto com ela.
- Quem é você? - ela perguntou.
- Você possui o cristal da água.
A coluna de Amara congelou como se tivesse sido atingida por uma adaga de gelo. Agora tinha certeza: a voz não era nem um pouco abafada, como se alguém estivesse falando do lado de fora da pesada porta
de aço e madeira. A voz estava vindo de dentro do quarto.
Superando o som das batidas de seu coração disparado, Amara conseguiu dizer:
- Não sei do que está falando.
- Não me insulte com mentiras.
Ela queria gritar por ajuda, mas contra o quê? Não. Primeiro precisava saber com o que estava lidando.
- Diga quem você é e o que quer - ela disse, ofegante. - Estou no comando aqui e me recuso a ser intimidada por uma voz sem corpo.
- Ah, minha pequena imperatriz - a voz provocou. - Acredite, sou muito mais do que apenas uma voz.
Sem aviso, as chamas aumentaram, e Amara se encostou contra a parede. O fogo brilhava tanto que ela precisou proteger os olhos da ofuscante luz branca.
- Veja com os próprios olhos.
Graças às várias camadas de saias que ajudavam a esconder o tremor de seus joelhos, Amara se aproximou das chamas. Mais cautelosa do que já havia sido com qualquer tarefa, ela as encarou. Não vendo nada
além de chamas devoradoras, ela chegou mais perto, até sentir o calor ameaçando queimar sua pele. Então... lá estava. Amara jurou que podia ver alguma coisa - alguém - olhando para ela.
Um grito escapou de sua garganta enquanto se afastava do fogo. Ela se apoiou em uma cadeira para não cair.
- Eu sou Kyan - disse o rosto que aparecia nas chamas. - Sou a divindade do fogo, libertado de minha prisão de âmbar. E posso ajudá-la a encontrar o que procura.
Seu corpo tremeu. Amara tinha certeza de que só podia ser uma ilusão ou um sonho. Hesitante, estendeu o braço na direção das chamas, sentindo o calor palpável, e tentou falar com a ousadia necessária para
ocultar o medo.
- Você... - ela começou a dizer com a voz rouca. - Você é o deus do fogo.
- Sou.
Amara sentiu que todo o seu mundo havia mudado.
- Você pode falar - ela disse.
- Garanto que posso fazer muito mais que isso. Diga, pequena imperatriz, o que você quer?
Ela demorou mais um momento para se recompor e tentar assumir o controle da situação.
- Quero encontrar Lucia Damora - ela disse ao rosto de chamas.
- Porque acredita que ela pode liberar a magia do cristal que você possui. E com essa magia você será mais poderosa do que já é.
- Sim. - Ela ficou sem fôlego. - Essa magia, a magia do cristal da água, é como você? Consciente, sagaz, pensante...?
- Sim. Isso a assusta? - Havia um toque de divertimento naquela voz grave.
Ela endireitou os ombros.
- Não tenho medo. Possuo o cristal da água, o que significa que a magia dentro dele...
- Pertence a você - Kyan completou.
Ela esperou, quase sem fôlego, até a voz falar novamente.
- Posso ajudá-la a conquistar tudo o que sempre desejou, pequena imperatriz. Mas primeiro você precisa me ajudar.
- Como?
- A feiticeira cujo nome você pronunciou destruiu minha forma física, acreditando que assim me destruiria também. Mas o fogo não pode ser destruído. No entanto, só posso continuar neste mundo como um mero
esboço de minha verdadeira forma. Com sua ajuda, serei totalmente restaurado à minha força anterior, e então lhe darei mais do que já sonhou ser possível.
Ele fez uma pausa, como se quisesse deixá-la assimilar o que tinha acabado de dizer.
O que ele dizia vinha direto de uma lenda kraeshiana, uma criatura mágica de outro mundo que prometia conceder desejos a alguém.
Uma mistura intoxicante de medo e curiosidade a consumia. A ideia de que possuía, durante todo esse tempo, uma esfera de cristal com uma entidade como ele a deixava aturdida. Magia elementar... mas com
consciência própria. Incrível, ela pensou.
Ainda assim, Amara tinha dúvidas.
- Você faz grandes promessas, mas não mostra nada tangível.
A chama aumentou mais, e ela deu um salto para trás.
- Posso recorrer a outras pessoas; pessoas que concordariam com o que peço sem hesitar. Ainda assim, escolhi você porque vejo com clareza que é mais grandiosa do que todas as pessoas juntas. Você tomou
o poder com força e inteligência que vão além daquelas de qualquer homem que já existiu. Você é melhor, mais forte, mais inteligente do que seus inimigos, e mais merecedora da glória do que a feiticeira.
O rosto de Amara corou. As palavras dele eram como um bálsamo de cura para a fraca esperança que tinha para o futuro.
- Fale mais. Conte como libertar o ser mágico que há dentro do cristal da água para me ajudar a solidificar meu reinado como imperatriz.
Kyan não disse nada por um instante, e Amara procurou seu rosto nas chamas. Ele surgia e sumia enquanto o fogo queimava. Parecia que o deus do fogo podia aparecer e desaparecer quando quisesse.
- Sangue e magia. É disso que você precisa, que nós dois precisamos. O sangue da feiticeira e a magia de uma bruxa poderosa. Quando as peças estiverem no lugar, serei restaurado à minha antiga glória;
e você, pequena imperatriz, terá poder infinito.
Um tremor de satisfação percorreu suas costas enquanto ela encarava as chamas.
- O que preciso fazer?
- A pergunta correta é: aonde você precisa ir?
Ela respirou fundo e assentiu.
- Aonde?
As chamas se agitaram, os tons de vermelho e laranja, branco e azul, ficaram mais fortes, mais vibrantes.
- Paelsia.
10
LUCIA
SANTUÁRIO
Lucia descobriu que a torre em que Timotheus morava se chamava Palácio de Cristal. Houve um tempo em que todos os seis anciãos originais moravam lá. Agora ele era o único que restava.
- Deve ser solitário - Lucia ponderou, falando mais para si mesma. - Ficar aqui sozinho com o fardo de todos esses segredos.
- É, sim - ele respondeu, mas quando Lucia tentou encará-lo nos olhos, ele já havia desviado o rosto.
- Quero ver os aposentos de Melenia.
- Por quê?
- Porque... - Ela pensou em como racionalizar a necessidade de ver onde sua inimiga, a mulher que havia tramado sua morte antes mesmo de Lucia nascer, tinha vivido. - Apenas preciso vê-los.
Lucia achou que ele argumentaria, mas, em vez disso, Timotheus concordou.
- Muito bem. Venha comigo.
Ele a conduziu por um longo corredor com portas que se abriam sozinhas quando se aproximavam e se fechavam com suavidade depois que passavam e seguiam em frente. Lucia passou a ponta dos dedos nas paredes
brancas. Dava para sentir o olhar de Timotheus sobre ela enquanto caminhavam.
- Você tem perguntas, muitas perguntas - ele disse.
- Uma vida inteira delas - ela concordou.
- Não posso contar tudo, Lucia. Apesar de ter estendido uma mão amiga hoje...
- Você ainda não confia em mim - ela o interrompeu. - Eu sei.
- Não é isso. Não exatamente, pelo menos. Muitos segredos morreram com os outros anciãos, e, agora que sou o único, esses segredos são uma das poucas armas que tenho para me proteger.
- Eu compreendo - ela disse. - De verdade.
Timotheus franziu a testa.
- Como você conseguiu amadurecer tanto em tão pouco tempo?
Ela quase riu.
- Não fale como se fosse tão absurdo.
- A nova vida que cresce em seu ventre deve ter feito toda diferença para ajudar a mudar seu comportamento infantil e mimado e os acessos de raiva que estou acostumado a ver em você.
- Timotheus, todos esses elogios vão acabar me subindo à cabeça.
Ele deu uma leve gargalhada quando se aproximaram de portas douradas e brilhantes. Timotheus as abriu e revelou os aposentos de Melenia.
Lucia ficou boquiaberta ao ver o espaço enorme, do tamanho daquele em que tinha se encontrado com Timotheus. Mas o cômodo dele era austero e desprovido de qualquer toque pessoal. Esse era o extremo oposto.
Era como entrar nos aposentos de uma rainha no mais luxuoso dos palácios. Havia uma majestosa área de estar no centro, com sofás macios de veludo branco. No alto, um lustre de cristal reluzia, refletindo
a luz que entrava pelas janelas que iam do chão ao teto e davam a volta no cômodo. Lucia olhou para baixo enquanto caminhava, observando o piso intricado de prata e joias incrustadas.
Havia flores de todas as cores imagináveis, frescas como se tivessem acabado de ser colhidas. Elas estavam em uma dúzia de vasos grandes deixados sobre mesas de vidro espalhadas pelo cômodo.
Lucia andou por todo aquele luxo e foi até a parede oposta. Estava recoberta por um padrão quadriculado de prata e vidro. Os símbolos elementares estavam gravados nos ladrilhos de prata - uma espiral simples
para o ar, um triângulo para o fogo, um círculo dentro de outro círculo para a terra e duas linhas onduladas paralelas para a água.
- Um templo - Timotheus explicou. - Muitos imortais têm um em casa, para poderem rezar para os elementos.
- Ouvi dizer que algumas bruxas mais velhas também fazem isso - Lucia murmurou, passando os dedos pelo símbolo do fogo.
- Não exatamente assim - ele disse. - Mas parecido.
- Melenia rezava aqui para Kyan, desejando que voltasse para ela.
- Claro.
- E ele conseguia falar com ela, dentro de sua mente, contando mentiras. Fazendo promessas de que ficariam juntos quando fosse libertado, se ela o ajudasse. - Timotheus não respondeu. Nem precisava. -
Odeio sentir um pouco de pena dela, agora que sei como Kyan a manipulava. Era tão mais fácil simplesmente odiá-la.
- Não sinta pena de Melenia. Ela poderia ter lutado com mais afinco contra ele.
- Como sabe disso? Talvez ela tenha tentado e fracassado.
- Talvez - ele reconheceu.
Lucia tocou os outros símbolos elementares.
- Os outros três deuses da Tétrade já foram libertados alguma vez?
- Não que eu saiba. Não na forma física, pelo menos.
Será que Ioannes sabia disso?, ela se perguntou. Ele devia se encontrar com Melenia ali. Era ali que a bela anciã tinha dito a ele o que fazer. Ele tinha sido corrompido pelas palavras e pela magia dela
naquele lugar. Ainda assim, Ioannes lutou no final.
Lucia queria acreditar que ele tinha lutado desde o início.
- Você me disse que Ioannes era seu amigo - ela comentou.
- Era como um familiar para mim.
- Eu não disse antes, mas sinto muito por sua perda.
- E sinto muito pela sua.
Ela engoliu o nó que se formava em sua garganta, tentando se concentrar em outra coisa. E apoiou a mão sobre a barriga.
- Estive pensando em como chamar o bebê e estou com dificuldade para encontrar algum nome que combine com ele. Quero escolher um forte, digno. Um nome que meu filho ou filha aprecie quando crescer.
- Você tem muito tempo para decidir.
- É, acho que sim. - Lucia pegou distraidamente um pequeno baú dourado que estava sobre uma mesa de vidro. Era mais ou menos do tamanho de um porta-joias que tinha encontrado nos aposentos da princesa
Cleo no palácio auraniano. Ela abriu a tampa e encontrou uma adaga de ouro brilhante. Pegou a lâmina e a observou.
- Foi isso que Melenia usou para entalhar o feitiço de obediência nele? - ela perguntou, sem fôlego.
Com um movimento suave, Timotheus tirou a adaga da mão dela, colocou-a de volta na caixa e fechou a tampa.
- Foi - ele respondeu, olhando para a caixa com a testa franzida. - Se eu a destruir, temo que liberte a magia negra presa dentro dela. É melhor guardá-la em outro lugar, onde ninguém consiga encontrá-la
de novo. Os mundos ficarão mais seguros dessa forma. - Ele fez uma pausa. - Já terminou de olhar o espaço? Garanto que não vai encontrar nada aqui além de lembranças desagradáveis e arrependimentos. Sei
disso melhor do que qualquer um.
Lucia soltou um suspiro trêmulo e assentiu.
- Terminei.
- Então vou pedir para Mia lhe mostrar a cidade. Depois de meu inesperado anúncio, meus companheiros imortais vão querer vê-la mais uma vez antes de você voltar para casa.
Como em um passe de mágica - e Lucia não tinha por que acreditar que era outra coisa - Mia a estava esperando na base da torre. Ela já sabia o que Timotheus havia sugerido. E parecia nervosa. Apesar de
seus vários séculos - ou milênios - de idade, parecia mais jovem que Lucia, que sorriu para ela.
Mia retribuiu o sorriso e, segurando o braço de Lucia, acompanhou-a até o lado de fora.
Embora a pressão de encontrar Kyan quando retornasse pesasse bastante em sua mente, Lucia estava curiosa para saber mais sobre aquela cidade e seus ocupantes - incluindo o que os imortais faziam para passar
o tempo.
Ela observou a paisagem enquanto caminhavam. Algumas dezenas de Vigilantes estavam agachados, trabalhavam com cuidado para criar uma extensa obra de arte diretamente na praça espelhada, posicionando minúsculos
fragmentos de cristais em padrões intricados.
- Essa obra representa o ar, e eles finalmente a terminaram - Mia explicou, levando Lucia até o alto de uma construção para que pudessem observar a obra de arte de cima. - Não é lindo?
- Muito - Lucia concordou. Eram espirais detalhadas em muitos tons diferentes de azul e branco, e remeteu Lucia a um belo mosaico que vira na parede da biblioteca do palácio auraniano. Só que essa obra
era dez vezes maior, e os responsáveis deviam ter demorado meses para produzi-la.
Os artistas se afastaram do trabalho, sorrindo uns para os outros e secando o suor da testa.
Então, para a surpresa de Lucia, cada um pegou uma vassoura de cabo dourado e começou a varrer os pedacinhos de cristal, destruindo aquela obra impressionante.
- O que estão fazendo? - ela exclamou.
Mia simplesmente olhou para ela, franzindo a testa.
- Limpando o espaço para poderem começar de novo, é claro.
- É um desperdício de uma bela obra de arte!
- Não, não. É assim que deve ser. Isso mostra que tudo o que existe deve mudar um dia, mas o que é destruído pode ser recriado com paciência e dedicação.
Enquanto refletia sobre aquilo, ainda perturbada que uma incrível e bela obra não fosse feita para durar, Mia levou Lucia até o grupo de imortais. Os olhos se encheram de esperança ao vê-la, e eles perguntaram
se Lucia gostaria de ter a honra de iniciar o próximo mosaico. Ela escolheu um punhado de cristais vermelhos finos como areia em uma bandeja dourada e comprida. Espalhou alguns no centro da área, olhando
para Mia para ver se estava fazendo a coisa corretamente.
Mia sorriu e aplaudiu.
- Excelente. Tenho certeza de que agora você os inspirou a fazer uma incrível homenagem ao símbolo do fogo.
Lucia sentiu um golpe no estômago ao pensar que, inconscientemente, tinha escolhido o vermelho entre as cores.
Bem, é claro que escolhi, ela pensou. Não tem nada a ver com Kyan. É a cor de Limeros.
- Você deve estar com fome - Mia disse, levando Lucia para um pátio externo onde frutas pendiam das árvores. Lucia observou o entorno. Percebendo que estava com muita fome, levantou o braço e tirou uma
maçã vermelho-escura de um galho. Mia fez o mesmo, dando uma grande mordida na fruta e incentivando Lucia a fazer o mesmo.
Quando cravou os dentes na casca crocante, o sabor da maçã a fez arregalar os olhos, chocada. Ela nunca havia experimentado algo tão doce, puro e delicioso.
- É a melhor coisa que já provei! - Lucia disse em voz alta, quase eufórica.
Ela devorou a fruta com rapidez, tendo que se conter para não comer também as sementes. Quando estava prestes a pegar outra, sentiu uma pontada aguda e inesperada na barriga. Lucia levou a mão ao ventre
e olhou para baixo, franzindo a testa.
- O que foi isso? - murmurou.
- Você está bem? - Mia perguntou, preocupada.
A dor foi apenas momentânea, e Lucia a ignorou.
- Estou bem. Meu estômago deve apenas estar expressando gratidão por receber alimento depois de tanto tempo.
Lucia decidiu tirar forças daquela maçã, dos imortais que a olhavam com esperança - e não com medo - e da amizade de Timotheus e de Mia, enquanto esperava impacientemente para voltar para casa.
Era impossível avaliar a passagem dos dias em um lugar que estava sempre iluminado, mas Lucia desfrutou duas vezes de um sono profundo enquanto estava na Cidade de Cristal.
Depois Timotheus instruiu Mia a levá-la de volta para a torre. Lucia segurou a mão da nova amiga.
- Obrigada por me ajudar.
- Não. - Mia balançou a cabeça, encarando Lucia com tanta sinceridade que quase tirou seu fôlego. - Eu é que agradeço por ter vindo até aqui. Obrigada por ser alguém em quem podemos acreditar. Sei que
vamos nos reencontrar um dia.
- Espero que esteja certa. - Com relutância, Lucia soltou Mia e acompanhou Timotheus até a torre de cristal.
Dessa vez, as portas para onde ele a conduziu abriram para um lugar escuro e cavernoso.
- Estamos no subterrâneo - Lucia arriscou.
- Estamos.
Ela estava prestes a fazer outra pergunta quando viu, a uns quinze passos de distância, um objeto que brilhava com uma luz violeta. Quando se aproximaram, Lucia entendeu o que era.
- Um monólito - ela disse, boquiaberta. - Como o que havia nas montanhas.
Timotheus assentiu, os traços sombreados pela luz irregular.
- Existe um em cada um dos sete mundos. O meu e o seu são apenas dois deles.
- Sete? - Lucia o encarou. - Está dizendo que existem mais cinco mundos além dos nossos?
- Suas habilidades matemáticas são realmente impressionantes. - Ele arqueou a sobrancelha. - Sim, sete mundos, Lucia. Minha espécie foi criada para zelar por esses mundos antes de Damen destruir tudo o
que estimávamos. Agora apenas zelamos pelo seu mundo. - A expressão dele obscureceu ao citar o imortal perverso. - Esses monólitos foram criados para permitir a viagem entre os mundos. Damen drenou a magia
deles para poder transitar com facilidade entre os mundos quando quisesse. Essa destruição foi o que deixou as montanhas sem vida, e é a causa da transformação de Limeros em gelo e de Paelsia em pedra.
Lucia o encarou enquanto ele revelava a enorme peça do misterioso quebra-cabeça de Mítica.
- Por que, então, Auranos ainda é uma região bela?
- Por causa da deusa que eles adoravam, que alguns ainda adoram. A deusa que já foi uma imortal anciã, como eu.
- Cleiona.
Ele assentiu.
- Ela conseguiu proteger o reino que tinha reivindicado, enquanto Valoria não tinha conseguido fazer o mesmo. Às vezes parece que foi ontem que vi as duas pela última vez. Todos perdemos muito, e nunca
vamos recuperar... - Timotheus fez uma careta ao falar das deusas. Depois piscou várias vezes, como se precisasse clarear a mente. - Você está aqui há tempo suficiente, Lucia. Agora deve ir tentar deter
Kyan.
Lucia quase riu de seu tom severo de sempre.
- Acho que vou sentir falta de sua franqueza. E não vou tentar detê-lo, vou detê-lo.
- Espero, pelo bem de todos, que esteja certa.
Ela olhou para o monólito brilhante.
- Como posso usar isso para voltar?
- Pressione as mãos sobre a superfície e a magia de passagem fará o resto. - Quando Lucia hesitou, ele levantou uma sobrancelha. - Não diga que está duvidando da minha palavra.
- Se eu achasse que está mentindo para mim, você já estaria morto. - Um pequeno sorriso se formou no rosto dela quando ele arregalou os olhos. - Também sei ser sincera, Timotheus.
- De fato.
- Adeus - ela disse, pronta para partir. Pronta para voltar para casa, encontrar sua família e garantir que Kyan nunca mais prejudicasse nenhuma alma.
A expressão de surpresa de Timotheus desapareceu, substituída por uma que Lucia só conseguia descrever como de tristeza.
- Adeus, Lucia.
Ela pressionou a palma das mãos contra o monólito de cristal frio e brilhante. A luz que emanava dele logo se intensificou, transformando-se num brilho branco e puro. Lucia se esforçou para continuar pressionando
enquanto fechava bem os olhos.
No instante seguinte, estava caída no chão, sem fôlego. Tentando respirar e um tanto confusa, ela rapidamente levantou da terra seca e quebradiça e se virou para procurar Timotheus.
Mas ela não estava mais no Santuário. Uma rápida olhada ao redor deixou claro que tinha voltado ao lugar nas montanhas onde tinha lutado contra Kyan. Embora fosse dia, ela ainda reconhecia o local, e o
ar estava tão frio quanto da última vez em que estivera ali. Frio e carregado com uma sensação inquietante que ela sabia por instinto se tratar da morte iminente.
Damen, um imortal, tinha causado isso ao drenar a magia do monólito. Seu toque devia ter sido o suficiente para cobrir o monólito de pedras, ocultando sua magia por todos esses anos, até Kyan queimar a
pedra. Não havia nada ali - nenhum pássaro, nenhum mamífero, nem mesmo um único inseto rastejando sobre a terra. Não havia árvores nem arbustos de nenhum tipo, à exceção de um pequeno oásis onde ficava
o monólito.
Por um instante, ela sentiu tanto temor no coração que parecia ter certeza de que Kyan estivera ali o tempo todo, esperando seu retorno. Ela ficou paralisada, observando ao redor, os punhos cerrados e
prontos para lutar.
Mas não havia nada ali. Nem ninguém. Apenas Lucia.
E já tinha passado da hora de ela partir.
Ao caminhar pelo solo queimado repleto de rochas, ela encontrou, com um vislumbre de felicidade: a bolsa que pensara ter perdido. Nela, ainda havia moedas suficientes para pagar várias noites em uma hospedaria.
Continuando a caminhada, deparou com o buraco no chão onde Kyan havia explodido. No fundo da profunda depressão na rocha, alguma coisa brilhava, mesmo com a pouca luz que alcançava aquele ponto nas montanhas.
Nada nunca brilhava ali.
Lucia foi na direção da luz, hesitante, inclinando-se para pegar a fonte do estranho brilho: uma pedra lisa. Lucia tirou uma camada densa de cinzas da superfície. Cambaleou para trás, levando a mão à boca
quando viu o que havia embaixo.
Uma esfera de âmbar.
A prisão de Kyan não era maior do que a maçã que ela havia comido no santuário.
- Oh! - Ela ficou surpresa, virando a cabeça para todas as direções para, mais uma vez, ter certeza de que estava mesmo sozinha.
Ela levantou a esfera, semicerrando os olhos para tentar enxergá-la com a pouca luz do dia que conseguia passar por uma cortina de nuvens sobre as montanhas. O cristal de âmbar era todo transparente: não
tinha rachaduras, anormalidades nem imperfeições.
Antes, Lucia consideraria tal tesouro algo belo. Agora, não. Esse tesouro, não. Mas era um sinal de que estava saindo na frente, e sentia-se grata.
Se estivesse com o cristal, teria os meios para deter Kyan antes que ele colocasse os planos para destruir o mundo em ação.
Depois de se permitir um pequeno sorriso para comemorar a pequena vitória, Lucia seguiu seu caminho para sair das montanhas e iniciar uma viagem de muitas horas a oeste, rumo a um pequeno vilarejo que
conhecia, onde ela e Kyan tinham feito planos para adentrar as montanhas. Lá saberia se alguém tinha visto ou ouvido falar de Kyan desde a última vez em que estiveram no local.
Ela se redimiria dos erros do passado. Ter se aliado ao deus do fogo, de longe, havia sido o maior erro de todos.
Perto de anoitecer, Lucia finalmente entrou na hospedaria familiar e observou com cautela a taverna lotada, quase esperando encontrar Kyan tomando uma tigela de sopa.
Exausta da caminhada, ela ocupou a mesma mesa que tinha compartilhado com Kyan na manhã seguinte à que ela descobriu que estava grávida.
- Lembro de você - disse uma voz feminina. - Bem-vinda de volta.
Lucia olhou para a atendente que se aproximava da mesa.
- E lembro de você. Sera, não é?
A atendente tinha visto Lucia e Kyan juntos. Foi ela que contou a eles que as respostas que procuravam poderiam ser encontradas nas montanhas - e estava certa.
- Sim, esse é o meu nome - Sera disse com um sorriso. - Onde está seu belo amigo?
- Nos separamos durantes nossas viagens. Ele voltou desde que saímos daqui?
- Receio que não.
- Tem certeza?
- Pode acreditar, eu me lembraria dele. - A garota piscou. - Gostaria de uma bebida?
- Sim - ela disse, dando-se conta de repente de que estava com muita sede. - Vou querer... suco de pêssego.
- Só temos suco de uva.
- Pode ser.
- Mais alguma coisa? Algo para comer, talvez?
Lucia sentiu uma pontada na barriga ao ouvir a sugestão.
- Sim, seria ótimo.
Sera olhou para uma mesa cheia de homens barulhentos, que, Lucia agora via, vestiam uniformes verdes idênticos.
- Peço desculpas se demorar um pouco para servi-la hoje à noite - ela disse. - Sou a única por aqui, e preciso garantir que nossos outros clientes sejam bem atendidos. Talvez seja uma boa ideia mantê-los
bêbados e felizes, não acha?
- Acho que sim. - Lucia olhou para os homens com curiosidade. - Quem são eles?
Sera virou para ela, surpresa.
- Você saiu daqui há poucos dias. Com certeza deve saber sobre os kraeshianos.
Lucia lançou um olhar rápido para Sera.
- Kraeshianos?
Sera assentiu.
- Estamos sob ocupação kraeshiana, com milhares de homens enviados para cá para impor suas leis sobre toda Mítica, incluindo este pequeno vilarejo sem importância. Esses homens chegaram aqui ontem.
- Enviados pelo imperador Cortas? - O peito de Lucia ficava mais apertado a cada instante, até começar a sentir dificuldade para respirar.
Sera arqueou as sobrancelhas.
- Esses soldados me disseram que o imperador e dois de seus filhos foram mortos por um rebelde que foi capturado e punido. Apenas sua filha, Amara, sobreviveu. Ela é a imperatriz de Kraeshia... e de Mítica.
Pelo menos até seu irmão Ashur retornar de suas viagens, dizem.
O coração de Lucia quase parou. Ela agarrou a lateral da mesa com tanta força que achou que fosse parti-la ao meio.
Lucia se esforçou para controlar as emoções que irrompiam dentro de si. A pior coisa que poderia fazer no momento seria estragar seu disfarce perdendo o controle de sua magia e causando danos pelos quais
teria que pagar depois.
- E onde está o rei? - Lucia perguntou.
- Não sei.
Lucia se lembrou de ter ousado revelar sua magia na frente da princesa kraeshiana, mas Amara tinha agido com muita calma em relação àquilo. Até mesmo a encorajado. Lucia tinha decidido que lidaria com
quaisquer ramificações da confirmação dos rumores a respeito de sua magia da próxima vez que visse a garota, mas nunca mais aconteceu.
E agora Amara era imperatriz.
Havia algo extremamente errado, e ela precisava saber o que tinha acontecido com sua família.
- Sera - Lucia chamou, dissipando a névoa do choque em sua busca por respostas. - Você ouviu alguma coisa sobre o príncipe? O príncipe Magnus?
- Receio que as notícias sejam escassas por aqui, mas com todo esse sangue novo na região - Sera sorriu para a mesa de soldados kraeshianos -, estamos conseguindo algumas informações. Aparentemente, o
príncipe tentou roubar o trono do pai enquanto o rei estava fora, em Kraeshia. Ouvi dizer que ele foi executado por traição, junto com sua esposa.
Por um longo momento, Lucia só conseguiu encarar a garota.
- Não - ela finalmente disse, com voz falha.
Sera franziu a testa.
- O quê?
- Ele não pode estar... - ela disse, ofegante. - Ele não pode estar morto. - Lucia levantou, arrastando a cadeira. - Preciso encontrá-los... Meu pai. Meu irmão. Isso não está certo, nada disso. E ninguém
sabe o perigo real que está por vir. Ninguém sabe o tamanho do problema em que está metido.
Enquanto murmurava freneticamente, a mesa de soldados começou a olhar, um por um. Logo ela ganhou a atenção completa deles, e alguns se levantaram da mesa e se aproximaram.
- Está tudo bem, senhorita? - um dos soldados perguntou. Ele era o maior homem do grupo, com olhos acinzentados e cabelo castanho-escuro.
- Está tudo ótimo - Sera respondeu rapidamente, acenando e sorrido. - Não se incomodem com a moça. Ela só está muito cansada depois de uma viagem longa.
O soldado a ignorou, concentrando-se apenas em Lucia.
- Não veio aqui com planos de causar algum problema para a imperatriz, veio?
A imperatriz. A ideia de Amara ter tanto Kraeshia quanto Mítica sobre seu poder deixava Lucia com náuseas.
- Problema? - ela disse por entre dentes cerrados. - Espero que não. Mas vai depender da rapidez com que vocês e sua imperatriz decidirem sair de Mítica e nunca mais voltar.
O guarda riu e olhou para os compatriotas.
- E com certeza você, sozinha, vai nos obrigar a sair, não é?
Com cuidado, como se estivesse com medo de assustar uma fera, Sera tocou o braço de Lucia.
- Por favor, sente - ela sussurrou em seu ouvido. - Vou buscar sua comida. Esses soldados foram gentis conosco até agora e prometeram que a imperatriz Amara vai garantir um futuro brilhante para os paelsianos.
A imperatriz aprecia nosso vinho e tem um plano para começar a exportá-lo para o exterior. Logo vamos nos tornar tão prósperos quanto os auranianos!
- Promessas... - Lucia disse, tensa. - Promessas tolas, nada além de palavras. Sabe o que mais se faz com palavras? Mentiras.
- Garotinha - o soldado disse -, faça o que sua amiga está sugerindo e volte a sentar. Temos ordens de deter qualquer um com tendências rebeldes. Acho que não vai querer isso, não é?
Uma risada sombria saiu do fundo da garganta de Lucia.
- Garotinha - ela repetiu com desprezo. - Você não sabe com quem está falando.
O soldado riu também, abaixando-se para observar bem o rosto dela.
- Sei exatamente com quem estou falando. Apenas uma criança que, claramente, tomou vinho demais. Vou avisar uma vez só. Sente e não teremos problemas.
Lucia cerrou o punho direito, pronta para invocar o fogo. Ela transformaria aqueles homens insolentes em cinzas, sem se preocupar em avisar antes.
Esse reino pertencia aos Damora. Não a Amara Cortas.
Sera segurou as mãos dela.
- Por favor, faça o que ele está dizendo. Sente e não cause mais problemas.
- Você acha que isso é problema? Eu ainda nem comecei a causar...
E, em uma onda rápida e violenta, uma dor aguda explodiu no centro do corpo de Lucia. Ela gritou, achando, a princípio, que tinha sido perfurada por alguma coisa, e seu profundo lamento queimou sua garganta
quando ela segurou a própria barriga e caiu no chão.
- O que foi? - Sera perguntou, assustada.
- Meu... Ah, não. Não! - Lucia berrou, a agonia repentina era algo que não conseguia suportar.
E então o mundo à sua volta se transformou em escuridão.
Quando Lucia acordou, estava em uma sala escura, deitada sobre um catre duro. Sentada em uma cadeira a seu lado, estava Sera, segurando um pano frio sobre sua testa.
Lucia tentou levantar, mas não conseguiu. Seu corpo estava fraco, os músculos estavam doloridos como se tivesse tentado atravessar três reinos em um único dia.
Sera a observava preocupada.
- Achei que você fosse morrer.
Lucia a encarou, e as coisas terríveis que tinha descoberto na taverna começaram a voltar à sua mente em fragmentos irregulares e cortantes.
- Ainda estou viva. Acho.
- Ah, você está bem viva. E também tem muita sorte. Quando os kraeshianos chegaram ontem, havia um homem, um paelsiano que frequentava a taverna quase todas as noites, que enfrentou os soldados, contra
a ocupação. Adivinha o que fizeram para recompensar a coragem dele? Eles o afogaram em um balde de água. Depois disso ninguém mais ousou dizer nenhuma tolice.
Lucia lançou um olhar horrorizado para ela.
- Isso está errado. Aqueles soldados... Amara... não deviam estar aqui. Eles não podem estar aqui. Preciso detê-los.
- Acho que você tem coisas mais importantes para pensar como encontrar seu amigo, não é?
Ela observou a garota com atenção.
- Como sabe que encontrá-lo é tão importante para mim?
Sera suspirou, depois removeu o pano úmido. Ela o deixou ao lado de uma bacia, depois pegou um copo de água, que levou aos lábios de Lucia. Esquecendo momentaneamente a desconfiança em relação à preocupação
de Sera com Kyan, Lucia bebeu com avidez, grata por sorver o líquido frio, que tinha sabor de vida em sua garganta seca.
- Entendo por que pode estar zangada com ele - Sera disse. - Homens são idiotas e egoístas. Não são eles que precisam ser responsáveis. Eles podem se divertir com quem quiserem e depois ir atrás da próxima
garota que olhar por mais de um minuto.
- Acredite - Lucia disse em um tom contido de zombaria -, minha relação com Kyan não era desse tipo.
Sera pegou o copo de água vazio e colocou um pano limpo na testa de Lucia.
- Então você engravidou magicamente?
Lucia a encarou, boquiaberta.
- Como você...?
- Como eu sei? - Sera riu com nervosismo. - Eu ajudei você a se deitar. Tirei suas roupas para que não ficasse quente demais. A condição em que se encontra seria óbvia até mesmo aos olhos de um cego.
Lucia ficou encarando a garota por mais um tempo, enquanto Sera colocava a mão direita em sua barriga. Ela observou a mão de Sera e, quando viu a silhueta do próprio corpo coberto com o lençol, arregalou
os olhos.
Da última vez que tinha examinado sua barriga, ela estava reta, e a diminuição gradual de sua magia e os enjoos matinais eram os únicos indicativos da gravidez.
Mas algo havia mudado entre o instante em que encontrara o cristal de Kyan e entrara na taverna. Porque, no momento, Lucia olhava horrorizada para a mesma barriga, mas que não estava mais reta como quando
deixou o Santuário.
O que via era um grande inchaço no meio de seu corpo, uma barriga gigantesca. E pertencia a ela.

 

 


C O N T I N U A