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TEMPESTADE DE CRISTAL / Parte II
Series & Trilogias Literarias
11
JONAS
MAR PRATEADO
Devagar, a luz voltou a seu mundo, e Jonas abriu os olhos. Olivia o encarava com ternura e alívio.
- Fico feliz de ver que finalmente voltou para nós - ela disse.
Ele resmungou e estendeu os braços.
- Fiquei inconsciente por quanto tempo?
- Quatro dias.
Ele arregalou os olhos e sentou com um pulo.
- Quatro dias?
Ela fez uma careta.
- Você não ficou inconsciente o tempo todo, se isso melhora a situação. Acordou algumas vezes, delirante e agitado.
- Não, isso não melhora em nada, na verdade. - Jonas levantou do catre e cambaleou até o espelho. A estranha espiral ainda estava em seu corpo, agora muito mais intricada e com um desenho muito mais detalhado
do que o símbolo simples da magia do ar. Ele tinha esperanças de que não tivesse passado de um pesadelo.
- Eu tenho a marca de um Vigilante - ele disse.
- Então você sabe o que é.
- Phaedra tinha uma. - A Vigilante que tinha sacrificado a vida imortal para salvar a dele tinha provado quem (e o que) era ao mostrar sua marca a Jonas. Mas a dela era diferente. Tinha a mesma forma,
mas era uma marca dourada que se movimentava em círculos sobre a pele, como se quisesse provar suas origens mágicas. - E sei que você tem uma também.
- Tenho. - Olivia abriu um pouco o manto e mostrou um pequeno pedaço de uma marca dourada sobre a pele escura. Ele havia tido apenas alguns vislumbres da espiral, quando Olivia se transformava em falcão.
Jonas deu as costas para o espelho para encarar os olhos cor de esmeralda da Vigilante.
- Não vou implorar, Olivia. Vou simplesmente pedir para você, por favor, falar mais sobre isso, sobre a profecia que existe sobre mim. Tentei negar que fosse real, mas agora preciso saber. O que está acontecendo
comigo? Eu estou... - Ele se esforçou para verbalizar os pensamentos. - Estou me transformando em um de vocês?
A ideia soava tão absurda que Jonas se arrependeu de suas palavras assim que as proferiu. Mas o que mais poderia pensar?
Ela torceu as mãos e, por um instante, Jonas achou que Olivia pudesse tentar escapar, assumir a forma de falcão e sair voando para evitar suas perguntas. Mas, em vez disso, ela suspirou e sentou na beirada
do catre enquanto ele esperava em pé, tenso, perto da escotilha.
- Não exatamente - ela respondeu. - Mas você é, de fato, um mortal raro, Jonas Agallon. Tocado por nossa magia em dois momentos muito vulneráveis de sua vida, ambos quando estava muito perto da morte.
Tocado por mim, quando curei seu ombro, e por Phaedra, depois que foi atingido pelo soldado limeriano. Você não sabe como isso é atípico.
Eram dois momentos da vida que ele preferia esquecer.
- Talvez eu não saiba mesmo. Então me conte.
- Eu estava lá quando Phaedra deu a vida pela sua. Observei do alto de outra barraca na forma de falcão.
Ele respirou fundo.
- Estava?
Ela assentiu, séria.
- Observei horrorizada quando Xanthus tirou a vida dela, e a vi retornar para a magia de que todos nós fomos criados. E vi um pouco dessa magia entrar em seu corpo, apenas segundos depois do momento em
que você poderia ter morrido sem a intervenção dela.
- Eu... eu não senti nada.
- Não, não era para sentir. Não deveria sentir. E não faria diferença nenhuma se não fosse pela magia do próprio deus do fogo surgindo por perto. Acabou fortalecendo a magia de Phaedra dentro de você.
Mas não seria suficiente para isso acontecer. - Olivia apontou para a marca, que ele coçava sem perceber. - Eu usei magia da terra para curar seu ombro quando você estava à beira da morte mais uma vez,
e vi que a absorveu como uma esponja. Aquela magia ficou dentro de você, somando-se à de Phaedra, assim como Timotheus previra.
Jonas tentou entender, tentou negar, tentou impedir que seu coração batesse como as asas de um pássaro preso em seu peito. Mas então, de repente, lhe ocorreu que não deveria tentar negar uma notícia tão
incrível.
- Tenho elementia dentro de mim - ele disse com uma voz rouca. - Isso significa que posso usá-los para combater Kyan e expulsar Amara de Mítica. - Quanto mais ele considerava essa possibilidade, mais animado
ficava. - Preciso subir e contar para os outros. Eles devem estar tão confusos com o que aconteceu, com o que fiz com Felix... Mas isso é incrível, Olivia! Vai fazer toda a diferença.
Ele era um bruxo! Tinha negado a existência dos elementia e daqueles que os detinham durante toda sua vida, e agora tinha essa mesma magia na ponta dos dedos.
Olivia segurou seu braço quando ele foi na direção da porta.
- Não é tão fácil assim, Jonas. Timotheus não previu que você seria um praticante de magia, apenas um veículo para ela.
- Um veículo? Impossível. Você testemunhou o que fiz. Arremessei Felix pelo convés com... magia do ar, não foi?
- É verdade. Mas foi uma anomalia. Foi apenas um sinal de que a magia que existe dentro de você amadureceu. E aquele gasto de energia o deixou inconsciente durante quatro dias.
Jonas balançou a cabeça. A frustração tomou conta dele, acabando com sua empolgação.
- Não entendo.
Olivia afrouxou a mão que segurava seu braço.
- Eu sei, e peço desculpas pela confusão. Timotheus mantém seu conhecimento muito reservado, já que não confia em muitos imortais, nem mesmo em mim. Ele não compartilhou a extensão de sua profecia comigo
por medo de que eu contasse para você e você tentasse evitá-la. - Ela fechou a boca. - Já falei demais.
Ele resmungou.
- Você revelou o suficiente para me deixar louco de curiosidade e apreensão.
- Você não pode contar isso a ninguém.
- Não posso? - Ele apontou para a porta. - Todos me viram fazer aquilo no convés. O que devo fazer? Negar?
- Na verdade, sim. - Ela ergueu o queixo. - Expliquei a eles que fui a responsável. Que vi, do alto, Felix acertar você e que estou aqui justamente para protegê-lo. É claro que acreditaram em mim.
Jonas a encarou.
- Eles acreditaram que você interferiu com sua própria magia?
- Sim.
- E não posso falar nada sobre isso?
- Não. Nem uma palavra. - Ela ficou séria. - É perigoso demais. Alguns o perseguiriam se soubessem que é um mortal repleto de magia imortal.
- Magia imortal que não posso usar. - Ele observou o próprio punho, lembrando como havia brilhado no convés.
- Se não acredita em mim, você precisa ver com seus próprios olhos. - Ela apontou para a porta. - Tente abrir essa porta com a magia do ar que canalizou com tanta facilidade com Felix.
Parecia um desafio. Jonas olhou para além de Olivia e franziu a testa, concentrando-se, enquanto levantava a mão na direção da porta. Ele se esforçou tanto para tentar invocar a magia que existia dentro
de si que sua mão começou a tremer, seu braço começou a oscilar... mas nada aconteceu.
- Isso não significa nada - ele resmungou. - Só preciso praticar.
- Talvez - Olivia disse com delicadeza. - Só sei o pouco que me contaram.
Decepcionado, Jonas deixou o braço cair.
- Claro, ninguém ia querer que as coisas fossem fáceis para mim. Ser um bruxo, utilizar os elementia à vontade... Ninguém ia querer isso, não é?
- Na verdade, seria incrivelmente útil para você.
Jonas lançou um olhar feio para ela.
- Você não está ajudando.
- Sinto muito. - Olivia fez uma careta. - Os outros estão preocupados com você. Ficarão felizes em saber que finalmente acordou.
Jonas foi até a escotilha e observou a imensidão do mar.
- Quanto falta para chegarmos em Paelsia?
- Estamos quase chegando.
- Dormi quase o caminho todo. - Ele soltou um suspiro trêmulo ao tentar aceitar tudo o que havia aprendido. Negar seria perder um tempo que eles não tinham. - O que eu perdi?
- Não muito, na verdade. Taran continua afiando a espada na expectativa de matar o príncipe Magnus, Felix ainda está sofrendo com enjoos, Ashur passa a maior parte do tempo em seus aposentos meditando,
e Nic fica espreitando por aí. Quando o príncipe aparece, ele o observa de uma maneira um tanto curiosa.
- Pedi para o Nic ficar de olho em nosso príncipe residente. É melhor não confiar nos kraeshianos, nem mesmo naquele que diz não ser nosso inimigo.
Jonas suspirou enquanto apertava as amarras da camisa.
- Certo, estamos quase em Paelsia. Ótimo.
- Ótimo? - ela repetiu.
Ele assentiu com firmeza.
- Se existe uma profecia que exige que eu seja um veículo dos elementia, quero saber sobre ela o quanto antes. E isso não vai acontecer enquanto estivermos em alto-mar, vai?
- Não, não vai - ela concordou. - Mas, de verdade, Jonas, não sei nada além disso. Sinto muito.
Ele assentiu.
- Seja o que for, eu aguento. Tenho certeza de que já enfrentei coisa muito pior no passado.
Para isso, Olivia não tinha resposta.
Jonas tentou ao máximo não se preocupar.
12
MAGNUS
PAELSIA
Como a viagem dos Glaciares a Basilia levaria pelo menos três dias a cavalo, não havia tempo a perder com as paradas constantes de um rei moribundo e uma mulher velha. Selia arrumou uma carruagem fechada
para levá-la junto com seu filho.
Quando Magnus sugeriu que Cleo fosse com eles e não montada num cavalo para não enfrentar o terrível frio, foi reprimido com um olhar cortante.
Aquilo queria dizer "não".
Gaius os orientou por um caminho que permitia que passassem toda noite em uma hospedaria de alguma cidadezinha, onde descansavam, comiam e dormiam em quartos separados e trancados.
Sete longas noites se passaram sem Magnus poder dormir com Cleo em seus braços, mas todas as noites sonhava com ela e com o chalé na floresta. Nos momentos em que estavam acordados, ele preferia não compartilhar
essa informação com ela. Não queria que ficasse convencida demais por provocar tal efeito nele, então guardava para si o desejo constante de tocá-la e beijá-la.
No último vilarejo onde ficaram, Enzo e Milo foram encarregados de buscar roupas adequadas para todos se passarem por viajantes inofensivos de passagem por Paelsia. Conseguiram encontrar vestidos de algodão
para Selia e Cleo e calças de couro simples e túnicas de lona para si mesmos, Magnus e Gaius.
Magnus olhou a própria túnica creme com repulsa.
- Não tinha nada preto?
- Não, vossa alteza - Enzo disse.
- Cinza-escuro?
- Não. Só essa cor e azul-claro. Achei que não ia gostar muito do azul. - Enzo limpou a garganta. - Mas posso voltar à loja.
Ele suspirou.
- Não, tudo bem. Fico com essa mesmo.
Pelo menos o manto e as calças eram pretos.
Ele saiu, pronto para dar início à última parte da viagem rumo à cidade da costa oeste, e encontrou Cleo, parecendo uma linda camponesa com seu vestido simples, sorrindo para ele ao lado de seu cavalo.
- Você parece um paelsiano - ela comentou.
- Não precisa me insultar, princesa - ele resmungou, contendo um sorriso quando montaram os cavalos e começaram a andar.
Praticamente uma pequena eternidade depois - que na verdade não passou de meio dia - finalmente e felizmente chegaram ao seu destino.
Magnus já tinha ouvido muitas histórias sobre Basilia, a cidade mais próxima de uma capital que Paelsia tinha. A cidade atendia aos navios que visitavam o Porto do Comércio e os membros da tripulação ávidos
por desembarcar em busca de comida, bebida e mulheres.
As histórias eram verdadeiras.
À primeira vista - e ao primeiro cheiro - Basilia era superpovoada e fedia a dejetos humanos e putrefação. Havia dezenas de navios atracados no porto, com as tripulações inundando a costa e se misturando
nas ruas, tavernas, hospedarias, nos mercados e bordéis da cidade litorânea. E, ao que parecia, tão quente quanto Auranos no ápice do verão.
- Repulsivo.
Magnus viu que o rei Gaius tinha aberto a janela da carruagem para espiar o centro da cidade com aversão. Seus olhos estavam vermelhos, e os círculos escuros sob eles pareciam hematomas recentes em contraste
com a palidez da pele.
- Desprezo este lugar - ele comentou.
- Sério? - Magnus perguntou, conduzindo o cavalo ao lado da carruagem. - Acho encantador.
- Não acha, não.
- Acho. Eu gosto dessa... cor local.
- Você não mente tão bem quanto pensa.
- Acho que posso apenas aspirar chegar aos seus pés no quesito falsidade.
O rei olhou feio para ele, depois alternou o olhar para Cleo, que cavalgava em frente a Magnus e atrás dos guardas.
- Princesa, se lembro corretamente, foi em um mercado não muito longe desta cidade em que você esteve com lorde Aron e o filho do vendedor de vinhos que ele matou, não foi?
Magnus logo ficou tenso e observou a princesa esperando a resposta. Cleo demorou alguns segundos para responder, mas o príncipe podia ver a tensão em seus ombros pelo fino material do vestido.
- Isso faz muito tempo - ela disse finalmente.
- Imagine como as coisas teriam sido diferentes se você não tivesse ido atrás de vinho aquele dia - o rei continuou. - Nada seria como é agora, não é?
- Não - ela disse, olhando para trás. - Por exemplo, você não teria caído e quase morrido depois de perder seu reino para uma mulher. E eu não estaria vendo seu fracasso com tanta alegria no coração.
Magnus conteve um sorriso e olhou para o pai, aguardando a contestação.
A única resposta foi uma janela fechada, bloqueando a visão do rosto do rei.
A carruagem parou em uma hospedaria chamada Falcão e Lança que, apesar de um leve cheiro de suor misturado a almíscar, Magnus considerou o estabelecimento mais aceitável da cidade. O rei Gaius desceu da
carruagem com a ajuda de Milo e Enzo e entrou na hospedaria, seguido por Selia, e logo subornou o dono para expulsar todos os hóspedes para que o grupo real tivesse privacidade total.
Enquanto os hóspedes saíam com um desfile de resmungos, Magnus assistia à Cleo observar a sala de convivência da hospedaria paelsiana com reprovação. Era um cômodo grande, com teto baixo, com cadeiras
de madeira desgastadas e mesas lascadas, onde os hóspedes podiam comer e passar o tempo.
- Não se enquadra no seu padrão de qualidade? - Magnus perguntou.
- Até que está bom - ela respondeu.
- Não é uma hospedaria auraniana com camas de pluma, lençóis importados e urinol dourado. Mas me parece aceitavelmente limpa e confortável.
Cleo virou as costas para uma mesa na qual alguém havia entalhado as próprias iniciais. Um sorriso brilhante passou por seus lábios.
- Sim, para um limeriano, acho que sim.
- De fato. - Os lábios da princesa eram uma distração grande demais, então Magnus virou e se juntou a seu pai e sua avó, que estavam parados perto das grandes janelas, olhando para os estábulos onde os
cavalos estavam sendo acomodados.
- E agora? O que vamos fazer? - Magnus perguntou à avó.
- Pedi para a esposa do dono da hospedaria ir até a taverna no fim da estrada e entregar uma mensagem pedindo para uma velha amiga minha nos encontrar aqui - Selia disse.
- A senhora não poderia ter ido?
- Ela talvez não me reconhecesse. Além disso, não é uma conversa que ouvidos curiosos podem escutar. A magia que procuro deve ser protegida a qualquer custo. - Ela encostou a mão sobre o braço de Gaius.
Havia um brilho de suor na testa do rei, que estava apoiado na parede como se fosse a única coisa que o mantivesse de pé.
- E o que devemos fazer até ela chegar? - Gaius perguntou com uma voz enfraquecida substancialmente desde a chegada.
- Você vai descansar - Selia respondeu.
- Não há tempo para descanso - ele disse com raiva. - Talvez eu saia para procurar algum carpinteiro por perto para fazer um caixão para me transportar de volta para Limeros.
- Por favor, pai - Magnus disse, permitindo um pequeno sorriso. - Fico feliz em fazer isso por você. Deve fazer o que minha avó pediu e descansar.
O rei olhou feio para ele, mas não falou nada.
- Vou levá-lo ao seu quarto. - Selia envolveu o braço no filho, conduzindo-o pelo corredor na direção da escadaria, e subindo para os quartos no segundo andar.
- Excelente ideia - Cleo disse, bocejando. - Também vou subir para o meu quarto. Por favor, avise quando a amiga da sua avó chegar.
Magnus esperou que ela saísse, depois fez um sinal para Enzo segui-la. Ele pedira para o guarda tomar cuidado extra com a proteção da princesa. Enzo era um dos poucos em quem Magnus confiava para a tarefa.
- O que devo fazer? - Milo perguntou ao príncipe.
Magnus passou os olhos pelo salão, que também continha uma pequena estante com livros velhos, nada parecida com a vasta seleção que passou a valorizar na biblioteca do palácio auraniano.
- Patrulhe os arredores - Magnus disse, pegando um livro aleatório da estante. - Certifique-se de que ninguém tenha percebido que o antigo rei de Mítica está temporariamente por aqui.
Milo deixou a hospedaria e Magnus tentou se concentrar na leitura de um volume sobre a história da produção de vinho em Paelsia, que não mencionava nada sobre a magia da terra que com certeza era responsável
pelo sabor da bebida, ou sobre as leis que proibiam sua exportação para outros lugares, à exceção de Auranos.
Depois de trinta páginas inúteis, a esposa do dono da hospedaria, uma mulher pequena que parecia ter um constante sorriso nervoso estampado no rosto, voltou com outra mulher mais velha, com rugas em volta
dos olhos e da boca, de aparência extremamente comum, usando um vestido antiquado e desmazelado. Magnus pensou que devia ser a mulher que Selia tinha mandado chamar.
Quando a esposa do dono da hospedaria desapareceu na cozinha, a mulher mais velha observou o local que parecia vazio, até seu olhar recair sobre Magnus.
- Então a senhora é a resposta para todos os nossos problemas, não é? - ele perguntou.
- Depende de quais são seus problemas, meu jovem - ela respondeu sem rodeios. - Gostaria de saber por que me chamou aqui.
- Não foi ele, fui eu - Selia disse, descendo a escadaria de madeira do outro lado do corredor que levava aos quartos, no segundo andar. - E é porque estou em busca de uma velha amiga. Você me reconhece
depois de todos esses anos?
Por um momento profundamente silencioso e agonizantemente longo, a mulher encarou Selia com uma mistura estranha de fogo e gelo no olhar. Justo quando Magnus começou a temer que tivessem cometido um erro
ao confiar em sua avó, a mulher abriu um grande sorriso, com rugas de alegria aparecendo no canto dos olhos.
- Selia Damora - ela arrulhou com um tom de voz muito mais gentil do que ao entrar na hospedaria. - Pela deusa, como senti sua falta!
As duas mulheres correram uma na direção da outra e se abraçaram.
- Devo chamar os outros? - Magnus perguntou. Quanto antes sua avó conseguisse o que precisava da mulher, mais rápido poderiam sair daquele lugar.
- Não, isso não precisa ser discutido em grupo - Selia respondeu sem tirar os olhos da amiga. - Também senti sua falta, Dariah.
- Onde esteve durante todo esse tempo? Já perdi a conta de quantos anos se passaram!
- O que importa é que estou aqui agora. Para ser franca, estou um pouco surpresa por você ainda estar em Basilia.
- Nunca poderia abrir mão do lucro da minha taverna, cada ano é melhor do que o anterior. Tantos marinheiros com dinheiro para gastar e sede para matar...
- Muitos tipos de sede, sem dúvida.
Dariah piscou.
- Exatamente. - Ela se virou para Magnus. - E quem é esse jovem?
- É meu neto, Magnus. Magnus, esta é minha amiga Dariah Gallo.
- Muito prazer. - Magnus forçou o melhor sorriso que conseguiu, mas sabia que pareceria mais uma careta.
- Minha nossa! Seu neto ficou tão alto e bonito!
Selia sorriu.
- Sim, os netos às vezes fazem isso quando chegam aos dezoito anos.
Dariah passou os olhos enrugados por Magnus de alto a baixo.
- Se eu fosse mais nova...
- Se fosse mais nova, teria que lutar com a jovem esposa dele por sua atenção.
Dariah riu.
- E talvez eu vencesse.
Magnus teve uma vontade repentina de voltar à leitura do livro sobre vinho paelsiano.
Selia juntou-se à amiga nas risadas e depois voltou a adotar um tom sério, porém amigável.
- Não vim a Basilia apenas para reencontrar uma velha amiga. Preciso de informações sobre como conseguir a pedra sanguínea.
Dariah arregalou os olhos.
- Minha nossa, Selia, você não perde tempo.
- Não tenho tempo a perder. Meu poder foi diminuindo no decorrer dos anos e meu filho está morrendo.
No instante silencioso que se seguiu, Magnus ficou quieto. Essa pedra, se fosse real, parecia algo que poderia ajudá-lo a aumentar seu poder, como a Tétrade.
Selia levou Dariah na direção da estante. Fez sinal para que ela se sentasse em um banco de madeira ao seu lado, depois segurou as mãos da outra bruxa.
- Não tenho escolha. Preciso dela.
- Você sabe que não está comigo.
- Não está. Mas você sabe com quem está.
Dariah balançou a cabeça.
- Não posso fazer isso.
- Estou pedindo para você entrar em contato com ele. Sei que pode encontrá-lo. Ele precisa vir o mais rápido possível.
Mil perguntas surgiram na cabeça de Magnus, mas ele permaneceu em silêncio, escutando.
Um poder como esse entregue diretamente em suas mãos. Parecia muito mais simples do que o processo complicado de encontrar a Tétrade.
A expressão da bruxa se tornou sombria.
- Ele nunca vai permitir que você fique com ela, nem mesmo por um instante.
Selia apertou ainda mais a mão da amiga.
- Deixe que eu lide com ele quando chegar aqui.
- Eu não sei...
Selia semicerrou os olhos.
- Sei que já faz muito tempo, mas sinto que terei que mencionar o favor que você me deve. Favor que prometeu retribuir por completo.
Dariah ficou encarando o chão.
Magnus observava, quase sem respirar. Aos poucos, a bruxa levantou os olhos, o rosto pálido. Ela concordou com um pequeno aceno de cabeça.
- Vou levar um tempo para atraí-lo para cá.
- Ele tem três dias. Será um problema?
A bruxa ficou tensa ao levantar.
- Não.
- Obrigada. - Selia levantou e deu dois beijos no rosto de Dariah. - Eu sabia que você ia me ajudar.
O sorriso de quando se cumprimentaram agora já não passava de uma lembrança.
- Aviso assim que ele chegar.
Dariah não demorou - lançou um último olhar para Selia e Magnus e deixou a hospedaria.
- Bem... - Magnus disse depois que tudo voltou a ficar em silêncio. - A senhora deve ter feito um belo favor para sua amiga.
- De fato foi. - Selia olhou para Magnus com um pequeno sorriso no rosto. - Agora vou ver como seu pai está. A saúde dele é minha única preocupação no momento. Quando minha magia estiver restaurada e ele
estiver bem novamente, podemos enfrentar os outros obstáculos que estão em nosso caminho.
- Vou me esforçar para ser paciente - Magnus disse, sabendo que com certeza fracassaria.
Àquela altura a noite já tinha caído, e Magnus se retirou para seu pequeno quarto. Havia uma cama de tamanho normal, e não os catres inaceitáveis do quarto comunitário no fim do corredor. A janela tinha
vista para a rua iluminada com lampiões e ainda movimentada, com cidadãos e visitantes mesmo depois de anoitecer.
Ele ouviu uma batida fraca na porta.
- Entre - Magnus disse, sabendo que podia ser apenas uma das quatro pessoas com quem havia chegado a Paelsia.
A porta se abriu devagar e, quando o visitante se revelou, o coração de Magnus começou a bater mais rápido. Cleo o encarava.
Ele levantou e a encontrou na porta.
- A amiga da minha avó esteve aqui.
- Já? - Ela arqueou as sobrancelhas. - E?
- E... - Ele balançou a cabeça. - Parece que seremos obrigados a esperar mais três dias por aqui.
- Mas ela vai conseguir a pedra sanguínea?
- Sim - Magnus respondeu. - Reencontrei minha avó há pouco tempo, mas ela me parece o tipo de mulher que consegue praticamente tudo o que quer.
- E tudo para essa pedra mágica salvar a vida de seu pai - Cleo disse sem nenhuma emoção, mas com uma dureza no fundo dos olhos azuis.
- Ele não merece viver - Magnus afirmou, concordando com o que não tinha sido dito. - Mas essa pode ser uma medida necessária para alcançarmos nosso objetivo maior.
- Encontrar Lucia.
- Sim. E acabar com a sua maldição.
Cleo assentiu.
- Suponho que não haja outra forma.
Ele a observou cauteloso.
- Você veio ao meu quarto apenas em busca de informações ou tem mais alguma coisa que deseja esta noite?
Cleo levantou o queixo para encarar diretamente em seus olhos.
- Na verdade, preciso de sua ajuda.
- Com o quê?
- Todas essas andanças a cavalo acabaram com meu cabelo.
Magnus levantou uma sobrancelha.
- E você veio aqui para pedir minha ajuda para cortá-lo e, assim, ele deixar de ser um problema?
- Como se você fosse permitir. - Ela riu. - Você é obcecado pelo meu cabelo.
- Eu não chamaria de obsessão. - Ele enrolou um cacho daquela seda dourada no dedo. - É mais uma distração, muitas vezes dolorosa.
- Peço desculpas por seu sofrimento. Mas você não vai cortar meu cabelo, nem hoje, nem nunca. A esposa do dono da hospedaria foi gentil e me deu isso. - Ela mostrou uma escova de cabelo com cabo prateado.
Magnus pegou o objeto da mão dela, observando-o com um olhar examinador.
- Você quer que eu...?
Cleo assentiu.
- Escove meu cabelo.
A ideia era ridícula.
- Agora que fui obrigado a me vestir como um paelsiano comum você está me confundindo com um criado?
Ela lançou um olhar determinado para Magnus.
- Eu não poderia pedir para Milo ou Enzo... ou, pelo amor da deusa, para seu pai ou sua avó me ajudarem.
- E quanto à esposa do dono da hospedaria?
- Está bem. - Cleo arrancou a escova da mão dele, fazendo careta. - Vou pedir a ela.
- Não, não. - Ele soltou um suspiro, achando graça. - Eu ajudo.
Sem hesitar, ela devolveu a escova a Magnus.
- Fico feliz.
Ele abriu caminho para deixá-la passar. Cleo entrou, sentou na beirada da cama e olhou para ele cheia de expectativa.
- Feche a porta - ela disse.
- Não é uma boa ideia. - Magnus deixou a porta entreaberta e lentamente sentou ao lado dela. Meio sem jeito e receoso, como se estivesse prestes a limpar um animal pela primeira vez, ele levou a delicada
escova aos cabelos dela.
- Nunca fiz isso antes.
- Para tudo existe uma primeira vez.
Que cena ridícula deve ter sido: Magnus Damora, filho do Rei Sanguinário, escovando o cabelo de uma jovem a seu pedido.
E ainda assim...
Sempre que Magnus assumia uma tarefa, preferia ser dedicado, usando suas habilidades da melhor maneira possível. Ele se empenhava da mesma forma naquele momento, ao pegar uma mecha do longo e sedoso cabelo
de Cleo e deslizar a escova por ela. O calor das madeixas passava entre seus dedos, causando um arrepio prazeroso em suas costas.
- Você tem razão - ele disse em voz baixa. - Está terrivelmente embaraçado. Acho que de modo irreparável.
Magnus estava apenas provocando Cleo - seu cabelo estava perfeito, como sempre foi -, mas então ele chegou ao primeiro nó.
Ela se encolheu.
- Ai.
- Desculpe. - Ele ficou paralisado, mas depois franziu a testa. - Mas você me pediu para fazer isso.
- Sim, eu sei! - Ela suspirou. - Por favor, continue. Estou acostumada a ser torturada por minhas criadas, e elas estão acostumadas a ignorar meus gritos de dor. Você não vai conseguir me machucar mais.
Só Nerissa tem capacidade de fazer isso sem causar dor.
- Sim, ouvi falar das habilidades de Nerissa - Magnus comentou, sem conseguir conter um sorriso. Agora, tendo uma imagem mais completa do histórico de penteados de Cleo, ele encarou a tarefa com mais determinação.
- Tanto cabelo, tantas oportunidades para formar nós... Por que as mulheres se dão ao trabalho?
- Talvez eu devesse fazer tranças, como uma líder paelsiana?
- Sim, imagino que seria um estilo adequado a uma princesa auraniana, mesmo quando forçada a usar um horroroso vestido de algodão - ele respondeu com ironia, sem deixar transparecer como estava se divertindo
com aquela imagem. - Todas as garotas de Mítica iam querer copiar. - Com o maior cuidado possível, ele foi passando a escova por outra parte do cabelo que parecia um ninho de passarinho amarelo-claro.
- Você precisa saber que pretendo reivindicar a pedra sanguínea para mim.
- Eu já imaginava - ela respondeu.
Aquilo o surpreendeu.
- Imaginava?
Cleo assentiu, e os cabelos escaparam das mãos de Magnus, cobrindo a tentadora nuca dela.
- Vi em seus olhos quando Selia mencionou a pedra. Foi o mesmo olhar que vi em seu pai.
- E que olhar é esse?
- Não importa.
Magnus largou a escova. Com gentileza, tocou Cleo pelos ombros até praticamente fazê-la virar de frente para ele, depois segurou seu queixo com cuidado.
- Importa, sim. Que olhar eu e meu pai compartilhamos?
Ela o encarou nos olhos, cautelosa.
- Um olhar frio de ganância, como se fossem capazes de matar pela pedra.
- Entendo.
Cleo analisou o rosto dele, como se procurasse respostas.
- Naquele momento, você parecia tão frio quanto seu pai. E eu... eu não gostei.
A vida toda, disseram que ele se parecia muito com seu pai - tanto fisicamente quanto em temperamento. Com o tempo, ele aprendeu a não refutar as comparações, embora nunca tivessem deixado de incomodá-lo.
- Devo admitir, descobri há pouco tempo que preciso ser como meu pai. Há certas situações que praticamente exigem que eu seja o mais frio e brutal possível. Se eu fosse derramar lágrimas por cada vida
que tirei no último ano, já estaria seco como uma casca de árvore. Então, sim, acho que sou como meu pai em muitos sentidos.
- Não - Cleo sacudiu a cabeça. - Não é possível.
- Por que está dizendo isso?
- Sinceramente? - Ela chegou mais perto, segurando seu rosto entre as mãos. - Porque eu nunca quis fazer isso com seu pai.
Ela roçou os lábios de leve nos dele. Um pequeno gemido de tortura emergiu do fundo da garganta de Magnus enquanto ele se forçava a cerrar os punhos para não a agarrar no mesmo instante.
- Princesa...
- Cleiona... - ela o corrigiu, os lábios ainda a uma distância perigosa. - Embora eu precise admitir que já não gosto tanto de ter recebido o nome de uma imortal que roubou e matou em nome do poder.
- Verdadeiros líderes costumam ser implacáveis o suficiente para roubar e matar. Se não o fizerem, outra pessoa o fará.
- Uma filosofia encantadora e, receio, muito verdadeira. Mas talvez possamos pensar em outro nome para você se referir a mim quando estivermos juntos.
Ele arqueou a sobrancelha.
- Vou pensar nisso.
- Ótimo. - Ela mordeu o lábio, chamando atenção de novo para sua boca. - Agora, feche a porta. Com chave.
- Essa é uma sugestão muito, muito perigosa.
- Ou deixe aberta. Talvez eu não me importe. - Cleo o beijou mais uma vez, abrindo os lábios. Ele sentiu sua compostura e seu comedimento se esvaindo em uma velocidade perigosa quando a língua dela encostou
na sua.
- Realmente não quero dizer não - ele sussurrou junto aos lábios dela.
- Então não diga.
Magnus gemeu de novo quando as mãos dela desceram por seu peito e por baixo de sua túnica, deslizando sobre seu abdome e tórax sem nenhuma barreira. Ele a agarrou pela cintura e a pressionou na cama, cobrindo-a
por completo com o próprio corpo. Cleo era tão pequena, mas, ainda assim, tão forte e apaixonada.
Como um mundo insensível pôde criar uma criatura tão linda? Se a beleza dela não fosse um presente da deusa, sem dúvida tinha sido um presente da mãe...
De repente, Magnus levantou em um pulo, cobrindo a boca com o dorso da mão.
- O que foi? - Cleo perguntou assustada, o rosto corado.
Ele ficou em pé e pegou seu manto.
- Preciso de uma bebida. Vou dar uma olhada na taverna no fim da estrada.
Cleo ficou deitada, observando-o, com os cachos dourados embaraçados caídos sobre os ombros até a cintura.
Profunda e dolorosamente tentadora.
- Eu entendo - ela disse em voz baixa.
Ele estava prestes a sair sem mais nenhuma palavra, mas virou-se para ela e disse:
- Antes de sair, quero que saiba de uma coisa. No dia em que essa maldição for quebrada, prometo que a porta de qualquer quarto em que estivermos será trancada, e não vou deixar nada nos interromper.
Com isso, Magnus virou as costas e a deixou lá, olhando para ele.
Sim, ele precisava desesperadamente de uma bebida.
- Vinho - Magnus resmungou para o atendente quando entrou na taverna pobre, porém animada, conhecida como A Videira Púrpura. Ele colocou várias moedas sobre o balcão. - Fique atento e complete meu copo
sempre que notar que está vazio - ele instruiu. - E nada de conversa.
O atendente abriu um sorriso forçado, depois recolheu as moedas do balcão com ganância, guardando-as em uma bolsa velha, caindo aos pedaços.
- Muito bem.
Ele fez o que Magnus pediu e prestou muita atenção ao nível de líquido da taça. Quando Magnus começou a beber gole após gole do doce vinho paelsiano, a noite começou a ficar muito mais clara. Da última
vez que bebera vinho, tinha voltado para o palácio limeriano e encontrado sua esposa fazendo um discurso. Ela logo foi interrompida por inimigos que quase não o deixaram escapar com vida. Depois daquela
experiência, ele tinha considerado renunciar completamente à bebida.
A visita de Cleo a seu quarto naquela noite com certeza o obrigava a revogar aquela promessa.
- Nossa atração de hoje vai deixá-lo mais animado, amigo - disse o atendente, apesar de Magnus ter pedido silêncio. Magnus estava prestes a repreendê-lo quando o homem indicou com a cabeça o meio da taverna.
- Prometo que a Deusa das Serpentes será uma imagem espetacular para os olhos.
Deusa das Serpentes? Magnus revirou os olhos e apontou para a própria taça.
- Mais.
Alguém do outro lado da enorme taverna pediu silêncio para a multidão vociferante enquanto o atendente servia mais vinho para Magnus.
- Todos venerem nossa bela residente! - o homem berrou do outro lado do estabelecimento. - Curvem-se diante de seu incrível poder! E saúdem a Deusa das Serpentes!
A multidão reagiu com gritos e assovios quando uma jovem de cabelo escuro, pouca roupa e uma cobra pendurada no pescoço apareceu sobre o pequeno palco. Ao lado do palco havia um trio de músicos que começou
a tocar uma canção exótica que, para Magnus, soava mais selvagem do que encantadora. Quando a música começou a crescer, a jovem passou a se contorcer no que poderia ser considerado um tipo de dança, mas
para Magnus parecia mais a oferta de uma cortesã.
Ele esvaziou o copo sem saber ao certo quantas vezes tinha repetido o movimento desde que chegara, mas não importava. Não agora que as coisas pareciam tão melhores do que antes, quando o desejo por Cleo
quase o cegou diante do perigo.
Talvez eles pudessem dividir um quarto, ele pensava enquanto assistia àquela mulher estranha se sacudir pelo palco. Talvez um elixir para evitar a gravidez fosse proteção suficiente.
Ou talvez ele devesse se concentrar no fato de seu reino ter sido roubado, seu pai estar à beira da morte enquanto sua avó tenta salvá-lo com uma pedra mágica, sua irmã estar aliada com um homem que pretendia
conquistar Mítica à base do fogo, e Cleo carregar uma maldição. O fato de ele estar enlouquecendo de desejo por sua esposa de fato era a menor de suas preocupações.
De repente, alguma coisa chamou sua atenção: um lampejo de cabelo ruivo. Aquela cor de cabelo era mais rara em Paelsia do que a do cabelo de Cleo. Ele não conseguiu deixar de se lembrar de Nicolo Cassian,
a única pessoa que ele conhecia com aquela cor infeliz de cabelo.
Magnus riu ao pensar naquilo. Não, Nic devia estava em segurança em Kraeshia - ou nem tão seguro assim, na verdade, mas Magnus não se importava. O idiota tinha se voluntariado para se juntar a Jonas em
sua missão fracassada de matar o rei.
Ele voltou sua atenção para a Deusa das Serpentes. Quando pensou que estava começando a entender o ritmo de seus movimentos, ela parou, fazendo um sinal para os músicos pararem de tocar.
- É você? - ela perguntou. O salão agora estava em silêncio. A Deusa das Serpentes estava claramente se dirigindo a alguém específico, mas Magnus não conseguia ver de onde estava. Ele só conseguia ver
a crescente empolgação no rosto pintado da dançarina enquanto sua expressão transparecia cada vez mais certeza. - Jonas! - ela gritava agora com mais confiança. - Jonas, é você mesmo? Meu querido, achei
que estivesse morto!
Jonas?
Devia ser mais uma estranha coincidência.
A dançarina desceu do palco e se embrenhou no meio da multidão, de onde puxou um jovem de cabelo escuro.
Magnus ficou paralisado. Ele esticou o pescoço, tentando ver por entre as cabeças dos outros clientes. A dançarina jogou os braços em volta do jovem, rodopiando abraçada a seu visitante, até que ele se
virou na direção de Magnus.
Chocado e boquiaberto, Magnus ficou observando fixamente aquela cena.
Era Jonas Agallon. Ali, na mesma taverna.
- Quem diria? - disse uma voz familiar ao lado dele, verbalizando seus próprios pensamentos. Uma onda de desgosto tomou conta de Magnus antes mesmo de se virar e descobrir o que já sabia: aquele ruivo,
Nicolo Cassian, estava bem ao lado dele. - Você!
Nic cutucou o ombro dele, deixando escapar uma gargalhada quando derramou um pouco de cerveja de sua enorme caneca.
- Parece que o destino está finalmente lhe dando o troco, não acha, vossa alteza? E fico mais do que feliz de testemunhar isso.
- Estou vendo que sua visita a Kraeshia não ajudou a diminuir seu charme - Magnus disse, espantado por ter bebido a ponto de arrastar as palavras tanto quanto Nic.
Nic sorriu, mas seus olhos desfocados não demonstravam nenhum humor.
- Príncipe Magnus Damora, gostaria que conhecesse um amigo meu.
Irritado pelo uso de seu nome em um estabelecimento público, Magnus virou, esperando encontrar algum rebelde qualquer. Mas, em vez disso, encontrou um rosto que só via em pesadelos.
- Theon Ranus - ele exclamou. O calor agradável e o formigamento proporcionado pelo vinho desapareceram em um instante, deixando-o profunda e desoladamente frio ao encarar aquela aparição.
- Está enganado - disse o jovem, um lembrete fatal da primeira pessoa que Magnus havia matado na vida. Com um olhar frio repleto apenas de obstinação e ódio, ele puxou uma faca e a colocou junto à garganta
de Magnus. - Sou o irmão dele, seu filho da puta.
13
CLEO
PAELSIA
- Aonde está indo, princesa?
As palavras a fizeram parar na porta principal da Hospedaria Falcão e Lança. Cleo olhou para trás e viu Enzo parado nas sombras.
- Vou à taverna no fim da estrada - ela disse. - Não que seja da sua conta.
- Está tarde.
- E...?
Enzo endireitou os ombros.
- Acho que seria melhor ficar aqui em segurança, princesa.
- Aprecio sua opinião, mas discordo. Magnus está lá. Estou surpresa, e um pouco consternada, por você não ter ido junto. E se ele for reconhecido?
- O príncipe deixou bem claro que meu único dever é garantir sua segurança, princesa.
Ela piscou rápido, como se tentasse disfarçar a surpresa daquela revelação interessante.
- Sério? Bem, isso torna as coisas muito mais fáceis. Você virá comigo buscar o príncipe e garantir que nenhum de nós corra perigo.
Cleo não lhe deu tempo para argumentar ao virar as costas e sair da hospedaria, deixando a porta aberta para Enzo segui-la e puxando o capuz do manto para cobrir o cabelo e proteger o rosto.
Enzo a seguiu sem dizer mais nada enquanto Cleo prestava atenção nas pessoas na rua, nas carruagens que passavam, no ruído do casco dos cavalos batendo na estrada de cascalho. Ela seguiu o som das risadas
embriagadas e da música para chegar à taverna que sem dúvida tinha sido o destino de Magnus. Sobre as grandes portas de madeira havia uma escultura de bronze de alguns cachos de uva em uma videira.
Ela leu a placa:
- A Videira Púrpura. Que nome apropriado para uma taverna em Paelsia. E bastante óbvio.
O príncipe gostava tanto do sabor do vinho que não se importava com o que aconteceria se alguém o reconhecesse. Magnus adorava tanto beber que estava disposto a arriscar ser morto no meio de um bando de
paelsianos. E que jeito idiota de morrer seria, Cleo pensou.
- Já ouvi falar desse lugar - Enzo disse, observando a entrada. - Nerissa já trabalhou aqui atendendo mesas.
Ela levantou uma sobrancelha.
- É mesmo?
Ele assentiu.
- Ela disse que foi uma experiência interessante.
- Eu não fazia ideia de que ela tinha morado em Paelsia.
- Nerissa morou em todos os lugares, ao que parece. Diferente de mim, que até agora nunca tinha me aventurado para fora de Limeros. Ela deve me achar tedioso.
- Posso garantir que ela não acha nada disso.
Ouvir Enzo falar de sua amiga fazia o coração de Cleo doer. Ela não tinha dúvidas de que Nerissa era capaz de se cuidar, melhor do que qualquer outra garota - e possivelmente garoto - que conhecia, mas...
Cleo não conseguia deixar de se preocupar com a segurança dela. Odiava a ideia de que Nerissa pudesse correr perigo enquanto era forçada a trabalhar perto de Amara.
Cleo respirou fundo ao passar pelas portas com Enzo. Dentro da taverna havia pelo menos duzentos clientes fedorentos e sujos.
Ela observou os rostos, procurando Magnus na multidão.
Aquela taverna era diferente de todas que já havia visto em suas duas visitas anteriores a Paelsia. Seu conhecimento da região se limitava a dois mercados pobres, vilarejos decrépitos e uma vasta extensão
de terras desertas.
E os galpões trancados de rebeldes raivosos e vingativos, ela lembrou a si mesma.
O lugar, apesar do interior rústico e decadente, parecia pertencer a Pico do Falcão, maior cidade de Auranos. Iluminando o espaço enorme havia dezenas e dezenas de velas e lampiões. No teto alto, várias
rodas de madeira acomodavam mais velas. O chão era de terra batida; as mesas e cadeiras eram feitas de madeira mal esculpida.
À esquerda de Cleo havia um pequeno palco, sobre o qual uma jovem de cabelo preto e com faixas douradas pintadas sobre a pele bronzeada rebolava de uma forma bastante provocativa. Em volta de seu pescoço
carregava uma jiboia enorme, do tipo que Cleo só tinha visto em livros ilustrados.
- Enzo, por favor, apenas me ajude a procurar Magnus. Comece pelas áreas com mais vinho.
- Sim, vossa alteza.
Cleo se cobriu melhor com o capuz do manto para esconder o cabelo e tentou ignorar os olhares atravessados da maioria dos brutamontes que passavam por ela. Quando sentiu alguém apertar seu traseiro, virou
para dar um soco no ofensor, mas acertou apenas o ar.
Furiosa, ela tentou ver quem a havia tocado no meio da multidão, mas ficou paralisada quando ouviu alguém gritar um nome que ela conhecia.
- Jonas! - Era a mulher-cobra, interrompendo a apresentação para correr na direção de um jovem que estava na plateia. - Jonas, é você mesmo?
Cleo, de olhos arregalados, se virou na direção do palco.
Jonas tinha voltado de Kraeshia. E, de todos os lugares de Mítica onde poderia estar, estava ali!
Como era possível?
Ela se virou para Enzo, mas outro rosto chamou sua atenção. Um jovem caminhava pela multidão, movendo-se na direção oposta ao mar de rostos virados para o palco.
Cabelo cor de bronze, pele morena, alto, músculos definidos...
Ela só conseguiu observar, certa de que seus olhos a enganavam.
- Theon - ela sussurrou o nome antes preso na garganta.
Ela então se lembrou de um tempo em que tudo parecia claro - ela o amava, e nada mais importava. Nem o posto dele, nem a reprovação de seu pai, nem o modo austero como Theon tinha olhado para ela antes
de beijá-la, marcado pelo medo de pensar que poderia perdê-la para sempre.
E depois o som do casco dos cavalos quando Magnus e seus soldados chegaram.
O orgulho em seu coração quando Theon enfrentou os homens de Magnus e venceu.
E o horror quando viu a vida se esvair dos olhos dele para sempre quando Magnus o acertou pelas costas.
"Se seu guarda tivesse se afastado quando ordenei, isso não teria acontecido", o filho do Rei Sanguinário tinha dito.
"Ele não é só um guarda", ela havia sussurrado em resposta. "Não para mim."
Às vezes, parecia que tudo tinha acontecido mil anos antes. Outras, era como se tivesse sido no dia anterior.
Mas, lá estava ele.
- Princesa? - Enzo perguntou, franzindo a testa para a expressão de choque absoluto dela.
Cleo não respondeu. Suas pernas estavam dormentes quando começou a se mover sem pensar, abrindo caminho na multidão na direção dele.
Lágrimas quentes corriam por seu rosto, e ela as secava com violência.
A multidão diminuía quanto mais ela se afastava do palco, o que lhe permitiu manter o olhar no guarda assassinado. Em sua mão, ela viu o brilho de uma lâmina afiada.
E então ela viu Magnus.
O fantasma do jovem que havia amado - e perdido - aproximou-se de Magnus, que estava no bar, olhando para Theon com a mesma descrença de Cleo. Então, com uma rapidez que ela mal conseguiu acompanhar, Theon
segurou Magnus com força e pressionou a lâmina contra sua garganta.
Ela gritou para dentro, seu corpo transformou-se em gelo em um instante. Ela olhava para Magnus, com sua expressão resoluta, os dentes cerrados e os olhos escuros desprovidos de emoção.
- Cleo? - Alguém estava bloqueando seu caminho; um garoto com sardas e cabelo ruivo. - Ah, Cleo! Você está aqui! Você está viva!
- Nic? - Ela o encarou por um segundo antes de agarrar e fincar os dedos em seus ombros. Atrás dele, viu o sangue escorrendo pela garganta de Magnus, onde o fantasma do passado enfiara sua adaga. - O que
está havendo? Por que isso está acontecendo?
De repente, uma terceira pessoa aproximou-se do confronto silencioso entre Magnus e Theon, que até então tinha passado despercebido pelo resto dos clientes, cujos olhos estavam fixos no palco. Era um jovem
de cabelo escuro, ombros largos e muitos músculos, com um tapa-olho preto.
Ele segurava um pedaço de pau e, com ele, atingiu o fantasma de Theon com força atrás da cabeça. A adaga caiu no chão, e o corpo da vítima desabou, inconsciente, ao lado dela.
- Magnus! - Cleo gritou.
Finalmente, Magnus tirou o olhar do jovem caído e virou para Cleo.
Ele semicerrou os olhos.
- Você não devia estar aqui.
Ela ficou chocada. Era isso que Magnus tinha a dizer em um momento como aquele?
O brutamontes apontou para o corpo.
- Ele não vai ficar feliz comigo quando acordar.
Cleo correu para o lado de Magnus, certificando-se rapidamente de que o ferimento no pescoço era superficial. Ela virou para o jovem de tapa-olho.
- Quem é você? - ela questionou.
Ele se curvou.
- Felix Gaebras, minha encantadora jovem. A seu dispor. E quem é você?
- Esta - Magnus disse, tocando o pescoço com cuidado - é a princesa Cleiona.
Felix arregalou os olhos.
- Ah, então esta é a princesa dourada. Tudo faz sentido agora.
- E quem é esse? - Ela apontou para o chão com o dedo trêmulo.
- Aquele - Felix respondeu - é Taran Ranus, irmão gêmeo de Theon.
Cleo sentiu seu corpo gelar.
- Irmão gêmeo?
Magnus estava tenso.
- Foi muito gentil da parte de Nic nos apresentar hoje à noite, não acha?
Ao lado dela, Nic olhou para o jovem inconsciente, depois para Cleo, que parecia chocada.
- Acho que todos nós precisamos conversar - ele disse.
- Com certeza!
- Concordo - Magnus disse com rigor. - Conheço um lugar muito mais discreto do que esse. Encontrem Jonas e venham comigo, todos vocês.
Felix se abaixou, pegou o companheiro inconsciente e o jogou sobre o ombro.
- Onde Jonas e os outros estão? A dançarina o amarrou com a cobra e o levou embora? Vou procurá-lo.
Cleo não esperou - ela precisava de ar fresco. Precisava respirar normalmente e deixar o coração bater em um ritmo natural.
Irmão gêmeo, ela pensou, estupefata. O irmão gêmeo de Theon.
E Theon nunca, em nenhum momento, tinha mencionado que tinha um irmão gêmeo.
Nic estava ao lado dela, cambaleando de leve a cada passo que dava enquanto Enzo a escoltava para fora da taverna. Ela olhou para trás para garantir que Magnus estava perto.
- Você está bêbado - disse Cleo, virando-se para Nic e percebendo que estava muito zangada com ele e com todos os presentes.
- Muito. E também muito feliz por saber que está aqui. - Ele deu um grande beijo desajeitado no rosto dela, fazendo-a lembrar do cachorrinho babão que seu pai trouxera para ela e para Emilia depois de
um longo período de viagens. Quando seus batimentos cardíacos voltaram ao normal, ela se permitiu ceder à avassaladora sensação de alívio por Nic ter voltado de Kraeshia são e salvo - e por estar ao lado
dela novamente.
Felix saiu da taverna carregando Taran Ranus.
Atrás dele veio Jonas, que observava a área até seus olhos recaírem sobre Cleo.
Ela o observava também quando um sorriso se abriu no belo rosto dele.
- Eu sabia que você estava viva. - Jonas apertou o passo para chegar até ela. Segurou-a pela cintura e a tirou do chão, girando-a no ar. - É tão bom ver você!
Em qualquer outro dia, ela estaria sorrindo tanto quanto o rebelde.
- Explique o que está acontecendo.
- Sim - Magnus disse, os olhos escuros fixos em Jonas. - Uma explicação para sua chegada nesta cidade, coincidindo com a nossa chegada, seria apreciável.
- Fico chocado em dizer, mas é quase bom ver você também, vossa alteza. - Jonas deu um meio sorriso para o príncipe.
Não foi correspondido.
- Nosso amigo aqui está ficando um pouco pesado - Felix comentou.
Magnus lançou um olhar azedo para o corpo que Felix carregava.
- Venham comigo.
Outra garota se juntou ao grupo, e Cleo a reconheceu de imediato - estava acompanhando Jonas e Lysandra da última vez em que estiveram no palácio limeriano.
Cleo se lembrava do nome dela: Olivia. Mas um cumprimento adequado poderia esperar.
Ela deu o braço para Nic enquanto o grupo acompanhava Magnus até a hospedaria.
- Por que está tão bêbado hoje?
- Ah... são muitas razões. Entre elas, recentemente passei a acreditar que estivesse morta. Por isso ia me afundar em cerveja para sufocar meu sofrimento.
- Estou bem viva.
- E fico muito feliz em saber.
Cleo sorriu para ele.
- Existem outros motivos para sua sede de álcool?
- Nenhum que esteja com a gente hoje, mas estou hesitante em mencioná-los. Você já teve choques demais por um dia. Tenho certeza de que ele vai acabar aparecendo. Ele faz dessas.
- Você não está falando coisa com coisa.
- Não, com certeza não estou.
Seu pequeno sorriso desapareceu quando ela olhou para Felix e seu fardo.
- Theon... - Ainda doía dizer o nome dele, mesmo depois de tanto tempo. - Alguma vez ele falou alguma coisa sobre ter um irmão gêmeo?
Nic negou.
- Nada. Quando vi Taran nas docas de Kraeshia, quase caí duro de choque. Taran não fala sobre isso, mas imagino que eles não tivessem contato. Ainda assim, não lidou bem com a notícia da morte do irmão.
- É, percebi. - Ela soltou um suspiro trêmulo. - Como ele ficou sabendo que foi Magnus que matou Theon?
Nic deu de ombros.
- Eu contei a ele, claro.
Ela sentiu uma pontada no estômago no exato momento em que a raiva começou a subir.
- Claro.
- Eu devia ter ficado a seu lado. - Ele pegou a mão dela e ficou sério, apesar da bebedeira. - Sinto muito por ter deixado você sozinha com ele todo esse tempo.
Nic não sabia sobre os sentimentos dela por Magnus. É claro que não sabia - Cleo tinha feito questão de negar os sentimentos que cresciam em seu peito por um ano.
- Não tem problema. Eu... dei um jeito.
- Onde devo deixá-lo? - Felix indicou o fardo que carregava quando chegaram à hospedaria.
- Tenho certeza de que vamos encontrar um buraco bem fundo - Magnus respondeu.
Cleo olhou feio para ele, depois virou para Felix.
- Tem alguns quartos vazios no segundo andar - ela disse.
Felix desapareceu e retornou rapidamente sem Taran.
Eles sentaram na sala de convivência e, quando Cleo olhou para o grupo, não sabia dizer se estava feliz ou horrorizada pelo modo como a noite havia se desenrolado.
Nic sentou ao lado dela, de frente para Jonas e Olivia. Felix e Magnus sentaram próximos à lareira, do outro lado da sala, perto da estante, enquanto Enzo ficou em pé ao lado de Cleo.
- Quando vocês chegaram? - Magnus perguntou.
- Hoje - Jonas respondeu. - Ainda estamos no escuro sobre o que está acontecendo aqui. A única informação que temos vem de um único soldado kraeshiano que se dispôs a falar.
- E?
- Ele sabia muito pouco. Ou, pelo menos, pouco que pudesse nos ajudar. No entanto, parece que você está fugindo, vossa alteza. E seu pai não está nada feliz com o modo como cuidou das coisas enquanto ele
esteve fora.
- É o mínimo que se poderia dizer.
Cleo observava Magnus levemente surpresa. Apesar do tanto que devia ter bebido, parecia sóbrio como um sacerdote limeriano.
- O soldado - disse Jonas, apontando para Cleo com tristeza. - Ele nos disse que você tinha morrido. Que isso aconteceu depois que fugiu de Amara. Que morreu congelada.
- Isso poderia muito bem ter acontecido se eu não tivesse encontrado abrigo no momento certo. - Ela desviou os olhos, tentando não fazer contato visual com Magnus, apesar de ainda sentir o olhar dele ardendo
em seu rosto.
- Você sempre foi uma sobrevivente - Jonas disse. - Nic se desesperou, mas eu tinha esperança. E aqui está você.
Nic deu de ombros.
- Eu me desespero. Sou desesperado.
- Temos muita coisa para contar a vocês - Jonas afirmou. - E com certeza vocês têm muita coisa para nos contar.
- Muito menos do que você pode imaginar - Magnus disse. - Amara acha que está governando o reino agora. Mas está errada. E será derrotada.
- E como você acha que vai derrotá-la? - Jonas perguntou.
- Acho que podemos começar com o cristal da terra que você deu à princesa - Magnus disse, e Jonas ficou tenso. - Você ainda tem aquele pedaço brilhante de obsidiana escondido em algum lugar, princesa?
Ah, sim, ela pensou enquanto se contraía. Esse era o Magnus que um dia ela desprezara - capaz de anunciar para todos, aparentemente por despeito, que ela estava em poder de um cristal da Tétrade. Ela precisaria
se lembrar de agradecer pela lembrança.
Nic soltou um rosnado de repulsa.
- Cleo, não enlouqueceu ficando ao lado dele por tanto tempo? O fato de ter mantido essa aliança artificial... deve haver algum motivo por trás disso que não me contou.
- Por favor, Nic - Magnus disse. - Somos todos amigos aqui. Sinta-se à vontade para falar o que quiser.
- Acabei de fazer isso.
Magnus revirou os olhos.
- Não preocupe essa sua cabeça de cenoura, Nicolo. A princesa continua a me tolerar, ou quase, concentrando-se apenas em recuperar seu trono assim que Amara for derrotada e mandada para longe. Recentemente,
sugeri que sua princesa dourada retornasse a Auranos, mas ela recusou. Nem pense em dizer que foi ideia minha.
Cleo virou para ele e enxergou uma expressão de desafio em seus olhos. Então percebeu o que Magnus estava fazendo.
Nic o odiava. Jonas tinha uma aliança fraca com ele. E o irmão gêmeo de Theon tinha acabado de tentar matá-lo.
Revelar que os dois eram mais do que aliados relutantes poderia causar um estresse desnecessário, principalmente agora que estavam todos juntos.
- Acredite em mim, Nic - ela disse finalmente. - E estou ansiosa pelo dia em que retornarei ao meu trono. Mas esse dia não é hoje.
- Bem, agora que isso está resolvido - Magnus disse -, vamos discutir como proceder. Pode ser?
Felix levantou a mão.
- Eu me voluntario com entusiasmo para matar a imperatriz.
Magnus o encarou com interesse.
- Como pretende fazer isso?
- Sei que alguns de vocês vão sugerir que eu use uma flecha apontada de longe - Felix disse com avidez. - Mas realmente preferiria uma abordagem mais pessoal. Com minhas próprias mãos, se possível. Só
quero ver o olhar dela naquele rostinho lindo.
Magnus piscou.
- Acabei de lembrar que foi você que me enviou um pedaço de sua pele para provar sua lealdade.
- Fui eu mesmo, vossa majestade.
Cleo analisava aquele jovem com atenção, chocada com as palavras. Será que ele era louco?
No entanto, o sujeito tinha salvado a vida de Magnus na taverna, e ela devia muito a ele por isso, então imaginou que teria que passar um pouco mais de tempo perto dele, observando-o, para ver como ele
realmente era.
Houve um tempo em que tinha desejado que Magnus morresse pelo que fizera com Theon, em que tinha desejado matá-lo com as próprias mãos.
Mas no momento em que a vida de Magnus correra perigo, não conseguira se concentrar em nada além do príncipe. Qualquer necessidade de vingança tinha desaparecido meses atrás, como se ela tivesse trocado
de pele.
O sentimento era de perdão. Ela ainda odiava o garoto que Magnus tinha sido aquele dia.
Mas tinha passado a entendê-lo nos meses que se seguiram, talvez ainda melhor do que entendia a si mesma.
- Há uma ameaça muito maior do que Amara em Mítica nesse momento, sinto informar - Jonas revelou, interrompendo o devaneio de Cleo. Ele estava limpando as marcas de beijo da dançarina do rosto com um lenço
que Olivia havia lhe dado, e Cleo não conseguiu deixar de achar engraçado o contraste entre os movimentos ridículos e o tom solene daquela declaração.
- Me deixe adivinhar - Magnus disse. - Você está falando da minha irmã? Sei que deve estar de luto por sua amiga, Jonas, mas não faz sentido gastar suas energias vingativas com Lucia nem com seu companheiro,
Kyan.
Jonas encarou os olhos de Magnus.
- Vocês não sabem, não é?
- Não sabemos o quê?
- Vocês procuraram pela Tétrade. Pessoas morreram por esses cristais. Você já revelou diante de todos que Cleo está em poder de um deles, e sabemos que Amara está com o da água, e seu pai, com o do ar.
- Sim, sei disso tudo, rebelde. E já sabemos que Kyan está com o cristal do fogo.
- Errado - Jonas ficou tenso. - Kyan é a magia do fogo.
Cleo ficou encarando-o, certa de que tinha escutado errado.
- O que quer dizer com isso?
- A magia que vocês estão procurando, que todos estamos procurando, pode pensar. Pode falar. E pode matar sem remorso. E mais três iguais a Kyan estão aguardando para escapar de suas prisões. Os cristais
não são pedras mágicas, princesa, mas deuses elementares.
A sala toda ficou em silêncio, e Cleo observou freneticamente o rosto dos outros, esperando encontrar alguém revirando os olhos. Esperando que aquilo não passasse de uma mentira engraçada para quebrar
a tensão.
Não podia ser verdade.
Mas até Nic assentia pesaroso.
E naquele exato momento, dentro de seu bolso, estava uma daquelas prisões.
Ela olhou para Magnus, cuja testa franzida era o único sinal de surpresa.
- Lucia deve tê-lo ajudado a escapar da esfera de âmbar - Magnus disse.
- Acho que isso é óbvio - Jonas respondeu curto e grosso, o que lhe rendeu um olhar sombrio do príncipe.
Cleo juntou as mãos para impedi-las de tremer.
- Temos certeza de que os objetivos de Kyan, sejam quais forem, são perversos? A Tétrade ainda pode nos ajudar a derrotar Amara.
- Eu o vi queimar Lys até fazê-la desaparecer - Jonas grunhiu. - Nem uma única cinza restou quando ele acabou. - O rebelde virou para Magnus. - Kyan é perverso. Assim como a vadia da sua irmã.
Magnus levantou com os punhos cerrados.
- Não me importo com o que aconteceu, você não vai falar assim de Lucia na minha presença. Não vou permitir.
- Não? E você acha que pode me impedir? - Agora Jonas também estava com os punhos cerrados, e os dois se aproximavam.
- Talvez ele não o impeça - disse uma nova voz, interrompendo a conversa e paralisando o rebelde e o príncipe. - Mas eu com certeza estou disposto a tentar.
Com aquela promessa, o Rei Sanguinário entrou na sala.
14
JONAS
PAELSIA
Rei Gaius Damora. O Rei Sanguinário. Assassino. Sádico, torturador, escravocrata, traidor. Inimigo. Alvo.
E, naquele momento, estava na mesma sala que Jonas.
Muitas surpresas tinham acontecido naquela noite. Primeiro um encontro com Laelia Basilius, de quem Jonas tinha sido - por pouco tempo e com relutância - noivo. Mas essas surpresas desapareceram de sua
mente assim que o rei entrou na sala.
Gaius observou o grupo e parou o olhar sobre Jonas.
- Jonas Agallon. Não vejo você há muito tempo. Acho que a última vez foi no casamento de meu filho.
Jonas percebeu que não conseguia fazer nada além de olhar para o homem que tinha matado e destruído tantos.
- Magnus... - Cleo disse do outro lado da sala.
- Ah, sim - Magnus disse, sem qualquer sinal de indignação pelas calúnias ditas contra a irmã. - Esqueci de dizer que estou viajando com meu pai?
- Esqueceu - Jonas respondeu, tenso.
- Sim - o rei concordou. - E é muito bom que meu filho traga seus novos amigos aqui sem avisar.
Jonas se esforçou para manter a compostura, para não mostrar como estava indignado.
- Não são tão novos quanto você pensa.
A pele do rei Gaius estava pálida, o rosto tinha hematomas como se tivesse sido espancado. Ele inclinou para a frente, como se agisse com normalidade, e se apoiou na parede ao lado da escada, mas algo
ficou evidente na posição. Uma fraqueza e uma fragilidade que o rebelde nunca tinha notado no homem.
- Volte para o quarto - Magnus disse.
- Não acato ordens suas. - O rei sorriu, sem achar graça. - Magnus, seus amigos sabem que estamos todos do mesmo lado agora?
Só de pensar em uma aliança com Gaius, Jonas perdeu totalmente a fala. Os outros - Nic e Olivia - também permaneceram em silêncio, tensos.
- É mesmo? - Foi o rosnado ríspido de Felix, como o alerta de uma fera enjaulada, que quebrou o silêncio. - Você decidiu isso antes ou depois de permitir que Amara me deixasse levar a culpa por matar a
família dela?
O rei levantou uma sobrancelha escura e observou Felix.
- Nunca permiti que Amara fizesse nada. Ela toma as próprias decisões. Quando soube o que tinha acontecido, já era tarde demais para intervir. Soube que você já estava morto. Caso contrário, teria feito
o possível para libertar você.
Felix manteve o olhar fixo no rei, e em seu único olho não se via nada além de frieza e malícia.
- Claro que teria. Por que eu duvidaria de sua palavra, vossa alteza?
Suspirando, o rei abatido e aparentemente debilitado se virou para Jonas.
- Você tem todos os motivos para me odiar. Mas precisa me ouvir agora e perceber que juntos somos fortes. Temos um inimigo comum: Amara Cortas.
- Sua esposa - Jonas afirmou.
- Por conveniência e circunstância apenas. Não tenho dúvidas de que ela já está conspirando para me matar, em especial agora que assumiu o controle de Mítica e sabe que seus soldados são muito mais numerosos
que os meus. Tenho me dedicado a consertar alguns de meus erros mais recentes, começando por tirar Amara deste reino.
- Me parece um bom começo - Jonas disse.
O rei caminhou devagar, fazendo careta ao sentir uma dor repentina com o movimento, e estendeu a mão.
- Peço que deixemos nossas diferenças de lado até esse objetivo ser alcançado. O que me diz?
Se não estivesse tão surpreso, Jonas teria gargalhado. O Rei Sanguinário tinha acabado de propor a ele - a mesma pessoa que o acusara de assassinar a Rainha Althea - uma aliança.
Jonas observou os outros ao redor, e em silêncio todos olhavam chocados para ele e o rei. Nic e Cleo estavam pálidos, e Felix entortava a boca de ódio. Olivia manteve o olhar desprovido de emoção e inescrutável,
como sempre. Enzo, o guarda de Cleo, estava parado empunhando a espada. Em contraste, Magnus tinha sentado e recostado na cadeira, os braços cruzados à frente do peito, a cabeça inclinada.
Finalmente, Jonas estendeu a mão direita para o rei e aceitou o acordo, encarando diretamente seus olhos.
- O que posso dizer, vossa alteza? - Com a mão esquerda, ele cravou uma adaga decorada no coração do monstro. - Vá para as terras sombrias, filho da puta mentiroso.
O rei gemeu sem força, e pelo som, a dor parecia extremamente forte. Jonas girou a faca ainda mais fundo, até Gaius tombar para trás.
Jonas ouviu Nic comemorar assim que Enzo o acertou e o derrubou no chão. Felix chegou em um instante, puxando Enzo para longe. Outro dos guardas do rei apareceu e puxou os braços de Jonas para trás. Cabelos
loiros apareceram na confusão - era Cleo tentando tirar o segundo guarda do rei de cima de Jonas. Magnus estava de pé com o olhar sério fixo no rei. Olivia estava dentro do campo de visão periférica de
Jonas, esperando. Ela só interviria se ele corresse perigo de morte.
A raiva que sentia, o ódio que tinha pelo rei, zuniam dentro de Jonas, renovados, e o rebelde tremia. Enquanto observava o rei moribundo, não sentiu nem um pouco de arrependimento.
Finalmente tinha tido uma oportunidade. E a aproveitado.
- Viu? - ele disse, olhando para Magnus. - Cumpro minhas promessas.
- Sim, estou vendo - Magnus disse, prestando atenção no pai, como se estivesse curioso, e não grato pela atitude. - Só é uma pena que você não tenha feito isso antes.
- O que quer dizer com isso? - Jonas olhou para o príncipe, sem entender por que ele parecia decepcionado com a situação. Jonas tinha feito exatamente o que Magnus queria, tinha cumprido a tarefa que o
tinha levado a Kraeshia.
- Milo, deixe Jonas levantar. - Cleo segurava o guarda desconhecido pelo braço.
- Ele assassinou o rei - Milo disse.
- Não - Magnus disse. - A morte decidiu demorar no que diz respeito ao meu pai.
- Jonas, olhe para ele - Felix pediu.
Gaius não estava mais deitado no chão, cheio de sangue. Milagrosamente, estava ajoelhado, sangrando muito sobre a madeira desgastada, o cabo da adaga no peito.
A expressão agonizante do rei estava fixa em Jonas.
- Ele não está morto - Nic murmurou, balançando a cabeça, incrédulo. - Por que não está morto?
Num movimento repentino e forçado, o rei Gaius segurou o cabo decorado da adaga. Ainda encarando Jonas com os olhos semicerrados, ele arrancou a lâmina, com um grito. A adaga caiu no chão, e ele levou
as mãos à ferida.
- Isso é magia - Jonas conseguiu dizer em meio ao choque.
- Muito observador de sua parte. Impressionante - Magnus disse com seriedade.
- Explique o que está acontecendo!
Magnus meneou a cabeça para Milo.
- Solte o rebelde. Não posso conversar com alguém preso como um besouro pregado a uma placa de cortiça.
Milo parou de segurar o braço de Jonas, que imediatamente ficou de pé e lançou um olhar acusatório para Magnus, que encarou Cleo de um jeito pouco sutil e sério. Cleo rangeu os dentes, e Magnus revirou
os olhos.
- Muito bem - o príncipe concordou. - Vou tentar ser breve em minha explicação. O que está acontecendo é o resultado de uma poção que o rei tomou muitos anos atrás, uma poção que permitiu que, não importa
o golpe final e fatal que o destino desferir, ainda tem algum tempo para... resistir depois de ser morto.
- Não sei bem se é assim que funciona - Cleo disse pacientemente.
Magnus suspirou e fez um gesto para o pai.
- Mais ou menos isso?
- Acredito que sim. Minha nossa, Jonas, essa é a adaga de Aron? - Cleo perguntou, chocada. - Você realmente guardou essa coisa horrível por todo esse tempo?
- Responda à minha pergunta - ele disse, mais incisivo do que pretendia ao se dirigir à princesa. Finalmente Jonas tinha feito o que queria fazer havia muito tempo, mas mais uma vez o destino não permitia
seu sucesso. Nem mesmo depois de um golpe fatal.
- Você não matou o rei - Cleo respondeu tensa - porque o rei já encontrou a morte dias atrás.
Enquanto Jonas tentava desesperadamente processar aquela afirmação incrível, uma mulher desceu a escada. Ela era mais velha, com rugas ao redor dos olhos, e usava um manto cinza-escuro que combinava com
seu cabelo. Entrou na sala de convivência, observando todos os presentes com firmeza, até finalmente fixar o olhar em Gaius.
A mulher o observou por um momento muito breve e, em seguida, lançou um olhar intenso na direção de Jonas.
- Você fez isso com meu filho?
Um arrepio subiu por seus braços e seus ombros, e desceu pela coluna ao perceber a raiva controlada nas palavras dela.
Filho?
- Tudo bem - o rei disse assustado, segurando a manga da blusa da mulher que se apressou para ficar ao lado dele.
- Não está nada bem. Não mesmo. - Ela voltou a encarar Jonas, e com o olhar dela, veio a sensação de que ele estava sendo congelado. - Você ousaria tentar matar seu rei?
- Ele não é meu rei - Jonas respondeu irritado, recusando-se a demonstrar fraqueza ou dúvida. - Ele matou meus amigos em sua guerra doentia, executou aqueles que se recusaram a se submeter, e escravizou
meu povo para construir sua preciosa Estrada Imperial. Nenhuma pessoa nesta sala diria que ele não merece morrer por seus crimes.
Ela cerrou o punho.
- Eu diria.
- Não, mãe - Gaius disse depressa. - Deixe-o em paz. Precisamos dele. Acredito que precisaremos de todos eles para reaver o que Amara pegou.
Devagar, o rei levantou, e Jonas só conseguiu dar um passo incerto para se afastar. O único sinal de que uma adaga tinha atravessado seu coração alguns momentos antes era a camisa rasgada e o sangue no
chão.
- Só a magia mais sombria poderia tornar algo assim possível - uma nova voz disse.
Jonas virou de repente e viu que Ashur Cortas estava atrás deles na entrada da hospedaria.
- Ashur! - Cleo se surpreendeu. - Você está vivo! Mas... como?
Ashur arqueou as sobrancelhas escuras.
- Mais magia negra, receio.
Ela virou para Nic, cuja expressão era neutra.
- Você sabia disso?
Ele assentiu.
- Eu sei, é um choque.
- Um choque? Ele estava morto, Nic! Por que não me contou?
- Eu ia contar. Achei melhor esperar você lidar com a questão do Taran primeiro.
- Ah, obrigada - ela disse, a voz tensa. - Você é muito solícito mesmo.
- Não sei por quê, mas acho que você não está falando sério.
Jonas se virou para Magnus e viu que ele estava sério.
- Estou ficando muito cansado de magia - o príncipe murmurou. - E de absolutamente tudo sobre o que não tenho controle.
- Também é ótimo revê-lo, príncipe Magnus - Ashur disse com um meneio de cabeça.
- Muita gentileza sua nos encontrar, vossa graça - Nic se dirigiu a Ashur, a voz desprovida de qualquer respeito. - Pensei que tivesse criado guelras e cauda e começado a nadar de volta a Kraeshia.
- Hoje não, infelizmente - Ashur respondeu com rispidez.
- Talvez amanhã.
- Talvez.
- Contamos a todos sobre sua ressurreição de fênix agora ou mais tarde? - Nic perguntou.
A expressão de Ashur ficou tensa ao notar o tom ácido de Nic.
- Parece, Nicolo, que há assuntos mais urgente a tratar. Estou certo, não estou, rei Gaius?
O grupo voltou a atenção ao rei, que estava encolhido ao lado da mãe.
- Está, sim, príncipe Ashur.
- Uma aliança contra minha irmã.
- É um problema para você?
- Não. Contanto que não a matem, não vejo nenhum problema.
- Espere - Felix disse de onde estava, ao lado da lareira. - Você sabe que eu pretendia matá-la! Vai mesmo tirar isso de mim?
Ashur lançou um olhar severo para Felix.
- Tudo bem. É um assunto para outro dia - Felix respondeu.
- Príncipe Ashur, você é o herdeiro legítimo de seu pai - o rei explicou. - Tire o título de Amara e tudo isso pode acabar.
- E agora você é o marido dela, pelo que soube. Por que não está a seu lado, orientando suas decisões?
- Não é mais tão simples assim.
- Nada importante é simples, certo?
- O Rei Sanguinário quer que trabalhemos em equipe - Jonas disse, balançando a cabeça. - É a coisa mais ridícula que já ouvi. Não é o que quero.
Gaius bufou, frustrado.
- Sei muito bem o que você quer, rebelde. Você quer que eu morra. Bem, devo dizer que vou morrer em breve.
- Gaius... - a mãe sibilou. - Não vou permitir que fale assim. Não vou permitir!
Ele a silenciou com um aceno.
- Minha primeira prioridade é retomar o controle de meu reino. Mítica não pertence, nem pertencerá, ao Império Kraeshiano.
- Não fosse pela magia que dizem que está adormecida aqui - Ashur disse -, posso garantir que nem Amara nem meu pai dariam tanta importância a essa ilhazinha.
- Acredito que você esteja ciente de que Amara envenenou seu pai e seus irmãos - o rei afirmou. - Ela não sente remorso quando vai em busca do que quer.
A risada sombria de Nic interrompeu a tensão na sala.
- Que engraçado... "Não sente remorso", ele disse, como se considerasse isso um defeito. O mesmo homem que quebrou o pescoço da minha irmã por estar no lugar errado na hora errada. - Ele parou de rir de
repente. - Sua aparência está péssima, vossa majestade. Espero muito que esteja sofrendo neste momento.
- Não fale com o rei desse jeito, Cassian - Milo, o guarda, se manifestou.
Nic lançou um olhar para ele do outro lado da sala.
- O que vai fazer se eu falar? Vai pedir para seu amigo ajudá-lo a me bater?
Milo sorriu e estralou os dedos.
- Posso fazer isso sozinho sem problema.
- Pensei que você estivesse apodrecendo na masmorra.
O sorriso do guarda ficou tenso.
- Preciso lhe agradecer por isso, não?
- Precisa. - Nic semicerrou os olhos. - O que vai fazer em relação a isso, Milo?
- Muitas coisas. Só preciso de tempo.
- Milo, não é? Ouça bem o que vou dizer. - A voz de Ashur estava baixa, como o rosnado de uma fera enjaulada. - Se tentar machucar Nicolo, juro que eu mesmo vou arrancar sua pele.
Jonas virou para Milo. Viu que a única reação dele à ameaça foi piscar, surpreso.
Cleo falou com o rei, depois de lançar um olhar preocupado a Nic e ao guarda.
- Você deu Mítica a Amara - ela disse, deixando claro seu tom de insatisfação. - Não pode apenas pegá-la de volta?
- Você não entende - o rei disse. - Nenhum de vocês entende. O imperador Cortas teria tomado Mítica à força se eu não tivesse agido dessa forma. Dezenas... não, centenas de milhares teriam morrido na guerra
se eu não tivesse feito minha proposta a ele.
- Ah, sim - Magnus disse. - Meu pai, o salvador de todos nós. Deveríamos construir estátuas em homenagem a ele. Uma pena já haver dezenas delas em Limeros. - Magnus arregalou os olhos. - É muita vaidade,
pensando bem. A deusa Valoria não aprovaria.
- Para o inferno com a deusa e com todos os Vigilantes! - o rei rebateu. - Não precisamos da ajuda deles para nos livrarmos de Amara.
- Não esqueça Kyan - Jonas acrescentou.
O rei virou para ele.
- Quem é Kyan?
Jonas não conseguiu conter o riso.
- Adoraria ficar aqui para elaborarmos uma estratégia juntos, vossa alteza, mas cansei dessa farsa. Não vou trabalhar com você hoje, nem amanhã, nem nunca.
- Diga, vossa alteza - Felix disse devagar -, ainda está com o cristal do ar?
Gaius lançou um olhar sério.
- O cristal do ar! - a mãe dele exclamou. - Você está com ele? E não me contou?
- Estou, sim - ele respondeu.
- Onde?
- Em um lugar seguro.
Jonas tentou encarar Cleo nos olhos, mas ela parecia ocupada com uma conversa silenciosa com o príncipe. Quando se entreolhavam, o sorriso de Magnus desapareceu.
- Se for verdade, e quando eu tiver força suficiente para encontrar minha neta - a mulher anunciou -, a vitória será nossa.
Mais uma vez, Jonas riu com frieza.
- Então é esse o segredo para seu grande plano? A princesa Lucia? Acredito que ficará decepcionada quando vir a serpente fria, má e sanguinária que ela se tornou. Mas ela é uma Damora, então talvez você
não se surpreenda nem se desaponte.
A senhora o observou.
- Jonas, não é?
- É o meu nome.
- Meu nome é Selia. - Ela se aproximou sem raiva no olhar ao pegar as mãos dele. - Fique conosco e ouça mais sobre nossos planos. Concordo com meu filho que, apesar de nossas diferenças, ainda podemos
trabalhar juntos. Tente ver isso de modo lógico. Juntos, somos mais fortes.
Ela estaria certa?
- Não sei...
- Fique - Cleo pediu. - Por favor, pense bem, pelo menos. Por mim.
Jonas encarou seus olhos sinceros e azuis.
- Talvez.
Magnus levantou.
- Está sugerindo que os rebeldes fiquem aqui? - ele perguntou em tom acusatório para a avó. - Nesta hospedaria? É a pior ideia que já ouvi.
- Discordo - disse o rei. - Minha mãe tem razão. Podemos chegar a um acordo. Temporário. Temos o mesmo inimigo agora.
Sem saber ao certo se estava prestes a concordar ou discordar dos Damora, Jonas abriu a boca para falar mas foi interrompido por um rosnado furioso vindo da sala de convivência.
Passos foram ouvidos descendo a escada, e Taran entrou com tudo no ambiente. Em um instante, voltou o olhar furioso para Magnus.
A adaga de Jonas - aquela que o rei tinha tirado do peito - estava no chão. Jonas a viu, mas Taran também, recuperando-a num piscar de olhos e percorrendo a distância entre ele e o príncipe.
Taran apontou a adaga para Magnus, mas o príncipe segurou o braço de Taran antes que ele pudesse encostar. Cleo soltou um grito estridente.
- Você está morto - Taran gritou.
Magnus se esforçou para não deixar a lâmina feri-lo, mas Taran o pegou de surpresa e a ira da vingança parecia duplicar sua força.
Então, Felix apareceu atrás de Taran, passando o braço por seu pescoço e puxando-o para trás.
- Não me faça acertar você de novo. Perdi meu pedaço de pau.
Jonas se aproximou e arrancou a adaga da mão de Taran.
- Vou matar você - Taran gritou para o príncipe enquanto Felix o arrastava para trás. - Você merece morrer pelo que fez!
Magnus não revidou. Só ficou observando o rapaz, com uma expressão séria.
- Acho que todos merecemos morrer por algo que fizemos - Jonas disse, aliviando um pouco da tensão que crescia entre o príncipe e o rebelde. - Ou por algo que deixamos de fazer.
O príncipe desfez a expressão séria e olhou incrédulo para Jonas.
- É minha imaginação ou você acabou de ajudar a salvar minha vida?
Jonas fez uma careta ao ouvir a pergunta.
- Parece que sim, não? - Ele olhou para Cleo, cuja expressão era de alívio. Com certeza, a princesa não queria ver mais sangue sendo derramado naquela noite, ele pensou. Nem mesmo o de Magnus. - Pode ser
que eu esteja prestes a cometer um erro horroroso do qual me arrependerei pelo resto da vida, mas decidi aceitar essa aliança. Mas uma aliança temporária, até Amara ser tirada daqui.
Ele esperou a resposta de Ashur. A expressão do príncipe kraeshiano se manteve séria, mas ele assentiu.
- Concordo. Amara precisa perceber o que fez. Ainda que ache que estava certa, tomou o caminho errado. Farei o que puder para ajudar.
- Ótimo. - Jonas apontou para Taran, que Felix ainda segurava. - Compreendo seu luto e sua ira, mas seu desejo por vingança não tem espaço aqui.
Taran lançou um olhar feio para Jonas, segurando o braço de Felix, que apertava sua garganta como uma barra de ferro.
- Você conhecia meus motivos para vir para cá antes de sairmos de Kraeshia.
- Conhecia, mas isso não quer dizer que concordava com eles. Agora tomei minha decisão. Você não vai tentar matar o príncipe Magnus de novo. Não enquanto mantivermos essa aliança.
- Você ouviu bem com essas orelhas gastas? - Felix perguntou a Taran, a voz áspera enquanto aplicava mais força no braço. - Ou preciso repetir mais devagar?
- Abandonei uma rebelião para vir até aqui vingar meu irmão.
- Uma rebelião fadada ao fracasso antes mesmo de começar - Ashur acrescentou.
- Você não sabe.
- Sei. Não me alegra saber, mas sei. Talvez um dia o império que meu pai construiu seja destruído, mas não será logo.
- Veremos.
- Sim, veremos.
Taran lançou mais um olhar raivoso para Jonas.
- Você se uniria a eles por vontade própria?
- Sim - Jonas confirmou. - E peço que considere fazer o mesmo. Podemos precisar de sua ajuda. - Ele fez uma pausa. - Mas não me leve a mal, Taran; se tentar acabar com a vida do príncipe Magnus de novo,
vou acabar com a sua.
15
AMARA
PAELSIA
O deus do fogo tinha sido muito específico sobre o lugar aonde queria que Amara fosse para obter poder infinito. Segundo ele, era um lugar tocado pela magia. Um lugar que até os próprios imortais reconheciam
como um centro de poder.
Ela contou a Carlos sobre a mudança de planos. Não ia se mudar para o palácio limeriano. Não, seu destino ficava mais ao sul de Paelsia, próximo ao antigo complexo do chefe Hugo Basilius.
Em vez de questionar as ordens, Carlos planejou tudo no mesmo instante. Com quinhentos soldados, Amara, Nerissa, Kurtis e o capitão dos guardas viajaram ao reino central de Mítica, que a nova imperatriz
ainda não conhecia.
Pela janela da carruagem, ela via com surpresa o gelo e a neve de Limeros derreterem e darem espaço à terra seca, às florestas mortas e à escassa vida selvagem.
- Foi sempre assim aqui? - ela perguntou, assustada.
- Nem sempre, vossa graça - Nerissa respondeu. - Ouvi dizer que houve uma época, muito tempo atrás, que toda Mítica, de norte a sul, era quente e temperada, sempre verde, com pequenas mudanças de uma estação
a outra.
- Por que alguém moraria em um lugar assim?
- Os paelsianos não podem escolher seu destino e são conhecidos por se conformarem isso, como se a aceitação tivesse se tornado uma religião em si. O povo é pobre, regido pelas regras que seu ex-chefe
e o chefe antes do anterior estabeleceram. Por exemplo, os paelsianos só podem vender vinho legalmente a Auranos, e o vinho é o único produto de exportação valioso deles. Grande parte do lucro é taxado,
e essas taxas foram determinadas pelo chefe.
Sim, o vinho paelsiano era famoso pelo sabor adocicado e por sua habilidade mágica de inebriar depressa e de modo prazeroso, sem mal-estar depois.
Era o vinho que Amara tinha levado para Kraeshia para envenenar sua família.
O que quer que fosse dito sobre a bebida, ela jurava que nunca a beberia por causa da lembrança.
- Por que não vão embora? - ela perguntou.
- Para onde? Poucos teriam dinheiro para ir ao exterior, menos ainda para construir uma casa em outro lugar que não seja aqui. E os paelsianos não podem entrar em Limeros nem em Auranos sem permissão do
rei.
- Tenho certeza de que muitos vêm e vão como querem. As fronteiras não são totalmente monitoradas.
- Não, mas os paelsianos costumam obedecer às leis. A maioria dos paelsianos, pelo menos. - Nerissa recostou na cadeira, as mãos sobre o colo. - Eles provavelmente não vão lhe causar nenhum problema, vossa
graça.
Ouvir aquilo era um alívio, no mínimo, depois de tantos problemas no passado.
Amara continuou observando a paisagem árida pela janela da carruagem durante os quatro dias de viagem desde a partida da quinta de lorde Gareth, esperando ver a terra e a morte se transformarem em verde
e vida, mas isso não aconteceu. Nerissa garantiu que mais a oeste, mais perto da costa, a paisagem melhoraria, e que a maioria dos paelsianos construía casas em vilarejos naquele pedaço da terra; poucos
construíam mais perto dos picos assustadores e sombrios das Montanhas Proibidas, a leste.
Aquele era o reino mais distante da fartura de Kraeshia que ela já tinha visto, e Amara estava torcendo para não precisar passar muito tempo ali.
Na última etapa da viagem, o comboio usou a Estrada Imperial, que se estendia por Mítica de modo curioso, começando no Templo de Cleiona, em Auranos, e terminando no Templo de Valoria, em Limeros. Passava
direto pelos portões de entrada do complexo de Basilius.
Os portões estavam abertos e um homem baixo de cabelo grisalho os esperava, cercado por uma dúzia de paelsianos enormes usando roupas de couro, com cabelo preto preso em tranças minúsculas.
Quando Carlos ajudou Amara a desembarcar da carruagem, o homem fez um leve sinal com a cabeça para ela.
- Vossa graça, sou Mauro, o antigo conselheiro do chefe Basilius. Seja bem-vinda a Paelsia.
Ela olhou para o homem, bem mais baixo do que ela.
- Então, você ficou responsável por este reino depois da morte do chefe?
Ele confirmou.
- Sim, vossa graça. E estou às suas ordens. Por favor, venha comigo.
Junto com o grupo principal de guardas pessoais da imperatriz - incluindo Carlos -, Amara e Nerissa acompanharam Mauro pelos portões de pedra. Um caminho de pedra se estendia pelo vilarejo murado, levando-os
por pequenas casas de sapê parecidas com as que Amara tinha visto enquanto atravessava várias cidades antes de chegar ao complexo.
- Naquelas casas ficavam as tropas do chefe. Infelizmente, quase todos foram mortos na batalha pelo palácio auraniano. - Mauro indicava os pontos de interesse conforme caminhavam pelo complexo, que no
passado fora o lar de mais de dois mil cidadãos paelsianos.
Havia comércios que antes forneciam pão, carne, legumes e frutas, trazidos do Porto do Comércio. Mauro mostrou um espaço onde ficavam as bancas dos vendedores locais, que podiam atravessar os portões todo
mês.
Outra área, uma clareira com bancos de madeira, tinha sido usada como arena para diversão - duelos, lutas e disputas de força que o chefe costumava gostar de assistir. Outra clareira surgiu com restos
de fogueiras, onde o chefe fazia banquetes.
- Banquetes... - Amara comentou surpresa. - Em um reino como este, banquetes são a última coisa que eu esperaria de um líder.
- O chefe precisava de prazeres para abastecer a mente e conseguir explorar os limites de sua força.
- Certo - ela disse. - Ele acreditava ser um feiticeiro, não?
Mauro olhou para ela constrangido.
- Sim, vossa graça.
Para Amara, o chefe Basilius parecia um homem egoísta e pobre de espírito. Ela estava contente em saber que Gaius o havia matado depois da batalha auraniana. Se ele não o tivesse matado, ela teria feito
isso.
Apesar do calor do dia com o sol já forte, Amara sentiu a temperatura ao seu redor aumentar ainda mais.
- Sei que não parece grande coisa, pequena imperatriz, mas garanto que aqui é exatamente onde precisamos estar.
Amara não respondeu, mas reconheceu a presença de Kyan com um meneio de cabeça.
- Estamos perto do centro do poder aqui - ele continuou. - Posso sentir.
- Aqui - Mauro indicou um grande buraco no chão, com cerca de dez passos de circunferência e vinte passos de profundidade para dentro da terra seca - é onde o chefe costumava deixar os prisioneiros.
Amara olhou para dentro do buraco.
- Como eles desciam?
- Alguns eram baixados com uma corda ou escada. Outros simplesmente eram jogados. - Mauro fez uma careta. - Peço desculpas se a imagem não lhe agrada, vossa graça.
Ela o encarou com uma expressão fulminante.
- Garanto, Mauro, que provavelmente não há nada que você possa me contar sobre como os prisioneiros eram tratados que eu consideraria surpreendente ou intolerável.
- Claro, vossa graça. Peço desculpas.
Amara estava cansada dos homens e seus falsos pedidos de desculpa.
- Carlos, cuide para que meus soldados recebam aposentos adequados depois dessa longa viagem.
- Sim, imperatriz. - Carlos fez uma reverência.
- Vossa graça ficará aqui, imperatriz Amara. - Mauro indicou a construção de três andares, feita de terra e pedra, a maior e mais forte do vilarejo. - Espero que seja do seu agrado.
- Com certeza será.
- Organizei tudo para levá-la a uma feira mais tarde e mostrar o trabalho de seus novos súditos paelsianos. Há, por exemplo, alguns bordados lindos que podem ser de seu interesse. E alguns enfeites com
contas para seu belo cabelo. Uma comerciante virá da costa até aqui para trazer uma tinta de frutas silvestres que ela criou para pintar os lábios... - Mauro parou de falar ao ver a expressão contrariada
da imperatriz. - Algum problema, vossa graça?
- Você acha que estou interessada em bordados, enfeites e tintas para os lábios? - Ela esperou a resposta, mas ele só abriu a boca sem emitir nenhum som.
De trás dela, ouviu-se uma risada.
Amara virou imediatamente, os olhos fixos no guarda - seu guarda - que mantinha um sorriso no rosto.
- Está achando engraçado? - ela perguntou.
- Sim, vossa graça - o guarda respondeu.
- Por quê?
Ele olhou para os compatriotas ao redor, e nenhum deles fez contato visual.
- Bem, porque é do que as mulheres gostam: maneiras de ficarem mais bonitas para os homens.
O guarda disse isso sem hesitar, como se fosse óbvio e nada ofensivo.
- Minha nossa - Kyan disse no ouvido dela. - Que insolente, não?
Ela concordava.
- Me diga uma coisa... Você acha que eu deveria comprar tinta para os lábios para agradar meu marido quando ele finalmente voltar para mim? - ela perguntou.
- Acho que sim - ele respondeu.
- Esse é meu objetivo como imperatriz, claro. Agradar meu marido e qualquer outro homem que por acaso olhe para mim.
- Sim, vossa graça.
Era a última coisa que ele diria na vida. Amara fincou a adaga que trazia consigo no homem e viu os olhos dele se arregalarem de surpresa e dor.
- Se algum de vocês me desrespeitar - ela disse, lançando um olhar aos outros guardas que a encaravam, surpresos -, vai morrer.
O guarda que havia dito o que não devia caiu no chão. Ela sinalizou para Carlos retirar o corpo, e ele obedeceu sem hesitar.
- Muito bem, pequena imperatriz - Kyan sussurrou. - Você me prova mais seu valor a cada dia que passa.
Amara abriu um sorriso na direção de Mauro, cuja expressão era de medo.
- Estou ansiosa para ir à feira. Parece incrível.
Mais tarde, escoltadas por Mauro e pelos guardas reais, Amara e Nerissa exploraram a feira, composta por vinte bancas cuidadosamente escolhidas que, como o prometido, vendiam, em sua maioria, produtos
fúteis - principalmente itens de beleza e de moda.
Amara ignorou os lenços e vestidos bordados, a tinta para os lábios, os cremes para remover manchas e os bastões de carvão para delinear os olhos e se concentrou nos comerciantes - paelsianos, jovens e
velhos, com expressão cansada, mas esperançosa, quando ela se aproximava.
Sem medo, sem desespero, só esperança.
Que estranho encontrar isso em um reino dominado, ela pensou. Mas a ocupação kraeshiana de Mítica tinha sido, até aquele momento, quase totalmente pacífica, em espacial em Paelsia. Ainda assim, Carlos
havia contado sobre grupos rebeldes que conspiravam contra ela, tanto em Limeros quanto em Auranos.
Não era um problema para Amara. Os rebeldes eram uma praga inevitável, mas que em geral podia ser combatida com facilidade.
Ela observou quando Nerissa se aproximou de uma banca para ver um lenço de seda que o comerciante mostrava a ela.
- Fico feliz em ver que você está se habituando - Kyan sussurrou carinhosamente no ouvido dela. Os ombros de Amara ficaram tensos com a voz dele.
- Estou fazendo o melhor que posso - ela respondeu em voz baixa.
- Infelizmente tenho que deixá-la por um tempo enquanto procuro a magia de que precisamos para realizar o ritual.
Pensar nisso a assustou. Eles tinham acabado de chegar!
- Agora? Vai embora agora?
- Sim. Em breve, retomarei minha glória, e você será mais poderosa do que pensa. Mas precisamos da magia para finalizar isso.
- A magia de Lucia. E seu sangue.
- O sangue dela, sim. Mas não precisamos da feiticeira em si. Vou encontrar uma fonte alternativa de magia. Mas precisaremos de sacrifícios; sangue para selar a magia.
- Compreendo - ela sussurrou. - Quando você volta?
Amara esperou, mas não houve resposta.
Então, ela sentiu sua saia mexer e olhou para baixo. Uma menininha, que não devia ter mais do que quatro ou cinco anos, com cabelo bem preto e sardas no rosto bronzeado, aproximou-se com certa hesitação,
oferecendo uma flor.
Amara aceitou a flor.
- Obrigada.
- É você, não é? - a menina perguntou esbaforida.
- Quem você acha que sou?
- Aquela que veio salvar todos nós.
Amara sorriu e lançou um olhar para Nerissa, que estava ao seu lado usando um lenço colorido, e então sorriu para a criança.
- É o que você acha?
- Foi o que minha mamãe me disse, então deve ser verdade. Você vai matar a bruxa má que machuca nossos amigos.
Uma mulher se aproximou, claramente envergonhada, e pegou a mão da menininha.
- Perdoe-nos, imperatriz. Minha filha não teve a intenção de perturbá-la.
- Não me perturbou - Amara disse. - Sua filha é muito corajosa.
A mulher riu.
- Está mais para teimosa e tola.
Amara balançou a cabeça.
- Não, nunca é cedo demais para as meninas aprenderem a dizer o que pensam. É um hábito que as fará crescer mais corajosas e fortes. Diga, você acredita no que ela disse? Que vim salvar todos vocês?
A expressão da mulher se tornou mais séria, e seu cenho se franziu com preocupação e dúvida. Ela encarou os olhos de Amara.
- Meu povo sofreu por mais de um século. Estávamos sob o comando de um homem que tentou nos fazer acreditar que ele era feiticeiro, cobrando impostos tão altos a ponto que, mesmo com os altos lucros das
vinícolas, não conseguíamos nos sustentar. A terra que chamamos de lar está se desfazendo sob nossos pés enquanto estamos aqui conversando. Quando o rei Gaius venceu Basilius e o rei Corvin, muitos de
nós achamos que ele nos ajudaria. Mas isso não aconteceu. Nada mudou, só piorou.
- Sinto muito em ouvir isso.
A mulher balançou a cabeça.
- Mas então a senhora chegou. Aquela feiticeira má passou por aqui destruindo tudo, vilarejo por vilarejo, mas ela desapareceu quando a senhora chegou. Seus soldados têm sido rigorosos, mas justos. Eles
acabaram com quem discordava, mas essas pessoas não fazem falta: seus detratores são os mesmos homens que espalharam a discórdia em nosso reino depois que o exército de Basilius parou de oferecer a pouca
proteção que oferecia. Então, se acredito, como muitos aqui acreditam, que a senhora chegou para nos salvar? - Ela ergueu o queixo. - Sim, acredito.
Quando os guardas levaram Amara para longe da mulher e da filha, em direção à outra área da feira, aquelas palavras ficaram em sua mente.
- Posso fazer uma sugestão ousada, vossa graça? - Mauro perguntou, e ela olhou para o homenzinho que a seguia como um cão adestrado.
- Claro que pode - ela disse. - A menos que queira sugerir que eu compre tinta para os lábios.
Ele empalideceu.
- De modo algum.
- Então, vá em frente.
- O povo paelsiano está aberto a sua liderança, mas a notícia precisa ser espalhada. Sugiro abrir os portões do complexo para permitir que os novos cidadãos entrem para ouvi-la falar sobre seus planos
para o futuro.
Um discurso, ela pensou. Era algo que Gaius gostaria muito mais de fazer do que ela.
Mas Gaius não estava lá. E agora que tinha o deus do fogo para aconselhá-la sobre como acessar a magia da esfera de água-marinha, não havia mais motivos para deixar o rei viver por muito mais tempo.
- Quando? - ela perguntou a Mauro.
- Posso espalhar a notícia agora mesmo. Milhares virão dos vilarejos vizinhos para ouvi-la. Talvez em uma semana?
- Três dias - ela disse.
- Três dias parece perfeito - ele concordou. - Será maravilhoso. Muitos paelsianos, de braços e coração abertos, estão prontos a obedecer a todas as suas ordens.
Sim, Amara pensou. Um reino pronto para fazer o que ela mandasse sem questionar, que aceitaria uma mulher como líder sem discutir, seria incrivelmente útil.
16
MAGNUS
PAELSIA
Magnus pensou nas doze pessoas que estavam na hospedaria Falcão e Lança, notando que quase metade queria vê-lo morto.
- E você é uma delas, com certeza - ele murmurou quando Nic atravessou a sala, arregalando os olhos ao passar pelo príncipe. Magnus estava sozinho sentado a uma mesa com um caderno de desenho que tinha
encontrado em uma gaveta em seu quarto.
- Cassian, veja - ele disse. - Desenhei você.
Magnus ergueu o caderno. Com os dedos manchados de carvão, ele mostrou uma página na qual tinha desenhado um garoto magro pendurado em uma forca, a língua para fora da boca, X mórbidos no lugar dos olhos.
Nic, que supostamente era muito simpático com todo mundo, lançou um olhar de puro ódio para Magnus.
- Você acha isso engraçado?
- O que foi? Não gostou? Bom, dizem que a arte é subjetiva.
- Você acha que gastar seu tempo rabiscando nesse caderno vai fazer todo mundo considerar você menos ameaçador? Pense bem. Essa pose de inocente e bacana não me engana.
Magnus revirou os olhos.
- Certo - ele disse, enfiando o caderno embaixo do braço. - Mas não posso dizer que você não me magoou. Pensei que tivéssemos nos tornado amigos em Limeros.
Nic semicerrou os olhos, sem achar graça.
- A única coisa que me ajuda a dormir à noite é saber que Cleo sabe muito bem quem você é.
- Espero muito que você esteja certo - Magnus respondeu sem dar muita atenção. Ele nunca tinha deixado as palavras de Nic atingi-lo antes, e não deixaria agora, mas a questão de Cleo era um espinho. -
Acho muito interessante ver que vocês decidiram ficar aqui na cova do leão.
- Talvez você esteja enganado a respeito de quem é o leão e quem é a presa.
Magnus deu risada.
- Conversar com você é sempre muito estimulante, Nic. De verdade. Mas tenho certeza de que tem outros lugares para onde ir, e eu detestaria fazer um cara tão brilhante como você perder tempo. Sem dúvida
já atrapalhei seu próximo compromisso que é... qual é mesmo? Ficar à sombra de Ashur, à espera da maravilhosa atenção dele, agora que conseguiu voltar dos mortos? - Por ter testemunhado a morte de Ashur,
Magnus ainda estava tentando processar a informação de que ele estava vivo. - Muito triste, de verdade, que ninguém veja o que de fato está acontecendo entre o príncipe ressuscitado e o ex-cavalariço.
Foi o suficiente para fazer Nic corar.
- E o que seria, Magnus? O que você acha que está acontecendo?
Magnus fez uma pausa, encarando o olhar incerto de Nic.
- O sabor da decepção amorosa é amargo, não é?
- Imagino que você entenda bem sobre o assunto, não? - Nic rebateu. - Nunca esqueça que Cleo odeia você. Você matou todo mundo que ela ama. Roubou o mundo dela. É uma verdade que nunca vai mudar.
Lançando um último olhar, Nic saiu da sala, deixando Magnus furioso, bufando, com vontade de socar alguma coisa. Ou alguém.
Ele está enganado, ele disse a si mesmo. O passado não determina o presente.
E era no presente que ele tinha que se concentrar. Precisavam encontrar Lucia o mais rápido possível.
Por que esperar mais um dia para minha avó encontrar a pedra mágica?, ele pensou. Eles estavam ali, acovardados como vítimas, quando deveriam estar fazendo o máximo possível para tirar aquela kraeshiana
de suas terras para sempre.
Magnus empurrou o caderno de desenho para o centro da mesa e levantou. Ele ia encontrar a avó e exigir que ela - com ou sem a magia totalmente restaurada - testasse um feitiço para encontrar sua irmã.
- Está sozinho nessa sala enorme?
Ele parou ao ouvir a voz de Cleo. Ela estava na base da escada, observando-o do outro lado da sala enorme.
- Parece que sim - ele diz. - Mais um motivo para você não entrar.
Ela entrou mesmo assim.
- Parece que não conversamos a sós há muito tempo.
- Faz dois dias, princesa.
- Princesa - ela repetiu, mordendo o lábio inferior. - Minha nossa, você está fingindo muito bem. Na verdade, não sei se é só fingimento mesmo.
- Não sei ao certo do que você está falando. - Ele olhou para Cleo como um homem faminto olhava para um banquete. - Esse vestido é novo?
Ela alisou a saia de seda, da cor de um pêssego maduro.
- Olivia e eu fomos a uma feira perto das docas hoje.
- Você e Olivia fizeram o quê? - Ele franziu a testa, assustado por não saber que a princesa tinha decidido se arriscar por aí. - Que péssima ideia. Você poderia ter sido reconhecida.
- Por mais que eu goste de ser repreendida, acho que preciso dizer que ninguém me reconheceu, já que usei meu manto. E não estávamos sozinhas. Enzo e Milo estavam conosco, para nos proteger. Ashur também.
Ele está explorando a cidade para saber o que os paelsianos pensam sobre a notícia da chegada da irmã dele.
- E o que dizem?
- Ashur disse que a maioria parece... disposta a mudar.
- É mesmo?
- Qualquer coisa depois do chefe Basilius seria um progresso. - Ela hesitou. - Bem, à exceção do seu pai, claro.
- Claro. - Magnus não se importava muito com os paelsianos nem com os auranianos, na verdade. Ele só se importava com o fato de Cleo ter saído da hospedaria sem que ele notasse. - Não importa com quem
você saiu, porque ainda assim foi uma péssima ideia.
- Assim como beber até cair toda noite na taverna Videira Púrpura - ela respondeu, meio tensa. - E, no entanto, é o que você faz.
- É diferente.
- Tem razão. O que você faz é muito mais idiota e tolo do que passar o dia explorando uma feira.
- Idiota e tolo - ele repetiu, franzindo a testa. - Duas palavras que nunca foram usadas para me descrever.
- Elas são certeiras - disse Cleo, o tom firme e a testa franzida. - Quando vi você naquela primeira noite com Taran...
O som daquele nome atravessou o espaço entre eles como a lâmina afiada de um machado cortando um tronco de árvore.
- Sei que a presença dele aqui deve ser difícil para você - Magnus comentou, sentindo a garganta apertar. - Aquele rosto... Todas aquelas lembranças horrorosas que ele sugere...
- A única lembrança horrorosa de Taran que tenho é a da lâmina dele pressionada contra sua garganta. - Cleo parou, observando a expressão de Magnus e franzindo mais a testa. - Você entende que, quando
olho para ele, só vejo Theon?
- E como não veria?
- Admito que foi inesperado encontrá-lo. Mas Theon se foi. Sei disso. Já aceitei isso. Taran não é Theon. Mas é uma ameaça.
- Compreendo.
- Compreende? - Cleo continuou a observá-lo concentrada, como se fosse um enigma que ela precisasse decifrar. - Mas você pensou mesmo que eu o veria e esqueceria tudo o que aconteceu desde aquele dia?
Que o ódio que eu sentia por você voltaria a me cegar? Que eu... o quê? Me apaixonaria por Taran Ranus no mesmo instante?
- Parece mesmo um tanto quanto absurdo.
Ela ficou pensativa.
- Bom, Taran é muito bonito. Tirando o fato de querer você morto, o que é, admito, um objetivo que também já tive. Ele seria um pretendente perfeito.
- Deve ser muito divertido me atormentar.
- Muito - ela provocou, abrindo um sorriso discreto, mas levemente triste. Cleo segurou as mãos dele, e a sensação de sua pele quente junto à dele foi como um bálsamo numa ferida dolorosa. - Nada mudou
entre nós, Magnus. Saiba disso.
As palavras dela confortaram sua alma atormentada.
- Fico muito feliz em saber disso. Quando pretende contar aos outros?
No mesmo instante, a expressão dela ficou tensa.
- Não é o momento. Há muita coisa em risco agora.
- Nic é a pessoa mais próxima de você, seu amigo mais querido, e ele me odeia.
- Ele ainda vê você como um inimigo. Mas, um dia, sei que vai mudar de ideia.
- E se não mudar? - Ele a encarou nos olhos. - O que vamos fazer?
- Como assim?
- Escolhas, princesa. A vida parece cheia delas.
- Você está pedindo para que eu escolha entre você e Nic?
- Se ele se recusar a aceitar... isso, o que quer que seja, princesa, então acho que você teria que escolher.
- E você? - ela finalmente perguntou depois de um longo momento de silêncio. - Quem você escolheria se alguém ou algo o forçasse? Eu? Ou Lucia? Sei muito bem que ela foi seu primeiro amor. Talvez você
ainda a ame como antes.
Magnus grunhiu.
- Garanto a você que não existe nenhum sentimento dessa natureza entre mim e Lucia. E no que diz respeito a ela, nunca existiu.
Seu coração tinha feito tanto progresso nos últimos meses que ele se perguntava se ainda era a mesma pessoa que tinha sofrido de amor por sua irmã adotiva. Apesar de ter assumido uma forma diferente, aquele
amor ainda estava ali, dentro dele. Não importava o que Lucia pudesse fazer ou dizer, Magnus a amava incondicionalmente e estava pronto para perdoá-la por qualquer erro.
Mas o desejo que ele já sentira por sua irmã... seu coração tinha se voltado total e permanentemente para outra pessoa - alguém muito mais frustrante e perigosa do que sua irmã adotiva.
- Afinal, Lucia escolheu fugir com o tutor. - Cleo relembrou.
Ele franziu os lábios.
- Sim, e agora o destino do mundo depende da localização dela. - Cleo olhou para ele duvidosa. - O que foi, princesa? - ele perguntou. - Está em dúvida?
- Eu... - Cleo começou a falar, e então parou e olhou para os próprios pés, como se estivesse refletindo sobre o assunto. - Magnus, só não tenho certeza de que ela seja a única solução com a qual você
parece contar.
- Ela tem ligações com o deus do fogo. Acredito que saiba como extrair a magia dos cristais da Tétrade sem permitir que o deus elementar escape.
- Parece que foi ela quem ajudou Kyan a escapar, se estão viajando juntos. Só pode ser.
- Talvez. Mas a magia dela é ampla.
- Ampla o suficiente para matar todos nós.
- Você está enganada - Magnus disse sem hesitar. - Ela não faria isso. Lucia vai nos ajudar, vai ajudar a todos. - Sempre que falava bem de Lucia, ele percebia que Cleo contraía os lábios e franzia a testa
como se estivesse comendo alguma coisa amarga.
Será que ela poderia estar com ciúme do que sinto por Lucia?, ele se perguntou, achando graça.
- Vejo que você fica feliz quando pensa em sua irmã adotiva - ela comentou tensa, em um tom desagradável. - Tenho certeza de que pensar nela é uma ótima válvula de escape para você enquanto estamos presos
aqui em Paelsia, cercados por rebeldes que adorariam a oportunidade de incendiar esta hospedaria com toda a realeza dentro.
- É esse o plano abominável de Agallon? - ele perguntou, contraindo os lábios e franzindo a testa. - O que mais ele contou na calada da noite desde que chegou?
- Muito pouco, na verdade.
Magnus deu um passo na direção dela. Cleo deu um passo para trás: a dança na qual se envolviam de vez em quando. Os dois continuaram até ele encurralá-la em um canto, e ela lançar um olhar desafiador.
- Talvez você preferisse dividir um quarto com o rebelde do que comigo - ele disse, enrolando uma mecha do cabelo dela no dedo. - Mas ele provavelmente preferiria uma casa na árvore feita de tábuas e barro.
Cleo riu.
- É nisso que está decidindo se concentrar agora?
- Sim. Porque se me concentrar em Agallon, posso parar de pensar em você e em como quero levá-la para a minha cama.
Ela só teve tempo de soltar um breve suspiro antes de Magnus beijá-la, segurando-a pela cintura e puxando-a para si. Cleo retribuiu sem limitações.
As mãos dele deslizaram pelo corpo da princesa, passando pela lombar, chegando à curva de seu quadril. Desesperado para se inclinar e beijá-la direito, ele pegou suas pernas por trás e a levantou, pressionando
suas costas contra a parede.
Sim, ela deveria fazê-lo parar naquele momento.
Mas não foi o que aconteceu. Na verdade, Cleo tinha começado a puxar os cordões da camisa dele, sem afastar seus lábios nem por um segundo.
- Quero você - ele sussurrou enquanto a beijava. - Quero tanto você que posso morrer de desejo.
- Sim... - O hálito dela era doce e quente. - Também quero você.
Quando Magnus a beijou, toda a racionalidade sobre a maldição desapareceu de sua mente. Nada mais existia, só a necessidade enlouquecedora e alucinante de tocá-la, de senti-la...
Pelo menos, até ouvir passos de alguém se aproximando por trás.
Foi nesse momento que Magnus percebeu que não estavam mais sozinhos.
Deixando a princesa de volta ao chão, devagar, Magnus se forçou a se afastar e, com os ombros tensos, enfrentar o intruso.
Apesar de sua altura intimidadora e dos músculos avantajados, Felix Gaebras parecia envergonhado.
- Hum... Desculpe interromper. Eu estava... só passando. - Mas ficou parado onde estava, e então, ergueu o queixo. - Perdoe-me por dizer, vossa alteza - ele disse, olhando para Magnus -, mas talvez seja
melhor o senhor ser mais discreto com a princesa de agora em diante.
- É mesmo? - Magnus perguntou.
Felix assentiu.
- Nic convenceu a todos do seu ódio por Magnus, princesa. E isso... não me pareceu uma atitude de ódio. Ele vai enlouquecer.
Cleo se afastou de Magnus, os dedos nos lábios e o rosto corado.
- Por favor, Felix - ela disse, quase desesperada. - Prometa que não vai contar nada a Nic sobre isso. Nunca.
Felix fez uma reverência.
- Não se preocupe, princesa. Não direi nada.
- Obrigada.
Magnus disfarçou a careta. Algo no modo como ela falou, no alívio que pareceu sentir por ter sido Felix quem os vira juntos e não alguém cuja opinião considerasse mais importante, o incomodou demais.
Se Ashur podia buscar informações sobre Amara, Magnus também podia. Naquela tarde, ele deixou a hospedaria, subiu a rua até a feira que Cleo havia mencionado e passou na porta da tentadora Videira Púrpura.
Na feira, ele mal olhou para as bancas de madeira com lonas coloridas protegendo os comerciantes do sol, cada um vendendo um produto paelsiano diferente - de vinho a joias, de frutas e legumes a lenços
e túnicas de todas as cores, e diversas outras mercadorias. No movimentado labirinto de bancas, sentia-se o cheiro adocicado das frutas e da carne defumada, e mais perto das docas, o cheiro de suor e vômito
pegou as narinas de Magnus de surpresa. Entre os diversos clientes da feira, incluindo a tripulação de navios e os cidadãos comuns da cidade, vários guardas kraeshianos chamaram sua atenção.
Ele observou um dos homens de Amara conversar com um vendedor de vinho paelsiano que lhe ofereceu um pouco da bebida. O copo de madeira não foi oferecido com mãos trêmulas nem medo nos olhos do vendedor,
mas com um sorriso.
Para Magnus, era irritante ver que muitos paelsianos aceitavam o destino de se tornar parte do Império Kraeshiano sem se preocupar com nada. Será que as coisas estavam tão ruins antes que pensar em Amara
como nova líder era uma dádiva?
Ele continuou a observar essa dinâmica entre paelsianos e kraeshianos até o sol ficar alto e insuportavelmente quente para continuar com o manto com capuz. Como já havia tido contato com paisagens, sons
e cheiros bons e ruins da feira de Basilia, decidiu voltar.
Magnus virou na direção da hospedaria e descobriu que havia alguém em seu caminho.
Taran Ranus.
O príncipe se forçou a não deixar claro que encontrar o gêmeo de Theon - alguém que quase tinha conseguido vingar o assassinato de seu irmão - o tinha assustado. Mas antes que Magnus decidisse o que dizer,
Taran tomou a liberdade de falar.
- Estou curioso - ele disse em voz baixa. - Quantas pessoas você matou?
- Essa pergunta é muito pessoal para um lugar tão público.
Taran continuou, sem se deixar abater.
- Sabemos que matou meu irmão. Quem mais?
Magnus tentou não se encolher, tentou não levar a mão ao cabo da espada. A espada de Taran também estava visível, pendurada no quadril.
- Não sei ao certo - admitiu.
- Aceito uma estimativa.
- Muito bem. Talvez... uma dúzia.
Taran assentiu, sem deixar sua expressão revelar o que passava em sua mente quando olhou para a feira movimentada ao redor deles.
- Quantas pessoas você acha que eu matei?
- Mais de uma dúzia, tenho certeza - Magnus respondeu. Ele contraiu os lábios. - Por quê? Está aqui para me provocar com suas habilidades com a espada? Para contar histórias de como fez homens maus chorarem
chamando pela mãe diante da morte? Que mataria mais mil se isso fizesse o sol brilhar e a felicidade imperar nesse mundo?
Taran observou Magnus, semicerrando os olhos. Para alguém que quase tinha posto a hospedaria a baixo em uma noite para tentar cortar o pescoço de Magnus, ele parecia bem calmo naquele dia.
- Você se arrepende de ter matado meu irmão? - ele finalmente perguntou, ignorando as perguntas de Magnus.
Magnus pensou em mentir, sem saber se deveria fingir arrependimento. Mas sua intuição lhe disse que não conseguiria enganar o gêmeo de Theon.
- Não - ele afirmou com o máximo de confiança que conseguiu. - Minha vida estava em risco. Tive que me proteger de alguém muito mais habilidoso com a espada do que eu era na época, por isso agi. Não posso
dizer que me arrependo de ter tomado as medidas necessárias para salvar minha vida, apesar de saber que hoje não faria as escolhas que fiz naquele momento.
- Qual escolha faria hoje?
- Combate direto. Minhas habilidades de luta melhoraram muito no último ano.
Taran assentiu, mas seu rosto não deixou transparecer nada.
- Meu irmão teria vencido você.
- Talvez - Magnus disse. - Mas e daí? Imagino que você esteja aqui para tentar me matar diante dessas pessoas. É isso? Ou estamos só conversando?
- Foi exatamente para isso que o segui até aqui: quero decidir o que fazer. Antes era muito simples, estava muito claro em minha mente que você tinha que morrer.
- E agora?
Taran puxou a espada da bainha, mas só o suficiente para mostrar a lâmina que trazia uma série de símbolos e palavras desconhecidas gravadas na superfície.
- Essa era a arma de minha mãe. Ela me contou que as palavras gravadas estão na língua dos imortais.
- Interessante - Magnus disse, o corpo tenso e pronto para a luta. - Sua mãe era bruxa?
- Sim. Ela era uma Vetusta, uma bruxa que adorava os elementos com magia de sangue e sacrifício.
- Tenho certeza de que você está me contando isso por um motivo.
- Estou. Pedi para você adivinhar quantas pessoas eu matei. - Taran embainhou a espada. - A resposta é uma. Apenas uma.
Uma gota de suor correu pelas costas de Magnus.
- Sua mãe.
Taran assentiu com seriedade.
- As Vetustas acreditam que os gêmeos têm uma magia poderosa. - Ele balançou a cabeça, franzindo a testa. - Existe uma lenda quase esquecida que diz que os primeiros imortais criados foram os gêmeos: um
escuro e um claro. Minha mãe acreditava que a magia sombria era muito mais poderosa, então, para aumentar a dela, decidiu sacrificar o gêmeo claro.
- Theon.
- Na verdade, não. Fui eu, cinco anos atrás, quando tinha quinze anos. Talvez minha mãe achasse que eu fosse permitir que ela usasse essa mesma espada para me matar, mas estava enganada. Eu reagi e a matei.
Theon chegou naquele momento e me viu empunhando uma espada e nossa mãe morta a meus pés. Ele não sabia o que ela era de verdade. Eu mesmo só descobri a verdade recentemente. Ele jurou que eu pagaria com
a vida por tê-la matado, e eu sabia que ele nunca compreenderia. Então corri o máximo que pude, sem olhar para trás. Até agora. - Ele riu, e o som saiu seco e oco. - Parece que temos isto em comum: nós
dois fomos forçados a matar para nos proteger, uma atitude da qual não podemos nos arrepender, porque, sem ela, não estaríamos vivos hoje.
Magnus não sabia o que dizer. A confissão de Taran o deixou sem fala. Ele se concentrou na movimentação da feira, fechando os olhos com força por um momento.
Quando voltou a abri-los, Taran se afastava dele em meio à multidão. Ele o observou à distância, pensando na conversa e sentindo-se grato por não ter tido que lutar para defender a própria vida naquele
dia.
Quando voltaram para a hospedaria, Jonas estava na sala de convivência, como se os estivesse esperando. Ele levantou da cadeira e largou o livro que estava lendo. Magnus notou com surpresa que era o mesmo
que tinha lido, sobre vinhos.
- Taran, precisamos conversar - Jonas anunciou. - No pátio não seremos ouvidos por bisbilhoteiros. Felix já está esperando. Você também, vossa alteza.
Magnus inclinou a cabeça.
- Eu?
- Foi o que eu disse.
- Agora estou profundamente confuso. Muito bem. Vamos lá, rebelde.
Atrás da casa havia um espaço a céu aberto que o dono da hospedaria e sua esposa chamavam de pátio. Na verdade, era uma área de grama marcada por uma horta, flores e dois cercados para os animais - um
para as galinhas e outro para os porcos gordos que guinchavam alto quando alguém se aproximava.
Magnus e Taran acompanharam Jonas até onde Felix estava, no canto oposto do jardim.
- Temos informação sobre Amara - Jonas disse finalmente. - Ela está aqui em Paelsia.
Magnus tentou não demonstrar insatisfação.
- Informação vinda de quem?
- Há rebeldes por todos os lados, alteza.
O primeiro ímpeto de Magnus foi querer lembrar Jonas que a maioria dos rebeldes havia morrido, mas decidiu se controlar.
- Muito bem. Onde em Paelsia?
- No complexo do chefe Basilius.
- E onde, exatamente, é isso?
- A um dia de viagem daqui rumo ao sudeste. Fico surpreso por você não saber, já que é um ponto importante na Estrada de Sangue de seu pai.
- Estrada Imperial - Magnus o corrigiu.
- Estrada de Sangue - Jonas repetiu, rangendo os dentes.
Magnus decidiu não discutir a questão com um paelsiano, nem tocar no assunto de como ela tinha sido construída tão depressa pelos trabalhadores paelsianos sob ordens de seu pai. Não era à toa que os cidadãos
daquele reino tinham recebido Amara tão bem.
- E esse informante também explicou por que ela veio para cá?
- Não.
- Não importa por que ela está aqui - Felix disse. - Essa é nossa chance.
- De quê? - Magnus perguntou. - De matá-la?
- Essa era a ideia.
- Não era, não - Jonas disse, arregalando os olhos para o amigo.
- Matar a imperatriz não muda o fato de que meu pai deu este reino para a família dela. Não muda que os soldados estão tão espalhados quanto manchas de lama. E Ashur? Você o trouxe aqui como se confiasse
nele, mas não sabemos qual é o plano dele.
- Ashur é um problema, admito - disse Jonas. - Nic está de olho nele, informando qualquer comportamento incomum.
- Ah, sim. - Magnus cruzou os braços. - Isso deve dar certo. Então, você - ele virou para Felix - quer matar a imperatriz. E você - ele virou para Jonas - quer pagar para ver. - Ele assentiu. - Excelentes
decisões. Acho que Amara não terá chance contra essa aliança.
Jonas hesitou.
- Taran, você não planejava matá-lo?
- Sim.
- Estou começando a me animar com essa possibilidade.
- Está claro que - Magnus começou -, se sabemos onde Amara está, a melhor estratégia é mandar homens para obter mais informações sobre os planos atuais dela, por que está aqui e onde escondeu o cristal
da água.
Taran resmungou.
- Odeio concordar com ele, mas concordo. Posso ir. Não tenho motivos para ficar aqui sem nada para fazer, olhando para as paredes.
- Também vou - Felix anunciou animado.
Jonas lançou um olhar cauteloso para Felix.
- Você acha que consegue lidar com isso sem fazer nada de errado?
- Claro que não. Mas ainda assim, quero ir. - Felix suspirou. - Prometo que vamos conseguir informações. E só isso.
Magnus preferia entrar em ação, como Felix, e simplesmente varrer Amara do mundo, mas sabia que informações seriam úteis com os dois reinos em guerra.
- Devemos contar a Cleo sobre isso? Ou a Cassian?
- Por enquanto, não - Jonas respondeu. - Quanto menos pessoas souberem, melhor.
Magnus não gostava de guardar segredos de Cleo, mas Jonas tinha razão.
- Tudo bem. Vamos manter esse assunto entre nós quatro.
Jonas assentiu.
- Então, resolvido. Taran e Felix partem amanhã cedo.
17
CLEO
PAELSIA
- Você viu o príncipe Ashur por aí? - Nic perguntou.
Cleo desviou o olhar do livro sobre a vida do chefe Basilius que tinha escolhido na estante do andar de baixo. Seus pensamentos estavam tão dispersos que ela devia ter lido a mesma página dez vezes - que
contava sobre os cinco casamentos dele.
Nic estava parado na porta do quarto dela. Enzo estava de guarda do lado de fora, um protetor constante, mas ela tinha deixado claro que Nic podia interrompê-la.
- Hoje não - ela admitiu, ainda chocada por ter visto que o príncipe tinha renascido dos mortos. - Por quê? Isso é estranho?
- Ele gosta de sair por aí sem avisar ninguém. - Ele ficou sério. - Você acha que ele está diferente? Não sei dizer.
- Para mim, ele está igual, mas não o conheço muito bem - ela admitiu.
- Nem eu.
- Ah, não sei. Às vezes não precisamos de anos para conhecer alguém. Algumas conversas são mais do que suficientes para saber como a pessoa é.
- Se você acha...
Cleo sabia que Nic e Ashur eram bem próximos, a ponto de seu amigo ter sentido muito a perda do príncipe. E também sabia que existia mais do que uma simples amizade entre os dois, mas emoções que os dois
estavam apenas começando a explorar. Talvez agora nunca mais se resolvessem.
- Parece que Taran e Felix também sumiram - ela disse. - Onde eles estão?
- Ótima pergunta. Pensei que Jonas fosse meu parceiro, mas parece que ele tem negócios com Magnus agora.
- O quê? - Só de pensar, ela sentiu vontade de rir. - Se você viu os dois conversando, é bem provável que o assunto seja o rei.
Desde que Jonas conseguira - ainda que não tenha conseguido - cravar a adaga no peito do rei, dois dias antes, Gaius não saía do quarto, com a mãe a seu lado o tempo todo, temendo que o filho estivesse
perto demais da morte e não sobrevivesse tempo suficiente para receber a magia secreta e restauradora que ela prometera.
Cleo temia que, se o rei morresse antes de a bruxa encontrar Lucia, ela se recusaria a ajudá-los, mas não se incomodava em imaginá-lo sofrendo em um quartinho em Paelsia.
Um fim adequado para um monstro.
Como será que Gaius Damora era quando conheceu a mãe dela? A que horrores ele teria submetido Elena Corso? Era uma pergunta que a perseguia desde que ele dissera o nome dela.
- Você confia nele? - A voz de Nic interrompeu seus pensamentos.
- Em quem? Magnus?
Ele riu.
- Não, claro que não estou falando de Magnus. Em Jonas.
Ela confiava em Jonas, o garoto que a tinha sequestrado e aprisionado - não uma, mas duas vezes - e que, em determinado momento, quis que ela morresse por presenciar o assassinato de seu irmão?
Mas também era o garoto que se tornara um líder. Que lutara por seu povo. O garoto que tinha arriscado a própria vida para salvar a dela.
- Confio nele, sim - ela admitiu.
Muita coisa podia mudar em um único ano.
- Eu também - Nic disse.
Ela assentiu.
- Se ele está falando com Magnus, deve ser importante.
- Ainda assim, não gosto de pensar que esteja escondendo alguma coisa de nós.
Cleo também não gostava, principalmente se fosse um segredo entre Jonas e Magnus. E jurou que conseguiria algumas respostas. Ela não gostava de ficar por fora das questões.
Naquele mesmo dia, a chance apareceu. Quando Magnus pediu para falar com Enzo no pátio, ela começou a procurar informações por conta própria na hospedaria. Logo encontrou algo possivelmente interessante
na sala de convivência: o caderno de desenho de Magnus.
Cleo já tinha visto Magnus desenhando nele, os dedos pretos por causa do carvão. Os limerianos não gostavam tanto de arte quanto os auranianos, que viam a beleza como um presente que o artista compartilhava
com o mundo por meio de sua visão singular. Mas quando um limeriano desenhava, precisava ser bem semelhante ao original para ajudar na referência e no aprendizado.
Para isso, Magnus tinha passado um verão tendo aulas de arte na Ilha de Lukas muitos anos antes, uma viagem que muitos nobres e jovens da realeza - incluindo a mãe e a irmã de Cleo - faziam na juventude.
Ela já tinha visto o antigo caderno de Magnus, no qual havia desenhos incrivelmente detalhados da flora e da fauna... além de vários retratos de Lucia, cada um feito com admiração indiscutível e atenção
a cada centímetro do rosto perfeito da irmã.
Mas aquele era um caderno novo, o que deixou Cleo extremamente intrigada.
- Eu não devia olhar - ela disse a si mesma. - Magnus não me deu permissão.
Mas esse argumento nunca tinha funcionado.
O primeiro desenho era do jardim, um rascunho rápido, mas as dimensões e a precisão eram espantosas. Antes de abandonar aquele desenho, ele tinha se concentrado no detalhe de uma roseira, e mesmo com o
traço grosso do carvão, tinha capturado a beleza em tons de preto e cinza.
A segunda, a terceira e a quarta páginas tinham sido arrancadas sem cuidado.
Na quinta página, não havia um desenho, mas uma mensagem.
Espiando para encontrar um retrato seu, princesa? Desculpe, mas hoje não. Talvez um dia eu desenhe você. Ou talvez não. Vamos ver o que o futuro nos reserva.
M.
Cleo fechou o caderno envergonhada, e também irritada.
Quando ouviu gritos, correu para as janelas com cortinas de lona grossa que davam para o pátio nos fundos da hospedaria.
O príncipe estava empunhando a espada, mirando em Milo e Enzo, que também seguravam suas armas. Quando atacaram, Cleo soltou um grito de susto antes de perceber o que estava acontecendo.
Eles estavam treinando. E a julgar pela força de ataque de Milo e de Enzo, Magnus tinha pedido para os dois darem o melhor de si.
Será que ela nunca tinha visto Magnus assim antes, em guarda, a testa suada, bloqueando as armas dos guardas com a espada? Ela pensou que aquilo podia trazer lembranças horrorosas daquele dia - do dia
em que perdera Theon. Mas naquela visão Magnus era um príncipe sem habilidade comparado a um guarda do palácio, e ele sabia disso.
Sinto muito, Theon, ela pensou, o coração apertado. Não esperava sentir isso por Magnus. Mas sinto. Não posso mais me apegar à sua lembrança. Não posso odiar o príncipe pelo que aconteceu, pelo que ele
fez naquele dia. Magnus está muito diferente agora.
Ou talvez Cleo tivesse mudado irreversivelmente.
- Na minha opinião, não estão lutando tanto quanto deveriam.
Cleo se assustou com a voz de Jonas. Ela o viu a seu lado, escondido até aquele momento, com os olhos arregalados.
- Está surpresa? - ele perguntou, achando graça.
- Você se aproximar de alguém em uma sala escura com certeza não é uma surpresa, rebelde.
Jonas sorriu, mas voltou a observar o trio do lado de fora.
- Será que o príncipe estaria disposto a me enfrentar?
- Se estivesse, certamente um de vocês acabaria morto.
- Sim, mas quem? - Sua sobrancelha, que estava arqueada, abaixou quando ele viu a expressão sofrida dela. - Em pouco tempo você estará livre desse acordo infeliz com ele, prometo.
Cleo conteve a resposta, tomando cuidado para não defender o príncipe. Ela ainda achava que era melhor ninguém saber a verdade sobre eles.
- Magnus, o rei e Selia são o caminho para as respostas de que preciso para liberar a magia da Tétrade - ela comentou.
- Eu já disse: tem um deus elementar dentro daquele cristal - ele falou de modo incisivo.
Seu tom de voz a fez se encolher. Depois que descobriu sobre os deuses elementares, dois dias antes, ela não conseguia parar de pensar no assunto e mal tinha pregado os olhos devido à gravidade da situação.
- Se tivermos a oportunidade de aproveitar essa magia sem deixar o deus escapar, ainda acho que é um objetivo que vale a pena buscar. Vamos perder muito se não conseguirmos esse poder para nos ajudar de
alguma forma, ainda que seja pouco.
Quando ela encarou Jonas, viu uma expressão séria, mas os olhos mais tranquilos.
- Não discordo totalmente.
Ela hesitou, mas só por um momento.
- É bom que saiba que, de acordo com Nic, você está escondendo dele a localização de Taran e Felix. Ele está bastante irritado com isso.
- Comecei a acreditar que o príncipe Ashur é tão mau quanto a irmã. Nic o conhece, mas não diz nada útil a respeito do que esperar dele. Gosto de Nic, mas não conto nenhum segredo que ele possa acidentalmente
revelar ao príncipe.
Outra pessoa entrou na sala e chamou a atenção de Cleo. Era Ashur, poucos metros atrás de Jonas.
- Jonas... - ela começou.
- Ashur diz que é um herói lendário renascido dos mortos para trazer paz ao mundo. Um monte de besteira. Ele não passa de mais um membro mimado da realeza criado com todas as regalias possíveis que só
precisa estalar os dedos para ter qualquer mulher linda que desejar. - Jonas franziu a testa. - Admito que isso seria uma vantagem.
Cleo limpou a garganta quando Ashur cruzou os braços diante do peito e inclinou a cabeça.
- Acho que você deveria... - ela começou.
- O quê? Falar com gentileza sobre alguém que confunde todo mundo porque está confuso em relação à irmã má e gananciosa que provavelmente vai destruir o mundo com sua sede por poder e magia? Ele poderia
tirar o poder dela com facilidade. Poderia se impor, reclamar o título de imperador, contar para todo mundo que Amara matou a família deles. Pronto.
Ela sentia uma pontada no peito a cada palavra verdadeira, mas mordaz, que Jonas dizia.
- Pode ter certeza de que não fico confuso quando se trata de Amara - Ashur disse em voz baixa.
Jonas fez uma careta.
- Você poderia ter me dito que ele estava bem atrás de mim, princesa.
- Você estava ocupado demais admirando o som da própria voz. - E, para ser sincera, as reclamações de Jonas sobre Ashur tinham reacendido a irritação que ela mesma sentia em relação ao príncipe kraeshiano.
Não, não era irritação. Era raiva, beirando a fúria.
- Espero que não esteja confuso em relação a sua irmã - Cleo falou para Ashur. - Ela cravou uma adaga em seu peito por tê-la contrariado.
- As últimas atitudes de Amara foram infelizes, mas eu já sabia que ela estava tomando esse rumo. Na verdade, culpo minha avó por colocar seus próprios planos de revolução em ação. É irônico que minha
madhosha derrube aqueles que também querem mudança no império. Ela tem muito mais em comum com os rebeldes do que pensa.
Cleo ficou olhando para ele, enojada.
- Infelizes... Você chama as escolhas de Amara de infelizes? Ela matou você, matou a própria família, e agora está matando todos os míticos que vê pela frente!
- Ela perdeu as estribeiras. A irmã que conheço, que eu conhecia, não resolve seus problemas com violência desnecessária.
- Sim, claro, os kraeshianos são conhecidos como um povo pacífico.
Ashur a observou atentamente.
- Você está infeliz comigo.
Ela olhou para Jonas e riu um pouco.
- Príncipe Ashur, por que eu estaria infeliz com você?
- Você é como Jonas. Não confia em mim.
- E deveríamos confiar? - Jonas perguntou. - Você não me conta nenhum de seus planos, desaparece por dias, fica isolado... Acha que eu deveria confiar em você mesmo assim?
- Você poderia tirar o trono de Amara - Cleo disse. - Se está tão interessado em ajudar o mundo, pode acabar com muito sofrimento simplesmente tornando-se imperador. Você é mais velho do que Amara. O trono
é seu por direito. Tem tanto medo dela assim?
Ashur riu com frieza ao ouvir aquilo.
- Não tenho medo de Amara.
- Teve medo suficiente para, supostamente, tomar uma poção para salvar sua vida - Jonas disse. - Sabia que ela planejava matá-lo?
O belo rosto de Ashur ficou sério.
- Eu não sabia. Não com certeza. E a poção que tomei... foi bem antes de minha viagem para, acima de tudo, me proteger do rei Gaius, caso ele tentasse usar minha presença em seu reino contra meu pai. Eu
nem imaginava que a poção funcionaria.
- Mas funcionou - Jonas disse. - Precisamos encontrar esse boticário ou essa bruxa ou quem quer que a tenha feito. Poções de ressurreição para todos. Magia assim poderia salvar muita gente.
- A magia da morte não é algo que se possa alterar - Ashur rebateu. - Não por qualquer motivo.
- Mas você alterou essa magia sombria para se salvar. - Cleo teve certeza de que o príncipe se encolheu diante da acusação, o que era incomum para ele. - Você se sente culpado por isso?
- Claro que não. - Apesar da resposta, Ashur não fez contato visual com ela.
- Chega de mentiras, Ashur. Se está tentando dar a impressão de que estamos todos do mesmo lado, precisa ser sincero conosco. Há mais coisas envolvidas nessa poção do que você quer revelar. Ela é perigosa,
não é?
- Muitas poções são perigosas. O veneno nada mais é do que uma poção com a intenção de matar.
Cleo inspirou e soltou o ar devagar, com a sensação de que estava prestes a descobrir um segredo.
- Aprendi que toda magia tem um preço. Que preço você pagou pela oportunidade de viver de novo?
- Aprendi que o preço da magia costuma ser o oposto da magia em si. Para ter muita força, você viverá momentos de grande fraqueza. Para ter prazer, haverá dor. E para ter vida... haverá morte.
- Então você matou alguém - Jonas disse, os braços cruzados e tensos. - Ou muitas pessoas. Acaba aqui o que você diz sobre altruísmo.
Ashur caminhou até a janela para olhar para fora, os braços cruzados.
- Você não sabe nada sobre mim, Jonas. Matei quando precisei. Nem sempre sou pacifista. O boticário me alertou do preço que eu teria que pagar, mas não acreditei. Amara pagou o mesmo preço, mesmo sem querer,
quando a ressuscitaram.
Cleo franziu a testa.
- Amara foi ressuscitada?
- Foi - Ashur respondeu solenemente, e então começou a contar para Cleo e Jonas o que tinha acontecido quando Amara era bebê e tinha sido salva de um afogamento pela magia negra e pelo sacrifício de sua
mãe.
Cleo percebeu que precisava sentar, pois tinha ficado abalada com a história. Em Auranos - e em Mítica -, apesar de serem valorizadas pela habilidade que tinham como mães, cozinheiras e enfermeiras, as
mulheres não eram impedidas de fazer outras coisas, se assim desejassem. E uma princesa podia ser a herdeira do trono do pai ou da mãe sem medo de ser assassinada apenas pelo suposto crime de ser uma mulher.
Cleo não sabia se admirava a mãe de Amara por valorizar a vida da filha o suficiente para sacrificar a própria vida ou se culpava a mulher por sua filha ter se tornado um monstro.
- Quem morreu por você? - Cleo perguntou em voz baixa.
O olhar distante de Ashur ficou sério, e antes de continuar, ele lançou um rápido olhar para Jonas.
- Eu não tinha certeza, mas sabia que alguém tinha morrido. Passei o mês tentando descobrir. Viajei, visitei amigos e ex-amantes. Foi alguém com quem passei um único verão. Eu não fazia ideia de que ele
ainda gostava de mim, de que nunca havia deixado de gostar... - Ele engoliu em seco. - De todas as pessoas que conheci, alguém que conviveu comigo apenas por alguns meses me amou tanto a ponto de morrer
por esse amor. Não consigo entender. Eu sabia o preço, mas o ignorei por egoísmo. Soube que ele sofreu por vários dias. Ele descreveu a dor como uma faca sendo cravada lentamente em seu peito. Me disseram
que nos últimos momentos, ele gritou meu nome. - Ashur ficou com os olhos azul-acinzentados marejados e respirou fundo. - A culpa que sinto pelo sofrimento, pela morte dele e pelo fato de eu ter apagado
qualquer chance que ele tinha de ter uma vida plena e feliz... isso vai me assombrar para sempre.
A sala ficou em silêncio enquanto Cleo tentava processar o que estava ouvindo. Aquele Ashur parecia mais o homem sincero que tinha oferecido, na noite de seu casamento, uma adaga nupcial kraeshiana para
tirar a vida da noiva infeliz ou de seu marido. Aquele Ashur não estava falando coisas confusas para desviar a atenção de seu sofrimento.
Mas, naquele momento, uma ideia lhe ocorreu.
- É por isso que você anda tão estranho com Nic - ela disse. - Ele não entende, acha que você está diferente, que seus sentimentos por ele mudaram, por tudo. Mas ele está enganado, não está?
Ashur não respondeu, mas olhou para baixo.
- Você teme que ele se apaixone por você e que você o machuque por causa desse amor.
Jonas ficou em silêncio, a testa franzida. Cleo esperava que ele não dissesse nada que fizesse o príncipe omitir a verdade.
- Eu tinha outros planos na ida a Auranos - Ashur disse finalmente. - Não queria que nada disso tivesse acontecido. Mas alguma coisa em Nicolo chamou minha atenção e eu não pude ignorar. Sei que deveria
ter ignorado. Só consegui complicar a vida dele e causar dor desnecessária. Mas agora não vou permitir que nada de ruim aconteça com ele por cometer o erro de gostar de mim.
- Nic merece uma explicação - Cleo disse, com um nó na garganta.
- É melhor que ele pense que meus sentimentos mudaram. - Ashur limpou a garganta. - Se me dão licença, acho que já revelei mais do que pretendia.
Cleo não disse nada para impedi-lo de sair. Ela estava pensando em muitas coisas ao mesmo tempo; algumas se conectavam, mas a maioria só aumentava sua confusão.
Por fim, ela olhou para Jonas.
- Então... - ele disse, ainda franzindo a testa. - Nic e Ashur, certo?
Ela assentiu devagar.
- Estranho... Pensei que Nic gostasse de garotas. De você, em especial. Não costumo me enganar com essas coisas.
- Você não está enganado. Ele gosta de garotas.
- Mas Ashur... - ele olhou para a porta - não é uma garota.
- Não fique pensando sobre isso, rebelde. Pode fundir seu cérebro. Saiba apenas que é complicado.
- E todas as coisas não são complicadas? - Jonas sentou ao lado dela. - Agora que conheço o segredo de Ashur e sei que não se trata de uma ameaça pessoal a você nem a mim, preciso me concentrar em pegar
a esfera que o rei escondeu. Você acha que está aqui na hospedaria?
- Nem imagino. Gostaria de saber. Eu ia dizer que... para liberar a magia precisamos do sangue de Lucia e do sangue de um Vigilante.
Surpreso, ele a encarou.
- Esse é o segredo?
Cleo assentiu.
- Isso impede o deus de sair?
- Não sei. Por isso é tão importante encontrarmos Lucia, descobrir mais informações com ela e o que deu errado com Kyan.
Os olhos castanhos de Jonas pareciam distantes.
- A profecia...
- O quê? - Cleo perguntou quando ele ficou em silêncio.
Ele balançou a cabeça.
- Deixa para lá. Conto mais quando descobrir se é verdade ou não.
- O problema é que não sei como encontrar um Vigilante. - Ela mordeu o lábio. - Claro que ainda deve haver alguns Vigilantes exilados vivos, mas acho que precisa ser um Vigilante pleno. Espero que Lucia
se disponha a ajudar quando chegar o momento.
- Não se preocupe em encontrar um Vigilante. - Ele ficou em silêncio por um momento. - Essa parte eu resolvo.
Ela olhou para ele, surpresa.
- Como?
- Olivia - ele sussurrou. - Ela é.
Cleo ficou boquiaberta.
- Você não pode estar falando sério.
- É outro segredo, mas vou confiar que você não vai contar a ninguém. - Jonas abriu o meio sorriso que ela sempre achou charmoso e frustrante, ao mesmo tempo. - Muita coisa foi sacrificada nesse caminho
que percorremos juntos. Muita perda para nós dois. Mas tento acreditar que sempre vai valer a pena, no fim.
Ela assentiu.
- Eu também.
- Acho que você precisa saber que a Lys gostava de você.
- Agora você está mentindo.
- Pode ser que nem ela soubesse, mas sei que ela respeitava você mais do que você pensa. Vocês têm uma coisa em comum: força. - A voz de Jonas falhou. - Só demonstram de jeitos diferentes.
Os olhos de Cleo começaram a arder ao ver Jonas se esforçando para não deixar as lágrimas escorrerem.
Ela segurou as mãos do rebelde, puxando-o para mais perto.
- Sinto muito por sua perda, Jonas. Estou dizendo isso do fundo do coração.
Ele só assentiu, olhando para baixo.
- Ela me amava. Só me dei conta disso quando já era tarde demais. Ou talvez eu tenha percebido e não estivesse pronto para aceitar. Mas agora eu entendo... Ela era perfeita para mim.
- Tenho que concordar.
- Poderíamos ter construído uma vida juntos. Uma casa, talvez até uma quinta. - Jonas sorriu de novo, mas um sorriso mais triste. - Filhos. Um futuro. Quem sabe o que poderia ter acontecido? Só tenho certeza
de uma coisa.
- De quê?
- De que Lys merecia alguém bem melhor do que eu.
- Não tenho a menor dúvida em relação a isso - Cleo concordou, satisfeita ao ver que a expressão surpresa de Jonas conseguiu apagar a dor em seus olhos. Ela abriu um sorriso caloroso. - Minha irmã acreditava
que quem morre se torna uma estrela no céu. Então todas as noites podemos olhar para cima e saber que estão cuidando de nós.
Ele parecia desconfiado.
- Isso é uma lenda auraniana?
- E se for?
Uma mecha do cabelo dela tinha caído sobre a testa, e Jonas a ajeitou atrás da orelha e deslizou a mão por seu rosto.
- Nesse caso, gosto de lendas auranianas.
Cleo encostou a cabeça no ombro dele, e os dois ficaram ali, confortando um ao outro. Havia uma ligação entre eles - algo muito forte que ela nunca havia conseguido ignorar. E houve uma época, não muito
tempo atrás, em que ela poderia ter amado aquele rebelde do fundo do coração.
E ela o amava, sim, mas não como Lysandra o havia amado.
Independentemente do que acontecesse, o coração de Cleo pertencia a outro.
18
MAGNUS
PAELSIA
Ficou claro para Magnus que Enzo e Milo estavam se controlando na luta, com receio de ferir um príncipe. Magnus deixou os dois sangrando como punição e voltou para a hospedaria, sentindo uma grande necessidade
de desenhar.
Ele parou na porta quando viu Jonas e Cleo na sala de convivência. Os dois estavam sentados próximos um do outro, falando baixo. Magnus se aproximou para ouvir, mas só conseguiu ver o rebelde acariciar
o cabelo de Cleo, sem que a princesa reclamasse, e, logo depois, seu rosto. Os dois se entreolharam por mais tempo do que o normal.
Magnus ficou muito irritado.
Por um lado, queria entrar ali com tudo, afastá-los e matar o rebelde antes de tirar Cleo da hospedaria e de perto dele para sempre.
Seu lado mais racional dizia que nem tudo o que via era o que imaginava e que ele não deveria tirar conclusões precipitadas.
Ainda assim, se entrasse ali e confrontasse os dois, alguém com certeza morreria.
Então ele saiu da hospedaria e desceu a rua até a taverna, resmungando ao pedir vinho ao taberneiro. Magnus perdeu a conta de quantas taças de vinho teve de beber até começar a se acalmar.
Já sabia que a princesa gostava do rebelde, que os dois tinham uma história romântica sobre a qual não queria pensar muito. Por que ela não desejaria alguém como Jonas? Alguém corajoso e forte - apesar
de pobre, ridículo e muito azarado com todos os que já tinham se alistado sob sua liderança rebelde.
Magnus também conseguia entender que alguém como Jonas, que olhava para a princesa como se ela fosse uma estrela brilhante na noite escura, podia ser tentador. Pelo menos quando comparado a Magnus, que
era sombrio, instável e afeito à violência.
Ele encarou a taça vazia.
- Com um milhão de outros problemas e questões para resolver, estou obcecado pensando por quem ela tem sentimentos. - Ele olhou meio embriagado para o atendente. - Por que meu copo está vazio?
- Peço desculpas. - O homem logo encheu a taça até transbordar.
Alguém sentou no banco de madeira a seu lado. Ele estava prestes a vociferar que precisava de espaço e que se o homem valorizava a própria vida, deveria ir para outro lugar, mas então percebeu quem era.
- O vinho nunca ajuda uma pessoa a esquecer suas preocupações por muito tempo - seu pai disse, o rosto pálido e macilento como o de um cadáver por baixo do capuz grosso de seu manto preto.
Como o rei tinha se isolado em um quarto no andar superior da hospedaria desde a noite da chegada, foi uma surpresa vê-lo ali. Magnus observou ao redor para ver se ele tinha trazido Milo para protegê-lo,
mas não viu o guarda em nenhum lugar. Talvez ainda estivesse tratando os ferimentos depois da luta.
Magnus ignorou o comentário do rei e tomou todo o vinho do copo antes de falar.
- Selia sabe que você está aqui? Não acho que ela aprovaria.
- Ela não sabe. Sua preocupação com minha morte iminente me tornou seu prisioneiro. Não ligo muito para isso.
- Não liga para a preocupação com sua morte iminente ou com o fato de ter sido feito prisioneiro? Não precisa responder. Tenho certeza de que as duas experiências são novas para você. - Magnus pegou o
vinho do atendente, e mandou o homem se afastar com um aceno. Então bebeu direto da garrafa.
- Antigamente, me rendia a pecados assim - o rei comentou.
- Ao vinho ao à forte autopiedade?
- Você está tendo problemas com a princesa?
- Aposto que isso o deixaria muito feliz, não?
- Saber que você deseja se afastar de alguém que acho que causará sua destruição? "Feliz" não seria bem a palavra que eu escolheria, mas, sim. Seria o melhor.
- Não vou falar sobre Cleo com você, nem agora nem nunca - Magnus resmungou, detestando o fato de sua mente estar tão nebulosa com o pai por perto. Ele preferiria ter controle total dos sentidos, mas era
tarde demais para se preocupar com isso depois de tomar tanto vinho.
- Escolha inteligente - o rei respondeu. - Ela sem dúvida não é meu assunto preferido.
- Esse ódio que você nutre por ela... - O príncipe pensou no assunto, no ódio aparentemente sem fim que o rei sentia por Cleo. - Deve ter a ver com a mãe dela, não?
- Sim, na verdade, tem.
Uma resposta direta. Que incomum - e profundamente curioso.
- Rainha Elena Bellos - Magnus continuou, encorajado pelo vinho que soltava sua língua. - Vi o retrato dela no palácio auraniano antes de você destruí-lo. Era uma bela mulher.
- Com certeza era. - O rei deu as costas e olhou com saudosismo para a rua escura pelas janelas da taverna. Magnus viu quando os lábios pálidos e fantasmagóricos sorriram discretamente.
Perceber a situação mexeu com ele.
- Você era apaixonado por ela - Magnus disse, chocado com as próprias palavras, mas sabendo que eram verdade. - Você era apaixonado pela mãe de Cleo. - A acusação fez o rei encará-lo de novo, os olhos
vermelhos um tanto arregalados, surpresos. Magnus demorou um pouco para assimilar a confirmação silenciosa e tomou mais um gole de vinho para molhar a garganta repentinamente seca. - Deve ter sido há muito
tempo, quando você era capaz de uma emoção tão pura.
O sorriso logo desapareceu do rosto pálido e desanimado do pai.
- Faz muito tempo. Essa fraqueza quase me destruiu, e é exatamente por isso que quis cuidar de você.
Magnus riu ao ouvir isso, uma risada alta que surpreendeu a ele próprio.
- Cuidar de mim? Ah, pai, não gaste saliva com essas mentiras!
O rei socou o balcão.
- Você é cego? Totalmente cego? Tudo o que fiz foi por você!
A força da ira repentina fez Magnus derramar parte do vinho na túnica. Ele olhou feio para o pai.
- Estranho eu ter esquecido isso quando você decidiu acabar com a minha vida e com a vida da minha mãe.
- A morte seria um alívio deste mundo para muitos de nós.
- Não vou esquecer nada que você fez, a começar por isso. - Magnus apontou a cicatriz no lado direito do rosto. - Você lembra desse dia tão bem quanto eu?
O rei contraiu o maxilar.
- Lembro.
- Eu tinha sete anos. Sete. Você se arrependeu por um momento que seja?
O rei semicerrou os olhos.
- Você não deveria ter tentado roubar o palácio auraniano. Se tivesse conseguido, a vergonha teria sido grande.
- Sete anos! - A garganta de Magnus ardeu porque ele gritou. - Eu era apenas uma criança cometendo um erro, tentada por uma coisa brilhante e linda, uma vez que eu levava uma vida cinza e sem graça num
palácio cinza e sem graça. Ninguém ficaria sabendo que peguei aquela adaga! Que diferença faria?
- Eu ficaria sabendo - o rei disse. - A adaga que você pretendia roubar era de Elena. Eu ficaria sabendo porque fui eu quem deu a adaga a ela, quando era um garoto ingênuo tentando impressionar uma moça
bonita. Não sabia que ela a tinha guardado, que ela a tinha valorizado e exposto o tempo todo em que ficamos separados. Quando a vi em suas mãos seis anos depois da morte dela... não pensei. Simplesmente
reagi.
Magnus percebeu que não tinha uma resposta na ponta da língua. Com suas perguntas respondidas depois de tanto tempo, ele não conseguia processar tudo depressa.
- Não justifica o que você fez.
- Não, claro que não.
Magnus desviou o olhar do rei e tentou se concentrar em outra coisa, qualquer coisa. Ajudou perceber que o mundo ia além daquela conversa. Um homem enorme veio em direção ao bar carregando muitos copos
vazios, a túnica subindo o suficiente para deixar a barriga peluda à mostra. Uma atendente afastou a mão de um marinheiro com um tapa tímido. Os músicos no canto da taverna tocavam uma música animada,
e muitos batiam palmas. Vários outros dançavam em uma mesa.
- O poder é tudo o que importa, Magnus. O legado é tudo o que importa. - O rei dizia isso como se tentasse convencer a si próprio. - Sem ele, somos como camponeses paelsianos.
Magnus já tinha ouvido aquelas bobagens tantas vezes que já haviam se tornado mais do que palavras sem sentido.
- Diga uma coisa: Elena Bellos retribuiu seu amor ou foi só uma obsessão triste e impossível que transformou seu coração e sua alma em gelo?
O pai demorou tanto para responder que Magnus pensou que ele tinha levantado e ido embora. O príncipe desviou o olhar da taverna movimentada para ver se o rei ainda estava a seu lado.
- Ela me amava - Gaius disse, por fim, a voz quase inaudível. - Mas o amor não foi suficiente para resolver nossos problemas.
Magnus segurou a garrafa de vinho com força.
- Agora você vai me contar uma história de amor e perda... sobre um garoto e uma garota?
- Não.
Pensar que o pai mencionaria aquela história de amor épico sem contar tudo era previsível, mas ainda assim frustrante.
- Então por que você está aqui?
- Para contar a lição que aprendi. Amor é dor. Amor é morte. E o amor tira o poder de uma pessoa. Se eu pudesse voltar no tempo, gostaria de não ter conhecido Elena Corso. Desde aquela época, eu a odeio.
- Que romântico. Como se casou com Corvin Bellos, imagino que ela sentisse a mesma coisa.
- Tenho certeza disso. E agora lembro dela todos os dias, de tudo o que perdi, por causa daquela criatura mentirosa, Cleo. Ela se tornou sua fraqueza fatal, Magnus.
O ódio tinha voltado à voz de Gaius. Magnus encarou os olhos frios do pai.
- Seu ódio sem fim por Cleo me parece muito errado. Você deveria culpar a bruxa que amaldiçoou Elena. - Magnus suspirou, chocado ao perceber. - Você a culpa, não é? Por isso condenou tantas bruxas à morte
ao longo dos anos... Para pagarem pelo crime dela. Pode dizer que odeia Elena, mas ainda a ama, até mesmo depois de sua morte. Por qual outro motivo você teria tomado a poção de minha avó?
- Pense o que quiser. - Um músculo se contraiu no rosto do rei. - A poção era a única maneira de afastar o pesar e a dor e deixar apenas a força. Mas agora aquela força sumiu, desapareceu quando caí daquele
penhasco. A dor e o pesar voltaram, piores do que antes. E odeio isso. Odeio tudo nesta vida: o que tive que fazer, como passei todo esse tempo obcecado apenas pelo poder. Mas agora acabou.
- É o que anda prometendo.
Magnus precisava sair daquela taverna barulhenta e enfumaçada. Precisava de tempo e de espaço para esfriar a cabeça.
Quando levantou, o rei segurou seu braço.
- Imploro a você, meu filho, que mande Cleiona embora antes que ela o destrua. A princesa não ama você de verdade, se é o que você pensa. Independentemente do que ela disser, são apenas mentiras.
- O Rei Sanguinário implorando! Agora não falta mais nada. - Ele suspirou. - Já bebi demais por hoje. Foi um prazer conversar com você, pai. Tente voltar para a hospedaria sem morrer. Tenho certeza de
que sua mãe ficaria muito abalada se alguma coisa ruim acontecesse.
Ele saiu sem dizer mais nada, detestando a confusão de pensamentos e sentimentos.
Enquanto Magnus caminhava por uma rua estreita, alguém bloqueou sua passagem para o caminho principal com ombros largos e uma cara séria.
Não havia mais ninguém à vista.
- É, acho que reconheci você uma noite dessas - disse o homem. - Você é o príncipe Magnus Damora, de Limeros.
- E você está redondamente enganado. Desculpe pela decepção. - Magnus tentou passar acotovelando o homem, que levou a enorme mão à garganta dele, puxando-o para tão perto que Magnus conseguiu sentir seu
hálito de cerveja.
- Dez anos atrás, seu pai queimou minha esposa viva, dizendo que ela era uma bruxa. O que acha de eu fazer a mesma coisa com você como vingança?
- Acho que você precisa me soltar agora mesmo. - Magnus arregalou os olhos para o homem. - Sua necessidade de vingança não tem nada a ver comigo.
- Ele está certo. - O rei deu um passo à frente e tirou o capuz. - Tem a ver comigo.
O homem olhou para Gaius, surpreso, como se não acreditasse no que via.
- Sinto muito pela morte de sua esposa - o rei disse, e uma única lamparina acima da saída da taverna iluminava seu rosto quase esquelético. - Odeio bruxas por mais motivos do que poderia mencionar aqui
e agora. Mas raramente executei uma que não estivesse envolvida com sangue e mortes. Se sua esposa está na terra da escuridão agora, é porque merece estar.
Com o rosto vermelho de ódio, o homem deu um passo à frente empunhando uma faca afiada. Magnus observou o pai de pé ali, sem se mexer, a pele amarelada, os ombros curvados. Ele não lutaria, não conseguiria
lutar por sua vida.
Gaius queria morrer?
A atenção do homem estava totalmente voltada para o rei naquele momento, e o ódio ardia em seus olhos quando ele avançou.
Magnus se moveu antes mesmo de se dar conta de suas intenções, segurou as mãos do homem e impediu que a faca acertasse o alvo.
- Se alguém tem o direito de matar meu pai, esse alguém sou eu - ele vociferou. - Mas não hoje.
Ele virou a lâmina afiada para afundá-la no peito do homem, que gritou de dor e desabou no chão. O sangue jorrou livremente do ferimento fatal.
Houve um momento de completo silêncio na rua até o rei falar de novo.
- Precisamos ir embora antes que alguém veja isso.
Magnus teve que concordar. Limpou o sangue das mãos no manto preto e os dois logo voltaram à hospedaria Falcão e Lança.
- Não pense que esse gesto mostra que não odeio você - Magnus disse.
O rei assentiu com seriedade.
- Eu o consideraria um idiota se não me odiasse. Ainda assim, apesar do ódio que sente por mim, quero lhe dar algo.
- O quê?
- O cristal do ar.
Não havia como o Rei Sanguinário entregar uma parte da Tétrade a alguém, nem mesmo ao próprio filho. E, ainda assim, Gaius levou Magnus ao andar de cima, ao quarto onde tinha ficado por dois dias.
Magnus observou o espaço.
- Onde está Selia?
- No pátio. - O rei indicou a janela com a cabeça. - Sua avó gosta de cumprir os rituais antigos todas as noites, a esta hora e sob o luar, por isso consegui sair.
O rei foi até a cama de palha, levantou as cobertas e passou a mão por baixo do colchão. Em seguida, franziu a testa.
- Ajude-me a levantá-lo - ele disse.
- Está tão fraco assim? Então você teria mesmo ficado parado, esperando aquele homem te matar?
- Faça o que estou mandando. - O olhar que o pai lançou foi muito mais familiar do que qualquer conversa sobre compartilhar e arrependimentos.
- Tudo bem. - Magnus foi até o lado de Gaius e levantou o colchão para seu pai procurar embaixo dele.
Os olhos vermelhos e marejados do rei foram tomados pelo susto.
- Não está aqui.
Magnus lançou um olhar desconfiado para o rei.
- Que conveniente, se considerarmos que você estava prestes a entregá-lo a mim. Por favor, pai, me poupe dessas dissimulações. Como se você fosse esconder um tesouro como aquele em um lugar tão óbvio!
- Não é dissimulação. Estava aqui. Andei muito debilitado para encontrar um lugar melhor onde escondê-lo. - Gaius ficou sério. - Aquela sua princesinha o roubou.
Só podia ser mentira. Mais uma mentira. Magnus não conseguia pensar em outra explicação, não para algo tão importante.
Antes que pudesse responder, o rei cambaleou com dificuldade para sair do quarto. Magnus o seguiu pelo corredor, onde Cleo ainda estava com Jonas.
Magnus não conseguia acreditar no que via. Precisou de todo o autocontrole possível para não transformar Jonas no segundo morto da noite.
Cleo levantou depressa quando o rei e Magnus entraram.
- O que foi? O que aconteceu?
- Você roubou o cristal do ar? - Magnus perguntou, incomodado com a maneira arrastada como estava falando.
- O quê? Eu... eu nem sabia onde estava!
- Sim ou não, princesa?
Cleo semicerrou os olhos e levantou o queixo.
- Não.
- Ela está mentindo - o rei disse.
- O rei das mentiras querendo acusar a princesa, não é? - Jonas quase cuspiu as palavras, os punhos cerrados. - Que ironia.
- Onde está o cristal da terra? - Magnus perguntou.
Cleo franziu a testa ao enfiar a mão no bolso e arregalou os olhos.
- Não está aqui. Mas estava, juro! Eu o carrego comigo o tempo todo!
Magnus sentiu uma náusea. Havia um ladrão entre eles. E quem quer que fosse, em breve ia se arrepender profundamente por suas atitudes.
Não demorou para que todos corressem até a sala para ver o que estava acontecendo. Milo e Enzo já empunhavam as armas, prontos para um combate.
Magnus observou o grupo. Estava todo mundo ali: Nic, Olivia, até Selia havia se unido ao grupo, com o rosto corado devido ao ritual da lua daquela noite. Todo mundo, menos uma pessoa.
- Onde está o príncipe Ashur? - Jonas perguntou, franzindo a testa. - Ele estava aqui mais cedo com Cleo e comigo.
- Eu não o vi hoje - Olivia respondeu. - Talvez tenha saído.
- Talvez. Alguém sabe aonde ele foi?
Enzo e Milo balançaram a cabeça em negativa.
Selia foi para o lado do rei pálido, que caminhava até uma cadeira para sentar.
- Gaius, querido, o que está fazendo fora da cama?
Magnus os ignorou, prestando atenção em Nic, que estava em silêncio. Enquanto os outros conversavam sobre o paradeiro do príncipe, Nic saiu da sala. Magnus imediatamente o seguiu pelo corredor em direção
à porta da frente.
Quando Nic notou que Magnus estava perto, seus ombros ficaram tensos.
- Está procurando alguém? - Magnus perguntou, com os braços cruzados.
- Quero sair para respirar um pouco de ar fresco.
- Ele levou os dois cristais, não levou? E contou a você sobre os planos.
Nic balançou a cabeça, mas não o encarou nos olhos. Magnus não tinha mais paciência para mentiras naquela noite. Ele puxou a frente da túnica de Nic e o jogou contra a parede.
- Onde está Ashur? - ele resmungou.
- Você está bêbado.
- Demais, mas não faz a menor diferença agora. Responda! Ashur roubou os cristais, não roubou?
Nic rangeu os dentes.
- Você acha que o príncipe me conta alguma coisa?
- Não faço ideia do que o príncipe sussurra em seu ouvido, mas não sou cego. Sei que tem algo entre vocês dois, que são mais próximos do que aparentam. E sei que você sabe mais do que está me contando.
Jonas se aproximou, tenso, vindo de um canto.
- O que está fazendo com ele?
Magnus não soltou o garoto.
- Nic sabe os segredos de Ashur e vou descobrir quais são.
- Responda à pergunta, Nic - Jonas disse, os braços cruzados. - Sabe para onde Ashur foi?
Nic riu.
- Como é? Vocês estão trabalhando juntos agora?
- Não - Magnus e Jonas responderam em uníssono, e então se entreolharam.
Nic suspirou.
- Tudo bem. O príncipe acabou de partir para ver a irmã. Tentei convencê-lo a não fazer isso, mas ele não ouviu nada do que eu disse. Está determinado a fazer o que puder para colocar juízo na cabeça dela
e, se não conseguir, vai exigir o título de imperador.
Magnus sentiu o estômago revirar.
- E ele levou para Amara os cristais do ar e da terra. Que lindo presente, considerando que Amara está com o cristal da água.
Por fim, Nic lançou um olhar preocupado.
- Ashur não faria isso.
- Não? - Magnus tentou continuar segurando a túnica de Nic para que o idiota não fugisse, mas sua visão estava turva. Vinho demais, rápido demais. Os efeitos só passariam ao amanhecer. - Talvez Amara tenha
retirado os cristais dos esconderijos com sua magia, e eles voaram em asas de borboletas para ela.
- Vou falar mais uma vez. - Nic semicerrou os olhos. - Me solte.
- E se não soltar? Vai chamar a princesa para salvá-lo?
- Odeio você. Desejo vê-lo morto e enterrado. - Ele olhou para Jonas, irritado. - Uma ajuda?
- Nic, você precisa pensar - Jonas disse com calma. - Se Magnus estiver certo em relação a Ashur...
Magnus lançou um olhar fulminante ao rebelde.
- Você acabou de me chamar apenas pelo meu primeiro nome?
Jonas revirou os olhos.
- Amara Cortas não pode ter mais poder do que já tem. E se o irmão dela levou os cristais da Tétrade, é a pior coisa que poderia acontecer. Ela pode liberar três deuses elementares como Kyan.
- Eu sei - Nic respondeu. - Eu entendo.
- Entende?
- Então a culpa é minha? Vai deixar sua majestade quebrar meu pescoço? Por quê? Por não ter conseguido impedir Ashur de fazer o que queria? Ele faz o que bem entende.
- Prometo que sua majestade não vai quebrar seu pescoço.
- Não vamos nos precipitar - Magnus disse, divertindo-se com o breve olhar assustado do garoto.
Ele nunca mataria Nic.
Cleo nunca o perdoaria.
- Você vai fazer o seguinte - Magnus disse. - Vai atrás de Ashur para impedi-lo de fazer alguma coisa idiota e imperdoável por senso de lealdade familiar kraeshiano bizarro e sem propósito. E vai recuperar
os cristais que ele roubou, custe o que custar.
Nic o encarou incrédulo.
- Não vou deixar Cleo de novo.
- Ah, vai, sim, com certeza. E vai agora. Você vai voltar com os cristais da Tétrade ou minha paciência com você vai acabar. - Magnus tentou organizar a mente confusa para encontrar uma maneira de fazer
Nic cumprir a ordem.
- Você pode até me odiar, mas viu que mantive sua preciosa princesa viva todos esses meses, enquanto outros a queriam morta. Juro pela deusa que vou parar de protegê-la se não fizer exatamente o que mandei.
Nic se encolheu, mas manteve o olhar firme.
- Cleo ficaria bem até mesmo sem sua ajuda.
- Talvez sim. Talvez não. Em tempos de guerra, e não se engane, é exatamente o que essa ocupação "pacífica" kraeshiana é, ninguém está seguro.
Nic ficou sem resposta. Apenas o observou furioso.
- Com ameaça ou sem - Jonas disse impaciente -, o príncipe está certo, Nic, você precisa ir atrás de Ashur. Nós dois precisamos. Eu deveria ter acompanhado Felix e Taran quando eles partiram. Não há motivos
para eu estar aqui.
- Não há motivos, rebelde? - Magnus lançou um olhar para ele. - Que esquisito. E pensei que você estivesse gostando de bajular a princesa, em busca de migalhas.
Jonas lançou um olhar raivoso para Magnus.
- Eu receberia muito mais do que você.
Magnus sorriu para ele.
- Não tenha tanta certeza disso.
Jonas ficou ainda mais sério.
- Terminamos por aqui. Nic, pegue o que precisa para ir ao complexo do chefe Basilius. Espero alcançar Ashur antes que ele chegue lá. E, Magnus?
- Sim, rebelde?
Jonas semicerrou os olhos.
- Se encostar em um fio de cabelo da princesa, juro por qualquer deusa em quem você acredita que vou fazer você implorar para morrer.
19
AMARA
PAELSIA
Um único falcão dourado voava em círculos sobre os cidadãos paelsianos reunidos para ouvir o discurso de Amara. A imperatriz estava em pé diante da janela aberta de seus aposentos, observando a multidão
de rostos ansiosos. Muitos estavam perplexos por estarem dentro da propriedade privada do ex-chefe; os portões tinham ficado trancados para o público durante o governo dele. Naquele dia, os paelsianos
viam pela primeira vez a cidade labiríntica, o que fez Amara lembrar muito da Cidade de Ouro, mas, em vez de metais e joias, a cidade onde estava era feita de barro, tijolo, pedra e terra.
- Vossa graça, gostaria que reconsiderasse esse discurso - Kurtis disse atrás dela. - A senhora está muito mais segura aqui dentro, principalmente com a notícia de rebeldes por perto.
Ela tirou os olhos da janela e se virou para o grão-vassalo onipresente.
- É por isso que tenho guardas ao meu redor o tempo todo, lorde Kurtis. Os rebeldes estão sempre por perto. Infelizmente, não posso fazer todos entenderem meu ponto de vista. Há quem se oponha ao reinado
de meu marido, ao reinado de meu pai. E há aqueles que se opõem ao meu também. Falarei com meus cidadãos hoje, aqueles que vão me apoiar sem questionamentos e aqueles que duvidam de minhas intenções aqui.
Preciso dar a eles uma esperança para o futuro... uma esperança que nunca tiveram.
- O que é uma atitude incrível, vossa graça, mas... os paelsianos são selvagens, violentos.
Amara considerou as palavras ofensivas.
- Há quem diga o mesmo dos kraeshianos - ela respondeu mais irritada. - Talvez você não tenha me ouvido até agora, mas falarei hoje.
- Vossa graça...
Ela levantou uma mão, decidindo parar de sorrir.
- Falarei hoje - ela disse com firmeza. - E ninguém vai me dizer que não posso fazer isso. Com a notícia dos rebeldes e com a discordância entre meus próprios soldados, preciso do apoio dessas pessoas
para o futuro de meu reinado. E não permitirei que ninguém diga o que posso e o que não posso fazer. Entendido?
Ele se curvou no mesmo instante, corado.
- Claro, vossa graça. Não quis desrespeitá-la.
A porta se abriu e Nerissa entrou, fazendo uma reverência.
- Está na hora, imperatriz.
- Ótimo, estou pronta. - Amara alisou a seda de seu vestido. Era o mesmo que usava nas ocasiões mais especiais em Kraeshia. Ela o levava sempre que viajava caso tivesse a oportunidade de vestir uma peça
tão esplêndida. A costura brilhante e as contas de esmeralda e ametista reluziam sob o sol paelsiano quando ela saiu de sua grande quinta.
Um grupo de guardas esperava Amara do lado de fora e, com Nerissa a seu lado, ela se aproximou do grande pódio em um palco de madeira bem acima da multidão de quatro mil pessoas reunidas lado a lado na
antiga arena do chefe.
Aqueles eram seus novos súditos. Absorveriam tudo o que dissesse e espalhariam a notícia de sua glória a quem quisesse ouvir. E em breve, seriam os primeiros a reverenciá-la como uma verdadeira deusa.
A multidão gritou e a atmosfera foi tomada por sons de aprovação. Ela olhou para Nerissa, que sorriu e assentiu, incentivando-a a começar.
Amara ergueu os braços, e a grande plateia ficou em silêncio.
- Eu me dirijo ao lindo povo de Paelsia, um reino que tem passado por muitos testes e muitas atribulações ao longo de várias gerações. - Sua voz ecoou nos pilares de pedra, o que ajudou a amplificar as
palavras de modo que até as pessoas nas arquibancadas pudessem ouvi-la. - Sou Amara Cortas, a primeira imperatriz de Kraeshia, e trago a vocês a notícia oficial de que não são mais cidadãos de Mítica,
uma tríade de reinos que os oprimiu por um século. Agora vocês são cidadãos do grande Império Kraeshiano. E seu futuro é tão brilhante quanto o sol que nos ilumina hoje!
A multidão comemorou, e Amara parou um instante para analisar os rostos, alguns sujos, de pessoas com roupas simples puídas, gastas pela sujeira e pelo tempo. Olhos atentos se voltaram para ela, olhos
que tinham assistido a muitos líderes fazerem promessas falsas e causarem dor e sofrimento. Ainda assim, ela viu uma esperança tímida até mesmo nos olhos dos mais velhos.
- Cuidaremos de sua terra - ela continuou. - Vamos torná-la rica de novo e pronta para as plantações que vão sustentar vocês e suas famílias. Vamos importar animais que servirão de alimento. E enquanto
continuarem produzindo o vinho pelo qual Paelsia é conhecida, os lucros serão de vocês, integralmente, pois prometo que não serão cobrados impostos kraeshianos sobre esse produto por vinte anos. As leis
que impediam a exportação do vinho a qualquer lugar que não fosse Auranos estão vetadas a partir de agora. Vejo Paelsia como um patrimônio maravilhoso do meu império e quero demonstrar isso cuidando para
que minhas atitudes sejam condizentes com minhas palavras. Vocês fazem bem em acreditar em mim, porque eu acredito em vocês. Juntos, vamos marchar para o futuro, de mãos dadas!
O barulho vindo da plateia aumentou, e, por um instante, Amara fechou os olhos e permitiu-se aproveitar o momento. Tinha sido por isso que ela se sacrificou tanto. Tinha sido por isso que ela fez o que
fez.
Por aquele poder.
Não fora à toa que seu pai havia tomado decisões tão precipitadas durante seu reinado. Aquela sensação diante da obediência, da adoração e da reverência era mesmo viciante.
Se ela conseguiria ou não cumprir o prometido, ainda precisava verificar.
Ela sentia a magia que havia na crença que emanava do povo paelsiano. Uma magia tão rica e pura na qual queria se banhar.
- Vossa graça! - Nerissa exclamou, assustada.
Amara abriu os olhos a tempo de ver uma flecha de relance, e então um de seus guardas a tirou do caminho. A flecha acertou o homem no pescoço, e ele caiu se debatendo no chão do palco.
- O que está acontecendo? - ela quis saber.
- O grupo de rebeldes que ameaçou vir aqui hoje... eles estão aqui! - Nerissa agarrou o braço dela. Duas outras flechas voaram na direção dela, bem perto, acertando outros dois guardas.
- Quantos? - Amara conseguiu perguntar. - Quantos rebeldes estão aqui?
- Não sei... - Nerissa ergueu a cabeça para olhar para a multidão quando outra flecha passou por ela. - Vinte, talvez trinta ou mais.
Amara observou chocada quando seu exército de soldados invadiu o mar cada vez maior de civis para capturar os rebeldes. Os soldados derrubavam qualquer pessoa que aparecesse no caminho, fossem rebeldes
ou paelsianos. A multidão entrou em pânico e tentou fugir. O caos se instalou, gritos de medo e de indignação eram ouvidos por todos os lados quando sangue começou a ser derramado.
Paelsianos empunharam armas, trocando rapidamente a expressão esperançosa pela de ódio, e começaram a lutar não só contra os soldados, mas uns contra os outros, facas cortando a carne, socos acertando
rostos e abdomens.
"Os paelsianos são selvagens, violentos", Kurtis tinha alertado.
Mães agarravam os filhos, chorando e correndo para todas as direções.
- O que vamos fazer? - Nerissa perguntou. Ela tinha agachado ao lado de Amara, e as duas se encolheram atrás do pódio.
- Não sei - Amara disse depressa, e se arrependeu de suas palavras.
Palavras de medo. Palavras de vítima.
Ela não ia se acovardar diante de rebeldes naquele momento - nem nunca.
O medo logo se transformou em raiva. Aquilo, fosse o que fosse, não fazia parte de seu plano. Aqueles que desejavam destruir sua chance de transformar aquele povo determinado em seu aliado, um povo que
já estava pronto para aceitá-la como líder, pagariam com a vida.
Amara levantou do esconderijo, punhos cerrados, quando alguém se aproximou do palco trás dela. Ela ouviu passos pesados na superfície de madeira.
Quando se virou, viu dois de seus guarda-costas caindo com a garganta cortada. Atrás deles, um rosto assustadoramente familiar.
- Bem, princesa, eu poderia apostar um monte de moedas de ouro que você não esperava me ver de novo.
Felix Gaebras apontava uma espada a poucos centímetros de seu rosto.
O rosto dele aparecia em seus pesadelos. Ou talvez os pesadelos tivessem sido premonições. Naqueles sonhos, ele tentava matá-la.
- Felix... você fez isso, tudo isso, só para chegar até mim - ela começou, dando um passo hesitante para trás para se afastar do jovem que acreditava estar morto fazia muito tempo.
Ele sorriu.
- Sinceramente? Eu estava só observando de longe. Foi uma coincidência feliz. Acho que há muitos outros rebeldes que querem derramar seu sangue. Mas parece que a honra será minha.
Ela olhou para a esquerda e viu três guardas correndo na direção de Felix, mas foram derrubados por outro jovem de cabelo escuro e expressão irritada.
- O plano não era esse, Felix - o rapaz gritou. - Nós dois vamos morrer por sua causa.
- Calado, Taran - Felix respondeu. - Estou retomando contato com uma antiga namorada.
Ao sentir a lâmina em seu rosto, Amara olhou para o tapa-olho preto que ele usava.
- Seu olho...
- Perdi. Graças a você.
Ela se encolheu.
- Sei que você deve me odiar pelo que fiz.
- Odiar? - Ele arqueou as sobrancelhas escuras, movendo de leve o tapa-olho. - "Ódio" é uma palavra muito leve, não acha?
Amara tentou ver se algum guarda se aproximava para ajudá-la, mas Taran, o amigo de Felix, os afastava com a espada e o arco que trazia.
Amara virou para a frente, para o olho bom de Felix, e disse com o máximo de arrependimento que conseguiu reunir:
- Não importa o que tenha enfrentado, minha bela fera. Juro que posso me retratar.
- Não me chame assim. Perdeu o direito de me chamar assim quando me abandonou e me deixou para morrer. - Felix encostou a lâmina no rosto dela de novo, fazendo-a olhar para a multidão. - Viu o que fez?
É culpa sua. Tudo o que você toca acaba em morte.
O olhar tenso de Amara passou pela multidão que tinha percorrido quilômetros para se reunir e ouvi-la falar. Muitos paelsianos estavam mortos entre os combatentes, pisoteados, assassinados pelas espadas
dos guardas ou por seus próprios compatriotas.
Felix tinha razão: era culpa dela. Um momento de vaidade, o desejo de sentir o amor de seus novos súditos depois de tanta dor e decepção, acabou em morte.
Tudo acabava em morte.
O mesmo falcão que ela vira sobrevoando a multidão grasnou alto o suficiente para Amara ouvir. No chão, alguém preso no meio do caos chamou sua atenção: um jovem de cabelo ruivo, cor rara de ser encontrada,
caminhava em direção ao palco.
Ela reconheceu o amigo de Cleo, Nic. Aquele com que Ashur tinha ficado obcecado.
Amara observou horrorizada quando dois paelsianos agarraram Nic e rasgaram o saco de moedas preso ao passador de sua calça. Nic tentou segurar o saco, e a faca de um dos homens reluziu à luz do sol antes
de ser fincada no peito dele.
Ela se assustou.
O corpo de Nic caiu no chão e logo se perdeu na multidão.
Aquilo era culpa dela, apenas dela.
Ela franziu a testa ao pensar nisso. Não... tinha sido azar de Nic, uma circunstância infeliz. Ela não tinha assassinado o amigo de Cleo com as próprias mãos. Amara se recusava a assumir a culpa pelo azar
de outras pessoas.
Apesar de ter odiado seu pai e seus irmãos com a mesma intensidade, a família Cortas não era nada fraca. Inclusive ela.
E além da família Cortas, as mulheres não eram fracas. Eram líderes. Campeãs. Guerreiras. Rainhas.
Amara tinha enfrentado inimigos muito maiores do que Felix Gaebras na vida.
Ela se forçou a falar de modo assustado quando virou para ele de novo.
- Você é maior do que isso, Felix. Matar uma garota desarmada? Não combina com você.
- Não combina comigo? Sou um assassino profissional, meu amor. Matar é o que faço melhor.
De canto do olho, ela observou o amigo derrubar mais dois de seus homens com uma só mão.
- Pense bem, governo um terço do mundo e controlo toda a fortuna. Quer ser um homem muito rico?
Ele levantou um dos ombros.
- Não.
Amara tinha esquecido que ele era diferente dos outros homens que conhecia - uma vantagem no começo, mas um problema no presente. - Mulheres, então. Dez, vinte, cinquenta garotas que desejem apenas você.
Felix abriu o sorriso mais frio que ela já tinha visto.
- E como eu saberia que não são vadias frias e dissimuladas como você? Não tem acordo, imperatriz.
Amara ficou com os olhos marejados. Fazia muito tempo que não chorava, mas chorar era um talento que desenvolvera desde cedo. Sabia que a maneira mais fácil para uma mulher evitar problemas ou castigos
era fingir fraqueza entre os homens.
As lágrimas logo começaram a descer livremente por seu rosto.
- Eu pretendia libertá-lo, mas me disseram que você já estava morto, assassinado em uma tentativa de fuga. Meu coração ficou destruído quando pensei que tinha perdido você para sempre. Deveria tê-lo incluído
em meus planos, mas eu estava com medo, muito medo. Ah, Felix, eu não queria que nada acontecesse com você, sinceramente! Eu... eu amo você! Sempre vou amar, não importa o que você decida fazer hoje!
Felix olhou para ela como se estivesse assustado com o que ouvia.
- O que disse? Que me ama?
- Sim. Eu amo você.
A ponta da espada se mexeu. Mas logo foi afastada.
- Bela tentativa, meu amor. Eu poderia até acreditar, se fosse um completo imbecil. - Felix sorriu para ela. - Hora de morrer.
Um instante depois, Carlos, que tinha subido no palco e conseguido passar por Taran, derrubou Felix. Antes que conseguisse recuperar o fôlego, Taran e Felix estavam diante dela, ajoelhados.
Nerissa voltou para seu lado, e Amara segurou a mão dela, apertando-a para ter a certeza de que a criada não tinha se ferido.
- Os outros rebeldes morreram, vossa graça - Carlos informou. O rosto dele sangrava devido a um corte profundo no nariz.
Amara respondeu assentindo brevemente e então olhou para Felix.
Ele deu de ombros de novo.
- Não posso dizer que não tentei.
- Devia ter sido mais rápido.
- Acho que gosto muito de falar. - Ele abriu um grande sorriso, mas seu olhar estava frio. Voltou-se para Nerissa por um instante antes de voltar a encarar Amara. - Vamos falar de novo sobre aquela oferta
do harém de lindas mulheres?
Amara tocou o rosto de Felix, levantando sua cabeça.
- Sinto muito pelo seu olho. Gostei daquele olho, assim como de outras partes suas. Por algumas noites, pelo menos.
- Devemos executá-los agora mesmo, vossa graça? - Carlos perguntou, com a espada ao lado do corpo.
Ela esperou o medo aparecer no único olho de Felix, mas ele manteve a pose desafiadora.
- Se eu poupá-lo, o que fará? Vai tentar me matar de novo?
- Num piscar de olhos - ele disse.
- Você é um grande idiota - Taran rosnou.
Sua bela fera a tinha entretido por um período. E ainda entretinha.
Apesar de tudo, Amara ainda se sentia atraída por ele. Mas não importava. Ele deveria ter morrido muito tempo antes, e não ser mais um problema para ela.
Amara assentiu para o guarda.
- Jogue os dois no fosso. Cuido deles mais tarde.
20
LUCIA
PAELSIA
- Ela é incrível. Totalmente linda e gloriosa. Parece mais uma deusa do que uma mera mortal, se quer saber. Tenho certeza de que vai salvar todos nós.
Lucia parou na barraca de frutas enquanto procurava uma maçã sem nenhuma imperfeição - pelo jeito, era impossível em Paelsia - e olhou para a vendedora que conversava com uma amiga.
- Concordo totalmente - a amiga disse.
Estariam falando da feiticeira profetizada?
- Desculpem minha grosseria, mas posso saber de quem estão falando? - Lucia perguntou. Era a primeira vez que falava em voz alta em mais de um dia, e sua voz falhou no início.
A vendedora olhou para ela.
- Ora, da imperatriz, é claro! De quem mais poderia ser?
- Sim, de quem mais, não é? - Lucia disse em voz baixa. - Então vocês acham que Amara Cortas vai salvá-las. Salvá-las do que, exatamente?
As paelsianas trocaram um olhar e viraram para Lucia um tanto impacientes.
- Você não é daqui, é? - Uma delas franziu os lábios enrugados. - Não, com esse sotaque, acredito que seja limeriana, não é?
- Nasci em Paelsia e fui adotada por uma família limeriana.
- Você teve muita sorte por ter escapado destas fronteiras tão cedo, então. - A vendedora virou para a amiga. - Se ao menos todos tivéssemos tido essa oportunidade...
As duas riram sem achar graça.
A paciência de Lucia estava acabando.
- Vou comprar esta maçã. - Ela guardou a fruta no bolso e entregou uma moeda de prata. - E também qualquer informação que puder me dar a respeito da localização da imperatriz.
- Com prazer. - A mulher pegou a moeda com ganância, semicerrando os olhos. - Por onde andou esses últimos dias, mocinha, para não saber tudo sobre a imperatriz? Perdida por aí?
- Mais ou menos. - Na verdade, ela estava recuperando as forças na hospedaria no leste de Paelsia até não aguentar mais e ter que fugir. Apesar da preocupação da atendente Sera com sua saúde, Lucia sabia
que precisava sair dali antes que sua barriga ficasse grande demais e ela não conseguisse mais levantar da cama.
Passou a mão pela barriga aparente e a comerciante notou, arregalando os olhos.
- Ah, minha querida! Não percebi que estava grávida. E já tão avançada!
Lucia gesticulou para indicar que ela não se preocupasse.
- Estou bem - ela mentiu.
- Onde está sua família? Seu marido? Não me diga que está sozinha aqui na feira hoje!
Parecia que o fato de estar grávida fazia os desconhecidos sentirem vontade de tratá-la com muito mais gentileza do que o normal. Tinha sido bom durante a viagem lenta e desconfortável para o oeste.
- Meu marido está... morto - ela disse com cuidado. - E agora estou procurando minha família.
A amiga da vendedora correu na direção de Lucia e segurou suas mãos.
- Meus mais sinceros sentimentos por essa perda tão dolorosa.
- Obrigada. - Lucia sentiu um nó repentino e irritante na garganta. Assim como a barriga inchada, suas emoções estavam muito mais intensas e difíceis de controlar.
- Se precisar de um lugar para ficar... - a vendedora disse.
- Obrigada de novo, mas não preciso. Só preciso de informações sobre a imperatriz. Ela ainda está em Limeros?
As amigas se entreolharam de novo, sem acreditar que Lucia pudesse estar tão desinformada a respeito daquelas coisas.
- A grande imperatriz Cortas está morando no antigo complexo do rei Basilius - a vendedora começou. - Ela vai fazer um discurso de lá amanhã, dirigindo-se a todos os paelsianos que puderem participar.
- Um discurso aos paelsianos. Por quê?
A vendedora olhou para ela com um pouco de compaixão.
- Bem, por que não? Talvez você tenha esquecido por causa dos muitos anos abençoados que passou em Limeros, mas a vida aqui em Paelsia é difícil.
- Para dizer o mínimo - sua amiga acrescentou.
A vendedora assentiu.
- A imperatriz vê nossos esforços. Ela os reconhece. E quer fazer algo em relação a isso. Ela valoriza os paelsianos como parte importante de seu império.
Lucia tentou não revirar os olhos. Ela não tinha percebido como Amara era uma manipuladora de primeira, sedenta por poder, nas poucas vezes em que conversara com a ex-princesa quando os Damora moraram
no palácio auraniano.
- Mas, claro, questiono a sabedoria da imperatriz por se casar com o Rei Sanguinário - a vendedora comentou.
- Desculpe - Lucia disse, olhando para ela. - Você disse que ela é casada com o Rei... San... com o rei Gaius?
- Sim. Mas também soube que ele está desaparecido no momento, junto com seu herdeiro. Vamos torcer para que a imperatriz tenha enterrado os dois a sete palmos da terra.
- Realmente - Lucia murmurou, sentindo o estômago embrulhado só de pensar. Sera não tinha dito nada sobre o casamento de seu pai com Amara. Seria verdade? - Eu... eu preciso ir. Preciso...
Ela virou e desapareceu em meio à multidão na feira.
Certa vez, Ioannes tinha guiado Lucia para encontrar e despertar a Tétrade com seu anel da feiticeira. Ela esperava que o mesmo encanto que usaram pudesse funcionar para ajudá-la a encontrar Magnus e seu
pai. No entanto, apesar de ter conseguido fazer o anel girar como fizera na época em seus aposentos no palácio auraniano, todas as tentativas de reaver o mapa brilhante de Mítica e determinar a localização
deles tinham fracassado. Enfraquecida por usar seus elementia, ela tinha que fazer paradas constantes ao percorrer o caminho a pé, junto com muitos outros paelsianos, até o complexo do antigo líder local.
Lucia se recusava a acreditar que sua família estivesse morta. Eles eram muito bem preparados para isso. E, se o rei tinha se casado com Amara - uma ideia tão ridícula que ela mal conseguia conceber -,
tinha feito isso por razões estratégicas, por poder e sobrevivência.
Sim, Amara era jovem e muito bela, mas seu pai era esperto e cruel demais para tomar uma decisão como essa movido por uma mera paixão.
Havia milhares de paelsianos reunidos do lado de fora do complexo quando ela finalmente chegou. O vilarejo mais próximo ficava a meio dia de viagem dali, mas levaria mais um dia, talvez dois, na situação
atual de Lucia, para chegar a Basilia, seu destino original.
Os portões altos e pesados rangeram ao se abrir, e a multidão adentrou o complexo. Lucia se concentrou tanto nas pessoas que a cercavam, procurando algum rosto conhecido, que mal viu os caminhos de pedra
e as casas de barro que levavam em direção à enorme casa de três andares no centro do complexo. Os paelsianos estavam sendo levados para uma ampla clareira, com fogueiras e vários assentos elevados de
pedra. Isso a fez pensar nas histórias que já tinha ouvido sobre como o chefe Basilius organizava competições entre os homens que queriam impressioná-lo com sua força e habilidade de combate. Ali, já tinham
ocorrido lutas mortais apenas para entretê-lo.
A multidão continuou crescendo, mas Lucia não ouviu nenhuma menção ao ex-chefe e a seus prazeres nos fragmentos de conversa ao seu redor. Só ouvia sobre a importância da nova imperatriz.
Lucia não imaginava que os paelsianos fossem tão fáceis de enganar. Eles acreditaram, por muitos e muitos anos, que o chefe Basilius era um feiticeiro.
Chefe Hugo Basilius. Seu pai biológico.
E aquela era a casa dele - o lugar onde ela teria sido criada se não tivesse sido roubada no berço.
Lucia olhou para as casas, ruas e a arena que formavam o complexo, esperando sentir uma sensação de perda da vida que deveria ter tido.
Mas não sentiu nada. Se havia um lar do qual sentia falta, era do palácio escuro cercado por gelo e neve em Limeros.
Quanto antes conseguisse deixar aquele reino seco e desagradável, melhor. Já tinha aprendido mais do que o suficiente sobre a cultura paelsiana quando a conheceu com Kyan.
Ela não ouviu boatos sobre o deus de fogo causando mais destruição e morte durante suas viagens. Segurava firme a esfera de âmbar que tinha escondido no bolso. Timotheus insistira que Kyan não podia morrer.
Mas, se era verdade, onde ele estava? O que estava planejando? Ela o havia ferido gravemente em sua batalha? Se não tinha, por que Kyan não havia voltado às Montanhas Proibidas para recuperar sua esfera
antes que Lucia a encontrasse?
Ela pressionou os dedos ao redor do cristal de âmbar ao pensar nisso. Seria forte o suficiente para lutar se ele a encontrasse naquele dia?
Lucia detestava admitir que não.
Não, não é bom o suficiente, ela pensou. Não há outra escolha. Tenho que ser forte.
- Ela é incrível, de fato - outro um velho corcunda paelsiano disse. - Se tem alguém que pode livrar nossa terra de sua doença mortal, é a imperatriz.
- Quero vingança pela morte de minha família - uma mulher mais jovem respondeu.
- Também quero - uma mulher mais velha concordou.
- De que doença estão falando? - Lucia perguntou.
- A doença da bruxa sombria - o velho resmungou. - A maldade dela destruiu esta terra e matou milhares de paelsianos com o toque de sua mão feia e retorcida.
Lucia mexeu as mãos.
- Ouvi falar dessas maldades...
- Maldades? - ele praticamente gritou com ela. Gotas de saliva do homem acertaram o rosto de Lucia, que limpou a face, fazendo uma careta. - Alguns dizem que Lucia Damora vai matar todos nós com sua magia
do fogo, que é uma feiticeira imortal, filha do Rei Sanguinário com uma demônia durante uma cerimônia de magia sanguinária! Mas eu a vejo como é: alguém que precisa ser morta antes que acabe machucando
outras pessoas.
Eles sabiam seu nome. E a odiavam o suficiente para desejar sua morte.
Não importava que o velho não tivesse incluído Kyan no relato. Já era um fato. Ela não podia voltar e mudar o que tinha acontecido.
Os paelsianos viam Lucia como uma bruxa demoníaca tirada das sombras como uma hera odiosa. Um pesadelo e uma doença que infestavam sua terra.
Ela nem tentou discutir, uma vez que estavam totalmente certos.
A multidão começou a gritar quando Amara finalmente subiu ao palco. Lucia tentou ver o máximo que pôde da bela moça, o cabelo comprido e escuro estava solto, o vestido de seda esmeralda com uma fênix brilhante
bordada. Quando ela ergueu as mãos. As pessoas ficaram em silêncio.
Amara falou de maneira clara e intensa sobre um futuro incrível para os cidadãos de Paelsia. Lucia não acreditava nas mentiras que ela despejava, mas, ao observar em volta, viu que as pessoas aceitavam
o que era dito como quem aceita um banquete delicioso.
A imperatriz parecia muito sincera em suas promessas. Lucia admirava a facilidade com que falava sobre mudar tudo o que estava errado no mundo. Sobre tomar decisões em nome daquelas pessoas que acreditavam
em cada uma de suas palavras.
Lucia estava ali, punhos cerrados, odiando Amara e esperando a chance de descobrir o que sua inimiga tinha feito com sua família.
E então, quase no mesmo instante, as lindas e falsas palavras que Amara dizia foram interrompidas. Alguém gritou e Lucia só entendeu o que estava acontecendo quando viu um guarda cair no palco, com uma
flecha enfiada na garganta. Outro guarda caiu, e mais um.
Uma tentativa de assassinato.
Isso não pode acontecer, Lucia pensou desesperada. Preciso muito perguntar a ela. Amara não pode morrer hoje.
Com muito esforço, Lucia acessou a magia do ar. Um vento frio e abundante envolvia seus braços e mãos em espirais transparentes enquanto ela avançava pela multidão em direção ao palco, usando a magia invisível
para tirar todo mundo de seu caminho. Os guardas kraeshianos pularam na multidão assustada e confusa com armas em punho e só provocaram mais pânico. Eles derrubavam quem os enfrentava ou cruzava seu caminho,
fossem rebeldes ou civis, o que só aumentou a confusão enquanto todos tentavam fugir.
Lucia se esforçou para enxergar o que estava acontecendo no palco. Amara e uma garota muito parecida com a criada que costumava acompanhar a princesa Cleo encolheram-se diante de um jovem alto que usava
um tapa-olho preto e empunhava uma espada.
A magia do ar frio de Lucia passou para a de fogo, pronta para queimar quem a impedisse de chegar a Amara. Alguém puxou seu manto, e ela olhou para a pessoa, pronta para fazê-la arder em chamas. Nicolo
Cassian olhou para ela, uma das mãos em seu manto, a outra pressionada contra um ferimento na barriga. Quando ele tossiu, sangue espirrou de sua boca.
Um ferimento mortal.
Lucia olhou de novo para o palco, mas um som engasgado a fez virar de novo para Nic, uma vítima dos guardas sedentos por sangue ou de um paelsiano assustado.
Não importava quem tinha feito aquilo. Ela conseguiu ver, com rapidez, que o ferimento era profundo e mortal. O que aquele garoto estava fazendo justamente ali?
Lucia não tinha magia suficiente para lutar contra milhares. Levou a mão à barriga ao observar a multidão, sabendo que precisava ir para um local seguro. Muitos estavam se pisoteando para voltar aos portões.
Ela deu um passo e então percebeu que Nic ainda a segurava.
- Prin... ce... sa... - ele disse, sem fôlego.
Ela o encarou, hesitante.
- Por favor... me ajude...
A vida se esvaía de seus olhos. Nic não tinha mais muito tempo. Mas ele era amigo próximo da princesa Cleo - uma garota que Lucia já tinha considerado uma amiga verdadeira, até ser traída por ela.
Mas o pai de Lucia tinha destruído a vida de Cleo, destruído todo o seu mundo.
Cleo tinha perdido tudo no último ano. Aquele amigo era o único resquício que a princesa auraniana tinha de sua antiga vida.
Se Nic morresse, Lucia não tinha dúvidas de que isso destruiria Cleo.
Lucia detestava quando sua consciência pesava, principalmente quando isso acontecia por causa de Cleiona Bellos.
Com cuidado, ela se agachou ao lado de Nic e afastou a mão que cobria o ferimento para, em seguida, levantar a túnica. Fez uma careta ao ver todo aquele sangue e as entranhas para fora.
- Diga a Cleo - Nic disse com esforço para respirar - que eu a amo... que ela é minha família... que eu... eu sinto muito.
- Poupe seu fôlego - Lucia disse. - E diga a ela você mesmo.
Lucia pressionou o ferimento cheio de sangue e canalizou toda a magia da terra que tinha dentro de si. Nic arqueou as costas e gritou de dor, e o grito estridente se espalhou pelo caos ao redor deles.
- Pare! Por favor! - Nic tentou impedi-la, afastá-la, mas estava fraco demais. Tinha perdido tanto sangue que Lucia não sabia se teria magia suficiente para curá-lo. Mas ainda assim, tentou. O capuz caiu
de sua cabeça, revelando o cabelo e o rosto, mas ela não se deu ao trabalho de puxá-lo de volta. Esgotou a energia e a força que tinha em uma tentativa de salvar aquele rapaz.
Pelo menos até alguém arrancá-la de perto dele. Ela virou, furiosa, e ficou frente a frente com um homem feio que escancarava um sorriso mostrando os dentes.
- Vejam o que encontrei! - ele anunciou, arrastando-a para longe de Nic até ela perdê-lo de vista. - A própria feiticeira atacando outro de nós! As mãos dela estão manchadas de sangue paelsiano!
Lucia tentou invocar magia do fogo ou do ar para afastá-lo, mas nada aconteceu. Ela fechou a mão, desesperada para fugir de quem a atacava.
- Olhe para mim, bruxa! - o homem disse.
Ela lançou um olhar para o homem, mas recebeu um tabefe no rosto tão forte a ponto de fazer seu ouvido zunir.
- Amarre-a! - alguém gritou. - Queime a bruxa como ela queimou nossos vilarejos!
Desorientada, ela foi arrastada pela terra seca, tropeçando nos próprios pés até seu agressor empurrá-la para longe. Ela caiu de joelhos com tudo no meio de uma roda de pessoas furiosas. Alguém jogou uma
pedra nela, acertando o lado direito de seu rosto com força, e Lucia gritou de dor. Levou a mão ao rosto e sentiu o sangue quente.
- Não sou quem você pensa que sou - ela conseguiu dizer. Levantou as mãos à frente do corpo. - Você precisa me soltar.
- Não, bruxa. Hoje você vai morrer por seus crimes cruéis. Estamos de acordo?
A multidão que a cercava expressou aprovação com gritos. Não havia misericórdia no olhar de ninguém. Alguém entregou uma corda grossa ao primeiro agressor.
- Deixe-a de pé - ele vociferou.
Alguém atrás de Lucia a levantou e amarrou seus punhos com força.
- Meus cumprimentos, princesa - uma voz estranhamente familiar soou em seu ouvido. - Pelo visto está causando mais problemas em Paelsia.
Jonas Agallon. Ela se esforçou para virar o suficiente e ver aquele olhar tomado de ódio.
- Jonas - ela disse -, por favor, precisa me ajudar!
- Ajudar? O quê? A grande e poderosa feiticeira não consegue se cuidar? - Ele estalou a língua. - Que tragédia. Parece que essas pessoas querem vê-la morta. Queimada viva, acho que foi o que ouvi, certo?
Parece um fim adequado para uma bruxa como você.
Sua mente estava a mil.
- Onde está meu pai? Meu irmão? Você sabe?
- É a última coisa com que você deveria se preocupar, princesa. Sinceramente. - Ele a virou e resvalou a mão na barriga dela.
Jonas franziu a testa.
- Isso mesmo - ela disse, agarrando todas as oportunidades que tinha de conseguir ajuda, ainda que fosse de alguém como ele. - Vocês vão tentar celebrar minha execução tão rápido agora que sabem que uma
criança inocente morrerá comigo?
- Inocente? - O olhar de Jonas não suavizou nem um pouco. - Nada que alguém como você poderia trazer a este mundo seria inocente.
- Eu não matei aquela moça. Foi Kyan. Ele... eu não consegui controlá-lo. Eu queria que ele parasse. Sinto muito por sua perda e me arrependo do que aconteceu naquele dia. Gostaria de poder mudar as coisas,
mas não posso.
- O nome daquela moça era Lysandra. - Jonas contraiu o maxilar, e ficou em silêncio por um momento enquanto os outros homens pediam para ir a um lugar mais adequado para queimar a bruxa. - Onde está Kyan?
- Eu... eu não sei - ela disse com sinceridade.
Jonas a encarou.
- Essa criança dentro de você drena sua magia, não é?
- Como sabe disso?
Ele franziu ainda mais a testa.
- Você já teria destruído tudo aqui se tivesse acesso a seus elementia, certo?
Ela apenas assentiu.
Jonas xingou em voz baixa.
- Eles precisam de você. Estão dependendo de você. E você está aqui, como uma idiota, prestes a morrer.
Se estivessem em outro lugar, em outro momento, ela teria ficado magoada ao ser chamada de idiota.
- Então faça alguma coisa em relação a isso. Por favor.
Depois de um momento de hesitação, Jonas empunhou a espada e a apontou para o homem que segurava a corda.
- Uma pequena mudança de planos. Vou levar a feiticeira comigo.
- Sem chance - o homem resmungou.
- Não há discussão. Estou vendo que nenhum de vocês está armado no momento. - Ele observou as pessoas do grupo. - Atitude estúpida, em uma multidão assim, não carregar uma arma, mas isso torna as coisas
mais fáceis para mim. Se nos seguirem, vão morrer. - Ele arregalou os olhos para Lucia. - Vamos, princesa.
Jonas pegou o braço dela e a puxou.
- Aonde vai me levar? - ela perguntou.
- Aos seus queridos pai e irmão. Que todos vocês apodreçam juntos na escuridão.
21
CLEO
PAELSIA
Quando percebeu que Nic, Jonas e Olivia tinham partido sem contar nada sobre seus planos, Cleo não ficou magoada. Ficou furiosa.
- Minha nossa, querida, você vai abrir um buraco no chão de tanto andar de um lado para o outro.
Cleo virou e viu Selia Damora olhando para ela. A mulher a deixava nervosa, mas felizmente as duas tinham se encontrado poucas vezes desde sua chegada. Era difícil acreditar que fazia só três dias que
estavam na hospedaria. Pareciam três anos.
- Meus amigos partiram sem se despedir - Cleo respondeu tensa, forçando-se a parar de roer a unha do polegar direito. - Considero esse comportamento imperdoavelmente grosseiro e desrespeitoso. Em especial
da parte de Nic.
- Sim, Nic. O rapaz de cabelo vermelho. - Selia sorriu. - Tenho certeza de que não fez por mal. Ele parece gostar de você.
- Ele é como um irmão para mim.
- Os irmãos costumam esconder segredos das irmãs.
- Mas não o Nic. - Cleo remexeu as mãos. - Contamos tudo um ao outro. Bom, quase tudo.
- Venha sentar comigo por um momento. - Selia sentou em uma espreguiçadeira e deu batidinhas no assento ao seu lado. - Quero saber mais sobre a esposa de meu neto.
Era a última coisa que Cleo queria, mas teve que fingir amabilidade. Seria inteligente de sua parte fazer amizade com uma mulher que logo teria acesso à magia, especialmente agora que a magia de Cleo tinha
sido roubada - ainda que Selia fosse uma Damora.
Só de pensar no que Ashur tinha feito, ela tremia de raiva. Como ele tinha conseguido roubar a esfera de obsidiana sem que ela notasse? Para Cleo, aquele cristal representava poder e um futuro repleto
de escolhas e oportunidades. Mas por ser preguiçosa e desatenta, a esfera tinha sido levada de baixo de seu nariz.
E não havia absolutamente nada que pudesse fazer.
Forçando um sorriso, Cleo sentou hesitante ao lado da senhora.
Selia não disse nada por um tempo, mas observou o rosto de Cleo com cuidado.
- O que foi? - Cleo perguntou finalmente, ainda mais desconfortável do que antes.
- Eu não tinha certeza antes... mas tenho agora. Vejo seu pai em você. Seus olhos são da mesma cor dos de Corvin.
A menção a seu querido pai a deixou tensa.
- Você tinha dúvidas a respeito de quem eram meus pais?
- No que diz respeito a meu filho e a... - ela hesitou - às dificuldades dele com sua mãe, sim, claro que tive muitas dúvidas ao longo dos anos. Achei que houvesse uma chance de Gaius ser seu pai.
O horror de pensar numa possibilidade daquelas a deixou enjoada de repente.
- Meu... meu pai? - Ela cobriu a boca com a mão. - Acho que vou vomitar.
- Ele não é seu pai. Tenho certeza disso agora que estou olhando para você.
Cleo tentou se manter calma, mas a insinuação inesperada da mulher a deixara atordoada.
- Minha... minha mãe não teria... de jeito nenhum...
- Sinto muito se a perturbei com isso. Mas não prefere ter certeza de que você e Magnus estão unidos apenas pelos votos e não pelo sangue? - Ela franziu a testa. - Minha nossa, você está muito pálida,
Cleiona.
- Nem sei por que sugere uma coisa dessas - ela disse.
- Não pensei que Gaius tivesse conseguido se encontrar com Elena depois da briga que tiveram, que sei que aconteceu bem antes de ela se casar com Corvin. Mas os filhos nem sempre contam tudo à mãe sobre
assuntos do coração, nem mesmo o filho mais atencioso e amoroso.
O modo como o rei expressara o que teriam sido suas últimas palavras, seu suspiro final, o nome da mãe dela... "Sinto muito, Elena".
- Só soube que eles se conheciam recentemente - Cleo disse, tensa.
- Eles se conheceram num verão vinte e cinco anos atrás na Ilha de Lukas, quando Gaius tinha dezessete anos, e Elena, quinze. Quando voltou para casa, Gaius já estava obcecado por ela, dizendo que iam
se casar com ou sem o consentimento do pai dele.
Cleo se esforçou para continuar respirando. Aquela história não parecia plausível. Soava como uma história de um livro cheio de fantasia e imaginação.
- Meu pai nunca disse nada a respeito... - Ela franziu a testa. - Ele sabia?
- Não faço ideia do que Elena pôde ter contado a Corvin sobre seus romances anteriores. Imagino que ele descobriu a verdade no fim das contas, ainda que apenas para se preparar melhor para proteger Elena.
- Protegê-la? Como assim?
A expressão de Selia ficou mais séria.
- Elena perdeu o interesse em Gaius quando voltou para casa. Não sei por quê. Imagino que fosse apenas uma novidade passageira para ela, uma maneira de passar o verão, conquistar o afeto de um garoto apaixonado.
Nada além disso. Quando descobriu essa mudança, Gaius... não aceitou muito bem. Confesso, amo meu filho profundamente, mas ele sempre teve um péssimo lado violento. Gaius foi atrás de Elena, exigindo que
seu amor fosse retribuído e, quando ela se recusou, ele a agrediu quase a ponto de matá-la.
Cleo sentiu mais uma onda de náusea. Sua pobre mãe, sujeita ao cruel Gaius Damora em sua pior versão.
Ela nunca detestara tanto o rei.
- Só espero que meu neto não seja exageradamente cruel com você a portas fechadas, minha cara - Selia disse delicadamente. - Homens poderosos, cheios de força e perigo... costumam ter acessos de violência.
As esposas e mães torcem para sobreviver a eles.
- Sobreviver? Não pode estar falando sério! Se Magnus um dia levantasse a mão para mim, eu...
- O quê? Você mal chega na altura do ombro dele, e Magnus deve ter o dobro do seu peso. A melhor coisa a se fazer nesse caso, Cleiona, é ser o mais agradável e compreensiva possível em todos os momentos.
Todas as mulheres devem fazer isso.
Cleo endireitou os ombros e levantou o queixo.
- Não tive o grande privilégio de conhecer minha mãe, mas se ela era um pouco parecida comigo ou um pouco parecida com minha irmã, então sei que ela não teria sido o mais agradável e compreensiva possível
diante de uma agressão, não importa de quem nem quando. Nem eu! Eu mataria quem tentasse me atacar!
Selia abriu um sorriso discreto.
- Meu neto escolheu uma garota com coragem e força para amar, assim como o pai dele. Eu estava testando você, é claro.
- Me testando?
- Olhe para mim, querida. Tenho cara de quem permitiria que um homem levantasse a mão para me bater?
- Não - Cleo respondeu com sinceridade.
- Exato. Fico feliz por termos conseguido conversar hoje, minha querida. Agora já sei tudo o que preciso saber.
Ela estendeu o braço, apertou a mão de Cleo e então saiu da sala.
Aquela tinha sido a conversa mais esquisita de toda a vida de Cleo.
- Talvez eu vá à taverna sozinha hoje - ela murmurou. - Por que Magnus é o único aqui que pode beber vinho em uma tentativa tola de fugir dos problemas?
Quando levantou, algo chamou sua atenção do lado de fora, nos fundos da hospedaria. Ela deu um passo para a frente. Olivia estava no quintal. Estranhamente, a moça não usava nada além de um lençol branco
enrolado no corpo, lençol que Cleo reconheceu das roupas de cama que a esposa do dono da hospedaria lavava todos os dias.
Independentemente da vestimenta, ver Olivia foi um grande alívio. Cleo levantou e saiu para se aproximar, observando ao redor com curiosidade.
- Olivia! Nic e Jonas estão com você? Aonde vocês foram?
A expressão de Olivia era de grande incerteza.
- Preciso sair de novo imediatamente, mas quis voltar antes para ver você.
- O quê? Aonde está indo?
- Está na hora de eu voltar para a minha casa. O caminho e o destino de Jonas se encontraram com sucesso, e meu tempo com ele está acabando.
- Desculpe. - Cleo balançou a cabeça, confusa. - O destino de Jonas? Do que você está falando, afinal?
- Não cabe a mim explicar essas coisas. Só sei que não posso mais cuidar dele, uma vez que talvez me sinta tentada a interferir. - Ela franziu a testa. - Isso deve soar ridículo para você. Sei que não
sabe quem sou de verdade.
- Você quer dizer que é uma Vigilante?
Olivia olhou para Cleo.
- Como sabe disso?
Cleo riu com hesitação ao ver a expressão de choque de Olivia.
- Jonas me contou. Ele confia em mim, você também deveria confiar. Prometo guardar seu segredo surpreendente, mas, por favor, me diga o que está acontecendo. Está chateada só por deixar Jonas?
- Não, não é o único motivo. Eu... eu fui ao complexo com Nic e Jonas, onde a imperatriz está no momento.
Cleo arregalou os olhos.
- Era onde você estava? Que plano imbecil foi esse?
- O príncipe Magnus ameaçou Nic - Olivia explicou. - Ele ameaçou você também, caso Nic não fosse atrás de Ashur para recuperar os cristais da Tétrade.
Cleo franziu a testa.
- Não pode ser. Magnus não faria isso.
- Garanto que fez. Caso contrário, Nic nunca teria se afastado de você. - Os olhos verde-esmeralda de Olivia brilharam de ódio. - É culpa do príncipe que isso tenha acontecido. Perdi Nic na multidão durante
a tentativa de assassinato de Amara. Eu o vi por apenas um momento quando ele foi atingido por uma lâmina. Eu... eu acredito que tudo terminou depressa.
Cleo balançou a cabeça quando a palma de suas mãos começou a arder e a suar.
- O quê? Não entendo. Ele foi atingido por uma lâmina? Que lâmina? Do que está falando?
A expressão de Olivia era só pesar.
- Nic está morto. Ele é um dos muitos mortos depois que os rebeldes fizeram uma tentativa de assassinato a Amara. Preciso sair de Mítica agora e peço a você que faça o mesmo. Você não está em segurança
aqui com alguém como Magnus, que mataria um rapaz como Nic. Não está certo, princesa, nada disso está certo. O mundo está fora de controle, e eu temo que seja tarde demais para salvá-lo. Sinto muito por
dizer isso, mas achei que você merecia saber.
Olivia soltou a mão de Cleo e deu alguns passos para trás, com uma expressão atormentada.
- Fique bem, princesa - ela disse. Depois disso, a pele escura e impecável se transformou em penas douradas, e seu corpo se transformou no de um falcão, e ela alçou voo.
Cleo a observou, surpresa demais com o que tinha ouvido para apreciar a magia verdadeira e inegável revelando-se diante de seus olhos.
Ela não sabia ao certo quanto tempo ficou em silêncio no pátio, olhando para o céu claro, até voltar para a hospedaria com dificuldade. Seus joelhos fraquejaram antes que ela alcançasse uma cadeira.
Seu corpo inteiro tremia, mas ela não chorou. Eram informações demais para processar. Inacreditável demais. Não podia ser verdade. Se fosse, se Nic estivesse morto, então ela também queria morrer.
- Você está bem? O que aconteceu?
Quando se deu conta do que estava acontecendo, Cleo percebeu que tinha sido levantada do chão por dois braços fortes.
- Está ferida? - Magnus afastou o cabelo dela da testa, envolvendo seu rosto com as mãos. - Que droga, Cleo, responda!
Confusa, ela percebeu a preocupação nos olhos castanhos profundos dele.
- Magnus... - ela começou, a respiração profunda e trêmula.
- Sim, meu amor. Fale comigo. Por favor.
- Diga a verdade.
- Claro. O quê? O que você precisa saber?
- Você ameaçou me matar se Nic não fosse atrás de Ashur?
A expressão sofrida dele, totalmente concentrada nela, aos poucos deu lugar à frieza da máscara que ele usava para encobrir suas emoções.
- Ele disse isso? Ele voltou?
- Responda. Você me ameaçou ou não?
Magnus encarou os olhos furiosos dela.
- Cassian precisava da motivação certa.
- Isso é um sim.
- Eu disse o que ele precisava ouvir para resolver a questão. Para...
Cleo deu um tapa tão forte no rosto dele que sua mão ardeu. Magnus levou a mão ao rosto e olhou para ela, atônito.
Ele franziu o cenho.
- Você ousa...
- Ele está morto! - Cleo gritou antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa. - Por causa do que você disse! Meu último amigo no mundo inteiro está morto por sua causa!
Ele parecia confuso.
- Não pode ser.
- Não pode? As pessoas não morrem quando se aproximam de você e de sua família monstruosa? - Ela passou os dedos pelo cabelo, desejando arrancá-lo pela raiz, desejando sentir dor física para poder se concentrar
em algo que não fosse seu coração despedaçado.
- Quem contou isso a você? - Magnus perguntou.
- Olivia voltou. Ela foi embora, então não pode forçá-la a fazer o que você quer.
- Olivia. Sim, bom, não sei quem Olivia é. Nem você. Só sabemos que ela é aliada de Jonas, um garoto que me odiava a ponto de me querer morto até pouco tempo atrás. Até onde sei, esse objetivo não mudou.
- Por que ela mentiria sobre algo assim? - A voz da princesa falhou.
- Porque as pessoas mentem para conseguir o que querem.
- Imagino que você saiba bem disso.
- Sim, e penso o mesmo sobre você, princesa - ele disse. - Entre nós dois, acho que você mentiu muito mais do que eu. Além disso, devo dizer que você viu Ashur morrer com seus próprios olhos, mas ele ainda
está vivo. Não existem provas de que Nic está morto. Só tem as palavras de alguém. Não se pode confiar em palavras, não nas palavras de qualquer um.
- Essa é a sua resposta? - Cleo olhou para ele, percebendo que mal conhecia a pessoa à sua frente. - Digo que um garoto que era como um irmão para mim foi morto por sua causa e você diz simplesmente que
mentiram para mim?
- É o que parece, não é?
- Você não assume responsabilidade por todo o mal que causou. Nunca! - Ela se esforçou ao máximo para se manter firme, para não se perder na dor e na raiva que entravam em conflito dentro dela. - Tentei
ver seu lado bom, mas você fez algo imperdoável. Vá em frente! - ela vociferou. - Tente se defender! Diga que Nic odiava você, então por que não desejaria que ele morresse? Vamos lá, faça isso!
- Não vou negar. A vida seria muito mais simples para mim se aquela pedra no meu sapato fosse retirada de uma vez por todas. Mas eu nunca desejaria a morte dele, porque sei como gosta dele.
- Gosto dele? Eu amo! - ela gritou. - E se ele realmente estiver morto, eu...
- O quê? Vai perder o resto de esperança que ainda tem? Vai se encolher e morrer? Por favor, você tem muito a ganhar ficando viva, lutando, mentindo e continuando a me usar sem pudor para conseguir o que
posso lhe dar.
Cleo olhou para ele, abismada.
- Usar você?
Magnus ficou sério.
- Você quer poder, magia. Ao ficar aqui comigo e tolerar a existência de meu pai, sabia que isso a levaria ao que deseja. Quando os cristais da Tétrade foram roubados, principalmente por sabermos o que
sabemos sobre eles, o que eu deveria pensar? Que você continuaria aqui para sempre? Fiz o que fiz por você, para ajudá-la a reaver sua chance de ter poder. Ashur parece valorizar Nic por motivos que não
compreendo. Se tem alguém que consegue entender aquele kraeshiano doido, eu sabia que era seu amigo querido. O mesmo amigo que mandou Taran cortar meu pescoço, devo relembrar.
Ele falava com Cleo como um desconhecido furioso, não como alguém que ela tinha passado a valorizar.
- E agora está me culpando por isso. Como ousa?
Magnus bufou.
- É impossível discutir com você.
- Então nem tente. Você não pode consertar isso, Magnus. Não pode nem começar.
- Se Nic ainda estiver vivo...
- Não importa. - Lágrimas correram por seu rosto. - Isso provou como somos diferentes. Você é incansavelmente cruel e manipulador, e agora vejo que isso nunca vai mudar.
- Posso ser sincero, princesa? Eu poderia dizer exatamente a mesma coisa sobre você. Talvez você preferisse que eu lidasse com o conflito colhendo flores e cantando, mas não sou assim. E você tem razão:
nunca vou mudar. Nem você. Uma hora você diz que me ama, mas prefere que cortem sua língua a contar esse segredo, até mesmo a seu amigo mais íntimo. Pelo amor da deusa! Que Nic não descubra que você se
mistura com pessoas como eu! Ele detestaria você por isso?
Cleo secou as lágrimas, irritada consigo mesma por demonstrar tamanha fraqueza.
- É muito provável que sim.
- Então isso prova que, entre ele e eu, você o escolheria.
- Num piscar de olhos - ela disse imediatamente. - Mas ele está morto.
Um músculo no rosto dele se contraiu.
- Talvez. E Jonas? Não pude deixar de notar que você estava praticamente sentada no colo dele ontem, sussurrando palavras de amor e incentivo.
- É o que você...? - Ela corou. - Jonas é muito mais homem do que você! Eu preferiria dormir com ele a dormir com você. Em qualquer dia, em qualquer momento. E nenhuma maldição me impediria.
- Vá para o inferno, Cleo. - O ódio tomou conta do olhar dele, que já estava frio. Magnus levantou o punho, os dentes travados em uma expressão feroz.
- Vamos - ela vociferou. - Bata em mim como seu pai batia na sua mãe. Você sabe que é o que quer.
- Como é? - Ele franziu a testa, olhou para o próprio punho com surpresa e o abaixou em seguida. - Eu... eu nunca agrediria você.
- Chega - ela disse, num sussurro. - Estou cansada daqui. Preciso pensar. - Ela se virou em direção à escadaria que levava aos quartos.
- Cleo... - Magnus chamou. - Vamos descobrir a verdade sobre Nic. Prometo.
- Eu já sei a verdade.
- Eu sei que posso ser horroroso às vezes. Eu sei. Mas... eu amo você. Isso não mudou.
Os ombros dela ficaram tensos.
- O amor não basta para consertar isso.
Sem olhar para trás, Cleo caminhou com o máximo de calma e lentidão até seu quarto e trancou a porta quando entrou.
22
JONAS
PAELSIA
Jonas teve que sair do complexo antes de encontrar Nic. Eles tinham sido separados depois da revolta rebelde. A multidão à espera da imperatriz tinha entrado em pânico, e as pessoas começaram a lutar umas
contra as outras e contra os guardas kraeshianos.
Sua visão do palco estava bloqueada, e ele se viu frente a frente com paelsianos irados e com a feiticeira que queriam matar.
- Pode olhar para mim com ódio - Lucia disse a ele enquanto se afastavam da confusão.
- Que bom que permite.
- Você me odeia. E, ainda assim, você salvou minha vida.
- É provável que eu tenha salvado a vida de uma dúzia de paelsianos que subestimaram sua capacidade de matar cada um deles.
- E você não me subestima?
- Não.
- Então sugiro que você me diga onde meu pai e meu irmão estão para que não tenha que colocar sua vida em risco por nenhum segundo a mais em minha companhia.
Jonas sabia que ela poderia cumprir uma ameaça, se quisesse. Ele temia quando pensava no poder daquela garota e no prejuízo e na destruição pela qual a responsabilizavam.
- Onde está o deus do fogo? - ele sussurrou.
Lucia arqueou as sobrancelhas. Jonas percebeu que ela estava chocada por ele saber quem - ou melhor, o que - Kyan era de fato.
- Já disse que não sei.
- Ele é o pai de seu filho?
Lucia deu uma risada alta e nervosa.
- Com certeza não.
- Não vejo graça nenhuma nisso.
- Não se engane, rebelde, nem eu.
- Continue andando - ele disse quando Lucia diminuiu o ritmo. - Pelo jeito você está pesada demais para ser carregada.
A resposta de Lucia ao insulto foi parar totalmente. Os dois tinham adentrado uma parte densa da floresta a caminho da cidade mais próxima, onde Jonas pretendia conseguir transporte para o oeste.
- Responda à minha pergunta: onde estão meu pai e meu irmão? Sei que ainda estão vivos. Só podem estar.
- Se eu responder à sua pergunta, que certeza posso ter de que você não vai acabar com a minha vida? - ele perguntou.
- Nenhuma.
- Exatamente. Por isso mesmo vou levá-la até eles.
Lucia se surpreendeu.
- Então eles estão vivos!
- Talvez - ele disse.
- E como posso acreditar que você quer me ajudar?
Jonas virou e levantou o dedo indicador para ela.
- Não se engane, princesa Lucia, não estou fazendo isso para ajudá-la. Estou fazendo isso para ajudar Mítica.
Ela revirou os olhos.
- Que nobre.
- Pense o que quiser. Não me importa. Você se recusa a responder às minhas perguntas, então me recuso a responder às suas. Nosso destino final não está muito longe, mas você precisa encontrar uma maneira
de lidar com minha presença e com meu ódio durante o trajeto que vamos percorrer juntos.
- Acho que não. Vou contar um segredinho para você, rebelde, a respeito de uma habilidade especial que descobri recentemente. Posso forçar você a dizer a verdade... e quanto mais resistir, mais vai doer.
Jonas virou para encará-la de novo, mais irritado do que intimidado.
- Você sempre foi má assim ou só começou quando descobriu que era uma feiticeira?
- Sinceramente? - Ela abriu um sorriso frio. - Só depois.
- Acho difícil acreditar nisso. Você e sua família... são maldade pura, todos vocês.
- E ainda assim você está nos ajudando. - Lucia franziu a testa discretamente. - Pelo menos, diga que estão bem, que saíram ilesos depois de tudo o que aconteceu.
- Ilesos? - Ele sorriu com ironia. - Não sei de nada. Finalmente tive a chance de enfiar uma adaga no coração do rei. Por azar, isso só o atrapalhou um pouco.
Os olhos dela brilharam, furiosos.
- Mentira.
- Bem aqui. - Ele indicou o peito. - Certeiro e profundo. Até girei. Foi tão bom que não consigo nem explicar.
Um instante depois, ele se viu no ar, voando até bater as costas no tronco de uma árvore com força suficiente para tirar seu fôlego.
Lucia se ajoelhou ao lado dele, apertando sua garganta.
- Olhe para mim.
Desorientado, Jonas encarou os olhos azul-claros dela.
- Diga a verdade - ela rosnou. - Meu pai está morto?
- Não. - A palavra foi dita com dificuldade.
- Você o apunhalou no coração mas ele não morreu?
- Exatamente.
- Como isso é possível? Responda!
Jonas não conseguia desviar daqueles olhos lindos e assustadores. A magia que ela tinha perdido - se é que isso de fato havia acontecido - estava de volta. E Lucia estava bem mais forte do que ele esperava.
- Algum tipo de magia... Não sei. Isso prolongou a vida dele.
- Magia de quem?
- Da mãe.... dele. - Jonas tinha certeza de que estava sentindo gosto de sangue, forte e metálico. Ele engasgou enquanto tentava resistir à magia.
Ela franziu ainda mais a testa.
- Minha avó morreu.
- Ela está viva. Não sei muito mais do que isso. - Ele fez uma careta pela dor de estar contando todas aquelas verdades. - Agora, me faça um favor, princesa.
Ela inclinou a cabeça, mas não cedeu nem um pouco.
- Dificilmente.
Jonas semicerrou os olhos e tentou, com toda a força, canalizar a própria magia como tinha feito sem querer no navio com Felix.
- Me solte.
Lucia soltou Jonas e caiu para trás como se tivesse sido empurrada pelo rebelde.
Tossindo e com a mão no pescoço, Jonas levantou e olhou para ela.
Percebeu que esboçava um sorriso. Olivia deveria estar enganada sobre o poder de sua magia. Jonas se permitiu um breve momento de vitória.
Lucia o encarou, com os olhos arregalados.
- Você pode canalizar a magia do ar? Um bruxo? Nunca soube sobre algo assim... Ou você é um Vigilante exilado?
- Prefiro evitar títulos, princesa - ele disse. - E, francamente, não sei o que sou, só que tenho que lidar com isso agora. - Ele levantou a camisa o suficiente para revelar a marca em espiral em seu peito,
que tinha ficado mais brilhante desde a última vez em que ele olhara, e agora cintilava num tom dourado que o fazia lembrar cada vez mais da marca de um Vigilante.
- O quê? - Lucia balançou a cabeça com os olhos arregalados. - Não compreendo.
- Nem eu. E juro, se essa é minha profecia, cuidar para que alguém como você volte para sua odiosa família sã e salva, vou ficar furioso. - Ele olhou para cima, para as árvores. - Olivia, está me ouvindo
onde quer que esteja? É a pior profecia do mundo!
- Quem é Olivia?
- Deixa para lá. - Ele olhou para Lucia, ainda deitada no chão. - Levante.
Ela tentou ficar de pé.
- Hum...
- Não consegue levantar, não é?
- Me dê um minuto. Minha barriga está um pouco esquisita no momento. - Lucia olhou feio para ele. - E, por favor, nem pense em me ajudar.
- Não pensei. - Jonas ficou observando enquanto ela rolava devagar e com dificuldade para o lado, e então levantava, batendo no manto para tirar as agulhas de pinheiro e a terra. - Você ainda não está
acostumada com sua situação? Já vi paelsianas grávidas, a poucos dias de dar à luz, cortando madeira de uma árvore inteira e carregando para casa.
- Não sou uma paelsiana - ela disse e hesitou. - Bem, não exatamente. E não tive tempo de me acostumar com minha "situação", como você diz.
Que moça esquisita.
- Você está grávida de quantos meses?
- Não que seja da sua conta, mas... cerca de um mês.
Jonas olhou para o corpo dela sem acreditar.
- É assim que funciona com as feiticeiras cruéis? Os bebês delas se desenvolvem muito mais depressa do que os bebês normais?
- Não tenho como saber. - Lucia cruzou os braços como se tentasse proteger a barriga. - Compreendo seu ódio por mim. Compreendo o ódio de todos por mim. O que fiz desde... desde que o pai desta criança
morreu é imperdoável. Sei disso. Mas essa criança é inocente e merece uma chance de viver. O fato de você, logo você, ter vindo ajudar alguém como eu... Você está marcado como imortal, mas afirma não ser
bruxo nem exilado. Isso deve significar alguma coisa. Você fala sobre profecias. Sei bem que sou o alvo de profecias. Para mim, isso quer dizer que essa criança é importante para o mundo.
- Quem é o pai? - Jonas perguntou. Ele não queria sentir pena pelo que Lucia estava passando nem deixar que a voz dela o emocionasse.
- Um imortal exilado.
- E você disse que ele está morto.
Ela assentiu uma única vez.
- Como? - Jonas perguntou. - Você o matou?
Lucia ficou em silêncio por tanto tempo que ele achou que ela não responderia.
- Não. Ele tirou a própria vida.
- Interessante. É essa a única maneira de escapar de suas garras sombrias?
O olhar de ódio de Lucia o fez recuar. Mas era mais do que isso. Os olhos dela estavam vermelhos, numa mistura de cansaço e tristeza.
- Desculpa - Jonas disse antes de pensar em outra resposta. - Acho que fui desnecessariamente grosseiro.
- Foi. Mas eu não esperaria nada menos de alguém que pensa que sou cruel. O que Kyan fez com sua amiga...
- Lysandra - ele disse com a voz embargada. - Ela era incrível... A garota mais forte e corajosa que já conheci. Ela merecia a vida que Kyan lhe roubou sem um segundo de hesitação. Ele estava mirando em
mim, eu deveria ter morrido naquele dia, não ela.
Lucia assentiu com tristeza.
- Sinto muito. Percebo que Kyan não é uma pessoa, não é alguém com sentimentos e necessidades como as dos mortais, e não é possível discutir com ele. Kyan vê todas as falhas e imperfeições deste mundo.
Ele deseja reduzir tudo a cinzas para poder recomeçar. Diria que ele é maluco, mas é fogo. Fogo arde. Destrói. Essa é a razão de sua existência.
- Kyan quer destruir o mundo - Jonas repetiu.
Ela confirmou.
- Por isso eu o deixei. Por isso ele quase me matou quando eu disse que não o ajudaria mais.
Jonas demorou um momento para absorver a informação.
- Você diz que o fogo destrói. Mas o fogo também cozinha comida e nos aquece em noites frias. Esse tipo de fogo não é cruel, é um elemento que usamos para viver.
- A única certeza que tenho é de que ele precisa parar. - Ela levou a mão ao bolso do manto e tirou uma pequena esfera de âmbar. - Esta era a prisão de Kyan.
Jonas ficou sem palavras por um momento.
- E você acha que pode prendê-lo de novo aí dentro e salvar o mundo?
- Pretendo tentar - ela disse apenas.
Ele observou o rosto de Lucia, determinado e sério olhando para a esfera de cristal. Ela parecia muito sincera. Podia acreditar nela?
- Pelo que sei a respeito do deus do fogo, a imperatriz não parece ser grande ameaça, certo?
Lucia guardou a esfera no bolso de novo.
- Ah, Amara provou que é uma ameaça. Mas Kyan é bem pior. Por isso, pode me considerar cruel, rebelde. Pode me considerar alguém que precisa morrer pelos crimes que cometi. Tudo bem. Mas saiba também que
quero tentar consertar parte do que fiz agora que consigo pensar com clareza de novo. Primeiro, preciso ver minha família. Preciso... - As palavras de Lucia foram interrompidas quando ela se inclinou para
a frente e chorou.
Jonas correu para o lado dela.
- O que foi?
- Dói! - ela disse. - Está acontecendo com muita frequência desde que saí. Ah... ah, minha nossa! Não consigo...
Lucia caiu de joelhos com as mãos na barriga.
Jonas olhou para ela, sentindo-se totalmente impotente.
- Droga. O que posso fazer? O bebê já está nascendo? Por favor, não me diga que o bebê já está nascendo.
- Não, não está... Acho que ainda não está na hora. Mas isso... - Quando ela gritou, o som atingiu Jonas como uma lâmina fria. - Me leve para minha família! Por favor!
O rosto da princesa estava pálido como papel em contraste com seu cabelo escuro. Ela revirou os olhos e caiu, inconsciente.
- Princesa - ele disse, tentando acordá-la. - Vamos, não temos tempo para isso.
Lucia não acordou.
Jonas virou e olhou para o conflito. Não demoraria muito para a multidão paelsiana encontrar armas e sair em busca dele e da feiticeira.
Finalmente, xingando em voz baixa, ele se abaixou e pegou a princesa nos braços, percebendo que ela era muito mais leve do que imaginava, mesmo com o bebê que esperava.
- Não temos tempo para ir até sua família - ele disse. - Por isso vou levá-la à minha. Estão muito mais perto.
A irmã de Jonas, Felicia, abriu a porta de casa e observou Jonas por um momento, em silêncio total.
Em seguida, olhou para a garota grávida e inconsciente que ele carregava nos braços.
- Posso explicar - ele se apressou em dizer.
- Espero muito que possa. Entre. - Ela abriu mais a porta para Jonas entrar, tomando o cuidado de não bater as pernas de Lucia no batente.
- Deixe-a na minha cama - Felicia disse a Jonas. Ele fez o que sua irmã disse e voltou até ela, mas a irmã não o recebeu com um abraço. Simplesmente ficou ali, a expressão séria e furiosa, os braços cruzados.
Jonas não esperava que ela ficasse feliz ao vê-lo.
- Sinto muito por não ter vindo visitá-la - ele começou.
- Não tenho notícias suas há quase um ano e você aparece hoje de repente.
- Precisava de sua ajuda. Com... a garota.
Ela riu.
- Sim, com certeza precisa. O filho é seu?
- Não.
Ela não pareceu convencida.
- E o que você espera que eu faça por ela?
- Não sei. - Ele coçou a testa e começou a andar de um lado para o outro na casa pequena. - Ela não está bem. Sentiu dor na barriga e desmaiou. Eu não sabia o que fazer.
- Por isso a trouxe para cá.
- Eu sabia que você me ajudaria. - Ele suspirou nervoso. - Sei que você está brava comigo por eu ter passado muito tempo longe, mas era perigoso demais voltar.
- Sim, eu vi seus cartazes de procurado. O que era aquilo? Dez mil cêntimos para quem capturasse você, morto ou vivo?
- Mais ou menos isso.
- Você matou a rainha Althea.
- Não matei. É uma longa história.
- Imagino.
Ele observou ao redor, à procura de algum sinal do marido da irmã.
- Onde está Paolo?
- Morto.
Jonas a encarou.
- O quê?
- Foi tirado de mim, forçado a trabalhar para a Estrada Imperial. Eles queriam o nosso pai também, mas decidiram que, devido à idade e ao fato de mancar, ele era inútil. Paolo não voltou quando os operários
finalmente foram liberados de suas tarefas. O que devo pensar além de que foi morto com os outros paelsianos que eram tratados como escravos?
Jonas olhou para ela em choque. Paolo foi um bom amigo quando a vida era difícil, mas simples.
- Felicia, sinto muito. Eu não imaginava...
- Não, tenho certeza de que não imaginava. Assim como tenho certeza de que não pensou que manter aquela princesa dourada presa em nosso abrigo quase causaria a morte dele também.
- Claro que eu não sabia disso. - Ele olhou para o chão de terra. - Você... você disse que nosso pai não foi levado?
- Não foi, mas assim que soube da morte do chefe, ficou muito doente... doente de pesar, diferente de qualquer coisa que tenha sentido quando a mamãe e o Tomas morreram. É como se a vontade que ele tinha
de viver tivesse desaparecido. Eu o perdi faz dois meses. Agora cuido do vinhedo. São dias sobrecarregados, Jonas, com pouca ajuda.
Seu pai tinha morrido e Jonas não ficara sabendo. Ele sentou numa cadeira deixando o peso do corpo desabar.
- Sinto muito por não ter estado ao seu lado. Não sei o que dizer.
- Não há nada a dizer.
- Quando isso acabar, quando este reino voltar a ser como deveria, vou voltar. Vou ajudar você a cuidar da vinícola.
- Não quero sua ajuda - ela respondeu, e a raiva que Felicia estava controlando até aquele momento transbordou. - Consigo me virar sozinha. Bom, acho que já conversamos mais do que o suficiente. Vamos
cuidar de seu problema para você poder ir embora o mais rápido possível. Não sou curandeira, mas já ajudei muitas mulheres grávidas.
- O que você puder fazer para ajudar será muito bem-vindo. Eu só esperava que você soubesse acabar com a dor.
- Algumas gestações são mais difíceis do que outras. Quem é ela? - Ela lançou um olhar incisivo para ele quando não obteve resposta. - Diga, Jonas, ou mando você embora.
Felicia estava diferente, mais dura, mais zangada. Cada palavra dita por ela fazia Jonas se encolher.
Ele se sentia um idiota por pensar que quando voltasse nada teria mudado, mesmo depois de tanto tempo. Pensou em enviar uma mensagem, perguntar como as coisas estavam, mas não o fez. E o tempo tinha passado.
- Ela é Lucia Damora - ele respondeu com sinceridade, já que devia isso a Felicia.
Ela arregalou os olhos, chocada.
- O que você estava pensando ao trazer essa bruxa má aqui para dentro? Ela não é bem-vinda em minha casa. Tem noção do que ela fez? Um vilarejo que fica a menos de vinte quilômetros daqui foi incendiado.
Todos os moradores foram mortos por causa dela. Ela merece morrer pelo que fez.
Cada palavra parecia um golpe, e Jonas não tinha o que argumentar.
- Talvez sim, mas no momento a magia dela é necessária para salvar Mítica. Para salvar o mundo. Você não deixaria uma criança inocente sofrer por causa das escolhas da mãe, deixaria?
Ela deu uma risada seca.
- Ouça só você, defendendo uma princesa real... De Limeros, ainda por cima! Quem é você, Jonas? No que meu irmão se transformou?
- Amara não pode controlar Mítica - ele disse. - Estou disposto a fazer o que for preciso para impedi-la.
- Você está cego como uma toupeira, irmão. A imperatriz é a única que pode salvar a todos nós. Ou será que você esqueceu o passado com tanta facilidade agora que sua cabeça está tomada por aquela droga
cruel que está dormindo na minha cama?
- Minha cabeça não está tomada por ninguém - ele resmungou. - Mas sei o que é certo.
- Então precisa acordar. A imperatriz é o melhor que já aconteceu em Paelsia há gerações.
- Você está errada.
- Não estou errada - ela disse, e a raiva em sua voz finalmente deu lugar ao cansaço. - Mas não vou me dar ao trabalho de convencê-lo de algo que sei que é certo. Você se perdeu de nós, Jonas. Consigo
ver em seus olhos. Você não é o mesmo garoto que cresceu desejando ser como Tomas, que ia caçar com ele na fronteira de Auranos, que ia atrás de todas as garotas do vilarejo. Não sei mais quem você é.
Ele sentiu uma pontada no peito ao pensar que a tinha decepcionado tanto.
- Não diga isso, Felicia.
Ela deu as costas para ele.
- Vou deixar você e aquela criatura passarem a noite aqui. E só. Se ela morrer por causa da dor que está sentindo, então deixe-a morrer. O mundo vai ficar melhor sem ela.
Jonas deitou no chão de terra, ao lado do fogo, a mente em disparada.
Quando chegou ali, pelo menos tinha um senso de direção, de propósito. Precisava levar Lucia até a família dela.
Os Damora. O Rei Sanguinário que tinha oprimido seu povo. Que tinha assassinado o chefe Basilius. Que tinha mentido para dois exércitos sobre os motivos que deram início a uma guerra com os auranianos.
Felicia tinha razão. Amara Cortas tinha acabado com tudo aquilo ao ocupar Paelsia.
Como foi que ele pegou aquele caminho? Era um rebelde, não o criado tímido de um rei sádico.
Jonas demorou muito para conseguir dormir. Em um sonho, ele se viu em um campo verdejante sob o céu azul e límpido. Ao longe, uma cidade que parecia feita de cristal brilhava sob o sol.
- Jonas Agallon, finalmente nos conhecemos. Olivia me contou muito sobre você. Sou Timotheus.
Jonas virou e viu um homem que parecia só alguns anos mais velho do que ele. Seu cabelo tinha um tom bronze escuro, os olhos, acobreados. Usava vestes que desciam até a grama cor de esmeralda.
- Você está em meu sonho - Jonas disse devagar.
Timotheus arqueou uma sobrancelha.
- Que dedução brilhante. Sim, estou.
- Por quê?
- Imaginei que teria muitas perguntas para me fazer.
Apesar de tudo o que sentia por estar frente a frente com o imortal sobre o qual Olivia havia contado pouco, não sentiu surpresa nem cansaço.
- Perguntas que você vai responder?
- Algumas, talvez. Outras, provavelmente não.
- Não, tudo bem. Só me deixe dormir. Estou cansado e não quero ter que desvendar enigmas.
- O tempo está passando. A tempestade está quase aqui.
- Você fala assim, tão vago e irritante, com todo mundo?
Timotheus inclinou a cabeça.
- Na verdade, sim. Falo, sim.
- Não gosto. E não gosto de você. O que quer que isso seja - Jonas indicou a marca em seu peito -, quero que desapareça. Não quero nenhuma ligação com sua gente. Sou paelsiano. Não sou um Vigilante, nem
bruxo, nem o que você acha que sou.
- Essa marca torna você muito especial.
- Não quero ser especial.
- Você não tem escolha.
- Sempre tenho escolha.
- Seu destino está escrito.
- Vá se ferrar.
Timotheus hesitou.
- Olivia disse que você é irredutível em suas observações. No entanto, tenho certeza de que percebeu que agora tem um pouco de magia. A magia de Phaedra. A magia de Olivia. Você as absorveu como uma esponja.
Sua condição é rara e, repito, especial. As visões que tive de você são importantes.
- Certo. As visões. A profecia na qual levo Lucia Damora para a família dela.
- É o que você acha?
- Parece que é aonde meu destino está me levando.
- Não, não exatamente. Você vai saber quando acontecer. Vai sentir...
- O que sinto no momento é a necessidade de enfiar uma faca na sua barriga. - Jonas olhou para o imortal. - Ousa entrar no meu sonho agora, depois de todo esse tempo? Olivia me ajudou a ficar vivo, seguindo
o que você mandou. Acho que ela não precisa mais de mim. Ou talvez esteja me espionando lá de cima como um falcão, como todos vocês fazem. A única coisa da qual tenho certeza é que estou cansado disso.
Não importa o que você tem a dizer. Você espalha meias verdades como se a vida dos imortais fosse uma brincadeira.
Timotheus falou mais baixo.
- Não é uma brincadeira, meu jovem.
- Ah, não? Prove! Diga qual é meu destino, se acha que não posso evitá-lo.
Timotheus o observou.
- Não previ a gravidez de Lucia - ele admitiu. - Foi uma surpresa para mim, assim como tenho certeza de que foi para ela. Foi mantida em segredo de todos nós pelos Criadores, e deve haver um motivo para
isso... um motivo importante. Eu via você como alguém que ajudaria Lucia durante a tempestade...
- De que tempestade está falando?
Timotheus levantou a mão.
- Não me interrompa. Estou sendo sincero com você como nunca fui com ninguém, porque agora vejo que não há tempo para mais nada.
- Então, desembucha - Jonas disse. Ele estava frustrado com tudo na vida, e ele queria descontar naquele imortal pomposo.
- O filho de Lucia terá muita importância. Muitos desejarão sequestrar a criança ou matá-la. Você vai proteger essa criança do perigo e vai criá-la como se fosse seu filho.
- É sério? E Lucia e eu seremos o quê? Vamos nos casar e viver felizes para sempre? Duvido.
- Não. Lucia vai morrer no parto na próxima tempestade. - Ele afirmou com firmeza, franzindo a testa. - Estou vendo agora, claramente. Antes eu achava que a magia dela pudesse ser transferida a você no
momento da morte, transformando você em um feiticeiro que pudesse caminhar entre os mundos, cujo destino fosse aprisionar os deuses da Tétrade depois de serem libertados. Mas a magia de Lucia vai perdurar
no filho dela.
Jonas o encarou boquiaberto, surpreso com a revelação.
- Ela vai morrer?
- Sim. - Timotheus deu as costas para ele. - É só o que posso contar. Boa sorte, Jonas Agallon. O destino de todos os mundos está nas suas mãos agora.
- Não, espere! Tenho perguntas! Você precisa me contar o que tenho que fazer...
Mas Timotheus desapareceu naquele instante, assim como o campo e a cidade à distância.
Jonas acordou e viu a irmã o chacoalhando.
- Amanheceu - ela disse. - Sua amiga está acordada. Está na hora de vocês saírem da minha casa.
C O N T I N U A
11
JONAS
MAR PRATEADO
Devagar, a luz voltou a seu mundo, e Jonas abriu os olhos. Olivia o encarava com ternura e alívio.
- Fico feliz de ver que finalmente voltou para nós - ela disse.
Ele resmungou e estendeu os braços.
- Fiquei inconsciente por quanto tempo?
- Quatro dias.
Ele arregalou os olhos e sentou com um pulo.
- Quatro dias?
Ela fez uma careta.
- Você não ficou inconsciente o tempo todo, se isso melhora a situação. Acordou algumas vezes, delirante e agitado.
- Não, isso não melhora em nada, na verdade. - Jonas levantou do catre e cambaleou até o espelho. A estranha espiral ainda estava em seu corpo, agora muito mais intricada e com um desenho muito mais detalhado
do que o símbolo simples da magia do ar. Ele tinha esperanças de que não tivesse passado de um pesadelo.
- Eu tenho a marca de um Vigilante - ele disse.
- Então você sabe o que é.
- Phaedra tinha uma. - A Vigilante que tinha sacrificado a vida imortal para salvar a dele tinha provado quem (e o que) era ao mostrar sua marca a Jonas. Mas a dela era diferente. Tinha a mesma forma,
mas era uma marca dourada que se movimentava em círculos sobre a pele, como se quisesse provar suas origens mágicas. - E sei que você tem uma também.
- Tenho. - Olivia abriu um pouco o manto e mostrou um pequeno pedaço de uma marca dourada sobre a pele escura. Ele havia tido apenas alguns vislumbres da espiral, quando Olivia se transformava em falcão.
Jonas deu as costas para o espelho para encarar os olhos cor de esmeralda da Vigilante.
- Não vou implorar, Olivia. Vou simplesmente pedir para você, por favor, falar mais sobre isso, sobre a profecia que existe sobre mim. Tentei negar que fosse real, mas agora preciso saber. O que está acontecendo
comigo? Eu estou... - Ele se esforçou para verbalizar os pensamentos. - Estou me transformando em um de vocês?
A ideia soava tão absurda que Jonas se arrependeu de suas palavras assim que as proferiu. Mas o que mais poderia pensar?
Ela torceu as mãos e, por um instante, Jonas achou que Olivia pudesse tentar escapar, assumir a forma de falcão e sair voando para evitar suas perguntas. Mas, em vez disso, ela suspirou e sentou na beirada
do catre enquanto ele esperava em pé, tenso, perto da escotilha.
- Não exatamente - ela respondeu. - Mas você é, de fato, um mortal raro, Jonas Agallon. Tocado por nossa magia em dois momentos muito vulneráveis de sua vida, ambos quando estava muito perto da morte.
Tocado por mim, quando curei seu ombro, e por Phaedra, depois que foi atingido pelo soldado limeriano. Você não sabe como isso é atípico.
Eram dois momentos da vida que ele preferia esquecer.
- Talvez eu não saiba mesmo. Então me conte.
- Eu estava lá quando Phaedra deu a vida pela sua. Observei do alto de outra barraca na forma de falcão.
Ele respirou fundo.
- Estava?
Ela assentiu, séria.
- Observei horrorizada quando Xanthus tirou a vida dela, e a vi retornar para a magia de que todos nós fomos criados. E vi um pouco dessa magia entrar em seu corpo, apenas segundos depois do momento em
que você poderia ter morrido sem a intervenção dela.
- Eu... eu não senti nada.
- Não, não era para sentir. Não deveria sentir. E não faria diferença nenhuma se não fosse pela magia do próprio deus do fogo surgindo por perto. Acabou fortalecendo a magia de Phaedra dentro de você.
Mas não seria suficiente para isso acontecer. - Olivia apontou para a marca, que ele coçava sem perceber. - Eu usei magia da terra para curar seu ombro quando você estava à beira da morte mais uma vez,
e vi que a absorveu como uma esponja. Aquela magia ficou dentro de você, somando-se à de Phaedra, assim como Timotheus previra.
Jonas tentou entender, tentou negar, tentou impedir que seu coração batesse como as asas de um pássaro preso em seu peito. Mas então, de repente, lhe ocorreu que não deveria tentar negar uma notícia tão
incrível.
- Tenho elementia dentro de mim - ele disse com uma voz rouca. - Isso significa que posso usá-los para combater Kyan e expulsar Amara de Mítica. - Quanto mais ele considerava essa possibilidade, mais animado
ficava. - Preciso subir e contar para os outros. Eles devem estar tão confusos com o que aconteceu, com o que fiz com Felix... Mas isso é incrível, Olivia! Vai fazer toda a diferença.
Ele era um bruxo! Tinha negado a existência dos elementia e daqueles que os detinham durante toda sua vida, e agora tinha essa mesma magia na ponta dos dedos.
Olivia segurou seu braço quando ele foi na direção da porta.
- Não é tão fácil assim, Jonas. Timotheus não previu que você seria um praticante de magia, apenas um veículo para ela.
- Um veículo? Impossível. Você testemunhou o que fiz. Arremessei Felix pelo convés com... magia do ar, não foi?
- É verdade. Mas foi uma anomalia. Foi apenas um sinal de que a magia que existe dentro de você amadureceu. E aquele gasto de energia o deixou inconsciente durante quatro dias.
Jonas balançou a cabeça. A frustração tomou conta dele, acabando com sua empolgação.
- Não entendo.
Olivia afrouxou a mão que segurava seu braço.
- Eu sei, e peço desculpas pela confusão. Timotheus mantém seu conhecimento muito reservado, já que não confia em muitos imortais, nem mesmo em mim. Ele não compartilhou a extensão de sua profecia comigo
por medo de que eu contasse para você e você tentasse evitá-la. - Ela fechou a boca. - Já falei demais.
Ele resmungou.
- Você revelou o suficiente para me deixar louco de curiosidade e apreensão.
- Você não pode contar isso a ninguém.
- Não posso? - Ele apontou para a porta. - Todos me viram fazer aquilo no convés. O que devo fazer? Negar?
- Na verdade, sim. - Ela ergueu o queixo. - Expliquei a eles que fui a responsável. Que vi, do alto, Felix acertar você e que estou aqui justamente para protegê-lo. É claro que acreditaram em mim.
Jonas a encarou.
- Eles acreditaram que você interferiu com sua própria magia?
- Sim.
- E não posso falar nada sobre isso?
- Não. Nem uma palavra. - Ela ficou séria. - É perigoso demais. Alguns o perseguiriam se soubessem que é um mortal repleto de magia imortal.
- Magia imortal que não posso usar. - Ele observou o próprio punho, lembrando como havia brilhado no convés.
- Se não acredita em mim, você precisa ver com seus próprios olhos. - Ela apontou para a porta. - Tente abrir essa porta com a magia do ar que canalizou com tanta facilidade com Felix.
Parecia um desafio. Jonas olhou para além de Olivia e franziu a testa, concentrando-se, enquanto levantava a mão na direção da porta. Ele se esforçou tanto para tentar invocar a magia que existia dentro
de si que sua mão começou a tremer, seu braço começou a oscilar... mas nada aconteceu.
- Isso não significa nada - ele resmungou. - Só preciso praticar.
- Talvez - Olivia disse com delicadeza. - Só sei o pouco que me contaram.
Decepcionado, Jonas deixou o braço cair.
- Claro, ninguém ia querer que as coisas fossem fáceis para mim. Ser um bruxo, utilizar os elementia à vontade... Ninguém ia querer isso, não é?
- Na verdade, seria incrivelmente útil para você.
Jonas lançou um olhar feio para ela.
- Você não está ajudando.
- Sinto muito. - Olivia fez uma careta. - Os outros estão preocupados com você. Ficarão felizes em saber que finalmente acordou.
Jonas foi até a escotilha e observou a imensidão do mar.
- Quanto falta para chegarmos em Paelsia?
- Estamos quase chegando.
- Dormi quase o caminho todo. - Ele soltou um suspiro trêmulo ao tentar aceitar tudo o que havia aprendido. Negar seria perder um tempo que eles não tinham. - O que eu perdi?
- Não muito, na verdade. Taran continua afiando a espada na expectativa de matar o príncipe Magnus, Felix ainda está sofrendo com enjoos, Ashur passa a maior parte do tempo em seus aposentos meditando,
e Nic fica espreitando por aí. Quando o príncipe aparece, ele o observa de uma maneira um tanto curiosa.
- Pedi para o Nic ficar de olho em nosso príncipe residente. É melhor não confiar nos kraeshianos, nem mesmo naquele que diz não ser nosso inimigo.
Jonas suspirou enquanto apertava as amarras da camisa.
- Certo, estamos quase em Paelsia. Ótimo.
- Ótimo? - ela repetiu.
Ele assentiu com firmeza.
- Se existe uma profecia que exige que eu seja um veículo dos elementia, quero saber sobre ela o quanto antes. E isso não vai acontecer enquanto estivermos em alto-mar, vai?
- Não, não vai - ela concordou. - Mas, de verdade, Jonas, não sei nada além disso. Sinto muito.
Ele assentiu.
- Seja o que for, eu aguento. Tenho certeza de que já enfrentei coisa muito pior no passado.
Para isso, Olivia não tinha resposta.
Jonas tentou ao máximo não se preocupar.
12
MAGNUS
PAELSIA
Como a viagem dos Glaciares a Basilia levaria pelo menos três dias a cavalo, não havia tempo a perder com as paradas constantes de um rei moribundo e uma mulher velha. Selia arrumou uma carruagem fechada
para levá-la junto com seu filho.
Quando Magnus sugeriu que Cleo fosse com eles e não montada num cavalo para não enfrentar o terrível frio, foi reprimido com um olhar cortante.
Aquilo queria dizer "não".
Gaius os orientou por um caminho que permitia que passassem toda noite em uma hospedaria de alguma cidadezinha, onde descansavam, comiam e dormiam em quartos separados e trancados.
Sete longas noites se passaram sem Magnus poder dormir com Cleo em seus braços, mas todas as noites sonhava com ela e com o chalé na floresta. Nos momentos em que estavam acordados, ele preferia não compartilhar
essa informação com ela. Não queria que ficasse convencida demais por provocar tal efeito nele, então guardava para si o desejo constante de tocá-la e beijá-la.
No último vilarejo onde ficaram, Enzo e Milo foram encarregados de buscar roupas adequadas para todos se passarem por viajantes inofensivos de passagem por Paelsia. Conseguiram encontrar vestidos de algodão
para Selia e Cleo e calças de couro simples e túnicas de lona para si mesmos, Magnus e Gaius.
Magnus olhou a própria túnica creme com repulsa.
- Não tinha nada preto?
- Não, vossa alteza - Enzo disse.
- Cinza-escuro?
- Não. Só essa cor e azul-claro. Achei que não ia gostar muito do azul. - Enzo limpou a garganta. - Mas posso voltar à loja.
Ele suspirou.
- Não, tudo bem. Fico com essa mesmo.
Pelo menos o manto e as calças eram pretos.
Ele saiu, pronto para dar início à última parte da viagem rumo à cidade da costa oeste, e encontrou Cleo, parecendo uma linda camponesa com seu vestido simples, sorrindo para ele ao lado de seu cavalo.
- Você parece um paelsiano - ela comentou.
- Não precisa me insultar, princesa - ele resmungou, contendo um sorriso quando montaram os cavalos e começaram a andar.
Praticamente uma pequena eternidade depois - que na verdade não passou de meio dia - finalmente e felizmente chegaram ao seu destino.
Magnus já tinha ouvido muitas histórias sobre Basilia, a cidade mais próxima de uma capital que Paelsia tinha. A cidade atendia aos navios que visitavam o Porto do Comércio e os membros da tripulação ávidos
por desembarcar em busca de comida, bebida e mulheres.
As histórias eram verdadeiras.
À primeira vista - e ao primeiro cheiro - Basilia era superpovoada e fedia a dejetos humanos e putrefação. Havia dezenas de navios atracados no porto, com as tripulações inundando a costa e se misturando
nas ruas, tavernas, hospedarias, nos mercados e bordéis da cidade litorânea. E, ao que parecia, tão quente quanto Auranos no ápice do verão.
- Repulsivo.
Magnus viu que o rei Gaius tinha aberto a janela da carruagem para espiar o centro da cidade com aversão. Seus olhos estavam vermelhos, e os círculos escuros sob eles pareciam hematomas recentes em contraste
com a palidez da pele.
- Desprezo este lugar - ele comentou.
- Sério? - Magnus perguntou, conduzindo o cavalo ao lado da carruagem. - Acho encantador.
- Não acha, não.
- Acho. Eu gosto dessa... cor local.
- Você não mente tão bem quanto pensa.
- Acho que posso apenas aspirar chegar aos seus pés no quesito falsidade.
O rei olhou feio para ele, depois alternou o olhar para Cleo, que cavalgava em frente a Magnus e atrás dos guardas.
- Princesa, se lembro corretamente, foi em um mercado não muito longe desta cidade em que você esteve com lorde Aron e o filho do vendedor de vinhos que ele matou, não foi?
Magnus logo ficou tenso e observou a princesa esperando a resposta. Cleo demorou alguns segundos para responder, mas o príncipe podia ver a tensão em seus ombros pelo fino material do vestido.
- Isso faz muito tempo - ela disse finalmente.
- Imagine como as coisas teriam sido diferentes se você não tivesse ido atrás de vinho aquele dia - o rei continuou. - Nada seria como é agora, não é?
- Não - ela disse, olhando para trás. - Por exemplo, você não teria caído e quase morrido depois de perder seu reino para uma mulher. E eu não estaria vendo seu fracasso com tanta alegria no coração.
Magnus conteve um sorriso e olhou para o pai, aguardando a contestação.
A única resposta foi uma janela fechada, bloqueando a visão do rosto do rei.
A carruagem parou em uma hospedaria chamada Falcão e Lança que, apesar de um leve cheiro de suor misturado a almíscar, Magnus considerou o estabelecimento mais aceitável da cidade. O rei Gaius desceu da
carruagem com a ajuda de Milo e Enzo e entrou na hospedaria, seguido por Selia, e logo subornou o dono para expulsar todos os hóspedes para que o grupo real tivesse privacidade total.
Enquanto os hóspedes saíam com um desfile de resmungos, Magnus assistia à Cleo observar a sala de convivência da hospedaria paelsiana com reprovação. Era um cômodo grande, com teto baixo, com cadeiras
de madeira desgastadas e mesas lascadas, onde os hóspedes podiam comer e passar o tempo.
- Não se enquadra no seu padrão de qualidade? - Magnus perguntou.
- Até que está bom - ela respondeu.
- Não é uma hospedaria auraniana com camas de pluma, lençóis importados e urinol dourado. Mas me parece aceitavelmente limpa e confortável.
Cleo virou as costas para uma mesa na qual alguém havia entalhado as próprias iniciais. Um sorriso brilhante passou por seus lábios.
- Sim, para um limeriano, acho que sim.
- De fato. - Os lábios da princesa eram uma distração grande demais, então Magnus virou e se juntou a seu pai e sua avó, que estavam parados perto das grandes janelas, olhando para os estábulos onde os
cavalos estavam sendo acomodados.
- E agora? O que vamos fazer? - Magnus perguntou à avó.
- Pedi para a esposa do dono da hospedaria ir até a taverna no fim da estrada e entregar uma mensagem pedindo para uma velha amiga minha nos encontrar aqui - Selia disse.
- A senhora não poderia ter ido?
- Ela talvez não me reconhecesse. Além disso, não é uma conversa que ouvidos curiosos podem escutar. A magia que procuro deve ser protegida a qualquer custo. - Ela encostou a mão sobre o braço de Gaius.
Havia um brilho de suor na testa do rei, que estava apoiado na parede como se fosse a única coisa que o mantivesse de pé.
- E o que devemos fazer até ela chegar? - Gaius perguntou com uma voz enfraquecida substancialmente desde a chegada.
- Você vai descansar - Selia respondeu.
- Não há tempo para descanso - ele disse com raiva. - Talvez eu saia para procurar algum carpinteiro por perto para fazer um caixão para me transportar de volta para Limeros.
- Por favor, pai - Magnus disse, permitindo um pequeno sorriso. - Fico feliz em fazer isso por você. Deve fazer o que minha avó pediu e descansar.
O rei olhou feio para ele, mas não falou nada.
- Vou levá-lo ao seu quarto. - Selia envolveu o braço no filho, conduzindo-o pelo corredor na direção da escadaria, e subindo para os quartos no segundo andar.
- Excelente ideia - Cleo disse, bocejando. - Também vou subir para o meu quarto. Por favor, avise quando a amiga da sua avó chegar.
Magnus esperou que ela saísse, depois fez um sinal para Enzo segui-la. Ele pedira para o guarda tomar cuidado extra com a proteção da princesa. Enzo era um dos poucos em quem Magnus confiava para a tarefa.
- O que devo fazer? - Milo perguntou ao príncipe.
Magnus passou os olhos pelo salão, que também continha uma pequena estante com livros velhos, nada parecida com a vasta seleção que passou a valorizar na biblioteca do palácio auraniano.
- Patrulhe os arredores - Magnus disse, pegando um livro aleatório da estante. - Certifique-se de que ninguém tenha percebido que o antigo rei de Mítica está temporariamente por aqui.
Milo deixou a hospedaria e Magnus tentou se concentrar na leitura de um volume sobre a história da produção de vinho em Paelsia, que não mencionava nada sobre a magia da terra que com certeza era responsável
pelo sabor da bebida, ou sobre as leis que proibiam sua exportação para outros lugares, à exceção de Auranos.
Depois de trinta páginas inúteis, a esposa do dono da hospedaria, uma mulher pequena que parecia ter um constante sorriso nervoso estampado no rosto, voltou com outra mulher mais velha, com rugas em volta
dos olhos e da boca, de aparência extremamente comum, usando um vestido antiquado e desmazelado. Magnus pensou que devia ser a mulher que Selia tinha mandado chamar.
Quando a esposa do dono da hospedaria desapareceu na cozinha, a mulher mais velha observou o local que parecia vazio, até seu olhar recair sobre Magnus.
- Então a senhora é a resposta para todos os nossos problemas, não é? - ele perguntou.
- Depende de quais são seus problemas, meu jovem - ela respondeu sem rodeios. - Gostaria de saber por que me chamou aqui.
- Não foi ele, fui eu - Selia disse, descendo a escadaria de madeira do outro lado do corredor que levava aos quartos, no segundo andar. - E é porque estou em busca de uma velha amiga. Você me reconhece
depois de todos esses anos?
Por um momento profundamente silencioso e agonizantemente longo, a mulher encarou Selia com uma mistura estranha de fogo e gelo no olhar. Justo quando Magnus começou a temer que tivessem cometido um erro
ao confiar em sua avó, a mulher abriu um grande sorriso, com rugas de alegria aparecendo no canto dos olhos.
- Selia Damora - ela arrulhou com um tom de voz muito mais gentil do que ao entrar na hospedaria. - Pela deusa, como senti sua falta!
As duas mulheres correram uma na direção da outra e se abraçaram.
- Devo chamar os outros? - Magnus perguntou. Quanto antes sua avó conseguisse o que precisava da mulher, mais rápido poderiam sair daquele lugar.
- Não, isso não precisa ser discutido em grupo - Selia respondeu sem tirar os olhos da amiga. - Também senti sua falta, Dariah.
- Onde esteve durante todo esse tempo? Já perdi a conta de quantos anos se passaram!
- O que importa é que estou aqui agora. Para ser franca, estou um pouco surpresa por você ainda estar em Basilia.
- Nunca poderia abrir mão do lucro da minha taverna, cada ano é melhor do que o anterior. Tantos marinheiros com dinheiro para gastar e sede para matar...
- Muitos tipos de sede, sem dúvida.
Dariah piscou.
- Exatamente. - Ela se virou para Magnus. - E quem é esse jovem?
- É meu neto, Magnus. Magnus, esta é minha amiga Dariah Gallo.
- Muito prazer. - Magnus forçou o melhor sorriso que conseguiu, mas sabia que pareceria mais uma careta.
- Minha nossa! Seu neto ficou tão alto e bonito!
Selia sorriu.
- Sim, os netos às vezes fazem isso quando chegam aos dezoito anos.
Dariah passou os olhos enrugados por Magnus de alto a baixo.
- Se eu fosse mais nova...
- Se fosse mais nova, teria que lutar com a jovem esposa dele por sua atenção.
Dariah riu.
- E talvez eu vencesse.
Magnus teve uma vontade repentina de voltar à leitura do livro sobre vinho paelsiano.
Selia juntou-se à amiga nas risadas e depois voltou a adotar um tom sério, porém amigável.
- Não vim a Basilia apenas para reencontrar uma velha amiga. Preciso de informações sobre como conseguir a pedra sanguínea.
Dariah arregalou os olhos.
- Minha nossa, Selia, você não perde tempo.
- Não tenho tempo a perder. Meu poder foi diminuindo no decorrer dos anos e meu filho está morrendo.
No instante silencioso que se seguiu, Magnus ficou quieto. Essa pedra, se fosse real, parecia algo que poderia ajudá-lo a aumentar seu poder, como a Tétrade.
Selia levou Dariah na direção da estante. Fez sinal para que ela se sentasse em um banco de madeira ao seu lado, depois segurou as mãos da outra bruxa.
- Não tenho escolha. Preciso dela.
- Você sabe que não está comigo.
- Não está. Mas você sabe com quem está.
Dariah balançou a cabeça.
- Não posso fazer isso.
- Estou pedindo para você entrar em contato com ele. Sei que pode encontrá-lo. Ele precisa vir o mais rápido possível.
Mil perguntas surgiram na cabeça de Magnus, mas ele permaneceu em silêncio, escutando.
Um poder como esse entregue diretamente em suas mãos. Parecia muito mais simples do que o processo complicado de encontrar a Tétrade.
A expressão da bruxa se tornou sombria.
- Ele nunca vai permitir que você fique com ela, nem mesmo por um instante.
Selia apertou ainda mais a mão da amiga.
- Deixe que eu lide com ele quando chegar aqui.
- Eu não sei...
Selia semicerrou os olhos.
- Sei que já faz muito tempo, mas sinto que terei que mencionar o favor que você me deve. Favor que prometeu retribuir por completo.
Dariah ficou encarando o chão.
Magnus observava, quase sem respirar. Aos poucos, a bruxa levantou os olhos, o rosto pálido. Ela concordou com um pequeno aceno de cabeça.
- Vou levar um tempo para atraí-lo para cá.
- Ele tem três dias. Será um problema?
A bruxa ficou tensa ao levantar.
- Não.
- Obrigada. - Selia levantou e deu dois beijos no rosto de Dariah. - Eu sabia que você ia me ajudar.
O sorriso de quando se cumprimentaram agora já não passava de uma lembrança.
- Aviso assim que ele chegar.
Dariah não demorou - lançou um último olhar para Selia e Magnus e deixou a hospedaria.
- Bem... - Magnus disse depois que tudo voltou a ficar em silêncio. - A senhora deve ter feito um belo favor para sua amiga.
- De fato foi. - Selia olhou para Magnus com um pequeno sorriso no rosto. - Agora vou ver como seu pai está. A saúde dele é minha única preocupação no momento. Quando minha magia estiver restaurada e ele
estiver bem novamente, podemos enfrentar os outros obstáculos que estão em nosso caminho.
- Vou me esforçar para ser paciente - Magnus disse, sabendo que com certeza fracassaria.
Àquela altura a noite já tinha caído, e Magnus se retirou para seu pequeno quarto. Havia uma cama de tamanho normal, e não os catres inaceitáveis do quarto comunitário no fim do corredor. A janela tinha
vista para a rua iluminada com lampiões e ainda movimentada, com cidadãos e visitantes mesmo depois de anoitecer.
Ele ouviu uma batida fraca na porta.
- Entre - Magnus disse, sabendo que podia ser apenas uma das quatro pessoas com quem havia chegado a Paelsia.
A porta se abriu devagar e, quando o visitante se revelou, o coração de Magnus começou a bater mais rápido. Cleo o encarava.
Ele levantou e a encontrou na porta.
- A amiga da minha avó esteve aqui.
- Já? - Ela arqueou as sobrancelhas. - E?
- E... - Ele balançou a cabeça. - Parece que seremos obrigados a esperar mais três dias por aqui.
- Mas ela vai conseguir a pedra sanguínea?
- Sim - Magnus respondeu. - Reencontrei minha avó há pouco tempo, mas ela me parece o tipo de mulher que consegue praticamente tudo o que quer.
- E tudo para essa pedra mágica salvar a vida de seu pai - Cleo disse sem nenhuma emoção, mas com uma dureza no fundo dos olhos azuis.
- Ele não merece viver - Magnus afirmou, concordando com o que não tinha sido dito. - Mas essa pode ser uma medida necessária para alcançarmos nosso objetivo maior.
- Encontrar Lucia.
- Sim. E acabar com a sua maldição.
Cleo assentiu.
- Suponho que não haja outra forma.
Ele a observou cauteloso.
- Você veio ao meu quarto apenas em busca de informações ou tem mais alguma coisa que deseja esta noite?
Cleo levantou o queixo para encarar diretamente em seus olhos.
- Na verdade, preciso de sua ajuda.
- Com o quê?
- Todas essas andanças a cavalo acabaram com meu cabelo.
Magnus levantou uma sobrancelha.
- E você veio aqui para pedir minha ajuda para cortá-lo e, assim, ele deixar de ser um problema?
- Como se você fosse permitir. - Ela riu. - Você é obcecado pelo meu cabelo.
- Eu não chamaria de obsessão. - Ele enrolou um cacho daquela seda dourada no dedo. - É mais uma distração, muitas vezes dolorosa.
- Peço desculpas por seu sofrimento. Mas você não vai cortar meu cabelo, nem hoje, nem nunca. A esposa do dono da hospedaria foi gentil e me deu isso. - Ela mostrou uma escova de cabelo com cabo prateado.
Magnus pegou o objeto da mão dela, observando-o com um olhar examinador.
- Você quer que eu...?
Cleo assentiu.
- Escove meu cabelo.
A ideia era ridícula.
- Agora que fui obrigado a me vestir como um paelsiano comum você está me confundindo com um criado?
Ela lançou um olhar determinado para Magnus.
- Eu não poderia pedir para Milo ou Enzo... ou, pelo amor da deusa, para seu pai ou sua avó me ajudarem.
- E quanto à esposa do dono da hospedaria?
- Está bem. - Cleo arrancou a escova da mão dele, fazendo careta. - Vou pedir a ela.
- Não, não. - Ele soltou um suspiro, achando graça. - Eu ajudo.
Sem hesitar, ela devolveu a escova a Magnus.
- Fico feliz.
Ele abriu caminho para deixá-la passar. Cleo entrou, sentou na beirada da cama e olhou para ele cheia de expectativa.
- Feche a porta - ela disse.
- Não é uma boa ideia. - Magnus deixou a porta entreaberta e lentamente sentou ao lado dela. Meio sem jeito e receoso, como se estivesse prestes a limpar um animal pela primeira vez, ele levou a delicada
escova aos cabelos dela.
- Nunca fiz isso antes.
- Para tudo existe uma primeira vez.
Que cena ridícula deve ter sido: Magnus Damora, filho do Rei Sanguinário, escovando o cabelo de uma jovem a seu pedido.
E ainda assim...
Sempre que Magnus assumia uma tarefa, preferia ser dedicado, usando suas habilidades da melhor maneira possível. Ele se empenhava da mesma forma naquele momento, ao pegar uma mecha do longo e sedoso cabelo
de Cleo e deslizar a escova por ela. O calor das madeixas passava entre seus dedos, causando um arrepio prazeroso em suas costas.
- Você tem razão - ele disse em voz baixa. - Está terrivelmente embaraçado. Acho que de modo irreparável.
Magnus estava apenas provocando Cleo - seu cabelo estava perfeito, como sempre foi -, mas então ele chegou ao primeiro nó.
Ela se encolheu.
- Ai.
- Desculpe. - Ele ficou paralisado, mas depois franziu a testa. - Mas você me pediu para fazer isso.
- Sim, eu sei! - Ela suspirou. - Por favor, continue. Estou acostumada a ser torturada por minhas criadas, e elas estão acostumadas a ignorar meus gritos de dor. Você não vai conseguir me machucar mais.
Só Nerissa tem capacidade de fazer isso sem causar dor.
- Sim, ouvi falar das habilidades de Nerissa - Magnus comentou, sem conseguir conter um sorriso. Agora, tendo uma imagem mais completa do histórico de penteados de Cleo, ele encarou a tarefa com mais determinação.
- Tanto cabelo, tantas oportunidades para formar nós... Por que as mulheres se dão ao trabalho?
- Talvez eu devesse fazer tranças, como uma líder paelsiana?
- Sim, imagino que seria um estilo adequado a uma princesa auraniana, mesmo quando forçada a usar um horroroso vestido de algodão - ele respondeu com ironia, sem deixar transparecer como estava se divertindo
com aquela imagem. - Todas as garotas de Mítica iam querer copiar. - Com o maior cuidado possível, ele foi passando a escova por outra parte do cabelo que parecia um ninho de passarinho amarelo-claro.
- Você precisa saber que pretendo reivindicar a pedra sanguínea para mim.
- Eu já imaginava - ela respondeu.
Aquilo o surpreendeu.
- Imaginava?
Cleo assentiu, e os cabelos escaparam das mãos de Magnus, cobrindo a tentadora nuca dela.
- Vi em seus olhos quando Selia mencionou a pedra. Foi o mesmo olhar que vi em seu pai.
- E que olhar é esse?
- Não importa.
Magnus largou a escova. Com gentileza, tocou Cleo pelos ombros até praticamente fazê-la virar de frente para ele, depois segurou seu queixo com cuidado.
- Importa, sim. Que olhar eu e meu pai compartilhamos?
Ela o encarou nos olhos, cautelosa.
- Um olhar frio de ganância, como se fossem capazes de matar pela pedra.
- Entendo.
Cleo analisou o rosto dele, como se procurasse respostas.
- Naquele momento, você parecia tão frio quanto seu pai. E eu... eu não gostei.
A vida toda, disseram que ele se parecia muito com seu pai - tanto fisicamente quanto em temperamento. Com o tempo, ele aprendeu a não refutar as comparações, embora nunca tivessem deixado de incomodá-lo.
- Devo admitir, descobri há pouco tempo que preciso ser como meu pai. Há certas situações que praticamente exigem que eu seja o mais frio e brutal possível. Se eu fosse derramar lágrimas por cada vida
que tirei no último ano, já estaria seco como uma casca de árvore. Então, sim, acho que sou como meu pai em muitos sentidos.
- Não - Cleo sacudiu a cabeça. - Não é possível.
- Por que está dizendo isso?
- Sinceramente? - Ela chegou mais perto, segurando seu rosto entre as mãos. - Porque eu nunca quis fazer isso com seu pai.
Ela roçou os lábios de leve nos dele. Um pequeno gemido de tortura emergiu do fundo da garganta de Magnus enquanto ele se forçava a cerrar os punhos para não a agarrar no mesmo instante.
- Princesa...
- Cleiona... - ela o corrigiu, os lábios ainda a uma distância perigosa. - Embora eu precise admitir que já não gosto tanto de ter recebido o nome de uma imortal que roubou e matou em nome do poder.
- Verdadeiros líderes costumam ser implacáveis o suficiente para roubar e matar. Se não o fizerem, outra pessoa o fará.
- Uma filosofia encantadora e, receio, muito verdadeira. Mas talvez possamos pensar em outro nome para você se referir a mim quando estivermos juntos.
Ele arqueou a sobrancelha.
- Vou pensar nisso.
- Ótimo. - Ela mordeu o lábio, chamando atenção de novo para sua boca. - Agora, feche a porta. Com chave.
- Essa é uma sugestão muito, muito perigosa.
- Ou deixe aberta. Talvez eu não me importe. - Cleo o beijou mais uma vez, abrindo os lábios. Ele sentiu sua compostura e seu comedimento se esvaindo em uma velocidade perigosa quando a língua dela encostou
na sua.
- Realmente não quero dizer não - ele sussurrou junto aos lábios dela.
- Então não diga.
Magnus gemeu de novo quando as mãos dela desceram por seu peito e por baixo de sua túnica, deslizando sobre seu abdome e tórax sem nenhuma barreira. Ele a agarrou pela cintura e a pressionou na cama, cobrindo-a
por completo com o próprio corpo. Cleo era tão pequena, mas, ainda assim, tão forte e apaixonada.
Como um mundo insensível pôde criar uma criatura tão linda? Se a beleza dela não fosse um presente da deusa, sem dúvida tinha sido um presente da mãe...
De repente, Magnus levantou em um pulo, cobrindo a boca com o dorso da mão.
- O que foi? - Cleo perguntou assustada, o rosto corado.
Ele ficou em pé e pegou seu manto.
- Preciso de uma bebida. Vou dar uma olhada na taverna no fim da estrada.
Cleo ficou deitada, observando-o, com os cachos dourados embaraçados caídos sobre os ombros até a cintura.
Profunda e dolorosamente tentadora.
- Eu entendo - ela disse em voz baixa.
Ele estava prestes a sair sem mais nenhuma palavra, mas virou-se para ela e disse:
- Antes de sair, quero que saiba de uma coisa. No dia em que essa maldição for quebrada, prometo que a porta de qualquer quarto em que estivermos será trancada, e não vou deixar nada nos interromper.
Com isso, Magnus virou as costas e a deixou lá, olhando para ele.
Sim, ele precisava desesperadamente de uma bebida.
- Vinho - Magnus resmungou para o atendente quando entrou na taverna pobre, porém animada, conhecida como A Videira Púrpura. Ele colocou várias moedas sobre o balcão. - Fique atento e complete meu copo
sempre que notar que está vazio - ele instruiu. - E nada de conversa.
O atendente abriu um sorriso forçado, depois recolheu as moedas do balcão com ganância, guardando-as em uma bolsa velha, caindo aos pedaços.
- Muito bem.
Ele fez o que Magnus pediu e prestou muita atenção ao nível de líquido da taça. Quando Magnus começou a beber gole após gole do doce vinho paelsiano, a noite começou a ficar muito mais clara. Da última
vez que bebera vinho, tinha voltado para o palácio limeriano e encontrado sua esposa fazendo um discurso. Ela logo foi interrompida por inimigos que quase não o deixaram escapar com vida. Depois daquela
experiência, ele tinha considerado renunciar completamente à bebida.
A visita de Cleo a seu quarto naquela noite com certeza o obrigava a revogar aquela promessa.
- Nossa atração de hoje vai deixá-lo mais animado, amigo - disse o atendente, apesar de Magnus ter pedido silêncio. Magnus estava prestes a repreendê-lo quando o homem indicou com a cabeça o meio da taverna.
- Prometo que a Deusa das Serpentes será uma imagem espetacular para os olhos.
Deusa das Serpentes? Magnus revirou os olhos e apontou para a própria taça.
- Mais.
Alguém do outro lado da enorme taverna pediu silêncio para a multidão vociferante enquanto o atendente servia mais vinho para Magnus.
- Todos venerem nossa bela residente! - o homem berrou do outro lado do estabelecimento. - Curvem-se diante de seu incrível poder! E saúdem a Deusa das Serpentes!
A multidão reagiu com gritos e assovios quando uma jovem de cabelo escuro, pouca roupa e uma cobra pendurada no pescoço apareceu sobre o pequeno palco. Ao lado do palco havia um trio de músicos que começou
a tocar uma canção exótica que, para Magnus, soava mais selvagem do que encantadora. Quando a música começou a crescer, a jovem passou a se contorcer no que poderia ser considerado um tipo de dança, mas
para Magnus parecia mais a oferta de uma cortesã.
Ele esvaziou o copo sem saber ao certo quantas vezes tinha repetido o movimento desde que chegara, mas não importava. Não agora que as coisas pareciam tão melhores do que antes, quando o desejo por Cleo
quase o cegou diante do perigo.
Talvez eles pudessem dividir um quarto, ele pensava enquanto assistia àquela mulher estranha se sacudir pelo palco. Talvez um elixir para evitar a gravidez fosse proteção suficiente.
Ou talvez ele devesse se concentrar no fato de seu reino ter sido roubado, seu pai estar à beira da morte enquanto sua avó tenta salvá-lo com uma pedra mágica, sua irmã estar aliada com um homem que pretendia
conquistar Mítica à base do fogo, e Cleo carregar uma maldição. O fato de ele estar enlouquecendo de desejo por sua esposa de fato era a menor de suas preocupações.
De repente, alguma coisa chamou sua atenção: um lampejo de cabelo ruivo. Aquela cor de cabelo era mais rara em Paelsia do que a do cabelo de Cleo. Ele não conseguiu deixar de se lembrar de Nicolo Cassian,
a única pessoa que ele conhecia com aquela cor infeliz de cabelo.
Magnus riu ao pensar naquilo. Não, Nic devia estava em segurança em Kraeshia - ou nem tão seguro assim, na verdade, mas Magnus não se importava. O idiota tinha se voluntariado para se juntar a Jonas em
sua missão fracassada de matar o rei.
Ele voltou sua atenção para a Deusa das Serpentes. Quando pensou que estava começando a entender o ritmo de seus movimentos, ela parou, fazendo um sinal para os músicos pararem de tocar.
- É você? - ela perguntou. O salão agora estava em silêncio. A Deusa das Serpentes estava claramente se dirigindo a alguém específico, mas Magnus não conseguia ver de onde estava. Ele só conseguia ver
a crescente empolgação no rosto pintado da dançarina enquanto sua expressão transparecia cada vez mais certeza. - Jonas! - ela gritava agora com mais confiança. - Jonas, é você mesmo? Meu querido, achei
que estivesse morto!
Jonas?
Devia ser mais uma estranha coincidência.
A dançarina desceu do palco e se embrenhou no meio da multidão, de onde puxou um jovem de cabelo escuro.
Magnus ficou paralisado. Ele esticou o pescoço, tentando ver por entre as cabeças dos outros clientes. A dançarina jogou os braços em volta do jovem, rodopiando abraçada a seu visitante, até que ele se
virou na direção de Magnus.
Chocado e boquiaberto, Magnus ficou observando fixamente aquela cena.
Era Jonas Agallon. Ali, na mesma taverna.
- Quem diria? - disse uma voz familiar ao lado dele, verbalizando seus próprios pensamentos. Uma onda de desgosto tomou conta de Magnus antes mesmo de se virar e descobrir o que já sabia: aquele ruivo,
Nicolo Cassian, estava bem ao lado dele. - Você!
Nic cutucou o ombro dele, deixando escapar uma gargalhada quando derramou um pouco de cerveja de sua enorme caneca.
- Parece que o destino está finalmente lhe dando o troco, não acha, vossa alteza? E fico mais do que feliz de testemunhar isso.
- Estou vendo que sua visita a Kraeshia não ajudou a diminuir seu charme - Magnus disse, espantado por ter bebido a ponto de arrastar as palavras tanto quanto Nic.
Nic sorriu, mas seus olhos desfocados não demonstravam nenhum humor.
- Príncipe Magnus Damora, gostaria que conhecesse um amigo meu.
Irritado pelo uso de seu nome em um estabelecimento público, Magnus virou, esperando encontrar algum rebelde qualquer. Mas, em vez disso, encontrou um rosto que só via em pesadelos.
- Theon Ranus - ele exclamou. O calor agradável e o formigamento proporcionado pelo vinho desapareceram em um instante, deixando-o profunda e desoladamente frio ao encarar aquela aparição.
- Está enganado - disse o jovem, um lembrete fatal da primeira pessoa que Magnus havia matado na vida. Com um olhar frio repleto apenas de obstinação e ódio, ele puxou uma faca e a colocou junto à garganta
de Magnus. - Sou o irmão dele, seu filho da puta.
13
CLEO
PAELSIA
- Aonde está indo, princesa?
As palavras a fizeram parar na porta principal da Hospedaria Falcão e Lança. Cleo olhou para trás e viu Enzo parado nas sombras.
- Vou à taverna no fim da estrada - ela disse. - Não que seja da sua conta.
- Está tarde.
- E...?
Enzo endireitou os ombros.
- Acho que seria melhor ficar aqui em segurança, princesa.
- Aprecio sua opinião, mas discordo. Magnus está lá. Estou surpresa, e um pouco consternada, por você não ter ido junto. E se ele for reconhecido?
- O príncipe deixou bem claro que meu único dever é garantir sua segurança, princesa.
Ela piscou rápido, como se tentasse disfarçar a surpresa daquela revelação interessante.
- Sério? Bem, isso torna as coisas muito mais fáceis. Você virá comigo buscar o príncipe e garantir que nenhum de nós corra perigo.
Cleo não lhe deu tempo para argumentar ao virar as costas e sair da hospedaria, deixando a porta aberta para Enzo segui-la e puxando o capuz do manto para cobrir o cabelo e proteger o rosto.
Enzo a seguiu sem dizer mais nada enquanto Cleo prestava atenção nas pessoas na rua, nas carruagens que passavam, no ruído do casco dos cavalos batendo na estrada de cascalho. Ela seguiu o som das risadas
embriagadas e da música para chegar à taverna que sem dúvida tinha sido o destino de Magnus. Sobre as grandes portas de madeira havia uma escultura de bronze de alguns cachos de uva em uma videira.
Ela leu a placa:
- A Videira Púrpura. Que nome apropriado para uma taverna em Paelsia. E bastante óbvio.
O príncipe gostava tanto do sabor do vinho que não se importava com o que aconteceria se alguém o reconhecesse. Magnus adorava tanto beber que estava disposto a arriscar ser morto no meio de um bando de
paelsianos. E que jeito idiota de morrer seria, Cleo pensou.
- Já ouvi falar desse lugar - Enzo disse, observando a entrada. - Nerissa já trabalhou aqui atendendo mesas.
Ela levantou uma sobrancelha.
- É mesmo?
Ele assentiu.
- Ela disse que foi uma experiência interessante.
- Eu não fazia ideia de que ela tinha morado em Paelsia.
- Nerissa morou em todos os lugares, ao que parece. Diferente de mim, que até agora nunca tinha me aventurado para fora de Limeros. Ela deve me achar tedioso.
- Posso garantir que ela não acha nada disso.
Ouvir Enzo falar de sua amiga fazia o coração de Cleo doer. Ela não tinha dúvidas de que Nerissa era capaz de se cuidar, melhor do que qualquer outra garota - e possivelmente garoto - que conhecia, mas...
Cleo não conseguia deixar de se preocupar com a segurança dela. Odiava a ideia de que Nerissa pudesse correr perigo enquanto era forçada a trabalhar perto de Amara.
Cleo respirou fundo ao passar pelas portas com Enzo. Dentro da taverna havia pelo menos duzentos clientes fedorentos e sujos.
Ela observou os rostos, procurando Magnus na multidão.
Aquela taverna era diferente de todas que já havia visto em suas duas visitas anteriores a Paelsia. Seu conhecimento da região se limitava a dois mercados pobres, vilarejos decrépitos e uma vasta extensão
de terras desertas.
E os galpões trancados de rebeldes raivosos e vingativos, ela lembrou a si mesma.
O lugar, apesar do interior rústico e decadente, parecia pertencer a Pico do Falcão, maior cidade de Auranos. Iluminando o espaço enorme havia dezenas e dezenas de velas e lampiões. No teto alto, várias
rodas de madeira acomodavam mais velas. O chão era de terra batida; as mesas e cadeiras eram feitas de madeira mal esculpida.
À esquerda de Cleo havia um pequeno palco, sobre o qual uma jovem de cabelo preto e com faixas douradas pintadas sobre a pele bronzeada rebolava de uma forma bastante provocativa. Em volta de seu pescoço
carregava uma jiboia enorme, do tipo que Cleo só tinha visto em livros ilustrados.
- Enzo, por favor, apenas me ajude a procurar Magnus. Comece pelas áreas com mais vinho.
- Sim, vossa alteza.
Cleo se cobriu melhor com o capuz do manto para esconder o cabelo e tentou ignorar os olhares atravessados da maioria dos brutamontes que passavam por ela. Quando sentiu alguém apertar seu traseiro, virou
para dar um soco no ofensor, mas acertou apenas o ar.
Furiosa, ela tentou ver quem a havia tocado no meio da multidão, mas ficou paralisada quando ouviu alguém gritar um nome que ela conhecia.
- Jonas! - Era a mulher-cobra, interrompendo a apresentação para correr na direção de um jovem que estava na plateia. - Jonas, é você mesmo?
Cleo, de olhos arregalados, se virou na direção do palco.
Jonas tinha voltado de Kraeshia. E, de todos os lugares de Mítica onde poderia estar, estava ali!
Como era possível?
Ela se virou para Enzo, mas outro rosto chamou sua atenção. Um jovem caminhava pela multidão, movendo-se na direção oposta ao mar de rostos virados para o palco.
Cabelo cor de bronze, pele morena, alto, músculos definidos...
Ela só conseguiu observar, certa de que seus olhos a enganavam.
- Theon - ela sussurrou o nome antes preso na garganta.
Ela então se lembrou de um tempo em que tudo parecia claro - ela o amava, e nada mais importava. Nem o posto dele, nem a reprovação de seu pai, nem o modo austero como Theon tinha olhado para ela antes
de beijá-la, marcado pelo medo de pensar que poderia perdê-la para sempre.
E depois o som do casco dos cavalos quando Magnus e seus soldados chegaram.
O orgulho em seu coração quando Theon enfrentou os homens de Magnus e venceu.
E o horror quando viu a vida se esvair dos olhos dele para sempre quando Magnus o acertou pelas costas.
"Se seu guarda tivesse se afastado quando ordenei, isso não teria acontecido", o filho do Rei Sanguinário tinha dito.
"Ele não é só um guarda", ela havia sussurrado em resposta. "Não para mim."
Às vezes, parecia que tudo tinha acontecido mil anos antes. Outras, era como se tivesse sido no dia anterior.
Mas, lá estava ele.
- Princesa? - Enzo perguntou, franzindo a testa para a expressão de choque absoluto dela.
Cleo não respondeu. Suas pernas estavam dormentes quando começou a se mover sem pensar, abrindo caminho na multidão na direção dele.
Lágrimas quentes corriam por seu rosto, e ela as secava com violência.
A multidão diminuía quanto mais ela se afastava do palco, o que lhe permitiu manter o olhar no guarda assassinado. Em sua mão, ela viu o brilho de uma lâmina afiada.
E então ela viu Magnus.
O fantasma do jovem que havia amado - e perdido - aproximou-se de Magnus, que estava no bar, olhando para Theon com a mesma descrença de Cleo. Então, com uma rapidez que ela mal conseguiu acompanhar, Theon
segurou Magnus com força e pressionou a lâmina contra sua garganta.
Ela gritou para dentro, seu corpo transformou-se em gelo em um instante. Ela olhava para Magnus, com sua expressão resoluta, os dentes cerrados e os olhos escuros desprovidos de emoção.
- Cleo? - Alguém estava bloqueando seu caminho; um garoto com sardas e cabelo ruivo. - Ah, Cleo! Você está aqui! Você está viva!
- Nic? - Ela o encarou por um segundo antes de agarrar e fincar os dedos em seus ombros. Atrás dele, viu o sangue escorrendo pela garganta de Magnus, onde o fantasma do passado enfiara sua adaga. - O que
está havendo? Por que isso está acontecendo?
De repente, uma terceira pessoa aproximou-se do confronto silencioso entre Magnus e Theon, que até então tinha passado despercebido pelo resto dos clientes, cujos olhos estavam fixos no palco. Era um jovem
de cabelo escuro, ombros largos e muitos músculos, com um tapa-olho preto.
Ele segurava um pedaço de pau e, com ele, atingiu o fantasma de Theon com força atrás da cabeça. A adaga caiu no chão, e o corpo da vítima desabou, inconsciente, ao lado dela.
- Magnus! - Cleo gritou.
Finalmente, Magnus tirou o olhar do jovem caído e virou para Cleo.
Ele semicerrou os olhos.
- Você não devia estar aqui.
Ela ficou chocada. Era isso que Magnus tinha a dizer em um momento como aquele?
O brutamontes apontou para o corpo.
- Ele não vai ficar feliz comigo quando acordar.
Cleo correu para o lado de Magnus, certificando-se rapidamente de que o ferimento no pescoço era superficial. Ela virou para o jovem de tapa-olho.
- Quem é você? - ela questionou.
Ele se curvou.
- Felix Gaebras, minha encantadora jovem. A seu dispor. E quem é você?
- Esta - Magnus disse, tocando o pescoço com cuidado - é a princesa Cleiona.
Felix arregalou os olhos.
- Ah, então esta é a princesa dourada. Tudo faz sentido agora.
- E quem é esse? - Ela apontou para o chão com o dedo trêmulo.
- Aquele - Felix respondeu - é Taran Ranus, irmão gêmeo de Theon.
Cleo sentiu seu corpo gelar.
- Irmão gêmeo?
Magnus estava tenso.
- Foi muito gentil da parte de Nic nos apresentar hoje à noite, não acha?
Ao lado dela, Nic olhou para o jovem inconsciente, depois para Cleo, que parecia chocada.
- Acho que todos nós precisamos conversar - ele disse.
- Com certeza!
- Concordo - Magnus disse com rigor. - Conheço um lugar muito mais discreto do que esse. Encontrem Jonas e venham comigo, todos vocês.
Felix se abaixou, pegou o companheiro inconsciente e o jogou sobre o ombro.
- Onde Jonas e os outros estão? A dançarina o amarrou com a cobra e o levou embora? Vou procurá-lo.
Cleo não esperou - ela precisava de ar fresco. Precisava respirar normalmente e deixar o coração bater em um ritmo natural.
Irmão gêmeo, ela pensou, estupefata. O irmão gêmeo de Theon.
E Theon nunca, em nenhum momento, tinha mencionado que tinha um irmão gêmeo.
Nic estava ao lado dela, cambaleando de leve a cada passo que dava enquanto Enzo a escoltava para fora da taverna. Ela olhou para trás para garantir que Magnus estava perto.
- Você está bêbado - disse Cleo, virando-se para Nic e percebendo que estava muito zangada com ele e com todos os presentes.
- Muito. E também muito feliz por saber que está aqui. - Ele deu um grande beijo desajeitado no rosto dela, fazendo-a lembrar do cachorrinho babão que seu pai trouxera para ela e para Emilia depois de
um longo período de viagens. Quando seus batimentos cardíacos voltaram ao normal, ela se permitiu ceder à avassaladora sensação de alívio por Nic ter voltado de Kraeshia são e salvo - e por estar ao lado
dela novamente.
Felix saiu da taverna carregando Taran Ranus.
Atrás dele veio Jonas, que observava a área até seus olhos recaírem sobre Cleo.
Ela o observava também quando um sorriso se abriu no belo rosto dele.
- Eu sabia que você estava viva. - Jonas apertou o passo para chegar até ela. Segurou-a pela cintura e a tirou do chão, girando-a no ar. - É tão bom ver você!
Em qualquer outro dia, ela estaria sorrindo tanto quanto o rebelde.
- Explique o que está acontecendo.
- Sim - Magnus disse, os olhos escuros fixos em Jonas. - Uma explicação para sua chegada nesta cidade, coincidindo com a nossa chegada, seria apreciável.
- Fico chocado em dizer, mas é quase bom ver você também, vossa alteza. - Jonas deu um meio sorriso para o príncipe.
Não foi correspondido.
- Nosso amigo aqui está ficando um pouco pesado - Felix comentou.
Magnus lançou um olhar azedo para o corpo que Felix carregava.
- Venham comigo.
Outra garota se juntou ao grupo, e Cleo a reconheceu de imediato - estava acompanhando Jonas e Lysandra da última vez em que estiveram no palácio limeriano.
Cleo se lembrava do nome dela: Olivia. Mas um cumprimento adequado poderia esperar.
Ela deu o braço para Nic enquanto o grupo acompanhava Magnus até a hospedaria.
- Por que está tão bêbado hoje?
- Ah... são muitas razões. Entre elas, recentemente passei a acreditar que estivesse morta. Por isso ia me afundar em cerveja para sufocar meu sofrimento.
- Estou bem viva.
- E fico muito feliz em saber.
Cleo sorriu para ele.
- Existem outros motivos para sua sede de álcool?
- Nenhum que esteja com a gente hoje, mas estou hesitante em mencioná-los. Você já teve choques demais por um dia. Tenho certeza de que ele vai acabar aparecendo. Ele faz dessas.
- Você não está falando coisa com coisa.
- Não, com certeza não estou.
Seu pequeno sorriso desapareceu quando ela olhou para Felix e seu fardo.
- Theon... - Ainda doía dizer o nome dele, mesmo depois de tanto tempo. - Alguma vez ele falou alguma coisa sobre ter um irmão gêmeo?
Nic negou.
- Nada. Quando vi Taran nas docas de Kraeshia, quase caí duro de choque. Taran não fala sobre isso, mas imagino que eles não tivessem contato. Ainda assim, não lidou bem com a notícia da morte do irmão.
- É, percebi. - Ela soltou um suspiro trêmulo. - Como ele ficou sabendo que foi Magnus que matou Theon?
Nic deu de ombros.
- Eu contei a ele, claro.
Ela sentiu uma pontada no estômago no exato momento em que a raiva começou a subir.
- Claro.
- Eu devia ter ficado a seu lado. - Ele pegou a mão dela e ficou sério, apesar da bebedeira. - Sinto muito por ter deixado você sozinha com ele todo esse tempo.
Nic não sabia sobre os sentimentos dela por Magnus. É claro que não sabia - Cleo tinha feito questão de negar os sentimentos que cresciam em seu peito por um ano.
- Não tem problema. Eu... dei um jeito.
- Onde devo deixá-lo? - Felix indicou o fardo que carregava quando chegaram à hospedaria.
- Tenho certeza de que vamos encontrar um buraco bem fundo - Magnus respondeu.
Cleo olhou feio para ele, depois virou para Felix.
- Tem alguns quartos vazios no segundo andar - ela disse.
Felix desapareceu e retornou rapidamente sem Taran.
Eles sentaram na sala de convivência e, quando Cleo olhou para o grupo, não sabia dizer se estava feliz ou horrorizada pelo modo como a noite havia se desenrolado.
Nic sentou ao lado dela, de frente para Jonas e Olivia. Felix e Magnus sentaram próximos à lareira, do outro lado da sala, perto da estante, enquanto Enzo ficou em pé ao lado de Cleo.
- Quando vocês chegaram? - Magnus perguntou.
- Hoje - Jonas respondeu. - Ainda estamos no escuro sobre o que está acontecendo aqui. A única informação que temos vem de um único soldado kraeshiano que se dispôs a falar.
- E?
- Ele sabia muito pouco. Ou, pelo menos, pouco que pudesse nos ajudar. No entanto, parece que você está fugindo, vossa alteza. E seu pai não está nada feliz com o modo como cuidou das coisas enquanto ele
esteve fora.
- É o mínimo que se poderia dizer.
Cleo observava Magnus levemente surpresa. Apesar do tanto que devia ter bebido, parecia sóbrio como um sacerdote limeriano.
- O soldado - disse Jonas, apontando para Cleo com tristeza. - Ele nos disse que você tinha morrido. Que isso aconteceu depois que fugiu de Amara. Que morreu congelada.
- Isso poderia muito bem ter acontecido se eu não tivesse encontrado abrigo no momento certo. - Ela desviou os olhos, tentando não fazer contato visual com Magnus, apesar de ainda sentir o olhar dele ardendo
em seu rosto.
- Você sempre foi uma sobrevivente - Jonas disse. - Nic se desesperou, mas eu tinha esperança. E aqui está você.
Nic deu de ombros.
- Eu me desespero. Sou desesperado.
- Temos muita coisa para contar a vocês - Jonas afirmou. - E com certeza vocês têm muita coisa para nos contar.
- Muito menos do que você pode imaginar - Magnus disse. - Amara acha que está governando o reino agora. Mas está errada. E será derrotada.
- E como você acha que vai derrotá-la? - Jonas perguntou.
- Acho que podemos começar com o cristal da terra que você deu à princesa - Magnus disse, e Jonas ficou tenso. - Você ainda tem aquele pedaço brilhante de obsidiana escondido em algum lugar, princesa?
Ah, sim, ela pensou enquanto se contraía. Esse era o Magnus que um dia ela desprezara - capaz de anunciar para todos, aparentemente por despeito, que ela estava em poder de um cristal da Tétrade. Ela precisaria
se lembrar de agradecer pela lembrança.
Nic soltou um rosnado de repulsa.
- Cleo, não enlouqueceu ficando ao lado dele por tanto tempo? O fato de ter mantido essa aliança artificial... deve haver algum motivo por trás disso que não me contou.
- Por favor, Nic - Magnus disse. - Somos todos amigos aqui. Sinta-se à vontade para falar o que quiser.
- Acabei de fazer isso.
Magnus revirou os olhos.
- Não preocupe essa sua cabeça de cenoura, Nicolo. A princesa continua a me tolerar, ou quase, concentrando-se apenas em recuperar seu trono assim que Amara for derrotada e mandada para longe. Recentemente,
sugeri que sua princesa dourada retornasse a Auranos, mas ela recusou. Nem pense em dizer que foi ideia minha.
Cleo virou para ele e enxergou uma expressão de desafio em seus olhos. Então percebeu o que Magnus estava fazendo.
Nic o odiava. Jonas tinha uma aliança fraca com ele. E o irmão gêmeo de Theon tinha acabado de tentar matá-lo.
Revelar que os dois eram mais do que aliados relutantes poderia causar um estresse desnecessário, principalmente agora que estavam todos juntos.
- Acredite em mim, Nic - ela disse finalmente. - E estou ansiosa pelo dia em que retornarei ao meu trono. Mas esse dia não é hoje.
- Bem, agora que isso está resolvido - Magnus disse -, vamos discutir como proceder. Pode ser?
Felix levantou a mão.
- Eu me voluntario com entusiasmo para matar a imperatriz.
Magnus o encarou com interesse.
- Como pretende fazer isso?
- Sei que alguns de vocês vão sugerir que eu use uma flecha apontada de longe - Felix disse com avidez. - Mas realmente preferiria uma abordagem mais pessoal. Com minhas próprias mãos, se possível. Só
quero ver o olhar dela naquele rostinho lindo.
Magnus piscou.
- Acabei de lembrar que foi você que me enviou um pedaço de sua pele para provar sua lealdade.
- Fui eu mesmo, vossa majestade.
Cleo analisava aquele jovem com atenção, chocada com as palavras. Será que ele era louco?
No entanto, o sujeito tinha salvado a vida de Magnus na taverna, e ela devia muito a ele por isso, então imaginou que teria que passar um pouco mais de tempo perto dele, observando-o, para ver como ele
realmente era.
Houve um tempo em que tinha desejado que Magnus morresse pelo que fizera com Theon, em que tinha desejado matá-lo com as próprias mãos.
Mas no momento em que a vida de Magnus correra perigo, não conseguira se concentrar em nada além do príncipe. Qualquer necessidade de vingança tinha desaparecido meses atrás, como se ela tivesse trocado
de pele.
O sentimento era de perdão. Ela ainda odiava o garoto que Magnus tinha sido aquele dia.
Mas tinha passado a entendê-lo nos meses que se seguiram, talvez ainda melhor do que entendia a si mesma.
- Há uma ameaça muito maior do que Amara em Mítica nesse momento, sinto informar - Jonas revelou, interrompendo o devaneio de Cleo. Ele estava limpando as marcas de beijo da dançarina do rosto com um lenço
que Olivia havia lhe dado, e Cleo não conseguiu deixar de achar engraçado o contraste entre os movimentos ridículos e o tom solene daquela declaração.
- Me deixe adivinhar - Magnus disse. - Você está falando da minha irmã? Sei que deve estar de luto por sua amiga, Jonas, mas não faz sentido gastar suas energias vingativas com Lucia nem com seu companheiro,
Kyan.
Jonas encarou os olhos de Magnus.
- Vocês não sabem, não é?
- Não sabemos o quê?
- Vocês procuraram pela Tétrade. Pessoas morreram por esses cristais. Você já revelou diante de todos que Cleo está em poder de um deles, e sabemos que Amara está com o da água, e seu pai, com o do ar.
- Sim, sei disso tudo, rebelde. E já sabemos que Kyan está com o cristal do fogo.
- Errado - Jonas ficou tenso. - Kyan é a magia do fogo.
Cleo ficou encarando-o, certa de que tinha escutado errado.
- O que quer dizer com isso?
- A magia que vocês estão procurando, que todos estamos procurando, pode pensar. Pode falar. E pode matar sem remorso. E mais três iguais a Kyan estão aguardando para escapar de suas prisões. Os cristais
não são pedras mágicas, princesa, mas deuses elementares.
A sala toda ficou em silêncio, e Cleo observou freneticamente o rosto dos outros, esperando encontrar alguém revirando os olhos. Esperando que aquilo não passasse de uma mentira engraçada para quebrar
a tensão.
Não podia ser verdade.
Mas até Nic assentia pesaroso.
E naquele exato momento, dentro de seu bolso, estava uma daquelas prisões.
Ela olhou para Magnus, cuja testa franzida era o único sinal de surpresa.
- Lucia deve tê-lo ajudado a escapar da esfera de âmbar - Magnus disse.
- Acho que isso é óbvio - Jonas respondeu curto e grosso, o que lhe rendeu um olhar sombrio do príncipe.
Cleo juntou as mãos para impedi-las de tremer.
- Temos certeza de que os objetivos de Kyan, sejam quais forem, são perversos? A Tétrade ainda pode nos ajudar a derrotar Amara.
- Eu o vi queimar Lys até fazê-la desaparecer - Jonas grunhiu. - Nem uma única cinza restou quando ele acabou. - O rebelde virou para Magnus. - Kyan é perverso. Assim como a vadia da sua irmã.
Magnus levantou com os punhos cerrados.
- Não me importo com o que aconteceu, você não vai falar assim de Lucia na minha presença. Não vou permitir.
- Não? E você acha que pode me impedir? - Agora Jonas também estava com os punhos cerrados, e os dois se aproximavam.
- Talvez ele não o impeça - disse uma nova voz, interrompendo a conversa e paralisando o rebelde e o príncipe. - Mas eu com certeza estou disposto a tentar.
Com aquela promessa, o Rei Sanguinário entrou na sala.
14
JONAS
PAELSIA
Rei Gaius Damora. O Rei Sanguinário. Assassino. Sádico, torturador, escravocrata, traidor. Inimigo. Alvo.
E, naquele momento, estava na mesma sala que Jonas.
Muitas surpresas tinham acontecido naquela noite. Primeiro um encontro com Laelia Basilius, de quem Jonas tinha sido - por pouco tempo e com relutância - noivo. Mas essas surpresas desapareceram de sua
mente assim que o rei entrou na sala.
Gaius observou o grupo e parou o olhar sobre Jonas.
- Jonas Agallon. Não vejo você há muito tempo. Acho que a última vez foi no casamento de meu filho.
Jonas percebeu que não conseguia fazer nada além de olhar para o homem que tinha matado e destruído tantos.
- Magnus... - Cleo disse do outro lado da sala.
- Ah, sim - Magnus disse, sem qualquer sinal de indignação pelas calúnias ditas contra a irmã. - Esqueci de dizer que estou viajando com meu pai?
- Esqueceu - Jonas respondeu, tenso.
- Sim - o rei concordou. - E é muito bom que meu filho traga seus novos amigos aqui sem avisar.
Jonas se esforçou para manter a compostura, para não mostrar como estava indignado.
- Não são tão novos quanto você pensa.
A pele do rei Gaius estava pálida, o rosto tinha hematomas como se tivesse sido espancado. Ele inclinou para a frente, como se agisse com normalidade, e se apoiou na parede ao lado da escada, mas algo
ficou evidente na posição. Uma fraqueza e uma fragilidade que o rebelde nunca tinha notado no homem.
- Volte para o quarto - Magnus disse.
- Não acato ordens suas. - O rei sorriu, sem achar graça. - Magnus, seus amigos sabem que estamos todos do mesmo lado agora?
Só de pensar em uma aliança com Gaius, Jonas perdeu totalmente a fala. Os outros - Nic e Olivia - também permaneceram em silêncio, tensos.
- É mesmo? - Foi o rosnado ríspido de Felix, como o alerta de uma fera enjaulada, que quebrou o silêncio. - Você decidiu isso antes ou depois de permitir que Amara me deixasse levar a culpa por matar a
família dela?
O rei levantou uma sobrancelha escura e observou Felix.
- Nunca permiti que Amara fizesse nada. Ela toma as próprias decisões. Quando soube o que tinha acontecido, já era tarde demais para intervir. Soube que você já estava morto. Caso contrário, teria feito
o possível para libertar você.
Felix manteve o olhar fixo no rei, e em seu único olho não se via nada além de frieza e malícia.
- Claro que teria. Por que eu duvidaria de sua palavra, vossa alteza?
Suspirando, o rei abatido e aparentemente debilitado se virou para Jonas.
- Você tem todos os motivos para me odiar. Mas precisa me ouvir agora e perceber que juntos somos fortes. Temos um inimigo comum: Amara Cortas.
- Sua esposa - Jonas afirmou.
- Por conveniência e circunstância apenas. Não tenho dúvidas de que ela já está conspirando para me matar, em especial agora que assumiu o controle de Mítica e sabe que seus soldados são muito mais numerosos
que os meus. Tenho me dedicado a consertar alguns de meus erros mais recentes, começando por tirar Amara deste reino.
- Me parece um bom começo - Jonas disse.
O rei caminhou devagar, fazendo careta ao sentir uma dor repentina com o movimento, e estendeu a mão.
- Peço que deixemos nossas diferenças de lado até esse objetivo ser alcançado. O que me diz?
Se não estivesse tão surpreso, Jonas teria gargalhado. O Rei Sanguinário tinha acabado de propor a ele - a mesma pessoa que o acusara de assassinar a Rainha Althea - uma aliança.
Jonas observou os outros ao redor, e em silêncio todos olhavam chocados para ele e o rei. Nic e Cleo estavam pálidos, e Felix entortava a boca de ódio. Olivia manteve o olhar desprovido de emoção e inescrutável,
como sempre. Enzo, o guarda de Cleo, estava parado empunhando a espada. Em contraste, Magnus tinha sentado e recostado na cadeira, os braços cruzados à frente do peito, a cabeça inclinada.
Finalmente, Jonas estendeu a mão direita para o rei e aceitou o acordo, encarando diretamente seus olhos.
- O que posso dizer, vossa alteza? - Com a mão esquerda, ele cravou uma adaga decorada no coração do monstro. - Vá para as terras sombrias, filho da puta mentiroso.
O rei gemeu sem força, e pelo som, a dor parecia extremamente forte. Jonas girou a faca ainda mais fundo, até Gaius tombar para trás.
Jonas ouviu Nic comemorar assim que Enzo o acertou e o derrubou no chão. Felix chegou em um instante, puxando Enzo para longe. Outro dos guardas do rei apareceu e puxou os braços de Jonas para trás. Cabelos
loiros apareceram na confusão - era Cleo tentando tirar o segundo guarda do rei de cima de Jonas. Magnus estava de pé com o olhar sério fixo no rei. Olivia estava dentro do campo de visão periférica de
Jonas, esperando. Ela só interviria se ele corresse perigo de morte.
A raiva que sentia, o ódio que tinha pelo rei, zuniam dentro de Jonas, renovados, e o rebelde tremia. Enquanto observava o rei moribundo, não sentiu nem um pouco de arrependimento.
Finalmente tinha tido uma oportunidade. E a aproveitado.
- Viu? - ele disse, olhando para Magnus. - Cumpro minhas promessas.
- Sim, estou vendo - Magnus disse, prestando atenção no pai, como se estivesse curioso, e não grato pela atitude. - Só é uma pena que você não tenha feito isso antes.
- O que quer dizer com isso? - Jonas olhou para o príncipe, sem entender por que ele parecia decepcionado com a situação. Jonas tinha feito exatamente o que Magnus queria, tinha cumprido a tarefa que o
tinha levado a Kraeshia.
- Milo, deixe Jonas levantar. - Cleo segurava o guarda desconhecido pelo braço.
- Ele assassinou o rei - Milo disse.
- Não - Magnus disse. - A morte decidiu demorar no que diz respeito ao meu pai.
- Jonas, olhe para ele - Felix pediu.
Gaius não estava mais deitado no chão, cheio de sangue. Milagrosamente, estava ajoelhado, sangrando muito sobre a madeira desgastada, o cabo da adaga no peito.
A expressão agonizante do rei estava fixa em Jonas.
- Ele não está morto - Nic murmurou, balançando a cabeça, incrédulo. - Por que não está morto?
Num movimento repentino e forçado, o rei Gaius segurou o cabo decorado da adaga. Ainda encarando Jonas com os olhos semicerrados, ele arrancou a lâmina, com um grito. A adaga caiu no chão, e ele levou
as mãos à ferida.
- Isso é magia - Jonas conseguiu dizer em meio ao choque.
- Muito observador de sua parte. Impressionante - Magnus disse com seriedade.
- Explique o que está acontecendo!
Magnus meneou a cabeça para Milo.
- Solte o rebelde. Não posso conversar com alguém preso como um besouro pregado a uma placa de cortiça.
Milo parou de segurar o braço de Jonas, que imediatamente ficou de pé e lançou um olhar acusatório para Magnus, que encarou Cleo de um jeito pouco sutil e sério. Cleo rangeu os dentes, e Magnus revirou
os olhos.
- Muito bem - o príncipe concordou. - Vou tentar ser breve em minha explicação. O que está acontecendo é o resultado de uma poção que o rei tomou muitos anos atrás, uma poção que permitiu que, não importa
o golpe final e fatal que o destino desferir, ainda tem algum tempo para... resistir depois de ser morto.
- Não sei bem se é assim que funciona - Cleo disse pacientemente.
Magnus suspirou e fez um gesto para o pai.
- Mais ou menos isso?
- Acredito que sim. Minha nossa, Jonas, essa é a adaga de Aron? - Cleo perguntou, chocada. - Você realmente guardou essa coisa horrível por todo esse tempo?
- Responda à minha pergunta - ele disse, mais incisivo do que pretendia ao se dirigir à princesa. Finalmente Jonas tinha feito o que queria fazer havia muito tempo, mas mais uma vez o destino não permitia
seu sucesso. Nem mesmo depois de um golpe fatal.
- Você não matou o rei - Cleo respondeu tensa - porque o rei já encontrou a morte dias atrás.
Enquanto Jonas tentava desesperadamente processar aquela afirmação incrível, uma mulher desceu a escada. Ela era mais velha, com rugas ao redor dos olhos, e usava um manto cinza-escuro que combinava com
seu cabelo. Entrou na sala de convivência, observando todos os presentes com firmeza, até finalmente fixar o olhar em Gaius.
A mulher o observou por um momento muito breve e, em seguida, lançou um olhar intenso na direção de Jonas.
- Você fez isso com meu filho?
Um arrepio subiu por seus braços e seus ombros, e desceu pela coluna ao perceber a raiva controlada nas palavras dela.
Filho?
- Tudo bem - o rei disse assustado, segurando a manga da blusa da mulher que se apressou para ficar ao lado dele.
- Não está nada bem. Não mesmo. - Ela voltou a encarar Jonas, e com o olhar dela, veio a sensação de que ele estava sendo congelado. - Você ousaria tentar matar seu rei?
- Ele não é meu rei - Jonas respondeu irritado, recusando-se a demonstrar fraqueza ou dúvida. - Ele matou meus amigos em sua guerra doentia, executou aqueles que se recusaram a se submeter, e escravizou
meu povo para construir sua preciosa Estrada Imperial. Nenhuma pessoa nesta sala diria que ele não merece morrer por seus crimes.
Ela cerrou o punho.
- Eu diria.
- Não, mãe - Gaius disse depressa. - Deixe-o em paz. Precisamos dele. Acredito que precisaremos de todos eles para reaver o que Amara pegou.
Devagar, o rei levantou, e Jonas só conseguiu dar um passo incerto para se afastar. O único sinal de que uma adaga tinha atravessado seu coração alguns momentos antes era a camisa rasgada e o sangue no
chão.
- Só a magia mais sombria poderia tornar algo assim possível - uma nova voz disse.
Jonas virou de repente e viu que Ashur Cortas estava atrás deles na entrada da hospedaria.
- Ashur! - Cleo se surpreendeu. - Você está vivo! Mas... como?
Ashur arqueou as sobrancelhas escuras.
- Mais magia negra, receio.
Ela virou para Nic, cuja expressão era neutra.
- Você sabia disso?
Ele assentiu.
- Eu sei, é um choque.
- Um choque? Ele estava morto, Nic! Por que não me contou?
- Eu ia contar. Achei melhor esperar você lidar com a questão do Taran primeiro.
- Ah, obrigada - ela disse, a voz tensa. - Você é muito solícito mesmo.
- Não sei por quê, mas acho que você não está falando sério.
Jonas se virou para Magnus e viu que ele estava sério.
- Estou ficando muito cansado de magia - o príncipe murmurou. - E de absolutamente tudo sobre o que não tenho controle.
- Também é ótimo revê-lo, príncipe Magnus - Ashur disse com um meneio de cabeça.
- Muita gentileza sua nos encontrar, vossa graça - Nic se dirigiu a Ashur, a voz desprovida de qualquer respeito. - Pensei que tivesse criado guelras e cauda e começado a nadar de volta a Kraeshia.
- Hoje não, infelizmente - Ashur respondeu com rispidez.
- Talvez amanhã.
- Talvez.
- Contamos a todos sobre sua ressurreição de fênix agora ou mais tarde? - Nic perguntou.
A expressão de Ashur ficou tensa ao notar o tom ácido de Nic.
- Parece, Nicolo, que há assuntos mais urgente a tratar. Estou certo, não estou, rei Gaius?
O grupo voltou a atenção ao rei, que estava encolhido ao lado da mãe.
- Está, sim, príncipe Ashur.
- Uma aliança contra minha irmã.
- É um problema para você?
- Não. Contanto que não a matem, não vejo nenhum problema.
- Espere - Felix disse de onde estava, ao lado da lareira. - Você sabe que eu pretendia matá-la! Vai mesmo tirar isso de mim?
Ashur lançou um olhar severo para Felix.
- Tudo bem. É um assunto para outro dia - Felix respondeu.
- Príncipe Ashur, você é o herdeiro legítimo de seu pai - o rei explicou. - Tire o título de Amara e tudo isso pode acabar.
- E agora você é o marido dela, pelo que soube. Por que não está a seu lado, orientando suas decisões?
- Não é mais tão simples assim.
- Nada importante é simples, certo?
- O Rei Sanguinário quer que trabalhemos em equipe - Jonas disse, balançando a cabeça. - É a coisa mais ridícula que já ouvi. Não é o que quero.
Gaius bufou, frustrado.
- Sei muito bem o que você quer, rebelde. Você quer que eu morra. Bem, devo dizer que vou morrer em breve.
- Gaius... - a mãe sibilou. - Não vou permitir que fale assim. Não vou permitir!
Ele a silenciou com um aceno.
- Minha primeira prioridade é retomar o controle de meu reino. Mítica não pertence, nem pertencerá, ao Império Kraeshiano.
- Não fosse pela magia que dizem que está adormecida aqui - Ashur disse -, posso garantir que nem Amara nem meu pai dariam tanta importância a essa ilhazinha.
- Acredito que você esteja ciente de que Amara envenenou seu pai e seus irmãos - o rei afirmou. - Ela não sente remorso quando vai em busca do que quer.
A risada sombria de Nic interrompeu a tensão na sala.
- Que engraçado... "Não sente remorso", ele disse, como se considerasse isso um defeito. O mesmo homem que quebrou o pescoço da minha irmã por estar no lugar errado na hora errada. - Ele parou de rir de
repente. - Sua aparência está péssima, vossa majestade. Espero muito que esteja sofrendo neste momento.
- Não fale com o rei desse jeito, Cassian - Milo, o guarda, se manifestou.
Nic lançou um olhar para ele do outro lado da sala.
- O que vai fazer se eu falar? Vai pedir para seu amigo ajudá-lo a me bater?
Milo sorriu e estralou os dedos.
- Posso fazer isso sozinho sem problema.
- Pensei que você estivesse apodrecendo na masmorra.
O sorriso do guarda ficou tenso.
- Preciso lhe agradecer por isso, não?
- Precisa. - Nic semicerrou os olhos. - O que vai fazer em relação a isso, Milo?
- Muitas coisas. Só preciso de tempo.
- Milo, não é? Ouça bem o que vou dizer. - A voz de Ashur estava baixa, como o rosnado de uma fera enjaulada. - Se tentar machucar Nicolo, juro que eu mesmo vou arrancar sua pele.
Jonas virou para Milo. Viu que a única reação dele à ameaça foi piscar, surpreso.
Cleo falou com o rei, depois de lançar um olhar preocupado a Nic e ao guarda.
- Você deu Mítica a Amara - ela disse, deixando claro seu tom de insatisfação. - Não pode apenas pegá-la de volta?
- Você não entende - o rei disse. - Nenhum de vocês entende. O imperador Cortas teria tomado Mítica à força se eu não tivesse agido dessa forma. Dezenas... não, centenas de milhares teriam morrido na guerra
se eu não tivesse feito minha proposta a ele.
- Ah, sim - Magnus disse. - Meu pai, o salvador de todos nós. Deveríamos construir estátuas em homenagem a ele. Uma pena já haver dezenas delas em Limeros. - Magnus arregalou os olhos. - É muita vaidade,
pensando bem. A deusa Valoria não aprovaria.
- Para o inferno com a deusa e com todos os Vigilantes! - o rei rebateu. - Não precisamos da ajuda deles para nos livrarmos de Amara.
- Não esqueça Kyan - Jonas acrescentou.
O rei virou para ele.
- Quem é Kyan?
Jonas não conseguiu conter o riso.
- Adoraria ficar aqui para elaborarmos uma estratégia juntos, vossa alteza, mas cansei dessa farsa. Não vou trabalhar com você hoje, nem amanhã, nem nunca.
- Diga, vossa alteza - Felix disse devagar -, ainda está com o cristal do ar?
Gaius lançou um olhar sério.
- O cristal do ar! - a mãe dele exclamou. - Você está com ele? E não me contou?
- Estou, sim - ele respondeu.
- Onde?
- Em um lugar seguro.
Jonas tentou encarar Cleo nos olhos, mas ela parecia ocupada com uma conversa silenciosa com o príncipe. Quando se entreolhavam, o sorriso de Magnus desapareceu.
- Se for verdade, e quando eu tiver força suficiente para encontrar minha neta - a mulher anunciou -, a vitória será nossa.
Mais uma vez, Jonas riu com frieza.
- Então é esse o segredo para seu grande plano? A princesa Lucia? Acredito que ficará decepcionada quando vir a serpente fria, má e sanguinária que ela se tornou. Mas ela é uma Damora, então talvez você
não se surpreenda nem se desaponte.
A senhora o observou.
- Jonas, não é?
- É o meu nome.
- Meu nome é Selia. - Ela se aproximou sem raiva no olhar ao pegar as mãos dele. - Fique conosco e ouça mais sobre nossos planos. Concordo com meu filho que, apesar de nossas diferenças, ainda podemos
trabalhar juntos. Tente ver isso de modo lógico. Juntos, somos mais fortes.
Ela estaria certa?
- Não sei...
- Fique - Cleo pediu. - Por favor, pense bem, pelo menos. Por mim.
Jonas encarou seus olhos sinceros e azuis.
- Talvez.
Magnus levantou.
- Está sugerindo que os rebeldes fiquem aqui? - ele perguntou em tom acusatório para a avó. - Nesta hospedaria? É a pior ideia que já ouvi.
- Discordo - disse o rei. - Minha mãe tem razão. Podemos chegar a um acordo. Temporário. Temos o mesmo inimigo agora.
Sem saber ao certo se estava prestes a concordar ou discordar dos Damora, Jonas abriu a boca para falar mas foi interrompido por um rosnado furioso vindo da sala de convivência.
Passos foram ouvidos descendo a escada, e Taran entrou com tudo no ambiente. Em um instante, voltou o olhar furioso para Magnus.
A adaga de Jonas - aquela que o rei tinha tirado do peito - estava no chão. Jonas a viu, mas Taran também, recuperando-a num piscar de olhos e percorrendo a distância entre ele e o príncipe.
Taran apontou a adaga para Magnus, mas o príncipe segurou o braço de Taran antes que ele pudesse encostar. Cleo soltou um grito estridente.
- Você está morto - Taran gritou.
Magnus se esforçou para não deixar a lâmina feri-lo, mas Taran o pegou de surpresa e a ira da vingança parecia duplicar sua força.
Então, Felix apareceu atrás de Taran, passando o braço por seu pescoço e puxando-o para trás.
- Não me faça acertar você de novo. Perdi meu pedaço de pau.
Jonas se aproximou e arrancou a adaga da mão de Taran.
- Vou matar você - Taran gritou para o príncipe enquanto Felix o arrastava para trás. - Você merece morrer pelo que fez!
Magnus não revidou. Só ficou observando o rapaz, com uma expressão séria.
- Acho que todos merecemos morrer por algo que fizemos - Jonas disse, aliviando um pouco da tensão que crescia entre o príncipe e o rebelde. - Ou por algo que deixamos de fazer.
O príncipe desfez a expressão séria e olhou incrédulo para Jonas.
- É minha imaginação ou você acabou de ajudar a salvar minha vida?
Jonas fez uma careta ao ouvir a pergunta.
- Parece que sim, não? - Ele olhou para Cleo, cuja expressão era de alívio. Com certeza, a princesa não queria ver mais sangue sendo derramado naquela noite, ele pensou. Nem mesmo o de Magnus. - Pode ser
que eu esteja prestes a cometer um erro horroroso do qual me arrependerei pelo resto da vida, mas decidi aceitar essa aliança. Mas uma aliança temporária, até Amara ser tirada daqui.
Ele esperou a resposta de Ashur. A expressão do príncipe kraeshiano se manteve séria, mas ele assentiu.
- Concordo. Amara precisa perceber o que fez. Ainda que ache que estava certa, tomou o caminho errado. Farei o que puder para ajudar.
- Ótimo. - Jonas apontou para Taran, que Felix ainda segurava. - Compreendo seu luto e sua ira, mas seu desejo por vingança não tem espaço aqui.
Taran lançou um olhar feio para Jonas, segurando o braço de Felix, que apertava sua garganta como uma barra de ferro.
- Você conhecia meus motivos para vir para cá antes de sairmos de Kraeshia.
- Conhecia, mas isso não quer dizer que concordava com eles. Agora tomei minha decisão. Você não vai tentar matar o príncipe Magnus de novo. Não enquanto mantivermos essa aliança.
- Você ouviu bem com essas orelhas gastas? - Felix perguntou a Taran, a voz áspera enquanto aplicava mais força no braço. - Ou preciso repetir mais devagar?
- Abandonei uma rebelião para vir até aqui vingar meu irmão.
- Uma rebelião fadada ao fracasso antes mesmo de começar - Ashur acrescentou.
- Você não sabe.
- Sei. Não me alegra saber, mas sei. Talvez um dia o império que meu pai construiu seja destruído, mas não será logo.
- Veremos.
- Sim, veremos.
Taran lançou mais um olhar raivoso para Jonas.
- Você se uniria a eles por vontade própria?
- Sim - Jonas confirmou. - E peço que considere fazer o mesmo. Podemos precisar de sua ajuda. - Ele fez uma pausa. - Mas não me leve a mal, Taran; se tentar acabar com a vida do príncipe Magnus de novo,
vou acabar com a sua.
15
AMARA
PAELSIA
O deus do fogo tinha sido muito específico sobre o lugar aonde queria que Amara fosse para obter poder infinito. Segundo ele, era um lugar tocado pela magia. Um lugar que até os próprios imortais reconheciam
como um centro de poder.
Ela contou a Carlos sobre a mudança de planos. Não ia se mudar para o palácio limeriano. Não, seu destino ficava mais ao sul de Paelsia, próximo ao antigo complexo do chefe Hugo Basilius.
Em vez de questionar as ordens, Carlos planejou tudo no mesmo instante. Com quinhentos soldados, Amara, Nerissa, Kurtis e o capitão dos guardas viajaram ao reino central de Mítica, que a nova imperatriz
ainda não conhecia.
Pela janela da carruagem, ela via com surpresa o gelo e a neve de Limeros derreterem e darem espaço à terra seca, às florestas mortas e à escassa vida selvagem.
- Foi sempre assim aqui? - ela perguntou, assustada.
- Nem sempre, vossa graça - Nerissa respondeu. - Ouvi dizer que houve uma época, muito tempo atrás, que toda Mítica, de norte a sul, era quente e temperada, sempre verde, com pequenas mudanças de uma estação
a outra.
- Por que alguém moraria em um lugar assim?
- Os paelsianos não podem escolher seu destino e são conhecidos por se conformarem isso, como se a aceitação tivesse se tornado uma religião em si. O povo é pobre, regido pelas regras que seu ex-chefe
e o chefe antes do anterior estabeleceram. Por exemplo, os paelsianos só podem vender vinho legalmente a Auranos, e o vinho é o único produto de exportação valioso deles. Grande parte do lucro é taxado,
e essas taxas foram determinadas pelo chefe.
Sim, o vinho paelsiano era famoso pelo sabor adocicado e por sua habilidade mágica de inebriar depressa e de modo prazeroso, sem mal-estar depois.
Era o vinho que Amara tinha levado para Kraeshia para envenenar sua família.
O que quer que fosse dito sobre a bebida, ela jurava que nunca a beberia por causa da lembrança.
- Por que não vão embora? - ela perguntou.
- Para onde? Poucos teriam dinheiro para ir ao exterior, menos ainda para construir uma casa em outro lugar que não seja aqui. E os paelsianos não podem entrar em Limeros nem em Auranos sem permissão do
rei.
- Tenho certeza de que muitos vêm e vão como querem. As fronteiras não são totalmente monitoradas.
- Não, mas os paelsianos costumam obedecer às leis. A maioria dos paelsianos, pelo menos. - Nerissa recostou na cadeira, as mãos sobre o colo. - Eles provavelmente não vão lhe causar nenhum problema, vossa
graça.
Ouvir aquilo era um alívio, no mínimo, depois de tantos problemas no passado.
Amara continuou observando a paisagem árida pela janela da carruagem durante os quatro dias de viagem desde a partida da quinta de lorde Gareth, esperando ver a terra e a morte se transformarem em verde
e vida, mas isso não aconteceu. Nerissa garantiu que mais a oeste, mais perto da costa, a paisagem melhoraria, e que a maioria dos paelsianos construía casas em vilarejos naquele pedaço da terra; poucos
construíam mais perto dos picos assustadores e sombrios das Montanhas Proibidas, a leste.
Aquele era o reino mais distante da fartura de Kraeshia que ela já tinha visto, e Amara estava torcendo para não precisar passar muito tempo ali.
Na última etapa da viagem, o comboio usou a Estrada Imperial, que se estendia por Mítica de modo curioso, começando no Templo de Cleiona, em Auranos, e terminando no Templo de Valoria, em Limeros. Passava
direto pelos portões de entrada do complexo de Basilius.
Os portões estavam abertos e um homem baixo de cabelo grisalho os esperava, cercado por uma dúzia de paelsianos enormes usando roupas de couro, com cabelo preto preso em tranças minúsculas.
Quando Carlos ajudou Amara a desembarcar da carruagem, o homem fez um leve sinal com a cabeça para ela.
- Vossa graça, sou Mauro, o antigo conselheiro do chefe Basilius. Seja bem-vinda a Paelsia.
Ela olhou para o homem, bem mais baixo do que ela.
- Então, você ficou responsável por este reino depois da morte do chefe?
Ele confirmou.
- Sim, vossa graça. E estou às suas ordens. Por favor, venha comigo.
Junto com o grupo principal de guardas pessoais da imperatriz - incluindo Carlos -, Amara e Nerissa acompanharam Mauro pelos portões de pedra. Um caminho de pedra se estendia pelo vilarejo murado, levando-os
por pequenas casas de sapê parecidas com as que Amara tinha visto enquanto atravessava várias cidades antes de chegar ao complexo.
- Naquelas casas ficavam as tropas do chefe. Infelizmente, quase todos foram mortos na batalha pelo palácio auraniano. - Mauro indicava os pontos de interesse conforme caminhavam pelo complexo, que no
passado fora o lar de mais de dois mil cidadãos paelsianos.
Havia comércios que antes forneciam pão, carne, legumes e frutas, trazidos do Porto do Comércio. Mauro mostrou um espaço onde ficavam as bancas dos vendedores locais, que podiam atravessar os portões todo
mês.
Outra área, uma clareira com bancos de madeira, tinha sido usada como arena para diversão - duelos, lutas e disputas de força que o chefe costumava gostar de assistir. Outra clareira surgiu com restos
de fogueiras, onde o chefe fazia banquetes.
- Banquetes... - Amara comentou surpresa. - Em um reino como este, banquetes são a última coisa que eu esperaria de um líder.
- O chefe precisava de prazeres para abastecer a mente e conseguir explorar os limites de sua força.
- Certo - ela disse. - Ele acreditava ser um feiticeiro, não?
Mauro olhou para ela constrangido.
- Sim, vossa graça.
Para Amara, o chefe Basilius parecia um homem egoísta e pobre de espírito. Ela estava contente em saber que Gaius o havia matado depois da batalha auraniana. Se ele não o tivesse matado, ela teria feito
isso.
Apesar do calor do dia com o sol já forte, Amara sentiu a temperatura ao seu redor aumentar ainda mais.
- Sei que não parece grande coisa, pequena imperatriz, mas garanto que aqui é exatamente onde precisamos estar.
Amara não respondeu, mas reconheceu a presença de Kyan com um meneio de cabeça.
- Estamos perto do centro do poder aqui - ele continuou. - Posso sentir.
- Aqui - Mauro indicou um grande buraco no chão, com cerca de dez passos de circunferência e vinte passos de profundidade para dentro da terra seca - é onde o chefe costumava deixar os prisioneiros.
Amara olhou para dentro do buraco.
- Como eles desciam?
- Alguns eram baixados com uma corda ou escada. Outros simplesmente eram jogados. - Mauro fez uma careta. - Peço desculpas se a imagem não lhe agrada, vossa graça.
Ela o encarou com uma expressão fulminante.
- Garanto, Mauro, que provavelmente não há nada que você possa me contar sobre como os prisioneiros eram tratados que eu consideraria surpreendente ou intolerável.
- Claro, vossa graça. Peço desculpas.
Amara estava cansada dos homens e seus falsos pedidos de desculpa.
- Carlos, cuide para que meus soldados recebam aposentos adequados depois dessa longa viagem.
- Sim, imperatriz. - Carlos fez uma reverência.
- Vossa graça ficará aqui, imperatriz Amara. - Mauro indicou a construção de três andares, feita de terra e pedra, a maior e mais forte do vilarejo. - Espero que seja do seu agrado.
- Com certeza será.
- Organizei tudo para levá-la a uma feira mais tarde e mostrar o trabalho de seus novos súditos paelsianos. Há, por exemplo, alguns bordados lindos que podem ser de seu interesse. E alguns enfeites com
contas para seu belo cabelo. Uma comerciante virá da costa até aqui para trazer uma tinta de frutas silvestres que ela criou para pintar os lábios... - Mauro parou de falar ao ver a expressão contrariada
da imperatriz. - Algum problema, vossa graça?
- Você acha que estou interessada em bordados, enfeites e tintas para os lábios? - Ela esperou a resposta, mas ele só abriu a boca sem emitir nenhum som.
De trás dela, ouviu-se uma risada.
Amara virou imediatamente, os olhos fixos no guarda - seu guarda - que mantinha um sorriso no rosto.
- Está achando engraçado? - ela perguntou.
- Sim, vossa graça - o guarda respondeu.
- Por quê?
Ele olhou para os compatriotas ao redor, e nenhum deles fez contato visual.
- Bem, porque é do que as mulheres gostam: maneiras de ficarem mais bonitas para os homens.
O guarda disse isso sem hesitar, como se fosse óbvio e nada ofensivo.
- Minha nossa - Kyan disse no ouvido dela. - Que insolente, não?
Ela concordava.
- Me diga uma coisa... Você acha que eu deveria comprar tinta para os lábios para agradar meu marido quando ele finalmente voltar para mim? - ela perguntou.
- Acho que sim - ele respondeu.
- Esse é meu objetivo como imperatriz, claro. Agradar meu marido e qualquer outro homem que por acaso olhe para mim.
- Sim, vossa graça.
Era a última coisa que ele diria na vida. Amara fincou a adaga que trazia consigo no homem e viu os olhos dele se arregalarem de surpresa e dor.
- Se algum de vocês me desrespeitar - ela disse, lançando um olhar aos outros guardas que a encaravam, surpresos -, vai morrer.
O guarda que havia dito o que não devia caiu no chão. Ela sinalizou para Carlos retirar o corpo, e ele obedeceu sem hesitar.
- Muito bem, pequena imperatriz - Kyan sussurrou. - Você me prova mais seu valor a cada dia que passa.
Amara abriu um sorriso na direção de Mauro, cuja expressão era de medo.
- Estou ansiosa para ir à feira. Parece incrível.
Mais tarde, escoltadas por Mauro e pelos guardas reais, Amara e Nerissa exploraram a feira, composta por vinte bancas cuidadosamente escolhidas que, como o prometido, vendiam, em sua maioria, produtos
fúteis - principalmente itens de beleza e de moda.
Amara ignorou os lenços e vestidos bordados, a tinta para os lábios, os cremes para remover manchas e os bastões de carvão para delinear os olhos e se concentrou nos comerciantes - paelsianos, jovens e
velhos, com expressão cansada, mas esperançosa, quando ela se aproximava.
Sem medo, sem desespero, só esperança.
Que estranho encontrar isso em um reino dominado, ela pensou. Mas a ocupação kraeshiana de Mítica tinha sido, até aquele momento, quase totalmente pacífica, em espacial em Paelsia. Ainda assim, Carlos
havia contado sobre grupos rebeldes que conspiravam contra ela, tanto em Limeros quanto em Auranos.
Não era um problema para Amara. Os rebeldes eram uma praga inevitável, mas que em geral podia ser combatida com facilidade.
Ela observou quando Nerissa se aproximou de uma banca para ver um lenço de seda que o comerciante mostrava a ela.
- Fico feliz em ver que você está se habituando - Kyan sussurrou carinhosamente no ouvido dela. Os ombros de Amara ficaram tensos com a voz dele.
- Estou fazendo o melhor que posso - ela respondeu em voz baixa.
- Infelizmente tenho que deixá-la por um tempo enquanto procuro a magia de que precisamos para realizar o ritual.
Pensar nisso a assustou. Eles tinham acabado de chegar!
- Agora? Vai embora agora?
- Sim. Em breve, retomarei minha glória, e você será mais poderosa do que pensa. Mas precisamos da magia para finalizar isso.
- A magia de Lucia. E seu sangue.
- O sangue dela, sim. Mas não precisamos da feiticeira em si. Vou encontrar uma fonte alternativa de magia. Mas precisaremos de sacrifícios; sangue para selar a magia.
- Compreendo - ela sussurrou. - Quando você volta?
Amara esperou, mas não houve resposta.
Então, ela sentiu sua saia mexer e olhou para baixo. Uma menininha, que não devia ter mais do que quatro ou cinco anos, com cabelo bem preto e sardas no rosto bronzeado, aproximou-se com certa hesitação,
oferecendo uma flor.
Amara aceitou a flor.
- Obrigada.
- É você, não é? - a menina perguntou esbaforida.
- Quem você acha que sou?
- Aquela que veio salvar todos nós.
Amara sorriu e lançou um olhar para Nerissa, que estava ao seu lado usando um lenço colorido, e então sorriu para a criança.
- É o que você acha?
- Foi o que minha mamãe me disse, então deve ser verdade. Você vai matar a bruxa má que machuca nossos amigos.
Uma mulher se aproximou, claramente envergonhada, e pegou a mão da menininha.
- Perdoe-nos, imperatriz. Minha filha não teve a intenção de perturbá-la.
- Não me perturbou - Amara disse. - Sua filha é muito corajosa.
A mulher riu.
- Está mais para teimosa e tola.
Amara balançou a cabeça.
- Não, nunca é cedo demais para as meninas aprenderem a dizer o que pensam. É um hábito que as fará crescer mais corajosas e fortes. Diga, você acredita no que ela disse? Que vim salvar todos vocês?
A expressão da mulher se tornou mais séria, e seu cenho se franziu com preocupação e dúvida. Ela encarou os olhos de Amara.
- Meu povo sofreu por mais de um século. Estávamos sob o comando de um homem que tentou nos fazer acreditar que ele era feiticeiro, cobrando impostos tão altos a ponto que, mesmo com os altos lucros das
vinícolas, não conseguíamos nos sustentar. A terra que chamamos de lar está se desfazendo sob nossos pés enquanto estamos aqui conversando. Quando o rei Gaius venceu Basilius e o rei Corvin, muitos de
nós achamos que ele nos ajudaria. Mas isso não aconteceu. Nada mudou, só piorou.
- Sinto muito em ouvir isso.
A mulher balançou a cabeça.
- Mas então a senhora chegou. Aquela feiticeira má passou por aqui destruindo tudo, vilarejo por vilarejo, mas ela desapareceu quando a senhora chegou. Seus soldados têm sido rigorosos, mas justos. Eles
acabaram com quem discordava, mas essas pessoas não fazem falta: seus detratores são os mesmos homens que espalharam a discórdia em nosso reino depois que o exército de Basilius parou de oferecer a pouca
proteção que oferecia. Então, se acredito, como muitos aqui acreditam, que a senhora chegou para nos salvar? - Ela ergueu o queixo. - Sim, acredito.
Quando os guardas levaram Amara para longe da mulher e da filha, em direção à outra área da feira, aquelas palavras ficaram em sua mente.
- Posso fazer uma sugestão ousada, vossa graça? - Mauro perguntou, e ela olhou para o homenzinho que a seguia como um cão adestrado.
- Claro que pode - ela disse. - A menos que queira sugerir que eu compre tinta para os lábios.
Ele empalideceu.
- De modo algum.
- Então, vá em frente.
- O povo paelsiano está aberto a sua liderança, mas a notícia precisa ser espalhada. Sugiro abrir os portões do complexo para permitir que os novos cidadãos entrem para ouvi-la falar sobre seus planos
para o futuro.
Um discurso, ela pensou. Era algo que Gaius gostaria muito mais de fazer do que ela.
Mas Gaius não estava lá. E agora que tinha o deus do fogo para aconselhá-la sobre como acessar a magia da esfera de água-marinha, não havia mais motivos para deixar o rei viver por muito mais tempo.
- Quando? - ela perguntou a Mauro.
- Posso espalhar a notícia agora mesmo. Milhares virão dos vilarejos vizinhos para ouvi-la. Talvez em uma semana?
- Três dias - ela disse.
- Três dias parece perfeito - ele concordou. - Será maravilhoso. Muitos paelsianos, de braços e coração abertos, estão prontos a obedecer a todas as suas ordens.
Sim, Amara pensou. Um reino pronto para fazer o que ela mandasse sem questionar, que aceitaria uma mulher como líder sem discutir, seria incrivelmente útil.
16
MAGNUS
PAELSIA
Magnus pensou nas doze pessoas que estavam na hospedaria Falcão e Lança, notando que quase metade queria vê-lo morto.
- E você é uma delas, com certeza - ele murmurou quando Nic atravessou a sala, arregalando os olhos ao passar pelo príncipe. Magnus estava sozinho sentado a uma mesa com um caderno de desenho que tinha
encontrado em uma gaveta em seu quarto.
- Cassian, veja - ele disse. - Desenhei você.
Magnus ergueu o caderno. Com os dedos manchados de carvão, ele mostrou uma página na qual tinha desenhado um garoto magro pendurado em uma forca, a língua para fora da boca, X mórbidos no lugar dos olhos.
Nic, que supostamente era muito simpático com todo mundo, lançou um olhar de puro ódio para Magnus.
- Você acha isso engraçado?
- O que foi? Não gostou? Bom, dizem que a arte é subjetiva.
- Você acha que gastar seu tempo rabiscando nesse caderno vai fazer todo mundo considerar você menos ameaçador? Pense bem. Essa pose de inocente e bacana não me engana.
Magnus revirou os olhos.
- Certo - ele disse, enfiando o caderno embaixo do braço. - Mas não posso dizer que você não me magoou. Pensei que tivéssemos nos tornado amigos em Limeros.
Nic semicerrou os olhos, sem achar graça.
- A única coisa que me ajuda a dormir à noite é saber que Cleo sabe muito bem quem você é.
- Espero muito que você esteja certo - Magnus respondeu sem dar muita atenção. Ele nunca tinha deixado as palavras de Nic atingi-lo antes, e não deixaria agora, mas a questão de Cleo era um espinho. -
Acho muito interessante ver que vocês decidiram ficar aqui na cova do leão.
- Talvez você esteja enganado a respeito de quem é o leão e quem é a presa.
Magnus deu risada.
- Conversar com você é sempre muito estimulante, Nic. De verdade. Mas tenho certeza de que tem outros lugares para onde ir, e eu detestaria fazer um cara tão brilhante como você perder tempo. Sem dúvida
já atrapalhei seu próximo compromisso que é... qual é mesmo? Ficar à sombra de Ashur, à espera da maravilhosa atenção dele, agora que conseguiu voltar dos mortos? - Por ter testemunhado a morte de Ashur,
Magnus ainda estava tentando processar a informação de que ele estava vivo. - Muito triste, de verdade, que ninguém veja o que de fato está acontecendo entre o príncipe ressuscitado e o ex-cavalariço.
Foi o suficiente para fazer Nic corar.
- E o que seria, Magnus? O que você acha que está acontecendo?
Magnus fez uma pausa, encarando o olhar incerto de Nic.
- O sabor da decepção amorosa é amargo, não é?
- Imagino que você entenda bem sobre o assunto, não? - Nic rebateu. - Nunca esqueça que Cleo odeia você. Você matou todo mundo que ela ama. Roubou o mundo dela. É uma verdade que nunca vai mudar.
Lançando um último olhar, Nic saiu da sala, deixando Magnus furioso, bufando, com vontade de socar alguma coisa. Ou alguém.
Ele está enganado, ele disse a si mesmo. O passado não determina o presente.
E era no presente que ele tinha que se concentrar. Precisavam encontrar Lucia o mais rápido possível.
Por que esperar mais um dia para minha avó encontrar a pedra mágica?, ele pensou. Eles estavam ali, acovardados como vítimas, quando deveriam estar fazendo o máximo possível para tirar aquela kraeshiana
de suas terras para sempre.
Magnus empurrou o caderno de desenho para o centro da mesa e levantou. Ele ia encontrar a avó e exigir que ela - com ou sem a magia totalmente restaurada - testasse um feitiço para encontrar sua irmã.
- Está sozinho nessa sala enorme?
Ele parou ao ouvir a voz de Cleo. Ela estava na base da escada, observando-o do outro lado da sala enorme.
- Parece que sim - ele diz. - Mais um motivo para você não entrar.
Ela entrou mesmo assim.
- Parece que não conversamos a sós há muito tempo.
- Faz dois dias, princesa.
- Princesa - ela repetiu, mordendo o lábio inferior. - Minha nossa, você está fingindo muito bem. Na verdade, não sei se é só fingimento mesmo.
- Não sei ao certo do que você está falando. - Ele olhou para Cleo como um homem faminto olhava para um banquete. - Esse vestido é novo?
Ela alisou a saia de seda, da cor de um pêssego maduro.
- Olivia e eu fomos a uma feira perto das docas hoje.
- Você e Olivia fizeram o quê? - Ele franziu a testa, assustado por não saber que a princesa tinha decidido se arriscar por aí. - Que péssima ideia. Você poderia ter sido reconhecida.
- Por mais que eu goste de ser repreendida, acho que preciso dizer que ninguém me reconheceu, já que usei meu manto. E não estávamos sozinhas. Enzo e Milo estavam conosco, para nos proteger. Ashur também.
Ele está explorando a cidade para saber o que os paelsianos pensam sobre a notícia da chegada da irmã dele.
- E o que dizem?
- Ashur disse que a maioria parece... disposta a mudar.
- É mesmo?
- Qualquer coisa depois do chefe Basilius seria um progresso. - Ela hesitou. - Bem, à exceção do seu pai, claro.
- Claro. - Magnus não se importava muito com os paelsianos nem com os auranianos, na verdade. Ele só se importava com o fato de Cleo ter saído da hospedaria sem que ele notasse. - Não importa com quem
você saiu, porque ainda assim foi uma péssima ideia.
- Assim como beber até cair toda noite na taverna Videira Púrpura - ela respondeu, meio tensa. - E, no entanto, é o que você faz.
- É diferente.
- Tem razão. O que você faz é muito mais idiota e tolo do que passar o dia explorando uma feira.
- Idiota e tolo - ele repetiu, franzindo a testa. - Duas palavras que nunca foram usadas para me descrever.
- Elas são certeiras - disse Cleo, o tom firme e a testa franzida. - Quando vi você naquela primeira noite com Taran...
O som daquele nome atravessou o espaço entre eles como a lâmina afiada de um machado cortando um tronco de árvore.
- Sei que a presença dele aqui deve ser difícil para você - Magnus comentou, sentindo a garganta apertar. - Aquele rosto... Todas aquelas lembranças horrorosas que ele sugere...
- A única lembrança horrorosa de Taran que tenho é a da lâmina dele pressionada contra sua garganta. - Cleo parou, observando a expressão de Magnus e franzindo mais a testa. - Você entende que, quando
olho para ele, só vejo Theon?
- E como não veria?
- Admito que foi inesperado encontrá-lo. Mas Theon se foi. Sei disso. Já aceitei isso. Taran não é Theon. Mas é uma ameaça.
- Compreendo.
- Compreende? - Cleo continuou a observá-lo concentrada, como se fosse um enigma que ela precisasse decifrar. - Mas você pensou mesmo que eu o veria e esqueceria tudo o que aconteceu desde aquele dia?
Que o ódio que eu sentia por você voltaria a me cegar? Que eu... o quê? Me apaixonaria por Taran Ranus no mesmo instante?
- Parece mesmo um tanto quanto absurdo.
Ela ficou pensativa.
- Bom, Taran é muito bonito. Tirando o fato de querer você morto, o que é, admito, um objetivo que também já tive. Ele seria um pretendente perfeito.
- Deve ser muito divertido me atormentar.
- Muito - ela provocou, abrindo um sorriso discreto, mas levemente triste. Cleo segurou as mãos dele, e a sensação de sua pele quente junto à dele foi como um bálsamo numa ferida dolorosa. - Nada mudou
entre nós, Magnus. Saiba disso.
As palavras dela confortaram sua alma atormentada.
- Fico muito feliz em saber disso. Quando pretende contar aos outros?
No mesmo instante, a expressão dela ficou tensa.
- Não é o momento. Há muita coisa em risco agora.
- Nic é a pessoa mais próxima de você, seu amigo mais querido, e ele me odeia.
- Ele ainda vê você como um inimigo. Mas, um dia, sei que vai mudar de ideia.
- E se não mudar? - Ele a encarou nos olhos. - O que vamos fazer?
- Como assim?
- Escolhas, princesa. A vida parece cheia delas.
- Você está pedindo para que eu escolha entre você e Nic?
- Se ele se recusar a aceitar... isso, o que quer que seja, princesa, então acho que você teria que escolher.
- E você? - ela finalmente perguntou depois de um longo momento de silêncio. - Quem você escolheria se alguém ou algo o forçasse? Eu? Ou Lucia? Sei muito bem que ela foi seu primeiro amor. Talvez você
ainda a ame como antes.
Magnus grunhiu.
- Garanto a você que não existe nenhum sentimento dessa natureza entre mim e Lucia. E no que diz respeito a ela, nunca existiu.
Seu coração tinha feito tanto progresso nos últimos meses que ele se perguntava se ainda era a mesma pessoa que tinha sofrido de amor por sua irmã adotiva. Apesar de ter assumido uma forma diferente, aquele
amor ainda estava ali, dentro dele. Não importava o que Lucia pudesse fazer ou dizer, Magnus a amava incondicionalmente e estava pronto para perdoá-la por qualquer erro.
Mas o desejo que ele já sentira por sua irmã... seu coração tinha se voltado total e permanentemente para outra pessoa - alguém muito mais frustrante e perigosa do que sua irmã adotiva.
- Afinal, Lucia escolheu fugir com o tutor. - Cleo relembrou.
Ele franziu os lábios.
- Sim, e agora o destino do mundo depende da localização dela. - Cleo olhou para ele duvidosa. - O que foi, princesa? - ele perguntou. - Está em dúvida?
- Eu... - Cleo começou a falar, e então parou e olhou para os próprios pés, como se estivesse refletindo sobre o assunto. - Magnus, só não tenho certeza de que ela seja a única solução com a qual você
parece contar.
- Ela tem ligações com o deus do fogo. Acredito que saiba como extrair a magia dos cristais da Tétrade sem permitir que o deus elementar escape.
- Parece que foi ela quem ajudou Kyan a escapar, se estão viajando juntos. Só pode ser.
- Talvez. Mas a magia dela é ampla.
- Ampla o suficiente para matar todos nós.
- Você está enganada - Magnus disse sem hesitar. - Ela não faria isso. Lucia vai nos ajudar, vai ajudar a todos. - Sempre que falava bem de Lucia, ele percebia que Cleo contraía os lábios e franzia a testa
como se estivesse comendo alguma coisa amarga.
Será que ela poderia estar com ciúme do que sinto por Lucia?, ele se perguntou, achando graça.
- Vejo que você fica feliz quando pensa em sua irmã adotiva - ela comentou tensa, em um tom desagradável. - Tenho certeza de que pensar nela é uma ótima válvula de escape para você enquanto estamos presos
aqui em Paelsia, cercados por rebeldes que adorariam a oportunidade de incendiar esta hospedaria com toda a realeza dentro.
- É esse o plano abominável de Agallon? - ele perguntou, contraindo os lábios e franzindo a testa. - O que mais ele contou na calada da noite desde que chegou?
- Muito pouco, na verdade.
Magnus deu um passo na direção dela. Cleo deu um passo para trás: a dança na qual se envolviam de vez em quando. Os dois continuaram até ele encurralá-la em um canto, e ela lançar um olhar desafiador.
- Talvez você preferisse dividir um quarto com o rebelde do que comigo - ele disse, enrolando uma mecha do cabelo dela no dedo. - Mas ele provavelmente preferiria uma casa na árvore feita de tábuas e barro.
Cleo riu.
- É nisso que está decidindo se concentrar agora?
- Sim. Porque se me concentrar em Agallon, posso parar de pensar em você e em como quero levá-la para a minha cama.
Ela só teve tempo de soltar um breve suspiro antes de Magnus beijá-la, segurando-a pela cintura e puxando-a para si. Cleo retribuiu sem limitações.
As mãos dele deslizaram pelo corpo da princesa, passando pela lombar, chegando à curva de seu quadril. Desesperado para se inclinar e beijá-la direito, ele pegou suas pernas por trás e a levantou, pressionando
suas costas contra a parede.
Sim, ela deveria fazê-lo parar naquele momento.
Mas não foi o que aconteceu. Na verdade, Cleo tinha começado a puxar os cordões da camisa dele, sem afastar seus lábios nem por um segundo.
- Quero você - ele sussurrou enquanto a beijava. - Quero tanto você que posso morrer de desejo.
- Sim... - O hálito dela era doce e quente. - Também quero você.
Quando Magnus a beijou, toda a racionalidade sobre a maldição desapareceu de sua mente. Nada mais existia, só a necessidade enlouquecedora e alucinante de tocá-la, de senti-la...
Pelo menos, até ouvir passos de alguém se aproximando por trás.
Foi nesse momento que Magnus percebeu que não estavam mais sozinhos.
Deixando a princesa de volta ao chão, devagar, Magnus se forçou a se afastar e, com os ombros tensos, enfrentar o intruso.
Apesar de sua altura intimidadora e dos músculos avantajados, Felix Gaebras parecia envergonhado.
- Hum... Desculpe interromper. Eu estava... só passando. - Mas ficou parado onde estava, e então, ergueu o queixo. - Perdoe-me por dizer, vossa alteza - ele disse, olhando para Magnus -, mas talvez seja
melhor o senhor ser mais discreto com a princesa de agora em diante.
- É mesmo? - Magnus perguntou.
Felix assentiu.
- Nic convenceu a todos do seu ódio por Magnus, princesa. E isso... não me pareceu uma atitude de ódio. Ele vai enlouquecer.
Cleo se afastou de Magnus, os dedos nos lábios e o rosto corado.
- Por favor, Felix - ela disse, quase desesperada. - Prometa que não vai contar nada a Nic sobre isso. Nunca.
Felix fez uma reverência.
- Não se preocupe, princesa. Não direi nada.
- Obrigada.
Magnus disfarçou a careta. Algo no modo como ela falou, no alívio que pareceu sentir por ter sido Felix quem os vira juntos e não alguém cuja opinião considerasse mais importante, o incomodou demais.
Se Ashur podia buscar informações sobre Amara, Magnus também podia. Naquela tarde, ele deixou a hospedaria, subiu a rua até a feira que Cleo havia mencionado e passou na porta da tentadora Videira Púrpura.
Na feira, ele mal olhou para as bancas de madeira com lonas coloridas protegendo os comerciantes do sol, cada um vendendo um produto paelsiano diferente - de vinho a joias, de frutas e legumes a lenços
e túnicas de todas as cores, e diversas outras mercadorias. No movimentado labirinto de bancas, sentia-se o cheiro adocicado das frutas e da carne defumada, e mais perto das docas, o cheiro de suor e vômito
pegou as narinas de Magnus de surpresa. Entre os diversos clientes da feira, incluindo a tripulação de navios e os cidadãos comuns da cidade, vários guardas kraeshianos chamaram sua atenção.
Ele observou um dos homens de Amara conversar com um vendedor de vinho paelsiano que lhe ofereceu um pouco da bebida. O copo de madeira não foi oferecido com mãos trêmulas nem medo nos olhos do vendedor,
mas com um sorriso.
Para Magnus, era irritante ver que muitos paelsianos aceitavam o destino de se tornar parte do Império Kraeshiano sem se preocupar com nada. Será que as coisas estavam tão ruins antes que pensar em Amara
como nova líder era uma dádiva?
Ele continuou a observar essa dinâmica entre paelsianos e kraeshianos até o sol ficar alto e insuportavelmente quente para continuar com o manto com capuz. Como já havia tido contato com paisagens, sons
e cheiros bons e ruins da feira de Basilia, decidiu voltar.
Magnus virou na direção da hospedaria e descobriu que havia alguém em seu caminho.
Taran Ranus.
O príncipe se forçou a não deixar claro que encontrar o gêmeo de Theon - alguém que quase tinha conseguido vingar o assassinato de seu irmão - o tinha assustado. Mas antes que Magnus decidisse o que dizer,
Taran tomou a liberdade de falar.
- Estou curioso - ele disse em voz baixa. - Quantas pessoas você matou?
- Essa pergunta é muito pessoal para um lugar tão público.
Taran continuou, sem se deixar abater.
- Sabemos que matou meu irmão. Quem mais?
Magnus tentou não se encolher, tentou não levar a mão ao cabo da espada. A espada de Taran também estava visível, pendurada no quadril.
- Não sei ao certo - admitiu.
- Aceito uma estimativa.
- Muito bem. Talvez... uma dúzia.
Taran assentiu, sem deixar sua expressão revelar o que passava em sua mente quando olhou para a feira movimentada ao redor deles.
- Quantas pessoas você acha que eu matei?
- Mais de uma dúzia, tenho certeza - Magnus respondeu. Ele contraiu os lábios. - Por quê? Está aqui para me provocar com suas habilidades com a espada? Para contar histórias de como fez homens maus chorarem
chamando pela mãe diante da morte? Que mataria mais mil se isso fizesse o sol brilhar e a felicidade imperar nesse mundo?
Taran observou Magnus, semicerrando os olhos. Para alguém que quase tinha posto a hospedaria a baixo em uma noite para tentar cortar o pescoço de Magnus, ele parecia bem calmo naquele dia.
- Você se arrepende de ter matado meu irmão? - ele finalmente perguntou, ignorando as perguntas de Magnus.
Magnus pensou em mentir, sem saber se deveria fingir arrependimento. Mas sua intuição lhe disse que não conseguiria enganar o gêmeo de Theon.
- Não - ele afirmou com o máximo de confiança que conseguiu. - Minha vida estava em risco. Tive que me proteger de alguém muito mais habilidoso com a espada do que eu era na época, por isso agi. Não posso
dizer que me arrependo de ter tomado as medidas necessárias para salvar minha vida, apesar de saber que hoje não faria as escolhas que fiz naquele momento.
- Qual escolha faria hoje?
- Combate direto. Minhas habilidades de luta melhoraram muito no último ano.
Taran assentiu, mas seu rosto não deixou transparecer nada.
- Meu irmão teria vencido você.
- Talvez - Magnus disse. - Mas e daí? Imagino que você esteja aqui para tentar me matar diante dessas pessoas. É isso? Ou estamos só conversando?
- Foi exatamente para isso que o segui até aqui: quero decidir o que fazer. Antes era muito simples, estava muito claro em minha mente que você tinha que morrer.
- E agora?
Taran puxou a espada da bainha, mas só o suficiente para mostrar a lâmina que trazia uma série de símbolos e palavras desconhecidas gravadas na superfície.
- Essa era a arma de minha mãe. Ela me contou que as palavras gravadas estão na língua dos imortais.
- Interessante - Magnus disse, o corpo tenso e pronto para a luta. - Sua mãe era bruxa?
- Sim. Ela era uma Vetusta, uma bruxa que adorava os elementos com magia de sangue e sacrifício.
- Tenho certeza de que você está me contando isso por um motivo.
- Estou. Pedi para você adivinhar quantas pessoas eu matei. - Taran embainhou a espada. - A resposta é uma. Apenas uma.
Uma gota de suor correu pelas costas de Magnus.
- Sua mãe.
Taran assentiu com seriedade.
- As Vetustas acreditam que os gêmeos têm uma magia poderosa. - Ele balançou a cabeça, franzindo a testa. - Existe uma lenda quase esquecida que diz que os primeiros imortais criados foram os gêmeos: um
escuro e um claro. Minha mãe acreditava que a magia sombria era muito mais poderosa, então, para aumentar a dela, decidiu sacrificar o gêmeo claro.
- Theon.
- Na verdade, não. Fui eu, cinco anos atrás, quando tinha quinze anos. Talvez minha mãe achasse que eu fosse permitir que ela usasse essa mesma espada para me matar, mas estava enganada. Eu reagi e a matei.
Theon chegou naquele momento e me viu empunhando uma espada e nossa mãe morta a meus pés. Ele não sabia o que ela era de verdade. Eu mesmo só descobri a verdade recentemente. Ele jurou que eu pagaria com
a vida por tê-la matado, e eu sabia que ele nunca compreenderia. Então corri o máximo que pude, sem olhar para trás. Até agora. - Ele riu, e o som saiu seco e oco. - Parece que temos isto em comum: nós
dois fomos forçados a matar para nos proteger, uma atitude da qual não podemos nos arrepender, porque, sem ela, não estaríamos vivos hoje.
Magnus não sabia o que dizer. A confissão de Taran o deixou sem fala. Ele se concentrou na movimentação da feira, fechando os olhos com força por um momento.
Quando voltou a abri-los, Taran se afastava dele em meio à multidão. Ele o observou à distância, pensando na conversa e sentindo-se grato por não ter tido que lutar para defender a própria vida naquele
dia.
Quando voltaram para a hospedaria, Jonas estava na sala de convivência, como se os estivesse esperando. Ele levantou da cadeira e largou o livro que estava lendo. Magnus notou com surpresa que era o mesmo
que tinha lido, sobre vinhos.
- Taran, precisamos conversar - Jonas anunciou. - No pátio não seremos ouvidos por bisbilhoteiros. Felix já está esperando. Você também, vossa alteza.
Magnus inclinou a cabeça.
- Eu?
- Foi o que eu disse.
- Agora estou profundamente confuso. Muito bem. Vamos lá, rebelde.
Atrás da casa havia um espaço a céu aberto que o dono da hospedaria e sua esposa chamavam de pátio. Na verdade, era uma área de grama marcada por uma horta, flores e dois cercados para os animais - um
para as galinhas e outro para os porcos gordos que guinchavam alto quando alguém se aproximava.
Magnus e Taran acompanharam Jonas até onde Felix estava, no canto oposto do jardim.
- Temos informação sobre Amara - Jonas disse finalmente. - Ela está aqui em Paelsia.
Magnus tentou não demonstrar insatisfação.
- Informação vinda de quem?
- Há rebeldes por todos os lados, alteza.
O primeiro ímpeto de Magnus foi querer lembrar Jonas que a maioria dos rebeldes havia morrido, mas decidiu se controlar.
- Muito bem. Onde em Paelsia?
- No complexo do chefe Basilius.
- E onde, exatamente, é isso?
- A um dia de viagem daqui rumo ao sudeste. Fico surpreso por você não saber, já que é um ponto importante na Estrada de Sangue de seu pai.
- Estrada Imperial - Magnus o corrigiu.
- Estrada de Sangue - Jonas repetiu, rangendo os dentes.
Magnus decidiu não discutir a questão com um paelsiano, nem tocar no assunto de como ela tinha sido construída tão depressa pelos trabalhadores paelsianos sob ordens de seu pai. Não era à toa que os cidadãos
daquele reino tinham recebido Amara tão bem.
- E esse informante também explicou por que ela veio para cá?
- Não.
- Não importa por que ela está aqui - Felix disse. - Essa é nossa chance.
- De quê? - Magnus perguntou. - De matá-la?
- Essa era a ideia.
- Não era, não - Jonas disse, arregalando os olhos para o amigo.
- Matar a imperatriz não muda o fato de que meu pai deu este reino para a família dela. Não muda que os soldados estão tão espalhados quanto manchas de lama. E Ashur? Você o trouxe aqui como se confiasse
nele, mas não sabemos qual é o plano dele.
- Ashur é um problema, admito - disse Jonas. - Nic está de olho nele, informando qualquer comportamento incomum.
- Ah, sim. - Magnus cruzou os braços. - Isso deve dar certo. Então, você - ele virou para Felix - quer matar a imperatriz. E você - ele virou para Jonas - quer pagar para ver. - Ele assentiu. - Excelentes
decisões. Acho que Amara não terá chance contra essa aliança.
Jonas hesitou.
- Taran, você não planejava matá-lo?
- Sim.
- Estou começando a me animar com essa possibilidade.
- Está claro que - Magnus começou -, se sabemos onde Amara está, a melhor estratégia é mandar homens para obter mais informações sobre os planos atuais dela, por que está aqui e onde escondeu o cristal
da água.
Taran resmungou.
- Odeio concordar com ele, mas concordo. Posso ir. Não tenho motivos para ficar aqui sem nada para fazer, olhando para as paredes.
- Também vou - Felix anunciou animado.
Jonas lançou um olhar cauteloso para Felix.
- Você acha que consegue lidar com isso sem fazer nada de errado?
- Claro que não. Mas ainda assim, quero ir. - Felix suspirou. - Prometo que vamos conseguir informações. E só isso.
Magnus preferia entrar em ação, como Felix, e simplesmente varrer Amara do mundo, mas sabia que informações seriam úteis com os dois reinos em guerra.
- Devemos contar a Cleo sobre isso? Ou a Cassian?
- Por enquanto, não - Jonas respondeu. - Quanto menos pessoas souberem, melhor.
Magnus não gostava de guardar segredos de Cleo, mas Jonas tinha razão.
- Tudo bem. Vamos manter esse assunto entre nós quatro.
Jonas assentiu.
- Então, resolvido. Taran e Felix partem amanhã cedo.
17
CLEO
PAELSIA
- Você viu o príncipe Ashur por aí? - Nic perguntou.
Cleo desviou o olhar do livro sobre a vida do chefe Basilius que tinha escolhido na estante do andar de baixo. Seus pensamentos estavam tão dispersos que ela devia ter lido a mesma página dez vezes - que
contava sobre os cinco casamentos dele.
Nic estava parado na porta do quarto dela. Enzo estava de guarda do lado de fora, um protetor constante, mas ela tinha deixado claro que Nic podia interrompê-la.
- Hoje não - ela admitiu, ainda chocada por ter visto que o príncipe tinha renascido dos mortos. - Por quê? Isso é estranho?
- Ele gosta de sair por aí sem avisar ninguém. - Ele ficou sério. - Você acha que ele está diferente? Não sei dizer.
- Para mim, ele está igual, mas não o conheço muito bem - ela admitiu.
- Nem eu.
- Ah, não sei. Às vezes não precisamos de anos para conhecer alguém. Algumas conversas são mais do que suficientes para saber como a pessoa é.
- Se você acha...
Cleo sabia que Nic e Ashur eram bem próximos, a ponto de seu amigo ter sentido muito a perda do príncipe. E também sabia que existia mais do que uma simples amizade entre os dois, mas emoções que os dois
estavam apenas começando a explorar. Talvez agora nunca mais se resolvessem.
- Parece que Taran e Felix também sumiram - ela disse. - Onde eles estão?
- Ótima pergunta. Pensei que Jonas fosse meu parceiro, mas parece que ele tem negócios com Magnus agora.
- O quê? - Só de pensar, ela sentiu vontade de rir. - Se você viu os dois conversando, é bem provável que o assunto seja o rei.
Desde que Jonas conseguira - ainda que não tenha conseguido - cravar a adaga no peito do rei, dois dias antes, Gaius não saía do quarto, com a mãe a seu lado o tempo todo, temendo que o filho estivesse
perto demais da morte e não sobrevivesse tempo suficiente para receber a magia secreta e restauradora que ela prometera.
Cleo temia que, se o rei morresse antes de a bruxa encontrar Lucia, ela se recusaria a ajudá-los, mas não se incomodava em imaginá-lo sofrendo em um quartinho em Paelsia.
Um fim adequado para um monstro.
Como será que Gaius Damora era quando conheceu a mãe dela? A que horrores ele teria submetido Elena Corso? Era uma pergunta que a perseguia desde que ele dissera o nome dela.
- Você confia nele? - A voz de Nic interrompeu seus pensamentos.
- Em quem? Magnus?
Ele riu.
- Não, claro que não estou falando de Magnus. Em Jonas.
Ela confiava em Jonas, o garoto que a tinha sequestrado e aprisionado - não uma, mas duas vezes - e que, em determinado momento, quis que ela morresse por presenciar o assassinato de seu irmão?
Mas também era o garoto que se tornara um líder. Que lutara por seu povo. O garoto que tinha arriscado a própria vida para salvar a dela.
- Confio nele, sim - ela admitiu.
Muita coisa podia mudar em um único ano.
- Eu também - Nic disse.
Ela assentiu.
- Se ele está falando com Magnus, deve ser importante.
- Ainda assim, não gosto de pensar que esteja escondendo alguma coisa de nós.
Cleo também não gostava, principalmente se fosse um segredo entre Jonas e Magnus. E jurou que conseguiria algumas respostas. Ela não gostava de ficar por fora das questões.
Naquele mesmo dia, a chance apareceu. Quando Magnus pediu para falar com Enzo no pátio, ela começou a procurar informações por conta própria na hospedaria. Logo encontrou algo possivelmente interessante
na sala de convivência: o caderno de desenho de Magnus.
Cleo já tinha visto Magnus desenhando nele, os dedos pretos por causa do carvão. Os limerianos não gostavam tanto de arte quanto os auranianos, que viam a beleza como um presente que o artista compartilhava
com o mundo por meio de sua visão singular. Mas quando um limeriano desenhava, precisava ser bem semelhante ao original para ajudar na referência e no aprendizado.
Para isso, Magnus tinha passado um verão tendo aulas de arte na Ilha de Lukas muitos anos antes, uma viagem que muitos nobres e jovens da realeza - incluindo a mãe e a irmã de Cleo - faziam na juventude.
Ela já tinha visto o antigo caderno de Magnus, no qual havia desenhos incrivelmente detalhados da flora e da fauna... além de vários retratos de Lucia, cada um feito com admiração indiscutível e atenção
a cada centímetro do rosto perfeito da irmã.
Mas aquele era um caderno novo, o que deixou Cleo extremamente intrigada.
- Eu não devia olhar - ela disse a si mesma. - Magnus não me deu permissão.
Mas esse argumento nunca tinha funcionado.
O primeiro desenho era do jardim, um rascunho rápido, mas as dimensões e a precisão eram espantosas. Antes de abandonar aquele desenho, ele tinha se concentrado no detalhe de uma roseira, e mesmo com o
traço grosso do carvão, tinha capturado a beleza em tons de preto e cinza.
A segunda, a terceira e a quarta páginas tinham sido arrancadas sem cuidado.
Na quinta página, não havia um desenho, mas uma mensagem.
Espiando para encontrar um retrato seu, princesa? Desculpe, mas hoje não. Talvez um dia eu desenhe você. Ou talvez não. Vamos ver o que o futuro nos reserva.
M.
Cleo fechou o caderno envergonhada, e também irritada.
Quando ouviu gritos, correu para as janelas com cortinas de lona grossa que davam para o pátio nos fundos da hospedaria.
O príncipe estava empunhando a espada, mirando em Milo e Enzo, que também seguravam suas armas. Quando atacaram, Cleo soltou um grito de susto antes de perceber o que estava acontecendo.
Eles estavam treinando. E a julgar pela força de ataque de Milo e de Enzo, Magnus tinha pedido para os dois darem o melhor de si.
Será que ela nunca tinha visto Magnus assim antes, em guarda, a testa suada, bloqueando as armas dos guardas com a espada? Ela pensou que aquilo podia trazer lembranças horrorosas daquele dia - do dia
em que perdera Theon. Mas naquela visão Magnus era um príncipe sem habilidade comparado a um guarda do palácio, e ele sabia disso.
Sinto muito, Theon, ela pensou, o coração apertado. Não esperava sentir isso por Magnus. Mas sinto. Não posso mais me apegar à sua lembrança. Não posso odiar o príncipe pelo que aconteceu, pelo que ele
fez naquele dia. Magnus está muito diferente agora.
Ou talvez Cleo tivesse mudado irreversivelmente.
- Na minha opinião, não estão lutando tanto quanto deveriam.
Cleo se assustou com a voz de Jonas. Ela o viu a seu lado, escondido até aquele momento, com os olhos arregalados.
- Está surpresa? - ele perguntou, achando graça.
- Você se aproximar de alguém em uma sala escura com certeza não é uma surpresa, rebelde.
Jonas sorriu, mas voltou a observar o trio do lado de fora.
- Será que o príncipe estaria disposto a me enfrentar?
- Se estivesse, certamente um de vocês acabaria morto.
- Sim, mas quem? - Sua sobrancelha, que estava arqueada, abaixou quando ele viu a expressão sofrida dela. - Em pouco tempo você estará livre desse acordo infeliz com ele, prometo.
Cleo conteve a resposta, tomando cuidado para não defender o príncipe. Ela ainda achava que era melhor ninguém saber a verdade sobre eles.
- Magnus, o rei e Selia são o caminho para as respostas de que preciso para liberar a magia da Tétrade - ela comentou.
- Eu já disse: tem um deus elementar dentro daquele cristal - ele falou de modo incisivo.
Seu tom de voz a fez se encolher. Depois que descobriu sobre os deuses elementares, dois dias antes, ela não conseguia parar de pensar no assunto e mal tinha pregado os olhos devido à gravidade da situação.
- Se tivermos a oportunidade de aproveitar essa magia sem deixar o deus escapar, ainda acho que é um objetivo que vale a pena buscar. Vamos perder muito se não conseguirmos esse poder para nos ajudar de
alguma forma, ainda que seja pouco.
Quando ela encarou Jonas, viu uma expressão séria, mas os olhos mais tranquilos.
- Não discordo totalmente.
Ela hesitou, mas só por um momento.
- É bom que saiba que, de acordo com Nic, você está escondendo dele a localização de Taran e Felix. Ele está bastante irritado com isso.
- Comecei a acreditar que o príncipe Ashur é tão mau quanto a irmã. Nic o conhece, mas não diz nada útil a respeito do que esperar dele. Gosto de Nic, mas não conto nenhum segredo que ele possa acidentalmente
revelar ao príncipe.
Outra pessoa entrou na sala e chamou a atenção de Cleo. Era Ashur, poucos metros atrás de Jonas.
- Jonas... - ela começou.
- Ashur diz que é um herói lendário renascido dos mortos para trazer paz ao mundo. Um monte de besteira. Ele não passa de mais um membro mimado da realeza criado com todas as regalias possíveis que só
precisa estalar os dedos para ter qualquer mulher linda que desejar. - Jonas franziu a testa. - Admito que isso seria uma vantagem.
Cleo limpou a garganta quando Ashur cruzou os braços diante do peito e inclinou a cabeça.
- Acho que você deveria... - ela começou.
- O quê? Falar com gentileza sobre alguém que confunde todo mundo porque está confuso em relação à irmã má e gananciosa que provavelmente vai destruir o mundo com sua sede por poder e magia? Ele poderia
tirar o poder dela com facilidade. Poderia se impor, reclamar o título de imperador, contar para todo mundo que Amara matou a família deles. Pronto.
Ela sentia uma pontada no peito a cada palavra verdadeira, mas mordaz, que Jonas dizia.
- Pode ter certeza de que não fico confuso quando se trata de Amara - Ashur disse em voz baixa.
Jonas fez uma careta.
- Você poderia ter me dito que ele estava bem atrás de mim, princesa.
- Você estava ocupado demais admirando o som da própria voz. - E, para ser sincera, as reclamações de Jonas sobre Ashur tinham reacendido a irritação que ela mesma sentia em relação ao príncipe kraeshiano.
Não, não era irritação. Era raiva, beirando a fúria.
- Espero que não esteja confuso em relação a sua irmã - Cleo falou para Ashur. - Ela cravou uma adaga em seu peito por tê-la contrariado.
- As últimas atitudes de Amara foram infelizes, mas eu já sabia que ela estava tomando esse rumo. Na verdade, culpo minha avó por colocar seus próprios planos de revolução em ação. É irônico que minha
madhosha derrube aqueles que também querem mudança no império. Ela tem muito mais em comum com os rebeldes do que pensa.
Cleo ficou olhando para ele, enojada.
- Infelizes... Você chama as escolhas de Amara de infelizes? Ela matou você, matou a própria família, e agora está matando todos os míticos que vê pela frente!
- Ela perdeu as estribeiras. A irmã que conheço, que eu conhecia, não resolve seus problemas com violência desnecessária.
- Sim, claro, os kraeshianos são conhecidos como um povo pacífico.
Ashur a observou atentamente.
- Você está infeliz comigo.
Ela olhou para Jonas e riu um pouco.
- Príncipe Ashur, por que eu estaria infeliz com você?
- Você é como Jonas. Não confia em mim.
- E deveríamos confiar? - Jonas perguntou. - Você não me conta nenhum de seus planos, desaparece por dias, fica isolado... Acha que eu deveria confiar em você mesmo assim?
- Você poderia tirar o trono de Amara - Cleo disse. - Se está tão interessado em ajudar o mundo, pode acabar com muito sofrimento simplesmente tornando-se imperador. Você é mais velho do que Amara. O trono
é seu por direito. Tem tanto medo dela assim?
Ashur riu com frieza ao ouvir aquilo.
- Não tenho medo de Amara.
- Teve medo suficiente para, supostamente, tomar uma poção para salvar sua vida - Jonas disse. - Sabia que ela planejava matá-lo?
O belo rosto de Ashur ficou sério.
- Eu não sabia. Não com certeza. E a poção que tomei... foi bem antes de minha viagem para, acima de tudo, me proteger do rei Gaius, caso ele tentasse usar minha presença em seu reino contra meu pai. Eu
nem imaginava que a poção funcionaria.
- Mas funcionou - Jonas disse. - Precisamos encontrar esse boticário ou essa bruxa ou quem quer que a tenha feito. Poções de ressurreição para todos. Magia assim poderia salvar muita gente.
- A magia da morte não é algo que se possa alterar - Ashur rebateu. - Não por qualquer motivo.
- Mas você alterou essa magia sombria para se salvar. - Cleo teve certeza de que o príncipe se encolheu diante da acusação, o que era incomum para ele. - Você se sente culpado por isso?
- Claro que não. - Apesar da resposta, Ashur não fez contato visual com ela.
- Chega de mentiras, Ashur. Se está tentando dar a impressão de que estamos todos do mesmo lado, precisa ser sincero conosco. Há mais coisas envolvidas nessa poção do que você quer revelar. Ela é perigosa,
não é?
- Muitas poções são perigosas. O veneno nada mais é do que uma poção com a intenção de matar.
Cleo inspirou e soltou o ar devagar, com a sensação de que estava prestes a descobrir um segredo.
- Aprendi que toda magia tem um preço. Que preço você pagou pela oportunidade de viver de novo?
- Aprendi que o preço da magia costuma ser o oposto da magia em si. Para ter muita força, você viverá momentos de grande fraqueza. Para ter prazer, haverá dor. E para ter vida... haverá morte.
- Então você matou alguém - Jonas disse, os braços cruzados e tensos. - Ou muitas pessoas. Acaba aqui o que você diz sobre altruísmo.
Ashur caminhou até a janela para olhar para fora, os braços cruzados.
- Você não sabe nada sobre mim, Jonas. Matei quando precisei. Nem sempre sou pacifista. O boticário me alertou do preço que eu teria que pagar, mas não acreditei. Amara pagou o mesmo preço, mesmo sem querer,
quando a ressuscitaram.
Cleo franziu a testa.
- Amara foi ressuscitada?
- Foi - Ashur respondeu solenemente, e então começou a contar para Cleo e Jonas o que tinha acontecido quando Amara era bebê e tinha sido salva de um afogamento pela magia negra e pelo sacrifício de sua
mãe.
Cleo percebeu que precisava sentar, pois tinha ficado abalada com a história. Em Auranos - e em Mítica -, apesar de serem valorizadas pela habilidade que tinham como mães, cozinheiras e enfermeiras, as
mulheres não eram impedidas de fazer outras coisas, se assim desejassem. E uma princesa podia ser a herdeira do trono do pai ou da mãe sem medo de ser assassinada apenas pelo suposto crime de ser uma mulher.
Cleo não sabia se admirava a mãe de Amara por valorizar a vida da filha o suficiente para sacrificar a própria vida ou se culpava a mulher por sua filha ter se tornado um monstro.
- Quem morreu por você? - Cleo perguntou em voz baixa.
O olhar distante de Ashur ficou sério, e antes de continuar, ele lançou um rápido olhar para Jonas.
- Eu não tinha certeza, mas sabia que alguém tinha morrido. Passei o mês tentando descobrir. Viajei, visitei amigos e ex-amantes. Foi alguém com quem passei um único verão. Eu não fazia ideia de que ele
ainda gostava de mim, de que nunca havia deixado de gostar... - Ele engoliu em seco. - De todas as pessoas que conheci, alguém que conviveu comigo apenas por alguns meses me amou tanto a ponto de morrer
por esse amor. Não consigo entender. Eu sabia o preço, mas o ignorei por egoísmo. Soube que ele sofreu por vários dias. Ele descreveu a dor como uma faca sendo cravada lentamente em seu peito. Me disseram
que nos últimos momentos, ele gritou meu nome. - Ashur ficou com os olhos azul-acinzentados marejados e respirou fundo. - A culpa que sinto pelo sofrimento, pela morte dele e pelo fato de eu ter apagado
qualquer chance que ele tinha de ter uma vida plena e feliz... isso vai me assombrar para sempre.
A sala ficou em silêncio enquanto Cleo tentava processar o que estava ouvindo. Aquele Ashur parecia mais o homem sincero que tinha oferecido, na noite de seu casamento, uma adaga nupcial kraeshiana para
tirar a vida da noiva infeliz ou de seu marido. Aquele Ashur não estava falando coisas confusas para desviar a atenção de seu sofrimento.
Mas, naquele momento, uma ideia lhe ocorreu.
- É por isso que você anda tão estranho com Nic - ela disse. - Ele não entende, acha que você está diferente, que seus sentimentos por ele mudaram, por tudo. Mas ele está enganado, não está?
Ashur não respondeu, mas olhou para baixo.
- Você teme que ele se apaixone por você e que você o machuque por causa desse amor.
Jonas ficou em silêncio, a testa franzida. Cleo esperava que ele não dissesse nada que fizesse o príncipe omitir a verdade.
- Eu tinha outros planos na ida a Auranos - Ashur disse finalmente. - Não queria que nada disso tivesse acontecido. Mas alguma coisa em Nicolo chamou minha atenção e eu não pude ignorar. Sei que deveria
ter ignorado. Só consegui complicar a vida dele e causar dor desnecessária. Mas agora não vou permitir que nada de ruim aconteça com ele por cometer o erro de gostar de mim.
- Nic merece uma explicação - Cleo disse, com um nó na garganta.
- É melhor que ele pense que meus sentimentos mudaram. - Ashur limpou a garganta. - Se me dão licença, acho que já revelei mais do que pretendia.
Cleo não disse nada para impedi-lo de sair. Ela estava pensando em muitas coisas ao mesmo tempo; algumas se conectavam, mas a maioria só aumentava sua confusão.
Por fim, ela olhou para Jonas.
- Então... - ele disse, ainda franzindo a testa. - Nic e Ashur, certo?
Ela assentiu devagar.
- Estranho... Pensei que Nic gostasse de garotas. De você, em especial. Não costumo me enganar com essas coisas.
- Você não está enganado. Ele gosta de garotas.
- Mas Ashur... - ele olhou para a porta - não é uma garota.
- Não fique pensando sobre isso, rebelde. Pode fundir seu cérebro. Saiba apenas que é complicado.
- E todas as coisas não são complicadas? - Jonas sentou ao lado dela. - Agora que conheço o segredo de Ashur e sei que não se trata de uma ameaça pessoal a você nem a mim, preciso me concentrar em pegar
a esfera que o rei escondeu. Você acha que está aqui na hospedaria?
- Nem imagino. Gostaria de saber. Eu ia dizer que... para liberar a magia precisamos do sangue de Lucia e do sangue de um Vigilante.
Surpreso, ele a encarou.
- Esse é o segredo?
Cleo assentiu.
- Isso impede o deus de sair?
- Não sei. Por isso é tão importante encontrarmos Lucia, descobrir mais informações com ela e o que deu errado com Kyan.
Os olhos castanhos de Jonas pareciam distantes.
- A profecia...
- O quê? - Cleo perguntou quando ele ficou em silêncio.
Ele balançou a cabeça.
- Deixa para lá. Conto mais quando descobrir se é verdade ou não.
- O problema é que não sei como encontrar um Vigilante. - Ela mordeu o lábio. - Claro que ainda deve haver alguns Vigilantes exilados vivos, mas acho que precisa ser um Vigilante pleno. Espero que Lucia
se disponha a ajudar quando chegar o momento.
- Não se preocupe em encontrar um Vigilante. - Ele ficou em silêncio por um momento. - Essa parte eu resolvo.
Ela olhou para ele, surpresa.
- Como?
- Olivia - ele sussurrou. - Ela é.
Cleo ficou boquiaberta.
- Você não pode estar falando sério.
- É outro segredo, mas vou confiar que você não vai contar a ninguém. - Jonas abriu o meio sorriso que ela sempre achou charmoso e frustrante, ao mesmo tempo. - Muita coisa foi sacrificada nesse caminho
que percorremos juntos. Muita perda para nós dois. Mas tento acreditar que sempre vai valer a pena, no fim.
Ela assentiu.
- Eu também.
- Acho que você precisa saber que a Lys gostava de você.
- Agora você está mentindo.
- Pode ser que nem ela soubesse, mas sei que ela respeitava você mais do que você pensa. Vocês têm uma coisa em comum: força. - A voz de Jonas falhou. - Só demonstram de jeitos diferentes.
Os olhos de Cleo começaram a arder ao ver Jonas se esforçando para não deixar as lágrimas escorrerem.
Ela segurou as mãos do rebelde, puxando-o para mais perto.
- Sinto muito por sua perda, Jonas. Estou dizendo isso do fundo do coração.
Ele só assentiu, olhando para baixo.
- Ela me amava. Só me dei conta disso quando já era tarde demais. Ou talvez eu tenha percebido e não estivesse pronto para aceitar. Mas agora eu entendo... Ela era perfeita para mim.
- Tenho que concordar.
- Poderíamos ter construído uma vida juntos. Uma casa, talvez até uma quinta. - Jonas sorriu de novo, mas um sorriso mais triste. - Filhos. Um futuro. Quem sabe o que poderia ter acontecido? Só tenho certeza
de uma coisa.
- De quê?
- De que Lys merecia alguém bem melhor do que eu.
- Não tenho a menor dúvida em relação a isso - Cleo concordou, satisfeita ao ver que a expressão surpresa de Jonas conseguiu apagar a dor em seus olhos. Ela abriu um sorriso caloroso. - Minha irmã acreditava
que quem morre se torna uma estrela no céu. Então todas as noites podemos olhar para cima e saber que estão cuidando de nós.
Ele parecia desconfiado.
- Isso é uma lenda auraniana?
- E se for?
Uma mecha do cabelo dela tinha caído sobre a testa, e Jonas a ajeitou atrás da orelha e deslizou a mão por seu rosto.
- Nesse caso, gosto de lendas auranianas.
Cleo encostou a cabeça no ombro dele, e os dois ficaram ali, confortando um ao outro. Havia uma ligação entre eles - algo muito forte que ela nunca havia conseguido ignorar. E houve uma época, não muito
tempo atrás, em que ela poderia ter amado aquele rebelde do fundo do coração.
E ela o amava, sim, mas não como Lysandra o havia amado.
Independentemente do que acontecesse, o coração de Cleo pertencia a outro.
18
MAGNUS
PAELSIA
Ficou claro para Magnus que Enzo e Milo estavam se controlando na luta, com receio de ferir um príncipe. Magnus deixou os dois sangrando como punição e voltou para a hospedaria, sentindo uma grande necessidade
de desenhar.
Ele parou na porta quando viu Jonas e Cleo na sala de convivência. Os dois estavam sentados próximos um do outro, falando baixo. Magnus se aproximou para ouvir, mas só conseguiu ver o rebelde acariciar
o cabelo de Cleo, sem que a princesa reclamasse, e, logo depois, seu rosto. Os dois se entreolharam por mais tempo do que o normal.
Magnus ficou muito irritado.
Por um lado, queria entrar ali com tudo, afastá-los e matar o rebelde antes de tirar Cleo da hospedaria e de perto dele para sempre.
Seu lado mais racional dizia que nem tudo o que via era o que imaginava e que ele não deveria tirar conclusões precipitadas.
Ainda assim, se entrasse ali e confrontasse os dois, alguém com certeza morreria.
Então ele saiu da hospedaria e desceu a rua até a taverna, resmungando ao pedir vinho ao taberneiro. Magnus perdeu a conta de quantas taças de vinho teve de beber até começar a se acalmar.
Já sabia que a princesa gostava do rebelde, que os dois tinham uma história romântica sobre a qual não queria pensar muito. Por que ela não desejaria alguém como Jonas? Alguém corajoso e forte - apesar
de pobre, ridículo e muito azarado com todos os que já tinham se alistado sob sua liderança rebelde.
Magnus também conseguia entender que alguém como Jonas, que olhava para a princesa como se ela fosse uma estrela brilhante na noite escura, podia ser tentador. Pelo menos quando comparado a Magnus, que
era sombrio, instável e afeito à violência.
Ele encarou a taça vazia.
- Com um milhão de outros problemas e questões para resolver, estou obcecado pensando por quem ela tem sentimentos. - Ele olhou meio embriagado para o atendente. - Por que meu copo está vazio?
- Peço desculpas. - O homem logo encheu a taça até transbordar.
Alguém sentou no banco de madeira a seu lado. Ele estava prestes a vociferar que precisava de espaço e que se o homem valorizava a própria vida, deveria ir para outro lugar, mas então percebeu quem era.
- O vinho nunca ajuda uma pessoa a esquecer suas preocupações por muito tempo - seu pai disse, o rosto pálido e macilento como o de um cadáver por baixo do capuz grosso de seu manto preto.
Como o rei tinha se isolado em um quarto no andar superior da hospedaria desde a noite da chegada, foi uma surpresa vê-lo ali. Magnus observou ao redor para ver se ele tinha trazido Milo para protegê-lo,
mas não viu o guarda em nenhum lugar. Talvez ainda estivesse tratando os ferimentos depois da luta.
Magnus ignorou o comentário do rei e tomou todo o vinho do copo antes de falar.
- Selia sabe que você está aqui? Não acho que ela aprovaria.
- Ela não sabe. Sua preocupação com minha morte iminente me tornou seu prisioneiro. Não ligo muito para isso.
- Não liga para a preocupação com sua morte iminente ou com o fato de ter sido feito prisioneiro? Não precisa responder. Tenho certeza de que as duas experiências são novas para você. - Magnus pegou o
vinho do atendente, e mandou o homem se afastar com um aceno. Então bebeu direto da garrafa.
- Antigamente, me rendia a pecados assim - o rei comentou.
- Ao vinho ao à forte autopiedade?
- Você está tendo problemas com a princesa?
- Aposto que isso o deixaria muito feliz, não?
- Saber que você deseja se afastar de alguém que acho que causará sua destruição? "Feliz" não seria bem a palavra que eu escolheria, mas, sim. Seria o melhor.
- Não vou falar sobre Cleo com você, nem agora nem nunca - Magnus resmungou, detestando o fato de sua mente estar tão nebulosa com o pai por perto. Ele preferiria ter controle total dos sentidos, mas era
tarde demais para se preocupar com isso depois de tomar tanto vinho.
- Escolha inteligente - o rei respondeu. - Ela sem dúvida não é meu assunto preferido.
- Esse ódio que você nutre por ela... - O príncipe pensou no assunto, no ódio aparentemente sem fim que o rei sentia por Cleo. - Deve ter a ver com a mãe dela, não?
- Sim, na verdade, tem.
Uma resposta direta. Que incomum - e profundamente curioso.
- Rainha Elena Bellos - Magnus continuou, encorajado pelo vinho que soltava sua língua. - Vi o retrato dela no palácio auraniano antes de você destruí-lo. Era uma bela mulher.
- Com certeza era. - O rei deu as costas e olhou com saudosismo para a rua escura pelas janelas da taverna. Magnus viu quando os lábios pálidos e fantasmagóricos sorriram discretamente.
Perceber a situação mexeu com ele.
- Você era apaixonado por ela - Magnus disse, chocado com as próprias palavras, mas sabendo que eram verdade. - Você era apaixonado pela mãe de Cleo. - A acusação fez o rei encará-lo de novo, os olhos
vermelhos um tanto arregalados, surpresos. Magnus demorou um pouco para assimilar a confirmação silenciosa e tomou mais um gole de vinho para molhar a garganta repentinamente seca. - Deve ter sido há muito
tempo, quando você era capaz de uma emoção tão pura.
O sorriso logo desapareceu do rosto pálido e desanimado do pai.
- Faz muito tempo. Essa fraqueza quase me destruiu, e é exatamente por isso que quis cuidar de você.
Magnus riu ao ouvir isso, uma risada alta que surpreendeu a ele próprio.
- Cuidar de mim? Ah, pai, não gaste saliva com essas mentiras!
O rei socou o balcão.
- Você é cego? Totalmente cego? Tudo o que fiz foi por você!
A força da ira repentina fez Magnus derramar parte do vinho na túnica. Ele olhou feio para o pai.
- Estranho eu ter esquecido isso quando você decidiu acabar com a minha vida e com a vida da minha mãe.
- A morte seria um alívio deste mundo para muitos de nós.
- Não vou esquecer nada que você fez, a começar por isso. - Magnus apontou a cicatriz no lado direito do rosto. - Você lembra desse dia tão bem quanto eu?
O rei contraiu o maxilar.
- Lembro.
- Eu tinha sete anos. Sete. Você se arrependeu por um momento que seja?
O rei semicerrou os olhos.
- Você não deveria ter tentado roubar o palácio auraniano. Se tivesse conseguido, a vergonha teria sido grande.
- Sete anos! - A garganta de Magnus ardeu porque ele gritou. - Eu era apenas uma criança cometendo um erro, tentada por uma coisa brilhante e linda, uma vez que eu levava uma vida cinza e sem graça num
palácio cinza e sem graça. Ninguém ficaria sabendo que peguei aquela adaga! Que diferença faria?
- Eu ficaria sabendo - o rei disse. - A adaga que você pretendia roubar era de Elena. Eu ficaria sabendo porque fui eu quem deu a adaga a ela, quando era um garoto ingênuo tentando impressionar uma moça
bonita. Não sabia que ela a tinha guardado, que ela a tinha valorizado e exposto o tempo todo em que ficamos separados. Quando a vi em suas mãos seis anos depois da morte dela... não pensei. Simplesmente
reagi.
Magnus percebeu que não tinha uma resposta na ponta da língua. Com suas perguntas respondidas depois de tanto tempo, ele não conseguia processar tudo depressa.
- Não justifica o que você fez.
- Não, claro que não.
Magnus desviou o olhar do rei e tentou se concentrar em outra coisa, qualquer coisa. Ajudou perceber que o mundo ia além daquela conversa. Um homem enorme veio em direção ao bar carregando muitos copos
vazios, a túnica subindo o suficiente para deixar a barriga peluda à mostra. Uma atendente afastou a mão de um marinheiro com um tapa tímido. Os músicos no canto da taverna tocavam uma música animada,
e muitos batiam palmas. Vários outros dançavam em uma mesa.
- O poder é tudo o que importa, Magnus. O legado é tudo o que importa. - O rei dizia isso como se tentasse convencer a si próprio. - Sem ele, somos como camponeses paelsianos.
Magnus já tinha ouvido aquelas bobagens tantas vezes que já haviam se tornado mais do que palavras sem sentido.
- Diga uma coisa: Elena Bellos retribuiu seu amor ou foi só uma obsessão triste e impossível que transformou seu coração e sua alma em gelo?
O pai demorou tanto para responder que Magnus pensou que ele tinha levantado e ido embora. O príncipe desviou o olhar da taverna movimentada para ver se o rei ainda estava a seu lado.
- Ela me amava - Gaius disse, por fim, a voz quase inaudível. - Mas o amor não foi suficiente para resolver nossos problemas.
Magnus segurou a garrafa de vinho com força.
- Agora você vai me contar uma história de amor e perda... sobre um garoto e uma garota?
- Não.
Pensar que o pai mencionaria aquela história de amor épico sem contar tudo era previsível, mas ainda assim frustrante.
- Então por que você está aqui?
- Para contar a lição que aprendi. Amor é dor. Amor é morte. E o amor tira o poder de uma pessoa. Se eu pudesse voltar no tempo, gostaria de não ter conhecido Elena Corso. Desde aquela época, eu a odeio.
- Que romântico. Como se casou com Corvin Bellos, imagino que ela sentisse a mesma coisa.
- Tenho certeza disso. E agora lembro dela todos os dias, de tudo o que perdi, por causa daquela criatura mentirosa, Cleo. Ela se tornou sua fraqueza fatal, Magnus.
O ódio tinha voltado à voz de Gaius. Magnus encarou os olhos frios do pai.
- Seu ódio sem fim por Cleo me parece muito errado. Você deveria culpar a bruxa que amaldiçoou Elena. - Magnus suspirou, chocado ao perceber. - Você a culpa, não é? Por isso condenou tantas bruxas à morte
ao longo dos anos... Para pagarem pelo crime dela. Pode dizer que odeia Elena, mas ainda a ama, até mesmo depois de sua morte. Por qual outro motivo você teria tomado a poção de minha avó?
- Pense o que quiser. - Um músculo se contraiu no rosto do rei. - A poção era a única maneira de afastar o pesar e a dor e deixar apenas a força. Mas agora aquela força sumiu, desapareceu quando caí daquele
penhasco. A dor e o pesar voltaram, piores do que antes. E odeio isso. Odeio tudo nesta vida: o que tive que fazer, como passei todo esse tempo obcecado apenas pelo poder. Mas agora acabou.
- É o que anda prometendo.
Magnus precisava sair daquela taverna barulhenta e enfumaçada. Precisava de tempo e de espaço para esfriar a cabeça.
Quando levantou, o rei segurou seu braço.
- Imploro a você, meu filho, que mande Cleiona embora antes que ela o destrua. A princesa não ama você de verdade, se é o que você pensa. Independentemente do que ela disser, são apenas mentiras.
- O Rei Sanguinário implorando! Agora não falta mais nada. - Ele suspirou. - Já bebi demais por hoje. Foi um prazer conversar com você, pai. Tente voltar para a hospedaria sem morrer. Tenho certeza de
que sua mãe ficaria muito abalada se alguma coisa ruim acontecesse.
Ele saiu sem dizer mais nada, detestando a confusão de pensamentos e sentimentos.
Enquanto Magnus caminhava por uma rua estreita, alguém bloqueou sua passagem para o caminho principal com ombros largos e uma cara séria.
Não havia mais ninguém à vista.
- É, acho que reconheci você uma noite dessas - disse o homem. - Você é o príncipe Magnus Damora, de Limeros.
- E você está redondamente enganado. Desculpe pela decepção. - Magnus tentou passar acotovelando o homem, que levou a enorme mão à garganta dele, puxando-o para tão perto que Magnus conseguiu sentir seu
hálito de cerveja.
- Dez anos atrás, seu pai queimou minha esposa viva, dizendo que ela era uma bruxa. O que acha de eu fazer a mesma coisa com você como vingança?
- Acho que você precisa me soltar agora mesmo. - Magnus arregalou os olhos para o homem. - Sua necessidade de vingança não tem nada a ver comigo.
- Ele está certo. - O rei deu um passo à frente e tirou o capuz. - Tem a ver comigo.
O homem olhou para Gaius, surpreso, como se não acreditasse no que via.
- Sinto muito pela morte de sua esposa - o rei disse, e uma única lamparina acima da saída da taverna iluminava seu rosto quase esquelético. - Odeio bruxas por mais motivos do que poderia mencionar aqui
e agora. Mas raramente executei uma que não estivesse envolvida com sangue e mortes. Se sua esposa está na terra da escuridão agora, é porque merece estar.
Com o rosto vermelho de ódio, o homem deu um passo à frente empunhando uma faca afiada. Magnus observou o pai de pé ali, sem se mexer, a pele amarelada, os ombros curvados. Ele não lutaria, não conseguiria
lutar por sua vida.
Gaius queria morrer?
A atenção do homem estava totalmente voltada para o rei naquele momento, e o ódio ardia em seus olhos quando ele avançou.
Magnus se moveu antes mesmo de se dar conta de suas intenções, segurou as mãos do homem e impediu que a faca acertasse o alvo.
- Se alguém tem o direito de matar meu pai, esse alguém sou eu - ele vociferou. - Mas não hoje.
Ele virou a lâmina afiada para afundá-la no peito do homem, que gritou de dor e desabou no chão. O sangue jorrou livremente do ferimento fatal.
Houve um momento de completo silêncio na rua até o rei falar de novo.
- Precisamos ir embora antes que alguém veja isso.
Magnus teve que concordar. Limpou o sangue das mãos no manto preto e os dois logo voltaram à hospedaria Falcão e Lança.
- Não pense que esse gesto mostra que não odeio você - Magnus disse.
O rei assentiu com seriedade.
- Eu o consideraria um idiota se não me odiasse. Ainda assim, apesar do ódio que sente por mim, quero lhe dar algo.
- O quê?
- O cristal do ar.
Não havia como o Rei Sanguinário entregar uma parte da Tétrade a alguém, nem mesmo ao próprio filho. E, ainda assim, Gaius levou Magnus ao andar de cima, ao quarto onde tinha ficado por dois dias.
Magnus observou o espaço.
- Onde está Selia?
- No pátio. - O rei indicou a janela com a cabeça. - Sua avó gosta de cumprir os rituais antigos todas as noites, a esta hora e sob o luar, por isso consegui sair.
O rei foi até a cama de palha, levantou as cobertas e passou a mão por baixo do colchão. Em seguida, franziu a testa.
- Ajude-me a levantá-lo - ele disse.
- Está tão fraco assim? Então você teria mesmo ficado parado, esperando aquele homem te matar?
- Faça o que estou mandando. - O olhar que o pai lançou foi muito mais familiar do que qualquer conversa sobre compartilhar e arrependimentos.
- Tudo bem. - Magnus foi até o lado de Gaius e levantou o colchão para seu pai procurar embaixo dele.
Os olhos vermelhos e marejados do rei foram tomados pelo susto.
- Não está aqui.
Magnus lançou um olhar desconfiado para o rei.
- Que conveniente, se considerarmos que você estava prestes a entregá-lo a mim. Por favor, pai, me poupe dessas dissimulações. Como se você fosse esconder um tesouro como aquele em um lugar tão óbvio!
- Não é dissimulação. Estava aqui. Andei muito debilitado para encontrar um lugar melhor onde escondê-lo. - Gaius ficou sério. - Aquela sua princesinha o roubou.
Só podia ser mentira. Mais uma mentira. Magnus não conseguia pensar em outra explicação, não para algo tão importante.
Antes que pudesse responder, o rei cambaleou com dificuldade para sair do quarto. Magnus o seguiu pelo corredor, onde Cleo ainda estava com Jonas.
Magnus não conseguia acreditar no que via. Precisou de todo o autocontrole possível para não transformar Jonas no segundo morto da noite.
Cleo levantou depressa quando o rei e Magnus entraram.
- O que foi? O que aconteceu?
- Você roubou o cristal do ar? - Magnus perguntou, incomodado com a maneira arrastada como estava falando.
- O quê? Eu... eu nem sabia onde estava!
- Sim ou não, princesa?
Cleo semicerrou os olhos e levantou o queixo.
- Não.
- Ela está mentindo - o rei disse.
- O rei das mentiras querendo acusar a princesa, não é? - Jonas quase cuspiu as palavras, os punhos cerrados. - Que ironia.
- Onde está o cristal da terra? - Magnus perguntou.
Cleo franziu a testa ao enfiar a mão no bolso e arregalou os olhos.
- Não está aqui. Mas estava, juro! Eu o carrego comigo o tempo todo!
Magnus sentiu uma náusea. Havia um ladrão entre eles. E quem quer que fosse, em breve ia se arrepender profundamente por suas atitudes.
Não demorou para que todos corressem até a sala para ver o que estava acontecendo. Milo e Enzo já empunhavam as armas, prontos para um combate.
Magnus observou o grupo. Estava todo mundo ali: Nic, Olivia, até Selia havia se unido ao grupo, com o rosto corado devido ao ritual da lua daquela noite. Todo mundo, menos uma pessoa.
- Onde está o príncipe Ashur? - Jonas perguntou, franzindo a testa. - Ele estava aqui mais cedo com Cleo e comigo.
- Eu não o vi hoje - Olivia respondeu. - Talvez tenha saído.
- Talvez. Alguém sabe aonde ele foi?
Enzo e Milo balançaram a cabeça em negativa.
Selia foi para o lado do rei pálido, que caminhava até uma cadeira para sentar.
- Gaius, querido, o que está fazendo fora da cama?
Magnus os ignorou, prestando atenção em Nic, que estava em silêncio. Enquanto os outros conversavam sobre o paradeiro do príncipe, Nic saiu da sala. Magnus imediatamente o seguiu pelo corredor em direção
à porta da frente.
Quando Nic notou que Magnus estava perto, seus ombros ficaram tensos.
- Está procurando alguém? - Magnus perguntou, com os braços cruzados.
- Quero sair para respirar um pouco de ar fresco.
- Ele levou os dois cristais, não levou? E contou a você sobre os planos.
Nic balançou a cabeça, mas não o encarou nos olhos. Magnus não tinha mais paciência para mentiras naquela noite. Ele puxou a frente da túnica de Nic e o jogou contra a parede.
- Onde está Ashur? - ele resmungou.
- Você está bêbado.
- Demais, mas não faz a menor diferença agora. Responda! Ashur roubou os cristais, não roubou?
Nic rangeu os dentes.
- Você acha que o príncipe me conta alguma coisa?
- Não faço ideia do que o príncipe sussurra em seu ouvido, mas não sou cego. Sei que tem algo entre vocês dois, que são mais próximos do que aparentam. E sei que você sabe mais do que está me contando.
Jonas se aproximou, tenso, vindo de um canto.
- O que está fazendo com ele?
Magnus não soltou o garoto.
- Nic sabe os segredos de Ashur e vou descobrir quais são.
- Responda à pergunta, Nic - Jonas disse, os braços cruzados. - Sabe para onde Ashur foi?
Nic riu.
- Como é? Vocês estão trabalhando juntos agora?
- Não - Magnus e Jonas responderam em uníssono, e então se entreolharam.
Nic suspirou.
- Tudo bem. O príncipe acabou de partir para ver a irmã. Tentei convencê-lo a não fazer isso, mas ele não ouviu nada do que eu disse. Está determinado a fazer o que puder para colocar juízo na cabeça dela
e, se não conseguir, vai exigir o título de imperador.
Magnus sentiu o estômago revirar.
- E ele levou para Amara os cristais do ar e da terra. Que lindo presente, considerando que Amara está com o cristal da água.
Por fim, Nic lançou um olhar preocupado.
- Ashur não faria isso.
- Não? - Magnus tentou continuar segurando a túnica de Nic para que o idiota não fugisse, mas sua visão estava turva. Vinho demais, rápido demais. Os efeitos só passariam ao amanhecer. - Talvez Amara tenha
retirado os cristais dos esconderijos com sua magia, e eles voaram em asas de borboletas para ela.
- Vou falar mais uma vez. - Nic semicerrou os olhos. - Me solte.
- E se não soltar? Vai chamar a princesa para salvá-lo?
- Odeio você. Desejo vê-lo morto e enterrado. - Ele olhou para Jonas, irritado. - Uma ajuda?
- Nic, você precisa pensar - Jonas disse com calma. - Se Magnus estiver certo em relação a Ashur...
Magnus lançou um olhar fulminante ao rebelde.
- Você acabou de me chamar apenas pelo meu primeiro nome?
Jonas revirou os olhos.
- Amara Cortas não pode ter mais poder do que já tem. E se o irmão dela levou os cristais da Tétrade, é a pior coisa que poderia acontecer. Ela pode liberar três deuses elementares como Kyan.
- Eu sei - Nic respondeu. - Eu entendo.
- Entende?
- Então a culpa é minha? Vai deixar sua majestade quebrar meu pescoço? Por quê? Por não ter conseguido impedir Ashur de fazer o que queria? Ele faz o que bem entende.
- Prometo que sua majestade não vai quebrar seu pescoço.
- Não vamos nos precipitar - Magnus disse, divertindo-se com o breve olhar assustado do garoto.
Ele nunca mataria Nic.
Cleo nunca o perdoaria.
- Você vai fazer o seguinte - Magnus disse. - Vai atrás de Ashur para impedi-lo de fazer alguma coisa idiota e imperdoável por senso de lealdade familiar kraeshiano bizarro e sem propósito. E vai recuperar
os cristais que ele roubou, custe o que custar.
Nic o encarou incrédulo.
- Não vou deixar Cleo de novo.
- Ah, vai, sim, com certeza. E vai agora. Você vai voltar com os cristais da Tétrade ou minha paciência com você vai acabar. - Magnus tentou organizar a mente confusa para encontrar uma maneira de fazer
Nic cumprir a ordem.
- Você pode até me odiar, mas viu que mantive sua preciosa princesa viva todos esses meses, enquanto outros a queriam morta. Juro pela deusa que vou parar de protegê-la se não fizer exatamente o que mandei.
Nic se encolheu, mas manteve o olhar firme.
- Cleo ficaria bem até mesmo sem sua ajuda.
- Talvez sim. Talvez não. Em tempos de guerra, e não se engane, é exatamente o que essa ocupação "pacífica" kraeshiana é, ninguém está seguro.
Nic ficou sem resposta. Apenas o observou furioso.
- Com ameaça ou sem - Jonas disse impaciente -, o príncipe está certo, Nic, você precisa ir atrás de Ashur. Nós dois precisamos. Eu deveria ter acompanhado Felix e Taran quando eles partiram. Não há motivos
para eu estar aqui.
- Não há motivos, rebelde? - Magnus lançou um olhar para ele. - Que esquisito. E pensei que você estivesse gostando de bajular a princesa, em busca de migalhas.
Jonas lançou um olhar raivoso para Magnus.
- Eu receberia muito mais do que você.
Magnus sorriu para ele.
- Não tenha tanta certeza disso.
Jonas ficou ainda mais sério.
- Terminamos por aqui. Nic, pegue o que precisa para ir ao complexo do chefe Basilius. Espero alcançar Ashur antes que ele chegue lá. E, Magnus?
- Sim, rebelde?
Jonas semicerrou os olhos.
- Se encostar em um fio de cabelo da princesa, juro por qualquer deusa em quem você acredita que vou fazer você implorar para morrer.
19
AMARA
PAELSIA
Um único falcão dourado voava em círculos sobre os cidadãos paelsianos reunidos para ouvir o discurso de Amara. A imperatriz estava em pé diante da janela aberta de seus aposentos, observando a multidão
de rostos ansiosos. Muitos estavam perplexos por estarem dentro da propriedade privada do ex-chefe; os portões tinham ficado trancados para o público durante o governo dele. Naquele dia, os paelsianos
viam pela primeira vez a cidade labiríntica, o que fez Amara lembrar muito da Cidade de Ouro, mas, em vez de metais e joias, a cidade onde estava era feita de barro, tijolo, pedra e terra.
- Vossa graça, gostaria que reconsiderasse esse discurso - Kurtis disse atrás dela. - A senhora está muito mais segura aqui dentro, principalmente com a notícia de rebeldes por perto.
Ela tirou os olhos da janela e se virou para o grão-vassalo onipresente.
- É por isso que tenho guardas ao meu redor o tempo todo, lorde Kurtis. Os rebeldes estão sempre por perto. Infelizmente, não posso fazer todos entenderem meu ponto de vista. Há quem se oponha ao reinado
de meu marido, ao reinado de meu pai. E há aqueles que se opõem ao meu também. Falarei com meus cidadãos hoje, aqueles que vão me apoiar sem questionamentos e aqueles que duvidam de minhas intenções aqui.
Preciso dar a eles uma esperança para o futuro... uma esperança que nunca tiveram.
- O que é uma atitude incrível, vossa graça, mas... os paelsianos são selvagens, violentos.
Amara considerou as palavras ofensivas.
- Há quem diga o mesmo dos kraeshianos - ela respondeu mais irritada. - Talvez você não tenha me ouvido até agora, mas falarei hoje.
- Vossa graça...
Ela levantou uma mão, decidindo parar de sorrir.
- Falarei hoje - ela disse com firmeza. - E ninguém vai me dizer que não posso fazer isso. Com a notícia dos rebeldes e com a discordância entre meus próprios soldados, preciso do apoio dessas pessoas
para o futuro de meu reinado. E não permitirei que ninguém diga o que posso e o que não posso fazer. Entendido?
Ele se curvou no mesmo instante, corado.
- Claro, vossa graça. Não quis desrespeitá-la.
A porta se abriu e Nerissa entrou, fazendo uma reverência.
- Está na hora, imperatriz.
- Ótimo, estou pronta. - Amara alisou a seda de seu vestido. Era o mesmo que usava nas ocasiões mais especiais em Kraeshia. Ela o levava sempre que viajava caso tivesse a oportunidade de vestir uma peça
tão esplêndida. A costura brilhante e as contas de esmeralda e ametista reluziam sob o sol paelsiano quando ela saiu de sua grande quinta.
Um grupo de guardas esperava Amara do lado de fora e, com Nerissa a seu lado, ela se aproximou do grande pódio em um palco de madeira bem acima da multidão de quatro mil pessoas reunidas lado a lado na
antiga arena do chefe.
Aqueles eram seus novos súditos. Absorveriam tudo o que dissesse e espalhariam a notícia de sua glória a quem quisesse ouvir. E em breve, seriam os primeiros a reverenciá-la como uma verdadeira deusa.
A multidão gritou e a atmosfera foi tomada por sons de aprovação. Ela olhou para Nerissa, que sorriu e assentiu, incentivando-a a começar.
Amara ergueu os braços, e a grande plateia ficou em silêncio.
- Eu me dirijo ao lindo povo de Paelsia, um reino que tem passado por muitos testes e muitas atribulações ao longo de várias gerações. - Sua voz ecoou nos pilares de pedra, o que ajudou a amplificar as
palavras de modo que até as pessoas nas arquibancadas pudessem ouvi-la. - Sou Amara Cortas, a primeira imperatriz de Kraeshia, e trago a vocês a notícia oficial de que não são mais cidadãos de Mítica,
uma tríade de reinos que os oprimiu por um século. Agora vocês são cidadãos do grande Império Kraeshiano. E seu futuro é tão brilhante quanto o sol que nos ilumina hoje!
A multidão comemorou, e Amara parou um instante para analisar os rostos, alguns sujos, de pessoas com roupas simples puídas, gastas pela sujeira e pelo tempo. Olhos atentos se voltaram para ela, olhos
que tinham assistido a muitos líderes fazerem promessas falsas e causarem dor e sofrimento. Ainda assim, ela viu uma esperança tímida até mesmo nos olhos dos mais velhos.
- Cuidaremos de sua terra - ela continuou. - Vamos torná-la rica de novo e pronta para as plantações que vão sustentar vocês e suas famílias. Vamos importar animais que servirão de alimento. E enquanto
continuarem produzindo o vinho pelo qual Paelsia é conhecida, os lucros serão de vocês, integralmente, pois prometo que não serão cobrados impostos kraeshianos sobre esse produto por vinte anos. As leis
que impediam a exportação do vinho a qualquer lugar que não fosse Auranos estão vetadas a partir de agora. Vejo Paelsia como um patrimônio maravilhoso do meu império e quero demonstrar isso cuidando para
que minhas atitudes sejam condizentes com minhas palavras. Vocês fazem bem em acreditar em mim, porque eu acredito em vocês. Juntos, vamos marchar para o futuro, de mãos dadas!
O barulho vindo da plateia aumentou, e, por um instante, Amara fechou os olhos e permitiu-se aproveitar o momento. Tinha sido por isso que ela se sacrificou tanto. Tinha sido por isso que ela fez o que
fez.
Por aquele poder.
Não fora à toa que seu pai havia tomado decisões tão precipitadas durante seu reinado. Aquela sensação diante da obediência, da adoração e da reverência era mesmo viciante.
Se ela conseguiria ou não cumprir o prometido, ainda precisava verificar.
Ela sentia a magia que havia na crença que emanava do povo paelsiano. Uma magia tão rica e pura na qual queria se banhar.
- Vossa graça! - Nerissa exclamou, assustada.
Amara abriu os olhos a tempo de ver uma flecha de relance, e então um de seus guardas a tirou do caminho. A flecha acertou o homem no pescoço, e ele caiu se debatendo no chão do palco.
- O que está acontecendo? - ela quis saber.
- O grupo de rebeldes que ameaçou vir aqui hoje... eles estão aqui! - Nerissa agarrou o braço dela. Duas outras flechas voaram na direção dela, bem perto, acertando outros dois guardas.
- Quantos? - Amara conseguiu perguntar. - Quantos rebeldes estão aqui?
- Não sei... - Nerissa ergueu a cabeça para olhar para a multidão quando outra flecha passou por ela. - Vinte, talvez trinta ou mais.
Amara observou chocada quando seu exército de soldados invadiu o mar cada vez maior de civis para capturar os rebeldes. Os soldados derrubavam qualquer pessoa que aparecesse no caminho, fossem rebeldes
ou paelsianos. A multidão entrou em pânico e tentou fugir. O caos se instalou, gritos de medo e de indignação eram ouvidos por todos os lados quando sangue começou a ser derramado.
Paelsianos empunharam armas, trocando rapidamente a expressão esperançosa pela de ódio, e começaram a lutar não só contra os soldados, mas uns contra os outros, facas cortando a carne, socos acertando
rostos e abdomens.
"Os paelsianos são selvagens, violentos", Kurtis tinha alertado.
Mães agarravam os filhos, chorando e correndo para todas as direções.
- O que vamos fazer? - Nerissa perguntou. Ela tinha agachado ao lado de Amara, e as duas se encolheram atrás do pódio.
- Não sei - Amara disse depressa, e se arrependeu de suas palavras.
Palavras de medo. Palavras de vítima.
Ela não ia se acovardar diante de rebeldes naquele momento - nem nunca.
O medo logo se transformou em raiva. Aquilo, fosse o que fosse, não fazia parte de seu plano. Aqueles que desejavam destruir sua chance de transformar aquele povo determinado em seu aliado, um povo que
já estava pronto para aceitá-la como líder, pagariam com a vida.
Amara levantou do esconderijo, punhos cerrados, quando alguém se aproximou do palco trás dela. Ela ouviu passos pesados na superfície de madeira.
Quando se virou, viu dois de seus guarda-costas caindo com a garganta cortada. Atrás deles, um rosto assustadoramente familiar.
- Bem, princesa, eu poderia apostar um monte de moedas de ouro que você não esperava me ver de novo.
Felix Gaebras apontava uma espada a poucos centímetros de seu rosto.
O rosto dele aparecia em seus pesadelos. Ou talvez os pesadelos tivessem sido premonições. Naqueles sonhos, ele tentava matá-la.
- Felix... você fez isso, tudo isso, só para chegar até mim - ela começou, dando um passo hesitante para trás para se afastar do jovem que acreditava estar morto fazia muito tempo.
Ele sorriu.
- Sinceramente? Eu estava só observando de longe. Foi uma coincidência feliz. Acho que há muitos outros rebeldes que querem derramar seu sangue. Mas parece que a honra será minha.
Ela olhou para a esquerda e viu três guardas correndo na direção de Felix, mas foram derrubados por outro jovem de cabelo escuro e expressão irritada.
- O plano não era esse, Felix - o rapaz gritou. - Nós dois vamos morrer por sua causa.
- Calado, Taran - Felix respondeu. - Estou retomando contato com uma antiga namorada.
Ao sentir a lâmina em seu rosto, Amara olhou para o tapa-olho preto que ele usava.
- Seu olho...
- Perdi. Graças a você.
Ela se encolheu.
- Sei que você deve me odiar pelo que fiz.
- Odiar? - Ele arqueou as sobrancelhas escuras, movendo de leve o tapa-olho. - "Ódio" é uma palavra muito leve, não acha?
Amara tentou ver se algum guarda se aproximava para ajudá-la, mas Taran, o amigo de Felix, os afastava com a espada e o arco que trazia.
Amara virou para a frente, para o olho bom de Felix, e disse com o máximo de arrependimento que conseguiu reunir:
- Não importa o que tenha enfrentado, minha bela fera. Juro que posso me retratar.
- Não me chame assim. Perdeu o direito de me chamar assim quando me abandonou e me deixou para morrer. - Felix encostou a lâmina no rosto dela de novo, fazendo-a olhar para a multidão. - Viu o que fez?
É culpa sua. Tudo o que você toca acaba em morte.
O olhar tenso de Amara passou pela multidão que tinha percorrido quilômetros para se reunir e ouvi-la falar. Muitos paelsianos estavam mortos entre os combatentes, pisoteados, assassinados pelas espadas
dos guardas ou por seus próprios compatriotas.
Felix tinha razão: era culpa dela. Um momento de vaidade, o desejo de sentir o amor de seus novos súditos depois de tanta dor e decepção, acabou em morte.
Tudo acabava em morte.
O mesmo falcão que ela vira sobrevoando a multidão grasnou alto o suficiente para Amara ouvir. No chão, alguém preso no meio do caos chamou sua atenção: um jovem de cabelo ruivo, cor rara de ser encontrada,
caminhava em direção ao palco.
Ela reconheceu o amigo de Cleo, Nic. Aquele com que Ashur tinha ficado obcecado.
Amara observou horrorizada quando dois paelsianos agarraram Nic e rasgaram o saco de moedas preso ao passador de sua calça. Nic tentou segurar o saco, e a faca de um dos homens reluziu à luz do sol antes
de ser fincada no peito dele.
Ela se assustou.
O corpo de Nic caiu no chão e logo se perdeu na multidão.
Aquilo era culpa dela, apenas dela.
Ela franziu a testa ao pensar nisso. Não... tinha sido azar de Nic, uma circunstância infeliz. Ela não tinha assassinado o amigo de Cleo com as próprias mãos. Amara se recusava a assumir a culpa pelo azar
de outras pessoas.
Apesar de ter odiado seu pai e seus irmãos com a mesma intensidade, a família Cortas não era nada fraca. Inclusive ela.
E além da família Cortas, as mulheres não eram fracas. Eram líderes. Campeãs. Guerreiras. Rainhas.
Amara tinha enfrentado inimigos muito maiores do que Felix Gaebras na vida.
Ela se forçou a falar de modo assustado quando virou para ele de novo.
- Você é maior do que isso, Felix. Matar uma garota desarmada? Não combina com você.
- Não combina comigo? Sou um assassino profissional, meu amor. Matar é o que faço melhor.
De canto do olho, ela observou o amigo derrubar mais dois de seus homens com uma só mão.
- Pense bem, governo um terço do mundo e controlo toda a fortuna. Quer ser um homem muito rico?
Ele levantou um dos ombros.
- Não.
Amara tinha esquecido que ele era diferente dos outros homens que conhecia - uma vantagem no começo, mas um problema no presente. - Mulheres, então. Dez, vinte, cinquenta garotas que desejem apenas você.
Felix abriu o sorriso mais frio que ela já tinha visto.
- E como eu saberia que não são vadias frias e dissimuladas como você? Não tem acordo, imperatriz.
Amara ficou com os olhos marejados. Fazia muito tempo que não chorava, mas chorar era um talento que desenvolvera desde cedo. Sabia que a maneira mais fácil para uma mulher evitar problemas ou castigos
era fingir fraqueza entre os homens.
As lágrimas logo começaram a descer livremente por seu rosto.
- Eu pretendia libertá-lo, mas me disseram que você já estava morto, assassinado em uma tentativa de fuga. Meu coração ficou destruído quando pensei que tinha perdido você para sempre. Deveria tê-lo incluído
em meus planos, mas eu estava com medo, muito medo. Ah, Felix, eu não queria que nada acontecesse com você, sinceramente! Eu... eu amo você! Sempre vou amar, não importa o que você decida fazer hoje!
Felix olhou para ela como se estivesse assustado com o que ouvia.
- O que disse? Que me ama?
- Sim. Eu amo você.
A ponta da espada se mexeu. Mas logo foi afastada.
- Bela tentativa, meu amor. Eu poderia até acreditar, se fosse um completo imbecil. - Felix sorriu para ela. - Hora de morrer.
Um instante depois, Carlos, que tinha subido no palco e conseguido passar por Taran, derrubou Felix. Antes que conseguisse recuperar o fôlego, Taran e Felix estavam diante dela, ajoelhados.
Nerissa voltou para seu lado, e Amara segurou a mão dela, apertando-a para ter a certeza de que a criada não tinha se ferido.
- Os outros rebeldes morreram, vossa graça - Carlos informou. O rosto dele sangrava devido a um corte profundo no nariz.
Amara respondeu assentindo brevemente e então olhou para Felix.
Ele deu de ombros de novo.
- Não posso dizer que não tentei.
- Devia ter sido mais rápido.
- Acho que gosto muito de falar. - Ele abriu um grande sorriso, mas seu olhar estava frio. Voltou-se para Nerissa por um instante antes de voltar a encarar Amara. - Vamos falar de novo sobre aquela oferta
do harém de lindas mulheres?
Amara tocou o rosto de Felix, levantando sua cabeça.
- Sinto muito pelo seu olho. Gostei daquele olho, assim como de outras partes suas. Por algumas noites, pelo menos.
- Devemos executá-los agora mesmo, vossa graça? - Carlos perguntou, com a espada ao lado do corpo.
Ela esperou o medo aparecer no único olho de Felix, mas ele manteve a pose desafiadora.
- Se eu poupá-lo, o que fará? Vai tentar me matar de novo?
- Num piscar de olhos - ele disse.
- Você é um grande idiota - Taran rosnou.
Sua bela fera a tinha entretido por um período. E ainda entretinha.
Apesar de tudo, Amara ainda se sentia atraída por ele. Mas não importava. Ele deveria ter morrido muito tempo antes, e não ser mais um problema para ela.
Amara assentiu para o guarda.
- Jogue os dois no fosso. Cuido deles mais tarde.
20
LUCIA
PAELSIA
- Ela é incrível. Totalmente linda e gloriosa. Parece mais uma deusa do que uma mera mortal, se quer saber. Tenho certeza de que vai salvar todos nós.
Lucia parou na barraca de frutas enquanto procurava uma maçã sem nenhuma imperfeição - pelo jeito, era impossível em Paelsia - e olhou para a vendedora que conversava com uma amiga.
- Concordo totalmente - a amiga disse.
Estariam falando da feiticeira profetizada?
- Desculpem minha grosseria, mas posso saber de quem estão falando? - Lucia perguntou. Era a primeira vez que falava em voz alta em mais de um dia, e sua voz falhou no início.
A vendedora olhou para ela.
- Ora, da imperatriz, é claro! De quem mais poderia ser?
- Sim, de quem mais, não é? - Lucia disse em voz baixa. - Então vocês acham que Amara Cortas vai salvá-las. Salvá-las do que, exatamente?
As paelsianas trocaram um olhar e viraram para Lucia um tanto impacientes.
- Você não é daqui, é? - Uma delas franziu os lábios enrugados. - Não, com esse sotaque, acredito que seja limeriana, não é?
- Nasci em Paelsia e fui adotada por uma família limeriana.
- Você teve muita sorte por ter escapado destas fronteiras tão cedo, então. - A vendedora virou para a amiga. - Se ao menos todos tivéssemos tido essa oportunidade...
As duas riram sem achar graça.
A paciência de Lucia estava acabando.
- Vou comprar esta maçã. - Ela guardou a fruta no bolso e entregou uma moeda de prata. - E também qualquer informação que puder me dar a respeito da localização da imperatriz.
- Com prazer. - A mulher pegou a moeda com ganância, semicerrando os olhos. - Por onde andou esses últimos dias, mocinha, para não saber tudo sobre a imperatriz? Perdida por aí?
- Mais ou menos. - Na verdade, ela estava recuperando as forças na hospedaria no leste de Paelsia até não aguentar mais e ter que fugir. Apesar da preocupação da atendente Sera com sua saúde, Lucia sabia
que precisava sair dali antes que sua barriga ficasse grande demais e ela não conseguisse mais levantar da cama.
Passou a mão pela barriga aparente e a comerciante notou, arregalando os olhos.
- Ah, minha querida! Não percebi que estava grávida. E já tão avançada!
Lucia gesticulou para indicar que ela não se preocupasse.
- Estou bem - ela mentiu.
- Onde está sua família? Seu marido? Não me diga que está sozinha aqui na feira hoje!
Parecia que o fato de estar grávida fazia os desconhecidos sentirem vontade de tratá-la com muito mais gentileza do que o normal. Tinha sido bom durante a viagem lenta e desconfortável para o oeste.
- Meu marido está... morto - ela disse com cuidado. - E agora estou procurando minha família.
A amiga da vendedora correu na direção de Lucia e segurou suas mãos.
- Meus mais sinceros sentimentos por essa perda tão dolorosa.
- Obrigada. - Lucia sentiu um nó repentino e irritante na garganta. Assim como a barriga inchada, suas emoções estavam muito mais intensas e difíceis de controlar.
- Se precisar de um lugar para ficar... - a vendedora disse.
- Obrigada de novo, mas não preciso. Só preciso de informações sobre a imperatriz. Ela ainda está em Limeros?
As amigas se entreolharam de novo, sem acreditar que Lucia pudesse estar tão desinformada a respeito daquelas coisas.
- A grande imperatriz Cortas está morando no antigo complexo do rei Basilius - a vendedora começou. - Ela vai fazer um discurso de lá amanhã, dirigindo-se a todos os paelsianos que puderem participar.
- Um discurso aos paelsianos. Por quê?
A vendedora olhou para ela com um pouco de compaixão.
- Bem, por que não? Talvez você tenha esquecido por causa dos muitos anos abençoados que passou em Limeros, mas a vida aqui em Paelsia é difícil.
- Para dizer o mínimo - sua amiga acrescentou.
A vendedora assentiu.
- A imperatriz vê nossos esforços. Ela os reconhece. E quer fazer algo em relação a isso. Ela valoriza os paelsianos como parte importante de seu império.
Lucia tentou não revirar os olhos. Ela não tinha percebido como Amara era uma manipuladora de primeira, sedenta por poder, nas poucas vezes em que conversara com a ex-princesa quando os Damora moraram
no palácio auraniano.
- Mas, claro, questiono a sabedoria da imperatriz por se casar com o Rei Sanguinário - a vendedora comentou.
- Desculpe - Lucia disse, olhando para ela. - Você disse que ela é casada com o Rei... San... com o rei Gaius?
- Sim. Mas também soube que ele está desaparecido no momento, junto com seu herdeiro. Vamos torcer para que a imperatriz tenha enterrado os dois a sete palmos da terra.
- Realmente - Lucia murmurou, sentindo o estômago embrulhado só de pensar. Sera não tinha dito nada sobre o casamento de seu pai com Amara. Seria verdade? - Eu... eu preciso ir. Preciso...
Ela virou e desapareceu em meio à multidão na feira.
Certa vez, Ioannes tinha guiado Lucia para encontrar e despertar a Tétrade com seu anel da feiticeira. Ela esperava que o mesmo encanto que usaram pudesse funcionar para ajudá-la a encontrar Magnus e seu
pai. No entanto, apesar de ter conseguido fazer o anel girar como fizera na época em seus aposentos no palácio auraniano, todas as tentativas de reaver o mapa brilhante de Mítica e determinar a localização
deles tinham fracassado. Enfraquecida por usar seus elementia, ela tinha que fazer paradas constantes ao percorrer o caminho a pé, junto com muitos outros paelsianos, até o complexo do antigo líder local.
Lucia se recusava a acreditar que sua família estivesse morta. Eles eram muito bem preparados para isso. E, se o rei tinha se casado com Amara - uma ideia tão ridícula que ela mal conseguia conceber -,
tinha feito isso por razões estratégicas, por poder e sobrevivência.
Sim, Amara era jovem e muito bela, mas seu pai era esperto e cruel demais para tomar uma decisão como essa movido por uma mera paixão.
Havia milhares de paelsianos reunidos do lado de fora do complexo quando ela finalmente chegou. O vilarejo mais próximo ficava a meio dia de viagem dali, mas levaria mais um dia, talvez dois, na situação
atual de Lucia, para chegar a Basilia, seu destino original.
Os portões altos e pesados rangeram ao se abrir, e a multidão adentrou o complexo. Lucia se concentrou tanto nas pessoas que a cercavam, procurando algum rosto conhecido, que mal viu os caminhos de pedra
e as casas de barro que levavam em direção à enorme casa de três andares no centro do complexo. Os paelsianos estavam sendo levados para uma ampla clareira, com fogueiras e vários assentos elevados de
pedra. Isso a fez pensar nas histórias que já tinha ouvido sobre como o chefe Basilius organizava competições entre os homens que queriam impressioná-lo com sua força e habilidade de combate. Ali, já tinham
ocorrido lutas mortais apenas para entretê-lo.
A multidão continuou crescendo, mas Lucia não ouviu nenhuma menção ao ex-chefe e a seus prazeres nos fragmentos de conversa ao seu redor. Só ouvia sobre a importância da nova imperatriz.
Lucia não imaginava que os paelsianos fossem tão fáceis de enganar. Eles acreditaram, por muitos e muitos anos, que o chefe Basilius era um feiticeiro.
Chefe Hugo Basilius. Seu pai biológico.
E aquela era a casa dele - o lugar onde ela teria sido criada se não tivesse sido roubada no berço.
Lucia olhou para as casas, ruas e a arena que formavam o complexo, esperando sentir uma sensação de perda da vida que deveria ter tido.
Mas não sentiu nada. Se havia um lar do qual sentia falta, era do palácio escuro cercado por gelo e neve em Limeros.
Quanto antes conseguisse deixar aquele reino seco e desagradável, melhor. Já tinha aprendido mais do que o suficiente sobre a cultura paelsiana quando a conheceu com Kyan.
Ela não ouviu boatos sobre o deus de fogo causando mais destruição e morte durante suas viagens. Segurava firme a esfera de âmbar que tinha escondido no bolso. Timotheus insistira que Kyan não podia morrer.
Mas, se era verdade, onde ele estava? O que estava planejando? Ela o havia ferido gravemente em sua batalha? Se não tinha, por que Kyan não havia voltado às Montanhas Proibidas para recuperar sua esfera
antes que Lucia a encontrasse?
Ela pressionou os dedos ao redor do cristal de âmbar ao pensar nisso. Seria forte o suficiente para lutar se ele a encontrasse naquele dia?
Lucia detestava admitir que não.
Não, não é bom o suficiente, ela pensou. Não há outra escolha. Tenho que ser forte.
- Ela é incrível, de fato - outro um velho corcunda paelsiano disse. - Se tem alguém que pode livrar nossa terra de sua doença mortal, é a imperatriz.
- Quero vingança pela morte de minha família - uma mulher mais jovem respondeu.
- Também quero - uma mulher mais velha concordou.
- De que doença estão falando? - Lucia perguntou.
- A doença da bruxa sombria - o velho resmungou. - A maldade dela destruiu esta terra e matou milhares de paelsianos com o toque de sua mão feia e retorcida.
Lucia mexeu as mãos.
- Ouvi falar dessas maldades...
- Maldades? - ele praticamente gritou com ela. Gotas de saliva do homem acertaram o rosto de Lucia, que limpou a face, fazendo uma careta. - Alguns dizem que Lucia Damora vai matar todos nós com sua magia
do fogo, que é uma feiticeira imortal, filha do Rei Sanguinário com uma demônia durante uma cerimônia de magia sanguinária! Mas eu a vejo como é: alguém que precisa ser morta antes que acabe machucando
outras pessoas.
Eles sabiam seu nome. E a odiavam o suficiente para desejar sua morte.
Não importava que o velho não tivesse incluído Kyan no relato. Já era um fato. Ela não podia voltar e mudar o que tinha acontecido.
Os paelsianos viam Lucia como uma bruxa demoníaca tirada das sombras como uma hera odiosa. Um pesadelo e uma doença que infestavam sua terra.
Ela nem tentou discutir, uma vez que estavam totalmente certos.
A multidão começou a gritar quando Amara finalmente subiu ao palco. Lucia tentou ver o máximo que pôde da bela moça, o cabelo comprido e escuro estava solto, o vestido de seda esmeralda com uma fênix brilhante
bordada. Quando ela ergueu as mãos. As pessoas ficaram em silêncio.
Amara falou de maneira clara e intensa sobre um futuro incrível para os cidadãos de Paelsia. Lucia não acreditava nas mentiras que ela despejava, mas, ao observar em volta, viu que as pessoas aceitavam
o que era dito como quem aceita um banquete delicioso.
A imperatriz parecia muito sincera em suas promessas. Lucia admirava a facilidade com que falava sobre mudar tudo o que estava errado no mundo. Sobre tomar decisões em nome daquelas pessoas que acreditavam
em cada uma de suas palavras.
Lucia estava ali, punhos cerrados, odiando Amara e esperando a chance de descobrir o que sua inimiga tinha feito com sua família.
E então, quase no mesmo instante, as lindas e falsas palavras que Amara dizia foram interrompidas. Alguém gritou e Lucia só entendeu o que estava acontecendo quando viu um guarda cair no palco, com uma
flecha enfiada na garganta. Outro guarda caiu, e mais um.
Uma tentativa de assassinato.
Isso não pode acontecer, Lucia pensou desesperada. Preciso muito perguntar a ela. Amara não pode morrer hoje.
Com muito esforço, Lucia acessou a magia do ar. Um vento frio e abundante envolvia seus braços e mãos em espirais transparentes enquanto ela avançava pela multidão em direção ao palco, usando a magia invisível
para tirar todo mundo de seu caminho. Os guardas kraeshianos pularam na multidão assustada e confusa com armas em punho e só provocaram mais pânico. Eles derrubavam quem os enfrentava ou cruzava seu caminho,
fossem rebeldes ou civis, o que só aumentou a confusão enquanto todos tentavam fugir.
Lucia se esforçou para enxergar o que estava acontecendo no palco. Amara e uma garota muito parecida com a criada que costumava acompanhar a princesa Cleo encolheram-se diante de um jovem alto que usava
um tapa-olho preto e empunhava uma espada.
A magia do ar frio de Lucia passou para a de fogo, pronta para queimar quem a impedisse de chegar a Amara. Alguém puxou seu manto, e ela olhou para a pessoa, pronta para fazê-la arder em chamas. Nicolo
Cassian olhou para ela, uma das mãos em seu manto, a outra pressionada contra um ferimento na barriga. Quando ele tossiu, sangue espirrou de sua boca.
Um ferimento mortal.
Lucia olhou de novo para o palco, mas um som engasgado a fez virar de novo para Nic, uma vítima dos guardas sedentos por sangue ou de um paelsiano assustado.
Não importava quem tinha feito aquilo. Ela conseguiu ver, com rapidez, que o ferimento era profundo e mortal. O que aquele garoto estava fazendo justamente ali?
Lucia não tinha magia suficiente para lutar contra milhares. Levou a mão à barriga ao observar a multidão, sabendo que precisava ir para um local seguro. Muitos estavam se pisoteando para voltar aos portões.
Ela deu um passo e então percebeu que Nic ainda a segurava.
- Prin... ce... sa... - ele disse, sem fôlego.
Ela o encarou, hesitante.
- Por favor... me ajude...
A vida se esvaía de seus olhos. Nic não tinha mais muito tempo. Mas ele era amigo próximo da princesa Cleo - uma garota que Lucia já tinha considerado uma amiga verdadeira, até ser traída por ela.
Mas o pai de Lucia tinha destruído a vida de Cleo, destruído todo o seu mundo.
Cleo tinha perdido tudo no último ano. Aquele amigo era o único resquício que a princesa auraniana tinha de sua antiga vida.
Se Nic morresse, Lucia não tinha dúvidas de que isso destruiria Cleo.
Lucia detestava quando sua consciência pesava, principalmente quando isso acontecia por causa de Cleiona Bellos.
Com cuidado, ela se agachou ao lado de Nic e afastou a mão que cobria o ferimento para, em seguida, levantar a túnica. Fez uma careta ao ver todo aquele sangue e as entranhas para fora.
- Diga a Cleo - Nic disse com esforço para respirar - que eu a amo... que ela é minha família... que eu... eu sinto muito.
- Poupe seu fôlego - Lucia disse. - E diga a ela você mesmo.
Lucia pressionou o ferimento cheio de sangue e canalizou toda a magia da terra que tinha dentro de si. Nic arqueou as costas e gritou de dor, e o grito estridente se espalhou pelo caos ao redor deles.
- Pare! Por favor! - Nic tentou impedi-la, afastá-la, mas estava fraco demais. Tinha perdido tanto sangue que Lucia não sabia se teria magia suficiente para curá-lo. Mas ainda assim, tentou. O capuz caiu
de sua cabeça, revelando o cabelo e o rosto, mas ela não se deu ao trabalho de puxá-lo de volta. Esgotou a energia e a força que tinha em uma tentativa de salvar aquele rapaz.
Pelo menos até alguém arrancá-la de perto dele. Ela virou, furiosa, e ficou frente a frente com um homem feio que escancarava um sorriso mostrando os dentes.
- Vejam o que encontrei! - ele anunciou, arrastando-a para longe de Nic até ela perdê-lo de vista. - A própria feiticeira atacando outro de nós! As mãos dela estão manchadas de sangue paelsiano!
Lucia tentou invocar magia do fogo ou do ar para afastá-lo, mas nada aconteceu. Ela fechou a mão, desesperada para fugir de quem a atacava.
- Olhe para mim, bruxa! - o homem disse.
Ela lançou um olhar para o homem, mas recebeu um tabefe no rosto tão forte a ponto de fazer seu ouvido zunir.
- Amarre-a! - alguém gritou. - Queime a bruxa como ela queimou nossos vilarejos!
Desorientada, ela foi arrastada pela terra seca, tropeçando nos próprios pés até seu agressor empurrá-la para longe. Ela caiu de joelhos com tudo no meio de uma roda de pessoas furiosas. Alguém jogou uma
pedra nela, acertando o lado direito de seu rosto com força, e Lucia gritou de dor. Levou a mão ao rosto e sentiu o sangue quente.
- Não sou quem você pensa que sou - ela conseguiu dizer. Levantou as mãos à frente do corpo. - Você precisa me soltar.
- Não, bruxa. Hoje você vai morrer por seus crimes cruéis. Estamos de acordo?
A multidão que a cercava expressou aprovação com gritos. Não havia misericórdia no olhar de ninguém. Alguém entregou uma corda grossa ao primeiro agressor.
- Deixe-a de pé - ele vociferou.
Alguém atrás de Lucia a levantou e amarrou seus punhos com força.
- Meus cumprimentos, princesa - uma voz estranhamente familiar soou em seu ouvido. - Pelo visto está causando mais problemas em Paelsia.
Jonas Agallon. Ela se esforçou para virar o suficiente e ver aquele olhar tomado de ódio.
- Jonas - ela disse -, por favor, precisa me ajudar!
- Ajudar? O quê? A grande e poderosa feiticeira não consegue se cuidar? - Ele estalou a língua. - Que tragédia. Parece que essas pessoas querem vê-la morta. Queimada viva, acho que foi o que ouvi, certo?
Parece um fim adequado para uma bruxa como você.
Sua mente estava a mil.
- Onde está meu pai? Meu irmão? Você sabe?
- É a última coisa com que você deveria se preocupar, princesa. Sinceramente. - Ele a virou e resvalou a mão na barriga dela.
Jonas franziu a testa.
- Isso mesmo - ela disse, agarrando todas as oportunidades que tinha de conseguir ajuda, ainda que fosse de alguém como ele. - Vocês vão tentar celebrar minha execução tão rápido agora que sabem que uma
criança inocente morrerá comigo?
- Inocente? - O olhar de Jonas não suavizou nem um pouco. - Nada que alguém como você poderia trazer a este mundo seria inocente.
- Eu não matei aquela moça. Foi Kyan. Ele... eu não consegui controlá-lo. Eu queria que ele parasse. Sinto muito por sua perda e me arrependo do que aconteceu naquele dia. Gostaria de poder mudar as coisas,
mas não posso.
- O nome daquela moça era Lysandra. - Jonas contraiu o maxilar, e ficou em silêncio por um momento enquanto os outros homens pediam para ir a um lugar mais adequado para queimar a bruxa. - Onde está Kyan?
- Eu... eu não sei - ela disse com sinceridade.
Jonas a encarou.
- Essa criança dentro de você drena sua magia, não é?
- Como sabe disso?
Ele franziu ainda mais a testa.
- Você já teria destruído tudo aqui se tivesse acesso a seus elementia, certo?
Ela apenas assentiu.
Jonas xingou em voz baixa.
- Eles precisam de você. Estão dependendo de você. E você está aqui, como uma idiota, prestes a morrer.
Se estivessem em outro lugar, em outro momento, ela teria ficado magoada ao ser chamada de idiota.
- Então faça alguma coisa em relação a isso. Por favor.
Depois de um momento de hesitação, Jonas empunhou a espada e a apontou para o homem que segurava a corda.
- Uma pequena mudança de planos. Vou levar a feiticeira comigo.
- Sem chance - o homem resmungou.
- Não há discussão. Estou vendo que nenhum de vocês está armado no momento. - Ele observou as pessoas do grupo. - Atitude estúpida, em uma multidão assim, não carregar uma arma, mas isso torna as coisas
mais fáceis para mim. Se nos seguirem, vão morrer. - Ele arregalou os olhos para Lucia. - Vamos, princesa.
Jonas pegou o braço dela e a puxou.
- Aonde vai me levar? - ela perguntou.
- Aos seus queridos pai e irmão. Que todos vocês apodreçam juntos na escuridão.
21
CLEO
PAELSIA
Quando percebeu que Nic, Jonas e Olivia tinham partido sem contar nada sobre seus planos, Cleo não ficou magoada. Ficou furiosa.
- Minha nossa, querida, você vai abrir um buraco no chão de tanto andar de um lado para o outro.
Cleo virou e viu Selia Damora olhando para ela. A mulher a deixava nervosa, mas felizmente as duas tinham se encontrado poucas vezes desde sua chegada. Era difícil acreditar que fazia só três dias que
estavam na hospedaria. Pareciam três anos.
- Meus amigos partiram sem se despedir - Cleo respondeu tensa, forçando-se a parar de roer a unha do polegar direito. - Considero esse comportamento imperdoavelmente grosseiro e desrespeitoso. Em especial
da parte de Nic.
- Sim, Nic. O rapaz de cabelo vermelho. - Selia sorriu. - Tenho certeza de que não fez por mal. Ele parece gostar de você.
- Ele é como um irmão para mim.
- Os irmãos costumam esconder segredos das irmãs.
- Mas não o Nic. - Cleo remexeu as mãos. - Contamos tudo um ao outro. Bom, quase tudo.
- Venha sentar comigo por um momento. - Selia sentou em uma espreguiçadeira e deu batidinhas no assento ao seu lado. - Quero saber mais sobre a esposa de meu neto.
Era a última coisa que Cleo queria, mas teve que fingir amabilidade. Seria inteligente de sua parte fazer amizade com uma mulher que logo teria acesso à magia, especialmente agora que a magia de Cleo tinha
sido roubada - ainda que Selia fosse uma Damora.
Só de pensar no que Ashur tinha feito, ela tremia de raiva. Como ele tinha conseguido roubar a esfera de obsidiana sem que ela notasse? Para Cleo, aquele cristal representava poder e um futuro repleto
de escolhas e oportunidades. Mas por ser preguiçosa e desatenta, a esfera tinha sido levada de baixo de seu nariz.
E não havia absolutamente nada que pudesse fazer.
Forçando um sorriso, Cleo sentou hesitante ao lado da senhora.
Selia não disse nada por um tempo, mas observou o rosto de Cleo com cuidado.
- O que foi? - Cleo perguntou finalmente, ainda mais desconfortável do que antes.
- Eu não tinha certeza antes... mas tenho agora. Vejo seu pai em você. Seus olhos são da mesma cor dos de Corvin.
A menção a seu querido pai a deixou tensa.
- Você tinha dúvidas a respeito de quem eram meus pais?
- No que diz respeito a meu filho e a... - ela hesitou - às dificuldades dele com sua mãe, sim, claro que tive muitas dúvidas ao longo dos anos. Achei que houvesse uma chance de Gaius ser seu pai.
O horror de pensar numa possibilidade daquelas a deixou enjoada de repente.
- Meu... meu pai? - Ela cobriu a boca com a mão. - Acho que vou vomitar.
- Ele não é seu pai. Tenho certeza disso agora que estou olhando para você.
Cleo tentou se manter calma, mas a insinuação inesperada da mulher a deixara atordoada.
- Minha... minha mãe não teria... de jeito nenhum...
- Sinto muito se a perturbei com isso. Mas não prefere ter certeza de que você e Magnus estão unidos apenas pelos votos e não pelo sangue? - Ela franziu a testa. - Minha nossa, você está muito pálida,
Cleiona.
- Nem sei por que sugere uma coisa dessas - ela disse.
- Não pensei que Gaius tivesse conseguido se encontrar com Elena depois da briga que tiveram, que sei que aconteceu bem antes de ela se casar com Corvin. Mas os filhos nem sempre contam tudo à mãe sobre
assuntos do coração, nem mesmo o filho mais atencioso e amoroso.
O modo como o rei expressara o que teriam sido suas últimas palavras, seu suspiro final, o nome da mãe dela... "Sinto muito, Elena".
- Só soube que eles se conheciam recentemente - Cleo disse, tensa.
- Eles se conheceram num verão vinte e cinco anos atrás na Ilha de Lukas, quando Gaius tinha dezessete anos, e Elena, quinze. Quando voltou para casa, Gaius já estava obcecado por ela, dizendo que iam
se casar com ou sem o consentimento do pai dele.
Cleo se esforçou para continuar respirando. Aquela história não parecia plausível. Soava como uma história de um livro cheio de fantasia e imaginação.
- Meu pai nunca disse nada a respeito... - Ela franziu a testa. - Ele sabia?
- Não faço ideia do que Elena pôde ter contado a Corvin sobre seus romances anteriores. Imagino que ele descobriu a verdade no fim das contas, ainda que apenas para se preparar melhor para proteger Elena.
- Protegê-la? Como assim?
A expressão de Selia ficou mais séria.
- Elena perdeu o interesse em Gaius quando voltou para casa. Não sei por quê. Imagino que fosse apenas uma novidade passageira para ela, uma maneira de passar o verão, conquistar o afeto de um garoto apaixonado.
Nada além disso. Quando descobriu essa mudança, Gaius... não aceitou muito bem. Confesso, amo meu filho profundamente, mas ele sempre teve um péssimo lado violento. Gaius foi atrás de Elena, exigindo que
seu amor fosse retribuído e, quando ela se recusou, ele a agrediu quase a ponto de matá-la.
Cleo sentiu mais uma onda de náusea. Sua pobre mãe, sujeita ao cruel Gaius Damora em sua pior versão.
Ela nunca detestara tanto o rei.
- Só espero que meu neto não seja exageradamente cruel com você a portas fechadas, minha cara - Selia disse delicadamente. - Homens poderosos, cheios de força e perigo... costumam ter acessos de violência.
As esposas e mães torcem para sobreviver a eles.
- Sobreviver? Não pode estar falando sério! Se Magnus um dia levantasse a mão para mim, eu...
- O quê? Você mal chega na altura do ombro dele, e Magnus deve ter o dobro do seu peso. A melhor coisa a se fazer nesse caso, Cleiona, é ser o mais agradável e compreensiva possível em todos os momentos.
Todas as mulheres devem fazer isso.
Cleo endireitou os ombros e levantou o queixo.
- Não tive o grande privilégio de conhecer minha mãe, mas se ela era um pouco parecida comigo ou um pouco parecida com minha irmã, então sei que ela não teria sido o mais agradável e compreensiva possível
diante de uma agressão, não importa de quem nem quando. Nem eu! Eu mataria quem tentasse me atacar!
Selia abriu um sorriso discreto.
- Meu neto escolheu uma garota com coragem e força para amar, assim como o pai dele. Eu estava testando você, é claro.
- Me testando?
- Olhe para mim, querida. Tenho cara de quem permitiria que um homem levantasse a mão para me bater?
- Não - Cleo respondeu com sinceridade.
- Exato. Fico feliz por termos conseguido conversar hoje, minha querida. Agora já sei tudo o que preciso saber.
Ela estendeu o braço, apertou a mão de Cleo e então saiu da sala.
Aquela tinha sido a conversa mais esquisita de toda a vida de Cleo.
- Talvez eu vá à taverna sozinha hoje - ela murmurou. - Por que Magnus é o único aqui que pode beber vinho em uma tentativa tola de fugir dos problemas?
Quando levantou, algo chamou sua atenção do lado de fora, nos fundos da hospedaria. Ela deu um passo para a frente. Olivia estava no quintal. Estranhamente, a moça não usava nada além de um lençol branco
enrolado no corpo, lençol que Cleo reconheceu das roupas de cama que a esposa do dono da hospedaria lavava todos os dias.
Independentemente da vestimenta, ver Olivia foi um grande alívio. Cleo levantou e saiu para se aproximar, observando ao redor com curiosidade.
- Olivia! Nic e Jonas estão com você? Aonde vocês foram?
A expressão de Olivia era de grande incerteza.
- Preciso sair de novo imediatamente, mas quis voltar antes para ver você.
- O quê? Aonde está indo?
- Está na hora de eu voltar para a minha casa. O caminho e o destino de Jonas se encontraram com sucesso, e meu tempo com ele está acabando.
- Desculpe. - Cleo balançou a cabeça, confusa. - O destino de Jonas? Do que você está falando, afinal?
- Não cabe a mim explicar essas coisas. Só sei que não posso mais cuidar dele, uma vez que talvez me sinta tentada a interferir. - Ela franziu a testa. - Isso deve soar ridículo para você. Sei que não
sabe quem sou de verdade.
- Você quer dizer que é uma Vigilante?
Olivia olhou para Cleo.
- Como sabe disso?
Cleo riu com hesitação ao ver a expressão de choque de Olivia.
- Jonas me contou. Ele confia em mim, você também deveria confiar. Prometo guardar seu segredo surpreendente, mas, por favor, me diga o que está acontecendo. Está chateada só por deixar Jonas?
- Não, não é o único motivo. Eu... eu fui ao complexo com Nic e Jonas, onde a imperatriz está no momento.
Cleo arregalou os olhos.
- Era onde você estava? Que plano imbecil foi esse?
- O príncipe Magnus ameaçou Nic - Olivia explicou. - Ele ameaçou você também, caso Nic não fosse atrás de Ashur para recuperar os cristais da Tétrade.
Cleo franziu a testa.
- Não pode ser. Magnus não faria isso.
- Garanto que fez. Caso contrário, Nic nunca teria se afastado de você. - Os olhos verde-esmeralda de Olivia brilharam de ódio. - É culpa do príncipe que isso tenha acontecido. Perdi Nic na multidão durante
a tentativa de assassinato de Amara. Eu o vi por apenas um momento quando ele foi atingido por uma lâmina. Eu... eu acredito que tudo terminou depressa.
Cleo balançou a cabeça quando a palma de suas mãos começou a arder e a suar.
- O quê? Não entendo. Ele foi atingido por uma lâmina? Que lâmina? Do que está falando?
A expressão de Olivia era só pesar.
- Nic está morto. Ele é um dos muitos mortos depois que os rebeldes fizeram uma tentativa de assassinato a Amara. Preciso sair de Mítica agora e peço a você que faça o mesmo. Você não está em segurança
aqui com alguém como Magnus, que mataria um rapaz como Nic. Não está certo, princesa, nada disso está certo. O mundo está fora de controle, e eu temo que seja tarde demais para salvá-lo. Sinto muito por
dizer isso, mas achei que você merecia saber.
Olivia soltou a mão de Cleo e deu alguns passos para trás, com uma expressão atormentada.
- Fique bem, princesa - ela disse. Depois disso, a pele escura e impecável se transformou em penas douradas, e seu corpo se transformou no de um falcão, e ela alçou voo.
Cleo a observou, surpresa demais com o que tinha ouvido para apreciar a magia verdadeira e inegável revelando-se diante de seus olhos.
Ela não sabia ao certo quanto tempo ficou em silêncio no pátio, olhando para o céu claro, até voltar para a hospedaria com dificuldade. Seus joelhos fraquejaram antes que ela alcançasse uma cadeira.
Seu corpo inteiro tremia, mas ela não chorou. Eram informações demais para processar. Inacreditável demais. Não podia ser verdade. Se fosse, se Nic estivesse morto, então ela também queria morrer.
- Você está bem? O que aconteceu?
Quando se deu conta do que estava acontecendo, Cleo percebeu que tinha sido levantada do chão por dois braços fortes.
- Está ferida? - Magnus afastou o cabelo dela da testa, envolvendo seu rosto com as mãos. - Que droga, Cleo, responda!
Confusa, ela percebeu a preocupação nos olhos castanhos profundos dele.
- Magnus... - ela começou, a respiração profunda e trêmula.
- Sim, meu amor. Fale comigo. Por favor.
- Diga a verdade.
- Claro. O quê? O que você precisa saber?
- Você ameaçou me matar se Nic não fosse atrás de Ashur?
A expressão sofrida dele, totalmente concentrada nela, aos poucos deu lugar à frieza da máscara que ele usava para encobrir suas emoções.
- Ele disse isso? Ele voltou?
- Responda. Você me ameaçou ou não?
Magnus encarou os olhos furiosos dela.
- Cassian precisava da motivação certa.
- Isso é um sim.
- Eu disse o que ele precisava ouvir para resolver a questão. Para...
Cleo deu um tapa tão forte no rosto dele que sua mão ardeu. Magnus levou a mão ao rosto e olhou para ela, atônito.
Ele franziu o cenho.
- Você ousa...
- Ele está morto! - Cleo gritou antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa. - Por causa do que você disse! Meu último amigo no mundo inteiro está morto por sua causa!
Ele parecia confuso.
- Não pode ser.
- Não pode? As pessoas não morrem quando se aproximam de você e de sua família monstruosa? - Ela passou os dedos pelo cabelo, desejando arrancá-lo pela raiz, desejando sentir dor física para poder se concentrar
em algo que não fosse seu coração despedaçado.
- Quem contou isso a você? - Magnus perguntou.
- Olivia voltou. Ela foi embora, então não pode forçá-la a fazer o que você quer.
- Olivia. Sim, bom, não sei quem Olivia é. Nem você. Só sabemos que ela é aliada de Jonas, um garoto que me odiava a ponto de me querer morto até pouco tempo atrás. Até onde sei, esse objetivo não mudou.
- Por que ela mentiria sobre algo assim? - A voz da princesa falhou.
- Porque as pessoas mentem para conseguir o que querem.
- Imagino que você saiba bem disso.
- Sim, e penso o mesmo sobre você, princesa - ele disse. - Entre nós dois, acho que você mentiu muito mais do que eu. Além disso, devo dizer que você viu Ashur morrer com seus próprios olhos, mas ele ainda
está vivo. Não existem provas de que Nic está morto. Só tem as palavras de alguém. Não se pode confiar em palavras, não nas palavras de qualquer um.
- Essa é a sua resposta? - Cleo olhou para ele, percebendo que mal conhecia a pessoa à sua frente. - Digo que um garoto que era como um irmão para mim foi morto por sua causa e você diz simplesmente que
mentiram para mim?
- É o que parece, não é?
- Você não assume responsabilidade por todo o mal que causou. Nunca! - Ela se esforçou ao máximo para se manter firme, para não se perder na dor e na raiva que entravam em conflito dentro dela. - Tentei
ver seu lado bom, mas você fez algo imperdoável. Vá em frente! - ela vociferou. - Tente se defender! Diga que Nic odiava você, então por que não desejaria que ele morresse? Vamos lá, faça isso!
- Não vou negar. A vida seria muito mais simples para mim se aquela pedra no meu sapato fosse retirada de uma vez por todas. Mas eu nunca desejaria a morte dele, porque sei como gosta dele.
- Gosto dele? Eu amo! - ela gritou. - E se ele realmente estiver morto, eu...
- O quê? Vai perder o resto de esperança que ainda tem? Vai se encolher e morrer? Por favor, você tem muito a ganhar ficando viva, lutando, mentindo e continuando a me usar sem pudor para conseguir o que
posso lhe dar.
Cleo olhou para ele, abismada.
- Usar você?
Magnus ficou sério.
- Você quer poder, magia. Ao ficar aqui comigo e tolerar a existência de meu pai, sabia que isso a levaria ao que deseja. Quando os cristais da Tétrade foram roubados, principalmente por sabermos o que
sabemos sobre eles, o que eu deveria pensar? Que você continuaria aqui para sempre? Fiz o que fiz por você, para ajudá-la a reaver sua chance de ter poder. Ashur parece valorizar Nic por motivos que não
compreendo. Se tem alguém que consegue entender aquele kraeshiano doido, eu sabia que era seu amigo querido. O mesmo amigo que mandou Taran cortar meu pescoço, devo relembrar.
Ele falava com Cleo como um desconhecido furioso, não como alguém que ela tinha passado a valorizar.
- E agora está me culpando por isso. Como ousa?
Magnus bufou.
- É impossível discutir com você.
- Então nem tente. Você não pode consertar isso, Magnus. Não pode nem começar.
- Se Nic ainda estiver vivo...
- Não importa. - Lágrimas correram por seu rosto. - Isso provou como somos diferentes. Você é incansavelmente cruel e manipulador, e agora vejo que isso nunca vai mudar.
- Posso ser sincero, princesa? Eu poderia dizer exatamente a mesma coisa sobre você. Talvez você preferisse que eu lidasse com o conflito colhendo flores e cantando, mas não sou assim. E você tem razão:
nunca vou mudar. Nem você. Uma hora você diz que me ama, mas prefere que cortem sua língua a contar esse segredo, até mesmo a seu amigo mais íntimo. Pelo amor da deusa! Que Nic não descubra que você se
mistura com pessoas como eu! Ele detestaria você por isso?
Cleo secou as lágrimas, irritada consigo mesma por demonstrar tamanha fraqueza.
- É muito provável que sim.
- Então isso prova que, entre ele e eu, você o escolheria.
- Num piscar de olhos - ela disse imediatamente. - Mas ele está morto.
Um músculo no rosto dele se contraiu.
- Talvez. E Jonas? Não pude deixar de notar que você estava praticamente sentada no colo dele ontem, sussurrando palavras de amor e incentivo.
- É o que você...? - Ela corou. - Jonas é muito mais homem do que você! Eu preferiria dormir com ele a dormir com você. Em qualquer dia, em qualquer momento. E nenhuma maldição me impediria.
- Vá para o inferno, Cleo. - O ódio tomou conta do olhar dele, que já estava frio. Magnus levantou o punho, os dentes travados em uma expressão feroz.
- Vamos - ela vociferou. - Bata em mim como seu pai batia na sua mãe. Você sabe que é o que quer.
- Como é? - Ele franziu a testa, olhou para o próprio punho com surpresa e o abaixou em seguida. - Eu... eu nunca agrediria você.
- Chega - ela disse, num sussurro. - Estou cansada daqui. Preciso pensar. - Ela se virou em direção à escadaria que levava aos quartos.
- Cleo... - Magnus chamou. - Vamos descobrir a verdade sobre Nic. Prometo.
- Eu já sei a verdade.
- Eu sei que posso ser horroroso às vezes. Eu sei. Mas... eu amo você. Isso não mudou.
Os ombros dela ficaram tensos.
- O amor não basta para consertar isso.
Sem olhar para trás, Cleo caminhou com o máximo de calma e lentidão até seu quarto e trancou a porta quando entrou.
22
JONAS
PAELSIA
Jonas teve que sair do complexo antes de encontrar Nic. Eles tinham sido separados depois da revolta rebelde. A multidão à espera da imperatriz tinha entrado em pânico, e as pessoas começaram a lutar umas
contra as outras e contra os guardas kraeshianos.
Sua visão do palco estava bloqueada, e ele se viu frente a frente com paelsianos irados e com a feiticeira que queriam matar.
- Pode olhar para mim com ódio - Lucia disse a ele enquanto se afastavam da confusão.
- Que bom que permite.
- Você me odeia. E, ainda assim, você salvou minha vida.
- É provável que eu tenha salvado a vida de uma dúzia de paelsianos que subestimaram sua capacidade de matar cada um deles.
- E você não me subestima?
- Não.
- Então sugiro que você me diga onde meu pai e meu irmão estão para que não tenha que colocar sua vida em risco por nenhum segundo a mais em minha companhia.
Jonas sabia que ela poderia cumprir uma ameaça, se quisesse. Ele temia quando pensava no poder daquela garota e no prejuízo e na destruição pela qual a responsabilizavam.
- Onde está o deus do fogo? - ele sussurrou.
Lucia arqueou as sobrancelhas. Jonas percebeu que ela estava chocada por ele saber quem - ou melhor, o que - Kyan era de fato.
- Já disse que não sei.
- Ele é o pai de seu filho?
Lucia deu uma risada alta e nervosa.
- Com certeza não.
- Não vejo graça nenhuma nisso.
- Não se engane, rebelde, nem eu.
- Continue andando - ele disse quando Lucia diminuiu o ritmo. - Pelo jeito você está pesada demais para ser carregada.
A resposta de Lucia ao insulto foi parar totalmente. Os dois tinham adentrado uma parte densa da floresta a caminho da cidade mais próxima, onde Jonas pretendia conseguir transporte para o oeste.
- Responda à minha pergunta: onde estão meu pai e meu irmão? Sei que ainda estão vivos. Só podem estar.
- Se eu responder à sua pergunta, que certeza posso ter de que você não vai acabar com a minha vida? - ele perguntou.
- Nenhuma.
- Exatamente. Por isso mesmo vou levá-la até eles.
Lucia se surpreendeu.
- Então eles estão vivos!
- Talvez - ele disse.
- E como posso acreditar que você quer me ajudar?
Jonas virou e levantou o dedo indicador para ela.
- Não se engane, princesa Lucia, não estou fazendo isso para ajudá-la. Estou fazendo isso para ajudar Mítica.
Ela revirou os olhos.
- Que nobre.
- Pense o que quiser. Não me importa. Você se recusa a responder às minhas perguntas, então me recuso a responder às suas. Nosso destino final não está muito longe, mas você precisa encontrar uma maneira
de lidar com minha presença e com meu ódio durante o trajeto que vamos percorrer juntos.
- Acho que não. Vou contar um segredinho para você, rebelde, a respeito de uma habilidade especial que descobri recentemente. Posso forçar você a dizer a verdade... e quanto mais resistir, mais vai doer.
Jonas virou para encará-la de novo, mais irritado do que intimidado.
- Você sempre foi má assim ou só começou quando descobriu que era uma feiticeira?
- Sinceramente? - Ela abriu um sorriso frio. - Só depois.
- Acho difícil acreditar nisso. Você e sua família... são maldade pura, todos vocês.
- E ainda assim você está nos ajudando. - Lucia franziu a testa discretamente. - Pelo menos, diga que estão bem, que saíram ilesos depois de tudo o que aconteceu.
- Ilesos? - Ele sorriu com ironia. - Não sei de nada. Finalmente tive a chance de enfiar uma adaga no coração do rei. Por azar, isso só o atrapalhou um pouco.
Os olhos dela brilharam, furiosos.
- Mentira.
- Bem aqui. - Ele indicou o peito. - Certeiro e profundo. Até girei. Foi tão bom que não consigo nem explicar.
Um instante depois, ele se viu no ar, voando até bater as costas no tronco de uma árvore com força suficiente para tirar seu fôlego.
Lucia se ajoelhou ao lado dele, apertando sua garganta.
- Olhe para mim.
Desorientado, Jonas encarou os olhos azul-claros dela.
- Diga a verdade - ela rosnou. - Meu pai está morto?
- Não. - A palavra foi dita com dificuldade.
- Você o apunhalou no coração mas ele não morreu?
- Exatamente.
- Como isso é possível? Responda!
Jonas não conseguia desviar daqueles olhos lindos e assustadores. A magia que ela tinha perdido - se é que isso de fato havia acontecido - estava de volta. E Lucia estava bem mais forte do que ele esperava.
- Algum tipo de magia... Não sei. Isso prolongou a vida dele.
- Magia de quem?
- Da mãe.... dele. - Jonas tinha certeza de que estava sentindo gosto de sangue, forte e metálico. Ele engasgou enquanto tentava resistir à magia.
Ela franziu ainda mais a testa.
- Minha avó morreu.
- Ela está viva. Não sei muito mais do que isso. - Ele fez uma careta pela dor de estar contando todas aquelas verdades. - Agora, me faça um favor, princesa.
Ela inclinou a cabeça, mas não cedeu nem um pouco.
- Dificilmente.
Jonas semicerrou os olhos e tentou, com toda a força, canalizar a própria magia como tinha feito sem querer no navio com Felix.
- Me solte.
Lucia soltou Jonas e caiu para trás como se tivesse sido empurrada pelo rebelde.
Tossindo e com a mão no pescoço, Jonas levantou e olhou para ela.
Percebeu que esboçava um sorriso. Olivia deveria estar enganada sobre o poder de sua magia. Jonas se permitiu um breve momento de vitória.
Lucia o encarou, com os olhos arregalados.
- Você pode canalizar a magia do ar? Um bruxo? Nunca soube sobre algo assim... Ou você é um Vigilante exilado?
- Prefiro evitar títulos, princesa - ele disse. - E, francamente, não sei o que sou, só que tenho que lidar com isso agora. - Ele levantou a camisa o suficiente para revelar a marca em espiral em seu peito,
que tinha ficado mais brilhante desde a última vez em que ele olhara, e agora cintilava num tom dourado que o fazia lembrar cada vez mais da marca de um Vigilante.
- O quê? - Lucia balançou a cabeça com os olhos arregalados. - Não compreendo.
- Nem eu. E juro, se essa é minha profecia, cuidar para que alguém como você volte para sua odiosa família sã e salva, vou ficar furioso. - Ele olhou para cima, para as árvores. - Olivia, está me ouvindo
onde quer que esteja? É a pior profecia do mundo!
- Quem é Olivia?
- Deixa para lá. - Ele olhou para Lucia, ainda deitada no chão. - Levante.
Ela tentou ficar de pé.
- Hum...
- Não consegue levantar, não é?
- Me dê um minuto. Minha barriga está um pouco esquisita no momento. - Lucia olhou feio para ele. - E, por favor, nem pense em me ajudar.
- Não pensei. - Jonas ficou observando enquanto ela rolava devagar e com dificuldade para o lado, e então levantava, batendo no manto para tirar as agulhas de pinheiro e a terra. - Você ainda não está
acostumada com sua situação? Já vi paelsianas grávidas, a poucos dias de dar à luz, cortando madeira de uma árvore inteira e carregando para casa.
- Não sou uma paelsiana - ela disse e hesitou. - Bem, não exatamente. E não tive tempo de me acostumar com minha "situação", como você diz.
Que moça esquisita.
- Você está grávida de quantos meses?
- Não que seja da sua conta, mas... cerca de um mês.
Jonas olhou para o corpo dela sem acreditar.
- É assim que funciona com as feiticeiras cruéis? Os bebês delas se desenvolvem muito mais depressa do que os bebês normais?
- Não tenho como saber. - Lucia cruzou os braços como se tentasse proteger a barriga. - Compreendo seu ódio por mim. Compreendo o ódio de todos por mim. O que fiz desde... desde que o pai desta criança
morreu é imperdoável. Sei disso. Mas essa criança é inocente e merece uma chance de viver. O fato de você, logo você, ter vindo ajudar alguém como eu... Você está marcado como imortal, mas afirma não ser
bruxo nem exilado. Isso deve significar alguma coisa. Você fala sobre profecias. Sei bem que sou o alvo de profecias. Para mim, isso quer dizer que essa criança é importante para o mundo.
- Quem é o pai? - Jonas perguntou. Ele não queria sentir pena pelo que Lucia estava passando nem deixar que a voz dela o emocionasse.
- Um imortal exilado.
- E você disse que ele está morto.
Ela assentiu uma única vez.
- Como? - Jonas perguntou. - Você o matou?
Lucia ficou em silêncio por tanto tempo que ele achou que ela não responderia.
- Não. Ele tirou a própria vida.
- Interessante. É essa a única maneira de escapar de suas garras sombrias?
O olhar de ódio de Lucia o fez recuar. Mas era mais do que isso. Os olhos dela estavam vermelhos, numa mistura de cansaço e tristeza.
- Desculpa - Jonas disse antes de pensar em outra resposta. - Acho que fui desnecessariamente grosseiro.
- Foi. Mas eu não esperaria nada menos de alguém que pensa que sou cruel. O que Kyan fez com sua amiga...
- Lysandra - ele disse com a voz embargada. - Ela era incrível... A garota mais forte e corajosa que já conheci. Ela merecia a vida que Kyan lhe roubou sem um segundo de hesitação. Ele estava mirando em
mim, eu deveria ter morrido naquele dia, não ela.
Lucia assentiu com tristeza.
- Sinto muito. Percebo que Kyan não é uma pessoa, não é alguém com sentimentos e necessidades como as dos mortais, e não é possível discutir com ele. Kyan vê todas as falhas e imperfeições deste mundo.
Ele deseja reduzir tudo a cinzas para poder recomeçar. Diria que ele é maluco, mas é fogo. Fogo arde. Destrói. Essa é a razão de sua existência.
- Kyan quer destruir o mundo - Jonas repetiu.
Ela confirmou.
- Por isso eu o deixei. Por isso ele quase me matou quando eu disse que não o ajudaria mais.
Jonas demorou um momento para absorver a informação.
- Você diz que o fogo destrói. Mas o fogo também cozinha comida e nos aquece em noites frias. Esse tipo de fogo não é cruel, é um elemento que usamos para viver.
- A única certeza que tenho é de que ele precisa parar. - Ela levou a mão ao bolso do manto e tirou uma pequena esfera de âmbar. - Esta era a prisão de Kyan.
Jonas ficou sem palavras por um momento.
- E você acha que pode prendê-lo de novo aí dentro e salvar o mundo?
- Pretendo tentar - ela disse apenas.
Ele observou o rosto de Lucia, determinado e sério olhando para a esfera de cristal. Ela parecia muito sincera. Podia acreditar nela?
- Pelo que sei a respeito do deus do fogo, a imperatriz não parece ser grande ameaça, certo?
Lucia guardou a esfera no bolso de novo.
- Ah, Amara provou que é uma ameaça. Mas Kyan é bem pior. Por isso, pode me considerar cruel, rebelde. Pode me considerar alguém que precisa morrer pelos crimes que cometi. Tudo bem. Mas saiba também que
quero tentar consertar parte do que fiz agora que consigo pensar com clareza de novo. Primeiro, preciso ver minha família. Preciso... - As palavras de Lucia foram interrompidas quando ela se inclinou para
a frente e chorou.
Jonas correu para o lado dela.
- O que foi?
- Dói! - ela disse. - Está acontecendo com muita frequência desde que saí. Ah... ah, minha nossa! Não consigo...
Lucia caiu de joelhos com as mãos na barriga.
Jonas olhou para ela, sentindo-se totalmente impotente.
- Droga. O que posso fazer? O bebê já está nascendo? Por favor, não me diga que o bebê já está nascendo.
- Não, não está... Acho que ainda não está na hora. Mas isso... - Quando ela gritou, o som atingiu Jonas como uma lâmina fria. - Me leve para minha família! Por favor!
O rosto da princesa estava pálido como papel em contraste com seu cabelo escuro. Ela revirou os olhos e caiu, inconsciente.
- Princesa - ele disse, tentando acordá-la. - Vamos, não temos tempo para isso.
Lucia não acordou.
Jonas virou e olhou para o conflito. Não demoraria muito para a multidão paelsiana encontrar armas e sair em busca dele e da feiticeira.
Finalmente, xingando em voz baixa, ele se abaixou e pegou a princesa nos braços, percebendo que ela era muito mais leve do que imaginava, mesmo com o bebê que esperava.
- Não temos tempo para ir até sua família - ele disse. - Por isso vou levá-la à minha. Estão muito mais perto.
A irmã de Jonas, Felicia, abriu a porta de casa e observou Jonas por um momento, em silêncio total.
Em seguida, olhou para a garota grávida e inconsciente que ele carregava nos braços.
- Posso explicar - ele se apressou em dizer.
- Espero muito que possa. Entre. - Ela abriu mais a porta para Jonas entrar, tomando o cuidado de não bater as pernas de Lucia no batente.
- Deixe-a na minha cama - Felicia disse a Jonas. Ele fez o que sua irmã disse e voltou até ela, mas a irmã não o recebeu com um abraço. Simplesmente ficou ali, a expressão séria e furiosa, os braços cruzados.
Jonas não esperava que ela ficasse feliz ao vê-lo.
- Sinto muito por não ter vindo visitá-la - ele começou.
- Não tenho notícias suas há quase um ano e você aparece hoje de repente.
- Precisava de sua ajuda. Com... a garota.
Ela riu.
- Sim, com certeza precisa. O filho é seu?
- Não.
Ela não pareceu convencida.
- E o que você espera que eu faça por ela?
- Não sei. - Ele coçou a testa e começou a andar de um lado para o outro na casa pequena. - Ela não está bem. Sentiu dor na barriga e desmaiou. Eu não sabia o que fazer.
- Por isso a trouxe para cá.
- Eu sabia que você me ajudaria. - Ele suspirou nervoso. - Sei que você está brava comigo por eu ter passado muito tempo longe, mas era perigoso demais voltar.
- Sim, eu vi seus cartazes de procurado. O que era aquilo? Dez mil cêntimos para quem capturasse você, morto ou vivo?
- Mais ou menos isso.
- Você matou a rainha Althea.
- Não matei. É uma longa história.
- Imagino.
Ele observou ao redor, à procura de algum sinal do marido da irmã.
- Onde está Paolo?
- Morto.
Jonas a encarou.
- O quê?
- Foi tirado de mim, forçado a trabalhar para a Estrada Imperial. Eles queriam o nosso pai também, mas decidiram que, devido à idade e ao fato de mancar, ele era inútil. Paolo não voltou quando os operários
finalmente foram liberados de suas tarefas. O que devo pensar além de que foi morto com os outros paelsianos que eram tratados como escravos?
Jonas olhou para ela em choque. Paolo foi um bom amigo quando a vida era difícil, mas simples.
- Felicia, sinto muito. Eu não imaginava...
- Não, tenho certeza de que não imaginava. Assim como tenho certeza de que não pensou que manter aquela princesa dourada presa em nosso abrigo quase causaria a morte dele também.
- Claro que eu não sabia disso. - Ele olhou para o chão de terra. - Você... você disse que nosso pai não foi levado?
- Não foi, mas assim que soube da morte do chefe, ficou muito doente... doente de pesar, diferente de qualquer coisa que tenha sentido quando a mamãe e o Tomas morreram. É como se a vontade que ele tinha
de viver tivesse desaparecido. Eu o perdi faz dois meses. Agora cuido do vinhedo. São dias sobrecarregados, Jonas, com pouca ajuda.
Seu pai tinha morrido e Jonas não ficara sabendo. Ele sentou numa cadeira deixando o peso do corpo desabar.
- Sinto muito por não ter estado ao seu lado. Não sei o que dizer.
- Não há nada a dizer.
- Quando isso acabar, quando este reino voltar a ser como deveria, vou voltar. Vou ajudar você a cuidar da vinícola.
- Não quero sua ajuda - ela respondeu, e a raiva que Felicia estava controlando até aquele momento transbordou. - Consigo me virar sozinha. Bom, acho que já conversamos mais do que o suficiente. Vamos
cuidar de seu problema para você poder ir embora o mais rápido possível. Não sou curandeira, mas já ajudei muitas mulheres grávidas.
- O que você puder fazer para ajudar será muito bem-vindo. Eu só esperava que você soubesse acabar com a dor.
- Algumas gestações são mais difíceis do que outras. Quem é ela? - Ela lançou um olhar incisivo para ele quando não obteve resposta. - Diga, Jonas, ou mando você embora.
Felicia estava diferente, mais dura, mais zangada. Cada palavra dita por ela fazia Jonas se encolher.
Ele se sentia um idiota por pensar que quando voltasse nada teria mudado, mesmo depois de tanto tempo. Pensou em enviar uma mensagem, perguntar como as coisas estavam, mas não o fez. E o tempo tinha passado.
- Ela é Lucia Damora - ele respondeu com sinceridade, já que devia isso a Felicia.
Ela arregalou os olhos, chocada.
- O que você estava pensando ao trazer essa bruxa má aqui para dentro? Ela não é bem-vinda em minha casa. Tem noção do que ela fez? Um vilarejo que fica a menos de vinte quilômetros daqui foi incendiado.
Todos os moradores foram mortos por causa dela. Ela merece morrer pelo que fez.
Cada palavra parecia um golpe, e Jonas não tinha o que argumentar.
- Talvez sim, mas no momento a magia dela é necessária para salvar Mítica. Para salvar o mundo. Você não deixaria uma criança inocente sofrer por causa das escolhas da mãe, deixaria?
Ela deu uma risada seca.
- Ouça só você, defendendo uma princesa real... De Limeros, ainda por cima! Quem é você, Jonas? No que meu irmão se transformou?
- Amara não pode controlar Mítica - ele disse. - Estou disposto a fazer o que for preciso para impedi-la.
- Você está cego como uma toupeira, irmão. A imperatriz é a única que pode salvar a todos nós. Ou será que você esqueceu o passado com tanta facilidade agora que sua cabeça está tomada por aquela droga
cruel que está dormindo na minha cama?
- Minha cabeça não está tomada por ninguém - ele resmungou. - Mas sei o que é certo.
- Então precisa acordar. A imperatriz é o melhor que já aconteceu em Paelsia há gerações.
- Você está errada.
- Não estou errada - ela disse, e a raiva em sua voz finalmente deu lugar ao cansaço. - Mas não vou me dar ao trabalho de convencê-lo de algo que sei que é certo. Você se perdeu de nós, Jonas. Consigo
ver em seus olhos. Você não é o mesmo garoto que cresceu desejando ser como Tomas, que ia caçar com ele na fronteira de Auranos, que ia atrás de todas as garotas do vilarejo. Não sei mais quem você é.
Ele sentiu uma pontada no peito ao pensar que a tinha decepcionado tanto.
- Não diga isso, Felicia.
Ela deu as costas para ele.
- Vou deixar você e aquela criatura passarem a noite aqui. E só. Se ela morrer por causa da dor que está sentindo, então deixe-a morrer. O mundo vai ficar melhor sem ela.
Jonas deitou no chão de terra, ao lado do fogo, a mente em disparada.
Quando chegou ali, pelo menos tinha um senso de direção, de propósito. Precisava levar Lucia até a família dela.
Os Damora. O Rei Sanguinário que tinha oprimido seu povo. Que tinha assassinado o chefe Basilius. Que tinha mentido para dois exércitos sobre os motivos que deram início a uma guerra com os auranianos.
Felicia tinha razão. Amara Cortas tinha acabado com tudo aquilo ao ocupar Paelsia.
Como foi que ele pegou aquele caminho? Era um rebelde, não o criado tímido de um rei sádico.
Jonas demorou muito para conseguir dormir. Em um sonho, ele se viu em um campo verdejante sob o céu azul e límpido. Ao longe, uma cidade que parecia feita de cristal brilhava sob o sol.
- Jonas Agallon, finalmente nos conhecemos. Olivia me contou muito sobre você. Sou Timotheus.
Jonas virou e viu um homem que parecia só alguns anos mais velho do que ele. Seu cabelo tinha um tom bronze escuro, os olhos, acobreados. Usava vestes que desciam até a grama cor de esmeralda.
- Você está em meu sonho - Jonas disse devagar.
Timotheus arqueou uma sobrancelha.
- Que dedução brilhante. Sim, estou.
- Por quê?
- Imaginei que teria muitas perguntas para me fazer.
Apesar de tudo o que sentia por estar frente a frente com o imortal sobre o qual Olivia havia contado pouco, não sentiu surpresa nem cansaço.
- Perguntas que você vai responder?
- Algumas, talvez. Outras, provavelmente não.
- Não, tudo bem. Só me deixe dormir. Estou cansado e não quero ter que desvendar enigmas.
- O tempo está passando. A tempestade está quase aqui.
- Você fala assim, tão vago e irritante, com todo mundo?
Timotheus inclinou a cabeça.
- Na verdade, sim. Falo, sim.
- Não gosto. E não gosto de você. O que quer que isso seja - Jonas indicou a marca em seu peito -, quero que desapareça. Não quero nenhuma ligação com sua gente. Sou paelsiano. Não sou um Vigilante, nem
bruxo, nem o que você acha que sou.
- Essa marca torna você muito especial.
- Não quero ser especial.
- Você não tem escolha.
- Sempre tenho escolha.
- Seu destino está escrito.
- Vá se ferrar.
Timotheus hesitou.
- Olivia disse que você é irredutível em suas observações. No entanto, tenho certeza de que percebeu que agora tem um pouco de magia. A magia de Phaedra. A magia de Olivia. Você as absorveu como uma esponja.
Sua condição é rara e, repito, especial. As visões que tive de você são importantes.
- Certo. As visões. A profecia na qual levo Lucia Damora para a família dela.
- É o que você acha?
- Parece que é aonde meu destino está me levando.
- Não, não exatamente. Você vai saber quando acontecer. Vai sentir...
- O que sinto no momento é a necessidade de enfiar uma faca na sua barriga. - Jonas olhou para o imortal. - Ousa entrar no meu sonho agora, depois de todo esse tempo? Olivia me ajudou a ficar vivo, seguindo
o que você mandou. Acho que ela não precisa mais de mim. Ou talvez esteja me espionando lá de cima como um falcão, como todos vocês fazem. A única coisa da qual tenho certeza é que estou cansado disso.
Não importa o que você tem a dizer. Você espalha meias verdades como se a vida dos imortais fosse uma brincadeira.
Timotheus falou mais baixo.
- Não é uma brincadeira, meu jovem.
- Ah, não? Prove! Diga qual é meu destino, se acha que não posso evitá-lo.
Timotheus o observou.
- Não previ a gravidez de Lucia - ele admitiu. - Foi uma surpresa para mim, assim como tenho certeza de que foi para ela. Foi mantida em segredo de todos nós pelos Criadores, e deve haver um motivo para
isso... um motivo importante. Eu via você como alguém que ajudaria Lucia durante a tempestade...
- De que tempestade está falando?
Timotheus levantou a mão.
- Não me interrompa. Estou sendo sincero com você como nunca fui com ninguém, porque agora vejo que não há tempo para mais nada.
- Então, desembucha - Jonas disse. Ele estava frustrado com tudo na vida, e ele queria descontar naquele imortal pomposo.
- O filho de Lucia terá muita importância. Muitos desejarão sequestrar a criança ou matá-la. Você vai proteger essa criança do perigo e vai criá-la como se fosse seu filho.
- É sério? E Lucia e eu seremos o quê? Vamos nos casar e viver felizes para sempre? Duvido.
- Não. Lucia vai morrer no parto na próxima tempestade. - Ele afirmou com firmeza, franzindo a testa. - Estou vendo agora, claramente. Antes eu achava que a magia dela pudesse ser transferida a você no
momento da morte, transformando você em um feiticeiro que pudesse caminhar entre os mundos, cujo destino fosse aprisionar os deuses da Tétrade depois de serem libertados. Mas a magia de Lucia vai perdurar
no filho dela.
Jonas o encarou boquiaberto, surpreso com a revelação.
- Ela vai morrer?
- Sim. - Timotheus deu as costas para ele. - É só o que posso contar. Boa sorte, Jonas Agallon. O destino de todos os mundos está nas suas mãos agora.
- Não, espere! Tenho perguntas! Você precisa me contar o que tenho que fazer...
Mas Timotheus desapareceu naquele instante, assim como o campo e a cidade à distância.
Jonas acordou e viu a irmã o chacoalhando.
- Amanheceu - ela disse. - Sua amiga está acordada. Está na hora de vocês saírem da minha casa.
C O N T I N U A
11
JONAS
MAR PRATEADO
Devagar, a luz voltou a seu mundo, e Jonas abriu os olhos. Olivia o encarava com ternura e alívio.
- Fico feliz de ver que finalmente voltou para nós - ela disse.
Ele resmungou e estendeu os braços.
- Fiquei inconsciente por quanto tempo?
- Quatro dias.
Ele arregalou os olhos e sentou com um pulo.
- Quatro dias?
Ela fez uma careta.
- Você não ficou inconsciente o tempo todo, se isso melhora a situação. Acordou algumas vezes, delirante e agitado.
- Não, isso não melhora em nada, na verdade. - Jonas levantou do catre e cambaleou até o espelho. A estranha espiral ainda estava em seu corpo, agora muito mais intricada e com um desenho muito mais detalhado
do que o símbolo simples da magia do ar. Ele tinha esperanças de que não tivesse passado de um pesadelo.
- Eu tenho a marca de um Vigilante - ele disse.
- Então você sabe o que é.
- Phaedra tinha uma. - A Vigilante que tinha sacrificado a vida imortal para salvar a dele tinha provado quem (e o que) era ao mostrar sua marca a Jonas. Mas a dela era diferente. Tinha a mesma forma,
mas era uma marca dourada que se movimentava em círculos sobre a pele, como se quisesse provar suas origens mágicas. - E sei que você tem uma também.
- Tenho. - Olivia abriu um pouco o manto e mostrou um pequeno pedaço de uma marca dourada sobre a pele escura. Ele havia tido apenas alguns vislumbres da espiral, quando Olivia se transformava em falcão.
Jonas deu as costas para o espelho para encarar os olhos cor de esmeralda da Vigilante.
- Não vou implorar, Olivia. Vou simplesmente pedir para você, por favor, falar mais sobre isso, sobre a profecia que existe sobre mim. Tentei negar que fosse real, mas agora preciso saber. O que está acontecendo
comigo? Eu estou... - Ele se esforçou para verbalizar os pensamentos. - Estou me transformando em um de vocês?
A ideia soava tão absurda que Jonas se arrependeu de suas palavras assim que as proferiu. Mas o que mais poderia pensar?
Ela torceu as mãos e, por um instante, Jonas achou que Olivia pudesse tentar escapar, assumir a forma de falcão e sair voando para evitar suas perguntas. Mas, em vez disso, ela suspirou e sentou na beirada
do catre enquanto ele esperava em pé, tenso, perto da escotilha.
- Não exatamente - ela respondeu. - Mas você é, de fato, um mortal raro, Jonas Agallon. Tocado por nossa magia em dois momentos muito vulneráveis de sua vida, ambos quando estava muito perto da morte.
Tocado por mim, quando curei seu ombro, e por Phaedra, depois que foi atingido pelo soldado limeriano. Você não sabe como isso é atípico.
Eram dois momentos da vida que ele preferia esquecer.
- Talvez eu não saiba mesmo. Então me conte.
- Eu estava lá quando Phaedra deu a vida pela sua. Observei do alto de outra barraca na forma de falcão.
Ele respirou fundo.
- Estava?
Ela assentiu, séria.
- Observei horrorizada quando Xanthus tirou a vida dela, e a vi retornar para a magia de que todos nós fomos criados. E vi um pouco dessa magia entrar em seu corpo, apenas segundos depois do momento em
que você poderia ter morrido sem a intervenção dela.
- Eu... eu não senti nada.
- Não, não era para sentir. Não deveria sentir. E não faria diferença nenhuma se não fosse pela magia do próprio deus do fogo surgindo por perto. Acabou fortalecendo a magia de Phaedra dentro de você.
Mas não seria suficiente para isso acontecer. - Olivia apontou para a marca, que ele coçava sem perceber. - Eu usei magia da terra para curar seu ombro quando você estava à beira da morte mais uma vez,
e vi que a absorveu como uma esponja. Aquela magia ficou dentro de você, somando-se à de Phaedra, assim como Timotheus previra.
Jonas tentou entender, tentou negar, tentou impedir que seu coração batesse como as asas de um pássaro preso em seu peito. Mas então, de repente, lhe ocorreu que não deveria tentar negar uma notícia tão
incrível.
- Tenho elementia dentro de mim - ele disse com uma voz rouca. - Isso significa que posso usá-los para combater Kyan e expulsar Amara de Mítica. - Quanto mais ele considerava essa possibilidade, mais animado
ficava. - Preciso subir e contar para os outros. Eles devem estar tão confusos com o que aconteceu, com o que fiz com Felix... Mas isso é incrível, Olivia! Vai fazer toda a diferença.
Ele era um bruxo! Tinha negado a existência dos elementia e daqueles que os detinham durante toda sua vida, e agora tinha essa mesma magia na ponta dos dedos.
Olivia segurou seu braço quando ele foi na direção da porta.
- Não é tão fácil assim, Jonas. Timotheus não previu que você seria um praticante de magia, apenas um veículo para ela.
- Um veículo? Impossível. Você testemunhou o que fiz. Arremessei Felix pelo convés com... magia do ar, não foi?
- É verdade. Mas foi uma anomalia. Foi apenas um sinal de que a magia que existe dentro de você amadureceu. E aquele gasto de energia o deixou inconsciente durante quatro dias.
Jonas balançou a cabeça. A frustração tomou conta dele, acabando com sua empolgação.
- Não entendo.
Olivia afrouxou a mão que segurava seu braço.
- Eu sei, e peço desculpas pela confusão. Timotheus mantém seu conhecimento muito reservado, já que não confia em muitos imortais, nem mesmo em mim. Ele não compartilhou a extensão de sua profecia comigo
por medo de que eu contasse para você e você tentasse evitá-la. - Ela fechou a boca. - Já falei demais.
Ele resmungou.
- Você revelou o suficiente para me deixar louco de curiosidade e apreensão.
- Você não pode contar isso a ninguém.
- Não posso? - Ele apontou para a porta. - Todos me viram fazer aquilo no convés. O que devo fazer? Negar?
- Na verdade, sim. - Ela ergueu o queixo. - Expliquei a eles que fui a responsável. Que vi, do alto, Felix acertar você e que estou aqui justamente para protegê-lo. É claro que acreditaram em mim.
Jonas a encarou.
- Eles acreditaram que você interferiu com sua própria magia?
- Sim.
- E não posso falar nada sobre isso?
- Não. Nem uma palavra. - Ela ficou séria. - É perigoso demais. Alguns o perseguiriam se soubessem que é um mortal repleto de magia imortal.
- Magia imortal que não posso usar. - Ele observou o próprio punho, lembrando como havia brilhado no convés.
- Se não acredita em mim, você precisa ver com seus próprios olhos. - Ela apontou para a porta. - Tente abrir essa porta com a magia do ar que canalizou com tanta facilidade com Felix.
Parecia um desafio. Jonas olhou para além de Olivia e franziu a testa, concentrando-se, enquanto levantava a mão na direção da porta. Ele se esforçou tanto para tentar invocar a magia que existia dentro
de si que sua mão começou a tremer, seu braço começou a oscilar... mas nada aconteceu.
- Isso não significa nada - ele resmungou. - Só preciso praticar.
- Talvez - Olivia disse com delicadeza. - Só sei o pouco que me contaram.
Decepcionado, Jonas deixou o braço cair.
- Claro, ninguém ia querer que as coisas fossem fáceis para mim. Ser um bruxo, utilizar os elementia à vontade... Ninguém ia querer isso, não é?
- Na verdade, seria incrivelmente útil para você.
Jonas lançou um olhar feio para ela.
- Você não está ajudando.
- Sinto muito. - Olivia fez uma careta. - Os outros estão preocupados com você. Ficarão felizes em saber que finalmente acordou.
Jonas foi até a escotilha e observou a imensidão do mar.
- Quanto falta para chegarmos em Paelsia?
- Estamos quase chegando.
- Dormi quase o caminho todo. - Ele soltou um suspiro trêmulo ao tentar aceitar tudo o que havia aprendido. Negar seria perder um tempo que eles não tinham. - O que eu perdi?
- Não muito, na verdade. Taran continua afiando a espada na expectativa de matar o príncipe Magnus, Felix ainda está sofrendo com enjoos, Ashur passa a maior parte do tempo em seus aposentos meditando,
e Nic fica espreitando por aí. Quando o príncipe aparece, ele o observa de uma maneira um tanto curiosa.
- Pedi para o Nic ficar de olho em nosso príncipe residente. É melhor não confiar nos kraeshianos, nem mesmo naquele que diz não ser nosso inimigo.
Jonas suspirou enquanto apertava as amarras da camisa.
- Certo, estamos quase em Paelsia. Ótimo.
- Ótimo? - ela repetiu.
Ele assentiu com firmeza.
- Se existe uma profecia que exige que eu seja um veículo dos elementia, quero saber sobre ela o quanto antes. E isso não vai acontecer enquanto estivermos em alto-mar, vai?
- Não, não vai - ela concordou. - Mas, de verdade, Jonas, não sei nada além disso. Sinto muito.
Ele assentiu.
- Seja o que for, eu aguento. Tenho certeza de que já enfrentei coisa muito pior no passado.
Para isso, Olivia não tinha resposta.
Jonas tentou ao máximo não se preocupar.
12
MAGNUS
PAELSIA
Como a viagem dos Glaciares a Basilia levaria pelo menos três dias a cavalo, não havia tempo a perder com as paradas constantes de um rei moribundo e uma mulher velha. Selia arrumou uma carruagem fechada
para levá-la junto com seu filho.
Quando Magnus sugeriu que Cleo fosse com eles e não montada num cavalo para não enfrentar o terrível frio, foi reprimido com um olhar cortante.
Aquilo queria dizer "não".
Gaius os orientou por um caminho que permitia que passassem toda noite em uma hospedaria de alguma cidadezinha, onde descansavam, comiam e dormiam em quartos separados e trancados.
Sete longas noites se passaram sem Magnus poder dormir com Cleo em seus braços, mas todas as noites sonhava com ela e com o chalé na floresta. Nos momentos em que estavam acordados, ele preferia não compartilhar
essa informação com ela. Não queria que ficasse convencida demais por provocar tal efeito nele, então guardava para si o desejo constante de tocá-la e beijá-la.
No último vilarejo onde ficaram, Enzo e Milo foram encarregados de buscar roupas adequadas para todos se passarem por viajantes inofensivos de passagem por Paelsia. Conseguiram encontrar vestidos de algodão
para Selia e Cleo e calças de couro simples e túnicas de lona para si mesmos, Magnus e Gaius.
Magnus olhou a própria túnica creme com repulsa.
- Não tinha nada preto?
- Não, vossa alteza - Enzo disse.
- Cinza-escuro?
- Não. Só essa cor e azul-claro. Achei que não ia gostar muito do azul. - Enzo limpou a garganta. - Mas posso voltar à loja.
Ele suspirou.
- Não, tudo bem. Fico com essa mesmo.
Pelo menos o manto e as calças eram pretos.
Ele saiu, pronto para dar início à última parte da viagem rumo à cidade da costa oeste, e encontrou Cleo, parecendo uma linda camponesa com seu vestido simples, sorrindo para ele ao lado de seu cavalo.
- Você parece um paelsiano - ela comentou.
- Não precisa me insultar, princesa - ele resmungou, contendo um sorriso quando montaram os cavalos e começaram a andar.
Praticamente uma pequena eternidade depois - que na verdade não passou de meio dia - finalmente e felizmente chegaram ao seu destino.
Magnus já tinha ouvido muitas histórias sobre Basilia, a cidade mais próxima de uma capital que Paelsia tinha. A cidade atendia aos navios que visitavam o Porto do Comércio e os membros da tripulação ávidos
por desembarcar em busca de comida, bebida e mulheres.
As histórias eram verdadeiras.
À primeira vista - e ao primeiro cheiro - Basilia era superpovoada e fedia a dejetos humanos e putrefação. Havia dezenas de navios atracados no porto, com as tripulações inundando a costa e se misturando
nas ruas, tavernas, hospedarias, nos mercados e bordéis da cidade litorânea. E, ao que parecia, tão quente quanto Auranos no ápice do verão.
- Repulsivo.
Magnus viu que o rei Gaius tinha aberto a janela da carruagem para espiar o centro da cidade com aversão. Seus olhos estavam vermelhos, e os círculos escuros sob eles pareciam hematomas recentes em contraste
com a palidez da pele.
- Desprezo este lugar - ele comentou.
- Sério? - Magnus perguntou, conduzindo o cavalo ao lado da carruagem. - Acho encantador.
- Não acha, não.
- Acho. Eu gosto dessa... cor local.
- Você não mente tão bem quanto pensa.
- Acho que posso apenas aspirar chegar aos seus pés no quesito falsidade.
O rei olhou feio para ele, depois alternou o olhar para Cleo, que cavalgava em frente a Magnus e atrás dos guardas.
- Princesa, se lembro corretamente, foi em um mercado não muito longe desta cidade em que você esteve com lorde Aron e o filho do vendedor de vinhos que ele matou, não foi?
Magnus logo ficou tenso e observou a princesa esperando a resposta. Cleo demorou alguns segundos para responder, mas o príncipe podia ver a tensão em seus ombros pelo fino material do vestido.
- Isso faz muito tempo - ela disse finalmente.
- Imagine como as coisas teriam sido diferentes se você não tivesse ido atrás de vinho aquele dia - o rei continuou. - Nada seria como é agora, não é?
- Não - ela disse, olhando para trás. - Por exemplo, você não teria caído e quase morrido depois de perder seu reino para uma mulher. E eu não estaria vendo seu fracasso com tanta alegria no coração.
Magnus conteve um sorriso e olhou para o pai, aguardando a contestação.
A única resposta foi uma janela fechada, bloqueando a visão do rosto do rei.
A carruagem parou em uma hospedaria chamada Falcão e Lança que, apesar de um leve cheiro de suor misturado a almíscar, Magnus considerou o estabelecimento mais aceitável da cidade. O rei Gaius desceu da
carruagem com a ajuda de Milo e Enzo e entrou na hospedaria, seguido por Selia, e logo subornou o dono para expulsar todos os hóspedes para que o grupo real tivesse privacidade total.
Enquanto os hóspedes saíam com um desfile de resmungos, Magnus assistia à Cleo observar a sala de convivência da hospedaria paelsiana com reprovação. Era um cômodo grande, com teto baixo, com cadeiras
de madeira desgastadas e mesas lascadas, onde os hóspedes podiam comer e passar o tempo.
- Não se enquadra no seu padrão de qualidade? - Magnus perguntou.
- Até que está bom - ela respondeu.
- Não é uma hospedaria auraniana com camas de pluma, lençóis importados e urinol dourado. Mas me parece aceitavelmente limpa e confortável.
Cleo virou as costas para uma mesa na qual alguém havia entalhado as próprias iniciais. Um sorriso brilhante passou por seus lábios.
- Sim, para um limeriano, acho que sim.
- De fato. - Os lábios da princesa eram uma distração grande demais, então Magnus virou e se juntou a seu pai e sua avó, que estavam parados perto das grandes janelas, olhando para os estábulos onde os
cavalos estavam sendo acomodados.
- E agora? O que vamos fazer? - Magnus perguntou à avó.
- Pedi para a esposa do dono da hospedaria ir até a taverna no fim da estrada e entregar uma mensagem pedindo para uma velha amiga minha nos encontrar aqui - Selia disse.
- A senhora não poderia ter ido?
- Ela talvez não me reconhecesse. Além disso, não é uma conversa que ouvidos curiosos podem escutar. A magia que procuro deve ser protegida a qualquer custo. - Ela encostou a mão sobre o braço de Gaius.
Havia um brilho de suor na testa do rei, que estava apoiado na parede como se fosse a única coisa que o mantivesse de pé.
- E o que devemos fazer até ela chegar? - Gaius perguntou com uma voz enfraquecida substancialmente desde a chegada.
- Você vai descansar - Selia respondeu.
- Não há tempo para descanso - ele disse com raiva. - Talvez eu saia para procurar algum carpinteiro por perto para fazer um caixão para me transportar de volta para Limeros.
- Por favor, pai - Magnus disse, permitindo um pequeno sorriso. - Fico feliz em fazer isso por você. Deve fazer o que minha avó pediu e descansar.
O rei olhou feio para ele, mas não falou nada.
- Vou levá-lo ao seu quarto. - Selia envolveu o braço no filho, conduzindo-o pelo corredor na direção da escadaria, e subindo para os quartos no segundo andar.
- Excelente ideia - Cleo disse, bocejando. - Também vou subir para o meu quarto. Por favor, avise quando a amiga da sua avó chegar.
Magnus esperou que ela saísse, depois fez um sinal para Enzo segui-la. Ele pedira para o guarda tomar cuidado extra com a proteção da princesa. Enzo era um dos poucos em quem Magnus confiava para a tarefa.
- O que devo fazer? - Milo perguntou ao príncipe.
Magnus passou os olhos pelo salão, que também continha uma pequena estante com livros velhos, nada parecida com a vasta seleção que passou a valorizar na biblioteca do palácio auraniano.
- Patrulhe os arredores - Magnus disse, pegando um livro aleatório da estante. - Certifique-se de que ninguém tenha percebido que o antigo rei de Mítica está temporariamente por aqui.
Milo deixou a hospedaria e Magnus tentou se concentrar na leitura de um volume sobre a história da produção de vinho em Paelsia, que não mencionava nada sobre a magia da terra que com certeza era responsável
pelo sabor da bebida, ou sobre as leis que proibiam sua exportação para outros lugares, à exceção de Auranos.
Depois de trinta páginas inúteis, a esposa do dono da hospedaria, uma mulher pequena que parecia ter um constante sorriso nervoso estampado no rosto, voltou com outra mulher mais velha, com rugas em volta
dos olhos e da boca, de aparência extremamente comum, usando um vestido antiquado e desmazelado. Magnus pensou que devia ser a mulher que Selia tinha mandado chamar.
Quando a esposa do dono da hospedaria desapareceu na cozinha, a mulher mais velha observou o local que parecia vazio, até seu olhar recair sobre Magnus.
- Então a senhora é a resposta para todos os nossos problemas, não é? - ele perguntou.
- Depende de quais são seus problemas, meu jovem - ela respondeu sem rodeios. - Gostaria de saber por que me chamou aqui.
- Não foi ele, fui eu - Selia disse, descendo a escadaria de madeira do outro lado do corredor que levava aos quartos, no segundo andar. - E é porque estou em busca de uma velha amiga. Você me reconhece
depois de todos esses anos?
Por um momento profundamente silencioso e agonizantemente longo, a mulher encarou Selia com uma mistura estranha de fogo e gelo no olhar. Justo quando Magnus começou a temer que tivessem cometido um erro
ao confiar em sua avó, a mulher abriu um grande sorriso, com rugas de alegria aparecendo no canto dos olhos.
- Selia Damora - ela arrulhou com um tom de voz muito mais gentil do que ao entrar na hospedaria. - Pela deusa, como senti sua falta!
As duas mulheres correram uma na direção da outra e se abraçaram.
- Devo chamar os outros? - Magnus perguntou. Quanto antes sua avó conseguisse o que precisava da mulher, mais rápido poderiam sair daquele lugar.
- Não, isso não precisa ser discutido em grupo - Selia respondeu sem tirar os olhos da amiga. - Também senti sua falta, Dariah.
- Onde esteve durante todo esse tempo? Já perdi a conta de quantos anos se passaram!
- O que importa é que estou aqui agora. Para ser franca, estou um pouco surpresa por você ainda estar em Basilia.
- Nunca poderia abrir mão do lucro da minha taverna, cada ano é melhor do que o anterior. Tantos marinheiros com dinheiro para gastar e sede para matar...
- Muitos tipos de sede, sem dúvida.
Dariah piscou.
- Exatamente. - Ela se virou para Magnus. - E quem é esse jovem?
- É meu neto, Magnus. Magnus, esta é minha amiga Dariah Gallo.
- Muito prazer. - Magnus forçou o melhor sorriso que conseguiu, mas sabia que pareceria mais uma careta.
- Minha nossa! Seu neto ficou tão alto e bonito!
Selia sorriu.
- Sim, os netos às vezes fazem isso quando chegam aos dezoito anos.
Dariah passou os olhos enrugados por Magnus de alto a baixo.
- Se eu fosse mais nova...
- Se fosse mais nova, teria que lutar com a jovem esposa dele por sua atenção.
Dariah riu.
- E talvez eu vencesse.
Magnus teve uma vontade repentina de voltar à leitura do livro sobre vinho paelsiano.
Selia juntou-se à amiga nas risadas e depois voltou a adotar um tom sério, porém amigável.
- Não vim a Basilia apenas para reencontrar uma velha amiga. Preciso de informações sobre como conseguir a pedra sanguínea.
Dariah arregalou os olhos.
- Minha nossa, Selia, você não perde tempo.
- Não tenho tempo a perder. Meu poder foi diminuindo no decorrer dos anos e meu filho está morrendo.
No instante silencioso que se seguiu, Magnus ficou quieto. Essa pedra, se fosse real, parecia algo que poderia ajudá-lo a aumentar seu poder, como a Tétrade.
Selia levou Dariah na direção da estante. Fez sinal para que ela se sentasse em um banco de madeira ao seu lado, depois segurou as mãos da outra bruxa.
- Não tenho escolha. Preciso dela.
- Você sabe que não está comigo.
- Não está. Mas você sabe com quem está.
Dariah balançou a cabeça.
- Não posso fazer isso.
- Estou pedindo para você entrar em contato com ele. Sei que pode encontrá-lo. Ele precisa vir o mais rápido possível.
Mil perguntas surgiram na cabeça de Magnus, mas ele permaneceu em silêncio, escutando.
Um poder como esse entregue diretamente em suas mãos. Parecia muito mais simples do que o processo complicado de encontrar a Tétrade.
A expressão da bruxa se tornou sombria.
- Ele nunca vai permitir que você fique com ela, nem mesmo por um instante.
Selia apertou ainda mais a mão da amiga.
- Deixe que eu lide com ele quando chegar aqui.
- Eu não sei...
Selia semicerrou os olhos.
- Sei que já faz muito tempo, mas sinto que terei que mencionar o favor que você me deve. Favor que prometeu retribuir por completo.
Dariah ficou encarando o chão.
Magnus observava, quase sem respirar. Aos poucos, a bruxa levantou os olhos, o rosto pálido. Ela concordou com um pequeno aceno de cabeça.
- Vou levar um tempo para atraí-lo para cá.
- Ele tem três dias. Será um problema?
A bruxa ficou tensa ao levantar.
- Não.
- Obrigada. - Selia levantou e deu dois beijos no rosto de Dariah. - Eu sabia que você ia me ajudar.
O sorriso de quando se cumprimentaram agora já não passava de uma lembrança.
- Aviso assim que ele chegar.
Dariah não demorou - lançou um último olhar para Selia e Magnus e deixou a hospedaria.
- Bem... - Magnus disse depois que tudo voltou a ficar em silêncio. - A senhora deve ter feito um belo favor para sua amiga.
- De fato foi. - Selia olhou para Magnus com um pequeno sorriso no rosto. - Agora vou ver como seu pai está. A saúde dele é minha única preocupação no momento. Quando minha magia estiver restaurada e ele
estiver bem novamente, podemos enfrentar os outros obstáculos que estão em nosso caminho.
- Vou me esforçar para ser paciente - Magnus disse, sabendo que com certeza fracassaria.
Àquela altura a noite já tinha caído, e Magnus se retirou para seu pequeno quarto. Havia uma cama de tamanho normal, e não os catres inaceitáveis do quarto comunitário no fim do corredor. A janela tinha
vista para a rua iluminada com lampiões e ainda movimentada, com cidadãos e visitantes mesmo depois de anoitecer.
Ele ouviu uma batida fraca na porta.
- Entre - Magnus disse, sabendo que podia ser apenas uma das quatro pessoas com quem havia chegado a Paelsia.
A porta se abriu devagar e, quando o visitante se revelou, o coração de Magnus começou a bater mais rápido. Cleo o encarava.
Ele levantou e a encontrou na porta.
- A amiga da minha avó esteve aqui.
- Já? - Ela arqueou as sobrancelhas. - E?
- E... - Ele balançou a cabeça. - Parece que seremos obrigados a esperar mais três dias por aqui.
- Mas ela vai conseguir a pedra sanguínea?
- Sim - Magnus respondeu. - Reencontrei minha avó há pouco tempo, mas ela me parece o tipo de mulher que consegue praticamente tudo o que quer.
- E tudo para essa pedra mágica salvar a vida de seu pai - Cleo disse sem nenhuma emoção, mas com uma dureza no fundo dos olhos azuis.
- Ele não merece viver - Magnus afirmou, concordando com o que não tinha sido dito. - Mas essa pode ser uma medida necessária para alcançarmos nosso objetivo maior.
- Encontrar Lucia.
- Sim. E acabar com a sua maldição.
Cleo assentiu.
- Suponho que não haja outra forma.
Ele a observou cauteloso.
- Você veio ao meu quarto apenas em busca de informações ou tem mais alguma coisa que deseja esta noite?
Cleo levantou o queixo para encarar diretamente em seus olhos.
- Na verdade, preciso de sua ajuda.
- Com o quê?
- Todas essas andanças a cavalo acabaram com meu cabelo.
Magnus levantou uma sobrancelha.
- E você veio aqui para pedir minha ajuda para cortá-lo e, assim, ele deixar de ser um problema?
- Como se você fosse permitir. - Ela riu. - Você é obcecado pelo meu cabelo.
- Eu não chamaria de obsessão. - Ele enrolou um cacho daquela seda dourada no dedo. - É mais uma distração, muitas vezes dolorosa.
- Peço desculpas por seu sofrimento. Mas você não vai cortar meu cabelo, nem hoje, nem nunca. A esposa do dono da hospedaria foi gentil e me deu isso. - Ela mostrou uma escova de cabelo com cabo prateado.
Magnus pegou o objeto da mão dela, observando-o com um olhar examinador.
- Você quer que eu...?
Cleo assentiu.
- Escove meu cabelo.
A ideia era ridícula.
- Agora que fui obrigado a me vestir como um paelsiano comum você está me confundindo com um criado?
Ela lançou um olhar determinado para Magnus.
- Eu não poderia pedir para Milo ou Enzo... ou, pelo amor da deusa, para seu pai ou sua avó me ajudarem.
- E quanto à esposa do dono da hospedaria?
- Está bem. - Cleo arrancou a escova da mão dele, fazendo careta. - Vou pedir a ela.
- Não, não. - Ele soltou um suspiro, achando graça. - Eu ajudo.
Sem hesitar, ela devolveu a escova a Magnus.
- Fico feliz.
Ele abriu caminho para deixá-la passar. Cleo entrou, sentou na beirada da cama e olhou para ele cheia de expectativa.
- Feche a porta - ela disse.
- Não é uma boa ideia. - Magnus deixou a porta entreaberta e lentamente sentou ao lado dela. Meio sem jeito e receoso, como se estivesse prestes a limpar um animal pela primeira vez, ele levou a delicada
escova aos cabelos dela.
- Nunca fiz isso antes.
- Para tudo existe uma primeira vez.
Que cena ridícula deve ter sido: Magnus Damora, filho do Rei Sanguinário, escovando o cabelo de uma jovem a seu pedido.
E ainda assim...
Sempre que Magnus assumia uma tarefa, preferia ser dedicado, usando suas habilidades da melhor maneira possível. Ele se empenhava da mesma forma naquele momento, ao pegar uma mecha do longo e sedoso cabelo
de Cleo e deslizar a escova por ela. O calor das madeixas passava entre seus dedos, causando um arrepio prazeroso em suas costas.
- Você tem razão - ele disse em voz baixa. - Está terrivelmente embaraçado. Acho que de modo irreparável.
Magnus estava apenas provocando Cleo - seu cabelo estava perfeito, como sempre foi -, mas então ele chegou ao primeiro nó.
Ela se encolheu.
- Ai.
- Desculpe. - Ele ficou paralisado, mas depois franziu a testa. - Mas você me pediu para fazer isso.
- Sim, eu sei! - Ela suspirou. - Por favor, continue. Estou acostumada a ser torturada por minhas criadas, e elas estão acostumadas a ignorar meus gritos de dor. Você não vai conseguir me machucar mais.
Só Nerissa tem capacidade de fazer isso sem causar dor.
- Sim, ouvi falar das habilidades de Nerissa - Magnus comentou, sem conseguir conter um sorriso. Agora, tendo uma imagem mais completa do histórico de penteados de Cleo, ele encarou a tarefa com mais determinação.
- Tanto cabelo, tantas oportunidades para formar nós... Por que as mulheres se dão ao trabalho?
- Talvez eu devesse fazer tranças, como uma líder paelsiana?
- Sim, imagino que seria um estilo adequado a uma princesa auraniana, mesmo quando forçada a usar um horroroso vestido de algodão - ele respondeu com ironia, sem deixar transparecer como estava se divertindo
com aquela imagem. - Todas as garotas de Mítica iam querer copiar. - Com o maior cuidado possível, ele foi passando a escova por outra parte do cabelo que parecia um ninho de passarinho amarelo-claro.
- Você precisa saber que pretendo reivindicar a pedra sanguínea para mim.
- Eu já imaginava - ela respondeu.
Aquilo o surpreendeu.
- Imaginava?
Cleo assentiu, e os cabelos escaparam das mãos de Magnus, cobrindo a tentadora nuca dela.
- Vi em seus olhos quando Selia mencionou a pedra. Foi o mesmo olhar que vi em seu pai.
- E que olhar é esse?
- Não importa.
Magnus largou a escova. Com gentileza, tocou Cleo pelos ombros até praticamente fazê-la virar de frente para ele, depois segurou seu queixo com cuidado.
- Importa, sim. Que olhar eu e meu pai compartilhamos?
Ela o encarou nos olhos, cautelosa.
- Um olhar frio de ganância, como se fossem capazes de matar pela pedra.
- Entendo.
Cleo analisou o rosto dele, como se procurasse respostas.
- Naquele momento, você parecia tão frio quanto seu pai. E eu... eu não gostei.
A vida toda, disseram que ele se parecia muito com seu pai - tanto fisicamente quanto em temperamento. Com o tempo, ele aprendeu a não refutar as comparações, embora nunca tivessem deixado de incomodá-lo.
- Devo admitir, descobri há pouco tempo que preciso ser como meu pai. Há certas situações que praticamente exigem que eu seja o mais frio e brutal possível. Se eu fosse derramar lágrimas por cada vida
que tirei no último ano, já estaria seco como uma casca de árvore. Então, sim, acho que sou como meu pai em muitos sentidos.
- Não - Cleo sacudiu a cabeça. - Não é possível.
- Por que está dizendo isso?
- Sinceramente? - Ela chegou mais perto, segurando seu rosto entre as mãos. - Porque eu nunca quis fazer isso com seu pai.
Ela roçou os lábios de leve nos dele. Um pequeno gemido de tortura emergiu do fundo da garganta de Magnus enquanto ele se forçava a cerrar os punhos para não a agarrar no mesmo instante.
- Princesa...
- Cleiona... - ela o corrigiu, os lábios ainda a uma distância perigosa. - Embora eu precise admitir que já não gosto tanto de ter recebido o nome de uma imortal que roubou e matou em nome do poder.
- Verdadeiros líderes costumam ser implacáveis o suficiente para roubar e matar. Se não o fizerem, outra pessoa o fará.
- Uma filosofia encantadora e, receio, muito verdadeira. Mas talvez possamos pensar em outro nome para você se referir a mim quando estivermos juntos.
Ele arqueou a sobrancelha.
- Vou pensar nisso.
- Ótimo. - Ela mordeu o lábio, chamando atenção de novo para sua boca. - Agora, feche a porta. Com chave.
- Essa é uma sugestão muito, muito perigosa.
- Ou deixe aberta. Talvez eu não me importe. - Cleo o beijou mais uma vez, abrindo os lábios. Ele sentiu sua compostura e seu comedimento se esvaindo em uma velocidade perigosa quando a língua dela encostou
na sua.
- Realmente não quero dizer não - ele sussurrou junto aos lábios dela.
- Então não diga.
Magnus gemeu de novo quando as mãos dela desceram por seu peito e por baixo de sua túnica, deslizando sobre seu abdome e tórax sem nenhuma barreira. Ele a agarrou pela cintura e a pressionou na cama, cobrindo-a
por completo com o próprio corpo. Cleo era tão pequena, mas, ainda assim, tão forte e apaixonada.
Como um mundo insensível pôde criar uma criatura tão linda? Se a beleza dela não fosse um presente da deusa, sem dúvida tinha sido um presente da mãe...
De repente, Magnus levantou em um pulo, cobrindo a boca com o dorso da mão.
- O que foi? - Cleo perguntou assustada, o rosto corado.
Ele ficou em pé e pegou seu manto.
- Preciso de uma bebida. Vou dar uma olhada na taverna no fim da estrada.
Cleo ficou deitada, observando-o, com os cachos dourados embaraçados caídos sobre os ombros até a cintura.
Profunda e dolorosamente tentadora.
- Eu entendo - ela disse em voz baixa.
Ele estava prestes a sair sem mais nenhuma palavra, mas virou-se para ela e disse:
- Antes de sair, quero que saiba de uma coisa. No dia em que essa maldição for quebrada, prometo que a porta de qualquer quarto em que estivermos será trancada, e não vou deixar nada nos interromper.
Com isso, Magnus virou as costas e a deixou lá, olhando para ele.
Sim, ele precisava desesperadamente de uma bebida.
- Vinho - Magnus resmungou para o atendente quando entrou na taverna pobre, porém animada, conhecida como A Videira Púrpura. Ele colocou várias moedas sobre o balcão. - Fique atento e complete meu copo
sempre que notar que está vazio - ele instruiu. - E nada de conversa.
O atendente abriu um sorriso forçado, depois recolheu as moedas do balcão com ganância, guardando-as em uma bolsa velha, caindo aos pedaços.
- Muito bem.
Ele fez o que Magnus pediu e prestou muita atenção ao nível de líquido da taça. Quando Magnus começou a beber gole após gole do doce vinho paelsiano, a noite começou a ficar muito mais clara. Da última
vez que bebera vinho, tinha voltado para o palácio limeriano e encontrado sua esposa fazendo um discurso. Ela logo foi interrompida por inimigos que quase não o deixaram escapar com vida. Depois daquela
experiência, ele tinha considerado renunciar completamente à bebida.
A visita de Cleo a seu quarto naquela noite com certeza o obrigava a revogar aquela promessa.
- Nossa atração de hoje vai deixá-lo mais animado, amigo - disse o atendente, apesar de Magnus ter pedido silêncio. Magnus estava prestes a repreendê-lo quando o homem indicou com a cabeça o meio da taverna.
- Prometo que a Deusa das Serpentes será uma imagem espetacular para os olhos.
Deusa das Serpentes? Magnus revirou os olhos e apontou para a própria taça.
- Mais.
Alguém do outro lado da enorme taverna pediu silêncio para a multidão vociferante enquanto o atendente servia mais vinho para Magnus.
- Todos venerem nossa bela residente! - o homem berrou do outro lado do estabelecimento. - Curvem-se diante de seu incrível poder! E saúdem a Deusa das Serpentes!
A multidão reagiu com gritos e assovios quando uma jovem de cabelo escuro, pouca roupa e uma cobra pendurada no pescoço apareceu sobre o pequeno palco. Ao lado do palco havia um trio de músicos que começou
a tocar uma canção exótica que, para Magnus, soava mais selvagem do que encantadora. Quando a música começou a crescer, a jovem passou a se contorcer no que poderia ser considerado um tipo de dança, mas
para Magnus parecia mais a oferta de uma cortesã.
Ele esvaziou o copo sem saber ao certo quantas vezes tinha repetido o movimento desde que chegara, mas não importava. Não agora que as coisas pareciam tão melhores do que antes, quando o desejo por Cleo
quase o cegou diante do perigo.
Talvez eles pudessem dividir um quarto, ele pensava enquanto assistia àquela mulher estranha se sacudir pelo palco. Talvez um elixir para evitar a gravidez fosse proteção suficiente.
Ou talvez ele devesse se concentrar no fato de seu reino ter sido roubado, seu pai estar à beira da morte enquanto sua avó tenta salvá-lo com uma pedra mágica, sua irmã estar aliada com um homem que pretendia
conquistar Mítica à base do fogo, e Cleo carregar uma maldição. O fato de ele estar enlouquecendo de desejo por sua esposa de fato era a menor de suas preocupações.
De repente, alguma coisa chamou sua atenção: um lampejo de cabelo ruivo. Aquela cor de cabelo era mais rara em Paelsia do que a do cabelo de Cleo. Ele não conseguiu deixar de se lembrar de Nicolo Cassian,
a única pessoa que ele conhecia com aquela cor infeliz de cabelo.
Magnus riu ao pensar naquilo. Não, Nic devia estava em segurança em Kraeshia - ou nem tão seguro assim, na verdade, mas Magnus não se importava. O idiota tinha se voluntariado para se juntar a Jonas em
sua missão fracassada de matar o rei.
Ele voltou sua atenção para a Deusa das Serpentes. Quando pensou que estava começando a entender o ritmo de seus movimentos, ela parou, fazendo um sinal para os músicos pararem de tocar.
- É você? - ela perguntou. O salão agora estava em silêncio. A Deusa das Serpentes estava claramente se dirigindo a alguém específico, mas Magnus não conseguia ver de onde estava. Ele só conseguia ver
a crescente empolgação no rosto pintado da dançarina enquanto sua expressão transparecia cada vez mais certeza. - Jonas! - ela gritava agora com mais confiança. - Jonas, é você mesmo? Meu querido, achei
que estivesse morto!
Jonas?
Devia ser mais uma estranha coincidência.
A dançarina desceu do palco e se embrenhou no meio da multidão, de onde puxou um jovem de cabelo escuro.
Magnus ficou paralisado. Ele esticou o pescoço, tentando ver por entre as cabeças dos outros clientes. A dançarina jogou os braços em volta do jovem, rodopiando abraçada a seu visitante, até que ele se
virou na direção de Magnus.
Chocado e boquiaberto, Magnus ficou observando fixamente aquela cena.
Era Jonas Agallon. Ali, na mesma taverna.
- Quem diria? - disse uma voz familiar ao lado dele, verbalizando seus próprios pensamentos. Uma onda de desgosto tomou conta de Magnus antes mesmo de se virar e descobrir o que já sabia: aquele ruivo,
Nicolo Cassian, estava bem ao lado dele. - Você!
Nic cutucou o ombro dele, deixando escapar uma gargalhada quando derramou um pouco de cerveja de sua enorme caneca.
- Parece que o destino está finalmente lhe dando o troco, não acha, vossa alteza? E fico mais do que feliz de testemunhar isso.
- Estou vendo que sua visita a Kraeshia não ajudou a diminuir seu charme - Magnus disse, espantado por ter bebido a ponto de arrastar as palavras tanto quanto Nic.
Nic sorriu, mas seus olhos desfocados não demonstravam nenhum humor.
- Príncipe Magnus Damora, gostaria que conhecesse um amigo meu.
Irritado pelo uso de seu nome em um estabelecimento público, Magnus virou, esperando encontrar algum rebelde qualquer. Mas, em vez disso, encontrou um rosto que só via em pesadelos.
- Theon Ranus - ele exclamou. O calor agradável e o formigamento proporcionado pelo vinho desapareceram em um instante, deixando-o profunda e desoladamente frio ao encarar aquela aparição.
- Está enganado - disse o jovem, um lembrete fatal da primeira pessoa que Magnus havia matado na vida. Com um olhar frio repleto apenas de obstinação e ódio, ele puxou uma faca e a colocou junto à garganta
de Magnus. - Sou o irmão dele, seu filho da puta.
13
CLEO
PAELSIA
- Aonde está indo, princesa?
As palavras a fizeram parar na porta principal da Hospedaria Falcão e Lança. Cleo olhou para trás e viu Enzo parado nas sombras.
- Vou à taverna no fim da estrada - ela disse. - Não que seja da sua conta.
- Está tarde.
- E...?
Enzo endireitou os ombros.
- Acho que seria melhor ficar aqui em segurança, princesa.
- Aprecio sua opinião, mas discordo. Magnus está lá. Estou surpresa, e um pouco consternada, por você não ter ido junto. E se ele for reconhecido?
- O príncipe deixou bem claro que meu único dever é garantir sua segurança, princesa.
Ela piscou rápido, como se tentasse disfarçar a surpresa daquela revelação interessante.
- Sério? Bem, isso torna as coisas muito mais fáceis. Você virá comigo buscar o príncipe e garantir que nenhum de nós corra perigo.
Cleo não lhe deu tempo para argumentar ao virar as costas e sair da hospedaria, deixando a porta aberta para Enzo segui-la e puxando o capuz do manto para cobrir o cabelo e proteger o rosto.
Enzo a seguiu sem dizer mais nada enquanto Cleo prestava atenção nas pessoas na rua, nas carruagens que passavam, no ruído do casco dos cavalos batendo na estrada de cascalho. Ela seguiu o som das risadas
embriagadas e da música para chegar à taverna que sem dúvida tinha sido o destino de Magnus. Sobre as grandes portas de madeira havia uma escultura de bronze de alguns cachos de uva em uma videira.
Ela leu a placa:
- A Videira Púrpura. Que nome apropriado para uma taverna em Paelsia. E bastante óbvio.
O príncipe gostava tanto do sabor do vinho que não se importava com o que aconteceria se alguém o reconhecesse. Magnus adorava tanto beber que estava disposto a arriscar ser morto no meio de um bando de
paelsianos. E que jeito idiota de morrer seria, Cleo pensou.
- Já ouvi falar desse lugar - Enzo disse, observando a entrada. - Nerissa já trabalhou aqui atendendo mesas.
Ela levantou uma sobrancelha.
- É mesmo?
Ele assentiu.
- Ela disse que foi uma experiência interessante.
- Eu não fazia ideia de que ela tinha morado em Paelsia.
- Nerissa morou em todos os lugares, ao que parece. Diferente de mim, que até agora nunca tinha me aventurado para fora de Limeros. Ela deve me achar tedioso.
- Posso garantir que ela não acha nada disso.
Ouvir Enzo falar de sua amiga fazia o coração de Cleo doer. Ela não tinha dúvidas de que Nerissa era capaz de se cuidar, melhor do que qualquer outra garota - e possivelmente garoto - que conhecia, mas...
Cleo não conseguia deixar de se preocupar com a segurança dela. Odiava a ideia de que Nerissa pudesse correr perigo enquanto era forçada a trabalhar perto de Amara.
Cleo respirou fundo ao passar pelas portas com Enzo. Dentro da taverna havia pelo menos duzentos clientes fedorentos e sujos.
Ela observou os rostos, procurando Magnus na multidão.
Aquela taverna era diferente de todas que já havia visto em suas duas visitas anteriores a Paelsia. Seu conhecimento da região se limitava a dois mercados pobres, vilarejos decrépitos e uma vasta extensão
de terras desertas.
E os galpões trancados de rebeldes raivosos e vingativos, ela lembrou a si mesma.
O lugar, apesar do interior rústico e decadente, parecia pertencer a Pico do Falcão, maior cidade de Auranos. Iluminando o espaço enorme havia dezenas e dezenas de velas e lampiões. No teto alto, várias
rodas de madeira acomodavam mais velas. O chão era de terra batida; as mesas e cadeiras eram feitas de madeira mal esculpida.
À esquerda de Cleo havia um pequeno palco, sobre o qual uma jovem de cabelo preto e com faixas douradas pintadas sobre a pele bronzeada rebolava de uma forma bastante provocativa. Em volta de seu pescoço
carregava uma jiboia enorme, do tipo que Cleo só tinha visto em livros ilustrados.
- Enzo, por favor, apenas me ajude a procurar Magnus. Comece pelas áreas com mais vinho.
- Sim, vossa alteza.
Cleo se cobriu melhor com o capuz do manto para esconder o cabelo e tentou ignorar os olhares atravessados da maioria dos brutamontes que passavam por ela. Quando sentiu alguém apertar seu traseiro, virou
para dar um soco no ofensor, mas acertou apenas o ar.
Furiosa, ela tentou ver quem a havia tocado no meio da multidão, mas ficou paralisada quando ouviu alguém gritar um nome que ela conhecia.
- Jonas! - Era a mulher-cobra, interrompendo a apresentação para correr na direção de um jovem que estava na plateia. - Jonas, é você mesmo?
Cleo, de olhos arregalados, se virou na direção do palco.
Jonas tinha voltado de Kraeshia. E, de todos os lugares de Mítica onde poderia estar, estava ali!
Como era possível?
Ela se virou para Enzo, mas outro rosto chamou sua atenção. Um jovem caminhava pela multidão, movendo-se na direção oposta ao mar de rostos virados para o palco.
Cabelo cor de bronze, pele morena, alto, músculos definidos...
Ela só conseguiu observar, certa de que seus olhos a enganavam.
- Theon - ela sussurrou o nome antes preso na garganta.
Ela então se lembrou de um tempo em que tudo parecia claro - ela o amava, e nada mais importava. Nem o posto dele, nem a reprovação de seu pai, nem o modo austero como Theon tinha olhado para ela antes
de beijá-la, marcado pelo medo de pensar que poderia perdê-la para sempre.
E depois o som do casco dos cavalos quando Magnus e seus soldados chegaram.
O orgulho em seu coração quando Theon enfrentou os homens de Magnus e venceu.
E o horror quando viu a vida se esvair dos olhos dele para sempre quando Magnus o acertou pelas costas.
"Se seu guarda tivesse se afastado quando ordenei, isso não teria acontecido", o filho do Rei Sanguinário tinha dito.
"Ele não é só um guarda", ela havia sussurrado em resposta. "Não para mim."
Às vezes, parecia que tudo tinha acontecido mil anos antes. Outras, era como se tivesse sido no dia anterior.
Mas, lá estava ele.
- Princesa? - Enzo perguntou, franzindo a testa para a expressão de choque absoluto dela.
Cleo não respondeu. Suas pernas estavam dormentes quando começou a se mover sem pensar, abrindo caminho na multidão na direção dele.
Lágrimas quentes corriam por seu rosto, e ela as secava com violência.
A multidão diminuía quanto mais ela se afastava do palco, o que lhe permitiu manter o olhar no guarda assassinado. Em sua mão, ela viu o brilho de uma lâmina afiada.
E então ela viu Magnus.
O fantasma do jovem que havia amado - e perdido - aproximou-se de Magnus, que estava no bar, olhando para Theon com a mesma descrença de Cleo. Então, com uma rapidez que ela mal conseguiu acompanhar, Theon
segurou Magnus com força e pressionou a lâmina contra sua garganta.
Ela gritou para dentro, seu corpo transformou-se em gelo em um instante. Ela olhava para Magnus, com sua expressão resoluta, os dentes cerrados e os olhos escuros desprovidos de emoção.
- Cleo? - Alguém estava bloqueando seu caminho; um garoto com sardas e cabelo ruivo. - Ah, Cleo! Você está aqui! Você está viva!
- Nic? - Ela o encarou por um segundo antes de agarrar e fincar os dedos em seus ombros. Atrás dele, viu o sangue escorrendo pela garganta de Magnus, onde o fantasma do passado enfiara sua adaga. - O que
está havendo? Por que isso está acontecendo?
De repente, uma terceira pessoa aproximou-se do confronto silencioso entre Magnus e Theon, que até então tinha passado despercebido pelo resto dos clientes, cujos olhos estavam fixos no palco. Era um jovem
de cabelo escuro, ombros largos e muitos músculos, com um tapa-olho preto.
Ele segurava um pedaço de pau e, com ele, atingiu o fantasma de Theon com força atrás da cabeça. A adaga caiu no chão, e o corpo da vítima desabou, inconsciente, ao lado dela.
- Magnus! - Cleo gritou.
Finalmente, Magnus tirou o olhar do jovem caído e virou para Cleo.
Ele semicerrou os olhos.
- Você não devia estar aqui.
Ela ficou chocada. Era isso que Magnus tinha a dizer em um momento como aquele?
O brutamontes apontou para o corpo.
- Ele não vai ficar feliz comigo quando acordar.
Cleo correu para o lado de Magnus, certificando-se rapidamente de que o ferimento no pescoço era superficial. Ela virou para o jovem de tapa-olho.
- Quem é você? - ela questionou.
Ele se curvou.
- Felix Gaebras, minha encantadora jovem. A seu dispor. E quem é você?
- Esta - Magnus disse, tocando o pescoço com cuidado - é a princesa Cleiona.
Felix arregalou os olhos.
- Ah, então esta é a princesa dourada. Tudo faz sentido agora.
- E quem é esse? - Ela apontou para o chão com o dedo trêmulo.
- Aquele - Felix respondeu - é Taran Ranus, irmão gêmeo de Theon.
Cleo sentiu seu corpo gelar.
- Irmão gêmeo?
Magnus estava tenso.
- Foi muito gentil da parte de Nic nos apresentar hoje à noite, não acha?
Ao lado dela, Nic olhou para o jovem inconsciente, depois para Cleo, que parecia chocada.
- Acho que todos nós precisamos conversar - ele disse.
- Com certeza!
- Concordo - Magnus disse com rigor. - Conheço um lugar muito mais discreto do que esse. Encontrem Jonas e venham comigo, todos vocês.
Felix se abaixou, pegou o companheiro inconsciente e o jogou sobre o ombro.
- Onde Jonas e os outros estão? A dançarina o amarrou com a cobra e o levou embora? Vou procurá-lo.
Cleo não esperou - ela precisava de ar fresco. Precisava respirar normalmente e deixar o coração bater em um ritmo natural.
Irmão gêmeo, ela pensou, estupefata. O irmão gêmeo de Theon.
E Theon nunca, em nenhum momento, tinha mencionado que tinha um irmão gêmeo.
Nic estava ao lado dela, cambaleando de leve a cada passo que dava enquanto Enzo a escoltava para fora da taverna. Ela olhou para trás para garantir que Magnus estava perto.
- Você está bêbado - disse Cleo, virando-se para Nic e percebendo que estava muito zangada com ele e com todos os presentes.
- Muito. E também muito feliz por saber que está aqui. - Ele deu um grande beijo desajeitado no rosto dela, fazendo-a lembrar do cachorrinho babão que seu pai trouxera para ela e para Emilia depois de
um longo período de viagens. Quando seus batimentos cardíacos voltaram ao normal, ela se permitiu ceder à avassaladora sensação de alívio por Nic ter voltado de Kraeshia são e salvo - e por estar ao lado
dela novamente.
Felix saiu da taverna carregando Taran Ranus.
Atrás dele veio Jonas, que observava a área até seus olhos recaírem sobre Cleo.
Ela o observava também quando um sorriso se abriu no belo rosto dele.
- Eu sabia que você estava viva. - Jonas apertou o passo para chegar até ela. Segurou-a pela cintura e a tirou do chão, girando-a no ar. - É tão bom ver você!
Em qualquer outro dia, ela estaria sorrindo tanto quanto o rebelde.
- Explique o que está acontecendo.
- Sim - Magnus disse, os olhos escuros fixos em Jonas. - Uma explicação para sua chegada nesta cidade, coincidindo com a nossa chegada, seria apreciável.
- Fico chocado em dizer, mas é quase bom ver você também, vossa alteza. - Jonas deu um meio sorriso para o príncipe.
Não foi correspondido.
- Nosso amigo aqui está ficando um pouco pesado - Felix comentou.
Magnus lançou um olhar azedo para o corpo que Felix carregava.
- Venham comigo.
Outra garota se juntou ao grupo, e Cleo a reconheceu de imediato - estava acompanhando Jonas e Lysandra da última vez em que estiveram no palácio limeriano.
Cleo se lembrava do nome dela: Olivia. Mas um cumprimento adequado poderia esperar.
Ela deu o braço para Nic enquanto o grupo acompanhava Magnus até a hospedaria.
- Por que está tão bêbado hoje?
- Ah... são muitas razões. Entre elas, recentemente passei a acreditar que estivesse morta. Por isso ia me afundar em cerveja para sufocar meu sofrimento.
- Estou bem viva.
- E fico muito feliz em saber.
Cleo sorriu para ele.
- Existem outros motivos para sua sede de álcool?
- Nenhum que esteja com a gente hoje, mas estou hesitante em mencioná-los. Você já teve choques demais por um dia. Tenho certeza de que ele vai acabar aparecendo. Ele faz dessas.
- Você não está falando coisa com coisa.
- Não, com certeza não estou.
Seu pequeno sorriso desapareceu quando ela olhou para Felix e seu fardo.
- Theon... - Ainda doía dizer o nome dele, mesmo depois de tanto tempo. - Alguma vez ele falou alguma coisa sobre ter um irmão gêmeo?
Nic negou.
- Nada. Quando vi Taran nas docas de Kraeshia, quase caí duro de choque. Taran não fala sobre isso, mas imagino que eles não tivessem contato. Ainda assim, não lidou bem com a notícia da morte do irmão.
- É, percebi. - Ela soltou um suspiro trêmulo. - Como ele ficou sabendo que foi Magnus que matou Theon?
Nic deu de ombros.
- Eu contei a ele, claro.
Ela sentiu uma pontada no estômago no exato momento em que a raiva começou a subir.
- Claro.
- Eu devia ter ficado a seu lado. - Ele pegou a mão dela e ficou sério, apesar da bebedeira. - Sinto muito por ter deixado você sozinha com ele todo esse tempo.
Nic não sabia sobre os sentimentos dela por Magnus. É claro que não sabia - Cleo tinha feito questão de negar os sentimentos que cresciam em seu peito por um ano.
- Não tem problema. Eu... dei um jeito.
- Onde devo deixá-lo? - Felix indicou o fardo que carregava quando chegaram à hospedaria.
- Tenho certeza de que vamos encontrar um buraco bem fundo - Magnus respondeu.
Cleo olhou feio para ele, depois virou para Felix.
- Tem alguns quartos vazios no segundo andar - ela disse.
Felix desapareceu e retornou rapidamente sem Taran.
Eles sentaram na sala de convivência e, quando Cleo olhou para o grupo, não sabia dizer se estava feliz ou horrorizada pelo modo como a noite havia se desenrolado.
Nic sentou ao lado dela, de frente para Jonas e Olivia. Felix e Magnus sentaram próximos à lareira, do outro lado da sala, perto da estante, enquanto Enzo ficou em pé ao lado de Cleo.
- Quando vocês chegaram? - Magnus perguntou.
- Hoje - Jonas respondeu. - Ainda estamos no escuro sobre o que está acontecendo aqui. A única informação que temos vem de um único soldado kraeshiano que se dispôs a falar.
- E?
- Ele sabia muito pouco. Ou, pelo menos, pouco que pudesse nos ajudar. No entanto, parece que você está fugindo, vossa alteza. E seu pai não está nada feliz com o modo como cuidou das coisas enquanto ele
esteve fora.
- É o mínimo que se poderia dizer.
Cleo observava Magnus levemente surpresa. Apesar do tanto que devia ter bebido, parecia sóbrio como um sacerdote limeriano.
- O soldado - disse Jonas, apontando para Cleo com tristeza. - Ele nos disse que você tinha morrido. Que isso aconteceu depois que fugiu de Amara. Que morreu congelada.
- Isso poderia muito bem ter acontecido se eu não tivesse encontrado abrigo no momento certo. - Ela desviou os olhos, tentando não fazer contato visual com Magnus, apesar de ainda sentir o olhar dele ardendo
em seu rosto.
- Você sempre foi uma sobrevivente - Jonas disse. - Nic se desesperou, mas eu tinha esperança. E aqui está você.
Nic deu de ombros.
- Eu me desespero. Sou desesperado.
- Temos muita coisa para contar a vocês - Jonas afirmou. - E com certeza vocês têm muita coisa para nos contar.
- Muito menos do que você pode imaginar - Magnus disse. - Amara acha que está governando o reino agora. Mas está errada. E será derrotada.
- E como você acha que vai derrotá-la? - Jonas perguntou.
- Acho que podemos começar com o cristal da terra que você deu à princesa - Magnus disse, e Jonas ficou tenso. - Você ainda tem aquele pedaço brilhante de obsidiana escondido em algum lugar, princesa?
Ah, sim, ela pensou enquanto se contraía. Esse era o Magnus que um dia ela desprezara - capaz de anunciar para todos, aparentemente por despeito, que ela estava em poder de um cristal da Tétrade. Ela precisaria
se lembrar de agradecer pela lembrança.
Nic soltou um rosnado de repulsa.
- Cleo, não enlouqueceu ficando ao lado dele por tanto tempo? O fato de ter mantido essa aliança artificial... deve haver algum motivo por trás disso que não me contou.
- Por favor, Nic - Magnus disse. - Somos todos amigos aqui. Sinta-se à vontade para falar o que quiser.
- Acabei de fazer isso.
Magnus revirou os olhos.
- Não preocupe essa sua cabeça de cenoura, Nicolo. A princesa continua a me tolerar, ou quase, concentrando-se apenas em recuperar seu trono assim que Amara for derrotada e mandada para longe. Recentemente,
sugeri que sua princesa dourada retornasse a Auranos, mas ela recusou. Nem pense em dizer que foi ideia minha.
Cleo virou para ele e enxergou uma expressão de desafio em seus olhos. Então percebeu o que Magnus estava fazendo.
Nic o odiava. Jonas tinha uma aliança fraca com ele. E o irmão gêmeo de Theon tinha acabado de tentar matá-lo.
Revelar que os dois eram mais do que aliados relutantes poderia causar um estresse desnecessário, principalmente agora que estavam todos juntos.
- Acredite em mim, Nic - ela disse finalmente. - E estou ansiosa pelo dia em que retornarei ao meu trono. Mas esse dia não é hoje.
- Bem, agora que isso está resolvido - Magnus disse -, vamos discutir como proceder. Pode ser?
Felix levantou a mão.
- Eu me voluntario com entusiasmo para matar a imperatriz.
Magnus o encarou com interesse.
- Como pretende fazer isso?
- Sei que alguns de vocês vão sugerir que eu use uma flecha apontada de longe - Felix disse com avidez. - Mas realmente preferiria uma abordagem mais pessoal. Com minhas próprias mãos, se possível. Só
quero ver o olhar dela naquele rostinho lindo.
Magnus piscou.
- Acabei de lembrar que foi você que me enviou um pedaço de sua pele para provar sua lealdade.
- Fui eu mesmo, vossa majestade.
Cleo analisava aquele jovem com atenção, chocada com as palavras. Será que ele era louco?
No entanto, o sujeito tinha salvado a vida de Magnus na taverna, e ela devia muito a ele por isso, então imaginou que teria que passar um pouco mais de tempo perto dele, observando-o, para ver como ele
realmente era.
Houve um tempo em que tinha desejado que Magnus morresse pelo que fizera com Theon, em que tinha desejado matá-lo com as próprias mãos.
Mas no momento em que a vida de Magnus correra perigo, não conseguira se concentrar em nada além do príncipe. Qualquer necessidade de vingança tinha desaparecido meses atrás, como se ela tivesse trocado
de pele.
O sentimento era de perdão. Ela ainda odiava o garoto que Magnus tinha sido aquele dia.
Mas tinha passado a entendê-lo nos meses que se seguiram, talvez ainda melhor do que entendia a si mesma.
- Há uma ameaça muito maior do que Amara em Mítica nesse momento, sinto informar - Jonas revelou, interrompendo o devaneio de Cleo. Ele estava limpando as marcas de beijo da dançarina do rosto com um lenço
que Olivia havia lhe dado, e Cleo não conseguiu deixar de achar engraçado o contraste entre os movimentos ridículos e o tom solene daquela declaração.
- Me deixe adivinhar - Magnus disse. - Você está falando da minha irmã? Sei que deve estar de luto por sua amiga, Jonas, mas não faz sentido gastar suas energias vingativas com Lucia nem com seu companheiro,
Kyan.
Jonas encarou os olhos de Magnus.
- Vocês não sabem, não é?
- Não sabemos o quê?
- Vocês procuraram pela Tétrade. Pessoas morreram por esses cristais. Você já revelou diante de todos que Cleo está em poder de um deles, e sabemos que Amara está com o da água, e seu pai, com o do ar.
- Sim, sei disso tudo, rebelde. E já sabemos que Kyan está com o cristal do fogo.
- Errado - Jonas ficou tenso. - Kyan é a magia do fogo.
Cleo ficou encarando-o, certa de que tinha escutado errado.
- O que quer dizer com isso?
- A magia que vocês estão procurando, que todos estamos procurando, pode pensar. Pode falar. E pode matar sem remorso. E mais três iguais a Kyan estão aguardando para escapar de suas prisões. Os cristais
não são pedras mágicas, princesa, mas deuses elementares.
A sala toda ficou em silêncio, e Cleo observou freneticamente o rosto dos outros, esperando encontrar alguém revirando os olhos. Esperando que aquilo não passasse de uma mentira engraçada para quebrar
a tensão.
Não podia ser verdade.
Mas até Nic assentia pesaroso.
E naquele exato momento, dentro de seu bolso, estava uma daquelas prisões.
Ela olhou para Magnus, cuja testa franzida era o único sinal de surpresa.
- Lucia deve tê-lo ajudado a escapar da esfera de âmbar - Magnus disse.
- Acho que isso é óbvio - Jonas respondeu curto e grosso, o que lhe rendeu um olhar sombrio do príncipe.
Cleo juntou as mãos para impedi-las de tremer.
- Temos certeza de que os objetivos de Kyan, sejam quais forem, são perversos? A Tétrade ainda pode nos ajudar a derrotar Amara.
- Eu o vi queimar Lys até fazê-la desaparecer - Jonas grunhiu. - Nem uma única cinza restou quando ele acabou. - O rebelde virou para Magnus. - Kyan é perverso. Assim como a vadia da sua irmã.
Magnus levantou com os punhos cerrados.
- Não me importo com o que aconteceu, você não vai falar assim de Lucia na minha presença. Não vou permitir.
- Não? E você acha que pode me impedir? - Agora Jonas também estava com os punhos cerrados, e os dois se aproximavam.
- Talvez ele não o impeça - disse uma nova voz, interrompendo a conversa e paralisando o rebelde e o príncipe. - Mas eu com certeza estou disposto a tentar.
Com aquela promessa, o Rei Sanguinário entrou na sala.
14
JONAS
PAELSIA
Rei Gaius Damora. O Rei Sanguinário. Assassino. Sádico, torturador, escravocrata, traidor. Inimigo. Alvo.
E, naquele momento, estava na mesma sala que Jonas.
Muitas surpresas tinham acontecido naquela noite. Primeiro um encontro com Laelia Basilius, de quem Jonas tinha sido - por pouco tempo e com relutância - noivo. Mas essas surpresas desapareceram de sua
mente assim que o rei entrou na sala.
Gaius observou o grupo e parou o olhar sobre Jonas.
- Jonas Agallon. Não vejo você há muito tempo. Acho que a última vez foi no casamento de meu filho.
Jonas percebeu que não conseguia fazer nada além de olhar para o homem que tinha matado e destruído tantos.
- Magnus... - Cleo disse do outro lado da sala.
- Ah, sim - Magnus disse, sem qualquer sinal de indignação pelas calúnias ditas contra a irmã. - Esqueci de dizer que estou viajando com meu pai?
- Esqueceu - Jonas respondeu, tenso.
- Sim - o rei concordou. - E é muito bom que meu filho traga seus novos amigos aqui sem avisar.
Jonas se esforçou para manter a compostura, para não mostrar como estava indignado.
- Não são tão novos quanto você pensa.
A pele do rei Gaius estava pálida, o rosto tinha hematomas como se tivesse sido espancado. Ele inclinou para a frente, como se agisse com normalidade, e se apoiou na parede ao lado da escada, mas algo
ficou evidente na posição. Uma fraqueza e uma fragilidade que o rebelde nunca tinha notado no homem.
- Volte para o quarto - Magnus disse.
- Não acato ordens suas. - O rei sorriu, sem achar graça. - Magnus, seus amigos sabem que estamos todos do mesmo lado agora?
Só de pensar em uma aliança com Gaius, Jonas perdeu totalmente a fala. Os outros - Nic e Olivia - também permaneceram em silêncio, tensos.
- É mesmo? - Foi o rosnado ríspido de Felix, como o alerta de uma fera enjaulada, que quebrou o silêncio. - Você decidiu isso antes ou depois de permitir que Amara me deixasse levar a culpa por matar a
família dela?
O rei levantou uma sobrancelha escura e observou Felix.
- Nunca permiti que Amara fizesse nada. Ela toma as próprias decisões. Quando soube o que tinha acontecido, já era tarde demais para intervir. Soube que você já estava morto. Caso contrário, teria feito
o possível para libertar você.
Felix manteve o olhar fixo no rei, e em seu único olho não se via nada além de frieza e malícia.
- Claro que teria. Por que eu duvidaria de sua palavra, vossa alteza?
Suspirando, o rei abatido e aparentemente debilitado se virou para Jonas.
- Você tem todos os motivos para me odiar. Mas precisa me ouvir agora e perceber que juntos somos fortes. Temos um inimigo comum: Amara Cortas.
- Sua esposa - Jonas afirmou.
- Por conveniência e circunstância apenas. Não tenho dúvidas de que ela já está conspirando para me matar, em especial agora que assumiu o controle de Mítica e sabe que seus soldados são muito mais numerosos
que os meus. Tenho me dedicado a consertar alguns de meus erros mais recentes, começando por tirar Amara deste reino.
- Me parece um bom começo - Jonas disse.
O rei caminhou devagar, fazendo careta ao sentir uma dor repentina com o movimento, e estendeu a mão.
- Peço que deixemos nossas diferenças de lado até esse objetivo ser alcançado. O que me diz?
Se não estivesse tão surpreso, Jonas teria gargalhado. O Rei Sanguinário tinha acabado de propor a ele - a mesma pessoa que o acusara de assassinar a Rainha Althea - uma aliança.
Jonas observou os outros ao redor, e em silêncio todos olhavam chocados para ele e o rei. Nic e Cleo estavam pálidos, e Felix entortava a boca de ódio. Olivia manteve o olhar desprovido de emoção e inescrutável,
como sempre. Enzo, o guarda de Cleo, estava parado empunhando a espada. Em contraste, Magnus tinha sentado e recostado na cadeira, os braços cruzados à frente do peito, a cabeça inclinada.
Finalmente, Jonas estendeu a mão direita para o rei e aceitou o acordo, encarando diretamente seus olhos.
- O que posso dizer, vossa alteza? - Com a mão esquerda, ele cravou uma adaga decorada no coração do monstro. - Vá para as terras sombrias, filho da puta mentiroso.
O rei gemeu sem força, e pelo som, a dor parecia extremamente forte. Jonas girou a faca ainda mais fundo, até Gaius tombar para trás.
Jonas ouviu Nic comemorar assim que Enzo o acertou e o derrubou no chão. Felix chegou em um instante, puxando Enzo para longe. Outro dos guardas do rei apareceu e puxou os braços de Jonas para trás. Cabelos
loiros apareceram na confusão - era Cleo tentando tirar o segundo guarda do rei de cima de Jonas. Magnus estava de pé com o olhar sério fixo no rei. Olivia estava dentro do campo de visão periférica de
Jonas, esperando. Ela só interviria se ele corresse perigo de morte.
A raiva que sentia, o ódio que tinha pelo rei, zuniam dentro de Jonas, renovados, e o rebelde tremia. Enquanto observava o rei moribundo, não sentiu nem um pouco de arrependimento.
Finalmente tinha tido uma oportunidade. E a aproveitado.
- Viu? - ele disse, olhando para Magnus. - Cumpro minhas promessas.
- Sim, estou vendo - Magnus disse, prestando atenção no pai, como se estivesse curioso, e não grato pela atitude. - Só é uma pena que você não tenha feito isso antes.
- O que quer dizer com isso? - Jonas olhou para o príncipe, sem entender por que ele parecia decepcionado com a situação. Jonas tinha feito exatamente o que Magnus queria, tinha cumprido a tarefa que o
tinha levado a Kraeshia.
- Milo, deixe Jonas levantar. - Cleo segurava o guarda desconhecido pelo braço.
- Ele assassinou o rei - Milo disse.
- Não - Magnus disse. - A morte decidiu demorar no que diz respeito ao meu pai.
- Jonas, olhe para ele - Felix pediu.
Gaius não estava mais deitado no chão, cheio de sangue. Milagrosamente, estava ajoelhado, sangrando muito sobre a madeira desgastada, o cabo da adaga no peito.
A expressão agonizante do rei estava fixa em Jonas.
- Ele não está morto - Nic murmurou, balançando a cabeça, incrédulo. - Por que não está morto?
Num movimento repentino e forçado, o rei Gaius segurou o cabo decorado da adaga. Ainda encarando Jonas com os olhos semicerrados, ele arrancou a lâmina, com um grito. A adaga caiu no chão, e ele levou
as mãos à ferida.
- Isso é magia - Jonas conseguiu dizer em meio ao choque.
- Muito observador de sua parte. Impressionante - Magnus disse com seriedade.
- Explique o que está acontecendo!
Magnus meneou a cabeça para Milo.
- Solte o rebelde. Não posso conversar com alguém preso como um besouro pregado a uma placa de cortiça.
Milo parou de segurar o braço de Jonas, que imediatamente ficou de pé e lançou um olhar acusatório para Magnus, que encarou Cleo de um jeito pouco sutil e sério. Cleo rangeu os dentes, e Magnus revirou
os olhos.
- Muito bem - o príncipe concordou. - Vou tentar ser breve em minha explicação. O que está acontecendo é o resultado de uma poção que o rei tomou muitos anos atrás, uma poção que permitiu que, não importa
o golpe final e fatal que o destino desferir, ainda tem algum tempo para... resistir depois de ser morto.
- Não sei bem se é assim que funciona - Cleo disse pacientemente.
Magnus suspirou e fez um gesto para o pai.
- Mais ou menos isso?
- Acredito que sim. Minha nossa, Jonas, essa é a adaga de Aron? - Cleo perguntou, chocada. - Você realmente guardou essa coisa horrível por todo esse tempo?
- Responda à minha pergunta - ele disse, mais incisivo do que pretendia ao se dirigir à princesa. Finalmente Jonas tinha feito o que queria fazer havia muito tempo, mas mais uma vez o destino não permitia
seu sucesso. Nem mesmo depois de um golpe fatal.
- Você não matou o rei - Cleo respondeu tensa - porque o rei já encontrou a morte dias atrás.
Enquanto Jonas tentava desesperadamente processar aquela afirmação incrível, uma mulher desceu a escada. Ela era mais velha, com rugas ao redor dos olhos, e usava um manto cinza-escuro que combinava com
seu cabelo. Entrou na sala de convivência, observando todos os presentes com firmeza, até finalmente fixar o olhar em Gaius.
A mulher o observou por um momento muito breve e, em seguida, lançou um olhar intenso na direção de Jonas.
- Você fez isso com meu filho?
Um arrepio subiu por seus braços e seus ombros, e desceu pela coluna ao perceber a raiva controlada nas palavras dela.
Filho?
- Tudo bem - o rei disse assustado, segurando a manga da blusa da mulher que se apressou para ficar ao lado dele.
- Não está nada bem. Não mesmo. - Ela voltou a encarar Jonas, e com o olhar dela, veio a sensação de que ele estava sendo congelado. - Você ousaria tentar matar seu rei?
- Ele não é meu rei - Jonas respondeu irritado, recusando-se a demonstrar fraqueza ou dúvida. - Ele matou meus amigos em sua guerra doentia, executou aqueles que se recusaram a se submeter, e escravizou
meu povo para construir sua preciosa Estrada Imperial. Nenhuma pessoa nesta sala diria que ele não merece morrer por seus crimes.
Ela cerrou o punho.
- Eu diria.
- Não, mãe - Gaius disse depressa. - Deixe-o em paz. Precisamos dele. Acredito que precisaremos de todos eles para reaver o que Amara pegou.
Devagar, o rei levantou, e Jonas só conseguiu dar um passo incerto para se afastar. O único sinal de que uma adaga tinha atravessado seu coração alguns momentos antes era a camisa rasgada e o sangue no
chão.
- Só a magia mais sombria poderia tornar algo assim possível - uma nova voz disse.
Jonas virou de repente e viu que Ashur Cortas estava atrás deles na entrada da hospedaria.
- Ashur! - Cleo se surpreendeu. - Você está vivo! Mas... como?
Ashur arqueou as sobrancelhas escuras.
- Mais magia negra, receio.
Ela virou para Nic, cuja expressão era neutra.
- Você sabia disso?
Ele assentiu.
- Eu sei, é um choque.
- Um choque? Ele estava morto, Nic! Por que não me contou?
- Eu ia contar. Achei melhor esperar você lidar com a questão do Taran primeiro.
- Ah, obrigada - ela disse, a voz tensa. - Você é muito solícito mesmo.
- Não sei por quê, mas acho que você não está falando sério.
Jonas se virou para Magnus e viu que ele estava sério.
- Estou ficando muito cansado de magia - o príncipe murmurou. - E de absolutamente tudo sobre o que não tenho controle.
- Também é ótimo revê-lo, príncipe Magnus - Ashur disse com um meneio de cabeça.
- Muita gentileza sua nos encontrar, vossa graça - Nic se dirigiu a Ashur, a voz desprovida de qualquer respeito. - Pensei que tivesse criado guelras e cauda e começado a nadar de volta a Kraeshia.
- Hoje não, infelizmente - Ashur respondeu com rispidez.
- Talvez amanhã.
- Talvez.
- Contamos a todos sobre sua ressurreição de fênix agora ou mais tarde? - Nic perguntou.
A expressão de Ashur ficou tensa ao notar o tom ácido de Nic.
- Parece, Nicolo, que há assuntos mais urgente a tratar. Estou certo, não estou, rei Gaius?
O grupo voltou a atenção ao rei, que estava encolhido ao lado da mãe.
- Está, sim, príncipe Ashur.
- Uma aliança contra minha irmã.
- É um problema para você?
- Não. Contanto que não a matem, não vejo nenhum problema.
- Espere - Felix disse de onde estava, ao lado da lareira. - Você sabe que eu pretendia matá-la! Vai mesmo tirar isso de mim?
Ashur lançou um olhar severo para Felix.
- Tudo bem. É um assunto para outro dia - Felix respondeu.
- Príncipe Ashur, você é o herdeiro legítimo de seu pai - o rei explicou. - Tire o título de Amara e tudo isso pode acabar.
- E agora você é o marido dela, pelo que soube. Por que não está a seu lado, orientando suas decisões?
- Não é mais tão simples assim.
- Nada importante é simples, certo?
- O Rei Sanguinário quer que trabalhemos em equipe - Jonas disse, balançando a cabeça. - É a coisa mais ridícula que já ouvi. Não é o que quero.
Gaius bufou, frustrado.
- Sei muito bem o que você quer, rebelde. Você quer que eu morra. Bem, devo dizer que vou morrer em breve.
- Gaius... - a mãe sibilou. - Não vou permitir que fale assim. Não vou permitir!
Ele a silenciou com um aceno.
- Minha primeira prioridade é retomar o controle de meu reino. Mítica não pertence, nem pertencerá, ao Império Kraeshiano.
- Não fosse pela magia que dizem que está adormecida aqui - Ashur disse -, posso garantir que nem Amara nem meu pai dariam tanta importância a essa ilhazinha.
- Acredito que você esteja ciente de que Amara envenenou seu pai e seus irmãos - o rei afirmou. - Ela não sente remorso quando vai em busca do que quer.
A risada sombria de Nic interrompeu a tensão na sala.
- Que engraçado... "Não sente remorso", ele disse, como se considerasse isso um defeito. O mesmo homem que quebrou o pescoço da minha irmã por estar no lugar errado na hora errada. - Ele parou de rir de
repente. - Sua aparência está péssima, vossa majestade. Espero muito que esteja sofrendo neste momento.
- Não fale com o rei desse jeito, Cassian - Milo, o guarda, se manifestou.
Nic lançou um olhar para ele do outro lado da sala.
- O que vai fazer se eu falar? Vai pedir para seu amigo ajudá-lo a me bater?
Milo sorriu e estralou os dedos.
- Posso fazer isso sozinho sem problema.
- Pensei que você estivesse apodrecendo na masmorra.
O sorriso do guarda ficou tenso.
- Preciso lhe agradecer por isso, não?
- Precisa. - Nic semicerrou os olhos. - O que vai fazer em relação a isso, Milo?
- Muitas coisas. Só preciso de tempo.
- Milo, não é? Ouça bem o que vou dizer. - A voz de Ashur estava baixa, como o rosnado de uma fera enjaulada. - Se tentar machucar Nicolo, juro que eu mesmo vou arrancar sua pele.
Jonas virou para Milo. Viu que a única reação dele à ameaça foi piscar, surpreso.
Cleo falou com o rei, depois de lançar um olhar preocupado a Nic e ao guarda.
- Você deu Mítica a Amara - ela disse, deixando claro seu tom de insatisfação. - Não pode apenas pegá-la de volta?
- Você não entende - o rei disse. - Nenhum de vocês entende. O imperador Cortas teria tomado Mítica à força se eu não tivesse agido dessa forma. Dezenas... não, centenas de milhares teriam morrido na guerra
se eu não tivesse feito minha proposta a ele.
- Ah, sim - Magnus disse. - Meu pai, o salvador de todos nós. Deveríamos construir estátuas em homenagem a ele. Uma pena já haver dezenas delas em Limeros. - Magnus arregalou os olhos. - É muita vaidade,
pensando bem. A deusa Valoria não aprovaria.
- Para o inferno com a deusa e com todos os Vigilantes! - o rei rebateu. - Não precisamos da ajuda deles para nos livrarmos de Amara.
- Não esqueça Kyan - Jonas acrescentou.
O rei virou para ele.
- Quem é Kyan?
Jonas não conseguiu conter o riso.
- Adoraria ficar aqui para elaborarmos uma estratégia juntos, vossa alteza, mas cansei dessa farsa. Não vou trabalhar com você hoje, nem amanhã, nem nunca.
- Diga, vossa alteza - Felix disse devagar -, ainda está com o cristal do ar?
Gaius lançou um olhar sério.
- O cristal do ar! - a mãe dele exclamou. - Você está com ele? E não me contou?
- Estou, sim - ele respondeu.
- Onde?
- Em um lugar seguro.
Jonas tentou encarar Cleo nos olhos, mas ela parecia ocupada com uma conversa silenciosa com o príncipe. Quando se entreolhavam, o sorriso de Magnus desapareceu.
- Se for verdade, e quando eu tiver força suficiente para encontrar minha neta - a mulher anunciou -, a vitória será nossa.
Mais uma vez, Jonas riu com frieza.
- Então é esse o segredo para seu grande plano? A princesa Lucia? Acredito que ficará decepcionada quando vir a serpente fria, má e sanguinária que ela se tornou. Mas ela é uma Damora, então talvez você
não se surpreenda nem se desaponte.
A senhora o observou.
- Jonas, não é?
- É o meu nome.
- Meu nome é Selia. - Ela se aproximou sem raiva no olhar ao pegar as mãos dele. - Fique conosco e ouça mais sobre nossos planos. Concordo com meu filho que, apesar de nossas diferenças, ainda podemos
trabalhar juntos. Tente ver isso de modo lógico. Juntos, somos mais fortes.
Ela estaria certa?
- Não sei...
- Fique - Cleo pediu. - Por favor, pense bem, pelo menos. Por mim.
Jonas encarou seus olhos sinceros e azuis.
- Talvez.
Magnus levantou.
- Está sugerindo que os rebeldes fiquem aqui? - ele perguntou em tom acusatório para a avó. - Nesta hospedaria? É a pior ideia que já ouvi.
- Discordo - disse o rei. - Minha mãe tem razão. Podemos chegar a um acordo. Temporário. Temos o mesmo inimigo agora.
Sem saber ao certo se estava prestes a concordar ou discordar dos Damora, Jonas abriu a boca para falar mas foi interrompido por um rosnado furioso vindo da sala de convivência.
Passos foram ouvidos descendo a escada, e Taran entrou com tudo no ambiente. Em um instante, voltou o olhar furioso para Magnus.
A adaga de Jonas - aquela que o rei tinha tirado do peito - estava no chão. Jonas a viu, mas Taran também, recuperando-a num piscar de olhos e percorrendo a distância entre ele e o príncipe.
Taran apontou a adaga para Magnus, mas o príncipe segurou o braço de Taran antes que ele pudesse encostar. Cleo soltou um grito estridente.
- Você está morto - Taran gritou.
Magnus se esforçou para não deixar a lâmina feri-lo, mas Taran o pegou de surpresa e a ira da vingança parecia duplicar sua força.
Então, Felix apareceu atrás de Taran, passando o braço por seu pescoço e puxando-o para trás.
- Não me faça acertar você de novo. Perdi meu pedaço de pau.
Jonas se aproximou e arrancou a adaga da mão de Taran.
- Vou matar você - Taran gritou para o príncipe enquanto Felix o arrastava para trás. - Você merece morrer pelo que fez!
Magnus não revidou. Só ficou observando o rapaz, com uma expressão séria.
- Acho que todos merecemos morrer por algo que fizemos - Jonas disse, aliviando um pouco da tensão que crescia entre o príncipe e o rebelde. - Ou por algo que deixamos de fazer.
O príncipe desfez a expressão séria e olhou incrédulo para Jonas.
- É minha imaginação ou você acabou de ajudar a salvar minha vida?
Jonas fez uma careta ao ouvir a pergunta.
- Parece que sim, não? - Ele olhou para Cleo, cuja expressão era de alívio. Com certeza, a princesa não queria ver mais sangue sendo derramado naquela noite, ele pensou. Nem mesmo o de Magnus. - Pode ser
que eu esteja prestes a cometer um erro horroroso do qual me arrependerei pelo resto da vida, mas decidi aceitar essa aliança. Mas uma aliança temporária, até Amara ser tirada daqui.
Ele esperou a resposta de Ashur. A expressão do príncipe kraeshiano se manteve séria, mas ele assentiu.
- Concordo. Amara precisa perceber o que fez. Ainda que ache que estava certa, tomou o caminho errado. Farei o que puder para ajudar.
- Ótimo. - Jonas apontou para Taran, que Felix ainda segurava. - Compreendo seu luto e sua ira, mas seu desejo por vingança não tem espaço aqui.
Taran lançou um olhar feio para Jonas, segurando o braço de Felix, que apertava sua garganta como uma barra de ferro.
- Você conhecia meus motivos para vir para cá antes de sairmos de Kraeshia.
- Conhecia, mas isso não quer dizer que concordava com eles. Agora tomei minha decisão. Você não vai tentar matar o príncipe Magnus de novo. Não enquanto mantivermos essa aliança.
- Você ouviu bem com essas orelhas gastas? - Felix perguntou a Taran, a voz áspera enquanto aplicava mais força no braço. - Ou preciso repetir mais devagar?
- Abandonei uma rebelião para vir até aqui vingar meu irmão.
- Uma rebelião fadada ao fracasso antes mesmo de começar - Ashur acrescentou.
- Você não sabe.
- Sei. Não me alegra saber, mas sei. Talvez um dia o império que meu pai construiu seja destruído, mas não será logo.
- Veremos.
- Sim, veremos.
Taran lançou mais um olhar raivoso para Jonas.
- Você se uniria a eles por vontade própria?
- Sim - Jonas confirmou. - E peço que considere fazer o mesmo. Podemos precisar de sua ajuda. - Ele fez uma pausa. - Mas não me leve a mal, Taran; se tentar acabar com a vida do príncipe Magnus de novo,
vou acabar com a sua.
15
AMARA
PAELSIA
O deus do fogo tinha sido muito específico sobre o lugar aonde queria que Amara fosse para obter poder infinito. Segundo ele, era um lugar tocado pela magia. Um lugar que até os próprios imortais reconheciam
como um centro de poder.
Ela contou a Carlos sobre a mudança de planos. Não ia se mudar para o palácio limeriano. Não, seu destino ficava mais ao sul de Paelsia, próximo ao antigo complexo do chefe Hugo Basilius.
Em vez de questionar as ordens, Carlos planejou tudo no mesmo instante. Com quinhentos soldados, Amara, Nerissa, Kurtis e o capitão dos guardas viajaram ao reino central de Mítica, que a nova imperatriz
ainda não conhecia.
Pela janela da carruagem, ela via com surpresa o gelo e a neve de Limeros derreterem e darem espaço à terra seca, às florestas mortas e à escassa vida selvagem.
- Foi sempre assim aqui? - ela perguntou, assustada.
- Nem sempre, vossa graça - Nerissa respondeu. - Ouvi dizer que houve uma época, muito tempo atrás, que toda Mítica, de norte a sul, era quente e temperada, sempre verde, com pequenas mudanças de uma estação
a outra.
- Por que alguém moraria em um lugar assim?
- Os paelsianos não podem escolher seu destino e são conhecidos por se conformarem isso, como se a aceitação tivesse se tornado uma religião em si. O povo é pobre, regido pelas regras que seu ex-chefe
e o chefe antes do anterior estabeleceram. Por exemplo, os paelsianos só podem vender vinho legalmente a Auranos, e o vinho é o único produto de exportação valioso deles. Grande parte do lucro é taxado,
e essas taxas foram determinadas pelo chefe.
Sim, o vinho paelsiano era famoso pelo sabor adocicado e por sua habilidade mágica de inebriar depressa e de modo prazeroso, sem mal-estar depois.
Era o vinho que Amara tinha levado para Kraeshia para envenenar sua família.
O que quer que fosse dito sobre a bebida, ela jurava que nunca a beberia por causa da lembrança.
- Por que não vão embora? - ela perguntou.
- Para onde? Poucos teriam dinheiro para ir ao exterior, menos ainda para construir uma casa em outro lugar que não seja aqui. E os paelsianos não podem entrar em Limeros nem em Auranos sem permissão do
rei.
- Tenho certeza de que muitos vêm e vão como querem. As fronteiras não são totalmente monitoradas.
- Não, mas os paelsianos costumam obedecer às leis. A maioria dos paelsianos, pelo menos. - Nerissa recostou na cadeira, as mãos sobre o colo. - Eles provavelmente não vão lhe causar nenhum problema, vossa
graça.
Ouvir aquilo era um alívio, no mínimo, depois de tantos problemas no passado.
Amara continuou observando a paisagem árida pela janela da carruagem durante os quatro dias de viagem desde a partida da quinta de lorde Gareth, esperando ver a terra e a morte se transformarem em verde
e vida, mas isso não aconteceu. Nerissa garantiu que mais a oeste, mais perto da costa, a paisagem melhoraria, e que a maioria dos paelsianos construía casas em vilarejos naquele pedaço da terra; poucos
construíam mais perto dos picos assustadores e sombrios das Montanhas Proibidas, a leste.
Aquele era o reino mais distante da fartura de Kraeshia que ela já tinha visto, e Amara estava torcendo para não precisar passar muito tempo ali.
Na última etapa da viagem, o comboio usou a Estrada Imperial, que se estendia por Mítica de modo curioso, começando no Templo de Cleiona, em Auranos, e terminando no Templo de Valoria, em Limeros. Passava
direto pelos portões de entrada do complexo de Basilius.
Os portões estavam abertos e um homem baixo de cabelo grisalho os esperava, cercado por uma dúzia de paelsianos enormes usando roupas de couro, com cabelo preto preso em tranças minúsculas.
Quando Carlos ajudou Amara a desembarcar da carruagem, o homem fez um leve sinal com a cabeça para ela.
- Vossa graça, sou Mauro, o antigo conselheiro do chefe Basilius. Seja bem-vinda a Paelsia.
Ela olhou para o homem, bem mais baixo do que ela.
- Então, você ficou responsável por este reino depois da morte do chefe?
Ele confirmou.
- Sim, vossa graça. E estou às suas ordens. Por favor, venha comigo.
Junto com o grupo principal de guardas pessoais da imperatriz - incluindo Carlos -, Amara e Nerissa acompanharam Mauro pelos portões de pedra. Um caminho de pedra se estendia pelo vilarejo murado, levando-os
por pequenas casas de sapê parecidas com as que Amara tinha visto enquanto atravessava várias cidades antes de chegar ao complexo.
- Naquelas casas ficavam as tropas do chefe. Infelizmente, quase todos foram mortos na batalha pelo palácio auraniano. - Mauro indicava os pontos de interesse conforme caminhavam pelo complexo, que no
passado fora o lar de mais de dois mil cidadãos paelsianos.
Havia comércios que antes forneciam pão, carne, legumes e frutas, trazidos do Porto do Comércio. Mauro mostrou um espaço onde ficavam as bancas dos vendedores locais, que podiam atravessar os portões todo
mês.
Outra área, uma clareira com bancos de madeira, tinha sido usada como arena para diversão - duelos, lutas e disputas de força que o chefe costumava gostar de assistir. Outra clareira surgiu com restos
de fogueiras, onde o chefe fazia banquetes.
- Banquetes... - Amara comentou surpresa. - Em um reino como este, banquetes são a última coisa que eu esperaria de um líder.
- O chefe precisava de prazeres para abastecer a mente e conseguir explorar os limites de sua força.
- Certo - ela disse. - Ele acreditava ser um feiticeiro, não?
Mauro olhou para ela constrangido.
- Sim, vossa graça.
Para Amara, o chefe Basilius parecia um homem egoísta e pobre de espírito. Ela estava contente em saber que Gaius o havia matado depois da batalha auraniana. Se ele não o tivesse matado, ela teria feito
isso.
Apesar do calor do dia com o sol já forte, Amara sentiu a temperatura ao seu redor aumentar ainda mais.
- Sei que não parece grande coisa, pequena imperatriz, mas garanto que aqui é exatamente onde precisamos estar.
Amara não respondeu, mas reconheceu a presença de Kyan com um meneio de cabeça.
- Estamos perto do centro do poder aqui - ele continuou. - Posso sentir.
- Aqui - Mauro indicou um grande buraco no chão, com cerca de dez passos de circunferência e vinte passos de profundidade para dentro da terra seca - é onde o chefe costumava deixar os prisioneiros.
Amara olhou para dentro do buraco.
- Como eles desciam?
- Alguns eram baixados com uma corda ou escada. Outros simplesmente eram jogados. - Mauro fez uma careta. - Peço desculpas se a imagem não lhe agrada, vossa graça.
Ela o encarou com uma expressão fulminante.
- Garanto, Mauro, que provavelmente não há nada que você possa me contar sobre como os prisioneiros eram tratados que eu consideraria surpreendente ou intolerável.
- Claro, vossa graça. Peço desculpas.
Amara estava cansada dos homens e seus falsos pedidos de desculpa.
- Carlos, cuide para que meus soldados recebam aposentos adequados depois dessa longa viagem.
- Sim, imperatriz. - Carlos fez uma reverência.
- Vossa graça ficará aqui, imperatriz Amara. - Mauro indicou a construção de três andares, feita de terra e pedra, a maior e mais forte do vilarejo. - Espero que seja do seu agrado.
- Com certeza será.
- Organizei tudo para levá-la a uma feira mais tarde e mostrar o trabalho de seus novos súditos paelsianos. Há, por exemplo, alguns bordados lindos que podem ser de seu interesse. E alguns enfeites com
contas para seu belo cabelo. Uma comerciante virá da costa até aqui para trazer uma tinta de frutas silvestres que ela criou para pintar os lábios... - Mauro parou de falar ao ver a expressão contrariada
da imperatriz. - Algum problema, vossa graça?
- Você acha que estou interessada em bordados, enfeites e tintas para os lábios? - Ela esperou a resposta, mas ele só abriu a boca sem emitir nenhum som.
De trás dela, ouviu-se uma risada.
Amara virou imediatamente, os olhos fixos no guarda - seu guarda - que mantinha um sorriso no rosto.
- Está achando engraçado? - ela perguntou.
- Sim, vossa graça - o guarda respondeu.
- Por quê?
Ele olhou para os compatriotas ao redor, e nenhum deles fez contato visual.
- Bem, porque é do que as mulheres gostam: maneiras de ficarem mais bonitas para os homens.
O guarda disse isso sem hesitar, como se fosse óbvio e nada ofensivo.
- Minha nossa - Kyan disse no ouvido dela. - Que insolente, não?
Ela concordava.
- Me diga uma coisa... Você acha que eu deveria comprar tinta para os lábios para agradar meu marido quando ele finalmente voltar para mim? - ela perguntou.
- Acho que sim - ele respondeu.
- Esse é meu objetivo como imperatriz, claro. Agradar meu marido e qualquer outro homem que por acaso olhe para mim.
- Sim, vossa graça.
Era a última coisa que ele diria na vida. Amara fincou a adaga que trazia consigo no homem e viu os olhos dele se arregalarem de surpresa e dor.
- Se algum de vocês me desrespeitar - ela disse, lançando um olhar aos outros guardas que a encaravam, surpresos -, vai morrer.
O guarda que havia dito o que não devia caiu no chão. Ela sinalizou para Carlos retirar o corpo, e ele obedeceu sem hesitar.
- Muito bem, pequena imperatriz - Kyan sussurrou. - Você me prova mais seu valor a cada dia que passa.
Amara abriu um sorriso na direção de Mauro, cuja expressão era de medo.
- Estou ansiosa para ir à feira. Parece incrível.
Mais tarde, escoltadas por Mauro e pelos guardas reais, Amara e Nerissa exploraram a feira, composta por vinte bancas cuidadosamente escolhidas que, como o prometido, vendiam, em sua maioria, produtos
fúteis - principalmente itens de beleza e de moda.
Amara ignorou os lenços e vestidos bordados, a tinta para os lábios, os cremes para remover manchas e os bastões de carvão para delinear os olhos e se concentrou nos comerciantes - paelsianos, jovens e
velhos, com expressão cansada, mas esperançosa, quando ela se aproximava.
Sem medo, sem desespero, só esperança.
Que estranho encontrar isso em um reino dominado, ela pensou. Mas a ocupação kraeshiana de Mítica tinha sido, até aquele momento, quase totalmente pacífica, em espacial em Paelsia. Ainda assim, Carlos
havia contado sobre grupos rebeldes que conspiravam contra ela, tanto em Limeros quanto em Auranos.
Não era um problema para Amara. Os rebeldes eram uma praga inevitável, mas que em geral podia ser combatida com facilidade.
Ela observou quando Nerissa se aproximou de uma banca para ver um lenço de seda que o comerciante mostrava a ela.
- Fico feliz em ver que você está se habituando - Kyan sussurrou carinhosamente no ouvido dela. Os ombros de Amara ficaram tensos com a voz dele.
- Estou fazendo o melhor que posso - ela respondeu em voz baixa.
- Infelizmente tenho que deixá-la por um tempo enquanto procuro a magia de que precisamos para realizar o ritual.
Pensar nisso a assustou. Eles tinham acabado de chegar!
- Agora? Vai embora agora?
- Sim. Em breve, retomarei minha glória, e você será mais poderosa do que pensa. Mas precisamos da magia para finalizar isso.
- A magia de Lucia. E seu sangue.
- O sangue dela, sim. Mas não precisamos da feiticeira em si. Vou encontrar uma fonte alternativa de magia. Mas precisaremos de sacrifícios; sangue para selar a magia.
- Compreendo - ela sussurrou. - Quando você volta?
Amara esperou, mas não houve resposta.
Então, ela sentiu sua saia mexer e olhou para baixo. Uma menininha, que não devia ter mais do que quatro ou cinco anos, com cabelo bem preto e sardas no rosto bronzeado, aproximou-se com certa hesitação,
oferecendo uma flor.
Amara aceitou a flor.
- Obrigada.
- É você, não é? - a menina perguntou esbaforida.
- Quem você acha que sou?
- Aquela que veio salvar todos nós.
Amara sorriu e lançou um olhar para Nerissa, que estava ao seu lado usando um lenço colorido, e então sorriu para a criança.
- É o que você acha?
- Foi o que minha mamãe me disse, então deve ser verdade. Você vai matar a bruxa má que machuca nossos amigos.
Uma mulher se aproximou, claramente envergonhada, e pegou a mão da menininha.
- Perdoe-nos, imperatriz. Minha filha não teve a intenção de perturbá-la.
- Não me perturbou - Amara disse. - Sua filha é muito corajosa.
A mulher riu.
- Está mais para teimosa e tola.
Amara balançou a cabeça.
- Não, nunca é cedo demais para as meninas aprenderem a dizer o que pensam. É um hábito que as fará crescer mais corajosas e fortes. Diga, você acredita no que ela disse? Que vim salvar todos vocês?
A expressão da mulher se tornou mais séria, e seu cenho se franziu com preocupação e dúvida. Ela encarou os olhos de Amara.
- Meu povo sofreu por mais de um século. Estávamos sob o comando de um homem que tentou nos fazer acreditar que ele era feiticeiro, cobrando impostos tão altos a ponto que, mesmo com os altos lucros das
vinícolas, não conseguíamos nos sustentar. A terra que chamamos de lar está se desfazendo sob nossos pés enquanto estamos aqui conversando. Quando o rei Gaius venceu Basilius e o rei Corvin, muitos de
nós achamos que ele nos ajudaria. Mas isso não aconteceu. Nada mudou, só piorou.
- Sinto muito em ouvir isso.
A mulher balançou a cabeça.
- Mas então a senhora chegou. Aquela feiticeira má passou por aqui destruindo tudo, vilarejo por vilarejo, mas ela desapareceu quando a senhora chegou. Seus soldados têm sido rigorosos, mas justos. Eles
acabaram com quem discordava, mas essas pessoas não fazem falta: seus detratores são os mesmos homens que espalharam a discórdia em nosso reino depois que o exército de Basilius parou de oferecer a pouca
proteção que oferecia. Então, se acredito, como muitos aqui acreditam, que a senhora chegou para nos salvar? - Ela ergueu o queixo. - Sim, acredito.
Quando os guardas levaram Amara para longe da mulher e da filha, em direção à outra área da feira, aquelas palavras ficaram em sua mente.
- Posso fazer uma sugestão ousada, vossa graça? - Mauro perguntou, e ela olhou para o homenzinho que a seguia como um cão adestrado.
- Claro que pode - ela disse. - A menos que queira sugerir que eu compre tinta para os lábios.
Ele empalideceu.
- De modo algum.
- Então, vá em frente.
- O povo paelsiano está aberto a sua liderança, mas a notícia precisa ser espalhada. Sugiro abrir os portões do complexo para permitir que os novos cidadãos entrem para ouvi-la falar sobre seus planos
para o futuro.
Um discurso, ela pensou. Era algo que Gaius gostaria muito mais de fazer do que ela.
Mas Gaius não estava lá. E agora que tinha o deus do fogo para aconselhá-la sobre como acessar a magia da esfera de água-marinha, não havia mais motivos para deixar o rei viver por muito mais tempo.
- Quando? - ela perguntou a Mauro.
- Posso espalhar a notícia agora mesmo. Milhares virão dos vilarejos vizinhos para ouvi-la. Talvez em uma semana?
- Três dias - ela disse.
- Três dias parece perfeito - ele concordou. - Será maravilhoso. Muitos paelsianos, de braços e coração abertos, estão prontos a obedecer a todas as suas ordens.
Sim, Amara pensou. Um reino pronto para fazer o que ela mandasse sem questionar, que aceitaria uma mulher como líder sem discutir, seria incrivelmente útil.
16
MAGNUS
PAELSIA
Magnus pensou nas doze pessoas que estavam na hospedaria Falcão e Lança, notando que quase metade queria vê-lo morto.
- E você é uma delas, com certeza - ele murmurou quando Nic atravessou a sala, arregalando os olhos ao passar pelo príncipe. Magnus estava sozinho sentado a uma mesa com um caderno de desenho que tinha
encontrado em uma gaveta em seu quarto.
- Cassian, veja - ele disse. - Desenhei você.
Magnus ergueu o caderno. Com os dedos manchados de carvão, ele mostrou uma página na qual tinha desenhado um garoto magro pendurado em uma forca, a língua para fora da boca, X mórbidos no lugar dos olhos.
Nic, que supostamente era muito simpático com todo mundo, lançou um olhar de puro ódio para Magnus.
- Você acha isso engraçado?
- O que foi? Não gostou? Bom, dizem que a arte é subjetiva.
- Você acha que gastar seu tempo rabiscando nesse caderno vai fazer todo mundo considerar você menos ameaçador? Pense bem. Essa pose de inocente e bacana não me engana.
Magnus revirou os olhos.
- Certo - ele disse, enfiando o caderno embaixo do braço. - Mas não posso dizer que você não me magoou. Pensei que tivéssemos nos tornado amigos em Limeros.
Nic semicerrou os olhos, sem achar graça.
- A única coisa que me ajuda a dormir à noite é saber que Cleo sabe muito bem quem você é.
- Espero muito que você esteja certo - Magnus respondeu sem dar muita atenção. Ele nunca tinha deixado as palavras de Nic atingi-lo antes, e não deixaria agora, mas a questão de Cleo era um espinho. -
Acho muito interessante ver que vocês decidiram ficar aqui na cova do leão.
- Talvez você esteja enganado a respeito de quem é o leão e quem é a presa.
Magnus deu risada.
- Conversar com você é sempre muito estimulante, Nic. De verdade. Mas tenho certeza de que tem outros lugares para onde ir, e eu detestaria fazer um cara tão brilhante como você perder tempo. Sem dúvida
já atrapalhei seu próximo compromisso que é... qual é mesmo? Ficar à sombra de Ashur, à espera da maravilhosa atenção dele, agora que conseguiu voltar dos mortos? - Por ter testemunhado a morte de Ashur,
Magnus ainda estava tentando processar a informação de que ele estava vivo. - Muito triste, de verdade, que ninguém veja o que de fato está acontecendo entre o príncipe ressuscitado e o ex-cavalariço.
Foi o suficiente para fazer Nic corar.
- E o que seria, Magnus? O que você acha que está acontecendo?
Magnus fez uma pausa, encarando o olhar incerto de Nic.
- O sabor da decepção amorosa é amargo, não é?
- Imagino que você entenda bem sobre o assunto, não? - Nic rebateu. - Nunca esqueça que Cleo odeia você. Você matou todo mundo que ela ama. Roubou o mundo dela. É uma verdade que nunca vai mudar.
Lançando um último olhar, Nic saiu da sala, deixando Magnus furioso, bufando, com vontade de socar alguma coisa. Ou alguém.
Ele está enganado, ele disse a si mesmo. O passado não determina o presente.
E era no presente que ele tinha que se concentrar. Precisavam encontrar Lucia o mais rápido possível.
Por que esperar mais um dia para minha avó encontrar a pedra mágica?, ele pensou. Eles estavam ali, acovardados como vítimas, quando deveriam estar fazendo o máximo possível para tirar aquela kraeshiana
de suas terras para sempre.
Magnus empurrou o caderno de desenho para o centro da mesa e levantou. Ele ia encontrar a avó e exigir que ela - com ou sem a magia totalmente restaurada - testasse um feitiço para encontrar sua irmã.
- Está sozinho nessa sala enorme?
Ele parou ao ouvir a voz de Cleo. Ela estava na base da escada, observando-o do outro lado da sala enorme.
- Parece que sim - ele diz. - Mais um motivo para você não entrar.
Ela entrou mesmo assim.
- Parece que não conversamos a sós há muito tempo.
- Faz dois dias, princesa.
- Princesa - ela repetiu, mordendo o lábio inferior. - Minha nossa, você está fingindo muito bem. Na verdade, não sei se é só fingimento mesmo.
- Não sei ao certo do que você está falando. - Ele olhou para Cleo como um homem faminto olhava para um banquete. - Esse vestido é novo?
Ela alisou a saia de seda, da cor de um pêssego maduro.
- Olivia e eu fomos a uma feira perto das docas hoje.
- Você e Olivia fizeram o quê? - Ele franziu a testa, assustado por não saber que a princesa tinha decidido se arriscar por aí. - Que péssima ideia. Você poderia ter sido reconhecida.
- Por mais que eu goste de ser repreendida, acho que preciso dizer que ninguém me reconheceu, já que usei meu manto. E não estávamos sozinhas. Enzo e Milo estavam conosco, para nos proteger. Ashur também.
Ele está explorando a cidade para saber o que os paelsianos pensam sobre a notícia da chegada da irmã dele.
- E o que dizem?
- Ashur disse que a maioria parece... disposta a mudar.
- É mesmo?
- Qualquer coisa depois do chefe Basilius seria um progresso. - Ela hesitou. - Bem, à exceção do seu pai, claro.
- Claro. - Magnus não se importava muito com os paelsianos nem com os auranianos, na verdade. Ele só se importava com o fato de Cleo ter saído da hospedaria sem que ele notasse. - Não importa com quem
você saiu, porque ainda assim foi uma péssima ideia.
- Assim como beber até cair toda noite na taverna Videira Púrpura - ela respondeu, meio tensa. - E, no entanto, é o que você faz.
- É diferente.
- Tem razão. O que você faz é muito mais idiota e tolo do que passar o dia explorando uma feira.
- Idiota e tolo - ele repetiu, franzindo a testa. - Duas palavras que nunca foram usadas para me descrever.
- Elas são certeiras - disse Cleo, o tom firme e a testa franzida. - Quando vi você naquela primeira noite com Taran...
O som daquele nome atravessou o espaço entre eles como a lâmina afiada de um machado cortando um tronco de árvore.
- Sei que a presença dele aqui deve ser difícil para você - Magnus comentou, sentindo a garganta apertar. - Aquele rosto... Todas aquelas lembranças horrorosas que ele sugere...
- A única lembrança horrorosa de Taran que tenho é a da lâmina dele pressionada contra sua garganta. - Cleo parou, observando a expressão de Magnus e franzindo mais a testa. - Você entende que, quando
olho para ele, só vejo Theon?
- E como não veria?
- Admito que foi inesperado encontrá-lo. Mas Theon se foi. Sei disso. Já aceitei isso. Taran não é Theon. Mas é uma ameaça.
- Compreendo.
- Compreende? - Cleo continuou a observá-lo concentrada, como se fosse um enigma que ela precisasse decifrar. - Mas você pensou mesmo que eu o veria e esqueceria tudo o que aconteceu desde aquele dia?
Que o ódio que eu sentia por você voltaria a me cegar? Que eu... o quê? Me apaixonaria por Taran Ranus no mesmo instante?
- Parece mesmo um tanto quanto absurdo.
Ela ficou pensativa.
- Bom, Taran é muito bonito. Tirando o fato de querer você morto, o que é, admito, um objetivo que também já tive. Ele seria um pretendente perfeito.
- Deve ser muito divertido me atormentar.
- Muito - ela provocou, abrindo um sorriso discreto, mas levemente triste. Cleo segurou as mãos dele, e a sensação de sua pele quente junto à dele foi como um bálsamo numa ferida dolorosa. - Nada mudou
entre nós, Magnus. Saiba disso.
As palavras dela confortaram sua alma atormentada.
- Fico muito feliz em saber disso. Quando pretende contar aos outros?
No mesmo instante, a expressão dela ficou tensa.
- Não é o momento. Há muita coisa em risco agora.
- Nic é a pessoa mais próxima de você, seu amigo mais querido, e ele me odeia.
- Ele ainda vê você como um inimigo. Mas, um dia, sei que vai mudar de ideia.
- E se não mudar? - Ele a encarou nos olhos. - O que vamos fazer?
- Como assim?
- Escolhas, princesa. A vida parece cheia delas.
- Você está pedindo para que eu escolha entre você e Nic?
- Se ele se recusar a aceitar... isso, o que quer que seja, princesa, então acho que você teria que escolher.
- E você? - ela finalmente perguntou depois de um longo momento de silêncio. - Quem você escolheria se alguém ou algo o forçasse? Eu? Ou Lucia? Sei muito bem que ela foi seu primeiro amor. Talvez você
ainda a ame como antes.
Magnus grunhiu.
- Garanto a você que não existe nenhum sentimento dessa natureza entre mim e Lucia. E no que diz respeito a ela, nunca existiu.
Seu coração tinha feito tanto progresso nos últimos meses que ele se perguntava se ainda era a mesma pessoa que tinha sofrido de amor por sua irmã adotiva. Apesar de ter assumido uma forma diferente, aquele
amor ainda estava ali, dentro dele. Não importava o que Lucia pudesse fazer ou dizer, Magnus a amava incondicionalmente e estava pronto para perdoá-la por qualquer erro.
Mas o desejo que ele já sentira por sua irmã... seu coração tinha se voltado total e permanentemente para outra pessoa - alguém muito mais frustrante e perigosa do que sua irmã adotiva.
- Afinal, Lucia escolheu fugir com o tutor. - Cleo relembrou.
Ele franziu os lábios.
- Sim, e agora o destino do mundo depende da localização dela. - Cleo olhou para ele duvidosa. - O que foi, princesa? - ele perguntou. - Está em dúvida?
- Eu... - Cleo começou a falar, e então parou e olhou para os próprios pés, como se estivesse refletindo sobre o assunto. - Magnus, só não tenho certeza de que ela seja a única solução com a qual você
parece contar.
- Ela tem ligações com o deus do fogo. Acredito que saiba como extrair a magia dos cristais da Tétrade sem permitir que o deus elementar escape.
- Parece que foi ela quem ajudou Kyan a escapar, se estão viajando juntos. Só pode ser.
- Talvez. Mas a magia dela é ampla.
- Ampla o suficiente para matar todos nós.
- Você está enganada - Magnus disse sem hesitar. - Ela não faria isso. Lucia vai nos ajudar, vai ajudar a todos. - Sempre que falava bem de Lucia, ele percebia que Cleo contraía os lábios e franzia a testa
como se estivesse comendo alguma coisa amarga.
Será que ela poderia estar com ciúme do que sinto por Lucia?, ele se perguntou, achando graça.
- Vejo que você fica feliz quando pensa em sua irmã adotiva - ela comentou tensa, em um tom desagradável. - Tenho certeza de que pensar nela é uma ótima válvula de escape para você enquanto estamos presos
aqui em Paelsia, cercados por rebeldes que adorariam a oportunidade de incendiar esta hospedaria com toda a realeza dentro.
- É esse o plano abominável de Agallon? - ele perguntou, contraindo os lábios e franzindo a testa. - O que mais ele contou na calada da noite desde que chegou?
- Muito pouco, na verdade.
Magnus deu um passo na direção dela. Cleo deu um passo para trás: a dança na qual se envolviam de vez em quando. Os dois continuaram até ele encurralá-la em um canto, e ela lançar um olhar desafiador.
- Talvez você preferisse dividir um quarto com o rebelde do que comigo - ele disse, enrolando uma mecha do cabelo dela no dedo. - Mas ele provavelmente preferiria uma casa na árvore feita de tábuas e barro.
Cleo riu.
- É nisso que está decidindo se concentrar agora?
- Sim. Porque se me concentrar em Agallon, posso parar de pensar em você e em como quero levá-la para a minha cama.
Ela só teve tempo de soltar um breve suspiro antes de Magnus beijá-la, segurando-a pela cintura e puxando-a para si. Cleo retribuiu sem limitações.
As mãos dele deslizaram pelo corpo da princesa, passando pela lombar, chegando à curva de seu quadril. Desesperado para se inclinar e beijá-la direito, ele pegou suas pernas por trás e a levantou, pressionando
suas costas contra a parede.
Sim, ela deveria fazê-lo parar naquele momento.
Mas não foi o que aconteceu. Na verdade, Cleo tinha começado a puxar os cordões da camisa dele, sem afastar seus lábios nem por um segundo.
- Quero você - ele sussurrou enquanto a beijava. - Quero tanto você que posso morrer de desejo.
- Sim... - O hálito dela era doce e quente. - Também quero você.
Quando Magnus a beijou, toda a racionalidade sobre a maldição desapareceu de sua mente. Nada mais existia, só a necessidade enlouquecedora e alucinante de tocá-la, de senti-la...
Pelo menos, até ouvir passos de alguém se aproximando por trás.
Foi nesse momento que Magnus percebeu que não estavam mais sozinhos.
Deixando a princesa de volta ao chão, devagar, Magnus se forçou a se afastar e, com os ombros tensos, enfrentar o intruso.
Apesar de sua altura intimidadora e dos músculos avantajados, Felix Gaebras parecia envergonhado.
- Hum... Desculpe interromper. Eu estava... só passando. - Mas ficou parado onde estava, e então, ergueu o queixo. - Perdoe-me por dizer, vossa alteza - ele disse, olhando para Magnus -, mas talvez seja
melhor o senhor ser mais discreto com a princesa de agora em diante.
- É mesmo? - Magnus perguntou.
Felix assentiu.
- Nic convenceu a todos do seu ódio por Magnus, princesa. E isso... não me pareceu uma atitude de ódio. Ele vai enlouquecer.
Cleo se afastou de Magnus, os dedos nos lábios e o rosto corado.
- Por favor, Felix - ela disse, quase desesperada. - Prometa que não vai contar nada a Nic sobre isso. Nunca.
Felix fez uma reverência.
- Não se preocupe, princesa. Não direi nada.
- Obrigada.
Magnus disfarçou a careta. Algo no modo como ela falou, no alívio que pareceu sentir por ter sido Felix quem os vira juntos e não alguém cuja opinião considerasse mais importante, o incomodou demais.
Se Ashur podia buscar informações sobre Amara, Magnus também podia. Naquela tarde, ele deixou a hospedaria, subiu a rua até a feira que Cleo havia mencionado e passou na porta da tentadora Videira Púrpura.
Na feira, ele mal olhou para as bancas de madeira com lonas coloridas protegendo os comerciantes do sol, cada um vendendo um produto paelsiano diferente - de vinho a joias, de frutas e legumes a lenços
e túnicas de todas as cores, e diversas outras mercadorias. No movimentado labirinto de bancas, sentia-se o cheiro adocicado das frutas e da carne defumada, e mais perto das docas, o cheiro de suor e vômito
pegou as narinas de Magnus de surpresa. Entre os diversos clientes da feira, incluindo a tripulação de navios e os cidadãos comuns da cidade, vários guardas kraeshianos chamaram sua atenção.
Ele observou um dos homens de Amara conversar com um vendedor de vinho paelsiano que lhe ofereceu um pouco da bebida. O copo de madeira não foi oferecido com mãos trêmulas nem medo nos olhos do vendedor,
mas com um sorriso.
Para Magnus, era irritante ver que muitos paelsianos aceitavam o destino de se tornar parte do Império Kraeshiano sem se preocupar com nada. Será que as coisas estavam tão ruins antes que pensar em Amara
como nova líder era uma dádiva?
Ele continuou a observar essa dinâmica entre paelsianos e kraeshianos até o sol ficar alto e insuportavelmente quente para continuar com o manto com capuz. Como já havia tido contato com paisagens, sons
e cheiros bons e ruins da feira de Basilia, decidiu voltar.
Magnus virou na direção da hospedaria e descobriu que havia alguém em seu caminho.
Taran Ranus.
O príncipe se forçou a não deixar claro que encontrar o gêmeo de Theon - alguém que quase tinha conseguido vingar o assassinato de seu irmão - o tinha assustado. Mas antes que Magnus decidisse o que dizer,
Taran tomou a liberdade de falar.
- Estou curioso - ele disse em voz baixa. - Quantas pessoas você matou?
- Essa pergunta é muito pessoal para um lugar tão público.
Taran continuou, sem se deixar abater.
- Sabemos que matou meu irmão. Quem mais?
Magnus tentou não se encolher, tentou não levar a mão ao cabo da espada. A espada de Taran também estava visível, pendurada no quadril.
- Não sei ao certo - admitiu.
- Aceito uma estimativa.
- Muito bem. Talvez... uma dúzia.
Taran assentiu, sem deixar sua expressão revelar o que passava em sua mente quando olhou para a feira movimentada ao redor deles.
- Quantas pessoas você acha que eu matei?
- Mais de uma dúzia, tenho certeza - Magnus respondeu. Ele contraiu os lábios. - Por quê? Está aqui para me provocar com suas habilidades com a espada? Para contar histórias de como fez homens maus chorarem
chamando pela mãe diante da morte? Que mataria mais mil se isso fizesse o sol brilhar e a felicidade imperar nesse mundo?
Taran observou Magnus, semicerrando os olhos. Para alguém que quase tinha posto a hospedaria a baixo em uma noite para tentar cortar o pescoço de Magnus, ele parecia bem calmo naquele dia.
- Você se arrepende de ter matado meu irmão? - ele finalmente perguntou, ignorando as perguntas de Magnus.
Magnus pensou em mentir, sem saber se deveria fingir arrependimento. Mas sua intuição lhe disse que não conseguiria enganar o gêmeo de Theon.
- Não - ele afirmou com o máximo de confiança que conseguiu. - Minha vida estava em risco. Tive que me proteger de alguém muito mais habilidoso com a espada do que eu era na época, por isso agi. Não posso
dizer que me arrependo de ter tomado as medidas necessárias para salvar minha vida, apesar de saber que hoje não faria as escolhas que fiz naquele momento.
- Qual escolha faria hoje?
- Combate direto. Minhas habilidades de luta melhoraram muito no último ano.
Taran assentiu, mas seu rosto não deixou transparecer nada.
- Meu irmão teria vencido você.
- Talvez - Magnus disse. - Mas e daí? Imagino que você esteja aqui para tentar me matar diante dessas pessoas. É isso? Ou estamos só conversando?
- Foi exatamente para isso que o segui até aqui: quero decidir o que fazer. Antes era muito simples, estava muito claro em minha mente que você tinha que morrer.
- E agora?
Taran puxou a espada da bainha, mas só o suficiente para mostrar a lâmina que trazia uma série de símbolos e palavras desconhecidas gravadas na superfície.
- Essa era a arma de minha mãe. Ela me contou que as palavras gravadas estão na língua dos imortais.
- Interessante - Magnus disse, o corpo tenso e pronto para a luta. - Sua mãe era bruxa?
- Sim. Ela era uma Vetusta, uma bruxa que adorava os elementos com magia de sangue e sacrifício.
- Tenho certeza de que você está me contando isso por um motivo.
- Estou. Pedi para você adivinhar quantas pessoas eu matei. - Taran embainhou a espada. - A resposta é uma. Apenas uma.
Uma gota de suor correu pelas costas de Magnus.
- Sua mãe.
Taran assentiu com seriedade.
- As Vetustas acreditam que os gêmeos têm uma magia poderosa. - Ele balançou a cabeça, franzindo a testa. - Existe uma lenda quase esquecida que diz que os primeiros imortais criados foram os gêmeos: um
escuro e um claro. Minha mãe acreditava que a magia sombria era muito mais poderosa, então, para aumentar a dela, decidiu sacrificar o gêmeo claro.
- Theon.
- Na verdade, não. Fui eu, cinco anos atrás, quando tinha quinze anos. Talvez minha mãe achasse que eu fosse permitir que ela usasse essa mesma espada para me matar, mas estava enganada. Eu reagi e a matei.
Theon chegou naquele momento e me viu empunhando uma espada e nossa mãe morta a meus pés. Ele não sabia o que ela era de verdade. Eu mesmo só descobri a verdade recentemente. Ele jurou que eu pagaria com
a vida por tê-la matado, e eu sabia que ele nunca compreenderia. Então corri o máximo que pude, sem olhar para trás. Até agora. - Ele riu, e o som saiu seco e oco. - Parece que temos isto em comum: nós
dois fomos forçados a matar para nos proteger, uma atitude da qual não podemos nos arrepender, porque, sem ela, não estaríamos vivos hoje.
Magnus não sabia o que dizer. A confissão de Taran o deixou sem fala. Ele se concentrou na movimentação da feira, fechando os olhos com força por um momento.
Quando voltou a abri-los, Taran se afastava dele em meio à multidão. Ele o observou à distância, pensando na conversa e sentindo-se grato por não ter tido que lutar para defender a própria vida naquele
dia.
Quando voltaram para a hospedaria, Jonas estava na sala de convivência, como se os estivesse esperando. Ele levantou da cadeira e largou o livro que estava lendo. Magnus notou com surpresa que era o mesmo
que tinha lido, sobre vinhos.
- Taran, precisamos conversar - Jonas anunciou. - No pátio não seremos ouvidos por bisbilhoteiros. Felix já está esperando. Você também, vossa alteza.
Magnus inclinou a cabeça.
- Eu?
- Foi o que eu disse.
- Agora estou profundamente confuso. Muito bem. Vamos lá, rebelde.
Atrás da casa havia um espaço a céu aberto que o dono da hospedaria e sua esposa chamavam de pátio. Na verdade, era uma área de grama marcada por uma horta, flores e dois cercados para os animais - um
para as galinhas e outro para os porcos gordos que guinchavam alto quando alguém se aproximava.
Magnus e Taran acompanharam Jonas até onde Felix estava, no canto oposto do jardim.
- Temos informação sobre Amara - Jonas disse finalmente. - Ela está aqui em Paelsia.
Magnus tentou não demonstrar insatisfação.
- Informação vinda de quem?
- Há rebeldes por todos os lados, alteza.
O primeiro ímpeto de Magnus foi querer lembrar Jonas que a maioria dos rebeldes havia morrido, mas decidiu se controlar.
- Muito bem. Onde em Paelsia?
- No complexo do chefe Basilius.
- E onde, exatamente, é isso?
- A um dia de viagem daqui rumo ao sudeste. Fico surpreso por você não saber, já que é um ponto importante na Estrada de Sangue de seu pai.
- Estrada Imperial - Magnus o corrigiu.
- Estrada de Sangue - Jonas repetiu, rangendo os dentes.
Magnus decidiu não discutir a questão com um paelsiano, nem tocar no assunto de como ela tinha sido construída tão depressa pelos trabalhadores paelsianos sob ordens de seu pai. Não era à toa que os cidadãos
daquele reino tinham recebido Amara tão bem.
- E esse informante também explicou por que ela veio para cá?
- Não.
- Não importa por que ela está aqui - Felix disse. - Essa é nossa chance.
- De quê? - Magnus perguntou. - De matá-la?
- Essa era a ideia.
- Não era, não - Jonas disse, arregalando os olhos para o amigo.
- Matar a imperatriz não muda o fato de que meu pai deu este reino para a família dela. Não muda que os soldados estão tão espalhados quanto manchas de lama. E Ashur? Você o trouxe aqui como se confiasse
nele, mas não sabemos qual é o plano dele.
- Ashur é um problema, admito - disse Jonas. - Nic está de olho nele, informando qualquer comportamento incomum.
- Ah, sim. - Magnus cruzou os braços. - Isso deve dar certo. Então, você - ele virou para Felix - quer matar a imperatriz. E você - ele virou para Jonas - quer pagar para ver. - Ele assentiu. - Excelentes
decisões. Acho que Amara não terá chance contra essa aliança.
Jonas hesitou.
- Taran, você não planejava matá-lo?
- Sim.
- Estou começando a me animar com essa possibilidade.
- Está claro que - Magnus começou -, se sabemos onde Amara está, a melhor estratégia é mandar homens para obter mais informações sobre os planos atuais dela, por que está aqui e onde escondeu o cristal
da água.
Taran resmungou.
- Odeio concordar com ele, mas concordo. Posso ir. Não tenho motivos para ficar aqui sem nada para fazer, olhando para as paredes.
- Também vou - Felix anunciou animado.
Jonas lançou um olhar cauteloso para Felix.
- Você acha que consegue lidar com isso sem fazer nada de errado?
- Claro que não. Mas ainda assim, quero ir. - Felix suspirou. - Prometo que vamos conseguir informações. E só isso.
Magnus preferia entrar em ação, como Felix, e simplesmente varrer Amara do mundo, mas sabia que informações seriam úteis com os dois reinos em guerra.
- Devemos contar a Cleo sobre isso? Ou a Cassian?
- Por enquanto, não - Jonas respondeu. - Quanto menos pessoas souberem, melhor.
Magnus não gostava de guardar segredos de Cleo, mas Jonas tinha razão.
- Tudo bem. Vamos manter esse assunto entre nós quatro.
Jonas assentiu.
- Então, resolvido. Taran e Felix partem amanhã cedo.
17
CLEO
PAELSIA
- Você viu o príncipe Ashur por aí? - Nic perguntou.
Cleo desviou o olhar do livro sobre a vida do chefe Basilius que tinha escolhido na estante do andar de baixo. Seus pensamentos estavam tão dispersos que ela devia ter lido a mesma página dez vezes - que
contava sobre os cinco casamentos dele.
Nic estava parado na porta do quarto dela. Enzo estava de guarda do lado de fora, um protetor constante, mas ela tinha deixado claro que Nic podia interrompê-la.
- Hoje não - ela admitiu, ainda chocada por ter visto que o príncipe tinha renascido dos mortos. - Por quê? Isso é estranho?
- Ele gosta de sair por aí sem avisar ninguém. - Ele ficou sério. - Você acha que ele está diferente? Não sei dizer.
- Para mim, ele está igual, mas não o conheço muito bem - ela admitiu.
- Nem eu.
- Ah, não sei. Às vezes não precisamos de anos para conhecer alguém. Algumas conversas são mais do que suficientes para saber como a pessoa é.
- Se você acha...
Cleo sabia que Nic e Ashur eram bem próximos, a ponto de seu amigo ter sentido muito a perda do príncipe. E também sabia que existia mais do que uma simples amizade entre os dois, mas emoções que os dois
estavam apenas começando a explorar. Talvez agora nunca mais se resolvessem.
- Parece que Taran e Felix também sumiram - ela disse. - Onde eles estão?
- Ótima pergunta. Pensei que Jonas fosse meu parceiro, mas parece que ele tem negócios com Magnus agora.
- O quê? - Só de pensar, ela sentiu vontade de rir. - Se você viu os dois conversando, é bem provável que o assunto seja o rei.
Desde que Jonas conseguira - ainda que não tenha conseguido - cravar a adaga no peito do rei, dois dias antes, Gaius não saía do quarto, com a mãe a seu lado o tempo todo, temendo que o filho estivesse
perto demais da morte e não sobrevivesse tempo suficiente para receber a magia secreta e restauradora que ela prometera.
Cleo temia que, se o rei morresse antes de a bruxa encontrar Lucia, ela se recusaria a ajudá-los, mas não se incomodava em imaginá-lo sofrendo em um quartinho em Paelsia.
Um fim adequado para um monstro.
Como será que Gaius Damora era quando conheceu a mãe dela? A que horrores ele teria submetido Elena Corso? Era uma pergunta que a perseguia desde que ele dissera o nome dela.
- Você confia nele? - A voz de Nic interrompeu seus pensamentos.
- Em quem? Magnus?
Ele riu.
- Não, claro que não estou falando de Magnus. Em Jonas.
Ela confiava em Jonas, o garoto que a tinha sequestrado e aprisionado - não uma, mas duas vezes - e que, em determinado momento, quis que ela morresse por presenciar o assassinato de seu irmão?
Mas também era o garoto que se tornara um líder. Que lutara por seu povo. O garoto que tinha arriscado a própria vida para salvar a dela.
- Confio nele, sim - ela admitiu.
Muita coisa podia mudar em um único ano.
- Eu também - Nic disse.
Ela assentiu.
- Se ele está falando com Magnus, deve ser importante.
- Ainda assim, não gosto de pensar que esteja escondendo alguma coisa de nós.
Cleo também não gostava, principalmente se fosse um segredo entre Jonas e Magnus. E jurou que conseguiria algumas respostas. Ela não gostava de ficar por fora das questões.
Naquele mesmo dia, a chance apareceu. Quando Magnus pediu para falar com Enzo no pátio, ela começou a procurar informações por conta própria na hospedaria. Logo encontrou algo possivelmente interessante
na sala de convivência: o caderno de desenho de Magnus.
Cleo já tinha visto Magnus desenhando nele, os dedos pretos por causa do carvão. Os limerianos não gostavam tanto de arte quanto os auranianos, que viam a beleza como um presente que o artista compartilhava
com o mundo por meio de sua visão singular. Mas quando um limeriano desenhava, precisava ser bem semelhante ao original para ajudar na referência e no aprendizado.
Para isso, Magnus tinha passado um verão tendo aulas de arte na Ilha de Lukas muitos anos antes, uma viagem que muitos nobres e jovens da realeza - incluindo a mãe e a irmã de Cleo - faziam na juventude.
Ela já tinha visto o antigo caderno de Magnus, no qual havia desenhos incrivelmente detalhados da flora e da fauna... além de vários retratos de Lucia, cada um feito com admiração indiscutível e atenção
a cada centímetro do rosto perfeito da irmã.
Mas aquele era um caderno novo, o que deixou Cleo extremamente intrigada.
- Eu não devia olhar - ela disse a si mesma. - Magnus não me deu permissão.
Mas esse argumento nunca tinha funcionado.
O primeiro desenho era do jardim, um rascunho rápido, mas as dimensões e a precisão eram espantosas. Antes de abandonar aquele desenho, ele tinha se concentrado no detalhe de uma roseira, e mesmo com o
traço grosso do carvão, tinha capturado a beleza em tons de preto e cinza.
A segunda, a terceira e a quarta páginas tinham sido arrancadas sem cuidado.
Na quinta página, não havia um desenho, mas uma mensagem.
Espiando para encontrar um retrato seu, princesa? Desculpe, mas hoje não. Talvez um dia eu desenhe você. Ou talvez não. Vamos ver o que o futuro nos reserva.
M.
Cleo fechou o caderno envergonhada, e também irritada.
Quando ouviu gritos, correu para as janelas com cortinas de lona grossa que davam para o pátio nos fundos da hospedaria.
O príncipe estava empunhando a espada, mirando em Milo e Enzo, que também seguravam suas armas. Quando atacaram, Cleo soltou um grito de susto antes de perceber o que estava acontecendo.
Eles estavam treinando. E a julgar pela força de ataque de Milo e de Enzo, Magnus tinha pedido para os dois darem o melhor de si.
Será que ela nunca tinha visto Magnus assim antes, em guarda, a testa suada, bloqueando as armas dos guardas com a espada? Ela pensou que aquilo podia trazer lembranças horrorosas daquele dia - do dia
em que perdera Theon. Mas naquela visão Magnus era um príncipe sem habilidade comparado a um guarda do palácio, e ele sabia disso.
Sinto muito, Theon, ela pensou, o coração apertado. Não esperava sentir isso por Magnus. Mas sinto. Não posso mais me apegar à sua lembrança. Não posso odiar o príncipe pelo que aconteceu, pelo que ele
fez naquele dia. Magnus está muito diferente agora.
Ou talvez Cleo tivesse mudado irreversivelmente.
- Na minha opinião, não estão lutando tanto quanto deveriam.
Cleo se assustou com a voz de Jonas. Ela o viu a seu lado, escondido até aquele momento, com os olhos arregalados.
- Está surpresa? - ele perguntou, achando graça.
- Você se aproximar de alguém em uma sala escura com certeza não é uma surpresa, rebelde.
Jonas sorriu, mas voltou a observar o trio do lado de fora.
- Será que o príncipe estaria disposto a me enfrentar?
- Se estivesse, certamente um de vocês acabaria morto.
- Sim, mas quem? - Sua sobrancelha, que estava arqueada, abaixou quando ele viu a expressão sofrida dela. - Em pouco tempo você estará livre desse acordo infeliz com ele, prometo.
Cleo conteve a resposta, tomando cuidado para não defender o príncipe. Ela ainda achava que era melhor ninguém saber a verdade sobre eles.
- Magnus, o rei e Selia são o caminho para as respostas de que preciso para liberar a magia da Tétrade - ela comentou.
- Eu já disse: tem um deus elementar dentro daquele cristal - ele falou de modo incisivo.
Seu tom de voz a fez se encolher. Depois que descobriu sobre os deuses elementares, dois dias antes, ela não conseguia parar de pensar no assunto e mal tinha pregado os olhos devido à gravidade da situação.
- Se tivermos a oportunidade de aproveitar essa magia sem deixar o deus escapar, ainda acho que é um objetivo que vale a pena buscar. Vamos perder muito se não conseguirmos esse poder para nos ajudar de
alguma forma, ainda que seja pouco.
Quando ela encarou Jonas, viu uma expressão séria, mas os olhos mais tranquilos.
- Não discordo totalmente.
Ela hesitou, mas só por um momento.
- É bom que saiba que, de acordo com Nic, você está escondendo dele a localização de Taran e Felix. Ele está bastante irritado com isso.
- Comecei a acreditar que o príncipe Ashur é tão mau quanto a irmã. Nic o conhece, mas não diz nada útil a respeito do que esperar dele. Gosto de Nic, mas não conto nenhum segredo que ele possa acidentalmente
revelar ao príncipe.
Outra pessoa entrou na sala e chamou a atenção de Cleo. Era Ashur, poucos metros atrás de Jonas.
- Jonas... - ela começou.
- Ashur diz que é um herói lendário renascido dos mortos para trazer paz ao mundo. Um monte de besteira. Ele não passa de mais um membro mimado da realeza criado com todas as regalias possíveis que só
precisa estalar os dedos para ter qualquer mulher linda que desejar. - Jonas franziu a testa. - Admito que isso seria uma vantagem.
Cleo limpou a garganta quando Ashur cruzou os braços diante do peito e inclinou a cabeça.
- Acho que você deveria... - ela começou.
- O quê? Falar com gentileza sobre alguém que confunde todo mundo porque está confuso em relação à irmã má e gananciosa que provavelmente vai destruir o mundo com sua sede por poder e magia? Ele poderia
tirar o poder dela com facilidade. Poderia se impor, reclamar o título de imperador, contar para todo mundo que Amara matou a família deles. Pronto.
Ela sentia uma pontada no peito a cada palavra verdadeira, mas mordaz, que Jonas dizia.
- Pode ter certeza de que não fico confuso quando se trata de Amara - Ashur disse em voz baixa.
Jonas fez uma careta.
- Você poderia ter me dito que ele estava bem atrás de mim, princesa.
- Você estava ocupado demais admirando o som da própria voz. - E, para ser sincera, as reclamações de Jonas sobre Ashur tinham reacendido a irritação que ela mesma sentia em relação ao príncipe kraeshiano.
Não, não era irritação. Era raiva, beirando a fúria.
- Espero que não esteja confuso em relação a sua irmã - Cleo falou para Ashur. - Ela cravou uma adaga em seu peito por tê-la contrariado.
- As últimas atitudes de Amara foram infelizes, mas eu já sabia que ela estava tomando esse rumo. Na verdade, culpo minha avó por colocar seus próprios planos de revolução em ação. É irônico que minha
madhosha derrube aqueles que também querem mudança no império. Ela tem muito mais em comum com os rebeldes do que pensa.
Cleo ficou olhando para ele, enojada.
- Infelizes... Você chama as escolhas de Amara de infelizes? Ela matou você, matou a própria família, e agora está matando todos os míticos que vê pela frente!
- Ela perdeu as estribeiras. A irmã que conheço, que eu conhecia, não resolve seus problemas com violência desnecessária.
- Sim, claro, os kraeshianos são conhecidos como um povo pacífico.
Ashur a observou atentamente.
- Você está infeliz comigo.
Ela olhou para Jonas e riu um pouco.
- Príncipe Ashur, por que eu estaria infeliz com você?
- Você é como Jonas. Não confia em mim.
- E deveríamos confiar? - Jonas perguntou. - Você não me conta nenhum de seus planos, desaparece por dias, fica isolado... Acha que eu deveria confiar em você mesmo assim?
- Você poderia tirar o trono de Amara - Cleo disse. - Se está tão interessado em ajudar o mundo, pode acabar com muito sofrimento simplesmente tornando-se imperador. Você é mais velho do que Amara. O trono
é seu por direito. Tem tanto medo dela assim?
Ashur riu com frieza ao ouvir aquilo.
- Não tenho medo de Amara.
- Teve medo suficiente para, supostamente, tomar uma poção para salvar sua vida - Jonas disse. - Sabia que ela planejava matá-lo?
O belo rosto de Ashur ficou sério.
- Eu não sabia. Não com certeza. E a poção que tomei... foi bem antes de minha viagem para, acima de tudo, me proteger do rei Gaius, caso ele tentasse usar minha presença em seu reino contra meu pai. Eu
nem imaginava que a poção funcionaria.
- Mas funcionou - Jonas disse. - Precisamos encontrar esse boticário ou essa bruxa ou quem quer que a tenha feito. Poções de ressurreição para todos. Magia assim poderia salvar muita gente.
- A magia da morte não é algo que se possa alterar - Ashur rebateu. - Não por qualquer motivo.
- Mas você alterou essa magia sombria para se salvar. - Cleo teve certeza de que o príncipe se encolheu diante da acusação, o que era incomum para ele. - Você se sente culpado por isso?
- Claro que não. - Apesar da resposta, Ashur não fez contato visual com ela.
- Chega de mentiras, Ashur. Se está tentando dar a impressão de que estamos todos do mesmo lado, precisa ser sincero conosco. Há mais coisas envolvidas nessa poção do que você quer revelar. Ela é perigosa,
não é?
- Muitas poções são perigosas. O veneno nada mais é do que uma poção com a intenção de matar.
Cleo inspirou e soltou o ar devagar, com a sensação de que estava prestes a descobrir um segredo.
- Aprendi que toda magia tem um preço. Que preço você pagou pela oportunidade de viver de novo?
- Aprendi que o preço da magia costuma ser o oposto da magia em si. Para ter muita força, você viverá momentos de grande fraqueza. Para ter prazer, haverá dor. E para ter vida... haverá morte.
- Então você matou alguém - Jonas disse, os braços cruzados e tensos. - Ou muitas pessoas. Acaba aqui o que você diz sobre altruísmo.
Ashur caminhou até a janela para olhar para fora, os braços cruzados.
- Você não sabe nada sobre mim, Jonas. Matei quando precisei. Nem sempre sou pacifista. O boticário me alertou do preço que eu teria que pagar, mas não acreditei. Amara pagou o mesmo preço, mesmo sem querer,
quando a ressuscitaram.
Cleo franziu a testa.
- Amara foi ressuscitada?
- Foi - Ashur respondeu solenemente, e então começou a contar para Cleo e Jonas o que tinha acontecido quando Amara era bebê e tinha sido salva de um afogamento pela magia negra e pelo sacrifício de sua
mãe.
Cleo percebeu que precisava sentar, pois tinha ficado abalada com a história. Em Auranos - e em Mítica -, apesar de serem valorizadas pela habilidade que tinham como mães, cozinheiras e enfermeiras, as
mulheres não eram impedidas de fazer outras coisas, se assim desejassem. E uma princesa podia ser a herdeira do trono do pai ou da mãe sem medo de ser assassinada apenas pelo suposto crime de ser uma mulher.
Cleo não sabia se admirava a mãe de Amara por valorizar a vida da filha o suficiente para sacrificar a própria vida ou se culpava a mulher por sua filha ter se tornado um monstro.
- Quem morreu por você? - Cleo perguntou em voz baixa.
O olhar distante de Ashur ficou sério, e antes de continuar, ele lançou um rápido olhar para Jonas.
- Eu não tinha certeza, mas sabia que alguém tinha morrido. Passei o mês tentando descobrir. Viajei, visitei amigos e ex-amantes. Foi alguém com quem passei um único verão. Eu não fazia ideia de que ele
ainda gostava de mim, de que nunca havia deixado de gostar... - Ele engoliu em seco. - De todas as pessoas que conheci, alguém que conviveu comigo apenas por alguns meses me amou tanto a ponto de morrer
por esse amor. Não consigo entender. Eu sabia o preço, mas o ignorei por egoísmo. Soube que ele sofreu por vários dias. Ele descreveu a dor como uma faca sendo cravada lentamente em seu peito. Me disseram
que nos últimos momentos, ele gritou meu nome. - Ashur ficou com os olhos azul-acinzentados marejados e respirou fundo. - A culpa que sinto pelo sofrimento, pela morte dele e pelo fato de eu ter apagado
qualquer chance que ele tinha de ter uma vida plena e feliz... isso vai me assombrar para sempre.
A sala ficou em silêncio enquanto Cleo tentava processar o que estava ouvindo. Aquele Ashur parecia mais o homem sincero que tinha oferecido, na noite de seu casamento, uma adaga nupcial kraeshiana para
tirar a vida da noiva infeliz ou de seu marido. Aquele Ashur não estava falando coisas confusas para desviar a atenção de seu sofrimento.
Mas, naquele momento, uma ideia lhe ocorreu.
- É por isso que você anda tão estranho com Nic - ela disse. - Ele não entende, acha que você está diferente, que seus sentimentos por ele mudaram, por tudo. Mas ele está enganado, não está?
Ashur não respondeu, mas olhou para baixo.
- Você teme que ele se apaixone por você e que você o machuque por causa desse amor.
Jonas ficou em silêncio, a testa franzida. Cleo esperava que ele não dissesse nada que fizesse o príncipe omitir a verdade.
- Eu tinha outros planos na ida a Auranos - Ashur disse finalmente. - Não queria que nada disso tivesse acontecido. Mas alguma coisa em Nicolo chamou minha atenção e eu não pude ignorar. Sei que deveria
ter ignorado. Só consegui complicar a vida dele e causar dor desnecessária. Mas agora não vou permitir que nada de ruim aconteça com ele por cometer o erro de gostar de mim.
- Nic merece uma explicação - Cleo disse, com um nó na garganta.
- É melhor que ele pense que meus sentimentos mudaram. - Ashur limpou a garganta. - Se me dão licença, acho que já revelei mais do que pretendia.
Cleo não disse nada para impedi-lo de sair. Ela estava pensando em muitas coisas ao mesmo tempo; algumas se conectavam, mas a maioria só aumentava sua confusão.
Por fim, ela olhou para Jonas.
- Então... - ele disse, ainda franzindo a testa. - Nic e Ashur, certo?
Ela assentiu devagar.
- Estranho... Pensei que Nic gostasse de garotas. De você, em especial. Não costumo me enganar com essas coisas.
- Você não está enganado. Ele gosta de garotas.
- Mas Ashur... - ele olhou para a porta - não é uma garota.
- Não fique pensando sobre isso, rebelde. Pode fundir seu cérebro. Saiba apenas que é complicado.
- E todas as coisas não são complicadas? - Jonas sentou ao lado dela. - Agora que conheço o segredo de Ashur e sei que não se trata de uma ameaça pessoal a você nem a mim, preciso me concentrar em pegar
a esfera que o rei escondeu. Você acha que está aqui na hospedaria?
- Nem imagino. Gostaria de saber. Eu ia dizer que... para liberar a magia precisamos do sangue de Lucia e do sangue de um Vigilante.
Surpreso, ele a encarou.
- Esse é o segredo?
Cleo assentiu.
- Isso impede o deus de sair?
- Não sei. Por isso é tão importante encontrarmos Lucia, descobrir mais informações com ela e o que deu errado com Kyan.
Os olhos castanhos de Jonas pareciam distantes.
- A profecia...
- O quê? - Cleo perguntou quando ele ficou em silêncio.
Ele balançou a cabeça.
- Deixa para lá. Conto mais quando descobrir se é verdade ou não.
- O problema é que não sei como encontrar um Vigilante. - Ela mordeu o lábio. - Claro que ainda deve haver alguns Vigilantes exilados vivos, mas acho que precisa ser um Vigilante pleno. Espero que Lucia
se disponha a ajudar quando chegar o momento.
- Não se preocupe em encontrar um Vigilante. - Ele ficou em silêncio por um momento. - Essa parte eu resolvo.
Ela olhou para ele, surpresa.
- Como?
- Olivia - ele sussurrou. - Ela é.
Cleo ficou boquiaberta.
- Você não pode estar falando sério.
- É outro segredo, mas vou confiar que você não vai contar a ninguém. - Jonas abriu o meio sorriso que ela sempre achou charmoso e frustrante, ao mesmo tempo. - Muita coisa foi sacrificada nesse caminho
que percorremos juntos. Muita perda para nós dois. Mas tento acreditar que sempre vai valer a pena, no fim.
Ela assentiu.
- Eu também.
- Acho que você precisa saber que a Lys gostava de você.
- Agora você está mentindo.
- Pode ser que nem ela soubesse, mas sei que ela respeitava você mais do que você pensa. Vocês têm uma coisa em comum: força. - A voz de Jonas falhou. - Só demonstram de jeitos diferentes.
Os olhos de Cleo começaram a arder ao ver Jonas se esforçando para não deixar as lágrimas escorrerem.
Ela segurou as mãos do rebelde, puxando-o para mais perto.
- Sinto muito por sua perda, Jonas. Estou dizendo isso do fundo do coração.
Ele só assentiu, olhando para baixo.
- Ela me amava. Só me dei conta disso quando já era tarde demais. Ou talvez eu tenha percebido e não estivesse pronto para aceitar. Mas agora eu entendo... Ela era perfeita para mim.
- Tenho que concordar.
- Poderíamos ter construído uma vida juntos. Uma casa, talvez até uma quinta. - Jonas sorriu de novo, mas um sorriso mais triste. - Filhos. Um futuro. Quem sabe o que poderia ter acontecido? Só tenho certeza
de uma coisa.
- De quê?
- De que Lys merecia alguém bem melhor do que eu.
- Não tenho a menor dúvida em relação a isso - Cleo concordou, satisfeita ao ver que a expressão surpresa de Jonas conseguiu apagar a dor em seus olhos. Ela abriu um sorriso caloroso. - Minha irmã acreditava
que quem morre se torna uma estrela no céu. Então todas as noites podemos olhar para cima e saber que estão cuidando de nós.
Ele parecia desconfiado.
- Isso é uma lenda auraniana?
- E se for?
Uma mecha do cabelo dela tinha caído sobre a testa, e Jonas a ajeitou atrás da orelha e deslizou a mão por seu rosto.
- Nesse caso, gosto de lendas auranianas.
Cleo encostou a cabeça no ombro dele, e os dois ficaram ali, confortando um ao outro. Havia uma ligação entre eles - algo muito forte que ela nunca havia conseguido ignorar. E houve uma época, não muito
tempo atrás, em que ela poderia ter amado aquele rebelde do fundo do coração.
E ela o amava, sim, mas não como Lysandra o havia amado.
Independentemente do que acontecesse, o coração de Cleo pertencia a outro.
18
MAGNUS
PAELSIA
Ficou claro para Magnus que Enzo e Milo estavam se controlando na luta, com receio de ferir um príncipe. Magnus deixou os dois sangrando como punição e voltou para a hospedaria, sentindo uma grande necessidade
de desenhar.
Ele parou na porta quando viu Jonas e Cleo na sala de convivência. Os dois estavam sentados próximos um do outro, falando baixo. Magnus se aproximou para ouvir, mas só conseguiu ver o rebelde acariciar
o cabelo de Cleo, sem que a princesa reclamasse, e, logo depois, seu rosto. Os dois se entreolharam por mais tempo do que o normal.
Magnus ficou muito irritado.
Por um lado, queria entrar ali com tudo, afastá-los e matar o rebelde antes de tirar Cleo da hospedaria e de perto dele para sempre.
Seu lado mais racional dizia que nem tudo o que via era o que imaginava e que ele não deveria tirar conclusões precipitadas.
Ainda assim, se entrasse ali e confrontasse os dois, alguém com certeza morreria.
Então ele saiu da hospedaria e desceu a rua até a taverna, resmungando ao pedir vinho ao taberneiro. Magnus perdeu a conta de quantas taças de vinho teve de beber até começar a se acalmar.
Já sabia que a princesa gostava do rebelde, que os dois tinham uma história romântica sobre a qual não queria pensar muito. Por que ela não desejaria alguém como Jonas? Alguém corajoso e forte - apesar
de pobre, ridículo e muito azarado com todos os que já tinham se alistado sob sua liderança rebelde.
Magnus também conseguia entender que alguém como Jonas, que olhava para a princesa como se ela fosse uma estrela brilhante na noite escura, podia ser tentador. Pelo menos quando comparado a Magnus, que
era sombrio, instável e afeito à violência.
Ele encarou a taça vazia.
- Com um milhão de outros problemas e questões para resolver, estou obcecado pensando por quem ela tem sentimentos. - Ele olhou meio embriagado para o atendente. - Por que meu copo está vazio?
- Peço desculpas. - O homem logo encheu a taça até transbordar.
Alguém sentou no banco de madeira a seu lado. Ele estava prestes a vociferar que precisava de espaço e que se o homem valorizava a própria vida, deveria ir para outro lugar, mas então percebeu quem era.
- O vinho nunca ajuda uma pessoa a esquecer suas preocupações por muito tempo - seu pai disse, o rosto pálido e macilento como o de um cadáver por baixo do capuz grosso de seu manto preto.
Como o rei tinha se isolado em um quarto no andar superior da hospedaria desde a noite da chegada, foi uma surpresa vê-lo ali. Magnus observou ao redor para ver se ele tinha trazido Milo para protegê-lo,
mas não viu o guarda em nenhum lugar. Talvez ainda estivesse tratando os ferimentos depois da luta.
Magnus ignorou o comentário do rei e tomou todo o vinho do copo antes de falar.
- Selia sabe que você está aqui? Não acho que ela aprovaria.
- Ela não sabe. Sua preocupação com minha morte iminente me tornou seu prisioneiro. Não ligo muito para isso.
- Não liga para a preocupação com sua morte iminente ou com o fato de ter sido feito prisioneiro? Não precisa responder. Tenho certeza de que as duas experiências são novas para você. - Magnus pegou o
vinho do atendente, e mandou o homem se afastar com um aceno. Então bebeu direto da garrafa.
- Antigamente, me rendia a pecados assim - o rei comentou.
- Ao vinho ao à forte autopiedade?
- Você está tendo problemas com a princesa?
- Aposto que isso o deixaria muito feliz, não?
- Saber que você deseja se afastar de alguém que acho que causará sua destruição? "Feliz" não seria bem a palavra que eu escolheria, mas, sim. Seria o melhor.
- Não vou falar sobre Cleo com você, nem agora nem nunca - Magnus resmungou, detestando o fato de sua mente estar tão nebulosa com o pai por perto. Ele preferiria ter controle total dos sentidos, mas era
tarde demais para se preocupar com isso depois de tomar tanto vinho.
- Escolha inteligente - o rei respondeu. - Ela sem dúvida não é meu assunto preferido.
- Esse ódio que você nutre por ela... - O príncipe pensou no assunto, no ódio aparentemente sem fim que o rei sentia por Cleo. - Deve ter a ver com a mãe dela, não?
- Sim, na verdade, tem.
Uma resposta direta. Que incomum - e profundamente curioso.
- Rainha Elena Bellos - Magnus continuou, encorajado pelo vinho que soltava sua língua. - Vi o retrato dela no palácio auraniano antes de você destruí-lo. Era uma bela mulher.
- Com certeza era. - O rei deu as costas e olhou com saudosismo para a rua escura pelas janelas da taverna. Magnus viu quando os lábios pálidos e fantasmagóricos sorriram discretamente.
Perceber a situação mexeu com ele.
- Você era apaixonado por ela - Magnus disse, chocado com as próprias palavras, mas sabendo que eram verdade. - Você era apaixonado pela mãe de Cleo. - A acusação fez o rei encará-lo de novo, os olhos
vermelhos um tanto arregalados, surpresos. Magnus demorou um pouco para assimilar a confirmação silenciosa e tomou mais um gole de vinho para molhar a garganta repentinamente seca. - Deve ter sido há muito
tempo, quando você era capaz de uma emoção tão pura.
O sorriso logo desapareceu do rosto pálido e desanimado do pai.
- Faz muito tempo. Essa fraqueza quase me destruiu, e é exatamente por isso que quis cuidar de você.
Magnus riu ao ouvir isso, uma risada alta que surpreendeu a ele próprio.
- Cuidar de mim? Ah, pai, não gaste saliva com essas mentiras!
O rei socou o balcão.
- Você é cego? Totalmente cego? Tudo o que fiz foi por você!
A força da ira repentina fez Magnus derramar parte do vinho na túnica. Ele olhou feio para o pai.
- Estranho eu ter esquecido isso quando você decidiu acabar com a minha vida e com a vida da minha mãe.
- A morte seria um alívio deste mundo para muitos de nós.
- Não vou esquecer nada que você fez, a começar por isso. - Magnus apontou a cicatriz no lado direito do rosto. - Você lembra desse dia tão bem quanto eu?
O rei contraiu o maxilar.
- Lembro.
- Eu tinha sete anos. Sete. Você se arrependeu por um momento que seja?
O rei semicerrou os olhos.
- Você não deveria ter tentado roubar o palácio auraniano. Se tivesse conseguido, a vergonha teria sido grande.
- Sete anos! - A garganta de Magnus ardeu porque ele gritou. - Eu era apenas uma criança cometendo um erro, tentada por uma coisa brilhante e linda, uma vez que eu levava uma vida cinza e sem graça num
palácio cinza e sem graça. Ninguém ficaria sabendo que peguei aquela adaga! Que diferença faria?
- Eu ficaria sabendo - o rei disse. - A adaga que você pretendia roubar era de Elena. Eu ficaria sabendo porque fui eu quem deu a adaga a ela, quando era um garoto ingênuo tentando impressionar uma moça
bonita. Não sabia que ela a tinha guardado, que ela a tinha valorizado e exposto o tempo todo em que ficamos separados. Quando a vi em suas mãos seis anos depois da morte dela... não pensei. Simplesmente
reagi.
Magnus percebeu que não tinha uma resposta na ponta da língua. Com suas perguntas respondidas depois de tanto tempo, ele não conseguia processar tudo depressa.
- Não justifica o que você fez.
- Não, claro que não.
Magnus desviou o olhar do rei e tentou se concentrar em outra coisa, qualquer coisa. Ajudou perceber que o mundo ia além daquela conversa. Um homem enorme veio em direção ao bar carregando muitos copos
vazios, a túnica subindo o suficiente para deixar a barriga peluda à mostra. Uma atendente afastou a mão de um marinheiro com um tapa tímido. Os músicos no canto da taverna tocavam uma música animada,
e muitos batiam palmas. Vários outros dançavam em uma mesa.
- O poder é tudo o que importa, Magnus. O legado é tudo o que importa. - O rei dizia isso como se tentasse convencer a si próprio. - Sem ele, somos como camponeses paelsianos.
Magnus já tinha ouvido aquelas bobagens tantas vezes que já haviam se tornado mais do que palavras sem sentido.
- Diga uma coisa: Elena Bellos retribuiu seu amor ou foi só uma obsessão triste e impossível que transformou seu coração e sua alma em gelo?
O pai demorou tanto para responder que Magnus pensou que ele tinha levantado e ido embora. O príncipe desviou o olhar da taverna movimentada para ver se o rei ainda estava a seu lado.
- Ela me amava - Gaius disse, por fim, a voz quase inaudível. - Mas o amor não foi suficiente para resolver nossos problemas.
Magnus segurou a garrafa de vinho com força.
- Agora você vai me contar uma história de amor e perda... sobre um garoto e uma garota?
- Não.
Pensar que o pai mencionaria aquela história de amor épico sem contar tudo era previsível, mas ainda assim frustrante.
- Então por que você está aqui?
- Para contar a lição que aprendi. Amor é dor. Amor é morte. E o amor tira o poder de uma pessoa. Se eu pudesse voltar no tempo, gostaria de não ter conhecido Elena Corso. Desde aquela época, eu a odeio.
- Que romântico. Como se casou com Corvin Bellos, imagino que ela sentisse a mesma coisa.
- Tenho certeza disso. E agora lembro dela todos os dias, de tudo o que perdi, por causa daquela criatura mentirosa, Cleo. Ela se tornou sua fraqueza fatal, Magnus.
O ódio tinha voltado à voz de Gaius. Magnus encarou os olhos frios do pai.
- Seu ódio sem fim por Cleo me parece muito errado. Você deveria culpar a bruxa que amaldiçoou Elena. - Magnus suspirou, chocado ao perceber. - Você a culpa, não é? Por isso condenou tantas bruxas à morte
ao longo dos anos... Para pagarem pelo crime dela. Pode dizer que odeia Elena, mas ainda a ama, até mesmo depois de sua morte. Por qual outro motivo você teria tomado a poção de minha avó?
- Pense o que quiser. - Um músculo se contraiu no rosto do rei. - A poção era a única maneira de afastar o pesar e a dor e deixar apenas a força. Mas agora aquela força sumiu, desapareceu quando caí daquele
penhasco. A dor e o pesar voltaram, piores do que antes. E odeio isso. Odeio tudo nesta vida: o que tive que fazer, como passei todo esse tempo obcecado apenas pelo poder. Mas agora acabou.
- É o que anda prometendo.
Magnus precisava sair daquela taverna barulhenta e enfumaçada. Precisava de tempo e de espaço para esfriar a cabeça.
Quando levantou, o rei segurou seu braço.
- Imploro a você, meu filho, que mande Cleiona embora antes que ela o destrua. A princesa não ama você de verdade, se é o que você pensa. Independentemente do que ela disser, são apenas mentiras.
- O Rei Sanguinário implorando! Agora não falta mais nada. - Ele suspirou. - Já bebi demais por hoje. Foi um prazer conversar com você, pai. Tente voltar para a hospedaria sem morrer. Tenho certeza de
que sua mãe ficaria muito abalada se alguma coisa ruim acontecesse.
Ele saiu sem dizer mais nada, detestando a confusão de pensamentos e sentimentos.
Enquanto Magnus caminhava por uma rua estreita, alguém bloqueou sua passagem para o caminho principal com ombros largos e uma cara séria.
Não havia mais ninguém à vista.
- É, acho que reconheci você uma noite dessas - disse o homem. - Você é o príncipe Magnus Damora, de Limeros.
- E você está redondamente enganado. Desculpe pela decepção. - Magnus tentou passar acotovelando o homem, que levou a enorme mão à garganta dele, puxando-o para tão perto que Magnus conseguiu sentir seu
hálito de cerveja.
- Dez anos atrás, seu pai queimou minha esposa viva, dizendo que ela era uma bruxa. O que acha de eu fazer a mesma coisa com você como vingança?
- Acho que você precisa me soltar agora mesmo. - Magnus arregalou os olhos para o homem. - Sua necessidade de vingança não tem nada a ver comigo.
- Ele está certo. - O rei deu um passo à frente e tirou o capuz. - Tem a ver comigo.
O homem olhou para Gaius, surpreso, como se não acreditasse no que via.
- Sinto muito pela morte de sua esposa - o rei disse, e uma única lamparina acima da saída da taverna iluminava seu rosto quase esquelético. - Odeio bruxas por mais motivos do que poderia mencionar aqui
e agora. Mas raramente executei uma que não estivesse envolvida com sangue e mortes. Se sua esposa está na terra da escuridão agora, é porque merece estar.
Com o rosto vermelho de ódio, o homem deu um passo à frente empunhando uma faca afiada. Magnus observou o pai de pé ali, sem se mexer, a pele amarelada, os ombros curvados. Ele não lutaria, não conseguiria
lutar por sua vida.
Gaius queria morrer?
A atenção do homem estava totalmente voltada para o rei naquele momento, e o ódio ardia em seus olhos quando ele avançou.
Magnus se moveu antes mesmo de se dar conta de suas intenções, segurou as mãos do homem e impediu que a faca acertasse o alvo.
- Se alguém tem o direito de matar meu pai, esse alguém sou eu - ele vociferou. - Mas não hoje.
Ele virou a lâmina afiada para afundá-la no peito do homem, que gritou de dor e desabou no chão. O sangue jorrou livremente do ferimento fatal.
Houve um momento de completo silêncio na rua até o rei falar de novo.
- Precisamos ir embora antes que alguém veja isso.
Magnus teve que concordar. Limpou o sangue das mãos no manto preto e os dois logo voltaram à hospedaria Falcão e Lança.
- Não pense que esse gesto mostra que não odeio você - Magnus disse.
O rei assentiu com seriedade.
- Eu o consideraria um idiota se não me odiasse. Ainda assim, apesar do ódio que sente por mim, quero lhe dar algo.
- O quê?
- O cristal do ar.
Não havia como o Rei Sanguinário entregar uma parte da Tétrade a alguém, nem mesmo ao próprio filho. E, ainda assim, Gaius levou Magnus ao andar de cima, ao quarto onde tinha ficado por dois dias.
Magnus observou o espaço.
- Onde está Selia?
- No pátio. - O rei indicou a janela com a cabeça. - Sua avó gosta de cumprir os rituais antigos todas as noites, a esta hora e sob o luar, por isso consegui sair.
O rei foi até a cama de palha, levantou as cobertas e passou a mão por baixo do colchão. Em seguida, franziu a testa.
- Ajude-me a levantá-lo - ele disse.
- Está tão fraco assim? Então você teria mesmo ficado parado, esperando aquele homem te matar?
- Faça o que estou mandando. - O olhar que o pai lançou foi muito mais familiar do que qualquer conversa sobre compartilhar e arrependimentos.
- Tudo bem. - Magnus foi até o lado de Gaius e levantou o colchão para seu pai procurar embaixo dele.
Os olhos vermelhos e marejados do rei foram tomados pelo susto.
- Não está aqui.
Magnus lançou um olhar desconfiado para o rei.
- Que conveniente, se considerarmos que você estava prestes a entregá-lo a mim. Por favor, pai, me poupe dessas dissimulações. Como se você fosse esconder um tesouro como aquele em um lugar tão óbvio!
- Não é dissimulação. Estava aqui. Andei muito debilitado para encontrar um lugar melhor onde escondê-lo. - Gaius ficou sério. - Aquela sua princesinha o roubou.
Só podia ser mentira. Mais uma mentira. Magnus não conseguia pensar em outra explicação, não para algo tão importante.
Antes que pudesse responder, o rei cambaleou com dificuldade para sair do quarto. Magnus o seguiu pelo corredor, onde Cleo ainda estava com Jonas.
Magnus não conseguia acreditar no que via. Precisou de todo o autocontrole possível para não transformar Jonas no segundo morto da noite.
Cleo levantou depressa quando o rei e Magnus entraram.
- O que foi? O que aconteceu?
- Você roubou o cristal do ar? - Magnus perguntou, incomodado com a maneira arrastada como estava falando.
- O quê? Eu... eu nem sabia onde estava!
- Sim ou não, princesa?
Cleo semicerrou os olhos e levantou o queixo.
- Não.
- Ela está mentindo - o rei disse.
- O rei das mentiras querendo acusar a princesa, não é? - Jonas quase cuspiu as palavras, os punhos cerrados. - Que ironia.
- Onde está o cristal da terra? - Magnus perguntou.
Cleo franziu a testa ao enfiar a mão no bolso e arregalou os olhos.
- Não está aqui. Mas estava, juro! Eu o carrego comigo o tempo todo!
Magnus sentiu uma náusea. Havia um ladrão entre eles. E quem quer que fosse, em breve ia se arrepender profundamente por suas atitudes.
Não demorou para que todos corressem até a sala para ver o que estava acontecendo. Milo e Enzo já empunhavam as armas, prontos para um combate.
Magnus observou o grupo. Estava todo mundo ali: Nic, Olivia, até Selia havia se unido ao grupo, com o rosto corado devido ao ritual da lua daquela noite. Todo mundo, menos uma pessoa.
- Onde está o príncipe Ashur? - Jonas perguntou, franzindo a testa. - Ele estava aqui mais cedo com Cleo e comigo.
- Eu não o vi hoje - Olivia respondeu. - Talvez tenha saído.
- Talvez. Alguém sabe aonde ele foi?
Enzo e Milo balançaram a cabeça em negativa.
Selia foi para o lado do rei pálido, que caminhava até uma cadeira para sentar.
- Gaius, querido, o que está fazendo fora da cama?
Magnus os ignorou, prestando atenção em Nic, que estava em silêncio. Enquanto os outros conversavam sobre o paradeiro do príncipe, Nic saiu da sala. Magnus imediatamente o seguiu pelo corredor em direção
à porta da frente.
Quando Nic notou que Magnus estava perto, seus ombros ficaram tensos.
- Está procurando alguém? - Magnus perguntou, com os braços cruzados.
- Quero sair para respirar um pouco de ar fresco.
- Ele levou os dois cristais, não levou? E contou a você sobre os planos.
Nic balançou a cabeça, mas não o encarou nos olhos. Magnus não tinha mais paciência para mentiras naquela noite. Ele puxou a frente da túnica de Nic e o jogou contra a parede.
- Onde está Ashur? - ele resmungou.
- Você está bêbado.
- Demais, mas não faz a menor diferença agora. Responda! Ashur roubou os cristais, não roubou?
Nic rangeu os dentes.
- Você acha que o príncipe me conta alguma coisa?
- Não faço ideia do que o príncipe sussurra em seu ouvido, mas não sou cego. Sei que tem algo entre vocês dois, que são mais próximos do que aparentam. E sei que você sabe mais do que está me contando.
Jonas se aproximou, tenso, vindo de um canto.
- O que está fazendo com ele?
Magnus não soltou o garoto.
- Nic sabe os segredos de Ashur e vou descobrir quais são.
- Responda à pergunta, Nic - Jonas disse, os braços cruzados. - Sabe para onde Ashur foi?
Nic riu.
- Como é? Vocês estão trabalhando juntos agora?
- Não - Magnus e Jonas responderam em uníssono, e então se entreolharam.
Nic suspirou.
- Tudo bem. O príncipe acabou de partir para ver a irmã. Tentei convencê-lo a não fazer isso, mas ele não ouviu nada do que eu disse. Está determinado a fazer o que puder para colocar juízo na cabeça dela
e, se não conseguir, vai exigir o título de imperador.
Magnus sentiu o estômago revirar.
- E ele levou para Amara os cristais do ar e da terra. Que lindo presente, considerando que Amara está com o cristal da água.
Por fim, Nic lançou um olhar preocupado.
- Ashur não faria isso.
- Não? - Magnus tentou continuar segurando a túnica de Nic para que o idiota não fugisse, mas sua visão estava turva. Vinho demais, rápido demais. Os efeitos só passariam ao amanhecer. - Talvez Amara tenha
retirado os cristais dos esconderijos com sua magia, e eles voaram em asas de borboletas para ela.
- Vou falar mais uma vez. - Nic semicerrou os olhos. - Me solte.
- E se não soltar? Vai chamar a princesa para salvá-lo?
- Odeio você. Desejo vê-lo morto e enterrado. - Ele olhou para Jonas, irritado. - Uma ajuda?
- Nic, você precisa pensar - Jonas disse com calma. - Se Magnus estiver certo em relação a Ashur...
Magnus lançou um olhar fulminante ao rebelde.
- Você acabou de me chamar apenas pelo meu primeiro nome?
Jonas revirou os olhos.
- Amara Cortas não pode ter mais poder do que já tem. E se o irmão dela levou os cristais da Tétrade, é a pior coisa que poderia acontecer. Ela pode liberar três deuses elementares como Kyan.
- Eu sei - Nic respondeu. - Eu entendo.
- Entende?
- Então a culpa é minha? Vai deixar sua majestade quebrar meu pescoço? Por quê? Por não ter conseguido impedir Ashur de fazer o que queria? Ele faz o que bem entende.
- Prometo que sua majestade não vai quebrar seu pescoço.
- Não vamos nos precipitar - Magnus disse, divertindo-se com o breve olhar assustado do garoto.
Ele nunca mataria Nic.
Cleo nunca o perdoaria.
- Você vai fazer o seguinte - Magnus disse. - Vai atrás de Ashur para impedi-lo de fazer alguma coisa idiota e imperdoável por senso de lealdade familiar kraeshiano bizarro e sem propósito. E vai recuperar
os cristais que ele roubou, custe o que custar.
Nic o encarou incrédulo.
- Não vou deixar Cleo de novo.
- Ah, vai, sim, com certeza. E vai agora. Você vai voltar com os cristais da Tétrade ou minha paciência com você vai acabar. - Magnus tentou organizar a mente confusa para encontrar uma maneira de fazer
Nic cumprir a ordem.
- Você pode até me odiar, mas viu que mantive sua preciosa princesa viva todos esses meses, enquanto outros a queriam morta. Juro pela deusa que vou parar de protegê-la se não fizer exatamente o que mandei.
Nic se encolheu, mas manteve o olhar firme.
- Cleo ficaria bem até mesmo sem sua ajuda.
- Talvez sim. Talvez não. Em tempos de guerra, e não se engane, é exatamente o que essa ocupação "pacífica" kraeshiana é, ninguém está seguro.
Nic ficou sem resposta. Apenas o observou furioso.
- Com ameaça ou sem - Jonas disse impaciente -, o príncipe está certo, Nic, você precisa ir atrás de Ashur. Nós dois precisamos. Eu deveria ter acompanhado Felix e Taran quando eles partiram. Não há motivos
para eu estar aqui.
- Não há motivos, rebelde? - Magnus lançou um olhar para ele. - Que esquisito. E pensei que você estivesse gostando de bajular a princesa, em busca de migalhas.
Jonas lançou um olhar raivoso para Magnus.
- Eu receberia muito mais do que você.
Magnus sorriu para ele.
- Não tenha tanta certeza disso.
Jonas ficou ainda mais sério.
- Terminamos por aqui. Nic, pegue o que precisa para ir ao complexo do chefe Basilius. Espero alcançar Ashur antes que ele chegue lá. E, Magnus?
- Sim, rebelde?
Jonas semicerrou os olhos.
- Se encostar em um fio de cabelo da princesa, juro por qualquer deusa em quem você acredita que vou fazer você implorar para morrer.
19
AMARA
PAELSIA
Um único falcão dourado voava em círculos sobre os cidadãos paelsianos reunidos para ouvir o discurso de Amara. A imperatriz estava em pé diante da janela aberta de seus aposentos, observando a multidão
de rostos ansiosos. Muitos estavam perplexos por estarem dentro da propriedade privada do ex-chefe; os portões tinham ficado trancados para o público durante o governo dele. Naquele dia, os paelsianos
viam pela primeira vez a cidade labiríntica, o que fez Amara lembrar muito da Cidade de Ouro, mas, em vez de metais e joias, a cidade onde estava era feita de barro, tijolo, pedra e terra.
- Vossa graça, gostaria que reconsiderasse esse discurso - Kurtis disse atrás dela. - A senhora está muito mais segura aqui dentro, principalmente com a notícia de rebeldes por perto.
Ela tirou os olhos da janela e se virou para o grão-vassalo onipresente.
- É por isso que tenho guardas ao meu redor o tempo todo, lorde Kurtis. Os rebeldes estão sempre por perto. Infelizmente, não posso fazer todos entenderem meu ponto de vista. Há quem se oponha ao reinado
de meu marido, ao reinado de meu pai. E há aqueles que se opõem ao meu também. Falarei com meus cidadãos hoje, aqueles que vão me apoiar sem questionamentos e aqueles que duvidam de minhas intenções aqui.
Preciso dar a eles uma esperança para o futuro... uma esperança que nunca tiveram.
- O que é uma atitude incrível, vossa graça, mas... os paelsianos são selvagens, violentos.
Amara considerou as palavras ofensivas.
- Há quem diga o mesmo dos kraeshianos - ela respondeu mais irritada. - Talvez você não tenha me ouvido até agora, mas falarei hoje.
- Vossa graça...
Ela levantou uma mão, decidindo parar de sorrir.
- Falarei hoje - ela disse com firmeza. - E ninguém vai me dizer que não posso fazer isso. Com a notícia dos rebeldes e com a discordância entre meus próprios soldados, preciso do apoio dessas pessoas
para o futuro de meu reinado. E não permitirei que ninguém diga o que posso e o que não posso fazer. Entendido?
Ele se curvou no mesmo instante, corado.
- Claro, vossa graça. Não quis desrespeitá-la.
A porta se abriu e Nerissa entrou, fazendo uma reverência.
- Está na hora, imperatriz.
- Ótimo, estou pronta. - Amara alisou a seda de seu vestido. Era o mesmo que usava nas ocasiões mais especiais em Kraeshia. Ela o levava sempre que viajava caso tivesse a oportunidade de vestir uma peça
tão esplêndida. A costura brilhante e as contas de esmeralda e ametista reluziam sob o sol paelsiano quando ela saiu de sua grande quinta.
Um grupo de guardas esperava Amara do lado de fora e, com Nerissa a seu lado, ela se aproximou do grande pódio em um palco de madeira bem acima da multidão de quatro mil pessoas reunidas lado a lado na
antiga arena do chefe.
Aqueles eram seus novos súditos. Absorveriam tudo o que dissesse e espalhariam a notícia de sua glória a quem quisesse ouvir. E em breve, seriam os primeiros a reverenciá-la como uma verdadeira deusa.
A multidão gritou e a atmosfera foi tomada por sons de aprovação. Ela olhou para Nerissa, que sorriu e assentiu, incentivando-a a começar.
Amara ergueu os braços, e a grande plateia ficou em silêncio.
- Eu me dirijo ao lindo povo de Paelsia, um reino que tem passado por muitos testes e muitas atribulações ao longo de várias gerações. - Sua voz ecoou nos pilares de pedra, o que ajudou a amplificar as
palavras de modo que até as pessoas nas arquibancadas pudessem ouvi-la. - Sou Amara Cortas, a primeira imperatriz de Kraeshia, e trago a vocês a notícia oficial de que não são mais cidadãos de Mítica,
uma tríade de reinos que os oprimiu por um século. Agora vocês são cidadãos do grande Império Kraeshiano. E seu futuro é tão brilhante quanto o sol que nos ilumina hoje!
A multidão comemorou, e Amara parou um instante para analisar os rostos, alguns sujos, de pessoas com roupas simples puídas, gastas pela sujeira e pelo tempo. Olhos atentos se voltaram para ela, olhos
que tinham assistido a muitos líderes fazerem promessas falsas e causarem dor e sofrimento. Ainda assim, ela viu uma esperança tímida até mesmo nos olhos dos mais velhos.
- Cuidaremos de sua terra - ela continuou. - Vamos torná-la rica de novo e pronta para as plantações que vão sustentar vocês e suas famílias. Vamos importar animais que servirão de alimento. E enquanto
continuarem produzindo o vinho pelo qual Paelsia é conhecida, os lucros serão de vocês, integralmente, pois prometo que não serão cobrados impostos kraeshianos sobre esse produto por vinte anos. As leis
que impediam a exportação do vinho a qualquer lugar que não fosse Auranos estão vetadas a partir de agora. Vejo Paelsia como um patrimônio maravilhoso do meu império e quero demonstrar isso cuidando para
que minhas atitudes sejam condizentes com minhas palavras. Vocês fazem bem em acreditar em mim, porque eu acredito em vocês. Juntos, vamos marchar para o futuro, de mãos dadas!
O barulho vindo da plateia aumentou, e, por um instante, Amara fechou os olhos e permitiu-se aproveitar o momento. Tinha sido por isso que ela se sacrificou tanto. Tinha sido por isso que ela fez o que
fez.
Por aquele poder.
Não fora à toa que seu pai havia tomado decisões tão precipitadas durante seu reinado. Aquela sensação diante da obediência, da adoração e da reverência era mesmo viciante.
Se ela conseguiria ou não cumprir o prometido, ainda precisava verificar.
Ela sentia a magia que havia na crença que emanava do povo paelsiano. Uma magia tão rica e pura na qual queria se banhar.
- Vossa graça! - Nerissa exclamou, assustada.
Amara abriu os olhos a tempo de ver uma flecha de relance, e então um de seus guardas a tirou do caminho. A flecha acertou o homem no pescoço, e ele caiu se debatendo no chão do palco.
- O que está acontecendo? - ela quis saber.
- O grupo de rebeldes que ameaçou vir aqui hoje... eles estão aqui! - Nerissa agarrou o braço dela. Duas outras flechas voaram na direção dela, bem perto, acertando outros dois guardas.
- Quantos? - Amara conseguiu perguntar. - Quantos rebeldes estão aqui?
- Não sei... - Nerissa ergueu a cabeça para olhar para a multidão quando outra flecha passou por ela. - Vinte, talvez trinta ou mais.
Amara observou chocada quando seu exército de soldados invadiu o mar cada vez maior de civis para capturar os rebeldes. Os soldados derrubavam qualquer pessoa que aparecesse no caminho, fossem rebeldes
ou paelsianos. A multidão entrou em pânico e tentou fugir. O caos se instalou, gritos de medo e de indignação eram ouvidos por todos os lados quando sangue começou a ser derramado.
Paelsianos empunharam armas, trocando rapidamente a expressão esperançosa pela de ódio, e começaram a lutar não só contra os soldados, mas uns contra os outros, facas cortando a carne, socos acertando
rostos e abdomens.
"Os paelsianos são selvagens, violentos", Kurtis tinha alertado.
Mães agarravam os filhos, chorando e correndo para todas as direções.
- O que vamos fazer? - Nerissa perguntou. Ela tinha agachado ao lado de Amara, e as duas se encolheram atrás do pódio.
- Não sei - Amara disse depressa, e se arrependeu de suas palavras.
Palavras de medo. Palavras de vítima.
Ela não ia se acovardar diante de rebeldes naquele momento - nem nunca.
O medo logo se transformou em raiva. Aquilo, fosse o que fosse, não fazia parte de seu plano. Aqueles que desejavam destruir sua chance de transformar aquele povo determinado em seu aliado, um povo que
já estava pronto para aceitá-la como líder, pagariam com a vida.
Amara levantou do esconderijo, punhos cerrados, quando alguém se aproximou do palco trás dela. Ela ouviu passos pesados na superfície de madeira.
Quando se virou, viu dois de seus guarda-costas caindo com a garganta cortada. Atrás deles, um rosto assustadoramente familiar.
- Bem, princesa, eu poderia apostar um monte de moedas de ouro que você não esperava me ver de novo.
Felix Gaebras apontava uma espada a poucos centímetros de seu rosto.
O rosto dele aparecia em seus pesadelos. Ou talvez os pesadelos tivessem sido premonições. Naqueles sonhos, ele tentava matá-la.
- Felix... você fez isso, tudo isso, só para chegar até mim - ela começou, dando um passo hesitante para trás para se afastar do jovem que acreditava estar morto fazia muito tempo.
Ele sorriu.
- Sinceramente? Eu estava só observando de longe. Foi uma coincidência feliz. Acho que há muitos outros rebeldes que querem derramar seu sangue. Mas parece que a honra será minha.
Ela olhou para a esquerda e viu três guardas correndo na direção de Felix, mas foram derrubados por outro jovem de cabelo escuro e expressão irritada.
- O plano não era esse, Felix - o rapaz gritou. - Nós dois vamos morrer por sua causa.
- Calado, Taran - Felix respondeu. - Estou retomando contato com uma antiga namorada.
Ao sentir a lâmina em seu rosto, Amara olhou para o tapa-olho preto que ele usava.
- Seu olho...
- Perdi. Graças a você.
Ela se encolheu.
- Sei que você deve me odiar pelo que fiz.
- Odiar? - Ele arqueou as sobrancelhas escuras, movendo de leve o tapa-olho. - "Ódio" é uma palavra muito leve, não acha?
Amara tentou ver se algum guarda se aproximava para ajudá-la, mas Taran, o amigo de Felix, os afastava com a espada e o arco que trazia.
Amara virou para a frente, para o olho bom de Felix, e disse com o máximo de arrependimento que conseguiu reunir:
- Não importa o que tenha enfrentado, minha bela fera. Juro que posso me retratar.
- Não me chame assim. Perdeu o direito de me chamar assim quando me abandonou e me deixou para morrer. - Felix encostou a lâmina no rosto dela de novo, fazendo-a olhar para a multidão. - Viu o que fez?
É culpa sua. Tudo o que você toca acaba em morte.
O olhar tenso de Amara passou pela multidão que tinha percorrido quilômetros para se reunir e ouvi-la falar. Muitos paelsianos estavam mortos entre os combatentes, pisoteados, assassinados pelas espadas
dos guardas ou por seus próprios compatriotas.
Felix tinha razão: era culpa dela. Um momento de vaidade, o desejo de sentir o amor de seus novos súditos depois de tanta dor e decepção, acabou em morte.
Tudo acabava em morte.
O mesmo falcão que ela vira sobrevoando a multidão grasnou alto o suficiente para Amara ouvir. No chão, alguém preso no meio do caos chamou sua atenção: um jovem de cabelo ruivo, cor rara de ser encontrada,
caminhava em direção ao palco.
Ela reconheceu o amigo de Cleo, Nic. Aquele com que Ashur tinha ficado obcecado.
Amara observou horrorizada quando dois paelsianos agarraram Nic e rasgaram o saco de moedas preso ao passador de sua calça. Nic tentou segurar o saco, e a faca de um dos homens reluziu à luz do sol antes
de ser fincada no peito dele.
Ela se assustou.
O corpo de Nic caiu no chão e logo se perdeu na multidão.
Aquilo era culpa dela, apenas dela.
Ela franziu a testa ao pensar nisso. Não... tinha sido azar de Nic, uma circunstância infeliz. Ela não tinha assassinado o amigo de Cleo com as próprias mãos. Amara se recusava a assumir a culpa pelo azar
de outras pessoas.
Apesar de ter odiado seu pai e seus irmãos com a mesma intensidade, a família Cortas não era nada fraca. Inclusive ela.
E além da família Cortas, as mulheres não eram fracas. Eram líderes. Campeãs. Guerreiras. Rainhas.
Amara tinha enfrentado inimigos muito maiores do que Felix Gaebras na vida.
Ela se forçou a falar de modo assustado quando virou para ele de novo.
- Você é maior do que isso, Felix. Matar uma garota desarmada? Não combina com você.
- Não combina comigo? Sou um assassino profissional, meu amor. Matar é o que faço melhor.
De canto do olho, ela observou o amigo derrubar mais dois de seus homens com uma só mão.
- Pense bem, governo um terço do mundo e controlo toda a fortuna. Quer ser um homem muito rico?
Ele levantou um dos ombros.
- Não.
Amara tinha esquecido que ele era diferente dos outros homens que conhecia - uma vantagem no começo, mas um problema no presente. - Mulheres, então. Dez, vinte, cinquenta garotas que desejem apenas você.
Felix abriu o sorriso mais frio que ela já tinha visto.
- E como eu saberia que não são vadias frias e dissimuladas como você? Não tem acordo, imperatriz.
Amara ficou com os olhos marejados. Fazia muito tempo que não chorava, mas chorar era um talento que desenvolvera desde cedo. Sabia que a maneira mais fácil para uma mulher evitar problemas ou castigos
era fingir fraqueza entre os homens.
As lágrimas logo começaram a descer livremente por seu rosto.
- Eu pretendia libertá-lo, mas me disseram que você já estava morto, assassinado em uma tentativa de fuga. Meu coração ficou destruído quando pensei que tinha perdido você para sempre. Deveria tê-lo incluído
em meus planos, mas eu estava com medo, muito medo. Ah, Felix, eu não queria que nada acontecesse com você, sinceramente! Eu... eu amo você! Sempre vou amar, não importa o que você decida fazer hoje!
Felix olhou para ela como se estivesse assustado com o que ouvia.
- O que disse? Que me ama?
- Sim. Eu amo você.
A ponta da espada se mexeu. Mas logo foi afastada.
- Bela tentativa, meu amor. Eu poderia até acreditar, se fosse um completo imbecil. - Felix sorriu para ela. - Hora de morrer.
Um instante depois, Carlos, que tinha subido no palco e conseguido passar por Taran, derrubou Felix. Antes que conseguisse recuperar o fôlego, Taran e Felix estavam diante dela, ajoelhados.
Nerissa voltou para seu lado, e Amara segurou a mão dela, apertando-a para ter a certeza de que a criada não tinha se ferido.
- Os outros rebeldes morreram, vossa graça - Carlos informou. O rosto dele sangrava devido a um corte profundo no nariz.
Amara respondeu assentindo brevemente e então olhou para Felix.
Ele deu de ombros de novo.
- Não posso dizer que não tentei.
- Devia ter sido mais rápido.
- Acho que gosto muito de falar. - Ele abriu um grande sorriso, mas seu olhar estava frio. Voltou-se para Nerissa por um instante antes de voltar a encarar Amara. - Vamos falar de novo sobre aquela oferta
do harém de lindas mulheres?
Amara tocou o rosto de Felix, levantando sua cabeça.
- Sinto muito pelo seu olho. Gostei daquele olho, assim como de outras partes suas. Por algumas noites, pelo menos.
- Devemos executá-los agora mesmo, vossa graça? - Carlos perguntou, com a espada ao lado do corpo.
Ela esperou o medo aparecer no único olho de Felix, mas ele manteve a pose desafiadora.
- Se eu poupá-lo, o que fará? Vai tentar me matar de novo?
- Num piscar de olhos - ele disse.
- Você é um grande idiota - Taran rosnou.
Sua bela fera a tinha entretido por um período. E ainda entretinha.
Apesar de tudo, Amara ainda se sentia atraída por ele. Mas não importava. Ele deveria ter morrido muito tempo antes, e não ser mais um problema para ela.
Amara assentiu para o guarda.
- Jogue os dois no fosso. Cuido deles mais tarde.
20
LUCIA
PAELSIA
- Ela é incrível. Totalmente linda e gloriosa. Parece mais uma deusa do que uma mera mortal, se quer saber. Tenho certeza de que vai salvar todos nós.
Lucia parou na barraca de frutas enquanto procurava uma maçã sem nenhuma imperfeição - pelo jeito, era impossível em Paelsia - e olhou para a vendedora que conversava com uma amiga.
- Concordo totalmente - a amiga disse.
Estariam falando da feiticeira profetizada?
- Desculpem minha grosseria, mas posso saber de quem estão falando? - Lucia perguntou. Era a primeira vez que falava em voz alta em mais de um dia, e sua voz falhou no início.
A vendedora olhou para ela.
- Ora, da imperatriz, é claro! De quem mais poderia ser?
- Sim, de quem mais, não é? - Lucia disse em voz baixa. - Então vocês acham que Amara Cortas vai salvá-las. Salvá-las do que, exatamente?
As paelsianas trocaram um olhar e viraram para Lucia um tanto impacientes.
- Você não é daqui, é? - Uma delas franziu os lábios enrugados. - Não, com esse sotaque, acredito que seja limeriana, não é?
- Nasci em Paelsia e fui adotada por uma família limeriana.
- Você teve muita sorte por ter escapado destas fronteiras tão cedo, então. - A vendedora virou para a amiga. - Se ao menos todos tivéssemos tido essa oportunidade...
As duas riram sem achar graça.
A paciência de Lucia estava acabando.
- Vou comprar esta maçã. - Ela guardou a fruta no bolso e entregou uma moeda de prata. - E também qualquer informação que puder me dar a respeito da localização da imperatriz.
- Com prazer. - A mulher pegou a moeda com ganância, semicerrando os olhos. - Por onde andou esses últimos dias, mocinha, para não saber tudo sobre a imperatriz? Perdida por aí?
- Mais ou menos. - Na verdade, ela estava recuperando as forças na hospedaria no leste de Paelsia até não aguentar mais e ter que fugir. Apesar da preocupação da atendente Sera com sua saúde, Lucia sabia
que precisava sair dali antes que sua barriga ficasse grande demais e ela não conseguisse mais levantar da cama.
Passou a mão pela barriga aparente e a comerciante notou, arregalando os olhos.
- Ah, minha querida! Não percebi que estava grávida. E já tão avançada!
Lucia gesticulou para indicar que ela não se preocupasse.
- Estou bem - ela mentiu.
- Onde está sua família? Seu marido? Não me diga que está sozinha aqui na feira hoje!
Parecia que o fato de estar grávida fazia os desconhecidos sentirem vontade de tratá-la com muito mais gentileza do que o normal. Tinha sido bom durante a viagem lenta e desconfortável para o oeste.
- Meu marido está... morto - ela disse com cuidado. - E agora estou procurando minha família.
A amiga da vendedora correu na direção de Lucia e segurou suas mãos.
- Meus mais sinceros sentimentos por essa perda tão dolorosa.
- Obrigada. - Lucia sentiu um nó repentino e irritante na garganta. Assim como a barriga inchada, suas emoções estavam muito mais intensas e difíceis de controlar.
- Se precisar de um lugar para ficar... - a vendedora disse.
- Obrigada de novo, mas não preciso. Só preciso de informações sobre a imperatriz. Ela ainda está em Limeros?
As amigas se entreolharam de novo, sem acreditar que Lucia pudesse estar tão desinformada a respeito daquelas coisas.
- A grande imperatriz Cortas está morando no antigo complexo do rei Basilius - a vendedora começou. - Ela vai fazer um discurso de lá amanhã, dirigindo-se a todos os paelsianos que puderem participar.
- Um discurso aos paelsianos. Por quê?
A vendedora olhou para ela com um pouco de compaixão.
- Bem, por que não? Talvez você tenha esquecido por causa dos muitos anos abençoados que passou em Limeros, mas a vida aqui em Paelsia é difícil.
- Para dizer o mínimo - sua amiga acrescentou.
A vendedora assentiu.
- A imperatriz vê nossos esforços. Ela os reconhece. E quer fazer algo em relação a isso. Ela valoriza os paelsianos como parte importante de seu império.
Lucia tentou não revirar os olhos. Ela não tinha percebido como Amara era uma manipuladora de primeira, sedenta por poder, nas poucas vezes em que conversara com a ex-princesa quando os Damora moraram
no palácio auraniano.
- Mas, claro, questiono a sabedoria da imperatriz por se casar com o Rei Sanguinário - a vendedora comentou.
- Desculpe - Lucia disse, olhando para ela. - Você disse que ela é casada com o Rei... San... com o rei Gaius?
- Sim. Mas também soube que ele está desaparecido no momento, junto com seu herdeiro. Vamos torcer para que a imperatriz tenha enterrado os dois a sete palmos da terra.
- Realmente - Lucia murmurou, sentindo o estômago embrulhado só de pensar. Sera não tinha dito nada sobre o casamento de seu pai com Amara. Seria verdade? - Eu... eu preciso ir. Preciso...
Ela virou e desapareceu em meio à multidão na feira.
Certa vez, Ioannes tinha guiado Lucia para encontrar e despertar a Tétrade com seu anel da feiticeira. Ela esperava que o mesmo encanto que usaram pudesse funcionar para ajudá-la a encontrar Magnus e seu
pai. No entanto, apesar de ter conseguido fazer o anel girar como fizera na época em seus aposentos no palácio auraniano, todas as tentativas de reaver o mapa brilhante de Mítica e determinar a localização
deles tinham fracassado. Enfraquecida por usar seus elementia, ela tinha que fazer paradas constantes ao percorrer o caminho a pé, junto com muitos outros paelsianos, até o complexo do antigo líder local.
Lucia se recusava a acreditar que sua família estivesse morta. Eles eram muito bem preparados para isso. E, se o rei tinha se casado com Amara - uma ideia tão ridícula que ela mal conseguia conceber -,
tinha feito isso por razões estratégicas, por poder e sobrevivência.
Sim, Amara era jovem e muito bela, mas seu pai era esperto e cruel demais para tomar uma decisão como essa movido por uma mera paixão.
Havia milhares de paelsianos reunidos do lado de fora do complexo quando ela finalmente chegou. O vilarejo mais próximo ficava a meio dia de viagem dali, mas levaria mais um dia, talvez dois, na situação
atual de Lucia, para chegar a Basilia, seu destino original.
Os portões altos e pesados rangeram ao se abrir, e a multidão adentrou o complexo. Lucia se concentrou tanto nas pessoas que a cercavam, procurando algum rosto conhecido, que mal viu os caminhos de pedra
e as casas de barro que levavam em direção à enorme casa de três andares no centro do complexo. Os paelsianos estavam sendo levados para uma ampla clareira, com fogueiras e vários assentos elevados de
pedra. Isso a fez pensar nas histórias que já tinha ouvido sobre como o chefe Basilius organizava competições entre os homens que queriam impressioná-lo com sua força e habilidade de combate. Ali, já tinham
ocorrido lutas mortais apenas para entretê-lo.
A multidão continuou crescendo, mas Lucia não ouviu nenhuma menção ao ex-chefe e a seus prazeres nos fragmentos de conversa ao seu redor. Só ouvia sobre a importância da nova imperatriz.
Lucia não imaginava que os paelsianos fossem tão fáceis de enganar. Eles acreditaram, por muitos e muitos anos, que o chefe Basilius era um feiticeiro.
Chefe Hugo Basilius. Seu pai biológico.
E aquela era a casa dele - o lugar onde ela teria sido criada se não tivesse sido roubada no berço.
Lucia olhou para as casas, ruas e a arena que formavam o complexo, esperando sentir uma sensação de perda da vida que deveria ter tido.
Mas não sentiu nada. Se havia um lar do qual sentia falta, era do palácio escuro cercado por gelo e neve em Limeros.
Quanto antes conseguisse deixar aquele reino seco e desagradável, melhor. Já tinha aprendido mais do que o suficiente sobre a cultura paelsiana quando a conheceu com Kyan.
Ela não ouviu boatos sobre o deus de fogo causando mais destruição e morte durante suas viagens. Segurava firme a esfera de âmbar que tinha escondido no bolso. Timotheus insistira que Kyan não podia morrer.
Mas, se era verdade, onde ele estava? O que estava planejando? Ela o havia ferido gravemente em sua batalha? Se não tinha, por que Kyan não havia voltado às Montanhas Proibidas para recuperar sua esfera
antes que Lucia a encontrasse?
Ela pressionou os dedos ao redor do cristal de âmbar ao pensar nisso. Seria forte o suficiente para lutar se ele a encontrasse naquele dia?
Lucia detestava admitir que não.
Não, não é bom o suficiente, ela pensou. Não há outra escolha. Tenho que ser forte.
- Ela é incrível, de fato - outro um velho corcunda paelsiano disse. - Se tem alguém que pode livrar nossa terra de sua doença mortal, é a imperatriz.
- Quero vingança pela morte de minha família - uma mulher mais jovem respondeu.
- Também quero - uma mulher mais velha concordou.
- De que doença estão falando? - Lucia perguntou.
- A doença da bruxa sombria - o velho resmungou. - A maldade dela destruiu esta terra e matou milhares de paelsianos com o toque de sua mão feia e retorcida.
Lucia mexeu as mãos.
- Ouvi falar dessas maldades...
- Maldades? - ele praticamente gritou com ela. Gotas de saliva do homem acertaram o rosto de Lucia, que limpou a face, fazendo uma careta. - Alguns dizem que Lucia Damora vai matar todos nós com sua magia
do fogo, que é uma feiticeira imortal, filha do Rei Sanguinário com uma demônia durante uma cerimônia de magia sanguinária! Mas eu a vejo como é: alguém que precisa ser morta antes que acabe machucando
outras pessoas.
Eles sabiam seu nome. E a odiavam o suficiente para desejar sua morte.
Não importava que o velho não tivesse incluído Kyan no relato. Já era um fato. Ela não podia voltar e mudar o que tinha acontecido.
Os paelsianos viam Lucia como uma bruxa demoníaca tirada das sombras como uma hera odiosa. Um pesadelo e uma doença que infestavam sua terra.
Ela nem tentou discutir, uma vez que estavam totalmente certos.
A multidão começou a gritar quando Amara finalmente subiu ao palco. Lucia tentou ver o máximo que pôde da bela moça, o cabelo comprido e escuro estava solto, o vestido de seda esmeralda com uma fênix brilhante
bordada. Quando ela ergueu as mãos. As pessoas ficaram em silêncio.
Amara falou de maneira clara e intensa sobre um futuro incrível para os cidadãos de Paelsia. Lucia não acreditava nas mentiras que ela despejava, mas, ao observar em volta, viu que as pessoas aceitavam
o que era dito como quem aceita um banquete delicioso.
A imperatriz parecia muito sincera em suas promessas. Lucia admirava a facilidade com que falava sobre mudar tudo o que estava errado no mundo. Sobre tomar decisões em nome daquelas pessoas que acreditavam
em cada uma de suas palavras.
Lucia estava ali, punhos cerrados, odiando Amara e esperando a chance de descobrir o que sua inimiga tinha feito com sua família.
E então, quase no mesmo instante, as lindas e falsas palavras que Amara dizia foram interrompidas. Alguém gritou e Lucia só entendeu o que estava acontecendo quando viu um guarda cair no palco, com uma
flecha enfiada na garganta. Outro guarda caiu, e mais um.
Uma tentativa de assassinato.
Isso não pode acontecer, Lucia pensou desesperada. Preciso muito perguntar a ela. Amara não pode morrer hoje.
Com muito esforço, Lucia acessou a magia do ar. Um vento frio e abundante envolvia seus braços e mãos em espirais transparentes enquanto ela avançava pela multidão em direção ao palco, usando a magia invisível
para tirar todo mundo de seu caminho. Os guardas kraeshianos pularam na multidão assustada e confusa com armas em punho e só provocaram mais pânico. Eles derrubavam quem os enfrentava ou cruzava seu caminho,
fossem rebeldes ou civis, o que só aumentou a confusão enquanto todos tentavam fugir.
Lucia se esforçou para enxergar o que estava acontecendo no palco. Amara e uma garota muito parecida com a criada que costumava acompanhar a princesa Cleo encolheram-se diante de um jovem alto que usava
um tapa-olho preto e empunhava uma espada.
A magia do ar frio de Lucia passou para a de fogo, pronta para queimar quem a impedisse de chegar a Amara. Alguém puxou seu manto, e ela olhou para a pessoa, pronta para fazê-la arder em chamas. Nicolo
Cassian olhou para ela, uma das mãos em seu manto, a outra pressionada contra um ferimento na barriga. Quando ele tossiu, sangue espirrou de sua boca.
Um ferimento mortal.
Lucia olhou de novo para o palco, mas um som engasgado a fez virar de novo para Nic, uma vítima dos guardas sedentos por sangue ou de um paelsiano assustado.
Não importava quem tinha feito aquilo. Ela conseguiu ver, com rapidez, que o ferimento era profundo e mortal. O que aquele garoto estava fazendo justamente ali?
Lucia não tinha magia suficiente para lutar contra milhares. Levou a mão à barriga ao observar a multidão, sabendo que precisava ir para um local seguro. Muitos estavam se pisoteando para voltar aos portões.
Ela deu um passo e então percebeu que Nic ainda a segurava.
- Prin... ce... sa... - ele disse, sem fôlego.
Ela o encarou, hesitante.
- Por favor... me ajude...
A vida se esvaía de seus olhos. Nic não tinha mais muito tempo. Mas ele era amigo próximo da princesa Cleo - uma garota que Lucia já tinha considerado uma amiga verdadeira, até ser traída por ela.
Mas o pai de Lucia tinha destruído a vida de Cleo, destruído todo o seu mundo.
Cleo tinha perdido tudo no último ano. Aquele amigo era o único resquício que a princesa auraniana tinha de sua antiga vida.
Se Nic morresse, Lucia não tinha dúvidas de que isso destruiria Cleo.
Lucia detestava quando sua consciência pesava, principalmente quando isso acontecia por causa de Cleiona Bellos.
Com cuidado, ela se agachou ao lado de Nic e afastou a mão que cobria o ferimento para, em seguida, levantar a túnica. Fez uma careta ao ver todo aquele sangue e as entranhas para fora.
- Diga a Cleo - Nic disse com esforço para respirar - que eu a amo... que ela é minha família... que eu... eu sinto muito.
- Poupe seu fôlego - Lucia disse. - E diga a ela você mesmo.
Lucia pressionou o ferimento cheio de sangue e canalizou toda a magia da terra que tinha dentro de si. Nic arqueou as costas e gritou de dor, e o grito estridente se espalhou pelo caos ao redor deles.
- Pare! Por favor! - Nic tentou impedi-la, afastá-la, mas estava fraco demais. Tinha perdido tanto sangue que Lucia não sabia se teria magia suficiente para curá-lo. Mas ainda assim, tentou. O capuz caiu
de sua cabeça, revelando o cabelo e o rosto, mas ela não se deu ao trabalho de puxá-lo de volta. Esgotou a energia e a força que tinha em uma tentativa de salvar aquele rapaz.
Pelo menos até alguém arrancá-la de perto dele. Ela virou, furiosa, e ficou frente a frente com um homem feio que escancarava um sorriso mostrando os dentes.
- Vejam o que encontrei! - ele anunciou, arrastando-a para longe de Nic até ela perdê-lo de vista. - A própria feiticeira atacando outro de nós! As mãos dela estão manchadas de sangue paelsiano!
Lucia tentou invocar magia do fogo ou do ar para afastá-lo, mas nada aconteceu. Ela fechou a mão, desesperada para fugir de quem a atacava.
- Olhe para mim, bruxa! - o homem disse.
Ela lançou um olhar para o homem, mas recebeu um tabefe no rosto tão forte a ponto de fazer seu ouvido zunir.
- Amarre-a! - alguém gritou. - Queime a bruxa como ela queimou nossos vilarejos!
Desorientada, ela foi arrastada pela terra seca, tropeçando nos próprios pés até seu agressor empurrá-la para longe. Ela caiu de joelhos com tudo no meio de uma roda de pessoas furiosas. Alguém jogou uma
pedra nela, acertando o lado direito de seu rosto com força, e Lucia gritou de dor. Levou a mão ao rosto e sentiu o sangue quente.
- Não sou quem você pensa que sou - ela conseguiu dizer. Levantou as mãos à frente do corpo. - Você precisa me soltar.
- Não, bruxa. Hoje você vai morrer por seus crimes cruéis. Estamos de acordo?
A multidão que a cercava expressou aprovação com gritos. Não havia misericórdia no olhar de ninguém. Alguém entregou uma corda grossa ao primeiro agressor.
- Deixe-a de pé - ele vociferou.
Alguém atrás de Lucia a levantou e amarrou seus punhos com força.
- Meus cumprimentos, princesa - uma voz estranhamente familiar soou em seu ouvido. - Pelo visto está causando mais problemas em Paelsia.
Jonas Agallon. Ela se esforçou para virar o suficiente e ver aquele olhar tomado de ódio.
- Jonas - ela disse -, por favor, precisa me ajudar!
- Ajudar? O quê? A grande e poderosa feiticeira não consegue se cuidar? - Ele estalou a língua. - Que tragédia. Parece que essas pessoas querem vê-la morta. Queimada viva, acho que foi o que ouvi, certo?
Parece um fim adequado para uma bruxa como você.
Sua mente estava a mil.
- Onde está meu pai? Meu irmão? Você sabe?
- É a última coisa com que você deveria se preocupar, princesa. Sinceramente. - Ele a virou e resvalou a mão na barriga dela.
Jonas franziu a testa.
- Isso mesmo - ela disse, agarrando todas as oportunidades que tinha de conseguir ajuda, ainda que fosse de alguém como ele. - Vocês vão tentar celebrar minha execução tão rápido agora que sabem que uma
criança inocente morrerá comigo?
- Inocente? - O olhar de Jonas não suavizou nem um pouco. - Nada que alguém como você poderia trazer a este mundo seria inocente.
- Eu não matei aquela moça. Foi Kyan. Ele... eu não consegui controlá-lo. Eu queria que ele parasse. Sinto muito por sua perda e me arrependo do que aconteceu naquele dia. Gostaria de poder mudar as coisas,
mas não posso.
- O nome daquela moça era Lysandra. - Jonas contraiu o maxilar, e ficou em silêncio por um momento enquanto os outros homens pediam para ir a um lugar mais adequado para queimar a bruxa. - Onde está Kyan?
- Eu... eu não sei - ela disse com sinceridade.
Jonas a encarou.
- Essa criança dentro de você drena sua magia, não é?
- Como sabe disso?
Ele franziu ainda mais a testa.
- Você já teria destruído tudo aqui se tivesse acesso a seus elementia, certo?
Ela apenas assentiu.
Jonas xingou em voz baixa.
- Eles precisam de você. Estão dependendo de você. E você está aqui, como uma idiota, prestes a morrer.
Se estivessem em outro lugar, em outro momento, ela teria ficado magoada ao ser chamada de idiota.
- Então faça alguma coisa em relação a isso. Por favor.
Depois de um momento de hesitação, Jonas empunhou a espada e a apontou para o homem que segurava a corda.
- Uma pequena mudança de planos. Vou levar a feiticeira comigo.
- Sem chance - o homem resmungou.
- Não há discussão. Estou vendo que nenhum de vocês está armado no momento. - Ele observou as pessoas do grupo. - Atitude estúpida, em uma multidão assim, não carregar uma arma, mas isso torna as coisas
mais fáceis para mim. Se nos seguirem, vão morrer. - Ele arregalou os olhos para Lucia. - Vamos, princesa.
Jonas pegou o braço dela e a puxou.
- Aonde vai me levar? - ela perguntou.
- Aos seus queridos pai e irmão. Que todos vocês apodreçam juntos na escuridão.
21
CLEO
PAELSIA
Quando percebeu que Nic, Jonas e Olivia tinham partido sem contar nada sobre seus planos, Cleo não ficou magoada. Ficou furiosa.
- Minha nossa, querida, você vai abrir um buraco no chão de tanto andar de um lado para o outro.
Cleo virou e viu Selia Damora olhando para ela. A mulher a deixava nervosa, mas felizmente as duas tinham se encontrado poucas vezes desde sua chegada. Era difícil acreditar que fazia só três dias que
estavam na hospedaria. Pareciam três anos.
- Meus amigos partiram sem se despedir - Cleo respondeu tensa, forçando-se a parar de roer a unha do polegar direito. - Considero esse comportamento imperdoavelmente grosseiro e desrespeitoso. Em especial
da parte de Nic.
- Sim, Nic. O rapaz de cabelo vermelho. - Selia sorriu. - Tenho certeza de que não fez por mal. Ele parece gostar de você.
- Ele é como um irmão para mim.
- Os irmãos costumam esconder segredos das irmãs.
- Mas não o Nic. - Cleo remexeu as mãos. - Contamos tudo um ao outro. Bom, quase tudo.
- Venha sentar comigo por um momento. - Selia sentou em uma espreguiçadeira e deu batidinhas no assento ao seu lado. - Quero saber mais sobre a esposa de meu neto.
Era a última coisa que Cleo queria, mas teve que fingir amabilidade. Seria inteligente de sua parte fazer amizade com uma mulher que logo teria acesso à magia, especialmente agora que a magia de Cleo tinha
sido roubada - ainda que Selia fosse uma Damora.
Só de pensar no que Ashur tinha feito, ela tremia de raiva. Como ele tinha conseguido roubar a esfera de obsidiana sem que ela notasse? Para Cleo, aquele cristal representava poder e um futuro repleto
de escolhas e oportunidades. Mas por ser preguiçosa e desatenta, a esfera tinha sido levada de baixo de seu nariz.
E não havia absolutamente nada que pudesse fazer.
Forçando um sorriso, Cleo sentou hesitante ao lado da senhora.
Selia não disse nada por um tempo, mas observou o rosto de Cleo com cuidado.
- O que foi? - Cleo perguntou finalmente, ainda mais desconfortável do que antes.
- Eu não tinha certeza antes... mas tenho agora. Vejo seu pai em você. Seus olhos são da mesma cor dos de Corvin.
A menção a seu querido pai a deixou tensa.
- Você tinha dúvidas a respeito de quem eram meus pais?
- No que diz respeito a meu filho e a... - ela hesitou - às dificuldades dele com sua mãe, sim, claro que tive muitas dúvidas ao longo dos anos. Achei que houvesse uma chance de Gaius ser seu pai.
O horror de pensar numa possibilidade daquelas a deixou enjoada de repente.
- Meu... meu pai? - Ela cobriu a boca com a mão. - Acho que vou vomitar.
- Ele não é seu pai. Tenho certeza disso agora que estou olhando para você.
Cleo tentou se manter calma, mas a insinuação inesperada da mulher a deixara atordoada.
- Minha... minha mãe não teria... de jeito nenhum...
- Sinto muito se a perturbei com isso. Mas não prefere ter certeza de que você e Magnus estão unidos apenas pelos votos e não pelo sangue? - Ela franziu a testa. - Minha nossa, você está muito pálida,
Cleiona.
- Nem sei por que sugere uma coisa dessas - ela disse.
- Não pensei que Gaius tivesse conseguido se encontrar com Elena depois da briga que tiveram, que sei que aconteceu bem antes de ela se casar com Corvin. Mas os filhos nem sempre contam tudo à mãe sobre
assuntos do coração, nem mesmo o filho mais atencioso e amoroso.
O modo como o rei expressara o que teriam sido suas últimas palavras, seu suspiro final, o nome da mãe dela... "Sinto muito, Elena".
- Só soube que eles se conheciam recentemente - Cleo disse, tensa.
- Eles se conheceram num verão vinte e cinco anos atrás na Ilha de Lukas, quando Gaius tinha dezessete anos, e Elena, quinze. Quando voltou para casa, Gaius já estava obcecado por ela, dizendo que iam
se casar com ou sem o consentimento do pai dele.
Cleo se esforçou para continuar respirando. Aquela história não parecia plausível. Soava como uma história de um livro cheio de fantasia e imaginação.
- Meu pai nunca disse nada a respeito... - Ela franziu a testa. - Ele sabia?
- Não faço ideia do que Elena pôde ter contado a Corvin sobre seus romances anteriores. Imagino que ele descobriu a verdade no fim das contas, ainda que apenas para se preparar melhor para proteger Elena.
- Protegê-la? Como assim?
A expressão de Selia ficou mais séria.
- Elena perdeu o interesse em Gaius quando voltou para casa. Não sei por quê. Imagino que fosse apenas uma novidade passageira para ela, uma maneira de passar o verão, conquistar o afeto de um garoto apaixonado.
Nada além disso. Quando descobriu essa mudança, Gaius... não aceitou muito bem. Confesso, amo meu filho profundamente, mas ele sempre teve um péssimo lado violento. Gaius foi atrás de Elena, exigindo que
seu amor fosse retribuído e, quando ela se recusou, ele a agrediu quase a ponto de matá-la.
Cleo sentiu mais uma onda de náusea. Sua pobre mãe, sujeita ao cruel Gaius Damora em sua pior versão.
Ela nunca detestara tanto o rei.
- Só espero que meu neto não seja exageradamente cruel com você a portas fechadas, minha cara - Selia disse delicadamente. - Homens poderosos, cheios de força e perigo... costumam ter acessos de violência.
As esposas e mães torcem para sobreviver a eles.
- Sobreviver? Não pode estar falando sério! Se Magnus um dia levantasse a mão para mim, eu...
- O quê? Você mal chega na altura do ombro dele, e Magnus deve ter o dobro do seu peso. A melhor coisa a se fazer nesse caso, Cleiona, é ser o mais agradável e compreensiva possível em todos os momentos.
Todas as mulheres devem fazer isso.
Cleo endireitou os ombros e levantou o queixo.
- Não tive o grande privilégio de conhecer minha mãe, mas se ela era um pouco parecida comigo ou um pouco parecida com minha irmã, então sei que ela não teria sido o mais agradável e compreensiva possível
diante de uma agressão, não importa de quem nem quando. Nem eu! Eu mataria quem tentasse me atacar!
Selia abriu um sorriso discreto.
- Meu neto escolheu uma garota com coragem e força para amar, assim como o pai dele. Eu estava testando você, é claro.
- Me testando?
- Olhe para mim, querida. Tenho cara de quem permitiria que um homem levantasse a mão para me bater?
- Não - Cleo respondeu com sinceridade.
- Exato. Fico feliz por termos conseguido conversar hoje, minha querida. Agora já sei tudo o que preciso saber.
Ela estendeu o braço, apertou a mão de Cleo e então saiu da sala.
Aquela tinha sido a conversa mais esquisita de toda a vida de Cleo.
- Talvez eu vá à taverna sozinha hoje - ela murmurou. - Por que Magnus é o único aqui que pode beber vinho em uma tentativa tola de fugir dos problemas?
Quando levantou, algo chamou sua atenção do lado de fora, nos fundos da hospedaria. Ela deu um passo para a frente. Olivia estava no quintal. Estranhamente, a moça não usava nada além de um lençol branco
enrolado no corpo, lençol que Cleo reconheceu das roupas de cama que a esposa do dono da hospedaria lavava todos os dias.
Independentemente da vestimenta, ver Olivia foi um grande alívio. Cleo levantou e saiu para se aproximar, observando ao redor com curiosidade.
- Olivia! Nic e Jonas estão com você? Aonde vocês foram?
A expressão de Olivia era de grande incerteza.
- Preciso sair de novo imediatamente, mas quis voltar antes para ver você.
- O quê? Aonde está indo?
- Está na hora de eu voltar para a minha casa. O caminho e o destino de Jonas se encontraram com sucesso, e meu tempo com ele está acabando.
- Desculpe. - Cleo balançou a cabeça, confusa. - O destino de Jonas? Do que você está falando, afinal?
- Não cabe a mim explicar essas coisas. Só sei que não posso mais cuidar dele, uma vez que talvez me sinta tentada a interferir. - Ela franziu a testa. - Isso deve soar ridículo para você. Sei que não
sabe quem sou de verdade.
- Você quer dizer que é uma Vigilante?
Olivia olhou para Cleo.
- Como sabe disso?
Cleo riu com hesitação ao ver a expressão de choque de Olivia.
- Jonas me contou. Ele confia em mim, você também deveria confiar. Prometo guardar seu segredo surpreendente, mas, por favor, me diga o que está acontecendo. Está chateada só por deixar Jonas?
- Não, não é o único motivo. Eu... eu fui ao complexo com Nic e Jonas, onde a imperatriz está no momento.
Cleo arregalou os olhos.
- Era onde você estava? Que plano imbecil foi esse?
- O príncipe Magnus ameaçou Nic - Olivia explicou. - Ele ameaçou você também, caso Nic não fosse atrás de Ashur para recuperar os cristais da Tétrade.
Cleo franziu a testa.
- Não pode ser. Magnus não faria isso.
- Garanto que fez. Caso contrário, Nic nunca teria se afastado de você. - Os olhos verde-esmeralda de Olivia brilharam de ódio. - É culpa do príncipe que isso tenha acontecido. Perdi Nic na multidão durante
a tentativa de assassinato de Amara. Eu o vi por apenas um momento quando ele foi atingido por uma lâmina. Eu... eu acredito que tudo terminou depressa.
Cleo balançou a cabeça quando a palma de suas mãos começou a arder e a suar.
- O quê? Não entendo. Ele foi atingido por uma lâmina? Que lâmina? Do que está falando?
A expressão de Olivia era só pesar.
- Nic está morto. Ele é um dos muitos mortos depois que os rebeldes fizeram uma tentativa de assassinato a Amara. Preciso sair de Mítica agora e peço a você que faça o mesmo. Você não está em segurança
aqui com alguém como Magnus, que mataria um rapaz como Nic. Não está certo, princesa, nada disso está certo. O mundo está fora de controle, e eu temo que seja tarde demais para salvá-lo. Sinto muito por
dizer isso, mas achei que você merecia saber.
Olivia soltou a mão de Cleo e deu alguns passos para trás, com uma expressão atormentada.
- Fique bem, princesa - ela disse. Depois disso, a pele escura e impecável se transformou em penas douradas, e seu corpo se transformou no de um falcão, e ela alçou voo.
Cleo a observou, surpresa demais com o que tinha ouvido para apreciar a magia verdadeira e inegável revelando-se diante de seus olhos.
Ela não sabia ao certo quanto tempo ficou em silêncio no pátio, olhando para o céu claro, até voltar para a hospedaria com dificuldade. Seus joelhos fraquejaram antes que ela alcançasse uma cadeira.
Seu corpo inteiro tremia, mas ela não chorou. Eram informações demais para processar. Inacreditável demais. Não podia ser verdade. Se fosse, se Nic estivesse morto, então ela também queria morrer.
- Você está bem? O que aconteceu?
Quando se deu conta do que estava acontecendo, Cleo percebeu que tinha sido levantada do chão por dois braços fortes.
- Está ferida? - Magnus afastou o cabelo dela da testa, envolvendo seu rosto com as mãos. - Que droga, Cleo, responda!
Confusa, ela percebeu a preocupação nos olhos castanhos profundos dele.
- Magnus... - ela começou, a respiração profunda e trêmula.
- Sim, meu amor. Fale comigo. Por favor.
- Diga a verdade.
- Claro. O quê? O que você precisa saber?
- Você ameaçou me matar se Nic não fosse atrás de Ashur?
A expressão sofrida dele, totalmente concentrada nela, aos poucos deu lugar à frieza da máscara que ele usava para encobrir suas emoções.
- Ele disse isso? Ele voltou?
- Responda. Você me ameaçou ou não?
Magnus encarou os olhos furiosos dela.
- Cassian precisava da motivação certa.
- Isso é um sim.
- Eu disse o que ele precisava ouvir para resolver a questão. Para...
Cleo deu um tapa tão forte no rosto dele que sua mão ardeu. Magnus levou a mão ao rosto e olhou para ela, atônito.
Ele franziu o cenho.
- Você ousa...
- Ele está morto! - Cleo gritou antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa. - Por causa do que você disse! Meu último amigo no mundo inteiro está morto por sua causa!
Ele parecia confuso.
- Não pode ser.
- Não pode? As pessoas não morrem quando se aproximam de você e de sua família monstruosa? - Ela passou os dedos pelo cabelo, desejando arrancá-lo pela raiz, desejando sentir dor física para poder se concentrar
em algo que não fosse seu coração despedaçado.
- Quem contou isso a você? - Magnus perguntou.
- Olivia voltou. Ela foi embora, então não pode forçá-la a fazer o que você quer.
- Olivia. Sim, bom, não sei quem Olivia é. Nem você. Só sabemos que ela é aliada de Jonas, um garoto que me odiava a ponto de me querer morto até pouco tempo atrás. Até onde sei, esse objetivo não mudou.
- Por que ela mentiria sobre algo assim? - A voz da princesa falhou.
- Porque as pessoas mentem para conseguir o que querem.
- Imagino que você saiba bem disso.
- Sim, e penso o mesmo sobre você, princesa - ele disse. - Entre nós dois, acho que você mentiu muito mais do que eu. Além disso, devo dizer que você viu Ashur morrer com seus próprios olhos, mas ele ainda
está vivo. Não existem provas de que Nic está morto. Só tem as palavras de alguém. Não se pode confiar em palavras, não nas palavras de qualquer um.
- Essa é a sua resposta? - Cleo olhou para ele, percebendo que mal conhecia a pessoa à sua frente. - Digo que um garoto que era como um irmão para mim foi morto por sua causa e você diz simplesmente que
mentiram para mim?
- É o que parece, não é?
- Você não assume responsabilidade por todo o mal que causou. Nunca! - Ela se esforçou ao máximo para se manter firme, para não se perder na dor e na raiva que entravam em conflito dentro dela. - Tentei
ver seu lado bom, mas você fez algo imperdoável. Vá em frente! - ela vociferou. - Tente se defender! Diga que Nic odiava você, então por que não desejaria que ele morresse? Vamos lá, faça isso!
- Não vou negar. A vida seria muito mais simples para mim se aquela pedra no meu sapato fosse retirada de uma vez por todas. Mas eu nunca desejaria a morte dele, porque sei como gosta dele.
- Gosto dele? Eu amo! - ela gritou. - E se ele realmente estiver morto, eu...
- O quê? Vai perder o resto de esperança que ainda tem? Vai se encolher e morrer? Por favor, você tem muito a ganhar ficando viva, lutando, mentindo e continuando a me usar sem pudor para conseguir o que
posso lhe dar.
Cleo olhou para ele, abismada.
- Usar você?
Magnus ficou sério.
- Você quer poder, magia. Ao ficar aqui comigo e tolerar a existência de meu pai, sabia que isso a levaria ao que deseja. Quando os cristais da Tétrade foram roubados, principalmente por sabermos o que
sabemos sobre eles, o que eu deveria pensar? Que você continuaria aqui para sempre? Fiz o que fiz por você, para ajudá-la a reaver sua chance de ter poder. Ashur parece valorizar Nic por motivos que não
compreendo. Se tem alguém que consegue entender aquele kraeshiano doido, eu sabia que era seu amigo querido. O mesmo amigo que mandou Taran cortar meu pescoço, devo relembrar.
Ele falava com Cleo como um desconhecido furioso, não como alguém que ela tinha passado a valorizar.
- E agora está me culpando por isso. Como ousa?
Magnus bufou.
- É impossível discutir com você.
- Então nem tente. Você não pode consertar isso, Magnus. Não pode nem começar.
- Se Nic ainda estiver vivo...
- Não importa. - Lágrimas correram por seu rosto. - Isso provou como somos diferentes. Você é incansavelmente cruel e manipulador, e agora vejo que isso nunca vai mudar.
- Posso ser sincero, princesa? Eu poderia dizer exatamente a mesma coisa sobre você. Talvez você preferisse que eu lidasse com o conflito colhendo flores e cantando, mas não sou assim. E você tem razão:
nunca vou mudar. Nem você. Uma hora você diz que me ama, mas prefere que cortem sua língua a contar esse segredo, até mesmo a seu amigo mais íntimo. Pelo amor da deusa! Que Nic não descubra que você se
mistura com pessoas como eu! Ele detestaria você por isso?
Cleo secou as lágrimas, irritada consigo mesma por demonstrar tamanha fraqueza.
- É muito provável que sim.
- Então isso prova que, entre ele e eu, você o escolheria.
- Num piscar de olhos - ela disse imediatamente. - Mas ele está morto.
Um músculo no rosto dele se contraiu.
- Talvez. E Jonas? Não pude deixar de notar que você estava praticamente sentada no colo dele ontem, sussurrando palavras de amor e incentivo.
- É o que você...? - Ela corou. - Jonas é muito mais homem do que você! Eu preferiria dormir com ele a dormir com você. Em qualquer dia, em qualquer momento. E nenhuma maldição me impediria.
- Vá para o inferno, Cleo. - O ódio tomou conta do olhar dele, que já estava frio. Magnus levantou o punho, os dentes travados em uma expressão feroz.
- Vamos - ela vociferou. - Bata em mim como seu pai batia na sua mãe. Você sabe que é o que quer.
- Como é? - Ele franziu a testa, olhou para o próprio punho com surpresa e o abaixou em seguida. - Eu... eu nunca agrediria você.
- Chega - ela disse, num sussurro. - Estou cansada daqui. Preciso pensar. - Ela se virou em direção à escadaria que levava aos quartos.
- Cleo... - Magnus chamou. - Vamos descobrir a verdade sobre Nic. Prometo.
- Eu já sei a verdade.
- Eu sei que posso ser horroroso às vezes. Eu sei. Mas... eu amo você. Isso não mudou.
Os ombros dela ficaram tensos.
- O amor não basta para consertar isso.
Sem olhar para trás, Cleo caminhou com o máximo de calma e lentidão até seu quarto e trancou a porta quando entrou.
22
JONAS
PAELSIA
Jonas teve que sair do complexo antes de encontrar Nic. Eles tinham sido separados depois da revolta rebelde. A multidão à espera da imperatriz tinha entrado em pânico, e as pessoas começaram a lutar umas
contra as outras e contra os guardas kraeshianos.
Sua visão do palco estava bloqueada, e ele se viu frente a frente com paelsianos irados e com a feiticeira que queriam matar.
- Pode olhar para mim com ódio - Lucia disse a ele enquanto se afastavam da confusão.
- Que bom que permite.
- Você me odeia. E, ainda assim, você salvou minha vida.
- É provável que eu tenha salvado a vida de uma dúzia de paelsianos que subestimaram sua capacidade de matar cada um deles.
- E você não me subestima?
- Não.
- Então sugiro que você me diga onde meu pai e meu irmão estão para que não tenha que colocar sua vida em risco por nenhum segundo a mais em minha companhia.
Jonas sabia que ela poderia cumprir uma ameaça, se quisesse. Ele temia quando pensava no poder daquela garota e no prejuízo e na destruição pela qual a responsabilizavam.
- Onde está o deus do fogo? - ele sussurrou.
Lucia arqueou as sobrancelhas. Jonas percebeu que ela estava chocada por ele saber quem - ou melhor, o que - Kyan era de fato.
- Já disse que não sei.
- Ele é o pai de seu filho?
Lucia deu uma risada alta e nervosa.
- Com certeza não.
- Não vejo graça nenhuma nisso.
- Não se engane, rebelde, nem eu.
- Continue andando - ele disse quando Lucia diminuiu o ritmo. - Pelo jeito você está pesada demais para ser carregada.
A resposta de Lucia ao insulto foi parar totalmente. Os dois tinham adentrado uma parte densa da floresta a caminho da cidade mais próxima, onde Jonas pretendia conseguir transporte para o oeste.
- Responda à minha pergunta: onde estão meu pai e meu irmão? Sei que ainda estão vivos. Só podem estar.
- Se eu responder à sua pergunta, que certeza posso ter de que você não vai acabar com a minha vida? - ele perguntou.
- Nenhuma.
- Exatamente. Por isso mesmo vou levá-la até eles.
Lucia se surpreendeu.
- Então eles estão vivos!
- Talvez - ele disse.
- E como posso acreditar que você quer me ajudar?
Jonas virou e levantou o dedo indicador para ela.
- Não se engane, princesa Lucia, não estou fazendo isso para ajudá-la. Estou fazendo isso para ajudar Mítica.
Ela revirou os olhos.
- Que nobre.
- Pense o que quiser. Não me importa. Você se recusa a responder às minhas perguntas, então me recuso a responder às suas. Nosso destino final não está muito longe, mas você precisa encontrar uma maneira
de lidar com minha presença e com meu ódio durante o trajeto que vamos percorrer juntos.
- Acho que não. Vou contar um segredinho para você, rebelde, a respeito de uma habilidade especial que descobri recentemente. Posso forçar você a dizer a verdade... e quanto mais resistir, mais vai doer.
Jonas virou para encará-la de novo, mais irritado do que intimidado.
- Você sempre foi má assim ou só começou quando descobriu que era uma feiticeira?
- Sinceramente? - Ela abriu um sorriso frio. - Só depois.
- Acho difícil acreditar nisso. Você e sua família... são maldade pura, todos vocês.
- E ainda assim você está nos ajudando. - Lucia franziu a testa discretamente. - Pelo menos, diga que estão bem, que saíram ilesos depois de tudo o que aconteceu.
- Ilesos? - Ele sorriu com ironia. - Não sei de nada. Finalmente tive a chance de enfiar uma adaga no coração do rei. Por azar, isso só o atrapalhou um pouco.
Os olhos dela brilharam, furiosos.
- Mentira.
- Bem aqui. - Ele indicou o peito. - Certeiro e profundo. Até girei. Foi tão bom que não consigo nem explicar.
Um instante depois, ele se viu no ar, voando até bater as costas no tronco de uma árvore com força suficiente para tirar seu fôlego.
Lucia se ajoelhou ao lado dele, apertando sua garganta.
- Olhe para mim.
Desorientado, Jonas encarou os olhos azul-claros dela.
- Diga a verdade - ela rosnou. - Meu pai está morto?
- Não. - A palavra foi dita com dificuldade.
- Você o apunhalou no coração mas ele não morreu?
- Exatamente.
- Como isso é possível? Responda!
Jonas não conseguia desviar daqueles olhos lindos e assustadores. A magia que ela tinha perdido - se é que isso de fato havia acontecido - estava de volta. E Lucia estava bem mais forte do que ele esperava.
- Algum tipo de magia... Não sei. Isso prolongou a vida dele.
- Magia de quem?
- Da mãe.... dele. - Jonas tinha certeza de que estava sentindo gosto de sangue, forte e metálico. Ele engasgou enquanto tentava resistir à magia.
Ela franziu ainda mais a testa.
- Minha avó morreu.
- Ela está viva. Não sei muito mais do que isso. - Ele fez uma careta pela dor de estar contando todas aquelas verdades. - Agora, me faça um favor, princesa.
Ela inclinou a cabeça, mas não cedeu nem um pouco.
- Dificilmente.
Jonas semicerrou os olhos e tentou, com toda a força, canalizar a própria magia como tinha feito sem querer no navio com Felix.
- Me solte.
Lucia soltou Jonas e caiu para trás como se tivesse sido empurrada pelo rebelde.
Tossindo e com a mão no pescoço, Jonas levantou e olhou para ela.
Percebeu que esboçava um sorriso. Olivia deveria estar enganada sobre o poder de sua magia. Jonas se permitiu um breve momento de vitória.
Lucia o encarou, com os olhos arregalados.
- Você pode canalizar a magia do ar? Um bruxo? Nunca soube sobre algo assim... Ou você é um Vigilante exilado?
- Prefiro evitar títulos, princesa - ele disse. - E, francamente, não sei o que sou, só que tenho que lidar com isso agora. - Ele levantou a camisa o suficiente para revelar a marca em espiral em seu peito,
que tinha ficado mais brilhante desde a última vez em que ele olhara, e agora cintilava num tom dourado que o fazia lembrar cada vez mais da marca de um Vigilante.
- O quê? - Lucia balançou a cabeça com os olhos arregalados. - Não compreendo.
- Nem eu. E juro, se essa é minha profecia, cuidar para que alguém como você volte para sua odiosa família sã e salva, vou ficar furioso. - Ele olhou para cima, para as árvores. - Olivia, está me ouvindo
onde quer que esteja? É a pior profecia do mundo!
- Quem é Olivia?
- Deixa para lá. - Ele olhou para Lucia, ainda deitada no chão. - Levante.
Ela tentou ficar de pé.
- Hum...
- Não consegue levantar, não é?
- Me dê um minuto. Minha barriga está um pouco esquisita no momento. - Lucia olhou feio para ele. - E, por favor, nem pense em me ajudar.
- Não pensei. - Jonas ficou observando enquanto ela rolava devagar e com dificuldade para o lado, e então levantava, batendo no manto para tirar as agulhas de pinheiro e a terra. - Você ainda não está
acostumada com sua situação? Já vi paelsianas grávidas, a poucos dias de dar à luz, cortando madeira de uma árvore inteira e carregando para casa.
- Não sou uma paelsiana - ela disse e hesitou. - Bem, não exatamente. E não tive tempo de me acostumar com minha "situação", como você diz.
Que moça esquisita.
- Você está grávida de quantos meses?
- Não que seja da sua conta, mas... cerca de um mês.
Jonas olhou para o corpo dela sem acreditar.
- É assim que funciona com as feiticeiras cruéis? Os bebês delas se desenvolvem muito mais depressa do que os bebês normais?
- Não tenho como saber. - Lucia cruzou os braços como se tentasse proteger a barriga. - Compreendo seu ódio por mim. Compreendo o ódio de todos por mim. O que fiz desde... desde que o pai desta criança
morreu é imperdoável. Sei disso. Mas essa criança é inocente e merece uma chance de viver. O fato de você, logo você, ter vindo ajudar alguém como eu... Você está marcado como imortal, mas afirma não ser
bruxo nem exilado. Isso deve significar alguma coisa. Você fala sobre profecias. Sei bem que sou o alvo de profecias. Para mim, isso quer dizer que essa criança é importante para o mundo.
- Quem é o pai? - Jonas perguntou. Ele não queria sentir pena pelo que Lucia estava passando nem deixar que a voz dela o emocionasse.
- Um imortal exilado.
- E você disse que ele está morto.
Ela assentiu uma única vez.
- Como? - Jonas perguntou. - Você o matou?
Lucia ficou em silêncio por tanto tempo que ele achou que ela não responderia.
- Não. Ele tirou a própria vida.
- Interessante. É essa a única maneira de escapar de suas garras sombrias?
O olhar de ódio de Lucia o fez recuar. Mas era mais do que isso. Os olhos dela estavam vermelhos, numa mistura de cansaço e tristeza.
- Desculpa - Jonas disse antes de pensar em outra resposta. - Acho que fui desnecessariamente grosseiro.
- Foi. Mas eu não esperaria nada menos de alguém que pensa que sou cruel. O que Kyan fez com sua amiga...
- Lysandra - ele disse com a voz embargada. - Ela era incrível... A garota mais forte e corajosa que já conheci. Ela merecia a vida que Kyan lhe roubou sem um segundo de hesitação. Ele estava mirando em
mim, eu deveria ter morrido naquele dia, não ela.
Lucia assentiu com tristeza.
- Sinto muito. Percebo que Kyan não é uma pessoa, não é alguém com sentimentos e necessidades como as dos mortais, e não é possível discutir com ele. Kyan vê todas as falhas e imperfeições deste mundo.
Ele deseja reduzir tudo a cinzas para poder recomeçar. Diria que ele é maluco, mas é fogo. Fogo arde. Destrói. Essa é a razão de sua existência.
- Kyan quer destruir o mundo - Jonas repetiu.
Ela confirmou.
- Por isso eu o deixei. Por isso ele quase me matou quando eu disse que não o ajudaria mais.
Jonas demorou um momento para absorver a informação.
- Você diz que o fogo destrói. Mas o fogo também cozinha comida e nos aquece em noites frias. Esse tipo de fogo não é cruel, é um elemento que usamos para viver.
- A única certeza que tenho é de que ele precisa parar. - Ela levou a mão ao bolso do manto e tirou uma pequena esfera de âmbar. - Esta era a prisão de Kyan.
Jonas ficou sem palavras por um momento.
- E você acha que pode prendê-lo de novo aí dentro e salvar o mundo?
- Pretendo tentar - ela disse apenas.
Ele observou o rosto de Lucia, determinado e sério olhando para a esfera de cristal. Ela parecia muito sincera. Podia acreditar nela?
- Pelo que sei a respeito do deus do fogo, a imperatriz não parece ser grande ameaça, certo?
Lucia guardou a esfera no bolso de novo.
- Ah, Amara provou que é uma ameaça. Mas Kyan é bem pior. Por isso, pode me considerar cruel, rebelde. Pode me considerar alguém que precisa morrer pelos crimes que cometi. Tudo bem. Mas saiba também que
quero tentar consertar parte do que fiz agora que consigo pensar com clareza de novo. Primeiro, preciso ver minha família. Preciso... - As palavras de Lucia foram interrompidas quando ela se inclinou para
a frente e chorou.
Jonas correu para o lado dela.
- O que foi?
- Dói! - ela disse. - Está acontecendo com muita frequência desde que saí. Ah... ah, minha nossa! Não consigo...
Lucia caiu de joelhos com as mãos na barriga.
Jonas olhou para ela, sentindo-se totalmente impotente.
- Droga. O que posso fazer? O bebê já está nascendo? Por favor, não me diga que o bebê já está nascendo.
- Não, não está... Acho que ainda não está na hora. Mas isso... - Quando ela gritou, o som atingiu Jonas como uma lâmina fria. - Me leve para minha família! Por favor!
O rosto da princesa estava pálido como papel em contraste com seu cabelo escuro. Ela revirou os olhos e caiu, inconsciente.
- Princesa - ele disse, tentando acordá-la. - Vamos, não temos tempo para isso.
Lucia não acordou.
Jonas virou e olhou para o conflito. Não demoraria muito para a multidão paelsiana encontrar armas e sair em busca dele e da feiticeira.
Finalmente, xingando em voz baixa, ele se abaixou e pegou a princesa nos braços, percebendo que ela era muito mais leve do que imaginava, mesmo com o bebê que esperava.
- Não temos tempo para ir até sua família - ele disse. - Por isso vou levá-la à minha. Estão muito mais perto.
A irmã de Jonas, Felicia, abriu a porta de casa e observou Jonas por um momento, em silêncio total.
Em seguida, olhou para a garota grávida e inconsciente que ele carregava nos braços.
- Posso explicar - ele se apressou em dizer.
- Espero muito que possa. Entre. - Ela abriu mais a porta para Jonas entrar, tomando o cuidado de não bater as pernas de Lucia no batente.
- Deixe-a na minha cama - Felicia disse a Jonas. Ele fez o que sua irmã disse e voltou até ela, mas a irmã não o recebeu com um abraço. Simplesmente ficou ali, a expressão séria e furiosa, os braços cruzados.
Jonas não esperava que ela ficasse feliz ao vê-lo.
- Sinto muito por não ter vindo visitá-la - ele começou.
- Não tenho notícias suas há quase um ano e você aparece hoje de repente.
- Precisava de sua ajuda. Com... a garota.
Ela riu.
- Sim, com certeza precisa. O filho é seu?
- Não.
Ela não pareceu convencida.
- E o que você espera que eu faça por ela?
- Não sei. - Ele coçou a testa e começou a andar de um lado para o outro na casa pequena. - Ela não está bem. Sentiu dor na barriga e desmaiou. Eu não sabia o que fazer.
- Por isso a trouxe para cá.
- Eu sabia que você me ajudaria. - Ele suspirou nervoso. - Sei que você está brava comigo por eu ter passado muito tempo longe, mas era perigoso demais voltar.
- Sim, eu vi seus cartazes de procurado. O que era aquilo? Dez mil cêntimos para quem capturasse você, morto ou vivo?
- Mais ou menos isso.
- Você matou a rainha Althea.
- Não matei. É uma longa história.
- Imagino.
Ele observou ao redor, à procura de algum sinal do marido da irmã.
- Onde está Paolo?
- Morto.
Jonas a encarou.
- O quê?
- Foi tirado de mim, forçado a trabalhar para a Estrada Imperial. Eles queriam o nosso pai também, mas decidiram que, devido à idade e ao fato de mancar, ele era inútil. Paolo não voltou quando os operários
finalmente foram liberados de suas tarefas. O que devo pensar além de que foi morto com os outros paelsianos que eram tratados como escravos?
Jonas olhou para ela em choque. Paolo foi um bom amigo quando a vida era difícil, mas simples.
- Felicia, sinto muito. Eu não imaginava...
- Não, tenho certeza de que não imaginava. Assim como tenho certeza de que não pensou que manter aquela princesa dourada presa em nosso abrigo quase causaria a morte dele também.
- Claro que eu não sabia disso. - Ele olhou para o chão de terra. - Você... você disse que nosso pai não foi levado?
- Não foi, mas assim que soube da morte do chefe, ficou muito doente... doente de pesar, diferente de qualquer coisa que tenha sentido quando a mamãe e o Tomas morreram. É como se a vontade que ele tinha
de viver tivesse desaparecido. Eu o perdi faz dois meses. Agora cuido do vinhedo. São dias sobrecarregados, Jonas, com pouca ajuda.
Seu pai tinha morrido e Jonas não ficara sabendo. Ele sentou numa cadeira deixando o peso do corpo desabar.
- Sinto muito por não ter estado ao seu lado. Não sei o que dizer.
- Não há nada a dizer.
- Quando isso acabar, quando este reino voltar a ser como deveria, vou voltar. Vou ajudar você a cuidar da vinícola.
- Não quero sua ajuda - ela respondeu, e a raiva que Felicia estava controlando até aquele momento transbordou. - Consigo me virar sozinha. Bom, acho que já conversamos mais do que o suficiente. Vamos
cuidar de seu problema para você poder ir embora o mais rápido possível. Não sou curandeira, mas já ajudei muitas mulheres grávidas.
- O que você puder fazer para ajudar será muito bem-vindo. Eu só esperava que você soubesse acabar com a dor.
- Algumas gestações são mais difíceis do que outras. Quem é ela? - Ela lançou um olhar incisivo para ele quando não obteve resposta. - Diga, Jonas, ou mando você embora.
Felicia estava diferente, mais dura, mais zangada. Cada palavra dita por ela fazia Jonas se encolher.
Ele se sentia um idiota por pensar que quando voltasse nada teria mudado, mesmo depois de tanto tempo. Pensou em enviar uma mensagem, perguntar como as coisas estavam, mas não o fez. E o tempo tinha passado.
- Ela é Lucia Damora - ele respondeu com sinceridade, já que devia isso a Felicia.
Ela arregalou os olhos, chocada.
- O que você estava pensando ao trazer essa bruxa má aqui para dentro? Ela não é bem-vinda em minha casa. Tem noção do que ela fez? Um vilarejo que fica a menos de vinte quilômetros daqui foi incendiado.
Todos os moradores foram mortos por causa dela. Ela merece morrer pelo que fez.
Cada palavra parecia um golpe, e Jonas não tinha o que argumentar.
- Talvez sim, mas no momento a magia dela é necessária para salvar Mítica. Para salvar o mundo. Você não deixaria uma criança inocente sofrer por causa das escolhas da mãe, deixaria?
Ela deu uma risada seca.
- Ouça só você, defendendo uma princesa real... De Limeros, ainda por cima! Quem é você, Jonas? No que meu irmão se transformou?
- Amara não pode controlar Mítica - ele disse. - Estou disposto a fazer o que for preciso para impedi-la.
- Você está cego como uma toupeira, irmão. A imperatriz é a única que pode salvar a todos nós. Ou será que você esqueceu o passado com tanta facilidade agora que sua cabeça está tomada por aquela droga
cruel que está dormindo na minha cama?
- Minha cabeça não está tomada por ninguém - ele resmungou. - Mas sei o que é certo.
- Então precisa acordar. A imperatriz é o melhor que já aconteceu em Paelsia há gerações.
- Você está errada.
- Não estou errada - ela disse, e a raiva em sua voz finalmente deu lugar ao cansaço. - Mas não vou me dar ao trabalho de convencê-lo de algo que sei que é certo. Você se perdeu de nós, Jonas. Consigo
ver em seus olhos. Você não é o mesmo garoto que cresceu desejando ser como Tomas, que ia caçar com ele na fronteira de Auranos, que ia atrás de todas as garotas do vilarejo. Não sei mais quem você é.
Ele sentiu uma pontada no peito ao pensar que a tinha decepcionado tanto.
- Não diga isso, Felicia.
Ela deu as costas para ele.
- Vou deixar você e aquela criatura passarem a noite aqui. E só. Se ela morrer por causa da dor que está sentindo, então deixe-a morrer. O mundo vai ficar melhor sem ela.
Jonas deitou no chão de terra, ao lado do fogo, a mente em disparada.
Quando chegou ali, pelo menos tinha um senso de direção, de propósito. Precisava levar Lucia até a família dela.
Os Damora. O Rei Sanguinário que tinha oprimido seu povo. Que tinha assassinado o chefe Basilius. Que tinha mentido para dois exércitos sobre os motivos que deram início a uma guerra com os auranianos.
Felicia tinha razão. Amara Cortas tinha acabado com tudo aquilo ao ocupar Paelsia.
Como foi que ele pegou aquele caminho? Era um rebelde, não o criado tímido de um rei sádico.
Jonas demorou muito para conseguir dormir. Em um sonho, ele se viu em um campo verdejante sob o céu azul e límpido. Ao longe, uma cidade que parecia feita de cristal brilhava sob o sol.
- Jonas Agallon, finalmente nos conhecemos. Olivia me contou muito sobre você. Sou Timotheus.
Jonas virou e viu um homem que parecia só alguns anos mais velho do que ele. Seu cabelo tinha um tom bronze escuro, os olhos, acobreados. Usava vestes que desciam até a grama cor de esmeralda.
- Você está em meu sonho - Jonas disse devagar.
Timotheus arqueou uma sobrancelha.
- Que dedução brilhante. Sim, estou.
- Por quê?
- Imaginei que teria muitas perguntas para me fazer.
Apesar de tudo o que sentia por estar frente a frente com o imortal sobre o qual Olivia havia contado pouco, não sentiu surpresa nem cansaço.
- Perguntas que você vai responder?
- Algumas, talvez. Outras, provavelmente não.
- Não, tudo bem. Só me deixe dormir. Estou cansado e não quero ter que desvendar enigmas.
- O tempo está passando. A tempestade está quase aqui.
- Você fala assim, tão vago e irritante, com todo mundo?
Timotheus inclinou a cabeça.
- Na verdade, sim. Falo, sim.
- Não gosto. E não gosto de você. O que quer que isso seja - Jonas indicou a marca em seu peito -, quero que desapareça. Não quero nenhuma ligação com sua gente. Sou paelsiano. Não sou um Vigilante, nem
bruxo, nem o que você acha que sou.
- Essa marca torna você muito especial.
- Não quero ser especial.
- Você não tem escolha.
- Sempre tenho escolha.
- Seu destino está escrito.
- Vá se ferrar.
Timotheus hesitou.
- Olivia disse que você é irredutível em suas observações. No entanto, tenho certeza de que percebeu que agora tem um pouco de magia. A magia de Phaedra. A magia de Olivia. Você as absorveu como uma esponja.
Sua condição é rara e, repito, especial. As visões que tive de você são importantes.
- Certo. As visões. A profecia na qual levo Lucia Damora para a família dela.
- É o que você acha?
- Parece que é aonde meu destino está me levando.
- Não, não exatamente. Você vai saber quando acontecer. Vai sentir...
- O que sinto no momento é a necessidade de enfiar uma faca na sua barriga. - Jonas olhou para o imortal. - Ousa entrar no meu sonho agora, depois de todo esse tempo? Olivia me ajudou a ficar vivo, seguindo
o que você mandou. Acho que ela não precisa mais de mim. Ou talvez esteja me espionando lá de cima como um falcão, como todos vocês fazem. A única coisa da qual tenho certeza é que estou cansado disso.
Não importa o que você tem a dizer. Você espalha meias verdades como se a vida dos imortais fosse uma brincadeira.
Timotheus falou mais baixo.
- Não é uma brincadeira, meu jovem.
- Ah, não? Prove! Diga qual é meu destino, se acha que não posso evitá-lo.
Timotheus o observou.
- Não previ a gravidez de Lucia - ele admitiu. - Foi uma surpresa para mim, assim como tenho certeza de que foi para ela. Foi mantida em segredo de todos nós pelos Criadores, e deve haver um motivo para
isso... um motivo importante. Eu via você como alguém que ajudaria Lucia durante a tempestade...
- De que tempestade está falando?
Timotheus levantou a mão.
- Não me interrompa. Estou sendo sincero com você como nunca fui com ninguém, porque agora vejo que não há tempo para mais nada.
- Então, desembucha - Jonas disse. Ele estava frustrado com tudo na vida, e ele queria descontar naquele imortal pomposo.
- O filho de Lucia terá muita importância. Muitos desejarão sequestrar a criança ou matá-la. Você vai proteger essa criança do perigo e vai criá-la como se fosse seu filho.
- É sério? E Lucia e eu seremos o quê? Vamos nos casar e viver felizes para sempre? Duvido.
- Não. Lucia vai morrer no parto na próxima tempestade. - Ele afirmou com firmeza, franzindo a testa. - Estou vendo agora, claramente. Antes eu achava que a magia dela pudesse ser transferida a você no
momento da morte, transformando você em um feiticeiro que pudesse caminhar entre os mundos, cujo destino fosse aprisionar os deuses da Tétrade depois de serem libertados. Mas a magia de Lucia vai perdurar
no filho dela.
Jonas o encarou boquiaberto, surpreso com a revelação.
- Ela vai morrer?
- Sim. - Timotheus deu as costas para ele. - É só o que posso contar. Boa sorte, Jonas Agallon. O destino de todos os mundos está nas suas mãos agora.
- Não, espere! Tenho perguntas! Você precisa me contar o que tenho que fazer...
Mas Timotheus desapareceu naquele instante, assim como o campo e a cidade à distância.
Jonas acordou e viu a irmã o chacoalhando.
- Amanheceu - ela disse. - Sua amiga está acordada. Está na hora de vocês saírem da minha casa.
C O N T I N U A
11
JONAS
MAR PRATEADO
Devagar, a luz voltou a seu mundo, e Jonas abriu os olhos. Olivia o encarava com ternura e alívio.
- Fico feliz de ver que finalmente voltou para nós - ela disse.
Ele resmungou e estendeu os braços.
- Fiquei inconsciente por quanto tempo?
- Quatro dias.
Ele arregalou os olhos e sentou com um pulo.
- Quatro dias?
Ela fez uma careta.
- Você não ficou inconsciente o tempo todo, se isso melhora a situação. Acordou algumas vezes, delirante e agitado.
- Não, isso não melhora em nada, na verdade. - Jonas levantou do catre e cambaleou até o espelho. A estranha espiral ainda estava em seu corpo, agora muito mais intricada e com um desenho muito mais detalhado
do que o símbolo simples da magia do ar. Ele tinha esperanças de que não tivesse passado de um pesadelo.
- Eu tenho a marca de um Vigilante - ele disse.
- Então você sabe o que é.
- Phaedra tinha uma. - A Vigilante que tinha sacrificado a vida imortal para salvar a dele tinha provado quem (e o que) era ao mostrar sua marca a Jonas. Mas a dela era diferente. Tinha a mesma forma,
mas era uma marca dourada que se movimentava em círculos sobre a pele, como se quisesse provar suas origens mágicas. - E sei que você tem uma também.
- Tenho. - Olivia abriu um pouco o manto e mostrou um pequeno pedaço de uma marca dourada sobre a pele escura. Ele havia tido apenas alguns vislumbres da espiral, quando Olivia se transformava em falcão.
Jonas deu as costas para o espelho para encarar os olhos cor de esmeralda da Vigilante.
- Não vou implorar, Olivia. Vou simplesmente pedir para você, por favor, falar mais sobre isso, sobre a profecia que existe sobre mim. Tentei negar que fosse real, mas agora preciso saber. O que está acontecendo
comigo? Eu estou... - Ele se esforçou para verbalizar os pensamentos. - Estou me transformando em um de vocês?
A ideia soava tão absurda que Jonas se arrependeu de suas palavras assim que as proferiu. Mas o que mais poderia pensar?
Ela torceu as mãos e, por um instante, Jonas achou que Olivia pudesse tentar escapar, assumir a forma de falcão e sair voando para evitar suas perguntas. Mas, em vez disso, ela suspirou e sentou na beirada
do catre enquanto ele esperava em pé, tenso, perto da escotilha.
- Não exatamente - ela respondeu. - Mas você é, de fato, um mortal raro, Jonas Agallon. Tocado por nossa magia em dois momentos muito vulneráveis de sua vida, ambos quando estava muito perto da morte.
Tocado por mim, quando curei seu ombro, e por Phaedra, depois que foi atingido pelo soldado limeriano. Você não sabe como isso é atípico.
Eram dois momentos da vida que ele preferia esquecer.
- Talvez eu não saiba mesmo. Então me conte.
- Eu estava lá quando Phaedra deu a vida pela sua. Observei do alto de outra barraca na forma de falcão.
Ele respirou fundo.
- Estava?
Ela assentiu, séria.
- Observei horrorizada quando Xanthus tirou a vida dela, e a vi retornar para a magia de que todos nós fomos criados. E vi um pouco dessa magia entrar em seu corpo, apenas segundos depois do momento em
que você poderia ter morrido sem a intervenção dela.
- Eu... eu não senti nada.
- Não, não era para sentir. Não deveria sentir. E não faria diferença nenhuma se não fosse pela magia do próprio deus do fogo surgindo por perto. Acabou fortalecendo a magia de Phaedra dentro de você.
Mas não seria suficiente para isso acontecer. - Olivia apontou para a marca, que ele coçava sem perceber. - Eu usei magia da terra para curar seu ombro quando você estava à beira da morte mais uma vez,
e vi que a absorveu como uma esponja. Aquela magia ficou dentro de você, somando-se à de Phaedra, assim como Timotheus previra.
Jonas tentou entender, tentou negar, tentou impedir que seu coração batesse como as asas de um pássaro preso em seu peito. Mas então, de repente, lhe ocorreu que não deveria tentar negar uma notícia tão
incrível.
- Tenho elementia dentro de mim - ele disse com uma voz rouca. - Isso significa que posso usá-los para combater Kyan e expulsar Amara de Mítica. - Quanto mais ele considerava essa possibilidade, mais animado
ficava. - Preciso subir e contar para os outros. Eles devem estar tão confusos com o que aconteceu, com o que fiz com Felix... Mas isso é incrível, Olivia! Vai fazer toda a diferença.
Ele era um bruxo! Tinha negado a existência dos elementia e daqueles que os detinham durante toda sua vida, e agora tinha essa mesma magia na ponta dos dedos.
Olivia segurou seu braço quando ele foi na direção da porta.
- Não é tão fácil assim, Jonas. Timotheus não previu que você seria um praticante de magia, apenas um veículo para ela.
- Um veículo? Impossível. Você testemunhou o que fiz. Arremessei Felix pelo convés com... magia do ar, não foi?
- É verdade. Mas foi uma anomalia. Foi apenas um sinal de que a magia que existe dentro de você amadureceu. E aquele gasto de energia o deixou inconsciente durante quatro dias.
Jonas balançou a cabeça. A frustração tomou conta dele, acabando com sua empolgação.
- Não entendo.
Olivia afrouxou a mão que segurava seu braço.
- Eu sei, e peço desculpas pela confusão. Timotheus mantém seu conhecimento muito reservado, já que não confia em muitos imortais, nem mesmo em mim. Ele não compartilhou a extensão de sua profecia comigo
por medo de que eu contasse para você e você tentasse evitá-la. - Ela fechou a boca. - Já falei demais.
Ele resmungou.
- Você revelou o suficiente para me deixar louco de curiosidade e apreensão.
- Você não pode contar isso a ninguém.
- Não posso? - Ele apontou para a porta. - Todos me viram fazer aquilo no convés. O que devo fazer? Negar?
- Na verdade, sim. - Ela ergueu o queixo. - Expliquei a eles que fui a responsável. Que vi, do alto, Felix acertar você e que estou aqui justamente para protegê-lo. É claro que acreditaram em mim.
Jonas a encarou.
- Eles acreditaram que você interferiu com sua própria magia?
- Sim.
- E não posso falar nada sobre isso?
- Não. Nem uma palavra. - Ela ficou séria. - É perigoso demais. Alguns o perseguiriam se soubessem que é um mortal repleto de magia imortal.
- Magia imortal que não posso usar. - Ele observou o próprio punho, lembrando como havia brilhado no convés.
- Se não acredita em mim, você precisa ver com seus próprios olhos. - Ela apontou para a porta. - Tente abrir essa porta com a magia do ar que canalizou com tanta facilidade com Felix.
Parecia um desafio. Jonas olhou para além de Olivia e franziu a testa, concentrando-se, enquanto levantava a mão na direção da porta. Ele se esforçou tanto para tentar invocar a magia que existia dentro
de si que sua mão começou a tremer, seu braço começou a oscilar... mas nada aconteceu.
- Isso não significa nada - ele resmungou. - Só preciso praticar.
- Talvez - Olivia disse com delicadeza. - Só sei o pouco que me contaram.
Decepcionado, Jonas deixou o braço cair.
- Claro, ninguém ia querer que as coisas fossem fáceis para mim. Ser um bruxo, utilizar os elementia à vontade... Ninguém ia querer isso, não é?
- Na verdade, seria incrivelmente útil para você.
Jonas lançou um olhar feio para ela.
- Você não está ajudando.
- Sinto muito. - Olivia fez uma careta. - Os outros estão preocupados com você. Ficarão felizes em saber que finalmente acordou.
Jonas foi até a escotilha e observou a imensidão do mar.
- Quanto falta para chegarmos em Paelsia?
- Estamos quase chegando.
- Dormi quase o caminho todo. - Ele soltou um suspiro trêmulo ao tentar aceitar tudo o que havia aprendido. Negar seria perder um tempo que eles não tinham. - O que eu perdi?
- Não muito, na verdade. Taran continua afiando a espada na expectativa de matar o príncipe Magnus, Felix ainda está sofrendo com enjoos, Ashur passa a maior parte do tempo em seus aposentos meditando,
e Nic fica espreitando por aí. Quando o príncipe aparece, ele o observa de uma maneira um tanto curiosa.
- Pedi para o Nic ficar de olho em nosso príncipe residente. É melhor não confiar nos kraeshianos, nem mesmo naquele que diz não ser nosso inimigo.
Jonas suspirou enquanto apertava as amarras da camisa.
- Certo, estamos quase em Paelsia. Ótimo.
- Ótimo? - ela repetiu.
Ele assentiu com firmeza.
- Se existe uma profecia que exige que eu seja um veículo dos elementia, quero saber sobre ela o quanto antes. E isso não vai acontecer enquanto estivermos em alto-mar, vai?
- Não, não vai - ela concordou. - Mas, de verdade, Jonas, não sei nada além disso. Sinto muito.
Ele assentiu.
- Seja o que for, eu aguento. Tenho certeza de que já enfrentei coisa muito pior no passado.
Para isso, Olivia não tinha resposta.
Jonas tentou ao máximo não se preocupar.
12
MAGNUS
PAELSIA
Como a viagem dos Glaciares a Basilia levaria pelo menos três dias a cavalo, não havia tempo a perder com as paradas constantes de um rei moribundo e uma mulher velha. Selia arrumou uma carruagem fechada
para levá-la junto com seu filho.
Quando Magnus sugeriu que Cleo fosse com eles e não montada num cavalo para não enfrentar o terrível frio, foi reprimido com um olhar cortante.
Aquilo queria dizer "não".
Gaius os orientou por um caminho que permitia que passassem toda noite em uma hospedaria de alguma cidadezinha, onde descansavam, comiam e dormiam em quartos separados e trancados.
Sete longas noites se passaram sem Magnus poder dormir com Cleo em seus braços, mas todas as noites sonhava com ela e com o chalé na floresta. Nos momentos em que estavam acordados, ele preferia não compartilhar
essa informação com ela. Não queria que ficasse convencida demais por provocar tal efeito nele, então guardava para si o desejo constante de tocá-la e beijá-la.
No último vilarejo onde ficaram, Enzo e Milo foram encarregados de buscar roupas adequadas para todos se passarem por viajantes inofensivos de passagem por Paelsia. Conseguiram encontrar vestidos de algodão
para Selia e Cleo e calças de couro simples e túnicas de lona para si mesmos, Magnus e Gaius.
Magnus olhou a própria túnica creme com repulsa.
- Não tinha nada preto?
- Não, vossa alteza - Enzo disse.
- Cinza-escuro?
- Não. Só essa cor e azul-claro. Achei que não ia gostar muito do azul. - Enzo limpou a garganta. - Mas posso voltar à loja.
Ele suspirou.
- Não, tudo bem. Fico com essa mesmo.
Pelo menos o manto e as calças eram pretos.
Ele saiu, pronto para dar início à última parte da viagem rumo à cidade da costa oeste, e encontrou Cleo, parecendo uma linda camponesa com seu vestido simples, sorrindo para ele ao lado de seu cavalo.
- Você parece um paelsiano - ela comentou.
- Não precisa me insultar, princesa - ele resmungou, contendo um sorriso quando montaram os cavalos e começaram a andar.
Praticamente uma pequena eternidade depois - que na verdade não passou de meio dia - finalmente e felizmente chegaram ao seu destino.
Magnus já tinha ouvido muitas histórias sobre Basilia, a cidade mais próxima de uma capital que Paelsia tinha. A cidade atendia aos navios que visitavam o Porto do Comércio e os membros da tripulação ávidos
por desembarcar em busca de comida, bebida e mulheres.
As histórias eram verdadeiras.
À primeira vista - e ao primeiro cheiro - Basilia era superpovoada e fedia a dejetos humanos e putrefação. Havia dezenas de navios atracados no porto, com as tripulações inundando a costa e se misturando
nas ruas, tavernas, hospedarias, nos mercados e bordéis da cidade litorânea. E, ao que parecia, tão quente quanto Auranos no ápice do verão.
- Repulsivo.
Magnus viu que o rei Gaius tinha aberto a janela da carruagem para espiar o centro da cidade com aversão. Seus olhos estavam vermelhos, e os círculos escuros sob eles pareciam hematomas recentes em contraste
com a palidez da pele.
- Desprezo este lugar - ele comentou.
- Sério? - Magnus perguntou, conduzindo o cavalo ao lado da carruagem. - Acho encantador.
- Não acha, não.
- Acho. Eu gosto dessa... cor local.
- Você não mente tão bem quanto pensa.
- Acho que posso apenas aspirar chegar aos seus pés no quesito falsidade.
O rei olhou feio para ele, depois alternou o olhar para Cleo, que cavalgava em frente a Magnus e atrás dos guardas.
- Princesa, se lembro corretamente, foi em um mercado não muito longe desta cidade em que você esteve com lorde Aron e o filho do vendedor de vinhos que ele matou, não foi?
Magnus logo ficou tenso e observou a princesa esperando a resposta. Cleo demorou alguns segundos para responder, mas o príncipe podia ver a tensão em seus ombros pelo fino material do vestido.
- Isso faz muito tempo - ela disse finalmente.
- Imagine como as coisas teriam sido diferentes se você não tivesse ido atrás de vinho aquele dia - o rei continuou. - Nada seria como é agora, não é?
- Não - ela disse, olhando para trás. - Por exemplo, você não teria caído e quase morrido depois de perder seu reino para uma mulher. E eu não estaria vendo seu fracasso com tanta alegria no coração.
Magnus conteve um sorriso e olhou para o pai, aguardando a contestação.
A única resposta foi uma janela fechada, bloqueando a visão do rosto do rei.
A carruagem parou em uma hospedaria chamada Falcão e Lança que, apesar de um leve cheiro de suor misturado a almíscar, Magnus considerou o estabelecimento mais aceitável da cidade. O rei Gaius desceu da
carruagem com a ajuda de Milo e Enzo e entrou na hospedaria, seguido por Selia, e logo subornou o dono para expulsar todos os hóspedes para que o grupo real tivesse privacidade total.
Enquanto os hóspedes saíam com um desfile de resmungos, Magnus assistia à Cleo observar a sala de convivência da hospedaria paelsiana com reprovação. Era um cômodo grande, com teto baixo, com cadeiras
de madeira desgastadas e mesas lascadas, onde os hóspedes podiam comer e passar o tempo.
- Não se enquadra no seu padrão de qualidade? - Magnus perguntou.
- Até que está bom - ela respondeu.
- Não é uma hospedaria auraniana com camas de pluma, lençóis importados e urinol dourado. Mas me parece aceitavelmente limpa e confortável.
Cleo virou as costas para uma mesa na qual alguém havia entalhado as próprias iniciais. Um sorriso brilhante passou por seus lábios.
- Sim, para um limeriano, acho que sim.
- De fato. - Os lábios da princesa eram uma distração grande demais, então Magnus virou e se juntou a seu pai e sua avó, que estavam parados perto das grandes janelas, olhando para os estábulos onde os
cavalos estavam sendo acomodados.
- E agora? O que vamos fazer? - Magnus perguntou à avó.
- Pedi para a esposa do dono da hospedaria ir até a taverna no fim da estrada e entregar uma mensagem pedindo para uma velha amiga minha nos encontrar aqui - Selia disse.
- A senhora não poderia ter ido?
- Ela talvez não me reconhecesse. Além disso, não é uma conversa que ouvidos curiosos podem escutar. A magia que procuro deve ser protegida a qualquer custo. - Ela encostou a mão sobre o braço de Gaius.
Havia um brilho de suor na testa do rei, que estava apoiado na parede como se fosse a única coisa que o mantivesse de pé.
- E o que devemos fazer até ela chegar? - Gaius perguntou com uma voz enfraquecida substancialmente desde a chegada.
- Você vai descansar - Selia respondeu.
- Não há tempo para descanso - ele disse com raiva. - Talvez eu saia para procurar algum carpinteiro por perto para fazer um caixão para me transportar de volta para Limeros.
- Por favor, pai - Magnus disse, permitindo um pequeno sorriso. - Fico feliz em fazer isso por você. Deve fazer o que minha avó pediu e descansar.
O rei olhou feio para ele, mas não falou nada.
- Vou levá-lo ao seu quarto. - Selia envolveu o braço no filho, conduzindo-o pelo corredor na direção da escadaria, e subindo para os quartos no segundo andar.
- Excelente ideia - Cleo disse, bocejando. - Também vou subir para o meu quarto. Por favor, avise quando a amiga da sua avó chegar.
Magnus esperou que ela saísse, depois fez um sinal para Enzo segui-la. Ele pedira para o guarda tomar cuidado extra com a proteção da princesa. Enzo era um dos poucos em quem Magnus confiava para a tarefa.
- O que devo fazer? - Milo perguntou ao príncipe.
Magnus passou os olhos pelo salão, que também continha uma pequena estante com livros velhos, nada parecida com a vasta seleção que passou a valorizar na biblioteca do palácio auraniano.
- Patrulhe os arredores - Magnus disse, pegando um livro aleatório da estante. - Certifique-se de que ninguém tenha percebido que o antigo rei de Mítica está temporariamente por aqui.
Milo deixou a hospedaria e Magnus tentou se concentrar na leitura de um volume sobre a história da produção de vinho em Paelsia, que não mencionava nada sobre a magia da terra que com certeza era responsável
pelo sabor da bebida, ou sobre as leis que proibiam sua exportação para outros lugares, à exceção de Auranos.
Depois de trinta páginas inúteis, a esposa do dono da hospedaria, uma mulher pequena que parecia ter um constante sorriso nervoso estampado no rosto, voltou com outra mulher mais velha, com rugas em volta
dos olhos e da boca, de aparência extremamente comum, usando um vestido antiquado e desmazelado. Magnus pensou que devia ser a mulher que Selia tinha mandado chamar.
Quando a esposa do dono da hospedaria desapareceu na cozinha, a mulher mais velha observou o local que parecia vazio, até seu olhar recair sobre Magnus.
- Então a senhora é a resposta para todos os nossos problemas, não é? - ele perguntou.
- Depende de quais são seus problemas, meu jovem - ela respondeu sem rodeios. - Gostaria de saber por que me chamou aqui.
- Não foi ele, fui eu - Selia disse, descendo a escadaria de madeira do outro lado do corredor que levava aos quartos, no segundo andar. - E é porque estou em busca de uma velha amiga. Você me reconhece
depois de todos esses anos?
Por um momento profundamente silencioso e agonizantemente longo, a mulher encarou Selia com uma mistura estranha de fogo e gelo no olhar. Justo quando Magnus começou a temer que tivessem cometido um erro
ao confiar em sua avó, a mulher abriu um grande sorriso, com rugas de alegria aparecendo no canto dos olhos.
- Selia Damora - ela arrulhou com um tom de voz muito mais gentil do que ao entrar na hospedaria. - Pela deusa, como senti sua falta!
As duas mulheres correram uma na direção da outra e se abraçaram.
- Devo chamar os outros? - Magnus perguntou. Quanto antes sua avó conseguisse o que precisava da mulher, mais rápido poderiam sair daquele lugar.
- Não, isso não precisa ser discutido em grupo - Selia respondeu sem tirar os olhos da amiga. - Também senti sua falta, Dariah.
- Onde esteve durante todo esse tempo? Já perdi a conta de quantos anos se passaram!
- O que importa é que estou aqui agora. Para ser franca, estou um pouco surpresa por você ainda estar em Basilia.
- Nunca poderia abrir mão do lucro da minha taverna, cada ano é melhor do que o anterior. Tantos marinheiros com dinheiro para gastar e sede para matar...
- Muitos tipos de sede, sem dúvida.
Dariah piscou.
- Exatamente. - Ela se virou para Magnus. - E quem é esse jovem?
- É meu neto, Magnus. Magnus, esta é minha amiga Dariah Gallo.
- Muito prazer. - Magnus forçou o melhor sorriso que conseguiu, mas sabia que pareceria mais uma careta.
- Minha nossa! Seu neto ficou tão alto e bonito!
Selia sorriu.
- Sim, os netos às vezes fazem isso quando chegam aos dezoito anos.
Dariah passou os olhos enrugados por Magnus de alto a baixo.
- Se eu fosse mais nova...
- Se fosse mais nova, teria que lutar com a jovem esposa dele por sua atenção.
Dariah riu.
- E talvez eu vencesse.
Magnus teve uma vontade repentina de voltar à leitura do livro sobre vinho paelsiano.
Selia juntou-se à amiga nas risadas e depois voltou a adotar um tom sério, porém amigável.
- Não vim a Basilia apenas para reencontrar uma velha amiga. Preciso de informações sobre como conseguir a pedra sanguínea.
Dariah arregalou os olhos.
- Minha nossa, Selia, você não perde tempo.
- Não tenho tempo a perder. Meu poder foi diminuindo no decorrer dos anos e meu filho está morrendo.
No instante silencioso que se seguiu, Magnus ficou quieto. Essa pedra, se fosse real, parecia algo que poderia ajudá-lo a aumentar seu poder, como a Tétrade.
Selia levou Dariah na direção da estante. Fez sinal para que ela se sentasse em um banco de madeira ao seu lado, depois segurou as mãos da outra bruxa.
- Não tenho escolha. Preciso dela.
- Você sabe que não está comigo.
- Não está. Mas você sabe com quem está.
Dariah balançou a cabeça.
- Não posso fazer isso.
- Estou pedindo para você entrar em contato com ele. Sei que pode encontrá-lo. Ele precisa vir o mais rápido possível.
Mil perguntas surgiram na cabeça de Magnus, mas ele permaneceu em silêncio, escutando.
Um poder como esse entregue diretamente em suas mãos. Parecia muito mais simples do que o processo complicado de encontrar a Tétrade.
A expressão da bruxa se tornou sombria.
- Ele nunca vai permitir que você fique com ela, nem mesmo por um instante.
Selia apertou ainda mais a mão da amiga.
- Deixe que eu lide com ele quando chegar aqui.
- Eu não sei...
Selia semicerrou os olhos.
- Sei que já faz muito tempo, mas sinto que terei que mencionar o favor que você me deve. Favor que prometeu retribuir por completo.
Dariah ficou encarando o chão.
Magnus observava, quase sem respirar. Aos poucos, a bruxa levantou os olhos, o rosto pálido. Ela concordou com um pequeno aceno de cabeça.
- Vou levar um tempo para atraí-lo para cá.
- Ele tem três dias. Será um problema?
A bruxa ficou tensa ao levantar.
- Não.
- Obrigada. - Selia levantou e deu dois beijos no rosto de Dariah. - Eu sabia que você ia me ajudar.
O sorriso de quando se cumprimentaram agora já não passava de uma lembrança.
- Aviso assim que ele chegar.
Dariah não demorou - lançou um último olhar para Selia e Magnus e deixou a hospedaria.
- Bem... - Magnus disse depois que tudo voltou a ficar em silêncio. - A senhora deve ter feito um belo favor para sua amiga.
- De fato foi. - Selia olhou para Magnus com um pequeno sorriso no rosto. - Agora vou ver como seu pai está. A saúde dele é minha única preocupação no momento. Quando minha magia estiver restaurada e ele
estiver bem novamente, podemos enfrentar os outros obstáculos que estão em nosso caminho.
- Vou me esforçar para ser paciente - Magnus disse, sabendo que com certeza fracassaria.
Àquela altura a noite já tinha caído, e Magnus se retirou para seu pequeno quarto. Havia uma cama de tamanho normal, e não os catres inaceitáveis do quarto comunitário no fim do corredor. A janela tinha
vista para a rua iluminada com lampiões e ainda movimentada, com cidadãos e visitantes mesmo depois de anoitecer.
Ele ouviu uma batida fraca na porta.
- Entre - Magnus disse, sabendo que podia ser apenas uma das quatro pessoas com quem havia chegado a Paelsia.
A porta se abriu devagar e, quando o visitante se revelou, o coração de Magnus começou a bater mais rápido. Cleo o encarava.
Ele levantou e a encontrou na porta.
- A amiga da minha avó esteve aqui.
- Já? - Ela arqueou as sobrancelhas. - E?
- E... - Ele balançou a cabeça. - Parece que seremos obrigados a esperar mais três dias por aqui.
- Mas ela vai conseguir a pedra sanguínea?
- Sim - Magnus respondeu. - Reencontrei minha avó há pouco tempo, mas ela me parece o tipo de mulher que consegue praticamente tudo o que quer.
- E tudo para essa pedra mágica salvar a vida de seu pai - Cleo disse sem nenhuma emoção, mas com uma dureza no fundo dos olhos azuis.
- Ele não merece viver - Magnus afirmou, concordando com o que não tinha sido dito. - Mas essa pode ser uma medida necessária para alcançarmos nosso objetivo maior.
- Encontrar Lucia.
- Sim. E acabar com a sua maldição.
Cleo assentiu.
- Suponho que não haja outra forma.
Ele a observou cauteloso.
- Você veio ao meu quarto apenas em busca de informações ou tem mais alguma coisa que deseja esta noite?
Cleo levantou o queixo para encarar diretamente em seus olhos.
- Na verdade, preciso de sua ajuda.
- Com o quê?
- Todas essas andanças a cavalo acabaram com meu cabelo.
Magnus levantou uma sobrancelha.
- E você veio aqui para pedir minha ajuda para cortá-lo e, assim, ele deixar de ser um problema?
- Como se você fosse permitir. - Ela riu. - Você é obcecado pelo meu cabelo.
- Eu não chamaria de obsessão. - Ele enrolou um cacho daquela seda dourada no dedo. - É mais uma distração, muitas vezes dolorosa.
- Peço desculpas por seu sofrimento. Mas você não vai cortar meu cabelo, nem hoje, nem nunca. A esposa do dono da hospedaria foi gentil e me deu isso. - Ela mostrou uma escova de cabelo com cabo prateado.
Magnus pegou o objeto da mão dela, observando-o com um olhar examinador.
- Você quer que eu...?
Cleo assentiu.
- Escove meu cabelo.
A ideia era ridícula.
- Agora que fui obrigado a me vestir como um paelsiano comum você está me confundindo com um criado?
Ela lançou um olhar determinado para Magnus.
- Eu não poderia pedir para Milo ou Enzo... ou, pelo amor da deusa, para seu pai ou sua avó me ajudarem.
- E quanto à esposa do dono da hospedaria?
- Está bem. - Cleo arrancou a escova da mão dele, fazendo careta. - Vou pedir a ela.
- Não, não. - Ele soltou um suspiro, achando graça. - Eu ajudo.
Sem hesitar, ela devolveu a escova a Magnus.
- Fico feliz.
Ele abriu caminho para deixá-la passar. Cleo entrou, sentou na beirada da cama e olhou para ele cheia de expectativa.
- Feche a porta - ela disse.
- Não é uma boa ideia. - Magnus deixou a porta entreaberta e lentamente sentou ao lado dela. Meio sem jeito e receoso, como se estivesse prestes a limpar um animal pela primeira vez, ele levou a delicada
escova aos cabelos dela.
- Nunca fiz isso antes.
- Para tudo existe uma primeira vez.
Que cena ridícula deve ter sido: Magnus Damora, filho do Rei Sanguinário, escovando o cabelo de uma jovem a seu pedido.
E ainda assim...
Sempre que Magnus assumia uma tarefa, preferia ser dedicado, usando suas habilidades da melhor maneira possível. Ele se empenhava da mesma forma naquele momento, ao pegar uma mecha do longo e sedoso cabelo
de Cleo e deslizar a escova por ela. O calor das madeixas passava entre seus dedos, causando um arrepio prazeroso em suas costas.
- Você tem razão - ele disse em voz baixa. - Está terrivelmente embaraçado. Acho que de modo irreparável.
Magnus estava apenas provocando Cleo - seu cabelo estava perfeito, como sempre foi -, mas então ele chegou ao primeiro nó.
Ela se encolheu.
- Ai.
- Desculpe. - Ele ficou paralisado, mas depois franziu a testa. - Mas você me pediu para fazer isso.
- Sim, eu sei! - Ela suspirou. - Por favor, continue. Estou acostumada a ser torturada por minhas criadas, e elas estão acostumadas a ignorar meus gritos de dor. Você não vai conseguir me machucar mais.
Só Nerissa tem capacidade de fazer isso sem causar dor.
- Sim, ouvi falar das habilidades de Nerissa - Magnus comentou, sem conseguir conter um sorriso. Agora, tendo uma imagem mais completa do histórico de penteados de Cleo, ele encarou a tarefa com mais determinação.
- Tanto cabelo, tantas oportunidades para formar nós... Por que as mulheres se dão ao trabalho?
- Talvez eu devesse fazer tranças, como uma líder paelsiana?
- Sim, imagino que seria um estilo adequado a uma princesa auraniana, mesmo quando forçada a usar um horroroso vestido de algodão - ele respondeu com ironia, sem deixar transparecer como estava se divertindo
com aquela imagem. - Todas as garotas de Mítica iam querer copiar. - Com o maior cuidado possível, ele foi passando a escova por outra parte do cabelo que parecia um ninho de passarinho amarelo-claro.
- Você precisa saber que pretendo reivindicar a pedra sanguínea para mim.
- Eu já imaginava - ela respondeu.
Aquilo o surpreendeu.
- Imaginava?
Cleo assentiu, e os cabelos escaparam das mãos de Magnus, cobrindo a tentadora nuca dela.
- Vi em seus olhos quando Selia mencionou a pedra. Foi o mesmo olhar que vi em seu pai.
- E que olhar é esse?
- Não importa.
Magnus largou a escova. Com gentileza, tocou Cleo pelos ombros até praticamente fazê-la virar de frente para ele, depois segurou seu queixo com cuidado.
- Importa, sim. Que olhar eu e meu pai compartilhamos?
Ela o encarou nos olhos, cautelosa.
- Um olhar frio de ganância, como se fossem capazes de matar pela pedra.
- Entendo.
Cleo analisou o rosto dele, como se procurasse respostas.
- Naquele momento, você parecia tão frio quanto seu pai. E eu... eu não gostei.
A vida toda, disseram que ele se parecia muito com seu pai - tanto fisicamente quanto em temperamento. Com o tempo, ele aprendeu a não refutar as comparações, embora nunca tivessem deixado de incomodá-lo.
- Devo admitir, descobri há pouco tempo que preciso ser como meu pai. Há certas situações que praticamente exigem que eu seja o mais frio e brutal possível. Se eu fosse derramar lágrimas por cada vida
que tirei no último ano, já estaria seco como uma casca de árvore. Então, sim, acho que sou como meu pai em muitos sentidos.
- Não - Cleo sacudiu a cabeça. - Não é possível.
- Por que está dizendo isso?
- Sinceramente? - Ela chegou mais perto, segurando seu rosto entre as mãos. - Porque eu nunca quis fazer isso com seu pai.
Ela roçou os lábios de leve nos dele. Um pequeno gemido de tortura emergiu do fundo da garganta de Magnus enquanto ele se forçava a cerrar os punhos para não a agarrar no mesmo instante.
- Princesa...
- Cleiona... - ela o corrigiu, os lábios ainda a uma distância perigosa. - Embora eu precise admitir que já não gosto tanto de ter recebido o nome de uma imortal que roubou e matou em nome do poder.
- Verdadeiros líderes costumam ser implacáveis o suficiente para roubar e matar. Se não o fizerem, outra pessoa o fará.
- Uma filosofia encantadora e, receio, muito verdadeira. Mas talvez possamos pensar em outro nome para você se referir a mim quando estivermos juntos.
Ele arqueou a sobrancelha.
- Vou pensar nisso.
- Ótimo. - Ela mordeu o lábio, chamando atenção de novo para sua boca. - Agora, feche a porta. Com chave.
- Essa é uma sugestão muito, muito perigosa.
- Ou deixe aberta. Talvez eu não me importe. - Cleo o beijou mais uma vez, abrindo os lábios. Ele sentiu sua compostura e seu comedimento se esvaindo em uma velocidade perigosa quando a língua dela encostou
na sua.
- Realmente não quero dizer não - ele sussurrou junto aos lábios dela.
- Então não diga.
Magnus gemeu de novo quando as mãos dela desceram por seu peito e por baixo de sua túnica, deslizando sobre seu abdome e tórax sem nenhuma barreira. Ele a agarrou pela cintura e a pressionou na cama, cobrindo-a
por completo com o próprio corpo. Cleo era tão pequena, mas, ainda assim, tão forte e apaixonada.
Como um mundo insensível pôde criar uma criatura tão linda? Se a beleza dela não fosse um presente da deusa, sem dúvida tinha sido um presente da mãe...
De repente, Magnus levantou em um pulo, cobrindo a boca com o dorso da mão.
- O que foi? - Cleo perguntou assustada, o rosto corado.
Ele ficou em pé e pegou seu manto.
- Preciso de uma bebida. Vou dar uma olhada na taverna no fim da estrada.
Cleo ficou deitada, observando-o, com os cachos dourados embaraçados caídos sobre os ombros até a cintura.
Profunda e dolorosamente tentadora.
- Eu entendo - ela disse em voz baixa.
Ele estava prestes a sair sem mais nenhuma palavra, mas virou-se para ela e disse:
- Antes de sair, quero que saiba de uma coisa. No dia em que essa maldição for quebrada, prometo que a porta de qualquer quarto em que estivermos será trancada, e não vou deixar nada nos interromper.
Com isso, Magnus virou as costas e a deixou lá, olhando para ele.
Sim, ele precisava desesperadamente de uma bebida.
- Vinho - Magnus resmungou para o atendente quando entrou na taverna pobre, porém animada, conhecida como A Videira Púrpura. Ele colocou várias moedas sobre o balcão. - Fique atento e complete meu copo
sempre que notar que está vazio - ele instruiu. - E nada de conversa.
O atendente abriu um sorriso forçado, depois recolheu as moedas do balcão com ganância, guardando-as em uma bolsa velha, caindo aos pedaços.
- Muito bem.
Ele fez o que Magnus pediu e prestou muita atenção ao nível de líquido da taça. Quando Magnus começou a beber gole após gole do doce vinho paelsiano, a noite começou a ficar muito mais clara. Da última
vez que bebera vinho, tinha voltado para o palácio limeriano e encontrado sua esposa fazendo um discurso. Ela logo foi interrompida por inimigos que quase não o deixaram escapar com vida. Depois daquela
experiência, ele tinha considerado renunciar completamente à bebida.
A visita de Cleo a seu quarto naquela noite com certeza o obrigava a revogar aquela promessa.
- Nossa atração de hoje vai deixá-lo mais animado, amigo - disse o atendente, apesar de Magnus ter pedido silêncio. Magnus estava prestes a repreendê-lo quando o homem indicou com a cabeça o meio da taverna.
- Prometo que a Deusa das Serpentes será uma imagem espetacular para os olhos.
Deusa das Serpentes? Magnus revirou os olhos e apontou para a própria taça.
- Mais.
Alguém do outro lado da enorme taverna pediu silêncio para a multidão vociferante enquanto o atendente servia mais vinho para Magnus.
- Todos venerem nossa bela residente! - o homem berrou do outro lado do estabelecimento. - Curvem-se diante de seu incrível poder! E saúdem a Deusa das Serpentes!
A multidão reagiu com gritos e assovios quando uma jovem de cabelo escuro, pouca roupa e uma cobra pendurada no pescoço apareceu sobre o pequeno palco. Ao lado do palco havia um trio de músicos que começou
a tocar uma canção exótica que, para Magnus, soava mais selvagem do que encantadora. Quando a música começou a crescer, a jovem passou a se contorcer no que poderia ser considerado um tipo de dança, mas
para Magnus parecia mais a oferta de uma cortesã.
Ele esvaziou o copo sem saber ao certo quantas vezes tinha repetido o movimento desde que chegara, mas não importava. Não agora que as coisas pareciam tão melhores do que antes, quando o desejo por Cleo
quase o cegou diante do perigo.
Talvez eles pudessem dividir um quarto, ele pensava enquanto assistia àquela mulher estranha se sacudir pelo palco. Talvez um elixir para evitar a gravidez fosse proteção suficiente.
Ou talvez ele devesse se concentrar no fato de seu reino ter sido roubado, seu pai estar à beira da morte enquanto sua avó tenta salvá-lo com uma pedra mágica, sua irmã estar aliada com um homem que pretendia
conquistar Mítica à base do fogo, e Cleo carregar uma maldição. O fato de ele estar enlouquecendo de desejo por sua esposa de fato era a menor de suas preocupações.
De repente, alguma coisa chamou sua atenção: um lampejo de cabelo ruivo. Aquela cor de cabelo era mais rara em Paelsia do que a do cabelo de Cleo. Ele não conseguiu deixar de se lembrar de Nicolo Cassian,
a única pessoa que ele conhecia com aquela cor infeliz de cabelo.
Magnus riu ao pensar naquilo. Não, Nic devia estava em segurança em Kraeshia - ou nem tão seguro assim, na verdade, mas Magnus não se importava. O idiota tinha se voluntariado para se juntar a Jonas em
sua missão fracassada de matar o rei.
Ele voltou sua atenção para a Deusa das Serpentes. Quando pensou que estava começando a entender o ritmo de seus movimentos, ela parou, fazendo um sinal para os músicos pararem de tocar.
- É você? - ela perguntou. O salão agora estava em silêncio. A Deusa das Serpentes estava claramente se dirigindo a alguém específico, mas Magnus não conseguia ver de onde estava. Ele só conseguia ver
a crescente empolgação no rosto pintado da dançarina enquanto sua expressão transparecia cada vez mais certeza. - Jonas! - ela gritava agora com mais confiança. - Jonas, é você mesmo? Meu querido, achei
que estivesse morto!
Jonas?
Devia ser mais uma estranha coincidência.
A dançarina desceu do palco e se embrenhou no meio da multidão, de onde puxou um jovem de cabelo escuro.
Magnus ficou paralisado. Ele esticou o pescoço, tentando ver por entre as cabeças dos outros clientes. A dançarina jogou os braços em volta do jovem, rodopiando abraçada a seu visitante, até que ele se
virou na direção de Magnus.
Chocado e boquiaberto, Magnus ficou observando fixamente aquela cena.
Era Jonas Agallon. Ali, na mesma taverna.
- Quem diria? - disse uma voz familiar ao lado dele, verbalizando seus próprios pensamentos. Uma onda de desgosto tomou conta de Magnus antes mesmo de se virar e descobrir o que já sabia: aquele ruivo,
Nicolo Cassian, estava bem ao lado dele. - Você!
Nic cutucou o ombro dele, deixando escapar uma gargalhada quando derramou um pouco de cerveja de sua enorme caneca.
- Parece que o destino está finalmente lhe dando o troco, não acha, vossa alteza? E fico mais do que feliz de testemunhar isso.
- Estou vendo que sua visita a Kraeshia não ajudou a diminuir seu charme - Magnus disse, espantado por ter bebido a ponto de arrastar as palavras tanto quanto Nic.
Nic sorriu, mas seus olhos desfocados não demonstravam nenhum humor.
- Príncipe Magnus Damora, gostaria que conhecesse um amigo meu.
Irritado pelo uso de seu nome em um estabelecimento público, Magnus virou, esperando encontrar algum rebelde qualquer. Mas, em vez disso, encontrou um rosto que só via em pesadelos.
- Theon Ranus - ele exclamou. O calor agradável e o formigamento proporcionado pelo vinho desapareceram em um instante, deixando-o profunda e desoladamente frio ao encarar aquela aparição.
- Está enganado - disse o jovem, um lembrete fatal da primeira pessoa que Magnus havia matado na vida. Com um olhar frio repleto apenas de obstinação e ódio, ele puxou uma faca e a colocou junto à garganta
de Magnus. - Sou o irmão dele, seu filho da puta.
13
CLEO
PAELSIA
- Aonde está indo, princesa?
As palavras a fizeram parar na porta principal da Hospedaria Falcão e Lança. Cleo olhou para trás e viu Enzo parado nas sombras.
- Vou à taverna no fim da estrada - ela disse. - Não que seja da sua conta.
- Está tarde.
- E...?
Enzo endireitou os ombros.
- Acho que seria melhor ficar aqui em segurança, princesa.
- Aprecio sua opinião, mas discordo. Magnus está lá. Estou surpresa, e um pouco consternada, por você não ter ido junto. E se ele for reconhecido?
- O príncipe deixou bem claro que meu único dever é garantir sua segurança, princesa.
Ela piscou rápido, como se tentasse disfarçar a surpresa daquela revelação interessante.
- Sério? Bem, isso torna as coisas muito mais fáceis. Você virá comigo buscar o príncipe e garantir que nenhum de nós corra perigo.
Cleo não lhe deu tempo para argumentar ao virar as costas e sair da hospedaria, deixando a porta aberta para Enzo segui-la e puxando o capuz do manto para cobrir o cabelo e proteger o rosto.
Enzo a seguiu sem dizer mais nada enquanto Cleo prestava atenção nas pessoas na rua, nas carruagens que passavam, no ruído do casco dos cavalos batendo na estrada de cascalho. Ela seguiu o som das risadas
embriagadas e da música para chegar à taverna que sem dúvida tinha sido o destino de Magnus. Sobre as grandes portas de madeira havia uma escultura de bronze de alguns cachos de uva em uma videira.
Ela leu a placa:
- A Videira Púrpura. Que nome apropriado para uma taverna em Paelsia. E bastante óbvio.
O príncipe gostava tanto do sabor do vinho que não se importava com o que aconteceria se alguém o reconhecesse. Magnus adorava tanto beber que estava disposto a arriscar ser morto no meio de um bando de
paelsianos. E que jeito idiota de morrer seria, Cleo pensou.
- Já ouvi falar desse lugar - Enzo disse, observando a entrada. - Nerissa já trabalhou aqui atendendo mesas.
Ela levantou uma sobrancelha.
- É mesmo?
Ele assentiu.
- Ela disse que foi uma experiência interessante.
- Eu não fazia ideia de que ela tinha morado em Paelsia.
- Nerissa morou em todos os lugares, ao que parece. Diferente de mim, que até agora nunca tinha me aventurado para fora de Limeros. Ela deve me achar tedioso.
- Posso garantir que ela não acha nada disso.
Ouvir Enzo falar de sua amiga fazia o coração de Cleo doer. Ela não tinha dúvidas de que Nerissa era capaz de se cuidar, melhor do que qualquer outra garota - e possivelmente garoto - que conhecia, mas...
Cleo não conseguia deixar de se preocupar com a segurança dela. Odiava a ideia de que Nerissa pudesse correr perigo enquanto era forçada a trabalhar perto de Amara.
Cleo respirou fundo ao passar pelas portas com Enzo. Dentro da taverna havia pelo menos duzentos clientes fedorentos e sujos.
Ela observou os rostos, procurando Magnus na multidão.
Aquela taverna era diferente de todas que já havia visto em suas duas visitas anteriores a Paelsia. Seu conhecimento da região se limitava a dois mercados pobres, vilarejos decrépitos e uma vasta extensão
de terras desertas.
E os galpões trancados de rebeldes raivosos e vingativos, ela lembrou a si mesma.
O lugar, apesar do interior rústico e decadente, parecia pertencer a Pico do Falcão, maior cidade de Auranos. Iluminando o espaço enorme havia dezenas e dezenas de velas e lampiões. No teto alto, várias
rodas de madeira acomodavam mais velas. O chão era de terra batida; as mesas e cadeiras eram feitas de madeira mal esculpida.
À esquerda de Cleo havia um pequeno palco, sobre o qual uma jovem de cabelo preto e com faixas douradas pintadas sobre a pele bronzeada rebolava de uma forma bastante provocativa. Em volta de seu pescoço
carregava uma jiboia enorme, do tipo que Cleo só tinha visto em livros ilustrados.
- Enzo, por favor, apenas me ajude a procurar Magnus. Comece pelas áreas com mais vinho.
- Sim, vossa alteza.
Cleo se cobriu melhor com o capuz do manto para esconder o cabelo e tentou ignorar os olhares atravessados da maioria dos brutamontes que passavam por ela. Quando sentiu alguém apertar seu traseiro, virou
para dar um soco no ofensor, mas acertou apenas o ar.
Furiosa, ela tentou ver quem a havia tocado no meio da multidão, mas ficou paralisada quando ouviu alguém gritar um nome que ela conhecia.
- Jonas! - Era a mulher-cobra, interrompendo a apresentação para correr na direção de um jovem que estava na plateia. - Jonas, é você mesmo?
Cleo, de olhos arregalados, se virou na direção do palco.
Jonas tinha voltado de Kraeshia. E, de todos os lugares de Mítica onde poderia estar, estava ali!
Como era possível?
Ela se virou para Enzo, mas outro rosto chamou sua atenção. Um jovem caminhava pela multidão, movendo-se na direção oposta ao mar de rostos virados para o palco.
Cabelo cor de bronze, pele morena, alto, músculos definidos...
Ela só conseguiu observar, certa de que seus olhos a enganavam.
- Theon - ela sussurrou o nome antes preso na garganta.
Ela então se lembrou de um tempo em que tudo parecia claro - ela o amava, e nada mais importava. Nem o posto dele, nem a reprovação de seu pai, nem o modo austero como Theon tinha olhado para ela antes
de beijá-la, marcado pelo medo de pensar que poderia perdê-la para sempre.
E depois o som do casco dos cavalos quando Magnus e seus soldados chegaram.
O orgulho em seu coração quando Theon enfrentou os homens de Magnus e venceu.
E o horror quando viu a vida se esvair dos olhos dele para sempre quando Magnus o acertou pelas costas.
"Se seu guarda tivesse se afastado quando ordenei, isso não teria acontecido", o filho do Rei Sanguinário tinha dito.
"Ele não é só um guarda", ela havia sussurrado em resposta. "Não para mim."
Às vezes, parecia que tudo tinha acontecido mil anos antes. Outras, era como se tivesse sido no dia anterior.
Mas, lá estava ele.
- Princesa? - Enzo perguntou, franzindo a testa para a expressão de choque absoluto dela.
Cleo não respondeu. Suas pernas estavam dormentes quando começou a se mover sem pensar, abrindo caminho na multidão na direção dele.
Lágrimas quentes corriam por seu rosto, e ela as secava com violência.
A multidão diminuía quanto mais ela se afastava do palco, o que lhe permitiu manter o olhar no guarda assassinado. Em sua mão, ela viu o brilho de uma lâmina afiada.
E então ela viu Magnus.
O fantasma do jovem que havia amado - e perdido - aproximou-se de Magnus, que estava no bar, olhando para Theon com a mesma descrença de Cleo. Então, com uma rapidez que ela mal conseguiu acompanhar, Theon
segurou Magnus com força e pressionou a lâmina contra sua garganta.
Ela gritou para dentro, seu corpo transformou-se em gelo em um instante. Ela olhava para Magnus, com sua expressão resoluta, os dentes cerrados e os olhos escuros desprovidos de emoção.
- Cleo? - Alguém estava bloqueando seu caminho; um garoto com sardas e cabelo ruivo. - Ah, Cleo! Você está aqui! Você está viva!
- Nic? - Ela o encarou por um segundo antes de agarrar e fincar os dedos em seus ombros. Atrás dele, viu o sangue escorrendo pela garganta de Magnus, onde o fantasma do passado enfiara sua adaga. - O que
está havendo? Por que isso está acontecendo?
De repente, uma terceira pessoa aproximou-se do confronto silencioso entre Magnus e Theon, que até então tinha passado despercebido pelo resto dos clientes, cujos olhos estavam fixos no palco. Era um jovem
de cabelo escuro, ombros largos e muitos músculos, com um tapa-olho preto.
Ele segurava um pedaço de pau e, com ele, atingiu o fantasma de Theon com força atrás da cabeça. A adaga caiu no chão, e o corpo da vítima desabou, inconsciente, ao lado dela.
- Magnus! - Cleo gritou.
Finalmente, Magnus tirou o olhar do jovem caído e virou para Cleo.
Ele semicerrou os olhos.
- Você não devia estar aqui.
Ela ficou chocada. Era isso que Magnus tinha a dizer em um momento como aquele?
O brutamontes apontou para o corpo.
- Ele não vai ficar feliz comigo quando acordar.
Cleo correu para o lado de Magnus, certificando-se rapidamente de que o ferimento no pescoço era superficial. Ela virou para o jovem de tapa-olho.
- Quem é você? - ela questionou.
Ele se curvou.
- Felix Gaebras, minha encantadora jovem. A seu dispor. E quem é você?
- Esta - Magnus disse, tocando o pescoço com cuidado - é a princesa Cleiona.
Felix arregalou os olhos.
- Ah, então esta é a princesa dourada. Tudo faz sentido agora.
- E quem é esse? - Ela apontou para o chão com o dedo trêmulo.
- Aquele - Felix respondeu - é Taran Ranus, irmão gêmeo de Theon.
Cleo sentiu seu corpo gelar.
- Irmão gêmeo?
Magnus estava tenso.
- Foi muito gentil da parte de Nic nos apresentar hoje à noite, não acha?
Ao lado dela, Nic olhou para o jovem inconsciente, depois para Cleo, que parecia chocada.
- Acho que todos nós precisamos conversar - ele disse.
- Com certeza!
- Concordo - Magnus disse com rigor. - Conheço um lugar muito mais discreto do que esse. Encontrem Jonas e venham comigo, todos vocês.
Felix se abaixou, pegou o companheiro inconsciente e o jogou sobre o ombro.
- Onde Jonas e os outros estão? A dançarina o amarrou com a cobra e o levou embora? Vou procurá-lo.
Cleo não esperou - ela precisava de ar fresco. Precisava respirar normalmente e deixar o coração bater em um ritmo natural.
Irmão gêmeo, ela pensou, estupefata. O irmão gêmeo de Theon.
E Theon nunca, em nenhum momento, tinha mencionado que tinha um irmão gêmeo.
Nic estava ao lado dela, cambaleando de leve a cada passo que dava enquanto Enzo a escoltava para fora da taverna. Ela olhou para trás para garantir que Magnus estava perto.
- Você está bêbado - disse Cleo, virando-se para Nic e percebendo que estava muito zangada com ele e com todos os presentes.
- Muito. E também muito feliz por saber que está aqui. - Ele deu um grande beijo desajeitado no rosto dela, fazendo-a lembrar do cachorrinho babão que seu pai trouxera para ela e para Emilia depois de
um longo período de viagens. Quando seus batimentos cardíacos voltaram ao normal, ela se permitiu ceder à avassaladora sensação de alívio por Nic ter voltado de Kraeshia são e salvo - e por estar ao lado
dela novamente.
Felix saiu da taverna carregando Taran Ranus.
Atrás dele veio Jonas, que observava a área até seus olhos recaírem sobre Cleo.
Ela o observava também quando um sorriso se abriu no belo rosto dele.
- Eu sabia que você estava viva. - Jonas apertou o passo para chegar até ela. Segurou-a pela cintura e a tirou do chão, girando-a no ar. - É tão bom ver você!
Em qualquer outro dia, ela estaria sorrindo tanto quanto o rebelde.
- Explique o que está acontecendo.
- Sim - Magnus disse, os olhos escuros fixos em Jonas. - Uma explicação para sua chegada nesta cidade, coincidindo com a nossa chegada, seria apreciável.
- Fico chocado em dizer, mas é quase bom ver você também, vossa alteza. - Jonas deu um meio sorriso para o príncipe.
Não foi correspondido.
- Nosso amigo aqui está ficando um pouco pesado - Felix comentou.
Magnus lançou um olhar azedo para o corpo que Felix carregava.
- Venham comigo.
Outra garota se juntou ao grupo, e Cleo a reconheceu de imediato - estava acompanhando Jonas e Lysandra da última vez em que estiveram no palácio limeriano.
Cleo se lembrava do nome dela: Olivia. Mas um cumprimento adequado poderia esperar.
Ela deu o braço para Nic enquanto o grupo acompanhava Magnus até a hospedaria.
- Por que está tão bêbado hoje?
- Ah... são muitas razões. Entre elas, recentemente passei a acreditar que estivesse morta. Por isso ia me afundar em cerveja para sufocar meu sofrimento.
- Estou bem viva.
- E fico muito feliz em saber.
Cleo sorriu para ele.
- Existem outros motivos para sua sede de álcool?
- Nenhum que esteja com a gente hoje, mas estou hesitante em mencioná-los. Você já teve choques demais por um dia. Tenho certeza de que ele vai acabar aparecendo. Ele faz dessas.
- Você não está falando coisa com coisa.
- Não, com certeza não estou.
Seu pequeno sorriso desapareceu quando ela olhou para Felix e seu fardo.
- Theon... - Ainda doía dizer o nome dele, mesmo depois de tanto tempo. - Alguma vez ele falou alguma coisa sobre ter um irmão gêmeo?
Nic negou.
- Nada. Quando vi Taran nas docas de Kraeshia, quase caí duro de choque. Taran não fala sobre isso, mas imagino que eles não tivessem contato. Ainda assim, não lidou bem com a notícia da morte do irmão.
- É, percebi. - Ela soltou um suspiro trêmulo. - Como ele ficou sabendo que foi Magnus que matou Theon?
Nic deu de ombros.
- Eu contei a ele, claro.
Ela sentiu uma pontada no estômago no exato momento em que a raiva começou a subir.
- Claro.
- Eu devia ter ficado a seu lado. - Ele pegou a mão dela e ficou sério, apesar da bebedeira. - Sinto muito por ter deixado você sozinha com ele todo esse tempo.
Nic não sabia sobre os sentimentos dela por Magnus. É claro que não sabia - Cleo tinha feito questão de negar os sentimentos que cresciam em seu peito por um ano.
- Não tem problema. Eu... dei um jeito.
- Onde devo deixá-lo? - Felix indicou o fardo que carregava quando chegaram à hospedaria.
- Tenho certeza de que vamos encontrar um buraco bem fundo - Magnus respondeu.
Cleo olhou feio para ele, depois virou para Felix.
- Tem alguns quartos vazios no segundo andar - ela disse.
Felix desapareceu e retornou rapidamente sem Taran.
Eles sentaram na sala de convivência e, quando Cleo olhou para o grupo, não sabia dizer se estava feliz ou horrorizada pelo modo como a noite havia se desenrolado.
Nic sentou ao lado dela, de frente para Jonas e Olivia. Felix e Magnus sentaram próximos à lareira, do outro lado da sala, perto da estante, enquanto Enzo ficou em pé ao lado de Cleo.
- Quando vocês chegaram? - Magnus perguntou.
- Hoje - Jonas respondeu. - Ainda estamos no escuro sobre o que está acontecendo aqui. A única informação que temos vem de um único soldado kraeshiano que se dispôs a falar.
- E?
- Ele sabia muito pouco. Ou, pelo menos, pouco que pudesse nos ajudar. No entanto, parece que você está fugindo, vossa alteza. E seu pai não está nada feliz com o modo como cuidou das coisas enquanto ele
esteve fora.
- É o mínimo que se poderia dizer.
Cleo observava Magnus levemente surpresa. Apesar do tanto que devia ter bebido, parecia sóbrio como um sacerdote limeriano.
- O soldado - disse Jonas, apontando para Cleo com tristeza. - Ele nos disse que você tinha morrido. Que isso aconteceu depois que fugiu de Amara. Que morreu congelada.
- Isso poderia muito bem ter acontecido se eu não tivesse encontrado abrigo no momento certo. - Ela desviou os olhos, tentando não fazer contato visual com Magnus, apesar de ainda sentir o olhar dele ardendo
em seu rosto.
- Você sempre foi uma sobrevivente - Jonas disse. - Nic se desesperou, mas eu tinha esperança. E aqui está você.
Nic deu de ombros.
- Eu me desespero. Sou desesperado.
- Temos muita coisa para contar a vocês - Jonas afirmou. - E com certeza vocês têm muita coisa para nos contar.
- Muito menos do que você pode imaginar - Magnus disse. - Amara acha que está governando o reino agora. Mas está errada. E será derrotada.
- E como você acha que vai derrotá-la? - Jonas perguntou.
- Acho que podemos começar com o cristal da terra que você deu à princesa - Magnus disse, e Jonas ficou tenso. - Você ainda tem aquele pedaço brilhante de obsidiana escondido em algum lugar, princesa?
Ah, sim, ela pensou enquanto se contraía. Esse era o Magnus que um dia ela desprezara - capaz de anunciar para todos, aparentemente por despeito, que ela estava em poder de um cristal da Tétrade. Ela precisaria
se lembrar de agradecer pela lembrança.
Nic soltou um rosnado de repulsa.
- Cleo, não enlouqueceu ficando ao lado dele por tanto tempo? O fato de ter mantido essa aliança artificial... deve haver algum motivo por trás disso que não me contou.
- Por favor, Nic - Magnus disse. - Somos todos amigos aqui. Sinta-se à vontade para falar o que quiser.
- Acabei de fazer isso.
Magnus revirou os olhos.
- Não preocupe essa sua cabeça de cenoura, Nicolo. A princesa continua a me tolerar, ou quase, concentrando-se apenas em recuperar seu trono assim que Amara for derrotada e mandada para longe. Recentemente,
sugeri que sua princesa dourada retornasse a Auranos, mas ela recusou. Nem pense em dizer que foi ideia minha.
Cleo virou para ele e enxergou uma expressão de desafio em seus olhos. Então percebeu o que Magnus estava fazendo.
Nic o odiava. Jonas tinha uma aliança fraca com ele. E o irmão gêmeo de Theon tinha acabado de tentar matá-lo.
Revelar que os dois eram mais do que aliados relutantes poderia causar um estresse desnecessário, principalmente agora que estavam todos juntos.
- Acredite em mim, Nic - ela disse finalmente. - E estou ansiosa pelo dia em que retornarei ao meu trono. Mas esse dia não é hoje.
- Bem, agora que isso está resolvido - Magnus disse -, vamos discutir como proceder. Pode ser?
Felix levantou a mão.
- Eu me voluntario com entusiasmo para matar a imperatriz.
Magnus o encarou com interesse.
- Como pretende fazer isso?
- Sei que alguns de vocês vão sugerir que eu use uma flecha apontada de longe - Felix disse com avidez. - Mas realmente preferiria uma abordagem mais pessoal. Com minhas próprias mãos, se possível. Só
quero ver o olhar dela naquele rostinho lindo.
Magnus piscou.
- Acabei de lembrar que foi você que me enviou um pedaço de sua pele para provar sua lealdade.
- Fui eu mesmo, vossa majestade.
Cleo analisava aquele jovem com atenção, chocada com as palavras. Será que ele era louco?
No entanto, o sujeito tinha salvado a vida de Magnus na taverna, e ela devia muito a ele por isso, então imaginou que teria que passar um pouco mais de tempo perto dele, observando-o, para ver como ele
realmente era.
Houve um tempo em que tinha desejado que Magnus morresse pelo que fizera com Theon, em que tinha desejado matá-lo com as próprias mãos.
Mas no momento em que a vida de Magnus correra perigo, não conseguira se concentrar em nada além do príncipe. Qualquer necessidade de vingança tinha desaparecido meses atrás, como se ela tivesse trocado
de pele.
O sentimento era de perdão. Ela ainda odiava o garoto que Magnus tinha sido aquele dia.
Mas tinha passado a entendê-lo nos meses que se seguiram, talvez ainda melhor do que entendia a si mesma.
- Há uma ameaça muito maior do que Amara em Mítica nesse momento, sinto informar - Jonas revelou, interrompendo o devaneio de Cleo. Ele estava limpando as marcas de beijo da dançarina do rosto com um lenço
que Olivia havia lhe dado, e Cleo não conseguiu deixar de achar engraçado o contraste entre os movimentos ridículos e o tom solene daquela declaração.
- Me deixe adivinhar - Magnus disse. - Você está falando da minha irmã? Sei que deve estar de luto por sua amiga, Jonas, mas não faz sentido gastar suas energias vingativas com Lucia nem com seu companheiro,
Kyan.
Jonas encarou os olhos de Magnus.
- Vocês não sabem, não é?
- Não sabemos o quê?
- Vocês procuraram pela Tétrade. Pessoas morreram por esses cristais. Você já revelou diante de todos que Cleo está em poder de um deles, e sabemos que Amara está com o da água, e seu pai, com o do ar.
- Sim, sei disso tudo, rebelde. E já sabemos que Kyan está com o cristal do fogo.
- Errado - Jonas ficou tenso. - Kyan é a magia do fogo.
Cleo ficou encarando-o, certa de que tinha escutado errado.
- O que quer dizer com isso?
- A magia que vocês estão procurando, que todos estamos procurando, pode pensar. Pode falar. E pode matar sem remorso. E mais três iguais a Kyan estão aguardando para escapar de suas prisões. Os cristais
não são pedras mágicas, princesa, mas deuses elementares.
A sala toda ficou em silêncio, e Cleo observou freneticamente o rosto dos outros, esperando encontrar alguém revirando os olhos. Esperando que aquilo não passasse de uma mentira engraçada para quebrar
a tensão.
Não podia ser verdade.
Mas até Nic assentia pesaroso.
E naquele exato momento, dentro de seu bolso, estava uma daquelas prisões.
Ela olhou para Magnus, cuja testa franzida era o único sinal de surpresa.
- Lucia deve tê-lo ajudado a escapar da esfera de âmbar - Magnus disse.
- Acho que isso é óbvio - Jonas respondeu curto e grosso, o que lhe rendeu um olhar sombrio do príncipe.
Cleo juntou as mãos para impedi-las de tremer.
- Temos certeza de que os objetivos de Kyan, sejam quais forem, são perversos? A Tétrade ainda pode nos ajudar a derrotar Amara.
- Eu o vi queimar Lys até fazê-la desaparecer - Jonas grunhiu. - Nem uma única cinza restou quando ele acabou. - O rebelde virou para Magnus. - Kyan é perverso. Assim como a vadia da sua irmã.
Magnus levantou com os punhos cerrados.
- Não me importo com o que aconteceu, você não vai falar assim de Lucia na minha presença. Não vou permitir.
- Não? E você acha que pode me impedir? - Agora Jonas também estava com os punhos cerrados, e os dois se aproximavam.
- Talvez ele não o impeça - disse uma nova voz, interrompendo a conversa e paralisando o rebelde e o príncipe. - Mas eu com certeza estou disposto a tentar.
Com aquela promessa, o Rei Sanguinário entrou na sala.
14
JONAS
PAELSIA
Rei Gaius Damora. O Rei Sanguinário. Assassino. Sádico, torturador, escravocrata, traidor. Inimigo. Alvo.
E, naquele momento, estava na mesma sala que Jonas.
Muitas surpresas tinham acontecido naquela noite. Primeiro um encontro com Laelia Basilius, de quem Jonas tinha sido - por pouco tempo e com relutância - noivo. Mas essas surpresas desapareceram de sua
mente assim que o rei entrou na sala.
Gaius observou o grupo e parou o olhar sobre Jonas.
- Jonas Agallon. Não vejo você há muito tempo. Acho que a última vez foi no casamento de meu filho.
Jonas percebeu que não conseguia fazer nada além de olhar para o homem que tinha matado e destruído tantos.
- Magnus... - Cleo disse do outro lado da sala.
- Ah, sim - Magnus disse, sem qualquer sinal de indignação pelas calúnias ditas contra a irmã. - Esqueci de dizer que estou viajando com meu pai?
- Esqueceu - Jonas respondeu, tenso.
- Sim - o rei concordou. - E é muito bom que meu filho traga seus novos amigos aqui sem avisar.
Jonas se esforçou para manter a compostura, para não mostrar como estava indignado.
- Não são tão novos quanto você pensa.
A pele do rei Gaius estava pálida, o rosto tinha hematomas como se tivesse sido espancado. Ele inclinou para a frente, como se agisse com normalidade, e se apoiou na parede ao lado da escada, mas algo
ficou evidente na posição. Uma fraqueza e uma fragilidade que o rebelde nunca tinha notado no homem.
- Volte para o quarto - Magnus disse.
- Não acato ordens suas. - O rei sorriu, sem achar graça. - Magnus, seus amigos sabem que estamos todos do mesmo lado agora?
Só de pensar em uma aliança com Gaius, Jonas perdeu totalmente a fala. Os outros - Nic e Olivia - também permaneceram em silêncio, tensos.
- É mesmo? - Foi o rosnado ríspido de Felix, como o alerta de uma fera enjaulada, que quebrou o silêncio. - Você decidiu isso antes ou depois de permitir que Amara me deixasse levar a culpa por matar a
família dela?
O rei levantou uma sobrancelha escura e observou Felix.
- Nunca permiti que Amara fizesse nada. Ela toma as próprias decisões. Quando soube o que tinha acontecido, já era tarde demais para intervir. Soube que você já estava morto. Caso contrário, teria feito
o possível para libertar você.
Felix manteve o olhar fixo no rei, e em seu único olho não se via nada além de frieza e malícia.
- Claro que teria. Por que eu duvidaria de sua palavra, vossa alteza?
Suspirando, o rei abatido e aparentemente debilitado se virou para Jonas.
- Você tem todos os motivos para me odiar. Mas precisa me ouvir agora e perceber que juntos somos fortes. Temos um inimigo comum: Amara Cortas.
- Sua esposa - Jonas afirmou.
- Por conveniência e circunstância apenas. Não tenho dúvidas de que ela já está conspirando para me matar, em especial agora que assumiu o controle de Mítica e sabe que seus soldados são muito mais numerosos
que os meus. Tenho me dedicado a consertar alguns de meus erros mais recentes, começando por tirar Amara deste reino.
- Me parece um bom começo - Jonas disse.
O rei caminhou devagar, fazendo careta ao sentir uma dor repentina com o movimento, e estendeu a mão.
- Peço que deixemos nossas diferenças de lado até esse objetivo ser alcançado. O que me diz?
Se não estivesse tão surpreso, Jonas teria gargalhado. O Rei Sanguinário tinha acabado de propor a ele - a mesma pessoa que o acusara de assassinar a Rainha Althea - uma aliança.
Jonas observou os outros ao redor, e em silêncio todos olhavam chocados para ele e o rei. Nic e Cleo estavam pálidos, e Felix entortava a boca de ódio. Olivia manteve o olhar desprovido de emoção e inescrutável,
como sempre. Enzo, o guarda de Cleo, estava parado empunhando a espada. Em contraste, Magnus tinha sentado e recostado na cadeira, os braços cruzados à frente do peito, a cabeça inclinada.
Finalmente, Jonas estendeu a mão direita para o rei e aceitou o acordo, encarando diretamente seus olhos.
- O que posso dizer, vossa alteza? - Com a mão esquerda, ele cravou uma adaga decorada no coração do monstro. - Vá para as terras sombrias, filho da puta mentiroso.
O rei gemeu sem força, e pelo som, a dor parecia extremamente forte. Jonas girou a faca ainda mais fundo, até Gaius tombar para trás.
Jonas ouviu Nic comemorar assim que Enzo o acertou e o derrubou no chão. Felix chegou em um instante, puxando Enzo para longe. Outro dos guardas do rei apareceu e puxou os braços de Jonas para trás. Cabelos
loiros apareceram na confusão - era Cleo tentando tirar o segundo guarda do rei de cima de Jonas. Magnus estava de pé com o olhar sério fixo no rei. Olivia estava dentro do campo de visão periférica de
Jonas, esperando. Ela só interviria se ele corresse perigo de morte.
A raiva que sentia, o ódio que tinha pelo rei, zuniam dentro de Jonas, renovados, e o rebelde tremia. Enquanto observava o rei moribundo, não sentiu nem um pouco de arrependimento.
Finalmente tinha tido uma oportunidade. E a aproveitado.
- Viu? - ele disse, olhando para Magnus. - Cumpro minhas promessas.
- Sim, estou vendo - Magnus disse, prestando atenção no pai, como se estivesse curioso, e não grato pela atitude. - Só é uma pena que você não tenha feito isso antes.
- O que quer dizer com isso? - Jonas olhou para o príncipe, sem entender por que ele parecia decepcionado com a situação. Jonas tinha feito exatamente o que Magnus queria, tinha cumprido a tarefa que o
tinha levado a Kraeshia.
- Milo, deixe Jonas levantar. - Cleo segurava o guarda desconhecido pelo braço.
- Ele assassinou o rei - Milo disse.
- Não - Magnus disse. - A morte decidiu demorar no que diz respeito ao meu pai.
- Jonas, olhe para ele - Felix pediu.
Gaius não estava mais deitado no chão, cheio de sangue. Milagrosamente, estava ajoelhado, sangrando muito sobre a madeira desgastada, o cabo da adaga no peito.
A expressão agonizante do rei estava fixa em Jonas.
- Ele não está morto - Nic murmurou, balançando a cabeça, incrédulo. - Por que não está morto?
Num movimento repentino e forçado, o rei Gaius segurou o cabo decorado da adaga. Ainda encarando Jonas com os olhos semicerrados, ele arrancou a lâmina, com um grito. A adaga caiu no chão, e ele levou
as mãos à ferida.
- Isso é magia - Jonas conseguiu dizer em meio ao choque.
- Muito observador de sua parte. Impressionante - Magnus disse com seriedade.
- Explique o que está acontecendo!
Magnus meneou a cabeça para Milo.
- Solte o rebelde. Não posso conversar com alguém preso como um besouro pregado a uma placa de cortiça.
Milo parou de segurar o braço de Jonas, que imediatamente ficou de pé e lançou um olhar acusatório para Magnus, que encarou Cleo de um jeito pouco sutil e sério. Cleo rangeu os dentes, e Magnus revirou
os olhos.
- Muito bem - o príncipe concordou. - Vou tentar ser breve em minha explicação. O que está acontecendo é o resultado de uma poção que o rei tomou muitos anos atrás, uma poção que permitiu que, não importa
o golpe final e fatal que o destino desferir, ainda tem algum tempo para... resistir depois de ser morto.
- Não sei bem se é assim que funciona - Cleo disse pacientemente.
Magnus suspirou e fez um gesto para o pai.
- Mais ou menos isso?
- Acredito que sim. Minha nossa, Jonas, essa é a adaga de Aron? - Cleo perguntou, chocada. - Você realmente guardou essa coisa horrível por todo esse tempo?
- Responda à minha pergunta - ele disse, mais incisivo do que pretendia ao se dirigir à princesa. Finalmente Jonas tinha feito o que queria fazer havia muito tempo, mas mais uma vez o destino não permitia
seu sucesso. Nem mesmo depois de um golpe fatal.
- Você não matou o rei - Cleo respondeu tensa - porque o rei já encontrou a morte dias atrás.
Enquanto Jonas tentava desesperadamente processar aquela afirmação incrível, uma mulher desceu a escada. Ela era mais velha, com rugas ao redor dos olhos, e usava um manto cinza-escuro que combinava com
seu cabelo. Entrou na sala de convivência, observando todos os presentes com firmeza, até finalmente fixar o olhar em Gaius.
A mulher o observou por um momento muito breve e, em seguida, lançou um olhar intenso na direção de Jonas.
- Você fez isso com meu filho?
Um arrepio subiu por seus braços e seus ombros, e desceu pela coluna ao perceber a raiva controlada nas palavras dela.
Filho?
- Tudo bem - o rei disse assustado, segurando a manga da blusa da mulher que se apressou para ficar ao lado dele.
- Não está nada bem. Não mesmo. - Ela voltou a encarar Jonas, e com o olhar dela, veio a sensação de que ele estava sendo congelado. - Você ousaria tentar matar seu rei?
- Ele não é meu rei - Jonas respondeu irritado, recusando-se a demonstrar fraqueza ou dúvida. - Ele matou meus amigos em sua guerra doentia, executou aqueles que se recusaram a se submeter, e escravizou
meu povo para construir sua preciosa Estrada Imperial. Nenhuma pessoa nesta sala diria que ele não merece morrer por seus crimes.
Ela cerrou o punho.
- Eu diria.
- Não, mãe - Gaius disse depressa. - Deixe-o em paz. Precisamos dele. Acredito que precisaremos de todos eles para reaver o que Amara pegou.
Devagar, o rei levantou, e Jonas só conseguiu dar um passo incerto para se afastar. O único sinal de que uma adaga tinha atravessado seu coração alguns momentos antes era a camisa rasgada e o sangue no
chão.
- Só a magia mais sombria poderia tornar algo assim possível - uma nova voz disse.
Jonas virou de repente e viu que Ashur Cortas estava atrás deles na entrada da hospedaria.
- Ashur! - Cleo se surpreendeu. - Você está vivo! Mas... como?
Ashur arqueou as sobrancelhas escuras.
- Mais magia negra, receio.
Ela virou para Nic, cuja expressão era neutra.
- Você sabia disso?
Ele assentiu.
- Eu sei, é um choque.
- Um choque? Ele estava morto, Nic! Por que não me contou?
- Eu ia contar. Achei melhor esperar você lidar com a questão do Taran primeiro.
- Ah, obrigada - ela disse, a voz tensa. - Você é muito solícito mesmo.
- Não sei por quê, mas acho que você não está falando sério.
Jonas se virou para Magnus e viu que ele estava sério.
- Estou ficando muito cansado de magia - o príncipe murmurou. - E de absolutamente tudo sobre o que não tenho controle.
- Também é ótimo revê-lo, príncipe Magnus - Ashur disse com um meneio de cabeça.
- Muita gentileza sua nos encontrar, vossa graça - Nic se dirigiu a Ashur, a voz desprovida de qualquer respeito. - Pensei que tivesse criado guelras e cauda e começado a nadar de volta a Kraeshia.
- Hoje não, infelizmente - Ashur respondeu com rispidez.
- Talvez amanhã.
- Talvez.
- Contamos a todos sobre sua ressurreição de fênix agora ou mais tarde? - Nic perguntou.
A expressão de Ashur ficou tensa ao notar o tom ácido de Nic.
- Parece, Nicolo, que há assuntos mais urgente a tratar. Estou certo, não estou, rei Gaius?
O grupo voltou a atenção ao rei, que estava encolhido ao lado da mãe.
- Está, sim, príncipe Ashur.
- Uma aliança contra minha irmã.
- É um problema para você?
- Não. Contanto que não a matem, não vejo nenhum problema.
- Espere - Felix disse de onde estava, ao lado da lareira. - Você sabe que eu pretendia matá-la! Vai mesmo tirar isso de mim?
Ashur lançou um olhar severo para Felix.
- Tudo bem. É um assunto para outro dia - Felix respondeu.
- Príncipe Ashur, você é o herdeiro legítimo de seu pai - o rei explicou. - Tire o título de Amara e tudo isso pode acabar.
- E agora você é o marido dela, pelo que soube. Por que não está a seu lado, orientando suas decisões?
- Não é mais tão simples assim.
- Nada importante é simples, certo?
- O Rei Sanguinário quer que trabalhemos em equipe - Jonas disse, balançando a cabeça. - É a coisa mais ridícula que já ouvi. Não é o que quero.
Gaius bufou, frustrado.
- Sei muito bem o que você quer, rebelde. Você quer que eu morra. Bem, devo dizer que vou morrer em breve.
- Gaius... - a mãe sibilou. - Não vou permitir que fale assim. Não vou permitir!
Ele a silenciou com um aceno.
- Minha primeira prioridade é retomar o controle de meu reino. Mítica não pertence, nem pertencerá, ao Império Kraeshiano.
- Não fosse pela magia que dizem que está adormecida aqui - Ashur disse -, posso garantir que nem Amara nem meu pai dariam tanta importância a essa ilhazinha.
- Acredito que você esteja ciente de que Amara envenenou seu pai e seus irmãos - o rei afirmou. - Ela não sente remorso quando vai em busca do que quer.
A risada sombria de Nic interrompeu a tensão na sala.
- Que engraçado... "Não sente remorso", ele disse, como se considerasse isso um defeito. O mesmo homem que quebrou o pescoço da minha irmã por estar no lugar errado na hora errada. - Ele parou de rir de
repente. - Sua aparência está péssima, vossa majestade. Espero muito que esteja sofrendo neste momento.
- Não fale com o rei desse jeito, Cassian - Milo, o guarda, se manifestou.
Nic lançou um olhar para ele do outro lado da sala.
- O que vai fazer se eu falar? Vai pedir para seu amigo ajudá-lo a me bater?
Milo sorriu e estralou os dedos.
- Posso fazer isso sozinho sem problema.
- Pensei que você estivesse apodrecendo na masmorra.
O sorriso do guarda ficou tenso.
- Preciso lhe agradecer por isso, não?
- Precisa. - Nic semicerrou os olhos. - O que vai fazer em relação a isso, Milo?
- Muitas coisas. Só preciso de tempo.
- Milo, não é? Ouça bem o que vou dizer. - A voz de Ashur estava baixa, como o rosnado de uma fera enjaulada. - Se tentar machucar Nicolo, juro que eu mesmo vou arrancar sua pele.
Jonas virou para Milo. Viu que a única reação dele à ameaça foi piscar, surpreso.
Cleo falou com o rei, depois de lançar um olhar preocupado a Nic e ao guarda.
- Você deu Mítica a Amara - ela disse, deixando claro seu tom de insatisfação. - Não pode apenas pegá-la de volta?
- Você não entende - o rei disse. - Nenhum de vocês entende. O imperador Cortas teria tomado Mítica à força se eu não tivesse agido dessa forma. Dezenas... não, centenas de milhares teriam morrido na guerra
se eu não tivesse feito minha proposta a ele.
- Ah, sim - Magnus disse. - Meu pai, o salvador de todos nós. Deveríamos construir estátuas em homenagem a ele. Uma pena já haver dezenas delas em Limeros. - Magnus arregalou os olhos. - É muita vaidade,
pensando bem. A deusa Valoria não aprovaria.
- Para o inferno com a deusa e com todos os Vigilantes! - o rei rebateu. - Não precisamos da ajuda deles para nos livrarmos de Amara.
- Não esqueça Kyan - Jonas acrescentou.
O rei virou para ele.
- Quem é Kyan?
Jonas não conseguiu conter o riso.
- Adoraria ficar aqui para elaborarmos uma estratégia juntos, vossa alteza, mas cansei dessa farsa. Não vou trabalhar com você hoje, nem amanhã, nem nunca.
- Diga, vossa alteza - Felix disse devagar -, ainda está com o cristal do ar?
Gaius lançou um olhar sério.
- O cristal do ar! - a mãe dele exclamou. - Você está com ele? E não me contou?
- Estou, sim - ele respondeu.
- Onde?
- Em um lugar seguro.
Jonas tentou encarar Cleo nos olhos, mas ela parecia ocupada com uma conversa silenciosa com o príncipe. Quando se entreolhavam, o sorriso de Magnus desapareceu.
- Se for verdade, e quando eu tiver força suficiente para encontrar minha neta - a mulher anunciou -, a vitória será nossa.
Mais uma vez, Jonas riu com frieza.
- Então é esse o segredo para seu grande plano? A princesa Lucia? Acredito que ficará decepcionada quando vir a serpente fria, má e sanguinária que ela se tornou. Mas ela é uma Damora, então talvez você
não se surpreenda nem se desaponte.
A senhora o observou.
- Jonas, não é?
- É o meu nome.
- Meu nome é Selia. - Ela se aproximou sem raiva no olhar ao pegar as mãos dele. - Fique conosco e ouça mais sobre nossos planos. Concordo com meu filho que, apesar de nossas diferenças, ainda podemos
trabalhar juntos. Tente ver isso de modo lógico. Juntos, somos mais fortes.
Ela estaria certa?
- Não sei...
- Fique - Cleo pediu. - Por favor, pense bem, pelo menos. Por mim.
Jonas encarou seus olhos sinceros e azuis.
- Talvez.
Magnus levantou.
- Está sugerindo que os rebeldes fiquem aqui? - ele perguntou em tom acusatório para a avó. - Nesta hospedaria? É a pior ideia que já ouvi.
- Discordo - disse o rei. - Minha mãe tem razão. Podemos chegar a um acordo. Temporário. Temos o mesmo inimigo agora.
Sem saber ao certo se estava prestes a concordar ou discordar dos Damora, Jonas abriu a boca para falar mas foi interrompido por um rosnado furioso vindo da sala de convivência.
Passos foram ouvidos descendo a escada, e Taran entrou com tudo no ambiente. Em um instante, voltou o olhar furioso para Magnus.
A adaga de Jonas - aquela que o rei tinha tirado do peito - estava no chão. Jonas a viu, mas Taran também, recuperando-a num piscar de olhos e percorrendo a distância entre ele e o príncipe.
Taran apontou a adaga para Magnus, mas o príncipe segurou o braço de Taran antes que ele pudesse encostar. Cleo soltou um grito estridente.
- Você está morto - Taran gritou.
Magnus se esforçou para não deixar a lâmina feri-lo, mas Taran o pegou de surpresa e a ira da vingança parecia duplicar sua força.
Então, Felix apareceu atrás de Taran, passando o braço por seu pescoço e puxando-o para trás.
- Não me faça acertar você de novo. Perdi meu pedaço de pau.
Jonas se aproximou e arrancou a adaga da mão de Taran.
- Vou matar você - Taran gritou para o príncipe enquanto Felix o arrastava para trás. - Você merece morrer pelo que fez!
Magnus não revidou. Só ficou observando o rapaz, com uma expressão séria.
- Acho que todos merecemos morrer por algo que fizemos - Jonas disse, aliviando um pouco da tensão que crescia entre o príncipe e o rebelde. - Ou por algo que deixamos de fazer.
O príncipe desfez a expressão séria e olhou incrédulo para Jonas.
- É minha imaginação ou você acabou de ajudar a salvar minha vida?
Jonas fez uma careta ao ouvir a pergunta.
- Parece que sim, não? - Ele olhou para Cleo, cuja expressão era de alívio. Com certeza, a princesa não queria ver mais sangue sendo derramado naquela noite, ele pensou. Nem mesmo o de Magnus. - Pode ser
que eu esteja prestes a cometer um erro horroroso do qual me arrependerei pelo resto da vida, mas decidi aceitar essa aliança. Mas uma aliança temporária, até Amara ser tirada daqui.
Ele esperou a resposta de Ashur. A expressão do príncipe kraeshiano se manteve séria, mas ele assentiu.
- Concordo. Amara precisa perceber o que fez. Ainda que ache que estava certa, tomou o caminho errado. Farei o que puder para ajudar.
- Ótimo. - Jonas apontou para Taran, que Felix ainda segurava. - Compreendo seu luto e sua ira, mas seu desejo por vingança não tem espaço aqui.
Taran lançou um olhar feio para Jonas, segurando o braço de Felix, que apertava sua garganta como uma barra de ferro.
- Você conhecia meus motivos para vir para cá antes de sairmos de Kraeshia.
- Conhecia, mas isso não quer dizer que concordava com eles. Agora tomei minha decisão. Você não vai tentar matar o príncipe Magnus de novo. Não enquanto mantivermos essa aliança.
- Você ouviu bem com essas orelhas gastas? - Felix perguntou a Taran, a voz áspera enquanto aplicava mais força no braço. - Ou preciso repetir mais devagar?
- Abandonei uma rebelião para vir até aqui vingar meu irmão.
- Uma rebelião fadada ao fracasso antes mesmo de começar - Ashur acrescentou.
- Você não sabe.
- Sei. Não me alegra saber, mas sei. Talvez um dia o império que meu pai construiu seja destruído, mas não será logo.
- Veremos.
- Sim, veremos.
Taran lançou mais um olhar raivoso para Jonas.
- Você se uniria a eles por vontade própria?
- Sim - Jonas confirmou. - E peço que considere fazer o mesmo. Podemos precisar de sua ajuda. - Ele fez uma pausa. - Mas não me leve a mal, Taran; se tentar acabar com a vida do príncipe Magnus de novo,
vou acabar com a sua.
15
AMARA
PAELSIA
O deus do fogo tinha sido muito específico sobre o lugar aonde queria que Amara fosse para obter poder infinito. Segundo ele, era um lugar tocado pela magia. Um lugar que até os próprios imortais reconheciam
como um centro de poder.
Ela contou a Carlos sobre a mudança de planos. Não ia se mudar para o palácio limeriano. Não, seu destino ficava mais ao sul de Paelsia, próximo ao antigo complexo do chefe Hugo Basilius.
Em vez de questionar as ordens, Carlos planejou tudo no mesmo instante. Com quinhentos soldados, Amara, Nerissa, Kurtis e o capitão dos guardas viajaram ao reino central de Mítica, que a nova imperatriz
ainda não conhecia.
Pela janela da carruagem, ela via com surpresa o gelo e a neve de Limeros derreterem e darem espaço à terra seca, às florestas mortas e à escassa vida selvagem.
- Foi sempre assim aqui? - ela perguntou, assustada.
- Nem sempre, vossa graça - Nerissa respondeu. - Ouvi dizer que houve uma época, muito tempo atrás, que toda Mítica, de norte a sul, era quente e temperada, sempre verde, com pequenas mudanças de uma estação
a outra.
- Por que alguém moraria em um lugar assim?
- Os paelsianos não podem escolher seu destino e são conhecidos por se conformarem isso, como se a aceitação tivesse se tornado uma religião em si. O povo é pobre, regido pelas regras que seu ex-chefe
e o chefe antes do anterior estabeleceram. Por exemplo, os paelsianos só podem vender vinho legalmente a Auranos, e o vinho é o único produto de exportação valioso deles. Grande parte do lucro é taxado,
e essas taxas foram determinadas pelo chefe.
Sim, o vinho paelsiano era famoso pelo sabor adocicado e por sua habilidade mágica de inebriar depressa e de modo prazeroso, sem mal-estar depois.
Era o vinho que Amara tinha levado para Kraeshia para envenenar sua família.
O que quer que fosse dito sobre a bebida, ela jurava que nunca a beberia por causa da lembrança.
- Por que não vão embora? - ela perguntou.
- Para onde? Poucos teriam dinheiro para ir ao exterior, menos ainda para construir uma casa em outro lugar que não seja aqui. E os paelsianos não podem entrar em Limeros nem em Auranos sem permissão do
rei.
- Tenho certeza de que muitos vêm e vão como querem. As fronteiras não são totalmente monitoradas.
- Não, mas os paelsianos costumam obedecer às leis. A maioria dos paelsianos, pelo menos. - Nerissa recostou na cadeira, as mãos sobre o colo. - Eles provavelmente não vão lhe causar nenhum problema, vossa
graça.
Ouvir aquilo era um alívio, no mínimo, depois de tantos problemas no passado.
Amara continuou observando a paisagem árida pela janela da carruagem durante os quatro dias de viagem desde a partida da quinta de lorde Gareth, esperando ver a terra e a morte se transformarem em verde
e vida, mas isso não aconteceu. Nerissa garantiu que mais a oeste, mais perto da costa, a paisagem melhoraria, e que a maioria dos paelsianos construía casas em vilarejos naquele pedaço da terra; poucos
construíam mais perto dos picos assustadores e sombrios das Montanhas Proibidas, a leste.
Aquele era o reino mais distante da fartura de Kraeshia que ela já tinha visto, e Amara estava torcendo para não precisar passar muito tempo ali.
Na última etapa da viagem, o comboio usou a Estrada Imperial, que se estendia por Mítica de modo curioso, começando no Templo de Cleiona, em Auranos, e terminando no Templo de Valoria, em Limeros. Passava
direto pelos portões de entrada do complexo de Basilius.
Os portões estavam abertos e um homem baixo de cabelo grisalho os esperava, cercado por uma dúzia de paelsianos enormes usando roupas de couro, com cabelo preto preso em tranças minúsculas.
Quando Carlos ajudou Amara a desembarcar da carruagem, o homem fez um leve sinal com a cabeça para ela.
- Vossa graça, sou Mauro, o antigo conselheiro do chefe Basilius. Seja bem-vinda a Paelsia.
Ela olhou para o homem, bem mais baixo do que ela.
- Então, você ficou responsável por este reino depois da morte do chefe?
Ele confirmou.
- Sim, vossa graça. E estou às suas ordens. Por favor, venha comigo.
Junto com o grupo principal de guardas pessoais da imperatriz - incluindo Carlos -, Amara e Nerissa acompanharam Mauro pelos portões de pedra. Um caminho de pedra se estendia pelo vilarejo murado, levando-os
por pequenas casas de sapê parecidas com as que Amara tinha visto enquanto atravessava várias cidades antes de chegar ao complexo.
- Naquelas casas ficavam as tropas do chefe. Infelizmente, quase todos foram mortos na batalha pelo palácio auraniano. - Mauro indicava os pontos de interesse conforme caminhavam pelo complexo, que no
passado fora o lar de mais de dois mil cidadãos paelsianos.
Havia comércios que antes forneciam pão, carne, legumes e frutas, trazidos do Porto do Comércio. Mauro mostrou um espaço onde ficavam as bancas dos vendedores locais, que podiam atravessar os portões todo
mês.
Outra área, uma clareira com bancos de madeira, tinha sido usada como arena para diversão - duelos, lutas e disputas de força que o chefe costumava gostar de assistir. Outra clareira surgiu com restos
de fogueiras, onde o chefe fazia banquetes.
- Banquetes... - Amara comentou surpresa. - Em um reino como este, banquetes são a última coisa que eu esperaria de um líder.
- O chefe precisava de prazeres para abastecer a mente e conseguir explorar os limites de sua força.
- Certo - ela disse. - Ele acreditava ser um feiticeiro, não?
Mauro olhou para ela constrangido.
- Sim, vossa graça.
Para Amara, o chefe Basilius parecia um homem egoísta e pobre de espírito. Ela estava contente em saber que Gaius o havia matado depois da batalha auraniana. Se ele não o tivesse matado, ela teria feito
isso.
Apesar do calor do dia com o sol já forte, Amara sentiu a temperatura ao seu redor aumentar ainda mais.
- Sei que não parece grande coisa, pequena imperatriz, mas garanto que aqui é exatamente onde precisamos estar.
Amara não respondeu, mas reconheceu a presença de Kyan com um meneio de cabeça.
- Estamos perto do centro do poder aqui - ele continuou. - Posso sentir.
- Aqui - Mauro indicou um grande buraco no chão, com cerca de dez passos de circunferência e vinte passos de profundidade para dentro da terra seca - é onde o chefe costumava deixar os prisioneiros.
Amara olhou para dentro do buraco.
- Como eles desciam?
- Alguns eram baixados com uma corda ou escada. Outros simplesmente eram jogados. - Mauro fez uma careta. - Peço desculpas se a imagem não lhe agrada, vossa graça.
Ela o encarou com uma expressão fulminante.
- Garanto, Mauro, que provavelmente não há nada que você possa me contar sobre como os prisioneiros eram tratados que eu consideraria surpreendente ou intolerável.
- Claro, vossa graça. Peço desculpas.
Amara estava cansada dos homens e seus falsos pedidos de desculpa.
- Carlos, cuide para que meus soldados recebam aposentos adequados depois dessa longa viagem.
- Sim, imperatriz. - Carlos fez uma reverência.
- Vossa graça ficará aqui, imperatriz Amara. - Mauro indicou a construção de três andares, feita de terra e pedra, a maior e mais forte do vilarejo. - Espero que seja do seu agrado.
- Com certeza será.
- Organizei tudo para levá-la a uma feira mais tarde e mostrar o trabalho de seus novos súditos paelsianos. Há, por exemplo, alguns bordados lindos que podem ser de seu interesse. E alguns enfeites com
contas para seu belo cabelo. Uma comerciante virá da costa até aqui para trazer uma tinta de frutas silvestres que ela criou para pintar os lábios... - Mauro parou de falar ao ver a expressão contrariada
da imperatriz. - Algum problema, vossa graça?
- Você acha que estou interessada em bordados, enfeites e tintas para os lábios? - Ela esperou a resposta, mas ele só abriu a boca sem emitir nenhum som.
De trás dela, ouviu-se uma risada.
Amara virou imediatamente, os olhos fixos no guarda - seu guarda - que mantinha um sorriso no rosto.
- Está achando engraçado? - ela perguntou.
- Sim, vossa graça - o guarda respondeu.
- Por quê?
Ele olhou para os compatriotas ao redor, e nenhum deles fez contato visual.
- Bem, porque é do que as mulheres gostam: maneiras de ficarem mais bonitas para os homens.
O guarda disse isso sem hesitar, como se fosse óbvio e nada ofensivo.
- Minha nossa - Kyan disse no ouvido dela. - Que insolente, não?
Ela concordava.
- Me diga uma coisa... Você acha que eu deveria comprar tinta para os lábios para agradar meu marido quando ele finalmente voltar para mim? - ela perguntou.
- Acho que sim - ele respondeu.
- Esse é meu objetivo como imperatriz, claro. Agradar meu marido e qualquer outro homem que por acaso olhe para mim.
- Sim, vossa graça.
Era a última coisa que ele diria na vida. Amara fincou a adaga que trazia consigo no homem e viu os olhos dele se arregalarem de surpresa e dor.
- Se algum de vocês me desrespeitar - ela disse, lançando um olhar aos outros guardas que a encaravam, surpresos -, vai morrer.
O guarda que havia dito o que não devia caiu no chão. Ela sinalizou para Carlos retirar o corpo, e ele obedeceu sem hesitar.
- Muito bem, pequena imperatriz - Kyan sussurrou. - Você me prova mais seu valor a cada dia que passa.
Amara abriu um sorriso na direção de Mauro, cuja expressão era de medo.
- Estou ansiosa para ir à feira. Parece incrível.
Mais tarde, escoltadas por Mauro e pelos guardas reais, Amara e Nerissa exploraram a feira, composta por vinte bancas cuidadosamente escolhidas que, como o prometido, vendiam, em sua maioria, produtos
fúteis - principalmente itens de beleza e de moda.
Amara ignorou os lenços e vestidos bordados, a tinta para os lábios, os cremes para remover manchas e os bastões de carvão para delinear os olhos e se concentrou nos comerciantes - paelsianos, jovens e
velhos, com expressão cansada, mas esperançosa, quando ela se aproximava.
Sem medo, sem desespero, só esperança.
Que estranho encontrar isso em um reino dominado, ela pensou. Mas a ocupação kraeshiana de Mítica tinha sido, até aquele momento, quase totalmente pacífica, em espacial em Paelsia. Ainda assim, Carlos
havia contado sobre grupos rebeldes que conspiravam contra ela, tanto em Limeros quanto em Auranos.
Não era um problema para Amara. Os rebeldes eram uma praga inevitável, mas que em geral podia ser combatida com facilidade.
Ela observou quando Nerissa se aproximou de uma banca para ver um lenço de seda que o comerciante mostrava a ela.
- Fico feliz em ver que você está se habituando - Kyan sussurrou carinhosamente no ouvido dela. Os ombros de Amara ficaram tensos com a voz dele.
- Estou fazendo o melhor que posso - ela respondeu em voz baixa.
- Infelizmente tenho que deixá-la por um tempo enquanto procuro a magia de que precisamos para realizar o ritual.
Pensar nisso a assustou. Eles tinham acabado de chegar!
- Agora? Vai embora agora?
- Sim. Em breve, retomarei minha glória, e você será mais poderosa do que pensa. Mas precisamos da magia para finalizar isso.
- A magia de Lucia. E seu sangue.
- O sangue dela, sim. Mas não precisamos da feiticeira em si. Vou encontrar uma fonte alternativa de magia. Mas precisaremos de sacrifícios; sangue para selar a magia.
- Compreendo - ela sussurrou. - Quando você volta?
Amara esperou, mas não houve resposta.
Então, ela sentiu sua saia mexer e olhou para baixo. Uma menininha, que não devia ter mais do que quatro ou cinco anos, com cabelo bem preto e sardas no rosto bronzeado, aproximou-se com certa hesitação,
oferecendo uma flor.
Amara aceitou a flor.
- Obrigada.
- É você, não é? - a menina perguntou esbaforida.
- Quem você acha que sou?
- Aquela que veio salvar todos nós.
Amara sorriu e lançou um olhar para Nerissa, que estava ao seu lado usando um lenço colorido, e então sorriu para a criança.
- É o que você acha?
- Foi o que minha mamãe me disse, então deve ser verdade. Você vai matar a bruxa má que machuca nossos amigos.
Uma mulher se aproximou, claramente envergonhada, e pegou a mão da menininha.
- Perdoe-nos, imperatriz. Minha filha não teve a intenção de perturbá-la.
- Não me perturbou - Amara disse. - Sua filha é muito corajosa.
A mulher riu.
- Está mais para teimosa e tola.
Amara balançou a cabeça.
- Não, nunca é cedo demais para as meninas aprenderem a dizer o que pensam. É um hábito que as fará crescer mais corajosas e fortes. Diga, você acredita no que ela disse? Que vim salvar todos vocês?
A expressão da mulher se tornou mais séria, e seu cenho se franziu com preocupação e dúvida. Ela encarou os olhos de Amara.
- Meu povo sofreu por mais de um século. Estávamos sob o comando de um homem que tentou nos fazer acreditar que ele era feiticeiro, cobrando impostos tão altos a ponto que, mesmo com os altos lucros das
vinícolas, não conseguíamos nos sustentar. A terra que chamamos de lar está se desfazendo sob nossos pés enquanto estamos aqui conversando. Quando o rei Gaius venceu Basilius e o rei Corvin, muitos de
nós achamos que ele nos ajudaria. Mas isso não aconteceu. Nada mudou, só piorou.
- Sinto muito em ouvir isso.
A mulher balançou a cabeça.
- Mas então a senhora chegou. Aquela feiticeira má passou por aqui destruindo tudo, vilarejo por vilarejo, mas ela desapareceu quando a senhora chegou. Seus soldados têm sido rigorosos, mas justos. Eles
acabaram com quem discordava, mas essas pessoas não fazem falta: seus detratores são os mesmos homens que espalharam a discórdia em nosso reino depois que o exército de Basilius parou de oferecer a pouca
proteção que oferecia. Então, se acredito, como muitos aqui acreditam, que a senhora chegou para nos salvar? - Ela ergueu o queixo. - Sim, acredito.
Quando os guardas levaram Amara para longe da mulher e da filha, em direção à outra área da feira, aquelas palavras ficaram em sua mente.
- Posso fazer uma sugestão ousada, vossa graça? - Mauro perguntou, e ela olhou para o homenzinho que a seguia como um cão adestrado.
- Claro que pode - ela disse. - A menos que queira sugerir que eu compre tinta para os lábios.
Ele empalideceu.
- De modo algum.
- Então, vá em frente.
- O povo paelsiano está aberto a sua liderança, mas a notícia precisa ser espalhada. Sugiro abrir os portões do complexo para permitir que os novos cidadãos entrem para ouvi-la falar sobre seus planos
para o futuro.
Um discurso, ela pensou. Era algo que Gaius gostaria muito mais de fazer do que ela.
Mas Gaius não estava lá. E agora que tinha o deus do fogo para aconselhá-la sobre como acessar a magia da esfera de água-marinha, não havia mais motivos para deixar o rei viver por muito mais tempo.
- Quando? - ela perguntou a Mauro.
- Posso espalhar a notícia agora mesmo. Milhares virão dos vilarejos vizinhos para ouvi-la. Talvez em uma semana?
- Três dias - ela disse.
- Três dias parece perfeito - ele concordou. - Será maravilhoso. Muitos paelsianos, de braços e coração abertos, estão prontos a obedecer a todas as suas ordens.
Sim, Amara pensou. Um reino pronto para fazer o que ela mandasse sem questionar, que aceitaria uma mulher como líder sem discutir, seria incrivelmente útil.
16
MAGNUS
PAELSIA
Magnus pensou nas doze pessoas que estavam na hospedaria Falcão e Lança, notando que quase metade queria vê-lo morto.
- E você é uma delas, com certeza - ele murmurou quando Nic atravessou a sala, arregalando os olhos ao passar pelo príncipe. Magnus estava sozinho sentado a uma mesa com um caderno de desenho que tinha
encontrado em uma gaveta em seu quarto.
- Cassian, veja - ele disse. - Desenhei você.
Magnus ergueu o caderno. Com os dedos manchados de carvão, ele mostrou uma página na qual tinha desenhado um garoto magro pendurado em uma forca, a língua para fora da boca, X mórbidos no lugar dos olhos.
Nic, que supostamente era muito simpático com todo mundo, lançou um olhar de puro ódio para Magnus.
- Você acha isso engraçado?
- O que foi? Não gostou? Bom, dizem que a arte é subjetiva.
- Você acha que gastar seu tempo rabiscando nesse caderno vai fazer todo mundo considerar você menos ameaçador? Pense bem. Essa pose de inocente e bacana não me engana.
Magnus revirou os olhos.
- Certo - ele disse, enfiando o caderno embaixo do braço. - Mas não posso dizer que você não me magoou. Pensei que tivéssemos nos tornado amigos em Limeros.
Nic semicerrou os olhos, sem achar graça.
- A única coisa que me ajuda a dormir à noite é saber que Cleo sabe muito bem quem você é.
- Espero muito que você esteja certo - Magnus respondeu sem dar muita atenção. Ele nunca tinha deixado as palavras de Nic atingi-lo antes, e não deixaria agora, mas a questão de Cleo era um espinho. -
Acho muito interessante ver que vocês decidiram ficar aqui na cova do leão.
- Talvez você esteja enganado a respeito de quem é o leão e quem é a presa.
Magnus deu risada.
- Conversar com você é sempre muito estimulante, Nic. De verdade. Mas tenho certeza de que tem outros lugares para onde ir, e eu detestaria fazer um cara tão brilhante como você perder tempo. Sem dúvida
já atrapalhei seu próximo compromisso que é... qual é mesmo? Ficar à sombra de Ashur, à espera da maravilhosa atenção dele, agora que conseguiu voltar dos mortos? - Por ter testemunhado a morte de Ashur,
Magnus ainda estava tentando processar a informação de que ele estava vivo. - Muito triste, de verdade, que ninguém veja o que de fato está acontecendo entre o príncipe ressuscitado e o ex-cavalariço.
Foi o suficiente para fazer Nic corar.
- E o que seria, Magnus? O que você acha que está acontecendo?
Magnus fez uma pausa, encarando o olhar incerto de Nic.
- O sabor da decepção amorosa é amargo, não é?
- Imagino que você entenda bem sobre o assunto, não? - Nic rebateu. - Nunca esqueça que Cleo odeia você. Você matou todo mundo que ela ama. Roubou o mundo dela. É uma verdade que nunca vai mudar.
Lançando um último olhar, Nic saiu da sala, deixando Magnus furioso, bufando, com vontade de socar alguma coisa. Ou alguém.
Ele está enganado, ele disse a si mesmo. O passado não determina o presente.
E era no presente que ele tinha que se concentrar. Precisavam encontrar Lucia o mais rápido possível.
Por que esperar mais um dia para minha avó encontrar a pedra mágica?, ele pensou. Eles estavam ali, acovardados como vítimas, quando deveriam estar fazendo o máximo possível para tirar aquela kraeshiana
de suas terras para sempre.
Magnus empurrou o caderno de desenho para o centro da mesa e levantou. Ele ia encontrar a avó e exigir que ela - com ou sem a magia totalmente restaurada - testasse um feitiço para encontrar sua irmã.
- Está sozinho nessa sala enorme?
Ele parou ao ouvir a voz de Cleo. Ela estava na base da escada, observando-o do outro lado da sala enorme.
- Parece que sim - ele diz. - Mais um motivo para você não entrar.
Ela entrou mesmo assim.
- Parece que não conversamos a sós há muito tempo.
- Faz dois dias, princesa.
- Princesa - ela repetiu, mordendo o lábio inferior. - Minha nossa, você está fingindo muito bem. Na verdade, não sei se é só fingimento mesmo.
- Não sei ao certo do que você está falando. - Ele olhou para Cleo como um homem faminto olhava para um banquete. - Esse vestido é novo?
Ela alisou a saia de seda, da cor de um pêssego maduro.
- Olivia e eu fomos a uma feira perto das docas hoje.
- Você e Olivia fizeram o quê? - Ele franziu a testa, assustado por não saber que a princesa tinha decidido se arriscar por aí. - Que péssima ideia. Você poderia ter sido reconhecida.
- Por mais que eu goste de ser repreendida, acho que preciso dizer que ninguém me reconheceu, já que usei meu manto. E não estávamos sozinhas. Enzo e Milo estavam conosco, para nos proteger. Ashur também.
Ele está explorando a cidade para saber o que os paelsianos pensam sobre a notícia da chegada da irmã dele.
- E o que dizem?
- Ashur disse que a maioria parece... disposta a mudar.
- É mesmo?
- Qualquer coisa depois do chefe Basilius seria um progresso. - Ela hesitou. - Bem, à exceção do seu pai, claro.
- Claro. - Magnus não se importava muito com os paelsianos nem com os auranianos, na verdade. Ele só se importava com o fato de Cleo ter saído da hospedaria sem que ele notasse. - Não importa com quem
você saiu, porque ainda assim foi uma péssima ideia.
- Assim como beber até cair toda noite na taverna Videira Púrpura - ela respondeu, meio tensa. - E, no entanto, é o que você faz.
- É diferente.
- Tem razão. O que você faz é muito mais idiota e tolo do que passar o dia explorando uma feira.
- Idiota e tolo - ele repetiu, franzindo a testa. - Duas palavras que nunca foram usadas para me descrever.
- Elas são certeiras - disse Cleo, o tom firme e a testa franzida. - Quando vi você naquela primeira noite com Taran...
O som daquele nome atravessou o espaço entre eles como a lâmina afiada de um machado cortando um tronco de árvore.
- Sei que a presença dele aqui deve ser difícil para você - Magnus comentou, sentindo a garganta apertar. - Aquele rosto... Todas aquelas lembranças horrorosas que ele sugere...
- A única lembrança horrorosa de Taran que tenho é a da lâmina dele pressionada contra sua garganta. - Cleo parou, observando a expressão de Magnus e franzindo mais a testa. - Você entende que, quando
olho para ele, só vejo Theon?
- E como não veria?
- Admito que foi inesperado encontrá-lo. Mas Theon se foi. Sei disso. Já aceitei isso. Taran não é Theon. Mas é uma ameaça.
- Compreendo.
- Compreende? - Cleo continuou a observá-lo concentrada, como se fosse um enigma que ela precisasse decifrar. - Mas você pensou mesmo que eu o veria e esqueceria tudo o que aconteceu desde aquele dia?
Que o ódio que eu sentia por você voltaria a me cegar? Que eu... o quê? Me apaixonaria por Taran Ranus no mesmo instante?
- Parece mesmo um tanto quanto absurdo.
Ela ficou pensativa.
- Bom, Taran é muito bonito. Tirando o fato de querer você morto, o que é, admito, um objetivo que também já tive. Ele seria um pretendente perfeito.
- Deve ser muito divertido me atormentar.
- Muito - ela provocou, abrindo um sorriso discreto, mas levemente triste. Cleo segurou as mãos dele, e a sensação de sua pele quente junto à dele foi como um bálsamo numa ferida dolorosa. - Nada mudou
entre nós, Magnus. Saiba disso.
As palavras dela confortaram sua alma atormentada.
- Fico muito feliz em saber disso. Quando pretende contar aos outros?
No mesmo instante, a expressão dela ficou tensa.
- Não é o momento. Há muita coisa em risco agora.
- Nic é a pessoa mais próxima de você, seu amigo mais querido, e ele me odeia.
- Ele ainda vê você como um inimigo. Mas, um dia, sei que vai mudar de ideia.
- E se não mudar? - Ele a encarou nos olhos. - O que vamos fazer?
- Como assim?
- Escolhas, princesa. A vida parece cheia delas.
- Você está pedindo para que eu escolha entre você e Nic?
- Se ele se recusar a aceitar... isso, o que quer que seja, princesa, então acho que você teria que escolher.
- E você? - ela finalmente perguntou depois de um longo momento de silêncio. - Quem você escolheria se alguém ou algo o forçasse? Eu? Ou Lucia? Sei muito bem que ela foi seu primeiro amor. Talvez você
ainda a ame como antes.
Magnus grunhiu.
- Garanto a você que não existe nenhum sentimento dessa natureza entre mim e Lucia. E no que diz respeito a ela, nunca existiu.
Seu coração tinha feito tanto progresso nos últimos meses que ele se perguntava se ainda era a mesma pessoa que tinha sofrido de amor por sua irmã adotiva. Apesar de ter assumido uma forma diferente, aquele
amor ainda estava ali, dentro dele. Não importava o que Lucia pudesse fazer ou dizer, Magnus a amava incondicionalmente e estava pronto para perdoá-la por qualquer erro.
Mas o desejo que ele já sentira por sua irmã... seu coração tinha se voltado total e permanentemente para outra pessoa - alguém muito mais frustrante e perigosa do que sua irmã adotiva.
- Afinal, Lucia escolheu fugir com o tutor. - Cleo relembrou.
Ele franziu os lábios.
- Sim, e agora o destino do mundo depende da localização dela. - Cleo olhou para ele duvidosa. - O que foi, princesa? - ele perguntou. - Está em dúvida?
- Eu... - Cleo começou a falar, e então parou e olhou para os próprios pés, como se estivesse refletindo sobre o assunto. - Magnus, só não tenho certeza de que ela seja a única solução com a qual você
parece contar.
- Ela tem ligações com o deus do fogo. Acredito que saiba como extrair a magia dos cristais da Tétrade sem permitir que o deus elementar escape.
- Parece que foi ela quem ajudou Kyan a escapar, se estão viajando juntos. Só pode ser.
- Talvez. Mas a magia dela é ampla.
- Ampla o suficiente para matar todos nós.
- Você está enganada - Magnus disse sem hesitar. - Ela não faria isso. Lucia vai nos ajudar, vai ajudar a todos. - Sempre que falava bem de Lucia, ele percebia que Cleo contraía os lábios e franzia a testa
como se estivesse comendo alguma coisa amarga.
Será que ela poderia estar com ciúme do que sinto por Lucia?, ele se perguntou, achando graça.
- Vejo que você fica feliz quando pensa em sua irmã adotiva - ela comentou tensa, em um tom desagradável. - Tenho certeza de que pensar nela é uma ótima válvula de escape para você enquanto estamos presos
aqui em Paelsia, cercados por rebeldes que adorariam a oportunidade de incendiar esta hospedaria com toda a realeza dentro.
- É esse o plano abominável de Agallon? - ele perguntou, contraindo os lábios e franzindo a testa. - O que mais ele contou na calada da noite desde que chegou?
- Muito pouco, na verdade.
Magnus deu um passo na direção dela. Cleo deu um passo para trás: a dança na qual se envolviam de vez em quando. Os dois continuaram até ele encurralá-la em um canto, e ela lançar um olhar desafiador.
- Talvez você preferisse dividir um quarto com o rebelde do que comigo - ele disse, enrolando uma mecha do cabelo dela no dedo. - Mas ele provavelmente preferiria uma casa na árvore feita de tábuas e barro.
Cleo riu.
- É nisso que está decidindo se concentrar agora?
- Sim. Porque se me concentrar em Agallon, posso parar de pensar em você e em como quero levá-la para a minha cama.
Ela só teve tempo de soltar um breve suspiro antes de Magnus beijá-la, segurando-a pela cintura e puxando-a para si. Cleo retribuiu sem limitações.
As mãos dele deslizaram pelo corpo da princesa, passando pela lombar, chegando à curva de seu quadril. Desesperado para se inclinar e beijá-la direito, ele pegou suas pernas por trás e a levantou, pressionando
suas costas contra a parede.
Sim, ela deveria fazê-lo parar naquele momento.
Mas não foi o que aconteceu. Na verdade, Cleo tinha começado a puxar os cordões da camisa dele, sem afastar seus lábios nem por um segundo.
- Quero você - ele sussurrou enquanto a beijava. - Quero tanto você que posso morrer de desejo.
- Sim... - O hálito dela era doce e quente. - Também quero você.
Quando Magnus a beijou, toda a racionalidade sobre a maldição desapareceu de sua mente. Nada mais existia, só a necessidade enlouquecedora e alucinante de tocá-la, de senti-la...
Pelo menos, até ouvir passos de alguém se aproximando por trás.
Foi nesse momento que Magnus percebeu que não estavam mais sozinhos.
Deixando a princesa de volta ao chão, devagar, Magnus se forçou a se afastar e, com os ombros tensos, enfrentar o intruso.
Apesar de sua altura intimidadora e dos músculos avantajados, Felix Gaebras parecia envergonhado.
- Hum... Desculpe interromper. Eu estava... só passando. - Mas ficou parado onde estava, e então, ergueu o queixo. - Perdoe-me por dizer, vossa alteza - ele disse, olhando para Magnus -, mas talvez seja
melhor o senhor ser mais discreto com a princesa de agora em diante.
- É mesmo? - Magnus perguntou.
Felix assentiu.
- Nic convenceu a todos do seu ódio por Magnus, princesa. E isso... não me pareceu uma atitude de ódio. Ele vai enlouquecer.
Cleo se afastou de Magnus, os dedos nos lábios e o rosto corado.
- Por favor, Felix - ela disse, quase desesperada. - Prometa que não vai contar nada a Nic sobre isso. Nunca.
Felix fez uma reverência.
- Não se preocupe, princesa. Não direi nada.
- Obrigada.
Magnus disfarçou a careta. Algo no modo como ela falou, no alívio que pareceu sentir por ter sido Felix quem os vira juntos e não alguém cuja opinião considerasse mais importante, o incomodou demais.
Se Ashur podia buscar informações sobre Amara, Magnus também podia. Naquela tarde, ele deixou a hospedaria, subiu a rua até a feira que Cleo havia mencionado e passou na porta da tentadora Videira Púrpura.
Na feira, ele mal olhou para as bancas de madeira com lonas coloridas protegendo os comerciantes do sol, cada um vendendo um produto paelsiano diferente - de vinho a joias, de frutas e legumes a lenços
e túnicas de todas as cores, e diversas outras mercadorias. No movimentado labirinto de bancas, sentia-se o cheiro adocicado das frutas e da carne defumada, e mais perto das docas, o cheiro de suor e vômito
pegou as narinas de Magnus de surpresa. Entre os diversos clientes da feira, incluindo a tripulação de navios e os cidadãos comuns da cidade, vários guardas kraeshianos chamaram sua atenção.
Ele observou um dos homens de Amara conversar com um vendedor de vinho paelsiano que lhe ofereceu um pouco da bebida. O copo de madeira não foi oferecido com mãos trêmulas nem medo nos olhos do vendedor,
mas com um sorriso.
Para Magnus, era irritante ver que muitos paelsianos aceitavam o destino de se tornar parte do Império Kraeshiano sem se preocupar com nada. Será que as coisas estavam tão ruins antes que pensar em Amara
como nova líder era uma dádiva?
Ele continuou a observar essa dinâmica entre paelsianos e kraeshianos até o sol ficar alto e insuportavelmente quente para continuar com o manto com capuz. Como já havia tido contato com paisagens, sons
e cheiros bons e ruins da feira de Basilia, decidiu voltar.
Magnus virou na direção da hospedaria e descobriu que havia alguém em seu caminho.
Taran Ranus.
O príncipe se forçou a não deixar claro que encontrar o gêmeo de Theon - alguém que quase tinha conseguido vingar o assassinato de seu irmão - o tinha assustado. Mas antes que Magnus decidisse o que dizer,
Taran tomou a liberdade de falar.
- Estou curioso - ele disse em voz baixa. - Quantas pessoas você matou?
- Essa pergunta é muito pessoal para um lugar tão público.
Taran continuou, sem se deixar abater.
- Sabemos que matou meu irmão. Quem mais?
Magnus tentou não se encolher, tentou não levar a mão ao cabo da espada. A espada de Taran também estava visível, pendurada no quadril.
- Não sei ao certo - admitiu.
- Aceito uma estimativa.
- Muito bem. Talvez... uma dúzia.
Taran assentiu, sem deixar sua expressão revelar o que passava em sua mente quando olhou para a feira movimentada ao redor deles.
- Quantas pessoas você acha que eu matei?
- Mais de uma dúzia, tenho certeza - Magnus respondeu. Ele contraiu os lábios. - Por quê? Está aqui para me provocar com suas habilidades com a espada? Para contar histórias de como fez homens maus chorarem
chamando pela mãe diante da morte? Que mataria mais mil se isso fizesse o sol brilhar e a felicidade imperar nesse mundo?
Taran observou Magnus, semicerrando os olhos. Para alguém que quase tinha posto a hospedaria a baixo em uma noite para tentar cortar o pescoço de Magnus, ele parecia bem calmo naquele dia.
- Você se arrepende de ter matado meu irmão? - ele finalmente perguntou, ignorando as perguntas de Magnus.
Magnus pensou em mentir, sem saber se deveria fingir arrependimento. Mas sua intuição lhe disse que não conseguiria enganar o gêmeo de Theon.
- Não - ele afirmou com o máximo de confiança que conseguiu. - Minha vida estava em risco. Tive que me proteger de alguém muito mais habilidoso com a espada do que eu era na época, por isso agi. Não posso
dizer que me arrependo de ter tomado as medidas necessárias para salvar minha vida, apesar de saber que hoje não faria as escolhas que fiz naquele momento.
- Qual escolha faria hoje?
- Combate direto. Minhas habilidades de luta melhoraram muito no último ano.
Taran assentiu, mas seu rosto não deixou transparecer nada.
- Meu irmão teria vencido você.
- Talvez - Magnus disse. - Mas e daí? Imagino que você esteja aqui para tentar me matar diante dessas pessoas. É isso? Ou estamos só conversando?
- Foi exatamente para isso que o segui até aqui: quero decidir o que fazer. Antes era muito simples, estava muito claro em minha mente que você tinha que morrer.
- E agora?
Taran puxou a espada da bainha, mas só o suficiente para mostrar a lâmina que trazia uma série de símbolos e palavras desconhecidas gravadas na superfície.
- Essa era a arma de minha mãe. Ela me contou que as palavras gravadas estão na língua dos imortais.
- Interessante - Magnus disse, o corpo tenso e pronto para a luta. - Sua mãe era bruxa?
- Sim. Ela era uma Vetusta, uma bruxa que adorava os elementos com magia de sangue e sacrifício.
- Tenho certeza de que você está me contando isso por um motivo.
- Estou. Pedi para você adivinhar quantas pessoas eu matei. - Taran embainhou a espada. - A resposta é uma. Apenas uma.
Uma gota de suor correu pelas costas de Magnus.
- Sua mãe.
Taran assentiu com seriedade.
- As Vetustas acreditam que os gêmeos têm uma magia poderosa. - Ele balançou a cabeça, franzindo a testa. - Existe uma lenda quase esquecida que diz que os primeiros imortais criados foram os gêmeos: um
escuro e um claro. Minha mãe acreditava que a magia sombria era muito mais poderosa, então, para aumentar a dela, decidiu sacrificar o gêmeo claro.
- Theon.
- Na verdade, não. Fui eu, cinco anos atrás, quando tinha quinze anos. Talvez minha mãe achasse que eu fosse permitir que ela usasse essa mesma espada para me matar, mas estava enganada. Eu reagi e a matei.
Theon chegou naquele momento e me viu empunhando uma espada e nossa mãe morta a meus pés. Ele não sabia o que ela era de verdade. Eu mesmo só descobri a verdade recentemente. Ele jurou que eu pagaria com
a vida por tê-la matado, e eu sabia que ele nunca compreenderia. Então corri o máximo que pude, sem olhar para trás. Até agora. - Ele riu, e o som saiu seco e oco. - Parece que temos isto em comum: nós
dois fomos forçados a matar para nos proteger, uma atitude da qual não podemos nos arrepender, porque, sem ela, não estaríamos vivos hoje.
Magnus não sabia o que dizer. A confissão de Taran o deixou sem fala. Ele se concentrou na movimentação da feira, fechando os olhos com força por um momento.
Quando voltou a abri-los, Taran se afastava dele em meio à multidão. Ele o observou à distância, pensando na conversa e sentindo-se grato por não ter tido que lutar para defender a própria vida naquele
dia.
Quando voltaram para a hospedaria, Jonas estava na sala de convivência, como se os estivesse esperando. Ele levantou da cadeira e largou o livro que estava lendo. Magnus notou com surpresa que era o mesmo
que tinha lido, sobre vinhos.
- Taran, precisamos conversar - Jonas anunciou. - No pátio não seremos ouvidos por bisbilhoteiros. Felix já está esperando. Você também, vossa alteza.
Magnus inclinou a cabeça.
- Eu?
- Foi o que eu disse.
- Agora estou profundamente confuso. Muito bem. Vamos lá, rebelde.
Atrás da casa havia um espaço a céu aberto que o dono da hospedaria e sua esposa chamavam de pátio. Na verdade, era uma área de grama marcada por uma horta, flores e dois cercados para os animais - um
para as galinhas e outro para os porcos gordos que guinchavam alto quando alguém se aproximava.
Magnus e Taran acompanharam Jonas até onde Felix estava, no canto oposto do jardim.
- Temos informação sobre Amara - Jonas disse finalmente. - Ela está aqui em Paelsia.
Magnus tentou não demonstrar insatisfação.
- Informação vinda de quem?
- Há rebeldes por todos os lados, alteza.
O primeiro ímpeto de Magnus foi querer lembrar Jonas que a maioria dos rebeldes havia morrido, mas decidiu se controlar.
- Muito bem. Onde em Paelsia?
- No complexo do chefe Basilius.
- E onde, exatamente, é isso?
- A um dia de viagem daqui rumo ao sudeste. Fico surpreso por você não saber, já que é um ponto importante na Estrada de Sangue de seu pai.
- Estrada Imperial - Magnus o corrigiu.
- Estrada de Sangue - Jonas repetiu, rangendo os dentes.
Magnus decidiu não discutir a questão com um paelsiano, nem tocar no assunto de como ela tinha sido construída tão depressa pelos trabalhadores paelsianos sob ordens de seu pai. Não era à toa que os cidadãos
daquele reino tinham recebido Amara tão bem.
- E esse informante também explicou por que ela veio para cá?
- Não.
- Não importa por que ela está aqui - Felix disse. - Essa é nossa chance.
- De quê? - Magnus perguntou. - De matá-la?
- Essa era a ideia.
- Não era, não - Jonas disse, arregalando os olhos para o amigo.
- Matar a imperatriz não muda o fato de que meu pai deu este reino para a família dela. Não muda que os soldados estão tão espalhados quanto manchas de lama. E Ashur? Você o trouxe aqui como se confiasse
nele, mas não sabemos qual é o plano dele.
- Ashur é um problema, admito - disse Jonas. - Nic está de olho nele, informando qualquer comportamento incomum.
- Ah, sim. - Magnus cruzou os braços. - Isso deve dar certo. Então, você - ele virou para Felix - quer matar a imperatriz. E você - ele virou para Jonas - quer pagar para ver. - Ele assentiu. - Excelentes
decisões. Acho que Amara não terá chance contra essa aliança.
Jonas hesitou.
- Taran, você não planejava matá-lo?
- Sim.
- Estou começando a me animar com essa possibilidade.
- Está claro que - Magnus começou -, se sabemos onde Amara está, a melhor estratégia é mandar homens para obter mais informações sobre os planos atuais dela, por que está aqui e onde escondeu o cristal
da água.
Taran resmungou.
- Odeio concordar com ele, mas concordo. Posso ir. Não tenho motivos para ficar aqui sem nada para fazer, olhando para as paredes.
- Também vou - Felix anunciou animado.
Jonas lançou um olhar cauteloso para Felix.
- Você acha que consegue lidar com isso sem fazer nada de errado?
- Claro que não. Mas ainda assim, quero ir. - Felix suspirou. - Prometo que vamos conseguir informações. E só isso.
Magnus preferia entrar em ação, como Felix, e simplesmente varrer Amara do mundo, mas sabia que informações seriam úteis com os dois reinos em guerra.
- Devemos contar a Cleo sobre isso? Ou a Cassian?
- Por enquanto, não - Jonas respondeu. - Quanto menos pessoas souberem, melhor.
Magnus não gostava de guardar segredos de Cleo, mas Jonas tinha razão.
- Tudo bem. Vamos manter esse assunto entre nós quatro.
Jonas assentiu.
- Então, resolvido. Taran e Felix partem amanhã cedo.
17
CLEO
PAELSIA
- Você viu o príncipe Ashur por aí? - Nic perguntou.
Cleo desviou o olhar do livro sobre a vida do chefe Basilius que tinha escolhido na estante do andar de baixo. Seus pensamentos estavam tão dispersos que ela devia ter lido a mesma página dez vezes - que
contava sobre os cinco casamentos dele.
Nic estava parado na porta do quarto dela. Enzo estava de guarda do lado de fora, um protetor constante, mas ela tinha deixado claro que Nic podia interrompê-la.
- Hoje não - ela admitiu, ainda chocada por ter visto que o príncipe tinha renascido dos mortos. - Por quê? Isso é estranho?
- Ele gosta de sair por aí sem avisar ninguém. - Ele ficou sério. - Você acha que ele está diferente? Não sei dizer.
- Para mim, ele está igual, mas não o conheço muito bem - ela admitiu.
- Nem eu.
- Ah, não sei. Às vezes não precisamos de anos para conhecer alguém. Algumas conversas são mais do que suficientes para saber como a pessoa é.
- Se você acha...
Cleo sabia que Nic e Ashur eram bem próximos, a ponto de seu amigo ter sentido muito a perda do príncipe. E também sabia que existia mais do que uma simples amizade entre os dois, mas emoções que os dois
estavam apenas começando a explorar. Talvez agora nunca mais se resolvessem.
- Parece que Taran e Felix também sumiram - ela disse. - Onde eles estão?
- Ótima pergunta. Pensei que Jonas fosse meu parceiro, mas parece que ele tem negócios com Magnus agora.
- O quê? - Só de pensar, ela sentiu vontade de rir. - Se você viu os dois conversando, é bem provável que o assunto seja o rei.
Desde que Jonas conseguira - ainda que não tenha conseguido - cravar a adaga no peito do rei, dois dias antes, Gaius não saía do quarto, com a mãe a seu lado o tempo todo, temendo que o filho estivesse
perto demais da morte e não sobrevivesse tempo suficiente para receber a magia secreta e restauradora que ela prometera.
Cleo temia que, se o rei morresse antes de a bruxa encontrar Lucia, ela se recusaria a ajudá-los, mas não se incomodava em imaginá-lo sofrendo em um quartinho em Paelsia.
Um fim adequado para um monstro.
Como será que Gaius Damora era quando conheceu a mãe dela? A que horrores ele teria submetido Elena Corso? Era uma pergunta que a perseguia desde que ele dissera o nome dela.
- Você confia nele? - A voz de Nic interrompeu seus pensamentos.
- Em quem? Magnus?
Ele riu.
- Não, claro que não estou falando de Magnus. Em Jonas.
Ela confiava em Jonas, o garoto que a tinha sequestrado e aprisionado - não uma, mas duas vezes - e que, em determinado momento, quis que ela morresse por presenciar o assassinato de seu irmão?
Mas também era o garoto que se tornara um líder. Que lutara por seu povo. O garoto que tinha arriscado a própria vida para salvar a dela.
- Confio nele, sim - ela admitiu.
Muita coisa podia mudar em um único ano.
- Eu também - Nic disse.
Ela assentiu.
- Se ele está falando com Magnus, deve ser importante.
- Ainda assim, não gosto de pensar que esteja escondendo alguma coisa de nós.
Cleo também não gostava, principalmente se fosse um segredo entre Jonas e Magnus. E jurou que conseguiria algumas respostas. Ela não gostava de ficar por fora das questões.
Naquele mesmo dia, a chance apareceu. Quando Magnus pediu para falar com Enzo no pátio, ela começou a procurar informações por conta própria na hospedaria. Logo encontrou algo possivelmente interessante
na sala de convivência: o caderno de desenho de Magnus.
Cleo já tinha visto Magnus desenhando nele, os dedos pretos por causa do carvão. Os limerianos não gostavam tanto de arte quanto os auranianos, que viam a beleza como um presente que o artista compartilhava
com o mundo por meio de sua visão singular. Mas quando um limeriano desenhava, precisava ser bem semelhante ao original para ajudar na referência e no aprendizado.
Para isso, Magnus tinha passado um verão tendo aulas de arte na Ilha de Lukas muitos anos antes, uma viagem que muitos nobres e jovens da realeza - incluindo a mãe e a irmã de Cleo - faziam na juventude.
Ela já tinha visto o antigo caderno de Magnus, no qual havia desenhos incrivelmente detalhados da flora e da fauna... além de vários retratos de Lucia, cada um feito com admiração indiscutível e atenção
a cada centímetro do rosto perfeito da irmã.
Mas aquele era um caderno novo, o que deixou Cleo extremamente intrigada.
- Eu não devia olhar - ela disse a si mesma. - Magnus não me deu permissão.
Mas esse argumento nunca tinha funcionado.
O primeiro desenho era do jardim, um rascunho rápido, mas as dimensões e a precisão eram espantosas. Antes de abandonar aquele desenho, ele tinha se concentrado no detalhe de uma roseira, e mesmo com o
traço grosso do carvão, tinha capturado a beleza em tons de preto e cinza.
A segunda, a terceira e a quarta páginas tinham sido arrancadas sem cuidado.
Na quinta página, não havia um desenho, mas uma mensagem.
Espiando para encontrar um retrato seu, princesa? Desculpe, mas hoje não. Talvez um dia eu desenhe você. Ou talvez não. Vamos ver o que o futuro nos reserva.
M.
Cleo fechou o caderno envergonhada, e também irritada.
Quando ouviu gritos, correu para as janelas com cortinas de lona grossa que davam para o pátio nos fundos da hospedaria.
O príncipe estava empunhando a espada, mirando em Milo e Enzo, que também seguravam suas armas. Quando atacaram, Cleo soltou um grito de susto antes de perceber o que estava acontecendo.
Eles estavam treinando. E a julgar pela força de ataque de Milo e de Enzo, Magnus tinha pedido para os dois darem o melhor de si.
Será que ela nunca tinha visto Magnus assim antes, em guarda, a testa suada, bloqueando as armas dos guardas com a espada? Ela pensou que aquilo podia trazer lembranças horrorosas daquele dia - do dia
em que perdera Theon. Mas naquela visão Magnus era um príncipe sem habilidade comparado a um guarda do palácio, e ele sabia disso.
Sinto muito, Theon, ela pensou, o coração apertado. Não esperava sentir isso por Magnus. Mas sinto. Não posso mais me apegar à sua lembrança. Não posso odiar o príncipe pelo que aconteceu, pelo que ele
fez naquele dia. Magnus está muito diferente agora.
Ou talvez Cleo tivesse mudado irreversivelmente.
- Na minha opinião, não estão lutando tanto quanto deveriam.
Cleo se assustou com a voz de Jonas. Ela o viu a seu lado, escondido até aquele momento, com os olhos arregalados.
- Está surpresa? - ele perguntou, achando graça.
- Você se aproximar de alguém em uma sala escura com certeza não é uma surpresa, rebelde.
Jonas sorriu, mas voltou a observar o trio do lado de fora.
- Será que o príncipe estaria disposto a me enfrentar?
- Se estivesse, certamente um de vocês acabaria morto.
- Sim, mas quem? - Sua sobrancelha, que estava arqueada, abaixou quando ele viu a expressão sofrida dela. - Em pouco tempo você estará livre desse acordo infeliz com ele, prometo.
Cleo conteve a resposta, tomando cuidado para não defender o príncipe. Ela ainda achava que era melhor ninguém saber a verdade sobre eles.
- Magnus, o rei e Selia são o caminho para as respostas de que preciso para liberar a magia da Tétrade - ela comentou.
- Eu já disse: tem um deus elementar dentro daquele cristal - ele falou de modo incisivo.
Seu tom de voz a fez se encolher. Depois que descobriu sobre os deuses elementares, dois dias antes, ela não conseguia parar de pensar no assunto e mal tinha pregado os olhos devido à gravidade da situação.
- Se tivermos a oportunidade de aproveitar essa magia sem deixar o deus escapar, ainda acho que é um objetivo que vale a pena buscar. Vamos perder muito se não conseguirmos esse poder para nos ajudar de
alguma forma, ainda que seja pouco.
Quando ela encarou Jonas, viu uma expressão séria, mas os olhos mais tranquilos.
- Não discordo totalmente.
Ela hesitou, mas só por um momento.
- É bom que saiba que, de acordo com Nic, você está escondendo dele a localização de Taran e Felix. Ele está bastante irritado com isso.
- Comecei a acreditar que o príncipe Ashur é tão mau quanto a irmã. Nic o conhece, mas não diz nada útil a respeito do que esperar dele. Gosto de Nic, mas não conto nenhum segredo que ele possa acidentalmente
revelar ao príncipe.
Outra pessoa entrou na sala e chamou a atenção de Cleo. Era Ashur, poucos metros atrás de Jonas.
- Jonas... - ela começou.
- Ashur diz que é um herói lendário renascido dos mortos para trazer paz ao mundo. Um monte de besteira. Ele não passa de mais um membro mimado da realeza criado com todas as regalias possíveis que só
precisa estalar os dedos para ter qualquer mulher linda que desejar. - Jonas franziu a testa. - Admito que isso seria uma vantagem.
Cleo limpou a garganta quando Ashur cruzou os braços diante do peito e inclinou a cabeça.
- Acho que você deveria... - ela começou.
- O quê? Falar com gentileza sobre alguém que confunde todo mundo porque está confuso em relação à irmã má e gananciosa que provavelmente vai destruir o mundo com sua sede por poder e magia? Ele poderia
tirar o poder dela com facilidade. Poderia se impor, reclamar o título de imperador, contar para todo mundo que Amara matou a família deles. Pronto.
Ela sentia uma pontada no peito a cada palavra verdadeira, mas mordaz, que Jonas dizia.
- Pode ter certeza de que não fico confuso quando se trata de Amara - Ashur disse em voz baixa.
Jonas fez uma careta.
- Você poderia ter me dito que ele estava bem atrás de mim, princesa.
- Você estava ocupado demais admirando o som da própria voz. - E, para ser sincera, as reclamações de Jonas sobre Ashur tinham reacendido a irritação que ela mesma sentia em relação ao príncipe kraeshiano.
Não, não era irritação. Era raiva, beirando a fúria.
- Espero que não esteja confuso em relação a sua irmã - Cleo falou para Ashur. - Ela cravou uma adaga em seu peito por tê-la contrariado.
- As últimas atitudes de Amara foram infelizes, mas eu já sabia que ela estava tomando esse rumo. Na verdade, culpo minha avó por colocar seus próprios planos de revolução em ação. É irônico que minha
madhosha derrube aqueles que também querem mudança no império. Ela tem muito mais em comum com os rebeldes do que pensa.
Cleo ficou olhando para ele, enojada.
- Infelizes... Você chama as escolhas de Amara de infelizes? Ela matou você, matou a própria família, e agora está matando todos os míticos que vê pela frente!
- Ela perdeu as estribeiras. A irmã que conheço, que eu conhecia, não resolve seus problemas com violência desnecessária.
- Sim, claro, os kraeshianos são conhecidos como um povo pacífico.
Ashur a observou atentamente.
- Você está infeliz comigo.
Ela olhou para Jonas e riu um pouco.
- Príncipe Ashur, por que eu estaria infeliz com você?
- Você é como Jonas. Não confia em mim.
- E deveríamos confiar? - Jonas perguntou. - Você não me conta nenhum de seus planos, desaparece por dias, fica isolado... Acha que eu deveria confiar em você mesmo assim?
- Você poderia tirar o trono de Amara - Cleo disse. - Se está tão interessado em ajudar o mundo, pode acabar com muito sofrimento simplesmente tornando-se imperador. Você é mais velho do que Amara. O trono
é seu por direito. Tem tanto medo dela assim?
Ashur riu com frieza ao ouvir aquilo.
- Não tenho medo de Amara.
- Teve medo suficiente para, supostamente, tomar uma poção para salvar sua vida - Jonas disse. - Sabia que ela planejava matá-lo?
O belo rosto de Ashur ficou sério.
- Eu não sabia. Não com certeza. E a poção que tomei... foi bem antes de minha viagem para, acima de tudo, me proteger do rei Gaius, caso ele tentasse usar minha presença em seu reino contra meu pai. Eu
nem imaginava que a poção funcionaria.
- Mas funcionou - Jonas disse. - Precisamos encontrar esse boticário ou essa bruxa ou quem quer que a tenha feito. Poções de ressurreição para todos. Magia assim poderia salvar muita gente.
- A magia da morte não é algo que se possa alterar - Ashur rebateu. - Não por qualquer motivo.
- Mas você alterou essa magia sombria para se salvar. - Cleo teve certeza de que o príncipe se encolheu diante da acusação, o que era incomum para ele. - Você se sente culpado por isso?
- Claro que não. - Apesar da resposta, Ashur não fez contato visual com ela.
- Chega de mentiras, Ashur. Se está tentando dar a impressão de que estamos todos do mesmo lado, precisa ser sincero conosco. Há mais coisas envolvidas nessa poção do que você quer revelar. Ela é perigosa,
não é?
- Muitas poções são perigosas. O veneno nada mais é do que uma poção com a intenção de matar.
Cleo inspirou e soltou o ar devagar, com a sensação de que estava prestes a descobrir um segredo.
- Aprendi que toda magia tem um preço. Que preço você pagou pela oportunidade de viver de novo?
- Aprendi que o preço da magia costuma ser o oposto da magia em si. Para ter muita força, você viverá momentos de grande fraqueza. Para ter prazer, haverá dor. E para ter vida... haverá morte.
- Então você matou alguém - Jonas disse, os braços cruzados e tensos. - Ou muitas pessoas. Acaba aqui o que você diz sobre altruísmo.
Ashur caminhou até a janela para olhar para fora, os braços cruzados.
- Você não sabe nada sobre mim, Jonas. Matei quando precisei. Nem sempre sou pacifista. O boticário me alertou do preço que eu teria que pagar, mas não acreditei. Amara pagou o mesmo preço, mesmo sem querer,
quando a ressuscitaram.
Cleo franziu a testa.
- Amara foi ressuscitada?
- Foi - Ashur respondeu solenemente, e então começou a contar para Cleo e Jonas o que tinha acontecido quando Amara era bebê e tinha sido salva de um afogamento pela magia negra e pelo sacrifício de sua
mãe.
Cleo percebeu que precisava sentar, pois tinha ficado abalada com a história. Em Auranos - e em Mítica -, apesar de serem valorizadas pela habilidade que tinham como mães, cozinheiras e enfermeiras, as
mulheres não eram impedidas de fazer outras coisas, se assim desejassem. E uma princesa podia ser a herdeira do trono do pai ou da mãe sem medo de ser assassinada apenas pelo suposto crime de ser uma mulher.
Cleo não sabia se admirava a mãe de Amara por valorizar a vida da filha o suficiente para sacrificar a própria vida ou se culpava a mulher por sua filha ter se tornado um monstro.
- Quem morreu por você? - Cleo perguntou em voz baixa.
O olhar distante de Ashur ficou sério, e antes de continuar, ele lançou um rápido olhar para Jonas.
- Eu não tinha certeza, mas sabia que alguém tinha morrido. Passei o mês tentando descobrir. Viajei, visitei amigos e ex-amantes. Foi alguém com quem passei um único verão. Eu não fazia ideia de que ele
ainda gostava de mim, de que nunca havia deixado de gostar... - Ele engoliu em seco. - De todas as pessoas que conheci, alguém que conviveu comigo apenas por alguns meses me amou tanto a ponto de morrer
por esse amor. Não consigo entender. Eu sabia o preço, mas o ignorei por egoísmo. Soube que ele sofreu por vários dias. Ele descreveu a dor como uma faca sendo cravada lentamente em seu peito. Me disseram
que nos últimos momentos, ele gritou meu nome. - Ashur ficou com os olhos azul-acinzentados marejados e respirou fundo. - A culpa que sinto pelo sofrimento, pela morte dele e pelo fato de eu ter apagado
qualquer chance que ele tinha de ter uma vida plena e feliz... isso vai me assombrar para sempre.
A sala ficou em silêncio enquanto Cleo tentava processar o que estava ouvindo. Aquele Ashur parecia mais o homem sincero que tinha oferecido, na noite de seu casamento, uma adaga nupcial kraeshiana para
tirar a vida da noiva infeliz ou de seu marido. Aquele Ashur não estava falando coisas confusas para desviar a atenção de seu sofrimento.
Mas, naquele momento, uma ideia lhe ocorreu.
- É por isso que você anda tão estranho com Nic - ela disse. - Ele não entende, acha que você está diferente, que seus sentimentos por ele mudaram, por tudo. Mas ele está enganado, não está?
Ashur não respondeu, mas olhou para baixo.
- Você teme que ele se apaixone por você e que você o machuque por causa desse amor.
Jonas ficou em silêncio, a testa franzida. Cleo esperava que ele não dissesse nada que fizesse o príncipe omitir a verdade.
- Eu tinha outros planos na ida a Auranos - Ashur disse finalmente. - Não queria que nada disso tivesse acontecido. Mas alguma coisa em Nicolo chamou minha atenção e eu não pude ignorar. Sei que deveria
ter ignorado. Só consegui complicar a vida dele e causar dor desnecessária. Mas agora não vou permitir que nada de ruim aconteça com ele por cometer o erro de gostar de mim.
- Nic merece uma explicação - Cleo disse, com um nó na garganta.
- É melhor que ele pense que meus sentimentos mudaram. - Ashur limpou a garganta. - Se me dão licença, acho que já revelei mais do que pretendia.
Cleo não disse nada para impedi-lo de sair. Ela estava pensando em muitas coisas ao mesmo tempo; algumas se conectavam, mas a maioria só aumentava sua confusão.
Por fim, ela olhou para Jonas.
- Então... - ele disse, ainda franzindo a testa. - Nic e Ashur, certo?
Ela assentiu devagar.
- Estranho... Pensei que Nic gostasse de garotas. De você, em especial. Não costumo me enganar com essas coisas.
- Você não está enganado. Ele gosta de garotas.
- Mas Ashur... - ele olhou para a porta - não é uma garota.
- Não fique pensando sobre isso, rebelde. Pode fundir seu cérebro. Saiba apenas que é complicado.
- E todas as coisas não são complicadas? - Jonas sentou ao lado dela. - Agora que conheço o segredo de Ashur e sei que não se trata de uma ameaça pessoal a você nem a mim, preciso me concentrar em pegar
a esfera que o rei escondeu. Você acha que está aqui na hospedaria?
- Nem imagino. Gostaria de saber. Eu ia dizer que... para liberar a magia precisamos do sangue de Lucia e do sangue de um Vigilante.
Surpreso, ele a encarou.
- Esse é o segredo?
Cleo assentiu.
- Isso impede o deus de sair?
- Não sei. Por isso é tão importante encontrarmos Lucia, descobrir mais informações com ela e o que deu errado com Kyan.
Os olhos castanhos de Jonas pareciam distantes.
- A profecia...
- O quê? - Cleo perguntou quando ele ficou em silêncio.
Ele balançou a cabeça.
- Deixa para lá. Conto mais quando descobrir se é verdade ou não.
- O problema é que não sei como encontrar um Vigilante. - Ela mordeu o lábio. - Claro que ainda deve haver alguns Vigilantes exilados vivos, mas acho que precisa ser um Vigilante pleno. Espero que Lucia
se disponha a ajudar quando chegar o momento.
- Não se preocupe em encontrar um Vigilante. - Ele ficou em silêncio por um momento. - Essa parte eu resolvo.
Ela olhou para ele, surpresa.
- Como?
- Olivia - ele sussurrou. - Ela é.
Cleo ficou boquiaberta.
- Você não pode estar falando sério.
- É outro segredo, mas vou confiar que você não vai contar a ninguém. - Jonas abriu o meio sorriso que ela sempre achou charmoso e frustrante, ao mesmo tempo. - Muita coisa foi sacrificada nesse caminho
que percorremos juntos. Muita perda para nós dois. Mas tento acreditar que sempre vai valer a pena, no fim.
Ela assentiu.
- Eu também.
- Acho que você precisa saber que a Lys gostava de você.
- Agora você está mentindo.
- Pode ser que nem ela soubesse, mas sei que ela respeitava você mais do que você pensa. Vocês têm uma coisa em comum: força. - A voz de Jonas falhou. - Só demonstram de jeitos diferentes.
Os olhos de Cleo começaram a arder ao ver Jonas se esforçando para não deixar as lágrimas escorrerem.
Ela segurou as mãos do rebelde, puxando-o para mais perto.
- Sinto muito por sua perda, Jonas. Estou dizendo isso do fundo do coração.
Ele só assentiu, olhando para baixo.
- Ela me amava. Só me dei conta disso quando já era tarde demais. Ou talvez eu tenha percebido e não estivesse pronto para aceitar. Mas agora eu entendo... Ela era perfeita para mim.
- Tenho que concordar.
- Poderíamos ter construído uma vida juntos. Uma casa, talvez até uma quinta. - Jonas sorriu de novo, mas um sorriso mais triste. - Filhos. Um futuro. Quem sabe o que poderia ter acontecido? Só tenho certeza
de uma coisa.
- De quê?
- De que Lys merecia alguém bem melhor do que eu.
- Não tenho a menor dúvida em relação a isso - Cleo concordou, satisfeita ao ver que a expressão surpresa de Jonas conseguiu apagar a dor em seus olhos. Ela abriu um sorriso caloroso. - Minha irmã acreditava
que quem morre se torna uma estrela no céu. Então todas as noites podemos olhar para cima e saber que estão cuidando de nós.
Ele parecia desconfiado.
- Isso é uma lenda auraniana?
- E se for?
Uma mecha do cabelo dela tinha caído sobre a testa, e Jonas a ajeitou atrás da orelha e deslizou a mão por seu rosto.
- Nesse caso, gosto de lendas auranianas.
Cleo encostou a cabeça no ombro dele, e os dois ficaram ali, confortando um ao outro. Havia uma ligação entre eles - algo muito forte que ela nunca havia conseguido ignorar. E houve uma época, não muito
tempo atrás, em que ela poderia ter amado aquele rebelde do fundo do coração.
E ela o amava, sim, mas não como Lysandra o havia amado.
Independentemente do que acontecesse, o coração de Cleo pertencia a outro.
18
MAGNUS
PAELSIA
Ficou claro para Magnus que Enzo e Milo estavam se controlando na luta, com receio de ferir um príncipe. Magnus deixou os dois sangrando como punição e voltou para a hospedaria, sentindo uma grande necessidade
de desenhar.
Ele parou na porta quando viu Jonas e Cleo na sala de convivência. Os dois estavam sentados próximos um do outro, falando baixo. Magnus se aproximou para ouvir, mas só conseguiu ver o rebelde acariciar
o cabelo de Cleo, sem que a princesa reclamasse, e, logo depois, seu rosto. Os dois se entreolharam por mais tempo do que o normal.
Magnus ficou muito irritado.
Por um lado, queria entrar ali com tudo, afastá-los e matar o rebelde antes de tirar Cleo da hospedaria e de perto dele para sempre.
Seu lado mais racional dizia que nem tudo o que via era o que imaginava e que ele não deveria tirar conclusões precipitadas.
Ainda assim, se entrasse ali e confrontasse os dois, alguém com certeza morreria.
Então ele saiu da hospedaria e desceu a rua até a taverna, resmungando ao pedir vinho ao taberneiro. Magnus perdeu a conta de quantas taças de vinho teve de beber até começar a se acalmar.
Já sabia que a princesa gostava do rebelde, que os dois tinham uma história romântica sobre a qual não queria pensar muito. Por que ela não desejaria alguém como Jonas? Alguém corajoso e forte - apesar
de pobre, ridículo e muito azarado com todos os que já tinham se alistado sob sua liderança rebelde.
Magnus também conseguia entender que alguém como Jonas, que olhava para a princesa como se ela fosse uma estrela brilhante na noite escura, podia ser tentador. Pelo menos quando comparado a Magnus, que
era sombrio, instável e afeito à violência.
Ele encarou a taça vazia.
- Com um milhão de outros problemas e questões para resolver, estou obcecado pensando por quem ela tem sentimentos. - Ele olhou meio embriagado para o atendente. - Por que meu copo está vazio?
- Peço desculpas. - O homem logo encheu a taça até transbordar.
Alguém sentou no banco de madeira a seu lado. Ele estava prestes a vociferar que precisava de espaço e que se o homem valorizava a própria vida, deveria ir para outro lugar, mas então percebeu quem era.
- O vinho nunca ajuda uma pessoa a esquecer suas preocupações por muito tempo - seu pai disse, o rosto pálido e macilento como o de um cadáver por baixo do capuz grosso de seu manto preto.
Como o rei tinha se isolado em um quarto no andar superior da hospedaria desde a noite da chegada, foi uma surpresa vê-lo ali. Magnus observou ao redor para ver se ele tinha trazido Milo para protegê-lo,
mas não viu o guarda em nenhum lugar. Talvez ainda estivesse tratando os ferimentos depois da luta.
Magnus ignorou o comentário do rei e tomou todo o vinho do copo antes de falar.
- Selia sabe que você está aqui? Não acho que ela aprovaria.
- Ela não sabe. Sua preocupação com minha morte iminente me tornou seu prisioneiro. Não ligo muito para isso.
- Não liga para a preocupação com sua morte iminente ou com o fato de ter sido feito prisioneiro? Não precisa responder. Tenho certeza de que as duas experiências são novas para você. - Magnus pegou o
vinho do atendente, e mandou o homem se afastar com um aceno. Então bebeu direto da garrafa.
- Antigamente, me rendia a pecados assim - o rei comentou.
- Ao vinho ao à forte autopiedade?
- Você está tendo problemas com a princesa?
- Aposto que isso o deixaria muito feliz, não?
- Saber que você deseja se afastar de alguém que acho que causará sua destruição? "Feliz" não seria bem a palavra que eu escolheria, mas, sim. Seria o melhor.
- Não vou falar sobre Cleo com você, nem agora nem nunca - Magnus resmungou, detestando o fato de sua mente estar tão nebulosa com o pai por perto. Ele preferiria ter controle total dos sentidos, mas era
tarde demais para se preocupar com isso depois de tomar tanto vinho.
- Escolha inteligente - o rei respondeu. - Ela sem dúvida não é meu assunto preferido.
- Esse ódio que você nutre por ela... - O príncipe pensou no assunto, no ódio aparentemente sem fim que o rei sentia por Cleo. - Deve ter a ver com a mãe dela, não?
- Sim, na verdade, tem.
Uma resposta direta. Que incomum - e profundamente curioso.
- Rainha Elena Bellos - Magnus continuou, encorajado pelo vinho que soltava sua língua. - Vi o retrato dela no palácio auraniano antes de você destruí-lo. Era uma bela mulher.
- Com certeza era. - O rei deu as costas e olhou com saudosismo para a rua escura pelas janelas da taverna. Magnus viu quando os lábios pálidos e fantasmagóricos sorriram discretamente.
Perceber a situação mexeu com ele.
- Você era apaixonado por ela - Magnus disse, chocado com as próprias palavras, mas sabendo que eram verdade. - Você era apaixonado pela mãe de Cleo. - A acusação fez o rei encará-lo de novo, os olhos
vermelhos um tanto arregalados, surpresos. Magnus demorou um pouco para assimilar a confirmação silenciosa e tomou mais um gole de vinho para molhar a garganta repentinamente seca. - Deve ter sido há muito
tempo, quando você era capaz de uma emoção tão pura.
O sorriso logo desapareceu do rosto pálido e desanimado do pai.
- Faz muito tempo. Essa fraqueza quase me destruiu, e é exatamente por isso que quis cuidar de você.
Magnus riu ao ouvir isso, uma risada alta que surpreendeu a ele próprio.
- Cuidar de mim? Ah, pai, não gaste saliva com essas mentiras!
O rei socou o balcão.
- Você é cego? Totalmente cego? Tudo o que fiz foi por você!
A força da ira repentina fez Magnus derramar parte do vinho na túnica. Ele olhou feio para o pai.
- Estranho eu ter esquecido isso quando você decidiu acabar com a minha vida e com a vida da minha mãe.
- A morte seria um alívio deste mundo para muitos de nós.
- Não vou esquecer nada que você fez, a começar por isso. - Magnus apontou a cicatriz no lado direito do rosto. - Você lembra desse dia tão bem quanto eu?
O rei contraiu o maxilar.
- Lembro.
- Eu tinha sete anos. Sete. Você se arrependeu por um momento que seja?
O rei semicerrou os olhos.
- Você não deveria ter tentado roubar o palácio auraniano. Se tivesse conseguido, a vergonha teria sido grande.
- Sete anos! - A garganta de Magnus ardeu porque ele gritou. - Eu era apenas uma criança cometendo um erro, tentada por uma coisa brilhante e linda, uma vez que eu levava uma vida cinza e sem graça num
palácio cinza e sem graça. Ninguém ficaria sabendo que peguei aquela adaga! Que diferença faria?
- Eu ficaria sabendo - o rei disse. - A adaga que você pretendia roubar era de Elena. Eu ficaria sabendo porque fui eu quem deu a adaga a ela, quando era um garoto ingênuo tentando impressionar uma moça
bonita. Não sabia que ela a tinha guardado, que ela a tinha valorizado e exposto o tempo todo em que ficamos separados. Quando a vi em suas mãos seis anos depois da morte dela... não pensei. Simplesmente
reagi.
Magnus percebeu que não tinha uma resposta na ponta da língua. Com suas perguntas respondidas depois de tanto tempo, ele não conseguia processar tudo depressa.
- Não justifica o que você fez.
- Não, claro que não.
Magnus desviou o olhar do rei e tentou se concentrar em outra coisa, qualquer coisa. Ajudou perceber que o mundo ia além daquela conversa. Um homem enorme veio em direção ao bar carregando muitos copos
vazios, a túnica subindo o suficiente para deixar a barriga peluda à mostra. Uma atendente afastou a mão de um marinheiro com um tapa tímido. Os músicos no canto da taverna tocavam uma música animada,
e muitos batiam palmas. Vários outros dançavam em uma mesa.
- O poder é tudo o que importa, Magnus. O legado é tudo o que importa. - O rei dizia isso como se tentasse convencer a si próprio. - Sem ele, somos como camponeses paelsianos.
Magnus já tinha ouvido aquelas bobagens tantas vezes que já haviam se tornado mais do que palavras sem sentido.
- Diga uma coisa: Elena Bellos retribuiu seu amor ou foi só uma obsessão triste e impossível que transformou seu coração e sua alma em gelo?
O pai demorou tanto para responder que Magnus pensou que ele tinha levantado e ido embora. O príncipe desviou o olhar da taverna movimentada para ver se o rei ainda estava a seu lado.
- Ela me amava - Gaius disse, por fim, a voz quase inaudível. - Mas o amor não foi suficiente para resolver nossos problemas.
Magnus segurou a garrafa de vinho com força.
- Agora você vai me contar uma história de amor e perda... sobre um garoto e uma garota?
- Não.
Pensar que o pai mencionaria aquela história de amor épico sem contar tudo era previsível, mas ainda assim frustrante.
- Então por que você está aqui?
- Para contar a lição que aprendi. Amor é dor. Amor é morte. E o amor tira o poder de uma pessoa. Se eu pudesse voltar no tempo, gostaria de não ter conhecido Elena Corso. Desde aquela época, eu a odeio.
- Que romântico. Como se casou com Corvin Bellos, imagino que ela sentisse a mesma coisa.
- Tenho certeza disso. E agora lembro dela todos os dias, de tudo o que perdi, por causa daquela criatura mentirosa, Cleo. Ela se tornou sua fraqueza fatal, Magnus.
O ódio tinha voltado à voz de Gaius. Magnus encarou os olhos frios do pai.
- Seu ódio sem fim por Cleo me parece muito errado. Você deveria culpar a bruxa que amaldiçoou Elena. - Magnus suspirou, chocado ao perceber. - Você a culpa, não é? Por isso condenou tantas bruxas à morte
ao longo dos anos... Para pagarem pelo crime dela. Pode dizer que odeia Elena, mas ainda a ama, até mesmo depois de sua morte. Por qual outro motivo você teria tomado a poção de minha avó?
- Pense o que quiser. - Um músculo se contraiu no rosto do rei. - A poção era a única maneira de afastar o pesar e a dor e deixar apenas a força. Mas agora aquela força sumiu, desapareceu quando caí daquele
penhasco. A dor e o pesar voltaram, piores do que antes. E odeio isso. Odeio tudo nesta vida: o que tive que fazer, como passei todo esse tempo obcecado apenas pelo poder. Mas agora acabou.
- É o que anda prometendo.
Magnus precisava sair daquela taverna barulhenta e enfumaçada. Precisava de tempo e de espaço para esfriar a cabeça.
Quando levantou, o rei segurou seu braço.
- Imploro a você, meu filho, que mande Cleiona embora antes que ela o destrua. A princesa não ama você de verdade, se é o que você pensa. Independentemente do que ela disser, são apenas mentiras.
- O Rei Sanguinário implorando! Agora não falta mais nada. - Ele suspirou. - Já bebi demais por hoje. Foi um prazer conversar com você, pai. Tente voltar para a hospedaria sem morrer. Tenho certeza de
que sua mãe ficaria muito abalada se alguma coisa ruim acontecesse.
Ele saiu sem dizer mais nada, detestando a confusão de pensamentos e sentimentos.
Enquanto Magnus caminhava por uma rua estreita, alguém bloqueou sua passagem para o caminho principal com ombros largos e uma cara séria.
Não havia mais ninguém à vista.
- É, acho que reconheci você uma noite dessas - disse o homem. - Você é o príncipe Magnus Damora, de Limeros.
- E você está redondamente enganado. Desculpe pela decepção. - Magnus tentou passar acotovelando o homem, que levou a enorme mão à garganta dele, puxando-o para tão perto que Magnus conseguiu sentir seu
hálito de cerveja.
- Dez anos atrás, seu pai queimou minha esposa viva, dizendo que ela era uma bruxa. O que acha de eu fazer a mesma coisa com você como vingança?
- Acho que você precisa me soltar agora mesmo. - Magnus arregalou os olhos para o homem. - Sua necessidade de vingança não tem nada a ver comigo.
- Ele está certo. - O rei deu um passo à frente e tirou o capuz. - Tem a ver comigo.
O homem olhou para Gaius, surpreso, como se não acreditasse no que via.
- Sinto muito pela morte de sua esposa - o rei disse, e uma única lamparina acima da saída da taverna iluminava seu rosto quase esquelético. - Odeio bruxas por mais motivos do que poderia mencionar aqui
e agora. Mas raramente executei uma que não estivesse envolvida com sangue e mortes. Se sua esposa está na terra da escuridão agora, é porque merece estar.
Com o rosto vermelho de ódio, o homem deu um passo à frente empunhando uma faca afiada. Magnus observou o pai de pé ali, sem se mexer, a pele amarelada, os ombros curvados. Ele não lutaria, não conseguiria
lutar por sua vida.
Gaius queria morrer?
A atenção do homem estava totalmente voltada para o rei naquele momento, e o ódio ardia em seus olhos quando ele avançou.
Magnus se moveu antes mesmo de se dar conta de suas intenções, segurou as mãos do homem e impediu que a faca acertasse o alvo.
- Se alguém tem o direito de matar meu pai, esse alguém sou eu - ele vociferou. - Mas não hoje.
Ele virou a lâmina afiada para afundá-la no peito do homem, que gritou de dor e desabou no chão. O sangue jorrou livremente do ferimento fatal.
Houve um momento de completo silêncio na rua até o rei falar de novo.
- Precisamos ir embora antes que alguém veja isso.
Magnus teve que concordar. Limpou o sangue das mãos no manto preto e os dois logo voltaram à hospedaria Falcão e Lança.
- Não pense que esse gesto mostra que não odeio você - Magnus disse.
O rei assentiu com seriedade.
- Eu o consideraria um idiota se não me odiasse. Ainda assim, apesar do ódio que sente por mim, quero lhe dar algo.
- O quê?
- O cristal do ar.
Não havia como o Rei Sanguinário entregar uma parte da Tétrade a alguém, nem mesmo ao próprio filho. E, ainda assim, Gaius levou Magnus ao andar de cima, ao quarto onde tinha ficado por dois dias.
Magnus observou o espaço.
- Onde está Selia?
- No pátio. - O rei indicou a janela com a cabeça. - Sua avó gosta de cumprir os rituais antigos todas as noites, a esta hora e sob o luar, por isso consegui sair.
O rei foi até a cama de palha, levantou as cobertas e passou a mão por baixo do colchão. Em seguida, franziu a testa.
- Ajude-me a levantá-lo - ele disse.
- Está tão fraco assim? Então você teria mesmo ficado parado, esperando aquele homem te matar?
- Faça o que estou mandando. - O olhar que o pai lançou foi muito mais familiar do que qualquer conversa sobre compartilhar e arrependimentos.
- Tudo bem. - Magnus foi até o lado de Gaius e levantou o colchão para seu pai procurar embaixo dele.
Os olhos vermelhos e marejados do rei foram tomados pelo susto.
- Não está aqui.
Magnus lançou um olhar desconfiado para o rei.
- Que conveniente, se considerarmos que você estava prestes a entregá-lo a mim. Por favor, pai, me poupe dessas dissimulações. Como se você fosse esconder um tesouro como aquele em um lugar tão óbvio!
- Não é dissimulação. Estava aqui. Andei muito debilitado para encontrar um lugar melhor onde escondê-lo. - Gaius ficou sério. - Aquela sua princesinha o roubou.
Só podia ser mentira. Mais uma mentira. Magnus não conseguia pensar em outra explicação, não para algo tão importante.
Antes que pudesse responder, o rei cambaleou com dificuldade para sair do quarto. Magnus o seguiu pelo corredor, onde Cleo ainda estava com Jonas.
Magnus não conseguia acreditar no que via. Precisou de todo o autocontrole possível para não transformar Jonas no segundo morto da noite.
Cleo levantou depressa quando o rei e Magnus entraram.
- O que foi? O que aconteceu?
- Você roubou o cristal do ar? - Magnus perguntou, incomodado com a maneira arrastada como estava falando.
- O quê? Eu... eu nem sabia onde estava!
- Sim ou não, princesa?
Cleo semicerrou os olhos e levantou o queixo.
- Não.
- Ela está mentindo - o rei disse.
- O rei das mentiras querendo acusar a princesa, não é? - Jonas quase cuspiu as palavras, os punhos cerrados. - Que ironia.
- Onde está o cristal da terra? - Magnus perguntou.
Cleo franziu a testa ao enfiar a mão no bolso e arregalou os olhos.
- Não está aqui. Mas estava, juro! Eu o carrego comigo o tempo todo!
Magnus sentiu uma náusea. Havia um ladrão entre eles. E quem quer que fosse, em breve ia se arrepender profundamente por suas atitudes.
Não demorou para que todos corressem até a sala para ver o que estava acontecendo. Milo e Enzo já empunhavam as armas, prontos para um combate.
Magnus observou o grupo. Estava todo mundo ali: Nic, Olivia, até Selia havia se unido ao grupo, com o rosto corado devido ao ritual da lua daquela noite. Todo mundo, menos uma pessoa.
- Onde está o príncipe Ashur? - Jonas perguntou, franzindo a testa. - Ele estava aqui mais cedo com Cleo e comigo.
- Eu não o vi hoje - Olivia respondeu. - Talvez tenha saído.
- Talvez. Alguém sabe aonde ele foi?
Enzo e Milo balançaram a cabeça em negativa.
Selia foi para o lado do rei pálido, que caminhava até uma cadeira para sentar.
- Gaius, querido, o que está fazendo fora da cama?
Magnus os ignorou, prestando atenção em Nic, que estava em silêncio. Enquanto os outros conversavam sobre o paradeiro do príncipe, Nic saiu da sala. Magnus imediatamente o seguiu pelo corredor em direção
à porta da frente.
Quando Nic notou que Magnus estava perto, seus ombros ficaram tensos.
- Está procurando alguém? - Magnus perguntou, com os braços cruzados.
- Quero sair para respirar um pouco de ar fresco.
- Ele levou os dois cristais, não levou? E contou a você sobre os planos.
Nic balançou a cabeça, mas não o encarou nos olhos. Magnus não tinha mais paciência para mentiras naquela noite. Ele puxou a frente da túnica de Nic e o jogou contra a parede.
- Onde está Ashur? - ele resmungou.
- Você está bêbado.
- Demais, mas não faz a menor diferença agora. Responda! Ashur roubou os cristais, não roubou?
Nic rangeu os dentes.
- Você acha que o príncipe me conta alguma coisa?
- Não faço ideia do que o príncipe sussurra em seu ouvido, mas não sou cego. Sei que tem algo entre vocês dois, que são mais próximos do que aparentam. E sei que você sabe mais do que está me contando.
Jonas se aproximou, tenso, vindo de um canto.
- O que está fazendo com ele?
Magnus não soltou o garoto.
- Nic sabe os segredos de Ashur e vou descobrir quais são.
- Responda à pergunta, Nic - Jonas disse, os braços cruzados. - Sabe para onde Ashur foi?
Nic riu.
- Como é? Vocês estão trabalhando juntos agora?
- Não - Magnus e Jonas responderam em uníssono, e então se entreolharam.
Nic suspirou.
- Tudo bem. O príncipe acabou de partir para ver a irmã. Tentei convencê-lo a não fazer isso, mas ele não ouviu nada do que eu disse. Está determinado a fazer o que puder para colocar juízo na cabeça dela
e, se não conseguir, vai exigir o título de imperador.
Magnus sentiu o estômago revirar.
- E ele levou para Amara os cristais do ar e da terra. Que lindo presente, considerando que Amara está com o cristal da água.
Por fim, Nic lançou um olhar preocupado.
- Ashur não faria isso.
- Não? - Magnus tentou continuar segurando a túnica de Nic para que o idiota não fugisse, mas sua visão estava turva. Vinho demais, rápido demais. Os efeitos só passariam ao amanhecer. - Talvez Amara tenha
retirado os cristais dos esconderijos com sua magia, e eles voaram em asas de borboletas para ela.
- Vou falar mais uma vez. - Nic semicerrou os olhos. - Me solte.
- E se não soltar? Vai chamar a princesa para salvá-lo?
- Odeio você. Desejo vê-lo morto e enterrado. - Ele olhou para Jonas, irritado. - Uma ajuda?
- Nic, você precisa pensar - Jonas disse com calma. - Se Magnus estiver certo em relação a Ashur...
Magnus lançou um olhar fulminante ao rebelde.
- Você acabou de me chamar apenas pelo meu primeiro nome?
Jonas revirou os olhos.
- Amara Cortas não pode ter mais poder do que já tem. E se o irmão dela levou os cristais da Tétrade, é a pior coisa que poderia acontecer. Ela pode liberar três deuses elementares como Kyan.
- Eu sei - Nic respondeu. - Eu entendo.
- Entende?
- Então a culpa é minha? Vai deixar sua majestade quebrar meu pescoço? Por quê? Por não ter conseguido impedir Ashur de fazer o que queria? Ele faz o que bem entende.
- Prometo que sua majestade não vai quebrar seu pescoço.
- Não vamos nos precipitar - Magnus disse, divertindo-se com o breve olhar assustado do garoto.
Ele nunca mataria Nic.
Cleo nunca o perdoaria.
- Você vai fazer o seguinte - Magnus disse. - Vai atrás de Ashur para impedi-lo de fazer alguma coisa idiota e imperdoável por senso de lealdade familiar kraeshiano bizarro e sem propósito. E vai recuperar
os cristais que ele roubou, custe o que custar.
Nic o encarou incrédulo.
- Não vou deixar Cleo de novo.
- Ah, vai, sim, com certeza. E vai agora. Você vai voltar com os cristais da Tétrade ou minha paciência com você vai acabar. - Magnus tentou organizar a mente confusa para encontrar uma maneira de fazer
Nic cumprir a ordem.
- Você pode até me odiar, mas viu que mantive sua preciosa princesa viva todos esses meses, enquanto outros a queriam morta. Juro pela deusa que vou parar de protegê-la se não fizer exatamente o que mandei.
Nic se encolheu, mas manteve o olhar firme.
- Cleo ficaria bem até mesmo sem sua ajuda.
- Talvez sim. Talvez não. Em tempos de guerra, e não se engane, é exatamente o que essa ocupação "pacífica" kraeshiana é, ninguém está seguro.
Nic ficou sem resposta. Apenas o observou furioso.
- Com ameaça ou sem - Jonas disse impaciente -, o príncipe está certo, Nic, você precisa ir atrás de Ashur. Nós dois precisamos. Eu deveria ter acompanhado Felix e Taran quando eles partiram. Não há motivos
para eu estar aqui.
- Não há motivos, rebelde? - Magnus lançou um olhar para ele. - Que esquisito. E pensei que você estivesse gostando de bajular a princesa, em busca de migalhas.
Jonas lançou um olhar raivoso para Magnus.
- Eu receberia muito mais do que você.
Magnus sorriu para ele.
- Não tenha tanta certeza disso.
Jonas ficou ainda mais sério.
- Terminamos por aqui. Nic, pegue o que precisa para ir ao complexo do chefe Basilius. Espero alcançar Ashur antes que ele chegue lá. E, Magnus?
- Sim, rebelde?
Jonas semicerrou os olhos.
- Se encostar em um fio de cabelo da princesa, juro por qualquer deusa em quem você acredita que vou fazer você implorar para morrer.
19
AMARA
PAELSIA
Um único falcão dourado voava em círculos sobre os cidadãos paelsianos reunidos para ouvir o discurso de Amara. A imperatriz estava em pé diante da janela aberta de seus aposentos, observando a multidão
de rostos ansiosos. Muitos estavam perplexos por estarem dentro da propriedade privada do ex-chefe; os portões tinham ficado trancados para o público durante o governo dele. Naquele dia, os paelsianos
viam pela primeira vez a cidade labiríntica, o que fez Amara lembrar muito da Cidade de Ouro, mas, em vez de metais e joias, a cidade onde estava era feita de barro, tijolo, pedra e terra.
- Vossa graça, gostaria que reconsiderasse esse discurso - Kurtis disse atrás dela. - A senhora está muito mais segura aqui dentro, principalmente com a notícia de rebeldes por perto.
Ela tirou os olhos da janela e se virou para o grão-vassalo onipresente.
- É por isso que tenho guardas ao meu redor o tempo todo, lorde Kurtis. Os rebeldes estão sempre por perto. Infelizmente, não posso fazer todos entenderem meu ponto de vista. Há quem se oponha ao reinado
de meu marido, ao reinado de meu pai. E há aqueles que se opõem ao meu também. Falarei com meus cidadãos hoje, aqueles que vão me apoiar sem questionamentos e aqueles que duvidam de minhas intenções aqui.
Preciso dar a eles uma esperança para o futuro... uma esperança que nunca tiveram.
- O que é uma atitude incrível, vossa graça, mas... os paelsianos são selvagens, violentos.
Amara considerou as palavras ofensivas.
- Há quem diga o mesmo dos kraeshianos - ela respondeu mais irritada. - Talvez você não tenha me ouvido até agora, mas falarei hoje.
- Vossa graça...
Ela levantou uma mão, decidindo parar de sorrir.
- Falarei hoje - ela disse com firmeza. - E ninguém vai me dizer que não posso fazer isso. Com a notícia dos rebeldes e com a discordância entre meus próprios soldados, preciso do apoio dessas pessoas
para o futuro de meu reinado. E não permitirei que ninguém diga o que posso e o que não posso fazer. Entendido?
Ele se curvou no mesmo instante, corado.
- Claro, vossa graça. Não quis desrespeitá-la.
A porta se abriu e Nerissa entrou, fazendo uma reverência.
- Está na hora, imperatriz.
- Ótimo, estou pronta. - Amara alisou a seda de seu vestido. Era o mesmo que usava nas ocasiões mais especiais em Kraeshia. Ela o levava sempre que viajava caso tivesse a oportunidade de vestir uma peça
tão esplêndida. A costura brilhante e as contas de esmeralda e ametista reluziam sob o sol paelsiano quando ela saiu de sua grande quinta.
Um grupo de guardas esperava Amara do lado de fora e, com Nerissa a seu lado, ela se aproximou do grande pódio em um palco de madeira bem acima da multidão de quatro mil pessoas reunidas lado a lado na
antiga arena do chefe.
Aqueles eram seus novos súditos. Absorveriam tudo o que dissesse e espalhariam a notícia de sua glória a quem quisesse ouvir. E em breve, seriam os primeiros a reverenciá-la como uma verdadeira deusa.
A multidão gritou e a atmosfera foi tomada por sons de aprovação. Ela olhou para Nerissa, que sorriu e assentiu, incentivando-a a começar.
Amara ergueu os braços, e a grande plateia ficou em silêncio.
- Eu me dirijo ao lindo povo de Paelsia, um reino que tem passado por muitos testes e muitas atribulações ao longo de várias gerações. - Sua voz ecoou nos pilares de pedra, o que ajudou a amplificar as
palavras de modo que até as pessoas nas arquibancadas pudessem ouvi-la. - Sou Amara Cortas, a primeira imperatriz de Kraeshia, e trago a vocês a notícia oficial de que não são mais cidadãos de Mítica,
uma tríade de reinos que os oprimiu por um século. Agora vocês são cidadãos do grande Império Kraeshiano. E seu futuro é tão brilhante quanto o sol que nos ilumina hoje!
A multidão comemorou, e Amara parou um instante para analisar os rostos, alguns sujos, de pessoas com roupas simples puídas, gastas pela sujeira e pelo tempo. Olhos atentos se voltaram para ela, olhos
que tinham assistido a muitos líderes fazerem promessas falsas e causarem dor e sofrimento. Ainda assim, ela viu uma esperança tímida até mesmo nos olhos dos mais velhos.
- Cuidaremos de sua terra - ela continuou. - Vamos torná-la rica de novo e pronta para as plantações que vão sustentar vocês e suas famílias. Vamos importar animais que servirão de alimento. E enquanto
continuarem produzindo o vinho pelo qual Paelsia é conhecida, os lucros serão de vocês, integralmente, pois prometo que não serão cobrados impostos kraeshianos sobre esse produto por vinte anos. As leis
que impediam a exportação do vinho a qualquer lugar que não fosse Auranos estão vetadas a partir de agora. Vejo Paelsia como um patrimônio maravilhoso do meu império e quero demonstrar isso cuidando para
que minhas atitudes sejam condizentes com minhas palavras. Vocês fazem bem em acreditar em mim, porque eu acredito em vocês. Juntos, vamos marchar para o futuro, de mãos dadas!
O barulho vindo da plateia aumentou, e, por um instante, Amara fechou os olhos e permitiu-se aproveitar o momento. Tinha sido por isso que ela se sacrificou tanto. Tinha sido por isso que ela fez o que
fez.
Por aquele poder.
Não fora à toa que seu pai havia tomado decisões tão precipitadas durante seu reinado. Aquela sensação diante da obediência, da adoração e da reverência era mesmo viciante.
Se ela conseguiria ou não cumprir o prometido, ainda precisava verificar.
Ela sentia a magia que havia na crença que emanava do povo paelsiano. Uma magia tão rica e pura na qual queria se banhar.
- Vossa graça! - Nerissa exclamou, assustada.
Amara abriu os olhos a tempo de ver uma flecha de relance, e então um de seus guardas a tirou do caminho. A flecha acertou o homem no pescoço, e ele caiu se debatendo no chão do palco.
- O que está acontecendo? - ela quis saber.
- O grupo de rebeldes que ameaçou vir aqui hoje... eles estão aqui! - Nerissa agarrou o braço dela. Duas outras flechas voaram na direção dela, bem perto, acertando outros dois guardas.
- Quantos? - Amara conseguiu perguntar. - Quantos rebeldes estão aqui?
- Não sei... - Nerissa ergueu a cabeça para olhar para a multidão quando outra flecha passou por ela. - Vinte, talvez trinta ou mais.
Amara observou chocada quando seu exército de soldados invadiu o mar cada vez maior de civis para capturar os rebeldes. Os soldados derrubavam qualquer pessoa que aparecesse no caminho, fossem rebeldes
ou paelsianos. A multidão entrou em pânico e tentou fugir. O caos se instalou, gritos de medo e de indignação eram ouvidos por todos os lados quando sangue começou a ser derramado.
Paelsianos empunharam armas, trocando rapidamente a expressão esperançosa pela de ódio, e começaram a lutar não só contra os soldados, mas uns contra os outros, facas cortando a carne, socos acertando
rostos e abdomens.
"Os paelsianos são selvagens, violentos", Kurtis tinha alertado.
Mães agarravam os filhos, chorando e correndo para todas as direções.
- O que vamos fazer? - Nerissa perguntou. Ela tinha agachado ao lado de Amara, e as duas se encolheram atrás do pódio.
- Não sei - Amara disse depressa, e se arrependeu de suas palavras.
Palavras de medo. Palavras de vítima.
Ela não ia se acovardar diante de rebeldes naquele momento - nem nunca.
O medo logo se transformou em raiva. Aquilo, fosse o que fosse, não fazia parte de seu plano. Aqueles que desejavam destruir sua chance de transformar aquele povo determinado em seu aliado, um povo que
já estava pronto para aceitá-la como líder, pagariam com a vida.
Amara levantou do esconderijo, punhos cerrados, quando alguém se aproximou do palco trás dela. Ela ouviu passos pesados na superfície de madeira.
Quando se virou, viu dois de seus guarda-costas caindo com a garganta cortada. Atrás deles, um rosto assustadoramente familiar.
- Bem, princesa, eu poderia apostar um monte de moedas de ouro que você não esperava me ver de novo.
Felix Gaebras apontava uma espada a poucos centímetros de seu rosto.
O rosto dele aparecia em seus pesadelos. Ou talvez os pesadelos tivessem sido premonições. Naqueles sonhos, ele tentava matá-la.
- Felix... você fez isso, tudo isso, só para chegar até mim - ela começou, dando um passo hesitante para trás para se afastar do jovem que acreditava estar morto fazia muito tempo.
Ele sorriu.
- Sinceramente? Eu estava só observando de longe. Foi uma coincidência feliz. Acho que há muitos outros rebeldes que querem derramar seu sangue. Mas parece que a honra será minha.
Ela olhou para a esquerda e viu três guardas correndo na direção de Felix, mas foram derrubados por outro jovem de cabelo escuro e expressão irritada.
- O plano não era esse, Felix - o rapaz gritou. - Nós dois vamos morrer por sua causa.
- Calado, Taran - Felix respondeu. - Estou retomando contato com uma antiga namorada.
Ao sentir a lâmina em seu rosto, Amara olhou para o tapa-olho preto que ele usava.
- Seu olho...
- Perdi. Graças a você.
Ela se encolheu.
- Sei que você deve me odiar pelo que fiz.
- Odiar? - Ele arqueou as sobrancelhas escuras, movendo de leve o tapa-olho. - "Ódio" é uma palavra muito leve, não acha?
Amara tentou ver se algum guarda se aproximava para ajudá-la, mas Taran, o amigo de Felix, os afastava com a espada e o arco que trazia.
Amara virou para a frente, para o olho bom de Felix, e disse com o máximo de arrependimento que conseguiu reunir:
- Não importa o que tenha enfrentado, minha bela fera. Juro que posso me retratar.
- Não me chame assim. Perdeu o direito de me chamar assim quando me abandonou e me deixou para morrer. - Felix encostou a lâmina no rosto dela de novo, fazendo-a olhar para a multidão. - Viu o que fez?
É culpa sua. Tudo o que você toca acaba em morte.
O olhar tenso de Amara passou pela multidão que tinha percorrido quilômetros para se reunir e ouvi-la falar. Muitos paelsianos estavam mortos entre os combatentes, pisoteados, assassinados pelas espadas
dos guardas ou por seus próprios compatriotas.
Felix tinha razão: era culpa dela. Um momento de vaidade, o desejo de sentir o amor de seus novos súditos depois de tanta dor e decepção, acabou em morte.
Tudo acabava em morte.
O mesmo falcão que ela vira sobrevoando a multidão grasnou alto o suficiente para Amara ouvir. No chão, alguém preso no meio do caos chamou sua atenção: um jovem de cabelo ruivo, cor rara de ser encontrada,
caminhava em direção ao palco.
Ela reconheceu o amigo de Cleo, Nic. Aquele com que Ashur tinha ficado obcecado.
Amara observou horrorizada quando dois paelsianos agarraram Nic e rasgaram o saco de moedas preso ao passador de sua calça. Nic tentou segurar o saco, e a faca de um dos homens reluziu à luz do sol antes
de ser fincada no peito dele.
Ela se assustou.
O corpo de Nic caiu no chão e logo se perdeu na multidão.
Aquilo era culpa dela, apenas dela.
Ela franziu a testa ao pensar nisso. Não... tinha sido azar de Nic, uma circunstância infeliz. Ela não tinha assassinado o amigo de Cleo com as próprias mãos. Amara se recusava a assumir a culpa pelo azar
de outras pessoas.
Apesar de ter odiado seu pai e seus irmãos com a mesma intensidade, a família Cortas não era nada fraca. Inclusive ela.
E além da família Cortas, as mulheres não eram fracas. Eram líderes. Campeãs. Guerreiras. Rainhas.
Amara tinha enfrentado inimigos muito maiores do que Felix Gaebras na vida.
Ela se forçou a falar de modo assustado quando virou para ele de novo.
- Você é maior do que isso, Felix. Matar uma garota desarmada? Não combina com você.
- Não combina comigo? Sou um assassino profissional, meu amor. Matar é o que faço melhor.
De canto do olho, ela observou o amigo derrubar mais dois de seus homens com uma só mão.
- Pense bem, governo um terço do mundo e controlo toda a fortuna. Quer ser um homem muito rico?
Ele levantou um dos ombros.
- Não.
Amara tinha esquecido que ele era diferente dos outros homens que conhecia - uma vantagem no começo, mas um problema no presente. - Mulheres, então. Dez, vinte, cinquenta garotas que desejem apenas você.
Felix abriu o sorriso mais frio que ela já tinha visto.
- E como eu saberia que não são vadias frias e dissimuladas como você? Não tem acordo, imperatriz.
Amara ficou com os olhos marejados. Fazia muito tempo que não chorava, mas chorar era um talento que desenvolvera desde cedo. Sabia que a maneira mais fácil para uma mulher evitar problemas ou castigos
era fingir fraqueza entre os homens.
As lágrimas logo começaram a descer livremente por seu rosto.
- Eu pretendia libertá-lo, mas me disseram que você já estava morto, assassinado em uma tentativa de fuga. Meu coração ficou destruído quando pensei que tinha perdido você para sempre. Deveria tê-lo incluído
em meus planos, mas eu estava com medo, muito medo. Ah, Felix, eu não queria que nada acontecesse com você, sinceramente! Eu... eu amo você! Sempre vou amar, não importa o que você decida fazer hoje!
Felix olhou para ela como se estivesse assustado com o que ouvia.
- O que disse? Que me ama?
- Sim. Eu amo você.
A ponta da espada se mexeu. Mas logo foi afastada.
- Bela tentativa, meu amor. Eu poderia até acreditar, se fosse um completo imbecil. - Felix sorriu para ela. - Hora de morrer.
Um instante depois, Carlos, que tinha subido no palco e conseguido passar por Taran, derrubou Felix. Antes que conseguisse recuperar o fôlego, Taran e Felix estavam diante dela, ajoelhados.
Nerissa voltou para seu lado, e Amara segurou a mão dela, apertando-a para ter a certeza de que a criada não tinha se ferido.
- Os outros rebeldes morreram, vossa graça - Carlos informou. O rosto dele sangrava devido a um corte profundo no nariz.
Amara respondeu assentindo brevemente e então olhou para Felix.
Ele deu de ombros de novo.
- Não posso dizer que não tentei.
- Devia ter sido mais rápido.
- Acho que gosto muito de falar. - Ele abriu um grande sorriso, mas seu olhar estava frio. Voltou-se para Nerissa por um instante antes de voltar a encarar Amara. - Vamos falar de novo sobre aquela oferta
do harém de lindas mulheres?
Amara tocou o rosto de Felix, levantando sua cabeça.
- Sinto muito pelo seu olho. Gostei daquele olho, assim como de outras partes suas. Por algumas noites, pelo menos.
- Devemos executá-los agora mesmo, vossa graça? - Carlos perguntou, com a espada ao lado do corpo.
Ela esperou o medo aparecer no único olho de Felix, mas ele manteve a pose desafiadora.
- Se eu poupá-lo, o que fará? Vai tentar me matar de novo?
- Num piscar de olhos - ele disse.
- Você é um grande idiota - Taran rosnou.
Sua bela fera a tinha entretido por um período. E ainda entretinha.
Apesar de tudo, Amara ainda se sentia atraída por ele. Mas não importava. Ele deveria ter morrido muito tempo antes, e não ser mais um problema para ela.
Amara assentiu para o guarda.
- Jogue os dois no fosso. Cuido deles mais tarde.
20
LUCIA
PAELSIA
- Ela é incrível. Totalmente linda e gloriosa. Parece mais uma deusa do que uma mera mortal, se quer saber. Tenho certeza de que vai salvar todos nós.
Lucia parou na barraca de frutas enquanto procurava uma maçã sem nenhuma imperfeição - pelo jeito, era impossível em Paelsia - e olhou para a vendedora que conversava com uma amiga.
- Concordo totalmente - a amiga disse.
Estariam falando da feiticeira profetizada?
- Desculpem minha grosseria, mas posso saber de quem estão falando? - Lucia perguntou. Era a primeira vez que falava em voz alta em mais de um dia, e sua voz falhou no início.
A vendedora olhou para ela.
- Ora, da imperatriz, é claro! De quem mais poderia ser?
- Sim, de quem mais, não é? - Lucia disse em voz baixa. - Então vocês acham que Amara Cortas vai salvá-las. Salvá-las do que, exatamente?
As paelsianas trocaram um olhar e viraram para Lucia um tanto impacientes.
- Você não é daqui, é? - Uma delas franziu os lábios enrugados. - Não, com esse sotaque, acredito que seja limeriana, não é?
- Nasci em Paelsia e fui adotada por uma família limeriana.
- Você teve muita sorte por ter escapado destas fronteiras tão cedo, então. - A vendedora virou para a amiga. - Se ao menos todos tivéssemos tido essa oportunidade...
As duas riram sem achar graça.
A paciência de Lucia estava acabando.
- Vou comprar esta maçã. - Ela guardou a fruta no bolso e entregou uma moeda de prata. - E também qualquer informação que puder me dar a respeito da localização da imperatriz.
- Com prazer. - A mulher pegou a moeda com ganância, semicerrando os olhos. - Por onde andou esses últimos dias, mocinha, para não saber tudo sobre a imperatriz? Perdida por aí?
- Mais ou menos. - Na verdade, ela estava recuperando as forças na hospedaria no leste de Paelsia até não aguentar mais e ter que fugir. Apesar da preocupação da atendente Sera com sua saúde, Lucia sabia
que precisava sair dali antes que sua barriga ficasse grande demais e ela não conseguisse mais levantar da cama.
Passou a mão pela barriga aparente e a comerciante notou, arregalando os olhos.
- Ah, minha querida! Não percebi que estava grávida. E já tão avançada!
Lucia gesticulou para indicar que ela não se preocupasse.
- Estou bem - ela mentiu.
- Onde está sua família? Seu marido? Não me diga que está sozinha aqui na feira hoje!
Parecia que o fato de estar grávida fazia os desconhecidos sentirem vontade de tratá-la com muito mais gentileza do que o normal. Tinha sido bom durante a viagem lenta e desconfortável para o oeste.
- Meu marido está... morto - ela disse com cuidado. - E agora estou procurando minha família.
A amiga da vendedora correu na direção de Lucia e segurou suas mãos.
- Meus mais sinceros sentimentos por essa perda tão dolorosa.
- Obrigada. - Lucia sentiu um nó repentino e irritante na garganta. Assim como a barriga inchada, suas emoções estavam muito mais intensas e difíceis de controlar.
- Se precisar de um lugar para ficar... - a vendedora disse.
- Obrigada de novo, mas não preciso. Só preciso de informações sobre a imperatriz. Ela ainda está em Limeros?
As amigas se entreolharam de novo, sem acreditar que Lucia pudesse estar tão desinformada a respeito daquelas coisas.
- A grande imperatriz Cortas está morando no antigo complexo do rei Basilius - a vendedora começou. - Ela vai fazer um discurso de lá amanhã, dirigindo-se a todos os paelsianos que puderem participar.
- Um discurso aos paelsianos. Por quê?
A vendedora olhou para ela com um pouco de compaixão.
- Bem, por que não? Talvez você tenha esquecido por causa dos muitos anos abençoados que passou em Limeros, mas a vida aqui em Paelsia é difícil.
- Para dizer o mínimo - sua amiga acrescentou.
A vendedora assentiu.
- A imperatriz vê nossos esforços. Ela os reconhece. E quer fazer algo em relação a isso. Ela valoriza os paelsianos como parte importante de seu império.
Lucia tentou não revirar os olhos. Ela não tinha percebido como Amara era uma manipuladora de primeira, sedenta por poder, nas poucas vezes em que conversara com a ex-princesa quando os Damora moraram
no palácio auraniano.
- Mas, claro, questiono a sabedoria da imperatriz por se casar com o Rei Sanguinário - a vendedora comentou.
- Desculpe - Lucia disse, olhando para ela. - Você disse que ela é casada com o Rei... San... com o rei Gaius?
- Sim. Mas também soube que ele está desaparecido no momento, junto com seu herdeiro. Vamos torcer para que a imperatriz tenha enterrado os dois a sete palmos da terra.
- Realmente - Lucia murmurou, sentindo o estômago embrulhado só de pensar. Sera não tinha dito nada sobre o casamento de seu pai com Amara. Seria verdade? - Eu... eu preciso ir. Preciso...
Ela virou e desapareceu em meio à multidão na feira.
Certa vez, Ioannes tinha guiado Lucia para encontrar e despertar a Tétrade com seu anel da feiticeira. Ela esperava que o mesmo encanto que usaram pudesse funcionar para ajudá-la a encontrar Magnus e seu
pai. No entanto, apesar de ter conseguido fazer o anel girar como fizera na época em seus aposentos no palácio auraniano, todas as tentativas de reaver o mapa brilhante de Mítica e determinar a localização
deles tinham fracassado. Enfraquecida por usar seus elementia, ela tinha que fazer paradas constantes ao percorrer o caminho a pé, junto com muitos outros paelsianos, até o complexo do antigo líder local.
Lucia se recusava a acreditar que sua família estivesse morta. Eles eram muito bem preparados para isso. E, se o rei tinha se casado com Amara - uma ideia tão ridícula que ela mal conseguia conceber -,
tinha feito isso por razões estratégicas, por poder e sobrevivência.
Sim, Amara era jovem e muito bela, mas seu pai era esperto e cruel demais para tomar uma decisão como essa movido por uma mera paixão.
Havia milhares de paelsianos reunidos do lado de fora do complexo quando ela finalmente chegou. O vilarejo mais próximo ficava a meio dia de viagem dali, mas levaria mais um dia, talvez dois, na situação
atual de Lucia, para chegar a Basilia, seu destino original.
Os portões altos e pesados rangeram ao se abrir, e a multidão adentrou o complexo. Lucia se concentrou tanto nas pessoas que a cercavam, procurando algum rosto conhecido, que mal viu os caminhos de pedra
e as casas de barro que levavam em direção à enorme casa de três andares no centro do complexo. Os paelsianos estavam sendo levados para uma ampla clareira, com fogueiras e vários assentos elevados de
pedra. Isso a fez pensar nas histórias que já tinha ouvido sobre como o chefe Basilius organizava competições entre os homens que queriam impressioná-lo com sua força e habilidade de combate. Ali, já tinham
ocorrido lutas mortais apenas para entretê-lo.
A multidão continuou crescendo, mas Lucia não ouviu nenhuma menção ao ex-chefe e a seus prazeres nos fragmentos de conversa ao seu redor. Só ouvia sobre a importância da nova imperatriz.
Lucia não imaginava que os paelsianos fossem tão fáceis de enganar. Eles acreditaram, por muitos e muitos anos, que o chefe Basilius era um feiticeiro.
Chefe Hugo Basilius. Seu pai biológico.
E aquela era a casa dele - o lugar onde ela teria sido criada se não tivesse sido roubada no berço.
Lucia olhou para as casas, ruas e a arena que formavam o complexo, esperando sentir uma sensação de perda da vida que deveria ter tido.
Mas não sentiu nada. Se havia um lar do qual sentia falta, era do palácio escuro cercado por gelo e neve em Limeros.
Quanto antes conseguisse deixar aquele reino seco e desagradável, melhor. Já tinha aprendido mais do que o suficiente sobre a cultura paelsiana quando a conheceu com Kyan.
Ela não ouviu boatos sobre o deus de fogo causando mais destruição e morte durante suas viagens. Segurava firme a esfera de âmbar que tinha escondido no bolso. Timotheus insistira que Kyan não podia morrer.
Mas, se era verdade, onde ele estava? O que estava planejando? Ela o havia ferido gravemente em sua batalha? Se não tinha, por que Kyan não havia voltado às Montanhas Proibidas para recuperar sua esfera
antes que Lucia a encontrasse?
Ela pressionou os dedos ao redor do cristal de âmbar ao pensar nisso. Seria forte o suficiente para lutar se ele a encontrasse naquele dia?
Lucia detestava admitir que não.
Não, não é bom o suficiente, ela pensou. Não há outra escolha. Tenho que ser forte.
- Ela é incrível, de fato - outro um velho corcunda paelsiano disse. - Se tem alguém que pode livrar nossa terra de sua doença mortal, é a imperatriz.
- Quero vingança pela morte de minha família - uma mulher mais jovem respondeu.
- Também quero - uma mulher mais velha concordou.
- De que doença estão falando? - Lucia perguntou.
- A doença da bruxa sombria - o velho resmungou. - A maldade dela destruiu esta terra e matou milhares de paelsianos com o toque de sua mão feia e retorcida.
Lucia mexeu as mãos.
- Ouvi falar dessas maldades...
- Maldades? - ele praticamente gritou com ela. Gotas de saliva do homem acertaram o rosto de Lucia, que limpou a face, fazendo uma careta. - Alguns dizem que Lucia Damora vai matar todos nós com sua magia
do fogo, que é uma feiticeira imortal, filha do Rei Sanguinário com uma demônia durante uma cerimônia de magia sanguinária! Mas eu a vejo como é: alguém que precisa ser morta antes que acabe machucando
outras pessoas.
Eles sabiam seu nome. E a odiavam o suficiente para desejar sua morte.
Não importava que o velho não tivesse incluído Kyan no relato. Já era um fato. Ela não podia voltar e mudar o que tinha acontecido.
Os paelsianos viam Lucia como uma bruxa demoníaca tirada das sombras como uma hera odiosa. Um pesadelo e uma doença que infestavam sua terra.
Ela nem tentou discutir, uma vez que estavam totalmente certos.
A multidão começou a gritar quando Amara finalmente subiu ao palco. Lucia tentou ver o máximo que pôde da bela moça, o cabelo comprido e escuro estava solto, o vestido de seda esmeralda com uma fênix brilhante
bordada. Quando ela ergueu as mãos. As pessoas ficaram em silêncio.
Amara falou de maneira clara e intensa sobre um futuro incrível para os cidadãos de Paelsia. Lucia não acreditava nas mentiras que ela despejava, mas, ao observar em volta, viu que as pessoas aceitavam
o que era dito como quem aceita um banquete delicioso.
A imperatriz parecia muito sincera em suas promessas. Lucia admirava a facilidade com que falava sobre mudar tudo o que estava errado no mundo. Sobre tomar decisões em nome daquelas pessoas que acreditavam
em cada uma de suas palavras.
Lucia estava ali, punhos cerrados, odiando Amara e esperando a chance de descobrir o que sua inimiga tinha feito com sua família.
E então, quase no mesmo instante, as lindas e falsas palavras que Amara dizia foram interrompidas. Alguém gritou e Lucia só entendeu o que estava acontecendo quando viu um guarda cair no palco, com uma
flecha enfiada na garganta. Outro guarda caiu, e mais um.
Uma tentativa de assassinato.
Isso não pode acontecer, Lucia pensou desesperada. Preciso muito perguntar a ela. Amara não pode morrer hoje.
Com muito esforço, Lucia acessou a magia do ar. Um vento frio e abundante envolvia seus braços e mãos em espirais transparentes enquanto ela avançava pela multidão em direção ao palco, usando a magia invisível
para tirar todo mundo de seu caminho. Os guardas kraeshianos pularam na multidão assustada e confusa com armas em punho e só provocaram mais pânico. Eles derrubavam quem os enfrentava ou cruzava seu caminho,
fossem rebeldes ou civis, o que só aumentou a confusão enquanto todos tentavam fugir.
Lucia se esforçou para enxergar o que estava acontecendo no palco. Amara e uma garota muito parecida com a criada que costumava acompanhar a princesa Cleo encolheram-se diante de um jovem alto que usava
um tapa-olho preto e empunhava uma espada.
A magia do ar frio de Lucia passou para a de fogo, pronta para queimar quem a impedisse de chegar a Amara. Alguém puxou seu manto, e ela olhou para a pessoa, pronta para fazê-la arder em chamas. Nicolo
Cassian olhou para ela, uma das mãos em seu manto, a outra pressionada contra um ferimento na barriga. Quando ele tossiu, sangue espirrou de sua boca.
Um ferimento mortal.
Lucia olhou de novo para o palco, mas um som engasgado a fez virar de novo para Nic, uma vítima dos guardas sedentos por sangue ou de um paelsiano assustado.
Não importava quem tinha feito aquilo. Ela conseguiu ver, com rapidez, que o ferimento era profundo e mortal. O que aquele garoto estava fazendo justamente ali?
Lucia não tinha magia suficiente para lutar contra milhares. Levou a mão à barriga ao observar a multidão, sabendo que precisava ir para um local seguro. Muitos estavam se pisoteando para voltar aos portões.
Ela deu um passo e então percebeu que Nic ainda a segurava.
- Prin... ce... sa... - ele disse, sem fôlego.
Ela o encarou, hesitante.
- Por favor... me ajude...
A vida se esvaía de seus olhos. Nic não tinha mais muito tempo. Mas ele era amigo próximo da princesa Cleo - uma garota que Lucia já tinha considerado uma amiga verdadeira, até ser traída por ela.
Mas o pai de Lucia tinha destruído a vida de Cleo, destruído todo o seu mundo.
Cleo tinha perdido tudo no último ano. Aquele amigo era o único resquício que a princesa auraniana tinha de sua antiga vida.
Se Nic morresse, Lucia não tinha dúvidas de que isso destruiria Cleo.
Lucia detestava quando sua consciência pesava, principalmente quando isso acontecia por causa de Cleiona Bellos.
Com cuidado, ela se agachou ao lado de Nic e afastou a mão que cobria o ferimento para, em seguida, levantar a túnica. Fez uma careta ao ver todo aquele sangue e as entranhas para fora.
- Diga a Cleo - Nic disse com esforço para respirar - que eu a amo... que ela é minha família... que eu... eu sinto muito.
- Poupe seu fôlego - Lucia disse. - E diga a ela você mesmo.
Lucia pressionou o ferimento cheio de sangue e canalizou toda a magia da terra que tinha dentro de si. Nic arqueou as costas e gritou de dor, e o grito estridente se espalhou pelo caos ao redor deles.
- Pare! Por favor! - Nic tentou impedi-la, afastá-la, mas estava fraco demais. Tinha perdido tanto sangue que Lucia não sabia se teria magia suficiente para curá-lo. Mas ainda assim, tentou. O capuz caiu
de sua cabeça, revelando o cabelo e o rosto, mas ela não se deu ao trabalho de puxá-lo de volta. Esgotou a energia e a força que tinha em uma tentativa de salvar aquele rapaz.
Pelo menos até alguém arrancá-la de perto dele. Ela virou, furiosa, e ficou frente a frente com um homem feio que escancarava um sorriso mostrando os dentes.
- Vejam o que encontrei! - ele anunciou, arrastando-a para longe de Nic até ela perdê-lo de vista. - A própria feiticeira atacando outro de nós! As mãos dela estão manchadas de sangue paelsiano!
Lucia tentou invocar magia do fogo ou do ar para afastá-lo, mas nada aconteceu. Ela fechou a mão, desesperada para fugir de quem a atacava.
- Olhe para mim, bruxa! - o homem disse.
Ela lançou um olhar para o homem, mas recebeu um tabefe no rosto tão forte a ponto de fazer seu ouvido zunir.
- Amarre-a! - alguém gritou. - Queime a bruxa como ela queimou nossos vilarejos!
Desorientada, ela foi arrastada pela terra seca, tropeçando nos próprios pés até seu agressor empurrá-la para longe. Ela caiu de joelhos com tudo no meio de uma roda de pessoas furiosas. Alguém jogou uma
pedra nela, acertando o lado direito de seu rosto com força, e Lucia gritou de dor. Levou a mão ao rosto e sentiu o sangue quente.
- Não sou quem você pensa que sou - ela conseguiu dizer. Levantou as mãos à frente do corpo. - Você precisa me soltar.
- Não, bruxa. Hoje você vai morrer por seus crimes cruéis. Estamos de acordo?
A multidão que a cercava expressou aprovação com gritos. Não havia misericórdia no olhar de ninguém. Alguém entregou uma corda grossa ao primeiro agressor.
- Deixe-a de pé - ele vociferou.
Alguém atrás de Lucia a levantou e amarrou seus punhos com força.
- Meus cumprimentos, princesa - uma voz estranhamente familiar soou em seu ouvido. - Pelo visto está causando mais problemas em Paelsia.
Jonas Agallon. Ela se esforçou para virar o suficiente e ver aquele olhar tomado de ódio.
- Jonas - ela disse -, por favor, precisa me ajudar!
- Ajudar? O quê? A grande e poderosa feiticeira não consegue se cuidar? - Ele estalou a língua. - Que tragédia. Parece que essas pessoas querem vê-la morta. Queimada viva, acho que foi o que ouvi, certo?
Parece um fim adequado para uma bruxa como você.
Sua mente estava a mil.
- Onde está meu pai? Meu irmão? Você sabe?
- É a última coisa com que você deveria se preocupar, princesa. Sinceramente. - Ele a virou e resvalou a mão na barriga dela.
Jonas franziu a testa.
- Isso mesmo - ela disse, agarrando todas as oportunidades que tinha de conseguir ajuda, ainda que fosse de alguém como ele. - Vocês vão tentar celebrar minha execução tão rápido agora que sabem que uma
criança inocente morrerá comigo?
- Inocente? - O olhar de Jonas não suavizou nem um pouco. - Nada que alguém como você poderia trazer a este mundo seria inocente.
- Eu não matei aquela moça. Foi Kyan. Ele... eu não consegui controlá-lo. Eu queria que ele parasse. Sinto muito por sua perda e me arrependo do que aconteceu naquele dia. Gostaria de poder mudar as coisas,
mas não posso.
- O nome daquela moça era Lysandra. - Jonas contraiu o maxilar, e ficou em silêncio por um momento enquanto os outros homens pediam para ir a um lugar mais adequado para queimar a bruxa. - Onde está Kyan?
- Eu... eu não sei - ela disse com sinceridade.
Jonas a encarou.
- Essa criança dentro de você drena sua magia, não é?
- Como sabe disso?
Ele franziu ainda mais a testa.
- Você já teria destruído tudo aqui se tivesse acesso a seus elementia, certo?
Ela apenas assentiu.
Jonas xingou em voz baixa.
- Eles precisam de você. Estão dependendo de você. E você está aqui, como uma idiota, prestes a morrer.
Se estivessem em outro lugar, em outro momento, ela teria ficado magoada ao ser chamada de idiota.
- Então faça alguma coisa em relação a isso. Por favor.
Depois de um momento de hesitação, Jonas empunhou a espada e a apontou para o homem que segurava a corda.
- Uma pequena mudança de planos. Vou levar a feiticeira comigo.
- Sem chance - o homem resmungou.
- Não há discussão. Estou vendo que nenhum de vocês está armado no momento. - Ele observou as pessoas do grupo. - Atitude estúpida, em uma multidão assim, não carregar uma arma, mas isso torna as coisas
mais fáceis para mim. Se nos seguirem, vão morrer. - Ele arregalou os olhos para Lucia. - Vamos, princesa.
Jonas pegou o braço dela e a puxou.
- Aonde vai me levar? - ela perguntou.
- Aos seus queridos pai e irmão. Que todos vocês apodreçam juntos na escuridão.
21
CLEO
PAELSIA
Quando percebeu que Nic, Jonas e Olivia tinham partido sem contar nada sobre seus planos, Cleo não ficou magoada. Ficou furiosa.
- Minha nossa, querida, você vai abrir um buraco no chão de tanto andar de um lado para o outro.
Cleo virou e viu Selia Damora olhando para ela. A mulher a deixava nervosa, mas felizmente as duas tinham se encontrado poucas vezes desde sua chegada. Era difícil acreditar que fazia só três dias que
estavam na hospedaria. Pareciam três anos.
- Meus amigos partiram sem se despedir - Cleo respondeu tensa, forçando-se a parar de roer a unha do polegar direito. - Considero esse comportamento imperdoavelmente grosseiro e desrespeitoso. Em especial
da parte de Nic.
- Sim, Nic. O rapaz de cabelo vermelho. - Selia sorriu. - Tenho certeza de que não fez por mal. Ele parece gostar de você.
- Ele é como um irmão para mim.
- Os irmãos costumam esconder segredos das irmãs.
- Mas não o Nic. - Cleo remexeu as mãos. - Contamos tudo um ao outro. Bom, quase tudo.
- Venha sentar comigo por um momento. - Selia sentou em uma espreguiçadeira e deu batidinhas no assento ao seu lado. - Quero saber mais sobre a esposa de meu neto.
Era a última coisa que Cleo queria, mas teve que fingir amabilidade. Seria inteligente de sua parte fazer amizade com uma mulher que logo teria acesso à magia, especialmente agora que a magia de Cleo tinha
sido roubada - ainda que Selia fosse uma Damora.
Só de pensar no que Ashur tinha feito, ela tremia de raiva. Como ele tinha conseguido roubar a esfera de obsidiana sem que ela notasse? Para Cleo, aquele cristal representava poder e um futuro repleto
de escolhas e oportunidades. Mas por ser preguiçosa e desatenta, a esfera tinha sido levada de baixo de seu nariz.
E não havia absolutamente nada que pudesse fazer.
Forçando um sorriso, Cleo sentou hesitante ao lado da senhora.
Selia não disse nada por um tempo, mas observou o rosto de Cleo com cuidado.
- O que foi? - Cleo perguntou finalmente, ainda mais desconfortável do que antes.
- Eu não tinha certeza antes... mas tenho agora. Vejo seu pai em você. Seus olhos são da mesma cor dos de Corvin.
A menção a seu querido pai a deixou tensa.
- Você tinha dúvidas a respeito de quem eram meus pais?
- No que diz respeito a meu filho e a... - ela hesitou - às dificuldades dele com sua mãe, sim, claro que tive muitas dúvidas ao longo dos anos. Achei que houvesse uma chance de Gaius ser seu pai.
O horror de pensar numa possibilidade daquelas a deixou enjoada de repente.
- Meu... meu pai? - Ela cobriu a boca com a mão. - Acho que vou vomitar.
- Ele não é seu pai. Tenho certeza disso agora que estou olhando para você.
Cleo tentou se manter calma, mas a insinuação inesperada da mulher a deixara atordoada.
- Minha... minha mãe não teria... de jeito nenhum...
- Sinto muito se a perturbei com isso. Mas não prefere ter certeza de que você e Magnus estão unidos apenas pelos votos e não pelo sangue? - Ela franziu a testa. - Minha nossa, você está muito pálida,
Cleiona.
- Nem sei por que sugere uma coisa dessas - ela disse.
- Não pensei que Gaius tivesse conseguido se encontrar com Elena depois da briga que tiveram, que sei que aconteceu bem antes de ela se casar com Corvin. Mas os filhos nem sempre contam tudo à mãe sobre
assuntos do coração, nem mesmo o filho mais atencioso e amoroso.
O modo como o rei expressara o que teriam sido suas últimas palavras, seu suspiro final, o nome da mãe dela... "Sinto muito, Elena".
- Só soube que eles se conheciam recentemente - Cleo disse, tensa.
- Eles se conheceram num verão vinte e cinco anos atrás na Ilha de Lukas, quando Gaius tinha dezessete anos, e Elena, quinze. Quando voltou para casa, Gaius já estava obcecado por ela, dizendo que iam
se casar com ou sem o consentimento do pai dele.
Cleo se esforçou para continuar respirando. Aquela história não parecia plausível. Soava como uma história de um livro cheio de fantasia e imaginação.
- Meu pai nunca disse nada a respeito... - Ela franziu a testa. - Ele sabia?
- Não faço ideia do que Elena pôde ter contado a Corvin sobre seus romances anteriores. Imagino que ele descobriu a verdade no fim das contas, ainda que apenas para se preparar melhor para proteger Elena.
- Protegê-la? Como assim?
A expressão de Selia ficou mais séria.
- Elena perdeu o interesse em Gaius quando voltou para casa. Não sei por quê. Imagino que fosse apenas uma novidade passageira para ela, uma maneira de passar o verão, conquistar o afeto de um garoto apaixonado.
Nada além disso. Quando descobriu essa mudança, Gaius... não aceitou muito bem. Confesso, amo meu filho profundamente, mas ele sempre teve um péssimo lado violento. Gaius foi atrás de Elena, exigindo que
seu amor fosse retribuído e, quando ela se recusou, ele a agrediu quase a ponto de matá-la.
Cleo sentiu mais uma onda de náusea. Sua pobre mãe, sujeita ao cruel Gaius Damora em sua pior versão.
Ela nunca detestara tanto o rei.
- Só espero que meu neto não seja exageradamente cruel com você a portas fechadas, minha cara - Selia disse delicadamente. - Homens poderosos, cheios de força e perigo... costumam ter acessos de violência.
As esposas e mães torcem para sobreviver a eles.
- Sobreviver? Não pode estar falando sério! Se Magnus um dia levantasse a mão para mim, eu...
- O quê? Você mal chega na altura do ombro dele, e Magnus deve ter o dobro do seu peso. A melhor coisa a se fazer nesse caso, Cleiona, é ser o mais agradável e compreensiva possível em todos os momentos.
Todas as mulheres devem fazer isso.
Cleo endireitou os ombros e levantou o queixo.
- Não tive o grande privilégio de conhecer minha mãe, mas se ela era um pouco parecida comigo ou um pouco parecida com minha irmã, então sei que ela não teria sido o mais agradável e compreensiva possível
diante de uma agressão, não importa de quem nem quando. Nem eu! Eu mataria quem tentasse me atacar!
Selia abriu um sorriso discreto.
- Meu neto escolheu uma garota com coragem e força para amar, assim como o pai dele. Eu estava testando você, é claro.
- Me testando?
- Olhe para mim, querida. Tenho cara de quem permitiria que um homem levantasse a mão para me bater?
- Não - Cleo respondeu com sinceridade.
- Exato. Fico feliz por termos conseguido conversar hoje, minha querida. Agora já sei tudo o que preciso saber.
Ela estendeu o braço, apertou a mão de Cleo e então saiu da sala.
Aquela tinha sido a conversa mais esquisita de toda a vida de Cleo.
- Talvez eu vá à taverna sozinha hoje - ela murmurou. - Por que Magnus é o único aqui que pode beber vinho em uma tentativa tola de fugir dos problemas?
Quando levantou, algo chamou sua atenção do lado de fora, nos fundos da hospedaria. Ela deu um passo para a frente. Olivia estava no quintal. Estranhamente, a moça não usava nada além de um lençol branco
enrolado no corpo, lençol que Cleo reconheceu das roupas de cama que a esposa do dono da hospedaria lavava todos os dias.
Independentemente da vestimenta, ver Olivia foi um grande alívio. Cleo levantou e saiu para se aproximar, observando ao redor com curiosidade.
- Olivia! Nic e Jonas estão com você? Aonde vocês foram?
A expressão de Olivia era de grande incerteza.
- Preciso sair de novo imediatamente, mas quis voltar antes para ver você.
- O quê? Aonde está indo?
- Está na hora de eu voltar para a minha casa. O caminho e o destino de Jonas se encontraram com sucesso, e meu tempo com ele está acabando.
- Desculpe. - Cleo balançou a cabeça, confusa. - O destino de Jonas? Do que você está falando, afinal?
- Não cabe a mim explicar essas coisas. Só sei que não posso mais cuidar dele, uma vez que talvez me sinta tentada a interferir. - Ela franziu a testa. - Isso deve soar ridículo para você. Sei que não
sabe quem sou de verdade.
- Você quer dizer que é uma Vigilante?
Olivia olhou para Cleo.
- Como sabe disso?
Cleo riu com hesitação ao ver a expressão de choque de Olivia.
- Jonas me contou. Ele confia em mim, você também deveria confiar. Prometo guardar seu segredo surpreendente, mas, por favor, me diga o que está acontecendo. Está chateada só por deixar Jonas?
- Não, não é o único motivo. Eu... eu fui ao complexo com Nic e Jonas, onde a imperatriz está no momento.
Cleo arregalou os olhos.
- Era onde você estava? Que plano imbecil foi esse?
- O príncipe Magnus ameaçou Nic - Olivia explicou. - Ele ameaçou você também, caso Nic não fosse atrás de Ashur para recuperar os cristais da Tétrade.
Cleo franziu a testa.
- Não pode ser. Magnus não faria isso.
- Garanto que fez. Caso contrário, Nic nunca teria se afastado de você. - Os olhos verde-esmeralda de Olivia brilharam de ódio. - É culpa do príncipe que isso tenha acontecido. Perdi Nic na multidão durante
a tentativa de assassinato de Amara. Eu o vi por apenas um momento quando ele foi atingido por uma lâmina. Eu... eu acredito que tudo terminou depressa.
Cleo balançou a cabeça quando a palma de suas mãos começou a arder e a suar.
- O quê? Não entendo. Ele foi atingido por uma lâmina? Que lâmina? Do que está falando?
A expressão de Olivia era só pesar.
- Nic está morto. Ele é um dos muitos mortos depois que os rebeldes fizeram uma tentativa de assassinato a Amara. Preciso sair de Mítica agora e peço a você que faça o mesmo. Você não está em segurança
aqui com alguém como Magnus, que mataria um rapaz como Nic. Não está certo, princesa, nada disso está certo. O mundo está fora de controle, e eu temo que seja tarde demais para salvá-lo. Sinto muito por
dizer isso, mas achei que você merecia saber.
Olivia soltou a mão de Cleo e deu alguns passos para trás, com uma expressão atormentada.
- Fique bem, princesa - ela disse. Depois disso, a pele escura e impecável se transformou em penas douradas, e seu corpo se transformou no de um falcão, e ela alçou voo.
Cleo a observou, surpresa demais com o que tinha ouvido para apreciar a magia verdadeira e inegável revelando-se diante de seus olhos.
Ela não sabia ao certo quanto tempo ficou em silêncio no pátio, olhando para o céu claro, até voltar para a hospedaria com dificuldade. Seus joelhos fraquejaram antes que ela alcançasse uma cadeira.
Seu corpo inteiro tremia, mas ela não chorou. Eram informações demais para processar. Inacreditável demais. Não podia ser verdade. Se fosse, se Nic estivesse morto, então ela também queria morrer.
- Você está bem? O que aconteceu?
Quando se deu conta do que estava acontecendo, Cleo percebeu que tinha sido levantada do chão por dois braços fortes.
- Está ferida? - Magnus afastou o cabelo dela da testa, envolvendo seu rosto com as mãos. - Que droga, Cleo, responda!
Confusa, ela percebeu a preocupação nos olhos castanhos profundos dele.
- Magnus... - ela começou, a respiração profunda e trêmula.
- Sim, meu amor. Fale comigo. Por favor.
- Diga a verdade.
- Claro. O quê? O que você precisa saber?
- Você ameaçou me matar se Nic não fosse atrás de Ashur?
A expressão sofrida dele, totalmente concentrada nela, aos poucos deu lugar à frieza da máscara que ele usava para encobrir suas emoções.
- Ele disse isso? Ele voltou?
- Responda. Você me ameaçou ou não?
Magnus encarou os olhos furiosos dela.
- Cassian precisava da motivação certa.
- Isso é um sim.
- Eu disse o que ele precisava ouvir para resolver a questão. Para...
Cleo deu um tapa tão forte no rosto dele que sua mão ardeu. Magnus levou a mão ao rosto e olhou para ela, atônito.
Ele franziu o cenho.
- Você ousa...
- Ele está morto! - Cleo gritou antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa. - Por causa do que você disse! Meu último amigo no mundo inteiro está morto por sua causa!
Ele parecia confuso.
- Não pode ser.
- Não pode? As pessoas não morrem quando se aproximam de você e de sua família monstruosa? - Ela passou os dedos pelo cabelo, desejando arrancá-lo pela raiz, desejando sentir dor física para poder se concentrar
em algo que não fosse seu coração despedaçado.
- Quem contou isso a você? - Magnus perguntou.
- Olivia voltou. Ela foi embora, então não pode forçá-la a fazer o que você quer.
- Olivia. Sim, bom, não sei quem Olivia é. Nem você. Só sabemos que ela é aliada de Jonas, um garoto que me odiava a ponto de me querer morto até pouco tempo atrás. Até onde sei, esse objetivo não mudou.
- Por que ela mentiria sobre algo assim? - A voz da princesa falhou.
- Porque as pessoas mentem para conseguir o que querem.
- Imagino que você saiba bem disso.
- Sim, e penso o mesmo sobre você, princesa - ele disse. - Entre nós dois, acho que você mentiu muito mais do que eu. Além disso, devo dizer que você viu Ashur morrer com seus próprios olhos, mas ele ainda
está vivo. Não existem provas de que Nic está morto. Só tem as palavras de alguém. Não se pode confiar em palavras, não nas palavras de qualquer um.
- Essa é a sua resposta? - Cleo olhou para ele, percebendo que mal conhecia a pessoa à sua frente. - Digo que um garoto que era como um irmão para mim foi morto por sua causa e você diz simplesmente que
mentiram para mim?
- É o que parece, não é?
- Você não assume responsabilidade por todo o mal que causou. Nunca! - Ela se esforçou ao máximo para se manter firme, para não se perder na dor e na raiva que entravam em conflito dentro dela. - Tentei
ver seu lado bom, mas você fez algo imperdoável. Vá em frente! - ela vociferou. - Tente se defender! Diga que Nic odiava você, então por que não desejaria que ele morresse? Vamos lá, faça isso!
- Não vou negar. A vida seria muito mais simples para mim se aquela pedra no meu sapato fosse retirada de uma vez por todas. Mas eu nunca desejaria a morte dele, porque sei como gosta dele.
- Gosto dele? Eu amo! - ela gritou. - E se ele realmente estiver morto, eu...
- O quê? Vai perder o resto de esperança que ainda tem? Vai se encolher e morrer? Por favor, você tem muito a ganhar ficando viva, lutando, mentindo e continuando a me usar sem pudor para conseguir o que
posso lhe dar.
Cleo olhou para ele, abismada.
- Usar você?
Magnus ficou sério.
- Você quer poder, magia. Ao ficar aqui comigo e tolerar a existência de meu pai, sabia que isso a levaria ao que deseja. Quando os cristais da Tétrade foram roubados, principalmente por sabermos o que
sabemos sobre eles, o que eu deveria pensar? Que você continuaria aqui para sempre? Fiz o que fiz por você, para ajudá-la a reaver sua chance de ter poder. Ashur parece valorizar Nic por motivos que não
compreendo. Se tem alguém que consegue entender aquele kraeshiano doido, eu sabia que era seu amigo querido. O mesmo amigo que mandou Taran cortar meu pescoço, devo relembrar.
Ele falava com Cleo como um desconhecido furioso, não como alguém que ela tinha passado a valorizar.
- E agora está me culpando por isso. Como ousa?
Magnus bufou.
- É impossível discutir com você.
- Então nem tente. Você não pode consertar isso, Magnus. Não pode nem começar.
- Se Nic ainda estiver vivo...
- Não importa. - Lágrimas correram por seu rosto. - Isso provou como somos diferentes. Você é incansavelmente cruel e manipulador, e agora vejo que isso nunca vai mudar.
- Posso ser sincero, princesa? Eu poderia dizer exatamente a mesma coisa sobre você. Talvez você preferisse que eu lidasse com o conflito colhendo flores e cantando, mas não sou assim. E você tem razão:
nunca vou mudar. Nem você. Uma hora você diz que me ama, mas prefere que cortem sua língua a contar esse segredo, até mesmo a seu amigo mais íntimo. Pelo amor da deusa! Que Nic não descubra que você se
mistura com pessoas como eu! Ele detestaria você por isso?
Cleo secou as lágrimas, irritada consigo mesma por demonstrar tamanha fraqueza.
- É muito provável que sim.
- Então isso prova que, entre ele e eu, você o escolheria.
- Num piscar de olhos - ela disse imediatamente. - Mas ele está morto.
Um músculo no rosto dele se contraiu.
- Talvez. E Jonas? Não pude deixar de notar que você estava praticamente sentada no colo dele ontem, sussurrando palavras de amor e incentivo.
- É o que você...? - Ela corou. - Jonas é muito mais homem do que você! Eu preferiria dormir com ele a dormir com você. Em qualquer dia, em qualquer momento. E nenhuma maldição me impediria.
- Vá para o inferno, Cleo. - O ódio tomou conta do olhar dele, que já estava frio. Magnus levantou o punho, os dentes travados em uma expressão feroz.
- Vamos - ela vociferou. - Bata em mim como seu pai batia na sua mãe. Você sabe que é o que quer.
- Como é? - Ele franziu a testa, olhou para o próprio punho com surpresa e o abaixou em seguida. - Eu... eu nunca agrediria você.
- Chega - ela disse, num sussurro. - Estou cansada daqui. Preciso pensar. - Ela se virou em direção à escadaria que levava aos quartos.
- Cleo... - Magnus chamou. - Vamos descobrir a verdade sobre Nic. Prometo.
- Eu já sei a verdade.
- Eu sei que posso ser horroroso às vezes. Eu sei. Mas... eu amo você. Isso não mudou.
Os ombros dela ficaram tensos.
- O amor não basta para consertar isso.
Sem olhar para trás, Cleo caminhou com o máximo de calma e lentidão até seu quarto e trancou a porta quando entrou.
22
JONAS
PAELSIA
Jonas teve que sair do complexo antes de encontrar Nic. Eles tinham sido separados depois da revolta rebelde. A multidão à espera da imperatriz tinha entrado em pânico, e as pessoas começaram a lutar umas
contra as outras e contra os guardas kraeshianos.
Sua visão do palco estava bloqueada, e ele se viu frente a frente com paelsianos irados e com a feiticeira que queriam matar.
- Pode olhar para mim com ódio - Lucia disse a ele enquanto se afastavam da confusão.
- Que bom que permite.
- Você me odeia. E, ainda assim, você salvou minha vida.
- É provável que eu tenha salvado a vida de uma dúzia de paelsianos que subestimaram sua capacidade de matar cada um deles.
- E você não me subestima?
- Não.
- Então sugiro que você me diga onde meu pai e meu irmão estão para que não tenha que colocar sua vida em risco por nenhum segundo a mais em minha companhia.
Jonas sabia que ela poderia cumprir uma ameaça, se quisesse. Ele temia quando pensava no poder daquela garota e no prejuízo e na destruição pela qual a responsabilizavam.
- Onde está o deus do fogo? - ele sussurrou.
Lucia arqueou as sobrancelhas. Jonas percebeu que ela estava chocada por ele saber quem - ou melhor, o que - Kyan era de fato.
- Já disse que não sei.
- Ele é o pai de seu filho?
Lucia deu uma risada alta e nervosa.
- Com certeza não.
- Não vejo graça nenhuma nisso.
- Não se engane, rebelde, nem eu.
- Continue andando - ele disse quando Lucia diminuiu o ritmo. - Pelo jeito você está pesada demais para ser carregada.
A resposta de Lucia ao insulto foi parar totalmente. Os dois tinham adentrado uma parte densa da floresta a caminho da cidade mais próxima, onde Jonas pretendia conseguir transporte para o oeste.
- Responda à minha pergunta: onde estão meu pai e meu irmão? Sei que ainda estão vivos. Só podem estar.
- Se eu responder à sua pergunta, que certeza posso ter de que você não vai acabar com a minha vida? - ele perguntou.
- Nenhuma.
- Exatamente. Por isso mesmo vou levá-la até eles.
Lucia se surpreendeu.
- Então eles estão vivos!
- Talvez - ele disse.
- E como posso acreditar que você quer me ajudar?
Jonas virou e levantou o dedo indicador para ela.
- Não se engane, princesa Lucia, não estou fazendo isso para ajudá-la. Estou fazendo isso para ajudar Mítica.
Ela revirou os olhos.
- Que nobre.
- Pense o que quiser. Não me importa. Você se recusa a responder às minhas perguntas, então me recuso a responder às suas. Nosso destino final não está muito longe, mas você precisa encontrar uma maneira
de lidar com minha presença e com meu ódio durante o trajeto que vamos percorrer juntos.
- Acho que não. Vou contar um segredinho para você, rebelde, a respeito de uma habilidade especial que descobri recentemente. Posso forçar você a dizer a verdade... e quanto mais resistir, mais vai doer.
Jonas virou para encará-la de novo, mais irritado do que intimidado.
- Você sempre foi má assim ou só começou quando descobriu que era uma feiticeira?
- Sinceramente? - Ela abriu um sorriso frio. - Só depois.
- Acho difícil acreditar nisso. Você e sua família... são maldade pura, todos vocês.
- E ainda assim você está nos ajudando. - Lucia franziu a testa discretamente. - Pelo menos, diga que estão bem, que saíram ilesos depois de tudo o que aconteceu.
- Ilesos? - Ele sorriu com ironia. - Não sei de nada. Finalmente tive a chance de enfiar uma adaga no coração do rei. Por azar, isso só o atrapalhou um pouco.
Os olhos dela brilharam, furiosos.
- Mentira.
- Bem aqui. - Ele indicou o peito. - Certeiro e profundo. Até girei. Foi tão bom que não consigo nem explicar.
Um instante depois, ele se viu no ar, voando até bater as costas no tronco de uma árvore com força suficiente para tirar seu fôlego.
Lucia se ajoelhou ao lado dele, apertando sua garganta.
- Olhe para mim.
Desorientado, Jonas encarou os olhos azul-claros dela.
- Diga a verdade - ela rosnou. - Meu pai está morto?
- Não. - A palavra foi dita com dificuldade.
- Você o apunhalou no coração mas ele não morreu?
- Exatamente.
- Como isso é possível? Responda!
Jonas não conseguia desviar daqueles olhos lindos e assustadores. A magia que ela tinha perdido - se é que isso de fato havia acontecido - estava de volta. E Lucia estava bem mais forte do que ele esperava.
- Algum tipo de magia... Não sei. Isso prolongou a vida dele.
- Magia de quem?
- Da mãe.... dele. - Jonas tinha certeza de que estava sentindo gosto de sangue, forte e metálico. Ele engasgou enquanto tentava resistir à magia.
Ela franziu ainda mais a testa.
- Minha avó morreu.
- Ela está viva. Não sei muito mais do que isso. - Ele fez uma careta pela dor de estar contando todas aquelas verdades. - Agora, me faça um favor, princesa.
Ela inclinou a cabeça, mas não cedeu nem um pouco.
- Dificilmente.
Jonas semicerrou os olhos e tentou, com toda a força, canalizar a própria magia como tinha feito sem querer no navio com Felix.
- Me solte.
Lucia soltou Jonas e caiu para trás como se tivesse sido empurrada pelo rebelde.
Tossindo e com a mão no pescoço, Jonas levantou e olhou para ela.
Percebeu que esboçava um sorriso. Olivia deveria estar enganada sobre o poder de sua magia. Jonas se permitiu um breve momento de vitória.
Lucia o encarou, com os olhos arregalados.
- Você pode canalizar a magia do ar? Um bruxo? Nunca soube sobre algo assim... Ou você é um Vigilante exilado?
- Prefiro evitar títulos, princesa - ele disse. - E, francamente, não sei o que sou, só que tenho que lidar com isso agora. - Ele levantou a camisa o suficiente para revelar a marca em espiral em seu peito,
que tinha ficado mais brilhante desde a última vez em que ele olhara, e agora cintilava num tom dourado que o fazia lembrar cada vez mais da marca de um Vigilante.
- O quê? - Lucia balançou a cabeça com os olhos arregalados. - Não compreendo.
- Nem eu. E juro, se essa é minha profecia, cuidar para que alguém como você volte para sua odiosa família sã e salva, vou ficar furioso. - Ele olhou para cima, para as árvores. - Olivia, está me ouvindo
onde quer que esteja? É a pior profecia do mundo!
- Quem é Olivia?
- Deixa para lá. - Ele olhou para Lucia, ainda deitada no chão. - Levante.
Ela tentou ficar de pé.
- Hum...
- Não consegue levantar, não é?
- Me dê um minuto. Minha barriga está um pouco esquisita no momento. - Lucia olhou feio para ele. - E, por favor, nem pense em me ajudar.
- Não pensei. - Jonas ficou observando enquanto ela rolava devagar e com dificuldade para o lado, e então levantava, batendo no manto para tirar as agulhas de pinheiro e a terra. - Você ainda não está
acostumada com sua situação? Já vi paelsianas grávidas, a poucos dias de dar à luz, cortando madeira de uma árvore inteira e carregando para casa.
- Não sou uma paelsiana - ela disse e hesitou. - Bem, não exatamente. E não tive tempo de me acostumar com minha "situação", como você diz.
Que moça esquisita.
- Você está grávida de quantos meses?
- Não que seja da sua conta, mas... cerca de um mês.
Jonas olhou para o corpo dela sem acreditar.
- É assim que funciona com as feiticeiras cruéis? Os bebês delas se desenvolvem muito mais depressa do que os bebês normais?
- Não tenho como saber. - Lucia cruzou os braços como se tentasse proteger a barriga. - Compreendo seu ódio por mim. Compreendo o ódio de todos por mim. O que fiz desde... desde que o pai desta criança
morreu é imperdoável. Sei disso. Mas essa criança é inocente e merece uma chance de viver. O fato de você, logo você, ter vindo ajudar alguém como eu... Você está marcado como imortal, mas afirma não ser
bruxo nem exilado. Isso deve significar alguma coisa. Você fala sobre profecias. Sei bem que sou o alvo de profecias. Para mim, isso quer dizer que essa criança é importante para o mundo.
- Quem é o pai? - Jonas perguntou. Ele não queria sentir pena pelo que Lucia estava passando nem deixar que a voz dela o emocionasse.
- Um imortal exilado.
- E você disse que ele está morto.
Ela assentiu uma única vez.
- Como? - Jonas perguntou. - Você o matou?
Lucia ficou em silêncio por tanto tempo que ele achou que ela não responderia.
- Não. Ele tirou a própria vida.
- Interessante. É essa a única maneira de escapar de suas garras sombrias?
O olhar de ódio de Lucia o fez recuar. Mas era mais do que isso. Os olhos dela estavam vermelhos, numa mistura de cansaço e tristeza.
- Desculpa - Jonas disse antes de pensar em outra resposta. - Acho que fui desnecessariamente grosseiro.
- Foi. Mas eu não esperaria nada menos de alguém que pensa que sou cruel. O que Kyan fez com sua amiga...
- Lysandra - ele disse com a voz embargada. - Ela era incrível... A garota mais forte e corajosa que já conheci. Ela merecia a vida que Kyan lhe roubou sem um segundo de hesitação. Ele estava mirando em
mim, eu deveria ter morrido naquele dia, não ela.
Lucia assentiu com tristeza.
- Sinto muito. Percebo que Kyan não é uma pessoa, não é alguém com sentimentos e necessidades como as dos mortais, e não é possível discutir com ele. Kyan vê todas as falhas e imperfeições deste mundo.
Ele deseja reduzir tudo a cinzas para poder recomeçar. Diria que ele é maluco, mas é fogo. Fogo arde. Destrói. Essa é a razão de sua existência.
- Kyan quer destruir o mundo - Jonas repetiu.
Ela confirmou.
- Por isso eu o deixei. Por isso ele quase me matou quando eu disse que não o ajudaria mais.
Jonas demorou um momento para absorver a informação.
- Você diz que o fogo destrói. Mas o fogo também cozinha comida e nos aquece em noites frias. Esse tipo de fogo não é cruel, é um elemento que usamos para viver.
- A única certeza que tenho é de que ele precisa parar. - Ela levou a mão ao bolso do manto e tirou uma pequena esfera de âmbar. - Esta era a prisão de Kyan.
Jonas ficou sem palavras por um momento.
- E você acha que pode prendê-lo de novo aí dentro e salvar o mundo?
- Pretendo tentar - ela disse apenas.
Ele observou o rosto de Lucia, determinado e sério olhando para a esfera de cristal. Ela parecia muito sincera. Podia acreditar nela?
- Pelo que sei a respeito do deus do fogo, a imperatriz não parece ser grande ameaça, certo?
Lucia guardou a esfera no bolso de novo.
- Ah, Amara provou que é uma ameaça. Mas Kyan é bem pior. Por isso, pode me considerar cruel, rebelde. Pode me considerar alguém que precisa morrer pelos crimes que cometi. Tudo bem. Mas saiba também que
quero tentar consertar parte do que fiz agora que consigo pensar com clareza de novo. Primeiro, preciso ver minha família. Preciso... - As palavras de Lucia foram interrompidas quando ela se inclinou para
a frente e chorou.
Jonas correu para o lado dela.
- O que foi?
- Dói! - ela disse. - Está acontecendo com muita frequência desde que saí. Ah... ah, minha nossa! Não consigo...
Lucia caiu de joelhos com as mãos na barriga.
Jonas olhou para ela, sentindo-se totalmente impotente.
- Droga. O que posso fazer? O bebê já está nascendo? Por favor, não me diga que o bebê já está nascendo.
- Não, não está... Acho que ainda não está na hora. Mas isso... - Quando ela gritou, o som atingiu Jonas como uma lâmina fria. - Me leve para minha família! Por favor!
O rosto da princesa estava pálido como papel em contraste com seu cabelo escuro. Ela revirou os olhos e caiu, inconsciente.
- Princesa - ele disse, tentando acordá-la. - Vamos, não temos tempo para isso.
Lucia não acordou.
Jonas virou e olhou para o conflito. Não demoraria muito para a multidão paelsiana encontrar armas e sair em busca dele e da feiticeira.
Finalmente, xingando em voz baixa, ele se abaixou e pegou a princesa nos braços, percebendo que ela era muito mais leve do que imaginava, mesmo com o bebê que esperava.
- Não temos tempo para ir até sua família - ele disse. - Por isso vou levá-la à minha. Estão muito mais perto.
A irmã de Jonas, Felicia, abriu a porta de casa e observou Jonas por um momento, em silêncio total.
Em seguida, olhou para a garota grávida e inconsciente que ele carregava nos braços.
- Posso explicar - ele se apressou em dizer.
- Espero muito que possa. Entre. - Ela abriu mais a porta para Jonas entrar, tomando o cuidado de não bater as pernas de Lucia no batente.
- Deixe-a na minha cama - Felicia disse a Jonas. Ele fez o que sua irmã disse e voltou até ela, mas a irmã não o recebeu com um abraço. Simplesmente ficou ali, a expressão séria e furiosa, os braços cruzados.
Jonas não esperava que ela ficasse feliz ao vê-lo.
- Sinto muito por não ter vindo visitá-la - ele começou.
- Não tenho notícias suas há quase um ano e você aparece hoje de repente.
- Precisava de sua ajuda. Com... a garota.
Ela riu.
- Sim, com certeza precisa. O filho é seu?
- Não.
Ela não pareceu convencida.
- E o que você espera que eu faça por ela?
- Não sei. - Ele coçou a testa e começou a andar de um lado para o outro na casa pequena. - Ela não está bem. Sentiu dor na barriga e desmaiou. Eu não sabia o que fazer.
- Por isso a trouxe para cá.
- Eu sabia que você me ajudaria. - Ele suspirou nervoso. - Sei que você está brava comigo por eu ter passado muito tempo longe, mas era perigoso demais voltar.
- Sim, eu vi seus cartazes de procurado. O que era aquilo? Dez mil cêntimos para quem capturasse você, morto ou vivo?
- Mais ou menos isso.
- Você matou a rainha Althea.
- Não matei. É uma longa história.
- Imagino.
Ele observou ao redor, à procura de algum sinal do marido da irmã.
- Onde está Paolo?
- Morto.
Jonas a encarou.
- O quê?
- Foi tirado de mim, forçado a trabalhar para a Estrada Imperial. Eles queriam o nosso pai também, mas decidiram que, devido à idade e ao fato de mancar, ele era inútil. Paolo não voltou quando os operários
finalmente foram liberados de suas tarefas. O que devo pensar além de que foi morto com os outros paelsianos que eram tratados como escravos?
Jonas olhou para ela em choque. Paolo foi um bom amigo quando a vida era difícil, mas simples.
- Felicia, sinto muito. Eu não imaginava...
- Não, tenho certeza de que não imaginava. Assim como tenho certeza de que não pensou que manter aquela princesa dourada presa em nosso abrigo quase causaria a morte dele também.
- Claro que eu não sabia disso. - Ele olhou para o chão de terra. - Você... você disse que nosso pai não foi levado?
- Não foi, mas assim que soube da morte do chefe, ficou muito doente... doente de pesar, diferente de qualquer coisa que tenha sentido quando a mamãe e o Tomas morreram. É como se a vontade que ele tinha
de viver tivesse desaparecido. Eu o perdi faz dois meses. Agora cuido do vinhedo. São dias sobrecarregados, Jonas, com pouca ajuda.
Seu pai tinha morrido e Jonas não ficara sabendo. Ele sentou numa cadeira deixando o peso do corpo desabar.
- Sinto muito por não ter estado ao seu lado. Não sei o que dizer.
- Não há nada a dizer.
- Quando isso acabar, quando este reino voltar a ser como deveria, vou voltar. Vou ajudar você a cuidar da vinícola.
- Não quero sua ajuda - ela respondeu, e a raiva que Felicia estava controlando até aquele momento transbordou. - Consigo me virar sozinha. Bom, acho que já conversamos mais do que o suficiente. Vamos
cuidar de seu problema para você poder ir embora o mais rápido possível. Não sou curandeira, mas já ajudei muitas mulheres grávidas.
- O que você puder fazer para ajudar será muito bem-vindo. Eu só esperava que você soubesse acabar com a dor.
- Algumas gestações são mais difíceis do que outras. Quem é ela? - Ela lançou um olhar incisivo para ele quando não obteve resposta. - Diga, Jonas, ou mando você embora.
Felicia estava diferente, mais dura, mais zangada. Cada palavra dita por ela fazia Jonas se encolher.
Ele se sentia um idiota por pensar que quando voltasse nada teria mudado, mesmo depois de tanto tempo. Pensou em enviar uma mensagem, perguntar como as coisas estavam, mas não o fez. E o tempo tinha passado.
- Ela é Lucia Damora - ele respondeu com sinceridade, já que devia isso a Felicia.
Ela arregalou os olhos, chocada.
- O que você estava pensando ao trazer essa bruxa má aqui para dentro? Ela não é bem-vinda em minha casa. Tem noção do que ela fez? Um vilarejo que fica a menos de vinte quilômetros daqui foi incendiado.
Todos os moradores foram mortos por causa dela. Ela merece morrer pelo que fez.
Cada palavra parecia um golpe, e Jonas não tinha o que argumentar.
- Talvez sim, mas no momento a magia dela é necessária para salvar Mítica. Para salvar o mundo. Você não deixaria uma criança inocente sofrer por causa das escolhas da mãe, deixaria?
Ela deu uma risada seca.
- Ouça só você, defendendo uma princesa real... De Limeros, ainda por cima! Quem é você, Jonas? No que meu irmão se transformou?
- Amara não pode controlar Mítica - ele disse. - Estou disposto a fazer o que for preciso para impedi-la.
- Você está cego como uma toupeira, irmão. A imperatriz é a única que pode salvar a todos nós. Ou será que você esqueceu o passado com tanta facilidade agora que sua cabeça está tomada por aquela droga
cruel que está dormindo na minha cama?
- Minha cabeça não está tomada por ninguém - ele resmungou. - Mas sei o que é certo.
- Então precisa acordar. A imperatriz é o melhor que já aconteceu em Paelsia há gerações.
- Você está errada.
- Não estou errada - ela disse, e a raiva em sua voz finalmente deu lugar ao cansaço. - Mas não vou me dar ao trabalho de convencê-lo de algo que sei que é certo. Você se perdeu de nós, Jonas. Consigo
ver em seus olhos. Você não é o mesmo garoto que cresceu desejando ser como Tomas, que ia caçar com ele na fronteira de Auranos, que ia atrás de todas as garotas do vilarejo. Não sei mais quem você é.
Ele sentiu uma pontada no peito ao pensar que a tinha decepcionado tanto.
- Não diga isso, Felicia.
Ela deu as costas para ele.
- Vou deixar você e aquela criatura passarem a noite aqui. E só. Se ela morrer por causa da dor que está sentindo, então deixe-a morrer. O mundo vai ficar melhor sem ela.
Jonas deitou no chão de terra, ao lado do fogo, a mente em disparada.
Quando chegou ali, pelo menos tinha um senso de direção, de propósito. Precisava levar Lucia até a família dela.
Os Damora. O Rei Sanguinário que tinha oprimido seu povo. Que tinha assassinado o chefe Basilius. Que tinha mentido para dois exércitos sobre os motivos que deram início a uma guerra com os auranianos.
Felicia tinha razão. Amara Cortas tinha acabado com tudo aquilo ao ocupar Paelsia.
Como foi que ele pegou aquele caminho? Era um rebelde, não o criado tímido de um rei sádico.
Jonas demorou muito para conseguir dormir. Em um sonho, ele se viu em um campo verdejante sob o céu azul e límpido. Ao longe, uma cidade que parecia feita de cristal brilhava sob o sol.
- Jonas Agallon, finalmente nos conhecemos. Olivia me contou muito sobre você. Sou Timotheus.
Jonas virou e viu um homem que parecia só alguns anos mais velho do que ele. Seu cabelo tinha um tom bronze escuro, os olhos, acobreados. Usava vestes que desciam até a grama cor de esmeralda.
- Você está em meu sonho - Jonas disse devagar.
Timotheus arqueou uma sobrancelha.
- Que dedução brilhante. Sim, estou.
- Por quê?
- Imaginei que teria muitas perguntas para me fazer.
Apesar de tudo o que sentia por estar frente a frente com o imortal sobre o qual Olivia havia contado pouco, não sentiu surpresa nem cansaço.
- Perguntas que você vai responder?
- Algumas, talvez. Outras, provavelmente não.
- Não, tudo bem. Só me deixe dormir. Estou cansado e não quero ter que desvendar enigmas.
- O tempo está passando. A tempestade está quase aqui.
- Você fala assim, tão vago e irritante, com todo mundo?
Timotheus inclinou a cabeça.
- Na verdade, sim. Falo, sim.
- Não gosto. E não gosto de você. O que quer que isso seja - Jonas indicou a marca em seu peito -, quero que desapareça. Não quero nenhuma ligação com sua gente. Sou paelsiano. Não sou um Vigilante, nem
bruxo, nem o que você acha que sou.
- Essa marca torna você muito especial.
- Não quero ser especial.
- Você não tem escolha.
- Sempre tenho escolha.
- Seu destino está escrito.
- Vá se ferrar.
Timotheus hesitou.
- Olivia disse que você é irredutível em suas observações. No entanto, tenho certeza de que percebeu que agora tem um pouco de magia. A magia de Phaedra. A magia de Olivia. Você as absorveu como uma esponja.
Sua condição é rara e, repito, especial. As visões que tive de você são importantes.
- Certo. As visões. A profecia na qual levo Lucia Damora para a família dela.
- É o que você acha?
- Parece que é aonde meu destino está me levando.
- Não, não exatamente. Você vai saber quando acontecer. Vai sentir...
- O que sinto no momento é a necessidade de enfiar uma faca na sua barriga. - Jonas olhou para o imortal. - Ousa entrar no meu sonho agora, depois de todo esse tempo? Olivia me ajudou a ficar vivo, seguindo
o que você mandou. Acho que ela não precisa mais de mim. Ou talvez esteja me espionando lá de cima como um falcão, como todos vocês fazem. A única coisa da qual tenho certeza é que estou cansado disso.
Não importa o que você tem a dizer. Você espalha meias verdades como se a vida dos imortais fosse uma brincadeira.
Timotheus falou mais baixo.
- Não é uma brincadeira, meu jovem.
- Ah, não? Prove! Diga qual é meu destino, se acha que não posso evitá-lo.
Timotheus o observou.
- Não previ a gravidez de Lucia - ele admitiu. - Foi uma surpresa para mim, assim como tenho certeza de que foi para ela. Foi mantida em segredo de todos nós pelos Criadores, e deve haver um motivo para
isso... um motivo importante. Eu via você como alguém que ajudaria Lucia durante a tempestade...
- De que tempestade está falando?
Timotheus levantou a mão.
- Não me interrompa. Estou sendo sincero com você como nunca fui com ninguém, porque agora vejo que não há tempo para mais nada.
- Então, desembucha - Jonas disse. Ele estava frustrado com tudo na vida, e ele queria descontar naquele imortal pomposo.
- O filho de Lucia terá muita importância. Muitos desejarão sequestrar a criança ou matá-la. Você vai proteger essa criança do perigo e vai criá-la como se fosse seu filho.
- É sério? E Lucia e eu seremos o quê? Vamos nos casar e viver felizes para sempre? Duvido.
- Não. Lucia vai morrer no parto na próxima tempestade. - Ele afirmou com firmeza, franzindo a testa. - Estou vendo agora, claramente. Antes eu achava que a magia dela pudesse ser transferida a você no
momento da morte, transformando você em um feiticeiro que pudesse caminhar entre os mundos, cujo destino fosse aprisionar os deuses da Tétrade depois de serem libertados. Mas a magia de Lucia vai perdurar
no filho dela.
Jonas o encarou boquiaberto, surpreso com a revelação.
- Ela vai morrer?
- Sim. - Timotheus deu as costas para ele. - É só o que posso contar. Boa sorte, Jonas Agallon. O destino de todos os mundos está nas suas mãos agora.
- Não, espere! Tenho perguntas! Você precisa me contar o que tenho que fazer...
Mas Timotheus desapareceu naquele instante, assim como o campo e a cidade à distância.
Jonas acordou e viu a irmã o chacoalhando.
- Amanheceu - ela disse. - Sua amiga está acordada. Está na hora de vocês saírem da minha casa.
C O N T I N U A
11
JONAS
MAR PRATEADO
Devagar, a luz voltou a seu mundo, e Jonas abriu os olhos. Olivia o encarava com ternura e alívio.
- Fico feliz de ver que finalmente voltou para nós - ela disse.
Ele resmungou e estendeu os braços.
- Fiquei inconsciente por quanto tempo?
- Quatro dias.
Ele arregalou os olhos e sentou com um pulo.
- Quatro dias?
Ela fez uma careta.
- Você não ficou inconsciente o tempo todo, se isso melhora a situação. Acordou algumas vezes, delirante e agitado.
- Não, isso não melhora em nada, na verdade. - Jonas levantou do catre e cambaleou até o espelho. A estranha espiral ainda estava em seu corpo, agora muito mais intricada e com um desenho muito mais detalhado
do que o símbolo simples da magia do ar. Ele tinha esperanças de que não tivesse passado de um pesadelo.
- Eu tenho a marca de um Vigilante - ele disse.
- Então você sabe o que é.
- Phaedra tinha uma. - A Vigilante que tinha sacrificado a vida imortal para salvar a dele tinha provado quem (e o que) era ao mostrar sua marca a Jonas. Mas a dela era diferente. Tinha a mesma forma,
mas era uma marca dourada que se movimentava em círculos sobre a pele, como se quisesse provar suas origens mágicas. - E sei que você tem uma também.
- Tenho. - Olivia abriu um pouco o manto e mostrou um pequeno pedaço de uma marca dourada sobre a pele escura. Ele havia tido apenas alguns vislumbres da espiral, quando Olivia se transformava em falcão.
Jonas deu as costas para o espelho para encarar os olhos cor de esmeralda da Vigilante.
- Não vou implorar, Olivia. Vou simplesmente pedir para você, por favor, falar mais sobre isso, sobre a profecia que existe sobre mim. Tentei negar que fosse real, mas agora preciso saber. O que está acontecendo
comigo? Eu estou... - Ele se esforçou para verbalizar os pensamentos. - Estou me transformando em um de vocês?
A ideia soava tão absurda que Jonas se arrependeu de suas palavras assim que as proferiu. Mas o que mais poderia pensar?
Ela torceu as mãos e, por um instante, Jonas achou que Olivia pudesse tentar escapar, assumir a forma de falcão e sair voando para evitar suas perguntas. Mas, em vez disso, ela suspirou e sentou na beirada
do catre enquanto ele esperava em pé, tenso, perto da escotilha.
- Não exatamente - ela respondeu. - Mas você é, de fato, um mortal raro, Jonas Agallon. Tocado por nossa magia em dois momentos muito vulneráveis de sua vida, ambos quando estava muito perto da morte.
Tocado por mim, quando curei seu ombro, e por Phaedra, depois que foi atingido pelo soldado limeriano. Você não sabe como isso é atípico.
Eram dois momentos da vida que ele preferia esquecer.
- Talvez eu não saiba mesmo. Então me conte.
- Eu estava lá quando Phaedra deu a vida pela sua. Observei do alto de outra barraca na forma de falcão.
Ele respirou fundo.
- Estava?
Ela assentiu, séria.
- Observei horrorizada quando Xanthus tirou a vida dela, e a vi retornar para a magia de que todos nós fomos criados. E vi um pouco dessa magia entrar em seu corpo, apenas segundos depois do momento em
que você poderia ter morrido sem a intervenção dela.
- Eu... eu não senti nada.
- Não, não era para sentir. Não deveria sentir. E não faria diferença nenhuma se não fosse pela magia do próprio deus do fogo surgindo por perto. Acabou fortalecendo a magia de Phaedra dentro de você.
Mas não seria suficiente para isso acontecer. - Olivia apontou para a marca, que ele coçava sem perceber. - Eu usei magia da terra para curar seu ombro quando você estava à beira da morte mais uma vez,
e vi que a absorveu como uma esponja. Aquela magia ficou dentro de você, somando-se à de Phaedra, assim como Timotheus previra.
Jonas tentou entender, tentou negar, tentou impedir que seu coração batesse como as asas de um pássaro preso em seu peito. Mas então, de repente, lhe ocorreu que não deveria tentar negar uma notícia tão
incrível.
- Tenho elementia dentro de mim - ele disse com uma voz rouca. - Isso significa que posso usá-los para combater Kyan e expulsar Amara de Mítica. - Quanto mais ele considerava essa possibilidade, mais animado
ficava. - Preciso subir e contar para os outros. Eles devem estar tão confusos com o que aconteceu, com o que fiz com Felix... Mas isso é incrível, Olivia! Vai fazer toda a diferença.
Ele era um bruxo! Tinha negado a existência dos elementia e daqueles que os detinham durante toda sua vida, e agora tinha essa mesma magia na ponta dos dedos.
Olivia segurou seu braço quando ele foi na direção da porta.
- Não é tão fácil assim, Jonas. Timotheus não previu que você seria um praticante de magia, apenas um veículo para ela.
- Um veículo? Impossível. Você testemunhou o que fiz. Arremessei Felix pelo convés com... magia do ar, não foi?
- É verdade. Mas foi uma anomalia. Foi apenas um sinal de que a magia que existe dentro de você amadureceu. E aquele gasto de energia o deixou inconsciente durante quatro dias.
Jonas balançou a cabeça. A frustração tomou conta dele, acabando com sua empolgação.
- Não entendo.
Olivia afrouxou a mão que segurava seu braço.
- Eu sei, e peço desculpas pela confusão. Timotheus mantém seu conhecimento muito reservado, já que não confia em muitos imortais, nem mesmo em mim. Ele não compartilhou a extensão de sua profecia comigo
por medo de que eu contasse para você e você tentasse evitá-la. - Ela fechou a boca. - Já falei demais.
Ele resmungou.
- Você revelou o suficiente para me deixar louco de curiosidade e apreensão.
- Você não pode contar isso a ninguém.
- Não posso? - Ele apontou para a porta. - Todos me viram fazer aquilo no convés. O que devo fazer? Negar?
- Na verdade, sim. - Ela ergueu o queixo. - Expliquei a eles que fui a responsável. Que vi, do alto, Felix acertar você e que estou aqui justamente para protegê-lo. É claro que acreditaram em mim.
Jonas a encarou.
- Eles acreditaram que você interferiu com sua própria magia?
- Sim.
- E não posso falar nada sobre isso?
- Não. Nem uma palavra. - Ela ficou séria. - É perigoso demais. Alguns o perseguiriam se soubessem que é um mortal repleto de magia imortal.
- Magia imortal que não posso usar. - Ele observou o próprio punho, lembrando como havia brilhado no convés.
- Se não acredita em mim, você precisa ver com seus próprios olhos. - Ela apontou para a porta. - Tente abrir essa porta com a magia do ar que canalizou com tanta facilidade com Felix.
Parecia um desafio. Jonas olhou para além de Olivia e franziu a testa, concentrando-se, enquanto levantava a mão na direção da porta. Ele se esforçou tanto para tentar invocar a magia que existia dentro
de si que sua mão começou a tremer, seu braço começou a oscilar... mas nada aconteceu.
- Isso não significa nada - ele resmungou. - Só preciso praticar.
- Talvez - Olivia disse com delicadeza. - Só sei o pouco que me contaram.
Decepcionado, Jonas deixou o braço cair.
- Claro, ninguém ia querer que as coisas fossem fáceis para mim. Ser um bruxo, utilizar os elementia à vontade... Ninguém ia querer isso, não é?
- Na verdade, seria incrivelmente útil para você.
Jonas lançou um olhar feio para ela.
- Você não está ajudando.
- Sinto muito. - Olivia fez uma careta. - Os outros estão preocupados com você. Ficarão felizes em saber que finalmente acordou.
Jonas foi até a escotilha e observou a imensidão do mar.
- Quanto falta para chegarmos em Paelsia?
- Estamos quase chegando.
- Dormi quase o caminho todo. - Ele soltou um suspiro trêmulo ao tentar aceitar tudo o que havia aprendido. Negar seria perder um tempo que eles não tinham. - O que eu perdi?
- Não muito, na verdade. Taran continua afiando a espada na expectativa de matar o príncipe Magnus, Felix ainda está sofrendo com enjoos, Ashur passa a maior parte do tempo em seus aposentos meditando,
e Nic fica espreitando por aí. Quando o príncipe aparece, ele o observa de uma maneira um tanto curiosa.
- Pedi para o Nic ficar de olho em nosso príncipe residente. É melhor não confiar nos kraeshianos, nem mesmo naquele que diz não ser nosso inimigo.
Jonas suspirou enquanto apertava as amarras da camisa.
- Certo, estamos quase em Paelsia. Ótimo.
- Ótimo? - ela repetiu.
Ele assentiu com firmeza.
- Se existe uma profecia que exige que eu seja um veículo dos elementia, quero saber sobre ela o quanto antes. E isso não vai acontecer enquanto estivermos em alto-mar, vai?
- Não, não vai - ela concordou. - Mas, de verdade, Jonas, não sei nada além disso. Sinto muito.
Ele assentiu.
- Seja o que for, eu aguento. Tenho certeza de que já enfrentei coisa muito pior no passado.
Para isso, Olivia não tinha resposta.
Jonas tentou ao máximo não se preocupar.
12
MAGNUS
PAELSIA
Como a viagem dos Glaciares a Basilia levaria pelo menos três dias a cavalo, não havia tempo a perder com as paradas constantes de um rei moribundo e uma mulher velha. Selia arrumou uma carruagem fechada
para levá-la junto com seu filho.
Quando Magnus sugeriu que Cleo fosse com eles e não montada num cavalo para não enfrentar o terrível frio, foi reprimido com um olhar cortante.
Aquilo queria dizer "não".
Gaius os orientou por um caminho que permitia que passassem toda noite em uma hospedaria de alguma cidadezinha, onde descansavam, comiam e dormiam em quartos separados e trancados.
Sete longas noites se passaram sem Magnus poder dormir com Cleo em seus braços, mas todas as noites sonhava com ela e com o chalé na floresta. Nos momentos em que estavam acordados, ele preferia não compartilhar
essa informação com ela. Não queria que ficasse convencida demais por provocar tal efeito nele, então guardava para si o desejo constante de tocá-la e beijá-la.
No último vilarejo onde ficaram, Enzo e Milo foram encarregados de buscar roupas adequadas para todos se passarem por viajantes inofensivos de passagem por Paelsia. Conseguiram encontrar vestidos de algodão
para Selia e Cleo e calças de couro simples e túnicas de lona para si mesmos, Magnus e Gaius.
Magnus olhou a própria túnica creme com repulsa.
- Não tinha nada preto?
- Não, vossa alteza - Enzo disse.
- Cinza-escuro?
- Não. Só essa cor e azul-claro. Achei que não ia gostar muito do azul. - Enzo limpou a garganta. - Mas posso voltar à loja.
Ele suspirou.
- Não, tudo bem. Fico com essa mesmo.
Pelo menos o manto e as calças eram pretos.
Ele saiu, pronto para dar início à última parte da viagem rumo à cidade da costa oeste, e encontrou Cleo, parecendo uma linda camponesa com seu vestido simples, sorrindo para ele ao lado de seu cavalo.
- Você parece um paelsiano - ela comentou.
- Não precisa me insultar, princesa - ele resmungou, contendo um sorriso quando montaram os cavalos e começaram a andar.
Praticamente uma pequena eternidade depois - que na verdade não passou de meio dia - finalmente e felizmente chegaram ao seu destino.
Magnus já tinha ouvido muitas histórias sobre Basilia, a cidade mais próxima de uma capital que Paelsia tinha. A cidade atendia aos navios que visitavam o Porto do Comércio e os membros da tripulação ávidos
por desembarcar em busca de comida, bebida e mulheres.
As histórias eram verdadeiras.
À primeira vista - e ao primeiro cheiro - Basilia era superpovoada e fedia a dejetos humanos e putrefação. Havia dezenas de navios atracados no porto, com as tripulações inundando a costa e se misturando
nas ruas, tavernas, hospedarias, nos mercados e bordéis da cidade litorânea. E, ao que parecia, tão quente quanto Auranos no ápice do verão.
- Repulsivo.
Magnus viu que o rei Gaius tinha aberto a janela da carruagem para espiar o centro da cidade com aversão. Seus olhos estavam vermelhos, e os círculos escuros sob eles pareciam hematomas recentes em contraste
com a palidez da pele.
- Desprezo este lugar - ele comentou.
- Sério? - Magnus perguntou, conduzindo o cavalo ao lado da carruagem. - Acho encantador.
- Não acha, não.
- Acho. Eu gosto dessa... cor local.
- Você não mente tão bem quanto pensa.
- Acho que posso apenas aspirar chegar aos seus pés no quesito falsidade.
O rei olhou feio para ele, depois alternou o olhar para Cleo, que cavalgava em frente a Magnus e atrás dos guardas.
- Princesa, se lembro corretamente, foi em um mercado não muito longe desta cidade em que você esteve com lorde Aron e o filho do vendedor de vinhos que ele matou, não foi?
Magnus logo ficou tenso e observou a princesa esperando a resposta. Cleo demorou alguns segundos para responder, mas o príncipe podia ver a tensão em seus ombros pelo fino material do vestido.
- Isso faz muito tempo - ela disse finalmente.
- Imagine como as coisas teriam sido diferentes se você não tivesse ido atrás de vinho aquele dia - o rei continuou. - Nada seria como é agora, não é?
- Não - ela disse, olhando para trás. - Por exemplo, você não teria caído e quase morrido depois de perder seu reino para uma mulher. E eu não estaria vendo seu fracasso com tanta alegria no coração.
Magnus conteve um sorriso e olhou para o pai, aguardando a contestação.
A única resposta foi uma janela fechada, bloqueando a visão do rosto do rei.
A carruagem parou em uma hospedaria chamada Falcão e Lança que, apesar de um leve cheiro de suor misturado a almíscar, Magnus considerou o estabelecimento mais aceitável da cidade. O rei Gaius desceu da
carruagem com a ajuda de Milo e Enzo e entrou na hospedaria, seguido por Selia, e logo subornou o dono para expulsar todos os hóspedes para que o grupo real tivesse privacidade total.
Enquanto os hóspedes saíam com um desfile de resmungos, Magnus assistia à Cleo observar a sala de convivência da hospedaria paelsiana com reprovação. Era um cômodo grande, com teto baixo, com cadeiras
de madeira desgastadas e mesas lascadas, onde os hóspedes podiam comer e passar o tempo.
- Não se enquadra no seu padrão de qualidade? - Magnus perguntou.
- Até que está bom - ela respondeu.
- Não é uma hospedaria auraniana com camas de pluma, lençóis importados e urinol dourado. Mas me parece aceitavelmente limpa e confortável.
Cleo virou as costas para uma mesa na qual alguém havia entalhado as próprias iniciais. Um sorriso brilhante passou por seus lábios.
- Sim, para um limeriano, acho que sim.
- De fato. - Os lábios da princesa eram uma distração grande demais, então Magnus virou e se juntou a seu pai e sua avó, que estavam parados perto das grandes janelas, olhando para os estábulos onde os
cavalos estavam sendo acomodados.
- E agora? O que vamos fazer? - Magnus perguntou à avó.
- Pedi para a esposa do dono da hospedaria ir até a taverna no fim da estrada e entregar uma mensagem pedindo para uma velha amiga minha nos encontrar aqui - Selia disse.
- A senhora não poderia ter ido?
- Ela talvez não me reconhecesse. Além disso, não é uma conversa que ouvidos curiosos podem escutar. A magia que procuro deve ser protegida a qualquer custo. - Ela encostou a mão sobre o braço de Gaius.
Havia um brilho de suor na testa do rei, que estava apoiado na parede como se fosse a única coisa que o mantivesse de pé.
- E o que devemos fazer até ela chegar? - Gaius perguntou com uma voz enfraquecida substancialmente desde a chegada.
- Você vai descansar - Selia respondeu.
- Não há tempo para descanso - ele disse com raiva. - Talvez eu saia para procurar algum carpinteiro por perto para fazer um caixão para me transportar de volta para Limeros.
- Por favor, pai - Magnus disse, permitindo um pequeno sorriso. - Fico feliz em fazer isso por você. Deve fazer o que minha avó pediu e descansar.
O rei olhou feio para ele, mas não falou nada.
- Vou levá-lo ao seu quarto. - Selia envolveu o braço no filho, conduzindo-o pelo corredor na direção da escadaria, e subindo para os quartos no segundo andar.
- Excelente ideia - Cleo disse, bocejando. - Também vou subir para o meu quarto. Por favor, avise quando a amiga da sua avó chegar.
Magnus esperou que ela saísse, depois fez um sinal para Enzo segui-la. Ele pedira para o guarda tomar cuidado extra com a proteção da princesa. Enzo era um dos poucos em quem Magnus confiava para a tarefa.
- O que devo fazer? - Milo perguntou ao príncipe.
Magnus passou os olhos pelo salão, que também continha uma pequena estante com livros velhos, nada parecida com a vasta seleção que passou a valorizar na biblioteca do palácio auraniano.
- Patrulhe os arredores - Magnus disse, pegando um livro aleatório da estante. - Certifique-se de que ninguém tenha percebido que o antigo rei de Mítica está temporariamente por aqui.
Milo deixou a hospedaria e Magnus tentou se concentrar na leitura de um volume sobre a história da produção de vinho em Paelsia, que não mencionava nada sobre a magia da terra que com certeza era responsável
pelo sabor da bebida, ou sobre as leis que proibiam sua exportação para outros lugares, à exceção de Auranos.
Depois de trinta páginas inúteis, a esposa do dono da hospedaria, uma mulher pequena que parecia ter um constante sorriso nervoso estampado no rosto, voltou com outra mulher mais velha, com rugas em volta
dos olhos e da boca, de aparência extremamente comum, usando um vestido antiquado e desmazelado. Magnus pensou que devia ser a mulher que Selia tinha mandado chamar.
Quando a esposa do dono da hospedaria desapareceu na cozinha, a mulher mais velha observou o local que parecia vazio, até seu olhar recair sobre Magnus.
- Então a senhora é a resposta para todos os nossos problemas, não é? - ele perguntou.
- Depende de quais são seus problemas, meu jovem - ela respondeu sem rodeios. - Gostaria de saber por que me chamou aqui.
- Não foi ele, fui eu - Selia disse, descendo a escadaria de madeira do outro lado do corredor que levava aos quartos, no segundo andar. - E é porque estou em busca de uma velha amiga. Você me reconhece
depois de todos esses anos?
Por um momento profundamente silencioso e agonizantemente longo, a mulher encarou Selia com uma mistura estranha de fogo e gelo no olhar. Justo quando Magnus começou a temer que tivessem cometido um erro
ao confiar em sua avó, a mulher abriu um grande sorriso, com rugas de alegria aparecendo no canto dos olhos.
- Selia Damora - ela arrulhou com um tom de voz muito mais gentil do que ao entrar na hospedaria. - Pela deusa, como senti sua falta!
As duas mulheres correram uma na direção da outra e se abraçaram.
- Devo chamar os outros? - Magnus perguntou. Quanto antes sua avó conseguisse o que precisava da mulher, mais rápido poderiam sair daquele lugar.
- Não, isso não precisa ser discutido em grupo - Selia respondeu sem tirar os olhos da amiga. - Também senti sua falta, Dariah.
- Onde esteve durante todo esse tempo? Já perdi a conta de quantos anos se passaram!
- O que importa é que estou aqui agora. Para ser franca, estou um pouco surpresa por você ainda estar em Basilia.
- Nunca poderia abrir mão do lucro da minha taverna, cada ano é melhor do que o anterior. Tantos marinheiros com dinheiro para gastar e sede para matar...
- Muitos tipos de sede, sem dúvida.
Dariah piscou.
- Exatamente. - Ela se virou para Magnus. - E quem é esse jovem?
- É meu neto, Magnus. Magnus, esta é minha amiga Dariah Gallo.
- Muito prazer. - Magnus forçou o melhor sorriso que conseguiu, mas sabia que pareceria mais uma careta.
- Minha nossa! Seu neto ficou tão alto e bonito!
Selia sorriu.
- Sim, os netos às vezes fazem isso quando chegam aos dezoito anos.
Dariah passou os olhos enrugados por Magnus de alto a baixo.
- Se eu fosse mais nova...
- Se fosse mais nova, teria que lutar com a jovem esposa dele por sua atenção.
Dariah riu.
- E talvez eu vencesse.
Magnus teve uma vontade repentina de voltar à leitura do livro sobre vinho paelsiano.
Selia juntou-se à amiga nas risadas e depois voltou a adotar um tom sério, porém amigável.
- Não vim a Basilia apenas para reencontrar uma velha amiga. Preciso de informações sobre como conseguir a pedra sanguínea.
Dariah arregalou os olhos.
- Minha nossa, Selia, você não perde tempo.
- Não tenho tempo a perder. Meu poder foi diminuindo no decorrer dos anos e meu filho está morrendo.
No instante silencioso que se seguiu, Magnus ficou quieto. Essa pedra, se fosse real, parecia algo que poderia ajudá-lo a aumentar seu poder, como a Tétrade.
Selia levou Dariah na direção da estante. Fez sinal para que ela se sentasse em um banco de madeira ao seu lado, depois segurou as mãos da outra bruxa.
- Não tenho escolha. Preciso dela.
- Você sabe que não está comigo.
- Não está. Mas você sabe com quem está.
Dariah balançou a cabeça.
- Não posso fazer isso.
- Estou pedindo para você entrar em contato com ele. Sei que pode encontrá-lo. Ele precisa vir o mais rápido possível.
Mil perguntas surgiram na cabeça de Magnus, mas ele permaneceu em silêncio, escutando.
Um poder como esse entregue diretamente em suas mãos. Parecia muito mais simples do que o processo complicado de encontrar a Tétrade.
A expressão da bruxa se tornou sombria.
- Ele nunca vai permitir que você fique com ela, nem mesmo por um instante.
Selia apertou ainda mais a mão da amiga.
- Deixe que eu lide com ele quando chegar aqui.
- Eu não sei...
Selia semicerrou os olhos.
- Sei que já faz muito tempo, mas sinto que terei que mencionar o favor que você me deve. Favor que prometeu retribuir por completo.
Dariah ficou encarando o chão.
Magnus observava, quase sem respirar. Aos poucos, a bruxa levantou os olhos, o rosto pálido. Ela concordou com um pequeno aceno de cabeça.
- Vou levar um tempo para atraí-lo para cá.
- Ele tem três dias. Será um problema?
A bruxa ficou tensa ao levantar.
- Não.
- Obrigada. - Selia levantou e deu dois beijos no rosto de Dariah. - Eu sabia que você ia me ajudar.
O sorriso de quando se cumprimentaram agora já não passava de uma lembrança.
- Aviso assim que ele chegar.
Dariah não demorou - lançou um último olhar para Selia e Magnus e deixou a hospedaria.
- Bem... - Magnus disse depois que tudo voltou a ficar em silêncio. - A senhora deve ter feito um belo favor para sua amiga.
- De fato foi. - Selia olhou para Magnus com um pequeno sorriso no rosto. - Agora vou ver como seu pai está. A saúde dele é minha única preocupação no momento. Quando minha magia estiver restaurada e ele
estiver bem novamente, podemos enfrentar os outros obstáculos que estão em nosso caminho.
- Vou me esforçar para ser paciente - Magnus disse, sabendo que com certeza fracassaria.
Àquela altura a noite já tinha caído, e Magnus se retirou para seu pequeno quarto. Havia uma cama de tamanho normal, e não os catres inaceitáveis do quarto comunitário no fim do corredor. A janela tinha
vista para a rua iluminada com lampiões e ainda movimentada, com cidadãos e visitantes mesmo depois de anoitecer.
Ele ouviu uma batida fraca na porta.
- Entre - Magnus disse, sabendo que podia ser apenas uma das quatro pessoas com quem havia chegado a Paelsia.
A porta se abriu devagar e, quando o visitante se revelou, o coração de Magnus começou a bater mais rápido. Cleo o encarava.
Ele levantou e a encontrou na porta.
- A amiga da minha avó esteve aqui.
- Já? - Ela arqueou as sobrancelhas. - E?
- E... - Ele balançou a cabeça. - Parece que seremos obrigados a esperar mais três dias por aqui.
- Mas ela vai conseguir a pedra sanguínea?
- Sim - Magnus respondeu. - Reencontrei minha avó há pouco tempo, mas ela me parece o tipo de mulher que consegue praticamente tudo o que quer.
- E tudo para essa pedra mágica salvar a vida de seu pai - Cleo disse sem nenhuma emoção, mas com uma dureza no fundo dos olhos azuis.
- Ele não merece viver - Magnus afirmou, concordando com o que não tinha sido dito. - Mas essa pode ser uma medida necessária para alcançarmos nosso objetivo maior.
- Encontrar Lucia.
- Sim. E acabar com a sua maldição.
Cleo assentiu.
- Suponho que não haja outra forma.
Ele a observou cauteloso.
- Você veio ao meu quarto apenas em busca de informações ou tem mais alguma coisa que deseja esta noite?
Cleo levantou o queixo para encarar diretamente em seus olhos.
- Na verdade, preciso de sua ajuda.
- Com o quê?
- Todas essas andanças a cavalo acabaram com meu cabelo.
Magnus levantou uma sobrancelha.
- E você veio aqui para pedir minha ajuda para cortá-lo e, assim, ele deixar de ser um problema?
- Como se você fosse permitir. - Ela riu. - Você é obcecado pelo meu cabelo.
- Eu não chamaria de obsessão. - Ele enrolou um cacho daquela seda dourada no dedo. - É mais uma distração, muitas vezes dolorosa.
- Peço desculpas por seu sofrimento. Mas você não vai cortar meu cabelo, nem hoje, nem nunca. A esposa do dono da hospedaria foi gentil e me deu isso. - Ela mostrou uma escova de cabelo com cabo prateado.
Magnus pegou o objeto da mão dela, observando-o com um olhar examinador.
- Você quer que eu...?
Cleo assentiu.
- Escove meu cabelo.
A ideia era ridícula.
- Agora que fui obrigado a me vestir como um paelsiano comum você está me confundindo com um criado?
Ela lançou um olhar determinado para Magnus.
- Eu não poderia pedir para Milo ou Enzo... ou, pelo amor da deusa, para seu pai ou sua avó me ajudarem.
- E quanto à esposa do dono da hospedaria?
- Está bem. - Cleo arrancou a escova da mão dele, fazendo careta. - Vou pedir a ela.
- Não, não. - Ele soltou um suspiro, achando graça. - Eu ajudo.
Sem hesitar, ela devolveu a escova a Magnus.
- Fico feliz.
Ele abriu caminho para deixá-la passar. Cleo entrou, sentou na beirada da cama e olhou para ele cheia de expectativa.
- Feche a porta - ela disse.
- Não é uma boa ideia. - Magnus deixou a porta entreaberta e lentamente sentou ao lado dela. Meio sem jeito e receoso, como se estivesse prestes a limpar um animal pela primeira vez, ele levou a delicada
escova aos cabelos dela.
- Nunca fiz isso antes.
- Para tudo existe uma primeira vez.
Que cena ridícula deve ter sido: Magnus Damora, filho do Rei Sanguinário, escovando o cabelo de uma jovem a seu pedido.
E ainda assim...
Sempre que Magnus assumia uma tarefa, preferia ser dedicado, usando suas habilidades da melhor maneira possível. Ele se empenhava da mesma forma naquele momento, ao pegar uma mecha do longo e sedoso cabelo
de Cleo e deslizar a escova por ela. O calor das madeixas passava entre seus dedos, causando um arrepio prazeroso em suas costas.
- Você tem razão - ele disse em voz baixa. - Está terrivelmente embaraçado. Acho que de modo irreparável.
Magnus estava apenas provocando Cleo - seu cabelo estava perfeito, como sempre foi -, mas então ele chegou ao primeiro nó.
Ela se encolheu.
- Ai.
- Desculpe. - Ele ficou paralisado, mas depois franziu a testa. - Mas você me pediu para fazer isso.
- Sim, eu sei! - Ela suspirou. - Por favor, continue. Estou acostumada a ser torturada por minhas criadas, e elas estão acostumadas a ignorar meus gritos de dor. Você não vai conseguir me machucar mais.
Só Nerissa tem capacidade de fazer isso sem causar dor.
- Sim, ouvi falar das habilidades de Nerissa - Magnus comentou, sem conseguir conter um sorriso. Agora, tendo uma imagem mais completa do histórico de penteados de Cleo, ele encarou a tarefa com mais determinação.
- Tanto cabelo, tantas oportunidades para formar nós... Por que as mulheres se dão ao trabalho?
- Talvez eu devesse fazer tranças, como uma líder paelsiana?
- Sim, imagino que seria um estilo adequado a uma princesa auraniana, mesmo quando forçada a usar um horroroso vestido de algodão - ele respondeu com ironia, sem deixar transparecer como estava se divertindo
com aquela imagem. - Todas as garotas de Mítica iam querer copiar. - Com o maior cuidado possível, ele foi passando a escova por outra parte do cabelo que parecia um ninho de passarinho amarelo-claro.
- Você precisa saber que pretendo reivindicar a pedra sanguínea para mim.
- Eu já imaginava - ela respondeu.
Aquilo o surpreendeu.
- Imaginava?
Cleo assentiu, e os cabelos escaparam das mãos de Magnus, cobrindo a tentadora nuca dela.
- Vi em seus olhos quando Selia mencionou a pedra. Foi o mesmo olhar que vi em seu pai.
- E que olhar é esse?
- Não importa.
Magnus largou a escova. Com gentileza, tocou Cleo pelos ombros até praticamente fazê-la virar de frente para ele, depois segurou seu queixo com cuidado.
- Importa, sim. Que olhar eu e meu pai compartilhamos?
Ela o encarou nos olhos, cautelosa.
- Um olhar frio de ganância, como se fossem capazes de matar pela pedra.
- Entendo.
Cleo analisou o rosto dele, como se procurasse respostas.
- Naquele momento, você parecia tão frio quanto seu pai. E eu... eu não gostei.
A vida toda, disseram que ele se parecia muito com seu pai - tanto fisicamente quanto em temperamento. Com o tempo, ele aprendeu a não refutar as comparações, embora nunca tivessem deixado de incomodá-lo.
- Devo admitir, descobri há pouco tempo que preciso ser como meu pai. Há certas situações que praticamente exigem que eu seja o mais frio e brutal possível. Se eu fosse derramar lágrimas por cada vida
que tirei no último ano, já estaria seco como uma casca de árvore. Então, sim, acho que sou como meu pai em muitos sentidos.
- Não - Cleo sacudiu a cabeça. - Não é possível.
- Por que está dizendo isso?
- Sinceramente? - Ela chegou mais perto, segurando seu rosto entre as mãos. - Porque eu nunca quis fazer isso com seu pai.
Ela roçou os lábios de leve nos dele. Um pequeno gemido de tortura emergiu do fundo da garganta de Magnus enquanto ele se forçava a cerrar os punhos para não a agarrar no mesmo instante.
- Princesa...
- Cleiona... - ela o corrigiu, os lábios ainda a uma distância perigosa. - Embora eu precise admitir que já não gosto tanto de ter recebido o nome de uma imortal que roubou e matou em nome do poder.
- Verdadeiros líderes costumam ser implacáveis o suficiente para roubar e matar. Se não o fizerem, outra pessoa o fará.
- Uma filosofia encantadora e, receio, muito verdadeira. Mas talvez possamos pensar em outro nome para você se referir a mim quando estivermos juntos.
Ele arqueou a sobrancelha.
- Vou pensar nisso.
- Ótimo. - Ela mordeu o lábio, chamando atenção de novo para sua boca. - Agora, feche a porta. Com chave.
- Essa é uma sugestão muito, muito perigosa.
- Ou deixe aberta. Talvez eu não me importe. - Cleo o beijou mais uma vez, abrindo os lábios. Ele sentiu sua compostura e seu comedimento se esvaindo em uma velocidade perigosa quando a língua dela encostou
na sua.
- Realmente não quero dizer não - ele sussurrou junto aos lábios dela.
- Então não diga.
Magnus gemeu de novo quando as mãos dela desceram por seu peito e por baixo de sua túnica, deslizando sobre seu abdome e tórax sem nenhuma barreira. Ele a agarrou pela cintura e a pressionou na cama, cobrindo-a
por completo com o próprio corpo. Cleo era tão pequena, mas, ainda assim, tão forte e apaixonada.
Como um mundo insensível pôde criar uma criatura tão linda? Se a beleza dela não fosse um presente da deusa, sem dúvida tinha sido um presente da mãe...
De repente, Magnus levantou em um pulo, cobrindo a boca com o dorso da mão.
- O que foi? - Cleo perguntou assustada, o rosto corado.
Ele ficou em pé e pegou seu manto.
- Preciso de uma bebida. Vou dar uma olhada na taverna no fim da estrada.
Cleo ficou deitada, observando-o, com os cachos dourados embaraçados caídos sobre os ombros até a cintura.
Profunda e dolorosamente tentadora.
- Eu entendo - ela disse em voz baixa.
Ele estava prestes a sair sem mais nenhuma palavra, mas virou-se para ela e disse:
- Antes de sair, quero que saiba de uma coisa. No dia em que essa maldição for quebrada, prometo que a porta de qualquer quarto em que estivermos será trancada, e não vou deixar nada nos interromper.
Com isso, Magnus virou as costas e a deixou lá, olhando para ele.
Sim, ele precisava desesperadamente de uma bebida.
- Vinho - Magnus resmungou para o atendente quando entrou na taverna pobre, porém animada, conhecida como A Videira Púrpura. Ele colocou várias moedas sobre o balcão. - Fique atento e complete meu copo
sempre que notar que está vazio - ele instruiu. - E nada de conversa.
O atendente abriu um sorriso forçado, depois recolheu as moedas do balcão com ganância, guardando-as em uma bolsa velha, caindo aos pedaços.
- Muito bem.
Ele fez o que Magnus pediu e prestou muita atenção ao nível de líquido da taça. Quando Magnus começou a beber gole após gole do doce vinho paelsiano, a noite começou a ficar muito mais clara. Da última
vez que bebera vinho, tinha voltado para o palácio limeriano e encontrado sua esposa fazendo um discurso. Ela logo foi interrompida por inimigos que quase não o deixaram escapar com vida. Depois daquela
experiência, ele tinha considerado renunciar completamente à bebida.
A visita de Cleo a seu quarto naquela noite com certeza o obrigava a revogar aquela promessa.
- Nossa atração de hoje vai deixá-lo mais animado, amigo - disse o atendente, apesar de Magnus ter pedido silêncio. Magnus estava prestes a repreendê-lo quando o homem indicou com a cabeça o meio da taverna.
- Prometo que a Deusa das Serpentes será uma imagem espetacular para os olhos.
Deusa das Serpentes? Magnus revirou os olhos e apontou para a própria taça.
- Mais.
Alguém do outro lado da enorme taverna pediu silêncio para a multidão vociferante enquanto o atendente servia mais vinho para Magnus.
- Todos venerem nossa bela residente! - o homem berrou do outro lado do estabelecimento. - Curvem-se diante de seu incrível poder! E saúdem a Deusa das Serpentes!
A multidão reagiu com gritos e assovios quando uma jovem de cabelo escuro, pouca roupa e uma cobra pendurada no pescoço apareceu sobre o pequeno palco. Ao lado do palco havia um trio de músicos que começou
a tocar uma canção exótica que, para Magnus, soava mais selvagem do que encantadora. Quando a música começou a crescer, a jovem passou a se contorcer no que poderia ser considerado um tipo de dança, mas
para Magnus parecia mais a oferta de uma cortesã.
Ele esvaziou o copo sem saber ao certo quantas vezes tinha repetido o movimento desde que chegara, mas não importava. Não agora que as coisas pareciam tão melhores do que antes, quando o desejo por Cleo
quase o cegou diante do perigo.
Talvez eles pudessem dividir um quarto, ele pensava enquanto assistia àquela mulher estranha se sacudir pelo palco. Talvez um elixir para evitar a gravidez fosse proteção suficiente.
Ou talvez ele devesse se concentrar no fato de seu reino ter sido roubado, seu pai estar à beira da morte enquanto sua avó tenta salvá-lo com uma pedra mágica, sua irmã estar aliada com um homem que pretendia
conquistar Mítica à base do fogo, e Cleo carregar uma maldição. O fato de ele estar enlouquecendo de desejo por sua esposa de fato era a menor de suas preocupações.
De repente, alguma coisa chamou sua atenção: um lampejo de cabelo ruivo. Aquela cor de cabelo era mais rara em Paelsia do que a do cabelo de Cleo. Ele não conseguiu deixar de se lembrar de Nicolo Cassian,
a única pessoa que ele conhecia com aquela cor infeliz de cabelo.
Magnus riu ao pensar naquilo. Não, Nic devia estava em segurança em Kraeshia - ou nem tão seguro assim, na verdade, mas Magnus não se importava. O idiota tinha se voluntariado para se juntar a Jonas em
sua missão fracassada de matar o rei.
Ele voltou sua atenção para a Deusa das Serpentes. Quando pensou que estava começando a entender o ritmo de seus movimentos, ela parou, fazendo um sinal para os músicos pararem de tocar.
- É você? - ela perguntou. O salão agora estava em silêncio. A Deusa das Serpentes estava claramente se dirigindo a alguém específico, mas Magnus não conseguia ver de onde estava. Ele só conseguia ver
a crescente empolgação no rosto pintado da dançarina enquanto sua expressão transparecia cada vez mais certeza. - Jonas! - ela gritava agora com mais confiança. - Jonas, é você mesmo? Meu querido, achei
que estivesse morto!
Jonas?
Devia ser mais uma estranha coincidência.
A dançarina desceu do palco e se embrenhou no meio da multidão, de onde puxou um jovem de cabelo escuro.
Magnus ficou paralisado. Ele esticou o pescoço, tentando ver por entre as cabeças dos outros clientes. A dançarina jogou os braços em volta do jovem, rodopiando abraçada a seu visitante, até que ele se
virou na direção de Magnus.
Chocado e boquiaberto, Magnus ficou observando fixamente aquela cena.
Era Jonas Agallon. Ali, na mesma taverna.
- Quem diria? - disse uma voz familiar ao lado dele, verbalizando seus próprios pensamentos. Uma onda de desgosto tomou conta de Magnus antes mesmo de se virar e descobrir o que já sabia: aquele ruivo,
Nicolo Cassian, estava bem ao lado dele. - Você!
Nic cutucou o ombro dele, deixando escapar uma gargalhada quando derramou um pouco de cerveja de sua enorme caneca.
- Parece que o destino está finalmente lhe dando o troco, não acha, vossa alteza? E fico mais do que feliz de testemunhar isso.
- Estou vendo que sua visita a Kraeshia não ajudou a diminuir seu charme - Magnus disse, espantado por ter bebido a ponto de arrastar as palavras tanto quanto Nic.
Nic sorriu, mas seus olhos desfocados não demonstravam nenhum humor.
- Príncipe Magnus Damora, gostaria que conhecesse um amigo meu.
Irritado pelo uso de seu nome em um estabelecimento público, Magnus virou, esperando encontrar algum rebelde qualquer. Mas, em vez disso, encontrou um rosto que só via em pesadelos.
- Theon Ranus - ele exclamou. O calor agradável e o formigamento proporcionado pelo vinho desapareceram em um instante, deixando-o profunda e desoladamente frio ao encarar aquela aparição.
- Está enganado - disse o jovem, um lembrete fatal da primeira pessoa que Magnus havia matado na vida. Com um olhar frio repleto apenas de obstinação e ódio, ele puxou uma faca e a colocou junto à garganta
de Magnus. - Sou o irmão dele, seu filho da puta.
13
CLEO
PAELSIA
- Aonde está indo, princesa?
As palavras a fizeram parar na porta principal da Hospedaria Falcão e Lança. Cleo olhou para trás e viu Enzo parado nas sombras.
- Vou à taverna no fim da estrada - ela disse. - Não que seja da sua conta.
- Está tarde.
- E...?
Enzo endireitou os ombros.
- Acho que seria melhor ficar aqui em segurança, princesa.
- Aprecio sua opinião, mas discordo. Magnus está lá. Estou surpresa, e um pouco consternada, por você não ter ido junto. E se ele for reconhecido?
- O príncipe deixou bem claro que meu único dever é garantir sua segurança, princesa.
Ela piscou rápido, como se tentasse disfarçar a surpresa daquela revelação interessante.
- Sério? Bem, isso torna as coisas muito mais fáceis. Você virá comigo buscar o príncipe e garantir que nenhum de nós corra perigo.
Cleo não lhe deu tempo para argumentar ao virar as costas e sair da hospedaria, deixando a porta aberta para Enzo segui-la e puxando o capuz do manto para cobrir o cabelo e proteger o rosto.
Enzo a seguiu sem dizer mais nada enquanto Cleo prestava atenção nas pessoas na rua, nas carruagens que passavam, no ruído do casco dos cavalos batendo na estrada de cascalho. Ela seguiu o som das risadas
embriagadas e da música para chegar à taverna que sem dúvida tinha sido o destino de Magnus. Sobre as grandes portas de madeira havia uma escultura de bronze de alguns cachos de uva em uma videira.
Ela leu a placa:
- A Videira Púrpura. Que nome apropriado para uma taverna em Paelsia. E bastante óbvio.
O príncipe gostava tanto do sabor do vinho que não se importava com o que aconteceria se alguém o reconhecesse. Magnus adorava tanto beber que estava disposto a arriscar ser morto no meio de um bando de
paelsianos. E que jeito idiota de morrer seria, Cleo pensou.
- Já ouvi falar desse lugar - Enzo disse, observando a entrada. - Nerissa já trabalhou aqui atendendo mesas.
Ela levantou uma sobrancelha.
- É mesmo?
Ele assentiu.
- Ela disse que foi uma experiência interessante.
- Eu não fazia ideia de que ela tinha morado em Paelsia.
- Nerissa morou em todos os lugares, ao que parece. Diferente de mim, que até agora nunca tinha me aventurado para fora de Limeros. Ela deve me achar tedioso.
- Posso garantir que ela não acha nada disso.
Ouvir Enzo falar de sua amiga fazia o coração de Cleo doer. Ela não tinha dúvidas de que Nerissa era capaz de se cuidar, melhor do que qualquer outra garota - e possivelmente garoto - que conhecia, mas...
Cleo não conseguia deixar de se preocupar com a segurança dela. Odiava a ideia de que Nerissa pudesse correr perigo enquanto era forçada a trabalhar perto de Amara.
Cleo respirou fundo ao passar pelas portas com Enzo. Dentro da taverna havia pelo menos duzentos clientes fedorentos e sujos.
Ela observou os rostos, procurando Magnus na multidão.
Aquela taverna era diferente de todas que já havia visto em suas duas visitas anteriores a Paelsia. Seu conhecimento da região se limitava a dois mercados pobres, vilarejos decrépitos e uma vasta extensão
de terras desertas.
E os galpões trancados de rebeldes raivosos e vingativos, ela lembrou a si mesma.
O lugar, apesar do interior rústico e decadente, parecia pertencer a Pico do Falcão, maior cidade de Auranos. Iluminando o espaço enorme havia dezenas e dezenas de velas e lampiões. No teto alto, várias
rodas de madeira acomodavam mais velas. O chão era de terra batida; as mesas e cadeiras eram feitas de madeira mal esculpida.
À esquerda de Cleo havia um pequeno palco, sobre o qual uma jovem de cabelo preto e com faixas douradas pintadas sobre a pele bronzeada rebolava de uma forma bastante provocativa. Em volta de seu pescoço
carregava uma jiboia enorme, do tipo que Cleo só tinha visto em livros ilustrados.
- Enzo, por favor, apenas me ajude a procurar Magnus. Comece pelas áreas com mais vinho.
- Sim, vossa alteza.
Cleo se cobriu melhor com o capuz do manto para esconder o cabelo e tentou ignorar os olhares atravessados da maioria dos brutamontes que passavam por ela. Quando sentiu alguém apertar seu traseiro, virou
para dar um soco no ofensor, mas acertou apenas o ar.
Furiosa, ela tentou ver quem a havia tocado no meio da multidão, mas ficou paralisada quando ouviu alguém gritar um nome que ela conhecia.
- Jonas! - Era a mulher-cobra, interrompendo a apresentação para correr na direção de um jovem que estava na plateia. - Jonas, é você mesmo?
Cleo, de olhos arregalados, se virou na direção do palco.
Jonas tinha voltado de Kraeshia. E, de todos os lugares de Mítica onde poderia estar, estava ali!
Como era possível?
Ela se virou para Enzo, mas outro rosto chamou sua atenção. Um jovem caminhava pela multidão, movendo-se na direção oposta ao mar de rostos virados para o palco.
Cabelo cor de bronze, pele morena, alto, músculos definidos...
Ela só conseguiu observar, certa de que seus olhos a enganavam.
- Theon - ela sussurrou o nome antes preso na garganta.
Ela então se lembrou de um tempo em que tudo parecia claro - ela o amava, e nada mais importava. Nem o posto dele, nem a reprovação de seu pai, nem o modo austero como Theon tinha olhado para ela antes
de beijá-la, marcado pelo medo de pensar que poderia perdê-la para sempre.
E depois o som do casco dos cavalos quando Magnus e seus soldados chegaram.
O orgulho em seu coração quando Theon enfrentou os homens de Magnus e venceu.
E o horror quando viu a vida se esvair dos olhos dele para sempre quando Magnus o acertou pelas costas.
"Se seu guarda tivesse se afastado quando ordenei, isso não teria acontecido", o filho do Rei Sanguinário tinha dito.
"Ele não é só um guarda", ela havia sussurrado em resposta. "Não para mim."
Às vezes, parecia que tudo tinha acontecido mil anos antes. Outras, era como se tivesse sido no dia anterior.
Mas, lá estava ele.
- Princesa? - Enzo perguntou, franzindo a testa para a expressão de choque absoluto dela.
Cleo não respondeu. Suas pernas estavam dormentes quando começou a se mover sem pensar, abrindo caminho na multidão na direção dele.
Lágrimas quentes corriam por seu rosto, e ela as secava com violência.
A multidão diminuía quanto mais ela se afastava do palco, o que lhe permitiu manter o olhar no guarda assassinado. Em sua mão, ela viu o brilho de uma lâmina afiada.
E então ela viu Magnus.
O fantasma do jovem que havia amado - e perdido - aproximou-se de Magnus, que estava no bar, olhando para Theon com a mesma descrença de Cleo. Então, com uma rapidez que ela mal conseguiu acompanhar, Theon
segurou Magnus com força e pressionou a lâmina contra sua garganta.
Ela gritou para dentro, seu corpo transformou-se em gelo em um instante. Ela olhava para Magnus, com sua expressão resoluta, os dentes cerrados e os olhos escuros desprovidos de emoção.
- Cleo? - Alguém estava bloqueando seu caminho; um garoto com sardas e cabelo ruivo. - Ah, Cleo! Você está aqui! Você está viva!
- Nic? - Ela o encarou por um segundo antes de agarrar e fincar os dedos em seus ombros. Atrás dele, viu o sangue escorrendo pela garganta de Magnus, onde o fantasma do passado enfiara sua adaga. - O que
está havendo? Por que isso está acontecendo?
De repente, uma terceira pessoa aproximou-se do confronto silencioso entre Magnus e Theon, que até então tinha passado despercebido pelo resto dos clientes, cujos olhos estavam fixos no palco. Era um jovem
de cabelo escuro, ombros largos e muitos músculos, com um tapa-olho preto.
Ele segurava um pedaço de pau e, com ele, atingiu o fantasma de Theon com força atrás da cabeça. A adaga caiu no chão, e o corpo da vítima desabou, inconsciente, ao lado dela.
- Magnus! - Cleo gritou.
Finalmente, Magnus tirou o olhar do jovem caído e virou para Cleo.
Ele semicerrou os olhos.
- Você não devia estar aqui.
Ela ficou chocada. Era isso que Magnus tinha a dizer em um momento como aquele?
O brutamontes apontou para o corpo.
- Ele não vai ficar feliz comigo quando acordar.
Cleo correu para o lado de Magnus, certificando-se rapidamente de que o ferimento no pescoço era superficial. Ela virou para o jovem de tapa-olho.
- Quem é você? - ela questionou.
Ele se curvou.
- Felix Gaebras, minha encantadora jovem. A seu dispor. E quem é você?
- Esta - Magnus disse, tocando o pescoço com cuidado - é a princesa Cleiona.
Felix arregalou os olhos.
- Ah, então esta é a princesa dourada. Tudo faz sentido agora.
- E quem é esse? - Ela apontou para o chão com o dedo trêmulo.
- Aquele - Felix respondeu - é Taran Ranus, irmão gêmeo de Theon.
Cleo sentiu seu corpo gelar.
- Irmão gêmeo?
Magnus estava tenso.
- Foi muito gentil da parte de Nic nos apresentar hoje à noite, não acha?
Ao lado dela, Nic olhou para o jovem inconsciente, depois para Cleo, que parecia chocada.
- Acho que todos nós precisamos conversar - ele disse.
- Com certeza!
- Concordo - Magnus disse com rigor. - Conheço um lugar muito mais discreto do que esse. Encontrem Jonas e venham comigo, todos vocês.
Felix se abaixou, pegou o companheiro inconsciente e o jogou sobre o ombro.
- Onde Jonas e os outros estão? A dançarina o amarrou com a cobra e o levou embora? Vou procurá-lo.
Cleo não esperou - ela precisava de ar fresco. Precisava respirar normalmente e deixar o coração bater em um ritmo natural.
Irmão gêmeo, ela pensou, estupefata. O irmão gêmeo de Theon.
E Theon nunca, em nenhum momento, tinha mencionado que tinha um irmão gêmeo.
Nic estava ao lado dela, cambaleando de leve a cada passo que dava enquanto Enzo a escoltava para fora da taverna. Ela olhou para trás para garantir que Magnus estava perto.
- Você está bêbado - disse Cleo, virando-se para Nic e percebendo que estava muito zangada com ele e com todos os presentes.
- Muito. E também muito feliz por saber que está aqui. - Ele deu um grande beijo desajeitado no rosto dela, fazendo-a lembrar do cachorrinho babão que seu pai trouxera para ela e para Emilia depois de
um longo período de viagens. Quando seus batimentos cardíacos voltaram ao normal, ela se permitiu ceder à avassaladora sensação de alívio por Nic ter voltado de Kraeshia são e salvo - e por estar ao lado
dela novamente.
Felix saiu da taverna carregando Taran Ranus.
Atrás dele veio Jonas, que observava a área até seus olhos recaírem sobre Cleo.
Ela o observava também quando um sorriso se abriu no belo rosto dele.
- Eu sabia que você estava viva. - Jonas apertou o passo para chegar até ela. Segurou-a pela cintura e a tirou do chão, girando-a no ar. - É tão bom ver você!
Em qualquer outro dia, ela estaria sorrindo tanto quanto o rebelde.
- Explique o que está acontecendo.
- Sim - Magnus disse, os olhos escuros fixos em Jonas. - Uma explicação para sua chegada nesta cidade, coincidindo com a nossa chegada, seria apreciável.
- Fico chocado em dizer, mas é quase bom ver você também, vossa alteza. - Jonas deu um meio sorriso para o príncipe.
Não foi correspondido.
- Nosso amigo aqui está ficando um pouco pesado - Felix comentou.
Magnus lançou um olhar azedo para o corpo que Felix carregava.
- Venham comigo.
Outra garota se juntou ao grupo, e Cleo a reconheceu de imediato - estava acompanhando Jonas e Lysandra da última vez em que estiveram no palácio limeriano.
Cleo se lembrava do nome dela: Olivia. Mas um cumprimento adequado poderia esperar.
Ela deu o braço para Nic enquanto o grupo acompanhava Magnus até a hospedaria.
- Por que está tão bêbado hoje?
- Ah... são muitas razões. Entre elas, recentemente passei a acreditar que estivesse morta. Por isso ia me afundar em cerveja para sufocar meu sofrimento.
- Estou bem viva.
- E fico muito feliz em saber.
Cleo sorriu para ele.
- Existem outros motivos para sua sede de álcool?
- Nenhum que esteja com a gente hoje, mas estou hesitante em mencioná-los. Você já teve choques demais por um dia. Tenho certeza de que ele vai acabar aparecendo. Ele faz dessas.
- Você não está falando coisa com coisa.
- Não, com certeza não estou.
Seu pequeno sorriso desapareceu quando ela olhou para Felix e seu fardo.
- Theon... - Ainda doía dizer o nome dele, mesmo depois de tanto tempo. - Alguma vez ele falou alguma coisa sobre ter um irmão gêmeo?
Nic negou.
- Nada. Quando vi Taran nas docas de Kraeshia, quase caí duro de choque. Taran não fala sobre isso, mas imagino que eles não tivessem contato. Ainda assim, não lidou bem com a notícia da morte do irmão.
- É, percebi. - Ela soltou um suspiro trêmulo. - Como ele ficou sabendo que foi Magnus que matou Theon?
Nic deu de ombros.
- Eu contei a ele, claro.
Ela sentiu uma pontada no estômago no exato momento em que a raiva começou a subir.
- Claro.
- Eu devia ter ficado a seu lado. - Ele pegou a mão dela e ficou sério, apesar da bebedeira. - Sinto muito por ter deixado você sozinha com ele todo esse tempo.
Nic não sabia sobre os sentimentos dela por Magnus. É claro que não sabia - Cleo tinha feito questão de negar os sentimentos que cresciam em seu peito por um ano.
- Não tem problema. Eu... dei um jeito.
- Onde devo deixá-lo? - Felix indicou o fardo que carregava quando chegaram à hospedaria.
- Tenho certeza de que vamos encontrar um buraco bem fundo - Magnus respondeu.
Cleo olhou feio para ele, depois virou para Felix.
- Tem alguns quartos vazios no segundo andar - ela disse.
Felix desapareceu e retornou rapidamente sem Taran.
Eles sentaram na sala de convivência e, quando Cleo olhou para o grupo, não sabia dizer se estava feliz ou horrorizada pelo modo como a noite havia se desenrolado.
Nic sentou ao lado dela, de frente para Jonas e Olivia. Felix e Magnus sentaram próximos à lareira, do outro lado da sala, perto da estante, enquanto Enzo ficou em pé ao lado de Cleo.
- Quando vocês chegaram? - Magnus perguntou.
- Hoje - Jonas respondeu. - Ainda estamos no escuro sobre o que está acontecendo aqui. A única informação que temos vem de um único soldado kraeshiano que se dispôs a falar.
- E?
- Ele sabia muito pouco. Ou, pelo menos, pouco que pudesse nos ajudar. No entanto, parece que você está fugindo, vossa alteza. E seu pai não está nada feliz com o modo como cuidou das coisas enquanto ele
esteve fora.
- É o mínimo que se poderia dizer.
Cleo observava Magnus levemente surpresa. Apesar do tanto que devia ter bebido, parecia sóbrio como um sacerdote limeriano.
- O soldado - disse Jonas, apontando para Cleo com tristeza. - Ele nos disse que você tinha morrido. Que isso aconteceu depois que fugiu de Amara. Que morreu congelada.
- Isso poderia muito bem ter acontecido se eu não tivesse encontrado abrigo no momento certo. - Ela desviou os olhos, tentando não fazer contato visual com Magnus, apesar de ainda sentir o olhar dele ardendo
em seu rosto.
- Você sempre foi uma sobrevivente - Jonas disse. - Nic se desesperou, mas eu tinha esperança. E aqui está você.
Nic deu de ombros.
- Eu me desespero. Sou desesperado.
- Temos muita coisa para contar a vocês - Jonas afirmou. - E com certeza vocês têm muita coisa para nos contar.
- Muito menos do que você pode imaginar - Magnus disse. - Amara acha que está governando o reino agora. Mas está errada. E será derrotada.
- E como você acha que vai derrotá-la? - Jonas perguntou.
- Acho que podemos começar com o cristal da terra que você deu à princesa - Magnus disse, e Jonas ficou tenso. - Você ainda tem aquele pedaço brilhante de obsidiana escondido em algum lugar, princesa?
Ah, sim, ela pensou enquanto se contraía. Esse era o Magnus que um dia ela desprezara - capaz de anunciar para todos, aparentemente por despeito, que ela estava em poder de um cristal da Tétrade. Ela precisaria
se lembrar de agradecer pela lembrança.
Nic soltou um rosnado de repulsa.
- Cleo, não enlouqueceu ficando ao lado dele por tanto tempo? O fato de ter mantido essa aliança artificial... deve haver algum motivo por trás disso que não me contou.
- Por favor, Nic - Magnus disse. - Somos todos amigos aqui. Sinta-se à vontade para falar o que quiser.
- Acabei de fazer isso.
Magnus revirou os olhos.
- Não preocupe essa sua cabeça de cenoura, Nicolo. A princesa continua a me tolerar, ou quase, concentrando-se apenas em recuperar seu trono assim que Amara for derrotada e mandada para longe. Recentemente,
sugeri que sua princesa dourada retornasse a Auranos, mas ela recusou. Nem pense em dizer que foi ideia minha.
Cleo virou para ele e enxergou uma expressão de desafio em seus olhos. Então percebeu o que Magnus estava fazendo.
Nic o odiava. Jonas tinha uma aliança fraca com ele. E o irmão gêmeo de Theon tinha acabado de tentar matá-lo.
Revelar que os dois eram mais do que aliados relutantes poderia causar um estresse desnecessário, principalmente agora que estavam todos juntos.
- Acredite em mim, Nic - ela disse finalmente. - E estou ansiosa pelo dia em que retornarei ao meu trono. Mas esse dia não é hoje.
- Bem, agora que isso está resolvido - Magnus disse -, vamos discutir como proceder. Pode ser?
Felix levantou a mão.
- Eu me voluntario com entusiasmo para matar a imperatriz.
Magnus o encarou com interesse.
- Como pretende fazer isso?
- Sei que alguns de vocês vão sugerir que eu use uma flecha apontada de longe - Felix disse com avidez. - Mas realmente preferiria uma abordagem mais pessoal. Com minhas próprias mãos, se possível. Só
quero ver o olhar dela naquele rostinho lindo.
Magnus piscou.
- Acabei de lembrar que foi você que me enviou um pedaço de sua pele para provar sua lealdade.
- Fui eu mesmo, vossa majestade.
Cleo analisava aquele jovem com atenção, chocada com as palavras. Será que ele era louco?
No entanto, o sujeito tinha salvado a vida de Magnus na taverna, e ela devia muito a ele por isso, então imaginou que teria que passar um pouco mais de tempo perto dele, observando-o, para ver como ele
realmente era.
Houve um tempo em que tinha desejado que Magnus morresse pelo que fizera com Theon, em que tinha desejado matá-lo com as próprias mãos.
Mas no momento em que a vida de Magnus correra perigo, não conseguira se concentrar em nada além do príncipe. Qualquer necessidade de vingança tinha desaparecido meses atrás, como se ela tivesse trocado
de pele.
O sentimento era de perdão. Ela ainda odiava o garoto que Magnus tinha sido aquele dia.
Mas tinha passado a entendê-lo nos meses que se seguiram, talvez ainda melhor do que entendia a si mesma.
- Há uma ameaça muito maior do que Amara em Mítica nesse momento, sinto informar - Jonas revelou, interrompendo o devaneio de Cleo. Ele estava limpando as marcas de beijo da dançarina do rosto com um lenço
que Olivia havia lhe dado, e Cleo não conseguiu deixar de achar engraçado o contraste entre os movimentos ridículos e o tom solene daquela declaração.
- Me deixe adivinhar - Magnus disse. - Você está falando da minha irmã? Sei que deve estar de luto por sua amiga, Jonas, mas não faz sentido gastar suas energias vingativas com Lucia nem com seu companheiro,
Kyan.
Jonas encarou os olhos de Magnus.
- Vocês não sabem, não é?
- Não sabemos o quê?
- Vocês procuraram pela Tétrade. Pessoas morreram por esses cristais. Você já revelou diante de todos que Cleo está em poder de um deles, e sabemos que Amara está com o da água, e seu pai, com o do ar.
- Sim, sei disso tudo, rebelde. E já sabemos que Kyan está com o cristal do fogo.
- Errado - Jonas ficou tenso. - Kyan é a magia do fogo.
Cleo ficou encarando-o, certa de que tinha escutado errado.
- O que quer dizer com isso?
- A magia que vocês estão procurando, que todos estamos procurando, pode pensar. Pode falar. E pode matar sem remorso. E mais três iguais a Kyan estão aguardando para escapar de suas prisões. Os cristais
não são pedras mágicas, princesa, mas deuses elementares.
A sala toda ficou em silêncio, e Cleo observou freneticamente o rosto dos outros, esperando encontrar alguém revirando os olhos. Esperando que aquilo não passasse de uma mentira engraçada para quebrar
a tensão.
Não podia ser verdade.
Mas até Nic assentia pesaroso.
E naquele exato momento, dentro de seu bolso, estava uma daquelas prisões.
Ela olhou para Magnus, cuja testa franzida era o único sinal de surpresa.
- Lucia deve tê-lo ajudado a escapar da esfera de âmbar - Magnus disse.
- Acho que isso é óbvio - Jonas respondeu curto e grosso, o que lhe rendeu um olhar sombrio do príncipe.
Cleo juntou as mãos para impedi-las de tremer.
- Temos certeza de que os objetivos de Kyan, sejam quais forem, são perversos? A Tétrade ainda pode nos ajudar a derrotar Amara.
- Eu o vi queimar Lys até fazê-la desaparecer - Jonas grunhiu. - Nem uma única cinza restou quando ele acabou. - O rebelde virou para Magnus. - Kyan é perverso. Assim como a vadia da sua irmã.
Magnus levantou com os punhos cerrados.
- Não me importo com o que aconteceu, você não vai falar assim de Lucia na minha presença. Não vou permitir.
- Não? E você acha que pode me impedir? - Agora Jonas também estava com os punhos cerrados, e os dois se aproximavam.
- Talvez ele não o impeça - disse uma nova voz, interrompendo a conversa e paralisando o rebelde e o príncipe. - Mas eu com certeza estou disposto a tentar.
Com aquela promessa, o Rei Sanguinário entrou na sala.
14
JONAS
PAELSIA
Rei Gaius Damora. O Rei Sanguinário. Assassino. Sádico, torturador, escravocrata, traidor. Inimigo. Alvo.
E, naquele momento, estava na mesma sala que Jonas.
Muitas surpresas tinham acontecido naquela noite. Primeiro um encontro com Laelia Basilius, de quem Jonas tinha sido - por pouco tempo e com relutância - noivo. Mas essas surpresas desapareceram de sua
mente assim que o rei entrou na sala.
Gaius observou o grupo e parou o olhar sobre Jonas.
- Jonas Agallon. Não vejo você há muito tempo. Acho que a última vez foi no casamento de meu filho.
Jonas percebeu que não conseguia fazer nada além de olhar para o homem que tinha matado e destruído tantos.
- Magnus... - Cleo disse do outro lado da sala.
- Ah, sim - Magnus disse, sem qualquer sinal de indignação pelas calúnias ditas contra a irmã. - Esqueci de dizer que estou viajando com meu pai?
- Esqueceu - Jonas respondeu, tenso.
- Sim - o rei concordou. - E é muito bom que meu filho traga seus novos amigos aqui sem avisar.
Jonas se esforçou para manter a compostura, para não mostrar como estava indignado.
- Não são tão novos quanto você pensa.
A pele do rei Gaius estava pálida, o rosto tinha hematomas como se tivesse sido espancado. Ele inclinou para a frente, como se agisse com normalidade, e se apoiou na parede ao lado da escada, mas algo
ficou evidente na posição. Uma fraqueza e uma fragilidade que o rebelde nunca tinha notado no homem.
- Volte para o quarto - Magnus disse.
- Não acato ordens suas. - O rei sorriu, sem achar graça. - Magnus, seus amigos sabem que estamos todos do mesmo lado agora?
Só de pensar em uma aliança com Gaius, Jonas perdeu totalmente a fala. Os outros - Nic e Olivia - também permaneceram em silêncio, tensos.
- É mesmo? - Foi o rosnado ríspido de Felix, como o alerta de uma fera enjaulada, que quebrou o silêncio. - Você decidiu isso antes ou depois de permitir que Amara me deixasse levar a culpa por matar a
família dela?
O rei levantou uma sobrancelha escura e observou Felix.
- Nunca permiti que Amara fizesse nada. Ela toma as próprias decisões. Quando soube o que tinha acontecido, já era tarde demais para intervir. Soube que você já estava morto. Caso contrário, teria feito
o possível para libertar você.
Felix manteve o olhar fixo no rei, e em seu único olho não se via nada além de frieza e malícia.
- Claro que teria. Por que eu duvidaria de sua palavra, vossa alteza?
Suspirando, o rei abatido e aparentemente debilitado se virou para Jonas.
- Você tem todos os motivos para me odiar. Mas precisa me ouvir agora e perceber que juntos somos fortes. Temos um inimigo comum: Amara Cortas.
- Sua esposa - Jonas afirmou.
- Por conveniência e circunstância apenas. Não tenho dúvidas de que ela já está conspirando para me matar, em especial agora que assumiu o controle de Mítica e sabe que seus soldados são muito mais numerosos
que os meus. Tenho me dedicado a consertar alguns de meus erros mais recentes, começando por tirar Amara deste reino.
- Me parece um bom começo - Jonas disse.
O rei caminhou devagar, fazendo careta ao sentir uma dor repentina com o movimento, e estendeu a mão.
- Peço que deixemos nossas diferenças de lado até esse objetivo ser alcançado. O que me diz?
Se não estivesse tão surpreso, Jonas teria gargalhado. O Rei Sanguinário tinha acabado de propor a ele - a mesma pessoa que o acusara de assassinar a Rainha Althea - uma aliança.
Jonas observou os outros ao redor, e em silêncio todos olhavam chocados para ele e o rei. Nic e Cleo estavam pálidos, e Felix entortava a boca de ódio. Olivia manteve o olhar desprovido de emoção e inescrutável,
como sempre. Enzo, o guarda de Cleo, estava parado empunhando a espada. Em contraste, Magnus tinha sentado e recostado na cadeira, os braços cruzados à frente do peito, a cabeça inclinada.
Finalmente, Jonas estendeu a mão direita para o rei e aceitou o acordo, encarando diretamente seus olhos.
- O que posso dizer, vossa alteza? - Com a mão esquerda, ele cravou uma adaga decorada no coração do monstro. - Vá para as terras sombrias, filho da puta mentiroso.
O rei gemeu sem força, e pelo som, a dor parecia extremamente forte. Jonas girou a faca ainda mais fundo, até Gaius tombar para trás.
Jonas ouviu Nic comemorar assim que Enzo o acertou e o derrubou no chão. Felix chegou em um instante, puxando Enzo para longe. Outro dos guardas do rei apareceu e puxou os braços de Jonas para trás. Cabelos
loiros apareceram na confusão - era Cleo tentando tirar o segundo guarda do rei de cima de Jonas. Magnus estava de pé com o olhar sério fixo no rei. Olivia estava dentro do campo de visão periférica de
Jonas, esperando. Ela só interviria se ele corresse perigo de morte.
A raiva que sentia, o ódio que tinha pelo rei, zuniam dentro de Jonas, renovados, e o rebelde tremia. Enquanto observava o rei moribundo, não sentiu nem um pouco de arrependimento.
Finalmente tinha tido uma oportunidade. E a aproveitado.
- Viu? - ele disse, olhando para Magnus. - Cumpro minhas promessas.
- Sim, estou vendo - Magnus disse, prestando atenção no pai, como se estivesse curioso, e não grato pela atitude. - Só é uma pena que você não tenha feito isso antes.
- O que quer dizer com isso? - Jonas olhou para o príncipe, sem entender por que ele parecia decepcionado com a situação. Jonas tinha feito exatamente o que Magnus queria, tinha cumprido a tarefa que o
tinha levado a Kraeshia.
- Milo, deixe Jonas levantar. - Cleo segurava o guarda desconhecido pelo braço.
- Ele assassinou o rei - Milo disse.
- Não - Magnus disse. - A morte decidiu demorar no que diz respeito ao meu pai.
- Jonas, olhe para ele - Felix pediu.
Gaius não estava mais deitado no chão, cheio de sangue. Milagrosamente, estava ajoelhado, sangrando muito sobre a madeira desgastada, o cabo da adaga no peito.
A expressão agonizante do rei estava fixa em Jonas.
- Ele não está morto - Nic murmurou, balançando a cabeça, incrédulo. - Por que não está morto?
Num movimento repentino e forçado, o rei Gaius segurou o cabo decorado da adaga. Ainda encarando Jonas com os olhos semicerrados, ele arrancou a lâmina, com um grito. A adaga caiu no chão, e ele levou
as mãos à ferida.
- Isso é magia - Jonas conseguiu dizer em meio ao choque.
- Muito observador de sua parte. Impressionante - Magnus disse com seriedade.
- Explique o que está acontecendo!
Magnus meneou a cabeça para Milo.
- Solte o rebelde. Não posso conversar com alguém preso como um besouro pregado a uma placa de cortiça.
Milo parou de segurar o braço de Jonas, que imediatamente ficou de pé e lançou um olhar acusatório para Magnus, que encarou Cleo de um jeito pouco sutil e sério. Cleo rangeu os dentes, e Magnus revirou
os olhos.
- Muito bem - o príncipe concordou. - Vou tentar ser breve em minha explicação. O que está acontecendo é o resultado de uma poção que o rei tomou muitos anos atrás, uma poção que permitiu que, não importa
o golpe final e fatal que o destino desferir, ainda tem algum tempo para... resistir depois de ser morto.
- Não sei bem se é assim que funciona - Cleo disse pacientemente.
Magnus suspirou e fez um gesto para o pai.
- Mais ou menos isso?
- Acredito que sim. Minha nossa, Jonas, essa é a adaga de Aron? - Cleo perguntou, chocada. - Você realmente guardou essa coisa horrível por todo esse tempo?
- Responda à minha pergunta - ele disse, mais incisivo do que pretendia ao se dirigir à princesa. Finalmente Jonas tinha feito o que queria fazer havia muito tempo, mas mais uma vez o destino não permitia
seu sucesso. Nem mesmo depois de um golpe fatal.
- Você não matou o rei - Cleo respondeu tensa - porque o rei já encontrou a morte dias atrás.
Enquanto Jonas tentava desesperadamente processar aquela afirmação incrível, uma mulher desceu a escada. Ela era mais velha, com rugas ao redor dos olhos, e usava um manto cinza-escuro que combinava com
seu cabelo. Entrou na sala de convivência, observando todos os presentes com firmeza, até finalmente fixar o olhar em Gaius.
A mulher o observou por um momento muito breve e, em seguida, lançou um olhar intenso na direção de Jonas.
- Você fez isso com meu filho?
Um arrepio subiu por seus braços e seus ombros, e desceu pela coluna ao perceber a raiva controlada nas palavras dela.
Filho?
- Tudo bem - o rei disse assustado, segurando a manga da blusa da mulher que se apressou para ficar ao lado dele.
- Não está nada bem. Não mesmo. - Ela voltou a encarar Jonas, e com o olhar dela, veio a sensação de que ele estava sendo congelado. - Você ousaria tentar matar seu rei?
- Ele não é meu rei - Jonas respondeu irritado, recusando-se a demonstrar fraqueza ou dúvida. - Ele matou meus amigos em sua guerra doentia, executou aqueles que se recusaram a se submeter, e escravizou
meu povo para construir sua preciosa Estrada Imperial. Nenhuma pessoa nesta sala diria que ele não merece morrer por seus crimes.
Ela cerrou o punho.
- Eu diria.
- Não, mãe - Gaius disse depressa. - Deixe-o em paz. Precisamos dele. Acredito que precisaremos de todos eles para reaver o que Amara pegou.
Devagar, o rei levantou, e Jonas só conseguiu dar um passo incerto para se afastar. O único sinal de que uma adaga tinha atravessado seu coração alguns momentos antes era a camisa rasgada e o sangue no
chão.
- Só a magia mais sombria poderia tornar algo assim possível - uma nova voz disse.
Jonas virou de repente e viu que Ashur Cortas estava atrás deles na entrada da hospedaria.
- Ashur! - Cleo se surpreendeu. - Você está vivo! Mas... como?
Ashur arqueou as sobrancelhas escuras.
- Mais magia negra, receio.
Ela virou para Nic, cuja expressão era neutra.
- Você sabia disso?
Ele assentiu.
- Eu sei, é um choque.
- Um choque? Ele estava morto, Nic! Por que não me contou?
- Eu ia contar. Achei melhor esperar você lidar com a questão do Taran primeiro.
- Ah, obrigada - ela disse, a voz tensa. - Você é muito solícito mesmo.
- Não sei por quê, mas acho que você não está falando sério.
Jonas se virou para Magnus e viu que ele estava sério.
- Estou ficando muito cansado de magia - o príncipe murmurou. - E de absolutamente tudo sobre o que não tenho controle.
- Também é ótimo revê-lo, príncipe Magnus - Ashur disse com um meneio de cabeça.
- Muita gentileza sua nos encontrar, vossa graça - Nic se dirigiu a Ashur, a voz desprovida de qualquer respeito. - Pensei que tivesse criado guelras e cauda e começado a nadar de volta a Kraeshia.
- Hoje não, infelizmente - Ashur respondeu com rispidez.
- Talvez amanhã.
- Talvez.
- Contamos a todos sobre sua ressurreição de fênix agora ou mais tarde? - Nic perguntou.
A expressão de Ashur ficou tensa ao notar o tom ácido de Nic.
- Parece, Nicolo, que há assuntos mais urgente a tratar. Estou certo, não estou, rei Gaius?
O grupo voltou a atenção ao rei, que estava encolhido ao lado da mãe.
- Está, sim, príncipe Ashur.
- Uma aliança contra minha irmã.
- É um problema para você?
- Não. Contanto que não a matem, não vejo nenhum problema.
- Espere - Felix disse de onde estava, ao lado da lareira. - Você sabe que eu pretendia matá-la! Vai mesmo tirar isso de mim?
Ashur lançou um olhar severo para Felix.
- Tudo bem. É um assunto para outro dia - Felix respondeu.
- Príncipe Ashur, você é o herdeiro legítimo de seu pai - o rei explicou. - Tire o título de Amara e tudo isso pode acabar.
- E agora você é o marido dela, pelo que soube. Por que não está a seu lado, orientando suas decisões?
- Não é mais tão simples assim.
- Nada importante é simples, certo?
- O Rei Sanguinário quer que trabalhemos em equipe - Jonas disse, balançando a cabeça. - É a coisa mais ridícula que já ouvi. Não é o que quero.
Gaius bufou, frustrado.
- Sei muito bem o que você quer, rebelde. Você quer que eu morra. Bem, devo dizer que vou morrer em breve.
- Gaius... - a mãe sibilou. - Não vou permitir que fale assim. Não vou permitir!
Ele a silenciou com um aceno.
- Minha primeira prioridade é retomar o controle de meu reino. Mítica não pertence, nem pertencerá, ao Império Kraeshiano.
- Não fosse pela magia que dizem que está adormecida aqui - Ashur disse -, posso garantir que nem Amara nem meu pai dariam tanta importância a essa ilhazinha.
- Acredito que você esteja ciente de que Amara envenenou seu pai e seus irmãos - o rei afirmou. - Ela não sente remorso quando vai em busca do que quer.
A risada sombria de Nic interrompeu a tensão na sala.
- Que engraçado... "Não sente remorso", ele disse, como se considerasse isso um defeito. O mesmo homem que quebrou o pescoço da minha irmã por estar no lugar errado na hora errada. - Ele parou de rir de
repente. - Sua aparência está péssima, vossa majestade. Espero muito que esteja sofrendo neste momento.
- Não fale com o rei desse jeito, Cassian - Milo, o guarda, se manifestou.
Nic lançou um olhar para ele do outro lado da sala.
- O que vai fazer se eu falar? Vai pedir para seu amigo ajudá-lo a me bater?
Milo sorriu e estralou os dedos.
- Posso fazer isso sozinho sem problema.
- Pensei que você estivesse apodrecendo na masmorra.
O sorriso do guarda ficou tenso.
- Preciso lhe agradecer por isso, não?
- Precisa. - Nic semicerrou os olhos. - O que vai fazer em relação a isso, Milo?
- Muitas coisas. Só preciso de tempo.
- Milo, não é? Ouça bem o que vou dizer. - A voz de Ashur estava baixa, como o rosnado de uma fera enjaulada. - Se tentar machucar Nicolo, juro que eu mesmo vou arrancar sua pele.
Jonas virou para Milo. Viu que a única reação dele à ameaça foi piscar, surpreso.
Cleo falou com o rei, depois de lançar um olhar preocupado a Nic e ao guarda.
- Você deu Mítica a Amara - ela disse, deixando claro seu tom de insatisfação. - Não pode apenas pegá-la de volta?
- Você não entende - o rei disse. - Nenhum de vocês entende. O imperador Cortas teria tomado Mítica à força se eu não tivesse agido dessa forma. Dezenas... não, centenas de milhares teriam morrido na guerra
se eu não tivesse feito minha proposta a ele.
- Ah, sim - Magnus disse. - Meu pai, o salvador de todos nós. Deveríamos construir estátuas em homenagem a ele. Uma pena já haver dezenas delas em Limeros. - Magnus arregalou os olhos. - É muita vaidade,
pensando bem. A deusa Valoria não aprovaria.
- Para o inferno com a deusa e com todos os Vigilantes! - o rei rebateu. - Não precisamos da ajuda deles para nos livrarmos de Amara.
- Não esqueça Kyan - Jonas acrescentou.
O rei virou para ele.
- Quem é Kyan?
Jonas não conseguiu conter o riso.
- Adoraria ficar aqui para elaborarmos uma estratégia juntos, vossa alteza, mas cansei dessa farsa. Não vou trabalhar com você hoje, nem amanhã, nem nunca.
- Diga, vossa alteza - Felix disse devagar -, ainda está com o cristal do ar?
Gaius lançou um olhar sério.
- O cristal do ar! - a mãe dele exclamou. - Você está com ele? E não me contou?
- Estou, sim - ele respondeu.
- Onde?
- Em um lugar seguro.
Jonas tentou encarar Cleo nos olhos, mas ela parecia ocupada com uma conversa silenciosa com o príncipe. Quando se entreolhavam, o sorriso de Magnus desapareceu.
- Se for verdade, e quando eu tiver força suficiente para encontrar minha neta - a mulher anunciou -, a vitória será nossa.
Mais uma vez, Jonas riu com frieza.
- Então é esse o segredo para seu grande plano? A princesa Lucia? Acredito que ficará decepcionada quando vir a serpente fria, má e sanguinária que ela se tornou. Mas ela é uma Damora, então talvez você
não se surpreenda nem se desaponte.
A senhora o observou.
- Jonas, não é?
- É o meu nome.
- Meu nome é Selia. - Ela se aproximou sem raiva no olhar ao pegar as mãos dele. - Fique conosco e ouça mais sobre nossos planos. Concordo com meu filho que, apesar de nossas diferenças, ainda podemos
trabalhar juntos. Tente ver isso de modo lógico. Juntos, somos mais fortes.
Ela estaria certa?
- Não sei...
- Fique - Cleo pediu. - Por favor, pense bem, pelo menos. Por mim.
Jonas encarou seus olhos sinceros e azuis.
- Talvez.
Magnus levantou.
- Está sugerindo que os rebeldes fiquem aqui? - ele perguntou em tom acusatório para a avó. - Nesta hospedaria? É a pior ideia que já ouvi.
- Discordo - disse o rei. - Minha mãe tem razão. Podemos chegar a um acordo. Temporário. Temos o mesmo inimigo agora.
Sem saber ao certo se estava prestes a concordar ou discordar dos Damora, Jonas abriu a boca para falar mas foi interrompido por um rosnado furioso vindo da sala de convivência.
Passos foram ouvidos descendo a escada, e Taran entrou com tudo no ambiente. Em um instante, voltou o olhar furioso para Magnus.
A adaga de Jonas - aquela que o rei tinha tirado do peito - estava no chão. Jonas a viu, mas Taran também, recuperando-a num piscar de olhos e percorrendo a distância entre ele e o príncipe.
Taran apontou a adaga para Magnus, mas o príncipe segurou o braço de Taran antes que ele pudesse encostar. Cleo soltou um grito estridente.
- Você está morto - Taran gritou.
Magnus se esforçou para não deixar a lâmina feri-lo, mas Taran o pegou de surpresa e a ira da vingança parecia duplicar sua força.
Então, Felix apareceu atrás de Taran, passando o braço por seu pescoço e puxando-o para trás.
- Não me faça acertar você de novo. Perdi meu pedaço de pau.
Jonas se aproximou e arrancou a adaga da mão de Taran.
- Vou matar você - Taran gritou para o príncipe enquanto Felix o arrastava para trás. - Você merece morrer pelo que fez!
Magnus não revidou. Só ficou observando o rapaz, com uma expressão séria.
- Acho que todos merecemos morrer por algo que fizemos - Jonas disse, aliviando um pouco da tensão que crescia entre o príncipe e o rebelde. - Ou por algo que deixamos de fazer.
O príncipe desfez a expressão séria e olhou incrédulo para Jonas.
- É minha imaginação ou você acabou de ajudar a salvar minha vida?
Jonas fez uma careta ao ouvir a pergunta.
- Parece que sim, não? - Ele olhou para Cleo, cuja expressão era de alívio. Com certeza, a princesa não queria ver mais sangue sendo derramado naquela noite, ele pensou. Nem mesmo o de Magnus. - Pode ser
que eu esteja prestes a cometer um erro horroroso do qual me arrependerei pelo resto da vida, mas decidi aceitar essa aliança. Mas uma aliança temporária, até Amara ser tirada daqui.
Ele esperou a resposta de Ashur. A expressão do príncipe kraeshiano se manteve séria, mas ele assentiu.
- Concordo. Amara precisa perceber o que fez. Ainda que ache que estava certa, tomou o caminho errado. Farei o que puder para ajudar.
- Ótimo. - Jonas apontou para Taran, que Felix ainda segurava. - Compreendo seu luto e sua ira, mas seu desejo por vingança não tem espaço aqui.
Taran lançou um olhar feio para Jonas, segurando o braço de Felix, que apertava sua garganta como uma barra de ferro.
- Você conhecia meus motivos para vir para cá antes de sairmos de Kraeshia.
- Conhecia, mas isso não quer dizer que concordava com eles. Agora tomei minha decisão. Você não vai tentar matar o príncipe Magnus de novo. Não enquanto mantivermos essa aliança.
- Você ouviu bem com essas orelhas gastas? - Felix perguntou a Taran, a voz áspera enquanto aplicava mais força no braço. - Ou preciso repetir mais devagar?
- Abandonei uma rebelião para vir até aqui vingar meu irmão.
- Uma rebelião fadada ao fracasso antes mesmo de começar - Ashur acrescentou.
- Você não sabe.
- Sei. Não me alegra saber, mas sei. Talvez um dia o império que meu pai construiu seja destruído, mas não será logo.
- Veremos.
- Sim, veremos.
Taran lançou mais um olhar raivoso para Jonas.
- Você se uniria a eles por vontade própria?
- Sim - Jonas confirmou. - E peço que considere fazer o mesmo. Podemos precisar de sua ajuda. - Ele fez uma pausa. - Mas não me leve a mal, Taran; se tentar acabar com a vida do príncipe Magnus de novo,
vou acabar com a sua.
15
AMARA
PAELSIA
O deus do fogo tinha sido muito específico sobre o lugar aonde queria que Amara fosse para obter poder infinito. Segundo ele, era um lugar tocado pela magia. Um lugar que até os próprios imortais reconheciam
como um centro de poder.
Ela contou a Carlos sobre a mudança de planos. Não ia se mudar para o palácio limeriano. Não, seu destino ficava mais ao sul de Paelsia, próximo ao antigo complexo do chefe Hugo Basilius.
Em vez de questionar as ordens, Carlos planejou tudo no mesmo instante. Com quinhentos soldados, Amara, Nerissa, Kurtis e o capitão dos guardas viajaram ao reino central de Mítica, que a nova imperatriz
ainda não conhecia.
Pela janela da carruagem, ela via com surpresa o gelo e a neve de Limeros derreterem e darem espaço à terra seca, às florestas mortas e à escassa vida selvagem.
- Foi sempre assim aqui? - ela perguntou, assustada.
- Nem sempre, vossa graça - Nerissa respondeu. - Ouvi dizer que houve uma época, muito tempo atrás, que toda Mítica, de norte a sul, era quente e temperada, sempre verde, com pequenas mudanças de uma estação
a outra.
- Por que alguém moraria em um lugar assim?
- Os paelsianos não podem escolher seu destino e são conhecidos por se conformarem isso, como se a aceitação tivesse se tornado uma religião em si. O povo é pobre, regido pelas regras que seu ex-chefe
e o chefe antes do anterior estabeleceram. Por exemplo, os paelsianos só podem vender vinho legalmente a Auranos, e o vinho é o único produto de exportação valioso deles. Grande parte do lucro é taxado,
e essas taxas foram determinadas pelo chefe.
Sim, o vinho paelsiano era famoso pelo sabor adocicado e por sua habilidade mágica de inebriar depressa e de modo prazeroso, sem mal-estar depois.
Era o vinho que Amara tinha levado para Kraeshia para envenenar sua família.
O que quer que fosse dito sobre a bebida, ela jurava que nunca a beberia por causa da lembrança.
- Por que não vão embora? - ela perguntou.
- Para onde? Poucos teriam dinheiro para ir ao exterior, menos ainda para construir uma casa em outro lugar que não seja aqui. E os paelsianos não podem entrar em Limeros nem em Auranos sem permissão do
rei.
- Tenho certeza de que muitos vêm e vão como querem. As fronteiras não são totalmente monitoradas.
- Não, mas os paelsianos costumam obedecer às leis. A maioria dos paelsianos, pelo menos. - Nerissa recostou na cadeira, as mãos sobre o colo. - Eles provavelmente não vão lhe causar nenhum problema, vossa
graça.
Ouvir aquilo era um alívio, no mínimo, depois de tantos problemas no passado.
Amara continuou observando a paisagem árida pela janela da carruagem durante os quatro dias de viagem desde a partida da quinta de lorde Gareth, esperando ver a terra e a morte se transformarem em verde
e vida, mas isso não aconteceu. Nerissa garantiu que mais a oeste, mais perto da costa, a paisagem melhoraria, e que a maioria dos paelsianos construía casas em vilarejos naquele pedaço da terra; poucos
construíam mais perto dos picos assustadores e sombrios das Montanhas Proibidas, a leste.
Aquele era o reino mais distante da fartura de Kraeshia que ela já tinha visto, e Amara estava torcendo para não precisar passar muito tempo ali.
Na última etapa da viagem, o comboio usou a Estrada Imperial, que se estendia por Mítica de modo curioso, começando no Templo de Cleiona, em Auranos, e terminando no Templo de Valoria, em Limeros. Passava
direto pelos portões de entrada do complexo de Basilius.
Os portões estavam abertos e um homem baixo de cabelo grisalho os esperava, cercado por uma dúzia de paelsianos enormes usando roupas de couro, com cabelo preto preso em tranças minúsculas.
Quando Carlos ajudou Amara a desembarcar da carruagem, o homem fez um leve sinal com a cabeça para ela.
- Vossa graça, sou Mauro, o antigo conselheiro do chefe Basilius. Seja bem-vinda a Paelsia.
Ela olhou para o homem, bem mais baixo do que ela.
- Então, você ficou responsável por este reino depois da morte do chefe?
Ele confirmou.
- Sim, vossa graça. E estou às suas ordens. Por favor, venha comigo.
Junto com o grupo principal de guardas pessoais da imperatriz - incluindo Carlos -, Amara e Nerissa acompanharam Mauro pelos portões de pedra. Um caminho de pedra se estendia pelo vilarejo murado, levando-os
por pequenas casas de sapê parecidas com as que Amara tinha visto enquanto atravessava várias cidades antes de chegar ao complexo.
- Naquelas casas ficavam as tropas do chefe. Infelizmente, quase todos foram mortos na batalha pelo palácio auraniano. - Mauro indicava os pontos de interesse conforme caminhavam pelo complexo, que no
passado fora o lar de mais de dois mil cidadãos paelsianos.
Havia comércios que antes forneciam pão, carne, legumes e frutas, trazidos do Porto do Comércio. Mauro mostrou um espaço onde ficavam as bancas dos vendedores locais, que podiam atravessar os portões todo
mês.
Outra área, uma clareira com bancos de madeira, tinha sido usada como arena para diversão - duelos, lutas e disputas de força que o chefe costumava gostar de assistir. Outra clareira surgiu com restos
de fogueiras, onde o chefe fazia banquetes.
- Banquetes... - Amara comentou surpresa. - Em um reino como este, banquetes são a última coisa que eu esperaria de um líder.
- O chefe precisava de prazeres para abastecer a mente e conseguir explorar os limites de sua força.
- Certo - ela disse. - Ele acreditava ser um feiticeiro, não?
Mauro olhou para ela constrangido.
- Sim, vossa graça.
Para Amara, o chefe Basilius parecia um homem egoísta e pobre de espírito. Ela estava contente em saber que Gaius o havia matado depois da batalha auraniana. Se ele não o tivesse matado, ela teria feito
isso.
Apesar do calor do dia com o sol já forte, Amara sentiu a temperatura ao seu redor aumentar ainda mais.
- Sei que não parece grande coisa, pequena imperatriz, mas garanto que aqui é exatamente onde precisamos estar.
Amara não respondeu, mas reconheceu a presença de Kyan com um meneio de cabeça.
- Estamos perto do centro do poder aqui - ele continuou. - Posso sentir.
- Aqui - Mauro indicou um grande buraco no chão, com cerca de dez passos de circunferência e vinte passos de profundidade para dentro da terra seca - é onde o chefe costumava deixar os prisioneiros.
Amara olhou para dentro do buraco.
- Como eles desciam?
- Alguns eram baixados com uma corda ou escada. Outros simplesmente eram jogados. - Mauro fez uma careta. - Peço desculpas se a imagem não lhe agrada, vossa graça.
Ela o encarou com uma expressão fulminante.
- Garanto, Mauro, que provavelmente não há nada que você possa me contar sobre como os prisioneiros eram tratados que eu consideraria surpreendente ou intolerável.
- Claro, vossa graça. Peço desculpas.
Amara estava cansada dos homens e seus falsos pedidos de desculpa.
- Carlos, cuide para que meus soldados recebam aposentos adequados depois dessa longa viagem.
- Sim, imperatriz. - Carlos fez uma reverência.
- Vossa graça ficará aqui, imperatriz Amara. - Mauro indicou a construção de três andares, feita de terra e pedra, a maior e mais forte do vilarejo. - Espero que seja do seu agrado.
- Com certeza será.
- Organizei tudo para levá-la a uma feira mais tarde e mostrar o trabalho de seus novos súditos paelsianos. Há, por exemplo, alguns bordados lindos que podem ser de seu interesse. E alguns enfeites com
contas para seu belo cabelo. Uma comerciante virá da costa até aqui para trazer uma tinta de frutas silvestres que ela criou para pintar os lábios... - Mauro parou de falar ao ver a expressão contrariada
da imperatriz. - Algum problema, vossa graça?
- Você acha que estou interessada em bordados, enfeites e tintas para os lábios? - Ela esperou a resposta, mas ele só abriu a boca sem emitir nenhum som.
De trás dela, ouviu-se uma risada.
Amara virou imediatamente, os olhos fixos no guarda - seu guarda - que mantinha um sorriso no rosto.
- Está achando engraçado? - ela perguntou.
- Sim, vossa graça - o guarda respondeu.
- Por quê?
Ele olhou para os compatriotas ao redor, e nenhum deles fez contato visual.
- Bem, porque é do que as mulheres gostam: maneiras de ficarem mais bonitas para os homens.
O guarda disse isso sem hesitar, como se fosse óbvio e nada ofensivo.
- Minha nossa - Kyan disse no ouvido dela. - Que insolente, não?
Ela concordava.
- Me diga uma coisa... Você acha que eu deveria comprar tinta para os lábios para agradar meu marido quando ele finalmente voltar para mim? - ela perguntou.
- Acho que sim - ele respondeu.
- Esse é meu objetivo como imperatriz, claro. Agradar meu marido e qualquer outro homem que por acaso olhe para mim.
- Sim, vossa graça.
Era a última coisa que ele diria na vida. Amara fincou a adaga que trazia consigo no homem e viu os olhos dele se arregalarem de surpresa e dor.
- Se algum de vocês me desrespeitar - ela disse, lançando um olhar aos outros guardas que a encaravam, surpresos -, vai morrer.
O guarda que havia dito o que não devia caiu no chão. Ela sinalizou para Carlos retirar o corpo, e ele obedeceu sem hesitar.
- Muito bem, pequena imperatriz - Kyan sussurrou. - Você me prova mais seu valor a cada dia que passa.
Amara abriu um sorriso na direção de Mauro, cuja expressão era de medo.
- Estou ansiosa para ir à feira. Parece incrível.
Mais tarde, escoltadas por Mauro e pelos guardas reais, Amara e Nerissa exploraram a feira, composta por vinte bancas cuidadosamente escolhidas que, como o prometido, vendiam, em sua maioria, produtos
fúteis - principalmente itens de beleza e de moda.
Amara ignorou os lenços e vestidos bordados, a tinta para os lábios, os cremes para remover manchas e os bastões de carvão para delinear os olhos e se concentrou nos comerciantes - paelsianos, jovens e
velhos, com expressão cansada, mas esperançosa, quando ela se aproximava.
Sem medo, sem desespero, só esperança.
Que estranho encontrar isso em um reino dominado, ela pensou. Mas a ocupação kraeshiana de Mítica tinha sido, até aquele momento, quase totalmente pacífica, em espacial em Paelsia. Ainda assim, Carlos
havia contado sobre grupos rebeldes que conspiravam contra ela, tanto em Limeros quanto em Auranos.
Não era um problema para Amara. Os rebeldes eram uma praga inevitável, mas que em geral podia ser combatida com facilidade.
Ela observou quando Nerissa se aproximou de uma banca para ver um lenço de seda que o comerciante mostrava a ela.
- Fico feliz em ver que você está se habituando - Kyan sussurrou carinhosamente no ouvido dela. Os ombros de Amara ficaram tensos com a voz dele.
- Estou fazendo o melhor que posso - ela respondeu em voz baixa.
- Infelizmente tenho que deixá-la por um tempo enquanto procuro a magia de que precisamos para realizar o ritual.
Pensar nisso a assustou. Eles tinham acabado de chegar!
- Agora? Vai embora agora?
- Sim. Em breve, retomarei minha glória, e você será mais poderosa do que pensa. Mas precisamos da magia para finalizar isso.
- A magia de Lucia. E seu sangue.
- O sangue dela, sim. Mas não precisamos da feiticeira em si. Vou encontrar uma fonte alternativa de magia. Mas precisaremos de sacrifícios; sangue para selar a magia.
- Compreendo - ela sussurrou. - Quando você volta?
Amara esperou, mas não houve resposta.
Então, ela sentiu sua saia mexer e olhou para baixo. Uma menininha, que não devia ter mais do que quatro ou cinco anos, com cabelo bem preto e sardas no rosto bronzeado, aproximou-se com certa hesitação,
oferecendo uma flor.
Amara aceitou a flor.
- Obrigada.
- É você, não é? - a menina perguntou esbaforida.
- Quem você acha que sou?
- Aquela que veio salvar todos nós.
Amara sorriu e lançou um olhar para Nerissa, que estava ao seu lado usando um lenço colorido, e então sorriu para a criança.
- É o que você acha?
- Foi o que minha mamãe me disse, então deve ser verdade. Você vai matar a bruxa má que machuca nossos amigos.
Uma mulher se aproximou, claramente envergonhada, e pegou a mão da menininha.
- Perdoe-nos, imperatriz. Minha filha não teve a intenção de perturbá-la.
- Não me perturbou - Amara disse. - Sua filha é muito corajosa.
A mulher riu.
- Está mais para teimosa e tola.
Amara balançou a cabeça.
- Não, nunca é cedo demais para as meninas aprenderem a dizer o que pensam. É um hábito que as fará crescer mais corajosas e fortes. Diga, você acredita no que ela disse? Que vim salvar todos vocês?
A expressão da mulher se tornou mais séria, e seu cenho se franziu com preocupação e dúvida. Ela encarou os olhos de Amara.
- Meu povo sofreu por mais de um século. Estávamos sob o comando de um homem que tentou nos fazer acreditar que ele era feiticeiro, cobrando impostos tão altos a ponto que, mesmo com os altos lucros das
vinícolas, não conseguíamos nos sustentar. A terra que chamamos de lar está se desfazendo sob nossos pés enquanto estamos aqui conversando. Quando o rei Gaius venceu Basilius e o rei Corvin, muitos de
nós achamos que ele nos ajudaria. Mas isso não aconteceu. Nada mudou, só piorou.
- Sinto muito em ouvir isso.
A mulher balançou a cabeça.
- Mas então a senhora chegou. Aquela feiticeira má passou por aqui destruindo tudo, vilarejo por vilarejo, mas ela desapareceu quando a senhora chegou. Seus soldados têm sido rigorosos, mas justos. Eles
acabaram com quem discordava, mas essas pessoas não fazem falta: seus detratores são os mesmos homens que espalharam a discórdia em nosso reino depois que o exército de Basilius parou de oferecer a pouca
proteção que oferecia. Então, se acredito, como muitos aqui acreditam, que a senhora chegou para nos salvar? - Ela ergueu o queixo. - Sim, acredito.
Quando os guardas levaram Amara para longe da mulher e da filha, em direção à outra área da feira, aquelas palavras ficaram em sua mente.
- Posso fazer uma sugestão ousada, vossa graça? - Mauro perguntou, e ela olhou para o homenzinho que a seguia como um cão adestrado.
- Claro que pode - ela disse. - A menos que queira sugerir que eu compre tinta para os lábios.
Ele empalideceu.
- De modo algum.
- Então, vá em frente.
- O povo paelsiano está aberto a sua liderança, mas a notícia precisa ser espalhada. Sugiro abrir os portões do complexo para permitir que os novos cidadãos entrem para ouvi-la falar sobre seus planos
para o futuro.
Um discurso, ela pensou. Era algo que Gaius gostaria muito mais de fazer do que ela.
Mas Gaius não estava lá. E agora que tinha o deus do fogo para aconselhá-la sobre como acessar a magia da esfera de água-marinha, não havia mais motivos para deixar o rei viver por muito mais tempo.
- Quando? - ela perguntou a Mauro.
- Posso espalhar a notícia agora mesmo. Milhares virão dos vilarejos vizinhos para ouvi-la. Talvez em uma semana?
- Três dias - ela disse.
- Três dias parece perfeito - ele concordou. - Será maravilhoso. Muitos paelsianos, de braços e coração abertos, estão prontos a obedecer a todas as suas ordens.
Sim, Amara pensou. Um reino pronto para fazer o que ela mandasse sem questionar, que aceitaria uma mulher como líder sem discutir, seria incrivelmente útil.
16
MAGNUS
PAELSIA
Magnus pensou nas doze pessoas que estavam na hospedaria Falcão e Lança, notando que quase metade queria vê-lo morto.
- E você é uma delas, com certeza - ele murmurou quando Nic atravessou a sala, arregalando os olhos ao passar pelo príncipe. Magnus estava sozinho sentado a uma mesa com um caderno de desenho que tinha
encontrado em uma gaveta em seu quarto.
- Cassian, veja - ele disse. - Desenhei você.
Magnus ergueu o caderno. Com os dedos manchados de carvão, ele mostrou uma página na qual tinha desenhado um garoto magro pendurado em uma forca, a língua para fora da boca, X mórbidos no lugar dos olhos.
Nic, que supostamente era muito simpático com todo mundo, lançou um olhar de puro ódio para Magnus.
- Você acha isso engraçado?
- O que foi? Não gostou? Bom, dizem que a arte é subjetiva.
- Você acha que gastar seu tempo rabiscando nesse caderno vai fazer todo mundo considerar você menos ameaçador? Pense bem. Essa pose de inocente e bacana não me engana.
Magnus revirou os olhos.
- Certo - ele disse, enfiando o caderno embaixo do braço. - Mas não posso dizer que você não me magoou. Pensei que tivéssemos nos tornado amigos em Limeros.
Nic semicerrou os olhos, sem achar graça.
- A única coisa que me ajuda a dormir à noite é saber que Cleo sabe muito bem quem você é.
- Espero muito que você esteja certo - Magnus respondeu sem dar muita atenção. Ele nunca tinha deixado as palavras de Nic atingi-lo antes, e não deixaria agora, mas a questão de Cleo era um espinho. -
Acho muito interessante ver que vocês decidiram ficar aqui na cova do leão.
- Talvez você esteja enganado a respeito de quem é o leão e quem é a presa.
Magnus deu risada.
- Conversar com você é sempre muito estimulante, Nic. De verdade. Mas tenho certeza de que tem outros lugares para onde ir, e eu detestaria fazer um cara tão brilhante como você perder tempo. Sem dúvida
já atrapalhei seu próximo compromisso que é... qual é mesmo? Ficar à sombra de Ashur, à espera da maravilhosa atenção dele, agora que conseguiu voltar dos mortos? - Por ter testemunhado a morte de Ashur,
Magnus ainda estava tentando processar a informação de que ele estava vivo. - Muito triste, de verdade, que ninguém veja o que de fato está acontecendo entre o príncipe ressuscitado e o ex-cavalariço.
Foi o suficiente para fazer Nic corar.
- E o que seria, Magnus? O que você acha que está acontecendo?
Magnus fez uma pausa, encarando o olhar incerto de Nic.
- O sabor da decepção amorosa é amargo, não é?
- Imagino que você entenda bem sobre o assunto, não? - Nic rebateu. - Nunca esqueça que Cleo odeia você. Você matou todo mundo que ela ama. Roubou o mundo dela. É uma verdade que nunca vai mudar.
Lançando um último olhar, Nic saiu da sala, deixando Magnus furioso, bufando, com vontade de socar alguma coisa. Ou alguém.
Ele está enganado, ele disse a si mesmo. O passado não determina o presente.
E era no presente que ele tinha que se concentrar. Precisavam encontrar Lucia o mais rápido possível.
Por que esperar mais um dia para minha avó encontrar a pedra mágica?, ele pensou. Eles estavam ali, acovardados como vítimas, quando deveriam estar fazendo o máximo possível para tirar aquela kraeshiana
de suas terras para sempre.
Magnus empurrou o caderno de desenho para o centro da mesa e levantou. Ele ia encontrar a avó e exigir que ela - com ou sem a magia totalmente restaurada - testasse um feitiço para encontrar sua irmã.
- Está sozinho nessa sala enorme?
Ele parou ao ouvir a voz de Cleo. Ela estava na base da escada, observando-o do outro lado da sala enorme.
- Parece que sim - ele diz. - Mais um motivo para você não entrar.
Ela entrou mesmo assim.
- Parece que não conversamos a sós há muito tempo.
- Faz dois dias, princesa.
- Princesa - ela repetiu, mordendo o lábio inferior. - Minha nossa, você está fingindo muito bem. Na verdade, não sei se é só fingimento mesmo.
- Não sei ao certo do que você está falando. - Ele olhou para Cleo como um homem faminto olhava para um banquete. - Esse vestido é novo?
Ela alisou a saia de seda, da cor de um pêssego maduro.
- Olivia e eu fomos a uma feira perto das docas hoje.
- Você e Olivia fizeram o quê? - Ele franziu a testa, assustado por não saber que a princesa tinha decidido se arriscar por aí. - Que péssima ideia. Você poderia ter sido reconhecida.
- Por mais que eu goste de ser repreendida, acho que preciso dizer que ninguém me reconheceu, já que usei meu manto. E não estávamos sozinhas. Enzo e Milo estavam conosco, para nos proteger. Ashur também.
Ele está explorando a cidade para saber o que os paelsianos pensam sobre a notícia da chegada da irmã dele.
- E o que dizem?
- Ashur disse que a maioria parece... disposta a mudar.
- É mesmo?
- Qualquer coisa depois do chefe Basilius seria um progresso. - Ela hesitou. - Bem, à exceção do seu pai, claro.
- Claro. - Magnus não se importava muito com os paelsianos nem com os auranianos, na verdade. Ele só se importava com o fato de Cleo ter saído da hospedaria sem que ele notasse. - Não importa com quem
você saiu, porque ainda assim foi uma péssima ideia.
- Assim como beber até cair toda noite na taverna Videira Púrpura - ela respondeu, meio tensa. - E, no entanto, é o que você faz.
- É diferente.
- Tem razão. O que você faz é muito mais idiota e tolo do que passar o dia explorando uma feira.
- Idiota e tolo - ele repetiu, franzindo a testa. - Duas palavras que nunca foram usadas para me descrever.
- Elas são certeiras - disse Cleo, o tom firme e a testa franzida. - Quando vi você naquela primeira noite com Taran...
O som daquele nome atravessou o espaço entre eles como a lâmina afiada de um machado cortando um tronco de árvore.
- Sei que a presença dele aqui deve ser difícil para você - Magnus comentou, sentindo a garganta apertar. - Aquele rosto... Todas aquelas lembranças horrorosas que ele sugere...
- A única lembrança horrorosa de Taran que tenho é a da lâmina dele pressionada contra sua garganta. - Cleo parou, observando a expressão de Magnus e franzindo mais a testa. - Você entende que, quando
olho para ele, só vejo Theon?
- E como não veria?
- Admito que foi inesperado encontrá-lo. Mas Theon se foi. Sei disso. Já aceitei isso. Taran não é Theon. Mas é uma ameaça.
- Compreendo.
- Compreende? - Cleo continuou a observá-lo concentrada, como se fosse um enigma que ela precisasse decifrar. - Mas você pensou mesmo que eu o veria e esqueceria tudo o que aconteceu desde aquele dia?
Que o ódio que eu sentia por você voltaria a me cegar? Que eu... o quê? Me apaixonaria por Taran Ranus no mesmo instante?
- Parece mesmo um tanto quanto absurdo.
Ela ficou pensativa.
- Bom, Taran é muito bonito. Tirando o fato de querer você morto, o que é, admito, um objetivo que também já tive. Ele seria um pretendente perfeito.
- Deve ser muito divertido me atormentar.
- Muito - ela provocou, abrindo um sorriso discreto, mas levemente triste. Cleo segurou as mãos dele, e a sensação de sua pele quente junto à dele foi como um bálsamo numa ferida dolorosa. - Nada mudou
entre nós, Magnus. Saiba disso.
As palavras dela confortaram sua alma atormentada.
- Fico muito feliz em saber disso. Quando pretende contar aos outros?
No mesmo instante, a expressão dela ficou tensa.
- Não é o momento. Há muita coisa em risco agora.
- Nic é a pessoa mais próxima de você, seu amigo mais querido, e ele me odeia.
- Ele ainda vê você como um inimigo. Mas, um dia, sei que vai mudar de ideia.
- E se não mudar? - Ele a encarou nos olhos. - O que vamos fazer?
- Como assim?
- Escolhas, princesa. A vida parece cheia delas.
- Você está pedindo para que eu escolha entre você e Nic?
- Se ele se recusar a aceitar... isso, o que quer que seja, princesa, então acho que você teria que escolher.
- E você? - ela finalmente perguntou depois de um longo momento de silêncio. - Quem você escolheria se alguém ou algo o forçasse? Eu? Ou Lucia? Sei muito bem que ela foi seu primeiro amor. Talvez você
ainda a ame como antes.
Magnus grunhiu.
- Garanto a você que não existe nenhum sentimento dessa natureza entre mim e Lucia. E no que diz respeito a ela, nunca existiu.
Seu coração tinha feito tanto progresso nos últimos meses que ele se perguntava se ainda era a mesma pessoa que tinha sofrido de amor por sua irmã adotiva. Apesar de ter assumido uma forma diferente, aquele
amor ainda estava ali, dentro dele. Não importava o que Lucia pudesse fazer ou dizer, Magnus a amava incondicionalmente e estava pronto para perdoá-la por qualquer erro.
Mas o desejo que ele já sentira por sua irmã... seu coração tinha se voltado total e permanentemente para outra pessoa - alguém muito mais frustrante e perigosa do que sua irmã adotiva.
- Afinal, Lucia escolheu fugir com o tutor. - Cleo relembrou.
Ele franziu os lábios.
- Sim, e agora o destino do mundo depende da localização dela. - Cleo olhou para ele duvidosa. - O que foi, princesa? - ele perguntou. - Está em dúvida?
- Eu... - Cleo começou a falar, e então parou e olhou para os próprios pés, como se estivesse refletindo sobre o assunto. - Magnus, só não tenho certeza de que ela seja a única solução com a qual você
parece contar.
- Ela tem ligações com o deus do fogo. Acredito que saiba como extrair a magia dos cristais da Tétrade sem permitir que o deus elementar escape.
- Parece que foi ela quem ajudou Kyan a escapar, se estão viajando juntos. Só pode ser.
- Talvez. Mas a magia dela é ampla.
- Ampla o suficiente para matar todos nós.
- Você está enganada - Magnus disse sem hesitar. - Ela não faria isso. Lucia vai nos ajudar, vai ajudar a todos. - Sempre que falava bem de Lucia, ele percebia que Cleo contraía os lábios e franzia a testa
como se estivesse comendo alguma coisa amarga.
Será que ela poderia estar com ciúme do que sinto por Lucia?, ele se perguntou, achando graça.
- Vejo que você fica feliz quando pensa em sua irmã adotiva - ela comentou tensa, em um tom desagradável. - Tenho certeza de que pensar nela é uma ótima válvula de escape para você enquanto estamos presos
aqui em Paelsia, cercados por rebeldes que adorariam a oportunidade de incendiar esta hospedaria com toda a realeza dentro.
- É esse o plano abominável de Agallon? - ele perguntou, contraindo os lábios e franzindo a testa. - O que mais ele contou na calada da noite desde que chegou?
- Muito pouco, na verdade.
Magnus deu um passo na direção dela. Cleo deu um passo para trás: a dança na qual se envolviam de vez em quando. Os dois continuaram até ele encurralá-la em um canto, e ela lançar um olhar desafiador.
- Talvez você preferisse dividir um quarto com o rebelde do que comigo - ele disse, enrolando uma mecha do cabelo dela no dedo. - Mas ele provavelmente preferiria uma casa na árvore feita de tábuas e barro.
Cleo riu.
- É nisso que está decidindo se concentrar agora?
- Sim. Porque se me concentrar em Agallon, posso parar de pensar em você e em como quero levá-la para a minha cama.
Ela só teve tempo de soltar um breve suspiro antes de Magnus beijá-la, segurando-a pela cintura e puxando-a para si. Cleo retribuiu sem limitações.
As mãos dele deslizaram pelo corpo da princesa, passando pela lombar, chegando à curva de seu quadril. Desesperado para se inclinar e beijá-la direito, ele pegou suas pernas por trás e a levantou, pressionando
suas costas contra a parede.
Sim, ela deveria fazê-lo parar naquele momento.
Mas não foi o que aconteceu. Na verdade, Cleo tinha começado a puxar os cordões da camisa dele, sem afastar seus lábios nem por um segundo.
- Quero você - ele sussurrou enquanto a beijava. - Quero tanto você que posso morrer de desejo.
- Sim... - O hálito dela era doce e quente. - Também quero você.
Quando Magnus a beijou, toda a racionalidade sobre a maldição desapareceu de sua mente. Nada mais existia, só a necessidade enlouquecedora e alucinante de tocá-la, de senti-la...
Pelo menos, até ouvir passos de alguém se aproximando por trás.
Foi nesse momento que Magnus percebeu que não estavam mais sozinhos.
Deixando a princesa de volta ao chão, devagar, Magnus se forçou a se afastar e, com os ombros tensos, enfrentar o intruso.
Apesar de sua altura intimidadora e dos músculos avantajados, Felix Gaebras parecia envergonhado.
- Hum... Desculpe interromper. Eu estava... só passando. - Mas ficou parado onde estava, e então, ergueu o queixo. - Perdoe-me por dizer, vossa alteza - ele disse, olhando para Magnus -, mas talvez seja
melhor o senhor ser mais discreto com a princesa de agora em diante.
- É mesmo? - Magnus perguntou.
Felix assentiu.
- Nic convenceu a todos do seu ódio por Magnus, princesa. E isso... não me pareceu uma atitude de ódio. Ele vai enlouquecer.
Cleo se afastou de Magnus, os dedos nos lábios e o rosto corado.
- Por favor, Felix - ela disse, quase desesperada. - Prometa que não vai contar nada a Nic sobre isso. Nunca.
Felix fez uma reverência.
- Não se preocupe, princesa. Não direi nada.
- Obrigada.
Magnus disfarçou a careta. Algo no modo como ela falou, no alívio que pareceu sentir por ter sido Felix quem os vira juntos e não alguém cuja opinião considerasse mais importante, o incomodou demais.
Se Ashur podia buscar informações sobre Amara, Magnus também podia. Naquela tarde, ele deixou a hospedaria, subiu a rua até a feira que Cleo havia mencionado e passou na porta da tentadora Videira Púrpura.
Na feira, ele mal olhou para as bancas de madeira com lonas coloridas protegendo os comerciantes do sol, cada um vendendo um produto paelsiano diferente - de vinho a joias, de frutas e legumes a lenços
e túnicas de todas as cores, e diversas outras mercadorias. No movimentado labirinto de bancas, sentia-se o cheiro adocicado das frutas e da carne defumada, e mais perto das docas, o cheiro de suor e vômito
pegou as narinas de Magnus de surpresa. Entre os diversos clientes da feira, incluindo a tripulação de navios e os cidadãos comuns da cidade, vários guardas kraeshianos chamaram sua atenção.
Ele observou um dos homens de Amara conversar com um vendedor de vinho paelsiano que lhe ofereceu um pouco da bebida. O copo de madeira não foi oferecido com mãos trêmulas nem medo nos olhos do vendedor,
mas com um sorriso.
Para Magnus, era irritante ver que muitos paelsianos aceitavam o destino de se tornar parte do Império Kraeshiano sem se preocupar com nada. Será que as coisas estavam tão ruins antes que pensar em Amara
como nova líder era uma dádiva?
Ele continuou a observar essa dinâmica entre paelsianos e kraeshianos até o sol ficar alto e insuportavelmente quente para continuar com o manto com capuz. Como já havia tido contato com paisagens, sons
e cheiros bons e ruins da feira de Basilia, decidiu voltar.
Magnus virou na direção da hospedaria e descobriu que havia alguém em seu caminho.
Taran Ranus.
O príncipe se forçou a não deixar claro que encontrar o gêmeo de Theon - alguém que quase tinha conseguido vingar o assassinato de seu irmão - o tinha assustado. Mas antes que Magnus decidisse o que dizer,
Taran tomou a liberdade de falar.
- Estou curioso - ele disse em voz baixa. - Quantas pessoas você matou?
- Essa pergunta é muito pessoal para um lugar tão público.
Taran continuou, sem se deixar abater.
- Sabemos que matou meu irmão. Quem mais?
Magnus tentou não se encolher, tentou não levar a mão ao cabo da espada. A espada de Taran também estava visível, pendurada no quadril.
- Não sei ao certo - admitiu.
- Aceito uma estimativa.
- Muito bem. Talvez... uma dúzia.
Taran assentiu, sem deixar sua expressão revelar o que passava em sua mente quando olhou para a feira movimentada ao redor deles.
- Quantas pessoas você acha que eu matei?
- Mais de uma dúzia, tenho certeza - Magnus respondeu. Ele contraiu os lábios. - Por quê? Está aqui para me provocar com suas habilidades com a espada? Para contar histórias de como fez homens maus chorarem
chamando pela mãe diante da morte? Que mataria mais mil se isso fizesse o sol brilhar e a felicidade imperar nesse mundo?
Taran observou Magnus, semicerrando os olhos. Para alguém que quase tinha posto a hospedaria a baixo em uma noite para tentar cortar o pescoço de Magnus, ele parecia bem calmo naquele dia.
- Você se arrepende de ter matado meu irmão? - ele finalmente perguntou, ignorando as perguntas de Magnus.
Magnus pensou em mentir, sem saber se deveria fingir arrependimento. Mas sua intuição lhe disse que não conseguiria enganar o gêmeo de Theon.
- Não - ele afirmou com o máximo de confiança que conseguiu. - Minha vida estava em risco. Tive que me proteger de alguém muito mais habilidoso com a espada do que eu era na época, por isso agi. Não posso
dizer que me arrependo de ter tomado as medidas necessárias para salvar minha vida, apesar de saber que hoje não faria as escolhas que fiz naquele momento.
- Qual escolha faria hoje?
- Combate direto. Minhas habilidades de luta melhoraram muito no último ano.
Taran assentiu, mas seu rosto não deixou transparecer nada.
- Meu irmão teria vencido você.
- Talvez - Magnus disse. - Mas e daí? Imagino que você esteja aqui para tentar me matar diante dessas pessoas. É isso? Ou estamos só conversando?
- Foi exatamente para isso que o segui até aqui: quero decidir o que fazer. Antes era muito simples, estava muito claro em minha mente que você tinha que morrer.
- E agora?
Taran puxou a espada da bainha, mas só o suficiente para mostrar a lâmina que trazia uma série de símbolos e palavras desconhecidas gravadas na superfície.
- Essa era a arma de minha mãe. Ela me contou que as palavras gravadas estão na língua dos imortais.
- Interessante - Magnus disse, o corpo tenso e pronto para a luta. - Sua mãe era bruxa?
- Sim. Ela era uma Vetusta, uma bruxa que adorava os elementos com magia de sangue e sacrifício.
- Tenho certeza de que você está me contando isso por um motivo.
- Estou. Pedi para você adivinhar quantas pessoas eu matei. - Taran embainhou a espada. - A resposta é uma. Apenas uma.
Uma gota de suor correu pelas costas de Magnus.
- Sua mãe.
Taran assentiu com seriedade.
- As Vetustas acreditam que os gêmeos têm uma magia poderosa. - Ele balançou a cabeça, franzindo a testa. - Existe uma lenda quase esquecida que diz que os primeiros imortais criados foram os gêmeos: um
escuro e um claro. Minha mãe acreditava que a magia sombria era muito mais poderosa, então, para aumentar a dela, decidiu sacrificar o gêmeo claro.
- Theon.
- Na verdade, não. Fui eu, cinco anos atrás, quando tinha quinze anos. Talvez minha mãe achasse que eu fosse permitir que ela usasse essa mesma espada para me matar, mas estava enganada. Eu reagi e a matei.
Theon chegou naquele momento e me viu empunhando uma espada e nossa mãe morta a meus pés. Ele não sabia o que ela era de verdade. Eu mesmo só descobri a verdade recentemente. Ele jurou que eu pagaria com
a vida por tê-la matado, e eu sabia que ele nunca compreenderia. Então corri o máximo que pude, sem olhar para trás. Até agora. - Ele riu, e o som saiu seco e oco. - Parece que temos isto em comum: nós
dois fomos forçados a matar para nos proteger, uma atitude da qual não podemos nos arrepender, porque, sem ela, não estaríamos vivos hoje.
Magnus não sabia o que dizer. A confissão de Taran o deixou sem fala. Ele se concentrou na movimentação da feira, fechando os olhos com força por um momento.
Quando voltou a abri-los, Taran se afastava dele em meio à multidão. Ele o observou à distância, pensando na conversa e sentindo-se grato por não ter tido que lutar para defender a própria vida naquele
dia.
Quando voltaram para a hospedaria, Jonas estava na sala de convivência, como se os estivesse esperando. Ele levantou da cadeira e largou o livro que estava lendo. Magnus notou com surpresa que era o mesmo
que tinha lido, sobre vinhos.
- Taran, precisamos conversar - Jonas anunciou. - No pátio não seremos ouvidos por bisbilhoteiros. Felix já está esperando. Você também, vossa alteza.
Magnus inclinou a cabeça.
- Eu?
- Foi o que eu disse.
- Agora estou profundamente confuso. Muito bem. Vamos lá, rebelde.
Atrás da casa havia um espaço a céu aberto que o dono da hospedaria e sua esposa chamavam de pátio. Na verdade, era uma área de grama marcada por uma horta, flores e dois cercados para os animais - um
para as galinhas e outro para os porcos gordos que guinchavam alto quando alguém se aproximava.
Magnus e Taran acompanharam Jonas até onde Felix estava, no canto oposto do jardim.
- Temos informação sobre Amara - Jonas disse finalmente. - Ela está aqui em Paelsia.
Magnus tentou não demonstrar insatisfação.
- Informação vinda de quem?
- Há rebeldes por todos os lados, alteza.
O primeiro ímpeto de Magnus foi querer lembrar Jonas que a maioria dos rebeldes havia morrido, mas decidiu se controlar.
- Muito bem. Onde em Paelsia?
- No complexo do chefe Basilius.
- E onde, exatamente, é isso?
- A um dia de viagem daqui rumo ao sudeste. Fico surpreso por você não saber, já que é um ponto importante na Estrada de Sangue de seu pai.
- Estrada Imperial - Magnus o corrigiu.
- Estrada de Sangue - Jonas repetiu, rangendo os dentes.
Magnus decidiu não discutir a questão com um paelsiano, nem tocar no assunto de como ela tinha sido construída tão depressa pelos trabalhadores paelsianos sob ordens de seu pai. Não era à toa que os cidadãos
daquele reino tinham recebido Amara tão bem.
- E esse informante também explicou por que ela veio para cá?
- Não.
- Não importa por que ela está aqui - Felix disse. - Essa é nossa chance.
- De quê? - Magnus perguntou. - De matá-la?
- Essa era a ideia.
- Não era, não - Jonas disse, arregalando os olhos para o amigo.
- Matar a imperatriz não muda o fato de que meu pai deu este reino para a família dela. Não muda que os soldados estão tão espalhados quanto manchas de lama. E Ashur? Você o trouxe aqui como se confiasse
nele, mas não sabemos qual é o plano dele.
- Ashur é um problema, admito - disse Jonas. - Nic está de olho nele, informando qualquer comportamento incomum.
- Ah, sim. - Magnus cruzou os braços. - Isso deve dar certo. Então, você - ele virou para Felix - quer matar a imperatriz. E você - ele virou para Jonas - quer pagar para ver. - Ele assentiu. - Excelentes
decisões. Acho que Amara não terá chance contra essa aliança.
Jonas hesitou.
- Taran, você não planejava matá-lo?
- Sim.
- Estou começando a me animar com essa possibilidade.
- Está claro que - Magnus começou -, se sabemos onde Amara está, a melhor estratégia é mandar homens para obter mais informações sobre os planos atuais dela, por que está aqui e onde escondeu o cristal
da água.
Taran resmungou.
- Odeio concordar com ele, mas concordo. Posso ir. Não tenho motivos para ficar aqui sem nada para fazer, olhando para as paredes.
- Também vou - Felix anunciou animado.
Jonas lançou um olhar cauteloso para Felix.
- Você acha que consegue lidar com isso sem fazer nada de errado?
- Claro que não. Mas ainda assim, quero ir. - Felix suspirou. - Prometo que vamos conseguir informações. E só isso.
Magnus preferia entrar em ação, como Felix, e simplesmente varrer Amara do mundo, mas sabia que informações seriam úteis com os dois reinos em guerra.
- Devemos contar a Cleo sobre isso? Ou a Cassian?
- Por enquanto, não - Jonas respondeu. - Quanto menos pessoas souberem, melhor.
Magnus não gostava de guardar segredos de Cleo, mas Jonas tinha razão.
- Tudo bem. Vamos manter esse assunto entre nós quatro.
Jonas assentiu.
- Então, resolvido. Taran e Felix partem amanhã cedo.
17
CLEO
PAELSIA
- Você viu o príncipe Ashur por aí? - Nic perguntou.
Cleo desviou o olhar do livro sobre a vida do chefe Basilius que tinha escolhido na estante do andar de baixo. Seus pensamentos estavam tão dispersos que ela devia ter lido a mesma página dez vezes - que
contava sobre os cinco casamentos dele.
Nic estava parado na porta do quarto dela. Enzo estava de guarda do lado de fora, um protetor constante, mas ela tinha deixado claro que Nic podia interrompê-la.
- Hoje não - ela admitiu, ainda chocada por ter visto que o príncipe tinha renascido dos mortos. - Por quê? Isso é estranho?
- Ele gosta de sair por aí sem avisar ninguém. - Ele ficou sério. - Você acha que ele está diferente? Não sei dizer.
- Para mim, ele está igual, mas não o conheço muito bem - ela admitiu.
- Nem eu.
- Ah, não sei. Às vezes não precisamos de anos para conhecer alguém. Algumas conversas são mais do que suficientes para saber como a pessoa é.
- Se você acha...
Cleo sabia que Nic e Ashur eram bem próximos, a ponto de seu amigo ter sentido muito a perda do príncipe. E também sabia que existia mais do que uma simples amizade entre os dois, mas emoções que os dois
estavam apenas começando a explorar. Talvez agora nunca mais se resolvessem.
- Parece que Taran e Felix também sumiram - ela disse. - Onde eles estão?
- Ótima pergunta. Pensei que Jonas fosse meu parceiro, mas parece que ele tem negócios com Magnus agora.
- O quê? - Só de pensar, ela sentiu vontade de rir. - Se você viu os dois conversando, é bem provável que o assunto seja o rei.
Desde que Jonas conseguira - ainda que não tenha conseguido - cravar a adaga no peito do rei, dois dias antes, Gaius não saía do quarto, com a mãe a seu lado o tempo todo, temendo que o filho estivesse
perto demais da morte e não sobrevivesse tempo suficiente para receber a magia secreta e restauradora que ela prometera.
Cleo temia que, se o rei morresse antes de a bruxa encontrar Lucia, ela se recusaria a ajudá-los, mas não se incomodava em imaginá-lo sofrendo em um quartinho em Paelsia.
Um fim adequado para um monstro.
Como será que Gaius Damora era quando conheceu a mãe dela? A que horrores ele teria submetido Elena Corso? Era uma pergunta que a perseguia desde que ele dissera o nome dela.
- Você confia nele? - A voz de Nic interrompeu seus pensamentos.
- Em quem? Magnus?
Ele riu.
- Não, claro que não estou falando de Magnus. Em Jonas.
Ela confiava em Jonas, o garoto que a tinha sequestrado e aprisionado - não uma, mas duas vezes - e que, em determinado momento, quis que ela morresse por presenciar o assassinato de seu irmão?
Mas também era o garoto que se tornara um líder. Que lutara por seu povo. O garoto que tinha arriscado a própria vida para salvar a dela.
- Confio nele, sim - ela admitiu.
Muita coisa podia mudar em um único ano.
- Eu também - Nic disse.
Ela assentiu.
- Se ele está falando com Magnus, deve ser importante.
- Ainda assim, não gosto de pensar que esteja escondendo alguma coisa de nós.
Cleo também não gostava, principalmente se fosse um segredo entre Jonas e Magnus. E jurou que conseguiria algumas respostas. Ela não gostava de ficar por fora das questões.
Naquele mesmo dia, a chance apareceu. Quando Magnus pediu para falar com Enzo no pátio, ela começou a procurar informações por conta própria na hospedaria. Logo encontrou algo possivelmente interessante
na sala de convivência: o caderno de desenho de Magnus.
Cleo já tinha visto Magnus desenhando nele, os dedos pretos por causa do carvão. Os limerianos não gostavam tanto de arte quanto os auranianos, que viam a beleza como um presente que o artista compartilhava
com o mundo por meio de sua visão singular. Mas quando um limeriano desenhava, precisava ser bem semelhante ao original para ajudar na referência e no aprendizado.
Para isso, Magnus tinha passado um verão tendo aulas de arte na Ilha de Lukas muitos anos antes, uma viagem que muitos nobres e jovens da realeza - incluindo a mãe e a irmã de Cleo - faziam na juventude.
Ela já tinha visto o antigo caderno de Magnus, no qual havia desenhos incrivelmente detalhados da flora e da fauna... além de vários retratos de Lucia, cada um feito com admiração indiscutível e atenção
a cada centímetro do rosto perfeito da irmã.
Mas aquele era um caderno novo, o que deixou Cleo extremamente intrigada.
- Eu não devia olhar - ela disse a si mesma. - Magnus não me deu permissão.
Mas esse argumento nunca tinha funcionado.
O primeiro desenho era do jardim, um rascunho rápido, mas as dimensões e a precisão eram espantosas. Antes de abandonar aquele desenho, ele tinha se concentrado no detalhe de uma roseira, e mesmo com o
traço grosso do carvão, tinha capturado a beleza em tons de preto e cinza.
A segunda, a terceira e a quarta páginas tinham sido arrancadas sem cuidado.
Na quinta página, não havia um desenho, mas uma mensagem.
Espiando para encontrar um retrato seu, princesa? Desculpe, mas hoje não. Talvez um dia eu desenhe você. Ou talvez não. Vamos ver o que o futuro nos reserva.
M.
Cleo fechou o caderno envergonhada, e também irritada.
Quando ouviu gritos, correu para as janelas com cortinas de lona grossa que davam para o pátio nos fundos da hospedaria.
O príncipe estava empunhando a espada, mirando em Milo e Enzo, que também seguravam suas armas. Quando atacaram, Cleo soltou um grito de susto antes de perceber o que estava acontecendo.
Eles estavam treinando. E a julgar pela força de ataque de Milo e de Enzo, Magnus tinha pedido para os dois darem o melhor de si.
Será que ela nunca tinha visto Magnus assim antes, em guarda, a testa suada, bloqueando as armas dos guardas com a espada? Ela pensou que aquilo podia trazer lembranças horrorosas daquele dia - do dia
em que perdera Theon. Mas naquela visão Magnus era um príncipe sem habilidade comparado a um guarda do palácio, e ele sabia disso.
Sinto muito, Theon, ela pensou, o coração apertado. Não esperava sentir isso por Magnus. Mas sinto. Não posso mais me apegar à sua lembrança. Não posso odiar o príncipe pelo que aconteceu, pelo que ele
fez naquele dia. Magnus está muito diferente agora.
Ou talvez Cleo tivesse mudado irreversivelmente.
- Na minha opinião, não estão lutando tanto quanto deveriam.
Cleo se assustou com a voz de Jonas. Ela o viu a seu lado, escondido até aquele momento, com os olhos arregalados.
- Está surpresa? - ele perguntou, achando graça.
- Você se aproximar de alguém em uma sala escura com certeza não é uma surpresa, rebelde.
Jonas sorriu, mas voltou a observar o trio do lado de fora.
- Será que o príncipe estaria disposto a me enfrentar?
- Se estivesse, certamente um de vocês acabaria morto.
- Sim, mas quem? - Sua sobrancelha, que estava arqueada, abaixou quando ele viu a expressão sofrida dela. - Em pouco tempo você estará livre desse acordo infeliz com ele, prometo.
Cleo conteve a resposta, tomando cuidado para não defender o príncipe. Ela ainda achava que era melhor ninguém saber a verdade sobre eles.
- Magnus, o rei e Selia são o caminho para as respostas de que preciso para liberar a magia da Tétrade - ela comentou.
- Eu já disse: tem um deus elementar dentro daquele cristal - ele falou de modo incisivo.
Seu tom de voz a fez se encolher. Depois que descobriu sobre os deuses elementares, dois dias antes, ela não conseguia parar de pensar no assunto e mal tinha pregado os olhos devido à gravidade da situação.
- Se tivermos a oportunidade de aproveitar essa magia sem deixar o deus escapar, ainda acho que é um objetivo que vale a pena buscar. Vamos perder muito se não conseguirmos esse poder para nos ajudar de
alguma forma, ainda que seja pouco.
Quando ela encarou Jonas, viu uma expressão séria, mas os olhos mais tranquilos.
- Não discordo totalmente.
Ela hesitou, mas só por um momento.
- É bom que saiba que, de acordo com Nic, você está escondendo dele a localização de Taran e Felix. Ele está bastante irritado com isso.
- Comecei a acreditar que o príncipe Ashur é tão mau quanto a irmã. Nic o conhece, mas não diz nada útil a respeito do que esperar dele. Gosto de Nic, mas não conto nenhum segredo que ele possa acidentalmente
revelar ao príncipe.
Outra pessoa entrou na sala e chamou a atenção de Cleo. Era Ashur, poucos metros atrás de Jonas.
- Jonas... - ela começou.
- Ashur diz que é um herói lendário renascido dos mortos para trazer paz ao mundo. Um monte de besteira. Ele não passa de mais um membro mimado da realeza criado com todas as regalias possíveis que só
precisa estalar os dedos para ter qualquer mulher linda que desejar. - Jonas franziu a testa. - Admito que isso seria uma vantagem.
Cleo limpou a garganta quando Ashur cruzou os braços diante do peito e inclinou a cabeça.
- Acho que você deveria... - ela começou.
- O quê? Falar com gentileza sobre alguém que confunde todo mundo porque está confuso em relação à irmã má e gananciosa que provavelmente vai destruir o mundo com sua sede por poder e magia? Ele poderia
tirar o poder dela com facilidade. Poderia se impor, reclamar o título de imperador, contar para todo mundo que Amara matou a família deles. Pronto.
Ela sentia uma pontada no peito a cada palavra verdadeira, mas mordaz, que Jonas dizia.
- Pode ter certeza de que não fico confuso quando se trata de Amara - Ashur disse em voz baixa.
Jonas fez uma careta.
- Você poderia ter me dito que ele estava bem atrás de mim, princesa.
- Você estava ocupado demais admirando o som da própria voz. - E, para ser sincera, as reclamações de Jonas sobre Ashur tinham reacendido a irritação que ela mesma sentia em relação ao príncipe kraeshiano.
Não, não era irritação. Era raiva, beirando a fúria.
- Espero que não esteja confuso em relação a sua irmã - Cleo falou para Ashur. - Ela cravou uma adaga em seu peito por tê-la contrariado.
- As últimas atitudes de Amara foram infelizes, mas eu já sabia que ela estava tomando esse rumo. Na verdade, culpo minha avó por colocar seus próprios planos de revolução em ação. É irônico que minha
madhosha derrube aqueles que também querem mudança no império. Ela tem muito mais em comum com os rebeldes do que pensa.
Cleo ficou olhando para ele, enojada.
- Infelizes... Você chama as escolhas de Amara de infelizes? Ela matou você, matou a própria família, e agora está matando todos os míticos que vê pela frente!
- Ela perdeu as estribeiras. A irmã que conheço, que eu conhecia, não resolve seus problemas com violência desnecessária.
- Sim, claro, os kraeshianos são conhecidos como um povo pacífico.
Ashur a observou atentamente.
- Você está infeliz comigo.
Ela olhou para Jonas e riu um pouco.
- Príncipe Ashur, por que eu estaria infeliz com você?
- Você é como Jonas. Não confia em mim.
- E deveríamos confiar? - Jonas perguntou. - Você não me conta nenhum de seus planos, desaparece por dias, fica isolado... Acha que eu deveria confiar em você mesmo assim?
- Você poderia tirar o trono de Amara - Cleo disse. - Se está tão interessado em ajudar o mundo, pode acabar com muito sofrimento simplesmente tornando-se imperador. Você é mais velho do que Amara. O trono
é seu por direito. Tem tanto medo dela assim?
Ashur riu com frieza ao ouvir aquilo.
- Não tenho medo de Amara.
- Teve medo suficiente para, supostamente, tomar uma poção para salvar sua vida - Jonas disse. - Sabia que ela planejava matá-lo?
O belo rosto de Ashur ficou sério.
- Eu não sabia. Não com certeza. E a poção que tomei... foi bem antes de minha viagem para, acima de tudo, me proteger do rei Gaius, caso ele tentasse usar minha presença em seu reino contra meu pai. Eu
nem imaginava que a poção funcionaria.
- Mas funcionou - Jonas disse. - Precisamos encontrar esse boticário ou essa bruxa ou quem quer que a tenha feito. Poções de ressurreição para todos. Magia assim poderia salvar muita gente.
- A magia da morte não é algo que se possa alterar - Ashur rebateu. - Não por qualquer motivo.
- Mas você alterou essa magia sombria para se salvar. - Cleo teve certeza de que o príncipe se encolheu diante da acusação, o que era incomum para ele. - Você se sente culpado por isso?
- Claro que não. - Apesar da resposta, Ashur não fez contato visual com ela.
- Chega de mentiras, Ashur. Se está tentando dar a impressão de que estamos todos do mesmo lado, precisa ser sincero conosco. Há mais coisas envolvidas nessa poção do que você quer revelar. Ela é perigosa,
não é?
- Muitas poções são perigosas. O veneno nada mais é do que uma poção com a intenção de matar.
Cleo inspirou e soltou o ar devagar, com a sensação de que estava prestes a descobrir um segredo.
- Aprendi que toda magia tem um preço. Que preço você pagou pela oportunidade de viver de novo?
- Aprendi que o preço da magia costuma ser o oposto da magia em si. Para ter muita força, você viverá momentos de grande fraqueza. Para ter prazer, haverá dor. E para ter vida... haverá morte.
- Então você matou alguém - Jonas disse, os braços cruzados e tensos. - Ou muitas pessoas. Acaba aqui o que você diz sobre altruísmo.
Ashur caminhou até a janela para olhar para fora, os braços cruzados.
- Você não sabe nada sobre mim, Jonas. Matei quando precisei. Nem sempre sou pacifista. O boticário me alertou do preço que eu teria que pagar, mas não acreditei. Amara pagou o mesmo preço, mesmo sem querer,
quando a ressuscitaram.
Cleo franziu a testa.
- Amara foi ressuscitada?
- Foi - Ashur respondeu solenemente, e então começou a contar para Cleo e Jonas o que tinha acontecido quando Amara era bebê e tinha sido salva de um afogamento pela magia negra e pelo sacrifício de sua
mãe.
Cleo percebeu que precisava sentar, pois tinha ficado abalada com a história. Em Auranos - e em Mítica -, apesar de serem valorizadas pela habilidade que tinham como mães, cozinheiras e enfermeiras, as
mulheres não eram impedidas de fazer outras coisas, se assim desejassem. E uma princesa podia ser a herdeira do trono do pai ou da mãe sem medo de ser assassinada apenas pelo suposto crime de ser uma mulher.
Cleo não sabia se admirava a mãe de Amara por valorizar a vida da filha o suficiente para sacrificar a própria vida ou se culpava a mulher por sua filha ter se tornado um monstro.
- Quem morreu por você? - Cleo perguntou em voz baixa.
O olhar distante de Ashur ficou sério, e antes de continuar, ele lançou um rápido olhar para Jonas.
- Eu não tinha certeza, mas sabia que alguém tinha morrido. Passei o mês tentando descobrir. Viajei, visitei amigos e ex-amantes. Foi alguém com quem passei um único verão. Eu não fazia ideia de que ele
ainda gostava de mim, de que nunca havia deixado de gostar... - Ele engoliu em seco. - De todas as pessoas que conheci, alguém que conviveu comigo apenas por alguns meses me amou tanto a ponto de morrer
por esse amor. Não consigo entender. Eu sabia o preço, mas o ignorei por egoísmo. Soube que ele sofreu por vários dias. Ele descreveu a dor como uma faca sendo cravada lentamente em seu peito. Me disseram
que nos últimos momentos, ele gritou meu nome. - Ashur ficou com os olhos azul-acinzentados marejados e respirou fundo. - A culpa que sinto pelo sofrimento, pela morte dele e pelo fato de eu ter apagado
qualquer chance que ele tinha de ter uma vida plena e feliz... isso vai me assombrar para sempre.
A sala ficou em silêncio enquanto Cleo tentava processar o que estava ouvindo. Aquele Ashur parecia mais o homem sincero que tinha oferecido, na noite de seu casamento, uma adaga nupcial kraeshiana para
tirar a vida da noiva infeliz ou de seu marido. Aquele Ashur não estava falando coisas confusas para desviar a atenção de seu sofrimento.
Mas, naquele momento, uma ideia lhe ocorreu.
- É por isso que você anda tão estranho com Nic - ela disse. - Ele não entende, acha que você está diferente, que seus sentimentos por ele mudaram, por tudo. Mas ele está enganado, não está?
Ashur não respondeu, mas olhou para baixo.
- Você teme que ele se apaixone por você e que você o machuque por causa desse amor.
Jonas ficou em silêncio, a testa franzida. Cleo esperava que ele não dissesse nada que fizesse o príncipe omitir a verdade.
- Eu tinha outros planos na ida a Auranos - Ashur disse finalmente. - Não queria que nada disso tivesse acontecido. Mas alguma coisa em Nicolo chamou minha atenção e eu não pude ignorar. Sei que deveria
ter ignorado. Só consegui complicar a vida dele e causar dor desnecessária. Mas agora não vou permitir que nada de ruim aconteça com ele por cometer o erro de gostar de mim.
- Nic merece uma explicação - Cleo disse, com um nó na garganta.
- É melhor que ele pense que meus sentimentos mudaram. - Ashur limpou a garganta. - Se me dão licença, acho que já revelei mais do que pretendia.
Cleo não disse nada para impedi-lo de sair. Ela estava pensando em muitas coisas ao mesmo tempo; algumas se conectavam, mas a maioria só aumentava sua confusão.
Por fim, ela olhou para Jonas.
- Então... - ele disse, ainda franzindo a testa. - Nic e Ashur, certo?
Ela assentiu devagar.
- Estranho... Pensei que Nic gostasse de garotas. De você, em especial. Não costumo me enganar com essas coisas.
- Você não está enganado. Ele gosta de garotas.
- Mas Ashur... - ele olhou para a porta - não é uma garota.
- Não fique pensando sobre isso, rebelde. Pode fundir seu cérebro. Saiba apenas que é complicado.
- E todas as coisas não são complicadas? - Jonas sentou ao lado dela. - Agora que conheço o segredo de Ashur e sei que não se trata de uma ameaça pessoal a você nem a mim, preciso me concentrar em pegar
a esfera que o rei escondeu. Você acha que está aqui na hospedaria?
- Nem imagino. Gostaria de saber. Eu ia dizer que... para liberar a magia precisamos do sangue de Lucia e do sangue de um Vigilante.
Surpreso, ele a encarou.
- Esse é o segredo?
Cleo assentiu.
- Isso impede o deus de sair?
- Não sei. Por isso é tão importante encontrarmos Lucia, descobrir mais informações com ela e o que deu errado com Kyan.
Os olhos castanhos de Jonas pareciam distantes.
- A profecia...
- O quê? - Cleo perguntou quando ele ficou em silêncio.
Ele balançou a cabeça.
- Deixa para lá. Conto mais quando descobrir se é verdade ou não.
- O problema é que não sei como encontrar um Vigilante. - Ela mordeu o lábio. - Claro que ainda deve haver alguns Vigilantes exilados vivos, mas acho que precisa ser um Vigilante pleno. Espero que Lucia
se disponha a ajudar quando chegar o momento.
- Não se preocupe em encontrar um Vigilante. - Ele ficou em silêncio por um momento. - Essa parte eu resolvo.
Ela olhou para ele, surpresa.
- Como?
- Olivia - ele sussurrou. - Ela é.
Cleo ficou boquiaberta.
- Você não pode estar falando sério.
- É outro segredo, mas vou confiar que você não vai contar a ninguém. - Jonas abriu o meio sorriso que ela sempre achou charmoso e frustrante, ao mesmo tempo. - Muita coisa foi sacrificada nesse caminho
que percorremos juntos. Muita perda para nós dois. Mas tento acreditar que sempre vai valer a pena, no fim.
Ela assentiu.
- Eu também.
- Acho que você precisa saber que a Lys gostava de você.
- Agora você está mentindo.
- Pode ser que nem ela soubesse, mas sei que ela respeitava você mais do que você pensa. Vocês têm uma coisa em comum: força. - A voz de Jonas falhou. - Só demonstram de jeitos diferentes.
Os olhos de Cleo começaram a arder ao ver Jonas se esforçando para não deixar as lágrimas escorrerem.
Ela segurou as mãos do rebelde, puxando-o para mais perto.
- Sinto muito por sua perda, Jonas. Estou dizendo isso do fundo do coração.
Ele só assentiu, olhando para baixo.
- Ela me amava. Só me dei conta disso quando já era tarde demais. Ou talvez eu tenha percebido e não estivesse pronto para aceitar. Mas agora eu entendo... Ela era perfeita para mim.
- Tenho que concordar.
- Poderíamos ter construído uma vida juntos. Uma casa, talvez até uma quinta. - Jonas sorriu de novo, mas um sorriso mais triste. - Filhos. Um futuro. Quem sabe o que poderia ter acontecido? Só tenho certeza
de uma coisa.
- De quê?
- De que Lys merecia alguém bem melhor do que eu.
- Não tenho a menor dúvida em relação a isso - Cleo concordou, satisfeita ao ver que a expressão surpresa de Jonas conseguiu apagar a dor em seus olhos. Ela abriu um sorriso caloroso. - Minha irmã acreditava
que quem morre se torna uma estrela no céu. Então todas as noites podemos olhar para cima e saber que estão cuidando de nós.
Ele parecia desconfiado.
- Isso é uma lenda auraniana?
- E se for?
Uma mecha do cabelo dela tinha caído sobre a testa, e Jonas a ajeitou atrás da orelha e deslizou a mão por seu rosto.
- Nesse caso, gosto de lendas auranianas.
Cleo encostou a cabeça no ombro dele, e os dois ficaram ali, confortando um ao outro. Havia uma ligação entre eles - algo muito forte que ela nunca havia conseguido ignorar. E houve uma época, não muito
tempo atrás, em que ela poderia ter amado aquele rebelde do fundo do coração.
E ela o amava, sim, mas não como Lysandra o havia amado.
Independentemente do que acontecesse, o coração de Cleo pertencia a outro.
18
MAGNUS
PAELSIA
Ficou claro para Magnus que Enzo e Milo estavam se controlando na luta, com receio de ferir um príncipe. Magnus deixou os dois sangrando como punição e voltou para a hospedaria, sentindo uma grande necessidade
de desenhar.
Ele parou na porta quando viu Jonas e Cleo na sala de convivência. Os dois estavam sentados próximos um do outro, falando baixo. Magnus se aproximou para ouvir, mas só conseguiu ver o rebelde acariciar
o cabelo de Cleo, sem que a princesa reclamasse, e, logo depois, seu rosto. Os dois se entreolharam por mais tempo do que o normal.
Magnus ficou muito irritado.
Por um lado, queria entrar ali com tudo, afastá-los e matar o rebelde antes de tirar Cleo da hospedaria e de perto dele para sempre.
Seu lado mais racional dizia que nem tudo o que via era o que imaginava e que ele não deveria tirar conclusões precipitadas.
Ainda assim, se entrasse ali e confrontasse os dois, alguém com certeza morreria.
Então ele saiu da hospedaria e desceu a rua até a taverna, resmungando ao pedir vinho ao taberneiro. Magnus perdeu a conta de quantas taças de vinho teve de beber até começar a se acalmar.
Já sabia que a princesa gostava do rebelde, que os dois tinham uma história romântica sobre a qual não queria pensar muito. Por que ela não desejaria alguém como Jonas? Alguém corajoso e forte - apesar
de pobre, ridículo e muito azarado com todos os que já tinham se alistado sob sua liderança rebelde.
Magnus também conseguia entender que alguém como Jonas, que olhava para a princesa como se ela fosse uma estrela brilhante na noite escura, podia ser tentador. Pelo menos quando comparado a Magnus, que
era sombrio, instável e afeito à violência.
Ele encarou a taça vazia.
- Com um milhão de outros problemas e questões para resolver, estou obcecado pensando por quem ela tem sentimentos. - Ele olhou meio embriagado para o atendente. - Por que meu copo está vazio?
- Peço desculpas. - O homem logo encheu a taça até transbordar.
Alguém sentou no banco de madeira a seu lado. Ele estava prestes a vociferar que precisava de espaço e que se o homem valorizava a própria vida, deveria ir para outro lugar, mas então percebeu quem era.
- O vinho nunca ajuda uma pessoa a esquecer suas preocupações por muito tempo - seu pai disse, o rosto pálido e macilento como o de um cadáver por baixo do capuz grosso de seu manto preto.
Como o rei tinha se isolado em um quarto no andar superior da hospedaria desde a noite da chegada, foi uma surpresa vê-lo ali. Magnus observou ao redor para ver se ele tinha trazido Milo para protegê-lo,
mas não viu o guarda em nenhum lugar. Talvez ainda estivesse tratando os ferimentos depois da luta.
Magnus ignorou o comentário do rei e tomou todo o vinho do copo antes de falar.
- Selia sabe que você está aqui? Não acho que ela aprovaria.
- Ela não sabe. Sua preocupação com minha morte iminente me tornou seu prisioneiro. Não ligo muito para isso.
- Não liga para a preocupação com sua morte iminente ou com o fato de ter sido feito prisioneiro? Não precisa responder. Tenho certeza de que as duas experiências são novas para você. - Magnus pegou o
vinho do atendente, e mandou o homem se afastar com um aceno. Então bebeu direto da garrafa.
- Antigamente, me rendia a pecados assim - o rei comentou.
- Ao vinho ao à forte autopiedade?
- Você está tendo problemas com a princesa?
- Aposto que isso o deixaria muito feliz, não?
- Saber que você deseja se afastar de alguém que acho que causará sua destruição? "Feliz" não seria bem a palavra que eu escolheria, mas, sim. Seria o melhor.
- Não vou falar sobre Cleo com você, nem agora nem nunca - Magnus resmungou, detestando o fato de sua mente estar tão nebulosa com o pai por perto. Ele preferiria ter controle total dos sentidos, mas era
tarde demais para se preocupar com isso depois de tomar tanto vinho.
- Escolha inteligente - o rei respondeu. - Ela sem dúvida não é meu assunto preferido.
- Esse ódio que você nutre por ela... - O príncipe pensou no assunto, no ódio aparentemente sem fim que o rei sentia por Cleo. - Deve ter a ver com a mãe dela, não?
- Sim, na verdade, tem.
Uma resposta direta. Que incomum - e profundamente curioso.
- Rainha Elena Bellos - Magnus continuou, encorajado pelo vinho que soltava sua língua. - Vi o retrato dela no palácio auraniano antes de você destruí-lo. Era uma bela mulher.
- Com certeza era. - O rei deu as costas e olhou com saudosismo para a rua escura pelas janelas da taverna. Magnus viu quando os lábios pálidos e fantasmagóricos sorriram discretamente.
Perceber a situação mexeu com ele.
- Você era apaixonado por ela - Magnus disse, chocado com as próprias palavras, mas sabendo que eram verdade. - Você era apaixonado pela mãe de Cleo. - A acusação fez o rei encará-lo de novo, os olhos
vermelhos um tanto arregalados, surpresos. Magnus demorou um pouco para assimilar a confirmação silenciosa e tomou mais um gole de vinho para molhar a garganta repentinamente seca. - Deve ter sido há muito
tempo, quando você era capaz de uma emoção tão pura.
O sorriso logo desapareceu do rosto pálido e desanimado do pai.
- Faz muito tempo. Essa fraqueza quase me destruiu, e é exatamente por isso que quis cuidar de você.
Magnus riu ao ouvir isso, uma risada alta que surpreendeu a ele próprio.
- Cuidar de mim? Ah, pai, não gaste saliva com essas mentiras!
O rei socou o balcão.
- Você é cego? Totalmente cego? Tudo o que fiz foi por você!
A força da ira repentina fez Magnus derramar parte do vinho na túnica. Ele olhou feio para o pai.
- Estranho eu ter esquecido isso quando você decidiu acabar com a minha vida e com a vida da minha mãe.
- A morte seria um alívio deste mundo para muitos de nós.
- Não vou esquecer nada que você fez, a começar por isso. - Magnus apontou a cicatriz no lado direito do rosto. - Você lembra desse dia tão bem quanto eu?
O rei contraiu o maxilar.
- Lembro.
- Eu tinha sete anos. Sete. Você se arrependeu por um momento que seja?
O rei semicerrou os olhos.
- Você não deveria ter tentado roubar o palácio auraniano. Se tivesse conseguido, a vergonha teria sido grande.
- Sete anos! - A garganta de Magnus ardeu porque ele gritou. - Eu era apenas uma criança cometendo um erro, tentada por uma coisa brilhante e linda, uma vez que eu levava uma vida cinza e sem graça num
palácio cinza e sem graça. Ninguém ficaria sabendo que peguei aquela adaga! Que diferença faria?
- Eu ficaria sabendo - o rei disse. - A adaga que você pretendia roubar era de Elena. Eu ficaria sabendo porque fui eu quem deu a adaga a ela, quando era um garoto ingênuo tentando impressionar uma moça
bonita. Não sabia que ela a tinha guardado, que ela a tinha valorizado e exposto o tempo todo em que ficamos separados. Quando a vi em suas mãos seis anos depois da morte dela... não pensei. Simplesmente
reagi.
Magnus percebeu que não tinha uma resposta na ponta da língua. Com suas perguntas respondidas depois de tanto tempo, ele não conseguia processar tudo depressa.
- Não justifica o que você fez.
- Não, claro que não.
Magnus desviou o olhar do rei e tentou se concentrar em outra coisa, qualquer coisa. Ajudou perceber que o mundo ia além daquela conversa. Um homem enorme veio em direção ao bar carregando muitos copos
vazios, a túnica subindo o suficiente para deixar a barriga peluda à mostra. Uma atendente afastou a mão de um marinheiro com um tapa tímido. Os músicos no canto da taverna tocavam uma música animada,
e muitos batiam palmas. Vários outros dançavam em uma mesa.
- O poder é tudo o que importa, Magnus. O legado é tudo o que importa. - O rei dizia isso como se tentasse convencer a si próprio. - Sem ele, somos como camponeses paelsianos.
Magnus já tinha ouvido aquelas bobagens tantas vezes que já haviam se tornado mais do que palavras sem sentido.
- Diga uma coisa: Elena Bellos retribuiu seu amor ou foi só uma obsessão triste e impossível que transformou seu coração e sua alma em gelo?
O pai demorou tanto para responder que Magnus pensou que ele tinha levantado e ido embora. O príncipe desviou o olhar da taverna movimentada para ver se o rei ainda estava a seu lado.
- Ela me amava - Gaius disse, por fim, a voz quase inaudível. - Mas o amor não foi suficiente para resolver nossos problemas.
Magnus segurou a garrafa de vinho com força.
- Agora você vai me contar uma história de amor e perda... sobre um garoto e uma garota?
- Não.
Pensar que o pai mencionaria aquela história de amor épico sem contar tudo era previsível, mas ainda assim frustrante.
- Então por que você está aqui?
- Para contar a lição que aprendi. Amor é dor. Amor é morte. E o amor tira o poder de uma pessoa. Se eu pudesse voltar no tempo, gostaria de não ter conhecido Elena Corso. Desde aquela época, eu a odeio.
- Que romântico. Como se casou com Corvin Bellos, imagino que ela sentisse a mesma coisa.
- Tenho certeza disso. E agora lembro dela todos os dias, de tudo o que perdi, por causa daquela criatura mentirosa, Cleo. Ela se tornou sua fraqueza fatal, Magnus.
O ódio tinha voltado à voz de Gaius. Magnus encarou os olhos frios do pai.
- Seu ódio sem fim por Cleo me parece muito errado. Você deveria culpar a bruxa que amaldiçoou Elena. - Magnus suspirou, chocado ao perceber. - Você a culpa, não é? Por isso condenou tantas bruxas à morte
ao longo dos anos... Para pagarem pelo crime dela. Pode dizer que odeia Elena, mas ainda a ama, até mesmo depois de sua morte. Por qual outro motivo você teria tomado a poção de minha avó?
- Pense o que quiser. - Um músculo se contraiu no rosto do rei. - A poção era a única maneira de afastar o pesar e a dor e deixar apenas a força. Mas agora aquela força sumiu, desapareceu quando caí daquele
penhasco. A dor e o pesar voltaram, piores do que antes. E odeio isso. Odeio tudo nesta vida: o que tive que fazer, como passei todo esse tempo obcecado apenas pelo poder. Mas agora acabou.
- É o que anda prometendo.
Magnus precisava sair daquela taverna barulhenta e enfumaçada. Precisava de tempo e de espaço para esfriar a cabeça.
Quando levantou, o rei segurou seu braço.
- Imploro a você, meu filho, que mande Cleiona embora antes que ela o destrua. A princesa não ama você de verdade, se é o que você pensa. Independentemente do que ela disser, são apenas mentiras.
- O Rei Sanguinário implorando! Agora não falta mais nada. - Ele suspirou. - Já bebi demais por hoje. Foi um prazer conversar com você, pai. Tente voltar para a hospedaria sem morrer. Tenho certeza de
que sua mãe ficaria muito abalada se alguma coisa ruim acontecesse.
Ele saiu sem dizer mais nada, detestando a confusão de pensamentos e sentimentos.
Enquanto Magnus caminhava por uma rua estreita, alguém bloqueou sua passagem para o caminho principal com ombros largos e uma cara séria.
Não havia mais ninguém à vista.
- É, acho que reconheci você uma noite dessas - disse o homem. - Você é o príncipe Magnus Damora, de Limeros.
- E você está redondamente enganado. Desculpe pela decepção. - Magnus tentou passar acotovelando o homem, que levou a enorme mão à garganta dele, puxando-o para tão perto que Magnus conseguiu sentir seu
hálito de cerveja.
- Dez anos atrás, seu pai queimou minha esposa viva, dizendo que ela era uma bruxa. O que acha de eu fazer a mesma coisa com você como vingança?
- Acho que você precisa me soltar agora mesmo. - Magnus arregalou os olhos para o homem. - Sua necessidade de vingança não tem nada a ver comigo.
- Ele está certo. - O rei deu um passo à frente e tirou o capuz. - Tem a ver comigo.
O homem olhou para Gaius, surpreso, como se não acreditasse no que via.
- Sinto muito pela morte de sua esposa - o rei disse, e uma única lamparina acima da saída da taverna iluminava seu rosto quase esquelético. - Odeio bruxas por mais motivos do que poderia mencionar aqui
e agora. Mas raramente executei uma que não estivesse envolvida com sangue e mortes. Se sua esposa está na terra da escuridão agora, é porque merece estar.
Com o rosto vermelho de ódio, o homem deu um passo à frente empunhando uma faca afiada. Magnus observou o pai de pé ali, sem se mexer, a pele amarelada, os ombros curvados. Ele não lutaria, não conseguiria
lutar por sua vida.
Gaius queria morrer?
A atenção do homem estava totalmente voltada para o rei naquele momento, e o ódio ardia em seus olhos quando ele avançou.
Magnus se moveu antes mesmo de se dar conta de suas intenções, segurou as mãos do homem e impediu que a faca acertasse o alvo.
- Se alguém tem o direito de matar meu pai, esse alguém sou eu - ele vociferou. - Mas não hoje.
Ele virou a lâmina afiada para afundá-la no peito do homem, que gritou de dor e desabou no chão. O sangue jorrou livremente do ferimento fatal.
Houve um momento de completo silêncio na rua até o rei falar de novo.
- Precisamos ir embora antes que alguém veja isso.
Magnus teve que concordar. Limpou o sangue das mãos no manto preto e os dois logo voltaram à hospedaria Falcão e Lança.
- Não pense que esse gesto mostra que não odeio você - Magnus disse.
O rei assentiu com seriedade.
- Eu o consideraria um idiota se não me odiasse. Ainda assim, apesar do ódio que sente por mim, quero lhe dar algo.
- O quê?
- O cristal do ar.
Não havia como o Rei Sanguinário entregar uma parte da Tétrade a alguém, nem mesmo ao próprio filho. E, ainda assim, Gaius levou Magnus ao andar de cima, ao quarto onde tinha ficado por dois dias.
Magnus observou o espaço.
- Onde está Selia?
- No pátio. - O rei indicou a janela com a cabeça. - Sua avó gosta de cumprir os rituais antigos todas as noites, a esta hora e sob o luar, por isso consegui sair.
O rei foi até a cama de palha, levantou as cobertas e passou a mão por baixo do colchão. Em seguida, franziu a testa.
- Ajude-me a levantá-lo - ele disse.
- Está tão fraco assim? Então você teria mesmo ficado parado, esperando aquele homem te matar?
- Faça o que estou mandando. - O olhar que o pai lançou foi muito mais familiar do que qualquer conversa sobre compartilhar e arrependimentos.
- Tudo bem. - Magnus foi até o lado de Gaius e levantou o colchão para seu pai procurar embaixo dele.
Os olhos vermelhos e marejados do rei foram tomados pelo susto.
- Não está aqui.
Magnus lançou um olhar desconfiado para o rei.
- Que conveniente, se considerarmos que você estava prestes a entregá-lo a mim. Por favor, pai, me poupe dessas dissimulações. Como se você fosse esconder um tesouro como aquele em um lugar tão óbvio!
- Não é dissimulação. Estava aqui. Andei muito debilitado para encontrar um lugar melhor onde escondê-lo. - Gaius ficou sério. - Aquela sua princesinha o roubou.
Só podia ser mentira. Mais uma mentira. Magnus não conseguia pensar em outra explicação, não para algo tão importante.
Antes que pudesse responder, o rei cambaleou com dificuldade para sair do quarto. Magnus o seguiu pelo corredor, onde Cleo ainda estava com Jonas.
Magnus não conseguia acreditar no que via. Precisou de todo o autocontrole possível para não transformar Jonas no segundo morto da noite.
Cleo levantou depressa quando o rei e Magnus entraram.
- O que foi? O que aconteceu?
- Você roubou o cristal do ar? - Magnus perguntou, incomodado com a maneira arrastada como estava falando.
- O quê? Eu... eu nem sabia onde estava!
- Sim ou não, princesa?
Cleo semicerrou os olhos e levantou o queixo.
- Não.
- Ela está mentindo - o rei disse.
- O rei das mentiras querendo acusar a princesa, não é? - Jonas quase cuspiu as palavras, os punhos cerrados. - Que ironia.
- Onde está o cristal da terra? - Magnus perguntou.
Cleo franziu a testa ao enfiar a mão no bolso e arregalou os olhos.
- Não está aqui. Mas estava, juro! Eu o carrego comigo o tempo todo!
Magnus sentiu uma náusea. Havia um ladrão entre eles. E quem quer que fosse, em breve ia se arrepender profundamente por suas atitudes.
Não demorou para que todos corressem até a sala para ver o que estava acontecendo. Milo e Enzo já empunhavam as armas, prontos para um combate.
Magnus observou o grupo. Estava todo mundo ali: Nic, Olivia, até Selia havia se unido ao grupo, com o rosto corado devido ao ritual da lua daquela noite. Todo mundo, menos uma pessoa.
- Onde está o príncipe Ashur? - Jonas perguntou, franzindo a testa. - Ele estava aqui mais cedo com Cleo e comigo.
- Eu não o vi hoje - Olivia respondeu. - Talvez tenha saído.
- Talvez. Alguém sabe aonde ele foi?
Enzo e Milo balançaram a cabeça em negativa.
Selia foi para o lado do rei pálido, que caminhava até uma cadeira para sentar.
- Gaius, querido, o que está fazendo fora da cama?
Magnus os ignorou, prestando atenção em Nic, que estava em silêncio. Enquanto os outros conversavam sobre o paradeiro do príncipe, Nic saiu da sala. Magnus imediatamente o seguiu pelo corredor em direção
à porta da frente.
Quando Nic notou que Magnus estava perto, seus ombros ficaram tensos.
- Está procurando alguém? - Magnus perguntou, com os braços cruzados.
- Quero sair para respirar um pouco de ar fresco.
- Ele levou os dois cristais, não levou? E contou a você sobre os planos.
Nic balançou a cabeça, mas não o encarou nos olhos. Magnus não tinha mais paciência para mentiras naquela noite. Ele puxou a frente da túnica de Nic e o jogou contra a parede.
- Onde está Ashur? - ele resmungou.
- Você está bêbado.
- Demais, mas não faz a menor diferença agora. Responda! Ashur roubou os cristais, não roubou?
Nic rangeu os dentes.
- Você acha que o príncipe me conta alguma coisa?
- Não faço ideia do que o príncipe sussurra em seu ouvido, mas não sou cego. Sei que tem algo entre vocês dois, que são mais próximos do que aparentam. E sei que você sabe mais do que está me contando.
Jonas se aproximou, tenso, vindo de um canto.
- O que está fazendo com ele?
Magnus não soltou o garoto.
- Nic sabe os segredos de Ashur e vou descobrir quais são.
- Responda à pergunta, Nic - Jonas disse, os braços cruzados. - Sabe para onde Ashur foi?
Nic riu.
- Como é? Vocês estão trabalhando juntos agora?
- Não - Magnus e Jonas responderam em uníssono, e então se entreolharam.
Nic suspirou.
- Tudo bem. O príncipe acabou de partir para ver a irmã. Tentei convencê-lo a não fazer isso, mas ele não ouviu nada do que eu disse. Está determinado a fazer o que puder para colocar juízo na cabeça dela
e, se não conseguir, vai exigir o título de imperador.
Magnus sentiu o estômago revirar.
- E ele levou para Amara os cristais do ar e da terra. Que lindo presente, considerando que Amara está com o cristal da água.
Por fim, Nic lançou um olhar preocupado.
- Ashur não faria isso.
- Não? - Magnus tentou continuar segurando a túnica de Nic para que o idiota não fugisse, mas sua visão estava turva. Vinho demais, rápido demais. Os efeitos só passariam ao amanhecer. - Talvez Amara tenha
retirado os cristais dos esconderijos com sua magia, e eles voaram em asas de borboletas para ela.
- Vou falar mais uma vez. - Nic semicerrou os olhos. - Me solte.
- E se não soltar? Vai chamar a princesa para salvá-lo?
- Odeio você. Desejo vê-lo morto e enterrado. - Ele olhou para Jonas, irritado. - Uma ajuda?
- Nic, você precisa pensar - Jonas disse com calma. - Se Magnus estiver certo em relação a Ashur...
Magnus lançou um olhar fulminante ao rebelde.
- Você acabou de me chamar apenas pelo meu primeiro nome?
Jonas revirou os olhos.
- Amara Cortas não pode ter mais poder do que já tem. E se o irmão dela levou os cristais da Tétrade, é a pior coisa que poderia acontecer. Ela pode liberar três deuses elementares como Kyan.
- Eu sei - Nic respondeu. - Eu entendo.
- Entende?
- Então a culpa é minha? Vai deixar sua majestade quebrar meu pescoço? Por quê? Por não ter conseguido impedir Ashur de fazer o que queria? Ele faz o que bem entende.
- Prometo que sua majestade não vai quebrar seu pescoço.
- Não vamos nos precipitar - Magnus disse, divertindo-se com o breve olhar assustado do garoto.
Ele nunca mataria Nic.
Cleo nunca o perdoaria.
- Você vai fazer o seguinte - Magnus disse. - Vai atrás de Ashur para impedi-lo de fazer alguma coisa idiota e imperdoável por senso de lealdade familiar kraeshiano bizarro e sem propósito. E vai recuperar
os cristais que ele roubou, custe o que custar.
Nic o encarou incrédulo.
- Não vou deixar Cleo de novo.
- Ah, vai, sim, com certeza. E vai agora. Você vai voltar com os cristais da Tétrade ou minha paciência com você vai acabar. - Magnus tentou organizar a mente confusa para encontrar uma maneira de fazer
Nic cumprir a ordem.
- Você pode até me odiar, mas viu que mantive sua preciosa princesa viva todos esses meses, enquanto outros a queriam morta. Juro pela deusa que vou parar de protegê-la se não fizer exatamente o que mandei.
Nic se encolheu, mas manteve o olhar firme.
- Cleo ficaria bem até mesmo sem sua ajuda.
- Talvez sim. Talvez não. Em tempos de guerra, e não se engane, é exatamente o que essa ocupação "pacífica" kraeshiana é, ninguém está seguro.
Nic ficou sem resposta. Apenas o observou furioso.
- Com ameaça ou sem - Jonas disse impaciente -, o príncipe está certo, Nic, você precisa ir atrás de Ashur. Nós dois precisamos. Eu deveria ter acompanhado Felix e Taran quando eles partiram. Não há motivos
para eu estar aqui.
- Não há motivos, rebelde? - Magnus lançou um olhar para ele. - Que esquisito. E pensei que você estivesse gostando de bajular a princesa, em busca de migalhas.
Jonas lançou um olhar raivoso para Magnus.
- Eu receberia muito mais do que você.
Magnus sorriu para ele.
- Não tenha tanta certeza disso.
Jonas ficou ainda mais sério.
- Terminamos por aqui. Nic, pegue o que precisa para ir ao complexo do chefe Basilius. Espero alcançar Ashur antes que ele chegue lá. E, Magnus?
- Sim, rebelde?
Jonas semicerrou os olhos.
- Se encostar em um fio de cabelo da princesa, juro por qualquer deusa em quem você acredita que vou fazer você implorar para morrer.
19
AMARA
PAELSIA
Um único falcão dourado voava em círculos sobre os cidadãos paelsianos reunidos para ouvir o discurso de Amara. A imperatriz estava em pé diante da janela aberta de seus aposentos, observando a multidão
de rostos ansiosos. Muitos estavam perplexos por estarem dentro da propriedade privada do ex-chefe; os portões tinham ficado trancados para o público durante o governo dele. Naquele dia, os paelsianos
viam pela primeira vez a cidade labiríntica, o que fez Amara lembrar muito da Cidade de Ouro, mas, em vez de metais e joias, a cidade onde estava era feita de barro, tijolo, pedra e terra.
- Vossa graça, gostaria que reconsiderasse esse discurso - Kurtis disse atrás dela. - A senhora está muito mais segura aqui dentro, principalmente com a notícia de rebeldes por perto.
Ela tirou os olhos da janela e se virou para o grão-vassalo onipresente.
- É por isso que tenho guardas ao meu redor o tempo todo, lorde Kurtis. Os rebeldes estão sempre por perto. Infelizmente, não posso fazer todos entenderem meu ponto de vista. Há quem se oponha ao reinado
de meu marido, ao reinado de meu pai. E há aqueles que se opõem ao meu também. Falarei com meus cidadãos hoje, aqueles que vão me apoiar sem questionamentos e aqueles que duvidam de minhas intenções aqui.
Preciso dar a eles uma esperança para o futuro... uma esperança que nunca tiveram.
- O que é uma atitude incrível, vossa graça, mas... os paelsianos são selvagens, violentos.
Amara considerou as palavras ofensivas.
- Há quem diga o mesmo dos kraeshianos - ela respondeu mais irritada. - Talvez você não tenha me ouvido até agora, mas falarei hoje.
- Vossa graça...
Ela levantou uma mão, decidindo parar de sorrir.
- Falarei hoje - ela disse com firmeza. - E ninguém vai me dizer que não posso fazer isso. Com a notícia dos rebeldes e com a discordância entre meus próprios soldados, preciso do apoio dessas pessoas
para o futuro de meu reinado. E não permitirei que ninguém diga o que posso e o que não posso fazer. Entendido?
Ele se curvou no mesmo instante, corado.
- Claro, vossa graça. Não quis desrespeitá-la.
A porta se abriu e Nerissa entrou, fazendo uma reverência.
- Está na hora, imperatriz.
- Ótimo, estou pronta. - Amara alisou a seda de seu vestido. Era o mesmo que usava nas ocasiões mais especiais em Kraeshia. Ela o levava sempre que viajava caso tivesse a oportunidade de vestir uma peça
tão esplêndida. A costura brilhante e as contas de esmeralda e ametista reluziam sob o sol paelsiano quando ela saiu de sua grande quinta.
Um grupo de guardas esperava Amara do lado de fora e, com Nerissa a seu lado, ela se aproximou do grande pódio em um palco de madeira bem acima da multidão de quatro mil pessoas reunidas lado a lado na
antiga arena do chefe.
Aqueles eram seus novos súditos. Absorveriam tudo o que dissesse e espalhariam a notícia de sua glória a quem quisesse ouvir. E em breve, seriam os primeiros a reverenciá-la como uma verdadeira deusa.
A multidão gritou e a atmosfera foi tomada por sons de aprovação. Ela olhou para Nerissa, que sorriu e assentiu, incentivando-a a começar.
Amara ergueu os braços, e a grande plateia ficou em silêncio.
- Eu me dirijo ao lindo povo de Paelsia, um reino que tem passado por muitos testes e muitas atribulações ao longo de várias gerações. - Sua voz ecoou nos pilares de pedra, o que ajudou a amplificar as
palavras de modo que até as pessoas nas arquibancadas pudessem ouvi-la. - Sou Amara Cortas, a primeira imperatriz de Kraeshia, e trago a vocês a notícia oficial de que não são mais cidadãos de Mítica,
uma tríade de reinos que os oprimiu por um século. Agora vocês são cidadãos do grande Império Kraeshiano. E seu futuro é tão brilhante quanto o sol que nos ilumina hoje!
A multidão comemorou, e Amara parou um instante para analisar os rostos, alguns sujos, de pessoas com roupas simples puídas, gastas pela sujeira e pelo tempo. Olhos atentos se voltaram para ela, olhos
que tinham assistido a muitos líderes fazerem promessas falsas e causarem dor e sofrimento. Ainda assim, ela viu uma esperança tímida até mesmo nos olhos dos mais velhos.
- Cuidaremos de sua terra - ela continuou. - Vamos torná-la rica de novo e pronta para as plantações que vão sustentar vocês e suas famílias. Vamos importar animais que servirão de alimento. E enquanto
continuarem produzindo o vinho pelo qual Paelsia é conhecida, os lucros serão de vocês, integralmente, pois prometo que não serão cobrados impostos kraeshianos sobre esse produto por vinte anos. As leis
que impediam a exportação do vinho a qualquer lugar que não fosse Auranos estão vetadas a partir de agora. Vejo Paelsia como um patrimônio maravilhoso do meu império e quero demonstrar isso cuidando para
que minhas atitudes sejam condizentes com minhas palavras. Vocês fazem bem em acreditar em mim, porque eu acredito em vocês. Juntos, vamos marchar para o futuro, de mãos dadas!
O barulho vindo da plateia aumentou, e, por um instante, Amara fechou os olhos e permitiu-se aproveitar o momento. Tinha sido por isso que ela se sacrificou tanto. Tinha sido por isso que ela fez o que
fez.
Por aquele poder.
Não fora à toa que seu pai havia tomado decisões tão precipitadas durante seu reinado. Aquela sensação diante da obediência, da adoração e da reverência era mesmo viciante.
Se ela conseguiria ou não cumprir o prometido, ainda precisava verificar.
Ela sentia a magia que havia na crença que emanava do povo paelsiano. Uma magia tão rica e pura na qual queria se banhar.
- Vossa graça! - Nerissa exclamou, assustada.
Amara abriu os olhos a tempo de ver uma flecha de relance, e então um de seus guardas a tirou do caminho. A flecha acertou o homem no pescoço, e ele caiu se debatendo no chão do palco.
- O que está acontecendo? - ela quis saber.
- O grupo de rebeldes que ameaçou vir aqui hoje... eles estão aqui! - Nerissa agarrou o braço dela. Duas outras flechas voaram na direção dela, bem perto, acertando outros dois guardas.
- Quantos? - Amara conseguiu perguntar. - Quantos rebeldes estão aqui?
- Não sei... - Nerissa ergueu a cabeça para olhar para a multidão quando outra flecha passou por ela. - Vinte, talvez trinta ou mais.
Amara observou chocada quando seu exército de soldados invadiu o mar cada vez maior de civis para capturar os rebeldes. Os soldados derrubavam qualquer pessoa que aparecesse no caminho, fossem rebeldes
ou paelsianos. A multidão entrou em pânico e tentou fugir. O caos se instalou, gritos de medo e de indignação eram ouvidos por todos os lados quando sangue começou a ser derramado.
Paelsianos empunharam armas, trocando rapidamente a expressão esperançosa pela de ódio, e começaram a lutar não só contra os soldados, mas uns contra os outros, facas cortando a carne, socos acertando
rostos e abdomens.
"Os paelsianos são selvagens, violentos", Kurtis tinha alertado.
Mães agarravam os filhos, chorando e correndo para todas as direções.
- O que vamos fazer? - Nerissa perguntou. Ela tinha agachado ao lado de Amara, e as duas se encolheram atrás do pódio.
- Não sei - Amara disse depressa, e se arrependeu de suas palavras.
Palavras de medo. Palavras de vítima.
Ela não ia se acovardar diante de rebeldes naquele momento - nem nunca.
O medo logo se transformou em raiva. Aquilo, fosse o que fosse, não fazia parte de seu plano. Aqueles que desejavam destruir sua chance de transformar aquele povo determinado em seu aliado, um povo que
já estava pronto para aceitá-la como líder, pagariam com a vida.
Amara levantou do esconderijo, punhos cerrados, quando alguém se aproximou do palco trás dela. Ela ouviu passos pesados na superfície de madeira.
Quando se virou, viu dois de seus guarda-costas caindo com a garganta cortada. Atrás deles, um rosto assustadoramente familiar.
- Bem, princesa, eu poderia apostar um monte de moedas de ouro que você não esperava me ver de novo.
Felix Gaebras apontava uma espada a poucos centímetros de seu rosto.
O rosto dele aparecia em seus pesadelos. Ou talvez os pesadelos tivessem sido premonições. Naqueles sonhos, ele tentava matá-la.
- Felix... você fez isso, tudo isso, só para chegar até mim - ela começou, dando um passo hesitante para trás para se afastar do jovem que acreditava estar morto fazia muito tempo.
Ele sorriu.
- Sinceramente? Eu estava só observando de longe. Foi uma coincidência feliz. Acho que há muitos outros rebeldes que querem derramar seu sangue. Mas parece que a honra será minha.
Ela olhou para a esquerda e viu três guardas correndo na direção de Felix, mas foram derrubados por outro jovem de cabelo escuro e expressão irritada.
- O plano não era esse, Felix - o rapaz gritou. - Nós dois vamos morrer por sua causa.
- Calado, Taran - Felix respondeu. - Estou retomando contato com uma antiga namorada.
Ao sentir a lâmina em seu rosto, Amara olhou para o tapa-olho preto que ele usava.
- Seu olho...
- Perdi. Graças a você.
Ela se encolheu.
- Sei que você deve me odiar pelo que fiz.
- Odiar? - Ele arqueou as sobrancelhas escuras, movendo de leve o tapa-olho. - "Ódio" é uma palavra muito leve, não acha?
Amara tentou ver se algum guarda se aproximava para ajudá-la, mas Taran, o amigo de Felix, os afastava com a espada e o arco que trazia.
Amara virou para a frente, para o olho bom de Felix, e disse com o máximo de arrependimento que conseguiu reunir:
- Não importa o que tenha enfrentado, minha bela fera. Juro que posso me retratar.
- Não me chame assim. Perdeu o direito de me chamar assim quando me abandonou e me deixou para morrer. - Felix encostou a lâmina no rosto dela de novo, fazendo-a olhar para a multidão. - Viu o que fez?
É culpa sua. Tudo o que você toca acaba em morte.
O olhar tenso de Amara passou pela multidão que tinha percorrido quilômetros para se reunir e ouvi-la falar. Muitos paelsianos estavam mortos entre os combatentes, pisoteados, assassinados pelas espadas
dos guardas ou por seus próprios compatriotas.
Felix tinha razão: era culpa dela. Um momento de vaidade, o desejo de sentir o amor de seus novos súditos depois de tanta dor e decepção, acabou em morte.
Tudo acabava em morte.
O mesmo falcão que ela vira sobrevoando a multidão grasnou alto o suficiente para Amara ouvir. No chão, alguém preso no meio do caos chamou sua atenção: um jovem de cabelo ruivo, cor rara de ser encontrada,
caminhava em direção ao palco.
Ela reconheceu o amigo de Cleo, Nic. Aquele com que Ashur tinha ficado obcecado.
Amara observou horrorizada quando dois paelsianos agarraram Nic e rasgaram o saco de moedas preso ao passador de sua calça. Nic tentou segurar o saco, e a faca de um dos homens reluziu à luz do sol antes
de ser fincada no peito dele.
Ela se assustou.
O corpo de Nic caiu no chão e logo se perdeu na multidão.
Aquilo era culpa dela, apenas dela.
Ela franziu a testa ao pensar nisso. Não... tinha sido azar de Nic, uma circunstância infeliz. Ela não tinha assassinado o amigo de Cleo com as próprias mãos. Amara se recusava a assumir a culpa pelo azar
de outras pessoas.
Apesar de ter odiado seu pai e seus irmãos com a mesma intensidade, a família Cortas não era nada fraca. Inclusive ela.
E além da família Cortas, as mulheres não eram fracas. Eram líderes. Campeãs. Guerreiras. Rainhas.
Amara tinha enfrentado inimigos muito maiores do que Felix Gaebras na vida.
Ela se forçou a falar de modo assustado quando virou para ele de novo.
- Você é maior do que isso, Felix. Matar uma garota desarmada? Não combina com você.
- Não combina comigo? Sou um assassino profissional, meu amor. Matar é o que faço melhor.
De canto do olho, ela observou o amigo derrubar mais dois de seus homens com uma só mão.
- Pense bem, governo um terço do mundo e controlo toda a fortuna. Quer ser um homem muito rico?
Ele levantou um dos ombros.
- Não.
Amara tinha esquecido que ele era diferente dos outros homens que conhecia - uma vantagem no começo, mas um problema no presente. - Mulheres, então. Dez, vinte, cinquenta garotas que desejem apenas você.
Felix abriu o sorriso mais frio que ela já tinha visto.
- E como eu saberia que não são vadias frias e dissimuladas como você? Não tem acordo, imperatriz.
Amara ficou com os olhos marejados. Fazia muito tempo que não chorava, mas chorar era um talento que desenvolvera desde cedo. Sabia que a maneira mais fácil para uma mulher evitar problemas ou castigos
era fingir fraqueza entre os homens.
As lágrimas logo começaram a descer livremente por seu rosto.
- Eu pretendia libertá-lo, mas me disseram que você já estava morto, assassinado em uma tentativa de fuga. Meu coração ficou destruído quando pensei que tinha perdido você para sempre. Deveria tê-lo incluído
em meus planos, mas eu estava com medo, muito medo. Ah, Felix, eu não queria que nada acontecesse com você, sinceramente! Eu... eu amo você! Sempre vou amar, não importa o que você decida fazer hoje!
Felix olhou para ela como se estivesse assustado com o que ouvia.
- O que disse? Que me ama?
- Sim. Eu amo você.
A ponta da espada se mexeu. Mas logo foi afastada.
- Bela tentativa, meu amor. Eu poderia até acreditar, se fosse um completo imbecil. - Felix sorriu para ela. - Hora de morrer.
Um instante depois, Carlos, que tinha subido no palco e conseguido passar por Taran, derrubou Felix. Antes que conseguisse recuperar o fôlego, Taran e Felix estavam diante dela, ajoelhados.
Nerissa voltou para seu lado, e Amara segurou a mão dela, apertando-a para ter a certeza de que a criada não tinha se ferido.
- Os outros rebeldes morreram, vossa graça - Carlos informou. O rosto dele sangrava devido a um corte profundo no nariz.
Amara respondeu assentindo brevemente e então olhou para Felix.
Ele deu de ombros de novo.
- Não posso dizer que não tentei.
- Devia ter sido mais rápido.
- Acho que gosto muito de falar. - Ele abriu um grande sorriso, mas seu olhar estava frio. Voltou-se para Nerissa por um instante antes de voltar a encarar Amara. - Vamos falar de novo sobre aquela oferta
do harém de lindas mulheres?
Amara tocou o rosto de Felix, levantando sua cabeça.
- Sinto muito pelo seu olho. Gostei daquele olho, assim como de outras partes suas. Por algumas noites, pelo menos.
- Devemos executá-los agora mesmo, vossa graça? - Carlos perguntou, com a espada ao lado do corpo.
Ela esperou o medo aparecer no único olho de Felix, mas ele manteve a pose desafiadora.
- Se eu poupá-lo, o que fará? Vai tentar me matar de novo?
- Num piscar de olhos - ele disse.
- Você é um grande idiota - Taran rosnou.
Sua bela fera a tinha entretido por um período. E ainda entretinha.
Apesar de tudo, Amara ainda se sentia atraída por ele. Mas não importava. Ele deveria ter morrido muito tempo antes, e não ser mais um problema para ela.
Amara assentiu para o guarda.
- Jogue os dois no fosso. Cuido deles mais tarde.
20
LUCIA
PAELSIA
- Ela é incrível. Totalmente linda e gloriosa. Parece mais uma deusa do que uma mera mortal, se quer saber. Tenho certeza de que vai salvar todos nós.
Lucia parou na barraca de frutas enquanto procurava uma maçã sem nenhuma imperfeição - pelo jeito, era impossível em Paelsia - e olhou para a vendedora que conversava com uma amiga.
- Concordo totalmente - a amiga disse.
Estariam falando da feiticeira profetizada?
- Desculpem minha grosseria, mas posso saber de quem estão falando? - Lucia perguntou. Era a primeira vez que falava em voz alta em mais de um dia, e sua voz falhou no início.
A vendedora olhou para ela.
- Ora, da imperatriz, é claro! De quem mais poderia ser?
- Sim, de quem mais, não é? - Lucia disse em voz baixa. - Então vocês acham que Amara Cortas vai salvá-las. Salvá-las do que, exatamente?
As paelsianas trocaram um olhar e viraram para Lucia um tanto impacientes.
- Você não é daqui, é? - Uma delas franziu os lábios enrugados. - Não, com esse sotaque, acredito que seja limeriana, não é?
- Nasci em Paelsia e fui adotada por uma família limeriana.
- Você teve muita sorte por ter escapado destas fronteiras tão cedo, então. - A vendedora virou para a amiga. - Se ao menos todos tivéssemos tido essa oportunidade...
As duas riram sem achar graça.
A paciência de Lucia estava acabando.
- Vou comprar esta maçã. - Ela guardou a fruta no bolso e entregou uma moeda de prata. - E também qualquer informação que puder me dar a respeito da localização da imperatriz.
- Com prazer. - A mulher pegou a moeda com ganância, semicerrando os olhos. - Por onde andou esses últimos dias, mocinha, para não saber tudo sobre a imperatriz? Perdida por aí?
- Mais ou menos. - Na verdade, ela estava recuperando as forças na hospedaria no leste de Paelsia até não aguentar mais e ter que fugir. Apesar da preocupação da atendente Sera com sua saúde, Lucia sabia
que precisava sair dali antes que sua barriga ficasse grande demais e ela não conseguisse mais levantar da cama.
Passou a mão pela barriga aparente e a comerciante notou, arregalando os olhos.
- Ah, minha querida! Não percebi que estava grávida. E já tão avançada!
Lucia gesticulou para indicar que ela não se preocupasse.
- Estou bem - ela mentiu.
- Onde está sua família? Seu marido? Não me diga que está sozinha aqui na feira hoje!
Parecia que o fato de estar grávida fazia os desconhecidos sentirem vontade de tratá-la com muito mais gentileza do que o normal. Tinha sido bom durante a viagem lenta e desconfortável para o oeste.
- Meu marido está... morto - ela disse com cuidado. - E agora estou procurando minha família.
A amiga da vendedora correu na direção de Lucia e segurou suas mãos.
- Meus mais sinceros sentimentos por essa perda tão dolorosa.
- Obrigada. - Lucia sentiu um nó repentino e irritante na garganta. Assim como a barriga inchada, suas emoções estavam muito mais intensas e difíceis de controlar.
- Se precisar de um lugar para ficar... - a vendedora disse.
- Obrigada de novo, mas não preciso. Só preciso de informações sobre a imperatriz. Ela ainda está em Limeros?
As amigas se entreolharam de novo, sem acreditar que Lucia pudesse estar tão desinformada a respeito daquelas coisas.
- A grande imperatriz Cortas está morando no antigo complexo do rei Basilius - a vendedora começou. - Ela vai fazer um discurso de lá amanhã, dirigindo-se a todos os paelsianos que puderem participar.
- Um discurso aos paelsianos. Por quê?
A vendedora olhou para ela com um pouco de compaixão.
- Bem, por que não? Talvez você tenha esquecido por causa dos muitos anos abençoados que passou em Limeros, mas a vida aqui em Paelsia é difícil.
- Para dizer o mínimo - sua amiga acrescentou.
A vendedora assentiu.
- A imperatriz vê nossos esforços. Ela os reconhece. E quer fazer algo em relação a isso. Ela valoriza os paelsianos como parte importante de seu império.
Lucia tentou não revirar os olhos. Ela não tinha percebido como Amara era uma manipuladora de primeira, sedenta por poder, nas poucas vezes em que conversara com a ex-princesa quando os Damora moraram
no palácio auraniano.
- Mas, claro, questiono a sabedoria da imperatriz por se casar com o Rei Sanguinário - a vendedora comentou.
- Desculpe - Lucia disse, olhando para ela. - Você disse que ela é casada com o Rei... San... com o rei Gaius?
- Sim. Mas também soube que ele está desaparecido no momento, junto com seu herdeiro. Vamos torcer para que a imperatriz tenha enterrado os dois a sete palmos da terra.
- Realmente - Lucia murmurou, sentindo o estômago embrulhado só de pensar. Sera não tinha dito nada sobre o casamento de seu pai com Amara. Seria verdade? - Eu... eu preciso ir. Preciso...
Ela virou e desapareceu em meio à multidão na feira.
Certa vez, Ioannes tinha guiado Lucia para encontrar e despertar a Tétrade com seu anel da feiticeira. Ela esperava que o mesmo encanto que usaram pudesse funcionar para ajudá-la a encontrar Magnus e seu
pai. No entanto, apesar de ter conseguido fazer o anel girar como fizera na época em seus aposentos no palácio auraniano, todas as tentativas de reaver o mapa brilhante de Mítica e determinar a localização
deles tinham fracassado. Enfraquecida por usar seus elementia, ela tinha que fazer paradas constantes ao percorrer o caminho a pé, junto com muitos outros paelsianos, até o complexo do antigo líder local.
Lucia se recusava a acreditar que sua família estivesse morta. Eles eram muito bem preparados para isso. E, se o rei tinha se casado com Amara - uma ideia tão ridícula que ela mal conseguia conceber -,
tinha feito isso por razões estratégicas, por poder e sobrevivência.
Sim, Amara era jovem e muito bela, mas seu pai era esperto e cruel demais para tomar uma decisão como essa movido por uma mera paixão.
Havia milhares de paelsianos reunidos do lado de fora do complexo quando ela finalmente chegou. O vilarejo mais próximo ficava a meio dia de viagem dali, mas levaria mais um dia, talvez dois, na situação
atual de Lucia, para chegar a Basilia, seu destino original.
Os portões altos e pesados rangeram ao se abrir, e a multidão adentrou o complexo. Lucia se concentrou tanto nas pessoas que a cercavam, procurando algum rosto conhecido, que mal viu os caminhos de pedra
e as casas de barro que levavam em direção à enorme casa de três andares no centro do complexo. Os paelsianos estavam sendo levados para uma ampla clareira, com fogueiras e vários assentos elevados de
pedra. Isso a fez pensar nas histórias que já tinha ouvido sobre como o chefe Basilius organizava competições entre os homens que queriam impressioná-lo com sua força e habilidade de combate. Ali, já tinham
ocorrido lutas mortais apenas para entretê-lo.
A multidão continuou crescendo, mas Lucia não ouviu nenhuma menção ao ex-chefe e a seus prazeres nos fragmentos de conversa ao seu redor. Só ouvia sobre a importância da nova imperatriz.
Lucia não imaginava que os paelsianos fossem tão fáceis de enganar. Eles acreditaram, por muitos e muitos anos, que o chefe Basilius era um feiticeiro.
Chefe Hugo Basilius. Seu pai biológico.
E aquela era a casa dele - o lugar onde ela teria sido criada se não tivesse sido roubada no berço.
Lucia olhou para as casas, ruas e a arena que formavam o complexo, esperando sentir uma sensação de perda da vida que deveria ter tido.
Mas não sentiu nada. Se havia um lar do qual sentia falta, era do palácio escuro cercado por gelo e neve em Limeros.
Quanto antes conseguisse deixar aquele reino seco e desagradável, melhor. Já tinha aprendido mais do que o suficiente sobre a cultura paelsiana quando a conheceu com Kyan.
Ela não ouviu boatos sobre o deus de fogo causando mais destruição e morte durante suas viagens. Segurava firme a esfera de âmbar que tinha escondido no bolso. Timotheus insistira que Kyan não podia morrer.
Mas, se era verdade, onde ele estava? O que estava planejando? Ela o havia ferido gravemente em sua batalha? Se não tinha, por que Kyan não havia voltado às Montanhas Proibidas para recuperar sua esfera
antes que Lucia a encontrasse?
Ela pressionou os dedos ao redor do cristal de âmbar ao pensar nisso. Seria forte o suficiente para lutar se ele a encontrasse naquele dia?
Lucia detestava admitir que não.
Não, não é bom o suficiente, ela pensou. Não há outra escolha. Tenho que ser forte.
- Ela é incrível, de fato - outro um velho corcunda paelsiano disse. - Se tem alguém que pode livrar nossa terra de sua doença mortal, é a imperatriz.
- Quero vingança pela morte de minha família - uma mulher mais jovem respondeu.
- Também quero - uma mulher mais velha concordou.
- De que doença estão falando? - Lucia perguntou.
- A doença da bruxa sombria - o velho resmungou. - A maldade dela destruiu esta terra e matou milhares de paelsianos com o toque de sua mão feia e retorcida.
Lucia mexeu as mãos.
- Ouvi falar dessas maldades...
- Maldades? - ele praticamente gritou com ela. Gotas de saliva do homem acertaram o rosto de Lucia, que limpou a face, fazendo uma careta. - Alguns dizem que Lucia Damora vai matar todos nós com sua magia
do fogo, que é uma feiticeira imortal, filha do Rei Sanguinário com uma demônia durante uma cerimônia de magia sanguinária! Mas eu a vejo como é: alguém que precisa ser morta antes que acabe machucando
outras pessoas.
Eles sabiam seu nome. E a odiavam o suficiente para desejar sua morte.
Não importava que o velho não tivesse incluído Kyan no relato. Já era um fato. Ela não podia voltar e mudar o que tinha acontecido.
Os paelsianos viam Lucia como uma bruxa demoníaca tirada das sombras como uma hera odiosa. Um pesadelo e uma doença que infestavam sua terra.
Ela nem tentou discutir, uma vez que estavam totalmente certos.
A multidão começou a gritar quando Amara finalmente subiu ao palco. Lucia tentou ver o máximo que pôde da bela moça, o cabelo comprido e escuro estava solto, o vestido de seda esmeralda com uma fênix brilhante
bordada. Quando ela ergueu as mãos. As pessoas ficaram em silêncio.
Amara falou de maneira clara e intensa sobre um futuro incrível para os cidadãos de Paelsia. Lucia não acreditava nas mentiras que ela despejava, mas, ao observar em volta, viu que as pessoas aceitavam
o que era dito como quem aceita um banquete delicioso.
A imperatriz parecia muito sincera em suas promessas. Lucia admirava a facilidade com que falava sobre mudar tudo o que estava errado no mundo. Sobre tomar decisões em nome daquelas pessoas que acreditavam
em cada uma de suas palavras.
Lucia estava ali, punhos cerrados, odiando Amara e esperando a chance de descobrir o que sua inimiga tinha feito com sua família.
E então, quase no mesmo instante, as lindas e falsas palavras que Amara dizia foram interrompidas. Alguém gritou e Lucia só entendeu o que estava acontecendo quando viu um guarda cair no palco, com uma
flecha enfiada na garganta. Outro guarda caiu, e mais um.
Uma tentativa de assassinato.
Isso não pode acontecer, Lucia pensou desesperada. Preciso muito perguntar a ela. Amara não pode morrer hoje.
Com muito esforço, Lucia acessou a magia do ar. Um vento frio e abundante envolvia seus braços e mãos em espirais transparentes enquanto ela avançava pela multidão em direção ao palco, usando a magia invisível
para tirar todo mundo de seu caminho. Os guardas kraeshianos pularam na multidão assustada e confusa com armas em punho e só provocaram mais pânico. Eles derrubavam quem os enfrentava ou cruzava seu caminho,
fossem rebeldes ou civis, o que só aumentou a confusão enquanto todos tentavam fugir.
Lucia se esforçou para enxergar o que estava acontecendo no palco. Amara e uma garota muito parecida com a criada que costumava acompanhar a princesa Cleo encolheram-se diante de um jovem alto que usava
um tapa-olho preto e empunhava uma espada.
A magia do ar frio de Lucia passou para a de fogo, pronta para queimar quem a impedisse de chegar a Amara. Alguém puxou seu manto, e ela olhou para a pessoa, pronta para fazê-la arder em chamas. Nicolo
Cassian olhou para ela, uma das mãos em seu manto, a outra pressionada contra um ferimento na barriga. Quando ele tossiu, sangue espirrou de sua boca.
Um ferimento mortal.
Lucia olhou de novo para o palco, mas um som engasgado a fez virar de novo para Nic, uma vítima dos guardas sedentos por sangue ou de um paelsiano assustado.
Não importava quem tinha feito aquilo. Ela conseguiu ver, com rapidez, que o ferimento era profundo e mortal. O que aquele garoto estava fazendo justamente ali?
Lucia não tinha magia suficiente para lutar contra milhares. Levou a mão à barriga ao observar a multidão, sabendo que precisava ir para um local seguro. Muitos estavam se pisoteando para voltar aos portões.
Ela deu um passo e então percebeu que Nic ainda a segurava.
- Prin... ce... sa... - ele disse, sem fôlego.
Ela o encarou, hesitante.
- Por favor... me ajude...
A vida se esvaía de seus olhos. Nic não tinha mais muito tempo. Mas ele era amigo próximo da princesa Cleo - uma garota que Lucia já tinha considerado uma amiga verdadeira, até ser traída por ela.
Mas o pai de Lucia tinha destruído a vida de Cleo, destruído todo o seu mundo.
Cleo tinha perdido tudo no último ano. Aquele amigo era o único resquício que a princesa auraniana tinha de sua antiga vida.
Se Nic morresse, Lucia não tinha dúvidas de que isso destruiria Cleo.
Lucia detestava quando sua consciência pesava, principalmente quando isso acontecia por causa de Cleiona Bellos.
Com cuidado, ela se agachou ao lado de Nic e afastou a mão que cobria o ferimento para, em seguida, levantar a túnica. Fez uma careta ao ver todo aquele sangue e as entranhas para fora.
- Diga a Cleo - Nic disse com esforço para respirar - que eu a amo... que ela é minha família... que eu... eu sinto muito.
- Poupe seu fôlego - Lucia disse. - E diga a ela você mesmo.
Lucia pressionou o ferimento cheio de sangue e canalizou toda a magia da terra que tinha dentro de si. Nic arqueou as costas e gritou de dor, e o grito estridente se espalhou pelo caos ao redor deles.
- Pare! Por favor! - Nic tentou impedi-la, afastá-la, mas estava fraco demais. Tinha perdido tanto sangue que Lucia não sabia se teria magia suficiente para curá-lo. Mas ainda assim, tentou. O capuz caiu
de sua cabeça, revelando o cabelo e o rosto, mas ela não se deu ao trabalho de puxá-lo de volta. Esgotou a energia e a força que tinha em uma tentativa de salvar aquele rapaz.
Pelo menos até alguém arrancá-la de perto dele. Ela virou, furiosa, e ficou frente a frente com um homem feio que escancarava um sorriso mostrando os dentes.
- Vejam o que encontrei! - ele anunciou, arrastando-a para longe de Nic até ela perdê-lo de vista. - A própria feiticeira atacando outro de nós! As mãos dela estão manchadas de sangue paelsiano!
Lucia tentou invocar magia do fogo ou do ar para afastá-lo, mas nada aconteceu. Ela fechou a mão, desesperada para fugir de quem a atacava.
- Olhe para mim, bruxa! - o homem disse.
Ela lançou um olhar para o homem, mas recebeu um tabefe no rosto tão forte a ponto de fazer seu ouvido zunir.
- Amarre-a! - alguém gritou. - Queime a bruxa como ela queimou nossos vilarejos!
Desorientada, ela foi arrastada pela terra seca, tropeçando nos próprios pés até seu agressor empurrá-la para longe. Ela caiu de joelhos com tudo no meio de uma roda de pessoas furiosas. Alguém jogou uma
pedra nela, acertando o lado direito de seu rosto com força, e Lucia gritou de dor. Levou a mão ao rosto e sentiu o sangue quente.
- Não sou quem você pensa que sou - ela conseguiu dizer. Levantou as mãos à frente do corpo. - Você precisa me soltar.
- Não, bruxa. Hoje você vai morrer por seus crimes cruéis. Estamos de acordo?
A multidão que a cercava expressou aprovação com gritos. Não havia misericórdia no olhar de ninguém. Alguém entregou uma corda grossa ao primeiro agressor.
- Deixe-a de pé - ele vociferou.
Alguém atrás de Lucia a levantou e amarrou seus punhos com força.
- Meus cumprimentos, princesa - uma voz estranhamente familiar soou em seu ouvido. - Pelo visto está causando mais problemas em Paelsia.
Jonas Agallon. Ela se esforçou para virar o suficiente e ver aquele olhar tomado de ódio.
- Jonas - ela disse -, por favor, precisa me ajudar!
- Ajudar? O quê? A grande e poderosa feiticeira não consegue se cuidar? - Ele estalou a língua. - Que tragédia. Parece que essas pessoas querem vê-la morta. Queimada viva, acho que foi o que ouvi, certo?
Parece um fim adequado para uma bruxa como você.
Sua mente estava a mil.
- Onde está meu pai? Meu irmão? Você sabe?
- É a última coisa com que você deveria se preocupar, princesa. Sinceramente. - Ele a virou e resvalou a mão na barriga dela.
Jonas franziu a testa.
- Isso mesmo - ela disse, agarrando todas as oportunidades que tinha de conseguir ajuda, ainda que fosse de alguém como ele. - Vocês vão tentar celebrar minha execução tão rápido agora que sabem que uma
criança inocente morrerá comigo?
- Inocente? - O olhar de Jonas não suavizou nem um pouco. - Nada que alguém como você poderia trazer a este mundo seria inocente.
- Eu não matei aquela moça. Foi Kyan. Ele... eu não consegui controlá-lo. Eu queria que ele parasse. Sinto muito por sua perda e me arrependo do que aconteceu naquele dia. Gostaria de poder mudar as coisas,
mas não posso.
- O nome daquela moça era Lysandra. - Jonas contraiu o maxilar, e ficou em silêncio por um momento enquanto os outros homens pediam para ir a um lugar mais adequado para queimar a bruxa. - Onde está Kyan?
- Eu... eu não sei - ela disse com sinceridade.
Jonas a encarou.
- Essa criança dentro de você drena sua magia, não é?
- Como sabe disso?
Ele franziu ainda mais a testa.
- Você já teria destruído tudo aqui se tivesse acesso a seus elementia, certo?
Ela apenas assentiu.
Jonas xingou em voz baixa.
- Eles precisam de você. Estão dependendo de você. E você está aqui, como uma idiota, prestes a morrer.
Se estivessem em outro lugar, em outro momento, ela teria ficado magoada ao ser chamada de idiota.
- Então faça alguma coisa em relação a isso. Por favor.
Depois de um momento de hesitação, Jonas empunhou a espada e a apontou para o homem que segurava a corda.
- Uma pequena mudança de planos. Vou levar a feiticeira comigo.
- Sem chance - o homem resmungou.
- Não há discussão. Estou vendo que nenhum de vocês está armado no momento. - Ele observou as pessoas do grupo. - Atitude estúpida, em uma multidão assim, não carregar uma arma, mas isso torna as coisas
mais fáceis para mim. Se nos seguirem, vão morrer. - Ele arregalou os olhos para Lucia. - Vamos, princesa.
Jonas pegou o braço dela e a puxou.
- Aonde vai me levar? - ela perguntou.
- Aos seus queridos pai e irmão. Que todos vocês apodreçam juntos na escuridão.
21
CLEO
PAELSIA
Quando percebeu que Nic, Jonas e Olivia tinham partido sem contar nada sobre seus planos, Cleo não ficou magoada. Ficou furiosa.
- Minha nossa, querida, você vai abrir um buraco no chão de tanto andar de um lado para o outro.
Cleo virou e viu Selia Damora olhando para ela. A mulher a deixava nervosa, mas felizmente as duas tinham se encontrado poucas vezes desde sua chegada. Era difícil acreditar que fazia só três dias que
estavam na hospedaria. Pareciam três anos.
- Meus amigos partiram sem se despedir - Cleo respondeu tensa, forçando-se a parar de roer a unha do polegar direito. - Considero esse comportamento imperdoavelmente grosseiro e desrespeitoso. Em especial
da parte de Nic.
- Sim, Nic. O rapaz de cabelo vermelho. - Selia sorriu. - Tenho certeza de que não fez por mal. Ele parece gostar de você.
- Ele é como um irmão para mim.
- Os irmãos costumam esconder segredos das irmãs.
- Mas não o Nic. - Cleo remexeu as mãos. - Contamos tudo um ao outro. Bom, quase tudo.
- Venha sentar comigo por um momento. - Selia sentou em uma espreguiçadeira e deu batidinhas no assento ao seu lado. - Quero saber mais sobre a esposa de meu neto.
Era a última coisa que Cleo queria, mas teve que fingir amabilidade. Seria inteligente de sua parte fazer amizade com uma mulher que logo teria acesso à magia, especialmente agora que a magia de Cleo tinha
sido roubada - ainda que Selia fosse uma Damora.
Só de pensar no que Ashur tinha feito, ela tremia de raiva. Como ele tinha conseguido roubar a esfera de obsidiana sem que ela notasse? Para Cleo, aquele cristal representava poder e um futuro repleto
de escolhas e oportunidades. Mas por ser preguiçosa e desatenta, a esfera tinha sido levada de baixo de seu nariz.
E não havia absolutamente nada que pudesse fazer.
Forçando um sorriso, Cleo sentou hesitante ao lado da senhora.
Selia não disse nada por um tempo, mas observou o rosto de Cleo com cuidado.
- O que foi? - Cleo perguntou finalmente, ainda mais desconfortável do que antes.
- Eu não tinha certeza antes... mas tenho agora. Vejo seu pai em você. Seus olhos são da mesma cor dos de Corvin.
A menção a seu querido pai a deixou tensa.
- Você tinha dúvidas a respeito de quem eram meus pais?
- No que diz respeito a meu filho e a... - ela hesitou - às dificuldades dele com sua mãe, sim, claro que tive muitas dúvidas ao longo dos anos. Achei que houvesse uma chance de Gaius ser seu pai.
O horror de pensar numa possibilidade daquelas a deixou enjoada de repente.
- Meu... meu pai? - Ela cobriu a boca com a mão. - Acho que vou vomitar.
- Ele não é seu pai. Tenho certeza disso agora que estou olhando para você.
Cleo tentou se manter calma, mas a insinuação inesperada da mulher a deixara atordoada.
- Minha... minha mãe não teria... de jeito nenhum...
- Sinto muito se a perturbei com isso. Mas não prefere ter certeza de que você e Magnus estão unidos apenas pelos votos e não pelo sangue? - Ela franziu a testa. - Minha nossa, você está muito pálida,
Cleiona.
- Nem sei por que sugere uma coisa dessas - ela disse.
- Não pensei que Gaius tivesse conseguido se encontrar com Elena depois da briga que tiveram, que sei que aconteceu bem antes de ela se casar com Corvin. Mas os filhos nem sempre contam tudo à mãe sobre
assuntos do coração, nem mesmo o filho mais atencioso e amoroso.
O modo como o rei expressara o que teriam sido suas últimas palavras, seu suspiro final, o nome da mãe dela... "Sinto muito, Elena".
- Só soube que eles se conheciam recentemente - Cleo disse, tensa.
- Eles se conheceram num verão vinte e cinco anos atrás na Ilha de Lukas, quando Gaius tinha dezessete anos, e Elena, quinze. Quando voltou para casa, Gaius já estava obcecado por ela, dizendo que iam
se casar com ou sem o consentimento do pai dele.
Cleo se esforçou para continuar respirando. Aquela história não parecia plausível. Soava como uma história de um livro cheio de fantasia e imaginação.
- Meu pai nunca disse nada a respeito... - Ela franziu a testa. - Ele sabia?
- Não faço ideia do que Elena pôde ter contado a Corvin sobre seus romances anteriores. Imagino que ele descobriu a verdade no fim das contas, ainda que apenas para se preparar melhor para proteger Elena.
- Protegê-la? Como assim?
A expressão de Selia ficou mais séria.
- Elena perdeu o interesse em Gaius quando voltou para casa. Não sei por quê. Imagino que fosse apenas uma novidade passageira para ela, uma maneira de passar o verão, conquistar o afeto de um garoto apaixonado.
Nada além disso. Quando descobriu essa mudança, Gaius... não aceitou muito bem. Confesso, amo meu filho profundamente, mas ele sempre teve um péssimo lado violento. Gaius foi atrás de Elena, exigindo que
seu amor fosse retribuído e, quando ela se recusou, ele a agrediu quase a ponto de matá-la.
Cleo sentiu mais uma onda de náusea. Sua pobre mãe, sujeita ao cruel Gaius Damora em sua pior versão.
Ela nunca detestara tanto o rei.
- Só espero que meu neto não seja exageradamente cruel com você a portas fechadas, minha cara - Selia disse delicadamente. - Homens poderosos, cheios de força e perigo... costumam ter acessos de violência.
As esposas e mães torcem para sobreviver a eles.
- Sobreviver? Não pode estar falando sério! Se Magnus um dia levantasse a mão para mim, eu...
- O quê? Você mal chega na altura do ombro dele, e Magnus deve ter o dobro do seu peso. A melhor coisa a se fazer nesse caso, Cleiona, é ser o mais agradável e compreensiva possível em todos os momentos.
Todas as mulheres devem fazer isso.
Cleo endireitou os ombros e levantou o queixo.
- Não tive o grande privilégio de conhecer minha mãe, mas se ela era um pouco parecida comigo ou um pouco parecida com minha irmã, então sei que ela não teria sido o mais agradável e compreensiva possível
diante de uma agressão, não importa de quem nem quando. Nem eu! Eu mataria quem tentasse me atacar!
Selia abriu um sorriso discreto.
- Meu neto escolheu uma garota com coragem e força para amar, assim como o pai dele. Eu estava testando você, é claro.
- Me testando?
- Olhe para mim, querida. Tenho cara de quem permitiria que um homem levantasse a mão para me bater?
- Não - Cleo respondeu com sinceridade.
- Exato. Fico feliz por termos conseguido conversar hoje, minha querida. Agora já sei tudo o que preciso saber.
Ela estendeu o braço, apertou a mão de Cleo e então saiu da sala.
Aquela tinha sido a conversa mais esquisita de toda a vida de Cleo.
- Talvez eu vá à taverna sozinha hoje - ela murmurou. - Por que Magnus é o único aqui que pode beber vinho em uma tentativa tola de fugir dos problemas?
Quando levantou, algo chamou sua atenção do lado de fora, nos fundos da hospedaria. Ela deu um passo para a frente. Olivia estava no quintal. Estranhamente, a moça não usava nada além de um lençol branco
enrolado no corpo, lençol que Cleo reconheceu das roupas de cama que a esposa do dono da hospedaria lavava todos os dias.
Independentemente da vestimenta, ver Olivia foi um grande alívio. Cleo levantou e saiu para se aproximar, observando ao redor com curiosidade.
- Olivia! Nic e Jonas estão com você? Aonde vocês foram?
A expressão de Olivia era de grande incerteza.
- Preciso sair de novo imediatamente, mas quis voltar antes para ver você.
- O quê? Aonde está indo?
- Está na hora de eu voltar para a minha casa. O caminho e o destino de Jonas se encontraram com sucesso, e meu tempo com ele está acabando.
- Desculpe. - Cleo balançou a cabeça, confusa. - O destino de Jonas? Do que você está falando, afinal?
- Não cabe a mim explicar essas coisas. Só sei que não posso mais cuidar dele, uma vez que talvez me sinta tentada a interferir. - Ela franziu a testa. - Isso deve soar ridículo para você. Sei que não
sabe quem sou de verdade.
- Você quer dizer que é uma Vigilante?
Olivia olhou para Cleo.
- Como sabe disso?
Cleo riu com hesitação ao ver a expressão de choque de Olivia.
- Jonas me contou. Ele confia em mim, você também deveria confiar. Prometo guardar seu segredo surpreendente, mas, por favor, me diga o que está acontecendo. Está chateada só por deixar Jonas?
- Não, não é o único motivo. Eu... eu fui ao complexo com Nic e Jonas, onde a imperatriz está no momento.
Cleo arregalou os olhos.
- Era onde você estava? Que plano imbecil foi esse?
- O príncipe Magnus ameaçou Nic - Olivia explicou. - Ele ameaçou você também, caso Nic não fosse atrás de Ashur para recuperar os cristais da Tétrade.
Cleo franziu a testa.
- Não pode ser. Magnus não faria isso.
- Garanto que fez. Caso contrário, Nic nunca teria se afastado de você. - Os olhos verde-esmeralda de Olivia brilharam de ódio. - É culpa do príncipe que isso tenha acontecido. Perdi Nic na multidão durante
a tentativa de assassinato de Amara. Eu o vi por apenas um momento quando ele foi atingido por uma lâmina. Eu... eu acredito que tudo terminou depressa.
Cleo balançou a cabeça quando a palma de suas mãos começou a arder e a suar.
- O quê? Não entendo. Ele foi atingido por uma lâmina? Que lâmina? Do que está falando?
A expressão de Olivia era só pesar.
- Nic está morto. Ele é um dos muitos mortos depois que os rebeldes fizeram uma tentativa de assassinato a Amara. Preciso sair de Mítica agora e peço a você que faça o mesmo. Você não está em segurança
aqui com alguém como Magnus, que mataria um rapaz como Nic. Não está certo, princesa, nada disso está certo. O mundo está fora de controle, e eu temo que seja tarde demais para salvá-lo. Sinto muito por
dizer isso, mas achei que você merecia saber.
Olivia soltou a mão de Cleo e deu alguns passos para trás, com uma expressão atormentada.
- Fique bem, princesa - ela disse. Depois disso, a pele escura e impecável se transformou em penas douradas, e seu corpo se transformou no de um falcão, e ela alçou voo.
Cleo a observou, surpresa demais com o que tinha ouvido para apreciar a magia verdadeira e inegável revelando-se diante de seus olhos.
Ela não sabia ao certo quanto tempo ficou em silêncio no pátio, olhando para o céu claro, até voltar para a hospedaria com dificuldade. Seus joelhos fraquejaram antes que ela alcançasse uma cadeira.
Seu corpo inteiro tremia, mas ela não chorou. Eram informações demais para processar. Inacreditável demais. Não podia ser verdade. Se fosse, se Nic estivesse morto, então ela também queria morrer.
- Você está bem? O que aconteceu?
Quando se deu conta do que estava acontecendo, Cleo percebeu que tinha sido levantada do chão por dois braços fortes.
- Está ferida? - Magnus afastou o cabelo dela da testa, envolvendo seu rosto com as mãos. - Que droga, Cleo, responda!
Confusa, ela percebeu a preocupação nos olhos castanhos profundos dele.
- Magnus... - ela começou, a respiração profunda e trêmula.
- Sim, meu amor. Fale comigo. Por favor.
- Diga a verdade.
- Claro. O quê? O que você precisa saber?
- Você ameaçou me matar se Nic não fosse atrás de Ashur?
A expressão sofrida dele, totalmente concentrada nela, aos poucos deu lugar à frieza da máscara que ele usava para encobrir suas emoções.
- Ele disse isso? Ele voltou?
- Responda. Você me ameaçou ou não?
Magnus encarou os olhos furiosos dela.
- Cassian precisava da motivação certa.
- Isso é um sim.
- Eu disse o que ele precisava ouvir para resolver a questão. Para...
Cleo deu um tapa tão forte no rosto dele que sua mão ardeu. Magnus levou a mão ao rosto e olhou para ela, atônito.
Ele franziu o cenho.
- Você ousa...
- Ele está morto! - Cleo gritou antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa. - Por causa do que você disse! Meu último amigo no mundo inteiro está morto por sua causa!
Ele parecia confuso.
- Não pode ser.
- Não pode? As pessoas não morrem quando se aproximam de você e de sua família monstruosa? - Ela passou os dedos pelo cabelo, desejando arrancá-lo pela raiz, desejando sentir dor física para poder se concentrar
em algo que não fosse seu coração despedaçado.
- Quem contou isso a você? - Magnus perguntou.
- Olivia voltou. Ela foi embora, então não pode forçá-la a fazer o que você quer.
- Olivia. Sim, bom, não sei quem Olivia é. Nem você. Só sabemos que ela é aliada de Jonas, um garoto que me odiava a ponto de me querer morto até pouco tempo atrás. Até onde sei, esse objetivo não mudou.
- Por que ela mentiria sobre algo assim? - A voz da princesa falhou.
- Porque as pessoas mentem para conseguir o que querem.
- Imagino que você saiba bem disso.
- Sim, e penso o mesmo sobre você, princesa - ele disse. - Entre nós dois, acho que você mentiu muito mais do que eu. Além disso, devo dizer que você viu Ashur morrer com seus próprios olhos, mas ele ainda
está vivo. Não existem provas de que Nic está morto. Só tem as palavras de alguém. Não se pode confiar em palavras, não nas palavras de qualquer um.
- Essa é a sua resposta? - Cleo olhou para ele, percebendo que mal conhecia a pessoa à sua frente. - Digo que um garoto que era como um irmão para mim foi morto por sua causa e você diz simplesmente que
mentiram para mim?
- É o que parece, não é?
- Você não assume responsabilidade por todo o mal que causou. Nunca! - Ela se esforçou ao máximo para se manter firme, para não se perder na dor e na raiva que entravam em conflito dentro dela. - Tentei
ver seu lado bom, mas você fez algo imperdoável. Vá em frente! - ela vociferou. - Tente se defender! Diga que Nic odiava você, então por que não desejaria que ele morresse? Vamos lá, faça isso!
- Não vou negar. A vida seria muito mais simples para mim se aquela pedra no meu sapato fosse retirada de uma vez por todas. Mas eu nunca desejaria a morte dele, porque sei como gosta dele.
- Gosto dele? Eu amo! - ela gritou. - E se ele realmente estiver morto, eu...
- O quê? Vai perder o resto de esperança que ainda tem? Vai se encolher e morrer? Por favor, você tem muito a ganhar ficando viva, lutando, mentindo e continuando a me usar sem pudor para conseguir o que
posso lhe dar.
Cleo olhou para ele, abismada.
- Usar você?
Magnus ficou sério.
- Você quer poder, magia. Ao ficar aqui comigo e tolerar a existência de meu pai, sabia que isso a levaria ao que deseja. Quando os cristais da Tétrade foram roubados, principalmente por sabermos o que
sabemos sobre eles, o que eu deveria pensar? Que você continuaria aqui para sempre? Fiz o que fiz por você, para ajudá-la a reaver sua chance de ter poder. Ashur parece valorizar Nic por motivos que não
compreendo. Se tem alguém que consegue entender aquele kraeshiano doido, eu sabia que era seu amigo querido. O mesmo amigo que mandou Taran cortar meu pescoço, devo relembrar.
Ele falava com Cleo como um desconhecido furioso, não como alguém que ela tinha passado a valorizar.
- E agora está me culpando por isso. Como ousa?
Magnus bufou.
- É impossível discutir com você.
- Então nem tente. Você não pode consertar isso, Magnus. Não pode nem começar.
- Se Nic ainda estiver vivo...
- Não importa. - Lágrimas correram por seu rosto. - Isso provou como somos diferentes. Você é incansavelmente cruel e manipulador, e agora vejo que isso nunca vai mudar.
- Posso ser sincero, princesa? Eu poderia dizer exatamente a mesma coisa sobre você. Talvez você preferisse que eu lidasse com o conflito colhendo flores e cantando, mas não sou assim. E você tem razão:
nunca vou mudar. Nem você. Uma hora você diz que me ama, mas prefere que cortem sua língua a contar esse segredo, até mesmo a seu amigo mais íntimo. Pelo amor da deusa! Que Nic não descubra que você se
mistura com pessoas como eu! Ele detestaria você por isso?
Cleo secou as lágrimas, irritada consigo mesma por demonstrar tamanha fraqueza.
- É muito provável que sim.
- Então isso prova que, entre ele e eu, você o escolheria.
- Num piscar de olhos - ela disse imediatamente. - Mas ele está morto.
Um músculo no rosto dele se contraiu.
- Talvez. E Jonas? Não pude deixar de notar que você estava praticamente sentada no colo dele ontem, sussurrando palavras de amor e incentivo.
- É o que você...? - Ela corou. - Jonas é muito mais homem do que você! Eu preferiria dormir com ele a dormir com você. Em qualquer dia, em qualquer momento. E nenhuma maldição me impediria.
- Vá para o inferno, Cleo. - O ódio tomou conta do olhar dele, que já estava frio. Magnus levantou o punho, os dentes travados em uma expressão feroz.
- Vamos - ela vociferou. - Bata em mim como seu pai batia na sua mãe. Você sabe que é o que quer.
- Como é? - Ele franziu a testa, olhou para o próprio punho com surpresa e o abaixou em seguida. - Eu... eu nunca agrediria você.
- Chega - ela disse, num sussurro. - Estou cansada daqui. Preciso pensar. - Ela se virou em direção à escadaria que levava aos quartos.
- Cleo... - Magnus chamou. - Vamos descobrir a verdade sobre Nic. Prometo.
- Eu já sei a verdade.
- Eu sei que posso ser horroroso às vezes. Eu sei. Mas... eu amo você. Isso não mudou.
Os ombros dela ficaram tensos.
- O amor não basta para consertar isso.
Sem olhar para trás, Cleo caminhou com o máximo de calma e lentidão até seu quarto e trancou a porta quando entrou.
22
JONAS
PAELSIA
Jonas teve que sair do complexo antes de encontrar Nic. Eles tinham sido separados depois da revolta rebelde. A multidão à espera da imperatriz tinha entrado em pânico, e as pessoas começaram a lutar umas
contra as outras e contra os guardas kraeshianos.
Sua visão do palco estava bloqueada, e ele se viu frente a frente com paelsianos irados e com a feiticeira que queriam matar.
- Pode olhar para mim com ódio - Lucia disse a ele enquanto se afastavam da confusão.
- Que bom que permite.
- Você me odeia. E, ainda assim, você salvou minha vida.
- É provável que eu tenha salvado a vida de uma dúzia de paelsianos que subestimaram sua capacidade de matar cada um deles.
- E você não me subestima?
- Não.
- Então sugiro que você me diga onde meu pai e meu irmão estão para que não tenha que colocar sua vida em risco por nenhum segundo a mais em minha companhia.
Jonas sabia que ela poderia cumprir uma ameaça, se quisesse. Ele temia quando pensava no poder daquela garota e no prejuízo e na destruição pela qual a responsabilizavam.
- Onde está o deus do fogo? - ele sussurrou.
Lucia arqueou as sobrancelhas. Jonas percebeu que ela estava chocada por ele saber quem - ou melhor, o que - Kyan era de fato.
- Já disse que não sei.
- Ele é o pai de seu filho?
Lucia deu uma risada alta e nervosa.
- Com certeza não.
- Não vejo graça nenhuma nisso.
- Não se engane, rebelde, nem eu.
- Continue andando - ele disse quando Lucia diminuiu o ritmo. - Pelo jeito você está pesada demais para ser carregada.
A resposta de Lucia ao insulto foi parar totalmente. Os dois tinham adentrado uma parte densa da floresta a caminho da cidade mais próxima, onde Jonas pretendia conseguir transporte para o oeste.
- Responda à minha pergunta: onde estão meu pai e meu irmão? Sei que ainda estão vivos. Só podem estar.
- Se eu responder à sua pergunta, que certeza posso ter de que você não vai acabar com a minha vida? - ele perguntou.
- Nenhuma.
- Exatamente. Por isso mesmo vou levá-la até eles.
Lucia se surpreendeu.
- Então eles estão vivos!
- Talvez - ele disse.
- E como posso acreditar que você quer me ajudar?
Jonas virou e levantou o dedo indicador para ela.
- Não se engane, princesa Lucia, não estou fazendo isso para ajudá-la. Estou fazendo isso para ajudar Mítica.
Ela revirou os olhos.
- Que nobre.
- Pense o que quiser. Não me importa. Você se recusa a responder às minhas perguntas, então me recuso a responder às suas. Nosso destino final não está muito longe, mas você precisa encontrar uma maneira
de lidar com minha presença e com meu ódio durante o trajeto que vamos percorrer juntos.
- Acho que não. Vou contar um segredinho para você, rebelde, a respeito de uma habilidade especial que descobri recentemente. Posso forçar você a dizer a verdade... e quanto mais resistir, mais vai doer.
Jonas virou para encará-la de novo, mais irritado do que intimidado.
- Você sempre foi má assim ou só começou quando descobriu que era uma feiticeira?
- Sinceramente? - Ela abriu um sorriso frio. - Só depois.
- Acho difícil acreditar nisso. Você e sua família... são maldade pura, todos vocês.
- E ainda assim você está nos ajudando. - Lucia franziu a testa discretamente. - Pelo menos, diga que estão bem, que saíram ilesos depois de tudo o que aconteceu.
- Ilesos? - Ele sorriu com ironia. - Não sei de nada. Finalmente tive a chance de enfiar uma adaga no coração do rei. Por azar, isso só o atrapalhou um pouco.
Os olhos dela brilharam, furiosos.
- Mentira.
- Bem aqui. - Ele indicou o peito. - Certeiro e profundo. Até girei. Foi tão bom que não consigo nem explicar.
Um instante depois, ele se viu no ar, voando até bater as costas no tronco de uma árvore com força suficiente para tirar seu fôlego.
Lucia se ajoelhou ao lado dele, apertando sua garganta.
- Olhe para mim.
Desorientado, Jonas encarou os olhos azul-claros dela.
- Diga a verdade - ela rosnou. - Meu pai está morto?
- Não. - A palavra foi dita com dificuldade.
- Você o apunhalou no coração mas ele não morreu?
- Exatamente.
- Como isso é possível? Responda!
Jonas não conseguia desviar daqueles olhos lindos e assustadores. A magia que ela tinha perdido - se é que isso de fato havia acontecido - estava de volta. E Lucia estava bem mais forte do que ele esperava.
- Algum tipo de magia... Não sei. Isso prolongou a vida dele.
- Magia de quem?
- Da mãe.... dele. - Jonas tinha certeza de que estava sentindo gosto de sangue, forte e metálico. Ele engasgou enquanto tentava resistir à magia.
Ela franziu ainda mais a testa.
- Minha avó morreu.
- Ela está viva. Não sei muito mais do que isso. - Ele fez uma careta pela dor de estar contando todas aquelas verdades. - Agora, me faça um favor, princesa.
Ela inclinou a cabeça, mas não cedeu nem um pouco.
- Dificilmente.
Jonas semicerrou os olhos e tentou, com toda a força, canalizar a própria magia como tinha feito sem querer no navio com Felix.
- Me solte.
Lucia soltou Jonas e caiu para trás como se tivesse sido empurrada pelo rebelde.
Tossindo e com a mão no pescoço, Jonas levantou e olhou para ela.
Percebeu que esboçava um sorriso. Olivia deveria estar enganada sobre o poder de sua magia. Jonas se permitiu um breve momento de vitória.
Lucia o encarou, com os olhos arregalados.
- Você pode canalizar a magia do ar? Um bruxo? Nunca soube sobre algo assim... Ou você é um Vigilante exilado?
- Prefiro evitar títulos, princesa - ele disse. - E, francamente, não sei o que sou, só que tenho que lidar com isso agora. - Ele levantou a camisa o suficiente para revelar a marca em espiral em seu peito,
que tinha ficado mais brilhante desde a última vez em que ele olhara, e agora cintilava num tom dourado que o fazia lembrar cada vez mais da marca de um Vigilante.
- O quê? - Lucia balançou a cabeça com os olhos arregalados. - Não compreendo.
- Nem eu. E juro, se essa é minha profecia, cuidar para que alguém como você volte para sua odiosa família sã e salva, vou ficar furioso. - Ele olhou para cima, para as árvores. - Olivia, está me ouvindo
onde quer que esteja? É a pior profecia do mundo!
- Quem é Olivia?
- Deixa para lá. - Ele olhou para Lucia, ainda deitada no chão. - Levante.
Ela tentou ficar de pé.
- Hum...
- Não consegue levantar, não é?
- Me dê um minuto. Minha barriga está um pouco esquisita no momento. - Lucia olhou feio para ele. - E, por favor, nem pense em me ajudar.
- Não pensei. - Jonas ficou observando enquanto ela rolava devagar e com dificuldade para o lado, e então levantava, batendo no manto para tirar as agulhas de pinheiro e a terra. - Você ainda não está
acostumada com sua situação? Já vi paelsianas grávidas, a poucos dias de dar à luz, cortando madeira de uma árvore inteira e carregando para casa.
- Não sou uma paelsiana - ela disse e hesitou. - Bem, não exatamente. E não tive tempo de me acostumar com minha "situação", como você diz.
Que moça esquisita.
- Você está grávida de quantos meses?
- Não que seja da sua conta, mas... cerca de um mês.
Jonas olhou para o corpo dela sem acreditar.
- É assim que funciona com as feiticeiras cruéis? Os bebês delas se desenvolvem muito mais depressa do que os bebês normais?
- Não tenho como saber. - Lucia cruzou os braços como se tentasse proteger a barriga. - Compreendo seu ódio por mim. Compreendo o ódio de todos por mim. O que fiz desde... desde que o pai desta criança
morreu é imperdoável. Sei disso. Mas essa criança é inocente e merece uma chance de viver. O fato de você, logo você, ter vindo ajudar alguém como eu... Você está marcado como imortal, mas afirma não ser
bruxo nem exilado. Isso deve significar alguma coisa. Você fala sobre profecias. Sei bem que sou o alvo de profecias. Para mim, isso quer dizer que essa criança é importante para o mundo.
- Quem é o pai? - Jonas perguntou. Ele não queria sentir pena pelo que Lucia estava passando nem deixar que a voz dela o emocionasse.
- Um imortal exilado.
- E você disse que ele está morto.
Ela assentiu uma única vez.
- Como? - Jonas perguntou. - Você o matou?
Lucia ficou em silêncio por tanto tempo que ele achou que ela não responderia.
- Não. Ele tirou a própria vida.
- Interessante. É essa a única maneira de escapar de suas garras sombrias?
O olhar de ódio de Lucia o fez recuar. Mas era mais do que isso. Os olhos dela estavam vermelhos, numa mistura de cansaço e tristeza.
- Desculpa - Jonas disse antes de pensar em outra resposta. - Acho que fui desnecessariamente grosseiro.
- Foi. Mas eu não esperaria nada menos de alguém que pensa que sou cruel. O que Kyan fez com sua amiga...
- Lysandra - ele disse com a voz embargada. - Ela era incrível... A garota mais forte e corajosa que já conheci. Ela merecia a vida que Kyan lhe roubou sem um segundo de hesitação. Ele estava mirando em
mim, eu deveria ter morrido naquele dia, não ela.
Lucia assentiu com tristeza.
- Sinto muito. Percebo que Kyan não é uma pessoa, não é alguém com sentimentos e necessidades como as dos mortais, e não é possível discutir com ele. Kyan vê todas as falhas e imperfeições deste mundo.
Ele deseja reduzir tudo a cinzas para poder recomeçar. Diria que ele é maluco, mas é fogo. Fogo arde. Destrói. Essa é a razão de sua existência.
- Kyan quer destruir o mundo - Jonas repetiu.
Ela confirmou.
- Por isso eu o deixei. Por isso ele quase me matou quando eu disse que não o ajudaria mais.
Jonas demorou um momento para absorver a informação.
- Você diz que o fogo destrói. Mas o fogo também cozinha comida e nos aquece em noites frias. Esse tipo de fogo não é cruel, é um elemento que usamos para viver.
- A única certeza que tenho é de que ele precisa parar. - Ela levou a mão ao bolso do manto e tirou uma pequena esfera de âmbar. - Esta era a prisão de Kyan.
Jonas ficou sem palavras por um momento.
- E você acha que pode prendê-lo de novo aí dentro e salvar o mundo?
- Pretendo tentar - ela disse apenas.
Ele observou o rosto de Lucia, determinado e sério olhando para a esfera de cristal. Ela parecia muito sincera. Podia acreditar nela?
- Pelo que sei a respeito do deus do fogo, a imperatriz não parece ser grande ameaça, certo?
Lucia guardou a esfera no bolso de novo.
- Ah, Amara provou que é uma ameaça. Mas Kyan é bem pior. Por isso, pode me considerar cruel, rebelde. Pode me considerar alguém que precisa morrer pelos crimes que cometi. Tudo bem. Mas saiba também que
quero tentar consertar parte do que fiz agora que consigo pensar com clareza de novo. Primeiro, preciso ver minha família. Preciso... - As palavras de Lucia foram interrompidas quando ela se inclinou para
a frente e chorou.
Jonas correu para o lado dela.
- O que foi?
- Dói! - ela disse. - Está acontecendo com muita frequência desde que saí. Ah... ah, minha nossa! Não consigo...
Lucia caiu de joelhos com as mãos na barriga.
Jonas olhou para ela, sentindo-se totalmente impotente.
- Droga. O que posso fazer? O bebê já está nascendo? Por favor, não me diga que o bebê já está nascendo.
- Não, não está... Acho que ainda não está na hora. Mas isso... - Quando ela gritou, o som atingiu Jonas como uma lâmina fria. - Me leve para minha família! Por favor!
O rosto da princesa estava pálido como papel em contraste com seu cabelo escuro. Ela revirou os olhos e caiu, inconsciente.
- Princesa - ele disse, tentando acordá-la. - Vamos, não temos tempo para isso.
Lucia não acordou.
Jonas virou e olhou para o conflito. Não demoraria muito para a multidão paelsiana encontrar armas e sair em busca dele e da feiticeira.
Finalmente, xingando em voz baixa, ele se abaixou e pegou a princesa nos braços, percebendo que ela era muito mais leve do que imaginava, mesmo com o bebê que esperava.
- Não temos tempo para ir até sua família - ele disse. - Por isso vou levá-la à minha. Estão muito mais perto.
A irmã de Jonas, Felicia, abriu a porta de casa e observou Jonas por um momento, em silêncio total.
Em seguida, olhou para a garota grávida e inconsciente que ele carregava nos braços.
- Posso explicar - ele se apressou em dizer.
- Espero muito que possa. Entre. - Ela abriu mais a porta para Jonas entrar, tomando o cuidado de não bater as pernas de Lucia no batente.
- Deixe-a na minha cama - Felicia disse a Jonas. Ele fez o que sua irmã disse e voltou até ela, mas a irmã não o recebeu com um abraço. Simplesmente ficou ali, a expressão séria e furiosa, os braços cruzados.
Jonas não esperava que ela ficasse feliz ao vê-lo.
- Sinto muito por não ter vindo visitá-la - ele começou.
- Não tenho notícias suas há quase um ano e você aparece hoje de repente.
- Precisava de sua ajuda. Com... a garota.
Ela riu.
- Sim, com certeza precisa. O filho é seu?
- Não.
Ela não pareceu convencida.
- E o que você espera que eu faça por ela?
- Não sei. - Ele coçou a testa e começou a andar de um lado para o outro na casa pequena. - Ela não está bem. Sentiu dor na barriga e desmaiou. Eu não sabia o que fazer.
- Por isso a trouxe para cá.
- Eu sabia que você me ajudaria. - Ele suspirou nervoso. - Sei que você está brava comigo por eu ter passado muito tempo longe, mas era perigoso demais voltar.
- Sim, eu vi seus cartazes de procurado. O que era aquilo? Dez mil cêntimos para quem capturasse você, morto ou vivo?
- Mais ou menos isso.
- Você matou a rainha Althea.
- Não matei. É uma longa história.
- Imagino.
Ele observou ao redor, à procura de algum sinal do marido da irmã.
- Onde está Paolo?
- Morto.
Jonas a encarou.
- O quê?
- Foi tirado de mim, forçado a trabalhar para a Estrada Imperial. Eles queriam o nosso pai também, mas decidiram que, devido à idade e ao fato de mancar, ele era inútil. Paolo não voltou quando os operários
finalmente foram liberados de suas tarefas. O que devo pensar além de que foi morto com os outros paelsianos que eram tratados como escravos?
Jonas olhou para ela em choque. Paolo foi um bom amigo quando a vida era difícil, mas simples.
- Felicia, sinto muito. Eu não imaginava...
- Não, tenho certeza de que não imaginava. Assim como tenho certeza de que não pensou que manter aquela princesa dourada presa em nosso abrigo quase causaria a morte dele também.
- Claro que eu não sabia disso. - Ele olhou para o chão de terra. - Você... você disse que nosso pai não foi levado?
- Não foi, mas assim que soube da morte do chefe, ficou muito doente... doente de pesar, diferente de qualquer coisa que tenha sentido quando a mamãe e o Tomas morreram. É como se a vontade que ele tinha
de viver tivesse desaparecido. Eu o perdi faz dois meses. Agora cuido do vinhedo. São dias sobrecarregados, Jonas, com pouca ajuda.
Seu pai tinha morrido e Jonas não ficara sabendo. Ele sentou numa cadeira deixando o peso do corpo desabar.
- Sinto muito por não ter estado ao seu lado. Não sei o que dizer.
- Não há nada a dizer.
- Quando isso acabar, quando este reino voltar a ser como deveria, vou voltar. Vou ajudar você a cuidar da vinícola.
- Não quero sua ajuda - ela respondeu, e a raiva que Felicia estava controlando até aquele momento transbordou. - Consigo me virar sozinha. Bom, acho que já conversamos mais do que o suficiente. Vamos
cuidar de seu problema para você poder ir embora o mais rápido possível. Não sou curandeira, mas já ajudei muitas mulheres grávidas.
- O que você puder fazer para ajudar será muito bem-vindo. Eu só esperava que você soubesse acabar com a dor.
- Algumas gestações são mais difíceis do que outras. Quem é ela? - Ela lançou um olhar incisivo para ele quando não obteve resposta. - Diga, Jonas, ou mando você embora.
Felicia estava diferente, mais dura, mais zangada. Cada palavra dita por ela fazia Jonas se encolher.
Ele se sentia um idiota por pensar que quando voltasse nada teria mudado, mesmo depois de tanto tempo. Pensou em enviar uma mensagem, perguntar como as coisas estavam, mas não o fez. E o tempo tinha passado.
- Ela é Lucia Damora - ele respondeu com sinceridade, já que devia isso a Felicia.
Ela arregalou os olhos, chocada.
- O que você estava pensando ao trazer essa bruxa má aqui para dentro? Ela não é bem-vinda em minha casa. Tem noção do que ela fez? Um vilarejo que fica a menos de vinte quilômetros daqui foi incendiado.
Todos os moradores foram mortos por causa dela. Ela merece morrer pelo que fez.
Cada palavra parecia um golpe, e Jonas não tinha o que argumentar.
- Talvez sim, mas no momento a magia dela é necessária para salvar Mítica. Para salvar o mundo. Você não deixaria uma criança inocente sofrer por causa das escolhas da mãe, deixaria?
Ela deu uma risada seca.
- Ouça só você, defendendo uma princesa real... De Limeros, ainda por cima! Quem é você, Jonas? No que meu irmão se transformou?
- Amara não pode controlar Mítica - ele disse. - Estou disposto a fazer o que for preciso para impedi-la.
- Você está cego como uma toupeira, irmão. A imperatriz é a única que pode salvar a todos nós. Ou será que você esqueceu o passado com tanta facilidade agora que sua cabeça está tomada por aquela droga
cruel que está dormindo na minha cama?
- Minha cabeça não está tomada por ninguém - ele resmungou. - Mas sei o que é certo.
- Então precisa acordar. A imperatriz é o melhor que já aconteceu em Paelsia há gerações.
- Você está errada.
- Não estou errada - ela disse, e a raiva em sua voz finalmente deu lugar ao cansaço. - Mas não vou me dar ao trabalho de convencê-lo de algo que sei que é certo. Você se perdeu de nós, Jonas. Consigo
ver em seus olhos. Você não é o mesmo garoto que cresceu desejando ser como Tomas, que ia caçar com ele na fronteira de Auranos, que ia atrás de todas as garotas do vilarejo. Não sei mais quem você é.
Ele sentiu uma pontada no peito ao pensar que a tinha decepcionado tanto.
- Não diga isso, Felicia.
Ela deu as costas para ele.
- Vou deixar você e aquela criatura passarem a noite aqui. E só. Se ela morrer por causa da dor que está sentindo, então deixe-a morrer. O mundo vai ficar melhor sem ela.
Jonas deitou no chão de terra, ao lado do fogo, a mente em disparada.
Quando chegou ali, pelo menos tinha um senso de direção, de propósito. Precisava levar Lucia até a família dela.
Os Damora. O Rei Sanguinário que tinha oprimido seu povo. Que tinha assassinado o chefe Basilius. Que tinha mentido para dois exércitos sobre os motivos que deram início a uma guerra com os auranianos.
Felicia tinha razão. Amara Cortas tinha acabado com tudo aquilo ao ocupar Paelsia.
Como foi que ele pegou aquele caminho? Era um rebelde, não o criado tímido de um rei sádico.
Jonas demorou muito para conseguir dormir. Em um sonho, ele se viu em um campo verdejante sob o céu azul e límpido. Ao longe, uma cidade que parecia feita de cristal brilhava sob o sol.
- Jonas Agallon, finalmente nos conhecemos. Olivia me contou muito sobre você. Sou Timotheus.
Jonas virou e viu um homem que parecia só alguns anos mais velho do que ele. Seu cabelo tinha um tom bronze escuro, os olhos, acobreados. Usava vestes que desciam até a grama cor de esmeralda.
- Você está em meu sonho - Jonas disse devagar.
Timotheus arqueou uma sobrancelha.
- Que dedução brilhante. Sim, estou.
- Por quê?
- Imaginei que teria muitas perguntas para me fazer.
Apesar de tudo o que sentia por estar frente a frente com o imortal sobre o qual Olivia havia contado pouco, não sentiu surpresa nem cansaço.
- Perguntas que você vai responder?
- Algumas, talvez. Outras, provavelmente não.
- Não, tudo bem. Só me deixe dormir. Estou cansado e não quero ter que desvendar enigmas.
- O tempo está passando. A tempestade está quase aqui.
- Você fala assim, tão vago e irritante, com todo mundo?
Timotheus inclinou a cabeça.
- Na verdade, sim. Falo, sim.
- Não gosto. E não gosto de você. O que quer que isso seja - Jonas indicou a marca em seu peito -, quero que desapareça. Não quero nenhuma ligação com sua gente. Sou paelsiano. Não sou um Vigilante, nem
bruxo, nem o que você acha que sou.
- Essa marca torna você muito especial.
- Não quero ser especial.
- Você não tem escolha.
- Sempre tenho escolha.
- Seu destino está escrito.
- Vá se ferrar.
Timotheus hesitou.
- Olivia disse que você é irredutível em suas observações. No entanto, tenho certeza de que percebeu que agora tem um pouco de magia. A magia de Phaedra. A magia de Olivia. Você as absorveu como uma esponja.
Sua condição é rara e, repito, especial. As visões que tive de você são importantes.
- Certo. As visões. A profecia na qual levo Lucia Damora para a família dela.
- É o que você acha?
- Parece que é aonde meu destino está me levando.
- Não, não exatamente. Você vai saber quando acontecer. Vai sentir...
- O que sinto no momento é a necessidade de enfiar uma faca na sua barriga. - Jonas olhou para o imortal. - Ousa entrar no meu sonho agora, depois de todo esse tempo? Olivia me ajudou a ficar vivo, seguindo
o que você mandou. Acho que ela não precisa mais de mim. Ou talvez esteja me espionando lá de cima como um falcão, como todos vocês fazem. A única coisa da qual tenho certeza é que estou cansado disso.
Não importa o que você tem a dizer. Você espalha meias verdades como se a vida dos imortais fosse uma brincadeira.
Timotheus falou mais baixo.
- Não é uma brincadeira, meu jovem.
- Ah, não? Prove! Diga qual é meu destino, se acha que não posso evitá-lo.
Timotheus o observou.
- Não previ a gravidez de Lucia - ele admitiu. - Foi uma surpresa para mim, assim como tenho certeza de que foi para ela. Foi mantida em segredo de todos nós pelos Criadores, e deve haver um motivo para
isso... um motivo importante. Eu via você como alguém que ajudaria Lucia durante a tempestade...
- De que tempestade está falando?
Timotheus levantou a mão.
- Não me interrompa. Estou sendo sincero com você como nunca fui com ninguém, porque agora vejo que não há tempo para mais nada.
- Então, desembucha - Jonas disse. Ele estava frustrado com tudo na vida, e ele queria descontar naquele imortal pomposo.
- O filho de Lucia terá muita importância. Muitos desejarão sequestrar a criança ou matá-la. Você vai proteger essa criança do perigo e vai criá-la como se fosse seu filho.
- É sério? E Lucia e eu seremos o quê? Vamos nos casar e viver felizes para sempre? Duvido.
- Não. Lucia vai morrer no parto na próxima tempestade. - Ele afirmou com firmeza, franzindo a testa. - Estou vendo agora, claramente. Antes eu achava que a magia dela pudesse ser transferida a você no
momento da morte, transformando você em um feiticeiro que pudesse caminhar entre os mundos, cujo destino fosse aprisionar os deuses da Tétrade depois de serem libertados. Mas a magia de Lucia vai perdurar
no filho dela.
Jonas o encarou boquiaberto, surpreso com a revelação.
- Ela vai morrer?
- Sim. - Timotheus deu as costas para ele. - É só o que posso contar. Boa sorte, Jonas Agallon. O destino de todos os mundos está nas suas mãos agora.
- Não, espere! Tenho perguntas! Você precisa me contar o que tenho que fazer...
Mas Timotheus desapareceu naquele instante, assim como o campo e a cidade à distância.
Jonas acordou e viu a irmã o chacoalhando.
- Amanheceu - ela disse. - Sua amiga está acordada. Está na hora de vocês saírem da minha casa.
C O N T I N U A
11
JONAS
MAR PRATEADO
Devagar, a luz voltou a seu mundo, e Jonas abriu os olhos. Olivia o encarava com ternura e alívio.
- Fico feliz de ver que finalmente voltou para nós - ela disse.
Ele resmungou e estendeu os braços.
- Fiquei inconsciente por quanto tempo?
- Quatro dias.
Ele arregalou os olhos e sentou com um pulo.
- Quatro dias?
Ela fez uma careta.
- Você não ficou inconsciente o tempo todo, se isso melhora a situação. Acordou algumas vezes, delirante e agitado.
- Não, isso não melhora em nada, na verdade. - Jonas levantou do catre e cambaleou até o espelho. A estranha espiral ainda estava em seu corpo, agora muito mais intricada e com um desenho muito mais detalhado
do que o símbolo simples da magia do ar. Ele tinha esperanças de que não tivesse passado de um pesadelo.
- Eu tenho a marca de um Vigilante - ele disse.
- Então você sabe o que é.
- Phaedra tinha uma. - A Vigilante que tinha sacrificado a vida imortal para salvar a dele tinha provado quem (e o que) era ao mostrar sua marca a Jonas. Mas a dela era diferente. Tinha a mesma forma,
mas era uma marca dourada que se movimentava em círculos sobre a pele, como se quisesse provar suas origens mágicas. - E sei que você tem uma também.
- Tenho. - Olivia abriu um pouco o manto e mostrou um pequeno pedaço de uma marca dourada sobre a pele escura. Ele havia tido apenas alguns vislumbres da espiral, quando Olivia se transformava em falcão.
Jonas deu as costas para o espelho para encarar os olhos cor de esmeralda da Vigilante.
- Não vou implorar, Olivia. Vou simplesmente pedir para você, por favor, falar mais sobre isso, sobre a profecia que existe sobre mim. Tentei negar que fosse real, mas agora preciso saber. O que está acontecendo
comigo? Eu estou... - Ele se esforçou para verbalizar os pensamentos. - Estou me transformando em um de vocês?
A ideia soava tão absurda que Jonas se arrependeu de suas palavras assim que as proferiu. Mas o que mais poderia pensar?
Ela torceu as mãos e, por um instante, Jonas achou que Olivia pudesse tentar escapar, assumir a forma de falcão e sair voando para evitar suas perguntas. Mas, em vez disso, ela suspirou e sentou na beirada
do catre enquanto ele esperava em pé, tenso, perto da escotilha.
- Não exatamente - ela respondeu. - Mas você é, de fato, um mortal raro, Jonas Agallon. Tocado por nossa magia em dois momentos muito vulneráveis de sua vida, ambos quando estava muito perto da morte.
Tocado por mim, quando curei seu ombro, e por Phaedra, depois que foi atingido pelo soldado limeriano. Você não sabe como isso é atípico.
Eram dois momentos da vida que ele preferia esquecer.
- Talvez eu não saiba mesmo. Então me conte.
- Eu estava lá quando Phaedra deu a vida pela sua. Observei do alto de outra barraca na forma de falcão.
Ele respirou fundo.
- Estava?
Ela assentiu, séria.
- Observei horrorizada quando Xanthus tirou a vida dela, e a vi retornar para a magia de que todos nós fomos criados. E vi um pouco dessa magia entrar em seu corpo, apenas segundos depois do momento em
que você poderia ter morrido sem a intervenção dela.
- Eu... eu não senti nada.
- Não, não era para sentir. Não deveria sentir. E não faria diferença nenhuma se não fosse pela magia do próprio deus do fogo surgindo por perto. Acabou fortalecendo a magia de Phaedra dentro de você.
Mas não seria suficiente para isso acontecer. - Olivia apontou para a marca, que ele coçava sem perceber. - Eu usei magia da terra para curar seu ombro quando você estava à beira da morte mais uma vez,
e vi que a absorveu como uma esponja. Aquela magia ficou dentro de você, somando-se à de Phaedra, assim como Timotheus previra.
Jonas tentou entender, tentou negar, tentou impedir que seu coração batesse como as asas de um pássaro preso em seu peito. Mas então, de repente, lhe ocorreu que não deveria tentar negar uma notícia tão
incrível.
- Tenho elementia dentro de mim - ele disse com uma voz rouca. - Isso significa que posso usá-los para combater Kyan e expulsar Amara de Mítica. - Quanto mais ele considerava essa possibilidade, mais animado
ficava. - Preciso subir e contar para os outros. Eles devem estar tão confusos com o que aconteceu, com o que fiz com Felix... Mas isso é incrível, Olivia! Vai fazer toda a diferença.
Ele era um bruxo! Tinha negado a existência dos elementia e daqueles que os detinham durante toda sua vida, e agora tinha essa mesma magia na ponta dos dedos.
Olivia segurou seu braço quando ele foi na direção da porta.
- Não é tão fácil assim, Jonas. Timotheus não previu que você seria um praticante de magia, apenas um veículo para ela.
- Um veículo? Impossível. Você testemunhou o que fiz. Arremessei Felix pelo convés com... magia do ar, não foi?
- É verdade. Mas foi uma anomalia. Foi apenas um sinal de que a magia que existe dentro de você amadureceu. E aquele gasto de energia o deixou inconsciente durante quatro dias.
Jonas balançou a cabeça. A frustração tomou conta dele, acabando com sua empolgação.
- Não entendo.
Olivia afrouxou a mão que segurava seu braço.
- Eu sei, e peço desculpas pela confusão. Timotheus mantém seu conhecimento muito reservado, já que não confia em muitos imortais, nem mesmo em mim. Ele não compartilhou a extensão de sua profecia comigo
por medo de que eu contasse para você e você tentasse evitá-la. - Ela fechou a boca. - Já falei demais.
Ele resmungou.
- Você revelou o suficiente para me deixar louco de curiosidade e apreensão.
- Você não pode contar isso a ninguém.
- Não posso? - Ele apontou para a porta. - Todos me viram fazer aquilo no convés. O que devo fazer? Negar?
- Na verdade, sim. - Ela ergueu o queixo. - Expliquei a eles que fui a responsável. Que vi, do alto, Felix acertar você e que estou aqui justamente para protegê-lo. É claro que acreditaram em mim.
Jonas a encarou.
- Eles acreditaram que você interferiu com sua própria magia?
- Sim.
- E não posso falar nada sobre isso?
- Não. Nem uma palavra. - Ela ficou séria. - É perigoso demais. Alguns o perseguiriam se soubessem que é um mortal repleto de magia imortal.
- Magia imortal que não posso usar. - Ele observou o próprio punho, lembrando como havia brilhado no convés.
- Se não acredita em mim, você precisa ver com seus próprios olhos. - Ela apontou para a porta. - Tente abrir essa porta com a magia do ar que canalizou com tanta facilidade com Felix.
Parecia um desafio. Jonas olhou para além de Olivia e franziu a testa, concentrando-se, enquanto levantava a mão na direção da porta. Ele se esforçou tanto para tentar invocar a magia que existia dentro
de si que sua mão começou a tremer, seu braço começou a oscilar... mas nada aconteceu.
- Isso não significa nada - ele resmungou. - Só preciso praticar.
- Talvez - Olivia disse com delicadeza. - Só sei o pouco que me contaram.
Decepcionado, Jonas deixou o braço cair.
- Claro, ninguém ia querer que as coisas fossem fáceis para mim. Ser um bruxo, utilizar os elementia à vontade... Ninguém ia querer isso, não é?
- Na verdade, seria incrivelmente útil para você.
Jonas lançou um olhar feio para ela.
- Você não está ajudando.
- Sinto muito. - Olivia fez uma careta. - Os outros estão preocupados com você. Ficarão felizes em saber que finalmente acordou.
Jonas foi até a escotilha e observou a imensidão do mar.
- Quanto falta para chegarmos em Paelsia?
- Estamos quase chegando.
- Dormi quase o caminho todo. - Ele soltou um suspiro trêmulo ao tentar aceitar tudo o que havia aprendido. Negar seria perder um tempo que eles não tinham. - O que eu perdi?
- Não muito, na verdade. Taran continua afiando a espada na expectativa de matar o príncipe Magnus, Felix ainda está sofrendo com enjoos, Ashur passa a maior parte do tempo em seus aposentos meditando,
e Nic fica espreitando por aí. Quando o príncipe aparece, ele o observa de uma maneira um tanto curiosa.
- Pedi para o Nic ficar de olho em nosso príncipe residente. É melhor não confiar nos kraeshianos, nem mesmo naquele que diz não ser nosso inimigo.
Jonas suspirou enquanto apertava as amarras da camisa.
- Certo, estamos quase em Paelsia. Ótimo.
- Ótimo? - ela repetiu.
Ele assentiu com firmeza.
- Se existe uma profecia que exige que eu seja um veículo dos elementia, quero saber sobre ela o quanto antes. E isso não vai acontecer enquanto estivermos em alto-mar, vai?
- Não, não vai - ela concordou. - Mas, de verdade, Jonas, não sei nada além disso. Sinto muito.
Ele assentiu.
- Seja o que for, eu aguento. Tenho certeza de que já enfrentei coisa muito pior no passado.
Para isso, Olivia não tinha resposta.
Jonas tentou ao máximo não se preocupar.
12
MAGNUS
PAELSIA
Como a viagem dos Glaciares a Basilia levaria pelo menos três dias a cavalo, não havia tempo a perder com as paradas constantes de um rei moribundo e uma mulher velha. Selia arrumou uma carruagem fechada
para levá-la junto com seu filho.
Quando Magnus sugeriu que Cleo fosse com eles e não montada num cavalo para não enfrentar o terrível frio, foi reprimido com um olhar cortante.
Aquilo queria dizer "não".
Gaius os orientou por um caminho que permitia que passassem toda noite em uma hospedaria de alguma cidadezinha, onde descansavam, comiam e dormiam em quartos separados e trancados.
Sete longas noites se passaram sem Magnus poder dormir com Cleo em seus braços, mas todas as noites sonhava com ela e com o chalé na floresta. Nos momentos em que estavam acordados, ele preferia não compartilhar
essa informação com ela. Não queria que ficasse convencida demais por provocar tal efeito nele, então guardava para si o desejo constante de tocá-la e beijá-la.
No último vilarejo onde ficaram, Enzo e Milo foram encarregados de buscar roupas adequadas para todos se passarem por viajantes inofensivos de passagem por Paelsia. Conseguiram encontrar vestidos de algodão
para Selia e Cleo e calças de couro simples e túnicas de lona para si mesmos, Magnus e Gaius.
Magnus olhou a própria túnica creme com repulsa.
- Não tinha nada preto?
- Não, vossa alteza - Enzo disse.
- Cinza-escuro?
- Não. Só essa cor e azul-claro. Achei que não ia gostar muito do azul. - Enzo limpou a garganta. - Mas posso voltar à loja.
Ele suspirou.
- Não, tudo bem. Fico com essa mesmo.
Pelo menos o manto e as calças eram pretos.
Ele saiu, pronto para dar início à última parte da viagem rumo à cidade da costa oeste, e encontrou Cleo, parecendo uma linda camponesa com seu vestido simples, sorrindo para ele ao lado de seu cavalo.
- Você parece um paelsiano - ela comentou.
- Não precisa me insultar, princesa - ele resmungou, contendo um sorriso quando montaram os cavalos e começaram a andar.
Praticamente uma pequena eternidade depois - que na verdade não passou de meio dia - finalmente e felizmente chegaram ao seu destino.
Magnus já tinha ouvido muitas histórias sobre Basilia, a cidade mais próxima de uma capital que Paelsia tinha. A cidade atendia aos navios que visitavam o Porto do Comércio e os membros da tripulação ávidos
por desembarcar em busca de comida, bebida e mulheres.
As histórias eram verdadeiras.
À primeira vista - e ao primeiro cheiro - Basilia era superpovoada e fedia a dejetos humanos e putrefação. Havia dezenas de navios atracados no porto, com as tripulações inundando a costa e se misturando
nas ruas, tavernas, hospedarias, nos mercados e bordéis da cidade litorânea. E, ao que parecia, tão quente quanto Auranos no ápice do verão.
- Repulsivo.
Magnus viu que o rei Gaius tinha aberto a janela da carruagem para espiar o centro da cidade com aversão. Seus olhos estavam vermelhos, e os círculos escuros sob eles pareciam hematomas recentes em contraste
com a palidez da pele.
- Desprezo este lugar - ele comentou.
- Sério? - Magnus perguntou, conduzindo o cavalo ao lado da carruagem. - Acho encantador.
- Não acha, não.
- Acho. Eu gosto dessa... cor local.
- Você não mente tão bem quanto pensa.
- Acho que posso apenas aspirar chegar aos seus pés no quesito falsidade.
O rei olhou feio para ele, depois alternou o olhar para Cleo, que cavalgava em frente a Magnus e atrás dos guardas.
- Princesa, se lembro corretamente, foi em um mercado não muito longe desta cidade em que você esteve com lorde Aron e o filho do vendedor de vinhos que ele matou, não foi?
Magnus logo ficou tenso e observou a princesa esperando a resposta. Cleo demorou alguns segundos para responder, mas o príncipe podia ver a tensão em seus ombros pelo fino material do vestido.
- Isso faz muito tempo - ela disse finalmente.
- Imagine como as coisas teriam sido diferentes se você não tivesse ido atrás de vinho aquele dia - o rei continuou. - Nada seria como é agora, não é?
- Não - ela disse, olhando para trás. - Por exemplo, você não teria caído e quase morrido depois de perder seu reino para uma mulher. E eu não estaria vendo seu fracasso com tanta alegria no coração.
Magnus conteve um sorriso e olhou para o pai, aguardando a contestação.
A única resposta foi uma janela fechada, bloqueando a visão do rosto do rei.
A carruagem parou em uma hospedaria chamada Falcão e Lança que, apesar de um leve cheiro de suor misturado a almíscar, Magnus considerou o estabelecimento mais aceitável da cidade. O rei Gaius desceu da
carruagem com a ajuda de Milo e Enzo e entrou na hospedaria, seguido por Selia, e logo subornou o dono para expulsar todos os hóspedes para que o grupo real tivesse privacidade total.
Enquanto os hóspedes saíam com um desfile de resmungos, Magnus assistia à Cleo observar a sala de convivência da hospedaria paelsiana com reprovação. Era um cômodo grande, com teto baixo, com cadeiras
de madeira desgastadas e mesas lascadas, onde os hóspedes podiam comer e passar o tempo.
- Não se enquadra no seu padrão de qualidade? - Magnus perguntou.
- Até que está bom - ela respondeu.
- Não é uma hospedaria auraniana com camas de pluma, lençóis importados e urinol dourado. Mas me parece aceitavelmente limpa e confortável.
Cleo virou as costas para uma mesa na qual alguém havia entalhado as próprias iniciais. Um sorriso brilhante passou por seus lábios.
- Sim, para um limeriano, acho que sim.
- De fato. - Os lábios da princesa eram uma distração grande demais, então Magnus virou e se juntou a seu pai e sua avó, que estavam parados perto das grandes janelas, olhando para os estábulos onde os
cavalos estavam sendo acomodados.
- E agora? O que vamos fazer? - Magnus perguntou à avó.
- Pedi para a esposa do dono da hospedaria ir até a taverna no fim da estrada e entregar uma mensagem pedindo para uma velha amiga minha nos encontrar aqui - Selia disse.
- A senhora não poderia ter ido?
- Ela talvez não me reconhecesse. Além disso, não é uma conversa que ouvidos curiosos podem escutar. A magia que procuro deve ser protegida a qualquer custo. - Ela encostou a mão sobre o braço de Gaius.
Havia um brilho de suor na testa do rei, que estava apoiado na parede como se fosse a única coisa que o mantivesse de pé.
- E o que devemos fazer até ela chegar? - Gaius perguntou com uma voz enfraquecida substancialmente desde a chegada.
- Você vai descansar - Selia respondeu.
- Não há tempo para descanso - ele disse com raiva. - Talvez eu saia para procurar algum carpinteiro por perto para fazer um caixão para me transportar de volta para Limeros.
- Por favor, pai - Magnus disse, permitindo um pequeno sorriso. - Fico feliz em fazer isso por você. Deve fazer o que minha avó pediu e descansar.
O rei olhou feio para ele, mas não falou nada.
- Vou levá-lo ao seu quarto. - Selia envolveu o braço no filho, conduzindo-o pelo corredor na direção da escadaria, e subindo para os quartos no segundo andar.
- Excelente ideia - Cleo disse, bocejando. - Também vou subir para o meu quarto. Por favor, avise quando a amiga da sua avó chegar.
Magnus esperou que ela saísse, depois fez um sinal para Enzo segui-la. Ele pedira para o guarda tomar cuidado extra com a proteção da princesa. Enzo era um dos poucos em quem Magnus confiava para a tarefa.
- O que devo fazer? - Milo perguntou ao príncipe.
Magnus passou os olhos pelo salão, que também continha uma pequena estante com livros velhos, nada parecida com a vasta seleção que passou a valorizar na biblioteca do palácio auraniano.
- Patrulhe os arredores - Magnus disse, pegando um livro aleatório da estante. - Certifique-se de que ninguém tenha percebido que o antigo rei de Mítica está temporariamente por aqui.
Milo deixou a hospedaria e Magnus tentou se concentrar na leitura de um volume sobre a história da produção de vinho em Paelsia, que não mencionava nada sobre a magia da terra que com certeza era responsável
pelo sabor da bebida, ou sobre as leis que proibiam sua exportação para outros lugares, à exceção de Auranos.
Depois de trinta páginas inúteis, a esposa do dono da hospedaria, uma mulher pequena que parecia ter um constante sorriso nervoso estampado no rosto, voltou com outra mulher mais velha, com rugas em volta
dos olhos e da boca, de aparência extremamente comum, usando um vestido antiquado e desmazelado. Magnus pensou que devia ser a mulher que Selia tinha mandado chamar.
Quando a esposa do dono da hospedaria desapareceu na cozinha, a mulher mais velha observou o local que parecia vazio, até seu olhar recair sobre Magnus.
- Então a senhora é a resposta para todos os nossos problemas, não é? - ele perguntou.
- Depende de quais são seus problemas, meu jovem - ela respondeu sem rodeios. - Gostaria de saber por que me chamou aqui.
- Não foi ele, fui eu - Selia disse, descendo a escadaria de madeira do outro lado do corredor que levava aos quartos, no segundo andar. - E é porque estou em busca de uma velha amiga. Você me reconhece
depois de todos esses anos?
Por um momento profundamente silencioso e agonizantemente longo, a mulher encarou Selia com uma mistura estranha de fogo e gelo no olhar. Justo quando Magnus começou a temer que tivessem cometido um erro
ao confiar em sua avó, a mulher abriu um grande sorriso, com rugas de alegria aparecendo no canto dos olhos.
- Selia Damora - ela arrulhou com um tom de voz muito mais gentil do que ao entrar na hospedaria. - Pela deusa, como senti sua falta!
As duas mulheres correram uma na direção da outra e se abraçaram.
- Devo chamar os outros? - Magnus perguntou. Quanto antes sua avó conseguisse o que precisava da mulher, mais rápido poderiam sair daquele lugar.
- Não, isso não precisa ser discutido em grupo - Selia respondeu sem tirar os olhos da amiga. - Também senti sua falta, Dariah.
- Onde esteve durante todo esse tempo? Já perdi a conta de quantos anos se passaram!
- O que importa é que estou aqui agora. Para ser franca, estou um pouco surpresa por você ainda estar em Basilia.
- Nunca poderia abrir mão do lucro da minha taverna, cada ano é melhor do que o anterior. Tantos marinheiros com dinheiro para gastar e sede para matar...
- Muitos tipos de sede, sem dúvida.
Dariah piscou.
- Exatamente. - Ela se virou para Magnus. - E quem é esse jovem?
- É meu neto, Magnus. Magnus, esta é minha amiga Dariah Gallo.
- Muito prazer. - Magnus forçou o melhor sorriso que conseguiu, mas sabia que pareceria mais uma careta.
- Minha nossa! Seu neto ficou tão alto e bonito!
Selia sorriu.
- Sim, os netos às vezes fazem isso quando chegam aos dezoito anos.
Dariah passou os olhos enrugados por Magnus de alto a baixo.
- Se eu fosse mais nova...
- Se fosse mais nova, teria que lutar com a jovem esposa dele por sua atenção.
Dariah riu.
- E talvez eu vencesse.
Magnus teve uma vontade repentina de voltar à leitura do livro sobre vinho paelsiano.
Selia juntou-se à amiga nas risadas e depois voltou a adotar um tom sério, porém amigável.
- Não vim a Basilia apenas para reencontrar uma velha amiga. Preciso de informações sobre como conseguir a pedra sanguínea.
Dariah arregalou os olhos.
- Minha nossa, Selia, você não perde tempo.
- Não tenho tempo a perder. Meu poder foi diminuindo no decorrer dos anos e meu filho está morrendo.
No instante silencioso que se seguiu, Magnus ficou quieto. Essa pedra, se fosse real, parecia algo que poderia ajudá-lo a aumentar seu poder, como a Tétrade.
Selia levou Dariah na direção da estante. Fez sinal para que ela se sentasse em um banco de madeira ao seu lado, depois segurou as mãos da outra bruxa.
- Não tenho escolha. Preciso dela.
- Você sabe que não está comigo.
- Não está. Mas você sabe com quem está.
Dariah balançou a cabeça.
- Não posso fazer isso.
- Estou pedindo para você entrar em contato com ele. Sei que pode encontrá-lo. Ele precisa vir o mais rápido possível.
Mil perguntas surgiram na cabeça de Magnus, mas ele permaneceu em silêncio, escutando.
Um poder como esse entregue diretamente em suas mãos. Parecia muito mais simples do que o processo complicado de encontrar a Tétrade.
A expressão da bruxa se tornou sombria.
- Ele nunca vai permitir que você fique com ela, nem mesmo por um instante.
Selia apertou ainda mais a mão da amiga.
- Deixe que eu lide com ele quando chegar aqui.
- Eu não sei...
Selia semicerrou os olhos.
- Sei que já faz muito tempo, mas sinto que terei que mencionar o favor que você me deve. Favor que prometeu retribuir por completo.
Dariah ficou encarando o chão.
Magnus observava, quase sem respirar. Aos poucos, a bruxa levantou os olhos, o rosto pálido. Ela concordou com um pequeno aceno de cabeça.
- Vou levar um tempo para atraí-lo para cá.
- Ele tem três dias. Será um problema?
A bruxa ficou tensa ao levantar.
- Não.
- Obrigada. - Selia levantou e deu dois beijos no rosto de Dariah. - Eu sabia que você ia me ajudar.
O sorriso de quando se cumprimentaram agora já não passava de uma lembrança.
- Aviso assim que ele chegar.
Dariah não demorou - lançou um último olhar para Selia e Magnus e deixou a hospedaria.
- Bem... - Magnus disse depois que tudo voltou a ficar em silêncio. - A senhora deve ter feito um belo favor para sua amiga.
- De fato foi. - Selia olhou para Magnus com um pequeno sorriso no rosto. - Agora vou ver como seu pai está. A saúde dele é minha única preocupação no momento. Quando minha magia estiver restaurada e ele
estiver bem novamente, podemos enfrentar os outros obstáculos que estão em nosso caminho.
- Vou me esforçar para ser paciente - Magnus disse, sabendo que com certeza fracassaria.
Àquela altura a noite já tinha caído, e Magnus se retirou para seu pequeno quarto. Havia uma cama de tamanho normal, e não os catres inaceitáveis do quarto comunitário no fim do corredor. A janela tinha
vista para a rua iluminada com lampiões e ainda movimentada, com cidadãos e visitantes mesmo depois de anoitecer.
Ele ouviu uma batida fraca na porta.
- Entre - Magnus disse, sabendo que podia ser apenas uma das quatro pessoas com quem havia chegado a Paelsia.
A porta se abriu devagar e, quando o visitante se revelou, o coração de Magnus começou a bater mais rápido. Cleo o encarava.
Ele levantou e a encontrou na porta.
- A amiga da minha avó esteve aqui.
- Já? - Ela arqueou as sobrancelhas. - E?
- E... - Ele balançou a cabeça. - Parece que seremos obrigados a esperar mais três dias por aqui.
- Mas ela vai conseguir a pedra sanguínea?
- Sim - Magnus respondeu. - Reencontrei minha avó há pouco tempo, mas ela me parece o tipo de mulher que consegue praticamente tudo o que quer.
- E tudo para essa pedra mágica salvar a vida de seu pai - Cleo disse sem nenhuma emoção, mas com uma dureza no fundo dos olhos azuis.
- Ele não merece viver - Magnus afirmou, concordando com o que não tinha sido dito. - Mas essa pode ser uma medida necessária para alcançarmos nosso objetivo maior.
- Encontrar Lucia.
- Sim. E acabar com a sua maldição.
Cleo assentiu.
- Suponho que não haja outra forma.
Ele a observou cauteloso.
- Você veio ao meu quarto apenas em busca de informações ou tem mais alguma coisa que deseja esta noite?
Cleo levantou o queixo para encarar diretamente em seus olhos.
- Na verdade, preciso de sua ajuda.
- Com o quê?
- Todas essas andanças a cavalo acabaram com meu cabelo.
Magnus levantou uma sobrancelha.
- E você veio aqui para pedir minha ajuda para cortá-lo e, assim, ele deixar de ser um problema?
- Como se você fosse permitir. - Ela riu. - Você é obcecado pelo meu cabelo.
- Eu não chamaria de obsessão. - Ele enrolou um cacho daquela seda dourada no dedo. - É mais uma distração, muitas vezes dolorosa.
- Peço desculpas por seu sofrimento. Mas você não vai cortar meu cabelo, nem hoje, nem nunca. A esposa do dono da hospedaria foi gentil e me deu isso. - Ela mostrou uma escova de cabelo com cabo prateado.
Magnus pegou o objeto da mão dela, observando-o com um olhar examinador.
- Você quer que eu...?
Cleo assentiu.
- Escove meu cabelo.
A ideia era ridícula.
- Agora que fui obrigado a me vestir como um paelsiano comum você está me confundindo com um criado?
Ela lançou um olhar determinado para Magnus.
- Eu não poderia pedir para Milo ou Enzo... ou, pelo amor da deusa, para seu pai ou sua avó me ajudarem.
- E quanto à esposa do dono da hospedaria?
- Está bem. - Cleo arrancou a escova da mão dele, fazendo careta. - Vou pedir a ela.
- Não, não. - Ele soltou um suspiro, achando graça. - Eu ajudo.
Sem hesitar, ela devolveu a escova a Magnus.
- Fico feliz.
Ele abriu caminho para deixá-la passar. Cleo entrou, sentou na beirada da cama e olhou para ele cheia de expectativa.
- Feche a porta - ela disse.
- Não é uma boa ideia. - Magnus deixou a porta entreaberta e lentamente sentou ao lado dela. Meio sem jeito e receoso, como se estivesse prestes a limpar um animal pela primeira vez, ele levou a delicada
escova aos cabelos dela.
- Nunca fiz isso antes.
- Para tudo existe uma primeira vez.
Que cena ridícula deve ter sido: Magnus Damora, filho do Rei Sanguinário, escovando o cabelo de uma jovem a seu pedido.
E ainda assim...
Sempre que Magnus assumia uma tarefa, preferia ser dedicado, usando suas habilidades da melhor maneira possível. Ele se empenhava da mesma forma naquele momento, ao pegar uma mecha do longo e sedoso cabelo
de Cleo e deslizar a escova por ela. O calor das madeixas passava entre seus dedos, causando um arrepio prazeroso em suas costas.
- Você tem razão - ele disse em voz baixa. - Está terrivelmente embaraçado. Acho que de modo irreparável.
Magnus estava apenas provocando Cleo - seu cabelo estava perfeito, como sempre foi -, mas então ele chegou ao primeiro nó.
Ela se encolheu.
- Ai.
- Desculpe. - Ele ficou paralisado, mas depois franziu a testa. - Mas você me pediu para fazer isso.
- Sim, eu sei! - Ela suspirou. - Por favor, continue. Estou acostumada a ser torturada por minhas criadas, e elas estão acostumadas a ignorar meus gritos de dor. Você não vai conseguir me machucar mais.
Só Nerissa tem capacidade de fazer isso sem causar dor.
- Sim, ouvi falar das habilidades de Nerissa - Magnus comentou, sem conseguir conter um sorriso. Agora, tendo uma imagem mais completa do histórico de penteados de Cleo, ele encarou a tarefa com mais determinação.
- Tanto cabelo, tantas oportunidades para formar nós... Por que as mulheres se dão ao trabalho?
- Talvez eu devesse fazer tranças, como uma líder paelsiana?
- Sim, imagino que seria um estilo adequado a uma princesa auraniana, mesmo quando forçada a usar um horroroso vestido de algodão - ele respondeu com ironia, sem deixar transparecer como estava se divertindo
com aquela imagem. - Todas as garotas de Mítica iam querer copiar. - Com o maior cuidado possível, ele foi passando a escova por outra parte do cabelo que parecia um ninho de passarinho amarelo-claro.
- Você precisa saber que pretendo reivindicar a pedra sanguínea para mim.
- Eu já imaginava - ela respondeu.
Aquilo o surpreendeu.
- Imaginava?
Cleo assentiu, e os cabelos escaparam das mãos de Magnus, cobrindo a tentadora nuca dela.
- Vi em seus olhos quando Selia mencionou a pedra. Foi o mesmo olhar que vi em seu pai.
- E que olhar é esse?
- Não importa.
Magnus largou a escova. Com gentileza, tocou Cleo pelos ombros até praticamente fazê-la virar de frente para ele, depois segurou seu queixo com cuidado.
- Importa, sim. Que olhar eu e meu pai compartilhamos?
Ela o encarou nos olhos, cautelosa.
- Um olhar frio de ganância, como se fossem capazes de matar pela pedra.
- Entendo.
Cleo analisou o rosto dele, como se procurasse respostas.
- Naquele momento, você parecia tão frio quanto seu pai. E eu... eu não gostei.
A vida toda, disseram que ele se parecia muito com seu pai - tanto fisicamente quanto em temperamento. Com o tempo, ele aprendeu a não refutar as comparações, embora nunca tivessem deixado de incomodá-lo.
- Devo admitir, descobri há pouco tempo que preciso ser como meu pai. Há certas situações que praticamente exigem que eu seja o mais frio e brutal possível. Se eu fosse derramar lágrimas por cada vida
que tirei no último ano, já estaria seco como uma casca de árvore. Então, sim, acho que sou como meu pai em muitos sentidos.
- Não - Cleo sacudiu a cabeça. - Não é possível.
- Por que está dizendo isso?
- Sinceramente? - Ela chegou mais perto, segurando seu rosto entre as mãos. - Porque eu nunca quis fazer isso com seu pai.
Ela roçou os lábios de leve nos dele. Um pequeno gemido de tortura emergiu do fundo da garganta de Magnus enquanto ele se forçava a cerrar os punhos para não a agarrar no mesmo instante.
- Princesa...
- Cleiona... - ela o corrigiu, os lábios ainda a uma distância perigosa. - Embora eu precise admitir que já não gosto tanto de ter recebido o nome de uma imortal que roubou e matou em nome do poder.
- Verdadeiros líderes costumam ser implacáveis o suficiente para roubar e matar. Se não o fizerem, outra pessoa o fará.
- Uma filosofia encantadora e, receio, muito verdadeira. Mas talvez possamos pensar em outro nome para você se referir a mim quando estivermos juntos.
Ele arqueou a sobrancelha.
- Vou pensar nisso.
- Ótimo. - Ela mordeu o lábio, chamando atenção de novo para sua boca. - Agora, feche a porta. Com chave.
- Essa é uma sugestão muito, muito perigosa.
- Ou deixe aberta. Talvez eu não me importe. - Cleo o beijou mais uma vez, abrindo os lábios. Ele sentiu sua compostura e seu comedimento se esvaindo em uma velocidade perigosa quando a língua dela encostou
na sua.
- Realmente não quero dizer não - ele sussurrou junto aos lábios dela.
- Então não diga.
Magnus gemeu de novo quando as mãos dela desceram por seu peito e por baixo de sua túnica, deslizando sobre seu abdome e tórax sem nenhuma barreira. Ele a agarrou pela cintura e a pressionou na cama, cobrindo-a
por completo com o próprio corpo. Cleo era tão pequena, mas, ainda assim, tão forte e apaixonada.
Como um mundo insensível pôde criar uma criatura tão linda? Se a beleza dela não fosse um presente da deusa, sem dúvida tinha sido um presente da mãe...
De repente, Magnus levantou em um pulo, cobrindo a boca com o dorso da mão.
- O que foi? - Cleo perguntou assustada, o rosto corado.
Ele ficou em pé e pegou seu manto.
- Preciso de uma bebida. Vou dar uma olhada na taverna no fim da estrada.
Cleo ficou deitada, observando-o, com os cachos dourados embaraçados caídos sobre os ombros até a cintura.
Profunda e dolorosamente tentadora.
- Eu entendo - ela disse em voz baixa.
Ele estava prestes a sair sem mais nenhuma palavra, mas virou-se para ela e disse:
- Antes de sair, quero que saiba de uma coisa. No dia em que essa maldição for quebrada, prometo que a porta de qualquer quarto em que estivermos será trancada, e não vou deixar nada nos interromper.
Com isso, Magnus virou as costas e a deixou lá, olhando para ele.
Sim, ele precisava desesperadamente de uma bebida.
- Vinho - Magnus resmungou para o atendente quando entrou na taverna pobre, porém animada, conhecida como A Videira Púrpura. Ele colocou várias moedas sobre o balcão. - Fique atento e complete meu copo
sempre que notar que está vazio - ele instruiu. - E nada de conversa.
O atendente abriu um sorriso forçado, depois recolheu as moedas do balcão com ganância, guardando-as em uma bolsa velha, caindo aos pedaços.
- Muito bem.
Ele fez o que Magnus pediu e prestou muita atenção ao nível de líquido da taça. Quando Magnus começou a beber gole após gole do doce vinho paelsiano, a noite começou a ficar muito mais clara. Da última
vez que bebera vinho, tinha voltado para o palácio limeriano e encontrado sua esposa fazendo um discurso. Ela logo foi interrompida por inimigos que quase não o deixaram escapar com vida. Depois daquela
experiência, ele tinha considerado renunciar completamente à bebida.
A visita de Cleo a seu quarto naquela noite com certeza o obrigava a revogar aquela promessa.
- Nossa atração de hoje vai deixá-lo mais animado, amigo - disse o atendente, apesar de Magnus ter pedido silêncio. Magnus estava prestes a repreendê-lo quando o homem indicou com a cabeça o meio da taverna.
- Prometo que a Deusa das Serpentes será uma imagem espetacular para os olhos.
Deusa das Serpentes? Magnus revirou os olhos e apontou para a própria taça.
- Mais.
Alguém do outro lado da enorme taverna pediu silêncio para a multidão vociferante enquanto o atendente servia mais vinho para Magnus.
- Todos venerem nossa bela residente! - o homem berrou do outro lado do estabelecimento. - Curvem-se diante de seu incrível poder! E saúdem a Deusa das Serpentes!
A multidão reagiu com gritos e assovios quando uma jovem de cabelo escuro, pouca roupa e uma cobra pendurada no pescoço apareceu sobre o pequeno palco. Ao lado do palco havia um trio de músicos que começou
a tocar uma canção exótica que, para Magnus, soava mais selvagem do que encantadora. Quando a música começou a crescer, a jovem passou a se contorcer no que poderia ser considerado um tipo de dança, mas
para Magnus parecia mais a oferta de uma cortesã.
Ele esvaziou o copo sem saber ao certo quantas vezes tinha repetido o movimento desde que chegara, mas não importava. Não agora que as coisas pareciam tão melhores do que antes, quando o desejo por Cleo
quase o cegou diante do perigo.
Talvez eles pudessem dividir um quarto, ele pensava enquanto assistia àquela mulher estranha se sacudir pelo palco. Talvez um elixir para evitar a gravidez fosse proteção suficiente.
Ou talvez ele devesse se concentrar no fato de seu reino ter sido roubado, seu pai estar à beira da morte enquanto sua avó tenta salvá-lo com uma pedra mágica, sua irmã estar aliada com um homem que pretendia
conquistar Mítica à base do fogo, e Cleo carregar uma maldição. O fato de ele estar enlouquecendo de desejo por sua esposa de fato era a menor de suas preocupações.
De repente, alguma coisa chamou sua atenção: um lampejo de cabelo ruivo. Aquela cor de cabelo era mais rara em Paelsia do que a do cabelo de Cleo. Ele não conseguiu deixar de se lembrar de Nicolo Cassian,
a única pessoa que ele conhecia com aquela cor infeliz de cabelo.
Magnus riu ao pensar naquilo. Não, Nic devia estava em segurança em Kraeshia - ou nem tão seguro assim, na verdade, mas Magnus não se importava. O idiota tinha se voluntariado para se juntar a Jonas em
sua missão fracassada de matar o rei.
Ele voltou sua atenção para a Deusa das Serpentes. Quando pensou que estava começando a entender o ritmo de seus movimentos, ela parou, fazendo um sinal para os músicos pararem de tocar.
- É você? - ela perguntou. O salão agora estava em silêncio. A Deusa das Serpentes estava claramente se dirigindo a alguém específico, mas Magnus não conseguia ver de onde estava. Ele só conseguia ver
a crescente empolgação no rosto pintado da dançarina enquanto sua expressão transparecia cada vez mais certeza. - Jonas! - ela gritava agora com mais confiança. - Jonas, é você mesmo? Meu querido, achei
que estivesse morto!
Jonas?
Devia ser mais uma estranha coincidência.
A dançarina desceu do palco e se embrenhou no meio da multidão, de onde puxou um jovem de cabelo escuro.
Magnus ficou paralisado. Ele esticou o pescoço, tentando ver por entre as cabeças dos outros clientes. A dançarina jogou os braços em volta do jovem, rodopiando abraçada a seu visitante, até que ele se
virou na direção de Magnus.
Chocado e boquiaberto, Magnus ficou observando fixamente aquela cena.
Era Jonas Agallon. Ali, na mesma taverna.
- Quem diria? - disse uma voz familiar ao lado dele, verbalizando seus próprios pensamentos. Uma onda de desgosto tomou conta de Magnus antes mesmo de se virar e descobrir o que já sabia: aquele ruivo,
Nicolo Cassian, estava bem ao lado dele. - Você!
Nic cutucou o ombro dele, deixando escapar uma gargalhada quando derramou um pouco de cerveja de sua enorme caneca.
- Parece que o destino está finalmente lhe dando o troco, não acha, vossa alteza? E fico mais do que feliz de testemunhar isso.
- Estou vendo que sua visita a Kraeshia não ajudou a diminuir seu charme - Magnus disse, espantado por ter bebido a ponto de arrastar as palavras tanto quanto Nic.
Nic sorriu, mas seus olhos desfocados não demonstravam nenhum humor.
- Príncipe Magnus Damora, gostaria que conhecesse um amigo meu.
Irritado pelo uso de seu nome em um estabelecimento público, Magnus virou, esperando encontrar algum rebelde qualquer. Mas, em vez disso, encontrou um rosto que só via em pesadelos.
- Theon Ranus - ele exclamou. O calor agradável e o formigamento proporcionado pelo vinho desapareceram em um instante, deixando-o profunda e desoladamente frio ao encarar aquela aparição.
- Está enganado - disse o jovem, um lembrete fatal da primeira pessoa que Magnus havia matado na vida. Com um olhar frio repleto apenas de obstinação e ódio, ele puxou uma faca e a colocou junto à garganta
de Magnus. - Sou o irmão dele, seu filho da puta.
13
CLEO
PAELSIA
- Aonde está indo, princesa?
As palavras a fizeram parar na porta principal da Hospedaria Falcão e Lança. Cleo olhou para trás e viu Enzo parado nas sombras.
- Vou à taverna no fim da estrada - ela disse. - Não que seja da sua conta.
- Está tarde.
- E...?
Enzo endireitou os ombros.
- Acho que seria melhor ficar aqui em segurança, princesa.
- Aprecio sua opinião, mas discordo. Magnus está lá. Estou surpresa, e um pouco consternada, por você não ter ido junto. E se ele for reconhecido?
- O príncipe deixou bem claro que meu único dever é garantir sua segurança, princesa.
Ela piscou rápido, como se tentasse disfarçar a surpresa daquela revelação interessante.
- Sério? Bem, isso torna as coisas muito mais fáceis. Você virá comigo buscar o príncipe e garantir que nenhum de nós corra perigo.
Cleo não lhe deu tempo para argumentar ao virar as costas e sair da hospedaria, deixando a porta aberta para Enzo segui-la e puxando o capuz do manto para cobrir o cabelo e proteger o rosto.
Enzo a seguiu sem dizer mais nada enquanto Cleo prestava atenção nas pessoas na rua, nas carruagens que passavam, no ruído do casco dos cavalos batendo na estrada de cascalho. Ela seguiu o som das risadas
embriagadas e da música para chegar à taverna que sem dúvida tinha sido o destino de Magnus. Sobre as grandes portas de madeira havia uma escultura de bronze de alguns cachos de uva em uma videira.
Ela leu a placa:
- A Videira Púrpura. Que nome apropriado para uma taverna em Paelsia. E bastante óbvio.
O príncipe gostava tanto do sabor do vinho que não se importava com o que aconteceria se alguém o reconhecesse. Magnus adorava tanto beber que estava disposto a arriscar ser morto no meio de um bando de
paelsianos. E que jeito idiota de morrer seria, Cleo pensou.
- Já ouvi falar desse lugar - Enzo disse, observando a entrada. - Nerissa já trabalhou aqui atendendo mesas.
Ela levantou uma sobrancelha.
- É mesmo?
Ele assentiu.
- Ela disse que foi uma experiência interessante.
- Eu não fazia ideia de que ela tinha morado em Paelsia.
- Nerissa morou em todos os lugares, ao que parece. Diferente de mim, que até agora nunca tinha me aventurado para fora de Limeros. Ela deve me achar tedioso.
- Posso garantir que ela não acha nada disso.
Ouvir Enzo falar de sua amiga fazia o coração de Cleo doer. Ela não tinha dúvidas de que Nerissa era capaz de se cuidar, melhor do que qualquer outra garota - e possivelmente garoto - que conhecia, mas...
Cleo não conseguia deixar de se preocupar com a segurança dela. Odiava a ideia de que Nerissa pudesse correr perigo enquanto era forçada a trabalhar perto de Amara.
Cleo respirou fundo ao passar pelas portas com Enzo. Dentro da taverna havia pelo menos duzentos clientes fedorentos e sujos.
Ela observou os rostos, procurando Magnus na multidão.
Aquela taverna era diferente de todas que já havia visto em suas duas visitas anteriores a Paelsia. Seu conhecimento da região se limitava a dois mercados pobres, vilarejos decrépitos e uma vasta extensão
de terras desertas.
E os galpões trancados de rebeldes raivosos e vingativos, ela lembrou a si mesma.
O lugar, apesar do interior rústico e decadente, parecia pertencer a Pico do Falcão, maior cidade de Auranos. Iluminando o espaço enorme havia dezenas e dezenas de velas e lampiões. No teto alto, várias
rodas de madeira acomodavam mais velas. O chão era de terra batida; as mesas e cadeiras eram feitas de madeira mal esculpida.
À esquerda de Cleo havia um pequeno palco, sobre o qual uma jovem de cabelo preto e com faixas douradas pintadas sobre a pele bronzeada rebolava de uma forma bastante provocativa. Em volta de seu pescoço
carregava uma jiboia enorme, do tipo que Cleo só tinha visto em livros ilustrados.
- Enzo, por favor, apenas me ajude a procurar Magnus. Comece pelas áreas com mais vinho.
- Sim, vossa alteza.
Cleo se cobriu melhor com o capuz do manto para esconder o cabelo e tentou ignorar os olhares atravessados da maioria dos brutamontes que passavam por ela. Quando sentiu alguém apertar seu traseiro, virou
para dar um soco no ofensor, mas acertou apenas o ar.
Furiosa, ela tentou ver quem a havia tocado no meio da multidão, mas ficou paralisada quando ouviu alguém gritar um nome que ela conhecia.
- Jonas! - Era a mulher-cobra, interrompendo a apresentação para correr na direção de um jovem que estava na plateia. - Jonas, é você mesmo?
Cleo, de olhos arregalados, se virou na direção do palco.
Jonas tinha voltado de Kraeshia. E, de todos os lugares de Mítica onde poderia estar, estava ali!
Como era possível?
Ela se virou para Enzo, mas outro rosto chamou sua atenção. Um jovem caminhava pela multidão, movendo-se na direção oposta ao mar de rostos virados para o palco.
Cabelo cor de bronze, pele morena, alto, músculos definidos...
Ela só conseguiu observar, certa de que seus olhos a enganavam.
- Theon - ela sussurrou o nome antes preso na garganta.
Ela então se lembrou de um tempo em que tudo parecia claro - ela o amava, e nada mais importava. Nem o posto dele, nem a reprovação de seu pai, nem o modo austero como Theon tinha olhado para ela antes
de beijá-la, marcado pelo medo de pensar que poderia perdê-la para sempre.
E depois o som do casco dos cavalos quando Magnus e seus soldados chegaram.
O orgulho em seu coração quando Theon enfrentou os homens de Magnus e venceu.
E o horror quando viu a vida se esvair dos olhos dele para sempre quando Magnus o acertou pelas costas.
"Se seu guarda tivesse se afastado quando ordenei, isso não teria acontecido", o filho do Rei Sanguinário tinha dito.
"Ele não é só um guarda", ela havia sussurrado em resposta. "Não para mim."
Às vezes, parecia que tudo tinha acontecido mil anos antes. Outras, era como se tivesse sido no dia anterior.
Mas, lá estava ele.
- Princesa? - Enzo perguntou, franzindo a testa para a expressão de choque absoluto dela.
Cleo não respondeu. Suas pernas estavam dormentes quando começou a se mover sem pensar, abrindo caminho na multidão na direção dele.
Lágrimas quentes corriam por seu rosto, e ela as secava com violência.
A multidão diminuía quanto mais ela se afastava do palco, o que lhe permitiu manter o olhar no guarda assassinado. Em sua mão, ela viu o brilho de uma lâmina afiada.
E então ela viu Magnus.
O fantasma do jovem que havia amado - e perdido - aproximou-se de Magnus, que estava no bar, olhando para Theon com a mesma descrença de Cleo. Então, com uma rapidez que ela mal conseguiu acompanhar, Theon
segurou Magnus com força e pressionou a lâmina contra sua garganta.
Ela gritou para dentro, seu corpo transformou-se em gelo em um instante. Ela olhava para Magnus, com sua expressão resoluta, os dentes cerrados e os olhos escuros desprovidos de emoção.
- Cleo? - Alguém estava bloqueando seu caminho; um garoto com sardas e cabelo ruivo. - Ah, Cleo! Você está aqui! Você está viva!
- Nic? - Ela o encarou por um segundo antes de agarrar e fincar os dedos em seus ombros. Atrás dele, viu o sangue escorrendo pela garganta de Magnus, onde o fantasma do passado enfiara sua adaga. - O que
está havendo? Por que isso está acontecendo?
De repente, uma terceira pessoa aproximou-se do confronto silencioso entre Magnus e Theon, que até então tinha passado despercebido pelo resto dos clientes, cujos olhos estavam fixos no palco. Era um jovem
de cabelo escuro, ombros largos e muitos músculos, com um tapa-olho preto.
Ele segurava um pedaço de pau e, com ele, atingiu o fantasma de Theon com força atrás da cabeça. A adaga caiu no chão, e o corpo da vítima desabou, inconsciente, ao lado dela.
- Magnus! - Cleo gritou.
Finalmente, Magnus tirou o olhar do jovem caído e virou para Cleo.
Ele semicerrou os olhos.
- Você não devia estar aqui.
Ela ficou chocada. Era isso que Magnus tinha a dizer em um momento como aquele?
O brutamontes apontou para o corpo.
- Ele não vai ficar feliz comigo quando acordar.
Cleo correu para o lado de Magnus, certificando-se rapidamente de que o ferimento no pescoço era superficial. Ela virou para o jovem de tapa-olho.
- Quem é você? - ela questionou.
Ele se curvou.
- Felix Gaebras, minha encantadora jovem. A seu dispor. E quem é você?
- Esta - Magnus disse, tocando o pescoço com cuidado - é a princesa Cleiona.
Felix arregalou os olhos.
- Ah, então esta é a princesa dourada. Tudo faz sentido agora.
- E quem é esse? - Ela apontou para o chão com o dedo trêmulo.
- Aquele - Felix respondeu - é Taran Ranus, irmão gêmeo de Theon.
Cleo sentiu seu corpo gelar.
- Irmão gêmeo?
Magnus estava tenso.
- Foi muito gentil da parte de Nic nos apresentar hoje à noite, não acha?
Ao lado dela, Nic olhou para o jovem inconsciente, depois para Cleo, que parecia chocada.
- Acho que todos nós precisamos conversar - ele disse.
- Com certeza!
- Concordo - Magnus disse com rigor. - Conheço um lugar muito mais discreto do que esse. Encontrem Jonas e venham comigo, todos vocês.
Felix se abaixou, pegou o companheiro inconsciente e o jogou sobre o ombro.
- Onde Jonas e os outros estão? A dançarina o amarrou com a cobra e o levou embora? Vou procurá-lo.
Cleo não esperou - ela precisava de ar fresco. Precisava respirar normalmente e deixar o coração bater em um ritmo natural.
Irmão gêmeo, ela pensou, estupefata. O irmão gêmeo de Theon.
E Theon nunca, em nenhum momento, tinha mencionado que tinha um irmão gêmeo.
Nic estava ao lado dela, cambaleando de leve a cada passo que dava enquanto Enzo a escoltava para fora da taverna. Ela olhou para trás para garantir que Magnus estava perto.
- Você está bêbado - disse Cleo, virando-se para Nic e percebendo que estava muito zangada com ele e com todos os presentes.
- Muito. E também muito feliz por saber que está aqui. - Ele deu um grande beijo desajeitado no rosto dela, fazendo-a lembrar do cachorrinho babão que seu pai trouxera para ela e para Emilia depois de
um longo período de viagens. Quando seus batimentos cardíacos voltaram ao normal, ela se permitiu ceder à avassaladora sensação de alívio por Nic ter voltado de Kraeshia são e salvo - e por estar ao lado
dela novamente.
Felix saiu da taverna carregando Taran Ranus.
Atrás dele veio Jonas, que observava a área até seus olhos recaírem sobre Cleo.
Ela o observava também quando um sorriso se abriu no belo rosto dele.
- Eu sabia que você estava viva. - Jonas apertou o passo para chegar até ela. Segurou-a pela cintura e a tirou do chão, girando-a no ar. - É tão bom ver você!
Em qualquer outro dia, ela estaria sorrindo tanto quanto o rebelde.
- Explique o que está acontecendo.
- Sim - Magnus disse, os olhos escuros fixos em Jonas. - Uma explicação para sua chegada nesta cidade, coincidindo com a nossa chegada, seria apreciável.
- Fico chocado em dizer, mas é quase bom ver você também, vossa alteza. - Jonas deu um meio sorriso para o príncipe.
Não foi correspondido.
- Nosso amigo aqui está ficando um pouco pesado - Felix comentou.
Magnus lançou um olhar azedo para o corpo que Felix carregava.
- Venham comigo.
Outra garota se juntou ao grupo, e Cleo a reconheceu de imediato - estava acompanhando Jonas e Lysandra da última vez em que estiveram no palácio limeriano.
Cleo se lembrava do nome dela: Olivia. Mas um cumprimento adequado poderia esperar.
Ela deu o braço para Nic enquanto o grupo acompanhava Magnus até a hospedaria.
- Por que está tão bêbado hoje?
- Ah... são muitas razões. Entre elas, recentemente passei a acreditar que estivesse morta. Por isso ia me afundar em cerveja para sufocar meu sofrimento.
- Estou bem viva.
- E fico muito feliz em saber.
Cleo sorriu para ele.
- Existem outros motivos para sua sede de álcool?
- Nenhum que esteja com a gente hoje, mas estou hesitante em mencioná-los. Você já teve choques demais por um dia. Tenho certeza de que ele vai acabar aparecendo. Ele faz dessas.
- Você não está falando coisa com coisa.
- Não, com certeza não estou.
Seu pequeno sorriso desapareceu quando ela olhou para Felix e seu fardo.
- Theon... - Ainda doía dizer o nome dele, mesmo depois de tanto tempo. - Alguma vez ele falou alguma coisa sobre ter um irmão gêmeo?
Nic negou.
- Nada. Quando vi Taran nas docas de Kraeshia, quase caí duro de choque. Taran não fala sobre isso, mas imagino que eles não tivessem contato. Ainda assim, não lidou bem com a notícia da morte do irmão.
- É, percebi. - Ela soltou um suspiro trêmulo. - Como ele ficou sabendo que foi Magnus que matou Theon?
Nic deu de ombros.
- Eu contei a ele, claro.
Ela sentiu uma pontada no estômago no exato momento em que a raiva começou a subir.
- Claro.
- Eu devia ter ficado a seu lado. - Ele pegou a mão dela e ficou sério, apesar da bebedeira. - Sinto muito por ter deixado você sozinha com ele todo esse tempo.
Nic não sabia sobre os sentimentos dela por Magnus. É claro que não sabia - Cleo tinha feito questão de negar os sentimentos que cresciam em seu peito por um ano.
- Não tem problema. Eu... dei um jeito.
- Onde devo deixá-lo? - Felix indicou o fardo que carregava quando chegaram à hospedaria.
- Tenho certeza de que vamos encontrar um buraco bem fundo - Magnus respondeu.
Cleo olhou feio para ele, depois virou para Felix.
- Tem alguns quartos vazios no segundo andar - ela disse.
Felix desapareceu e retornou rapidamente sem Taran.
Eles sentaram na sala de convivência e, quando Cleo olhou para o grupo, não sabia dizer se estava feliz ou horrorizada pelo modo como a noite havia se desenrolado.
Nic sentou ao lado dela, de frente para Jonas e Olivia. Felix e Magnus sentaram próximos à lareira, do outro lado da sala, perto da estante, enquanto Enzo ficou em pé ao lado de Cleo.
- Quando vocês chegaram? - Magnus perguntou.
- Hoje - Jonas respondeu. - Ainda estamos no escuro sobre o que está acontecendo aqui. A única informação que temos vem de um único soldado kraeshiano que se dispôs a falar.
- E?
- Ele sabia muito pouco. Ou, pelo menos, pouco que pudesse nos ajudar. No entanto, parece que você está fugindo, vossa alteza. E seu pai não está nada feliz com o modo como cuidou das coisas enquanto ele
esteve fora.
- É o mínimo que se poderia dizer.
Cleo observava Magnus levemente surpresa. Apesar do tanto que devia ter bebido, parecia sóbrio como um sacerdote limeriano.
- O soldado - disse Jonas, apontando para Cleo com tristeza. - Ele nos disse que você tinha morrido. Que isso aconteceu depois que fugiu de Amara. Que morreu congelada.
- Isso poderia muito bem ter acontecido se eu não tivesse encontrado abrigo no momento certo. - Ela desviou os olhos, tentando não fazer contato visual com Magnus, apesar de ainda sentir o olhar dele ardendo
em seu rosto.
- Você sempre foi uma sobrevivente - Jonas disse. - Nic se desesperou, mas eu tinha esperança. E aqui está você.
Nic deu de ombros.
- Eu me desespero. Sou desesperado.
- Temos muita coisa para contar a vocês - Jonas afirmou. - E com certeza vocês têm muita coisa para nos contar.
- Muito menos do que você pode imaginar - Magnus disse. - Amara acha que está governando o reino agora. Mas está errada. E será derrotada.
- E como você acha que vai derrotá-la? - Jonas perguntou.
- Acho que podemos começar com o cristal da terra que você deu à princesa - Magnus disse, e Jonas ficou tenso. - Você ainda tem aquele pedaço brilhante de obsidiana escondido em algum lugar, princesa?
Ah, sim, ela pensou enquanto se contraía. Esse era o Magnus que um dia ela desprezara - capaz de anunciar para todos, aparentemente por despeito, que ela estava em poder de um cristal da Tétrade. Ela precisaria
se lembrar de agradecer pela lembrança.
Nic soltou um rosnado de repulsa.
- Cleo, não enlouqueceu ficando ao lado dele por tanto tempo? O fato de ter mantido essa aliança artificial... deve haver algum motivo por trás disso que não me contou.
- Por favor, Nic - Magnus disse. - Somos todos amigos aqui. Sinta-se à vontade para falar o que quiser.
- Acabei de fazer isso.
Magnus revirou os olhos.
- Não preocupe essa sua cabeça de cenoura, Nicolo. A princesa continua a me tolerar, ou quase, concentrando-se apenas em recuperar seu trono assim que Amara for derrotada e mandada para longe. Recentemente,
sugeri que sua princesa dourada retornasse a Auranos, mas ela recusou. Nem pense em dizer que foi ideia minha.
Cleo virou para ele e enxergou uma expressão de desafio em seus olhos. Então percebeu o que Magnus estava fazendo.
Nic o odiava. Jonas tinha uma aliança fraca com ele. E o irmão gêmeo de Theon tinha acabado de tentar matá-lo.
Revelar que os dois eram mais do que aliados relutantes poderia causar um estresse desnecessário, principalmente agora que estavam todos juntos.
- Acredite em mim, Nic - ela disse finalmente. - E estou ansiosa pelo dia em que retornarei ao meu trono. Mas esse dia não é hoje.
- Bem, agora que isso está resolvido - Magnus disse -, vamos discutir como proceder. Pode ser?
Felix levantou a mão.
- Eu me voluntario com entusiasmo para matar a imperatriz.
Magnus o encarou com interesse.
- Como pretende fazer isso?
- Sei que alguns de vocês vão sugerir que eu use uma flecha apontada de longe - Felix disse com avidez. - Mas realmente preferiria uma abordagem mais pessoal. Com minhas próprias mãos, se possível. Só
quero ver o olhar dela naquele rostinho lindo.
Magnus piscou.
- Acabei de lembrar que foi você que me enviou um pedaço de sua pele para provar sua lealdade.
- Fui eu mesmo, vossa majestade.
Cleo analisava aquele jovem com atenção, chocada com as palavras. Será que ele era louco?
No entanto, o sujeito tinha salvado a vida de Magnus na taverna, e ela devia muito a ele por isso, então imaginou que teria que passar um pouco mais de tempo perto dele, observando-o, para ver como ele
realmente era.
Houve um tempo em que tinha desejado que Magnus morresse pelo que fizera com Theon, em que tinha desejado matá-lo com as próprias mãos.
Mas no momento em que a vida de Magnus correra perigo, não conseguira se concentrar em nada além do príncipe. Qualquer necessidade de vingança tinha desaparecido meses atrás, como se ela tivesse trocado
de pele.
O sentimento era de perdão. Ela ainda odiava o garoto que Magnus tinha sido aquele dia.
Mas tinha passado a entendê-lo nos meses que se seguiram, talvez ainda melhor do que entendia a si mesma.
- Há uma ameaça muito maior do que Amara em Mítica nesse momento, sinto informar - Jonas revelou, interrompendo o devaneio de Cleo. Ele estava limpando as marcas de beijo da dançarina do rosto com um lenço
que Olivia havia lhe dado, e Cleo não conseguiu deixar de achar engraçado o contraste entre os movimentos ridículos e o tom solene daquela declaração.
- Me deixe adivinhar - Magnus disse. - Você está falando da minha irmã? Sei que deve estar de luto por sua amiga, Jonas, mas não faz sentido gastar suas energias vingativas com Lucia nem com seu companheiro,
Kyan.
Jonas encarou os olhos de Magnus.
- Vocês não sabem, não é?
- Não sabemos o quê?
- Vocês procuraram pela Tétrade. Pessoas morreram por esses cristais. Você já revelou diante de todos que Cleo está em poder de um deles, e sabemos que Amara está com o da água, e seu pai, com o do ar.
- Sim, sei disso tudo, rebelde. E já sabemos que Kyan está com o cristal do fogo.
- Errado - Jonas ficou tenso. - Kyan é a magia do fogo.
Cleo ficou encarando-o, certa de que tinha escutado errado.
- O que quer dizer com isso?
- A magia que vocês estão procurando, que todos estamos procurando, pode pensar. Pode falar. E pode matar sem remorso. E mais três iguais a Kyan estão aguardando para escapar de suas prisões. Os cristais
não são pedras mágicas, princesa, mas deuses elementares.
A sala toda ficou em silêncio, e Cleo observou freneticamente o rosto dos outros, esperando encontrar alguém revirando os olhos. Esperando que aquilo não passasse de uma mentira engraçada para quebrar
a tensão.
Não podia ser verdade.
Mas até Nic assentia pesaroso.
E naquele exato momento, dentro de seu bolso, estava uma daquelas prisões.
Ela olhou para Magnus, cuja testa franzida era o único sinal de surpresa.
- Lucia deve tê-lo ajudado a escapar da esfera de âmbar - Magnus disse.
- Acho que isso é óbvio - Jonas respondeu curto e grosso, o que lhe rendeu um olhar sombrio do príncipe.
Cleo juntou as mãos para impedi-las de tremer.
- Temos certeza de que os objetivos de Kyan, sejam quais forem, são perversos? A Tétrade ainda pode nos ajudar a derrotar Amara.
- Eu o vi queimar Lys até fazê-la desaparecer - Jonas grunhiu. - Nem uma única cinza restou quando ele acabou. - O rebelde virou para Magnus. - Kyan é perverso. Assim como a vadia da sua irmã.
Magnus levantou com os punhos cerrados.
- Não me importo com o que aconteceu, você não vai falar assim de Lucia na minha presença. Não vou permitir.
- Não? E você acha que pode me impedir? - Agora Jonas também estava com os punhos cerrados, e os dois se aproximavam.
- Talvez ele não o impeça - disse uma nova voz, interrompendo a conversa e paralisando o rebelde e o príncipe. - Mas eu com certeza estou disposto a tentar.
Com aquela promessa, o Rei Sanguinário entrou na sala.
14
JONAS
PAELSIA
Rei Gaius Damora. O Rei Sanguinário. Assassino. Sádico, torturador, escravocrata, traidor. Inimigo. Alvo.
E, naquele momento, estava na mesma sala que Jonas.
Muitas surpresas tinham acontecido naquela noite. Primeiro um encontro com Laelia Basilius, de quem Jonas tinha sido - por pouco tempo e com relutância - noivo. Mas essas surpresas desapareceram de sua
mente assim que o rei entrou na sala.
Gaius observou o grupo e parou o olhar sobre Jonas.
- Jonas Agallon. Não vejo você há muito tempo. Acho que a última vez foi no casamento de meu filho.
Jonas percebeu que não conseguia fazer nada além de olhar para o homem que tinha matado e destruído tantos.
- Magnus... - Cleo disse do outro lado da sala.
- Ah, sim - Magnus disse, sem qualquer sinal de indignação pelas calúnias ditas contra a irmã. - Esqueci de dizer que estou viajando com meu pai?
- Esqueceu - Jonas respondeu, tenso.
- Sim - o rei concordou. - E é muito bom que meu filho traga seus novos amigos aqui sem avisar.
Jonas se esforçou para manter a compostura, para não mostrar como estava indignado.
- Não são tão novos quanto você pensa.
A pele do rei Gaius estava pálida, o rosto tinha hematomas como se tivesse sido espancado. Ele inclinou para a frente, como se agisse com normalidade, e se apoiou na parede ao lado da escada, mas algo
ficou evidente na posição. Uma fraqueza e uma fragilidade que o rebelde nunca tinha notado no homem.
- Volte para o quarto - Magnus disse.
- Não acato ordens suas. - O rei sorriu, sem achar graça. - Magnus, seus amigos sabem que estamos todos do mesmo lado agora?
Só de pensar em uma aliança com Gaius, Jonas perdeu totalmente a fala. Os outros - Nic e Olivia - também permaneceram em silêncio, tensos.
- É mesmo? - Foi o rosnado ríspido de Felix, como o alerta de uma fera enjaulada, que quebrou o silêncio. - Você decidiu isso antes ou depois de permitir que Amara me deixasse levar a culpa por matar a
família dela?
O rei levantou uma sobrancelha escura e observou Felix.
- Nunca permiti que Amara fizesse nada. Ela toma as próprias decisões. Quando soube o que tinha acontecido, já era tarde demais para intervir. Soube que você já estava morto. Caso contrário, teria feito
o possível para libertar você.
Felix manteve o olhar fixo no rei, e em seu único olho não se via nada além de frieza e malícia.
- Claro que teria. Por que eu duvidaria de sua palavra, vossa alteza?
Suspirando, o rei abatido e aparentemente debilitado se virou para Jonas.
- Você tem todos os motivos para me odiar. Mas precisa me ouvir agora e perceber que juntos somos fortes. Temos um inimigo comum: Amara Cortas.
- Sua esposa - Jonas afirmou.
- Por conveniência e circunstância apenas. Não tenho dúvidas de que ela já está conspirando para me matar, em especial agora que assumiu o controle de Mítica e sabe que seus soldados são muito mais numerosos
que os meus. Tenho me dedicado a consertar alguns de meus erros mais recentes, começando por tirar Amara deste reino.
- Me parece um bom começo - Jonas disse.
O rei caminhou devagar, fazendo careta ao sentir uma dor repentina com o movimento, e estendeu a mão.
- Peço que deixemos nossas diferenças de lado até esse objetivo ser alcançado. O que me diz?
Se não estivesse tão surpreso, Jonas teria gargalhado. O Rei Sanguinário tinha acabado de propor a ele - a mesma pessoa que o acusara de assassinar a Rainha Althea - uma aliança.
Jonas observou os outros ao redor, e em silêncio todos olhavam chocados para ele e o rei. Nic e Cleo estavam pálidos, e Felix entortava a boca de ódio. Olivia manteve o olhar desprovido de emoção e inescrutável,
como sempre. Enzo, o guarda de Cleo, estava parado empunhando a espada. Em contraste, Magnus tinha sentado e recostado na cadeira, os braços cruzados à frente do peito, a cabeça inclinada.
Finalmente, Jonas estendeu a mão direita para o rei e aceitou o acordo, encarando diretamente seus olhos.
- O que posso dizer, vossa alteza? - Com a mão esquerda, ele cravou uma adaga decorada no coração do monstro. - Vá para as terras sombrias, filho da puta mentiroso.
O rei gemeu sem força, e pelo som, a dor parecia extremamente forte. Jonas girou a faca ainda mais fundo, até Gaius tombar para trás.
Jonas ouviu Nic comemorar assim que Enzo o acertou e o derrubou no chão. Felix chegou em um instante, puxando Enzo para longe. Outro dos guardas do rei apareceu e puxou os braços de Jonas para trás. Cabelos
loiros apareceram na confusão - era Cleo tentando tirar o segundo guarda do rei de cima de Jonas. Magnus estava de pé com o olhar sério fixo no rei. Olivia estava dentro do campo de visão periférica de
Jonas, esperando. Ela só interviria se ele corresse perigo de morte.
A raiva que sentia, o ódio que tinha pelo rei, zuniam dentro de Jonas, renovados, e o rebelde tremia. Enquanto observava o rei moribundo, não sentiu nem um pouco de arrependimento.
Finalmente tinha tido uma oportunidade. E a aproveitado.
- Viu? - ele disse, olhando para Magnus. - Cumpro minhas promessas.
- Sim, estou vendo - Magnus disse, prestando atenção no pai, como se estivesse curioso, e não grato pela atitude. - Só é uma pena que você não tenha feito isso antes.
- O que quer dizer com isso? - Jonas olhou para o príncipe, sem entender por que ele parecia decepcionado com a situação. Jonas tinha feito exatamente o que Magnus queria, tinha cumprido a tarefa que o
tinha levado a Kraeshia.
- Milo, deixe Jonas levantar. - Cleo segurava o guarda desconhecido pelo braço.
- Ele assassinou o rei - Milo disse.
- Não - Magnus disse. - A morte decidiu demorar no que diz respeito ao meu pai.
- Jonas, olhe para ele - Felix pediu.
Gaius não estava mais deitado no chão, cheio de sangue. Milagrosamente, estava ajoelhado, sangrando muito sobre a madeira desgastada, o cabo da adaga no peito.
A expressão agonizante do rei estava fixa em Jonas.
- Ele não está morto - Nic murmurou, balançando a cabeça, incrédulo. - Por que não está morto?
Num movimento repentino e forçado, o rei Gaius segurou o cabo decorado da adaga. Ainda encarando Jonas com os olhos semicerrados, ele arrancou a lâmina, com um grito. A adaga caiu no chão, e ele levou
as mãos à ferida.
- Isso é magia - Jonas conseguiu dizer em meio ao choque.
- Muito observador de sua parte. Impressionante - Magnus disse com seriedade.
- Explique o que está acontecendo!
Magnus meneou a cabeça para Milo.
- Solte o rebelde. Não posso conversar com alguém preso como um besouro pregado a uma placa de cortiça.
Milo parou de segurar o braço de Jonas, que imediatamente ficou de pé e lançou um olhar acusatório para Magnus, que encarou Cleo de um jeito pouco sutil e sério. Cleo rangeu os dentes, e Magnus revirou
os olhos.
- Muito bem - o príncipe concordou. - Vou tentar ser breve em minha explicação. O que está acontecendo é o resultado de uma poção que o rei tomou muitos anos atrás, uma poção que permitiu que, não importa
o golpe final e fatal que o destino desferir, ainda tem algum tempo para... resistir depois de ser morto.
- Não sei bem se é assim que funciona - Cleo disse pacientemente.
Magnus suspirou e fez um gesto para o pai.
- Mais ou menos isso?
- Acredito que sim. Minha nossa, Jonas, essa é a adaga de Aron? - Cleo perguntou, chocada. - Você realmente guardou essa coisa horrível por todo esse tempo?
- Responda à minha pergunta - ele disse, mais incisivo do que pretendia ao se dirigir à princesa. Finalmente Jonas tinha feito o que queria fazer havia muito tempo, mas mais uma vez o destino não permitia
seu sucesso. Nem mesmo depois de um golpe fatal.
- Você não matou o rei - Cleo respondeu tensa - porque o rei já encontrou a morte dias atrás.
Enquanto Jonas tentava desesperadamente processar aquela afirmação incrível, uma mulher desceu a escada. Ela era mais velha, com rugas ao redor dos olhos, e usava um manto cinza-escuro que combinava com
seu cabelo. Entrou na sala de convivência, observando todos os presentes com firmeza, até finalmente fixar o olhar em Gaius.
A mulher o observou por um momento muito breve e, em seguida, lançou um olhar intenso na direção de Jonas.
- Você fez isso com meu filho?
Um arrepio subiu por seus braços e seus ombros, e desceu pela coluna ao perceber a raiva controlada nas palavras dela.
Filho?
- Tudo bem - o rei disse assustado, segurando a manga da blusa da mulher que se apressou para ficar ao lado dele.
- Não está nada bem. Não mesmo. - Ela voltou a encarar Jonas, e com o olhar dela, veio a sensação de que ele estava sendo congelado. - Você ousaria tentar matar seu rei?
- Ele não é meu rei - Jonas respondeu irritado, recusando-se a demonstrar fraqueza ou dúvida. - Ele matou meus amigos em sua guerra doentia, executou aqueles que se recusaram a se submeter, e escravizou
meu povo para construir sua preciosa Estrada Imperial. Nenhuma pessoa nesta sala diria que ele não merece morrer por seus crimes.
Ela cerrou o punho.
- Eu diria.
- Não, mãe - Gaius disse depressa. - Deixe-o em paz. Precisamos dele. Acredito que precisaremos de todos eles para reaver o que Amara pegou.
Devagar, o rei levantou, e Jonas só conseguiu dar um passo incerto para se afastar. O único sinal de que uma adaga tinha atravessado seu coração alguns momentos antes era a camisa rasgada e o sangue no
chão.
- Só a magia mais sombria poderia tornar algo assim possível - uma nova voz disse.
Jonas virou de repente e viu que Ashur Cortas estava atrás deles na entrada da hospedaria.
- Ashur! - Cleo se surpreendeu. - Você está vivo! Mas... como?
Ashur arqueou as sobrancelhas escuras.
- Mais magia negra, receio.
Ela virou para Nic, cuja expressão era neutra.
- Você sabia disso?
Ele assentiu.
- Eu sei, é um choque.
- Um choque? Ele estava morto, Nic! Por que não me contou?
- Eu ia contar. Achei melhor esperar você lidar com a questão do Taran primeiro.
- Ah, obrigada - ela disse, a voz tensa. - Você é muito solícito mesmo.
- Não sei por quê, mas acho que você não está falando sério.
Jonas se virou para Magnus e viu que ele estava sério.
- Estou ficando muito cansado de magia - o príncipe murmurou. - E de absolutamente tudo sobre o que não tenho controle.
- Também é ótimo revê-lo, príncipe Magnus - Ashur disse com um meneio de cabeça.
- Muita gentileza sua nos encontrar, vossa graça - Nic se dirigiu a Ashur, a voz desprovida de qualquer respeito. - Pensei que tivesse criado guelras e cauda e começado a nadar de volta a Kraeshia.
- Hoje não, infelizmente - Ashur respondeu com rispidez.
- Talvez amanhã.
- Talvez.
- Contamos a todos sobre sua ressurreição de fênix agora ou mais tarde? - Nic perguntou.
A expressão de Ashur ficou tensa ao notar o tom ácido de Nic.
- Parece, Nicolo, que há assuntos mais urgente a tratar. Estou certo, não estou, rei Gaius?
O grupo voltou a atenção ao rei, que estava encolhido ao lado da mãe.
- Está, sim, príncipe Ashur.
- Uma aliança contra minha irmã.
- É um problema para você?
- Não. Contanto que não a matem, não vejo nenhum problema.
- Espere - Felix disse de onde estava, ao lado da lareira. - Você sabe que eu pretendia matá-la! Vai mesmo tirar isso de mim?
Ashur lançou um olhar severo para Felix.
- Tudo bem. É um assunto para outro dia - Felix respondeu.
- Príncipe Ashur, você é o herdeiro legítimo de seu pai - o rei explicou. - Tire o título de Amara e tudo isso pode acabar.
- E agora você é o marido dela, pelo que soube. Por que não está a seu lado, orientando suas decisões?
- Não é mais tão simples assim.
- Nada importante é simples, certo?
- O Rei Sanguinário quer que trabalhemos em equipe - Jonas disse, balançando a cabeça. - É a coisa mais ridícula que já ouvi. Não é o que quero.
Gaius bufou, frustrado.
- Sei muito bem o que você quer, rebelde. Você quer que eu morra. Bem, devo dizer que vou morrer em breve.
- Gaius... - a mãe sibilou. - Não vou permitir que fale assim. Não vou permitir!
Ele a silenciou com um aceno.
- Minha primeira prioridade é retomar o controle de meu reino. Mítica não pertence, nem pertencerá, ao Império Kraeshiano.
- Não fosse pela magia que dizem que está adormecida aqui - Ashur disse -, posso garantir que nem Amara nem meu pai dariam tanta importância a essa ilhazinha.
- Acredito que você esteja ciente de que Amara envenenou seu pai e seus irmãos - o rei afirmou. - Ela não sente remorso quando vai em busca do que quer.
A risada sombria de Nic interrompeu a tensão na sala.
- Que engraçado... "Não sente remorso", ele disse, como se considerasse isso um defeito. O mesmo homem que quebrou o pescoço da minha irmã por estar no lugar errado na hora errada. - Ele parou de rir de
repente. - Sua aparência está péssima, vossa majestade. Espero muito que esteja sofrendo neste momento.
- Não fale com o rei desse jeito, Cassian - Milo, o guarda, se manifestou.
Nic lançou um olhar para ele do outro lado da sala.
- O que vai fazer se eu falar? Vai pedir para seu amigo ajudá-lo a me bater?
Milo sorriu e estralou os dedos.
- Posso fazer isso sozinho sem problema.
- Pensei que você estivesse apodrecendo na masmorra.
O sorriso do guarda ficou tenso.
- Preciso lhe agradecer por isso, não?
- Precisa. - Nic semicerrou os olhos. - O que vai fazer em relação a isso, Milo?
- Muitas coisas. Só preciso de tempo.
- Milo, não é? Ouça bem o que vou dizer. - A voz de Ashur estava baixa, como o rosnado de uma fera enjaulada. - Se tentar machucar Nicolo, juro que eu mesmo vou arrancar sua pele.
Jonas virou para Milo. Viu que a única reação dele à ameaça foi piscar, surpreso.
Cleo falou com o rei, depois de lançar um olhar preocupado a Nic e ao guarda.
- Você deu Mítica a Amara - ela disse, deixando claro seu tom de insatisfação. - Não pode apenas pegá-la de volta?
- Você não entende - o rei disse. - Nenhum de vocês entende. O imperador Cortas teria tomado Mítica à força se eu não tivesse agido dessa forma. Dezenas... não, centenas de milhares teriam morrido na guerra
se eu não tivesse feito minha proposta a ele.
- Ah, sim - Magnus disse. - Meu pai, o salvador de todos nós. Deveríamos construir estátuas em homenagem a ele. Uma pena já haver dezenas delas em Limeros. - Magnus arregalou os olhos. - É muita vaidade,
pensando bem. A deusa Valoria não aprovaria.
- Para o inferno com a deusa e com todos os Vigilantes! - o rei rebateu. - Não precisamos da ajuda deles para nos livrarmos de Amara.
- Não esqueça Kyan - Jonas acrescentou.
O rei virou para ele.
- Quem é Kyan?
Jonas não conseguiu conter o riso.
- Adoraria ficar aqui para elaborarmos uma estratégia juntos, vossa alteza, mas cansei dessa farsa. Não vou trabalhar com você hoje, nem amanhã, nem nunca.
- Diga, vossa alteza - Felix disse devagar -, ainda está com o cristal do ar?
Gaius lançou um olhar sério.
- O cristal do ar! - a mãe dele exclamou. - Você está com ele? E não me contou?
- Estou, sim - ele respondeu.
- Onde?
- Em um lugar seguro.
Jonas tentou encarar Cleo nos olhos, mas ela parecia ocupada com uma conversa silenciosa com o príncipe. Quando se entreolhavam, o sorriso de Magnus desapareceu.
- Se for verdade, e quando eu tiver força suficiente para encontrar minha neta - a mulher anunciou -, a vitória será nossa.
Mais uma vez, Jonas riu com frieza.
- Então é esse o segredo para seu grande plano? A princesa Lucia? Acredito que ficará decepcionada quando vir a serpente fria, má e sanguinária que ela se tornou. Mas ela é uma Damora, então talvez você
não se surpreenda nem se desaponte.
A senhora o observou.
- Jonas, não é?
- É o meu nome.
- Meu nome é Selia. - Ela se aproximou sem raiva no olhar ao pegar as mãos dele. - Fique conosco e ouça mais sobre nossos planos. Concordo com meu filho que, apesar de nossas diferenças, ainda podemos
trabalhar juntos. Tente ver isso de modo lógico. Juntos, somos mais fortes.
Ela estaria certa?
- Não sei...
- Fique - Cleo pediu. - Por favor, pense bem, pelo menos. Por mim.
Jonas encarou seus olhos sinceros e azuis.
- Talvez.
Magnus levantou.
- Está sugerindo que os rebeldes fiquem aqui? - ele perguntou em tom acusatório para a avó. - Nesta hospedaria? É a pior ideia que já ouvi.
- Discordo - disse o rei. - Minha mãe tem razão. Podemos chegar a um acordo. Temporário. Temos o mesmo inimigo agora.
Sem saber ao certo se estava prestes a concordar ou discordar dos Damora, Jonas abriu a boca para falar mas foi interrompido por um rosnado furioso vindo da sala de convivência.
Passos foram ouvidos descendo a escada, e Taran entrou com tudo no ambiente. Em um instante, voltou o olhar furioso para Magnus.
A adaga de Jonas - aquela que o rei tinha tirado do peito - estava no chão. Jonas a viu, mas Taran também, recuperando-a num piscar de olhos e percorrendo a distância entre ele e o príncipe.
Taran apontou a adaga para Magnus, mas o príncipe segurou o braço de Taran antes que ele pudesse encostar. Cleo soltou um grito estridente.
- Você está morto - Taran gritou.
Magnus se esforçou para não deixar a lâmina feri-lo, mas Taran o pegou de surpresa e a ira da vingança parecia duplicar sua força.
Então, Felix apareceu atrás de Taran, passando o braço por seu pescoço e puxando-o para trás.
- Não me faça acertar você de novo. Perdi meu pedaço de pau.
Jonas se aproximou e arrancou a adaga da mão de Taran.
- Vou matar você - Taran gritou para o príncipe enquanto Felix o arrastava para trás. - Você merece morrer pelo que fez!
Magnus não revidou. Só ficou observando o rapaz, com uma expressão séria.
- Acho que todos merecemos morrer por algo que fizemos - Jonas disse, aliviando um pouco da tensão que crescia entre o príncipe e o rebelde. - Ou por algo que deixamos de fazer.
O príncipe desfez a expressão séria e olhou incrédulo para Jonas.
- É minha imaginação ou você acabou de ajudar a salvar minha vida?
Jonas fez uma careta ao ouvir a pergunta.
- Parece que sim, não? - Ele olhou para Cleo, cuja expressão era de alívio. Com certeza, a princesa não queria ver mais sangue sendo derramado naquela noite, ele pensou. Nem mesmo o de Magnus. - Pode ser
que eu esteja prestes a cometer um erro horroroso do qual me arrependerei pelo resto da vida, mas decidi aceitar essa aliança. Mas uma aliança temporária, até Amara ser tirada daqui.
Ele esperou a resposta de Ashur. A expressão do príncipe kraeshiano se manteve séria, mas ele assentiu.
- Concordo. Amara precisa perceber o que fez. Ainda que ache que estava certa, tomou o caminho errado. Farei o que puder para ajudar.
- Ótimo. - Jonas apontou para Taran, que Felix ainda segurava. - Compreendo seu luto e sua ira, mas seu desejo por vingança não tem espaço aqui.
Taran lançou um olhar feio para Jonas, segurando o braço de Felix, que apertava sua garganta como uma barra de ferro.
- Você conhecia meus motivos para vir para cá antes de sairmos de Kraeshia.
- Conhecia, mas isso não quer dizer que concordava com eles. Agora tomei minha decisão. Você não vai tentar matar o príncipe Magnus de novo. Não enquanto mantivermos essa aliança.
- Você ouviu bem com essas orelhas gastas? - Felix perguntou a Taran, a voz áspera enquanto aplicava mais força no braço. - Ou preciso repetir mais devagar?
- Abandonei uma rebelião para vir até aqui vingar meu irmão.
- Uma rebelião fadada ao fracasso antes mesmo de começar - Ashur acrescentou.
- Você não sabe.
- Sei. Não me alegra saber, mas sei. Talvez um dia o império que meu pai construiu seja destruído, mas não será logo.
- Veremos.
- Sim, veremos.
Taran lançou mais um olhar raivoso para Jonas.
- Você se uniria a eles por vontade própria?
- Sim - Jonas confirmou. - E peço que considere fazer o mesmo. Podemos precisar de sua ajuda. - Ele fez uma pausa. - Mas não me leve a mal, Taran; se tentar acabar com a vida do príncipe Magnus de novo,
vou acabar com a sua.
15
AMARA
PAELSIA
O deus do fogo tinha sido muito específico sobre o lugar aonde queria que Amara fosse para obter poder infinito. Segundo ele, era um lugar tocado pela magia. Um lugar que até os próprios imortais reconheciam
como um centro de poder.
Ela contou a Carlos sobre a mudança de planos. Não ia se mudar para o palácio limeriano. Não, seu destino ficava mais ao sul de Paelsia, próximo ao antigo complexo do chefe Hugo Basilius.
Em vez de questionar as ordens, Carlos planejou tudo no mesmo instante. Com quinhentos soldados, Amara, Nerissa, Kurtis e o capitão dos guardas viajaram ao reino central de Mítica, que a nova imperatriz
ainda não conhecia.
Pela janela da carruagem, ela via com surpresa o gelo e a neve de Limeros derreterem e darem espaço à terra seca, às florestas mortas e à escassa vida selvagem.
- Foi sempre assim aqui? - ela perguntou, assustada.
- Nem sempre, vossa graça - Nerissa respondeu. - Ouvi dizer que houve uma época, muito tempo atrás, que toda Mítica, de norte a sul, era quente e temperada, sempre verde, com pequenas mudanças de uma estação
a outra.
- Por que alguém moraria em um lugar assim?
- Os paelsianos não podem escolher seu destino e são conhecidos por se conformarem isso, como se a aceitação tivesse se tornado uma religião em si. O povo é pobre, regido pelas regras que seu ex-chefe
e o chefe antes do anterior estabeleceram. Por exemplo, os paelsianos só podem vender vinho legalmente a Auranos, e o vinho é o único produto de exportação valioso deles. Grande parte do lucro é taxado,
e essas taxas foram determinadas pelo chefe.
Sim, o vinho paelsiano era famoso pelo sabor adocicado e por sua habilidade mágica de inebriar depressa e de modo prazeroso, sem mal-estar depois.
Era o vinho que Amara tinha levado para Kraeshia para envenenar sua família.
O que quer que fosse dito sobre a bebida, ela jurava que nunca a beberia por causa da lembrança.
- Por que não vão embora? - ela perguntou.
- Para onde? Poucos teriam dinheiro para ir ao exterior, menos ainda para construir uma casa em outro lugar que não seja aqui. E os paelsianos não podem entrar em Limeros nem em Auranos sem permissão do
rei.
- Tenho certeza de que muitos vêm e vão como querem. As fronteiras não são totalmente monitoradas.
- Não, mas os paelsianos costumam obedecer às leis. A maioria dos paelsianos, pelo menos. - Nerissa recostou na cadeira, as mãos sobre o colo. - Eles provavelmente não vão lhe causar nenhum problema, vossa
graça.
Ouvir aquilo era um alívio, no mínimo, depois de tantos problemas no passado.
Amara continuou observando a paisagem árida pela janela da carruagem durante os quatro dias de viagem desde a partida da quinta de lorde Gareth, esperando ver a terra e a morte se transformarem em verde
e vida, mas isso não aconteceu. Nerissa garantiu que mais a oeste, mais perto da costa, a paisagem melhoraria, e que a maioria dos paelsianos construía casas em vilarejos naquele pedaço da terra; poucos
construíam mais perto dos picos assustadores e sombrios das Montanhas Proibidas, a leste.
Aquele era o reino mais distante da fartura de Kraeshia que ela já tinha visto, e Amara estava torcendo para não precisar passar muito tempo ali.
Na última etapa da viagem, o comboio usou a Estrada Imperial, que se estendia por Mítica de modo curioso, começando no Templo de Cleiona, em Auranos, e terminando no Templo de Valoria, em Limeros. Passava
direto pelos portões de entrada do complexo de Basilius.
Os portões estavam abertos e um homem baixo de cabelo grisalho os esperava, cercado por uma dúzia de paelsianos enormes usando roupas de couro, com cabelo preto preso em tranças minúsculas.
Quando Carlos ajudou Amara a desembarcar da carruagem, o homem fez um leve sinal com a cabeça para ela.
- Vossa graça, sou Mauro, o antigo conselheiro do chefe Basilius. Seja bem-vinda a Paelsia.
Ela olhou para o homem, bem mais baixo do que ela.
- Então, você ficou responsável por este reino depois da morte do chefe?
Ele confirmou.
- Sim, vossa graça. E estou às suas ordens. Por favor, venha comigo.
Junto com o grupo principal de guardas pessoais da imperatriz - incluindo Carlos -, Amara e Nerissa acompanharam Mauro pelos portões de pedra. Um caminho de pedra se estendia pelo vilarejo murado, levando-os
por pequenas casas de sapê parecidas com as que Amara tinha visto enquanto atravessava várias cidades antes de chegar ao complexo.
- Naquelas casas ficavam as tropas do chefe. Infelizmente, quase todos foram mortos na batalha pelo palácio auraniano. - Mauro indicava os pontos de interesse conforme caminhavam pelo complexo, que no
passado fora o lar de mais de dois mil cidadãos paelsianos.
Havia comércios que antes forneciam pão, carne, legumes e frutas, trazidos do Porto do Comércio. Mauro mostrou um espaço onde ficavam as bancas dos vendedores locais, que podiam atravessar os portões todo
mês.
Outra área, uma clareira com bancos de madeira, tinha sido usada como arena para diversão - duelos, lutas e disputas de força que o chefe costumava gostar de assistir. Outra clareira surgiu com restos
de fogueiras, onde o chefe fazia banquetes.
- Banquetes... - Amara comentou surpresa. - Em um reino como este, banquetes são a última coisa que eu esperaria de um líder.
- O chefe precisava de prazeres para abastecer a mente e conseguir explorar os limites de sua força.
- Certo - ela disse. - Ele acreditava ser um feiticeiro, não?
Mauro olhou para ela constrangido.
- Sim, vossa graça.
Para Amara, o chefe Basilius parecia um homem egoísta e pobre de espírito. Ela estava contente em saber que Gaius o havia matado depois da batalha auraniana. Se ele não o tivesse matado, ela teria feito
isso.
Apesar do calor do dia com o sol já forte, Amara sentiu a temperatura ao seu redor aumentar ainda mais.
- Sei que não parece grande coisa, pequena imperatriz, mas garanto que aqui é exatamente onde precisamos estar.
Amara não respondeu, mas reconheceu a presença de Kyan com um meneio de cabeça.
- Estamos perto do centro do poder aqui - ele continuou. - Posso sentir.
- Aqui - Mauro indicou um grande buraco no chão, com cerca de dez passos de circunferência e vinte passos de profundidade para dentro da terra seca - é onde o chefe costumava deixar os prisioneiros.
Amara olhou para dentro do buraco.
- Como eles desciam?
- Alguns eram baixados com uma corda ou escada. Outros simplesmente eram jogados. - Mauro fez uma careta. - Peço desculpas se a imagem não lhe agrada, vossa graça.
Ela o encarou com uma expressão fulminante.
- Garanto, Mauro, que provavelmente não há nada que você possa me contar sobre como os prisioneiros eram tratados que eu consideraria surpreendente ou intolerável.
- Claro, vossa graça. Peço desculpas.
Amara estava cansada dos homens e seus falsos pedidos de desculpa.
- Carlos, cuide para que meus soldados recebam aposentos adequados depois dessa longa viagem.
- Sim, imperatriz. - Carlos fez uma reverência.
- Vossa graça ficará aqui, imperatriz Amara. - Mauro indicou a construção de três andares, feita de terra e pedra, a maior e mais forte do vilarejo. - Espero que seja do seu agrado.
- Com certeza será.
- Organizei tudo para levá-la a uma feira mais tarde e mostrar o trabalho de seus novos súditos paelsianos. Há, por exemplo, alguns bordados lindos que podem ser de seu interesse. E alguns enfeites com
contas para seu belo cabelo. Uma comerciante virá da costa até aqui para trazer uma tinta de frutas silvestres que ela criou para pintar os lábios... - Mauro parou de falar ao ver a expressão contrariada
da imperatriz. - Algum problema, vossa graça?
- Você acha que estou interessada em bordados, enfeites e tintas para os lábios? - Ela esperou a resposta, mas ele só abriu a boca sem emitir nenhum som.
De trás dela, ouviu-se uma risada.
Amara virou imediatamente, os olhos fixos no guarda - seu guarda - que mantinha um sorriso no rosto.
- Está achando engraçado? - ela perguntou.
- Sim, vossa graça - o guarda respondeu.
- Por quê?
Ele olhou para os compatriotas ao redor, e nenhum deles fez contato visual.
- Bem, porque é do que as mulheres gostam: maneiras de ficarem mais bonitas para os homens.
O guarda disse isso sem hesitar, como se fosse óbvio e nada ofensivo.
- Minha nossa - Kyan disse no ouvido dela. - Que insolente, não?
Ela concordava.
- Me diga uma coisa... Você acha que eu deveria comprar tinta para os lábios para agradar meu marido quando ele finalmente voltar para mim? - ela perguntou.
- Acho que sim - ele respondeu.
- Esse é meu objetivo como imperatriz, claro. Agradar meu marido e qualquer outro homem que por acaso olhe para mim.
- Sim, vossa graça.
Era a última coisa que ele diria na vida. Amara fincou a adaga que trazia consigo no homem e viu os olhos dele se arregalarem de surpresa e dor.
- Se algum de vocês me desrespeitar - ela disse, lançando um olhar aos outros guardas que a encaravam, surpresos -, vai morrer.
O guarda que havia dito o que não devia caiu no chão. Ela sinalizou para Carlos retirar o corpo, e ele obedeceu sem hesitar.
- Muito bem, pequena imperatriz - Kyan sussurrou. - Você me prova mais seu valor a cada dia que passa.
Amara abriu um sorriso na direção de Mauro, cuja expressão era de medo.
- Estou ansiosa para ir à feira. Parece incrível.
Mais tarde, escoltadas por Mauro e pelos guardas reais, Amara e Nerissa exploraram a feira, composta por vinte bancas cuidadosamente escolhidas que, como o prometido, vendiam, em sua maioria, produtos
fúteis - principalmente itens de beleza e de moda.
Amara ignorou os lenços e vestidos bordados, a tinta para os lábios, os cremes para remover manchas e os bastões de carvão para delinear os olhos e se concentrou nos comerciantes - paelsianos, jovens e
velhos, com expressão cansada, mas esperançosa, quando ela se aproximava.
Sem medo, sem desespero, só esperança.
Que estranho encontrar isso em um reino dominado, ela pensou. Mas a ocupação kraeshiana de Mítica tinha sido, até aquele momento, quase totalmente pacífica, em espacial em Paelsia. Ainda assim, Carlos
havia contado sobre grupos rebeldes que conspiravam contra ela, tanto em Limeros quanto em Auranos.
Não era um problema para Amara. Os rebeldes eram uma praga inevitável, mas que em geral podia ser combatida com facilidade.
Ela observou quando Nerissa se aproximou de uma banca para ver um lenço de seda que o comerciante mostrava a ela.
- Fico feliz em ver que você está se habituando - Kyan sussurrou carinhosamente no ouvido dela. Os ombros de Amara ficaram tensos com a voz dele.
- Estou fazendo o melhor que posso - ela respondeu em voz baixa.
- Infelizmente tenho que deixá-la por um tempo enquanto procuro a magia de que precisamos para realizar o ritual.
Pensar nisso a assustou. Eles tinham acabado de chegar!
- Agora? Vai embora agora?
- Sim. Em breve, retomarei minha glória, e você será mais poderosa do que pensa. Mas precisamos da magia para finalizar isso.
- A magia de Lucia. E seu sangue.
- O sangue dela, sim. Mas não precisamos da feiticeira em si. Vou encontrar uma fonte alternativa de magia. Mas precisaremos de sacrifícios; sangue para selar a magia.
- Compreendo - ela sussurrou. - Quando você volta?
Amara esperou, mas não houve resposta.
Então, ela sentiu sua saia mexer e olhou para baixo. Uma menininha, que não devia ter mais do que quatro ou cinco anos, com cabelo bem preto e sardas no rosto bronzeado, aproximou-se com certa hesitação,
oferecendo uma flor.
Amara aceitou a flor.
- Obrigada.
- É você, não é? - a menina perguntou esbaforida.
- Quem você acha que sou?
- Aquela que veio salvar todos nós.
Amara sorriu e lançou um olhar para Nerissa, que estava ao seu lado usando um lenço colorido, e então sorriu para a criança.
- É o que você acha?
- Foi o que minha mamãe me disse, então deve ser verdade. Você vai matar a bruxa má que machuca nossos amigos.
Uma mulher se aproximou, claramente envergonhada, e pegou a mão da menininha.
- Perdoe-nos, imperatriz. Minha filha não teve a intenção de perturbá-la.
- Não me perturbou - Amara disse. - Sua filha é muito corajosa.
A mulher riu.
- Está mais para teimosa e tola.
Amara balançou a cabeça.
- Não, nunca é cedo demais para as meninas aprenderem a dizer o que pensam. É um hábito que as fará crescer mais corajosas e fortes. Diga, você acredita no que ela disse? Que vim salvar todos vocês?
A expressão da mulher se tornou mais séria, e seu cenho se franziu com preocupação e dúvida. Ela encarou os olhos de Amara.
- Meu povo sofreu por mais de um século. Estávamos sob o comando de um homem que tentou nos fazer acreditar que ele era feiticeiro, cobrando impostos tão altos a ponto que, mesmo com os altos lucros das
vinícolas, não conseguíamos nos sustentar. A terra que chamamos de lar está se desfazendo sob nossos pés enquanto estamos aqui conversando. Quando o rei Gaius venceu Basilius e o rei Corvin, muitos de
nós achamos que ele nos ajudaria. Mas isso não aconteceu. Nada mudou, só piorou.
- Sinto muito em ouvir isso.
A mulher balançou a cabeça.
- Mas então a senhora chegou. Aquela feiticeira má passou por aqui destruindo tudo, vilarejo por vilarejo, mas ela desapareceu quando a senhora chegou. Seus soldados têm sido rigorosos, mas justos. Eles
acabaram com quem discordava, mas essas pessoas não fazem falta: seus detratores são os mesmos homens que espalharam a discórdia em nosso reino depois que o exército de Basilius parou de oferecer a pouca
proteção que oferecia. Então, se acredito, como muitos aqui acreditam, que a senhora chegou para nos salvar? - Ela ergueu o queixo. - Sim, acredito.
Quando os guardas levaram Amara para longe da mulher e da filha, em direção à outra área da feira, aquelas palavras ficaram em sua mente.
- Posso fazer uma sugestão ousada, vossa graça? - Mauro perguntou, e ela olhou para o homenzinho que a seguia como um cão adestrado.
- Claro que pode - ela disse. - A menos que queira sugerir que eu compre tinta para os lábios.
Ele empalideceu.
- De modo algum.
- Então, vá em frente.
- O povo paelsiano está aberto a sua liderança, mas a notícia precisa ser espalhada. Sugiro abrir os portões do complexo para permitir que os novos cidadãos entrem para ouvi-la falar sobre seus planos
para o futuro.
Um discurso, ela pensou. Era algo que Gaius gostaria muito mais de fazer do que ela.
Mas Gaius não estava lá. E agora que tinha o deus do fogo para aconselhá-la sobre como acessar a magia da esfera de água-marinha, não havia mais motivos para deixar o rei viver por muito mais tempo.
- Quando? - ela perguntou a Mauro.
- Posso espalhar a notícia agora mesmo. Milhares virão dos vilarejos vizinhos para ouvi-la. Talvez em uma semana?
- Três dias - ela disse.
- Três dias parece perfeito - ele concordou. - Será maravilhoso. Muitos paelsianos, de braços e coração abertos, estão prontos a obedecer a todas as suas ordens.
Sim, Amara pensou. Um reino pronto para fazer o que ela mandasse sem questionar, que aceitaria uma mulher como líder sem discutir, seria incrivelmente útil.
16
MAGNUS
PAELSIA
Magnus pensou nas doze pessoas que estavam na hospedaria Falcão e Lança, notando que quase metade queria vê-lo morto.
- E você é uma delas, com certeza - ele murmurou quando Nic atravessou a sala, arregalando os olhos ao passar pelo príncipe. Magnus estava sozinho sentado a uma mesa com um caderno de desenho que tinha
encontrado em uma gaveta em seu quarto.
- Cassian, veja - ele disse. - Desenhei você.
Magnus ergueu o caderno. Com os dedos manchados de carvão, ele mostrou uma página na qual tinha desenhado um garoto magro pendurado em uma forca, a língua para fora da boca, X mórbidos no lugar dos olhos.
Nic, que supostamente era muito simpático com todo mundo, lançou um olhar de puro ódio para Magnus.
- Você acha isso engraçado?
- O que foi? Não gostou? Bom, dizem que a arte é subjetiva.
- Você acha que gastar seu tempo rabiscando nesse caderno vai fazer todo mundo considerar você menos ameaçador? Pense bem. Essa pose de inocente e bacana não me engana.
Magnus revirou os olhos.
- Certo - ele disse, enfiando o caderno embaixo do braço. - Mas não posso dizer que você não me magoou. Pensei que tivéssemos nos tornado amigos em Limeros.
Nic semicerrou os olhos, sem achar graça.
- A única coisa que me ajuda a dormir à noite é saber que Cleo sabe muito bem quem você é.
- Espero muito que você esteja certo - Magnus respondeu sem dar muita atenção. Ele nunca tinha deixado as palavras de Nic atingi-lo antes, e não deixaria agora, mas a questão de Cleo era um espinho. -
Acho muito interessante ver que vocês decidiram ficar aqui na cova do leão.
- Talvez você esteja enganado a respeito de quem é o leão e quem é a presa.
Magnus deu risada.
- Conversar com você é sempre muito estimulante, Nic. De verdade. Mas tenho certeza de que tem outros lugares para onde ir, e eu detestaria fazer um cara tão brilhante como você perder tempo. Sem dúvida
já atrapalhei seu próximo compromisso que é... qual é mesmo? Ficar à sombra de Ashur, à espera da maravilhosa atenção dele, agora que conseguiu voltar dos mortos? - Por ter testemunhado a morte de Ashur,
Magnus ainda estava tentando processar a informação de que ele estava vivo. - Muito triste, de verdade, que ninguém veja o que de fato está acontecendo entre o príncipe ressuscitado e o ex-cavalariço.
Foi o suficiente para fazer Nic corar.
- E o que seria, Magnus? O que você acha que está acontecendo?
Magnus fez uma pausa, encarando o olhar incerto de Nic.
- O sabor da decepção amorosa é amargo, não é?
- Imagino que você entenda bem sobre o assunto, não? - Nic rebateu. - Nunca esqueça que Cleo odeia você. Você matou todo mundo que ela ama. Roubou o mundo dela. É uma verdade que nunca vai mudar.
Lançando um último olhar, Nic saiu da sala, deixando Magnus furioso, bufando, com vontade de socar alguma coisa. Ou alguém.
Ele está enganado, ele disse a si mesmo. O passado não determina o presente.
E era no presente que ele tinha que se concentrar. Precisavam encontrar Lucia o mais rápido possível.
Por que esperar mais um dia para minha avó encontrar a pedra mágica?, ele pensou. Eles estavam ali, acovardados como vítimas, quando deveriam estar fazendo o máximo possível para tirar aquela kraeshiana
de suas terras para sempre.
Magnus empurrou o caderno de desenho para o centro da mesa e levantou. Ele ia encontrar a avó e exigir que ela - com ou sem a magia totalmente restaurada - testasse um feitiço para encontrar sua irmã.
- Está sozinho nessa sala enorme?
Ele parou ao ouvir a voz de Cleo. Ela estava na base da escada, observando-o do outro lado da sala enorme.
- Parece que sim - ele diz. - Mais um motivo para você não entrar.
Ela entrou mesmo assim.
- Parece que não conversamos a sós há muito tempo.
- Faz dois dias, princesa.
- Princesa - ela repetiu, mordendo o lábio inferior. - Minha nossa, você está fingindo muito bem. Na verdade, não sei se é só fingimento mesmo.
- Não sei ao certo do que você está falando. - Ele olhou para Cleo como um homem faminto olhava para um banquete. - Esse vestido é novo?
Ela alisou a saia de seda, da cor de um pêssego maduro.
- Olivia e eu fomos a uma feira perto das docas hoje.
- Você e Olivia fizeram o quê? - Ele franziu a testa, assustado por não saber que a princesa tinha decidido se arriscar por aí. - Que péssima ideia. Você poderia ter sido reconhecida.
- Por mais que eu goste de ser repreendida, acho que preciso dizer que ninguém me reconheceu, já que usei meu manto. E não estávamos sozinhas. Enzo e Milo estavam conosco, para nos proteger. Ashur também.
Ele está explorando a cidade para saber o que os paelsianos pensam sobre a notícia da chegada da irmã dele.
- E o que dizem?
- Ashur disse que a maioria parece... disposta a mudar.
- É mesmo?
- Qualquer coisa depois do chefe Basilius seria um progresso. - Ela hesitou. - Bem, à exceção do seu pai, claro.
- Claro. - Magnus não se importava muito com os paelsianos nem com os auranianos, na verdade. Ele só se importava com o fato de Cleo ter saído da hospedaria sem que ele notasse. - Não importa com quem
você saiu, porque ainda assim foi uma péssima ideia.
- Assim como beber até cair toda noite na taverna Videira Púrpura - ela respondeu, meio tensa. - E, no entanto, é o que você faz.
- É diferente.
- Tem razão. O que você faz é muito mais idiota e tolo do que passar o dia explorando uma feira.
- Idiota e tolo - ele repetiu, franzindo a testa. - Duas palavras que nunca foram usadas para me descrever.
- Elas são certeiras - disse Cleo, o tom firme e a testa franzida. - Quando vi você naquela primeira noite com Taran...
O som daquele nome atravessou o espaço entre eles como a lâmina afiada de um machado cortando um tronco de árvore.
- Sei que a presença dele aqui deve ser difícil para você - Magnus comentou, sentindo a garganta apertar. - Aquele rosto... Todas aquelas lembranças horrorosas que ele sugere...
- A única lembrança horrorosa de Taran que tenho é a da lâmina dele pressionada contra sua garganta. - Cleo parou, observando a expressão de Magnus e franzindo mais a testa. - Você entende que, quando
olho para ele, só vejo Theon?
- E como não veria?
- Admito que foi inesperado encontrá-lo. Mas Theon se foi. Sei disso. Já aceitei isso. Taran não é Theon. Mas é uma ameaça.
- Compreendo.
- Compreende? - Cleo continuou a observá-lo concentrada, como se fosse um enigma que ela precisasse decifrar. - Mas você pensou mesmo que eu o veria e esqueceria tudo o que aconteceu desde aquele dia?
Que o ódio que eu sentia por você voltaria a me cegar? Que eu... o quê? Me apaixonaria por Taran Ranus no mesmo instante?
- Parece mesmo um tanto quanto absurdo.
Ela ficou pensativa.
- Bom, Taran é muito bonito. Tirando o fato de querer você morto, o que é, admito, um objetivo que também já tive. Ele seria um pretendente perfeito.
- Deve ser muito divertido me atormentar.
- Muito - ela provocou, abrindo um sorriso discreto, mas levemente triste. Cleo segurou as mãos dele, e a sensação de sua pele quente junto à dele foi como um bálsamo numa ferida dolorosa. - Nada mudou
entre nós, Magnus. Saiba disso.
As palavras dela confortaram sua alma atormentada.
- Fico muito feliz em saber disso. Quando pretende contar aos outros?
No mesmo instante, a expressão dela ficou tensa.
- Não é o momento. Há muita coisa em risco agora.
- Nic é a pessoa mais próxima de você, seu amigo mais querido, e ele me odeia.
- Ele ainda vê você como um inimigo. Mas, um dia, sei que vai mudar de ideia.
- E se não mudar? - Ele a encarou nos olhos. - O que vamos fazer?
- Como assim?
- Escolhas, princesa. A vida parece cheia delas.
- Você está pedindo para que eu escolha entre você e Nic?
- Se ele se recusar a aceitar... isso, o que quer que seja, princesa, então acho que você teria que escolher.
- E você? - ela finalmente perguntou depois de um longo momento de silêncio. - Quem você escolheria se alguém ou algo o forçasse? Eu? Ou Lucia? Sei muito bem que ela foi seu primeiro amor. Talvez você
ainda a ame como antes.
Magnus grunhiu.
- Garanto a você que não existe nenhum sentimento dessa natureza entre mim e Lucia. E no que diz respeito a ela, nunca existiu.
Seu coração tinha feito tanto progresso nos últimos meses que ele se perguntava se ainda era a mesma pessoa que tinha sofrido de amor por sua irmã adotiva. Apesar de ter assumido uma forma diferente, aquele
amor ainda estava ali, dentro dele. Não importava o que Lucia pudesse fazer ou dizer, Magnus a amava incondicionalmente e estava pronto para perdoá-la por qualquer erro.
Mas o desejo que ele já sentira por sua irmã... seu coração tinha se voltado total e permanentemente para outra pessoa - alguém muito mais frustrante e perigosa do que sua irmã adotiva.
- Afinal, Lucia escolheu fugir com o tutor. - Cleo relembrou.
Ele franziu os lábios.
- Sim, e agora o destino do mundo depende da localização dela. - Cleo olhou para ele duvidosa. - O que foi, princesa? - ele perguntou. - Está em dúvida?
- Eu... - Cleo começou a falar, e então parou e olhou para os próprios pés, como se estivesse refletindo sobre o assunto. - Magnus, só não tenho certeza de que ela seja a única solução com a qual você
parece contar.
- Ela tem ligações com o deus do fogo. Acredito que saiba como extrair a magia dos cristais da Tétrade sem permitir que o deus elementar escape.
- Parece que foi ela quem ajudou Kyan a escapar, se estão viajando juntos. Só pode ser.
- Talvez. Mas a magia dela é ampla.
- Ampla o suficiente para matar todos nós.
- Você está enganada - Magnus disse sem hesitar. - Ela não faria isso. Lucia vai nos ajudar, vai ajudar a todos. - Sempre que falava bem de Lucia, ele percebia que Cleo contraía os lábios e franzia a testa
como se estivesse comendo alguma coisa amarga.
Será que ela poderia estar com ciúme do que sinto por Lucia?, ele se perguntou, achando graça.
- Vejo que você fica feliz quando pensa em sua irmã adotiva - ela comentou tensa, em um tom desagradável. - Tenho certeza de que pensar nela é uma ótima válvula de escape para você enquanto estamos presos
aqui em Paelsia, cercados por rebeldes que adorariam a oportunidade de incendiar esta hospedaria com toda a realeza dentro.
- É esse o plano abominável de Agallon? - ele perguntou, contraindo os lábios e franzindo a testa. - O que mais ele contou na calada da noite desde que chegou?
- Muito pouco, na verdade.
Magnus deu um passo na direção dela. Cleo deu um passo para trás: a dança na qual se envolviam de vez em quando. Os dois continuaram até ele encurralá-la em um canto, e ela lançar um olhar desafiador.
- Talvez você preferisse dividir um quarto com o rebelde do que comigo - ele disse, enrolando uma mecha do cabelo dela no dedo. - Mas ele provavelmente preferiria uma casa na árvore feita de tábuas e barro.
Cleo riu.
- É nisso que está decidindo se concentrar agora?
- Sim. Porque se me concentrar em Agallon, posso parar de pensar em você e em como quero levá-la para a minha cama.
Ela só teve tempo de soltar um breve suspiro antes de Magnus beijá-la, segurando-a pela cintura e puxando-a para si. Cleo retribuiu sem limitações.
As mãos dele deslizaram pelo corpo da princesa, passando pela lombar, chegando à curva de seu quadril. Desesperado para se inclinar e beijá-la direito, ele pegou suas pernas por trás e a levantou, pressionando
suas costas contra a parede.
Sim, ela deveria fazê-lo parar naquele momento.
Mas não foi o que aconteceu. Na verdade, Cleo tinha começado a puxar os cordões da camisa dele, sem afastar seus lábios nem por um segundo.
- Quero você - ele sussurrou enquanto a beijava. - Quero tanto você que posso morrer de desejo.
- Sim... - O hálito dela era doce e quente. - Também quero você.
Quando Magnus a beijou, toda a racionalidade sobre a maldição desapareceu de sua mente. Nada mais existia, só a necessidade enlouquecedora e alucinante de tocá-la, de senti-la...
Pelo menos, até ouvir passos de alguém se aproximando por trás.
Foi nesse momento que Magnus percebeu que não estavam mais sozinhos.
Deixando a princesa de volta ao chão, devagar, Magnus se forçou a se afastar e, com os ombros tensos, enfrentar o intruso.
Apesar de sua altura intimidadora e dos músculos avantajados, Felix Gaebras parecia envergonhado.
- Hum... Desculpe interromper. Eu estava... só passando. - Mas ficou parado onde estava, e então, ergueu o queixo. - Perdoe-me por dizer, vossa alteza - ele disse, olhando para Magnus -, mas talvez seja
melhor o senhor ser mais discreto com a princesa de agora em diante.
- É mesmo? - Magnus perguntou.
Felix assentiu.
- Nic convenceu a todos do seu ódio por Magnus, princesa. E isso... não me pareceu uma atitude de ódio. Ele vai enlouquecer.
Cleo se afastou de Magnus, os dedos nos lábios e o rosto corado.
- Por favor, Felix - ela disse, quase desesperada. - Prometa que não vai contar nada a Nic sobre isso. Nunca.
Felix fez uma reverência.
- Não se preocupe, princesa. Não direi nada.
- Obrigada.
Magnus disfarçou a careta. Algo no modo como ela falou, no alívio que pareceu sentir por ter sido Felix quem os vira juntos e não alguém cuja opinião considerasse mais importante, o incomodou demais.
Se Ashur podia buscar informações sobre Amara, Magnus também podia. Naquela tarde, ele deixou a hospedaria, subiu a rua até a feira que Cleo havia mencionado e passou na porta da tentadora Videira Púrpura.
Na feira, ele mal olhou para as bancas de madeira com lonas coloridas protegendo os comerciantes do sol, cada um vendendo um produto paelsiano diferente - de vinho a joias, de frutas e legumes a lenços
e túnicas de todas as cores, e diversas outras mercadorias. No movimentado labirinto de bancas, sentia-se o cheiro adocicado das frutas e da carne defumada, e mais perto das docas, o cheiro de suor e vômito
pegou as narinas de Magnus de surpresa. Entre os diversos clientes da feira, incluindo a tripulação de navios e os cidadãos comuns da cidade, vários guardas kraeshianos chamaram sua atenção.
Ele observou um dos homens de Amara conversar com um vendedor de vinho paelsiano que lhe ofereceu um pouco da bebida. O copo de madeira não foi oferecido com mãos trêmulas nem medo nos olhos do vendedor,
mas com um sorriso.
Para Magnus, era irritante ver que muitos paelsianos aceitavam o destino de se tornar parte do Império Kraeshiano sem se preocupar com nada. Será que as coisas estavam tão ruins antes que pensar em Amara
como nova líder era uma dádiva?
Ele continuou a observar essa dinâmica entre paelsianos e kraeshianos até o sol ficar alto e insuportavelmente quente para continuar com o manto com capuz. Como já havia tido contato com paisagens, sons
e cheiros bons e ruins da feira de Basilia, decidiu voltar.
Magnus virou na direção da hospedaria e descobriu que havia alguém em seu caminho.
Taran Ranus.
O príncipe se forçou a não deixar claro que encontrar o gêmeo de Theon - alguém que quase tinha conseguido vingar o assassinato de seu irmão - o tinha assustado. Mas antes que Magnus decidisse o que dizer,
Taran tomou a liberdade de falar.
- Estou curioso - ele disse em voz baixa. - Quantas pessoas você matou?
- Essa pergunta é muito pessoal para um lugar tão público.
Taran continuou, sem se deixar abater.
- Sabemos que matou meu irmão. Quem mais?
Magnus tentou não se encolher, tentou não levar a mão ao cabo da espada. A espada de Taran também estava visível, pendurada no quadril.
- Não sei ao certo - admitiu.
- Aceito uma estimativa.
- Muito bem. Talvez... uma dúzia.
Taran assentiu, sem deixar sua expressão revelar o que passava em sua mente quando olhou para a feira movimentada ao redor deles.
- Quantas pessoas você acha que eu matei?
- Mais de uma dúzia, tenho certeza - Magnus respondeu. Ele contraiu os lábios. - Por quê? Está aqui para me provocar com suas habilidades com a espada? Para contar histórias de como fez homens maus chorarem
chamando pela mãe diante da morte? Que mataria mais mil se isso fizesse o sol brilhar e a felicidade imperar nesse mundo?
Taran observou Magnus, semicerrando os olhos. Para alguém que quase tinha posto a hospedaria a baixo em uma noite para tentar cortar o pescoço de Magnus, ele parecia bem calmo naquele dia.
- Você se arrepende de ter matado meu irmão? - ele finalmente perguntou, ignorando as perguntas de Magnus.
Magnus pensou em mentir, sem saber se deveria fingir arrependimento. Mas sua intuição lhe disse que não conseguiria enganar o gêmeo de Theon.
- Não - ele afirmou com o máximo de confiança que conseguiu. - Minha vida estava em risco. Tive que me proteger de alguém muito mais habilidoso com a espada do que eu era na época, por isso agi. Não posso
dizer que me arrependo de ter tomado as medidas necessárias para salvar minha vida, apesar de saber que hoje não faria as escolhas que fiz naquele momento.
- Qual escolha faria hoje?
- Combate direto. Minhas habilidades de luta melhoraram muito no último ano.
Taran assentiu, mas seu rosto não deixou transparecer nada.
- Meu irmão teria vencido você.
- Talvez - Magnus disse. - Mas e daí? Imagino que você esteja aqui para tentar me matar diante dessas pessoas. É isso? Ou estamos só conversando?
- Foi exatamente para isso que o segui até aqui: quero decidir o que fazer. Antes era muito simples, estava muito claro em minha mente que você tinha que morrer.
- E agora?
Taran puxou a espada da bainha, mas só o suficiente para mostrar a lâmina que trazia uma série de símbolos e palavras desconhecidas gravadas na superfície.
- Essa era a arma de minha mãe. Ela me contou que as palavras gravadas estão na língua dos imortais.
- Interessante - Magnus disse, o corpo tenso e pronto para a luta. - Sua mãe era bruxa?
- Sim. Ela era uma Vetusta, uma bruxa que adorava os elementos com magia de sangue e sacrifício.
- Tenho certeza de que você está me contando isso por um motivo.
- Estou. Pedi para você adivinhar quantas pessoas eu matei. - Taran embainhou a espada. - A resposta é uma. Apenas uma.
Uma gota de suor correu pelas costas de Magnus.
- Sua mãe.
Taran assentiu com seriedade.
- As Vetustas acreditam que os gêmeos têm uma magia poderosa. - Ele balançou a cabeça, franzindo a testa. - Existe uma lenda quase esquecida que diz que os primeiros imortais criados foram os gêmeos: um
escuro e um claro. Minha mãe acreditava que a magia sombria era muito mais poderosa, então, para aumentar a dela, decidiu sacrificar o gêmeo claro.
- Theon.
- Na verdade, não. Fui eu, cinco anos atrás, quando tinha quinze anos. Talvez minha mãe achasse que eu fosse permitir que ela usasse essa mesma espada para me matar, mas estava enganada. Eu reagi e a matei.
Theon chegou naquele momento e me viu empunhando uma espada e nossa mãe morta a meus pés. Ele não sabia o que ela era de verdade. Eu mesmo só descobri a verdade recentemente. Ele jurou que eu pagaria com
a vida por tê-la matado, e eu sabia que ele nunca compreenderia. Então corri o máximo que pude, sem olhar para trás. Até agora. - Ele riu, e o som saiu seco e oco. - Parece que temos isto em comum: nós
dois fomos forçados a matar para nos proteger, uma atitude da qual não podemos nos arrepender, porque, sem ela, não estaríamos vivos hoje.
Magnus não sabia o que dizer. A confissão de Taran o deixou sem fala. Ele se concentrou na movimentação da feira, fechando os olhos com força por um momento.
Quando voltou a abri-los, Taran se afastava dele em meio à multidão. Ele o observou à distância, pensando na conversa e sentindo-se grato por não ter tido que lutar para defender a própria vida naquele
dia.
Quando voltaram para a hospedaria, Jonas estava na sala de convivência, como se os estivesse esperando. Ele levantou da cadeira e largou o livro que estava lendo. Magnus notou com surpresa que era o mesmo
que tinha lido, sobre vinhos.
- Taran, precisamos conversar - Jonas anunciou. - No pátio não seremos ouvidos por bisbilhoteiros. Felix já está esperando. Você também, vossa alteza.
Magnus inclinou a cabeça.
- Eu?
- Foi o que eu disse.
- Agora estou profundamente confuso. Muito bem. Vamos lá, rebelde.
Atrás da casa havia um espaço a céu aberto que o dono da hospedaria e sua esposa chamavam de pátio. Na verdade, era uma área de grama marcada por uma horta, flores e dois cercados para os animais - um
para as galinhas e outro para os porcos gordos que guinchavam alto quando alguém se aproximava.
Magnus e Taran acompanharam Jonas até onde Felix estava, no canto oposto do jardim.
- Temos informação sobre Amara - Jonas disse finalmente. - Ela está aqui em Paelsia.
Magnus tentou não demonstrar insatisfação.
- Informação vinda de quem?
- Há rebeldes por todos os lados, alteza.
O primeiro ímpeto de Magnus foi querer lembrar Jonas que a maioria dos rebeldes havia morrido, mas decidiu se controlar.
- Muito bem. Onde em Paelsia?
- No complexo do chefe Basilius.
- E onde, exatamente, é isso?
- A um dia de viagem daqui rumo ao sudeste. Fico surpreso por você não saber, já que é um ponto importante na Estrada de Sangue de seu pai.
- Estrada Imperial - Magnus o corrigiu.
- Estrada de Sangue - Jonas repetiu, rangendo os dentes.
Magnus decidiu não discutir a questão com um paelsiano, nem tocar no assunto de como ela tinha sido construída tão depressa pelos trabalhadores paelsianos sob ordens de seu pai. Não era à toa que os cidadãos
daquele reino tinham recebido Amara tão bem.
- E esse informante também explicou por que ela veio para cá?
- Não.
- Não importa por que ela está aqui - Felix disse. - Essa é nossa chance.
- De quê? - Magnus perguntou. - De matá-la?
- Essa era a ideia.
- Não era, não - Jonas disse, arregalando os olhos para o amigo.
- Matar a imperatriz não muda o fato de que meu pai deu este reino para a família dela. Não muda que os soldados estão tão espalhados quanto manchas de lama. E Ashur? Você o trouxe aqui como se confiasse
nele, mas não sabemos qual é o plano dele.
- Ashur é um problema, admito - disse Jonas. - Nic está de olho nele, informando qualquer comportamento incomum.
- Ah, sim. - Magnus cruzou os braços. - Isso deve dar certo. Então, você - ele virou para Felix - quer matar a imperatriz. E você - ele virou para Jonas - quer pagar para ver. - Ele assentiu. - Excelentes
decisões. Acho que Amara não terá chance contra essa aliança.
Jonas hesitou.
- Taran, você não planejava matá-lo?
- Sim.
- Estou começando a me animar com essa possibilidade.
- Está claro que - Magnus começou -, se sabemos onde Amara está, a melhor estratégia é mandar homens para obter mais informações sobre os planos atuais dela, por que está aqui e onde escondeu o cristal
da água.
Taran resmungou.
- Odeio concordar com ele, mas concordo. Posso ir. Não tenho motivos para ficar aqui sem nada para fazer, olhando para as paredes.
- Também vou - Felix anunciou animado.
Jonas lançou um olhar cauteloso para Felix.
- Você acha que consegue lidar com isso sem fazer nada de errado?
- Claro que não. Mas ainda assim, quero ir. - Felix suspirou. - Prometo que vamos conseguir informações. E só isso.
Magnus preferia entrar em ação, como Felix, e simplesmente varrer Amara do mundo, mas sabia que informações seriam úteis com os dois reinos em guerra.
- Devemos contar a Cleo sobre isso? Ou a Cassian?
- Por enquanto, não - Jonas respondeu. - Quanto menos pessoas souberem, melhor.
Magnus não gostava de guardar segredos de Cleo, mas Jonas tinha razão.
- Tudo bem. Vamos manter esse assunto entre nós quatro.
Jonas assentiu.
- Então, resolvido. Taran e Felix partem amanhã cedo.
17
CLEO
PAELSIA
- Você viu o príncipe Ashur por aí? - Nic perguntou.
Cleo desviou o olhar do livro sobre a vida do chefe Basilius que tinha escolhido na estante do andar de baixo. Seus pensamentos estavam tão dispersos que ela devia ter lido a mesma página dez vezes - que
contava sobre os cinco casamentos dele.
Nic estava parado na porta do quarto dela. Enzo estava de guarda do lado de fora, um protetor constante, mas ela tinha deixado claro que Nic podia interrompê-la.
- Hoje não - ela admitiu, ainda chocada por ter visto que o príncipe tinha renascido dos mortos. - Por quê? Isso é estranho?
- Ele gosta de sair por aí sem avisar ninguém. - Ele ficou sério. - Você acha que ele está diferente? Não sei dizer.
- Para mim, ele está igual, mas não o conheço muito bem - ela admitiu.
- Nem eu.
- Ah, não sei. Às vezes não precisamos de anos para conhecer alguém. Algumas conversas são mais do que suficientes para saber como a pessoa é.
- Se você acha...
Cleo sabia que Nic e Ashur eram bem próximos, a ponto de seu amigo ter sentido muito a perda do príncipe. E também sabia que existia mais do que uma simples amizade entre os dois, mas emoções que os dois
estavam apenas começando a explorar. Talvez agora nunca mais se resolvessem.
- Parece que Taran e Felix também sumiram - ela disse. - Onde eles estão?
- Ótima pergunta. Pensei que Jonas fosse meu parceiro, mas parece que ele tem negócios com Magnus agora.
- O quê? - Só de pensar, ela sentiu vontade de rir. - Se você viu os dois conversando, é bem provável que o assunto seja o rei.
Desde que Jonas conseguira - ainda que não tenha conseguido - cravar a adaga no peito do rei, dois dias antes, Gaius não saía do quarto, com a mãe a seu lado o tempo todo, temendo que o filho estivesse
perto demais da morte e não sobrevivesse tempo suficiente para receber a magia secreta e restauradora que ela prometera.
Cleo temia que, se o rei morresse antes de a bruxa encontrar Lucia, ela se recusaria a ajudá-los, mas não se incomodava em imaginá-lo sofrendo em um quartinho em Paelsia.
Um fim adequado para um monstro.
Como será que Gaius Damora era quando conheceu a mãe dela? A que horrores ele teria submetido Elena Corso? Era uma pergunta que a perseguia desde que ele dissera o nome dela.
- Você confia nele? - A voz de Nic interrompeu seus pensamentos.
- Em quem? Magnus?
Ele riu.
- Não, claro que não estou falando de Magnus. Em Jonas.
Ela confiava em Jonas, o garoto que a tinha sequestrado e aprisionado - não uma, mas duas vezes - e que, em determinado momento, quis que ela morresse por presenciar o assassinato de seu irmão?
Mas também era o garoto que se tornara um líder. Que lutara por seu povo. O garoto que tinha arriscado a própria vida para salvar a dela.
- Confio nele, sim - ela admitiu.
Muita coisa podia mudar em um único ano.
- Eu também - Nic disse.
Ela assentiu.
- Se ele está falando com Magnus, deve ser importante.
- Ainda assim, não gosto de pensar que esteja escondendo alguma coisa de nós.
Cleo também não gostava, principalmente se fosse um segredo entre Jonas e Magnus. E jurou que conseguiria algumas respostas. Ela não gostava de ficar por fora das questões.
Naquele mesmo dia, a chance apareceu. Quando Magnus pediu para falar com Enzo no pátio, ela começou a procurar informações por conta própria na hospedaria. Logo encontrou algo possivelmente interessante
na sala de convivência: o caderno de desenho de Magnus.
Cleo já tinha visto Magnus desenhando nele, os dedos pretos por causa do carvão. Os limerianos não gostavam tanto de arte quanto os auranianos, que viam a beleza como um presente que o artista compartilhava
com o mundo por meio de sua visão singular. Mas quando um limeriano desenhava, precisava ser bem semelhante ao original para ajudar na referência e no aprendizado.
Para isso, Magnus tinha passado um verão tendo aulas de arte na Ilha de Lukas muitos anos antes, uma viagem que muitos nobres e jovens da realeza - incluindo a mãe e a irmã de Cleo - faziam na juventude.
Ela já tinha visto o antigo caderno de Magnus, no qual havia desenhos incrivelmente detalhados da flora e da fauna... além de vários retratos de Lucia, cada um feito com admiração indiscutível e atenção
a cada centímetro do rosto perfeito da irmã.
Mas aquele era um caderno novo, o que deixou Cleo extremamente intrigada.
- Eu não devia olhar - ela disse a si mesma. - Magnus não me deu permissão.
Mas esse argumento nunca tinha funcionado.
O primeiro desenho era do jardim, um rascunho rápido, mas as dimensões e a precisão eram espantosas. Antes de abandonar aquele desenho, ele tinha se concentrado no detalhe de uma roseira, e mesmo com o
traço grosso do carvão, tinha capturado a beleza em tons de preto e cinza.
A segunda, a terceira e a quarta páginas tinham sido arrancadas sem cuidado.
Na quinta página, não havia um desenho, mas uma mensagem.
Espiando para encontrar um retrato seu, princesa? Desculpe, mas hoje não. Talvez um dia eu desenhe você. Ou talvez não. Vamos ver o que o futuro nos reserva.
M.
Cleo fechou o caderno envergonhada, e também irritada.
Quando ouviu gritos, correu para as janelas com cortinas de lona grossa que davam para o pátio nos fundos da hospedaria.
O príncipe estava empunhando a espada, mirando em Milo e Enzo, que também seguravam suas armas. Quando atacaram, Cleo soltou um grito de susto antes de perceber o que estava acontecendo.
Eles estavam treinando. E a julgar pela força de ataque de Milo e de Enzo, Magnus tinha pedido para os dois darem o melhor de si.
Será que ela nunca tinha visto Magnus assim antes, em guarda, a testa suada, bloqueando as armas dos guardas com a espada? Ela pensou que aquilo podia trazer lembranças horrorosas daquele dia - do dia
em que perdera Theon. Mas naquela visão Magnus era um príncipe sem habilidade comparado a um guarda do palácio, e ele sabia disso.
Sinto muito, Theon, ela pensou, o coração apertado. Não esperava sentir isso por Magnus. Mas sinto. Não posso mais me apegar à sua lembrança. Não posso odiar o príncipe pelo que aconteceu, pelo que ele
fez naquele dia. Magnus está muito diferente agora.
Ou talvez Cleo tivesse mudado irreversivelmente.
- Na minha opinião, não estão lutando tanto quanto deveriam.
Cleo se assustou com a voz de Jonas. Ela o viu a seu lado, escondido até aquele momento, com os olhos arregalados.
- Está surpresa? - ele perguntou, achando graça.
- Você se aproximar de alguém em uma sala escura com certeza não é uma surpresa, rebelde.
Jonas sorriu, mas voltou a observar o trio do lado de fora.
- Será que o príncipe estaria disposto a me enfrentar?
- Se estivesse, certamente um de vocês acabaria morto.
- Sim, mas quem? - Sua sobrancelha, que estava arqueada, abaixou quando ele viu a expressão sofrida dela. - Em pouco tempo você estará livre desse acordo infeliz com ele, prometo.
Cleo conteve a resposta, tomando cuidado para não defender o príncipe. Ela ainda achava que era melhor ninguém saber a verdade sobre eles.
- Magnus, o rei e Selia são o caminho para as respostas de que preciso para liberar a magia da Tétrade - ela comentou.
- Eu já disse: tem um deus elementar dentro daquele cristal - ele falou de modo incisivo.
Seu tom de voz a fez se encolher. Depois que descobriu sobre os deuses elementares, dois dias antes, ela não conseguia parar de pensar no assunto e mal tinha pregado os olhos devido à gravidade da situação.
- Se tivermos a oportunidade de aproveitar essa magia sem deixar o deus escapar, ainda acho que é um objetivo que vale a pena buscar. Vamos perder muito se não conseguirmos esse poder para nos ajudar de
alguma forma, ainda que seja pouco.
Quando ela encarou Jonas, viu uma expressão séria, mas os olhos mais tranquilos.
- Não discordo totalmente.
Ela hesitou, mas só por um momento.
- É bom que saiba que, de acordo com Nic, você está escondendo dele a localização de Taran e Felix. Ele está bastante irritado com isso.
- Comecei a acreditar que o príncipe Ashur é tão mau quanto a irmã. Nic o conhece, mas não diz nada útil a respeito do que esperar dele. Gosto de Nic, mas não conto nenhum segredo que ele possa acidentalmente
revelar ao príncipe.
Outra pessoa entrou na sala e chamou a atenção de Cleo. Era Ashur, poucos metros atrás de Jonas.
- Jonas... - ela começou.
- Ashur diz que é um herói lendário renascido dos mortos para trazer paz ao mundo. Um monte de besteira. Ele não passa de mais um membro mimado da realeza criado com todas as regalias possíveis que só
precisa estalar os dedos para ter qualquer mulher linda que desejar. - Jonas franziu a testa. - Admito que isso seria uma vantagem.
Cleo limpou a garganta quando Ashur cruzou os braços diante do peito e inclinou a cabeça.
- Acho que você deveria... - ela começou.
- O quê? Falar com gentileza sobre alguém que confunde todo mundo porque está confuso em relação à irmã má e gananciosa que provavelmente vai destruir o mundo com sua sede por poder e magia? Ele poderia
tirar o poder dela com facilidade. Poderia se impor, reclamar o título de imperador, contar para todo mundo que Amara matou a família deles. Pronto.
Ela sentia uma pontada no peito a cada palavra verdadeira, mas mordaz, que Jonas dizia.
- Pode ter certeza de que não fico confuso quando se trata de Amara - Ashur disse em voz baixa.
Jonas fez uma careta.
- Você poderia ter me dito que ele estava bem atrás de mim, princesa.
- Você estava ocupado demais admirando o som da própria voz. - E, para ser sincera, as reclamações de Jonas sobre Ashur tinham reacendido a irritação que ela mesma sentia em relação ao príncipe kraeshiano.
Não, não era irritação. Era raiva, beirando a fúria.
- Espero que não esteja confuso em relação a sua irmã - Cleo falou para Ashur. - Ela cravou uma adaga em seu peito por tê-la contrariado.
- As últimas atitudes de Amara foram infelizes, mas eu já sabia que ela estava tomando esse rumo. Na verdade, culpo minha avó por colocar seus próprios planos de revolução em ação. É irônico que minha
madhosha derrube aqueles que também querem mudança no império. Ela tem muito mais em comum com os rebeldes do que pensa.
Cleo ficou olhando para ele, enojada.
- Infelizes... Você chama as escolhas de Amara de infelizes? Ela matou você, matou a própria família, e agora está matando todos os míticos que vê pela frente!
- Ela perdeu as estribeiras. A irmã que conheço, que eu conhecia, não resolve seus problemas com violência desnecessária.
- Sim, claro, os kraeshianos são conhecidos como um povo pacífico.
Ashur a observou atentamente.
- Você está infeliz comigo.
Ela olhou para Jonas e riu um pouco.
- Príncipe Ashur, por que eu estaria infeliz com você?
- Você é como Jonas. Não confia em mim.
- E deveríamos confiar? - Jonas perguntou. - Você não me conta nenhum de seus planos, desaparece por dias, fica isolado... Acha que eu deveria confiar em você mesmo assim?
- Você poderia tirar o trono de Amara - Cleo disse. - Se está tão interessado em ajudar o mundo, pode acabar com muito sofrimento simplesmente tornando-se imperador. Você é mais velho do que Amara. O trono
é seu por direito. Tem tanto medo dela assim?
Ashur riu com frieza ao ouvir aquilo.
- Não tenho medo de Amara.
- Teve medo suficiente para, supostamente, tomar uma poção para salvar sua vida - Jonas disse. - Sabia que ela planejava matá-lo?
O belo rosto de Ashur ficou sério.
- Eu não sabia. Não com certeza. E a poção que tomei... foi bem antes de minha viagem para, acima de tudo, me proteger do rei Gaius, caso ele tentasse usar minha presença em seu reino contra meu pai. Eu
nem imaginava que a poção funcionaria.
- Mas funcionou - Jonas disse. - Precisamos encontrar esse boticário ou essa bruxa ou quem quer que a tenha feito. Poções de ressurreição para todos. Magia assim poderia salvar muita gente.
- A magia da morte não é algo que se possa alterar - Ashur rebateu. - Não por qualquer motivo.
- Mas você alterou essa magia sombria para se salvar. - Cleo teve certeza de que o príncipe se encolheu diante da acusação, o que era incomum para ele. - Você se sente culpado por isso?
- Claro que não. - Apesar da resposta, Ashur não fez contato visual com ela.
- Chega de mentiras, Ashur. Se está tentando dar a impressão de que estamos todos do mesmo lado, precisa ser sincero conosco. Há mais coisas envolvidas nessa poção do que você quer revelar. Ela é perigosa,
não é?
- Muitas poções são perigosas. O veneno nada mais é do que uma poção com a intenção de matar.
Cleo inspirou e soltou o ar devagar, com a sensação de que estava prestes a descobrir um segredo.
- Aprendi que toda magia tem um preço. Que preço você pagou pela oportunidade de viver de novo?
- Aprendi que o preço da magia costuma ser o oposto da magia em si. Para ter muita força, você viverá momentos de grande fraqueza. Para ter prazer, haverá dor. E para ter vida... haverá morte.
- Então você matou alguém - Jonas disse, os braços cruzados e tensos. - Ou muitas pessoas. Acaba aqui o que você diz sobre altruísmo.
Ashur caminhou até a janela para olhar para fora, os braços cruzados.
- Você não sabe nada sobre mim, Jonas. Matei quando precisei. Nem sempre sou pacifista. O boticário me alertou do preço que eu teria que pagar, mas não acreditei. Amara pagou o mesmo preço, mesmo sem querer,
quando a ressuscitaram.
Cleo franziu a testa.
- Amara foi ressuscitada?
- Foi - Ashur respondeu solenemente, e então começou a contar para Cleo e Jonas o que tinha acontecido quando Amara era bebê e tinha sido salva de um afogamento pela magia negra e pelo sacrifício de sua
mãe.
Cleo percebeu que precisava sentar, pois tinha ficado abalada com a história. Em Auranos - e em Mítica -, apesar de serem valorizadas pela habilidade que tinham como mães, cozinheiras e enfermeiras, as
mulheres não eram impedidas de fazer outras coisas, se assim desejassem. E uma princesa podia ser a herdeira do trono do pai ou da mãe sem medo de ser assassinada apenas pelo suposto crime de ser uma mulher.
Cleo não sabia se admirava a mãe de Amara por valorizar a vida da filha o suficiente para sacrificar a própria vida ou se culpava a mulher por sua filha ter se tornado um monstro.
- Quem morreu por você? - Cleo perguntou em voz baixa.
O olhar distante de Ashur ficou sério, e antes de continuar, ele lançou um rápido olhar para Jonas.
- Eu não tinha certeza, mas sabia que alguém tinha morrido. Passei o mês tentando descobrir. Viajei, visitei amigos e ex-amantes. Foi alguém com quem passei um único verão. Eu não fazia ideia de que ele
ainda gostava de mim, de que nunca havia deixado de gostar... - Ele engoliu em seco. - De todas as pessoas que conheci, alguém que conviveu comigo apenas por alguns meses me amou tanto a ponto de morrer
por esse amor. Não consigo entender. Eu sabia o preço, mas o ignorei por egoísmo. Soube que ele sofreu por vários dias. Ele descreveu a dor como uma faca sendo cravada lentamente em seu peito. Me disseram
que nos últimos momentos, ele gritou meu nome. - Ashur ficou com os olhos azul-acinzentados marejados e respirou fundo. - A culpa que sinto pelo sofrimento, pela morte dele e pelo fato de eu ter apagado
qualquer chance que ele tinha de ter uma vida plena e feliz... isso vai me assombrar para sempre.
A sala ficou em silêncio enquanto Cleo tentava processar o que estava ouvindo. Aquele Ashur parecia mais o homem sincero que tinha oferecido, na noite de seu casamento, uma adaga nupcial kraeshiana para
tirar a vida da noiva infeliz ou de seu marido. Aquele Ashur não estava falando coisas confusas para desviar a atenção de seu sofrimento.
Mas, naquele momento, uma ideia lhe ocorreu.
- É por isso que você anda tão estranho com Nic - ela disse. - Ele não entende, acha que você está diferente, que seus sentimentos por ele mudaram, por tudo. Mas ele está enganado, não está?
Ashur não respondeu, mas olhou para baixo.
- Você teme que ele se apaixone por você e que você o machuque por causa desse amor.
Jonas ficou em silêncio, a testa franzida. Cleo esperava que ele não dissesse nada que fizesse o príncipe omitir a verdade.
- Eu tinha outros planos na ida a Auranos - Ashur disse finalmente. - Não queria que nada disso tivesse acontecido. Mas alguma coisa em Nicolo chamou minha atenção e eu não pude ignorar. Sei que deveria
ter ignorado. Só consegui complicar a vida dele e causar dor desnecessária. Mas agora não vou permitir que nada de ruim aconteça com ele por cometer o erro de gostar de mim.
- Nic merece uma explicação - Cleo disse, com um nó na garganta.
- É melhor que ele pense que meus sentimentos mudaram. - Ashur limpou a garganta. - Se me dão licença, acho que já revelei mais do que pretendia.
Cleo não disse nada para impedi-lo de sair. Ela estava pensando em muitas coisas ao mesmo tempo; algumas se conectavam, mas a maioria só aumentava sua confusão.
Por fim, ela olhou para Jonas.
- Então... - ele disse, ainda franzindo a testa. - Nic e Ashur, certo?
Ela assentiu devagar.
- Estranho... Pensei que Nic gostasse de garotas. De você, em especial. Não costumo me enganar com essas coisas.
- Você não está enganado. Ele gosta de garotas.
- Mas Ashur... - ele olhou para a porta - não é uma garota.
- Não fique pensando sobre isso, rebelde. Pode fundir seu cérebro. Saiba apenas que é complicado.
- E todas as coisas não são complicadas? - Jonas sentou ao lado dela. - Agora que conheço o segredo de Ashur e sei que não se trata de uma ameaça pessoal a você nem a mim, preciso me concentrar em pegar
a esfera que o rei escondeu. Você acha que está aqui na hospedaria?
- Nem imagino. Gostaria de saber. Eu ia dizer que... para liberar a magia precisamos do sangue de Lucia e do sangue de um Vigilante.
Surpreso, ele a encarou.
- Esse é o segredo?
Cleo assentiu.
- Isso impede o deus de sair?
- Não sei. Por isso é tão importante encontrarmos Lucia, descobrir mais informações com ela e o que deu errado com Kyan.
Os olhos castanhos de Jonas pareciam distantes.
- A profecia...
- O quê? - Cleo perguntou quando ele ficou em silêncio.
Ele balançou a cabeça.
- Deixa para lá. Conto mais quando descobrir se é verdade ou não.
- O problema é que não sei como encontrar um Vigilante. - Ela mordeu o lábio. - Claro que ainda deve haver alguns Vigilantes exilados vivos, mas acho que precisa ser um Vigilante pleno. Espero que Lucia
se disponha a ajudar quando chegar o momento.
- Não se preocupe em encontrar um Vigilante. - Ele ficou em silêncio por um momento. - Essa parte eu resolvo.
Ela olhou para ele, surpresa.
- Como?
- Olivia - ele sussurrou. - Ela é.
Cleo ficou boquiaberta.
- Você não pode estar falando sério.
- É outro segredo, mas vou confiar que você não vai contar a ninguém. - Jonas abriu o meio sorriso que ela sempre achou charmoso e frustrante, ao mesmo tempo. - Muita coisa foi sacrificada nesse caminho
que percorremos juntos. Muita perda para nós dois. Mas tento acreditar que sempre vai valer a pena, no fim.
Ela assentiu.
- Eu também.
- Acho que você precisa saber que a Lys gostava de você.
- Agora você está mentindo.
- Pode ser que nem ela soubesse, mas sei que ela respeitava você mais do que você pensa. Vocês têm uma coisa em comum: força. - A voz de Jonas falhou. - Só demonstram de jeitos diferentes.
Os olhos de Cleo começaram a arder ao ver Jonas se esforçando para não deixar as lágrimas escorrerem.
Ela segurou as mãos do rebelde, puxando-o para mais perto.
- Sinto muito por sua perda, Jonas. Estou dizendo isso do fundo do coração.
Ele só assentiu, olhando para baixo.
- Ela me amava. Só me dei conta disso quando já era tarde demais. Ou talvez eu tenha percebido e não estivesse pronto para aceitar. Mas agora eu entendo... Ela era perfeita para mim.
- Tenho que concordar.
- Poderíamos ter construído uma vida juntos. Uma casa, talvez até uma quinta. - Jonas sorriu de novo, mas um sorriso mais triste. - Filhos. Um futuro. Quem sabe o que poderia ter acontecido? Só tenho certeza
de uma coisa.
- De quê?
- De que Lys merecia alguém bem melhor do que eu.
- Não tenho a menor dúvida em relação a isso - Cleo concordou, satisfeita ao ver que a expressão surpresa de Jonas conseguiu apagar a dor em seus olhos. Ela abriu um sorriso caloroso. - Minha irmã acreditava
que quem morre se torna uma estrela no céu. Então todas as noites podemos olhar para cima e saber que estão cuidando de nós.
Ele parecia desconfiado.
- Isso é uma lenda auraniana?
- E se for?
Uma mecha do cabelo dela tinha caído sobre a testa, e Jonas a ajeitou atrás da orelha e deslizou a mão por seu rosto.
- Nesse caso, gosto de lendas auranianas.
Cleo encostou a cabeça no ombro dele, e os dois ficaram ali, confortando um ao outro. Havia uma ligação entre eles - algo muito forte que ela nunca havia conseguido ignorar. E houve uma época, não muito
tempo atrás, em que ela poderia ter amado aquele rebelde do fundo do coração.
E ela o amava, sim, mas não como Lysandra o havia amado.
Independentemente do que acontecesse, o coração de Cleo pertencia a outro.
18
MAGNUS
PAELSIA
Ficou claro para Magnus que Enzo e Milo estavam se controlando na luta, com receio de ferir um príncipe. Magnus deixou os dois sangrando como punição e voltou para a hospedaria, sentindo uma grande necessidade
de desenhar.
Ele parou na porta quando viu Jonas e Cleo na sala de convivência. Os dois estavam sentados próximos um do outro, falando baixo. Magnus se aproximou para ouvir, mas só conseguiu ver o rebelde acariciar
o cabelo de Cleo, sem que a princesa reclamasse, e, logo depois, seu rosto. Os dois se entreolharam por mais tempo do que o normal.
Magnus ficou muito irritado.
Por um lado, queria entrar ali com tudo, afastá-los e matar o rebelde antes de tirar Cleo da hospedaria e de perto dele para sempre.
Seu lado mais racional dizia que nem tudo o que via era o que imaginava e que ele não deveria tirar conclusões precipitadas.
Ainda assim, se entrasse ali e confrontasse os dois, alguém com certeza morreria.
Então ele saiu da hospedaria e desceu a rua até a taverna, resmungando ao pedir vinho ao taberneiro. Magnus perdeu a conta de quantas taças de vinho teve de beber até começar a se acalmar.
Já sabia que a princesa gostava do rebelde, que os dois tinham uma história romântica sobre a qual não queria pensar muito. Por que ela não desejaria alguém como Jonas? Alguém corajoso e forte - apesar
de pobre, ridículo e muito azarado com todos os que já tinham se alistado sob sua liderança rebelde.
Magnus também conseguia entender que alguém como Jonas, que olhava para a princesa como se ela fosse uma estrela brilhante na noite escura, podia ser tentador. Pelo menos quando comparado a Magnus, que
era sombrio, instável e afeito à violência.
Ele encarou a taça vazia.
- Com um milhão de outros problemas e questões para resolver, estou obcecado pensando por quem ela tem sentimentos. - Ele olhou meio embriagado para o atendente. - Por que meu copo está vazio?
- Peço desculpas. - O homem logo encheu a taça até transbordar.
Alguém sentou no banco de madeira a seu lado. Ele estava prestes a vociferar que precisava de espaço e que se o homem valorizava a própria vida, deveria ir para outro lugar, mas então percebeu quem era.
- O vinho nunca ajuda uma pessoa a esquecer suas preocupações por muito tempo - seu pai disse, o rosto pálido e macilento como o de um cadáver por baixo do capuz grosso de seu manto preto.
Como o rei tinha se isolado em um quarto no andar superior da hospedaria desde a noite da chegada, foi uma surpresa vê-lo ali. Magnus observou ao redor para ver se ele tinha trazido Milo para protegê-lo,
mas não viu o guarda em nenhum lugar. Talvez ainda estivesse tratando os ferimentos depois da luta.
Magnus ignorou o comentário do rei e tomou todo o vinho do copo antes de falar.
- Selia sabe que você está aqui? Não acho que ela aprovaria.
- Ela não sabe. Sua preocupação com minha morte iminente me tornou seu prisioneiro. Não ligo muito para isso.
- Não liga para a preocupação com sua morte iminente ou com o fato de ter sido feito prisioneiro? Não precisa responder. Tenho certeza de que as duas experiências são novas para você. - Magnus pegou o
vinho do atendente, e mandou o homem se afastar com um aceno. Então bebeu direto da garrafa.
- Antigamente, me rendia a pecados assim - o rei comentou.
- Ao vinho ao à forte autopiedade?
- Você está tendo problemas com a princesa?
- Aposto que isso o deixaria muito feliz, não?
- Saber que você deseja se afastar de alguém que acho que causará sua destruição? "Feliz" não seria bem a palavra que eu escolheria, mas, sim. Seria o melhor.
- Não vou falar sobre Cleo com você, nem agora nem nunca - Magnus resmungou, detestando o fato de sua mente estar tão nebulosa com o pai por perto. Ele preferiria ter controle total dos sentidos, mas era
tarde demais para se preocupar com isso depois de tomar tanto vinho.
- Escolha inteligente - o rei respondeu. - Ela sem dúvida não é meu assunto preferido.
- Esse ódio que você nutre por ela... - O príncipe pensou no assunto, no ódio aparentemente sem fim que o rei sentia por Cleo. - Deve ter a ver com a mãe dela, não?
- Sim, na verdade, tem.
Uma resposta direta. Que incomum - e profundamente curioso.
- Rainha Elena Bellos - Magnus continuou, encorajado pelo vinho que soltava sua língua. - Vi o retrato dela no palácio auraniano antes de você destruí-lo. Era uma bela mulher.
- Com certeza era. - O rei deu as costas e olhou com saudosismo para a rua escura pelas janelas da taverna. Magnus viu quando os lábios pálidos e fantasmagóricos sorriram discretamente.
Perceber a situação mexeu com ele.
- Você era apaixonado por ela - Magnus disse, chocado com as próprias palavras, mas sabendo que eram verdade. - Você era apaixonado pela mãe de Cleo. - A acusação fez o rei encará-lo de novo, os olhos
vermelhos um tanto arregalados, surpresos. Magnus demorou um pouco para assimilar a confirmação silenciosa e tomou mais um gole de vinho para molhar a garganta repentinamente seca. - Deve ter sido há muito
tempo, quando você era capaz de uma emoção tão pura.
O sorriso logo desapareceu do rosto pálido e desanimado do pai.
- Faz muito tempo. Essa fraqueza quase me destruiu, e é exatamente por isso que quis cuidar de você.
Magnus riu ao ouvir isso, uma risada alta que surpreendeu a ele próprio.
- Cuidar de mim? Ah, pai, não gaste saliva com essas mentiras!
O rei socou o balcão.
- Você é cego? Totalmente cego? Tudo o que fiz foi por você!
A força da ira repentina fez Magnus derramar parte do vinho na túnica. Ele olhou feio para o pai.
- Estranho eu ter esquecido isso quando você decidiu acabar com a minha vida e com a vida da minha mãe.
- A morte seria um alívio deste mundo para muitos de nós.
- Não vou esquecer nada que você fez, a começar por isso. - Magnus apontou a cicatriz no lado direito do rosto. - Você lembra desse dia tão bem quanto eu?
O rei contraiu o maxilar.
- Lembro.
- Eu tinha sete anos. Sete. Você se arrependeu por um momento que seja?
O rei semicerrou os olhos.
- Você não deveria ter tentado roubar o palácio auraniano. Se tivesse conseguido, a vergonha teria sido grande.
- Sete anos! - A garganta de Magnus ardeu porque ele gritou. - Eu era apenas uma criança cometendo um erro, tentada por uma coisa brilhante e linda, uma vez que eu levava uma vida cinza e sem graça num
palácio cinza e sem graça. Ninguém ficaria sabendo que peguei aquela adaga! Que diferença faria?
- Eu ficaria sabendo - o rei disse. - A adaga que você pretendia roubar era de Elena. Eu ficaria sabendo porque fui eu quem deu a adaga a ela, quando era um garoto ingênuo tentando impressionar uma moça
bonita. Não sabia que ela a tinha guardado, que ela a tinha valorizado e exposto o tempo todo em que ficamos separados. Quando a vi em suas mãos seis anos depois da morte dela... não pensei. Simplesmente
reagi.
Magnus percebeu que não tinha uma resposta na ponta da língua. Com suas perguntas respondidas depois de tanto tempo, ele não conseguia processar tudo depressa.
- Não justifica o que você fez.
- Não, claro que não.
Magnus desviou o olhar do rei e tentou se concentrar em outra coisa, qualquer coisa. Ajudou perceber que o mundo ia além daquela conversa. Um homem enorme veio em direção ao bar carregando muitos copos
vazios, a túnica subindo o suficiente para deixar a barriga peluda à mostra. Uma atendente afastou a mão de um marinheiro com um tapa tímido. Os músicos no canto da taverna tocavam uma música animada,
e muitos batiam palmas. Vários outros dançavam em uma mesa.
- O poder é tudo o que importa, Magnus. O legado é tudo o que importa. - O rei dizia isso como se tentasse convencer a si próprio. - Sem ele, somos como camponeses paelsianos.
Magnus já tinha ouvido aquelas bobagens tantas vezes que já haviam se tornado mais do que palavras sem sentido.
- Diga uma coisa: Elena Bellos retribuiu seu amor ou foi só uma obsessão triste e impossível que transformou seu coração e sua alma em gelo?
O pai demorou tanto para responder que Magnus pensou que ele tinha levantado e ido embora. O príncipe desviou o olhar da taverna movimentada para ver se o rei ainda estava a seu lado.
- Ela me amava - Gaius disse, por fim, a voz quase inaudível. - Mas o amor não foi suficiente para resolver nossos problemas.
Magnus segurou a garrafa de vinho com força.
- Agora você vai me contar uma história de amor e perda... sobre um garoto e uma garota?
- Não.
Pensar que o pai mencionaria aquela história de amor épico sem contar tudo era previsível, mas ainda assim frustrante.
- Então por que você está aqui?
- Para contar a lição que aprendi. Amor é dor. Amor é morte. E o amor tira o poder de uma pessoa. Se eu pudesse voltar no tempo, gostaria de não ter conhecido Elena Corso. Desde aquela época, eu a odeio.
- Que romântico. Como se casou com Corvin Bellos, imagino que ela sentisse a mesma coisa.
- Tenho certeza disso. E agora lembro dela todos os dias, de tudo o que perdi, por causa daquela criatura mentirosa, Cleo. Ela se tornou sua fraqueza fatal, Magnus.
O ódio tinha voltado à voz de Gaius. Magnus encarou os olhos frios do pai.
- Seu ódio sem fim por Cleo me parece muito errado. Você deveria culpar a bruxa que amaldiçoou Elena. - Magnus suspirou, chocado ao perceber. - Você a culpa, não é? Por isso condenou tantas bruxas à morte
ao longo dos anos... Para pagarem pelo crime dela. Pode dizer que odeia Elena, mas ainda a ama, até mesmo depois de sua morte. Por qual outro motivo você teria tomado a poção de minha avó?
- Pense o que quiser. - Um músculo se contraiu no rosto do rei. - A poção era a única maneira de afastar o pesar e a dor e deixar apenas a força. Mas agora aquela força sumiu, desapareceu quando caí daquele
penhasco. A dor e o pesar voltaram, piores do que antes. E odeio isso. Odeio tudo nesta vida: o que tive que fazer, como passei todo esse tempo obcecado apenas pelo poder. Mas agora acabou.
- É o que anda prometendo.
Magnus precisava sair daquela taverna barulhenta e enfumaçada. Precisava de tempo e de espaço para esfriar a cabeça.
Quando levantou, o rei segurou seu braço.
- Imploro a você, meu filho, que mande Cleiona embora antes que ela o destrua. A princesa não ama você de verdade, se é o que você pensa. Independentemente do que ela disser, são apenas mentiras.
- O Rei Sanguinário implorando! Agora não falta mais nada. - Ele suspirou. - Já bebi demais por hoje. Foi um prazer conversar com você, pai. Tente voltar para a hospedaria sem morrer. Tenho certeza de
que sua mãe ficaria muito abalada se alguma coisa ruim acontecesse.
Ele saiu sem dizer mais nada, detestando a confusão de pensamentos e sentimentos.
Enquanto Magnus caminhava por uma rua estreita, alguém bloqueou sua passagem para o caminho principal com ombros largos e uma cara séria.
Não havia mais ninguém à vista.
- É, acho que reconheci você uma noite dessas - disse o homem. - Você é o príncipe Magnus Damora, de Limeros.
- E você está redondamente enganado. Desculpe pela decepção. - Magnus tentou passar acotovelando o homem, que levou a enorme mão à garganta dele, puxando-o para tão perto que Magnus conseguiu sentir seu
hálito de cerveja.
- Dez anos atrás, seu pai queimou minha esposa viva, dizendo que ela era uma bruxa. O que acha de eu fazer a mesma coisa com você como vingança?
- Acho que você precisa me soltar agora mesmo. - Magnus arregalou os olhos para o homem. - Sua necessidade de vingança não tem nada a ver comigo.
- Ele está certo. - O rei deu um passo à frente e tirou o capuz. - Tem a ver comigo.
O homem olhou para Gaius, surpreso, como se não acreditasse no que via.
- Sinto muito pela morte de sua esposa - o rei disse, e uma única lamparina acima da saída da taverna iluminava seu rosto quase esquelético. - Odeio bruxas por mais motivos do que poderia mencionar aqui
e agora. Mas raramente executei uma que não estivesse envolvida com sangue e mortes. Se sua esposa está na terra da escuridão agora, é porque merece estar.
Com o rosto vermelho de ódio, o homem deu um passo à frente empunhando uma faca afiada. Magnus observou o pai de pé ali, sem se mexer, a pele amarelada, os ombros curvados. Ele não lutaria, não conseguiria
lutar por sua vida.
Gaius queria morrer?
A atenção do homem estava totalmente voltada para o rei naquele momento, e o ódio ardia em seus olhos quando ele avançou.
Magnus se moveu antes mesmo de se dar conta de suas intenções, segurou as mãos do homem e impediu que a faca acertasse o alvo.
- Se alguém tem o direito de matar meu pai, esse alguém sou eu - ele vociferou. - Mas não hoje.
Ele virou a lâmina afiada para afundá-la no peito do homem, que gritou de dor e desabou no chão. O sangue jorrou livremente do ferimento fatal.
Houve um momento de completo silêncio na rua até o rei falar de novo.
- Precisamos ir embora antes que alguém veja isso.
Magnus teve que concordar. Limpou o sangue das mãos no manto preto e os dois logo voltaram à hospedaria Falcão e Lança.
- Não pense que esse gesto mostra que não odeio você - Magnus disse.
O rei assentiu com seriedade.
- Eu o consideraria um idiota se não me odiasse. Ainda assim, apesar do ódio que sente por mim, quero lhe dar algo.
- O quê?
- O cristal do ar.
Não havia como o Rei Sanguinário entregar uma parte da Tétrade a alguém, nem mesmo ao próprio filho. E, ainda assim, Gaius levou Magnus ao andar de cima, ao quarto onde tinha ficado por dois dias.
Magnus observou o espaço.
- Onde está Selia?
- No pátio. - O rei indicou a janela com a cabeça. - Sua avó gosta de cumprir os rituais antigos todas as noites, a esta hora e sob o luar, por isso consegui sair.
O rei foi até a cama de palha, levantou as cobertas e passou a mão por baixo do colchão. Em seguida, franziu a testa.
- Ajude-me a levantá-lo - ele disse.
- Está tão fraco assim? Então você teria mesmo ficado parado, esperando aquele homem te matar?
- Faça o que estou mandando. - O olhar que o pai lançou foi muito mais familiar do que qualquer conversa sobre compartilhar e arrependimentos.
- Tudo bem. - Magnus foi até o lado de Gaius e levantou o colchão para seu pai procurar embaixo dele.
Os olhos vermelhos e marejados do rei foram tomados pelo susto.
- Não está aqui.
Magnus lançou um olhar desconfiado para o rei.
- Que conveniente, se considerarmos que você estava prestes a entregá-lo a mim. Por favor, pai, me poupe dessas dissimulações. Como se você fosse esconder um tesouro como aquele em um lugar tão óbvio!
- Não é dissimulação. Estava aqui. Andei muito debilitado para encontrar um lugar melhor onde escondê-lo. - Gaius ficou sério. - Aquela sua princesinha o roubou.
Só podia ser mentira. Mais uma mentira. Magnus não conseguia pensar em outra explicação, não para algo tão importante.
Antes que pudesse responder, o rei cambaleou com dificuldade para sair do quarto. Magnus o seguiu pelo corredor, onde Cleo ainda estava com Jonas.
Magnus não conseguia acreditar no que via. Precisou de todo o autocontrole possível para não transformar Jonas no segundo morto da noite.
Cleo levantou depressa quando o rei e Magnus entraram.
- O que foi? O que aconteceu?
- Você roubou o cristal do ar? - Magnus perguntou, incomodado com a maneira arrastada como estava falando.
- O quê? Eu... eu nem sabia onde estava!
- Sim ou não, princesa?
Cleo semicerrou os olhos e levantou o queixo.
- Não.
- Ela está mentindo - o rei disse.
- O rei das mentiras querendo acusar a princesa, não é? - Jonas quase cuspiu as palavras, os punhos cerrados. - Que ironia.
- Onde está o cristal da terra? - Magnus perguntou.
Cleo franziu a testa ao enfiar a mão no bolso e arregalou os olhos.
- Não está aqui. Mas estava, juro! Eu o carrego comigo o tempo todo!
Magnus sentiu uma náusea. Havia um ladrão entre eles. E quem quer que fosse, em breve ia se arrepender profundamente por suas atitudes.
Não demorou para que todos corressem até a sala para ver o que estava acontecendo. Milo e Enzo já empunhavam as armas, prontos para um combate.
Magnus observou o grupo. Estava todo mundo ali: Nic, Olivia, até Selia havia se unido ao grupo, com o rosto corado devido ao ritual da lua daquela noite. Todo mundo, menos uma pessoa.
- Onde está o príncipe Ashur? - Jonas perguntou, franzindo a testa. - Ele estava aqui mais cedo com Cleo e comigo.
- Eu não o vi hoje - Olivia respondeu. - Talvez tenha saído.
- Talvez. Alguém sabe aonde ele foi?
Enzo e Milo balançaram a cabeça em negativa.
Selia foi para o lado do rei pálido, que caminhava até uma cadeira para sentar.
- Gaius, querido, o que está fazendo fora da cama?
Magnus os ignorou, prestando atenção em Nic, que estava em silêncio. Enquanto os outros conversavam sobre o paradeiro do príncipe, Nic saiu da sala. Magnus imediatamente o seguiu pelo corredor em direção
à porta da frente.
Quando Nic notou que Magnus estava perto, seus ombros ficaram tensos.
- Está procurando alguém? - Magnus perguntou, com os braços cruzados.
- Quero sair para respirar um pouco de ar fresco.
- Ele levou os dois cristais, não levou? E contou a você sobre os planos.
Nic balançou a cabeça, mas não o encarou nos olhos. Magnus não tinha mais paciência para mentiras naquela noite. Ele puxou a frente da túnica de Nic e o jogou contra a parede.
- Onde está Ashur? - ele resmungou.
- Você está bêbado.
- Demais, mas não faz a menor diferença agora. Responda! Ashur roubou os cristais, não roubou?
Nic rangeu os dentes.
- Você acha que o príncipe me conta alguma coisa?
- Não faço ideia do que o príncipe sussurra em seu ouvido, mas não sou cego. Sei que tem algo entre vocês dois, que são mais próximos do que aparentam. E sei que você sabe mais do que está me contando.
Jonas se aproximou, tenso, vindo de um canto.
- O que está fazendo com ele?
Magnus não soltou o garoto.
- Nic sabe os segredos de Ashur e vou descobrir quais são.
- Responda à pergunta, Nic - Jonas disse, os braços cruzados. - Sabe para onde Ashur foi?
Nic riu.
- Como é? Vocês estão trabalhando juntos agora?
- Não - Magnus e Jonas responderam em uníssono, e então se entreolharam.
Nic suspirou.
- Tudo bem. O príncipe acabou de partir para ver a irmã. Tentei convencê-lo a não fazer isso, mas ele não ouviu nada do que eu disse. Está determinado a fazer o que puder para colocar juízo na cabeça dela
e, se não conseguir, vai exigir o título de imperador.
Magnus sentiu o estômago revirar.
- E ele levou para Amara os cristais do ar e da terra. Que lindo presente, considerando que Amara está com o cristal da água.
Por fim, Nic lançou um olhar preocupado.
- Ashur não faria isso.
- Não? - Magnus tentou continuar segurando a túnica de Nic para que o idiota não fugisse, mas sua visão estava turva. Vinho demais, rápido demais. Os efeitos só passariam ao amanhecer. - Talvez Amara tenha
retirado os cristais dos esconderijos com sua magia, e eles voaram em asas de borboletas para ela.
- Vou falar mais uma vez. - Nic semicerrou os olhos. - Me solte.
- E se não soltar? Vai chamar a princesa para salvá-lo?
- Odeio você. Desejo vê-lo morto e enterrado. - Ele olhou para Jonas, irritado. - Uma ajuda?
- Nic, você precisa pensar - Jonas disse com calma. - Se Magnus estiver certo em relação a Ashur...
Magnus lançou um olhar fulminante ao rebelde.
- Você acabou de me chamar apenas pelo meu primeiro nome?
Jonas revirou os olhos.
- Amara Cortas não pode ter mais poder do que já tem. E se o irmão dela levou os cristais da Tétrade, é a pior coisa que poderia acontecer. Ela pode liberar três deuses elementares como Kyan.
- Eu sei - Nic respondeu. - Eu entendo.
- Entende?
- Então a culpa é minha? Vai deixar sua majestade quebrar meu pescoço? Por quê? Por não ter conseguido impedir Ashur de fazer o que queria? Ele faz o que bem entende.
- Prometo que sua majestade não vai quebrar seu pescoço.
- Não vamos nos precipitar - Magnus disse, divertindo-se com o breve olhar assustado do garoto.
Ele nunca mataria Nic.
Cleo nunca o perdoaria.
- Você vai fazer o seguinte - Magnus disse. - Vai atrás de Ashur para impedi-lo de fazer alguma coisa idiota e imperdoável por senso de lealdade familiar kraeshiano bizarro e sem propósito. E vai recuperar
os cristais que ele roubou, custe o que custar.
Nic o encarou incrédulo.
- Não vou deixar Cleo de novo.
- Ah, vai, sim, com certeza. E vai agora. Você vai voltar com os cristais da Tétrade ou minha paciência com você vai acabar. - Magnus tentou organizar a mente confusa para encontrar uma maneira de fazer
Nic cumprir a ordem.
- Você pode até me odiar, mas viu que mantive sua preciosa princesa viva todos esses meses, enquanto outros a queriam morta. Juro pela deusa que vou parar de protegê-la se não fizer exatamente o que mandei.
Nic se encolheu, mas manteve o olhar firme.
- Cleo ficaria bem até mesmo sem sua ajuda.
- Talvez sim. Talvez não. Em tempos de guerra, e não se engane, é exatamente o que essa ocupação "pacífica" kraeshiana é, ninguém está seguro.
Nic ficou sem resposta. Apenas o observou furioso.
- Com ameaça ou sem - Jonas disse impaciente -, o príncipe está certo, Nic, você precisa ir atrás de Ashur. Nós dois precisamos. Eu deveria ter acompanhado Felix e Taran quando eles partiram. Não há motivos
para eu estar aqui.
- Não há motivos, rebelde? - Magnus lançou um olhar para ele. - Que esquisito. E pensei que você estivesse gostando de bajular a princesa, em busca de migalhas.
Jonas lançou um olhar raivoso para Magnus.
- Eu receberia muito mais do que você.
Magnus sorriu para ele.
- Não tenha tanta certeza disso.
Jonas ficou ainda mais sério.
- Terminamos por aqui. Nic, pegue o que precisa para ir ao complexo do chefe Basilius. Espero alcançar Ashur antes que ele chegue lá. E, Magnus?
- Sim, rebelde?
Jonas semicerrou os olhos.
- Se encostar em um fio de cabelo da princesa, juro por qualquer deusa em quem você acredita que vou fazer você implorar para morrer.
19
AMARA
PAELSIA
Um único falcão dourado voava em círculos sobre os cidadãos paelsianos reunidos para ouvir o discurso de Amara. A imperatriz estava em pé diante da janela aberta de seus aposentos, observando a multidão
de rostos ansiosos. Muitos estavam perplexos por estarem dentro da propriedade privada do ex-chefe; os portões tinham ficado trancados para o público durante o governo dele. Naquele dia, os paelsianos
viam pela primeira vez a cidade labiríntica, o que fez Amara lembrar muito da Cidade de Ouro, mas, em vez de metais e joias, a cidade onde estava era feita de barro, tijolo, pedra e terra.
- Vossa graça, gostaria que reconsiderasse esse discurso - Kurtis disse atrás dela. - A senhora está muito mais segura aqui dentro, principalmente com a notícia de rebeldes por perto.
Ela tirou os olhos da janela e se virou para o grão-vassalo onipresente.
- É por isso que tenho guardas ao meu redor o tempo todo, lorde Kurtis. Os rebeldes estão sempre por perto. Infelizmente, não posso fazer todos entenderem meu ponto de vista. Há quem se oponha ao reinado
de meu marido, ao reinado de meu pai. E há aqueles que se opõem ao meu também. Falarei com meus cidadãos hoje, aqueles que vão me apoiar sem questionamentos e aqueles que duvidam de minhas intenções aqui.
Preciso dar a eles uma esperança para o futuro... uma esperança que nunca tiveram.
- O que é uma atitude incrível, vossa graça, mas... os paelsianos são selvagens, violentos.
Amara considerou as palavras ofensivas.
- Há quem diga o mesmo dos kraeshianos - ela respondeu mais irritada. - Talvez você não tenha me ouvido até agora, mas falarei hoje.
- Vossa graça...
Ela levantou uma mão, decidindo parar de sorrir.
- Falarei hoje - ela disse com firmeza. - E ninguém vai me dizer que não posso fazer isso. Com a notícia dos rebeldes e com a discordância entre meus próprios soldados, preciso do apoio dessas pessoas
para o futuro de meu reinado. E não permitirei que ninguém diga o que posso e o que não posso fazer. Entendido?
Ele se curvou no mesmo instante, corado.
- Claro, vossa graça. Não quis desrespeitá-la.
A porta se abriu e Nerissa entrou, fazendo uma reverência.
- Está na hora, imperatriz.
- Ótimo, estou pronta. - Amara alisou a seda de seu vestido. Era o mesmo que usava nas ocasiões mais especiais em Kraeshia. Ela o levava sempre que viajava caso tivesse a oportunidade de vestir uma peça
tão esplêndida. A costura brilhante e as contas de esmeralda e ametista reluziam sob o sol paelsiano quando ela saiu de sua grande quinta.
Um grupo de guardas esperava Amara do lado de fora e, com Nerissa a seu lado, ela se aproximou do grande pódio em um palco de madeira bem acima da multidão de quatro mil pessoas reunidas lado a lado na
antiga arena do chefe.
Aqueles eram seus novos súditos. Absorveriam tudo o que dissesse e espalhariam a notícia de sua glória a quem quisesse ouvir. E em breve, seriam os primeiros a reverenciá-la como uma verdadeira deusa.
A multidão gritou e a atmosfera foi tomada por sons de aprovação. Ela olhou para Nerissa, que sorriu e assentiu, incentivando-a a começar.
Amara ergueu os braços, e a grande plateia ficou em silêncio.
- Eu me dirijo ao lindo povo de Paelsia, um reino que tem passado por muitos testes e muitas atribulações ao longo de várias gerações. - Sua voz ecoou nos pilares de pedra, o que ajudou a amplificar as
palavras de modo que até as pessoas nas arquibancadas pudessem ouvi-la. - Sou Amara Cortas, a primeira imperatriz de Kraeshia, e trago a vocês a notícia oficial de que não são mais cidadãos de Mítica,
uma tríade de reinos que os oprimiu por um século. Agora vocês são cidadãos do grande Império Kraeshiano. E seu futuro é tão brilhante quanto o sol que nos ilumina hoje!
A multidão comemorou, e Amara parou um instante para analisar os rostos, alguns sujos, de pessoas com roupas simples puídas, gastas pela sujeira e pelo tempo. Olhos atentos se voltaram para ela, olhos
que tinham assistido a muitos líderes fazerem promessas falsas e causarem dor e sofrimento. Ainda assim, ela viu uma esperança tímida até mesmo nos olhos dos mais velhos.
- Cuidaremos de sua terra - ela continuou. - Vamos torná-la rica de novo e pronta para as plantações que vão sustentar vocês e suas famílias. Vamos importar animais que servirão de alimento. E enquanto
continuarem produzindo o vinho pelo qual Paelsia é conhecida, os lucros serão de vocês, integralmente, pois prometo que não serão cobrados impostos kraeshianos sobre esse produto por vinte anos. As leis
que impediam a exportação do vinho a qualquer lugar que não fosse Auranos estão vetadas a partir de agora. Vejo Paelsia como um patrimônio maravilhoso do meu império e quero demonstrar isso cuidando para
que minhas atitudes sejam condizentes com minhas palavras. Vocês fazem bem em acreditar em mim, porque eu acredito em vocês. Juntos, vamos marchar para o futuro, de mãos dadas!
O barulho vindo da plateia aumentou, e, por um instante, Amara fechou os olhos e permitiu-se aproveitar o momento. Tinha sido por isso que ela se sacrificou tanto. Tinha sido por isso que ela fez o que
fez.
Por aquele poder.
Não fora à toa que seu pai havia tomado decisões tão precipitadas durante seu reinado. Aquela sensação diante da obediência, da adoração e da reverência era mesmo viciante.
Se ela conseguiria ou não cumprir o prometido, ainda precisava verificar.
Ela sentia a magia que havia na crença que emanava do povo paelsiano. Uma magia tão rica e pura na qual queria se banhar.
- Vossa graça! - Nerissa exclamou, assustada.
Amara abriu os olhos a tempo de ver uma flecha de relance, e então um de seus guardas a tirou do caminho. A flecha acertou o homem no pescoço, e ele caiu se debatendo no chão do palco.
- O que está acontecendo? - ela quis saber.
- O grupo de rebeldes que ameaçou vir aqui hoje... eles estão aqui! - Nerissa agarrou o braço dela. Duas outras flechas voaram na direção dela, bem perto, acertando outros dois guardas.
- Quantos? - Amara conseguiu perguntar. - Quantos rebeldes estão aqui?
- Não sei... - Nerissa ergueu a cabeça para olhar para a multidão quando outra flecha passou por ela. - Vinte, talvez trinta ou mais.
Amara observou chocada quando seu exército de soldados invadiu o mar cada vez maior de civis para capturar os rebeldes. Os soldados derrubavam qualquer pessoa que aparecesse no caminho, fossem rebeldes
ou paelsianos. A multidão entrou em pânico e tentou fugir. O caos se instalou, gritos de medo e de indignação eram ouvidos por todos os lados quando sangue começou a ser derramado.
Paelsianos empunharam armas, trocando rapidamente a expressão esperançosa pela de ódio, e começaram a lutar não só contra os soldados, mas uns contra os outros, facas cortando a carne, socos acertando
rostos e abdomens.
"Os paelsianos são selvagens, violentos", Kurtis tinha alertado.
Mães agarravam os filhos, chorando e correndo para todas as direções.
- O que vamos fazer? - Nerissa perguntou. Ela tinha agachado ao lado de Amara, e as duas se encolheram atrás do pódio.
- Não sei - Amara disse depressa, e se arrependeu de suas palavras.
Palavras de medo. Palavras de vítima.
Ela não ia se acovardar diante de rebeldes naquele momento - nem nunca.
O medo logo se transformou em raiva. Aquilo, fosse o que fosse, não fazia parte de seu plano. Aqueles que desejavam destruir sua chance de transformar aquele povo determinado em seu aliado, um povo que
já estava pronto para aceitá-la como líder, pagariam com a vida.
Amara levantou do esconderijo, punhos cerrados, quando alguém se aproximou do palco trás dela. Ela ouviu passos pesados na superfície de madeira.
Quando se virou, viu dois de seus guarda-costas caindo com a garganta cortada. Atrás deles, um rosto assustadoramente familiar.
- Bem, princesa, eu poderia apostar um monte de moedas de ouro que você não esperava me ver de novo.
Felix Gaebras apontava uma espada a poucos centímetros de seu rosto.
O rosto dele aparecia em seus pesadelos. Ou talvez os pesadelos tivessem sido premonições. Naqueles sonhos, ele tentava matá-la.
- Felix... você fez isso, tudo isso, só para chegar até mim - ela começou, dando um passo hesitante para trás para se afastar do jovem que acreditava estar morto fazia muito tempo.
Ele sorriu.
- Sinceramente? Eu estava só observando de longe. Foi uma coincidência feliz. Acho que há muitos outros rebeldes que querem derramar seu sangue. Mas parece que a honra será minha.
Ela olhou para a esquerda e viu três guardas correndo na direção de Felix, mas foram derrubados por outro jovem de cabelo escuro e expressão irritada.
- O plano não era esse, Felix - o rapaz gritou. - Nós dois vamos morrer por sua causa.
- Calado, Taran - Felix respondeu. - Estou retomando contato com uma antiga namorada.
Ao sentir a lâmina em seu rosto, Amara olhou para o tapa-olho preto que ele usava.
- Seu olho...
- Perdi. Graças a você.
Ela se encolheu.
- Sei que você deve me odiar pelo que fiz.
- Odiar? - Ele arqueou as sobrancelhas escuras, movendo de leve o tapa-olho. - "Ódio" é uma palavra muito leve, não acha?
Amara tentou ver se algum guarda se aproximava para ajudá-la, mas Taran, o amigo de Felix, os afastava com a espada e o arco que trazia.
Amara virou para a frente, para o olho bom de Felix, e disse com o máximo de arrependimento que conseguiu reunir:
- Não importa o que tenha enfrentado, minha bela fera. Juro que posso me retratar.
- Não me chame assim. Perdeu o direito de me chamar assim quando me abandonou e me deixou para morrer. - Felix encostou a lâmina no rosto dela de novo, fazendo-a olhar para a multidão. - Viu o que fez?
É culpa sua. Tudo o que você toca acaba em morte.
O olhar tenso de Amara passou pela multidão que tinha percorrido quilômetros para se reunir e ouvi-la falar. Muitos paelsianos estavam mortos entre os combatentes, pisoteados, assassinados pelas espadas
dos guardas ou por seus próprios compatriotas.
Felix tinha razão: era culpa dela. Um momento de vaidade, o desejo de sentir o amor de seus novos súditos depois de tanta dor e decepção, acabou em morte.
Tudo acabava em morte.
O mesmo falcão que ela vira sobrevoando a multidão grasnou alto o suficiente para Amara ouvir. No chão, alguém preso no meio do caos chamou sua atenção: um jovem de cabelo ruivo, cor rara de ser encontrada,
caminhava em direção ao palco.
Ela reconheceu o amigo de Cleo, Nic. Aquele com que Ashur tinha ficado obcecado.
Amara observou horrorizada quando dois paelsianos agarraram Nic e rasgaram o saco de moedas preso ao passador de sua calça. Nic tentou segurar o saco, e a faca de um dos homens reluziu à luz do sol antes
de ser fincada no peito dele.
Ela se assustou.
O corpo de Nic caiu no chão e logo se perdeu na multidão.
Aquilo era culpa dela, apenas dela.
Ela franziu a testa ao pensar nisso. Não... tinha sido azar de Nic, uma circunstância infeliz. Ela não tinha assassinado o amigo de Cleo com as próprias mãos. Amara se recusava a assumir a culpa pelo azar
de outras pessoas.
Apesar de ter odiado seu pai e seus irmãos com a mesma intensidade, a família Cortas não era nada fraca. Inclusive ela.
E além da família Cortas, as mulheres não eram fracas. Eram líderes. Campeãs. Guerreiras. Rainhas.
Amara tinha enfrentado inimigos muito maiores do que Felix Gaebras na vida.
Ela se forçou a falar de modo assustado quando virou para ele de novo.
- Você é maior do que isso, Felix. Matar uma garota desarmada? Não combina com você.
- Não combina comigo? Sou um assassino profissional, meu amor. Matar é o que faço melhor.
De canto do olho, ela observou o amigo derrubar mais dois de seus homens com uma só mão.
- Pense bem, governo um terço do mundo e controlo toda a fortuna. Quer ser um homem muito rico?
Ele levantou um dos ombros.
- Não.
Amara tinha esquecido que ele era diferente dos outros homens que conhecia - uma vantagem no começo, mas um problema no presente. - Mulheres, então. Dez, vinte, cinquenta garotas que desejem apenas você.
Felix abriu o sorriso mais frio que ela já tinha visto.
- E como eu saberia que não são vadias frias e dissimuladas como você? Não tem acordo, imperatriz.
Amara ficou com os olhos marejados. Fazia muito tempo que não chorava, mas chorar era um talento que desenvolvera desde cedo. Sabia que a maneira mais fácil para uma mulher evitar problemas ou castigos
era fingir fraqueza entre os homens.
As lágrimas logo começaram a descer livremente por seu rosto.
- Eu pretendia libertá-lo, mas me disseram que você já estava morto, assassinado em uma tentativa de fuga. Meu coração ficou destruído quando pensei que tinha perdido você para sempre. Deveria tê-lo incluído
em meus planos, mas eu estava com medo, muito medo. Ah, Felix, eu não queria que nada acontecesse com você, sinceramente! Eu... eu amo você! Sempre vou amar, não importa o que você decida fazer hoje!
Felix olhou para ela como se estivesse assustado com o que ouvia.
- O que disse? Que me ama?
- Sim. Eu amo você.
A ponta da espada se mexeu. Mas logo foi afastada.
- Bela tentativa, meu amor. Eu poderia até acreditar, se fosse um completo imbecil. - Felix sorriu para ela. - Hora de morrer.
Um instante depois, Carlos, que tinha subido no palco e conseguido passar por Taran, derrubou Felix. Antes que conseguisse recuperar o fôlego, Taran e Felix estavam diante dela, ajoelhados.
Nerissa voltou para seu lado, e Amara segurou a mão dela, apertando-a para ter a certeza de que a criada não tinha se ferido.
- Os outros rebeldes morreram, vossa graça - Carlos informou. O rosto dele sangrava devido a um corte profundo no nariz.
Amara respondeu assentindo brevemente e então olhou para Felix.
Ele deu de ombros de novo.
- Não posso dizer que não tentei.
- Devia ter sido mais rápido.
- Acho que gosto muito de falar. - Ele abriu um grande sorriso, mas seu olhar estava frio. Voltou-se para Nerissa por um instante antes de voltar a encarar Amara. - Vamos falar de novo sobre aquela oferta
do harém de lindas mulheres?
Amara tocou o rosto de Felix, levantando sua cabeça.
- Sinto muito pelo seu olho. Gostei daquele olho, assim como de outras partes suas. Por algumas noites, pelo menos.
- Devemos executá-los agora mesmo, vossa graça? - Carlos perguntou, com a espada ao lado do corpo.
Ela esperou o medo aparecer no único olho de Felix, mas ele manteve a pose desafiadora.
- Se eu poupá-lo, o que fará? Vai tentar me matar de novo?
- Num piscar de olhos - ele disse.
- Você é um grande idiota - Taran rosnou.
Sua bela fera a tinha entretido por um período. E ainda entretinha.
Apesar de tudo, Amara ainda se sentia atraída por ele. Mas não importava. Ele deveria ter morrido muito tempo antes, e não ser mais um problema para ela.
Amara assentiu para o guarda.
- Jogue os dois no fosso. Cuido deles mais tarde.
20
LUCIA
PAELSIA
- Ela é incrível. Totalmente linda e gloriosa. Parece mais uma deusa do que uma mera mortal, se quer saber. Tenho certeza de que vai salvar todos nós.
Lucia parou na barraca de frutas enquanto procurava uma maçã sem nenhuma imperfeição - pelo jeito, era impossível em Paelsia - e olhou para a vendedora que conversava com uma amiga.
- Concordo totalmente - a amiga disse.
Estariam falando da feiticeira profetizada?
- Desculpem minha grosseria, mas posso saber de quem estão falando? - Lucia perguntou. Era a primeira vez que falava em voz alta em mais de um dia, e sua voz falhou no início.
A vendedora olhou para ela.
- Ora, da imperatriz, é claro! De quem mais poderia ser?
- Sim, de quem mais, não é? - Lucia disse em voz baixa. - Então vocês acham que Amara Cortas vai salvá-las. Salvá-las do que, exatamente?
As paelsianas trocaram um olhar e viraram para Lucia um tanto impacientes.
- Você não é daqui, é? - Uma delas franziu os lábios enrugados. - Não, com esse sotaque, acredito que seja limeriana, não é?
- Nasci em Paelsia e fui adotada por uma família limeriana.
- Você teve muita sorte por ter escapado destas fronteiras tão cedo, então. - A vendedora virou para a amiga. - Se ao menos todos tivéssemos tido essa oportunidade...
As duas riram sem achar graça.
A paciência de Lucia estava acabando.
- Vou comprar esta maçã. - Ela guardou a fruta no bolso e entregou uma moeda de prata. - E também qualquer informação que puder me dar a respeito da localização da imperatriz.
- Com prazer. - A mulher pegou a moeda com ganância, semicerrando os olhos. - Por onde andou esses últimos dias, mocinha, para não saber tudo sobre a imperatriz? Perdida por aí?
- Mais ou menos. - Na verdade, ela estava recuperando as forças na hospedaria no leste de Paelsia até não aguentar mais e ter que fugir. Apesar da preocupação da atendente Sera com sua saúde, Lucia sabia
que precisava sair dali antes que sua barriga ficasse grande demais e ela não conseguisse mais levantar da cama.
Passou a mão pela barriga aparente e a comerciante notou, arregalando os olhos.
- Ah, minha querida! Não percebi que estava grávida. E já tão avançada!
Lucia gesticulou para indicar que ela não se preocupasse.
- Estou bem - ela mentiu.
- Onde está sua família? Seu marido? Não me diga que está sozinha aqui na feira hoje!
Parecia que o fato de estar grávida fazia os desconhecidos sentirem vontade de tratá-la com muito mais gentileza do que o normal. Tinha sido bom durante a viagem lenta e desconfortável para o oeste.
- Meu marido está... morto - ela disse com cuidado. - E agora estou procurando minha família.
A amiga da vendedora correu na direção de Lucia e segurou suas mãos.
- Meus mais sinceros sentimentos por essa perda tão dolorosa.
- Obrigada. - Lucia sentiu um nó repentino e irritante na garganta. Assim como a barriga inchada, suas emoções estavam muito mais intensas e difíceis de controlar.
- Se precisar de um lugar para ficar... - a vendedora disse.
- Obrigada de novo, mas não preciso. Só preciso de informações sobre a imperatriz. Ela ainda está em Limeros?
As amigas se entreolharam de novo, sem acreditar que Lucia pudesse estar tão desinformada a respeito daquelas coisas.
- A grande imperatriz Cortas está morando no antigo complexo do rei Basilius - a vendedora começou. - Ela vai fazer um discurso de lá amanhã, dirigindo-se a todos os paelsianos que puderem participar.
- Um discurso aos paelsianos. Por quê?
A vendedora olhou para ela com um pouco de compaixão.
- Bem, por que não? Talvez você tenha esquecido por causa dos muitos anos abençoados que passou em Limeros, mas a vida aqui em Paelsia é difícil.
- Para dizer o mínimo - sua amiga acrescentou.
A vendedora assentiu.
- A imperatriz vê nossos esforços. Ela os reconhece. E quer fazer algo em relação a isso. Ela valoriza os paelsianos como parte importante de seu império.
Lucia tentou não revirar os olhos. Ela não tinha percebido como Amara era uma manipuladora de primeira, sedenta por poder, nas poucas vezes em que conversara com a ex-princesa quando os Damora moraram
no palácio auraniano.
- Mas, claro, questiono a sabedoria da imperatriz por se casar com o Rei Sanguinário - a vendedora comentou.
- Desculpe - Lucia disse, olhando para ela. - Você disse que ela é casada com o Rei... San... com o rei Gaius?
- Sim. Mas também soube que ele está desaparecido no momento, junto com seu herdeiro. Vamos torcer para que a imperatriz tenha enterrado os dois a sete palmos da terra.
- Realmente - Lucia murmurou, sentindo o estômago embrulhado só de pensar. Sera não tinha dito nada sobre o casamento de seu pai com Amara. Seria verdade? - Eu... eu preciso ir. Preciso...
Ela virou e desapareceu em meio à multidão na feira.
Certa vez, Ioannes tinha guiado Lucia para encontrar e despertar a Tétrade com seu anel da feiticeira. Ela esperava que o mesmo encanto que usaram pudesse funcionar para ajudá-la a encontrar Magnus e seu
pai. No entanto, apesar de ter conseguido fazer o anel girar como fizera na época em seus aposentos no palácio auraniano, todas as tentativas de reaver o mapa brilhante de Mítica e determinar a localização
deles tinham fracassado. Enfraquecida por usar seus elementia, ela tinha que fazer paradas constantes ao percorrer o caminho a pé, junto com muitos outros paelsianos, até o complexo do antigo líder local.
Lucia se recusava a acreditar que sua família estivesse morta. Eles eram muito bem preparados para isso. E, se o rei tinha se casado com Amara - uma ideia tão ridícula que ela mal conseguia conceber -,
tinha feito isso por razões estratégicas, por poder e sobrevivência.
Sim, Amara era jovem e muito bela, mas seu pai era esperto e cruel demais para tomar uma decisão como essa movido por uma mera paixão.
Havia milhares de paelsianos reunidos do lado de fora do complexo quando ela finalmente chegou. O vilarejo mais próximo ficava a meio dia de viagem dali, mas levaria mais um dia, talvez dois, na situação
atual de Lucia, para chegar a Basilia, seu destino original.
Os portões altos e pesados rangeram ao se abrir, e a multidão adentrou o complexo. Lucia se concentrou tanto nas pessoas que a cercavam, procurando algum rosto conhecido, que mal viu os caminhos de pedra
e as casas de barro que levavam em direção à enorme casa de três andares no centro do complexo. Os paelsianos estavam sendo levados para uma ampla clareira, com fogueiras e vários assentos elevados de
pedra. Isso a fez pensar nas histórias que já tinha ouvido sobre como o chefe Basilius organizava competições entre os homens que queriam impressioná-lo com sua força e habilidade de combate. Ali, já tinham
ocorrido lutas mortais apenas para entretê-lo.
A multidão continuou crescendo, mas Lucia não ouviu nenhuma menção ao ex-chefe e a seus prazeres nos fragmentos de conversa ao seu redor. Só ouvia sobre a importância da nova imperatriz.
Lucia não imaginava que os paelsianos fossem tão fáceis de enganar. Eles acreditaram, por muitos e muitos anos, que o chefe Basilius era um feiticeiro.
Chefe Hugo Basilius. Seu pai biológico.
E aquela era a casa dele - o lugar onde ela teria sido criada se não tivesse sido roubada no berço.
Lucia olhou para as casas, ruas e a arena que formavam o complexo, esperando sentir uma sensação de perda da vida que deveria ter tido.
Mas não sentiu nada. Se havia um lar do qual sentia falta, era do palácio escuro cercado por gelo e neve em Limeros.
Quanto antes conseguisse deixar aquele reino seco e desagradável, melhor. Já tinha aprendido mais do que o suficiente sobre a cultura paelsiana quando a conheceu com Kyan.
Ela não ouviu boatos sobre o deus de fogo causando mais destruição e morte durante suas viagens. Segurava firme a esfera de âmbar que tinha escondido no bolso. Timotheus insistira que Kyan não podia morrer.
Mas, se era verdade, onde ele estava? O que estava planejando? Ela o havia ferido gravemente em sua batalha? Se não tinha, por que Kyan não havia voltado às Montanhas Proibidas para recuperar sua esfera
antes que Lucia a encontrasse?
Ela pressionou os dedos ao redor do cristal de âmbar ao pensar nisso. Seria forte o suficiente para lutar se ele a encontrasse naquele dia?
Lucia detestava admitir que não.
Não, não é bom o suficiente, ela pensou. Não há outra escolha. Tenho que ser forte.
- Ela é incrível, de fato - outro um velho corcunda paelsiano disse. - Se tem alguém que pode livrar nossa terra de sua doença mortal, é a imperatriz.
- Quero vingança pela morte de minha família - uma mulher mais jovem respondeu.
- Também quero - uma mulher mais velha concordou.
- De que doença estão falando? - Lucia perguntou.
- A doença da bruxa sombria - o velho resmungou. - A maldade dela destruiu esta terra e matou milhares de paelsianos com o toque de sua mão feia e retorcida.
Lucia mexeu as mãos.
- Ouvi falar dessas maldades...
- Maldades? - ele praticamente gritou com ela. Gotas de saliva do homem acertaram o rosto de Lucia, que limpou a face, fazendo uma careta. - Alguns dizem que Lucia Damora vai matar todos nós com sua magia
do fogo, que é uma feiticeira imortal, filha do Rei Sanguinário com uma demônia durante uma cerimônia de magia sanguinária! Mas eu a vejo como é: alguém que precisa ser morta antes que acabe machucando
outras pessoas.
Eles sabiam seu nome. E a odiavam o suficiente para desejar sua morte.
Não importava que o velho não tivesse incluído Kyan no relato. Já era um fato. Ela não podia voltar e mudar o que tinha acontecido.
Os paelsianos viam Lucia como uma bruxa demoníaca tirada das sombras como uma hera odiosa. Um pesadelo e uma doença que infestavam sua terra.
Ela nem tentou discutir, uma vez que estavam totalmente certos.
A multidão começou a gritar quando Amara finalmente subiu ao palco. Lucia tentou ver o máximo que pôde da bela moça, o cabelo comprido e escuro estava solto, o vestido de seda esmeralda com uma fênix brilhante
bordada. Quando ela ergueu as mãos. As pessoas ficaram em silêncio.
Amara falou de maneira clara e intensa sobre um futuro incrível para os cidadãos de Paelsia. Lucia não acreditava nas mentiras que ela despejava, mas, ao observar em volta, viu que as pessoas aceitavam
o que era dito como quem aceita um banquete delicioso.
A imperatriz parecia muito sincera em suas promessas. Lucia admirava a facilidade com que falava sobre mudar tudo o que estava errado no mundo. Sobre tomar decisões em nome daquelas pessoas que acreditavam
em cada uma de suas palavras.
Lucia estava ali, punhos cerrados, odiando Amara e esperando a chance de descobrir o que sua inimiga tinha feito com sua família.
E então, quase no mesmo instante, as lindas e falsas palavras que Amara dizia foram interrompidas. Alguém gritou e Lucia só entendeu o que estava acontecendo quando viu um guarda cair no palco, com uma
flecha enfiada na garganta. Outro guarda caiu, e mais um.
Uma tentativa de assassinato.
Isso não pode acontecer, Lucia pensou desesperada. Preciso muito perguntar a ela. Amara não pode morrer hoje.
Com muito esforço, Lucia acessou a magia do ar. Um vento frio e abundante envolvia seus braços e mãos em espirais transparentes enquanto ela avançava pela multidão em direção ao palco, usando a magia invisível
para tirar todo mundo de seu caminho. Os guardas kraeshianos pularam na multidão assustada e confusa com armas em punho e só provocaram mais pânico. Eles derrubavam quem os enfrentava ou cruzava seu caminho,
fossem rebeldes ou civis, o que só aumentou a confusão enquanto todos tentavam fugir.
Lucia se esforçou para enxergar o que estava acontecendo no palco. Amara e uma garota muito parecida com a criada que costumava acompanhar a princesa Cleo encolheram-se diante de um jovem alto que usava
um tapa-olho preto e empunhava uma espada.
A magia do ar frio de Lucia passou para a de fogo, pronta para queimar quem a impedisse de chegar a Amara. Alguém puxou seu manto, e ela olhou para a pessoa, pronta para fazê-la arder em chamas. Nicolo
Cassian olhou para ela, uma das mãos em seu manto, a outra pressionada contra um ferimento na barriga. Quando ele tossiu, sangue espirrou de sua boca.
Um ferimento mortal.
Lucia olhou de novo para o palco, mas um som engasgado a fez virar de novo para Nic, uma vítima dos guardas sedentos por sangue ou de um paelsiano assustado.
Não importava quem tinha feito aquilo. Ela conseguiu ver, com rapidez, que o ferimento era profundo e mortal. O que aquele garoto estava fazendo justamente ali?
Lucia não tinha magia suficiente para lutar contra milhares. Levou a mão à barriga ao observar a multidão, sabendo que precisava ir para um local seguro. Muitos estavam se pisoteando para voltar aos portões.
Ela deu um passo e então percebeu que Nic ainda a segurava.
- Prin... ce... sa... - ele disse, sem fôlego.
Ela o encarou, hesitante.
- Por favor... me ajude...
A vida se esvaía de seus olhos. Nic não tinha mais muito tempo. Mas ele era amigo próximo da princesa Cleo - uma garota que Lucia já tinha considerado uma amiga verdadeira, até ser traída por ela.
Mas o pai de Lucia tinha destruído a vida de Cleo, destruído todo o seu mundo.
Cleo tinha perdido tudo no último ano. Aquele amigo era o único resquício que a princesa auraniana tinha de sua antiga vida.
Se Nic morresse, Lucia não tinha dúvidas de que isso destruiria Cleo.
Lucia detestava quando sua consciência pesava, principalmente quando isso acontecia por causa de Cleiona Bellos.
Com cuidado, ela se agachou ao lado de Nic e afastou a mão que cobria o ferimento para, em seguida, levantar a túnica. Fez uma careta ao ver todo aquele sangue e as entranhas para fora.
- Diga a Cleo - Nic disse com esforço para respirar - que eu a amo... que ela é minha família... que eu... eu sinto muito.
- Poupe seu fôlego - Lucia disse. - E diga a ela você mesmo.
Lucia pressionou o ferimento cheio de sangue e canalizou toda a magia da terra que tinha dentro de si. Nic arqueou as costas e gritou de dor, e o grito estridente se espalhou pelo caos ao redor deles.
- Pare! Por favor! - Nic tentou impedi-la, afastá-la, mas estava fraco demais. Tinha perdido tanto sangue que Lucia não sabia se teria magia suficiente para curá-lo. Mas ainda assim, tentou. O capuz caiu
de sua cabeça, revelando o cabelo e o rosto, mas ela não se deu ao trabalho de puxá-lo de volta. Esgotou a energia e a força que tinha em uma tentativa de salvar aquele rapaz.
Pelo menos até alguém arrancá-la de perto dele. Ela virou, furiosa, e ficou frente a frente com um homem feio que escancarava um sorriso mostrando os dentes.
- Vejam o que encontrei! - ele anunciou, arrastando-a para longe de Nic até ela perdê-lo de vista. - A própria feiticeira atacando outro de nós! As mãos dela estão manchadas de sangue paelsiano!
Lucia tentou invocar magia do fogo ou do ar para afastá-lo, mas nada aconteceu. Ela fechou a mão, desesperada para fugir de quem a atacava.
- Olhe para mim, bruxa! - o homem disse.
Ela lançou um olhar para o homem, mas recebeu um tabefe no rosto tão forte a ponto de fazer seu ouvido zunir.
- Amarre-a! - alguém gritou. - Queime a bruxa como ela queimou nossos vilarejos!
Desorientada, ela foi arrastada pela terra seca, tropeçando nos próprios pés até seu agressor empurrá-la para longe. Ela caiu de joelhos com tudo no meio de uma roda de pessoas furiosas. Alguém jogou uma
pedra nela, acertando o lado direito de seu rosto com força, e Lucia gritou de dor. Levou a mão ao rosto e sentiu o sangue quente.
- Não sou quem você pensa que sou - ela conseguiu dizer. Levantou as mãos à frente do corpo. - Você precisa me soltar.
- Não, bruxa. Hoje você vai morrer por seus crimes cruéis. Estamos de acordo?
A multidão que a cercava expressou aprovação com gritos. Não havia misericórdia no olhar de ninguém. Alguém entregou uma corda grossa ao primeiro agressor.
- Deixe-a de pé - ele vociferou.
Alguém atrás de Lucia a levantou e amarrou seus punhos com força.
- Meus cumprimentos, princesa - uma voz estranhamente familiar soou em seu ouvido. - Pelo visto está causando mais problemas em Paelsia.
Jonas Agallon. Ela se esforçou para virar o suficiente e ver aquele olhar tomado de ódio.
- Jonas - ela disse -, por favor, precisa me ajudar!
- Ajudar? O quê? A grande e poderosa feiticeira não consegue se cuidar? - Ele estalou a língua. - Que tragédia. Parece que essas pessoas querem vê-la morta. Queimada viva, acho que foi o que ouvi, certo?
Parece um fim adequado para uma bruxa como você.
Sua mente estava a mil.
- Onde está meu pai? Meu irmão? Você sabe?
- É a última coisa com que você deveria se preocupar, princesa. Sinceramente. - Ele a virou e resvalou a mão na barriga dela.
Jonas franziu a testa.
- Isso mesmo - ela disse, agarrando todas as oportunidades que tinha de conseguir ajuda, ainda que fosse de alguém como ele. - Vocês vão tentar celebrar minha execução tão rápido agora que sabem que uma
criança inocente morrerá comigo?
- Inocente? - O olhar de Jonas não suavizou nem um pouco. - Nada que alguém como você poderia trazer a este mundo seria inocente.
- Eu não matei aquela moça. Foi Kyan. Ele... eu não consegui controlá-lo. Eu queria que ele parasse. Sinto muito por sua perda e me arrependo do que aconteceu naquele dia. Gostaria de poder mudar as coisas,
mas não posso.
- O nome daquela moça era Lysandra. - Jonas contraiu o maxilar, e ficou em silêncio por um momento enquanto os outros homens pediam para ir a um lugar mais adequado para queimar a bruxa. - Onde está Kyan?
- Eu... eu não sei - ela disse com sinceridade.
Jonas a encarou.
- Essa criança dentro de você drena sua magia, não é?
- Como sabe disso?
Ele franziu ainda mais a testa.
- Você já teria destruído tudo aqui se tivesse acesso a seus elementia, certo?
Ela apenas assentiu.
Jonas xingou em voz baixa.
- Eles precisam de você. Estão dependendo de você. E você está aqui, como uma idiota, prestes a morrer.
Se estivessem em outro lugar, em outro momento, ela teria ficado magoada ao ser chamada de idiota.
- Então faça alguma coisa em relação a isso. Por favor.
Depois de um momento de hesitação, Jonas empunhou a espada e a apontou para o homem que segurava a corda.
- Uma pequena mudança de planos. Vou levar a feiticeira comigo.
- Sem chance - o homem resmungou.
- Não há discussão. Estou vendo que nenhum de vocês está armado no momento. - Ele observou as pessoas do grupo. - Atitude estúpida, em uma multidão assim, não carregar uma arma, mas isso torna as coisas
mais fáceis para mim. Se nos seguirem, vão morrer. - Ele arregalou os olhos para Lucia. - Vamos, princesa.
Jonas pegou o braço dela e a puxou.
- Aonde vai me levar? - ela perguntou.
- Aos seus queridos pai e irmão. Que todos vocês apodreçam juntos na escuridão.
21
CLEO
PAELSIA
Quando percebeu que Nic, Jonas e Olivia tinham partido sem contar nada sobre seus planos, Cleo não ficou magoada. Ficou furiosa.
- Minha nossa, querida, você vai abrir um buraco no chão de tanto andar de um lado para o outro.
Cleo virou e viu Selia Damora olhando para ela. A mulher a deixava nervosa, mas felizmente as duas tinham se encontrado poucas vezes desde sua chegada. Era difícil acreditar que fazia só três dias que
estavam na hospedaria. Pareciam três anos.
- Meus amigos partiram sem se despedir - Cleo respondeu tensa, forçando-se a parar de roer a unha do polegar direito. - Considero esse comportamento imperdoavelmente grosseiro e desrespeitoso. Em especial
da parte de Nic.
- Sim, Nic. O rapaz de cabelo vermelho. - Selia sorriu. - Tenho certeza de que não fez por mal. Ele parece gostar de você.
- Ele é como um irmão para mim.
- Os irmãos costumam esconder segredos das irmãs.
- Mas não o Nic. - Cleo remexeu as mãos. - Contamos tudo um ao outro. Bom, quase tudo.
- Venha sentar comigo por um momento. - Selia sentou em uma espreguiçadeira e deu batidinhas no assento ao seu lado. - Quero saber mais sobre a esposa de meu neto.
Era a última coisa que Cleo queria, mas teve que fingir amabilidade. Seria inteligente de sua parte fazer amizade com uma mulher que logo teria acesso à magia, especialmente agora que a magia de Cleo tinha
sido roubada - ainda que Selia fosse uma Damora.
Só de pensar no que Ashur tinha feito, ela tremia de raiva. Como ele tinha conseguido roubar a esfera de obsidiana sem que ela notasse? Para Cleo, aquele cristal representava poder e um futuro repleto
de escolhas e oportunidades. Mas por ser preguiçosa e desatenta, a esfera tinha sido levada de baixo de seu nariz.
E não havia absolutamente nada que pudesse fazer.
Forçando um sorriso, Cleo sentou hesitante ao lado da senhora.
Selia não disse nada por um tempo, mas observou o rosto de Cleo com cuidado.
- O que foi? - Cleo perguntou finalmente, ainda mais desconfortável do que antes.
- Eu não tinha certeza antes... mas tenho agora. Vejo seu pai em você. Seus olhos são da mesma cor dos de Corvin.
A menção a seu querido pai a deixou tensa.
- Você tinha dúvidas a respeito de quem eram meus pais?
- No que diz respeito a meu filho e a... - ela hesitou - às dificuldades dele com sua mãe, sim, claro que tive muitas dúvidas ao longo dos anos. Achei que houvesse uma chance de Gaius ser seu pai.
O horror de pensar numa possibilidade daquelas a deixou enjoada de repente.
- Meu... meu pai? - Ela cobriu a boca com a mão. - Acho que vou vomitar.
- Ele não é seu pai. Tenho certeza disso agora que estou olhando para você.
Cleo tentou se manter calma, mas a insinuação inesperada da mulher a deixara atordoada.
- Minha... minha mãe não teria... de jeito nenhum...
- Sinto muito se a perturbei com isso. Mas não prefere ter certeza de que você e Magnus estão unidos apenas pelos votos e não pelo sangue? - Ela franziu a testa. - Minha nossa, você está muito pálida,
Cleiona.
- Nem sei por que sugere uma coisa dessas - ela disse.
- Não pensei que Gaius tivesse conseguido se encontrar com Elena depois da briga que tiveram, que sei que aconteceu bem antes de ela se casar com Corvin. Mas os filhos nem sempre contam tudo à mãe sobre
assuntos do coração, nem mesmo o filho mais atencioso e amoroso.
O modo como o rei expressara o que teriam sido suas últimas palavras, seu suspiro final, o nome da mãe dela... "Sinto muito, Elena".
- Só soube que eles se conheciam recentemente - Cleo disse, tensa.
- Eles se conheceram num verão vinte e cinco anos atrás na Ilha de Lukas, quando Gaius tinha dezessete anos, e Elena, quinze. Quando voltou para casa, Gaius já estava obcecado por ela, dizendo que iam
se casar com ou sem o consentimento do pai dele.
Cleo se esforçou para continuar respirando. Aquela história não parecia plausível. Soava como uma história de um livro cheio de fantasia e imaginação.
- Meu pai nunca disse nada a respeito... - Ela franziu a testa. - Ele sabia?
- Não faço ideia do que Elena pôde ter contado a Corvin sobre seus romances anteriores. Imagino que ele descobriu a verdade no fim das contas, ainda que apenas para se preparar melhor para proteger Elena.
- Protegê-la? Como assim?
A expressão de Selia ficou mais séria.
- Elena perdeu o interesse em Gaius quando voltou para casa. Não sei por quê. Imagino que fosse apenas uma novidade passageira para ela, uma maneira de passar o verão, conquistar o afeto de um garoto apaixonado.
Nada além disso. Quando descobriu essa mudança, Gaius... não aceitou muito bem. Confesso, amo meu filho profundamente, mas ele sempre teve um péssimo lado violento. Gaius foi atrás de Elena, exigindo que
seu amor fosse retribuído e, quando ela se recusou, ele a agrediu quase a ponto de matá-la.
Cleo sentiu mais uma onda de náusea. Sua pobre mãe, sujeita ao cruel Gaius Damora em sua pior versão.
Ela nunca detestara tanto o rei.
- Só espero que meu neto não seja exageradamente cruel com você a portas fechadas, minha cara - Selia disse delicadamente. - Homens poderosos, cheios de força e perigo... costumam ter acessos de violência.
As esposas e mães torcem para sobreviver a eles.
- Sobreviver? Não pode estar falando sério! Se Magnus um dia levantasse a mão para mim, eu...
- O quê? Você mal chega na altura do ombro dele, e Magnus deve ter o dobro do seu peso. A melhor coisa a se fazer nesse caso, Cleiona, é ser o mais agradável e compreensiva possível em todos os momentos.
Todas as mulheres devem fazer isso.
Cleo endireitou os ombros e levantou o queixo.
- Não tive o grande privilégio de conhecer minha mãe, mas se ela era um pouco parecida comigo ou um pouco parecida com minha irmã, então sei que ela não teria sido o mais agradável e compreensiva possível
diante de uma agressão, não importa de quem nem quando. Nem eu! Eu mataria quem tentasse me atacar!
Selia abriu um sorriso discreto.
- Meu neto escolheu uma garota com coragem e força para amar, assim como o pai dele. Eu estava testando você, é claro.
- Me testando?
- Olhe para mim, querida. Tenho cara de quem permitiria que um homem levantasse a mão para me bater?
- Não - Cleo respondeu com sinceridade.
- Exato. Fico feliz por termos conseguido conversar hoje, minha querida. Agora já sei tudo o que preciso saber.
Ela estendeu o braço, apertou a mão de Cleo e então saiu da sala.
Aquela tinha sido a conversa mais esquisita de toda a vida de Cleo.
- Talvez eu vá à taverna sozinha hoje - ela murmurou. - Por que Magnus é o único aqui que pode beber vinho em uma tentativa tola de fugir dos problemas?
Quando levantou, algo chamou sua atenção do lado de fora, nos fundos da hospedaria. Ela deu um passo para a frente. Olivia estava no quintal. Estranhamente, a moça não usava nada além de um lençol branco
enrolado no corpo, lençol que Cleo reconheceu das roupas de cama que a esposa do dono da hospedaria lavava todos os dias.
Independentemente da vestimenta, ver Olivia foi um grande alívio. Cleo levantou e saiu para se aproximar, observando ao redor com curiosidade.
- Olivia! Nic e Jonas estão com você? Aonde vocês foram?
A expressão de Olivia era de grande incerteza.
- Preciso sair de novo imediatamente, mas quis voltar antes para ver você.
- O quê? Aonde está indo?
- Está na hora de eu voltar para a minha casa. O caminho e o destino de Jonas se encontraram com sucesso, e meu tempo com ele está acabando.
- Desculpe. - Cleo balançou a cabeça, confusa. - O destino de Jonas? Do que você está falando, afinal?
- Não cabe a mim explicar essas coisas. Só sei que não posso mais cuidar dele, uma vez que talvez me sinta tentada a interferir. - Ela franziu a testa. - Isso deve soar ridículo para você. Sei que não
sabe quem sou de verdade.
- Você quer dizer que é uma Vigilante?
Olivia olhou para Cleo.
- Como sabe disso?
Cleo riu com hesitação ao ver a expressão de choque de Olivia.
- Jonas me contou. Ele confia em mim, você também deveria confiar. Prometo guardar seu segredo surpreendente, mas, por favor, me diga o que está acontecendo. Está chateada só por deixar Jonas?
- Não, não é o único motivo. Eu... eu fui ao complexo com Nic e Jonas, onde a imperatriz está no momento.
Cleo arregalou os olhos.
- Era onde você estava? Que plano imbecil foi esse?
- O príncipe Magnus ameaçou Nic - Olivia explicou. - Ele ameaçou você também, caso Nic não fosse atrás de Ashur para recuperar os cristais da Tétrade.
Cleo franziu a testa.
- Não pode ser. Magnus não faria isso.
- Garanto que fez. Caso contrário, Nic nunca teria se afastado de você. - Os olhos verde-esmeralda de Olivia brilharam de ódio. - É culpa do príncipe que isso tenha acontecido. Perdi Nic na multidão durante
a tentativa de assassinato de Amara. Eu o vi por apenas um momento quando ele foi atingido por uma lâmina. Eu... eu acredito que tudo terminou depressa.
Cleo balançou a cabeça quando a palma de suas mãos começou a arder e a suar.
- O quê? Não entendo. Ele foi atingido por uma lâmina? Que lâmina? Do que está falando?
A expressão de Olivia era só pesar.
- Nic está morto. Ele é um dos muitos mortos depois que os rebeldes fizeram uma tentativa de assassinato a Amara. Preciso sair de Mítica agora e peço a você que faça o mesmo. Você não está em segurança
aqui com alguém como Magnus, que mataria um rapaz como Nic. Não está certo, princesa, nada disso está certo. O mundo está fora de controle, e eu temo que seja tarde demais para salvá-lo. Sinto muito por
dizer isso, mas achei que você merecia saber.
Olivia soltou a mão de Cleo e deu alguns passos para trás, com uma expressão atormentada.
- Fique bem, princesa - ela disse. Depois disso, a pele escura e impecável se transformou em penas douradas, e seu corpo se transformou no de um falcão, e ela alçou voo.
Cleo a observou, surpresa demais com o que tinha ouvido para apreciar a magia verdadeira e inegável revelando-se diante de seus olhos.
Ela não sabia ao certo quanto tempo ficou em silêncio no pátio, olhando para o céu claro, até voltar para a hospedaria com dificuldade. Seus joelhos fraquejaram antes que ela alcançasse uma cadeira.
Seu corpo inteiro tremia, mas ela não chorou. Eram informações demais para processar. Inacreditável demais. Não podia ser verdade. Se fosse, se Nic estivesse morto, então ela também queria morrer.
- Você está bem? O que aconteceu?
Quando se deu conta do que estava acontecendo, Cleo percebeu que tinha sido levantada do chão por dois braços fortes.
- Está ferida? - Magnus afastou o cabelo dela da testa, envolvendo seu rosto com as mãos. - Que droga, Cleo, responda!
Confusa, ela percebeu a preocupação nos olhos castanhos profundos dele.
- Magnus... - ela começou, a respiração profunda e trêmula.
- Sim, meu amor. Fale comigo. Por favor.
- Diga a verdade.
- Claro. O quê? O que você precisa saber?
- Você ameaçou me matar se Nic não fosse atrás de Ashur?
A expressão sofrida dele, totalmente concentrada nela, aos poucos deu lugar à frieza da máscara que ele usava para encobrir suas emoções.
- Ele disse isso? Ele voltou?
- Responda. Você me ameaçou ou não?
Magnus encarou os olhos furiosos dela.
- Cassian precisava da motivação certa.
- Isso é um sim.
- Eu disse o que ele precisava ouvir para resolver a questão. Para...
Cleo deu um tapa tão forte no rosto dele que sua mão ardeu. Magnus levou a mão ao rosto e olhou para ela, atônito.
Ele franziu o cenho.
- Você ousa...
- Ele está morto! - Cleo gritou antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa. - Por causa do que você disse! Meu último amigo no mundo inteiro está morto por sua causa!
Ele parecia confuso.
- Não pode ser.
- Não pode? As pessoas não morrem quando se aproximam de você e de sua família monstruosa? - Ela passou os dedos pelo cabelo, desejando arrancá-lo pela raiz, desejando sentir dor física para poder se concentrar
em algo que não fosse seu coração despedaçado.
- Quem contou isso a você? - Magnus perguntou.
- Olivia voltou. Ela foi embora, então não pode forçá-la a fazer o que você quer.
- Olivia. Sim, bom, não sei quem Olivia é. Nem você. Só sabemos que ela é aliada de Jonas, um garoto que me odiava a ponto de me querer morto até pouco tempo atrás. Até onde sei, esse objetivo não mudou.
- Por que ela mentiria sobre algo assim? - A voz da princesa falhou.
- Porque as pessoas mentem para conseguir o que querem.
- Imagino que você saiba bem disso.
- Sim, e penso o mesmo sobre você, princesa - ele disse. - Entre nós dois, acho que você mentiu muito mais do que eu. Além disso, devo dizer que você viu Ashur morrer com seus próprios olhos, mas ele ainda
está vivo. Não existem provas de que Nic está morto. Só tem as palavras de alguém. Não se pode confiar em palavras, não nas palavras de qualquer um.
- Essa é a sua resposta? - Cleo olhou para ele, percebendo que mal conhecia a pessoa à sua frente. - Digo que um garoto que era como um irmão para mim foi morto por sua causa e você diz simplesmente que
mentiram para mim?
- É o que parece, não é?
- Você não assume responsabilidade por todo o mal que causou. Nunca! - Ela se esforçou ao máximo para se manter firme, para não se perder na dor e na raiva que entravam em conflito dentro dela. - Tentei
ver seu lado bom, mas você fez algo imperdoável. Vá em frente! - ela vociferou. - Tente se defender! Diga que Nic odiava você, então por que não desejaria que ele morresse? Vamos lá, faça isso!
- Não vou negar. A vida seria muito mais simples para mim se aquela pedra no meu sapato fosse retirada de uma vez por todas. Mas eu nunca desejaria a morte dele, porque sei como gosta dele.
- Gosto dele? Eu amo! - ela gritou. - E se ele realmente estiver morto, eu...
- O quê? Vai perder o resto de esperança que ainda tem? Vai se encolher e morrer? Por favor, você tem muito a ganhar ficando viva, lutando, mentindo e continuando a me usar sem pudor para conseguir o que
posso lhe dar.
Cleo olhou para ele, abismada.
- Usar você?
Magnus ficou sério.
- Você quer poder, magia. Ao ficar aqui comigo e tolerar a existência de meu pai, sabia que isso a levaria ao que deseja. Quando os cristais da Tétrade foram roubados, principalmente por sabermos o que
sabemos sobre eles, o que eu deveria pensar? Que você continuaria aqui para sempre? Fiz o que fiz por você, para ajudá-la a reaver sua chance de ter poder. Ashur parece valorizar Nic por motivos que não
compreendo. Se tem alguém que consegue entender aquele kraeshiano doido, eu sabia que era seu amigo querido. O mesmo amigo que mandou Taran cortar meu pescoço, devo relembrar.
Ele falava com Cleo como um desconhecido furioso, não como alguém que ela tinha passado a valorizar.
- E agora está me culpando por isso. Como ousa?
Magnus bufou.
- É impossível discutir com você.
- Então nem tente. Você não pode consertar isso, Magnus. Não pode nem começar.
- Se Nic ainda estiver vivo...
- Não importa. - Lágrimas correram por seu rosto. - Isso provou como somos diferentes. Você é incansavelmente cruel e manipulador, e agora vejo que isso nunca vai mudar.
- Posso ser sincero, princesa? Eu poderia dizer exatamente a mesma coisa sobre você. Talvez você preferisse que eu lidasse com o conflito colhendo flores e cantando, mas não sou assim. E você tem razão:
nunca vou mudar. Nem você. Uma hora você diz que me ama, mas prefere que cortem sua língua a contar esse segredo, até mesmo a seu amigo mais íntimo. Pelo amor da deusa! Que Nic não descubra que você se
mistura com pessoas como eu! Ele detestaria você por isso?
Cleo secou as lágrimas, irritada consigo mesma por demonstrar tamanha fraqueza.
- É muito provável que sim.
- Então isso prova que, entre ele e eu, você o escolheria.
- Num piscar de olhos - ela disse imediatamente. - Mas ele está morto.
Um músculo no rosto dele se contraiu.
- Talvez. E Jonas? Não pude deixar de notar que você estava praticamente sentada no colo dele ontem, sussurrando palavras de amor e incentivo.
- É o que você...? - Ela corou. - Jonas é muito mais homem do que você! Eu preferiria dormir com ele a dormir com você. Em qualquer dia, em qualquer momento. E nenhuma maldição me impediria.
- Vá para o inferno, Cleo. - O ódio tomou conta do olhar dele, que já estava frio. Magnus levantou o punho, os dentes travados em uma expressão feroz.
- Vamos - ela vociferou. - Bata em mim como seu pai batia na sua mãe. Você sabe que é o que quer.
- Como é? - Ele franziu a testa, olhou para o próprio punho com surpresa e o abaixou em seguida. - Eu... eu nunca agrediria você.
- Chega - ela disse, num sussurro. - Estou cansada daqui. Preciso pensar. - Ela se virou em direção à escadaria que levava aos quartos.
- Cleo... - Magnus chamou. - Vamos descobrir a verdade sobre Nic. Prometo.
- Eu já sei a verdade.
- Eu sei que posso ser horroroso às vezes. Eu sei. Mas... eu amo você. Isso não mudou.
Os ombros dela ficaram tensos.
- O amor não basta para consertar isso.
Sem olhar para trás, Cleo caminhou com o máximo de calma e lentidão até seu quarto e trancou a porta quando entrou.
22
JONAS
PAELSIA
Jonas teve que sair do complexo antes de encontrar Nic. Eles tinham sido separados depois da revolta rebelde. A multidão à espera da imperatriz tinha entrado em pânico, e as pessoas começaram a lutar umas
contra as outras e contra os guardas kraeshianos.
Sua visão do palco estava bloqueada, e ele se viu frente a frente com paelsianos irados e com a feiticeira que queriam matar.
- Pode olhar para mim com ódio - Lucia disse a ele enquanto se afastavam da confusão.
- Que bom que permite.
- Você me odeia. E, ainda assim, você salvou minha vida.
- É provável que eu tenha salvado a vida de uma dúzia de paelsianos que subestimaram sua capacidade de matar cada um deles.
- E você não me subestima?
- Não.
- Então sugiro que você me diga onde meu pai e meu irmão estão para que não tenha que colocar sua vida em risco por nenhum segundo a mais em minha companhia.
Jonas sabia que ela poderia cumprir uma ameaça, se quisesse. Ele temia quando pensava no poder daquela garota e no prejuízo e na destruição pela qual a responsabilizavam.
- Onde está o deus do fogo? - ele sussurrou.
Lucia arqueou as sobrancelhas. Jonas percebeu que ela estava chocada por ele saber quem - ou melhor, o que - Kyan era de fato.
- Já disse que não sei.
- Ele é o pai de seu filho?
Lucia deu uma risada alta e nervosa.
- Com certeza não.
- Não vejo graça nenhuma nisso.
- Não se engane, rebelde, nem eu.
- Continue andando - ele disse quando Lucia diminuiu o ritmo. - Pelo jeito você está pesada demais para ser carregada.
A resposta de Lucia ao insulto foi parar totalmente. Os dois tinham adentrado uma parte densa da floresta a caminho da cidade mais próxima, onde Jonas pretendia conseguir transporte para o oeste.
- Responda à minha pergunta: onde estão meu pai e meu irmão? Sei que ainda estão vivos. Só podem estar.
- Se eu responder à sua pergunta, que certeza posso ter de que você não vai acabar com a minha vida? - ele perguntou.
- Nenhuma.
- Exatamente. Por isso mesmo vou levá-la até eles.
Lucia se surpreendeu.
- Então eles estão vivos!
- Talvez - ele disse.
- E como posso acreditar que você quer me ajudar?
Jonas virou e levantou o dedo indicador para ela.
- Não se engane, princesa Lucia, não estou fazendo isso para ajudá-la. Estou fazendo isso para ajudar Mítica.
Ela revirou os olhos.
- Que nobre.
- Pense o que quiser. Não me importa. Você se recusa a responder às minhas perguntas, então me recuso a responder às suas. Nosso destino final não está muito longe, mas você precisa encontrar uma maneira
de lidar com minha presença e com meu ódio durante o trajeto que vamos percorrer juntos.
- Acho que não. Vou contar um segredinho para você, rebelde, a respeito de uma habilidade especial que descobri recentemente. Posso forçar você a dizer a verdade... e quanto mais resistir, mais vai doer.
Jonas virou para encará-la de novo, mais irritado do que intimidado.
- Você sempre foi má assim ou só começou quando descobriu que era uma feiticeira?
- Sinceramente? - Ela abriu um sorriso frio. - Só depois.
- Acho difícil acreditar nisso. Você e sua família... são maldade pura, todos vocês.
- E ainda assim você está nos ajudando. - Lucia franziu a testa discretamente. - Pelo menos, diga que estão bem, que saíram ilesos depois de tudo o que aconteceu.
- Ilesos? - Ele sorriu com ironia. - Não sei de nada. Finalmente tive a chance de enfiar uma adaga no coração do rei. Por azar, isso só o atrapalhou um pouco.
Os olhos dela brilharam, furiosos.
- Mentira.
- Bem aqui. - Ele indicou o peito. - Certeiro e profundo. Até girei. Foi tão bom que não consigo nem explicar.
Um instante depois, ele se viu no ar, voando até bater as costas no tronco de uma árvore com força suficiente para tirar seu fôlego.
Lucia se ajoelhou ao lado dele, apertando sua garganta.
- Olhe para mim.
Desorientado, Jonas encarou os olhos azul-claros dela.
- Diga a verdade - ela rosnou. - Meu pai está morto?
- Não. - A palavra foi dita com dificuldade.
- Você o apunhalou no coração mas ele não morreu?
- Exatamente.
- Como isso é possível? Responda!
Jonas não conseguia desviar daqueles olhos lindos e assustadores. A magia que ela tinha perdido - se é que isso de fato havia acontecido - estava de volta. E Lucia estava bem mais forte do que ele esperava.
- Algum tipo de magia... Não sei. Isso prolongou a vida dele.
- Magia de quem?
- Da mãe.... dele. - Jonas tinha certeza de que estava sentindo gosto de sangue, forte e metálico. Ele engasgou enquanto tentava resistir à magia.
Ela franziu ainda mais a testa.
- Minha avó morreu.
- Ela está viva. Não sei muito mais do que isso. - Ele fez uma careta pela dor de estar contando todas aquelas verdades. - Agora, me faça um favor, princesa.
Ela inclinou a cabeça, mas não cedeu nem um pouco.
- Dificilmente.
Jonas semicerrou os olhos e tentou, com toda a força, canalizar a própria magia como tinha feito sem querer no navio com Felix.
- Me solte.
Lucia soltou Jonas e caiu para trás como se tivesse sido empurrada pelo rebelde.
Tossindo e com a mão no pescoço, Jonas levantou e olhou para ela.
Percebeu que esboçava um sorriso. Olivia deveria estar enganada sobre o poder de sua magia. Jonas se permitiu um breve momento de vitória.
Lucia o encarou, com os olhos arregalados.
- Você pode canalizar a magia do ar? Um bruxo? Nunca soube sobre algo assim... Ou você é um Vigilante exilado?
- Prefiro evitar títulos, princesa - ele disse. - E, francamente, não sei o que sou, só que tenho que lidar com isso agora. - Ele levantou a camisa o suficiente para revelar a marca em espiral em seu peito,
que tinha ficado mais brilhante desde a última vez em que ele olhara, e agora cintilava num tom dourado que o fazia lembrar cada vez mais da marca de um Vigilante.
- O quê? - Lucia balançou a cabeça com os olhos arregalados. - Não compreendo.
- Nem eu. E juro, se essa é minha profecia, cuidar para que alguém como você volte para sua odiosa família sã e salva, vou ficar furioso. - Ele olhou para cima, para as árvores. - Olivia, está me ouvindo
onde quer que esteja? É a pior profecia do mundo!
- Quem é Olivia?
- Deixa para lá. - Ele olhou para Lucia, ainda deitada no chão. - Levante.
Ela tentou ficar de pé.
- Hum...
- Não consegue levantar, não é?
- Me dê um minuto. Minha barriga está um pouco esquisita no momento. - Lucia olhou feio para ele. - E, por favor, nem pense em me ajudar.
- Não pensei. - Jonas ficou observando enquanto ela rolava devagar e com dificuldade para o lado, e então levantava, batendo no manto para tirar as agulhas de pinheiro e a terra. - Você ainda não está
acostumada com sua situação? Já vi paelsianas grávidas, a poucos dias de dar à luz, cortando madeira de uma árvore inteira e carregando para casa.
- Não sou uma paelsiana - ela disse e hesitou. - Bem, não exatamente. E não tive tempo de me acostumar com minha "situação", como você diz.
Que moça esquisita.
- Você está grávida de quantos meses?
- Não que seja da sua conta, mas... cerca de um mês.
Jonas olhou para o corpo dela sem acreditar.
- É assim que funciona com as feiticeiras cruéis? Os bebês delas se desenvolvem muito mais depressa do que os bebês normais?
- Não tenho como saber. - Lucia cruzou os braços como se tentasse proteger a barriga. - Compreendo seu ódio por mim. Compreendo o ódio de todos por mim. O que fiz desde... desde que o pai desta criança
morreu é imperdoável. Sei disso. Mas essa criança é inocente e merece uma chance de viver. O fato de você, logo você, ter vindo ajudar alguém como eu... Você está marcado como imortal, mas afirma não ser
bruxo nem exilado. Isso deve significar alguma coisa. Você fala sobre profecias. Sei bem que sou o alvo de profecias. Para mim, isso quer dizer que essa criança é importante para o mundo.
- Quem é o pai? - Jonas perguntou. Ele não queria sentir pena pelo que Lucia estava passando nem deixar que a voz dela o emocionasse.
- Um imortal exilado.
- E você disse que ele está morto.
Ela assentiu uma única vez.
- Como? - Jonas perguntou. - Você o matou?
Lucia ficou em silêncio por tanto tempo que ele achou que ela não responderia.
- Não. Ele tirou a própria vida.
- Interessante. É essa a única maneira de escapar de suas garras sombrias?
O olhar de ódio de Lucia o fez recuar. Mas era mais do que isso. Os olhos dela estavam vermelhos, numa mistura de cansaço e tristeza.
- Desculpa - Jonas disse antes de pensar em outra resposta. - Acho que fui desnecessariamente grosseiro.
- Foi. Mas eu não esperaria nada menos de alguém que pensa que sou cruel. O que Kyan fez com sua amiga...
- Lysandra - ele disse com a voz embargada. - Ela era incrível... A garota mais forte e corajosa que já conheci. Ela merecia a vida que Kyan lhe roubou sem um segundo de hesitação. Ele estava mirando em
mim, eu deveria ter morrido naquele dia, não ela.
Lucia assentiu com tristeza.
- Sinto muito. Percebo que Kyan não é uma pessoa, não é alguém com sentimentos e necessidades como as dos mortais, e não é possível discutir com ele. Kyan vê todas as falhas e imperfeições deste mundo.
Ele deseja reduzir tudo a cinzas para poder recomeçar. Diria que ele é maluco, mas é fogo. Fogo arde. Destrói. Essa é a razão de sua existência.
- Kyan quer destruir o mundo - Jonas repetiu.
Ela confirmou.
- Por isso eu o deixei. Por isso ele quase me matou quando eu disse que não o ajudaria mais.
Jonas demorou um momento para absorver a informação.
- Você diz que o fogo destrói. Mas o fogo também cozinha comida e nos aquece em noites frias. Esse tipo de fogo não é cruel, é um elemento que usamos para viver.
- A única certeza que tenho é de que ele precisa parar. - Ela levou a mão ao bolso do manto e tirou uma pequena esfera de âmbar. - Esta era a prisão de Kyan.
Jonas ficou sem palavras por um momento.
- E você acha que pode prendê-lo de novo aí dentro e salvar o mundo?
- Pretendo tentar - ela disse apenas.
Ele observou o rosto de Lucia, determinado e sério olhando para a esfera de cristal. Ela parecia muito sincera. Podia acreditar nela?
- Pelo que sei a respeito do deus do fogo, a imperatriz não parece ser grande ameaça, certo?
Lucia guardou a esfera no bolso de novo.
- Ah, Amara provou que é uma ameaça. Mas Kyan é bem pior. Por isso, pode me considerar cruel, rebelde. Pode me considerar alguém que precisa morrer pelos crimes que cometi. Tudo bem. Mas saiba também que
quero tentar consertar parte do que fiz agora que consigo pensar com clareza de novo. Primeiro, preciso ver minha família. Preciso... - As palavras de Lucia foram interrompidas quando ela se inclinou para
a frente e chorou.
Jonas correu para o lado dela.
- O que foi?
- Dói! - ela disse. - Está acontecendo com muita frequência desde que saí. Ah... ah, minha nossa! Não consigo...
Lucia caiu de joelhos com as mãos na barriga.
Jonas olhou para ela, sentindo-se totalmente impotente.
- Droga. O que posso fazer? O bebê já está nascendo? Por favor, não me diga que o bebê já está nascendo.
- Não, não está... Acho que ainda não está na hora. Mas isso... - Quando ela gritou, o som atingiu Jonas como uma lâmina fria. - Me leve para minha família! Por favor!
O rosto da princesa estava pálido como papel em contraste com seu cabelo escuro. Ela revirou os olhos e caiu, inconsciente.
- Princesa - ele disse, tentando acordá-la. - Vamos, não temos tempo para isso.
Lucia não acordou.
Jonas virou e olhou para o conflito. Não demoraria muito para a multidão paelsiana encontrar armas e sair em busca dele e da feiticeira.
Finalmente, xingando em voz baixa, ele se abaixou e pegou a princesa nos braços, percebendo que ela era muito mais leve do que imaginava, mesmo com o bebê que esperava.
- Não temos tempo para ir até sua família - ele disse. - Por isso vou levá-la à minha. Estão muito mais perto.
A irmã de Jonas, Felicia, abriu a porta de casa e observou Jonas por um momento, em silêncio total.
Em seguida, olhou para a garota grávida e inconsciente que ele carregava nos braços.
- Posso explicar - ele se apressou em dizer.
- Espero muito que possa. Entre. - Ela abriu mais a porta para Jonas entrar, tomando o cuidado de não bater as pernas de Lucia no batente.
- Deixe-a na minha cama - Felicia disse a Jonas. Ele fez o que sua irmã disse e voltou até ela, mas a irmã não o recebeu com um abraço. Simplesmente ficou ali, a expressão séria e furiosa, os braços cruzados.
Jonas não esperava que ela ficasse feliz ao vê-lo.
- Sinto muito por não ter vindo visitá-la - ele começou.
- Não tenho notícias suas há quase um ano e você aparece hoje de repente.
- Precisava de sua ajuda. Com... a garota.
Ela riu.
- Sim, com certeza precisa. O filho é seu?
- Não.
Ela não pareceu convencida.
- E o que você espera que eu faça por ela?
- Não sei. - Ele coçou a testa e começou a andar de um lado para o outro na casa pequena. - Ela não está bem. Sentiu dor na barriga e desmaiou. Eu não sabia o que fazer.
- Por isso a trouxe para cá.
- Eu sabia que você me ajudaria. - Ele suspirou nervoso. - Sei que você está brava comigo por eu ter passado muito tempo longe, mas era perigoso demais voltar.
- Sim, eu vi seus cartazes de procurado. O que era aquilo? Dez mil cêntimos para quem capturasse você, morto ou vivo?
- Mais ou menos isso.
- Você matou a rainha Althea.
- Não matei. É uma longa história.
- Imagino.
Ele observou ao redor, à procura de algum sinal do marido da irmã.
- Onde está Paolo?
- Morto.
Jonas a encarou.
- O quê?
- Foi tirado de mim, forçado a trabalhar para a Estrada Imperial. Eles queriam o nosso pai também, mas decidiram que, devido à idade e ao fato de mancar, ele era inútil. Paolo não voltou quando os operários
finalmente foram liberados de suas tarefas. O que devo pensar além de que foi morto com os outros paelsianos que eram tratados como escravos?
Jonas olhou para ela em choque. Paolo foi um bom amigo quando a vida era difícil, mas simples.
- Felicia, sinto muito. Eu não imaginava...
- Não, tenho certeza de que não imaginava. Assim como tenho certeza de que não pensou que manter aquela princesa dourada presa em nosso abrigo quase causaria a morte dele também.
- Claro que eu não sabia disso. - Ele olhou para o chão de terra. - Você... você disse que nosso pai não foi levado?
- Não foi, mas assim que soube da morte do chefe, ficou muito doente... doente de pesar, diferente de qualquer coisa que tenha sentido quando a mamãe e o Tomas morreram. É como se a vontade que ele tinha
de viver tivesse desaparecido. Eu o perdi faz dois meses. Agora cuido do vinhedo. São dias sobrecarregados, Jonas, com pouca ajuda.
Seu pai tinha morrido e Jonas não ficara sabendo. Ele sentou numa cadeira deixando o peso do corpo desabar.
- Sinto muito por não ter estado ao seu lado. Não sei o que dizer.
- Não há nada a dizer.
- Quando isso acabar, quando este reino voltar a ser como deveria, vou voltar. Vou ajudar você a cuidar da vinícola.
- Não quero sua ajuda - ela respondeu, e a raiva que Felicia estava controlando até aquele momento transbordou. - Consigo me virar sozinha. Bom, acho que já conversamos mais do que o suficiente. Vamos
cuidar de seu problema para você poder ir embora o mais rápido possível. Não sou curandeira, mas já ajudei muitas mulheres grávidas.
- O que você puder fazer para ajudar será muito bem-vindo. Eu só esperava que você soubesse acabar com a dor.
- Algumas gestações são mais difíceis do que outras. Quem é ela? - Ela lançou um olhar incisivo para ele quando não obteve resposta. - Diga, Jonas, ou mando você embora.
Felicia estava diferente, mais dura, mais zangada. Cada palavra dita por ela fazia Jonas se encolher.
Ele se sentia um idiota por pensar que quando voltasse nada teria mudado, mesmo depois de tanto tempo. Pensou em enviar uma mensagem, perguntar como as coisas estavam, mas não o fez. E o tempo tinha passado.
- Ela é Lucia Damora - ele respondeu com sinceridade, já que devia isso a Felicia.
Ela arregalou os olhos, chocada.
- O que você estava pensando ao trazer essa bruxa má aqui para dentro? Ela não é bem-vinda em minha casa. Tem noção do que ela fez? Um vilarejo que fica a menos de vinte quilômetros daqui foi incendiado.
Todos os moradores foram mortos por causa dela. Ela merece morrer pelo que fez.
Cada palavra parecia um golpe, e Jonas não tinha o que argumentar.
- Talvez sim, mas no momento a magia dela é necessária para salvar Mítica. Para salvar o mundo. Você não deixaria uma criança inocente sofrer por causa das escolhas da mãe, deixaria?
Ela deu uma risada seca.
- Ouça só você, defendendo uma princesa real... De Limeros, ainda por cima! Quem é você, Jonas? No que meu irmão se transformou?
- Amara não pode controlar Mítica - ele disse. - Estou disposto a fazer o que for preciso para impedi-la.
- Você está cego como uma toupeira, irmão. A imperatriz é a única que pode salvar a todos nós. Ou será que você esqueceu o passado com tanta facilidade agora que sua cabeça está tomada por aquela droga
cruel que está dormindo na minha cama?
- Minha cabeça não está tomada por ninguém - ele resmungou. - Mas sei o que é certo.
- Então precisa acordar. A imperatriz é o melhor que já aconteceu em Paelsia há gerações.
- Você está errada.
- Não estou errada - ela disse, e a raiva em sua voz finalmente deu lugar ao cansaço. - Mas não vou me dar ao trabalho de convencê-lo de algo que sei que é certo. Você se perdeu de nós, Jonas. Consigo
ver em seus olhos. Você não é o mesmo garoto que cresceu desejando ser como Tomas, que ia caçar com ele na fronteira de Auranos, que ia atrás de todas as garotas do vilarejo. Não sei mais quem você é.
Ele sentiu uma pontada no peito ao pensar que a tinha decepcionado tanto.
- Não diga isso, Felicia.
Ela deu as costas para ele.
- Vou deixar você e aquela criatura passarem a noite aqui. E só. Se ela morrer por causa da dor que está sentindo, então deixe-a morrer. O mundo vai ficar melhor sem ela.
Jonas deitou no chão de terra, ao lado do fogo, a mente em disparada.
Quando chegou ali, pelo menos tinha um senso de direção, de propósito. Precisava levar Lucia até a família dela.
Os Damora. O Rei Sanguinário que tinha oprimido seu povo. Que tinha assassinado o chefe Basilius. Que tinha mentido para dois exércitos sobre os motivos que deram início a uma guerra com os auranianos.
Felicia tinha razão. Amara Cortas tinha acabado com tudo aquilo ao ocupar Paelsia.
Como foi que ele pegou aquele caminho? Era um rebelde, não o criado tímido de um rei sádico.
Jonas demorou muito para conseguir dormir. Em um sonho, ele se viu em um campo verdejante sob o céu azul e límpido. Ao longe, uma cidade que parecia feita de cristal brilhava sob o sol.
- Jonas Agallon, finalmente nos conhecemos. Olivia me contou muito sobre você. Sou Timotheus.
Jonas virou e viu um homem que parecia só alguns anos mais velho do que ele. Seu cabelo tinha um tom bronze escuro, os olhos, acobreados. Usava vestes que desciam até a grama cor de esmeralda.
- Você está em meu sonho - Jonas disse devagar.
Timotheus arqueou uma sobrancelha.
- Que dedução brilhante. Sim, estou.
- Por quê?
- Imaginei que teria muitas perguntas para me fazer.
Apesar de tudo o que sentia por estar frente a frente com o imortal sobre o qual Olivia havia contado pouco, não sentiu surpresa nem cansaço.
- Perguntas que você vai responder?
- Algumas, talvez. Outras, provavelmente não.
- Não, tudo bem. Só me deixe dormir. Estou cansado e não quero ter que desvendar enigmas.
- O tempo está passando. A tempestade está quase aqui.
- Você fala assim, tão vago e irritante, com todo mundo?
Timotheus inclinou a cabeça.
- Na verdade, sim. Falo, sim.
- Não gosto. E não gosto de você. O que quer que isso seja - Jonas indicou a marca em seu peito -, quero que desapareça. Não quero nenhuma ligação com sua gente. Sou paelsiano. Não sou um Vigilante, nem
bruxo, nem o que você acha que sou.
- Essa marca torna você muito especial.
- Não quero ser especial.
- Você não tem escolha.
- Sempre tenho escolha.
- Seu destino está escrito.
- Vá se ferrar.
Timotheus hesitou.
- Olivia disse que você é irredutível em suas observações. No entanto, tenho certeza de que percebeu que agora tem um pouco de magia. A magia de Phaedra. A magia de Olivia. Você as absorveu como uma esponja.
Sua condição é rara e, repito, especial. As visões que tive de você são importantes.
- Certo. As visões. A profecia na qual levo Lucia Damora para a família dela.
- É o que você acha?
- Parece que é aonde meu destino está me levando.
- Não, não exatamente. Você vai saber quando acontecer. Vai sentir...
- O que sinto no momento é a necessidade de enfiar uma faca na sua barriga. - Jonas olhou para o imortal. - Ousa entrar no meu sonho agora, depois de todo esse tempo? Olivia me ajudou a ficar vivo, seguindo
o que você mandou. Acho que ela não precisa mais de mim. Ou talvez esteja me espionando lá de cima como um falcão, como todos vocês fazem. A única coisa da qual tenho certeza é que estou cansado disso.
Não importa o que você tem a dizer. Você espalha meias verdades como se a vida dos imortais fosse uma brincadeira.
Timotheus falou mais baixo.
- Não é uma brincadeira, meu jovem.
- Ah, não? Prove! Diga qual é meu destino, se acha que não posso evitá-lo.
Timotheus o observou.
- Não previ a gravidez de Lucia - ele admitiu. - Foi uma surpresa para mim, assim como tenho certeza de que foi para ela. Foi mantida em segredo de todos nós pelos Criadores, e deve haver um motivo para
isso... um motivo importante. Eu via você como alguém que ajudaria Lucia durante a tempestade...
- De que tempestade está falando?
Timotheus levantou a mão.
- Não me interrompa. Estou sendo sincero com você como nunca fui com ninguém, porque agora vejo que não há tempo para mais nada.
- Então, desembucha - Jonas disse. Ele estava frustrado com tudo na vida, e ele queria descontar naquele imortal pomposo.
- O filho de Lucia terá muita importância. Muitos desejarão sequestrar a criança ou matá-la. Você vai proteger essa criança do perigo e vai criá-la como se fosse seu filho.
- É sério? E Lucia e eu seremos o quê? Vamos nos casar e viver felizes para sempre? Duvido.
- Não. Lucia vai morrer no parto na próxima tempestade. - Ele afirmou com firmeza, franzindo a testa. - Estou vendo agora, claramente. Antes eu achava que a magia dela pudesse ser transferida a você no
momento da morte, transformando você em um feiticeiro que pudesse caminhar entre os mundos, cujo destino fosse aprisionar os deuses da Tétrade depois de serem libertados. Mas a magia de Lucia vai perdurar
no filho dela.
Jonas o encarou boquiaberto, surpreso com a revelação.
- Ela vai morrer?
- Sim. - Timotheus deu as costas para ele. - É só o que posso contar. Boa sorte, Jonas Agallon. O destino de todos os mundos está nas suas mãos agora.
- Não, espere! Tenho perguntas! Você precisa me contar o que tenho que fazer...
Mas Timotheus desapareceu naquele instante, assim como o campo e a cidade à distância.
Jonas acordou e viu a irmã o chacoalhando.
- Amanheceu - ela disse. - Sua amiga está acordada. Está na hora de vocês saírem da minha casa.
C O N T I N U A
11
JONAS
MAR PRATEADO
Devagar, a luz voltou a seu mundo, e Jonas abriu os olhos. Olivia o encarava com ternura e alívio.
- Fico feliz de ver que finalmente voltou para nós - ela disse.
Ele resmungou e estendeu os braços.
- Fiquei inconsciente por quanto tempo?
- Quatro dias.
Ele arregalou os olhos e sentou com um pulo.
- Quatro dias?
Ela fez uma careta.
- Você não ficou inconsciente o tempo todo, se isso melhora a situação. Acordou algumas vezes, delirante e agitado.
- Não, isso não melhora em nada, na verdade. - Jonas levantou do catre e cambaleou até o espelho. A estranha espiral ainda estava em seu corpo, agora muito mais intricada e com um desenho muito mais detalhado
do que o símbolo simples da magia do ar. Ele tinha esperanças de que não tivesse passado de um pesadelo.
- Eu tenho a marca de um Vigilante - ele disse.
- Então você sabe o que é.
- Phaedra tinha uma. - A Vigilante que tinha sacrificado a vida imortal para salvar a dele tinha provado quem (e o que) era ao mostrar sua marca a Jonas. Mas a dela era diferente. Tinha a mesma forma,
mas era uma marca dourada que se movimentava em círculos sobre a pele, como se quisesse provar suas origens mágicas. - E sei que você tem uma também.
- Tenho. - Olivia abriu um pouco o manto e mostrou um pequeno pedaço de uma marca dourada sobre a pele escura. Ele havia tido apenas alguns vislumbres da espiral, quando Olivia se transformava em falcão.
Jonas deu as costas para o espelho para encarar os olhos cor de esmeralda da Vigilante.
- Não vou implorar, Olivia. Vou simplesmente pedir para você, por favor, falar mais sobre isso, sobre a profecia que existe sobre mim. Tentei negar que fosse real, mas agora preciso saber. O que está acontecendo
comigo? Eu estou... - Ele se esforçou para verbalizar os pensamentos. - Estou me transformando em um de vocês?
A ideia soava tão absurda que Jonas se arrependeu de suas palavras assim que as proferiu. Mas o que mais poderia pensar?
Ela torceu as mãos e, por um instante, Jonas achou que Olivia pudesse tentar escapar, assumir a forma de falcão e sair voando para evitar suas perguntas. Mas, em vez disso, ela suspirou e sentou na beirada
do catre enquanto ele esperava em pé, tenso, perto da escotilha.
- Não exatamente - ela respondeu. - Mas você é, de fato, um mortal raro, Jonas Agallon. Tocado por nossa magia em dois momentos muito vulneráveis de sua vida, ambos quando estava muito perto da morte.
Tocado por mim, quando curei seu ombro, e por Phaedra, depois que foi atingido pelo soldado limeriano. Você não sabe como isso é atípico.
Eram dois momentos da vida que ele preferia esquecer.
- Talvez eu não saiba mesmo. Então me conte.
- Eu estava lá quando Phaedra deu a vida pela sua. Observei do alto de outra barraca na forma de falcão.
Ele respirou fundo.
- Estava?
Ela assentiu, séria.
- Observei horrorizada quando Xanthus tirou a vida dela, e a vi retornar para a magia de que todos nós fomos criados. E vi um pouco dessa magia entrar em seu corpo, apenas segundos depois do momento em
que você poderia ter morrido sem a intervenção dela.
- Eu... eu não senti nada.
- Não, não era para sentir. Não deveria sentir. E não faria diferença nenhuma se não fosse pela magia do próprio deus do fogo surgindo por perto. Acabou fortalecendo a magia de Phaedra dentro de você.
Mas não seria suficiente para isso acontecer. - Olivia apontou para a marca, que ele coçava sem perceber. - Eu usei magia da terra para curar seu ombro quando você estava à beira da morte mais uma vez,
e vi que a absorveu como uma esponja. Aquela magia ficou dentro de você, somando-se à de Phaedra, assim como Timotheus previra.
Jonas tentou entender, tentou negar, tentou impedir que seu coração batesse como as asas de um pássaro preso em seu peito. Mas então, de repente, lhe ocorreu que não deveria tentar negar uma notícia tão
incrível.
- Tenho elementia dentro de mim - ele disse com uma voz rouca. - Isso significa que posso usá-los para combater Kyan e expulsar Amara de Mítica. - Quanto mais ele considerava essa possibilidade, mais animado
ficava. - Preciso subir e contar para os outros. Eles devem estar tão confusos com o que aconteceu, com o que fiz com Felix... Mas isso é incrível, Olivia! Vai fazer toda a diferença.
Ele era um bruxo! Tinha negado a existência dos elementia e daqueles que os detinham durante toda sua vida, e agora tinha essa mesma magia na ponta dos dedos.
Olivia segurou seu braço quando ele foi na direção da porta.
- Não é tão fácil assim, Jonas. Timotheus não previu que você seria um praticante de magia, apenas um veículo para ela.
- Um veículo? Impossível. Você testemunhou o que fiz. Arremessei Felix pelo convés com... magia do ar, não foi?
- É verdade. Mas foi uma anomalia. Foi apenas um sinal de que a magia que existe dentro de você amadureceu. E aquele gasto de energia o deixou inconsciente durante quatro dias.
Jonas balançou a cabeça. A frustração tomou conta dele, acabando com sua empolgação.
- Não entendo.
Olivia afrouxou a mão que segurava seu braço.
- Eu sei, e peço desculpas pela confusão. Timotheus mantém seu conhecimento muito reservado, já que não confia em muitos imortais, nem mesmo em mim. Ele não compartilhou a extensão de sua profecia comigo
por medo de que eu contasse para você e você tentasse evitá-la. - Ela fechou a boca. - Já falei demais.
Ele resmungou.
- Você revelou o suficiente para me deixar louco de curiosidade e apreensão.
- Você não pode contar isso a ninguém.
- Não posso? - Ele apontou para a porta. - Todos me viram fazer aquilo no convés. O que devo fazer? Negar?
- Na verdade, sim. - Ela ergueu o queixo. - Expliquei a eles que fui a responsável. Que vi, do alto, Felix acertar você e que estou aqui justamente para protegê-lo. É claro que acreditaram em mim.
Jonas a encarou.
- Eles acreditaram que você interferiu com sua própria magia?
- Sim.
- E não posso falar nada sobre isso?
- Não. Nem uma palavra. - Ela ficou séria. - É perigoso demais. Alguns o perseguiriam se soubessem que é um mortal repleto de magia imortal.
- Magia imortal que não posso usar. - Ele observou o próprio punho, lembrando como havia brilhado no convés.
- Se não acredita em mim, você precisa ver com seus próprios olhos. - Ela apontou para a porta. - Tente abrir essa porta com a magia do ar que canalizou com tanta facilidade com Felix.
Parecia um desafio. Jonas olhou para além de Olivia e franziu a testa, concentrando-se, enquanto levantava a mão na direção da porta. Ele se esforçou tanto para tentar invocar a magia que existia dentro
de si que sua mão começou a tremer, seu braço começou a oscilar... mas nada aconteceu.
- Isso não significa nada - ele resmungou. - Só preciso praticar.
- Talvez - Olivia disse com delicadeza. - Só sei o pouco que me contaram.
Decepcionado, Jonas deixou o braço cair.
- Claro, ninguém ia querer que as coisas fossem fáceis para mim. Ser um bruxo, utilizar os elementia à vontade... Ninguém ia querer isso, não é?
- Na verdade, seria incrivelmente útil para você.
Jonas lançou um olhar feio para ela.
- Você não está ajudando.
- Sinto muito. - Olivia fez uma careta. - Os outros estão preocupados com você. Ficarão felizes em saber que finalmente acordou.
Jonas foi até a escotilha e observou a imensidão do mar.
- Quanto falta para chegarmos em Paelsia?
- Estamos quase chegando.
- Dormi quase o caminho todo. - Ele soltou um suspiro trêmulo ao tentar aceitar tudo o que havia aprendido. Negar seria perder um tempo que eles não tinham. - O que eu perdi?
- Não muito, na verdade. Taran continua afiando a espada na expectativa de matar o príncipe Magnus, Felix ainda está sofrendo com enjoos, Ashur passa a maior parte do tempo em seus aposentos meditando,
e Nic fica espreitando por aí. Quando o príncipe aparece, ele o observa de uma maneira um tanto curiosa.
- Pedi para o Nic ficar de olho em nosso príncipe residente. É melhor não confiar nos kraeshianos, nem mesmo naquele que diz não ser nosso inimigo.
Jonas suspirou enquanto apertava as amarras da camisa.
- Certo, estamos quase em Paelsia. Ótimo.
- Ótimo? - ela repetiu.
Ele assentiu com firmeza.
- Se existe uma profecia que exige que eu seja um veículo dos elementia, quero saber sobre ela o quanto antes. E isso não vai acontecer enquanto estivermos em alto-mar, vai?
- Não, não vai - ela concordou. - Mas, de verdade, Jonas, não sei nada além disso. Sinto muito.
Ele assentiu.
- Seja o que for, eu aguento. Tenho certeza de que já enfrentei coisa muito pior no passado.
Para isso, Olivia não tinha resposta.
Jonas tentou ao máximo não se preocupar.
12
MAGNUS
PAELSIA
Como a viagem dos Glaciares a Basilia levaria pelo menos três dias a cavalo, não havia tempo a perder com as paradas constantes de um rei moribundo e uma mulher velha. Selia arrumou uma carruagem fechada
para levá-la junto com seu filho.
Quando Magnus sugeriu que Cleo fosse com eles e não montada num cavalo para não enfrentar o terrível frio, foi reprimido com um olhar cortante.
Aquilo queria dizer "não".
Gaius os orientou por um caminho que permitia que passassem toda noite em uma hospedaria de alguma cidadezinha, onde descansavam, comiam e dormiam em quartos separados e trancados.
Sete longas noites se passaram sem Magnus poder dormir com Cleo em seus braços, mas todas as noites sonhava com ela e com o chalé na floresta. Nos momentos em que estavam acordados, ele preferia não compartilhar
essa informação com ela. Não queria que ficasse convencida demais por provocar tal efeito nele, então guardava para si o desejo constante de tocá-la e beijá-la.
No último vilarejo onde ficaram, Enzo e Milo foram encarregados de buscar roupas adequadas para todos se passarem por viajantes inofensivos de passagem por Paelsia. Conseguiram encontrar vestidos de algodão
para Selia e Cleo e calças de couro simples e túnicas de lona para si mesmos, Magnus e Gaius.
Magnus olhou a própria túnica creme com repulsa.
- Não tinha nada preto?
- Não, vossa alteza - Enzo disse.
- Cinza-escuro?
- Não. Só essa cor e azul-claro. Achei que não ia gostar muito do azul. - Enzo limpou a garganta. - Mas posso voltar à loja.
Ele suspirou.
- Não, tudo bem. Fico com essa mesmo.
Pelo menos o manto e as calças eram pretos.
Ele saiu, pronto para dar início à última parte da viagem rumo à cidade da costa oeste, e encontrou Cleo, parecendo uma linda camponesa com seu vestido simples, sorrindo para ele ao lado de seu cavalo.
- Você parece um paelsiano - ela comentou.
- Não precisa me insultar, princesa - ele resmungou, contendo um sorriso quando montaram os cavalos e começaram a andar.
Praticamente uma pequena eternidade depois - que na verdade não passou de meio dia - finalmente e felizmente chegaram ao seu destino.
Magnus já tinha ouvido muitas histórias sobre Basilia, a cidade mais próxima de uma capital que Paelsia tinha. A cidade atendia aos navios que visitavam o Porto do Comércio e os membros da tripulação ávidos
por desembarcar em busca de comida, bebida e mulheres.
As histórias eram verdadeiras.
À primeira vista - e ao primeiro cheiro - Basilia era superpovoada e fedia a dejetos humanos e putrefação. Havia dezenas de navios atracados no porto, com as tripulações inundando a costa e se misturando
nas ruas, tavernas, hospedarias, nos mercados e bordéis da cidade litorânea. E, ao que parecia, tão quente quanto Auranos no ápice do verão.
- Repulsivo.
Magnus viu que o rei Gaius tinha aberto a janela da carruagem para espiar o centro da cidade com aversão. Seus olhos estavam vermelhos, e os círculos escuros sob eles pareciam hematomas recentes em contraste
com a palidez da pele.
- Desprezo este lugar - ele comentou.
- Sério? - Magnus perguntou, conduzindo o cavalo ao lado da carruagem. - Acho encantador.
- Não acha, não.
- Acho. Eu gosto dessa... cor local.
- Você não mente tão bem quanto pensa.
- Acho que posso apenas aspirar chegar aos seus pés no quesito falsidade.
O rei olhou feio para ele, depois alternou o olhar para Cleo, que cavalgava em frente a Magnus e atrás dos guardas.
- Princesa, se lembro corretamente, foi em um mercado não muito longe desta cidade em que você esteve com lorde Aron e o filho do vendedor de vinhos que ele matou, não foi?
Magnus logo ficou tenso e observou a princesa esperando a resposta. Cleo demorou alguns segundos para responder, mas o príncipe podia ver a tensão em seus ombros pelo fino material do vestido.
- Isso faz muito tempo - ela disse finalmente.
- Imagine como as coisas teriam sido diferentes se você não tivesse ido atrás de vinho aquele dia - o rei continuou. - Nada seria como é agora, não é?
- Não - ela disse, olhando para trás. - Por exemplo, você não teria caído e quase morrido depois de perder seu reino para uma mulher. E eu não estaria vendo seu fracasso com tanta alegria no coração.
Magnus conteve um sorriso e olhou para o pai, aguardando a contestação.
A única resposta foi uma janela fechada, bloqueando a visão do rosto do rei.
A carruagem parou em uma hospedaria chamada Falcão e Lança que, apesar de um leve cheiro de suor misturado a almíscar, Magnus considerou o estabelecimento mais aceitável da cidade. O rei Gaius desceu da
carruagem com a ajuda de Milo e Enzo e entrou na hospedaria, seguido por Selia, e logo subornou o dono para expulsar todos os hóspedes para que o grupo real tivesse privacidade total.
Enquanto os hóspedes saíam com um desfile de resmungos, Magnus assistia à Cleo observar a sala de convivência da hospedaria paelsiana com reprovação. Era um cômodo grande, com teto baixo, com cadeiras
de madeira desgastadas e mesas lascadas, onde os hóspedes podiam comer e passar o tempo.
- Não se enquadra no seu padrão de qualidade? - Magnus perguntou.
- Até que está bom - ela respondeu.
- Não é uma hospedaria auraniana com camas de pluma, lençóis importados e urinol dourado. Mas me parece aceitavelmente limpa e confortável.
Cleo virou as costas para uma mesa na qual alguém havia entalhado as próprias iniciais. Um sorriso brilhante passou por seus lábios.
- Sim, para um limeriano, acho que sim.
- De fato. - Os lábios da princesa eram uma distração grande demais, então Magnus virou e se juntou a seu pai e sua avó, que estavam parados perto das grandes janelas, olhando para os estábulos onde os
cavalos estavam sendo acomodados.
- E agora? O que vamos fazer? - Magnus perguntou à avó.
- Pedi para a esposa do dono da hospedaria ir até a taverna no fim da estrada e entregar uma mensagem pedindo para uma velha amiga minha nos encontrar aqui - Selia disse.
- A senhora não poderia ter ido?
- Ela talvez não me reconhecesse. Além disso, não é uma conversa que ouvidos curiosos podem escutar. A magia que procuro deve ser protegida a qualquer custo. - Ela encostou a mão sobre o braço de Gaius.
Havia um brilho de suor na testa do rei, que estava apoiado na parede como se fosse a única coisa que o mantivesse de pé.
- E o que devemos fazer até ela chegar? - Gaius perguntou com uma voz enfraquecida substancialmente desde a chegada.
- Você vai descansar - Selia respondeu.
- Não há tempo para descanso - ele disse com raiva. - Talvez eu saia para procurar algum carpinteiro por perto para fazer um caixão para me transportar de volta para Limeros.
- Por favor, pai - Magnus disse, permitindo um pequeno sorriso. - Fico feliz em fazer isso por você. Deve fazer o que minha avó pediu e descansar.
O rei olhou feio para ele, mas não falou nada.
- Vou levá-lo ao seu quarto. - Selia envolveu o braço no filho, conduzindo-o pelo corredor na direção da escadaria, e subindo para os quartos no segundo andar.
- Excelente ideia - Cleo disse, bocejando. - Também vou subir para o meu quarto. Por favor, avise quando a amiga da sua avó chegar.
Magnus esperou que ela saísse, depois fez um sinal para Enzo segui-la. Ele pedira para o guarda tomar cuidado extra com a proteção da princesa. Enzo era um dos poucos em quem Magnus confiava para a tarefa.
- O que devo fazer? - Milo perguntou ao príncipe.
Magnus passou os olhos pelo salão, que também continha uma pequena estante com livros velhos, nada parecida com a vasta seleção que passou a valorizar na biblioteca do palácio auraniano.
- Patrulhe os arredores - Magnus disse, pegando um livro aleatório da estante. - Certifique-se de que ninguém tenha percebido que o antigo rei de Mítica está temporariamente por aqui.
Milo deixou a hospedaria e Magnus tentou se concentrar na leitura de um volume sobre a história da produção de vinho em Paelsia, que não mencionava nada sobre a magia da terra que com certeza era responsável
pelo sabor da bebida, ou sobre as leis que proibiam sua exportação para outros lugares, à exceção de Auranos.
Depois de trinta páginas inúteis, a esposa do dono da hospedaria, uma mulher pequena que parecia ter um constante sorriso nervoso estampado no rosto, voltou com outra mulher mais velha, com rugas em volta
dos olhos e da boca, de aparência extremamente comum, usando um vestido antiquado e desmazelado. Magnus pensou que devia ser a mulher que Selia tinha mandado chamar.
Quando a esposa do dono da hospedaria desapareceu na cozinha, a mulher mais velha observou o local que parecia vazio, até seu olhar recair sobre Magnus.
- Então a senhora é a resposta para todos os nossos problemas, não é? - ele perguntou.
- Depende de quais são seus problemas, meu jovem - ela respondeu sem rodeios. - Gostaria de saber por que me chamou aqui.
- Não foi ele, fui eu - Selia disse, descendo a escadaria de madeira do outro lado do corredor que levava aos quartos, no segundo andar. - E é porque estou em busca de uma velha amiga. Você me reconhece
depois de todos esses anos?
Por um momento profundamente silencioso e agonizantemente longo, a mulher encarou Selia com uma mistura estranha de fogo e gelo no olhar. Justo quando Magnus começou a temer que tivessem cometido um erro
ao confiar em sua avó, a mulher abriu um grande sorriso, com rugas de alegria aparecendo no canto dos olhos.
- Selia Damora - ela arrulhou com um tom de voz muito mais gentil do que ao entrar na hospedaria. - Pela deusa, como senti sua falta!
As duas mulheres correram uma na direção da outra e se abraçaram.
- Devo chamar os outros? - Magnus perguntou. Quanto antes sua avó conseguisse o que precisava da mulher, mais rápido poderiam sair daquele lugar.
- Não, isso não precisa ser discutido em grupo - Selia respondeu sem tirar os olhos da amiga. - Também senti sua falta, Dariah.
- Onde esteve durante todo esse tempo? Já perdi a conta de quantos anos se passaram!
- O que importa é que estou aqui agora. Para ser franca, estou um pouco surpresa por você ainda estar em Basilia.
- Nunca poderia abrir mão do lucro da minha taverna, cada ano é melhor do que o anterior. Tantos marinheiros com dinheiro para gastar e sede para matar...
- Muitos tipos de sede, sem dúvida.
Dariah piscou.
- Exatamente. - Ela se virou para Magnus. - E quem é esse jovem?
- É meu neto, Magnus. Magnus, esta é minha amiga Dariah Gallo.
- Muito prazer. - Magnus forçou o melhor sorriso que conseguiu, mas sabia que pareceria mais uma careta.
- Minha nossa! Seu neto ficou tão alto e bonito!
Selia sorriu.
- Sim, os netos às vezes fazem isso quando chegam aos dezoito anos.
Dariah passou os olhos enrugados por Magnus de alto a baixo.
- Se eu fosse mais nova...
- Se fosse mais nova, teria que lutar com a jovem esposa dele por sua atenção.
Dariah riu.
- E talvez eu vencesse.
Magnus teve uma vontade repentina de voltar à leitura do livro sobre vinho paelsiano.
Selia juntou-se à amiga nas risadas e depois voltou a adotar um tom sério, porém amigável.
- Não vim a Basilia apenas para reencontrar uma velha amiga. Preciso de informações sobre como conseguir a pedra sanguínea.
Dariah arregalou os olhos.
- Minha nossa, Selia, você não perde tempo.
- Não tenho tempo a perder. Meu poder foi diminuindo no decorrer dos anos e meu filho está morrendo.
No instante silencioso que se seguiu, Magnus ficou quieto. Essa pedra, se fosse real, parecia algo que poderia ajudá-lo a aumentar seu poder, como a Tétrade.
Selia levou Dariah na direção da estante. Fez sinal para que ela se sentasse em um banco de madeira ao seu lado, depois segurou as mãos da outra bruxa.
- Não tenho escolha. Preciso dela.
- Você sabe que não está comigo.
- Não está. Mas você sabe com quem está.
Dariah balançou a cabeça.
- Não posso fazer isso.
- Estou pedindo para você entrar em contato com ele. Sei que pode encontrá-lo. Ele precisa vir o mais rápido possível.
Mil perguntas surgiram na cabeça de Magnus, mas ele permaneceu em silêncio, escutando.
Um poder como esse entregue diretamente em suas mãos. Parecia muito mais simples do que o processo complicado de encontrar a Tétrade.
A expressão da bruxa se tornou sombria.
- Ele nunca vai permitir que você fique com ela, nem mesmo por um instante.
Selia apertou ainda mais a mão da amiga.
- Deixe que eu lide com ele quando chegar aqui.
- Eu não sei...
Selia semicerrou os olhos.
- Sei que já faz muito tempo, mas sinto que terei que mencionar o favor que você me deve. Favor que prometeu retribuir por completo.
Dariah ficou encarando o chão.
Magnus observava, quase sem respirar. Aos poucos, a bruxa levantou os olhos, o rosto pálido. Ela concordou com um pequeno aceno de cabeça.
- Vou levar um tempo para atraí-lo para cá.
- Ele tem três dias. Será um problema?
A bruxa ficou tensa ao levantar.
- Não.
- Obrigada. - Selia levantou e deu dois beijos no rosto de Dariah. - Eu sabia que você ia me ajudar.
O sorriso de quando se cumprimentaram agora já não passava de uma lembrança.
- Aviso assim que ele chegar.
Dariah não demorou - lançou um último olhar para Selia e Magnus e deixou a hospedaria.
- Bem... - Magnus disse depois que tudo voltou a ficar em silêncio. - A senhora deve ter feito um belo favor para sua amiga.
- De fato foi. - Selia olhou para Magnus com um pequeno sorriso no rosto. - Agora vou ver como seu pai está. A saúde dele é minha única preocupação no momento. Quando minha magia estiver restaurada e ele
estiver bem novamente, podemos enfrentar os outros obstáculos que estão em nosso caminho.
- Vou me esforçar para ser paciente - Magnus disse, sabendo que com certeza fracassaria.
Àquela altura a noite já tinha caído, e Magnus se retirou para seu pequeno quarto. Havia uma cama de tamanho normal, e não os catres inaceitáveis do quarto comunitário no fim do corredor. A janela tinha
vista para a rua iluminada com lampiões e ainda movimentada, com cidadãos e visitantes mesmo depois de anoitecer.
Ele ouviu uma batida fraca na porta.
- Entre - Magnus disse, sabendo que podia ser apenas uma das quatro pessoas com quem havia chegado a Paelsia.
A porta se abriu devagar e, quando o visitante se revelou, o coração de Magnus começou a bater mais rápido. Cleo o encarava.
Ele levantou e a encontrou na porta.
- A amiga da minha avó esteve aqui.
- Já? - Ela arqueou as sobrancelhas. - E?
- E... - Ele balançou a cabeça. - Parece que seremos obrigados a esperar mais três dias por aqui.
- Mas ela vai conseguir a pedra sanguínea?
- Sim - Magnus respondeu. - Reencontrei minha avó há pouco tempo, mas ela me parece o tipo de mulher que consegue praticamente tudo o que quer.
- E tudo para essa pedra mágica salvar a vida de seu pai - Cleo disse sem nenhuma emoção, mas com uma dureza no fundo dos olhos azuis.
- Ele não merece viver - Magnus afirmou, concordando com o que não tinha sido dito. - Mas essa pode ser uma medida necessária para alcançarmos nosso objetivo maior.
- Encontrar Lucia.
- Sim. E acabar com a sua maldição.
Cleo assentiu.
- Suponho que não haja outra forma.
Ele a observou cauteloso.
- Você veio ao meu quarto apenas em busca de informações ou tem mais alguma coisa que deseja esta noite?
Cleo levantou o queixo para encarar diretamente em seus olhos.
- Na verdade, preciso de sua ajuda.
- Com o quê?
- Todas essas andanças a cavalo acabaram com meu cabelo.
Magnus levantou uma sobrancelha.
- E você veio aqui para pedir minha ajuda para cortá-lo e, assim, ele deixar de ser um problema?
- Como se você fosse permitir. - Ela riu. - Você é obcecado pelo meu cabelo.
- Eu não chamaria de obsessão. - Ele enrolou um cacho daquela seda dourada no dedo. - É mais uma distração, muitas vezes dolorosa.
- Peço desculpas por seu sofrimento. Mas você não vai cortar meu cabelo, nem hoje, nem nunca. A esposa do dono da hospedaria foi gentil e me deu isso. - Ela mostrou uma escova de cabelo com cabo prateado.
Magnus pegou o objeto da mão dela, observando-o com um olhar examinador.
- Você quer que eu...?
Cleo assentiu.
- Escove meu cabelo.
A ideia era ridícula.
- Agora que fui obrigado a me vestir como um paelsiano comum você está me confundindo com um criado?
Ela lançou um olhar determinado para Magnus.
- Eu não poderia pedir para Milo ou Enzo... ou, pelo amor da deusa, para seu pai ou sua avó me ajudarem.
- E quanto à esposa do dono da hospedaria?
- Está bem. - Cleo arrancou a escova da mão dele, fazendo careta. - Vou pedir a ela.
- Não, não. - Ele soltou um suspiro, achando graça. - Eu ajudo.
Sem hesitar, ela devolveu a escova a Magnus.
- Fico feliz.
Ele abriu caminho para deixá-la passar. Cleo entrou, sentou na beirada da cama e olhou para ele cheia de expectativa.
- Feche a porta - ela disse.
- Não é uma boa ideia. - Magnus deixou a porta entreaberta e lentamente sentou ao lado dela. Meio sem jeito e receoso, como se estivesse prestes a limpar um animal pela primeira vez, ele levou a delicada
escova aos cabelos dela.
- Nunca fiz isso antes.
- Para tudo existe uma primeira vez.
Que cena ridícula deve ter sido: Magnus Damora, filho do Rei Sanguinário, escovando o cabelo de uma jovem a seu pedido.
E ainda assim...
Sempre que Magnus assumia uma tarefa, preferia ser dedicado, usando suas habilidades da melhor maneira possível. Ele se empenhava da mesma forma naquele momento, ao pegar uma mecha do longo e sedoso cabelo
de Cleo e deslizar a escova por ela. O calor das madeixas passava entre seus dedos, causando um arrepio prazeroso em suas costas.
- Você tem razão - ele disse em voz baixa. - Está terrivelmente embaraçado. Acho que de modo irreparável.
Magnus estava apenas provocando Cleo - seu cabelo estava perfeito, como sempre foi -, mas então ele chegou ao primeiro nó.
Ela se encolheu.
- Ai.
- Desculpe. - Ele ficou paralisado, mas depois franziu a testa. - Mas você me pediu para fazer isso.
- Sim, eu sei! - Ela suspirou. - Por favor, continue. Estou acostumada a ser torturada por minhas criadas, e elas estão acostumadas a ignorar meus gritos de dor. Você não vai conseguir me machucar mais.
Só Nerissa tem capacidade de fazer isso sem causar dor.
- Sim, ouvi falar das habilidades de Nerissa - Magnus comentou, sem conseguir conter um sorriso. Agora, tendo uma imagem mais completa do histórico de penteados de Cleo, ele encarou a tarefa com mais determinação.
- Tanto cabelo, tantas oportunidades para formar nós... Por que as mulheres se dão ao trabalho?
- Talvez eu devesse fazer tranças, como uma líder paelsiana?
- Sim, imagino que seria um estilo adequado a uma princesa auraniana, mesmo quando forçada a usar um horroroso vestido de algodão - ele respondeu com ironia, sem deixar transparecer como estava se divertindo
com aquela imagem. - Todas as garotas de Mítica iam querer copiar. - Com o maior cuidado possível, ele foi passando a escova por outra parte do cabelo que parecia um ninho de passarinho amarelo-claro.
- Você precisa saber que pretendo reivindicar a pedra sanguínea para mim.
- Eu já imaginava - ela respondeu.
Aquilo o surpreendeu.
- Imaginava?
Cleo assentiu, e os cabelos escaparam das mãos de Magnus, cobrindo a tentadora nuca dela.
- Vi em seus olhos quando Selia mencionou a pedra. Foi o mesmo olhar que vi em seu pai.
- E que olhar é esse?
- Não importa.
Magnus largou a escova. Com gentileza, tocou Cleo pelos ombros até praticamente fazê-la virar de frente para ele, depois segurou seu queixo com cuidado.
- Importa, sim. Que olhar eu e meu pai compartilhamos?
Ela o encarou nos olhos, cautelosa.
- Um olhar frio de ganância, como se fossem capazes de matar pela pedra.
- Entendo.
Cleo analisou o rosto dele, como se procurasse respostas.
- Naquele momento, você parecia tão frio quanto seu pai. E eu... eu não gostei.
A vida toda, disseram que ele se parecia muito com seu pai - tanto fisicamente quanto em temperamento. Com o tempo, ele aprendeu a não refutar as comparações, embora nunca tivessem deixado de incomodá-lo.
- Devo admitir, descobri há pouco tempo que preciso ser como meu pai. Há certas situações que praticamente exigem que eu seja o mais frio e brutal possível. Se eu fosse derramar lágrimas por cada vida
que tirei no último ano, já estaria seco como uma casca de árvore. Então, sim, acho que sou como meu pai em muitos sentidos.
- Não - Cleo sacudiu a cabeça. - Não é possível.
- Por que está dizendo isso?
- Sinceramente? - Ela chegou mais perto, segurando seu rosto entre as mãos. - Porque eu nunca quis fazer isso com seu pai.
Ela roçou os lábios de leve nos dele. Um pequeno gemido de tortura emergiu do fundo da garganta de Magnus enquanto ele se forçava a cerrar os punhos para não a agarrar no mesmo instante.
- Princesa...
- Cleiona... - ela o corrigiu, os lábios ainda a uma distância perigosa. - Embora eu precise admitir que já não gosto tanto de ter recebido o nome de uma imortal que roubou e matou em nome do poder.
- Verdadeiros líderes costumam ser implacáveis o suficiente para roubar e matar. Se não o fizerem, outra pessoa o fará.
- Uma filosofia encantadora e, receio, muito verdadeira. Mas talvez possamos pensar em outro nome para você se referir a mim quando estivermos juntos.
Ele arqueou a sobrancelha.
- Vou pensar nisso.
- Ótimo. - Ela mordeu o lábio, chamando atenção de novo para sua boca. - Agora, feche a porta. Com chave.
- Essa é uma sugestão muito, muito perigosa.
- Ou deixe aberta. Talvez eu não me importe. - Cleo o beijou mais uma vez, abrindo os lábios. Ele sentiu sua compostura e seu comedimento se esvaindo em uma velocidade perigosa quando a língua dela encostou
na sua.
- Realmente não quero dizer não - ele sussurrou junto aos lábios dela.
- Então não diga.
Magnus gemeu de novo quando as mãos dela desceram por seu peito e por baixo de sua túnica, deslizando sobre seu abdome e tórax sem nenhuma barreira. Ele a agarrou pela cintura e a pressionou na cama, cobrindo-a
por completo com o próprio corpo. Cleo era tão pequena, mas, ainda assim, tão forte e apaixonada.
Como um mundo insensível pôde criar uma criatura tão linda? Se a beleza dela não fosse um presente da deusa, sem dúvida tinha sido um presente da mãe...
De repente, Magnus levantou em um pulo, cobrindo a boca com o dorso da mão.
- O que foi? - Cleo perguntou assustada, o rosto corado.
Ele ficou em pé e pegou seu manto.
- Preciso de uma bebida. Vou dar uma olhada na taverna no fim da estrada.
Cleo ficou deitada, observando-o, com os cachos dourados embaraçados caídos sobre os ombros até a cintura.
Profunda e dolorosamente tentadora.
- Eu entendo - ela disse em voz baixa.
Ele estava prestes a sair sem mais nenhuma palavra, mas virou-se para ela e disse:
- Antes de sair, quero que saiba de uma coisa. No dia em que essa maldição for quebrada, prometo que a porta de qualquer quarto em que estivermos será trancada, e não vou deixar nada nos interromper.
Com isso, Magnus virou as costas e a deixou lá, olhando para ele.
Sim, ele precisava desesperadamente de uma bebida.
- Vinho - Magnus resmungou para o atendente quando entrou na taverna pobre, porém animada, conhecida como A Videira Púrpura. Ele colocou várias moedas sobre o balcão. - Fique atento e complete meu copo
sempre que notar que está vazio - ele instruiu. - E nada de conversa.
O atendente abriu um sorriso forçado, depois recolheu as moedas do balcão com ganância, guardando-as em uma bolsa velha, caindo aos pedaços.
- Muito bem.
Ele fez o que Magnus pediu e prestou muita atenção ao nível de líquido da taça. Quando Magnus começou a beber gole após gole do doce vinho paelsiano, a noite começou a ficar muito mais clara. Da última
vez que bebera vinho, tinha voltado para o palácio limeriano e encontrado sua esposa fazendo um discurso. Ela logo foi interrompida por inimigos que quase não o deixaram escapar com vida. Depois daquela
experiência, ele tinha considerado renunciar completamente à bebida.
A visita de Cleo a seu quarto naquela noite com certeza o obrigava a revogar aquela promessa.
- Nossa atração de hoje vai deixá-lo mais animado, amigo - disse o atendente, apesar de Magnus ter pedido silêncio. Magnus estava prestes a repreendê-lo quando o homem indicou com a cabeça o meio da taverna.
- Prometo que a Deusa das Serpentes será uma imagem espetacular para os olhos.
Deusa das Serpentes? Magnus revirou os olhos e apontou para a própria taça.
- Mais.
Alguém do outro lado da enorme taverna pediu silêncio para a multidão vociferante enquanto o atendente servia mais vinho para Magnus.
- Todos venerem nossa bela residente! - o homem berrou do outro lado do estabelecimento. - Curvem-se diante de seu incrível poder! E saúdem a Deusa das Serpentes!
A multidão reagiu com gritos e assovios quando uma jovem de cabelo escuro, pouca roupa e uma cobra pendurada no pescoço apareceu sobre o pequeno palco. Ao lado do palco havia um trio de músicos que começou
a tocar uma canção exótica que, para Magnus, soava mais selvagem do que encantadora. Quando a música começou a crescer, a jovem passou a se contorcer no que poderia ser considerado um tipo de dança, mas
para Magnus parecia mais a oferta de uma cortesã.
Ele esvaziou o copo sem saber ao certo quantas vezes tinha repetido o movimento desde que chegara, mas não importava. Não agora que as coisas pareciam tão melhores do que antes, quando o desejo por Cleo
quase o cegou diante do perigo.
Talvez eles pudessem dividir um quarto, ele pensava enquanto assistia àquela mulher estranha se sacudir pelo palco. Talvez um elixir para evitar a gravidez fosse proteção suficiente.
Ou talvez ele devesse se concentrar no fato de seu reino ter sido roubado, seu pai estar à beira da morte enquanto sua avó tenta salvá-lo com uma pedra mágica, sua irmã estar aliada com um homem que pretendia
conquistar Mítica à base do fogo, e Cleo carregar uma maldição. O fato de ele estar enlouquecendo de desejo por sua esposa de fato era a menor de suas preocupações.
De repente, alguma coisa chamou sua atenção: um lampejo de cabelo ruivo. Aquela cor de cabelo era mais rara em Paelsia do que a do cabelo de Cleo. Ele não conseguiu deixar de se lembrar de Nicolo Cassian,
a única pessoa que ele conhecia com aquela cor infeliz de cabelo.
Magnus riu ao pensar naquilo. Não, Nic devia estava em segurança em Kraeshia - ou nem tão seguro assim, na verdade, mas Magnus não se importava. O idiota tinha se voluntariado para se juntar a Jonas em
sua missão fracassada de matar o rei.
Ele voltou sua atenção para a Deusa das Serpentes. Quando pensou que estava começando a entender o ritmo de seus movimentos, ela parou, fazendo um sinal para os músicos pararem de tocar.
- É você? - ela perguntou. O salão agora estava em silêncio. A Deusa das Serpentes estava claramente se dirigindo a alguém específico, mas Magnus não conseguia ver de onde estava. Ele só conseguia ver
a crescente empolgação no rosto pintado da dançarina enquanto sua expressão transparecia cada vez mais certeza. - Jonas! - ela gritava agora com mais confiança. - Jonas, é você mesmo? Meu querido, achei
que estivesse morto!
Jonas?
Devia ser mais uma estranha coincidência.
A dançarina desceu do palco e se embrenhou no meio da multidão, de onde puxou um jovem de cabelo escuro.
Magnus ficou paralisado. Ele esticou o pescoço, tentando ver por entre as cabeças dos outros clientes. A dançarina jogou os braços em volta do jovem, rodopiando abraçada a seu visitante, até que ele se
virou na direção de Magnus.
Chocado e boquiaberto, Magnus ficou observando fixamente aquela cena.
Era Jonas Agallon. Ali, na mesma taverna.
- Quem diria? - disse uma voz familiar ao lado dele, verbalizando seus próprios pensamentos. Uma onda de desgosto tomou conta de Magnus antes mesmo de se virar e descobrir o que já sabia: aquele ruivo,
Nicolo Cassian, estava bem ao lado dele. - Você!
Nic cutucou o ombro dele, deixando escapar uma gargalhada quando derramou um pouco de cerveja de sua enorme caneca.
- Parece que o destino está finalmente lhe dando o troco, não acha, vossa alteza? E fico mais do que feliz de testemunhar isso.
- Estou vendo que sua visita a Kraeshia não ajudou a diminuir seu charme - Magnus disse, espantado por ter bebido a ponto de arrastar as palavras tanto quanto Nic.
Nic sorriu, mas seus olhos desfocados não demonstravam nenhum humor.
- Príncipe Magnus Damora, gostaria que conhecesse um amigo meu.
Irritado pelo uso de seu nome em um estabelecimento público, Magnus virou, esperando encontrar algum rebelde qualquer. Mas, em vez disso, encontrou um rosto que só via em pesadelos.
- Theon Ranus - ele exclamou. O calor agradável e o formigamento proporcionado pelo vinho desapareceram em um instante, deixando-o profunda e desoladamente frio ao encarar aquela aparição.
- Está enganado - disse o jovem, um lembrete fatal da primeira pessoa que Magnus havia matado na vida. Com um olhar frio repleto apenas de obstinação e ódio, ele puxou uma faca e a colocou junto à garganta
de Magnus. - Sou o irmão dele, seu filho da puta.
13
CLEO
PAELSIA
- Aonde está indo, princesa?
As palavras a fizeram parar na porta principal da Hospedaria Falcão e Lança. Cleo olhou para trás e viu Enzo parado nas sombras.
- Vou à taverna no fim da estrada - ela disse. - Não que seja da sua conta.
- Está tarde.
- E...?
Enzo endireitou os ombros.
- Acho que seria melhor ficar aqui em segurança, princesa.
- Aprecio sua opinião, mas discordo. Magnus está lá. Estou surpresa, e um pouco consternada, por você não ter ido junto. E se ele for reconhecido?
- O príncipe deixou bem claro que meu único dever é garantir sua segurança, princesa.
Ela piscou rápido, como se tentasse disfarçar a surpresa daquela revelação interessante.
- Sério? Bem, isso torna as coisas muito mais fáceis. Você virá comigo buscar o príncipe e garantir que nenhum de nós corra perigo.
Cleo não lhe deu tempo para argumentar ao virar as costas e sair da hospedaria, deixando a porta aberta para Enzo segui-la e puxando o capuz do manto para cobrir o cabelo e proteger o rosto.
Enzo a seguiu sem dizer mais nada enquanto Cleo prestava atenção nas pessoas na rua, nas carruagens que passavam, no ruído do casco dos cavalos batendo na estrada de cascalho. Ela seguiu o som das risadas
embriagadas e da música para chegar à taverna que sem dúvida tinha sido o destino de Magnus. Sobre as grandes portas de madeira havia uma escultura de bronze de alguns cachos de uva em uma videira.
Ela leu a placa:
- A Videira Púrpura. Que nome apropriado para uma taverna em Paelsia. E bastante óbvio.
O príncipe gostava tanto do sabor do vinho que não se importava com o que aconteceria se alguém o reconhecesse. Magnus adorava tanto beber que estava disposto a arriscar ser morto no meio de um bando de
paelsianos. E que jeito idiota de morrer seria, Cleo pensou.
- Já ouvi falar desse lugar - Enzo disse, observando a entrada. - Nerissa já trabalhou aqui atendendo mesas.
Ela levantou uma sobrancelha.
- É mesmo?
Ele assentiu.
- Ela disse que foi uma experiência interessante.
- Eu não fazia ideia de que ela tinha morado em Paelsia.
- Nerissa morou em todos os lugares, ao que parece. Diferente de mim, que até agora nunca tinha me aventurado para fora de Limeros. Ela deve me achar tedioso.
- Posso garantir que ela não acha nada disso.
Ouvir Enzo falar de sua amiga fazia o coração de Cleo doer. Ela não tinha dúvidas de que Nerissa era capaz de se cuidar, melhor do que qualquer outra garota - e possivelmente garoto - que conhecia, mas...
Cleo não conseguia deixar de se preocupar com a segurança dela. Odiava a ideia de que Nerissa pudesse correr perigo enquanto era forçada a trabalhar perto de Amara.
Cleo respirou fundo ao passar pelas portas com Enzo. Dentro da taverna havia pelo menos duzentos clientes fedorentos e sujos.
Ela observou os rostos, procurando Magnus na multidão.
Aquela taverna era diferente de todas que já havia visto em suas duas visitas anteriores a Paelsia. Seu conhecimento da região se limitava a dois mercados pobres, vilarejos decrépitos e uma vasta extensão
de terras desertas.
E os galpões trancados de rebeldes raivosos e vingativos, ela lembrou a si mesma.
O lugar, apesar do interior rústico e decadente, parecia pertencer a Pico do Falcão, maior cidade de Auranos. Iluminando o espaço enorme havia dezenas e dezenas de velas e lampiões. No teto alto, várias
rodas de madeira acomodavam mais velas. O chão era de terra batida; as mesas e cadeiras eram feitas de madeira mal esculpida.
À esquerda de Cleo havia um pequeno palco, sobre o qual uma jovem de cabelo preto e com faixas douradas pintadas sobre a pele bronzeada rebolava de uma forma bastante provocativa. Em volta de seu pescoço
carregava uma jiboia enorme, do tipo que Cleo só tinha visto em livros ilustrados.
- Enzo, por favor, apenas me ajude a procurar Magnus. Comece pelas áreas com mais vinho.
- Sim, vossa alteza.
Cleo se cobriu melhor com o capuz do manto para esconder o cabelo e tentou ignorar os olhares atravessados da maioria dos brutamontes que passavam por ela. Quando sentiu alguém apertar seu traseiro, virou
para dar um soco no ofensor, mas acertou apenas o ar.
Furiosa, ela tentou ver quem a havia tocado no meio da multidão, mas ficou paralisada quando ouviu alguém gritar um nome que ela conhecia.
- Jonas! - Era a mulher-cobra, interrompendo a apresentação para correr na direção de um jovem que estava na plateia. - Jonas, é você mesmo?
Cleo, de olhos arregalados, se virou na direção do palco.
Jonas tinha voltado de Kraeshia. E, de todos os lugares de Mítica onde poderia estar, estava ali!
Como era possível?
Ela se virou para Enzo, mas outro rosto chamou sua atenção. Um jovem caminhava pela multidão, movendo-se na direção oposta ao mar de rostos virados para o palco.
Cabelo cor de bronze, pele morena, alto, músculos definidos...
Ela só conseguiu observar, certa de que seus olhos a enganavam.
- Theon - ela sussurrou o nome antes preso na garganta.
Ela então se lembrou de um tempo em que tudo parecia claro - ela o amava, e nada mais importava. Nem o posto dele, nem a reprovação de seu pai, nem o modo austero como Theon tinha olhado para ela antes
de beijá-la, marcado pelo medo de pensar que poderia perdê-la para sempre.
E depois o som do casco dos cavalos quando Magnus e seus soldados chegaram.
O orgulho em seu coração quando Theon enfrentou os homens de Magnus e venceu.
E o horror quando viu a vida se esvair dos olhos dele para sempre quando Magnus o acertou pelas costas.
"Se seu guarda tivesse se afastado quando ordenei, isso não teria acontecido", o filho do Rei Sanguinário tinha dito.
"Ele não é só um guarda", ela havia sussurrado em resposta. "Não para mim."
Às vezes, parecia que tudo tinha acontecido mil anos antes. Outras, era como se tivesse sido no dia anterior.
Mas, lá estava ele.
- Princesa? - Enzo perguntou, franzindo a testa para a expressão de choque absoluto dela.
Cleo não respondeu. Suas pernas estavam dormentes quando começou a se mover sem pensar, abrindo caminho na multidão na direção dele.
Lágrimas quentes corriam por seu rosto, e ela as secava com violência.
A multidão diminuía quanto mais ela se afastava do palco, o que lhe permitiu manter o olhar no guarda assassinado. Em sua mão, ela viu o brilho de uma lâmina afiada.
E então ela viu Magnus.
O fantasma do jovem que havia amado - e perdido - aproximou-se de Magnus, que estava no bar, olhando para Theon com a mesma descrença de Cleo. Então, com uma rapidez que ela mal conseguiu acompanhar, Theon
segurou Magnus com força e pressionou a lâmina contra sua garganta.
Ela gritou para dentro, seu corpo transformou-se em gelo em um instante. Ela olhava para Magnus, com sua expressão resoluta, os dentes cerrados e os olhos escuros desprovidos de emoção.
- Cleo? - Alguém estava bloqueando seu caminho; um garoto com sardas e cabelo ruivo. - Ah, Cleo! Você está aqui! Você está viva!
- Nic? - Ela o encarou por um segundo antes de agarrar e fincar os dedos em seus ombros. Atrás dele, viu o sangue escorrendo pela garganta de Magnus, onde o fantasma do passado enfiara sua adaga. - O que
está havendo? Por que isso está acontecendo?
De repente, uma terceira pessoa aproximou-se do confronto silencioso entre Magnus e Theon, que até então tinha passado despercebido pelo resto dos clientes, cujos olhos estavam fixos no palco. Era um jovem
de cabelo escuro, ombros largos e muitos músculos, com um tapa-olho preto.
Ele segurava um pedaço de pau e, com ele, atingiu o fantasma de Theon com força atrás da cabeça. A adaga caiu no chão, e o corpo da vítima desabou, inconsciente, ao lado dela.
- Magnus! - Cleo gritou.
Finalmente, Magnus tirou o olhar do jovem caído e virou para Cleo.
Ele semicerrou os olhos.
- Você não devia estar aqui.
Ela ficou chocada. Era isso que Magnus tinha a dizer em um momento como aquele?
O brutamontes apontou para o corpo.
- Ele não vai ficar feliz comigo quando acordar.
Cleo correu para o lado de Magnus, certificando-se rapidamente de que o ferimento no pescoço era superficial. Ela virou para o jovem de tapa-olho.
- Quem é você? - ela questionou.
Ele se curvou.
- Felix Gaebras, minha encantadora jovem. A seu dispor. E quem é você?
- Esta - Magnus disse, tocando o pescoço com cuidado - é a princesa Cleiona.
Felix arregalou os olhos.
- Ah, então esta é a princesa dourada. Tudo faz sentido agora.
- E quem é esse? - Ela apontou para o chão com o dedo trêmulo.
- Aquele - Felix respondeu - é Taran Ranus, irmão gêmeo de Theon.
Cleo sentiu seu corpo gelar.
- Irmão gêmeo?
Magnus estava tenso.
- Foi muito gentil da parte de Nic nos apresentar hoje à noite, não acha?
Ao lado dela, Nic olhou para o jovem inconsciente, depois para Cleo, que parecia chocada.
- Acho que todos nós precisamos conversar - ele disse.
- Com certeza!
- Concordo - Magnus disse com rigor. - Conheço um lugar muito mais discreto do que esse. Encontrem Jonas e venham comigo, todos vocês.
Felix se abaixou, pegou o companheiro inconsciente e o jogou sobre o ombro.
- Onde Jonas e os outros estão? A dançarina o amarrou com a cobra e o levou embora? Vou procurá-lo.
Cleo não esperou - ela precisava de ar fresco. Precisava respirar normalmente e deixar o coração bater em um ritmo natural.
Irmão gêmeo, ela pensou, estupefata. O irmão gêmeo de Theon.
E Theon nunca, em nenhum momento, tinha mencionado que tinha um irmão gêmeo.
Nic estava ao lado dela, cambaleando de leve a cada passo que dava enquanto Enzo a escoltava para fora da taverna. Ela olhou para trás para garantir que Magnus estava perto.
- Você está bêbado - disse Cleo, virando-se para Nic e percebendo que estava muito zangada com ele e com todos os presentes.
- Muito. E também muito feliz por saber que está aqui. - Ele deu um grande beijo desajeitado no rosto dela, fazendo-a lembrar do cachorrinho babão que seu pai trouxera para ela e para Emilia depois de
um longo período de viagens. Quando seus batimentos cardíacos voltaram ao normal, ela se permitiu ceder à avassaladora sensação de alívio por Nic ter voltado de Kraeshia são e salvo - e por estar ao lado
dela novamente.
Felix saiu da taverna carregando Taran Ranus.
Atrás dele veio Jonas, que observava a área até seus olhos recaírem sobre Cleo.
Ela o observava também quando um sorriso se abriu no belo rosto dele.
- Eu sabia que você estava viva. - Jonas apertou o passo para chegar até ela. Segurou-a pela cintura e a tirou do chão, girando-a no ar. - É tão bom ver você!
Em qualquer outro dia, ela estaria sorrindo tanto quanto o rebelde.
- Explique o que está acontecendo.
- Sim - Magnus disse, os olhos escuros fixos em Jonas. - Uma explicação para sua chegada nesta cidade, coincidindo com a nossa chegada, seria apreciável.
- Fico chocado em dizer, mas é quase bom ver você também, vossa alteza. - Jonas deu um meio sorriso para o príncipe.
Não foi correspondido.
- Nosso amigo aqui está ficando um pouco pesado - Felix comentou.
Magnus lançou um olhar azedo para o corpo que Felix carregava.
- Venham comigo.
Outra garota se juntou ao grupo, e Cleo a reconheceu de imediato - estava acompanhando Jonas e Lysandra da última vez em que estiveram no palácio limeriano.
Cleo se lembrava do nome dela: Olivia. Mas um cumprimento adequado poderia esperar.
Ela deu o braço para Nic enquanto o grupo acompanhava Magnus até a hospedaria.
- Por que está tão bêbado hoje?
- Ah... são muitas razões. Entre elas, recentemente passei a acreditar que estivesse morta. Por isso ia me afundar em cerveja para sufocar meu sofrimento.
- Estou bem viva.
- E fico muito feliz em saber.
Cleo sorriu para ele.
- Existem outros motivos para sua sede de álcool?
- Nenhum que esteja com a gente hoje, mas estou hesitante em mencioná-los. Você já teve choques demais por um dia. Tenho certeza de que ele vai acabar aparecendo. Ele faz dessas.
- Você não está falando coisa com coisa.
- Não, com certeza não estou.
Seu pequeno sorriso desapareceu quando ela olhou para Felix e seu fardo.
- Theon... - Ainda doía dizer o nome dele, mesmo depois de tanto tempo. - Alguma vez ele falou alguma coisa sobre ter um irmão gêmeo?
Nic negou.
- Nada. Quando vi Taran nas docas de Kraeshia, quase caí duro de choque. Taran não fala sobre isso, mas imagino que eles não tivessem contato. Ainda assim, não lidou bem com a notícia da morte do irmão.
- É, percebi. - Ela soltou um suspiro trêmulo. - Como ele ficou sabendo que foi Magnus que matou Theon?
Nic deu de ombros.
- Eu contei a ele, claro.
Ela sentiu uma pontada no estômago no exato momento em que a raiva começou a subir.
- Claro.
- Eu devia ter ficado a seu lado. - Ele pegou a mão dela e ficou sério, apesar da bebedeira. - Sinto muito por ter deixado você sozinha com ele todo esse tempo.
Nic não sabia sobre os sentimentos dela por Magnus. É claro que não sabia - Cleo tinha feito questão de negar os sentimentos que cresciam em seu peito por um ano.
- Não tem problema. Eu... dei um jeito.
- Onde devo deixá-lo? - Felix indicou o fardo que carregava quando chegaram à hospedaria.
- Tenho certeza de que vamos encontrar um buraco bem fundo - Magnus respondeu.
Cleo olhou feio para ele, depois virou para Felix.
- Tem alguns quartos vazios no segundo andar - ela disse.
Felix desapareceu e retornou rapidamente sem Taran.
Eles sentaram na sala de convivência e, quando Cleo olhou para o grupo, não sabia dizer se estava feliz ou horrorizada pelo modo como a noite havia se desenrolado.
Nic sentou ao lado dela, de frente para Jonas e Olivia. Felix e Magnus sentaram próximos à lareira, do outro lado da sala, perto da estante, enquanto Enzo ficou em pé ao lado de Cleo.
- Quando vocês chegaram? - Magnus perguntou.
- Hoje - Jonas respondeu. - Ainda estamos no escuro sobre o que está acontecendo aqui. A única informação que temos vem de um único soldado kraeshiano que se dispôs a falar.
- E?
- Ele sabia muito pouco. Ou, pelo menos, pouco que pudesse nos ajudar. No entanto, parece que você está fugindo, vossa alteza. E seu pai não está nada feliz com o modo como cuidou das coisas enquanto ele
esteve fora.
- É o mínimo que se poderia dizer.
Cleo observava Magnus levemente surpresa. Apesar do tanto que devia ter bebido, parecia sóbrio como um sacerdote limeriano.
- O soldado - disse Jonas, apontando para Cleo com tristeza. - Ele nos disse que você tinha morrido. Que isso aconteceu depois que fugiu de Amara. Que morreu congelada.
- Isso poderia muito bem ter acontecido se eu não tivesse encontrado abrigo no momento certo. - Ela desviou os olhos, tentando não fazer contato visual com Magnus, apesar de ainda sentir o olhar dele ardendo
em seu rosto.
- Você sempre foi uma sobrevivente - Jonas disse. - Nic se desesperou, mas eu tinha esperança. E aqui está você.
Nic deu de ombros.
- Eu me desespero. Sou desesperado.
- Temos muita coisa para contar a vocês - Jonas afirmou. - E com certeza vocês têm muita coisa para nos contar.
- Muito menos do que você pode imaginar - Magnus disse. - Amara acha que está governando o reino agora. Mas está errada. E será derrotada.
- E como você acha que vai derrotá-la? - Jonas perguntou.
- Acho que podemos começar com o cristal da terra que você deu à princesa - Magnus disse, e Jonas ficou tenso. - Você ainda tem aquele pedaço brilhante de obsidiana escondido em algum lugar, princesa?
Ah, sim, ela pensou enquanto se contraía. Esse era o Magnus que um dia ela desprezara - capaz de anunciar para todos, aparentemente por despeito, que ela estava em poder de um cristal da Tétrade. Ela precisaria
se lembrar de agradecer pela lembrança.
Nic soltou um rosnado de repulsa.
- Cleo, não enlouqueceu ficando ao lado dele por tanto tempo? O fato de ter mantido essa aliança artificial... deve haver algum motivo por trás disso que não me contou.
- Por favor, Nic - Magnus disse. - Somos todos amigos aqui. Sinta-se à vontade para falar o que quiser.
- Acabei de fazer isso.
Magnus revirou os olhos.
- Não preocupe essa sua cabeça de cenoura, Nicolo. A princesa continua a me tolerar, ou quase, concentrando-se apenas em recuperar seu trono assim que Amara for derrotada e mandada para longe. Recentemente,
sugeri que sua princesa dourada retornasse a Auranos, mas ela recusou. Nem pense em dizer que foi ideia minha.
Cleo virou para ele e enxergou uma expressão de desafio em seus olhos. Então percebeu o que Magnus estava fazendo.
Nic o odiava. Jonas tinha uma aliança fraca com ele. E o irmão gêmeo de Theon tinha acabado de tentar matá-lo.
Revelar que os dois eram mais do que aliados relutantes poderia causar um estresse desnecessário, principalmente agora que estavam todos juntos.
- Acredite em mim, Nic - ela disse finalmente. - E estou ansiosa pelo dia em que retornarei ao meu trono. Mas esse dia não é hoje.
- Bem, agora que isso está resolvido - Magnus disse -, vamos discutir como proceder. Pode ser?
Felix levantou a mão.
- Eu me voluntario com entusiasmo para matar a imperatriz.
Magnus o encarou com interesse.
- Como pretende fazer isso?
- Sei que alguns de vocês vão sugerir que eu use uma flecha apontada de longe - Felix disse com avidez. - Mas realmente preferiria uma abordagem mais pessoal. Com minhas próprias mãos, se possível. Só
quero ver o olhar dela naquele rostinho lindo.
Magnus piscou.
- Acabei de lembrar que foi você que me enviou um pedaço de sua pele para provar sua lealdade.
- Fui eu mesmo, vossa majestade.
Cleo analisava aquele jovem com atenção, chocada com as palavras. Será que ele era louco?
No entanto, o sujeito tinha salvado a vida de Magnus na taverna, e ela devia muito a ele por isso, então imaginou que teria que passar um pouco mais de tempo perto dele, observando-o, para ver como ele
realmente era.
Houve um tempo em que tinha desejado que Magnus morresse pelo que fizera com Theon, em que tinha desejado matá-lo com as próprias mãos.
Mas no momento em que a vida de Magnus correra perigo, não conseguira se concentrar em nada além do príncipe. Qualquer necessidade de vingança tinha desaparecido meses atrás, como se ela tivesse trocado
de pele.
O sentimento era de perdão. Ela ainda odiava o garoto que Magnus tinha sido aquele dia.
Mas tinha passado a entendê-lo nos meses que se seguiram, talvez ainda melhor do que entendia a si mesma.
- Há uma ameaça muito maior do que Amara em Mítica nesse momento, sinto informar - Jonas revelou, interrompendo o devaneio de Cleo. Ele estava limpando as marcas de beijo da dançarina do rosto com um lenço
que Olivia havia lhe dado, e Cleo não conseguiu deixar de achar engraçado o contraste entre os movimentos ridículos e o tom solene daquela declaração.
- Me deixe adivinhar - Magnus disse. - Você está falando da minha irmã? Sei que deve estar de luto por sua amiga, Jonas, mas não faz sentido gastar suas energias vingativas com Lucia nem com seu companheiro,
Kyan.
Jonas encarou os olhos de Magnus.
- Vocês não sabem, não é?
- Não sabemos o quê?
- Vocês procuraram pela Tétrade. Pessoas morreram por esses cristais. Você já revelou diante de todos que Cleo está em poder de um deles, e sabemos que Amara está com o da água, e seu pai, com o do ar.
- Sim, sei disso tudo, rebelde. E já sabemos que Kyan está com o cristal do fogo.
- Errado - Jonas ficou tenso. - Kyan é a magia do fogo.
Cleo ficou encarando-o, certa de que tinha escutado errado.
- O que quer dizer com isso?
- A magia que vocês estão procurando, que todos estamos procurando, pode pensar. Pode falar. E pode matar sem remorso. E mais três iguais a Kyan estão aguardando para escapar de suas prisões. Os cristais
não são pedras mágicas, princesa, mas deuses elementares.
A sala toda ficou em silêncio, e Cleo observou freneticamente o rosto dos outros, esperando encontrar alguém revirando os olhos. Esperando que aquilo não passasse de uma mentira engraçada para quebrar
a tensão.
Não podia ser verdade.
Mas até Nic assentia pesaroso.
E naquele exato momento, dentro de seu bolso, estava uma daquelas prisões.
Ela olhou para Magnus, cuja testa franzida era o único sinal de surpresa.
- Lucia deve tê-lo ajudado a escapar da esfera de âmbar - Magnus disse.
- Acho que isso é óbvio - Jonas respondeu curto e grosso, o que lhe rendeu um olhar sombrio do príncipe.
Cleo juntou as mãos para impedi-las de tremer.
- Temos certeza de que os objetivos de Kyan, sejam quais forem, são perversos? A Tétrade ainda pode nos ajudar a derrotar Amara.
- Eu o vi queimar Lys até fazê-la desaparecer - Jonas grunhiu. - Nem uma única cinza restou quando ele acabou. - O rebelde virou para Magnus. - Kyan é perverso. Assim como a vadia da sua irmã.
Magnus levantou com os punhos cerrados.
- Não me importo com o que aconteceu, você não vai falar assim de Lucia na minha presença. Não vou permitir.
- Não? E você acha que pode me impedir? - Agora Jonas também estava com os punhos cerrados, e os dois se aproximavam.
- Talvez ele não o impeça - disse uma nova voz, interrompendo a conversa e paralisando o rebelde e o príncipe. - Mas eu com certeza estou disposto a tentar.
Com aquela promessa, o Rei Sanguinário entrou na sala.
14
JONAS
PAELSIA
Rei Gaius Damora. O Rei Sanguinário. Assassino. Sádico, torturador, escravocrata, traidor. Inimigo. Alvo.
E, naquele momento, estava na mesma sala que Jonas.
Muitas surpresas tinham acontecido naquela noite. Primeiro um encontro com Laelia Basilius, de quem Jonas tinha sido - por pouco tempo e com relutância - noivo. Mas essas surpresas desapareceram de sua
mente assim que o rei entrou na sala.
Gaius observou o grupo e parou o olhar sobre Jonas.
- Jonas Agallon. Não vejo você há muito tempo. Acho que a última vez foi no casamento de meu filho.
Jonas percebeu que não conseguia fazer nada além de olhar para o homem que tinha matado e destruído tantos.
- Magnus... - Cleo disse do outro lado da sala.
- Ah, sim - Magnus disse, sem qualquer sinal de indignação pelas calúnias ditas contra a irmã. - Esqueci de dizer que estou viajando com meu pai?
- Esqueceu - Jonas respondeu, tenso.
- Sim - o rei concordou. - E é muito bom que meu filho traga seus novos amigos aqui sem avisar.
Jonas se esforçou para manter a compostura, para não mostrar como estava indignado.
- Não são tão novos quanto você pensa.
A pele do rei Gaius estava pálida, o rosto tinha hematomas como se tivesse sido espancado. Ele inclinou para a frente, como se agisse com normalidade, e se apoiou na parede ao lado da escada, mas algo
ficou evidente na posição. Uma fraqueza e uma fragilidade que o rebelde nunca tinha notado no homem.
- Volte para o quarto - Magnus disse.
- Não acato ordens suas. - O rei sorriu, sem achar graça. - Magnus, seus amigos sabem que estamos todos do mesmo lado agora?
Só de pensar em uma aliança com Gaius, Jonas perdeu totalmente a fala. Os outros - Nic e Olivia - também permaneceram em silêncio, tensos.
- É mesmo? - Foi o rosnado ríspido de Felix, como o alerta de uma fera enjaulada, que quebrou o silêncio. - Você decidiu isso antes ou depois de permitir que Amara me deixasse levar a culpa por matar a
família dela?
O rei levantou uma sobrancelha escura e observou Felix.
- Nunca permiti que Amara fizesse nada. Ela toma as próprias decisões. Quando soube o que tinha acontecido, já era tarde demais para intervir. Soube que você já estava morto. Caso contrário, teria feito
o possível para libertar você.
Felix manteve o olhar fixo no rei, e em seu único olho não se via nada além de frieza e malícia.
- Claro que teria. Por que eu duvidaria de sua palavra, vossa alteza?
Suspirando, o rei abatido e aparentemente debilitado se virou para Jonas.
- Você tem todos os motivos para me odiar. Mas precisa me ouvir agora e perceber que juntos somos fortes. Temos um inimigo comum: Amara Cortas.
- Sua esposa - Jonas afirmou.
- Por conveniência e circunstância apenas. Não tenho dúvidas de que ela já está conspirando para me matar, em especial agora que assumiu o controle de Mítica e sabe que seus soldados são muito mais numerosos
que os meus. Tenho me dedicado a consertar alguns de meus erros mais recentes, começando por tirar Amara deste reino.
- Me parece um bom começo - Jonas disse.
O rei caminhou devagar, fazendo careta ao sentir uma dor repentina com o movimento, e estendeu a mão.
- Peço que deixemos nossas diferenças de lado até esse objetivo ser alcançado. O que me diz?
Se não estivesse tão surpreso, Jonas teria gargalhado. O Rei Sanguinário tinha acabado de propor a ele - a mesma pessoa que o acusara de assassinar a Rainha Althea - uma aliança.
Jonas observou os outros ao redor, e em silêncio todos olhavam chocados para ele e o rei. Nic e Cleo estavam pálidos, e Felix entortava a boca de ódio. Olivia manteve o olhar desprovido de emoção e inescrutável,
como sempre. Enzo, o guarda de Cleo, estava parado empunhando a espada. Em contraste, Magnus tinha sentado e recostado na cadeira, os braços cruzados à frente do peito, a cabeça inclinada.
Finalmente, Jonas estendeu a mão direita para o rei e aceitou o acordo, encarando diretamente seus olhos.
- O que posso dizer, vossa alteza? - Com a mão esquerda, ele cravou uma adaga decorada no coração do monstro. - Vá para as terras sombrias, filho da puta mentiroso.
O rei gemeu sem força, e pelo som, a dor parecia extremamente forte. Jonas girou a faca ainda mais fundo, até Gaius tombar para trás.
Jonas ouviu Nic comemorar assim que Enzo o acertou e o derrubou no chão. Felix chegou em um instante, puxando Enzo para longe. Outro dos guardas do rei apareceu e puxou os braços de Jonas para trás. Cabelos
loiros apareceram na confusão - era Cleo tentando tirar o segundo guarda do rei de cima de Jonas. Magnus estava de pé com o olhar sério fixo no rei. Olivia estava dentro do campo de visão periférica de
Jonas, esperando. Ela só interviria se ele corresse perigo de morte.
A raiva que sentia, o ódio que tinha pelo rei, zuniam dentro de Jonas, renovados, e o rebelde tremia. Enquanto observava o rei moribundo, não sentiu nem um pouco de arrependimento.
Finalmente tinha tido uma oportunidade. E a aproveitado.
- Viu? - ele disse, olhando para Magnus. - Cumpro minhas promessas.
- Sim, estou vendo - Magnus disse, prestando atenção no pai, como se estivesse curioso, e não grato pela atitude. - Só é uma pena que você não tenha feito isso antes.
- O que quer dizer com isso? - Jonas olhou para o príncipe, sem entender por que ele parecia decepcionado com a situação. Jonas tinha feito exatamente o que Magnus queria, tinha cumprido a tarefa que o
tinha levado a Kraeshia.
- Milo, deixe Jonas levantar. - Cleo segurava o guarda desconhecido pelo braço.
- Ele assassinou o rei - Milo disse.
- Não - Magnus disse. - A morte decidiu demorar no que diz respeito ao meu pai.
- Jonas, olhe para ele - Felix pediu.
Gaius não estava mais deitado no chão, cheio de sangue. Milagrosamente, estava ajoelhado, sangrando muito sobre a madeira desgastada, o cabo da adaga no peito.
A expressão agonizante do rei estava fixa em Jonas.
- Ele não está morto - Nic murmurou, balançando a cabeça, incrédulo. - Por que não está morto?
Num movimento repentino e forçado, o rei Gaius segurou o cabo decorado da adaga. Ainda encarando Jonas com os olhos semicerrados, ele arrancou a lâmina, com um grito. A adaga caiu no chão, e ele levou
as mãos à ferida.
- Isso é magia - Jonas conseguiu dizer em meio ao choque.
- Muito observador de sua parte. Impressionante - Magnus disse com seriedade.
- Explique o que está acontecendo!
Magnus meneou a cabeça para Milo.
- Solte o rebelde. Não posso conversar com alguém preso como um besouro pregado a uma placa de cortiça.
Milo parou de segurar o braço de Jonas, que imediatamente ficou de pé e lançou um olhar acusatório para Magnus, que encarou Cleo de um jeito pouco sutil e sério. Cleo rangeu os dentes, e Magnus revirou
os olhos.
- Muito bem - o príncipe concordou. - Vou tentar ser breve em minha explicação. O que está acontecendo é o resultado de uma poção que o rei tomou muitos anos atrás, uma poção que permitiu que, não importa
o golpe final e fatal que o destino desferir, ainda tem algum tempo para... resistir depois de ser morto.
- Não sei bem se é assim que funciona - Cleo disse pacientemente.
Magnus suspirou e fez um gesto para o pai.
- Mais ou menos isso?
- Acredito que sim. Minha nossa, Jonas, essa é a adaga de Aron? - Cleo perguntou, chocada. - Você realmente guardou essa coisa horrível por todo esse tempo?
- Responda à minha pergunta - ele disse, mais incisivo do que pretendia ao se dirigir à princesa. Finalmente Jonas tinha feito o que queria fazer havia muito tempo, mas mais uma vez o destino não permitia
seu sucesso. Nem mesmo depois de um golpe fatal.
- Você não matou o rei - Cleo respondeu tensa - porque o rei já encontrou a morte dias atrás.
Enquanto Jonas tentava desesperadamente processar aquela afirmação incrível, uma mulher desceu a escada. Ela era mais velha, com rugas ao redor dos olhos, e usava um manto cinza-escuro que combinava com
seu cabelo. Entrou na sala de convivência, observando todos os presentes com firmeza, até finalmente fixar o olhar em Gaius.
A mulher o observou por um momento muito breve e, em seguida, lançou um olhar intenso na direção de Jonas.
- Você fez isso com meu filho?
Um arrepio subiu por seus braços e seus ombros, e desceu pela coluna ao perceber a raiva controlada nas palavras dela.
Filho?
- Tudo bem - o rei disse assustado, segurando a manga da blusa da mulher que se apressou para ficar ao lado dele.
- Não está nada bem. Não mesmo. - Ela voltou a encarar Jonas, e com o olhar dela, veio a sensação de que ele estava sendo congelado. - Você ousaria tentar matar seu rei?
- Ele não é meu rei - Jonas respondeu irritado, recusando-se a demonstrar fraqueza ou dúvida. - Ele matou meus amigos em sua guerra doentia, executou aqueles que se recusaram a se submeter, e escravizou
meu povo para construir sua preciosa Estrada Imperial. Nenhuma pessoa nesta sala diria que ele não merece morrer por seus crimes.
Ela cerrou o punho.
- Eu diria.
- Não, mãe - Gaius disse depressa. - Deixe-o em paz. Precisamos dele. Acredito que precisaremos de todos eles para reaver o que Amara pegou.
Devagar, o rei levantou, e Jonas só conseguiu dar um passo incerto para se afastar. O único sinal de que uma adaga tinha atravessado seu coração alguns momentos antes era a camisa rasgada e o sangue no
chão.
- Só a magia mais sombria poderia tornar algo assim possível - uma nova voz disse.
Jonas virou de repente e viu que Ashur Cortas estava atrás deles na entrada da hospedaria.
- Ashur! - Cleo se surpreendeu. - Você está vivo! Mas... como?
Ashur arqueou as sobrancelhas escuras.
- Mais magia negra, receio.
Ela virou para Nic, cuja expressão era neutra.
- Você sabia disso?
Ele assentiu.
- Eu sei, é um choque.
- Um choque? Ele estava morto, Nic! Por que não me contou?
- Eu ia contar. Achei melhor esperar você lidar com a questão do Taran primeiro.
- Ah, obrigada - ela disse, a voz tensa. - Você é muito solícito mesmo.
- Não sei por quê, mas acho que você não está falando sério.
Jonas se virou para Magnus e viu que ele estava sério.
- Estou ficando muito cansado de magia - o príncipe murmurou. - E de absolutamente tudo sobre o que não tenho controle.
- Também é ótimo revê-lo, príncipe Magnus - Ashur disse com um meneio de cabeça.
- Muita gentileza sua nos encontrar, vossa graça - Nic se dirigiu a Ashur, a voz desprovida de qualquer respeito. - Pensei que tivesse criado guelras e cauda e começado a nadar de volta a Kraeshia.
- Hoje não, infelizmente - Ashur respondeu com rispidez.
- Talvez amanhã.
- Talvez.
- Contamos a todos sobre sua ressurreição de fênix agora ou mais tarde? - Nic perguntou.
A expressão de Ashur ficou tensa ao notar o tom ácido de Nic.
- Parece, Nicolo, que há assuntos mais urgente a tratar. Estou certo, não estou, rei Gaius?
O grupo voltou a atenção ao rei, que estava encolhido ao lado da mãe.
- Está, sim, príncipe Ashur.
- Uma aliança contra minha irmã.
- É um problema para você?
- Não. Contanto que não a matem, não vejo nenhum problema.
- Espere - Felix disse de onde estava, ao lado da lareira. - Você sabe que eu pretendia matá-la! Vai mesmo tirar isso de mim?
Ashur lançou um olhar severo para Felix.
- Tudo bem. É um assunto para outro dia - Felix respondeu.
- Príncipe Ashur, você é o herdeiro legítimo de seu pai - o rei explicou. - Tire o título de Amara e tudo isso pode acabar.
- E agora você é o marido dela, pelo que soube. Por que não está a seu lado, orientando suas decisões?
- Não é mais tão simples assim.
- Nada importante é simples, certo?
- O Rei Sanguinário quer que trabalhemos em equipe - Jonas disse, balançando a cabeça. - É a coisa mais ridícula que já ouvi. Não é o que quero.
Gaius bufou, frustrado.
- Sei muito bem o que você quer, rebelde. Você quer que eu morra. Bem, devo dizer que vou morrer em breve.
- Gaius... - a mãe sibilou. - Não vou permitir que fale assim. Não vou permitir!
Ele a silenciou com um aceno.
- Minha primeira prioridade é retomar o controle de meu reino. Mítica não pertence, nem pertencerá, ao Império Kraeshiano.
- Não fosse pela magia que dizem que está adormecida aqui - Ashur disse -, posso garantir que nem Amara nem meu pai dariam tanta importância a essa ilhazinha.
- Acredito que você esteja ciente de que Amara envenenou seu pai e seus irmãos - o rei afirmou. - Ela não sente remorso quando vai em busca do que quer.
A risada sombria de Nic interrompeu a tensão na sala.
- Que engraçado... "Não sente remorso", ele disse, como se considerasse isso um defeito. O mesmo homem que quebrou o pescoço da minha irmã por estar no lugar errado na hora errada. - Ele parou de rir de
repente. - Sua aparência está péssima, vossa majestade. Espero muito que esteja sofrendo neste momento.
- Não fale com o rei desse jeito, Cassian - Milo, o guarda, se manifestou.
Nic lançou um olhar para ele do outro lado da sala.
- O que vai fazer se eu falar? Vai pedir para seu amigo ajudá-lo a me bater?
Milo sorriu e estralou os dedos.
- Posso fazer isso sozinho sem problema.
- Pensei que você estivesse apodrecendo na masmorra.
O sorriso do guarda ficou tenso.
- Preciso lhe agradecer por isso, não?
- Precisa. - Nic semicerrou os olhos. - O que vai fazer em relação a isso, Milo?
- Muitas coisas. Só preciso de tempo.
- Milo, não é? Ouça bem o que vou dizer. - A voz de Ashur estava baixa, como o rosnado de uma fera enjaulada. - Se tentar machucar Nicolo, juro que eu mesmo vou arrancar sua pele.
Jonas virou para Milo. Viu que a única reação dele à ameaça foi piscar, surpreso.
Cleo falou com o rei, depois de lançar um olhar preocupado a Nic e ao guarda.
- Você deu Mítica a Amara - ela disse, deixando claro seu tom de insatisfação. - Não pode apenas pegá-la de volta?
- Você não entende - o rei disse. - Nenhum de vocês entende. O imperador Cortas teria tomado Mítica à força se eu não tivesse agido dessa forma. Dezenas... não, centenas de milhares teriam morrido na guerra
se eu não tivesse feito minha proposta a ele.
- Ah, sim - Magnus disse. - Meu pai, o salvador de todos nós. Deveríamos construir estátuas em homenagem a ele. Uma pena já haver dezenas delas em Limeros. - Magnus arregalou os olhos. - É muita vaidade,
pensando bem. A deusa Valoria não aprovaria.
- Para o inferno com a deusa e com todos os Vigilantes! - o rei rebateu. - Não precisamos da ajuda deles para nos livrarmos de Amara.
- Não esqueça Kyan - Jonas acrescentou.
O rei virou para ele.
- Quem é Kyan?
Jonas não conseguiu conter o riso.
- Adoraria ficar aqui para elaborarmos uma estratégia juntos, vossa alteza, mas cansei dessa farsa. Não vou trabalhar com você hoje, nem amanhã, nem nunca.
- Diga, vossa alteza - Felix disse devagar -, ainda está com o cristal do ar?
Gaius lançou um olhar sério.
- O cristal do ar! - a mãe dele exclamou. - Você está com ele? E não me contou?
- Estou, sim - ele respondeu.
- Onde?
- Em um lugar seguro.
Jonas tentou encarar Cleo nos olhos, mas ela parecia ocupada com uma conversa silenciosa com o príncipe. Quando se entreolhavam, o sorriso de Magnus desapareceu.
- Se for verdade, e quando eu tiver força suficiente para encontrar minha neta - a mulher anunciou -, a vitória será nossa.
Mais uma vez, Jonas riu com frieza.
- Então é esse o segredo para seu grande plano? A princesa Lucia? Acredito que ficará decepcionada quando vir a serpente fria, má e sanguinária que ela se tornou. Mas ela é uma Damora, então talvez você
não se surpreenda nem se desaponte.
A senhora o observou.
- Jonas, não é?
- É o meu nome.
- Meu nome é Selia. - Ela se aproximou sem raiva no olhar ao pegar as mãos dele. - Fique conosco e ouça mais sobre nossos planos. Concordo com meu filho que, apesar de nossas diferenças, ainda podemos
trabalhar juntos. Tente ver isso de modo lógico. Juntos, somos mais fortes.
Ela estaria certa?
- Não sei...
- Fique - Cleo pediu. - Por favor, pense bem, pelo menos. Por mim.
Jonas encarou seus olhos sinceros e azuis.
- Talvez.
Magnus levantou.
- Está sugerindo que os rebeldes fiquem aqui? - ele perguntou em tom acusatório para a avó. - Nesta hospedaria? É a pior ideia que já ouvi.
- Discordo - disse o rei. - Minha mãe tem razão. Podemos chegar a um acordo. Temporário. Temos o mesmo inimigo agora.
Sem saber ao certo se estava prestes a concordar ou discordar dos Damora, Jonas abriu a boca para falar mas foi interrompido por um rosnado furioso vindo da sala de convivência.
Passos foram ouvidos descendo a escada, e Taran entrou com tudo no ambiente. Em um instante, voltou o olhar furioso para Magnus.
A adaga de Jonas - aquela que o rei tinha tirado do peito - estava no chão. Jonas a viu, mas Taran também, recuperando-a num piscar de olhos e percorrendo a distância entre ele e o príncipe.
Taran apontou a adaga para Magnus, mas o príncipe segurou o braço de Taran antes que ele pudesse encostar. Cleo soltou um grito estridente.
- Você está morto - Taran gritou.
Magnus se esforçou para não deixar a lâmina feri-lo, mas Taran o pegou de surpresa e a ira da vingança parecia duplicar sua força.
Então, Felix apareceu atrás de Taran, passando o braço por seu pescoço e puxando-o para trás.
- Não me faça acertar você de novo. Perdi meu pedaço de pau.
Jonas se aproximou e arrancou a adaga da mão de Taran.
- Vou matar você - Taran gritou para o príncipe enquanto Felix o arrastava para trás. - Você merece morrer pelo que fez!
Magnus não revidou. Só ficou observando o rapaz, com uma expressão séria.
- Acho que todos merecemos morrer por algo que fizemos - Jonas disse, aliviando um pouco da tensão que crescia entre o príncipe e o rebelde. - Ou por algo que deixamos de fazer.
O príncipe desfez a expressão séria e olhou incrédulo para Jonas.
- É minha imaginação ou você acabou de ajudar a salvar minha vida?
Jonas fez uma careta ao ouvir a pergunta.
- Parece que sim, não? - Ele olhou para Cleo, cuja expressão era de alívio. Com certeza, a princesa não queria ver mais sangue sendo derramado naquela noite, ele pensou. Nem mesmo o de Magnus. - Pode ser
que eu esteja prestes a cometer um erro horroroso do qual me arrependerei pelo resto da vida, mas decidi aceitar essa aliança. Mas uma aliança temporária, até Amara ser tirada daqui.
Ele esperou a resposta de Ashur. A expressão do príncipe kraeshiano se manteve séria, mas ele assentiu.
- Concordo. Amara precisa perceber o que fez. Ainda que ache que estava certa, tomou o caminho errado. Farei o que puder para ajudar.
- Ótimo. - Jonas apontou para Taran, que Felix ainda segurava. - Compreendo seu luto e sua ira, mas seu desejo por vingança não tem espaço aqui.
Taran lançou um olhar feio para Jonas, segurando o braço de Felix, que apertava sua garganta como uma barra de ferro.
- Você conhecia meus motivos para vir para cá antes de sairmos de Kraeshia.
- Conhecia, mas isso não quer dizer que concordava com eles. Agora tomei minha decisão. Você não vai tentar matar o príncipe Magnus de novo. Não enquanto mantivermos essa aliança.
- Você ouviu bem com essas orelhas gastas? - Felix perguntou a Taran, a voz áspera enquanto aplicava mais força no braço. - Ou preciso repetir mais devagar?
- Abandonei uma rebelião para vir até aqui vingar meu irmão.
- Uma rebelião fadada ao fracasso antes mesmo de começar - Ashur acrescentou.
- Você não sabe.
- Sei. Não me alegra saber, mas sei. Talvez um dia o império que meu pai construiu seja destruído, mas não será logo.
- Veremos.
- Sim, veremos.
Taran lançou mais um olhar raivoso para Jonas.
- Você se uniria a eles por vontade própria?
- Sim - Jonas confirmou. - E peço que considere fazer o mesmo. Podemos precisar de sua ajuda. - Ele fez uma pausa. - Mas não me leve a mal, Taran; se tentar acabar com a vida do príncipe Magnus de novo,
vou acabar com a sua.
15
AMARA
PAELSIA
O deus do fogo tinha sido muito específico sobre o lugar aonde queria que Amara fosse para obter poder infinito. Segundo ele, era um lugar tocado pela magia. Um lugar que até os próprios imortais reconheciam
como um centro de poder.
Ela contou a Carlos sobre a mudança de planos. Não ia se mudar para o palácio limeriano. Não, seu destino ficava mais ao sul de Paelsia, próximo ao antigo complexo do chefe Hugo Basilius.
Em vez de questionar as ordens, Carlos planejou tudo no mesmo instante. Com quinhentos soldados, Amara, Nerissa, Kurtis e o capitão dos guardas viajaram ao reino central de Mítica, que a nova imperatriz
ainda não conhecia.
Pela janela da carruagem, ela via com surpresa o gelo e a neve de Limeros derreterem e darem espaço à terra seca, às florestas mortas e à escassa vida selvagem.
- Foi sempre assim aqui? - ela perguntou, assustada.
- Nem sempre, vossa graça - Nerissa respondeu. - Ouvi dizer que houve uma época, muito tempo atrás, que toda Mítica, de norte a sul, era quente e temperada, sempre verde, com pequenas mudanças de uma estação
a outra.
- Por que alguém moraria em um lugar assim?
- Os paelsianos não podem escolher seu destino e são conhecidos por se conformarem isso, como se a aceitação tivesse se tornado uma religião em si. O povo é pobre, regido pelas regras que seu ex-chefe
e o chefe antes do anterior estabeleceram. Por exemplo, os paelsianos só podem vender vinho legalmente a Auranos, e o vinho é o único produto de exportação valioso deles. Grande parte do lucro é taxado,
e essas taxas foram determinadas pelo chefe.
Sim, o vinho paelsiano era famoso pelo sabor adocicado e por sua habilidade mágica de inebriar depressa e de modo prazeroso, sem mal-estar depois.
Era o vinho que Amara tinha levado para Kraeshia para envenenar sua família.
O que quer que fosse dito sobre a bebida, ela jurava que nunca a beberia por causa da lembrança.
- Por que não vão embora? - ela perguntou.
- Para onde? Poucos teriam dinheiro para ir ao exterior, menos ainda para construir uma casa em outro lugar que não seja aqui. E os paelsianos não podem entrar em Limeros nem em Auranos sem permissão do
rei.
- Tenho certeza de que muitos vêm e vão como querem. As fronteiras não são totalmente monitoradas.
- Não, mas os paelsianos costumam obedecer às leis. A maioria dos paelsianos, pelo menos. - Nerissa recostou na cadeira, as mãos sobre o colo. - Eles provavelmente não vão lhe causar nenhum problema, vossa
graça.
Ouvir aquilo era um alívio, no mínimo, depois de tantos problemas no passado.
Amara continuou observando a paisagem árida pela janela da carruagem durante os quatro dias de viagem desde a partida da quinta de lorde Gareth, esperando ver a terra e a morte se transformarem em verde
e vida, mas isso não aconteceu. Nerissa garantiu que mais a oeste, mais perto da costa, a paisagem melhoraria, e que a maioria dos paelsianos construía casas em vilarejos naquele pedaço da terra; poucos
construíam mais perto dos picos assustadores e sombrios das Montanhas Proibidas, a leste.
Aquele era o reino mais distante da fartura de Kraeshia que ela já tinha visto, e Amara estava torcendo para não precisar passar muito tempo ali.
Na última etapa da viagem, o comboio usou a Estrada Imperial, que se estendia por Mítica de modo curioso, começando no Templo de Cleiona, em Auranos, e terminando no Templo de Valoria, em Limeros. Passava
direto pelos portões de entrada do complexo de Basilius.
Os portões estavam abertos e um homem baixo de cabelo grisalho os esperava, cercado por uma dúzia de paelsianos enormes usando roupas de couro, com cabelo preto preso em tranças minúsculas.
Quando Carlos ajudou Amara a desembarcar da carruagem, o homem fez um leve sinal com a cabeça para ela.
- Vossa graça, sou Mauro, o antigo conselheiro do chefe Basilius. Seja bem-vinda a Paelsia.
Ela olhou para o homem, bem mais baixo do que ela.
- Então, você ficou responsável por este reino depois da morte do chefe?
Ele confirmou.
- Sim, vossa graça. E estou às suas ordens. Por favor, venha comigo.
Junto com o grupo principal de guardas pessoais da imperatriz - incluindo Carlos -, Amara e Nerissa acompanharam Mauro pelos portões de pedra. Um caminho de pedra se estendia pelo vilarejo murado, levando-os
por pequenas casas de sapê parecidas com as que Amara tinha visto enquanto atravessava várias cidades antes de chegar ao complexo.
- Naquelas casas ficavam as tropas do chefe. Infelizmente, quase todos foram mortos na batalha pelo palácio auraniano. - Mauro indicava os pontos de interesse conforme caminhavam pelo complexo, que no
passado fora o lar de mais de dois mil cidadãos paelsianos.
Havia comércios que antes forneciam pão, carne, legumes e frutas, trazidos do Porto do Comércio. Mauro mostrou um espaço onde ficavam as bancas dos vendedores locais, que podiam atravessar os portões todo
mês.
Outra área, uma clareira com bancos de madeira, tinha sido usada como arena para diversão - duelos, lutas e disputas de força que o chefe costumava gostar de assistir. Outra clareira surgiu com restos
de fogueiras, onde o chefe fazia banquetes.
- Banquetes... - Amara comentou surpresa. - Em um reino como este, banquetes são a última coisa que eu esperaria de um líder.
- O chefe precisava de prazeres para abastecer a mente e conseguir explorar os limites de sua força.
- Certo - ela disse. - Ele acreditava ser um feiticeiro, não?
Mauro olhou para ela constrangido.
- Sim, vossa graça.
Para Amara, o chefe Basilius parecia um homem egoísta e pobre de espírito. Ela estava contente em saber que Gaius o havia matado depois da batalha auraniana. Se ele não o tivesse matado, ela teria feito
isso.
Apesar do calor do dia com o sol já forte, Amara sentiu a temperatura ao seu redor aumentar ainda mais.
- Sei que não parece grande coisa, pequena imperatriz, mas garanto que aqui é exatamente onde precisamos estar.
Amara não respondeu, mas reconheceu a presença de Kyan com um meneio de cabeça.
- Estamos perto do centro do poder aqui - ele continuou. - Posso sentir.
- Aqui - Mauro indicou um grande buraco no chão, com cerca de dez passos de circunferência e vinte passos de profundidade para dentro da terra seca - é onde o chefe costumava deixar os prisioneiros.
Amara olhou para dentro do buraco.
- Como eles desciam?
- Alguns eram baixados com uma corda ou escada. Outros simplesmente eram jogados. - Mauro fez uma careta. - Peço desculpas se a imagem não lhe agrada, vossa graça.
Ela o encarou com uma expressão fulminante.
- Garanto, Mauro, que provavelmente não há nada que você possa me contar sobre como os prisioneiros eram tratados que eu consideraria surpreendente ou intolerável.
- Claro, vossa graça. Peço desculpas.
Amara estava cansada dos homens e seus falsos pedidos de desculpa.
- Carlos, cuide para que meus soldados recebam aposentos adequados depois dessa longa viagem.
- Sim, imperatriz. - Carlos fez uma reverência.
- Vossa graça ficará aqui, imperatriz Amara. - Mauro indicou a construção de três andares, feita de terra e pedra, a maior e mais forte do vilarejo. - Espero que seja do seu agrado.
- Com certeza será.
- Organizei tudo para levá-la a uma feira mais tarde e mostrar o trabalho de seus novos súditos paelsianos. Há, por exemplo, alguns bordados lindos que podem ser de seu interesse. E alguns enfeites com
contas para seu belo cabelo. Uma comerciante virá da costa até aqui para trazer uma tinta de frutas silvestres que ela criou para pintar os lábios... - Mauro parou de falar ao ver a expressão contrariada
da imperatriz. - Algum problema, vossa graça?
- Você acha que estou interessada em bordados, enfeites e tintas para os lábios? - Ela esperou a resposta, mas ele só abriu a boca sem emitir nenhum som.
De trás dela, ouviu-se uma risada.
Amara virou imediatamente, os olhos fixos no guarda - seu guarda - que mantinha um sorriso no rosto.
- Está achando engraçado? - ela perguntou.
- Sim, vossa graça - o guarda respondeu.
- Por quê?
Ele olhou para os compatriotas ao redor, e nenhum deles fez contato visual.
- Bem, porque é do que as mulheres gostam: maneiras de ficarem mais bonitas para os homens.
O guarda disse isso sem hesitar, como se fosse óbvio e nada ofensivo.
- Minha nossa - Kyan disse no ouvido dela. - Que insolente, não?
Ela concordava.
- Me diga uma coisa... Você acha que eu deveria comprar tinta para os lábios para agradar meu marido quando ele finalmente voltar para mim? - ela perguntou.
- Acho que sim - ele respondeu.
- Esse é meu objetivo como imperatriz, claro. Agradar meu marido e qualquer outro homem que por acaso olhe para mim.
- Sim, vossa graça.
Era a última coisa que ele diria na vida. Amara fincou a adaga que trazia consigo no homem e viu os olhos dele se arregalarem de surpresa e dor.
- Se algum de vocês me desrespeitar - ela disse, lançando um olhar aos outros guardas que a encaravam, surpresos -, vai morrer.
O guarda que havia dito o que não devia caiu no chão. Ela sinalizou para Carlos retirar o corpo, e ele obedeceu sem hesitar.
- Muito bem, pequena imperatriz - Kyan sussurrou. - Você me prova mais seu valor a cada dia que passa.
Amara abriu um sorriso na direção de Mauro, cuja expressão era de medo.
- Estou ansiosa para ir à feira. Parece incrível.
Mais tarde, escoltadas por Mauro e pelos guardas reais, Amara e Nerissa exploraram a feira, composta por vinte bancas cuidadosamente escolhidas que, como o prometido, vendiam, em sua maioria, produtos
fúteis - principalmente itens de beleza e de moda.
Amara ignorou os lenços e vestidos bordados, a tinta para os lábios, os cremes para remover manchas e os bastões de carvão para delinear os olhos e se concentrou nos comerciantes - paelsianos, jovens e
velhos, com expressão cansada, mas esperançosa, quando ela se aproximava.
Sem medo, sem desespero, só esperança.
Que estranho encontrar isso em um reino dominado, ela pensou. Mas a ocupação kraeshiana de Mítica tinha sido, até aquele momento, quase totalmente pacífica, em espacial em Paelsia. Ainda assim, Carlos
havia contado sobre grupos rebeldes que conspiravam contra ela, tanto em Limeros quanto em Auranos.
Não era um problema para Amara. Os rebeldes eram uma praga inevitável, mas que em geral podia ser combatida com facilidade.
Ela observou quando Nerissa se aproximou de uma banca para ver um lenço de seda que o comerciante mostrava a ela.
- Fico feliz em ver que você está se habituando - Kyan sussurrou carinhosamente no ouvido dela. Os ombros de Amara ficaram tensos com a voz dele.
- Estou fazendo o melhor que posso - ela respondeu em voz baixa.
- Infelizmente tenho que deixá-la por um tempo enquanto procuro a magia de que precisamos para realizar o ritual.
Pensar nisso a assustou. Eles tinham acabado de chegar!
- Agora? Vai embora agora?
- Sim. Em breve, retomarei minha glória, e você será mais poderosa do que pensa. Mas precisamos da magia para finalizar isso.
- A magia de Lucia. E seu sangue.
- O sangue dela, sim. Mas não precisamos da feiticeira em si. Vou encontrar uma fonte alternativa de magia. Mas precisaremos de sacrifícios; sangue para selar a magia.
- Compreendo - ela sussurrou. - Quando você volta?
Amara esperou, mas não houve resposta.
Então, ela sentiu sua saia mexer e olhou para baixo. Uma menininha, que não devia ter mais do que quatro ou cinco anos, com cabelo bem preto e sardas no rosto bronzeado, aproximou-se com certa hesitação,
oferecendo uma flor.
Amara aceitou a flor.
- Obrigada.
- É você, não é? - a menina perguntou esbaforida.
- Quem você acha que sou?
- Aquela que veio salvar todos nós.
Amara sorriu e lançou um olhar para Nerissa, que estava ao seu lado usando um lenço colorido, e então sorriu para a criança.
- É o que você acha?
- Foi o que minha mamãe me disse, então deve ser verdade. Você vai matar a bruxa má que machuca nossos amigos.
Uma mulher se aproximou, claramente envergonhada, e pegou a mão da menininha.
- Perdoe-nos, imperatriz. Minha filha não teve a intenção de perturbá-la.
- Não me perturbou - Amara disse. - Sua filha é muito corajosa.
A mulher riu.
- Está mais para teimosa e tola.
Amara balançou a cabeça.
- Não, nunca é cedo demais para as meninas aprenderem a dizer o que pensam. É um hábito que as fará crescer mais corajosas e fortes. Diga, você acredita no que ela disse? Que vim salvar todos vocês?
A expressão da mulher se tornou mais séria, e seu cenho se franziu com preocupação e dúvida. Ela encarou os olhos de Amara.
- Meu povo sofreu por mais de um século. Estávamos sob o comando de um homem que tentou nos fazer acreditar que ele era feiticeiro, cobrando impostos tão altos a ponto que, mesmo com os altos lucros das
vinícolas, não conseguíamos nos sustentar. A terra que chamamos de lar está se desfazendo sob nossos pés enquanto estamos aqui conversando. Quando o rei Gaius venceu Basilius e o rei Corvin, muitos de
nós achamos que ele nos ajudaria. Mas isso não aconteceu. Nada mudou, só piorou.
- Sinto muito em ouvir isso.
A mulher balançou a cabeça.
- Mas então a senhora chegou. Aquela feiticeira má passou por aqui destruindo tudo, vilarejo por vilarejo, mas ela desapareceu quando a senhora chegou. Seus soldados têm sido rigorosos, mas justos. Eles
acabaram com quem discordava, mas essas pessoas não fazem falta: seus detratores são os mesmos homens que espalharam a discórdia em nosso reino depois que o exército de Basilius parou de oferecer a pouca
proteção que oferecia. Então, se acredito, como muitos aqui acreditam, que a senhora chegou para nos salvar? - Ela ergueu o queixo. - Sim, acredito.
Quando os guardas levaram Amara para longe da mulher e da filha, em direção à outra área da feira, aquelas palavras ficaram em sua mente.
- Posso fazer uma sugestão ousada, vossa graça? - Mauro perguntou, e ela olhou para o homenzinho que a seguia como um cão adestrado.
- Claro que pode - ela disse. - A menos que queira sugerir que eu compre tinta para os lábios.
Ele empalideceu.
- De modo algum.
- Então, vá em frente.
- O povo paelsiano está aberto a sua liderança, mas a notícia precisa ser espalhada. Sugiro abrir os portões do complexo para permitir que os novos cidadãos entrem para ouvi-la falar sobre seus planos
para o futuro.
Um discurso, ela pensou. Era algo que Gaius gostaria muito mais de fazer do que ela.
Mas Gaius não estava lá. E agora que tinha o deus do fogo para aconselhá-la sobre como acessar a magia da esfera de água-marinha, não havia mais motivos para deixar o rei viver por muito mais tempo.
- Quando? - ela perguntou a Mauro.
- Posso espalhar a notícia agora mesmo. Milhares virão dos vilarejos vizinhos para ouvi-la. Talvez em uma semana?
- Três dias - ela disse.
- Três dias parece perfeito - ele concordou. - Será maravilhoso. Muitos paelsianos, de braços e coração abertos, estão prontos a obedecer a todas as suas ordens.
Sim, Amara pensou. Um reino pronto para fazer o que ela mandasse sem questionar, que aceitaria uma mulher como líder sem discutir, seria incrivelmente útil.
16
MAGNUS
PAELSIA
Magnus pensou nas doze pessoas que estavam na hospedaria Falcão e Lança, notando que quase metade queria vê-lo morto.
- E você é uma delas, com certeza - ele murmurou quando Nic atravessou a sala, arregalando os olhos ao passar pelo príncipe. Magnus estava sozinho sentado a uma mesa com um caderno de desenho que tinha
encontrado em uma gaveta em seu quarto.
- Cassian, veja - ele disse. - Desenhei você.
Magnus ergueu o caderno. Com os dedos manchados de carvão, ele mostrou uma página na qual tinha desenhado um garoto magro pendurado em uma forca, a língua para fora da boca, X mórbidos no lugar dos olhos.
Nic, que supostamente era muito simpático com todo mundo, lançou um olhar de puro ódio para Magnus.
- Você acha isso engraçado?
- O que foi? Não gostou? Bom, dizem que a arte é subjetiva.
- Você acha que gastar seu tempo rabiscando nesse caderno vai fazer todo mundo considerar você menos ameaçador? Pense bem. Essa pose de inocente e bacana não me engana.
Magnus revirou os olhos.
- Certo - ele disse, enfiando o caderno embaixo do braço. - Mas não posso dizer que você não me magoou. Pensei que tivéssemos nos tornado amigos em Limeros.
Nic semicerrou os olhos, sem achar graça.
- A única coisa que me ajuda a dormir à noite é saber que Cleo sabe muito bem quem você é.
- Espero muito que você esteja certo - Magnus respondeu sem dar muita atenção. Ele nunca tinha deixado as palavras de Nic atingi-lo antes, e não deixaria agora, mas a questão de Cleo era um espinho. -
Acho muito interessante ver que vocês decidiram ficar aqui na cova do leão.
- Talvez você esteja enganado a respeito de quem é o leão e quem é a presa.
Magnus deu risada.
- Conversar com você é sempre muito estimulante, Nic. De verdade. Mas tenho certeza de que tem outros lugares para onde ir, e eu detestaria fazer um cara tão brilhante como você perder tempo. Sem dúvida
já atrapalhei seu próximo compromisso que é... qual é mesmo? Ficar à sombra de Ashur, à espera da maravilhosa atenção dele, agora que conseguiu voltar dos mortos? - Por ter testemunhado a morte de Ashur,
Magnus ainda estava tentando processar a informação de que ele estava vivo. - Muito triste, de verdade, que ninguém veja o que de fato está acontecendo entre o príncipe ressuscitado e o ex-cavalariço.
Foi o suficiente para fazer Nic corar.
- E o que seria, Magnus? O que você acha que está acontecendo?
Magnus fez uma pausa, encarando o olhar incerto de Nic.
- O sabor da decepção amorosa é amargo, não é?
- Imagino que você entenda bem sobre o assunto, não? - Nic rebateu. - Nunca esqueça que Cleo odeia você. Você matou todo mundo que ela ama. Roubou o mundo dela. É uma verdade que nunca vai mudar.
Lançando um último olhar, Nic saiu da sala, deixando Magnus furioso, bufando, com vontade de socar alguma coisa. Ou alguém.
Ele está enganado, ele disse a si mesmo. O passado não determina o presente.
E era no presente que ele tinha que se concentrar. Precisavam encontrar Lucia o mais rápido possível.
Por que esperar mais um dia para minha avó encontrar a pedra mágica?, ele pensou. Eles estavam ali, acovardados como vítimas, quando deveriam estar fazendo o máximo possível para tirar aquela kraeshiana
de suas terras para sempre.
Magnus empurrou o caderno de desenho para o centro da mesa e levantou. Ele ia encontrar a avó e exigir que ela - com ou sem a magia totalmente restaurada - testasse um feitiço para encontrar sua irmã.
- Está sozinho nessa sala enorme?
Ele parou ao ouvir a voz de Cleo. Ela estava na base da escada, observando-o do outro lado da sala enorme.
- Parece que sim - ele diz. - Mais um motivo para você não entrar.
Ela entrou mesmo assim.
- Parece que não conversamos a sós há muito tempo.
- Faz dois dias, princesa.
- Princesa - ela repetiu, mordendo o lábio inferior. - Minha nossa, você está fingindo muito bem. Na verdade, não sei se é só fingimento mesmo.
- Não sei ao certo do que você está falando. - Ele olhou para Cleo como um homem faminto olhava para um banquete. - Esse vestido é novo?
Ela alisou a saia de seda, da cor de um pêssego maduro.
- Olivia e eu fomos a uma feira perto das docas hoje.
- Você e Olivia fizeram o quê? - Ele franziu a testa, assustado por não saber que a princesa tinha decidido se arriscar por aí. - Que péssima ideia. Você poderia ter sido reconhecida.
- Por mais que eu goste de ser repreendida, acho que preciso dizer que ninguém me reconheceu, já que usei meu manto. E não estávamos sozinhas. Enzo e Milo estavam conosco, para nos proteger. Ashur também.
Ele está explorando a cidade para saber o que os paelsianos pensam sobre a notícia da chegada da irmã dele.
- E o que dizem?
- Ashur disse que a maioria parece... disposta a mudar.
- É mesmo?
- Qualquer coisa depois do chefe Basilius seria um progresso. - Ela hesitou. - Bem, à exceção do seu pai, claro.
- Claro. - Magnus não se importava muito com os paelsianos nem com os auranianos, na verdade. Ele só se importava com o fato de Cleo ter saído da hospedaria sem que ele notasse. - Não importa com quem
você saiu, porque ainda assim foi uma péssima ideia.
- Assim como beber até cair toda noite na taverna Videira Púrpura - ela respondeu, meio tensa. - E, no entanto, é o que você faz.
- É diferente.
- Tem razão. O que você faz é muito mais idiota e tolo do que passar o dia explorando uma feira.
- Idiota e tolo - ele repetiu, franzindo a testa. - Duas palavras que nunca foram usadas para me descrever.
- Elas são certeiras - disse Cleo, o tom firme e a testa franzida. - Quando vi você naquela primeira noite com Taran...
O som daquele nome atravessou o espaço entre eles como a lâmina afiada de um machado cortando um tronco de árvore.
- Sei que a presença dele aqui deve ser difícil para você - Magnus comentou, sentindo a garganta apertar. - Aquele rosto... Todas aquelas lembranças horrorosas que ele sugere...
- A única lembrança horrorosa de Taran que tenho é a da lâmina dele pressionada contra sua garganta. - Cleo parou, observando a expressão de Magnus e franzindo mais a testa. - Você entende que, quando
olho para ele, só vejo Theon?
- E como não veria?
- Admito que foi inesperado encontrá-lo. Mas Theon se foi. Sei disso. Já aceitei isso. Taran não é Theon. Mas é uma ameaça.
- Compreendo.
- Compreende? - Cleo continuou a observá-lo concentrada, como se fosse um enigma que ela precisasse decifrar. - Mas você pensou mesmo que eu o veria e esqueceria tudo o que aconteceu desde aquele dia?
Que o ódio que eu sentia por você voltaria a me cegar? Que eu... o quê? Me apaixonaria por Taran Ranus no mesmo instante?
- Parece mesmo um tanto quanto absurdo.
Ela ficou pensativa.
- Bom, Taran é muito bonito. Tirando o fato de querer você morto, o que é, admito, um objetivo que também já tive. Ele seria um pretendente perfeito.
- Deve ser muito divertido me atormentar.
- Muito - ela provocou, abrindo um sorriso discreto, mas levemente triste. Cleo segurou as mãos dele, e a sensação de sua pele quente junto à dele foi como um bálsamo numa ferida dolorosa. - Nada mudou
entre nós, Magnus. Saiba disso.
As palavras dela confortaram sua alma atormentada.
- Fico muito feliz em saber disso. Quando pretende contar aos outros?
No mesmo instante, a expressão dela ficou tensa.
- Não é o momento. Há muita coisa em risco agora.
- Nic é a pessoa mais próxima de você, seu amigo mais querido, e ele me odeia.
- Ele ainda vê você como um inimigo. Mas, um dia, sei que vai mudar de ideia.
- E se não mudar? - Ele a encarou nos olhos. - O que vamos fazer?
- Como assim?
- Escolhas, princesa. A vida parece cheia delas.
- Você está pedindo para que eu escolha entre você e Nic?
- Se ele se recusar a aceitar... isso, o que quer que seja, princesa, então acho que você teria que escolher.
- E você? - ela finalmente perguntou depois de um longo momento de silêncio. - Quem você escolheria se alguém ou algo o forçasse? Eu? Ou Lucia? Sei muito bem que ela foi seu primeiro amor. Talvez você
ainda a ame como antes.
Magnus grunhiu.
- Garanto a você que não existe nenhum sentimento dessa natureza entre mim e Lucia. E no que diz respeito a ela, nunca existiu.
Seu coração tinha feito tanto progresso nos últimos meses que ele se perguntava se ainda era a mesma pessoa que tinha sofrido de amor por sua irmã adotiva. Apesar de ter assumido uma forma diferente, aquele
amor ainda estava ali, dentro dele. Não importava o que Lucia pudesse fazer ou dizer, Magnus a amava incondicionalmente e estava pronto para perdoá-la por qualquer erro.
Mas o desejo que ele já sentira por sua irmã... seu coração tinha se voltado total e permanentemente para outra pessoa - alguém muito mais frustrante e perigosa do que sua irmã adotiva.
- Afinal, Lucia escolheu fugir com o tutor. - Cleo relembrou.
Ele franziu os lábios.
- Sim, e agora o destino do mundo depende da localização dela. - Cleo olhou para ele duvidosa. - O que foi, princesa? - ele perguntou. - Está em dúvida?
- Eu... - Cleo começou a falar, e então parou e olhou para os próprios pés, como se estivesse refletindo sobre o assunto. - Magnus, só não tenho certeza de que ela seja a única solução com a qual você
parece contar.
- Ela tem ligações com o deus do fogo. Acredito que saiba como extrair a magia dos cristais da Tétrade sem permitir que o deus elementar escape.
- Parece que foi ela quem ajudou Kyan a escapar, se estão viajando juntos. Só pode ser.
- Talvez. Mas a magia dela é ampla.
- Ampla o suficiente para matar todos nós.
- Você está enganada - Magnus disse sem hesitar. - Ela não faria isso. Lucia vai nos ajudar, vai ajudar a todos. - Sempre que falava bem de Lucia, ele percebia que Cleo contraía os lábios e franzia a testa
como se estivesse comendo alguma coisa amarga.
Será que ela poderia estar com ciúme do que sinto por Lucia?, ele se perguntou, achando graça.
- Vejo que você fica feliz quando pensa em sua irmã adotiva - ela comentou tensa, em um tom desagradável. - Tenho certeza de que pensar nela é uma ótima válvula de escape para você enquanto estamos presos
aqui em Paelsia, cercados por rebeldes que adorariam a oportunidade de incendiar esta hospedaria com toda a realeza dentro.
- É esse o plano abominável de Agallon? - ele perguntou, contraindo os lábios e franzindo a testa. - O que mais ele contou na calada da noite desde que chegou?
- Muito pouco, na verdade.
Magnus deu um passo na direção dela. Cleo deu um passo para trás: a dança na qual se envolviam de vez em quando. Os dois continuaram até ele encurralá-la em um canto, e ela lançar um olhar desafiador.
- Talvez você preferisse dividir um quarto com o rebelde do que comigo - ele disse, enrolando uma mecha do cabelo dela no dedo. - Mas ele provavelmente preferiria uma casa na árvore feita de tábuas e barro.
Cleo riu.
- É nisso que está decidindo se concentrar agora?
- Sim. Porque se me concentrar em Agallon, posso parar de pensar em você e em como quero levá-la para a minha cama.
Ela só teve tempo de soltar um breve suspiro antes de Magnus beijá-la, segurando-a pela cintura e puxando-a para si. Cleo retribuiu sem limitações.
As mãos dele deslizaram pelo corpo da princesa, passando pela lombar, chegando à curva de seu quadril. Desesperado para se inclinar e beijá-la direito, ele pegou suas pernas por trás e a levantou, pressionando
suas costas contra a parede.
Sim, ela deveria fazê-lo parar naquele momento.
Mas não foi o que aconteceu. Na verdade, Cleo tinha começado a puxar os cordões da camisa dele, sem afastar seus lábios nem por um segundo.
- Quero você - ele sussurrou enquanto a beijava. - Quero tanto você que posso morrer de desejo.
- Sim... - O hálito dela era doce e quente. - Também quero você.
Quando Magnus a beijou, toda a racionalidade sobre a maldição desapareceu de sua mente. Nada mais existia, só a necessidade enlouquecedora e alucinante de tocá-la, de senti-la...
Pelo menos, até ouvir passos de alguém se aproximando por trás.
Foi nesse momento que Magnus percebeu que não estavam mais sozinhos.
Deixando a princesa de volta ao chão, devagar, Magnus se forçou a se afastar e, com os ombros tensos, enfrentar o intruso.
Apesar de sua altura intimidadora e dos músculos avantajados, Felix Gaebras parecia envergonhado.
- Hum... Desculpe interromper. Eu estava... só passando. - Mas ficou parado onde estava, e então, ergueu o queixo. - Perdoe-me por dizer, vossa alteza - ele disse, olhando para Magnus -, mas talvez seja
melhor o senhor ser mais discreto com a princesa de agora em diante.
- É mesmo? - Magnus perguntou.
Felix assentiu.
- Nic convenceu a todos do seu ódio por Magnus, princesa. E isso... não me pareceu uma atitude de ódio. Ele vai enlouquecer.
Cleo se afastou de Magnus, os dedos nos lábios e o rosto corado.
- Por favor, Felix - ela disse, quase desesperada. - Prometa que não vai contar nada a Nic sobre isso. Nunca.
Felix fez uma reverência.
- Não se preocupe, princesa. Não direi nada.
- Obrigada.
Magnus disfarçou a careta. Algo no modo como ela falou, no alívio que pareceu sentir por ter sido Felix quem os vira juntos e não alguém cuja opinião considerasse mais importante, o incomodou demais.
Se Ashur podia buscar informações sobre Amara, Magnus também podia. Naquela tarde, ele deixou a hospedaria, subiu a rua até a feira que Cleo havia mencionado e passou na porta da tentadora Videira Púrpura.
Na feira, ele mal olhou para as bancas de madeira com lonas coloridas protegendo os comerciantes do sol, cada um vendendo um produto paelsiano diferente - de vinho a joias, de frutas e legumes a lenços
e túnicas de todas as cores, e diversas outras mercadorias. No movimentado labirinto de bancas, sentia-se o cheiro adocicado das frutas e da carne defumada, e mais perto das docas, o cheiro de suor e vômito
pegou as narinas de Magnus de surpresa. Entre os diversos clientes da feira, incluindo a tripulação de navios e os cidadãos comuns da cidade, vários guardas kraeshianos chamaram sua atenção.
Ele observou um dos homens de Amara conversar com um vendedor de vinho paelsiano que lhe ofereceu um pouco da bebida. O copo de madeira não foi oferecido com mãos trêmulas nem medo nos olhos do vendedor,
mas com um sorriso.
Para Magnus, era irritante ver que muitos paelsianos aceitavam o destino de se tornar parte do Império Kraeshiano sem se preocupar com nada. Será que as coisas estavam tão ruins antes que pensar em Amara
como nova líder era uma dádiva?
Ele continuou a observar essa dinâmica entre paelsianos e kraeshianos até o sol ficar alto e insuportavelmente quente para continuar com o manto com capuz. Como já havia tido contato com paisagens, sons
e cheiros bons e ruins da feira de Basilia, decidiu voltar.
Magnus virou na direção da hospedaria e descobriu que havia alguém em seu caminho.
Taran Ranus.
O príncipe se forçou a não deixar claro que encontrar o gêmeo de Theon - alguém que quase tinha conseguido vingar o assassinato de seu irmão - o tinha assustado. Mas antes que Magnus decidisse o que dizer,
Taran tomou a liberdade de falar.
- Estou curioso - ele disse em voz baixa. - Quantas pessoas você matou?
- Essa pergunta é muito pessoal para um lugar tão público.
Taran continuou, sem se deixar abater.
- Sabemos que matou meu irmão. Quem mais?
Magnus tentou não se encolher, tentou não levar a mão ao cabo da espada. A espada de Taran também estava visível, pendurada no quadril.
- Não sei ao certo - admitiu.
- Aceito uma estimativa.
- Muito bem. Talvez... uma dúzia.
Taran assentiu, sem deixar sua expressão revelar o que passava em sua mente quando olhou para a feira movimentada ao redor deles.
- Quantas pessoas você acha que eu matei?
- Mais de uma dúzia, tenho certeza - Magnus respondeu. Ele contraiu os lábios. - Por quê? Está aqui para me provocar com suas habilidades com a espada? Para contar histórias de como fez homens maus chorarem
chamando pela mãe diante da morte? Que mataria mais mil se isso fizesse o sol brilhar e a felicidade imperar nesse mundo?
Taran observou Magnus, semicerrando os olhos. Para alguém que quase tinha posto a hospedaria a baixo em uma noite para tentar cortar o pescoço de Magnus, ele parecia bem calmo naquele dia.
- Você se arrepende de ter matado meu irmão? - ele finalmente perguntou, ignorando as perguntas de Magnus.
Magnus pensou em mentir, sem saber se deveria fingir arrependimento. Mas sua intuição lhe disse que não conseguiria enganar o gêmeo de Theon.
- Não - ele afirmou com o máximo de confiança que conseguiu. - Minha vida estava em risco. Tive que me proteger de alguém muito mais habilidoso com a espada do que eu era na época, por isso agi. Não posso
dizer que me arrependo de ter tomado as medidas necessárias para salvar minha vida, apesar de saber que hoje não faria as escolhas que fiz naquele momento.
- Qual escolha faria hoje?
- Combate direto. Minhas habilidades de luta melhoraram muito no último ano.
Taran assentiu, mas seu rosto não deixou transparecer nada.
- Meu irmão teria vencido você.
- Talvez - Magnus disse. - Mas e daí? Imagino que você esteja aqui para tentar me matar diante dessas pessoas. É isso? Ou estamos só conversando?
- Foi exatamente para isso que o segui até aqui: quero decidir o que fazer. Antes era muito simples, estava muito claro em minha mente que você tinha que morrer.
- E agora?
Taran puxou a espada da bainha, mas só o suficiente para mostrar a lâmina que trazia uma série de símbolos e palavras desconhecidas gravadas na superfície.
- Essa era a arma de minha mãe. Ela me contou que as palavras gravadas estão na língua dos imortais.
- Interessante - Magnus disse, o corpo tenso e pronto para a luta. - Sua mãe era bruxa?
- Sim. Ela era uma Vetusta, uma bruxa que adorava os elementos com magia de sangue e sacrifício.
- Tenho certeza de que você está me contando isso por um motivo.
- Estou. Pedi para você adivinhar quantas pessoas eu matei. - Taran embainhou a espada. - A resposta é uma. Apenas uma.
Uma gota de suor correu pelas costas de Magnus.
- Sua mãe.
Taran assentiu com seriedade.
- As Vetustas acreditam que os gêmeos têm uma magia poderosa. - Ele balançou a cabeça, franzindo a testa. - Existe uma lenda quase esquecida que diz que os primeiros imortais criados foram os gêmeos: um
escuro e um claro. Minha mãe acreditava que a magia sombria era muito mais poderosa, então, para aumentar a dela, decidiu sacrificar o gêmeo claro.
- Theon.
- Na verdade, não. Fui eu, cinco anos atrás, quando tinha quinze anos. Talvez minha mãe achasse que eu fosse permitir que ela usasse essa mesma espada para me matar, mas estava enganada. Eu reagi e a matei.
Theon chegou naquele momento e me viu empunhando uma espada e nossa mãe morta a meus pés. Ele não sabia o que ela era de verdade. Eu mesmo só descobri a verdade recentemente. Ele jurou que eu pagaria com
a vida por tê-la matado, e eu sabia que ele nunca compreenderia. Então corri o máximo que pude, sem olhar para trás. Até agora. - Ele riu, e o som saiu seco e oco. - Parece que temos isto em comum: nós
dois fomos forçados a matar para nos proteger, uma atitude da qual não podemos nos arrepender, porque, sem ela, não estaríamos vivos hoje.
Magnus não sabia o que dizer. A confissão de Taran o deixou sem fala. Ele se concentrou na movimentação da feira, fechando os olhos com força por um momento.
Quando voltou a abri-los, Taran se afastava dele em meio à multidão. Ele o observou à distância, pensando na conversa e sentindo-se grato por não ter tido que lutar para defender a própria vida naquele
dia.
Quando voltaram para a hospedaria, Jonas estava na sala de convivência, como se os estivesse esperando. Ele levantou da cadeira e largou o livro que estava lendo. Magnus notou com surpresa que era o mesmo
que tinha lido, sobre vinhos.
- Taran, precisamos conversar - Jonas anunciou. - No pátio não seremos ouvidos por bisbilhoteiros. Felix já está esperando. Você também, vossa alteza.
Magnus inclinou a cabeça.
- Eu?
- Foi o que eu disse.
- Agora estou profundamente confuso. Muito bem. Vamos lá, rebelde.
Atrás da casa havia um espaço a céu aberto que o dono da hospedaria e sua esposa chamavam de pátio. Na verdade, era uma área de grama marcada por uma horta, flores e dois cercados para os animais - um
para as galinhas e outro para os porcos gordos que guinchavam alto quando alguém se aproximava.
Magnus e Taran acompanharam Jonas até onde Felix estava, no canto oposto do jardim.
- Temos informação sobre Amara - Jonas disse finalmente. - Ela está aqui em Paelsia.
Magnus tentou não demonstrar insatisfação.
- Informação vinda de quem?
- Há rebeldes por todos os lados, alteza.
O primeiro ímpeto de Magnus foi querer lembrar Jonas que a maioria dos rebeldes havia morrido, mas decidiu se controlar.
- Muito bem. Onde em Paelsia?
- No complexo do chefe Basilius.
- E onde, exatamente, é isso?
- A um dia de viagem daqui rumo ao sudeste. Fico surpreso por você não saber, já que é um ponto importante na Estrada de Sangue de seu pai.
- Estrada Imperial - Magnus o corrigiu.
- Estrada de Sangue - Jonas repetiu, rangendo os dentes.
Magnus decidiu não discutir a questão com um paelsiano, nem tocar no assunto de como ela tinha sido construída tão depressa pelos trabalhadores paelsianos sob ordens de seu pai. Não era à toa que os cidadãos
daquele reino tinham recebido Amara tão bem.
- E esse informante também explicou por que ela veio para cá?
- Não.
- Não importa por que ela está aqui - Felix disse. - Essa é nossa chance.
- De quê? - Magnus perguntou. - De matá-la?
- Essa era a ideia.
- Não era, não - Jonas disse, arregalando os olhos para o amigo.
- Matar a imperatriz não muda o fato de que meu pai deu este reino para a família dela. Não muda que os soldados estão tão espalhados quanto manchas de lama. E Ashur? Você o trouxe aqui como se confiasse
nele, mas não sabemos qual é o plano dele.
- Ashur é um problema, admito - disse Jonas. - Nic está de olho nele, informando qualquer comportamento incomum.
- Ah, sim. - Magnus cruzou os braços. - Isso deve dar certo. Então, você - ele virou para Felix - quer matar a imperatriz. E você - ele virou para Jonas - quer pagar para ver. - Ele assentiu. - Excelentes
decisões. Acho que Amara não terá chance contra essa aliança.
Jonas hesitou.
- Taran, você não planejava matá-lo?
- Sim.
- Estou começando a me animar com essa possibilidade.
- Está claro que - Magnus começou -, se sabemos onde Amara está, a melhor estratégia é mandar homens para obter mais informações sobre os planos atuais dela, por que está aqui e onde escondeu o cristal
da água.
Taran resmungou.
- Odeio concordar com ele, mas concordo. Posso ir. Não tenho motivos para ficar aqui sem nada para fazer, olhando para as paredes.
- Também vou - Felix anunciou animado.
Jonas lançou um olhar cauteloso para Felix.
- Você acha que consegue lidar com isso sem fazer nada de errado?
- Claro que não. Mas ainda assim, quero ir. - Felix suspirou. - Prometo que vamos conseguir informações. E só isso.
Magnus preferia entrar em ação, como Felix, e simplesmente varrer Amara do mundo, mas sabia que informações seriam úteis com os dois reinos em guerra.
- Devemos contar a Cleo sobre isso? Ou a Cassian?
- Por enquanto, não - Jonas respondeu. - Quanto menos pessoas souberem, melhor.
Magnus não gostava de guardar segredos de Cleo, mas Jonas tinha razão.
- Tudo bem. Vamos manter esse assunto entre nós quatro.
Jonas assentiu.
- Então, resolvido. Taran e Felix partem amanhã cedo.
17
CLEO
PAELSIA
- Você viu o príncipe Ashur por aí? - Nic perguntou.
Cleo desviou o olhar do livro sobre a vida do chefe Basilius que tinha escolhido na estante do andar de baixo. Seus pensamentos estavam tão dispersos que ela devia ter lido a mesma página dez vezes - que
contava sobre os cinco casamentos dele.
Nic estava parado na porta do quarto dela. Enzo estava de guarda do lado de fora, um protetor constante, mas ela tinha deixado claro que Nic podia interrompê-la.
- Hoje não - ela admitiu, ainda chocada por ter visto que o príncipe tinha renascido dos mortos. - Por quê? Isso é estranho?
- Ele gosta de sair por aí sem avisar ninguém. - Ele ficou sério. - Você acha que ele está diferente? Não sei dizer.
- Para mim, ele está igual, mas não o conheço muito bem - ela admitiu.
- Nem eu.
- Ah, não sei. Às vezes não precisamos de anos para conhecer alguém. Algumas conversas são mais do que suficientes para saber como a pessoa é.
- Se você acha...
Cleo sabia que Nic e Ashur eram bem próximos, a ponto de seu amigo ter sentido muito a perda do príncipe. E também sabia que existia mais do que uma simples amizade entre os dois, mas emoções que os dois
estavam apenas começando a explorar. Talvez agora nunca mais se resolvessem.
- Parece que Taran e Felix também sumiram - ela disse. - Onde eles estão?
- Ótima pergunta. Pensei que Jonas fosse meu parceiro, mas parece que ele tem negócios com Magnus agora.
- O quê? - Só de pensar, ela sentiu vontade de rir. - Se você viu os dois conversando, é bem provável que o assunto seja o rei.
Desde que Jonas conseguira - ainda que não tenha conseguido - cravar a adaga no peito do rei, dois dias antes, Gaius não saía do quarto, com a mãe a seu lado o tempo todo, temendo que o filho estivesse
perto demais da morte e não sobrevivesse tempo suficiente para receber a magia secreta e restauradora que ela prometera.
Cleo temia que, se o rei morresse antes de a bruxa encontrar Lucia, ela se recusaria a ajudá-los, mas não se incomodava em imaginá-lo sofrendo em um quartinho em Paelsia.
Um fim adequado para um monstro.
Como será que Gaius Damora era quando conheceu a mãe dela? A que horrores ele teria submetido Elena Corso? Era uma pergunta que a perseguia desde que ele dissera o nome dela.
- Você confia nele? - A voz de Nic interrompeu seus pensamentos.
- Em quem? Magnus?
Ele riu.
- Não, claro que não estou falando de Magnus. Em Jonas.
Ela confiava em Jonas, o garoto que a tinha sequestrado e aprisionado - não uma, mas duas vezes - e que, em determinado momento, quis que ela morresse por presenciar o assassinato de seu irmão?
Mas também era o garoto que se tornara um líder. Que lutara por seu povo. O garoto que tinha arriscado a própria vida para salvar a dela.
- Confio nele, sim - ela admitiu.
Muita coisa podia mudar em um único ano.
- Eu também - Nic disse.
Ela assentiu.
- Se ele está falando com Magnus, deve ser importante.
- Ainda assim, não gosto de pensar que esteja escondendo alguma coisa de nós.
Cleo também não gostava, principalmente se fosse um segredo entre Jonas e Magnus. E jurou que conseguiria algumas respostas. Ela não gostava de ficar por fora das questões.
Naquele mesmo dia, a chance apareceu. Quando Magnus pediu para falar com Enzo no pátio, ela começou a procurar informações por conta própria na hospedaria. Logo encontrou algo possivelmente interessante
na sala de convivência: o caderno de desenho de Magnus.
Cleo já tinha visto Magnus desenhando nele, os dedos pretos por causa do carvão. Os limerianos não gostavam tanto de arte quanto os auranianos, que viam a beleza como um presente que o artista compartilhava
com o mundo por meio de sua visão singular. Mas quando um limeriano desenhava, precisava ser bem semelhante ao original para ajudar na referência e no aprendizado.
Para isso, Magnus tinha passado um verão tendo aulas de arte na Ilha de Lukas muitos anos antes, uma viagem que muitos nobres e jovens da realeza - incluindo a mãe e a irmã de Cleo - faziam na juventude.
Ela já tinha visto o antigo caderno de Magnus, no qual havia desenhos incrivelmente detalhados da flora e da fauna... além de vários retratos de Lucia, cada um feito com admiração indiscutível e atenção
a cada centímetro do rosto perfeito da irmã.
Mas aquele era um caderno novo, o que deixou Cleo extremamente intrigada.
- Eu não devia olhar - ela disse a si mesma. - Magnus não me deu permissão.
Mas esse argumento nunca tinha funcionado.
O primeiro desenho era do jardim, um rascunho rápido, mas as dimensões e a precisão eram espantosas. Antes de abandonar aquele desenho, ele tinha se concentrado no detalhe de uma roseira, e mesmo com o
traço grosso do carvão, tinha capturado a beleza em tons de preto e cinza.
A segunda, a terceira e a quarta páginas tinham sido arrancadas sem cuidado.
Na quinta página, não havia um desenho, mas uma mensagem.
Espiando para encontrar um retrato seu, princesa? Desculpe, mas hoje não. Talvez um dia eu desenhe você. Ou talvez não. Vamos ver o que o futuro nos reserva.
M.
Cleo fechou o caderno envergonhada, e também irritada.
Quando ouviu gritos, correu para as janelas com cortinas de lona grossa que davam para o pátio nos fundos da hospedaria.
O príncipe estava empunhando a espada, mirando em Milo e Enzo, que também seguravam suas armas. Quando atacaram, Cleo soltou um grito de susto antes de perceber o que estava acontecendo.
Eles estavam treinando. E a julgar pela força de ataque de Milo e de Enzo, Magnus tinha pedido para os dois darem o melhor de si.
Será que ela nunca tinha visto Magnus assim antes, em guarda, a testa suada, bloqueando as armas dos guardas com a espada? Ela pensou que aquilo podia trazer lembranças horrorosas daquele dia - do dia
em que perdera Theon. Mas naquela visão Magnus era um príncipe sem habilidade comparado a um guarda do palácio, e ele sabia disso.
Sinto muito, Theon, ela pensou, o coração apertado. Não esperava sentir isso por Magnus. Mas sinto. Não posso mais me apegar à sua lembrança. Não posso odiar o príncipe pelo que aconteceu, pelo que ele
fez naquele dia. Magnus está muito diferente agora.
Ou talvez Cleo tivesse mudado irreversivelmente.
- Na minha opinião, não estão lutando tanto quanto deveriam.
Cleo se assustou com a voz de Jonas. Ela o viu a seu lado, escondido até aquele momento, com os olhos arregalados.
- Está surpresa? - ele perguntou, achando graça.
- Você se aproximar de alguém em uma sala escura com certeza não é uma surpresa, rebelde.
Jonas sorriu, mas voltou a observar o trio do lado de fora.
- Será que o príncipe estaria disposto a me enfrentar?
- Se estivesse, certamente um de vocês acabaria morto.
- Sim, mas quem? - Sua sobrancelha, que estava arqueada, abaixou quando ele viu a expressão sofrida dela. - Em pouco tempo você estará livre desse acordo infeliz com ele, prometo.
Cleo conteve a resposta, tomando cuidado para não defender o príncipe. Ela ainda achava que era melhor ninguém saber a verdade sobre eles.
- Magnus, o rei e Selia são o caminho para as respostas de que preciso para liberar a magia da Tétrade - ela comentou.
- Eu já disse: tem um deus elementar dentro daquele cristal - ele falou de modo incisivo.
Seu tom de voz a fez se encolher. Depois que descobriu sobre os deuses elementares, dois dias antes, ela não conseguia parar de pensar no assunto e mal tinha pregado os olhos devido à gravidade da situação.
- Se tivermos a oportunidade de aproveitar essa magia sem deixar o deus escapar, ainda acho que é um objetivo que vale a pena buscar. Vamos perder muito se não conseguirmos esse poder para nos ajudar de
alguma forma, ainda que seja pouco.
Quando ela encarou Jonas, viu uma expressão séria, mas os olhos mais tranquilos.
- Não discordo totalmente.
Ela hesitou, mas só por um momento.
- É bom que saiba que, de acordo com Nic, você está escondendo dele a localização de Taran e Felix. Ele está bastante irritado com isso.
- Comecei a acreditar que o príncipe Ashur é tão mau quanto a irmã. Nic o conhece, mas não diz nada útil a respeito do que esperar dele. Gosto de Nic, mas não conto nenhum segredo que ele possa acidentalmente
revelar ao príncipe.
Outra pessoa entrou na sala e chamou a atenção de Cleo. Era Ashur, poucos metros atrás de Jonas.
- Jonas... - ela começou.
- Ashur diz que é um herói lendário renascido dos mortos para trazer paz ao mundo. Um monte de besteira. Ele não passa de mais um membro mimado da realeza criado com todas as regalias possíveis que só
precisa estalar os dedos para ter qualquer mulher linda que desejar. - Jonas franziu a testa. - Admito que isso seria uma vantagem.
Cleo limpou a garganta quando Ashur cruzou os braços diante do peito e inclinou a cabeça.
- Acho que você deveria... - ela começou.
- O quê? Falar com gentileza sobre alguém que confunde todo mundo porque está confuso em relação à irmã má e gananciosa que provavelmente vai destruir o mundo com sua sede por poder e magia? Ele poderia
tirar o poder dela com facilidade. Poderia se impor, reclamar o título de imperador, contar para todo mundo que Amara matou a família deles. Pronto.
Ela sentia uma pontada no peito a cada palavra verdadeira, mas mordaz, que Jonas dizia.
- Pode ter certeza de que não fico confuso quando se trata de Amara - Ashur disse em voz baixa.
Jonas fez uma careta.
- Você poderia ter me dito que ele estava bem atrás de mim, princesa.
- Você estava ocupado demais admirando o som da própria voz. - E, para ser sincera, as reclamações de Jonas sobre Ashur tinham reacendido a irritação que ela mesma sentia em relação ao príncipe kraeshiano.
Não, não era irritação. Era raiva, beirando a fúria.
- Espero que não esteja confuso em relação a sua irmã - Cleo falou para Ashur. - Ela cravou uma adaga em seu peito por tê-la contrariado.
- As últimas atitudes de Amara foram infelizes, mas eu já sabia que ela estava tomando esse rumo. Na verdade, culpo minha avó por colocar seus próprios planos de revolução em ação. É irônico que minha
madhosha derrube aqueles que também querem mudança no império. Ela tem muito mais em comum com os rebeldes do que pensa.
Cleo ficou olhando para ele, enojada.
- Infelizes... Você chama as escolhas de Amara de infelizes? Ela matou você, matou a própria família, e agora está matando todos os míticos que vê pela frente!
- Ela perdeu as estribeiras. A irmã que conheço, que eu conhecia, não resolve seus problemas com violência desnecessária.
- Sim, claro, os kraeshianos são conhecidos como um povo pacífico.
Ashur a observou atentamente.
- Você está infeliz comigo.
Ela olhou para Jonas e riu um pouco.
- Príncipe Ashur, por que eu estaria infeliz com você?
- Você é como Jonas. Não confia em mim.
- E deveríamos confiar? - Jonas perguntou. - Você não me conta nenhum de seus planos, desaparece por dias, fica isolado... Acha que eu deveria confiar em você mesmo assim?
- Você poderia tirar o trono de Amara - Cleo disse. - Se está tão interessado em ajudar o mundo, pode acabar com muito sofrimento simplesmente tornando-se imperador. Você é mais velho do que Amara. O trono
é seu por direito. Tem tanto medo dela assim?
Ashur riu com frieza ao ouvir aquilo.
- Não tenho medo de Amara.
- Teve medo suficiente para, supostamente, tomar uma poção para salvar sua vida - Jonas disse. - Sabia que ela planejava matá-lo?
O belo rosto de Ashur ficou sério.
- Eu não sabia. Não com certeza. E a poção que tomei... foi bem antes de minha viagem para, acima de tudo, me proteger do rei Gaius, caso ele tentasse usar minha presença em seu reino contra meu pai. Eu
nem imaginava que a poção funcionaria.
- Mas funcionou - Jonas disse. - Precisamos encontrar esse boticário ou essa bruxa ou quem quer que a tenha feito. Poções de ressurreição para todos. Magia assim poderia salvar muita gente.
- A magia da morte não é algo que se possa alterar - Ashur rebateu. - Não por qualquer motivo.
- Mas você alterou essa magia sombria para se salvar. - Cleo teve certeza de que o príncipe se encolheu diante da acusação, o que era incomum para ele. - Você se sente culpado por isso?
- Claro que não. - Apesar da resposta, Ashur não fez contato visual com ela.
- Chega de mentiras, Ashur. Se está tentando dar a impressão de que estamos todos do mesmo lado, precisa ser sincero conosco. Há mais coisas envolvidas nessa poção do que você quer revelar. Ela é perigosa,
não é?
- Muitas poções são perigosas. O veneno nada mais é do que uma poção com a intenção de matar.
Cleo inspirou e soltou o ar devagar, com a sensação de que estava prestes a descobrir um segredo.
- Aprendi que toda magia tem um preço. Que preço você pagou pela oportunidade de viver de novo?
- Aprendi que o preço da magia costuma ser o oposto da magia em si. Para ter muita força, você viverá momentos de grande fraqueza. Para ter prazer, haverá dor. E para ter vida... haverá morte.
- Então você matou alguém - Jonas disse, os braços cruzados e tensos. - Ou muitas pessoas. Acaba aqui o que você diz sobre altruísmo.
Ashur caminhou até a janela para olhar para fora, os braços cruzados.
- Você não sabe nada sobre mim, Jonas. Matei quando precisei. Nem sempre sou pacifista. O boticário me alertou do preço que eu teria que pagar, mas não acreditei. Amara pagou o mesmo preço, mesmo sem querer,
quando a ressuscitaram.
Cleo franziu a testa.
- Amara foi ressuscitada?
- Foi - Ashur respondeu solenemente, e então começou a contar para Cleo e Jonas o que tinha acontecido quando Amara era bebê e tinha sido salva de um afogamento pela magia negra e pelo sacrifício de sua
mãe.
Cleo percebeu que precisava sentar, pois tinha ficado abalada com a história. Em Auranos - e em Mítica -, apesar de serem valorizadas pela habilidade que tinham como mães, cozinheiras e enfermeiras, as
mulheres não eram impedidas de fazer outras coisas, se assim desejassem. E uma princesa podia ser a herdeira do trono do pai ou da mãe sem medo de ser assassinada apenas pelo suposto crime de ser uma mulher.
Cleo não sabia se admirava a mãe de Amara por valorizar a vida da filha o suficiente para sacrificar a própria vida ou se culpava a mulher por sua filha ter se tornado um monstro.
- Quem morreu por você? - Cleo perguntou em voz baixa.
O olhar distante de Ashur ficou sério, e antes de continuar, ele lançou um rápido olhar para Jonas.
- Eu não tinha certeza, mas sabia que alguém tinha morrido. Passei o mês tentando descobrir. Viajei, visitei amigos e ex-amantes. Foi alguém com quem passei um único verão. Eu não fazia ideia de que ele
ainda gostava de mim, de que nunca havia deixado de gostar... - Ele engoliu em seco. - De todas as pessoas que conheci, alguém que conviveu comigo apenas por alguns meses me amou tanto a ponto de morrer
por esse amor. Não consigo entender. Eu sabia o preço, mas o ignorei por egoísmo. Soube que ele sofreu por vários dias. Ele descreveu a dor como uma faca sendo cravada lentamente em seu peito. Me disseram
que nos últimos momentos, ele gritou meu nome. - Ashur ficou com os olhos azul-acinzentados marejados e respirou fundo. - A culpa que sinto pelo sofrimento, pela morte dele e pelo fato de eu ter apagado
qualquer chance que ele tinha de ter uma vida plena e feliz... isso vai me assombrar para sempre.
A sala ficou em silêncio enquanto Cleo tentava processar o que estava ouvindo. Aquele Ashur parecia mais o homem sincero que tinha oferecido, na noite de seu casamento, uma adaga nupcial kraeshiana para
tirar a vida da noiva infeliz ou de seu marido. Aquele Ashur não estava falando coisas confusas para desviar a atenção de seu sofrimento.
Mas, naquele momento, uma ideia lhe ocorreu.
- É por isso que você anda tão estranho com Nic - ela disse. - Ele não entende, acha que você está diferente, que seus sentimentos por ele mudaram, por tudo. Mas ele está enganado, não está?
Ashur não respondeu, mas olhou para baixo.
- Você teme que ele se apaixone por você e que você o machuque por causa desse amor.
Jonas ficou em silêncio, a testa franzida. Cleo esperava que ele não dissesse nada que fizesse o príncipe omitir a verdade.
- Eu tinha outros planos na ida a Auranos - Ashur disse finalmente. - Não queria que nada disso tivesse acontecido. Mas alguma coisa em Nicolo chamou minha atenção e eu não pude ignorar. Sei que deveria
ter ignorado. Só consegui complicar a vida dele e causar dor desnecessária. Mas agora não vou permitir que nada de ruim aconteça com ele por cometer o erro de gostar de mim.
- Nic merece uma explicação - Cleo disse, com um nó na garganta.
- É melhor que ele pense que meus sentimentos mudaram. - Ashur limpou a garganta. - Se me dão licença, acho que já revelei mais do que pretendia.
Cleo não disse nada para impedi-lo de sair. Ela estava pensando em muitas coisas ao mesmo tempo; algumas se conectavam, mas a maioria só aumentava sua confusão.
Por fim, ela olhou para Jonas.
- Então... - ele disse, ainda franzindo a testa. - Nic e Ashur, certo?
Ela assentiu devagar.
- Estranho... Pensei que Nic gostasse de garotas. De você, em especial. Não costumo me enganar com essas coisas.
- Você não está enganado. Ele gosta de garotas.
- Mas Ashur... - ele olhou para a porta - não é uma garota.
- Não fique pensando sobre isso, rebelde. Pode fundir seu cérebro. Saiba apenas que é complicado.
- E todas as coisas não são complicadas? - Jonas sentou ao lado dela. - Agora que conheço o segredo de Ashur e sei que não se trata de uma ameaça pessoal a você nem a mim, preciso me concentrar em pegar
a esfera que o rei escondeu. Você acha que está aqui na hospedaria?
- Nem imagino. Gostaria de saber. Eu ia dizer que... para liberar a magia precisamos do sangue de Lucia e do sangue de um Vigilante.
Surpreso, ele a encarou.
- Esse é o segredo?
Cleo assentiu.
- Isso impede o deus de sair?
- Não sei. Por isso é tão importante encontrarmos Lucia, descobrir mais informações com ela e o que deu errado com Kyan.
Os olhos castanhos de Jonas pareciam distantes.
- A profecia...
- O quê? - Cleo perguntou quando ele ficou em silêncio.
Ele balançou a cabeça.
- Deixa para lá. Conto mais quando descobrir se é verdade ou não.
- O problema é que não sei como encontrar um Vigilante. - Ela mordeu o lábio. - Claro que ainda deve haver alguns Vigilantes exilados vivos, mas acho que precisa ser um Vigilante pleno. Espero que Lucia
se disponha a ajudar quando chegar o momento.
- Não se preocupe em encontrar um Vigilante. - Ele ficou em silêncio por um momento. - Essa parte eu resolvo.
Ela olhou para ele, surpresa.
- Como?
- Olivia - ele sussurrou. - Ela é.
Cleo ficou boquiaberta.
- Você não pode estar falando sério.
- É outro segredo, mas vou confiar que você não vai contar a ninguém. - Jonas abriu o meio sorriso que ela sempre achou charmoso e frustrante, ao mesmo tempo. - Muita coisa foi sacrificada nesse caminho
que percorremos juntos. Muita perda para nós dois. Mas tento acreditar que sempre vai valer a pena, no fim.
Ela assentiu.
- Eu também.
- Acho que você precisa saber que a Lys gostava de você.
- Agora você está mentindo.
- Pode ser que nem ela soubesse, mas sei que ela respeitava você mais do que você pensa. Vocês têm uma coisa em comum: força. - A voz de Jonas falhou. - Só demonstram de jeitos diferentes.
Os olhos de Cleo começaram a arder ao ver Jonas se esforçando para não deixar as lágrimas escorrerem.
Ela segurou as mãos do rebelde, puxando-o para mais perto.
- Sinto muito por sua perda, Jonas. Estou dizendo isso do fundo do coração.
Ele só assentiu, olhando para baixo.
- Ela me amava. Só me dei conta disso quando já era tarde demais. Ou talvez eu tenha percebido e não estivesse pronto para aceitar. Mas agora eu entendo... Ela era perfeita para mim.
- Tenho que concordar.
- Poderíamos ter construído uma vida juntos. Uma casa, talvez até uma quinta. - Jonas sorriu de novo, mas um sorriso mais triste. - Filhos. Um futuro. Quem sabe o que poderia ter acontecido? Só tenho certeza
de uma coisa.
- De quê?
- De que Lys merecia alguém bem melhor do que eu.
- Não tenho a menor dúvida em relação a isso - Cleo concordou, satisfeita ao ver que a expressão surpresa de Jonas conseguiu apagar a dor em seus olhos. Ela abriu um sorriso caloroso. - Minha irmã acreditava
que quem morre se torna uma estrela no céu. Então todas as noites podemos olhar para cima e saber que estão cuidando de nós.
Ele parecia desconfiado.
- Isso é uma lenda auraniana?
- E se for?
Uma mecha do cabelo dela tinha caído sobre a testa, e Jonas a ajeitou atrás da orelha e deslizou a mão por seu rosto.
- Nesse caso, gosto de lendas auranianas.
Cleo encostou a cabeça no ombro dele, e os dois ficaram ali, confortando um ao outro. Havia uma ligação entre eles - algo muito forte que ela nunca havia conseguido ignorar. E houve uma época, não muito
tempo atrás, em que ela poderia ter amado aquele rebelde do fundo do coração.
E ela o amava, sim, mas não como Lysandra o havia amado.
Independentemente do que acontecesse, o coração de Cleo pertencia a outro.
18
MAGNUS
PAELSIA
Ficou claro para Magnus que Enzo e Milo estavam se controlando na luta, com receio de ferir um príncipe. Magnus deixou os dois sangrando como punição e voltou para a hospedaria, sentindo uma grande necessidade
de desenhar.
Ele parou na porta quando viu Jonas e Cleo na sala de convivência. Os dois estavam sentados próximos um do outro, falando baixo. Magnus se aproximou para ouvir, mas só conseguiu ver o rebelde acariciar
o cabelo de Cleo, sem que a princesa reclamasse, e, logo depois, seu rosto. Os dois se entreolharam por mais tempo do que o normal.
Magnus ficou muito irritado.
Por um lado, queria entrar ali com tudo, afastá-los e matar o rebelde antes de tirar Cleo da hospedaria e de perto dele para sempre.
Seu lado mais racional dizia que nem tudo o que via era o que imaginava e que ele não deveria tirar conclusões precipitadas.
Ainda assim, se entrasse ali e confrontasse os dois, alguém com certeza morreria.
Então ele saiu da hospedaria e desceu a rua até a taverna, resmungando ao pedir vinho ao taberneiro. Magnus perdeu a conta de quantas taças de vinho teve de beber até começar a se acalmar.
Já sabia que a princesa gostava do rebelde, que os dois tinham uma história romântica sobre a qual não queria pensar muito. Por que ela não desejaria alguém como Jonas? Alguém corajoso e forte - apesar
de pobre, ridículo e muito azarado com todos os que já tinham se alistado sob sua liderança rebelde.
Magnus também conseguia entender que alguém como Jonas, que olhava para a princesa como se ela fosse uma estrela brilhante na noite escura, podia ser tentador. Pelo menos quando comparado a Magnus, que
era sombrio, instável e afeito à violência.
Ele encarou a taça vazia.
- Com um milhão de outros problemas e questões para resolver, estou obcecado pensando por quem ela tem sentimentos. - Ele olhou meio embriagado para o atendente. - Por que meu copo está vazio?
- Peço desculpas. - O homem logo encheu a taça até transbordar.
Alguém sentou no banco de madeira a seu lado. Ele estava prestes a vociferar que precisava de espaço e que se o homem valorizava a própria vida, deveria ir para outro lugar, mas então percebeu quem era.
- O vinho nunca ajuda uma pessoa a esquecer suas preocupações por muito tempo - seu pai disse, o rosto pálido e macilento como o de um cadáver por baixo do capuz grosso de seu manto preto.
Como o rei tinha se isolado em um quarto no andar superior da hospedaria desde a noite da chegada, foi uma surpresa vê-lo ali. Magnus observou ao redor para ver se ele tinha trazido Milo para protegê-lo,
mas não viu o guarda em nenhum lugar. Talvez ainda estivesse tratando os ferimentos depois da luta.
Magnus ignorou o comentário do rei e tomou todo o vinho do copo antes de falar.
- Selia sabe que você está aqui? Não acho que ela aprovaria.
- Ela não sabe. Sua preocupação com minha morte iminente me tornou seu prisioneiro. Não ligo muito para isso.
- Não liga para a preocupação com sua morte iminente ou com o fato de ter sido feito prisioneiro? Não precisa responder. Tenho certeza de que as duas experiências são novas para você. - Magnus pegou o
vinho do atendente, e mandou o homem se afastar com um aceno. Então bebeu direto da garrafa.
- Antigamente, me rendia a pecados assim - o rei comentou.
- Ao vinho ao à forte autopiedade?
- Você está tendo problemas com a princesa?
- Aposto que isso o deixaria muito feliz, não?
- Saber que você deseja se afastar de alguém que acho que causará sua destruição? "Feliz" não seria bem a palavra que eu escolheria, mas, sim. Seria o melhor.
- Não vou falar sobre Cleo com você, nem agora nem nunca - Magnus resmungou, detestando o fato de sua mente estar tão nebulosa com o pai por perto. Ele preferiria ter controle total dos sentidos, mas era
tarde demais para se preocupar com isso depois de tomar tanto vinho.
- Escolha inteligente - o rei respondeu. - Ela sem dúvida não é meu assunto preferido.
- Esse ódio que você nutre por ela... - O príncipe pensou no assunto, no ódio aparentemente sem fim que o rei sentia por Cleo. - Deve ter a ver com a mãe dela, não?
- Sim, na verdade, tem.
Uma resposta direta. Que incomum - e profundamente curioso.
- Rainha Elena Bellos - Magnus continuou, encorajado pelo vinho que soltava sua língua. - Vi o retrato dela no palácio auraniano antes de você destruí-lo. Era uma bela mulher.
- Com certeza era. - O rei deu as costas e olhou com saudosismo para a rua escura pelas janelas da taverna. Magnus viu quando os lábios pálidos e fantasmagóricos sorriram discretamente.
Perceber a situação mexeu com ele.
- Você era apaixonado por ela - Magnus disse, chocado com as próprias palavras, mas sabendo que eram verdade. - Você era apaixonado pela mãe de Cleo. - A acusação fez o rei encará-lo de novo, os olhos
vermelhos um tanto arregalados, surpresos. Magnus demorou um pouco para assimilar a confirmação silenciosa e tomou mais um gole de vinho para molhar a garganta repentinamente seca. - Deve ter sido há muito
tempo, quando você era capaz de uma emoção tão pura.
O sorriso logo desapareceu do rosto pálido e desanimado do pai.
- Faz muito tempo. Essa fraqueza quase me destruiu, e é exatamente por isso que quis cuidar de você.
Magnus riu ao ouvir isso, uma risada alta que surpreendeu a ele próprio.
- Cuidar de mim? Ah, pai, não gaste saliva com essas mentiras!
O rei socou o balcão.
- Você é cego? Totalmente cego? Tudo o que fiz foi por você!
A força da ira repentina fez Magnus derramar parte do vinho na túnica. Ele olhou feio para o pai.
- Estranho eu ter esquecido isso quando você decidiu acabar com a minha vida e com a vida da minha mãe.
- A morte seria um alívio deste mundo para muitos de nós.
- Não vou esquecer nada que você fez, a começar por isso. - Magnus apontou a cicatriz no lado direito do rosto. - Você lembra desse dia tão bem quanto eu?
O rei contraiu o maxilar.
- Lembro.
- Eu tinha sete anos. Sete. Você se arrependeu por um momento que seja?
O rei semicerrou os olhos.
- Você não deveria ter tentado roubar o palácio auraniano. Se tivesse conseguido, a vergonha teria sido grande.
- Sete anos! - A garganta de Magnus ardeu porque ele gritou. - Eu era apenas uma criança cometendo um erro, tentada por uma coisa brilhante e linda, uma vez que eu levava uma vida cinza e sem graça num
palácio cinza e sem graça. Ninguém ficaria sabendo que peguei aquela adaga! Que diferença faria?
- Eu ficaria sabendo - o rei disse. - A adaga que você pretendia roubar era de Elena. Eu ficaria sabendo porque fui eu quem deu a adaga a ela, quando era um garoto ingênuo tentando impressionar uma moça
bonita. Não sabia que ela a tinha guardado, que ela a tinha valorizado e exposto o tempo todo em que ficamos separados. Quando a vi em suas mãos seis anos depois da morte dela... não pensei. Simplesmente
reagi.
Magnus percebeu que não tinha uma resposta na ponta da língua. Com suas perguntas respondidas depois de tanto tempo, ele não conseguia processar tudo depressa.
- Não justifica o que você fez.
- Não, claro que não.
Magnus desviou o olhar do rei e tentou se concentrar em outra coisa, qualquer coisa. Ajudou perceber que o mundo ia além daquela conversa. Um homem enorme veio em direção ao bar carregando muitos copos
vazios, a túnica subindo o suficiente para deixar a barriga peluda à mostra. Uma atendente afastou a mão de um marinheiro com um tapa tímido. Os músicos no canto da taverna tocavam uma música animada,
e muitos batiam palmas. Vários outros dançavam em uma mesa.
- O poder é tudo o que importa, Magnus. O legado é tudo o que importa. - O rei dizia isso como se tentasse convencer a si próprio. - Sem ele, somos como camponeses paelsianos.
Magnus já tinha ouvido aquelas bobagens tantas vezes que já haviam se tornado mais do que palavras sem sentido.
- Diga uma coisa: Elena Bellos retribuiu seu amor ou foi só uma obsessão triste e impossível que transformou seu coração e sua alma em gelo?
O pai demorou tanto para responder que Magnus pensou que ele tinha levantado e ido embora. O príncipe desviou o olhar da taverna movimentada para ver se o rei ainda estava a seu lado.
- Ela me amava - Gaius disse, por fim, a voz quase inaudível. - Mas o amor não foi suficiente para resolver nossos problemas.
Magnus segurou a garrafa de vinho com força.
- Agora você vai me contar uma história de amor e perda... sobre um garoto e uma garota?
- Não.
Pensar que o pai mencionaria aquela história de amor épico sem contar tudo era previsível, mas ainda assim frustrante.
- Então por que você está aqui?
- Para contar a lição que aprendi. Amor é dor. Amor é morte. E o amor tira o poder de uma pessoa. Se eu pudesse voltar no tempo, gostaria de não ter conhecido Elena Corso. Desde aquela época, eu a odeio.
- Que romântico. Como se casou com Corvin Bellos, imagino que ela sentisse a mesma coisa.
- Tenho certeza disso. E agora lembro dela todos os dias, de tudo o que perdi, por causa daquela criatura mentirosa, Cleo. Ela se tornou sua fraqueza fatal, Magnus.
O ódio tinha voltado à voz de Gaius. Magnus encarou os olhos frios do pai.
- Seu ódio sem fim por Cleo me parece muito errado. Você deveria culpar a bruxa que amaldiçoou Elena. - Magnus suspirou, chocado ao perceber. - Você a culpa, não é? Por isso condenou tantas bruxas à morte
ao longo dos anos... Para pagarem pelo crime dela. Pode dizer que odeia Elena, mas ainda a ama, até mesmo depois de sua morte. Por qual outro motivo você teria tomado a poção de minha avó?
- Pense o que quiser. - Um músculo se contraiu no rosto do rei. - A poção era a única maneira de afastar o pesar e a dor e deixar apenas a força. Mas agora aquela força sumiu, desapareceu quando caí daquele
penhasco. A dor e o pesar voltaram, piores do que antes. E odeio isso. Odeio tudo nesta vida: o que tive que fazer, como passei todo esse tempo obcecado apenas pelo poder. Mas agora acabou.
- É o que anda prometendo.
Magnus precisava sair daquela taverna barulhenta e enfumaçada. Precisava de tempo e de espaço para esfriar a cabeça.
Quando levantou, o rei segurou seu braço.
- Imploro a você, meu filho, que mande Cleiona embora antes que ela o destrua. A princesa não ama você de verdade, se é o que você pensa. Independentemente do que ela disser, são apenas mentiras.
- O Rei Sanguinário implorando! Agora não falta mais nada. - Ele suspirou. - Já bebi demais por hoje. Foi um prazer conversar com você, pai. Tente voltar para a hospedaria sem morrer. Tenho certeza de
que sua mãe ficaria muito abalada se alguma coisa ruim acontecesse.
Ele saiu sem dizer mais nada, detestando a confusão de pensamentos e sentimentos.
Enquanto Magnus caminhava por uma rua estreita, alguém bloqueou sua passagem para o caminho principal com ombros largos e uma cara séria.
Não havia mais ninguém à vista.
- É, acho que reconheci você uma noite dessas - disse o homem. - Você é o príncipe Magnus Damora, de Limeros.
- E você está redondamente enganado. Desculpe pela decepção. - Magnus tentou passar acotovelando o homem, que levou a enorme mão à garganta dele, puxando-o para tão perto que Magnus conseguiu sentir seu
hálito de cerveja.
- Dez anos atrás, seu pai queimou minha esposa viva, dizendo que ela era uma bruxa. O que acha de eu fazer a mesma coisa com você como vingança?
- Acho que você precisa me soltar agora mesmo. - Magnus arregalou os olhos para o homem. - Sua necessidade de vingança não tem nada a ver comigo.
- Ele está certo. - O rei deu um passo à frente e tirou o capuz. - Tem a ver comigo.
O homem olhou para Gaius, surpreso, como se não acreditasse no que via.
- Sinto muito pela morte de sua esposa - o rei disse, e uma única lamparina acima da saída da taverna iluminava seu rosto quase esquelético. - Odeio bruxas por mais motivos do que poderia mencionar aqui
e agora. Mas raramente executei uma que não estivesse envolvida com sangue e mortes. Se sua esposa está na terra da escuridão agora, é porque merece estar.
Com o rosto vermelho de ódio, o homem deu um passo à frente empunhando uma faca afiada. Magnus observou o pai de pé ali, sem se mexer, a pele amarelada, os ombros curvados. Ele não lutaria, não conseguiria
lutar por sua vida.
Gaius queria morrer?
A atenção do homem estava totalmente voltada para o rei naquele momento, e o ódio ardia em seus olhos quando ele avançou.
Magnus se moveu antes mesmo de se dar conta de suas intenções, segurou as mãos do homem e impediu que a faca acertasse o alvo.
- Se alguém tem o direito de matar meu pai, esse alguém sou eu - ele vociferou. - Mas não hoje.
Ele virou a lâmina afiada para afundá-la no peito do homem, que gritou de dor e desabou no chão. O sangue jorrou livremente do ferimento fatal.
Houve um momento de completo silêncio na rua até o rei falar de novo.
- Precisamos ir embora antes que alguém veja isso.
Magnus teve que concordar. Limpou o sangue das mãos no manto preto e os dois logo voltaram à hospedaria Falcão e Lança.
- Não pense que esse gesto mostra que não odeio você - Magnus disse.
O rei assentiu com seriedade.
- Eu o consideraria um idiota se não me odiasse. Ainda assim, apesar do ódio que sente por mim, quero lhe dar algo.
- O quê?
- O cristal do ar.
Não havia como o Rei Sanguinário entregar uma parte da Tétrade a alguém, nem mesmo ao próprio filho. E, ainda assim, Gaius levou Magnus ao andar de cima, ao quarto onde tinha ficado por dois dias.
Magnus observou o espaço.
- Onde está Selia?
- No pátio. - O rei indicou a janela com a cabeça. - Sua avó gosta de cumprir os rituais antigos todas as noites, a esta hora e sob o luar, por isso consegui sair.
O rei foi até a cama de palha, levantou as cobertas e passou a mão por baixo do colchão. Em seguida, franziu a testa.
- Ajude-me a levantá-lo - ele disse.
- Está tão fraco assim? Então você teria mesmo ficado parado, esperando aquele homem te matar?
- Faça o que estou mandando. - O olhar que o pai lançou foi muito mais familiar do que qualquer conversa sobre compartilhar e arrependimentos.
- Tudo bem. - Magnus foi até o lado de Gaius e levantou o colchão para seu pai procurar embaixo dele.
Os olhos vermelhos e marejados do rei foram tomados pelo susto.
- Não está aqui.
Magnus lançou um olhar desconfiado para o rei.
- Que conveniente, se considerarmos que você estava prestes a entregá-lo a mim. Por favor, pai, me poupe dessas dissimulações. Como se você fosse esconder um tesouro como aquele em um lugar tão óbvio!
- Não é dissimulação. Estava aqui. Andei muito debilitado para encontrar um lugar melhor onde escondê-lo. - Gaius ficou sério. - Aquela sua princesinha o roubou.
Só podia ser mentira. Mais uma mentira. Magnus não conseguia pensar em outra explicação, não para algo tão importante.
Antes que pudesse responder, o rei cambaleou com dificuldade para sair do quarto. Magnus o seguiu pelo corredor, onde Cleo ainda estava com Jonas.
Magnus não conseguia acreditar no que via. Precisou de todo o autocontrole possível para não transformar Jonas no segundo morto da noite.
Cleo levantou depressa quando o rei e Magnus entraram.
- O que foi? O que aconteceu?
- Você roubou o cristal do ar? - Magnus perguntou, incomodado com a maneira arrastada como estava falando.
- O quê? Eu... eu nem sabia onde estava!
- Sim ou não, princesa?
Cleo semicerrou os olhos e levantou o queixo.
- Não.
- Ela está mentindo - o rei disse.
- O rei das mentiras querendo acusar a princesa, não é? - Jonas quase cuspiu as palavras, os punhos cerrados. - Que ironia.
- Onde está o cristal da terra? - Magnus perguntou.
Cleo franziu a testa ao enfiar a mão no bolso e arregalou os olhos.
- Não está aqui. Mas estava, juro! Eu o carrego comigo o tempo todo!
Magnus sentiu uma náusea. Havia um ladrão entre eles. E quem quer que fosse, em breve ia se arrepender profundamente por suas atitudes.
Não demorou para que todos corressem até a sala para ver o que estava acontecendo. Milo e Enzo já empunhavam as armas, prontos para um combate.
Magnus observou o grupo. Estava todo mundo ali: Nic, Olivia, até Selia havia se unido ao grupo, com o rosto corado devido ao ritual da lua daquela noite. Todo mundo, menos uma pessoa.
- Onde está o príncipe Ashur? - Jonas perguntou, franzindo a testa. - Ele estava aqui mais cedo com Cleo e comigo.
- Eu não o vi hoje - Olivia respondeu. - Talvez tenha saído.
- Talvez. Alguém sabe aonde ele foi?
Enzo e Milo balançaram a cabeça em negativa.
Selia foi para o lado do rei pálido, que caminhava até uma cadeira para sentar.
- Gaius, querido, o que está fazendo fora da cama?
Magnus os ignorou, prestando atenção em Nic, que estava em silêncio. Enquanto os outros conversavam sobre o paradeiro do príncipe, Nic saiu da sala. Magnus imediatamente o seguiu pelo corredor em direção
à porta da frente.
Quando Nic notou que Magnus estava perto, seus ombros ficaram tensos.
- Está procurando alguém? - Magnus perguntou, com os braços cruzados.
- Quero sair para respirar um pouco de ar fresco.
- Ele levou os dois cristais, não levou? E contou a você sobre os planos.
Nic balançou a cabeça, mas não o encarou nos olhos. Magnus não tinha mais paciência para mentiras naquela noite. Ele puxou a frente da túnica de Nic e o jogou contra a parede.
- Onde está Ashur? - ele resmungou.
- Você está bêbado.
- Demais, mas não faz a menor diferença agora. Responda! Ashur roubou os cristais, não roubou?
Nic rangeu os dentes.
- Você acha que o príncipe me conta alguma coisa?
- Não faço ideia do que o príncipe sussurra em seu ouvido, mas não sou cego. Sei que tem algo entre vocês dois, que são mais próximos do que aparentam. E sei que você sabe mais do que está me contando.
Jonas se aproximou, tenso, vindo de um canto.
- O que está fazendo com ele?
Magnus não soltou o garoto.
- Nic sabe os segredos de Ashur e vou descobrir quais são.
- Responda à pergunta, Nic - Jonas disse, os braços cruzados. - Sabe para onde Ashur foi?
Nic riu.
- Como é? Vocês estão trabalhando juntos agora?
- Não - Magnus e Jonas responderam em uníssono, e então se entreolharam.
Nic suspirou.
- Tudo bem. O príncipe acabou de partir para ver a irmã. Tentei convencê-lo a não fazer isso, mas ele não ouviu nada do que eu disse. Está determinado a fazer o que puder para colocar juízo na cabeça dela
e, se não conseguir, vai exigir o título de imperador.
Magnus sentiu o estômago revirar.
- E ele levou para Amara os cristais do ar e da terra. Que lindo presente, considerando que Amara está com o cristal da água.
Por fim, Nic lançou um olhar preocupado.
- Ashur não faria isso.
- Não? - Magnus tentou continuar segurando a túnica de Nic para que o idiota não fugisse, mas sua visão estava turva. Vinho demais, rápido demais. Os efeitos só passariam ao amanhecer. - Talvez Amara tenha
retirado os cristais dos esconderijos com sua magia, e eles voaram em asas de borboletas para ela.
- Vou falar mais uma vez. - Nic semicerrou os olhos. - Me solte.
- E se não soltar? Vai chamar a princesa para salvá-lo?
- Odeio você. Desejo vê-lo morto e enterrado. - Ele olhou para Jonas, irritado. - Uma ajuda?
- Nic, você precisa pensar - Jonas disse com calma. - Se Magnus estiver certo em relação a Ashur...
Magnus lançou um olhar fulminante ao rebelde.
- Você acabou de me chamar apenas pelo meu primeiro nome?
Jonas revirou os olhos.
- Amara Cortas não pode ter mais poder do que já tem. E se o irmão dela levou os cristais da Tétrade, é a pior coisa que poderia acontecer. Ela pode liberar três deuses elementares como Kyan.
- Eu sei - Nic respondeu. - Eu entendo.
- Entende?
- Então a culpa é minha? Vai deixar sua majestade quebrar meu pescoço? Por quê? Por não ter conseguido impedir Ashur de fazer o que queria? Ele faz o que bem entende.
- Prometo que sua majestade não vai quebrar seu pescoço.
- Não vamos nos precipitar - Magnus disse, divertindo-se com o breve olhar assustado do garoto.
Ele nunca mataria Nic.
Cleo nunca o perdoaria.
- Você vai fazer o seguinte - Magnus disse. - Vai atrás de Ashur para impedi-lo de fazer alguma coisa idiota e imperdoável por senso de lealdade familiar kraeshiano bizarro e sem propósito. E vai recuperar
os cristais que ele roubou, custe o que custar.
Nic o encarou incrédulo.
- Não vou deixar Cleo de novo.
- Ah, vai, sim, com certeza. E vai agora. Você vai voltar com os cristais da Tétrade ou minha paciência com você vai acabar. - Magnus tentou organizar a mente confusa para encontrar uma maneira de fazer
Nic cumprir a ordem.
- Você pode até me odiar, mas viu que mantive sua preciosa princesa viva todos esses meses, enquanto outros a queriam morta. Juro pela deusa que vou parar de protegê-la se não fizer exatamente o que mandei.
Nic se encolheu, mas manteve o olhar firme.
- Cleo ficaria bem até mesmo sem sua ajuda.
- Talvez sim. Talvez não. Em tempos de guerra, e não se engane, é exatamente o que essa ocupação "pacífica" kraeshiana é, ninguém está seguro.
Nic ficou sem resposta. Apenas o observou furioso.
- Com ameaça ou sem - Jonas disse impaciente -, o príncipe está certo, Nic, você precisa ir atrás de Ashur. Nós dois precisamos. Eu deveria ter acompanhado Felix e Taran quando eles partiram. Não há motivos
para eu estar aqui.
- Não há motivos, rebelde? - Magnus lançou um olhar para ele. - Que esquisito. E pensei que você estivesse gostando de bajular a princesa, em busca de migalhas.
Jonas lançou um olhar raivoso para Magnus.
- Eu receberia muito mais do que você.
Magnus sorriu para ele.
- Não tenha tanta certeza disso.
Jonas ficou ainda mais sério.
- Terminamos por aqui. Nic, pegue o que precisa para ir ao complexo do chefe Basilius. Espero alcançar Ashur antes que ele chegue lá. E, Magnus?
- Sim, rebelde?
Jonas semicerrou os olhos.
- Se encostar em um fio de cabelo da princesa, juro por qualquer deusa em quem você acredita que vou fazer você implorar para morrer.
19
AMARA
PAELSIA
Um único falcão dourado voava em círculos sobre os cidadãos paelsianos reunidos para ouvir o discurso de Amara. A imperatriz estava em pé diante da janela aberta de seus aposentos, observando a multidão
de rostos ansiosos. Muitos estavam perplexos por estarem dentro da propriedade privada do ex-chefe; os portões tinham ficado trancados para o público durante o governo dele. Naquele dia, os paelsianos
viam pela primeira vez a cidade labiríntica, o que fez Amara lembrar muito da Cidade de Ouro, mas, em vez de metais e joias, a cidade onde estava era feita de barro, tijolo, pedra e terra.
- Vossa graça, gostaria que reconsiderasse esse discurso - Kurtis disse atrás dela. - A senhora está muito mais segura aqui dentro, principalmente com a notícia de rebeldes por perto.
Ela tirou os olhos da janela e se virou para o grão-vassalo onipresente.
- É por isso que tenho guardas ao meu redor o tempo todo, lorde Kurtis. Os rebeldes estão sempre por perto. Infelizmente, não posso fazer todos entenderem meu ponto de vista. Há quem se oponha ao reinado
de meu marido, ao reinado de meu pai. E há aqueles que se opõem ao meu também. Falarei com meus cidadãos hoje, aqueles que vão me apoiar sem questionamentos e aqueles que duvidam de minhas intenções aqui.
Preciso dar a eles uma esperança para o futuro... uma esperança que nunca tiveram.
- O que é uma atitude incrível, vossa graça, mas... os paelsianos são selvagens, violentos.
Amara considerou as palavras ofensivas.
- Há quem diga o mesmo dos kraeshianos - ela respondeu mais irritada. - Talvez você não tenha me ouvido até agora, mas falarei hoje.
- Vossa graça...
Ela levantou uma mão, decidindo parar de sorrir.
- Falarei hoje - ela disse com firmeza. - E ninguém vai me dizer que não posso fazer isso. Com a notícia dos rebeldes e com a discordância entre meus próprios soldados, preciso do apoio dessas pessoas
para o futuro de meu reinado. E não permitirei que ninguém diga o que posso e o que não posso fazer. Entendido?
Ele se curvou no mesmo instante, corado.
- Claro, vossa graça. Não quis desrespeitá-la.
A porta se abriu e Nerissa entrou, fazendo uma reverência.
- Está na hora, imperatriz.
- Ótimo, estou pronta. - Amara alisou a seda de seu vestido. Era o mesmo que usava nas ocasiões mais especiais em Kraeshia. Ela o levava sempre que viajava caso tivesse a oportunidade de vestir uma peça
tão esplêndida. A costura brilhante e as contas de esmeralda e ametista reluziam sob o sol paelsiano quando ela saiu de sua grande quinta.
Um grupo de guardas esperava Amara do lado de fora e, com Nerissa a seu lado, ela se aproximou do grande pódio em um palco de madeira bem acima da multidão de quatro mil pessoas reunidas lado a lado na
antiga arena do chefe.
Aqueles eram seus novos súditos. Absorveriam tudo o que dissesse e espalhariam a notícia de sua glória a quem quisesse ouvir. E em breve, seriam os primeiros a reverenciá-la como uma verdadeira deusa.
A multidão gritou e a atmosfera foi tomada por sons de aprovação. Ela olhou para Nerissa, que sorriu e assentiu, incentivando-a a começar.
Amara ergueu os braços, e a grande plateia ficou em silêncio.
- Eu me dirijo ao lindo povo de Paelsia, um reino que tem passado por muitos testes e muitas atribulações ao longo de várias gerações. - Sua voz ecoou nos pilares de pedra, o que ajudou a amplificar as
palavras de modo que até as pessoas nas arquibancadas pudessem ouvi-la. - Sou Amara Cortas, a primeira imperatriz de Kraeshia, e trago a vocês a notícia oficial de que não são mais cidadãos de Mítica,
uma tríade de reinos que os oprimiu por um século. Agora vocês são cidadãos do grande Império Kraeshiano. E seu futuro é tão brilhante quanto o sol que nos ilumina hoje!
A multidão comemorou, e Amara parou um instante para analisar os rostos, alguns sujos, de pessoas com roupas simples puídas, gastas pela sujeira e pelo tempo. Olhos atentos se voltaram para ela, olhos
que tinham assistido a muitos líderes fazerem promessas falsas e causarem dor e sofrimento. Ainda assim, ela viu uma esperança tímida até mesmo nos olhos dos mais velhos.
- Cuidaremos de sua terra - ela continuou. - Vamos torná-la rica de novo e pronta para as plantações que vão sustentar vocês e suas famílias. Vamos importar animais que servirão de alimento. E enquanto
continuarem produzindo o vinho pelo qual Paelsia é conhecida, os lucros serão de vocês, integralmente, pois prometo que não serão cobrados impostos kraeshianos sobre esse produto por vinte anos. As leis
que impediam a exportação do vinho a qualquer lugar que não fosse Auranos estão vetadas a partir de agora. Vejo Paelsia como um patrimônio maravilhoso do meu império e quero demonstrar isso cuidando para
que minhas atitudes sejam condizentes com minhas palavras. Vocês fazem bem em acreditar em mim, porque eu acredito em vocês. Juntos, vamos marchar para o futuro, de mãos dadas!
O barulho vindo da plateia aumentou, e, por um instante, Amara fechou os olhos e permitiu-se aproveitar o momento. Tinha sido por isso que ela se sacrificou tanto. Tinha sido por isso que ela fez o que
fez.
Por aquele poder.
Não fora à toa que seu pai havia tomado decisões tão precipitadas durante seu reinado. Aquela sensação diante da obediência, da adoração e da reverência era mesmo viciante.
Se ela conseguiria ou não cumprir o prometido, ainda precisava verificar.
Ela sentia a magia que havia na crença que emanava do povo paelsiano. Uma magia tão rica e pura na qual queria se banhar.
- Vossa graça! - Nerissa exclamou, assustada.
Amara abriu os olhos a tempo de ver uma flecha de relance, e então um de seus guardas a tirou do caminho. A flecha acertou o homem no pescoço, e ele caiu se debatendo no chão do palco.
- O que está acontecendo? - ela quis saber.
- O grupo de rebeldes que ameaçou vir aqui hoje... eles estão aqui! - Nerissa agarrou o braço dela. Duas outras flechas voaram na direção dela, bem perto, acertando outros dois guardas.
- Quantos? - Amara conseguiu perguntar. - Quantos rebeldes estão aqui?
- Não sei... - Nerissa ergueu a cabeça para olhar para a multidão quando outra flecha passou por ela. - Vinte, talvez trinta ou mais.
Amara observou chocada quando seu exército de soldados invadiu o mar cada vez maior de civis para capturar os rebeldes. Os soldados derrubavam qualquer pessoa que aparecesse no caminho, fossem rebeldes
ou paelsianos. A multidão entrou em pânico e tentou fugir. O caos se instalou, gritos de medo e de indignação eram ouvidos por todos os lados quando sangue começou a ser derramado.
Paelsianos empunharam armas, trocando rapidamente a expressão esperançosa pela de ódio, e começaram a lutar não só contra os soldados, mas uns contra os outros, facas cortando a carne, socos acertando
rostos e abdomens.
"Os paelsianos são selvagens, violentos", Kurtis tinha alertado.
Mães agarravam os filhos, chorando e correndo para todas as direções.
- O que vamos fazer? - Nerissa perguntou. Ela tinha agachado ao lado de Amara, e as duas se encolheram atrás do pódio.
- Não sei - Amara disse depressa, e se arrependeu de suas palavras.
Palavras de medo. Palavras de vítima.
Ela não ia se acovardar diante de rebeldes naquele momento - nem nunca.
O medo logo se transformou em raiva. Aquilo, fosse o que fosse, não fazia parte de seu plano. Aqueles que desejavam destruir sua chance de transformar aquele povo determinado em seu aliado, um povo que
já estava pronto para aceitá-la como líder, pagariam com a vida.
Amara levantou do esconderijo, punhos cerrados, quando alguém se aproximou do palco trás dela. Ela ouviu passos pesados na superfície de madeira.
Quando se virou, viu dois de seus guarda-costas caindo com a garganta cortada. Atrás deles, um rosto assustadoramente familiar.
- Bem, princesa, eu poderia apostar um monte de moedas de ouro que você não esperava me ver de novo.
Felix Gaebras apontava uma espada a poucos centímetros de seu rosto.
O rosto dele aparecia em seus pesadelos. Ou talvez os pesadelos tivessem sido premonições. Naqueles sonhos, ele tentava matá-la.
- Felix... você fez isso, tudo isso, só para chegar até mim - ela começou, dando um passo hesitante para trás para se afastar do jovem que acreditava estar morto fazia muito tempo.
Ele sorriu.
- Sinceramente? Eu estava só observando de longe. Foi uma coincidência feliz. Acho que há muitos outros rebeldes que querem derramar seu sangue. Mas parece que a honra será minha.
Ela olhou para a esquerda e viu três guardas correndo na direção de Felix, mas foram derrubados por outro jovem de cabelo escuro e expressão irritada.
- O plano não era esse, Felix - o rapaz gritou. - Nós dois vamos morrer por sua causa.
- Calado, Taran - Felix respondeu. - Estou retomando contato com uma antiga namorada.
Ao sentir a lâmina em seu rosto, Amara olhou para o tapa-olho preto que ele usava.
- Seu olho...
- Perdi. Graças a você.
Ela se encolheu.
- Sei que você deve me odiar pelo que fiz.
- Odiar? - Ele arqueou as sobrancelhas escuras, movendo de leve o tapa-olho. - "Ódio" é uma palavra muito leve, não acha?
Amara tentou ver se algum guarda se aproximava para ajudá-la, mas Taran, o amigo de Felix, os afastava com a espada e o arco que trazia.
Amara virou para a frente, para o olho bom de Felix, e disse com o máximo de arrependimento que conseguiu reunir:
- Não importa o que tenha enfrentado, minha bela fera. Juro que posso me retratar.
- Não me chame assim. Perdeu o direito de me chamar assim quando me abandonou e me deixou para morrer. - Felix encostou a lâmina no rosto dela de novo, fazendo-a olhar para a multidão. - Viu o que fez?
É culpa sua. Tudo o que você toca acaba em morte.
O olhar tenso de Amara passou pela multidão que tinha percorrido quilômetros para se reunir e ouvi-la falar. Muitos paelsianos estavam mortos entre os combatentes, pisoteados, assassinados pelas espadas
dos guardas ou por seus próprios compatriotas.
Felix tinha razão: era culpa dela. Um momento de vaidade, o desejo de sentir o amor de seus novos súditos depois de tanta dor e decepção, acabou em morte.
Tudo acabava em morte.
O mesmo falcão que ela vira sobrevoando a multidão grasnou alto o suficiente para Amara ouvir. No chão, alguém preso no meio do caos chamou sua atenção: um jovem de cabelo ruivo, cor rara de ser encontrada,
caminhava em direção ao palco.
Ela reconheceu o amigo de Cleo, Nic. Aquele com que Ashur tinha ficado obcecado.
Amara observou horrorizada quando dois paelsianos agarraram Nic e rasgaram o saco de moedas preso ao passador de sua calça. Nic tentou segurar o saco, e a faca de um dos homens reluziu à luz do sol antes
de ser fincada no peito dele.
Ela se assustou.
O corpo de Nic caiu no chão e logo se perdeu na multidão.
Aquilo era culpa dela, apenas dela.
Ela franziu a testa ao pensar nisso. Não... tinha sido azar de Nic, uma circunstância infeliz. Ela não tinha assassinado o amigo de Cleo com as próprias mãos. Amara se recusava a assumir a culpa pelo azar
de outras pessoas.
Apesar de ter odiado seu pai e seus irmãos com a mesma intensidade, a família Cortas não era nada fraca. Inclusive ela.
E além da família Cortas, as mulheres não eram fracas. Eram líderes. Campeãs. Guerreiras. Rainhas.
Amara tinha enfrentado inimigos muito maiores do que Felix Gaebras na vida.
Ela se forçou a falar de modo assustado quando virou para ele de novo.
- Você é maior do que isso, Felix. Matar uma garota desarmada? Não combina com você.
- Não combina comigo? Sou um assassino profissional, meu amor. Matar é o que faço melhor.
De canto do olho, ela observou o amigo derrubar mais dois de seus homens com uma só mão.
- Pense bem, governo um terço do mundo e controlo toda a fortuna. Quer ser um homem muito rico?
Ele levantou um dos ombros.
- Não.
Amara tinha esquecido que ele era diferente dos outros homens que conhecia - uma vantagem no começo, mas um problema no presente. - Mulheres, então. Dez, vinte, cinquenta garotas que desejem apenas você.
Felix abriu o sorriso mais frio que ela já tinha visto.
- E como eu saberia que não são vadias frias e dissimuladas como você? Não tem acordo, imperatriz.
Amara ficou com os olhos marejados. Fazia muito tempo que não chorava, mas chorar era um talento que desenvolvera desde cedo. Sabia que a maneira mais fácil para uma mulher evitar problemas ou castigos
era fingir fraqueza entre os homens.
As lágrimas logo começaram a descer livremente por seu rosto.
- Eu pretendia libertá-lo, mas me disseram que você já estava morto, assassinado em uma tentativa de fuga. Meu coração ficou destruído quando pensei que tinha perdido você para sempre. Deveria tê-lo incluído
em meus planos, mas eu estava com medo, muito medo. Ah, Felix, eu não queria que nada acontecesse com você, sinceramente! Eu... eu amo você! Sempre vou amar, não importa o que você decida fazer hoje!
Felix olhou para ela como se estivesse assustado com o que ouvia.
- O que disse? Que me ama?
- Sim. Eu amo você.
A ponta da espada se mexeu. Mas logo foi afastada.
- Bela tentativa, meu amor. Eu poderia até acreditar, se fosse um completo imbecil. - Felix sorriu para ela. - Hora de morrer.
Um instante depois, Carlos, que tinha subido no palco e conseguido passar por Taran, derrubou Felix. Antes que conseguisse recuperar o fôlego, Taran e Felix estavam diante dela, ajoelhados.
Nerissa voltou para seu lado, e Amara segurou a mão dela, apertando-a para ter a certeza de que a criada não tinha se ferido.
- Os outros rebeldes morreram, vossa graça - Carlos informou. O rosto dele sangrava devido a um corte profundo no nariz.
Amara respondeu assentindo brevemente e então olhou para Felix.
Ele deu de ombros de novo.
- Não posso dizer que não tentei.
- Devia ter sido mais rápido.
- Acho que gosto muito de falar. - Ele abriu um grande sorriso, mas seu olhar estava frio. Voltou-se para Nerissa por um instante antes de voltar a encarar Amara. - Vamos falar de novo sobre aquela oferta
do harém de lindas mulheres?
Amara tocou o rosto de Felix, levantando sua cabeça.
- Sinto muito pelo seu olho. Gostei daquele olho, assim como de outras partes suas. Por algumas noites, pelo menos.
- Devemos executá-los agora mesmo, vossa graça? - Carlos perguntou, com a espada ao lado do corpo.
Ela esperou o medo aparecer no único olho de Felix, mas ele manteve a pose desafiadora.
- Se eu poupá-lo, o que fará? Vai tentar me matar de novo?
- Num piscar de olhos - ele disse.
- Você é um grande idiota - Taran rosnou.
Sua bela fera a tinha entretido por um período. E ainda entretinha.
Apesar de tudo, Amara ainda se sentia atraída por ele. Mas não importava. Ele deveria ter morrido muito tempo antes, e não ser mais um problema para ela.
Amara assentiu para o guarda.
- Jogue os dois no fosso. Cuido deles mais tarde.
20
LUCIA
PAELSIA
- Ela é incrível. Totalmente linda e gloriosa. Parece mais uma deusa do que uma mera mortal, se quer saber. Tenho certeza de que vai salvar todos nós.
Lucia parou na barraca de frutas enquanto procurava uma maçã sem nenhuma imperfeição - pelo jeito, era impossível em Paelsia - e olhou para a vendedora que conversava com uma amiga.
- Concordo totalmente - a amiga disse.
Estariam falando da feiticeira profetizada?
- Desculpem minha grosseria, mas posso saber de quem estão falando? - Lucia perguntou. Era a primeira vez que falava em voz alta em mais de um dia, e sua voz falhou no início.
A vendedora olhou para ela.
- Ora, da imperatriz, é claro! De quem mais poderia ser?
- Sim, de quem mais, não é? - Lucia disse em voz baixa. - Então vocês acham que Amara Cortas vai salvá-las. Salvá-las do que, exatamente?
As paelsianas trocaram um olhar e viraram para Lucia um tanto impacientes.
- Você não é daqui, é? - Uma delas franziu os lábios enrugados. - Não, com esse sotaque, acredito que seja limeriana, não é?
- Nasci em Paelsia e fui adotada por uma família limeriana.
- Você teve muita sorte por ter escapado destas fronteiras tão cedo, então. - A vendedora virou para a amiga. - Se ao menos todos tivéssemos tido essa oportunidade...
As duas riram sem achar graça.
A paciência de Lucia estava acabando.
- Vou comprar esta maçã. - Ela guardou a fruta no bolso e entregou uma moeda de prata. - E também qualquer informação que puder me dar a respeito da localização da imperatriz.
- Com prazer. - A mulher pegou a moeda com ganância, semicerrando os olhos. - Por onde andou esses últimos dias, mocinha, para não saber tudo sobre a imperatriz? Perdida por aí?
- Mais ou menos. - Na verdade, ela estava recuperando as forças na hospedaria no leste de Paelsia até não aguentar mais e ter que fugir. Apesar da preocupação da atendente Sera com sua saúde, Lucia sabia
que precisava sair dali antes que sua barriga ficasse grande demais e ela não conseguisse mais levantar da cama.
Passou a mão pela barriga aparente e a comerciante notou, arregalando os olhos.
- Ah, minha querida! Não percebi que estava grávida. E já tão avançada!
Lucia gesticulou para indicar que ela não se preocupasse.
- Estou bem - ela mentiu.
- Onde está sua família? Seu marido? Não me diga que está sozinha aqui na feira hoje!
Parecia que o fato de estar grávida fazia os desconhecidos sentirem vontade de tratá-la com muito mais gentileza do que o normal. Tinha sido bom durante a viagem lenta e desconfortável para o oeste.
- Meu marido está... morto - ela disse com cuidado. - E agora estou procurando minha família.
A amiga da vendedora correu na direção de Lucia e segurou suas mãos.
- Meus mais sinceros sentimentos por essa perda tão dolorosa.
- Obrigada. - Lucia sentiu um nó repentino e irritante na garganta. Assim como a barriga inchada, suas emoções estavam muito mais intensas e difíceis de controlar.
- Se precisar de um lugar para ficar... - a vendedora disse.
- Obrigada de novo, mas não preciso. Só preciso de informações sobre a imperatriz. Ela ainda está em Limeros?
As amigas se entreolharam de novo, sem acreditar que Lucia pudesse estar tão desinformada a respeito daquelas coisas.
- A grande imperatriz Cortas está morando no antigo complexo do rei Basilius - a vendedora começou. - Ela vai fazer um discurso de lá amanhã, dirigindo-se a todos os paelsianos que puderem participar.
- Um discurso aos paelsianos. Por quê?
A vendedora olhou para ela com um pouco de compaixão.
- Bem, por que não? Talvez você tenha esquecido por causa dos muitos anos abençoados que passou em Limeros, mas a vida aqui em Paelsia é difícil.
- Para dizer o mínimo - sua amiga acrescentou.
A vendedora assentiu.
- A imperatriz vê nossos esforços. Ela os reconhece. E quer fazer algo em relação a isso. Ela valoriza os paelsianos como parte importante de seu império.
Lucia tentou não revirar os olhos. Ela não tinha percebido como Amara era uma manipuladora de primeira, sedenta por poder, nas poucas vezes em que conversara com a ex-princesa quando os Damora moraram
no palácio auraniano.
- Mas, claro, questiono a sabedoria da imperatriz por se casar com o Rei Sanguinário - a vendedora comentou.
- Desculpe - Lucia disse, olhando para ela. - Você disse que ela é casada com o Rei... San... com o rei Gaius?
- Sim. Mas também soube que ele está desaparecido no momento, junto com seu herdeiro. Vamos torcer para que a imperatriz tenha enterrado os dois a sete palmos da terra.
- Realmente - Lucia murmurou, sentindo o estômago embrulhado só de pensar. Sera não tinha dito nada sobre o casamento de seu pai com Amara. Seria verdade? - Eu... eu preciso ir. Preciso...
Ela virou e desapareceu em meio à multidão na feira.
Certa vez, Ioannes tinha guiado Lucia para encontrar e despertar a Tétrade com seu anel da feiticeira. Ela esperava que o mesmo encanto que usaram pudesse funcionar para ajudá-la a encontrar Magnus e seu
pai. No entanto, apesar de ter conseguido fazer o anel girar como fizera na época em seus aposentos no palácio auraniano, todas as tentativas de reaver o mapa brilhante de Mítica e determinar a localização
deles tinham fracassado. Enfraquecida por usar seus elementia, ela tinha que fazer paradas constantes ao percorrer o caminho a pé, junto com muitos outros paelsianos, até o complexo do antigo líder local.
Lucia se recusava a acreditar que sua família estivesse morta. Eles eram muito bem preparados para isso. E, se o rei tinha se casado com Amara - uma ideia tão ridícula que ela mal conseguia conceber -,
tinha feito isso por razões estratégicas, por poder e sobrevivência.
Sim, Amara era jovem e muito bela, mas seu pai era esperto e cruel demais para tomar uma decisão como essa movido por uma mera paixão.
Havia milhares de paelsianos reunidos do lado de fora do complexo quando ela finalmente chegou. O vilarejo mais próximo ficava a meio dia de viagem dali, mas levaria mais um dia, talvez dois, na situação
atual de Lucia, para chegar a Basilia, seu destino original.
Os portões altos e pesados rangeram ao se abrir, e a multidão adentrou o complexo. Lucia se concentrou tanto nas pessoas que a cercavam, procurando algum rosto conhecido, que mal viu os caminhos de pedra
e as casas de barro que levavam em direção à enorme casa de três andares no centro do complexo. Os paelsianos estavam sendo levados para uma ampla clareira, com fogueiras e vários assentos elevados de
pedra. Isso a fez pensar nas histórias que já tinha ouvido sobre como o chefe Basilius organizava competições entre os homens que queriam impressioná-lo com sua força e habilidade de combate. Ali, já tinham
ocorrido lutas mortais apenas para entretê-lo.
A multidão continuou crescendo, mas Lucia não ouviu nenhuma menção ao ex-chefe e a seus prazeres nos fragmentos de conversa ao seu redor. Só ouvia sobre a importância da nova imperatriz.
Lucia não imaginava que os paelsianos fossem tão fáceis de enganar. Eles acreditaram, por muitos e muitos anos, que o chefe Basilius era um feiticeiro.
Chefe Hugo Basilius. Seu pai biológico.
E aquela era a casa dele - o lugar onde ela teria sido criada se não tivesse sido roubada no berço.
Lucia olhou para as casas, ruas e a arena que formavam o complexo, esperando sentir uma sensação de perda da vida que deveria ter tido.
Mas não sentiu nada. Se havia um lar do qual sentia falta, era do palácio escuro cercado por gelo e neve em Limeros.
Quanto antes conseguisse deixar aquele reino seco e desagradável, melhor. Já tinha aprendido mais do que o suficiente sobre a cultura paelsiana quando a conheceu com Kyan.
Ela não ouviu boatos sobre o deus de fogo causando mais destruição e morte durante suas viagens. Segurava firme a esfera de âmbar que tinha escondido no bolso. Timotheus insistira que Kyan não podia morrer.
Mas, se era verdade, onde ele estava? O que estava planejando? Ela o havia ferido gravemente em sua batalha? Se não tinha, por que Kyan não havia voltado às Montanhas Proibidas para recuperar sua esfera
antes que Lucia a encontrasse?
Ela pressionou os dedos ao redor do cristal de âmbar ao pensar nisso. Seria forte o suficiente para lutar se ele a encontrasse naquele dia?
Lucia detestava admitir que não.
Não, não é bom o suficiente, ela pensou. Não há outra escolha. Tenho que ser forte.
- Ela é incrível, de fato - outro um velho corcunda paelsiano disse. - Se tem alguém que pode livrar nossa terra de sua doença mortal, é a imperatriz.
- Quero vingança pela morte de minha família - uma mulher mais jovem respondeu.
- Também quero - uma mulher mais velha concordou.
- De que doença estão falando? - Lucia perguntou.
- A doença da bruxa sombria - o velho resmungou. - A maldade dela destruiu esta terra e matou milhares de paelsianos com o toque de sua mão feia e retorcida.
Lucia mexeu as mãos.
- Ouvi falar dessas maldades...
- Maldades? - ele praticamente gritou com ela. Gotas de saliva do homem acertaram o rosto de Lucia, que limpou a face, fazendo uma careta. - Alguns dizem que Lucia Damora vai matar todos nós com sua magia
do fogo, que é uma feiticeira imortal, filha do Rei Sanguinário com uma demônia durante uma cerimônia de magia sanguinária! Mas eu a vejo como é: alguém que precisa ser morta antes que acabe machucando
outras pessoas.
Eles sabiam seu nome. E a odiavam o suficiente para desejar sua morte.
Não importava que o velho não tivesse incluído Kyan no relato. Já era um fato. Ela não podia voltar e mudar o que tinha acontecido.
Os paelsianos viam Lucia como uma bruxa demoníaca tirada das sombras como uma hera odiosa. Um pesadelo e uma doença que infestavam sua terra.
Ela nem tentou discutir, uma vez que estavam totalmente certos.
A multidão começou a gritar quando Amara finalmente subiu ao palco. Lucia tentou ver o máximo que pôde da bela moça, o cabelo comprido e escuro estava solto, o vestido de seda esmeralda com uma fênix brilhante
bordada. Quando ela ergueu as mãos. As pessoas ficaram em silêncio.
Amara falou de maneira clara e intensa sobre um futuro incrível para os cidadãos de Paelsia. Lucia não acreditava nas mentiras que ela despejava, mas, ao observar em volta, viu que as pessoas aceitavam
o que era dito como quem aceita um banquete delicioso.
A imperatriz parecia muito sincera em suas promessas. Lucia admirava a facilidade com que falava sobre mudar tudo o que estava errado no mundo. Sobre tomar decisões em nome daquelas pessoas que acreditavam
em cada uma de suas palavras.
Lucia estava ali, punhos cerrados, odiando Amara e esperando a chance de descobrir o que sua inimiga tinha feito com sua família.
E então, quase no mesmo instante, as lindas e falsas palavras que Amara dizia foram interrompidas. Alguém gritou e Lucia só entendeu o que estava acontecendo quando viu um guarda cair no palco, com uma
flecha enfiada na garganta. Outro guarda caiu, e mais um.
Uma tentativa de assassinato.
Isso não pode acontecer, Lucia pensou desesperada. Preciso muito perguntar a ela. Amara não pode morrer hoje.
Com muito esforço, Lucia acessou a magia do ar. Um vento frio e abundante envolvia seus braços e mãos em espirais transparentes enquanto ela avançava pela multidão em direção ao palco, usando a magia invisível
para tirar todo mundo de seu caminho. Os guardas kraeshianos pularam na multidão assustada e confusa com armas em punho e só provocaram mais pânico. Eles derrubavam quem os enfrentava ou cruzava seu caminho,
fossem rebeldes ou civis, o que só aumentou a confusão enquanto todos tentavam fugir.
Lucia se esforçou para enxergar o que estava acontecendo no palco. Amara e uma garota muito parecida com a criada que costumava acompanhar a princesa Cleo encolheram-se diante de um jovem alto que usava
um tapa-olho preto e empunhava uma espada.
A magia do ar frio de Lucia passou para a de fogo, pronta para queimar quem a impedisse de chegar a Amara. Alguém puxou seu manto, e ela olhou para a pessoa, pronta para fazê-la arder em chamas. Nicolo
Cassian olhou para ela, uma das mãos em seu manto, a outra pressionada contra um ferimento na barriga. Quando ele tossiu, sangue espirrou de sua boca.
Um ferimento mortal.
Lucia olhou de novo para o palco, mas um som engasgado a fez virar de novo para Nic, uma vítima dos guardas sedentos por sangue ou de um paelsiano assustado.
Não importava quem tinha feito aquilo. Ela conseguiu ver, com rapidez, que o ferimento era profundo e mortal. O que aquele garoto estava fazendo justamente ali?
Lucia não tinha magia suficiente para lutar contra milhares. Levou a mão à barriga ao observar a multidão, sabendo que precisava ir para um local seguro. Muitos estavam se pisoteando para voltar aos portões.
Ela deu um passo e então percebeu que Nic ainda a segurava.
- Prin... ce... sa... - ele disse, sem fôlego.
Ela o encarou, hesitante.
- Por favor... me ajude...
A vida se esvaía de seus olhos. Nic não tinha mais muito tempo. Mas ele era amigo próximo da princesa Cleo - uma garota que Lucia já tinha considerado uma amiga verdadeira, até ser traída por ela.
Mas o pai de Lucia tinha destruído a vida de Cleo, destruído todo o seu mundo.
Cleo tinha perdido tudo no último ano. Aquele amigo era o único resquício que a princesa auraniana tinha de sua antiga vida.
Se Nic morresse, Lucia não tinha dúvidas de que isso destruiria Cleo.
Lucia detestava quando sua consciência pesava, principalmente quando isso acontecia por causa de Cleiona Bellos.
Com cuidado, ela se agachou ao lado de Nic e afastou a mão que cobria o ferimento para, em seguida, levantar a túnica. Fez uma careta ao ver todo aquele sangue e as entranhas para fora.
- Diga a Cleo - Nic disse com esforço para respirar - que eu a amo... que ela é minha família... que eu... eu sinto muito.
- Poupe seu fôlego - Lucia disse. - E diga a ela você mesmo.
Lucia pressionou o ferimento cheio de sangue e canalizou toda a magia da terra que tinha dentro de si. Nic arqueou as costas e gritou de dor, e o grito estridente se espalhou pelo caos ao redor deles.
- Pare! Por favor! - Nic tentou impedi-la, afastá-la, mas estava fraco demais. Tinha perdido tanto sangue que Lucia não sabia se teria magia suficiente para curá-lo. Mas ainda assim, tentou. O capuz caiu
de sua cabeça, revelando o cabelo e o rosto, mas ela não se deu ao trabalho de puxá-lo de volta. Esgotou a energia e a força que tinha em uma tentativa de salvar aquele rapaz.
Pelo menos até alguém arrancá-la de perto dele. Ela virou, furiosa, e ficou frente a frente com um homem feio que escancarava um sorriso mostrando os dentes.
- Vejam o que encontrei! - ele anunciou, arrastando-a para longe de Nic até ela perdê-lo de vista. - A própria feiticeira atacando outro de nós! As mãos dela estão manchadas de sangue paelsiano!
Lucia tentou invocar magia do fogo ou do ar para afastá-lo, mas nada aconteceu. Ela fechou a mão, desesperada para fugir de quem a atacava.
- Olhe para mim, bruxa! - o homem disse.
Ela lançou um olhar para o homem, mas recebeu um tabefe no rosto tão forte a ponto de fazer seu ouvido zunir.
- Amarre-a! - alguém gritou. - Queime a bruxa como ela queimou nossos vilarejos!
Desorientada, ela foi arrastada pela terra seca, tropeçando nos próprios pés até seu agressor empurrá-la para longe. Ela caiu de joelhos com tudo no meio de uma roda de pessoas furiosas. Alguém jogou uma
pedra nela, acertando o lado direito de seu rosto com força, e Lucia gritou de dor. Levou a mão ao rosto e sentiu o sangue quente.
- Não sou quem você pensa que sou - ela conseguiu dizer. Levantou as mãos à frente do corpo. - Você precisa me soltar.
- Não, bruxa. Hoje você vai morrer por seus crimes cruéis. Estamos de acordo?
A multidão que a cercava expressou aprovação com gritos. Não havia misericórdia no olhar de ninguém. Alguém entregou uma corda grossa ao primeiro agressor.
- Deixe-a de pé - ele vociferou.
Alguém atrás de Lucia a levantou e amarrou seus punhos com força.
- Meus cumprimentos, princesa - uma voz estranhamente familiar soou em seu ouvido. - Pelo visto está causando mais problemas em Paelsia.
Jonas Agallon. Ela se esforçou para virar o suficiente e ver aquele olhar tomado de ódio.
- Jonas - ela disse -, por favor, precisa me ajudar!
- Ajudar? O quê? A grande e poderosa feiticeira não consegue se cuidar? - Ele estalou a língua. - Que tragédia. Parece que essas pessoas querem vê-la morta. Queimada viva, acho que foi o que ouvi, certo?
Parece um fim adequado para uma bruxa como você.
Sua mente estava a mil.
- Onde está meu pai? Meu irmão? Você sabe?
- É a última coisa com que você deveria se preocupar, princesa. Sinceramente. - Ele a virou e resvalou a mão na barriga dela.
Jonas franziu a testa.
- Isso mesmo - ela disse, agarrando todas as oportunidades que tinha de conseguir ajuda, ainda que fosse de alguém como ele. - Vocês vão tentar celebrar minha execução tão rápido agora que sabem que uma
criança inocente morrerá comigo?
- Inocente? - O olhar de Jonas não suavizou nem um pouco. - Nada que alguém como você poderia trazer a este mundo seria inocente.
- Eu não matei aquela moça. Foi Kyan. Ele... eu não consegui controlá-lo. Eu queria que ele parasse. Sinto muito por sua perda e me arrependo do que aconteceu naquele dia. Gostaria de poder mudar as coisas,
mas não posso.
- O nome daquela moça era Lysandra. - Jonas contraiu o maxilar, e ficou em silêncio por um momento enquanto os outros homens pediam para ir a um lugar mais adequado para queimar a bruxa. - Onde está Kyan?
- Eu... eu não sei - ela disse com sinceridade.
Jonas a encarou.
- Essa criança dentro de você drena sua magia, não é?
- Como sabe disso?
Ele franziu ainda mais a testa.
- Você já teria destruído tudo aqui se tivesse acesso a seus elementia, certo?
Ela apenas assentiu.
Jonas xingou em voz baixa.
- Eles precisam de você. Estão dependendo de você. E você está aqui, como uma idiota, prestes a morrer.
Se estivessem em outro lugar, em outro momento, ela teria ficado magoada ao ser chamada de idiota.
- Então faça alguma coisa em relação a isso. Por favor.
Depois de um momento de hesitação, Jonas empunhou a espada e a apontou para o homem que segurava a corda.
- Uma pequena mudança de planos. Vou levar a feiticeira comigo.
- Sem chance - o homem resmungou.
- Não há discussão. Estou vendo que nenhum de vocês está armado no momento. - Ele observou as pessoas do grupo. - Atitude estúpida, em uma multidão assim, não carregar uma arma, mas isso torna as coisas
mais fáceis para mim. Se nos seguirem, vão morrer. - Ele arregalou os olhos para Lucia. - Vamos, princesa.
Jonas pegou o braço dela e a puxou.
- Aonde vai me levar? - ela perguntou.
- Aos seus queridos pai e irmão. Que todos vocês apodreçam juntos na escuridão.
21
CLEO
PAELSIA
Quando percebeu que Nic, Jonas e Olivia tinham partido sem contar nada sobre seus planos, Cleo não ficou magoada. Ficou furiosa.
- Minha nossa, querida, você vai abrir um buraco no chão de tanto andar de um lado para o outro.
Cleo virou e viu Selia Damora olhando para ela. A mulher a deixava nervosa, mas felizmente as duas tinham se encontrado poucas vezes desde sua chegada. Era difícil acreditar que fazia só três dias que
estavam na hospedaria. Pareciam três anos.
- Meus amigos partiram sem se despedir - Cleo respondeu tensa, forçando-se a parar de roer a unha do polegar direito. - Considero esse comportamento imperdoavelmente grosseiro e desrespeitoso. Em especial
da parte de Nic.
- Sim, Nic. O rapaz de cabelo vermelho. - Selia sorriu. - Tenho certeza de que não fez por mal. Ele parece gostar de você.
- Ele é como um irmão para mim.
- Os irmãos costumam esconder segredos das irmãs.
- Mas não o Nic. - Cleo remexeu as mãos. - Contamos tudo um ao outro. Bom, quase tudo.
- Venha sentar comigo por um momento. - Selia sentou em uma espreguiçadeira e deu batidinhas no assento ao seu lado. - Quero saber mais sobre a esposa de meu neto.
Era a última coisa que Cleo queria, mas teve que fingir amabilidade. Seria inteligente de sua parte fazer amizade com uma mulher que logo teria acesso à magia, especialmente agora que a magia de Cleo tinha
sido roubada - ainda que Selia fosse uma Damora.
Só de pensar no que Ashur tinha feito, ela tremia de raiva. Como ele tinha conseguido roubar a esfera de obsidiana sem que ela notasse? Para Cleo, aquele cristal representava poder e um futuro repleto
de escolhas e oportunidades. Mas por ser preguiçosa e desatenta, a esfera tinha sido levada de baixo de seu nariz.
E não havia absolutamente nada que pudesse fazer.
Forçando um sorriso, Cleo sentou hesitante ao lado da senhora.
Selia não disse nada por um tempo, mas observou o rosto de Cleo com cuidado.
- O que foi? - Cleo perguntou finalmente, ainda mais desconfortável do que antes.
- Eu não tinha certeza antes... mas tenho agora. Vejo seu pai em você. Seus olhos são da mesma cor dos de Corvin.
A menção a seu querido pai a deixou tensa.
- Você tinha dúvidas a respeito de quem eram meus pais?
- No que diz respeito a meu filho e a... - ela hesitou - às dificuldades dele com sua mãe, sim, claro que tive muitas dúvidas ao longo dos anos. Achei que houvesse uma chance de Gaius ser seu pai.
O horror de pensar numa possibilidade daquelas a deixou enjoada de repente.
- Meu... meu pai? - Ela cobriu a boca com a mão. - Acho que vou vomitar.
- Ele não é seu pai. Tenho certeza disso agora que estou olhando para você.
Cleo tentou se manter calma, mas a insinuação inesperada da mulher a deixara atordoada.
- Minha... minha mãe não teria... de jeito nenhum...
- Sinto muito se a perturbei com isso. Mas não prefere ter certeza de que você e Magnus estão unidos apenas pelos votos e não pelo sangue? - Ela franziu a testa. - Minha nossa, você está muito pálida,
Cleiona.
- Nem sei por que sugere uma coisa dessas - ela disse.
- Não pensei que Gaius tivesse conseguido se encontrar com Elena depois da briga que tiveram, que sei que aconteceu bem antes de ela se casar com Corvin. Mas os filhos nem sempre contam tudo à mãe sobre
assuntos do coração, nem mesmo o filho mais atencioso e amoroso.
O modo como o rei expressara o que teriam sido suas últimas palavras, seu suspiro final, o nome da mãe dela... "Sinto muito, Elena".
- Só soube que eles se conheciam recentemente - Cleo disse, tensa.
- Eles se conheceram num verão vinte e cinco anos atrás na Ilha de Lukas, quando Gaius tinha dezessete anos, e Elena, quinze. Quando voltou para casa, Gaius já estava obcecado por ela, dizendo que iam
se casar com ou sem o consentimento do pai dele.
Cleo se esforçou para continuar respirando. Aquela história não parecia plausível. Soava como uma história de um livro cheio de fantasia e imaginação.
- Meu pai nunca disse nada a respeito... - Ela franziu a testa. - Ele sabia?
- Não faço ideia do que Elena pôde ter contado a Corvin sobre seus romances anteriores. Imagino que ele descobriu a verdade no fim das contas, ainda que apenas para se preparar melhor para proteger Elena.
- Protegê-la? Como assim?
A expressão de Selia ficou mais séria.
- Elena perdeu o interesse em Gaius quando voltou para casa. Não sei por quê. Imagino que fosse apenas uma novidade passageira para ela, uma maneira de passar o verão, conquistar o afeto de um garoto apaixonado.
Nada além disso. Quando descobriu essa mudança, Gaius... não aceitou muito bem. Confesso, amo meu filho profundamente, mas ele sempre teve um péssimo lado violento. Gaius foi atrás de Elena, exigindo que
seu amor fosse retribuído e, quando ela se recusou, ele a agrediu quase a ponto de matá-la.
Cleo sentiu mais uma onda de náusea. Sua pobre mãe, sujeita ao cruel Gaius Damora em sua pior versão.
Ela nunca detestara tanto o rei.
- Só espero que meu neto não seja exageradamente cruel com você a portas fechadas, minha cara - Selia disse delicadamente. - Homens poderosos, cheios de força e perigo... costumam ter acessos de violência.
As esposas e mães torcem para sobreviver a eles.
- Sobreviver? Não pode estar falando sério! Se Magnus um dia levantasse a mão para mim, eu...
- O quê? Você mal chega na altura do ombro dele, e Magnus deve ter o dobro do seu peso. A melhor coisa a se fazer nesse caso, Cleiona, é ser o mais agradável e compreensiva possível em todos os momentos.
Todas as mulheres devem fazer isso.
Cleo endireitou os ombros e levantou o queixo.
- Não tive o grande privilégio de conhecer minha mãe, mas se ela era um pouco parecida comigo ou um pouco parecida com minha irmã, então sei que ela não teria sido o mais agradável e compreensiva possível
diante de uma agressão, não importa de quem nem quando. Nem eu! Eu mataria quem tentasse me atacar!
Selia abriu um sorriso discreto.
- Meu neto escolheu uma garota com coragem e força para amar, assim como o pai dele. Eu estava testando você, é claro.
- Me testando?
- Olhe para mim, querida. Tenho cara de quem permitiria que um homem levantasse a mão para me bater?
- Não - Cleo respondeu com sinceridade.
- Exato. Fico feliz por termos conseguido conversar hoje, minha querida. Agora já sei tudo o que preciso saber.
Ela estendeu o braço, apertou a mão de Cleo e então saiu da sala.
Aquela tinha sido a conversa mais esquisita de toda a vida de Cleo.
- Talvez eu vá à taverna sozinha hoje - ela murmurou. - Por que Magnus é o único aqui que pode beber vinho em uma tentativa tola de fugir dos problemas?
Quando levantou, algo chamou sua atenção do lado de fora, nos fundos da hospedaria. Ela deu um passo para a frente. Olivia estava no quintal. Estranhamente, a moça não usava nada além de um lençol branco
enrolado no corpo, lençol que Cleo reconheceu das roupas de cama que a esposa do dono da hospedaria lavava todos os dias.
Independentemente da vestimenta, ver Olivia foi um grande alívio. Cleo levantou e saiu para se aproximar, observando ao redor com curiosidade.
- Olivia! Nic e Jonas estão com você? Aonde vocês foram?
A expressão de Olivia era de grande incerteza.
- Preciso sair de novo imediatamente, mas quis voltar antes para ver você.
- O quê? Aonde está indo?
- Está na hora de eu voltar para a minha casa. O caminho e o destino de Jonas se encontraram com sucesso, e meu tempo com ele está acabando.
- Desculpe. - Cleo balançou a cabeça, confusa. - O destino de Jonas? Do que você está falando, afinal?
- Não cabe a mim explicar essas coisas. Só sei que não posso mais cuidar dele, uma vez que talvez me sinta tentada a interferir. - Ela franziu a testa. - Isso deve soar ridículo para você. Sei que não
sabe quem sou de verdade.
- Você quer dizer que é uma Vigilante?
Olivia olhou para Cleo.
- Como sabe disso?
Cleo riu com hesitação ao ver a expressão de choque de Olivia.
- Jonas me contou. Ele confia em mim, você também deveria confiar. Prometo guardar seu segredo surpreendente, mas, por favor, me diga o que está acontecendo. Está chateada só por deixar Jonas?
- Não, não é o único motivo. Eu... eu fui ao complexo com Nic e Jonas, onde a imperatriz está no momento.
Cleo arregalou os olhos.
- Era onde você estava? Que plano imbecil foi esse?
- O príncipe Magnus ameaçou Nic - Olivia explicou. - Ele ameaçou você também, caso Nic não fosse atrás de Ashur para recuperar os cristais da Tétrade.
Cleo franziu a testa.
- Não pode ser. Magnus não faria isso.
- Garanto que fez. Caso contrário, Nic nunca teria se afastado de você. - Os olhos verde-esmeralda de Olivia brilharam de ódio. - É culpa do príncipe que isso tenha acontecido. Perdi Nic na multidão durante
a tentativa de assassinato de Amara. Eu o vi por apenas um momento quando ele foi atingido por uma lâmina. Eu... eu acredito que tudo terminou depressa.
Cleo balançou a cabeça quando a palma de suas mãos começou a arder e a suar.
- O quê? Não entendo. Ele foi atingido por uma lâmina? Que lâmina? Do que está falando?
A expressão de Olivia era só pesar.
- Nic está morto. Ele é um dos muitos mortos depois que os rebeldes fizeram uma tentativa de assassinato a Amara. Preciso sair de Mítica agora e peço a você que faça o mesmo. Você não está em segurança
aqui com alguém como Magnus, que mataria um rapaz como Nic. Não está certo, princesa, nada disso está certo. O mundo está fora de controle, e eu temo que seja tarde demais para salvá-lo. Sinto muito por
dizer isso, mas achei que você merecia saber.
Olivia soltou a mão de Cleo e deu alguns passos para trás, com uma expressão atormentada.
- Fique bem, princesa - ela disse. Depois disso, a pele escura e impecável se transformou em penas douradas, e seu corpo se transformou no de um falcão, e ela alçou voo.
Cleo a observou, surpresa demais com o que tinha ouvido para apreciar a magia verdadeira e inegável revelando-se diante de seus olhos.
Ela não sabia ao certo quanto tempo ficou em silêncio no pátio, olhando para o céu claro, até voltar para a hospedaria com dificuldade. Seus joelhos fraquejaram antes que ela alcançasse uma cadeira.
Seu corpo inteiro tremia, mas ela não chorou. Eram informações demais para processar. Inacreditável demais. Não podia ser verdade. Se fosse, se Nic estivesse morto, então ela também queria morrer.
- Você está bem? O que aconteceu?
Quando se deu conta do que estava acontecendo, Cleo percebeu que tinha sido levantada do chão por dois braços fortes.
- Está ferida? - Magnus afastou o cabelo dela da testa, envolvendo seu rosto com as mãos. - Que droga, Cleo, responda!
Confusa, ela percebeu a preocupação nos olhos castanhos profundos dele.
- Magnus... - ela começou, a respiração profunda e trêmula.
- Sim, meu amor. Fale comigo. Por favor.
- Diga a verdade.
- Claro. O quê? O que você precisa saber?
- Você ameaçou me matar se Nic não fosse atrás de Ashur?
A expressão sofrida dele, totalmente concentrada nela, aos poucos deu lugar à frieza da máscara que ele usava para encobrir suas emoções.
- Ele disse isso? Ele voltou?
- Responda. Você me ameaçou ou não?
Magnus encarou os olhos furiosos dela.
- Cassian precisava da motivação certa.
- Isso é um sim.
- Eu disse o que ele precisava ouvir para resolver a questão. Para...
Cleo deu um tapa tão forte no rosto dele que sua mão ardeu. Magnus levou a mão ao rosto e olhou para ela, atônito.
Ele franziu o cenho.
- Você ousa...
- Ele está morto! - Cleo gritou antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa. - Por causa do que você disse! Meu último amigo no mundo inteiro está morto por sua causa!
Ele parecia confuso.
- Não pode ser.
- Não pode? As pessoas não morrem quando se aproximam de você e de sua família monstruosa? - Ela passou os dedos pelo cabelo, desejando arrancá-lo pela raiz, desejando sentir dor física para poder se concentrar
em algo que não fosse seu coração despedaçado.
- Quem contou isso a você? - Magnus perguntou.
- Olivia voltou. Ela foi embora, então não pode forçá-la a fazer o que você quer.
- Olivia. Sim, bom, não sei quem Olivia é. Nem você. Só sabemos que ela é aliada de Jonas, um garoto que me odiava a ponto de me querer morto até pouco tempo atrás. Até onde sei, esse objetivo não mudou.
- Por que ela mentiria sobre algo assim? - A voz da princesa falhou.
- Porque as pessoas mentem para conseguir o que querem.
- Imagino que você saiba bem disso.
- Sim, e penso o mesmo sobre você, princesa - ele disse. - Entre nós dois, acho que você mentiu muito mais do que eu. Além disso, devo dizer que você viu Ashur morrer com seus próprios olhos, mas ele ainda
está vivo. Não existem provas de que Nic está morto. Só tem as palavras de alguém. Não se pode confiar em palavras, não nas palavras de qualquer um.
- Essa é a sua resposta? - Cleo olhou para ele, percebendo que mal conhecia a pessoa à sua frente. - Digo que um garoto que era como um irmão para mim foi morto por sua causa e você diz simplesmente que
mentiram para mim?
- É o que parece, não é?
- Você não assume responsabilidade por todo o mal que causou. Nunca! - Ela se esforçou ao máximo para se manter firme, para não se perder na dor e na raiva que entravam em conflito dentro dela. - Tentei
ver seu lado bom, mas você fez algo imperdoável. Vá em frente! - ela vociferou. - Tente se defender! Diga que Nic odiava você, então por que não desejaria que ele morresse? Vamos lá, faça isso!
- Não vou negar. A vida seria muito mais simples para mim se aquela pedra no meu sapato fosse retirada de uma vez por todas. Mas eu nunca desejaria a morte dele, porque sei como gosta dele.
- Gosto dele? Eu amo! - ela gritou. - E se ele realmente estiver morto, eu...
- O quê? Vai perder o resto de esperança que ainda tem? Vai se encolher e morrer? Por favor, você tem muito a ganhar ficando viva, lutando, mentindo e continuando a me usar sem pudor para conseguir o que
posso lhe dar.
Cleo olhou para ele, abismada.
- Usar você?
Magnus ficou sério.
- Você quer poder, magia. Ao ficar aqui comigo e tolerar a existência de meu pai, sabia que isso a levaria ao que deseja. Quando os cristais da Tétrade foram roubados, principalmente por sabermos o que
sabemos sobre eles, o que eu deveria pensar? Que você continuaria aqui para sempre? Fiz o que fiz por você, para ajudá-la a reaver sua chance de ter poder. Ashur parece valorizar Nic por motivos que não
compreendo. Se tem alguém que consegue entender aquele kraeshiano doido, eu sabia que era seu amigo querido. O mesmo amigo que mandou Taran cortar meu pescoço, devo relembrar.
Ele falava com Cleo como um desconhecido furioso, não como alguém que ela tinha passado a valorizar.
- E agora está me culpando por isso. Como ousa?
Magnus bufou.
- É impossível discutir com você.
- Então nem tente. Você não pode consertar isso, Magnus. Não pode nem começar.
- Se Nic ainda estiver vivo...
- Não importa. - Lágrimas correram por seu rosto. - Isso provou como somos diferentes. Você é incansavelmente cruel e manipulador, e agora vejo que isso nunca vai mudar.
- Posso ser sincero, princesa? Eu poderia dizer exatamente a mesma coisa sobre você. Talvez você preferisse que eu lidasse com o conflito colhendo flores e cantando, mas não sou assim. E você tem razão:
nunca vou mudar. Nem você. Uma hora você diz que me ama, mas prefere que cortem sua língua a contar esse segredo, até mesmo a seu amigo mais íntimo. Pelo amor da deusa! Que Nic não descubra que você se
mistura com pessoas como eu! Ele detestaria você por isso?
Cleo secou as lágrimas, irritada consigo mesma por demonstrar tamanha fraqueza.
- É muito provável que sim.
- Então isso prova que, entre ele e eu, você o escolheria.
- Num piscar de olhos - ela disse imediatamente. - Mas ele está morto.
Um músculo no rosto dele se contraiu.
- Talvez. E Jonas? Não pude deixar de notar que você estava praticamente sentada no colo dele ontem, sussurrando palavras de amor e incentivo.
- É o que você...? - Ela corou. - Jonas é muito mais homem do que você! Eu preferiria dormir com ele a dormir com você. Em qualquer dia, em qualquer momento. E nenhuma maldição me impediria.
- Vá para o inferno, Cleo. - O ódio tomou conta do olhar dele, que já estava frio. Magnus levantou o punho, os dentes travados em uma expressão feroz.
- Vamos - ela vociferou. - Bata em mim como seu pai batia na sua mãe. Você sabe que é o que quer.
- Como é? - Ele franziu a testa, olhou para o próprio punho com surpresa e o abaixou em seguida. - Eu... eu nunca agrediria você.
- Chega - ela disse, num sussurro. - Estou cansada daqui. Preciso pensar. - Ela se virou em direção à escadaria que levava aos quartos.
- Cleo... - Magnus chamou. - Vamos descobrir a verdade sobre Nic. Prometo.
- Eu já sei a verdade.
- Eu sei que posso ser horroroso às vezes. Eu sei. Mas... eu amo você. Isso não mudou.
Os ombros dela ficaram tensos.
- O amor não basta para consertar isso.
Sem olhar para trás, Cleo caminhou com o máximo de calma e lentidão até seu quarto e trancou a porta quando entrou.
22
JONAS
PAELSIA
Jonas teve que sair do complexo antes de encontrar Nic. Eles tinham sido separados depois da revolta rebelde. A multidão à espera da imperatriz tinha entrado em pânico, e as pessoas começaram a lutar umas
contra as outras e contra os guardas kraeshianos.
Sua visão do palco estava bloqueada, e ele se viu frente a frente com paelsianos irados e com a feiticeira que queriam matar.
- Pode olhar para mim com ódio - Lucia disse a ele enquanto se afastavam da confusão.
- Que bom que permite.
- Você me odeia. E, ainda assim, você salvou minha vida.
- É provável que eu tenha salvado a vida de uma dúzia de paelsianos que subestimaram sua capacidade de matar cada um deles.
- E você não me subestima?
- Não.
- Então sugiro que você me diga onde meu pai e meu irmão estão para que não tenha que colocar sua vida em risco por nenhum segundo a mais em minha companhia.
Jonas sabia que ela poderia cumprir uma ameaça, se quisesse. Ele temia quando pensava no poder daquela garota e no prejuízo e na destruição pela qual a responsabilizavam.
- Onde está o deus do fogo? - ele sussurrou.
Lucia arqueou as sobrancelhas. Jonas percebeu que ela estava chocada por ele saber quem - ou melhor, o que - Kyan era de fato.
- Já disse que não sei.
- Ele é o pai de seu filho?
Lucia deu uma risada alta e nervosa.
- Com certeza não.
- Não vejo graça nenhuma nisso.
- Não se engane, rebelde, nem eu.
- Continue andando - ele disse quando Lucia diminuiu o ritmo. - Pelo jeito você está pesada demais para ser carregada.
A resposta de Lucia ao insulto foi parar totalmente. Os dois tinham adentrado uma parte densa da floresta a caminho da cidade mais próxima, onde Jonas pretendia conseguir transporte para o oeste.
- Responda à minha pergunta: onde estão meu pai e meu irmão? Sei que ainda estão vivos. Só podem estar.
- Se eu responder à sua pergunta, que certeza posso ter de que você não vai acabar com a minha vida? - ele perguntou.
- Nenhuma.
- Exatamente. Por isso mesmo vou levá-la até eles.
Lucia se surpreendeu.
- Então eles estão vivos!
- Talvez - ele disse.
- E como posso acreditar que você quer me ajudar?
Jonas virou e levantou o dedo indicador para ela.
- Não se engane, princesa Lucia, não estou fazendo isso para ajudá-la. Estou fazendo isso para ajudar Mítica.
Ela revirou os olhos.
- Que nobre.
- Pense o que quiser. Não me importa. Você se recusa a responder às minhas perguntas, então me recuso a responder às suas. Nosso destino final não está muito longe, mas você precisa encontrar uma maneira
de lidar com minha presença e com meu ódio durante o trajeto que vamos percorrer juntos.
- Acho que não. Vou contar um segredinho para você, rebelde, a respeito de uma habilidade especial que descobri recentemente. Posso forçar você a dizer a verdade... e quanto mais resistir, mais vai doer.
Jonas virou para encará-la de novo, mais irritado do que intimidado.
- Você sempre foi má assim ou só começou quando descobriu que era uma feiticeira?
- Sinceramente? - Ela abriu um sorriso frio. - Só depois.
- Acho difícil acreditar nisso. Você e sua família... são maldade pura, todos vocês.
- E ainda assim você está nos ajudando. - Lucia franziu a testa discretamente. - Pelo menos, diga que estão bem, que saíram ilesos depois de tudo o que aconteceu.
- Ilesos? - Ele sorriu com ironia. - Não sei de nada. Finalmente tive a chance de enfiar uma adaga no coração do rei. Por azar, isso só o atrapalhou um pouco.
Os olhos dela brilharam, furiosos.
- Mentira.
- Bem aqui. - Ele indicou o peito. - Certeiro e profundo. Até girei. Foi tão bom que não consigo nem explicar.
Um instante depois, ele se viu no ar, voando até bater as costas no tronco de uma árvore com força suficiente para tirar seu fôlego.
Lucia se ajoelhou ao lado dele, apertando sua garganta.
- Olhe para mim.
Desorientado, Jonas encarou os olhos azul-claros dela.
- Diga a verdade - ela rosnou. - Meu pai está morto?
- Não. - A palavra foi dita com dificuldade.
- Você o apunhalou no coração mas ele não morreu?
- Exatamente.
- Como isso é possível? Responda!
Jonas não conseguia desviar daqueles olhos lindos e assustadores. A magia que ela tinha perdido - se é que isso de fato havia acontecido - estava de volta. E Lucia estava bem mais forte do que ele esperava.
- Algum tipo de magia... Não sei. Isso prolongou a vida dele.
- Magia de quem?
- Da mãe.... dele. - Jonas tinha certeza de que estava sentindo gosto de sangue, forte e metálico. Ele engasgou enquanto tentava resistir à magia.
Ela franziu ainda mais a testa.
- Minha avó morreu.
- Ela está viva. Não sei muito mais do que isso. - Ele fez uma careta pela dor de estar contando todas aquelas verdades. - Agora, me faça um favor, princesa.
Ela inclinou a cabeça, mas não cedeu nem um pouco.
- Dificilmente.
Jonas semicerrou os olhos e tentou, com toda a força, canalizar a própria magia como tinha feito sem querer no navio com Felix.
- Me solte.
Lucia soltou Jonas e caiu para trás como se tivesse sido empurrada pelo rebelde.
Tossindo e com a mão no pescoço, Jonas levantou e olhou para ela.
Percebeu que esboçava um sorriso. Olivia deveria estar enganada sobre o poder de sua magia. Jonas se permitiu um breve momento de vitória.
Lucia o encarou, com os olhos arregalados.
- Você pode canalizar a magia do ar? Um bruxo? Nunca soube sobre algo assim... Ou você é um Vigilante exilado?
- Prefiro evitar títulos, princesa - ele disse. - E, francamente, não sei o que sou, só que tenho que lidar com isso agora. - Ele levantou a camisa o suficiente para revelar a marca em espiral em seu peito,
que tinha ficado mais brilhante desde a última vez em que ele olhara, e agora cintilava num tom dourado que o fazia lembrar cada vez mais da marca de um Vigilante.
- O quê? - Lucia balançou a cabeça com os olhos arregalados. - Não compreendo.
- Nem eu. E juro, se essa é minha profecia, cuidar para que alguém como você volte para sua odiosa família sã e salva, vou ficar furioso. - Ele olhou para cima, para as árvores. - Olivia, está me ouvindo
onde quer que esteja? É a pior profecia do mundo!
- Quem é Olivia?
- Deixa para lá. - Ele olhou para Lucia, ainda deitada no chão. - Levante.
Ela tentou ficar de pé.
- Hum...
- Não consegue levantar, não é?
- Me dê um minuto. Minha barriga está um pouco esquisita no momento. - Lucia olhou feio para ele. - E, por favor, nem pense em me ajudar.
- Não pensei. - Jonas ficou observando enquanto ela rolava devagar e com dificuldade para o lado, e então levantava, batendo no manto para tirar as agulhas de pinheiro e a terra. - Você ainda não está
acostumada com sua situação? Já vi paelsianas grávidas, a poucos dias de dar à luz, cortando madeira de uma árvore inteira e carregando para casa.
- Não sou uma paelsiana - ela disse e hesitou. - Bem, não exatamente. E não tive tempo de me acostumar com minha "situação", como você diz.
Que moça esquisita.
- Você está grávida de quantos meses?
- Não que seja da sua conta, mas... cerca de um mês.
Jonas olhou para o corpo dela sem acreditar.
- É assim que funciona com as feiticeiras cruéis? Os bebês delas se desenvolvem muito mais depressa do que os bebês normais?
- Não tenho como saber. - Lucia cruzou os braços como se tentasse proteger a barriga. - Compreendo seu ódio por mim. Compreendo o ódio de todos por mim. O que fiz desde... desde que o pai desta criança
morreu é imperdoável. Sei disso. Mas essa criança é inocente e merece uma chance de viver. O fato de você, logo você, ter vindo ajudar alguém como eu... Você está marcado como imortal, mas afirma não ser
bruxo nem exilado. Isso deve significar alguma coisa. Você fala sobre profecias. Sei bem que sou o alvo de profecias. Para mim, isso quer dizer que essa criança é importante para o mundo.
- Quem é o pai? - Jonas perguntou. Ele não queria sentir pena pelo que Lucia estava passando nem deixar que a voz dela o emocionasse.
- Um imortal exilado.
- E você disse que ele está morto.
Ela assentiu uma única vez.
- Como? - Jonas perguntou. - Você o matou?
Lucia ficou em silêncio por tanto tempo que ele achou que ela não responderia.
- Não. Ele tirou a própria vida.
- Interessante. É essa a única maneira de escapar de suas garras sombrias?
O olhar de ódio de Lucia o fez recuar. Mas era mais do que isso. Os olhos dela estavam vermelhos, numa mistura de cansaço e tristeza.
- Desculpa - Jonas disse antes de pensar em outra resposta. - Acho que fui desnecessariamente grosseiro.
- Foi. Mas eu não esperaria nada menos de alguém que pensa que sou cruel. O que Kyan fez com sua amiga...
- Lysandra - ele disse com a voz embargada. - Ela era incrível... A garota mais forte e corajosa que já conheci. Ela merecia a vida que Kyan lhe roubou sem um segundo de hesitação. Ele estava mirando em
mim, eu deveria ter morrido naquele dia, não ela.
Lucia assentiu com tristeza.
- Sinto muito. Percebo que Kyan não é uma pessoa, não é alguém com sentimentos e necessidades como as dos mortais, e não é possível discutir com ele. Kyan vê todas as falhas e imperfeições deste mundo.
Ele deseja reduzir tudo a cinzas para poder recomeçar. Diria que ele é maluco, mas é fogo. Fogo arde. Destrói. Essa é a razão de sua existência.
- Kyan quer destruir o mundo - Jonas repetiu.
Ela confirmou.
- Por isso eu o deixei. Por isso ele quase me matou quando eu disse que não o ajudaria mais.
Jonas demorou um momento para absorver a informação.
- Você diz que o fogo destrói. Mas o fogo também cozinha comida e nos aquece em noites frias. Esse tipo de fogo não é cruel, é um elemento que usamos para viver.
- A única certeza que tenho é de que ele precisa parar. - Ela levou a mão ao bolso do manto e tirou uma pequena esfera de âmbar. - Esta era a prisão de Kyan.
Jonas ficou sem palavras por um momento.
- E você acha que pode prendê-lo de novo aí dentro e salvar o mundo?
- Pretendo tentar - ela disse apenas.
Ele observou o rosto de Lucia, determinado e sério olhando para a esfera de cristal. Ela parecia muito sincera. Podia acreditar nela?
- Pelo que sei a respeito do deus do fogo, a imperatriz não parece ser grande ameaça, certo?
Lucia guardou a esfera no bolso de novo.
- Ah, Amara provou que é uma ameaça. Mas Kyan é bem pior. Por isso, pode me considerar cruel, rebelde. Pode me considerar alguém que precisa morrer pelos crimes que cometi. Tudo bem. Mas saiba também que
quero tentar consertar parte do que fiz agora que consigo pensar com clareza de novo. Primeiro, preciso ver minha família. Preciso... - As palavras de Lucia foram interrompidas quando ela se inclinou para
a frente e chorou.
Jonas correu para o lado dela.
- O que foi?
- Dói! - ela disse. - Está acontecendo com muita frequência desde que saí. Ah... ah, minha nossa! Não consigo...
Lucia caiu de joelhos com as mãos na barriga.
Jonas olhou para ela, sentindo-se totalmente impotente.
- Droga. O que posso fazer? O bebê já está nascendo? Por favor, não me diga que o bebê já está nascendo.
- Não, não está... Acho que ainda não está na hora. Mas isso... - Quando ela gritou, o som atingiu Jonas como uma lâmina fria. - Me leve para minha família! Por favor!
O rosto da princesa estava pálido como papel em contraste com seu cabelo escuro. Ela revirou os olhos e caiu, inconsciente.
- Princesa - ele disse, tentando acordá-la. - Vamos, não temos tempo para isso.
Lucia não acordou.
Jonas virou e olhou para o conflito. Não demoraria muito para a multidão paelsiana encontrar armas e sair em busca dele e da feiticeira.
Finalmente, xingando em voz baixa, ele se abaixou e pegou a princesa nos braços, percebendo que ela era muito mais leve do que imaginava, mesmo com o bebê que esperava.
- Não temos tempo para ir até sua família - ele disse. - Por isso vou levá-la à minha. Estão muito mais perto.
A irmã de Jonas, Felicia, abriu a porta de casa e observou Jonas por um momento, em silêncio total.
Em seguida, olhou para a garota grávida e inconsciente que ele carregava nos braços.
- Posso explicar - ele se apressou em dizer.
- Espero muito que possa. Entre. - Ela abriu mais a porta para Jonas entrar, tomando o cuidado de não bater as pernas de Lucia no batente.
- Deixe-a na minha cama - Felicia disse a Jonas. Ele fez o que sua irmã disse e voltou até ela, mas a irmã não o recebeu com um abraço. Simplesmente ficou ali, a expressão séria e furiosa, os braços cruzados.
Jonas não esperava que ela ficasse feliz ao vê-lo.
- Sinto muito por não ter vindo visitá-la - ele começou.
- Não tenho notícias suas há quase um ano e você aparece hoje de repente.
- Precisava de sua ajuda. Com... a garota.
Ela riu.
- Sim, com certeza precisa. O filho é seu?
- Não.
Ela não pareceu convencida.
- E o que você espera que eu faça por ela?
- Não sei. - Ele coçou a testa e começou a andar de um lado para o outro na casa pequena. - Ela não está bem. Sentiu dor na barriga e desmaiou. Eu não sabia o que fazer.
- Por isso a trouxe para cá.
- Eu sabia que você me ajudaria. - Ele suspirou nervoso. - Sei que você está brava comigo por eu ter passado muito tempo longe, mas era perigoso demais voltar.
- Sim, eu vi seus cartazes de procurado. O que era aquilo? Dez mil cêntimos para quem capturasse você, morto ou vivo?
- Mais ou menos isso.
- Você matou a rainha Althea.
- Não matei. É uma longa história.
- Imagino.
Ele observou ao redor, à procura de algum sinal do marido da irmã.
- Onde está Paolo?
- Morto.
Jonas a encarou.
- O quê?
- Foi tirado de mim, forçado a trabalhar para a Estrada Imperial. Eles queriam o nosso pai também, mas decidiram que, devido à idade e ao fato de mancar, ele era inútil. Paolo não voltou quando os operários
finalmente foram liberados de suas tarefas. O que devo pensar além de que foi morto com os outros paelsianos que eram tratados como escravos?
Jonas olhou para ela em choque. Paolo foi um bom amigo quando a vida era difícil, mas simples.
- Felicia, sinto muito. Eu não imaginava...
- Não, tenho certeza de que não imaginava. Assim como tenho certeza de que não pensou que manter aquela princesa dourada presa em nosso abrigo quase causaria a morte dele também.
- Claro que eu não sabia disso. - Ele olhou para o chão de terra. - Você... você disse que nosso pai não foi levado?
- Não foi, mas assim que soube da morte do chefe, ficou muito doente... doente de pesar, diferente de qualquer coisa que tenha sentido quando a mamãe e o Tomas morreram. É como se a vontade que ele tinha
de viver tivesse desaparecido. Eu o perdi faz dois meses. Agora cuido do vinhedo. São dias sobrecarregados, Jonas, com pouca ajuda.
Seu pai tinha morrido e Jonas não ficara sabendo. Ele sentou numa cadeira deixando o peso do corpo desabar.
- Sinto muito por não ter estado ao seu lado. Não sei o que dizer.
- Não há nada a dizer.
- Quando isso acabar, quando este reino voltar a ser como deveria, vou voltar. Vou ajudar você a cuidar da vinícola.
- Não quero sua ajuda - ela respondeu, e a raiva que Felicia estava controlando até aquele momento transbordou. - Consigo me virar sozinha. Bom, acho que já conversamos mais do que o suficiente. Vamos
cuidar de seu problema para você poder ir embora o mais rápido possível. Não sou curandeira, mas já ajudei muitas mulheres grávidas.
- O que você puder fazer para ajudar será muito bem-vindo. Eu só esperava que você soubesse acabar com a dor.
- Algumas gestações são mais difíceis do que outras. Quem é ela? - Ela lançou um olhar incisivo para ele quando não obteve resposta. - Diga, Jonas, ou mando você embora.
Felicia estava diferente, mais dura, mais zangada. Cada palavra dita por ela fazia Jonas se encolher.
Ele se sentia um idiota por pensar que quando voltasse nada teria mudado, mesmo depois de tanto tempo. Pensou em enviar uma mensagem, perguntar como as coisas estavam, mas não o fez. E o tempo tinha passado.
- Ela é Lucia Damora - ele respondeu com sinceridade, já que devia isso a Felicia.
Ela arregalou os olhos, chocada.
- O que você estava pensando ao trazer essa bruxa má aqui para dentro? Ela não é bem-vinda em minha casa. Tem noção do que ela fez? Um vilarejo que fica a menos de vinte quilômetros daqui foi incendiado.
Todos os moradores foram mortos por causa dela. Ela merece morrer pelo que fez.
Cada palavra parecia um golpe, e Jonas não tinha o que argumentar.
- Talvez sim, mas no momento a magia dela é necessária para salvar Mítica. Para salvar o mundo. Você não deixaria uma criança inocente sofrer por causa das escolhas da mãe, deixaria?
Ela deu uma risada seca.
- Ouça só você, defendendo uma princesa real... De Limeros, ainda por cima! Quem é você, Jonas? No que meu irmão se transformou?
- Amara não pode controlar Mítica - ele disse. - Estou disposto a fazer o que for preciso para impedi-la.
- Você está cego como uma toupeira, irmão. A imperatriz é a única que pode salvar a todos nós. Ou será que você esqueceu o passado com tanta facilidade agora que sua cabeça está tomada por aquela droga
cruel que está dormindo na minha cama?
- Minha cabeça não está tomada por ninguém - ele resmungou. - Mas sei o que é certo.
- Então precisa acordar. A imperatriz é o melhor que já aconteceu em Paelsia há gerações.
- Você está errada.
- Não estou errada - ela disse, e a raiva em sua voz finalmente deu lugar ao cansaço. - Mas não vou me dar ao trabalho de convencê-lo de algo que sei que é certo. Você se perdeu de nós, Jonas. Consigo
ver em seus olhos. Você não é o mesmo garoto que cresceu desejando ser como Tomas, que ia caçar com ele na fronteira de Auranos, que ia atrás de todas as garotas do vilarejo. Não sei mais quem você é.
Ele sentiu uma pontada no peito ao pensar que a tinha decepcionado tanto.
- Não diga isso, Felicia.
Ela deu as costas para ele.
- Vou deixar você e aquela criatura passarem a noite aqui. E só. Se ela morrer por causa da dor que está sentindo, então deixe-a morrer. O mundo vai ficar melhor sem ela.
Jonas deitou no chão de terra, ao lado do fogo, a mente em disparada.
Quando chegou ali, pelo menos tinha um senso de direção, de propósito. Precisava levar Lucia até a família dela.
Os Damora. O Rei Sanguinário que tinha oprimido seu povo. Que tinha assassinado o chefe Basilius. Que tinha mentido para dois exércitos sobre os motivos que deram início a uma guerra com os auranianos.
Felicia tinha razão. Amara Cortas tinha acabado com tudo aquilo ao ocupar Paelsia.
Como foi que ele pegou aquele caminho? Era um rebelde, não o criado tímido de um rei sádico.
Jonas demorou muito para conseguir dormir. Em um sonho, ele se viu em um campo verdejante sob o céu azul e límpido. Ao longe, uma cidade que parecia feita de cristal brilhava sob o sol.
- Jonas Agallon, finalmente nos conhecemos. Olivia me contou muito sobre você. Sou Timotheus.
Jonas virou e viu um homem que parecia só alguns anos mais velho do que ele. Seu cabelo tinha um tom bronze escuro, os olhos, acobreados. Usava vestes que desciam até a grama cor de esmeralda.
- Você está em meu sonho - Jonas disse devagar.
Timotheus arqueou uma sobrancelha.
- Que dedução brilhante. Sim, estou.
- Por quê?
- Imaginei que teria muitas perguntas para me fazer.
Apesar de tudo o que sentia por estar frente a frente com o imortal sobre o qual Olivia havia contado pouco, não sentiu surpresa nem cansaço.
- Perguntas que você vai responder?
- Algumas, talvez. Outras, provavelmente não.
- Não, tudo bem. Só me deixe dormir. Estou cansado e não quero ter que desvendar enigmas.
- O tempo está passando. A tempestade está quase aqui.
- Você fala assim, tão vago e irritante, com todo mundo?
Timotheus inclinou a cabeça.
- Na verdade, sim. Falo, sim.
- Não gosto. E não gosto de você. O que quer que isso seja - Jonas indicou a marca em seu peito -, quero que desapareça. Não quero nenhuma ligação com sua gente. Sou paelsiano. Não sou um Vigilante, nem
bruxo, nem o que você acha que sou.
- Essa marca torna você muito especial.
- Não quero ser especial.
- Você não tem escolha.
- Sempre tenho escolha.
- Seu destino está escrito.
- Vá se ferrar.
Timotheus hesitou.
- Olivia disse que você é irredutível em suas observações. No entanto, tenho certeza de que percebeu que agora tem um pouco de magia. A magia de Phaedra. A magia de Olivia. Você as absorveu como uma esponja.
Sua condição é rara e, repito, especial. As visões que tive de você são importantes.
- Certo. As visões. A profecia na qual levo Lucia Damora para a família dela.
- É o que você acha?
- Parece que é aonde meu destino está me levando.
- Não, não exatamente. Você vai saber quando acontecer. Vai sentir...
- O que sinto no momento é a necessidade de enfiar uma faca na sua barriga. - Jonas olhou para o imortal. - Ousa entrar no meu sonho agora, depois de todo esse tempo? Olivia me ajudou a ficar vivo, seguindo
o que você mandou. Acho que ela não precisa mais de mim. Ou talvez esteja me espionando lá de cima como um falcão, como todos vocês fazem. A única coisa da qual tenho certeza é que estou cansado disso.
Não importa o que você tem a dizer. Você espalha meias verdades como se a vida dos imortais fosse uma brincadeira.
Timotheus falou mais baixo.
- Não é uma brincadeira, meu jovem.
- Ah, não? Prove! Diga qual é meu destino, se acha que não posso evitá-lo.
Timotheus o observou.
- Não previ a gravidez de Lucia - ele admitiu. - Foi uma surpresa para mim, assim como tenho certeza de que foi para ela. Foi mantida em segredo de todos nós pelos Criadores, e deve haver um motivo para
isso... um motivo importante. Eu via você como alguém que ajudaria Lucia durante a tempestade...
- De que tempestade está falando?
Timotheus levantou a mão.
- Não me interrompa. Estou sendo sincero com você como nunca fui com ninguém, porque agora vejo que não há tempo para mais nada.
- Então, desembucha - Jonas disse. Ele estava frustrado com tudo na vida, e ele queria descontar naquele imortal pomposo.
- O filho de Lucia terá muita importância. Muitos desejarão sequestrar a criança ou matá-la. Você vai proteger essa criança do perigo e vai criá-la como se fosse seu filho.
- É sério? E Lucia e eu seremos o quê? Vamos nos casar e viver felizes para sempre? Duvido.
- Não. Lucia vai morrer no parto na próxima tempestade. - Ele afirmou com firmeza, franzindo a testa. - Estou vendo agora, claramente. Antes eu achava que a magia dela pudesse ser transferida a você no
momento da morte, transformando você em um feiticeiro que pudesse caminhar entre os mundos, cujo destino fosse aprisionar os deuses da Tétrade depois de serem libertados. Mas a magia de Lucia vai perdurar
no filho dela.
Jonas o encarou boquiaberto, surpreso com a revelação.
- Ela vai morrer?
- Sim. - Timotheus deu as costas para ele. - É só o que posso contar. Boa sorte, Jonas Agallon. O destino de todos os mundos está nas suas mãos agora.
- Não, espere! Tenho perguntas! Você precisa me contar o que tenho que fazer...
Mas Timotheus desapareceu naquele instante, assim como o campo e a cidade à distância.
Jonas acordou e viu a irmã o chacoalhando.
- Amanheceu - ela disse. - Sua amiga está acordada. Está na hora de vocês saírem da minha casa.
C O N T I N U A
11
JONAS
MAR PRATEADO
Devagar, a luz voltou a seu mundo, e Jonas abriu os olhos. Olivia o encarava com ternura e alívio.
- Fico feliz de ver que finalmente voltou para nós - ela disse.
Ele resmungou e estendeu os braços.
- Fiquei inconsciente por quanto tempo?
- Quatro dias.
Ele arregalou os olhos e sentou com um pulo.
- Quatro dias?
Ela fez uma careta.
- Você não ficou inconsciente o tempo todo, se isso melhora a situação. Acordou algumas vezes, delirante e agitado.
- Não, isso não melhora em nada, na verdade. - Jonas levantou do catre e cambaleou até o espelho. A estranha espiral ainda estava em seu corpo, agora muito mais intricada e com um desenho muito mais detalhado
do que o símbolo simples da magia do ar. Ele tinha esperanças de que não tivesse passado de um pesadelo.
- Eu tenho a marca de um Vigilante - ele disse.
- Então você sabe o que é.
- Phaedra tinha uma. - A Vigilante que tinha sacrificado a vida imortal para salvar a dele tinha provado quem (e o que) era ao mostrar sua marca a Jonas. Mas a dela era diferente. Tinha a mesma forma,
mas era uma marca dourada que se movimentava em círculos sobre a pele, como se quisesse provar suas origens mágicas. - E sei que você tem uma também.
- Tenho. - Olivia abriu um pouco o manto e mostrou um pequeno pedaço de uma marca dourada sobre a pele escura. Ele havia tido apenas alguns vislumbres da espiral, quando Olivia se transformava em falcão.
Jonas deu as costas para o espelho para encarar os olhos cor de esmeralda da Vigilante.
- Não vou implorar, Olivia. Vou simplesmente pedir para você, por favor, falar mais sobre isso, sobre a profecia que existe sobre mim. Tentei negar que fosse real, mas agora preciso saber. O que está acontecendo
comigo? Eu estou... - Ele se esforçou para verbalizar os pensamentos. - Estou me transformando em um de vocês?
A ideia soava tão absurda que Jonas se arrependeu de suas palavras assim que as proferiu. Mas o que mais poderia pensar?
Ela torceu as mãos e, por um instante, Jonas achou que Olivia pudesse tentar escapar, assumir a forma de falcão e sair voando para evitar suas perguntas. Mas, em vez disso, ela suspirou e sentou na beirada
do catre enquanto ele esperava em pé, tenso, perto da escotilha.
- Não exatamente - ela respondeu. - Mas você é, de fato, um mortal raro, Jonas Agallon. Tocado por nossa magia em dois momentos muito vulneráveis de sua vida, ambos quando estava muito perto da morte.
Tocado por mim, quando curei seu ombro, e por Phaedra, depois que foi atingido pelo soldado limeriano. Você não sabe como isso é atípico.
Eram dois momentos da vida que ele preferia esquecer.
- Talvez eu não saiba mesmo. Então me conte.
- Eu estava lá quando Phaedra deu a vida pela sua. Observei do alto de outra barraca na forma de falcão.
Ele respirou fundo.
- Estava?
Ela assentiu, séria.
- Observei horrorizada quando Xanthus tirou a vida dela, e a vi retornar para a magia de que todos nós fomos criados. E vi um pouco dessa magia entrar em seu corpo, apenas segundos depois do momento em
que você poderia ter morrido sem a intervenção dela.
- Eu... eu não senti nada.
- Não, não era para sentir. Não deveria sentir. E não faria diferença nenhuma se não fosse pela magia do próprio deus do fogo surgindo por perto. Acabou fortalecendo a magia de Phaedra dentro de você.
Mas não seria suficiente para isso acontecer. - Olivia apontou para a marca, que ele coçava sem perceber. - Eu usei magia da terra para curar seu ombro quando você estava à beira da morte mais uma vez,
e vi que a absorveu como uma esponja. Aquela magia ficou dentro de você, somando-se à de Phaedra, assim como Timotheus previra.
Jonas tentou entender, tentou negar, tentou impedir que seu coração batesse como as asas de um pássaro preso em seu peito. Mas então, de repente, lhe ocorreu que não deveria tentar negar uma notícia tão
incrível.
- Tenho elementia dentro de mim - ele disse com uma voz rouca. - Isso significa que posso usá-los para combater Kyan e expulsar Amara de Mítica. - Quanto mais ele considerava essa possibilidade, mais animado
ficava. - Preciso subir e contar para os outros. Eles devem estar tão confusos com o que aconteceu, com o que fiz com Felix... Mas isso é incrível, Olivia! Vai fazer toda a diferença.
Ele era um bruxo! Tinha negado a existência dos elementia e daqueles que os detinham durante toda sua vida, e agora tinha essa mesma magia na ponta dos dedos.
Olivia segurou seu braço quando ele foi na direção da porta.
- Não é tão fácil assim, Jonas. Timotheus não previu que você seria um praticante de magia, apenas um veículo para ela.
- Um veículo? Impossível. Você testemunhou o que fiz. Arremessei Felix pelo convés com... magia do ar, não foi?
- É verdade. Mas foi uma anomalia. Foi apenas um sinal de que a magia que existe dentro de você amadureceu. E aquele gasto de energia o deixou inconsciente durante quatro dias.
Jonas balançou a cabeça. A frustração tomou conta dele, acabando com sua empolgação.
- Não entendo.
Olivia afrouxou a mão que segurava seu braço.
- Eu sei, e peço desculpas pela confusão. Timotheus mantém seu conhecimento muito reservado, já que não confia em muitos imortais, nem mesmo em mim. Ele não compartilhou a extensão de sua profecia comigo
por medo de que eu contasse para você e você tentasse evitá-la. - Ela fechou a boca. - Já falei demais.
Ele resmungou.
- Você revelou o suficiente para me deixar louco de curiosidade e apreensão.
- Você não pode contar isso a ninguém.
- Não posso? - Ele apontou para a porta. - Todos me viram fazer aquilo no convés. O que devo fazer? Negar?
- Na verdade, sim. - Ela ergueu o queixo. - Expliquei a eles que fui a responsável. Que vi, do alto, Felix acertar você e que estou aqui justamente para protegê-lo. É claro que acreditaram em mim.
Jonas a encarou.
- Eles acreditaram que você interferiu com sua própria magia?
- Sim.
- E não posso falar nada sobre isso?
- Não. Nem uma palavra. - Ela ficou séria. - É perigoso demais. Alguns o perseguiriam se soubessem que é um mortal repleto de magia imortal.
- Magia imortal que não posso usar. - Ele observou o próprio punho, lembrando como havia brilhado no convés.
- Se não acredita em mim, você precisa ver com seus próprios olhos. - Ela apontou para a porta. - Tente abrir essa porta com a magia do ar que canalizou com tanta facilidade com Felix.
Parecia um desafio. Jonas olhou para além de Olivia e franziu a testa, concentrando-se, enquanto levantava a mão na direção da porta. Ele se esforçou tanto para tentar invocar a magia que existia dentro
de si que sua mão começou a tremer, seu braço começou a oscilar... mas nada aconteceu.
- Isso não significa nada - ele resmungou. - Só preciso praticar.
- Talvez - Olivia disse com delicadeza. - Só sei o pouco que me contaram.
Decepcionado, Jonas deixou o braço cair.
- Claro, ninguém ia querer que as coisas fossem fáceis para mim. Ser um bruxo, utilizar os elementia à vontade... Ninguém ia querer isso, não é?
- Na verdade, seria incrivelmente útil para você.
Jonas lançou um olhar feio para ela.
- Você não está ajudando.
- Sinto muito. - Olivia fez uma careta. - Os outros estão preocupados com você. Ficarão felizes em saber que finalmente acordou.
Jonas foi até a escotilha e observou a imensidão do mar.
- Quanto falta para chegarmos em Paelsia?
- Estamos quase chegando.
- Dormi quase o caminho todo. - Ele soltou um suspiro trêmulo ao tentar aceitar tudo o que havia aprendido. Negar seria perder um tempo que eles não tinham. - O que eu perdi?
- Não muito, na verdade. Taran continua afiando a espada na expectativa de matar o príncipe Magnus, Felix ainda está sofrendo com enjoos, Ashur passa a maior parte do tempo em seus aposentos meditando,
e Nic fica espreitando por aí. Quando o príncipe aparece, ele o observa de uma maneira um tanto curiosa.
- Pedi para o Nic ficar de olho em nosso príncipe residente. É melhor não confiar nos kraeshianos, nem mesmo naquele que diz não ser nosso inimigo.
Jonas suspirou enquanto apertava as amarras da camisa.
- Certo, estamos quase em Paelsia. Ótimo.
- Ótimo? - ela repetiu.
Ele assentiu com firmeza.
- Se existe uma profecia que exige que eu seja um veículo dos elementia, quero saber sobre ela o quanto antes. E isso não vai acontecer enquanto estivermos em alto-mar, vai?
- Não, não vai - ela concordou. - Mas, de verdade, Jonas, não sei nada além disso. Sinto muito.
Ele assentiu.
- Seja o que for, eu aguento. Tenho certeza de que já enfrentei coisa muito pior no passado.
Para isso, Olivia não tinha resposta.
Jonas tentou ao máximo não se preocupar.
12
MAGNUS
PAELSIA
Como a viagem dos Glaciares a Basilia levaria pelo menos três dias a cavalo, não havia tempo a perder com as paradas constantes de um rei moribundo e uma mulher velha. Selia arrumou uma carruagem fechada
para levá-la junto com seu filho.
Quando Magnus sugeriu que Cleo fosse com eles e não montada num cavalo para não enfrentar o terrível frio, foi reprimido com um olhar cortante.
Aquilo queria dizer "não".
Gaius os orientou por um caminho que permitia que passassem toda noite em uma hospedaria de alguma cidadezinha, onde descansavam, comiam e dormiam em quartos separados e trancados.
Sete longas noites se passaram sem Magnus poder dormir com Cleo em seus braços, mas todas as noites sonhava com ela e com o chalé na floresta. Nos momentos em que estavam acordados, ele preferia não compartilhar
essa informação com ela. Não queria que ficasse convencida demais por provocar tal efeito nele, então guardava para si o desejo constante de tocá-la e beijá-la.
No último vilarejo onde ficaram, Enzo e Milo foram encarregados de buscar roupas adequadas para todos se passarem por viajantes inofensivos de passagem por Paelsia. Conseguiram encontrar vestidos de algodão
para Selia e Cleo e calças de couro simples e túnicas de lona para si mesmos, Magnus e Gaius.
Magnus olhou a própria túnica creme com repulsa.
- Não tinha nada preto?
- Não, vossa alteza - Enzo disse.
- Cinza-escuro?
- Não. Só essa cor e azul-claro. Achei que não ia gostar muito do azul. - Enzo limpou a garganta. - Mas posso voltar à loja.
Ele suspirou.
- Não, tudo bem. Fico com essa mesmo.
Pelo menos o manto e as calças eram pretos.
Ele saiu, pronto para dar início à última parte da viagem rumo à cidade da costa oeste, e encontrou Cleo, parecendo uma linda camponesa com seu vestido simples, sorrindo para ele ao lado de seu cavalo.
- Você parece um paelsiano - ela comentou.
- Não precisa me insultar, princesa - ele resmungou, contendo um sorriso quando montaram os cavalos e começaram a andar.
Praticamente uma pequena eternidade depois - que na verdade não passou de meio dia - finalmente e felizmente chegaram ao seu destino.
Magnus já tinha ouvido muitas histórias sobre Basilia, a cidade mais próxima de uma capital que Paelsia tinha. A cidade atendia aos navios que visitavam o Porto do Comércio e os membros da tripulação ávidos
por desembarcar em busca de comida, bebida e mulheres.
As histórias eram verdadeiras.
À primeira vista - e ao primeiro cheiro - Basilia era superpovoada e fedia a dejetos humanos e putrefação. Havia dezenas de navios atracados no porto, com as tripulações inundando a costa e se misturando
nas ruas, tavernas, hospedarias, nos mercados e bordéis da cidade litorânea. E, ao que parecia, tão quente quanto Auranos no ápice do verão.
- Repulsivo.
Magnus viu que o rei Gaius tinha aberto a janela da carruagem para espiar o centro da cidade com aversão. Seus olhos estavam vermelhos, e os círculos escuros sob eles pareciam hematomas recentes em contraste
com a palidez da pele.
- Desprezo este lugar - ele comentou.
- Sério? - Magnus perguntou, conduzindo o cavalo ao lado da carruagem. - Acho encantador.
- Não acha, não.
- Acho. Eu gosto dessa... cor local.
- Você não mente tão bem quanto pensa.
- Acho que posso apenas aspirar chegar aos seus pés no quesito falsidade.
O rei olhou feio para ele, depois alternou o olhar para Cleo, que cavalgava em frente a Magnus e atrás dos guardas.
- Princesa, se lembro corretamente, foi em um mercado não muito longe desta cidade em que você esteve com lorde Aron e o filho do vendedor de vinhos que ele matou, não foi?
Magnus logo ficou tenso e observou a princesa esperando a resposta. Cleo demorou alguns segundos para responder, mas o príncipe podia ver a tensão em seus ombros pelo fino material do vestido.
- Isso faz muito tempo - ela disse finalmente.
- Imagine como as coisas teriam sido diferentes se você não tivesse ido atrás de vinho aquele dia - o rei continuou. - Nada seria como é agora, não é?
- Não - ela disse, olhando para trás. - Por exemplo, você não teria caído e quase morrido depois de perder seu reino para uma mulher. E eu não estaria vendo seu fracasso com tanta alegria no coração.
Magnus conteve um sorriso e olhou para o pai, aguardando a contestação.
A única resposta foi uma janela fechada, bloqueando a visão do rosto do rei.
A carruagem parou em uma hospedaria chamada Falcão e Lança que, apesar de um leve cheiro de suor misturado a almíscar, Magnus considerou o estabelecimento mais aceitável da cidade. O rei Gaius desceu da
carruagem com a ajuda de Milo e Enzo e entrou na hospedaria, seguido por Selia, e logo subornou o dono para expulsar todos os hóspedes para que o grupo real tivesse privacidade total.
Enquanto os hóspedes saíam com um desfile de resmungos, Magnus assistia à Cleo observar a sala de convivência da hospedaria paelsiana com reprovação. Era um cômodo grande, com teto baixo, com cadeiras
de madeira desgastadas e mesas lascadas, onde os hóspedes podiam comer e passar o tempo.
- Não se enquadra no seu padrão de qualidade? - Magnus perguntou.
- Até que está bom - ela respondeu.
- Não é uma hospedaria auraniana com camas de pluma, lençóis importados e urinol dourado. Mas me parece aceitavelmente limpa e confortável.
Cleo virou as costas para uma mesa na qual alguém havia entalhado as próprias iniciais. Um sorriso brilhante passou por seus lábios.
- Sim, para um limeriano, acho que sim.
- De fato. - Os lábios da princesa eram uma distração grande demais, então Magnus virou e se juntou a seu pai e sua avó, que estavam parados perto das grandes janelas, olhando para os estábulos onde os
cavalos estavam sendo acomodados.
- E agora? O que vamos fazer? - Magnus perguntou à avó.
- Pedi para a esposa do dono da hospedaria ir até a taverna no fim da estrada e entregar uma mensagem pedindo para uma velha amiga minha nos encontrar aqui - Selia disse.
- A senhora não poderia ter ido?
- Ela talvez não me reconhecesse. Além disso, não é uma conversa que ouvidos curiosos podem escutar. A magia que procuro deve ser protegida a qualquer custo. - Ela encostou a mão sobre o braço de Gaius.
Havia um brilho de suor na testa do rei, que estava apoiado na parede como se fosse a única coisa que o mantivesse de pé.
- E o que devemos fazer até ela chegar? - Gaius perguntou com uma voz enfraquecida substancialmente desde a chegada.
- Você vai descansar - Selia respondeu.
- Não há tempo para descanso - ele disse com raiva. - Talvez eu saia para procurar algum carpinteiro por perto para fazer um caixão para me transportar de volta para Limeros.
- Por favor, pai - Magnus disse, permitindo um pequeno sorriso. - Fico feliz em fazer isso por você. Deve fazer o que minha avó pediu e descansar.
O rei olhou feio para ele, mas não falou nada.
- Vou levá-lo ao seu quarto. - Selia envolveu o braço no filho, conduzindo-o pelo corredor na direção da escadaria, e subindo para os quartos no segundo andar.
- Excelente ideia - Cleo disse, bocejando. - Também vou subir para o meu quarto. Por favor, avise quando a amiga da sua avó chegar.
Magnus esperou que ela saísse, depois fez um sinal para Enzo segui-la. Ele pedira para o guarda tomar cuidado extra com a proteção da princesa. Enzo era um dos poucos em quem Magnus confiava para a tarefa.
- O que devo fazer? - Milo perguntou ao príncipe.
Magnus passou os olhos pelo salão, que também continha uma pequena estante com livros velhos, nada parecida com a vasta seleção que passou a valorizar na biblioteca do palácio auraniano.
- Patrulhe os arredores - Magnus disse, pegando um livro aleatório da estante. - Certifique-se de que ninguém tenha percebido que o antigo rei de Mítica está temporariamente por aqui.
Milo deixou a hospedaria e Magnus tentou se concentrar na leitura de um volume sobre a história da produção de vinho em Paelsia, que não mencionava nada sobre a magia da terra que com certeza era responsável
pelo sabor da bebida, ou sobre as leis que proibiam sua exportação para outros lugares, à exceção de Auranos.
Depois de trinta páginas inúteis, a esposa do dono da hospedaria, uma mulher pequena que parecia ter um constante sorriso nervoso estampado no rosto, voltou com outra mulher mais velha, com rugas em volta
dos olhos e da boca, de aparência extremamente comum, usando um vestido antiquado e desmazelado. Magnus pensou que devia ser a mulher que Selia tinha mandado chamar.
Quando a esposa do dono da hospedaria desapareceu na cozinha, a mulher mais velha observou o local que parecia vazio, até seu olhar recair sobre Magnus.
- Então a senhora é a resposta para todos os nossos problemas, não é? - ele perguntou.
- Depende de quais são seus problemas, meu jovem - ela respondeu sem rodeios. - Gostaria de saber por que me chamou aqui.
- Não foi ele, fui eu - Selia disse, descendo a escadaria de madeira do outro lado do corredor que levava aos quartos, no segundo andar. - E é porque estou em busca de uma velha amiga. Você me reconhece
depois de todos esses anos?
Por um momento profundamente silencioso e agonizantemente longo, a mulher encarou Selia com uma mistura estranha de fogo e gelo no olhar. Justo quando Magnus começou a temer que tivessem cometido um erro
ao confiar em sua avó, a mulher abriu um grande sorriso, com rugas de alegria aparecendo no canto dos olhos.
- Selia Damora - ela arrulhou com um tom de voz muito mais gentil do que ao entrar na hospedaria. - Pela deusa, como senti sua falta!
As duas mulheres correram uma na direção da outra e se abraçaram.
- Devo chamar os outros? - Magnus perguntou. Quanto antes sua avó conseguisse o que precisava da mulher, mais rápido poderiam sair daquele lugar.
- Não, isso não precisa ser discutido em grupo - Selia respondeu sem tirar os olhos da amiga. - Também senti sua falta, Dariah.
- Onde esteve durante todo esse tempo? Já perdi a conta de quantos anos se passaram!
- O que importa é que estou aqui agora. Para ser franca, estou um pouco surpresa por você ainda estar em Basilia.
- Nunca poderia abrir mão do lucro da minha taverna, cada ano é melhor do que o anterior. Tantos marinheiros com dinheiro para gastar e sede para matar...
- Muitos tipos de sede, sem dúvida.
Dariah piscou.
- Exatamente. - Ela se virou para Magnus. - E quem é esse jovem?
- É meu neto, Magnus. Magnus, esta é minha amiga Dariah Gallo.
- Muito prazer. - Magnus forçou o melhor sorriso que conseguiu, mas sabia que pareceria mais uma careta.
- Minha nossa! Seu neto ficou tão alto e bonito!
Selia sorriu.
- Sim, os netos às vezes fazem isso quando chegam aos dezoito anos.
Dariah passou os olhos enrugados por Magnus de alto a baixo.
- Se eu fosse mais nova...
- Se fosse mais nova, teria que lutar com a jovem esposa dele por sua atenção.
Dariah riu.
- E talvez eu vencesse.
Magnus teve uma vontade repentina de voltar à leitura do livro sobre vinho paelsiano.
Selia juntou-se à amiga nas risadas e depois voltou a adotar um tom sério, porém amigável.
- Não vim a Basilia apenas para reencontrar uma velha amiga. Preciso de informações sobre como conseguir a pedra sanguínea.
Dariah arregalou os olhos.
- Minha nossa, Selia, você não perde tempo.
- Não tenho tempo a perder. Meu poder foi diminuindo no decorrer dos anos e meu filho está morrendo.
No instante silencioso que se seguiu, Magnus ficou quieto. Essa pedra, se fosse real, parecia algo que poderia ajudá-lo a aumentar seu poder, como a Tétrade.
Selia levou Dariah na direção da estante. Fez sinal para que ela se sentasse em um banco de madeira ao seu lado, depois segurou as mãos da outra bruxa.
- Não tenho escolha. Preciso dela.
- Você sabe que não está comigo.
- Não está. Mas você sabe com quem está.
Dariah balançou a cabeça.
- Não posso fazer isso.
- Estou pedindo para você entrar em contato com ele. Sei que pode encontrá-lo. Ele precisa vir o mais rápido possível.
Mil perguntas surgiram na cabeça de Magnus, mas ele permaneceu em silêncio, escutando.
Um poder como esse entregue diretamente em suas mãos. Parecia muito mais simples do que o processo complicado de encontrar a Tétrade.
A expressão da bruxa se tornou sombria.
- Ele nunca vai permitir que você fique com ela, nem mesmo por um instante.
Selia apertou ainda mais a mão da amiga.
- Deixe que eu lide com ele quando chegar aqui.
- Eu não sei...
Selia semicerrou os olhos.
- Sei que já faz muito tempo, mas sinto que terei que mencionar o favor que você me deve. Favor que prometeu retribuir por completo.
Dariah ficou encarando o chão.
Magnus observava, quase sem respirar. Aos poucos, a bruxa levantou os olhos, o rosto pálido. Ela concordou com um pequeno aceno de cabeça.
- Vou levar um tempo para atraí-lo para cá.
- Ele tem três dias. Será um problema?
A bruxa ficou tensa ao levantar.
- Não.
- Obrigada. - Selia levantou e deu dois beijos no rosto de Dariah. - Eu sabia que você ia me ajudar.
O sorriso de quando se cumprimentaram agora já não passava de uma lembrança.
- Aviso assim que ele chegar.
Dariah não demorou - lançou um último olhar para Selia e Magnus e deixou a hospedaria.
- Bem... - Magnus disse depois que tudo voltou a ficar em silêncio. - A senhora deve ter feito um belo favor para sua amiga.
- De fato foi. - Selia olhou para Magnus com um pequeno sorriso no rosto. - Agora vou ver como seu pai está. A saúde dele é minha única preocupação no momento. Quando minha magia estiver restaurada e ele
estiver bem novamente, podemos enfrentar os outros obstáculos que estão em nosso caminho.
- Vou me esforçar para ser paciente - Magnus disse, sabendo que com certeza fracassaria.
Àquela altura a noite já tinha caído, e Magnus se retirou para seu pequeno quarto. Havia uma cama de tamanho normal, e não os catres inaceitáveis do quarto comunitário no fim do corredor. A janela tinha
vista para a rua iluminada com lampiões e ainda movimentada, com cidadãos e visitantes mesmo depois de anoitecer.
Ele ouviu uma batida fraca na porta.
- Entre - Magnus disse, sabendo que podia ser apenas uma das quatro pessoas com quem havia chegado a Paelsia.
A porta se abriu devagar e, quando o visitante se revelou, o coração de Magnus começou a bater mais rápido. Cleo o encarava.
Ele levantou e a encontrou na porta.
- A amiga da minha avó esteve aqui.
- Já? - Ela arqueou as sobrancelhas. - E?
- E... - Ele balançou a cabeça. - Parece que seremos obrigados a esperar mais três dias por aqui.
- Mas ela vai conseguir a pedra sanguínea?
- Sim - Magnus respondeu. - Reencontrei minha avó há pouco tempo, mas ela me parece o tipo de mulher que consegue praticamente tudo o que quer.
- E tudo para essa pedra mágica salvar a vida de seu pai - Cleo disse sem nenhuma emoção, mas com uma dureza no fundo dos olhos azuis.
- Ele não merece viver - Magnus afirmou, concordando com o que não tinha sido dito. - Mas essa pode ser uma medida necessária para alcançarmos nosso objetivo maior.
- Encontrar Lucia.
- Sim. E acabar com a sua maldição.
Cleo assentiu.
- Suponho que não haja outra forma.
Ele a observou cauteloso.
- Você veio ao meu quarto apenas em busca de informações ou tem mais alguma coisa que deseja esta noite?
Cleo levantou o queixo para encarar diretamente em seus olhos.
- Na verdade, preciso de sua ajuda.
- Com o quê?
- Todas essas andanças a cavalo acabaram com meu cabelo.
Magnus levantou uma sobrancelha.
- E você veio aqui para pedir minha ajuda para cortá-lo e, assim, ele deixar de ser um problema?
- Como se você fosse permitir. - Ela riu. - Você é obcecado pelo meu cabelo.
- Eu não chamaria de obsessão. - Ele enrolou um cacho daquela seda dourada no dedo. - É mais uma distração, muitas vezes dolorosa.
- Peço desculpas por seu sofrimento. Mas você não vai cortar meu cabelo, nem hoje, nem nunca. A esposa do dono da hospedaria foi gentil e me deu isso. - Ela mostrou uma escova de cabelo com cabo prateado.
Magnus pegou o objeto da mão dela, observando-o com um olhar examinador.
- Você quer que eu...?
Cleo assentiu.
- Escove meu cabelo.
A ideia era ridícula.
- Agora que fui obrigado a me vestir como um paelsiano comum você está me confundindo com um criado?
Ela lançou um olhar determinado para Magnus.
- Eu não poderia pedir para Milo ou Enzo... ou, pelo amor da deusa, para seu pai ou sua avó me ajudarem.
- E quanto à esposa do dono da hospedaria?
- Está bem. - Cleo arrancou a escova da mão dele, fazendo careta. - Vou pedir a ela.
- Não, não. - Ele soltou um suspiro, achando graça. - Eu ajudo.
Sem hesitar, ela devolveu a escova a Magnus.
- Fico feliz.
Ele abriu caminho para deixá-la passar. Cleo entrou, sentou na beirada da cama e olhou para ele cheia de expectativa.
- Feche a porta - ela disse.
- Não é uma boa ideia. - Magnus deixou a porta entreaberta e lentamente sentou ao lado dela. Meio sem jeito e receoso, como se estivesse prestes a limpar um animal pela primeira vez, ele levou a delicada
escova aos cabelos dela.
- Nunca fiz isso antes.
- Para tudo existe uma primeira vez.
Que cena ridícula deve ter sido: Magnus Damora, filho do Rei Sanguinário, escovando o cabelo de uma jovem a seu pedido.
E ainda assim...
Sempre que Magnus assumia uma tarefa, preferia ser dedicado, usando suas habilidades da melhor maneira possível. Ele se empenhava da mesma forma naquele momento, ao pegar uma mecha do longo e sedoso cabelo
de Cleo e deslizar a escova por ela. O calor das madeixas passava entre seus dedos, causando um arrepio prazeroso em suas costas.
- Você tem razão - ele disse em voz baixa. - Está terrivelmente embaraçado. Acho que de modo irreparável.
Magnus estava apenas provocando Cleo - seu cabelo estava perfeito, como sempre foi -, mas então ele chegou ao primeiro nó.
Ela se encolheu.
- Ai.
- Desculpe. - Ele ficou paralisado, mas depois franziu a testa. - Mas você me pediu para fazer isso.
- Sim, eu sei! - Ela suspirou. - Por favor, continue. Estou acostumada a ser torturada por minhas criadas, e elas estão acostumadas a ignorar meus gritos de dor. Você não vai conseguir me machucar mais.
Só Nerissa tem capacidade de fazer isso sem causar dor.
- Sim, ouvi falar das habilidades de Nerissa - Magnus comentou, sem conseguir conter um sorriso. Agora, tendo uma imagem mais completa do histórico de penteados de Cleo, ele encarou a tarefa com mais determinação.
- Tanto cabelo, tantas oportunidades para formar nós... Por que as mulheres se dão ao trabalho?
- Talvez eu devesse fazer tranças, como uma líder paelsiana?
- Sim, imagino que seria um estilo adequado a uma princesa auraniana, mesmo quando forçada a usar um horroroso vestido de algodão - ele respondeu com ironia, sem deixar transparecer como estava se divertindo
com aquela imagem. - Todas as garotas de Mítica iam querer copiar. - Com o maior cuidado possível, ele foi passando a escova por outra parte do cabelo que parecia um ninho de passarinho amarelo-claro.
- Você precisa saber que pretendo reivindicar a pedra sanguínea para mim.
- Eu já imaginava - ela respondeu.
Aquilo o surpreendeu.
- Imaginava?
Cleo assentiu, e os cabelos escaparam das mãos de Magnus, cobrindo a tentadora nuca dela.
- Vi em seus olhos quando Selia mencionou a pedra. Foi o mesmo olhar que vi em seu pai.
- E que olhar é esse?
- Não importa.
Magnus largou a escova. Com gentileza, tocou Cleo pelos ombros até praticamente fazê-la virar de frente para ele, depois segurou seu queixo com cuidado.
- Importa, sim. Que olhar eu e meu pai compartilhamos?
Ela o encarou nos olhos, cautelosa.
- Um olhar frio de ganância, como se fossem capazes de matar pela pedra.
- Entendo.
Cleo analisou o rosto dele, como se procurasse respostas.
- Naquele momento, você parecia tão frio quanto seu pai. E eu... eu não gostei.
A vida toda, disseram que ele se parecia muito com seu pai - tanto fisicamente quanto em temperamento. Com o tempo, ele aprendeu a não refutar as comparações, embora nunca tivessem deixado de incomodá-lo.
- Devo admitir, descobri há pouco tempo que preciso ser como meu pai. Há certas situações que praticamente exigem que eu seja o mais frio e brutal possível. Se eu fosse derramar lágrimas por cada vida
que tirei no último ano, já estaria seco como uma casca de árvore. Então, sim, acho que sou como meu pai em muitos sentidos.
- Não - Cleo sacudiu a cabeça. - Não é possível.
- Por que está dizendo isso?
- Sinceramente? - Ela chegou mais perto, segurando seu rosto entre as mãos. - Porque eu nunca quis fazer isso com seu pai.
Ela roçou os lábios de leve nos dele. Um pequeno gemido de tortura emergiu do fundo da garganta de Magnus enquanto ele se forçava a cerrar os punhos para não a agarrar no mesmo instante.
- Princesa...
- Cleiona... - ela o corrigiu, os lábios ainda a uma distância perigosa. - Embora eu precise admitir que já não gosto tanto de ter recebido o nome de uma imortal que roubou e matou em nome do poder.
- Verdadeiros líderes costumam ser implacáveis o suficiente para roubar e matar. Se não o fizerem, outra pessoa o fará.
- Uma filosofia encantadora e, receio, muito verdadeira. Mas talvez possamos pensar em outro nome para você se referir a mim quando estivermos juntos.
Ele arqueou a sobrancelha.
- Vou pensar nisso.
- Ótimo. - Ela mordeu o lábio, chamando atenção de novo para sua boca. - Agora, feche a porta. Com chave.
- Essa é uma sugestão muito, muito perigosa.
- Ou deixe aberta. Talvez eu não me importe. - Cleo o beijou mais uma vez, abrindo os lábios. Ele sentiu sua compostura e seu comedimento se esvaindo em uma velocidade perigosa quando a língua dela encostou
na sua.
- Realmente não quero dizer não - ele sussurrou junto aos lábios dela.
- Então não diga.
Magnus gemeu de novo quando as mãos dela desceram por seu peito e por baixo de sua túnica, deslizando sobre seu abdome e tórax sem nenhuma barreira. Ele a agarrou pela cintura e a pressionou na cama, cobrindo-a
por completo com o próprio corpo. Cleo era tão pequena, mas, ainda assim, tão forte e apaixonada.
Como um mundo insensível pôde criar uma criatura tão linda? Se a beleza dela não fosse um presente da deusa, sem dúvida tinha sido um presente da mãe...
De repente, Magnus levantou em um pulo, cobrindo a boca com o dorso da mão.
- O que foi? - Cleo perguntou assustada, o rosto corado.
Ele ficou em pé e pegou seu manto.
- Preciso de uma bebida. Vou dar uma olhada na taverna no fim da estrada.
Cleo ficou deitada, observando-o, com os cachos dourados embaraçados caídos sobre os ombros até a cintura.
Profunda e dolorosamente tentadora.
- Eu entendo - ela disse em voz baixa.
Ele estava prestes a sair sem mais nenhuma palavra, mas virou-se para ela e disse:
- Antes de sair, quero que saiba de uma coisa. No dia em que essa maldição for quebrada, prometo que a porta de qualquer quarto em que estivermos será trancada, e não vou deixar nada nos interromper.
Com isso, Magnus virou as costas e a deixou lá, olhando para ele.
Sim, ele precisava desesperadamente de uma bebida.
- Vinho - Magnus resmungou para o atendente quando entrou na taverna pobre, porém animada, conhecida como A Videira Púrpura. Ele colocou várias moedas sobre o balcão. - Fique atento e complete meu copo
sempre que notar que está vazio - ele instruiu. - E nada de conversa.
O atendente abriu um sorriso forçado, depois recolheu as moedas do balcão com ganância, guardando-as em uma bolsa velha, caindo aos pedaços.
- Muito bem.
Ele fez o que Magnus pediu e prestou muita atenção ao nível de líquido da taça. Quando Magnus começou a beber gole após gole do doce vinho paelsiano, a noite começou a ficar muito mais clara. Da última
vez que bebera vinho, tinha voltado para o palácio limeriano e encontrado sua esposa fazendo um discurso. Ela logo foi interrompida por inimigos que quase não o deixaram escapar com vida. Depois daquela
experiência, ele tinha considerado renunciar completamente à bebida.
A visita de Cleo a seu quarto naquela noite com certeza o obrigava a revogar aquela promessa.
- Nossa atração de hoje vai deixá-lo mais animado, amigo - disse o atendente, apesar de Magnus ter pedido silêncio. Magnus estava prestes a repreendê-lo quando o homem indicou com a cabeça o meio da taverna.
- Prometo que a Deusa das Serpentes será uma imagem espetacular para os olhos.
Deusa das Serpentes? Magnus revirou os olhos e apontou para a própria taça.
- Mais.
Alguém do outro lado da enorme taverna pediu silêncio para a multidão vociferante enquanto o atendente servia mais vinho para Magnus.
- Todos venerem nossa bela residente! - o homem berrou do outro lado do estabelecimento. - Curvem-se diante de seu incrível poder! E saúdem a Deusa das Serpentes!
A multidão reagiu com gritos e assovios quando uma jovem de cabelo escuro, pouca roupa e uma cobra pendurada no pescoço apareceu sobre o pequeno palco. Ao lado do palco havia um trio de músicos que começou
a tocar uma canção exótica que, para Magnus, soava mais selvagem do que encantadora. Quando a música começou a crescer, a jovem passou a se contorcer no que poderia ser considerado um tipo de dança, mas
para Magnus parecia mais a oferta de uma cortesã.
Ele esvaziou o copo sem saber ao certo quantas vezes tinha repetido o movimento desde que chegara, mas não importava. Não agora que as coisas pareciam tão melhores do que antes, quando o desejo por Cleo
quase o cegou diante do perigo.
Talvez eles pudessem dividir um quarto, ele pensava enquanto assistia àquela mulher estranha se sacudir pelo palco. Talvez um elixir para evitar a gravidez fosse proteção suficiente.
Ou talvez ele devesse se concentrar no fato de seu reino ter sido roubado, seu pai estar à beira da morte enquanto sua avó tenta salvá-lo com uma pedra mágica, sua irmã estar aliada com um homem que pretendia
conquistar Mítica à base do fogo, e Cleo carregar uma maldição. O fato de ele estar enlouquecendo de desejo por sua esposa de fato era a menor de suas preocupações.
De repente, alguma coisa chamou sua atenção: um lampejo de cabelo ruivo. Aquela cor de cabelo era mais rara em Paelsia do que a do cabelo de Cleo. Ele não conseguiu deixar de se lembrar de Nicolo Cassian,
a única pessoa que ele conhecia com aquela cor infeliz de cabelo.
Magnus riu ao pensar naquilo. Não, Nic devia estava em segurança em Kraeshia - ou nem tão seguro assim, na verdade, mas Magnus não se importava. O idiota tinha se voluntariado para se juntar a Jonas em
sua missão fracassada de matar o rei.
Ele voltou sua atenção para a Deusa das Serpentes. Quando pensou que estava começando a entender o ritmo de seus movimentos, ela parou, fazendo um sinal para os músicos pararem de tocar.
- É você? - ela perguntou. O salão agora estava em silêncio. A Deusa das Serpentes estava claramente se dirigindo a alguém específico, mas Magnus não conseguia ver de onde estava. Ele só conseguia ver
a crescente empolgação no rosto pintado da dançarina enquanto sua expressão transparecia cada vez mais certeza. - Jonas! - ela gritava agora com mais confiança. - Jonas, é você mesmo? Meu querido, achei
que estivesse morto!
Jonas?
Devia ser mais uma estranha coincidência.
A dançarina desceu do palco e se embrenhou no meio da multidão, de onde puxou um jovem de cabelo escuro.
Magnus ficou paralisado. Ele esticou o pescoço, tentando ver por entre as cabeças dos outros clientes. A dançarina jogou os braços em volta do jovem, rodopiando abraçada a seu visitante, até que ele se
virou na direção de Magnus.
Chocado e boquiaberto, Magnus ficou observando fixamente aquela cena.
Era Jonas Agallon. Ali, na mesma taverna.
- Quem diria? - disse uma voz familiar ao lado dele, verbalizando seus próprios pensamentos. Uma onda de desgosto tomou conta de Magnus antes mesmo de se virar e descobrir o que já sabia: aquele ruivo,
Nicolo Cassian, estava bem ao lado dele. - Você!
Nic cutucou o ombro dele, deixando escapar uma gargalhada quando derramou um pouco de cerveja de sua enorme caneca.
- Parece que o destino está finalmente lhe dando o troco, não acha, vossa alteza? E fico mais do que feliz de testemunhar isso.
- Estou vendo que sua visita a Kraeshia não ajudou a diminuir seu charme - Magnus disse, espantado por ter bebido a ponto de arrastar as palavras tanto quanto Nic.
Nic sorriu, mas seus olhos desfocados não demonstravam nenhum humor.
- Príncipe Magnus Damora, gostaria que conhecesse um amigo meu.
Irritado pelo uso de seu nome em um estabelecimento público, Magnus virou, esperando encontrar algum rebelde qualquer. Mas, em vez disso, encontrou um rosto que só via em pesadelos.
- Theon Ranus - ele exclamou. O calor agradável e o formigamento proporcionado pelo vinho desapareceram em um instante, deixando-o profunda e desoladamente frio ao encarar aquela aparição.
- Está enganado - disse o jovem, um lembrete fatal da primeira pessoa que Magnus havia matado na vida. Com um olhar frio repleto apenas de obstinação e ódio, ele puxou uma faca e a colocou junto à garganta
de Magnus. - Sou o irmão dele, seu filho da puta.
13
CLEO
PAELSIA
- Aonde está indo, princesa?
As palavras a fizeram parar na porta principal da Hospedaria Falcão e Lança. Cleo olhou para trás e viu Enzo parado nas sombras.
- Vou à taverna no fim da estrada - ela disse. - Não que seja da sua conta.
- Está tarde.
- E...?
Enzo endireitou os ombros.
- Acho que seria melhor ficar aqui em segurança, princesa.
- Aprecio sua opinião, mas discordo. Magnus está lá. Estou surpresa, e um pouco consternada, por você não ter ido junto. E se ele for reconhecido?
- O príncipe deixou bem claro que meu único dever é garantir sua segurança, princesa.
Ela piscou rápido, como se tentasse disfarçar a surpresa daquela revelação interessante.
- Sério? Bem, isso torna as coisas muito mais fáceis. Você virá comigo buscar o príncipe e garantir que nenhum de nós corra perigo.
Cleo não lhe deu tempo para argumentar ao virar as costas e sair da hospedaria, deixando a porta aberta para Enzo segui-la e puxando o capuz do manto para cobrir o cabelo e proteger o rosto.
Enzo a seguiu sem dizer mais nada enquanto Cleo prestava atenção nas pessoas na rua, nas carruagens que passavam, no ruído do casco dos cavalos batendo na estrada de cascalho. Ela seguiu o som das risadas
embriagadas e da música para chegar à taverna que sem dúvida tinha sido o destino de Magnus. Sobre as grandes portas de madeira havia uma escultura de bronze de alguns cachos de uva em uma videira.
Ela leu a placa:
- A Videira Púrpura. Que nome apropriado para uma taverna em Paelsia. E bastante óbvio.
O príncipe gostava tanto do sabor do vinho que não se importava com o que aconteceria se alguém o reconhecesse. Magnus adorava tanto beber que estava disposto a arriscar ser morto no meio de um bando de
paelsianos. E que jeito idiota de morrer seria, Cleo pensou.
- Já ouvi falar desse lugar - Enzo disse, observando a entrada. - Nerissa já trabalhou aqui atendendo mesas.
Ela levantou uma sobrancelha.
- É mesmo?
Ele assentiu.
- Ela disse que foi uma experiência interessante.
- Eu não fazia ideia de que ela tinha morado em Paelsia.
- Nerissa morou em todos os lugares, ao que parece. Diferente de mim, que até agora nunca tinha me aventurado para fora de Limeros. Ela deve me achar tedioso.
- Posso garantir que ela não acha nada disso.
Ouvir Enzo falar de sua amiga fazia o coração de Cleo doer. Ela não tinha dúvidas de que Nerissa era capaz de se cuidar, melhor do que qualquer outra garota - e possivelmente garoto - que conhecia, mas...
Cleo não conseguia deixar de se preocupar com a segurança dela. Odiava a ideia de que Nerissa pudesse correr perigo enquanto era forçada a trabalhar perto de Amara.
Cleo respirou fundo ao passar pelas portas com Enzo. Dentro da taverna havia pelo menos duzentos clientes fedorentos e sujos.
Ela observou os rostos, procurando Magnus na multidão.
Aquela taverna era diferente de todas que já havia visto em suas duas visitas anteriores a Paelsia. Seu conhecimento da região se limitava a dois mercados pobres, vilarejos decrépitos e uma vasta extensão
de terras desertas.
E os galpões trancados de rebeldes raivosos e vingativos, ela lembrou a si mesma.
O lugar, apesar do interior rústico e decadente, parecia pertencer a Pico do Falcão, maior cidade de Auranos. Iluminando o espaço enorme havia dezenas e dezenas de velas e lampiões. No teto alto, várias
rodas de madeira acomodavam mais velas. O chão era de terra batida; as mesas e cadeiras eram feitas de madeira mal esculpida.
À esquerda de Cleo havia um pequeno palco, sobre o qual uma jovem de cabelo preto e com faixas douradas pintadas sobre a pele bronzeada rebolava de uma forma bastante provocativa. Em volta de seu pescoço
carregava uma jiboia enorme, do tipo que Cleo só tinha visto em livros ilustrados.
- Enzo, por favor, apenas me ajude a procurar Magnus. Comece pelas áreas com mais vinho.
- Sim, vossa alteza.
Cleo se cobriu melhor com o capuz do manto para esconder o cabelo e tentou ignorar os olhares atravessados da maioria dos brutamontes que passavam por ela. Quando sentiu alguém apertar seu traseiro, virou
para dar um soco no ofensor, mas acertou apenas o ar.
Furiosa, ela tentou ver quem a havia tocado no meio da multidão, mas ficou paralisada quando ouviu alguém gritar um nome que ela conhecia.
- Jonas! - Era a mulher-cobra, interrompendo a apresentação para correr na direção de um jovem que estava na plateia. - Jonas, é você mesmo?
Cleo, de olhos arregalados, se virou na direção do palco.
Jonas tinha voltado de Kraeshia. E, de todos os lugares de Mítica onde poderia estar, estava ali!
Como era possível?
Ela se virou para Enzo, mas outro rosto chamou sua atenção. Um jovem caminhava pela multidão, movendo-se na direção oposta ao mar de rostos virados para o palco.
Cabelo cor de bronze, pele morena, alto, músculos definidos...
Ela só conseguiu observar, certa de que seus olhos a enganavam.
- Theon - ela sussurrou o nome antes preso na garganta.
Ela então se lembrou de um tempo em que tudo parecia claro - ela o amava, e nada mais importava. Nem o posto dele, nem a reprovação de seu pai, nem o modo austero como Theon tinha olhado para ela antes
de beijá-la, marcado pelo medo de pensar que poderia perdê-la para sempre.
E depois o som do casco dos cavalos quando Magnus e seus soldados chegaram.
O orgulho em seu coração quando Theon enfrentou os homens de Magnus e venceu.
E o horror quando viu a vida se esvair dos olhos dele para sempre quando Magnus o acertou pelas costas.
"Se seu guarda tivesse se afastado quando ordenei, isso não teria acontecido", o filho do Rei Sanguinário tinha dito.
"Ele não é só um guarda", ela havia sussurrado em resposta. "Não para mim."
Às vezes, parecia que tudo tinha acontecido mil anos antes. Outras, era como se tivesse sido no dia anterior.
Mas, lá estava ele.
- Princesa? - Enzo perguntou, franzindo a testa para a expressão de choque absoluto dela.
Cleo não respondeu. Suas pernas estavam dormentes quando começou a se mover sem pensar, abrindo caminho na multidão na direção dele.
Lágrimas quentes corriam por seu rosto, e ela as secava com violência.
A multidão diminuía quanto mais ela se afastava do palco, o que lhe permitiu manter o olhar no guarda assassinado. Em sua mão, ela viu o brilho de uma lâmina afiada.
E então ela viu Magnus.
O fantasma do jovem que havia amado - e perdido - aproximou-se de Magnus, que estava no bar, olhando para Theon com a mesma descrença de Cleo. Então, com uma rapidez que ela mal conseguiu acompanhar, Theon
segurou Magnus com força e pressionou a lâmina contra sua garganta.
Ela gritou para dentro, seu corpo transformou-se em gelo em um instante. Ela olhava para Magnus, com sua expressão resoluta, os dentes cerrados e os olhos escuros desprovidos de emoção.
- Cleo? - Alguém estava bloqueando seu caminho; um garoto com sardas e cabelo ruivo. - Ah, Cleo! Você está aqui! Você está viva!
- Nic? - Ela o encarou por um segundo antes de agarrar e fincar os dedos em seus ombros. Atrás dele, viu o sangue escorrendo pela garganta de Magnus, onde o fantasma do passado enfiara sua adaga. - O que
está havendo? Por que isso está acontecendo?
De repente, uma terceira pessoa aproximou-se do confronto silencioso entre Magnus e Theon, que até então tinha passado despercebido pelo resto dos clientes, cujos olhos estavam fixos no palco. Era um jovem
de cabelo escuro, ombros largos e muitos músculos, com um tapa-olho preto.
Ele segurava um pedaço de pau e, com ele, atingiu o fantasma de Theon com força atrás da cabeça. A adaga caiu no chão, e o corpo da vítima desabou, inconsciente, ao lado dela.
- Magnus! - Cleo gritou.
Finalmente, Magnus tirou o olhar do jovem caído e virou para Cleo.
Ele semicerrou os olhos.
- Você não devia estar aqui.
Ela ficou chocada. Era isso que Magnus tinha a dizer em um momento como aquele?
O brutamontes apontou para o corpo.
- Ele não vai ficar feliz comigo quando acordar.
Cleo correu para o lado de Magnus, certificando-se rapidamente de que o ferimento no pescoço era superficial. Ela virou para o jovem de tapa-olho.
- Quem é você? - ela questionou.
Ele se curvou.
- Felix Gaebras, minha encantadora jovem. A seu dispor. E quem é você?
- Esta - Magnus disse, tocando o pescoço com cuidado - é a princesa Cleiona.
Felix arregalou os olhos.
- Ah, então esta é a princesa dourada. Tudo faz sentido agora.
- E quem é esse? - Ela apontou para o chão com o dedo trêmulo.
- Aquele - Felix respondeu - é Taran Ranus, irmão gêmeo de Theon.
Cleo sentiu seu corpo gelar.
- Irmão gêmeo?
Magnus estava tenso.
- Foi muito gentil da parte de Nic nos apresentar hoje à noite, não acha?
Ao lado dela, Nic olhou para o jovem inconsciente, depois para Cleo, que parecia chocada.
- Acho que todos nós precisamos conversar - ele disse.
- Com certeza!
- Concordo - Magnus disse com rigor. - Conheço um lugar muito mais discreto do que esse. Encontrem Jonas e venham comigo, todos vocês.
Felix se abaixou, pegou o companheiro inconsciente e o jogou sobre o ombro.
- Onde Jonas e os outros estão? A dançarina o amarrou com a cobra e o levou embora? Vou procurá-lo.
Cleo não esperou - ela precisava de ar fresco. Precisava respirar normalmente e deixar o coração bater em um ritmo natural.
Irmão gêmeo, ela pensou, estupefata. O irmão gêmeo de Theon.
E Theon nunca, em nenhum momento, tinha mencionado que tinha um irmão gêmeo.
Nic estava ao lado dela, cambaleando de leve a cada passo que dava enquanto Enzo a escoltava para fora da taverna. Ela olhou para trás para garantir que Magnus estava perto.
- Você está bêbado - disse Cleo, virando-se para Nic e percebendo que estava muito zangada com ele e com todos os presentes.
- Muito. E também muito feliz por saber que está aqui. - Ele deu um grande beijo desajeitado no rosto dela, fazendo-a lembrar do cachorrinho babão que seu pai trouxera para ela e para Emilia depois de
um longo período de viagens. Quando seus batimentos cardíacos voltaram ao normal, ela se permitiu ceder à avassaladora sensação de alívio por Nic ter voltado de Kraeshia são e salvo - e por estar ao lado
dela novamente.
Felix saiu da taverna carregando Taran Ranus.
Atrás dele veio Jonas, que observava a área até seus olhos recaírem sobre Cleo.
Ela o observava também quando um sorriso se abriu no belo rosto dele.
- Eu sabia que você estava viva. - Jonas apertou o passo para chegar até ela. Segurou-a pela cintura e a tirou do chão, girando-a no ar. - É tão bom ver você!
Em qualquer outro dia, ela estaria sorrindo tanto quanto o rebelde.
- Explique o que está acontecendo.
- Sim - Magnus disse, os olhos escuros fixos em Jonas. - Uma explicação para sua chegada nesta cidade, coincidindo com a nossa chegada, seria apreciável.
- Fico chocado em dizer, mas é quase bom ver você também, vossa alteza. - Jonas deu um meio sorriso para o príncipe.
Não foi correspondido.
- Nosso amigo aqui está ficando um pouco pesado - Felix comentou.
Magnus lançou um olhar azedo para o corpo que Felix carregava.
- Venham comigo.
Outra garota se juntou ao grupo, e Cleo a reconheceu de imediato - estava acompanhando Jonas e Lysandra da última vez em que estiveram no palácio limeriano.
Cleo se lembrava do nome dela: Olivia. Mas um cumprimento adequado poderia esperar.
Ela deu o braço para Nic enquanto o grupo acompanhava Magnus até a hospedaria.
- Por que está tão bêbado hoje?
- Ah... são muitas razões. Entre elas, recentemente passei a acreditar que estivesse morta. Por isso ia me afundar em cerveja para sufocar meu sofrimento.
- Estou bem viva.
- E fico muito feliz em saber.
Cleo sorriu para ele.
- Existem outros motivos para sua sede de álcool?
- Nenhum que esteja com a gente hoje, mas estou hesitante em mencioná-los. Você já teve choques demais por um dia. Tenho certeza de que ele vai acabar aparecendo. Ele faz dessas.
- Você não está falando coisa com coisa.
- Não, com certeza não estou.
Seu pequeno sorriso desapareceu quando ela olhou para Felix e seu fardo.
- Theon... - Ainda doía dizer o nome dele, mesmo depois de tanto tempo. - Alguma vez ele falou alguma coisa sobre ter um irmão gêmeo?
Nic negou.
- Nada. Quando vi Taran nas docas de Kraeshia, quase caí duro de choque. Taran não fala sobre isso, mas imagino que eles não tivessem contato. Ainda assim, não lidou bem com a notícia da morte do irmão.
- É, percebi. - Ela soltou um suspiro trêmulo. - Como ele ficou sabendo que foi Magnus que matou Theon?
Nic deu de ombros.
- Eu contei a ele, claro.
Ela sentiu uma pontada no estômago no exato momento em que a raiva começou a subir.
- Claro.
- Eu devia ter ficado a seu lado. - Ele pegou a mão dela e ficou sério, apesar da bebedeira. - Sinto muito por ter deixado você sozinha com ele todo esse tempo.
Nic não sabia sobre os sentimentos dela por Magnus. É claro que não sabia - Cleo tinha feito questão de negar os sentimentos que cresciam em seu peito por um ano.
- Não tem problema. Eu... dei um jeito.
- Onde devo deixá-lo? - Felix indicou o fardo que carregava quando chegaram à hospedaria.
- Tenho certeza de que vamos encontrar um buraco bem fundo - Magnus respondeu.
Cleo olhou feio para ele, depois virou para Felix.
- Tem alguns quartos vazios no segundo andar - ela disse.
Felix desapareceu e retornou rapidamente sem Taran.
Eles sentaram na sala de convivência e, quando Cleo olhou para o grupo, não sabia dizer se estava feliz ou horrorizada pelo modo como a noite havia se desenrolado.
Nic sentou ao lado dela, de frente para Jonas e Olivia. Felix e Magnus sentaram próximos à lareira, do outro lado da sala, perto da estante, enquanto Enzo ficou em pé ao lado de Cleo.
- Quando vocês chegaram? - Magnus perguntou.
- Hoje - Jonas respondeu. - Ainda estamos no escuro sobre o que está acontecendo aqui. A única informação que temos vem de um único soldado kraeshiano que se dispôs a falar.
- E?
- Ele sabia muito pouco. Ou, pelo menos, pouco que pudesse nos ajudar. No entanto, parece que você está fugindo, vossa alteza. E seu pai não está nada feliz com o modo como cuidou das coisas enquanto ele
esteve fora.
- É o mínimo que se poderia dizer.
Cleo observava Magnus levemente surpresa. Apesar do tanto que devia ter bebido, parecia sóbrio como um sacerdote limeriano.
- O soldado - disse Jonas, apontando para Cleo com tristeza. - Ele nos disse que você tinha morrido. Que isso aconteceu depois que fugiu de Amara. Que morreu congelada.
- Isso poderia muito bem ter acontecido se eu não tivesse encontrado abrigo no momento certo. - Ela desviou os olhos, tentando não fazer contato visual com Magnus, apesar de ainda sentir o olhar dele ardendo
em seu rosto.
- Você sempre foi uma sobrevivente - Jonas disse. - Nic se desesperou, mas eu tinha esperança. E aqui está você.
Nic deu de ombros.
- Eu me desespero. Sou desesperado.
- Temos muita coisa para contar a vocês - Jonas afirmou. - E com certeza vocês têm muita coisa para nos contar.
- Muito menos do que você pode imaginar - Magnus disse. - Amara acha que está governando o reino agora. Mas está errada. E será derrotada.
- E como você acha que vai derrotá-la? - Jonas perguntou.
- Acho que podemos começar com o cristal da terra que você deu à princesa - Magnus disse, e Jonas ficou tenso. - Você ainda tem aquele pedaço brilhante de obsidiana escondido em algum lugar, princesa?
Ah, sim, ela pensou enquanto se contraía. Esse era o Magnus que um dia ela desprezara - capaz de anunciar para todos, aparentemente por despeito, que ela estava em poder de um cristal da Tétrade. Ela precisaria
se lembrar de agradecer pela lembrança.
Nic soltou um rosnado de repulsa.
- Cleo, não enlouqueceu ficando ao lado dele por tanto tempo? O fato de ter mantido essa aliança artificial... deve haver algum motivo por trás disso que não me contou.
- Por favor, Nic - Magnus disse. - Somos todos amigos aqui. Sinta-se à vontade para falar o que quiser.
- Acabei de fazer isso.
Magnus revirou os olhos.
- Não preocupe essa sua cabeça de cenoura, Nicolo. A princesa continua a me tolerar, ou quase, concentrando-se apenas em recuperar seu trono assim que Amara for derrotada e mandada para longe. Recentemente,
sugeri que sua princesa dourada retornasse a Auranos, mas ela recusou. Nem pense em dizer que foi ideia minha.
Cleo virou para ele e enxergou uma expressão de desafio em seus olhos. Então percebeu o que Magnus estava fazendo.
Nic o odiava. Jonas tinha uma aliança fraca com ele. E o irmão gêmeo de Theon tinha acabado de tentar matá-lo.
Revelar que os dois eram mais do que aliados relutantes poderia causar um estresse desnecessário, principalmente agora que estavam todos juntos.
- Acredite em mim, Nic - ela disse finalmente. - E estou ansiosa pelo dia em que retornarei ao meu trono. Mas esse dia não é hoje.
- Bem, agora que isso está resolvido - Magnus disse -, vamos discutir como proceder. Pode ser?
Felix levantou a mão.
- Eu me voluntario com entusiasmo para matar a imperatriz.
Magnus o encarou com interesse.
- Como pretende fazer isso?
- Sei que alguns de vocês vão sugerir que eu use uma flecha apontada de longe - Felix disse com avidez. - Mas realmente preferiria uma abordagem mais pessoal. Com minhas próprias mãos, se possível. Só
quero ver o olhar dela naquele rostinho lindo.
Magnus piscou.
- Acabei de lembrar que foi você que me enviou um pedaço de sua pele para provar sua lealdade.
- Fui eu mesmo, vossa majestade.
Cleo analisava aquele jovem com atenção, chocada com as palavras. Será que ele era louco?
No entanto, o sujeito tinha salvado a vida de Magnus na taverna, e ela devia muito a ele por isso, então imaginou que teria que passar um pouco mais de tempo perto dele, observando-o, para ver como ele
realmente era.
Houve um tempo em que tinha desejado que Magnus morresse pelo que fizera com Theon, em que tinha desejado matá-lo com as próprias mãos.
Mas no momento em que a vida de Magnus correra perigo, não conseguira se concentrar em nada além do príncipe. Qualquer necessidade de vingança tinha desaparecido meses atrás, como se ela tivesse trocado
de pele.
O sentimento era de perdão. Ela ainda odiava o garoto que Magnus tinha sido aquele dia.
Mas tinha passado a entendê-lo nos meses que se seguiram, talvez ainda melhor do que entendia a si mesma.
- Há uma ameaça muito maior do que Amara em Mítica nesse momento, sinto informar - Jonas revelou, interrompendo o devaneio de Cleo. Ele estava limpando as marcas de beijo da dançarina do rosto com um lenço
que Olivia havia lhe dado, e Cleo não conseguiu deixar de achar engraçado o contraste entre os movimentos ridículos e o tom solene daquela declaração.
- Me deixe adivinhar - Magnus disse. - Você está falando da minha irmã? Sei que deve estar de luto por sua amiga, Jonas, mas não faz sentido gastar suas energias vingativas com Lucia nem com seu companheiro,
Kyan.
Jonas encarou os olhos de Magnus.
- Vocês não sabem, não é?
- Não sabemos o quê?
- Vocês procuraram pela Tétrade. Pessoas morreram por esses cristais. Você já revelou diante de todos que Cleo está em poder de um deles, e sabemos que Amara está com o da água, e seu pai, com o do ar.
- Sim, sei disso tudo, rebelde. E já sabemos que Kyan está com o cristal do fogo.
- Errado - Jonas ficou tenso. - Kyan é a magia do fogo.
Cleo ficou encarando-o, certa de que tinha escutado errado.
- O que quer dizer com isso?
- A magia que vocês estão procurando, que todos estamos procurando, pode pensar. Pode falar. E pode matar sem remorso. E mais três iguais a Kyan estão aguardando para escapar de suas prisões. Os cristais
não são pedras mágicas, princesa, mas deuses elementares.
A sala toda ficou em silêncio, e Cleo observou freneticamente o rosto dos outros, esperando encontrar alguém revirando os olhos. Esperando que aquilo não passasse de uma mentira engraçada para quebrar
a tensão.
Não podia ser verdade.
Mas até Nic assentia pesaroso.
E naquele exato momento, dentro de seu bolso, estava uma daquelas prisões.
Ela olhou para Magnus, cuja testa franzida era o único sinal de surpresa.
- Lucia deve tê-lo ajudado a escapar da esfera de âmbar - Magnus disse.
- Acho que isso é óbvio - Jonas respondeu curto e grosso, o que lhe rendeu um olhar sombrio do príncipe.
Cleo juntou as mãos para impedi-las de tremer.
- Temos certeza de que os objetivos de Kyan, sejam quais forem, são perversos? A Tétrade ainda pode nos ajudar a derrotar Amara.
- Eu o vi queimar Lys até fazê-la desaparecer - Jonas grunhiu. - Nem uma única cinza restou quando ele acabou. - O rebelde virou para Magnus. - Kyan é perverso. Assim como a vadia da sua irmã.
Magnus levantou com os punhos cerrados.
- Não me importo com o que aconteceu, você não vai falar assim de Lucia na minha presença. Não vou permitir.
- Não? E você acha que pode me impedir? - Agora Jonas também estava com os punhos cerrados, e os dois se aproximavam.
- Talvez ele não o impeça - disse uma nova voz, interrompendo a conversa e paralisando o rebelde e o príncipe. - Mas eu com certeza estou disposto a tentar.
Com aquela promessa, o Rei Sanguinário entrou na sala.
14
JONAS
PAELSIA
Rei Gaius Damora. O Rei Sanguinário. Assassino. Sádico, torturador, escravocrata, traidor. Inimigo. Alvo.
E, naquele momento, estava na mesma sala que Jonas.
Muitas surpresas tinham acontecido naquela noite. Primeiro um encontro com Laelia Basilius, de quem Jonas tinha sido - por pouco tempo e com relutância - noivo. Mas essas surpresas desapareceram de sua
mente assim que o rei entrou na sala.
Gaius observou o grupo e parou o olhar sobre Jonas.
- Jonas Agallon. Não vejo você há muito tempo. Acho que a última vez foi no casamento de meu filho.
Jonas percebeu que não conseguia fazer nada além de olhar para o homem que tinha matado e destruído tantos.
- Magnus... - Cleo disse do outro lado da sala.
- Ah, sim - Magnus disse, sem qualquer sinal de indignação pelas calúnias ditas contra a irmã. - Esqueci de dizer que estou viajando com meu pai?
- Esqueceu - Jonas respondeu, tenso.
- Sim - o rei concordou. - E é muito bom que meu filho traga seus novos amigos aqui sem avisar.
Jonas se esforçou para manter a compostura, para não mostrar como estava indignado.
- Não são tão novos quanto você pensa.
A pele do rei Gaius estava pálida, o rosto tinha hematomas como se tivesse sido espancado. Ele inclinou para a frente, como se agisse com normalidade, e se apoiou na parede ao lado da escada, mas algo
ficou evidente na posição. Uma fraqueza e uma fragilidade que o rebelde nunca tinha notado no homem.
- Volte para o quarto - Magnus disse.
- Não acato ordens suas. - O rei sorriu, sem achar graça. - Magnus, seus amigos sabem que estamos todos do mesmo lado agora?
Só de pensar em uma aliança com Gaius, Jonas perdeu totalmente a fala. Os outros - Nic e Olivia - também permaneceram em silêncio, tensos.
- É mesmo? - Foi o rosnado ríspido de Felix, como o alerta de uma fera enjaulada, que quebrou o silêncio. - Você decidiu isso antes ou depois de permitir que Amara me deixasse levar a culpa por matar a
família dela?
O rei levantou uma sobrancelha escura e observou Felix.
- Nunca permiti que Amara fizesse nada. Ela toma as próprias decisões. Quando soube o que tinha acontecido, já era tarde demais para intervir. Soube que você já estava morto. Caso contrário, teria feito
o possível para libertar você.
Felix manteve o olhar fixo no rei, e em seu único olho não se via nada além de frieza e malícia.
- Claro que teria. Por que eu duvidaria de sua palavra, vossa alteza?
Suspirando, o rei abatido e aparentemente debilitado se virou para Jonas.
- Você tem todos os motivos para me odiar. Mas precisa me ouvir agora e perceber que juntos somos fortes. Temos um inimigo comum: Amara Cortas.
- Sua esposa - Jonas afirmou.
- Por conveniência e circunstância apenas. Não tenho dúvidas de que ela já está conspirando para me matar, em especial agora que assumiu o controle de Mítica e sabe que seus soldados são muito mais numerosos
que os meus. Tenho me dedicado a consertar alguns de meus erros mais recentes, começando por tirar Amara deste reino.
- Me parece um bom começo - Jonas disse.
O rei caminhou devagar, fazendo careta ao sentir uma dor repentina com o movimento, e estendeu a mão.
- Peço que deixemos nossas diferenças de lado até esse objetivo ser alcançado. O que me diz?
Se não estivesse tão surpreso, Jonas teria gargalhado. O Rei Sanguinário tinha acabado de propor a ele - a mesma pessoa que o acusara de assassinar a Rainha Althea - uma aliança.
Jonas observou os outros ao redor, e em silêncio todos olhavam chocados para ele e o rei. Nic e Cleo estavam pálidos, e Felix entortava a boca de ódio. Olivia manteve o olhar desprovido de emoção e inescrutável,
como sempre. Enzo, o guarda de Cleo, estava parado empunhando a espada. Em contraste, Magnus tinha sentado e recostado na cadeira, os braços cruzados à frente do peito, a cabeça inclinada.
Finalmente, Jonas estendeu a mão direita para o rei e aceitou o acordo, encarando diretamente seus olhos.
- O que posso dizer, vossa alteza? - Com a mão esquerda, ele cravou uma adaga decorada no coração do monstro. - Vá para as terras sombrias, filho da puta mentiroso.
O rei gemeu sem força, e pelo som, a dor parecia extremamente forte. Jonas girou a faca ainda mais fundo, até Gaius tombar para trás.
Jonas ouviu Nic comemorar assim que Enzo o acertou e o derrubou no chão. Felix chegou em um instante, puxando Enzo para longe. Outro dos guardas do rei apareceu e puxou os braços de Jonas para trás. Cabelos
loiros apareceram na confusão - era Cleo tentando tirar o segundo guarda do rei de cima de Jonas. Magnus estava de pé com o olhar sério fixo no rei. Olivia estava dentro do campo de visão periférica de
Jonas, esperando. Ela só interviria se ele corresse perigo de morte.
A raiva que sentia, o ódio que tinha pelo rei, zuniam dentro de Jonas, renovados, e o rebelde tremia. Enquanto observava o rei moribundo, não sentiu nem um pouco de arrependimento.
Finalmente tinha tido uma oportunidade. E a aproveitado.
- Viu? - ele disse, olhando para Magnus. - Cumpro minhas promessas.
- Sim, estou vendo - Magnus disse, prestando atenção no pai, como se estivesse curioso, e não grato pela atitude. - Só é uma pena que você não tenha feito isso antes.
- O que quer dizer com isso? - Jonas olhou para o príncipe, sem entender por que ele parecia decepcionado com a situação. Jonas tinha feito exatamente o que Magnus queria, tinha cumprido a tarefa que o
tinha levado a Kraeshia.
- Milo, deixe Jonas levantar. - Cleo segurava o guarda desconhecido pelo braço.
- Ele assassinou o rei - Milo disse.
- Não - Magnus disse. - A morte decidiu demorar no que diz respeito ao meu pai.
- Jonas, olhe para ele - Felix pediu.
Gaius não estava mais deitado no chão, cheio de sangue. Milagrosamente, estava ajoelhado, sangrando muito sobre a madeira desgastada, o cabo da adaga no peito.
A expressão agonizante do rei estava fixa em Jonas.
- Ele não está morto - Nic murmurou, balançando a cabeça, incrédulo. - Por que não está morto?
Num movimento repentino e forçado, o rei Gaius segurou o cabo decorado da adaga. Ainda encarando Jonas com os olhos semicerrados, ele arrancou a lâmina, com um grito. A adaga caiu no chão, e ele levou
as mãos à ferida.
- Isso é magia - Jonas conseguiu dizer em meio ao choque.
- Muito observador de sua parte. Impressionante - Magnus disse com seriedade.
- Explique o que está acontecendo!
Magnus meneou a cabeça para Milo.
- Solte o rebelde. Não posso conversar com alguém preso como um besouro pregado a uma placa de cortiça.
Milo parou de segurar o braço de Jonas, que imediatamente ficou de pé e lançou um olhar acusatório para Magnus, que encarou Cleo de um jeito pouco sutil e sério. Cleo rangeu os dentes, e Magnus revirou
os olhos.
- Muito bem - o príncipe concordou. - Vou tentar ser breve em minha explicação. O que está acontecendo é o resultado de uma poção que o rei tomou muitos anos atrás, uma poção que permitiu que, não importa
o golpe final e fatal que o destino desferir, ainda tem algum tempo para... resistir depois de ser morto.
- Não sei bem se é assim que funciona - Cleo disse pacientemente.
Magnus suspirou e fez um gesto para o pai.
- Mais ou menos isso?
- Acredito que sim. Minha nossa, Jonas, essa é a adaga de Aron? - Cleo perguntou, chocada. - Você realmente guardou essa coisa horrível por todo esse tempo?
- Responda à minha pergunta - ele disse, mais incisivo do que pretendia ao se dirigir à princesa. Finalmente Jonas tinha feito o que queria fazer havia muito tempo, mas mais uma vez o destino não permitia
seu sucesso. Nem mesmo depois de um golpe fatal.
- Você não matou o rei - Cleo respondeu tensa - porque o rei já encontrou a morte dias atrás.
Enquanto Jonas tentava desesperadamente processar aquela afirmação incrível, uma mulher desceu a escada. Ela era mais velha, com rugas ao redor dos olhos, e usava um manto cinza-escuro que combinava com
seu cabelo. Entrou na sala de convivência, observando todos os presentes com firmeza, até finalmente fixar o olhar em Gaius.
A mulher o observou por um momento muito breve e, em seguida, lançou um olhar intenso na direção de Jonas.
- Você fez isso com meu filho?
Um arrepio subiu por seus braços e seus ombros, e desceu pela coluna ao perceber a raiva controlada nas palavras dela.
Filho?
- Tudo bem - o rei disse assustado, segurando a manga da blusa da mulher que se apressou para ficar ao lado dele.
- Não está nada bem. Não mesmo. - Ela voltou a encarar Jonas, e com o olhar dela, veio a sensação de que ele estava sendo congelado. - Você ousaria tentar matar seu rei?
- Ele não é meu rei - Jonas respondeu irritado, recusando-se a demonstrar fraqueza ou dúvida. - Ele matou meus amigos em sua guerra doentia, executou aqueles que se recusaram a se submeter, e escravizou
meu povo para construir sua preciosa Estrada Imperial. Nenhuma pessoa nesta sala diria que ele não merece morrer por seus crimes.
Ela cerrou o punho.
- Eu diria.
- Não, mãe - Gaius disse depressa. - Deixe-o em paz. Precisamos dele. Acredito que precisaremos de todos eles para reaver o que Amara pegou.
Devagar, o rei levantou, e Jonas só conseguiu dar um passo incerto para se afastar. O único sinal de que uma adaga tinha atravessado seu coração alguns momentos antes era a camisa rasgada e o sangue no
chão.
- Só a magia mais sombria poderia tornar algo assim possível - uma nova voz disse.
Jonas virou de repente e viu que Ashur Cortas estava atrás deles na entrada da hospedaria.
- Ashur! - Cleo se surpreendeu. - Você está vivo! Mas... como?
Ashur arqueou as sobrancelhas escuras.
- Mais magia negra, receio.
Ela virou para Nic, cuja expressão era neutra.
- Você sabia disso?
Ele assentiu.
- Eu sei, é um choque.
- Um choque? Ele estava morto, Nic! Por que não me contou?
- Eu ia contar. Achei melhor esperar você lidar com a questão do Taran primeiro.
- Ah, obrigada - ela disse, a voz tensa. - Você é muito solícito mesmo.
- Não sei por quê, mas acho que você não está falando sério.
Jonas se virou para Magnus e viu que ele estava sério.
- Estou ficando muito cansado de magia - o príncipe murmurou. - E de absolutamente tudo sobre o que não tenho controle.
- Também é ótimo revê-lo, príncipe Magnus - Ashur disse com um meneio de cabeça.
- Muita gentileza sua nos encontrar, vossa graça - Nic se dirigiu a Ashur, a voz desprovida de qualquer respeito. - Pensei que tivesse criado guelras e cauda e começado a nadar de volta a Kraeshia.
- Hoje não, infelizmente - Ashur respondeu com rispidez.
- Talvez amanhã.
- Talvez.
- Contamos a todos sobre sua ressurreição de fênix agora ou mais tarde? - Nic perguntou.
A expressão de Ashur ficou tensa ao notar o tom ácido de Nic.
- Parece, Nicolo, que há assuntos mais urgente a tratar. Estou certo, não estou, rei Gaius?
O grupo voltou a atenção ao rei, que estava encolhido ao lado da mãe.
- Está, sim, príncipe Ashur.
- Uma aliança contra minha irmã.
- É um problema para você?
- Não. Contanto que não a matem, não vejo nenhum problema.
- Espere - Felix disse de onde estava, ao lado da lareira. - Você sabe que eu pretendia matá-la! Vai mesmo tirar isso de mim?
Ashur lançou um olhar severo para Felix.
- Tudo bem. É um assunto para outro dia - Felix respondeu.
- Príncipe Ashur, você é o herdeiro legítimo de seu pai - o rei explicou. - Tire o título de Amara e tudo isso pode acabar.
- E agora você é o marido dela, pelo que soube. Por que não está a seu lado, orientando suas decisões?
- Não é mais tão simples assim.
- Nada importante é simples, certo?
- O Rei Sanguinário quer que trabalhemos em equipe - Jonas disse, balançando a cabeça. - É a coisa mais ridícula que já ouvi. Não é o que quero.
Gaius bufou, frustrado.
- Sei muito bem o que você quer, rebelde. Você quer que eu morra. Bem, devo dizer que vou morrer em breve.
- Gaius... - a mãe sibilou. - Não vou permitir que fale assim. Não vou permitir!
Ele a silenciou com um aceno.
- Minha primeira prioridade é retomar o controle de meu reino. Mítica não pertence, nem pertencerá, ao Império Kraeshiano.
- Não fosse pela magia que dizem que está adormecida aqui - Ashur disse -, posso garantir que nem Amara nem meu pai dariam tanta importância a essa ilhazinha.
- Acredito que você esteja ciente de que Amara envenenou seu pai e seus irmãos - o rei afirmou. - Ela não sente remorso quando vai em busca do que quer.
A risada sombria de Nic interrompeu a tensão na sala.
- Que engraçado... "Não sente remorso", ele disse, como se considerasse isso um defeito. O mesmo homem que quebrou o pescoço da minha irmã por estar no lugar errado na hora errada. - Ele parou de rir de
repente. - Sua aparência está péssima, vossa majestade. Espero muito que esteja sofrendo neste momento.
- Não fale com o rei desse jeito, Cassian - Milo, o guarda, se manifestou.
Nic lançou um olhar para ele do outro lado da sala.
- O que vai fazer se eu falar? Vai pedir para seu amigo ajudá-lo a me bater?
Milo sorriu e estralou os dedos.
- Posso fazer isso sozinho sem problema.
- Pensei que você estivesse apodrecendo na masmorra.
O sorriso do guarda ficou tenso.
- Preciso lhe agradecer por isso, não?
- Precisa. - Nic semicerrou os olhos. - O que vai fazer em relação a isso, Milo?
- Muitas coisas. Só preciso de tempo.
- Milo, não é? Ouça bem o que vou dizer. - A voz de Ashur estava baixa, como o rosnado de uma fera enjaulada. - Se tentar machucar Nicolo, juro que eu mesmo vou arrancar sua pele.
Jonas virou para Milo. Viu que a única reação dele à ameaça foi piscar, surpreso.
Cleo falou com o rei, depois de lançar um olhar preocupado a Nic e ao guarda.
- Você deu Mítica a Amara - ela disse, deixando claro seu tom de insatisfação. - Não pode apenas pegá-la de volta?
- Você não entende - o rei disse. - Nenhum de vocês entende. O imperador Cortas teria tomado Mítica à força se eu não tivesse agido dessa forma. Dezenas... não, centenas de milhares teriam morrido na guerra
se eu não tivesse feito minha proposta a ele.
- Ah, sim - Magnus disse. - Meu pai, o salvador de todos nós. Deveríamos construir estátuas em homenagem a ele. Uma pena já haver dezenas delas em Limeros. - Magnus arregalou os olhos. - É muita vaidade,
pensando bem. A deusa Valoria não aprovaria.
- Para o inferno com a deusa e com todos os Vigilantes! - o rei rebateu. - Não precisamos da ajuda deles para nos livrarmos de Amara.
- Não esqueça Kyan - Jonas acrescentou.
O rei virou para ele.
- Quem é Kyan?
Jonas não conseguiu conter o riso.
- Adoraria ficar aqui para elaborarmos uma estratégia juntos, vossa alteza, mas cansei dessa farsa. Não vou trabalhar com você hoje, nem amanhã, nem nunca.
- Diga, vossa alteza - Felix disse devagar -, ainda está com o cristal do ar?
Gaius lançou um olhar sério.
- O cristal do ar! - a mãe dele exclamou. - Você está com ele? E não me contou?
- Estou, sim - ele respondeu.
- Onde?
- Em um lugar seguro.
Jonas tentou encarar Cleo nos olhos, mas ela parecia ocupada com uma conversa silenciosa com o príncipe. Quando se entreolhavam, o sorriso de Magnus desapareceu.
- Se for verdade, e quando eu tiver força suficiente para encontrar minha neta - a mulher anunciou -, a vitória será nossa.
Mais uma vez, Jonas riu com frieza.
- Então é esse o segredo para seu grande plano? A princesa Lucia? Acredito que ficará decepcionada quando vir a serpente fria, má e sanguinária que ela se tornou. Mas ela é uma Damora, então talvez você
não se surpreenda nem se desaponte.
A senhora o observou.
- Jonas, não é?
- É o meu nome.
- Meu nome é Selia. - Ela se aproximou sem raiva no olhar ao pegar as mãos dele. - Fique conosco e ouça mais sobre nossos planos. Concordo com meu filho que, apesar de nossas diferenças, ainda podemos
trabalhar juntos. Tente ver isso de modo lógico. Juntos, somos mais fortes.
Ela estaria certa?
- Não sei...
- Fique - Cleo pediu. - Por favor, pense bem, pelo menos. Por mim.
Jonas encarou seus olhos sinceros e azuis.
- Talvez.
Magnus levantou.
- Está sugerindo que os rebeldes fiquem aqui? - ele perguntou em tom acusatório para a avó. - Nesta hospedaria? É a pior ideia que já ouvi.
- Discordo - disse o rei. - Minha mãe tem razão. Podemos chegar a um acordo. Temporário. Temos o mesmo inimigo agora.
Sem saber ao certo se estava prestes a concordar ou discordar dos Damora, Jonas abriu a boca para falar mas foi interrompido por um rosnado furioso vindo da sala de convivência.
Passos foram ouvidos descendo a escada, e Taran entrou com tudo no ambiente. Em um instante, voltou o olhar furioso para Magnus.
A adaga de Jonas - aquela que o rei tinha tirado do peito - estava no chão. Jonas a viu, mas Taran também, recuperando-a num piscar de olhos e percorrendo a distância entre ele e o príncipe.
Taran apontou a adaga para Magnus, mas o príncipe segurou o braço de Taran antes que ele pudesse encostar. Cleo soltou um grito estridente.
- Você está morto - Taran gritou.
Magnus se esforçou para não deixar a lâmina feri-lo, mas Taran o pegou de surpresa e a ira da vingança parecia duplicar sua força.
Então, Felix apareceu atrás de Taran, passando o braço por seu pescoço e puxando-o para trás.
- Não me faça acertar você de novo. Perdi meu pedaço de pau.
Jonas se aproximou e arrancou a adaga da mão de Taran.
- Vou matar você - Taran gritou para o príncipe enquanto Felix o arrastava para trás. - Você merece morrer pelo que fez!
Magnus não revidou. Só ficou observando o rapaz, com uma expressão séria.
- Acho que todos merecemos morrer por algo que fizemos - Jonas disse, aliviando um pouco da tensão que crescia entre o príncipe e o rebelde. - Ou por algo que deixamos de fazer.
O príncipe desfez a expressão séria e olhou incrédulo para Jonas.
- É minha imaginação ou você acabou de ajudar a salvar minha vida?
Jonas fez uma careta ao ouvir a pergunta.
- Parece que sim, não? - Ele olhou para Cleo, cuja expressão era de alívio. Com certeza, a princesa não queria ver mais sangue sendo derramado naquela noite, ele pensou. Nem mesmo o de Magnus. - Pode ser
que eu esteja prestes a cometer um erro horroroso do qual me arrependerei pelo resto da vida, mas decidi aceitar essa aliança. Mas uma aliança temporária, até Amara ser tirada daqui.
Ele esperou a resposta de Ashur. A expressão do príncipe kraeshiano se manteve séria, mas ele assentiu.
- Concordo. Amara precisa perceber o que fez. Ainda que ache que estava certa, tomou o caminho errado. Farei o que puder para ajudar.
- Ótimo. - Jonas apontou para Taran, que Felix ainda segurava. - Compreendo seu luto e sua ira, mas seu desejo por vingança não tem espaço aqui.
Taran lançou um olhar feio para Jonas, segurando o braço de Felix, que apertava sua garganta como uma barra de ferro.
- Você conhecia meus motivos para vir para cá antes de sairmos de Kraeshia.
- Conhecia, mas isso não quer dizer que concordava com eles. Agora tomei minha decisão. Você não vai tentar matar o príncipe Magnus de novo. Não enquanto mantivermos essa aliança.
- Você ouviu bem com essas orelhas gastas? - Felix perguntou a Taran, a voz áspera enquanto aplicava mais força no braço. - Ou preciso repetir mais devagar?
- Abandonei uma rebelião para vir até aqui vingar meu irmão.
- Uma rebelião fadada ao fracasso antes mesmo de começar - Ashur acrescentou.
- Você não sabe.
- Sei. Não me alegra saber, mas sei. Talvez um dia o império que meu pai construiu seja destruído, mas não será logo.
- Veremos.
- Sim, veremos.
Taran lançou mais um olhar raivoso para Jonas.
- Você se uniria a eles por vontade própria?
- Sim - Jonas confirmou. - E peço que considere fazer o mesmo. Podemos precisar de sua ajuda. - Ele fez uma pausa. - Mas não me leve a mal, Taran; se tentar acabar com a vida do príncipe Magnus de novo,
vou acabar com a sua.
15
AMARA
PAELSIA
O deus do fogo tinha sido muito específico sobre o lugar aonde queria que Amara fosse para obter poder infinito. Segundo ele, era um lugar tocado pela magia. Um lugar que até os próprios imortais reconheciam
como um centro de poder.
Ela contou a Carlos sobre a mudança de planos. Não ia se mudar para o palácio limeriano. Não, seu destino ficava mais ao sul de Paelsia, próximo ao antigo complexo do chefe Hugo Basilius.
Em vez de questionar as ordens, Carlos planejou tudo no mesmo instante. Com quinhentos soldados, Amara, Nerissa, Kurtis e o capitão dos guardas viajaram ao reino central de Mítica, que a nova imperatriz
ainda não conhecia.
Pela janela da carruagem, ela via com surpresa o gelo e a neve de Limeros derreterem e darem espaço à terra seca, às florestas mortas e à escassa vida selvagem.
- Foi sempre assim aqui? - ela perguntou, assustada.
- Nem sempre, vossa graça - Nerissa respondeu. - Ouvi dizer que houve uma época, muito tempo atrás, que toda Mítica, de norte a sul, era quente e temperada, sempre verde, com pequenas mudanças de uma estação
a outra.
- Por que alguém moraria em um lugar assim?
- Os paelsianos não podem escolher seu destino e são conhecidos por se conformarem isso, como se a aceitação tivesse se tornado uma religião em si. O povo é pobre, regido pelas regras que seu ex-chefe
e o chefe antes do anterior estabeleceram. Por exemplo, os paelsianos só podem vender vinho legalmente a Auranos, e o vinho é o único produto de exportação valioso deles. Grande parte do lucro é taxado,
e essas taxas foram determinadas pelo chefe.
Sim, o vinho paelsiano era famoso pelo sabor adocicado e por sua habilidade mágica de inebriar depressa e de modo prazeroso, sem mal-estar depois.
Era o vinho que Amara tinha levado para Kraeshia para envenenar sua família.
O que quer que fosse dito sobre a bebida, ela jurava que nunca a beberia por causa da lembrança.
- Por que não vão embora? - ela perguntou.
- Para onde? Poucos teriam dinheiro para ir ao exterior, menos ainda para construir uma casa em outro lugar que não seja aqui. E os paelsianos não podem entrar em Limeros nem em Auranos sem permissão do
rei.
- Tenho certeza de que muitos vêm e vão como querem. As fronteiras não são totalmente monitoradas.
- Não, mas os paelsianos costumam obedecer às leis. A maioria dos paelsianos, pelo menos. - Nerissa recostou na cadeira, as mãos sobre o colo. - Eles provavelmente não vão lhe causar nenhum problema, vossa
graça.
Ouvir aquilo era um alívio, no mínimo, depois de tantos problemas no passado.
Amara continuou observando a paisagem árida pela janela da carruagem durante os quatro dias de viagem desde a partida da quinta de lorde Gareth, esperando ver a terra e a morte se transformarem em verde
e vida, mas isso não aconteceu. Nerissa garantiu que mais a oeste, mais perto da costa, a paisagem melhoraria, e que a maioria dos paelsianos construía casas em vilarejos naquele pedaço da terra; poucos
construíam mais perto dos picos assustadores e sombrios das Montanhas Proibidas, a leste.
Aquele era o reino mais distante da fartura de Kraeshia que ela já tinha visto, e Amara estava torcendo para não precisar passar muito tempo ali.
Na última etapa da viagem, o comboio usou a Estrada Imperial, que se estendia por Mítica de modo curioso, começando no Templo de Cleiona, em Auranos, e terminando no Templo de Valoria, em Limeros. Passava
direto pelos portões de entrada do complexo de Basilius.
Os portões estavam abertos e um homem baixo de cabelo grisalho os esperava, cercado por uma dúzia de paelsianos enormes usando roupas de couro, com cabelo preto preso em tranças minúsculas.
Quando Carlos ajudou Amara a desembarcar da carruagem, o homem fez um leve sinal com a cabeça para ela.
- Vossa graça, sou Mauro, o antigo conselheiro do chefe Basilius. Seja bem-vinda a Paelsia.
Ela olhou para o homem, bem mais baixo do que ela.
- Então, você ficou responsável por este reino depois da morte do chefe?
Ele confirmou.
- Sim, vossa graça. E estou às suas ordens. Por favor, venha comigo.
Junto com o grupo principal de guardas pessoais da imperatriz - incluindo Carlos -, Amara e Nerissa acompanharam Mauro pelos portões de pedra. Um caminho de pedra se estendia pelo vilarejo murado, levando-os
por pequenas casas de sapê parecidas com as que Amara tinha visto enquanto atravessava várias cidades antes de chegar ao complexo.
- Naquelas casas ficavam as tropas do chefe. Infelizmente, quase todos foram mortos na batalha pelo palácio auraniano. - Mauro indicava os pontos de interesse conforme caminhavam pelo complexo, que no
passado fora o lar de mais de dois mil cidadãos paelsianos.
Havia comércios que antes forneciam pão, carne, legumes e frutas, trazidos do Porto do Comércio. Mauro mostrou um espaço onde ficavam as bancas dos vendedores locais, que podiam atravessar os portões todo
mês.
Outra área, uma clareira com bancos de madeira, tinha sido usada como arena para diversão - duelos, lutas e disputas de força que o chefe costumava gostar de assistir. Outra clareira surgiu com restos
de fogueiras, onde o chefe fazia banquetes.
- Banquetes... - Amara comentou surpresa. - Em um reino como este, banquetes são a última coisa que eu esperaria de um líder.
- O chefe precisava de prazeres para abastecer a mente e conseguir explorar os limites de sua força.
- Certo - ela disse. - Ele acreditava ser um feiticeiro, não?
Mauro olhou para ela constrangido.
- Sim, vossa graça.
Para Amara, o chefe Basilius parecia um homem egoísta e pobre de espírito. Ela estava contente em saber que Gaius o havia matado depois da batalha auraniana. Se ele não o tivesse matado, ela teria feito
isso.
Apesar do calor do dia com o sol já forte, Amara sentiu a temperatura ao seu redor aumentar ainda mais.
- Sei que não parece grande coisa, pequena imperatriz, mas garanto que aqui é exatamente onde precisamos estar.
Amara não respondeu, mas reconheceu a presença de Kyan com um meneio de cabeça.
- Estamos perto do centro do poder aqui - ele continuou. - Posso sentir.
- Aqui - Mauro indicou um grande buraco no chão, com cerca de dez passos de circunferência e vinte passos de profundidade para dentro da terra seca - é onde o chefe costumava deixar os prisioneiros.
Amara olhou para dentro do buraco.
- Como eles desciam?
- Alguns eram baixados com uma corda ou escada. Outros simplesmente eram jogados. - Mauro fez uma careta. - Peço desculpas se a imagem não lhe agrada, vossa graça.
Ela o encarou com uma expressão fulminante.
- Garanto, Mauro, que provavelmente não há nada que você possa me contar sobre como os prisioneiros eram tratados que eu consideraria surpreendente ou intolerável.
- Claro, vossa graça. Peço desculpas.
Amara estava cansada dos homens e seus falsos pedidos de desculpa.
- Carlos, cuide para que meus soldados recebam aposentos adequados depois dessa longa viagem.
- Sim, imperatriz. - Carlos fez uma reverência.
- Vossa graça ficará aqui, imperatriz Amara. - Mauro indicou a construção de três andares, feita de terra e pedra, a maior e mais forte do vilarejo. - Espero que seja do seu agrado.
- Com certeza será.
- Organizei tudo para levá-la a uma feira mais tarde e mostrar o trabalho de seus novos súditos paelsianos. Há, por exemplo, alguns bordados lindos que podem ser de seu interesse. E alguns enfeites com
contas para seu belo cabelo. Uma comerciante virá da costa até aqui para trazer uma tinta de frutas silvestres que ela criou para pintar os lábios... - Mauro parou de falar ao ver a expressão contrariada
da imperatriz. - Algum problema, vossa graça?
- Você acha que estou interessada em bordados, enfeites e tintas para os lábios? - Ela esperou a resposta, mas ele só abriu a boca sem emitir nenhum som.
De trás dela, ouviu-se uma risada.
Amara virou imediatamente, os olhos fixos no guarda - seu guarda - que mantinha um sorriso no rosto.
- Está achando engraçado? - ela perguntou.
- Sim, vossa graça - o guarda respondeu.
- Por quê?
Ele olhou para os compatriotas ao redor, e nenhum deles fez contato visual.
- Bem, porque é do que as mulheres gostam: maneiras de ficarem mais bonitas para os homens.
O guarda disse isso sem hesitar, como se fosse óbvio e nada ofensivo.
- Minha nossa - Kyan disse no ouvido dela. - Que insolente, não?
Ela concordava.
- Me diga uma coisa... Você acha que eu deveria comprar tinta para os lábios para agradar meu marido quando ele finalmente voltar para mim? - ela perguntou.
- Acho que sim - ele respondeu.
- Esse é meu objetivo como imperatriz, claro. Agradar meu marido e qualquer outro homem que por acaso olhe para mim.
- Sim, vossa graça.
Era a última coisa que ele diria na vida. Amara fincou a adaga que trazia consigo no homem e viu os olhos dele se arregalarem de surpresa e dor.
- Se algum de vocês me desrespeitar - ela disse, lançando um olhar aos outros guardas que a encaravam, surpresos -, vai morrer.
O guarda que havia dito o que não devia caiu no chão. Ela sinalizou para Carlos retirar o corpo, e ele obedeceu sem hesitar.
- Muito bem, pequena imperatriz - Kyan sussurrou. - Você me prova mais seu valor a cada dia que passa.
Amara abriu um sorriso na direção de Mauro, cuja expressão era de medo.
- Estou ansiosa para ir à feira. Parece incrível.
Mais tarde, escoltadas por Mauro e pelos guardas reais, Amara e Nerissa exploraram a feira, composta por vinte bancas cuidadosamente escolhidas que, como o prometido, vendiam, em sua maioria, produtos
fúteis - principalmente itens de beleza e de moda.
Amara ignorou os lenços e vestidos bordados, a tinta para os lábios, os cremes para remover manchas e os bastões de carvão para delinear os olhos e se concentrou nos comerciantes - paelsianos, jovens e
velhos, com expressão cansada, mas esperançosa, quando ela se aproximava.
Sem medo, sem desespero, só esperança.
Que estranho encontrar isso em um reino dominado, ela pensou. Mas a ocupação kraeshiana de Mítica tinha sido, até aquele momento, quase totalmente pacífica, em espacial em Paelsia. Ainda assim, Carlos
havia contado sobre grupos rebeldes que conspiravam contra ela, tanto em Limeros quanto em Auranos.
Não era um problema para Amara. Os rebeldes eram uma praga inevitável, mas que em geral podia ser combatida com facilidade.
Ela observou quando Nerissa se aproximou de uma banca para ver um lenço de seda que o comerciante mostrava a ela.
- Fico feliz em ver que você está se habituando - Kyan sussurrou carinhosamente no ouvido dela. Os ombros de Amara ficaram tensos com a voz dele.
- Estou fazendo o melhor que posso - ela respondeu em voz baixa.
- Infelizmente tenho que deixá-la por um tempo enquanto procuro a magia de que precisamos para realizar o ritual.
Pensar nisso a assustou. Eles tinham acabado de chegar!
- Agora? Vai embora agora?
- Sim. Em breve, retomarei minha glória, e você será mais poderosa do que pensa. Mas precisamos da magia para finalizar isso.
- A magia de Lucia. E seu sangue.
- O sangue dela, sim. Mas não precisamos da feiticeira em si. Vou encontrar uma fonte alternativa de magia. Mas precisaremos de sacrifícios; sangue para selar a magia.
- Compreendo - ela sussurrou. - Quando você volta?
Amara esperou, mas não houve resposta.
Então, ela sentiu sua saia mexer e olhou para baixo. Uma menininha, que não devia ter mais do que quatro ou cinco anos, com cabelo bem preto e sardas no rosto bronzeado, aproximou-se com certa hesitação,
oferecendo uma flor.
Amara aceitou a flor.
- Obrigada.
- É você, não é? - a menina perguntou esbaforida.
- Quem você acha que sou?
- Aquela que veio salvar todos nós.
Amara sorriu e lançou um olhar para Nerissa, que estava ao seu lado usando um lenço colorido, e então sorriu para a criança.
- É o que você acha?
- Foi o que minha mamãe me disse, então deve ser verdade. Você vai matar a bruxa má que machuca nossos amigos.
Uma mulher se aproximou, claramente envergonhada, e pegou a mão da menininha.
- Perdoe-nos, imperatriz. Minha filha não teve a intenção de perturbá-la.
- Não me perturbou - Amara disse. - Sua filha é muito corajosa.
A mulher riu.
- Está mais para teimosa e tola.
Amara balançou a cabeça.
- Não, nunca é cedo demais para as meninas aprenderem a dizer o que pensam. É um hábito que as fará crescer mais corajosas e fortes. Diga, você acredita no que ela disse? Que vim salvar todos vocês?
A expressão da mulher se tornou mais séria, e seu cenho se franziu com preocupação e dúvida. Ela encarou os olhos de Amara.
- Meu povo sofreu por mais de um século. Estávamos sob o comando de um homem que tentou nos fazer acreditar que ele era feiticeiro, cobrando impostos tão altos a ponto que, mesmo com os altos lucros das
vinícolas, não conseguíamos nos sustentar. A terra que chamamos de lar está se desfazendo sob nossos pés enquanto estamos aqui conversando. Quando o rei Gaius venceu Basilius e o rei Corvin, muitos de
nós achamos que ele nos ajudaria. Mas isso não aconteceu. Nada mudou, só piorou.
- Sinto muito em ouvir isso.
A mulher balançou a cabeça.
- Mas então a senhora chegou. Aquela feiticeira má passou por aqui destruindo tudo, vilarejo por vilarejo, mas ela desapareceu quando a senhora chegou. Seus soldados têm sido rigorosos, mas justos. Eles
acabaram com quem discordava, mas essas pessoas não fazem falta: seus detratores são os mesmos homens que espalharam a discórdia em nosso reino depois que o exército de Basilius parou de oferecer a pouca
proteção que oferecia. Então, se acredito, como muitos aqui acreditam, que a senhora chegou para nos salvar? - Ela ergueu o queixo. - Sim, acredito.
Quando os guardas levaram Amara para longe da mulher e da filha, em direção à outra área da feira, aquelas palavras ficaram em sua mente.
- Posso fazer uma sugestão ousada, vossa graça? - Mauro perguntou, e ela olhou para o homenzinho que a seguia como um cão adestrado.
- Claro que pode - ela disse. - A menos que queira sugerir que eu compre tinta para os lábios.
Ele empalideceu.
- De modo algum.
- Então, vá em frente.
- O povo paelsiano está aberto a sua liderança, mas a notícia precisa ser espalhada. Sugiro abrir os portões do complexo para permitir que os novos cidadãos entrem para ouvi-la falar sobre seus planos
para o futuro.
Um discurso, ela pensou. Era algo que Gaius gostaria muito mais de fazer do que ela.
Mas Gaius não estava lá. E agora que tinha o deus do fogo para aconselhá-la sobre como acessar a magia da esfera de água-marinha, não havia mais motivos para deixar o rei viver por muito mais tempo.
- Quando? - ela perguntou a Mauro.
- Posso espalhar a notícia agora mesmo. Milhares virão dos vilarejos vizinhos para ouvi-la. Talvez em uma semana?
- Três dias - ela disse.
- Três dias parece perfeito - ele concordou. - Será maravilhoso. Muitos paelsianos, de braços e coração abertos, estão prontos a obedecer a todas as suas ordens.
Sim, Amara pensou. Um reino pronto para fazer o que ela mandasse sem questionar, que aceitaria uma mulher como líder sem discutir, seria incrivelmente útil.
16
MAGNUS
PAELSIA
Magnus pensou nas doze pessoas que estavam na hospedaria Falcão e Lança, notando que quase metade queria vê-lo morto.
- E você é uma delas, com certeza - ele murmurou quando Nic atravessou a sala, arregalando os olhos ao passar pelo príncipe. Magnus estava sozinho sentado a uma mesa com um caderno de desenho que tinha
encontrado em uma gaveta em seu quarto.
- Cassian, veja - ele disse. - Desenhei você.
Magnus ergueu o caderno. Com os dedos manchados de carvão, ele mostrou uma página na qual tinha desenhado um garoto magro pendurado em uma forca, a língua para fora da boca, X mórbidos no lugar dos olhos.
Nic, que supostamente era muito simpático com todo mundo, lançou um olhar de puro ódio para Magnus.
- Você acha isso engraçado?
- O que foi? Não gostou? Bom, dizem que a arte é subjetiva.
- Você acha que gastar seu tempo rabiscando nesse caderno vai fazer todo mundo considerar você menos ameaçador? Pense bem. Essa pose de inocente e bacana não me engana.
Magnus revirou os olhos.
- Certo - ele disse, enfiando o caderno embaixo do braço. - Mas não posso dizer que você não me magoou. Pensei que tivéssemos nos tornado amigos em Limeros.
Nic semicerrou os olhos, sem achar graça.
- A única coisa que me ajuda a dormir à noite é saber que Cleo sabe muito bem quem você é.
- Espero muito que você esteja certo - Magnus respondeu sem dar muita atenção. Ele nunca tinha deixado as palavras de Nic atingi-lo antes, e não deixaria agora, mas a questão de Cleo era um espinho. -
Acho muito interessante ver que vocês decidiram ficar aqui na cova do leão.
- Talvez você esteja enganado a respeito de quem é o leão e quem é a presa.
Magnus deu risada.
- Conversar com você é sempre muito estimulante, Nic. De verdade. Mas tenho certeza de que tem outros lugares para onde ir, e eu detestaria fazer um cara tão brilhante como você perder tempo. Sem dúvida
já atrapalhei seu próximo compromisso que é... qual é mesmo? Ficar à sombra de Ashur, à espera da maravilhosa atenção dele, agora que conseguiu voltar dos mortos? - Por ter testemunhado a morte de Ashur,
Magnus ainda estava tentando processar a informação de que ele estava vivo. - Muito triste, de verdade, que ninguém veja o que de fato está acontecendo entre o príncipe ressuscitado e o ex-cavalariço.
Foi o suficiente para fazer Nic corar.
- E o que seria, Magnus? O que você acha que está acontecendo?
Magnus fez uma pausa, encarando o olhar incerto de Nic.
- O sabor da decepção amorosa é amargo, não é?
- Imagino que você entenda bem sobre o assunto, não? - Nic rebateu. - Nunca esqueça que Cleo odeia você. Você matou todo mundo que ela ama. Roubou o mundo dela. É uma verdade que nunca vai mudar.
Lançando um último olhar, Nic saiu da sala, deixando Magnus furioso, bufando, com vontade de socar alguma coisa. Ou alguém.
Ele está enganado, ele disse a si mesmo. O passado não determina o presente.
E era no presente que ele tinha que se concentrar. Precisavam encontrar Lucia o mais rápido possível.
Por que esperar mais um dia para minha avó encontrar a pedra mágica?, ele pensou. Eles estavam ali, acovardados como vítimas, quando deveriam estar fazendo o máximo possível para tirar aquela kraeshiana
de suas terras para sempre.
Magnus empurrou o caderno de desenho para o centro da mesa e levantou. Ele ia encontrar a avó e exigir que ela - com ou sem a magia totalmente restaurada - testasse um feitiço para encontrar sua irmã.
- Está sozinho nessa sala enorme?
Ele parou ao ouvir a voz de Cleo. Ela estava na base da escada, observando-o do outro lado da sala enorme.
- Parece que sim - ele diz. - Mais um motivo para você não entrar.
Ela entrou mesmo assim.
- Parece que não conversamos a sós há muito tempo.
- Faz dois dias, princesa.
- Princesa - ela repetiu, mordendo o lábio inferior. - Minha nossa, você está fingindo muito bem. Na verdade, não sei se é só fingimento mesmo.
- Não sei ao certo do que você está falando. - Ele olhou para Cleo como um homem faminto olhava para um banquete. - Esse vestido é novo?
Ela alisou a saia de seda, da cor de um pêssego maduro.
- Olivia e eu fomos a uma feira perto das docas hoje.
- Você e Olivia fizeram o quê? - Ele franziu a testa, assustado por não saber que a princesa tinha decidido se arriscar por aí. - Que péssima ideia. Você poderia ter sido reconhecida.
- Por mais que eu goste de ser repreendida, acho que preciso dizer que ninguém me reconheceu, já que usei meu manto. E não estávamos sozinhas. Enzo e Milo estavam conosco, para nos proteger. Ashur também.
Ele está explorando a cidade para saber o que os paelsianos pensam sobre a notícia da chegada da irmã dele.
- E o que dizem?
- Ashur disse que a maioria parece... disposta a mudar.
- É mesmo?
- Qualquer coisa depois do chefe Basilius seria um progresso. - Ela hesitou. - Bem, à exceção do seu pai, claro.
- Claro. - Magnus não se importava muito com os paelsianos nem com os auranianos, na verdade. Ele só se importava com o fato de Cleo ter saído da hospedaria sem que ele notasse. - Não importa com quem
você saiu, porque ainda assim foi uma péssima ideia.
- Assim como beber até cair toda noite na taverna Videira Púrpura - ela respondeu, meio tensa. - E, no entanto, é o que você faz.
- É diferente.
- Tem razão. O que você faz é muito mais idiota e tolo do que passar o dia explorando uma feira.
- Idiota e tolo - ele repetiu, franzindo a testa. - Duas palavras que nunca foram usadas para me descrever.
- Elas são certeiras - disse Cleo, o tom firme e a testa franzida. - Quando vi você naquela primeira noite com Taran...
O som daquele nome atravessou o espaço entre eles como a lâmina afiada de um machado cortando um tronco de árvore.
- Sei que a presença dele aqui deve ser difícil para você - Magnus comentou, sentindo a garganta apertar. - Aquele rosto... Todas aquelas lembranças horrorosas que ele sugere...
- A única lembrança horrorosa de Taran que tenho é a da lâmina dele pressionada contra sua garganta. - Cleo parou, observando a expressão de Magnus e franzindo mais a testa. - Você entende que, quando
olho para ele, só vejo Theon?
- E como não veria?
- Admito que foi inesperado encontrá-lo. Mas Theon se foi. Sei disso. Já aceitei isso. Taran não é Theon. Mas é uma ameaça.
- Compreendo.
- Compreende? - Cleo continuou a observá-lo concentrada, como se fosse um enigma que ela precisasse decifrar. - Mas você pensou mesmo que eu o veria e esqueceria tudo o que aconteceu desde aquele dia?
Que o ódio que eu sentia por você voltaria a me cegar? Que eu... o quê? Me apaixonaria por Taran Ranus no mesmo instante?
- Parece mesmo um tanto quanto absurdo.
Ela ficou pensativa.
- Bom, Taran é muito bonito. Tirando o fato de querer você morto, o que é, admito, um objetivo que também já tive. Ele seria um pretendente perfeito.
- Deve ser muito divertido me atormentar.
- Muito - ela provocou, abrindo um sorriso discreto, mas levemente triste. Cleo segurou as mãos dele, e a sensação de sua pele quente junto à dele foi como um bálsamo numa ferida dolorosa. - Nada mudou
entre nós, Magnus. Saiba disso.
As palavras dela confortaram sua alma atormentada.
- Fico muito feliz em saber disso. Quando pretende contar aos outros?
No mesmo instante, a expressão dela ficou tensa.
- Não é o momento. Há muita coisa em risco agora.
- Nic é a pessoa mais próxima de você, seu amigo mais querido, e ele me odeia.
- Ele ainda vê você como um inimigo. Mas, um dia, sei que vai mudar de ideia.
- E se não mudar? - Ele a encarou nos olhos. - O que vamos fazer?
- Como assim?
- Escolhas, princesa. A vida parece cheia delas.
- Você está pedindo para que eu escolha entre você e Nic?
- Se ele se recusar a aceitar... isso, o que quer que seja, princesa, então acho que você teria que escolher.
- E você? - ela finalmente perguntou depois de um longo momento de silêncio. - Quem você escolheria se alguém ou algo o forçasse? Eu? Ou Lucia? Sei muito bem que ela foi seu primeiro amor. Talvez você
ainda a ame como antes.
Magnus grunhiu.
- Garanto a você que não existe nenhum sentimento dessa natureza entre mim e Lucia. E no que diz respeito a ela, nunca existiu.
Seu coração tinha feito tanto progresso nos últimos meses que ele se perguntava se ainda era a mesma pessoa que tinha sofrido de amor por sua irmã adotiva. Apesar de ter assumido uma forma diferente, aquele
amor ainda estava ali, dentro dele. Não importava o que Lucia pudesse fazer ou dizer, Magnus a amava incondicionalmente e estava pronto para perdoá-la por qualquer erro.
Mas o desejo que ele já sentira por sua irmã... seu coração tinha se voltado total e permanentemente para outra pessoa - alguém muito mais frustrante e perigosa do que sua irmã adotiva.
- Afinal, Lucia escolheu fugir com o tutor. - Cleo relembrou.
Ele franziu os lábios.
- Sim, e agora o destino do mundo depende da localização dela. - Cleo olhou para ele duvidosa. - O que foi, princesa? - ele perguntou. - Está em dúvida?
- Eu... - Cleo começou a falar, e então parou e olhou para os próprios pés, como se estivesse refletindo sobre o assunto. - Magnus, só não tenho certeza de que ela seja a única solução com a qual você
parece contar.
- Ela tem ligações com o deus do fogo. Acredito que saiba como extrair a magia dos cristais da Tétrade sem permitir que o deus elementar escape.
- Parece que foi ela quem ajudou Kyan a escapar, se estão viajando juntos. Só pode ser.
- Talvez. Mas a magia dela é ampla.
- Ampla o suficiente para matar todos nós.
- Você está enganada - Magnus disse sem hesitar. - Ela não faria isso. Lucia vai nos ajudar, vai ajudar a todos. - Sempre que falava bem de Lucia, ele percebia que Cleo contraía os lábios e franzia a testa
como se estivesse comendo alguma coisa amarga.
Será que ela poderia estar com ciúme do que sinto por Lucia?, ele se perguntou, achando graça.
- Vejo que você fica feliz quando pensa em sua irmã adotiva - ela comentou tensa, em um tom desagradável. - Tenho certeza de que pensar nela é uma ótima válvula de escape para você enquanto estamos presos
aqui em Paelsia, cercados por rebeldes que adorariam a oportunidade de incendiar esta hospedaria com toda a realeza dentro.
- É esse o plano abominável de Agallon? - ele perguntou, contraindo os lábios e franzindo a testa. - O que mais ele contou na calada da noite desde que chegou?
- Muito pouco, na verdade.
Magnus deu um passo na direção dela. Cleo deu um passo para trás: a dança na qual se envolviam de vez em quando. Os dois continuaram até ele encurralá-la em um canto, e ela lançar um olhar desafiador.
- Talvez você preferisse dividir um quarto com o rebelde do que comigo - ele disse, enrolando uma mecha do cabelo dela no dedo. - Mas ele provavelmente preferiria uma casa na árvore feita de tábuas e barro.
Cleo riu.
- É nisso que está decidindo se concentrar agora?
- Sim. Porque se me concentrar em Agallon, posso parar de pensar em você e em como quero levá-la para a minha cama.
Ela só teve tempo de soltar um breve suspiro antes de Magnus beijá-la, segurando-a pela cintura e puxando-a para si. Cleo retribuiu sem limitações.
As mãos dele deslizaram pelo corpo da princesa, passando pela lombar, chegando à curva de seu quadril. Desesperado para se inclinar e beijá-la direito, ele pegou suas pernas por trás e a levantou, pressionando
suas costas contra a parede.
Sim, ela deveria fazê-lo parar naquele momento.
Mas não foi o que aconteceu. Na verdade, Cleo tinha começado a puxar os cordões da camisa dele, sem afastar seus lábios nem por um segundo.
- Quero você - ele sussurrou enquanto a beijava. - Quero tanto você que posso morrer de desejo.
- Sim... - O hálito dela era doce e quente. - Também quero você.
Quando Magnus a beijou, toda a racionalidade sobre a maldição desapareceu de sua mente. Nada mais existia, só a necessidade enlouquecedora e alucinante de tocá-la, de senti-la...
Pelo menos, até ouvir passos de alguém se aproximando por trás.
Foi nesse momento que Magnus percebeu que não estavam mais sozinhos.
Deixando a princesa de volta ao chão, devagar, Magnus se forçou a se afastar e, com os ombros tensos, enfrentar o intruso.
Apesar de sua altura intimidadora e dos músculos avantajados, Felix Gaebras parecia envergonhado.
- Hum... Desculpe interromper. Eu estava... só passando. - Mas ficou parado onde estava, e então, ergueu o queixo. - Perdoe-me por dizer, vossa alteza - ele disse, olhando para Magnus -, mas talvez seja
melhor o senhor ser mais discreto com a princesa de agora em diante.
- É mesmo? - Magnus perguntou.
Felix assentiu.
- Nic convenceu a todos do seu ódio por Magnus, princesa. E isso... não me pareceu uma atitude de ódio. Ele vai enlouquecer.
Cleo se afastou de Magnus, os dedos nos lábios e o rosto corado.
- Por favor, Felix - ela disse, quase desesperada. - Prometa que não vai contar nada a Nic sobre isso. Nunca.
Felix fez uma reverência.
- Não se preocupe, princesa. Não direi nada.
- Obrigada.
Magnus disfarçou a careta. Algo no modo como ela falou, no alívio que pareceu sentir por ter sido Felix quem os vira juntos e não alguém cuja opinião considerasse mais importante, o incomodou demais.
Se Ashur podia buscar informações sobre Amara, Magnus também podia. Naquela tarde, ele deixou a hospedaria, subiu a rua até a feira que Cleo havia mencionado e passou na porta da tentadora Videira Púrpura.
Na feira, ele mal olhou para as bancas de madeira com lonas coloridas protegendo os comerciantes do sol, cada um vendendo um produto paelsiano diferente - de vinho a joias, de frutas e legumes a lenços
e túnicas de todas as cores, e diversas outras mercadorias. No movimentado labirinto de bancas, sentia-se o cheiro adocicado das frutas e da carne defumada, e mais perto das docas, o cheiro de suor e vômito
pegou as narinas de Magnus de surpresa. Entre os diversos clientes da feira, incluindo a tripulação de navios e os cidadãos comuns da cidade, vários guardas kraeshianos chamaram sua atenção.
Ele observou um dos homens de Amara conversar com um vendedor de vinho paelsiano que lhe ofereceu um pouco da bebida. O copo de madeira não foi oferecido com mãos trêmulas nem medo nos olhos do vendedor,
mas com um sorriso.
Para Magnus, era irritante ver que muitos paelsianos aceitavam o destino de se tornar parte do Império Kraeshiano sem se preocupar com nada. Será que as coisas estavam tão ruins antes que pensar em Amara
como nova líder era uma dádiva?
Ele continuou a observar essa dinâmica entre paelsianos e kraeshianos até o sol ficar alto e insuportavelmente quente para continuar com o manto com capuz. Como já havia tido contato com paisagens, sons
e cheiros bons e ruins da feira de Basilia, decidiu voltar.
Magnus virou na direção da hospedaria e descobriu que havia alguém em seu caminho.
Taran Ranus.
O príncipe se forçou a não deixar claro que encontrar o gêmeo de Theon - alguém que quase tinha conseguido vingar o assassinato de seu irmão - o tinha assustado. Mas antes que Magnus decidisse o que dizer,
Taran tomou a liberdade de falar.
- Estou curioso - ele disse em voz baixa. - Quantas pessoas você matou?
- Essa pergunta é muito pessoal para um lugar tão público.
Taran continuou, sem se deixar abater.
- Sabemos que matou meu irmão. Quem mais?
Magnus tentou não se encolher, tentou não levar a mão ao cabo da espada. A espada de Taran também estava visível, pendurada no quadril.
- Não sei ao certo - admitiu.
- Aceito uma estimativa.
- Muito bem. Talvez... uma dúzia.
Taran assentiu, sem deixar sua expressão revelar o que passava em sua mente quando olhou para a feira movimentada ao redor deles.
- Quantas pessoas você acha que eu matei?
- Mais de uma dúzia, tenho certeza - Magnus respondeu. Ele contraiu os lábios. - Por quê? Está aqui para me provocar com suas habilidades com a espada? Para contar histórias de como fez homens maus chorarem
chamando pela mãe diante da morte? Que mataria mais mil se isso fizesse o sol brilhar e a felicidade imperar nesse mundo?
Taran observou Magnus, semicerrando os olhos. Para alguém que quase tinha posto a hospedaria a baixo em uma noite para tentar cortar o pescoço de Magnus, ele parecia bem calmo naquele dia.
- Você se arrepende de ter matado meu irmão? - ele finalmente perguntou, ignorando as perguntas de Magnus.
Magnus pensou em mentir, sem saber se deveria fingir arrependimento. Mas sua intuição lhe disse que não conseguiria enganar o gêmeo de Theon.
- Não - ele afirmou com o máximo de confiança que conseguiu. - Minha vida estava em risco. Tive que me proteger de alguém muito mais habilidoso com a espada do que eu era na época, por isso agi. Não posso
dizer que me arrependo de ter tomado as medidas necessárias para salvar minha vida, apesar de saber que hoje não faria as escolhas que fiz naquele momento.
- Qual escolha faria hoje?
- Combate direto. Minhas habilidades de luta melhoraram muito no último ano.
Taran assentiu, mas seu rosto não deixou transparecer nada.
- Meu irmão teria vencido você.
- Talvez - Magnus disse. - Mas e daí? Imagino que você esteja aqui para tentar me matar diante dessas pessoas. É isso? Ou estamos só conversando?
- Foi exatamente para isso que o segui até aqui: quero decidir o que fazer. Antes era muito simples, estava muito claro em minha mente que você tinha que morrer.
- E agora?
Taran puxou a espada da bainha, mas só o suficiente para mostrar a lâmina que trazia uma série de símbolos e palavras desconhecidas gravadas na superfície.
- Essa era a arma de minha mãe. Ela me contou que as palavras gravadas estão na língua dos imortais.
- Interessante - Magnus disse, o corpo tenso e pronto para a luta. - Sua mãe era bruxa?
- Sim. Ela era uma Vetusta, uma bruxa que adorava os elementos com magia de sangue e sacrifício.
- Tenho certeza de que você está me contando isso por um motivo.
- Estou. Pedi para você adivinhar quantas pessoas eu matei. - Taran embainhou a espada. - A resposta é uma. Apenas uma.
Uma gota de suor correu pelas costas de Magnus.
- Sua mãe.
Taran assentiu com seriedade.
- As Vetustas acreditam que os gêmeos têm uma magia poderosa. - Ele balançou a cabeça, franzindo a testa. - Existe uma lenda quase esquecida que diz que os primeiros imortais criados foram os gêmeos: um
escuro e um claro. Minha mãe acreditava que a magia sombria era muito mais poderosa, então, para aumentar a dela, decidiu sacrificar o gêmeo claro.
- Theon.
- Na verdade, não. Fui eu, cinco anos atrás, quando tinha quinze anos. Talvez minha mãe achasse que eu fosse permitir que ela usasse essa mesma espada para me matar, mas estava enganada. Eu reagi e a matei.
Theon chegou naquele momento e me viu empunhando uma espada e nossa mãe morta a meus pés. Ele não sabia o que ela era de verdade. Eu mesmo só descobri a verdade recentemente. Ele jurou que eu pagaria com
a vida por tê-la matado, e eu sabia que ele nunca compreenderia. Então corri o máximo que pude, sem olhar para trás. Até agora. - Ele riu, e o som saiu seco e oco. - Parece que temos isto em comum: nós
dois fomos forçados a matar para nos proteger, uma atitude da qual não podemos nos arrepender, porque, sem ela, não estaríamos vivos hoje.
Magnus não sabia o que dizer. A confissão de Taran o deixou sem fala. Ele se concentrou na movimentação da feira, fechando os olhos com força por um momento.
Quando voltou a abri-los, Taran se afastava dele em meio à multidão. Ele o observou à distância, pensando na conversa e sentindo-se grato por não ter tido que lutar para defender a própria vida naquele
dia.
Quando voltaram para a hospedaria, Jonas estava na sala de convivência, como se os estivesse esperando. Ele levantou da cadeira e largou o livro que estava lendo. Magnus notou com surpresa que era o mesmo
que tinha lido, sobre vinhos.
- Taran, precisamos conversar - Jonas anunciou. - No pátio não seremos ouvidos por bisbilhoteiros. Felix já está esperando. Você também, vossa alteza.
Magnus inclinou a cabeça.
- Eu?
- Foi o que eu disse.
- Agora estou profundamente confuso. Muito bem. Vamos lá, rebelde.
Atrás da casa havia um espaço a céu aberto que o dono da hospedaria e sua esposa chamavam de pátio. Na verdade, era uma área de grama marcada por uma horta, flores e dois cercados para os animais - um
para as galinhas e outro para os porcos gordos que guinchavam alto quando alguém se aproximava.
Magnus e Taran acompanharam Jonas até onde Felix estava, no canto oposto do jardim.
- Temos informação sobre Amara - Jonas disse finalmente. - Ela está aqui em Paelsia.
Magnus tentou não demonstrar insatisfação.
- Informação vinda de quem?
- Há rebeldes por todos os lados, alteza.
O primeiro ímpeto de Magnus foi querer lembrar Jonas que a maioria dos rebeldes havia morrido, mas decidiu se controlar.
- Muito bem. Onde em Paelsia?
- No complexo do chefe Basilius.
- E onde, exatamente, é isso?
- A um dia de viagem daqui rumo ao sudeste. Fico surpreso por você não saber, já que é um ponto importante na Estrada de Sangue de seu pai.
- Estrada Imperial - Magnus o corrigiu.
- Estrada de Sangue - Jonas repetiu, rangendo os dentes.
Magnus decidiu não discutir a questão com um paelsiano, nem tocar no assunto de como ela tinha sido construída tão depressa pelos trabalhadores paelsianos sob ordens de seu pai. Não era à toa que os cidadãos
daquele reino tinham recebido Amara tão bem.
- E esse informante também explicou por que ela veio para cá?
- Não.
- Não importa por que ela está aqui - Felix disse. - Essa é nossa chance.
- De quê? - Magnus perguntou. - De matá-la?
- Essa era a ideia.
- Não era, não - Jonas disse, arregalando os olhos para o amigo.
- Matar a imperatriz não muda o fato de que meu pai deu este reino para a família dela. Não muda que os soldados estão tão espalhados quanto manchas de lama. E Ashur? Você o trouxe aqui como se confiasse
nele, mas não sabemos qual é o plano dele.
- Ashur é um problema, admito - disse Jonas. - Nic está de olho nele, informando qualquer comportamento incomum.
- Ah, sim. - Magnus cruzou os braços. - Isso deve dar certo. Então, você - ele virou para Felix - quer matar a imperatriz. E você - ele virou para Jonas - quer pagar para ver. - Ele assentiu. - Excelentes
decisões. Acho que Amara não terá chance contra essa aliança.
Jonas hesitou.
- Taran, você não planejava matá-lo?
- Sim.
- Estou começando a me animar com essa possibilidade.
- Está claro que - Magnus começou -, se sabemos onde Amara está, a melhor estratégia é mandar homens para obter mais informações sobre os planos atuais dela, por que está aqui e onde escondeu o cristal
da água.
Taran resmungou.
- Odeio concordar com ele, mas concordo. Posso ir. Não tenho motivos para ficar aqui sem nada para fazer, olhando para as paredes.
- Também vou - Felix anunciou animado.
Jonas lançou um olhar cauteloso para Felix.
- Você acha que consegue lidar com isso sem fazer nada de errado?
- Claro que não. Mas ainda assim, quero ir. - Felix suspirou. - Prometo que vamos conseguir informações. E só isso.
Magnus preferia entrar em ação, como Felix, e simplesmente varrer Amara do mundo, mas sabia que informações seriam úteis com os dois reinos em guerra.
- Devemos contar a Cleo sobre isso? Ou a Cassian?
- Por enquanto, não - Jonas respondeu. - Quanto menos pessoas souberem, melhor.
Magnus não gostava de guardar segredos de Cleo, mas Jonas tinha razão.
- Tudo bem. Vamos manter esse assunto entre nós quatro.
Jonas assentiu.
- Então, resolvido. Taran e Felix partem amanhã cedo.
17
CLEO
PAELSIA
- Você viu o príncipe Ashur por aí? - Nic perguntou.
Cleo desviou o olhar do livro sobre a vida do chefe Basilius que tinha escolhido na estante do andar de baixo. Seus pensamentos estavam tão dispersos que ela devia ter lido a mesma página dez vezes - que
contava sobre os cinco casamentos dele.
Nic estava parado na porta do quarto dela. Enzo estava de guarda do lado de fora, um protetor constante, mas ela tinha deixado claro que Nic podia interrompê-la.
- Hoje não - ela admitiu, ainda chocada por ter visto que o príncipe tinha renascido dos mortos. - Por quê? Isso é estranho?
- Ele gosta de sair por aí sem avisar ninguém. - Ele ficou sério. - Você acha que ele está diferente? Não sei dizer.
- Para mim, ele está igual, mas não o conheço muito bem - ela admitiu.
- Nem eu.
- Ah, não sei. Às vezes não precisamos de anos para conhecer alguém. Algumas conversas são mais do que suficientes para saber como a pessoa é.
- Se você acha...
Cleo sabia que Nic e Ashur eram bem próximos, a ponto de seu amigo ter sentido muito a perda do príncipe. E também sabia que existia mais do que uma simples amizade entre os dois, mas emoções que os dois
estavam apenas começando a explorar. Talvez agora nunca mais se resolvessem.
- Parece que Taran e Felix também sumiram - ela disse. - Onde eles estão?
- Ótima pergunta. Pensei que Jonas fosse meu parceiro, mas parece que ele tem negócios com Magnus agora.
- O quê? - Só de pensar, ela sentiu vontade de rir. - Se você viu os dois conversando, é bem provável que o assunto seja o rei.
Desde que Jonas conseguira - ainda que não tenha conseguido - cravar a adaga no peito do rei, dois dias antes, Gaius não saía do quarto, com a mãe a seu lado o tempo todo, temendo que o filho estivesse
perto demais da morte e não sobrevivesse tempo suficiente para receber a magia secreta e restauradora que ela prometera.
Cleo temia que, se o rei morresse antes de a bruxa encontrar Lucia, ela se recusaria a ajudá-los, mas não se incomodava em imaginá-lo sofrendo em um quartinho em Paelsia.
Um fim adequado para um monstro.
Como será que Gaius Damora era quando conheceu a mãe dela? A que horrores ele teria submetido Elena Corso? Era uma pergunta que a perseguia desde que ele dissera o nome dela.
- Você confia nele? - A voz de Nic interrompeu seus pensamentos.
- Em quem? Magnus?
Ele riu.
- Não, claro que não estou falando de Magnus. Em Jonas.
Ela confiava em Jonas, o garoto que a tinha sequestrado e aprisionado - não uma, mas duas vezes - e que, em determinado momento, quis que ela morresse por presenciar o assassinato de seu irmão?
Mas também era o garoto que se tornara um líder. Que lutara por seu povo. O garoto que tinha arriscado a própria vida para salvar a dela.
- Confio nele, sim - ela admitiu.
Muita coisa podia mudar em um único ano.
- Eu também - Nic disse.
Ela assentiu.
- Se ele está falando com Magnus, deve ser importante.
- Ainda assim, não gosto de pensar que esteja escondendo alguma coisa de nós.
Cleo também não gostava, principalmente se fosse um segredo entre Jonas e Magnus. E jurou que conseguiria algumas respostas. Ela não gostava de ficar por fora das questões.
Naquele mesmo dia, a chance apareceu. Quando Magnus pediu para falar com Enzo no pátio, ela começou a procurar informações por conta própria na hospedaria. Logo encontrou algo possivelmente interessante
na sala de convivência: o caderno de desenho de Magnus.
Cleo já tinha visto Magnus desenhando nele, os dedos pretos por causa do carvão. Os limerianos não gostavam tanto de arte quanto os auranianos, que viam a beleza como um presente que o artista compartilhava
com o mundo por meio de sua visão singular. Mas quando um limeriano desenhava, precisava ser bem semelhante ao original para ajudar na referência e no aprendizado.
Para isso, Magnus tinha passado um verão tendo aulas de arte na Ilha de Lukas muitos anos antes, uma viagem que muitos nobres e jovens da realeza - incluindo a mãe e a irmã de Cleo - faziam na juventude.
Ela já tinha visto o antigo caderno de Magnus, no qual havia desenhos incrivelmente detalhados da flora e da fauna... além de vários retratos de Lucia, cada um feito com admiração indiscutível e atenção
a cada centímetro do rosto perfeito da irmã.
Mas aquele era um caderno novo, o que deixou Cleo extremamente intrigada.
- Eu não devia olhar - ela disse a si mesma. - Magnus não me deu permissão.
Mas esse argumento nunca tinha funcionado.
O primeiro desenho era do jardim, um rascunho rápido, mas as dimensões e a precisão eram espantosas. Antes de abandonar aquele desenho, ele tinha se concentrado no detalhe de uma roseira, e mesmo com o
traço grosso do carvão, tinha capturado a beleza em tons de preto e cinza.
A segunda, a terceira e a quarta páginas tinham sido arrancadas sem cuidado.
Na quinta página, não havia um desenho, mas uma mensagem.
Espiando para encontrar um retrato seu, princesa? Desculpe, mas hoje não. Talvez um dia eu desenhe você. Ou talvez não. Vamos ver o que o futuro nos reserva.
M.
Cleo fechou o caderno envergonhada, e também irritada.
Quando ouviu gritos, correu para as janelas com cortinas de lona grossa que davam para o pátio nos fundos da hospedaria.
O príncipe estava empunhando a espada, mirando em Milo e Enzo, que também seguravam suas armas. Quando atacaram, Cleo soltou um grito de susto antes de perceber o que estava acontecendo.
Eles estavam treinando. E a julgar pela força de ataque de Milo e de Enzo, Magnus tinha pedido para os dois darem o melhor de si.
Será que ela nunca tinha visto Magnus assim antes, em guarda, a testa suada, bloqueando as armas dos guardas com a espada? Ela pensou que aquilo podia trazer lembranças horrorosas daquele dia - do dia
em que perdera Theon. Mas naquela visão Magnus era um príncipe sem habilidade comparado a um guarda do palácio, e ele sabia disso.
Sinto muito, Theon, ela pensou, o coração apertado. Não esperava sentir isso por Magnus. Mas sinto. Não posso mais me apegar à sua lembrança. Não posso odiar o príncipe pelo que aconteceu, pelo que ele
fez naquele dia. Magnus está muito diferente agora.
Ou talvez Cleo tivesse mudado irreversivelmente.
- Na minha opinião, não estão lutando tanto quanto deveriam.
Cleo se assustou com a voz de Jonas. Ela o viu a seu lado, escondido até aquele momento, com os olhos arregalados.
- Está surpresa? - ele perguntou, achando graça.
- Você se aproximar de alguém em uma sala escura com certeza não é uma surpresa, rebelde.
Jonas sorriu, mas voltou a observar o trio do lado de fora.
- Será que o príncipe estaria disposto a me enfrentar?
- Se estivesse, certamente um de vocês acabaria morto.
- Sim, mas quem? - Sua sobrancelha, que estava arqueada, abaixou quando ele viu a expressão sofrida dela. - Em pouco tempo você estará livre desse acordo infeliz com ele, prometo.
Cleo conteve a resposta, tomando cuidado para não defender o príncipe. Ela ainda achava que era melhor ninguém saber a verdade sobre eles.
- Magnus, o rei e Selia são o caminho para as respostas de que preciso para liberar a magia da Tétrade - ela comentou.
- Eu já disse: tem um deus elementar dentro daquele cristal - ele falou de modo incisivo.
Seu tom de voz a fez se encolher. Depois que descobriu sobre os deuses elementares, dois dias antes, ela não conseguia parar de pensar no assunto e mal tinha pregado os olhos devido à gravidade da situação.
- Se tivermos a oportunidade de aproveitar essa magia sem deixar o deus escapar, ainda acho que é um objetivo que vale a pena buscar. Vamos perder muito se não conseguirmos esse poder para nos ajudar de
alguma forma, ainda que seja pouco.
Quando ela encarou Jonas, viu uma expressão séria, mas os olhos mais tranquilos.
- Não discordo totalmente.
Ela hesitou, mas só por um momento.
- É bom que saiba que, de acordo com Nic, você está escondendo dele a localização de Taran e Felix. Ele está bastante irritado com isso.
- Comecei a acreditar que o príncipe Ashur é tão mau quanto a irmã. Nic o conhece, mas não diz nada útil a respeito do que esperar dele. Gosto de Nic, mas não conto nenhum segredo que ele possa acidentalmente
revelar ao príncipe.
Outra pessoa entrou na sala e chamou a atenção de Cleo. Era Ashur, poucos metros atrás de Jonas.
- Jonas... - ela começou.
- Ashur diz que é um herói lendário renascido dos mortos para trazer paz ao mundo. Um monte de besteira. Ele não passa de mais um membro mimado da realeza criado com todas as regalias possíveis que só
precisa estalar os dedos para ter qualquer mulher linda que desejar. - Jonas franziu a testa. - Admito que isso seria uma vantagem.
Cleo limpou a garganta quando Ashur cruzou os braços diante do peito e inclinou a cabeça.
- Acho que você deveria... - ela começou.
- O quê? Falar com gentileza sobre alguém que confunde todo mundo porque está confuso em relação à irmã má e gananciosa que provavelmente vai destruir o mundo com sua sede por poder e magia? Ele poderia
tirar o poder dela com facilidade. Poderia se impor, reclamar o título de imperador, contar para todo mundo que Amara matou a família deles. Pronto.
Ela sentia uma pontada no peito a cada palavra verdadeira, mas mordaz, que Jonas dizia.
- Pode ter certeza de que não fico confuso quando se trata de Amara - Ashur disse em voz baixa.
Jonas fez uma careta.
- Você poderia ter me dito que ele estava bem atrás de mim, princesa.
- Você estava ocupado demais admirando o som da própria voz. - E, para ser sincera, as reclamações de Jonas sobre Ashur tinham reacendido a irritação que ela mesma sentia em relação ao príncipe kraeshiano.
Não, não era irritação. Era raiva, beirando a fúria.
- Espero que não esteja confuso em relação a sua irmã - Cleo falou para Ashur. - Ela cravou uma adaga em seu peito por tê-la contrariado.
- As últimas atitudes de Amara foram infelizes, mas eu já sabia que ela estava tomando esse rumo. Na verdade, culpo minha avó por colocar seus próprios planos de revolução em ação. É irônico que minha
madhosha derrube aqueles que também querem mudança no império. Ela tem muito mais em comum com os rebeldes do que pensa.
Cleo ficou olhando para ele, enojada.
- Infelizes... Você chama as escolhas de Amara de infelizes? Ela matou você, matou a própria família, e agora está matando todos os míticos que vê pela frente!
- Ela perdeu as estribeiras. A irmã que conheço, que eu conhecia, não resolve seus problemas com violência desnecessária.
- Sim, claro, os kraeshianos são conhecidos como um povo pacífico.
Ashur a observou atentamente.
- Você está infeliz comigo.
Ela olhou para Jonas e riu um pouco.
- Príncipe Ashur, por que eu estaria infeliz com você?
- Você é como Jonas. Não confia em mim.
- E deveríamos confiar? - Jonas perguntou. - Você não me conta nenhum de seus planos, desaparece por dias, fica isolado... Acha que eu deveria confiar em você mesmo assim?
- Você poderia tirar o trono de Amara - Cleo disse. - Se está tão interessado em ajudar o mundo, pode acabar com muito sofrimento simplesmente tornando-se imperador. Você é mais velho do que Amara. O trono
é seu por direito. Tem tanto medo dela assim?
Ashur riu com frieza ao ouvir aquilo.
- Não tenho medo de Amara.
- Teve medo suficiente para, supostamente, tomar uma poção para salvar sua vida - Jonas disse. - Sabia que ela planejava matá-lo?
O belo rosto de Ashur ficou sério.
- Eu não sabia. Não com certeza. E a poção que tomei... foi bem antes de minha viagem para, acima de tudo, me proteger do rei Gaius, caso ele tentasse usar minha presença em seu reino contra meu pai. Eu
nem imaginava que a poção funcionaria.
- Mas funcionou - Jonas disse. - Precisamos encontrar esse boticário ou essa bruxa ou quem quer que a tenha feito. Poções de ressurreição para todos. Magia assim poderia salvar muita gente.
- A magia da morte não é algo que se possa alterar - Ashur rebateu. - Não por qualquer motivo.
- Mas você alterou essa magia sombria para se salvar. - Cleo teve certeza de que o príncipe se encolheu diante da acusação, o que era incomum para ele. - Você se sente culpado por isso?
- Claro que não. - Apesar da resposta, Ashur não fez contato visual com ela.
- Chega de mentiras, Ashur. Se está tentando dar a impressão de que estamos todos do mesmo lado, precisa ser sincero conosco. Há mais coisas envolvidas nessa poção do que você quer revelar. Ela é perigosa,
não é?
- Muitas poções são perigosas. O veneno nada mais é do que uma poção com a intenção de matar.
Cleo inspirou e soltou o ar devagar, com a sensação de que estava prestes a descobrir um segredo.
- Aprendi que toda magia tem um preço. Que preço você pagou pela oportunidade de viver de novo?
- Aprendi que o preço da magia costuma ser o oposto da magia em si. Para ter muita força, você viverá momentos de grande fraqueza. Para ter prazer, haverá dor. E para ter vida... haverá morte.
- Então você matou alguém - Jonas disse, os braços cruzados e tensos. - Ou muitas pessoas. Acaba aqui o que você diz sobre altruísmo.
Ashur caminhou até a janela para olhar para fora, os braços cruzados.
- Você não sabe nada sobre mim, Jonas. Matei quando precisei. Nem sempre sou pacifista. O boticário me alertou do preço que eu teria que pagar, mas não acreditei. Amara pagou o mesmo preço, mesmo sem querer,
quando a ressuscitaram.
Cleo franziu a testa.
- Amara foi ressuscitada?
- Foi - Ashur respondeu solenemente, e então começou a contar para Cleo e Jonas o que tinha acontecido quando Amara era bebê e tinha sido salva de um afogamento pela magia negra e pelo sacrifício de sua
mãe.
Cleo percebeu que precisava sentar, pois tinha ficado abalada com a história. Em Auranos - e em Mítica -, apesar de serem valorizadas pela habilidade que tinham como mães, cozinheiras e enfermeiras, as
mulheres não eram impedidas de fazer outras coisas, se assim desejassem. E uma princesa podia ser a herdeira do trono do pai ou da mãe sem medo de ser assassinada apenas pelo suposto crime de ser uma mulher.
Cleo não sabia se admirava a mãe de Amara por valorizar a vida da filha o suficiente para sacrificar a própria vida ou se culpava a mulher por sua filha ter se tornado um monstro.
- Quem morreu por você? - Cleo perguntou em voz baixa.
O olhar distante de Ashur ficou sério, e antes de continuar, ele lançou um rápido olhar para Jonas.
- Eu não tinha certeza, mas sabia que alguém tinha morrido. Passei o mês tentando descobrir. Viajei, visitei amigos e ex-amantes. Foi alguém com quem passei um único verão. Eu não fazia ideia de que ele
ainda gostava de mim, de que nunca havia deixado de gostar... - Ele engoliu em seco. - De todas as pessoas que conheci, alguém que conviveu comigo apenas por alguns meses me amou tanto a ponto de morrer
por esse amor. Não consigo entender. Eu sabia o preço, mas o ignorei por egoísmo. Soube que ele sofreu por vários dias. Ele descreveu a dor como uma faca sendo cravada lentamente em seu peito. Me disseram
que nos últimos momentos, ele gritou meu nome. - Ashur ficou com os olhos azul-acinzentados marejados e respirou fundo. - A culpa que sinto pelo sofrimento, pela morte dele e pelo fato de eu ter apagado
qualquer chance que ele tinha de ter uma vida plena e feliz... isso vai me assombrar para sempre.
A sala ficou em silêncio enquanto Cleo tentava processar o que estava ouvindo. Aquele Ashur parecia mais o homem sincero que tinha oferecido, na noite de seu casamento, uma adaga nupcial kraeshiana para
tirar a vida da noiva infeliz ou de seu marido. Aquele Ashur não estava falando coisas confusas para desviar a atenção de seu sofrimento.
Mas, naquele momento, uma ideia lhe ocorreu.
- É por isso que você anda tão estranho com Nic - ela disse. - Ele não entende, acha que você está diferente, que seus sentimentos por ele mudaram, por tudo. Mas ele está enganado, não está?
Ashur não respondeu, mas olhou para baixo.
- Você teme que ele se apaixone por você e que você o machuque por causa desse amor.
Jonas ficou em silêncio, a testa franzida. Cleo esperava que ele não dissesse nada que fizesse o príncipe omitir a verdade.
- Eu tinha outros planos na ida a Auranos - Ashur disse finalmente. - Não queria que nada disso tivesse acontecido. Mas alguma coisa em Nicolo chamou minha atenção e eu não pude ignorar. Sei que deveria
ter ignorado. Só consegui complicar a vida dele e causar dor desnecessária. Mas agora não vou permitir que nada de ruim aconteça com ele por cometer o erro de gostar de mim.
- Nic merece uma explicação - Cleo disse, com um nó na garganta.
- É melhor que ele pense que meus sentimentos mudaram. - Ashur limpou a garganta. - Se me dão licença, acho que já revelei mais do que pretendia.
Cleo não disse nada para impedi-lo de sair. Ela estava pensando em muitas coisas ao mesmo tempo; algumas se conectavam, mas a maioria só aumentava sua confusão.
Por fim, ela olhou para Jonas.
- Então... - ele disse, ainda franzindo a testa. - Nic e Ashur, certo?
Ela assentiu devagar.
- Estranho... Pensei que Nic gostasse de garotas. De você, em especial. Não costumo me enganar com essas coisas.
- Você não está enganado. Ele gosta de garotas.
- Mas Ashur... - ele olhou para a porta - não é uma garota.
- Não fique pensando sobre isso, rebelde. Pode fundir seu cérebro. Saiba apenas que é complicado.
- E todas as coisas não são complicadas? - Jonas sentou ao lado dela. - Agora que conheço o segredo de Ashur e sei que não se trata de uma ameaça pessoal a você nem a mim, preciso me concentrar em pegar
a esfera que o rei escondeu. Você acha que está aqui na hospedaria?
- Nem imagino. Gostaria de saber. Eu ia dizer que... para liberar a magia precisamos do sangue de Lucia e do sangue de um Vigilante.
Surpreso, ele a encarou.
- Esse é o segredo?
Cleo assentiu.
- Isso impede o deus de sair?
- Não sei. Por isso é tão importante encontrarmos Lucia, descobrir mais informações com ela e o que deu errado com Kyan.
Os olhos castanhos de Jonas pareciam distantes.
- A profecia...
- O quê? - Cleo perguntou quando ele ficou em silêncio.
Ele balançou a cabeça.
- Deixa para lá. Conto mais quando descobrir se é verdade ou não.
- O problema é que não sei como encontrar um Vigilante. - Ela mordeu o lábio. - Claro que ainda deve haver alguns Vigilantes exilados vivos, mas acho que precisa ser um Vigilante pleno. Espero que Lucia
se disponha a ajudar quando chegar o momento.
- Não se preocupe em encontrar um Vigilante. - Ele ficou em silêncio por um momento. - Essa parte eu resolvo.
Ela olhou para ele, surpresa.
- Como?
- Olivia - ele sussurrou. - Ela é.
Cleo ficou boquiaberta.
- Você não pode estar falando sério.
- É outro segredo, mas vou confiar que você não vai contar a ninguém. - Jonas abriu o meio sorriso que ela sempre achou charmoso e frustrante, ao mesmo tempo. - Muita coisa foi sacrificada nesse caminho
que percorremos juntos. Muita perda para nós dois. Mas tento acreditar que sempre vai valer a pena, no fim.
Ela assentiu.
- Eu também.
- Acho que você precisa saber que a Lys gostava de você.
- Agora você está mentindo.
- Pode ser que nem ela soubesse, mas sei que ela respeitava você mais do que você pensa. Vocês têm uma coisa em comum: força. - A voz de Jonas falhou. - Só demonstram de jeitos diferentes.
Os olhos de Cleo começaram a arder ao ver Jonas se esforçando para não deixar as lágrimas escorrerem.
Ela segurou as mãos do rebelde, puxando-o para mais perto.
- Sinto muito por sua perda, Jonas. Estou dizendo isso do fundo do coração.
Ele só assentiu, olhando para baixo.
- Ela me amava. Só me dei conta disso quando já era tarde demais. Ou talvez eu tenha percebido e não estivesse pronto para aceitar. Mas agora eu entendo... Ela era perfeita para mim.
- Tenho que concordar.
- Poderíamos ter construído uma vida juntos. Uma casa, talvez até uma quinta. - Jonas sorriu de novo, mas um sorriso mais triste. - Filhos. Um futuro. Quem sabe o que poderia ter acontecido? Só tenho certeza
de uma coisa.
- De quê?
- De que Lys merecia alguém bem melhor do que eu.
- Não tenho a menor dúvida em relação a isso - Cleo concordou, satisfeita ao ver que a expressão surpresa de Jonas conseguiu apagar a dor em seus olhos. Ela abriu um sorriso caloroso. - Minha irmã acreditava
que quem morre se torna uma estrela no céu. Então todas as noites podemos olhar para cima e saber que estão cuidando de nós.
Ele parecia desconfiado.
- Isso é uma lenda auraniana?
- E se for?
Uma mecha do cabelo dela tinha caído sobre a testa, e Jonas a ajeitou atrás da orelha e deslizou a mão por seu rosto.
- Nesse caso, gosto de lendas auranianas.
Cleo encostou a cabeça no ombro dele, e os dois ficaram ali, confortando um ao outro. Havia uma ligação entre eles - algo muito forte que ela nunca havia conseguido ignorar. E houve uma época, não muito
tempo atrás, em que ela poderia ter amado aquele rebelde do fundo do coração.
E ela o amava, sim, mas não como Lysandra o havia amado.
Independentemente do que acontecesse, o coração de Cleo pertencia a outro.
18
MAGNUS
PAELSIA
Ficou claro para Magnus que Enzo e Milo estavam se controlando na luta, com receio de ferir um príncipe. Magnus deixou os dois sangrando como punição e voltou para a hospedaria, sentindo uma grande necessidade
de desenhar.
Ele parou na porta quando viu Jonas e Cleo na sala de convivência. Os dois estavam sentados próximos um do outro, falando baixo. Magnus se aproximou para ouvir, mas só conseguiu ver o rebelde acariciar
o cabelo de Cleo, sem que a princesa reclamasse, e, logo depois, seu rosto. Os dois se entreolharam por mais tempo do que o normal.
Magnus ficou muito irritado.
Por um lado, queria entrar ali com tudo, afastá-los e matar o rebelde antes de tirar Cleo da hospedaria e de perto dele para sempre.
Seu lado mais racional dizia que nem tudo o que via era o que imaginava e que ele não deveria tirar conclusões precipitadas.
Ainda assim, se entrasse ali e confrontasse os dois, alguém com certeza morreria.
Então ele saiu da hospedaria e desceu a rua até a taverna, resmungando ao pedir vinho ao taberneiro. Magnus perdeu a conta de quantas taças de vinho teve de beber até começar a se acalmar.
Já sabia que a princesa gostava do rebelde, que os dois tinham uma história romântica sobre a qual não queria pensar muito. Por que ela não desejaria alguém como Jonas? Alguém corajoso e forte - apesar
de pobre, ridículo e muito azarado com todos os que já tinham se alistado sob sua liderança rebelde.
Magnus também conseguia entender que alguém como Jonas, que olhava para a princesa como se ela fosse uma estrela brilhante na noite escura, podia ser tentador. Pelo menos quando comparado a Magnus, que
era sombrio, instável e afeito à violência.
Ele encarou a taça vazia.
- Com um milhão de outros problemas e questões para resolver, estou obcecado pensando por quem ela tem sentimentos. - Ele olhou meio embriagado para o atendente. - Por que meu copo está vazio?
- Peço desculpas. - O homem logo encheu a taça até transbordar.
Alguém sentou no banco de madeira a seu lado. Ele estava prestes a vociferar que precisava de espaço e que se o homem valorizava a própria vida, deveria ir para outro lugar, mas então percebeu quem era.
- O vinho nunca ajuda uma pessoa a esquecer suas preocupações por muito tempo - seu pai disse, o rosto pálido e macilento como o de um cadáver por baixo do capuz grosso de seu manto preto.
Como o rei tinha se isolado em um quarto no andar superior da hospedaria desde a noite da chegada, foi uma surpresa vê-lo ali. Magnus observou ao redor para ver se ele tinha trazido Milo para protegê-lo,
mas não viu o guarda em nenhum lugar. Talvez ainda estivesse tratando os ferimentos depois da luta.
Magnus ignorou o comentário do rei e tomou todo o vinho do copo antes de falar.
- Selia sabe que você está aqui? Não acho que ela aprovaria.
- Ela não sabe. Sua preocupação com minha morte iminente me tornou seu prisioneiro. Não ligo muito para isso.
- Não liga para a preocupação com sua morte iminente ou com o fato de ter sido feito prisioneiro? Não precisa responder. Tenho certeza de que as duas experiências são novas para você. - Magnus pegou o
vinho do atendente, e mandou o homem se afastar com um aceno. Então bebeu direto da garrafa.
- Antigamente, me rendia a pecados assim - o rei comentou.
- Ao vinho ao à forte autopiedade?
- Você está tendo problemas com a princesa?
- Aposto que isso o deixaria muito feliz, não?
- Saber que você deseja se afastar de alguém que acho que causará sua destruição? "Feliz" não seria bem a palavra que eu escolheria, mas, sim. Seria o melhor.
- Não vou falar sobre Cleo com você, nem agora nem nunca - Magnus resmungou, detestando o fato de sua mente estar tão nebulosa com o pai por perto. Ele preferiria ter controle total dos sentidos, mas era
tarde demais para se preocupar com isso depois de tomar tanto vinho.
- Escolha inteligente - o rei respondeu. - Ela sem dúvida não é meu assunto preferido.
- Esse ódio que você nutre por ela... - O príncipe pensou no assunto, no ódio aparentemente sem fim que o rei sentia por Cleo. - Deve ter a ver com a mãe dela, não?
- Sim, na verdade, tem.
Uma resposta direta. Que incomum - e profundamente curioso.
- Rainha Elena Bellos - Magnus continuou, encorajado pelo vinho que soltava sua língua. - Vi o retrato dela no palácio auraniano antes de você destruí-lo. Era uma bela mulher.
- Com certeza era. - O rei deu as costas e olhou com saudosismo para a rua escura pelas janelas da taverna. Magnus viu quando os lábios pálidos e fantasmagóricos sorriram discretamente.
Perceber a situação mexeu com ele.
- Você era apaixonado por ela - Magnus disse, chocado com as próprias palavras, mas sabendo que eram verdade. - Você era apaixonado pela mãe de Cleo. - A acusação fez o rei encará-lo de novo, os olhos
vermelhos um tanto arregalados, surpresos. Magnus demorou um pouco para assimilar a confirmação silenciosa e tomou mais um gole de vinho para molhar a garganta repentinamente seca. - Deve ter sido há muito
tempo, quando você era capaz de uma emoção tão pura.
O sorriso logo desapareceu do rosto pálido e desanimado do pai.
- Faz muito tempo. Essa fraqueza quase me destruiu, e é exatamente por isso que quis cuidar de você.
Magnus riu ao ouvir isso, uma risada alta que surpreendeu a ele próprio.
- Cuidar de mim? Ah, pai, não gaste saliva com essas mentiras!
O rei socou o balcão.
- Você é cego? Totalmente cego? Tudo o que fiz foi por você!
A força da ira repentina fez Magnus derramar parte do vinho na túnica. Ele olhou feio para o pai.
- Estranho eu ter esquecido isso quando você decidiu acabar com a minha vida e com a vida da minha mãe.
- A morte seria um alívio deste mundo para muitos de nós.
- Não vou esquecer nada que você fez, a começar por isso. - Magnus apontou a cicatriz no lado direito do rosto. - Você lembra desse dia tão bem quanto eu?
O rei contraiu o maxilar.
- Lembro.
- Eu tinha sete anos. Sete. Você se arrependeu por um momento que seja?
O rei semicerrou os olhos.
- Você não deveria ter tentado roubar o palácio auraniano. Se tivesse conseguido, a vergonha teria sido grande.
- Sete anos! - A garganta de Magnus ardeu porque ele gritou. - Eu era apenas uma criança cometendo um erro, tentada por uma coisa brilhante e linda, uma vez que eu levava uma vida cinza e sem graça num
palácio cinza e sem graça. Ninguém ficaria sabendo que peguei aquela adaga! Que diferença faria?
- Eu ficaria sabendo - o rei disse. - A adaga que você pretendia roubar era de Elena. Eu ficaria sabendo porque fui eu quem deu a adaga a ela, quando era um garoto ingênuo tentando impressionar uma moça
bonita. Não sabia que ela a tinha guardado, que ela a tinha valorizado e exposto o tempo todo em que ficamos separados. Quando a vi em suas mãos seis anos depois da morte dela... não pensei. Simplesmente
reagi.
Magnus percebeu que não tinha uma resposta na ponta da língua. Com suas perguntas respondidas depois de tanto tempo, ele não conseguia processar tudo depressa.
- Não justifica o que você fez.
- Não, claro que não.
Magnus desviou o olhar do rei e tentou se concentrar em outra coisa, qualquer coisa. Ajudou perceber que o mundo ia além daquela conversa. Um homem enorme veio em direção ao bar carregando muitos copos
vazios, a túnica subindo o suficiente para deixar a barriga peluda à mostra. Uma atendente afastou a mão de um marinheiro com um tapa tímido. Os músicos no canto da taverna tocavam uma música animada,
e muitos batiam palmas. Vários outros dançavam em uma mesa.
- O poder é tudo o que importa, Magnus. O legado é tudo o que importa. - O rei dizia isso como se tentasse convencer a si próprio. - Sem ele, somos como camponeses paelsianos.
Magnus já tinha ouvido aquelas bobagens tantas vezes que já haviam se tornado mais do que palavras sem sentido.
- Diga uma coisa: Elena Bellos retribuiu seu amor ou foi só uma obsessão triste e impossível que transformou seu coração e sua alma em gelo?
O pai demorou tanto para responder que Magnus pensou que ele tinha levantado e ido embora. O príncipe desviou o olhar da taverna movimentada para ver se o rei ainda estava a seu lado.
- Ela me amava - Gaius disse, por fim, a voz quase inaudível. - Mas o amor não foi suficiente para resolver nossos problemas.
Magnus segurou a garrafa de vinho com força.
- Agora você vai me contar uma história de amor e perda... sobre um garoto e uma garota?
- Não.
Pensar que o pai mencionaria aquela história de amor épico sem contar tudo era previsível, mas ainda assim frustrante.
- Então por que você está aqui?
- Para contar a lição que aprendi. Amor é dor. Amor é morte. E o amor tira o poder de uma pessoa. Se eu pudesse voltar no tempo, gostaria de não ter conhecido Elena Corso. Desde aquela época, eu a odeio.
- Que romântico. Como se casou com Corvin Bellos, imagino que ela sentisse a mesma coisa.
- Tenho certeza disso. E agora lembro dela todos os dias, de tudo o que perdi, por causa daquela criatura mentirosa, Cleo. Ela se tornou sua fraqueza fatal, Magnus.
O ódio tinha voltado à voz de Gaius. Magnus encarou os olhos frios do pai.
- Seu ódio sem fim por Cleo me parece muito errado. Você deveria culpar a bruxa que amaldiçoou Elena. - Magnus suspirou, chocado ao perceber. - Você a culpa, não é? Por isso condenou tantas bruxas à morte
ao longo dos anos... Para pagarem pelo crime dela. Pode dizer que odeia Elena, mas ainda a ama, até mesmo depois de sua morte. Por qual outro motivo você teria tomado a poção de minha avó?
- Pense o que quiser. - Um músculo se contraiu no rosto do rei. - A poção era a única maneira de afastar o pesar e a dor e deixar apenas a força. Mas agora aquela força sumiu, desapareceu quando caí daquele
penhasco. A dor e o pesar voltaram, piores do que antes. E odeio isso. Odeio tudo nesta vida: o que tive que fazer, como passei todo esse tempo obcecado apenas pelo poder. Mas agora acabou.
- É o que anda prometendo.
Magnus precisava sair daquela taverna barulhenta e enfumaçada. Precisava de tempo e de espaço para esfriar a cabeça.
Quando levantou, o rei segurou seu braço.
- Imploro a você, meu filho, que mande Cleiona embora antes que ela o destrua. A princesa não ama você de verdade, se é o que você pensa. Independentemente do que ela disser, são apenas mentiras.
- O Rei Sanguinário implorando! Agora não falta mais nada. - Ele suspirou. - Já bebi demais por hoje. Foi um prazer conversar com você, pai. Tente voltar para a hospedaria sem morrer. Tenho certeza de
que sua mãe ficaria muito abalada se alguma coisa ruim acontecesse.
Ele saiu sem dizer mais nada, detestando a confusão de pensamentos e sentimentos.
Enquanto Magnus caminhava por uma rua estreita, alguém bloqueou sua passagem para o caminho principal com ombros largos e uma cara séria.
Não havia mais ninguém à vista.
- É, acho que reconheci você uma noite dessas - disse o homem. - Você é o príncipe Magnus Damora, de Limeros.
- E você está redondamente enganado. Desculpe pela decepção. - Magnus tentou passar acotovelando o homem, que levou a enorme mão à garganta dele, puxando-o para tão perto que Magnus conseguiu sentir seu
hálito de cerveja.
- Dez anos atrás, seu pai queimou minha esposa viva, dizendo que ela era uma bruxa. O que acha de eu fazer a mesma coisa com você como vingança?
- Acho que você precisa me soltar agora mesmo. - Magnus arregalou os olhos para o homem. - Sua necessidade de vingança não tem nada a ver comigo.
- Ele está certo. - O rei deu um passo à frente e tirou o capuz. - Tem a ver comigo.
O homem olhou para Gaius, surpreso, como se não acreditasse no que via.
- Sinto muito pela morte de sua esposa - o rei disse, e uma única lamparina acima da saída da taverna iluminava seu rosto quase esquelético. - Odeio bruxas por mais motivos do que poderia mencionar aqui
e agora. Mas raramente executei uma que não estivesse envolvida com sangue e mortes. Se sua esposa está na terra da escuridão agora, é porque merece estar.
Com o rosto vermelho de ódio, o homem deu um passo à frente empunhando uma faca afiada. Magnus observou o pai de pé ali, sem se mexer, a pele amarelada, os ombros curvados. Ele não lutaria, não conseguiria
lutar por sua vida.
Gaius queria morrer?
A atenção do homem estava totalmente voltada para o rei naquele momento, e o ódio ardia em seus olhos quando ele avançou.
Magnus se moveu antes mesmo de se dar conta de suas intenções, segurou as mãos do homem e impediu que a faca acertasse o alvo.
- Se alguém tem o direito de matar meu pai, esse alguém sou eu - ele vociferou. - Mas não hoje.
Ele virou a lâmina afiada para afundá-la no peito do homem, que gritou de dor e desabou no chão. O sangue jorrou livremente do ferimento fatal.
Houve um momento de completo silêncio na rua até o rei falar de novo.
- Precisamos ir embora antes que alguém veja isso.
Magnus teve que concordar. Limpou o sangue das mãos no manto preto e os dois logo voltaram à hospedaria Falcão e Lança.
- Não pense que esse gesto mostra que não odeio você - Magnus disse.
O rei assentiu com seriedade.
- Eu o consideraria um idiota se não me odiasse. Ainda assim, apesar do ódio que sente por mim, quero lhe dar algo.
- O quê?
- O cristal do ar.
Não havia como o Rei Sanguinário entregar uma parte da Tétrade a alguém, nem mesmo ao próprio filho. E, ainda assim, Gaius levou Magnus ao andar de cima, ao quarto onde tinha ficado por dois dias.
Magnus observou o espaço.
- Onde está Selia?
- No pátio. - O rei indicou a janela com a cabeça. - Sua avó gosta de cumprir os rituais antigos todas as noites, a esta hora e sob o luar, por isso consegui sair.
O rei foi até a cama de palha, levantou as cobertas e passou a mão por baixo do colchão. Em seguida, franziu a testa.
- Ajude-me a levantá-lo - ele disse.
- Está tão fraco assim? Então você teria mesmo ficado parado, esperando aquele homem te matar?
- Faça o que estou mandando. - O olhar que o pai lançou foi muito mais familiar do que qualquer conversa sobre compartilhar e arrependimentos.
- Tudo bem. - Magnus foi até o lado de Gaius e levantou o colchão para seu pai procurar embaixo dele.
Os olhos vermelhos e marejados do rei foram tomados pelo susto.
- Não está aqui.
Magnus lançou um olhar desconfiado para o rei.
- Que conveniente, se considerarmos que você estava prestes a entregá-lo a mim. Por favor, pai, me poupe dessas dissimulações. Como se você fosse esconder um tesouro como aquele em um lugar tão óbvio!
- Não é dissimulação. Estava aqui. Andei muito debilitado para encontrar um lugar melhor onde escondê-lo. - Gaius ficou sério. - Aquela sua princesinha o roubou.
Só podia ser mentira. Mais uma mentira. Magnus não conseguia pensar em outra explicação, não para algo tão importante.
Antes que pudesse responder, o rei cambaleou com dificuldade para sair do quarto. Magnus o seguiu pelo corredor, onde Cleo ainda estava com Jonas.
Magnus não conseguia acreditar no que via. Precisou de todo o autocontrole possível para não transformar Jonas no segundo morto da noite.
Cleo levantou depressa quando o rei e Magnus entraram.
- O que foi? O que aconteceu?
- Você roubou o cristal do ar? - Magnus perguntou, incomodado com a maneira arrastada como estava falando.
- O quê? Eu... eu nem sabia onde estava!
- Sim ou não, princesa?
Cleo semicerrou os olhos e levantou o queixo.
- Não.
- Ela está mentindo - o rei disse.
- O rei das mentiras querendo acusar a princesa, não é? - Jonas quase cuspiu as palavras, os punhos cerrados. - Que ironia.
- Onde está o cristal da terra? - Magnus perguntou.
Cleo franziu a testa ao enfiar a mão no bolso e arregalou os olhos.
- Não está aqui. Mas estava, juro! Eu o carrego comigo o tempo todo!
Magnus sentiu uma náusea. Havia um ladrão entre eles. E quem quer que fosse, em breve ia se arrepender profundamente por suas atitudes.
Não demorou para que todos corressem até a sala para ver o que estava acontecendo. Milo e Enzo já empunhavam as armas, prontos para um combate.
Magnus observou o grupo. Estava todo mundo ali: Nic, Olivia, até Selia havia se unido ao grupo, com o rosto corado devido ao ritual da lua daquela noite. Todo mundo, menos uma pessoa.
- Onde está o príncipe Ashur? - Jonas perguntou, franzindo a testa. - Ele estava aqui mais cedo com Cleo e comigo.
- Eu não o vi hoje - Olivia respondeu. - Talvez tenha saído.
- Talvez. Alguém sabe aonde ele foi?
Enzo e Milo balançaram a cabeça em negativa.
Selia foi para o lado do rei pálido, que caminhava até uma cadeira para sentar.
- Gaius, querido, o que está fazendo fora da cama?
Magnus os ignorou, prestando atenção em Nic, que estava em silêncio. Enquanto os outros conversavam sobre o paradeiro do príncipe, Nic saiu da sala. Magnus imediatamente o seguiu pelo corredor em direção
à porta da frente.
Quando Nic notou que Magnus estava perto, seus ombros ficaram tensos.
- Está procurando alguém? - Magnus perguntou, com os braços cruzados.
- Quero sair para respirar um pouco de ar fresco.
- Ele levou os dois cristais, não levou? E contou a você sobre os planos.
Nic balançou a cabeça, mas não o encarou nos olhos. Magnus não tinha mais paciência para mentiras naquela noite. Ele puxou a frente da túnica de Nic e o jogou contra a parede.
- Onde está Ashur? - ele resmungou.
- Você está bêbado.
- Demais, mas não faz a menor diferença agora. Responda! Ashur roubou os cristais, não roubou?
Nic rangeu os dentes.
- Você acha que o príncipe me conta alguma coisa?
- Não faço ideia do que o príncipe sussurra em seu ouvido, mas não sou cego. Sei que tem algo entre vocês dois, que são mais próximos do que aparentam. E sei que você sabe mais do que está me contando.
Jonas se aproximou, tenso, vindo de um canto.
- O que está fazendo com ele?
Magnus não soltou o garoto.
- Nic sabe os segredos de Ashur e vou descobrir quais são.
- Responda à pergunta, Nic - Jonas disse, os braços cruzados. - Sabe para onde Ashur foi?
Nic riu.
- Como é? Vocês estão trabalhando juntos agora?
- Não - Magnus e Jonas responderam em uníssono, e então se entreolharam.
Nic suspirou.
- Tudo bem. O príncipe acabou de partir para ver a irmã. Tentei convencê-lo a não fazer isso, mas ele não ouviu nada do que eu disse. Está determinado a fazer o que puder para colocar juízo na cabeça dela
e, se não conseguir, vai exigir o título de imperador.
Magnus sentiu o estômago revirar.
- E ele levou para Amara os cristais do ar e da terra. Que lindo presente, considerando que Amara está com o cristal da água.
Por fim, Nic lançou um olhar preocupado.
- Ashur não faria isso.
- Não? - Magnus tentou continuar segurando a túnica de Nic para que o idiota não fugisse, mas sua visão estava turva. Vinho demais, rápido demais. Os efeitos só passariam ao amanhecer. - Talvez Amara tenha
retirado os cristais dos esconderijos com sua magia, e eles voaram em asas de borboletas para ela.
- Vou falar mais uma vez. - Nic semicerrou os olhos. - Me solte.
- E se não soltar? Vai chamar a princesa para salvá-lo?
- Odeio você. Desejo vê-lo morto e enterrado. - Ele olhou para Jonas, irritado. - Uma ajuda?
- Nic, você precisa pensar - Jonas disse com calma. - Se Magnus estiver certo em relação a Ashur...
Magnus lançou um olhar fulminante ao rebelde.
- Você acabou de me chamar apenas pelo meu primeiro nome?
Jonas revirou os olhos.
- Amara Cortas não pode ter mais poder do que já tem. E se o irmão dela levou os cristais da Tétrade, é a pior coisa que poderia acontecer. Ela pode liberar três deuses elementares como Kyan.
- Eu sei - Nic respondeu. - Eu entendo.
- Entende?
- Então a culpa é minha? Vai deixar sua majestade quebrar meu pescoço? Por quê? Por não ter conseguido impedir Ashur de fazer o que queria? Ele faz o que bem entende.
- Prometo que sua majestade não vai quebrar seu pescoço.
- Não vamos nos precipitar - Magnus disse, divertindo-se com o breve olhar assustado do garoto.
Ele nunca mataria Nic.
Cleo nunca o perdoaria.
- Você vai fazer o seguinte - Magnus disse. - Vai atrás de Ashur para impedi-lo de fazer alguma coisa idiota e imperdoável por senso de lealdade familiar kraeshiano bizarro e sem propósito. E vai recuperar
os cristais que ele roubou, custe o que custar.
Nic o encarou incrédulo.
- Não vou deixar Cleo de novo.
- Ah, vai, sim, com certeza. E vai agora. Você vai voltar com os cristais da Tétrade ou minha paciência com você vai acabar. - Magnus tentou organizar a mente confusa para encontrar uma maneira de fazer
Nic cumprir a ordem.
- Você pode até me odiar, mas viu que mantive sua preciosa princesa viva todos esses meses, enquanto outros a queriam morta. Juro pela deusa que vou parar de protegê-la se não fizer exatamente o que mandei.
Nic se encolheu, mas manteve o olhar firme.
- Cleo ficaria bem até mesmo sem sua ajuda.
- Talvez sim. Talvez não. Em tempos de guerra, e não se engane, é exatamente o que essa ocupação "pacífica" kraeshiana é, ninguém está seguro.
Nic ficou sem resposta. Apenas o observou furioso.
- Com ameaça ou sem - Jonas disse impaciente -, o príncipe está certo, Nic, você precisa ir atrás de Ashur. Nós dois precisamos. Eu deveria ter acompanhado Felix e Taran quando eles partiram. Não há motivos
para eu estar aqui.
- Não há motivos, rebelde? - Magnus lançou um olhar para ele. - Que esquisito. E pensei que você estivesse gostando de bajular a princesa, em busca de migalhas.
Jonas lançou um olhar raivoso para Magnus.
- Eu receberia muito mais do que você.
Magnus sorriu para ele.
- Não tenha tanta certeza disso.
Jonas ficou ainda mais sério.
- Terminamos por aqui. Nic, pegue o que precisa para ir ao complexo do chefe Basilius. Espero alcançar Ashur antes que ele chegue lá. E, Magnus?
- Sim, rebelde?
Jonas semicerrou os olhos.
- Se encostar em um fio de cabelo da princesa, juro por qualquer deusa em quem você acredita que vou fazer você implorar para morrer.
19
AMARA
PAELSIA
Um único falcão dourado voava em círculos sobre os cidadãos paelsianos reunidos para ouvir o discurso de Amara. A imperatriz estava em pé diante da janela aberta de seus aposentos, observando a multidão
de rostos ansiosos. Muitos estavam perplexos por estarem dentro da propriedade privada do ex-chefe; os portões tinham ficado trancados para o público durante o governo dele. Naquele dia, os paelsianos
viam pela primeira vez a cidade labiríntica, o que fez Amara lembrar muito da Cidade de Ouro, mas, em vez de metais e joias, a cidade onde estava era feita de barro, tijolo, pedra e terra.
- Vossa graça, gostaria que reconsiderasse esse discurso - Kurtis disse atrás dela. - A senhora está muito mais segura aqui dentro, principalmente com a notícia de rebeldes por perto.
Ela tirou os olhos da janela e se virou para o grão-vassalo onipresente.
- É por isso que tenho guardas ao meu redor o tempo todo, lorde Kurtis. Os rebeldes estão sempre por perto. Infelizmente, não posso fazer todos entenderem meu ponto de vista. Há quem se oponha ao reinado
de meu marido, ao reinado de meu pai. E há aqueles que se opõem ao meu também. Falarei com meus cidadãos hoje, aqueles que vão me apoiar sem questionamentos e aqueles que duvidam de minhas intenções aqui.
Preciso dar a eles uma esperança para o futuro... uma esperança que nunca tiveram.
- O que é uma atitude incrível, vossa graça, mas... os paelsianos são selvagens, violentos.
Amara considerou as palavras ofensivas.
- Há quem diga o mesmo dos kraeshianos - ela respondeu mais irritada. - Talvez você não tenha me ouvido até agora, mas falarei hoje.
- Vossa graça...
Ela levantou uma mão, decidindo parar de sorrir.
- Falarei hoje - ela disse com firmeza. - E ninguém vai me dizer que não posso fazer isso. Com a notícia dos rebeldes e com a discordância entre meus próprios soldados, preciso do apoio dessas pessoas
para o futuro de meu reinado. E não permitirei que ninguém diga o que posso e o que não posso fazer. Entendido?
Ele se curvou no mesmo instante, corado.
- Claro, vossa graça. Não quis desrespeitá-la.
A porta se abriu e Nerissa entrou, fazendo uma reverência.
- Está na hora, imperatriz.
- Ótimo, estou pronta. - Amara alisou a seda de seu vestido. Era o mesmo que usava nas ocasiões mais especiais em Kraeshia. Ela o levava sempre que viajava caso tivesse a oportunidade de vestir uma peça
tão esplêndida. A costura brilhante e as contas de esmeralda e ametista reluziam sob o sol paelsiano quando ela saiu de sua grande quinta.
Um grupo de guardas esperava Amara do lado de fora e, com Nerissa a seu lado, ela se aproximou do grande pódio em um palco de madeira bem acima da multidão de quatro mil pessoas reunidas lado a lado na
antiga arena do chefe.
Aqueles eram seus novos súditos. Absorveriam tudo o que dissesse e espalhariam a notícia de sua glória a quem quisesse ouvir. E em breve, seriam os primeiros a reverenciá-la como uma verdadeira deusa.
A multidão gritou e a atmosfera foi tomada por sons de aprovação. Ela olhou para Nerissa, que sorriu e assentiu, incentivando-a a começar.
Amara ergueu os braços, e a grande plateia ficou em silêncio.
- Eu me dirijo ao lindo povo de Paelsia, um reino que tem passado por muitos testes e muitas atribulações ao longo de várias gerações. - Sua voz ecoou nos pilares de pedra, o que ajudou a amplificar as
palavras de modo que até as pessoas nas arquibancadas pudessem ouvi-la. - Sou Amara Cortas, a primeira imperatriz de Kraeshia, e trago a vocês a notícia oficial de que não são mais cidadãos de Mítica,
uma tríade de reinos que os oprimiu por um século. Agora vocês são cidadãos do grande Império Kraeshiano. E seu futuro é tão brilhante quanto o sol que nos ilumina hoje!
A multidão comemorou, e Amara parou um instante para analisar os rostos, alguns sujos, de pessoas com roupas simples puídas, gastas pela sujeira e pelo tempo. Olhos atentos se voltaram para ela, olhos
que tinham assistido a muitos líderes fazerem promessas falsas e causarem dor e sofrimento. Ainda assim, ela viu uma esperança tímida até mesmo nos olhos dos mais velhos.
- Cuidaremos de sua terra - ela continuou. - Vamos torná-la rica de novo e pronta para as plantações que vão sustentar vocês e suas famílias. Vamos importar animais que servirão de alimento. E enquanto
continuarem produzindo o vinho pelo qual Paelsia é conhecida, os lucros serão de vocês, integralmente, pois prometo que não serão cobrados impostos kraeshianos sobre esse produto por vinte anos. As leis
que impediam a exportação do vinho a qualquer lugar que não fosse Auranos estão vetadas a partir de agora. Vejo Paelsia como um patrimônio maravilhoso do meu império e quero demonstrar isso cuidando para
que minhas atitudes sejam condizentes com minhas palavras. Vocês fazem bem em acreditar em mim, porque eu acredito em vocês. Juntos, vamos marchar para o futuro, de mãos dadas!
O barulho vindo da plateia aumentou, e, por um instante, Amara fechou os olhos e permitiu-se aproveitar o momento. Tinha sido por isso que ela se sacrificou tanto. Tinha sido por isso que ela fez o que
fez.
Por aquele poder.
Não fora à toa que seu pai havia tomado decisões tão precipitadas durante seu reinado. Aquela sensação diante da obediência, da adoração e da reverência era mesmo viciante.
Se ela conseguiria ou não cumprir o prometido, ainda precisava verificar.
Ela sentia a magia que havia na crença que emanava do povo paelsiano. Uma magia tão rica e pura na qual queria se banhar.
- Vossa graça! - Nerissa exclamou, assustada.
Amara abriu os olhos a tempo de ver uma flecha de relance, e então um de seus guardas a tirou do caminho. A flecha acertou o homem no pescoço, e ele caiu se debatendo no chão do palco.
- O que está acontecendo? - ela quis saber.
- O grupo de rebeldes que ameaçou vir aqui hoje... eles estão aqui! - Nerissa agarrou o braço dela. Duas outras flechas voaram na direção dela, bem perto, acertando outros dois guardas.
- Quantos? - Amara conseguiu perguntar. - Quantos rebeldes estão aqui?
- Não sei... - Nerissa ergueu a cabeça para olhar para a multidão quando outra flecha passou por ela. - Vinte, talvez trinta ou mais.
Amara observou chocada quando seu exército de soldados invadiu o mar cada vez maior de civis para capturar os rebeldes. Os soldados derrubavam qualquer pessoa que aparecesse no caminho, fossem rebeldes
ou paelsianos. A multidão entrou em pânico e tentou fugir. O caos se instalou, gritos de medo e de indignação eram ouvidos por todos os lados quando sangue começou a ser derramado.
Paelsianos empunharam armas, trocando rapidamente a expressão esperançosa pela de ódio, e começaram a lutar não só contra os soldados, mas uns contra os outros, facas cortando a carne, socos acertando
rostos e abdomens.
"Os paelsianos são selvagens, violentos", Kurtis tinha alertado.
Mães agarravam os filhos, chorando e correndo para todas as direções.
- O que vamos fazer? - Nerissa perguntou. Ela tinha agachado ao lado de Amara, e as duas se encolheram atrás do pódio.
- Não sei - Amara disse depressa, e se arrependeu de suas palavras.
Palavras de medo. Palavras de vítima.
Ela não ia se acovardar diante de rebeldes naquele momento - nem nunca.
O medo logo se transformou em raiva. Aquilo, fosse o que fosse, não fazia parte de seu plano. Aqueles que desejavam destruir sua chance de transformar aquele povo determinado em seu aliado, um povo que
já estava pronto para aceitá-la como líder, pagariam com a vida.
Amara levantou do esconderijo, punhos cerrados, quando alguém se aproximou do palco trás dela. Ela ouviu passos pesados na superfície de madeira.
Quando se virou, viu dois de seus guarda-costas caindo com a garganta cortada. Atrás deles, um rosto assustadoramente familiar.
- Bem, princesa, eu poderia apostar um monte de moedas de ouro que você não esperava me ver de novo.
Felix Gaebras apontava uma espada a poucos centímetros de seu rosto.
O rosto dele aparecia em seus pesadelos. Ou talvez os pesadelos tivessem sido premonições. Naqueles sonhos, ele tentava matá-la.
- Felix... você fez isso, tudo isso, só para chegar até mim - ela começou, dando um passo hesitante para trás para se afastar do jovem que acreditava estar morto fazia muito tempo.
Ele sorriu.
- Sinceramente? Eu estava só observando de longe. Foi uma coincidência feliz. Acho que há muitos outros rebeldes que querem derramar seu sangue. Mas parece que a honra será minha.
Ela olhou para a esquerda e viu três guardas correndo na direção de Felix, mas foram derrubados por outro jovem de cabelo escuro e expressão irritada.
- O plano não era esse, Felix - o rapaz gritou. - Nós dois vamos morrer por sua causa.
- Calado, Taran - Felix respondeu. - Estou retomando contato com uma antiga namorada.
Ao sentir a lâmina em seu rosto, Amara olhou para o tapa-olho preto que ele usava.
- Seu olho...
- Perdi. Graças a você.
Ela se encolheu.
- Sei que você deve me odiar pelo que fiz.
- Odiar? - Ele arqueou as sobrancelhas escuras, movendo de leve o tapa-olho. - "Ódio" é uma palavra muito leve, não acha?
Amara tentou ver se algum guarda se aproximava para ajudá-la, mas Taran, o amigo de Felix, os afastava com a espada e o arco que trazia.
Amara virou para a frente, para o olho bom de Felix, e disse com o máximo de arrependimento que conseguiu reunir:
- Não importa o que tenha enfrentado, minha bela fera. Juro que posso me retratar.
- Não me chame assim. Perdeu o direito de me chamar assim quando me abandonou e me deixou para morrer. - Felix encostou a lâmina no rosto dela de novo, fazendo-a olhar para a multidão. - Viu o que fez?
É culpa sua. Tudo o que você toca acaba em morte.
O olhar tenso de Amara passou pela multidão que tinha percorrido quilômetros para se reunir e ouvi-la falar. Muitos paelsianos estavam mortos entre os combatentes, pisoteados, assassinados pelas espadas
dos guardas ou por seus próprios compatriotas.
Felix tinha razão: era culpa dela. Um momento de vaidade, o desejo de sentir o amor de seus novos súditos depois de tanta dor e decepção, acabou em morte.
Tudo acabava em morte.
O mesmo falcão que ela vira sobrevoando a multidão grasnou alto o suficiente para Amara ouvir. No chão, alguém preso no meio do caos chamou sua atenção: um jovem de cabelo ruivo, cor rara de ser encontrada,
caminhava em direção ao palco.
Ela reconheceu o amigo de Cleo, Nic. Aquele com que Ashur tinha ficado obcecado.
Amara observou horrorizada quando dois paelsianos agarraram Nic e rasgaram o saco de moedas preso ao passador de sua calça. Nic tentou segurar o saco, e a faca de um dos homens reluziu à luz do sol antes
de ser fincada no peito dele.
Ela se assustou.
O corpo de Nic caiu no chão e logo se perdeu na multidão.
Aquilo era culpa dela, apenas dela.
Ela franziu a testa ao pensar nisso. Não... tinha sido azar de Nic, uma circunstância infeliz. Ela não tinha assassinado o amigo de Cleo com as próprias mãos. Amara se recusava a assumir a culpa pelo azar
de outras pessoas.
Apesar de ter odiado seu pai e seus irmãos com a mesma intensidade, a família Cortas não era nada fraca. Inclusive ela.
E além da família Cortas, as mulheres não eram fracas. Eram líderes. Campeãs. Guerreiras. Rainhas.
Amara tinha enfrentado inimigos muito maiores do que Felix Gaebras na vida.
Ela se forçou a falar de modo assustado quando virou para ele de novo.
- Você é maior do que isso, Felix. Matar uma garota desarmada? Não combina com você.
- Não combina comigo? Sou um assassino profissional, meu amor. Matar é o que faço melhor.
De canto do olho, ela observou o amigo derrubar mais dois de seus homens com uma só mão.
- Pense bem, governo um terço do mundo e controlo toda a fortuna. Quer ser um homem muito rico?
Ele levantou um dos ombros.
- Não.
Amara tinha esquecido que ele era diferente dos outros homens que conhecia - uma vantagem no começo, mas um problema no presente. - Mulheres, então. Dez, vinte, cinquenta garotas que desejem apenas você.
Felix abriu o sorriso mais frio que ela já tinha visto.
- E como eu saberia que não são vadias frias e dissimuladas como você? Não tem acordo, imperatriz.
Amara ficou com os olhos marejados. Fazia muito tempo que não chorava, mas chorar era um talento que desenvolvera desde cedo. Sabia que a maneira mais fácil para uma mulher evitar problemas ou castigos
era fingir fraqueza entre os homens.
As lágrimas logo começaram a descer livremente por seu rosto.
- Eu pretendia libertá-lo, mas me disseram que você já estava morto, assassinado em uma tentativa de fuga. Meu coração ficou destruído quando pensei que tinha perdido você para sempre. Deveria tê-lo incluído
em meus planos, mas eu estava com medo, muito medo. Ah, Felix, eu não queria que nada acontecesse com você, sinceramente! Eu... eu amo você! Sempre vou amar, não importa o que você decida fazer hoje!
Felix olhou para ela como se estivesse assustado com o que ouvia.
- O que disse? Que me ama?
- Sim. Eu amo você.
A ponta da espada se mexeu. Mas logo foi afastada.
- Bela tentativa, meu amor. Eu poderia até acreditar, se fosse um completo imbecil. - Felix sorriu para ela. - Hora de morrer.
Um instante depois, Carlos, que tinha subido no palco e conseguido passar por Taran, derrubou Felix. Antes que conseguisse recuperar o fôlego, Taran e Felix estavam diante dela, ajoelhados.
Nerissa voltou para seu lado, e Amara segurou a mão dela, apertando-a para ter a certeza de que a criada não tinha se ferido.
- Os outros rebeldes morreram, vossa graça - Carlos informou. O rosto dele sangrava devido a um corte profundo no nariz.
Amara respondeu assentindo brevemente e então olhou para Felix.
Ele deu de ombros de novo.
- Não posso dizer que não tentei.
- Devia ter sido mais rápido.
- Acho que gosto muito de falar. - Ele abriu um grande sorriso, mas seu olhar estava frio. Voltou-se para Nerissa por um instante antes de voltar a encarar Amara. - Vamos falar de novo sobre aquela oferta
do harém de lindas mulheres?
Amara tocou o rosto de Felix, levantando sua cabeça.
- Sinto muito pelo seu olho. Gostei daquele olho, assim como de outras partes suas. Por algumas noites, pelo menos.
- Devemos executá-los agora mesmo, vossa graça? - Carlos perguntou, com a espada ao lado do corpo.
Ela esperou o medo aparecer no único olho de Felix, mas ele manteve a pose desafiadora.
- Se eu poupá-lo, o que fará? Vai tentar me matar de novo?
- Num piscar de olhos - ele disse.
- Você é um grande idiota - Taran rosnou.
Sua bela fera a tinha entretido por um período. E ainda entretinha.
Apesar de tudo, Amara ainda se sentia atraída por ele. Mas não importava. Ele deveria ter morrido muito tempo antes, e não ser mais um problema para ela.
Amara assentiu para o guarda.
- Jogue os dois no fosso. Cuido deles mais tarde.
20
LUCIA
PAELSIA
- Ela é incrível. Totalmente linda e gloriosa. Parece mais uma deusa do que uma mera mortal, se quer saber. Tenho certeza de que vai salvar todos nós.
Lucia parou na barraca de frutas enquanto procurava uma maçã sem nenhuma imperfeição - pelo jeito, era impossível em Paelsia - e olhou para a vendedora que conversava com uma amiga.
- Concordo totalmente - a amiga disse.
Estariam falando da feiticeira profetizada?
- Desculpem minha grosseria, mas posso saber de quem estão falando? - Lucia perguntou. Era a primeira vez que falava em voz alta em mais de um dia, e sua voz falhou no início.
A vendedora olhou para ela.
- Ora, da imperatriz, é claro! De quem mais poderia ser?
- Sim, de quem mais, não é? - Lucia disse em voz baixa. - Então vocês acham que Amara Cortas vai salvá-las. Salvá-las do que, exatamente?
As paelsianas trocaram um olhar e viraram para Lucia um tanto impacientes.
- Você não é daqui, é? - Uma delas franziu os lábios enrugados. - Não, com esse sotaque, acredito que seja limeriana, não é?
- Nasci em Paelsia e fui adotada por uma família limeriana.
- Você teve muita sorte por ter escapado destas fronteiras tão cedo, então. - A vendedora virou para a amiga. - Se ao menos todos tivéssemos tido essa oportunidade...
As duas riram sem achar graça.
A paciência de Lucia estava acabando.
- Vou comprar esta maçã. - Ela guardou a fruta no bolso e entregou uma moeda de prata. - E também qualquer informação que puder me dar a respeito da localização da imperatriz.
- Com prazer. - A mulher pegou a moeda com ganância, semicerrando os olhos. - Por onde andou esses últimos dias, mocinha, para não saber tudo sobre a imperatriz? Perdida por aí?
- Mais ou menos. - Na verdade, ela estava recuperando as forças na hospedaria no leste de Paelsia até não aguentar mais e ter que fugir. Apesar da preocupação da atendente Sera com sua saúde, Lucia sabia
que precisava sair dali antes que sua barriga ficasse grande demais e ela não conseguisse mais levantar da cama.
Passou a mão pela barriga aparente e a comerciante notou, arregalando os olhos.
- Ah, minha querida! Não percebi que estava grávida. E já tão avançada!
Lucia gesticulou para indicar que ela não se preocupasse.
- Estou bem - ela mentiu.
- Onde está sua família? Seu marido? Não me diga que está sozinha aqui na feira hoje!
Parecia que o fato de estar grávida fazia os desconhecidos sentirem vontade de tratá-la com muito mais gentileza do que o normal. Tinha sido bom durante a viagem lenta e desconfortável para o oeste.
- Meu marido está... morto - ela disse com cuidado. - E agora estou procurando minha família.
A amiga da vendedora correu na direção de Lucia e segurou suas mãos.
- Meus mais sinceros sentimentos por essa perda tão dolorosa.
- Obrigada. - Lucia sentiu um nó repentino e irritante na garganta. Assim como a barriga inchada, suas emoções estavam muito mais intensas e difíceis de controlar.
- Se precisar de um lugar para ficar... - a vendedora disse.
- Obrigada de novo, mas não preciso. Só preciso de informações sobre a imperatriz. Ela ainda está em Limeros?
As amigas se entreolharam de novo, sem acreditar que Lucia pudesse estar tão desinformada a respeito daquelas coisas.
- A grande imperatriz Cortas está morando no antigo complexo do rei Basilius - a vendedora começou. - Ela vai fazer um discurso de lá amanhã, dirigindo-se a todos os paelsianos que puderem participar.
- Um discurso aos paelsianos. Por quê?
A vendedora olhou para ela com um pouco de compaixão.
- Bem, por que não? Talvez você tenha esquecido por causa dos muitos anos abençoados que passou em Limeros, mas a vida aqui em Paelsia é difícil.
- Para dizer o mínimo - sua amiga acrescentou.
A vendedora assentiu.
- A imperatriz vê nossos esforços. Ela os reconhece. E quer fazer algo em relação a isso. Ela valoriza os paelsianos como parte importante de seu império.
Lucia tentou não revirar os olhos. Ela não tinha percebido como Amara era uma manipuladora de primeira, sedenta por poder, nas poucas vezes em que conversara com a ex-princesa quando os Damora moraram
no palácio auraniano.
- Mas, claro, questiono a sabedoria da imperatriz por se casar com o Rei Sanguinário - a vendedora comentou.
- Desculpe - Lucia disse, olhando para ela. - Você disse que ela é casada com o Rei... San... com o rei Gaius?
- Sim. Mas também soube que ele está desaparecido no momento, junto com seu herdeiro. Vamos torcer para que a imperatriz tenha enterrado os dois a sete palmos da terra.
- Realmente - Lucia murmurou, sentindo o estômago embrulhado só de pensar. Sera não tinha dito nada sobre o casamento de seu pai com Amara. Seria verdade? - Eu... eu preciso ir. Preciso...
Ela virou e desapareceu em meio à multidão na feira.
Certa vez, Ioannes tinha guiado Lucia para encontrar e despertar a Tétrade com seu anel da feiticeira. Ela esperava que o mesmo encanto que usaram pudesse funcionar para ajudá-la a encontrar Magnus e seu
pai. No entanto, apesar de ter conseguido fazer o anel girar como fizera na época em seus aposentos no palácio auraniano, todas as tentativas de reaver o mapa brilhante de Mítica e determinar a localização
deles tinham fracassado. Enfraquecida por usar seus elementia, ela tinha que fazer paradas constantes ao percorrer o caminho a pé, junto com muitos outros paelsianos, até o complexo do antigo líder local.
Lucia se recusava a acreditar que sua família estivesse morta. Eles eram muito bem preparados para isso. E, se o rei tinha se casado com Amara - uma ideia tão ridícula que ela mal conseguia conceber -,
tinha feito isso por razões estratégicas, por poder e sobrevivência.
Sim, Amara era jovem e muito bela, mas seu pai era esperto e cruel demais para tomar uma decisão como essa movido por uma mera paixão.
Havia milhares de paelsianos reunidos do lado de fora do complexo quando ela finalmente chegou. O vilarejo mais próximo ficava a meio dia de viagem dali, mas levaria mais um dia, talvez dois, na situação
atual de Lucia, para chegar a Basilia, seu destino original.
Os portões altos e pesados rangeram ao se abrir, e a multidão adentrou o complexo. Lucia se concentrou tanto nas pessoas que a cercavam, procurando algum rosto conhecido, que mal viu os caminhos de pedra
e as casas de barro que levavam em direção à enorme casa de três andares no centro do complexo. Os paelsianos estavam sendo levados para uma ampla clareira, com fogueiras e vários assentos elevados de
pedra. Isso a fez pensar nas histórias que já tinha ouvido sobre como o chefe Basilius organizava competições entre os homens que queriam impressioná-lo com sua força e habilidade de combate. Ali, já tinham
ocorrido lutas mortais apenas para entretê-lo.
A multidão continuou crescendo, mas Lucia não ouviu nenhuma menção ao ex-chefe e a seus prazeres nos fragmentos de conversa ao seu redor. Só ouvia sobre a importância da nova imperatriz.
Lucia não imaginava que os paelsianos fossem tão fáceis de enganar. Eles acreditaram, por muitos e muitos anos, que o chefe Basilius era um feiticeiro.
Chefe Hugo Basilius. Seu pai biológico.
E aquela era a casa dele - o lugar onde ela teria sido criada se não tivesse sido roubada no berço.
Lucia olhou para as casas, ruas e a arena que formavam o complexo, esperando sentir uma sensação de perda da vida que deveria ter tido.
Mas não sentiu nada. Se havia um lar do qual sentia falta, era do palácio escuro cercado por gelo e neve em Limeros.
Quanto antes conseguisse deixar aquele reino seco e desagradável, melhor. Já tinha aprendido mais do que o suficiente sobre a cultura paelsiana quando a conheceu com Kyan.
Ela não ouviu boatos sobre o deus de fogo causando mais destruição e morte durante suas viagens. Segurava firme a esfera de âmbar que tinha escondido no bolso. Timotheus insistira que Kyan não podia morrer.
Mas, se era verdade, onde ele estava? O que estava planejando? Ela o havia ferido gravemente em sua batalha? Se não tinha, por que Kyan não havia voltado às Montanhas Proibidas para recuperar sua esfera
antes que Lucia a encontrasse?
Ela pressionou os dedos ao redor do cristal de âmbar ao pensar nisso. Seria forte o suficiente para lutar se ele a encontrasse naquele dia?
Lucia detestava admitir que não.
Não, não é bom o suficiente, ela pensou. Não há outra escolha. Tenho que ser forte.
- Ela é incrível, de fato - outro um velho corcunda paelsiano disse. - Se tem alguém que pode livrar nossa terra de sua doença mortal, é a imperatriz.
- Quero vingança pela morte de minha família - uma mulher mais jovem respondeu.
- Também quero - uma mulher mais velha concordou.
- De que doença estão falando? - Lucia perguntou.
- A doença da bruxa sombria - o velho resmungou. - A maldade dela destruiu esta terra e matou milhares de paelsianos com o toque de sua mão feia e retorcida.
Lucia mexeu as mãos.
- Ouvi falar dessas maldades...
- Maldades? - ele praticamente gritou com ela. Gotas de saliva do homem acertaram o rosto de Lucia, que limpou a face, fazendo uma careta. - Alguns dizem que Lucia Damora vai matar todos nós com sua magia
do fogo, que é uma feiticeira imortal, filha do Rei Sanguinário com uma demônia durante uma cerimônia de magia sanguinária! Mas eu a vejo como é: alguém que precisa ser morta antes que acabe machucando
outras pessoas.
Eles sabiam seu nome. E a odiavam o suficiente para desejar sua morte.
Não importava que o velho não tivesse incluído Kyan no relato. Já era um fato. Ela não podia voltar e mudar o que tinha acontecido.
Os paelsianos viam Lucia como uma bruxa demoníaca tirada das sombras como uma hera odiosa. Um pesadelo e uma doença que infestavam sua terra.
Ela nem tentou discutir, uma vez que estavam totalmente certos.
A multidão começou a gritar quando Amara finalmente subiu ao palco. Lucia tentou ver o máximo que pôde da bela moça, o cabelo comprido e escuro estava solto, o vestido de seda esmeralda com uma fênix brilhante
bordada. Quando ela ergueu as mãos. As pessoas ficaram em silêncio.
Amara falou de maneira clara e intensa sobre um futuro incrível para os cidadãos de Paelsia. Lucia não acreditava nas mentiras que ela despejava, mas, ao observar em volta, viu que as pessoas aceitavam
o que era dito como quem aceita um banquete delicioso.
A imperatriz parecia muito sincera em suas promessas. Lucia admirava a facilidade com que falava sobre mudar tudo o que estava errado no mundo. Sobre tomar decisões em nome daquelas pessoas que acreditavam
em cada uma de suas palavras.
Lucia estava ali, punhos cerrados, odiando Amara e esperando a chance de descobrir o que sua inimiga tinha feito com sua família.
E então, quase no mesmo instante, as lindas e falsas palavras que Amara dizia foram interrompidas. Alguém gritou e Lucia só entendeu o que estava acontecendo quando viu um guarda cair no palco, com uma
flecha enfiada na garganta. Outro guarda caiu, e mais um.
Uma tentativa de assassinato.
Isso não pode acontecer, Lucia pensou desesperada. Preciso muito perguntar a ela. Amara não pode morrer hoje.
Com muito esforço, Lucia acessou a magia do ar. Um vento frio e abundante envolvia seus braços e mãos em espirais transparentes enquanto ela avançava pela multidão em direção ao palco, usando a magia invisível
para tirar todo mundo de seu caminho. Os guardas kraeshianos pularam na multidão assustada e confusa com armas em punho e só provocaram mais pânico. Eles derrubavam quem os enfrentava ou cruzava seu caminho,
fossem rebeldes ou civis, o que só aumentou a confusão enquanto todos tentavam fugir.
Lucia se esforçou para enxergar o que estava acontecendo no palco. Amara e uma garota muito parecida com a criada que costumava acompanhar a princesa Cleo encolheram-se diante de um jovem alto que usava
um tapa-olho preto e empunhava uma espada.
A magia do ar frio de Lucia passou para a de fogo, pronta para queimar quem a impedisse de chegar a Amara. Alguém puxou seu manto, e ela olhou para a pessoa, pronta para fazê-la arder em chamas. Nicolo
Cassian olhou para ela, uma das mãos em seu manto, a outra pressionada contra um ferimento na barriga. Quando ele tossiu, sangue espirrou de sua boca.
Um ferimento mortal.
Lucia olhou de novo para o palco, mas um som engasgado a fez virar de novo para Nic, uma vítima dos guardas sedentos por sangue ou de um paelsiano assustado.
Não importava quem tinha feito aquilo. Ela conseguiu ver, com rapidez, que o ferimento era profundo e mortal. O que aquele garoto estava fazendo justamente ali?
Lucia não tinha magia suficiente para lutar contra milhares. Levou a mão à barriga ao observar a multidão, sabendo que precisava ir para um local seguro. Muitos estavam se pisoteando para voltar aos portões.
Ela deu um passo e então percebeu que Nic ainda a segurava.
- Prin... ce... sa... - ele disse, sem fôlego.
Ela o encarou, hesitante.
- Por favor... me ajude...
A vida se esvaía de seus olhos. Nic não tinha mais muito tempo. Mas ele era amigo próximo da princesa Cleo - uma garota que Lucia já tinha considerado uma amiga verdadeira, até ser traída por ela.
Mas o pai de Lucia tinha destruído a vida de Cleo, destruído todo o seu mundo.
Cleo tinha perdido tudo no último ano. Aquele amigo era o único resquício que a princesa auraniana tinha de sua antiga vida.
Se Nic morresse, Lucia não tinha dúvidas de que isso destruiria Cleo.
Lucia detestava quando sua consciência pesava, principalmente quando isso acontecia por causa de Cleiona Bellos.
Com cuidado, ela se agachou ao lado de Nic e afastou a mão que cobria o ferimento para, em seguida, levantar a túnica. Fez uma careta ao ver todo aquele sangue e as entranhas para fora.
- Diga a Cleo - Nic disse com esforço para respirar - que eu a amo... que ela é minha família... que eu... eu sinto muito.
- Poupe seu fôlego - Lucia disse. - E diga a ela você mesmo.
Lucia pressionou o ferimento cheio de sangue e canalizou toda a magia da terra que tinha dentro de si. Nic arqueou as costas e gritou de dor, e o grito estridente se espalhou pelo caos ao redor deles.
- Pare! Por favor! - Nic tentou impedi-la, afastá-la, mas estava fraco demais. Tinha perdido tanto sangue que Lucia não sabia se teria magia suficiente para curá-lo. Mas ainda assim, tentou. O capuz caiu
de sua cabeça, revelando o cabelo e o rosto, mas ela não se deu ao trabalho de puxá-lo de volta. Esgotou a energia e a força que tinha em uma tentativa de salvar aquele rapaz.
Pelo menos até alguém arrancá-la de perto dele. Ela virou, furiosa, e ficou frente a frente com um homem feio que escancarava um sorriso mostrando os dentes.
- Vejam o que encontrei! - ele anunciou, arrastando-a para longe de Nic até ela perdê-lo de vista. - A própria feiticeira atacando outro de nós! As mãos dela estão manchadas de sangue paelsiano!
Lucia tentou invocar magia do fogo ou do ar para afastá-lo, mas nada aconteceu. Ela fechou a mão, desesperada para fugir de quem a atacava.
- Olhe para mim, bruxa! - o homem disse.
Ela lançou um olhar para o homem, mas recebeu um tabefe no rosto tão forte a ponto de fazer seu ouvido zunir.
- Amarre-a! - alguém gritou. - Queime a bruxa como ela queimou nossos vilarejos!
Desorientada, ela foi arrastada pela terra seca, tropeçando nos próprios pés até seu agressor empurrá-la para longe. Ela caiu de joelhos com tudo no meio de uma roda de pessoas furiosas. Alguém jogou uma
pedra nela, acertando o lado direito de seu rosto com força, e Lucia gritou de dor. Levou a mão ao rosto e sentiu o sangue quente.
- Não sou quem você pensa que sou - ela conseguiu dizer. Levantou as mãos à frente do corpo. - Você precisa me soltar.
- Não, bruxa. Hoje você vai morrer por seus crimes cruéis. Estamos de acordo?
A multidão que a cercava expressou aprovação com gritos. Não havia misericórdia no olhar de ninguém. Alguém entregou uma corda grossa ao primeiro agressor.
- Deixe-a de pé - ele vociferou.
Alguém atrás de Lucia a levantou e amarrou seus punhos com força.
- Meus cumprimentos, princesa - uma voz estranhamente familiar soou em seu ouvido. - Pelo visto está causando mais problemas em Paelsia.
Jonas Agallon. Ela se esforçou para virar o suficiente e ver aquele olhar tomado de ódio.
- Jonas - ela disse -, por favor, precisa me ajudar!
- Ajudar? O quê? A grande e poderosa feiticeira não consegue se cuidar? - Ele estalou a língua. - Que tragédia. Parece que essas pessoas querem vê-la morta. Queimada viva, acho que foi o que ouvi, certo?
Parece um fim adequado para uma bruxa como você.
Sua mente estava a mil.
- Onde está meu pai? Meu irmão? Você sabe?
- É a última coisa com que você deveria se preocupar, princesa. Sinceramente. - Ele a virou e resvalou a mão na barriga dela.
Jonas franziu a testa.
- Isso mesmo - ela disse, agarrando todas as oportunidades que tinha de conseguir ajuda, ainda que fosse de alguém como ele. - Vocês vão tentar celebrar minha execução tão rápido agora que sabem que uma
criança inocente morrerá comigo?
- Inocente? - O olhar de Jonas não suavizou nem um pouco. - Nada que alguém como você poderia trazer a este mundo seria inocente.
- Eu não matei aquela moça. Foi Kyan. Ele... eu não consegui controlá-lo. Eu queria que ele parasse. Sinto muito por sua perda e me arrependo do que aconteceu naquele dia. Gostaria de poder mudar as coisas,
mas não posso.
- O nome daquela moça era Lysandra. - Jonas contraiu o maxilar, e ficou em silêncio por um momento enquanto os outros homens pediam para ir a um lugar mais adequado para queimar a bruxa. - Onde está Kyan?
- Eu... eu não sei - ela disse com sinceridade.
Jonas a encarou.
- Essa criança dentro de você drena sua magia, não é?
- Como sabe disso?
Ele franziu ainda mais a testa.
- Você já teria destruído tudo aqui se tivesse acesso a seus elementia, certo?
Ela apenas assentiu.
Jonas xingou em voz baixa.
- Eles precisam de você. Estão dependendo de você. E você está aqui, como uma idiota, prestes a morrer.
Se estivessem em outro lugar, em outro momento, ela teria ficado magoada ao ser chamada de idiota.
- Então faça alguma coisa em relação a isso. Por favor.
Depois de um momento de hesitação, Jonas empunhou a espada e a apontou para o homem que segurava a corda.
- Uma pequena mudança de planos. Vou levar a feiticeira comigo.
- Sem chance - o homem resmungou.
- Não há discussão. Estou vendo que nenhum de vocês está armado no momento. - Ele observou as pessoas do grupo. - Atitude estúpida, em uma multidão assim, não carregar uma arma, mas isso torna as coisas
mais fáceis para mim. Se nos seguirem, vão morrer. - Ele arregalou os olhos para Lucia. - Vamos, princesa.
Jonas pegou o braço dela e a puxou.
- Aonde vai me levar? - ela perguntou.
- Aos seus queridos pai e irmão. Que todos vocês apodreçam juntos na escuridão.
21
CLEO
PAELSIA
Quando percebeu que Nic, Jonas e Olivia tinham partido sem contar nada sobre seus planos, Cleo não ficou magoada. Ficou furiosa.
- Minha nossa, querida, você vai abrir um buraco no chão de tanto andar de um lado para o outro.
Cleo virou e viu Selia Damora olhando para ela. A mulher a deixava nervosa, mas felizmente as duas tinham se encontrado poucas vezes desde sua chegada. Era difícil acreditar que fazia só três dias que
estavam na hospedaria. Pareciam três anos.
- Meus amigos partiram sem se despedir - Cleo respondeu tensa, forçando-se a parar de roer a unha do polegar direito. - Considero esse comportamento imperdoavelmente grosseiro e desrespeitoso. Em especial
da parte de Nic.
- Sim, Nic. O rapaz de cabelo vermelho. - Selia sorriu. - Tenho certeza de que não fez por mal. Ele parece gostar de você.
- Ele é como um irmão para mim.
- Os irmãos costumam esconder segredos das irmãs.
- Mas não o Nic. - Cleo remexeu as mãos. - Contamos tudo um ao outro. Bom, quase tudo.
- Venha sentar comigo por um momento. - Selia sentou em uma espreguiçadeira e deu batidinhas no assento ao seu lado. - Quero saber mais sobre a esposa de meu neto.
Era a última coisa que Cleo queria, mas teve que fingir amabilidade. Seria inteligente de sua parte fazer amizade com uma mulher que logo teria acesso à magia, especialmente agora que a magia de Cleo tinha
sido roubada - ainda que Selia fosse uma Damora.
Só de pensar no que Ashur tinha feito, ela tremia de raiva. Como ele tinha conseguido roubar a esfera de obsidiana sem que ela notasse? Para Cleo, aquele cristal representava poder e um futuro repleto
de escolhas e oportunidades. Mas por ser preguiçosa e desatenta, a esfera tinha sido levada de baixo de seu nariz.
E não havia absolutamente nada que pudesse fazer.
Forçando um sorriso, Cleo sentou hesitante ao lado da senhora.
Selia não disse nada por um tempo, mas observou o rosto de Cleo com cuidado.
- O que foi? - Cleo perguntou finalmente, ainda mais desconfortável do que antes.
- Eu não tinha certeza antes... mas tenho agora. Vejo seu pai em você. Seus olhos são da mesma cor dos de Corvin.
A menção a seu querido pai a deixou tensa.
- Você tinha dúvidas a respeito de quem eram meus pais?
- No que diz respeito a meu filho e a... - ela hesitou - às dificuldades dele com sua mãe, sim, claro que tive muitas dúvidas ao longo dos anos. Achei que houvesse uma chance de Gaius ser seu pai.
O horror de pensar numa possibilidade daquelas a deixou enjoada de repente.
- Meu... meu pai? - Ela cobriu a boca com a mão. - Acho que vou vomitar.
- Ele não é seu pai. Tenho certeza disso agora que estou olhando para você.
Cleo tentou se manter calma, mas a insinuação inesperada da mulher a deixara atordoada.
- Minha... minha mãe não teria... de jeito nenhum...
- Sinto muito se a perturbei com isso. Mas não prefere ter certeza de que você e Magnus estão unidos apenas pelos votos e não pelo sangue? - Ela franziu a testa. - Minha nossa, você está muito pálida,
Cleiona.
- Nem sei por que sugere uma coisa dessas - ela disse.
- Não pensei que Gaius tivesse conseguido se encontrar com Elena depois da briga que tiveram, que sei que aconteceu bem antes de ela se casar com Corvin. Mas os filhos nem sempre contam tudo à mãe sobre
assuntos do coração, nem mesmo o filho mais atencioso e amoroso.
O modo como o rei expressara o que teriam sido suas últimas palavras, seu suspiro final, o nome da mãe dela... "Sinto muito, Elena".
- Só soube que eles se conheciam recentemente - Cleo disse, tensa.
- Eles se conheceram num verão vinte e cinco anos atrás na Ilha de Lukas, quando Gaius tinha dezessete anos, e Elena, quinze. Quando voltou para casa, Gaius já estava obcecado por ela, dizendo que iam
se casar com ou sem o consentimento do pai dele.
Cleo se esforçou para continuar respirando. Aquela história não parecia plausível. Soava como uma história de um livro cheio de fantasia e imaginação.
- Meu pai nunca disse nada a respeito... - Ela franziu a testa. - Ele sabia?
- Não faço ideia do que Elena pôde ter contado a Corvin sobre seus romances anteriores. Imagino que ele descobriu a verdade no fim das contas, ainda que apenas para se preparar melhor para proteger Elena.
- Protegê-la? Como assim?
A expressão de Selia ficou mais séria.
- Elena perdeu o interesse em Gaius quando voltou para casa. Não sei por quê. Imagino que fosse apenas uma novidade passageira para ela, uma maneira de passar o verão, conquistar o afeto de um garoto apaixonado.
Nada além disso. Quando descobriu essa mudança, Gaius... não aceitou muito bem. Confesso, amo meu filho profundamente, mas ele sempre teve um péssimo lado violento. Gaius foi atrás de Elena, exigindo que
seu amor fosse retribuído e, quando ela se recusou, ele a agrediu quase a ponto de matá-la.
Cleo sentiu mais uma onda de náusea. Sua pobre mãe, sujeita ao cruel Gaius Damora em sua pior versão.
Ela nunca detestara tanto o rei.
- Só espero que meu neto não seja exageradamente cruel com você a portas fechadas, minha cara - Selia disse delicadamente. - Homens poderosos, cheios de força e perigo... costumam ter acessos de violência.
As esposas e mães torcem para sobreviver a eles.
- Sobreviver? Não pode estar falando sério! Se Magnus um dia levantasse a mão para mim, eu...
- O quê? Você mal chega na altura do ombro dele, e Magnus deve ter o dobro do seu peso. A melhor coisa a se fazer nesse caso, Cleiona, é ser o mais agradável e compreensiva possível em todos os momentos.
Todas as mulheres devem fazer isso.
Cleo endireitou os ombros e levantou o queixo.
- Não tive o grande privilégio de conhecer minha mãe, mas se ela era um pouco parecida comigo ou um pouco parecida com minha irmã, então sei que ela não teria sido o mais agradável e compreensiva possível
diante de uma agressão, não importa de quem nem quando. Nem eu! Eu mataria quem tentasse me atacar!
Selia abriu um sorriso discreto.
- Meu neto escolheu uma garota com coragem e força para amar, assim como o pai dele. Eu estava testando você, é claro.
- Me testando?
- Olhe para mim, querida. Tenho cara de quem permitiria que um homem levantasse a mão para me bater?
- Não - Cleo respondeu com sinceridade.
- Exato. Fico feliz por termos conseguido conversar hoje, minha querida. Agora já sei tudo o que preciso saber.
Ela estendeu o braço, apertou a mão de Cleo e então saiu da sala.
Aquela tinha sido a conversa mais esquisita de toda a vida de Cleo.
- Talvez eu vá à taverna sozinha hoje - ela murmurou. - Por que Magnus é o único aqui que pode beber vinho em uma tentativa tola de fugir dos problemas?
Quando levantou, algo chamou sua atenção do lado de fora, nos fundos da hospedaria. Ela deu um passo para a frente. Olivia estava no quintal. Estranhamente, a moça não usava nada além de um lençol branco
enrolado no corpo, lençol que Cleo reconheceu das roupas de cama que a esposa do dono da hospedaria lavava todos os dias.
Independentemente da vestimenta, ver Olivia foi um grande alívio. Cleo levantou e saiu para se aproximar, observando ao redor com curiosidade.
- Olivia! Nic e Jonas estão com você? Aonde vocês foram?
A expressão de Olivia era de grande incerteza.
- Preciso sair de novo imediatamente, mas quis voltar antes para ver você.
- O quê? Aonde está indo?
- Está na hora de eu voltar para a minha casa. O caminho e o destino de Jonas se encontraram com sucesso, e meu tempo com ele está acabando.
- Desculpe. - Cleo balançou a cabeça, confusa. - O destino de Jonas? Do que você está falando, afinal?
- Não cabe a mim explicar essas coisas. Só sei que não posso mais cuidar dele, uma vez que talvez me sinta tentada a interferir. - Ela franziu a testa. - Isso deve soar ridículo para você. Sei que não
sabe quem sou de verdade.
- Você quer dizer que é uma Vigilante?
Olivia olhou para Cleo.
- Como sabe disso?
Cleo riu com hesitação ao ver a expressão de choque de Olivia.
- Jonas me contou. Ele confia em mim, você também deveria confiar. Prometo guardar seu segredo surpreendente, mas, por favor, me diga o que está acontecendo. Está chateada só por deixar Jonas?
- Não, não é o único motivo. Eu... eu fui ao complexo com Nic e Jonas, onde a imperatriz está no momento.
Cleo arregalou os olhos.
- Era onde você estava? Que plano imbecil foi esse?
- O príncipe Magnus ameaçou Nic - Olivia explicou. - Ele ameaçou você também, caso Nic não fosse atrás de Ashur para recuperar os cristais da Tétrade.
Cleo franziu a testa.
- Não pode ser. Magnus não faria isso.
- Garanto que fez. Caso contrário, Nic nunca teria se afastado de você. - Os olhos verde-esmeralda de Olivia brilharam de ódio. - É culpa do príncipe que isso tenha acontecido. Perdi Nic na multidão durante
a tentativa de assassinato de Amara. Eu o vi por apenas um momento quando ele foi atingido por uma lâmina. Eu... eu acredito que tudo terminou depressa.
Cleo balançou a cabeça quando a palma de suas mãos começou a arder e a suar.
- O quê? Não entendo. Ele foi atingido por uma lâmina? Que lâmina? Do que está falando?
A expressão de Olivia era só pesar.
- Nic está morto. Ele é um dos muitos mortos depois que os rebeldes fizeram uma tentativa de assassinato a Amara. Preciso sair de Mítica agora e peço a você que faça o mesmo. Você não está em segurança
aqui com alguém como Magnus, que mataria um rapaz como Nic. Não está certo, princesa, nada disso está certo. O mundo está fora de controle, e eu temo que seja tarde demais para salvá-lo. Sinto muito por
dizer isso, mas achei que você merecia saber.
Olivia soltou a mão de Cleo e deu alguns passos para trás, com uma expressão atormentada.
- Fique bem, princesa - ela disse. Depois disso, a pele escura e impecável se transformou em penas douradas, e seu corpo se transformou no de um falcão, e ela alçou voo.
Cleo a observou, surpresa demais com o que tinha ouvido para apreciar a magia verdadeira e inegável revelando-se diante de seus olhos.
Ela não sabia ao certo quanto tempo ficou em silêncio no pátio, olhando para o céu claro, até voltar para a hospedaria com dificuldade. Seus joelhos fraquejaram antes que ela alcançasse uma cadeira.
Seu corpo inteiro tremia, mas ela não chorou. Eram informações demais para processar. Inacreditável demais. Não podia ser verdade. Se fosse, se Nic estivesse morto, então ela também queria morrer.
- Você está bem? O que aconteceu?
Quando se deu conta do que estava acontecendo, Cleo percebeu que tinha sido levantada do chão por dois braços fortes.
- Está ferida? - Magnus afastou o cabelo dela da testa, envolvendo seu rosto com as mãos. - Que droga, Cleo, responda!
Confusa, ela percebeu a preocupação nos olhos castanhos profundos dele.
- Magnus... - ela começou, a respiração profunda e trêmula.
- Sim, meu amor. Fale comigo. Por favor.
- Diga a verdade.
- Claro. O quê? O que você precisa saber?
- Você ameaçou me matar se Nic não fosse atrás de Ashur?
A expressão sofrida dele, totalmente concentrada nela, aos poucos deu lugar à frieza da máscara que ele usava para encobrir suas emoções.
- Ele disse isso? Ele voltou?
- Responda. Você me ameaçou ou não?
Magnus encarou os olhos furiosos dela.
- Cassian precisava da motivação certa.
- Isso é um sim.
- Eu disse o que ele precisava ouvir para resolver a questão. Para...
Cleo deu um tapa tão forte no rosto dele que sua mão ardeu. Magnus levou a mão ao rosto e olhou para ela, atônito.
Ele franziu o cenho.
- Você ousa...
- Ele está morto! - Cleo gritou antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa. - Por causa do que você disse! Meu último amigo no mundo inteiro está morto por sua causa!
Ele parecia confuso.
- Não pode ser.
- Não pode? As pessoas não morrem quando se aproximam de você e de sua família monstruosa? - Ela passou os dedos pelo cabelo, desejando arrancá-lo pela raiz, desejando sentir dor física para poder se concentrar
em algo que não fosse seu coração despedaçado.
- Quem contou isso a você? - Magnus perguntou.
- Olivia voltou. Ela foi embora, então não pode forçá-la a fazer o que você quer.
- Olivia. Sim, bom, não sei quem Olivia é. Nem você. Só sabemos que ela é aliada de Jonas, um garoto que me odiava a ponto de me querer morto até pouco tempo atrás. Até onde sei, esse objetivo não mudou.
- Por que ela mentiria sobre algo assim? - A voz da princesa falhou.
- Porque as pessoas mentem para conseguir o que querem.
- Imagino que você saiba bem disso.
- Sim, e penso o mesmo sobre você, princesa - ele disse. - Entre nós dois, acho que você mentiu muito mais do que eu. Além disso, devo dizer que você viu Ashur morrer com seus próprios olhos, mas ele ainda
está vivo. Não existem provas de que Nic está morto. Só tem as palavras de alguém. Não se pode confiar em palavras, não nas palavras de qualquer um.
- Essa é a sua resposta? - Cleo olhou para ele, percebendo que mal conhecia a pessoa à sua frente. - Digo que um garoto que era como um irmão para mim foi morto por sua causa e você diz simplesmente que
mentiram para mim?
- É o que parece, não é?
- Você não assume responsabilidade por todo o mal que causou. Nunca! - Ela se esforçou ao máximo para se manter firme, para não se perder na dor e na raiva que entravam em conflito dentro dela. - Tentei
ver seu lado bom, mas você fez algo imperdoável. Vá em frente! - ela vociferou. - Tente se defender! Diga que Nic odiava você, então por que não desejaria que ele morresse? Vamos lá, faça isso!
- Não vou negar. A vida seria muito mais simples para mim se aquela pedra no meu sapato fosse retirada de uma vez por todas. Mas eu nunca desejaria a morte dele, porque sei como gosta dele.
- Gosto dele? Eu amo! - ela gritou. - E se ele realmente estiver morto, eu...
- O quê? Vai perder o resto de esperança que ainda tem? Vai se encolher e morrer? Por favor, você tem muito a ganhar ficando viva, lutando, mentindo e continuando a me usar sem pudor para conseguir o que
posso lhe dar.
Cleo olhou para ele, abismada.
- Usar você?
Magnus ficou sério.
- Você quer poder, magia. Ao ficar aqui comigo e tolerar a existência de meu pai, sabia que isso a levaria ao que deseja. Quando os cristais da Tétrade foram roubados, principalmente por sabermos o que
sabemos sobre eles, o que eu deveria pensar? Que você continuaria aqui para sempre? Fiz o que fiz por você, para ajudá-la a reaver sua chance de ter poder. Ashur parece valorizar Nic por motivos que não
compreendo. Se tem alguém que consegue entender aquele kraeshiano doido, eu sabia que era seu amigo querido. O mesmo amigo que mandou Taran cortar meu pescoço, devo relembrar.
Ele falava com Cleo como um desconhecido furioso, não como alguém que ela tinha passado a valorizar.
- E agora está me culpando por isso. Como ousa?
Magnus bufou.
- É impossível discutir com você.
- Então nem tente. Você não pode consertar isso, Magnus. Não pode nem começar.
- Se Nic ainda estiver vivo...
- Não importa. - Lágrimas correram por seu rosto. - Isso provou como somos diferentes. Você é incansavelmente cruel e manipulador, e agora vejo que isso nunca vai mudar.
- Posso ser sincero, princesa? Eu poderia dizer exatamente a mesma coisa sobre você. Talvez você preferisse que eu lidasse com o conflito colhendo flores e cantando, mas não sou assim. E você tem razão:
nunca vou mudar. Nem você. Uma hora você diz que me ama, mas prefere que cortem sua língua a contar esse segredo, até mesmo a seu amigo mais íntimo. Pelo amor da deusa! Que Nic não descubra que você se
mistura com pessoas como eu! Ele detestaria você por isso?
Cleo secou as lágrimas, irritada consigo mesma por demonstrar tamanha fraqueza.
- É muito provável que sim.
- Então isso prova que, entre ele e eu, você o escolheria.
- Num piscar de olhos - ela disse imediatamente. - Mas ele está morto.
Um músculo no rosto dele se contraiu.
- Talvez. E Jonas? Não pude deixar de notar que você estava praticamente sentada no colo dele ontem, sussurrando palavras de amor e incentivo.
- É o que você...? - Ela corou. - Jonas é muito mais homem do que você! Eu preferiria dormir com ele a dormir com você. Em qualquer dia, em qualquer momento. E nenhuma maldição me impediria.
- Vá para o inferno, Cleo. - O ódio tomou conta do olhar dele, que já estava frio. Magnus levantou o punho, os dentes travados em uma expressão feroz.
- Vamos - ela vociferou. - Bata em mim como seu pai batia na sua mãe. Você sabe que é o que quer.
- Como é? - Ele franziu a testa, olhou para o próprio punho com surpresa e o abaixou em seguida. - Eu... eu nunca agrediria você.
- Chega - ela disse, num sussurro. - Estou cansada daqui. Preciso pensar. - Ela se virou em direção à escadaria que levava aos quartos.
- Cleo... - Magnus chamou. - Vamos descobrir a verdade sobre Nic. Prometo.
- Eu já sei a verdade.
- Eu sei que posso ser horroroso às vezes. Eu sei. Mas... eu amo você. Isso não mudou.
Os ombros dela ficaram tensos.
- O amor não basta para consertar isso.
Sem olhar para trás, Cleo caminhou com o máximo de calma e lentidão até seu quarto e trancou a porta quando entrou.
22
JONAS
PAELSIA
Jonas teve que sair do complexo antes de encontrar Nic. Eles tinham sido separados depois da revolta rebelde. A multidão à espera da imperatriz tinha entrado em pânico, e as pessoas começaram a lutar umas
contra as outras e contra os guardas kraeshianos.
Sua visão do palco estava bloqueada, e ele se viu frente a frente com paelsianos irados e com a feiticeira que queriam matar.
- Pode olhar para mim com ódio - Lucia disse a ele enquanto se afastavam da confusão.
- Que bom que permite.
- Você me odeia. E, ainda assim, você salvou minha vida.
- É provável que eu tenha salvado a vida de uma dúzia de paelsianos que subestimaram sua capacidade de matar cada um deles.
- E você não me subestima?
- Não.
- Então sugiro que você me diga onde meu pai e meu irmão estão para que não tenha que colocar sua vida em risco por nenhum segundo a mais em minha companhia.
Jonas sabia que ela poderia cumprir uma ameaça, se quisesse. Ele temia quando pensava no poder daquela garota e no prejuízo e na destruição pela qual a responsabilizavam.
- Onde está o deus do fogo? - ele sussurrou.
Lucia arqueou as sobrancelhas. Jonas percebeu que ela estava chocada por ele saber quem - ou melhor, o que - Kyan era de fato.
- Já disse que não sei.
- Ele é o pai de seu filho?
Lucia deu uma risada alta e nervosa.
- Com certeza não.
- Não vejo graça nenhuma nisso.
- Não se engane, rebelde, nem eu.
- Continue andando - ele disse quando Lucia diminuiu o ritmo. - Pelo jeito você está pesada demais para ser carregada.
A resposta de Lucia ao insulto foi parar totalmente. Os dois tinham adentrado uma parte densa da floresta a caminho da cidade mais próxima, onde Jonas pretendia conseguir transporte para o oeste.
- Responda à minha pergunta: onde estão meu pai e meu irmão? Sei que ainda estão vivos. Só podem estar.
- Se eu responder à sua pergunta, que certeza posso ter de que você não vai acabar com a minha vida? - ele perguntou.
- Nenhuma.
- Exatamente. Por isso mesmo vou levá-la até eles.
Lucia se surpreendeu.
- Então eles estão vivos!
- Talvez - ele disse.
- E como posso acreditar que você quer me ajudar?
Jonas virou e levantou o dedo indicador para ela.
- Não se engane, princesa Lucia, não estou fazendo isso para ajudá-la. Estou fazendo isso para ajudar Mítica.
Ela revirou os olhos.
- Que nobre.
- Pense o que quiser. Não me importa. Você se recusa a responder às minhas perguntas, então me recuso a responder às suas. Nosso destino final não está muito longe, mas você precisa encontrar uma maneira
de lidar com minha presença e com meu ódio durante o trajeto que vamos percorrer juntos.
- Acho que não. Vou contar um segredinho para você, rebelde, a respeito de uma habilidade especial que descobri recentemente. Posso forçar você a dizer a verdade... e quanto mais resistir, mais vai doer.
Jonas virou para encará-la de novo, mais irritado do que intimidado.
- Você sempre foi má assim ou só começou quando descobriu que era uma feiticeira?
- Sinceramente? - Ela abriu um sorriso frio. - Só depois.
- Acho difícil acreditar nisso. Você e sua família... são maldade pura, todos vocês.
- E ainda assim você está nos ajudando. - Lucia franziu a testa discretamente. - Pelo menos, diga que estão bem, que saíram ilesos depois de tudo o que aconteceu.
- Ilesos? - Ele sorriu com ironia. - Não sei de nada. Finalmente tive a chance de enfiar uma adaga no coração do rei. Por azar, isso só o atrapalhou um pouco.
Os olhos dela brilharam, furiosos.
- Mentira.
- Bem aqui. - Ele indicou o peito. - Certeiro e profundo. Até girei. Foi tão bom que não consigo nem explicar.
Um instante depois, ele se viu no ar, voando até bater as costas no tronco de uma árvore com força suficiente para tirar seu fôlego.
Lucia se ajoelhou ao lado dele, apertando sua garganta.
- Olhe para mim.
Desorientado, Jonas encarou os olhos azul-claros dela.
- Diga a verdade - ela rosnou. - Meu pai está morto?
- Não. - A palavra foi dita com dificuldade.
- Você o apunhalou no coração mas ele não morreu?
- Exatamente.
- Como isso é possível? Responda!
Jonas não conseguia desviar daqueles olhos lindos e assustadores. A magia que ela tinha perdido - se é que isso de fato havia acontecido - estava de volta. E Lucia estava bem mais forte do que ele esperava.
- Algum tipo de magia... Não sei. Isso prolongou a vida dele.
- Magia de quem?
- Da mãe.... dele. - Jonas tinha certeza de que estava sentindo gosto de sangue, forte e metálico. Ele engasgou enquanto tentava resistir à magia.
Ela franziu ainda mais a testa.
- Minha avó morreu.
- Ela está viva. Não sei muito mais do que isso. - Ele fez uma careta pela dor de estar contando todas aquelas verdades. - Agora, me faça um favor, princesa.
Ela inclinou a cabeça, mas não cedeu nem um pouco.
- Dificilmente.
Jonas semicerrou os olhos e tentou, com toda a força, canalizar a própria magia como tinha feito sem querer no navio com Felix.
- Me solte.
Lucia soltou Jonas e caiu para trás como se tivesse sido empurrada pelo rebelde.
Tossindo e com a mão no pescoço, Jonas levantou e olhou para ela.
Percebeu que esboçava um sorriso. Olivia deveria estar enganada sobre o poder de sua magia. Jonas se permitiu um breve momento de vitória.
Lucia o encarou, com os olhos arregalados.
- Você pode canalizar a magia do ar? Um bruxo? Nunca soube sobre algo assim... Ou você é um Vigilante exilado?
- Prefiro evitar títulos, princesa - ele disse. - E, francamente, não sei o que sou, só que tenho que lidar com isso agora. - Ele levantou a camisa o suficiente para revelar a marca em espiral em seu peito,
que tinha ficado mais brilhante desde a última vez em que ele olhara, e agora cintilava num tom dourado que o fazia lembrar cada vez mais da marca de um Vigilante.
- O quê? - Lucia balançou a cabeça com os olhos arregalados. - Não compreendo.
- Nem eu. E juro, se essa é minha profecia, cuidar para que alguém como você volte para sua odiosa família sã e salva, vou ficar furioso. - Ele olhou para cima, para as árvores. - Olivia, está me ouvindo
onde quer que esteja? É a pior profecia do mundo!
- Quem é Olivia?
- Deixa para lá. - Ele olhou para Lucia, ainda deitada no chão. - Levante.
Ela tentou ficar de pé.
- Hum...
- Não consegue levantar, não é?
- Me dê um minuto. Minha barriga está um pouco esquisita no momento. - Lucia olhou feio para ele. - E, por favor, nem pense em me ajudar.
- Não pensei. - Jonas ficou observando enquanto ela rolava devagar e com dificuldade para o lado, e então levantava, batendo no manto para tirar as agulhas de pinheiro e a terra. - Você ainda não está
acostumada com sua situação? Já vi paelsianas grávidas, a poucos dias de dar à luz, cortando madeira de uma árvore inteira e carregando para casa.
- Não sou uma paelsiana - ela disse e hesitou. - Bem, não exatamente. E não tive tempo de me acostumar com minha "situação", como você diz.
Que moça esquisita.
- Você está grávida de quantos meses?
- Não que seja da sua conta, mas... cerca de um mês.
Jonas olhou para o corpo dela sem acreditar.
- É assim que funciona com as feiticeiras cruéis? Os bebês delas se desenvolvem muito mais depressa do que os bebês normais?
- Não tenho como saber. - Lucia cruzou os braços como se tentasse proteger a barriga. - Compreendo seu ódio por mim. Compreendo o ódio de todos por mim. O que fiz desde... desde que o pai desta criança
morreu é imperdoável. Sei disso. Mas essa criança é inocente e merece uma chance de viver. O fato de você, logo você, ter vindo ajudar alguém como eu... Você está marcado como imortal, mas afirma não ser
bruxo nem exilado. Isso deve significar alguma coisa. Você fala sobre profecias. Sei bem que sou o alvo de profecias. Para mim, isso quer dizer que essa criança é importante para o mundo.
- Quem é o pai? - Jonas perguntou. Ele não queria sentir pena pelo que Lucia estava passando nem deixar que a voz dela o emocionasse.
- Um imortal exilado.
- E você disse que ele está morto.
Ela assentiu uma única vez.
- Como? - Jonas perguntou. - Você o matou?
Lucia ficou em silêncio por tanto tempo que ele achou que ela não responderia.
- Não. Ele tirou a própria vida.
- Interessante. É essa a única maneira de escapar de suas garras sombrias?
O olhar de ódio de Lucia o fez recuar. Mas era mais do que isso. Os olhos dela estavam vermelhos, numa mistura de cansaço e tristeza.
- Desculpa - Jonas disse antes de pensar em outra resposta. - Acho que fui desnecessariamente grosseiro.
- Foi. Mas eu não esperaria nada menos de alguém que pensa que sou cruel. O que Kyan fez com sua amiga...
- Lysandra - ele disse com a voz embargada. - Ela era incrível... A garota mais forte e corajosa que já conheci. Ela merecia a vida que Kyan lhe roubou sem um segundo de hesitação. Ele estava mirando em
mim, eu deveria ter morrido naquele dia, não ela.
Lucia assentiu com tristeza.
- Sinto muito. Percebo que Kyan não é uma pessoa, não é alguém com sentimentos e necessidades como as dos mortais, e não é possível discutir com ele. Kyan vê todas as falhas e imperfeições deste mundo.
Ele deseja reduzir tudo a cinzas para poder recomeçar. Diria que ele é maluco, mas é fogo. Fogo arde. Destrói. Essa é a razão de sua existência.
- Kyan quer destruir o mundo - Jonas repetiu.
Ela confirmou.
- Por isso eu o deixei. Por isso ele quase me matou quando eu disse que não o ajudaria mais.
Jonas demorou um momento para absorver a informação.
- Você diz que o fogo destrói. Mas o fogo também cozinha comida e nos aquece em noites frias. Esse tipo de fogo não é cruel, é um elemento que usamos para viver.
- A única certeza que tenho é de que ele precisa parar. - Ela levou a mão ao bolso do manto e tirou uma pequena esfera de âmbar. - Esta era a prisão de Kyan.
Jonas ficou sem palavras por um momento.
- E você acha que pode prendê-lo de novo aí dentro e salvar o mundo?
- Pretendo tentar - ela disse apenas.
Ele observou o rosto de Lucia, determinado e sério olhando para a esfera de cristal. Ela parecia muito sincera. Podia acreditar nela?
- Pelo que sei a respeito do deus do fogo, a imperatriz não parece ser grande ameaça, certo?
Lucia guardou a esfera no bolso de novo.
- Ah, Amara provou que é uma ameaça. Mas Kyan é bem pior. Por isso, pode me considerar cruel, rebelde. Pode me considerar alguém que precisa morrer pelos crimes que cometi. Tudo bem. Mas saiba também que
quero tentar consertar parte do que fiz agora que consigo pensar com clareza de novo. Primeiro, preciso ver minha família. Preciso... - As palavras de Lucia foram interrompidas quando ela se inclinou para
a frente e chorou.
Jonas correu para o lado dela.
- O que foi?
- Dói! - ela disse. - Está acontecendo com muita frequência desde que saí. Ah... ah, minha nossa! Não consigo...
Lucia caiu de joelhos com as mãos na barriga.
Jonas olhou para ela, sentindo-se totalmente impotente.
- Droga. O que posso fazer? O bebê já está nascendo? Por favor, não me diga que o bebê já está nascendo.
- Não, não está... Acho que ainda não está na hora. Mas isso... - Quando ela gritou, o som atingiu Jonas como uma lâmina fria. - Me leve para minha família! Por favor!
O rosto da princesa estava pálido como papel em contraste com seu cabelo escuro. Ela revirou os olhos e caiu, inconsciente.
- Princesa - ele disse, tentando acordá-la. - Vamos, não temos tempo para isso.
Lucia não acordou.
Jonas virou e olhou para o conflito. Não demoraria muito para a multidão paelsiana encontrar armas e sair em busca dele e da feiticeira.
Finalmente, xingando em voz baixa, ele se abaixou e pegou a princesa nos braços, percebendo que ela era muito mais leve do que imaginava, mesmo com o bebê que esperava.
- Não temos tempo para ir até sua família - ele disse. - Por isso vou levá-la à minha. Estão muito mais perto.
A irmã de Jonas, Felicia, abriu a porta de casa e observou Jonas por um momento, em silêncio total.
Em seguida, olhou para a garota grávida e inconsciente que ele carregava nos braços.
- Posso explicar - ele se apressou em dizer.
- Espero muito que possa. Entre. - Ela abriu mais a porta para Jonas entrar, tomando o cuidado de não bater as pernas de Lucia no batente.
- Deixe-a na minha cama - Felicia disse a Jonas. Ele fez o que sua irmã disse e voltou até ela, mas a irmã não o recebeu com um abraço. Simplesmente ficou ali, a expressão séria e furiosa, os braços cruzados.
Jonas não esperava que ela ficasse feliz ao vê-lo.
- Sinto muito por não ter vindo visitá-la - ele começou.
- Não tenho notícias suas há quase um ano e você aparece hoje de repente.
- Precisava de sua ajuda. Com... a garota.
Ela riu.
- Sim, com certeza precisa. O filho é seu?
- Não.
Ela não pareceu convencida.
- E o que você espera que eu faça por ela?
- Não sei. - Ele coçou a testa e começou a andar de um lado para o outro na casa pequena. - Ela não está bem. Sentiu dor na barriga e desmaiou. Eu não sabia o que fazer.
- Por isso a trouxe para cá.
- Eu sabia que você me ajudaria. - Ele suspirou nervoso. - Sei que você está brava comigo por eu ter passado muito tempo longe, mas era perigoso demais voltar.
- Sim, eu vi seus cartazes de procurado. O que era aquilo? Dez mil cêntimos para quem capturasse você, morto ou vivo?
- Mais ou menos isso.
- Você matou a rainha Althea.
- Não matei. É uma longa história.
- Imagino.
Ele observou ao redor, à procura de algum sinal do marido da irmã.
- Onde está Paolo?
- Morto.
Jonas a encarou.
- O quê?
- Foi tirado de mim, forçado a trabalhar para a Estrada Imperial. Eles queriam o nosso pai também, mas decidiram que, devido à idade e ao fato de mancar, ele era inútil. Paolo não voltou quando os operários
finalmente foram liberados de suas tarefas. O que devo pensar além de que foi morto com os outros paelsianos que eram tratados como escravos?
Jonas olhou para ela em choque. Paolo foi um bom amigo quando a vida era difícil, mas simples.
- Felicia, sinto muito. Eu não imaginava...
- Não, tenho certeza de que não imaginava. Assim como tenho certeza de que não pensou que manter aquela princesa dourada presa em nosso abrigo quase causaria a morte dele também.
- Claro que eu não sabia disso. - Ele olhou para o chão de terra. - Você... você disse que nosso pai não foi levado?
- Não foi, mas assim que soube da morte do chefe, ficou muito doente... doente de pesar, diferente de qualquer coisa que tenha sentido quando a mamãe e o Tomas morreram. É como se a vontade que ele tinha
de viver tivesse desaparecido. Eu o perdi faz dois meses. Agora cuido do vinhedo. São dias sobrecarregados, Jonas, com pouca ajuda.
Seu pai tinha morrido e Jonas não ficara sabendo. Ele sentou numa cadeira deixando o peso do corpo desabar.
- Sinto muito por não ter estado ao seu lado. Não sei o que dizer.
- Não há nada a dizer.
- Quando isso acabar, quando este reino voltar a ser como deveria, vou voltar. Vou ajudar você a cuidar da vinícola.
- Não quero sua ajuda - ela respondeu, e a raiva que Felicia estava controlando até aquele momento transbordou. - Consigo me virar sozinha. Bom, acho que já conversamos mais do que o suficiente. Vamos
cuidar de seu problema para você poder ir embora o mais rápido possível. Não sou curandeira, mas já ajudei muitas mulheres grávidas.
- O que você puder fazer para ajudar será muito bem-vindo. Eu só esperava que você soubesse acabar com a dor.
- Algumas gestações são mais difíceis do que outras. Quem é ela? - Ela lançou um olhar incisivo para ele quando não obteve resposta. - Diga, Jonas, ou mando você embora.
Felicia estava diferente, mais dura, mais zangada. Cada palavra dita por ela fazia Jonas se encolher.
Ele se sentia um idiota por pensar que quando voltasse nada teria mudado, mesmo depois de tanto tempo. Pensou em enviar uma mensagem, perguntar como as coisas estavam, mas não o fez. E o tempo tinha passado.
- Ela é Lucia Damora - ele respondeu com sinceridade, já que devia isso a Felicia.
Ela arregalou os olhos, chocada.
- O que você estava pensando ao trazer essa bruxa má aqui para dentro? Ela não é bem-vinda em minha casa. Tem noção do que ela fez? Um vilarejo que fica a menos de vinte quilômetros daqui foi incendiado.
Todos os moradores foram mortos por causa dela. Ela merece morrer pelo que fez.
Cada palavra parecia um golpe, e Jonas não tinha o que argumentar.
- Talvez sim, mas no momento a magia dela é necessária para salvar Mítica. Para salvar o mundo. Você não deixaria uma criança inocente sofrer por causa das escolhas da mãe, deixaria?
Ela deu uma risada seca.
- Ouça só você, defendendo uma princesa real... De Limeros, ainda por cima! Quem é você, Jonas? No que meu irmão se transformou?
- Amara não pode controlar Mítica - ele disse. - Estou disposto a fazer o que for preciso para impedi-la.
- Você está cego como uma toupeira, irmão. A imperatriz é a única que pode salvar a todos nós. Ou será que você esqueceu o passado com tanta facilidade agora que sua cabeça está tomada por aquela droga
cruel que está dormindo na minha cama?
- Minha cabeça não está tomada por ninguém - ele resmungou. - Mas sei o que é certo.
- Então precisa acordar. A imperatriz é o melhor que já aconteceu em Paelsia há gerações.
- Você está errada.
- Não estou errada - ela disse, e a raiva em sua voz finalmente deu lugar ao cansaço. - Mas não vou me dar ao trabalho de convencê-lo de algo que sei que é certo. Você se perdeu de nós, Jonas. Consigo
ver em seus olhos. Você não é o mesmo garoto que cresceu desejando ser como Tomas, que ia caçar com ele na fronteira de Auranos, que ia atrás de todas as garotas do vilarejo. Não sei mais quem você é.
Ele sentiu uma pontada no peito ao pensar que a tinha decepcionado tanto.
- Não diga isso, Felicia.
Ela deu as costas para ele.
- Vou deixar você e aquela criatura passarem a noite aqui. E só. Se ela morrer por causa da dor que está sentindo, então deixe-a morrer. O mundo vai ficar melhor sem ela.
Jonas deitou no chão de terra, ao lado do fogo, a mente em disparada.
Quando chegou ali, pelo menos tinha um senso de direção, de propósito. Precisava levar Lucia até a família dela.
Os Damora. O Rei Sanguinário que tinha oprimido seu povo. Que tinha assassinado o chefe Basilius. Que tinha mentido para dois exércitos sobre os motivos que deram início a uma guerra com os auranianos.
Felicia tinha razão. Amara Cortas tinha acabado com tudo aquilo ao ocupar Paelsia.
Como foi que ele pegou aquele caminho? Era um rebelde, não o criado tímido de um rei sádico.
Jonas demorou muito para conseguir dormir. Em um sonho, ele se viu em um campo verdejante sob o céu azul e límpido. Ao longe, uma cidade que parecia feita de cristal brilhava sob o sol.
- Jonas Agallon, finalmente nos conhecemos. Olivia me contou muito sobre você. Sou Timotheus.
Jonas virou e viu um homem que parecia só alguns anos mais velho do que ele. Seu cabelo tinha um tom bronze escuro, os olhos, acobreados. Usava vestes que desciam até a grama cor de esmeralda.
- Você está em meu sonho - Jonas disse devagar.
Timotheus arqueou uma sobrancelha.
- Que dedução brilhante. Sim, estou.
- Por quê?
- Imaginei que teria muitas perguntas para me fazer.
Apesar de tudo o que sentia por estar frente a frente com o imortal sobre o qual Olivia havia contado pouco, não sentiu surpresa nem cansaço.
- Perguntas que você vai responder?
- Algumas, talvez. Outras, provavelmente não.
- Não, tudo bem. Só me deixe dormir. Estou cansado e não quero ter que desvendar enigmas.
- O tempo está passando. A tempestade está quase aqui.
- Você fala assim, tão vago e irritante, com todo mundo?
Timotheus inclinou a cabeça.
- Na verdade, sim. Falo, sim.
- Não gosto. E não gosto de você. O que quer que isso seja - Jonas indicou a marca em seu peito -, quero que desapareça. Não quero nenhuma ligação com sua gente. Sou paelsiano. Não sou um Vigilante, nem
bruxo, nem o que você acha que sou.
- Essa marca torna você muito especial.
- Não quero ser especial.
- Você não tem escolha.
- Sempre tenho escolha.
- Seu destino está escrito.
- Vá se ferrar.
Timotheus hesitou.
- Olivia disse que você é irredutível em suas observações. No entanto, tenho certeza de que percebeu que agora tem um pouco de magia. A magia de Phaedra. A magia de Olivia. Você as absorveu como uma esponja.
Sua condição é rara e, repito, especial. As visões que tive de você são importantes.
- Certo. As visões. A profecia na qual levo Lucia Damora para a família dela.
- É o que você acha?
- Parece que é aonde meu destino está me levando.
- Não, não exatamente. Você vai saber quando acontecer. Vai sentir...
- O que sinto no momento é a necessidade de enfiar uma faca na sua barriga. - Jonas olhou para o imortal. - Ousa entrar no meu sonho agora, depois de todo esse tempo? Olivia me ajudou a ficar vivo, seguindo
o que você mandou. Acho que ela não precisa mais de mim. Ou talvez esteja me espionando lá de cima como um falcão, como todos vocês fazem. A única coisa da qual tenho certeza é que estou cansado disso.
Não importa o que você tem a dizer. Você espalha meias verdades como se a vida dos imortais fosse uma brincadeira.
Timotheus falou mais baixo.
- Não é uma brincadeira, meu jovem.
- Ah, não? Prove! Diga qual é meu destino, se acha que não posso evitá-lo.
Timotheus o observou.
- Não previ a gravidez de Lucia - ele admitiu. - Foi uma surpresa para mim, assim como tenho certeza de que foi para ela. Foi mantida em segredo de todos nós pelos Criadores, e deve haver um motivo para
isso... um motivo importante. Eu via você como alguém que ajudaria Lucia durante a tempestade...
- De que tempestade está falando?
Timotheus levantou a mão.
- Não me interrompa. Estou sendo sincero com você como nunca fui com ninguém, porque agora vejo que não há tempo para mais nada.
- Então, desembucha - Jonas disse. Ele estava frustrado com tudo na vida, e ele queria descontar naquele imortal pomposo.
- O filho de Lucia terá muita importância. Muitos desejarão sequestrar a criança ou matá-la. Você vai proteger essa criança do perigo e vai criá-la como se fosse seu filho.
- É sério? E Lucia e eu seremos o quê? Vamos nos casar e viver felizes para sempre? Duvido.
- Não. Lucia vai morrer no parto na próxima tempestade. - Ele afirmou com firmeza, franzindo a testa. - Estou vendo agora, claramente. Antes eu achava que a magia dela pudesse ser transferida a você no
momento da morte, transformando você em um feiticeiro que pudesse caminhar entre os mundos, cujo destino fosse aprisionar os deuses da Tétrade depois de serem libertados. Mas a magia de Lucia vai perdurar
no filho dela.
Jonas o encarou boquiaberto, surpreso com a revelação.
- Ela vai morrer?
- Sim. - Timotheus deu as costas para ele. - É só o que posso contar. Boa sorte, Jonas Agallon. O destino de todos os mundos está nas suas mãos agora.
- Não, espere! Tenho perguntas! Você precisa me contar o que tenho que fazer...
Mas Timotheus desapareceu naquele instante, assim como o campo e a cidade à distância.
Jonas acordou e viu a irmã o chacoalhando.
- Amanheceu - ela disse. - Sua amiga está acordada. Está na hora de vocês saírem da minha casa.
C O N T I N U A
11
JONAS
MAR PRATEADO
Devagar, a luz voltou a seu mundo, e Jonas abriu os olhos. Olivia o encarava com ternura e alívio.
- Fico feliz de ver que finalmente voltou para nós - ela disse.
Ele resmungou e estendeu os braços.
- Fiquei inconsciente por quanto tempo?
- Quatro dias.
Ele arregalou os olhos e sentou com um pulo.
- Quatro dias?
Ela fez uma careta.
- Você não ficou inconsciente o tempo todo, se isso melhora a situação. Acordou algumas vezes, delirante e agitado.
- Não, isso não melhora em nada, na verdade. - Jonas levantou do catre e cambaleou até o espelho. A estranha espiral ainda estava em seu corpo, agora muito mais intricada e com um desenho muito mais detalhado
do que o símbolo simples da magia do ar. Ele tinha esperanças de que não tivesse passado de um pesadelo.
- Eu tenho a marca de um Vigilante - ele disse.
- Então você sabe o que é.
- Phaedra tinha uma. - A Vigilante que tinha sacrificado a vida imortal para salvar a dele tinha provado quem (e o que) era ao mostrar sua marca a Jonas. Mas a dela era diferente. Tinha a mesma forma,
mas era uma marca dourada que se movimentava em círculos sobre a pele, como se quisesse provar suas origens mágicas. - E sei que você tem uma também.
- Tenho. - Olivia abriu um pouco o manto e mostrou um pequeno pedaço de uma marca dourada sobre a pele escura. Ele havia tido apenas alguns vislumbres da espiral, quando Olivia se transformava em falcão.
Jonas deu as costas para o espelho para encarar os olhos cor de esmeralda da Vigilante.
- Não vou implorar, Olivia. Vou simplesmente pedir para você, por favor, falar mais sobre isso, sobre a profecia que existe sobre mim. Tentei negar que fosse real, mas agora preciso saber. O que está acontecendo
comigo? Eu estou... - Ele se esforçou para verbalizar os pensamentos. - Estou me transformando em um de vocês?
A ideia soava tão absurda que Jonas se arrependeu de suas palavras assim que as proferiu. Mas o que mais poderia pensar?
Ela torceu as mãos e, por um instante, Jonas achou que Olivia pudesse tentar escapar, assumir a forma de falcão e sair voando para evitar suas perguntas. Mas, em vez disso, ela suspirou e sentou na beirada
do catre enquanto ele esperava em pé, tenso, perto da escotilha.
- Não exatamente - ela respondeu. - Mas você é, de fato, um mortal raro, Jonas Agallon. Tocado por nossa magia em dois momentos muito vulneráveis de sua vida, ambos quando estava muito perto da morte.
Tocado por mim, quando curei seu ombro, e por Phaedra, depois que foi atingido pelo soldado limeriano. Você não sabe como isso é atípico.
Eram dois momentos da vida que ele preferia esquecer.
- Talvez eu não saiba mesmo. Então me conte.
- Eu estava lá quando Phaedra deu a vida pela sua. Observei do alto de outra barraca na forma de falcão.
Ele respirou fundo.
- Estava?
Ela assentiu, séria.
- Observei horrorizada quando Xanthus tirou a vida dela, e a vi retornar para a magia de que todos nós fomos criados. E vi um pouco dessa magia entrar em seu corpo, apenas segundos depois do momento em
que você poderia ter morrido sem a intervenção dela.
- Eu... eu não senti nada.
- Não, não era para sentir. Não deveria sentir. E não faria diferença nenhuma se não fosse pela magia do próprio deus do fogo surgindo por perto. Acabou fortalecendo a magia de Phaedra dentro de você.
Mas não seria suficiente para isso acontecer. - Olivia apontou para a marca, que ele coçava sem perceber. - Eu usei magia da terra para curar seu ombro quando você estava à beira da morte mais uma vez,
e vi que a absorveu como uma esponja. Aquela magia ficou dentro de você, somando-se à de Phaedra, assim como Timotheus previra.
Jonas tentou entender, tentou negar, tentou impedir que seu coração batesse como as asas de um pássaro preso em seu peito. Mas então, de repente, lhe ocorreu que não deveria tentar negar uma notícia tão
incrível.
- Tenho elementia dentro de mim - ele disse com uma voz rouca. - Isso significa que posso usá-los para combater Kyan e expulsar Amara de Mítica. - Quanto mais ele considerava essa possibilidade, mais animado
ficava. - Preciso subir e contar para os outros. Eles devem estar tão confusos com o que aconteceu, com o que fiz com Felix... Mas isso é incrível, Olivia! Vai fazer toda a diferença.
Ele era um bruxo! Tinha negado a existência dos elementia e daqueles que os detinham durante toda sua vida, e agora tinha essa mesma magia na ponta dos dedos.
Olivia segurou seu braço quando ele foi na direção da porta.
- Não é tão fácil assim, Jonas. Timotheus não previu que você seria um praticante de magia, apenas um veículo para ela.
- Um veículo? Impossível. Você testemunhou o que fiz. Arremessei Felix pelo convés com... magia do ar, não foi?
- É verdade. Mas foi uma anomalia. Foi apenas um sinal de que a magia que existe dentro de você amadureceu. E aquele gasto de energia o deixou inconsciente durante quatro dias.
Jonas balançou a cabeça. A frustração tomou conta dele, acabando com sua empolgação.
- Não entendo.
Olivia afrouxou a mão que segurava seu braço.
- Eu sei, e peço desculpas pela confusão. Timotheus mantém seu conhecimento muito reservado, já que não confia em muitos imortais, nem mesmo em mim. Ele não compartilhou a extensão de sua profecia comigo
por medo de que eu contasse para você e você tentasse evitá-la. - Ela fechou a boca. - Já falei demais.
Ele resmungou.
- Você revelou o suficiente para me deixar louco de curiosidade e apreensão.
- Você não pode contar isso a ninguém.
- Não posso? - Ele apontou para a porta. - Todos me viram fazer aquilo no convés. O que devo fazer? Negar?
- Na verdade, sim. - Ela ergueu o queixo. - Expliquei a eles que fui a responsável. Que vi, do alto, Felix acertar você e que estou aqui justamente para protegê-lo. É claro que acreditaram em mim.
Jonas a encarou.
- Eles acreditaram que você interferiu com sua própria magia?
- Sim.
- E não posso falar nada sobre isso?
- Não. Nem uma palavra. - Ela ficou séria. - É perigoso demais. Alguns o perseguiriam se soubessem que é um mortal repleto de magia imortal.
- Magia imortal que não posso usar. - Ele observou o próprio punho, lembrando como havia brilhado no convés.
- Se não acredita em mim, você precisa ver com seus próprios olhos. - Ela apontou para a porta. - Tente abrir essa porta com a magia do ar que canalizou com tanta facilidade com Felix.
Parecia um desafio. Jonas olhou para além de Olivia e franziu a testa, concentrando-se, enquanto levantava a mão na direção da porta. Ele se esforçou tanto para tentar invocar a magia que existia dentro
de si que sua mão começou a tremer, seu braço começou a oscilar... mas nada aconteceu.
- Isso não significa nada - ele resmungou. - Só preciso praticar.
- Talvez - Olivia disse com delicadeza. - Só sei o pouco que me contaram.
Decepcionado, Jonas deixou o braço cair.
- Claro, ninguém ia querer que as coisas fossem fáceis para mim. Ser um bruxo, utilizar os elementia à vontade... Ninguém ia querer isso, não é?
- Na verdade, seria incrivelmente útil para você.
Jonas lançou um olhar feio para ela.
- Você não está ajudando.
- Sinto muito. - Olivia fez uma careta. - Os outros estão preocupados com você. Ficarão felizes em saber que finalmente acordou.
Jonas foi até a escotilha e observou a imensidão do mar.
- Quanto falta para chegarmos em Paelsia?
- Estamos quase chegando.
- Dormi quase o caminho todo. - Ele soltou um suspiro trêmulo ao tentar aceitar tudo o que havia aprendido. Negar seria perder um tempo que eles não tinham. - O que eu perdi?
- Não muito, na verdade. Taran continua afiando a espada na expectativa de matar o príncipe Magnus, Felix ainda está sofrendo com enjoos, Ashur passa a maior parte do tempo em seus aposentos meditando,
e Nic fica espreitando por aí. Quando o príncipe aparece, ele o observa de uma maneira um tanto curiosa.
- Pedi para o Nic ficar de olho em nosso príncipe residente. É melhor não confiar nos kraeshianos, nem mesmo naquele que diz não ser nosso inimigo.
Jonas suspirou enquanto apertava as amarras da camisa.
- Certo, estamos quase em Paelsia. Ótimo.
- Ótimo? - ela repetiu.
Ele assentiu com firmeza.
- Se existe uma profecia que exige que eu seja um veículo dos elementia, quero saber sobre ela o quanto antes. E isso não vai acontecer enquanto estivermos em alto-mar, vai?
- Não, não vai - ela concordou. - Mas, de verdade, Jonas, não sei nada além disso. Sinto muito.
Ele assentiu.
- Seja o que for, eu aguento. Tenho certeza de que já enfrentei coisa muito pior no passado.
Para isso, Olivia não tinha resposta.
Jonas tentou ao máximo não se preocupar.
12
MAGNUS
PAELSIA
Como a viagem dos Glaciares a Basilia levaria pelo menos três dias a cavalo, não havia tempo a perder com as paradas constantes de um rei moribundo e uma mulher velha. Selia arrumou uma carruagem fechada
para levá-la junto com seu filho.
Quando Magnus sugeriu que Cleo fosse com eles e não montada num cavalo para não enfrentar o terrível frio, foi reprimido com um olhar cortante.
Aquilo queria dizer "não".
Gaius os orientou por um caminho que permitia que passassem toda noite em uma hospedaria de alguma cidadezinha, onde descansavam, comiam e dormiam em quartos separados e trancados.
Sete longas noites se passaram sem Magnus poder dormir com Cleo em seus braços, mas todas as noites sonhava com ela e com o chalé na floresta. Nos momentos em que estavam acordados, ele preferia não compartilhar
essa informação com ela. Não queria que ficasse convencida demais por provocar tal efeito nele, então guardava para si o desejo constante de tocá-la e beijá-la.
No último vilarejo onde ficaram, Enzo e Milo foram encarregados de buscar roupas adequadas para todos se passarem por viajantes inofensivos de passagem por Paelsia. Conseguiram encontrar vestidos de algodão
para Selia e Cleo e calças de couro simples e túnicas de lona para si mesmos, Magnus e Gaius.
Magnus olhou a própria túnica creme com repulsa.
- Não tinha nada preto?
- Não, vossa alteza - Enzo disse.
- Cinza-escuro?
- Não. Só essa cor e azul-claro. Achei que não ia gostar muito do azul. - Enzo limpou a garganta. - Mas posso voltar à loja.
Ele suspirou.
- Não, tudo bem. Fico com essa mesmo.
Pelo menos o manto e as calças eram pretos.
Ele saiu, pronto para dar início à última parte da viagem rumo à cidade da costa oeste, e encontrou Cleo, parecendo uma linda camponesa com seu vestido simples, sorrindo para ele ao lado de seu cavalo.
- Você parece um paelsiano - ela comentou.
- Não precisa me insultar, princesa - ele resmungou, contendo um sorriso quando montaram os cavalos e começaram a andar.
Praticamente uma pequena eternidade depois - que na verdade não passou de meio dia - finalmente e felizmente chegaram ao seu destino.
Magnus já tinha ouvido muitas histórias sobre Basilia, a cidade mais próxima de uma capital que Paelsia tinha. A cidade atendia aos navios que visitavam o Porto do Comércio e os membros da tripulação ávidos
por desembarcar em busca de comida, bebida e mulheres.
As histórias eram verdadeiras.
À primeira vista - e ao primeiro cheiro - Basilia era superpovoada e fedia a dejetos humanos e putrefação. Havia dezenas de navios atracados no porto, com as tripulações inundando a costa e se misturando
nas ruas, tavernas, hospedarias, nos mercados e bordéis da cidade litorânea. E, ao que parecia, tão quente quanto Auranos no ápice do verão.
- Repulsivo.
Magnus viu que o rei Gaius tinha aberto a janela da carruagem para espiar o centro da cidade com aversão. Seus olhos estavam vermelhos, e os círculos escuros sob eles pareciam hematomas recentes em contraste
com a palidez da pele.
- Desprezo este lugar - ele comentou.
- Sério? - Magnus perguntou, conduzindo o cavalo ao lado da carruagem. - Acho encantador.
- Não acha, não.
- Acho. Eu gosto dessa... cor local.
- Você não mente tão bem quanto pensa.
- Acho que posso apenas aspirar chegar aos seus pés no quesito falsidade.
O rei olhou feio para ele, depois alternou o olhar para Cleo, que cavalgava em frente a Magnus e atrás dos guardas.
- Princesa, se lembro corretamente, foi em um mercado não muito longe desta cidade em que você esteve com lorde Aron e o filho do vendedor de vinhos que ele matou, não foi?
Magnus logo ficou tenso e observou a princesa esperando a resposta. Cleo demorou alguns segundos para responder, mas o príncipe podia ver a tensão em seus ombros pelo fino material do vestido.
- Isso faz muito tempo - ela disse finalmente.
- Imagine como as coisas teriam sido diferentes se você não tivesse ido atrás de vinho aquele dia - o rei continuou. - Nada seria como é agora, não é?
- Não - ela disse, olhando para trás. - Por exemplo, você não teria caído e quase morrido depois de perder seu reino para uma mulher. E eu não estaria vendo seu fracasso com tanta alegria no coração.
Magnus conteve um sorriso e olhou para o pai, aguardando a contestação.
A única resposta foi uma janela fechada, bloqueando a visão do rosto do rei.
A carruagem parou em uma hospedaria chamada Falcão e Lança que, apesar de um leve cheiro de suor misturado a almíscar, Magnus considerou o estabelecimento mais aceitável da cidade. O rei Gaius desceu da
carruagem com a ajuda de Milo e Enzo e entrou na hospedaria, seguido por Selia, e logo subornou o dono para expulsar todos os hóspedes para que o grupo real tivesse privacidade total.
Enquanto os hóspedes saíam com um desfile de resmungos, Magnus assistia à Cleo observar a sala de convivência da hospedaria paelsiana com reprovação. Era um cômodo grande, com teto baixo, com cadeiras
de madeira desgastadas e mesas lascadas, onde os hóspedes podiam comer e passar o tempo.
- Não se enquadra no seu padrão de qualidade? - Magnus perguntou.
- Até que está bom - ela respondeu.
- Não é uma hospedaria auraniana com camas de pluma, lençóis importados e urinol dourado. Mas me parece aceitavelmente limpa e confortável.
Cleo virou as costas para uma mesa na qual alguém havia entalhado as próprias iniciais. Um sorriso brilhante passou por seus lábios.
- Sim, para um limeriano, acho que sim.
- De fato. - Os lábios da princesa eram uma distração grande demais, então Magnus virou e se juntou a seu pai e sua avó, que estavam parados perto das grandes janelas, olhando para os estábulos onde os
cavalos estavam sendo acomodados.
- E agora? O que vamos fazer? - Magnus perguntou à avó.
- Pedi para a esposa do dono da hospedaria ir até a taverna no fim da estrada e entregar uma mensagem pedindo para uma velha amiga minha nos encontrar aqui - Selia disse.
- A senhora não poderia ter ido?
- Ela talvez não me reconhecesse. Além disso, não é uma conversa que ouvidos curiosos podem escutar. A magia que procuro deve ser protegida a qualquer custo. - Ela encostou a mão sobre o braço de Gaius.
Havia um brilho de suor na testa do rei, que estava apoiado na parede como se fosse a única coisa que o mantivesse de pé.
- E o que devemos fazer até ela chegar? - Gaius perguntou com uma voz enfraquecida substancialmente desde a chegada.
- Você vai descansar - Selia respondeu.
- Não há tempo para descanso - ele disse com raiva. - Talvez eu saia para procurar algum carpinteiro por perto para fazer um caixão para me transportar de volta para Limeros.
- Por favor, pai - Magnus disse, permitindo um pequeno sorriso. - Fico feliz em fazer isso por você. Deve fazer o que minha avó pediu e descansar.
O rei olhou feio para ele, mas não falou nada.
- Vou levá-lo ao seu quarto. - Selia envolveu o braço no filho, conduzindo-o pelo corredor na direção da escadaria, e subindo para os quartos no segundo andar.
- Excelente ideia - Cleo disse, bocejando. - Também vou subir para o meu quarto. Por favor, avise quando a amiga da sua avó chegar.
Magnus esperou que ela saísse, depois fez um sinal para Enzo segui-la. Ele pedira para o guarda tomar cuidado extra com a proteção da princesa. Enzo era um dos poucos em quem Magnus confiava para a tarefa.
- O que devo fazer? - Milo perguntou ao príncipe.
Magnus passou os olhos pelo salão, que também continha uma pequena estante com livros velhos, nada parecida com a vasta seleção que passou a valorizar na biblioteca do palácio auraniano.
- Patrulhe os arredores - Magnus disse, pegando um livro aleatório da estante. - Certifique-se de que ninguém tenha percebido que o antigo rei de Mítica está temporariamente por aqui.
Milo deixou a hospedaria e Magnus tentou se concentrar na leitura de um volume sobre a história da produção de vinho em Paelsia, que não mencionava nada sobre a magia da terra que com certeza era responsável
pelo sabor da bebida, ou sobre as leis que proibiam sua exportação para outros lugares, à exceção de Auranos.
Depois de trinta páginas inúteis, a esposa do dono da hospedaria, uma mulher pequena que parecia ter um constante sorriso nervoso estampado no rosto, voltou com outra mulher mais velha, com rugas em volta
dos olhos e da boca, de aparência extremamente comum, usando um vestido antiquado e desmazelado. Magnus pensou que devia ser a mulher que Selia tinha mandado chamar.
Quando a esposa do dono da hospedaria desapareceu na cozinha, a mulher mais velha observou o local que parecia vazio, até seu olhar recair sobre Magnus.
- Então a senhora é a resposta para todos os nossos problemas, não é? - ele perguntou.
- Depende de quais são seus problemas, meu jovem - ela respondeu sem rodeios. - Gostaria de saber por que me chamou aqui.
- Não foi ele, fui eu - Selia disse, descendo a escadaria de madeira do outro lado do corredor que levava aos quartos, no segundo andar. - E é porque estou em busca de uma velha amiga. Você me reconhece
depois de todos esses anos?
Por um momento profundamente silencioso e agonizantemente longo, a mulher encarou Selia com uma mistura estranha de fogo e gelo no olhar. Justo quando Magnus começou a temer que tivessem cometido um erro
ao confiar em sua avó, a mulher abriu um grande sorriso, com rugas de alegria aparecendo no canto dos olhos.
- Selia Damora - ela arrulhou com um tom de voz muito mais gentil do que ao entrar na hospedaria. - Pela deusa, como senti sua falta!
As duas mulheres correram uma na direção da outra e se abraçaram.
- Devo chamar os outros? - Magnus perguntou. Quanto antes sua avó conseguisse o que precisava da mulher, mais rápido poderiam sair daquele lugar.
- Não, isso não precisa ser discutido em grupo - Selia respondeu sem tirar os olhos da amiga. - Também senti sua falta, Dariah.
- Onde esteve durante todo esse tempo? Já perdi a conta de quantos anos se passaram!
- O que importa é que estou aqui agora. Para ser franca, estou um pouco surpresa por você ainda estar em Basilia.
- Nunca poderia abrir mão do lucro da minha taverna, cada ano é melhor do que o anterior. Tantos marinheiros com dinheiro para gastar e sede para matar...
- Muitos tipos de sede, sem dúvida.
Dariah piscou.
- Exatamente. - Ela se virou para Magnus. - E quem é esse jovem?
- É meu neto, Magnus. Magnus, esta é minha amiga Dariah Gallo.
- Muito prazer. - Magnus forçou o melhor sorriso que conseguiu, mas sabia que pareceria mais uma careta.
- Minha nossa! Seu neto ficou tão alto e bonito!
Selia sorriu.
- Sim, os netos às vezes fazem isso quando chegam aos dezoito anos.
Dariah passou os olhos enrugados por Magnus de alto a baixo.
- Se eu fosse mais nova...
- Se fosse mais nova, teria que lutar com a jovem esposa dele por sua atenção.
Dariah riu.
- E talvez eu vencesse.
Magnus teve uma vontade repentina de voltar à leitura do livro sobre vinho paelsiano.
Selia juntou-se à amiga nas risadas e depois voltou a adotar um tom sério, porém amigável.
- Não vim a Basilia apenas para reencontrar uma velha amiga. Preciso de informações sobre como conseguir a pedra sanguínea.
Dariah arregalou os olhos.
- Minha nossa, Selia, você não perde tempo.
- Não tenho tempo a perder. Meu poder foi diminuindo no decorrer dos anos e meu filho está morrendo.
No instante silencioso que se seguiu, Magnus ficou quieto. Essa pedra, se fosse real, parecia algo que poderia ajudá-lo a aumentar seu poder, como a Tétrade.
Selia levou Dariah na direção da estante. Fez sinal para que ela se sentasse em um banco de madeira ao seu lado, depois segurou as mãos da outra bruxa.
- Não tenho escolha. Preciso dela.
- Você sabe que não está comigo.
- Não está. Mas você sabe com quem está.
Dariah balançou a cabeça.
- Não posso fazer isso.
- Estou pedindo para você entrar em contato com ele. Sei que pode encontrá-lo. Ele precisa vir o mais rápido possível.
Mil perguntas surgiram na cabeça de Magnus, mas ele permaneceu em silêncio, escutando.
Um poder como esse entregue diretamente em suas mãos. Parecia muito mais simples do que o processo complicado de encontrar a Tétrade.
A expressão da bruxa se tornou sombria.
- Ele nunca vai permitir que você fique com ela, nem mesmo por um instante.
Selia apertou ainda mais a mão da amiga.
- Deixe que eu lide com ele quando chegar aqui.
- Eu não sei...
Selia semicerrou os olhos.
- Sei que já faz muito tempo, mas sinto que terei que mencionar o favor que você me deve. Favor que prometeu retribuir por completo.
Dariah ficou encarando o chão.
Magnus observava, quase sem respirar. Aos poucos, a bruxa levantou os olhos, o rosto pálido. Ela concordou com um pequeno aceno de cabeça.
- Vou levar um tempo para atraí-lo para cá.
- Ele tem três dias. Será um problema?
A bruxa ficou tensa ao levantar.
- Não.
- Obrigada. - Selia levantou e deu dois beijos no rosto de Dariah. - Eu sabia que você ia me ajudar.
O sorriso de quando se cumprimentaram agora já não passava de uma lembrança.
- Aviso assim que ele chegar.
Dariah não demorou - lançou um último olhar para Selia e Magnus e deixou a hospedaria.
- Bem... - Magnus disse depois que tudo voltou a ficar em silêncio. - A senhora deve ter feito um belo favor para sua amiga.
- De fato foi. - Selia olhou para Magnus com um pequeno sorriso no rosto. - Agora vou ver como seu pai está. A saúde dele é minha única preocupação no momento. Quando minha magia estiver restaurada e ele
estiver bem novamente, podemos enfrentar os outros obstáculos que estão em nosso caminho.
- Vou me esforçar para ser paciente - Magnus disse, sabendo que com certeza fracassaria.
Àquela altura a noite já tinha caído, e Magnus se retirou para seu pequeno quarto. Havia uma cama de tamanho normal, e não os catres inaceitáveis do quarto comunitário no fim do corredor. A janela tinha
vista para a rua iluminada com lampiões e ainda movimentada, com cidadãos e visitantes mesmo depois de anoitecer.
Ele ouviu uma batida fraca na porta.
- Entre - Magnus disse, sabendo que podia ser apenas uma das quatro pessoas com quem havia chegado a Paelsia.
A porta se abriu devagar e, quando o visitante se revelou, o coração de Magnus começou a bater mais rápido. Cleo o encarava.
Ele levantou e a encontrou na porta.
- A amiga da minha avó esteve aqui.
- Já? - Ela arqueou as sobrancelhas. - E?
- E... - Ele balançou a cabeça. - Parece que seremos obrigados a esperar mais três dias por aqui.
- Mas ela vai conseguir a pedra sanguínea?
- Sim - Magnus respondeu. - Reencontrei minha avó há pouco tempo, mas ela me parece o tipo de mulher que consegue praticamente tudo o que quer.
- E tudo para essa pedra mágica salvar a vida de seu pai - Cleo disse sem nenhuma emoção, mas com uma dureza no fundo dos olhos azuis.
- Ele não merece viver - Magnus afirmou, concordando com o que não tinha sido dito. - Mas essa pode ser uma medida necessária para alcançarmos nosso objetivo maior.
- Encontrar Lucia.
- Sim. E acabar com a sua maldição.
Cleo assentiu.
- Suponho que não haja outra forma.
Ele a observou cauteloso.
- Você veio ao meu quarto apenas em busca de informações ou tem mais alguma coisa que deseja esta noite?
Cleo levantou o queixo para encarar diretamente em seus olhos.
- Na verdade, preciso de sua ajuda.
- Com o quê?
- Todas essas andanças a cavalo acabaram com meu cabelo.
Magnus levantou uma sobrancelha.
- E você veio aqui para pedir minha ajuda para cortá-lo e, assim, ele deixar de ser um problema?
- Como se você fosse permitir. - Ela riu. - Você é obcecado pelo meu cabelo.
- Eu não chamaria de obsessão. - Ele enrolou um cacho daquela seda dourada no dedo. - É mais uma distração, muitas vezes dolorosa.
- Peço desculpas por seu sofrimento. Mas você não vai cortar meu cabelo, nem hoje, nem nunca. A esposa do dono da hospedaria foi gentil e me deu isso. - Ela mostrou uma escova de cabelo com cabo prateado.
Magnus pegou o objeto da mão dela, observando-o com um olhar examinador.
- Você quer que eu...?
Cleo assentiu.
- Escove meu cabelo.
A ideia era ridícula.
- Agora que fui obrigado a me vestir como um paelsiano comum você está me confundindo com um criado?
Ela lançou um olhar determinado para Magnus.
- Eu não poderia pedir para Milo ou Enzo... ou, pelo amor da deusa, para seu pai ou sua avó me ajudarem.
- E quanto à esposa do dono da hospedaria?
- Está bem. - Cleo arrancou a escova da mão dele, fazendo careta. - Vou pedir a ela.
- Não, não. - Ele soltou um suspiro, achando graça. - Eu ajudo.
Sem hesitar, ela devolveu a escova a Magnus.
- Fico feliz.
Ele abriu caminho para deixá-la passar. Cleo entrou, sentou na beirada da cama e olhou para ele cheia de expectativa.
- Feche a porta - ela disse.
- Não é uma boa ideia. - Magnus deixou a porta entreaberta e lentamente sentou ao lado dela. Meio sem jeito e receoso, como se estivesse prestes a limpar um animal pela primeira vez, ele levou a delicada
escova aos cabelos dela.
- Nunca fiz isso antes.
- Para tudo existe uma primeira vez.
Que cena ridícula deve ter sido: Magnus Damora, filho do Rei Sanguinário, escovando o cabelo de uma jovem a seu pedido.
E ainda assim...
Sempre que Magnus assumia uma tarefa, preferia ser dedicado, usando suas habilidades da melhor maneira possível. Ele se empenhava da mesma forma naquele momento, ao pegar uma mecha do longo e sedoso cabelo
de Cleo e deslizar a escova por ela. O calor das madeixas passava entre seus dedos, causando um arrepio prazeroso em suas costas.
- Você tem razão - ele disse em voz baixa. - Está terrivelmente embaraçado. Acho que de modo irreparável.
Magnus estava apenas provocando Cleo - seu cabelo estava perfeito, como sempre foi -, mas então ele chegou ao primeiro nó.
Ela se encolheu.
- Ai.
- Desculpe. - Ele ficou paralisado, mas depois franziu a testa. - Mas você me pediu para fazer isso.
- Sim, eu sei! - Ela suspirou. - Por favor, continue. Estou acostumada a ser torturada por minhas criadas, e elas estão acostumadas a ignorar meus gritos de dor. Você não vai conseguir me machucar mais.
Só Nerissa tem capacidade de fazer isso sem causar dor.
- Sim, ouvi falar das habilidades de Nerissa - Magnus comentou, sem conseguir conter um sorriso. Agora, tendo uma imagem mais completa do histórico de penteados de Cleo, ele encarou a tarefa com mais determinação.
- Tanto cabelo, tantas oportunidades para formar nós... Por que as mulheres se dão ao trabalho?
- Talvez eu devesse fazer tranças, como uma líder paelsiana?
- Sim, imagino que seria um estilo adequado a uma princesa auraniana, mesmo quando forçada a usar um horroroso vestido de algodão - ele respondeu com ironia, sem deixar transparecer como estava se divertindo
com aquela imagem. - Todas as garotas de Mítica iam querer copiar. - Com o maior cuidado possível, ele foi passando a escova por outra parte do cabelo que parecia um ninho de passarinho amarelo-claro.
- Você precisa saber que pretendo reivindicar a pedra sanguínea para mim.
- Eu já imaginava - ela respondeu.
Aquilo o surpreendeu.
- Imaginava?
Cleo assentiu, e os cabelos escaparam das mãos de Magnus, cobrindo a tentadora nuca dela.
- Vi em seus olhos quando Selia mencionou a pedra. Foi o mesmo olhar que vi em seu pai.
- E que olhar é esse?
- Não importa.
Magnus largou a escova. Com gentileza, tocou Cleo pelos ombros até praticamente fazê-la virar de frente para ele, depois segurou seu queixo com cuidado.
- Importa, sim. Que olhar eu e meu pai compartilhamos?
Ela o encarou nos olhos, cautelosa.
- Um olhar frio de ganância, como se fossem capazes de matar pela pedra.
- Entendo.
Cleo analisou o rosto dele, como se procurasse respostas.
- Naquele momento, você parecia tão frio quanto seu pai. E eu... eu não gostei.
A vida toda, disseram que ele se parecia muito com seu pai - tanto fisicamente quanto em temperamento. Com o tempo, ele aprendeu a não refutar as comparações, embora nunca tivessem deixado de incomodá-lo.
- Devo admitir, descobri há pouco tempo que preciso ser como meu pai. Há certas situações que praticamente exigem que eu seja o mais frio e brutal possível. Se eu fosse derramar lágrimas por cada vida
que tirei no último ano, já estaria seco como uma casca de árvore. Então, sim, acho que sou como meu pai em muitos sentidos.
- Não - Cleo sacudiu a cabeça. - Não é possível.
- Por que está dizendo isso?
- Sinceramente? - Ela chegou mais perto, segurando seu rosto entre as mãos. - Porque eu nunca quis fazer isso com seu pai.
Ela roçou os lábios de leve nos dele. Um pequeno gemido de tortura emergiu do fundo da garganta de Magnus enquanto ele se forçava a cerrar os punhos para não a agarrar no mesmo instante.
- Princesa...
- Cleiona... - ela o corrigiu, os lábios ainda a uma distância perigosa. - Embora eu precise admitir que já não gosto tanto de ter recebido o nome de uma imortal que roubou e matou em nome do poder.
- Verdadeiros líderes costumam ser implacáveis o suficiente para roubar e matar. Se não o fizerem, outra pessoa o fará.
- Uma filosofia encantadora e, receio, muito verdadeira. Mas talvez possamos pensar em outro nome para você se referir a mim quando estivermos juntos.
Ele arqueou a sobrancelha.
- Vou pensar nisso.
- Ótimo. - Ela mordeu o lábio, chamando atenção de novo para sua boca. - Agora, feche a porta. Com chave.
- Essa é uma sugestão muito, muito perigosa.
- Ou deixe aberta. Talvez eu não me importe. - Cleo o beijou mais uma vez, abrindo os lábios. Ele sentiu sua compostura e seu comedimento se esvaindo em uma velocidade perigosa quando a língua dela encostou
na sua.
- Realmente não quero dizer não - ele sussurrou junto aos lábios dela.
- Então não diga.
Magnus gemeu de novo quando as mãos dela desceram por seu peito e por baixo de sua túnica, deslizando sobre seu abdome e tórax sem nenhuma barreira. Ele a agarrou pela cintura e a pressionou na cama, cobrindo-a
por completo com o próprio corpo. Cleo era tão pequena, mas, ainda assim, tão forte e apaixonada.
Como um mundo insensível pôde criar uma criatura tão linda? Se a beleza dela não fosse um presente da deusa, sem dúvida tinha sido um presente da mãe...
De repente, Magnus levantou em um pulo, cobrindo a boca com o dorso da mão.
- O que foi? - Cleo perguntou assustada, o rosto corado.
Ele ficou em pé e pegou seu manto.
- Preciso de uma bebida. Vou dar uma olhada na taverna no fim da estrada.
Cleo ficou deitada, observando-o, com os cachos dourados embaraçados caídos sobre os ombros até a cintura.
Profunda e dolorosamente tentadora.
- Eu entendo - ela disse em voz baixa.
Ele estava prestes a sair sem mais nenhuma palavra, mas virou-se para ela e disse:
- Antes de sair, quero que saiba de uma coisa. No dia em que essa maldição for quebrada, prometo que a porta de qualquer quarto em que estivermos será trancada, e não vou deixar nada nos interromper.
Com isso, Magnus virou as costas e a deixou lá, olhando para ele.
Sim, ele precisava desesperadamente de uma bebida.
- Vinho - Magnus resmungou para o atendente quando entrou na taverna pobre, porém animada, conhecida como A Videira Púrpura. Ele colocou várias moedas sobre o balcão. - Fique atento e complete meu copo
sempre que notar que está vazio - ele instruiu. - E nada de conversa.
O atendente abriu um sorriso forçado, depois recolheu as moedas do balcão com ganância, guardando-as em uma bolsa velha, caindo aos pedaços.
- Muito bem.
Ele fez o que Magnus pediu e prestou muita atenção ao nível de líquido da taça. Quando Magnus começou a beber gole após gole do doce vinho paelsiano, a noite começou a ficar muito mais clara. Da última
vez que bebera vinho, tinha voltado para o palácio limeriano e encontrado sua esposa fazendo um discurso. Ela logo foi interrompida por inimigos que quase não o deixaram escapar com vida. Depois daquela
experiência, ele tinha considerado renunciar completamente à bebida.
A visita de Cleo a seu quarto naquela noite com certeza o obrigava a revogar aquela promessa.
- Nossa atração de hoje vai deixá-lo mais animado, amigo - disse o atendente, apesar de Magnus ter pedido silêncio. Magnus estava prestes a repreendê-lo quando o homem indicou com a cabeça o meio da taverna.
- Prometo que a Deusa das Serpentes será uma imagem espetacular para os olhos.
Deusa das Serpentes? Magnus revirou os olhos e apontou para a própria taça.
- Mais.
Alguém do outro lado da enorme taverna pediu silêncio para a multidão vociferante enquanto o atendente servia mais vinho para Magnus.
- Todos venerem nossa bela residente! - o homem berrou do outro lado do estabelecimento. - Curvem-se diante de seu incrível poder! E saúdem a Deusa das Serpentes!
A multidão reagiu com gritos e assovios quando uma jovem de cabelo escuro, pouca roupa e uma cobra pendurada no pescoço apareceu sobre o pequeno palco. Ao lado do palco havia um trio de músicos que começou
a tocar uma canção exótica que, para Magnus, soava mais selvagem do que encantadora. Quando a música começou a crescer, a jovem passou a se contorcer no que poderia ser considerado um tipo de dança, mas
para Magnus parecia mais a oferta de uma cortesã.
Ele esvaziou o copo sem saber ao certo quantas vezes tinha repetido o movimento desde que chegara, mas não importava. Não agora que as coisas pareciam tão melhores do que antes, quando o desejo por Cleo
quase o cegou diante do perigo.
Talvez eles pudessem dividir um quarto, ele pensava enquanto assistia àquela mulher estranha se sacudir pelo palco. Talvez um elixir para evitar a gravidez fosse proteção suficiente.
Ou talvez ele devesse se concentrar no fato de seu reino ter sido roubado, seu pai estar à beira da morte enquanto sua avó tenta salvá-lo com uma pedra mágica, sua irmã estar aliada com um homem que pretendia
conquistar Mítica à base do fogo, e Cleo carregar uma maldição. O fato de ele estar enlouquecendo de desejo por sua esposa de fato era a menor de suas preocupações.
De repente, alguma coisa chamou sua atenção: um lampejo de cabelo ruivo. Aquela cor de cabelo era mais rara em Paelsia do que a do cabelo de Cleo. Ele não conseguiu deixar de se lembrar de Nicolo Cassian,
a única pessoa que ele conhecia com aquela cor infeliz de cabelo.
Magnus riu ao pensar naquilo. Não, Nic devia estava em segurança em Kraeshia - ou nem tão seguro assim, na verdade, mas Magnus não se importava. O idiota tinha se voluntariado para se juntar a Jonas em
sua missão fracassada de matar o rei.
Ele voltou sua atenção para a Deusa das Serpentes. Quando pensou que estava começando a entender o ritmo de seus movimentos, ela parou, fazendo um sinal para os músicos pararem de tocar.
- É você? - ela perguntou. O salão agora estava em silêncio. A Deusa das Serpentes estava claramente se dirigindo a alguém específico, mas Magnus não conseguia ver de onde estava. Ele só conseguia ver
a crescente empolgação no rosto pintado da dançarina enquanto sua expressão transparecia cada vez mais certeza. - Jonas! - ela gritava agora com mais confiança. - Jonas, é você mesmo? Meu querido, achei
que estivesse morto!
Jonas?
Devia ser mais uma estranha coincidência.
A dançarina desceu do palco e se embrenhou no meio da multidão, de onde puxou um jovem de cabelo escuro.
Magnus ficou paralisado. Ele esticou o pescoço, tentando ver por entre as cabeças dos outros clientes. A dançarina jogou os braços em volta do jovem, rodopiando abraçada a seu visitante, até que ele se
virou na direção de Magnus.
Chocado e boquiaberto, Magnus ficou observando fixamente aquela cena.
Era Jonas Agallon. Ali, na mesma taverna.
- Quem diria? - disse uma voz familiar ao lado dele, verbalizando seus próprios pensamentos. Uma onda de desgosto tomou conta de Magnus antes mesmo de se virar e descobrir o que já sabia: aquele ruivo,
Nicolo Cassian, estava bem ao lado dele. - Você!
Nic cutucou o ombro dele, deixando escapar uma gargalhada quando derramou um pouco de cerveja de sua enorme caneca.
- Parece que o destino está finalmente lhe dando o troco, não acha, vossa alteza? E fico mais do que feliz de testemunhar isso.
- Estou vendo que sua visita a Kraeshia não ajudou a diminuir seu charme - Magnus disse, espantado por ter bebido a ponto de arrastar as palavras tanto quanto Nic.
Nic sorriu, mas seus olhos desfocados não demonstravam nenhum humor.
- Príncipe Magnus Damora, gostaria que conhecesse um amigo meu.
Irritado pelo uso de seu nome em um estabelecimento público, Magnus virou, esperando encontrar algum rebelde qualquer. Mas, em vez disso, encontrou um rosto que só via em pesadelos.
- Theon Ranus - ele exclamou. O calor agradável e o formigamento proporcionado pelo vinho desapareceram em um instante, deixando-o profunda e desoladamente frio ao encarar aquela aparição.
- Está enganado - disse o jovem, um lembrete fatal da primeira pessoa que Magnus havia matado na vida. Com um olhar frio repleto apenas de obstinação e ódio, ele puxou uma faca e a colocou junto à garganta
de Magnus. - Sou o irmão dele, seu filho da puta.
13
CLEO
PAELSIA
- Aonde está indo, princesa?
As palavras a fizeram parar na porta principal da Hospedaria Falcão e Lança. Cleo olhou para trás e viu Enzo parado nas sombras.
- Vou à taverna no fim da estrada - ela disse. - Não que seja da sua conta.
- Está tarde.
- E...?
Enzo endireitou os ombros.
- Acho que seria melhor ficar aqui em segurança, princesa.
- Aprecio sua opinião, mas discordo. Magnus está lá. Estou surpresa, e um pouco consternada, por você não ter ido junto. E se ele for reconhecido?
- O príncipe deixou bem claro que meu único dever é garantir sua segurança, princesa.
Ela piscou rápido, como se tentasse disfarçar a surpresa daquela revelação interessante.
- Sério? Bem, isso torna as coisas muito mais fáceis. Você virá comigo buscar o príncipe e garantir que nenhum de nós corra perigo.
Cleo não lhe deu tempo para argumentar ao virar as costas e sair da hospedaria, deixando a porta aberta para Enzo segui-la e puxando o capuz do manto para cobrir o cabelo e proteger o rosto.
Enzo a seguiu sem dizer mais nada enquanto Cleo prestava atenção nas pessoas na rua, nas carruagens que passavam, no ruído do casco dos cavalos batendo na estrada de cascalho. Ela seguiu o som das risadas
embriagadas e da música para chegar à taverna que sem dúvida tinha sido o destino de Magnus. Sobre as grandes portas de madeira havia uma escultura de bronze de alguns cachos de uva em uma videira.
Ela leu a placa:
- A Videira Púrpura. Que nome apropriado para uma taverna em Paelsia. E bastante óbvio.
O príncipe gostava tanto do sabor do vinho que não se importava com o que aconteceria se alguém o reconhecesse. Magnus adorava tanto beber que estava disposto a arriscar ser morto no meio de um bando de
paelsianos. E que jeito idiota de morrer seria, Cleo pensou.
- Já ouvi falar desse lugar - Enzo disse, observando a entrada. - Nerissa já trabalhou aqui atendendo mesas.
Ela levantou uma sobrancelha.
- É mesmo?
Ele assentiu.
- Ela disse que foi uma experiência interessante.
- Eu não fazia ideia de que ela tinha morado em Paelsia.
- Nerissa morou em todos os lugares, ao que parece. Diferente de mim, que até agora nunca tinha me aventurado para fora de Limeros. Ela deve me achar tedioso.
- Posso garantir que ela não acha nada disso.
Ouvir Enzo falar de sua amiga fazia o coração de Cleo doer. Ela não tinha dúvidas de que Nerissa era capaz de se cuidar, melhor do que qualquer outra garota - e possivelmente garoto - que conhecia, mas...
Cleo não conseguia deixar de se preocupar com a segurança dela. Odiava a ideia de que Nerissa pudesse correr perigo enquanto era forçada a trabalhar perto de Amara.
Cleo respirou fundo ao passar pelas portas com Enzo. Dentro da taverna havia pelo menos duzentos clientes fedorentos e sujos.
Ela observou os rostos, procurando Magnus na multidão.
Aquela taverna era diferente de todas que já havia visto em suas duas visitas anteriores a Paelsia. Seu conhecimento da região se limitava a dois mercados pobres, vilarejos decrépitos e uma vasta extensão
de terras desertas.
E os galpões trancados de rebeldes raivosos e vingativos, ela lembrou a si mesma.
O lugar, apesar do interior rústico e decadente, parecia pertencer a Pico do Falcão, maior cidade de Auranos. Iluminando o espaço enorme havia dezenas e dezenas de velas e lampiões. No teto alto, várias
rodas de madeira acomodavam mais velas. O chão era de terra batida; as mesas e cadeiras eram feitas de madeira mal esculpida.
À esquerda de Cleo havia um pequeno palco, sobre o qual uma jovem de cabelo preto e com faixas douradas pintadas sobre a pele bronzeada rebolava de uma forma bastante provocativa. Em volta de seu pescoço
carregava uma jiboia enorme, do tipo que Cleo só tinha visto em livros ilustrados.
- Enzo, por favor, apenas me ajude a procurar Magnus. Comece pelas áreas com mais vinho.
- Sim, vossa alteza.
Cleo se cobriu melhor com o capuz do manto para esconder o cabelo e tentou ignorar os olhares atravessados da maioria dos brutamontes que passavam por ela. Quando sentiu alguém apertar seu traseiro, virou
para dar um soco no ofensor, mas acertou apenas o ar.
Furiosa, ela tentou ver quem a havia tocado no meio da multidão, mas ficou paralisada quando ouviu alguém gritar um nome que ela conhecia.
- Jonas! - Era a mulher-cobra, interrompendo a apresentação para correr na direção de um jovem que estava na plateia. - Jonas, é você mesmo?
Cleo, de olhos arregalados, se virou na direção do palco.
Jonas tinha voltado de Kraeshia. E, de todos os lugares de Mítica onde poderia estar, estava ali!
Como era possível?
Ela se virou para Enzo, mas outro rosto chamou sua atenção. Um jovem caminhava pela multidão, movendo-se na direção oposta ao mar de rostos virados para o palco.
Cabelo cor de bronze, pele morena, alto, músculos definidos...
Ela só conseguiu observar, certa de que seus olhos a enganavam.
- Theon - ela sussurrou o nome antes preso na garganta.
Ela então se lembrou de um tempo em que tudo parecia claro - ela o amava, e nada mais importava. Nem o posto dele, nem a reprovação de seu pai, nem o modo austero como Theon tinha olhado para ela antes
de beijá-la, marcado pelo medo de pensar que poderia perdê-la para sempre.
E depois o som do casco dos cavalos quando Magnus e seus soldados chegaram.
O orgulho em seu coração quando Theon enfrentou os homens de Magnus e venceu.
E o horror quando viu a vida se esvair dos olhos dele para sempre quando Magnus o acertou pelas costas.
"Se seu guarda tivesse se afastado quando ordenei, isso não teria acontecido", o filho do Rei Sanguinário tinha dito.
"Ele não é só um guarda", ela havia sussurrado em resposta. "Não para mim."
Às vezes, parecia que tudo tinha acontecido mil anos antes. Outras, era como se tivesse sido no dia anterior.
Mas, lá estava ele.
- Princesa? - Enzo perguntou, franzindo a testa para a expressão de choque absoluto dela.
Cleo não respondeu. Suas pernas estavam dormentes quando começou a se mover sem pensar, abrindo caminho na multidão na direção dele.
Lágrimas quentes corriam por seu rosto, e ela as secava com violência.
A multidão diminuía quanto mais ela se afastava do palco, o que lhe permitiu manter o olhar no guarda assassinado. Em sua mão, ela viu o brilho de uma lâmina afiada.
E então ela viu Magnus.
O fantasma do jovem que havia amado - e perdido - aproximou-se de Magnus, que estava no bar, olhando para Theon com a mesma descrença de Cleo. Então, com uma rapidez que ela mal conseguiu acompanhar, Theon
segurou Magnus com força e pressionou a lâmina contra sua garganta.
Ela gritou para dentro, seu corpo transformou-se em gelo em um instante. Ela olhava para Magnus, com sua expressão resoluta, os dentes cerrados e os olhos escuros desprovidos de emoção.
- Cleo? - Alguém estava bloqueando seu caminho; um garoto com sardas e cabelo ruivo. - Ah, Cleo! Você está aqui! Você está viva!
- Nic? - Ela o encarou por um segundo antes de agarrar e fincar os dedos em seus ombros. Atrás dele, viu o sangue escorrendo pela garganta de Magnus, onde o fantasma do passado enfiara sua adaga. - O que
está havendo? Por que isso está acontecendo?
De repente, uma terceira pessoa aproximou-se do confronto silencioso entre Magnus e Theon, que até então tinha passado despercebido pelo resto dos clientes, cujos olhos estavam fixos no palco. Era um jovem
de cabelo escuro, ombros largos e muitos músculos, com um tapa-olho preto.
Ele segurava um pedaço de pau e, com ele, atingiu o fantasma de Theon com força atrás da cabeça. A adaga caiu no chão, e o corpo da vítima desabou, inconsciente, ao lado dela.
- Magnus! - Cleo gritou.
Finalmente, Magnus tirou o olhar do jovem caído e virou para Cleo.
Ele semicerrou os olhos.
- Você não devia estar aqui.
Ela ficou chocada. Era isso que Magnus tinha a dizer em um momento como aquele?
O brutamontes apontou para o corpo.
- Ele não vai ficar feliz comigo quando acordar.
Cleo correu para o lado de Magnus, certificando-se rapidamente de que o ferimento no pescoço era superficial. Ela virou para o jovem de tapa-olho.
- Quem é você? - ela questionou.
Ele se curvou.
- Felix Gaebras, minha encantadora jovem. A seu dispor. E quem é você?
- Esta - Magnus disse, tocando o pescoço com cuidado - é a princesa Cleiona.
Felix arregalou os olhos.
- Ah, então esta é a princesa dourada. Tudo faz sentido agora.
- E quem é esse? - Ela apontou para o chão com o dedo trêmulo.
- Aquele - Felix respondeu - é Taran Ranus, irmão gêmeo de Theon.
Cleo sentiu seu corpo gelar.
- Irmão gêmeo?
Magnus estava tenso.
- Foi muito gentil da parte de Nic nos apresentar hoje à noite, não acha?
Ao lado dela, Nic olhou para o jovem inconsciente, depois para Cleo, que parecia chocada.
- Acho que todos nós precisamos conversar - ele disse.
- Com certeza!
- Concordo - Magnus disse com rigor. - Conheço um lugar muito mais discreto do que esse. Encontrem Jonas e venham comigo, todos vocês.
Felix se abaixou, pegou o companheiro inconsciente e o jogou sobre o ombro.
- Onde Jonas e os outros estão? A dançarina o amarrou com a cobra e o levou embora? Vou procurá-lo.
Cleo não esperou - ela precisava de ar fresco. Precisava respirar normalmente e deixar o coração bater em um ritmo natural.
Irmão gêmeo, ela pensou, estupefata. O irmão gêmeo de Theon.
E Theon nunca, em nenhum momento, tinha mencionado que tinha um irmão gêmeo.
Nic estava ao lado dela, cambaleando de leve a cada passo que dava enquanto Enzo a escoltava para fora da taverna. Ela olhou para trás para garantir que Magnus estava perto.
- Você está bêbado - disse Cleo, virando-se para Nic e percebendo que estava muito zangada com ele e com todos os presentes.
- Muito. E também muito feliz por saber que está aqui. - Ele deu um grande beijo desajeitado no rosto dela, fazendo-a lembrar do cachorrinho babão que seu pai trouxera para ela e para Emilia depois de
um longo período de viagens. Quando seus batimentos cardíacos voltaram ao normal, ela se permitiu ceder à avassaladora sensação de alívio por Nic ter voltado de Kraeshia são e salvo - e por estar ao lado
dela novamente.
Felix saiu da taverna carregando Taran Ranus.
Atrás dele veio Jonas, que observava a área até seus olhos recaírem sobre Cleo.
Ela o observava também quando um sorriso se abriu no belo rosto dele.
- Eu sabia que você estava viva. - Jonas apertou o passo para chegar até ela. Segurou-a pela cintura e a tirou do chão, girando-a no ar. - É tão bom ver você!
Em qualquer outro dia, ela estaria sorrindo tanto quanto o rebelde.
- Explique o que está acontecendo.
- Sim - Magnus disse, os olhos escuros fixos em Jonas. - Uma explicação para sua chegada nesta cidade, coincidindo com a nossa chegada, seria apreciável.
- Fico chocado em dizer, mas é quase bom ver você também, vossa alteza. - Jonas deu um meio sorriso para o príncipe.
Não foi correspondido.
- Nosso amigo aqui está ficando um pouco pesado - Felix comentou.
Magnus lançou um olhar azedo para o corpo que Felix carregava.
- Venham comigo.
Outra garota se juntou ao grupo, e Cleo a reconheceu de imediato - estava acompanhando Jonas e Lysandra da última vez em que estiveram no palácio limeriano.
Cleo se lembrava do nome dela: Olivia. Mas um cumprimento adequado poderia esperar.
Ela deu o braço para Nic enquanto o grupo acompanhava Magnus até a hospedaria.
- Por que está tão bêbado hoje?
- Ah... são muitas razões. Entre elas, recentemente passei a acreditar que estivesse morta. Por isso ia me afundar em cerveja para sufocar meu sofrimento.
- Estou bem viva.
- E fico muito feliz em saber.
Cleo sorriu para ele.
- Existem outros motivos para sua sede de álcool?
- Nenhum que esteja com a gente hoje, mas estou hesitante em mencioná-los. Você já teve choques demais por um dia. Tenho certeza de que ele vai acabar aparecendo. Ele faz dessas.
- Você não está falando coisa com coisa.
- Não, com certeza não estou.
Seu pequeno sorriso desapareceu quando ela olhou para Felix e seu fardo.
- Theon... - Ainda doía dizer o nome dele, mesmo depois de tanto tempo. - Alguma vez ele falou alguma coisa sobre ter um irmão gêmeo?
Nic negou.
- Nada. Quando vi Taran nas docas de Kraeshia, quase caí duro de choque. Taran não fala sobre isso, mas imagino que eles não tivessem contato. Ainda assim, não lidou bem com a notícia da morte do irmão.
- É, percebi. - Ela soltou um suspiro trêmulo. - Como ele ficou sabendo que foi Magnus que matou Theon?
Nic deu de ombros.
- Eu contei a ele, claro.
Ela sentiu uma pontada no estômago no exato momento em que a raiva começou a subir.
- Claro.
- Eu devia ter ficado a seu lado. - Ele pegou a mão dela e ficou sério, apesar da bebedeira. - Sinto muito por ter deixado você sozinha com ele todo esse tempo.
Nic não sabia sobre os sentimentos dela por Magnus. É claro que não sabia - Cleo tinha feito questão de negar os sentimentos que cresciam em seu peito por um ano.
- Não tem problema. Eu... dei um jeito.
- Onde devo deixá-lo? - Felix indicou o fardo que carregava quando chegaram à hospedaria.
- Tenho certeza de que vamos encontrar um buraco bem fundo - Magnus respondeu.
Cleo olhou feio para ele, depois virou para Felix.
- Tem alguns quartos vazios no segundo andar - ela disse.
Felix desapareceu e retornou rapidamente sem Taran.
Eles sentaram na sala de convivência e, quando Cleo olhou para o grupo, não sabia dizer se estava feliz ou horrorizada pelo modo como a noite havia se desenrolado.
Nic sentou ao lado dela, de frente para Jonas e Olivia. Felix e Magnus sentaram próximos à lareira, do outro lado da sala, perto da estante, enquanto Enzo ficou em pé ao lado de Cleo.
- Quando vocês chegaram? - Magnus perguntou.
- Hoje - Jonas respondeu. - Ainda estamos no escuro sobre o que está acontecendo aqui. A única informação que temos vem de um único soldado kraeshiano que se dispôs a falar.
- E?
- Ele sabia muito pouco. Ou, pelo menos, pouco que pudesse nos ajudar. No entanto, parece que você está fugindo, vossa alteza. E seu pai não está nada feliz com o modo como cuidou das coisas enquanto ele
esteve fora.
- É o mínimo que se poderia dizer.
Cleo observava Magnus levemente surpresa. Apesar do tanto que devia ter bebido, parecia sóbrio como um sacerdote limeriano.
- O soldado - disse Jonas, apontando para Cleo com tristeza. - Ele nos disse que você tinha morrido. Que isso aconteceu depois que fugiu de Amara. Que morreu congelada.
- Isso poderia muito bem ter acontecido se eu não tivesse encontrado abrigo no momento certo. - Ela desviou os olhos, tentando não fazer contato visual com Magnus, apesar de ainda sentir o olhar dele ardendo
em seu rosto.
- Você sempre foi uma sobrevivente - Jonas disse. - Nic se desesperou, mas eu tinha esperança. E aqui está você.
Nic deu de ombros.
- Eu me desespero. Sou desesperado.
- Temos muita coisa para contar a vocês - Jonas afirmou. - E com certeza vocês têm muita coisa para nos contar.
- Muito menos do que você pode imaginar - Magnus disse. - Amara acha que está governando o reino agora. Mas está errada. E será derrotada.
- E como você acha que vai derrotá-la? - Jonas perguntou.
- Acho que podemos começar com o cristal da terra que você deu à princesa - Magnus disse, e Jonas ficou tenso. - Você ainda tem aquele pedaço brilhante de obsidiana escondido em algum lugar, princesa?
Ah, sim, ela pensou enquanto se contraía. Esse era o Magnus que um dia ela desprezara - capaz de anunciar para todos, aparentemente por despeito, que ela estava em poder de um cristal da Tétrade. Ela precisaria
se lembrar de agradecer pela lembrança.
Nic soltou um rosnado de repulsa.
- Cleo, não enlouqueceu ficando ao lado dele por tanto tempo? O fato de ter mantido essa aliança artificial... deve haver algum motivo por trás disso que não me contou.
- Por favor, Nic - Magnus disse. - Somos todos amigos aqui. Sinta-se à vontade para falar o que quiser.
- Acabei de fazer isso.
Magnus revirou os olhos.
- Não preocupe essa sua cabeça de cenoura, Nicolo. A princesa continua a me tolerar, ou quase, concentrando-se apenas em recuperar seu trono assim que Amara for derrotada e mandada para longe. Recentemente,
sugeri que sua princesa dourada retornasse a Auranos, mas ela recusou. Nem pense em dizer que foi ideia minha.
Cleo virou para ele e enxergou uma expressão de desafio em seus olhos. Então percebeu o que Magnus estava fazendo.
Nic o odiava. Jonas tinha uma aliança fraca com ele. E o irmão gêmeo de Theon tinha acabado de tentar matá-lo.
Revelar que os dois eram mais do que aliados relutantes poderia causar um estresse desnecessário, principalmente agora que estavam todos juntos.
- Acredite em mim, Nic - ela disse finalmente. - E estou ansiosa pelo dia em que retornarei ao meu trono. Mas esse dia não é hoje.
- Bem, agora que isso está resolvido - Magnus disse -, vamos discutir como proceder. Pode ser?
Felix levantou a mão.
- Eu me voluntario com entusiasmo para matar a imperatriz.
Magnus o encarou com interesse.
- Como pretende fazer isso?
- Sei que alguns de vocês vão sugerir que eu use uma flecha apontada de longe - Felix disse com avidez. - Mas realmente preferiria uma abordagem mais pessoal. Com minhas próprias mãos, se possível. Só
quero ver o olhar dela naquele rostinho lindo.
Magnus piscou.
- Acabei de lembrar que foi você que me enviou um pedaço de sua pele para provar sua lealdade.
- Fui eu mesmo, vossa majestade.
Cleo analisava aquele jovem com atenção, chocada com as palavras. Será que ele era louco?
No entanto, o sujeito tinha salvado a vida de Magnus na taverna, e ela devia muito a ele por isso, então imaginou que teria que passar um pouco mais de tempo perto dele, observando-o, para ver como ele
realmente era.
Houve um tempo em que tinha desejado que Magnus morresse pelo que fizera com Theon, em que tinha desejado matá-lo com as próprias mãos.
Mas no momento em que a vida de Magnus correra perigo, não conseguira se concentrar em nada além do príncipe. Qualquer necessidade de vingança tinha desaparecido meses atrás, como se ela tivesse trocado
de pele.
O sentimento era de perdão. Ela ainda odiava o garoto que Magnus tinha sido aquele dia.
Mas tinha passado a entendê-lo nos meses que se seguiram, talvez ainda melhor do que entendia a si mesma.
- Há uma ameaça muito maior do que Amara em Mítica nesse momento, sinto informar - Jonas revelou, interrompendo o devaneio de Cleo. Ele estava limpando as marcas de beijo da dançarina do rosto com um lenço
que Olivia havia lhe dado, e Cleo não conseguiu deixar de achar engraçado o contraste entre os movimentos ridículos e o tom solene daquela declaração.
- Me deixe adivinhar - Magnus disse. - Você está falando da minha irmã? Sei que deve estar de luto por sua amiga, Jonas, mas não faz sentido gastar suas energias vingativas com Lucia nem com seu companheiro,
Kyan.
Jonas encarou os olhos de Magnus.
- Vocês não sabem, não é?
- Não sabemos o quê?
- Vocês procuraram pela Tétrade. Pessoas morreram por esses cristais. Você já revelou diante de todos que Cleo está em poder de um deles, e sabemos que Amara está com o da água, e seu pai, com o do ar.
- Sim, sei disso tudo, rebelde. E já sabemos que Kyan está com o cristal do fogo.
- Errado - Jonas ficou tenso. - Kyan é a magia do fogo.
Cleo ficou encarando-o, certa de que tinha escutado errado.
- O que quer dizer com isso?
- A magia que vocês estão procurando, que todos estamos procurando, pode pensar. Pode falar. E pode matar sem remorso. E mais três iguais a Kyan estão aguardando para escapar de suas prisões. Os cristais
não são pedras mágicas, princesa, mas deuses elementares.
A sala toda ficou em silêncio, e Cleo observou freneticamente o rosto dos outros, esperando encontrar alguém revirando os olhos. Esperando que aquilo não passasse de uma mentira engraçada para quebrar
a tensão.
Não podia ser verdade.
Mas até Nic assentia pesaroso.
E naquele exato momento, dentro de seu bolso, estava uma daquelas prisões.
Ela olhou para Magnus, cuja testa franzida era o único sinal de surpresa.
- Lucia deve tê-lo ajudado a escapar da esfera de âmbar - Magnus disse.
- Acho que isso é óbvio - Jonas respondeu curto e grosso, o que lhe rendeu um olhar sombrio do príncipe.
Cleo juntou as mãos para impedi-las de tremer.
- Temos certeza de que os objetivos de Kyan, sejam quais forem, são perversos? A Tétrade ainda pode nos ajudar a derrotar Amara.
- Eu o vi queimar Lys até fazê-la desaparecer - Jonas grunhiu. - Nem uma única cinza restou quando ele acabou. - O rebelde virou para Magnus. - Kyan é perverso. Assim como a vadia da sua irmã.
Magnus levantou com os punhos cerrados.
- Não me importo com o que aconteceu, você não vai falar assim de Lucia na minha presença. Não vou permitir.
- Não? E você acha que pode me impedir? - Agora Jonas também estava com os punhos cerrados, e os dois se aproximavam.
- Talvez ele não o impeça - disse uma nova voz, interrompendo a conversa e paralisando o rebelde e o príncipe. - Mas eu com certeza estou disposto a tentar.
Com aquela promessa, o Rei Sanguinário entrou na sala.
14
JONAS
PAELSIA
Rei Gaius Damora. O Rei Sanguinário. Assassino. Sádico, torturador, escravocrata, traidor. Inimigo. Alvo.
E, naquele momento, estava na mesma sala que Jonas.
Muitas surpresas tinham acontecido naquela noite. Primeiro um encontro com Laelia Basilius, de quem Jonas tinha sido - por pouco tempo e com relutância - noivo. Mas essas surpresas desapareceram de sua
mente assim que o rei entrou na sala.
Gaius observou o grupo e parou o olhar sobre Jonas.
- Jonas Agallon. Não vejo você há muito tempo. Acho que a última vez foi no casamento de meu filho.
Jonas percebeu que não conseguia fazer nada além de olhar para o homem que tinha matado e destruído tantos.
- Magnus... - Cleo disse do outro lado da sala.
- Ah, sim - Magnus disse, sem qualquer sinal de indignação pelas calúnias ditas contra a irmã. - Esqueci de dizer que estou viajando com meu pai?
- Esqueceu - Jonas respondeu, tenso.
- Sim - o rei concordou. - E é muito bom que meu filho traga seus novos amigos aqui sem avisar.
Jonas se esforçou para manter a compostura, para não mostrar como estava indignado.
- Não são tão novos quanto você pensa.
A pele do rei Gaius estava pálida, o rosto tinha hematomas como se tivesse sido espancado. Ele inclinou para a frente, como se agisse com normalidade, e se apoiou na parede ao lado da escada, mas algo
ficou evidente na posição. Uma fraqueza e uma fragilidade que o rebelde nunca tinha notado no homem.
- Volte para o quarto - Magnus disse.
- Não acato ordens suas. - O rei sorriu, sem achar graça. - Magnus, seus amigos sabem que estamos todos do mesmo lado agora?
Só de pensar em uma aliança com Gaius, Jonas perdeu totalmente a fala. Os outros - Nic e Olivia - também permaneceram em silêncio, tensos.
- É mesmo? - Foi o rosnado ríspido de Felix, como o alerta de uma fera enjaulada, que quebrou o silêncio. - Você decidiu isso antes ou depois de permitir que Amara me deixasse levar a culpa por matar a
família dela?
O rei levantou uma sobrancelha escura e observou Felix.
- Nunca permiti que Amara fizesse nada. Ela toma as próprias decisões. Quando soube o que tinha acontecido, já era tarde demais para intervir. Soube que você já estava morto. Caso contrário, teria feito
o possível para libertar você.
Felix manteve o olhar fixo no rei, e em seu único olho não se via nada além de frieza e malícia.
- Claro que teria. Por que eu duvidaria de sua palavra, vossa alteza?
Suspirando, o rei abatido e aparentemente debilitado se virou para Jonas.
- Você tem todos os motivos para me odiar. Mas precisa me ouvir agora e perceber que juntos somos fortes. Temos um inimigo comum: Amara Cortas.
- Sua esposa - Jonas afirmou.
- Por conveniência e circunstância apenas. Não tenho dúvidas de que ela já está conspirando para me matar, em especial agora que assumiu o controle de Mítica e sabe que seus soldados são muito mais numerosos
que os meus. Tenho me dedicado a consertar alguns de meus erros mais recentes, começando por tirar Amara deste reino.
- Me parece um bom começo - Jonas disse.
O rei caminhou devagar, fazendo careta ao sentir uma dor repentina com o movimento, e estendeu a mão.
- Peço que deixemos nossas diferenças de lado até esse objetivo ser alcançado. O que me diz?
Se não estivesse tão surpreso, Jonas teria gargalhado. O Rei Sanguinário tinha acabado de propor a ele - a mesma pessoa que o acusara de assassinar a Rainha Althea - uma aliança.
Jonas observou os outros ao redor, e em silêncio todos olhavam chocados para ele e o rei. Nic e Cleo estavam pálidos, e Felix entortava a boca de ódio. Olivia manteve o olhar desprovido de emoção e inescrutável,
como sempre. Enzo, o guarda de Cleo, estava parado empunhando a espada. Em contraste, Magnus tinha sentado e recostado na cadeira, os braços cruzados à frente do peito, a cabeça inclinada.
Finalmente, Jonas estendeu a mão direita para o rei e aceitou o acordo, encarando diretamente seus olhos.
- O que posso dizer, vossa alteza? - Com a mão esquerda, ele cravou uma adaga decorada no coração do monstro. - Vá para as terras sombrias, filho da puta mentiroso.
O rei gemeu sem força, e pelo som, a dor parecia extremamente forte. Jonas girou a faca ainda mais fundo, até Gaius tombar para trás.
Jonas ouviu Nic comemorar assim que Enzo o acertou e o derrubou no chão. Felix chegou em um instante, puxando Enzo para longe. Outro dos guardas do rei apareceu e puxou os braços de Jonas para trás. Cabelos
loiros apareceram na confusão - era Cleo tentando tirar o segundo guarda do rei de cima de Jonas. Magnus estava de pé com o olhar sério fixo no rei. Olivia estava dentro do campo de visão periférica de
Jonas, esperando. Ela só interviria se ele corresse perigo de morte.
A raiva que sentia, o ódio que tinha pelo rei, zuniam dentro de Jonas, renovados, e o rebelde tremia. Enquanto observava o rei moribundo, não sentiu nem um pouco de arrependimento.
Finalmente tinha tido uma oportunidade. E a aproveitado.
- Viu? - ele disse, olhando para Magnus. - Cumpro minhas promessas.
- Sim, estou vendo - Magnus disse, prestando atenção no pai, como se estivesse curioso, e não grato pela atitude. - Só é uma pena que você não tenha feito isso antes.
- O que quer dizer com isso? - Jonas olhou para o príncipe, sem entender por que ele parecia decepcionado com a situação. Jonas tinha feito exatamente o que Magnus queria, tinha cumprido a tarefa que o
tinha levado a Kraeshia.
- Milo, deixe Jonas levantar. - Cleo segurava o guarda desconhecido pelo braço.
- Ele assassinou o rei - Milo disse.
- Não - Magnus disse. - A morte decidiu demorar no que diz respeito ao meu pai.
- Jonas, olhe para ele - Felix pediu.
Gaius não estava mais deitado no chão, cheio de sangue. Milagrosamente, estava ajoelhado, sangrando muito sobre a madeira desgastada, o cabo da adaga no peito.
A expressão agonizante do rei estava fixa em Jonas.
- Ele não está morto - Nic murmurou, balançando a cabeça, incrédulo. - Por que não está morto?
Num movimento repentino e forçado, o rei Gaius segurou o cabo decorado da adaga. Ainda encarando Jonas com os olhos semicerrados, ele arrancou a lâmina, com um grito. A adaga caiu no chão, e ele levou
as mãos à ferida.
- Isso é magia - Jonas conseguiu dizer em meio ao choque.
- Muito observador de sua parte. Impressionante - Magnus disse com seriedade.
- Explique o que está acontecendo!
Magnus meneou a cabeça para Milo.
- Solte o rebelde. Não posso conversar com alguém preso como um besouro pregado a uma placa de cortiça.
Milo parou de segurar o braço de Jonas, que imediatamente ficou de pé e lançou um olhar acusatório para Magnus, que encarou Cleo de um jeito pouco sutil e sério. Cleo rangeu os dentes, e Magnus revirou
os olhos.
- Muito bem - o príncipe concordou. - Vou tentar ser breve em minha explicação. O que está acontecendo é o resultado de uma poção que o rei tomou muitos anos atrás, uma poção que permitiu que, não importa
o golpe final e fatal que o destino desferir, ainda tem algum tempo para... resistir depois de ser morto.
- Não sei bem se é assim que funciona - Cleo disse pacientemente.
Magnus suspirou e fez um gesto para o pai.
- Mais ou menos isso?
- Acredito que sim. Minha nossa, Jonas, essa é a adaga de Aron? - Cleo perguntou, chocada. - Você realmente guardou essa coisa horrível por todo esse tempo?
- Responda à minha pergunta - ele disse, mais incisivo do que pretendia ao se dirigir à princesa. Finalmente Jonas tinha feito o que queria fazer havia muito tempo, mas mais uma vez o destino não permitia
seu sucesso. Nem mesmo depois de um golpe fatal.
- Você não matou o rei - Cleo respondeu tensa - porque o rei já encontrou a morte dias atrás.
Enquanto Jonas tentava desesperadamente processar aquela afirmação incrível, uma mulher desceu a escada. Ela era mais velha, com rugas ao redor dos olhos, e usava um manto cinza-escuro que combinava com
seu cabelo. Entrou na sala de convivência, observando todos os presentes com firmeza, até finalmente fixar o olhar em Gaius.
A mulher o observou por um momento muito breve e, em seguida, lançou um olhar intenso na direção de Jonas.
- Você fez isso com meu filho?
Um arrepio subiu por seus braços e seus ombros, e desceu pela coluna ao perceber a raiva controlada nas palavras dela.
Filho?
- Tudo bem - o rei disse assustado, segurando a manga da blusa da mulher que se apressou para ficar ao lado dele.
- Não está nada bem. Não mesmo. - Ela voltou a encarar Jonas, e com o olhar dela, veio a sensação de que ele estava sendo congelado. - Você ousaria tentar matar seu rei?
- Ele não é meu rei - Jonas respondeu irritado, recusando-se a demonstrar fraqueza ou dúvida. - Ele matou meus amigos em sua guerra doentia, executou aqueles que se recusaram a se submeter, e escravizou
meu povo para construir sua preciosa Estrada Imperial. Nenhuma pessoa nesta sala diria que ele não merece morrer por seus crimes.
Ela cerrou o punho.
- Eu diria.
- Não, mãe - Gaius disse depressa. - Deixe-o em paz. Precisamos dele. Acredito que precisaremos de todos eles para reaver o que Amara pegou.
Devagar, o rei levantou, e Jonas só conseguiu dar um passo incerto para se afastar. O único sinal de que uma adaga tinha atravessado seu coração alguns momentos antes era a camisa rasgada e o sangue no
chão.
- Só a magia mais sombria poderia tornar algo assim possível - uma nova voz disse.
Jonas virou de repente e viu que Ashur Cortas estava atrás deles na entrada da hospedaria.
- Ashur! - Cleo se surpreendeu. - Você está vivo! Mas... como?
Ashur arqueou as sobrancelhas escuras.
- Mais magia negra, receio.
Ela virou para Nic, cuja expressão era neutra.
- Você sabia disso?
Ele assentiu.
- Eu sei, é um choque.
- Um choque? Ele estava morto, Nic! Por que não me contou?
- Eu ia contar. Achei melhor esperar você lidar com a questão do Taran primeiro.
- Ah, obrigada - ela disse, a voz tensa. - Você é muito solícito mesmo.
- Não sei por quê, mas acho que você não está falando sério.
Jonas se virou para Magnus e viu que ele estava sério.
- Estou ficando muito cansado de magia - o príncipe murmurou. - E de absolutamente tudo sobre o que não tenho controle.
- Também é ótimo revê-lo, príncipe Magnus - Ashur disse com um meneio de cabeça.
- Muita gentileza sua nos encontrar, vossa graça - Nic se dirigiu a Ashur, a voz desprovida de qualquer respeito. - Pensei que tivesse criado guelras e cauda e começado a nadar de volta a Kraeshia.
- Hoje não, infelizmente - Ashur respondeu com rispidez.
- Talvez amanhã.
- Talvez.
- Contamos a todos sobre sua ressurreição de fênix agora ou mais tarde? - Nic perguntou.
A expressão de Ashur ficou tensa ao notar o tom ácido de Nic.
- Parece, Nicolo, que há assuntos mais urgente a tratar. Estou certo, não estou, rei Gaius?
O grupo voltou a atenção ao rei, que estava encolhido ao lado da mãe.
- Está, sim, príncipe Ashur.
- Uma aliança contra minha irmã.
- É um problema para você?
- Não. Contanto que não a matem, não vejo nenhum problema.
- Espere - Felix disse de onde estava, ao lado da lareira. - Você sabe que eu pretendia matá-la! Vai mesmo tirar isso de mim?
Ashur lançou um olhar severo para Felix.
- Tudo bem. É um assunto para outro dia - Felix respondeu.
- Príncipe Ashur, você é o herdeiro legítimo de seu pai - o rei explicou. - Tire o título de Amara e tudo isso pode acabar.
- E agora você é o marido dela, pelo que soube. Por que não está a seu lado, orientando suas decisões?
- Não é mais tão simples assim.
- Nada importante é simples, certo?
- O Rei Sanguinário quer que trabalhemos em equipe - Jonas disse, balançando a cabeça. - É a coisa mais ridícula que já ouvi. Não é o que quero.
Gaius bufou, frustrado.
- Sei muito bem o que você quer, rebelde. Você quer que eu morra. Bem, devo dizer que vou morrer em breve.
- Gaius... - a mãe sibilou. - Não vou permitir que fale assim. Não vou permitir!
Ele a silenciou com um aceno.
- Minha primeira prioridade é retomar o controle de meu reino. Mítica não pertence, nem pertencerá, ao Império Kraeshiano.
- Não fosse pela magia que dizem que está adormecida aqui - Ashur disse -, posso garantir que nem Amara nem meu pai dariam tanta importância a essa ilhazinha.
- Acredito que você esteja ciente de que Amara envenenou seu pai e seus irmãos - o rei afirmou. - Ela não sente remorso quando vai em busca do que quer.
A risada sombria de Nic interrompeu a tensão na sala.
- Que engraçado... "Não sente remorso", ele disse, como se considerasse isso um defeito. O mesmo homem que quebrou o pescoço da minha irmã por estar no lugar errado na hora errada. - Ele parou de rir de
repente. - Sua aparência está péssima, vossa majestade. Espero muito que esteja sofrendo neste momento.
- Não fale com o rei desse jeito, Cassian - Milo, o guarda, se manifestou.
Nic lançou um olhar para ele do outro lado da sala.
- O que vai fazer se eu falar? Vai pedir para seu amigo ajudá-lo a me bater?
Milo sorriu e estralou os dedos.
- Posso fazer isso sozinho sem problema.
- Pensei que você estivesse apodrecendo na masmorra.
O sorriso do guarda ficou tenso.
- Preciso lhe agradecer por isso, não?
- Precisa. - Nic semicerrou os olhos. - O que vai fazer em relação a isso, Milo?
- Muitas coisas. Só preciso de tempo.
- Milo, não é? Ouça bem o que vou dizer. - A voz de Ashur estava baixa, como o rosnado de uma fera enjaulada. - Se tentar machucar Nicolo, juro que eu mesmo vou arrancar sua pele.
Jonas virou para Milo. Viu que a única reação dele à ameaça foi piscar, surpreso.
Cleo falou com o rei, depois de lançar um olhar preocupado a Nic e ao guarda.
- Você deu Mítica a Amara - ela disse, deixando claro seu tom de insatisfação. - Não pode apenas pegá-la de volta?
- Você não entende - o rei disse. - Nenhum de vocês entende. O imperador Cortas teria tomado Mítica à força se eu não tivesse agido dessa forma. Dezenas... não, centenas de milhares teriam morrido na guerra
se eu não tivesse feito minha proposta a ele.
- Ah, sim - Magnus disse. - Meu pai, o salvador de todos nós. Deveríamos construir estátuas em homenagem a ele. Uma pena já haver dezenas delas em Limeros. - Magnus arregalou os olhos. - É muita vaidade,
pensando bem. A deusa Valoria não aprovaria.
- Para o inferno com a deusa e com todos os Vigilantes! - o rei rebateu. - Não precisamos da ajuda deles para nos livrarmos de Amara.
- Não esqueça Kyan - Jonas acrescentou.
O rei virou para ele.
- Quem é Kyan?
Jonas não conseguiu conter o riso.
- Adoraria ficar aqui para elaborarmos uma estratégia juntos, vossa alteza, mas cansei dessa farsa. Não vou trabalhar com você hoje, nem amanhã, nem nunca.
- Diga, vossa alteza - Felix disse devagar -, ainda está com o cristal do ar?
Gaius lançou um olhar sério.
- O cristal do ar! - a mãe dele exclamou. - Você está com ele? E não me contou?
- Estou, sim - ele respondeu.
- Onde?
- Em um lugar seguro.
Jonas tentou encarar Cleo nos olhos, mas ela parecia ocupada com uma conversa silenciosa com o príncipe. Quando se entreolhavam, o sorriso de Magnus desapareceu.
- Se for verdade, e quando eu tiver força suficiente para encontrar minha neta - a mulher anunciou -, a vitória será nossa.
Mais uma vez, Jonas riu com frieza.
- Então é esse o segredo para seu grande plano? A princesa Lucia? Acredito que ficará decepcionada quando vir a serpente fria, má e sanguinária que ela se tornou. Mas ela é uma Damora, então talvez você
não se surpreenda nem se desaponte.
A senhora o observou.
- Jonas, não é?
- É o meu nome.
- Meu nome é Selia. - Ela se aproximou sem raiva no olhar ao pegar as mãos dele. - Fique conosco e ouça mais sobre nossos planos. Concordo com meu filho que, apesar de nossas diferenças, ainda podemos
trabalhar juntos. Tente ver isso de modo lógico. Juntos, somos mais fortes.
Ela estaria certa?
- Não sei...
- Fique - Cleo pediu. - Por favor, pense bem, pelo menos. Por mim.
Jonas encarou seus olhos sinceros e azuis.
- Talvez.
Magnus levantou.
- Está sugerindo que os rebeldes fiquem aqui? - ele perguntou em tom acusatório para a avó. - Nesta hospedaria? É a pior ideia que já ouvi.
- Discordo - disse o rei. - Minha mãe tem razão. Podemos chegar a um acordo. Temporário. Temos o mesmo inimigo agora.
Sem saber ao certo se estava prestes a concordar ou discordar dos Damora, Jonas abriu a boca para falar mas foi interrompido por um rosnado furioso vindo da sala de convivência.
Passos foram ouvidos descendo a escada, e Taran entrou com tudo no ambiente. Em um instante, voltou o olhar furioso para Magnus.
A adaga de Jonas - aquela que o rei tinha tirado do peito - estava no chão. Jonas a viu, mas Taran também, recuperando-a num piscar de olhos e percorrendo a distância entre ele e o príncipe.
Taran apontou a adaga para Magnus, mas o príncipe segurou o braço de Taran antes que ele pudesse encostar. Cleo soltou um grito estridente.
- Você está morto - Taran gritou.
Magnus se esforçou para não deixar a lâmina feri-lo, mas Taran o pegou de surpresa e a ira da vingança parecia duplicar sua força.
Então, Felix apareceu atrás de Taran, passando o braço por seu pescoço e puxando-o para trás.
- Não me faça acertar você de novo. Perdi meu pedaço de pau.
Jonas se aproximou e arrancou a adaga da mão de Taran.
- Vou matar você - Taran gritou para o príncipe enquanto Felix o arrastava para trás. - Você merece morrer pelo que fez!
Magnus não revidou. Só ficou observando o rapaz, com uma expressão séria.
- Acho que todos merecemos morrer por algo que fizemos - Jonas disse, aliviando um pouco da tensão que crescia entre o príncipe e o rebelde. - Ou por algo que deixamos de fazer.
O príncipe desfez a expressão séria e olhou incrédulo para Jonas.
- É minha imaginação ou você acabou de ajudar a salvar minha vida?
Jonas fez uma careta ao ouvir a pergunta.
- Parece que sim, não? - Ele olhou para Cleo, cuja expressão era de alívio. Com certeza, a princesa não queria ver mais sangue sendo derramado naquela noite, ele pensou. Nem mesmo o de Magnus. - Pode ser
que eu esteja prestes a cometer um erro horroroso do qual me arrependerei pelo resto da vida, mas decidi aceitar essa aliança. Mas uma aliança temporária, até Amara ser tirada daqui.
Ele esperou a resposta de Ashur. A expressão do príncipe kraeshiano se manteve séria, mas ele assentiu.
- Concordo. Amara precisa perceber o que fez. Ainda que ache que estava certa, tomou o caminho errado. Farei o que puder para ajudar.
- Ótimo. - Jonas apontou para Taran, que Felix ainda segurava. - Compreendo seu luto e sua ira, mas seu desejo por vingança não tem espaço aqui.
Taran lançou um olhar feio para Jonas, segurando o braço de Felix, que apertava sua garganta como uma barra de ferro.
- Você conhecia meus motivos para vir para cá antes de sairmos de Kraeshia.
- Conhecia, mas isso não quer dizer que concordava com eles. Agora tomei minha decisão. Você não vai tentar matar o príncipe Magnus de novo. Não enquanto mantivermos essa aliança.
- Você ouviu bem com essas orelhas gastas? - Felix perguntou a Taran, a voz áspera enquanto aplicava mais força no braço. - Ou preciso repetir mais devagar?
- Abandonei uma rebelião para vir até aqui vingar meu irmão.
- Uma rebelião fadada ao fracasso antes mesmo de começar - Ashur acrescentou.
- Você não sabe.
- Sei. Não me alegra saber, mas sei. Talvez um dia o império que meu pai construiu seja destruído, mas não será logo.
- Veremos.
- Sim, veremos.
Taran lançou mais um olhar raivoso para Jonas.
- Você se uniria a eles por vontade própria?
- Sim - Jonas confirmou. - E peço que considere fazer o mesmo. Podemos precisar de sua ajuda. - Ele fez uma pausa. - Mas não me leve a mal, Taran; se tentar acabar com a vida do príncipe Magnus de novo,
vou acabar com a sua.
15
AMARA
PAELSIA
O deus do fogo tinha sido muito específico sobre o lugar aonde queria que Amara fosse para obter poder infinito. Segundo ele, era um lugar tocado pela magia. Um lugar que até os próprios imortais reconheciam
como um centro de poder.
Ela contou a Carlos sobre a mudança de planos. Não ia se mudar para o palácio limeriano. Não, seu destino ficava mais ao sul de Paelsia, próximo ao antigo complexo do chefe Hugo Basilius.
Em vez de questionar as ordens, Carlos planejou tudo no mesmo instante. Com quinhentos soldados, Amara, Nerissa, Kurtis e o capitão dos guardas viajaram ao reino central de Mítica, que a nova imperatriz
ainda não conhecia.
Pela janela da carruagem, ela via com surpresa o gelo e a neve de Limeros derreterem e darem espaço à terra seca, às florestas mortas e à escassa vida selvagem.
- Foi sempre assim aqui? - ela perguntou, assustada.
- Nem sempre, vossa graça - Nerissa respondeu. - Ouvi dizer que houve uma época, muito tempo atrás, que toda Mítica, de norte a sul, era quente e temperada, sempre verde, com pequenas mudanças de uma estação
a outra.
- Por que alguém moraria em um lugar assim?
- Os paelsianos não podem escolher seu destino e são conhecidos por se conformarem isso, como se a aceitação tivesse se tornado uma religião em si. O povo é pobre, regido pelas regras que seu ex-chefe
e o chefe antes do anterior estabeleceram. Por exemplo, os paelsianos só podem vender vinho legalmente a Auranos, e o vinho é o único produto de exportação valioso deles. Grande parte do lucro é taxado,
e essas taxas foram determinadas pelo chefe.
Sim, o vinho paelsiano era famoso pelo sabor adocicado e por sua habilidade mágica de inebriar depressa e de modo prazeroso, sem mal-estar depois.
Era o vinho que Amara tinha levado para Kraeshia para envenenar sua família.
O que quer que fosse dito sobre a bebida, ela jurava que nunca a beberia por causa da lembrança.
- Por que não vão embora? - ela perguntou.
- Para onde? Poucos teriam dinheiro para ir ao exterior, menos ainda para construir uma casa em outro lugar que não seja aqui. E os paelsianos não podem entrar em Limeros nem em Auranos sem permissão do
rei.
- Tenho certeza de que muitos vêm e vão como querem. As fronteiras não são totalmente monitoradas.
- Não, mas os paelsianos costumam obedecer às leis. A maioria dos paelsianos, pelo menos. - Nerissa recostou na cadeira, as mãos sobre o colo. - Eles provavelmente não vão lhe causar nenhum problema, vossa
graça.
Ouvir aquilo era um alívio, no mínimo, depois de tantos problemas no passado.
Amara continuou observando a paisagem árida pela janela da carruagem durante os quatro dias de viagem desde a partida da quinta de lorde Gareth, esperando ver a terra e a morte se transformarem em verde
e vida, mas isso não aconteceu. Nerissa garantiu que mais a oeste, mais perto da costa, a paisagem melhoraria, e que a maioria dos paelsianos construía casas em vilarejos naquele pedaço da terra; poucos
construíam mais perto dos picos assustadores e sombrios das Montanhas Proibidas, a leste.
Aquele era o reino mais distante da fartura de Kraeshia que ela já tinha visto, e Amara estava torcendo para não precisar passar muito tempo ali.
Na última etapa da viagem, o comboio usou a Estrada Imperial, que se estendia por Mítica de modo curioso, começando no Templo de Cleiona, em Auranos, e terminando no Templo de Valoria, em Limeros. Passava
direto pelos portões de entrada do complexo de Basilius.
Os portões estavam abertos e um homem baixo de cabelo grisalho os esperava, cercado por uma dúzia de paelsianos enormes usando roupas de couro, com cabelo preto preso em tranças minúsculas.
Quando Carlos ajudou Amara a desembarcar da carruagem, o homem fez um leve sinal com a cabeça para ela.
- Vossa graça, sou Mauro, o antigo conselheiro do chefe Basilius. Seja bem-vinda a Paelsia.
Ela olhou para o homem, bem mais baixo do que ela.
- Então, você ficou responsável por este reino depois da morte do chefe?
Ele confirmou.
- Sim, vossa graça. E estou às suas ordens. Por favor, venha comigo.
Junto com o grupo principal de guardas pessoais da imperatriz - incluindo Carlos -, Amara e Nerissa acompanharam Mauro pelos portões de pedra. Um caminho de pedra se estendia pelo vilarejo murado, levando-os
por pequenas casas de sapê parecidas com as que Amara tinha visto enquanto atravessava várias cidades antes de chegar ao complexo.
- Naquelas casas ficavam as tropas do chefe. Infelizmente, quase todos foram mortos na batalha pelo palácio auraniano. - Mauro indicava os pontos de interesse conforme caminhavam pelo complexo, que no
passado fora o lar de mais de dois mil cidadãos paelsianos.
Havia comércios que antes forneciam pão, carne, legumes e frutas, trazidos do Porto do Comércio. Mauro mostrou um espaço onde ficavam as bancas dos vendedores locais, que podiam atravessar os portões todo
mês.
Outra área, uma clareira com bancos de madeira, tinha sido usada como arena para diversão - duelos, lutas e disputas de força que o chefe costumava gostar de assistir. Outra clareira surgiu com restos
de fogueiras, onde o chefe fazia banquetes.
- Banquetes... - Amara comentou surpresa. - Em um reino como este, banquetes são a última coisa que eu esperaria de um líder.
- O chefe precisava de prazeres para abastecer a mente e conseguir explorar os limites de sua força.
- Certo - ela disse. - Ele acreditava ser um feiticeiro, não?
Mauro olhou para ela constrangido.
- Sim, vossa graça.
Para Amara, o chefe Basilius parecia um homem egoísta e pobre de espírito. Ela estava contente em saber que Gaius o havia matado depois da batalha auraniana. Se ele não o tivesse matado, ela teria feito
isso.
Apesar do calor do dia com o sol já forte, Amara sentiu a temperatura ao seu redor aumentar ainda mais.
- Sei que não parece grande coisa, pequena imperatriz, mas garanto que aqui é exatamente onde precisamos estar.
Amara não respondeu, mas reconheceu a presença de Kyan com um meneio de cabeça.
- Estamos perto do centro do poder aqui - ele continuou. - Posso sentir.
- Aqui - Mauro indicou um grande buraco no chão, com cerca de dez passos de circunferência e vinte passos de profundidade para dentro da terra seca - é onde o chefe costumava deixar os prisioneiros.
Amara olhou para dentro do buraco.
- Como eles desciam?
- Alguns eram baixados com uma corda ou escada. Outros simplesmente eram jogados. - Mauro fez uma careta. - Peço desculpas se a imagem não lhe agrada, vossa graça.
Ela o encarou com uma expressão fulminante.
- Garanto, Mauro, que provavelmente não há nada que você possa me contar sobre como os prisioneiros eram tratados que eu consideraria surpreendente ou intolerável.
- Claro, vossa graça. Peço desculpas.
Amara estava cansada dos homens e seus falsos pedidos de desculpa.
- Carlos, cuide para que meus soldados recebam aposentos adequados depois dessa longa viagem.
- Sim, imperatriz. - Carlos fez uma reverência.
- Vossa graça ficará aqui, imperatriz Amara. - Mauro indicou a construção de três andares, feita de terra e pedra, a maior e mais forte do vilarejo. - Espero que seja do seu agrado.
- Com certeza será.
- Organizei tudo para levá-la a uma feira mais tarde e mostrar o trabalho de seus novos súditos paelsianos. Há, por exemplo, alguns bordados lindos que podem ser de seu interesse. E alguns enfeites com
contas para seu belo cabelo. Uma comerciante virá da costa até aqui para trazer uma tinta de frutas silvestres que ela criou para pintar os lábios... - Mauro parou de falar ao ver a expressão contrariada
da imperatriz. - Algum problema, vossa graça?
- Você acha que estou interessada em bordados, enfeites e tintas para os lábios? - Ela esperou a resposta, mas ele só abriu a boca sem emitir nenhum som.
De trás dela, ouviu-se uma risada.
Amara virou imediatamente, os olhos fixos no guarda - seu guarda - que mantinha um sorriso no rosto.
- Está achando engraçado? - ela perguntou.
- Sim, vossa graça - o guarda respondeu.
- Por quê?
Ele olhou para os compatriotas ao redor, e nenhum deles fez contato visual.
- Bem, porque é do que as mulheres gostam: maneiras de ficarem mais bonitas para os homens.
O guarda disse isso sem hesitar, como se fosse óbvio e nada ofensivo.
- Minha nossa - Kyan disse no ouvido dela. - Que insolente, não?
Ela concordava.
- Me diga uma coisa... Você acha que eu deveria comprar tinta para os lábios para agradar meu marido quando ele finalmente voltar para mim? - ela perguntou.
- Acho que sim - ele respondeu.
- Esse é meu objetivo como imperatriz, claro. Agradar meu marido e qualquer outro homem que por acaso olhe para mim.
- Sim, vossa graça.
Era a última coisa que ele diria na vida. Amara fincou a adaga que trazia consigo no homem e viu os olhos dele se arregalarem de surpresa e dor.
- Se algum de vocês me desrespeitar - ela disse, lançando um olhar aos outros guardas que a encaravam, surpresos -, vai morrer.
O guarda que havia dito o que não devia caiu no chão. Ela sinalizou para Carlos retirar o corpo, e ele obedeceu sem hesitar.
- Muito bem, pequena imperatriz - Kyan sussurrou. - Você me prova mais seu valor a cada dia que passa.
Amara abriu um sorriso na direção de Mauro, cuja expressão era de medo.
- Estou ansiosa para ir à feira. Parece incrível.
Mais tarde, escoltadas por Mauro e pelos guardas reais, Amara e Nerissa exploraram a feira, composta por vinte bancas cuidadosamente escolhidas que, como o prometido, vendiam, em sua maioria, produtos
fúteis - principalmente itens de beleza e de moda.
Amara ignorou os lenços e vestidos bordados, a tinta para os lábios, os cremes para remover manchas e os bastões de carvão para delinear os olhos e se concentrou nos comerciantes - paelsianos, jovens e
velhos, com expressão cansada, mas esperançosa, quando ela se aproximava.
Sem medo, sem desespero, só esperança.
Que estranho encontrar isso em um reino dominado, ela pensou. Mas a ocupação kraeshiana de Mítica tinha sido, até aquele momento, quase totalmente pacífica, em espacial em Paelsia. Ainda assim, Carlos
havia contado sobre grupos rebeldes que conspiravam contra ela, tanto em Limeros quanto em Auranos.
Não era um problema para Amara. Os rebeldes eram uma praga inevitável, mas que em geral podia ser combatida com facilidade.
Ela observou quando Nerissa se aproximou de uma banca para ver um lenço de seda que o comerciante mostrava a ela.
- Fico feliz em ver que você está se habituando - Kyan sussurrou carinhosamente no ouvido dela. Os ombros de Amara ficaram tensos com a voz dele.
- Estou fazendo o melhor que posso - ela respondeu em voz baixa.
- Infelizmente tenho que deixá-la por um tempo enquanto procuro a magia de que precisamos para realizar o ritual.
Pensar nisso a assustou. Eles tinham acabado de chegar!
- Agora? Vai embora agora?
- Sim. Em breve, retomarei minha glória, e você será mais poderosa do que pensa. Mas precisamos da magia para finalizar isso.
- A magia de Lucia. E seu sangue.
- O sangue dela, sim. Mas não precisamos da feiticeira em si. Vou encontrar uma fonte alternativa de magia. Mas precisaremos de sacrifícios; sangue para selar a magia.
- Compreendo - ela sussurrou. - Quando você volta?
Amara esperou, mas não houve resposta.
Então, ela sentiu sua saia mexer e olhou para baixo. Uma menininha, que não devia ter mais do que quatro ou cinco anos, com cabelo bem preto e sardas no rosto bronzeado, aproximou-se com certa hesitação,
oferecendo uma flor.
Amara aceitou a flor.
- Obrigada.
- É você, não é? - a menina perguntou esbaforida.
- Quem você acha que sou?
- Aquela que veio salvar todos nós.
Amara sorriu e lançou um olhar para Nerissa, que estava ao seu lado usando um lenço colorido, e então sorriu para a criança.
- É o que você acha?
- Foi o que minha mamãe me disse, então deve ser verdade. Você vai matar a bruxa má que machuca nossos amigos.
Uma mulher se aproximou, claramente envergonhada, e pegou a mão da menininha.
- Perdoe-nos, imperatriz. Minha filha não teve a intenção de perturbá-la.
- Não me perturbou - Amara disse. - Sua filha é muito corajosa.
A mulher riu.
- Está mais para teimosa e tola.
Amara balançou a cabeça.
- Não, nunca é cedo demais para as meninas aprenderem a dizer o que pensam. É um hábito que as fará crescer mais corajosas e fortes. Diga, você acredita no que ela disse? Que vim salvar todos vocês?
A expressão da mulher se tornou mais séria, e seu cenho se franziu com preocupação e dúvida. Ela encarou os olhos de Amara.
- Meu povo sofreu por mais de um século. Estávamos sob o comando de um homem que tentou nos fazer acreditar que ele era feiticeiro, cobrando impostos tão altos a ponto que, mesmo com os altos lucros das
vinícolas, não conseguíamos nos sustentar. A terra que chamamos de lar está se desfazendo sob nossos pés enquanto estamos aqui conversando. Quando o rei Gaius venceu Basilius e o rei Corvin, muitos de
nós achamos que ele nos ajudaria. Mas isso não aconteceu. Nada mudou, só piorou.
- Sinto muito em ouvir isso.
A mulher balançou a cabeça.
- Mas então a senhora chegou. Aquela feiticeira má passou por aqui destruindo tudo, vilarejo por vilarejo, mas ela desapareceu quando a senhora chegou. Seus soldados têm sido rigorosos, mas justos. Eles
acabaram com quem discordava, mas essas pessoas não fazem falta: seus detratores são os mesmos homens que espalharam a discórdia em nosso reino depois que o exército de Basilius parou de oferecer a pouca
proteção que oferecia. Então, se acredito, como muitos aqui acreditam, que a senhora chegou para nos salvar? - Ela ergueu o queixo. - Sim, acredito.
Quando os guardas levaram Amara para longe da mulher e da filha, em direção à outra área da feira, aquelas palavras ficaram em sua mente.
- Posso fazer uma sugestão ousada, vossa graça? - Mauro perguntou, e ela olhou para o homenzinho que a seguia como um cão adestrado.
- Claro que pode - ela disse. - A menos que queira sugerir que eu compre tinta para os lábios.
Ele empalideceu.
- De modo algum.
- Então, vá em frente.
- O povo paelsiano está aberto a sua liderança, mas a notícia precisa ser espalhada. Sugiro abrir os portões do complexo para permitir que os novos cidadãos entrem para ouvi-la falar sobre seus planos
para o futuro.
Um discurso, ela pensou. Era algo que Gaius gostaria muito mais de fazer do que ela.
Mas Gaius não estava lá. E agora que tinha o deus do fogo para aconselhá-la sobre como acessar a magia da esfera de água-marinha, não havia mais motivos para deixar o rei viver por muito mais tempo.
- Quando? - ela perguntou a Mauro.
- Posso espalhar a notícia agora mesmo. Milhares virão dos vilarejos vizinhos para ouvi-la. Talvez em uma semana?
- Três dias - ela disse.
- Três dias parece perfeito - ele concordou. - Será maravilhoso. Muitos paelsianos, de braços e coração abertos, estão prontos a obedecer a todas as suas ordens.
Sim, Amara pensou. Um reino pronto para fazer o que ela mandasse sem questionar, que aceitaria uma mulher como líder sem discutir, seria incrivelmente útil.
16
MAGNUS
PAELSIA
Magnus pensou nas doze pessoas que estavam na hospedaria Falcão e Lança, notando que quase metade queria vê-lo morto.
- E você é uma delas, com certeza - ele murmurou quando Nic atravessou a sala, arregalando os olhos ao passar pelo príncipe. Magnus estava sozinho sentado a uma mesa com um caderno de desenho que tinha
encontrado em uma gaveta em seu quarto.
- Cassian, veja - ele disse. - Desenhei você.
Magnus ergueu o caderno. Com os dedos manchados de carvão, ele mostrou uma página na qual tinha desenhado um garoto magro pendurado em uma forca, a língua para fora da boca, X mórbidos no lugar dos olhos.
Nic, que supostamente era muito simpático com todo mundo, lançou um olhar de puro ódio para Magnus.
- Você acha isso engraçado?
- O que foi? Não gostou? Bom, dizem que a arte é subjetiva.
- Você acha que gastar seu tempo rabiscando nesse caderno vai fazer todo mundo considerar você menos ameaçador? Pense bem. Essa pose de inocente e bacana não me engana.
Magnus revirou os olhos.
- Certo - ele disse, enfiando o caderno embaixo do braço. - Mas não posso dizer que você não me magoou. Pensei que tivéssemos nos tornado amigos em Limeros.
Nic semicerrou os olhos, sem achar graça.
- A única coisa que me ajuda a dormir à noite é saber que Cleo sabe muito bem quem você é.
- Espero muito que você esteja certo - Magnus respondeu sem dar muita atenção. Ele nunca tinha deixado as palavras de Nic atingi-lo antes, e não deixaria agora, mas a questão de Cleo era um espinho. -
Acho muito interessante ver que vocês decidiram ficar aqui na cova do leão.
- Talvez você esteja enganado a respeito de quem é o leão e quem é a presa.
Magnus deu risada.
- Conversar com você é sempre muito estimulante, Nic. De verdade. Mas tenho certeza de que tem outros lugares para onde ir, e eu detestaria fazer um cara tão brilhante como você perder tempo. Sem dúvida
já atrapalhei seu próximo compromisso que é... qual é mesmo? Ficar à sombra de Ashur, à espera da maravilhosa atenção dele, agora que conseguiu voltar dos mortos? - Por ter testemunhado a morte de Ashur,
Magnus ainda estava tentando processar a informação de que ele estava vivo. - Muito triste, de verdade, que ninguém veja o que de fato está acontecendo entre o príncipe ressuscitado e o ex-cavalariço.
Foi o suficiente para fazer Nic corar.
- E o que seria, Magnus? O que você acha que está acontecendo?
Magnus fez uma pausa, encarando o olhar incerto de Nic.
- O sabor da decepção amorosa é amargo, não é?
- Imagino que você entenda bem sobre o assunto, não? - Nic rebateu. - Nunca esqueça que Cleo odeia você. Você matou todo mundo que ela ama. Roubou o mundo dela. É uma verdade que nunca vai mudar.
Lançando um último olhar, Nic saiu da sala, deixando Magnus furioso, bufando, com vontade de socar alguma coisa. Ou alguém.
Ele está enganado, ele disse a si mesmo. O passado não determina o presente.
E era no presente que ele tinha que se concentrar. Precisavam encontrar Lucia o mais rápido possível.
Por que esperar mais um dia para minha avó encontrar a pedra mágica?, ele pensou. Eles estavam ali, acovardados como vítimas, quando deveriam estar fazendo o máximo possível para tirar aquela kraeshiana
de suas terras para sempre.
Magnus empurrou o caderno de desenho para o centro da mesa e levantou. Ele ia encontrar a avó e exigir que ela - com ou sem a magia totalmente restaurada - testasse um feitiço para encontrar sua irmã.
- Está sozinho nessa sala enorme?
Ele parou ao ouvir a voz de Cleo. Ela estava na base da escada, observando-o do outro lado da sala enorme.
- Parece que sim - ele diz. - Mais um motivo para você não entrar.
Ela entrou mesmo assim.
- Parece que não conversamos a sós há muito tempo.
- Faz dois dias, princesa.
- Princesa - ela repetiu, mordendo o lábio inferior. - Minha nossa, você está fingindo muito bem. Na verdade, não sei se é só fingimento mesmo.
- Não sei ao certo do que você está falando. - Ele olhou para Cleo como um homem faminto olhava para um banquete. - Esse vestido é novo?
Ela alisou a saia de seda, da cor de um pêssego maduro.
- Olivia e eu fomos a uma feira perto das docas hoje.
- Você e Olivia fizeram o quê? - Ele franziu a testa, assustado por não saber que a princesa tinha decidido se arriscar por aí. - Que péssima ideia. Você poderia ter sido reconhecida.
- Por mais que eu goste de ser repreendida, acho que preciso dizer que ninguém me reconheceu, já que usei meu manto. E não estávamos sozinhas. Enzo e Milo estavam conosco, para nos proteger. Ashur também.
Ele está explorando a cidade para saber o que os paelsianos pensam sobre a notícia da chegada da irmã dele.
- E o que dizem?
- Ashur disse que a maioria parece... disposta a mudar.
- É mesmo?
- Qualquer coisa depois do chefe Basilius seria um progresso. - Ela hesitou. - Bem, à exceção do seu pai, claro.
- Claro. - Magnus não se importava muito com os paelsianos nem com os auranianos, na verdade. Ele só se importava com o fato de Cleo ter saído da hospedaria sem que ele notasse. - Não importa com quem
você saiu, porque ainda assim foi uma péssima ideia.
- Assim como beber até cair toda noite na taverna Videira Púrpura - ela respondeu, meio tensa. - E, no entanto, é o que você faz.
- É diferente.
- Tem razão. O que você faz é muito mais idiota e tolo do que passar o dia explorando uma feira.
- Idiota e tolo - ele repetiu, franzindo a testa. - Duas palavras que nunca foram usadas para me descrever.
- Elas são certeiras - disse Cleo, o tom firme e a testa franzida. - Quando vi você naquela primeira noite com Taran...
O som daquele nome atravessou o espaço entre eles como a lâmina afiada de um machado cortando um tronco de árvore.
- Sei que a presença dele aqui deve ser difícil para você - Magnus comentou, sentindo a garganta apertar. - Aquele rosto... Todas aquelas lembranças horrorosas que ele sugere...
- A única lembrança horrorosa de Taran que tenho é a da lâmina dele pressionada contra sua garganta. - Cleo parou, observando a expressão de Magnus e franzindo mais a testa. - Você entende que, quando
olho para ele, só vejo Theon?
- E como não veria?
- Admito que foi inesperado encontrá-lo. Mas Theon se foi. Sei disso. Já aceitei isso. Taran não é Theon. Mas é uma ameaça.
- Compreendo.
- Compreende? - Cleo continuou a observá-lo concentrada, como se fosse um enigma que ela precisasse decifrar. - Mas você pensou mesmo que eu o veria e esqueceria tudo o que aconteceu desde aquele dia?
Que o ódio que eu sentia por você voltaria a me cegar? Que eu... o quê? Me apaixonaria por Taran Ranus no mesmo instante?
- Parece mesmo um tanto quanto absurdo.
Ela ficou pensativa.
- Bom, Taran é muito bonito. Tirando o fato de querer você morto, o que é, admito, um objetivo que também já tive. Ele seria um pretendente perfeito.
- Deve ser muito divertido me atormentar.
- Muito - ela provocou, abrindo um sorriso discreto, mas levemente triste. Cleo segurou as mãos dele, e a sensação de sua pele quente junto à dele foi como um bálsamo numa ferida dolorosa. - Nada mudou
entre nós, Magnus. Saiba disso.
As palavras dela confortaram sua alma atormentada.
- Fico muito feliz em saber disso. Quando pretende contar aos outros?
No mesmo instante, a expressão dela ficou tensa.
- Não é o momento. Há muita coisa em risco agora.
- Nic é a pessoa mais próxima de você, seu amigo mais querido, e ele me odeia.
- Ele ainda vê você como um inimigo. Mas, um dia, sei que vai mudar de ideia.
- E se não mudar? - Ele a encarou nos olhos. - O que vamos fazer?
- Como assim?
- Escolhas, princesa. A vida parece cheia delas.
- Você está pedindo para que eu escolha entre você e Nic?
- Se ele se recusar a aceitar... isso, o que quer que seja, princesa, então acho que você teria que escolher.
- E você? - ela finalmente perguntou depois de um longo momento de silêncio. - Quem você escolheria se alguém ou algo o forçasse? Eu? Ou Lucia? Sei muito bem que ela foi seu primeiro amor. Talvez você
ainda a ame como antes.
Magnus grunhiu.
- Garanto a você que não existe nenhum sentimento dessa natureza entre mim e Lucia. E no que diz respeito a ela, nunca existiu.
Seu coração tinha feito tanto progresso nos últimos meses que ele se perguntava se ainda era a mesma pessoa que tinha sofrido de amor por sua irmã adotiva. Apesar de ter assumido uma forma diferente, aquele
amor ainda estava ali, dentro dele. Não importava o que Lucia pudesse fazer ou dizer, Magnus a amava incondicionalmente e estava pronto para perdoá-la por qualquer erro.
Mas o desejo que ele já sentira por sua irmã... seu coração tinha se voltado total e permanentemente para outra pessoa - alguém muito mais frustrante e perigosa do que sua irmã adotiva.
- Afinal, Lucia escolheu fugir com o tutor. - Cleo relembrou.
Ele franziu os lábios.
- Sim, e agora o destino do mundo depende da localização dela. - Cleo olhou para ele duvidosa. - O que foi, princesa? - ele perguntou. - Está em dúvida?
- Eu... - Cleo começou a falar, e então parou e olhou para os próprios pés, como se estivesse refletindo sobre o assunto. - Magnus, só não tenho certeza de que ela seja a única solução com a qual você
parece contar.
- Ela tem ligações com o deus do fogo. Acredito que saiba como extrair a magia dos cristais da Tétrade sem permitir que o deus elementar escape.
- Parece que foi ela quem ajudou Kyan a escapar, se estão viajando juntos. Só pode ser.
- Talvez. Mas a magia dela é ampla.
- Ampla o suficiente para matar todos nós.
- Você está enganada - Magnus disse sem hesitar. - Ela não faria isso. Lucia vai nos ajudar, vai ajudar a todos. - Sempre que falava bem de Lucia, ele percebia que Cleo contraía os lábios e franzia a testa
como se estivesse comendo alguma coisa amarga.
Será que ela poderia estar com ciúme do que sinto por Lucia?, ele se perguntou, achando graça.
- Vejo que você fica feliz quando pensa em sua irmã adotiva - ela comentou tensa, em um tom desagradável. - Tenho certeza de que pensar nela é uma ótima válvula de escape para você enquanto estamos presos
aqui em Paelsia, cercados por rebeldes que adorariam a oportunidade de incendiar esta hospedaria com toda a realeza dentro.
- É esse o plano abominável de Agallon? - ele perguntou, contraindo os lábios e franzindo a testa. - O que mais ele contou na calada da noite desde que chegou?
- Muito pouco, na verdade.
Magnus deu um passo na direção dela. Cleo deu um passo para trás: a dança na qual se envolviam de vez em quando. Os dois continuaram até ele encurralá-la em um canto, e ela lançar um olhar desafiador.
- Talvez você preferisse dividir um quarto com o rebelde do que comigo - ele disse, enrolando uma mecha do cabelo dela no dedo. - Mas ele provavelmente preferiria uma casa na árvore feita de tábuas e barro.
Cleo riu.
- É nisso que está decidindo se concentrar agora?
- Sim. Porque se me concentrar em Agallon, posso parar de pensar em você e em como quero levá-la para a minha cama.
Ela só teve tempo de soltar um breve suspiro antes de Magnus beijá-la, segurando-a pela cintura e puxando-a para si. Cleo retribuiu sem limitações.
As mãos dele deslizaram pelo corpo da princesa, passando pela lombar, chegando à curva de seu quadril. Desesperado para se inclinar e beijá-la direito, ele pegou suas pernas por trás e a levantou, pressionando
suas costas contra a parede.
Sim, ela deveria fazê-lo parar naquele momento.
Mas não foi o que aconteceu. Na verdade, Cleo tinha começado a puxar os cordões da camisa dele, sem afastar seus lábios nem por um segundo.
- Quero você - ele sussurrou enquanto a beijava. - Quero tanto você que posso morrer de desejo.
- Sim... - O hálito dela era doce e quente. - Também quero você.
Quando Magnus a beijou, toda a racionalidade sobre a maldição desapareceu de sua mente. Nada mais existia, só a necessidade enlouquecedora e alucinante de tocá-la, de senti-la...
Pelo menos, até ouvir passos de alguém se aproximando por trás.
Foi nesse momento que Magnus percebeu que não estavam mais sozinhos.
Deixando a princesa de volta ao chão, devagar, Magnus se forçou a se afastar e, com os ombros tensos, enfrentar o intruso.
Apesar de sua altura intimidadora e dos músculos avantajados, Felix Gaebras parecia envergonhado.
- Hum... Desculpe interromper. Eu estava... só passando. - Mas ficou parado onde estava, e então, ergueu o queixo. - Perdoe-me por dizer, vossa alteza - ele disse, olhando para Magnus -, mas talvez seja
melhor o senhor ser mais discreto com a princesa de agora em diante.
- É mesmo? - Magnus perguntou.
Felix assentiu.
- Nic convenceu a todos do seu ódio por Magnus, princesa. E isso... não me pareceu uma atitude de ódio. Ele vai enlouquecer.
Cleo se afastou de Magnus, os dedos nos lábios e o rosto corado.
- Por favor, Felix - ela disse, quase desesperada. - Prometa que não vai contar nada a Nic sobre isso. Nunca.
Felix fez uma reverência.
- Não se preocupe, princesa. Não direi nada.
- Obrigada.
Magnus disfarçou a careta. Algo no modo como ela falou, no alívio que pareceu sentir por ter sido Felix quem os vira juntos e não alguém cuja opinião considerasse mais importante, o incomodou demais.
Se Ashur podia buscar informações sobre Amara, Magnus também podia. Naquela tarde, ele deixou a hospedaria, subiu a rua até a feira que Cleo havia mencionado e passou na porta da tentadora Videira Púrpura.
Na feira, ele mal olhou para as bancas de madeira com lonas coloridas protegendo os comerciantes do sol, cada um vendendo um produto paelsiano diferente - de vinho a joias, de frutas e legumes a lenços
e túnicas de todas as cores, e diversas outras mercadorias. No movimentado labirinto de bancas, sentia-se o cheiro adocicado das frutas e da carne defumada, e mais perto das docas, o cheiro de suor e vômito
pegou as narinas de Magnus de surpresa. Entre os diversos clientes da feira, incluindo a tripulação de navios e os cidadãos comuns da cidade, vários guardas kraeshianos chamaram sua atenção.
Ele observou um dos homens de Amara conversar com um vendedor de vinho paelsiano que lhe ofereceu um pouco da bebida. O copo de madeira não foi oferecido com mãos trêmulas nem medo nos olhos do vendedor,
mas com um sorriso.
Para Magnus, era irritante ver que muitos paelsianos aceitavam o destino de se tornar parte do Império Kraeshiano sem se preocupar com nada. Será que as coisas estavam tão ruins antes que pensar em Amara
como nova líder era uma dádiva?
Ele continuou a observar essa dinâmica entre paelsianos e kraeshianos até o sol ficar alto e insuportavelmente quente para continuar com o manto com capuz. Como já havia tido contato com paisagens, sons
e cheiros bons e ruins da feira de Basilia, decidiu voltar.
Magnus virou na direção da hospedaria e descobriu que havia alguém em seu caminho.
Taran Ranus.
O príncipe se forçou a não deixar claro que encontrar o gêmeo de Theon - alguém que quase tinha conseguido vingar o assassinato de seu irmão - o tinha assustado. Mas antes que Magnus decidisse o que dizer,
Taran tomou a liberdade de falar.
- Estou curioso - ele disse em voz baixa. - Quantas pessoas você matou?
- Essa pergunta é muito pessoal para um lugar tão público.
Taran continuou, sem se deixar abater.
- Sabemos que matou meu irmão. Quem mais?
Magnus tentou não se encolher, tentou não levar a mão ao cabo da espada. A espada de Taran também estava visível, pendurada no quadril.
- Não sei ao certo - admitiu.
- Aceito uma estimativa.
- Muito bem. Talvez... uma dúzia.
Taran assentiu, sem deixar sua expressão revelar o que passava em sua mente quando olhou para a feira movimentada ao redor deles.
- Quantas pessoas você acha que eu matei?
- Mais de uma dúzia, tenho certeza - Magnus respondeu. Ele contraiu os lábios. - Por quê? Está aqui para me provocar com suas habilidades com a espada? Para contar histórias de como fez homens maus chorarem
chamando pela mãe diante da morte? Que mataria mais mil se isso fizesse o sol brilhar e a felicidade imperar nesse mundo?
Taran observou Magnus, semicerrando os olhos. Para alguém que quase tinha posto a hospedaria a baixo em uma noite para tentar cortar o pescoço de Magnus, ele parecia bem calmo naquele dia.
- Você se arrepende de ter matado meu irmão? - ele finalmente perguntou, ignorando as perguntas de Magnus.
Magnus pensou em mentir, sem saber se deveria fingir arrependimento. Mas sua intuição lhe disse que não conseguiria enganar o gêmeo de Theon.
- Não - ele afirmou com o máximo de confiança que conseguiu. - Minha vida estava em risco. Tive que me proteger de alguém muito mais habilidoso com a espada do que eu era na época, por isso agi. Não posso
dizer que me arrependo de ter tomado as medidas necessárias para salvar minha vida, apesar de saber que hoje não faria as escolhas que fiz naquele momento.
- Qual escolha faria hoje?
- Combate direto. Minhas habilidades de luta melhoraram muito no último ano.
Taran assentiu, mas seu rosto não deixou transparecer nada.
- Meu irmão teria vencido você.
- Talvez - Magnus disse. - Mas e daí? Imagino que você esteja aqui para tentar me matar diante dessas pessoas. É isso? Ou estamos só conversando?
- Foi exatamente para isso que o segui até aqui: quero decidir o que fazer. Antes era muito simples, estava muito claro em minha mente que você tinha que morrer.
- E agora?
Taran puxou a espada da bainha, mas só o suficiente para mostrar a lâmina que trazia uma série de símbolos e palavras desconhecidas gravadas na superfície.
- Essa era a arma de minha mãe. Ela me contou que as palavras gravadas estão na língua dos imortais.
- Interessante - Magnus disse, o corpo tenso e pronto para a luta. - Sua mãe era bruxa?
- Sim. Ela era uma Vetusta, uma bruxa que adorava os elementos com magia de sangue e sacrifício.
- Tenho certeza de que você está me contando isso por um motivo.
- Estou. Pedi para você adivinhar quantas pessoas eu matei. - Taran embainhou a espada. - A resposta é uma. Apenas uma.
Uma gota de suor correu pelas costas de Magnus.
- Sua mãe.
Taran assentiu com seriedade.
- As Vetustas acreditam que os gêmeos têm uma magia poderosa. - Ele balançou a cabeça, franzindo a testa. - Existe uma lenda quase esquecida que diz que os primeiros imortais criados foram os gêmeos: um
escuro e um claro. Minha mãe acreditava que a magia sombria era muito mais poderosa, então, para aumentar a dela, decidiu sacrificar o gêmeo claro.
- Theon.
- Na verdade, não. Fui eu, cinco anos atrás, quando tinha quinze anos. Talvez minha mãe achasse que eu fosse permitir que ela usasse essa mesma espada para me matar, mas estava enganada. Eu reagi e a matei.
Theon chegou naquele momento e me viu empunhando uma espada e nossa mãe morta a meus pés. Ele não sabia o que ela era de verdade. Eu mesmo só descobri a verdade recentemente. Ele jurou que eu pagaria com
a vida por tê-la matado, e eu sabia que ele nunca compreenderia. Então corri o máximo que pude, sem olhar para trás. Até agora. - Ele riu, e o som saiu seco e oco. - Parece que temos isto em comum: nós
dois fomos forçados a matar para nos proteger, uma atitude da qual não podemos nos arrepender, porque, sem ela, não estaríamos vivos hoje.
Magnus não sabia o que dizer. A confissão de Taran o deixou sem fala. Ele se concentrou na movimentação da feira, fechando os olhos com força por um momento.
Quando voltou a abri-los, Taran se afastava dele em meio à multidão. Ele o observou à distância, pensando na conversa e sentindo-se grato por não ter tido que lutar para defender a própria vida naquele
dia.
Quando voltaram para a hospedaria, Jonas estava na sala de convivência, como se os estivesse esperando. Ele levantou da cadeira e largou o livro que estava lendo. Magnus notou com surpresa que era o mesmo
que tinha lido, sobre vinhos.
- Taran, precisamos conversar - Jonas anunciou. - No pátio não seremos ouvidos por bisbilhoteiros. Felix já está esperando. Você também, vossa alteza.
Magnus inclinou a cabeça.
- Eu?
- Foi o que eu disse.
- Agora estou profundamente confuso. Muito bem. Vamos lá, rebelde.
Atrás da casa havia um espaço a céu aberto que o dono da hospedaria e sua esposa chamavam de pátio. Na verdade, era uma área de grama marcada por uma horta, flores e dois cercados para os animais - um
para as galinhas e outro para os porcos gordos que guinchavam alto quando alguém se aproximava.
Magnus e Taran acompanharam Jonas até onde Felix estava, no canto oposto do jardim.
- Temos informação sobre Amara - Jonas disse finalmente. - Ela está aqui em Paelsia.
Magnus tentou não demonstrar insatisfação.
- Informação vinda de quem?
- Há rebeldes por todos os lados, alteza.
O primeiro ímpeto de Magnus foi querer lembrar Jonas que a maioria dos rebeldes havia morrido, mas decidiu se controlar.
- Muito bem. Onde em Paelsia?
- No complexo do chefe Basilius.
- E onde, exatamente, é isso?
- A um dia de viagem daqui rumo ao sudeste. Fico surpreso por você não saber, já que é um ponto importante na Estrada de Sangue de seu pai.
- Estrada Imperial - Magnus o corrigiu.
- Estrada de Sangue - Jonas repetiu, rangendo os dentes.
Magnus decidiu não discutir a questão com um paelsiano, nem tocar no assunto de como ela tinha sido construída tão depressa pelos trabalhadores paelsianos sob ordens de seu pai. Não era à toa que os cidadãos
daquele reino tinham recebido Amara tão bem.
- E esse informante também explicou por que ela veio para cá?
- Não.
- Não importa por que ela está aqui - Felix disse. - Essa é nossa chance.
- De quê? - Magnus perguntou. - De matá-la?
- Essa era a ideia.
- Não era, não - Jonas disse, arregalando os olhos para o amigo.
- Matar a imperatriz não muda o fato de que meu pai deu este reino para a família dela. Não muda que os soldados estão tão espalhados quanto manchas de lama. E Ashur? Você o trouxe aqui como se confiasse
nele, mas não sabemos qual é o plano dele.
- Ashur é um problema, admito - disse Jonas. - Nic está de olho nele, informando qualquer comportamento incomum.
- Ah, sim. - Magnus cruzou os braços. - Isso deve dar certo. Então, você - ele virou para Felix - quer matar a imperatriz. E você - ele virou para Jonas - quer pagar para ver. - Ele assentiu. - Excelentes
decisões. Acho que Amara não terá chance contra essa aliança.
Jonas hesitou.
- Taran, você não planejava matá-lo?
- Sim.
- Estou começando a me animar com essa possibilidade.
- Está claro que - Magnus começou -, se sabemos onde Amara está, a melhor estratégia é mandar homens para obter mais informações sobre os planos atuais dela, por que está aqui e onde escondeu o cristal
da água.
Taran resmungou.
- Odeio concordar com ele, mas concordo. Posso ir. Não tenho motivos para ficar aqui sem nada para fazer, olhando para as paredes.
- Também vou - Felix anunciou animado.
Jonas lançou um olhar cauteloso para Felix.
- Você acha que consegue lidar com isso sem fazer nada de errado?
- Claro que não. Mas ainda assim, quero ir. - Felix suspirou. - Prometo que vamos conseguir informações. E só isso.
Magnus preferia entrar em ação, como Felix, e simplesmente varrer Amara do mundo, mas sabia que informações seriam úteis com os dois reinos em guerra.
- Devemos contar a Cleo sobre isso? Ou a Cassian?
- Por enquanto, não - Jonas respondeu. - Quanto menos pessoas souberem, melhor.
Magnus não gostava de guardar segredos de Cleo, mas Jonas tinha razão.
- Tudo bem. Vamos manter esse assunto entre nós quatro.
Jonas assentiu.
- Então, resolvido. Taran e Felix partem amanhã cedo.
17
CLEO
PAELSIA
- Você viu o príncipe Ashur por aí? - Nic perguntou.
Cleo desviou o olhar do livro sobre a vida do chefe Basilius que tinha escolhido na estante do andar de baixo. Seus pensamentos estavam tão dispersos que ela devia ter lido a mesma página dez vezes - que
contava sobre os cinco casamentos dele.
Nic estava parado na porta do quarto dela. Enzo estava de guarda do lado de fora, um protetor constante, mas ela tinha deixado claro que Nic podia interrompê-la.
- Hoje não - ela admitiu, ainda chocada por ter visto que o príncipe tinha renascido dos mortos. - Por quê? Isso é estranho?
- Ele gosta de sair por aí sem avisar ninguém. - Ele ficou sério. - Você acha que ele está diferente? Não sei dizer.
- Para mim, ele está igual, mas não o conheço muito bem - ela admitiu.
- Nem eu.
- Ah, não sei. Às vezes não precisamos de anos para conhecer alguém. Algumas conversas são mais do que suficientes para saber como a pessoa é.
- Se você acha...
Cleo sabia que Nic e Ashur eram bem próximos, a ponto de seu amigo ter sentido muito a perda do príncipe. E também sabia que existia mais do que uma simples amizade entre os dois, mas emoções que os dois
estavam apenas começando a explorar. Talvez agora nunca mais se resolvessem.
- Parece que Taran e Felix também sumiram - ela disse. - Onde eles estão?
- Ótima pergunta. Pensei que Jonas fosse meu parceiro, mas parece que ele tem negócios com Magnus agora.
- O quê? - Só de pensar, ela sentiu vontade de rir. - Se você viu os dois conversando, é bem provável que o assunto seja o rei.
Desde que Jonas conseguira - ainda que não tenha conseguido - cravar a adaga no peito do rei, dois dias antes, Gaius não saía do quarto, com a mãe a seu lado o tempo todo, temendo que o filho estivesse
perto demais da morte e não sobrevivesse tempo suficiente para receber a magia secreta e restauradora que ela prometera.
Cleo temia que, se o rei morresse antes de a bruxa encontrar Lucia, ela se recusaria a ajudá-los, mas não se incomodava em imaginá-lo sofrendo em um quartinho em Paelsia.
Um fim adequado para um monstro.
Como será que Gaius Damora era quando conheceu a mãe dela? A que horrores ele teria submetido Elena Corso? Era uma pergunta que a perseguia desde que ele dissera o nome dela.
- Você confia nele? - A voz de Nic interrompeu seus pensamentos.
- Em quem? Magnus?
Ele riu.
- Não, claro que não estou falando de Magnus. Em Jonas.
Ela confiava em Jonas, o garoto que a tinha sequestrado e aprisionado - não uma, mas duas vezes - e que, em determinado momento, quis que ela morresse por presenciar o assassinato de seu irmão?
Mas também era o garoto que se tornara um líder. Que lutara por seu povo. O garoto que tinha arriscado a própria vida para salvar a dela.
- Confio nele, sim - ela admitiu.
Muita coisa podia mudar em um único ano.
- Eu também - Nic disse.
Ela assentiu.
- Se ele está falando com Magnus, deve ser importante.
- Ainda assim, não gosto de pensar que esteja escondendo alguma coisa de nós.
Cleo também não gostava, principalmente se fosse um segredo entre Jonas e Magnus. E jurou que conseguiria algumas respostas. Ela não gostava de ficar por fora das questões.
Naquele mesmo dia, a chance apareceu. Quando Magnus pediu para falar com Enzo no pátio, ela começou a procurar informações por conta própria na hospedaria. Logo encontrou algo possivelmente interessante
na sala de convivência: o caderno de desenho de Magnus.
Cleo já tinha visto Magnus desenhando nele, os dedos pretos por causa do carvão. Os limerianos não gostavam tanto de arte quanto os auranianos, que viam a beleza como um presente que o artista compartilhava
com o mundo por meio de sua visão singular. Mas quando um limeriano desenhava, precisava ser bem semelhante ao original para ajudar na referência e no aprendizado.
Para isso, Magnus tinha passado um verão tendo aulas de arte na Ilha de Lukas muitos anos antes, uma viagem que muitos nobres e jovens da realeza - incluindo a mãe e a irmã de Cleo - faziam na juventude.
Ela já tinha visto o antigo caderno de Magnus, no qual havia desenhos incrivelmente detalhados da flora e da fauna... além de vários retratos de Lucia, cada um feito com admiração indiscutível e atenção
a cada centímetro do rosto perfeito da irmã.
Mas aquele era um caderno novo, o que deixou Cleo extremamente intrigada.
- Eu não devia olhar - ela disse a si mesma. - Magnus não me deu permissão.
Mas esse argumento nunca tinha funcionado.
O primeiro desenho era do jardim, um rascunho rápido, mas as dimensões e a precisão eram espantosas. Antes de abandonar aquele desenho, ele tinha se concentrado no detalhe de uma roseira, e mesmo com o
traço grosso do carvão, tinha capturado a beleza em tons de preto e cinza.
A segunda, a terceira e a quarta páginas tinham sido arrancadas sem cuidado.
Na quinta página, não havia um desenho, mas uma mensagem.
Espiando para encontrar um retrato seu, princesa? Desculpe, mas hoje não. Talvez um dia eu desenhe você. Ou talvez não. Vamos ver o que o futuro nos reserva.
M.
Cleo fechou o caderno envergonhada, e também irritada.
Quando ouviu gritos, correu para as janelas com cortinas de lona grossa que davam para o pátio nos fundos da hospedaria.
O príncipe estava empunhando a espada, mirando em Milo e Enzo, que também seguravam suas armas. Quando atacaram, Cleo soltou um grito de susto antes de perceber o que estava acontecendo.
Eles estavam treinando. E a julgar pela força de ataque de Milo e de Enzo, Magnus tinha pedido para os dois darem o melhor de si.
Será que ela nunca tinha visto Magnus assim antes, em guarda, a testa suada, bloqueando as armas dos guardas com a espada? Ela pensou que aquilo podia trazer lembranças horrorosas daquele dia - do dia
em que perdera Theon. Mas naquela visão Magnus era um príncipe sem habilidade comparado a um guarda do palácio, e ele sabia disso.
Sinto muito, Theon, ela pensou, o coração apertado. Não esperava sentir isso por Magnus. Mas sinto. Não posso mais me apegar à sua lembrança. Não posso odiar o príncipe pelo que aconteceu, pelo que ele
fez naquele dia. Magnus está muito diferente agora.
Ou talvez Cleo tivesse mudado irreversivelmente.
- Na minha opinião, não estão lutando tanto quanto deveriam.
Cleo se assustou com a voz de Jonas. Ela o viu a seu lado, escondido até aquele momento, com os olhos arregalados.
- Está surpresa? - ele perguntou, achando graça.
- Você se aproximar de alguém em uma sala escura com certeza não é uma surpresa, rebelde.
Jonas sorriu, mas voltou a observar o trio do lado de fora.
- Será que o príncipe estaria disposto a me enfrentar?
- Se estivesse, certamente um de vocês acabaria morto.
- Sim, mas quem? - Sua sobrancelha, que estava arqueada, abaixou quando ele viu a expressão sofrida dela. - Em pouco tempo você estará livre desse acordo infeliz com ele, prometo.
Cleo conteve a resposta, tomando cuidado para não defender o príncipe. Ela ainda achava que era melhor ninguém saber a verdade sobre eles.
- Magnus, o rei e Selia são o caminho para as respostas de que preciso para liberar a magia da Tétrade - ela comentou.
- Eu já disse: tem um deus elementar dentro daquele cristal - ele falou de modo incisivo.
Seu tom de voz a fez se encolher. Depois que descobriu sobre os deuses elementares, dois dias antes, ela não conseguia parar de pensar no assunto e mal tinha pregado os olhos devido à gravidade da situação.
- Se tivermos a oportunidade de aproveitar essa magia sem deixar o deus escapar, ainda acho que é um objetivo que vale a pena buscar. Vamos perder muito se não conseguirmos esse poder para nos ajudar de
alguma forma, ainda que seja pouco.
Quando ela encarou Jonas, viu uma expressão séria, mas os olhos mais tranquilos.
- Não discordo totalmente.
Ela hesitou, mas só por um momento.
- É bom que saiba que, de acordo com Nic, você está escondendo dele a localização de Taran e Felix. Ele está bastante irritado com isso.
- Comecei a acreditar que o príncipe Ashur é tão mau quanto a irmã. Nic o conhece, mas não diz nada útil a respeito do que esperar dele. Gosto de Nic, mas não conto nenhum segredo que ele possa acidentalmente
revelar ao príncipe.
Outra pessoa entrou na sala e chamou a atenção de Cleo. Era Ashur, poucos metros atrás de Jonas.
- Jonas... - ela começou.
- Ashur diz que é um herói lendário renascido dos mortos para trazer paz ao mundo. Um monte de besteira. Ele não passa de mais um membro mimado da realeza criado com todas as regalias possíveis que só
precisa estalar os dedos para ter qualquer mulher linda que desejar. - Jonas franziu a testa. - Admito que isso seria uma vantagem.
Cleo limpou a garganta quando Ashur cruzou os braços diante do peito e inclinou a cabeça.
- Acho que você deveria... - ela começou.
- O quê? Falar com gentileza sobre alguém que confunde todo mundo porque está confuso em relação à irmã má e gananciosa que provavelmente vai destruir o mundo com sua sede por poder e magia? Ele poderia
tirar o poder dela com facilidade. Poderia se impor, reclamar o título de imperador, contar para todo mundo que Amara matou a família deles. Pronto.
Ela sentia uma pontada no peito a cada palavra verdadeira, mas mordaz, que Jonas dizia.
- Pode ter certeza de que não fico confuso quando se trata de Amara - Ashur disse em voz baixa.
Jonas fez uma careta.
- Você poderia ter me dito que ele estava bem atrás de mim, princesa.
- Você estava ocupado demais admirando o som da própria voz. - E, para ser sincera, as reclamações de Jonas sobre Ashur tinham reacendido a irritação que ela mesma sentia em relação ao príncipe kraeshiano.
Não, não era irritação. Era raiva, beirando a fúria.
- Espero que não esteja confuso em relação a sua irmã - Cleo falou para Ashur. - Ela cravou uma adaga em seu peito por tê-la contrariado.
- As últimas atitudes de Amara foram infelizes, mas eu já sabia que ela estava tomando esse rumo. Na verdade, culpo minha avó por colocar seus próprios planos de revolução em ação. É irônico que minha
madhosha derrube aqueles que também querem mudança no império. Ela tem muito mais em comum com os rebeldes do que pensa.
Cleo ficou olhando para ele, enojada.
- Infelizes... Você chama as escolhas de Amara de infelizes? Ela matou você, matou a própria família, e agora está matando todos os míticos que vê pela frente!
- Ela perdeu as estribeiras. A irmã que conheço, que eu conhecia, não resolve seus problemas com violência desnecessária.
- Sim, claro, os kraeshianos são conhecidos como um povo pacífico.
Ashur a observou atentamente.
- Você está infeliz comigo.
Ela olhou para Jonas e riu um pouco.
- Príncipe Ashur, por que eu estaria infeliz com você?
- Você é como Jonas. Não confia em mim.
- E deveríamos confiar? - Jonas perguntou. - Você não me conta nenhum de seus planos, desaparece por dias, fica isolado... Acha que eu deveria confiar em você mesmo assim?
- Você poderia tirar o trono de Amara - Cleo disse. - Se está tão interessado em ajudar o mundo, pode acabar com muito sofrimento simplesmente tornando-se imperador. Você é mais velho do que Amara. O trono
é seu por direito. Tem tanto medo dela assim?
Ashur riu com frieza ao ouvir aquilo.
- Não tenho medo de Amara.
- Teve medo suficiente para, supostamente, tomar uma poção para salvar sua vida - Jonas disse. - Sabia que ela planejava matá-lo?
O belo rosto de Ashur ficou sério.
- Eu não sabia. Não com certeza. E a poção que tomei... foi bem antes de minha viagem para, acima de tudo, me proteger do rei Gaius, caso ele tentasse usar minha presença em seu reino contra meu pai. Eu
nem imaginava que a poção funcionaria.
- Mas funcionou - Jonas disse. - Precisamos encontrar esse boticário ou essa bruxa ou quem quer que a tenha feito. Poções de ressurreição para todos. Magia assim poderia salvar muita gente.
- A magia da morte não é algo que se possa alterar - Ashur rebateu. - Não por qualquer motivo.
- Mas você alterou essa magia sombria para se salvar. - Cleo teve certeza de que o príncipe se encolheu diante da acusação, o que era incomum para ele. - Você se sente culpado por isso?
- Claro que não. - Apesar da resposta, Ashur não fez contato visual com ela.
- Chega de mentiras, Ashur. Se está tentando dar a impressão de que estamos todos do mesmo lado, precisa ser sincero conosco. Há mais coisas envolvidas nessa poção do que você quer revelar. Ela é perigosa,
não é?
- Muitas poções são perigosas. O veneno nada mais é do que uma poção com a intenção de matar.
Cleo inspirou e soltou o ar devagar, com a sensação de que estava prestes a descobrir um segredo.
- Aprendi que toda magia tem um preço. Que preço você pagou pela oportunidade de viver de novo?
- Aprendi que o preço da magia costuma ser o oposto da magia em si. Para ter muita força, você viverá momentos de grande fraqueza. Para ter prazer, haverá dor. E para ter vida... haverá morte.
- Então você matou alguém - Jonas disse, os braços cruzados e tensos. - Ou muitas pessoas. Acaba aqui o que você diz sobre altruísmo.
Ashur caminhou até a janela para olhar para fora, os braços cruzados.
- Você não sabe nada sobre mim, Jonas. Matei quando precisei. Nem sempre sou pacifista. O boticário me alertou do preço que eu teria que pagar, mas não acreditei. Amara pagou o mesmo preço, mesmo sem querer,
quando a ressuscitaram.
Cleo franziu a testa.
- Amara foi ressuscitada?
- Foi - Ashur respondeu solenemente, e então começou a contar para Cleo e Jonas o que tinha acontecido quando Amara era bebê e tinha sido salva de um afogamento pela magia negra e pelo sacrifício de sua
mãe.
Cleo percebeu que precisava sentar, pois tinha ficado abalada com a história. Em Auranos - e em Mítica -, apesar de serem valorizadas pela habilidade que tinham como mães, cozinheiras e enfermeiras, as
mulheres não eram impedidas de fazer outras coisas, se assim desejassem. E uma princesa podia ser a herdeira do trono do pai ou da mãe sem medo de ser assassinada apenas pelo suposto crime de ser uma mulher.
Cleo não sabia se admirava a mãe de Amara por valorizar a vida da filha o suficiente para sacrificar a própria vida ou se culpava a mulher por sua filha ter se tornado um monstro.
- Quem morreu por você? - Cleo perguntou em voz baixa.
O olhar distante de Ashur ficou sério, e antes de continuar, ele lançou um rápido olhar para Jonas.
- Eu não tinha certeza, mas sabia que alguém tinha morrido. Passei o mês tentando descobrir. Viajei, visitei amigos e ex-amantes. Foi alguém com quem passei um único verão. Eu não fazia ideia de que ele
ainda gostava de mim, de que nunca havia deixado de gostar... - Ele engoliu em seco. - De todas as pessoas que conheci, alguém que conviveu comigo apenas por alguns meses me amou tanto a ponto de morrer
por esse amor. Não consigo entender. Eu sabia o preço, mas o ignorei por egoísmo. Soube que ele sofreu por vários dias. Ele descreveu a dor como uma faca sendo cravada lentamente em seu peito. Me disseram
que nos últimos momentos, ele gritou meu nome. - Ashur ficou com os olhos azul-acinzentados marejados e respirou fundo. - A culpa que sinto pelo sofrimento, pela morte dele e pelo fato de eu ter apagado
qualquer chance que ele tinha de ter uma vida plena e feliz... isso vai me assombrar para sempre.
A sala ficou em silêncio enquanto Cleo tentava processar o que estava ouvindo. Aquele Ashur parecia mais o homem sincero que tinha oferecido, na noite de seu casamento, uma adaga nupcial kraeshiana para
tirar a vida da noiva infeliz ou de seu marido. Aquele Ashur não estava falando coisas confusas para desviar a atenção de seu sofrimento.
Mas, naquele momento, uma ideia lhe ocorreu.
- É por isso que você anda tão estranho com Nic - ela disse. - Ele não entende, acha que você está diferente, que seus sentimentos por ele mudaram, por tudo. Mas ele está enganado, não está?
Ashur não respondeu, mas olhou para baixo.
- Você teme que ele se apaixone por você e que você o machuque por causa desse amor.
Jonas ficou em silêncio, a testa franzida. Cleo esperava que ele não dissesse nada que fizesse o príncipe omitir a verdade.
- Eu tinha outros planos na ida a Auranos - Ashur disse finalmente. - Não queria que nada disso tivesse acontecido. Mas alguma coisa em Nicolo chamou minha atenção e eu não pude ignorar. Sei que deveria
ter ignorado. Só consegui complicar a vida dele e causar dor desnecessária. Mas agora não vou permitir que nada de ruim aconteça com ele por cometer o erro de gostar de mim.
- Nic merece uma explicação - Cleo disse, com um nó na garganta.
- É melhor que ele pense que meus sentimentos mudaram. - Ashur limpou a garganta. - Se me dão licença, acho que já revelei mais do que pretendia.
Cleo não disse nada para impedi-lo de sair. Ela estava pensando em muitas coisas ao mesmo tempo; algumas se conectavam, mas a maioria só aumentava sua confusão.
Por fim, ela olhou para Jonas.
- Então... - ele disse, ainda franzindo a testa. - Nic e Ashur, certo?
Ela assentiu devagar.
- Estranho... Pensei que Nic gostasse de garotas. De você, em especial. Não costumo me enganar com essas coisas.
- Você não está enganado. Ele gosta de garotas.
- Mas Ashur... - ele olhou para a porta - não é uma garota.
- Não fique pensando sobre isso, rebelde. Pode fundir seu cérebro. Saiba apenas que é complicado.
- E todas as coisas não são complicadas? - Jonas sentou ao lado dela. - Agora que conheço o segredo de Ashur e sei que não se trata de uma ameaça pessoal a você nem a mim, preciso me concentrar em pegar
a esfera que o rei escondeu. Você acha que está aqui na hospedaria?
- Nem imagino. Gostaria de saber. Eu ia dizer que... para liberar a magia precisamos do sangue de Lucia e do sangue de um Vigilante.
Surpreso, ele a encarou.
- Esse é o segredo?
Cleo assentiu.
- Isso impede o deus de sair?
- Não sei. Por isso é tão importante encontrarmos Lucia, descobrir mais informações com ela e o que deu errado com Kyan.
Os olhos castanhos de Jonas pareciam distantes.
- A profecia...
- O quê? - Cleo perguntou quando ele ficou em silêncio.
Ele balançou a cabeça.
- Deixa para lá. Conto mais quando descobrir se é verdade ou não.
- O problema é que não sei como encontrar um Vigilante. - Ela mordeu o lábio. - Claro que ainda deve haver alguns Vigilantes exilados vivos, mas acho que precisa ser um Vigilante pleno. Espero que Lucia
se disponha a ajudar quando chegar o momento.
- Não se preocupe em encontrar um Vigilante. - Ele ficou em silêncio por um momento. - Essa parte eu resolvo.
Ela olhou para ele, surpresa.
- Como?
- Olivia - ele sussurrou. - Ela é.
Cleo ficou boquiaberta.
- Você não pode estar falando sério.
- É outro segredo, mas vou confiar que você não vai contar a ninguém. - Jonas abriu o meio sorriso que ela sempre achou charmoso e frustrante, ao mesmo tempo. - Muita coisa foi sacrificada nesse caminho
que percorremos juntos. Muita perda para nós dois. Mas tento acreditar que sempre vai valer a pena, no fim.
Ela assentiu.
- Eu também.
- Acho que você precisa saber que a Lys gostava de você.
- Agora você está mentindo.
- Pode ser que nem ela soubesse, mas sei que ela respeitava você mais do que você pensa. Vocês têm uma coisa em comum: força. - A voz de Jonas falhou. - Só demonstram de jeitos diferentes.
Os olhos de Cleo começaram a arder ao ver Jonas se esforçando para não deixar as lágrimas escorrerem.
Ela segurou as mãos do rebelde, puxando-o para mais perto.
- Sinto muito por sua perda, Jonas. Estou dizendo isso do fundo do coração.
Ele só assentiu, olhando para baixo.
- Ela me amava. Só me dei conta disso quando já era tarde demais. Ou talvez eu tenha percebido e não estivesse pronto para aceitar. Mas agora eu entendo... Ela era perfeita para mim.
- Tenho que concordar.
- Poderíamos ter construído uma vida juntos. Uma casa, talvez até uma quinta. - Jonas sorriu de novo, mas um sorriso mais triste. - Filhos. Um futuro. Quem sabe o que poderia ter acontecido? Só tenho certeza
de uma coisa.
- De quê?
- De que Lys merecia alguém bem melhor do que eu.
- Não tenho a menor dúvida em relação a isso - Cleo concordou, satisfeita ao ver que a expressão surpresa de Jonas conseguiu apagar a dor em seus olhos. Ela abriu um sorriso caloroso. - Minha irmã acreditava
que quem morre se torna uma estrela no céu. Então todas as noites podemos olhar para cima e saber que estão cuidando de nós.
Ele parecia desconfiado.
- Isso é uma lenda auraniana?
- E se for?
Uma mecha do cabelo dela tinha caído sobre a testa, e Jonas a ajeitou atrás da orelha e deslizou a mão por seu rosto.
- Nesse caso, gosto de lendas auranianas.
Cleo encostou a cabeça no ombro dele, e os dois ficaram ali, confortando um ao outro. Havia uma ligação entre eles - algo muito forte que ela nunca havia conseguido ignorar. E houve uma época, não muito
tempo atrás, em que ela poderia ter amado aquele rebelde do fundo do coração.
E ela o amava, sim, mas não como Lysandra o havia amado.
Independentemente do que acontecesse, o coração de Cleo pertencia a outro.
18
MAGNUS
PAELSIA
Ficou claro para Magnus que Enzo e Milo estavam se controlando na luta, com receio de ferir um príncipe. Magnus deixou os dois sangrando como punição e voltou para a hospedaria, sentindo uma grande necessidade
de desenhar.
Ele parou na porta quando viu Jonas e Cleo na sala de convivência. Os dois estavam sentados próximos um do outro, falando baixo. Magnus se aproximou para ouvir, mas só conseguiu ver o rebelde acariciar
o cabelo de Cleo, sem que a princesa reclamasse, e, logo depois, seu rosto. Os dois se entreolharam por mais tempo do que o normal.
Magnus ficou muito irritado.
Por um lado, queria entrar ali com tudo, afastá-los e matar o rebelde antes de tirar Cleo da hospedaria e de perto dele para sempre.
Seu lado mais racional dizia que nem tudo o que via era o que imaginava e que ele não deveria tirar conclusões precipitadas.
Ainda assim, se entrasse ali e confrontasse os dois, alguém com certeza morreria.
Então ele saiu da hospedaria e desceu a rua até a taverna, resmungando ao pedir vinho ao taberneiro. Magnus perdeu a conta de quantas taças de vinho teve de beber até começar a se acalmar.
Já sabia que a princesa gostava do rebelde, que os dois tinham uma história romântica sobre a qual não queria pensar muito. Por que ela não desejaria alguém como Jonas? Alguém corajoso e forte - apesar
de pobre, ridículo e muito azarado com todos os que já tinham se alistado sob sua liderança rebelde.
Magnus também conseguia entender que alguém como Jonas, que olhava para a princesa como se ela fosse uma estrela brilhante na noite escura, podia ser tentador. Pelo menos quando comparado a Magnus, que
era sombrio, instável e afeito à violência.
Ele encarou a taça vazia.
- Com um milhão de outros problemas e questões para resolver, estou obcecado pensando por quem ela tem sentimentos. - Ele olhou meio embriagado para o atendente. - Por que meu copo está vazio?
- Peço desculpas. - O homem logo encheu a taça até transbordar.
Alguém sentou no banco de madeira a seu lado. Ele estava prestes a vociferar que precisava de espaço e que se o homem valorizava a própria vida, deveria ir para outro lugar, mas então percebeu quem era.
- O vinho nunca ajuda uma pessoa a esquecer suas preocupações por muito tempo - seu pai disse, o rosto pálido e macilento como o de um cadáver por baixo do capuz grosso de seu manto preto.
Como o rei tinha se isolado em um quarto no andar superior da hospedaria desde a noite da chegada, foi uma surpresa vê-lo ali. Magnus observou ao redor para ver se ele tinha trazido Milo para protegê-lo,
mas não viu o guarda em nenhum lugar. Talvez ainda estivesse tratando os ferimentos depois da luta.
Magnus ignorou o comentário do rei e tomou todo o vinho do copo antes de falar.
- Selia sabe que você está aqui? Não acho que ela aprovaria.
- Ela não sabe. Sua preocupação com minha morte iminente me tornou seu prisioneiro. Não ligo muito para isso.
- Não liga para a preocupação com sua morte iminente ou com o fato de ter sido feito prisioneiro? Não precisa responder. Tenho certeza de que as duas experiências são novas para você. - Magnus pegou o
vinho do atendente, e mandou o homem se afastar com um aceno. Então bebeu direto da garrafa.
- Antigamente, me rendia a pecados assim - o rei comentou.
- Ao vinho ao à forte autopiedade?
- Você está tendo problemas com a princesa?
- Aposto que isso o deixaria muito feliz, não?
- Saber que você deseja se afastar de alguém que acho que causará sua destruição? "Feliz" não seria bem a palavra que eu escolheria, mas, sim. Seria o melhor.
- Não vou falar sobre Cleo com você, nem agora nem nunca - Magnus resmungou, detestando o fato de sua mente estar tão nebulosa com o pai por perto. Ele preferiria ter controle total dos sentidos, mas era
tarde demais para se preocupar com isso depois de tomar tanto vinho.
- Escolha inteligente - o rei respondeu. - Ela sem dúvida não é meu assunto preferido.
- Esse ódio que você nutre por ela... - O príncipe pensou no assunto, no ódio aparentemente sem fim que o rei sentia por Cleo. - Deve ter a ver com a mãe dela, não?
- Sim, na verdade, tem.
Uma resposta direta. Que incomum - e profundamente curioso.
- Rainha Elena Bellos - Magnus continuou, encorajado pelo vinho que soltava sua língua. - Vi o retrato dela no palácio auraniano antes de você destruí-lo. Era uma bela mulher.
- Com certeza era. - O rei deu as costas e olhou com saudosismo para a rua escura pelas janelas da taverna. Magnus viu quando os lábios pálidos e fantasmagóricos sorriram discretamente.
Perceber a situação mexeu com ele.
- Você era apaixonado por ela - Magnus disse, chocado com as próprias palavras, mas sabendo que eram verdade. - Você era apaixonado pela mãe de Cleo. - A acusação fez o rei encará-lo de novo, os olhos
vermelhos um tanto arregalados, surpresos. Magnus demorou um pouco para assimilar a confirmação silenciosa e tomou mais um gole de vinho para molhar a garganta repentinamente seca. - Deve ter sido há muito
tempo, quando você era capaz de uma emoção tão pura.
O sorriso logo desapareceu do rosto pálido e desanimado do pai.
- Faz muito tempo. Essa fraqueza quase me destruiu, e é exatamente por isso que quis cuidar de você.
Magnus riu ao ouvir isso, uma risada alta que surpreendeu a ele próprio.
- Cuidar de mim? Ah, pai, não gaste saliva com essas mentiras!
O rei socou o balcão.
- Você é cego? Totalmente cego? Tudo o que fiz foi por você!
A força da ira repentina fez Magnus derramar parte do vinho na túnica. Ele olhou feio para o pai.
- Estranho eu ter esquecido isso quando você decidiu acabar com a minha vida e com a vida da minha mãe.
- A morte seria um alívio deste mundo para muitos de nós.
- Não vou esquecer nada que você fez, a começar por isso. - Magnus apontou a cicatriz no lado direito do rosto. - Você lembra desse dia tão bem quanto eu?
O rei contraiu o maxilar.
- Lembro.
- Eu tinha sete anos. Sete. Você se arrependeu por um momento que seja?
O rei semicerrou os olhos.
- Você não deveria ter tentado roubar o palácio auraniano. Se tivesse conseguido, a vergonha teria sido grande.
- Sete anos! - A garganta de Magnus ardeu porque ele gritou. - Eu era apenas uma criança cometendo um erro, tentada por uma coisa brilhante e linda, uma vez que eu levava uma vida cinza e sem graça num
palácio cinza e sem graça. Ninguém ficaria sabendo que peguei aquela adaga! Que diferença faria?
- Eu ficaria sabendo - o rei disse. - A adaga que você pretendia roubar era de Elena. Eu ficaria sabendo porque fui eu quem deu a adaga a ela, quando era um garoto ingênuo tentando impressionar uma moça
bonita. Não sabia que ela a tinha guardado, que ela a tinha valorizado e exposto o tempo todo em que ficamos separados. Quando a vi em suas mãos seis anos depois da morte dela... não pensei. Simplesmente
reagi.
Magnus percebeu que não tinha uma resposta na ponta da língua. Com suas perguntas respondidas depois de tanto tempo, ele não conseguia processar tudo depressa.
- Não justifica o que você fez.
- Não, claro que não.
Magnus desviou o olhar do rei e tentou se concentrar em outra coisa, qualquer coisa. Ajudou perceber que o mundo ia além daquela conversa. Um homem enorme veio em direção ao bar carregando muitos copos
vazios, a túnica subindo o suficiente para deixar a barriga peluda à mostra. Uma atendente afastou a mão de um marinheiro com um tapa tímido. Os músicos no canto da taverna tocavam uma música animada,
e muitos batiam palmas. Vários outros dançavam em uma mesa.
- O poder é tudo o que importa, Magnus. O legado é tudo o que importa. - O rei dizia isso como se tentasse convencer a si próprio. - Sem ele, somos como camponeses paelsianos.
Magnus já tinha ouvido aquelas bobagens tantas vezes que já haviam se tornado mais do que palavras sem sentido.
- Diga uma coisa: Elena Bellos retribuiu seu amor ou foi só uma obsessão triste e impossível que transformou seu coração e sua alma em gelo?
O pai demorou tanto para responder que Magnus pensou que ele tinha levantado e ido embora. O príncipe desviou o olhar da taverna movimentada para ver se o rei ainda estava a seu lado.
- Ela me amava - Gaius disse, por fim, a voz quase inaudível. - Mas o amor não foi suficiente para resolver nossos problemas.
Magnus segurou a garrafa de vinho com força.
- Agora você vai me contar uma história de amor e perda... sobre um garoto e uma garota?
- Não.
Pensar que o pai mencionaria aquela história de amor épico sem contar tudo era previsível, mas ainda assim frustrante.
- Então por que você está aqui?
- Para contar a lição que aprendi. Amor é dor. Amor é morte. E o amor tira o poder de uma pessoa. Se eu pudesse voltar no tempo, gostaria de não ter conhecido Elena Corso. Desde aquela época, eu a odeio.
- Que romântico. Como se casou com Corvin Bellos, imagino que ela sentisse a mesma coisa.
- Tenho certeza disso. E agora lembro dela todos os dias, de tudo o que perdi, por causa daquela criatura mentirosa, Cleo. Ela se tornou sua fraqueza fatal, Magnus.
O ódio tinha voltado à voz de Gaius. Magnus encarou os olhos frios do pai.
- Seu ódio sem fim por Cleo me parece muito errado. Você deveria culpar a bruxa que amaldiçoou Elena. - Magnus suspirou, chocado ao perceber. - Você a culpa, não é? Por isso condenou tantas bruxas à morte
ao longo dos anos... Para pagarem pelo crime dela. Pode dizer que odeia Elena, mas ainda a ama, até mesmo depois de sua morte. Por qual outro motivo você teria tomado a poção de minha avó?
- Pense o que quiser. - Um músculo se contraiu no rosto do rei. - A poção era a única maneira de afastar o pesar e a dor e deixar apenas a força. Mas agora aquela força sumiu, desapareceu quando caí daquele
penhasco. A dor e o pesar voltaram, piores do que antes. E odeio isso. Odeio tudo nesta vida: o que tive que fazer, como passei todo esse tempo obcecado apenas pelo poder. Mas agora acabou.
- É o que anda prometendo.
Magnus precisava sair daquela taverna barulhenta e enfumaçada. Precisava de tempo e de espaço para esfriar a cabeça.
Quando levantou, o rei segurou seu braço.
- Imploro a você, meu filho, que mande Cleiona embora antes que ela o destrua. A princesa não ama você de verdade, se é o que você pensa. Independentemente do que ela disser, são apenas mentiras.
- O Rei Sanguinário implorando! Agora não falta mais nada. - Ele suspirou. - Já bebi demais por hoje. Foi um prazer conversar com você, pai. Tente voltar para a hospedaria sem morrer. Tenho certeza de
que sua mãe ficaria muito abalada se alguma coisa ruim acontecesse.
Ele saiu sem dizer mais nada, detestando a confusão de pensamentos e sentimentos.
Enquanto Magnus caminhava por uma rua estreita, alguém bloqueou sua passagem para o caminho principal com ombros largos e uma cara séria.
Não havia mais ninguém à vista.
- É, acho que reconheci você uma noite dessas - disse o homem. - Você é o príncipe Magnus Damora, de Limeros.
- E você está redondamente enganado. Desculpe pela decepção. - Magnus tentou passar acotovelando o homem, que levou a enorme mão à garganta dele, puxando-o para tão perto que Magnus conseguiu sentir seu
hálito de cerveja.
- Dez anos atrás, seu pai queimou minha esposa viva, dizendo que ela era uma bruxa. O que acha de eu fazer a mesma coisa com você como vingança?
- Acho que você precisa me soltar agora mesmo. - Magnus arregalou os olhos para o homem. - Sua necessidade de vingança não tem nada a ver comigo.
- Ele está certo. - O rei deu um passo à frente e tirou o capuz. - Tem a ver comigo.
O homem olhou para Gaius, surpreso, como se não acreditasse no que via.
- Sinto muito pela morte de sua esposa - o rei disse, e uma única lamparina acima da saída da taverna iluminava seu rosto quase esquelético. - Odeio bruxas por mais motivos do que poderia mencionar aqui
e agora. Mas raramente executei uma que não estivesse envolvida com sangue e mortes. Se sua esposa está na terra da escuridão agora, é porque merece estar.
Com o rosto vermelho de ódio, o homem deu um passo à frente empunhando uma faca afiada. Magnus observou o pai de pé ali, sem se mexer, a pele amarelada, os ombros curvados. Ele não lutaria, não conseguiria
lutar por sua vida.
Gaius queria morrer?
A atenção do homem estava totalmente voltada para o rei naquele momento, e o ódio ardia em seus olhos quando ele avançou.
Magnus se moveu antes mesmo de se dar conta de suas intenções, segurou as mãos do homem e impediu que a faca acertasse o alvo.
- Se alguém tem o direito de matar meu pai, esse alguém sou eu - ele vociferou. - Mas não hoje.
Ele virou a lâmina afiada para afundá-la no peito do homem, que gritou de dor e desabou no chão. O sangue jorrou livremente do ferimento fatal.
Houve um momento de completo silêncio na rua até o rei falar de novo.
- Precisamos ir embora antes que alguém veja isso.
Magnus teve que concordar. Limpou o sangue das mãos no manto preto e os dois logo voltaram à hospedaria Falcão e Lança.
- Não pense que esse gesto mostra que não odeio você - Magnus disse.
O rei assentiu com seriedade.
- Eu o consideraria um idiota se não me odiasse. Ainda assim, apesar do ódio que sente por mim, quero lhe dar algo.
- O quê?
- O cristal do ar.
Não havia como o Rei Sanguinário entregar uma parte da Tétrade a alguém, nem mesmo ao próprio filho. E, ainda assim, Gaius levou Magnus ao andar de cima, ao quarto onde tinha ficado por dois dias.
Magnus observou o espaço.
- Onde está Selia?
- No pátio. - O rei indicou a janela com a cabeça. - Sua avó gosta de cumprir os rituais antigos todas as noites, a esta hora e sob o luar, por isso consegui sair.
O rei foi até a cama de palha, levantou as cobertas e passou a mão por baixo do colchão. Em seguida, franziu a testa.
- Ajude-me a levantá-lo - ele disse.
- Está tão fraco assim? Então você teria mesmo ficado parado, esperando aquele homem te matar?
- Faça o que estou mandando. - O olhar que o pai lançou foi muito mais familiar do que qualquer conversa sobre compartilhar e arrependimentos.
- Tudo bem. - Magnus foi até o lado de Gaius e levantou o colchão para seu pai procurar embaixo dele.
Os olhos vermelhos e marejados do rei foram tomados pelo susto.
- Não está aqui.
Magnus lançou um olhar desconfiado para o rei.
- Que conveniente, se considerarmos que você estava prestes a entregá-lo a mim. Por favor, pai, me poupe dessas dissimulações. Como se você fosse esconder um tesouro como aquele em um lugar tão óbvio!
- Não é dissimulação. Estava aqui. Andei muito debilitado para encontrar um lugar melhor onde escondê-lo. - Gaius ficou sério. - Aquela sua princesinha o roubou.
Só podia ser mentira. Mais uma mentira. Magnus não conseguia pensar em outra explicação, não para algo tão importante.
Antes que pudesse responder, o rei cambaleou com dificuldade para sair do quarto. Magnus o seguiu pelo corredor, onde Cleo ainda estava com Jonas.
Magnus não conseguia acreditar no que via. Precisou de todo o autocontrole possível para não transformar Jonas no segundo morto da noite.
Cleo levantou depressa quando o rei e Magnus entraram.
- O que foi? O que aconteceu?
- Você roubou o cristal do ar? - Magnus perguntou, incomodado com a maneira arrastada como estava falando.
- O quê? Eu... eu nem sabia onde estava!
- Sim ou não, princesa?
Cleo semicerrou os olhos e levantou o queixo.
- Não.
- Ela está mentindo - o rei disse.
- O rei das mentiras querendo acusar a princesa, não é? - Jonas quase cuspiu as palavras, os punhos cerrados. - Que ironia.
- Onde está o cristal da terra? - Magnus perguntou.
Cleo franziu a testa ao enfiar a mão no bolso e arregalou os olhos.
- Não está aqui. Mas estava, juro! Eu o carrego comigo o tempo todo!
Magnus sentiu uma náusea. Havia um ladrão entre eles. E quem quer que fosse, em breve ia se arrepender profundamente por suas atitudes.
Não demorou para que todos corressem até a sala para ver o que estava acontecendo. Milo e Enzo já empunhavam as armas, prontos para um combate.
Magnus observou o grupo. Estava todo mundo ali: Nic, Olivia, até Selia havia se unido ao grupo, com o rosto corado devido ao ritual da lua daquela noite. Todo mundo, menos uma pessoa.
- Onde está o príncipe Ashur? - Jonas perguntou, franzindo a testa. - Ele estava aqui mais cedo com Cleo e comigo.
- Eu não o vi hoje - Olivia respondeu. - Talvez tenha saído.
- Talvez. Alguém sabe aonde ele foi?
Enzo e Milo balançaram a cabeça em negativa.
Selia foi para o lado do rei pálido, que caminhava até uma cadeira para sentar.
- Gaius, querido, o que está fazendo fora da cama?
Magnus os ignorou, prestando atenção em Nic, que estava em silêncio. Enquanto os outros conversavam sobre o paradeiro do príncipe, Nic saiu da sala. Magnus imediatamente o seguiu pelo corredor em direção
à porta da frente.
Quando Nic notou que Magnus estava perto, seus ombros ficaram tensos.
- Está procurando alguém? - Magnus perguntou, com os braços cruzados.
- Quero sair para respirar um pouco de ar fresco.
- Ele levou os dois cristais, não levou? E contou a você sobre os planos.
Nic balançou a cabeça, mas não o encarou nos olhos. Magnus não tinha mais paciência para mentiras naquela noite. Ele puxou a frente da túnica de Nic e o jogou contra a parede.
- Onde está Ashur? - ele resmungou.
- Você está bêbado.
- Demais, mas não faz a menor diferença agora. Responda! Ashur roubou os cristais, não roubou?
Nic rangeu os dentes.
- Você acha que o príncipe me conta alguma coisa?
- Não faço ideia do que o príncipe sussurra em seu ouvido, mas não sou cego. Sei que tem algo entre vocês dois, que são mais próximos do que aparentam. E sei que você sabe mais do que está me contando.
Jonas se aproximou, tenso, vindo de um canto.
- O que está fazendo com ele?
Magnus não soltou o garoto.
- Nic sabe os segredos de Ashur e vou descobrir quais são.
- Responda à pergunta, Nic - Jonas disse, os braços cruzados. - Sabe para onde Ashur foi?
Nic riu.
- Como é? Vocês estão trabalhando juntos agora?
- Não - Magnus e Jonas responderam em uníssono, e então se entreolharam.
Nic suspirou.
- Tudo bem. O príncipe acabou de partir para ver a irmã. Tentei convencê-lo a não fazer isso, mas ele não ouviu nada do que eu disse. Está determinado a fazer o que puder para colocar juízo na cabeça dela
e, se não conseguir, vai exigir o título de imperador.
Magnus sentiu o estômago revirar.
- E ele levou para Amara os cristais do ar e da terra. Que lindo presente, considerando que Amara está com o cristal da água.
Por fim, Nic lançou um olhar preocupado.
- Ashur não faria isso.
- Não? - Magnus tentou continuar segurando a túnica de Nic para que o idiota não fugisse, mas sua visão estava turva. Vinho demais, rápido demais. Os efeitos só passariam ao amanhecer. - Talvez Amara tenha
retirado os cristais dos esconderijos com sua magia, e eles voaram em asas de borboletas para ela.
- Vou falar mais uma vez. - Nic semicerrou os olhos. - Me solte.
- E se não soltar? Vai chamar a princesa para salvá-lo?
- Odeio você. Desejo vê-lo morto e enterrado. - Ele olhou para Jonas, irritado. - Uma ajuda?
- Nic, você precisa pensar - Jonas disse com calma. - Se Magnus estiver certo em relação a Ashur...
Magnus lançou um olhar fulminante ao rebelde.
- Você acabou de me chamar apenas pelo meu primeiro nome?
Jonas revirou os olhos.
- Amara Cortas não pode ter mais poder do que já tem. E se o irmão dela levou os cristais da Tétrade, é a pior coisa que poderia acontecer. Ela pode liberar três deuses elementares como Kyan.
- Eu sei - Nic respondeu. - Eu entendo.
- Entende?
- Então a culpa é minha? Vai deixar sua majestade quebrar meu pescoço? Por quê? Por não ter conseguido impedir Ashur de fazer o que queria? Ele faz o que bem entende.
- Prometo que sua majestade não vai quebrar seu pescoço.
- Não vamos nos precipitar - Magnus disse, divertindo-se com o breve olhar assustado do garoto.
Ele nunca mataria Nic.
Cleo nunca o perdoaria.
- Você vai fazer o seguinte - Magnus disse. - Vai atrás de Ashur para impedi-lo de fazer alguma coisa idiota e imperdoável por senso de lealdade familiar kraeshiano bizarro e sem propósito. E vai recuperar
os cristais que ele roubou, custe o que custar.
Nic o encarou incrédulo.
- Não vou deixar Cleo de novo.
- Ah, vai, sim, com certeza. E vai agora. Você vai voltar com os cristais da Tétrade ou minha paciência com você vai acabar. - Magnus tentou organizar a mente confusa para encontrar uma maneira de fazer
Nic cumprir a ordem.
- Você pode até me odiar, mas viu que mantive sua preciosa princesa viva todos esses meses, enquanto outros a queriam morta. Juro pela deusa que vou parar de protegê-la se não fizer exatamente o que mandei.
Nic se encolheu, mas manteve o olhar firme.
- Cleo ficaria bem até mesmo sem sua ajuda.
- Talvez sim. Talvez não. Em tempos de guerra, e não se engane, é exatamente o que essa ocupação "pacífica" kraeshiana é, ninguém está seguro.
Nic ficou sem resposta. Apenas o observou furioso.
- Com ameaça ou sem - Jonas disse impaciente -, o príncipe está certo, Nic, você precisa ir atrás de Ashur. Nós dois precisamos. Eu deveria ter acompanhado Felix e Taran quando eles partiram. Não há motivos
para eu estar aqui.
- Não há motivos, rebelde? - Magnus lançou um olhar para ele. - Que esquisito. E pensei que você estivesse gostando de bajular a princesa, em busca de migalhas.
Jonas lançou um olhar raivoso para Magnus.
- Eu receberia muito mais do que você.
Magnus sorriu para ele.
- Não tenha tanta certeza disso.
Jonas ficou ainda mais sério.
- Terminamos por aqui. Nic, pegue o que precisa para ir ao complexo do chefe Basilius. Espero alcançar Ashur antes que ele chegue lá. E, Magnus?
- Sim, rebelde?
Jonas semicerrou os olhos.
- Se encostar em um fio de cabelo da princesa, juro por qualquer deusa em quem você acredita que vou fazer você implorar para morrer.
19
AMARA
PAELSIA
Um único falcão dourado voava em círculos sobre os cidadãos paelsianos reunidos para ouvir o discurso de Amara. A imperatriz estava em pé diante da janela aberta de seus aposentos, observando a multidão
de rostos ansiosos. Muitos estavam perplexos por estarem dentro da propriedade privada do ex-chefe; os portões tinham ficado trancados para o público durante o governo dele. Naquele dia, os paelsianos
viam pela primeira vez a cidade labiríntica, o que fez Amara lembrar muito da Cidade de Ouro, mas, em vez de metais e joias, a cidade onde estava era feita de barro, tijolo, pedra e terra.
- Vossa graça, gostaria que reconsiderasse esse discurso - Kurtis disse atrás dela. - A senhora está muito mais segura aqui dentro, principalmente com a notícia de rebeldes por perto.
Ela tirou os olhos da janela e se virou para o grão-vassalo onipresente.
- É por isso que tenho guardas ao meu redor o tempo todo, lorde Kurtis. Os rebeldes estão sempre por perto. Infelizmente, não posso fazer todos entenderem meu ponto de vista. Há quem se oponha ao reinado
de meu marido, ao reinado de meu pai. E há aqueles que se opõem ao meu também. Falarei com meus cidadãos hoje, aqueles que vão me apoiar sem questionamentos e aqueles que duvidam de minhas intenções aqui.
Preciso dar a eles uma esperança para o futuro... uma esperança que nunca tiveram.
- O que é uma atitude incrível, vossa graça, mas... os paelsianos são selvagens, violentos.
Amara considerou as palavras ofensivas.
- Há quem diga o mesmo dos kraeshianos - ela respondeu mais irritada. - Talvez você não tenha me ouvido até agora, mas falarei hoje.
- Vossa graça...
Ela levantou uma mão, decidindo parar de sorrir.
- Falarei hoje - ela disse com firmeza. - E ninguém vai me dizer que não posso fazer isso. Com a notícia dos rebeldes e com a discordância entre meus próprios soldados, preciso do apoio dessas pessoas
para o futuro de meu reinado. E não permitirei que ninguém diga o que posso e o que não posso fazer. Entendido?
Ele se curvou no mesmo instante, corado.
- Claro, vossa graça. Não quis desrespeitá-la.
A porta se abriu e Nerissa entrou, fazendo uma reverência.
- Está na hora, imperatriz.
- Ótimo, estou pronta. - Amara alisou a seda de seu vestido. Era o mesmo que usava nas ocasiões mais especiais em Kraeshia. Ela o levava sempre que viajava caso tivesse a oportunidade de vestir uma peça
tão esplêndida. A costura brilhante e as contas de esmeralda e ametista reluziam sob o sol paelsiano quando ela saiu de sua grande quinta.
Um grupo de guardas esperava Amara do lado de fora e, com Nerissa a seu lado, ela se aproximou do grande pódio em um palco de madeira bem acima da multidão de quatro mil pessoas reunidas lado a lado na
antiga arena do chefe.
Aqueles eram seus novos súditos. Absorveriam tudo o que dissesse e espalhariam a notícia de sua glória a quem quisesse ouvir. E em breve, seriam os primeiros a reverenciá-la como uma verdadeira deusa.
A multidão gritou e a atmosfera foi tomada por sons de aprovação. Ela olhou para Nerissa, que sorriu e assentiu, incentivando-a a começar.
Amara ergueu os braços, e a grande plateia ficou em silêncio.
- Eu me dirijo ao lindo povo de Paelsia, um reino que tem passado por muitos testes e muitas atribulações ao longo de várias gerações. - Sua voz ecoou nos pilares de pedra, o que ajudou a amplificar as
palavras de modo que até as pessoas nas arquibancadas pudessem ouvi-la. - Sou Amara Cortas, a primeira imperatriz de Kraeshia, e trago a vocês a notícia oficial de que não são mais cidadãos de Mítica,
uma tríade de reinos que os oprimiu por um século. Agora vocês são cidadãos do grande Império Kraeshiano. E seu futuro é tão brilhante quanto o sol que nos ilumina hoje!
A multidão comemorou, e Amara parou um instante para analisar os rostos, alguns sujos, de pessoas com roupas simples puídas, gastas pela sujeira e pelo tempo. Olhos atentos se voltaram para ela, olhos
que tinham assistido a muitos líderes fazerem promessas falsas e causarem dor e sofrimento. Ainda assim, ela viu uma esperança tímida até mesmo nos olhos dos mais velhos.
- Cuidaremos de sua terra - ela continuou. - Vamos torná-la rica de novo e pronta para as plantações que vão sustentar vocês e suas famílias. Vamos importar animais que servirão de alimento. E enquanto
continuarem produzindo o vinho pelo qual Paelsia é conhecida, os lucros serão de vocês, integralmente, pois prometo que não serão cobrados impostos kraeshianos sobre esse produto por vinte anos. As leis
que impediam a exportação do vinho a qualquer lugar que não fosse Auranos estão vetadas a partir de agora. Vejo Paelsia como um patrimônio maravilhoso do meu império e quero demonstrar isso cuidando para
que minhas atitudes sejam condizentes com minhas palavras. Vocês fazem bem em acreditar em mim, porque eu acredito em vocês. Juntos, vamos marchar para o futuro, de mãos dadas!
O barulho vindo da plateia aumentou, e, por um instante, Amara fechou os olhos e permitiu-se aproveitar o momento. Tinha sido por isso que ela se sacrificou tanto. Tinha sido por isso que ela fez o que
fez.
Por aquele poder.
Não fora à toa que seu pai havia tomado decisões tão precipitadas durante seu reinado. Aquela sensação diante da obediência, da adoração e da reverência era mesmo viciante.
Se ela conseguiria ou não cumprir o prometido, ainda precisava verificar.
Ela sentia a magia que havia na crença que emanava do povo paelsiano. Uma magia tão rica e pura na qual queria se banhar.
- Vossa graça! - Nerissa exclamou, assustada.
Amara abriu os olhos a tempo de ver uma flecha de relance, e então um de seus guardas a tirou do caminho. A flecha acertou o homem no pescoço, e ele caiu se debatendo no chão do palco.
- O que está acontecendo? - ela quis saber.
- O grupo de rebeldes que ameaçou vir aqui hoje... eles estão aqui! - Nerissa agarrou o braço dela. Duas outras flechas voaram na direção dela, bem perto, acertando outros dois guardas.
- Quantos? - Amara conseguiu perguntar. - Quantos rebeldes estão aqui?
- Não sei... - Nerissa ergueu a cabeça para olhar para a multidão quando outra flecha passou por ela. - Vinte, talvez trinta ou mais.
Amara observou chocada quando seu exército de soldados invadiu o mar cada vez maior de civis para capturar os rebeldes. Os soldados derrubavam qualquer pessoa que aparecesse no caminho, fossem rebeldes
ou paelsianos. A multidão entrou em pânico e tentou fugir. O caos se instalou, gritos de medo e de indignação eram ouvidos por todos os lados quando sangue começou a ser derramado.
Paelsianos empunharam armas, trocando rapidamente a expressão esperançosa pela de ódio, e começaram a lutar não só contra os soldados, mas uns contra os outros, facas cortando a carne, socos acertando
rostos e abdomens.
"Os paelsianos são selvagens, violentos", Kurtis tinha alertado.
Mães agarravam os filhos, chorando e correndo para todas as direções.
- O que vamos fazer? - Nerissa perguntou. Ela tinha agachado ao lado de Amara, e as duas se encolheram atrás do pódio.
- Não sei - Amara disse depressa, e se arrependeu de suas palavras.
Palavras de medo. Palavras de vítima.
Ela não ia se acovardar diante de rebeldes naquele momento - nem nunca.
O medo logo se transformou em raiva. Aquilo, fosse o que fosse, não fazia parte de seu plano. Aqueles que desejavam destruir sua chance de transformar aquele povo determinado em seu aliado, um povo que
já estava pronto para aceitá-la como líder, pagariam com a vida.
Amara levantou do esconderijo, punhos cerrados, quando alguém se aproximou do palco trás dela. Ela ouviu passos pesados na superfície de madeira.
Quando se virou, viu dois de seus guarda-costas caindo com a garganta cortada. Atrás deles, um rosto assustadoramente familiar.
- Bem, princesa, eu poderia apostar um monte de moedas de ouro que você não esperava me ver de novo.
Felix Gaebras apontava uma espada a poucos centímetros de seu rosto.
O rosto dele aparecia em seus pesadelos. Ou talvez os pesadelos tivessem sido premonições. Naqueles sonhos, ele tentava matá-la.
- Felix... você fez isso, tudo isso, só para chegar até mim - ela começou, dando um passo hesitante para trás para se afastar do jovem que acreditava estar morto fazia muito tempo.
Ele sorriu.
- Sinceramente? Eu estava só observando de longe. Foi uma coincidência feliz. Acho que há muitos outros rebeldes que querem derramar seu sangue. Mas parece que a honra será minha.
Ela olhou para a esquerda e viu três guardas correndo na direção de Felix, mas foram derrubados por outro jovem de cabelo escuro e expressão irritada.
- O plano não era esse, Felix - o rapaz gritou. - Nós dois vamos morrer por sua causa.
- Calado, Taran - Felix respondeu. - Estou retomando contato com uma antiga namorada.
Ao sentir a lâmina em seu rosto, Amara olhou para o tapa-olho preto que ele usava.
- Seu olho...
- Perdi. Graças a você.
Ela se encolheu.
- Sei que você deve me odiar pelo que fiz.
- Odiar? - Ele arqueou as sobrancelhas escuras, movendo de leve o tapa-olho. - "Ódio" é uma palavra muito leve, não acha?
Amara tentou ver se algum guarda se aproximava para ajudá-la, mas Taran, o amigo de Felix, os afastava com a espada e o arco que trazia.
Amara virou para a frente, para o olho bom de Felix, e disse com o máximo de arrependimento que conseguiu reunir:
- Não importa o que tenha enfrentado, minha bela fera. Juro que posso me retratar.
- Não me chame assim. Perdeu o direito de me chamar assim quando me abandonou e me deixou para morrer. - Felix encostou a lâmina no rosto dela de novo, fazendo-a olhar para a multidão. - Viu o que fez?
É culpa sua. Tudo o que você toca acaba em morte.
O olhar tenso de Amara passou pela multidão que tinha percorrido quilômetros para se reunir e ouvi-la falar. Muitos paelsianos estavam mortos entre os combatentes, pisoteados, assassinados pelas espadas
dos guardas ou por seus próprios compatriotas.
Felix tinha razão: era culpa dela. Um momento de vaidade, o desejo de sentir o amor de seus novos súditos depois de tanta dor e decepção, acabou em morte.
Tudo acabava em morte.
O mesmo falcão que ela vira sobrevoando a multidão grasnou alto o suficiente para Amara ouvir. No chão, alguém preso no meio do caos chamou sua atenção: um jovem de cabelo ruivo, cor rara de ser encontrada,
caminhava em direção ao palco.
Ela reconheceu o amigo de Cleo, Nic. Aquele com que Ashur tinha ficado obcecado.
Amara observou horrorizada quando dois paelsianos agarraram Nic e rasgaram o saco de moedas preso ao passador de sua calça. Nic tentou segurar o saco, e a faca de um dos homens reluziu à luz do sol antes
de ser fincada no peito dele.
Ela se assustou.
O corpo de Nic caiu no chão e logo se perdeu na multidão.
Aquilo era culpa dela, apenas dela.
Ela franziu a testa ao pensar nisso. Não... tinha sido azar de Nic, uma circunstância infeliz. Ela não tinha assassinado o amigo de Cleo com as próprias mãos. Amara se recusava a assumir a culpa pelo azar
de outras pessoas.
Apesar de ter odiado seu pai e seus irmãos com a mesma intensidade, a família Cortas não era nada fraca. Inclusive ela.
E além da família Cortas, as mulheres não eram fracas. Eram líderes. Campeãs. Guerreiras. Rainhas.
Amara tinha enfrentado inimigos muito maiores do que Felix Gaebras na vida.
Ela se forçou a falar de modo assustado quando virou para ele de novo.
- Você é maior do que isso, Felix. Matar uma garota desarmada? Não combina com você.
- Não combina comigo? Sou um assassino profissional, meu amor. Matar é o que faço melhor.
De canto do olho, ela observou o amigo derrubar mais dois de seus homens com uma só mão.
- Pense bem, governo um terço do mundo e controlo toda a fortuna. Quer ser um homem muito rico?
Ele levantou um dos ombros.
- Não.
Amara tinha esquecido que ele era diferente dos outros homens que conhecia - uma vantagem no começo, mas um problema no presente. - Mulheres, então. Dez, vinte, cinquenta garotas que desejem apenas você.
Felix abriu o sorriso mais frio que ela já tinha visto.
- E como eu saberia que não são vadias frias e dissimuladas como você? Não tem acordo, imperatriz.
Amara ficou com os olhos marejados. Fazia muito tempo que não chorava, mas chorar era um talento que desenvolvera desde cedo. Sabia que a maneira mais fácil para uma mulher evitar problemas ou castigos
era fingir fraqueza entre os homens.
As lágrimas logo começaram a descer livremente por seu rosto.
- Eu pretendia libertá-lo, mas me disseram que você já estava morto, assassinado em uma tentativa de fuga. Meu coração ficou destruído quando pensei que tinha perdido você para sempre. Deveria tê-lo incluído
em meus planos, mas eu estava com medo, muito medo. Ah, Felix, eu não queria que nada acontecesse com você, sinceramente! Eu... eu amo você! Sempre vou amar, não importa o que você decida fazer hoje!
Felix olhou para ela como se estivesse assustado com o que ouvia.
- O que disse? Que me ama?
- Sim. Eu amo você.
A ponta da espada se mexeu. Mas logo foi afastada.
- Bela tentativa, meu amor. Eu poderia até acreditar, se fosse um completo imbecil. - Felix sorriu para ela. - Hora de morrer.
Um instante depois, Carlos, que tinha subido no palco e conseguido passar por Taran, derrubou Felix. Antes que conseguisse recuperar o fôlego, Taran e Felix estavam diante dela, ajoelhados.
Nerissa voltou para seu lado, e Amara segurou a mão dela, apertando-a para ter a certeza de que a criada não tinha se ferido.
- Os outros rebeldes morreram, vossa graça - Carlos informou. O rosto dele sangrava devido a um corte profundo no nariz.
Amara respondeu assentindo brevemente e então olhou para Felix.
Ele deu de ombros de novo.
- Não posso dizer que não tentei.
- Devia ter sido mais rápido.
- Acho que gosto muito de falar. - Ele abriu um grande sorriso, mas seu olhar estava frio. Voltou-se para Nerissa por um instante antes de voltar a encarar Amara. - Vamos falar de novo sobre aquela oferta
do harém de lindas mulheres?
Amara tocou o rosto de Felix, levantando sua cabeça.
- Sinto muito pelo seu olho. Gostei daquele olho, assim como de outras partes suas. Por algumas noites, pelo menos.
- Devemos executá-los agora mesmo, vossa graça? - Carlos perguntou, com a espada ao lado do corpo.
Ela esperou o medo aparecer no único olho de Felix, mas ele manteve a pose desafiadora.
- Se eu poupá-lo, o que fará? Vai tentar me matar de novo?
- Num piscar de olhos - ele disse.
- Você é um grande idiota - Taran rosnou.
Sua bela fera a tinha entretido por um período. E ainda entretinha.
Apesar de tudo, Amara ainda se sentia atraída por ele. Mas não importava. Ele deveria ter morrido muito tempo antes, e não ser mais um problema para ela.
Amara assentiu para o guarda.
- Jogue os dois no fosso. Cuido deles mais tarde.
20
LUCIA
PAELSIA
- Ela é incrível. Totalmente linda e gloriosa. Parece mais uma deusa do que uma mera mortal, se quer saber. Tenho certeza de que vai salvar todos nós.
Lucia parou na barraca de frutas enquanto procurava uma maçã sem nenhuma imperfeição - pelo jeito, era impossível em Paelsia - e olhou para a vendedora que conversava com uma amiga.
- Concordo totalmente - a amiga disse.
Estariam falando da feiticeira profetizada?
- Desculpem minha grosseria, mas posso saber de quem estão falando? - Lucia perguntou. Era a primeira vez que falava em voz alta em mais de um dia, e sua voz falhou no início.
A vendedora olhou para ela.
- Ora, da imperatriz, é claro! De quem mais poderia ser?
- Sim, de quem mais, não é? - Lucia disse em voz baixa. - Então vocês acham que Amara Cortas vai salvá-las. Salvá-las do que, exatamente?
As paelsianas trocaram um olhar e viraram para Lucia um tanto impacientes.
- Você não é daqui, é? - Uma delas franziu os lábios enrugados. - Não, com esse sotaque, acredito que seja limeriana, não é?
- Nasci em Paelsia e fui adotada por uma família limeriana.
- Você teve muita sorte por ter escapado destas fronteiras tão cedo, então. - A vendedora virou para a amiga. - Se ao menos todos tivéssemos tido essa oportunidade...
As duas riram sem achar graça.
A paciência de Lucia estava acabando.
- Vou comprar esta maçã. - Ela guardou a fruta no bolso e entregou uma moeda de prata. - E também qualquer informação que puder me dar a respeito da localização da imperatriz.
- Com prazer. - A mulher pegou a moeda com ganância, semicerrando os olhos. - Por onde andou esses últimos dias, mocinha, para não saber tudo sobre a imperatriz? Perdida por aí?
- Mais ou menos. - Na verdade, ela estava recuperando as forças na hospedaria no leste de Paelsia até não aguentar mais e ter que fugir. Apesar da preocupação da atendente Sera com sua saúde, Lucia sabia
que precisava sair dali antes que sua barriga ficasse grande demais e ela não conseguisse mais levantar da cama.
Passou a mão pela barriga aparente e a comerciante notou, arregalando os olhos.
- Ah, minha querida! Não percebi que estava grávida. E já tão avançada!
Lucia gesticulou para indicar que ela não se preocupasse.
- Estou bem - ela mentiu.
- Onde está sua família? Seu marido? Não me diga que está sozinha aqui na feira hoje!
Parecia que o fato de estar grávida fazia os desconhecidos sentirem vontade de tratá-la com muito mais gentileza do que o normal. Tinha sido bom durante a viagem lenta e desconfortável para o oeste.
- Meu marido está... morto - ela disse com cuidado. - E agora estou procurando minha família.
A amiga da vendedora correu na direção de Lucia e segurou suas mãos.
- Meus mais sinceros sentimentos por essa perda tão dolorosa.
- Obrigada. - Lucia sentiu um nó repentino e irritante na garganta. Assim como a barriga inchada, suas emoções estavam muito mais intensas e difíceis de controlar.
- Se precisar de um lugar para ficar... - a vendedora disse.
- Obrigada de novo, mas não preciso. Só preciso de informações sobre a imperatriz. Ela ainda está em Limeros?
As amigas se entreolharam de novo, sem acreditar que Lucia pudesse estar tão desinformada a respeito daquelas coisas.
- A grande imperatriz Cortas está morando no antigo complexo do rei Basilius - a vendedora começou. - Ela vai fazer um discurso de lá amanhã, dirigindo-se a todos os paelsianos que puderem participar.
- Um discurso aos paelsianos. Por quê?
A vendedora olhou para ela com um pouco de compaixão.
- Bem, por que não? Talvez você tenha esquecido por causa dos muitos anos abençoados que passou em Limeros, mas a vida aqui em Paelsia é difícil.
- Para dizer o mínimo - sua amiga acrescentou.
A vendedora assentiu.
- A imperatriz vê nossos esforços. Ela os reconhece. E quer fazer algo em relação a isso. Ela valoriza os paelsianos como parte importante de seu império.
Lucia tentou não revirar os olhos. Ela não tinha percebido como Amara era uma manipuladora de primeira, sedenta por poder, nas poucas vezes em que conversara com a ex-princesa quando os Damora moraram
no palácio auraniano.
- Mas, claro, questiono a sabedoria da imperatriz por se casar com o Rei Sanguinário - a vendedora comentou.
- Desculpe - Lucia disse, olhando para ela. - Você disse que ela é casada com o Rei... San... com o rei Gaius?
- Sim. Mas também soube que ele está desaparecido no momento, junto com seu herdeiro. Vamos torcer para que a imperatriz tenha enterrado os dois a sete palmos da terra.
- Realmente - Lucia murmurou, sentindo o estômago embrulhado só de pensar. Sera não tinha dito nada sobre o casamento de seu pai com Amara. Seria verdade? - Eu... eu preciso ir. Preciso...
Ela virou e desapareceu em meio à multidão na feira.
Certa vez, Ioannes tinha guiado Lucia para encontrar e despertar a Tétrade com seu anel da feiticeira. Ela esperava que o mesmo encanto que usaram pudesse funcionar para ajudá-la a encontrar Magnus e seu
pai. No entanto, apesar de ter conseguido fazer o anel girar como fizera na época em seus aposentos no palácio auraniano, todas as tentativas de reaver o mapa brilhante de Mítica e determinar a localização
deles tinham fracassado. Enfraquecida por usar seus elementia, ela tinha que fazer paradas constantes ao percorrer o caminho a pé, junto com muitos outros paelsianos, até o complexo do antigo líder local.
Lucia se recusava a acreditar que sua família estivesse morta. Eles eram muito bem preparados para isso. E, se o rei tinha se casado com Amara - uma ideia tão ridícula que ela mal conseguia conceber -,
tinha feito isso por razões estratégicas, por poder e sobrevivência.
Sim, Amara era jovem e muito bela, mas seu pai era esperto e cruel demais para tomar uma decisão como essa movido por uma mera paixão.
Havia milhares de paelsianos reunidos do lado de fora do complexo quando ela finalmente chegou. O vilarejo mais próximo ficava a meio dia de viagem dali, mas levaria mais um dia, talvez dois, na situação
atual de Lucia, para chegar a Basilia, seu destino original.
Os portões altos e pesados rangeram ao se abrir, e a multidão adentrou o complexo. Lucia se concentrou tanto nas pessoas que a cercavam, procurando algum rosto conhecido, que mal viu os caminhos de pedra
e as casas de barro que levavam em direção à enorme casa de três andares no centro do complexo. Os paelsianos estavam sendo levados para uma ampla clareira, com fogueiras e vários assentos elevados de
pedra. Isso a fez pensar nas histórias que já tinha ouvido sobre como o chefe Basilius organizava competições entre os homens que queriam impressioná-lo com sua força e habilidade de combate. Ali, já tinham
ocorrido lutas mortais apenas para entretê-lo.
A multidão continuou crescendo, mas Lucia não ouviu nenhuma menção ao ex-chefe e a seus prazeres nos fragmentos de conversa ao seu redor. Só ouvia sobre a importância da nova imperatriz.
Lucia não imaginava que os paelsianos fossem tão fáceis de enganar. Eles acreditaram, por muitos e muitos anos, que o chefe Basilius era um feiticeiro.
Chefe Hugo Basilius. Seu pai biológico.
E aquela era a casa dele - o lugar onde ela teria sido criada se não tivesse sido roubada no berço.
Lucia olhou para as casas, ruas e a arena que formavam o complexo, esperando sentir uma sensação de perda da vida que deveria ter tido.
Mas não sentiu nada. Se havia um lar do qual sentia falta, era do palácio escuro cercado por gelo e neve em Limeros.
Quanto antes conseguisse deixar aquele reino seco e desagradável, melhor. Já tinha aprendido mais do que o suficiente sobre a cultura paelsiana quando a conheceu com Kyan.
Ela não ouviu boatos sobre o deus de fogo causando mais destruição e morte durante suas viagens. Segurava firme a esfera de âmbar que tinha escondido no bolso. Timotheus insistira que Kyan não podia morrer.
Mas, se era verdade, onde ele estava? O que estava planejando? Ela o havia ferido gravemente em sua batalha? Se não tinha, por que Kyan não havia voltado às Montanhas Proibidas para recuperar sua esfera
antes que Lucia a encontrasse?
Ela pressionou os dedos ao redor do cristal de âmbar ao pensar nisso. Seria forte o suficiente para lutar se ele a encontrasse naquele dia?
Lucia detestava admitir que não.
Não, não é bom o suficiente, ela pensou. Não há outra escolha. Tenho que ser forte.
- Ela é incrível, de fato - outro um velho corcunda paelsiano disse. - Se tem alguém que pode livrar nossa terra de sua doença mortal, é a imperatriz.
- Quero vingança pela morte de minha família - uma mulher mais jovem respondeu.
- Também quero - uma mulher mais velha concordou.
- De que doença estão falando? - Lucia perguntou.
- A doença da bruxa sombria - o velho resmungou. - A maldade dela destruiu esta terra e matou milhares de paelsianos com o toque de sua mão feia e retorcida.
Lucia mexeu as mãos.
- Ouvi falar dessas maldades...
- Maldades? - ele praticamente gritou com ela. Gotas de saliva do homem acertaram o rosto de Lucia, que limpou a face, fazendo uma careta. - Alguns dizem que Lucia Damora vai matar todos nós com sua magia
do fogo, que é uma feiticeira imortal, filha do Rei Sanguinário com uma demônia durante uma cerimônia de magia sanguinária! Mas eu a vejo como é: alguém que precisa ser morta antes que acabe machucando
outras pessoas.
Eles sabiam seu nome. E a odiavam o suficiente para desejar sua morte.
Não importava que o velho não tivesse incluído Kyan no relato. Já era um fato. Ela não podia voltar e mudar o que tinha acontecido.
Os paelsianos viam Lucia como uma bruxa demoníaca tirada das sombras como uma hera odiosa. Um pesadelo e uma doença que infestavam sua terra.
Ela nem tentou discutir, uma vez que estavam totalmente certos.
A multidão começou a gritar quando Amara finalmente subiu ao palco. Lucia tentou ver o máximo que pôde da bela moça, o cabelo comprido e escuro estava solto, o vestido de seda esmeralda com uma fênix brilhante
bordada. Quando ela ergueu as mãos. As pessoas ficaram em silêncio.
Amara falou de maneira clara e intensa sobre um futuro incrível para os cidadãos de Paelsia. Lucia não acreditava nas mentiras que ela despejava, mas, ao observar em volta, viu que as pessoas aceitavam
o que era dito como quem aceita um banquete delicioso.
A imperatriz parecia muito sincera em suas promessas. Lucia admirava a facilidade com que falava sobre mudar tudo o que estava errado no mundo. Sobre tomar decisões em nome daquelas pessoas que acreditavam
em cada uma de suas palavras.
Lucia estava ali, punhos cerrados, odiando Amara e esperando a chance de descobrir o que sua inimiga tinha feito com sua família.
E então, quase no mesmo instante, as lindas e falsas palavras que Amara dizia foram interrompidas. Alguém gritou e Lucia só entendeu o que estava acontecendo quando viu um guarda cair no palco, com uma
flecha enfiada na garganta. Outro guarda caiu, e mais um.
Uma tentativa de assassinato.
Isso não pode acontecer, Lucia pensou desesperada. Preciso muito perguntar a ela. Amara não pode morrer hoje.
Com muito esforço, Lucia acessou a magia do ar. Um vento frio e abundante envolvia seus braços e mãos em espirais transparentes enquanto ela avançava pela multidão em direção ao palco, usando a magia invisível
para tirar todo mundo de seu caminho. Os guardas kraeshianos pularam na multidão assustada e confusa com armas em punho e só provocaram mais pânico. Eles derrubavam quem os enfrentava ou cruzava seu caminho,
fossem rebeldes ou civis, o que só aumentou a confusão enquanto todos tentavam fugir.
Lucia se esforçou para enxergar o que estava acontecendo no palco. Amara e uma garota muito parecida com a criada que costumava acompanhar a princesa Cleo encolheram-se diante de um jovem alto que usava
um tapa-olho preto e empunhava uma espada.
A magia do ar frio de Lucia passou para a de fogo, pronta para queimar quem a impedisse de chegar a Amara. Alguém puxou seu manto, e ela olhou para a pessoa, pronta para fazê-la arder em chamas. Nicolo
Cassian olhou para ela, uma das mãos em seu manto, a outra pressionada contra um ferimento na barriga. Quando ele tossiu, sangue espirrou de sua boca.
Um ferimento mortal.
Lucia olhou de novo para o palco, mas um som engasgado a fez virar de novo para Nic, uma vítima dos guardas sedentos por sangue ou de um paelsiano assustado.
Não importava quem tinha feito aquilo. Ela conseguiu ver, com rapidez, que o ferimento era profundo e mortal. O que aquele garoto estava fazendo justamente ali?
Lucia não tinha magia suficiente para lutar contra milhares. Levou a mão à barriga ao observar a multidão, sabendo que precisava ir para um local seguro. Muitos estavam se pisoteando para voltar aos portões.
Ela deu um passo e então percebeu que Nic ainda a segurava.
- Prin... ce... sa... - ele disse, sem fôlego.
Ela o encarou, hesitante.
- Por favor... me ajude...
A vida se esvaía de seus olhos. Nic não tinha mais muito tempo. Mas ele era amigo próximo da princesa Cleo - uma garota que Lucia já tinha considerado uma amiga verdadeira, até ser traída por ela.
Mas o pai de Lucia tinha destruído a vida de Cleo, destruído todo o seu mundo.
Cleo tinha perdido tudo no último ano. Aquele amigo era o único resquício que a princesa auraniana tinha de sua antiga vida.
Se Nic morresse, Lucia não tinha dúvidas de que isso destruiria Cleo.
Lucia detestava quando sua consciência pesava, principalmente quando isso acontecia por causa de Cleiona Bellos.
Com cuidado, ela se agachou ao lado de Nic e afastou a mão que cobria o ferimento para, em seguida, levantar a túnica. Fez uma careta ao ver todo aquele sangue e as entranhas para fora.
- Diga a Cleo - Nic disse com esforço para respirar - que eu a amo... que ela é minha família... que eu... eu sinto muito.
- Poupe seu fôlego - Lucia disse. - E diga a ela você mesmo.
Lucia pressionou o ferimento cheio de sangue e canalizou toda a magia da terra que tinha dentro de si. Nic arqueou as costas e gritou de dor, e o grito estridente se espalhou pelo caos ao redor deles.
- Pare! Por favor! - Nic tentou impedi-la, afastá-la, mas estava fraco demais. Tinha perdido tanto sangue que Lucia não sabia se teria magia suficiente para curá-lo. Mas ainda assim, tentou. O capuz caiu
de sua cabeça, revelando o cabelo e o rosto, mas ela não se deu ao trabalho de puxá-lo de volta. Esgotou a energia e a força que tinha em uma tentativa de salvar aquele rapaz.
Pelo menos até alguém arrancá-la de perto dele. Ela virou, furiosa, e ficou frente a frente com um homem feio que escancarava um sorriso mostrando os dentes.
- Vejam o que encontrei! - ele anunciou, arrastando-a para longe de Nic até ela perdê-lo de vista. - A própria feiticeira atacando outro de nós! As mãos dela estão manchadas de sangue paelsiano!
Lucia tentou invocar magia do fogo ou do ar para afastá-lo, mas nada aconteceu. Ela fechou a mão, desesperada para fugir de quem a atacava.
- Olhe para mim, bruxa! - o homem disse.
Ela lançou um olhar para o homem, mas recebeu um tabefe no rosto tão forte a ponto de fazer seu ouvido zunir.
- Amarre-a! - alguém gritou. - Queime a bruxa como ela queimou nossos vilarejos!
Desorientada, ela foi arrastada pela terra seca, tropeçando nos próprios pés até seu agressor empurrá-la para longe. Ela caiu de joelhos com tudo no meio de uma roda de pessoas furiosas. Alguém jogou uma
pedra nela, acertando o lado direito de seu rosto com força, e Lucia gritou de dor. Levou a mão ao rosto e sentiu o sangue quente.
- Não sou quem você pensa que sou - ela conseguiu dizer. Levantou as mãos à frente do corpo. - Você precisa me soltar.
- Não, bruxa. Hoje você vai morrer por seus crimes cruéis. Estamos de acordo?
A multidão que a cercava expressou aprovação com gritos. Não havia misericórdia no olhar de ninguém. Alguém entregou uma corda grossa ao primeiro agressor.
- Deixe-a de pé - ele vociferou.
Alguém atrás de Lucia a levantou e amarrou seus punhos com força.
- Meus cumprimentos, princesa - uma voz estranhamente familiar soou em seu ouvido. - Pelo visto está causando mais problemas em Paelsia.
Jonas Agallon. Ela se esforçou para virar o suficiente e ver aquele olhar tomado de ódio.
- Jonas - ela disse -, por favor, precisa me ajudar!
- Ajudar? O quê? A grande e poderosa feiticeira não consegue se cuidar? - Ele estalou a língua. - Que tragédia. Parece que essas pessoas querem vê-la morta. Queimada viva, acho que foi o que ouvi, certo?
Parece um fim adequado para uma bruxa como você.
Sua mente estava a mil.
- Onde está meu pai? Meu irmão? Você sabe?
- É a última coisa com que você deveria se preocupar, princesa. Sinceramente. - Ele a virou e resvalou a mão na barriga dela.
Jonas franziu a testa.
- Isso mesmo - ela disse, agarrando todas as oportunidades que tinha de conseguir ajuda, ainda que fosse de alguém como ele. - Vocês vão tentar celebrar minha execução tão rápido agora que sabem que uma
criança inocente morrerá comigo?
- Inocente? - O olhar de Jonas não suavizou nem um pouco. - Nada que alguém como você poderia trazer a este mundo seria inocente.
- Eu não matei aquela moça. Foi Kyan. Ele... eu não consegui controlá-lo. Eu queria que ele parasse. Sinto muito por sua perda e me arrependo do que aconteceu naquele dia. Gostaria de poder mudar as coisas,
mas não posso.
- O nome daquela moça era Lysandra. - Jonas contraiu o maxilar, e ficou em silêncio por um momento enquanto os outros homens pediam para ir a um lugar mais adequado para queimar a bruxa. - Onde está Kyan?
- Eu... eu não sei - ela disse com sinceridade.
Jonas a encarou.
- Essa criança dentro de você drena sua magia, não é?
- Como sabe disso?
Ele franziu ainda mais a testa.
- Você já teria destruído tudo aqui se tivesse acesso a seus elementia, certo?
Ela apenas assentiu.
Jonas xingou em voz baixa.
- Eles precisam de você. Estão dependendo de você. E você está aqui, como uma idiota, prestes a morrer.
Se estivessem em outro lugar, em outro momento, ela teria ficado magoada ao ser chamada de idiota.
- Então faça alguma coisa em relação a isso. Por favor.
Depois de um momento de hesitação, Jonas empunhou a espada e a apontou para o homem que segurava a corda.
- Uma pequena mudança de planos. Vou levar a feiticeira comigo.
- Sem chance - o homem resmungou.
- Não há discussão. Estou vendo que nenhum de vocês está armado no momento. - Ele observou as pessoas do grupo. - Atitude estúpida, em uma multidão assim, não carregar uma arma, mas isso torna as coisas
mais fáceis para mim. Se nos seguirem, vão morrer. - Ele arregalou os olhos para Lucia. - Vamos, princesa.
Jonas pegou o braço dela e a puxou.
- Aonde vai me levar? - ela perguntou.
- Aos seus queridos pai e irmão. Que todos vocês apodreçam juntos na escuridão.
21
CLEO
PAELSIA
Quando percebeu que Nic, Jonas e Olivia tinham partido sem contar nada sobre seus planos, Cleo não ficou magoada. Ficou furiosa.
- Minha nossa, querida, você vai abrir um buraco no chão de tanto andar de um lado para o outro.
Cleo virou e viu Selia Damora olhando para ela. A mulher a deixava nervosa, mas felizmente as duas tinham se encontrado poucas vezes desde sua chegada. Era difícil acreditar que fazia só três dias que
estavam na hospedaria. Pareciam três anos.
- Meus amigos partiram sem se despedir - Cleo respondeu tensa, forçando-se a parar de roer a unha do polegar direito. - Considero esse comportamento imperdoavelmente grosseiro e desrespeitoso. Em especial
da parte de Nic.
- Sim, Nic. O rapaz de cabelo vermelho. - Selia sorriu. - Tenho certeza de que não fez por mal. Ele parece gostar de você.
- Ele é como um irmão para mim.
- Os irmãos costumam esconder segredos das irmãs.
- Mas não o Nic. - Cleo remexeu as mãos. - Contamos tudo um ao outro. Bom, quase tudo.
- Venha sentar comigo por um momento. - Selia sentou em uma espreguiçadeira e deu batidinhas no assento ao seu lado. - Quero saber mais sobre a esposa de meu neto.
Era a última coisa que Cleo queria, mas teve que fingir amabilidade. Seria inteligente de sua parte fazer amizade com uma mulher que logo teria acesso à magia, especialmente agora que a magia de Cleo tinha
sido roubada - ainda que Selia fosse uma Damora.
Só de pensar no que Ashur tinha feito, ela tremia de raiva. Como ele tinha conseguido roubar a esfera de obsidiana sem que ela notasse? Para Cleo, aquele cristal representava poder e um futuro repleto
de escolhas e oportunidades. Mas por ser preguiçosa e desatenta, a esfera tinha sido levada de baixo de seu nariz.
E não havia absolutamente nada que pudesse fazer.
Forçando um sorriso, Cleo sentou hesitante ao lado da senhora.
Selia não disse nada por um tempo, mas observou o rosto de Cleo com cuidado.
- O que foi? - Cleo perguntou finalmente, ainda mais desconfortável do que antes.
- Eu não tinha certeza antes... mas tenho agora. Vejo seu pai em você. Seus olhos são da mesma cor dos de Corvin.
A menção a seu querido pai a deixou tensa.
- Você tinha dúvidas a respeito de quem eram meus pais?
- No que diz respeito a meu filho e a... - ela hesitou - às dificuldades dele com sua mãe, sim, claro que tive muitas dúvidas ao longo dos anos. Achei que houvesse uma chance de Gaius ser seu pai.
O horror de pensar numa possibilidade daquelas a deixou enjoada de repente.
- Meu... meu pai? - Ela cobriu a boca com a mão. - Acho que vou vomitar.
- Ele não é seu pai. Tenho certeza disso agora que estou olhando para você.
Cleo tentou se manter calma, mas a insinuação inesperada da mulher a deixara atordoada.
- Minha... minha mãe não teria... de jeito nenhum...
- Sinto muito se a perturbei com isso. Mas não prefere ter certeza de que você e Magnus estão unidos apenas pelos votos e não pelo sangue? - Ela franziu a testa. - Minha nossa, você está muito pálida,
Cleiona.
- Nem sei por que sugere uma coisa dessas - ela disse.
- Não pensei que Gaius tivesse conseguido se encontrar com Elena depois da briga que tiveram, que sei que aconteceu bem antes de ela se casar com Corvin. Mas os filhos nem sempre contam tudo à mãe sobre
assuntos do coração, nem mesmo o filho mais atencioso e amoroso.
O modo como o rei expressara o que teriam sido suas últimas palavras, seu suspiro final, o nome da mãe dela... "Sinto muito, Elena".
- Só soube que eles se conheciam recentemente - Cleo disse, tensa.
- Eles se conheceram num verão vinte e cinco anos atrás na Ilha de Lukas, quando Gaius tinha dezessete anos, e Elena, quinze. Quando voltou para casa, Gaius já estava obcecado por ela, dizendo que iam
se casar com ou sem o consentimento do pai dele.
Cleo se esforçou para continuar respirando. Aquela história não parecia plausível. Soava como uma história de um livro cheio de fantasia e imaginação.
- Meu pai nunca disse nada a respeito... - Ela franziu a testa. - Ele sabia?
- Não faço ideia do que Elena pôde ter contado a Corvin sobre seus romances anteriores. Imagino que ele descobriu a verdade no fim das contas, ainda que apenas para se preparar melhor para proteger Elena.
- Protegê-la? Como assim?
A expressão de Selia ficou mais séria.
- Elena perdeu o interesse em Gaius quando voltou para casa. Não sei por quê. Imagino que fosse apenas uma novidade passageira para ela, uma maneira de passar o verão, conquistar o afeto de um garoto apaixonado.
Nada além disso. Quando descobriu essa mudança, Gaius... não aceitou muito bem. Confesso, amo meu filho profundamente, mas ele sempre teve um péssimo lado violento. Gaius foi atrás de Elena, exigindo que
seu amor fosse retribuído e, quando ela se recusou, ele a agrediu quase a ponto de matá-la.
Cleo sentiu mais uma onda de náusea. Sua pobre mãe, sujeita ao cruel Gaius Damora em sua pior versão.
Ela nunca detestara tanto o rei.
- Só espero que meu neto não seja exageradamente cruel com você a portas fechadas, minha cara - Selia disse delicadamente. - Homens poderosos, cheios de força e perigo... costumam ter acessos de violência.
As esposas e mães torcem para sobreviver a eles.
- Sobreviver? Não pode estar falando sério! Se Magnus um dia levantasse a mão para mim, eu...
- O quê? Você mal chega na altura do ombro dele, e Magnus deve ter o dobro do seu peso. A melhor coisa a se fazer nesse caso, Cleiona, é ser o mais agradável e compreensiva possível em todos os momentos.
Todas as mulheres devem fazer isso.
Cleo endireitou os ombros e levantou o queixo.
- Não tive o grande privilégio de conhecer minha mãe, mas se ela era um pouco parecida comigo ou um pouco parecida com minha irmã, então sei que ela não teria sido o mais agradável e compreensiva possível
diante de uma agressão, não importa de quem nem quando. Nem eu! Eu mataria quem tentasse me atacar!
Selia abriu um sorriso discreto.
- Meu neto escolheu uma garota com coragem e força para amar, assim como o pai dele. Eu estava testando você, é claro.
- Me testando?
- Olhe para mim, querida. Tenho cara de quem permitiria que um homem levantasse a mão para me bater?
- Não - Cleo respondeu com sinceridade.
- Exato. Fico feliz por termos conseguido conversar hoje, minha querida. Agora já sei tudo o que preciso saber.
Ela estendeu o braço, apertou a mão de Cleo e então saiu da sala.
Aquela tinha sido a conversa mais esquisita de toda a vida de Cleo.
- Talvez eu vá à taverna sozinha hoje - ela murmurou. - Por que Magnus é o único aqui que pode beber vinho em uma tentativa tola de fugir dos problemas?
Quando levantou, algo chamou sua atenção do lado de fora, nos fundos da hospedaria. Ela deu um passo para a frente. Olivia estava no quintal. Estranhamente, a moça não usava nada além de um lençol branco
enrolado no corpo, lençol que Cleo reconheceu das roupas de cama que a esposa do dono da hospedaria lavava todos os dias.
Independentemente da vestimenta, ver Olivia foi um grande alívio. Cleo levantou e saiu para se aproximar, observando ao redor com curiosidade.
- Olivia! Nic e Jonas estão com você? Aonde vocês foram?
A expressão de Olivia era de grande incerteza.
- Preciso sair de novo imediatamente, mas quis voltar antes para ver você.
- O quê? Aonde está indo?
- Está na hora de eu voltar para a minha casa. O caminho e o destino de Jonas se encontraram com sucesso, e meu tempo com ele está acabando.
- Desculpe. - Cleo balançou a cabeça, confusa. - O destino de Jonas? Do que você está falando, afinal?
- Não cabe a mim explicar essas coisas. Só sei que não posso mais cuidar dele, uma vez que talvez me sinta tentada a interferir. - Ela franziu a testa. - Isso deve soar ridículo para você. Sei que não
sabe quem sou de verdade.
- Você quer dizer que é uma Vigilante?
Olivia olhou para Cleo.
- Como sabe disso?
Cleo riu com hesitação ao ver a expressão de choque de Olivia.
- Jonas me contou. Ele confia em mim, você também deveria confiar. Prometo guardar seu segredo surpreendente, mas, por favor, me diga o que está acontecendo. Está chateada só por deixar Jonas?
- Não, não é o único motivo. Eu... eu fui ao complexo com Nic e Jonas, onde a imperatriz está no momento.
Cleo arregalou os olhos.
- Era onde você estava? Que plano imbecil foi esse?
- O príncipe Magnus ameaçou Nic - Olivia explicou. - Ele ameaçou você também, caso Nic não fosse atrás de Ashur para recuperar os cristais da Tétrade.
Cleo franziu a testa.
- Não pode ser. Magnus não faria isso.
- Garanto que fez. Caso contrário, Nic nunca teria se afastado de você. - Os olhos verde-esmeralda de Olivia brilharam de ódio. - É culpa do príncipe que isso tenha acontecido. Perdi Nic na multidão durante
a tentativa de assassinato de Amara. Eu o vi por apenas um momento quando ele foi atingido por uma lâmina. Eu... eu acredito que tudo terminou depressa.
Cleo balançou a cabeça quando a palma de suas mãos começou a arder e a suar.
- O quê? Não entendo. Ele foi atingido por uma lâmina? Que lâmina? Do que está falando?
A expressão de Olivia era só pesar.
- Nic está morto. Ele é um dos muitos mortos depois que os rebeldes fizeram uma tentativa de assassinato a Amara. Preciso sair de Mítica agora e peço a você que faça o mesmo. Você não está em segurança
aqui com alguém como Magnus, que mataria um rapaz como Nic. Não está certo, princesa, nada disso está certo. O mundo está fora de controle, e eu temo que seja tarde demais para salvá-lo. Sinto muito por
dizer isso, mas achei que você merecia saber.
Olivia soltou a mão de Cleo e deu alguns passos para trás, com uma expressão atormentada.
- Fique bem, princesa - ela disse. Depois disso, a pele escura e impecável se transformou em penas douradas, e seu corpo se transformou no de um falcão, e ela alçou voo.
Cleo a observou, surpresa demais com o que tinha ouvido para apreciar a magia verdadeira e inegável revelando-se diante de seus olhos.
Ela não sabia ao certo quanto tempo ficou em silêncio no pátio, olhando para o céu claro, até voltar para a hospedaria com dificuldade. Seus joelhos fraquejaram antes que ela alcançasse uma cadeira.
Seu corpo inteiro tremia, mas ela não chorou. Eram informações demais para processar. Inacreditável demais. Não podia ser verdade. Se fosse, se Nic estivesse morto, então ela também queria morrer.
- Você está bem? O que aconteceu?
Quando se deu conta do que estava acontecendo, Cleo percebeu que tinha sido levantada do chão por dois braços fortes.
- Está ferida? - Magnus afastou o cabelo dela da testa, envolvendo seu rosto com as mãos. - Que droga, Cleo, responda!
Confusa, ela percebeu a preocupação nos olhos castanhos profundos dele.
- Magnus... - ela começou, a respiração profunda e trêmula.
- Sim, meu amor. Fale comigo. Por favor.
- Diga a verdade.
- Claro. O quê? O que você precisa saber?
- Você ameaçou me matar se Nic não fosse atrás de Ashur?
A expressão sofrida dele, totalmente concentrada nela, aos poucos deu lugar à frieza da máscara que ele usava para encobrir suas emoções.
- Ele disse isso? Ele voltou?
- Responda. Você me ameaçou ou não?
Magnus encarou os olhos furiosos dela.
- Cassian precisava da motivação certa.
- Isso é um sim.
- Eu disse o que ele precisava ouvir para resolver a questão. Para...
Cleo deu um tapa tão forte no rosto dele que sua mão ardeu. Magnus levou a mão ao rosto e olhou para ela, atônito.
Ele franziu o cenho.
- Você ousa...
- Ele está morto! - Cleo gritou antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa. - Por causa do que você disse! Meu último amigo no mundo inteiro está morto por sua causa!
Ele parecia confuso.
- Não pode ser.
- Não pode? As pessoas não morrem quando se aproximam de você e de sua família monstruosa? - Ela passou os dedos pelo cabelo, desejando arrancá-lo pela raiz, desejando sentir dor física para poder se concentrar
em algo que não fosse seu coração despedaçado.
- Quem contou isso a você? - Magnus perguntou.
- Olivia voltou. Ela foi embora, então não pode forçá-la a fazer o que você quer.
- Olivia. Sim, bom, não sei quem Olivia é. Nem você. Só sabemos que ela é aliada de Jonas, um garoto que me odiava a ponto de me querer morto até pouco tempo atrás. Até onde sei, esse objetivo não mudou.
- Por que ela mentiria sobre algo assim? - A voz da princesa falhou.
- Porque as pessoas mentem para conseguir o que querem.
- Imagino que você saiba bem disso.
- Sim, e penso o mesmo sobre você, princesa - ele disse. - Entre nós dois, acho que você mentiu muito mais do que eu. Além disso, devo dizer que você viu Ashur morrer com seus próprios olhos, mas ele ainda
está vivo. Não existem provas de que Nic está morto. Só tem as palavras de alguém. Não se pode confiar em palavras, não nas palavras de qualquer um.
- Essa é a sua resposta? - Cleo olhou para ele, percebendo que mal conhecia a pessoa à sua frente. - Digo que um garoto que era como um irmão para mim foi morto por sua causa e você diz simplesmente que
mentiram para mim?
- É o que parece, não é?
- Você não assume responsabilidade por todo o mal que causou. Nunca! - Ela se esforçou ao máximo para se manter firme, para não se perder na dor e na raiva que entravam em conflito dentro dela. - Tentei
ver seu lado bom, mas você fez algo imperdoável. Vá em frente! - ela vociferou. - Tente se defender! Diga que Nic odiava você, então por que não desejaria que ele morresse? Vamos lá, faça isso!
- Não vou negar. A vida seria muito mais simples para mim se aquela pedra no meu sapato fosse retirada de uma vez por todas. Mas eu nunca desejaria a morte dele, porque sei como gosta dele.
- Gosto dele? Eu amo! - ela gritou. - E se ele realmente estiver morto, eu...
- O quê? Vai perder o resto de esperança que ainda tem? Vai se encolher e morrer? Por favor, você tem muito a ganhar ficando viva, lutando, mentindo e continuando a me usar sem pudor para conseguir o que
posso lhe dar.
Cleo olhou para ele, abismada.
- Usar você?
Magnus ficou sério.
- Você quer poder, magia. Ao ficar aqui comigo e tolerar a existência de meu pai, sabia que isso a levaria ao que deseja. Quando os cristais da Tétrade foram roubados, principalmente por sabermos o que
sabemos sobre eles, o que eu deveria pensar? Que você continuaria aqui para sempre? Fiz o que fiz por você, para ajudá-la a reaver sua chance de ter poder. Ashur parece valorizar Nic por motivos que não
compreendo. Se tem alguém que consegue entender aquele kraeshiano doido, eu sabia que era seu amigo querido. O mesmo amigo que mandou Taran cortar meu pescoço, devo relembrar.
Ele falava com Cleo como um desconhecido furioso, não como alguém que ela tinha passado a valorizar.
- E agora está me culpando por isso. Como ousa?
Magnus bufou.
- É impossível discutir com você.
- Então nem tente. Você não pode consertar isso, Magnus. Não pode nem começar.
- Se Nic ainda estiver vivo...
- Não importa. - Lágrimas correram por seu rosto. - Isso provou como somos diferentes. Você é incansavelmente cruel e manipulador, e agora vejo que isso nunca vai mudar.
- Posso ser sincero, princesa? Eu poderia dizer exatamente a mesma coisa sobre você. Talvez você preferisse que eu lidasse com o conflito colhendo flores e cantando, mas não sou assim. E você tem razão:
nunca vou mudar. Nem você. Uma hora você diz que me ama, mas prefere que cortem sua língua a contar esse segredo, até mesmo a seu amigo mais íntimo. Pelo amor da deusa! Que Nic não descubra que você se
mistura com pessoas como eu! Ele detestaria você por isso?
Cleo secou as lágrimas, irritada consigo mesma por demonstrar tamanha fraqueza.
- É muito provável que sim.
- Então isso prova que, entre ele e eu, você o escolheria.
- Num piscar de olhos - ela disse imediatamente. - Mas ele está morto.
Um músculo no rosto dele se contraiu.
- Talvez. E Jonas? Não pude deixar de notar que você estava praticamente sentada no colo dele ontem, sussurrando palavras de amor e incentivo.
- É o que você...? - Ela corou. - Jonas é muito mais homem do que você! Eu preferiria dormir com ele a dormir com você. Em qualquer dia, em qualquer momento. E nenhuma maldição me impediria.
- Vá para o inferno, Cleo. - O ódio tomou conta do olhar dele, que já estava frio. Magnus levantou o punho, os dentes travados em uma expressão feroz.
- Vamos - ela vociferou. - Bata em mim como seu pai batia na sua mãe. Você sabe que é o que quer.
- Como é? - Ele franziu a testa, olhou para o próprio punho com surpresa e o abaixou em seguida. - Eu... eu nunca agrediria você.
- Chega - ela disse, num sussurro. - Estou cansada daqui. Preciso pensar. - Ela se virou em direção à escadaria que levava aos quartos.
- Cleo... - Magnus chamou. - Vamos descobrir a verdade sobre Nic. Prometo.
- Eu já sei a verdade.
- Eu sei que posso ser horroroso às vezes. Eu sei. Mas... eu amo você. Isso não mudou.
Os ombros dela ficaram tensos.
- O amor não basta para consertar isso.
Sem olhar para trás, Cleo caminhou com o máximo de calma e lentidão até seu quarto e trancou a porta quando entrou.
22
JONAS
PAELSIA
Jonas teve que sair do complexo antes de encontrar Nic. Eles tinham sido separados depois da revolta rebelde. A multidão à espera da imperatriz tinha entrado em pânico, e as pessoas começaram a lutar umas
contra as outras e contra os guardas kraeshianos.
Sua visão do palco estava bloqueada, e ele se viu frente a frente com paelsianos irados e com a feiticeira que queriam matar.
- Pode olhar para mim com ódio - Lucia disse a ele enquanto se afastavam da confusão.
- Que bom que permite.
- Você me odeia. E, ainda assim, você salvou minha vida.
- É provável que eu tenha salvado a vida de uma dúzia de paelsianos que subestimaram sua capacidade de matar cada um deles.
- E você não me subestima?
- Não.
- Então sugiro que você me diga onde meu pai e meu irmão estão para que não tenha que colocar sua vida em risco por nenhum segundo a mais em minha companhia.
Jonas sabia que ela poderia cumprir uma ameaça, se quisesse. Ele temia quando pensava no poder daquela garota e no prejuízo e na destruição pela qual a responsabilizavam.
- Onde está o deus do fogo? - ele sussurrou.
Lucia arqueou as sobrancelhas. Jonas percebeu que ela estava chocada por ele saber quem - ou melhor, o que - Kyan era de fato.
- Já disse que não sei.
- Ele é o pai de seu filho?
Lucia deu uma risada alta e nervosa.
- Com certeza não.
- Não vejo graça nenhuma nisso.
- Não se engane, rebelde, nem eu.
- Continue andando - ele disse quando Lucia diminuiu o ritmo. - Pelo jeito você está pesada demais para ser carregada.
A resposta de Lucia ao insulto foi parar totalmente. Os dois tinham adentrado uma parte densa da floresta a caminho da cidade mais próxima, onde Jonas pretendia conseguir transporte para o oeste.
- Responda à minha pergunta: onde estão meu pai e meu irmão? Sei que ainda estão vivos. Só podem estar.
- Se eu responder à sua pergunta, que certeza posso ter de que você não vai acabar com a minha vida? - ele perguntou.
- Nenhuma.
- Exatamente. Por isso mesmo vou levá-la até eles.
Lucia se surpreendeu.
- Então eles estão vivos!
- Talvez - ele disse.
- E como posso acreditar que você quer me ajudar?
Jonas virou e levantou o dedo indicador para ela.
- Não se engane, princesa Lucia, não estou fazendo isso para ajudá-la. Estou fazendo isso para ajudar Mítica.
Ela revirou os olhos.
- Que nobre.
- Pense o que quiser. Não me importa. Você se recusa a responder às minhas perguntas, então me recuso a responder às suas. Nosso destino final não está muito longe, mas você precisa encontrar uma maneira
de lidar com minha presença e com meu ódio durante o trajeto que vamos percorrer juntos.
- Acho que não. Vou contar um segredinho para você, rebelde, a respeito de uma habilidade especial que descobri recentemente. Posso forçar você a dizer a verdade... e quanto mais resistir, mais vai doer.
Jonas virou para encará-la de novo, mais irritado do que intimidado.
- Você sempre foi má assim ou só começou quando descobriu que era uma feiticeira?
- Sinceramente? - Ela abriu um sorriso frio. - Só depois.
- Acho difícil acreditar nisso. Você e sua família... são maldade pura, todos vocês.
- E ainda assim você está nos ajudando. - Lucia franziu a testa discretamente. - Pelo menos, diga que estão bem, que saíram ilesos depois de tudo o que aconteceu.
- Ilesos? - Ele sorriu com ironia. - Não sei de nada. Finalmente tive a chance de enfiar uma adaga no coração do rei. Por azar, isso só o atrapalhou um pouco.
Os olhos dela brilharam, furiosos.
- Mentira.
- Bem aqui. - Ele indicou o peito. - Certeiro e profundo. Até girei. Foi tão bom que não consigo nem explicar.
Um instante depois, ele se viu no ar, voando até bater as costas no tronco de uma árvore com força suficiente para tirar seu fôlego.
Lucia se ajoelhou ao lado dele, apertando sua garganta.
- Olhe para mim.
Desorientado, Jonas encarou os olhos azul-claros dela.
- Diga a verdade - ela rosnou. - Meu pai está morto?
- Não. - A palavra foi dita com dificuldade.
- Você o apunhalou no coração mas ele não morreu?
- Exatamente.
- Como isso é possível? Responda!
Jonas não conseguia desviar daqueles olhos lindos e assustadores. A magia que ela tinha perdido - se é que isso de fato havia acontecido - estava de volta. E Lucia estava bem mais forte do que ele esperava.
- Algum tipo de magia... Não sei. Isso prolongou a vida dele.
- Magia de quem?
- Da mãe.... dele. - Jonas tinha certeza de que estava sentindo gosto de sangue, forte e metálico. Ele engasgou enquanto tentava resistir à magia.
Ela franziu ainda mais a testa.
- Minha avó morreu.
- Ela está viva. Não sei muito mais do que isso. - Ele fez uma careta pela dor de estar contando todas aquelas verdades. - Agora, me faça um favor, princesa.
Ela inclinou a cabeça, mas não cedeu nem um pouco.
- Dificilmente.
Jonas semicerrou os olhos e tentou, com toda a força, canalizar a própria magia como tinha feito sem querer no navio com Felix.
- Me solte.
Lucia soltou Jonas e caiu para trás como se tivesse sido empurrada pelo rebelde.
Tossindo e com a mão no pescoço, Jonas levantou e olhou para ela.
Percebeu que esboçava um sorriso. Olivia deveria estar enganada sobre o poder de sua magia. Jonas se permitiu um breve momento de vitória.
Lucia o encarou, com os olhos arregalados.
- Você pode canalizar a magia do ar? Um bruxo? Nunca soube sobre algo assim... Ou você é um Vigilante exilado?
- Prefiro evitar títulos, princesa - ele disse. - E, francamente, não sei o que sou, só que tenho que lidar com isso agora. - Ele levantou a camisa o suficiente para revelar a marca em espiral em seu peito,
que tinha ficado mais brilhante desde a última vez em que ele olhara, e agora cintilava num tom dourado que o fazia lembrar cada vez mais da marca de um Vigilante.
- O quê? - Lucia balançou a cabeça com os olhos arregalados. - Não compreendo.
- Nem eu. E juro, se essa é minha profecia, cuidar para que alguém como você volte para sua odiosa família sã e salva, vou ficar furioso. - Ele olhou para cima, para as árvores. - Olivia, está me ouvindo
onde quer que esteja? É a pior profecia do mundo!
- Quem é Olivia?
- Deixa para lá. - Ele olhou para Lucia, ainda deitada no chão. - Levante.
Ela tentou ficar de pé.
- Hum...
- Não consegue levantar, não é?
- Me dê um minuto. Minha barriga está um pouco esquisita no momento. - Lucia olhou feio para ele. - E, por favor, nem pense em me ajudar.
- Não pensei. - Jonas ficou observando enquanto ela rolava devagar e com dificuldade para o lado, e então levantava, batendo no manto para tirar as agulhas de pinheiro e a terra. - Você ainda não está
acostumada com sua situação? Já vi paelsianas grávidas, a poucos dias de dar à luz, cortando madeira de uma árvore inteira e carregando para casa.
- Não sou uma paelsiana - ela disse e hesitou. - Bem, não exatamente. E não tive tempo de me acostumar com minha "situação", como você diz.
Que moça esquisita.
- Você está grávida de quantos meses?
- Não que seja da sua conta, mas... cerca de um mês.
Jonas olhou para o corpo dela sem acreditar.
- É assim que funciona com as feiticeiras cruéis? Os bebês delas se desenvolvem muito mais depressa do que os bebês normais?
- Não tenho como saber. - Lucia cruzou os braços como se tentasse proteger a barriga. - Compreendo seu ódio por mim. Compreendo o ódio de todos por mim. O que fiz desde... desde que o pai desta criança
morreu é imperdoável. Sei disso. Mas essa criança é inocente e merece uma chance de viver. O fato de você, logo você, ter vindo ajudar alguém como eu... Você está marcado como imortal, mas afirma não ser
bruxo nem exilado. Isso deve significar alguma coisa. Você fala sobre profecias. Sei bem que sou o alvo de profecias. Para mim, isso quer dizer que essa criança é importante para o mundo.
- Quem é o pai? - Jonas perguntou. Ele não queria sentir pena pelo que Lucia estava passando nem deixar que a voz dela o emocionasse.
- Um imortal exilado.
- E você disse que ele está morto.
Ela assentiu uma única vez.
- Como? - Jonas perguntou. - Você o matou?
Lucia ficou em silêncio por tanto tempo que ele achou que ela não responderia.
- Não. Ele tirou a própria vida.
- Interessante. É essa a única maneira de escapar de suas garras sombrias?
O olhar de ódio de Lucia o fez recuar. Mas era mais do que isso. Os olhos dela estavam vermelhos, numa mistura de cansaço e tristeza.
- Desculpa - Jonas disse antes de pensar em outra resposta. - Acho que fui desnecessariamente grosseiro.
- Foi. Mas eu não esperaria nada menos de alguém que pensa que sou cruel. O que Kyan fez com sua amiga...
- Lysandra - ele disse com a voz embargada. - Ela era incrível... A garota mais forte e corajosa que já conheci. Ela merecia a vida que Kyan lhe roubou sem um segundo de hesitação. Ele estava mirando em
mim, eu deveria ter morrido naquele dia, não ela.
Lucia assentiu com tristeza.
- Sinto muito. Percebo que Kyan não é uma pessoa, não é alguém com sentimentos e necessidades como as dos mortais, e não é possível discutir com ele. Kyan vê todas as falhas e imperfeições deste mundo.
Ele deseja reduzir tudo a cinzas para poder recomeçar. Diria que ele é maluco, mas é fogo. Fogo arde. Destrói. Essa é a razão de sua existência.
- Kyan quer destruir o mundo - Jonas repetiu.
Ela confirmou.
- Por isso eu o deixei. Por isso ele quase me matou quando eu disse que não o ajudaria mais.
Jonas demorou um momento para absorver a informação.
- Você diz que o fogo destrói. Mas o fogo também cozinha comida e nos aquece em noites frias. Esse tipo de fogo não é cruel, é um elemento que usamos para viver.
- A única certeza que tenho é de que ele precisa parar. - Ela levou a mão ao bolso do manto e tirou uma pequena esfera de âmbar. - Esta era a prisão de Kyan.
Jonas ficou sem palavras por um momento.
- E você acha que pode prendê-lo de novo aí dentro e salvar o mundo?
- Pretendo tentar - ela disse apenas.
Ele observou o rosto de Lucia, determinado e sério olhando para a esfera de cristal. Ela parecia muito sincera. Podia acreditar nela?
- Pelo que sei a respeito do deus do fogo, a imperatriz não parece ser grande ameaça, certo?
Lucia guardou a esfera no bolso de novo.
- Ah, Amara provou que é uma ameaça. Mas Kyan é bem pior. Por isso, pode me considerar cruel, rebelde. Pode me considerar alguém que precisa morrer pelos crimes que cometi. Tudo bem. Mas saiba também que
quero tentar consertar parte do que fiz agora que consigo pensar com clareza de novo. Primeiro, preciso ver minha família. Preciso... - As palavras de Lucia foram interrompidas quando ela se inclinou para
a frente e chorou.
Jonas correu para o lado dela.
- O que foi?
- Dói! - ela disse. - Está acontecendo com muita frequência desde que saí. Ah... ah, minha nossa! Não consigo...
Lucia caiu de joelhos com as mãos na barriga.
Jonas olhou para ela, sentindo-se totalmente impotente.
- Droga. O que posso fazer? O bebê já está nascendo? Por favor, não me diga que o bebê já está nascendo.
- Não, não está... Acho que ainda não está na hora. Mas isso... - Quando ela gritou, o som atingiu Jonas como uma lâmina fria. - Me leve para minha família! Por favor!
O rosto da princesa estava pálido como papel em contraste com seu cabelo escuro. Ela revirou os olhos e caiu, inconsciente.
- Princesa - ele disse, tentando acordá-la. - Vamos, não temos tempo para isso.
Lucia não acordou.
Jonas virou e olhou para o conflito. Não demoraria muito para a multidão paelsiana encontrar armas e sair em busca dele e da feiticeira.
Finalmente, xingando em voz baixa, ele se abaixou e pegou a princesa nos braços, percebendo que ela era muito mais leve do que imaginava, mesmo com o bebê que esperava.
- Não temos tempo para ir até sua família - ele disse. - Por isso vou levá-la à minha. Estão muito mais perto.
A irmã de Jonas, Felicia, abriu a porta de casa e observou Jonas por um momento, em silêncio total.
Em seguida, olhou para a garota grávida e inconsciente que ele carregava nos braços.
- Posso explicar - ele se apressou em dizer.
- Espero muito que possa. Entre. - Ela abriu mais a porta para Jonas entrar, tomando o cuidado de não bater as pernas de Lucia no batente.
- Deixe-a na minha cama - Felicia disse a Jonas. Ele fez o que sua irmã disse e voltou até ela, mas a irmã não o recebeu com um abraço. Simplesmente ficou ali, a expressão séria e furiosa, os braços cruzados.
Jonas não esperava que ela ficasse feliz ao vê-lo.
- Sinto muito por não ter vindo visitá-la - ele começou.
- Não tenho notícias suas há quase um ano e você aparece hoje de repente.
- Precisava de sua ajuda. Com... a garota.
Ela riu.
- Sim, com certeza precisa. O filho é seu?
- Não.
Ela não pareceu convencida.
- E o que você espera que eu faça por ela?
- Não sei. - Ele coçou a testa e começou a andar de um lado para o outro na casa pequena. - Ela não está bem. Sentiu dor na barriga e desmaiou. Eu não sabia o que fazer.
- Por isso a trouxe para cá.
- Eu sabia que você me ajudaria. - Ele suspirou nervoso. - Sei que você está brava comigo por eu ter passado muito tempo longe, mas era perigoso demais voltar.
- Sim, eu vi seus cartazes de procurado. O que era aquilo? Dez mil cêntimos para quem capturasse você, morto ou vivo?
- Mais ou menos isso.
- Você matou a rainha Althea.
- Não matei. É uma longa história.
- Imagino.
Ele observou ao redor, à procura de algum sinal do marido da irmã.
- Onde está Paolo?
- Morto.
Jonas a encarou.
- O quê?
- Foi tirado de mim, forçado a trabalhar para a Estrada Imperial. Eles queriam o nosso pai também, mas decidiram que, devido à idade e ao fato de mancar, ele era inútil. Paolo não voltou quando os operários
finalmente foram liberados de suas tarefas. O que devo pensar além de que foi morto com os outros paelsianos que eram tratados como escravos?
Jonas olhou para ela em choque. Paolo foi um bom amigo quando a vida era difícil, mas simples.
- Felicia, sinto muito. Eu não imaginava...
- Não, tenho certeza de que não imaginava. Assim como tenho certeza de que não pensou que manter aquela princesa dourada presa em nosso abrigo quase causaria a morte dele também.
- Claro que eu não sabia disso. - Ele olhou para o chão de terra. - Você... você disse que nosso pai não foi levado?
- Não foi, mas assim que soube da morte do chefe, ficou muito doente... doente de pesar, diferente de qualquer coisa que tenha sentido quando a mamãe e o Tomas morreram. É como se a vontade que ele tinha
de viver tivesse desaparecido. Eu o perdi faz dois meses. Agora cuido do vinhedo. São dias sobrecarregados, Jonas, com pouca ajuda.
Seu pai tinha morrido e Jonas não ficara sabendo. Ele sentou numa cadeira deixando o peso do corpo desabar.
- Sinto muito por não ter estado ao seu lado. Não sei o que dizer.
- Não há nada a dizer.
- Quando isso acabar, quando este reino voltar a ser como deveria, vou voltar. Vou ajudar você a cuidar da vinícola.
- Não quero sua ajuda - ela respondeu, e a raiva que Felicia estava controlando até aquele momento transbordou. - Consigo me virar sozinha. Bom, acho que já conversamos mais do que o suficiente. Vamos
cuidar de seu problema para você poder ir embora o mais rápido possível. Não sou curandeira, mas já ajudei muitas mulheres grávidas.
- O que você puder fazer para ajudar será muito bem-vindo. Eu só esperava que você soubesse acabar com a dor.
- Algumas gestações são mais difíceis do que outras. Quem é ela? - Ela lançou um olhar incisivo para ele quando não obteve resposta. - Diga, Jonas, ou mando você embora.
Felicia estava diferente, mais dura, mais zangada. Cada palavra dita por ela fazia Jonas se encolher.
Ele se sentia um idiota por pensar que quando voltasse nada teria mudado, mesmo depois de tanto tempo. Pensou em enviar uma mensagem, perguntar como as coisas estavam, mas não o fez. E o tempo tinha passado.
- Ela é Lucia Damora - ele respondeu com sinceridade, já que devia isso a Felicia.
Ela arregalou os olhos, chocada.
- O que você estava pensando ao trazer essa bruxa má aqui para dentro? Ela não é bem-vinda em minha casa. Tem noção do que ela fez? Um vilarejo que fica a menos de vinte quilômetros daqui foi incendiado.
Todos os moradores foram mortos por causa dela. Ela merece morrer pelo que fez.
Cada palavra parecia um golpe, e Jonas não tinha o que argumentar.
- Talvez sim, mas no momento a magia dela é necessária para salvar Mítica. Para salvar o mundo. Você não deixaria uma criança inocente sofrer por causa das escolhas da mãe, deixaria?
Ela deu uma risada seca.
- Ouça só você, defendendo uma princesa real... De Limeros, ainda por cima! Quem é você, Jonas? No que meu irmão se transformou?
- Amara não pode controlar Mítica - ele disse. - Estou disposto a fazer o que for preciso para impedi-la.
- Você está cego como uma toupeira, irmão. A imperatriz é a única que pode salvar a todos nós. Ou será que você esqueceu o passado com tanta facilidade agora que sua cabeça está tomada por aquela droga
cruel que está dormindo na minha cama?
- Minha cabeça não está tomada por ninguém - ele resmungou. - Mas sei o que é certo.
- Então precisa acordar. A imperatriz é o melhor que já aconteceu em Paelsia há gerações.
- Você está errada.
- Não estou errada - ela disse, e a raiva em sua voz finalmente deu lugar ao cansaço. - Mas não vou me dar ao trabalho de convencê-lo de algo que sei que é certo. Você se perdeu de nós, Jonas. Consigo
ver em seus olhos. Você não é o mesmo garoto que cresceu desejando ser como Tomas, que ia caçar com ele na fronteira de Auranos, que ia atrás de todas as garotas do vilarejo. Não sei mais quem você é.
Ele sentiu uma pontada no peito ao pensar que a tinha decepcionado tanto.
- Não diga isso, Felicia.
Ela deu as costas para ele.
- Vou deixar você e aquela criatura passarem a noite aqui. E só. Se ela morrer por causa da dor que está sentindo, então deixe-a morrer. O mundo vai ficar melhor sem ela.
Jonas deitou no chão de terra, ao lado do fogo, a mente em disparada.
Quando chegou ali, pelo menos tinha um senso de direção, de propósito. Precisava levar Lucia até a família dela.
Os Damora. O Rei Sanguinário que tinha oprimido seu povo. Que tinha assassinado o chefe Basilius. Que tinha mentido para dois exércitos sobre os motivos que deram início a uma guerra com os auranianos.
Felicia tinha razão. Amara Cortas tinha acabado com tudo aquilo ao ocupar Paelsia.
Como foi que ele pegou aquele caminho? Era um rebelde, não o criado tímido de um rei sádico.
Jonas demorou muito para conseguir dormir. Em um sonho, ele se viu em um campo verdejante sob o céu azul e límpido. Ao longe, uma cidade que parecia feita de cristal brilhava sob o sol.
- Jonas Agallon, finalmente nos conhecemos. Olivia me contou muito sobre você. Sou Timotheus.
Jonas virou e viu um homem que parecia só alguns anos mais velho do que ele. Seu cabelo tinha um tom bronze escuro, os olhos, acobreados. Usava vestes que desciam até a grama cor de esmeralda.
- Você está em meu sonho - Jonas disse devagar.
Timotheus arqueou uma sobrancelha.
- Que dedução brilhante. Sim, estou.
- Por quê?
- Imaginei que teria muitas perguntas para me fazer.
Apesar de tudo o que sentia por estar frente a frente com o imortal sobre o qual Olivia havia contado pouco, não sentiu surpresa nem cansaço.
- Perguntas que você vai responder?
- Algumas, talvez. Outras, provavelmente não.
- Não, tudo bem. Só me deixe dormir. Estou cansado e não quero ter que desvendar enigmas.
- O tempo está passando. A tempestade está quase aqui.
- Você fala assim, tão vago e irritante, com todo mundo?
Timotheus inclinou a cabeça.
- Na verdade, sim. Falo, sim.
- Não gosto. E não gosto de você. O que quer que isso seja - Jonas indicou a marca em seu peito -, quero que desapareça. Não quero nenhuma ligação com sua gente. Sou paelsiano. Não sou um Vigilante, nem
bruxo, nem o que você acha que sou.
- Essa marca torna você muito especial.
- Não quero ser especial.
- Você não tem escolha.
- Sempre tenho escolha.
- Seu destino está escrito.
- Vá se ferrar.
Timotheus hesitou.
- Olivia disse que você é irredutível em suas observações. No entanto, tenho certeza de que percebeu que agora tem um pouco de magia. A magia de Phaedra. A magia de Olivia. Você as absorveu como uma esponja.
Sua condição é rara e, repito, especial. As visões que tive de você são importantes.
- Certo. As visões. A profecia na qual levo Lucia Damora para a família dela.
- É o que você acha?
- Parece que é aonde meu destino está me levando.
- Não, não exatamente. Você vai saber quando acontecer. Vai sentir...
- O que sinto no momento é a necessidade de enfiar uma faca na sua barriga. - Jonas olhou para o imortal. - Ousa entrar no meu sonho agora, depois de todo esse tempo? Olivia me ajudou a ficar vivo, seguindo
o que você mandou. Acho que ela não precisa mais de mim. Ou talvez esteja me espionando lá de cima como um falcão, como todos vocês fazem. A única coisa da qual tenho certeza é que estou cansado disso.
Não importa o que você tem a dizer. Você espalha meias verdades como se a vida dos imortais fosse uma brincadeira.
Timotheus falou mais baixo.
- Não é uma brincadeira, meu jovem.
- Ah, não? Prove! Diga qual é meu destino, se acha que não posso evitá-lo.
Timotheus o observou.
- Não previ a gravidez de Lucia - ele admitiu. - Foi uma surpresa para mim, assim como tenho certeza de que foi para ela. Foi mantida em segredo de todos nós pelos Criadores, e deve haver um motivo para
isso... um motivo importante. Eu via você como alguém que ajudaria Lucia durante a tempestade...
- De que tempestade está falando?
Timotheus levantou a mão.
- Não me interrompa. Estou sendo sincero com você como nunca fui com ninguém, porque agora vejo que não há tempo para mais nada.
- Então, desembucha - Jonas disse. Ele estava frustrado com tudo na vida, e ele queria descontar naquele imortal pomposo.
- O filho de Lucia terá muita importância. Muitos desejarão sequestrar a criança ou matá-la. Você vai proteger essa criança do perigo e vai criá-la como se fosse seu filho.
- É sério? E Lucia e eu seremos o quê? Vamos nos casar e viver felizes para sempre? Duvido.
- Não. Lucia vai morrer no parto na próxima tempestade. - Ele afirmou com firmeza, franzindo a testa. - Estou vendo agora, claramente. Antes eu achava que a magia dela pudesse ser transferida a você no
momento da morte, transformando você em um feiticeiro que pudesse caminhar entre os mundos, cujo destino fosse aprisionar os deuses da Tétrade depois de serem libertados. Mas a magia de Lucia vai perdurar
no filho dela.
Jonas o encarou boquiaberto, surpreso com a revelação.
- Ela vai morrer?
- Sim. - Timotheus deu as costas para ele. - É só o que posso contar. Boa sorte, Jonas Agallon. O destino de todos os mundos está nas suas mãos agora.
- Não, espere! Tenho perguntas! Você precisa me contar o que tenho que fazer...
Mas Timotheus desapareceu naquele instante, assim como o campo e a cidade à distância.
Jonas acordou e viu a irmã o chacoalhando.
- Amanheceu - ela disse. - Sua amiga está acordada. Está na hora de vocês saírem da minha casa.