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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


THE CHIEF / Monica Maccarty
THE CHIEF / Monica Maccarty

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Rastreando os rincões mais recônditos das Highlands e as ilhas do oeste, Robert de Bruce escolhe dez guerreiros para ajudá-lo em sua cruzada para libertar a Escócia do domínio inglês. São os melhores entre os melhores, escolhidos por suas extraordinárias habilidades em cada disciplina de guerra. E para liderar a este seleto grupo, Bruce escolhe ao maior guerreiro de todos.
Tor MacLeod, guerreiro sem igual, não tem rival com a espada, não está disposto a deixar-se arrastar à guerra da Escócia contra Inglaterra. Devoto a seu clã, este líder independente não responde ante ninguém, muito menos ante sua recente e sedutora noiva, a qual lhe é entregue numa tentativa de assegurar seu comando da força de combate mais letal que o mundo jamais conheceu. Pode ser que a insidiosa moça que conseguiu penetrar em sua cama tenha ganhado algumas batalhas, mas nunca terá seu coração.
Embora a reputação de seu marido seja tão feroz quanto suas maneiras, Christina Fraser acredita que debaixo daquela brutal fachada se oculte um pouco de ternura. Mas só na cama encontra um pouco de afeto, naqueles gloriosos momentos repletos de ardente desejo que desaparecem ao chegar da alvorada. Quando Christina tenta desesperadamente ganhar o amor de seu marido e fracassa, se inunda em perigo as vésperas de uma guerra, Tor enfrentará à batalha definitiva: salvar a sua esposa e lhe abrir seu coração…
antes que seja muito tarde.

Prefácio
Ano de Nosso Senhor de mil trezentos e cinco.
Depois de nove anos de uma sangrenta guerra, a Escócia passou às mãos inglesas. E no trone Eduardo Plantageneta, o homem mais poderoso e implacável da Cristandade, e William Wallace, o grande lutador pela independência da Escócia, jaz em uma prisão inglesa. Aparentemente tudo está perdido e o imponente «Martelo dos Escoceses» esmagou as vozes da rebelião.
Entretanto, até em suas horas mais sombrias, a tocha da liberdade da Escócia voltará a brilhar uma vez mais. Apesar de suas escassas possibilidades, Robert de Bruce, conde de Carrick e senhor de Annandale, lutará pelo trono.
E não o fará sozinho.
Entre as brumas do tempo, esquecida por todos, salvo uns poucos, conta-se a lenda de um secreto grupo de guerreiros escolhidos por de Bruce nos mais recônditos lugares das Highlands (as Terras Altas) e as ilhas Ocidentais (as ilhas Hébridas) para formar a força de combate mais mortífera que o mundo conheceu.
Em uma época em que a linha que separa a vida e a morte não é mais que uma sombra, os Guardiões das Highlands criada por Bruce não se deterá perante nada com objetivo de sacudir o jugo inglês.
Esta é a história dos homens que responderam à chamada da liberdade e, assim, contribuíram para construir uma nação.

 

 

 


 

 

 


“Desde este dia até o fim do mundo, os que nele estamos seremos recordados; nós, os poucos escolhidos, irmãos; pois quem derrame hoje seu sangue comigo será meu irmão.”
William Shakespeare, Enrique V, ato IV, cena III


Castelo de Lochmaben

Dumfries e Galloway, Escócia,

28 de agosto de 1305


—William Wallace morreu.

Por um momento, Robert de Bruce, conde de Carrick, senhor de Annadale e antigo defensor da Escócia em companhia de Wallace, não pôde articular uma só palavra. Apesar da morte ser inevitável para Wallace desde que o tinham capturado fazia umas semanas, não era por menor devastador o golpe final, e vacilou a esperança que o arrojado Wallace tinha acendido em seu coração, como nos corações de todos os escoceses oprimidos pela tirania inglesa.

O paladino da Escócia tinha morrido. Correspondia-lhe continuar com sua missão, se decidisse empreender esse caminho. A carga era pesada e

perigosa, como tinha demonstrado a morte do Wallace. Tinha todas as chances de perder.

Bruce separou de si os pensamentos erráticos e recebeu o anúncio do prelado com uma séria inclinação de cabeça. Fez um gesto a seu amigo para que se sentasse no banco de madeira e se esquentasse ao amor da luz. William Lamberton, bispo de Saint Andrews, estava encharcado e parecia a ponto de cair rendido pelo esgotamento, como se tivesse sido ele mesmo, cavalgado noite e dia de Londres levando a notícia.

Bruce se serviu uma taça de escuro vinho da jarra que havia sobre a mesa e se sentou a seu lado.

—Tomem, bebam isto. Dá a impressão de necessitar.

Ambos o necessitavam.

Lamberton aceitou a taça dando obrigado em um murmúrio e bebeu um bom gole. Bruce fez o mesmo, mas o intenso sabor frutado do vinho lhe pareceu azedo.

—Como? —perguntou, baixando a voz e preparando-se para o que ia ouvir.

Lamberton lançou rápidos olhares de um lado a outro. Com seu rosto redondo e infantil e o nariz frio e avermelhado tinha o aspecto de uma lebre ao perceber um perigo. E uma lebre bem gorda, além disso. Mas Bruce não se deixava enganar pelo aspecto inofensivo do prelado, pois atrás daquela máscara tão pouco favorecedora espreitava uma mente tão ágil, sagaz e ardilosa como a do próprio rei Eduardo.

—É seguro falar aqui? —perguntou o bispo.

—Sim — respondeu Bruce, assentindo. Lamberton fazia bem em mostrar-se precavido. Estavam sozinhos nos aposentos particulares de Bruce, mas o castelo do Lochmaben pertencia agora a Eduardo e o tinham submetido à vigilância. Embora o rei da Inglaterra o chamasse de amigo, Bruce não confiava nele. Eduardo era um tirano, e dos mais ardilosos—. Ninguém pode nos ouvir — manifestou ao bispo—. Assegurei-me que isso. Contem-me isso Os olhos negros de Lamberton se cruzaram com os seus e a crueldade que Bruce viu neles augurava o horror do que ia ouvir.

—Sofreu a morte de um traidor.

Bruce deu um coice. Então Wallace tinha sofrido na verdade. Apertou os dentes e indicou ao bispo que continuasse com uma inclinação de cabeça.

—Um cavalo o arrastou durante cinco quilômetros pelas ruas de Londres até o Smith Field Elms. Penduraram-no, afogaram e esquartejaram, mas não antes de lhe cortar suas partes pudendas, lhe tirar as tripas e as queimar diante de seus próprios olhos. Sua cabeça se encontra agora cravada em uma lança no alto da ponte de Londres.

—O orgulho converteu Eduardo em um idiota — disse Bruce com os olhos chamejantes de raiva.

Lamberton voltou a olhar a seu redor, mas só se moviam as sombras vacilantes que a luz da vela jogava sobre os muros de pedra cobertos de tapeçarias. Seu temor era compreensível, pois muitos homens tinham sido enviados à Torre por dizer muito menos. Entretanto, ao não irromper soldado algum no aposento, relaxou.

—Sim. A vingança de Eduardo converteu Wallace em um poderoso mártir. Seu fantasma o perseguirá com muita mais sanha de que quando estava vivo. Não é próprio de Eduardo cometer um engano semelhante.

—É um Plantageneta.

Lamberton assentiu. Como explicação bastava. A família real da Inglaterra era famosa por seus aterrorizantes ataques de temperamento apoplético. Bruce tinha tido que suportar suas conseqüências em mais de uma ocasião. Até então tinha conseguido sobreviver a elas, mas sabia que sua sorte não ia durar.

—Não trocastes de idéia? —perguntou Lamberton, adivinhando seus pensamentos.

A espera que refletia seu olhar atuou sobre Bruce com uma força paralisante. Por sua cabeça cruzaram em um instante todas as coisas que podia perder: suas terras, seu títulos, a vida. Pensou nos inimagináveis sofrimentos de Wallace. A dor deve ter sido atroz, até o ponto de receber com alívio o golpe final do machado. Se Bruce persistia em seguir o caminho empreendido, tinha todas as probabilidades de compartilhar o mesmo destino.

Naquele instante Bruce vacilou. Ao fim e ao cabo só era um homem. Não era um rei ainda, embora a coroa pertencesse a ele. Nessa certeza, nessa fé que impregnava até a última fibra de seu ser, achou Robert de Bruce o valor e a resolução que necessitava.

Prosseguiria a luta pela liberdade levada a cabo por Wallace, sem importar o que custasse.

—Não, não troquei de idéia - respondeu, e a férrea determinação de sua voz não transparecesse o menor indício de sua momentânea vacilação.

Fazia cinco meses que Lamberton e ele tinham forjado uma aliança secreta contra todos os rivais, incluindo não só ao homem mais poderoso da Cristandade, Eduardo Plantageneta, mas também a outros aspirantes escoceses ao trono. Desfazendo-se de Eduardo conseguiriam tão somente ganhar a metade da batalha; unir a seus compatriotas sob seu estandarte se apresentava igualmente difícil. Tinham sido as facções e as brigas familiares que dividiam a Escócia as que tinham permitido a Eduardo fazer-se forte de um princípio.

Toda esperança de êxito passava por ter a Lamberton do seu lado. Apesar de sua relativa juventude (Bruce tinha trinta e um anos e Lamberton uma menos), o bispo do Saint Andrews se achava à frente da sede episcopal mais próspera e era um dos homens mais importantes e respeitados da Escócia. Inclusive Eduardo o reconhecia assim e, em conseqüência, recentemente o tinha renomeado Guardião da Escócia junto com o próprio Bruce.

—Bem - disse Lamberton sem incomodar em ocultar seu alívio—. Devemos estar preparados.

—piorou a saúde do rei? —perguntou Bruce sem poder dissimular o tom esperançado de sua voz.

—Não. Tornou a levantar-se de entre os mortos uma vez mais. Um milagre por obra e graça da captura do Wallace, sem dúvida.

Bruce suspirou. Supunha que era muito esperar que Eduardo tivesse a cortesia de morrer de enfermidade. O príncipe de Gales não tinha a astúcia nem a vontade de ferro de seu progenitor.

—Então para que nos estamos preparando?

—A morte de Wallace acenderá a chama da rebelião uma vez mais — respondeu Lamberton—. Temos que nos assegurar de que o fogo se estenda em nossa direção.

Um ódio maior ainda que o que sentia por Eduardo percorreu as veias de Bruce.

—Ouvistes rumores? Está planejando algo, o famigerado Comyn?

John Comyn o Vermelho, senhor de Badenoch, era seu maior inimigo e chefe rival aspirante ao trono.

—Não ouvi nenhum rumor — afirmou Lamberton, dando de ombros—, mas é melhor acautelar que curar.

Bruce apertou sua taça até que as bordas do estanho esculpido lhe cravaram na mão. Certamente não restava dúvida de que seu adversário tinha intenção de atacar, o que ficava em aberto, era quando.

Bruce e Lamberton seguiram falando durante um momento, tentando elucidar com os quais podiam contar para levantar-se em rebelião sob o estandarte de Bruce, assim como os quais deviam descartar. O reinado de terror de Eduardo durante os últimos anos tinha dado seus frutos. Não seria tarefa fácil convencer aos escoceses de que elevassem lanças e lanças contra umas forças inglesas muito superiores que dispunham de cavalheiros com armadura e cavalos de combate.

Granjeiros e pescadores contra a nata da cavalaria. Era uma loucura acreditar que tinham alguma possibilidade? Wallace tinha tentado e todos sabiam como tinha terminado: com a cabeça cravada em uma lança e o corpo esquartejado e enviado a todos os limites da Inglaterra. Bruce sentiu que seu ânimo desfalecia, não só pela perda de um grande homem, mas também pela desesperada situação de seu país.

Mas podia aprender com os enganos de Wallace. Ao fim e ao cabo tinha demonstrado que os ingleses eram vulneráveis em uma guerra não convencional em que se seguissem táticas de piratas. Bruce se estremeceu, já que a idéia seguia lhe provocando certo rechaço.

Levantou-se e passeou de um lado a outro em frente ao fogo tentando reconciliar-se com o que estava a ponto de sugerir, dado que ia contra todo aquilo no que acreditava, mas precisavam achar o modo de igualar a partida. Finalmente se deteve e se voltou para seu amigo, que o observava em silencio do banco.

—Não podemos ganhar — disse frustrado pela inegável verdade—. Ao menos não em uma batalha campal, exército contra exército. As forças inglesas são mais numerosas e mais organizadas, e estão muito melhor equipadas.

Lamberton assentiu, mostrando assim seu acordo. Não era nada que já não soubessem.

—Devemos expor esta guerra de outro modo — aventurou Bruce—. Acabaram as batalhas campais e os longos assédios, acabou o enfrentar-se a cavalaria com cavalaria. Devemos achar a forma de voltar sua própria força em nosso favor. —O bispo o olhava com atenção—. Devemos lutar em nossa guerra segundo nossas condições.

—Referem-se a práticas de piratas? —perguntou Lamberton, arqueando uma sobrancelha com surpresa—. Não é assim como se comportam os cavalheiros.

A reação de Lamberton era compreensível. Ao próprio Bruce lhe custava acreditar que a sugestão fosse dele, quando se tratava de um dos maiores cavalheiros da Cristandade e as leis da cavalaria impregnavam até a última fibra de seu ser. Lutar como um pirata ia contra todas suas crenças: normas, códigos e modelos de conduta.

—Se lutarmos como cavalheiro perderá — replicou Bruce resolutamente—. Exército contra exército, os ingleses são muito fortes, mas Wallace nos ensinou o modo de alcançar a vitória aplicando as táticas piratas em terra.

—Wallace fracassou — fez notar Lamberton.

—Mas nós teremos algo que Wallace não tinha. —Bruce fez uma pausa e tirou um pergaminho dobrado de seu sporran, a bolsa de pele que acompanhava o kilt, ou saia típica escocesa.

Lamberton agarrou o pergaminho e repassou a lista que continha uma meia dúzia de nomes.

—O que é isto?

—Meu exército secreto.

Lamberton arqueou uma sobrancelha, perguntando-se se Bruce brincava.

—De uma dúzia de homens? —Voltou a repassar a lista—. E pelo que vejo, com um único cavalheiro entre eles?

—Já tenho cavalheiros; o que não tenho são homens que saibam lutar como os piratas.

—Highlanders — disse Lamberton, e de repente os nomes da lista adquiriram significado—. Que melhor lugar para encontrar piratas que os highlanders de sangue escandinavo que habitam as ilhas Ocidentais?

—Exato — confirmou Bruce—. O número de homens reflete o estilo de luta: ataque rápidos e audazes de grupos pequenos que atuam com sigilo e surpreendem ao inimigo, semeando o terror.

—Mas por que secreto?

—O medo pode ser uma arma muito poderosa e o mistério não fará mais que aumentar o medo que terá o inimigo. São reais ou mitos? Pensarão. E também será mais difícil detê-los se não souberem quem estão procurando.

Lamberton voltou a examinar o pergaminho dando pequenos golpes no queixo com um dedo enquanto Bruce aguardava. A opinião do bispo era muito importante para ele e seria um incentivo para outras opiniões parecidas, mas Bruce não se enganava e sabia que convencer a seus camaradas de armas, cavalheiros como ele, não seria tarefa fácil.

—Devo admitir que a idéia seja interessante.

—Há mais — disse Bruce, vendo que o bispo não estava de todo convencido —. Não é só um bando de piratas. O que têm ante vocês são os nomes dos guerreiros mais fortes da Escócia em cada especialidade da guerra, do armamento até a infiltração, passando pelo mar, a exploração e a captura. Tenham isto em conta: para tudo que necessitemos, para qualquer missão que vamos atacar por impossível que pareça, disporemos dos melhores homens. Imaginem o que esses homens podem fazer sozinhos e logo imaginem o que poderão fazer juntos.

Os olhos de Lamberton se iluminaram. Sorriu e sua expressão ardilosa se contradisse com o semblante juvenil e as roupagens sacerdotais.

—É visionário. —Olhou Bruce com admiração—. Uma idéia revolucionária para levar a cabo uma revolução.

—Disso se trata. —Bruce sorriu, agradado com a reação de seu amigo. Escolher com esmero aos melhores guerreiros para combater em um pequeno grupo sem vínculos familiares ou feudais… Bom, nunca tinha feito nada parecido. Havia mais de um par de inimigos na lista, mas se conseguisse… as possibilidades eram assombrosas.

—Não será fácil — disse Lamberton, lhe lendo o pensamento—. Unir a estes homens será virtualmente impossível.

—Igual unir a Escócia sob meu estandarte?

Lamberton inclinou a cabeça para admitir o raciocínio. Nenhuma das duas coisas seria fácil de conseguir, mas não podiam deixar-se levar pela desesperança.

—Quem dirigirá esse exército secreto?

Bruce deslizou o dedo até chegar ao nome que encabeçava a lista.

—Quem se não o homem considerado como o guerreiro mais feroz das ilhas Ocidentais? Tormod MacLeod, chefe dos MacLeod. Não há quem o supere na luta com espada. Igual a Wallace, é um homem de estatura impressionante que empunha uma espada enorme com ambas as mãos. Diz-se que em uma ocasião derrotou a uma vintena de homens que tentaram apanhá-lo rodeando-o.

—Exagero? —perguntou o bispo, torcendo levemente a boca.

—Sem dúvida — conveio Bruce, imitando o sorriso irônico—. Mas os mitos podem ser tão poderosos quanto à verdade. Os bardos cantam já os louvores de MacLeod, comparando-o com Finn MacCool, o legendário herói irlandês. E igual a ele, reverenciam-no, não só por suas próprias habilidades para a luta, mas também pela de seus homens.

O bispo lhe lançou um rápido olhar. Não havia um herói maior no mundo gaélico que Finn MacCool, o cabeça da legendária orda de guerreiros conhecida como Fianna. A comparação era atrevida na verdade.

Bruce sorriu com agrado ao comprovar que seu amigo tinha compreendido o valor que tinha tal comparação.

—Sim, MacLeod fez fortuna adestrando a homens para combater como gallowglass, mercenários estrangeiros, na Irlanda.

—Assim, podes comprar o guerreio?

—Talvez. —Bruce franziu o cenho e deu de ombros—. Já conhecem os chefes das ilhas. Imprevisíveis no melhor dos casos e abertamente hostis no pior.

Súditos da coroa escocesa fazia apenas umas décadas, os obstinados chefes ilhéus seguiam considerando-se independentes, «reis do mar» que governavam um vasto território isolado. Aquela deslealdade irritava Bruce, mas, ao contrário que seus predecessores, sabia que para derrotar aos ingleses e obter a coroa necessitava o apoio das Highlands e das ilhas. A costa ocidental era a chave para ter acesso ao comércio marítimo e prover-se de fornecimentos. Bruce acariciou o queixo pondo de ponta o escuro pêlo de sua curta barba.

—Terei que lhe fazer uma oferta que não possa rechaçar — acrescentou.

—Está seguro de que é sensato milorde? —perguntou Lamberton com ceticismo—. Esses chefes de clãs não gostam que tentem forçar sua vontade.

—Não tenho intenção de forçar nada — replicou Bruce, sorridente—. Não será necessário. Dinheiro, terras, uma mulher formosa… Todo homem tem seu preço. Simplesmente temos que descobrir qual é o seu.

Lamberton assentiu, embora seguisse sem parecer convencido.

—Então está decidido a fazer?

Bruce demorou uns instantes em responder. Podia realmente renunciar aos ideais da cavalaria para libertar um novo tipo de guerra totalmente contrária a tudo o que tinha aprendido na infância?

Sim, podia se era para ganhá-la. Em qualquer caso, tinha que preparar-se. E não lhe cabia a menor duvida de que teria que estar muito bem preparado para enfrentar-se com semelhante exército.

—Sim, estou — disse ao fim—. Juntar a todos esses homens não será fácil, mas não regulem esforços para consegui-lo. Pode ser que os necessitemos antes do que desejaríamos.

Seus olhares se cruzaram. Com semblante sério, imaginavam o longo caminho que se estendia ante eles. Um caminho envolto na bruma de um fim incerto.

Um calafrio percorreu ao prelado.

—aproximam-se nuvens de tormenta, milorde.

—Sim — conveio Bruce com expressão sombria. Já não havia volta. Pensou nas palavras de César antes de iniciar a guerra civil contra Pompéia e disse—: Bate as asas iacta est.

Lamberton repetiu a frase com o mesmo tom resignado, traduzindo-a.

—A sorte está lançada. Que Deus salvasse a todos.


Capítulo 01


O «maior herói de sua raça».

I. F. Grant, falando de Tormod MacLeod


Castelo de Dunvegan, ilha de Skye,

Dia de San Miguel Arcanjo, 1305


«Vou matar muito devagar.»

O silêncio se apropriou do salão como a quietude espectadora que segue ao sonoro estalo de um trovão, enquanto o tabelião terminava de ler a carta. A vintena de guerreiros reunidos em torno do grande salão do castelo de Dunvegan aguardavam a resposta completamente imóveis. Em seus ferozes rostos, viu a indignação e o assombro que ele compartilhava, mas dissimulava sob uma fachada de pedra.

Só no estrado, Tormod MacLeod, chefe dos MacLeod, inclinou-se para frente e transpassou com o olhar ao desventurado que lia.

—Que fez o que? —Seu tom absolutamente calmo não contribuiu para aliviar a tensão.

O tabelião deu um coice e emitiu o que somente podia descrever como um chiado. A carta saiu voando de sua mão e flutuou pelo ar carregado de fumaça até aterrissar no chão coberto de juncos. Tor plantou o pé sobre o pergaminho culpado de seu desgosto. Quando se agachou para recolhê-lo, distinguiu sob o calcanhar os ganchos de ferro familiares de Torquil MacLeod, seu irmão gêmeo mais novo que ele por tão só dois minutos.

Apenas se tinha extinguido os fogos provocados pelo recente ataque à aldeia, e seu irmão se comportava assim? «Muito devagar», voltou a prometer-se, e espremeu o pergaminho até convertê-lo em uma bola.

O tabelião conseguiu recuperar a fala, embora a voz lhe tremesse ao responder à pergunta de Tor.

—seu ir-irmão diz que não pode aca-acatar a negativa do chefe dos Nicolson a lhe entregar a mão de sua filha em matrimônio, e que se viu obrigado a tomar as rédeas do assunto. —O jovem clérigo fez uma pausa e se secou o suor que perolava sua frente com o dorso da mão— diz que seu amor…

—Basta! —O punho de Tor aterrissou com estrépito no braço do trono de madeira esculpida em um estranho arrebatamento de cólera, que corria por suas veias e lançava labaredas por seus olhos—. Já… é… suficiente.

O amor tinha que ser de todas as desculpas, a mais estúpida para atuar como um idiota. Teria preferido que Torquil se justificasse dizendo que Margaret Nicolson era uma grande herdeira, coisa certa, e que fugiu com ela em benefício do clã; ao menos então Tor poderia ter tentado compreender aquele supremo engano de julgamento.

Torquil tinha cometido uma imprudência com a que iria iniciar uma guerra, pondo em perigo todo aquilo pelo que Tor tinha lutado durante os últimos vinte anos. Vinte anos atrás seu clã se achava a bordo da destruição, primeiro pelo massacre que tinha ceifado a vida de grande número de membros do clã, incluindo a seus pais, e depois por culpa de vários anos de fome. Mas trabalhando com determinação, Tor tinha conseguido por de novo tudo em pé. O clã voltasse a ser forte e próspero. Quão último queria era vê-lo todo destruído pela guerra. Estranha situação para um homem que não conhecia outra coisa, que tinha ganhado fama e fortuna com a guerra, mas seu clã merecia a paz e ele estava disposto a dar essa paz.

A recente sucessão de ataques já era um feio assunto. Duas vezes no último ano se apresentaram homens ao amparo da noite para roubar gado, saquear as colheitas e queimar os campos. Eram os típicos atos de covardia a que estavam acostumados os MacRuairi. Se na verdade tinham quebrado a trégua, Tor se asseguraria de que o pagassem com acréscimo.

Mas primeiro devia ocupar-se da ameaça mais imediata: tinha que achar o modo de aplacar Nicolson e de evitar a guerra. Apertou os dentes com expressão severa, meio tentado a arrastar seu irmão encadeado até os pés do Nicolson. Talvez servisse para apaziguar a este último.

Antes se deixaria enforcar que desempenhar o papel de Heitor para o apaixonado Torquil em seu papel de Paris, e permitir que seu clã sofresse a mesma sorte que os troianos. Havia muitas razões para incitar em uma guerra, mas uma mulher não era uma delas.

Tor fez um esforço por dominar sua ira. Não perdeu o controle. Embora fosse difícil de acreditar vendo como tremia o pobre e aterrorizado clérigo.

Tor entrecerrou os olhos sob o peso de seu cenho ao observar ao tabelião. John era seu nome, pensou. O clérigo não era do tipo de homens que causavam uma grande impressão. De estatura média e compleição magra, com o cabelo liso e castanho escuro cortado em arco ao redor do rosto liso e sem uma só cicatriz, e umas feições regulares, embora anódinas, parecia o homem perfeito para a profissão que exercia. Seus magros braços eram adequados para levantar a pluma, não à espada.

Tor reservou sua belicosidade para dignos adversários no campo de batalha. O açoite de sua ira devia recair sobre Torquil, não sobre aquele mucoso. Que satisfação havia em pisotear a um camundongo? Os homens que pegavam aos fracos fossem servos, meninos ou mulheres, não faziam mais que cobrir-se de desonra.

O clérigo era novo, assim Tor lhe perdoaria a ofensa… desta vez.

—Deixem de tremer, homem - lhe espetou—. Não vou cortar-te a língua por ser portador de más notícias.

Entretanto, ao invés de tranqüilizar-se, o rosto do homem pareceu voltar-se de um tom ainda mais cinza e doentio. Clérigos, pensou Tor com repugnância. Apesar de todo seu saber, eram seres delicados, mas ele não tinha tempo para sutilezas, assim seria melhor para o clérigo que endurecesse logo a pele. Se não o fazia, teria que ser substituído.

—Onde está agora meu irmão?

O clérigo sacudiu a cabeça fazendo que se movesse visivelmente sua avultada noz.

—Não sei, chefe. O mensageiro se foi antes que alguém pudesse interrogá-lo.

Se a Torquil ficava um ápice de sentido comum, teria levado a noiva raptada em navio rumo à perdição, virtualmente o único lugar a que Tor não lhe seguiria.

Murdoch, secuaz e capitão de sua guarda, deu um passo adiante para ser o primeiro de seus homens a falar. Não era o medo o que mantinha calados ao resto, a não ser o respeito para o critério de Tor, o único podendo para julgar.

—Eu o encontrarei, ri tuath. O mais certo é que se foi para Irlanda ou à ilha de Man.

Tor tinha chegado mais ou menos à mesma conclusão. Seu irmão tinha passado boa parte dos últimos vinte anos na Irlanda como soldado mercenário, igual a todos outros. Enviando guerreiros a Irlanda, Tor tinha podido restaurar a fortuna do clã. Seus homens e ele conheciam a Irlanda quase tão bem como Skye. Assentiu com a cabeça.

—Levem tantos homens como precisam — ordenou, lançando ao Murdoch um olhar de cumplicidade—. Meu irmão faria bem em desejar que o encontrem antes que Nicolson.

—E se ele se negar a retornar? —perguntou Murdoch sem rodeios.

Ninguém objetaria nada se Tor autorizasse que se usasse a força com seu irmão, apesar da popularidade de que gozava Torquil entre os homens. A palavra do chefe era a lei. Apertou de novo os dentes, tentado de dar a ordem, mas como sempre guardou seus pensamentos para si mesmo.

—lhe digam que é uma ordem direta de seu chefe. —Nem sequer o cabeça dura de seu irmão se negaria.

Oxalá tivesse proibido seu irmão explicitamente que fizesse algo assim. Depois de todos os problemas causados pelo rapto de sua irmã Muriel, Tor tinha imaginado que Torquil seria mais sensato. Mas deveria ter suspeitado algo quando as negociações se romperam e Nicolson anunciou que sua filha se comprometia com o filho de MacDougall.

Maldição! Teria que compensar ao MacDougall de alguma forma, e conhecendo aquele bode avaro, ia sair muito caro.

Tor jogou a carta enrugada ao fogo que havia no centro do salão e se despediu do tabelião com um seco movimento da mão. Apesar de que parecia impaciente por ir correndo a refugiar-se entre seus livros e pergaminhos, o clérigo não fez mais que mudar o peso de um pé a outro com nervosismo.

A temeridade do clérigo começava a crispar ao Tor.

—Se tiverem algo mais que dizer, façam já ou retornem a seus deveres.

—Sim, chefe. Desculpe-me, chefe. —O clérigo tirou um pergaminho dobrado da pequena bolsa que tinha atado a seu hábito de lã marrom—. Isto chegou recentemente. —O estendeu a Tor para que o lesse.

Tor examinou o selo de cera e imediatamente reconheceu aos quatro homens em um birlinn e leu: «Angus Og MacDonald, ri Innse Gall». Arqueou então uma sobrancelha com gesto zombador. MacDonald demonstrava uma grande audácia ao utilizar o antigo título de rei das Ilhas em lugar do de senhor de Islay. Título com o que o rei Eduardo provavelmente estaria em desacordo.

E o «rei das Ilhas» o que queria dele?

Tor rompeu o selo, deu uma olhada à carta e a devolveu ao jovem clérigo. Embora soubesse ler um pouco o gaélico, não tinha a aptidão do clérigo. Igual à maioria dos chefes das Highlands Ocidentais, empregava a tabeliães para tais afazeres.

O tabelião começou a ler. Demorou um momento em terminar a prolixa saudação inicial - Tormod, filho de Tormod, filho de Leod, filho de Olaf o Negro, rei de Man, filho de Harald Hardrada, rei da Noruega—, mas ao final ficou claro que MacDonald convocava aos chefes das ilhas a um conselho no Finlaggan, seu baluarte situado em Islay.

O que não estava claro era por que convocava Tor. Ele não tinha que responder ante MacDonald. Skye não nunca tinha formado parte dos domínios de MacDonald. O sangue que corria pelas veias de Tor era tão régio como de MacDonald, e os MacLeod não se inclinaram ante ninguém desde que o tio de Tor, Magnus, tinha ocupado o trono como último rei de Man.

Maldição! Somente fazia quarenta anos que Innse Gall, as ilhas Ocidentais, formavam parte da Escócia. Em teoria, Tor devia lealdade a Eduardo como rei da Escócia, mas não lhe tinha pedido que jurasse, nem pensava fazê-lo.

Assim, por que o convocava MacDonald? Tor suspeitou que tivesse algo que ver com o descontentamento que aumentava na Escócia por culpa do governo tirânico do rei Eduardo.

Tor não tinha a menor intenção de deixar-se envolver nas longínquas disputas dos reis da Escócia. Havia tomado grande cuidado em evitar tomar partido, não só entre um rei inglês e outro escocês, mas também entre os MacDonald e os MacDougall. Nas ilhas Ocidentais era a luta pelo poder entre esses dois ramos dos descendentes do Somerled a que dominava o cenário político.

O tabelião se interrompeu e franziu o cenho.

—Ao pé há uma nota escrita com letra distinta. Diz: «Tenho uma proposta a lhe fazer, uma oportunidade que não quererão deixar escapar».

Tor não mordeu o anzol. Se MacDonald queria atraí-lo com promessas, tinha cometido um engano de cálculo. Não lhe interessava o mais mínimo nenhuma proposta que pudesse lhe fazer Angus Og. Tinha problemas mais urgentes. O de Nicolson, por exemplo.

Abriu a boca para indicar ao tabelião que redigisse uma negativa educada, mas clara, quando de repente se deu conta de que Nicolson também estaria ali.

Ao contrário dos MacLeod, o clã Nicolson, com suas vastas posses no Assynt, esteve sob o domínio do rei das Ilhas. O chefe do clã responderia à convocatória e acudiria ao Finlaggan, o que daria a Tor a oportunidade de arrumar o enredo de seu irmão antes que se produzisse uma custosa guerra. Embora o instinto lhe pedisse lutar, como chefe devia a seu clã a tentativa de evitar a guerra.

Recostou-se no assento e observou a seus homens.

—Preparem os birlinns1 para a manhã. —Torceu a boca em um sorriso irônico—. Ao que parece fui convocado.

O tabelião o olhou com perplexidade, mas os homens riram entre dentes a brincadeira. Se acudiam a Finlaggan, sabiam perfeitamente que não era porque Tor tivesse sido convocado.

Ninguém obrigava ao chefe dos MacLeod a fazer nada que ele não queria fazer.


Touchfaser, Stirlingshire


Christina leu algo que lhe cortou a respiração, o que quase provocou que se afogasse com a ameixa confeitada que estava mastigando. Seus olhos voaram sobre a página, mas não era o bastante veloz lendo para acalmar os desbocados pulsos de seu coração.

Lancelot e a rainha Genebra tinham combinado um encontro para essa noite. A fim de chegar até sua amada, Lancelot aferra os barrotes de ferro que lhe impedem de transpassar a janela, dobra-os e logo os tira para subir até o interior.

Barrotes de ferro! Que força tão assombrosa! Christina meteu outra ameixa na boca sem perder a concentração um só instante. Sentia um formigamento no corpo pela impaciência, consciente do que ia ocorrer a seguir: o encontro entre os apaixonados.


“ E a rainha estende os braços para ele e o abraça, e o aperta com força contra seu peito para atraí-lo para a cama, onde o satisfaz de todas as maneiras possíveis, lhe entregando seu amor e seu coração. É o amor o que a move a tratá-lo assim; e se ela sente grande amor por ele, ele sente um amor cem mil vezes maior por ela. Pois não há amor em nenhum coração do mundo que possa comparar-se com o que há em seu coração; o amor está tão completamente encarnado em seu coração que se mostrava como migalhas a todos outros corações. Agora Lancelot possui quanto deseja, quando a rainha procura voluntariamente sua companhia e seu amor, e quando ele a estreita entre seus braços e ela o estreita entre os seus. É tão agradável e doce o prazer que sentem quando se beijam e acariciam que na verdade se apodera deles uma sorte tal como não se conheceu nem ouvido jamais.”


Com as bochechas avermelhadas, Christina fechou o livro brandamente, apoiou as costas na arca de madeira que havia aos pés de sua cama e abraçou o livro contra seu peito emitindo um profundo suspiro. Sabia que deveria lhe parecer absolutamente infame, mas era impossível. Era uma história muito romântica.

Podia ler O cavalheiro da carreta de Chrétien do Troyes2 uma e outra vez sem cansar-se dele. E pensar que algum dia um homem poderia amá-la desse modo!

Mas Lancelot não era um homem qualquer. Era o maior cavalheiro do reino, era valente, atraente e galante, e estava disposto a fazer tudo por sua amada, inclusive renunciar às leis da cavalaria, a seu orgulho e sua honra, ao aceitar o oferecimento de viajar em uma carreta para salvar a sua dama das malvadas garras do Meleagant3. Para um cavalheiro, viajar de carreta constituía uma horrível humilhação. Como não ia amar Genebra a um homem que não só se rebaixava até tal ponto por ela, mas sim também tinha lutado por ela e a tinha salvado em duas ocasiões?

Christina imaginava-o no lombo de seu magnífico cavalo de combate, com seu alto e musculoso corpo de guerreiro coberto por uma cota de malha que reluzia ao sol e um tabardo4 azul celeste combinando com seus penetrantes olhos, que mal eram visíveis sob o visor de seu elmo, que cobria seus cabelos dourados, salvo por uma mecha solta que açoitava suas fortes e atrativas feições quando cavalgava pelo campo de batalha empunhando sem esforço uma pesada espada para derrotar a quantos pretendiam causar dano a sua formosa dama.

Christina voltou a suspirar com olhos ternos e um sorriso sonhador dançando em sua boca. Apesar de não existia tal cena no livro que estava lendo, não deixava de lhe vir uma e outra vez à cabeça.

Talvez algum dia…

De baixo chegou um grito que pôs fim bruscamente a seus sonhos. Um medo frio como o gelo afogou as ânsias românticas que enchiam seu peito.

«Pai.»

Era muito cedo para que chegasse seu pai! Seu olhar se desviou rapidamente a pequena janela que havia na câmara da torre e viu os delicados tons amarelos e rosas do sol poente através da portinha aberta.

Christina ficou paralisada. Diabos! Como podia ter passado todo o dia lendo? Conhecia os riscos. Colocou a palma da mão com gesto reverente sobre a preciosa moldura de madeira envolta em escura pele marrom com cantos metálicos pintados como se fossem vidros de cores. Aquele livro era sua posse mais apreciada. E se seu pai a encontrava, também seria a mais perigosa. A lembrança da ira de seu pai era dolorosamente fresca. Tocou a ferida da maçã do rosto que lhe tinha provocado o anel de seu pai. A ferida tinha começado a curar-se, mas a sensação de impotência persistia.

Christina lhe tinha falado de tudo o que tinha aprendido, recordando com emoção o orgulhoso que se havia sentido de seu irmão, mas em lugar de deixá-lo impressionado, o homem que se converteu em um estranho para ela se encolerizou para ouvir que, durante os três anos que o rei Eduardo o tinha mantido prisioneiro na Inglaterra, sua irmã e ela tinham aprendido a ler com o sacerdote da igreja da aldeia.

Seu pai opinava que a leitura não faria mais que lhe encher a cabeça de idéias e distraí-las de seus deveres. A educação estava reservada para os homens e as monjas.

A surra a tinham ganho por confessar que desejavam tornarem-se monjas e refugiar-se na paz da abadia, e esteve a ponto de matar a sua irmã. Beatrix era uma jovem frágil que ostentava as marcas que lhe tinha deixado uma enfermidade infantil. Depois do castigo, seu pai lhe tinha proibido retornar à abadia. Somente a promessa de Christina a Beatrix de que acharia um modo de que se tornaria monja tinha impedido que sua irmã sucumbisse ao desespero. Sua irmã não sonhava mais que com uma vida dedicada a Deus. A paz da abadia atraía também a Christina, mas de um modo diferente, simplesmente porque era um lugar seguro.

Christina não pôde reprimir um calafrio. Se seu pai descobrisse que tinha passado a tarde lendo, quem sabia o que podia chegar a fazer?

Seu pai se tornou muito imprevisível. Seus estados de ânimo flutuavam entre o frio desdém e uma raiva enlouquecida por assuntos aparentemente mais corriqueiros. O ódio tinha feito cruel a Andrew Fraser, antigo xerife do Stirlingshire e membro de uma nobre família de patriotas, em outro tempo cavalheiro orgulhoso e respeitado. Seu fervente patriotismo se converteu em uma obsessão raivosa por destruir Eduardo. Era tão difícil recordar ao homem que tinha sido que Christina se perguntava se o pai sempre sorridente tinha existido alguma vez debaixo aquela máscara volúvel.

Durante os seis meses transcorridos desde sua volta, Christina havia sentido como se estivesse vivendo a bordo de um abismo, em um estado de pavor constante. Pavor a dizer algo que não devia ou a aparecer em um momento inoportuno. Tinha aprendido a mover-se sigilosamente pelos corredores, a ocultar-se entre as sombras e a evitar atrair a atenção.

Mesmo assim, uma boa dose de prudência a incitou a apressar-se.

Fincou os joelhos no chão e, apesar do pulsar frenético de seu coração, envolveu cuidadosamente o valioso livro em um tecido marfim. O livro tinha sido o presente de despedida do pai Stephen. O sacerdote lhe tinha assegurado que, apesar de seu valor, ninguém sentiria falta. Os romances de Chrétien, com o luxurioso adultério entre o Lancelot e a rainha Genebra, tinham caído em desgraça, substituídos por histórias de Arthur mais de acordo com a doutrina da Igreja.

Ela adorava pai Stephen, que lhe tinha mostrado um mundo inteiramente novo.

«Um dia alguém se dará conta de quão especiais são, minha filha», havia dito ao despedir-se. Christina queria lhe acreditar com todas suas forças, mas cada vez ficava mais difícil devido ao cruel desprezo que lhe demonstrava seu pai.

Pela primeira vez na vide Christina servia para algo. Carecia de todas as habilidades que tão facilmente dominava sua irmã. Não sabia cantar nem tocar o alaúde e seus trabalhos de agulha eram espantosos, mas tinha aprendido a ler e a escrever mais depressa que qualquer dos tutelados que tinha tido pai Stephen. Não só em latim, mas também em francês e em gaélico. O pai Stephen lhe tinha assegurado que possuía um dom que não devia ser desperdiçado e lhe tinha dado algo que jamais tinha tido até então: um propósito na vida.

A tampa da arca de madeira chiou quando a levantou para devolver o livro a seu esconderijo sob um volumoso montão de toalhas de linho e roupa de cama.

Antes que pudesse fechar a arca, sobressaltou-se pelo ruído da porta de seu aposento estilhaçar-se quando seu pai a abriu violentamente com um forte golpe.

Rapidamente Christina voltou o olhar para a porta e a alma caiu aos pés.

Andrew Fraser se encontrava na soleira da porta, sujo e fedendo a suor depois de passar o dia exercitando-se no pátio de armas. Não era alto, mas sim corpulento, e durante os seis meses transcorridos desde sua volta, sua inquebrável determinação lhe tinha levado a recuperar em boa medida a musculatura perdida enquanto estava na prisão. Entretanto, o resto das mudanças produzidas pelo encarceramento não eram tão fáceis de arrumar. Seu rosto envelhecido aparentava muito mais que seus quarenta e cinco anos e fios grisalhos tinham clareado seus escuros cabelos. Os ossos quebrados e as cicatrizes de antigos combates que antes lhe pareciam tão atraentes só serviam para acentuar a frieza de seus olhos.

Olhos que cravava agora em sua filha com suspeita. Christina teria desejado meter-se debaixo da cama ou desaparecer sob o assoalho do chão, mas não havia modo de ocultar-se de seu pai.

—O que faz? —perguntou ele.

«Não pode encontrar o livro», pensou ela. Um calafrio de medo lhe percorreu as costas, mas fez todo o possível por tranqüilizar-se. Seu pai cheirava o medo, como qualquer predador. Assim, levantou-se devagar e sacudiu a saia com aparente despreocupação, mas lhe tremiam os joelhos. Com um esforço olhou a seu pai no rosto.

—Guardava roupa recém lavada e dobrada. Queriam algo de mim? —respondeu. Mentalmente fez uma careta ao dar-se conta de que inclusive sua voz se tornou fraca.

—Onde está sua irmã?

A Christina deu um tombo o coração.

—Beatrix? —disse ela com voz aguda, o que apagou por completo sua tentativa por parecer indiferente.

O rosto de seu pai se encheu de intensas manchas vermelhas. Deu um passo para ela e Christina se encolheu instintivamente.

—Pois claro que Beatrix, estúpida. O que outra irmã tem?

Christina amaldiçoou sua branca pele ao notar o calor do pânico acendendo suas bochechas.

—É certo que está nas cozinhas — balbuciou.

«Por favor, que não esteja onde acredito que está», pensou. Beatrix tentava ocultar-lhe, mas Christina suspeitava que sua irmã seguisse indo às escondidas à abadia sempre que lhe era possível. A chamada de Deus era mais forte que a realidade do punho de ferro de seu pai.

Fraser deu outro passo para ela com uma expressão que não era simplesmente de ira, mas também ameaçadora.

—Mente — grunhiu, agarrando a sua filha pelo braço. Seus fortes dedos apertavam como uma braçadeira de ferro.

Para Christina o coração parecia a ponto de lhe estalar no peito e tinha um nó na garganta por causa do pânico. O estômago lhe encolheu.

—Não, por favor… —suplicou, tentando largar-se.

—Onde está? —perguntou ele, sacudindo-a.

O último raio de sol do dia se refletiu no anel de ouro de sua mão aberta. Não! Christina voltou o rosto antecipando-se ao golpe, com os olhos cheios de lágrimas.

—Não sei — respondeu entre soluços, detestando-se pela impotência que sentia, porque o homem ao que tinha chegado a reverenciar em outro tempo conseguia convertê-la em uns instantes em uma massa tremente.

—Está aqui, pai.

O som da voz de seu irmão a encheu de alívio. Com dezoito anos, três menos que ela, Alex prometia já ser um grande guerreiro. Também era a única luz na escura existência de seu pai. Seus outros três irmãos eram muito jovens, criando-se ainda longe de casa. Alex era realmente algo especial para seu pai.

—Beatrix estava embaixo, nas cozinhas, ajudando a preparar o jantar — disse Alex. Seu tom tranqüilo e pausado pretendia aplacar o violento gênio de seu pai.

Alex estava apenas uma semana em casa, mas Christina sabia já que sua irmã e ela tinham encontrado um aliado. Alex as protegeria sempre que pudesse. Pena que fosse tão jovem.

Seu pai lhe soltou o braço, e Christina pôde então ver Beatrix que passava junto ao Alex e entrava no aposento.

Christina esteve a ponto de exalar um suspiro de alívio ao vê-la.

Beatrix se plantou ante seu pai como uma penitente, com as mãos cruzadas em frente e a cabeça inclinada sob o longo véu azul celeste que segurava um aro de ouro. Beatrix era alta e esbelta como uma pluma, com feições delicadas que pareciam esculpidas no mais fino mármore… salvo pelas sombras de um marrom amarelado que danificavam sua bochecha. A raiva se apropriou de Christina ao ver. Como podia tê-la golpeado seu pai? Como podia ninguém golpear a uma jovem tão encantadora? Não era só que sua irmã tivesse um rosto angélico, mas sim também estava sua beleza interior. Era inocente e pura, e dolorosamente frágil.

—Desejava me ver, pai? —perguntou Beatrix sem levantar o olhar. Inclusive sua voz soava como a de um anjo, suave e cantarina, com um som etéreo.

Mas ao que parece a doçura de sua irmã não fazia mais que incomodar a seu pai, como se não pudesse acreditar que uma criatura tão fraca pudesse ser filha dela.

—Faz a bagagem — ordenou, e olhou a Christina como se lhe acabasse de ocorrer uma idéia—. E você também. Partiremos pela manhã.

—Partiremos? —repetiu Christina, aniquilada—. Mas aonde vamos?

O olhar de seu pai se endureceu ante semelhante rabugice. Suas filhas deviam obedecer a suas ordens sem fazer perguntas. Assim, Christina se surpreendeu ao receber resposta.

—Ao castelo do Finlaggan, em Islay.

A surpresa de Christina teria sido menor se lhe tivesse respondido que se fossem a Londres. Inclusive Alex se surpreendeu.

—Às ilhas Ocidentais?

Aquelas ilhas eram como outro mundo, terras selvagens, cheias de… bom, de selvagens, de ferozes guerreiros e piratas de sangue escandinavo que governavam a costa ocidental com uma autoridade virtualmente sem restrições. Essa devia ser a comoção que deu a Christina valor para seguir perguntando.

—Mas para que?

Seu pai entrecerrou os duros e negros olhos e lhe lançou um olhar ameaçador, como se não desejasse outra coisa que esmagá-la sob seu pé. Assim, quando Christina viu que sorria em lugar de golpeá-la, compreendeu que a resposta ia ser má, muito má.

—Para forjar uma aliança.

—Mas para que nos necessitam?

Christina se surpreendeu para ouvir a voz de sua irmã. Beatrix poucas vezes reunia o valor suficiente para dirigir a palavra a seu pai.

—Para que acredita que lhe vou necessitar? —desafiou-as ele—. Uma das duas se casará com ele.

Os três irmãos afogaram uma exclamação. Casar-se? Com um bárbaro? Que Deus tivesse piedade delas! As bochechas de Christina perderam a cor. Sacudiu a cabeça sem dizer nada. Não podia fazê-lo, não podia casar-se.

Seu pai se aproximou como se fosse contradizê-la, mas logo pareceu mudar de opinião.

—Certamente será Beatrix, já que é a mais velha.

«Graças a Deus», pensou Christina com grande alívio, mas logo olhou a sua irmã.

—Não — sussurrou Beatrix com a voz estrangulada pelo terror e esteve a ponto de cair desmaiada, mas Alex a segurou pela diminuta cintura e a sustentou.

Christina sentiu uma opressão no peito ao ver sua inocente e frágil irmana desmaiada nos braços do guerreiro grande e vestido com cota de malha que era seu irmão. Alex era moreno como Christina, mas alto e de largas costas apesar de sua juventude. Junto a ele, Beatrix parecia ainda mais vulnerável, como uma mariposa entre garras de ferro.

Beatrix morreria se fosse obrigada a casar-se com algum bárbaro embrutecido. Christina soube com absoluta certeza.

Deu um passo adiante sem pensar duas vezes. Sentiu um nó no estômago, mas fez o possível por reprimir o pânico.

—Não, pai, eu o farei. Eu me casarei com ele.

Seu pai olhou a uma e a outra, as examinando como se fossem dois cavalos postos à venda. Por uma vez, pareceu agradado com o que via.

—Virão as duas e ele escolherá qual gosta mais.

Sem dizer nada mais, deu meia volta e abandonou o aposento, deixando a ambas completamente aturdidas.

Christina se agarrou ao poste de madeira da cama para não cair. Beatrix seguia grudada em seu irmão como uma marionete de trapo. Alex lhe acariciava a cabeça enquanto ela chorava silenciosamente sobre seu ombro.

Os olhares de Christina e de Alex se cruzaram por cima da cabeça de sua irmã. Christina viu compaixão nos olhos de seu irmão. Ambos sabiam que ele não podia fazer nada para deter seu pai. Às jovens não tinham casado antes somente porque seu pai tinha sido encarcerado e o rei Eduardo não tinha chegado ainda até elas. O matrimônio era o que se esperava de ambas e Christina sempre soubera. Talvez tenha querido ignorar, mas no fundo sempre soube que esse dia chegaria.

A imagem do Lancelot foi a sua mente antes que se apressasse a rechaçá-la. Era sozinho um sonho, mas tampouco tinha esperado que fora a casar-se assim.

—Possivelmente não queira a nenhuma das duas — aventurou com tom esperançado.

O olhar de compaixão de seu irmão só fez acentuar-se. Alex sacudiu a cabeça como indicando que sua irmã se enganava lastimosamente.

—Duvido muito, irmã. Beatrix e você, bom… —Fez uma pausa, sobressaltado—. São muito formosas. De um modo diferente, possivelmente, mas igualmente delicioso. Beatrix parece um anjo e você… —Avermelhou—. Você não.

Devia tratar-se de algo mau, mas Alex o disse de um modo que fazia que parecesse justamente o contrário. Christina franziu o cenho.

—Não entendo.

Alex fez uma careta e sua expressão dizia às claras que preferiria algo antes que falar de semelhante tema.

—São sua boca e seus olhos.

—O que lhe passa? —Talvez tivesse os olhos um pouco rasgados e a boca possivelmente um pouco grande, mas não acreditava que fossem tão horríveis.

Alex emitiu um gemido de exasperação.

—Nada. É só que ouvi os homens dizer que lhe fazem pensar no pecado.

Christina abriu muito os olhos e timidamente se tampou a boca com a mão.

—Sério? Que horror!

Alex assentiu com expressão solene.

—Temo-me que sim. Esse homem terá o difícil dever de escolher entre vocês duas.

No silêncio desolado que seguiu a suas palavras, somente se ouviram os suaves gemidos de Beatrix. O temor ao inevitável se apoderou de Christina, mas também sabia o que devia fazer. Embora sua irmã tivesse um ano mais, Christina sempre tinha cuidado dela e pensava seguir fazendo-o.

Tragou saliva para afugentar o medo. Simplesmente teria que assegurar-se de que, de ser necessário, o bárbaro sem civilização escolhesse a ela.


Capítulo 02


Castelo de Finlaggan, ilha de Islay


—Não me interessa. —Tor se recostou em sua cadeira e observou ao punhado de homens sentados em torno da grande mesa circular da câmara do conselho do Finlaggan, o baluarte do McDonald em Islay e antiga capital do reino das ilhas.

A mesa redonda não era uma alusão ao famoso herói bretão, a não ser uma solução prática para aproveitar melhor a forma do ambiente. Em lugar de desfrutar do luxo da nova torre que servia de morada ao MacDonald, congregaram-se na antiga torre de vigilância que era contígua. Dizia-se que o escuro edifício de pedra, cheio de correntes de ar fora construído antes da época de Somerled, o grande rei de que descendiam tanto os MacDonald como os MacDougall, os MacSorley e os MacRuairi, e que o tinham utilizado os reis das ilhas durante séculos. Seu anfitrião conhecia muito bem o poder da tradição. No Finlaggan, com mesa redonda ou sem ela, Angus Og MacDonald, descendente do poderoso Somerled, era o chefe supremo.

Em um conselho de guerra típico, a câmara estaria cheia de chefes de clãs acompanhados de amplos séquitos, mas esse dia não era assim. Além do anfitrião, somente havia quatro homens pressente: William Lamberton, bispo de Saint Andrews; sir Andrew Fraser, um nobre escocês ao que Tor conhecia unicamente pelo nome; Erik MacSorley, parente e gille-coise (uma espécie de guarda-costas e assistente pessoal) do Angus Og, com fama de ser o melhor navegante das ilhas; e sir Neil Campbell, tio de MacDonald e parente de Bruce, cujo clã possuía terras perto de Loch Awe, o lago Awe, e gozava de uma importância crescente.

O homem que fazia a proposta rechaçada por Tor, Robert de Bruce, não tinha assistido à reunião já que Eduardo o vigiava estreitamente.

Lamberton e MacDonald mudaram um olhar depois da negativa de Tor, enquanto que o bispo fez uma tentativa de persuadi-lo.

—Talvez não tenham compreendido…

—Compreendi perfeitamente — afirmou Tor, cortando o que sem dúvida ia ser uma explicação prolixa—. Querem que adestre um grupo de homens com certas habilidades para convertê-los em assassinos e que os dirija com muita pressa, para ajudar Bruce quando se rebelar contra Eduardo, cometendo traição.

O prelado se removeu em seu assento com expressão de desconforto.

—Eu não expressaria assim exatamente. Esse grupo de homens serviria a fins diversos: trabalhos de reconhecimento, inteligência, estratégia e missões especiais.

—Sim, as mais perigosas — disse Tor secamente, divertido pela maneira fazer rodeios do bispo—. Mas não me entendestes bem. Não é o perigo ou a perspectiva de matar o que me impede de aceitar sua oferta… —ganhou um nome por fazer tais coisas, e sabia que precisamente por isso tinham ido a ele. Continuou—. A razão é que esta não é minha guerra, e não tenho nenhum interesse em fazer que o seja.

Do contrário, talvez se sentisse tentado a aceitar. A idéia era bastante atraente para picar sua curiosidade. Os melhores guerreiros das Highlands e as ilhas Ocidentais juntos, formando uma guarnição? Seriam quase incontroláveis e quase invencíveis.

—Mas já é sua guerra — insistiu Lamberton—. Agora as ilhas formam parte da Escócia e seus habitantes são súditos escoceses, a despeito do que alguns possam pensar. —A ardilosa observação do bispo suscitou algumas risadinhas na mesa. A maior parte dos que estavam ali pensavam igual à Tor, que não era escocês, a não ser ilhéu. Lamberton lhe lançou um olhar penetrante—. Em qualquer caso, chegará um momento em que verão obrigado escolher um lado.

—Tanto que Bruce e vocês trocam de lado tão freqüentemente que fica difícil lhe seguir - comentou Tor, arqueando uma sobrancelha.

O bispo avermelhou, visivelmente ofendido.

—Luto pela Escócia.

—Sim, e Bruce luta pelo lado no que não esteja Comyn, seja qual seja, e aqui MacDonald luta pelo lado no que não esteja MacDougall. Estou a par das complexidades da política escocesa. O que não vejo é que benefício obteria meu clã ou que motivo poderia ter para escolher um lado justamente agora. Tampouco está claro, apesar de seu exército secreto, que seu lado vá ser o vencedor. —Tor fez caso omisso das vozes indignadas que se elevaram após suas palavras. Precisavam ouvir a verdade, já que estavam por embarcar em uma empreitada que supunha um delito de alta traição—. Não sinto agrado algum pelo rei inglês, nem por John MacDougall, mas ambos são poderosos inimigos.

—Sim — conveio MacDonald—, e seu poder aumenta dia a dia. —inclinou-se para o Tor depositando sua taça com um forte golpe sobre a mesa—. Se não fizerem nada, logo sentirão o punho de ferro de Eduardo fechando-se sobre você, inclusive em Skye. Pode ser que Eduardo esteja longe, mas seu novo sequaz5, MacDougall, está aqui mesmo.

—Razão a mais para não encolerizá-lo. —Apesar de Tor simpatizar com Angus Og MacDonald mais que com MacDougall, tinha evitado com grande cuidado tomar partido por um ou por outro naquela disputa familiar. Não necessitava John MacDougall como inimigo; tinha muitas preocupações, embora, por sorte, Nicolson ainda não tinha chegado.

—Faremos que valha a pena para seu clã; sairão beneficiados — insistiu Lamberton, trocando de tática para tentar dissipar a tensão crescente—. Aqui Fraser tem duas filhas casadoiras, ambas muito formosas e com ricas terras como dote.

—Que não valerão nada se a rebelião fracassar — fez notar Tor sem fazer rodeios. Eduardo despojará de terras e títulos a quantos lutem contra ele… Depois de separá-los de suas cabeças. Eu à minha tenho bastante apego.

—Aí acertou em cheio — comentou MacSorley soltando uma afável gargalhada—. Eduardo tem toda uma coleção de adornos escoceses pendurando das portas de seus castelos.

MacDonald fulminou com o olhar a seu assistente, mas MacSorley se limitou a encolher os ombros com um sorriso impenitente.

A oferta de matrimônio não tentava Tor. Já fora casado e não sentia pressa alguma por voltar a tomar uma esposa. Tinha filhos varões. Fazia quase oito anos que sua mulher tinha morrido ao dar a luz seu segundo filho. Murdoch e Malcolm estavam se criando na ilha de Lewis.

Se voltasse a casar-se, seria para selar uma aliança com a costa ocidental, com a Irlanda ou com a ilha de Man, o que aumentaria o poder e o prestígio de seu clã, não com a filha de um nobre escocês. Mas não desejava ofender ao Fraser.

—Agradeço-lhe o oferecimento — lhe disse, voltando-se para ele—. Estou seguro de que suas filhas são muito formosas. —Tanto como o eram todas as damas de nobre berço nas negociações matrimoniais, pensou —. Mas não desejo tomar esposa.

Fraser assentiu, mas Tor percebeu que sua superficial desculpa tinha enfurecido ao orgulhoso nobre escocês. Havia algo naquele velho guerreiro que lhe incomodava. Em uma câmara cheia de guerreiros endurecidos por mil batalhas, os olhos de Fraser lançavam labaredas. Emoções tão intensas resultavam perigosas; não tinham capacidade no campo de batalha, e muito menos na câmara do conselho. A frieza e o controle eram que diferenciava um líder de um guerreiro sagaz.

MacDonald se recostou em seu assento, dissipada em parte sua ira, e olhou ao Tor com expressão zombadora.

—Talvez mudasse de opinião se as vissem?

—tomei uma decisão — afirmou Tor, negando com a cabeça. Ao contrário de seu irmão, nenhuma mulher por formosa que fosse jamais lhe afastaria de seu dever—. Terão que encontrar a algum outro que dirija sua guarnição secreta de highlanders.

*

Durante o longo trajeto desde Stirlingshire até Islay, Christina quase tinha conseguido convencer-se de que seu destino não seria tão mau. Talvez Tormod MacLeod, pois soube que esse era o nome do chefe ilhéu com o qual seu pai pretendia casá-la, não fosse um bárbaro absolutamente, a não ser um galante cavalheiro.

Entretanto, no momento em que chegou ao Finlaggan compreendeu que havia tornado a deixar-se levar pela imaginação. Era pior do que tinha temido em um princípio, muito pior. Jamais tinha visto tantos homens de aspecto aterrorizante em um mesmo lugar. Não, não eram só homens, eram guerreiros. Aqueles ilhéus tinham aspecto de não fazer outra coisa mais que lutar. Levavam no sangue e o inculcavam do berço. Via-se em seus rostos ferozes e cheios de cicatrizes, sempre carrancudos, e em sua extraordinária estatura.

Isto mostrou a verdade desconcertante.

Inclusive sem cota de malha, pois surpreendentemente não vestiam armadura, os homens das ilhas Ocidentais eram mais altos e fornidos que os das Lowlands. Onde olhasse havia homens de um metro e oitenta ou mais e corpos com abundância de músculos. Os braços em especial, grossos e com músculos duros como rochas, pareciam feitos para brandir as aterrorizantes espadas, as maças6 e machados de guerra7, e outros instrumentos de guerra que levavam sujeitos ao corpo com correias. E não eram só os homens, também as mulheres eram altas e fortes. Constituíam em conjunto uma autêntica raça de gigantes, ou ao menos parecia com uma orda de gigantes. Ao contrário que sua alta e esbelta irmã, Christina podia dar-se por satisfeita se ficando nas pontas dos pés alcançasse o metro e sessenta.

Nas ilhas certamente a teriam afogado ao nascer.

Os homens levavam os cabelos longos até o ombro, alguns com tranças nas têmporas, e havia um número considerável de loiros.

Certamente era pelo sangue viking, pensou Christina com um estremecimento, sentindo uma aguda pontada de simpatia por seus antepassados. Que aterrorizante devia ter sido para eles ver aparecer os longos navios vikings no horizonte e saber que aqueles ferozes bárbaros cairiam sobre eles, deixando uma esteira de caos e destruição atrás de sua pilhagem.

Christina sentiu a mesma impotência e sensação entristecedora de fatalidade. Sabia que tinha que proteger a sua irmã, mas seu plano para incitar ao chefe dos MacLeod a escolhê-la lhe parecia uma missão mais aterrorizante agora que estava ali.

Entretanto, durante a última parte de sua viagem no navio lhe tinha ocorrido outra possibilidade. Deu-se conta de que as rotas marítimas eram muito rápidas comparadas com as rotas terrestres, já que, com ventos favoráveis, podiam cobrir-se longas distâncias em algumas horas em lugar de dias. Quando um dos remadores mencionou que havia retornado recentemente da sagrada ilha de Iona, uma idéia abriu passo em sua mente: Beatrix e ela podiam fugir a Iona e refugiar-se em seu famoso convento.

Era um plano temerário, cheio de perigos, mas ao menos tinha algo ao que aferrar-se.

Essa manhã, depois de tomar o café da manhã, Beatrix e ela se encaminharam à aldeia para iniciar as averiguações, mas Christina teria que retornar de noite para tentar achar um navio que as levasse. Duas peregrinas dirigindo-se à ilha de São Columba8 não chamariam a atenção, sempre que ninguém descobrisse quem eram realmente.

O vento soprava entre os juncos que cresciam ao longo do meio-fio elevado de pedra quando voltaram para castelo, um som fantasmagórico que se ajustava perfeitamente a inquietante e majestosa fachada do antigo baluarte e que contribuiu a intensificar mais seu nervosismo.

Beatrix percebeu seu desassossego, pois enlaçou seu braço com o de Christina e a atraiu para si enquanto caminhavam.

—Está segura disto, Chrissi? Se o pai descobrir o que planejamos…

—Não descobrirá — lhe assegurou Christina com muita mais confiança da que em realidade sentia. A idéia de desafiara seu pai a aterrorizava—. Não vamos fazer nada fora do comum. Não há motivo algum para que suspeite.

Seria mais tarde, de noite, ter que encarregar-se de achar um navio que as levasse, quando correriam perigo de verdade. Mas não se atreveu a transmitir seus temores a Beatrix, a quem tais enganos eram completamente alheios. Se acrescentasse isso ao medo, a mescla podia ser desastrosa. Não deviam fazer nada que despertasse as suspeitas de seu pai.

—Mas, se algo sair mau…

—Nada sairá mal — disse Christina com firmeza e esperança.

O plano era simples, mas nenhuma das duas tinha tentado nada semelhante e não podiam arriscar-se a envolver a ninguém mais. Se Alex as tivesse acompanhado, poderiam teria solicitado sua ajuda, mas o tinham enviado a reunir-se com seu primo Simon, um dos companheiros mais próximos de Robert de Bruce. Christina olhou o rosto aflito de Beatrix.

—Quer ir a Iona, verdade?

A expressão de Beatrix mudou por completo, transfigurado o semblante por uma luz celestial que deixou Christina sem respiração.

—É obvio. É a resposta a minhas preces, embora jamais tenha sonhado sequer com que fosse possível. —Beatrix suspirou—. Imagine o convento de Iona. Sem dúvida deve ser o lugar mais santo de toda Escócia.

—Logo descobriremos — disse Christina com um sorriso. Embora não compartilhava a devoção religiosa de sua irmã, era impossível não deixar-se levar por sua emoção. Ali estariam a salvo e isso era quão único importava. Para duas jovens donzelas como elas as opções eram muito escassas. Se tivesse de escolher entre casar-se com um bárbaro e o convento, a decisão era singela.

Mesmo assim, uma parte dela sentia curiosidade.

—Está segura de que quer fazê-lo, Chrissi? —perguntou Beatrix olhando-a com seus olhos azuis claros—. É meu sonho, não o teu. Eu não desejo me casar, mas pode afirmar você o mesmo?

Christina fechou a boca de repente; em ocasiões sua irmã tinha uma estranha habilidade para ler o pensamento.

—O que tem seus cavalheiros? —acrescentou Beatrix em voz baixa.

Christina não levantou o olhar do caminho. Tinha relatado a sua irmã muitas histórias românticas para tentar sequer fingir ignorância sobre o que ela apontava.

—Não são mais que histórias, Beatrix. Nunca pensei em que me ocorresse um pouco parecido. —Sonhar com isso não contava—. As mulheres de nossa posição se casam para selar alianças, não por amor. Preferiria passar a vida lendo sobre romances que apanhada em um matrimônio com um homem… —Deixou a frase sem terminar.

—Com um homem como nosso pai — disse Beatrix, terminando por ela.

Christina assentiu. Sim, como o homem que não a considerava melhor que um cão e se acreditava com direito a pisoteá-la. Detestava o medo que lhe tinha inculcado seu pai. Um medo que não procedia tão somente da dor, mas também de estar indefesa. Jamais havia sentido tão cruelmente o destino de ser mulher. Se seu pai, ou seu marido, queria lhe bater até deixá-la sem sentido, ninguém lhe negaria o direito a fazê-lo.

Ao ver assim, não tinha feito mais que convencer-se de que agiam corretamente. Não podia sentar-se a esperar enquanto seu pai as oferecia como se fossem dois suculentos cordeiros para o sacrifício. Se existia uma possibilidade de esquivar desse destino, não pensava em desperdiçá-la.

—Sei que faz só para me proteger. Mas eu sou a mais velha, sou eu a que deveria proteger a ti. —Beatrix baixou seus magros ombros—. Sou mais forte do que pareço. Poderia… —Reprimiu as lágrimas com um sorriso tremente—. Talvez não fosse tão mau.

Christina se deteve em seco e agarrou a sua irmã pelos ombros para obrigá-la a dar volta e olhá-la, procurando não apertar muito. Beatrix se machucava com a mesma facilidade que uma pétala de rosa. Sua irmã era dez centímetros mais alta que ela, mas sua delicada compleição a fazia parecer muito menor. Christina era toda curvas.

Apesar de não haver uma só nuvem no céu, uma fria sombra se apropriou dela quando olhou a sua irmã: pálida, etérea, frágil, dolorosamente frágil. Às vezes parecia que Beatrix tinha um pé no céu, que cada momento compartilhado com ela era um valioso presente de que podiam despojá-la em qualquer momento.

A idéia de perder a sua irmã fez que sentisse uma queimação no peito. Estavam juntas desde que tinha memória. Sua mãe tinha morrido pouco depois do nascimento de seu irmão menor, e aos outros os tinham enviado a criar fora de casa desde muita suave idade. Beatrix era a única que tinha e Christina estava disposta a fazer todo o necessário para protegê-la.

Emocionou-se ao pensar que sua irmã faria o mesmo por ela. Somente podia imaginar o esforço que devia fazer para pronunciar aquelas valentes palavras.

—Não o faço só por ti, mas sim pelas duas. —Christina viu a incerteza refletida no olhar de sua irmã. Compreendeu então que talvez lhe ajudasse expressar seus próprios medos em voz alta, de modo que tragou saliva e acrescentou em voz baixa—: Eu estou tão assustada como você, B. Tenho tão poucos desejos de me casar com um desses homens como você.

—Está segura? —perguntou Beatrix com tom dúbio.

—De tudo — respondeu Christina, assentindo com um sorriso. Ficou nas pontas dos pés e beijou a sua irmã na bochecha—. Agora será melhor que nos apressemos se queremos ter tempo para nos mudar antes do festim.

Recomeçaram a marcha pelo escorregadio caminho de pedra até chegar à ilha grande. A localização de Finlaggan era única, situada entre duas pequenas ilhas em um lago interior e conectada com terra firme por meio de meio-fios elevados de pedra. A ilha grande, Eilean Mor, achava-se a uns quinze metros da borda, rodeada por altas fortificações de madeira, e albergava a maior parte dos edifícios do castelo, incluindo o grande salão, a capela de Saint Findlugan, a armería, a ferraria e os barracões dos soldados. No extremo mais afastado de Eilean Mor havia outro meio-fio elevado de pedra, mas muito mais largo, de uns cem metros de longitude, que conectava a ilha grande com um pequeno crannog (uma ilha artificial), onde se encontrava a câmara do conselho e a nova torre que habitava MacDonald. A neblina que tinha envolvido a manhã com seu manto se dissipou lentamente, embora ainda tivesse que secar a umidade que tinha deixado na terra, e Christina distinguiu ao longe a imponente torre da comemoração.

Christina devia admitir que, apesar do terrível aspecto dos homens, Finlaggan não tinha nada de tosco nem de bárbaro. O castelo e os edifícios exteriores eram tão esplêndidos como quaisquer dos que podia encontrar nas Lowlands. Com seus muros de morteiro de cal, janelas de arco e formoso teto de vigas, o grande salão rivalizava com o do castelo de Stirling, que acabava de ser reformado. De fato, a chaminé era a maior que tinha visto em sua vida, e os rostos das mísulas de pedra eram tão realistas que somente podiam ter sido esculpidos por um professor artesão.

A comida também constituía uma surpresa. Christina quase temia que não lhe dessem mais que arenques e papa de aveia, mas lhe tinha impressionado a variedade e a elaborada preparação dos mantimentos dos que tinham desfrutado ao chegar a noite da véspera. Além de pescado, tinham-lhe devotado uma variedade de pratos de caça, lampreas guisadas, hortaliças, frutos secos (incluindo os figos, que eram realmente caros), pão moreno quente com manteiga fria, molhos exóticos, marzipã9 de amêndoas açucaradas, todo isso servido em grandes travessas de madeira. Inclusive seu pai tinha ficado impressionado com vinho francês que corria em abundância em grandes jarras de cerâmica, e tinha perguntado a seu anfitrião pelo nome do mercado que o tinha vendido.

Se todo isso se considerava um jantar «ligeiro», o festim do meio-dia ia ser esplêndido sem dúvida. O estômago de Christina fez um ruído de deleite por antecipado.

Christina franziu o sobrecenho ao recordar uma nova incongruência. Para tratar-se de uma cultura praticamente dedicada à guerra, os ilhéus demonstravam apreciar muito a música. Quando o enorme guerreiro de cabelo grisalho se sentou para tocar o clarsach10, a Christina tinha se surpreendido com os doces sons que surgiam de seus grandes dedos cheios de cicatrizes ao pulsar as cordas da harpa. De fato, a posição que ocupavam na mesa, perto do chefe, o poeta que tinha composto a canção (os ilhéus a denominavam filidh) e o bardo seanachaidh11 que a cantava, assim como o gaiteiro e o harpista, era um indício claro do prestígio de que gozavam no clã. Somente o guarda-costas do chefe estava por cima deles. Este fato fez que Christina se perguntasse se tinha precipitado ao julgar a aquela gente.

Mas o pensamento mal tinha tido tempo de formar-se quando se viu subitamente desmentido.

Ao aproximar-se com sua irmã do grande salão, Christina observou que havia um grupo de guerreiros reunidos junto à entrada e lhe acelerou o pulso. Pareceram-lhe ainda mais formidáveis, se pudesse, do que os que tinha visto até então.

No centro do grupo havia dois homens. Não lhe via o rosto, mas ambos eram altos e extremamente musculosos. Entretanto, aí terminavam as similitudes. Embora tivesse os cabelos dourados e o outro tão escuros que pareciam negros, não era a cor do cabelo o que os distinguia tão claramente, a não ser o modo de conduzir-se. O homem de cabelos dourados se erguia orgulhoso como um rei, rígido e imóvel como um predador. Pelo contrário, o homem moreno adotava uma postura indolente, quase provocadora, mas igualmente ameaçador.

Christina notou que se disparavam seus alarmes e lhe arrepiava o pêlo dos braços. O instinto aprendido com a volta de seu pai lhe disse que mais valia passar despercebidas.

Rodeou os ombros de Beatrix com o braço para estreitá-la contra seu corpo.

—Não levante a cabeça e caminha depressa — lhe disse.

O tom premente de sua voz deveu alertar do perigo a sua irmã, quem a olhou com os olhos muito abertos.

—O que ocorre?

—Ali está acontecendo algo e não tem reflexos de ser nada agradável.

Por desgraça, tinham que passar pelo grande salão para chegar ao segundo piso elevado que as conduziria ao castelo, mas Christina confiava em que poderiam escapulir-se sem ser vistas.

Ao aproximar-se, notou que o ambiente se fazia mais tenso e que o coração lhe pulsava mais depressa com cada passo que dava. Sua irmã também o percebeu e sua respiração se fez igual de agitada que de Christina.

Pela extremidade do olho Christina viu os homens, que se achavam apenas a uns dez passos dela. Teve que conter um estremecimento ao dar-se conta de que os guerreiros eram muito mais corpulentos e assustadores vistos de perto.

«Temos que sair daqui», pensou.

O piso elevado já não ficava longe. Uns vinte passos mais e estariam a salvo.

De repente, Christina ouviu um homem que soltava um horrível palavrão, ao que seguiu um estrépito de aço contra aço que gelava o sangue. Antes que pudesse reagir, a multidão se formou redemoinhos a seu redor, lhe impedindo de seguir adiante.

Estavam apanhadas.

Ao princípio Christina temeu que acabassem em meio de uma briga entre todos, mas logo se deu conta de que somente lutavam dois homens, os mesmos guerreiros nos que se fixou antes.

Um combate a espada no meio do pátio? Deus santo, acaso aqueles bárbaros brigavam em qualquer parte?

Beatrix e ela os observaram com horror enquanto se equilibravam um contra outro com uma ferocidade que somente podia significar uma coisa: um combate a morte. Era espantoso. Violento. Sua maneira de brigar, selvagem e brutal, não se parecia em nada às práticas «civilizadas» que Christina estava acostumada a ver em torneios e campos de batalha.


Nenhum dos dois homens levava malha, somente o leine e o cotun de couro reforçado e com tachas de metal, o que constituía escasso amparo contra as penetrantes folhas afiadas das espadas. Ambos levavam finas botas de pele que deixavam os joelhos e parte da coxa nus.

O guerreiro de cabelos dourados dava as costas a Christina, mas ela via como lhe esticavam os músculos das costas quando brandia a enorme espada com as duas mãos, riscando um arco sobre sua cabeça antes de deixá-la cair com uma força demolidora. A espada parecia formar parte dele, como se tivesse nascido empunhando-a.

O guerreiro de cabelo escuro parou o golpe com uma de suas espadas curtas, o que produziu um ruído ensurdecedor que transtornou por completo o pacífico dia e fez que a Christina zumbissem os ouvidos e lhe tocassem castanholas os dentes. O guerreiro deixou que sua espada golpeasse o chão, apanhada sob a outra, mas logo girou em círculos e fez girar a outra espada curta sobre sua cabeça, para devolver o ataque.

Os guerreiros seguiram trocando um golpe atrás de outro sem mostrar sinais de fadiga, brandindo as enormes espadas com tanta facilidade como se fossem feitas de madeira em lugar de aço. O chão retumbava com cada um de seus aterrorizantes golpes.

Christina sabia que devia afastar o olhar, que devia tentar fugir dali, mas a brutal selvageria do espetáculo que se oferecia ante seus olhos a hipnotizada e horrorizava por igual.

Era isso o que sentiam os romanos ao contemplar as lutas de gladiadores?

Se não parecesse, porque era evidente que os dois guerreiros pretendiam matar o um ao outro, seus movimentos teriam parecido inclusive belos. Apesar de sua robusta constituição, ambos se moviam com graça felina. A Christina lhe ocorreu então que poderiam considerar-se homens bonitos, a não ser por seu aterrorizante aspecto. Tampouco podia ignorar o fato de que havia algo manifestamente viril e atrativo em semelhante desdobramento de força bruta. Mas foram pensamentos fugazes que esqueceu rapidamente no meio do fragor da briga. O som do aço se mesclava com os grunhidos dos combatentes e o vaivém dos murmúrios da multidão.

Ao princípio parecia que a luta estava equilibrada, mas à medida que se ia desenvolvendo, reconheceu a habilidade superior do guerreiro de cabelos dourados. Sua espada caía com maior força, seus reflexos eram mais rápidos e seus movimentos mais precisos. Controlava até o último aspecto do combate.

O olhar de Christina se viu irremediavelmente atraída para ele.

Quando se fez evidente que Beatrix e ela não corriam perigo, Christina se voltou mais audaz em suas observações, fixou-se na dura linha da mandíbula masculina, a larga boca e o sério cenho. Também na impressão de nobre superioridade que desprendia. Dado que a luta se iniciou de maneira espontânea, não levava elmo nem bacinete para proteger a cabeça. Seu cabelo em realidade era mais castanho que loiro, como tinha pensado ao princípio, mas tinha reflexos dourados que realçava a luz do sol, fazendo-o parecer mais claro.

A Christina fascinou o modo em que seus músculos revelavam todo seu poder com cada golpe da espada. Ao olhá-lo, a idéia de que Lancelot dobrasse barrotes de ferro já não lhe pareceu tão absurda. Normalmente tal força a aterrorizaria, mas observada da distância, fazia que sentisse um estranho calor lhe percorrendo o corpo.

Entretanto, nem tinha tido tempo de analisar aquela estranha reação quando o combate mudou para adquirir uma aparência detestável.

A mudança foi sutil, mas claro. O guerreiro de cabelos dourados lançou um ataque preciso e resolvido, o que levou a Christina a perguntar-se se simplesmente não tinha só esperando o momento oportuno.

Lançou um olhar ao rosto do guerreiro moreno e sentiu um calafrio tão intenso que lhe gelou o sangue por completo. Sob a expressão desafiadora, seus olhos estavam desprovidos de vida, de alma. E Christina soube com uma inexplicável certeza que não lhe importava viver ou morrer.

Afogou um grito quando o guerreiro de cabelos dourados atirou um golpe no braço do outro que lhe fez sangrar e deixar cair uma das espadas, e notou um tombo no estômago ao ver a escura mancha vermelha que se estendia pelo cotun e o leine de baixo.

Beatrix enterrou a cabeça no ombro de sua irmã entre soluços, mas Christina era incapaz de afastar o olhar, incapaz de acreditar o que estava a ponto de ocorrer.

O combate se fez mais encarniçado, mais rápido. Com cada golpe se aproximava um pouco mais a um fatídico final. A brisa transportava o aroma dos corpos suarentos. A tensão ia aumento entre a excitada multidão.

Ninguém ia fazer nada para pará-lo.

O guerreiro de cabelos dourados obrigou a seu adversário a retroceder com um golpe atrás de outro, qual mais demolidor. O guerreiro moreno não agüentaria muito mais. A Christina pulsava o coração tão depressa que não lhe deixava respirar.

Voltou a afogar um grito quando o guerreiro moreno caiu ao chão de costas. Seu horror não fez mais que aumentar ao ver que sua boca se curvava em um sorriso.

O guerreiro de cabelos dourados brandiu a espada por cima da cabeça, preparando-se para o golpe final.

—Não! —gritou uma voz.

O olhar do guerreiro se desviou rapidamente para ela. Os olhos azuis claros mais penetrantes que tinha visto em sua vida a deixaram cravada ao chão. Olhos que a examinaram com uma intensidade até então desconhecida. Olhos de olhar duro, frio, absolutamente implacável.

Christina empalideceu ao compreender, horrorizada, que o grito o tinha saído dela.

Olharam-se durante um instante antes que ele afastasse o olhar bruscamente.

A decepção de Christina foi demolidora. Tinha se sentido iludida esperando clemência de um homem semelhante. Apesar da estranha fascinação que parecia exercer sobre ela, não era um cavalheiro, a não ser um bárbaro caudilho militar.

Christina voltou a cabeça, incapaz de seguir olhando, tentando preparar-se para as exclamações afogadas da multidão quando o guerreiro dourado desse conta de seu oponente. Ouviu o assobio da espada ao fender o ar e o golpe surdo que fez ao aterrissar e que a sacudiu dos pés à cabeça.

Mas não ouviu exclamação alguma.

Quando reuniu o valor suficiente para voltar a olhar, o guerreiro de cabelos dourados já se afastava, e um dos homens do guerreiro moreno ajudava a este a ficar em pé. A espada do guerreiro de cabelos dourados estava profundamente cravada no chão, perto de onde antes jazia seu adversário, e um de seus homens se esforçava em arrancá-la.

Christina ouviu os sussurros e sentiu os olhares de curiosidade da multidão cravadas nela, mas estava muito assombrada para deixar-se intimidar.

O que acabava de ocorrer? Sua incredulidade se mesclou com o assombro. Acaso o guerreiro tinha atendido a seu rogo?

De repente alguém a agarrou pelo braço e a obrigou a dar volta.

—Estúpida moça.

Christina ficou petrificada com um nó no estômago.

—Pai.

—O que tem feito? —perguntou ele, lhe cravando os dedos no braço.

—Eu… —Christina calou sem saber como explicar-se—. Ia matá-lo.

Seu pai a atraiu para si com um grunhido.

—E decidiste te misturar em uma briga entre homens? —disse ele, com o rosto a uns centímetros do dele. Christina sentiu o fôlego de seu pai na bochecha. Fedia—. Idiota! Sabe quem é?

Ela negou com a cabeça e o coração na garganta, consciente de que tinha cometido um grave engano.

—Tor MacLeod — lhe espetou seu pai—. O homem com o que uma de vocês duas vai se casar.

Christina soltou um gemido de horror. Casar-se com ele? Com aquele gigante musculoso? Tinha visto mais emoção em uma rocha. Deus santo, se parecia com um desses vikings selvagens que colecionavam cabeças e sacrificavam a virgens por diversão.

Por um momento acreditou que ia desmaiar, mas lhe adiantou Beatrix.

*

Tor percebeu os olhares de regozijo que MacDonald lhe esteve lançando durante toda a comida. Ao que parece seu anfitrião encontrava divertida sua insólita exibição de clemência.

Tor adivinhava o porquê, mas MacDonald se equivocava. Não tinha nada que ver com a moça, ao menos tal como imaginava ele. Pedindo-lhe clemência, dava-se é obvio que era capaz de mostrar-se clemente. O grito da moça simplesmente lhe tinha dado o tempo suficiente para pensar com claridade. Não tinha sido a expressão horrorizada de seus grandes olhos o que tinha detido a mão de Tor, a não ser dar-se conta de repente de que tinha caído vítima de uma provocação.

Nada lhe teria feito mais feliz que afundar seu aço em Lachlan MacRuairi, mas ao inferno com tudo se acreditava que ele ia ser o instrumento de seu insensato desejo de morrer.

O grosseiro comentário do MacRuairi sobre a irmã de Tor tinha um propósito calculado e não o tinha visto antes simplesmente porque lhe tinha pilhado por surpresa a súbita aparição de seu inimigo.

Tor arrancou uma parte de costela com os dentes e mastigou devagar, regando-o com um longo gole de cuirm12 antes de voltar-se para seu anfitrião.

—Suponho que lhe terão informado do acontecido de hoje.

O interpelado entrecerrou seus olhos azuis e sua expressão se escureceu. Embora se aproximasse já aos cinqüenta, MacDonald seguia sendo um guerreiro temível e, para muitos, um rei.

—Sim, você e o bastardo do meu primo romperam a trégua.

Tor não discutiu o que era certo. Ao convocar aos chefes lhe tinha exigido que jurassem manter uma trégua entre eles. A homens de casta inferior os punham em grilhões por violar esse juramento. MacDonald estava em seu direito de impor um justo castigo a ambos os opositores, e especialmente a Tor, que tinha atirado o primeiro golpe.

—Por fortuna a moça lhe impediu de cometer uma infração que não teria podido passar por cima — disse MacDonald—. Lachlan é um bastardo exasperante, sem dúvida, mas segue sendo meu primo. Sua irmã me teria talhado os testículos se o tivesse matado.

Parecia difícil de acreditar que um desalmado filho de cadela como Lachlan compartilhasse progenitor com Tina MacRuairi, senhora das Ilhas. Um progenitor que tinha deixado atrás de si três filhos varões bastardos e uma mulher como legítima herdeira.

A lealdade que demonstrava MacDonald causava estranheza, dado o passado do Lachlan. Não fazia tanto que se aliara com o MacDougall, o inimigo de MacDonald.

—A moça não me impediu de fazer nada — replicou Tor—. Se seu primo deseja morrer, terá que buscar outro para que o mate. Estou seguro de que não terá que procurar muito longe.

MacDonald lhe lançou um olhar que dava a entender que não acreditava no quer era referente à moça, mas não parecia interessado em insistir. Deu de ombros.

—Ou seja, o que tramará essa mente retorcida - disse—. Lachlan sempre foi um enigma. Admito que provocar a um dos melhores espadachins das ilhas não foi um de seus movimentos mais acertados, mas você não têm fama precisamente por perder os estribos. —MacDonald sorriu depois do que era um claro eufemismo e perguntou—: O que há dito?

—Algo que não podia deixar passar.

«Que pena que não tenham mais irmãs. Ao que parece meu irmão não se cansa de sua mulher, e a minha espada iria bem que a lubrificassem.» A grosseira referência à irmã de Tor chupando o membro do irmão de Lachlan tinha sido a gota que enchia o copo depois de uma discussão já por si acalorada.

Fazia quase três anos que Ranald, o irmão de Lachlan, tinha raptado Muriel, a irmã de Tor, durante uma incursão. Tor não tinha chegado nunca saber se sua irmã se foi com o Ranald voluntariamente. Assim afirmava agora, mas isso era porque se acreditava apaixonada. Defeito que ao que parece era recorrente entre seus irmãos.

Para o Tor era inimaginável ter o tempo ou a inclinação para cometer um disparate semelhante. Em um mundo onde a morte era algo cotidiano, onde os homens morriam guerreando, as mulheres morriam de parto e os meninos não chegavam à idade adulta por culpa das enfermidades, ou os enviavam de pequenos para que se criassem em outra parte, o mais prudente era não afeiçoar-se muito com ninguém. Para ser capaz de tomar decisões sob pressão, um guerreiro tinha que aprender a controlar suas emoções e não pensar no que significava morrer ou matar. Como chefe, era também responsável por seu povo.

A recente trégua chegou a insistência de Muriel. Tor a tinha aceito pelo bem de seu clã, mas os MacRuairi seguiam sendo seus inimigos.

MacDonald se voltou para o outro lado para falar com Lamberton, e sem poder evitar Tor desviou o olhar para a moça. Não era a primeira vez que o fazia. Viu-a sentada junto à outra jovem de cabelos loiros e cara de anjo com a que estava antes, a uma mesa próxima ao estrado, o que significava que pertencia a uma família de certa importância. Uma parenta de MacDonald, talvez? Tor não conseguia lhe ver bem o rosto, apesar de que a moça tinha o nervoso costume de por o cabelo atrás da orelha. Cada vez que Tor a olhava, ela mantinha a cabeça voltada para outro lado, mas Tor recordava muito bem seu aspecto.

Era formosa. Não tinha a beleza clássica da jovem loira, mas sim sua formosura era muito mais erótica, visceral. Não só pelo corpo exuberante e cheio de curvas, evidentes inclusive sob o vestido de estilo francês chamado cote-hardie13 que tinha posto, mas sim pela boca carnuda e vermelha e o toque exótico de seus olhos negros. Tor franziu o sobrecenho. A moça era miúda e jovem, e sem dúvida virgem, em que pese a sua sedutora beleza, pois tinha esse olhar assustado e inocente das jovens educadas em conventos que se enfrentam ao mundo pela primeira vez. Certamente daria um pulo de medo se lhe sussurrava «buuu» ao ouvido. Não era o tipo de mulher pela que estava acostumado a interessar-se.

Assim, surpreendia-lhe o desejo que se fazia sentir com força em suas vísceras, mas não podia negá-lo. De todas as formas, sua reação era compreensível. Embora tivesse uma amante que se ocupava de suas necessidades, fazia algum tempo que não sentia vontades de deitar-se com ela e agora semelhante descuido se fazia notar.

Seria preciso fazer algo a respeito.

Afastou o olhar da moça e descobriu que seu anfitrião o observava de novo.

—São ambas muito formosas, não é certo? —perguntou MacDonald, sem esperar resposta—. Mas acredito que é o delicioso bocado de cabelos negros que atraiu seu interesse. —MacDonald meneou a cabeça—. Não lhe reprovo o gosto; a jovem é impressionante.

—De quem se trata?

—Não é a que interrompeu sua briga? —perguntou MacDonald arqueando uma sobrancelha.

—Sim — respondeu Tor. O sorriso de seu anfitrião começava a ser mais que molesta—. E isso lhe parece divertido?

MacDonald soltou uma gargalhada e negou com a cabeça.

—Não, não é isso o que me parece divertido.

A Tor ficava cada vez mais difícil recordar que era um convidado de MacDonald. Sempre o tinha respeitado como homem mais velho e como guerreiro, mas em ocasiões Angus Og podia ser tão irritante como o bastardo de seu primo. Tor estava farto de jogos estúpidos.

—Então o que é?

MacDonald deu de ombros.

—Que poderia ser sua, se a quisesse.

Tor franziu o cenho. Uma rameira? Acaso não era tão inocente como parecia? Voltou a olhá-la. Não, tinha que ser outra coisa.

De repente compreendeu o que era o que tanto divertia a seu anfitrião e apertou a mandíbula.

—São as filhas de Fraser?

MacDonald assentiu.

—pensei que ao pensar melhor você gostaria de reconsiderar sua decisão - disse. E acrescentou, baixando a voz—: uma palavra sua e poderia estar em seu leito antes de terminar a semana.

Tor seguiu apertando a mandíbula com força. A sugestão de MacDonald fez reagir seu corpo de um modo que sua cabeça não podia aceitar.

—Essa jovem é todo um prêmio. Rica, não só em beleza, mas também em terras, e filha de um nobre influente. Seria extremamente difícil achar um partido melhor.

A expressão de Tor se endureceu. Não só estava furioso porque tinha deixado transparecer o interesse que despertava nele a moça, mas também porque, ao fazê-lo, tinha dado a entender ao MacDonald que cabia alguma possibilidade de que a aceitasse. Mas MacDonald não o conhecia absolutamente se acreditava que podia lhe fazer mudar de opinião tão facilmente.

—Salvo pelo fato de que exige muito em troca. —Tor olhou a seu anfitrião atentamente—. Já hei dito isso antes: não me deixarei arrastar à guerra na Escócia; já tenho muitos problemas em casa. Se pensavam que me fariam mudar de opinião com uma jovem formosa, estavam muito equivocados. Se tentar colocar a alguma jovem em minha cama, serviria-me o mesmo uma que outra. Não preciso pôr em perigo a meu clã para conseguir a essa.

MacDonald se recostou no assento e cruzou os braços sobre seu peito largo e fornido. O sorriso desapareceu debaixo da longa barba cinza.

—Surpreendem-me, MacLeod. Francamente, acreditava que acolheriam com entusiasmo a idéia, não só pela moça, mas sim pela provocação. Jamais se tinha concebido algo semelhante. Imaginem o que seriam capazes de fazer esses homens com o adestramento e o líder adequados. Seria o melhor grupo de guerreiros do mundo. Melhor inclusive que o Fianna de Finn MacCool.

Isso era precisamente o que tinha intrigado ao Tor, mas seu dever estava claro. Revoltar-se contra Eduardo não beneficiaria a seu clã, mas sim com toda probabilidade uma rebelião provocaria uma cruel represália.

—tomei uma decisão — disse.

MacDonald exalou um fundo suspiro de resignação. O tom categórico de Tor não admitia discussão alguma.

—Bruce sofrerá uma decepção, mas se você não aceita, fará algum outro. Essa moça tentaria ao diabo em pessoa.

Tor viu algo na expressão de MacDonald que acendeu seu ânimo. Seguiu a direção do olhar de MacDonald e todo seu corpo ficou rígido.

A moça tinha levantado a cabeça, lhe permitindo por fim ver seu rosto. Um delicado rubor se estendeu por suas rosadas bochechas e seus vermelhos lábios carnudos esboçavam um envergonhado sorriso.

Mas foi o homem que estava de pé diante dela quem provocou uma labareda de ira que percorreu suas veias.

Sim, o muito mesmo diabo: Lachlan MacRuairi.

Tor ficou olhando durante um bom momento. Sua expressão impávida não deixava transparecer o menor indício da reação estranhamente intensa que tinha provocado nele a idéia de que seu inimigo se engraçasse com semelhante tesouro.

Mas não, não havia nada que pudesse lhe fazer mudar de opinião. Sua vontade era férrea e inflexível.

Quando por fim afastou o olhar da jovem, não voltou a olhá-la.

Capítulo 03


Christina atou a capa sobre o colo para resguardar do frio que a transpassou de repente, mas a grosa lã parecia fina como um fio no meio daquela densa névoa. Ao levantar o olhar ao céu que começava a obscurecer-se, estremeceu e apressou o passo.

Escapuliu depois do festim e, em que pese que os dias outonais ainda fossem longos, demorou-se mais do que esperava. Se não se apresasse, chegaria tarde ao jantar e ainda tinha que mudar de roupa.

Depois de dar de presente para sua criada uma túnica pouco usada, tinha-lhe pedido emprestado à moça seu velho vestido, lhe rogando que guardasse o segredo. O tecido seguia sendo mais fino que as que utilizavam as criadas dali, mas o vestido era bastante simples e velho para não despertar suspeitas.

Graças a Deus, a maior parte dos convidados, incluindo seu pai, alojavam-se no velho edifício do grande salão e nos barracões da ilha principal. Tão somente uns poucos se alojavam na torre nova, por isso Christina não corria um grande risco de tropeçar com alguém que a reconhecesse.

Encaminhou seus passos para a ilha menor pelo segundo meio-fio elevado. Ante ela se levantava a sombra imponente do castelo. Inquietava-lhe a escuridão crescente, mas não conseguiu desanimá-la. Esboçou um sorriso ao sentir-se segura de seu êxito. Seu temerário plano podia funcionar. Tinha conseguido.

O certo era que era mais fácil do que esperava convencer a alguém para que as levasse. Fosse por simples indiferença ou pelo colar de ouro que Christina lhe tinha entregado como pagamento, o contramestre se mostrou bem disposto às levar a Iona sem perguntar nada. Partia com rumo ao Mull em alguns dias e as deixaria em Iona ao passar.

Entretanto, Christina era consciente das dificuldades que tinha seu plano. Embora conseguissem partir sem que se dessem conta, sem dúvida seu pai sairia em sua busca, e cabia a possibilidade de que não lhe permitissem acolher-se, mas não era o momento de pensar nisso. Sabia que não havia tempo que perder depois do que tinha acontecido.

Apesar de ter procurado evitar o olhar do chefe MacLeod, não tinha deixado de notar seu carrancudo olhar durante toda a ceia, sobretudo ao aproximar-se dela Lachlan MacRuairi para apresentar-se e lhe agradecer sua oportuna interrupção. De perto, o guerreiro moreno e de olhos verdes era ainda mais bonito, apesar da cicatriz que lhe percorria a maçã do rosto, mas a Christina não tinha afetado da mesma maneira que o guerreiro loiro; bem a tinha assustado. Percebia nele uma profunda e enraizada escuridão.

De Tor MacLeod diziam que era o melhor espadachim das ilhas. Um longo calafrio percorreu a Christina intimamente ao recordar a intensidade do olhar de MacLeod. Era seguro estava furioso com ela por ter se misturado em sua briga, igual a seu pai.

Por que tinha detido?

Era exatamente o tipo de coisa que Lancelot teria feito por Genebra. Christina sorriu ao precaver-se do ridículo da comparação. O temível guerreiro de sangue gaélico, nórdica e Gall-Gaedhil14 não se parecia em nada ao Lancelot.

Christina imaginou ao Lancelot em seu cavalo, com seus extraordinários olhos azuis, suas belas feições e seus cabelos dourados e reluzentes como os de um magnífico deus do sol. Logo mordeu o lábio. Em realidade o chefe MacLeod encaixava perfeitamente nessa imagem, salvo pelo fato de que era muito mais alto e musculoso do que ela tinha imaginado ao Lancelot.

«Lancelot perderia para ele.»

Levou a mão à boca como se aquele pensamento inesperado pudesse brotar de seus lábios sem dar conta. Virtualmente era uma heresia pensar assim. Lancelot tinha sido o maior cavalheiro de toda a Cristandade. Não havia comparação possível.

Ou sim? E se tinha sido um instinto cavalheiresco o que tinha impulsionado ao chefe MacLeod a perdoar a vida ao outro? Tinha feito por ela?

Christina meneou a cabeça. Voltasse a deixar-se levar. Acaso um parecido superficial com o cavalheiro de seus sonhos podia lhe fazer esquecer a ferocidade implacável de seu olhar glacial? MacLeod a tinha olhado apenas um instante sem que se mudasse sua expressão, e ela não ia achar bondade nem cavalheirismo em um guerreiro ilhéu.

Tremeu um pouco ao pensar nele. Deus santo, aterrorizava-lhe a simples ideia de lhe dirigir a palavra!

Sentiu-se aliviada ao chegar ao final do longo piso elevado, pensando que quase tinha chegado a seu destino. Não gostava de estar fora de noite, completamente sozinha. O que era um fato corrente para uma criada constituía uma raridade para uma dama.

Encontrava-se a uns três metros da escada que conduzia à entrada do castelo, quando ouviu o som de vozes por cima de sua cabeça. Ergueu o olhar e sentiu que o coração lhe dava um tombo no peito.

Pai! Com MacDonald e outra meia dúzia de homens pelo menos. Saíram da torre da comemoração e começaram a baixar pela escada.

«O que digo? Que explicação lhe dou?»

Sabendo que estava a um passo do desastre, Christina olhou a seu redor procurando um lugar onde esconder-se. Com apenas uma fração de segundo para reagir, fez o único que estava a seu alcance e se meteu sob a escada de madeira, grudou suas costas à fria pedra do castelo e ficou completamente quieta. Nem um sopro de ar escapou de seus lábios quando os homens baixaram justo por cima de sua cabeça pisando forte. Os homens riam e brincavam como se não tivessem deixado de beber do banquete, o que certamente era assim.

O sangue se amontoava em suas têmporas. «Por favor, que não olhem para baixo.»

Só se atreveu a soltar o ar por fim quando o último homem baixou o último degrau e as vozes animadas se perderam ao longe em direção ao barracão mais próximo. Christina aguardou com impaciência que voltasse a reinar o silêncio e logo emergiu de dentre as sombras.

Exalou um suspiro de alívio.

Muito cedo. Alguém a agarrou por trás e a obrigou a dar volta. Christina afogou uma exclamação quando seu corpo se chocou contra o fornido peito do homem.

—O que temos aqui? —disse, arrastando as palavras, com a voz tão afetada pelo álcool como se percebia em seu fôlego.

Christina levantou o olhar para os negros olhos de um guerreiro de aspecto brutal que media pelo menos trinta centímetros mais que ela. A julgar por seu aspecto, era um dos guardas, grande como um urso, com feições grosseiras e uma espessa pelagem negra que se estendiam da cabeça até o queixo e o curto pescoço sem parada de continuidade. Christina retrocedeu instintivamente, amassando-se entre as dobras de sua capa com capuz e mantendo seu rosto escondido entre as sombras.

—De onde saiu você? —perguntou o homem com uma careta lasciva que pôs ao descoberto dentes trincados.

Ela estava muito aturdida para responder. A pesar do recente comportamento de seu pai, seguia sendo uma surpresa para ela que a tratassem de um modo tão rude. Os cavalheiros não abordavam às damas.

Mas ela não ia vestida como uma dama.

E ele não era um cavalheiro.

Teria que lhe deixar as coisas claras.

—Como se atrevem! —espetou-lhe com sua voz mais altiva—. Solte-Me. —Christina tentou soltar-se, mas os dedos do homem lhe agarravam o braço como tenazes.

Sua atitude não desanimou ao guarda, mas bem serviu para enfurecê-lo.

—Assim é uma rameira com presunções, né? —O guarda a aproximou um pouco mais com uma sacudida, o que permitiu a Christina ver a saliva nas comissuras de sua boca, umedecendo sua barba, e lhe revolveu o estômago—. Não te vi antes. Deve ter vindo com uma dessas damas escocesas — disse ele com tom depreciativo.

Christina não considerou que fosse o momento oportuno de assinalar que também as ilhas formavam parte da Escócia.

O guarda estava realmente bêbado. O pânico se apoderou dela, mas Christina se esforçou em dominá-lo. Estava claro que não poderia raciocinar com aquele homem em seu estado.

Não ficava mais remédio que revelar sua identidade, embora isso significasse ter que procurar uma desculpa para justificar-se ante seu pai por achar-se fora em meio da noite, só e vestida como uma criada. Assim que aquele rufião soubesse quem era, a soltaria. De modo que jogou para trás o capuz com um gesto teatral e disse: —Não vim com uma das damas escocesas, sou lady Christina Fraser, a filha de sir Andrew Fraser.

E se Christina esperava que o guarda lhe soltasse o braço, estava muito equivocada, por isso levou uma boa surpresa quando o homem a agarrou fortemente pelo cabelo e lhe voltou o rosto para o suave resplendor das tochas que iluminavam a entrada no alto da escada.

Christina soltou um grito de dor ao notar o puxão na nuca.

Viu os olhos nublados do guarda ao examinar seu rosto, mas pelo modo em que sorriu estava claro que gostava do que via.

—Assim é uma autêntica dama, né? E eu sou o rei da Inglaterra, o velho em pessoa. —O guarda riu de sua própria brincadeira—. Por Deus que isso sim que é uma boca. Espero que saiba como usá-la.

O rosto de Christina ficou sem sangue quando o medo e a raiva se converteram em frio pânico. «Não acredita em mim», pensou. Não lhe tinha chegado a ocorrer essa possibilidade. Christina teve a sensação de que estava sendo vítima de sua ingenuidade e sua inexperiência. De repente, aquela breve escapada começou a lhe parecer mal concebida, insensata e perigosa, muito perigosa.

Olhou a seu redor em busca de ajuda, mas o lugar parecia deserto. Onde estavam os sentinelas? Ouviria alguém seus gritos? Importariam a alguém?

O modo que o guarda sorria fez que Christina se arrepiasse, pois conhecia suas intenções.

—me solte, sujo animal! —gritou. Tentou levantar as mãos para lhe arranhar, mas ele se antecipou a sua reação e lhe segurou os braços contra o corpo, aproximando-a ainda mais para si.

Christina se debateu, tentando soltar-se, mas seus esforços enfureceram ao homem ainda mais.

—Pequena gata endemoninhada! —disse airadamente—. Quer briga, né?

O guarda a arrastou para a torre da comemoração, fundindo-se com ela entre as sombras, e a esmagou contra o muro do castelo, deixando-a sem respiração. Com uma mão lhe segurava a cabeça, com a outra lhe rodeava a cintura e lhe segurava os braços, e com o corpo a apertava contra o muro lhe impedindo quase respirar e muito menos mover-se.

O som de vozes masculinas deu novas energias a Christina para gritar.

—Socorro! —conseguiu dizer apenas sem fôlego antes que o guarda lhe tampasse a boca com uma mão. Mas os homens a tinham ouvido.

—Ei, você!

Seu atacante ficou quieto.

Tinha que ser o guarda do castelo. Pelas bochechas de Christina rodaram lágrimas de alívio acreditando que seu pesadelo estava a ponto de acabar.

—Quer se apressar? —disse um dos homens—. A garota está muito animada e temos damas aqui perto.

O atacante de Christina riu entre dentes.

—Sim, é uma das que chiam.

Os outros homens puseram-se a rir e se afastaram. Christina estava consternada. Como podiam deixá-la ali e partir? Não lhe importava nada, não significava nada.

Tudo dependia dela, ninguém ia ajudá-la.

O guarda lhe tirou a mão da boca e a obrigou a aproximar mais o rosto lhe puxando com força o cabelo, para continuar de onde tinha deixado antes da interrupção. Quando aproximou a boca à sua, Christina gritou: —Não!

Tentou escapar do guarda retorcendo a cabeça até que lhe saltaram as lágrimas, sem importar se lhe arrancava todos os cabelos da cabeça. Mas quanto mais se debatia, com mais força puxava ele.

Chocaram seus dentes e Christina notou uma pontada de dor no nariz quando a boca do guarda caiu sobre a sua com força arrebatadora. O aroma acre de cerveja pútrida invadiu seus sentidos. Christina sentiu náuseas e as arcadas que lhe subiam à garganta ao notar que o asco ameaçava fazendo vomitar. O guarda tentou colocar a língua à força entre seus dentes, mas ela manteve os dentes fortemente apertados.

O guarda grunhiu de frustração e se esmagou mais contra ela, apertando seus babosos lábios contra a boca fechada. Quando soltou a cabeça de Christina, esta acreditou ter ganhado a partida, mas sua vitória não durou muito.

Notou as mãos do guarda no pescoço e suas unhas ásperas na pele quando lhe agarrou o pescoço do vestido e puxou.

Christina ouviu o rasgar do tecido um instante antes que o ar frio lhe golpeasse os seios nus. O guarda grunhiu de satisfação e lhe apertou os seios com rudeza. Horrorizada, Christina gritou ao notar o brutal ataque a sua intimidade.

—meu deus, lindas tetas! —exclamou o guarda como se acabasse de encontrar uma bolsa cheia de moedas de ouro—. Grandes e cheias, como eu gosto.

Ao notar as mãos repugnantes do guarda sobre seu corpo, Christina se rebelou com toda a força da que era capaz.

—Não me toque! —chiou a bordo da histeria. Debateu-se como uma possessa, conseguindo assim que lhe soltasse um braço o tempo suficiente para lhe cravar as unhas no rosto.

O guarda uivou de dor e recuou instintivamente. Mas a dor remeteu e seu negro olhar a transpassou com uma resolução arrepiante. Levou a mão à cara e ao retirá-la a tinha manchada de sangue.

—vou te matar por isso, puta.

O guarda voltou a equilibrar-se sobre ela e Christina se lançou para sua direita tentando esquivar, mas ele foi mais rápido. Agarrou-a pela capa e a puxou para si.

O coração de Christina pulsava desbocadamente ao tentar escapar com toda a força da que era capaz, retorcendo-se, defendendo-se com as unhas e esperneando. Mas esta vez não pegou ao guarda com surpresa. Christina lutou contra a sensação de impotência que ameaçava afogando-a, negando-se a abandonar toda esperança.

Empurrou ao guarda uma vez mais, e ficou assombrada ao ver que este parecia sair voando para trás.

Se tinha tido a ilusão de que ela era a responsável, foi uma ilusão efêmera, pois ao erguer o olhar para olhar ao guarda que a tinha atacado, viu-o pendurado pelo pescoço como uma marionete, preso por outro homem. Estava muito escuro para distinguir o rosto do recém-chegado, mas era alto e fornido, mais ainda que seu atacante. Pela primeira vez em sua vida, Christina se alegrou de ver em ação a força física de tais músculos.

—Acredito que a moça não está interessada — disse o homem com frieza.

Tinha uma voz grave e cortante como uma faca, com o timbre inconfundível da autoridade, que a Christina deixou arrepiada.

—Quem demônios acredita que é? —espetou-lhe o guarda—. A moça está mais que disposta. E embora não o estivesse, não é teu assunto. —O guarda, que antes lhe tinha parecido forte como um boi, tentou se soltar do homem que o segurava, mas este apertou ainda com mais força, deixando ao guarda sem respiração.

O salvador de Christina obrigou ao guarda a dar volta para encarar-se com ele.

—Acabo de decidir que é meu assunto — replicou, e esmagou ao guarda contra o muro da torre da comemoração, de forma muito parecida com como antes lhe tinha feito a ela. A cabeça do guarda se estrelou contra a pedra com um ruído surdo, seguido do chiar de dentes. Sujeito pelo pescoço, o guarda soltou uma blasfêmia com os olhos exagerados pelo medo.

—É um dos homens do MacRuairi? —perguntou o salvador de Christina.

O guarda tentou assentir, mas não conseguiu mover a cabeça.

—Conheço seu rosto. E se me chega a mínima notícia de que tornaste a tocar a uma mulher contra sua vontade, a minha espada será quão última voltará a ver em sua vida. —O homem ofegou como se acabasse de lhe chegar um aroma fétido—. Importa-me um nada quão bêbado esteja. Entendestes?

O guarda assentiu sem dizer nada, obviamente muito assustado para falar. Parecia que tivesse visto um fantasma, ou talvez à morte personificada.

—Então, vá - disse o salvador de Christina, soltando ao guarda—, antes que troque de opinião.

O guarda, que tão imponente lhe tinha parecido a Christina, saiu correndo como um camundongo assustado. Quando seu salvador se voltou para ela para olhá-la, Christina afogou uma exclamação de surpresa tapando a boca com a mão, compreendendo por fim por que o guarda tinha fugido apavorado.

*

Nicolson seguia sem dar sinais de vida, por isso Tor tinha decidido ir em busca de MacDonald. Voltasse para a torre da comemoração quando chegaram a seus ouvidos uns grunhidos e divisou as figuras inundadas entre as sombras do muro. Embora ele preferisse encontros menos públicos, a intimidade era um privilégio de que gozavam alguns poucos, e não era estranho ver um guarda divertindo-se com uma moça lá onde pudessem acomodar-se.

Assim, emprestou-lhe tão pouca atenção como de costume, até que ouviu um grito. Aguçou o olhar e acabou por distinguir os sinais de luta que não tinha percebido em um princípio.

Imediatamente se sentiu invadido pela ira. Não gostava o mínimo que se maltratasse as mulheres em geral, mas aborrecia as violações especialmente desde que se inteirou do desgraçado destino de sua mãe. Os homens aos que mandava sabiam que não tolerava que se abusasse das mulheres em modo algum. Do contrário, o castigo era imediato e severo.

A moça resistia com elogiável garra, mas não era rival para o guarda, o que aumentou a irritação de Tor. Agarrou ao homem pelo pescoço para afastá-lo dela, estampou-o contra a dura pedra e o prendeu pela garganta. Deu-se conta de que o guarda o tinha reconhecido e soube imediatamente que não lutaria contra ele. Uma pena. Ficaria encantado ter uma desculpa para lhe surrar.

Seu estado de ânimo, antes já sombrio, voltou-se ainda mais negro.

Assim que o guarda se desvaneceu na noite, Tor se voltou para a moça, que tinha retrocedido enquanto ele falava com o guarda e que se encontrava um pouco mais à frente do círculo de luz que jogavam as tochas, ao abrigo da escuridão. Vendo-a tão miúda, voltou a sentir uma pontada de cólera pensando na envergadura do homem que a tinha atacado.

—Está bem? —perguntou-lhe.

—Sim, estou be-bem — respondeu ela com voz entrecortada. Parecia esforçar-se por não tremer. Tor tinha visto muitos homens reagir igual depois de uma batalha—. Obrigado — acrescentou Christina, serenando-se—. Não sei como lhe dar obrigado.

Tor franziu o cenho. A voz da moça lhe tinha surpreendido por sua doçura e uma suave entonação que não era própria do local e correspondia indubitavelmente a uma mulher refinada. Uma criada que falava tão bem? Tor olhou com maior apuro a figura que tremia entre as sombras e vislumbrou o suficiente para sentir um calafrio de inquietação.

—Te aproxime - disse, alongando a mão—. Não vou machucar-te.

Ela vacilou, mas aceitou sua mão. Tor sentiu uma estranha e perturbadora sensação ao notar os dedos gelados, mas suaves. Muito suaves, disse-se, em um arranque de ira irracional.

«Pelo martelo de Tor, não pode ser», pensou, mas antes de puxá-la para vê-la melhor à luz, já sabia.

A moça ergueu seu rosto ovalado para ele, as sombras acariciaram suas encantadoras feições, e Tor sentiu uma nova e intensa sacudida. Aqueles olhos eram inesquecíveis, escuros e rasgados, emoldurados pelo risco negro de umas sobrancelhas perfeitamente arqueadas e umas pestanas longas e espessas.

«A filha de Fraser.»

Tor deixou cair a mão.

De uma olhada comprovou o estado no qual se encontrava a moça, com os cabelos alvoroçados, a pecaminosa boca inchada e arroxeada e a suave pele de marfim arranhada pela barba do guarda.

Com muita dificuldade pôde controlar a ira que o dominava. «Deveria tê-lo matado», pensou.

Logo baixou o olhar e ficou petrificado. A Christina lhe tinha deslizado a capa para trás, deixando descoberto o vestido rasgado.

Tor apertou os dentes com tanta força que fez se sobressair os músculos da mandíbula. Não foi o único músculo sobressalente na reação primitiva e brutal de todo seu corpo, quando posou seu olhar abrasador em um seio grande, formoso e nu. Cheio e arredondado, com a carne branca coroada por um mamilo rosado e ereto pelo frio.

O olhar de Tor se atrasou apenas um instante, mas não passou despercebido. Christina afogou um gemido e se apressou a envolver-se bem com a capa para cobrir-se.

A mente de Tor se fechou como uma armadilha e seu olhar voltou a posar no rosto. Apesar da escuridão, viu o rubor que se estendia pelas bochechas de Christina. Ou possivelmente era o calor que o mesmo irradiava pela raiva que fervia em seu interior.

—O que fazem aqui fora e vestida assim? —espetou-lhe. Não era de se admirar que a tivessem confundido com uma criada.

Christina abriu os olhos com surpresa ao ouvir o tom de sua voz, mas ele estava muito furioso para conter-se e deu um passo para ela. Chegou-lhe um suave aroma de flores e Tor teve que fazer um esforço para não ceder à tentação de inalá-lo. A moça desprendia um incrível aroma fresco e inocente, e por isso era tão mais revoltante o que esteve a ponto de acontecer.

Tor apertou os punhos nos flancos, reprimindo o impulso de sacudi-la para lhe inculcar o sentido comum do que claramente precisava.

—Se deu conta do perigo que corria? Sabe o que lhe poderia ter passado?

Ela assentiu com veemência e pareceu encolher-se ante ele.

«Maldição. Estou a assustando», pensou.

Que demônios estava ocorrendo? Não recordava ter perdido jamais os estribos com uma mulher. Nem sequer com sua irmã Muriel, embora fosse tão cabeçuda e mandona que poria a prova a paciência de um santo, e ele não era nenhum santo.

Tor retrocedeu, passou uma mão pelos cabelos e fez o possível por conter sua ira. A ira não tinha sentido. Aquela moça não era assunto dele.

Assim, apagou a ira de seu rosto e adotou sua expressão habitual de homem frio e implacável.

—Sabes quem sou? —perguntou em um tom muito mais sereno.

Ela assentiu e se atreveu a lhe lançar outro rápido olhar sob as largas pestanas, um gesto tímido e feminino com uma absoluta inocência que o fazia ainda mais sedutor. O rubor de Christina se intensificou.

—por que está aqui fora sozinha? —voltou a perguntar ele—. Onde estão suas criadas?

Ela poderia perguntar o mesmo a ele. Era estranho que um chefe saísse sem todo seu séquito habitual, mas Tor tinha deixado seus homens atrás para ir procurar de MacDonald.

—Eu… eu tinha que dar um recado —respondeu ela, retorcendo-as mãos com nervosismo—. Levou-me mais tempo de que esperava.

Estava mentindo.

—Assim vestida?

Tor não era um perito em moda feminina, mas inclusive ele distinguia a diferença entre o elegante vestido que Luzia Christina durante o festim e o vestido que levava nesse momento. Também tinha se despojado do diadema e do colar e os brincos de pérolas, que tão valiosos eram. Estava claro que tentava disfarçar-se. A questão era por que.

—Não queria que se manchasse a roupa boa — explicou Christina, assinalando a borda úmida de seu vestido. Tor viu a delicada ponta do pé que aparecia cheia de barro.

—Esperam que acredite isso? —Tor se cruzou de braços e aguardou, submetendo-a a um largo olhar escrutinador.

Christina se retorceu com ar culpado, mas não cedeu. Tor teve que reconhecer o mérito, pois conhecia homens que se acovardaram por menos. A moça parecia ter esquecido o medo que antes demonstrava.


—Que recado na aldeia podia ser tão importante? —perguntou ele, ao fixar-se na areia que se mesclava com o barro.

Christina esquivou seu olhar e retorceu ainda mais as mãos. A moça não sabia mentir.

—Por favor — suplicou—, era um assunto pessoal.

Tor a observou durante uns instantes mais com desejos de seguir interrogando-a. Estava claro que a moça trazia algo entre mãos e ele sentia curiosidade, muita curiosidade, de fato. Mas uma vez mais recordou que aquilo não era assunto dele e que tampouco desejava ver-se envolto nisso. As ações da filha de Fraser demonstravam o que já sabia: que uma moça como aquela era uma fonte de problemas. Inocente e vulnerável apesar de seu aspecto sensual. Era uma dessas mulheres às que um homem não poderia perder de vista jamais. Alegrava-se de não ter que carregar ele com essa responsabilidade, mas alguém deveria vigiá-la melhor.

—Sabe seu pai que anda por aqui?

Christina empalideceu e o medo voltou a aparecer em suas delicadas feições.

—Por favor — disse, e surpreendeu ao Tor pondo uma mão sobre seu braço—. Não diga nada, rogo-lhe isso.

Seu aspecto era o de uma moça muito jovem, muito inocente e muito assustada. A combinação das três coisas resultou ser surpreendentemente poderosa.

Tor olhou aqueles olhos implorantes e sentiu um estranho mal-estar perto dos pulmões que lhe incitou a perguntar se teria comido muito no festim.

—Por favor — voltou a lhe suplicar, lhe apertando o braço brandamente.

Tor ficou rígido; cada um de seus músculos e de seus nervos reagiu a aquele suave contato. Não teria sentido com tanta intensidade a folha de uma espada.

Christina se deu conta então do que estava fazendo; retirou a mão bruscamente e olhou os pés.

Claramente se envergonhava de tê-lo tocado com tanta familiaridade. O certo era que Tor não sabia o que pensar. Limpou a garganta antes de falar.

—Seu pai se ocupará de que castigue a esse homem pelo que tentou fazer.

«Eu o mataria», pensou.

—Não, por favor — rogou ela, e Tor detectou o pânico em sua voz—. Só quero esquecer o ocorrido. Se você contar a meu pai, somente conseguiriam enfurecê-lo. —Com ela, queria dizer. E estava claro que a aterrorizava a idéia.

O rosto de Tor se escureceu ao adivinhar o motivo. Acaso Fraser descarregava sua ira sobre suas filhas? Seu instinto reagiu violentamente ao pensar nisso.

—Vos bate seu pai?

—Não — se apressou a responder ela.

Muita pressa em responder. Tor não deveria ter perguntado. «Não é teu assunto», repetiu-se, voltando a levantar um muro em sua mente. A moça não era coisa dele. E não era necessário que criasse problemas com seu pai.

—Guardarei o segredo, mas somente se me der sua palavra de que não voltará a abandonar o castelo sem um séquito.

Tor esteve a ponto de pensar melhor ao ver a expressão de Christina. Olhava-o como se acabasse de matar a um dragão, com os olhos reluzentes de gratidão e sua incrível boca curvada em um amplo sorriso. O efeito era assombroso. Christina não estava simplesmente formosa, a não ser radiante. Mas esse olhar causou desgosto em Tor.

—Diz de verdade? —perguntou ela—. Não ides contar?

—Não, se acessarem ao que lhe peço.

—OH, sim, sim. —E sem dar-se conta do que fazia Christina o rodeou em um infantil abraço, apertando a bochecha contra o tecido escocês que Tor levava ao redor dos ombros—. Obrigado. Juro-lhe que não voltarei a fazer nada parecido.

Tor se sentiu como se acabassem de lhe cravar uma tocha de cravos por aquele gesto espontâneo que o desarmou por completo. Uma sensação estranha para um homem ao que jamais tinham derrotado em uma batalha.

Tor a abraçou também, deslizando instintivamente o braço ao redor de sua cintura. Maldição, que bem cheirava, pensou ao aspirar o ar.

Ouviu o gemido afogado de Christina e, quando se olharam nos olhos, não havia forma de saber qual dos dois estava mais surpreso.

*

Transbordante de gratidão, não só por tê-la salvado daquele homem horrível, mas também por ter prometido guardar seu segredo, Christina reagiu sem pensar e o abraçou igual teria abraçado a sua irmã.

Salvo que estava muito claro que ele não era sua irmã. Por um momento, experimentou um calafrio de medo.

O corpo do guerreiro era grande e duro como o granito. Christina se sentia como se tivesse topado de cabeça com outro muro de pedra. Um muro de cálida pedra que não cheirava à água de rosas de Beatrix, a não ser a algo escuro, intenso e definitivamente masculino. O calor e aquele aroma embriagador se apropriaram de seus sentidos. Não podia respirar perdida como estava nas profundidades dos olhos mais assombrosamente azuis que tinha visto em sua vida.

O medo se dissipou ao mesmo tempo em que seu corpo se inflamava de calor e ela se tornava consciente do pequena que se sentia entre os braços do guerreiro e do estreitamente que ele a abraçava. Também era consciente da comichão que experimentava nos seios apertados contra o fornido torso, dos músculos como rochas que a rodeavam e da força da mão em sua cintura. O guerreiro podia esmagá-la sem mais, mas a segurava com uma surpreendente delicadeza.

Ao princípio ele parecia tão surpreso como Christina, mas logo seu olhar se tornou mais penetrante, intensificou-se, de um modo que deveria tê-la alarmado. Era como se a estivesse perfurando com o olhar. Para Christina ficou impossível afastar o olhar. A conexão era tão forte que parecia apanhada em uma corrente que a arrastava mar adentro. Muito intensa cor azul, emoldurado por umas pestanas escuras com bordas douradas e imerso em um rosto muito mais atraente do que ela tinha percebido em princípio.

Era um homem brutalmente atraente, como um deus nórdico da guerra: rude, imponente e criado para a destruição. Não era só por sua elevada estatura e seu físico musculoso, mas também pelas angulosas feições que pareciam esculpidas em pedra.

Entretanto, apesar de tanta ferocidade, Christina sentiu o estranho impulso de erguer a mão e percorrer com o dedo as duras linhas da bochecha e a mandíbula masculina. O rosto do guerreiro parecia cinzelado como o de uma estátua, quase irreal.

Suas feições não eram refinadas nem de uma beleza clássica, nem os olhos afundados sob umas sobrancelhas escuras, nem o nariz forte que se alargou ao romper-se, nem as altas maçãs do rosto que desciam em um pronunciado ângulo para a mandíbula quadrada, nem a boca larga, de lábios finos. Entretanto, o efeito misturado daqueles traços era a mais absoluta perfeição masculina.

De todas as formas, também estava claro que era o rosto de um guerreiro. De perto Christina distinguiu os rastros das batalhas. Uma fina cicatriz lhe cruzava a sobrancelha direita e outra mais longa corria pela bochecha até o lábio superior. Christina acreditou ver outra cicatriz no queixo, mas a leve fenda tinha sido deixada pelo polegar de Deus, não uma arma.

O guerreiro tinha a pele curtida, salvo as pequenas linhas brancas que lhe rodeavam os olhos e a boca. Levava o rosto relativamente raspado, com tão somente a sombra da barba de um dia realçando a mandíbula implacável, e os cabelos, mais curtos que o que estava acostumado a ser costume, caía-lhe em suaves ondas irregulares até a altura do queixo. Teriam sido castanhos a não ser porque o sol os tinha clareado.

Era um homem magnífico. Fisicamente, o mais atraente no que Christina tinha posto os olhos. E tinha lido muitos livros para que não lhe afetasse o bonito cavalheiro.

Ao que parece, não era quão única albergava pensamentos de índole similar, pois o olhar do guerreiro desceu para sua boca.

Os lábios de Christina se entreabriram brandamente. O guerreiro ia beijá-la. Esperou com o coração pulsando no peito desbocadamente como as asas de um pássaro tentando escapar com frenesi de uma jaula. Estava assustada, mas desejava aquele beijo: sua mente tentava impor-se à vontade de seu corpo. De verdade desejava que a beijasse?

Christina jamais tinha beijado antes, mas a boca do guerreiro parecia muito suave comparada com o resto de seu corpo e era o único que podia pensar. Christina se aproximou inconscientemente, sentindo um calafrio nas costas, os mamilos eretos contra o peito do guerreiro.

Uma sombra desconhecida para ela velou os olhos do guerreiro e lhe pareceu que a segurava com mais força um instante antes de ficar quieto. Logo a soltou tão depressa que Christina acreditou haver imaginado tudo.

—Voltem para seus aposentos — ordenou ele com brutalidade—. Já tivestes muitos problemas por uma noite.

Imediatamente ela se deu conta do que tinha feito e sentiu uma ardente mortificação que lhe acendeu o rosto. Não só tinha abraçado a um desconhecido, a não ser a um feroz guerreiro. Como pode deixar-se levar até esse ponto depois do que acabava de lhe ocorrer?

Tinha motivos suficientes para temer muito mais a esse homem que ao guarda que a tinha atacado. Era mais corpulento e mais forte, e ao ver seu manejo da espada no combate que ela mesma tinha presenciado, também era muito mais perigoso. Com somente lançar um olhar ao rosto, o guarda tinha saído correndo apavorado.

Por que não tinha medo? Ao princípio, ao vê-lo tão furioso, sim tinha, mas no momento em que ele tinha percebido seu medo, havia-lhe feito tão pouco a dominá-lo que Christina tinha compreendido imediatamente que não corria perigo. Era muito diferente do caráter imprevisível de seu pai.

Apesar da improvável situação e do que ela sabia sobre os guerreiros das ilhas, sentia-se segura com ele. Não só porque a tinha salvado, embora sem dúvida aquilo influísse. Era também sua voz e seu nobre porte o que a tranqüilizavam, o tom grave e masculino e a serena autoridade que transpareciam em suas palavras, assim como o orgulho régio com o que se comportava. Do que outro modo podia explicar Christina o que acabara de fazer?

E ao que parece o guerreiro era digno da confiança depositada nele. Desejava beijá-la, mas não o tinha feito. Era muito honorável para aproveitar-se da situação.

Não obstante, o que pensaria agora dela? Christina estava ali para lhe ser oferecida como possível esposa. Quereria ele a uma jovem tão descarada? E por que lhe importava se não tinha intenção de casar-se com ele?

—me perdoe — disse, horrorizada—. Não sei o que de em mim. Estou tão agradecida pelo que fez ao me salvar…

—Não foi nada — replicou ele em um tom cortante.

Nada? A Christina desconcertou sua indiferença. Era claro que a tinha salvado. Igual aos cavalheiros das histórias que lia.

Christina inclinou a cabeça, confusa. Por um momento lhe pareceu que o guerreiro a admoestava, até que compreendeu por fim o gesto cavalheiresco. É obvio! Simplesmente era muito modesto.

—foi muito para mim — disse ela, sorrindo timidamente. Se não fosse por ter começado de uma maneira tão horrível, aquela poderia ter sido a experiência mais romântica de sua vida. Não a salvava todos os dias um cavalheiro das garras do mal.

—Vá — repetiu ele, enrijecido e com a mandíbula apertada.

Sem compreender muito bem sua brutalidade, Christina lhe dedicou de novo um sorriso vacilante antes de subir correndo a escada. Quando chegou ao alto, deu a volta para voltar a lhe dar obrigado.

—Eu…

Mas sua voz desapareceu na escuridão. O guerreiro se fora.

Christina não compreendeu o motivo até mais tarde.


Capítulo 04


Christina se tinha fixado na ausência do chefe MacLeod durante o jantar, mas não lhe outorgou nenhuma importância até que seu pai irrompeu no aposento que compartilhava com Beatrix enquanto se preparavam para deitar-se.

Mudaram de roupa e a criada acabava de terminar de escovar o cabelo de Beatrix para começar com o de Christina. Seu pai lhe arrancou a escova da pobre garota antes de lhe ordenar que saísse. Christina desejou poder fugir com ela.

Seu pai se aproximou da cadeira em que estava sentada com ar ameaçador e o rosto lívido de raiva.

Algo tinha ocorrido. Para Christina caiu a alma aos pés. «Deus do céu, me ajude. Descobriu algo, meu pai? Terá quebrado sua promessa o chefe MacLeod?»

—vai embora - anunciou seu pai, colérico—. E devemos fazer algo para detê-lo.

Dissimulando o alívio ao compreender que seu pai não sabia nada do ataque sofrido, Christina tentou falar sem perder a calma e sem fixar-se na pesada escova de prata que brandia.

—Quem se vai?

—O chefe MacLeod, estúpida.

Christina deu um coice quando seu pai depositou a escova violentamente diante dela, fazendo que vibrassem os delicados frascos de cristal que continham seus perfumes e as caixinhas de madeira que guardava suas jóias.

Quando o coração de Christina voltou a pulsar outra vez, compreendeu as palavras de seu pai e franziu o cenho. O chefe MacLeod ia embora?

—Por quanto tempo?

Seu pai a olhou como se fosse uma boba.

—para sempre. Rechaçou às duas —respondeu, indignado, como se fosse óbvio que elas tinham a culpa.

Tinha as rechaçado? Christina olhou a sua irmã e viu sua expressão de alívio, mas também sua surpresa. Antes, ao retornar a seus aposentos com aspecto desalinhado, não tinha tido mais remédio que confessar a Beatrix a maior parte do acontecido, deixando a um lado os detalhes mais perturbadores. Horrorizada, Beatrix tinha se recriminado por não tê-la acompanhado, o qual era ridículo porque tinha sido Christina quem tinha insistido em ir sozinha. Se alguém tinha culpa, era ela. Mas ao ver agora a expressão de sua irmã, compreendeu que talvez tenha exagerado ao lhe falar dos nobres e galantes atributos de seu salvador.

Talvez inclusive enganasse a si mesma.

Deveria lhe aliviar que as tivesse rechaçado, mas em troca sentia uma inesperada opressão no peito que parecia bem um sentimento de decepção.

Compreendeu que o medo e os prejuízos que sentia inicialmente eram injustificados e perguntava no mais fundo… Se talvez tivesse encontrado ao cavalheiro andante de seus sonhos. O chefe MacLeod a tinha salvado, tinha atendido a sua petição de clemência, tinha-a estreitado entre seus braços e… Esteve a ponto de beijá-la.

Mas não o tinha feito. Christina tinha acreditado em um princípio que o impedia sua honra. Equivocou-se ao interpretar seus atos como cavalheirescos e em realidade não despertava o menor interesse nele?

Tinha-lhe aborrecido seu descaramento? Era tudo produto de sua imaginação? Certamente, por sua expressão, não parecia que o chefe MacLeod a considerasse outra coisa que uma moça estúpida que esteve a ponto de conseguir que a estuprassem. De fato, pensando bem, Christina se deu conta de que tinha olhada ela com o mesmo olhar sem emoção com que olhava a todo mundo. Seu rosto era feroz e inescrutável, mas por um momento ela tinha acreditado…

Dava igual. Disse que era uma grande noticia que o chefe não a quisesse por esposa. Beatrix e ela estavam a salvo, ao menos no momento. Não teriam que arriscar-se a uma fuga para Iona de última hora. Seria uma decepção para sua irmã, mas em realidade lhe beneficiava dispor de mais tempo para planejar tudo melhor e não atuar como desesperada.

Era o melhor sem dúvida. Entretanto, não pôde evitar que lhe escapasse a pergunta:

—por quê?

—Deve tê-lo enfurecido ao intrometer-te em seus assuntos - disse seu pai com o rosto crispado em uma careta irada—. Que mais seria? Rechaçou-lhe, e não podemos permitir. Necessitamos dele. Necessitamos essa aliança.

—Mas por que é tão importante o chefe MacLeod? —perguntou Christina. Finlaggan transbordava de chefes ilhéus naquele momento. Claro que Christina não tinha o menor desejo de que seu pai a entregasse a nenhum deles.

—É. Não precisa saber mais — respondeu seu pai, entreabrindo os olhos.

Embora seu pai a considerasse uma estúpida, Christina sabia que tudo aquilo tinha relação com uma possível guerra contra Inglaterra. E o motivo das últimas ações de seu pai estava sempre em libertar escócia do «sanguinário filho de cadela inglês». O patriotismo de sua família era bem conhecido, mas o de seu pai estava tingido de fanatismo. Às vezes Christina se perguntava se havia algo que seu pai não fosse capaz de atacar com finalidade de expulsar da Escócia a Eduardo da Inglaterra.

Ao contrário que a maior parte de nobres que trocavam de lado por conveniência política, como os Bruce ou os Comyn, que parecia lutar em qualquer lado no que não estivesse o outro, os Fraser estavam sempre do lado da Escócia. Tinham lutado junto ao Wallace, Balliol, Comyn e, agora, a julgar pelo juramento de vassalagem de seu primo Simon, fariam-no junto a Robert de Bruce. Christina estava segura de que a presença do bispo de Saint Andrew significava que seu pai também se aliou com Bruce.

Estava claro que seu pai e Lamberton tramavam algo e tinham decidido que necessitavam o apoio dos chefes ilhéus, e o de Tormod MacLeod, o melhor espadachim das ilhas, em particular.

Tratava-se disso então? Seriam tão imprudentes para preparar uma nova rebelião? Christina esperava que não. A aposta era perigosa. A notícia sobre o destino de William Wallace se propagou rapidamente pela Escócia. Por muito que Christina temesse a seu pai, não desejava ver a cabeça deste cravada em uma lança sobre algum castelo inglês.

Seu pai a observava como esperando que dissesse algo. Mas o chefe MacLeod tinha rechaçado a aliança. O que outra coisa podiam fazer?

—Talvez pudesse achar alguma outra maneira de atraí-lo para seu lado - sugeriu.

O olhar de seu pai se desviou para Beatrix, que fazia todo o possível por desaparecer entre as avultadas dobras das cobertas da cama e quase tinha conseguido. Com os longos cabelos dourados caindo sobre os ombros e vestida tão somente com uma camisola de linho, parecia tão etérea como um anjo.

—OH, ainda não me rendi — disse seu pai com um sorriso arteiro—. Simplesmente teremos que lhe deixar sem outra alternativa.

Havia algo no tom de sua voz que Christina se arrepiou.

—O que querer dizer? —perguntou.

O chefe MacLeod parecia um homem que tomava sempre suas próprias decisões e Christina não concebia que ninguém pudesse lhe obrigar a nada que ele não quisesse fazer.

—Se descobrirem Beatrix em seu leito, terá que casar-se com ela para salvar sua honra.

Christina demorou um momento em compreender o que sugeria seu pai.

Beatrix ficou tão branca como a camisola que tinha posto. Seus grandes olhos azuis se abriram como duas grandes moedas, dominando seu rosto apavorado.

—Em seu leito? —repetiu com um tenso sussurro.

—Não pode falar sério — disse Christina em um estado de atônita incredulidade, esquecendo por completo a prudência. Estava disposto seu pai a arruinar a reputação de sua filha para obrigar a um homem a desposá-la?

Seu pai se voltou para ela com olhos duros como duas pedras negras.

—Asseguro-te que falo muito sério. —Agitou a mão com desdém—. Não passará nada. Somente serão uns instantes. E Beatrix unicamente tem que meter-se na cama com ele enquanto está dormido. Eu entrarei e a «encontrarei» uns minutos mais tarde. Sua virtude estará a salvo.

Christina não dava crédito a seus ouvidos. Acaso seu pai tinha perdido por completo o sentido da honra?

—Mas isso é um engano - disse, horrorizada—. É desonroso.

Seu pai apertou o punho e por um momento Christina temeu ter ido muito longe. Deu um coice, esperando o golpe, mas o punho de seu pai não se moveu.

—Menina estúpida, como te atreve a me falar de honra! O que são uns minutos, quando eu passei três anos nas masmorras de Eduardo pela Escócia e pela honra? O que sabe você de guerra e sacrifício? —Com o rosto vermelho como pimenta pela cólera, agarrou Christina pelo braço a puxou para obrigá-la a encará-lo—. Não quero ouvir mais objeções estúpidas. Isto é tão somente um meio para obter nossos fins e é quão único importa. —Seu pai a soltou e lhe deu um empurrão para afastá-la, como se não se considerasse capaz de conter-se para não lhe fazer dano—. Beatrix será uma boa esposa. Ele se dará conta em seguida e me agradecerá isso.

Christina já tinha a resposta a sua pergunta: seu pai não ia deter-se ante nada para obter o que se propunha.

Beatrix se enrolou, feita um novelo tremente.

—Não posso — disse, engasgando-se com as lágrimas—. Não o farei.

Christina se sentiu orgulhosa de sua irmã, até que viu seu pai aproximar-se da cama a grandes pernadas.

—Sim fará — bramou ele em tom ameaçador, levantando a mão—. Ou não será só meu punho o que caia sobre ti. Desta vez usarei o látego.

Christina lhe agarrou pelo braço antes que pudesse golpear a sua irmã.

—Eu o farei — afirmou—. Por favor, não lhe façam mal. Eu o farei.

Ele deu a volta e Christina lhe soltou o braço, aliviada ao ver que baixava a mão.

—Não, sua irmã é a melhor opção. Beatrix não fez o ridículo misturando-se em sua briga.

—Mas ele se deteve — espetou Christina. Tinha que achar o modo de persuadir seu pai—. E esteve me observando durante o festim. Tinha que ver.

Seu pai a observou durante uns instantes.

—Está segura?

Christina sentiu que se ruborizava pensando em suas exageradas palavras. Era certo que o chefe MacLeod a tinha observado, mas não havia o menor indício de interesse em seu implacável olhar. De fato, quando MacRuairi se aproximou dela, MacLeod tinha parecido zangado.

—Uma jovem se dá conta quando um homem a admira — respondeu, avermelhando pela mentira, mas esperando que seu pai o atribuísse à modéstia. Em realidade tinha parecido notar que existia certa conexão entre MacLeod e ela, mas depois de ter rechaçado beijá-la, já não estava segura de nada.

Em qualquer caso, Beatrix não podia fazer o que pretendia seu pai e Christina não poderia suportar as conseqüências de sua desobediência. A idéia de que um látego cruzasse as frágeis costas de sua irmã a enchia de um medo gelado. Além disso, consolou-se pensando que em realidade não teria que chegar a meter-se às escondidas no aposento do MacLeod, dado que, ao que parece, teriam que pôr em prática quanto antes seu desesperado plano de fuga. Finalmente teriam que embarcar-se rumo à Iona antes que levar a cabo a repugnante ordem de seu pai.

Embora tivesse se deixado levar por suas fantasias por um momento, a negativa de Tormod MacLeod a tinha curado de sua ingenuidade, deixando-a sem mais opções.

—Muito bem — disse seu pai, com o tom de quem faz uma grande concessão—, pode fazer — assentiu sorrindo, e Christina compreendeu que essa tinha sido sua intenção desde o começo, que seu pai jamais tinha pensado em Beatrix, a não ser nela, e lhe tinha seguido o jogo sem dar-se conta.

Beatrix deixou escapar um som como se fosse protestar, mas Christina a impediu com um olhar silencioso para lhe assegurar que tudo sairia bem. Iriam para Iona. Não chegaria nunca à cama do MacLeod.

—Te prepare — ordenou seu pai—. Virei por ti umas horas depois de que ele se retirou a seu aposento.

O coração de Christina lhe deu um tombo no peito. Essa mesma noite? O navio não zarparia só dentro de dois dias!

—M-mas - balbuciou—. Pensava que teria uns dias para me preparar.

Seu pai meneou a cabeça.

—Tem que ser esta noite. Não há tempo que perder. Nicolson não vai vir e não há nada mais que o retenha aqui.

Christina não tinha a menor ideia de quem era Nicolson, mas não se importava.

—Não posso — disse, tentando achar um motivo plausível para atrasá-lo—. Não estou preparada.

Seu pai entreabriu os olhos como se suspeitasse algo, embora ela soubesse que isso era impossível.

—Hei dito que será esta noite. Você não tem que fazer nada. —Assinalou a camisola de Christina—. Com o que tem posto bastará. Se não estiver preparada quando voltar, será sua irmã que pagará por me desafiar.

—Mas e se ele acordar? —perguntou Christina à desesperada. Seria capaz de lhe fazer dano o chefe MacLeod?

—Encontra o modo de lhe distrair — respondeu seu pai, dando de ombros. Olhou a sua filha de cima abaixo—. Estou seguro de que te ocorrerá alguma coisa para passar uns minutos.

Compreendendo perfeitamente o significado oculto das palavras de seu pai, Christina ficou branca como papel.

Viu a porta fechar-se atrás de seu pai com um sentimento de horror e de desespero. Ele tinha ganhado, embora nem sequer tivesse sido uma autêntica batalha, porque seu pai sabia desde o começo que Christina faria tudo para proteger a sua irmã. Inclusive um ato tão desonroso como enganar a um homem para obrigá-lo a casar-se com ela.

Um calafrio percorreu suas costas. A seu pai não preocupava sua própria honra, assim por que ia preocupar se com a honra de uma insignificante filha?

—OH, Chrissi — disse Beatrix, jogando-se nos braços de sua irmã—. O que vamos fazer?

Deitando junto a ela na cama, Christina acariciou a cabeça de sua irmã, que chorava sobre seu ombro. Somente quando a comoção virou resignação, pode lhe responder.

—O que ele ordena. Que remédio fica?

Christina sentiu que lhe revolvia o estômago e que lhe subia a bílis à garganta ao pensar no que teria que fazer. Todos seus instintos rechaçavam a idéia de cometer semelhante infâmia. O chefe MacLeod a tinha salvado, e assim ia pagar sua galanteria?

—O ódio o tornou louco — afirmou Beatrix—. Obrigar a um homem a casar-se dessa maneira está mau. Um matrimônio como esse está condenado ao fracasso.

Beatrix tinha razão. O chefe MacLeod a desprezaria pelo que tinha feito… Com toda a razão do mundo. Se por acaso a idéia de meter-se em sua cama às escondidas não fosse o bastante aterrorizante, também tinha que temer a reação dele. De todas as formas, o dano não duraria muito, porque o matrimônio não chegaria a celebrar-se.

—Farei o que nosso pai pede esta noite — disse Christina, meneando à cabeça—, mas iremos dentro de dois dias tal como tínhamos planejado.

Como muito o chefe MacLeod veria sua partida atrasada um dia, mas não teria que casar-se com ela, e essa idéia dava a Christina o necessário para seguir adiante.

*

Tor jogou para um lado a manta de peles e baixou os pés. Dirigiu-se ao aparador iluminado pela lua que se filtrava entre as portinhas de madeira da janela, agradecendo o alívio do frio ar noturno. Tinha calor e estava inquieto.

Sentia-se como se seu corpo quisesse abandonar sua própria pele.

Não era a primeira vez essa noite que lamentava ter rechaçado a oferta de MacDonald de enviar uma mulher para que compartilhasse sua cama. Em que demônios estava pensando?

Apertou a mandíbula, pois já conhecia a resposta. «Uma mulher é tão boa como qualquer outra», recordou-se a si mesmo.

Alargou a mão para a jarra de uisge-beatha15, e agradeceu a MacDonald sua profética hospitalidade. Tomou um longo trago sem incomodar-se em usar uma taça. O potente uísque lhe queimou a garganta e o peito, e depois de uns instantes transmitiu o calor a suas extremidades, aplacando seu irritado desgosto.

Depois de aliviar a jarra grandemente, passou um dedo pela asa e a levou até a mesinha de noite. Voltou a se deixar cair na cama e jogou o cabelo para trás, enfurecido consigo mesmo.

Por Deus santo, o que estava passando?

Gostava do uísque, como a qualquer ilhéu, mas não estava acostumado a utilizá-lo para embotar seus sentidos. Entretanto, o muro que tinha levantado em sua mente estava se mostrando desconcertantemente frágil.

Esteve muito perto de beijar à moça e sabia. Para um homem que se vangloriava do domínio de si mesmo, semelhante debilidade era incompreensível.

Deveria concentrar todos seus pensamentos no Nicolson. Tor tinha sido informado pelo MacDonald de que Nicolson não iria a chamada no Finlaggan. Tinha enviado uma mensagem desculpando-se e afirmando que assuntos prementes requeriam sua atenção.

Sim, pensou Tor, assuntos prementes como preparar um ataque contra o clã MacLeod.

MacDonald tinha enviado outro mensageiro ao Nicolson para exigir sua imediata presença, mas Tor não se atrevia a esperar a resposta. Tinha que retornar ao Skye imediatamente e iniciar os preparativos para a guerra.

Entretanto, não era a perspectiva da guerra o que ocupava seus pensamentos, provocava suas ereções e o fazia sentir-se como um leão enjaulado.

Estava distraído. E por culpa de uma mulher, nada menos.

Tor sacudiu a cabeça. Não era que não desfrutasse com a companhia feminina, mas além de alguma conversação ligeira durante as refeições, relacionava-se melhor com elas na cama, onde as compreendia bem. Entretanto, nunca tinha pensado muito em nenhuma em particular. Nunca tinha tido tempo para emprestar muita atenção. Desde a morte de seus pais quando tinha dez anos, Tor tinha se concentrado no único objetivo de devolver a prosperidade a seu clã. A maior parte dos últimos vinte anos tinha transcorrido no campo de batalha, e só retornava a Skye quando era possível.

A sua esposa, Flora, filha de um rei irlandês, tinha a conhecido poucos dias antes de casar-se com ela, e, pensando bem, certamente não tinham acontecido mais que uns meses juntos durante o tempo que ficaram casados. Tempo suficiente para que nascessem dois filhos varões, mas pouco mais. Ele cumpria com seus deveres e ela com os seus. Tinha sido um matrimônio de conveniência, e tinha funcionado bem.

Tor franziu o cenho, perguntando-se se teria funcionado tão bem como a ele.

Atribuindo tão estranho pensamento ao uísque ingerido, Tor deixou de um lado a jarra, tombou-se sobre os frios lençóis e fechou os olhos, deixando que a escuridão e o álcool relaxassem a tensão de seus músculos.

Mas o álcool não lhe ajudava. Em sua mente seguiam vivas as imagens ardentes que não conseguia expulsar, e voltaram para ele assim que fechou os olhos. O rosto encantador da moça. Os olhos rasgados, exóticos. A boca pecaminosa a uns centímetros da sua.

E seu peito nu.

Tor soltou um grunhido e notou o membro duro ao recordar a imagem com toda clareza de um seio generoso, de pele marfim e imaculada, coroada por um ereto mamilo rosado do tamanho de uma pérola. Era o seio mais esplêndido que tinha visto em sua vida, feito para o prazer de um homem. Uma mescla perfeita de inocência e erotismo, muito similar a sua própria dona.

Tor tinha o pênis duro como o martelo de um ferreiro. Sabia que não ia conseguir dormir, de modo que levou a mão ao membro e se deixou levar pelas imagens do seio, o rosto e a boca carnuda da moça, liberando sua frustração em um pano. Era a solução mais prática para um guerreiro, embora não parecesse neste momento, muito satisfatória.

Por fim conseguiu cair em um sonho intranqüilo, mas ainda faltavam muitas horas para a manhã seguinte.

*

Christina não podia deixar de tremer, não de frio, mas sim de medo. Caminhou pelo corredor com passo vacilante e subiu a escada, um degrau atrás do outro, como se seu pai a conduzisse a ponta de espada.

Não podia acreditar que estivesse fazendo algo semelhante. Quão único permitia a seus pés seguir avançando era a lembrança da ira de seu pai e a certeza do que ocorreria tanto a Beatrix quanto a ela se negasse a obedecer. Quanto mais pensava, mais segura estava de que o plano de seu pai tinha muitas possibilidades de sair errado, mas o que podia fazer?

Rezar.

—Te mova e deixa de tremer, maldita seja — lhe sussurrou seu pai ao ouvido—. Assim vais desperta-lo assim que te meta em sua cama.

A advertência de seu pai fez que deixasse de tremer porque ficou paralisada. Como ia ser capaz de meter-se na cama daquele homem?

Queria sair correndo e esconder-se, mas era muito tarde.

—Aqui — sussurrou seu pai, assinalando uma pequena porta à direita.

Tinham chegado ao último andar da torre da comemoração. Por sorte, ao chefe MacLeod lhe tinham atribuído um dos escassos aposentos particulares do castelo. Somente sua posição de convidado de grande consideração impedia que aquela farsa fosse desenvolver-se no grande salão ou nos barracões, rodeados de homens que dormiam em jergons16.

—Se apresse — ameaçou seu pai com impaciência—. Dê sua capa.

Christina se agarrou às dobras de lã até que lhe puseram brancos os nódulos, pois não queria desprender-se dela.

—Eu…

—Agora — ordenou seu pai com impaciência.

Christina desejava lhe rogar que pensasse melhor, mas um olhar a seus negros olhos que se refletia a luz vacilante das velas lhe disse que seria inútil.

Desatou a capa com dedos trementes e a estendeu a seu pai. Logo rodeou o corpo com os braços sentindo-se como nua, embora vestisse a camisola de linho.

—Entra — lhe ordenou ele.

—Não irá, verdade? —disse ela, com o tom patético de um menino que tem medo de que o deixem sozinho na escuridão.

—Tenho que fingir que estou te procurando, mas depois de «obrigar» a sua irmã a me dizer aonde fostes, voltarei aqui.

Seu pai tinha pensado em tudo.

—dentro de alguns minutos — disse Christina.

—dentro de alguns minutos — lhe assegurou seu pai—. Tudo terá concluído antes que dê conta. —Empurrou a sua filha para a porta—. Fica quieta e ele não saberá sequer que está aí.

Christina pôs uma mão sobre o fecho da porta e inspirou profundamente, enchendo-se de coragem.

«Que Deus me perdoe», murmurou, e abriu a porta.

Entrou no aposento antes de perder a coragem e fechou a porta atrás dela. Completamente imóvel, aguçou o ouvido se por acaso detectava algum ruído, mas somente ouviu as irregulares batidas de seu coração. Ao cabo de uns instantes, distinguiu a suave cadência da respiração do chefe MacLeod e exalou um suspiro de alívio.

O aposento estava imerso em uma total escuridão e os olhos de Christina demoraram um momento em adaptar-se, mas ainda sim foi difícil distinguir algo mais que sombras. Em todo caso, reconheceu a grande sombra que havia frente à porta: era a cama. E sobre a cama dormia um homem de lado, o que era uma sorte, porque o leito era grande, mas o alto e fornido guerreiro ocupava boa parte dela. Mal ficava espaço para que Christina se deitasse a seu lado.

Seu estômago se revolveu e seu nervosismo aumentou grandemente.

«Terminará tudo em alguns minutos», pensou. Escasso consolo dadas as circunstâncias.

Fazendo um esforço, Christina se aproximou sigilosamente à cama sem fazer quase ruído, talento que tinha aperfeiçoado desde a volta de seu pai depois de seu encarceramento. Embora mantivesse o olhar separado da figura que jazia na cama, cada vez era mais consciente de sua presença, até que teve a sensação de que a tensão ia fazê-la estalar. Um roce, e estava segura de que acabaria chiando como uma banshee17.

O aposento parecia muito quente, quase sufocante. No ar se respirava uísque e a um intenso aroma masculino. O corpo de Christina reagiu de um modo tão instintivo que lhe surpreendeu. O aroma intenso e limpo transpassou seus poros e atenuou em parte o frio que lhe gelava o sangue.

Chegou junto à cama.

Contendo a respiração, arriscou-se a dar uma olhada ao homem adormecido e obteve mais do que esperava. Estava escuro, mas nem tanto para lhe impedir de ver que o guerreiro não só estava deitado em cima da roupa de cama, mas, além disso, estava completamente nu.

Por sorte, se assim podia chamar, o guerreiro estava de costas e Christina só distinguiu o contorno de suas fortes costas e seus largos ombros, o braço e as pernas musculosos e a suave curva de suas nádegas, tão escuras como o resto de seu corpo.

Deus santo, era magnífico. Seu corpo esbelto e musculoso estava feito para ser adorado como a estátua de um antigo deus grego. Apolo, possivelmente.

Christina afogou um gemido e sentiu uma onda de calor que invadia seu corpo pela surpresa, mas também por algo mais. Curiosidade? Não, o estranho e quente formigamento que notava nos seios e entre as pernas lhe disse que era algo diferente.

Sentia-se atraída por ele, excitada por sua nudez.

Rapidamente baixou o olhar, envergonhada pela reação de seu corpo. O que lhe estava passando? Todos esses músculos, essa força bruta, deveriam lhe aterrorizar. Achava-se completamente necessitada com semelhante força.

Era preciso acabar o quanto antes com tudo aquilo. Quanto tempo tinha passado? Um minuto? Dois? Não ficava muito tempo.

Fechou os olhos, rezou uma nova prece para ter coragem e se deitou na cama com supremo cuidado. O colchão cedeu sob seu peso, fazendo que desse um tombo no coração. Tentou se assegurar de que seguia ouvindo a respiração regular do guerreiro, mas o sangue lhe amontoava nas têmporas. Em qualquer caso, o guerreiro não se moveu e isso era bom sinal.

Christina tentou ocupar o menor espaço possível, voltando-se de lado e aproximando-se a borda da cama. Embora não se tocavam, notava o corpo do guerreiro, tão grande e quente que parecia irradiar calor igual a uma fogueira.

Desejando que seu pai viesse logo, Christina começou a contar os minutos.

Onde estava seu pai?

De repente, a cama rangeu ao movimento do guerreiro. Christina afogou um gemido quando o enorme braço masculino lhe rodeou a cintura justo debaixo do seio e a atraiu para seu duro corpo do guerreiro.

Christina ficou paralisada como um cervo ao ver um arqueiro. Um amontoado de sensações contraditórias se juntaram em sua mente. Sobretudo sentia o calor que a envolvia e o poder do corpo grande e duro que se apertava contra suas costas.

O que podia fazer?

Não podia mover-se embora quisesse. Sentia-se como se a envolvesse um abraço de aço. O corpo do guerreiro era duro e inflexível, mas surpreendentemente confortável.

Deus bendito, que braços tão fortes. Christina notava o poder latente daqueles músculos flexionados sob seus seios. Recordou como brandia a espada com mortífera precisão e tentou não deixar-se dominar pelo pânico.

Tarefa que ficou impossível quando se deu conta de algo mais: o guerreiro estava acordado.


Capítulo 05


Por um momento, Tor acreditou que estava sonhando. Percebeu a presença de uma mulher a seu lado e o suave perfume feminino causou estragos em sua mente. Não podia pensar com claridade; notava a cabeça embotada como se a tivessem recheado com lã.

Maldita seja, devia ter bebido mais do que pensava. Fazia muito tempo que ninguém conseguia aproximar-se dele sem que se desse conta. Mas esqueceu rapidamente seu desaponto quando seu corpo reagiu ante a presença feminina.

E não foi pequena a reação. Vibraram todos os músculos de seu corpo.

Era justo o que necessitava: uma mulher suave e bem disposta que lhe fizesse esquecer à outra.

Ao que parece MacDonald não tinha feito caso e lhe tinha enviado uma mulher de todas as formas. Tor sorriu prazerosamente. Teria que agradecer seu anfitrião na manhã seguinte.

Atraiu à moça para si e notou seu suave corpo fundindo-se contra o seu. Era miúda e pequena, mas surpreendentemente se adaptava a ele à perfeição, viçosa e suave, e cheia de curvas. Deus, e que aroma. Tor afundou o nariz nos sedosos cabelos e aspirou seu incrível aroma.

O suave fôlego da respiração feminina quando Tor lhe tocou a orelha com a boca provocou uma sacudida lasciva que chegou diretamente até seu membro. Notou a ereção contra a suave curva das nádegas femininas e soube em seguida que estava disposto para um contente entretenimento.

A moça gemeu e Tor notou que ficava rígida pela surpresa, reação a que estava acostumado. Tor riu entre dentes. Sim, seu membro era grande.

—Não se preocupe, moça — murmurou ao ouvido da garota, e logo deslizou os lábios pela pele aveludada do pescoço até chegar ao sensível ponto onde se uniam o ombro e a nuca—. Farei com muito cuidado.

Era uma promessa que não sabia se poderia cumprir. O sabor doce da pele da garota o deixava meio louco. Era condenadamente suave. Tor afundou o rosto em seu pescoço para seguir beijando, chupando e saboreando, incapaz de resistir a uma fome insaciável. Os longos cabelos da garota caíam sobre ele como um véu sedoso, lhe fazendo cócegas no peito nu. Tor queria senti-la nua contra seu corpo, pele contra pele, mas não acreditava que pudesse esperar. Sua ânsia era urgente.

Os suaves ofegos intermitentes da moça lhe incitaram ainda mais. Se fazia de inocente? Ele não estava acostumado a gostar desses jogos, mas nesse momento lhe dava igual. O calor da luxúria não podia ser mais intenso. Tinha a sensação de que lhe ardia a pele e tinha o membro tão erguido como uma maldita lança.

Apesar de não estava acostumado a ser tão impaciente, somente pensava em penetrar-lhe por trás e atacá-la uma e outra vez até que os dois chegassem ao êxtase. Esfregou um pouco mais forte contra as nádegas femininas, cada vez mais entusiasmado com a idéia. O membro lhe pulsava dolorosamente. Não recordava a última vez que esteve tão excitado. A moça fazia que seu corpo reagisse da maneira mais animal, com pura luxúria.

MacDonald tinha superado a si mesmo com a moça que lhe tinha enviado.

Apalpou a suave curva dos quadris e as nádegas redondas e bem formadas. A moça era miúda, mas bem dotada, e adivinhava perfeitamente o que ele pensava fazer.

Deslizou uma mão para cima para lhe cobrir um seio. Tor gemeu ao contato com um seio abundante que enchia sua mão. Imediatamente recordou o seio que tinha vislumbrado umas horas antes. Mas o da moça que tinha entre os braços era mais que suficiente para lhe fazer esquecer o outro.

Abrangendo o seio com a mão, esfregou o mamilo entre o indicador e o polegar até fazer que ficasse duro, igual tinha desejado fazer com o outro.

A moça emitiu um som agudo e moveu os quadris para trás para grudar-se a ele. OH, sim, estava desejando tanto como ele. Tor notava o coração dela pulsando desaforadamente sob sua mão.

Mordiscou o suave lóbulo de sua orelha.

—Você gosta, verdade? —sussurrou com voz rouca.

Ela não respondeu. Não era necessário. Assim era melhor, era mera luxúria, sem dor de cabeça. Tor nem sequer queria saber que aspecto tinha a garota.

Na escuridão, podia ser qualquer uma. Mas sua mente se lembrava de outra.

*

Se gostava? Christina não podia respirar, primeiro pela surpresa e logo pelas cálidas ondas de sensações que invadiam seu corpo. Era algo incrível. Como calor líquido correndo por suas veias.

Tinha o coração tão agitado como o de um coelho, mas ele não parecia dar conta. Se não estava bêbado, pouco lhe faltava. Christina percebia o aroma de uísque em seu fôlego e o notava no tom de sua voz varonil, rouca e grave. Quem teria imaginado que um guerreiro tão feroz pudesse ter uma voz tão sedutora?

Mas embora a bebida o tivesse abrandado, também tinha embotado seus sentidos o suficiente para confundir a reação de surpresa de Christina com outra coisa.

Ele acreditava que Christina desejava… o que estava passando, e devia reconhecer que o engano era compreensível, tendo em conta que a tinha encontrado em sua cama.

Devia falar? Devia lhe dizer quem era?

Ao menos estava a salvo no momento. Enquanto ele seguisse atrás dela, sua virtude estava a salvo. Christina não era completamente inocente: sabia como faziam o amor os homens e as mulheres.

Mas onde estava seu pai?

Então notou que o guerreiro a tocava e se esqueceu de seu medo, esqueceu-se do plano de seu pai e de todo o resto, salvo do que estava fazendo. Christina não podia pensar em outra coisa que não fosse a dura coluna de músculos apertada contra suas nádegas, a boca em seu pescoço e sua orelha, o calor do fôlego que provocava calafrios em suas costas, e a incrível sensação das grandes mãos lhe acariciando os seios, apertando e brincando com seus mamilos até fazê-los pulsar de prazer.

Jamais tinha imaginado que as carícias de um homem pudessem fazê-la sentir assim, aturdida, confusa, como se seu corpo tivesse deixado de ser dela. Era melhor inclusive que nos livros! Encontrava-se consumida em muitas sensações, excitada em lugares que nunca teria imaginado. Notava os seios cheios e pesados e uma estranha umidade entre as coxas.

A reação de seu corpo a teria envergonhado senão fosse porque sentia um prazer muito intenso para pensar nisso. As mãos do guerreiro eram grandes, cálidas, possessivas. A pressão era deliciosa, deixava-a desejando, não, necessitando mais e mais. Christina gemeu e se arqueou quando as sensações que provocavam as carícias nos seios se fizeram insuportáveis, impulsionada por uma premente necessidade que não sabia como aplacar.

Sua inocente resposta provocou uma reação nele. Os movimentos do guerreiro se fizeram mais insistentes. Seus beijos se fizeram mais vorazes e a barba lhe raspou a suave pele do pescoço. O guerreiro ofegava, tinha contraídos os músculos dos braços e o peito; sua paixão era tão feroz como o homem. E ela gostava.

—Deus, é incrível — lhe grunhiu ele ao ouvido—. Espero que esteja preparada.

A mão masculina lhe percorreu o corpo do seio até os quadris e mais abaixo, logo voltou a subir, mas esta vez por debaixo da camisola.

Preparada para que? Christina gemeu quando a mão grande e calosa tocou a pele nua. A sensação era incrível. Sua pele ardia sob as perversas carícias. A mão do guerreiro se afundou entre suas pernas e os dedos percorreram a suave pele interna de suas coxas.

Christina ficou paralisada pela vergonha. Deus santo, ia…

Um enorme dedo percorreu sua sensível zona úmida. Christina estremeceu, não sabia se pela surpresa ou pelo desejo. Seu corpo desejava as carícias, mas a neblina que a rodeava como um sonho tinha começado a dissipar-se.

—Sim — gemeu ele — preparada. Estou impaciente por fazer que goze — sussurrou.

Embora Christina não entendesse o significado daquelas palavras, sentiu um calafrio pelo tom de voz em que foram pronunciadas.

As mãos masculinas a aferraram pelos quadris, atraindo suas nádegas para ele.

A realidade voltou então com toda sua força. Algo ia mau. Acaso ele pretendia…?

—Não, por favor… —Christina tentou escapar, mas ficou imóvel quando suas nádegas roçaram a grosso membro ereto— Pare.

—OH, nem pensar — disse ele com voz crispada, e segurou seus quadris com mais força. Christina notou a ponta do membro introduzindo-se em suas partes íntimas e deu uma sacudida, presa do pânico.

—Não! —chiou.

Mas era muito tarde. Com um forte ataque, o guerreiro a penetrou totalmente, deflorando-a. Ela gritou; sentia-se como se acabassem de parti-la em dois.

O guerreiro ficou rígido e soltou um juramento, um sujo palavrão que, depois do acontecido, acabava de adquirir para ela um novo significado. Ele a separou de si empurrando-a sem cerimônia alguma e saltou da cama como se o acabassem de marcar a fogo.

E o tinham marcado, igual à ela.

*

Tor se sentia como se afundasse em um lago gelado. Em um instante desapareceram os efeitos do álcool e da luxúria. Que demônios estava passando? A moça era uma maldita virgem!

Dirigiu-se à janela a grandes pernadas e abriu a portinha. A madeira golpeou a parede de pedra com um ruído que ressonou em todo o aposento.

A lua iluminou o ambiente de uma luz tênue. Tor olhou à mulher chorosa que havia na cama e notou que lhe gelava o sangue nas veias.

O efeito do uísque não se dissipou por completo e demorou um instante em assegurar-se de que não era imaginação dele. Mas não, era certo. A mulher a que acabava de desvirginar era a formosa filha morena de Fraser.

A moça se tinha sentado na cama rodeando as pernas com os braços como se tentasse fazer um novelo e desaparecer. Seus longos cabelos negros caíam em torno dos ombros como um véu sedoso, alvoroçados pelo que acabava de ocorrer. Seu aspecto era juvenil e inocente, e estava muito assustada. Olhava-o com seus grandes olhos muito abertos e lhe caiam lágrimas pelas bochechas.

Quando Tor pensou no que tinha feito, em como a tinha beijado, como a tinha acariciado, como a tinha desvirginado, deu-lhe um tombo o estômago e sentiu náuseas.

Deu um passo para a cama e se deteve. Não tinha por que consolá-la. Em qualquer caso, era ela a que lhe devia uma explicação.

—O que está fazendo aqui? —perguntou—. Por que esta em minha cama?

Ela empalideceu e em seus olhos apareceu o brilho do pânico.

—Eu…

De repente a porta se abriu e Andrew Fraser irrompeu no aposento. A luz da vela que levava acabou com as sombras, deixando a verdade sem esconderijo algum no que ocultar-se. Atrás dele apareceram um homem e uma jovem criada.

Fraser deu uma olhada a sua filha, que tinha todo o aspecto de ter sido violada, e logo olhou Tor, cuja nudez deixava pouco à imaginação. Não lhe tinha gelado todo o sangue no corpo e sua ereção ainda era visível, assim como a escura mancha vermelha que a cobria. Se por acaso não fosse prova suficiente, as manchas de sangue que havia sobre o cobertor eram inconfundíveis. Tinha desvirginado Christina.

Mas o brilho de satisfação que Tor viu nos olhos de Fraser o deixou atônito.

A verdade caiu sobre ele com um duro golpe: tinha sido enganado.

Voltou a olhar à moça, negando-se a acreditar que ela tivesse participado de semelhante traição.

A moça se sobressaltou ante a intensidade de seu olhar e logo desviou os olhos, mas Tor já tinha visto a culpa neles.

*

Christina estava aniquila. Não sentia surpresa nem horror. Simplesmente se sentia perdida, como se tivesse correndo pelo escuro labirinto de um espantoso pesadelo e não conseguisse encontrar a saída.

Mas não era um sonho: a dor palpitante que sentia entre as pernas era muito real.

Como ocorrera algo assim? Em um momento a consumia a paixão e ardia nas chamas de sensações maravilhosas, conectada com ele de um modo que jamais tinha imaginado, e imediatamente seguinte todo se mudou. Ele a tinha penetrado tão rapidamente que ela não se deu conta do que pretendia até que era muito tarde. Não sabia que um homem e uma mulher podiam fazer o amor —suas bochechas se ruborizaram ao pensar— nessa postura.

E logo seu pai tinha entrado no aposento e tudo tinha ficado pior. A criada que levava com ele para que fosse testemunha da vergonha de sua filha tinha afastado os olhos imediatamente, mas o guarda permanecia estoicamente atrás de seu pai observando tudo.

—O que têm feito a minha filha? —perguntou seu pai em um tom ofendido.

Christina se arriscou a olhar o chefe MacLeod e viu em seu rosto uma expressão de ferocidade como jamais tinha visto. MacLeod olhava a seu pai com uma cólera glacial.

—Exatamente o que teria feito qualquer homem com a puta que enviam a sua cama.

Christina afogou um grito para ouvir tão grosseiro comentário e sentiu uma opressão no peito. Como podia dizer algo assim? Fazia apenas uns instantes que a acariciava como se não fosse ter o bastante, como se a desejasse mais que a tudo no mundo. Como se ela fosse especial. Christina sentia ainda o formigamento das carícias de suas mãos nos seios, dos beliscões de seus dedos nos mamilos, e de sua boca nas marcas que tinha deixado no pescoço.

O guarda levou a mão à espada, mas seu pai o deteve com um gesto.

—Como te atreve! —exclamou seu pai, e desta vez não precisou fingir-se ofendido —. Minha filha era uma donzela inocente. Levam a prova de sua virgindade em você mesmo.

Christina tinha evitado olhar o corpo nu do chefe, mas seus olhos o fizeram por ela e se abriram como pratos. Jesus! Não era de admirar que doesse. Rapidamente desviou o olhar com as bochechas ardendo de vergonha. Mas não antes que a imagem do assombroso corpo masculino ficasse gravada a fogo em sua mente. A criada, em troca, olhou ao chefe ousadamente e logo lançou a Christina um olhar de reconhecimento feminino que ela não conseguiu compreender.

—Limitei-me a tomar o que me ofereceu — replicou o chefe MacLeod com frieza e um inconfundível tom depreciativo em sua voz.

O guerreiro acreditava que ela tinha vindo voluntariamente, que queria lhe seduzir. Mas ela só pretendia deitar-se a seu lado. Não esperava que ele fosse despertar.

—E agora pagarão o preço — disse seu pai com total naturalidade.

Tanta era sua naturalidade que Christina acabou compreendendo tudo ao fim. Como não tinha visto antes? A traição oprimiu seu peito com tanta força como se seu pai a tivesse golpeado.

«Ele queria que ocorresse isto.» Seu pai não se atrasou. Seu pai não tinha tido nunca intenção de entrar depois de alguns minutos: esperava que o chefe a descobrisse e a deflorasse. MacLeod já não podia negar a casar-se com ela. Não importava a forma como aconteceu tudo; somente havia uma maneira honorável de solucionar.

Christina se sentiu inundada de vergonha. Tinha sido uma estúpida ao não dar-se conta das verdadeiras intenções de seu pai.

Como podia fazer isso a sua própria filha? Como podia tê-la enganado dessa maneira?

Empenhado em obter seu objetivo, estava cego a todo o resto.

—Eu não pago pelo que me dão gratuitamente — replicou o chefe MacLeod.

Rapidamente Christina voltou a olhá-lo. Não quereria dizer que…? Sim, em efeito, não queria casar-se com ela, nem sequer depois de tê-la desflorado. Nem sequer depois do que tinham compartilhado.

A expressão do guerreiro era dura e impenetrável. Nem sequer a olhou.

«Acredita que eu participei voluntariamente em tudo isto.» Em realidade era certo, mas ela nunca pretendera que as coisas chegassem tão longe.

—O que é o que tenta dizer? —perguntou seu pai com o rosto vermelho de ira.

—Digo que sua filha recebeu exatamente o que merecia quando a enviastes a meu aposento.

Christina não podia permitir que pensasse mal dela.

—Mas eu não pretendia…

—Já basta — a interrompeu seu pai, voltando-se para ela com um olhar furioso—. Já fez o bastante. — Fez um gesto à criada e ao guarda—. Escolte-a de volta a seu aposento. Falarei contigo manhã — disse depois a sua filha—, quando tudo isto se ajeitar.

Christina olhou a MacLeod procurando compreensão, mas seu rosto era frio como o gelo, sem uma sombra de clemência, e só o tic que se percebia em sua apertada mandíbula deixava transparecer sua cólera. Entretanto, ela a notava de todas as formas, desprendendo-se de cada um dos poderosos músculos de seu incrível corpo. A nudez não parecia lhe importar o mínimo. Permanecia erguido e orgulhoso como se fosse um guerreiro embelezado com toda sua armadura. Invencível. E com semelhante constituição, era fácil compreender o porque.

Christina desceu da cama sentindo-se como se tivesse envelhecido cem anos nos últimos minutos. Cambaleou ao ver a mancha delatora no cobertor e rapidamente afastou o olhar com as bochechas vermelhas pela vergonha.

Fazendo caso omisso de seu pai, voltou-se de novo para MacLeod. Não sabia por que, mas lhe parecia de vital importância que ele soubesse a verdade.

—Por favor — rogou —, não é o que pensa… Eu não sabia. Isto foi um engano.

—Sim, foi — replicou ele em um tom cortante e frio.

Christina sabia que estava furioso, e tinha todo o direito, mas lhe doeu seu desapego. O guerreiro a havia tocado do modo mais íntimo, havia possuído com seu corpo, e ela queria acreditar que isso significava algo.

Apesar da fealdade do que tinha feito seu pai, para ela tinha significado algo. Olhou ao guerreiro fixamente, esperando que ele também a olhasse, que lhe oferecesse um pequeno consolo, por insignificante que fosse, mas ele manteve o olhar cravado em seu pai, ignorando-a por completo.

Insignificante. A Christina doía o coração. Era tão somente um peão no jogo dos homens. Teria desejado significar algo para alguém, mas talvez fosse uma estupidez que uma mulher sonhasse com semelhante coisa.

Baixou a cabeça e saiu do aposento atrás da donzela e do guarda, com um nó na garganta pelas lágrimas ardentes que pugnavam por sair.

Não sabia o que era pior: ter perdido sua virgindade ao mesmo tempo em que seu bom nome, ou que não lhe importasse ser o causador de sua desgraça.

*

Tor observou sua partida negando-se a deixar-se comover por suas súplicas. A traiçoeira moça levou seu castigo.

Não ia deixar que lhe obrigassem a aceitar com enganos um matrimônio que ele não queria. Se voltasse a casar-se, seria pelo bem do clã. E não seria com uma mulher que lhe tivesse seduzido para que a desvirginasse.

Muito a seu pesar, veio-lhe à mente a lembrança desse momento. Recordou ter tido aqueles seios abundantes entre suas mãos e as nádegas apertadas contra seu membro. Recordou ter percorrido o doce veludo de sua pele com a boca e os sedosos cabelos caindo sobre ele. Recordou os suaves ofegos de prazer e o modo em que tinha tremido ao lhe tocar ele suas partes úmidas, e a explosiva paixão que o tinha invadido ao penetrá-la.

Amaldiçoando a reação de seu corpo, Tor agarrou seu leine e o jogou por cima da cabeça.

Jamais tinha passado por algo semelhante. Nunca esteve a ponto de perder o controle pelo desejo carnal. A bebida devia ter nublado a mente, maldita fosse.

Fez um esforço para se separar de si aquela lembrança. A exagerada reação de seu corpo para ela não ia mudar sua decisão original. Se aliava-se com a grande família patriota dos Fraser, imediatamente daria pé a que se questionasse sua neutralidade e o inimizaria tanto com Eduardo como com MacDougall.

A luxúria era uma razão quase tão ridícula para casar-se como o amor.

Fraser aguardou a que sua filha e outros se fossem para encará-lo.

—Não acredita que podes escapar desta. O que ocorreu aqui se saberá em todo o castelo ao chegar de manhã.

—Já vejo que encarregastes que assim seja - disse Tor, referindo-se à criado e ao guarda que Fraser tinha levado consigo para que fossem testemunhas daquela farsa—. Mas te equivocas ao pensar que isso me importa.

—Desvirginaste minha filha — disse Fraser com tom incrédulo—. A honra lhe obriga a casares com ela. —«Sejam quais sejam as circunstâncias», queria dizer.

—Ah, sim? —Tor sorriu—. Dá por certo que eu sigo as mesmas regras que você. Vieram para mim com uma oferta que eu rechacei, e por uma boa razão. Não ides obrigar a me casar com enganos. Não é minha honra que está em jogo, a não ser a sua e de sua filha.

Fraser era consciente de que Tor podia matá-lo com as mãos nuas, por isso dominou sua cólera.

—Ninguém lhe obrigou a nada — disse —. Afirma que minha filha lhe seduziu? Minha inocente filha?

—me pareceu mais que disposta - replicou Tor sem que seu rosto delatasse a menor emoção, mas as palavras de Fraser levantaram ampolas.

Reviveu a cena mentalmente e, por muito que o desejasse, teve que admitir que não pudesse fazer tal afirmação. As estranhas reações que tinha atribuído inicialmente ao desejo de jogar por parte da garota adquiriam um horrível sentido ao saber que procediam de uma donzela inocente, mas se tinha deixado levar pela luxúria não deu conta. Entretanto, também era certo que ela tinha reagido com paixão. Tor levantou o muro defensivo em sua mente antes que se apropriassem dela certos pensamentos. Em qualquer caso, a moça não tinha feito nenhum esforço por detê-lo até que já fosse muito tarde.

—Suspeito que sabias exatamente o que ocorreria ao enviá-la a minha cama. Agora é seu problema.

Finalmente Fraser pareceu compreender que a jogada não lhe tinha saído bem.

—Não a aceitará ninguém mais quando souberem o que ocorreu aqui.

A moça já sabia ao que se arriscava.

Mas e se não sabia?

Tor desprezou suas dúvidas. Não ia sentir se culpado por ter sido enganado. Tinha tomado uma decisão pelo bem de seu clã e nada a mudaria.

—Então, sugiro-lhe que impeçam todos que difunda a notícia antes que possa provocar mais dano. —Tor deu um passo ameaçador em volta de Fraser—. E agora será melhor que vá antes que ignore a trégua e lhe dê exatamente o que merece pelo que tentastes fazer aqui esta noite.

Fraser lhe lançou um olhar e compreendeu que a ameaça não era vã.

—Isto não acabará assim — disse, cravando seu negro olhar em Tor. Sua voz transbordava ira e ressentimento.

Mas os dois sabiam que aquilo se acabara. Fraser tinha jogado apostando a virtude de sua filha e tinha perdido.

*

Assim que Christina viu sua irmã, as lágrimas que esteve contendo estalaram em uma corrente de soluços que sacudiram todo seu corpo. Beatrix não disse uma só palavra, simplesmente a rodeou com seus braços e ofereceu o consolo que sua irmã tanto necessitava depois do tumulto de emoções experimentadas durante a noite. Christina tinha passado do céu ao inferno em uns horríveis minutos.

Lentamente debulhou a história entre soluços entrecortados. Deixou de lado os detalhes mais íntimos, mas contou o suficiente para que inclusive uma donzela inocente como Beatrix entendesse. O que tinha ocorrido tinha sacudido os alicerces da vida de Christina de um modo que jamais poderia explicar a sua irmã, mas aquilo a tinha mudado para sempre, pois agora conhecia as carícias de um homem. Sabia que era vulnerável à paixão e ao desejo. Sabia exatamente a relação tão íntima que podia estabelecer-se entre um homem e uma mulher.

Beatrix não disse uma só palavra, limitou-se a murmurar sons tranqüilizadores, acariciou-lhe a cabeça e deixou que Christina chorasse até empapar a camisola com suas lágrimas.

Quando por fim se acalmou, Christina respirou fundo e olhou a sua irmã com os olhos brilhantes e inchados.

—O que vou fazer agora?

Beatrix desenrolou a mecha de cabelo que se ficou preso nos cílios de Christina com um suave gesto.

—O que ocorreu esta noite não muda nada — respondeu em voz baixa—. Não será a primeira vez que uma garota procura refúgio em um convento para escapar ao matrimônio. A castidade não se requer antes de entrar, somente depois. —Beatrix sorriu—. Se isso é o que realmente quer.

—É obvio que é o que quero.

Beatrix a olhou pensativamente.

—Talvez o que ocorreu tenha sido melhor para ti.

Christina se separou de sua irmã com doída expressão de surpresa.

—Como pode dizer isso?

—Porque não acredito que escolhesse uma vida inteira dedicada a Deus se tivesse outras opções. Escapar, encontrar a paz, viver em solidão… Compreendo suas razões para querer ir ao convento, mas quanto tempo passaria antes que os muros da abadia começassem a te parecer os de uma prisão? Você quer casar, Chrissi. Escapa com ele; ele te protegerá.

Havia mais verdade nas palavras de sua irmã do que Christina queria admitir. O véu de monja a protegeria, mas uma vez tomado, não poderia desfazer os votos. Teria paz e a capacidade de utilizar seus conhecimentos de um modo proveitoso, mas careceria de liberdade. Tampouco voltaria a conhecer a intimidade com um homem.

Mas ele… ele não era o homem adequado para ela, não? O guerreiro endurecido por mil batalhas a intimidava, era muito feroz. Muito… muito. Mas também era um homem honorável, com domínio de si mesmo e, como não tinha deixado de notar, o bastante atraente para fazer que lhe fraquejassem os joelhos.

De todas as formas, nada disso importava. Beatrix esquecia algo muito importante.

—Já te contei o que disse. Não quer casar-se comigo.

Beatrix pôs uma mão em sua bochecha e lhe dedicou um sorriso indulgente, mais como uma mãe que como uma irmã.

—Está zangado. Dê tempo para pensar. Então verá que não tivestes nada que ver com o engano de nosso pai e fará o correto. Por isso me contaste, por isso sabe dele, acredita que não cumpriria com seu dever?

Não, se Christina o tinha julgado bem. Mas Beatrix não tinha visto seu rosto. Christina estremeceu ao recordá-lo. Jamais havia visto semelhante expressão de rancor.

—Mas e se me equivoca? —E se MacLeod não era o cavalheiro em que ela o tinha convertido, a não ser o guerreio brutal que tinha imaginado antes de conhecê-lo? Pensou.

—É isso o que realmente pensa? —perguntou sua irmã.

Pensava? O que sabia dele? Estranha pergunta para fazer sobre um homem que a tinha conhecido tão intimamente, que tinha despertado sua paixão e a tinha desvirginado com um perverso movimento.

Sabia que o chefe MacLeod falava com autoridade e se conduzia com o orgulho de um rei, que era um guerreiro reputado de habilidade inigualável, que era capaz de mostrar clemência e de salvar a uma criada de uma violação quando outros faziam vista grossa. Tudo o que sabia dele falava de honra.

Olhou Beatrix e sacudiu a cabeça. No fundo sabia que não se equivocara com ele.

—Então, a questão está no que quer você — disse Beatrix tranqüilamente—. Mas acredito que já sabe a resposta.

Christina sentiu uma opressão no peito ao reconhecer que sua irmã tinha razão.

—E se me equivoco? —perguntou com voz rouca.

—O convento sempre estará aí, mas pode ser que esta seja sua única oportunidade de encontrar a felicidade. E se esse homem é seu Lancelot? E se for o homem ao que está destinada a amar?

Christina conseguiu esboçar um sorriso irônico.

—Acreditava que era eu a que deixava voar a imaginação — disse, mas Beatrix não tinha feito mais que expressar em voz alta o que eram seus mais profundos sonhos juvenis. A alternativa, uma vida inteira cheia de nostalgia pelo que poderia ter sido, estendia-se ante ela como um caminho sem fim. Como o interminável tangido dos sinos anunciando a liturgia das horas, das matinais até as completas.

Sua irmã tinha razão. Valia a pena correr o risco. Não seria a primeira noiva que procurava refúgio em um convento para escapar de um matrimônio indesejável. O contrário, entretanto, não era possível. Se tomasse o véu, não haveria volta.

E, para falar a verdade, depois do experimentado essa noite, não sabia se seria possível levar uma vida de castidade. Despertou seu desejo. Já não era inocente. E embora estivesse mal pensar tais coisas, alegrava-se de não ser. Tinha gostado de como a havia tocado o guerreiro. Christina mordeu o lábio. Bom, salvo no momento da penetração. Mas se supunha que a primeira vez devia doer. Ao menos isso tinha ouvido.

Tormod MacLeod a atraía de um modo que jamais teria esperado de um guerreiro tão feroz e temido. Tinha notado no momento em que seus olhares se cruzaram pela primeira vez, como um estranho reconhecimento que tinha transpassado todo seu corpo. E quando a tinha salvado daquele guarda como uma espécie de anjo vingador, tinha parecido como se o destino o tivesse arrancado para ela das páginas de seus livros.

Desejava ao chefe MacLeod, queria ser sua esposa. Mas ele a queria?


Capítulo 06


Tor esperou até a alvorada para descer a escada e preparar seus homens para a partida. Não tinha desfrutado de do benefício do sono, já que tinha ficado insone por completo, para acalmar sua ira, e estava impaciente por sair dali.

Não gostava da sensação que seguia experimentando. Uma hora antes da alvorada a tinha identificado: culpa. Mas, pelos pregos de Cristo, tinha sido enganado. Não tinha nada do que sentir-se culpado.

Não se admirou em descobrir que seu anfitrião o estava esperando.

—Levantaste-te cedo — disse MacDonald—, apesar ouvir que sua noite foi longa.

Ao que parece Fraser não tinha perdido tempo em recorrer ao MacDonald. Embora fosse igual, porque o «rei» das Ilhas não tinha nenhuma autoridade sobre ele.

—Zarparei com a maré — respondeu Tor, fazendo caso omisso à referência velada.

—Então, ainda faltam umas horas — disse MacDonald—. Reúna-se comigo em meus aposentos. Acredito que poderemos resolver este assunto à inteira satisfação de todos.

—Já está resolvido.

O velho guerreiro arqueou uma de suas sobrancelhas cinza.

—Ah, sim?

Tor sustentou o olhar de MacDonald, apertou a mandíbula e o seguiu até o aposento junto ao grande salão. Seu anfitrião merecia uma explicação.

Tor supôs que, convidando-o a seu aposento pessoal em lugar de levá-lo a câmara do conselho, MacDonald tentava evitar a aparência de que ia se celebrar um julgamento. Não lhe surpreendeu ver outros homens sentados já ao redor de uma pequena mesa. Era o mesmo grupo que tinha tentado persuadi-lo de unir-se a Bruce: Lamberton, Campbell, MacSorley e, é obvio, Fraser.

—À luz dos acontecimentos recentes — começou a dizer MacDonald, uma vez sentado—, espero que considere nossa oferta original.

Tor dirigiu um frio olhar desafiador ao Fraser.

—Não ocorreu nada que me faça mudar de opinião.

Fraser teve que esforçar-se por dominar seu gênio.

—Nada, salvo que manchastes a honra de minha filha — lhe espetou.

—É certo? — perguntou Lamberton, franzindo o cenho.

Embora Tor soubesse que devia explicar-se, dadas as circunstâncias, não estava acostumado a que o interrogassem, ou a ter que defender-se. Era uma situação que não gostava no mínimo.

—Desvirginei-a, sim. Entretanto, foi seu pai quem arruinou seu bom nome.

Fraser avermelhou.

—Do que está falando? — perguntou Campbell, olhando Fraser com desconcerto.

Ao ver que Fraser não respondia, Tor o fez por ele.

—Por que não lhe perguntam como chegou sua filha a meu aposento? —Também ele estava interessado em ouvir.

—O que está sugerindo, sir Andrew? — perguntou Lamberton olhando ao Fraser com os olhos entreabertos—. Enviastes sua filha a seu aposento?

Todos os olhos se cravaram no Fraser, e estava claro que não gostou.

—O modo em que minha filha chegou a seu aposento não merece importância. Todo mundo viu que ele a desejava. Eu me limitei a lhe dar a oportunidade de aceitá-la; não lhe obriguei a violá-la.

Outros homens observaram Fraser com diversos graus de repugnância, mas Lamberton o fez com indignação. Era clérigo por convicção, ao contrário dos outros.

—Sua própria filha? Como pudestes usar à moça dessa maneira? A pobrezinha devia estar aterrorizada.

Tor gostou tão pouco ouvir aquilo como Fraser.

—Nada disso importa — replicou Fraser airadamente—. Se fosse um homem de honra, ofereceria a casar-se com ela, aceitaria a aliança e uniria suas forças às nossas. Um cavalheiro…

Tor se inclinou para frente para agarrá-lo pelo pescoço. Estava mais que farto de sir Andrew Fraser.

—Não sou um maldito cavalheiro — disse com seu tom mais ameaçador—. Por isso mesmo querem que dirija sua equipe. Não sigo suas regras nem seus códigos. Faço o que é preciso para ganhar. Matar ou morrer, esse é meu código.

Seguiu sujeitando Fraser um instante mais antes de afastar o de si bruscamente com um grunhido de repugnância.

Só o som dos gorgolejos de Fraser tentando respirar quebrava o silêncio. Tor dizia a verdade, todos sabiam.

—nos deixem a sós — ordenou MacDonald ao resto dos homens ao cabo de um momento.

Fraser parecia disposto a discutir, mas Lamberton o impediu.

—Acredito que já disse o bastante.

Quando no aposento ficaram unicamente os dois, MacDonald estudou Tor com olho crítico e logo esboçou um sorriso sardônico.

—Diz a verdade, é obvio. Embora os habitantes das Terras Baixas não estejam acostumados a falar com tanta força. Recorreram a nós, não só porque não há guerreiros mais ferozes em toda a Cristandade, mas sim porque nosso estilo de brigar é pouco «cavalheiresco». Entretanto, somente porque eles considerem que lutamos como piratas selvagens não quer dizer que o sejamos. Pode ser que não vivamos segundo o código cavalheiresco, mas a honra não está reservada unicamente aos cavalheiros. —MacDonald riu entre dentes—. Inclusive os habitantes das Terras Altas têm uma linha que não devem transpassar, e embora acredite que você não goste, sabe que topastes com a tua.

Tor olhou ao outro homem cara à cara, mas não disse nada, e sua expressão seguiu impenetrável. MacDonald tinha razão, maldita seja. Por muito que lhe desgostasse, não podia escapar à sensação de que tinha uma corda lhe rodeando o pescoço.

Em teoria sabia que fazia bem em rechaçar a aliança, mas isso não aliviava sua consciência. Tinha desvirginado à moça, maldição, e com bastante rudeza, além disso. Ela o merecia, mas por que tinha que ter um aspecto tão ridiculamente vulnerável?

Apertou a mandíbula ao vir de repente ao pensamento o rosto da moça, suplicando, assustada, horrorizada ao dar-se conta de que ele não tinha intenção de casar-se.

Invadiu-lhe uma grande ira e amaldiçoou à moça por pô-lo em uma situação semelhante. Amaldiçoou o uísque e amaldiçoou sua reação irrefletida ao encontrar-se com a jovem entre seus braços.

—Não aprovo os métodos de Fraser — seguiu dizendo MacDonald—, mas tem razão: ninguém lhe obrigou a aceitar à moça.

—Eu não sabia quem era. Pensei que era uma mulher que você enviavara — replicou isso Tor, não como desculpa, mas como explicação.

—Ah, já me parecia - disse MacDonald, assentindo—. E a jovem não disse nada?

Tor negou com a cabeça. Não até que foi muito tarde. Tor se levantou para passear pelo aposento, consciente de que, se permanecia sentado um instante mais, acabaria por romper algo. Perder a compostura não fez mais que aumentar sua fúria. Finalmente deu a volta para olhar de novo a MacDonald.

—Que me crucifiquem se aceitar um matrimônio que não beneficia em nada a meu clã e que se conseguiu com truques e enganos.

—Se negares a casar com a moça, se tornará inimigo de Fraser e sua família.

—E com Bruce também, queres dizer. —Estaria escolhendo lado; quer dizer, o que queria evitar desde o começo.

MacDonald deu de ombros.

—Já conheces os lowlanders. Têm seus códigos. Regras. Desvirginastes à moça e o código de honra o obriga a casar-se com ela. Fim da discussão. — MacDonald se inclinou para frente—. Mas acredito que tenho a solução perfeita para resolver nossos problemas.

—Escuto-te — disse Tor, reticente, cruzando os braços.

—Fraser mostrou um zelo excessivo, sem dúvida, mas todos queremos o mesmo: que treines e dirijas o grupo de guerreiros de elite. O que sugiro é uma solução intermediaria. Treines aos homens durante alguns meses; já encontraremos a quem os dirija depois. Podes fazê-lo em segredo e ninguém terá que inteirar-se de sua participação. Ao exterior seguirás sendo neutro e não atrairás assim a ira nem o escrutínio do rei Eduardo nem de MacDougall.

—A menos que alguém descubra o que estou fazendo. Por que ia querer me arriscar?

—Porque beneficiará a seu clã — respondeu MacDonald, sorrindo—. Se treinares a esses homens, eu me ocuparei de aplacar ao Nicolson.

Tor ficou imóvel. MacDonald tinha conseguido captar toda sua atenção.

—Como?

—Meu filho mais jovem necessita uma esposa. Encarregarei-me de que se case com a segunda filha de Nicolson.

Tor arqueou uma sobrancelha. MacDonald devia necessitar seus serviços mais do que suspeitava, se estava disposto a formar uma aliança tão importante com Nicolson.

Funcionaria. Nicolson teria que aceitar. Tor tinha ido à convocatória de MacDonald para evitar, precisamente, a guerra com o Nicolson e MacDonald estava oferecendo o modo de obtê-lo. Mas não bastava, com isso somente conseguiria mudar um problema por outro.

—O que sugeres só resolve uma parte do problema. Se me casar com a filha de Fraser, darei a impressão de que me alio com sua família… e com o Bruce.

—Em realidade — disse MacDonald, sorrindo—, graças à traição de Fraser, será justo o contrário.

—Como?

—Já correu o rumor de que violastes à moça. Quando casares com ela, não farão mais que confirmar esse rumor. Compreensivelmente Fraser se mostrará furioso e parecerá seu inimigo. O que em realidade não estará longe da verdade, suponho. —MacDonald riu entre dentes—. Não parecerá uma aliança e ninguém suspeitará que trabalhas para Bruce.

Dessa forma manteria a aparência de neutralidade.

—Não me conhecem como violador de donzelas inocentes — protestou Tor.

MacDonald voltou a rir.

—Faremos correr a voz de que apaixonastes perdidamente pela moça e que, ao lhe negar o pai sua mão, decidiram resolvê-lo por sua conta. —Os olhos de MacDonald brilhavam de regozijo ao adivinhar o pouco que devia gostar da idéia de aparecer como um parvo apaixonado—. Não tem feito seu irmão recentemente o mesmo?

—Ninguém que me conheça acreditará algo assim — disse Tor, fazendo uma careta.

—A moça é uma beleza e qualquer homem pode cometer uma estupidez por amor.

«Eu não», pensou Tor, mas se pudesse suportar a humilhação, a situação era bastante ridícula para que todo mundo tragasse a história.

—Nunca pensei que ouviria semelhantes banalidades de sua boca — disse.

Um brilho doloroso escureceu o rosto de MacDonald.

—Como hei dito, qualquer homem — repetiu, e logo deu de ombros para dissipar a estranha tristeza que tinha aparecido em sua voz—. Bem, o que me dizem? Eu me encarregarei do Nicolson e lhe darei a paz que desejas, se aceitares treinar ao grupo de homens. Ao cabo de três meses, podem deixá-lo se quiseres. Deste modo, todo mundo estará contente.

Sobretudo Fraser. Apesar dos evidentes benefícios da oferta, o instinto de Tor se negava a aceitar a vitória de Fraser. Tor se inclinou para trás no assento e observou ao outro homem atentamente.

—A aliança não é necessária. Casar-me com a moça não tem por que ser parte do acordo. Conseguirão o que desejas, que eu treine aos homens, simplesmente evitando a guerra com o Nicolson.

—Isso poderia ter sido certo até ontem à noite — disse MacDonald. Tor esperou que continuasse, embora já soubesse o que ia dizer—. Mas desvirginastes à moça e as circunstâncias não importam. Fraser encontrará a muitos outros dispostos a afirmar que a honra o obriga a casar com ela. Bruce necessita o apoio de Fraser e por isso é preciso que fique contente. A aliança deve formar parte do acordo.

Tor pensou que devia negar-se, que a aliança não faria mais que causar problemas. «Rechaça-a», disse-se.

Mas, maldita seja, não podia fazê-lo.

MacDonald tinha feito uma oferta que não podia rechaçar… mesmo assim, não significava que não pudesse tirar proveito.

—Chamem a seus cães.

—Cães? —perguntou MacDonald franzindo o cenho com perplexidade.

—A seus parentes piratas, os MacRuairi.

—Ah… —Um amplo sorriso se desenhou lentamente no rosto de MacDonald.

—Parece divertido? —perguntou Tor.

—Não perguntastes quem serão quão guerreiros que formarão a guarda secreta.

MacDonald recitou uma lista de dez nomes. Tor franziu o cenho para ouvir alguns deles, mas quando MacDonald chegou ao último, devolveu-lhe um sorriso arteiro. Lachlan MacRuairi.

—por que não havia dito desde o começo? —Somente por ter ao MacRuairi sob seu mando, quase merecia a pena aceitar a aliança—. E qual é sua habilidade especial, cortar gargantas?

—Um pouco parecido — disse MacDonald entre gargalhadas.

—E confiam nele? —A lealdade do MacRuairi era duvidosa quando menos, ou inexistente—. Como podem estar seguros de que não irá com o conto a Eduardo ou ao MacDougall na primeira ocasião?

—Não o fará — lhe assegurou MacDonald—. Terás que confiar em mim.

Era pedir muito, conhecendo o MacRuairi, mas ao cabo de uma longa pausa, Tor assentiu.

—Então aceitas?

Tor pensou um momento. Embora tudo o que lhe havia dito MacDonald tinha sentido, seguia lhe inquietando as bodas com a filha de Fraser. Claro que também preocupava o destino incerto em que a deixaria se não se casava com ela.

—Sim, algo serve. Mas pode ser que o que me pedem seja impossível. Os homens dessa lista são mais inimigos que amigos.

Demônios, inclusive havia um maldito inglês entre eles.

—Eles seguirão — disse MacDonald, convencido—. Sua reputação é muito conhecida, inclusive nas fronteiras. Os homens fazem fila para ter a oportunidade de lutar com você, embora saibam que somente uns poucos entre os mais fortes sobreviverão. Como o chamam… condenação?

Tor assentiu; divertia-lhe recordar o nome que davam ao penoso período de duas semanas de treinamento que todos seus homens suportavam… ou não, a maioria das vezes.

—O que é isso que dizem? Afirmam que és um homem capaz de converter a um grupo de meninos de dez anos em aguerridos lutadores. —Ele sorriu diante da brincadeira—. Por que acredita que lhe esperávamos com tanto afã?

Tor torceu o nariz. Com meninos de dez anos seria mais fácil que com aquela equipe.

—Eu sei treinar soldados, não fazer milagres.

MacDonald soltou uma gargalhada e lhe deu uma palmada nas costas.

—Sempre há uma primeira vez. —levantou-se, foi até o aparador, e serviu uma taça de uisge-beatha para cada um. Deu uma ao Tor e levantou a sua—. Por novas alianças.

Tor fez o próprio e bebeu. Mas aquilo não mitigou o calafrio que lhe percorreu a nuca. Confiava não terminar lamentando sua decisão, embora valesse a pena correr esse risco para livrar-se dos Nicolson e dos MacRuairi. Sabia muito bem o que estava em jogo se sua aliança com o Bruce viesse a tona.

Tinha comprado a paz, mas a que preço?


Capítulo 07


Tinham chamado Christina a comparecer no salão de MacDonald antes da refeição do meio-dia, sem saber que destino esperava. Por isso, quando chegou, parecia um molho de nervos.

Alisou com ansiedade as inexistentes enruga da saia de seu cote-hardie de seda azul safira em frente à porta, inspirou profundamente e chamou. Convidaram-na a passar e ela jogou os ombros para trás, tentando manter a cabeça alta, e entrou no aposento.

Sua fanfarronice desapareceu imediatamente e seus nervos, duros, esticaram-se um pouco mais. A sala era pequena e escura. Mal parecia haver espaço para acolher a um homem, e menos ainda a quatro guerreiros descomunais e a um bispo, reunidos ao redor de uma mesa, todos observando-a fixamente. Christina olhou a seu pai, mas sua expressão tenebrosa e sombria não lhe deu a menor pista sobre o que ia acontecer.

Conseguiu não arrastar os pés nem tremer, mas era impossível não sentir-se intimidada. Tinha essa inconfundível sensação da menina a quem conduzem diante seu pai para ser castigada; mas em lugar de enfrentar a um juiz, Christina tinha topado com um tribunal. E não se tratava de um castigo menor por uma pequena falta, mas sim de seu futuro, que pendia por um fio.

Além de seu pai, reconheceu ao MacDonald, seu tenente com aspecto de pirata, ao bispo, e, é obvio, ao chefe MacLeod. Ignorava se sua presença era bom ou mau sinal.

Embora se esforçasse evitar seu olhar, notou que ele a observava fixamente e aquilo a incomodou. Não estava acostumada a ser vaidosa, mas naquele momento, consciente de que tinha um aspecto horrível, sentiu uma pontada de vaidade. Embora nessa manhã tivesse submerso o rosto em água fria, os estragos das lágrimas lhe tinham deixado o rosto inchado, os olhos avermelhados e a pele amarelada.

Ser consciente de que não tinha bom aspecto não lhe proporcionava precisamente a confiança que tanto necessitava. O silêncio sepulcral da sala tampouco ajudava em nada.

Não sabia onde olhar, e manteve os olhos fixos nos pés.

Foi MacDonald quem falou primeiro. Estava sentado no flanco direito da longa mesa, com Lamberton a seu lado e um gigante loiro atrás, lhe guardando as costas. Christina pensou que era uma sorte que o aposento não fosse suficientemente espaçoso para dar capacidade a nenhuma outra dos fornidos escoltas dos chefes da ilha. Tanto a guarda pessoal de MacDonald como a do MacLeod se compunham de uma dúzia de homens no mínimo. Seu pai e este último estavam sentados aos dois extremos opostos da mesa, deixando entre ambos a maior distancia possível, como era de esperar.

—Sem dúvida é consciente de por que está aqui — disse ele.

Ela assentiu; sabia que tinha chegado o momento, e o coração lhe deu um tombo ante a perspectiva. Enquanto esperava, sentiu-se incapaz de respirar e muito menos de falar.

—Seu pai e MacLeod chegaram a um acordo e, dadas as circunstâncias, acreditam que o melhor é que o compromisso seja breve.

Compromisso… Conteve a respiração. Ele tinha aceitado casar-se com ela. A onda de alívio que lhe sobreveio foi surpreendentemente intensa; desejava aquilo mais do que pensava.

Beatrix tinha razão. E ela mesma também tinha razão a respeito dele. A honra tinha vencido, inclusive sobre a traição.

Possivelmente por trás dessa fachada fria pulsava o coração de um cavalheiro galante. E possivelmente não sentia tanta indiferença por ela como aparentava.

O coração lhe deu um tombo. Mas então se atreveu a olhar e sua expressão deteve em seco sua imaginação. Os cavalheiros de seus livros transbordavam encanto e devoção por sua dama, mas não havia nada de encantado naquele senhor da guerra bárbaro e feroz, e em seu penetrante olhar azul não parecia haver nenhuma devoção certamente. Sua expressão era tão dura e inescrutável como de costume.

Era impossível decifrar o que pensava sobre esse matrimônio. Se Christina esperava receber um pequeno sinal de ânimo, não seria dele.

Abatida, desviou o olhar para MacDonald.

—Entendo — disse confusa.

Foi o bispo quem lhe lançou um olhar de ânimo, e ela se agarrou como a uma âncora a aquela leve amostra de amabilidade.

—Eu me ocuparei das dispensas necessárias — disse ele—, já que não queremos esperar mais de três semanas para ler os proclamas.

—Uma vez assinados os contratos, a cerimônia pode celebrar-se imediatamente - acrescentou MacDonald.

—Amanhã — disse bruscamente o chefe MacLeod. Era a primeira palavra que tinha pronunciado desde que entrou no salão—. Devo voltar para Dunvegan o quanto antes possível. Já o atrasei muito. Partiremos assim que for celebrada a cerimônia.

Ela empalideceu.

—Amanhã? Mas, eu… —Lhe quebrou a voz. Retorceu as mãos. Todo aquilo estava acontecendo muito depressa. Muito depressa.

—Tudo ficou acordado — disse seu pai com rudeza, claramente irritado por sua reação—. Você não tem que fazer nada.

Lamberton lhe lançou um olhar cáustico e logo se inclinou para frente na cadeira.

—O que tens, filha? Apesar do que se decidiu aqui hoje, fostes manipulada em todo este assunto e eu não desejo que te case obrigada.

—Ela fará o que lhe digam — disse seu pai, irritado.

—Basta — bramou MacLeod—. Deixem que fale a moça. É capaz de responder por si mesma.

Christina não sabia se devia sentir-se agradecida ou não. Ele tinha um olhar indecifrável, de maneira que centrou sua atenção no rosto amável do bispo. Jamais tinha pensado que teria voz no assunto, e ante aquela oportunidade inesperada lhe ocorreu uma idéia temerária. Um modo de proteger-se se algo saía mau.

Tragou saliva.

—Sim, casarei-me com ele.

O alívio dos homens foi evidente.

Ela inspirou com força e se dirigiu ao chefe MacLeod.

—Mas, em troca, pedirei-lhe uma coisa.

Tor assentiu, indicando que continuasse.

Sem atrever-se nem a respirar por medo de perder a coragem, Christina espetou:

—Pediria-lhe que se alguma vez o desejar, permita me retirar a um convento.

A sala sumiu em um silêncio de estupor. A ela parou o coração; perguntou-se se não teria cometido um tremendo engano. A honra dos homens era algo muito delicado. Acabava de ferir o seu?

O olhar de Tor emitiu um brilho de surpresa… e possivelmente algo mais. Admiração. Ela se deu conta de que, com seu pequeno ato de rebeldia, tinha-lhe impressionado sem pretender.

—Que tolices diz, moça — amaldiçoou seu pai—. Claro que não te permitirá algo assim.

O chefe MacLeod não lhe fez o menor caso.

—Se alguma vez desejam partir, ninguém lhe deterá. Dou-lhe minha palavra, e assim que cheguemos informarei a meus homens disso.

Ele tinha aceitado. Não podia acreditar. A verdade era que não tinha idéia que o faria, e certamente não com tanta prontidão. Dava conta sequer do presente que lhe tinha feito? Era uma pequena amostra de respeito. A prova de que ela não era uma posse.

Olharam-se fixamente, e Christina soube que Tormod tinha entendido. Algo aconteceu entre eles. Algo que fez que a esperança florescesse em seu peito. Era a mesma conexão intensa que havia sentido com antecedência. E percebeu que, além de sua fachada gélida, ele também o sentia.

—Obrigada — disse, sem afastar o olhar.

Sustentou o olhar um instante mais, assentiu, e logo deu a volta sem mais. Frio. Distante. Embora Christina confiasse em que havia algo mais.

Seu futuro havia sido decidido.

Agora somente tinha que pensar em Beatrix.

*

Tor passou o resto do dia encerrado com o MacDonald e Lamberton, ultimando os detalhes para o treinamento dos homens. A ausência de seu irmão fazia impensável que ele abandonasse Skye; ao menos até que estivesse seguro de que os ataques tinham cessado. Não deixaria seu clã desprotegido. Portanto, acordou-se que os guerreiros fossem ao Skye e treinassem em uma torre abandonada perto do castelo.

O segredo era crucial, sua pretensa neutralidade dependia disso. De modo que somente poucos homens de sua confiança saberiam disso.

Fraser informou que sua filha não sabia nada das razões que havia por trás de sua aliança, e Tor não viu motivos para modificar tal coisa. Sua missão para Bruce não tinha nada a ver com ela; estaria mais segura se permanecesse na ignorância. Ele não confiava em ninguém, e muito menos em uma mulher a não ser que fosse necessário. A traição que tinha causado a morte de seus pais lhe tinha ensinado a importância de tomar suas próprias decisões. O destino de seu clã descansava sobre seus ombros, única e exclusivamente.

Salvo pela necessidade de segredo, essa missão seria como qualquer outra instrução que tinha realizado muitas outras vezes. Embora tivesse que admitir que ansiasse o desafio acrescentado de treinar a uma equipe de guerreiros de elite, embora divergente, como aquele.

Três meses era um preço pequeno em troca da paz. Passado esse tempo o grupo iria, e com ele o perigo de que precisasse de sua implicação na revolta de Bruce. Ele teria completado sua parte do trato. Em troca teria se liberado de Nicolson, teria submetido ao MacRuairi e teria se aliado com uma família, algo que podia utilizar ou repudiar conforme lhe conviesse. Se Bruce triunfasse, a aliança com os Fraser seria benéfica, mas se a rebelião fracassasse, ele contava com certo amparo apoiado em uma suposta inimizade.

A fim de contas não era um mau acordo; salvo pelas traiçoeiras circunstâncias nas que se forjou. Não suportava pensar que Fraser tinha conseguido o que queria. Que lhe tivessem manipulado era um gole amargo. Teria matado Fraser pelo que tinha feito. Sua raiva para a mulher que seria sua esposa não era tão intensa, mas tampouco podia ignorar seu papel no que tinha acontecido.

Uma vez que sua ira inicial se esfriou, começou a suspeitar que a tivesse obrigado. O medo que havia em seus olhos quando olhou a seu pai não tinha passado despercebido… nem a traição. Esperaria para ouvir sua versão para julgá-la, mas lhe informaria que ele não tolerava nenhum tipo de engano.

Seu aborrecimento se mitigou também ao saber que ela tinha sofrido por causa de seus atos. Fora um ardil ou não, a honra não lhe permitia prescindir por completo do fato de que lhe tinha arrebatado a virgindade, com uma rudeza apropriada com uma rameira experiente, não com uma donzela inocente. Aquele matrimônio serviria ao menos para tranqüilizar sua consciência a este respeito.

Embora ele não desejasse essa aliança, esforçaria-se ao máximo. Mas não era capaz de livrar-se dessa voz persistente, que dizia que tinha conseguido com o trato mais do que queria. Havia algo em Christina Fraser que lhe punha nervoso. O desejo que sentia por ela era… muito intenso.

Essa pequena prova dela que tinha desfrutado tinha estimulado seu apetite. Pela forma como ela tinha reagido, Christina era tão apaixonada como aparentava. Tor ardia de desejo ao recordar o tempo que tinha permanecido ante ele no aposento. Quando pensava nela em sua cama…

Dizer que estava espectador era pouco.

O intenso desejo que sentia por ela supunha uma distração, mas isso não lhe preocupava. Ele não era um moço inexperiente. Sabia como controlar seus baixos instintos e manter a luxúria em seu lugar: o dormitório.

Sem dúvida provocava uma reação tão forte unicamente porque estava fora de seu alcance. Quando se convertesse em sua esposa poderia tê-la em sua cama sempre que desejasse. Já não seria a fruta de uma árvore proibida. Uma vez saciada, sua luxúria se moderaria, e ambos entrariam em uma confortável existência comum como a que tinha compartilhado com sua primeira esposa. Ele teria seus deveres e ela os seus, que coincidiriam poucas vezes.

Ela obteria o amparo de seu castelo e seu sobrenome, vestidos bonitos, uma fortaleza para governar, mantimentos para comer, uma cama quente onde dormir e talvez filhos que a manteriam ocupada. Tudo o que uma mulher podia desejar.

Além disso, qualquer escrúpulo que pudesse sentir sobre a garota resultava insignificante à luz dos benefícios imediatos para seu clã.

Apesar de tudo era tão somente uma moça. Uma moça miúda. Que dano podia lhe ocasionar?

Na manhã seguinte despertou cedo, ansioso por deixar para trás aquele dia. Agora que tinha decidido participar da aliança desejava deixar tudo resolvido, além das formalidades que implicava, para centrar-se na tarefa que tinha entre mãos. Quanto antes terminassem, antes poderia voltar para Dunvegan e começar a preparar-se para treinar aos homens. Precisava estar muito ocupado para não pensar em nada nem em ninguém mais.

Como seu escrivão não tinha o acompanhado, encarregou a um de MacDonald que revisasse o contrato de matrimônio. MacDonald e Lamberton não tinham exagerado. O dote de Christina Fraser era generoso. Tor acabava de ganhar uma considerável parte de terra de Stirlingshire e outro menor ao longo da fronteira, caso o rei Eduardo não o confiscasse depois do que Bruce e sua corte tinham planejado.

Franziu o cenho ao ver Fraser entrar sozinho no aposento. Embora Christina não fosse requerida para assinar o contrato, ele tinha assumido que estaria presente.

Não a tinha visto da reunião de na manhã anterior no salão. Não era que estivesse ansioso por vê-la; somente queria assegurar-se de que seu pai não a tinha castigado por sua «condição».

A demonstração de caráter que ela tinha feito na sala tinha sido uma surpresa inesperada. Revelava um caráter forte e valentia. Possivelmente naquela garota havia mais do que tinha pensado. Talvez tivesse confundido sua inocência com acanhamento.

Tor imaginava o que tinha motivado sua audaz petição, e isso lhe enfurecia. Christina aprenderia mal ele era um homem muito diferente de seu pai. Acreditava que aceitar essa petição era um pequeno preço em troca de aliviar seu medo, sobre tudo porque estava seguro de que nunca se daria essa situação.

Ela nunca teria motivos para lhe abandonar.

Seria sua esposa. Não importava como tinha acontecido, ou se ele tinha querido, Tor protegia o que era dele. Sempre.

—Onde está sua filha? —perguntou.

Fraser moveu a mão com desprezo e se sentou à mesa para assinar os contratos.

—Preparando-se para a cerimônia. Mulheres — disse com desdém—. Não têm cabeça para os negócios. Estava muito ocupada arrumando o cabelo, e disse que já se reuniria conosco na capela.

Algo naquela afirmação lhe incomodou. Aquele displicente comentário não lhe parecia apropriado para ela. Mas em realidade ele não a conhecia.

Uma hora depois, quando Christina entrou na capela e a viu de pé ante o altar, decidiu que a espera havia valido a pena.

Deixou-lhe sem respiração.

Tor deteve seus passos um momento, embevecendo-se da encantadora visão que tinha diante. Um diadema de ouro adornado de jóias coroava sua cabeça. Levava a cabeleira negra trançada e recolhida em dois coques junto às têmporas, sustentados com uma rede para cabelo dourada. Um véu dourado e transparente cobria a parte de atrás da cabeça e chegava até a cintura.

Ele não estava acostumado a emprestar muita atenção aos vestidos das mulheres, mas esse era delicioso. O corpete apertado e as mangas do cote-hardie abraçavam suas curvas femininas nos lugares adequados. Christina tinha esse tipo de curvas exuberantes que eram criadas só para uma coisa. Seios grandes, cintura estreita, quadris bem formados, e um traseiro redondo e tentador que um homem podia sujeitar com as mãos. Sua mente tinha imaginado coisas bastante más, mas agora seu corpo enfrentava também com lembranças muito viscerais.

Deus, realmente a havia tocado desse modo? E ela se derreteu e se moveu junto a seu corpo? Esfregou o traseiro contra seu membro?

Diabos.

Irritado por sua debilidade e consciente de que estava olhando-a fixamente, Tor recuperou a impassibilidade e avançou pelo corredor central da capela. Enquanto se aproximava, entretanto, sua contenção fraquejou. Fixou-se que o tom verde escuro do vestido de Christina ressaltava o tom marfim de sua pele e os pontinhos esverdeados de seus olhos castanhos e luminosos. Olhos que tinham captado toda sua força e o tinham atraído. Não era capaz de voltar, embora quisesse.

Os restos das lágrimas de Christina tinham desaparecido por completo e o olhar que lhe devolveu, embora vacilante, era tão exótico e tentador como recordava. A luxúria lhe golpeou, como um murro no estômago. Esses olhos. Essa boca sensual. Punha em perigo a prudência de um homem. Inclusive naquele recinto sagrado, seu corpo sentia o poderoso puxão do pecado carnal.


«É minha.» Uma onda de paixão primitiva avivou suas vísceras.

Estava impaciente por possuí-la. Intensa e rudemente. Uma e outra vez, até purgar aquela debilidade interior.

—Onde está sua irmã? —perguntou Fraser, interrompendo seus ardentes pensamentos.

Perturbado por sua reação, Tor sentiu o estranho impulso de agradecer a seu pai aquela interrupção. Que diabo passava? Não era a primeira vez que via uma mulher formosa. Embora não podia recordar ter examinado a nenhuma tão atentamente.

Tor se fixou pela primeira vez em que a mulher que Christina tinha ao lado não era sua irmã, a não ser uma criada.

—Não se encontrava bem — respondeu ela sem alterar-se—. Irá ao embarcador para se despedir.

Se ele não estivesse observando desde tão perto, não teria notado a leve piscada de seu olhar. Estava mentindo.

Fraser entreabriu os olhos. Já fosse porque captou o gesto, ou por qualquer outra razão, seu pai também sabia.

—Vão buscá-la — ordenou que—. Deveria estar aqui.

Tor se aproximou instintivamente a Christina.

—A garota está doente, deixem em paz. —E disse a Lamberton—: A maré não esperará.

Tomou a mão dela, colocou-a sobre a sua e aqueles delicados dedos desapareceram na dobra de sua palma enorme e endurecida pela espada.

—Procedamos.

MacSorley sorriu, com um brilho de astúcia nos olhos.

—Mais vale que apressem, bispo. Acredito que MacLeod está ansioso por levar a sua nova esposa pra casa. —Contemplou a Christina com expressão agradada. Muito agradada, pensou Tor entreabrindo os olhos—. Não lhe culpo, milady; hoje sua beleza é incomparável.

Christina se ruborizou de forma favorecedora, mostrando um prazer excessivo ante aquele absurdo completo.

«Deveria tê-lo dito eu», concluiu Tor, irritado. Mas a garota devia saber que possuía uma torturante beleza… ou não? Reprimiu o peculiar impulso de golpear contra o chão esse sorridente muito encantado MacSorley.

A ironia no olhar do tenente se intensificou, como se soubesse exatamente o que Tor estava pensando.

Mas foi Tor quem riu por último e lançou a MacSorley um olhar que prometia um castigo. Dispunha de três meses para vingar-se, e jurou que aproveitaria ao máximo todos e cada um dos dias. O tenente de MacDonald perderia essa arrogância a base de sangue, suor e dor. Em grandes quantidades.

MacSorley também sabia. Alguém com fama de ser o melhor navegante em uma terra de homens que descendiam de piratas jamais expressaria temor, mas aquela careta zombadora desapareceu completamente de seu rosto.

*

Christina não entendeu aquele intercâmbio silencioso entre os dois homens, mas agradeceu a pausa.

Voluntariamente ou não, o chefe MacLeod havia ido a seu resgate, impedindo que seu pai enviasse alguém a procurar Beatrix e averiguasse que se passara. Sua irmã tinha embarcado ao amanhecer, mas Christina queria lhe proporcionar o máximo de tempo possível para fugir. Beatrix estava mais a salvo cada minuto que passava.

Tragou a queimação que sentia na garganta. Tinha sido horrível dizer adeus a Beatrix naquela manhã, sem saber se voltaria a vê-la. Mas teve que fazê-lo.

Agradeceu a cálida e persistente pressão dos dedos firmes do chefe MacLeod; davam-lhe uma dose de valentia que era muito necessária.

Tor baixou o olhar para ela.

—Está preparada?

Ela espiou o fundo de seus penetrantes olhos azuis claros, e por um momento acreditou detectar uma faísca de interesse, ou de ternura. Mas aquilo desapareceu tão depressa que perguntou se simplesmente tinha imaginado.

—Sim — assentiu.

«Isso espero.»

Ambos se voltaram para o bispo. A breve cerimônia passou em um suspiro. Mas durante a mesma, Christina foi consciente do poder do homem que tinha ao lado: como um farol imutável em meio da névoa, como uma rocha em um mar tumultuoso. De seu ardor. Era como se seu aroma almiscarado, varonil, envolvesse-a em um abraço sombrio. Media uns trinta centímetros mais que ela, seus perfilados músculos de aço deviam pesar no mínimo o dobro e tinha o aspecto de um poderoso senhor da guerra até no mínimo detalhe. Mas em lugar de sentir-se ameaçada, ela se sentia segura. Protegida. Com ele ao seu lado, ninguém ousaria lhe fazer dano.

Pode ser que não fosse o cavalheiro galante e encantador com o que tinha sonhado; como o diabólico escudeiro de MacDonald, pensou com uma risadinha. Este tinha um sorriso em seu rosto ameaçador que expressava pura malícia. Não, o chefe MacLeod era muito orgulhoso e imponente para isso. Mas Christina não duvidava de que seu coração era absolutamente tão honorável e cortês como o do próprio Lancelot.

E era arrebatadoramente bonito. Christina se ruborizou. Dava conta de como lhe tinha olhado quando ele tinha entrado na capela. Não parecia real. Parecia um dourado deus do sol. A temível expressão e o poder de seu corpo de lutador freqüentemente provocavam que sua beleza ficasse em um segundo plano, mas nesse dia, não.

Ambos entrecruzaram suas mãos direitas, atando uma fita de lã ao redor dos pulsos, e repetiram os votos. Era do mesmo desenho azul pálido que levava no tecido escocês que lhe cobria os ombros, atada com um grande broche de prata. Felizmente tinha deixado sua enorme espada na porta, mas mesmo no dia de suas bodas usava seu capote de guerra. O cotun tachonado brilhava como uma couraça sob os raios do sol que entravam pela janela superior da nave, a mesma luz que se refletia nos cabelos dourados e cintilantes de sua cabeleira sedosa. Umas mechas de bronze se curvavam ligeiramente ao redor de sua orelha, e ela pensou que o tinha lavado, e ansiou aproximar-se e enrolar no dedo.

Quando o bispo entregou a Tor a taça de vinho, envergonhou-se de tais pensamentos. Ele deu um gole e a passou a ela.

Tinha terminado tudo. Salvo que…

Tor se inclinou e aproximou a boca aos seus lábios.

Instintivamente, Christina deu um suspiro. Ele deve tê-la ouvido porque procurou seu olhar com os olhos. Duvidou um momento e seus olhos azuis claros se escureceram. Ela captou o leve matiz mentolado de seu fôlego e uma suave calidez alagou sua bochecha. Notou uma ardência na pele, familiar, espectador.

Sentiu um palpite na garganta. Seria sua boca tão suave como parecia?

Ela fechou os olhos e separou os lábios, enquanto esperava sentir a pressão dos dele na boca. Seu primeiro beijo.

Mas aquele ligeiro roce de sua boca dificilmente podia considerar como um beijo. Seus lábios apenas se tocaram. Foi rápido, casto, superficial.

Christina abriu os olhos, mas ele já dera a volta.

Invadiu-a o desânimo. Não sabia por que, mas tinha esperado… mais. Não esse gesto formal e impaciente que tinha dado a impressão de que Tor desejava que aquilo terminasse.

E então terminou, e ela estava casada.

Enquanto aceitava as felicitações dos homens que se reuniram para presenciar a cerimônia, não pôde evitar sentir uma pontada de tristeza. Quando tinha sonhado com esse dia, sempre tinha pensado que seria diferente. Romântico. Não breve e formal. Ela tinha sonhado com o amor.

Mas o que esperava, dadas as circunstâncias? Seu noivado tinha nascido de uma traição. Não era exatamente um começo muito promissor.

Recordou a premonição de Beatrix: «Um matrimônio assim estaria condenado». Mas antes que pudesse afastar o fantasma da tristeza, um dos soldados da guarda de seu pai chegou correndo a seu lado, apagando de sua mente qualquer outro pensamento.

—Que se foi? —disse seu pai em voz alta—. O que quer dizer com que se foi?

Problemas! Já não havia tempo. Inconscientemente, Christina procurou seu marido com o olhar, mas ele estava entretido em uma conversa com Lamberton e MacDonald na parte de atrás da capela, junto a outros guardas que formavam seu numeroso séquito.

Os soldados sussurraram algo a seu pai que não pôde ouvir.

—Chegarei ao fundo disto — disse seu pai, aproximando-se dela. Agarrou-a pelo cotovelo e a obrigou a dar a volta para ficar frente a ele—. Sua irmã desapareceu. Você sabe algo disto?

Ela sentiu que a cobria uma onda de medo familiar, mas se esforçou em agüentar o olhar.

—Beatrix se foi — disse em voz baixa.

—Foi — Ele empalideceu de ira e lhe cravou os dedos no braço—. O que quer dizer? Aonde foi?

—A um lugar seguro.

Os olhos negros dele se obscureceram de raiva. Levantou a mão.

—Ou me diz onde foi ou lhe…

De repente seu marido apareceu a seu lado. Segurou o braço de Andrew Fraser e o dobrou às costas com tanta força que se ouviu um estalo horrível. Fraser uivou de dor.

—Volte tocá-la e vos mato. Agora sua filha me pertence. Entendido?

Com esse tom letal era impossível que voltasse a tocá-la. Tor olhava ao Fraser como se morresse de vontade de demonstrar.

Christina lhe olhou sobressaltada, atônita ante a ferocidade com que a tinha defendido. Ninguém nunca tinha falado em seu favor desse modo. Sua reação tinha sido tão intensa que perguntou se talvez…

Era possível que se importasse?

Seu pai assentiu sem palavras, com o rosto desfigurado pela dor. Tor afastou com um grunhido. Seu pai segurou o braço, que pendurava de forma antinatural do ombro.

—Minha filha Beatrix — disse, com a voz constrangida de tortura—. Se foi, e ela sabe algo disso.

Tor se voltou para Christina esperando uma explicação, igual ao resto dos homens.

A emoção causada por sua feroz defesa desapareceu. Ela tragou saliva, nervosa, sabendo que o futuro de sua irmã podia depender perfeitamente dos próximos minutos. Seriam compassivos esses homens… ou se alinhariam com seu pai? Tentariam obrigá-la a dizer aonde tinha ido Beatrix?

Mordeu o lábio, consciente de que devia ter fingido ignorância.

—Beatrix está em um lugar seguro. Isso é tudo o que posso dizer.

—Você teve algo a ver com isso? —perguntou Tor.

Seu tom tranqüilo impedia de deduzir o que estava pensando; Christina suspeitou que no futuro tivesse que enfrentar freqüentemente a isso. Castigaria-a por desafiar a seu pai e por ajudar a sua irmã a fugir? Inspirou, fez uma provisão de confiança e assentiu.

Tor franziu o cenho e, por um momento, ela ficou tensa.

—foi sozinha? —perguntou ele.

Não parecia zangado e Christina assentiu de novo com cautela.

Seu pai o interrompeu.

—É uma estúpida. Não te dá conta do perigo que corre? Uma beleza inocente como sua irmã? É como mandar um cordeiro a uma manada de lobos. Se sofrer algum percalço, será tua culpa.

—Tem razão, moça — corroborou MacDonald em um tom muito menos beligerante—. As Terras Altas não é lugar para uma mulher sozinha. Poderia estar em perigo.

Em perigo…

Não! Christina se negou a deixar que a assustassem. Beatrix não estava sozinha. Havia muitas outras mulheres que viajavam no navio, e também um frade. Não lhe aconteceria nada. Se o vento era favorável, chegaria antes do anoitecer.

Deu uma olhada a seu marido; estava-a olhando com uma curiosa expressão no rosto.

—Você esteve consciente do perigo? —perguntou-lhe.

Ela assentiu, suplicando compreensão.

—Não tínhamos alternativa. Beatrix… —retorceu as mãos, procurando o modo de explicar-se—. Ela não é muito forte sabe? Para ela ficar era muito mais perigoso. Essa pode ter sido sua única oportunidade de escapar.

Seu marido fez um gesto brusco de assentimento, como se lhe satisfizera a explicação.

Não podia acreditar. Ele não pensava em exigir que dissesse o que sabia. Essa amostra de confiança era mais do que tinha sonhado.

Mas seu júbilo durou pouco.

—Como te atreve! —bramou seu pai. Parecia que tivesse vontade de voltar a agarrá-la, embora tivesse o ombro deslocado—. Essa decisão não corresponde a ti. —voltou-se para seu guarda e disse—: Não pode ter ido muito longe. Comprovem os embarcadouros dos que tenha saído algum navio e perguntem aos vigilantes do castelo se viram sair a alguém. Ela não conhece ninguém na área… —De repente se calou. Um brilho de aço apareceu em seu olhar. Voltou-se para Lamberton—. Onde está o convento mais próximo?

Christina empalideceu. Deus santo. Como podia ter deduzido tão rapidamente? Conhecia Beatrix mais do que pensava. Protegeriam as monjas a sua irmã contra um pai irado que exigia sua volta?

Lamberton franziu o cenho.

—Têm algum motivo para acreditar que ela teria procurado amparo na igreja?

—Sim - disse seu pai—. Essa menina boba pensava tomar o hábito. Uma ideia mais ridícula; eu poderia conseguir um reino com sua beleza. —Ao notar que o bispo repudiava o gesto, acrescentou a toda pressa—: É só o capricho de uma menina tola, nada mais.

—Não é um capricho — replicou Christina com veemência, ofendida pela mentira paterna—. Não sonha nada mais que com isso. —dirigiu-se a Lamberton, recordando a amabilidade que tinha demonstrado. Era um bispo, um eclesiástico, seguro que compreenderia a chamada espiritual—. Minha irmã tem algo especial. Algo puro e santo. Sempre desejou dedicar sua vida a Deus. O matrimônio… —O pranto lhe nublou os olhos—. A mataria. —Notou a mão firme de Tor no braço. Ante aquele apoio inesperado sentiu uma opressão no peito—. Eu não podia permitir que acontecesse isso — disse com um suspiro.

Tor olhou longamente a Lamberton.

—Acredito que, dadas as circunstâncias, é compreensível que tema casar-se.

O bispo compreendeu o que queria dizer, e parecia por sua expressão que estava totalmente de acordo. Olhou fixamente ao pai de Christina e disse: —me parece que depois de como conseguistes o matrimônio de uma filha, dar de presente a segunda à Igreja é a expiação apropriada, não estás de acordo?

MacDonald afogou uma terminante gargalhada com um golpe de tosse.

Seu pai esticou tanto a boca que as veias de seu enorme pescoço se incharam e adquiriram um intenso tom vermelho.

—Pedem muito — disse apertando os dentes—. Isso me custaria uma pequena fortuna.

Não só perder uma aliança. Quando uma mulher de boa família ingressava em um convento, esperava-se que contribuísse um dote substancial.

—Considerem como uma amostra de benevolência para mim — disse Tor sem alterar-se, embora a ameaça estivesse clara. Andrew Fraser estava liberando por pouco.

Seu pai estava encurralado e sabia. Tinha perdido a Beatrix.

Christina não acreditava. Sua irmã se achava a salvo. Realmente a salvo. O inesperado presente de seu marido compensava sobradamente a decepção por sua cerimônia de bodas.

MacDonald, no papel de bom anfitrião, dispôs-se a aliviar o orgulho ferido de seu pai.

—Vamos, Fraser, me acompanhem ao salão. Encontraremos um pouco de cuirm e nos ocuparemos desse braço. Temos muito que celebrar. Não esqueçamos. —E acrescentou olhando a Tor—: Estão seguros de que não ficarão na festa?

Ele negou com a cabeça.

—Já me atrasei muito. Pela quantidade de comida que vi que carregavam no birlinn, acredito que levamos a metade do banquete conosco. Iremos assim que a garota esteja preparada.

Olhou a Christina com espera.

—Só tenho uns poucos baús — disse ela—. Já mandarei alguém a pegar resto.

—E seus serventes?

Christina assinalou à donzela que esteve observando a reunião de uma prudente distancia.

—Mhairi aceitou me acompanhar. —Essa pobre moça estava ansiosa por afastar do pai de Christina, e esta agradeceria ter a seu lado um rosto familiar.

Fraser e MacDonald se dispuseram a abandonar a capela, seguidos de perto pelo Lamberton. Seu pai tinha tomado bem, muito bem. Devia ter desejado muito essa aliança para ceder tão facilmente. Estava convencida de que seu pai planejava algo.

Tor deteve o tenente de MacDonald antes que pudesse ir atrás deles.

—MacSorley, esperem um momento. —voltou-se para a Christina—. Se me dissesse aonde foi sua irmã, eu me inteiraria de que chegara bem. —Ela vacilou e lhe pareceu que ele adivinhava o motivo. - Seu pai manterá sua palavra. Eu me ocuparei disso.

A firme certeza de sua voz eliminou suas dúvidas. Pensou que havia muito poucas coisas que esse homem não pudesse obter. Ante seus olhos, Tor tinha adquirido uma grandeza maior que a dos heróis extraordinários de seus livros. De repente, aquele momento de dúvida que tinha experimentado pareceu uma deslealdade. O que lhe passava? Deveria estar agradecida por sua consideração. Levavam só alguns minutos casados e ele já se ofereceu a ajudá-la. Além disso, também ansiava confirmar que Beatrix tinha chegado sã e salva.

—Perdoa-me, contarei isso, é obvio. Obrigado, por tudo. Beatrix foi a um convento de Iona.

Ele arqueou uma sobrancelha, claramente impressionado. Havia outros lugares aonde teria podido ir que estavam muito mais perto. Olhou-a intrigado, como se de repente tudo adquirisse sentido.

—Contratou um navio?

Ela assentiu.

Tor lhe sustentou o olhar um momento, antes de dirigir-se a MacSorley.

—Vão em busca da dama e te assegures de que chegue sã e salva. Diga-lhe que não tem nada que temer.

MacSorley fez um gesto cortês e se dispôs a partir. Christina não sabia o que lhe surpreendia mais: que Tor desse ordens ao escudeiro de MacDonald ou que este fosse a lhe seguir.

—Mas o navio saiu de madrugada — disse ela—. Nunca alcançarão.

Os dois homens trocaram um olhar irônico, e logo o enorme pirata lhe dedicou uma careta divertida.

—Considere feito, minha senhora. Há algo mais que deseje que diga quando a alcance?

Christina admirou sua audaz confiança, por irreal que parecesse. Refletiu um momento. Nessa manhã se despediram com pressa, devido ao medo de que as descobrissem. Se lhe preocupava enviar para longe Beatrix, sabia que a esta preocupava deixá-la ali. Mas Christina estava cada vez mais convencida de que tinha tomado a decisão correta. Seu marido não só tinha escutado com calma sua explicação e a tinha apoiado, mas sim também se comprometera com a segurança e a felicidade de sua irmã.

—Que lhe diga que… —Duvidou, olhando aqueles penetrantes olhos azuis. Tinha o coração cheio de admiração por esse homem arrumado que tinha irrompido em sua vida, justo quando necessitava—. Diga-lhe que acredito que ela tinha razão desde o começo.

Talvez o que acontecera fosse o melhor.

Ela tinha mantido a promessa que tinha feito a sua irmã, livrou-se de seu pai, e tinha encontrado a um cavalheiro tão honorável e galante como Lancelot.

Pelo visto tinha ante si um futuro realmente promissor.


Capítulo 08


Os ilhéus se sentiam em casa tanto no mar como em terra, e Tor não era uma exceção. O frio e gélido vento que rasgava as ondas revigorava seu sangue com a mesma segurança com que inchava as velas. Escorado sobre os pés separados, manipulava os cabos das velas como as rédeas de um cavalo, sentindo o poder de sentir a força do ar através dos braços e as mãos.

Não havia nada comparável a isso, e nenhum lugar no que gostaria de estar mais que em um birlinn com seus homens; com o vento lhe alvoroçando o cabelo e o aroma do mar alagando seu nariz, com o sabor de sal nos lábios, sem nada mais que azul até lá aonde alcançava seu olhar.

Que esse dia não era muito longe. À medida que o sol se desvanecia, as nuvens aumentaram e tinham descido, convertendo-se em névoa. Ficava apenas uma hora de luz e a visibilidade tinha diminuído a menos de meia milha. Fazia um momento que tinham perdido de vista a costa, mas ele não necessitava dela para navegar. Era capaz de encontrar às cegas o caminho de volta a Skye.

Tinham navegado a bom ritmo. Tinha soprado vento de popa durante quase todo o trajeto. Se seguisse assim, dentro de uma hora estariam no castelo de Dunvegan.

Desviou o olhar para a mulher na proa do navio. Sua esposa. Pela postura encurvada da figura que havia a seu lado, deduziu que sua criada adormecera. Não lhe surpreendia, depois da quantidade de tempo que passou na amurada contemplando o mar. Agradava-lhe que sua nova esposa não fosse vítima do enjôo. Talvez não fosse tão incompatível com seu modo de vida como temera.

Sentiu uma desagradável pontada: não podia ignorar o fato de que parecia sentir-se sozinha.

Mais de uma vez a tinha surpreendido o olhando. Virtualmente engolida pela pesada capa de lã que levava. Quão único via eram dois olhos enormes levantados para ele, espectadores, ansiosos. Era óbvio que esperava que pudesse reunir-se com ela.

Mas essa forma de olhar lhe punha nervoso. Era como se pensasse que ele fosse uma espécie de herói. Possivelmente era compreensível, por causa de seu pai. Não havia dúvida de que para ela era como se a tivesse resgatado. Mas ele não era um cavalheiro andante. Casou-se porque ganhara muito com esse enlace, não porque não pudesse deixar de recordar seu rosto quando se negou a casar-se com ela.

Não era que não sentisse compaixão; simplesmente não queria criar expectativas pouco realistas, nem ilusões que a fizessem sofrer.

Ele pertencia a seu clã, não a nenhuma mulher.

Mas os remorsos de consciência não desapareciam. Era o dia de suas bodas, e em lugar de ter se reunido com ela para celebrar uma festa, tinha-a embarcado em um birlinn para empreender uma viagem longa e incômoda. E ela tinha suportado sem uma palavra de queixa.

Não havia nada de mal em comprovar se estava suficientemente abrigada. Com um suspiro de resignação, entregou os cabos a um de seus homens e se dirigiu ao centro do navio onde ela estava sentada.

Christina deu a volta, intuindo o que Tor pretendia e o sorriso radiante que invadiu seu rosto fez que ele se detivesse em seco.

Demônios. Talvez aquilo não fosse boa idéia. Mas era muito tarde para dar a volta. Desabotoou o casaco que levava sobre os ombros e a entregou.

—Toma. Ponha isto. Deve estar gelada.

Não estava acostumado a levar mulheres a bordo, do contrário teria pensado antes. Ela era tão miúda que não tinha nada que a protegesse dos elementos, e ele notou em suas bochechas rosadas e açoitadas pelo vento.

Christina o olhou, vacilante.

—Mas você não terá frio? Somente leva um cotun.

Ele negou com a cabeça.

—Eu estou acostumado. Além disso, tenho um tartán se necessitar. —O colocou ao redor dos ombros— Ponha isso

Christina lhe sorriu e Tor sentiu uma espetada peculiar entre as costelas.

—Obrigado — disse ela, com um leve rubor nas bochechas—. É muito consideração de sua parte.

Tor ficou olhando um momento, incapaz de obrigar a seus pés a mover-se. Finalmente afastou o olhar e pigarreou com certo desconforto. Maldição, parecia que estivesse confuso! Era um lutador curtido de trinta e um anos, não um moço de dezoito.

—Sim, bom, já não falta muito. Deveremos chegar dentro de uma hora. —deu a volta para partir.

—Espera! —disse ela de repente—. Pode te sentar um momento?

Seus dentes brancos morderam a esponjosa suavidade de seu exuberante lábio rosado. Ele sentiu outra espetada, desta vez muito mais abaixo. Seu membro despertou, pensando na noite vindoura. Rapidamente desviou os olhos, irritado pelo lapso.

Christina, percebendo que ele ia dizer que não, acrescentou:

—Por favor, há algo que devo te dizer.

—Não pode esperar até que cheguemos? —Embora o que tinha pensado para ela quando chegassem não deixaria muito tempo para falar.

Christina recolheu de forma inconsciente uma mecha rebelde de cabelo escuro atrás da orelha. Era delicada e pequena como o resto dela; tinha a forma de uma concha rosa e perfeita.

—Talvez seja uma tolice, mas eu gostaria de dizer antes de chegar A… Dun… vegan? —Ele assentiu—. Ter deixado para trás todas as coisas desagradáveis. —Sorriu com acanhamento—. Além disso, pode ser que perca a coragem se não disser agora.

O assento contiguo do banco se achava ocupado por sua criada, que estava roncando, e ele foi sentar em frente a Christina, com as costas para a proa do navio.

—Muito bem, o que é o que queria dizer?

Christina inspirou profundamente e falou em voz baixa, para que não a ouvissem os homens que estavam perto, sentados nos remos.

—Queria me desculpar por minha responsabilidade no que passou a outra noite. —Tor reagiu de um modo reflexo ante aquele assunto com tensão e irritação, e ela acrescentou em seguida—: Por favor, tem que acreditar quando te digo que eu não sabia o que meu pai pretendia na realidade. Ele jurou que seria apenas uns minutos. Eu não me dava conta… —Baixou os olhos. Inclusive na penumbra, Tor viu que as bochechas lhe ardiam—. Não me dava conta do que estava passando, até que fosse muito tarde. Mas penetrei em seu aposento, sabendo que meu pai queria te obrigar a casar comigo, e por isso te peço perdão.

Aquele não era exatamente um extremo que gostasse de recordar. Ainda lhe feria o orgulho que ela tivesse conseguido evitar a sua guarda. Reprimiu seu aborrecimento e perguntou sem alterar-se: —por que o fez?

Christina afastou a cabeça, envergonhada.

—Se não fizesse o que meu pai me ordenava…

Não lhe saíam as palavras, de modo que ele terminou a frase em seu lugar:

—Teria te batido.

Era tal como tinha pensado: tinham-na obrigado. Mas por muito que ele odiasse que alguns homens abusassem de suas mulheres e pudesse solidarizasse com seu temor, isso não mudava o fato de que ela tinha seguido adiante com a traição de seu pai, e que por isso o tinha colocado em uma posição insustentável.

—E alguma vez pensou em te negar?

Talvez ela tivesse ouvido a acusação implícita em sua pergunta, porque um reflexo de orgulho substituiu em parte a vergonha que sentia. Contemplou seus braços e seus ombros, e percorreu de cima abaixo com o olhar, de um modo que lhe esquentou o sangue.

—Nem todo mundo é alto como uma montanha, nem possui a musculatura de uma rocha.

Assim que se fixou em seu corpo? O sangue ardente de Tor ferveu e rugiu.

—Realmente faz bastante tempo que enfrento ao desprezo de alguém mais forte. Pode ser que eu não seja tão valente nem audaz como você, mas teria assumido a surra se somente se tratasse de mim. Mesmo assim, eu não teria sido quão única teria sofrido por me negar a fazer o que ele tramava.

—Estava protegendo a sua irmã.

Se dar conta daquilo eliminou qualquer raiva ou ressentimento que Tor pudesse ter sentido para a moça, por seu papel na traição de seu pai. Não podia culpá-la por defender a sua irmã.

Ela esboçou um meio sorriso.

—Também tinha medo. Mas o que disse antes sobre Beatrix é verdade; quando pequena esteve doente e nunca foi muito forte. —Ele notou que lhe quebrava a voz pela emoção. Ela se secou uma lágrima da extremidade do olho—. A última vez estive a ponto de perdê-la. Não podia correr esse risco. Sabia que estava mau e que era horrível fazer algo assim, e assim disse a ele. Mas naquele momento pensei que não fazia dano a ninguém, porque meu pai nos descobriria ao cabo de poucos minutos e tentaria forçar um compromisso de matrimônio, mas você nunca teria que levar ao fim.

Tor já tinha deduzido a que se referia.

—Planejava fugir com sua irmã.

Christina assentiu, evitando seu olhar.

—Sim.

Até que lhe tinha arrebatado a virtude e ela tinha mudado de opinião. Aquilo teria sido a solução perfeita.

Inclusive depois do que tinha acontecido, Christina poderia ter partido. Assim, por que não foi? Tor não estava seguro de querer saber. Seu rosto devia ter refletido o que pensava mais do que acreditava, porque ela acrescentou com acanhamento: —Não sei se eu fui feita para ser monja.

O rubor que lhe tingiu as bochechas provocou uma rajada de calor em suas virilhas. Saber que ele podia ter despertado sua paixão, que ela podia ter gozado com a forma como ele a havia tocado, fez que fervesse o sangue.

Christina era uma donzela inocente, mas e se era tão apaixonada como parecia? Endureceu-lhe os testículos. Somente pensando em todas as coisas eróticas que gostaria de lhe fazer, voltasse-se louco de desejo. E se ela, de fato, as fizesse…?

De repente mudou de tema.

—Naquela noite, quando te encontrei vagando sozinha e não quis me dizer o que pretendia fazer… tinha algo que ver com seu plano de fugir pra Iona, verdade?

Tor já tinha deduzido a relação antes, quando ela reconheceu que estava implicada no desaparecimento de sua irmã. Tinha que admitir que sua impressão inicial sobre a garota não lhe tinha feito justiça. O que ele tinha atribuído a temeridade e insensatez eram em realidade os atos desesperados para uma jovem que tentava proteger a sua irmã. Gostou que tivesse optado em atuar.

Christina assentiu, estremecendo-se ao recordar.

—Eu tinha ido ao povoado conseguir uma passagem no navio. Não me atrevi a levar acompanhante; não queria que ninguém fosse castigado se meu pai descobrisse o que planejávamos. Demorei mais do que acreditava. As mulheres passeiam com liberdade no Touchfraser, e as criadas inclusive mais. Nunca me ocorreu que pudesse passar algo assim no meio de um castelo cheio de gente.

Ele se deu conta de que não era uma moça insensata, mas sim esteve excessivamente protegida.

—Isso pode acontecer em qualquer parte — disse claramente, pois não queria que ela pensasse que as violações de mulheres se limitavam às ilhas «bárbaras»; embora reconhecesse que seu modo de vida era mais rude que nas Terras Baixas.

—Em Dunvegan estará a salvo, mas não deve sair do castelo desprotegido. —A idéia de que lhe acontecesse algo… —. Prometa-me - disse isso com veemência… com muita veemência.

Ela abriu os olhos de par em par e assentiu de novo. Tinha interpretado mal o motivo de seu aborrecimento.

—Sei que você não desejava casar comigo, e que por culpa da mutreta de meu pai, acreditaste que a honra obrigava a isso, mas te juro que já não te causarei mais problemas.

Ele sentiu vontade de rir. Se soubesse quão impossível resultava aquilo. Mas deixou de sentir quando Christina acrescentou: —Tentarei te agradar.

Ficou sem respiração. Essa leve súplica fez emergir imagens perigosas que lhe percorreram a mente. Como ela de joelhos, tomando-o apaixonadamente com a boca.

Deus, quase podia sentir a carícia de sua língua. Estava duro como uma pedra. A moça não tinha nem idéia do caos que suas inocentes palavras tinham provocado em seus mais primitivos desejos. Agradaria. Muito m ais que bem. Mas Christina não se referia a isso.

—Aquilo não tinha nada que ver contigo - explicou—. Simplesmente eu não acreditava que a aliança beneficiasse a meu clã.

Ela parecia confusa.

—Mas os Fraser são uma família antiga e poderosa.

—Sim, uma antiga e poderosa família escocesa. —perguntou-se até que ponto conhecia ela os planos de seu pai—. Eu prefiro me manter à margem da política escocesa… e de suas guerras.

—Mas como pode ser isso? Você é escocês.

—Eu sou ilhéu — disse, como se a diferença resultasse óbvia.

—Mas súdito escocês, mesmo assim. —Olhou-o com crescente espanto—. Certo que não apóia ao rei Eduardo?

Estava claro que o famoso sangue patriótico dos Fraser corria por suas veias.

—Eu apóio a meu clã. Faço o que é melhor para eles.

Havia dito tudo o que pensava dizer sobre o tema, mas então lhe surpreendeu.

—E te casar comigo, uma Fraser, faria inimizade com o rei da Inglaterra se houvesse outra revolta.

Tor a esquadrinhou com o olhar e baixou a voz.

—O que sabe você de uma revolta?

Diria que ela se arrependeu imediatamente, ao dar conta de que não devia falar de traição tão abertamente.

—Nada. É só que meu pai não oculta seu ódio por Eduardo, e devido à presença de Lamberton e do muito que desejavam esta aliança, deduzi que procuravam suas habilidades de guerreiro para algo concreto.

Tor não podia acreditar até que ponto ela se aproximou da verdade, e se deu conta de que teria que andar com cuidado quando a tivesse perto. A maldita moça era muito inteligente para seu próprio bem.

Não recordava ter tido uma conversa como essa com uma mulher. Demônios, raramente falava com tanta franqueza com seus homens. Vagamente irritado por esse fato, disse com brutalidade: —O fato feito está. Simplesmente tiraremos o máximo proveito disso.

Ela mudou de expressão; parecia abatida por aquela abrupta mudança de tom.

—Lamento sinceramente meu papel no acontecido. —Ergueu os olhos para ele—. Espero que possa me perdoar.

Deus santo, aí estava outra vez. Esse olhar doce e vulnerável em seus olhos, que provocava o impulso de atraí-la a seus braços, e remover céu e terra para conseguir que tudo mais desaparecesse.

—É seu pai quem deveria pedir perdão, não você — disse com rudeza. Sua boca se converteu em uma linha tensa—. Deveriam lhe açoitar por enviar a uma donzela inocente a um quarto desse modo, sabendo perfeitamente que eu pensaria que fosse um tipo de mulher muito diferente. —Um rubor de vergonha invadiu as bochechas de Christina—. Por isso te causei dor, e por isso te peço perdão. —E baixou mais a voz—. Não acontecerá assim na próxima vez.

«Esta noite.» A expectativa avivou com força suas vísceras, seu corpo se esticou e ardeu de desejo. Estava impaciente. Ela era como um comichão que tinha que arranhar, e ele era incapaz de esperar para aliviar sorte desconforto.

Em certo sentido esperava que ela baixasse o olhar timidamente, mas em lugar disso Christina assentiu, com os olhos abertos e confiantes.

Pela primeira vez em sua vida, Tor se questionou se seria capaz de conservar essa confiança. Estava-lhe custando muito manter o corpo sob controle, com tão somente olhá-la; mas como seria tê-la debaixo, rodeado por suas pernas, enquanto entrava e saía daquele fogo tirante e úmido? Ofegaria? Moveria os quadris sob seu peso?

Levantou-se.

—Tenho que voltar com meus homens. Logo estaremos no Little Minch.

—OH — disse ela.

A Tor não passou despercebido o brilho de decepção que apareceu em seu rosto. Os últimos raios de luz atravessaram a névoa, e banharam suas delicadas feições com um reflexo etéreo. Sua pele parecia muito suave, quase translúcida. Ansiava tocá-la. Passar os dedos pela curva de sua bochecha e embalar toda essa doçura aveludada com a palma da mão.

Deu um passo para trás. De onde tinha saído isso? Embalar seu rosto? Ele nunca havia se sentido inclinado a fazer nada parecido.

Olhou-a fixamente, perguntando-se o que havia nessa garota que lhe provocava impulsos tão estranhos.

E que diabo ia fazer respeito disso?

*

Christina não queria que ele partisse. Depois de esperar o dia todo para falar com o Tor, desejava algo mais que breves minutos antes que voltasse a seus homens.

Desculpar-se tinha sido mais fácil do que tinha pensado, em que pese a essa aparência aterrorizante, sua atitude fria e equilibrada lhe deu confiança para dizer o que pensava sem medo de represália. Era uma sensação embriagadora não ter que preocupar-se com cada palavra, por medo de provocar a ira paterna.

Tinha-a angustiado mencionar o desagradável tema da artimanha de seu pai, mas ele merecia uma explicação. Embora inicialmente doesse que reconhecesse que não queria casar-se com ela, tinha mudado de opinião; isso tinha que significar algo. Mais ainda, pareceu-lhe que aceitava sua desculpa com uma espécie de espírito prático, que a levou a pensar que não a culpava. O qual era um alívio imenso.

Embora houvesse dito o que queria dizer, não desejava que se fosse. Gostava de falar com Tor. Ele a escutava, respondia em lugar de desprezar suas perguntas, e parecia sinceramente interessado no que ela tinha a dizer.

Só de ficar perto dele lhe disparava o coração. Era como se seu corpo estivesse respondendo a alguma força invisível; suas terminações nervosas se avivavam e seus sentidos se aguçavam. A proximidade também dava a oportunidade de lhe observar, e confiava poder dar outra olhada por trás dessa fachada de dureza. Havia algo mais atrás desse frio e aterrorizante senhor da guerra, estava convencida disso.

Dispunha de toda uma vida para ir conhecendo-o, mas não queria esperar pela intimidade que chegaria com o passar do tempo. Somente desejava sentar-se a seu lado e falar, até que aprendesse tudo o que teria que saber sobre Tor MacLeod.

Era seu marido, embora mal soubesse nada dele. Seu pai havia dito que era viúvo e que seus dois filhos pequenos, estavam sendo criados por uma família, mas nada mais sobre a sua própria. Tinha irmãos e irmãs? Se era o chefe, então seu pai devia ter morrido, mas e sua mãe?

O que gostava de fazer quando não estava derrotando inimigos no campo de batalha ou resgatando donzelas de dragões grandes e pequenos?

Preferia cerveja ou vinho? Comida salgada ou doce? Era desordenado ou organizado? O que o fazia rir?

Mordeu o lábio. Acaso ria? Claro que sim, pensou inquieta. Todo mundo ria, embora fosse difícil imaginar sua expressão bastante relaxada para baixar a guarda em alguma ocasião.

Nem sequer sabia quantos anos tinha… uns trinta, provavelmente.

Tor ficou de pé para partir e ela se apressou a pensar em algum um motivo para lhe deter. De repente, pela direita, entre as nuvens que tinham a frente, apareceram por arte de magia os escarpados de um litoral rochoso.

—Espera — disse lhe retendo, e assinalou por cima de seu ombro—. É isso?

Ele respondeu sem dar volta.

—Sim, isso é Skye.

A quase imperceptível doçura de sua voz lhe indicou claramente que tinha descoberto algo: Tor amava seu lar.

—Poderei ver Dunvegan logo?

—Muito em breve. Esta é a parte ocidental da ilha. Navegaremos para o norte ao redor de Durinish, entraremos no fiorde, e então verá o castelo.

Deu uma olhada aos homens que estavam às velas. Ela soube que deveria sentir-se culpado por atrasá-lo, mas não era assim. Não, se isso significava que ficasse.

—Contará-me mais coisas sobre ele?

Tor voltou a sentar-se com um som que bem podia ter sido um suspiro.

—O que você gostaria de saber?

Cruzou os braços e a resultante protuberância de sua musculatura fez que qualquer idéia coerente desaparecesse da mente de Christina. Secou a boca. Aquele evidente desdobramento de fortaleza varonil lhe provocou um formigamento interior. Ele era na verdade incrível. Ela recordava perfeitamente as linhas suaves e sólidas de seu torso nu. Ao se dar conta de que estava boquiaberta, recuperou a compostura e perguntou: —parece com Finlaggan?

—Não. Notará a diferença em seguida. Dunvegan é um baluarte defensivo, virtualmente impenetrável. —Olhou-a longamente—. Ali estará segura.

Ela avermelhou. Não era isso o que a preocupava, mas lhe agradava que ele se antecipasse seus temores.

—O castelo está edificado no alto de um penhasco, como Edinburgh e Stirling - continuou ele—, mas é acessível somente da água, através de uma comporta no mar. Foi construído sobre as ruínas de um antigo dun18. Meu avô se casou com a herdeira de um cavalheiro dinamarquês chamado MacRaild, e tomou posse do forte. Ele utilizou as pedras do dun para construir uma muralha alta e um novo salão para substituir a velha galeria comunal. Eu espero acrescentar logo uma planta fortificada.

Christina franziu o cenho.

—Todo seu povo vive no castelo? E se somente há uma comporta no mar como transladam os cavalos?

Ele sorriu, e o impacto daquele sorriso provocou que o coração de Christina desse um sonoro tombo no peito. Foi como se a leve curva de sua ampla boca iluminasse todo o rosto, fazendo que parecesse vários anos mais jovem. Seus dentes brancos cintilaram na crescente escuridão e seus olhos brilharam, não com dureza a não ser com regozijo. Mas o mais fascinante de tudo foi a profunda covinha de sua bochecha esquerda.

Já lhe considerava bonito, mas isso não era nada comparado com a imensa devastação que causava o homem deslumbrante que agora tinha ao lado. Sentia-se um pouco aturdida só com ele olhando. Podia realmente estar casada com esse homem? Mas a transformação era muito mais profunda. O fazia parecer menos intimidante quase acessível. Não como uma temível máquina de guerra, mas sim como um homem mortal.

Se Christina temia as terríveis armas que tinha amarradas ao corpo, com o cabelo de bronze clareado pelo sol, ao vento, e o poderoso corpo relaxado, tinha a sensação de ter percebido um vislumbre de um homem completamente diferente. Um homem capaz de experimentar ternura e sentimentos.

Esse era o cavalheiro de seus sonhos, e desejou que tivesse esse aspecto sempre.

—O castelo é grande, mas nem tanto — replicou ele, interrompendo seu romântico estupor.

Ela se deu conta de que ficara boquiaberta e fechou de repente a boca.

—Há uma aldeia perto e uma frota estável de navios para transladar às pessoas. Na ilha terá ocasiões de ir a cavalo; nós viajamos por vias marítimas. Os canais são muito mais úteis e rápidos para mover-se. Mas eu tenho um pequeno estábulo com cavalos no povoado se por acaso surgir a necessidade.

—É perigoso?

Tor negou com a cabeça.

—Os ataques são pouco freqüentes. Os piratas viajam por mar, mas normalmente atacam em terra. Assim que acostume a isso, entenderá. Nós cobrimos distâncias em um dia, que facilmente durariam semanas viajando por terra.

Ela se deu conta de que se tratava de uma forma de vida totalmente diferente. Da que sabia muito pouco. Sentiu uma pontada de insegurança, mas não queria lhe decepcionar.

Provar a si mesmo converteu-se em um ponto muito importante. Desejava gostar dele. Que não lamentasse ter-se casado com ela; e em especial por tudo o que tinha feito por ela.

Porque embora no princípio ele não tivesse desejado a aliança, tinha mudado de opinião. Isso tinha que significar algo, em um homem sem só pingo de falsidade no corpo. Ela devia lhe importar um pouco.

Desejava ser uma boa esposa para ele. Mas sua experiência, a pouca que tinha, era como mínimo limitada. Quando seu pai fora capturado, a tinham mandado viver com uma tia viúva. Esta a tinha instruído em suas obrigações como senhora da casa, naturalmente, mas com a guerra e com a maioria dos homens lutando longe, Christina tinha tido poucas oportunidades de observar a conduta cotidiana dos casais casados. Do amor sabia tudo por seus livros.

Ocorreu-lhe uma coisa.

—Sua família estará ali para nos receber?

Todos os sinais de bom humor desapareceram. O muro de aço caiu de novo com tal força que ela teria jurado que tinha ouvido o ruído. Ao dar conta de que se equivocou, amaldiçoou para si e desejou poder retirar a pergunta.

—Não — disse ele cortante—, embora meu irmão deverá reunir-se logo conosco.

Algo na forma de dizer isso fez que ela desejasse não voltar a tocar esse tema.

—E seus filhos? Eu gostaria de conhecê-los.

Era o que devia dizer. Embora o sorriso não voltasse para seu rosto, Christina detectou uma ligeira diminuição nas rugas que rodeavam os olhos de Tor.

—Malcolm e Murdoch vivem em Lewis, com meu tio. Ambos têm madeira e fibra para se tornarem grandes guerreiros. Estiveram em Dunvegan no mês passado de caminho a Inglaterra, onde visitarão a família de sua mãe durante as festas de Yule19. —A olhou, divertido—. Malcolm ainda não completou treze anos, mas me parece que já é mais alto que você.

Estava brincando com ela. Christina não acreditava, e fingindo um suspiro bastante exagerado, disse:

—Temo que isso não é muito comum por aqui. Mas, acredite ou não, em alguns lugares me consideram uma mulher com uma estatura bastante normal.

Ele arqueou uma sobrancelha, e a examinou de tal modo que seu corpo tremeu estremecendo através da grossa capa de lã.

—Ah, sim? —repôs ele com voz engrolada.

Ela assentiu.

—Sim, e nesses mesmos lugares inclusive há homens que medem menos de metro oitenta.

O cativante sorriso reapareceu acompanhado de uma risadinha.

—Pode ser que tenhamos um ou dois desses na ilha, mas os escondemos.

—Isso é melhor que afogar ou jogar pelo despenhadeiro, suponho - replicou ela com secura.

—Não somos bárbaros — brincou ele—. Deixamos de jogá-los pelos escarpados faz anos.

Christina pôs os olhos em branco.

—Que alívio, assim não terei que fechar minha porta com chave pelas noites.

Sorriram mutuamente na persistente escuridão. Ela se sentiu invadida por uma rajada de calidez. Descobrir que Tor tinha um senso de humor mordaz proporcionou toda a emoção de um tesouro escondido e subterrâneo. Ele aparentava frieza e distância, mas ela tinha aprendido que havia calor embaixo dessa pétrea fachada. Somente tinha que encontrar a forma de atravessá-la.

Tor a observou um minuto mais, como se estivesse surpreso e não soubesse o que fazer a seguir.

Dessa vez, quando se levantou, não o fez com tanta disposição; possivelmente inclusive com um pingo a contra gosto.

—Tenho que preparar o navio para a chegada; entramos no fiorde. —deu a volta e assinalou na escuridão—. Se segue olhando em frente, assim que comecemos a rodear o outro lado da ilhota, verá em seguida o castelo.

—Farei isso — afirmou Christina sorrindo, com repentino acanhamento—. Obrigado.

Ele assentiu e se dirigiu ao centro do navio, de volta a seu posto nas velas. Ela não pôde evitar observar que suas poderosas pernas se moviam com pernadas largas e decididas, deslocando-se com facilidade pelo casco de navio cambaleante. Tinha o mando e o controle absolutos, e estava tão cômodo em mar como em terra. Nunca tinha conhecido a um homem como ele.

E lhe pertencia.

Christina se deixou invadir pela cálida empatia da conversação. Cada vez estava mais convencida de que o matrimônio com o Tor MacLeod podia ser um sonho feito realidade, pesar de seus turvos inícios.

Era um homem feroz e agressivo. Todo aspereza e bruscas maneiras. Mas quando tinha sorrido e brincado com ela, Christina tinha captado o brilho de algo mais. Algo que ela faria que saísse à superfície.

Afundou-se nas peles, desfrutando não só de seu casaco, mas sim do intenso aroma do homem que o tinha usado. Imaginou longas noites junto ao fogo, retirados, no acolhedor refúgio da torre de seu castelo, somente os dois, falando ou jogando jogo de dados ou xadrez. Ou possivelmente ela estaria lendo e ele se voltaria e sorriria, um sorriso secreto destinado exclusivamente para ela.

Manteve o olhar fixo na direção que Tor tinha indicado, com uma crescente emoção no peito. Tinha escurecido, e as águas negras do fiorde se confundiam com a noite, mas conseguiu distinguir o halo de umas tochas na lonjura, que destacavam em uma imensa muralha.

Então, quando a névoa se separou como uma cortina efêmera, virou e afogou uma exclamação de surpresa. Definidas, as linhas das enormes pedras da muralha surgiram imponentes ante eles como um aríete, rasgando a bruma com uma autoridade pura e brutal.

Impenetrável, em efeito, mas Tor não tinha mencionado que era aterrorizante.

Dizer que não era o que Christina esperava era absolutamente insuficiente. O castelo do Dunvegan não tinha nada de quente e encantador, absolutamente. Era o baluarte de um senhor da guerra, erguido e feito para a defesa.

Havia algo frio e desolador naquele lugar, mas também ameaçador. Parecido a seu proprietário, pensou estremecendo.

Recordou o orgulho com que tinha falado de seu lar, de modo que manteve o rosto afastado de seu marido, pois não queria que visse sua reação.

Inspirou repetidas vezes, tentando não deixar-se levar pela péssima impressão. Não podia ser tão aterrorizante.

Mas não pôde evitar sentir um calafrio nos ossos, à medida que se aproximavam. Não podia imaginar um lugar menos acolhedor.

E estava a ponto de piorar.

Assim que apareceu o castelo ela ouviu um revôo a suas costas. O impulso do navio mudou bruscamente quando os homens ficaram em marcha. Algo não ia bem. Tor começou a gritar ordens com voz cortante e brusca.

Ela tentou apanhar seu olhar, mas ele nem sequer dirigiu o olhar para ela. O senhor da guerra havia retornado. Christina nunca o tinha visto assim; nem quando tinha lutado com Lachlan MacRuairi tinha percebido essa intensidade letal. Parecia um selvagem, decidido e absolutamente desumano. Compadeceu a quem o tivesse provocado.

Christina se dirigiu a um dos guardas, sentado nos remos a seu lado. Recordou que se chamava Aonghus; era um dos numerosos membros da escolta pessoal de seu marido. Seu Am Fear Braitaich, pensou, sua guarda habitual.

—O que acontece? —perguntou confusa—. Qual é o problema?

Ele tinha uma expressão lúgubre e irritada.

—Um ataque, milady. —Assinalou uma zona mais à frente do castelo. Ela mal pôde entrever os penachos de fumaça negra que tinha tomado por névoa—. No povoado.

Um ataque? Christina empalideceu e sentiu um espasmo de terror.

Os minutos seguintes passaram em um suspiro, entre gritos e atividade organizada. A atmosfera relaxada da viagem ficou totalmente esquecida, enquanto os homens trabalhavam juntos concentrados na ação, como se fossem um.

Colocaram-se em paralelo ao embarcadouro atrás do castelo. Tor saltou sobre o molhe de madeira em meio de um grupo de guardiães que tinham ido dar as boas vindas. Christina tentou averiguar o que significavam as frases breves e crípticas que trocaram, mas era como se falassem com uma espécie de código.

Mhairi tinha despertado, e Christina estava fazendo todo o possível por que mantivesse a calma. Apareceu um guarda jovem para ajudar a desembarcar.

—Não sei preocupe, milady — disse com amabilidade ao ver o horror gravado em seu rosto—. Aqui estará a salvo. Ninguém pode conquistar Dunvegan.

Ao ver levantada a escada construída na rocha que conduzia à comporta marinha, compreendeu a razão. O único acesso a enorme muralha era através de uma porta de ferro situada sob uma pequena entrada em arco. Estava bem protegida por uma guarita de vigilância construída diretamente em cima e uma grande muralha governada por dúzias de frestas em todas as direções. Qualquer tentativa contra os degraus abruptos e escorregadios que conduziam à entrada resultaria infrutífera, e provocaria uma queda mortal sobre as rochas que havia embaixo.

Apesar das terríveis circunstâncias, um leve sorriso se desenhou em seus lábios. Com esses degraus, era muito pouco provável que na noite de bodas entrassem com ela nos braços pela soleira, embora se alguém pudesse fazê-lo, era seu imponente marido.

Voltou-se para olhar e sentiu uma corrente de afeto.

Notou um peso no peito. Seu marido… ia. Quão único viu foi uma mecha dourada flutuando ao vento sob seu elmo de aço, e o poderoso perfil de seus ombros e suas costas musculosas quando o navio se afastou do embarcadouro.

Ao lhe ver desaparecer entre a bruma escura e densa, separou os lábios mas não emitiu nenhum som. Sentiu um comichão interior de decepção. Ele nem sequer se despedira.

Não olhou pra trás nenhuma só vez.

Era difícil convencer-se de que não a tinha esquecido por completo.

*

Havia um homem de pé nas almenas, observando os navios que se aproximaram e voltaram a ir-se.

MacLeod havia retornado.

O chefe chegava muito tarde, mas mesmo assim aquele homem tremeu.

Em que pese que não temesse que o descobrissem, trair a alguém como o chefe MacLeod era uma perspectiva aterrorizante. O melhor que podia esperar se lhe apanhavam era uma morte rápida. O mais provável era que o desumano guerreiro lhe arrancasse a cabeça e a oferecesse aos cães.

Seu rosto empalideceu e notou o sabor da bílis. Apesar do vento frio, limpou umas gotas de suor da frente. Deus bendito, ele não fora feito para isso. No que esteve pensando seu tio?

Consolou-lhe que ao menos, de momento, o chefe MacLeod olhasse na direção equivocada.

«O melhor espadachim das ilhas», chamavam-no. O crescente poder do chefe MacLeod nas ilhas não tinha passado despercebido, e isso tinha criado muitos inimigos. Inimigos ansiosos por vê-lo derrotado. Mas, primeiro, ele tinha que achar as provas.


Capítulo 09


O primeiro dia foi o pior. Christina nunca se havia sentido tão sozinha. Abandonada por seu novo marido na porta de um castelo, por um dos homens de seu clã, atônitos ante a notícia do repentino matrimônio de seu chefe, sentia-se como se a tivessem jogado ao limite oposto do mundo.

Os MacLeod do Skye falavam o mesmo idioma, levavam a mesma roupa, comiam a mesma comida e viviam em parecidas estruturas que ela, mas tudo era diferente. Havia sutis variações, que faziam que inclusive o familiar parecesse estranho e novo.

Os dois dias seguintes foram um pouco melhores: decidiu manter-se ocupada tentando fazer que o grande salão ficasse mais acolhedor. A residência não era tão miserável como tinha temido ao chegar, mas tampouco dispunha desses toques adicionais, esses pequenos luxos aos que estava acostumada. Todo o grande salão, o edifício principal do castelo, sua estrutura, mobiliário e decoração eram básicos, práticos e inegavelmente masculinos. Parecia o que era: um refúgio para os guerreiros, quando não estavam no campo de batalha.

Nada parecido à hospitalidade que ela tinha imaginado.

Ao princípio temeu que tivesse que dormir em comunidade junto ao fogo, mas a aliviou descobrir que atrás do grande muro do salão havia três câmaras privadas. Conduziram-na à central, um quarto com uma cama, uma mesa, uma cadeira e um pequeno armário para guardar roupa.

Christina estava de pé diante a maior das três câmaras. Chamou quedamente à porta do ambiente do senhor, ou do rei como lhe chamavam aqui, e entrou quando o indicaram. RI tuath. Rei da tribo. Assim é como chamavam a seu marido. A princípio acreditou que não tinha entendido bem, mas se tinha aprendido algo desde que tinha chegado, era que aquela gente reverenciava a seu chefe. Para eles, Tor era o que tinha sido antes que Skye fora anexado a Escócia: um rei ilhéu. O fato de que lhe considerassem o melhor guerreiro de seu tempo contribuía ainda mais ao orgulho do clã. Os poemas que recitava o Sennachie20 durante as refeições elogiavam seu chefe em termos quase míticos. Seguro que seu marido não podia ter vencido sozinho a um grupo de homens que o rodeavam.

Rhuairi, o taciturno senescal, levantou o olhar do seu posto na mesa junto ao escrivão. O jovem clérigo lhe dirigiu um sorriso de boas-vindas, a que ela respondeu com gratidão. A maioria dos rostos conhecidos da guarda pessoal de Tor embarcou com seu marido, e o escrivão era o único rosto familiar com seriedade. Se Christina se perguntasse de onde vinha a expressão fria e distante de seu marido, não teve mais que fixar-se nos membros de seu clã. Temia que aquilo fosse uma característica da ilha.

—Bom dia, milady — disse o escrivão—. Levantastes logo esta manhã.

Devolveu-lhe o sorriso.

—Sim, irmão John, há umas coisas das que eu gostaria de me ocupar hoje.

Pareceu-lhe que o senescal tinha soltado um grunhido, embora sem emitir som algum.

Christina recolheu uma mecha de cabelo atrás da orelha e ergueu os ombros. Não estava disposta que a dissuadissem. Agora essa era sua casa. Ela era a senhora do castelo, e tinha direito a fazer algumas pequenas mudanças, se o desejasse.

Embora houvesse se sentido tentada a esconder-se em seu quarto a ler seu livro até que voltasse seu marido, estava decidida a demonstrar que podia ser uma boa esposa para ele. Sabia que a considerava jovem e inexperiente. Para Tor, era uma menina amalucada que tinha cometido um engano e que esteve a ponto de que a violassem, ou uma covarde que o tinha manipulado para casar-se, em lugar de enfrentar à cólera paterna.

Mas Christina era mais que isso, e queria que ele visse. Que visse a ela.

—É obvio, algo que necessite, milady, estaremos ao seu dispor — disse o senescal.

—Obrigado — repôs—. Pensei que hoje podia começar pelas paredes.

Os dois dias anteriores se ocupara de assuntos mais prementes, incluído limpar a roupa de cama que encontrou empilhada em um baú (pelo visto ninguém tinha utilizado o aposento fazia muito tempo), mudar os estores das paredes da sala e substituir o condensado colchão de seu dormitório; do dormitório de ambos, corrigiu-se, sentindo um rubor nas bochechas.

O aspecto íntimo de seu matrimônio dominava seus pensamentos. Atrasar a noite de bodas tinha servido sobretudo para que tivesse muito tempo para pensar nisso. Seria diferente agora que já sabia o que esperar, e agora que seu marido sabia como era ela?

Os dois homens pareciam um pouco perplexos.

—As paredes? —O senescal foi o primeiro em perguntar.

—Sim.

A sala só contava com as frestas escavadas na pedra grossa e com um buraco no centro do teto de madeira para permitir que saísse a fumaça da fogueira, por isso dizer que era escura e lúgubre era dizer muito pouco. Ela tinha acrescentado uns candelabros às mesas, mas custaria uma autêntica fortuna em velas conseguir que se notasse realmente.

—Quando limpei o armário, vi uma pilha de tapeçarias velhas. Pensei que podia tirá-los para limpar o pó e pendurá-los nas paredes. —Franziu as sobrancelhas—. Sabem de onde procedem?

O senescal negou com a cabeça.

—Não, milady. Este aposento não se usa faz tempo. Possivelmente pertenceram a lady Florence.

A primeira mulher de Tor. Christina já tinha suposto. Ela tinha nascido na Irlanda, e muitas das tapeçarias continham motivos do folclore irlandês. Christina não queria suscitar nenhuma lembrança dolorosa de sua primeira mulher, mas seu marido não parecia ser absolutamente propenso ao sentimentalismo. Não importava a procedência, as tapeçarias eram muito preciosas e coloridas para escondê-las em um armário.

—Há algo mais? —perguntou o senescal. Seu tom indicava que esperava que não.

—Não, isso é tudo. —Christina se dispôs a sair e então fingiu que lhe acaba de ocorrer uma coisa que, em realidade, era o autêntico objetivo de sua visita—. Por acaso houve algum recado?

Depois do olhar de desconcerto que o mordomo lhe tinha arrojado quando o tinha perguntado pela primeira vez, não cometeu o engano de dizer «para mim». Por que ia enviar seu marido um recado para ela?

Mas seu esforço por aparentar indiferença não tinha enganado a nenhum deles. O escrivão baixou o olhar e estudou seus pergaminhos atentamente, e o mordomo a olhou incômodo.

—Não, milady. Nenhum recado.

—Ah, bem — disse ela, com naturalidade—. Estou segura de que não demorarão a voltar.

Mas a falsa jovialidade não conseguiu dissimular de tudo sua decepção, nem sequer pra si mesma.

Christina deixou aos homens com suas tarefas, ansiosa de evitar seus olhares de pena. Sentiam compaixão por ela, de um modo que a fazia pensar que estava escapando algo importante.

Voltou a perguntar-se se Tor retornaria algum dia. Não estava disposta a sentir-se ferida, disse a si mesma que ele tinha responsabilidades… Embora isso significasse perder sua noite de bodas. Ia-se ser a esposa de um guerreiro, teria que acostumar-se. Mas embora conseguisse esforçar-se para entendê-lo, não se sentir desiludida ficava muito mais difícil. Ele tinha partido sem dizer adeus. Isso fazia com que ela se sentisse insignificante, uma sensação que esperava esquecer.

Passou o resto da manhã muito atarefada. Ocupou-se de limpar e pendurar as tapeçarias, enquanto tentava manter aos cães do chefe afastados de suas novas estores. Mas os três enormes galgos escoceses eram muito adoráveis, e depois de uns lamentos e choramingos, rendeu-se e optou por ordenar que os banhassem. O servente a olhou como se estivesse transtornada, mas fez o que indicou.

Era um olhar que começava a acostumar-se. Não era que essa gente fosse séria, mas tampouco resultava amigável. Era uma atitude que estava entre as duas anteriores. Parecida com uma soma de respeito e de desconcerto.

Salvo em um caso. O olhar dela tinha sido completamente diferente.

Surpreendentemente havia poucas mulheres no castelo. Além de um par de moças nas cozinhas, a maioria dos criados eram homens. Possivelmente por isso Christina se fixara na mulher em seguida. Destacava.

Quando tinha entrado no grande salão de braço do senescal a primeira noite para ser apresentada a seu povo, uma exclamação em particular lhe tinha chamado a atenção entre os gritos de surpresa geral ante o anúncio de que ela era a nova senhora do castelo. A mulher era alta e majestosa, voluptuosa, loira e muito formosa. Era mais velha que Christina, possivelmente dez anos mais que os vinte e um que tinha, mas esse tempo tinha acrescentado sua beleza. Levava o cabelo recolhido em uma trança sobre a cabeça, e era a única mulher que luzia um vestido de veludo grosso e não um simples leine e uma capa.

Seus olhares se encontraram. Christina sabia que essa mulher era alguém especial. E suspeitava que tivesse algo a ver com seu marido. Mais afetada do que desejava admitir por aquele gesto, tinha evitado cuidadosamente encontrar-se de novo com seu olhar. Desde aquela noite, a mulher loira não se aproximou da residência, o qual somente aumentou suas suspeitas. Mas Christina era muito covarde para fazer perguntas, de modo que se consagrou ao trabalho.

Assim que as tapeçarias estiveram penduradas no salão, decidiu fazer algo com as mesas. Entre o monte de roupa de cama, tinha encontrado também alguns tecidos coloridos e toalhas de mesa bordados que tinha lavado, secado e logo colocado nas mesas. Uns poucos vasos de flores frescas, um par de candelabros brunidos, alguns raminhos de lavanda pulverizados sobre as toalhas de mesa, e aquele ambiente escuro e tenebroso ficou virtualmente irreconhecível.

Agradada com o que tinha encontrado no armário, dirigiu-se para as cozinhas do edifício adjacente, perguntando-se que tesouros encontraria nas despensas.

As cozinhas eram bastante espaçosas e estavam situadas em um edifício de pedra longo e retangular, com um telhado de vigas de madeira. A única luz era a que entrava pela porta aberta. A fuligem negra das fogueiras cobria os muros e o ambiente estava cheia de fumaça. Ao contrário da residência, os muros de pedra estavam armados com grosseria, de modo que Christina se perguntou se aquela era uma das casas comunais originais das que tinha falado seu marido. A pesar do calor que emanava do forno, sentiu um calafrio. De repente, comparado com aquelas estadias, a residência lhe parecia um palácio.

O cozinheiro, um homem de cinqüenta e tantos anos, ao que faltava a maioria dos dentes, não parecia contente de vê-la. Mas Christina sabia que se não se impunha agora, nunca teria uma segunda oportunidade, e isso lhe deu valor para não retroceder.

—Desejas algo, milady? —perguntou ele.

Atrás do cozinheiro havia dois meninos e uma garota, provavelmente alguns anos mais novos que ela, olhando-a com desconfiança.

—Pensei que podia dar uma olhada nas despensas e comprovar as reservas para o inverno.

O cozinheiro não se incomodou em ocultar seu chateio, mas passou a meia hora seguinte repassando as provisões e respondendo a suas perguntas. Na despensa a fumaça era mais suportável, mas seguia queimando os pulmões. Quando voltou para a parte frontal da cozinha, ouviu a tosse intermitente de outros serventes.

Desgraçadamente, ali não parecia haver nenhum baú velho com um contrabando escondido de pratos e taças de ouro. Quando o cozinheiro a conduziu de volta às cozinhas junto aos fornos, Christina compreendeu de repente o motivo de toda aquela fumaça.

Assinalou a grosa capa de cinza e fuligem acumulada no forno.

— Quando foi a última vez que o varreram e limparam?

Ele deu de ombros.

—Assim é mais fácil manter o fogo vivo. Aqui faz frio. Além disso, ao chefe gosta do pão quente.

Quando outra grande coluna de fumaça encheu o ambiente, Christina tampou o nariz e a boca.

—Deve estar entupido — disse, tossindo. Com razão havia tanto fumaça. Como podiam trabalhar ali todo o dia nessas condições? Não podia ser bom para sua saúde respirar aquilo—. Apaguem-no — ordenou que—. Fará muito mais frio se ficarmos sem teto - De menina tinha visto um incêndio em uma cozinha e era uma imagem que não lhe esqueceria nunca.

—Mas o que passará com o jantar? Os fornos demorarão muito em esfriar para poder limpá-los e reacender.

—Uma comida fria não nos fará nenhum dano. Bastará com a carne e o pão que sobraram antes. —Em qualquer caso, «o chefe» não estava presente e não podia protestar.

O cozinheiro encolheu os ombros e disse a um dos moços:

—Faz o que diz a senhora.

O menino levantou um balde de água e a atirou sobre o fogo.

O vapor emanou da pedra quente com um assobio. Foi preciso outro balde para apagar completamente as chamas.

Sem o calor dos fornos, o ambiente se esfriou em seguida de forma considerável. O cozinheiro parecia confiar em que Christina partisse, mas ela decidiu ficar e fiscalizar a limpeza. O qual foi uma boa idéia, porque quando chegou o momento de limpar a sujeira da chaminé, ela era a única o suficientemente miúda para ficar de pé na estreita abertura.

Utilizando um pau, tirou a mescla de fuligem, cinza e folhas. Por desgraça não se afastou com suficiente rapidez e uma boa parte lhe caiu em cima.

Depois de um silêncio provocado pelo estupor, Christina deu uma olhada à expressão horrorizada da jovem criada e pôs-se a rir, pensando no aspecto que devia ter. A garota sorriu levemente e logo se uniu a ela.

—Acredito que mais vale que nos demos pressa e voltemos a pôr em marcha esse fogo - disse—. Parece que necessito um banho.

Quando terminaram, inclusive o velho cozinheiro estava rindo.

*

Quase tinha anoitecido quando o birlinn chegou ao embarcadouro de Dunvegan.

Tor estava de mau humor, pois a perseguição dos atacantes acabara num fracasso incomum. Quando tinha chegado ao povoado, o fogo já se estava extinguindo. O ataque tinha começado em plena noite. Como em vezes anteriores, os agressores tinham roubado o gado e incendiado as colheitas. Sua boca desenhou uma careta turva. Mas dessa vez tinham morrido dois dos seus. Era um menino não muito maior que Murdoch. De pé junto aos corpos sanguinolentos dos membros de seu clã, Tor havia sentido invadido por uma ira devastadora.

Se estivesse ali tão somente um dia antes, teria impedido que acontecesse aquilo. Se não se atrasasse no Finlaggan, teria retornado a tempo. Esse matrimônio se iniciava de um modo muito pouco prometedor.

Ele e seus homens tinham saído em perseguição aos atacantes, e quase os apanharam perto da ilha do Lewis, mas voltaram a perder durante uma tormenta. Não muitos homens podiam ser melhores estrategistas que ele a bordo de um navio. MacSorley era um deles, e possivelmente os MacRuairi, se esses malditos piratas tinham um dia de sorte. Assim, quais eram? Podia tratar-se dos Nicolson, mas não acreditava que se eles decidiam atacar, fizessem-no a altas horas da noite para roubar gado. Aquilo tinha a marca dos MacRuairi, mas por que foram atacar Dunvegan quando Lachlan acabava de aceitar lutar sob seu mando? Não tinha sentido.

Por muito que desejasse seguir perseguindo, tinha que voltar. Os guerreiros da guarda secreta de Bruce não demorariam em chegar.

Tor subiu dando pernadas os degraus da comporta marinha, saudando os membros de seu clã ao passar. Estava cansado e faminto, mas também era consciente —dolorosamente consciente— de que sua esposa lhe esperava. Durante a viagem de volta, a cada minuto que passava seu coração parecia pulsar com mais força, e o sangue lhe fervia um pouco mais quando seu corpo antecipava o prazer que lhe esperava.

O atraso só tinha intensificado seu desejo por ela, e agora que se achava em casa, estava ansioso por vê-la. Franziu o cenho; sabia que isso não era de tudo certo. Não era só porque estivesse em casa. O surpreendente era que tivesse pensado nela quando se encontrara longe dali.

Tinha lamentado ter que partir tão repentinamente, mas não havia tempo a perder. Cada minuto era precioso. Sabendo que ela estaria a salvo em Dunvegan, seu único objetivo tinha sido chegar ao povoado.

Enquanto se aproximava da residência, enviou a seu An Leincchneas, seu conselheiro pessoal, Fergus, a informar a de sua chegada. Estava impregnado da fetidez da viagem, e decidiu dar uma volta pelas cozinhas para dar um reconfortante banho quente. Uma sopa fumegante e um pouco de pão ajudariam muito a melhorar o humor antes de saudar sua esposa.

Embora Christina tivesse mais caráter do que em um princípio lhe tinha atribuído, recordava a um passarinho assustado. Mas conduzir-se com gentileza não era algo natural em um homem que passou quase toda a vida rodeado da desumana brutalidade do campo de batalha. Essa era uma das razões pelas que inicialmente tinha rechaçado a aliança; não acreditava que pudessem entender-se. Christina necessitava de alguém que a apoiasse e se ocupasse dela. Tor era um homem endurecido pela guerra e pela morte, que somente pensava no dever para seu clã.

Por ouvir umas gargalhadas, deteve-se na entrada e franziu o cenho. Não acreditava ter ouvido Cormac rir alguma vez, o velho cozinheiro, e aquele som jubiloso e terminante lhe desconcertou.

Ninguém lhe viu entrar no edifício em penumbra. O qual lhe pareceu lógico quando viu cinco pessoas de joelhos, com as cabeças dentro do forno, e os traseiros levantados.

Era óbvio que se estavam divertindo, a julgar pela quantidade de gargalhadas. Não quis interromper e olhou atentamente, tentando averiguar que demônios resultava tão gracioso. De repente ficou imóvel.

Não foi o vestido o que a desmascarou, a não ser algo muito mais elementar. Ao dar-se conta de que reconhecia um daqueles traseiros levantados, todo seu corpo deu um salto. Um fogo ardeu em seu interior. Aguçou o olhar, devorando cada centímetro daquelas nádegas de curvas suaves e arredondadas. Recordava sua nudez, terna e exuberante pega a ele, essa aveludada pele pressionando contra o mastro férreo de sua ereção.

Seu corpo se esticou e todos seus músculos se flexionaram, sabendo o fácil que seria, e que tinha todo o direito, de ir ali, lhe levantar as saias e penetrá-la por trás. Desejava ver como se moviam seus peitos enquanto ele investia em seu interior, devagar ao princípio, e mais forte e mais rápido depois. Desejava abraçá-la e excitá-la com os dedos, até que ela sucumbisse em seus braços.

Seu membro se endureceu, sabendo o prazeroso que seria. Sabendo que o corpo dela aferraria como um punho firme e quente ao seu próprio. Sabendo até que ponto podia provocá-la.

Apertou a mandíbula, irritado pela intensidade de seu desejo por ela. As coisas que queria lhe fazer não tinham nada que ver com suas idéias sobre uma esposa inocente, embora ela tivesse um corpo criado para excitar o prazer de um homem. Ele nunca tinha fantasiado desse modo sobre uma mulher. Mas os longos dias e suas noites passados no mar, pensando na nova esposa que lhe esperava, tinham-no convertido em uma besta mais que em um homem.

O cozinheiro o viu.

—RI tuath —disse ao momento—. Retornou.

Outros se voltaram para ouvir a voz do cozinheiro, e Tor teve que conter-se para não estalar em gargalhadas.

Sua esposa levava uma boina branca e plaina sobre a cabeça, mas esta e o resto de seu corpo estavam cobertos de cinza e fuligem, de cima abaixo.

Era óbvio que Christina tinha tentado limpar o rosto, mas o único que tinha conseguido era estender uma grossa camada negra por toda a pele. Somente o branco de seus olhos o olhava com espanto do escuro rincão da cozinha.

Tor recuperou a compostura instintivamente para dissimular a risada. Por alguma razão acreditou que a sua esposa não gostaria que lhe divertisse achá-la em tal estado.

—Retornaste! —exclamou ela ficando em pé. Deu um passo para ele, e por um momento Tor acreditou que ia lançar se em seus braços. Franziu o cenho, mais surpreso que outra coisa, e ela se deteve.

Se o tivesse feito, como teria reagido ele? Teria ficado imóvel ou a teria atraído para si? Não estava acostumado a tais amostras de afeto, mas sua jovem esposa parecia tê-las escritas na espontaneidade do rosto e em sua exuberância natural. Era tão desconcertante como estimulante.

—Sim - respondeu—. Acabamos de voltar. Ordenei que lhe mandassem recado à residência. —Examinou-os a tudo com o olhar—. Mas pelo visto interrompi algo.

Teria jurado que a viu ruborizar-se sob a fuligem que cobria o rosto. Era uma boa camuflagem, pensou, e guardou a idéia para mais adiante, quando pudesse ser útil esconder-se na escuridão.

Ela tentou arrumar um pouco o vestido, sacudindo a saia e espanando os restos da cinza com as mãos.

—Estava revisando os fornos com o cozinheiro quando, bom, havia tanto fumaça que me ocorreu que a chaminé devia estar entupida, assim decidi que teria que limpá-la antes que provocasse um incêndio.

Tor arqueou uma sobrancelha.

—E te ofereceu a fazer?

Christina mordeu o lábio.

—Temo-me que eu era quão única que cabia. Pelo visto não me afastei a tempo - disse com ironia.

—Pelo visto, não — corroborou ele. E então sorriu; não pôde evitar e se surpreendeu ver que lhe devolvia o sorriso. Gostou que fosse capaz de rir de si mesma sem dar importância. Indicava uma refrescante falta de vaidade.

O cozinheiro começou a lançar uma série de ordens aos servidores que ficaram ali, olhando.

—Você e outros homens quererão comer algo — disse.

—E um banho — acrescentou Tor, recordando a razão inicial pela que tinha ido ali.

O cozinheiro e Christina trocaram um olhar. Tor teve a sensação de que ela pestanejava um pouco e quando se voltou para ele, estava mordendo o lábio outra vez.

—Com o banho — vacilou ela—, temo-me que agora mesmo pode haver um problema. —retorceu as mãos sobre o regaço—. Não sabia que fostes voltar, e tínhamos que apagar o fogo para limpá-los. Estávamos tentando reacender quando entrou, mas está tudo bastante úmido.

—Já vejo — disse ele, sem alterar-se. Adeus ao banho quente—. E a comida?

O cozinheiro a olhou como dizendo «lhe adverti isso». Ela observou ao Tor por debaixo de suas largas pestanas.

—Eu disse ao Cormac que esta noite faríamos um jantar frio.

Quando ele franziu o cenho, ela se ergueu um pouco e olhou aos olhos.

—Talvez se a próxima vez nos avisasse de sua chegada, estaríamos mais preparados.

O cozinheiro abriu os olhos horrorizado, e inconscientemente a cobriu com o corpo como se quisesse protegê-la do aborrecimento de Tor.

Este levantou as sobrancelhas surpreso, tanto pelo gesto de amparo de Cormac como pelas palavras de Christina. Sua miúda esposa acabava de lhe chamar a atenção, e tinha encontrado a um inesperado protetor.

Pensou que provavelmente devia repreendê-la, tal como era óbvio que Cormac esperava que fizesse, mas não podia evitar que parecesse divertido. Ele era o chefe. Ninguém lhe criticava, exceto talvez seu irmão e sua irmã, em alguma ocasião. E agora essa pequena moça. Estava acostumado a que as mulheres se sentissem intimidadas, inclusive assustadas. Gostava que não lhe acontecesse nada disso.

Permitiria sair ilesa por esta vez. Mas a próxima a corrigiria.

—Terei em conta — disse com secura, lhe sustentando o olhar. Voltou a sentir aquela peculiar conexão. O intenso desejo de posse. Não surgia lentamente: era uma reação feroz e primitiva.

Apesar da pátina de fuligem dela e da capa de imundície que cobria a ele, queria levantar a em seus braços e levá-la à cama. Em pleno dia, Por Deus santo.

Como acontecia isso? O que tinha essa pequena moça?

Como conseguia que seu corpo ardesse de desejo com somente olhá-la aos olhos?

Tinha muita fome dela, maldição. Não estava habituado a ficar absorto, diabos nem a ser incapaz de controlar a reação de seu corpo. Essa falta de disciplina o irritava, mas logo desapareceria. Assim que se deitasse com ela, tudo voltaria para a normalidade.

Afastou o olhar bruscamente e se dirigiu ao cozinheiro.

—Os homens estão famintos. Bastará algo que possa nos preparar.

Deu a volta para partir.

—Espera—disse Christina—. Aonde vai?

—Ao fiorde — disse Tor ao sair. De repente lhe pareceu uma grande ideia tomar um banho frio.


Capítulo 10


Durante um segundo horrível, Christina pensou que Tor pretendia voltar a partir. Mas quando o cozinheiro ordenou a um dos criados que lhe proporcionasse sabão e roupa seca, invadiu-a uma sensação de alívio. Somente pretendia banhar-se.

Ela tinha temido que seu protesto o tivesse zangado. Não tinha tido a intenção de censurá-lo, mas talvez a afronta que sentiu por sua partida não se desvanecera de tudo como acreditava.

Que má sorte que Tor tivesse retornado quando estava a quatro patas, coberta de cinza e fuligem! Devia parecer um espantalho. Um espantalho cômico. Ao pensar em sua expressão quando a tinha visto, fez uma careta. Ele tinha tentado dissimular a risada, mas ela a viu dançar em seus olhos. Já podia esquecer-se de cativar com seus encantos femininos quando voltasse; não podia imaginar um recebimento menos fascinante.

Voltou correndo ao salão para limpar-se tanto como pôde, até que tivessem suficiente água quente para poder banhar-se mais tarde. Estava impaciente por ver o que pensava Tor de seus esforços por iluminar o grande salão, e queria estar ali para observar sua reação quando o visse pela primeira vez.

Mhairi a ajudou a tirar o vestido sujo e utilizou um pano úmido e sabão para lhe limpar o rosto e as mãos de fuligem e cinza. Felizmente, o gorro tinha protegido bastante o cabelo da cinza que tinha caído. Mhairi a preparou em questão de minutos para que voltasse para salão, desenredou-lhe o cabelo, o deixou solto, como uma suave cascata sobre as costas, e a vestiu com uma nova cor verde esmeralda.

Chegou bem a tempo. Apenas cinco minutos depois de que ela entrasse no grande salão pelo pequeno corredor que conduzia aos aposentos, seu marido chegou pela porta principal situada frente ao estrado. Embora ainda faltasse um momento para o jantar, tinha deslocado a voz da volta dos homens, e uma dúzia de membros do clã tinha ido ao salão para lhe dar as boas vindas, enquanto compartilhavam o improvisado ágape. Seu jantar frio, pensou ela com pena.

Reprimindo um sorriso de emoção, observou espectadora o rosto de Tor, esperando o momento em que se desse conta de todas as mudanças que ela tinha feito. Agradou-lhe comprovar que parte de sua fadiga tinha levado o estuário. Quando inicialmente levantou o olhar para lhe ver, o primeiro que pensou — depois de ficar horrorizada de que a visse com tão mau aspecto—, foi que ele parecia não ter dormido nos quatro dias que tinham passado desde que a tinha deixado no embarcadouro. Provavelmente não tinha dormido. Não muito, em qualquer caso.

Quando ele avançou para ela enrugou ligeiramente a fronte. Foi um avanço lento, pois seus homens, claramente contentes de lhe ver, pararam-no ao passar. Olhavam-no com uma mescla de espanto e admiração; sentimentos que Christina entendia muito bem.

Tor tinha um aspecto magnífico. Levava o cabelo úmido penteado para trás, afastado do rosto e ligeiramente encaracolado à altura das orelhas. Barbeou a barba de quatro dias, enfatizando o orgulhoso perfil de sua mandíbula. Em lugar da jaqueta de pele, levava um diferente leine bordado e um tecido escocês em tons cinza atada ao pescoço com uma enorme jóia em forma de agulha.

Nunca o tinha visto tão cômodo. Ali em seu castelo, entre os membros de seu clã, por fim podia baixar a guarda e relaxar-se.

Não foi sua aparência, entretanto, o que fez que Christina franzisse o cenho. Tor não se fixou. Tinha passado junto aos novos estores, ao lado do grande vaso com flores, dos tecidos de cores sobre as mesas e dos candelabros extras, mas não tinha notado as mudanças.

Sua emoção se apagou um pouco, mas não desapareceu de tudo até que seus olhos piscaram ao vê-la. Sustentou o seu olhar durante um momento até que por fim se fixou em algo do que ela tinha feito. Levantou o olhar para a grande tapeçaria que Christina tinha pendurado depois do estrado.

Tor ficou imóvel, como se tivesse visto um fantasma. Seu rosto empalideceu e uma chama de intensa dor cintilou em seus olhos, antes que sua expressão se voltasse totalmente inescrutável. Mas ela sabia que estava zangado. Captou-o nas ligeiras marcas brancas esculpidas ao redor de sua boca escura e em seus olhos, quando carregou o peso de seu olhar de novo sobre ela.

Christina ficou pálida e desvaneceu toda sua emoção. Sentiu um estremecimento interior. Tinha-lhe importado sua anterior mulher mais do que ela tinha acreditado? Claro que sim, e seu desconsiderado tento de animar o lúgubre salão e lhe demonstrar que era capaz de ser uma boa esposa tinha despertado lembranças dolorosas.

Amaldiçoou sua insensatez, mas as coisas pioraram ainda mais. Os cães tombaram a seus pés, mas quando seu amo se aproximou se dispuseram a lhe receber. O maior dos três, Bran, saltou sobre ele. Tor o observou, deu um coice e a olhou sombrio. Com um par de pernadas chegou a seu lado; emanava uma raiva gélida.

—O que tem feito a meus cães?

Falou em voz baixa e tranqüila, mas ela não se enganou. Estava furioso. Christina reprimiu o pranto que ameaçava brotando. Tremia-lhe o queixo quando ergueu os olhos para sua tormentosa expressão, consciente de que mais de um observava a situação com interesse. Ela sozinho tinha tentado ajudar.

—Os… banhei.

—Em água de rosas? —perguntou Tor entre dentes.

Ela pestanejou e se mordeu o lábio. Tinha pensado que seria uma melhora.

—Usamos a água que sobrou de meu banho.

Viu o palpite que pulsava sob seu queixo e soube que Tor estava tentando controlar o mau humor. por que tinha banhado os seus cães?

Não, pensou Christina. Não estava zangado pelos cães; estava zangado pelas tapeçarias.

A ira desapareceu tão rapidamente como tinha aparecido.

—No futuro, deixará que eu seja quem me ocupe do banho dos cães.

Sentou-se a seu lado, e a seu redor surgiu uma conversação destinada claramente a ocultar o incômodo diálogo entre o senhor e a senhora. Foi como se todos se dessem conta, igual a ela, de que havia algo mais em jogo.

Dolorosamente consciente do homem que tinha ao lado, Christina mordiscou um pedaço de pão crocante, tentando dissimular o desgraçada que se sentia. Em lugar de lhe impressionar, tinha complicado as coisas. Ele não se fixou em nada do que tinha feito, exceto nessas ofensivas tapeçarias.

Ela, em troca, fixou-se em tudo. Do momento em que Tor se sentou, seu penetrante aroma varonil suscitou suas lembranças. O aroma limpo e fresco do sabão recordou seus braços rodeando-a, retendo-a, tocando-a, excitando-a. Sobreveio-lhe a consciência visceral e brutal das eróticas lembranças daquela noite. Cada vez que seu poderoso ombro ou os músculos escuros de sua coxa a roçavam era pior. Inclusive o contato físico mais leve lhe arrepiava a pele e os nervos.

Desejava um maior contato. Queria notar de novo o calor de seu corpo. Que ele a tocasse de todas essas formas maliciosas. Seguro que era pecado desejar esse tipo de coisas. Mas era como se a expectativa ante sua noite de bodas, crescente da cerimônia, tivesse alcançado finalmente o grau máximo. Sentia o corpo vulnerável, cada roce era um impacto que fazia estalar seus nervos.

Era uma tortura estar tão perto dele. Mas Tor parecia felizmente alheio a suas torturas. Em realidade, não parecia que fora sequer consciente de sua presença.

Christina não queria que estivesse zangado com ela.

—Sinto muito - disse quando Tor terminou de falar com o homem a sua esquerda, Gelis, seu Sennachie—. Não pretendia me intrometer. Queria surpreender.

Ele arqueou suas sobrancelhas escuras. Christina sentiu que seu coração desfalecia um pouco mais. Era óbvio que Tor não tinha nem idéia do que estava falando.

Ela percorreu a sala com o olhar.

—Os candelabros, as toalhas, as flores, os novos estores… —deteve-se—. As tapeçarias.

Tor deu um muito leve coice, mas logo olhou para onde olhava ela, e notou pela primeira vez as mudanças que tinha feito. Deu conta de que devia dizer algo e comentou com tranqüilidade: —É agradável.

Agradável. Christina sentiu um leve estremecimento nos ombros. Não era a reação entusiasmada que ela tinha esperado.

Possivelmente ele notou sua decepção, e retificou:

—Muito agradável.

Christina apertou os lábios e sentiu uma chama de ira. Primeiro a tinha abandonado sem dizer adeus, e agora apenas se dava conta do duro trabalho que tinha feito em sua ausência. Em sua voz apareceu um deixe de sarcasmo desconhecido até o momento.

—Se desejar, posso levar aos cães lá fora e deixar que se derrubem no barro como teria gostado. —Sorriu com doçura—. Federiam exatamente igual a antes.

Tor fez uma careta.

—Não acredito que isso seja necessário. —inclinou-se para acariciar a cabeça do Brand, passou os dedos cheios de cicatrizes da batalha entre o cabelo limpo e suave—. Tinha esquecido de que cor eram.

Tinha umas mãos grandes e poderosas, como o resto do corpo. Ela recordou a sensação dessas palmas calosas acariciando sua pele nua. Dessas mãos sobre seus seios, desses dedos jogando com seus mamilos. O rubor alagou suas bochechas e desviou o olhar. O que lhe passava? Era incapaz de pensar em outra coisa?

Enquanto bebia um gole de cerveja, Tor lhe lançou um olhar inquisidor por cima da taça: o ardor bulia nessa imensidão azul escuro.

—Quase não me atrevo a perguntar, mas além de limpar os fornos e animar meu salão, a que mais te dedicaste enquanto eu não estava?

Christina esboçou um pequeno sorriso, agradecida pela mudança de tema.

—Só a isso, temo-me. Foram poucos dias.

Tor riu.

—Suponho que devo me alegrar de não ter estado fora mais tempo.

Ela falou com um tom mais sério.

—Inteirei-me do que aconteceu ao povoado. Pôde encontrar aos homens que atacaram?

Ele meneou a cabeça.

—Não, tinha que voltar para Dunvegan. Mas não poderão esconder-se indefinidamente. Encontrarei-os, e quando o fizer, pagarão pelo que têm feito.

A mortal certeza de sua voz a convenceu de que faria o que dizia, e pensou em algo que Tor tinha comentado.

—por que tinha que voltar? —Não se atrevia a pensar que era por ela.

—Tenho que me ocupar de uns assuntos. —Fez um vago gesto com a mão—. Nada importante. —Ela notou que voltou a observá-la - trataram-te bem durante minha ausência?

Christina assentiu.

—Sim, Rhuairi obedeceu suas instruções.

Ele a olhou como se soubesse que se estava discretamente escondendo algo.

—Não era as boas vindas que teria gostado que tivesse.

Christina levantou o olhar para seu marido.

—Nem a despedida. —Não tinha pretendido dizer nada em concreto; simplesmente escapou a frase.

Ele enrugou a frente; um genuíno gesto de desconcerto masculino.

—Não havia tempo.

—Para despedir-se?

—Cada segundo perdido dificultava a captura. Tinha que correr.

—Já sei — disse ela, dirigindo o olhar à toalha e sentindo-se de repente como uma boba pela dor que tinha revelado sem querer.

O olhou de esguelha por debaixo dos cílios e viu que franzia o cenho.

—Para ti é importante despedir-se? —perguntou.

Christina assentiu.

—Então no futuro deverei me esforçar em fazê-lo e te informar quando for.

Sorriu-lhe, contente.

—Obrigada. —Animada pela conversa, decidiu pedir desculpas também—. Sinto se me hei extrapolado com as tapeçarias. —Tor apertou os lábios e ela se apressou a explicar—. Os encontrei em um baú e pensei que eram muito bonitos para estar guardados. Posso retirá-los se quiser.

O olhar de Tor se escureceu.

—Não me importa como decore o salão. Faz o que te agrade.

Comportava-se como se não lhe importasse, mas ela sabia que algo lhe tinha doído.

—Foi muito desconsiderado por minha parte não pensar que te traria lembranças dolorosas. Deve ter tido muitíssimo afeto a sua esposa.

—Minha esposa? —Ele negou com a cabeça—. Não pertenciam a minha esposa; eram de minha mãe.

Ela ficou calada, digerindo a informação. Sabia tão pouco de sua família…

—Sua mãe morreu?

—Faz anos, junto a meu pai, durante um ataque ao Skye.

Disse sem o menor traço de emoção. Como se falasse do tempo. Mas ela sabia que se calava algo. Algo terrível tinha passado.

—Quantos anos tinha?

Ele esticou os dedos ao redor da taça. Havia uma expressão de cautela em seus olhos.

—Dez.

Tão somente um menino. Sentiu pena por ele. Somente queria lhe rodear com seus braços e consolar ao pirralho que seguia sentindo saudades de sua mãe. Estava claro que ele não desejava falar disso, mas Christina não pôde evitar dizer: —Devia querê-la muito.

Mas o tom amável foi um engano. Aquele feroz guerreiro ilhéu não queria receber consolo dela. Era como um leão enorme e zangado com um espinho na pata.

Olhou-a aos olhos, frio, impenetrável.

—Apenas a lembrança — disse sem mais—. Tinha sete anos quando me enviaram a um preceptor.

Mas Christina não se enganou pela brutalidade da resposta. Começava a acostumar-se a seu falar terminante e suas maneiras sérias; era sua forma de ser. Seu marido podia acreditar que carecia de sentimentos, mas ela sabia que estavam ali, enterrados no mais profundo de suas vísceras. Tinha visto sua reação ante as tapeçarias. Tor tinha amado a sua mãe.

E se tinha amado uma vez, podia voltar a amar. Somente necessitava que alguém lhe recordasse como, alguém que se ocupasse dele. A ternura espreitava atrás dessa carapaça dura, gelada, e ela tinha a intenção de ser quem a desenterrasse.

*

Estava outra vez, pensou Tor: esse olhar espectador dos olhos de Christina, que reavivavam suas defesas.

Estava acostumado a que lhe olhassem como se quisessem algo dele, mas com ela era diferente. Christina Fraser era quão única tinha conseguido que se sentisse em falta por não conceder-lhe.

Tor nunca se sentiu em dívida com ninguém, mas essa moça miúda o fazia sentir como um resmungão por não lhe dizer adeus ou não dar-se conta das mudanças que tinha feito no salão. O primeiro não tinha acontecido nunca e o segundo não era assunto dele: um guerreiro não se preocupava de que um ambiente fosse luminoso, estivesse limpo e cheirasse bem.

Salvo as tapeçarias. Ver essas tapeçarias que sua mãe apreciava tanto e que reproduziam os Boyhood Deeds de Finn MacCool21 lhe tinha transtornado e suscitado lembranças que tinha acreditado esquecidas fazia tempo… Lembranças de sua mãe, a quem tinha adorado que tinha sido violada e depois assassinada por homens que estavam às ordens do conde de Ross, membro de sua própria família.

Tragou a onda de pensamentos de ódio. Trinta anos atrás, quando a ilha se convertera em parte da Escócia, Skye tinha ficado sob o governo do conde de Ross. Dez anos depois, Ross ordenou um ataque contra os MacLeod que tinha acabado com a vida dos pais de Tor e de tantos outros. Nem sequer os meninos se salvaram. Ele, junto a sua irmã e irmãos, tinham escapado da morte só porque se esconderam na nave da igreja.

Aquilo era passado. Tor não desfrutava de coisas que não podia mudar, mas ao ver as tapeçarias tinha recordado a lição que tinha aprendido do assassinato de seus pais: a importância de manter seu próprio conselho. A segurança de seu clã carregava unicamente sobre seus ombros. Não gostava que lhe questionassem, e se sua jovem esposa queria compartilhar confidências teria que as buscar em outro lugar.

Despedida, os toques femininos, as palavras. Sua primeira esposa não lhe tinha incomodado com esse tipo de expectativas. Tor sabia aonde ia parar todo isso, e era exatamente o que temia. Não tinha nem tempo nem vontade de inundar-se no escuro labirinto dos ternos sentimentos de uma jovem protegida. Tinha outras coisas de que preocupar-se, como quem havia por trás dos ataques e como respeitar sua parte do trato de treinar ao exército secreto de Bruce, sem pôr em perigo seu clã, nem ser detido por traição.

Não tinha tido a intenção de ferir a Christina, mas tampouco queria respirar a fantasia que estava construindo ao redor dele. Primeiro o herói ao resgate, agora o marido que adorava a sua mãe. Não era um hábito com o que desejasse vestir-se. Ele era um caudilho guerreiro; um homem que dirigia a seu clã na guerra e na paz, e nada mais.

—Se me desculpar… —disse, ficando em pé—. Meus homens me esperam.

Ela ficou desolada.

—Mas se acabar de voltar. Eu pensei…

Baixou o olhar; suas pestanas largas, cobertas de fuligem, acariciaram a curva pálida de suas bochechas. Frágil. Delicada. Sedutora sem medida.

Tor reprimiu com firmeza o impulso de dizer algo que a consolasse. Sabia o que Christina desejava. Mas não era um homem que estivesse pendente de sua esposa, e era melhor que ela aprendesse desde o começo. Tinha deveres e responsabilidades, que nesse momento incluíam organizar a chegada dos guerreiros, que podiam aparecer a qualquer momento.

—É obvio — disse ela com um sorriso tremente e lhe fazendo sentir ainda mais estúpido—. Compreendo. Verei-te no jantar?

Olhou-o espectadora com esses olhos escuros e fascinantes, e ele sentiu a força daquela súplica diretamente nas virilhas.

No espaço de um interminável instante, enquanto o sangue se agitava como um torvelinho em seu interior, esteve a ponto de mudar de opinião. Que o agradar a uma mulher pudesse o fazer esquecer suas obrigações com tanta facilidade fez que lhe gelasse o sangue. Se não tivesse experiência, pensaria que era algo que devia temer, o qual resultava cômico. Ele não tinha medo a nada. Mas essa moça exercia mais poder com um olhar sedutor que todo um exército no campo de batalha.

—Não sei — disse, desviando o olhar para não ver a decepção em seus olhos.

Christina se inclinou para frente e lhe agarrou a mão. Tor teve a sensação de que uma bola de fogo estalava em seu peito. A leve pressão daqueles dedos desatava todos os instintos animais que albergava em seu interior. Desejava sentir essas mãos sobre seu corpo.

—E mais tarde? —perguntou ela em voz baixa.

O canto da sereia.

Seu membro e seu testículo se esticaram com força, pegos a seu corpo. Sentiu uma rajada de ardor quando o desejo alagou seus sentidos.

—Sim — disse com rudeza, e a penetrou com olhos apaixonados—. Verei-te esta noite.

Faria-a dele. Maldita seja. Podia contar com isso, embora não lhe faria nenhuma outra promessa.

 

 

 


C O N T I N U A