Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TEMPLO / Matthew Reilly
TEMPLO / Matthew Reilly

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

T E M P L O

Primeira Parte

 

AS CONSEQUÊNCIAS DA CONQUISTA

O  que nunca será demais sublinhar é que a conquista dos Incas pelos conquistadores espanhóis representa, talvez, o maior choque de culturas na história da evolução  humana.

Ali estava a nação de navegadores com maior domínio no mundo, trazendo consigo a tecnologia mais avançada da Europa, em colisão com o império mais poderoso que  alguma vez existiu nas Américas.

Infelizmente para os historiadores e, sobretudo, devido à sede insaciável de ouro  de Francisco Pizarro e dos seus sanguinários conquistadores, o maior império que  alguma vez habitou as Américas é também aquele sobre o qual menos sabemos.

A pilhagem do império Inca, por Pizarro e pelos seus homens de mão, em 1532,  deve figurar entre as mais brutais da História escrita. Armados com a mais  esmagadora das armas coloniais, a pólvora, os Espanhóis rasgaram o seu caminho  através das cidades e vilas Incas, com uma falta de princípios que teriam provocado  arrepios a Maquiavel, para utilizar as palavras de um comentador do século XX.

As mulheres incas eram violadas nas suas casas ou forçadas a trabalhar em imundos  bordéis improvisados. Os homens eram regularmente torturados: queimavam-lhes  os olhos com brasas e cortavam-lhes os tendões. As crianças eram enviadas, às  centenas, para a costa, de onde eram embarcadas nos temidos galeões de escravos e  mandadas para a Europa.

Nas cidades, as paredes dos templos eram completamente desnudadas. Placas e  ídolos sagrados em ouro eram derretidos e transformados em barras, sem que  ninguém se lembrasse sequer de se interrogar sobre a sua importância cultural.

Talvez a história mais famosa de procura dos tesouros incas seja a de Hernando  Pizarro, irmão de Francisco, e da sua laboriosa viagem até à cidade costeira de  Pachacámac, em busca de um mítico ídolo inca. De acordo com Francisco de Jérez,  na sua famosa obra, Verdadera relación de la conquísta de la Peru, as riquezas  pilhadas por Hernando, na sua marcha até ao templo-santuário de Pachacámac (não  muito longe de Lima) atingiram proporções quase míticas.

Do pouco que resta do império Inca - edifícios que os Espanhóis não destruíram,  relíquias de ouro que os Incas conseguiram fazer desaparecer, pela calada da noite -  o historiador moderno só pode colher uma pálida imagem do que foi uma grande  civilização, Aquilo que emerge é um império de contradições.

Os Incas não conheciam a roda e, no entanto, construíram a mais extensa rede de  estradas alguma vez vista nas Américas. Não sabiam trabalhar o ferro e, no entanto,  eram os melhores no tratamento de outros metais, nomeadamente do ouro e da  prata. Não tinha nenhuma forma de escrita e, no entanto, o seu sistema de registo  numérico, arranjos de fios multicolores chamados quipus, era extraordinariamente  preciso. Dizia-se que os quipucamayw, os temidos cobradores de impostos do  imperador, sabiam quando faltavam coisas minúsculas, como uma sandália.

Inevitavelmente, porém, o mais importante registo da vida quotidiana dos Incas  chega-nos através dos Espanhóis. Tal como Cortez tinha feito no México, uns  meros vinte anos antes, os conquistadores do Peru levaram consigo religiosos para  dar a conhecer o Evangelho aos nativos pagãos. Muitos destes monges e padres  acabavam por regressar a Espanha e transpunham para a escrita aquilo que tinham  visto. De fato, esses manuscritos podem ainda ser encontrados em mosteiros  espalhados pela Europa, datados e intactos. [pág. 2]

 

De: de Jérez, Francisco 

Verdadera relacíon de la conquista de la Peru (Sevilha, 1534)

O capitão (Hernando Pizarro) foi alojar-se, com os seus seguidores, em grandes  aposentos numa parte da cidade. Disse que vinha a mando do Governador  (Francisco Pizarro) buscar o ouro daquele templo e que era preciso recolhê-lo e  entregá-lo. Todos os homens importantes da cidade e aqueles que velavam pelo  ídolo se reuniram e disseram que o entregariam mas continuaram a dissimular e a  apresentar desculpas. Por fim, trouxeram muito pouco e disseram que mais não  tinham.

O capitão disse que queria ir ver o ídolo que eles guardavam e foi. Estava numa boa  casa, bem pintada e decorada no habitual estilo índio; estátuas de pedra  representando jaguares guardavam a entrada, esculturas de criaturas demoníacas  semelhantes a gatos cobriam as paredes. Lá dentro, o capitão deparou com uma  câmara muito escura e que cheirava muito mal, no centro da qual havia um altar de  pedra, sem nada. Na nossa viagem, tinham-nos falado da lenda de um ídolo, que  estava arrecadado no templo-santuário de Pachacánac. Os índios dizem que é o seu  deus e que foi ele quem os criou e quem os sustenta e que é ele a fonte do seu  poder.

Mas não encontramos nenhum ídolo em Pachacámac. Só um altar de pedra, numa  sala mal cheirosa.

Então, o capitão ordenou que a câmara onde o ídolo havia estado arrecadado fosse  deitada abaixo e os homens importantes da cidade procederam de imediato ao seu  arrasamento. Assim o fizeram também os guardas do ídolo. Uma vez completada  esta tarefa, o capitão ensinou aos aldeãos muitas coisas acerca da nossa Santa Fé  Católica e ensinou-lhes o sinal da cruz.

 

De: The New York Times 31 de Dezembro, 1998 - pág. 12

Estudiosos ficam loucos com manuscritos raros

TOULOUSE, FRANÇA: Estudiosos da Idade Média foram hoje presenteados com  um raro presente, quando, pela primeira vez em mais de trezentos anos, os monges  da Abadia de San Sebastian, um remoto mosteiro jesuíta nos Pirineus, abriram as  portas da sua magnífica biblioteca de textos medievais a um seleto grupo de peritos  não eclesiásticos.

Para este restrito grupo de acadêmicos, tinha especial interesse a oportunidade de  ver, em primeira mão, a famosa coleção de manuscritos, nomeadamente os de  Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus.

Foi, no entanto, a descoberta de alguns outros manuscritos, que havia muito se  julgava terem-se perdido que provocou gritos de alegria por parte do selecto grupo  de historiadores que teve acesso à labiríntica biblioteca da Abadia.

Tratava-se do códice perdido de São Aloísio Gonzaga, de um manuscrito, até agora  desconhecido, que se pensa ter sido escrito por São Francisco Xavier, e, mais  maravilhoso ainda, da descoberta da cópia original do Manuscrito de Santiago.

Escrito em 1565 por um monge espanhol chamado Alberto Luís Santiago, este  manuscrito obteve um estatuto quase lendário entre os historiadores medievais,  principalmente por se ter pensado que fora destruído durante a Revolução  Francesa.

Pensa-se que o manuscrito descreve, com uma brutal e cruel precisão, a conquista  do Peru pelos conquistadores espanhóis, nos anos 30 do século XVI. Acredita-se,  entretanto, que este manuscrito contém ainda o único relato escrito (baseado no  testemunho ocular do autor) dos «feitos» sangrentos de um capitão espanhol e da  sua demanda obsessiva de um ídolo precioso, através das selvas e montanhas do  Peru.

Mas, afinal, acabou por ser uma mostra estilo «ver com os olhos». Depois de o  último investigador ter sido, relutantemente, escoltado para fora da biblioteca, as  suas pesadas portas de carvalho foram firmemente trancadas nas suas costas.

Só nos resta esperar que não voltem a ficar assim por mais trezentos anos.

 

Abadia de San Sebastian 

Nos cumes dos Pirineus Franceses  

Sexta-feira, 1º. de janeiro 1998, 03:23

O jovem monge soluçava descontroladamente, enquanto o cano frio da pistola lhe  era encostado à testa, com firmeza.

Os seus ombros tremiam. As lágrimas escorriam-lhe pela cara.

- Por amor de Deus, Philippe - disse. - Se sabes onde está, diz-lhes!

O irmão Philippe de Villiers estava ajoelhado no chão da sala de jantar da abadia,  com as mãos atrás da nuca. À sua esquerda, estava ajoelhado o irmão Maurice  Dupont, o jovem monge que tinha a pistola apontada à cabeça, e, à sua direita, os  outros dezesseis monges jesuítas que viviam na Abadia. Todos eles se encontravam  de joelhos, alinhados lado a lado.

À frente de de Villiers e um pouco para a sua esquerda, de pé, estava um homem,  vestido com uniforme de combate preto e armado com uma pistola automática  Glock-18 e uma espingarda-metralhadora Heckler Koch G-11, a espingarda- metralhadora mais sofisticada que jamais fora fabricada. Naquele momento, a Glock  do homem de negro estava encostada à cabeça de Maurice Dupont.

Doze outros homens, vestidos e armados da mesma forma, encontravam-se  espalhados pela ampla sala de jantar. Todos eles envergavam máscaras de esqui  negras e estavam à espera da resposta de Phillipe de Villiers a uma pergunta muito  importante.  - Eu não sei onde está - disse de Villiers entredentes.

- Phillipe... - suplicou Maurice Dupont.

Sem aviso prévio, a arma encostada à cabeça de Dupont disparou, quebrando o  silêncio da Abadia semi-deserta. A cabeça de Dupont explodiu como uma melancia  e uma chuva de sangue espalhou-se por toda a cara de De Villiers.

Fora da abadia, ninguém ouviria o tiro.

A Abadia de San Sebastian situa-se no topo de uma montanha, a mais de 1800  metros acima do nível do mar, escondida por entre os picos cobertos de neve dos  Pirineus franceses. Estava «tão perto de Deus quanto possível», como alguns dos  monges mais velhos gostavam de dizer. o vizinho mais próximo de San Sebastian, a  famosa plataforma telescópica do Observatório Pic du Midi, ficava a quase vinte quilômetros de distância.

O homem que empunhava a Glock avançou para o monge à direita de De Villiers e  encostou-lhe o cano da arma à testa.

- Onde está o manuscrito? - perguntou o homem da arma a De Villiers, pela  segunda vez. Tinha uma forte pronúncia bávara.  - Já lhe disse que não sei - respondeu de Villiers.

Tiro! O segundo monge tombou para trás, produzindo um baque surdo ao cair no  chão, uma poça de líquido vermelho a jorrar do buraco fresco na sua cabeça.  Durante alguns segundos, o corpo contorceu-se involuntariamente, em espasmos  violentos, rebolando-se pelo chão como um peixe fora de água.

De Villiers fechou os olhos e rezou uma oração.

- Onde está o manuscrito? - repetiu o alemão.  - Eu não s...

Novo disparo. Outro monge caiu.

- Onde está?

- Não sei!

A arma troou de novo.

De repente, a Glock deu uma volta e, agora, estava diretamente apontada à cara de  De Villiers.

- Esta é a última vez que faço esta pergunta, irmão De Villiers. Onde está o  manuscrito de Santiago?

De Villiers manteve os olhos fechados.

- Pai-nosso que estais no Céu, Santificado seja o Vosso Nome... o alemão premiu o  gatilho.

- Espere! - gritou alguém, da outra ponta da fila.

O assassino alemão voltou-se e viu um monge mais velho erguer-se da fila de  jesuítas ajoelhados.

- Por favor, por favor! Basta, basta! Eu digo-vos onde está o manuscrito, se  prometerem que não matam mais ninguém.  - Onde está? - perguntou o assassino.

- É por aqui - disse o monge, dirigindo-se para a biblioteca. o assassino foi atrás  dele para a sala ao lado.

Momentos depois, os dois homens regressaram. o assassino trazia na mão esquerda  um livro grande, encadernado a couro. De Villiers não conseguia ver-lhe a cara mas  era óbvio que o assassino exibia um sorriso rasgado, por detrás da máscara negra.  - Agora, deixai-nos em paz - disse o velho monge. - Deixai-nos enterrar os nossos  mortos.

O assassino pareceu ponderar o assunto por um momento. Depois, voltou-se para  os seus cúmplices e fez-lhes um aceno de cabeça.

Em resposta, o grupo de assassinos armados ergueram as G-11 e, como um só  homem, abriram fogo contra a fila de monges jesuítas ajoelhados.

Uma rajada devastadora de fogo de super-metralhadora cortou em tiras os monges  que restavam. Cabeças explodiram, pedaços de carne foram arrancados aos corpos  dos monges, enquanto estes eram chacinados por um poder de fogo nunca antes  visto.

Em escassos segundos, todos os jesuítas estavam mortos, excepto o monge idoso  que entregara o manuscrito aos alemães. Estava de pé, sozinho, num mar de sangue  dos seus irmãos, fitando os carrascos.

O chefe do grupo de assassinos deu um passo em frente e apontou a sua Glock à  cabeça do velho.

- Quem são vocês? - perguntou o monge, desafiando-o.

- Somos os Schutzstaffel der Totenkopfverbänden - respondeu o assassino.

O monge arregalou os olhos.

- Meu Deus... - sussurrou. o assassino sorriu.

- Nem Ele te pode salvar agora.

A Glock disparou uma última vez e os assassinos debandaram da Abadia e  desapareceram na noite.

Passou um minuto e depois outro. Na abadia, reinava o silêncio.

Os corpos dos dezoito frades jesuítas encontravam-se espalhados pelo chão,  banhados em sangue.

Os assassinos não chegaram a vê-lo.

Estava bem lá no alto, escondido dentro do teto da enorme sala de jantar. Era uma  espécie de água-furtada, um pequeno sótão no teto, separado da sala de jantar por  uma delgada parede de madeira. Os painéis da parede estavam tão velhos e  carcomidos que havia grandes rachas entre eles.

Se tivessem olhado bem, os assassinos tê-lo-iam visto, a espreitar por uma dessas  rachas, pestanejando de medo. Um olho humano esbugalhado.

 

3701, North Fairfax Drive, Arlington, Virgínia 

Instalações da Agência de Projetos de Pesquisa Avançados de Defesa dos EUA (DARPA)

Segunda-feira, 4 de janeiro, 1999, 05:50

Os ladrões moviam-se depressa. Sabiam exatamente para onde iam. Tinham escolhido o momento perfeito para o assalto. Dez minutos para as seis. Dez  minutos antes de os guardas da noite picarem o ponto. Dez minutos antes de os  guardas de dia batessem o ponto. Os guardas da noite estariam cansados, a olhar  para os relógios e ansiosos por ir para casa. Era nessa altura que eram mais  vulneráveis.

O número 3701 da North Fairfax Drive era um edifício de tijolo vermelho, com  oito andares, do lado oposto à estação de metro da Virgínia Square, em Arlington,  Virgínia. Era ali que funcionava a Agência de Projectos de Pesquisa Avançados de  Defesa, DARPA, a divisão mais avançada de investigação e desenvolvimento, do Departamento de Defesa dos Estados Unidos.

Os ladrões percorreram os corredores, iluminados por lâmpadas de luz branca, com  as pistolas-metralhadoras MP-5, munidas de silenciadores, ao nível da cabeça,  estilo SEAL, com as coronhas desdobráveis firmemente encostadas ao ombro, de  olhos fixos na mira, à procura de alvos.

Uma tempestade de balas silenciosas abateu mais uma sentinela da Marinha, a  décima sétima. Sem perder o ritmo, os ladrões saltaram por cima do seu corpo e  encaminharam-se para a sala do cofre. Um deles passou o cartão magnético,  enquanto outro empurrava a enorme porta hidráulica.

Encontravam-se no terceiro andar do edifício, tendo ultrapassado sete pontos de  segurança de Nível 5, para o que tinham tido de utilizar quatro cartões de passe e  seis códigos alfanuméricos diferentes. Tinham entrado no edifício pelo porão  subterrâneo de carga, dentro de um furgão que já era esperado. Os guardas do nível  subterrâneo tinham sido os primeiros a morrer. Logo a seguir a eles, fora a vez dos  condutores do furgão. Chegados ao terceiro andar, os ladrões não tinham parado.  Numa rápida sucessão de movimentos, entraram na sala da caixa forte, uma enorme  câmara de laboratório limitada por todos os lados por paredes de porcelana, com  quinze centímetros de espessura. Por fora deste casulo de porcelana, havia outra  parede, exterior. Era revestida a chumbo e tinha, no mínimo, trinta centímetros de  espessura. Os empregados da DARPA chamavam a este laboratório a Cripta e  tinham boas razões para isso. As ondas de rádio não conseguiam penetrar ali. Os  dispositivos direcionais de escuta muito menos. Era o local mais seguro do edifício.

Era o local mais seguro do edifício.

Os ladrões agiram com rapidez, assim que entraram no laboratório. Silêncio.

Como um ventre materno.

Então, de repente, todos ficaram imóveis.

O prêmio encontrava-se à sua frente, ocupando um lugar de destaque no centro do  laboratório.

Não era muito grande, para aquilo que era capaz de fazer. Tinha, talvez, um metro e  oitenta de altura e parecia uma ampulheta gigante: dois cones - o inferior apontado  para cima, o superior apontado para baixo - separado por uma pequena câmara de  titânio onde se encontrava o núcleo da arma.

Uma amálgama de fios coloridos serpenteava para fora da câmara de titânio no  centro do aparelho, a maior parte deles desaparecendo no interior do teclado de  um computador portátil, montado manualmente na sua seção frontal.

De momento, a pequena câmara de titânio encontrava-se vazia. De momento.

Os ladrões não perderam tempo. Retiraram o aparelho do seu gerador e colocaram- no numa saca feita à medida.

Em seguida, voltaram a pôr-se em movimento. Porta fora. Corredor acima. À  esquerda, depois à direita. À esquerda, depois à direita. Através do profusamente  iluminado labirinto estatal, saltando por cima dos corpos que tinham abatido ao  entrarem. No espaço de noventa segundos, chegaram à garagem subterrânea, onde  voltaram a entrar na carrinha, levando consigo o seu prémio. Mal os pés do último  homem tocaram no interior da carrinha, as rodas desta chiaram no chão de cimento  e o grande veículo acelerou da garagem para fora e noite dentro.

O líder da equipe consultou o relógio.

05:59.

Toda a operação tinha demorado nove minutos. Nem mais, nem menos.

 

PRIMEIRA CONSPIRAÇÃO 

Segunda-feira, 4 de janeiro, 09:10

William Race ia chegar atrasado ao emprego. Mais uma vez. Tinha adormecido e,  depois, o metrô atrasara-se. Já eram nove e dez e ele estava atrasado para a aula da  manhã. o gabinete de Race ficava no terceiro andar do velho edifício Delaware, na  Universidade de Nova Iorque. o prédio tinha um daqueles elevadores de ferro  forjado da idade da pedra que andava a passo de caracol. Era mais rápido ir pelas  escadas.

Com trinta e um anos, Race era um dos mais novos membros da equipe do  Departamento de Línguas Clássicas da NYU. Era de estatura média, com cerca de  um metro e setenta e atraente, de uma forma muito discreta. Tinha cabelos cor de  palha e um corpo esguio. Uns óculos de aros metálicos enquadravam os seus olhos  azuis e semi-ocultavam um estranho sinal na pele, uma mancha triangular,  directamente por baixo do olho esquerdo.

Race correu escadas acima, com mil pensamentos a fervilhar na cabeça: a aula  matinal sobre a obra do historiador romano Tito Lívio, a multa de estacionamento  do mês anterior que ainda não pagara e o artigo do New York Times que tinha lido  nessa manhã e que dizia que, devido ao fato de 85 por cento das pessoas  escolherem códigos de Multibanco baseados em datas importantes, como  aniversários e coisas parecidas, os ladrões que lhes roubavam as carteiras obtinham,  não só os cartões mas também as carteiras de motorista, nas quais é mencionada a  data de nascimento, o que lhes facilitava a vida para levantarem dinheiro nas  máquinas. Raios, pensou Race, vou ter de mudar a minha senha.

Chegou ao cimo das escadas e entrou rapidamente no corredor.

E parou.

Estavam dois homens à sua frente. Soldados.

E envergavam uniformes de combate completos - capacetes, coletes de proteção,  M-16, tudo e mais alguma coisa. Um deles estava a meio do corredor, muito perto  de Race. o outro encontrava-se parado, ao fundo do corredor. Estava de guarda, em  sentido, à porta do gabinete de Race. Não podiam estar mais fora do seu ambiente -  soldados numa universidade.

Quando o viram aparecer ao cimo das escadas, os dois homens viraram-se de  imediato. Por qualquer razão, a sua presença fez Race sentir-se repentinamente  inferior, de alguma forma indigno, indisciplinado. Sentiu-se estúpido, com aquele  casaco desportivo do Macy’s, os jeans, a gravata e a roupa para um jogo de basebol,  programado para a hora do almoço, metida numa mochila velha da Nike.

Ao aproximar-se do primeiro soldado, Race olhou-o de cima a baixo, viu a  espingarda-metralhadora negra nas suas mãos, a boina verde enfiada na cabeça e o  distintivo em quarto crescente, cosido no ombro do uniforme, com as palavras  FORÇAS ESPECIAIS escritas.

- Hã.... olá. Eu sou o William Race. Eu...

- Está tudo bem, Professor Race. Entre. Estão à sua espera. Race continuou pelo  Corredor, até chegar junto do segundo soldado. Este era maior que o primeiro, mais  alto. De fato, era enorme, uma verdadeira montanha, no mínimo com dois metros e  dez, de rosto atraente muito suave, cabelo escuro e olhos castanhos estreitos, que  não deixavam escapar nada. o nome escrito no distintivo do bolso dizia: VAN  LEWEN. As três faixas no ombro indicavam que era sargento.

Os olhos de Race desviaram-se para a M-16 que o homem empunhava, Estava  equipada com a ultra-moderna mira laser PAC-4C, montada no cano e um lança- granadas M-203 montado por baixo. Coisa séria.

O soldado desviou-se prontamente, deixando Race entrar no seu gabinete.

O Dr. John Bernstein estava sentado na cadeira de couro preto, por trás da  secretária de Race, com um ar muito desconfortável. Bernstein era um homem de  cabelos brancos, de cinquenta e nove anos e director do Departamento de Línguas  Clássicas da NYU, o chefe de Race.

Na sala estavam outros três homens: dois soldados e um civil. Os dois soldados  estavam vestidos e armados da mesma maneira que os que se encontravam lá fora -  farda de trabalho, capacete, M-16 com mira laser - e pareciam ambos em forma. Um  era um pouco mais velho que o outro. Segurava o capacete de modo formal,  firmemente preso entre o cotovelo e as costelas, e tinha cabelo escuro cortado  muito curto, mal lhe chegando à testa. o cabelo cor de palha de Race estava sempre  a cair-lhe para cima dos olhos.

O terceiro estranho presente na sala, o civil, estava sentado na cadeira das visitas,  em frente a Bernsteim. Era um homem alto, de peito amplo e estava em mangas de  camisa. Tinha um nariz achatado e traços sombrios e marcados, gastos pelo tempo e  pela responsabilidade. Estava instalado na cadeira com a segurança calma de quem  está habituado a ser obedecido.

Race ficou com a nítida sensação de que todos se encontravam havia já algum  tempo no seu gabinete.

À sua espera.

- Will - disse John Bernstein, contornando a mesa para lhe apertar a mão. - Bom  dia. Entre. Gostava de lhe apresentar uma pessoa. o Professor William Race, o  coronel Frank Nash.

O civil do peito amplo estendeu-lhe a mão. Num aperto de mão forte.

- Reformado. Prazer em conhecê-lo - disse, olhando Race de cima a baixo. Depois  indicou os dois soldados: - Estes são o capitão Scott e o cabo Cochrane, do Grupo  de Forças Especiais do Exército dos EUA.

- São Boinas Verdes - sussurrou respeitosamente Bernstein, dirigindo-se a Race.

Em seguida, Bernstem pigarreou.

- O coronel... quero dizer, o Doutor... Nash pertence ao Gabinete Tecnológico  Tático, da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa. Veio cá pedir a  nossa ajuda.

Frank Nash estendeu o seu cartão de identificação a Race. Race viu a fotografia de  Nash, por baixo do logotipo vermelho da DARPA e, mais abaixo, uma quantidade  de algarismos e códigos. Uma banda magnética atravessava o cartão. Por baixo da  fotografia, estava escrito: FRANCIS K. NASH, Coronel do EXÉRCITO DOS EUA.  Era um cartão bastante impressionante. Proclamava: pessoa importante.  Oh-oh, pensou Race.

Já tinha ouvido falar da DARPA. Era o braço principal de investigação e desenvolvimento do Departamento de Defesa, a agência que tinha inventado a  Arpanet, o antecessor da Internet exclusivamente para utilização militar. A  DARPA era também famosa pela sua participação no projeto Have Blue, o projecto ultra-secreto da Força Aérea, de que resultaria o aparecimento do F-17, o caça  invisível dos anos setenta.

De fato, verdade seja dita, Race sabia um pouco mais sobre a DARPA do que a  maioria das pessoas, pela simples razão de que o seu irmão, Martin, trabalhava lá,  como engenheiro de desenvolvimento.

Basicamente, a DARPA trabalhava em parceria com os três ramos das forças  armadas dos EUA, o Exército, a Marinha e a Força Aérea, desenvolvendo aplicações  militares de alta tecnologia adequadas às necessidades de cada força: tecnologia  stealth ou tecnologia do sigilo, para a Força Aérea, equipamento de protecção  pessoal de alta resistência, para o Exército. A DARPA tinha, contudo, um estatuto  tal que os seus feitos se transformavam, muitas vezes, em lendas urbanas. Dizia-se,  por exemplo, que a DARPA tinha recentemente desenvolvido o J-7, a mítica  mochila a jato, em forma de A, que, em última análise, poderia vir a substituir o  pára-quedas. Mas isso nunca foi provado.

O Gabinete Técnológico Tático era, por outro lado, a ponta de lança do arsenal da  DARPA, a sua jóia da coroa. Era a divisão encarregada de desenvolver armamento  especial - armamento estratégico de alto risco alto retorno.

Que diabo quereria o Gabinete Tecnológico Tático da DARPA do Departamento de  Línguas Clássicas da NYU? Interrogou-se Race.

- Precisam da nossa ajuda? - Perguntou, levantando os olhos do cartão de  identidade de Nash.

- Bem, na verdade, viemos aqui pedir especificamente a sua ajuda.

A minha ajuda, pensou Race. Ele dava aulas de línguas clássicas, principalmente  Latim clássico e medieval e, como complemento, um pouco de Francês, Espanhol e  Alemão. Não conseguia imaginar uma única coisa que pudesse fazer para ajudar a  DARPA.  - Que tipo de ajuda? - perguntou.

- Tradução. Traduzir um manuscrito. Um manuscrito em latim, com quatrocentos  anos.

- Um manuscrito... - repetiu Race.

Pedidos destes não eram novidade. Pediam-lhe muitas vezes para traduzir  manuscritos medievais. O que não era costume, no entanto, era o pedido ser feito  na presença de comandos armados.

- Professor Race - disse Nash - a tradução do documento em questão é da maior  urgência. De fato, o documento ainda não se encontra nos Estados Unidos. Vem  neste momento a caminho. o que nós queríamos de si era que fosse conosco buscar  o manuscrito a Newark e o traduzisse enquanto vamos a caminho do nosso destino.

- No caminho? - perguntou Race. - Para onde?

-Tenho muita pena mas isso é uma coisa que não lhe posso dizer nesta fase.

Race estava prestes a argumentar, quando a porta do gabinete se abriu de repente e  entrou mais um Boina Verde. Trazia um rádio de campanha às costas e aproximou- se rapidamente de Nash, sussurrando-lhe algo ao ouvido. Race conseguiu apanhar  as palavras... “receberam ordem de mobilização”.

- Quando? - perguntou Nash.

- Há dez minutos, meu coronel - sussurrou o soldado. Nash olhou rapidamente para  o relógio.

- Maldição! - exclamou. Depois, voltou-se para Race.

- Não dispomos de muito tempo, Professor Race, por isso vou direto ao assunto.  Esta missão é muito importante. É uma missão que afeta seriamente a segurança  nacional dos Estados Unidos. Mas é uma missão que tem de ser realizada num  espaço de tempo muito curto. Temos de agir já. Mas, para isso, preciso de um  tradutor. De um tradutor de latim medieval. De si.

- Quando?

- Está um carro à espera, lá fora. Race engoliu em seco.

- Não sei...

Sentia os olhos de todos pousados em si. De repente, a idéia de viajar para parte  incerta, com Frank Nash e uma equipa de Boinas Verdes armados até aos dentes,  deixava-o nervoso. Sentia-se como se estivesse a ser atropelado por um comboio.

- Que tal o Ed Deveretix, de Harvard? - sugeriu. - Ele é muito melhor que eu em  latim medieval. Ele seria mais rápido.  Nash respondeu:

- Não preciso do melhor e não tenho tempo para ir a Boston. O seu irmão deu-nos  o seu nome. Disse que você era bom e que estava em Nova Iorque e, muito  francamente, é só disso que eu necessito. De alguém que esteja próximo e que  consiga fazer o trabalho agora.

Race mordeu os lábios. Nash acrescentou:

- Vamos destacar um guarda-costas para estar sempre consigo, durante toda a  missão. Apanhamos o manuscrito em Newark, dentro de trinta minutos, e  seguimos de avião, alguns minutos depois. Se tudo correr bem, você terá o  manuscrito traduzido, na altura da aterragem. Nem precisa de sair do avião. Mas, se  precisar de o fazer, terá uma equipe de Boinas Verdes para o proteger.

Race franziu o sobrolho.

- O senhor não vai ser o único acadêmico nesta missão, Professor Race. Também  vão estar Walter Chambers, de Stanford, e Gabriela Lopez, de Princeton, além de  Lauren O’Connor, de...  Lauren O’Connor, pensou Race.

Havia anos que não ouvia aquele nome.

Race conhecera Lauren nos tempos da universidade, na USC. Ele estudara línguas e  ela formara-se em ciências, em Física teórica. Tinham sido namorados mas a  história acabara mal. Da última vez que tivera notícias dela, ela estava a trabalhar  nos Laboratórios Livermore, no departamento de física nuclear.

Race olhou para Nash. Interrogou-se sobre o que saberia Frank Nash acerca de  Lauren e dele. Teria falado nela deliberadamente?

O problema era que, se o tinha feito, dera resultado.

Lauren era indiscutivelmente esperta. Nunca se iria meter numa missão destas, sem  ter uma boa razão. O fato de ela ter concordado em participar na aventura de Nash  dava-lhe credibilidade instantânea.

- Será amplamente compensado pelo seu tempo, Professor.

- Não é isso...

O seu irmão também fará parte da equipe da missão acrescentou Nash, apanhando  Race de surpresa. - Ele não vem conosco mas vai ficar a trabalhar com a equipe  técnica, na nossa sede, na Virgínia.

Marty, pensou Race. já não o via há muito tempo: desde que os pais de ambos se  tinham divorciado, nove anos antes. Mas se Marty também estava metido nisto,  então talvez...

- Desculpe, mas temos de ir, Professor Race. Temos de ir já. Precisamos da sua  resposta, agora.

- Will - disse John Bernstem. - Isto podia ser uma ótima oportunidade para a  universidade...

Nash olhou para Bernstein e franziu o sobrolho, interrompendo-o. Depois virou-se  para Nash:

- Diz que é um problema de defesa nacional?

- Exato.

- E não pode dizer-me para onde vamos.

- Só quando chegarmos ao avião. Então, poderei dizer-lhe tudo.

E vou ter um guarda-costas, pensou Race. Normalmente, só precisamos de um  guarda-costas quando alguém nos quer matar.

No gabinete, imperava o silêncio.

Race sentia que toda a gente estava à espera da sua resposta. Nash, Bernstein. Os  três Boinas Verdes.

Suspirou. Nem queria acreditar naquilo que ia dizer.

- Está bem - disse. - Eu vou.

Race caminhou rapidamente pelo corredor, atrás de Nash, ainda vestido com o seu  casaco e gravata.

Era um dia de Inverno, frio e chuvoso, em Nova Iorque, e enquanto percorria o  labirinto de corredores, a caminho do portão oeste da Universidade, Race tinha  visões fugazes da chuva intensa, que caía lá fora.

Os dois Boinas Verdes que tinham estado dentro do gabinete seguiam à sua frente  e de Nash os outros dois, os que tinham ficado de guarda no corredor, iam atrás.  Race tinha a sensação de estar a ser arrastado por uma forte corrente.

- Há tempo para eu vestir uma roupa menos formal? - perguntou a Nash.

Trouxera consigo uma mochila de desporto. Lá dentro, estava uma muda de roupa.

- Talvez no avião - respondeu Nash, sem parar de andar.

- Muito bem, preste atenção. Está vendo aquele jovem, atrás de si? É o sargento Leo  Van Lewen. É ele que vai ser o seu guarda-costas, daqui em diante.

Race olhou para trás, enquanto ia andando, e viu o enorme Boina Verde. Van  Lewen. O Boina Verde limitou-se a fazer um rápido aceno com a cabeça e os seus  olhos continuaram a varrer o corredor à sua volta.

Nash disse:

- Daqui para a frente, você é uma pessoa muito importante e isso faz de si um alvo.  Para onde quer que vá, ele vai também. Olhe. Fique com isto.

Nash passou-lhe um auscultador e um microfone de pescoço. Race só tinha visto  aquilo na TV, em reportagens de unidades da SWAT. Colocava-se uma fita em  torno do pescoço e o microfone incorporado captava as vibrações das cordas vocais.

- Coloque-o assim que entrar no carro - disse Nash.

- É ativado pela voz. Por isso, só precisa de falar e nós ouvimo-lo. Se tiver qualquer  problema, basta dizer e o Van Lewen estará ao seu lado em segundos. Entendeu?

- Entendi.

Chegaram ao portão oeste da Universidade, onde estavam de guarda mais dois  Boinas Verdes. Nash e Race passaram por eles e saíram para a chuva que caía  copiosamente.

Foi então que Race viu o carro que Nash disse que iria estar à porta, à espera.

Sobre a gravilha da rotunda que tinha diante de si, estava estacionado um cortejo  de veículos.

Quatro batedores da polícia, em motorizadas: dois à cabeça da fila de carros, dois à  retaguarda. Seis automóveis normais verde-azeitona. E, no meio deles, protegido  pelas motorizadas e pelos outros carros, encontravam-se dois veículos blindados,  Humvee. Ambos estavam pintados de negro e os vidros das janelas eram  profundamente fumê.

Pelo menos quinze Boinas Verdes, fortemente armados com as suas M-16,  mantinham-se a postos, fazendo guarda ao cortejo. A chuva torrencial desabava  ruidosamente sobre os seus capacetes. Eles pareciam não dar por isso.

Nash dirigiu-se, a passo apressado, para o segundo Humvee e abriu a porta para  Race entrar. Em seguida, enquanto entrava no enorme veículo, entregou-lhe um  espesso dossier.

- Dê-lhe uma vista de olhos. Digo-lhe mais, quando chegarmos ao avião.

A comitiva acelerou pelas ruas de Nova Iorque.

Estava-se a meio da manhã mas a procissão de oito carros corria pelas ruas alagadas,  passando cruzamentos atrás de cruzamentos, conseguindo sempre apanhar sinais  verdes, até sair da cidade.

Deviam ter programado os semáforos, como faziam quando o Presidente visitava  Nova Iorque, pensou Race.

Mas aquilo não era uma comitiva presidencial. As expressões das pessoas que  seguiam pelos passeios diziam tudo.

Era um cortejo diferente.

Sem limusines. Sem bandeirolas. Apenas dois Humvees fortemente blindados, no  meio de carros verde-azeitona, abrindo caminho por entre a chuva torrencial.

Com o guarda-costas que lhe fora atribuído sentado ao seu lado e com o auscultador  e o microfone de garganta já colocados, Race olhou para fora das janelas do veloz  Humvee.

Não havia muitas pessoas que pudessem afirmar ter tido a experiência de ter o  caminho livre, nas ruas de Nova Iorque, à hora de grande movimento do meio da  manhã, pensou. Era uma sensação estranha, do outro mundo. Começou a  interrogar-se sobre se aquela missão também o seria.

Abriu o dossier que Nash lhe tinha dado. A primeira coisa que viu foi uma lista de  nomes.

 

EQUIPE DE INVESTIGAÇÃO DE CUZCO

 

Membros Civis

1 NASH, Francis K - DARPA. Director de projecto, Físico nuclear 

2 COPELAND, Troy B - DARPA, Físico Nuclear 

3 O’CONNOR, Lauren M - DARPA, Física teórica 

4 CHAMBERS, Walter J - Antropólogo, Stanford 

5 LOPEZ, Gabriela - Arqueóloga, Princeton 

6 RACE, William H - Lingüista, NYU

 

Membros das FORÇAS ARMADAS

1 SCOTT, Dwayne T - Exército dos Estados Unidos (BV), capitão 

2 VAN LEWEN, Leonardo M - Exército dos Estados Unidos (BV), sargento 

3 COCHRANE, Jacob P - Exército dos Estados Unidos (BV), cabo 

4 REICHART, George P, Exército dos Estados Unidos (BV), cabo 

5 WILSON, Charles T, Exército dos Estados Unidos (BV), cabo 

6 KENNEDY, Dougias K - Exército dos Estados Unidos (BV), cabo

 

Race virou a página e viu uma fotocópia de um artigo de jornal. o título era em  Francês: MOINES MASSACRÉS DANS UN MONASTÈRE À LA HAUTE  MONTAGNE.

Race traduziu: «Monges massacrados num mosteiro no alto de uma montanha.» Leu o artigo. Estava datado de 3 de janeiro de 1999 – ontem - e era acerca de um  grupo de monges jesuítas que fora chacinado, no interior do mosteiro onde se  encontrava, no alto dos Pirineus franceses.

As autoridades francesas pensavam tratar-se de um ato perpetrado por fundamentalistas islâmicos, em protesto contra a ingerência da França nos assuntos  internos da Argélia. Dezoito monges tinham sido mortos, todos à queima-roupa, do  mesmo modo que em anteriores atentados fundamentalistas.

Race virou a página.

Era outro recorte de jornal, desta vez do Los Angeles Times. Datava do fim do ano  anterior e o título proclamava: OFICIAIS FEDERAIS ENCONTRADOS  ASSASSINADOS NAS MONTANHAS ROCHOSAS.

O artigo contava que dois membros dos Serviços de Pescas e Vida Selvagem dos  EUA tinham sido encontrados mortos nas montanhas a Norte de Helena, Montana.  Os dois agentes tinham sido esfolados. O FBI fora chamado. Suspeitavam que era  obra de um dos grupos de milícias locais, que, aparentemente, tinham um ódio  congênito por qualquer espécie de agentes federais. Pensava-se que os dois agentes tinham deparado por acaso com um grupo de membros das milícias que andariam a  praticar caça furtiva, para arranjar algumas peles. Em vez de esfolarem os animais,  decidiram esfolar os dois guardas.

Race estremeceu e virou a página.

A outra página do dossier era uma fotocópia de um artigo de um jornal universitário qualquer. o artigo estava escrito em alemão e era assinado por um  cientista chamado Albert L. Mueller. Datava de Novembro de 1998.

Race leu o artigo, traduzindo o Alemão rapidamente. Era qualquer coisa sobre uma  cratera de meteorito, descoberta nas selvas do Peru.

Por baixo do artigo, havia um relatório de um patologista da polícia, também em  alemão. Na linha destinada a inscrever o NOME DO FALECIDO, tinham sido  escritas as palavras ALBERT LUDWIG MUELLER.

Por baixo do relatório do patologista, vinham mais algumas páginas, cobertas de  vários carimbos vermelhos - ULTRA-SECRETO; PARA SER LIDO APENAS POR  PESSOAL DO EXÉRCITO DOS EUA. Race folheou-as. Na sua maioria, as páginas  estavam cheias de equações matemáticas complexas que, para ele, nada  significavam.

A seguir, viu uma série de memorandos, quase todos dirigidos a pessoas de quem  nunca ouvira falar. Num deles, porém, viu o seu nome. Dizia o seguinte:

 

3 Jan, 1999, 22:01, Rede Interna do Exército dos EUA

617 5544 88211-05  No. 139

De: Nash, Frank 

Para: Todos os elementos da equipe Cuzco  

Assunto: MISSÃO SUPERNOVA

Contactar Race o mais depressa possível.  Participação crucial para o sucesso de missão.

Aguardem chegada encomenda amanhã, 4 de janeiro, Newark, 09:45.

Todos os membros devem ter equipamento a bordo do transporte, às 09:00.

 

O cortejo chegou ao aeroporto de Newark. A longa fila de carros acelerou por entre  os portões da vedação anti-ciclone e chegou num ápice a uma pista de aterragem  privada.

Um enorme avião de carga camuflado esperava-os. Na traseira do avião, uma rampa  de cargas e descargas estava descida até ao chão. À medida que o cortejo se  imobilizava junto ao enorme avião, Race viu um grande caminhão do Exército a ser  conduzido para o interior da traseira do avião.

Saiu do Humvee para a chuva que caía, logo atrás do sargento Van Lewen. Mal pôs  o pé fora do grande veículo negro, ouviu um rugido tremendo, vindo de um ponto  qualquer acima da sua cabeça.

Um velho F-15C Eagle, pintado com cores de camuflagem verde-castanho e com a  palavra EXÉRCITO escrita na cauda, aproximou-se vertiginosamente e aterrou,  com os pneus a chiar estridentemente, no asfalto molhado à frente deles.

Enquanto o caça dava a volta na pista, para se imobilizar virado para si, Race sentiu  a mão de Nash agarrar-lhe suavemente o braço.

- Vamos - disse Nash, encaminhando-o para o grande avião de carga. - Os outros já  estão todos a bordo.

Quando se aproximava do avião de carga, Race viu aparecer uma mulher, à porta  lateral. Reconheceu-a de imediato.

- Oi Will - disse Lauren O’Connor.

- Oi Lauren.

Lauren O’Connor tinha trinta e poucos anos mas não parecia ter mais de vinte e  cinco. Race reparou que ela tinha cortado o cabelo. Nos tempos da USC, usava o  cabelo castanho comprido e ondulado. Agora, estava curto e ruivo. Estilo anos  noventa.

Os seus grandes olhos castanhos ainda eram os mesmos, tal como a sua pele fresca e  clara. E, parada ali, à porta do grande avião de carga, descontraidamente encostada à  moldura da porta, de braços cruzados e ancas hirtas, vestida com um pesado fato de  caqui, estava com o mesmo aspecto que tinha quando ele a conhecera. Alta e sexy,  esbelta e atlética.

- Há quanto tempo - disse ela, sorrindo.

- Podes crer - respondeu Race.

- Com que então, William Race, perito linguista? Consultor da Agência de Projetos  de Pesquisa Avançada de Defesa. Ainda jogas à bola, Will?

- Só a brincar - respondeu Race.

Nos tempos de faculdade, tinha tido boas notas em futebol americano. Era o tipo  mais franzino da equipe mas também o mais rápido. Também tivera boas notas em  atletismo.

- Então e tu? - perguntou, reparando pela primeira vez na aliança que ela tinha no  dedo.

Teria casado? Perguntou a si mesmo.

- Olha, para começar, estou muito entusiasmada com esta missão - disse ela, com  um brilho nos olhos. - Não é todos os dias que se toma parte numa caça ao tesouro.

- É disso que se trata?

Antes de Lauren poder responder, um som agudo e prolongado fê-los voltar a  cabeça.

O F-15 tinha parado a cerca de dez metros do avião de carga e, assim que a capota  da cabine se abriu, o piloto saltou para o asfalto molhado da pista, correndo na  direção deles, curvado sob a forte chuvada. Trazia consigo uma pasta.

O piloto chegou ao pé de Nash e entregou-lhe a pasta.

- Doutor Nash - disse. - o manuscrito.

Nash pegou na pasta e caminhou rapidamente para o sítio onde estavam Race e  Lauren.

- Muito bem - disse, empurrando-os para dentro do avião de carga. - Está na hora  de o circo começar.

O gigantesco avião de carga acelerou pela pista e elevou-se rumo ao céu coberto de  nuvens.

Era um Lockheed Hércules C-130E e o seu interior estava dividido em duas seções:  o compartimento de carga, na parte inferior, e a cabina de passageiros, na superior.  Race sentou-se na cabina de passageiros, juntamente com os outros cinco cientistas  que iam participar na expedição. Os seis Boinas Verdes que os acompanhavam  viajavam no porão de carga, verificando e municiando o armamento.

Dos cinco civis, Race conhecia dois: Frank Nash e Lauren O’Connor.

-Teremos tempo para as apresentações mais tarde - disse Nash, sentando-se ao lado  de Race, com a pasta ao colo, o mais importante, agora, é você deitar mãos à obra.

Começou a abrir os fechos da pasta.

- Pode dizer-me para onde vamos? - perguntou Race.

- Ah, sim, claro - respondeu Nash. - Peço desculpa por não lhe ter podido dizer  antes mas o seu gabinete não oferecia segurança. As janelas podiam estar lasadas.

- Lasadas?

- Podiam haver algum dispositivo de escuta teleguiado por raios laser. Quando se  fala num gabinete como o seu, a voz faz vibrar as janelas. A maior parte dos  arranha-céus de escritórios modernos estão equipados de forma a tornar  inoperantes os dispositivos de escuta direcionais. Têm emissores eletrônicos de  sinal espalhados pelas janelas todas, para baralhar as frequências. Os edifícios mais  antigos como o seu, não. Era muito fácil alguém ouvir o que se dizia no gabinete.

- E, então, para onde vamos?

- Vamos para Cuzco, no Peru. Era a capital do império Inca, antes da chegada dos  conquistadores espanhóis, em 1532 - esclareceu Nash. - Hoje, é apenas uma grande  cidade de província, com algumas ruínas Incas, que são uma grande atração  turística, segundo dizem. Vamos voar directamente para lá, com um ou dois  reabastecimentos em vôo, pelo caminho.

Nash abriu a pasta e tirou qualquer coisa para fora.

Era uma pilha de folhas soltas A3, talvez quarenta no total. Race viu a folha do topo  da pilha. Era uma fotocópia de uma capa ilustrada.

Era o manuscrito de que Nash tinha falado antes ou, pelo menos, uma fotocópia.

Nash passou-lhe a pilha de papel para Race e sorriu.  - Esta é a razão pela qual você aqui está.

Race agarrou na pilha e virou a capa.

Claro que Race já tinha visto vários manuscritos medievais. Manuscritos  minuciosamente reproduzidos à mão, por monges devotos da Idade Média, nos  tempos anteriores à imprensa. Tais manuscritos caracterizavam-se pela  complexidade de pormenor e pela habilidade quase impossível da sua concepção:  caligrafia perfeita, incluindo capitulares maravilhosamente trabalhadas (a letra  inicial do início de cada novo capítulo) e, nas margens, iluminuras ricas em  pormenores, concebidas para transmitir o sentido da obra. Luminosas e alegres,  para os livros mais leves. Sombrias e assustadoras, para as narrativas mais melancólicas ou lúgubres. o pormenor era tal que se dizia que um monge podia  levar uma vida inteira para reproduzir um único manuscrito.

Mas o manuscrito que Race agora segurava nas mãos, mesmo em fotocópia a preto-e-branco, era algo como ele nunca tinha visto.

Era magnífico.

Race foi folheando as páginas.

A caligrafia era soberba, precisa e intrincada e as margens estavam cobertas de  desenhos de vinhas entrelaçadas. Estranhas estruturas de pedra, cobertas de musgo  e sombras, ocupavam os cantos inferiores de cada página. o efeito global era de  escuridão e ameaça, de pura malevolência.

Race voltou à capa. Podia ler-se:

 

NARRATIO VER PRIESTO IN RURIS INGARIIS:

OPERIS ALBERTO LUIS SANTIAGO 

ANNO DOMINI MDLXV

Race traduziu. A verdadeira narração de um monge, na terra dos Incas: um  manuscrito de Alberto Luís Santiago. Datado de 1565.

Race voltou-se para Nash.

- Muito bem. Acho que está na altura de me dizer o que vem a ser esta sua missão.

Nash explicou.

O irmão Alberto Santiago fora um jovem missionário franciscano, enviado para o  Peru juntamente com os conquistadores espanhóis. Enquanto os conquistadores  violavam mulheres e pilhavam o país, os monges como Santiago deviam converter  os nativos incas à sabedoria da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

- Apesar de ter sido escrito em 1565, bem depois do eventual regresso de Santiago  à Europa - disse Nash - diz-se que o Manuscrito de Santiago relata um incidente  ocorrido por alturas de 1535, durante a conquista do Peru por Francisco Pizarro e  pelos seus homens. De acordo com monges medievais que afirmam tê-lo lido, o  manuscrito conta uma história extraordinária: a da perseguição obstinada feita por  Hernando Pizarro a um príncipe inca que, durante o auge do cerco a Cuzco, se  escapuliu com o ídolo mais venerado do povo Inca e fugiu para as selvas do Leste  do Peru.

Nash deu meia volta na cadeira.

- Walter - disse, acenando para o homem de óculos e de cabelo ralo, sentado do  outro lado da passagem. - Dá-me aqui uma ajuda. Estou a falar do ídolo com o  Professor Race.

Walter Chambers levantou-se do seu lugar e sentou-se na cadeira em frente a  Race. Era um homem baixo, careca em três quartos da cabeça, com ar de rato de  biblioteca, o tipo de homem que usava gravata-borboleta para ir trabalhar.

- William Race, Walter Chambers - Apresentou Nash.

- O Walter é antropólogo em Stanford. É especialista em culturas da América  Central e do Sul: Maias, Astecas, Olmecas e, em especial, Incas.

Chambers sorriu.

- Então, quer informações sobre o ídolo?  - Parece que sim - respondeu Race.

- Os Incas chamavam-lhe «o Espírito do Povo» - disse Chambers. - Era um ídolo de  pedra mas esculpido num estranho tipo de pedra, uma pedra negra e brilhante, com  finíssimos veios de cor púrpura. Era o bem mais precioso do povo Inca. Na verdade,  consideravam-no como sendo a sua própria essência. E, quando digo isto, é  literalmente isto que quero dizer. Para eles, o Espírito do Povo era mais que um  mero símbolo do seu poder. Consideravam-no a verdadeira e exata fonte desse  poder. E, de fato, existem histórias acerca do seu poder mágico, de como conseguia acalmar os animais mais ferozes e de como, quando mergulhado em água, o ídolo  cantava.

- Cantava? - perguntou Race.

- Exato - respondeu Chambers. - Cantava.

- Muito bem. E como é que é esse ídolo?

- O aspecto do ídolo tem sido descrito em muitos sítios, incluindo nas duas obras  mais completas sobre a conquista do Peru, a Relación, de Jérez, e os Comentários  Reais, de De La Vega. Mas as descrições variam. Algumas afirmam que tinha cerca  de trinta centímetros de altura, outras que tinha apenas quinze; algumas dizem que  era maravilhosamente esculpido e suave ao tato, outras que tinha arestas irregulares e aguçadas. No entanto, há uma coisa que é comum a todas as descrições  do ídolo: o Espírito do Povo era esculpido em forma de uma cabeça de jaguar com  os dentes arreganhados.  Chambers inclinou-se para a frente, na cadeira, e prosseguiu:  - Assim que soube da sua existência, Hernando Pizarro cobiçou-o. E, mais ainda,  depois de os zeladores do ídolo, no santuário de Pachacárnac o terem feito desaparecer, mesmo diante do seu nariz. Está a ver, Hernando Pizarro era,  provavelmente, o mais brutal de todos os irmãos Pizarro que foram para o Peru.  Imagino que, nos dias de hoje, lhe chamaríamos um psicopata. Segundo alguns  relatos, ele era capaz de torturar aldeias inteiras, só por divertimento. E sua  demanda do ídolo tornou-se uma obsessão. Aldeia após aldeia, cidade após cidade,  onde quer que chegasse, exigia saber qual o paradeiro do ídolo. Mas, por mais  nativos que torturasse, por mais aldeias que incendiasse, os Incas nunca lhe diziam  onde estava o seu precioso ídolo.

Mas, depois, fosse lá como fosse, em 1535, Hernando descobriu onde estava  escondido o ídolo. Encontrava-se numa enorme câmara subterrânea, no  Coricancha, o famoso Templo do Sol, no centro da cidade sitiada de Cuzco.

Infelizmente para ele, Hernando chegou a Cuzco mesmo a tempo de ver um jovem  príncipe chamado Renco Capac fugir com o ídolo, numa ousada correria entre as  fileiras dos incas e dos espanhóis. Segundo alguns monges medievais que o leram, o  Manuscrito de Santiago descreve em pormenor a perseguição de Hernando a  Renco, após a fuga do jovem príncipe de Cuzco, uma caçada alucinante, que o levou  a atravessar os Andes e a internar-se na floresta Amazônica.

- O que acontece é que o manuscrito - interrompeu Nash - revela a localização do  Espírito do Povo.

Então era isso, pensou Race, eles iam atrás do ídolo.

Mas não disse nada. Principalmente porque não fazia sentido nenhum.

Por que razão o Exército dos EUA enviaria uma equipe de cientistas nucleares para  a América do Sul, à procura de um ídolo inca perdido? Ainda por cima, baseando-se  num manuscrito com quatrocentos anos, escrito em latim? Mais valia andarem a  seguir as indicações de um mapa do tesouro de piratas.

- Eu sei o que está pensando - disse Nash. - Se alguém me tivesse contado a mesma  história, na semana passada, eu pensaria o mesmo que você. Mas também, até há  algumas semanas atrás, ninguém sabia onde se encontrava o Manuscrito de  Santiago.

- Mas, agora, tem-no consigo - observou Race.

- Não - respondeu Nash, secamente. - Temos uma cópia. E há alguém que tem o  original.

- Quem?

Nash apontou para o dossier que Race tinha no colo.

- Leu aquele artigo do jornal que lhe dei há pouco? O artigo sobre os monges  jesuítas que foram mortos num mosteiro, nos Pirineus?

- Sim...

- Dezoito monges assassinados. Todos eles mortos à queima-roupa por armas muito  potentes. À primeira vista, parece ser uma operação de rotina de terroristas  argelinos. É um facto conhecido que eles atacam mosteiros isolados e que o seu  modus operandi é abater as vítimas à queima-roupa. Está claro que foi isso o que a  imprensa francesa publicou.

- Mas - acrescentou Nash, levantando o dedo - aquilo que a imprensa não sabe é  que, durante o massacre, houve um monge que conseguiu escapar com vida. Um  jesuíta americano de licença sabática na França. Ele conseguiu esconder-se num  sótão, durante o ataque. Depois de a polícia francesa o interrogar, foi conduzido à  embaixada americana em Paris. Na embaixada, foi novamente interrogado mas,  desta vez, pelo nosso director local da CIA.

- E?

Nash fixou friamente os olhos de Race.

- Os homens que assaltaram o mosteiro não eram terroristas argelinos, Professor  Race. Eram comandos. Soldados. Soldados brancos. Tinham todos máscaras de  esqui pretas e estavam todos armados até aos dentes, com um arsenal de respeito. E  falavam uns com os outros em alemão.

- E o que é interessante - continuou Nash - é aquilo de que eles andavam à procura.  Aparentemente, os comandos reuniram todos os monges na sala de jantar da abadia  e obrigaram-nos a ajoelhar-se. Depois, agarraram um e exigiram que ele lhes  dissesse onde estava o Manuscrito de Santiago. Quando o monge lhes disse que não  sabia, eles mataram dois monges, um de cada lado dele. Depois, repetiram a  pergunta. Quando ele voltou a responder que não sabia, dispararam sobre mais dois  monges, que estavam ao lado dele. Isto teria continuado, até estarem todos mortos,  se alguém não tivesse dito que sabia onde estava o manuscrito.

- Meu Deus... - disse Race.

Nash tirou uma fotografia da sua pasta pessoal.

- Temos razões para crer que foi este o homem responsável por tal atrocidade.  Heirich Anistaze, ex-major da polícia secreta da Alemanha de Leste, a Stasi.

Race olhou para a fotografia. Era de formato A4 e mostrava um homem a sair de  um carro. o homem era alto, tinha ombros largos, cabelo escuro curto, penteado  para a frente, e com duas fendas estreitas a servir de olhos. Eram uns olhos duros e  frios, uns olhos que pareciam estar permanentemente semicerrados. Parecia estar a  meio da casa dos quarenta.

- Repare na mão esquerda dele - disse Nash.

Race olhou para a foto com mais atenção. A mão esquerda do homem estava  apoiada na parte de cima da porta do carro. E Race viu.

Heirich Anistaze não tinha o dedo anelar esquerdo.

- A dada altura, durante a Guerra Fria, Anistaze foi capturado por membros de uma  organização criminosa da Alemanha de Leste, que a Stasi andava a tentar eliminar.  Obrigaram-no a cortar o próprio dedo e, depois, mandaram-no, pelo correio, aos  seus superiores. Mas Anistaze conseguiu escapar e regressou... com todo o poderio  da Stasi atrás de si. É escusado dizer que, depois disso, o crime organizado na  comunista Alemanha de Leste nunca mais foi um problema.

Mas, para nós, o mais relevante são os métodos que ele utiliza noutras  circunstâncias. Está a ver, Anistaze tinha formas peculiares de obrigar as pessoas a  falar. Era conhecido por executar as duas pessoas de cada um dos lados da pessoa  que não lhe dava as informações que ele queria.

Houve um curto silêncio.

- Segundo as informações mais recentes dos nossos serviços secretos - disse Nash -  desde o fim da Guerra Fria, Anistaze tem trabalhado, a título não oficial, como  assassino, a soldo do Governo da Alemanha unificada.

- Então, são os Alemães que têm o manuscrito original disse Race. - Como foi que  vocês conseguiram uma cópia?  Nash acenou com ar entendido.

- Os monges deram aos alemães o manuscrito original. o que foi escrito pelo punho  do próprio Alberto Santiago, ainda sem gravuras.

Mas o que os monges não lhes disseram foi que, em 1599, trinta anos depois da  morte de Santiago, outro monge franciscano começou a transcrever o manuscrito  para outro, mais elaborado, ilustrando-o de forma a ser digno dos olhos de reis.  Infelizmente, este segundo monge morreu antes de completar a transcrição e o que  resta é uma cópia do Manuscrito de Santiago, uma cópia parcialmente completa,  que também estava na Abadia de San Sebastian. E foi essa que copiamos.

Race levantou a mão.

- OK, OK. - disse. - Esperem lá um bocadinho. Porquê toda esta mortandade e  todas estas intrigas, por causa de um ídolo Inca perdido? Em que é que um pedaço  de pedra com quatrocentos anos pode interessar aos Governos americano e  alemão?

Nash sorriu amargamente a Race.

- É que, Professor, não é atrás do ídolo que nós andamos respondeu. - É da  substância de que ele é feito.

- Como assim?

O que eu quero dizer, Professor, é o seguinte: nós cremos que o Espírito do Povo  foi esculpido num pedaço de um meteorito.

 - O  artigo na revista - disse Race.

- Exatamente - respondeu Nash. - Escrito por Albert Mueller, da Universidade de  Bona. Antes da sua morte prematura, Mueller andava a estudar uma cratera de  quilômetro e meio de diâmetro, aberta pela queda de um meteorito, nas selvas do  Sudoeste do Peru, num local situado a uns sete quilômetros de Cuzco. Medindo as  dimensões da cratera e calculando a velocidade a que a selva cresceu sobre ela,  Mueller concluiu que um meteorito de alta densidade, com 60 centímetros de  diâmetro, terá colidido com a Terra, algures entre 1460 e 1470.

- O que - acrescentou Chambers - coincide perfeitamente com o período da grande  ascensão dos Incas, na América do Sul.

- Mas, para nós, o mais importante - prosseguiu Nash – é aquilo que Mueller  encontrou nas paredes da cratera. Depositados nas paredes da cratera, havia  vestígios de uma substância chamada tírium-261.

- Tírium-261? - perguntou Race.

- É um Isótopo raro do elemento tírium vulgar - esclareceu Nash - e não existe neste  planeta. De facto, o tírium só tem sido encontrado, na Terra, petrificado,  presumivelmente em resultado de impactos anteriores de meteoritos, num passado  distante. É originário da constelação das Plêiadas, um sistema de estrelas binárias,  não muito afastado do nosso, Mas como provém de um sistema solar binário, o  tírium tem uma densidade muito mais elevada do que os elementos mais pesados  da Terra.

Agora, as coisas começavam a fazer um pouco mais de sentido para Race.  Especialmente, o que se referia ao facto de o Exército enviar uma equipe de  cientistas para a selva.

- E qual é, mais precisamente, a utilidade do tírium? - perguntou Race.

- Meu coronel - disse, de repente, uma voz.

Nash e Race voltaram-se para ver quem era. Era Troy Copeland, um dos outros  cientistas, que corria pela coxia do avião, vindo da cabine dos pilotos. Copeland era  um homem alto e magro, com uma cara de falcão e uns olhos estreitos e intensos.  Era um dos elementos da DARPA, um físico nuclear, recordou Race. E parecia ser  um indivíduo completamente desprovido de sentido de humor.

- Temos um problema, coronel - disse Copeland.

- O que é que se passa? - perguntou Nash.

- Acabamos de receber um alerta prioritário, proveniente de Fairfax Drive -  respondeu Copeland.

Race já tinha ouvido falar de Fairfax Drive. Era a abreviatura do 3701 North Fairfax  Drive, Arlington, Virginia, a sede da DARPA.  - Sobre? - inquiriu Nash.

Copeland respirou fundo.

- Ouve um assalto esta madrugada. Morreram dezessete seguranças. Todo o pessoal  do turno da noite morreu.

Nash ficou pálido, de uma palidez mortal.  - Eles não...

Com uma expressão muito séria, Copeland acenou que sim com a cabeça.

- Roubaram a Supernova.

Nash ficou a olhar lá para fora, para o vazio, por um momento.

- Foi a única coisa que levaram - acrescentou Copeland. - Eles sabiam exatamente  onde estava. Sabiam os códigos de acesso à caixa forte e tinham os cartões  magnéticos para as fechaduras hidráulicas. Temos de presumir que também saibam  os códigos para as câmaras de vácuo de titânio do próprio aparelho e talvez como  detoná-lo.

- Fazem alguma idéia de quem foi?

- O ENCIS está lá neste momento. Os primeiros indícios apontam para uma ação de  uma organização paramilitar, tipo Freedom Fighters.

- Merda - disse Nash. - Merda! Eles devem ter conhecimento do ídolo.

- Provavelmente.

- Então, temos de chegar lá primeiro.

- Concordo - disse Copeland.

Race assistia à conversa como um espectador de um jogo de tênis. Portanto, a sede  da DARPA fora assaltada mas aquilo que tinha sido roubado era um mistério para  ele. Uma coisa chamada Supernova. E quem eram os tais Freedom Fighters?

Nash levantou-se.

- Qual é a nossa vantagem? - Perguntou.

- Talvez três horas, se tanto - respondeu Copeland.

- Então temos de nos apressar. - Nash voltou-se para Race. - Peço desculpa,  Professor Race, mas as apostas deste jogo acabaram de subir. Não temos mais tempo  a perder. Agora, é imperativo que o manuscrito esteja traduzido quando chegarmos  a Cuzco, porque, assim que aterrarmos, teremos que ser rápidos. Pode acreditar.

Dito isto, Nash, Copeland e Chambers afastaram-se para outra zona do avião,  deixando Race sozinho com o manuscrito.

Race olhou novamente para a capa e analisou a textura grosseira da tinta negra da  fotocopiadora. Depois, respirou fundo e virou a página.

Na primeira linha, escrito em fina caligrafia medieval, viu as palavras:

Meus Nominus Est Alberto Luis Santiago Et Ille Est Meum Rem...

Race traduziu: o meu nome é Alberto Luís Santiago e este é o meu relato.

 

PRIMEIRA LEITURA

Ao primeiro dia do nono mês do Ano da Graça de 1535, tornei-me traidor ao meu  país.

A razão: ajudei um homem a fugir de uma prisão dos meus compatrícios.

O seu nome era Renco Capac e dizia ser um príncipe inca, o irmão mais novo do  senhor supremo deles, Manco Capac, o homem a quem chamavam Sapa Inca.

Era um homem atraente, de suave pele cor de azeitona e longos cabelos negros. o  que mais chamava as atenções para ele era, todavia, um grande sinal que ficava  mesmo abaixo do seu olho esquerdo. Parecia um pico invertido de uma montanha e  era um rugoso triângulo de pele escura sobre uma tez sem qualquer outra mácula.

Conheci Renco a bordo do San Vicente, um navio-prisão ancorado a meio do rio  Urubamba, dez milhas a Norte de Cuzco, a metrópole inca.

O San Vicente era o mais abominável de todos os navios-prisão que jamais  lançaram âncora nos rios da Nova Espanha, um velho galeão que já não tinha  condições para navegar pelos oceanos e a que haviam sido retirados os mastros,  sendo depois rebocado para terra, com o único propósito de manter cativos índios  hostis e perigosos.

Munido, como é meu hábito, da minha venerada Bíblia, encadernada em couro,  uma versão do grande livro com trezentas páginas escritas à mão que havia sido  uma oferta dos meus pais aquando da minha entrada na Santa Ordem, eu havia  chegado ao navio-prisão para ensinar a Palavra de Nosso Senhor àqueles hereges.

Foi nesta qualidade de ministro da nossa fé que encontrei o jovem príncipe Renco.  Ao contrário de muitos outros que se podiam ver naquele batelão miserável - uns  desgraçados imundos e feios, que, devido às vergonhosas condições que os meus  compatrícios lhes impunham, mais pareciam cães que homens; ele era bem-falante  e culto. Outra das suas qualidades era uma sensibilidade tão rara como nunca mais  vim a encontrar em homem algum. Nos olhos dele, lia-se uma bondade e um  entendimento que penetraram na minha alma.

Era também dotado de considerável inteligência. Os meus compatriotas tinham  chegado à Nova Espanha havia apenas três anos mas ele já sabia falar a nossa língua.  Queria, também, conhecer a minha fé e entender o meu povo e os nossos costumes  e eu estava encantado por poder ensinar-lhos. Seja como for, travamos amizade e  eu visitava-o com frequência.

Então, um dia ele falou-me da sua missão.

Antes de haver sido feito cativo, assim o disse, o príncipe havia recebido ordens  para viajar até Cuzco e reaver um ídolo. Não era um ídolo vulgar, diga-se, mas sim  um ídolo muito venerado, talvez o ídolo mais venerado por estes índios. Um ídolo  que eles diziam encarnar o seu espírito.

Mas Renco havia sido impedido de completar a sua jornada a Cuzco, pois fora  capturado numa emboscada montada pelo Governador, com a ajuda dos Chancas,  uma tribo muito hostil, originária das selvas do Norte e que havia sido subjugada  pelo povo Inca contra a sua vontade.

Tal como muitas mais tribos desta região, os Chancas cuidaram que a chegada dos  meus compatriotas lhes daria um meio de se libertarem do jugo da tirania Inca.  Foram céleres no oferecimento dos seus préstimos como informadores e como  guias, em troca do que receberam mosquetes e espadas de metal, pois as tribos da  Nova Espanha não conheciam nem bronze nem ferro.

Enquanto Renco me ia relatando a sua missão e o modo como havia sido capturado  às mãos do Governador, vi, por trás dos seus ombros, um homem da tribo Chanca,  que também se encontrava cativo no San Vicente.

O nome dele era Castino e era um homem feio e grosseiro. Alto e cabeludo, de  barbas compridas e sujo, não podia ser mais diferente do jovem e eloquente Renco.  Era uma criatura completamente repulsiva, o ser humano mais assustador que os  meus olhos alguma vez haviam tido o infortúnio de contemplar. Um pedaço  aguçado de osso furava-lhe a pele da bochecha esquerda, a marca distintiva dos  Chancas. Castino estava sempre a olhar com malevolência para as costas de Renco,  de cada vez que eu o ia visitar.

No dia em que me falou da sua missão de reaver o ídolo, Renco mostrava-se  muitíssimo perturbado.

O objeto da sua demanda, disse ele, encontrava-se fechado numa cúpula dentro do  Coricancha, ou templo do sol, em Cuzco. E, nesse dia, Renco havia escutado sem  ser visto a conversa de dois guardas a bordo do batelão e tomara conhecimento de  que a cidade de Cumo havia caído alguns dias antes e que os Espanhóis se  encontravam dentro das suas muralhas, saqueando e pilhando sem encontrar  resistência.

Também eu havia ouvido falar da tomada de Cuzco. Dizia-se que as pilhagens que  por lá se faziam eram das mais ferozes de toda a conquista. Abundavam rumores  acerca de soldados espanhóis que matavam os seus companheiros, tal era a cobiça  provocada pelas montanhas de ouro que havia dentro das muralhas da cidade.

Tais relatos enchiam-me de tristeza. Eu havia chegado a Nova Espanha apenas seis  meses antes, trazendo comigo todos os ideais inocentes de um noviço - o desejo de  converter todos os nativos pagãos à nossa nobre fé católica, os sonhos de liderar  uma coluna de soldados segurando bem alto diante de mim um crucifixo, as ilusões  de construir grandes catedrais que fariam a inveja da Europa. Mas esses ideais  depressa foram destruídos pelos atos de crueldade e ganância desmesuradas dos  meus compatrícios, de que eu era testemunha todos os dias.

Assassínio, pilhagem, violação - não eram atos próprios de homens que lutavam em  nome de Deus. Eram atos de bandidos e vilões. E, na verdade, nos momentos em  que a minha desilusão atingia pontos mais altos, como daquela vez em que vi um  soldado espanhol decapitar uma mulher para lhe roubar um colar de ouro,  perguntava a mim mesmo se estaria a lutar pelo lado certo. Que os soldados  espanhóis tivessem começado a matar-se uns aos outros durante a pilhagem de  Cuzco não foi para mim uma surpresa.

Todavia, neste momento, devo também acrescentar que já antes havia escutado  rumores sobre o ídolo sagrado de Renco. É bem sabido que Hernando Pizarro, o  irmão do Governador e seu lugar-tenente, havia oferecido uma enorme  recompensa por qualquer informação que o levasse a descobrir o paradeiro do  ídolo. A meu ver, era um tributo à reverência e à devoção que os Incas prestavam  ao seu ídolo que nenhum deles, nem um único de entre eles, houvesse revelado  onde aquele se encontrava, em troca da farta recompensa oferecida por Hernando.  Envergonha-me dizer que não creio que, em circunstâncias semelhantes, os meus  compatriotas tivessem feito a mesma coisa.

Mas, de todos os relatos que havia escutado acerca da pilhagem de Cuzco, em parte  alguma havia ouvido falar da descoberta do precioso ídolo inca.

Em boa verdade, se houvesse sido encontrado, a nova haver-se-ia espalhado mais  depressa que o vento. Pois o afortunado soldado que o descobrisse seria de pronto  armado cavaleiro, recebendo no mesmo instante do Governador o título de  marquês e passando o resto dos seus dias em Espanha, num luxo desmedido. E,  todavia, ainda não se ouvia um tal rumor.

O que me levava a concluir que o ídolo ainda não havia sido encontrado pelos  Espanhóis que haviam entrado em Cuzco. «Irmão Alberto», disse Renco com um  olhar implorante.

«Ajude-me. Ajude-me a escapar desta jaula flutuante para eu poder completar a  minha missão. Somente eu posso reaver o ídolo do meu povo. E, com os Espanhóis  em Cuzco, é apenas uma questão de tempo até eles o encontrarem."

Bom.

Não encontrava palavras para lhe dizer. Eu nunca poderia cometer tal enormidade.  Nunca poderia ajudá-lo a fugir. Isso faria de mim um homem a abater, um traidor ao  meu país. Se fosse apanhado, também eu seria feito prisioneiro, nesta infernal  masmorra flutuante. E, assim, abandonei a prisão sem proferir palavra.

Mas eu havia de voltar. E havia de conversar com Renco mais uma vez e, mais uma  vez, ele havia de me pedir auxílio, numa voz plena de entusiasmo e com aqueles  seus olhos implorantes.

E, de cada vez, que analisava o assunto mais de perto, a minha mente voltava  sempre a dois aspectos: a minha total e ilimitada desilusão perante os atos  desprezíveis dos homens a quem chamava compatriotas e, no sentido oposto, a  minha admiração pela estóica recusa do povo Inca em, mesmo face a tamanha  adversidade, revelar a localização secreta do seu ídolo.

Em boa verdade, nunca havia testemunhado uma devoção sem limites como aquela  e invejava a fé deles. Haviam chegado até mim relatos acerca do modo como na sua  demanda obsessiva do ídolo, Hernando torturava aldeias inteiras; haviam-me  chegado novas das atrocidades por ele cometidas. Perguntava a mim próprio o que  faria, se visse a minha gente ser chacinada, torturada, assassinada. Em tais  circunstâncias, teria eu revelado onde ficava Jerusalém?

Acabei por concluir que o faria e senti-me duplamente envergonhado.

E assim, contra minha vontade e apesar da minha fé e da fidelidade devida ao meu  país, decidi ajudar Renco.

Deixei a prisão e voltei mais tarde, nessa mesma noite, levando comigo um jovem  pagem, um inca de nome Tupac, tal como Renco me havia indicado. Vestíamos  ambos mantos com capuzes por causa do frio e levávamos as mãos ocultas dentro  das mangas.

Chegamos ao posto da guarda na margem do rio. Aconteceu que, como a maior  parte das forças do meu país se encontrava em Cuzco, participando nas pilhagens  que por lá se faziam, apenas um pequeno grupo de soldados estava a postos no  pequeno acampamento, nas proximidades da prisão. Em boa verdade, só havia um  guarda da noite, um rufião gordo e imundo de Madrid, com o hálito a cheirar a  álcool e as unhas sujas, a guardar a ponte que levava a prisão.

Após um segundo olhar para o jovem Tupac - era bastante habitual, por aquela  altura, jovens índios servirem de pajens a monges como eu - o guarda soltou um  sonoro arroto e mandou-nos escrever os nossos nomes no livro de registo.

Fui eu quem rabiscou ambos os nomes no livro. Então, depois de o ter feito,  dirigimo-nos ambos para a estreita ponte de madeira que se estendia da margem até  uma porta no costado do navio, a meio do rio.

Todavia, mal havíamos passado pelo nojento guarda da noite e já Tupac se voltava  num rompante, agarrava o homem por trás e lhe torcia a cabeça, partindo-lhe o  pescoço num instante. O corpo do guarda tombou sobre a cadeira. A brutal  violência daquele ato fez-me estremecer mas, estranhamente, descobri que não  sentia pena nenhuma do guarda. A minha decisão estava tomada, havia prometido  fidelidade ao inimigo e já não podia voltar atrás.

Num gesto rápido, o meu jovem companheiro apoderou-se do mosquete e do  pistallo ou pistola do guarda, como alguns dos meus compatriotas agora lhe  chamavam e, por último, tirou-lhe as chaves.

Sob a pálida luz azul da lua, atravessamos a frágil ponte de madeira e entramos na  prisão.

O homem que estava de guarda lá dentro pôs-se de pé mal entramos na cabine mas  Tupac: foi rápido demais para ele. Disparou a pistola contra o guarda, sem mesmo  parar de andar. A explosão do tiro, no espaço fechado do navio-prisão, foi  ensurdecedora. À nossa volta, os detidos acordaram estremunhados, com aquele  som terrível e súbito.

Renco já estava de pé, quando chegámos à sua cela.

A chave do guarda servia perfeitamente na fechadura e a porta abriu-se com toda a  facilidade. À nossa volta, os demais cativos gritavam e batiam nas grades das suas  celas, implorando-nos que os libertássemos. Os meus olhos perscrutaram o espaço  em redor e, no meio de todo aquele clamor, depararam com uma visão que me  gelou a alma.

Vi o índio Chanca, Castino, de pé, na sua cela, perfeitamente imóvel, de olhos fixos  em mim.

Com a sua cela agora aberta, Renco correu para o corpo do guarda, tirou-lhe as  armas e entregou-me.

«Anda», disse ele, arrancando-me ao torpor causado pela mirada hipnótica de  Castino.

Envergando apenas uns trapos que lhe tinham dado na prisão, Renco despiu  rapidamente o guarda morto. Depois, num ápice, calçou as botas e vestiu as calças e  o pesado casaco de couro que haviam sido pertença do homem caído.

Mal havia acabado de se vestir e já estava de novo de pé, abrindo algumas das  outras celas. Reparei que abria apenas as celas de guerreiros incas e nenhuma das  celas onde se encontravam cativos pertencentes a tribos subjugadas, como os Chancas.

Então, de repente, Renco ia já a cruzar a porta, levando consigo o mosquete,  ignorando os gritos dos outros prisioneiros e dizendo-me que o seguisse.

Corremos pela frágil ponte de madeira por entre uma multidão de prisioneiros em  fuga. Todavia, por esta altura, já havia quem tivesse dado pelo tumulto a bordo da  prisão. Quatro espanhóis, vindos do acampamento próximo da prisão chegaram à  margem, a cavalo, no momento exato em que íamos a sair da ponte. Dispararam  sobre nós com os seus mosquetes, o ruído das suas armas ecoando como trovões a rasgar a noite.

Renco ripostou, manuseando o seu mosquete como o mais experiente soldado de  infantaria espanhol, fazendo cair da sela um dos cavaleiros espanhóis. Os demais  prisioneiros incas correram à nossa frente e derrubaram dos seus cavalos mais dois  espanhóis.

O último dos cavaleiros virou a montada, de forma a ficar diretamente diante de  mim. Por um instante fugaz, vi-o gravar na memória o meu rosto - um europeu que  ajudava aqueles idólatras. Vi a cólera brilhar nos olhos dele e, em seguida, ergueu a  arma na minha direção.

Sem ter mais nada a que recorrer, ergui apressadamente a minha pistola e disparei.  Explodiu com grande ruído na minha mão e juro pelo Livro Sagrado que o seu coice  quase que me ia deslocando o ombro. O cavaleiro diante de mim caiu para trás na  sela e, depois, caiu no chão desamparado, morto.

Eu fiquei ali, atordoado, de pistola na mão, a olhar fixamente para o corpo sem vida,  caído no chão. Tentei convencer-me de que não havia feito nada de errado. Ele ia  matar-me...

- Irmão!, disse Renco, de repente.

Voltei-me de imediato e vi-o sentado num dos cavalos espanhóis.

«Anda daí!», gritou. «Pega no cavalo dele! Temos de ir para Cuzco!"

A cidade de Cuzco fica diante de um extenso vale de montanha que se estende na  direcção norte-sul. É uma cidade com muralhas à volta, situada entre dois rios  paralelos, o Huatanay e o Tullumayo, os quais servem, de certa maneira, de fossos.

Num promontório a norte da cidade e acima dela, fica a construção mais  impressionante do vale de Cumo. Ali, mirando a cidade do alto como um deus,  encontra-se a fortaleza de pedra de Sacsayhuaman.

Sacsayhuaman tem uma arquitetura como eu nunca vi em parte alguma do mundo.  Nada em Espanha ou mesmo em toda a Europa se lhe pode comparar em dimensões  e em presença de domínio absoluto.

É na verdade uma cidadela imponente. Tem uma forma vagamente piramidal e é  composta por três níveis colossais, cada um deles com pelo menos cem palmos de  altura, com paredes feitas de blocos de pedra pesando cem toneladas.

Estes Incas não conhecem a argamassa mas compensam em absoluto essa  deficiência com a sua extraordinária arte no tratamento da pedra. Em vez de fazer a  união da pedra com pastas, constroem templos, palácios e fortalezas, esculpindo  enormes pedras em formas regulares e colocando-as lado a lado, de forma a  encaixarem perfeitamente umas nas outras. Tão perfeita é a junção dessas pedras  monumentais, tal é a precisão com que são cortadas, que ninguém é capaz de  introduzir uma lâmina entre elas.

Foi neste cenário que se deu o intrigante cerco a Cuzco. Neste ponto, terá de ser  dito que o cerco a Cuzco deverá incluir-se entre os mais estranhos da história da  guerra moderna.

A singularidade deste cerco resulta do seguinte: durante o cerco, os invasores - os  meus compatriotas, os Espanhóis, encontravam-se dentro das muralhas da cidade,  enquanto os donos da cidade, o povo Inca, se encontrava do lado de fora das  mesmas.

Por outras palavras, os Incas haviam montado cerco à sua própria cidade.

Para dizer a verdade, esta situação foi resultado de uma longa e intrincada cadeia de  acontecimentos. Em 1533, os meus compatrícios espanhóis entraram em Cuzco  sem oposição e, a princípio, foram amigáveis com os Incas. Só depois de haverem  começado a dar-se conta da enormidade das riquezas existentes no interior das  muralhas da cidade é que todos os vestígios de civilidade se desvaneceram.

Os meus compatrícios pilharam Cuzco com um frenesi nunca antes testemunhado.  Os homens nativos foram brutalmente escravizados. As mulheres nativas foram  violadas. o ouro foi derretido em enormes quantidades, após o que os Incas  começaram a chamar comedores de ouro aos meus compatrícios espanhóis.  Aparentemente, eles pensavam que a enorme sofreguidão por ouro dos meus  compatriotas advinha da necessidade que eles tinham de o comer.

Em 1535, o Sapa Inca, irmão de Renco, Manco Capac, que, até então, havia  adoptado uma atitude conciliatória para com os meus compatriotas, fugiu da cidade  para as montanhas e reuniu um enorme exército com o qual tencionava  reconquistar Cuzco.

O exército Inca - contando com 100.000 homens armados somente com paus,  cacetes e setas - investiu contra a cidade de Cuzco com tamanha fúria que, em  apenas um dia, tomou o Sacsayhuaman, a gigantesca cidadela de pedra que domina  a cidade. Os Espanhóis refugiaram-se no interior das muralhas da cidade.

E foi assim que o cerco começou.

Um cerco que haveria de durar três meses.

Nada neste mundo haveria de poder preparar-me para a visão com que deparei  quando cavalguei por entre as enormes portas de pedra, situadas na parte norte do  vale de Cuzco.

Era noite mas bem podia ser dia. Por todo o lado, dentro e fora das muralhas da  cidade, ardiam fogueiras. Era como se do próprio inferno se tratasse.

A maior assembléia de gente que eu alguma vez havia visto espalhava-se pelo vale  diante de mim; era uma massa ondulante de gentes, que se estendia pelas colinas,  do monte onde se situava a cidadela até à cidade – 100.000 Incas, todos eles a pé,  clamando e gritando, agitando armas e archotes. Haviam cercado por completo a  cidade. Para lá das muralhas, eram visíveis os incêndios por entre os edifícios de  pedra.

Renco cavalgava à minha frente, em direção à massa fervilhante de pessoas e, tal  como o Mar Vermelho diante de Moisés, a multidão abriu-se diante dele.

E, enquanto eles se afastavam, um enorme bramido brotou das fileiras dos Incas,  um grito de tamanho júbilo e fervor que me provocou arrepios na espinha.

Foi como se todos eles houvessem reconhecido Renco instantaneamente, apesar de  ele estar vestido de espanhol, afastando-se para lhe dar passagem. Era como se  todos e cada um soubessem da sua missão e estivessem dispostos a fazer o que  estivesse ao seu alcance para lhe permitir completá-la o mais depressa possível.

Renco e eu passamos por entre a multidão em delírio, galopando a uma velocidade  tremenda, enquanto as hostes de incas nos aplaudiam e se afastavam diante de nós,  encorajando-nos.

Desmontamos perto da base da imponente fortaleza de Sacsayhuanan e apressamo- nos por entre uma multidão de guerreiros incas.

Enquanto caminhávamos por entre as fileiras incas, reparei que inúmeras estacas  haviam sido cravadas no chão, a toda a nossa volta. No topo dessas estacas, estavam  as cabeças ensanguentadas de soldados espanhóis. Em algumas delas, haviam sido  empalados os corpos inteiros de espanhóis capturados. As suas cabeças e os seus pés  haviam sido cortados. Eu caminhava célere, tendo o cuidado de me manter perto  do meu amigo Renco.

E, então, de pronto, a multidão afastou-se diante de nós e eu vi, ali de pé, diante de  mim, junto a uma das entradas da gigantesca fortaleza de pedra, um índio  sumptuosamente vestido. Envergava um estonteante manto vermelho e usava ao  pescoço um colar de ouro e, na cabeça, ostentava uma magnífica coroa cravejada de  pedras preciosas. Encontrava-se rodeado de pelo menos vinte guerreiros e criados.

Era Manco. o Sapa Inca.

Manco abraçou Renco e os dois trocaram algumas palavras em Quêchua, a língua  dos Incas. Mais tarde Renco traduziu-as para mim da seguinte maneira:

«Estávamos preocupados com o teu paradeiro, irmão», disse o Sapa Inca. «Ouvimos  dizer que havias sido capturado ou, pior ainda, que talvez estivesses morto. E tu és  o único que pode entrar na cripta para resgatar o...  - Sim, irmão, eu sei, respondeu Renco. - Escuta, dispomos de pouco tempo. Tenho  de entrar já na cidade. A entrada do rio já foi usada?

- Não, respondeu Manco. - Evitamos utilizá-la, tal como tu nos aconselhaste, para  não alertar os comedores de ouro para a sua existência.

- Fizeram bem, disse Renco, que hesitou antes de voltar a falar. - Tenho mais uma  pergunta a fazer-te.

- Qual é?

- Bassario, disse Renco. - Ele está dentro das muralhas da cidade?  Manco franziu o sobrolho.

- Bassario? - Eu... eu não sei...  - Ele estava lá, quando a cidade caiu?  - Estava, sim.

- Onde estava ele?

- Na prisão dos camponeses, respondeu Manco, - onde está faz mais de um ano. É  esse o lugar dele.  - Porquê? o que queres tu de um patife como Bassario?

- Não te preocupes com isso, irmão, respondeu Renco. - Será coisa de somenos  importância, se eu não encontrar o ídolo.  Nesse mesmo instante, gerou-se uma enorme confusão atrás de nós e Renco e eu voltamo-nos ambos.

Aquilo que vi encheu o meu coração de um terror inimaginável: uma coluna de  soldados espanhóis, nada menos de trezentos homens, resplandecentes nas suas  armaduras prateadas e com os seus característicos elmos pontiagudos, carregava  vale adentro, vinda dos portões do lado norte, a disparar os seus mosquetes. Os  cavalos tinham os corpos cobertos de placas de metal e, assim protegidos, os  cavaleiros abriram uma brecha entre as forças incas.

Enquanto observava a coluna de conquistadores a abrir caminho por entre as  fileiras dos incas, derrubando os índios pelos quais passavam, vi dois dos cavaleiros  que galopavam à cabeça da coluna, reconhecendo ambos. o primeiro era o capitão  Hernando Pizarro, irmão do Governador e homem muito cruel. O seu bigode  negro e a sua barba mal cuidada eram visíveis mesmo de onde eu me encontrava, a  quatrocentos passos de distância.

O segundo cavaleiro era uma figura que reconheci com algum temor. Em boa  verdade, foi tanto assim, que olhei mais uma vez para ele. E o meu pior receio  confirmou-se.

Era Castino, o brutamontes Chanca que estava no San Vicente com Renco. Só que  agora não trazia grilhões nas mãos: cavalgava livre, ao lado de Hernando.

Foi então que, de pronto, compreendi tudo.

Castino por certo havia escutado as conversas com Renco... Estava a conduzir  Hernando à cripta no interior do Coricancha. Renco também se apercebeu disso.

- Pelos deuses, exclamou, voltando-se apressado para o irmão. Tenho de ir. Tenho  de ir já.

- Bons ventos para ti, disse Manco.

Renco fez um curto aceno ao Sapa Inca e, de seguida, virou-se para mim e disse em  espanhol:

- Vem. Temos de nos apressar.

Deixamos o Sapa Inca e corremos para o lado sul da cidade, o lado mais distante do  Sacsayhuaman. Enquanto isso, vi Hernando e os seus homens carregar sobre a  porta norte da cidade.

- Onde vamos? Perguntei, enquanto seguíamos, apressados, por entre a multidão  enfurecida.

- Para o rio de baixo.

E foi tudo o que o meu companheiro disse por resposta. Por fim, chegamos ao rio  que corria junto à muralha sul da cidade. Eu olhei para cima, para a muralha, do  outro lado do rio, e vi soldados espanhóis nas ameias armados de mosquetes e  espadas. A luz alaranjada dos incêndios que ardiam por detrás deles, punham em  destaque as suas silhuetas.

Firme nos seus propósitos, Renco caminhava em direção ao rio e, para minha  grande surpresa, entrou na água, com botas e tudo.

- Espera, gritei-lhe. - Onde vais?

- Ali para baixo, respondeu ele, indicando a água.

- Mas eu... eu não posso. Eu não posso entrar contigo aí.  Renco agarrou o meu braço com firmeza.

- Meu amigo Alberto, eu agradeço-te do fundo do coração por tudo o que fizeste,  pelo risco que correste ao ajudar-me a completar a minha missão. Mas agora tenho  de me apressar, se quiser ser bem sucedido na minha demanda. Vem comigo,  Alberto. Fica comigo. Completa a minha missão comigo. Olha para estas gentes.  Enquanto estiveres comigo, és um herói para elas. Mas, quando deixares de estar a  meu lado, não passarás de mais um comedor de ouro, que tem de ser morto. E,  agora, tenho de ir. Não posso ficar para trás contigo. Se ficares aqui, não poderei  ajudar-te. Vem comigo, Alberto. Vais ter de ousar viver.

Olhei para os guerreiros incas, por trás de mim. Mesmo somente com os seus paus  e bastões primitivos, pareciam ferozes e perigosos. Vi a cabeça de um soldado  espanhol, numa estaca ali perto, com a boca aberta como que num bocejo grotesco.

- É melhor ir contigo, disse eu, virando-me e entrando na água até à cintura, ao  lado dele.

- Muito bem, disse ele. - Respira bem fundo e segue-me.

E, dito isto, Renco susteve a respiração e desapareceu debaixo de água. Eu abanei a  cabeça, sem pensar mais, sustive a respiração e fui atrás dele, debaixo de água.

Silêncio. Os cânticos e gritos das hostes incas haviam deixado de se ouvir. No meio  da escuridão das águas turvas do rio, segui as pisadas de Renco ao longo de um  túnel de pedra, escavado na parte submersa da muralha da cidade.

Foi difícil avançar pelo túnel cilíndrico submerso, tão estreito ele era. E pareceu-me levar uma eternidade a percorrê-lo. Mas então, mesmo quando os meus  pulmões pareciam querer rebentar, vi o fim do túnel e as ondas da superfície da  água e nadei com mais força naquela direção.

Emergi numa espécie de esgoto subterrâneo, iluminado por tochas presas à parede.  A água dava-me pela cintura e eu estava rodeado por úmidas paredes de pedra.  Diante de mim, abriam-se túneis quadrados, mergulhados na escuridão. o fedor de  fezes humanas pairava no ar.

Renco caminhava pela água, bem à minha frente, em direcção a um cruzamento na  rede de túneis. Eu apressei-me a segui-lo. E lá fomos, pelos túneis fora. Para a  esquerda e, depois, para a direita para a esquerda e, depois, para a direita. E assim  avançamos com rapidez por entre aquele labirinto subterrâneo. Nem uma única vez  Renco pareceu ter dúvidas ou estar perdido. Entrava em túnel após túnel, com  ousadia e afoiteza.

Depois, subitamente, parou e olhou para o teto de pedra acima das nossas cabeças.

Perplexo, parei, logo atrás dele, Não conseguia ver qual a diferença entre aquele  túnel e qualquer dos muitos outros que havíamos percorrido até àquele momento.

E, então, por razões para mim desconhecidas, Renco mergulhou naquelas águas  fétidas. Momentos mais tarde, emergiu, segurando uma pedra do tamanho do  punho de um homem. Em seguida, trepou para fora da água e ficou escarranchado,  de costas coladas à parede, sobre uma estreita saliência que ladeava o túnel e, com a  pedra que havia acabado de apanhar, começou a bater numa das lajes de pedra que  formavam o teto do túnel.

Bum! Bum! Bum!

Renco aguardou alguns instantes. Em seguida, repetiu a sequência.

Bum! Bum! Bum!

Era uma espécie de código. Renco desceu da saliência para a água e ficamos ambos a  olhar para o teto, em silêncio, à espera de que acontecesse alguma coisa.

Não aconteceu nada.

E nós continuamos à espera. Então, reparei num pequeno símbolo gravado no  canto da rocha na qual Renco havia batido. Era um círculo no interior do qual havia  sido inscrito um V duplo.

Então, de súbito, ouviu-se um bum, bum, bum - uma série de pancadas abafadas  provenientes do outro lado da laje. Era alguém que repetia o código de Renco.

Renco suspirou de alívio. Voltou a trepar de novo para a saliência e produziu uma  nova sequência de batidas.

Momentos depois, aquela imensa laje quadrangular do tecto foi arrastada,  gemendo, estridentemente, ao roçar pelas lajes vizinhas, até revelar um buraco  escuro, que parecia uma caverna, acima de nós.

Renco saiu de imediato da água e desapareceu no buraco aberto no teto. Eu fui atrás  dele.

Deparei com o mais esplendoroso dos salões, uma enorme câmara em forma de  cripta, com as quatro paredes laterais decoradas com magníficas imagens douradas.  As paredes eram feitas de blocos de pedra maciços, cada um com uns três metros de  largura e, provavelmente, com a mesma espessura. Não se via qualquer porta, à  exceção de uma pedra, mais pequena, esta somente com perto de dois metros de  alto, embutida numa das sólidas paredes. Encontrava-me na cripta do Coricancha.

Uma única tocha iluminava o espaço da caverna. Era empunhada por um enorme  guerreiro inca. Três outros guerreiros, também eles altos, estavam parados atrás do  portador da tocha, olhando-me fixamente.

Todavia, havia mais uma pessoa na cripta. Uma mulher idosa, que só tinha olhos  para Renco.

Era uma mulher formosa, de cabelos grisalhos e pele enrugada, e imaginei que, na  sua juventude, havia de ter sido uma mulher de extraordinária beleza. Envergava  somente uma simples túnica de algodão branco e usava uma tiara de ouro e  esmeraldas. E devo dizer que, nas suas vestes brancas e simples, tinha o ar angélico,  quase divinal, de uma sacerdotisa de...

Bum!  Ao ouvir aquele som repentino, voltei-me. Renco voltou-se também.

Bum!  O som parecia vir do lado de fora da parede. Alguém estava a investir contra a  porta de pedra.

Fiquei paralisado de medo. Os espanhóis.

Hernando. Estavam a tentar entrar.

A velha sacerdotisa disse algo a Renco em Quêchua. Renco respondeu  prontamente e, em seguida, apontou para mim.  Bum! Bum!

Então, a velha sacerdotisa voltou-se num ápice, para um pedestal que havia atrás  dela. Repousando no pedestal, vi um objeto coberto por um pano de seda de cor  púrpura.

A sacerdotisa agarrou naquele objeto, com pano e tudo, e, a despeito das batidas  insistentes na porta, entregou-o solenemente a Renco. Eu ainda não havia  conseguido vislumbrar o que estava por debaixo do pano. O que quer que fosse era  mais ou menos do tamanho de um crânio humano.

Renco pegou no objeto, com reverência. Bum! Bum!

Por que razão se movia ele com tamanha lentidão, interroguei-me incrédulo,  enquanto o meu olhar se dirigia para as paredes, que tremiam em redor de nós.

Depois de ter o objeto bem seguro nas suas mãos, Renco removeu o pano,  lentamente.

E, então, eu vi-o.

E, por um instante, só fui capaz de o olhar fixamente. Diante de mim estava o ídolo  mais belo que alguma vez havia visto e, ao mesmo tempo, também o mais  assustador.

Era completamente negro, esculpido num bloco quadrado de uma pedra  absolutamente fora do comum. Era grosseiro e com arestas aguçadas e tinha formas  agrestes e desalinhadas. A meio do bloco, havia sido esculpido o focinho de um  feroz felino da montanha, de fauces arreganhadas. Era como se, enlouquecido pela  fúria e pela ira, o felino houvesse conseguido empurrar a cabeça para fora da  própria pedra.

Imperfeições na rocha, umas finas estrias de uma lustrosa tonalidade púrpura,  estendiam-se na vertical ao longo do focinho do felino, conferindo-lhe um aspecto  ainda mais aterrador, como se, em boa verdade, tal fosse possível.

Renco voltou a cobrir o ídolo. Ao fazê-lo, a velha sacerdotisa aproximou-se dele e  colocou-lhe algo à volta do pescoço. Era um fino cordão de couro, com uma  espantosa pedra verde pendurada, uma magnífica esmeralda reluzente que tinha,  sem dúvida, o tamanho aproximado de uma orelha humana. Renco aceitou a  oferenda com um gesto solene e, de seguida, voltou-se para mim, apressado.  - Agora, temos de ir, disse ele.

Então, com o ídolo debaixo do braço, encaminhou-se para o buraco aberto no chão.  Eu corri atrás dele. Os quatro enormes guerreiros seguraram na laje, que iria cobrir  a nossa via de fuga. A velha sacerdotisa não se mexeu.

Renco desceu para o esgoto. E eu desci atrás dele. Todavia, ao começar a descer,  dei-me conta de uma coisa bastante estranha.

A cripta estava silenciosa.

As batidas no exterior haviam cessado.

Estava eu a ponderar esta singularidade, quando me apercebi de que as batidas  haviam cessado fazia já algum tempo.

Foi então que a entrada da cripta explodiu de fora para dentro. Um grande clarão  branco iluminou as bordas da enorme porta e, um instante mais tarde, aquela  enorme entrada de dois metros explodiu em mil pedaços, fazendo chover sobre a  sala da cripta estilhaços de rocha do tamanho do punho de um homem.

Eu não era capaz de explicar aquilo. Um aríete não conseguiria desfazer tão  prontamente uma pedra daquele tamanho...

Então, quando o fumo e o pó perto da porta assentaram, eu vi o grande cano negro  do canhão, que ocupava o lugar antes ocupado pela porta.

Senti que o meu cérebro andava à roda.

Eles haviam deitado a porta abaixo com um canhão!  - Vem, gritou Renco, do esgoto por baixo de mim.

Comecei de imediato a descer pela abertura, ao mesmo tempo que, por entre a  nuvem de pó, os primeiros soldados espanhóis entravam de rompante, disparando  os seus mosquetes em todas as direções.

E, ao desaparecer pelo buraco adentro, a última coisa que vi foi o capitão, Hernando  Pizarro, entrando a correr no interior da cripta, de pistola na mão. Os seus olhos  ostentavam uma expressão selvagem e a sua cabeça voltava-se para um lado e para o  outro, à procura do ídolo pelo qual tanto ansiava.

E, então, num momento de puro horror, vi Hernando olhar diretamente para os  meus olhos.

D esvairado, arrastei-me ao longo dos escuros túneis de esgotos, tentando com todas  as minhas forças acompanhar Renco. Enquanto isto, ouvi gritos em espanhol,  ecoando pelas paredes de pedra dos túneis e vi longas sombras atemorizantes,  estendendo-se pelas paredes atrás de nós.

Na minha dianteira, Renco continuava a avançar pela água imunda, com o ídolo  inca debaixo do braço.

Seguimos apressados pelos túneis, com a água pela cintura, virando à direita,  tornando à esquerda, tecendo o nosso caminho por entre o escuro labirinto de  pedra, de volta à entrada do rio e à liberdade.

Passado pouco tempo, todavia, comecei a dar-me conta de que íamos na direção  errada.

Renco não se encaminhava para a entrada no rio.  - Para onde vamos? Gritei, para diante de mim.  - Continua a andar! Respondeu ele.

Estava eu a virar uma esquina, quando a tocha por cima da minha cabeça foi  arrancada do seu suporte por um tiro de mosquete. Voltei-me e vi um grupo de seis  conquistadores, a correr pelo túnel atrás de mim, com a luz da chama da tocha da  passagem, a brilhar sobre os seus capacetes.

- Eles estão mesmo atrás de nós! Gritei.

- Então corre mais depressa!

Mais tiros de mosquete soaram, ecoando que nem trovões, quase me  ensurdecendo. Os seus projéteis explodiam contra a pedra úmida das paredes, ao  nosso redor.

E foi então que, mesmo diante de mim, eu vi Renco saltar para uma plataforma e  empurrar com o ombro uma laje de pedra do teto, uma laje que tinha a mesma  marca misteriosa que havia visto antes, o círculo com o duplo V inscrito dentro  dele. Saltei para a plataforma, para junto dele, e ajudei-o a empurrar a pedra para  cima, deixando a descoberto o estrelado céu noturno.

Renco trepou primeiro e eu segui logo atrás dele. Fomos dar a uma estreita rua  empedrada, flanqueada de um lado e doutro por impenetráveis paredes cinzentas.

Eu comecei a recolocar apressadamente a laje no seu lugar quando, de pronto, um  tiro de mosquete vindo do interior do túnel, silvou contra a borda do buraco,  falhando por pouco os meus dedos.

- Deixa estar isso. Anda. É por aqui, disse-me Renco, puxando-me para a estreita  viela.

As paredes de ambos os lados da rua tornaram-se numa mancha indistinta de  cinzento, enquanto nós quase voávamos pelo labirinto de ruas de Cuzco, com os  soldados de Hernando mesmo atrás de nós.

Enquanto fugíamos aos nossos perseguidores, víamos, de quando em quando,  brigadas de tropas espanholas correndo pelas ruas, em direção às muralhas.

Também vimos, envergonho-me de o dizer, estacas não muito diferentes das que  havíamos visto fora das muralhas da cidade. Erguiam-se em todas as praças da  cidade, filas e filas de estacas, nas quais haviam sido empalados os corpos  horrivelmente mutilados de guerreiros incas, a quem haviam sido arrancados as  cabeças, as mãos e os órgãos genitais.

Numa dessas praças, Renco viu um arco inca, que pendia de um dos corpos  profanados. Apoderou-se do arco e da aljava cheia de setas que se encontrava no  chão, junto ao corpo, e voltou a esgueirar-se pelo labirinto de vielas. Eu seguia-o de  perto, não ousando perdê-lo de vista.

Passado algum tempo, todavia, Renco virou-se repentinamente e entrou num  edifício. Era uma estrutura de pedra achatada, notavelmente sólida. Em boa  verdade, era tão sólida que quase parecia ser fortificada.

Percorremos várias câmaras exteriores, antes de descermos um lance de degraus de  pedra e chegarmos a uma câmara subterrânea muito ampla.

A câmara estava dividida em dois níveis, um nível inferior amplo e um nível  superior que pouco mais era que uma galeria, que se estendia ao longo de todo o  perímetro da sala.

Mas foi o andar inferior que me chamou a atenção.

Havia quase uma centena de buracos, cavados no chão de terra batida - poços sobre  os quais se estendia uma rede de estreitas pontes de pedra. Com um  estremecimento de temor, percebi onde me encontrava.

Estávamos num calabouço inca.

Lembrei-me então de que estes Incas ainda não haviam descoberto o ferro, pelo  que não tinham barras para fazer grades. Os poços, pensei, eram a solução para este  dilema.

Olhei para a galeria sobranceira ao nível inferior. Era uma passadeira de patrulha,  de onde os guardas prisionais podiam observar os prisioneiros que se encontravam  lá em baixo.

Renco avançava sem hesitações. Dirigiu-se a uma das estreitas pontes de pedra e  espreitou para os buracos por baixo dos seus pés. Desses buracos, vinham gemidos  e gritos, soltados pelos miseráveis e esfomeados prisioneiros que haviam sido  abandonados nos seus poços, quando o cerco havia começado, uma semana antes.

Renco parou sobre um dos poços. Eu fui atrás dele, pela ponte de pedra, e olhei  para o interior do buraco escavado na terra. E, juro, foi isto o que vi.

O buraco em si devia ter, pelo menos, cinco passos de fundo, e as paredes de terra  eram verticais. Fugir era impossível. No fundo daquele buraco sujo, estava sentado  um homem de estatura média. Tinha um aspecto imundo e pútrido. Embora  estivesse magro, este homem não parecia perturbado, nem gritava como as  restantes pobres criaturas abandonadas naquela prisão. Estava somente sentado,  com as costas encostadas à parede do poço, aparentando, quanto muito, um ar de  quem está descontraído e à vontade. Aquela compostura, aquela calma impúdica,  características dos criminosos deste mundo, provocou-me arrepios na espinha a  mim próprio.

- Bassario, chamou Renco.  O criminoso sorriu.

- Ora vejam só quem aqui está. o bom príncipe Renco...  - Preciso da tua ajuda, disse Renco, em voz seca.

O prisioneiro pareceu achar graça a isto.

- Não sou capaz de imaginar o que o nosso bom príncipe poderá querer das minhas  habilidades, disse o criminoso, rindo. - O que queres, Renco? Agora, que o teu  reino está em ruínas, estarás a pensar em enveredar pela senda do crime?

Renco olhou para a entrada da câmara subterrânea, a ver se os espanhóis já ali  haveriam chegado. Eu partilhava da sua preocupação. Já estávamos naquele  calabouço havia demasiado tempo.

- Eu só te vou perguntar isto uma vez, Bassario, disse Renco, com firmeza. - Se  escolheres ajudar-me, eu tiro-te daí. Se não for essa a tua escolha, deixo-te aí, a  morrer nesse buraco.

- É uma escolha interessante, retorquiu o criminoso.  - Então?

O criminoso Bassario pôs-se de pé.  - Tira-me deste buraco.

Num ápice, Renco foi buscar uma escada de madeira que estava encostada a uma  parede distante.

Pela minha parte, eu estava preocupado com Hernando e com os seus homens. Eles  poderiam chegar a qualquer momento e ali estava Renco, a negociar com um  condenado! Corri para a porta por onde havíamos entrado na prisão. Uma vez ali  chegado, espreitei pelo vão da porta e vi a figura sombria e demoníaca de  Hernando Pizarro, avançando a passos largos pelas escadas, em direcção a mim!

O sangue gelou-se-me nas veias perante tal visão - aqueles olhos castanhos e  selvagens, o bigode negro arqueado, a áspera barba negra, por fazer havia semanas.

Girei sobre os calcanhares e comecei a correr.  - Renco! Gritei.

Renco havia acabado de baixar a escada até ao poço de Bassario, quando se voltou e  viu o primeiro soldado espanhol entrar de rompante no átrio da prisão, por trás de  mim.

As mãos de Renco moviam-se com destreza e, ao cabo de um instante, o seu  comprido arco estava em posição e com uma seta colocada. Renco disparou a arma e  a seta voou pela sala, mesmo na direção da minha cabeça. Eu baixei-me e a seta foi  acertar na testa do soldado que se encontrava atrás de mim. Os pés dele voaram do  chão, onde ele tombou pesadamente.

Eu corri para o labirinto de pontes de pedra sobre os poços do calabouço.

Mais conquistadores entraram no átrio da prisão - e entre eles Hernando - disparando furiosamente os seus mosquetes.

Por esta altura, Bassario havia emergido do poço e, agora, ele e Renco corriam pela  parte mais larga do chão de terra batida, do outro lado do átrio da prisão.

- Por aqui, Alberto! Gritou Renco, apontando para a larga porta de pedra, no  extremo do calabouço.

Olhei para a abertura, do outro lado do átrio, e vi uma sólida laje quadrada,  suspensa sobre esta por meio de uma coisa que parecia uma roldana. Não era uma  laje muito grande, mal tinha o tamanho de um homem, mais ou menos com a  mesma forma e tamanho que a abertura da porta que havia por baixo. Dois pedaços  de corda esticada seguravam-na sobre o vão da porta, cada um deles com uma pedra  a servir de contrapeso, o que tornava mais fácil para os guardas da prisão que se encontrassem na passadeira de patrulha da galeria de cima fazerem subir e descer a  pedra sobre a abertura.

Corri para a porta, Ao chegar ali, senti um peso terrível bater-me nas costas e fui atirado para diante.  Caí pesadamente sobre uma das estreitas pontes de pedra e, para minha surpresa, vi  que havia levado um soco nas costas, dado por um soldado espanhol!

O soldado ajoelhou-se ao lado do meu corpo, puxou da adaga e estava prestes a  cravá-la em mim, quando, abruptamente, uma seta o atingiu no peito. Em boa  verdade, a seta embateu no soldado com tamanha força que lhe arrancou o elmo da  cabeça, enquanto o corpo do soldado era atirado da ponte abaixo, para dentro do  poço que ficava por baixo de nós.

Olhei para baixo, para o poço, e vi quatro prisioneiros cobertos de lama correrem  sobre ele como um só homem. Perdi de vista o pobre soldado mas, um instante  mais tarde, ouvi um grito do mais puro e absoluto terror. Os prisioneiros famintos  que se encontravam dentro do poço estavam a comê-lo vivo.

Olhei para cima mesmo a tempo de ver Renco escorregar para o chão, ao meu lado.

- Vem! Disse ele, agarrando-me por um braço e puxando-me, para me pôr de pé.

Ergui-me e vi que Bassario havia chegado à porta distante.

À nossa volta só se ouvia o troar dos disparos de mosquete, que levantavam faíscas  cor-de-laranja, ao embater na ponte por baixo de nós.

Então, uma bala perdida atingiu uma das cordas que mantinham a laje quadrada  suspensa sobre a entrada, do outro lado do átrio.

A corda quebrou-se, com um som agudo, e a pedra começou a descer sobre o vão da  porta.

Por baixo dela, Bassario olhava aterrorizado para aquilo. Depois, voltou a olhar para  Renco.

- Não, disse Renco, quase sem fôlego, ao ver a laje a baixar. A porta, que era a única  saída possível do calabouço, estava a fechar-se, a quarenta passos de nós!

Avaliei a distância e calculei a velocidade a que a laje descia sobre a abertura  quadrada.

Não havia maneira de lá chegarmos a tempo.

A porta estava demasiado distante, a pedra descia com demasiada rapidez. Dentro  de alguns instantes, iríamos ficar fechados dentro daquele calabouço, encurralados  e à mercê dos meus compatriotas sedentos de sangue, que, naquele momento  preciso, corriam por entre o emaranhado de pontes de pedra, atrás de nós,  disparando os seus mosquetes.

Agora, nada nos podia salvar.

Mas, obviamente, Renco não via as coisas do mesmo modo. A despeito do corpo de  mosqueteiros, que urravam a curta distância de nós, o jovem príncipe olhou em  redor rapidamente e viu o pesado elmo de aço do soldado espanhol que havia caído  no poço, por baixo de mim.

Baixou-se para o apanhar, pegou nele e, em seguida, voltou-se e arremessou-o de  lado, a rebolar pelo chão poeirento do calabouço, em direção à porta que se fechava  rapidamente.

O elmo deslizou pelo chão, rolando de lado, e, enquanto isso, a sua pontiaguda  crista prateada cintilava à luz das fogueiras.

A pedra quadrada continuava a descer sobre o vão da porta, já a roçar os lados da  abertura de pedra.

Noventa centímetros.  Sessenta centímetros.  Trinta centímetros.

Nesse momento, rolando velozmente, o elmo chegou à soleira da porta e encaixou- se na perfeição entre a laje quadrada e o chão coberto de poeira, interrompendo o  movimento descendente da laje. Agora, a laje havia parado a uns trinta centímetros  do chão, equilibrando-se sobre a pontiaguda crista de aço do elmo!

Olhei para Renco, espantado.  - Como foi que fizeste isto? Inquiri.  - Esquece, respondeu ele. - Anda!

Corremos juntos pela ponte fora e irrompemos pela vasta extensão de chão  poeirento que levava à porta parcialmente aberta, onde Bassario estava à nossa  espera. Num recanto qualquer da minha mente, interroguei-me porque não teria  Bassario fugido, enquanto Renco estava ocupado a salvar-me. Talvez pensasse que  tinha mais possibilidades de sobreviver, se continuasse com Renco. Ou talvez  houvesse outra razão...

Disparos de mosquete, assustadoramente ruidosos, choviam à nossa volta,  enquanto Renco se deitava de costas e se deixava deslizar, com os pés para diante,  pela estreita abertura entre a laje e o chão. Bassario foi o seguinte. o meu deslizar  foi um pouco menos elegante. Mergulhei, de cabeça para diante e peito para baixo,  sobre o chão de terra batida, e contorci-me desajeitadamente até passar para o  outro lado da abertura, para um túnel murado.

Estava ainda a pôr-me de pé e já Renco retirava o elmo debaixo da grande laje  quadrada, que, então, acabou de selar a porta, com um estrondo.

Quase sem fôlego, suspirei de alívio. Estávamos a salvo. Por algum tempo.

- Vem, disse Renco. - Temos de nos apressar. Está na hora de dizer adeus a esta  cidade maldita.

Voltávamos às vielas. Correndo o mais que podíamos.

Renco ia à frente, seguido de Bassario e eu fechava o cortejo. A certa altura,  deparamos com uma pilha de armas espanholas. Bassario agarrou num arco  comprido e numa aljava cheia de setas; Renco pegou numa aljava de couro, que  mais parecia um bornal, dentro da qual colocou o ídolo. Pela minha parte, escolhi  um sabre comprido e brilhante. Pois, em boa verdade, embora eu seja um modesto  monge, venho de uma família que pôs nesta terra alguns dos melhores esgrimistas  de toda a Europa.

- Por aqui, disse Renco, dirigindo-se para umas escadas. Subimos as escadas num  ápice e fomos dar a uma série de telhados desiguais. Renco apressava-se, correndo  sobre os telhados, trepando pelos muros baixos que os dividiam, saltando sobre os  espaços existentes entre as várias edificações.

Bassario e eu fomos atrás dele até que, por fim, Renco saltou para o chão, mantendo-se encostado a um muro baixo. A sua respiração era arquejante, fazendo- lhe subir e descer o peito a grande velocidade.

Então, olhou por cima do muro. Eu fiz o mesmo. E aquilo que vi foi isto: uma vasta  praça empedrada, ocupada por talvez duas dúzias de soldados espanhóis e por  outros tantos cavalos. Alguns dos cavalos estavam soltos e os restantes atrelados a  carroças de formas variadas.

Do lado mais distante da praça, aberto na muralha exterior da cidade, havia um  grande portão de madeira. Todavia, aquele portão não pertencia à cidade de Cuzco:  era antes um apêndice bastante feio, feito pelos meus compatriotas ao portão de  pedra da cidade, depois de esta ter sido tomada.

Mesmo em frente ao enorme portão de madeira mas a uma certa distância deste,  encontrava-se uma grande carroça rasa, puxada por dois cavalos voltados para o  interior da cidade. Instalado na parte de trás dessa carroça, estava um imponente  canhão, voltado na direção oposta.

Mais perto de nós, na base da edificação onde nos encontrávamos agora, estavam  cerca de trinta prisioneiros incas, com um aspecto miserável. Um grande pedaço de  corda havia sido passado pelas algemas de aço que todos os prisioneiros tinham à  volta dos pulsos, prendendo-os uns aos outros, numa longa cadeia de gente  desalentada.

- O que vamos fazer agora?, perguntei a Renco, cheio de ansiedade.

- Vamos embora.  - Como?  - Por ali, retorquiu, apontando para o portão, do outro lado da praça.

- E porque não pela entrada dos esgotos?, repliquei, pensando que esta seria a via  de fuga mais óbvia, - Um ladrão nunca utiliza duas vezes a mesma entrada, disse Bassario. - Pelo  menos, não o faz depois de a sua presença haver sido notada. Não é assim, príncipe?

- Assim é, respondeu Renco.

Voltei-me, a fim de avaliar o criminoso Bassario. Era, na verdade, um homem  bastante belo, a despeito do seu aspecto imundo. Os olhos brilhavam-lhe e  ostentava um grande sorriso - o sorriso de um homem feliz por tomar parte numa  aventura. Não posso dizer que eu partilhasse da sua alegria.

Então, Renco começou a remexer na aljava, de onde retirou algumas setas, cujas  pontas se encontravam embrulhadas em tecido, o que lhes dava o aspecto de  estranhos projéteis arredondados e bolbosos.

- Ótimo, disse ele, olhando em torno de si e deparando com uma tocha acesa,  suspensa de uma parede, ali perto. - Muito bom mesmo.

- O que está planejando fazer?, inquiri.

Renco não parecia estar a ouvir-me. Limitava-se a olhar para três cavalos,  desatrelados e sem cavaleiro, do outro lado da praça.  - Renco, insisti. - O que está planejando fazer?

Então, Renco voltou-se para mim e um sorriso irônico iluminou-lhe o rosto.

Eu saltei para a enorme praça, com as mãos escondidas na minha capa de monge  ensopada e o capuz encharcado puxado sobre a cabeça molhada.

Procurava não chamar a atenção para a minha pessoa, avançando de cabeça baixa,  enquanto atravessava a praça, afastando-me destramente para o lado, quando me  cruzava com grupos de soldados, e baixando-me rapidamente, quando algum cavalo  se punha a andar à minha volta.

Renco havia calculado que os soldados que se encontravam na praça ainda não  deviam saber que um monge espanhol renegado - eu - andava a prestar auxílio a  um pequeno grupo de incas em fuga. Assim, desde que não reparassem nas minhas  vestes ensopadas, eu poderia chegar até junto dos três cavalos abandonados e levá- los para uma viela das proximidades, onde Renco e Bassario os montariam.

Mas, primeiramente, eu tinha de abrir uma passagem até ao portão, o que queria  dizer afastar do caminho a carroça rasa sobre a qual se encontrava o canhão. Ia ser  uma tarefa difícil. Exigia que, «acidentalmente», eu assustasse os dois cavalos  atrelados à carroça. Para tal, levava escondida na manga uma das setas pontiagudas  de Renco, pronto para, possa Deus perdoar-me, picar com ela uma das pobres  criaturas, quando passasse por elas.

Atravessei a praça muito devagar, tendo o cuidado de manter os olhos baixos, sem  ousar cruzar o olhar com ninguém.

Tal como nas outras praças da cidade, também esta tinha, espetadas no chão, a toda  a volta, estacas nas quais haviam sido espetadas cabeças decepadas. o sangue destas  cabeças ainda estava fresco e escorria pelas estacas, até ao chão. Um imenso medo  invadiu-me, ao passar por elas. Era este o destino que me esperava, se não saísse  rapidamente de Cuzco.

O portão já estava à vista e, com ele, a carroça rasa colocada diante dele. Olhei para  os cavalos e apertei com mais força na mão a seta, oculta pela manga. Mais dois  passos e...

- Ei! Você! Rosnou uma voz, atrás de mim. Parei mas não ergui os olhos.

Um enorme soldado, com uma grande barriga, saltou-me ao caminho, interpondo-se entre mim e os cavalos. Usava o elmo pontiagudo de conquistador numa posição  perfeita e a sua voz irradiava autoridade. Era um oficial.

- O que você está fazendo aqui? Inquiriu, sem mais rodeios.  Eu disse:

- Lamento, lamento muito... Fiquei retido na cidade e...  - Volta para o teu alolamento. Esta zona não é segura. Há incas dentro da cidade.  Julgo que andam atrás do ídolo do capitão.

Eu nem queria acreditar. Estava tão perto do meu objetivo e, agora, mandavam-me  embora! Com relutância, comecei a andar mas, de repente, uma mão forte pousou  no meu ombro.

- Espera um pouco, monge..., começou a dizer o soldado. Mas deteve-se  abruptamente, ao sentir que as minhas vestes estavam molhadas. - Que...  Nesse preciso instante, um zunido ecoou no ar, perto de mim e, então - zás! - uma  seta embateu contra o rosto do soldado, despedaçando-lhe o nariz, do qual brotou  uma explosão de sangue, que me salpicou a cara toda.

O soldado caiu que nem uma pedra. Os restantes soldados que se encontravam na  praça viram-no tombar e olharam em redor, tentando ver de onde vinha o perigo.

De repente, o som de um segundo zunido cortou o ar e, desta vez, era uma seta em  chamas, lançada de um dos telhados que rodeavam a praça e que se encontravam na  sombra. A segunda seta sobrevoou a carroça rasa diante de mim e foi acertar no  grande portão de madeira, por trás desta.

Os gritos ecoavam no ar, enquanto os conquistadores abriam fogo contra o local,  mergulhado na sombra, de onde vinham as setas.

Todavia, eu estava a olhar para outra coisa completamente diferente.

Estava olhando para o canhão, instalado em cima da carroça e, muito em especial,  para o pavio que sobressaía da sua culatra. O pavio estava a arder.

A seta em chamas - no momento, não sabia mas, agora, percebo que foi Bassario  quem a disparou - havia sido tão bem apontada que incendiara a mecha do canhão!

Resolvi não esperar pelo que se iria passar a seguir. Corri tão depressa quanto pude  para os três cavalos desatrelados e sem cavaleiro e, mal cheguei junto deles, o  canhão em cima da carroça rasa disparou.

Foi o som mais estrondoso que jamais ouvi na minha vida. Uma explosão monstruosa, de uma intensidade e força tamanhas, que abalou o chão por baixo dos  meus pés.

Uma onda crescente de fumo saiu do cano do canhão e o grande portão de madeira  diante de mim quebrou-se como se fosse um pequeno ramo. Quando o fumo se  espalhou, viu-se um buraco de mais de dez metros na parte de baixo do portão  gigantesco.

Os cavalos atrelados à carroça rasa fugiram, devido àquela explosão repentina e  tremenda. Empinaram-se e, em seguida, partiram à desfilada, galopando em direção  a uma das vielas de Cuzco, deixando desimpedido o caminho para o portão.

Os três cavalos que eu havia sido encarregado de ir buscar também se empinaram.  Um deles fugiu mas os outros dois acalmaram-se rapidamente e eu segurei-os com  firmeza pelas rédeas.

Os soldados espanhóis continuavam a disparar às cegas contra os telhados  submersos na sombra. Eu perscrutei a escuridão. Renco e Bassario não estavam à  vista.

- Monge!, gritou alguém, de repente, por trás de mim.

Voltei-me e vi aparecer Bassario, a correr, de arco na mão.  - Não podias ter armado maior confusão, pois não, monge?, disse ele, sorrindo, ao  mesmo tempo que saltava para a sela de um dos meus cavalos. - A única coisa que  precisavas de fazer era assustar os cavalos.

- Onde está Renco?, inquiri.  - Já vem, respondeu Bassario.

Então, uma vaga de gritos estridentes e irados ouviu-se por toda a praça e eu voltei- me de pronto, a tempo de ver a fila de prisioneiros incas carregar, como um só  homem, sobre os espanhóis que se encontravam na praça. Os incas já não estavam  presos uns aos outros por uma corda negra!

Então, de repente, ouvi um grito de morte e vi Renco, no alto de um telhado,  debruçado sobre um conquistador caído, a tirar a pistola do homem, enquanto seis  outros espanhóis corriam pelas escadas laterais da edificação, para tentar apanhá-lo.

Renco olhou para mim e gritou:

- Alberto! Bassario! O portão! Correi para o portão!  - E você?, gritei em resposta.

- Eu vou já atrás de vós!, gritou Renco, baixando-se para evitar um tiro de mosquete. - Ide! Ide!

Saltei para a sela do segundo cavalo.

Vem! gritou Bassario, dando uma pancada na garupa do cavalo. Eu incitei o meu  corcel e arranquei que nem um relâmpago, voltando bruscamente o animal, para o  obrigar a cavalgar em direcção ao portão.

Foi então que me virei sobre a sela e deparei com a mais assombrosa das visões.

Vi uma seta, uma seta normal e não uma seta em chamas, sobrevoar a praça, vinda  dos telhados. Atrás dela, qual corpo ondulante de uma cobra, oscilava uma corda  comprida, uma corda preta, a corda que havia servido para prender uns aos outros  os prisioneiros incas!

A seta passou sobre a minha cabeça e, com um zunido firme, cravou-se na parte de  cima do grande portão de madeira - a parte que ainda estava inteira. Mal ela ali  chegou, vi esticar-se a corda que se encontrava presa a ela.

E, então, reparei em Renco, no cimo de um dos telhados, de pé, com as pernas bem  abertas e a sua nova aljava bem presa ao ombro direito. Estava na outra ponta da  corda e vi-o prender sobre esta o cinto de couro das suas calças espanholas,  agarrando-se ao cinto com uma das mãos. Em seguida, saltou do telhado, e  balançou-se, não, deslizou ao longo da corda, passando por cima da praça, agarrado  ao cinto com a mão.

Alguns soldados espanhóis abriram fogo sobre ele mas o arrojado jovem príncipe  serviu-se da mão que tinha livre para tirar a pistola da cintura e disparar contra  eles, enquanto, a uma velocidade incrível, deslizava ao longo da corda!

Eu incitei o meu corcel, fazendo-o ir mais depressa e, a pleno galope, impeli-o para  baixo da corda de Renco, no momento preciso em que ele chegava ao extremo  desta. Renco largou o cinto e deixou-se cair, na perfeição, sobre a garupa do meu  cavalo.

Diante de nós, qual cavaleiro consumado, Bassario transpôs o enorme buraco  aberto no portão de madeira. Renco e eu fomos logo atrás, cavalgando o mesmo  cavalo, e saltamos para o outro lado do portão, por entre uma chuva de tiros de  mosquete.

Mergulhamos no ar frio da noite, cavalgando a toda velocidade pela laje maciça de  pedra que formava a ponte sobre o fosso norte da cidade, e a primeira coisa que  ouvi, enquanto atravessávamos a ponte, foi o grande grito de total e absoluto  júbilo, soltado pelas hostes de guerreiros incas, que se encontravam no vale,  adiante de mim.

 

- Como está indo? - perguntou, de repente, uma voz.

Race levantou os olhos do manuscrito, momentaneamente desorientado. Olhou lá  para fora, pela pequena janela à sua direita e viu um mar de montanhas cobertas de  neve e a imensidão sem fim do céu azul sem nuvens.

Sacudiu a cabeça. Estivera tão absorvido na história que se esquecera de que se  encontrava a bordo de um avião de carga do Exército.

Troy Copeland estava de pé, à sua frente. Era um dos elementos da equipe da  DARPA: o físico nuclear com cara de falcão.

- Então? Como é que vai isso? - perguntou Copeland, indicando o monte de papéis  que Race tinha no colo. - Já descobriu a localização do ídolo?

- Já descobri o ídolo - respondeu Race, remexendo no resto do manuscrito. Tinha  lido mais ou menos dois terços. - Acho que estou quase a descobrir para onde o  levaram.

- Ótimo - disse Copeland, começando a afastar-se. - Vá-nos mantendo informados.

- Espere - disse Race. - Antes de ir embora, posso fazer-lhe uma pergunta?

- Claro.

- Para que é que serve o tírium-261?

Ao ouvir a pergunta, Copeland franziu o sobrolho.  - Acho que tenho o direito de saber - insistiu Race. Copeland concordou, com um  aceno lento de cabeça.

- Sim... sim... Acho que tem. - Respirou fundo. - Como julgo que já lhe disseram, o  tírium-261 não é originário da Terra. Provém de um sistema solar binário chamado  Plêiades, um sistema não muito distante do nosso.

- Ora, como deve provavelmente imaginar, os planetas dos sistemas estelares  binários são afetados por forças de toda a ordem, por terem dois sóis: a fotossíntese  é duplicada; os efeitos da gravidade, tal como a resistência à gravidade, são  enormes. Como tal, os elementos que se encontram em planetas de sistemas  binários são, geralmente, mais pesados e densos do que os elementos semelhantes  que existem aqui, na Terra. o tírium-261 é um desses elementos.

- Foi encontrado, pela primeira vez, no Arizona, em 1972, petrificado, nas paredes  de uma cratera aberta por um meteorito. E, apesar de ter estado inerte durante  milhões de anos, o potencial do espécime lá encontrado pôs a comunidade dos  físicos em polvorosa.

- Porquê?

- Está a ver... a nível molecular, o tírium tem uma semelhança espantosa com  alguns elementos terrestres como o urânio e o plutônio. Mas o tírium é  imensamente mais pesado que qualquer destes dois elementos terrestres. É mais  denso que os nossos dois mais potentes elementos nucleares juntos. O que significa  que é infinitamente mais potente.

Race começou a sentir um arrepio de medo percorrer-lhe a espinha. Onde queria  Copeland chegar com tudo aquilo?

- Mas, como eu já disse, o tírium só foi encontrado na Terra, sob forma petrificada.  Desde 1972, foram encontradas duas outras amostras mas, mais uma vez, qualquer  delas tinha pelo menos 40 milhões de anos. O que não tem qualquer utilidade para  ninguém, uma vez que o tírium petrificado é inerte, quimicamente morto.

Aquilo de que temos estado à espera, nos últimos vinte sete anos, é de descobrir  um espécime vivo de tírium, um espécime que ainda esteja ativo, a nível molecular.  E pensamos tê-lo descoberto, num meteorito que caiu nas selvas do Peru, há  quinhentos anos.

- E para que serve o tírium? - perguntou Race.

- Para muita coisa - respondeu Copeland. - Para muitas coisas mesmo. Para  começar, tem um potencial incalculável, como fonte de energia. Algumas  estimativas cautelosas indicam que um reator a tírium, devidamente concebido,  geraria electricidade a um ritmo seiscentas vezes superior ao do conjunto de todas  as centrais nucleares existentes nos Estados Unidos.

- Mas há ainda uma vantagem adicional. Ao contrário dos elementos nucleares  terrestres, quando usado como elemento essencial de um reactor de fusão, o tírium  decompõe-se com um nível de eficiência de cem por cento. Ou seja, não deixa  subprodutos residuais contaminados. Como tal, é diferente de todas as fontes de  energia do planeta. Os resíduos do urânio têm de ser guardados em barras  radioativas. Que diabo! Até a gasolina produz monóxido de carbono. Mas o tírium é limpo. É uma fonte de energia perfeitamente eficiente. Perfeita. É tão intrinsecamente puro que, com base nas nossas simulações, uma amostra dele, em  bruto, emitiria apenas quantidades microscópicas de radiação passiva.

Race ergueu a mão.

- Está bem, está bem. Isso tudo parece o máximo mas, que eu saiba, a função da  DARPA não é dotar a América de centrais de produção de energia. Para que mais é  que serve o tírium?

Sentindo-se apanhado, Copeland sorriu.

- Nos últimos dez anos, Professor, o Gabinete de Técnologia Tática da DARPA tem  estado a trabalhar numa nova arma, uma arma como nunca se viu neste mundo. é  um dispositivo que tem por nome de código Supernova.

Mal Copeland disse aquela palavra, o subconsciente de Race agitou-se. Lembrou-se  da conversa que tinha ouvido, entre Copeland e Nash, pouco depois de terem  entrado no avião. Uma conversa em que fora referido um assalto a Falrfax Drive e o  roubo de um dispositivo chamado Supernova.

O que é, exatamente, a Supernova?

- Para simplificar - disse Copeland, - a Supernova é a arma mais poderosa de toda a  História da humanidade. É aquilo a que se chama um destruidor de planetas.

- Um quê?

- Um destruidor de planetas. Um dispositivo nuclear tão poderoso que, depois de  detonado, destruiria por completo cerca de um terço da massa terrestre. Sem um  terço da sua massa, a órbita da Terra em volta do Sol, seria afetada de uma forma  drástica. O planeta dispararia, sem controle, pelo espaço fora, cada vez para mais  longe do Sol. Em poucos minutos, a superfície da Terra, ou o que restasse dela,  tornar-se-ia demasiado fria para suster vida humana. A Supernova, Professor Race,  é o primeiro dispositivo construído pelo homem que é capaz de pôr termo à vida  neste planeta, tal como a conhecemos. É daí que vem o seu nome, o mesmo que se  dá a uma estrela que sofreu a ação de explosões internas.

Race engoliu em seco. Sentia-se terrivelmente agoniado. E a sua mente foi  inundada por um milhão de perguntas. Porque construiria alguém um dispositivo  como aquele? Que motivo poderia levar alguém a construir uma arma que mataria  toda a gente do planeta, incluindo os seus próprios criadores? E, posto tudo isto,  porque estava o seu país a fabricá-la? Copeland prosseguiu:

- O que se passa, Professor, é que a Supernova que nós temos neste momento é um  protótipo, um modelo funcional. Esse protótipo, o protótipo que foi roubado da  sede da DARPA, na noite passada, é inútil. Pela simples razão de que o  funcionamento da Supernova requer que se lhe junte uma coisa: tírium.

Ah, espantoso, pensou Race.

- Nesse aspecto - continuou Copeland - a Supernova não é nada diferente de uma  bomba de neutrons. É um dispositivo de fissão, o que significa que funciona  segundo o princípio da fissão do átomo de tírium. Para fissionar um massa  subcrítica de tírium e libertar a mega-explosão, utilizam-se duas ogivas  termonucleares convencionais.

- Mas espere aí - disse Race. - Vamos ver se estou a perceber bem. Vocês construíram uma arma que é capaz de destruir o planeta mas essa arma depende de  um elemento que vocês ainda nem sequer têm?

- É isso mesmo - respondeu Copeland.

- Mas porquê? Porque está a América a construir uma arma capaz de fazer isso  tudo?

Copeland abanou a cabeça.

- Essa é uma pergunta a que é sempre difícil responder. Ou seja...

- Há duas razões - interveio uma voz mais grossa, atrás de Race.

Era Frank Nash.

Nash apontou para o colo de Race, para o manuscrito.  - Já descobriu a localização do ídolo?

- Ainda não.

- Então, vou ser rápido, para o deixar continuar o seu trabalho. Para começar,  aquilo que lhe vou dizer é absolutamente secreto. Há dezesseis pessoas no país que  sabem aquilo que lhe vou contar e cinco delas encontram-se neste avião. Se você  contar seja o que for a alguém, depois de esta missão estar concluída, vai passar os  próximos setenta e cinco anos na cadeia. Fiz-me entender, Professor?

- Hum, hum.

- Ótimo. A justificação para a construção da Supernova tem duas vertentes. A  primeira razão é a seguinte. Há cerca de dezoito meses, descobriu-se que cientistas  da Alemanha, financiados pelo Estado, tinham começado a construir, em segredo,  uma Supernova. A nossa resposta foi simples: se eles vão construir uma, nós  também vamos.

- Que grande lógica - comentou Race.

- É exatamente a mesma lógica que Oppenheimer utilizou para justificar o fabrico  da bomba atômica.

- Credo, coronel. Está a seguir as pisadas de grandes figuras - disse Race, num tom  frio. - E qual é a segunda razão?  Nash disse:

- Já alguma vez ouviu falar de um homem chamado Dietrich von Choltitz,  Professor?

- Não.

O general Dietrich von Choltitz era o general nazi, que comandava as tropas  alemãs, na região militar de Paris, na altura da retirada de França, em Agosto de  1944. Quando se tornou evidente que os Aliados iam reconquistar Paris, Hitler  enviou um comunicado a Choltitz, em que lhe mandava espalhar milhares de  dispositivos incendiários por toda a cidade, antes da retirada. Depois de ele se ir  embora, Paris iria pelos ares. Diga-se em abono de von Choltitz que ele  desobedeceu a essa ordem. Não queria ficar na História como sendo o homem que  tinha destruído Paris. Mas, aqui, o que é importante, é a lógica que está por trás da  ordem de Hitler. Se ele não podia ficar com a França, ninguém mais ficaria com ela.

- O que é que quer dizer com isso? - perguntou Race, cautelosamente.

- A Supernova, Professor, é apenas mais um passo na evolução de um plano  estratégico de alto nível, que tem feito parte da política externa dos EUA, nos  últimos cinquenta anos. Esse plano chama-se Plano Choltitz.

- O que quer dizer?

- O que eu quero dizer é isto. Sabia que, durante toda a Guerra Fria, a Marinha dos  EUA tinha ordens categóricas para ter um determinado número de submarinos  equipados com mísseis nucleares balísticos, estacionados numa determinada altura,  em determinadas zonas do mundo inteiro? Sabe porque estavam lá esses  submarinos?

- Porquê?

- As ordens que esses submarinos tinham eram muito simples. Se, fosse como  fosse, a União Soviética derrotasse os Estados Unidos, em qualquer confronto  súbito e imprevisto, aqueles vasos de guerra, tinham ordens para lançar mísseis  nucleares não apenas contra alvos soviéticos mas, também, contra as principais  cidades dos territórios da Europa e dos EUA.

- O quê?

- O Plano Choltitz, Professor Race. Se não podemos ficar com ela, mais ninguém há  de poder.

- Mas assim... a uma escala global... - disse Race, quase sem poder acreditar no que  acabara de ouvir.

É isso. É isso mesmo. E é aí que reside a razão para a criação da Supernova. Os  Estados Unidos são a nação dominante do planeta. Se qualquer outra nação tentar  alterar esta situação, informamo-la de que estamos na posse de uma Supernova  funcional. Se essa nação for mais longe e se der um conflito em que os Estados  Unidos sejam derrotados ou, pior ainda, incapacitados, nós detonaremos o  dispositivo.

Race sentiu que o estômago se lhe contraía.

Aquilo era a sério? Aquilo é que era a política? Se não pudesse controlar o mundo, a  América destruí-lo-ia?

- Como é que vocês são capazes de construir uma coisa dessas?

- E se a China decidisse fazer guerra contra os Estados Unidos, Professor Race? E se  eles ganhassem? Gostava de ver o povo americano sob o jugo do regime chinês?

- O senhor preferia morrer?

- Preferia.

- E que o resto das pessoas morresse consigo - disse Race. - Vocês devem ser os  piores perdedores de todos os tempos.

- Seja como for - disse Nash, mudando de tom - a lei dos acontecimentos  inesperados teve os seus efeitos sobre esta situação. A notícia sobre a criação de um  dispositivo com potencial para destruir o planeta fez sair da toca algumas outras  facções, facções que consideram uma arma deste tipo como um trunfo poderoso  para as suas cruzadas.

- Que espécie de facções?

- Alguns grupos terroristas. Gente que, se deitasse a mão a uma Supernova  operacional, encostaria o mundo à parede.  - Pois - disse Race. - E, agora, a Supernova foi roubada, provavelmente por um  grupo terrorista.  - É isso mesmo.

- Vocês abriram a caixa de Pandora, não foi, Doutor Nash?  - Pois é. Temo que assim seja. E é por isso que é imprescindível nós deitarmos a  mão àquele ídolo, antes que mais alguém o faça.

Dito isto, Nash e Copeland voltaram a deixar Race sozinho com o manuscrito.

Race levou algum tempo a recompor-se. A cabeça andava-lhe à roda, Supernovas.  Destruição global. Grupos terroristas. Estava a ter dificuldade em abstrair-se de tais  pensamentos.

Afastou tudo aquilo da idéia, obrigou-se a concentrar-se, descobriu o lugar do  manuscrito onde interrompera a leitura, a parte em que Renco e Alberto Santiago  tinham acabado de fugir aparatosamente da cidade sitiada de Cuzco.

Então, respirou fundo, ajeitou os óculos e voltou a mergulhar no mundo dos Incas.

 

SEGUNDA LEITURA

Renco, Bassario e eu corremos toda a noite pela floresta, esporeando os cavalos,  obrigando-os a galopar mais depressa do que jamais haviam galopado. Pois atrás de  nós, mesmo atrás de nós, vinham os espanhóis - Hernando e a sua legião de  soldados a cavalo, galopando campos fora, dando-nos caça que nem cães.

Depois de havermos saído pelas portas norte do vale de Cuzco, viramos à direita,  na direção nordeste. Chegamos ao rio Urubamba, o mesmo rio onde se encontrava  o navio-prisão de Renco, e atravessamo-lo não muito longe de Pisac.

E foi assim que começou a nossa jornada, a nossa fuga desesperada pela selva.

Não irei incomodar-vos, caro leitor, com todos os incidentes insignificantes da  nossa árdua jornada, pois esta durou muitos dias e são inúmeros os incidentes que,  ao longo dela, foram ocorrendo. Prefiro mencionar somente as ocorrências que são  pertinentes para a minha grande narrativa.

Renco havia-me dito que nos dirigíamos para uma aldeia chamada Vilcafor, da qual  era chefe o seu tio. Esta aldeia situava-se nos contrafortes das grandes e longínquas  montanhas do norte, no local onde essas montanhas se juntam à grande floresta  tropical, a leste.

Aparentemente, Vilcafor era uma aldeia-cidadela secreta, muito bem fortificada e  defendida, que a nobreza inca reservava para seu uso, em tempos de apuros. A sua  localização era cuidadosamente mantida em segredo e a aldeia só podia ser  encontrada seguindo uma série de totens de pedra, colocados a intervalos  regulares, na floresta, e somente por quem conhecesse o código para descobrir os  totens. Mas, para alcançarmos a floresta tropical tínhamos primeiro que atravessar  as montanhas.

E, assim, entramos nas montanhas, os impressionantes monolitos rochosos que  dominam a Nova Espanha. Nunca será demais referir a magnificência das  montanhas daquele país. Os seus íngremes penhascos rochosos e os seus cumes  aguçados, cobertos de neve durante todo o ano, podem ser avistados a quilômetros  de distância, mesmo por quem se encontre na densa floresta tropical das terras  baixas.

Ao cabo de alguns dias de viagem, desfizemo-nos dos nossos cavalos, preferindo  seguir a pé pelos delicados trilhos de montanha. Com cautela, avançamos por  caminhos estreitos e escorregadios, que cruzavam as bermas de desfiladeiros  íngremes. Com prudência, atravessámos longas e periclitantes pontes de corda,  suspensas sobre os tumultuosos rios de montanha.

E, enquanto isto, ecoando através do labirinto de estreitos desfiladeiros por detrás  de nós, ouviam-se os gritos e as passadas dos espanhóis.

Passamos por várias aldeias incas, situadas no meio dos deslumbrantes vales de  montanha. Todas as aldeias tinham o mesmo nome que o seu chefe: Rumac, Sipo e  Fluanco.

Nessas aldeias, forneceram-nos alimentos, guias e lhamas. A generosidade daquela  gente era de espantar. Era como se todos os aldeãos conhecessem Renco e  soubessem qual era a sua missão e nenhum deles podia ter sido mais preste a  ajudar-nos. Quando dispúnhamos de tempo, Renco mostrava-lhes o ídolo de pedra  preta e eles curvavam-se diante dele, em silêncio.

Mas raras vezes dispúnhamos de tempo para tal. Os espanhóis perseguiam-nos, sem  nos dar tréguas.

A dado momento, ao sairmos da aldeia de Ocuyu, uma aldeia situada na base de um  vasto vale de montanha, mal havíamos ultrapassado a crista da colina mais próxima  e logo ouvimos, por trás de nós, os estampidos de pesado fogo de mosquetes.  Voltei-me, para olhar para trás, para o vale.

Aquilo que vi encheu-me de terror.

Vi Hernando e os seus soldados, uma coluna gigantesca de pelo menos cem  homens, avançando a pé, do outro lado do vale. Soldados a cavalo, ladeavam o  extenso corpo de soldados de infantaria, correndo adiante destes em direção à  aldeia de onde havíamos acabado de sair, disparando os seus mosquetes contra os  incas desarmados.

Mais tarde, Hernando haveria de dividir a sua legião de cem homens em três  divisões de trinta e três homens. Em seguida, escalonou os tempos de marcha de  cada divisão, de tal forma que, enquanto uma divisão marchava, a outra descansava.  As divisões que haviam descansado marchariam mais tarde, substituindo o  primeiro grupo, quando chegasse a sua vez, e o ciclo continuava assim. Deste modo,  havia sempre uma massa de homens em movimento, uma massa que avançava cada  vez mais para diante, cada vez para mais perto de nós.

E, enquanto isto, Renco, Bassario e eu íamos progredindo aos tropeções, lutando  contra as agruras daqueles caminhos rochosos e selvagens, lutando contra a fadiga,  a todas as horas do dia.

De uma coisa estava eu certo: os espanhóis acabariam por nos apanhar. Só restava  saber quando.

Apesar disso, nós não desistíamos.

Então, a um dado momento da jornada, e - devo acrescentar - numa altura em que  os meus compatriotas se encontravam tão perto de nós que podíamos ouvir as suas  vozes, ecoando pelos desfiladeiros que íamos deixando para trás, detivemo-nos  numa aldeia chamada Colco, que ficava situada nas margens de um rio de montanha  conhecido pelo nome de Paucartambo.

Foi só ao chegarmos a esta aldeia que eu obtive um indício quanto ao motivo que  havia levado Renco a incluir o criminoso Bassario na nossa jornada.

Naquela aldeia, havia uma pedreira. Conforme já disse antes, estes índios são  grandes mestres da construção. Todas as suas edificações são feitas de pedras  finamente talhadas, algumas das quais chegam a ter a altura de seis homens e a  pesar mais de cem toneladas. Tais pedras são extraídas de enormes pedreiras, em  aldeias como Colco.

Depois de haver falado apressadamente com o chefe da aldeia, Renco foi escoltado  até à pedreira, que era um buraco colossal escavado na encosta da montanha.  Regressou ao cabo de alguns instantes, trazendo na mão um saco de pele de cabra.  Nos lados do saco, sobressaíam os contornos aguçados de pedaços de qualquer coisa  dura. Renco entregou o saco a Bassario e seguimos o nosso caminho.

Eu não sabia o que havia dentro do saco mas, nas noites em que parávamos para  descansar, Bassario retirava-se para um canto do acampamento e acendia a sua  própria fogueira. Em seguida, sentava-se de pernas cruzadas e punha-se a fazer  qualquer coisa à volta do saco, de costas voltadas para mim e para Renco.

Ao cabo de onze dias deste árduo jornadear, saímos das montanhas e demos  conosco perante uma paisagem imponente, perante uma vista como jamais alguém  havia observado.

Diante de nós estendia-se a floresta tropical, um tapete ininterrupto de verde, que  se alongava até à distante linha do horizonte. As únicas fraturas naquele imenso  tapete eram os planaltos, umas vastas formações semelhantes a degraus que, na  paisagem, marcavam a transição da acidentada cordilheira montanhosa para a  verdejante bacia do rio e para as largas faixas castanhas que penetravam,  ondulantes, na selva densa: os grandes rios da floresta tropical.

E, então, embrenhamo-nos na selva. Parecia o inferno na terra.

Durante dias, caminhamos sob a sombra eterna da floresta tropical. Era chuvosa e  úmida e, por Deus, estava também povoada de inúmeros perigos. Cobras  obscenamente gordas pendiam das árvores, pequenos roedores surgiam debaixo  dos nossos pés e, numa noite, estou certo disso, distingui a silhueta velada de uma  pantera, uma sombra que se sobrepunha à escuridão, deslizando silenciosamente,  com as suas patas almofadadas, sobre um ramo das proximidades.

E, ademais, havia os rios, dos quais nos espreitavam os piores perigos de todos.

Jacarés.  As suas tenebrosas cabeças triangulares eram o bastante para fazer gelar o sangue  de um homem e os seus corpos - escuros, pesados e couraçados - tinham pelo  menos seis passos de comprimento. Os olhos repulsivos daqueles répteis,  observavam-nos, sem pestanejar.

Descemos os rios em canoas de junco, que nos foram ofertadas nas aldeias  ribeirinhas de Paxu, Tupra e Roya. Eram embarcações pateticamente pequenas,  quando comparadas com os desmedidamente grandes répteis que havia na água, a  todo o nosso redor. E subimos os íngremes rochedos dos planaltos, com a ajuda de  bons guias incas.

À noite, à luz das fogueiras, Renco ensinava-me a sua língua, o Quêchua. Em troca,  eu instruía-o nas mais requintadas artes da esgrima, com os dois brilhantes sabres  espanhóis que havíamos escamoteado ao fugir de Cuzco.

Quando não estava muito ocupado, num canto qualquer do acampamento, Bassario  treinava muitas vezes com o arco, enquanto Renco e eu esgrimíamos.  Aparentemente, antes de haver sido preso (porquê eu não sei), Bassario era um dos  melhores arqueiros do império inca. E eu acredito. Uma noite, tal era a sua arte, vi- o lançar bem alto no ar um fruto tropical e, no instante seguinte, trespassá-lo com  uma seta.

Todavia, ao cabo de algum tempo, tornou-se evidente para nós que as agruras da  floresta tropical haviam retardado o avanço dos nossos perseguidores. Atrás de nós,  os sons de Hernando e dos seus homens, a cortar ramos de árvores da floresta,  haviam-se tornado progressivamente mais fracos. Em boa verdade, a certa altura,  pensei que talvez Hernando houvesse desistido da perseguição.

Mas tal não havia acontecido. Todos os dias, os mensageiros das várias aldeias por  onde havíamos passado, chegavam a correr junto de nós e contavam-nos novas do  saque das suas aldeias. Hernando e os seus homens ainda vinham atrás de nós.

E, por isso, nós continuávamos penosamente a nossa jornada. Então, um dia, não  muito tempo depois de havermos deixado para trás a aldeia de Roya, numa altura  em que eu seguia à cabeça da nossa expedição, afastei para o lado um grande ramo e  dei comigo a fitar os olhos de uma temível criatura semelhante a um gato.

Saltei para trás, ao mesmo tempo que soltava um grito, indo cair com grande  estrondo num charco de lama.

Depois disto, a primeira coisa que ouvi foi uma gargalhada abafada de Bassario.

Olhei para cima e vi que havia posto a descoberto um grande totem de pedra. o  temível felino que eu havia visto era somente uma imagem de pedra,  representando uma enorme criatura semelhante a um gato. Mas sobre a imagem  caia um véu de gotas de água, que dava ao viajante desprevenido - eu - a impressão  de se tratar de uma criatura viva.

Todavia, ao olhá-la mais de perto, dei-me conta de que a imagem de pedra do  totem não era muito diferente da imagem do ídolo que era a causa da nossa  delirante jornada. Era uma espécie de jaguar, dotado de grandes presas felinas,  rosnando, não, rugindo ao explorador incauto que, por acaso, deparasse com ele.

Mais de uma vez, havia perguntado a mim próprio qual a razão do fascínio destes  incas por felinos grandes.

Idolatram estas criaturas, tratam-nas como se fossem deuses. Em boa verdade, os  guerreiros que demonstrarem ter uma coordenação felina dos seus movimentos são  os mais apreciados nos exércitos incas: ser capaz de aterrar aos pés de outrem e de  começar de imediato a lutar com esse outrem é tido como uma grande habilidade.  Diz-se que um tal guerreiro é dotado de jinga.

Na mesma manhã em que eu esbarrei, de forma tão embaraçosa, com o totem de  pedra, Renco havia-me contado que a criatura mais temida da mitologia deles é um  grande felino preto, conhecido como titi, em Aimará, e como rapa, em Quêchua.  Aparentemente, tal criatura é tão negra como a noite e quase tão alta como um  homem, mesmo quando firmada nas quatro patas. E mata com uma ferocidade sem  igual. Em boa verdade, disse Renco, é a mais temida variedade dos animais  selvagens, uma espécie que mata sem qualquer outra razão que não seja o puro prazer de matar.

- Muito bem, irmão Alberto, disse Renco, estava eu ainda deitado na lama, a olhar  para cima, para o totem. - Acabaste de descobrir o primeiro dos totens que hão de  levar-nos a Vilcafor.

- Como é que eles nos vão levar até lá?, inquiri, ao mesmo tempo que me punha de  pé.

Renco disse:

- Têm um código, só conhecido da mais alta nobreza inca... - Mas, se te disser qual  é esse código, ele vai ter de te matar, interrompeu Bassario, com um esgar.

Renco sorriu indulgentemente a Bassario.

- É verdade, disse ele. - Mas, na eventualidade de eu morrer, vou precisar de  alguém que continue a minha missão. E, para tal, essa pessoa terá de saber o código  dos totens.  Renco voltou-se para mim:  -Tinha esperança de que estivesses disposto a assumir essa responsabilidade.

- Eu?, inquiri, engolindo em seco.

- Você, sim, disse Renco. - Embora tu não as vejas, Alberto, eu vejo em ti as  qualidades de um herói. Tu tens honra e coragem em quantidades maiores do que o  comum dos mortais. Se me permitir, não terei qualquer hesitação em entregar nas  suas mãos o destino do meu povo, se o pior acontecer.

Eu baixei a cabeça e anui, acedendo ao seu desejo.

- Ótimo, disse Renco, sorrindo. - Tu, pelo contrário, acrescentou, dirigindo-se a  Bassario, - causar-me-ias grandes hesitações. Agora, vai para mais longe.

Depois de Bassario se ter afastado alguns passos de nós, Renco aproximou-se de  mim e apontou para a figura de pedra do rapa, que se encontrava diante de nós.

- O código é simples, disse. - Basta seguir a direção da cauda do rapa.

- Seguir a direção da cauda do rapa... repeti, olhando para o totem.

Da parte de trás da imagem, saía uma delgada cauda felina, que apontava para norte.

- Mas, disse Renco, de repente, - nem todas as indicações dos totens devem ser  seguidas deste modo. Esta é uma regra que só os mais destacados nobres conhecem.  Em boa verdade, isto só me foi dito pela alta sacerdotiza do Coricancha, quando lá  fomos buscar o ídolo.

- Então, qual é a regra?, inquiri.

- Depois do primeiro totem, não nos podemos fiar em cada segundo totem que  encontrarmos. Nesses casos, teremos que seguir o totem na direção da Marca do  Sol.

- Da Marca do Sol?

- É uma marca não muito diferente desta, explicou Renco, apontando para o  pequeno sinal de nascença por baixo do seu olho esquerdo, a mancha castanho  escura, na pele, que parecia uma montanha invertida.

- Ao chegar a cada segundo totem, depois do primeiro, disse ele, - não devemos  seguir a direcção da cauda do rapa: devemos seguir na direção da Marca do Sol.

- O que acontece, quando se continua a seguir a direção da cauda do rapa?, inquiri. -  Os nossos inimigos não acabarão por perceber que estão a ir na direção errada,  quando não encontrarem mais totens?

Renco sorriu-me.

- Não, Alberto. Encontra-se sempre mais totens, mesmo quando se vai na direção  errada. Mas estes servem somente para conduzir os aventureiros para cada vez mais  longe da cidadela.

E, assim, fomos seguindo os totens, através da floresta tropical. Estavam espaçados  a intervalos irregulares - alguns distavam somente alguns passos do anterior, outros  ficavam alguns quilômetros mais adiante - e, por isso era preciso cuidar de  caminhar em linha reta. Em muitos casos, éramos ajudados pelo sistema dos rios,  dado que, por vezes, os totens haviam sido cuidadosamente colocados ao longo das  margens.

Seguindo as indicações dos totens, avançamos em direção a norte, cruzando a vasta  bacia da floresta tropical, até que chegamos a um novo planalto, que conduzia às  montanhas.

Este planalto estendia-se de norte a sul, tanto quanto a vista podia alcançar. Era  uma gigantesca meseta, coberta pela selva, um simples degrau que Nosso Senhor  havia feito para o ajudar a subir da floresta tropical para os contrafortes da  montanha. Era salpicado de quedas de água, ao longo de toda a sua extensão.  Constituía uma visão verdadeiramente maravilhosa.

Subimos pelo penhasco da face leste do planalto, arrastando conosco as canoas de  junco e os respectivos remos. Foi então que chegamos junto do último totem, que  nos indicou que subíssemos o rio, em direção às montanhas que, com os seus cumes  cobertos de neve, dominavam a floresta tropical.

Remamos contra a corrente suave do rio, por entre a chuva copiosa da tarde. Ao  cabo de algum tempo, todavia, a chuva parou e, ao mesmo tempo que mergulhava  na neblina que se lhe seguiu, a selva mergulhava também no mistério. o mundo  ficou estranhamente silencioso e, inesperadamente, os sons da floresta cessaram de  modo abrupto.

Não se ouvia o chilrear das aves. Não se ouvia o restolhar dos roedores, por entre  os arbustos.

Senti um arrepio de medo percorrer-me o corpo. Havia qualquer coisa que não  estava bem.

Renco e Bassario devem ter sentido o mesmo, porque agora remavam mais  devagar, mergulhando silenciosamente os remos na superfície cristalina da água,  como se não ousassem quebrar aquele silêncio que nada tinha de natural.

E, então, contornamos uma curva do rio e, de repente, vimos uma aldeia na  margem do rio, anichada na base da cordilheira de montanhas. Uma imponente  estrutura de pedra erguia-se orgulhosamente no meio de um grupo de pequenas  choupanas e, a toda a volta do enclave, havia um fosso.

A cidadela de Vilcafor.

Mas nenhum de nós prestou muita atenção à grande cidadela. E também não demos  muita importância à aldeia à volta dela, reduzida a ruínas fumegantes.

Não. Só tínhamos olhos para os cadáveres, para os cadáveres cobertos de sangue,  amontoados na rua principal da aldeia.

 

SEGUNDA CONSPIRAÇÃO 

Segunda-feira, 4 de janeiro, 15:40

Race virou a página, à procura do capítulo seguinte mas este não estava lá. Pelos  vistos, aquela era a última página do manuscrito.

Raios, pensou.

Olhou pela janela do Hércules e viu os motores montados debaixo da asa pintada de  verde, lá fora, e, deslizando por baixo deles, os cumes dos Andes com as suas neves  perpétuas.

Voltou-se para Nash, sentado do outro lado do corredor, a trabalhar no seu  computador portátil.

- Só há isto? - perguntou.

- Desculpe? - disse Nash, franzindo o sobrolho.

- O manuscrito. Só temos isto?

- O quê, já o acabou de traduzir?

- Hum... hum.

- Descobriu a localização do ídolo?

- Bem, mais ou menos - disse Race, olhando para as notas que tirara enquanto  traduzia.

Diziam o seguinte:

 

SAI DE CUZCO - ENTRA MONTANHAS.

ALDEIAS: RUMAC, SIPO, HUANCO, OCUYU.

COLCO: RIO PAUCARTAMBO, PEDREIRA AÍ.

11 DIAS CHEGA À FLORESTA TROPICAL ALDEIAS RIBEIRINHAS: PAXU, TUPRA, ROYA.

TOTENS DE PEDRA ESCULPIDOS EM FORMA DE CRIATURA FELINA LEVAM  À CIDADELA DE VILCAFOR.

CÓDIGO DOS TOTENS: SEGUIR A CAUDA DO RAPA DO PRIMEIRO TOTEM;  EM CADA UM DOS SEGUNDOS TOTENS DEPOIS DESTE, SEGUIR A «MARCA  DO SOL».

SEGUIU TOTENS PARA NORTE AO LONGO DA BACIA DA FLORESTA;  CHEGOU A PLANATO QUE LEVA AO SOPÉ DAS MONTANHAS.

NO ÚLTIMO TOTEM, SUBIU O RIO EM DIREÇÃO ÀS MONTANHAS;  ENCONTROU CIDADELA EM RUÍNAS.

 

- O que é que quer dizer com mais ou menos? - perguntou Nash.

- Pois, o problema é esse - respondeu Race. - o manuscrito acaba praticamente a  meio de uma frase, quando eles chegam a Vilcafor. É óbvio que há mais para ler  mas não está aqui. Race não acrescentou que estava a começar a achar a história  bastante interessante e que, por acaso, não se importava de ler mais um pouco. -  Tem a certeza de que só há isto?

- Receio que sim - respondeu Nash. - Não se esqueça de que este não é o  manuscrito original e sim uma cópia semi-acabada, transcrita por outro monge,  muitos anos depois de Santiago ter escrito o original. Só temos isto, isto foi tudo o  que outro monge conseguiu copiar do original, Nash franziu o sobrolho e acrescentou:

- Estava com esperança de conseguir a localização exata do ídolo a partir do que  tem aí mas, se a localização exata não está aí, então aquilo que preciso de saber são  generalidades: onde procurar, onde começar a procurar. Nós temos a tecnologia  necessária para nos indicar a localização do ídolo, se soubermos onde começar as  buscas. E, pelos vistos, daquilo que leu até agora, parece que já tem dados  suficientes para me poder dizer onde começar a procurar. Por isso, diga-me o que sabe.

Race mostrou-lhe as notas que tomara, contou-lhe a história de Renco Capac e da  sua fuga de Cuzco. Depois, explicou-lhe que, pelo que tinha lido, Renco chegara ao  destino que pretendia, uma aldeia-cidadela na base dos Andes, chamada Vilcafor.  Disse também a Nash que, desde que eles soubessem um determinado pormenor, o  manuscrito indicava como chegar a essa aldeia.

- E que pormenor é esse? - perguntou Nash.

- Partindo do princípio de que os totens de pedra ainda lá estão - respondeu Race -  é preciso saber o que é a Marca do Sol. Se não souber o que isso é, não pode seguir  as indicações dos totens.

Nash franziu o sobrolho e voltou-se para Walter Chambers, o antropólogo e  especialista em cultura inca, que estava sentado alguns lugares adiante.

- Walter. Sabes alguma coisa sobre a Marca do Sol na cultura Inca?

- A Marca do Sol? Sim, claro.  - O que é?

Chambers encolheu os ombros e foi ter com eles.

- Na verdade, é só um sinal de nascença. Mais ou menos como o do Professor Race  - explicou, apontando com o queixo para os óculos de Race, indicando a mancha  triangular escura, por baixo do olho esquerdo.

Race encolheu-se. Desde criança que odiava aquele sinal. Achava que parecia uma  mancha de café, no meio da cara.

- Os Incas pensavam que os sinais de nascença eram marcas de distinção -  continuou Chambers. - Sinais enviados pelos próprios deuses. A Marca do Sol era  um tipo especial de sinal de nascença, um sinal na cara, mesmo por baixo do olho  esquerdo. Era especial porque os Incas acreditavam que era um sinal enviado pelo  seu deus mais poderoso, o Deus Sol. Ter um filho com um sinal desses era  considerado uma grande honra. A Marca do Sol indicava que essa criança era  especial e que, fosse de que forma fosse, estava destinada à grandeza.

Race disse:

- Então, se alguém nos indicasse que seguíssemos a Marca do Sol, estaria a dizer- nos para irmos para a esquerda?

- Correto - disse Chambers, hesitante. - Acho eu.

- O que é que queres dizer com «acho eu»? - perguntou Nash.

- Bem... é que, nos últimos dez anos, os antropólogos têm debatido se a Marca do  Sol era do lado esquerdo ou do lado direito do rosto. As estátuas e pietogramas  incas representam, universalmente, a Marca do Sol por baixo do olho esquerdo, nas  imagens de pessoas, de animais ou seja do que for. No entanto, surgem alguns  problemas, quando se lêem textos espanhóis, como a Relación ou os Comentários  Reais, que falam de pessoas como Renco Capac e Tupac Amaru, acerca das quais se  diz que tinham esta Marca. o problema é que esses livros afirmam que Renco e  Amaru tinham a marca por baixo do olho direito. E, sempre que se coloca uma  questão destas, há sempre enormes confusões.

- E você, o que é que acha?

- Lado esquerdo, definitivamente.

- E é dessa maneira que temos de encontrar o caminho para a cidadela? - perguntou  Nash, preocupado.

- Neste caso, pode confiar na minha opinião, coronel - respondeu Chambers, em  tom confiante. - Se seguirmos as estátuas para a esquerda, encontraremos a  cidadela.

Nesse momento, ouviu-se o som de uma pequena campainha, a tocar perto de nós.

Race virou-se. o som viera do portátil de Nash. Devia ter acabado de chegar uma  mensagem por e-mail. Nash voltou para o seu lugar, para a ler.

Chambers voltou-se para Race.

- Isto é tudo muito emocionante, não é?

- Emocionante, não é exatamente a palavra que eu usaria - disse Race. Estava  apenas contente por ter terminado a tradução, antes de aterrarem em Cuzco. Se  Nash ia aventurar-se pela selva atrás do ídolo, ele não queria ter nada a ver com  isso.

Olhou para o relógio.

Eram 16h35. Estava a fazer-se tarde.

Nesse momento, Nash apareceu ao seu lado.

- Se estiver disposto a isso, Professor - disse - gostaria que viesse conosco até  Vilcafor.

Havia qualquer coisa no tom de voz dele que fez parar Race. Aquilo era uma ordem  e não um pedido.

- Pensei que me tinha dito que, se traduzisse o manuscrito antes de aterrarmos, eu  nem precisava de sair do avião.

- Eu disse que podia ser esse o caso. Devo recordar-lhe de que eu também lhe disse  que teria uma escolta de Boinas Verdes para tomar conta de si, se tivesse de sair do  avião. São essas as circunstâncias, neste momento.

- Porquê? - perguntou Race.

- Providenciei que tivéssemos helicópteros, à nossa espera, em Cuzco - disse Nash.  - Vamos utilizá-los para seguir a trilha de Santiago, a partir do ar. Infelizmente,  pensei que o manuscrito desse mais pormenores, que fosse mais preciso na  descrição da localização do ídolo. Mas, agora, vamos precisar de si, na viagem até  Vilcafor, para o caso de haver algumas discrepâncias entre o texto e o terreno.

Race não gostou nada daquilo. Achava que tinha cumprido a sua parte do acordo e a  idéia de se embrenhar na selva Amazônica deixava-o decididamente apreensivo.

Para completar, o tom do pedido de Nash ainda o deixava menos à vontade. Ficou  com a impressão de que, agora que Nash o tinha a bordo do Hércules a caminho de  Cuzco, as suas opções e as suas possibilidades de dizer não eram extremamente  limitadas. Sentia-se encurralado, levado à força para um lugar para onde não queria  ir. Aquilo não fazia, de modo algum, parte do acordo.

- Não posso só ficar em Cuzco? - inquiriu timidamente. - E manter-me em contato  convosco, a partir dali?

- Não - respondeu Nash. - De maneira nenhuma. Nós passamos por Cuzco mas não  vamos partir de lá por esta via. Este avião e todo o pessoal do Exército dos Estados  Unidos que está à nossa espera em Cuzco, vai sair da cidade pouco tempo depois de  nós partirmos para a selva nos helicópteros. Desculpe, Professor, mas preciso de  você. Preciso que me ajude a encontrar Vilcafor.

Race mordeu o lábio. Santo Deus...

- Bom... está bem - disse, relutantemente.

- Ótimo - disse Nash, levantando-se. - Ótimo. Já agora... há pouco, não disse que  tinha umas roupas menos formais no seu saco?

- Sim.

- Então, sugiro que as vista agora. Você vai para a selva.

O Hércules sobrevoou as montanhas.

Race saiu do banheiro do compartimento de carga inferior, vestido com uma  camiseta branca e calças jeans e calçando um par de tênis pretos - as roupas que  tinha preparado para o jogo de basebol, à hora do almoço. Usava, também, um  boné, um velho e gasto boné azul de basebol dos New York Yankees.

Viu os Boinas Verdes no porão em frente, ocupados a preparar e a limpar as armas,  para a missão que os esperava. Um dos comandos, um cabo ruivo um pouco mais  velho, chamado Jake «Buzz» Cochrane, conversava animadamente enquanto  limpava a culatra da sua M-16.

- Estou a dizer-vos, rapazes, foi foder até cair - dizia ele.

- Até cair. o menu completo com aquela puta barata da Doreen. Meus senhores, vão  por mim, ela é, sem dúvida nenhuma, a puta mais fode-me-agora-paga-me-depois  em toda a Carolina do Sul...

Nesse instante, Cochrane voltou-se e viu Race de pé, escutando à porta do  banheiro e parou de falar.

Todos os outros Boinas Verdes se voltaram e Race sentiu-se constrangido. Sentiu- se um intruso. Alguém que não pertencia àquele grupo. Alguém que estava  deslocado, ali.

Vislumbrou o seu guarda-costas, o sargento alto, Van Lewen, do lado de fora do  círculo de soldados e sorriu-lhe.

- Tudo bem?

Van Lwewen retribuiu o sorriso.

- Como vai?

- Bem. Mesmo bem - respondeu Race, sem convicção. Race passou pelo grupo,  agora silencioso, de Boinas Verdes durões, em direção à escada íngreme que ia dar  ao convés de passageiros.

Enquanto subia as escadas, ouviu o Boina Verde chamado Cochrane murmurar  qualquer coisa no porão de carga.

Sabia que a frase não se destinava a ser ouvida por ele mas, mesmo assim, ouviu-a.

Cochrane tinha dito:

- Bichinha maldita.

Race chegara ao corredor do compartimento de passageiros, quando uma voz se fez  ouvir pelo sistema de som central do avião.

- Estamos a iniciar descida. Aterraremos em Cuzco dentro de vinte minutos.

A caminho do seu lugar, Race passou por Walter Chambers. o pequeno cientista de  óculos tinha na mão as notas de Race e outra folha de papel. Era um mapa qualquer,  anotado com uma caneta de feltro.

Chambers olhou para Race.

- Oh, Professor - disse. - Era mesmo de si que eu andava à procura. Esclareça-me  aqui uma dúvida. Estas notas aqui, «Paxu, Tupra e Roya» - acrescentou, apontando  para as notas de Race. - Estão por ordem, não estão? Quero dizer, pela ordem por  que foram visitadas por Renco?

- Estão pela ordem em que aparecem no manuscrito.

- Ótimo.

- Ouça, Walter - disse Race, sentando-se ao lado de Chambers. - Há uma coisa que  eu gostaria de lhe perguntar.

- Sim?

- No manuscrito, Renco menciona uma criatura chamada titi ou rapa. o que é que é,  exatamente?

- Ah, o rapa - Chambers, fazendo um curto aceno de cabeça. - Hum... claro, claro.  Não é propriamente o meu campo, mas sei qualquer coisa sobre o assunto.

- E?

- Tal como acontece em muitas outras culturas sul-americanas, os Incas tinham um  fascínio invulgar pelos grandes felinos. Erigiam-lhes estátuas, grandes e pequenas,  e, por vezes, gravavam enormes baixos-relevos com figuras destas, na superfície de  montanhas inteiras. Até a cidade de Cuzco foi construída em forma de puma.

- No entanto, este fascínio pelos grandes felinos é um fenômeno na realidade  bastante estranho, pois a América do Sul é conhecida por não ter grandes felinos.  Os únicos grandes felinos do continente são o jaguar, a pantera e o puma, que são,  de fato, apenas felinos de médio porte, Nada que se aproxime do tigre, que é o  maior dos grandes felinos.

Chambers mudou de posição na cadeira e continuou:

- A verdade é que o rapa é uma história completamente diferente. É como se fosse  uma versão sul-americana do Bigfoot ou do monstro do Loch Ness. É uma criatura  lendária, um enorme felino preto.

- Tal como com o Bigfoot e com o Nessie, de tantos em tantos anos, ouve-se dizer  que foram vistos: agricultores no Brasil queixam-se de que o seu gado aparece  mutilado; turistas que seguiram a Rota dos Incas, no Peru, afirmam ter visto  grandes felinos a correr, durante a noite; e, de vez em quando, são encontrados  homens brutalmente mortos nas planícies colombianas. Mas nunca há provas.  Apareceram umas fotografias mas foram todas desacreditadas... eram só umas  fotografias borradas e desfocadas que podiam ser qualquer coisa, desde uma vulgar  pantera até um urso malhado.

- Então, é um mito - comentou Race. - Um mito de felinos gigantes.

- Não podemos ignorar mitos de felinos gigantes, assim com tanta facilidade,  Professor Race - disse Chambers. - São bastante comuns em todo o mundo. Índia,  África do Sul, Sibéria. Talvez o surpreenda mas fique sabendo que as crenças mais  fortes em lendas de felinos gigantes têm origem na Inglaterra.

- Na Inglaterra?

- A Besta de Exmoor, a Besta de Balm. Felinos gigantes que vagueiam pelas  charnecas, a altas horas da noite. Nunca são capturados. Nunca são fotografados.  Mas as suas pegadas são muitas vezes encontradas na lama. Caramba, se aquilo que  diz é verdade, até pode ser que o Cão dos Baskervilles não fosse um cão mas um  felino gigante.

Race abafou uma gargalhada e deixou Chambers entregue ao seu trabalho.  Regressou ao seu lugar. No entanto, mal tinha acabado de se sentar, quando sentiu  que alguém se sentava ao seu lado. Era Lauren.  - Ah, o boné da sorte - disse ela, olhando para o velho boné azul dos Yankees de  Race, - Não sei se alguma vez te disse mas sempre odiei esse maldito boné.

- Disseste - respondeu Race.

- Mas tu continuavas a usá-lo.  - É um bom boné.

O olhar crítico de Lauren observou a sua camiseta, jeans e tênis. Race reparou que  ela trazia vestida uma camisa de caqui, com as mangas arregaçadas, umas calças  também de caqui e um par de robustas botas de campanha.

- Bela roupa - comentou ela, antes de ele poder dizer exatamente a mesma coisa.

O que é que queres que eu diga? - respondeu ele. Quando fiz a mala para levar para  o trabalho, não estava a contar ir parar à selva.

Lauren atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada. Era o mesmo riso de que  Race se recordava, dos velhos tempos. Absolutamente teatral e de uma sinceridade  bastante dúbia.

- Já me tinha esquecido de como tu eras seco - disse ela.  Race fez um sorriso amarelo e inclinou a cabeça.

- Como é que tens passado, Will? - perguntou Lauren, em tom simpático.

- Bem - mentiu ele. - E você? Parece que não te tens dado mal. Quero dizer.. Puxa,  a DARPA...

- A vida tem-me tratado bem - disse ela. - A vida tem-me tratado mesmo muito  bem. Ouve Will... - E lá estava. A transição. Lauren sempre tinha sido boa, quando  se tratava de ir direta ao assunto. - Eu queria só falar contigo, antes de aterrarmos.  Queria só dizer que não quero que o que aconteceu entre nós afete aquilo que  estamos aqui a fazer. Eu nunca te quis magoar...

-Tu não me magoastes - disse Race, talvez um pouco depressa demais. Olhou para  os cadarços de seu par de tênis e acrescentou:

- Bom, pelo menos nada que não tenha sarado, ao fim de algum tempo.

Não era exatamente a verdade.

Tinha levado mais do que algum tempo para que ele esquecesse Lauren O'Connor.

O relacionamento deles tinha sido uma daquelas histórias clássicas: o típico  desencontro que ocorre nas universidades americanas. Race era inteligente, mas  não tinha dinheiro. Lauren era brilhante e sua família podia torrar dinheiro. Race  foi para a Universidade do Sul da Califórnia com uma bolsa de estudos esportiva:  jogava futebol americano, em troca recebia metade das anuidades. Pagava a outra  metade trabalhando à noite no balcão de uma boate da região. Os pais de Lauren  tinham pagado as despesas escolares dela integralmente, em uma única parcela  adiantada.

Tinham permanecido juntos durante dois anos: o jogador de futebol, que tirava  notas decentes, mas não espetaculares, em línguas, e a belíssima estudante de  ciências que triunfava em tudo que fazia.

Race estava no paraíso. Lauren era a companheira que sempre desejara: inteligente,  extrovertida, dona de um humor ferino. Nas festas do time de futebol, ela brilhava  como o sol num dia nublado. E quando ela esquadrinhava um salão procurando por  ele, Race se derretia por inteiro.

Estava apaixonado.

Foi então que ela ganhou uma bolsa para estudar física teórica, ou algo do gênero,  durante um ano no MIT. Ela foi. Ele esperou. Naquele ponto passaram a viver o  clássico relacionamento à longa distância: amor pelo telefone. Mas Race era fiel e  vivia para o telefonema semanal deles.

Depois ela voltou.

Ele foi ao aeroporto recebê-la levando um anel de noivado no bolso. Tinha  ensaiado o discurso milhares de vezes, a ponto de torná-lo quase perfeito: se  ajoelharia no momento exato de pedir a mão dela.

Mas quando saiu do portão de desembarque, ela já tinha um anel de diamante no  dedo anular.

— Will, sinto muito — disse ela. — Mas... bem... encontrei outra pessoa.

Race nem mesmo tirou o anel do bolso.

A partir daquele dia em diante, Race passou o restante do tempo de universidade  com a cara enfiada nos livros, decidido a ficar solteiro e incrivelmente infeliz.

Formou-se em línguas antigas em quarto lugar na turma e, para sua grande  surpresa, ofereceram-lhe uma vaga na Universidade de Nova York. Como não  tinha nada melhor para fazer, salvo talvez cortar os pulsos, aceitou o convite.

E neste momento, neste momento ele era um humilde professor de línguas, que  trabalhava num velho escritório com paredes revestidas de madeira, em Nova  York; enquanto Lauren era uma física teórica, que trabalhava na vanguarda do mais  prestigiado departamento de armas de alta tecnologia do exército dos Estados  Unidos. Hummm.

Jamais esperou reencontrá-la. Também, pensou ele, nunca desejou que isso  acontecesse. Mas quando Frank Nash mencionou o nome dela naquela manhã, algo  estalou dentro de Race. Queria descobrir o que tinha acontecido com ela.

Bem, agora já tinha visto, e visto bem: ela tinha se saído mil vezes melhor do que  ele.

Race piscou os olhos, acordando do transe.

Voltou à realidade e viu que tinha o olhar fixo na aliança no dedo dela. Jesus,  controle-se, pensou consigo mesmo.

— Frank disse que você fez um bom trabalho com o manuscrito — comentou  Lauren.

Race pigarreou, limpando a garganta e o cérebro também.

— Fiz o que foi possível. Quero dizer, bem, não se trata de física teórica, mas...  bem, é o que faço.

— Devia ter orgulho daquilo que faz — disse ela, sorrindo para ele. — Adorei  revê-lo, Will.

Race retribuiu o sorriso da melhor maneira que pôde. Lauren se levantou e olhou  ao redor.

— Bem, é melhor voltar para a minha poltrona. Parece que estamos prestes a  aterrissar.

Era já o fim da tarde, quando o Hércules aterrou pesadamente numa poeirenta pista  privada, na orla do vale de Cuzco.

A equipe desembarcou directamente dentro do camião da tropa, que tinha feito a  viagem até à América do Sul no grande ventre do avião. o enorme caminhão desceu  a rampa de carga traseira e seguiu imediatamente para norte, por uma estrada mal  pavimentada, em direção ao rio Urubamba.

Foi uma viagem cheia de solavancos. Race ia sentado na traseira do caminhão, ao  lado do seu guarda-costas, o sargento Van Lewen. Os outros membros da equipe -  os três elementos da DARPA, Nash, Lauren e Copeland, o físico com cara de falcão;  Chambers, o antropólogo; e Gaby Lopez, uma atraente jovem latino-americana que  era a arqueóloga da equipe - iam todos sentados ao lado dos seus guarda-costas  Boinas Verdes.

A certa altura da viagem, o caminhão chegou a uma subida e Race pôde ver todo o  vale de Cuzco.

Do lado esquerdo do vale, numa colina coberta de ervas verdes, ficavam as ruínas  do Sacsayhuarnari, a grande fortaleza acerca da qual tinha estado a ler havia tão  pouco tempo. Os seus três gigantescos níveis ainda se podiam discernir mas o  tempo e os elementos tinham-lhe roubado a majestade. Aquilo que, quatrocentos  anos atrás, fora uma fortaleza magnífica e imponente, digna dos olhos de reis, era  agora uma ruina a cair, merecedora apenas dos olhares dos turistas.

Do lado direito, Race viu um mar de telhados de terracota: a cidade de Cuzco dos  tempos modernos, cujas muralhas circundantes tinham desaparecido há muito. Para  além dos telhados, ficavam as áridas montanhas do Sul do Peru, castanhas e  agrestes, tão desoladas quanto os picos gelados dos Andes, mais a norte, eram  espetaculares.

Dez minutos depois, o caminhão chegou ao rio Urubamba, onde foi recebido por  um homem de uns trinta anos, vestido com um terno branco de linho e que usava  um panamá creme na cabeça. Chamava-se Nathan Sebastian e era tenente do  Exército dos Estados Unidos.

Atrás de Sebastian, flutuando preguiçosamente no rio, junto a um comprido pier  em forma de T, estavam dois helicópteros militares.

Eram dois UH-1 Bell Textron. - Mas estes dois Hueys tinham sido ligeiramente  modificados. Os seus finos apoios de aterragem tinham sido substituídos por duas  bóias alongadas, que flutuavam à superfície do rio. Um dos helicópteros, observou  Race, tinha um conjunto de instrumentos eletrônicos, de aspecto complexo,  suspensos por baixo do seu nariz de sapo.

O caminhão parou perto do pier e Race e os outros saltaram para o chão.

O tenente Sebastian foi direito a Nash.

- Os helicópteros estão prontos, meu coronel. Como o senhor pediu.

- Muito bem tenente - disse Nash. - E quanto aos nossos adversários?

- Foi feito, há dez minutos, um varrimento SAT-SN, meu coronel. Romano e a sua  equipe estão neste momento a sobrevoar a Colômbia, em direção a Cuzco.

- Meu Deus! já estão a sobrevoar a Colômbia - disse Nash, mordendo os lábios. -  Estão a ganhar-nos terreno.

- Segundo os nossos cálculos, devem chegar a Cuzco daqui a três horas, meu  coronel - informou Sebastian.

Nash olhou para o relógio. Eram precisamente 17:00 h.

- Então, não temos muito tempo - disse. - Toca a carregar esses hélicópteros e a pô- los no ar.

Ainda Nash não tinha acabado de dizer isto e já os Boinas Verdes estavam a  carregar seis grandes malões Samsonite para dentro dos dois Hueys. Depois de  estes terem sido carregados, os doze membros da equipe dividiram-se em dois  grupos e subiram para bordo.

Os dois helicópetros levantaram vôo da margem do rio, deixando Natham  Sebastian de pé, no pier, agarrado ao seu estúpido chapéu.

Os dois Hueys elevaram-se sobre os picos gelados das montanhas. Race ia sentado  na traseira do segundo helicópetro, olhando boquiaberto para as espetaculares  gargantas montanhosas que se avistavam lá em baixo.

- Muito bem, pessoal - ecoou a voz de Nash, através dos auscultadores. - Pelas  minhas contas, ainda nos restam cerca de duas horas de luz. E queria fazer o  máximo de coisas, ainda com luz, A primeira coisa que temos a fazer é encontrar o  primeiro totem. Walter? Gaby?

Walter Chambers e Gaby Lopez iam com Nash, no primeiro helicóptero. Os dois  Hueys sobrevoavam as montanhas, para lá do Rio Paucartambo, em direção às três  aldeias mencionadas no Manuscrito de Santiago: Paxu, Tupra e Roya.

De acordo com o manuscrito, iriam encontrar o primeiro totem perto da última,  Roya. Agora, cabia a Chamber e Lopez, o antropólogo e a arqueóloga, deduzir a  exata localização atual daquela povoação ribeirinha.

E assim, pensou Race, eles tinham feito em cinquenta minutos aquilo que Renco  Capac e Alberto Santiago tinham demorado onze dias a conseguir. Depois de terem  sobrevoado os picos irregulares dos Andes durante quase uma hora, subitamente,  gloriosamente, as montanhas desapareceram e Race viu uma extensão espetacular  de vegetação, verde e plana, estendendo-se até onde os seus olhos podiam alcançar.  Era um espetáculo assombroso. o início da imensa bacia do rio Amazonas.

Voaram para nordeste, sobrevoando a floresta a baixa altitude, as pás dos dois  helicópteros ribombando no silêncio do ar da tarde.

Sobrevoaram alguns rios, linhas castanhas compridas e largas, serpenteando pela  floresta impenetrável. De vez em quando, avistavam os restos de antigas aldeias  ribeirinhas, algumas com ruínas de pedra no centro das praças principais, outras  quase completamente cobertas pelo mato.

A dada altura da viagem, Race viu um fraco brilho amarelo de luzes elétricas,  espreitando no horizonte que começava a escurecer.

- A mina de ouro de Madre de Dios - disse Lauren, debruçando-se sobre ele para  ver melhor o brilho das luzes. - Uma das maiores minas de ouro a céu aberto do  Mundo e também uma das mais remotas. É a coisa que mais se aproxima da  civilização, por estas bandas. Um grande cone escavado na terra. Ouvi dizer que  tinha sido abandonada, a certa altura do ano passado. Acho que a devem ter reab...

Nesse momento, o rádio vibrou, com uma série de vozes excitadas. Chambers e  Lopez falavam animadamente, dizendo qualquer coisa acerca de uma aldeia, abaixo  dos dois Hueys.

A voz que Race ouviu a seguir era a de Frank Nash. Estava a mandar aterrar os  helicópteros.

Os dois Hueys aterraram numa clareira deserta, perto da margem de um rio,  fazendo vergar as ervas altas, devido ao ar descendente proveniente das pás das  hélices. Nash, Chambers e Lopez saltaram do primeiro helicóptero.

A meio da clareira verdejante, erguiam-se vários monumentos de pedra, cobertos  de musgo. Ao fim de alguns minutos, dedicados a examinar os monumentos e a  compará-los com os seus apontamentos, Chambers e Lopez concordaram em que  este era, quase de certeza, o local onde outrora existira a aldeia de Roya.

Depois de confirmada a identidade da aldeia, Race e o resto da equipe saíram dos  helicópteros e deram início a uma busca pelas redondezas. Dez minutos mais tarde,  Lauren encontrou o primeiro totem de pedra, a cerca de quinhentos metros a  Nordeste da aldeia.

Assombrado, Race olhava fixamente para a pedra gigante. Era infinitamente mais  assustadora, na vida real, do que ele imaginara que fosse.

O totem tinha perto de dois metros e setenta e era todo em pedra. E estava coberto  de provas de vandalismo - quatrocentos anos antes, conquistadores tementes a  Deus, tinham gravado toscamente sobre ele crucifixos e outros símbolos cristãos.

Apesar disso, a figura de pedra do rapa não se assemelhava a nada que ele alguma  vez tivesse visto. Era absolutamente aterrorizadora.

Estava coberta de umidade, escorria umidade. E aquela cobertura líquida conferia- lhe um aspecto verdadeiramente estranho. Devido a ela, a escultura parecia estar  mesmo viva.

De pé, em frente ao velho totem decrépito, Race engoliu em seco.

Santo Deus.

Depois de terem encontrado o primeiro totem, voltaram a correr para os  helicópteros e levantaram vôo rapidamente.

O helicóptero de Nash ia à frente, sobrevoando a selva a baixa altitude, na direção  da cauda do rapa.

Nos seus auscultadores, Race ouviu a voz de Nash: desliguem o magnetômetro.  Quando conseguirmos apanhar uma leitura do próximo totem, passamos a  holofotes...

- Está bem...

Race franziu o sobrolho. Gostaria de perguntar a alguém o que era um  magnetômetro mas não queria parecer ainda mais ignorante do que já parecia,  diante de Lauren.

- É um instrumento utilizado pelos arqueólogos para detectar relíquias enterradas  no solo - explicou Lauren, sorrindo-lhe de esguelha.

Raios partam, pensou ele.

- Também são usados comercialmente pelas empresas de exploração de recursos  naturais, para detectar reservas subterrâneas de petróleo e de urânio - acrescentou  ela.

- Como é que funcionam?

- Um nagnetômetro de césio como aquele que estamos a utilizar aqui detecta  variações ínfimas do campo magnético da Terra... variações provocadas por objetos  que interrompem a corrente ascendente desse campo magnético. No México, há  anos que os arqueólogos utilizam magnetômetros, para descobrir ruínas astecas.  Nós estamos a utilizar o nosso para encontrar o próximo totem de pedra.

- Mas os totens estão à superfície - observou Race. - Não há o perigo de o magnetômetro detectar animais e árvores?

- Isso pode ser um problema - concordou Lauren. - Mas não aqui. Nash já deve ter  programado o leitor para detectar apenas objetos de uma determinada densidade e  profundidade. As árvores têm uma densidade de cerca de 0,85 gramas por  centímetro cúbico e, como são feitos de carne e osso, os animais só tem uma  densidade ligeiramente superior. Por outro lado, a pedra inca é cerca de dez vezes  mais densa que a árvore mais grossa da floresta.

- Muito bem, pessoal - disse, subitamente, a voz de Nash. -Apanhei uma leitura.  Mesmo à nossa frente. Cabo, o holofote. E assim continuou.

Durante a hora que se seguiu, à medida que a luz desaparecia e as sombras das  montanhas se tornavam mais longas e frias, Race ficou a ouvir Nash, Chambers e  Lopez, enquanto estes iam localizando totem após totem. Depois de o  magnetômetro encontrar um totem, eles mandavam o Huey em que seguiam pairar  por cima dele e iluminavam-no com os focos de luz branca e ofuscante. De seguida,  consoante o totem que tinham encontrado, seguiam a cauda do rapa ou a Marca do  Sol, para a esquerda da criatura.

Os dois helicópetros voaram para norte, paralelamente ao enorme planalto em  forma de degrau, que separava a floresta das montanhas.

Quando começava a anoitecer, Race ouviu outra vez a voz de Nash.

- Muito bem, estamos a chegar ao planalto - anunciou.

- Eu consigo ver uma grande queda de água, que escorre por ele...

Race levantou-se do seu lugar e dirigiu-se para a dianteira do helicóptero, para  olhar pelo vidro da frente. Viu o helicóptero de Nash erguer-se majestosamente  sobre a queda de água que marcava o rebordo do planalto.

- OK... agora, estou a seguir o rio...

A luz do dia estava a desaparecer muito depressa e, ao fim de algum tempo, Race só  conseguia ver as luzes vermelhas da cauda do helicópetro de Nash, à sua frente,  inclinando-se lateralmente, enquanto o Huey ia acompanhando o curso do rio,  amplo e negro, por baixo deles, com o feixe do holofote fazendo cintilar a leve  ondulação de superfície da água. Agora, seguiam para oeste, em direção à parede de  montanhas que dominavam a floresta.

E, então, de repente, Race viu o helicóptero de Nash virar bruscamente à direita,  contornando uma curva do rio, coberta de densa vegetação.

- Um momento... - disse a voz de Nash.

Race espreitou pelo vidro. O helicóptero de Nash começou a pairar sobre a  margem, à sua direita.

- Esperem lá... estou a ver uma clareira. Parece estar coberta de ervas e musgo  mas... Esperem, lá está. OK, pessoal, estou a vê-la. Estou a ver as ruínas de um  edifício em forma de pirâmide... Parece ser a cidadela. Muito bem, preparem-se.  Preparem-se para aterrar.

N o preciso momento em que os Hueys de Nash aterravam na aldeia de Vilcafor,  chegavam ao aeroporto de Cuzco três outras aeronaves militares, bastante maiores.

Tratava-se de um avião de carga C-17 Globemaster III e de dois pequenos caças F-14, que escoltavam o primeiro. Os três aviões rodaram rapidamente sobre a pista de  aterragem e pararam na extremidade desta, juntando-se a um grupo de outras  aeronaves que tinham chegado a Cuzco apenas alguns minutos antes.

Ao fundo da pista, à espera do Globemaster, encontravam-se três helicópteros CH-53E Super Stallion. Os três Super Stallions eram imponentes. Eram grandes, sólidos  e, também, os helicópteros mais rápidos e mais potentes do mundo.

A transferência foi feita com rapidez.

Três vultos sombrios saltaram imediatamente do Globemaster e correram pela  pista, em direção aos helicópteros. Um deles - era mais baixo do que os outros e  negro e usava uns óculos de aros dourados - levava qualquer coisa debaixo do  braço, um objeto que parecia um livro grande encadernado a couro.

Os três vultos subiram para um dos Stallions. Mal eles entraram a bordo, os três  helicópteros levantaram vôo em direção ao norte.

Mas a sua partida não passou despercebida.

A alguma distância do aeroporto, observando os helicópteros através de uns  binóculos altamente potentes, estava um homem vestido com um terno de linho  branco e que tinha na cabeça um panamá.

Era o tenente Nathan Sebastian.

Os dois Hueys de Nash aterraram suavemente junto ao rio, perto das ruínas de  Vilcafor. A luz do entardecer já quase desaparecera e chovia torrencialmente.

Depois de terem planado sobre a superfície do rio, os dois pilotos manobraram os  aparelhos de forma a que os flutuadores tocassem em terra sobre a lama fofa da  margem do rio.

Os Boinas Verdes foram os primeiros a saltar para terra, com as M-16 prontas a  disparar. Os membros civis da equipe desceram a seguir a eles. Race foi o último de  todos e ficou parado, desarmado, na beira do rio, a olhar para as ruínas da cidadela  de Vilcafor.

No essencial, a aldeia era composta por uma rua central, coberta de ervas, que se  estendia por cerca de cem metros, para além do rio. De um lado e do outro, havia  cabanas de pedra, sem telhado e cobertas de ervas e musgo. De fato, toda a aldeia  tinha sido invadida pela vegetação. Era como se a floresta que a rodeava tivesse  adquirido vida e quisesse devorá-la.

Na extremidade da rua onde Race se encontrava, ficavam o rio e os restos, pouco  firmes, de um antigo cais de madeira. Na outra ponta, voltada para a pequena aldeia  como se fosse uma espécie de divindade protetora, viam-se as ruínas da grande  cidadela em forma de pirâmide.

Na verdade, a cidadela não era mais alta do que uma casa suburbana de dois  andares. Mas tinha sido construída com pedras com um aspecto mais sólido do que  quaisquer outras que Race alguma vez tivesse visto. Era mesmo a obra de grande  precisão de que falava o manuscrito. Enormes lajes de pedra quadradas, trabalhadas  por mestres pedreiros incas e perfeitamente ajustadas, umas ao lado das outras. Não  fora utilizada, nem era necessária, argamassa.

A cidadela era composta por dois níveis, ambos de forma circular, sendo o nível  superior um círculo mais pequeno e concêntrico, que assentava sobre o nível  inferior.

Contudo, toda a estrutura tinha sofrido as agruras do tempo, estava gasta e tinha  um ar decrépito. As outroras intimidadoras paredes de pedra encontravam-se agora  cobertas de rebentos verdes e rasgadas por fendas. O nível superior desmoronara- se. O nível inferior ainda se mantinha praticamente intacto mas estava todo  coberto de ervas. Junto à entrada principal do edifício, colocada num ângulo  estranho, estava a laje de pedra que fazia de porta.

Para além da cidadela, a aldeia não tinha mais nenhuma característica dominante.

Vilcafor era rodeada por um largo fosso, agora seco, em forma de ferradura, que  começava na margem do rio, dava a volta à aldeia e acabava na margem do rio. Dois  diques de pedra impediam que a água entrasse no fosso.

Este devia ter um pouco mais de quatro metros e meio de largura e mais ou menos  a mesma profundidade. Vários arbustos espinhosos teciam um emaranhado de  ramos ao longo do fundo sem água. De cada um dos lados da aldeia, duas pontes de  troncos estendiam-se sobre o fosso. Como o resto da aldeia, também elas tinham  sido tomadas de assalto pela floresta invasora. Sobre os troncos de madeira,  entrelaçavam-se trepadeiras.

Race ficou parado ao fundo da rua da antiga aldeia inca, com a chuva torrencial a  escorrer-lhe sobre a pala do boné.

Sentia que tinha entrado noutro mundo. Um mundo antigo.

Um mundo perigoso.

- Não fiques muito tempo ao pé da água - disse Lauren, ao passar por ele.

Race voltou-se, sem compreender. Lauren acendeu a lanterna e apontou-a para trás  dele, para o rio.

Era como se alguém tivesse acionado um interruptor.

Race viu-os imediatamente. A brilhar à luz da lanterna de Lauren. Da superfície  ligeiramente agitada pela chuva, nada menos de cinquenta pares de olhos, que se  destacavam contra a escuridão da água, fitavam-no.

Race voltou-se para Lauren.

- Jacarés?

- Não - respondeu Walter Chambers, aproximando-se. Melanosuchus Niger. -  Jacarés pretos. Os maiores crocodilos do continente. Há até quem diga que são os  maiores do mundo. São maiores que qualquer jacaré e, em termos biológicos, são  mais semelhantes ao crocodilo. Na verdade, o jacaré preto é um parente próximo  do Crocodylus porosus, o crocodilo gigante australiano, que vive na água salgada.

- Que tamanho é que eles têm? - perguntou Race.

Só conseguia ver aquela estranha constelação de olhos. Era incapaz de dizer qual  seria realmente o tamanho dos répteis.

- Cerca de vinte e dois pés - respondeu Chambers.

Race fez as contas de cabeça. Vinte e dois pés eram o mesmo que sete metros.

- E quanto é que pesam? - perguntou.

- Cerca de 2300 libras. Ou seja, perto de mil quilos.  Mil quilos, pensou Race. Uma tonelada.

Espantoso. Os jacarés começaram a erguer-se, dentro de água, e Race viu os  costados coriáceos dos crocodilos e as escamas pontiagudas das suas caudas.

Pareciam montes de terra escuros, flutuando sobre a água. Enormes montes de  terra.

- Eles não vão sair da água, pois não?

- Às vezes, saem - disse Chambers. - Mas talvez não. A maior parte dos crocodilos  prefere apanhar as vítimas de surpresa, à beira da água, a coberto da própria água. E,  apesar de serem caçadores noturnos, os jacarés pretos raramente saem da água, à  noite, pela simples razão de que está demasiado frio. Tal como a de todos os répteis,  a temperatura do corpo deles é muito baixa.

Race afastou-se da beira do rio.

- Jacarés pretos - disse. - Era só o que nos faltava.

Frank Nash ficou parado ao fundo da rua principal de Vilcafor. Tinha os braços  cruzados e estava sozinho. Limitava-se a olhar atentamente para a aldeia degradada  que tinha diante de si.

Troy Copeland foi ter com ele.

- O Sebastian acabou de telefonar de Cuzco. Romano acabou de passar pelo  aeroporto de lá. Chegou num Globemaster, escoltado por caças. Passaram para uns  helicópteros que estavam à espera deles e vieram nesta direção.

- Que espécie de helicópteros?

- Super Stallions. Três.

- Santo Deus - disse Nash.

Um CH-53E Super Stallion, com a carga total, podia transportar até cinquenta e  cinco soldados bem armados. E eles tinham três. o que queria dizer que Romano  também tinha poder de fogo.

- Quanto tempo é que nós demoramos, de Cuzco até aqui? - perguntou Nash.

- Cerca de duas horas e quarenta e cinco minutos - respondeu Copeland, Nash olhou para o relógio.  Eram 19:45.

- Nos Staffions, eles vão demorar menos tempo - disse. - Se seguirem corretamente  as indicações dos totens. Temos que nos apressar. Acho que dispomos de duas  horas, até eles chegarem aqui.

Os seis Boinas Verdes começaram a tirar os malões Samsonite dos helicópteros e a  levá-los para a rua principal de Vilcafor.

Nash, Lauren e Copeland começaram imediatamente a abri-los. Lá dentro, vinha  uma quantidade espantosa de equipamento de alta tecnologia: computadores  portáteis Hexium, lentes telescópicas de infravermelhos e umas latas, de aspecto  futurista, em aço inoxidável.

Os dois professores, Chambers e Lopez, tinham ido à aldeia e estavam a examinar  atentamente a cidadela e as estruturas que a rodeavam.

Race, agora envergando uma parca militar verde, para se proteger da chuva, foi  ajudar os Boinas Verdes a descarregar os helicópteros.

Ao chegar à margem do rio, encontrou Buzz Cochrane a falar com o membro mais  jovem da equipa, um cabo de rosto quase adolescente, chamado Douglas Kennedy.  O sargento Van Lewen e o chefe dos Boinas Verdes, capitão Scott, não se  encontravam à vista.

- Estou a falar a sério, Doogie - estava Cochrane a dizer.

- Não achas que ela não é para o teu bico?

- Isso não sei, Buzz. Mas um dos outros comandos disse: «Acho que ele devia  convidá-la para sair com ele."

- Mas que idéia - comentou Cochrane, voltando-se para Kennedy.

O melhor era vocês pararem com isso - disse Dough Kennedy, com um forte  sotaque sulista.

- A sério, Doogs, porque é que não vais ter com ela e não a convidas para sair  contigo?

- Eu disse que não queria ouvir falar mais nisso - insistiu Kennedy, enquanto  retirava outro contêineres de dentro de um dos Hueys.

Douglas Kennedy tinha vinte e três anos e, apesar do seu ar vagamente infantil, era  um belo rapaz, magro, com olhos verdes e vivos e a cabeça completamente rapada.  Ele próprio era quase tão verde como os seus olhos. A alcunha, Doogie, era uma  referência ao bom aspecto e ao caráter honesto da personagem principal de uma  velha série televisiva, Doogie Howser MD, com quem, dizia-se, Doogie era muito  parecido. Mas também era um nome «desajeitado», com o seu quê de inocência, que  o tornava bastante apropriado para Doogie, que era particularmente tímido e  especialmente desajeitado, no que dizia respeito a mulheres.

- O que é que se passa? - perguntou Race, ao chegar junto deles.

Cochrane voltou-se, mirou-o de alto a baixo rapidamente e, depois, afastou-se,  dizendo:

- Apanhamos aqui o Doogie a olhar, com olhos de carneiro mal morto, para aquela  arqueóloga jovem e bonita, que está além. E eu estava a dar-lhe um empurrãozinho.

Race olhou em volta e viu Gaby Lopez, a arqueóloga da equipe, parada junto à  cidadela, ao lado de Walter Chambers.

Não havia dúvida que ela era muito bonita. Tinha cabelo escuro, um belo tom de  pele latino e um corpo cheio de curvas. Race ouvira dizer que ela tinha vinte e sete  anos e que era a mais jovem dos professores assistentes do Departamento de  Arqueologia de Princeton. Gaby Lopez era uma mulher muito inteligente.

Mentalmente, Race encolheu os ombros. Doogie Kennedy podia ter escolhido pior.

Cochrane deu uma valente palmada nas costas de Doogie e cuspiu um pedaço de  tabaco.

- Não ee preocupe, rapaz. Ainda havemos de fazer de ti um homenzinho. Quer  dizer... olha bem, além para o Chucky disse Cochrane, apontando para o segundo  mais jovem elemento da unidade, um cabo, de vinte e três anos, com cara de lua  cheia, chamado Charles «Chucky» Wilson. - Estás a ver... na semana passada, o  Chucky passou a ser membro de pleno direito do Clube dos 80.

- O que é o Clube dos 80? - perguntou Doogie, perplexo.

- É do melhor, meu, do melhor - respondeu Cochrane, passando a língua pelos  lábios. - É ou não é, Chucky?

- Claro que é, Buzz.

- Umas grandes fodas, tá? - disse Cochrane, com um sorriso que mais parecia um  esgar.

- Umas grandes fodas - repetiu Chucky, sorrindo. Enquanto os dois soldados  continuavam a rir, Race fitou Cochrane com desconfiança, lembrando-se daquilo  que o Boina Verde tinha dito, no avião, quando pensava que Race não estava a  ouvi-los.

O cabo Buzz Cochrane parecia andar no fim da casa dos trinta. Tinha o cabelo e as  sobrancelhas ruivos e um rosto muito marcado, com as faces mal barbeadas. Era um  homem alto, de peito largo e braços fortes, bem musculados.

Race não gostava nada do aspecto dele.

Parecia haver nele qualquer coisa de mesquinho. Pertencia ao tipo de fulanos,  pouco inteligentes, que, quando andavam na escola, levavam a melhor sobre as  outras crianças, devido apenas à força bruta. O tipo de brutamontes que ia para o  Exército porque era um lugar onde as pessoas como ele se sentiam realizadas.

Não era de espantar ele ter quase quarenta anos e ainda ser cabo.

- Diz lá, Doogie - disse Cochrane, de repente. - o que é que tu achas de eu chegar  ali, ao pé daquela arqueóloga bonitinha, e dizer-lhe que temos aqui um jovem  soldado mudo, que gostava de a convidar para ir comer um hambúrguer e ver um  filme...

- Não! - exclamou Doogie, genuinamente assustado.

Os outros Boinas Verdes desataram a rir. Doogie ficou muito corado.

- E não me chames mudo - disse, entredentes. - Eu não sou mudo.

Nesse momento, Van Lewen e Scott voltaram do outro helicóptero. Os soldados  pararam imediatamente de rir.

Race viu Van Lewen olhar, com ar preocupado, para Doogie e, depois, para os  outros, do mesmo modo que um irmão mais velho olharia para quem estivesse a  chatear o seu irmão mais novo. Race ficou com a sensação de que a risota tinha  acabado mais por causa de Van Lewen do que devido à presença do capitão Scott.

- Como é que vão as coisas por aqui? - perguntou Scott a Cochrane.

- Sem nenhum problema, meu capitão - respondeu Cochrane.

- Então, peguem os equipamentos e vão para a aldeia - disse Scott. - Eles estão  quase a fazer o teste.

Race e os soldados foram para a aldeia. Continuava a chover torrencialmente.

Enquanto seguia pela rua principal, Race viu Lauren e Troy Copeland, parados  junto ao maior dos malões Samsonite.

Era uma grande mala preta, com pelo menos metro e meio de altura, e Copeland  estava a abrir as partes laterais, transformando-a numa espécie de bancada de  trabalho portátil.

O cientista abriu a tampa da mala, revelando uma console, à altura do peito, que  tinha algumas ligações, um teclado e uma tela de computador. Ao lado dele, Lauren  estava a ligando um objeto prateado do feitio de uma vara, que parecia um  microfone com cabo, ao topo do console.

- Pronto? - perguntou Lauren.

- Pronto - disse Copeland.

Lauren acionou um interruptor, num dos lados da mala, e, instantaneamente,  acenderam-se na consola umas luzes verdes e vermelhas. Copeland lançou mãos à  obra, de imediato, escrevendo qualquer coisa no teclado resistente às intempéries.

- É um gerador de imagens por ressonância nucleônica ou NRI - explicou Lauren,  antes de Race ter tido tempo de perguntar. - Consegue indicar-nos a localização, na  arca que nos rodeia, de qualquer substância nuclear, medindo a ressonância do ar, à  volta dessa substância.

- E isso quer dizer o quê? - perguntou Race.  Lauren suspirou e, depois, disse:

- Qualquer substância radioativa, seja ela urânio, plutônio ou tírium, reage perante  o oxigênio, a nível molecular. Basicamente, a substância radioativa faz vibrar, ou  ressoar, o ar que a rodeia. Este aparelho detecta essa ressonância do ar e, portanto,  indica-nos a localização da substância radioactiva.

Um momento mais tarde, Copeland parou de escrever no teclado, voltou-se para  Nash e anunciou:

- O NRI está pronto.  - Avance - disse Nash.

Copeland tocou numa tecla e a vara prateada, montada no topo da máquina,  começou a rodar. Movia-se lentamente, num círculo firme e bem calculado.

Enquanto a vara girava, Race olhou em volta e reparou que Lopez e Chambers já  tinham voltado das suas explorações. Agora, estavam a olhar para a máquina, com  muita atenção. Race procurou, com os olhos, o resto da equipe. Toda a gente estava  a olhar, atentamente, para o gerador de imagens por ressonância nucleônica.

Então, de repente, percebeu porquê. Era daquilo que tudo dependia.

Se o aparelho não detectasse a presença do ídolo em qualquer local das proximidades, todos eles tinham viajado em vão.

No topo do aparelho, a vara parou de rodar.

- Temos uma leitura - disse Lauren, com os olhos presos ao ecrã da consola.

Race viu Nash deixar sair o ar que retivera dentro dos pulmões.

- Onde?

- Um momento... - disse Lauren, escrevendo qualquer coisa no teclado.

A vara do aparelho apontava agora para nascente do rio, para as montanhas, para a  zona onde as árvores da floresta se encontravam com a superfície íngreme que ia  dar ao planalto rochoso mais próximo.

Lauren disse:

O sinal é muito fraco e o ângulo não está correto. Mas estou a apanhar qualquer  coisa. Deixem ver se consigo ajustar um pouco o vetor..

Tocou em mais algumas teclas e a vara começou, lentamente, a inclinar-se para  cima. Tinha atingido um ângulo de trinta graus, quando, de súbito, os olhos de  Lauren se iluminaram.

- Ótimo - disse ela. - Um sinal forte. Uma ressonância de alta-frequência. A 270  graus, exatamente para oeste. O ângulo vertical é de 29 graus e 58 minutos.  Variação... 793 metros, Lauren olhou para a sombria superfície rochosa da montanha, que se erguia acima  das árvores, para oeste. Parecia uma espécie de planalto, que estava a ser varrido  por verdadeiros lençóis de água.

- É ali, em algum lugar - disse ela. - Lá em cima, na montanha.  Nash voltou-se para Scott:

- Comunica por rádio com o Panamá. Diz-lhes que equipe avançada detectou a  presença da substância. Mas diz-lhes também que temos informação de que forças  hostis vêm, neste momento, a caminho do lugar onde nos encontramos. Diz-lhes  que, logo que possam, mandem uma força de proteção completa, para nos ajudar a  retirar daqui.

Nash deu meia volta, para ficar de frente para o grupo.  - Muito bem, rapaziada, toca a despachar. Vamos buscar o ídolo.

Todos começaram a preparar-se.

Os Boinas Verdes verificaram as M-16. Os cientistas da DARPA arrumaram as  bússolas e o equipamento informático, para levarem consigo.

Race viu Lauren e Troy Copeland com a cabeça metida dentro de um dos Hueys,  presumivelmente para tirarem qualquer coisa que lhes pertencia. Foi atrás deles,  para ver se podia ajudar e, já agora, talvez também para perguntar a Lauren se ela  sabia o que queria dizer Nash, quando se referira a forças hostis que vinham a  caminho de Vilcafor.

- Ei. - disse Race, ao chegar ao pé da porta do helicóptero. - Oh...

Apanhara os dois agarrados um ao outro, beijando-se que nem um casal de  adolescentes, com as mãos enfiadas no cabelo um do outro, as línguas dentro da  boca do parceiro. Uma cena escaldante.

Com a chegada de Race, os dois cientistas separaram-se imediatamente. Lauren  corou. Copeland engoliu em seco.

- Peço desculpa - disse Race. - Não queria...

- Não faz mal - disse Lauren, ajeitando o cabelo. - É que, para nós, este é um grande  momento.

Race anuiu, deu meia volta e começou a andar na direção da aldeia.

Obviamente. Contudo, ao mesmo tempo que continuava a andar, para ir ter com os  outros à aldeia, não conseguia deixar de pensar na imagem de Lauren, com os dedos  mergulhados nos cabelos de Copeland, enquanto o beijava. Ele tinha visto  claramente a aliança.

Mas Copeland não usava aliança nenhuma.

O grupo seguia pelo que restava de um caminho lamacento, que acompanhava a  margem do rio. Dirigiam-se para a base do planalto rochoso. Os fortes sons  noturnos da floresta ressoavam-lhes nos ouvidos. o mar de folhas que os rodeava  oscilava, impelido pela chuva que não parava de cair.

Estava muito escuro e a luz das suas lanternas varria a floresta. Enquanto  caminhava, Race reparou que havia alguns intervalos entre as nuvens densas,  intervalos que deixavam passar a luz do luar, que iluminava o rio, ao lado deles.  Ocasionalmente, à distância, via-se um relâmpago rasgar a escuridão. Aproximava- se uma tempestade.

Lauren e Copeland iam à frente. Lauren segurava diante de si uma bússola digital.  Ao lado dela, com a M-16 a tiracolo, ia Buzz Cochrane, o guarda-costas dela.

Logo atrás deles, seguiam Nash, Chambers, Lopez e Race. Scott, Van Lewen e um  quarto soldado, o cabo atarracado chamado Chucky Wilson, fechavam o cortejo.

Os dois outros Boinas Verdes, Doogie Kennedy e o último soldado da unidade,  outro cabo, chamado George Ted Reichart, tinham ficado na aldeia, como  retaguarda.

Race deu consigo caminhando ao lado de Nash.

- Porque é que o Exército não mandou logo para cá uma força de proteção  completa? - perguntou. - Se o ídolo é assim tão importante, porque foi que  mandaram só uma equipe de reconhecimento para o vir buscar?

Nash encolheu os ombros, sem parar de andar.

- Algumas pessoas das altas esferas achavam que se tratava de uma missão bastante  especulativa... isto de utilizar um manuscrito com quatrocentos anos, para vir à  procura de um ídolo de tírium. Por isso, não se dispuseram a dar-nos uma unidade  ofensiva completa, ficando-se por uma força de missão de pesquisa. Mas, agora, já  sabemos que ele está aqui e eles vão mandar a «cavalaria». Agora, se me dá licença...

Dito isto, Nash avançou um pouco e foi ter com Lauren e Copeland.

Race foi deixado no fim da fila, sozinho, sentindo-se, mais do que nunca, uma peça  desnecessária, um estranho que não tinha razão nenhuma para estar ali.

Enquanto seguia pelo caminho da margem do rio, Race ia olhando para as águas e  reparou que alguns jacarés nadavam paralelamente ao caminho, acompanhando o  ritmo da marcha do grupo.

Ao fim de algum tempo, Lauren e Copeland chegaram à base do planalto, onde se  via uma imensa parede vertical de rocha molhada, que se estendia na direção  norte-sul. Race calculou que deviam estar a uns seiscentos metros da aldeia.

Para a esquerda, do outro lado do rio, via-se uma queda de água, que brotava da  superfície rochosa e ia alimentar o rio.

Do lado do rio onde se encontravam, viu uma fissura vertical e estreita, aberta na  superfície da parede rochosa.

A fenda teria, quanto muito, uns dois metros e quarenta de largura mas era muito  alta, incrivelmente alta. Tinha, pelo menos, uns trezentos metros e as suas paredes,  absolutamente verticais, desapareciam na encosta da montanha. Da fissura, brotava  uma pequena torrente de água, com uma altura de menos de dez centímetros, que  desembocava num minúsculo lago, o qual, por sua vez, escorria para o rio.

Era uma passagem natural, aberta na superfície rochosa. O resultado de um sismo  de pequena escala, que, no passado, abalara no sentido leste-oeste, a superfície  rochosa, que se alongava na direção norte-sul, pensou Race, Lauren, Copeland e Nash saltaram para o pequeno lago, à entrada da passagem.

Enquanto isso, Race voltou-se e viu que alguns dos jacarés tinham parado de seguir  o grupo. Agora, erguiam-se ameaçadoramente sobre as águas mais profundas do rio.

Por mim, está bem, pensou Race.

Então, de repente, Race parou e olhou em torno de si. Havia qualquer coisa que  não batia certo.

E não era só o comportamento dos jacarés. Havia qualquer coisa que não batia  certo, em toda a área à volta da passagem... E, então, Race deu-se conta do que era.

Os sons da floresta tinham deixado de se fazer ouvir. Tirando o som leve da chuva,  a bater nos ramos, ali reinava um silêncio absoluto. Nem o canto das cigarras, nem  o chilrear dos pássaros, nem um restolhar nos ramos.

Nada. Era como se tivessem entrado numa área onde os sons da floresta não  penetravam. Numa área de que os animais da selva tinham um medo de morte.

Lauren, Copeland e Nash não pareciam ter reparado no silêncio. Apontavam as  lanternas para dentro da passagem e espreitavam para lá da superfície rochosa.

- Parece que dá a volta - disse Copeland.  Lauren voltou-se para Nash:

- Segue na direção certa.  - Vamos a isso - disse Nash.

Os dez aventureiros abriram caminho pela estreita passagem, com os pés a  chapinhar na água que lhes dava pelos tornozelos. Seguiam em fila indiana e Buzz  Cochrane: ia à frente, com a pequena lanterna acoplada ao cano da sua M-16 a  iluminar o caminho.

A passagem era essencialmente a direito, com um ligeiro ziguezague no meio e,  numa extensão de cerca de sessenta metros, parecia ir dar diretamente ao planalto.

Race, que seguia atrás dos outros, olhou para cima. Dos dois lados da estreita  abertura, as paredes de rocha pareciam subir em direção ao céu. Como era muito  estreita, a fenda parecia incrivelmente alta. Quando Race olhou para cima, a chuva  leve bateu-lhe no rosto.

E, então, de repente, Race emergiu da passagem e foi dar a um espaço aberto.

Aquilo que viu cortou-lhe a respiração.

Encontrava-se no sopé de um imenso desfiladeiro rochoso, na clareira cilíndrica de  uma grande cratera, que tinha, pelo menos, uns noventa metros de diâmetro.

Uma corrente brilhante, de água, estendia-se diante de si, ondeando, banhada pela  luz prateada do luar, correndo ao longo de toda a parede circular da enorme cratera.  Segundo parecia, a fenda por onde tinham passado era a única entrada para aquele  abismo cilíndrico. Uma delgada queda de água escorria, num lençol de volume  constante, do outro lado da cratera, percorrendo uns cento e vinte metros, até cair  no lago superficial, no sopé do largo desfiladeiro circular.

Mas era o que se encontrava no meio do desfiladeiro que prendia a atenção de toda  a gente.

Erguendo-se sobre a água, precisamente no centro da cratera cilíndrica, havia uma  grande formação rochosa.

Tinha cerca de vinte e quatro metros de largura e, pelo menos, noventa metros de  altura. Era uma gigantesca torre natural de rocha, aproximadamente do tamanho de  um arranha-céus de altura média, que se erguia para o céu, sobre o lago iluminado  pelo luar. Sob a chuva leve da noite, o grande monólito negro tinha um aspecto  realmente imponente.

Os dez ficaram ali parados, a olhar, com um temor respeitoso, para a enorme torre  de pedra.

- Meu Deus... - disse Buzz Cochrane.

Lauren mostrou a Nash a leitura da sua bússola digital, - Estamos precisamente a seiscentos metros da aldeia. Se tivermos em conta a  elevação, eu diria que há fortes possibilidades de o nosso ídolo estar no cimo  daquela torre.

- Ei! - disse Copeland, do lado esquerdo.

Toda a gente se voltou. Copeland encontrava-se em frente a uma espécie de trilho,  que tinha sido aberto na parede curva exterior do desfiladeiro.

A trilha parecia subir em espiral, ao longo da parede exterior do desfiladeiro,  abraçando a circunferência do cilindro, contornando a gigantesca torre de pedra  que se erguia no centro da cratera mas separado dela por um amplo fosso de espaço  vazio, com, pelo menos, trinta metros.

Lauren e Nash foram os primeiros a subir para a trilha, saindo da água da base da  cratera que lhes dava pelos tornozelos. O grupo foi seguindo a trilha.

Ali, a chuva era mais leve, as nuvens que pairavam sobre o desfiladeiro menos  densas, deixando passar através delas alguns raios de luar.

Subiram, subiram, seguindo a trilha estreita e curva, todos eles num silêncio  temeroso, de olhos fixos na imponente torre de pedra.

A própria dimensão da torre era incrível. Era enorme. E tinha uma forma curiosa:  era ligeiramente mais larga no topo do que na base. A formação ia-se afilando  gradualmente, até ao ponto em que se encontrava com o lago, no fundo da cratera.

À medida que iam subindo pela trilha em espiral, Race começou a avistar o topo da  torre de pedra. Tinha uma forma arredondada, como uma cúpula, e estava  totalmente coberta por densa vegetação. Ramos nodosos, cobertos de água,  debruçavam-se do rebordo da torre, indiferentes à vertiginosa descida de mais de  noventa metros, por baixo deles.

O grupo estava a aproximar-se do topo da cratera, quando viram uma ponte, ou  melhor, o que restava de uma ponte, que ligava a trilha em espiral à torre de pedra.

A ponte ficava mesmo por cima do rebordo do grande desfiladeiro, não muito  longe da queda de água, que escorria pela parede ocidental do desfiladeiro.

De um lado e do outro do abismo, voltados um para o outro e separados por uma  distância de cerca de dez metros, via-se o que parecia ser dois peitoris de pedra. Em  cada um deles, havia dois contrafortes de pedra, presumivelmente a base onde,  outrora, tinha assentado uma ponte de corda.

Do lado do abismo onde Race se encontrava, os dois contrafortes estavam  encovados e gastos mas, apesar disso, tinham um aspecto bastante sólido. E  pareciam antigos. Muito, muito antigos. Race não tinha dúvidas de que datavam do  tempo dos Incas.

Foi então que viu a ponte de corda.

Pendia do peitoril, do outro lado do abismo, do lado da torre. Pendia verticalmente  dos dois contrafortes do peitoril, pelo que caía ao longo da parede da torre de  pedra. Contudo, presa à extremidade da ponte de corda, via-se um pedaço de corda  amarela e gasta, que descrevia um arco sobre o abismo, até ao peitoril junto ao qual  estava Race, onde tinha sido presa a um dos contrafortes. Walter Chambers  examinou a corda amarela.

- Corda de junco seco. Entrançada. Isto é uma clássica construção inca, em corda.  Diz-se que, trabalhando todos juntos, uma aldeia inca era capaz de construir uma  ponte de corda em três dias. As mulheres apanhavam os juncos e entrançavam-nos  em pedaços de corda, compridos e delgados. Depois, entrançavam esses pedaços,  fazendo segmentos de corda mais grossos e mais sólidos, como este.

- Mas uma ponte de corda não podia sobreviver quatrocentos anos, exposta à ação  dos elementos - observou Race.

- Não... não podia - disse Chambers.

- O que quer dizer que alguém fez esta ponte - disse Lauren. - E não há muito  tempo.

- Mas para quê este cenário elaborado - disse Race, apontando para o pedaço de  corda, que se estendia sobre a ravina, até à extremidade da ponte de corda. - Para  quê prender uma corda deste lado da ponte e deixar o resto pendurado, do outro  lado?

- Não sei - respondeu Chambers. - Só alguém que quisesse manter alguma coisa  encurralada no cimo da torre podia fazer uma coisa dessas...

Nash voltou-se para Lauren. O que é que achas?

Lauren ficou a olhar para a torre, parcialmente velada pela cortina de chuva ligeira  que continuava a cair.

- É suficientemente alto para coincidir com o ângulo indicado pelo NRI - disse  Lauren, olhando para a bússola digital.

- E estamos exatamente a 632 metros da aldeia, na horizontal. Tendo em conta a  elevação, quase que apostava que o ídolo está ali.

Van Lewen e Cochrane puxaram para cima a ponte de corda e prenderam a  extremidade aos contrafortes do lado da ravina onde se encontravam. Agora, a  ponte oscilava sobre o abismo, ligando a torre de pedra que parecia um arranha-céus à trilha em espiral que a contornava do lado oposto.

A chuva continuava a cair.

Relâmpagos e raios cortantes de luz branca começaram a iluminar o céu.

- Sargento - disse o capitão Scott. - A corda de segurança.  Van Lewen tirou imediatamente da mochila um objeto com um aspecto estranho.  Era uma espécie de gancho ou arpão prateado e brilhante, que tinha preso um rolo  de corda de nylon preta.

O sargento prendeu rapidamente a haste do gancho ao lança-granadas M-203  acoplado ao cano da sua M-16. Depois, apontou a arma para o abismo e disparou.

Com um silvo, a haste do gancho soltou-se do lança-granadas de Van Lewen e,  graciosamente, este descreveu um arco sobre o abismo. Enquanto voava, as suas  garras prateadas abriram-se. A corda preta cruzava o ar, atrás dele.

O gancho aterrou no topo da torre, do outro lado do abismo e cravou as garras na  base de uma árvore de tronco grosso. Em seguida, Van Lewen atou a outra ponta da  corda a um dos contrafortes do lado do abismo onde eles se encontravam e a corda  de nylon ficou atravessada sobre a garganta, mesmo por cima da ponte suspensa.

- Muito bem - disse Scott. - Agora, enquanto atravessam a ponte, mantenham  sempre a mão sobre a corda de segurança. Se a ponte cair, a corda impedirá que  vocês caiam.

Van Lewen devia ter visto Race empalidecer.

- Vai correr tudo bem - disse. - Segure-se àquela corda e vai ver que consegue.

Os Boinas Verdes foram os primeiros a atravessar, um de cada vez.

A estreita ponte de corda balançava e oscilava sob o peso deles mas aguentou-se.  Um a um, os restantes membros do grupo atravessaram depois deles, sempre com  as mãos na corda de nylon, enquanto seguiam pela oscilante ponte suspensa, sob a  chuva subtropical constante.

Race foi o último a atravessar a ponte, agarrado com tanta força à corda de  segurança que os nós dos seus dedos ficaram brancos. Por isso, demorou mais  tempo que os outros a passar a ponte e, quando chegou ao outro lado, eles já se  tinham afastado e a única coisa que viu foram uns degraus de pedra molhados, que  entravam pela vegetação. Race apressou-se e foi atrás dos outros.

De um lado e do outro, milhões de folhas despejavam gotas de água sobre ele. A  folhagem das palmeiras batia-lhe na cara, enquanto ia subindo os degraus de pedra,  atrás dos outros. Depois de uma subida que durou trinta segundos, Race afastou uns  ramos grandes e deu consigo na pequena clareira.

Já se encontravam lá todos os outros. Mas estavam ali parados, imóveis. A  princípio, Race não percebeu o que os tinha feito parar mas, depois, viu que todos  eles tinham as lanternas apontadas para a esquerda.

Os seus olhos seguiram os focos das lanternas e foi então que viu aquilo.

- Deus do céu - disse Race, mal podendo respirar.

Diante de si, no ponto mais alto da torre de pedra, coberto de lama e de musgo,  oculto entre os ramos que o rodeavam, brilhando por causa da água da chuva  persistente, encontrava-se uma imponente estrutura de pedra.

Estava envolta em sombras e em humidade mas era evidente que se tratava de uma  estrutura concebida para impor ameaça e poder. Uma estrutura que não podia ter  outra finalidade que não fosse inspirar medo, idolatria e veneração.

Era um templo.

Race ficou de olhos presos ao sombrio templo de pedra. Engoliu em seco.

Tinha um aspecto perverso. Frio, cruel e perverso.

Não era uma construção muito grande. De fato, mal chegava a ter a altura de um  andar. Mas Race sabia que a questão não era essa.

Calculou que aquilo que estavam a ver era apenas a parte de cima do templo, a  ponta do icebergue, porque a seção em ruínas que tinham diante dos olhos acabava  de uma forma demasiado abrupta. Desaparecia no meio da lama, que se estendia por  baixo dos pés deles.

Race presumiu que o resto da enorme estrutura estava enterrado ali em baixo, na  lama, sepultado sob terra molhada, que se fora acumulando ao longo de  quatrocentos anos.

Contudo, aquilo que estava à vista era suficientemente aterrador. tinha mais ou  menos a forma de uma pirâmide. Dois grandes degraus de pedra levavam a uma  pequena estrutura cúbica, com o tamanho aproximado de uma garagem média. A  estrutura cúbica devia ser... uma espécie de tabernáculo, uma câmara sagrada não  muito diferente das que se encontravam no cimo das pirâmides astecas ou maias.

Nas paredes do tabernáculo, tinham sido gravados alguns pictogramas horrendos:  monstros carrancudos parecidos com felinos, com as garras aguçadas estendidas;  seres humanos gritando de agonia, às portas da morte. As paredes de pedra do  templo estavam cobertas de rachaduras, provocadas pela passagem do tempo. A  ininterrupta chuva subtropical escorria sobre as paredes de pedra trabalhadas,  dando vida aos personagens das cenas horríveis nelas gravadas, produzindo um  efeito idêntico ao que a água corrente tinha produzido, horas antes, no totem.

Contudo, era no centro do tabernáculo que residia o aspecto mais intrigante de  toda a estrutura: uma entrada. Um portal quadrado.

Mas o portal estava tapado. Em qualquer altura, num passado remoto, alguém tinha  colocado sobre ele uma grande laje, que o bloqueava. A laje era enorme. Race  calculou que deveriam ter sido precisos pelo menos dez homens para a pôr no  lugar.

- Definitivamente pré-inca - disse Chambers, examinando as gravuras.

- Sem dúvida - disse Lopez.

- Como é que vocês sabem? - perguntou Nash.

- Os pictogramas são muito pouco espaçados - respondeu Chambers.

- E têm demasiados pormenores - acrescentou Lopez.  Nash voltou-se para o capitão Scott:

- Entre em contato com a aldeia, com Reichart.  - Sim, meu coronel.

Scott afastou-se do grupo e tirou um rádio portátil da mochila.  Lopez e Chambers ainda estavam mergulhados numa conversa profissional.

- O que é que achas? - perguntou Lopez. - Chachapoyan?

- Talvez - respondeu Lopez. - Mas também pode ser Moche. Olha para as imagens  dos felinos.

Gaby Lopez inclinou a cabeça, com uma expressão de dúvida.  - Pode ser mas, nesse caso, teria que ter perto de mil anos.

- Então e a trilha em espiral, ao longo da cratera, e os degraus da torre? - perguntou  Chambers.

- Sim... sim, eu sei. É muito estranho.

Nash interrompeu-os:

- Estou muito contente por vocês acharem isto tão fascinante mas de que diabo é  que estão a falar?

- Bem... - respondeu Chambers. - Parece que temos aqui uma pequena anomalia,  coronel.

O que é que isso quer dizer?

É que a trilha em espiral à volta desta cratera e os degraus desta torre foram sem  dúvida construídos por engenheiros incas. Os Incas construíram toda a espécie de  caminhos e trilhas, nos Andes, e os seus métodos de construção estão bem  documentados. Estes dois exemplos têm o cunho da construção de trilhas dos Incas.

- E isso quer dizer o quê?

- Quer dizer que a trilha e os degraus foram construídos há aproximadamente  quatrocentos anos. Mas este templo, pelo contrário, foi construído muito antes  disso.

E? - perguntou Nash, irritado.

É essa a anomalia - disse Chambers. - Porque haviam os Incas de abrir uma trilha  para um templo que eles não construíram?

- E não te esqueças da ponte de corda - disse Lopez.  - Não - disse Chambers. - Tens razão. Tens razão. O cientista baixinho olhou, com  ar receoso, para a beira da cratera. - Acho melhor apressarmo-nos.

- Porquê? - quis saber Nash.

- Porque, coronel, é altamente provável que haja aqui por perto uma tribo de  nativos, que é capaz de não achar muita graça ao fato de nós andarmos a meter o  nariz no santuário deles.

- Como é que sabe isso - perguntou Nash. - Como é que sabe que há por aqui  nativos?

- Porque - retorquiu Chambers - foram eles que construíram a ponte de corda.

- Como disse, há pouco, o Professor Race - explicou Chambers - as pontes  suspensas feitas de corda degradam-se rapidamente com o tempo. Uma ponte feita  de corda de junco desintegra-se, digamos, poucos anos depois de ter sido  construída. A ponte que nós atravessamos, para chegar a este templo, não podia ter  existido há quatrocentos anos. Foi construída recentemente, por alguém que  conhecia os métodos de construção de pontes dos Incas; muito provavelmente por  qualquer tribo primitiva, na qual esse conhecimento foi transmitido de geração em  geração.

Nash gemeu de forma audível.

- Uma tribo primitiva - disse Nash, sem alterar a voz. - Aqui. Agora?

- Não é improvável - respondeu Gaby Lopez. - De vez em quando, são descobertas  tribos perdidas, na bacia do Amazonas. Ainda em 1987, os irmãos Villas Boas  estabeleceram contato com uma tribo Kreen Akarore, na floresta tropical brasileira.  Que diabo, o Governo brasileiro até tem por política mandar exploradores para a  selva, para estabelecer contato com tribos da Idade da Pedra.

- Mas, como pode imaginar, muitas dessas tribos primitivas são extremamente  hostis para os europeus. É do conhecimento geral que alguns exploradores  patrocinados pelo Estado voltam para casa em muito mau estado. Alguns, como o  famoso antropólogo peruano, Dr. Miguel Moros Márquez, nem sequer voltam...

- Ei! - gritou, de súbito, Lauren, que se encontrava perto do portal.

Toda a gente se voltou. Lauren estava parada em frente da laje que cobria a entrada  quadrada.

- Está aqui qualquer coisa escrita.

Race e os outros aproximaram-se do lugar onde ela se encontrava. Lauren afastou  uns pedaços de lama que estavam agarrados à pedra e Race viu aquilo para que ela  estava a olhar.

Alguém tinha gravado qualquer coisa na superfície da enorme pedra.

Lauren afastou um pouco mais de lama, pondo a descoberto uma coisa que parecia  ser uma letra.

Era um «N».

- Que diabo é que...? - começou Nash. As palavras começaram a tomar forma.

No entrare...

Race reconheceu-as.

«No entrare» queria dizer «Não entrar», em espanhol.

Lauren continuou a afastar a lama e, no centro da laje, apareceu uma frase  completa, toscamente rabiscada na superfície da pedra. Dizia o seguinte:

 

No entrare absoluto.

Muerte asornarse dentro.

AS

 

Race traduziu mentalmente as palavras. Depois, engoliu em seco.

- O que é que isso quer dizer? - perguntou Nash.

Race voltou-se e olhou-o de frente. A princípio, não disse nada. Então, finalmente,  acabou por dizer:

O que está ali escrito é isto: «Não entrar por nenhum motivo. A morte está lá  dentro."

- O que quer dizer «AS»? - quis saber Lauren.

- Segundo calculo - respondeu Race - «AS» são as iniciais de Alberto Santiago.

N a aldeia, Doogie Kennedy deu um pontapé numa pedra solta. Sentia-se inquieto.  Estava escuro, a chuva continuava a cair e ele estava chateado por ter sido deixado  ali, quando o que realmente queria era estar nas montanhas, com os outros.

O que é que tens, Doogs? - perguntou o cabo George Ted Reichart, que se  encontrava perto do fosso, no lado Leste da aldeia.

Reichart era tão alto e magricela, que parecia uma haste. Nascera em Austin. e era  um cowboy genuíno, sempre a mascar qualquer coisa. Tinha sido por isso que lhe  tinham posto aquele apelido.

- Isto aqui está parado demais, é? - insistiu.

- Não tenho nada - respondeu Doogie. - Mas gostava mais de estar lá, nas  montanhas, à procura do que quer que seja que viemos cá buscar, do que de estar  aqui, a fazer de babá desta merda desta aldeia.

Reichart riu-se para dentro. Aquele Doogie tinha muito valor. Um bocado  fracalhote mas esperto, muito esperto mesmo.

O que Reichart não sabia, porém, era que, apesar da sua fala arrastada de sulista de  uma terra pequena, Doogie Kennedy era um jovem excepcionalmente inteligente.

Os testes preliminares, realizados em Fort Berming, tinham revelado que Doogie  tinha um QI de 161, o que era estranho, porque só conseguira completar o ensino  secundário e, até, com algumas dificuldades.

Entretanto, depressa viera a descobrir-se que, enquanto ele andava na escola  secundária, em Little Rock, Arkansas, o pai de Douglas Kennedy - um contabilista  de aspecto pacato de homem temente a Deus - o tinha espancado, todas as noites,  com um chicote de couro.

Kennedy Senior também se recusara a comprar os livros escolares para o filho e, na  maior parte das noites, obrigava-o a ficar a pé, às escuras, fechado num armário  com noventa centímetros por um metro e vinte, como castigo por faltas «graves»,  como ter batido à porta com demasiada força ou ter deixado passar demais o bife do  pai. Os trabalhos de casa nunca eram feitos e o jovem Doogie só conseguira  terminar o ensino secundário, graças à sua extraordinária capacidade de fixar o que  era dito nas aulas.

Alistou-se no Exército no dia em que acabou a escola e nunca mais voltou a casa.  Um velho sargento do recrutamento, de espírito agudo, tinha visto naquele rapaz -  que os diretores escolares tinham considerado apenas como mais uma criança  tímida, que passara nas provas finais à raspando - as características de um espírito  determinado e brilhante.

Doogie continuou a ser tímido mas, devido à sua inteligência, à sua força de  vontade e à rede de apoio do Exército, em breve viria a ser um ótimo soldado.  Concluiu o curso dos Rangers, com uma excelente classificação. Os Boinas Verdes e  Fort Bragg tinham sido a etapa seguinte.

- Acho que estou ansioso por um bocado de ação - disse Doogie, aproximando-se  de Reichart, que estava a instalar um sensor AC-7V Eagle Eye junto ao lado Leste  do fosso.

- Se fosse você, não teria grandes esperanças - respondeu Reichart, acionando o  sistema do Eagle Eye, um sistema de detecção de movimento que era ativado pela  temperatura.

- Acho que não vai haver muita ação nesta viagem...

O sensor emitiu um bip bem sonoro. Doogie e Reichart trocaram um olhar rápido.

Em seguida, voltaram-se os dois e começaram a perscrutar a seção de floresta densa,  para onde estava apontado o sensor.

Não se via nada de especial.

Só um emaranhado de ramos entrelaçados e a floresta. Nos arredores ali por perto,  um pássaro piou.

Doogie agarrou na M-16 e começou a andar, com cautela, pela ponte de troncos,  por cima da seção Leste do fosso. Avançava lentamente, na direção da zona suspeita  da floresta.

Ao chegar à orla da floresta, acendeu a lanterna acoplada ao cano da espingarda.

E, então, viu-a.

Viu o corpo brilhante e pintalgado da maior serpente que alguma vez tinha visto  em toda a sua vida! Era uma anaconda com uns nove metros, uma serpente  monstruosa, preguiçosamente enroscada aos ramos retorcidos de uma árvore da  Amazônia.

Era tão grossa que o seu movimento devia ter feito disparar o sensor, pensou  Doogie.

- O que é? - perguntou Reichart, aproximando-se dele.

- Não é nada - respondeu Doogie. - É só uma ser... Então, de repente, Doogie  voltou-se, para ficar de frente para a serpente.

A serpente não podia ter feito disparar o sensor. Era um animal de sangue frio e o  sensor captava imagens por ação da temperatura. Dava sinal, quando detectava  fontes emissoras de calor.

Doogie voltou a pôr a espingarda em posição e fez incidir a luz da lanterna sobre o  solo da floresta, que se estendia à sua frente. E ficou estático.

Diante de si, no meio das árvores molhadas, estava um homem.

Estava deitado sobre o ventre, a cerca de três metros, e olhava para cima, para  Doogie, através de uma viseira de porcelana preta. A sua camuflagem era tão boa  que quase não era possível distingui-lo da vegetação escura que o rodeava.

Mas Doogie mal reparou na camuflagem do homem.

O seu olhar fixava, como que hipnotizado, a espingarda-metralhadora MP-5 com  silenciador que o homem empunhava e que estava diretamente apontada ao nariz  de Doogie.

Lentamente, o homem de camuflado levou o indicador da mão direita aos lábios  ocultos pela viseira, imitando a palavra chiu e, enquanto ele o fazia, Doogie reparou  num segundo homem, vestido de modo idêntico, deitado no chão, ao lado do  primeiro... e, depois, num terceiro, num quarto, num quinto.

Uma equipe completa de fantasmas pretos, deitados no chão, diante de si.

- Que porra vem a... - começou Reichart, ao avistar os comandos, deitados no solo  da floresta, à sua frente.

De imediato, estendeu a mão para a espingarda mas, vindo da escuridão, o som de  uma série de sonoros cliques, o som das travas de segurança de cerca de vinte  gatilhos, fê-lo pensar duas vezes.

Doogie fechou os olhos de raiva.

Devia haver pelo menos vinte homens escondidos na floresta. Abanou a cabeça,  com tristeza.

Ele e Reichart tinham acabado de perder a aldeia.

- A  morte está lá dentro.

Nash franziu o sobrolho, olhando para a laje colocada sobre o portal do templo.

Race estava parado ao seu lado, olhando para as imagens gravadas nas paredes de  pedra do templo, para as cenas horríveis de felinos monstruosos e seres humanos  agonizantes.

- Na verdade, não é bem isso - disse Race, voltando-se para Nash. – A palavra,  asomarse quer dizer espreitar: «A morte espreita lá dentro».

- E foi Santiago quem escreveu isto? - perguntou Nash.  - Assim parece.

Naquele momento, o capitão Scott apareceu ao lado de Nash.

- Temos um problema, meu coronel. Não consigo falar com o Reichart.

Nash não se voltou para responder: continuou a olhar para o portal.

- Será interferência das montanhas?

- O sinal está ótimo, meu coronel. Mas o Reichart não responde. Passa-se qualquer  coisa.

Nash franziu a testa.

- Eles já chegaram... - disse, baixinho.

- O Romano? - perguntou Scott.

- Droga - disse Nash. - Como é que eles chegaram tão depressa?

- O que é que fazemos?

- Se eles estão na aldeia, já sabem que nós estamos aqui. De repente, Nash voltou- se, para ficar de frente para Scott.

- Liga para a base, no Panamá - disse. - Diz-lhes que tivemos que passar ao Plano B  e que vamos para as montanhas. Diz-lhes que comuniquem por rádio com a equipe  de apoio e que digam aos pilotos que procurem os nossos sinalizadores portáteis.  Vamos lá. Temos que nos mover depressa.

Lauren, Copeland e dois Boinas Verdes começaram imediatamente a colocar alguns  explosivos C-2 sobre a laje que tapava o portal.

O C-2 é um tipo de explosivo de plástico de detonação leve, utilizado pelos  arqueólogos de todo o mundo, para remover obstruções de estruturas antigas, sem  destruir os edifícios em si.

Enquanto os outros se ocupavam com a sua tarefa, Nash decidiu investigar a zona  por trás do templo, para ver se havia mais alguma entrada. Sem mais nada para  fazer, Race foi com ele.

Os dois contornaram a estrutura cúbica, seguindo por um caminho de pedra lisa,  que dava a volta ao tabernáculo, formando uma espécie de uma varanda sem grades.

Quando chegaram à parte de trás do edifício, viram um aterro íngreme que se  estendia do ponto onde se encontravam à beira do topo da torre de pedra.

Enquanto estavam ali parados, na colina lamacenta, Race olhou para baixo, para o  conjunto de blocos retangulares, bem encostados uns aos outros, que formavam a  varanda por onde caminhavam.

Entre os blocos de pedra quadrados, de arestas aguçadas, via-se uma pedra com um  aspecto bem diferente.

Era uma pedra redonda.

Nash também a viu e os dois inclinaram-se para a observar mais de perto.

Tinha uns setenta e cinco centímetros de diâmetro, mais ou menos a largura dos  ombros de um homem bem constituído, e encontrava-se ao nível da superfície do  caminho. A verdade, pensou Race, era que parecia ter sido perfeitamente encaixada  num buraco redondo do caminho, um buraco que tinha sido aberto nos próprios  blocos quadrados que a rodeavam.

- Para que serviria? - perguntou Nash.

- Quem é Romano? - perguntou Race, apanhando Nash completamente  desprevenido.

Race lembrava-se de Nash lhe ter falado da equipe de assassinos alemães, que  tinham chacinado os tais monges, num mosteiro dos Pirineus. Lembrava-se do  retrato que Nash lhe fizera do chefe desse grupo de assassinos, um homem  chamado Heinrich Anistaze.

Mas Nash nunca tinha dito nada acerca de um homem chamado Romano. Quem era  ele e o que estava a fazer na aldeia? E, mais ainda: porque razão Nash fugia dele?

Nash lançou um olhar duro a Race e a expressão do seu rosto ensombrou-se.

- Por favor, Professor...

- Quem é Romano?

- Desculpe - disse Nash, passando por ele e quase lhe tocando, de regresso à zona  da fachada do templo.

Race abanou a cabeça e seguiu-o, a alguma distância. Quando chegou à parte da  frente do templo, sentou-se nos largos degraus de pedra.

Estava muito cansado e mentalmente confuso. Passavam alguns minutos das nove  e, depois de ter viajado durante quase doze horas, sentia-se exausto.

Encostou-se ao rebordo de um dos degraus e enrolou bem o corpo na parca militar.  Uma sensação de fadiga esmagadora apossou-se de si. Encostou a cabeça aos frios  degraus de pedra e fechou os olhos.

Nesse instante, porém, ouviu um barulho.

Era um ruído esquisito, Parecia qualquer coisa a arranhar. Era rápido, insistente,  quase impaciente mas estranhamente abafado. Parecia vir de baixo dos degraus de  pedra, a que tinha encostado a cabeça.

Race franziu o sobrolho.

Parecia o som de garras a arranhar a pedra.

Sentou-se de imediato e olhou para Nash e para os outros, Pensou falar no barulho  que tinha ouvido mas não teve oportunidade para tal porque, nesse momento,  nesse preciso momento, dois helicópteros que pareciam falcões emergiram do  lençol de chuva, sobre a torre de pedra, com os rotores a rugir e as armas a brilhar,  iluminando o cimo da torre, com os focos potentes dos seus holofotes.

Exatamente no mesmo instante, o ruído ensurdecedor dos disparos de armas  automáticas ecoou à volta de Race e, a poucos centímetros da sua cabeça, os degraus  de pedra ficaram crivados de buracos de balas.

Race saltou para o lado, procurando abrigar-se por trás da esquina de pedra do  templo, e olhou para trás, mesmo a tempo de ver um pequeno exército de silhuetas  sombrias emergir de entre a fila de árvores da berma da clareira e as compridas  línguas de fogo que saíam dos canos das espingardas que eles empunhavam, como  relâmpagos rasgando a noite.

 

TERCEIRA CONSPIRAÇÃO 

Segunda-feira, 4 de janeiro, 21:00

Race cobriu a cabeça, quando nova rajada de fogo de arma automática se cravou na  parede, perto dele.

E, então, de súbito, horrivelmente, deu-se conta da explosão de outra fonte de  fogo, vinda de um ponto qualquer, mesmo por cima da sua cabeça. Em algum lugar  próximo, muito próximo.

Race abriu os olhos, olhou para cima e deu consigo a olhar diretamente para o  holofote de um dos helicópteros. Voltou a fechar os olhos e, estonteado pela luz  intensa, viu estrelas que lhe dançavam diante dos olhos.

VILCAFOR E ARREDORES

Cobriu os olhos com os braços e, lentamente, a visão foi voltando. Foi então que  percebeu que a nova fonte de fogo se encontrava mesmo por cima do seu corpo  deitado de bruços e disparava contra a luz. Era Van Lewen. o seu guarda-costas.

Defendendo-o com a sua M-16.

Nesse momento, um dos helicópteros de ataque rugiu por cima deles, com as pás  das hélices a bater estrondosamente, com a luz branca do holofote dançando sobre  o topo da torre, atingindo a lama diante de Van Lewen com as rajadas dos seus  canhões laterais, cujo troar incrível abafava o estrépito das armas automáticas, no  cimo da torre.

Vozes frenéticas gritavam no fone de ouvido de Race:

- Não consigo ver onde eles...

- ... são muitos!

E, depois, de súbito, ouviu a voz de Nash:

- Van Lewen, cessar fogo! Cessar fogo!

Um segundo depois, Van Lewen parou de disparar e, no mesmo instante, cessou  também a batalha. Então, na quietude fantasmagórica que se seguiu, à luz intensa  dos holofotes dos helicópteros de ataque que varriam o topo da torre, Race viu que  ele e os companheiros estavam completamente cercados por cerca de vinte homens  pelo menos, todos eles vestidos de preto e armados de pistolas-metralhadoras.

Os dois helicópteros de ataque começaram a sobrevoar a clareira diante do templo,  iluminando-a com as luzes potentes dos seus holofotes. Eram dois helicópteros de  combate Apache AH-64, de fabricação americana - duas aves de rapina, de aspecto  maléfico.

Lentamente, o grupo de silhuetas sombrias começou a emergir da vegetação, na  orla da clareira.

Estavam todos fortemente armados. Alguns carregavam as compactas MP-5, de  fabricação alemã, outros espingardas-metralhadoras Steyr-AUG, de alta tecnologia.

Race estava surpreendido consigo mesmo, surpreendido por ser capaz de reconhecer as armas com que ia deparando.

Na verdade, era tudo culpa de Marty.

Além de ser engenheiro projetista da DARPA e o fã de Elvis Presley mais chato do  mundo (todos as senhas dos seus cartões bancários e todas as suas palavras-passe de  computador tinham o mesmo número - 53310761 - o número de matrícula do  «Rei» no serviço militar), o irmão de Race, Marty, era também uma enciclopédia  ambulante no que dizia respeito a armas.

Desde que eram crianças e até à última vez em que o tinha visto, nove anos antes,  sempre que iam numa loja de material esportivo, Marty conseguia identificar, em  benefício do irmão mais novo, todas as marcas, modelos e características das armas  de fogo expostas. O estranho era que, graças às incessantes observações de Marty,  Race descobria agora que também ele era capaz de identificar todas as armas que  via.

Pestanejou, regressou ao presente e voltou a observar a falange de comandos  armados reunida diante de si.

Estavam todos vestidos de preto - uniformes de combate preto azeviche, correias  preto azeviche, luvas e botas, também preto azeviche.

Mas eram as caras deles o que mais chamava a atenção. Todos os soldados usavam  sobre os rostos viseiras de hóquei, pretas que nem carvão: umas máscaras pretas,  incaracterísticas, que lhes cobriam por completo as caras, deixando a descoberto  apenas os olhos. As máscaras faziam os soldados parecer frios, desumanos, como se  fossem robôs.

Foi então que um dos comandos de rosto tapado avançou para Van Lewen e lhe  arrancou das mãos a M-16 e, depois, todas as suas outras armas.

Em seguida, o homem de preto inclinou-se sobre Race e sorriu, por trás da viseira  ameaçadora.

- Guten Abend - disse, ironicamente, antes de, com um puxão brusco, obrigar Race  a pôr-se de pé.

A  chuva continuava a cair.

Nash, Copeland e Lauren encontravam-se junto ao portal, com as mãos firmemente  apertadas atrás das nucas. Ao lado deles, estavam os Boinas Verdes, desarmados.

De olhos arregalados, aturdido, Walter Chambers olhava para os comandos  fixamente que os rodeavam. Gaby Lopez limitava-se a olhá-los friamente.

Van Lewen e Race foram empurrados para junto dos outros.

Aterrorizado, Race olhava fixamente para os soldados de negro, para os seus rostos  encobertos pelas frias viseiras de hóquei negras. Já tinha visto viseiras daquelas. Os  homens da polícia anti-motim da América do Sul usavam-nas, quando havia  manifestações particularmente violentas, para protegerem as caras contra as pedras  e outros objetos arremessados contra eles.

Na sombra, por trás do círculo de comandos, encontrava-se, entretanto, um outro  grupo de pessoas completamente diferentes - homens e mulheres - que não  usavam uniformes nem viseiras. Estavam vestidos com roupa civil, com roupas  semelhantes ao de Lauren.

Cientistas, pensou Race. Cientistas alemães, que tinham vindo até ali, em busca do  ídolo de tírium.

Race olhou para o portal, para a grande laje colocada sobre a abertura. De todos os  lados, saíam fios, os fios dos explosivos de detonação fraca C-2.

Nesse momento, um dos comandos deu um passo em frente e levou a mão à viseira  preta, para a tirar.

Race ficou tenso de expectativa, à espera de ver os traços duros e frios do rosto de  Heinrich Anistaze, o ex-agente da Stasi, que liderara o grupo de assassinos alemães,  no massacre sangrento, no tal mosteiro.

O militar tirou a viseira.

Race franziu o sobrolho. Não estava a reconhecê-lo. Não era Anistaze.

Era um homem mais velho, corpulento, de cara redonda e enrugada e tinha um  farto bigode grisalho.

Race não sabia bem se havia de se sentir aliviado ou aterrado. Ao passar por Race,  dando-lhe um encontrão, o chefe dos alemães não disse palavra e foi acocorar-se  junto ao portal.

Examinou os fios, que pendiam da laje do portal e fungou com desdém. Depois,  largou os cabos e dirigiu-se para o lugar onde se encontrava Frank Nash.

Com uma expressão imperiosa, olhou de cima a baixo o coronel reformado,  analisando-o, avaliando-o.

Em seguida, de repente, deu meia volta e berrou uma ordem aos seus soldados:

- Feldwebel Dietrich, bringen Sie sie ins Dorf und sperren Sie Sie ein! Hauptmann  von Dirksen, bereiten Sie alles vor um den Tempel zu öffnen. Mentalmente, Race  traduziu: «Sargento Dietrich, leve-os para a aldeia e prenda-os. Capitão Von  Diksen, prepare-se para abrir o templo."

Conduzidos por Dietrich e rodeados por seis militares alemães, de rosto encoberto,  os dez americanos foram levados de volta, sem cerimônias, pela ponte de corda e  pela trilha em espiral.

Quando chegaram ao fim da trilha, foram conduzidos pela estreita fissura, que  levava ao caminho do rio. Ao fim de vinte minutos de marcha, chegaram à aldeia.

Mas a aldeia tinha mudado.

Dois enormes projetores de halogêneo iluminavam a rua principal, banhando-a de  luz artificial. Os dois helicópteros Apache que Race tinha visto sobrevoar a torre  encontravam-se agora pousados a meio da rua. Na margem do rio, havia uns doze  soldados alemães, a olhar para as suas águas.

Race seguiu a direção do olhar deles e viu os dois Hueys danificados da sua equipe  pousados junto à margem do rio. Quando comparados com os dois esbeltos  Apaches, os Hueys de Frank Nash pareciam velhos e ultrapassados.

Foi então que Race viu para onde estavam realmente a olhar os comandos alemães.

Encontrava-se um pouco adiante dos dois Hueys, sobre a superfície do rio,  camuflado sob a chuva contínua.

Um hidroavião.

Mas não era um hidroavião vulgar. A envergadura das asas devia ser de, pelo  menos, sessenta metros. E o seu ventre, a parte que assentava majestosamente na  água, era enorme, sem dúvida maior do que o corpo do Hércules que levara Race e  os outros para o Peru. Sob as suas grandes asas, estavam montados quatro motores  turbo a jato e, dessas mesmas asas, saíam dois flutuadores arredondados, que  afloravam a superfície da água, estabilizando a aeronave.

Era um Antonov An-111 Albatross, o maior hidroavião do mundo.

Quando Race e os outros saíram do caminho do rio, conduzidos pelo sargento  alemão, Dietrich, o grande avião estava a rodar lentamente sobre a superfície do  rio, recuando em direção à margem.

Mal tinha ainda acostado à lama fofa e já uma rampa de carga começava a ser  descida da sua traseira.

E, logo que a rampa tocou em solo seco, do ventre do enorme avião saíram dois  veículos - um caminhão todo-terreno de oito rodas, que parecia um tanque, e um  Humvee com capota.

Os dois veículos blindados imobilizaram-se a meio da rua principal. Race e os  outros foram levados para lá. Quando estavam a chegar ao pé dos dois veículos,  Race viu dois outros comandos alemães, que empurravam Ted Reichart e Doogie  Kennedy diante de si, pela rua abaixo, para o sítio onde ele se encontrava.

- Meus senhores - disse Dietrich, em alemão, aos outros comandos. - Metam os  soldados e os agentes federais no todo-terreno, algemados. Atirem com os outros  para dentro do Humvee. Tranquem-nos lá dentro e, depois, desativem os dois  veículos.

Nash, Copeland e os seis Boinas Verdes foram enfiados no veículo todo-terreno que  parecia um tanque. Race, Lauren, Lopez e Chambers foram atirados para dentro do  Humvee.

O Humvee parecia um jeep de grandes dimensões. Era muito mais largo que um  jeep e tinha um teto blindado. Também tinha janelas de vidro Lexan que, naquele  momento, estavam corridas.

Depois de eles terem sido fechados no Humvee, um dos comandos alemães  levantou a capota e debruçou-se sobre o motor do grande veículo. Mexeu num  botão por baixo do radiador e, quando o fez - zás! - todas as portas e janelas do  Humvee ficaram instantaneamente trancadas.

Uma prisão portátil, pensou Race. Uma verdadeira maravilha.

Entretanto, o topo da torre era um formigueiro de atividade.

Os soldados alemães que lá se encontravam eram todos elementos das  Fallschirmtruppen, a unidade de elite de reação rápida do Exército alemão, e agiam  como tal, de forma rápida e eficiente.

O comandante do grupo de combate, o general Gunther C. Kolb, o homem de  bigode grisalho que, momentos antes, avaliara friamente Nash, gritava ordens em  alemão.

- Vamos, depressa! Mexam-se! Não temos muito tempo! Enquanto os seus homens  corriam de um lado para o outro, Kolb passava em revista o cenário que o rodeava.

Os explosivos C-2 colocados na laje do portal do templo tinham sido removidos e  substituídos por cordas, a equipe que ia entrar estava a postos e, em frente ao  portal, tinha sido instalada uma câmara de vídeo digital, para documentar a abertura  do templo.

Kolb fez um gesto de concordância com a cabeça, para si próprio, satisfeito.

Estava tudo pronto. Chegara a altura de entrar.

A chuva batia com força no teto do Humvee.

Race estava sentado, afundado, no banco do motorista. Walter Chambers sentou-se  ao lado dele, no banco do passageiro. Lauren e Gaby Lopez estavam no banco de  trás.

Pelo pára-brisas fustigado pela chuva do veículo, Race viu que os soldados alemães  que se encontravam na aldeia se tinham reunido à volta de um único monitor, para  o qual olhavam atentamente. Race franziu o sobrolho.

Nesse momento, reparou que havia uma pequena tela embutida de televisão no  painel central do Humvee - no lugar habitualmente ocupado por um aparelho de  rádio, num carro normal. Perguntou a si mesmo se o fato de o motor do Humvee  estar bloqueado teria afetado os circuitos eléctricos. Carregou no botão do pequeno  televisor, para ver o que acontecia.

Lentamente, foi aparecendo uma imagem na tela.

Mostrava os alemães que se encontravam junto ao templo, reunidos à volta do  portal. Pelos alto-falantes do televisor, ouviam-se as vozes deles:

- Ich kann nicht glauben, dass sie Sprengstoff verwenden wollten. Es hätte das  gesamte Gebäude zum Einsturz bringen kömen. Mach die Seile fest...

- O que é que eles estão a dizer? - perguntou Lauren.

- Estão a tirar os explosivos que tu colocaste à volta da laje disse Race. - Acham que  o C-2 ia rebentar com aquilo tudo. Em vez disso, vão usar cordas.

Nos alto-falantes, ouviu-se uma voz de mulher, a falar rapidamente em alemão.

Race ia traduzindo para os outros:

- Vejam se conseguem entrar em contato com o centro de operações. Digam-lhes  que chegamos ao templo e que encontramos e fizemos prisioneiros alguns  membros do Exército dos Estados Unidos. Aguardamos instruções...

Então, a mulher disse outra coisa:

- Was íst mit dem anderen amerikanischen Team? Wo sind die jetzt?  

Que diabo era aquilo?, pensou Race.

Das anderen amerikanischen Team?

A princípio, pensou que talvez tivesse ouvido mal. Mas não. Tinha a certeza.

Mas aquilo não fazia...

Race contraiu-se interiormente e não traduziu a frase.

Na tela, via-se os homens a passarem cordas à volta da laje do portal.

- Alles klar, macht euch fertig...

- Muito bem. Preparem-se.

Na tela, os homens ergueram as cordas, - Zieht an!

- E... levantar!

No cimo da torre, as cordas foram esticadas e a laje colocada sobre o portal começou  lentamente a mover-se, rangendo ruidosamente contra a pedra do chão da entrada.

Oito comandos alemães puxavam as cordas, içando a laje gigantesca do sítio onde  repousava havia quatrocentos anos. Lentamente, muito lentamente, a laje foi-se  afastando do portal, pondo a descoberto o negrume do interior.

Depois de o portal estar desimpedido, Gunther Kolb avançou e espreitou para o  interior do templo, mergulhado na escuridão.

Viu um lance de degraus de pedra, largos, que descia para o meio das trevas, para o  ventre da grande estrutura subterrânea.

- Muito bem - disse Kolb, em alemão. - Grupo de assalto. Pode seguir.

Dentro do Humvee, Race voltou-se para Lauren.  - Eles vão entrar.

No cimo da torre, cinco comandos alemães deram alguns passos em frente. O grupo  de assalto.

Chefiados por um jovem capitão chamado Kurt von Diksen, foram ter com Kolb à  entrada do templo, de armas em punho.

- Nada de complicações - disse Kolb ao jovem capitão. - Descubram o ídolo e saia  da...

Nesse momento, sem aviso prévio, uma série de silvos agudos cortou o ar, à volta  deles.

E, depois, zás! Uma coisa comprida e aguçada aterrou num pedaço de musgo, na  parede do templo, ao lado da cabeça de Kolb.

Kolb olhou para o objeto, aturdido de espanto. Era uma flecha.

Pelos alto-falantes do pequeno televisor do Humvee ouviram-se os gritos, ao  mesmo tempo que uma chuva de flechas caía sobre os soldados alemães reunidos  junto ao templo.

- Was zum Teufel!  - Duckt euch! Duckt euch!

- O que é que está acontecendo? - perguntou Lauren, inclinando-se para a frente,  para ver melhor.

Race voltou-se para ela, estupefato.  - Parece que eles estão sendo atacados.

O ruído ensurdecedor das pistolas-metralhadoras voltou a submergir a torre de  pedra, quando os comandos alemães voltaram a erguer as MP-5 e as Steyr-AUG e  começaram a disparar ferozmente.

Encontravam-se todos junto ao portal aberto do templo, de costas para ele,  apontando para o local de onde vinham as flechas mortais - a orla da grande  cratera.

Protegido das paredes do portal, Gunther Kolb perscrutava a escuridão, tentando  vislumbrar o inimigo.

E, de repente, viu-os.

Viu um grupo de vultos escuros, na orla da grande cratera. Deviam ser uns  cinquenta, ao todo - pequenas figuras humanas, que disparavam uma barreira de  setas de madeira primitivas contra os comandos alemães, no topo da torre.

Que diabo... pensou Kolb.

Em silêncio, atordoado, Race ouvia as vozes que chegavam até ele através dos alto-falantes do pequeno televisor.

- Equipe do templo! O que é que se passa aí em cima?

- Estamos sendo atacados! Repito: estamos sendo atacados!

- Quem está atacando?

- Parecem ser índios. Repito. índios. Nativos. Estão disparando contra nós, da orla  da cratera. Mas parece que estamos conseguindo repeli-los... esperem. Não,  esperem um minuto. Eles estão se retirando. Eles estão se retirando.

No momento seguinte, o metralhar das armas automáticas cessou e instalou-se um  longo silêncio.

Nada. Mais silêncio.

Os alemães visíveis na tela olhavam cautelosamente em volta, com as armas a  fumegar.

Dentro do Humvee, Race trocou um olhar com Chambers.

- Uma tribo de nativos - disse Race.

Gunther Kolb dava ordens, aos gritos.

- Horgen! Vell! Levem uma equipe lá para cima e formem um perímetro à volta da  orla da cratera! - Voltou-se para von Diksen e para a sua equipe de entrada. -  Pronto, capitão! Podem entrar no templo.

Os cinco membros do grupo de assalto juntaram-se em frente ao portal aberto.

Era uma abertura escura e ameaçadora.

O capitão von Diksen avançou cautelosamente, da arma em riste, e parou no limiar  do portal, no topo do lance de largos degraus de pedra que levava às entranhas do  templo.

- Muito bem - disse ele, em tom formal, para o microfone que tinha ao pescoço,  enquanto descia o primeiro degrau.

- Estou vendo uns degraus de pedra.

- Agora, estou começando a descer as escadas - disse a voz de von Diksen, nos alto-falantes do Humvee.

Race olhou fixamente para a imagem dos cinco comandos, que passavam  lentamente sob o portal, até a cabeça do último soldado desaparecer abaixo da linha  do chão e se ver apenas a entrada de pedra vazia.

- Informe, capitão - disse a voz de Kolb, nos auscultadores de Kurt von Diksen,  quando o jovem capitão estava a chegar ao fundo dos degraus de pedra úmidos e  apontava o foco da lanterna para a escuridão.

Naquele momento, encontrava-se num estreito túnel de pedra, que se estendia  diante de si, fazendo uma ligeira curva para a direita e para baixo. O túnel estendia- se, num declive acentuado, numa espiral descendente, que desaparecia entre as  trevas do coração do templo. Nas paredes, tinham sido abertos pequenos nichos.

- Chegamos ao fundo das escadas - disse von Diksen.

- Vejo um túnel em curva, à minha frente. Estou a avançar para lá.

Os membros da equipe começaram a deixar espaços entre si, à medida que  avançavam cautelosamente pelo túnel íngreme em caracol. Os feixes de luz das suas  lanternas dançavam sobre as paredes brilhantes de umidade. Ouvia-se o eco de um  gotejar, vindo de um ponto qualquer, nas profundezas do templo.

Von Diksen disse:

- Equipe, aqui é o Um. Respondam.

O resto da equipe respondeu rapidamente:  - Aqui Dois.

- Três.

- Quatro.

- Cinco.

E avançaram mais um pouco, seguindo o túnel.

Race e os outros olhavam para a tela do televisor do Humvee, num silêncio tenso,  escutando as vozes abafadas do grupo de assalto alemão. Race traduzia.

- ... tão úmido, aqui. Há água por todo o lado.

- Mantenham-se atentos. Vejam onde põem os pés.

Então, de súbito, uma forte explosão de eletricidade estática arranhou os alto- falantes do televisor.

O que foi isso? - perguntou von Diksen, de repente.

- Equipe. Contato.

- Aqui Dois.

- Três.

- Quatro.

E, depois, nada.

Tenso, Race ficou à espera da resposta do quinto soldado. Mas este não respondeu.

Ninguém disse «Cinco».

Dentro do templo, von Diksen fez girar o foco da lanterna.

- Friedrich - sussurrou, enquanto voltava para trás, pela passagem.

Tinham descido apenas alguns metros, ao longo do túnel, e, agora, estavam  totalmente mergulhados na escuridão. Ali, a única luz existente era a das suas  lanternas.

Atrás deles, no alto da descida, distinguia-se uma vaga réstia de luar, no início da  ligeira curva do túnel, indicando o caminho de regresso.

Von Diksen perscrutou o pedaço de túnel, atrás de si.

- Friedrich! - sussurrou, na escuridão. - Friedrich! Onde estás?

Nesse momento, von Diksen ouviu um baque, vindo de um ponto qualquer, atrás  de si.

Voltou-se. E, então, viu que, lá atrás, só se encontravam dois dos seus homens. O  terceiro não estava à vista.

Von Diksen voltou-se para a entrada do túnel e preparava-se para dizer qualquer  coisa para o microfone, quando, de repente, viu uma sombra descomunal esgueirar-se, lá em cima, junto à curvatura do túnel, e, nesse instante, perdeu por completo a  capacidade de falar.

A silhueta recortava-se contra o luar, lá ao fundo. E era absolutamente aterradora.

A pálida luz do luar fazia brilhar os flancos negros e musculosos da criatura. o feixe  da lanterna de Von Diksen bateu-lhe nas presas, aguçadas que nem lâminas.

O capitão alemão não conseguia fazer mais nada senão olhar para a criatura que  tinha diante de si, num silêncio gelado.

Era enorme.

E, então, de súbito, atrás da primeira, apareceu uma segunda criatura semelhante.

Deviam ter estado escondidas nos nichos, pensou von Diksen. Deitadas, à espera. À  espera de que ele e os seus homens passassem por eles, para depois lhes cortarem a  retirada.

Então, num ápice, a primeira criatura saltou. Von Diksen nem oportunidade teve  de esboçar um gesto. A criatura movia-se extraordinariamente depressa para um  animal daquele tamanho e, num segundo, umas mandíbulas cortantes encheram  por completo o seu campo de visão e, apenas nesse momento, Kurt Von Diksen  conseguiu gritar.

Pelos alto-falantes do televisor, ouviam-se gritos.

Race e os outros olhavam, horrorizados, para a tela.

Os gritos dos três últimos membros do grupo de assalto, ao serem atacados, tinham  atravessado o éter. Race ouviu o som de disparos mas este durou apenas um  segundo. Depois, cessou abruptamente e, com ele, cessaram também os gritos. Em  seguida, reinou o silêncio.

Um longo silêncio.

Race olhava para a tela, para a imagem da entrada aberta do templo.

- Von Diksen, Friedrich, Nielson. Transmitam.

Não houve resposta dos homens que tinham entrado no templo.

Race lançou um olhar a Lauren.

E, então, os alto-falantes transmitiram o som de uma nova voz. Era a voz de alguém  que respirava com dificuldade, uma voz ofegante e aterrorizada:

- Coronel, aqui Nielson! Repito: aqui Nielson! oh, meu Deus... Deus nos ajude.  Vão-se embora daqui. Vão-se embora daqui, enquanto...

Tchaque! Parecia o som de uma colisão.

O som de qualquer coisa enorme que se abatia sobre o homem chamado Nielson.

Seguiram-se sons de um breve tumulto e, depois, Race ouviu um grito de fazer  gelar o sangue e, sobrepondo-se a esse grito, um som infinitamente mais aterrador.

Era um rugido, um rugido terrível, alto e profundo como o rugido de um leão.

Só que ainda mais alto, mais ressonante, mais feroz.

Os olhos de Race piscaram, de tanto olhar para a tela, e depois, de repente, ficou  gelado.

Viu aquilo.

Viu aquilo emergir da escuridão do portal.

E, ao olhar para a gigantesca criatura preta que estava a sair da entrada do templo,  Race sentiu o estômago começar às voltas. Porque, nesse momento, teve  consciência de que, apesar de toda a tecnologia, de todas as armas de que  dispunham, apesar de todos os desejos egoístas de encontrar uma nova fonte de  energia, os homens que se encontravam na torre de pedra tinham acabado de violar  uma regra antiga, muito antiga e mais simples da evolução da humanidade.

Há portas que nunca devem ser abertas.

G unther Kolb e os restantes alemães que se encontravam no cimo da torre ficaram a  olhar, mudos de espanto, para o animal que aparecera no portal.

Era magnífico.

Tinha, à vontade, um metro e meio de altura, mesmo assentando o peso do corpo  nas quatro patas, e era completamente preto, da cabeça à cauda.

Parecia uma espécie de jaguar. Um enorme jaguar preto.

A luz do luar fazia brilhar os olhos amarelos do felino gigantesco, que, com aquele  focinho peludo e tracundo, aqueles quartos dianteiros musculosos e aqueles dentes  aguçados que nem lâminas, parecia a verdadeira encarnação do Diabo.

Então, abruptamente, a luz suave do luar que iluminava o portal do templo foi  substituída pela luz intensa de um relâmpago e, enquanto o trovão que se seguiu  ribombava, o enorme animal rugiu.

E aquilo funcionou como uma espécie de sinal.

Porque nesse momento, nesse preciso momento, mais de uma dúzia de felinos  pretos gigantescos saltaram da escuridão do interior do templo e atacaram os  alemães que se encontravam no cimo da torre.

Apesar de armados de espingardas de assalto e pistolas-metralhadoras, os membros  da expedição alemã não tiveram qualquer hipótese, Os felinos eram demasiado rápidos. Demasiado ágeis. Demasiado poderosos. Com uma ferocidade chocante, saltaram sobre o estupefato grupo de soldados e  cientistas, deitando-os ao chão, pulando para cima deles, comendo-os vivos.

Dois ou três soldados conseguiram disparar alguns tiros e um dos felinos caiu por  terra, com um espasmo violento.

Mas não fez qualquer diferença. Os outros felinos mal pareciam dar pelas balas que  assobiavam à sua volta e, segundos depois, tinham saltado sobre esses soldados,  rasgando-lhes as carnes, mordendo-lhes as gargantas, sufocando-os com as suas  fauces potentes.

Gritos horríveis rasgaram o ar da noite.

O general Gunther Kolb fugiu.

As folhas molhadas das palmeiras batiam-lhe na cara, enquanto ele descia a correr  as escadas que levavam à ponte suspensa.

Se conseguisse chegar à ponte, pensou, e desprendê-la dos contrafortes, do outro  lado, os felinos ficariam encurralados na torre.

Kolb galgou os degraus molhados, ouvindo a própria respiração a ressoar-lhe com  toda a força nos ouvidos e o som, ainda mais alto, de qualquer coisa pesada a  esmagar a vegetação, atrás de si. As folhas das palmeiras continuavam a bater-lhe  no rosto mas ele não se importava com isso. Estava quase...

Antão Kolb viu-a.

A ponte de corda.

Viu mesmo alguns dos seus homens, balançando sobre ela, a fugir da carnificina  que estava a acontecer no cimo da torre. Kolb galgou os últimos degraus e correu  para a borda. Conseguiu lá chegar.

Mas foi então que um enorme peso se abateu sobre as suas costas e o general  alemão caiu de bruços.

Caiu com toda a força, batendo com a cara na superfície molhada do peitoril.  Estendeu as mãos, procurando desesperadamente um ponto de apoio, numa  tentativa de voltar a pôr-se de pé mas, de repente, uma enorme pata preta prendeu- lhe o pulso, pregando-o ao chão.

Kolb olhou para cima, horrorizado. Era um dos felinos.

Estava mesmo por cima dele.

O demoníaco felino preto olhava-o atentamente, examinando com curiosidade  aquela pequena criatura que, ingenuamente, tentara correr mais do que ele.

Cheio de medo, Kolb fitava aqueles malévolos olhos amarelos. então, com um  rugido de fazer gelar o sangue, a cabeça do enorme animal abateu-se sobre ele e  Kolb fechou os olhos, à espera do fim.

Na aldeia, reinava o silêncio.

Os doze comandos alemães reunidos à volta do monitor olhavam uns para os  outros, mudos de espanto.

A tela mostrava-lhes os seus camaradas que se encontravam na torre a fugir em  todas as direções. Ocasionalmente, viam um deles atravessar-se na tela e abrir fogo  com uma MP-5. Mas, um segundo depois, acabavam todos por ser violentamente  atirados por terra, derrubados por uma enorme silhueta felina.

- Hasseldorf, Krieger - gritou, em tom cortante, o sargento que dava pelo nome de  Dietrich. - Desmontem a ponte de troncos do lado ocidental.

Dois dos soldados alemães abandonaram rapidamente o círculo.

Dietrich voltou-se para o jovem operador de rádio.

- Conseguiu entrar em contato com alguém?

- Consigo fazer a ligação, meu sargento, mas ninguém responde.

- Continue a tentar.

R ace estava a observar Dietrich e os comandos alemães reunidos à volta do monitor,  por uma das janelas salpicadas pela chuva do Humvee, quando, de repente, ouviu  um grito.

Olhou para o outro lado, instantaneamente.

E viu um dos comandos alemães do grupo que estivera na torre aparecer a correr,  no caminho junto ao rio.

O comando agitava os braços selvaticamente e gritava:

- Schnell, zum Flugzeug! Schnell, zum Flugzeug! See kommen!  - Depressa, vão para o avião! Depressa, vão para o avião! Eles vêm aí!

Nesse instante, a luz de um relâmpago iluminou o caminho, atrás do homem que  corria, e Race viu de relance qualquer coisa que corria atrás dele.

- Oh, meu Deus...

Era uma das criaturas gigantescas que pareciam felinos, igual às outras que tinha  visto sair do templo, havia apenas alguns minutos.

Era aterradora.

Corria de cabeça baixa, as orelhas pontiagudas inclinadas para trás, com os seus  fortes e musculosos quartos dianteiros a impeli-lo para diante, em perseguição da  presa humana.

Deslocava-se com elegância, com a elegância fluida dos felinos, com aquela  combinação de equillíbrio, força e velocidade comum aos felinos de todo o mundo.

O comando alemão corria a bom correr mas não era capaz de correr mais do que o  enorme animal que o perseguia. Tentou desviar-se sem parar de correr, esconder- se atrás de uma das árvores que ladeavam o caminho. Mas o felino era demasiado  ágil. Parecia um leopardo em pleno vôo, com as patas fortes adaptando-se  perfeitamente à corrida, copiando os movimentos da sua presa, mergulhando para a  direita, virando para a esquerda, mantendo baixo o seu centro de gravidade, sem  escorregar nunca.

Aproximava-se do infortunado alemão, estava cada vez mais perto. Então, quando  ficou suficientemente perto, o grande felino deu um salto e...

De súbito, a luz da lanterna desapareceu e o caminho ficou mergulhado na mais  profunda escuridão.

Escuridão. Silêncio.  E Race ouviu um grito.

Então, de repente, outro relâmpago iluminou a margem do rio e, ao assimilar a  imagem que tinha diante de si, Race sentiu que o sangue se lhe gelava por  completo nas veias.

O grande felino preto estava parado ao lado do corpo do comando, com a enorme  cabeça inclinada sobre a zona do pescoço do homem. De súbito, o felino abriu as  mandíbulas e, com um aterrador som de qualquer coisa a rasgar-se, separou do  corpo a cabeça do comando morto.

E, iluminado pela luz de outro relâmpago, o grande felino preto rugiu de triunfo.

Durante um minuto, nenhuma das pessoas que se encontravam dentro do Humvee  disse palavra.

Por fim, Walter Chambers quebrou o silêncio.

- Estamos com grandes problemas.

E tinha razão. Porque nesse momento, nesse terrível momento, todos os outros  felinos pretos irromperam de entre a vegetação, perto da margem do rio, e  atacaram tudo o que estivesse vivo em seu redor.

O s felinos invadiram a aldeia, vindos de todos os lados, e apanharam completamente  desprevenidos Dietrich e os seus homens, estupidamente reunidos à volta do  monitor, no centro da aldeia.

Investiram pela rua principal, que nem morcegos saídos do Inferno, abatendo os  comandos alemães nos lugares onde os encontravam, esmagando-os sob as patas,  antes de eles terem tempo de pegar nas armas, atirando-os ao chão, mordendo-lhes  as gargantas.

Race não sabia bem quantos felinos eram. A princípio, contou dez. Depois, doze.  Depois quinze.

Santo Deus.

Então, de súbito, ouviu tiros, voltou-se um pouco e viu os dois soldados alemães  que Dietrich mandara desmontar a ponte de troncos do lado ocidental, Hasseldorf  e Krieger, disparando desesperadamente sobre os gatos assassinos.

Os dois comandos conseguiram atingir dois ou três daqueles terríveis animais - que  caíram, desamparados, sobre a lama antes de os outros felinos saltarem e  esmagarem os dois homens, por força do número.

Um dos felinos saltou para as costas de Hasseldorf e quebrou-lhe logo a espinha.  Outro limitou-se a enterrar os dentes na garganta de Krieger, quebrando-lhe o  pescoço, com um ruído terrível.

O resto da aldeia parecia ter sido cenário de um motim, com soldados alemães a  correr para um lado e para o outro - em direção aos dois helicópteros Apache, em  direção às cabanas, em direção ao rio - numa tentativa desesperada de escapar aos  felinos.

- Para os helicópteros! - gritou alguém. - Para os...

Nesse instante, Race ouviu o ruído de um motor a começar a trabalhar, deu uma  volta no assento e viu que as hélices dos dois helicópteros de combate Apache  tinham começado lentamente a girar.

Soldados alemães corriam, em desespero, para os dois helicópteros, mas estes eram  muito pequenos e pouco espaçosos - cada um deles só tinha espaço para um piloto e  um artilheiro.

O primeiro Apache começou a levantar no momento exato em que um soldado  aterrorizado saltava para o trem de aterragem e estendia a mão, para abrir a porta da  cabina. Mas, antes de ele ter podido chegar lá, um dos gatos saltou também para o  trem, afastando-o do caminho, para entrar pela porta da cabina, com a longa cauda a  abanar.

Um segundo depois, o interior das janelas da cabina estava coberto de sangue e o  helicóptero, que se encontrava a cerca de três metros de altura, descontrolou-se.

Com as pás da hélice a girar velozmente, o aparelho inclinou-se terrivelmente para  a direita, na direção do outro Apache, no mesmo instante em que o canhão rotativo  de seis canos, por baixo do seu nariz, entrava numa atividade desgovernada,  atingindo toda a aldeia com o seu fogo.

Projéteis luminosos choviam por todo o lado.

O pára-brisas do Humvee de Race foi rasgado por uma rede de rachaduras, quando  a tempestade de balas desabou sobre ele. Instintivamente, Race atirou-se ao chão,  afastando-se da zona de impacto. Ao fazê-lo, contudo, ainda viu uma série de  faíscas cor-de-laranja, provocadas pelo impacto das balas, atingirem a seção da  cauda de um dos Hueys que se encontravam pousados junto à margem do rio.

Então, de repente, como fogo-de-artifício lançado para o céu no 4 de julho, dois  mísseis Hellfire, saíram dos suportes do Apache descontrolado.

Um dos mísseis atingiu uma cabana de pedra das proximidades, fê-la em pó, e o  outro seguiu direto pela rua principal de Vilcafor, dirigindo-se diretamente para o  grande hidroavião Antonov, estacionado na margem do rio, até que - zás! - passou a  zunir pela rampa de carga do aparelho e desapareceu dentro do porão.

Durante um segundo, nada aconteceu.

Depois, o enorme hidroavião explodiu. Foi uma explosão monstruosa, com uma  força tremenda. As paredes do Antonov rebentaram de imediato e, num instante, o  que restava da fuselagem do aparelho inclinou-se perigosamente para a esquerda e  começou a mergulhar no rio, cujas águas o foram depois arrastando lentamente.

Entretanto, o Apache que estava a causar todos aqueles estragos continuava a  avançar, desgovernado, para o seu gêmeo. O segundo helicóptero tentou  desesperadamente afastar-se da rota do primeiro mas era demasiado tarde. As pás  da hélice do primeiro Apache atingiram as pás do segundo helicóptero e um ruído  metálico atroou os ares.

Então, de repente, as pás do primeiro helicóptero rasgaram os depósitos de  combustível do segundo e os dois Apaches explodiram, numa enorme bola de fogo  cor-de-laranja, que se acendeu sobre a rua principal de Vilcafor.

Race desviou os olhos daquele cenário dantesco e fitou Walter Chambers, que se  encontrava ao seu lado, no banco da frente.

- Santo Deus, Walter - disse Race. - Viu aquilo?

Chambers não respondeu.  Race franziu o senho.  - Walter? O que é que...?  Rommmmm.

Race ficou gelado ao ouvir aquilo.

Então, olhou mais atentamente para a cara de Chambers. O antropólogo tinha os  olhos esbugalhados e parecia estar a sufocar.

E estava a olhar diretamente por cima do ombro de Race.

Lentamente, muito, muito lentamente, William Race voltou-se. Do outro lado da  janela, estava um dos felinos.

Mesmo junto à janela.

A cabeça preta era enorme. Ocupava toda a janela. A gigantesca criatura estava a  olhar para Race, com aqueles seus olhos amarelos e fendidos.

Voltou a rugir. Era uma espécie de grunhido profundo. Rommmmm.

Race via o peito da criatura subir e descer, via as presas compridas que lhe saíam do  lábio superior. Então, abruptamente, o animal rosnou, Race deu um salto de  surpresa e, depois, de repente, o Humvee estremeceu debaixo dos seus pés.

Race voltou-se, para ver o que era.

Um outro felino tinha saltado para a capota do Humvee. Tinha as patas da frente  apoiadas na capota do veículo e os seus coléricos olhos amarelos olhavam para  baixo, para Race e Chambers, como se quisesse penetrar no íntimo das suas almas.  Race levou a mão ao microfone que trazia ao pescoço.

- Alô, Van Lewen. Está aí?  Não houve resposta.

Um som de qualquer coisa a arranhar.

O felino preto que estava em cima da capota dera um ameaçador passo em frente e  as suas garras tinham arranhado o metal. Ao mesmo tempo, o felino à esquerda de  Race esfregava furiosamente o focinho contra a porta do Humvee, a experimentá-la.

Race começou a bater repetidas vezes no microfone.

- Van Lewen!

A voz de Van Lewen fez-se ouvir no fone de ouvido.

- Estou a vê-lo, Professor. Estou a vê-lo.

Race olhou lá para fora e viu o veículo todo-terreno, parado na rua lamacenta, não  muito longe do Humvee.

- Agora, seria um bom momento de fazer o seu trabalho de guarda-costas - disse  Race.

- Tenha calma, Professor. Dentro do Humvee, está a salvo. Foi nesse preciso  momento que o felino que estava na capota do Humvee lançou uma das patas da  frente contra o pára-brisas rachado do veículo.

Os estilhaços de vidro saltaram para todos os lados e a pata do felino, que parecia  um punho fechado, entrou pelo pára-brisas e parou a uns quatro centímetros da  pala do boné de Race.

- Van Lewen!

- Pronto, pronto! Rápido! Procure debaixo do painel de instrumentos - disse Van  Lewen. - Em baixo, ao pé do tubo da gasolina. Procure um botão preto, de  borracha, por baixo da coluna da direção.

Race procurou. E encontrou.

- O que é que faço?

- Aperte!

Race apertou o botão de borracha e o motor do Humvee começou imediatamente a  trabalhar.

O veículo já não estava desativado. Race não sabia porquê, nem queria saber. Desde  que funcionasse.

Rapidamente, saiu do lugar onde estava, por baixo do volante, e deu consigo a olhar  para as garras abertas do felino que se encontrava em cima da capota. Bufava  selvaticamente, irado. Estava tão perto que Race podia sentir aquele horrível bafo a  bater-lhe na cara. O enorme felino contorcia-se e retorcia-se, tentando  desesperadamente entrar pelo buraco que abrira no pára-brisas, para chegar à carne  humana que havia lá dentro.

Race recostou-se para trás no assento, o mais longe possível dos dentes aguçados  do animal, encostou-se à janela do lado do condutor mas, quando se voltou, viu as  enormes fauces de outro felino aproximarem-se de si a uma velocidade assustadora.

O segundo felino bateu contra a janela. o Humvee estremeceu, sob o impacto do  enorme peso do felino. O vidro da janela do lado do condutor ficou todo rachado.

Mas o motor do veículo continuava a trabalhar e era isso que importava. Levado a  fazer qualquer coisa, por efeito do choque, Race deitou a mão à alavanca das  mudanças, experimentou-as, encontrou uma, sem querer saber qual, e carregou a  fundo no acelerador.

O Humvee deu um salto para trás, sobre a lama que cobria a rua principal de  Vilcafor.

Deus, tinha metido a marcha-ré.

O felino que estava na capota pareceu nem dar pelas sacudidelas do Humvee,  quando o veículo começou a saltar freneticamente sobre o terreno irregular da  aldeia. o demoníaco animal limitou-se a afastar a cabeça do pára-brisas mas  começou a tatear com a pata para além do vidro partido, tentando apanhar Race.

Por seu turno, este encostou-se o mais para trás que pôde, mantendo o corpo fora  do alcance da enorme pata, carregando com força no acelerador.

O Humvee bateu num buraco, saltou no ar por um momento e voltou a cair no  solo. O felino continuava em cima da capota, sempre a tentar freneticamente  chegar a Race, enquanto o veículo blindado descia a rua alagada, em marcha-ré,  completamente descontrolado.

- Cuidado, Will! - gritou Lauren.

- O que foi? - perguntou Race.

- Lá atrás!

Mas Race não estava a olhar para a retaguarda.

Estava a olhar para aquela visão do inferno, que se esticava através do pára-brisas  do veículo, tentando rasgar-lhe o peito.  - Will, pára! Estamos indo na direção do rio!

A cabeça de Race quase estalou. Ela tinha mesmo dito rio?

Lançou um rápido olhar para o retrovisor e, num relance, viu o rio escuro, a  aproximar-se rapidamente, viu um dos Hueys americanos pousados junto à  margem, bem no caminho deles.

Race lutou com o volante mas não serviu de nada. Em pânico, para se livrar do  felino que estava na capota, havia muito que perdera o controle do Humvee, que  seguia a grande velocidade, em marcha-ré.

Segurou-se bem ao volante, pôs o pé no freio, mas as rodas travaram e, num  instante, o grande Humvee perdeu a tração. Derrapou na lama e planou sobre a  água, completamente descontrolado. E, então, de repente, mesmo antes de Race se  aperceber do que estava a acontecer, o grande veículo lançou-se para fora da  margem e saltou no ar, sobre o rio.

O  Humvee voou pelo ar, elevando-se sobre a margem do rio, descrevendo um arco  gracioso. Depois, bateu com toda a força, com a traseira, na cabina envidraçada do  Huey, estacionado junto ao rio.

A inércia do impacto foi tão grande que atirou veículo e helicóptero para dentro do  rio. Também fez saltar da capota o felino, que foi bater com toda a força no Huey.  Finalmente, o grande felino foi cair a grande distância, no meio do rio, batendo na  superfície com um barulho enorme.

Segundos depois, os jacarés tinham saltado sobre ele. Gritando selvaticamente, o  felino lutou com toda a tenacidade mas acabou por ser vencido pelo número dos  seus opositores e foi ao fundo.

Perto da margem via-se agora um estranho híbrido Humvee-Huey, parcialmente  submerso na água, a cerca de seis metros da terra firme.

Toda a parte da frente da cabine do Huey tinha sido esmagada pelo Humvee e,  agora, o veículo semelhante a um jeep saía desajeitadamente da dianteira do  helicóptero. O impacto não danificara, porém, a base de suporte da hélice nem a  seção da cauda. As duas pás da hélice pareciam pairar sobre aquela confusão  medonha, imóveis mas intactas.

Dentro do Humvee, Race tentava desesperadamente manter a calma.

A água, verde e lodosa, batia contra a janela à sua esquerda, ao mesmo tempo que  jatos de gotas, pequenos mas fortes, entravam pelas inúmeras ranhuras do vidro  rachado. Olhar lá para fora era o mesmo que olhar para um desses aquários, nos  quais se pode olhar para cima e para baixo da linha de água.

Só que este era um aquário do inferno.

Pela janela, Race viu os ventres de nada menos de cinco enormes jacarés, todos  alinhados à sua direita, com as caudas a bater, avançando para o Humvee.

Para piorar as coisas, pelo grande buraco aberto no pára-brisas, entrava uma  torrente de água que lhe escorria para cima do jeans e formava uma poça aos seus  pés.

Walter Chambers começou a ficar muito vermelho.

- Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! - gemia. Por trás de Chambers,  Race viu que Gaby Lopez sangrava, com um golpe profundo por cima do olho  direito. Devia ter batido com a cabeça, quando o Humvee se chocou no  helicóptero.

- Temos que sair daqui! - gritou Lauren.

- A quem o dizes! - gritou Race, no momento em que um enorme peixe prateado,  com uns dentes muito grandes, entrava pelo pára-brisas e pulava no seu colo.

Nesse mesmo instante, proveniente do lado esquerdo, ouviu-se um enorme  estrondo e Race quase foi cuspido do assento, quando o Humvee começou a  balançar freneticamente.

Race voltou-se e viu a enorme silhueta de um jacaré preto, flutuando junto à janela,  ao seu lado, a olhar pelo vidro rachado, mirando-o com um ar esfaimado.

- Oh, oh - disse.

Depois, viu o enorme réptil afastar-se do vidro.

- Oh, oh...

O que foi? o que foi? - perguntava Chambers, ao seu lado.

- Ele vai despedaçar-nos! - gritou Race, trepando apressadamente pelas costas do  banco, para passar para o banco de trás.

- Sai daí, Walter! Sai daí!

Chambers começou imediatamente a tentar passar também para o banco de trás, no  momento exato em que o jacaré tomava impulso. Uma fração de segundo depois, o  vidro do lado do motorista fragmentava-se, explodindo numa chuva espetacular de  pequenos pedaços de vidro.

Imediatamente atrás daquela súbita chuva de pedacinhos de vidro, vinha o corpo  coberto de escamas do jacaré. Entrou pela janela para a parte da frente do Humvee,  cavalgandoo uma nuvem de água, que caiu em cascata para dentro do veículo.

O jacaré precipitou-se sobre o banco da frente do Humvee e o seu corpo gigantesco  ocupou todo aquele espaço reduzido. Race puxou os pés para o banco de trás, uma  ínfima fração de segundo antes de a bocarra ocupar o espaço onde estes tinham  estado.

Walter Chambers não teve tanta sorte. Não conseguiu afastar as pernas a tempo e o  jacaré embateu nelas, empurrando-as contra a porta do lado do passageiro e  prendendo-as ali.

Chambers gritou. O jacaré dava pulos e saltos, tentando agarrá-lo melhor.

Do banco de trás, Race só conseguia ver o enorme dorso escamoso da criatura e a  sua cauda comprida, a bater violentamente para trás e para diante.

Então, abruptamente, com grande violência e com uma rapidez tal que Race ofegou  de horror, o gigantesco jacaré puxou Chambers para fora da janela por onde tinha  entrado.

- Nãooooo! - gritou Chambers, ao desaparecer pela janela, arrastado para baixo da  superfície.

Horrorizado, Race olhou para Lauren.

- O que é que vamos fazer agora? - gritou ela.

Como diabo é que ele havia de saber?, pensou, enquanto olhava para o que o  rodeava.

- Temos que sair daqui, antes que o carro se afunde - gritou ele. - Depressa! Abre a  janela. Agora, já devemos conseguir abri-las.

A água começou a cair sobre o banco da frente, enquanto Lauren abria a janela do  seu lado. O veículo estava inclinado sobre o lado contrário e, quando, finalmente,  Lauren conseguiu abrir a janela por completo, esta só deixou entrar o ar frio da  noite.

Então, de repente, junto à janela do condutor do Humvee, apareceu outro jacaré,  que foi cair na poça de água, que cobria a parte da frente do veículo.

- Sai! - gritou Race. - Salta para o teto!

Lauren agiu com rapidez. Num segundo, tinha saído do Humvee e trepado para o  teto deste. Ainda aturdida, Gaby foi atrás dela. Arrastou-se rapidamente pelo banco  traseiro e conseguiu chegar à janela. Lauren começou imediatamente a puxá-la para  fora, para cima do teto, enquanto Race a empurrava por trás.

No banco da frente, o jacaré saltava e bufava, à procura de uma presa.

Agora, a água caía a jorros, numa corrente constante, para cima do banco da frente.  Lá atrás, chegava quase à cintura.

Então, na janela de trás do lado esquerdo do Humvee, apareceu mais um jacaré, que  fez sacolejar todo o veículo. Race rolou, devido ao impacto, e viu que, agora, toda a  metade esquerda do Humvee estava completamente debaixo de água!

Gaby Lopez já tinha metade do corpo do lado de fora da janela. Só restava Race.

Foi então que, enquanto empurrava o pé de Gaby, Race ouviu um horrível ruído  metálico, vindo de um ponto qualquer do Humvee.

E, de repente, o veículo inclinou-se fortemente para a direita.  A princípio, Race pensou que se tratava de mais um embate de um jacaré. Mas não  era isso. Desta vez, o veículo inclinava-se todo para o lado. Estava a mover-se. A  mover-se...

Arrastado pelo rio.

Oh, meu Deus, pensou Race. Estavam a ser arrastados pela corrente.

- Isto não pode estar a acontecer - disse ele.

Nesse momento, deu-se mais um embate, quando um dos jacarés voltou a investir  contra a janela do lado esquerdo.

- Vamos Gaby! - gritou Race para um pé de Lopez, pendurado para dentro da janela  do lado direito, diante de si. Por esta altura, o jacaré que estava no banco da frente  pareceu ter percebido onde estavam Race e as duas mulheres e começou a saltar  desajeitadamente para trás, para poder chegar ao banco traseiro.

- Gaby!

- Está quase... - respondeu Lopez.

- Vamos, rápido!

Então, de repente, o pé de Gaby desapareceu da janela e Lauren gritou:

- Ela já aqui está, Will!

Ao ouvir isto, Race saltou para a janela, deitou a cabeça de fora e viu Lauren e  Gaby, lá em cima, na cobertura do veículo. Num instante, as duas mulheres  debruçaram-se, agarraram nas mãos dele e puxaram-no para fora do carro, menos  de um segundo antes do jacaré que estava no banco da frente ter conseguido  arrastar-se até ao banco traseiro, mordendo furiosamente o ar, na direção dos pés  de Race, falhando por uma questão de milímetros.

Na aldeia, Nash, Copeland e os seis soldados americanos estavam sentados,  algemados mas a salvo, dentro do todo-terreno, assistindo ao desenrolar do  pesadelo que tinha lugar lá fora, quando, subitamente, a porta de correr do veículo  blindado foi escancarada do lado de fora, deixando entrar uma rajada de vento e  chuva para o interior da cabine.

Dois alemães encharcados saltaram, apressados, lá para dentro, batendo com os pés  cobertos de lama no chão do veículo. Fecharam a grande porta de aço e, de repente,  voltou a reinar o silêncio.

Nash e os outros ficaram a olhar para os seus novos companheiros.

Um homem e uma mulher.

Estavam os dois completamente ensopados e cobertos de lama. Usavam roupas  civis, jeans e camisetas brancas, mas, nas cinturas de ambos, viam-se coldres pretos  Gore-Tex e pequenas pistolas Glock-18. E também tinham vestidos coletes à prova  de bala, azuis-escuros. Cheiravam à distância a polícias à paisana.

O homem era corpulento, entroncado e tinha aspecto de ter muita força. A mulher  era baixa mas bem constituída e tinha o cabelo loiro cortado curto.

O homem não perdeu tempo. Foi direito aos americanos e começou a tirar-lhes as  algemas.

- Já não são prisioneiros - disse, em inglês. - Agora, estamos todos metidos nisto.  Vamos, temos que salvar todos os que pudermos.

Race, Lauren e Lopez estavam encurralados no teto do Humvee e a amálgama  Humvee-Huey seguia aos solavancos rio abaixo, arrastada pela corrente.

Então, Race viu o frágil cais de madeira, cerca de três metros mais adiante. Segundo  parecia, estavam a seguir naquela direção. Era a única oportunidade que tinham. O  Humvee-Huey voltou a oscilar e mergulhou um pouco mais na água. Nesse  momento, o teto do Humvee estava pouco mais de trinta centímetros acima da  superfície do rio e o Huey estava um pouco mais de fora. Mas por cada metro que  avançavam, na descida do rio, os dois veículos pareciam afundar-se mais alguns centímetros.

Ia ser mesmo por pouco.  Por muito pouco.

Avançaram mais um metro, rio abaixo.  Os jacarés começaram a cercá-los.

A oito metros do cais, a água começou a chegar à cobertura do Humvee, por baixo  dos pés deles. Os três saltaram para a base de suporte da hélice do Huey Mais cinco metros.

A afundarem-se rapidamente.

Do alto da base de suporte da hélice, Race olhou para a aldeia, iluminada pelos  holofotes.

Agora, encontrava-se deserta e o único movimento era o da sombra de um ou outro  felino, a avançar pela rua principal. Não havia sinais de vida humana. Nada.

Foi então que Race reparou numa coisa.

O todo-terreno de oito rodas, semelhante a um tanque, no qual Nash, Copeland e  os Boinas Verdes tinham sido aprisionados, tinha desaparecido.

Race falou para o microfone de pescoço.  - Van Lewen, onde está?

- Estou aqui, Professor.

- Onde?

- Dois alemães abriram o todo-terreno e tiraram-nos as algemas. Agora, andamos a  dar uma volta pela aldeia, para apanhar as pessoas que conseguirmos encontrar.

- Já que estão nessa, porque é que não passam pelo cais? Tem que ser daqui a trinta  segundos.

- Entendido, Professor. Vamos a caminho.

Faltavam três metros para chegarem ao cais e o teto do Humvee estava  completamente debaixo de água.

Race mordeu os lábios.

Embora, agora, se encontrassem na base exposta do suporte de hélice do Huey, para  chegarem ao cais, ainda tinham que passar pelo teto submerso do Humvee.

- Vá lá, não te afundes - disse ele.  Dois metros.

O teto do Humvee afundou-se mais dezesseis centímetros.  Um metro.

Mais trinta centímetros para o fundo.

Lauren passou um braço por baixo dos ombros de Gaby, que continuava aturdida.

- OK, pessoal - disse ela. - Ouçam. Eu levo a Gaby, primeiro. Will, você fica por  último.

- Certo.

O Humvee-Huey chegou junto ao ancoradouro. Quando isto aconteceu, Lauren e  Gaby saltaram do suporte da hélice do Huey para a capota submersa do Humvee e  ficaram com as pernas dentro de água até aos joelhos.

Foram precisas duas passadas largas até Lauren conseguir empurrar Gaby para o  ancoradouro. Depois, saltou ela própria, levantando os pés no preciso momento em  que os enormes vultos de dois jacarés atacavam, a partir da água, chocalhando  ferozmente as mandíbulas.

- Anda lá, Will! - gritou ela, do cais.

Race preparou-se para saltar para a capota submersa do Humvee. Não era capaz de  imaginar o que aquilo poderia parecer: ele, de jeans, camiseta e boné de basebol,  empoleirado no alto de um helicóptero militar submerso, no meio do rio  Amazonas, infestado de jacarés.

Como é que eu me fui meter nisto?, pensou.

Então, sem aviso prévio, a amálgama Humvee-Huey balançou violentamente e  afundou-se mais uns trinta centímetros. Race desequilibrou-se, quase que caiu mas  conseguiu recompor-se, num instante. Depois, olhou para cima e viu que as coisas  tinham piorado bastante.

A capota do Humvee encontrava-se agora mais ou menos um metro debaixo de  água.

A situação do Huey não era muito melhor.

Embora se encontrasse em cima da base do suporte da hélice do helicóptero, agora,  esta também estava quase três centímetros debaixo de água.

Race olhou em volta, desesperado, e viu que a única parte do Huey ainda acima da  água eram as duas pás da hélice.

Olhou rapidamente para o ancoradouro e viu o todo-terreno fazer uma travagem  brusca perto dele, viu a porta de correr do grande oito rodas abrir-se, deixando ver  Van Lewen e Scott, e viu Lauren arrastar Gaby em direção ao veículo.

Por cima do ombro, Lauren gritou:  - Vá lá, Will! Salta!

O Huey voltou a oscilar e os tênis de Race ficaram totalmente cobertos pela água.

Race olhou para o helicóptero que se afundava, olhou para as pás da hélice, que já  quase tocavam a superfície do rio.

As pás da hélice..., pensou. Talvez conseguisse...

Não. Ele era demasiado pesado e as pás iriam ceder ao seu peso. Voltou-se mais  uma vez, para olhar para o cais. Agora, havia três enormes jacarés, meio submersos,  na água que ficava entre ele o velho ancoradouro de madeira.

Talvez...

Race estendeu rapidamente os braços e agarrou-se a uma das pás da hélice, Depois,  empurrou-a com quantas forças tinha, fazendo a pá de nove metros rodar sobre o  eixo.

O Huey submerso continuava a ser lentamente arrastado pela corrente.

A pá da hélice girou e a sua extremidade quase tocou no cais. Agora, parecia uma  ponte muito estreita, lançada sobre o rio, ligando o Huey ao ancoradouro.

O Huey voltou a balançar e mergulhou mais quatro centímetros, no momento  exato em que um enorme vulto negro saltava da água, próximo de Race, que, num  ato reflexo, afastou as pernas uma da outra, o mais que pôde. O jacaré passou por  baixo de Race, roçando-lhe pelas barrigas das pernas, e foi parar ao outro lado do  Huey.

Foi por pouco, gritou a mente de Race. Mexe-te!

Race lançou um derradeiro olhar à sua passagem para a liberdade: a pá da hélice,  uma tábua de salvação com uns vinte cinco centímetros de largura, suspensa a  trinta centímetros da superfície do rio.

- Vá lá!

E ele assim fez.

Três passos mais adiante, viu o embarcadouro a uns seis metros de distância. O cais,  a segurança, a salvação...

A meio caminho, Race sentiu a pá da hélice ceder debaixo de si, aproximando-se da  linha de água e acabando por assentar nos dorsos dos três jacarés que se  encontravam entre o helicóptero e o ancoradouro.

Race foi-se equilibrando sobre a estreita ponte, agora apoiada nos costados dos três  jacarés.

Percorreu o resto da extensão da pá, a passos largos, e depois atirou-se, indo aterrar  de bruços na beira do cais.

Tira os pés da água, gritava-lhe a mente, enquanto os seus pés mergulhavam no  líquido escuro.

Num instante, tirou os pés da água e rolou sobre si mesmo, já em segurança.

Engoliu em seco, quase sem poder respirar. Ainda nem queria acreditar.

Estava...  - Vamos lá, Professor! - gritou, de súbito, a voz de Van Lewen, junto ao seu ouvido.

Race olhou imediatamente para cima e viu o todo-terreno, estacionado na  extremidade do ancoradouro, com a porta de correr aberta, Nesse instante, porém,  o seu olhar foi atraído por um movimento qualquer, para lá do todo-terreno, e Race  olhou para cima mesmo a tempo de ver um dos enormes felinos pretos saltar por  cima do veículo todo-terreno, com as garras de fora e os dentes arreganhados.

O enorme animal aterrou no cais a cerca de metro e meio de Race. Ficou ali, a olhar  para ele, agachado, com as orelhas espetadas para trás, de beiços franzidos, os  músculos tensos, preparando o salto final...

E, então, de repente, o frágil ancoradouro desceu, por baixo do animal.  Não se ouviu nada a estalar. Nenhum som de aviso. O velho ancoradouro de  madeira apenas cedeu por baixo do felino e, com um grito de espanto, a enorme  criatura preta caiu na água.  – Já era altura de eu ter um bocado de sorte - disse Race. Os jacarés agiram com  rapidez.

Dois vultos colossais investiram contra o felino caído e, em breve, a água à volta do  enorme animal transformou-se numa confusão de espuma fervilhante.

Race aproveitou a oportunidade, saltou por cima da brecha que agora havia no  embarcadouro e correu para o todo-terreno Depois de ter entrado e de Van Lewen ter fechado a enorme porta de aço, Race  olhou para o rio, pela estreita abertura retangular da porta de correr.

Aquilo que viu era completamente inesperado.

Viu o felino, o mesmo felino preto que, momentos antes, estivera tão perto de si,  sair lentamente da água, trepando novamente para o ancoradouro. Tinha as garras  cobertas de sangue, da sua queixada pendiam pedaços de carne e, dos seus flancos  brilhantes escorria água.

O animal arfava. Parecia completamente exausto, da luta que tinha acabado de  travar.

Mas estava vivo. Tinha vencido.

Tinha sobrevivido a um combate com dois jacarés monstruosos.

Race atirou-se para o chão do veículo, totalmente extenuado. Apoiou a cabeça  contra o metal frio de um dos lados do veículo e fechou os olhos.

Mas, quando o fez, ouviu barulho.

Ouviu os felinos rugir e bufar, lá fora, muito perto, muito alto. Ouviu o som das  suas patas, a chafurdar nas poças de água. Ouviu estalar ossos, enquanto eles se  banqueteavam com os corpos dos comandos alemães. Até ouviu o grito de agonia  de alguém, não muito longe.

Pouco depois, Race adormeceu. Mas antes de adormecer, ocorreu-lhe um  pensamento aterrador.

Como é que diabo é que eu vou sair daqui vivo?

 

QUARTA CONSPIRAÇÃO 

Terça-feira, 5 de janeiro, 09:30

O agente especial John-Paul Demonaco seguia lentamente, pelo corredor iluminado  por uma luz branca, tendo o cuidado de não tropeçar nos sacos que continham os  corpos.

Eram 9 e 30 da manhã de 5 de janeiro e Demonaco tinha acabado de chegar ao  3701 North Fairfax Drive, em resposta a uma ordem do próprio diretor do FBI.

Tal como o resto das pessoas, Demonaco não sabia nada do assalto do dia anterior, à  sede da DARPA. Só sabia que, às 3 e meia da manhã, o diretor recebera um  telefonema de um almirante de quatro estrelas que se encontrava na Sala Oval. Este  dissera ao diretor que mandasse o seu melhor especialista em anti-terrorismo  interno a Fairfax Drive, o mais rapidamente possível.

O seu melhor homem era John-Paul Demonaco.

J.P. Demonaco tinha trinta e dois anos, era divorciado e tinha a cintura um pouco  larga demais. Tinha cabelos castanhos e ralos e usava uns óculos de aros grossos. O  seu amarrotado terno cinzento de poliéster tinha sido comprado por cem dólares,  na J. C. Penney, em 1994, mas a gravata Versace tinha custado trezentos dólares e  tinha sido comprada no ano anterior. Fora um presente de aniversário da filha mais  nova e, segundo parecia, estava na moda.

Apesar de um tanto descuidado em matéria de vestuário, Demonaco era o agente  especial que tinha a seu cargo a Unidade Anti-Terrorista (Nacional) do FBI, cargo  que ocupava havia quatro anos, em especial por saber mais do que qualquer outra  pessoa ainda viva sobre terrorismo na América.

Enquanto seguia pela entrada, Demonaco viu outro saco com um cadáver, no chão,  mesmo diante de si. Por cima do corpo, uma estrela de sangue maculava a parede.  Somou mais um saco à lista mental. Já ia em dez.

Que diabo tinha acontecido ali?

Virou uma esquina e deparou com uma pequena multidão, à porta do laboratório,  ao fundo do corredor.

Reparou que a maior parte das pessoas que compunha essa multidão usava  uniformes azuis-escuros, impecavelmente engomados, da Marinha dos EUA.

Um tenente de vinte e tal anos veio ter com ele, a meio do corredor.

- Agente especial Demonaco?

Em resposta, Demonaco apresentou o crachá.

- Por aqui, por favor. o capitão Mitchell está à sua espera. o jovem tenente  conduziu-o ao laboratório. Ao entrar, Demonaco observou em silêncio as câmaras  de segurança, montadas nas paredes, as espessas portas hidráulicas, as fechaduras de  código.

Caramba! Aquilo era uma cripta.

- Agente especial Demonaco? - disse uma voz, vinda de trás dele.

Demonaco voltou-se. Diante de si encontrava-se um jovem oficial. Era um belo  homem, com cerca de trinta e seis anos, alto, de olhos azuis e cabelo loiro claro,  cortado curto: uma figura apropriada para um cartaz da Marinha. E, por uma razão  qualquer que não conseguia definir, Demonaco achou que ele lhe era  estranhamente familiar.

- Sim, o meu nome é Demonaco.

- Capitão Tom Mitchell. Serviço de Investigação Criminal da Marinha.

NCIS, pensou Demonaco. Interessante.

Quando chegara a Fairfax Drive, Demonaco quase não tinha reparado nos homens  da Marinha que estavam de guarda à entrada do edifício. Na área distrital de  Washington, não era invulgar a guarda de alguns edifícios federais estar a cargo de  ramos específicos das Forças Armadas. Fort Meade, a sede da NSA, por exemplo,  era na verdade um recinto do Exército, Por outro lado, a guarda da Casa Branca  estava a cargo do Corpo de Fuzileiros dos Estados Unidos. Para Demonaco, não fora  surpresa verificar que a Marinha estava encarregue da proteção da DARPA. O que  poderia explicar a presença de todas aquelas fardas azuis.

Mas não. O fato de o NCIS se encontrar ali queria dizer uma coisa completamente  diferente. O que tinha acontecido era mais do que uma simples falha na proteção  de um edifício federal. Qualquer problema interno...

- Não sei se se lembra de mim - disse Mitchell. - Assisti ao seu seminário, em  Quantico, há seis meses. «A Segunda Emenda e a Ascensão dos Grupos de Milícias».

Então, fora ali que tinha visto Mitchell.

De três em três meses, Demonaco dava um seminário em Quantico sobre organizações terroristas nacionais, nos Estados Unidos. Nas suas comunicações,  Demonaco apontava as características básicas, os métodos e a filosofia dos grupos  de milícias melhor organizados do país: de grupos como os Patriotas, a Resistência  Ariana e o Exército Republicano do Texas.

Depois do atentado bombista na cidade de Oklahoma e do sangrento cerco ao  complexo de armas nucleares de Amarillo, no Texas, os seminários de Demonaco  eram muito concorridos. A assistência incluía, sobretudo, elementos das Forças  Armadas, uma vez que as suas bases e os edifícios que se encontravam sob a sua  guarda eram alvos frequentes das ações terroristas levadas a cabo por grupos  nacionais.

- Em que é que posso ser-lhe útil, capitão Mitchell? - perguntou Demonaco.

- Bem, para começar, como não lhe será difícil compreender, tudo o que vir ou  ouvir nesta sala, é informação rigorosamente classifi...

- O que é que quer que eu faça?

Demonaco era conhecido pela sua total incapacidade para tolerar conversas inúteis.

Mitchell respirou fundo.

- Como pode ver, ontem de manhã... tivemos aqui um... incidente. Morreram  dezessete elementos do pessoal de segurança e foi roubada uma arma da maior  importância. Temos razões para pensar que, por trás disto, está uma organização  terrorista nacional. E foi por isso que o senhor foi chamado...

- É ele? É ele? - perguntou uma voz ríspida.

Demonaco voltou-se e viu um comandante de aspecto severo. Tinha um bigode  grisalho e um cabelo igualmente grisalho, cortado curto, e dirigia-se  apressadamente para o sítio onde se encontravam Demonaco e o capitão Mitchell.

Os olhos dele, fixos em Mitchell, chispavam.

- Eu disse-lhe que era um erro, Tom. Isto é uma questão interna. Não precisamos  meter o FBI nisto.

- O agente especial Demonaco - apresentou Mitchell.

- O comandante Vernon Aaronson. O comandante Aaronson é o responsável por  esta investigação...

- Mas, pelos vistos, o capitão Mitchell está atento às razões daqueles que estão  interessados em que esta confusão demore mais tempo do que o necessário a ser  resolvida - observou Aaronson, sarcástico.

Demonaco pensou que Aaronson devia ser dois ou três anos mais velho e pelo  menos uma década mais amargo do que o seu subordinado, o capitão Mitchell.

- Não havia outra hipótese, senhor - disse Mitchell.

- O Presidente insistiu...

- O Presidente insistiu... - resmungou Aaronson.

- O Presidente não queria que se repetisse um incidente como o da auto-estrada de  Baltimore.

Ah, pensou Demonaco. Então, era isso.

No dia de Natal de 1997, um caminhão de transporte da DARPA, sem qualquer  distintivo, em viagem de Nova Iorque para a Vírgínia, tinha sido desviado, quando  seguia pela circular de Baltimore. Do caminhão, tinham sido roubados dezesseis  mochilas a jato J-7 e quarenta e oito cargas explosivas em protótipo - pequenos  tubos de crômio e plástico, que pareciam frascos de laboratório.

Mas não se tratava de cargas explosivas vulgares. Oficialmente, eram designadas  por cargas isotópicas M-22 mas, dentro da DARPA, eram conhecidas como  dínamos de bolso.

Resumidamente, o dínamo de bolso era um passo em frente na evolução da  tecnologia dos produtos químicos líquidos de alta temperatura. Resultante de um  trabalho conjunto do Exército dos Estados Unidos e da Divisão de Material Bélico  da DARPA, a M-22 utilizava isótopos do elemento cloro criados em laboratório,  para produzir uma onda de explosão concentrada, de uma potência tal que  vaporizava literalmente tudo o que se encontrasse num raio de um pouco menos de  duzentos metros do ponto de detonação. Fora concebida para ser usada por pequenas unidades de ataque, em missões de sabotagem ou de busca-e-destruição,  quando o objetivo da missão era não deixar absolutamente nada de pé. A potência  da explosão isotópica de uma carga M-22 só era superada por uma explosão nuclear  mas não tinha os mesmos efeitos radioativos.

Contudo, aquilo que Demonaco também sabia acerca do incidente da auto-estrada  de Baltimore era que fora o próprio Exército a encarregar-se da investigação do  furto.

Dois dias depois do ousado roubo, os investigadores do Exército tinham recebido  uma informação quanto à localização do armamento roubado e, sem se darem ao  trabalho de consultar o FBI ou a CIA, tinham mandado um pelotão de Boinas  Verdes assaltar as instalações de um grupo clandestino de milícias, no Norte do  Idaho. Morreram dez pessoas e doze outras ficaram feridas. Na sequência do assalto  militar, verificar-se-ia não ter sido aquele grupo o responsável pelo roubo. Na  verdade, o grupo cujas instalações tinham sido assaltadas era um dos grupos  paramilitares mais benignos da zona, mais parecido com um clube de tiro do que  com uma célula terrorista. Nas suas instalações, não foram encontrados quaisquer  explosivos isotópicos. A ACLU e o NRA tinham tido um dia de manobras.

As mochilas a jato e as M-22 nunca foram recuperadas, Obviamente, pensou  Demonaco, o Presidente não queria que o fiasco se repetisse. E era por isso que ele  tinha sido chamado.

- Então, o que é que querem que eu veja? - perguntou.

- Isto - respondeu Mitchell, tirando uma coisa do bolso e entregando-a a  Demonaco.

Era uma bolsa de plástico para provas.

Dentro dela, encontrava-se uma bala manchada de sangue.

Demonaco sentou-se a uma mesa, para examinar a bala manchada de sangue.

- De onde é que foi tirada? Do corpo de um dos seguranças?

- Não - respondeu Mitchell. - Do corpo do motorista do furgão que eles utilizaram  para entrar aqui. Foi a única pessoa que eles mataram com uma pistola.

- Depois de se terem servido dele para passarem pelos guardas da garagem -  acrescentou o capitão Aaronson - deram-lhe um tiro à queima-roupa na cabeça.

- Um cartão de visita - comentou Demonaco.

- Hum... hum.

- Parece aço-tungstênio... - disse Demonaco, examinando atentamente o projétil.

- Foi isso mesmo que nós pensámos - disse Aaronson.

- E, tanto quanto se sabe, só há uma organização terrorista nos Estados Unidos que  utiliza munições de tungstênio: os Combatentes da Liberdade do Oklahoma.

Sem desviar os olhos da bala que tinha na mão, Demonaco concordou:

- Pois é mas os Combatentes da Liberdade...

- São conhecidos por atuarem desta maneira - interrompeu Aaronson. - Assalto ao  estilo das forças especiais, tiros nas cabeças das vítimas, roubo de tecnologia militar  de ponta.

- Quase se podia dizer que o senhor também assistiu a um dos meus seminários,  comandante Aaronson - disse Demonaco.

- E assisti - admitiu Aaronson. - Mas também me considero um especialista neste  campo. Estudei a fundo estes grupos, como parte da atualização da segurança naval.  Também temos que estar de olho nessa gente.

- Então, deve saber que os Combatentes da Liberdade estão em plena guerra  «territorial» com os Texanos - disse Demonaco.

Aaronson mordeu os lábios e franziu o sobrolho. Era óbvio que não sabia nada  daquilo. Lançou um olhar irado a Demonaco, irritado com aquela crítica velada.

Demonaco fitou os dois oficiais da Marinha, por trás dos óculos de aros grossos.  Eles estavam a esconder-lhe qualquer coisa.

- O que foi que aconteceu aqui, meus senhores?  Aaronson e Mitchell olharam um para o outro.

- O que é que quer dizer? - perguntou Mitchell.

- Não posso ajudá-los, se não souber tudo o que se passou aqui. Coisas como, por  exemplo, o que é que foi roubado.  Aaronson fez uma careta. Depois, disse:

- Eles vieram à procura de um dispositivo chamado Supernova. Sabiam o que era e  como chegar até ele. Sabiam todos os códigos e tinham todos os cartões de passe.  Agiram com precisão e rapidez, como uma unidade de comandos bem treinada.

- A equipe de assalto dos Combatentes da Liberdade é boa disse Demonaco - mas  não é suficientemente grande para tomar de assalto um lugar deste tamanho. É  muito pequena: uns dois, três homens, no máximo. É por isso que só atacam alvos  fáceis, como instalações informáticas e departamentos governamentais de segunda  ordem. Lugares de onde podem roubar dados técnicos, como diagramas eletrotécnicos ou calendários dos horários de passagem de satélites. E, mais  importante ainda, eles só atacam instalações que não estejam bem guardadas. Nunca  fortalezas como esta. Eles são, sobretudo, tarados por tecnologias e não um grupo  de assalto frontal.

- Mas é o único grupo conhecido por utilizar balas de tungstênio - observou  Aaronson.

- Isso é verdade.

- Por isso, talvez eles tenham alargado o âmbito das operações - contrapôs  Aaronson, num tom arrogante. - Talvez estejam a tentar dar o salto para a primeira  divisão.

- É possível.

- É possível - troçou Aaronson. - Talvez eu não tenha deixado bem clara uma coisa,  agente especial Demonaco. O dispositivo que foi roubado destas instalações é da  maior importância para a defesa futura dos Estados Unidos. Se cair nas mãos  erradas, o uso que lhe pode ser dado provocará uma catástrofe. Eu tenho equipes  SEAL a postos para arrasar três instalações suspeitas dos Combatentes da  Liberdade. Mas os meus chefes têm de saber que não há dúvidas. Eles não querem  que aconteça o que aconteceu em Baltimore. Aquilo que nós queremos de si é o  reconhecimento de que este roubo só pode ter sido obra deles.

- Bem... - começou Demonaco.

A verdade era que tudo dependia das balas de tungstênio. Mas, por uma razão  qualquer que Demonaco não era capaz de entender muito bem, a utilização  daquelas balas, neste caso, incomodava-o...

- Deixe-me apresentar-lhe a questão de uma forma muito simples, agente Demonaco - disse Aaronson. - Tanto quanto o senhor saiba, além dos Combatentes  da Liberdade, haverá, nos Estados Unidos, mais algum grupo paramilitar que utilize  munições de tungstênio?

- Não - respondeu Demonaco.

- Ótimo. Muito obrigado.

E, dito isto, Aaronson lançou um olhar sarcástico a Demonaco e a Mitchell e  dirigiu-se a um telefone que se encontrava não muito longe, marcou um número de  poucos dígitos e disse:

- Fala Aaronson. Operações de assalto têm luz verde. Repito. Operações de assalto  têm luz verde. Dêem cabo desses sacanas.

A luz da manhã iluminava a floresta.

Race acordou encostado a um canto do blindado. Doía-lhe a cabeça e as suas roupas  ainda estavam encharcadas.

A porta de correr do blindado estava aberta e, lá fora, ouviam-se vozes.

- O que é que está a fazer aqui?

O meu nome é Marc Graf e sou tenente das Fallschirmtruppen...

Race levantou-se e saiu para o exterior.

Era de manhã e um nevoeiro baixo abatera-se sobre a aldeia. Agora, o blindado  estava parado no meio da rua principal e, ao descer do enorme veículo blindado,  Race levou algum tempo a adaptar os olhos à muralha de cinzento que o rodeava.  Lentamente, porém, a rua principal de Vilcafor começou a tomar forma. Race ficou  estático.

A rua estava absolutamente deserta.

Todos os cadáveres da chacina da noite anterior tinham desaparecido. Onde eles  tinham estado, só se viam agora grandes charcos de água e lama, que a chuva ia  tornando cada vez maiores. Os felinos também tinham desaparecido.

Um pouco para a sua esquerda, perto da cidadela, viu Nash, Lauren e Copeland e, ao  lado deles, seis Boinas Verdes e Gaby Lopez.

Mas, à frente deles, havia mais cinco pessoas.  Quatro homens e uma mulher.

Os alemães que tinham sobrevivido, pensou.

Race também reparou que só dois dos alemães usavam fardas de trabalho. Militares.  Todos os outros estavam vestidos à civil, incluindo dois - um homem e uma mulher  - que pareciam polícias à paisana. Todos eles tinham sido desarmados.

O sargento Van Lewen viu Race e veio ter com ele.

- Como é que vai a cabeça? - perguntou.

- Um horror - respondeu Race. - o que é que se passa por aqui.  Van Lewen apontou para os cinco alemães.

- Foram os únicos que sobreviveram à noite passada. Durante a luta, dois deles  saltaram para dentro do blindado e tiraram-nos as algemas. Nós conseguimos salvar  os outros três um bocadinho antes de irmos buscar vocês, no cais.

Race assentiu, com a cabeça.

Depois, de repente, voltou-se para o seu guarda-costas:

- Tenho uma pergunta a fazer-lhe.

- Sim?

- Como é que sabia da existência do botão de borracha, dentro do Humvee, aquele  que fez arrancar o veículo depois de os alemães o terem bloqueado?

Van Lewen sorriu.

- Se lhe disser, vou ter de o matar.  - Está bem. Diga lá.

Van Lewen voltou a sorrir. Depois, disse:

- É prática comum, entre as Forças Armadas de todo o mundo, utilizar veículos  como o Humvee e os blindados como prisões portáteis. Fecham-se os prisioneiros  dentro do carro e, depois, é só desativá-lo.

- Mas os Estados Unidos são os principais fornecedores de veículos todo-terreno.  Os Humvees, por exemplo, são feitos pela AM General Company, em South Bend,  em Indiana.

- A questão é que, e isto é uma coisa que nem toda a gente sabe, os veículos todo- terreno de fabricação exclusivamente americana estão equipados com botões de  segurança, que permitem fazer arrancar o veículo, depois de ele ter sido desativado.  A idéia é não permitir que nenhum veículo americano possa, alguma vez, ser usado  como prisão para americanos. Portanto, só os militares dos EUA são informados da localização desses botões de segurança. Digamos que é um alçapão que só os  soldados americanos conhecem.

Dito isto, Van Lewen sorriu mais uma vez e começou a andar, para ir ter com os  outros, junto à cidadela. Race foi atrás dele.

Race e Van Lewen juntaram-se aos outros na cidadela.

Ao chegarem, foram dar com Frank Nash a interrogar um dos comandos alemães  desarmados, o homem que se identificara como Marc Graf, tenente das  Fallschirmtruppen.

- Então, vocês vieram até aqui por causa do ídolo? - perguntou Nash.

Graf disse que sim com a cabeça.

- Não sei os pormenores - respondeu, em inglês. - Sou um mero tenente e não  estou autorizado a tomar conhecimento de todos os objetivos da missão.

Com o queixo, indicou um dos outros alemães, o homem entroncado que usava  jeans e um coldre.

- Era melhor perguntar ali ao meu companheiro, Karl Schroeder. o Sr. Schroeder é  agente especial do Bundeskriminalamt. o Bundeswher trabalha em colaboração  com o BKA nesta missão.

- O BKA? - perguntou Nash, perplexo.  Race sabia o que ele estava a Pensar.

O Bundeskriminalamt era o equivalente alemão do FBI e tinha uma reputação  lendária. Havia quem dissesse que era o melhor departamento federal de  investigação de todo o mundo. Fosse como fosse, tratava-se de uma força policial e  era por isso que Nash estava confuso. Não havia qualquer razão para elementos  dessa força se encontrarem no Peru, à procura de um ídolo.

- O que é que o BKA tem a ver com um ídolo perdido? - Perguntou a Schroeder.

Schroeder ficou por momentos calado, como se estivesse a pensar aquilo que  poderia revelar a Nash. Depois, suspirou: como se aquilo tivesse alguma  importância, depois do massacre da noite anterior!

- Não é o que está pensando - disse.

- O que é que quer dizer com isso?

- Nós não queremos o ídolo para fazer uma arma - disse Schroeder, com toda a  simplicidade, - Na verdade, ao contrário daquilo que talvez pense, o meu país nem  sequer tem uma Supernova.

- Então, para que é que querem o ídolo?

- Aquilo que nós queremos é muito simples - respondeu Schroeder. - Queremos  deitar a mão ao ídolo, antes que mais alguém o faça.

Quem? - perguntou Nash.

Os responsáveis pelo massacre daqueles monges, nos Pirineus - disse Schroeder. -  As pessoas que também são responsáveis pelo rapto e assassinato do Professor  Albert Mueller, depois de ele ter publicado, no ano passado, aquele artigo sobre a  cratera do meteorito no Peru.

- E quem são essas pessoas?

- Uma organização terrorista auto-denominada Schutzstaffel Totenkopfverbände, o  Destacamento da Morte das SS. Foram buscar o nome à unidade mais brutal das SS  de Hitler, os militares que dirigiam os campos de concentração nazis, durante a  Segunda Guerra Mundial. Dizem que são os Soldados da Tempestade.

- Os Soldados da Tempestade? - perguntou Lauren.

- São uma força paramilitar de elite, constituída por Alemães expatriados e com  base num reduto nazi altamente fortificado, no Chile, chamado Colonia Alemania.  Foram treinados, no fim da Segunda Guerra Mundial, por um ex-tenente de  Auschwitz, chamado Odilo Ehrhardt.

- De acordo com alguns sobreviventes de Auschwitz, Ehrhardt era um psicopata,  um homem que parecia um touro e que se deliciava com o simples prazer de matar.  Segundo parece, Rudolph Höss, o comandante de Auschwitz, gostava muito dele e,  durante os últimos anos de guerra, tratou-o como seu protegido. Aos vinte e dois  anos, Ehrhardt foi promovido ao posto de Oberstgruppenführer, tenente, das SS.  Depois disso, quando Höss apontava para alguém, um segundo depois, esse alguém  estava sob a mira da P-38 de Ehrhardt.

Race engoliu em seco. Schroeder prosseguiu:

- Segundo os nossos registos, Ehrhardt deve ter agora setenta e nove anos. Mas a  palavra dele continua a ser lei para os Soldados da Tempestade. E o posto dele é  Oberstgruppenführer, General, das SS. Os Soldados da Tempestade são uma  organização particularmente repelente. Defendem a detenção forçada e a execução  de todos os Negros e Judeus, a queda dos Governos democráticos de todo o mundo,  o restabelecimento de um regime nazi na Alemanha unificada e a instauração da  Herrenvolk, a raça dominante, como elite governante da Terra.

- O restabelecimento de um regime nazi na Alemanha? A instauração da raça  dominante, como elite governante da Terra? - repetiu Copeland, sem poder  acreditar.

- Espere aí - interveio Race. - Está a falar dos nazis. Nos anos noventa.

Frank Nash disse:

- Há muito que se diz que a Colonia Alemania é um refúgio de antigos oficiais  nazis. Eisler passou lá um curto período, nos anos sessenta. E Eichmann também.

Schroeder anuiu.

- A Colonia Alemania tem pastos, lagos e casas ao estilo da Baviera, tudo rodeado  por cercas de arame farpado e torres de vigia patrulhadas, vinte e quatro horas por  dia, por guardas e Doberman Pinschers.

- Dizia-se que, no tempo do regime de Pinochet, em troca da proteção do  Governo, Ehrhardt permitiu que a ditadura utilizasse a Colonia Alemania como  centro de torturas não oficial. Era um lugar para onde as pessoas eram mandadas,  para «desaparecerem». E, com a proteção do regime militar, Ehrhardt e a sua  colônia de nazis mantiveram-se imunes às buscas de agências estrangeiras como o  BKA.

- Está bem - disse Nash. - Mas qual é o papel deles nessa equação?

- É precisamente esse o problema, Herr Nash - disse Schroeder. - São os Soldados  da Tempestade que têm a Supernova.

- O s Soldados da Tempestade têm a Supernova? - repetiu Nash, em voz lenta.

- É verdade.

- Santo Deus...

- Por favor, Herr Nash. Tente compreender. Em vinte anos de trabalho em contra-terrorismo, nunca deparei com nenhum grupo como os Soldados da Tempestade.  Tem bons financiamentos, é bem organizado, altamente hierarquizado e não tem  dó nem piedade. É composto por dois tipos de pessoas: soldados e cientistas. Os  Soldados da Tempestade recrutam essencialmente soldados experientes, em muitos  casos homens que foram dispensados de forma desonrosa do antigo Exército da Alemanha de Leste ou do Bundeswehr, por terem especial predileção pelo uso da  força excessiva. Homens como Heirich Anistaze, homens especializados nas artes  do terror, da tortura e do assassinato.

- Anistaze é membro dos Soldados da Tempestade? - perguntou Nash. - Eu tinha a  impressão de que ele trabalhava para os serviços de informação da Alem...

- Não mais - respondeu Schroeder, com amargura. - Depois do colapso do Bloco de  Leste, Anistaze foi contratado pelo Governo alemão, numa base contingente, para  se ocupar apenas de alguns «problemas». Mas parece que a rédea que lhe foi dada  não era suficientemente curta.                                         - Anistaze é um mercenário, um assassino de aluguel. Passado pouco tempo,  alguém lhe ofereceu mais do que aquilo que lhe estávamos a pagar e ele traiu dois  dos seus agentes e entregou-os, ao inimigo. Não foi uma surpresa para nós, quando,  não muito depois desse incidente, os seus métodos de persuasão bastante  característicos começaram a tornar-se notados em incidentes em que estavam  envolvidos os Soldados da Tempestade. Segundo parece, a ascensão de Anistaze  entre as fileiras dos Soldados da Tempestade foi rápida. Pensamos que, agora, ele é Obergruppenführer, na escala hierárquica deles. Logo a seguir ao próprio Ehrhardt.

- O filho da puta...

- Para os cientistas, aplica-se o mesmo princípio. - Schroeder encolheu os ombros. -  Os Soldados da Tempestade aliciam muitos homens e mulheres de alto nível  acadêmico que trabalham em projetos que não são considerados muito adequados à  culpa coletiva da Alemanha moderna. Por exemplo, pouco depois da queda do  Muro, alguns cientistas da Alemanha de Leste, que estavam a desenvolver granadas  NA - granadas cheias de ácido nítrico, concebidas para infligir ferimentos terríveis  nas suas vítimas, sem as matar, ficaram sem emprego. Ora, os Soldados da Tempestade estão sempre à espreita deste tipo de pessoas e dispostos a pagar  lindamente os seus serviços.

- Como? - perguntou Copeland. - Como é que têm dinheiro para isso?

- O movimento nazi moderno nunca teve falta de fundos, doutor Copeland. Em  1994, uma investigação ilegal do BKA a uma conta suspeita, num banco suíço,  levou-nos a calcular que o total das reservas dos Soldados da Tempestade é de mais  de meio bilhão de dólares: o produto da venda de artefatos sem preço, roubados  durante a Segunda Guerra Mundial.

- Meio bilhão de dólares? - repetiu Race, quase sem respiração.

- Os Soldados da Tempestade - disse Schroeder - não são piratas aéreos, meus  senhores. Não assassinam funcionários federais nem fazem ir pelos ares edifícios  federais. Aspiram a vôos mais altos, a grandes vitórias que deitem por terra o  conjunto da ordem mundial.

- E, agora, o senhor acha que eles têm uma Supernova? perguntou Nash.

- Até há uns três dias atrás, só tínhamos suspeitas que não podíamos provar -  respondeu Schroeder. - Mas, agora, temos a certeza. Há seis meses, alguns agentes  do BKA no Chile fotografaram um homem, que andava a passear nas terras da  Colonia Alemania, na companhia do próprio Odilo Ehrhardt. Posteriormente, esse  homem foi identificado como sendo o doutor Fritz Weber. Imagino que saiba  quem é o doutor Weber, Herr Nash.

- Sim mas... - Nash interrompeu-se, franzindo o sobrolho.

- Fritz Weber era um cientista alemão, no tempo da Segunda Guerra Mundial. Era  físico nuclear, um grande gênio e, também, um grande sociopata. Foi uma das  primeiras pessoas a afirmar que era possível construir um dispositivo capaz de  destruir o planeta. Em 1944, tinha ele só trinta anos, trabalhou no projeto nazi da  bomba atômica. Mas, antes disso, dizia-se que Weber tinha participado nas  terríveis experiências de tortura dos nazis: mergulhavam um homem em água  gelada e monitorizavam o tempo que ele demorava a morrer. Mas eu julgava que  Weber tinha sido executado depois da guerra...

Schroeder acenou que sim com a cabeça.

- E foi. o doutor Fritz Weber foi julgado em Nuremberg, em Outubro de 1945, por  crimes contra a humanidade. Foi dado como culpado e condenado à morte.  Oficialmente, foi executado a 22 de Novembro de 1945, na prisão de Karlsburg.  Durante muitos anos, discutiu-se se teria sido de fato Weber quem fora executado.  Ao longo de várias décadas, houve várias pessoas que tinham sido torturadas por  ele e que afirmaram tê-lo visto na Irlanda, no Brasil, na Rússia.

Em tom muito sério, Schroeder acrescentou:

- Pensamos que os soviéticos conseguiram tirar Weber da prisão de Karlsburg, na  noite anterior ao dia em que ele devia ser executado, e que o substituíram por um  impostor. Em troca de lhe terem salvo a vida, os soviéticos utilizaram as  consideráveis qualificações de Weber para fazer avançar o seu programa de armas  nucleares. Mas, quando, em 1991, se deu o colapso da União Soviética e o BKA foi  à procura de Weber, não lhe encontrou o rastro. Ele tinha desaparecido da face da  Terra.

- Para voltar a aparecer, oito anos mais tarde, na sede de uma organização terrorista  nazi - acrescentou Nash.

- Exato. Por isso, nessa altura, nós pensámos que os nazis estavam a construir um  dispositivo nuclear convencional. Mas os Soldados da Tempestade assaltaram  aquele mosteiro, em França, depois de se ter ficado a saber que era lá que estava o  lendário Manuscrito de Santiago - disse Schroeder. - De repente, quando se associa  o assassinato de Albert Mueller e a sua descoberta da cratera de um meteorito, no  Peru, à alegada história relatada no Manuscrito de Santiago acerca de um ídolo com  propriedades bastante estranhas, as nossas suspeitas começam a assumir uma certa  realidade. Sob a tutela de Weber, talvez os Soldados da Tempestade estivessem a  fazer mais do que fabricar uma bomba nuclear normal, talvez tivessem conseguido  criar uma Supernova e andassem, agora, à procura de tírium. É, então, três dias  depois, no mesmo dia em que se dava o assalto ao mosteiro francês, a nossa equipe de agentes no Chile apanhou isto.

Schroeder tirou do bolso do casaco uma folha de papel dobrada e estendeu-a a  Nash.

- É a transcrição de uma conversa telefônica. A ligação foi feita, há três dias, de um  celular, de algum lugar no Peru, para o laboratório principal de Colonia Alemania -  informou Schroeder.

Nash mostrou a transcrição alemã a Race e pediu-lhe que a traduzisse em voz alta.

VOZ... 1: ase das operações já está pronta a funcionar... resto do... será... a mi...  

VOZ 2: ... quanto ao dispositivo?... pronto?

VOZ 1: ... adotamos... forma de ampulheta, com base no modelo americano dois  detonadores termonucleares, montados na parte superior e na parte inferior de  uma câmara interior de titânio. Os ensaios de campo indicam que... dispositivo...  operacional. Agora, só precisamos... do tírium.

VOZ 2:... não se preocupem. O Anistaze está a tratar disso...  

VOZ 1: ... E quanto à mensagem?

VOZ 2: ... vai, logo que apanhemos o ídolo... a todos os primeiros-ministros e  Presidentes da UE... o Presidente dos Estados Unidos, via linha vermelha interna  de emergência... o resgate vai ser cem bilhões de dólares... ou, então, detonamos o  dispositivo...

Nash ficou a olhar para a transcrição, em estado de choque. Ninguém dizia palavra.

Race não conseguia desviar os olhos das palavras: o resgate vai ser cem bilhões de  dólares ou, então, detonamos o dispositivo.  Jesus Cristo!

Nash voltou-se para Schroeder.

- E o que foi que vocês fizeram quanto a isto?

- Recorremos a um plano em duas vertentes - respondeu o alemão. - Duas missões  separadas, cada uma delas concebida como reforço da outra, se alguma delas falhar.  A Missão Um era deitar a mão ao ídolo, antes dos nazis. Para isso, arranjámos uma  cópia do Manuscrito de Santiago e servimo-nos dela para chegar até aqui. De fato,  batemos os Soldados da Tempestade mas não estávamos nada à espera de encontrar  aqueles felinos dentro do templo.

Enquanto ouvia Schroeder falar, uma campainha retiniu no subconsciente de Race.  Tinha a ver com qualquer coisa que o agente alemão acabara de dizer. Qualquer  coisa que não batia certo.

Race afastou aquela idéia, remeteu-a de volta ao subconsciente.

- E a segunda vertente da missão? - perguntou Nash.

- Ocupar a Colonia Alemania - respondeu Schroeder. Depois de termos  interceptado aquela conversa telefônica, há três dias, demos início a negociações  com o novo Governo chileno, para obtermos um mandato que permitisse aos  agentes do BKA fazer uma busca na Colonia Alemania, em coordenação com as  autoridades chilenas.

- E?

- Conseguimos. Se tudo estiver a correr de acordo com o planeado, os agentes do  BKA e a Guarda Nacional chilena estão, neste momento, a tomar de assalto a  Colonia Alemania, para se apoderarem da Supernova. Estou à espera de receber  uma informação via rádio, a qualquer momento.

Naquele preciso momento, a quase dez mil quilômetros de distância, um caminhão  de dez toneladas, pertencente à Guarda Nacional chilena, deitava abaixo os portões  da Colonia Alemania.

Um numeroso grupo de soldados chilenos, de pele morena acobreada, atravessava  os portões, logo atrás do caminhão, seguido por doze agentes alemães, com  capacetes de combate azuis e equipamento SWAT.

A Colonia Alemania era uma grande propriedade, com uns bons vinte hectares. Os  seus pastos verdejantes contrastavam fortemente com as áridas colinas castanhas  do Chile. As suas casas de campo ao estilo da Baviera e os seus idílicos lagos azuis  formavam um conjunto estranhamente apaziguador, naquela terra, quase toda ela  rude e seca.

As portas eram arrombadas e as janelas partidas, à medida que os homens da  Guarda Nacional iam entrando nos diversos edifícios. o seu alvo principal era o  aquartelamento, um edifício grande, que fazia lembrar um hangar, localizado no  centro da propriedade.

Minutos depois, as portas do aquartelamento eram abertas de rompante e uma  multidão de guardas nacionais e agentes do BKA irrompiam pelo edifício.

Mas, então, pararam.

Filas e filas de beliches vazios estendiam-se ao longo das paredes do enorme  recinto. Todas as camas estavam muito bem feitas e perfeitamente alinhadas umas  com as outras. Parecia um quartel do exército.

O único problema era que estava vazio.

Vindas do resto da propriedade, choviam informações, Não havia ninguém naquela  propriedade.

A Colonia Alemania estava completamente deserta.

Num dos laboratórios, que ficava perto do aquartelamento, dois agentes alemães  brandiam pequenos contadores Geiger, medindo a radioatividade do ar. As  pequenas unidades de medição apitaram ruidosamente.

Os dois agentes entraram no laboratório principal da propriedade e os contadores  Geiger passaram instantaneamente ao vermelho.  - A todas as unidades, daqui Equipe do Laboratório. Estamos a detectar quantidades elevadas de urânio e plutônio, no laboratório principal...

O primeiro agente dirigiu-se a uma porta que dava para um gabinete envidraçado.

Apontou a vara para a porta fechada e o seu Geiger rebentou a tabela.

O homem trocou um olhar com o seu companheiro. Depois, empurrou a porta e  abriu-a, tropeçando no fio.

A explosão que abalou a Colonia Alemania foi devastadora.  Abalou o mundo.

Um pulsar deslumbrante de luz branca deflagrou em todas as direções, obliterando  tudo o que se encontrava no seu caminho. Os celeiros estilhaçaram-se em milhões  e milhões de paus de fósforo, os silos de cimento rebentaram num milésimo de  segundo. Tudo o que se encontrava num raio de mais de quatrocentos e cinquenta  metros à volta do aquartelamento foi literalmente vaporizado, incluindo cento e cinquenta homens da Guarda Nacional chilena e os doze agentes do BKA.

Quando foram entrevistados, dias depois, os habitantes das aldeias dos arredores  disseram que, de repente, parecia ter surgido no horizonte um relâmpago e que,  depois, tinham visto erguer-se no céu uma enorme nuvem de fumo negro com a  forma de um cogumelo gigantesco.

Eram pessoas simples, camponeses.

Não sabiam que estavam a descrever uma explosão termonuclear.

Entretanto, em Vilcafor, Nash mandou os Boinas Verdes levar o equipamento de  rádio via satélite da equipa alemã para a rua principal.

- Vamos ver o que é que os seus homens do Chile têm para contar - disse Nash a  Schroeder.

Schroeder abriu a tampa do console do rádio portátil e começou a escrever  rapidamente, no teclado à prova de água. Nash, Scott e os Boinas Verdes  aglomeraram-se à volta dele, olhando fixamente para o mostrador do aparelho.

Mais uma vez excluído, Race ficou de fora daquele círculo.

- Como é que se sente? - perguntou subitamente uma voz de mulher, vinda detrás  dele.

Race voltou-se, mais ou menos à espera de ver Lauren, e deu consigo a fitar os  deslumbrantes olhos azuis da alemã.

Era uma mulher baixa, de constituição delicada e tremendamente bonita. Tinha as  mãos indolentemente pousadas nos quadris e exibia um sorriso que o desarmou por  completo.

O nariz dela era pequeno, o cabelo loiro estava cortado curto e tinha doses  industriais de lama espalhadas pela cara, pela camisa e pelos jeans. Usava um colete  à prova de bala, por cima da camiseta branca, e, sobre o quadril, um coldre Gore- Tex preto, idêntico ao de Schroeder. E, tal como o de Schroeder, o coldre dela  estava vazio.

- Como é que vai a sua cabeça? - perguntou ela.

Tinha um ligeiro sotaque alemão. E Race gostou de o ouvir.

- Dói-me - respondeu.

- Não é de espantar - disse ela, aproximando-se e tocando-lhe na sobrancelha. -  Acho que você sofreu uma pequena contusão, quando o seu Humvee bateu naquele  helicóptero. Tudo aquilo que você fez depois, aquelas suas façanhas em cima do  helicóptero, deve ter tido a ver com uma descarga de adrenalina.

- Quer dizer que não sou um herói? - perguntou Race. Está a dizer que foi só a  adrenalina a falar?

A mulher sorriu. Tinha um sorriso bonito.

- Espere aí - disse ela. - Eu tenho codeína na minha caixa de medicamentos. Vai  fazer-lhe bem à dor de cabeça.

E dirigiu-se para o blindado.

- Hei... - disse Race. - Como é que se chama?

Ela voltou a sorrir-lhe. Aquele sorriso engraçado, de ninfa.

- Chamo-me Renée Becker e sou agente especial do BKA.

- Já os apanhei - disse subitamente Schroeder, que continuava junto ao rádio  portátil.

Race juntou-se ao grupo, reunido à volta do console do rádio. Inclinado sobre o  ombro de Nash, olhou para a tela e viu um quadro, em alemão. Traduziu:

 

REGISTO DE TRANSMISSÃO DE COMUNICAÇÕES POR SATÉLITE 44- 76/ BKA32

  1. DATA         HORA           ORIGEM

RESUMO 1          

4.1.99            

19:30              

SEDE BKA                  

EQUIPE PERU INFORME SITUAÇÃO 2          

1.4.99            

19:50              

EXTERIOR                  

SINAL INDICATIVO ULIT 3          

1.4.99             22:30              

SEDE BKA                  

EQUIPE PERU INFORME SITUAÇÃO 4          

1.5.99             01:30              

SEDE BKA                  

EQUIPE PERU INFORME SITUAÇÃO 5          

1.5.99             04:30                

SEDE BKA                  

EQUIPE PERU INFORME SITUAÇÃO 6          

1.5.99             07:16        

TERRENO (CHILE)          

CHEGADA

 

SANTIAGO                                                                                                 PARTIDA PARA COLONIA ALEMANIA 7          

1.5.99             07:30              

SEDE BKA                  

EQUIPE PERU INFORME SITUAÇÃO 8          

1.5.99             09:58        

TERRENO (CHILE)          

CHEGADA COLONIA ALEMANIA; COMEÇO VIGILÂNCIA 9           1.5.99             10:30          

SEDE BKA                    

EQUIPE PERU INFORME SITUAÇÃO 10        

1.5.99             10:37        

TERRENO (CHILE)          

EQUIPE CHILE SINAL DE EMERGÊNCIA  11          

1.5.99               10:51          

SEDE BKA                    

EQUIPE PERU INFORME IMEDIATAMENTE

 

Race franziu o sobrolho.

Aquilo era uma lista de todos os sinais de comunicação captados pela equipe do  BKA de campo, no Peru.

Tudo indicava que, desde as 19:30 da noite anterior, eles tinham recebido, de três  em três horas, da sede do BKA, pedidos de informação sobre a situação, além de  algumas mensagens intermitentes da outra equipe do BKA, no Chile.

Mas a décima mensagem - uma das mensagens da outra equipe, no Chile - chamou  a atenção de Race. A palavra alemã proclamava «emergência».

Schroeder também a viu.

Rapidamente, o agente alemão assinalou a décima mensagem e carregou na tecla  «Enter».

A tela mostrou a mensagem completa. Race viu as palavras em Alemão e traduziu-as:

 

MENSAGEM No. 50199-010 

DATA: 5 DE JANEIRO DE 1999 

RECEBIDA ÀS: 10:37 (HORA LOCAL - PERU)  

PROVENIENTE DE: EQUIPE DE CAMPO (CHILE)  

ASSUNTO: EQUIPE CHILE

SINAL DE EMERGÊNCIA 

A MENSAGEM É A SEGUINTE:

ATENÇÃO EQUIPE PERU. ATENÇÃO, EQUIPE PERU AQUI SEGUNDA UNIDADE CHILE. REPITO. AQUI SEGUNDA UNIDADE CHILE.

PRIMEIRA UNIDADE ABATIDA. REPITO. PRIMEIRA UNIDADE ABATIDA.

HÁ 15 MINUTOS, PRIMEIRA UNIDADE ENTROU NA COLONIA ALEMANIA,  EM AÇÃO CONJUNTA COM GUARDA NACIONAL DO CHILE. INFORMOU  PROPRIEDADE COMPLETAMENTE DESERTA. REPITO. PRIMEIRA UNIDADE  INFORMOU PROPRIEDADE COMPLETAMENTE DESERTA.

MEDIÇÕES PRELIMINARES INDICAVAM ELEVADOS NÍVEIS URÂNIO E  MINÉRIO PLUTÔNIO MAS, ANTES DE SER POSSÍVEL OBTER MAIS DADOS,  VERIFICOU-SE UMA DETONAÇÃO NO INTERIOR DA PROPRIEDADE.

DETONAÇÃO PARECE TER SIDO NUCLEAR. REPITO. DETONAÇÃO PARECE  TER SIDO NUCLEAR.

PRIMEIRA UNIDADE ANIQUILADA. REPITO. PRIMEIRA UNIDADE  ANIQUILADA.

DEVE-SE PRESUMIR QUE SOLDADOS DA TEMPESTADE JÁ VÃO A  CAMINHO DO PERU.

 

Race levantou os olhos da mensagem, horrorizado.

Não havia ninguém na Colonia Alemania, quando a equipe do BKA tinha chegado.  Além disso, encontrava-se armadilhada, preparada para explodir, mal alguém lá  entrasse.

Um arrepio gelado percorreu a espinha de Race, quando voltou a olhar para as  linhas finais da mensagem:

DEVE-SE PRESUMIR QUE SOLDADOS DA TEMPESTADE JÁ VÃO A  CAMINHO DO PERU.

Race olhou para o relógio. Eram 11:05 h.

- Quanto tempo temos até eles chegarem aqui? - perguntou Nash a Schroeder.

- É impossível saber - respondeu Schroeder. - Não há maneira de saber há quanto  tempo é que eles saíram da propriedade. Podem ter saído há duas horas ou há dois  dias. Seja como for, a viagem do Chile até aqui não é uma viagem longa. Temos que  partir do princípio de que eles estão muito perto.

Nash voltou-se para Scott.

- Capitão. Quero que entre em contato com o Panamá e que descubra quando é que  a maldita equipe de resgate vai chegar aqui. Precisamos de potencial de fogo. E já!

- Muito bem.

Scott fez sinal a Doogie, que correu para a unidade de rádio.

- Cochrane - disse Nash. - Qual é a situação do Huey que nos resta?

Buzz Cochrane abanou a cabeça.

- Foi atingido. Destruído, quando aquele Apache se descontrolou, durante o ataque  dos felinos. Houve umas balas perdidas que danificaram o rotor da cauda e os tubos  de alimentação da ignição.

- Quanto tempo é que isso demora a arranjar?

- Com as ferramentas que temos aqui, podemos arranjar os tubos de alimentação da  ignição. Mas demora algum tempo. Quanto ao rotor da cauda, não se pode voar sem  ele e é uma merda para se arranjar. Acho que podíamos desmontar alguns dos  sistemas secundários e usá-los mas aquilo de que precisamos mesmo é de uns eixos  e de uns comutadores rotativos completamente novos e, aqui, não vamos encontrar  nem uma coisa nem outra.

- Sargento. Ponha aquele Huey em condições de voltar a voar. Seja como for - disse  Nash.

- Sim, meu coronel.

Cochrane afastou-se, levando consigo Tex Reichart.  Fez-se um longo silêncio.

- Então, ficamos aqui imobilizados... - disse Lauren.

- Com um grupo de terroristas a caminho... - acrescentou Gaby Lopez.

- A menos que decidamos sair daqui a pé - sugeriu Race.  O capitão Scott voltou-se para Nash.

- Se ficarmos aqui, morremos.

- E, se nós formos embora, os nazis apanham o ídolo - disse Copeland.

- E ficam com uma Supernova funcional - disse Lauren.

- Isso não pode ser - disse Nash, com firmeza. - Não. Só podemos fazer uma coisa.

- O quê?

- Pegarmos o ídolo, antes de os nazis chegarem.

F ustigados pela chuva subtropical, os três soldados seguiram com cautela, pela  margem do rio.

O capitão Scott e o cabo Chucky Wilson iam à frente, com as M-16 cuidadosamente apontadas para a vegetação densa que ficava à sua direita. Um  único pára-quedista alemão, Graf, agora armado com uma M-16 americana, ia atrás  deles, cobrindo a retaguarda.

Os três homens levavam, fixadas aos capacetes, pequenas câmaras de fibra ótica,  que enviavam imagens para os que tinham ficado na aldeia.

Ao fim de um tempo, os três soldados chegaram a uma fissura na encosta da  montanha, a abertura que ia dar à torre de pedra e ao templo.

Scott fez sinal a Wilson e o jovem cabo entrou na estreita passagem, de  metralhadora em riste.

Na aldeia, Race e os outros olhavam para um monitor, observando Scott, Wilson e  Graf a avançar pela abertura. As imagens que lhes chegavam dos três comandos  eram apresentadas, num preto-e-branco um tanto espectral, em seções separadas da  tela.  O plano era simples.

Enquanto Scott, Wilson e Graf entravam no templo e se apoderavam do ídolo, os  restantes Boinas Verdes e o outro pára-quedista alemão, um soldado chamado  Molke, encarregavam-se de reparar o Huey que restava. Depois de terem o ídolo,  voavam para longe de Vilcafor, antes da chegada dos terroristas nazis.

- Não estamos a esquecer-nos de nada? - perguntou Race.

- De quê? - disse Nash.

- Dos felinos, por exemplo. Foi ou não foi por causa deles que ficamos metidos  nesta confusão? Onde é que eles estão?

- Os felinos foram-se embora da aldeia, ao nascer do dia disse uma voz, atrás de  Race, num inglês perfeitamente articulado.

Race voltou-se e deu de caras com o último dos homens alemães, que lhe sorria.

Não podia ser mais diferente dos outros três homens alemães, Schroeder, Graf e  Molke. Aqueles eram visivelmente fortes e estavam em boa forma mas este  homem era mais velho, bastante mais velho, para aí na casa dos cinquenta, e não  tinha nada de atlético. A característica que mais o distinguia era uma grande barba  grisalha. Race tinha antipatizado com ele, mal o vira. Toda a sua postura cheirava a  ostentação e arrogância.

- De madrugada, os felinos afastaram-se, em direção ao planalto - disse o homem,  com arrogância. - Suponho que voltaram para a toca, dentro do templo. - Sorriu  ironicamente.

- Imagino que, depois das últimas gerações da espécie a que pertencem terem  passado quase quatrocentos anos mergulhadas na mais profunda escuridão, eles não  se sentem muito à vontade à luz do dia.

O homem barbudo estendeu a mão, num brusco gesto alemão.

- Sou o doutor Johann Krauss, zoólogo e cripto-zoólogo da Universidade de  Hamburgo. Fui trazido nesta missão para dar o meu parecer sobre algumas questões  relacionadas com animais, suscitadas pelo manuscrito.

- O que é um cripto-zoólogo? - perguntou Race.

- Um zoólogo que estuda animais míticos - esclareceu Krauss.

- Animais míticos...

- Sim. o Bigfoot, o monstro de Loch Ness, o yetil, os grandes felinos das charnecas  inglesas e, claro - acrescentou - o rapa sul-americano.

- Sabe muito sobre estes felinos? - perguntou Race.

- Só aquilo que aprendemos a partir de descrições não comprovadas feitas por  pessoas que os viram, de lendas locais e de hieróglifos ambíguos. Mas uma das  maravilhas da cripto-zoologia é tratar do estudo de animais que não podem ser  estudados, porque não é possível provar que eles realmente existem.

- Acha, então, que nós fomos atacados por um bando de animais míticos? - disse  Race. - Não me pareceu que tivessem nada de mítico.

Krauss disse:

- Mais ou menos de cinquenta em cinquenta anos, verifica-se um surto de mortes  pouco comuns, nesta zona da floresta amazônica. Nessas alturas, habitantes locais  que se aventuram em viagens noturnas de uma aldeia para outra, pura e  simplesmente desaparecem. Há ocasiões, aliás raras, em que os seus restos são  encontrados na manhã do dia seguinte. Quando isso acontece, esses homens são  encontrados com as cabeças arrancadas dos corpos ou com as espinhas partidas. Os  habitantes da região têm um nome para o animal que aparece durante a noite e que  mata sem piedade. Um nome que tem passado de geração em geração. Chamam-lhe  rapa.

Krauss olhou fixamente para Race.

- Temos que encarar este folclore local com muito cuidado, porque pode ser-nos  muito útil para avaliarmos o inimigo.

- Como?

- Pelo menos, podemos usá-lo para discernir algumas coisas sobre os nossos  antagonistas felinos.

- Como por exemplo?

- Para começar, podemos concluir com segurança que o rapa é noturno. Os restos  dos habitantes locais só são encontrados de manhã. E, pela nossa própria  experiência, sabemos que estes felinos fogem da luz do dia. Logo, são noturnos. Só  caçam de noite e recolhem-se durante a maior parte do dia.

- Se estiveram fechados dentro do templo, por gerações e gerações - observou Race  - como foi que conseguiram sobreviver? O que é que eles comiam?

- Isso não sei - respondeu Krauss, franzindo o sobrolho, com um ar muito sério,  como se estivesse a ponderar uma equação matemática complicada.

Race olhou para o planalto, onde ficava o misterioso templo. Um manto de chuva  escorria pela superfície rochosa, do lado esquerdo.

- E o que é que eles estão a fazer agora? - perguntou.  – A dormir, imagino eu - disse Krauss - na segurança do templo. É por isso que esta  é a melhor altura para mandar os nossos homens buscar o ídolo.

Scott, Wilson e Graf saíram da estreita abertura e foram dar ao lago pouco  profundo, que ficava na base da espantosa cratera.

Estava muito escuro, no desfiladeiro. As nuvens compactas que cobriam o céu e a  densa cobertura de árvores que se debruçavam sobre a beira da cratera bloqueavam  a passagem da luz. Todas as fissuras e arestas das paredes do desfiladeiro estavam  mergulhadas na sombra.

Scott e Wilson iam à frente. Estreitos feixes de luz saíam das pequenas lanternas  fixadas nos canos das suas M-16.

- Muito bem... - disse Scott, para o microfone que levava ao pescoço.

- Agora, vamos subir o caminho - disse a voz de Scott, nos alto-falantes do monitor.

De olhos fixos na tela, Race estava tenso, enquanto via Scott, Wilson e Graf saírem  da água e entrarem no caminho estreito, aberto na parede exterior da cratera.

Johann Krauss disse:

- Uma coisa de que temos de nos lembrar, acerca dos nossos inimigos, é que, acima  de tudo, eles são felinos. Não podem mudar aquilo que são. Pensam como felinos,  agem como felinos.

- E isso quer dizer o quê?

- Que só há uma espécie de felinos grandes, os leopardos, que caçam as suas presas  correndo atrás delas.

- Como é que os outros felinos apanham as presas?

- Há várias estratégias. Os tigres, na Índia, ficam deitados, cobertos de folhas, à  espera que as presas apareçam. Quando as presas se aproximam o suficiente,  deitam-lhes as garras. Na África, os leões utilizam métodos de caça bastante  sofisticados. Uma das suas técnicas envolve uma leoa, que passeia de um lado para o  outro, em frente de um rebanho de gazelas, enquanto os companheiros atacam as  gazelas pela retaguarda. É, de fato, muito engenhosa e eficaz. Mas também é  bastante invulgar.

- Porquê? - perguntou Race.

- Porque implica a existência de um tipo qualquer de comunicação entre os leões.

Race voltou a olhar para o monitor.

Os três soldados tinham avançado relativamente pouco, pelo trilho em espiral e,  agora, encontravam-se cerca de três metros acima da massa de água que cobria a  base da cratera.

Race estava a observar as imagens transmitidas pela câmara do cabo Wilson, que  davam uma panorâmica daquela extensão lisa de água, quando viu um ligeiro  movimento agitar a superfície da água.

Tinha sido uma espécie de ligeira ondulação, provocada por qualquer coisa que se  encontrava mesmo à superfície.

- O que foi aquilo? - perguntou.  - Aquilo o quê?

- Wilson - disse Race, aproximando a boca do microfone. - Olha um instante para a  tua direita, para a água.

Graf e Scott também deviam ter ouvido as palavras de Race, porque, nesse  momento, as três câmaras transmitiram simultaneamente uma panorâmica da massa  brilhante de água que rodeava a base da torre de pedra.

- Não estou vendo nada... - disse Scott.

- Ali! - exclamou Race, apontando para uma nova ondulação da água.

Parecia ter sido provocada pelo movimento da cauda de um animal. Um animal que  parecia avançar em direção aos três soldados.

- Mas que diabo...? - disse Scott, olhando para a massa de água que se estendia  diante de si.

Uma pequena onda, em forma de arco, parecia cortar a superfície do lago, a grande  velocidade, mesmo por baixo de si e dos seus homens.

Scott franziu o sobrolho. Depois, deu um passo cauteloso para a frente, aproximando-se da beira da trilha e da superfície líquida, lá embaixo, a cerca de três  metros de distância.

E espreitou.

Foi então que viu três felinos pretos, subindo pela parede de pedra, por baixo dele.

Scott ergueu imediatamente a M-16 mas, nesse preciso momento, uma enorme  silhueta preta saltou de uma fenda na pedra, por trás dele, e atacou-o pelas costas,  fazendo-o voar sobre a escarpa da trilha e cair lá embaixo, na água, onde um grupo  de outras silhuetas pretas convergiram instantaneamente sobre ele.

Atordoado de temor, Race ficou a olhar fixamente para o monitor, assistindo  àquela cena horrível, filmada segundo a perspectiva de Scott. Só se viam os  contornos de uns dentes aguçados que nem lâminas e os movimentos instintivos  de braços humanos e só se ouviam os sons entrecortados produzidos por Scott e os  seus gritos inúteis.

Então, menos de um minuto depois, a câmara mergulhou na água, a tela passou a  mostrar apenas uma imagem confusa e, abruptamente, fez-se silêncio.

Na cratera, o som dos disparos quebrou aquela quietude que nada tinha de natural,  quando o soldado alemão Graf premiu o gatilho da M-16.

Mas, mal o cano da sua arma tinha acabado de cuspir uma língua brilhante de fogo -  zás! - Graf era atingido pelas garras de um felino que tinha estado à espreita, em  cima da parede de pedra, por cima dele.

Um pouco mais atrás, Chucky Wilson girou instantaneamente sobre si mesmo,  para ver a luta entre Graf e o felino, e viu que o páraquedista alemão se defendia  com unhas e dentes.

Então, de repente, a cabeça de Graf foi arrancada pelo pescoço e o seu corpo caiu ao  chão.

Wilson empalideceu.

- Oh, merda!

E, nesse momento, o felino parado junto ao corpo de Graf ergueu lentamente a  cabeça e fitou-o nos olhos.

Wilson ficou estático. O enorme felino avançou, de forma ameaçadora, saltando  sobre o corpo imóvel de Graf, em direção a ele.

Wilson deu meia volta e deu de cara com outro felino preto, parado, no caminho,  atrás de si, cortando-lhe a retirada.

Não havia por onde fugir. Não havia onde se esconder.

Wilson voltou-se outra vez, viu as fendas na parede de rocha e, por um momento,  pensou que talvez pudesse escapar-se para uma delas. Olhou para uma das fendas  da superfície rochosa e deu consigo a olhar para o focinho sorridente de um dos  felinos.

Então, com uma rapidez aterradora, as mandíbulas do enorme felino avançaram  para ele a uma velocidade fenomenal e, no instante seguinte, tudo tinha acabado.

Ficaram todos olhando para o monitor, em silêncio.

- Oh, Meu Deus! - disse, por fim Gaby Lopez, quase sem poder respirar.

- Merda - disse Lauren.

Os quatro Boinas Verdes sobreviventes limitaram-se a olhar para o monitor, sem  fala.

Race voltou-se para o zoólogo alemão, Krauss.

- Com que então, eles só saem durante a noite?

- Bem... - respondeu Krauss, encolerizado. - Parece óbvio que a escuridão que há na  base da cratera lhes permite passar ali a maior parte do dia...

- Kennedy - disse Nash, num tom ríspido. - Qual é a situação da equipe de resgate?

- Ainda estou tentando contactar o Panamá, senhor - respondeu Doogie, que  continuava junto ao sistema de rádio. - O sinal está sempre caindo.

- Continua a tentar - disse Nash, olhando para o relógio. Eram 11 e meia.

- Merda - disse Nash.

Bem gostaria de saber o que acontecera a Romano e à sua equipe. A última coisa  que soubera era que tinham saído de Cuzco, às 19 e 45 da véspera. Já deviam ter  chegado. O que é que lhes teria acontecido? Os nazis tê-los-iam abatido? Ou ter-se- iam perdido por se terem enganado na leitura dos totens?

Fosse como fosse, se ainda estivessem vivos, uma coisa era certa: iam acabar por  encontrar a aldeia.

O que queria dizer que, agora, havia dois grupos hostis a caminho de Vilcafor.

- Merda - disse Nash, mais uma vez.  Doogie foi ter com ele.

- A equipe de resgate saiu do Panamá há uma hora. Têm três helicópteros: dois  Comanches e um Black Hawk. Eles calculam que devem chegar aqui a meio da  tarde, por volta das 17 horas. Eu lancei um sinal UHF, para eles se orientarem e  virem cá buscar-nos.

Enquanto Doogie dava a notícia a Nash, um pensamento estranho assaltou Race:  por que é que o Exército não vinha retirá-los via Cuzco? Porque mandavam  helicópteros vindos do Panamá?

Era evidente que a melhor maneira de sair dali era pelo mesmo caminho por onde  tinham vindo.

Foi nessa altura que se recordou de uma frase do Manuscrito de Santiago.

Um ladrão nunca usa duas vezes a mesma entrada.  Nash voltou-se para Van Lewen.

- Temos acesso à rede de SAT-SN?

Tinha dito: «Sat-sun». A rede do satélite do Sol.

- Temos sim, senhor.

- Arranja maneira de entrar nessa rede. Vê se apanhas uma panorâmica do centro  Leste do Peru. Quero saber onde estão exatamente esses filhos da puta desses nazis.  Cochrane!

- Sim, senhor.

- Apanha uma imagem de satélite de Vilcafor. Temos que estabelecer uma posição  defensiva.

- Sim, senhor.

- O que é o SAT-SN? - perguntou Gaby Lopez.  Foi Troy Copeland quem respondeu:

- SAT-SN é a sigla de Rede de Deteção e Vigilância via Satélite. O equivalente  aéreo do SOSUS, o sistema de hidrofones que a Marinha dos EUA tem espalhados  pelo Atlântico Norte, para detectar submarinos inimigos. De uma forma muito  simples, o SAT-SN é um sistema de cinquenta e seis satélites geossíncronos, numa  órbita próxima da Terra, que monitorizam o espaço aéreo mundial, avião a avião.

- Se essa é a explicação simples, nem quero pensar no que será a complicada - disse  Race, em tom seco.

Copeland ignorou-o.

- Cada aeronave tem sete tipos diferentes de características observáveis: emissões  de radar, de infravermelhos, visual, esteiras de jato, de fumaça dos motores,  acústica e eletromagnética. Os satélites do SAT-SN utilizam todas estas  características para registar a «assinatura» e localização de todas as aeronaves do  mundo, sejam elas civis ou militares.

- Aquilo que o coronel Nash quer é uma imagem do centro Leste do Peru, para  detectar todos os aviões que sobrevoam a zona e, em especial, os aviões que  circulem fora dos corredores aéreos comerciais normais. A partir dessas imagens,  podemos ver onde estão os nossos amigos nazis e calcular o tempo que eles vão  demorar a chegar aqui.

Race olhou para Nash.

Parecia mergulhado nos seus pensamentos, como era de esperar de um líder que  acabara de perder três dos seus melhores combatentes.

- Em que é que está pensando? - perguntou Race.

- Temos que pegar o ídolo - disse Nash. - E rapidamente. Aqueles nazis podem  chegar a qualquer momento. Mas não há maneira de passar por aqueles felinos. Não  sabemos nenhuma maneira de passar por eles.

Race coçou a cabeça. Depois, disse:

- Havia alguém que sabia.

- Quem?

- Alberto Santiago.

- Como?

- Lembra-se da laje que estava encaixada na entrada do templo?

- Sim...

- Foi lá escrito um aviso: «Não entrar por nenhum motivo. A morte espreita lá  dentro.» Por baixo desse aviso, estavam escritas as iniciais A.S.. Ainda não li o  suficiente do manuscrito mas sou levado a pensar que Santiago e Renco tiveram o  mesmo problema que nós estamos a ter neste momento. Antes de eles chegarem a  Vilcafor, alguém tinha aberto e soltado os rapas. Mas, não sei como, Santiago  arranjou uma maneira de voltar a meter os felinos dentro do templo. Depois,  gravou um aviso na laje, para quem quer que fosse que se lembrasse de voltar a  abri-la. Ora, nós servimo-nos do manuscrito para encontrar esta aldeia e pensamos  que era só para isso que ele servia. Mas a cópia que eu li não estava completa. Era  capaz de apostar a minha vida em como a maneira de passar por aqueles felinos se  encontra no resto do Manuscrito de Santiago.

- Mas nós não temos o manuscrito completo - disse Nash.  - Aposto que eles têm - disse Race, apontando para os alemães sobreviventes.

Os olhos de Schroeder disseram que sim.

- E aposto que vocês só o traduziram até à parte em que ele revela a localização de  Vilcafor. Não foi? - observou Race.

- Pois foi - respondeu Schroeder. - Não o traduzimos todo.

No rosto de Nash, estampou-se uma expressão determinada. Voltou-se para  Schroeder.

- Vá buscar a sua cópia do manuscrito - disse. – Já!

Minutos depois, Schroeder entregava a Race uma enorme pilha de folhas de papel,  metidas dentro de uma pasta de cartão muito usada. A pilha de folhas era muito  maior do que a primeira que Race tivera nas mãos.

O manuscrito completo.

- O tradutor da vossa equipe não é nenhum de vocês quatro, pois não? - perguntou  Nash ao homem do BKA.  Schroeder abanou a cabeça.

- Não. O nosso especialista em línguas foi morto durante o ataque dos felinos, na  torre de pedra.

Nash voltou-se para Race.

- Parece que só o temos a você, Professor. Ainda bem que eu insisti em que viesse  conosco.

Race retirou-se para o blindado, para ler a nova cópia do manuscrito.

Depois de se encontrar em segurança dentro do grande veículo blindado, abriu a  pasta que continha o manuscrito. E deparou com uma fotocópia da capa.

Era uma capa estranha, muitíssimo diferente da capa nitidamente elaborada da  cópia que tinha visto. A principal diferença era que esta capa era notavelmente,  quase deliberadamente, sóbria.

O título, A verdadeira narração de um monge na terra dos Incas, fora escrito numa  caligrafia um tanto grosseira. Uma coisa era certa: a elegância e a majestade tinham  sido as últimas coisas que quem quer que fosse que tivesse escrito aquilo tivera em  mente.

Então, de repente, Race deu-se conta de uma coisa.

Aquilo era uma fotocópia do original do Manuscrito de Santiago.

Uma fotocópia do documento escrito pelo punho de Alberto Santiago.

Race folheou o texto. Páginas e páginas cobertas com a caligrafia pouco elaborada  de Santiago.

Foi procurando as palavras e encontrou rapidamente o lugar onde o primeiro texto  acabava, de forma tão abrupta, a parte em que Renco, Santiago e o criminoso  Bassario tinham chegado a Vilcafor, que tinham ido encontrar em ruínas, com os  corpos dos seus habitantes espalhados pela rua principal, banhados em sangue.

 

TERCEIRA LEITURA

Renco, Bassario e eu seguimos pela rua principal, deserta, de Vilcafor.

O silêncio que reinava em nosso redor encheu de medo o meu coração. Nunca  antes a floresta tropical me havia parecido tão silenciosa.

Tropecei num cadáver coberto de sangue, ao qual haviam separado a cabeça do  corpo.

Vi outros corpos, vi rostos horrorizados, de olhos esbugalhados, num terror abjeto.  Alguns deles não tinham braços nem pernas: haviam-lhes sido arrancados. Muitos,  vi eu, tinham as gargantas rasgadas por uma qualquer força exterior e violenta.

- Hernando?, sussurrei, dirigindo-me a Renco.

- É impossível, respondeu o meu bravo companheiro. Não há maneira de ele ter  chegado aqui antes de nós.

Enquanto íamos descendo a rua principal, vi o grande fosso seco que rodeava a  aldeia. Sobre ele, de um lado e do outro da aldeia, estendiam-se duas toscas pontes  de madeira, feitas de vários troncos de árvore colocados lado a lado. Pareciam ser  pontes que era possível retirar a qualquer momento: as pontes de uma cidadela. Era  claro que os atacantes de Vilcafor, fossem eles quem fossem, haviam apanhado de  surpresa os seus habitantes.

Chegamos à cidadela. Era uma grande construção feita de pedras dispostas em duas  camadas e tinha a forma de uma pirâmide mas era redonda em lugar de quadrada.

Renco bateu na grande porta de pedra, situada na base da cidadela. Chamou pelo  nome de Vilcafor e proclamou que era ele, Renco, que havia chegado com o ídolo.

Passado algum tempo, alguém do lado de dentro fez rolar para o lado a laje de pedra  e apareceram alguns guerreiros, seguidos pelo próprio Vilcafor, um homem idoso,  de cabelo grisalho e olhos encovados. Trazia vestida uma capa vermelha mas o seu  aspecto era tão majestoso como o dos mendigos que andam pelas ruas de Madrid.

- Renco!, exclamou o velho, ao ver o meu companheiro.  - Tio, disse Renco.

Foi nesse momento que Vilcafor me viu.

Julgo que esperava ver perpassar-lhe pelo rosto um olhar de surpresa - por ver um  espanhol, acompanhando o seu sobrinho, na sua heróica missão - mas tal não  aconteceu. Em vez disso, Vilcafor voltou-se para o sobrinho e disse, - É este o comedor de ouro de quem os meus mensageiros tanto me têm falado?  Aquele que te ajudou a fugir de onde estavas aprisionado, aquele que saiu de Cuzco,  cavalgando ao teu lado?

- É ele, meu tio, retorquiu Renco.

Eles falaram em Quêchua mas, por essa altura, Renco havia melhorado os meus  incipientes conhecimentos daquela estranha língua e eu era capaz de perceber  muito do que era dito.

Vilcafor resmungou:

- Um nobre comedor de ouro... hum... Não sabia da existência de tal animal. Mas,  meu sobrinho, se ele é teu amigo, é bemvindo a este lugar.

O velho chefe voltou-se mais uma vez e foi então que viu o criminoso Bassario, de  pé, atrás de Renco, com um largo sorriso ímpio estampado no rosto. Vilcafor  reconheceu-o logo.

Lançando a Renco um olhar enfurecido, perguntou:  - O que faz ele aqui?...

- Ele viaja comigo, meu tio. Por uma boa razão, respondeu Renco. Em seguida, fez  uma pausa, antes de recomeçar a falar. – Tio, o que aconteceu aqui? Foram os  espan...?"

- Não, meu sobrinho. Não foram os comedores de ouro. Não, foi uma coisa mil  vezes pior.

- O que foi?

Vilcafor curvou a cabeça.

- Este não é um lugar seguro para nele procurares refúgio, meu sobrinho...  - Porquê?  - Não... não é nada seguro.

- Que haveis vós feito, meu tio?, perguntou Renco, num tom cortante.

Vilcafor fitou-o nos olhos e, depois disto, os seus olhos perscrutaram o grande  planalto rochoso que dominava a aldeia.  - Depressa, sobrinho, vem para dentro da cidadela. Em breve será de noite e eles  saem ao anoitecer ou quando o tempo está escuro. Entra. Dentro da fortaleza  estarás a salvo.

- O que se passa aqui, meu tio?

- É culpa minha, meu sobrinho. É tudo culpa minha.

A pesada porta de pedra da cidadela rolou e fechou-se atrás de nós, com um baque  atroador.

Estava escuro, no interior da pirâmide de dois andares, iluminada somente pelos  clarões de umas poucas tochas empunhadas por alguns homens. Vi uma dúzia de  rostos assustados, encolhidos na escuridão que se estendia diante de mim:  mulheres com crianças ao colo e homens cobertos de ferimentos. Conclui que eram  todos parentes de Vilcafor, os que haviam tido a boa fortuna de se encontrarem  dentro da cidadela, quando se dera a chacina.

Também reparei num buraco quadrado, aberto no chão de pedra, no qual, de  quando em quando, entravam e saíam alguns homens. Parecia ser a entrada de um  túnel qualquer.

- É um quenko, sussurrou Bassario, junto ao meu ouvido.  - O que é isso?, inquiri.

- Um labirinto. Uma rede de túneis, escavados na rocha, por baixo de uma cidade.  Há um muito afamado, não muito longe das portas de Cuzco. De início, os quenkos  foram abertos para por eles poder fugir a elite dos poderosos. Só a família real de  cada cidade ou vila sabia o código que lhes permitiria encontrar o caminho por  entre o emaranhado de túneis de um labirinto. Todavia, agora, os quenkos são  utilizados, sobretudo, para desportos e jogos, durante a época das festas. Mandam dois guerreiros para dentro do labirinto, juntamente com cinco jaguares adultos. O  guerreiro que consegue percorrer o labirinto, escapar aos jaguares e encontrar  primeiro a saída, ganha. Outro jogo muito popular é apostar no resultado. Mas  parece-me que o labirinto desta aldeia é mais usado de acordo com a sua finalidade  original, como um túnel por onde a realeza pode bater rapidamente em retirada.

Então, Vilcafor levou-nos até um canto da cidadela onde havia uma fogueira e disse  que nos sentássemos num monte de palha. Dois ou três servos trouxeram-nos água.

- Então, Renco? Tens o ídolo?, perguntou Vilcafor.  - Tenho.

Renco extraiu o ídolo, ainda envolto na sua magnífica cobertura de seda, do bornal  que trazia consigo. Desembrulhou a figura esculpida numa brilhante pedra preta e  púrpura e o pequeno grupo reunido naquele canto da cidadela ficou sem respiração.

E creio mesmo que, sob aquela luz alaranjada e tremeluzente, as crispadas feições  felinas do ídolo adquiriram um ainda maior grau de malevolência, se é que tal era  possível.

- Tu és mesmo Aquele que foi Escolhido, meu sobrinho, disse Vilcafor. - Aquele  que está destinado a salvar o nosso ídolo daqueles que querem nos tirar. Estou  orgulhoso de você.

- E eu de vós, meu tio, disse Renco, embora, a inflexão da sua voz me desse a  entender que não era isso o que ele sentia.  - Contai-me o que aconteceu aqui.

Vilcafor acenou com a cabeça. E falou assim:

- Tenho ouvido relatar as incursões que os comedores de ouro têm feito no nosso  país. Entraram nas aldeias das montanhas e também nas aldeias que ficam nas  florestas batidas pela chuva. Desde há muito que penso que é somente uma questão  de tempo até eles acabarem por descobrir este acampamento secreto. Tendo isto  em mente, vai para dois meses, mandei abrir um novo caminho, um caminho que  vai dar bem ao coração das montanhas, longe desses bárbaros ávidos de ouro. Mas o  caminho que mandei fazer é um caminho especial. Depois de ser usado, poderá ser destruído. Então, sendo como é o terreno por estas partes, não haverá outra  entrada para as montanhas, até a vinte dias de viagem daqui. Quem quiser  perseguir-nos, terá de perder semanas, tentando ir atrás de nós e, por essa altura,  há muito que teremos partido.

- Continuai, disse Renco.

- Os meus engenheiros encontraram o lugar perfeito para esse caminho, um  desfiladeiro prodigioso não muito distante daqui. É um desfiladeiro largo e circular,  com um enorme rochedo muito alto que se ergue mesmo a meio. Assim, como as  paredes desse desfiladeiro eram perfeitas para o nosso novo caminho, ordenei que  as obras de construção começassem de imediato. Tudo correu bem até ao dia em  que os meus engenheiros chegaram ao cume do desfiladeiro. Porque, nesse dia, ao  olharem lá do alto para o desfiladeiro que se estendia aos seus pés, eles viram.

- O que viram eles, meu tio?

- Viram uma edificação, uma edificação feita pelo homem, situada no cimo do tal  rochedo muito alto.

Renco lançou um olhar preocupado na minha direção.  - Ordenei de imediato que construissem uma ponte de corda e, então,  acompanhado pelos meus engenheiros, atravessei a ponte e examinei a construção  que havia lá no alto.

Renco escutava em silêncio.

- Fosse o que fosse, não havia sido construído pela mão dos Incas. Tinha o aspecto  de uma estrutura religiosa qualquer, de um templo ou de um santuário, não muito  diferente de outros que têm sido encontrados noutras partes destas florestas.  Templos construídos pelo misterioso império que habitou estas terras muitos anos  antes de nós. Mas havia qualquer coisa de muito estranho neste templo. Havia sido  selado com uma grande laje de pedra. E, nessa laje, haviam sido inscritas muitas imagens e marcas, que nem mesmo os mais santos dos nossos homens foram  capazes de decifrar.  - E que aconteceu depois, meu tio?, inquiriu Renco.

Vilcafor baixou os olhos.

- Houve alguém que sugeriu que talvez se tratasse do lendário Templo de Sólon e,  caso assim fosse, haveria lá dentro um tesouro fabuloso de esmeraldas e jade.

- E que fizestes vós, meu tio?, inquiriu Renco, muito sério.  - Mandei abrir o templo, respondeu Vilcafor, baixando a cabeça. E, ao fazê-lo,  desencadeei um mal como antes nunca se viu. Libertei os rapas.

A noite caiu e eu e Renco encaminhamo-nos para a esplanada da cidadela, a fim de  observar a aldeia e de tentar ver o animal a que eles chamavam rapa.

Como era de esperar, Bassario havia-se retirado para um canto escuro da grande  fortaleza de pedra e havia-se sentado com as costas contra a parede, a fazer fosse lá  o que fosse.

Da esplanada da cidadela, olhei para a aldeia.

Devo dizer que, depois da nossa jornada pelas florestas, eu me havia acostumado  aos sons noturnos da selva. O coaxar das rãs, os zumbidos dos insetos, o restolhar  dos ramos mais altos, quando os macacos saltavam de uns para os outros.

Mas, ali, não havia tais sons.

A floresta que rodeava a aldeia de Vilcafor estava mergulhada num silêncio  absoluto.

Nenhum animal produzia o menor som. Nenhum ser vivo se movia.

Fiquei a olhar para os cadáveres que se encontravam espalhados pela rua principal.

- O que foi que aconteceu aqui?, perguntei, baixinho, a Renco.  A princípio, ele não respondeu. Depois, por fim, disse:

- Foi posto à solta um grande mal, meu amigo. Um grande mal.

O que queria dizer o seu tio, quando disse que o que eles encontraram podia ser de  Sólon? Quem ou o que é Sólon?

Renco disse:

- Durante milhares de anos, foram muitos os grandes impérios que habitaram estas  terras. Não sabemos muito acerca desses impérios, a não ser aquilo que aprendemos  com as edificações que eles deixaram para trás e as histórias que iam sendo  contadas, de pais para filhos, entre as tribos locais. Uma lenda muito popular entre  as tribos desta região fala de um estranho império de homens que se chamavam a si  mesmos Moxe ou Moche. Os Moxe eram grandes construtores e, segundo dizem os nativos locais, idolatravam o rapa. Há mesmo quem diga que eles domesticaram o  rapa mas isso é coisa que muitos não acreditam.

- Seja como for, a fábula que as tribos locais mais gostam de contar acerca dos Moxe  fala de um homem chamado Sólon. Diz a lenda que Sólon era um homem  notavelmente inteligente, um grande pensador e que, por isso, não tardou a ser  nomeado conselheiro principal do imperador Moxe. Quando Sólon ficou velho,  como recompensa pelos seus serviços leais, o imperador presenteou-o com um  tesouro fabuloso e prometeu-lhe que iria mandar construir um templo em honra  dele. O imperador disse a Sólon que poderia ser construído no local que ele desejasse e que poderia ter a forma que mais lhe aprouvesse. Os melhores engenheiros do imperador construiriam aquilo que ele quisesse.

Renco olhou para diante, para a escuridão.

- Diz-se que Sólon pediu que fosse construído num lugar secreto e que todas as suas  riquezas fossem postas lá dentro. Então, ordenou aos melhores caçadores do  imperador que capturassem uma matilha de rapas e que os colocassem dentro do  templo, juntamente com a sua fortuna.

- Ele mandou pôr uma matilha de rapas dentro do templo?  - Assim foi, respondeu Renco. Mas, para se perceber por que o fez, é preciso  perceber o que pretendia Sólon. Ele queria utilizar o seu templo para fazer um teste  póstumo ao comportamento humano.  - Que queres dizer com isso?

- Sólon sabia que a notícia sobre o seu imenso tesouro, guardado dentro do templo,  depressa se espalharia. Sabia que a cobiça e a avareza levariam os aventureiros a  procurar e a pilhar a sua riqueza, e, por isso, transformou o seu templo num teste,  Um teste à escolha entre uma riqueza fabulosa e uma morte certa. Um teste para  ver se o homem era capaz de controlar a sua própria e irresponsável cobiça.

Fiquei pensando nisto, em silêncio.

- O templo de que fala Vilcafor, disse eu, aquele que fica no cimo do tal rochedo  grande e muito alto... Achas que é de Sólon?

Renco suspirou.

- Se for, ficarei muito triste.  - Porquê?

- Porque isso quer dizer que fizemos uma longa caminhada, para vir morrer aqui.

Fiquei algum tempo com Renco, na esplanada da cidadela, a olhar para a chuva que  continuava a cair.

Passou uma hora.

Do lado da floresta, não se via nada. Mais uma hora. Nada ainda.

A certa altura, Renco disse-me que voltasse para dentro da cidadela e dormisse.  Obedeci de bom grado às suas ordens, pois estava muitíssimo cansado da nossa  longa jornada.

E, assim, retirei-me para o corpo central da cidadela, onde me deitei sobre um  monte de palha. Aos cantos da divisão, ardiam pequenas fogueiras.

Repousei a cabeça no feno mas, mal havia fechado as pálpebras, senti que me  tocavam no ombro com insistência. Abri os olhos e dei comigo a olhar para o rosto  mais feio que alguma vez havia visto em toda a minha vida.

Acocorado diante de mim, estava um velho, que me sorria com a boca desdentada.  Das sobrancelhas, do nariz e dos ouvidos, saíam-lhe horrendos tufos de pêlos  grisalhos.

- Saudações, comedor de ouro, - disse o velho. Ouvi contar o que fizeste pelo  jovem príncipe Renco, ajudando-o a escapar-se da prisão, e queria manifestar-te a  minha mais profunda gratidão.

Olhei ao meu redor. As fogueiras haviam-se apagado e as pessoas que, antes,  andavam de um lado para o outro pela sala estavam agora em silêncio, dormindo.  Devo ter mesmo adormecido, pelo menos por algum tempo.

- Oh!... respondi. Não tens de me agradecer.

O velho encostou um dedo ossudo no meu peito e abanou a cabeça, com um ar de  quem sabia muitas coisas.

- Tem cautela, comedor de ouro, Fica sabendo que Renco não é a única pessoa e o  destino depende daquele ídolo.

- Não compreendo.

- O que eu quero dizer é que o papel de Renco como guardião do Espírito do Povo  provém diretamente do Oráculo de Pahacárnac. A boca do velho contorcia-se, mais  uma vez, num sorriso desdentado. - E o seu também.

Já me haviam falado do Oráculo de Pahacármac. O oráculo era a velha mulher que  tomava conta do santuário que ali havia, a guardiã tradicional do Espírito do Povo.

- Porquê?, inquiri. - O que disse o Oráculo de mim?  - Pouco depois de os comedores de ouro chegarem às costas das nossas terras, o  Oráculo anunciou que o império iria cair. Mas ela também disse que, enquanto o Espírito do Povo não caísse nas mãos dos conquistadores, a nossa alma continuaria  viva. Todavia, deixou bem claro que somente um homem, e somente esse homem,  podia manter o ídolo em segurança.

- Renco.

- Ele mesmo. Mas as palavras completas dela foram as seguintes:

Há de chegar o dia em que ele virá, Um homem, um herói, ostentando a Marca do Sol.

Ele há de ter a audácia de lutar contra grandes lagartos, Ele há de ter a jinga, Ele há de contar com a ajuda de homens de coração bravo, De homens capazes de dar a vida, em honra da sua nobre causa, E ele há de cair dos céus, para salvar o nosso espírito.

Ele é Aquele que foi Escolhido.

- Aquele que foi Escolhido?, inquiri eu.  - Isso mesmo.

Perguntei a mim mesmo se eu me incluiria na categoria dos «homens de coração  bravo», capazes de dar a vida para ajudar Renco, e conclui que não era esse o caso.

Em seguida, pus-me a pensar na palavra «Jinga», que o Oráculo havia utilizado,  Lembrei-me de que, na cultura inca, aquela era uma qualidade muito reverenciada.  Era uma combinação rara de serenidade, equilíbrio e velocidade: a capacidade de  um homem se movimentar como um felino.

Recordei-me da nossa ousada fuga de Cuzco, da leveza com que Renco havia  saltado de telhado em telhado e do modo como se havia deixado escorregar pela  corda até ao dorso do meu cavalo. Seria que ele se havia deslocado com o andar  firme e ágil de um felino? Sem sombra de dúvida.

- O que queres dizer com isso de ele ter a audácia de lutar contra grandes lagartos?  Inquiri.

O velho retorquiu:

- Quando Renco era um rapazinho de treze anos, a mãe dele foi apanhada por um  jacaré, quando estava pegando água nas margens do rio da aldeia dela. O jovem  Renco estava com ela e, ao ver o monstro arrastar a mãe para dentro do rio,  mergulhou na água atrás dela e lutou com aquele horrendo animal, até este a soltar  das suas garras. Não há muitos homens capazes de lutar com tão temível criatura. E  rapazes de treze anos ainda menos.  Engoli em seco.

Não sabia nada deste extraordinário ato de coragem de Renco, quando tinha apenas  treze anos. Sabia que era um homem corajoso... mas isto?! Bem, verdade seja dita:  eu nunca seria capaz de fazer tal coisa.

O velho deve ter lido os meus pensamentos. Voltou a bater com o dedo comprido e  ossudo no meu peito.

- Não menosprezes a bravura do seu próprio coração, jovem comedor de ouro, disse  ele. - Demonstraste uma enorme coragem, ao ajudares o nosso jovem príncipe a  fugir de uma prisão espanhola. Em boa verdade, alguns diriam que demonstraste a  maior coragem de todas, a coragem de fazer aquilo que está certo.

Inclinei a cabeça, com modéstia.  O velho debruçou-se sobre mim.

- Penso que os atos ditados por este tipo de coragem também devem ser  recompensados. Como prêmio pela sua valentia, gostaria de lhe oferecer isto.  Estendeu-me uma bexiga que havia evidentemente sido retirada do corpo de um  pequeno animal. Parecia estar cheia de um líquido qualquer.

Agarrei na bexiga. Numa das extremidades, tinha uma abertura pela qual, conjecturei, quem pegasse na bexiga poderia vazar o seu conteúdo.

- O que é isto?, inquiri.

- É urina de macaco, respondeu o velho, animadamente.  - Urina de macaco, repeti eu, atônito.

- É para te proteger dos rapas, explicou o velho. - Lembra de que o rapa é um felino  e que, como todos os felinos, é a mais presunçosa das criaturas. Segundo contam as  tribos desta região, há alguns líquidos que o rapa despreza com o maior dos ardores.  Líquidos que, se espalhados sobre o corpo de alguém, farão fugir o rapa.

Sorri ao velho, sem vontade. Afinal, sempre era a primeira vez que me ofereciam a  urina de uma animal da selva, como sinal de apreço.

- Obrigado, disse eu. - É... um presente... maravilhoso.  O velho parecia muitíssimo satisfeito com a minha resposta e, por isso, disse:

- Então, gostaria de lhe oferecer outro.

Cheguei a pensar em dispensar a sua generosidade, não fosse ele oferecer-me mais  uma variedade de dejeto animal. Mas o seu segundo presente não era de natureza  material.  - Gostaria de partilhar um segredo contigo, disse ele.

- E que segredo é esse?

- Se alguma vez tiveres de fugir desta aldeia, entra no quenko e segue pelo terceiro  túnel que encontrares ao teu lado direito. A partir daí, vira alternadamente à  esquerda e, depois, à direita, seguindo sempre pelo primeiro túnel que encontrar,  mas certifica de que viras à esquerda da primeira vez. O quenko levar-te-á até à  queda de água que corre logo acima da grande floresta. O segredo do labirinto é  simples, somente é preciso saber por onde começar. Confia em mim, jovem  comedor de ouro, e cumpre à risca o que eu te disse destes presentes. Eles podem salvar a sua vida.

Repousado pelo meu breve sono, voltei mais uma vez à esplanada da cidadela.

Chegado ali, encontrei Renco, que, nobremente, continuava a sua vigília. Devia  estar sumamente cansado mas não deixava entrever a mínima fadiga. Limitava-se a  olhar, vigilante, para a rua principal da aldeia, indiferente às torrentes de chuva que  lhe desabavam sobre a cabeça. Cheguei ao seu lado, sem dizer palavra, e segui o seu  olhar voltado para a aldeia.

Sem contar com a chuva, nada se mexia. Não, nada produzia o menor som.

A misteriosa quietude da aldeia era assustadora. Quando falou, Renco não voltou o  rosto para mim.  - Vilcafor diz que abriu o templo à luz do dia. Em seguida, mandou cinco dos seus  melhores guerreiros entrar lá dentro, à procura do tesouro de Sólon. E eles não  regressaram. Foi só ao cair da noite que os rapas saíram do templo.

- E agora andam cá por fora?, perguntei, temeroso.  - Se andam, não consegui vê-los.

Olhei para Renco. Tinha os olhos vermelhos e grandes bolsas de inchaço por baixo  deles.

- Tens de dormir, meu amigo, disse-lhe, baixinho. - Tens de conservar as tuas  forças, em especial se os meus compatriotas derem com esta aldeia. Vai dormir  agora, que eu fico de vigia e acordo-te, se vir alguma coisa.

Renco abanou a cabeça, lentamente.

- Como de costume, tens razão, Alberto. Obrigado.

E, dito isto, foi para dentro e eu fiquei ali sozinho, na esplanada da cidadela,  sozinho na noite.

Na aldeia, lá em baixo, nada se movia.

Aconteceu mais ou menos uma hora depois de eu ter começado a minha vigília.  Havia estado a observar o ondular das águas do rio, que brilhavam como prata, sob  a luz do luar. Então, de repente, uma pequena balsa surgiu no meu campo de visão.  Espiei os três vultos que se encontravam de pé, na embarcação, como sombras  escuras na noite.

O meu sangue ficou gelado. Homens de Hernando...

Estava prestes a ir a correr chamar Renco, quando a balsa encostou ao pequeno  desembarcadouro de madeira da aldeia e os seus passageiros saltaram para o cais.  Então, pude olhar melhor para eles.

Os meus ombros curvaram-se, de alívio. Não eram conquistadores.

Eram incas.

Um homem, envergando as vestes tradicionais dos guerreiros incas, e uma mulher  com uma criança pequena, todos protegidos da chuva por capas e capuzes.

As três figuras avançavam lentamente pela rua principal, mirando com um temor  respeitoso as provas da carnificina, visíveis na rua lamacenta, à sua volta.

E foi então que o vi.

A princípio, pensei que era somente a sombra oscilante de um ramo sobre a parede  de uma das cabanas, alinhadas ao longo da rua. Mas, então, a sombra do ramo foi  varrida da parede da cabana e o seu lugar foi ocupado por outra sombra.

Vi os contornos escuros de um enorme felino, vi a bela cabeça felina, a curvatura  do focinho, as pontas das orelhas pontiagudas.

Vi a boca da criatura abrir-se silenciosamente, preparando-se para matar.

A princípio, nem queria crer no seu tamanho. Fosse o que fosse, era um animal  enorme.

E, então, de repente, o animal havia desaparecido e eu estava a olhar somente para  a parede da choupana, nua e vazia, iluminada pela luz do luar.

Os três incas encontravam-se agora a pouco mais de vinte passos da cidadela.

E eu sussurrei-lhes, um pouco alto de mais, em Quêchua:  - Aqui! Vinde depressa! Vinde depressa!

A princípio, eles pareciam não perceber o que eu estava a dizer. E, então, o  primeiro animal, começou a avançar lentamente pela rua principal, atrás deles.

- Correi!», gritei. - Eles estão atrás de vós!

O homem do grupo voltou-se e viu o felino gigantesco, de pé, sobre a lama, atrás  deles.

O animal avançava lentamente, em passadas precisas e bem calculadas. Parecia uma  pantera. Uma enorme pantera negra. No focinho preto afilado, uns frios olhos  amarelos miravam o grupo, uns olhos que tinham a fixidez gélida dos olhos de um  felino.

Nesse momento, um segundo animal veio juntar-se ao primeiro e os dois rapas  olharam fixamente para o pequeno grupo que tinham diante deles.

- Corram!, gritei eu. - Corram!

O homem e a mulher começaram a correr em direção à cidadela.

Os dois felinos que se encontravam na rua deram um salto e foram atrás deles.

Eu corri para a entrada da porta que se abria da esplanada da cidadela para o corpo  principal da construção.

- Renco! Alguém! Abram a porta principal! Há gente lá fora!  Voltei a correr para o beiral da esplanada e cheguei lá mesmo a tempo de ver a  mulher chegar à base da cidadela, com a criança nos braços. O homem vinha logo  atrás dela.

Os felinos saltitavam rua fora.

Lá embaixo, ninguém havia aberto a porta.

A mulher olhou para cima, para mim, com um olhar assustado e, por breves  instantes, dei comigo fascinado pela sua beleza. Era a mulher mais impressionante  que alguma vez eu havia...  Então, tomei uma decisão.

Arranquei o manto do corpo e, segurando-o por uma das pontas, lancei a outra  ponta pelo beiral da esplanada.

- Agarra o meu manto! Gritei. - Eu puxo-os para cima!

O homem agarrou a outra ponta do meu manto e estendeu-a à mulher.

- Vai! Gritou ele. - Vai!

A mulher agarrou-se ao meu manto e eu puxei-o para cima, com todas as minhas  forças, tentando içá-la e à criança que trazia nos braços, até à esplanada da cidadela.

Mal a mulher havia erguido os pés do solo, vi o guerreiro que se encontrava por  trás dela ser atacado por um dos rapas. O corpo do homem fez um barulho  medonho, quando ele foi atirado contra a parede exterior da cidadela. Soltou gritos  terríveis, quando o rapa começou a comê-lo vivo.

Com todas as minhas forças, puxei o manto, arrastando para cima a mulher e a  criança.

Os dois chegaram junto ao beiral da esplanada e, por entre a chuva leve que caía, a  mulher agarrou-se à pedra das seteiras, tentando, ao mesmo tempo, entregar-me o  filho. Era um rapazinho, muito pequeno, com olhos castanhos, grandes e  assustados.

Lutei para conseguir segurar tudo - a mulher, o rapazinho e a minha capa - e olhei  para baixo. Horrorizado, vi vários outros rapas, que haviam acorrido à rua principal  de Vilcafor, para assistir à cena.

Naquele preciso momento, um dos felinos saltou da lama e tentou cravar as fauces  nos pés pendentes da mulher. Mas ela era muito esperta. No último instante,  levantou os pés e as fauces do felino fecharam-se sobre o ar.

- Ajudai-me, pediu ela, com um olhar desvairado.

- Eu ajudo, disse eu, sentindo a chuva a bater-me no rosto. De súbito, o felino que  se encontrava lá em baixo, tentou novamente apanhá-la, desta vez, com as suas  enormes garras. E, desta vez, conseguiu prender a bainha da capa da mulher e, para  meu grande horror, vi a capa esticar-se devido ao seu peso.

- Não!, gritou a mulher, ao sentir o peso do felino puxá-la para baixo.

- Oh, Senhor!, exclamei eu.  Nesse instante, o felino puxou com maior força pela capa da mulher e ela apertou a  minha mão com mais força. Mas de nada serviu: o felino era demasiado pesado,  demasiado forte.

Com um último grito, a mulher escapou-se-me da mão e, com o filho nos braços,  caiu do parapeito, desaparecendo de minha vista.

Foi então que eu fiz o que era impensável.

Saltei do beiral, atrás dela.

A té hoje, não sei por que o fiz.

Talvez haja sido o modo como ela se agarrava ao filho que me levou a fazê-lo. Ou  talvez haja sido o olhar de puro terror, naquele belo rosto.

Ou talvez haja sido somente o seu belo rosto. Não sei.

Aterrei, de modo nada heróico, no charco de lama que ficava diante da cidadela. E,  quando o fiz, aquela coisa úmida e castanha espalhou-se-me pelo rosto, cegando- me. Limpei a lama que me cobria os olhos.

E, logo a seguir, vi à minha volta, encerrando-me num semicírculo, nada menos de  sete rapas, que me fitavam com aqueles seus olhos frios e amarelos.

O meu coração começou a bater com toda a força, dentro do meu peito. E eu não  fazia a menor idéia do que tencionava fazer.

A mulher e o menino estavam mesmo ao meu lado. Avancei, para me pôr à frente  deles e gritei ferozmente para a falange de monstros que se encontravam diante de  nós.

- Ide! Fazei o que eu vos digo. Ide!

Retirei uma seta da aljava que trazia às costas e agitei-a para trás e para diante,  diante das fauces gigantescas dos felinos.

Os rapas não pareceram nada impressionados com o meu patético ato de bravata.

E aproximaram-se mais de nós. Agora, devo dizer que, se vistas de longe, da  esplanada da cidadela, estas criaturas pareciam enormes, vistas de perto, pareciam  absolutamente imensas. Negras, negras e vigorosas.

Então, abruptamente, o rapa que se encontrava mais perto de mim, estendeu uma  das patas da frente e arrancou a ponta aguçada da minha seta. Em seguida, aquela  enorme criatura arreganhou-me os dentes, firmou bem o corpo para saltar e  então...

Qualquer coisa caiu, com um grande estrondo, num charco de lama, à minha  direita.

Voltei-me para ver o que era. E franzi o sobrolho. Era o ídolo.

Era o ídolo de Renco.

Os meus pensamentos rodopiavam. O que estava ali a fazer o ídolo de Renco? Por  que haveria alguém de o atirar para a lama, numa ocasião como aquela?

Nesse instante, olhei para cima e vi o próprio Renco, debruçado sobre o beiral da  esplanada da cidadela. Havia sido ele quem me havia atirado o ídolo.

E foi então que aconteceu. Senti-me gelar.

Era um barulho como eu nunca havia ouvido em toda a minha vida.

Era somente um leve som mas muito penetrante. Cortava o ar que nem uma faca,  atravessando o próprio som da chuva a cair. Era semelhante ao som de um  carrilhão, quando alguém o toca. Era uma espécie de cantilena alta e aguda.

Hummmm.  Os rapas também o ouviram. Em boa verdade, aquele que, somente uns momentos  antes, se preparava para atacar, estava agora ali parado, diante de nós, numa espécie  de espanto maravilhado, a olhar fixamente para o ídolo, que se encontrava meio  submerso no charco acastanhado, a meu lado.

Foi então que aconteceu a mais estranha de todas as coisas. O grupo de rapas em  nosso redor começou lentamente a recuar. Os rapas estavam fugindo do ídolo.

- Alberto, estás ouvindo?, sussurrou Renco, - Move-te muito devagar. Muito  devagar. Agarra no ídolo e vai para junto da porta. Eu vou mandar alguém, para te  deixar entrar.

Eu obedeci à sua ordem, ao pé da letra.

Com a mulher e a criança atrás de mim, segurei o ídolo nas minhas mãos, e com as  costas firmemente encostadas ao muro da cidadela, fomos caminhando ao longo da  parede circular exterior, até chegarmos à porta.

Pelo seu lado, os rapas limitaram-se a seguir-nos a uma prudente distância,  fascinados pelo canto melodioso do ídolo molhado.

Mas não fizeram qualquer menção de atacar.

E, então, de repente, a grande laje de pedra que fazia as vezes de porta da cidadela  rolou para o lado e entramos todos. Eu fui o último a fazê-lo e, enquanto a grande  pedra voltava a girar para o seu lugar, depois de eu ter entrado, caí para o chão, mal  podendo respirar, a suar e a tremer, e totalmente surpreso por ainda me encontrar  vivo.

Renco veio ao nosso encontro, correndo, vindo da esplanada.  - Lena!, exclamou, ao reconhecer a mulher. - E Mani!, gritou, pegando no rapazinho ao colo.

Eu deixei-me ficar caído no chão, exausto, sem tomar parte em toda aquela  felicidade.

Agora envergonho-me de o dizer mas, naquele momento, senti realmente uma  ferroada de ciúme do meu amigo Renco. Sem dúvida que aquela mulher  extraordinariamente bela era a sua esposa, como seria de esperar de um  personagem tão pomposo como Renco.

- Tio Renco!, exclamou o rapazinho, enquanto Renco o erguia no ar.

- Tio? Os meus olhos abriram-se de surpresa.

- Irmão Alberto, disse Renco, aproximando-se de mim. - Não sei o que planejavas  fazer lá fora mas o meu povo costuma dizer: Não é a dádiva que conta mas a  intenção de quem a faz. Obrigado. Obrigado por teres salvo a minha irmã e o filho  dela.

- A tua irmã?, disse eu, olhando para a mulher que, nesse momento, despia a capa  ensopada em água, deixando a descoberto uma peça de vestuário semelhante a uma  túnica, também ela encharcada e colada ao seu corpo.

Aquilo que vi fez-me engasgar.

Ela era muito mais bela do que, inicialmente, eu me dera conta, se, na verdade, tal  coisa era possível. Teria, talvez, uns vinte anos, olhos castanhos e doces, uma pele  suave cor de azeitona e delicados cabelos escuros. Tinha umas pernas esguias e  compridas, ombros graciosamente musculados e, através das vestes molhadas,  viam-se os seus seios fartos e, para meu embaraço, os seus mamilos eretos.

Era radiosa, Renco envolveu-a numa manta seca e ela sorriu-me. Confesso que  senti uma enorme fraqueza nos joelhos.

- Irmão Alberto Santiago, disse Renco, num tom formal. - Deixa-me apresentar-te a  minha irmã, Lena, primeira princesa do império inca.

Lena deu um passo em frente e agarrou a minha mão entre as suas.

- É um prazer conhecer-vos, disse ela, sorrindo. - E muito obrigada pelo vosso ato  de grande coragem.

- Oh, não foi... nada, respondi, corando.

- E muito obrigada também, por terdes resgatado da prisão este meu irmão  aventureiro, disse ela.

Mas, ao ver a minha surpresa, acrescentou:

- Oh, ficai tranquilo, meu herói. As novas do vosso nobre feito espalharam-se pelo  império.

Inclinei a cabeça, com modéstia, Agradava-me a maneira como ela me chamava  «meu herói».

Então, ocorreu-me um pensamento e voltei-me para Renco.  - Como sabias que o ídolo teria aquele efeito sobre os rapas?  Renco fez um sorriso travesso.

- Para dizer a verdade, eu não sabia que o ídolo iria fazer aquilo.

- O quê?! Exclamei.  Renco riu-se.

- Não fui eu, Alberto, quem saltou de uma esplanada perfeitamente segura, para  salvar uma mulher e uma criança que nem sequer conhecia!

Então, Renco pôs um braço à volta dos meus ombros.

- Dizia-se que o Espírito do Povo tinha o dom de amansar animais selvagens. Eu  nunca havia visto tal mas tinham-me dito que, quando imerso em água, o ídolo era  capaz de acalmar o mais raivoso dos animais, Quando fui acordado pelos teus gritos  e vos vi aos três, rodeados de rapas, achei que era uma boa altura para testar tal  teoria.

Abanei a cabeça de espanto.

- Renco, disse Lena, dando um passo em frente. - Lamento, perturbar a tua alegria  mas trago uma mensagem.

- O que é?

- Os espanhóis tomaram Roya. Mas não sabem decifrar os totens. Por isso, de cada  vez que chegam junto de um, mandam os batedores chancas esquadrinhar a área em  volta, até encontrarem a vossa pista. Depois de os comedores de ouro saquearem  Paxu e Tupra, eu fui mandada ali, para te dar conta do avanço deles, porque sou  uma das poucas pessoas que conhece o código dos totens. Depois, fiquei a saber que  eles haviam deitado fogo a Roya, que ficou totalmente destruída. Eles encontraram  o teu rastro, Renco. E dirigem-se para aqui.

- Quanto tempo? Inquiriu Renco.  O rosto de Lena ficou sombrio.

- Eles andam depressa, meu irmão. Muito depressa. À velocidade a que avançam,  calculo que estarão aqui ao romper do dia.

- Encontrou alguma coisa? - disse subitamente a voz de Frank Nash, nas costas de  Race.

Race ergueu os olhos do manuscrito e viu Nash, Lauren, Gaby e Krauss à porta do  blindado, olhando para ele, com ar expectante. A tarde já ia avançada e, por causa  das nuvens de tempestade que o cobriam, o céu já estava bastante escuro.

Race olhou para o relógio.

Eram 16:55.

Droga.  Não se dera conta de que estava lendo havia tanto tempo. Dentro em pouco seria  noite. E, com ela, iam aparecer os rapas.  - Então? Já encontrou alguma coisa? - insistiu Nash.

- Hum... - começou Race.

Deixara-se absorver tanto pelo manuscrito que quase se esquecera do motivo por  que estava a lê-lo - para descobrir qualquer coisa sobre a maneira de derrotar os  rapas e voltar a fechá-los no templo.

- Então?... - repetiu Nash.

- Diz que eles só aparecem à noite ou em lugares em que está muito escuro.

Krauss disse:

- O que explica porque estavam eles ativos, há pouco, na cratera. Mesmo durante o  dia, é um lugar tão escuro que eles...

- Também parece que os rapas já conheciam esta aldeia como um lugar onde havia  comida - disse Race, interrompendo Krauss, antes que ele pudesse justificar o seu  erro anterior, um erro que tinha tido por resultado a morte de três bons soldados. -  No manuscrito, eles atacaram-na por duas vezes.

- Diz aí como é que eles foram parar dentro do templo?

- Sim. Diz que foram mandados pôr lá por um grande pensador, que queria fazer do  templo um teste à ganância humana. - Race fitou Nash, com uma expressão mordaz.  - Acho que não passamos no teste.

- De Sólon... - suspirou Gaby Lopez.

- Não diz nada sobre a forma de os combater? - perguntou Nash.

- Na verdade, diz duas coisas acerca disso. Uma delas é a urina de macaco. Segundo  parece, todos os felinos odeiam urina de macaco. Se nos besuntarmos com urina de  macaco, os rapas afastam-se de nós.

- E a segunda coisa? - perguntou Lauren.

- É muito estranha - disse Race. - A certa altura da história, quando os felinos se  preparavam para atacar Santiago, o príncipe inca atirou o ídolo para um charco de  água. Quando entrou em contato com a água, o ídolo começou a emitir um estranho  zumbido e parece que isso evitou que os felinos atacassem.

Ao ouvir aquilo, Nash franziu o sobrolho.

- É mesmo esquisito - prosseguiu Race, - Santiago diz que o som era semelhante ao  repicar de sinos. Parece que funciona segundo o mesmo princípio que um apito  para cães, uma espécie de vibração de alta-frequência, que afeta os felinos mas não  os seres humanos.

- A coisa mais estranha - acrescentou Race - é que parece que os Incas sabiam disso.  Há duas ou três passagens do manuscrito, onde se diz que os Incas sabiam que,  quando imerso com água, o ídolo tinha a faculdade de acalmar todos os animais, até  o mais selvagem.

Nash olhou para Lauren.

- Pode ser um efeito de ressonância - disse ela. - o contato com as moléculas  concentradas de oxigênio, contidas na água, poderia fazer ressoar o tírium, da  mesma maneira que outras substâncias nucleares reagem ao oxigênio do ar.

- Mas isto tinha que ser a uma escala muito maior... - disse Nash.

- Provavelmente, foi por isso que o monge também ouviu o zumbido - disse  Lauren. - Os seres humanos não ouvem a ressonância causada, por exemplo, pelo  contato do plutônio com o oxigênio. A frequência é demasiado baixa. Mas, como o  tírium é muitíssimo mais denso que o plutônio, é possível que, ao entrar em  contato com a água, a ressonância seja tão alta que possa ser ouvida pelo homem.

- E, se o monge a ouviu, deve ter sido muito pior para os felinos - opinou Krauss,  num tom irônico.

Todos se voltaram para Krauss.

- Lembrem-se de que os felinos têm uma capacidade auditiva aproximadamente dez  vezes superior à dos seres humanos. Ouvem coisas que, materialmente, nós não  conseguimos ouvir e comunicam entre si, numa frequência que está para além da  gama de sons que nós somos capazes de ouvir.

- Eles se comunicam uns com os outros? - perguntou Lauren, em tom inalterado.

- Comunicam - respondeu Krauss. - Há muito que foi estabelecido que os grandes  felinos se comunicam por meio de rugidos e de vibrações guturais, que estão para  além da percepção auditiva dos seres humanos. Mas a questão é esta: seja o que for  que o tal monge tenha ouvido, deve ter sido apenas um décimo daquilo que os  felinos ouviram. A cantilena deve tê-los deixado loucos e foi isso que deu uma  abertura ao monge.

- O manuscrito vai um pouco mais longe do que isso - disse Race. - o som não os  fez só parar. Segundo parece, os felinos foram atrás do ídolo, depois de este ter  caído na água. Era como se se sentissem atraídos por ele ou mesmo hipnotizados.

Nash perguntou:

- O manuscrito diz alguma coisa acerca de como o ídolo foi parar dentro do templo?

- Não - respondeu Race. - Pelo menos, até agora. Quem sabe? Talvez Renco e  Santiago tenham molhado o ídolo e o tenham usado para levar os felinos de volta  para dentro do templo. Fosse como fosse, conseguiram atrair os felinos para dentro  do templo e, ao mesmo tempo, puseram lá o ídolo. - Race fez uma pausa. - Na  verdade, não deixa de ser apropriado. Quando guardaram o ídolo dentro do templo,  estavam apenas a transformá-lo num novo teste à ganância humana.

- O manuscrito diz que esses felinos são noturnos, não é verdade? - perguntou  Nash.

- Diz que eles gostam da escuridão, seja a escuridão da noite ou outra qualquer. Isso  deve querer dizer que eles são noturnos. Mais ou menos.

- Mas diz que eles desciam à aldeia, todas as noites, à procura de comida?

- Diz.

Os olhos de Nash estreitaram-se.

- Então, podemos concluir que eles saem todas as noites da cratera para caçar  comida?

- Com base no que diz o manuscrito, parece ser uma conclusão válida.

- Ótimo - disse Nash, voltando-se.

- Porquê?

- Porque - respondeu Nash - esta noite, quando eles saírem, nós vamos entrar no  templo e tirar de lá o ídolo.

A cada minuto que passava, o dia ia ficando mais escuro.

As negras nuvens, anunciadoras de tempestade, deslizavam pelo céu e, com o ar  frio do fim da tarde, um espesso nevoeiro cinzento abateu-se sobre a aldeia. Caía  uma chuva fraquinha.

Race sentou-se ao lado de Lauren, enquanto ela empacotava o equipamento que ia  levar para a cidadela, tendo em vista as atividades noturnas.

- Então? Como é que tem sido a vida de casada? - perguntou, tão  descontraidamente quanto foi capaz.

Lauren sorriu para consigo mesma, com ironia.

- Depende da vida de casada de que estejas a falar.  - Tens mais do que uma?

- O meu primeiro casamento não correu lá muito bem. Acontece que ele não  partilhava as minhas ambições quanto à carreira. Divorciamo-nos há mais ou  menos cinco anos.

- Ah!...

- Mas voltei a casar, ainda não há muito tempo - acrescentou Lauren. - E tem sido  ótimo. Ele é muito simpático. Na verdade, é como você. E também tem muito  potencial.

- Há quanto tempo?

- Faz agora dezoito meses.

- Ainda bem - disse Race, polidamente. A verdade era que estava a pensar na cena a  que tinha assistido: Lauren e Troy Copeland, beijando-se apaixonadamente, na  retaguarda do Huey. Reparara que Copeland não usava aliança. Seria que Lauren  tinha um caso com ele? Ou talvez Copeland não gostasse de usar aliança...

- Casaste, Will? - perguntou Lauren, arrancando-o aos seus pensamentos.

- Não - respondeu Race, baixinho. - Nunca casei.

- O relatório do SAT-SN está saindo - disse Van Lewen, que se encontrava junto a  um terminal de computador, num dos lados do blindado.

Nesse momento, Van Lewen, Cochrane, Reichart, Nash e Race encontravam-se  dentro do veículo todo-terreno de oito rodas, juntamente com os dois agentes do  BKA - Schroeder e a mulher loira, Renée Becker. O ATV estava estacionado perto  do rio, a curta distância da ponte de troncos e do caminho lamacento que ia dar à  abertura, à espera do assalto noturno ao templo.

Lauren já tinha partido para a cidadela, levando a reboque Johann Krauss.

Buzz Cochrane tinha acabado de regressar ao ATV, com uma mão-cheia de uma  papa mole e acastanhada. Dentro do espaço limitado do veículo, aquilo exalava um  cheiro execrável.

- Não consegui encontrar um único macaco que pudesse apanhar e obrigar a mijar -  disse Cochrane. - Devem pôr-se todos a andar daqui, antes de anoitecer. - E  estendeu a mão que segurava a papa acastanhada. - Mas consegui arranjar isto.  Merda de macaco. Achei que talvez desse o mesmo resultado.  O cheiro fez arrepiar Race.

Cochrane viu o arrepio.

- O que foi? Não quer tomar banho em merda, Professor? Olhou para Renée e  sorriu. - Ainda bem que não é o professor que vai lá, não acha?

Cochrane começou a espalhar os excrementos de macaco pelas calças da farda de  trabalho. Reichart e Van Lewen fizeram o mesmo. E puseram também um pouco à  volta das estreitas fendas que faziam às vezes de janelas do ATV Algumas horas antes, enquanto Race estivera a ler o manuscrito, Nash mandara os  outros civis estabelecer uma base de operações, dentro da cidadela. E, enquanto  eles faziam isso, os quatro Boinas Verdes sobreviventes tinham tentado reparar o  Huey que restava. Infelizmente, eles só tinham conseguido consertar os tubos de alimentação da ignição do helicóptero. E reparar o rotor da cauda danificado era,  afinal, mais complicado do que Cochrane previra. Tinham surgido algumas  dificuldades e a peça continuava a não rodar e, sem ela, o helicóptero não podia  voar.

Então, quando começara a escurecer, Nash decidira que ir buscar o ídolo era  prioritário. Os Boinas Verdes tinham sido afastados do helicóptero e levados para o  ATV, onde Race lhes fizera o relato do incidente com o ídolo molhado, referido no  manuscrito.

Enquanto Race contava o que lera, Nash tinha ordenado que Gaby, Copeland,  Doogie e o jovem soldado alemão, Molke, permanecessem na cidadela.

Dissera que o seu plano para deitar a mão ao ídolo implicava que a maior parte da  equipe se encontrasse estacionada na cidadela, quando os felinos chegassem à  aldeia, enquanto ele e alguns dos Boinas Verdes ficavam no ATV, perto do  caminho do rio que conduzia ao templo.

Race, que acabara de informar os Boinas Verdes acerca do incidente com o ídolo  molhado, devia ir imediatamente ter com os outros à cidadela.

- O SAT-SN está ligado - disse Van Lewen, do terminal de computador. - As  imagens de satélite devem estar quase chegando.

- O que é que diz? - perguntou Nash.

- Dê uma olhadela - disse Van Lewen, afastando-se.

Nash ficou a olhar para a tela, onde tinha aparecido uma imagem da metade Norte  da América do Sul:

 

GABINETE NACIONAL DE RECONHECIMENTO  

TAREFA EXECUTADA.

No. 040199-6754  

LEVANTAMENTO PRELIMINAR

SAT-SN  

COORDENADAS: 82.00º O-30,00ºO; 15,00ºN-37,00ºS  

DATA: 5 JAN 1999 16.59.56 PM

(LOCAL - PERU)

 

- Que diabo?... - disse Nash, franzindo o sobrolho.

- Pelo menos a área mais próxima está limpa... - observou Van Lewen.

- O que é que quer dizer isso tudo? - perguntou Race.  Van Lewen respondeu:

- As linhas retas representam os cinco principais corredores aéreos comerciais da  América do Sul. Basicamente, o Panamá funciona como ponto de passagem do  continente e os vôos comerciais costumam seguir diretamente de lá para o Rio de  Janeiro e, destas duas cidades, para Buenos Aires. Os quadrados cinzentos  representam aeronaves que voam fora das rotas comerciais regulares, no nosso  quadrante.

Race olhou para a tela e viu os três grupos de quadrados cinzentos, no quadrante  Noroeste do continente.

- O que é que querem dizer as letras e os números?  Van Lewen disse:

- O círculo cinzento mesmo por cima de Cuzco, aquele que tem «N-1» escrito por  baixo, somos nós. Quer dizer «Nash-Um», ou seja, a nossa equipa, na aldeia. o N-2,  o N-3 e o N-4 são os nossos helicópteros de apoio, que vêm a caminho de Vilcafor,  vindos do Panamá. Mas parece que ainda estão um bom bocado longe.

- E os outros quadrados cinzentos?

- O N-1, o N-2 e o N-3 são os helicópteros de Romano respondeu Nash.

- Mas estão muito para norte - fez notar Van Lewen, voltando-se para Nash. -  Como é que eles se desviaram tanto?  - Andam perdidos - disse Nash. - Devem ter-se enganado na leitura dos totens.

Mais uma vez, Race gostaria de saber quem era o tal Romano mas mordeu a língua  e não disse nada.

- E estes? - perguntou Renée, apontando para os três quadrados, assinalados sobre o  oceano, no extremo esquerdo da tela.

- O NY1, o NY2 e o NY3 pertencem à Marinha dos EUA respondeu Van Lewen. -  A Marinha deve ter um porta-aviões em algum lugar por ali.

- Não há sinais dos Soldados da Tempestade? - perguntou Schroeder.

- Não - disse Nash, num tom sombrio.

Os ponteiros do relógio de Race marcavam 17 horas. Devido às pesadas nuvens de  tempestade que o encobriam, o céu do fim da tarde estava inusitadamente escuro.  Parecia que já era noite. Nash voltou-se para Van Lewen.

- Como é que estamos quanto a visão?

- As imagens de satélite vão chegar dentro de sessenta segundos.

- Com atraso ou em tempo real?  - Em tempo real, infravermelhos.

- Ótimo - disse Nash. - Devemos conseguir ter uma imagem nítida dos felinos,  quando eles saírem da cratera e se puserem a caminho da aldeia. Está tudo pronto?

Van Lewen pôs-se de pé. Atrás dele, Buzz Cochrane e Tex Reichart colocavam ao  ombro as respectivas M-16.

- Sim, senhor - respondeu Cochrane, olhando de lado para Renée. - De pé,  engatilhado e pronto a disparar.

Race ficou tenso.

Cochrane olhava maliciosamente para a pequena alemã, com uma confiança  arrogante. Era como se achasse que a metralhadora, equipada com ponto de mira  laser, lança-granadas M-203 acoplado e lanterna montada no cano, e o uniforme de  combate o transformavam no Sr. Irresistível.

Race odiou-o por aquela atitude.

- As imagens de satélite estão chegando - anunciou Van Lewen.

Nesse momento, outra tela de computador começou a piscar, no interior do ATV.

A imagem que apresentava era a preto-e-branco granulado e, a princípio, Race não  conseguia perceber o que era aquilo. O canto superior esquerdo da tela estava  completamente preto. A seguir ao preto, havia uma seção cinzenta opaca e, depois  desta, uma coisa que parecia uma ferradura invertida, no centro da qual se via uma  série de pequenas marcas quadradas e uma marca redonda maior, perto do topo da  ferradura.

A base da tela mostrava uma faixa larga de cinzento mais escuro. Junto a essa faixa,  havia um objeto que parecia uma pequena caixa escura. Dois pontos brancos  afastavam-se da caixa em direção ao arco da ferradura.

Então, de repente, percebeu.

Estava olhando para a aldeia de Vilcafor.

Aquilo que parecia uma ferradura era o gigantesco fosso que rodeava a aldeia, os  quadrados e a bola que se viam dentro dela eram as choupanas e a cidadela. A  grande seção a preto, à esquerda, era o planalto rochoso onde ficava. A seção  cinzenta opaca era a floresta, entre o planalto e a aldeia. E a faixa cinzenta escura,  na base da tela, era o rio.

A pequena caixa perto do rio, concluiu Race, era o ATV onde se encontrava,  estacionado perto da ponte de troncos do lado ocidental.

Olhou para os dois pontos brancos que saíam do ATV para a cidadela. Em seguida,  olhou para o lado de fora da porta e viu Lauren e Krauss, caminhando em passadas  rápidas, por entre o nevoeiro, em direção à cidadela.

- Oh, meu Deus, pensou.

Aquilo era a imagem de Vilcafor, captada por um satélite a centenas de quilômetros  acima da Terra, em tempo real. Aquilo era o «agora».

Nash falou para o microfone de garganta:

- Lauren, aqui, estamos todos prontos. Vocês já entraram?  - Só um segundo - respondeu a voz de Lauren, nos intercomunicadores.

Na tela, Race viu os dois pontos brancos que eram Lauren e Krauss desaparecerem  dentro da marca redonda que era a cidadela.

- Pronto. já entramos - disse Lauren. - Vai mandar o Will?

- Agora mesmo - respondeu Nash. - É melhor ir andando para a cidadela, antes que  esteja completamente escuro, Professor Race.

- Está bem - disse Race, dirigindo-se para a porta.

- Um momento... - disse Van Lewen, de repente.  Todos ficaram paralisados.

- O que foi? - perguntou Nash.

- Temos companhia.

Van Lewen apontou com o queixo para a tela.

Race voltou-se e, na imagem preto-e-branco que a tela mostrava, viu a mancha  mais escura que era o planalto e a aldeia em forma de ferradura.

E, depois, viu-os.

Encontravam-se na seção cinzenta opaca, à esquerda da ferradura: a floresta entre a  aldeia e o planalto.

Eram uns dezesseis.

E vinham todos do lado do planalto.

Dezesseis ameaçadoras manchas brancas, todas elas com uma cauda comprida,  abrindo caminho pela floresta, em direção à aldeia.

Os rapas.

A  espessa porta de aço do ATV deslizou sobre os trilhos e fechou-se com estrondo.

-Vieram cedo - observou Nash.

- É por causa das nuvens - disse a voz de Krauss, nos alto-falantes. - Os animais  noturnos não usam relógio, Doutor Nash. Guiam-se pelo nível de luz ambiente que  os rodeia. Se estiver suficientemente escuro, saem dos seus covis...

- Seja lá como for - interrompeu Nash. - o que interessa é que eles saíram. -  Voltando-se para Race, acrescentou:

- Lamento, Professor. Parece que vai ter que ficar conosco. Lauren, sela a cidadela.

Na cidadela, Lauren e Copeland agarraram na laje de mais de um metro e oitenta,  que fazia às vezes de porta, e fizeram-na rodar para o sulco que tinha sido aberto no  chão de pedra da entrada da fortaleza.

A pedra tinha uma forma mais ou menos retangular mas a sua base era ligeiramente  curva, o que permitia fazê-la rodar com facilidade para o sulco do vão da porta. O  fato desta encaixar no sulco, do lado de dentro dos muros da fortaleza, queria dizer  que os inimigos não podiam ter esperança de a deslocar do lado de fora.

A pedra rolou para o seu lugar mas Lauren e Copeland deixaram deliberadamente  aberta uma frincha entre ela e o umbral. Deixar que os felinos detectassem a  presença deles na cidadela era uma parte importante do plano.

No fim de contas, eles eram a isca.

Dentro do ATV, toda a gente observava atentamente a imagem de satélite ao vivo  que se via na tela.

Os felinos apareceram em duas «equipes». Uma delas veio diretamente do planalto  para ocidente. A outra vinha do lado norte, com algumas subidas e desvios.

Race sentiu um arrepio ao olhar para os seus corpos, brancos e brilhantes, por  efeito dos raios infravermelhos, para as suas caudas que se enrolavam e  desenrolavam lentamente.

Era inquietante, pensou. Tinham um comportamento perturbadoramente  coordenado, para um bando de animais.

Os gatos atravessaram o fosso em vários pontos. Alguns seguiram pela ponte de  troncos do lado ocidental, outros limitaram-se a saltar suavemente para os troncos  de árvores caídas que juncavam o leito do fosso seco e, depois, subiram sem esforço  para o outro lado. Entraram na aldeia.

A maior parte dos rapas, observou Race, dirigia-se diretamente para a cidadela e  para o cheiro de seres humanos que de lá vinha.  Nesse momento, porém, viu uma mancha branca solitária aparecer na tela, ao lado  do ATV estacionado.

Instintivamente, deu um pulo para a direita e viu os enormes bigodes pretos de um  dos felinos, lá fora, mesmo ao seu lado, junto à frecha que servia de janela.

O rapa fungou uma vez, detectou o cheiro do excremento de macaco que tinha sido  espalhado no caixilho da janela. Depois, recuou e foi ter com os outros à cidadela.

- OK - disse Nash. - Parece que todos os felinos estão a convergir para a cidadela,  Lauren, o que é que se está a passar aí?

- Estão todos aqui. Querem entrar mas a cidadela está bem selada. Para já, estamos a  salvo aqui dentro. Já pode mandar sair os rapazes.

Nash voltou-se para os três Boinas Verdes que se encontravam ao seu lado.

- Estão prontos?

Os três soldados disseram que sim, com a cabeça.  - Então, vamos a isso.

E, dito isto, Nash abriu uma escotilha na retaguarda do ATV e Cochrane, Van  Lewen e Reichart, com os capacetes e as roupas completamente cobertos de merda  de macaco fétida, subiram para a escotilha. Mal eles saíram, Nash voltou a fechar  rapidamente a abertura.

- Kennedy - disse Nash, para o microfone. - Há alguma coisa no SAT-SN?

- Não há nada, num raio de mil e quatrocentos quilômetros, meu coronel - respondeu a voz de Doogie, vinda da cidadela. Enquanto Nash ia falando, Race  olhava atentamente para a imagem de satélite da cidadela.

Viu um bando de felinos reunidos à volta da cidadela. Viu as suas caudas oscilantes,  os seus cautelosos movimentos exploratórios. Ao mesmo tempo, contudo, viu três  novos vultos, saltarem do ATV e correrem para ocidente, atravessarem a ponte de  troncos ocidental e afastarem-se da aldeia, em direção ao planalto.

Cochrane, Van Lewen e Reichart. Iam em busca do ídolo.

Os três Boinas Verdes emergiram do meio do lençol de neblina que cobria o  caminho do rio e correram para a fenda. Corriam depressa e as suas respirações  estavam aceleradas. Todos eles levavam câmaras, montadas nos capacetes.

Chegaram à abertura.

Estava coberta por um nevoeiro denso e cinzento. Os três soldados não hesitaram.  Entraram pela fenda, a toda a velocidade.

Dentro do ATV, Nash, Schroeder e Renée olhavam atentamente os monitores de  vídeo, observando as imagens enviadas pelos três soldados.

Viram as paredes da fenda passar a uma velocidade espantosa, nos monitores.  Ouviram as batidas das respirações aceleradas dos três soldados, pelos alto-falantes  montados num dos lados do veículo.

Race deixou-se ficar um pouco afastado dos monitores. Não queria estar no  caminho de ninguém.

Foi então que reparou que Nash e os dois alemães estavam a ver apenas as imagens  que eram transmitidas pelas três câmaras montadas nos capacetes. O interesse que  tinham pela missão dos soldados sobrepunha-se a tudo e, por conseguinte, estavam  a ignorar por completo a tela da imagem de satélite.

Race voltou-se para olhar para a imagem de satélite. E, então, franziu o sobrolho.

- Ei! - disse Race. - Que diabo é aquilo?

Nash olhou, descontraidamente, para Race e, depois, para o monitor do satélite.  Mas, de repente, viu a imagem na tela do satélite e ficou instantaneamente tenso.

- Mas que merda é...?

No lado direito da imagem de satélite, no setor oriental da aldeia, via-se outra seção  cinzenta esbatida que representava mais um pedaço de floresta, a floresta que ia até  à beira do planalto e à grande bacia do Amazonas.

Até então, ninguém lhe tinha prestado muita atenção, porque não havia nada ali.

Mas, agora, havia.

A seção de cinzento esbatido à direita da aldeia, estava agora cheia de pequenas  manchas brancas, umas trinta no total, que convergiam rapidamente para a aldeia.

Race sentiu que o sangue lhe gelava nas veias.

Todas aquelas manchas tinham distintamente forma humana e todas elas empunhavam o que parecia serem armas de fogo.

Saíram da floresta sem fazer ruído, com as metralhadoras firmemente apoiadas nos  ombros, prontas a disparar mas, de momento, silenciosas.

Race e os outros estavam, agora, a observá-los atentamente através das janelas do  ATV.

Os intrusos usavam todos proteções pessoais pretas, de materiais cerâmicos, e  movimentavam-se com precisão e rapidez, cobrindo-se calmamente uns aos outros,  enquanto avançavam, em movimentos perfeitamente sincronizados e silenciosos.

Os rapas reunidos à volta da cidadela voltaram-se, quando um deles avistou os  novos inimigos. Fizeram menção de atacar mas, depois...

Não se mexeram.

Fosse pelo que fosse, os rapas não atacaram aqueles novos intrusos. Deixaram-se  ficar onde estavam, a olhar para eles.

E então, só então, um dos intrusos abriu fogo contra os rapas, com uma espingarda-metralhadora que, pensou Race, parecia ter saído de um filme da Guerra das  estrelas.

Uma quantidade inacreditável de balas saiu da boca retangular da arma e fez em  tiras a cabeça de um dos felinos. Num minuto, via-se a cabeça do felino e, no  minuto seguinte, a cabeça do animal tinha-se transformado numa amálgama  horrível de sangue e carne.

Os felinos dispersaram num instante, quando mais um deles foi feito em pedaços  pela chuva selvagem de disparos.

Enquanto espreitava pela janela, Race procurou ver melhor a arma que o intruso  tinha na mão.

Tinha um aspecto espantoso, da era espacial.

Tinha uma forma totalmente retangular e, aparentemente, não tinha cano. Na  verdade, o cano devia estar oculto, em algum lugar do corpo retangular da arma.

Race já tinha visto armas daquelas mas só em fotografias, nunca na vida real.

Eram G-11 Heckler Koch.

Segundo Marty, o irmão de Race, a Heckler Koch era a espingarda-metralhadora  mais avançada jamais fabricada.

Mesmo agora, dez anos depois de ter sido concebida, em 1989, continuava a ter  vinte anos de avanço em relação à época. Na opinião de Marty, era o Santo Graal  das armas de fogo.

Era a única arma, na História, que disparava balas sem invólucro. Na verdade, era a  única arma portátil do mundo que continha um microprocessador, em especial  porque era a única arma do mundo suficientemente complexa para precisar de ter  um.

Devido ao fato de disparar balas sem invólucro, a G-11 era capaz de disparar à  velocidade inimaginável de 2300 tiros por minuto e, também, de armazenar cerca  de 150 Projéteis, ou seja, cinco vezes o número de balas contidas no pente de uma  espingarda-metralhadora como a M-16. E, apesar disso, tinha apenas metade do  tamanho da M-16.

Para dizer a verdade, a única coisa que tinha feito parar a G-11 tinha sido o  dinheiro. Em finais de 1989, considerações de ordem política tinham obrigado o  Governo alemão a rescindir o acordo feito com a Heckler Koch para utilizar a G-11  no Bundeswehr.

Por isso, ao todo, só tinham sido feitas quatrocentas G-11. Estranhamente, porém,  uma auditoria, realizada quando da aquisição do controle da Heckler Koch pela  Britain’s Royal Ordnance, revelou que só era conhecido o paradeiro de dez  exemplares dessa série inicial.

As restantes trezentas e noventa armas tinham desaparecido.  Acho que acabei de descobrir onde elas param, pensou Race, ao mesmo tempo que observava os rapas a fugir diante da barreira dos disparos das super-metralhadoras.

- São os Soldados da Tempestade - disse Schroeder, ao seu lado.

Lá fora, a chuva de balas continuava.

Mais dois felinos tombaram, guinchando e bufando, enquanto dois Soldados da  Tempestade varriam a aldeia com uma chuva devastadora de tiros de metralhadora.

Os felinos que restavam refugiaram-se na floresta que rodeava a aldeia e, ao fim de  pouco tempo, na rua principal nada mais havia senão Soldados da Tempestade  fortemente armados.

- Como diabo é que eles chegaram aqui, sem nós os termos visto no SAT-SN? -  perguntou Nash.

- E porque terá sido que os felinos não os atacaram? - perguntou Race.

Até àquele momento, os felinos tinham atacado sem dó nem piedade mas, por uma  qualquer razão misteriosa, não tinham reagido à aproximação destes novos  soldados nem os tinham atacado.

Foi então que o cheiro inconfundível de amoníaco penetrou pelas janelas do ATV.  Um cheiro de urina. Urina de macaco. Os nazis também tinham lido o manuscrito.

De súbito, a voz de Van Lewen soou nos alto-falantes.  - Estamos chegando na ponte de corda.

Race e Nash viraram-se ao mesmo tempo, para olhar para o monitor que apresentava as imagens transmitidas pelos três soldados que se encontravam lá em  cima, na cratera.

O monitor mostrava aquilo que Van Lewen estava vendo, enquanto oscilava, ao  atravessar a ponte de corda que conduzia ao templo.

- Cochrane, Van Lewen, corram! - disse Nash para o seu rádio. - Temos forças  hostis...

Nesse instante, um som estridente, capaz de rebentar os tímpanos, brotou dos alto-falantes do ATV e o rádio de Nash ficou mudo.

- Eles usaram cortinas eletrônicas - disse Schroeder.

- O quê? - perguntou Race.

- Estão interferindo nas nossas frequências - esclareceu Nash.

- O que é que nós vamos fazer? - perguntou Renée.  Nash respondeu:

- Temos que dizer a Van Lewen, Reichart e Cochrane que não podem voltar para  aqui. Eles têm que pegar o ídolo e levá-lo para o mais longe possível. Depois, têm  que arranjar uma maneira de entrar em contato com a equipe de apoio aéreo, para  os helicópteros os apanharem em qualquer lugar, nas montanhas.

- Mas como é que eles vão saber que têm que fazer isso, se os outros estão fazendo  interferências nos nossos rádios? - perguntou Race.

- Um de nós vai ter de ir lá acima, ao templo, e dizer-lhes, disse Nash.

Fez-se silêncio.

Depois, Schroeder disse:

- Eu vou.

Boa idéia, pensou Race. A seguir aos Boinas Verdes, Schroeder era  indiscutivelmente o mais «militarizado» de todos eles.

- Não - respondeu Nash, em tom categórico. - Você sabe manejar uma arma.  Precisamos de você aqui. Além disso, você conhece melhor esses nazis do que  qualquer um de nós.

Restavam Nash, Renée... e Race.  Ai, droga, pensou Race.

Mas disse:  - Eu faço isso.

- Mas... - começou Schroeder.

- Eu era o jogador mais rápido da minha equipe de futebol, quando andava na  universidade - disse Race. - Posso fazer isso.

- Mas... e os rapas? - perguntou Renée.

- Eu consigo.

- Então, muito bem. o Race foi escolhido - disse Nash, dirigindo-se para a escotilha,  na retaguarda do ATV - Tome, leve isto - acrescentou, entregando a Race uma M-16 com todos os extras.  - Assim, pode evitar transformar-se em comida para felino. Agora vá! Vá!

Race avançou para a escotilha, respirou fundo e lançou um último olhar a Nash,  Schroeder e Renée.

Depois, respirou fundo e saltou pela escotilha.

E  entrou num outro mundo.

À sua volta, só se ouviam os tiros de metralhadora, que acertavam nas folhas mais  próximas, que se cravavam nos troncos das árvores. Cá fora, o som parecia muito  mais alto, muito mais real. Muito mais letal.

As pancadas do coração de Race, ressoavam-lhe dentro da cabeça.

Que diabo é que eu estou fazendo aqui, com esta arma na mão?  Está tentando virar um herói, é isso que está fazendo, grande estúpido!

Voltou a respirar fundo. Pronto... Race saltou da retaguarda do ATV, aterrou em  cima da ponte de troncos do lado ocidental e correu para o caminho do rio que se  lhe seguia. Estava rodeado por um nevoeiro impenetrável que encobria o caminho,  ao longo do qual se estendiam ramos retorcidos que cortavam que nem adagas.

O AM-16 pesava-lhe nas mãos e, sem parar de correr, chapinhando em água a cada  passo, Race pendurou-a desajeitadamente ao ombro.

Então, sem aviso prévio, um rapa saltou do meio do nevoeiro, à sua direita, e foi  parar diante dele...

Bum!

A cabeça do rapa explodiu e o felino gigantesco tombou que nem uma pedra,  estrebuchando selvaticamente na lama.

Race não perdeu tempo e saltou por cima do felino caído. Depois de ter passado por  cima dele, voltou-se para trás e viu Schroeder, com uma M-16 encostada ao ombro,  todo esticado para fora da escotilha do ATV. Race correu.

- Achtung!

- Schnell! Schnell!

Um minuto depois, a fenda na encosta da montanha surgiu diante de si, no meio do  nevoeiro. Mal a viu, ouviu vozes atrás de si, gritando em alemão.

Então, de súbito, ouviu a voz de Nash, vinda de algum lugar, do meio do nevoeiro,  atrás de si. Gritava:

- Race, corra! Eles estão atrás de você! Vão a caminho do templo!

Race escapou-se para a fenda.

Mal viu as paredes rochosas, de um lado e doutro, enquanto corria.

Então, de repente, foi dar ao grande desfiladeiro onde ficava a torre de pedra que  parecia um arranha-céus. A base da torre também estava envolta em denso  nevoeiro.

Race não quis saber disso. Viu o trilho em espiral, à sua esquerda, saltou para lá, e  continuou a correr, seguindo as curvas da trilha.

Na aldeia, Renée Becker olhava, receosa, pelas janelas estreitas do ATV.

Nesse momento, a aldeia estava ocupada por trinta soldados nazis. Envergavam  roupas de combate de última geração - equipamento de proteção de placas  cerâmicas, capacetes táticos leves e, evidentemente, máscaras de esqui pretas - e  moviam-se com determinação, como um grupo bem treinado e em boa forma.

Renée viu um dos nazis avançar pela rua principal e tirar o capacete. A seguir, o  homem tirou a máscara de esqui preta e observou a área à sua volta.

Renée ficou de olhos esbugalhados.

Embora tivesse visto a fotografia dele mais de mil vezes, em toda a espécie de  cartazes com a legenda «Procura-se», vê-lo ali, agora, em carne e osso, era de  arrepiar.

Reconheceu imediatamente o cabelo penteado para a frente e os olhos estreitos. E  a mão esquerda do homem só tinha quatro dedos.

Estava a olhar para Heirich Anistaze.  Sem dizer palavra, Anistaze ergueu os dedos, formando um V e apontou para o  ATV.

Mais de uma dúzia de homens, armados de G-11, já tinham passado pelo veículo  todo-terreno, quando se dirigiam para o caminho do rio, em direção ao desfiladeiro  e ao templo.

Agora, seis outros avançavam para o ATV, enquanto os restantes doze tomavam  posições defensivas à volta do perímetro da aldeia.

No entanto, dois ficaram de lado, de guarda ao aparelho que fazia interferências nas  comunicações por rádio.

Era uma pequena unidade, do tamanho aproximado de uma mochila, chamada  gerador de impulsos, que abafava os sinais de rádio do inimigo, emitindo uma  vibração eletromagnética controlada, ou IEM. Era um dispositivo bastante invulgar.  Em geral, um impulso eletromagnético afeta tudo o que tenha uma unidade central  de processamento: computadores, televisores, sistemas de comunicações. Esse  impulso chama-se IEM «não controlado». No entanto, através do controle da frequência da sua vibração e assegurando-se de que os seus próprios rádios estavam  sintonizados em frequências mais altas do que ela, os nazis conseguiam interferir  nos sistemas de rádio do inimigo e manter as suas próprias comunicações. Como  estavam a fazer agora.

Quando chegaram junto do ATV, os nazis encontraram todas as janelas fechadas e  todas as escotilhas bloqueadas.

Dentro do enorme veículo, Nash, Schroeder e Renée estavam encolhidos, cada um  a seu canto, sustendo a respiração.

Os Soldados da Tempestade não perderam tempo. Deitaram-se imediatamente no  chão, por baixo do grande veículo blindado, e começaram a colocar explosivos.

Race continuou a correr.

Para cima, para cima, uma volta, outra volta, acompanhando as curvas ascendentes  da trilha em espiral.

As pernas galgando vigorosamente a distância. o coração quase a saltar-lhe da boca.

Chegou à ponte de corda. Balançou ao atravessá-la. Subiu correndo os degraus de  pedra que levavam ao templo.

Race abriu caminho por entre o emaranhado das folhas das palmeiras e, de repente,  deu consigo na clareira em frente ao portal.

A clareira estava totalmente deserta.

Nada à vista: nenhum animal, homem ou felino.

Diante de si, encontrava-se o portal do templo, aberto. Parecia enorme, no meio do  nevoeiro. Os degraus que desciam para o interior do templo estavam mergulhados  na sombra.

Não entrar por nenhum motivo.  A morte espreita lá dentro.

Race ergueu a M-16, acendeu a lanterna montada no cano e avançou cautelosamente para o portal. Parou junto ao grande umbral de pedra, rodeado  pelas horríveis imagens gravadas dos rapas e de seres humanos agonizantes, e  perscrutou a escuridão.  - Van Lewen! - sussurrou. - Está aí, Van Lewen?

Não houve resposta.

Deu um passo no interior do templo, segurando desajeitadamente a arma diante de  si.

Foi então que ouviu a resposta.

Um rosnado lento e prolongado, vindo das profundezas do templo.

Oh, oh.

Race segurou a arma com um pouco mais de força, susteve a respiração, deu mais  um passo no interior do templo.

Mais dez passos e deu consigo numa escura passagem que descia em espiral, a partir  de uma curva suave, à sua direita.  Viu uma pequena câmara escavada na parede e virou para lá o foco de luz.

Voltado para ele, encontrava-se um esqueleto horrivelmente mutilado.

A parte de trás do crânio tinha sido esmagada, faltava um dos braços e a boca estava  escancarada num grito petrificado de terror. Tinha vestido um casaco de couro  antigo.

Horrorizado, Race deu um passo para trás, afastando-se do esqueleto coberto de pó.

E, então, reparou num objeto que lhe pendia do pescoço. Quase que não dava por  ele, por se encontrar escondido entre as curvas das vértebras do velho esqueleto  empoeirado. Debruçou-se um pouco, para ver melhor o que era.

Era um colar de couro.

Race tocou na tira de couro e fê-la rodar à volta do pescoço do esqueleto. Segundos  depois, viu uma deslumbrante esmeralda verde que tinha estado por trás dos ossos  do pescoço do esqueleto, presa ao fio de couro.

O coração de Race quase parou de bater. Conhecia aquele pendente de esmeralda.  Na verdade, tinha lido acerca dele havia bem pouco tempo.

Era o colar de Renco.

O colar que a grande sacerdotisa do Coricancha lhe tinha dado, na noite em que  Renco fugira de Cuzco com o ídolo. Horrorizado, Race voltou a olhar para o  esqueleto.

Renco.

Race tirou o colar do pescoço do esqueleto e segurou-o na mão.

Ficou a pensar em Renco, por alguns instantes, e então, de repente, lembrou-se de  uma coisa que ele próprio tinha dito a Frank Nash, ainda não havia muito tempo.

- Não sei como mas Renco e Santiago arranjaram uma maneira de voltar a meter os  felinos dentro do templo e, ao mesmo tempo, de deixar lá o ídolo.

Race engoliu várias vezes em seco. Seria que Renco tinha levado novamente os  felinos para dentro do templo, ao levar consigo o ídolo?

Ficou olhando, horrorizado, para o esqueleto mutilado. Então, tinha sido aquele o  fim de Renco.

Solenemente, pôs o colar com a esmeralda, à volta do próprio pescoço.

- Tem cuidado contigo, Renco - disse em voz alta.

Nesse momento, uma forte luz branca bateu no rosto de Race e ele voltou-se, de  olhos esbugalhados, como um animal apanhado pelos faróis de um carro, e deu  consigo a olhar para as caras de Cochrane, Van Lewen e Reichart, que estavam a  emergir da escuridão das profundezas do templo.

Reichart trazia na mão qualquer coisa embrulhada num pano vermelho, todo  esfarrapado.

Cochrane passou ao lado de Race e, com um gesto violento, afastou a M-16 que  este tinha na mão.

- Porque é que não larga essa merda dessa coisa, antes que mate alguém?

Ted Reichart parou diante de Race e sorriu, erguendo o objeto que trazia consigo, o  objeto embrulhado num pedaço de pano vermelho e esfarrapado.

- Conseguimos - anunciou.

N um instante, Reichart retirou o pano que cobria o embrulho e Race viu-o pela  primeira vez.

O ídolo inca. O Espírito do Povo.

Tal como o totem de pedra que tinha visto antes, na floresta, o Espírito do Povo  parecia infinitamente mais sinistro na vida real do que na sua imaginação.

Tinha pouco mais de trinta centímetros de altura e, aproximadamente, o mesmo  tamanho e a mesma forma que uma caixa de sapatos. A seção frontal da pedra  retangular fora, porém, esculpida com a forma da cabeça de um rapa, o rapa mais  enraivecido e selvático que Race alguma vez vira.

Rugia ferozmente, com as fauces muito abertas e os dentes pontiagudos e aguçados  prontos para esquartejar e matar.

Mas o aspecto da escultura que mais abalou Race foi o fato de ela parecer viva.  Devido a uma combinação da habilidade e qualidade de quem o esculpira com a  natureza fora do comum da própria pedra, dava a sensação de que o rapa tinha sido  aprisionado dentro da reluzente pedra preta e vermelha e que, num ato de loucura,  perverso e raivoso, estava agora a tentar escapar-se dela.

A pedra, pensou Race, olhando para os delgados veios púrpura que serpenteavam  pelo focinho do rapa e que lhe conferiam um aspecto ainda mais enraivecido e  malévolo.

Tírium.

Se os Incas soubessem o que viriam a desencadear, quando esculpiram este ídolo,  pensou.

Reichart voltou rapidamente a cobrir o ídolo com o pedaço de pano e os quatro  homens dirigiram-se, a toda a pressa, para a entrada do templo.

- Que diabo está você fazendo aqui? - rosnou Cochrane, quando chegaram ao  portal.

- Nash mandou-me dizer que os nazis estão na aldeia. Eles fizeram interferências  com os nossos rádios e perdemos o contato com vocês. E, agora, estão mandando  alguns homens para aqui. O Nash pediu-me para dizer que não voltassem à aldeia e  saíssem daqui para outro lugar qualquer. Depois, têm que entrar em contato com a  equipe de apoio aéreo, para eles irem buscar vocês em um lugar qualquer, nas montanhas.

Nesse instante, uma rajada de tiros de metralhadora varreu as paredes de pedra do  portal, à volta deles. Os quatro abaixaram-se rapidamente, enquanto uma linha  devastadora de balas se cravava no umbral do portal, retalhando a sólida esquadria  de pedra como se esta fosse de gesso.

Race precipitou-se instantaneamente para o lado e viu cerca de doze comandos  nazis, entre as árvores do rebordo da clareira, disparando velozmente as suas G-11.

Protegido pelo portal, Cochrane respondeu ao fogo. Van Lewen fez outro tanto. Os  estalidos das suas M-16 soavam de forma quase patética, em comparação com o  zumbido ininterrupto das G-11 de alta tecnologia.

Race também tentou responder ao fogo dos nazis mas, quando premiu o gatilho da  sua M-16 não aconteceu nada.

Cochrane viu o que se passava, estendeu a mão e puxou para trás uma alavanca em  forma de T da espingarda de Race.

- Caracas, você é quase tão inútil como um padre numa casa de putas - rosnou  Cochrane.

Race premiu o gatilho e, desta vez, a M-16 cuspiu uma torrente de balas. A força do  recuo quase deslocou o ombro de Race.

- O que vamos fazer? - gritou Reichart, para se fazer ouvir por entre o tiroteio.

- Não podemos ficar aqui! - gritou Van Lewen. - Temos que conseguir chegar à  ponte de...

Nesse momento, vindo lá do alto, por cima das cabeças deles, ouviu-se um ruído  atroador.

Race olhou para cima e viu um helicóptero de combate preto MD-500 Mosquito  emergir do meio do nevoeiro e avançar a rugir para o topo da torre, O Mosquito era um helicóptero ligeiro, muito menor do que um Apache ou um  Comanche mas aquilo que lhe faltava em termos de ruído e de poder de fogo era  compensado pela velocidade e pela facilidade de manobra que o caracterizavam.

O seu nome tinha origem na semelhança do aparelho com algumas espécies do  mundo dos insetos. Tinha dois holofotes de vidro laminado que pareciam os  grandes olhos hemisféricos de uma abelha e dois trens de aterragem compridos que  pareciam as pernas alongadas de um mosquito.

Os canhões laterais do Mosquito que sobrevoava o topo da torre cuspiram uma  rajada de balas, abrindo duas valas na lama, diante do templo.

- Isto está cada vez pior! - gritou Race.

Na aldeia, os explosivos que os nazis tinham colocado por baixo do ATV  rebentaram.

Uma bola de fogo, cujas dimensões iam aumentando, irrompeu debaixo do grande  veículo de oito rodas, erguendo-o três metros acima do solo, lançando-o ao ar.  Depois, o pesado ATV abateu-se sobre o solo, aterrando de lado.

Dentro dele, reinava a loucura.

Mal tinham ouvido os nazis prenderem os explosivos por baixo do veículo, Nash,  Renée e Schroeder tinham-se prendido aos assentos, preparando-se para a  explosão.

Agora, estavam pendurados perpendicularmente ao chão, ainda amarrados aos  assentos, vendo o mundo de pernas para o ar. Mas o mais importante era o fato de  o ATV ter aguentado.  Por enquanto.

Doogie Kennedy espreitou cautelosamente da esplanada da cidadela.

Viu a aldeia, envolta em nevoeiro, viu uma dúzia de comandos nazis dispostos a  intervalos regulares, no meio daquela névoa acinzentada, com as G-11 em posição.

Tinha acabado de ver o ATV saltar no ar e dava graças a Deus por os nazis não  terem percebido que havia membros da equipe de Nash dentro da cidadela.  Aquelas paredes não seriam capazes de resistir a uma explosão como aquela.

Então, de repente, ouviu um grito, de alguém que dava ordens em alemão.

Doogie não sabia muito de alemão e, por isso, a maior parte das palavras que ouviu  não faziam qualquer sentido para ele. Mas depois, estranhamente, entre toda  aquela tagarelice, ouviu duas palavras que conhecia: «das Sprengkommando».

Doogie ficou gelado, ao ouvir aquelas palavras. Depois, olhou em volta e viu quatro  comandos nazis correrem em direção ao rio, em resposta à ordem que tinham  recebido.

Não sabia muito alemão mas o tempo que passara numa base de mísseis da OTAN,  nos arredores de Hamburgo, fizera com que ficasse a conhecer pelo menos o  vocabulário básico dos termos e expressões militares alemães mais comuns.

Das Sprengkommando era uma dessas expressões. Queria dizer «equipe de  demolição», em alemão.

A coberto do portal, Van Lewen lançou uma granada do seu lança-granadas M-203.  Um segundo depois, ouviu-se uma explosão entre as árvores, perto das posições  nazis. A explosão fez chover lama e folhas sobre a área.

- Sargento! - gritou Cochrane.

- O que foi?

- Estamos fodidos, se isto continua assim. Eles têm demasiado poder de fogo. Basta- lhes deixarem-se estar escondidos, até nós ficarmos sem munições e, depois,  ficamos encurralados nesta merda deste templo. Temos que nos pôr a andar deste  rochedo!

- Aceitam-se sugestões! - gritou Van Lewen.

- O sargento é o senhor, sargento - gritou Cochrane.

- Está bem - disse Van Lewen, franzindo o sobrolho. Parou por um momento, para  pensar, e depois acrescentou: - A única maneira de sair desta torre é pela ponte de  corda, não é verdade?

- Certo - respondeu Reichart.

- Por isso, temos que arranjar maneira de chegar à ponte, não é verdade?

- Certo.

Van Lewen disse:

- Eu acho que temos de dar a volta pela parte de trás do templo e, depois, seguir até  ao rebordo do topo da torre. Depois, abrimos caminho até à ponte de corda, pelo  meio das árvores. Atravessamos a ponte e, depois, temos de a desprender, para  deixar estes filhos da mãe encurralados na torre.

- Parece ser um bom plano - gritou Reichart.

- Então, vamos a isso - disse Van Lewen, em tom decidido. Os Boinas Verdes  prepararam-se para escapulirem pela porta do templo. Race tentou apenas ficar por  perto deles, fosse o que raio fosse que eles iam fazer.

- OK... - disse Van Lewen, - Agora!

E, dito isto, os quatro irromperam pela entrada do templo, com as armas a cuspir  fogo, e começaram a correr, debaixo de chuva.

As armas deles rugiam.

Os nazis que se encontravam junto à linha das árvores atiraram-se ao chão.

Van Lewen e Reichart foram os primeiros a começar a contornar, em direção à  parte de trás do templo.

Segundos depois, tinham chegado atrás e, agora, protegia-os das balas dos nazis.  Encontravam-se na vereda de lajes lisas, sobre a encosta lamacenta, que Race tinha  visto umas horas antes, a vereda onde havia a tal inusitada laje redonda.

Aos pés deles, a encosta, totalmente coberta de lama, descia a pique numa extensão  de uns quarenta e seis metros, terminando numa pequena saliência rochosa que  constituía o rebordo do topo da torre, uma saliência abaixo da qual se via uma  descida, também a pique, de mais de noventa metros. À esquerda da saliência havia,  porém, um grupo denso de árvores e arbustos, que ia dar à ponte de pedra.

Cochrane e Race contornaram, atrás dos outros e ambos viram imediatamente a  encosta coberta de lama.  - Acho que isto vai ser mais difícil do que estávamos esperando. - Disse Cochrane a  Van Lewen.

Nesse preciso instante, qual tubarão erguendo-se das profumdezas do oceano, o  helicóptero de assalto Mosquito irrompeu do nevoeiro por baixo da saliência e  ficou a planar em frente dos quatro americanos, com os seus canhões laterais a  cuspir uma chuva devastadora de balas.

Os quatro atiraram-se ao chão.

Ted Reichart foi demasiado lento. As balas crivaram-se-lhe sem apelo no corpo,  numa sequência rapidíssima, umas atrás das outras, mantendo-o de pé muito depois  de ele já estar morto. A cada bala que lhe penetrava no corpo, o sangue jorrava,  espalhando-se pela parede de pedra atrás dele.

Buzz Cochrane levou dois tiros numa perna e soltou um grito de agonia. Race caiu  desamparado sobre a lama, sem um arranhão, e tapou os ouvidos para os proteger  do troar do fogo do helicóptero. Van Lewen continuou, arrojadamente, a disparar a  sua M-16 contra o Mosquito, até que, perante aquele fogo sem tréguas, o  helicóptero se afastou e o cadáver de Reichart, liberto da pressão do impacto das  balas, caiu de bruços sobre a lama, espalhando-a em todas as direções.

Infelizmente, era Reichart que levava o ídolo.

Quando o seu corpo caiu no chão, o ídolo saltou da mão que o segurava. Tombou  no chão e começou de imediato a escorregar pelo aterro lamacento... em direção à  borda.

Race foi o primeiro a ver aquilo.

- Não! - gritou, saltando para a frente, aterrando de bruços, deslizando rapidamente  pela ladeira lamacenta, atrás do ídolo. Van Lewen gritou-lhe:

- Espere, Professor, não...

Mas Race já ia a deslizar rapidamente sobre a lama, de M-16 em punho, em direção  ao ídolo.

Faltavam dois metros e meio. Um metro e meio.

Um metro.

Então, de repente, o Mosquito voltou e cuspiu mais uma saraivada de tiros, abrindo  uma série de pequenas crateras de impacto na lama, entre Race e o ídolo.

Race reagiu rapidamente. Girou sobre si mesmo, para escapar às balas, protegendo  os olhos da lama que saltava - e desistiu do seu mergulho atrás do ídolo, deslocando  o peso do corpo, o que o fez rolar pela ladeira, para longe da linha de impacto.

Viu que a saliência, no extremo do aterro, se aproximava rapidamente de si, viu o  precipício que ficava para lá da saliência, viu o Mosquito preto planar por cima  desta. Mas estava a deslizar demasiado depressa. Então, de súbito, antes de ter tido  tempo de perceber o que estava a acontecendo, tinha sido projetado por cima do  rebordo da torre de pedra, para o espaço aberto, noventa e tal metros acima do sopé  do desfiladeiro.

A o passar pela margem, Race estendeu a mão e agarrou-se à borda da saliência.

Parou abruptamente e ficou suspenso de uma só mão na borda da saliência, a mais  de noventa metros do fundo da cratera!

A corrente de ar descendente provocada pelo helicóptero Mosquito que rugia  acima da sua cabeça fez ir pelos ares o topo do seu boné de basebol, enquanto ele  estendia a mão livre, a mão que ainda segurava a M-16, para a saliência e começava  a içar-se até ela.

Faças o que fizeres, Will, não olhes para baixo.  E Race olhou para baixo.

A vertente íngreme da torre de pedra estendia-se a perder de vista, mergulhando  na escuridão. A chuva parecia escorrer por ali abaixo, desaparecendo no nevoeiro  cinzento e impenetrável.

Com um último empurrão, Race conseguiu apoiar os cotovelos na saliência e subir  até lá. Então, olhou para trás, mesmo a tempo de ver Van Lewen correr para a orla  do arvoredo, à sua direita, carregando Cochrane aos ombros.

E também viu os nazis, os doze que tinha visto desde o início, armados de G-1  correndo para trás do templo, vindos de um lado e do outro, em perfeita sincronia.

Os nazis viram imediatamente o ídolo, deitado de lado, no meio da ladeira  inclinada e coberta de lama.

Num instante, distribuíram-se em leque, em posições defensivas, enquanto um  deles descia cautelosamente até o aterro, para ir buscar o ídolo.

O nazi chegou junto do ídolo e pegou nele.  Race iria jurar que assim fora.

Mas não chegou a ter possibilidade de ver bem, porque, nesse preciso momento,  um dos nazis olhou e viu-o - semi-pendurado na saliência a olhar para cima, para  eles, com um olhar assustado.

Todos os nazis ergueram as G-11 e, todos ao mesmo tempo, apontaram diretamente na cabeça de Race. Então, quando, todos ao mesmo tempo puseram os  dedos nos gatilhos, Race fez a única coisa que achou possível fazer.

Deixou-se cair.

Race caiu. Muito depressa.

Ao longo da torre de pedra.

Viu a superfície irregular da parede da torre passar por ele a uma velocidade  incrível. Olhou para cima e viu a saliência de onde tinha saltado desaparecer e  confundir-se, ainda mais depressa, com o céu cinzento.

Sentiu a cabeça girar.

Não posso acreditar que fiz isto! Mantém-te calmo, mantém-te calmo. Fizeste isso  porque sabias que ia dar resultado.

Está bem, pronto.

Enquanto ia caindo, Race agarrou na M-16.  Não vais morrer.

Não vais morrer.

Tentou lembrar-se do que tinha feito Van Lewen, quando, horas antes, disparara  aquela espécie de arpão para o outro lado do abismo. Como é que ele tinha feito?  Tinha puxado um segundo gatilho da arma, para lançar o arpão, um gatilho que  ficava por baixo do cano da M-16.

A queda continuava.

Race olhava freneticamente para a arma, à procura do segundo...

Lá estava!

Num instante, ergueu a M-16 e apontou-a para o topo da torre, que ia ficando cada  vez mais distante. Depois, carregou no segundo gatilho.

Com um silvo estridente, o arpão prateado saiu disparado do lança-granadas da  espingarda e, com um som agudo, as suas garras abriram-se a meio caminho.

Race continuava a cair.

E o arpão subia, com a corda de nylon a oscilar atrás de si.  A queda continuava.

O arpão sobrevoou a borda do topo da torre.  A queda continuava.

Race segurou com força a M-16. Depois, fechou os olhos e ficou à espera, à espera  de sentir o esticão da corda ou a queda no lago, o que quer que fosse que  acontecesse primeiro.

Foi o esticão que veio primeiro.

Num instante, a corda que pendia do arpão ficou tensa e, de repente, Race parou de  cair.

Os braços quase que se lhe soltaram das articulações mas, apesar disso, conseguiu  não largar a M-16.

Race abriu os olhos.

E deu consigo pendurado na corda, cerca de trinta metros abaixo da borda do topo  da torre.

Durante uns trinta segundos, deixou-se ficar assim, pendurado, a respirar agitadamente, a abanar a cabeça. Os nazis apareceram lá em cima, junto à saliência.  Deviam ter-se ido embora do aterro mal o tinham visto cair.

Race respirou fundo, de alívio. Em seguida, dedicou-se à tarefa de se içar de novo  para o cimo da torre.

No alto da torre, Van Lewen continuava a abrir caminho entre a vegetação,  utilizando a faca Bowie como se fosse um facão.  Momentos antes, também ele tinha visto os nazis pegarem no ídolo e, agora,  tentava desesperadamente chegar à ponte de corda antes deles.

A ponte ficava no extremo sul da borda da torre e, naquele momento, ele e  Cochrane, que estava ferido, caminhavam para lá, abrindo uma passagem pelo meio  da selva que cobria o flanco sudoeste da torre.

Os nazis seguiam pelo caminho mais direto, voltando à ponte pela clareira e pelos  degraus de pedra.

Van Lewen afastou um último ramo e, abruptamente, ele e Cochrane avistaram a  ponte de corda, que atravessava majestosamente o abismo entre o cimo da torre e a  trilha, do outro lado.

A ponte oscilante encontrava-se a menos de quinze metros de distância e, nesse  momento, os doze soldados nazis que os tinham atacado junto ao portal do templo  estavam a atravessá-la. Alguns deles já estavam chegando ao outro lado.

Porra, pensou Van Lewen. Eles tinham chegado à ponte primeiro que ele.

Van Lewen olhou fixamente para um dos nazis que estava pondo os pés em terra  firme, do lado de lá da ravina. o homem levava qualquer coisa nos braços, uma  coisa embrulhada num tecido vermelho e esfarrapado.

O ídolo.  Merda.  Foi então que, do outro lado da ravina, os nazis fizeram aquilo que Van Lewen mais  temia, aquilo que ele próprio tencionara fazer, se tivesse chegado à ponte de corda  antes deles.

Soltaram a ponte dos suportes a que se encontrava presa e deixaram-na cair.

A grande ponte de corda caiu na ravina. Continuava presa do lado da torre, por  isso, não tombou no fundo. Ficou pendurada do lado da torre de pedra, com a corda  que tinha sido utilizada para a puxar, suspensa por baixo dela, mergulhada no  nevoeiro impenetrável que cobria o fundo da ravina.

Van Lewen ficou olhando, numa frustração impotente, para o grupo de nazis que  desciam a trilha, do lado de lá do abismo, levando consigo o ídolo.

Eles tinham o ídolo.

E, agora, ele estava encurralado na torre de pedra.

Heirich Anistaze parou, de mãos nos quadris, no centro de Vilcafor. Estava satisfeito  com a forma como tinha decorrido o assalto à aldeia.

O gerador de impulsos tinha funcionado na perfeição, impedindo as comunicações  do inimigo via rádio. Os americanos que se encontravam no ATV tinham sido  facilmente neutralizados. E, naquele momento, tinha acabado de saber que, na  torre, o pelotão de assalto fora bem sucedido na sua missão de tirar o ídolo dos  americanos.  As coisas estavam correndo realmente bem.

Ouviu-se um grito e Anistaze voltou-se e viu o pelotão da torre aparecer correndo,  no caminho do rio.

O chefe do pelotão foi imediatamente ter com ele e entregou-lhe um objeto,  embrulhado num pano.

- Herr Obergruppetiführer - disse o homem, num tom formal. - O ídolo.

Anistaze sorriu.

Depois de ter conseguido voltar a subir, pela corda suspensa do arpão, Race correu  pela clareira em frente ao templo, agora deserta, à procura dos Boinas Verdes, caso  algum deles ainda estivesse vivo.

Encontrou Van Lewen e Cochrane junto à parte da saliência, onde antes tinha  estado a ponte de corda.

- Filhos da puta - disse, ao ver o abismo intransponível, que se abria diante deles. -  Soltaram a ponte.

- Não há maneira de sairmos daqui - disse Van Lewen.

- Estamos encurralados.

 

Nesse instante, o helicóptero Mosquito passou por eles, a rugir, com os canhões  laterais a cuspir fogo. Os nazis deviam tê-lo deixado para trás, para acabar o  trabalho.

Race e os outros procuraram imediatamente refúgio entre a vegetação. Sobre as  suas cabeças, caíam folhas e folhas e, à sua volta, os troncos das árvores eram feitos  em fanicos.

- Foda-se! - gritou Cochrane, por entre a barulheira do tiroteio.  Race observava o Mosquito, que planava sobre o abismo, cuspindo longas línguas  de fogo, olhou atentamente para os patins alongados do trem de aterragem, que  balançavam por baixo da cabine.

Os patins do trem de aterragem... pensou.

Nesse momento, qualquer coisa estalou na mente de Race: uma espécie de  determinação feroz, que ele nunca julgara possuir...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"