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THE CHIEF - P. 2
THE CHIEF - P. 2

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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THE CHIEF - Parte II

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Capítulo 11


No interior do dormitório havia pouco que fazer para passar o momento enquanto esperava. Christina sentiu a tentação de tirar seu livro do esconderijo do baú, mas não estava segura de como reagiria seu marido se soubesse que lia. Ainda tinha muito fresca na memória a reação de seu pai, e seu matrimônio ainda era muito recente. Embora não acreditasse que se zangasse, seu marido era muito difícil de decifrar. Justo quando acreditava que tinha conseguido um pedacinho do autêntico homem que havia abaixo do temível guerreiro, o muro de aço tinha se erguido de novo.

De modo que tentou bordar. Mas depois de dar muitas espetadas com a agulha, se deu conta de que essa energia nervosa não era exatamente propícia ao bordado, de maneira que o afastou. Se tivesse um giz e uma piçarra, que não os tinha, desenharia. Se se parecesse mais com sua irmã, rezaria. Pedindo o que, não sabia. Paciência? Modéstia feminina? Ambas seriam bem vindas nesse momento. Tinha medo de estar muito ansiosa essa noite, e talvez sua ansiedade fosse imprópria. Era uma donzela inocente; deveria estar morta de medo, e não sentir uma comichão de excitação em lugares nos que não devia pensar.

Quase lamentava ter despachado Mhairi tão rápido, mas não tinha pensado que passaria a metade da noite esperando. Já quase devia ser meia-noite.


Arrependia-se de ter rechaçado a garrafa de vinho doce que lhe tinha dado a curandeira. Algo para mitigar seus nervos crispados.

Cansada de contemplar as sombras da chama do candelabro que refletiam no teto, Christina afastou o cobertor e saltou da cama. Curiosamente, a impressão do ar frio na pele e nos pés procedente do gélido chão de pedra a tranqüilizou. Caminhou de um lado a outro até que o candelabro se reduziu a nada. Até que na residência se fez um doloroso silêncio.

Finalmente ele não viria.

Dizendo a si mesma que não tinha importância, que não havia motivo para a devastadora tensão que sentia no peito, obrigou-se a deitar de novo na cama. Não obstante, custou-lhe conter o pranto.

O que tinha que mau nela? Acaso seu marido não a desejava?

O atordoamento do sonho a chamava, rondava como um oásis ao que não conseguia chegar. Estava a ponto de sucumbir quando a porta se abriu.

O ruído despertou de repente. Instintivamente se cobriu até o peito com o cobertor. Na escuridão só distinguiu a sombra de sua enorme silhueta na soleira. Estava ali imóvel. Ainda não tinha entrado, mas sua presença parecia encher o ambiente.

—Ainda está acordada — disse.

O timbre de sua voz fez que a Christina lhe arrepiasse o pêlo dos braços.

—Sim — disse em voz baixa.

Era o homem mais aterrorizante que tinha visto, e nunca tinha percebido o perigo de um modo tão intenso. Parecia alguém preparado para o combate, mais que um marido que ia fazer o amor a sua mulher. Rodeava-lhe uma aura de ferocidade. Suas pernas longas e musculosas pareciam crispadas e tensas.

De repente ela sentiu um espasmo de terror. Não lhe faria mal, verdade?

Ele fechou a porta ao entrar e cruzou o ambiente virtualmente às escuras. Somente os tênues raios da lua, que se filtravam através das placas de madeira das venezianas, mitigavam a penumbra.

Ela tinha os nervos a flor de pele. O coração palpitante. Depois de dias de perguntas, de espera, o momento tinha chegado por fim. Estavam sozinhos. E contrariamente da vez anterior, ambos eram conscientes do fato… e do que ia passar.

Agora que Tor estava ali, ela estava um pouco assustada, mas o que ainda lhe dava mais medo era decepcioná-lo em certo modo.

Seus olhos se estavam acostumando à escuridão, e viu como ele desabotoava o grande broche que levava ao pescoço e retirava a capa dos ombros. Tirou o resto da roupa com a mesma naturalidade, como se estivesse sozinho no quarto, e não com sua esposa, quem com os olhos muito abertos, muito nervosa e sem fôlego, dissecava todos seus movimentos.

Negócios. Dever. Essas palavras foram a ela sem prévio aviso. Era isso o que significava para ele? Pensou com uma pontada de dor. Queria que Tor desfrutasse aquilo.

Quando Tor deu a volta e se dirigiu para a cama, Christina tragou saliva. O suave perfil de seus músculos, que se distinguia entre as sombras, não deixava dúvidas de que estava nu. Senão tivesse tão aflita teria ruborizado. Poder. Força. Vitalidade. Seu corpo era uma fortaleza. Masculinidade crua em sua forma mais impressionante.

A sua mente acudiu uma idéia imprópria de uma donzela: que pena que a vela se apagara.

Talvez ele tivesse ouvido sua respiração entrecortada, porque quando se deslizou a seu lado, disse:

—Não há nada que temer. Serei amável. Não se parecerá com a última vez.

Ela não sabia se aquilo era mau ou bom. A última vez tinha sido bastante extraordinária, em certo sentido.

A cama cedeu sob seu peso. A Christina já não palpitava o coração, porque tinha detido em seco. Tor não a havia tocado, mas estava bastante perto para que sentisse o frio roce de sua pele. Frio do vento.

—saístes? —perguntou, surpreendida. Acreditava que estava com seus homens na sala.

Tor assentiu.

—Sim.

—Onde estavas? Há algum problema?

Sentiu seus olhos nela, penetrando o véu de escuridão.

—Nada que seja de sua incumbência.

Ela franziu o cenho ante a falta de resposta. Se incumbia a ele, incumbia a ela. Estava claro que Tor era o homem mais teimoso que tinha conhecido. Mas antes que pudesse lhe fazer outra pergunta, ele se colocou a seu lado, tombou-se junto a ela, e apagou qualquer outra idéia de sua mente.

Com delicadeza, agarrou os lençóis que Christina seguia segurando com os dedos e afastou a um lado. Ela notou o peso de seu corpo pressionando seu flanco. Até através da camisola, sua pele ardeu com aquele roce.

—Agora mesmo somente quero pensar em uma coisa. —A voz era profunda e sensual, carregada de promessas maliciosas.

Ao notar que ele riscava com o dedo uma delicada linha sobre o contorno de seu seio, ela se estremeceu. A etérea carícia fez que arrepiassem todas as terminações nervosas. Sentiu que o coração pulsava na garganta.

—E o que é? —conseguiu dizer, quase sem fôlego.

Tor descobriu a ponta tirante de seu mamilo com a pele áspera do dedo e a rodeou através do ligeiro tecido de sua camisola. Quando substituiu o dedo pela boca, ela ofegou. A cálida umidade daquele beijo enviou descargas de prazer diretamente de seu seio ao centro de suas pernas. Deus, era incrível! As sensações eram como uma labareda de ardoroso prazer que a cobria de chuva efervescente. Mas quando ele sugou a ponta, puxando levemente com os dentes, seu ofego se converteu em um profundo gemido.

Tor soltou uma risada, sem separar-se de Christina.

—Isto —respondeu— é o único no que quero pensar. —Voltou a sugar, rodeando com a língua a pontinha vibrante—. Quero sugar seus encantadores mamilos com a boca, até que seu corpo gema de desejo.

Deslizou os dedos até a planície de seu ventre, e com sua mão grande e forte cobriu com delicadeza seu monte de Vênus. Sem vacilar. Pura e crua energia sexual. Com esse possessivo gesto, Christina adquiriu plena consciência de seu destino, tal como ia ser.

—Quero te tocar aqui… —Varreu com o dedo a ardente feminilidade através do tecido—. E conseguir que te umedeça, até que esteja preparada para mim.

O corpo de Christina reagiu com uma onda de calor e umidade no ponto exato onde ele a tinha acariciado.

—E então… —Baixou a cabeça para lhe beijar o pescoço—. E então desejo estar dentro de ti e conseguir que te desfaça.

Ante essas palavras maliciosas, ela se arqueou, revolveu-se, e quando ele descobriu com a língua e os lábios uma zona sensível sob a orelha, estremeceu-se.

Tor levantou a cabeça para olhá-la aos olhos. Entre as sombras, as atraentes e severas linhas de seu rosto pareciam ainda mais perigosas.

—Assusta-te isso?

Christina negou com a cabeça.

—Não. —O medo tinha desaparecido no momento em que Tor a havia tocado. Seu coração revoou como as asas de um colibri, enquanto se esforçava em achar as palavras—. Eu também o desejo. Eu gosto do que sinto quando me tocas.

Ele ficou quieto. Christina teria jurado que notou como seu olhar se avivava com maior intensidade. Ruborizou-se, perguntando-se se havia dito algo mau. Mas ele já voltava a acariciá-la, e Christina se esqueceu de tudo, salvo da pressão de sua boca sobre seu seio e da cálida fricção de suas mãos, que cobriam seu corpo.

*

Tor tinha que recordar-se constantemente que a mulher apaixonada que se retorcia em seu leito era virtualmente uma virgem. Mas quando gemia e se arqueava sob sua boca e suas mãos, lhe suplicando em silêncio que beijasse os seios com maior rudeza, era fácil esquecer.

Suas atrevidas palavras para distraí-la de suas perguntas tinham funcionado - esteve fora porque alguns homens se apresentaram antes de tempo e precisavam chegar até o fiorde —, mas quem tinha rido por último tinha sido ela, que lhe tinha distraído com sua resposta. «Eu gosto do que sinto quando me toca.» Jesus, como podia não reagir ante isso?

A inocente honestidade de suas palavras só incrementaram a fome que sentia dela. Uma parte dele se perguntou se simplesmente tinha imaginado sua receptividade daquela noite. Não. Mas bem tinha subestimado seu sensual encanto.

«Virgem», lembrou-se, tentando reduzir o martelar de seu sangue, a primitiva chamada que ansiava dar resposta.

Tinha desejado deitar-se com Christina no momento em que tinha posado seus olhos nela. Mas depois de tê-la tratado com tanta brutalidade durante seu primeiro encontro, tinha jurado que a faria desfrutar. Desfrutar muito. Apaixonado, mas controlado.

Isso foi o que compreendeu. Na escuridão. Homem e mulher. Nada mais que paixão, primitiva e crua. Ele sabia como fazer que uma mulher desejasse suas carícias. Como fazê-la gemer. Como debilitá-la a base de prazer. Sabia o que Christina necessitava e o daria. E ela daria a ele em troca. Nada mais. Nada menos. Satisfação de necessidades básicas.

Na cama, Christina Fraser era igual a qualquer outra mulher. Sua necessidade dela era mais abrasadora. Mais intensa, possivelmente. Mas a luxúria era luxúria, e Tor não podia controlá-la.

Era um homem apaixonado. Christina era uma mulher apaixonada. Era tão simples como isso. A paixão no leito conjugal era algo pelo que estar agradecido; sua primeira esposa não tinha sido tão entusiasta. Nada que tivesse que se preocupar.

Mas era incapaz de deixar de olhar a boca. Até na penumbra, atraía-lhe a erótica sensualidade de seus lábios carnudos e rosados. Intrigava-o a intimidade desses beijos, algo que não estava acostumado a pensar.

Mas podia saborear o resto de seu corpo. Desatou o laço da camisola, farto de ter uma barreira entre os lábios e a pele dela. Cheirava de um modo incrível. Quente e floral. Inspirou com força e seu delicado aroma lhe rodeou com seu doce abraço.

Ao sentir a primeira carícia sobre sua pele nua, Christina gemeu, e a pétrea ereção de Tor se endureceu ainda mais.

Ante a primeira tentativa dela de lhe acariciar as costas, ele ficou imóvel. A pressão exigente de seus dedos, massageando a firme musculatura de ombros e braços, fez que Tor amaldiçoasse e sentisse fora de si. Christina gostava de lhe tocar. Uma intensa chama de desejo e um espasmo de luxúria nublaram a visão de Tor, que perdeu a consciência durante um segundo.

Controle. Esforçando-se por reduzir sua temperatura interior, monopolizou a beleza de seus seios com suas mãos e os levou a boca, devorando-os sucessivamente. Seu membro pulsava com força pego a seu ventre e conseguiu certo alívio esfregando-se brandamente contra a coxa dela enquanto sugava. A leve fricção lhe acendeu ainda mais.

«Posso fazer.» Mas nunca em sua vida estivera tão excitado. As inocentes reações de Christina eram mais eróticas que os experientes movimentos das mulheres com que estava acostumado a deitar-se.

Lambeu-lhe o mamilo e sentiu na língua um meloso sabor de ambrosia. Beijou-a com maior paixão e arranhou com o queixo essa pele tão sensível. Sugou e rodeou com a língua aquela pontinha tensa, até que ela começou a levantar os quadris para ele.

Percorreu todo seu corpo com as mãos. Não podia deixar de tocá-la. Tinha a pele muito suave, e o corpo sensual e docemente feminino.

Tor grunhiu. Christina era incrível. Tão natural e espontânea com sua paixão. Mas ficava cada vez mais difícil controlar seus instintos, ignorar a fome e o desejo que crescia em seu interior. Seu corpo ardia, dava mil voltas sua cabeça. Cada vez lhe custava mais ser racional, enquanto uma bruma avermelhada de desejo caía sobre ele.

Deslizou as mãos sobre seu corpo e até as pernas para lhe levantar a borda da camisola. Ouviu-a respirar entrecortadamente quando varreu com os dedos a aveludada suavidade da zona interna da coxa. Ela cravou os dedos nos braços. Parecia flutuar, suspensa por suas carícias.

Ser consciente de até que ponto ela desejava aquilo teve um efeito nele. Um efeito que ia a além da satisfação ou o orgulho varonil. Encheu-o de uma intensa calidez que chegou ao fundo de suas vísceras e atirou delas. Naquele momento nada parecia mais importante que lhe agradar.

Mas ainda não. A única coisa que desejava mais que ter um orgasmo era fazê-lo durar. Aproveitou com cuidado o momento, sentindo como estremecia o corpo dela quando roçou essa pele de bebê junto a sua entranha, com uma etérea carícia dos dedos, que se aproximaram e se afastaram depois. Para habituá-la a suas carícias e a seu próprio desejo. Queria que identificasse o que queria seu corpo. O que necessitava.

Imitou os movimentos do dedo com a língua, sobre seu seio. Primeiro deslizando-a rapidamente e logo detendo-se, deixando que a calidez de seu fôlego passasse sobre o topo úmido e sensível.

Ela gemeu e se queixou, e com cada som, ele sentia o palpite do sangue em cada centímetro do corpo e ficava mais difícil concentrar-se.

Christina sentia que ardia a pele. Tor sabia que se pudesse ver o rosto, comprovaria que tinha as bochechas ruborizadas de prazer e os sensuais lábios separados.

Maldição, estava muito excitada. Seu corpo tremia de prazer. Deus, ia ter um orgasmo assim que a tocasse. Sentiu um batimento do coração no membro, suando de espera. Teve que fazer uso de todas suas forças para reprimir-se, e não envolver seus quadris com as pernas de Christina e lhe penetrar, deixando que o ardente punho do corpo lhe fizesse explodir e gozar até cair na inconsciência.

Esticou todos os músculos em um esforço por controlar-se; seu próprio orgasmo espreitava, era uma maldita ameaça, muito próxima.

—me diga o que quer — perguntou entre dentes, enquanto seu dedo se aproximava do vulcão com uma lhe torturem carícia.

—Não sei — gemeu Christina.

—Isto? — disse ele, deslizando o dedo junto à fenda úmida. Christina se sentiu invadida por um espasmo de prazer e seu corpo se agitou bruscamente.

—Sim — respondeu sem fôlego—. Por favor.

—vou fazer que goze, Christina.

Ela não sabia o que queria dizer, mas não se importou. Quão único desejava era que desaparecesse essa corrosiva sensação de ansiedade. Seu corpo inteiro estava sumido em um desejo que seguia crescendo e crescendo sem medida, até que pareceu que já não poderia suportar a tensão. Sentia-se suspensa a bordo de uma espécie de cataclismo.

Como podia sentir-se tão bem e ao mesmo tempo tão inquieta? Cada carícia, cada vez que Tor lhe tocava o corpo era como estar no céu e o inferno de uma vez.

Todos seus pensamentos, toda sua energia parecia concentrada entre suas pernas, e cada vez que ele a provocava com uma carícia com o dedo, a agonia aumentava. Estava úmida e em chamas, com os músculos constrangidos de ansiedade, escuros e pulsando de frustrada ignorância. Sabia, instintivamente, que necessitava algo, mas ignorava como conseguir. Ele a provocou até que já não pôde suportá-lo mais, até que acreditou que estalaria.

Nunca teria imaginado umas carícias tão leves e delicadas dessas mãos tão grandes e fortes que hasteavam a espada com uma força letal.

Mas ela desejava sentir essa força, esse poder em seu interior.

E então o fez. Tor sugou com ardor o mamilo até o interior da boca úmida e cálida no momento em que afundava o dedo nela, acariciando e pressionando, em círculo. O corpo de Christina gemeu aliviado ante a pressão que desejava e que tinha demorado tanto em chegar. As sensações se amontoaram em suas vísceras: a boca que atormentava seu seio, o dedo que a acariciava, o roce da palma da mão que a agarrava. Tudo chegou de uma vez, intensificando-se e esticando-se depois durante um prolongado instante, até que se rompeu em pedaços, estalando em mil direções.

Ela lançou um gemido alto enquanto sucessivas ondas de sensações estremeceram seu interior e os espasmos de prazer mitigaram sua férrea garra.

Christina teve a sensação de que tinha morrido e estava no céu. Quão único via era luz e beleza, como muito estrelas cintilantes expostas ante ela em uma maré oscilante. Nunca tinha imaginado nada que pudesse provocar essa incrível sensação.

Era excessivo. Tor perdeu as rédeas que estavam sob seu controle ao ver seu corpo tenso. Então, ao escutar os eróticos gritos de sua entrega, deixou ir. Era mais do que podia suportar.

Nunca havia sentido nada parecido. Um desejo que ia além da luxúria que se acumulava em suas virilhas e em seu membro ereto. Desejava penetrar em seu interior, afundar-se nele e não sair jamais.

Estar dentro dela. Provocar-lhe um novo orgasmo. Isso era o único importante.

Moveu-se sobre Christina, colocando-se entre suas pernas.

Utilizou o dedo para lhe provocar prolongados espasmos de entrega e grunhiu:

—Preciso estar dentro de ti.

Ela suspirou sonhadora, obediente e ele agradeceu a penumbra. Agradeceu não poder ver os olhos entreabertos e o leve rubor rosado do êxtase em seu rosto. Porque sabia que não poderia evitar aproximar a boca de seus lábios. E então ela seria diferente.

Levantou-lhe os quadris brandamente e separou as pernas para acomodar-se. Apoiou as mãos junto aos ombros de Christina, para agüentar o peso de seu torso.

Gotas de suor caíram de sua fronte ao tentar ir devagar. Mas não era fácil.

Deslizou a ponta sensível de seu membro ao longo da fenda dela, até que esteve escorregadio da umidade de Christina.

Quando abriu caminho entre suas dobras, ela ofegou e esticou o corpo instintivamente.

—Relaxe — a tranqüilizou Tor, reprimindo todos os músculos ante um impulso primário.

—Mas é muito grande — protestou ela.

«E você está muito rígida.»

—Chist — sussurrou—, deixa que seu corpo se acostume a mim.

Seu dedo descobriu o ponto sensível de seu clitóris e a acariciou, até que relaxou. Ela se deixou ir lentamente e seu corpo se tranqüilizou enquanto voltou a invadi-la uma onda de prazer.

O impulso de penetrá-la ferozmente era quase intolerável. Mas Tor tomou seu tempo, adaptando-se a cada centímetro de seu interior e entrando, ditoso, até o último milímetro.

Quando finalmente acessou todo o interior aveludado e molhado, quase não podia respirar e o esforço por conter-se captou virtualmente toda sua concentração. Precisava deixar-se ir. Necessitava-o tanto que quase lhe doía.

—O que sente? —conseguiu balbuciar.

Christina demorou um momento em responder.

—Sinto-me cheia… —Suspirou entrecortadamente—. Maravilhosamente cheia.

Era a resposta perfeita, e justo o que seu ânimo que necessitava. Começou a mover os quadris, para trás e para frente, devagar ao princípio e logo mais rapidamente, sobre o corpo convulso de Christina.

Ela gemia com cada impulso, e esses eróticos ruidinhos que o deixava louco.

Os músculos lhe ardiam pela tensão de manter-se fora dela. A pressão crescia e crescia. Nunca se havia sentido assim. Nunca. Com todo o corpo consumido pelas sensações que percorriam seu interior. O sustentava com o corpo, espremendo com cada prolongado puxão.

Não podia agüentar mais tempo.

—OH… Deus — gemeu ela.

Por fim. Tinha chegado o momento que esperava. Cravou fundo sua espada.

Mais depressa. Mais forte. Encontrou o ritmo perfeito para que ela…

Christina gritou e ele se deixou ir, penetrando-a profundamente uma vez mais e jogando a cabeça para trás com um primitivo uivo de prazer. O sangue retumbou em seus ouvidos enquanto a força de seu orgasmo estalava em uma tormentosa corrente de sensações, pulsando e pulsando até que seu corpo expulsou o último grama de prazer. O êxtase era muito potente e ficou aturdido um momento.

Quando já tinha caído a última maré que emergiu de seu corpo, caiu derrubado junto a ela, totalmente exausto. Nunca havia se sentido tão derrotado em sua vida. Tentou recuperar o fôlego. Sentia-se fraco; seus membros pareciam de gelatina.

O que lhe tinha feito Christina?

Aparentemente, não era o único que estava submerso em uma aturdida letargia. A respiração dela era tão entrecortada e instável como a sua. Tor agradeceu o silêncio. Pela primeira vez em sua vida, não sabia o que fazer nem o que pensar.

A confusão lhe inquietou.

Fixou o olhar na penumbra e se disse que não tinha importância.

Acabava de convencer-se de que estava exagerando e dando muita importância ao estado de sua mente, quando ela se aproximou a ele, aninhando-se contra seu corpo. Ao notá-lo, ficou imóvel e sentiu uma queimação no peito. Vacilou um segundo, e seu instinto lutou contra a consciência de que devia manter distância.

De momento venceu o instinto. Por uma vez não faria mal. Rodeou-a com o braço e tentou não pensar em quão agradável era senti-la a seu lado. Toda essa pele cálida e suave pega a ele. A sedosidade de seu cabelo derramando sobre seu torso e essa mão deliciosa sobre seu coração.

Tor esperou para ouvir o som estável e suave do sonho e se deslizou para fora da cama. Recuperou a roupa em silêncio, com pressa. Olhou por última vez a silhueta aninhada na cama e fechou a porta com firmeza.


Capítulo 12


Christina emergiu de repente de um sonho profundo ao sentir um calafrio nas costas. Aninhou-se instintivamente contra o calor que emanava de seu marido, mas somente descobriu os lençóis frios, o leito vazio.

A julgar o quanto gelados que estavam devia ter partido fazia tempo.

Franziu o cenho. Possivelmente tinha dormido mais do que pensava. Mas quando conseguiu abrir os olhos viu que a luz cinzenta do amanhecer se filtrava através das venezianas de madeira.

Enquanto tentava mover-se, perguntou-se o que podia ter provocado que Tor despertasse tão cedo. Se não fosse pelo frio intenso da alvorada, Christina teria dormido umas horas mais. Mas se aproximava o inverno, e no norte golpeava com uma força glacial. Eilean ao Cheo, a ilha da Bruma, o nome gaélico do Skye, não pressagiava nada bom. Provavelmente os matizes do cinza seriam os únicos tons que pintariam o céu durante um tempo.

Espreguiçou-se, mas inclusive isso custou certo esforço. Tinha todos os músculos do corpo intumescidos e débeis pela fadiga. O rubor alagou suas bochechas quando recordou o porquê.

Nunca podia ter imaginado que se comportaria com um abandono tão lascivo. Mas em realidade tinha parecido a coisa mais natural e o único modo de atuar. Seu corpo tinha reagido com seu próprio critério.

Ele soube exatamente como tocá-la, como fazer que tremesse de prazer até obter uma sensual inconsciência. Aquilo era muito melhor que em seus livros!

Um sorriso de satisfação se desenhou em seus lábios. Por muito que seu marido se mostrasse frio e indiferente, a paixão que sentia não mentia. A noite passada tinha visto uma face distinta de Tor, um lado selvagem e apaixonado, mas também doce e considerado. Não tinha limitado a obter prazer, mas sim o tinha proporcionado Preocupou-se com ela; tinha que ser assim. Tinha notado na ternura de suas carícias, no som que tinha nascido de seu prazer e no batimento frenético de seu coração.

E quando ambos caíram em um êxtase satisfeito, ele tinha ficado tão exausto como ela e a profundidade de sua respiração e a lassidão de suas pernas demonstrava até que ponto estava afetado.

Essas longas noites junto à chaminé pareciam muito mais próximas.

Mas onde tinha ido Tor?

Afastou o cobertor e saltou da cama, sem notar o calafrio em sua ansiedade por encontrá-lo. A última noite tinha derrubado uma barreira entre ambos e estava impaciente por lhe ver, por falar. Tinha amanhecido um novo dia em seu matrimônio.

Chamou o Mhairi, que dormia no quarto contíguo, e se lavou e se vestiu a toda pressa. Enquanto cruzava a extensa galeria em direção para o grande salão, viu que a porta estava entreaberta. Confiante em encontrar ali Tor, empurrou-a com cuidado para espionar o interior. Entretanto, o rangido das dobradiças de ferro arruinou seus esforços por não fazer ruído.

O escrivão se sobressaltou e deixou cair o montão de pergaminhos que estava folheando.

—Milady! —exclamou surpreso, apartando-se da mesa frente à que estava sentado.

Christina sorriu, pensando que sua voz era mais estridente que a porta.

—bom dia, irmão John. Levantastes logo nesta manhã.

Ele pareceu recuperar a compostura e lhe devolveu o sorriso.

—Como todos os dias. Os matinais à alvorada, já sabes.

Ela assentiu, incapaz de evitar a sensação de alívio ante a monótona vida da qual se livrou por pouco. Confiava em que Beatrix fosse feliz. O dia de sua chegada em Dunvegan tinha recebido o recado de que sua irmã tinha chegado sã e salva a Iona. Aquele pilantra encantador, lugar-tenente de MacDonald, tinha cumprido com sua palavra. MacSorley tinha arrumado para alcançar aos viajantes e tinha escoltado ao Beatrix durante o resto do caminho até o convento. Os ilhéus tinham fama de ser excelentes navegantes, graças a seus antepassados vikings. Certamente seu marido fazia honra a essa fama, mas a extraordinária proeza de MacSorley era incrível inclusive para um ilhéu.

—Deseja algo, milady? —perguntou o clérigo.

Christina moveu a cabeça e se inclinou para recolher um pergaminho que tinha caído junto a seus pés. Deu uma olhada, viu que era uma carta e a devolveu.

—Esperava encontrar a meu marido. O viu esta manhã?

—Não, mas provavelmente estará no salão com seus homens, tomando o café da manhã. —dispôs-se a guardar os documentos—. Eu também ia para ali. Permitem-me que lhe acompanhe?

—eu adoraria — disse ela—. Mas não desejo lhe distrair de seu trabalho.

O irmão John meneou a cabeça, e seu cabelo liso, cortado em forma de semicírculo, deslizou-se para voltar a colocar-se imediatamente em seu lugar.

—Não é nada urgente. Correspondência e pouca coisa mais.

Dirigiram-se juntos para o salão, comentando que o tempo tinha piorado e que se esperava um longo inverno. Descobriu que o jovem amanuense tinha chegado a Dunvegan pouco antes que ela, e Christina alegrou-se ao inteirar-se de que tinha passado certo tempo no monastério que havia junto a sua casa de Stirlingshire. Talvez não devesse ficar surpresa ao descobrir que a única pessoa que tinha sido amável com ela era alguém chegado de fora.

—Teremos muito do que falar — disse.

—Em efeito — respondeu ele. E fazendo eco dos pensamentos de Christina, acrescentou—: Espero que não lhe incomode que diga quão contente estou de que estejas aqui, milady. O seu é o primeiro sorriso que vi em bastante tempo. O matrimônio do chefe foi uma surpresa para o clã, mas é fácil compreender por que se apaixonou por você.

Christina ficou gelada, imóvel, a poucos passos da entrada ao salão.

—O que? —replicou com voz rouca. Parecia que lhe custava respirar.

O frade ficou avermelhado como uma beterraba amadurecida.

—Me perdoe, não deveria me fazer eco das fofocas dos criados.

A Christina não incomodou absolutamente. Mas adotando um ar de indiferença, brincou com o grosso bracelete de ouro que levava no pulso e disse como se tal coisa fosse nada: —O que comentam exatamente?

Ele soprou confundido e baixou o olhar ao chão.

—Que assim que o chefe lhe deu uma olhada decidiu que tinha que te possuir. Uma dos moços ouviu do próprio conselheiro particular do chefe.

Christina, agradada, ruborizou-se até a medula dos ossos. Sabia que essa história não era certa, embora procedesse do confidente mais próximo que tinha seu marido… ou sim?

—especulou-se muito, porque aconteceu de forma muito repentina — esclareceu ele—. E o chefe não tinha comentado que desejasse voltar a casar-se. E a aliança com a casa Fraser foi ainda mais inesperada, dadas as atuais circunstâncias.

Christina ficou desconcertada.

—A que te referes?

O clérigo baixou a voz.

—Guerra.

A ela parou o coração.

—Ouvistes algo?

Ele negou com a cabeça.

—Não, mas há rumores que com a captura de Wallace os focos da revolta estão estendendo-se por toda Escócia. O chefe se esforçou em manter sua neutralidade até agora. Mas sua família é famosa por ser fervente partidária da causa patriótica. Casar-se com uma Fraser…

Não era necessário que terminasse. Casar-se com ela punha em dúvida essa neutralidade. A isso se referiu seu marido no navio: a razão pela que se negou a casar-se com ela em um princípio.

—Nosso matrimônio não tem nada que ver com política — disse com firmeza—. Quão último o senhor desejava era uma aliança com meu pai. —Foi incapaz de ocultar o deixe sardônico de sua voz—. Qualquer que pense o contrário está equivocado… Muito equivocado — insistiu.

Mas uma voz em seu interior se perguntou se não haveria possivelmente um pingo de verdade nesse rumor de que o agradava. Tor MacLeod não era um homem a quem se pudesse obrigar a fazer nada. Senão quisesse, não teria casado com ela, sobretudo peã objeção política.

A naturalidade com que o frade tinha falado de traição a afetou. Embora não conhecia pessoalmente a Eduardo da Inglaterra, estava muito a par dos riscos que supunha lhe desafiar.

—Falar assim de guerra é perigoso. Skye está muito longe de Londres, mas o rei Eduardo tem espiões por toda parte. Espero que ponham freio a qualquer rumor deste tipo. Não quero que meu matrimônio cause nenhum problema desnecessário a meu marido.

O clérigo assentiu, pormenorizado.

—É obvio, milady. Sois tão sábia quanto formosa.

Christina aceitou a galanteria com um sorriso; não estava disposta que as ameaçadoras nuvens de guerra e a política lhe danificassem o dia. A noite passada tinha sido um sonho feito realidade; uma noite sobre a qual construir um futuro, e nada podia atenuar a felicidade que albergava seu coração.

Ou acreditava nisso.

O escrivão e Christina entraram no salão sem serem vistos. Mesmo sendo muito cedo havia muita gente pululando por ali e isso a surpreendeu. Dirigiu o olhar instintivamente para a ampla poltrona, semelhante a um trono, que havia sobre o estrado e ficou imóvel.

Aquela felicidade que acreditava tão afiançada desapareceu como a água através de uma peneira.

Sentada junto a seu marido no estrado, na cadeira que pertencia a ela, estava àquela formosa mulher em quem se fixou a noite de sua chegada. Ambos tinham as cabeças juntas e seus ombros se roçavam. Comportavam-se com naturalidade e a intimidade entre ambos era evidente.

—Acontece-lhe algo, milady?

Christina, consciente de que exteriorizava seus sentimentos com claridade, amaldiçoou a brancura de sua tez e desejou recuperar a cor nas bochechas. Mas tinha que saber.

—Essa mulher - disse, sem olhar—, sentada ao lado de meu marido… Quem é?

O frade olhou para o estrado e ficou tão avermelhado como antes. Igual a Christina, sua expressão permitia interpretar facilmente suas emoções, e nesse momento era evidente que se sentia incômodo.

—Lady Janet MacKinnon, milady. A viúva do anterior tenente do chefe.

Viúva. Seu coração desfaleceu ainda mais.

—São muito amigos? —perguntou depois de um suspiro.

O amável e jovem clérigo não fingiu que não entendia sua pergunta. Nem lhe respondeu com uma mentira piedosa.

—Sim, tenho entendido que sim.

A segurança que Christina acaba de adquirir ficou pulverizada. A tristeza invadiu seu peito. Aquela mulher tinha sido sua amante. Mas, era ainda?

*

Tor acabava de expor o que desejava dela, quando de repente Janet ficou tensa.

—É melhor que eu vá - disse, assinalando a entrada.

Tor deu a volta e viu Christina aproximando-se do estrado. Janet tinha razão. Ele não queria que sua esposa ouvisse o que estavam falando; era muito propensa a fazer perguntas inconvenientes. Ao fixar-se na gélida rigidez da expressão de Christina e no rubor de suas bochechas, franziu o cenho. Parecia molestada por algo. Rapidamente deu uma olhada pelo salão, para ver se havia algum outro toque de feminilidade que deveria ter notado.

Ao não ver nada se dirigiu para Janet, que já se pôs em pé.

—Terminaremos isto mais tarde - lhe disse em voz baixa.

Ela assentiu e se foi a toda pressa.

Ao cabo de um momento, sua esposa ocupou o assento que Janet acabava de deixar livre. Estava preciosa e régia com seu cote-hardie de veludo azul, mas estranhamente reservada também. Sentou-se sem dizer uma palavra.

—bom dia - disse Tor—. Confio em que tenha dormido bem.

Não havia nada provocador em seu tom, mas ela se ruborizou. Olhou-o por debaixo dos cílios.

—Sim, muito bem. —Levantou o olhar para ele—. E você? —Inclinou a cabeça—. Saiu muito cedo. Espero que não tenha acontecido nada mal.

A preocupação no seu tom de voz e o que levava implícito fez que Tor adotasse certa cautela. Estava claro que ela esperava que dormisse a seu lado. Não queria decepcioná-la, mas isso era impensável.

—Nada mau - disse—. Dormi no salão com meus homens, como faço todas as noites. —Onde devia estar, pensou.

Prevendo a reação dela, preparou-se. Mas não o suficiente. O brilho de dor que apareceu no olhar de Christina atravessou as defesas que tanto custara levantar.

—Já entendo - apontou ela.

Baixou os olhos para sua terrina para evitar o olhar de Tor, e ele se alegrou por isso. Mas aquilo não mitigou o desconforto da carga que sentia no peito, consciente de que tinha ferido seus ternos sentimentos. Ela não podia evitar ser vulnerável; as mulheres eram criaturas emocionais. Sentiu o peculiar impulso de tomar a mão e apertar como um gesto de carinho. Mas se desfez dessa estranha idéia, sabendo que não tinha motivos para sentir-se culpado. Ele sempre tinha dormido no salão com seus homens; não era nada pessoal contra Christina. Mas primeiro vinha o clã.

Ela se equivocava lhe exigindo esse tipo de coisas, é obvio. Mas era uma recém casada. Já aprenderia. Obviamente, tinha certas ilusões sobre esse matrimônio, e quanto mais cedo se desse conta de que não ia ser uma história romântica como as que interpretavam os bardos, melhor. Ele era um chefe das Terras Altas, não um cavalheiro namorador, educado no amor cortesão.

Certamente não pensava perder a cabeça por uma moça.

Bebeu um último gole de cerveja e se separou da mesa com um empurrão. A maioria dos homens chegariam nesse dia, e queria estar presente.

—Vais? —perguntou ela.

Tor tentou ignorar a decepção de seu tom de voz.

—Sim. —Recordou sua promessa e acrescentou—: Estarei fora várias noites, assim que me despeço até então.

Sua esposa ficou desolada.

—Mas se acabar de voltar… Aonde vais?

Ele queria lhe dizer que uma mulher não devia fazer perguntas a seu marido, mas Christina parecia um gatinho maltratado. E se sentiu como uma maldita besta. A pressão que sentia no peito aumentou. Não desejava mentir, mas tampouco podia lhe dizer a verdade.

—Há várias coisas que requerem minha atenção. Freqüentemente passo tempo fora, visitando minhas propriedades. —A torre de pedra de Waternish22 era, em efeito uma dessas propriedades, mesmo assim, estava mentindo.

—Sinto muito. É obvio. Tudo isto é novo para mim. —Olhou-o espectador—. Adeus.

Christina separou os lábios a modo de um ingênuo convite. Ele observou sua boca rosada e suculenta durante um minuto, absolutamente tentado. Com um grunhido, que foi metade maldição, metade gemido, desviou o olhar e apertou a mandíbula.

—Adeus - disse, antes de fazer alguma tolice como atraí-la a seus braços e beijá-la até que se desfizesse o nó que tinha no peito.

*

Em Skye se congregou o melhor do melhor.

A última hora da tarde seguinte, os dez guerreiros tinham chegado à antiga fortaleza em ruínas do Dun Hallin Broch. Cravada em uma zona remota da península do Waternish, a franja de terra que confinava com Dunvegan. A torre e o assentamento dos arredores estavam abandonados muito antes que os ancestrais escandinavos de Tor desembarcassem em Skye.

A torre era uma fortaleza circular de pedra com um diâmetro interior de uns sete metros e meio, e muros de três metros de largura, situada em uma pequena elevação do páramo rochoso. Em outra época, os muros alcançavam uma altura de nove metros, mas a parte superior da torre e o teto tinham desaparecido há muito tempo. Mesmo assim, com um pouco de madeira para um telhado nova e fogo de turfa, proporcionaria refúgio suficiente para os piores ventos e chuvas do inverno. Não seria confortável absolutamente, mas comparado com o que esses homens iriam experimentar nos meses vindouros era um luxo.

A situação era ideal. Estava perto de Dunvegan, mas o abrupto terreno limítrofe o convertia em um lugar de difícil acesso e escassamente povoado. Os ilhéus se mantinham afastados das estranhas construções e dos marcos de pedra dispersos pela paisagem, assim como das antigas torres circulares, que acreditavam habitadas por fadas e outros espíritos. Essa superstição ajudaria a manter afastado todas as pessoas.

Embora fosse improvável que os descobrissem ali, Tor se comportaria com extrema precaução. Havia muito em jogo. E com os recentes ataques a Dunvegan, não podia correr nenhum risco até que não averiguasse quem era o responsável.

Embora não duvidasse em pôr sua vida nas mãos de sua guarda, e o tinha feito em mais de uma ocasião, seguiu com sua prática habitual de contar a seus homens só o imprescindível. Naquele momento, quando seu primeiro-tenente seguia atrás de seu irmão, seus homens eram Fergus, seu conselheiro particular; Rhuairi, seu senescal; e seu an gille mor, primeiro espada, Colyne. A partir do dia seguinte, Colyne acompanharia as idas e vindas de Janet ao castelo para levar comida e provisões aos homens.

Se havia uma mulher em quem podia confiar, essa era Janet. Conheciam-se da infância. Ele tinha dançado em suas bodas com seu meio-irmão e ajudante, e penou com ela sua morte poucos anos depois. Aquela tristeza compartilhada tinha evoluído de uma forma inesperada, mas bem vinda, quando se tinham tornado amantes. Essa situação era conveniente a ambos, e se não fosse por suas recentes bodas, com certeza teria continuado indefinidamente. Ela era cômoda e não lhe exigia nada.

Tor sabia, não obstante, que a relação tinha terminado, mas não desejava analisar as razões daquela decisão. O matrimônio não tinha por que pôr fim a aquilo, não havia nada extraordinário em manter uma amante. Janet tinha aceitado a mudança de circunstâncias com a mesma praticidade que lhe tinha unido em um princípio. Se lamentava que a relação terminou, não o demonstrava; oxalá sua esposa fosse capaz de esconder com tanta facilidade suas emoções. Sua relação com Janet se modificara facilmente antes e tinha se modificado de novo agora, para voltar para a amizade.

À medida que foram chegando todos os guerreiros, Tor os pôs a trabalhar recolhendo lenha para reparar o teto e cortar turfa.

Era uma espécie de prova. O trabalho físico não tinha intenção de ser humilhante, a não ser pôr lutadores de elite no mesmo nível e que começassem a trabalhar juntos como se fossem um só, em equipe. Alguns dos homens conheciam bem e a outros nada absolutamente, mas em seguida se deu conta de que formavam uma equipe sem comparação.

Tor preferia trabalhar sozinho e manter a seu próprio conselho, e estava acostumado a trabalhar segundo seu critério. Aqueles homens não. A maioria deles eram cabeças ou líderes por direito próprio, acostumados a dar ordens, não às receber, e a ter um forte séquito ao redor. Não estava certo do que os tinha motivado a aceitar que ele lhes treinassem e estar sob suas ordens. Suspeitava que todos tinham suas razões para encontrar-se ali. Sabia que alguns tinham vínculos estreitos com Bruce, e indubitavelmente a premissa da equipe lhe tinha intrigado tanto quanto a ele. Sua fama como instrutor certamente tinha influenciado. Mas obedecer a ordens ia ser um desafio para alguns deles.

Tor suspeitava que tivesse passado muito tempo desde que Lachlan MacRuairi tinha empunhado uma espada para cortar um coração ou um machado para cortar uma árvore (mais que a um homem), mas o orgulhoso líder, que se não fosse por sua condição de bastardo poderia disputar com seu primo MacDonald o trono do antigo reino das Ilhas, não pestanejou. Mesmo assim, a obediência imediata não enganou Tor. MacRuairi estaria lhe vigiando.

Surpreendeu-lhe que somente um homem se mostrasse resistente ante suas ordens. Sua identidade, entretanto, não. Sir Alex Seton era o irmão mais novo do cunhado e camarada mais próximo de Bruce, «o bom de sir Christopher». Mas segundo as últimas notícias de Tor, Yorkshire, de onde procediam os Seton, seguia sendo na Inglaterra. E não importava em que lado da fronteira residia agora, pois Alex Seton brilhava nos mesmos arreios que seus compatriotas, da brilhante cota de malha ao elmo com plumas, e um peitilho profusamente bordado para enaltecer sua superioridade. Mas ao menos o arrogante inglês aprendia rápido. Se pensava que cortar turfa não era digno dele, ocultou seu desdém quando Tor lhe ordenou que em lugar disso cavasse latrinas.

Tor esperava em parte que Seton subisse a um navio de um salto e navegasse diretamente de volta à fronteira, e lhe surpreendeu o encontrar cavando uma hora depois, com sua brilhante cota de malha e seu peitilho profusamente bordado dos Wyvern e o escudo com três meias luas e duplo estandarte real, dobrados cuidadosamente a seu lado.

—Isto não lhe servirá muito por aqui - disse Tor, cravando sua pá na terra a poucos centímetros para começar uma segunda fossa.

—Eu sou um cavalheiro — repôs Seton com orgulho—. E penso ter o aspecto que me corresponde.

Seton não devia ter mais de vinte e um anos, e Tor teria apostado que não fazia muito que levava as esporas.

—Fostes um cavalheiro. Aqui não são mais que outro de meus homens, o qual está ainda por demonstrar. Seu código de cavalaria não tem lugar aqui. —Olhou-lhe com dureza—. Compreendestes o que lhe exigirá aqui? Para que assinastes?

O homem apertou os lábios até que empalideceram, mas assentiu. Disse, «sim» mas seu rosto gotejava desaprovação.

— Ponha a roupa que queira — acrescentou Tor com gesto de desinteresse—, embora logo descobriras que é um fardo muito pesado para o tipo de instrução e luta que levaremos a cabo.

Suspeitava que o menino fosse passar bastante mal para ficar a prova ante outros; não só devido a seu sangue inglês, mas também a sua juventude. MacGregor e MacLean eram jovens, mas tinham alguns anos mais que Seton. O resto dos homens teria em torno de trinta ou trinta e um, como o próprio Tor.

Cavaram um junto a outro em silêncio, mas Tor tinha demonstrado: não exigiria a seus homens que fizessem nada que ele não fizesse. Quando terminaram, ofereceu a Seton um gole de cerveja do odre que tinha cruzado sobre o torso. Seton aceitou agradecido, e limpou o suor da frente antes de dar um bom gole.

Tor o olhou, pensativo. Era alto, mas tinha a estupidez da juventude. Tinha uma espada de cavalheiro clássica e um estilete.

—E qual é sua maior habilidade? —perguntou Tor.

Dos outros homens eram óbvias. No caso de sua fama não lhe precedesse, sua escolha de armas ou adorno o fez. Somente olhando a Robbie Boyd bastava para saber por que tinha fama de ser o guerreiro mais forte da Escócia e um perito no combate corpo a corpo. Aquele homem estava forjado em ferro.

Seton avermelhou.

—Sou bom com a faca.

Tor franziu o cenho. Bom? Todos os cavalheiros eram bons com a faca.

—E para que viestes?

—Para aprender. Meu irmão também queria vir, mas Bruce não quis nem ouvir falar disso.

Sir Christopher era casado com a irmã de Bruce, por isso Alex era irmão de Bruce por matrimônio.

—Assim Bruce me enviou você. —Tor quase sentiu pena dele. Seton teria muito que demonstrar, efetivamente. Inglês, jovem… e sem habilidades especiais para conter os sarcasmos—. Não serei benevolente com você, seja quem for que lhe envie.

Aquele arrogante gesto da mandíbula reapareceu.

—Já sei. Não teria aceitado outra coisa.

—Os outros não facilitarão a ti.

O jovem sustentou o olhar com determinação.

—Isso também sei.

Tor assentiu e o deixou trabalhar, sabendo que teria que provar essa determinação.

Reatou sua marcha ao redor do acampamento para vigiar aos homens. A maioria o tinha impressionado. Havia montes de turfa postos a secar, e todos haviam trabalho com pressa para cortar a madeira e construir as vigas do teto. As habilidades marinhas de MacSorley não se limitavam à navegação e a natação. Também sabia como construir navios e brandir um machado de guerra, e tinha utilizado ambas para converter a madeira em pranchas e vigas para o teto.

Entretanto, e a pesar do promissor começo, Tor não demorou muito em se dar conta de quão árdua seria sua tarefa, quando estalasse a primeira briga no pátio traseiro da torre.

Esse grupo de homens não se parecia com nenhum dos que tinha treinado. As mesmas coisas que tinham unido à maioria, vínculos de sangue de clã, dividiam-lhe. Converter inimigos em irmãos seria seu maior desafio.

Sobre tudo quando descobriu dois homens golpeando-se até ficar inconscientes. Naquele momento utilizavam tão somente os punhos, mas Tor sabia que as armas não demorariam em aparecer.

Acreditava ter deixado muito claro quando chegaram que não toleraria nenhuma briga entre eles. Pelo visto, necessitavam que recordasse.

Furioso, não só pela falta de disciplina mas sim pela afronta a sua autoridade, Tor encheu um balde de água gelada do arroio próximo e a lançou sobre os dois guerreiros em luta. Quão único precisavam era um impacto momentâneo. Ambos eram fortes e corpulentos, mas amarrou as mãos do MacGregor à costas e afastou ao Campbell como se não fosse mais que um rapazola. Esteve tentado em lançar a ambos ao arroio, para que se refrescassem, mas conhecia um castigo muito mais efetivo, embora confiasse que finalmente se convertesse em uma lição.

Empurrou longe ao famoso arqueiro. MacGregor sacudiu o cabelo e olhou ao Campbell como se estivesse disposto a começar onde tinham deixado.

—Eu não faria — advertiu Tor em tom glacial—. Necessitarão-nos nos próximos meses.

Eles não sabiam ainda, mas MacGregor e Campbell acabaram de se converter em aliados.

MacGregor cuspiu e limpou o nariz e a boca machucadas.

—Antes se apagará o sol que um MacGregor necessite a um velhaco presunçoso como Campbell. —Os MacGregor eram um clã antigo e orgulhoso de linhagem real, e sua voz gotejava condescendência.

O irmão caçula de Neil Campbell se incorporou de um salto. Arthur era o melhor explorador das Terras Altas, mas por desgraça recentemente tinha posto essa habilidade ao serviço dos ingleses, em total desacordo com sua família. Vigiaria-lhe de perto como ao MacRuairi. Até então, a única impressão que tinha Tor era que se tratava de um homem tranqüilo e ensimesmado.

—Presunçoso? —disse Campbell—. E vocês o que são? O orgulhoso clã Gregor descendia de reis, mas, sem poder nem influências. Que baixo têm caído os poderosos. Mas se vieres aqui e me pedes isso com muita educação, possivelmente vos lance um osso alguma vez. —Torceu os lábios—. Ou têm muito medo de que te desfigure ainda mais esse bonito rosto?

Além de ser o melhor arqueiro das Terras Altas, MacGregor também era muito conhecido entre seus companheiros por ser muito atraente. Tor sentiu pena do pobre bastardo. Certamente para um guerreiro essa ridícula reputação era um pesadelo.

MacGregor grunhiu e deu um passo para ele, mas Tor o segurou pela borda do cotun e o reteve.

—Já basta — disse, e então olhou ao Campbell—. Os dois. —O matiz inflexível de sua voz deixava claro seu aborrecimento.

Deu uma olhada ao redor e viu que outros homens se juntaram para olhar. Bem. O que tinha que dizer afetava a todos.

—Advirto isso, não tolerarei brigas. —dirigiu-se ao resto—: De jeito nenhum. Não me importa que suas famílias se odiaram durante anos, nem se seu pai matou ao dele; nada disso importa. Qualquer briga ou inimizade que tiveram antes de chegar aqui deve desaparecer neste mesmo momento.

MacRuairi cravou a pá no chão com um terminante golpe. Seus olhos escuros eram muito ameaçadores e desafiantes.

—Isso também afeta a você, chefe?

A Tor não passou despercebido o sarcasmo, e reprimiu o impulso de socar o punho nesse queixo petulante. Ele não era seu chefe e nunca seria. Mas somente MacSorley sabia que ele não seria o líder do grupo quando terminasse a instrução, e era melhor que seguisse sendo desse modo no momento. Embora ele não fosse seu líder no futuro, durante os próximos meses seria, e até então aplicaria as mesmas normas. Por muito que o odiasse, por agora MacRuairi seria seu irmão. Quando aquilo tivesse terminado, converteriam-se de novo em inimigos.

—Sim — disse Tor, lhe olhando diretamente aos olhos—. Tendo em conta no que estamos a ponto de nos embarcar, não poderia ser de outro modo. Se triunfarmos, este será o maior exército que o mundo tenha visto; reunirá o melhor que a Escócia jamais ofereceu na arte da guerra. Jamais se tentara nada parecido a isto. —Olhou a todos—. Cada um de vós é o melhor em seu campo, mas somente com sua força e habilidade não chegaria tão longe. Somente podem vencer a… quantos homens…?, possivelmente vinte ou trinta? Lutem juntos e poderão vencer exércitos, centenas, possivelmente milhares. Sozinhos são os melhores, juntos se converterão em lenda. Mas aqui não há honras pessoais. A honra está em servir juntos como parte da equipe.

O êxito desta guarda, suas vidas e as de todos os que nos rodeiam só estarão a salvo se confiarem no homem que têm ao lado. —Tor olhou sucessivamente ao MacGregor e ao Campbell—. Já não são um MacGregor e um Campbell. Esta guarda é seu novo clã. Estes homens são seus irmãos.

Deixou que suas palavras fizessem rachaduras neles. Estava claro que não estavam dispostos a aceitar aquilo, Tor tampouco esperava: os guerreiros das Terras Altas não confiavam facilmente. Mas eles fariam. Não existia alternativa para uma equipe como essa.

—Eu trabalho sozinho — disse MacRuairi.

—Não, já não. Se querem ficar aqui, não. —Tor deixou cair a ameaça mas, desgraçadamente, MacRuairi não mordeu o anzol. A forma como lhe olhou, entretanto, deixava entrever tudo menos conformidade.

Tor passou revista ao resto dos homens.

—A partir de agora, consagrarão tudo à equipe. Seu dever e lealdade são para mim e para esta guarda.

—Não te esqueces algo? —perguntou Seton—. O que passa com Bruce, nosso senhor e soberano por direito?

—Deixem que eu me preocupe com Bruce — replicou Tor. Para operar com esse grupo, a máxima autoridade devia radicar no líder do mesmo, mas essa discussão tinha que esperar outro dia, e ia deixá-la para o MacSorley.

—Agora mesmo, nós não existimos; inclusive Bruce estaria de acordo. O segredo é primitivo. Nossos nomes. Nosso objetivo. Tudo. Não podem contar a ninguém o que fazemos. Isso inclui esposas e famílias, se alguém é casado.

A pouca informação que tinha obtido de MacDonald e do Lamberton antes de ir não falava de esposas. Ele sabia que MacRuairi acabara de ficar viúvo, de uma MacDonald, nada menos. Confiava que a maioria deles não fossem casados; assim era menos complicado. Os homens estavam calados, com expressão sombria, refletindo sobre o que havia dito e perguntando-se sem dúvida se tinham cometido um engano.

—Se alguém quiser partir, que diga agora. —Não esperava que respondesse ninguém; ainda não em qualquer caso, e nenhum o fez.

—Então, descansem um pouco — acrescentou—. Necessitarão. Amanhã começamos.

O grupo se dispersou lentamente. MacGregor e Campbell começaram a afastar-se com outros. MacGregor o fez sozinho, e Campbell, atrás do grupo mais numeroso.

—Esperem — disse Tor, lhes detendo—. Não terminei com vós.

Deu um par de pernadas até uma bolsa de pele com fornecimentos que tinha levado consigo e extraiu uma corrente de ferro de um metro de longitude. Com grilhões nas pontas. Embora confiasse em não necessitá-los no primeiro dia, tinha ido preparado. Aquele mecanismo tinha demonstrado ser efetivo quando se produzira alguma disputa ocasional entre as filas, mas ali ia ser de inestimável ajuda.

Durante os próximos aqueles dias dois homens estariam atados entre si, desejassem-no ou não. Confiava que gostassem de correr porque estavam a ponto de realizar um extenso percurso pelo Waternish.

Ambos os guerreiros lhe olharam com receio quando se aproximou, com as correntes ressonando a cada passo. Mas foi MacGregor quem perguntou: —O que é isso?

Tor sorriu, recordando as anteriores palavras do MacGregor.

—Para vós; hoje é o dia em que se apagou o sol.


Capítulo 13


Christina observou Tor na escuridão. Os movimentos apressados e precisos, que nas duas últimas semanas se converteram em um pouco dolorosamente familiar para ela, pareciam um pouco menos rápidos, um pouco menos resolvidos e decididos. Dirigiu o olhar para a janela, tentando adivinhar que horas era. Faltava pouco para que amanhecesse? Era uma ingenuidade pensar, ou ele se entretinha cada vez mais?

«Estarei fora uns dias» se convertera em algo freqüente. Via muito pouco a seu marido, salvo de noite, envolto em um véu de penumbra. Desde sua noite de bodas atrasada, Tor tinha passado apenas dois dias no castelo de Dunvegan. Quando estava ali, ia a sua cama sem falta, sempre tarde, mas nunca dormia a seu lado. Ela desejava que ficasse. Que a agarrasse em seus braços. Falar. Ele seguia sendo basicamente um estranho para ela, e estava se desesperada por conhecê-lo melhor. Mas por ardente que fora a paixão entre ambos, quando terminava Tor retornava ao salão, com seus homens. E por muito que ela dissesse a si que aquilo não tinha importância, sim tinha.

Mas nessa noite, Christina se negava que a decepção escurecesse a satisfação que sentia depois de fazer amor. Ainda experimentava a calidez de suas mãos no corpo. A plenitude de lhe ter entre as pernas. Notar aquele peso, cada vez que a penetrava. Seu intenso aroma varonil seguia suspenso no ar, em seu nariz e em sua pele. Ainda notava debilidade nas extremidades devida à força de sua entrega.

A promessa de sua noite de bodas se cumpriu com acréscimo. A paixão que havia entre ambos era mais maravilhosa do que tivesse sonhado jamais.

Suficiente, por agora.

Fechou os olhos, com o desejo de reter a sensação de satisfação. Se lhe olhasse, sabia que diria algo que arruinaria o momento. Essa noite não haveria perguntas sobre seus planos para o dia seguinte ou sobre quando voltaria, e portanto tampouco receberia respostas cortantes que atenuariam sua felicidade.

Esperava ouvir o som da porta fechando-se de repente. Em lugar disso, ouviu passos que se aproximavam da cama. Teve que esforçar-se para conter a respiração e não abrir os olhos para ver o que estava fazendo Tor. Era como se pudesse notar o peso de seu olhar sobre ela. Ele permaneceu ali quieto um bom momento. Christina teria dado tudo por saber o que estava pensando.

O ar se moveu. Seu aroma escuro e masculino se fez mais intenso. Christina ouviu o som estável de sua respiração quando se inclinou para ela.

O coração deu um tombo. Teve que fazer uso de todas suas forças para não dar um salto quando lhe acariciou a testa com os lábios.

A delicadeza daquele gesto fez que o que aconteceu a seguir resultasse cômico em certo modo. Ele deu um par de pernadas, e não um par de pisões, para a porta. Somente quando ouviu que se fechava, Christina permitiu que em sua boca se desenhasse um grande sorriso.

Embora seu marido não gostasse, não ficava tão indiferente como aparentava.

Quão único precisava era um pouco de paciência.

*

Christina seguia sorrindo quando terminou de tomar o café da manhã. Tor não se reunira com ela, e supôs que partira pra aonde fosse que ia constantemente. Mas nesse dia não estava necessitada de companhia. Pelo visto ganhara uma escolta privada.

Desde que tinha pilhado olhando-a da despensa da cozinha, tinham-na seguido como sabujos. Nesse mesmo instante estavam observando como arrumava as últimas flores de outono em um vaso de cerâmica vidrada, na cabeceira da mesa do estrado, esforçando-se por ser pacientes (o qual claramente estava custando muitíssimo) e não entremeter-se em seu caminho (o qual, tendo virtualmente pegos aos seus calcanhares, era impossível).

Quando ela se afastou um pouco do vaso, Deidre já não pôde esperar mais.

—Fizemos o que vocês disse, milady — disse a garotinha, espectadora.

Christina baixou o olhar a volta dos três rostos suplicantes, cujas bochechas estavam manchadas com as conservas de bagos especiais que o cozinheiro tinha preparado, e sorriu ante sua expressão de ansiedade.

A filha do cozinheiro tinha ido visitar a ilha de Harris e tinha levado seus três filhos: Ewan, de oito anos, Deidre, de sete, e Anna, que acabava de fazer cinco.

—Lavastes as mãos e o rosto?

Os três moveram a cabeça, acima e abaixo.

—Sim, milady.

Ela apertou os lábios para não sorrir.

—Mãe disse que não lhe incomodássemos — explicou Deidre. Mordeu a comissura do lábio inferior com os dentinhos e logo a olhou com gesto de preocupação—. Não lhe estamos incomodando, verdade?

—Claro que não a estamos incomodando — disse Ewan indignado—. A senhora disse que podíamos olhá-la e que depois, quando tivesse terminado com seus deveres matutinos, contaria-nos o resto. Verdade, milady?

—É verdade, Ewan.

Ele se dirigiu a sua irmã com as mãos cruzadas e assentiu com ar de superioridade.

—terminastes então, milady? —perguntou a pequena Anna.

Christina sorriu e limpou as mãos no avental.

—Acabo de terminar — mentiu, prescindindo da cera que ainda teria que retirar das toalhas, das velas que teria que substituir e do candelabro de prata que teria que polir. Todo isso podia esperar.

Além disso, Tor tampouco se dava conta.

Paciência, disse. Se a rusticidade em que se encontrava o salão quando chegou indicava algo, era que fazia muito tempo que ninguém se ocupara de que ele estivesse cômodo. Finalmente, Tor notaria os esforços que ela tinha feito para criar um lar confortável, um lugar onde gostasse de estar e ao que ansiasse voltar.

Dedicou seus pensamentos novamente aos meninos e disse:

—Então onde tinha parado?

—O malvado Meleagant afastou à rainha de Arthur e a levou a seu horrível castelo em…

—Gorre — interveio Christina.

—por que Lancelot, sir Kay e sir Gawain vão atrás da rainha e não do rei Arthur? —perguntou Deidre.

Boa pergunta, pensou Christina. Mas como explicar que a decisão do rei Arthur de não lutar por sua dama era o que justificava a infidelidade de Genebra? Uma nova pergunta a salvou de ter que responder.

—Lancelot matará ao Meleagant e salvará à rainha?

Ewan soprou.

—Claro que matará, tola. Lancelot é o melhor guerreiro de sua época; como o RI tuath. O chefe jamais permitiria que ninguém lhe raptasse, verdade milady?

Christina sorriu.

—Eu diria que não, Ewan. Mas se estiver tão seguro da vitória de Lancelot, talvez não precisem ouvir o resto.

Eles responderam saltando virtualmente sobre ela, negando com entusiasmo. Assim que os coros do «não» tiveram cessado, Christina agarrou a palmatória e retomou a história onde a tinha deixado no dia anterior.

*

Tor deixou ao senescal e a seu escrivão na galeria. Revisar a correspondência e as contas tinha levado muito mais tempo do esperado; tinha previsto estar no fiorde um momento antes, e estava ansioso por reunir-se com seus homens. O treinamento ia progredindo; em alguns aspectos melhor que em outros. Levaria tempo derrubar as barreiras que havia entre eles. Tempo do que não dispunha. Uma semana mais e encadearia a todos juntos se era necessário.

Esfregou a nuca, tentando mitigar a rigidez que sentia em toda a costa. Deus, que noite tão espantosa. Não tinha conseguido ficar a vontade. E era fácil saber a razão: comparado com a confortável cama com sedosos lençóis de linho e cálidas cobertas que tinha abandonado, a manta e a rugosidade do chão lhe tinha parecido tão agradável como um leito de pedras.

Os baús de Christina tinham chegado, e com eles apareceram muitos luxos que ele não tinha experimentado nunca. Lençóis tão suaves que pareciam de seda, e talvez o mais fascinante… Travesseiros de plumas. A primeira vez que tinha apoiado a cabeça em um, acreditou que tinha morrido e que tinha chegado ao céu.

Cada noite tinha que abrir mão de toda sua força de vontade para afastar-se de tanta comodidade. Mas, maldita seja, os guerreiros não dormiam em camas.

Diabos, a quem estava enganando? Não eram os travesseiros e os lençóis de linho o que lhe havia custado tanto abandonar, era essa mulher, muito tentadora. Mas sua fome dela era previsível, pensou. A novidade de seu matrimônio e seu insaciável desejo de Christina acalmariam logo.

Tor ouviu um sonoro estalo de risadas e aplausos procedente do salão. Perguntando-se a que era devido tanto alvoroço, dobrou a esquina, entrou e se deteve em seco. Não sabia o que esperava ver, mas certamente não a sua mulher sentada em cima da mesa com o que parecia ser uma palmatória na mão, e brandindo como uma espada.

Conteve o fôlego. Deus, era preciosa. Afastou o cabelo do rosto com um simples laço e o levava solto sobre as costas, seus enormes olhos negros brilhavam como a lua sobre o mar e suas bochechas aveludadas estavam ruborizadas de emoção. Parecia feliz, relaxada e jovem. Muito jovem. Tor não recordava ter sido tão jovem, tão feliz, ou ter estado tão relaxado, por certo.

Ela era uma rajada de ar fresco da primavera no frio e úmido inverno.

Mas que diabo estava fazendo? Dava voltas sobre a mesa a toda pressa. Uma espécie de atuação, pelo visto. Juntos a seu redor estava o que parecia a maioria dos criados da casa e três meninos pequenos, que a olhavam com expressões encantadas.

Ninguém o tinha visto chegar; toda a atenção estava centrada na veemente atuação da moça miúda. Por um momento, seu subconsciente lhe pregou uma brincadeira e viu o rosto jovial de sua mãe quando lhe contava um conto ao deitar. Tor sentiu uma intensa nostalgia dos tempos passados e teve uma fugaz ideia de quão diferente teria sido sua vida se seus pais tivessem vivos. Envergonhado ante essa debilidade, desprezou-a.

Christina agitou a palmatória frente ao menino que tinha debaixo.

—Esta vez não te libertará de seu castigo, Maleagant — disse com uma voz exageradamente grave—. Manchaste a honra de minha dama e eu, Lancelot, o principal cavalheiro do reino, defenderei-a. Deve pagar com sua vida. —Fingiu um apunhalar com uma colher—. Morre, vilão.

O menino gritou e fingiu uma morte muito teatral para grande regozijo de suas irmãs e do grupo, que estalou em outra ronda de aplausos quando estirou as pernas em um prolongado gesto final.

—Isso foi magnífico, Ewan — disse Christina, deixando a palmatória para unir-se ao aplauso—. Será um cavalheiro estupendo.

—Mas eu não quero ser cavalheiro, milady.

Ela parecia perplexa.

—Eu acreditava que todos os meninos queriam ser cavalheiros.

Ewan inflou o torso.

—Eu quero ser um feroz guerreiro das Terras Altas como o RI tuath.

«Que menino tão preparado», pensou Tor sorrindo.

—OH, milady — disse a menina maior—, e agora o que acontece? Como recompensou a rainha ao Lancelot por sua devoção?

Um vivo rubor apareceu nas bochechas de Christina. De repente, seu olhar se encontrou com Tor. Um gemido de sobressalto brotou do centro de seus lábios suaves, separados, e pareceu que suas bochechas se ruborizavam ainda mais.

—Milorde! Estás aqui!

Ao dar-se conta de que lhe tinham pilhado vadiando, os criados se apressaram a aparentar que trabalhavam e se dispersaram imediatamente. O menino e a menina maiores agarraram a irmãzinha e a levaram.

A pequena tentou soltar-se.

—Mas, eu quero ouvir…

—Chist, Anna — disse o menino. Saiu a toda pressa e acrescentou por cima do ombro—: Obrigado, milady.

—Vejo que seu público te abandonou — disse Tor. Percorreu a distância que lhe separava com um par de pernadas e se colocou de frente a ela.

Christina sorria com ironia.

—Isso parece. Muito pouco galante de sua parte, não acredita?

Devolveu o sorriso, sem pensar.

—Desculparia-me pela interrupção, mas acredito que neste caso foi bastante oportuna. Não é verdade que a rainha deu as graças ao cavalheiro de uma forma que preferiria não contar aos meninos?

Ela avermelhou de novo e ergueu os olhos para ele.

—Me parece que Deidre se deu conta de que estava suavizando as partes «românticas» da história.

Dispôs-se a descer da mesa, mas ele a deteve e lhe rodeou a cintura com as mãos. Com seus olhos escuros fixos nela. A pele sensível e arrepiada. As lembranças da noite passada fazendo o amor seguiam vivos em sua mente… E em seu corpo.

—Me permita — disse com voz rouca. Levantou-a como se fosse ligeira como uma pluma, atraiu-a para si e a baixou lentamente até o chão, desfrutando de do instante de contato de seu corpo deslizando-se pego a ele.

Alagou-lhe uma onda de ardor. Ela era tão suave e cheirava tão bem… Somente tendo-a perto se avivava.

—Assim, o que fez a rainha para demonstrar sua gratidão? —perguntou em voz baixa, incapaz de resistir.

Se não deixava de brincar com ela, pode ser que suas bochechas ficassem permanentemente tintas de rosa. Mas, maldita seja, era adorável.

—Eu… Eu - balbuciou Christina.

Ele tentou não rir. Pode ser que já não fora donzela, mas seguia sendo deliciosamente inocente. Muito distinta de qualquer que tivesse conhecido antes. Reteve-a um momento mais do necessário, tentado de levá-la de novo a seu quarto. Soltou-a.

—Tenho que ir - afirmou, para convencer-se a si mesmo, mais que outra coisa—. Tenho obrigações que atender.

Falou com brutalidade, e ela o interpretou como uma crítica, embora não tinha essa intenção. Parecia desolada.

—Deve acreditar que te casaste com uma mulher suja. Estava a ponto de limpar a prata, mas…

—Decidiu praticar seus dotes de espadachim?

Esta vez a brincadeira não funcionou.

—Os meninos —disse ela retorcendo as mãos— estavam tão ansiosos por ouvir o resto da história que me temo que me deixei levar. Voltarei para minhas obrigações agora mesmo.

Parecia tão abatida que tomou-lhe a mão, por impulso, desejando tranqüilizá-la.

—Não te considero preguiçosa absolutamente. Está fazendo muito bem o papel de senhora do castelo.

Christina abriu os olhos de par em par.

—Isso pensa? De verdade?

Era óbvio que sua opinião era muito importante para ela.

—Sim, de verdade.

Tor se deu conta de que era certo. Christina estava fazendo-o muito bem.

Levava pouco tempo ali, mas se tinha adaptado a seu novo papel de senhora do castelo facilmente. Ao pensar reconheceu quão difícil devia ter sido. Era jovem inexperiente e estava rodeada de desconhecidos. Mas tinha conseguido suficiente autoridade para obter o respeito dos homens do clã. Assim devia ser, ou do contrário não obedeceriam suas ordens. Agora que pensava, recordou que nas poucas refeições que tinham compartilhado, os serventes apresentavam as bandejas do desjejum a ela para que as passasse, e sorriam radiantes quando o fazia. Não só a respeitavam, gostavam dela.

E isso não era tudo. Havia algo diferente na fortaleza desde que ela tinha chegado. Algo, além das tapeçarias e das mudanças que Christina tinha feito e que ele mal tinha notado. Era mais cálida. Tor franziu o cenho, perguntando-se se ela estaria queimando muita turfa.

—Acontece algo? —perguntou ela.

Ele meneou a cabeça, sem deixar de franzir o cenho. Não queria ocultar seus sentimentos, mas assim que tivesse oportunidade falaria com o senescal sobre a turfa.

—Não, tenho que ir.

Os homens estavam esperando. Mas por alguma razão não estava tão ansioso por voltar para a instrução como minutos antes.

*

Deu a volta para ir, e uma borbulha de desespero surgiu no interior de Christina. Era a primeira vez que tinha tido a oportunidade de falar com ele durante o dia, desde que havia retornado e a tinha encontrado coberta de cinza na cozinha. Aparentemente começava a ser um costume encontrá-la em circunstâncias muito pouco favorecedoras. Mas não se importou. Estava ansiosa por saber mais dele e não queria desperdiçar a oportunidade.

—Espera! —Ele se voltou, perplexo, e ela se sentiu como uma parva. Suas bochechas se tingiram de rubor e se retorceu as mãos sobre a saia—. Eu… —O que ia dizer? Pensou— Não sei o que você gosta - soltou.

—O que eu gosto?

—Para comer - explicou, sentindo-se ridícula. Não era capaz nem de construir uma frase coerente quando Tor estava perto. Ruborizava-se e gaguejava e atuava como uma mocinha apaixonada, do momento em que ele entrava no aposento—. Deveria conhecer suas preferências para planejar as refeições da semana com o cozinheiro.

—Cormac permite que lhe diga o que deve preparar? —diria que ele não dava crédito.

Christina franziu o cenho.

—Não deveria fazê-lo?

—Deveria, mas Cormac é teimoso como uma mula velha. Faz o que quer sem escutar a ninguém.

Ela sorriu com doçura.

—Exceto a mim.

Ele a olhou com os olhos entoados durante um momento.

—O que fez em troca?

Christina se levou a mão ao coração como se estivesse escandalizada.

—Estou profundamente ofendida.

Tor arqueou uma sobrancelha.

Ela torceu os lábios.

—Alguém já te disse alguma vez que suspeitas de tudo?

Tor cruzou os braços, enfatizando a protuberância de seus músculos. Christina nunca se cansava de o olhar.

—Continuamente - repôs ele — É meu trabalho.

Teve a sensação de que seu marido fosse capaz de esperar eternamente, e pigarreou decepcionada.

—Ah, muito bem. Tenho descoberto que é muito mais razoável depois de uma grande jarra de cerveja.

Tor riu entre dentes, e aquele som a encheu de calidez. A brancura de seus dentes se destacava junto a sua pele bronzeada, e as rugas que rodeavam seus lábios se intensificavam quando sorria.

—Pelo visto me casei com uma moça ardilosa.

Ela se perguntou por um momento se referia ao que tinha ocorrido no Finlaggan, mas se tranqüilizou ao descobrir uma faísca zombadora em seu olhar. Sorriu-lhe.

—Eu prefiro pensar que sou esperta.

—Estou impressionado, fizesse o que fizesse.

Apesar da despreocupação com a que o disse, a agradou enormemente. Talvez tivesse notado seus esforços, mais do que tinha acreditado? Essa idéia a encorajou.

—Já sei que está ocupado, mas já levamos quase três semanas casados, e tivemos tão pouco tempo para falar… Tenho a sensação de que mal te conheço. —O sorriso desapareceu do rosto de Tor, mas ela ignorou a advertência. Deixou-se levar pela emoção de sua primeira conversação «normal» entre marido e mulher, e não quis parar—. Quase é a hora do almoço, e há muitas coisas que eu gostaria de comentar contigo. —A sua mente aparecera uma multidão de perguntas. Tinha visto os travesseiros novos? Também queria saber sua opinião sobre a cor dos novos dosséis para a cama. Tinha tanto que lhe perguntar!—. Possivelmente poderia ficar? —Então teve uma idéia ainda melhor—. Ou eu poderia ir contigo. Não chove, talvez uma refeição ao ar livre…

—Isso é impossível - replicou ele ocultando-se de novo atrás de sua aparência de chefe, e ela se deu conta de seu engano. Sentiu-se como se tivesse topado de cabeça contra um muro de pedra.

Esforçou-se por dissimular sua decepção porque não queria danificar o momento, embora temesse justamente tê-lo feito, devido a sua ansiedade.

—Talvez em outra ocasião - disse como se não desse importância. E acrescentou em seguida para repor-se—: Embora ainda não disse quais são suas preferências.

Tor fez um gesto de indiferença.

—O que você fizer estará bem.

—De acordo - disse ela em voz baixa. O momento tinha passado. Por que tinha que lhe pressionar? Por que não se contentava com o que Tor estava disposto a lhe dar?

Ele deveu notar sua expressão abatida.

—Beterraba.

Christina ergueu os olhos.

—O que?

—Eu não gosto de beterraba. Nem mandioquinhas, por certo.

A Christina iluminou o rosto.

—A mim tampouco. Algo mais?

—Os molhos doces para as carnes. O açúcar é para as sobremesas. —Olhou-a com ironia—. E para os figos secos.

Ela avermelhou, ao dar conta de que ele devia ter notado sua afeição pelas coisas doces.

—Vinho ou cerveja? —perguntou-lhe.

—Uísque, e logo cerveja. —Sorriu—. Nada dessa espécie de xarope que gosta a ti.

Também tinha notado que gostava do vinho doce? Pelo visto se dera conta de muitas mais coisas das quais ela acreditava. Desejava fazer centenas de perguntas mais, mas era óbvio que ele estava ansioso por partir e Christina não queria lhe atrasar mais.

—Obrigado.

Ele assentiu e se dispôs a ir, mas se deteve.

—Estarei fora…

—Uns dias - terminou ela a frase com tranqüilidade, sem aparentar absolutamente sua decepção.

Tor a olhou, penetrante, e Christina temeu que tivesse notado de todas as formas.

—Sim, alguns dias.

Ela se obrigou a sorrir como uma esposa complacente.

—Verei-te quando voltar, pois.

Ele a olhou longamente e pareceu que queria dizer algo, mas girou sobre seus calcanhares e se foi sem pronunciar mais nenhuma palavra. Christina o viu cruzar o pátio da janela, perguntando-se o que era o que o mantinha afastado durante tanto tempo.

Estava a ponto de desviar o olhar quando ficou gelada.

Foi como se lhe tivessem atirado um balde de água gelada em cima.

Lady Janet avançava para ele com uma grande cesta. O tipo de cesta que se usava para levar a comida para uma refeição ao ar livre.

Pelo visto o esteve esperando. Tor disse algo, e desceram a escada até a comporta marítima juntos.

O coração de Christina pulsava tão rápido que mal podia respirar. Estava convencida de que aquilo não significava nada. Mas por que ia com lady Janet e não com ela?


Capítulo 14


O inverno era feroz como um leão, trazia temperaturas glaciais, ventos gelados, dias curtos e intermináveis mantos de bruma cinza e nuvens. Quando o sol falhava, a água caía abundante dos céus.

O dia de Todos os Santos chegou e se foi, quão mesmo o de São Martín. Christina não demoraria em iniciar os preparativos para o Yule e Hogmanay. Os netos do cozinheiro se foram. Havia pouca alegria no interior daqueles lúgubres muros de pedra, mas ela tinha a intenção de fazer todo o possível para mudar isso.

Estava desanimada, mas não vencida. Paciência, disse.

O vento uivou e a chuva golpeou as finas venezianas do salão. Que noite tão horrível! Ela terminou de arrumar as samambaias, a única seguia crescendo em abundância nos arredores do castelo, além da urze, e deu um passo atrás para admirar os diversos matizes de laranja e marrom.

Deu uma olhada pelo ambiente, satisfeita de que tudo estivesse preparado para o jantar, e voltou para seu quarto para trocar-se. Nunca sabia se Tor se reuniria com ela, mas tentava ter o melhor aspecto possível para as poucas ocasiões em que o fazia.

Os dias tinham adquirido certo ritmo. Ele quase sempre abandonava o castelo ao amanhecer e retornava muito depois do crepúsculo, e às vezes nem sequer isso. Mas sempre mantinha sua promessa e lhe informava que ia partir «uns dias». Ela já não se incomodava em perguntar aonde ia; sabia que a única resposta que obteria seria a mesma de sempre: estava se ocupando de assuntos do clã, por só, aparentemente.

Christina não pôde evitar de reparar que lady Janet também estava fora freqüentemente.

Queria pensar que aquilo somente era uma coincidência. Mas lhe custava cada vez mais convencer-se de que seu marido não albergava nenhum sentimento especial por ela.

Em realidade, não sabia o que pensar. Não existia nenhum problema entre eles; certamente que não… Não tinha do que queixar-se. Mesmo assim, seu matrimônio não estava progredindo tal como tinha esperado, e não sabia o que podia fazer.

Já estava há mais de um mês no Dunvegan, mas em muitos aspectos seu marido seguia sendo um desconhecido para ela, como no dia de sua chegada.

Tinha averiguado o que gostava de comer e beber; que seu clã lhe reverenciava como a uma lenda viva, um rei divino e um herói guerreiro, tudo em uma peça; que mantinha a ordem e o funcionamento de seu lar com precisão militar; que quase nunca se relaxava; que além de um irmão tinha uma irmã (isso disse o escrivão). E que era capaz de rendê-la com uma carícia.

Conhecia o tato ardente de sua pele sobre ela, como se intensificava o aroma de pinheiro de seu sabão quando seu corpo fervia de paixão, o roçar tosco de seu queixo junto à pele, o «v» de pêlo suave e sedoso de seu torso, a pressão de seus lábios em seu seio e a deliciosa sensação de suas mãos lhe cobrindo o corpo.

Christina entrou em seu quarto e dirigiu o olhar para a cama; o único lugar onde se conectavam. Sobreveio-lhe uma ardorosa onda de lembranças viscerais.

Sabia como os músculos de seus braços e de seus ombros se flexionavam quando se sustentava sobre ela para penetrá-la. Conhecia a dureza que adquiriam esses músculos sob suas mãos. Sabia quanto pesava o corpo de Tor sobre o seu, conhecia a plenitude desse corpo em seu interior, o ritmo com o que o fazia o amor, movendo-se dentro e fora dela. Sabia como os músculos de seu estômago se esticavam, convertendo-se em rígidas faixas antes que ele gritasse, entregue. Conhecia o som dessa entrega, o áspero grunhido e o profundo gemido que ressonavam em seus ouvidos muito depois de que ele se fosse. E ia, sempre, por muito que ela desejasse que ele quisesse ficar. Despertar em seus braços tão somente uma vez…

Sentiu uma opressão no peito e se afastou da cama.

Conhecia sua forma de lhe fazer amor, mas não sabia nada do homem. Ele guardava seus pensamentos para si mesmo. Por muito que ela tentara derrubar o muro que tinha edificado a seu redor, não conseguia. Talvez devesse pedir ao rei Eduardo que lhe emprestasse seu infame mecanismo de assédio «Warwolf» 23 pensou a contra gosto.

Tor estava tão acostumado a estar sozinho, a agüentar ele mesmo suas cargas, que ela acreditava que nem sequer imaginava o que estava perdendo. Nem que seus esforços por mantê-la à margem lhe doíam. Nas estranhas ocasiões nas que se reunia com ela nas refeições, suas tentativas por ter uma conversa mais pessoal eram recebidas com educação, mas firmemente rechaçadas. Seu esforço para que a residência tivesse um ambiente mais alegre e por contribuir um pouco de calidez ao lúgubre salão tinham ficado em nada. Ela tentava ser útil. De fazer coisas bonitas para ele, de dizer ao cozinheiro que lhe preparasse seus pratos preferidos ou de conservar sua roupa perfeitamente limpa e imaculada. Mas, pelo visto, ele estava muito ocupado para se dar conta.

Christina tinha começado a sentir-se como um de seus cães. Um cachorrinho devoto que seguia lhe pisando os calcanhares, esperando uma mínima amostra de afeto. Uma carícia.

Um olhar. Algo que demonstrasse que lhe importava. Inclusive outro beijo na testa lhe teria dado esperanças.

Não que Tor fosse cruel. A crueldade teria exigido certa dose de sentimento. Talvez isso fosse mais fácil. Nesse caso, ao menos, Christina saberia qual era sua situação.

Ela tinha acreditado captar algo especial entre eles, mas e se estava equivocada? E se não havia noites confortáveis junto ao fogo? O que faria em tal caso?

Aparentemente Tor tinha dois sentimentos a ela: educada indiferença durante o dia e paixão de noite. Esse último lhe dava esperanças. A paixão entre ambos não tinha deixado de crescer, e ela se habituou de forma gradual aos desejos de seu próprio corpo e começava a deixar-se ir.

Ao menos, esse era seu caso, e desejava pensar que era mútuo. Mesmo assim, a verdade era que ela não podia compará-lo com nada. E ele sim.

Mas inclusive na cama, Christina não podia evitar sentir que algo ia mal. Que ele se retinha. Sentiu um agudo espasmo no peito, temendo ser uma decepção para seu marido. «Devo estar fazendo algo ruim.»

Desejava desesperadamente lhe agradar. Mas como? Impressionar-lhe com suas habilidades de esposa certamente não estava sortindo efeito. Tor tinha ensinado a paixão, como reconhecer os desejos de seu próprio corpo, mas ela seguia sem saber quase nada dele. O que gostava?

Ele sempre parecia tão controlado, salvo…

Isso era! A primeira vez. Houve algo selvagem e real a primeira vez. Talvez fosse assim como gostava?

As bochechas lhe arderam ante a escandalosa lembrança de como Tor a havia possuído por trás.

Sentiu uma espessa calidez no ventre. Tinha um plano. Exigia descaramento, mas a modéstia não a deteria. Precisava dar um golpe terminante para derrubar o muro de desconfiança e isolamento que ele tinha erguido a seu redor. Warwolf não era nada comparado com o que ela tinha planejado.

*

A onda golpeou ao Tor, derrubou-o e lhe impediu de levantar-se durante o tempo suficiente para que à maioria de seus homens entrasse o pânico. Com os pulmões ardendo, conseguiu voltar para a superfície da água, absorvendo rajadas de ar a fervuras.

—Alguém disposto a abandonar? —gritou, e sua voz ficou apagada pelo rugido do vento e o martelar da chuva.

Sua pergunta foi recebida por um coro de homens exaustos mas convencidos:

—Não, capitão.

Mas depois de mais de uma hora nas geladas águas do fiorde, durante a pior tormenta que tinha sofrido Skye essa temporada, inclusive MacSorley dava mostras de debilidade.

Só um demente estaria na água em uma noite como essa. Mas era justo a noite que ele estivera esperando. Nem mesmo planejando a tormenta ele pessoalmente, teria previsto as condições de supor um desafio maior.

Thor tinha desatado sua vingança com uma poderosa corrente. A água arremetia em ondas enormes contra as escarpadas rochas que delimitavam o fiorde.

Eles tinham nadado até a boca do mesmo, a uns quatrocentos metros da costa, através de um fluxo de metro e meio de altura e uma corrente que tentava o levar de volta. Tentando à sorte no mar, esforçando-se ao máximo por manter-se a flutuação, rodeados de redemoinhos de águas negras e de uma incessante neve.

Em um tranqüilo dia de verão, ele era capaz de estar ali fora indefinidamente. Mas as gélidas águas do inverno e a ferocidade do mar minavam a fortaleza de um homem em questão de minutos. Já não batia os dentes, e fazia muito tempo que não queimavam nem as pernas nem os braços. Não sentia nada. Conhecia os sintomas do perigo, mas seguiu forçando, forçando através da dor e o medo que teriam vencido à maioria dos guerreiros de elite.

Fortaleza. Resistência. Não render-se jamais. A dureza de corpo e de mente era o que convertia a seus homens nos melhores.

Quando outros ficavam na borda, tremendo, seus homens mergulhavam.

E sendo que ele era um dos melhores nadadores do grupo, tão bom como MacRuairi, embora não tão forte quanto MacSorley, podia imaginar que alguns outros deviam estar sofrendo.

Mas abandonar era impensável. Jamais. Era melhor que averiguassem se tinham o necessário em um momento assim, quando o que estava em risco era perder a um e não à equipe inteira.

A maioria dos homens eram bons nadadores, mas Seton e MacKay não estavam tão cômodos como os outros na água; Seton porque era inglês, e MacKay porque procedia de uma região montanhosa situada no coração das Terras Altas.

A fortaleza do grupo era quão mesma a de seu elo mais fraco. E esse exercício, junto a muitos dos que ele lhe tinha imposto nos últimos dias, pretendia demonstrar a importância de trabalhar unidos, além da necessidade de estar preparados em qualquer circunstância que pudesse apresentar-se, tanto física como mental. Para vencer a um exército muito mais numeroso e melhor equipado precisariam ser mais rápidos, mais preparados, mais fortes, e capazes de mover-se pelo território mais difícil com facilidade, incluída a água.

—Enumere - ordenou. Estava muito escuro e a água muito turva para ver todos os homens, de maneira que tinha que confiar nessas recontagens periódicas para assegurar-se de que estava todo mundo.

Tinha-lhe emparceirado o primeiro dia e indicou que não deviam separar-se nunca de seu companheiro; na água significava não afastar-se mais da longitude do braço. Trabalhariam sempre juntos, por grupos, pequenos ou grandes, mas precisava lhes preparar para isso.

—Equipe um, preparado, capitão.

MacSorley e MacRuairi. O navegante e o pirata. Primos e descendentes do poderoso Somerled, ambos eram excelentes nadadores, mas a habilidade especial do MacRuairi radicava em infiltrar-se. Dizia-se que era capaz de entrar e sair de qualquer parte. Uma habilidade útil não só para resgatar homens, mas também para cortar pescoços.

Um assassino, agora Tor via claro.

Tinha emparceirado ao alegre MacSorley com seu severo e lúgubre primo para que lhe vigiasse. O fato de que as brincadeiras constantes do MacSorley irritassem ao MacRuairi era uma vantagem acidental, mas bem-vindas. MacRuairi, habituado a trabalhar sozinho, contribuía à associação outro benefício.

—Equipe dois, preparado.

Campbell e MacGregor. O explorador e o arqueiro. Campbell também era muito hábil lançando a lança, e os dois se meteram em crescentes e descabelados desafios de pontaria à medida que passavam os dias.

Depois de estar uma semana encadeados, o antagonismo entre os dois inimigos não tinha feito mais que crescer, mas tinham aprendido a trabalhar juntos e a cumprir com suas tarefas. De momento, bastava.

Acorrentar os dois tinha sido mais acertado do que tinha previsto. Os dois homens evitavam a conversação em grupo. MacGregor era solitário e Campbell observador, e gostavam de manter-se à margem; embora seus similares temperamentos não tivessem mitigado absolutamente o antagonismo.

—Equipe três, preparado, capitão.

MacKay e Gordon. Outra dupla apropriada. O duro e bondoso montanhês e o esbelto alquimista não podiam parecer mais diferentes, mas resultara que MacKay era também uma espécie de inventor e experimentador. Em lugar do peculiar pó negro que Gordon utilizava para criar raios e trovões de fogo, MacKay experimentava com armas, forjando aterrorizantes instrumentos com nomes truculentos, mas descritivos, como «arranca olhos» ou «abre crânios»

—Equipe quatro, preparado, capitão.

Lamont e MacLean. O caçador e o atacante. Lamont era um famoso caçador de homens, capaz de seguir qualquer rastro, por leve que fosse. MacLean brandia um formidável machado de guerra e se dizia que tinha liderado uma série de audazes ataques contra os ingleses no Carrick.

Os Lamont, além disso, levavam muito tempo em uma disputa com os Boyd. Se soubesse antes, Tor possivelmente o teria emparceirado de outra forma.

—Equipe cinco, preparado, capitão.

Boyd e Seton. O mais forte e o mais fraco. O inglês era o elo mais frágil da cadeia, e isso lhe enfurecia constantemente. Não era uma consideração sobre se merecia ou não estar ali, a não ser o simples reflexo de sua juventude e inexperiência. De fato, Seton tinha subestimado bastante sua habilidade com a faca: lançava o estilete com extraordinária habilidade. Mas não correspondia ao Tor lhe dizer que merecia estar ali; Seton tinha que averiguá-lo por si só.

Tor tentou franzir o cenho, mas tinha o rosto rígida de frio. Se o treinamento não melhorava ao Seton, possivelmente Boyd o faria. Apesar da evidente diferença de força entre ambos, Seton se negava a dar-se por vencido. Cada vez que Boyd se burlava dele, Seton mordia o anzol. Aquilo lhe estava devorando por dentro, e Tor se limitava a esperar que reagisse. Seu altivo orgulho inglês podia lhe causar a morte.

Talvez tivesse cometido um engano lhe emparceirando, sem ter em conta o grau do ódio do Boyd pelos ingleses. Boyd e Lamont, os rivais do clã, possivelmente teria sido melhor opção. A discórdia não era algo que escasseasse nesse grupo.

Uma nova onda lhe cobriu. Basta. Tinha chegado o momento de voltar. Deu a ordem e notou a sensação de alívio dos homens, que, entretanto estavam muito exaustos e gelados para aclamar.

Estava orgulhoso deles. Normalmente estava acostumado a reservar essa prova para uma fase posterior do treinamento, mas a tormenta lhe tinha parecido muito tentadora.

Dessa vez as ondas e a corrente estavam a seu favor, e nadaram até a borda com uma facilidade maior que quando se afastaram da costa.

Quando os homens conseguiram sair da água, Tor esteve a ponto de cair rendido nu, sobre as rochas. Ao inclinar-se para puxar mais ar, se deu conta de que havia um punhado de homens que estavam fazendo exatamente o mesmo.

—Trabalho bem feito - disse quando recuperou a respiração, como incomum elogio.

O vento e a neve úmida tinham amainado o bastante para que distinguisse as silhuetas na escuridão. Arrepiaram-lhe os cabelos da nuca, e não pelo frio. As nove silhuetas. Fazia a recontagem sem pensar; era algo que fazia por instinto. Tinha que saber que tinha contado a todos seus homens.

Lançou uma maldição. Deu uma olhada ao Boyd.

—Onde está Seton?

Boyd se sobressaltou e olhou em redor.

—Estava bem atrás de mim…

Tor não quis perder nem um segundo mais. Atirou-se de novo à água; a raiva lhe proporcionou um renovado empurrão de energia.

Ia matar ao Boyd com suas próprias mãos, fosse o mais forte ou não. Tor odiava perder um homem, pela razão que fosse. Mas não vigiar ao companheiro era imperdoável. Não tinha intenção de explicar Bruce como tinha conseguido que seu jovem cunhado se afogasse.

MacSorley nadava a seu lado.

—Já o viu?

—Não - replicou Tor. Estava escuro como boca de lobo. Deu a volta e viu o resto dos homens que tinham ficado atrás—. Dispersem. Não deixem de olhar à frente e esperem que as ondas…

—Ali! —MacRuairi assinalou uns seis metros mais à frente. Sua capacidade de ver na escuridão era assombrosa. Tor mal distinguia um brilho que emergia na superfície. Seton era loiro, felizmente para ele.

Diabos, Tor confiava em chegar a tempo.

MacSorley foi o primeiro. Sua velocidade na água não era um mito; Tor não tinha visto nunca a ninguém que nadasse tão rápido.

Com a ajuda de Tor, MacSorley arrastou Seton de volta à costa e empurrou o corpo sem forças sobre a praia rochosa.

Inclinaram-se sobre o jovem.

—Não respira - disse MacSorley.

Tor amaldiçoou. Sem pensar virou ao menino e lhe golpeou as costas com a palma da mão. Não aconteceu nada. Voltou a amaldiçoar e repetiu o golpe, com mais força.

Dessa vez deu resultado. Seton expulsou a água dos pulmões, e se engasgou enquanto seu corpo se convulsionava entre espasmos e expectorações.

Tor notou como se distendiam as costas e os ombros.

Passados uns minutos, o corpo do Seton tinha eliminado a água do mar e tentou sentar-se. Mas MacSorley lhe conteve.

—Acredito que é melhor que sigam convexo. Parece-me que bebestes muito por esta noite.

Seton conseguiu esboçar um sorriso, que em seguida se converteu em uma careta.

—Completei a prova? —perguntou, olhando ao Tor.

Este assentiu.

—Sim, menino, completou-a.

A ira retornou com toda sua força. Boyd não havia dito nenhuma palavra, e ficou quieto enquanto outros homens tentavam reanimar a seu companheiro. A julgar por sua sombria expressão, Tor se deu conta de que era consciente de seu erro, mas era muito tarde, maldita seja.

Rodeou o grosso pescoço do Boyd com uma mão; uma fúria cega percorria seu corpo.

—Qual era a regra?

Boyd o olhou sem pestanejar.

—Não se separem de seu companheiro.

Tor apertou e outros homens se aproximaram mais. Pego à cara do Boyd, ele cuspiu suas palavras.

—Estes homens contam com que estejam a seu lado, com que cumpram com seu papel, que formem parte desta equipe, e você acaba de abandonar a um de nós. Se tiverem que carregar com um homem até as profundidades do inferno, farão, porque eles o farão por você. Compreendido?

A vergonha invadiu ao resistente guerreiro. Assentiu.

—cometi um engano. Não voltará a acontecer.

Tor lhe separou de um empurrão.

—Podem jurar que não.

Tor não mandou ao Boyd a casa naquele mesmo momento, porque em parte tinha sido culpa dele. Não acreditava que tivesse pressionado muito aos homens, pressionados mais à frente do ponto que alguém acredita que há de chegar para demonstrar que alguém tem o necessário para ser um guerreiro de elite. Ou se tem o necessário ou não se tem. Possivelmente era severo, mas Tor devia ao grupo, não a um homem. Sabia exatamente até onde pressionar, e essa era uma das coisas que lhe tinham convertido em um bom líder.

Mas com escuridão ou sem ela, em última instância esses homens eram responsabilidade dele. Deveria ter se dado conta de que Seton tinha desaparecido.

—Se voltares a fazer algo assim, despacharei-te. Não me importa o forte ou extraordinário que sejas. Isto é uma equipe. Se queres lutar sozinho, retornem pra casa.

Os homens ficaram abatidos depois daquilo, e voltaram para a torre a verem comida que Janet lhes tinham preparado. Houve menos conversa do habitual, embora MacSorley não pôde resistir burlar-se de Seton umas vezes mais, a respeito de sua afeição pela água de mar, lhe oferecendo uma taça, se por acaso preferisse beber isso em lugar de cuirm.

Não era assim como Tor esperava que acontecesse, mas essa noite teve a sensação de que algo tinha mudado. Não porque Seton tivesse estivera a ponto de morrer. A esses homens não dava medo a morte. Para um homem das Terras Altas, morrer na batalha era a recompensa definitiva; o qual explicava possivelmente essa maneira de lutar selvagem e sem limites que tinha gerado terror no coração de seus inimigos.


O que tinha mudado era que os homens já não se limitaram a escutar suas palavras sobre a importância de trabalhar juntos; essas palavras tinham impregnado por fim. A mudança não aconteceria em uma noite; estavam muito acostumados a lutar sozinhos pela glória pessoal, mas chegaria.

Depois de semanas de martelar, a desatinada guarda tinha chegado a um ponto decisivo, e pela primeira vez, o êxito parecia possível. Talvez ao final não precisasse encadear todos juntos.

Deixou-lhes falando em voz baixa junto ao fogo e retornou a Dunvegan.

A tormenta tinha amainado, embora Tor tivesse se orientado pela escorregadia escada de pedra da comporta marinha sem o nebuloso reflexo da luz da lua. Os guardiães do muro lhe saudaram quando entrou no barmkin24. Não pela primeira vez, amaldiçoou a promessa que tinha feito a sua esposa. Exausto, encharcado e frio até os ossos, havia sentido a tentação de passar a noite na torre, mas não a tinha avisado de que não voltaria a dormir. Não estava acostumado a sentir-se obrigado com ninguém a atuar de uma forma determinada, e isso o incomodava.

Por que permitia que o distraísse de suas obrigações? Deveria estar com seus homens, embebedando-se e ouvindo a incessante fanfarronice e sarcasmos de MacSorley, as histórias de Gordon sobre as proezas de seu avô na última cruzada, quando lutou junto aos cavalheiros templários, os relatos de Boyd sobre as injustiças dos ingleses nas fronteiras, ou o tema preferido de quão guerreiros estavam longe de casa: as mulheres.

Mas uma parte dele, uma parte que era maior cada dia, não queria decepcioná-la. Christina estava desempenhando seu papel, ocupava-se do castelo e de suas obrigações de um modo que não lhe dava nenhum motivo de queixa. Mas o olhava de uma forma que lhe corroia a consciência.

Tor lhe estava fazendo mal, e isso o incomodava. Ela tinha alimentado esperanças sobre ele que não podia cumprir. A visão dela do matrimônio era própria do relato romântico de um bardo, como o que a tinha ouvido contar aos meninos, sobre o cavalheiro devoto de sua dama. Ele a vestiria, daria-lhe refúgio e amparo; daria sua vida por ela sem pensar um momento, mas o tipo de intimidade que desejava dele era impossível.

Embora tivesse obrigações com seu clã, não era capaz de mostrar esse tipo de sentimentos. Há muito tempo era um chefe e um guerreiro. Rodeado de morte e sangue durante a maior parte de sua vida, tinha visto coisas que lhe arrepiariam a pele. Desde o começo tinha aprendido a não sentir-se preso a ninguém. Tinha visto morrer a muita gente: a seus pais, a amigos…, diabos, inclusive a sua primeira mulher.

A distância lhe tinha proporcionado o nervo que necessitava para que seu clã sobrevivesse e prosperasse, para ser capaz de tomar decisões a vida ou morte, para conseguir a vitória no campo de batalha. Não podia permitir-se ser de nenhuma outra maneira. Era o que a guerra e o dever tinham feito dele: um homem frio e desumano.

Enquanto se aproximava viu o brilho da luz no salão, embora o jantar já devia ter terminado. Soltou outra maldição. Inclusive meio morto de cansaço, seguia sentindo esse inconfundível puxão na virilha, sabendo que logo a veria.

A novidade não desaparecia. Começava a perguntar-se se alguma vez se cansaria dela. Noite atrás noite, era incapaz de estar longe de sua mulher. Inclusive quando se obrigava a dormir na torre alguns dias, para demonstrar-se a si mesmo que podia, pensava nela. Christina tinha invadido seus pensamentos, seus sonhos, inclusive seus malditos sentidos nos momentos mais inoportunos. No dia anterior estava no meio de um duelo de espada com MacRuairi, quando levantou o braço para brandir a espada e notou o aroma de sua fragrância floral na pele. Tinha recebido um golpe no ombro por culpa dessa desorientação.

Não estava funcionando. Não importava as vezes que a possuía, o desejo por sua esposa não morria. Avivava-se. Com mais intensidade, arrastava-lhe de novo junto a ela, por muito que resistisse.

Mas essa noite, não. Essa noite estava muito esgotada. Não importava quão fascinante fosse seu aspecto, aninhada na cama, com sua cabeleira negra derramada sobre os ombros e sua delicada bochecha apoiada no travesseiro; desejaria-lhe boa noite e cairia rápido junto ao fogo com o resto de seus homens. Onde devia estar.

Entrou no salão, inspirou o aroma marcante misturado com a turfa da chaminé. Alhos e noz moscada. A calidez lhe invadiu. A pesar do cansaço, sentiu que seu corpo se relaxava. Apareceu uma lembrança enterrada nos limites de sua mente: compota de frutas. O aroma recordou a sua infância. A sua mãe. Outros tempos.

O que tinha sua jovem esposa que provocava nele essas peculiares lembranças?

Embora Rhuairi lhe tivesse assegurado que Christina não estava desperdiçando a turfa, diria que ali fazia mais calor. Não era capaz de averiguar o motivo, mas Dunvegan parecia diferente. O ar era mais quente; o ambiente mais acolhedor. Notava-o cada vez que retornava. Tinha medo de que começasse a gostar de muito.

A maioria dos componentes de seu clã seguiam desfrutando da bebida, mas uns poucos tinham desenrolado as mantas para dormir. Rhuairi se aproximou para lhe informar das idas e vindas pelas imediações do castelo durante a jornada, incluindo mais problemas com as rendas. Quando Tor abandonou o salão estava ainda mais exausto, arrasado pelas exigências de sua dupla responsabilidade. Treinar aos homens estava prejudicando seu dever com o clã.

Mas não podia enganar-se. Gostava de os treinar. Eram diferentes a qualquer outra equipe que jamais tivera treinado. Normalmente se sentia desdobrado entre capitão e soldado, mas esses homens eram seus iguais. Não só em fila, a não ser em habilidades. Sentia que era parte de algo importante.

Viu uma franja de luz por debaixo da porta e chamou. Ouviu um ofego e um trocar de um lugar a outro antes de abri-la. Quando entrou, Christina estava de joelhos, guardando algo no baú. Ela fechou de repente a tampa e se voltou para ele com um inconfundível rubor culpa nas bochechas. Tor viu o prato vazio junto à cama de Christina, e se fixou em restos de açúcar. O que estava fazendo? Acumulando figos para o inverno?

Eram bastante custosos. Mesmo assim, quando ele se deu conta de quanto gostava dos figos e as ameixas maduras, disse ao Rhuairi que comprasse mais para o Yule. Talvez assim conseguisse que ela sorrira. Gostava quando sorria.

—Viestes! —exclamou Christina, levantando-se de um salto e correndo para ele.

Por muito que gostasse de suas entusiasmadas boas vindas, teve a sensação de que tentava lhe distrair. Deu uma olhada à arca e de novo para ela.

—Incomodei-te?

Ela negou com a cabeça.

—Não, somente estava guardando uns objetos que terei que remendar.

Ele arqueou uma sobrancelha.

—Enquanto comia figos?

As bochechas de Christina avermelharam de um modo adorável, e ele sentiu uma onda familiar no peito. Levava a cabeleira azeviche solta e caída sobre o rosto como um denso véu de cetim. Sem se dar conta do que estava fazendo, adiantou-se e colocou com cuidado atrás da orelha. Algo que a tinha visto fazer muitas vezes.

Ela conteve a respiração e seus olhares se encontraram. Tor não soube qual dos dois ficou mais surpreso por aquele gesto. Foi como aquela vez em que lhe tinha beijado na cabeça. Por desgraça, nesta ocasião não estava adormecida.

Rapidamente baixou o braço e afastou o olhar.

Esses estranhos sentimentos por sua jovem esposa lhe desarmavam. Nunca tinha conhecido a ninguém como ela: doce, amável, considerada, e maldita seja, ansiosa por agradar. Tocava-lhe constantemente, roçava-lhe levemente o braço, fazia uma sutil carícia. Ninguém lhe havia tocado com tanta naturalidade desde que perdera a sua mãe. Havia algo nela que convidava à cercania.

Deveria estar na torre com a guarda de Bruce e não ali, a sós no aposento com ela, sem desejar mais que tomá-la em braços, abraçar sua suave pele nua contra ele e aspirar seu aroma fresco que era como ambrosia para um moribundo.

Tor entendia o anseio sexual. Mas esse desejo de estar perto dela não era certo, sobretudo quando atrapalhava suas obrigações. Estava se tornando brando, e, maldita seja, mais valia fazer algo.

Deu um passo atrás e ergueu as costas.

—Vim te desejar boa noite.

Christina ficou desolada.

—Não vai…

Tor fez caso omisso da punhalada no peito.

—Foi um dia muito longo.

Olhou-lhe como se tivesse pisoteado a seu cachorrinho favorito.

—OH - disse Christina, retorcendo as mãos—, é que…

Baixou os olhos para evitar seu olhar, mas ele viu o leve matiz de cor que adquiriram suas bochechas.

«É tão bela», pensou, e o peso que sentia no peito se estendeu a garganta. Às vezes lhe doía somente olhá-la. Sua doce vulnerabilidade lhe chamava de um modo que não tinha nunca experimentado. Levantou a mão para lhe acariciar a bochecha, mas imediatamente deixou cair.

Obrigou-se a desviar o olhar. Aquilo era uma loucura. Tinha que conter-se. Ela era uma distração que não podia permitir-se. Dispôs-se a dar boa noite, mas as palavras de Christina lhe deixaram gelado.

—Esperava que fizéssemos algo diferente esta noite.

Tor lhe lançou um olhar; seu corpo voltou para a vida imediatamente.

—Diferente? —disse com a voz tomada. Disse a si mesmo que não se referia ao que ele pensava. Não sabia quão provocadora soava. Ou sim? Tor tinha notado a luta que crescia no interior de Christina: sua apaixonada curiosidade natural brigava com uma modéstia de donzela profundamente arraigada. Sua inocente esposa era cada vez mais audaz. Que Deus lhe ajudasse se finalmente dava rédea solta a sua paixão.

Aproximou mais, o suficiente para que a madura redondez de seu seio lhe acariciasse o linho da camisa. As pontas eretas de seus mamilos lhe cravavam e esteve a ponto de perder o controle. Apoiou as mãos sobre o peito e moveu a cabeça para lhe olhar. A sensualidade daqueles exóticos olhos escuros não deixava dúvidas a respeito do que desejava.

O peso que Tor sentia na virilha se intensificou. Ardeu-lhe o sangue, enquanto inundava-se um suave aroma de feminilidade. Christina não tinha nem idéia do que o fazia. Como a desejava. Como o descarado desejo que sentia por ele o agradava.

—Perguntava-me se poderíamos…

Tor esperou. Seu coração pulsava desbocado sob a palma da mão de Christina. Se deu conta de que ela não sabia como dizer o que queria.

—O que é moça? —disse com voz bronca, incapaz de deixar de lhe acariciar a curva aveludada da bochecha. Sentiu um rasgo interior, como sempre que a acariciava.

—Diga o que quer.

—Perguntava-me se poderíamos tentar como…na primeira noite.

Ele ficou gelado. Mas o sangue circulava e palpitava em seu interior como uma fogueira. As correntes da cortesia nunca lhe tinham parecido tão escuras. Todos seus instintos animais se elevaram, como um leão disposto a fugir da jaula. Endureceu-lhe o membro, como uma rocha, ansioso…

Não podia estar lhe pedindo que…

Mas sim o fez. Sem deixar de lhe olhar aos olhos.

—por atrás…


Capítulo 15


Christina se ruborizou violentamente perguntando-se se não teria cometido um engano. Durante uns instantes de agonia ele não se moveu, não disse nenhuma palavra. Os músculos de seu corpo estavam tensos como a corda de um arco. No aposento ressonava um silêncio doloroso.

Não podia olhá-lo, humilhada por seu próprio atrevimento. No que teria estado pensando? O que devia pensar ele de sua desavergonhada petição? Esse devia ser o momento mais violento de toda sua vida.

—Sinto - murmurou dando um passo para trás para afastar-se dele—. Queria partir. Esquece…

Sentiu um calafrio ao ouvir o som gutural que emanou de sua garganta. Era o mesmo que ele tinha ouvido antes de…

Interrompeu-a bruscamente.

—Ao diabo - exclamou ele puxando-a até levá-la contra seu peito.

Christina afogou um grito; o contato imediato com seu corpo avivou todas suas terminações nervosas. Cravou o olhar em seu rosto e viu que sua expressão era mais fera que nunca. O tic da mandíbula tinha disparado, forte, rápido.

Inconscientemente, Christina tentou escapar, assustada do que tivesse podido desatar sem saber. Todo seu ser delatava que era um guerreiro aterrorizante, mais bárbaro que cavalheiro. E não a soltava. Seu olhar lacerante a apanhou em uma armadilha selvagem.

—Não vou a nenhuma parte. E você tampouco. Não depois de uma petição como esta. —Levantou-a no colo, e com ela nos braços subiu os degraus que conduziam à cama.

O coração de Christina começou a palpitar devido ao crescente nervosismo. Podia sentir a tensão aumentando nele, o desejo que lhe inspirava até cotas jamais imaginadas. Parecia um homem levado a extremo, a bordo de perder o controle. Aquilo era algo selvagem, perigoso e excitante, muito excitante.

Deitou-a sobre as mantas com uma suavidade surpreendente, dada a rudeza com que se despiu. Soltou a banda que levava sobre os ombros e tirou as botas e o cotun de couro reforçado.

Entretanto, quando se inclinou para apagar a vela de um sopro, Christina o deteve.

—Não, por favor. —Não queria que houvesse mais escuridão entre os dois—. Não a deixa acesa?

Seus olhos se cruzaram, e o olhar safira do guerreiro era sombria e penetrante. Não queria? Por quê?

Christina pensou que ia rechaçar sua petição, mas em troca se limitou a assentir.

—Como queira.

Tirou o leine e Christina ficou sem fôlego. Esse homem era divino! Espetacular em tudo, tal e como recordava. Um colosso de beleza e força masculinas. Cinzelado por uns músculos firmes e robustos. Seus ombros, de uma largura incrível; seus braços, grossos e definidos. Em seu abdômen apareciam marcadas umas ondas que pareciam de ferro. Por que estranha razão lhe via mais musculoso e espetacular sem a roupa e a armadura postas?

Christina não sabia onde colocar as mãos. Mas foi sua proeminente ereção a que, com um quente comichão entre as pernas, fez decidir-se. A atrevida manifestação do desejo masculino a excitou. Grossa e longa, a arredondada ponta, roliça e inchada. Brutalmente e inegavelmente masculina. Erguendo-se para seu ventre, crescendo sob o olhar insidioso e desavergonhada dela. A fina pele se esticou tanto que parecia brilhar como o mármore.

Nesse momento Christina soube exatamente onde desejava colocar as mãos.

—Cuidado, menina - a advertiu ele em tom sombrio, com uma voz perigosa e sedutora de uma vez—. Olhe-me assim e levará muito mais do que pretende.

Uma onda de prazer a invadiu ao dar-se conta de que sua admiração o excitava.

—Posso te tocar? —espetou-lhe, perguntando o que não se atrevera jamais.

Os músculos de seu abdômen se contraíram. Ele deixou cair as mãos aos flancos e assentiu.

—Sim.

Christina rodou para ficar-se de joelhos ante ele. Alongou uma mão titubeando e lhe roçou com os dedos os duros sulcos do ventre.

Tor soltou um suspiro, e seus músculos reagiram ante esse tato, suave como uma pluma. Christina mordeu o lábio para não sorrir, maravilhada pela capacidade de provocar uma reação como essa com o simples contato.

Com a mesma suavidade percorreu com o dedo a longa longitude de sua virilidade. Seus lábios se abriram de surpresa. A pele era muito suave. Como o veludo. E debaixo dela, a rígida coluna era do mesmo aço com que estava lavrado seu corpo.

Explorou a esse homem com os dedos, e logo, voltando-se mais atrevida, com a mão, rodeando-o, embora sem poder fechá-la de tudo ao redor.

Ele rugia a cada carícia, como se estivesse agonizando.

Christina o soltou e o olhou com ar dúbio.

—Estou fazendo algo mal?

Ele negou com a cabeça. Viu que os músculos de seu pescoço e de seus ombros se inchavam e ficavam tensos.

—Não, absolutamente… —conseguiu articular ele—. Segue fazendo o mesmo. —Pôs sua mão em cima da dela e lhe ensinou a tomá-lo. Olhou-a aos olhos, lhe mostrando a intensidade de seu desejo—. Ah… Assim, Tina, me acaricie.

Tina. Gostou. Era quase uma expressão de carinho.

Sustentando-lhe o olhar, fez o que lhe pedia. Algo ocorreu entre os dois. Algo que foi além da sensualidade erótica do momento e realçava cada carícia, cada movimento.

Christina observou que o prazer se apropriou de todos seus traços quando o agarrou com a mão e moveu esta de cima pra baixo, de baixo pra cima. Devagar ao princípio, e logo mais depressa, quando a paixão apareceu em seu belo rosto.

Uma estranha sensação de poder a embargou ao compreender que ela tinha a capacidade de lhe fazer isso. De levá-lo a alturas insondáveis. Aquilo devia ter algum significado especial, sem dúvida alguma.

Notou-o quente e pulsátil em contato com a palma de sua mão. Christina pôde sentir o batimento do coração no sangue, uma e outra vez, até que os batimentos do coração cobrou força. Afastou-lhe a mão com um grunhido. Uma gota perolada surgiu da ponta. Christina sentiu a necessidade de agachar-se para lambê-la. Para saborear a esse homem.

—Basta. Preciso estar dentro de ti.

Sua voz era tensa e premente. Nunca lhe tinha visto assim. Antes sua paixão tinha sido fera e intensa, mas controlada sempre. Nesse momento, entretanto, Christina sentia que esse controle ia cedendo, sentia que ele estava lutando contra algo interior. Algo que estava a ponto de deixar ir.

Outro empurrão mais. Possivelmente logo saltaria a barreira que havia entre os dois. O atrevimento tinha funcionado com antecedência. Esquecendo o pudor, Christina tirou a camisa pela cabeça e a deixou cair a um lado. Resistindo o impulso de tampar-se com os braços, ajoelhou-se diante dele, nua.

—Tome então.

*

Tor procurou agüentar, mas ia empurrando para o limite com seu inocente anseio. Oferecia-se. Nunca tinha conhecido a uma mulher que se oferecesse tanto.

Por atrás. Incrível. Nem sequer com a mais experimentada amante estava acostumado a recrear-se nesse prazer, e nem sequer se atreveu a imaginar que faria algo assim, apesar de seu primeiro encontro, com essa sua pequena mulher criada entre algodões. Embora essa mulher não deixasse de lhe surpreender.

Da petição ladina de que tomasse por atrás até a intensidade do erótico olhar que ela posou sobre seu membro e o prazer perfeito de masturbá-lo com sua doce e miúda mão, Tor esteve controlando-se. Esforçava-se para não jogá-la sobre a cama e lhe dar exatamente o que lhe pedia: a rudeza e guelra que lhe gostavam.

Entretanto, quando Christina tirou a camisa por cima revelando sua pele nívea e nua, perdeu o controle. Seu domínio se veio abaixo e ficou no chão, descuidado ao lado de seu vestido.

A lembrança de seu exuberante corpo o tinha enganado na escuridão, mas essa lembrança era incomparável vendo-a ao natural. Desfrutando de cada centímetro dessa gloriosa pele, suave como a de um recém-nascido, revelada a cálida luz das velas.

Espetacular. Sedutora. Mais bela que nenhuma outra mulher. Uma ninfa de cabelos longos e escuros que lhe caíam pelos ombros em divinas ondas enquanto seguia ajoelhada ante ele, com os seios tersos e exuberantes, coroados pelos mamilos mais suculentos que tivesse saboreado. Em contraste com a pálida brancura de sua pele, o delicado rosa parecia inclusive mais tentador e delicioso.

À luz das velas não pôde evitar contemplar a beleza de seu corpo, e em especial de seus olhos. Sustentavam-lhe o olhar, e não o permitiam desviar a deles. Escuros e luminosos, cheios de ternura e de uma emoção que ele não quis ver.

«Tome então.»

Se tinha pretendido deixá-lo louco de desejo, tinha conseguido. Pelos pregos de Cristo que tomaria. Por atrás, por cima, por baixo, de lado… De qualquer forma possível tomaria. Já.

Rodeando-a pela cintura com ambas as mãos, levantou-a da cama e a atraiu para seu peito, sobressaltando-se ao ser consciente da aguda faísca que saltou com o contato de suas peles ao roçar-se e seus corpos ao encaixar. Afundou o rosto em seu cabelo, faminto de seu sabor. Devorou com a boca, com a língua, a pele de seu pescoço, doce como o mel, enquanto deslizava as mãos por suas costas e sustentava nelas a arredondada curva de suas nádegas.

Grunhiu ao ver-se embargado de sensações conhecidas. Reconheceria a essa mulher estivesse onde estivesse. Tinha acreditado que a escuridão a faria parecer-se com as demais, mas tinha sido justo o contrário. A escuridão tinha potencializado o resto de seus sentidos, e tinha feito ser inclusive mais consciente de sua presença. O tato de sua pele, suave como o de um recém-nascido, a fragrância floral, o sabor de mel dessa mulher… Gravaram-se indelevelmente em sua memória.

Tor tinha se amparado na escuridão, escondia-se do que sabia que não poderia vencer. Entretanto, não tinha funcionado. Seus corpos se deslizaram juntos como se parecessem o um para o outro. Jamais havia sentido assim. Não pôde seguir lutando contra a paixão que existia entre os dois… Aquilo era muito forte.

Os quadris de Christina insistiam dando círculos ante ele, esfregando-se contra suas partes, duras como uma pedra. Um fogo pulsava em suas veias. Era fantástico. Era ideal. Adorava como ela se movia, vibrando, esfregando-se, abandonando-se a uma dança escura e cativante.

Sua lasciva reação tinha sido impressionante.

Tor deu a volta, sem separá-la de seu peito, e tomou um de seus exuberantes e curvos seios com uma mão enquanto que com a outra lhe acariciava o ventre e a afundava entre suas pernas.

Christina tremeu e deixou escapar um suspiro de prazer quando o dedo dele encontrou a sedosa umidade da excitação sexual. Deliciosamente molhada. Deslizou o dedo em seu interior avivando-a, dilatando-a. A respiração dela se acelerou, voltou-se irregular e se converteu em um suave lamento. Tor soube que se aproximava o momento.

—Me diga que quer isto - lhe ordenou, afundando o rosto em seu cabelo. Uma parte dele desejava que se negasse, desejava assustá-la para que fugisse.

Entretanto ela seguiu a aposta. Respondeu-lhe com seu corpo. Arqueou-se contra ele empurrando o peito contra sua mão e pressionando as nádegas com insistência contra seu membro turgente. Tor estava a ponto de explodir.

Não existia volta atrás. Para nenhum dos dois. Já não.

—Te agache — ordenou tentando controlar a luxúria que o possuía—. Ponha as mãos sobre a cama.

Christina fez o que Tor lhe indicava sem titubear, e colocou suas lindas e curvas nádegas no ângulo adequado. Ele roçou com a mão sua pele nívea e imaculada saboreando o instante de pura sensualidade. Que doçura… Resultava-lhe incrível que estivesse fazendo isso, com ela, com a jovem e inocente donzela que tinha desejado nada mais vê-la e que nunca tinha acreditado que teria.

Deslizou seu membro ereto entre as pernas dela brincando com a longitude, deslizando-se, adiante e atrás, por sua abertura, até umedecer-se com ela. E agarrando-a pelos quadris com ambas as mãos, colocou a sensível ponta e empurrou. Nublou-lhe a mente. Teve que fechar os olhos quando a intensidade o assaltou com uma fera sacudida. Afundou-se nela devagar, alongando esse incrível momento, essa sensação de prazer aniquilador.

Quente. Tenso. Bom.

Quando já não pôde mais, empurrou até o fundo. Christina gritou, surpreendida pelo prazer.

—Você gosta disto, doce Tina? —perguntou-lhe Tor incrustando-se nela—. É isto o que queria?

Tor voltou a empurrar atraindo para si seus quadris para afundar-se mais nela, para afundar-se no mais profundo.

—Sim - gemeu Christina levantando os quadris contra ele—. Por favor. Quero tudo.

Entre as brumas do desejo o sentido de suas palavras ressonou com maior profundidade. Tor sentiu que lhe cravavam com força no peito.

Deixou-se levar. Desatou sua paixão liberando a de suas ataduras, oferecendo a essa mulher tudo o que tinha. Deixando que visse exatamente quanto a desejava em toda sua primitiva ferocidade.

Christina se agarrou à cama enquanto ele arremetia contra ela uma e outra vez, e seus duros grunhidos se mesclaram com os suaves gritos dela em uma cacofonia de desejo e prazer.

Os sentidos esporearam seu corpo alojando-se na massa formigante e tórrida de seus lombares. Todos os músculos esticaram querendo relaxar-se.

Tor apertou a mandíbula concentrando-se nas sensações, no ato perverso de que estavam desfrutando. Seus olhos se desfrutavam com a visão sensual que se oferecia ante ele. O escuro cabelo de Christina esparramando-se pela pálida pele de suas esbeltas costas. O brilho do suor de Christina sobre sua pele enquanto ele a penetrava, entrando e saindo dela. As nádegas de Christina altas, para receber cada um de seus embates.

Tor contemplou o movimento de seus turgentes e grandes peitos ao ritmo de suas sacudidas, as pálidas aureolas rosas duras como duas pérolas. Acaso havia algo mais erótico que isso?

Suas fantasias se converteram em realidade. Se isso era o cume da paixão para ele… por que sentia como se faltasse algo? Acelerou o ritmo, tentando descobrir.

Ouviu que Christina tomava ar com força, e logo os tênues gritos enquanto se deixava ir, tremendo e agarrando-se a ele.

Tor ficou quieto. Um incompreensível ataque de raiva o sacudiu por dentro. Sentiu-se enganado. Tinham-lhe negado o prazer que mais queria: ver seu rosto.

Saiu dela. Ignorando a impressão do ar frio em contato com seu membro molhado, deu meia volta e a deitou de costas sobre o colchão até que ficou com as nádegas na borda da cama.

A visão de suas avermelhadas bochechas e suas pálpebras entrecerradas o enfureceu. Era como uma mofa do que se perdeu.

—O que acontece? —perguntou ela notando a mudança em Tor.

—Nada - respondeu ele entre dentes. Como homem, tinha uma missão. Queria que essa mulher voltasse a gozar. E nessa ocasião a contemplaria.

O que lhe acontecia? Estava mais descontrolado, zangado e excitado do que esteve em toda sua vida. Estava a ponto de explodir, tinha o corpo tenso pela paixão que ela tinha despertado nele. Mas necessitava mais. Maldita seja, precisava olhá-la aos olhos.

Colocou-se entre suas pernas, levantou-as e as levou a sua cintura. Agarrou-a pelas nádegas e a penetrou com força, grunhindo aliviado por voltar a encontrar-se envolto nesse fogo tenso e molhado.

Christina teve que agarrar a sua nuca para não perder o equilíbrio, dada a força de seu embate, e Tor pôde sentir o erótico comichão de seus mamilos contra o peito.

Seus rostos estavam a poucos centímetros. À luz das velas Tor viu tudo, cada traço em suas pupilas, cada matiz, cada rubor, seus lábios abertos e seu fôlego entrecortado.

Não podia afastar os olhos dela, enfeitiçado pelos sinais de prazer que descobria em seu rosto.

Quando Christina o olhou, ele já era incapaz de respirar. Tinha o peito tenso, cheio, era muito…

Era isso. Isso era o que ele tinha procurado inconscientemente.

O rubor tingiu as bochechas de Christina, e seu olhar foi cobrando intensidade enquanto seus lábios pugnavam por fechar-se.

O sangue pulsava nas veias de Tor. Podia sentir a pressão ao final da coluna vertebral, enroscando-se, aumentando a cada grito afogado que escapava dos doces lábios entreabertos dessa mulher.

Notou que lhe esticavam os testículo, uma pressão quente e poderosa acompanhando ao clímax que o devorava por dentro.

Entretanto, Tor resistiu, interpôs uma mão entre os dois e encontrou o ponto sensível dela com o dedo que lhe tinha introduzido até o fundo. Até que já não pôde mais.

Notou uma contração nas nádegas.

O corpo de Christina começou a tremer.

—Me olhe - exigiu ele com ferocidade. Ela abriu as pálpebras.

Seus olhos se cruzaram e o mundo se deteve. Durante um longo e único segundo quão único Tor viu foi Christina. Uma euforia como jamais tinha conhecido lhe embargou. Sentiu-se suspenso, como se tivesse saído de si mesmo e tivesse sido transportado ao topo mais alta da felicidade. E então teria saído voando, e o mundo teria explodido em um amontoado de sensações e de luz.

Estremeceram-se de uma vez, seus corpos tremeram sacudidos por um fluxo.

Tor a sustentou contra si, sentindo o frenético coração de Christina desbocando-se contra o seu, afundando o rosto na cálida seda de seu cabelo, inalando seu aroma terno e feminino.

Permaneceu nessa posição até muito depois de que terminassem: não desejava romper esse vínculo, não desejava partir, não desejava pensar.

Só quando sua respiração se acalmou e as pernas começaram a lhe tremer se separou. O calor que tinha unido seus corpos se esfriou com a corrente repentina do gélido ar da noite.

Ela afogou um grito de protesto e se aproximou dele. Instintivamente. Com uma confiança que o desarmou. Em um arrebatamento protetor, Tor tomou em seus braços, deitou-a na cama e se aninhou junto a ela. «Somente será um momento», disse. Para esquentá-la com seu corpo. Embora fosse ela quem lhe deu seu calor, quem lhe provocou uma sensação de satisfação que nunca tinha acreditado possível em um homem como ele. As responsabilidades de seu clã e a crueldade do campo de batalha lhe pareceram muito longínquas.

Afastou-lhe o cabelo do rosto e lhe acariciou a suave bochecha com o verso do dedo até que ela caiu em um sonho profundo.

Isso era diferente. Ela era diferente. Tinha acreditado que não era capaz de sentir emoções, mas essa mulher lhe tinha feito sentir. Havia tocado uma parte de si mesmo que levava muito tempo enterrada, e precaver-se disso o transtornou.

Sentiu como se estivesse liderando uma batalha perdida com um inimigo invisível e não estivesse seguro de como defender-se. Mas sim sabia uma coisa: estava intimamente ligado. E a intimidade não era para homens como ele. A emoção era uma debilidade que não podia permitir-se. Muitas pessoas contavam com ele.

«Mantem sob controle», disse-se. Aquilo não podia voltar a ocorrer.

*

Christina sumiu em um sonho reparador, segura nos braços de seu marido, com a certeza de que algo significativo acabava de acontecer. Um adiantamento decisivo, ao fim!

Nenhum homem podia olhar a uma mulher enquanto fazia o amor dessa maneira sem sentir algo por ela.

Entretanto, pareceu-lhe que acabava de fechar os olhos quando saiu da modorra causada pela saciedade ao notar que seu marido trocava de posição. Momentaneamente desorientada, rodou sobre o leito, abriu os olhos e viu a luz das velas. Ainda não era de dia.

Tor estava sentado na borda da cama, de costas para ela. Um muro de músculos e carne, mas tão efetivo atuando de barreira como a pedra. Tinha posto já o leine e parecia estar atando os cordões de couro cru de seus brogues25. Partia. Outra vez.

Christina se obrigou a não mostrar sua decepção, mas o desencanto aninhou em seu peito.

—Parte-te de novo -disse em um tom neutro.

Tor se voltou, olhando-a intensamente por cima do ombro.

—Volte a dormir, Christina.

Christina. Tina, não. De novo, as maneiras de dois estranhos. Um brilho de raiva se impôs à dor. Pelo que parecia, assim desejava Tor que fossem as coisas, salvo quando estavam na cama. Entretanto, por não querer adotar o papel da consorte exigente, Christina dissimulou sua raiva e tragou o orgulho.

—Eu gostaria que pudesse ficar.

Durante uns instantes Tor ficou completamente imóvel, e logo seguiu movendo-se, sem responder. O coração de Christina pulsava com força na escuridão. De verdade era tão insensível esse homem, ou simplesmente era obtuso? Acaso não entendia que ela desejava algo mais que jogar na cama?

Christina queria contribuir um pouco de doçura e calor a sua vida. Tor levava muito tempo sem que ninguém cuidasse dele. Mas estava pondo muito difícil por não dizer impossível.

Quando terminou, Tor se voltou para olhá-la. Nada em seus olhos azul gelo delatava a intimidade que acabaram de compartilhar. Voltou a encarnar ao homem de Estado. Era o temível e ousado senhor da guerra, o orgulhoso chefe do clã.

—Demorarei uns dias em retornar.

Para Christina lhe caiu a alma aos pés. A frieza de seu tom de voz a feriu. «Basta», disse a si mesma, mas lhe saltaram as lágrimas, umas lágrimas quentes que ameaçavam afogando-a. por que tinha que atuar desse modo? Tão difícil era lhe dedicar um olhar de ternura, uma palavra agradável a que ela pudesse aferrar-se? Por que tinha que mostrar-se sempre tão reservado? O grande chefe, o grande guerreiro… Mas e o homem?

—Aonde vai?

Tor apertou a mandíbula e torceu o gesto.

—Eu não gosto que me interroguem, Christina. Já te disse que tenho que atender uns assuntos do clã. Nada que tenha a ver contigo.

E era assim? Essa era a explicação que pretendia lhe dar? Christina sabia que desgostava que o apressassem, mas estava farta de tantos segredos. Incorporou-se e atirou do lençol para cobrir sua nudez. Apesar do gesto, os olhos de Tor se cravaram nela recreando-se durante uns instantes na curva turgidez de sua pele, que os lençóis deixavam visíveis. Entretanto, nesse momento o fogo de sua paixão a enfureceu. Ela queria mais. Agarrou-se com os punhos ao lençol.

—Nem sequer vais dizer-me aonde vai? Uma esposa não tem direito, que quando seu marido a abandona durante dias sem lhe dizer quando retornará, sem lhe dar nenhuma explicação?

—Não - respondeu ele com aspereza.

Christina viu com grande assombro essa fria determinação que fazia de Tor um chefe gabado e um guerreiro temido.

—Vê problemas onde não há - disse Tor como se tentasse acalmar a uma menina—. Não há nada que dizer.

A condescendência de seu tom lhe doeu. Ela era um brinquedo, indigna de maiores confidências. Tor decidiu que a conversa tinha terminado e se voltou para partir lhe dando as costas, umas costas duras, implacável. Doída, zangada e confusa, Christina não pôde evitar lhe espetar quase com um grito: —Também lady Janet vai?

Tor se deteve em seco, voltou-se devagar e cravou os olhos nela.

—Por que me pergunta isso?

Com as bochechas avermelhadas, como se não fosse digna do chão que pisava esse homem, Christina se esforçou por sustentar o olhar sem desfalecer na tentativa.

—Sei quem é - respondeu com atrevimento, e ergueu o queixo desafiando-o a que o negasse—. Não pude evitar me fixar que ela também está acostumada partir sempre que vais.

Tor entrecerrou os olhos. Não era que não fosse digna do chão que pisava esse homem, pensou ela, mas sim parecia um inseto esmagado por uma rocha. Um inseto parvo e amalucado, intrascendente.

—Está me acusando de algo, Christina? —Tor empregou um tom de voz grave e pausado, mas a ela não enganou. Estava furioso. Esse não era um tema que deveria expor uma esposa. Christina tinha que fazer caso omisso disse tipo de disposições. Fingir que não existiam. Fingir que não lhe importavam. Mas não era certo, e a idéia de que ele estivesse com outra mulher lhe partia o coração.

—Não estou te acusando de nada - retificou ela com a voz trêmula e com um nó na garganta da emoção—. Só uma observação.

—Fique tranqüila - respondeu ele passeando o olhar ao longo de todo seu corpo. O fulgor de seus olhos incinerou o fino lençol de linho que cobria sua nudez. Sua pele, traidora, acalorou-se ao notar, seus mamilos se endureceram e se esticaram protuberantes—. Colocar-me na cama de outra mulher ainda não me passou pela cabeça.

Ainda. Christina notou um peso no coração, notou que uma dolorosa flecha enfurecida lhe partia o coração em dois.

—No momento estou muito satisfeito neste terreno.

—Isso diz para me tranqüilizar?

Tor esboçou uma careta de desgosto.

—Não tenho por que te tranqüilizar.

Christina ficou sem fôlego. Tor acabava de pô-la em seu lugar, com determinação. Teria que ter imaginado. Não podia obrigá-lo a afirmar o que ela queria ouvir. Uma esposa não tinha nenhum direito a exigir fidelidade de seu marido. Se ele queria uma amante, teria, e ela não podia fazer nada a respeito. Não podia obrigá-lo a nada. Seus intuitos eram implacáveis. Quanto mais insistisse ela, com maior frieza e dureza resistiria Tor. Mas se ela não insistia, como ia romper as barreiras que a afastavam dele?

—Mas…

—Janet não é teu assunto. Nada de tudo isto é teu assunto. —Seu tom de voz, frio como o aço, feriu-a tão certeiramente como se tivesse empregado contra ela a folha da espada que empunhava com força bruta—. Fica à margem, Christina. Falo sério. —Seu olhar se abrandou um pouco—. Não quero te fazer dano, mas não tolerarei que te coloque onde não deve. Dedique-te a suas obrigações, deixa que eu dedique às minhas e tudo irá bem. Se te colocar onde não deve, somente nos conduzirá problemas entre os dois.

E com essa abominável advertência ressonando nos ouvidos de Christina, Tor deu meia volta e partiu.


Capítulo 16


Três dias depois Christina terminou de enxugar as lágrimas, embora seguisse mortificada pela dura maneira em que seu marido a tinha posto em seu lugar. A injustiça a indignava. Como pôde lhe falar com tanta rudeza? Quão único ela tinha feito desde sua chegada tinha sido tentar agradá-lo, inclusive recorrendo a desavergonhadas mutretas para satisfazê-lo na cama. Em um momento tinham compartilhado o que para ela tinha sido a experiência mais sensual de sua vida, com cenas de um erotismo e certa perversão que jamais teria imaginado. Nesses momentos sentiu que nunca tinha tido tanta intimidade com uma pessoa. No minuto seguinte, em troca, Tor a punha em seu lugar com absoluta determinação. Distanciando-se. Excluindo-a. Fazendo que se sentisse como uma fulana desavergonhada por tentar ganhar a esse homem com seu corpo.

Era paixão o único que lhe daria?

Isso parecia, sem dúvida alguma.

Ela tinha sonhado com muitas outras coisas. Se tão somente se abrisse um pouco, Christina sabia que seria maravilhoso. Tor se encontrava tão sozinho… Necessitava um pouco de calor em sua vida. Mas isso era como tentar cinzelar a pedra com uma agulha de osso, uma empreitada exaustiva, e condenada ao fracasso.

Ao Hades com ele! O arrebatamento de cólera a surpreendeu. Entretanto, se assim fossem ser as coisas, se a paixão era quão único ele estava disposto a lhe dar, aceitaria-o, e encontraria a maneira de procurar certa felicidade para si mesma.

E isso não incluía compartilhá-lo com lady Janet.

Apesar de sua advertência, Christina era incapaz de superá-lo. Tor a tinha tomado por uma garota tola e ciumenta, e tinha acertado, porque assim era exatamente como se sentia. Seus ciúmes não tinham cessado de aumentar desde dia em que ele se fora.

Que lady Janet também estivesse ausente não contribuía para melhorar a situação. Maldito Tor, o que outra coisa podia pensar?

Se não tivesse sido pelo irmão John, teria se tornado louca. O irmão John parecia desfrutar de sua companhia tanto como ela mesma, e juntos estavam acostumados a dar um passeio matutino ao redor do barmkin, se o tempo permitia. Quando, como esse dia, Rhuairi estava ocupado, Christina entrava nos aposentos do senhor enquanto o amanuense se dedicava a transcrever o que lhe parecia uma correspondência inacabável e a fazer contas. Apesar dos esforços de Christina, o senescal de seu marido se mostrava frio com ela, e em sua pessoa percebia algo que a incomodava. Tinha-lhe deixado muito claro que não acreditava que os aposentos particulares de seu marido fosse um lugar adequado para ela.

Se se inteirasse de que sabia ler, ficaria horrorizado. Apoiando-se nas leituras que tinha feito às escondidas, Christina era consciente de que não tinha a menor ideia da enorme quantidade de trabalho que representava ser chefe de um grande clã. Do mais cotidiano, como arrumar as goteiras do telhado de uma casa do povoado e arrecadar os impostos que financiassem suas vastas empresas, até o mais formal, como as jornadas legais para resolver os litígios entre os homens de seu clã ou para ditar sentença nos delitos mais graves, seu marido intervinha em tudo. Não era de admira-se que estivesse tão ocupado. Apesar de não podia evitar sentir-se orgulhosa, aquilo era muito para que o administrasse um só homem e isso tinha influenciado a decidir-se. Queria ajudar. Na vida existiam outras coisas além da guerra e o dever, e confiava em que ele pudesse compreendê-la algum dia.

Tinha esperado que seu marido confiasse nela por instinto, mas como não tinha sido assim, contentava-se aprendendo algo que pudesse saber dele.

Esteve tentada a confessar ao irmão John que sabia ler e escrever - lhe iria muito bem sua ajuda—, mas muitos documentos eram confidenciais e temeu que se ele se inteirasse, proibiria-lhe de voltar para os aposentos de seu senhor.

Por outro lado, queria dizer primeiro a seu marido. Esteve a ponto de fazê-lo na noite em que a surpreendeu comendo figos enquanto lia seu livro, mas, por alguma razão, não se decidira. Não porque pensasse que reagiria como seu pai, mas por ser um homem orgulhoso, ignorava se lhe incomodaria ter uma esposa mais culta que ele. De todos os modos, estava começando a perguntar-se se suas habilidades incomuns não poderiam lhe servir de ajuda. Possivelmente lhe seriam úteis para que a visse de modo diferente, como algo mais que uma mera companheira de cama.

O escrivão terminou seu relato e Christina riu de sua absurda descrição.

—Estou segura de que não deve ser para tanto - disse ela em tom amável, lhe estendendo a pluma que acabava de afiar.

—Asseguro-lhe que foi pior - disse ele, aceitando-a com um gesto de agradecimento—. Estava tão assustado que saí correndo do dormitório sem levar nada em cima. Quando o tutor abriu a porta na manhã seguinte, digamos que a cena não lhe pareceu divertida.

—Os outros meninos tiveram problemas?

O escrivão pareceu ofender-se.

—Claro que não. Jurei que enquanto caminhava em sonhos a porta se fechou a minhas costas. O tutor me disse que a partir de então dormisse com a camisola posta, se por acaso voltasse a ocorrer sair caminhando.

—Um gesto muito generoso por sua parte. Esses meninos foram muito cruéis ao despertar enquanto dormias.

O irmão John desviou o olhar para o papel de vitela com o que estava trabalhando.

—Generoso, não - reconheceu incômodo—. Covarde. Tive medo do que poderiam me fazer esses meninos, se contasse. —Torceu o gesto—. Embora meu silêncio tampouco lhes importassem muito.

Christina tinha piedade dele com todo seu coração. Ela também conhecia a vergonha da covardia. A vergonha de ver-se obrigada a enfrentar à própria impotência ante um inimigo muito mais forte. O irmão John e ela tinham muito em comum.

Pôs sua mão em cima da dele e a estreitou a modo de consolo.

—Às vezes sobreviver é o mais valente do mundo. —Uma fria sombra cruzou a suas costas e sentiu calafrios. Voltou-se, mas não havia ninguém.

Ele contemplou sua mão durante longo momento. Quando Christina começou a entrever o irrefletido de seu gesto, o escrivão lhe dedicou um sorriso irônico.

—Sabias que a princípio não quis entrar para a Igreja?

—Ah, não? —respondeu ela retirando a mão.

O irmão John sacudiu a cabeça.

—Tinha três irmãos mais velhos.

Ela assentiu dando a entender que o compreendia. A um quarto filho não estava acostumado a ficar grande coisa.

—O que queria ser?

Ele a olhou com ar inseguro.

—Um grande cavalheiro - confessou ele com cor às bochechas—. Como Lancelot.

Christina abriu uns olhos como pratos.

—Conhecem o Chrétien?

—eu adoro suas histórias.

Um amplo sorriso se desenhou no rosto de Christina.

—A mim também.

Voltaram a rir, e passaram a hora seguinte obsequiando-se mutuamente com as façanhas do magnífico cavalheiro de Arthur. Somente pararam quando ela se deu conta de que nem tinham tomado o desjejum.

Christina retornou a seus aposentos para refrescar-se e logo se encaminhou sozinha para o grande salão. Agradeceu que ninguém tivesse sido testemunha de seu assombro. Sabia que o irmão John se compadecia dela porque seu marido a ignorava, e não teria podido ocultar o tumulto de emoções que a embargava.

No outro extremo do salão, perto da entrada principal, viu lady Janet rodeada de um grande séquito de varões. O alívio que sentiu ao comprovar que a mulher tinha retornado sozinha foi breve. Quando o grupo se moveu, reconheceu a formidável figura de seu marido. O coração lhe deu um tombo como estava acostumado a ocorrer ao vê-lo. Inconscientemente deu um passo à frente. Acaso acabava de retornar?

E então se deteve em seco. Parecia mas a ponto de partir, recém banhado e vestido com um leine limpo que ela havia cerzido fazia tão somente um dia.

Caiu-lhe a alma aos pés quando se deu conta de que Tor tinha retornado na noite anterior e nem sequer o havia dito.

E tinha toda a intenção de voltar a partir sem despedir-se dela.

Nublaram-lhe os olhos, não só de pena, mas também de raiva. Sem lhe importar o que pensassem, decidiu apresentar-se com passo firme ante ele para lhe exigir uma explicação, e então a preciosa loira amazona apoiou a mão sobre o braço de seu marido.

Tor posou a sua em cima da dela. Não foi o contato, a não ser o olhar que lhe dirigiu o que partiu o coração de Christina como se tivessem empregado contra ela uma faca dentada. Suave. Carinhosa. Esse gesto de afeto que ela levava semanas procurando e que agora ele brindava sem esforço algum a outra mulher.

Sentiu uma dor insuportável. Experimentou um peso tão grande no peito que lhe custou respirar.

Contemplou como ele partia, de pé, como uma parva sem recursos, aniquilada. Por isso não lhe escapou o olhar de desejo que lady Janet lhe dedicou ao partir. Um desejo parecido ao dele. A corrente de empatia não sentou muito bem a Christina dadas as circunstâncias. Se tinha albergado alguma dúvida, esta se dissipou: a relação não tinha terminado… ao menos para um dos dois.

Perdido o apetite, Christina deu um passo atrás com a intenção de retornar a seus aposentos. De sair correndo. Não. Deteve-se, concedendo uns instantes para recuperar-se. Não sairia correndo com o rabo entre as pernas. Essa vez, não. Não ia deixar que outra mulher tivesse a seu marido. Sabia que existia paixão entre os dois, e embora isso fora quão único recebesse de Tor, não renunciaria a ele sem brigar.

«O que tem ela que eu não tenha?»

Tomando fôlego para encarar uma batalha, Christina entrou no grande salão e tomou assento à cabeceira da mesa.

Forçando um encantador sorriso, Christina desempenhou o papel da graciosa senhora do castelo sem deixar que adivinhassem que lhe tinham destroçado o coração.

Foi consciente da presença da outra mulher durante todo o almoço, mas lady Janet parecia ignorar sua existência. Quando Christina percebeu que a dama se levantava para partir, expôs sua jogada. O brilho de ciúmes que advertiu nos olhos da outra mulher enquanto se aproximava dela contribuiu grandemente a reforçar sua confiança. Ambas se entenderam à perfeição.

—Lady Janet… —Aludida ela lhe fez a reverência obrigada—. Permite-me um momento?

—Claro, minha senhora. —Seu tom diferente não ocultava o fato de que teria preferido o contrário.

Christina respirou fundo e se obrigou a olhá-la aos olhos.

—Como a festa do Yule será dentro de umas semanas, estava pensando em pendurar os ramos esta tarde. Sei que vive aqui há anos e esperava que pudessem me ajudar a colocar. Meu marido valoriza muito sua amizade, e eu gostaria que nos conhecêssemos melhor.

Christina tinha decidido dar morte ao inimigo recorrendo à amabilidade. Seria mais difícil para lady Janet manter uma relação com seu marido se ambas fossem amigas.

Funcionou. Tinha tomado lady Janet com surpresa; era óbvio que o amistoso oferecimento a tinha confundido. Seus formosos olhos azuis olharam para a lonjura, incômodos.

—Sinto muito, minha senhora. Não posso. Hoje não. Tenho que me dedicar a um assunto.

Christina entrelaçou as mãos até que seus nódulos embranqueceram. Seu orgulho começava a tornar-se desumano, mas se obrigou a manter a calma.

—Esse assunto tem a ver com meu marido?

Se tivessem feito esta pergunta a Cristina, lhe teriam avermelhado as bochechas. A expressão serena e a tez pálida de lady Janet, entretanto, não delataram emoção alguma. Esteve contemplando a Christina durante um momento, até que esta sentiu um violento rubor nas bochechas.

—Sois muito jovem - disse lady Janet como se acabasse de precaver-se desse detalhe.

Humilhada, Christina sentiu na calada segurança dessa mulher os anos que as distanciavam. O que tinha lady Janet que não tivesse ela? Uma experiência e uma maturidade com as que Christina não podia competir.

Pensou que era impossível sentir-se pior. Mas se equivocava.

Lady Janet mudou de expressão. Estava claro que compreendia a dor que se ocultava atrás da pergunta de Christina.

—Tor… —Lady Janet se interrompeu—. O RI tuath tem que fazer frente a muitas responsabilidades.

E lady Janet sabia quais eram. Christina se sentiu muito desgraçada. Tor tinha crédito em sua amante, mas não em sua esposa.

Lady Janet parecia sopesar suas palavras com supremo cuidado.

—Todos colaboramos na medida do possível. Não devem te preocupar com nada.

Acaso era possível viver uma situação mais humilhante? Agora a antiga amante de seu marido tinha piedade dela.

Tragando o orgulho como pôde, Christina se obrigou a esboçar um sorriso despreocupado. Se lhe saiu tremente, a outra mulher atuou com a elegância suficiente para fingir que não se deu conta.

—Possivelmente em outra ocasião. —Lady Janet inclinou a cabeça, e se voltou. Christina a viu partir, e fez provisão de todas suas forças para não tornar a chorar.

*

Tor levantou a espada por cima da cabeça de seu rival e a brandiu em cima de seu grosso capacete.

MacSorley, que o diabo o levasse! Limitou-se a sorrir.

—Cuidado, capitão - exclamou MacSorley querendo pô-lo em evidência—, ou acabarei acreditando que em realidade quer me arrancar a cabeça com isso.

A cabeça, não, mas o maldito sorriso de sabichão, sim. Tor apertou a mandíbula e voltou a balançar a espada. Seu ataque foi brutal, excessivo, um ataque ao que poucos homens poderiam fazer frente. O descomunal escandinavo possivelmente não sabia manter a boca fechada, mas sim sabia dirigir a espada. Todos e cada um desses homens eram espadachins de primeira, e nesse nível a diferença entre a vitória e a derrota só dependia de leves matizes técnicos.

MacSorley interceptou o golpe, embora necessitasse ambas mãos para isso. O entrechocar do aço reverberou na atmosfera cinza e invernal. Tor pressionou com a espada até que seus rostos ficaram a poucos centímetros de distância.

—Não têm bastante ainda?

MacSorley seguia esboçando um sorriso que mais parecia uma careta. Sacudiu a cabeça.

—Ainda não. —Falou com voz tensa, com cada um dos músculos rígidos pelo esforço de impedir que a espada de Tor lhe partisse em dois. Empurrou a sua vez e, em precário equilíbrio, cedeu o justo para desembaraçar-se da espada de Tor—. Estou me divertindo muito.

Tor soltou uma maldição reconhecendo que deveria haver antecipado seu movimento. Mas estava muito enfurecido para pensar com frieza. Em uma batalha, a falta de concentração podia matá-lo. Pior ainda, MacSorley sabia e estava explorando isso em benefício próprio, provocando-o para que perdesse a concentração. Em geral Tor era imune a essas táticas, mas o tinham posto contra as cordas, e os homens sabiam.

Tor não tinha perdido um só combate fazia mais de dez anos, e passariam outros dez mais sem que tivesse que ouvir presumir MacSorley de sua vitória. Afastou qualquer outro pensamento de sua mente negando-se a considerar a inquietante energia que ia formando-se em seu interior, alcançando a ebulição, como um vulcão a ponto de explodir. Negando-se a recordar a risada de sua mulher, que tinha ouvido ao cruzar suas dependências pessoais nessa mesma manhã. Negando-se a rememorar a ternura com que ela tinha apoiado a mão na do escrivão, ou no cômodo que os via os dois juntos. Um escrivão, Por Deus! Durante um instante de loucura quis dar um murro a esse rosto infantil de coroinha.

MacSorley dava voltas em círculo, com a espada suspensa no ar para repelir outro ataque.

—Espero que sua mulher não demore em lhe perdoar… pelo bem de todos.

Tor torceu o rosto em uma careta irada.

—De que demônios estas falando?

Detrás do elmo de aço que lhe cobria o nariz, MacSorley sorriu, regozijando-se.

—Lhe vê um pouco mais… tenso do que o acostumado depois de ter voltado do castelo. Parece razoável deduzir que este maravilhoso estado de ânimo deve ter algo a ver com essa bela mulher. E como imagino que a doce moça não é capaz de matar a uma mosca, suponho que a culpa deve ser sua.

Tor controlou a raiva… com muita dificuldade. Entretanto o mero feito de ouvir outro homem falando da beleza de sua mulher o enfureceu. Estava perdendo o controle.

As tentativas de consumir-se no trabalho, e de sobrecarregar seus homens, não estavam funcionando. Tor não podia esquecer o rosto que tinha posto Christina quando partiu. Não estava acostumado a ver-se pressionado nem interrogado, e tinha reagido mau. Com rudeza. Dizendo-lhe sinceramente o que ela não queria ouvir. Apesar da sutileza as boas palavras não ficaram familiares, se queria desfrutar de certa tranqüilidade mental, teria que tentar. Christina conseguia influir nele como ninguém.

Estar distraído era mau. Que os homens tivessem reparado nisso, e adivinhado a razão, era pior. Voltou a atacar, centrando agora sua atenção na tarefa presente: MacSorley lhe tocando o nariz.

O viking fazia frente a seus golpes, mas Tor pôde ver que começava a cansar-se. Cheirou a vitória. Possivelmente também a cheirou MacSorley, porque este fez um nova tentativa.

—Se uma mulher como essa me esquentasse o leito, passaria poucas noites metido entre este frio montão de rochas. Já eu gostaria ocupar seu lugar…

Tor perdeu o controle. Nublou-lhe a mente. Um bombeamento selvagem ressonou em seus ouvidos. E teve a esse canalha jogado de costas, com a folha da espada ao pescoço, antes que este pudesse acabar de falar. Finalmente o sorriso desafiante lhe tinha apagado do rosto.

O sangue pulsava com força pelas veias de Tor. Depois de muitos anos de batalhas, a necessidade de matar se tornou instintiva. Os dois homens se olharam, soprando, ambos os conscientes da vontade que tinha Tor de afundar essa espada na garganta do MacSorley. Este tinha provocado à fera muitas vezes. Todos os músculos do corpo de Tor tremeram enquanto este com muita dificuldade tentava conter-se.

Esforçou-se por recuperar o controle e, pouco a pouco, conseguiu. A prudência emergiu da loucura. Seus lábios se franziram em uma linha dura e implacável.

—Têm algo mais que dizer?

Para ser um homem a ponto de morrer, MacSorley parecia curiosamente desconcertado. Arqueou uma sobrancelha, mas a seguir esboçou uma careta como se inclusive o mais insignificante dos movimentos fosse doloroso. Esfregando a nuca, disse: —Vejo que estivestes praticando com o Boyd. —Entrecerrou os olhos para proteger-se da luz do sol—. Bheithir, verdade? —perguntou referindo-se à inscrição da espada de Tor. As inscrições serviam para acrescentar o poder de uma espada—. Nunca tinha me aproximado tanto para poder lê-la. Mas «relâmpago» é uma palavra apropriada. Sinto como se me tivesse caído um em cima.

Tor ficou absolutamente quieto, como se ainda não tivesse decidido qual ia ser a sorte de MacSorley. Depois de uma interminável pausa, pressionou um pouco mais a ponta de sua espada sustentando o olhar do outro homem.

—Um dia destes essa lábia que têm será sua perdição.

MacSorley sorriu… com inquietação, dada sua situação.

—Não duvido.

Tor afastou sua espada e lhe estendeu a mão. MacSorley se agarrou a seu braço e Tor o ajudou a ficar em pé.

O incidente o tinha transtornado. Esteve a ponto de matar a um homem ao que considerava um amigo por uma futilidade, por uma brincadeira procaz que tinha ouvido centenas de vezes durante as longas noites transcorridas ao redor das fogueiras dos acampamentos.

Um punhado de homens tinha terminado seus exercícios e se congregaram ao redor para observar a luta. Pela expressão de suas caras era óbvio que tinham visto o suficiente para saber que o guerreiro com fama de ter gelo nas veias tinha perdido seu sangue-frio. E também era óbvio que não sabiam exatamente como interpretar aquilo.

E ele tampouco.

Cruzando os braços, olhou-os com olhos inexpressivos.

—Bem, quem quer ser o seguinte?

Depois de uns momentos de absoluto silêncio, MacSorley se pôs a rir.

—Está brincando, senhores.

Alguns homens sorriram titubeando. E liberando ainda mais a tensão, MacSorley respirou fundo.

—Se não me equivocar, nossa bela cozinheira nos está preparando um guisado de boi. E, por agora, penso regá-lo bem regado.

A proposta do MacSorley foi a desculpa que todos necessitavam, e os homens se encaminharam por volta da broch26 para almoçar. Tor se deu conta de que o viking paquerava com Janet, e embora soubesse que essa mulher sabia cuidar de si mesmo, advertiu-lhe que não seguisse por aí.

—Deixem à dama tranqüila por hoje.

MacSorley franziu o cenho e o olhou, admirado.

—Pensei… —Pigarreou—. Não me tinha dado conta de que a dama ainda lhe pertence. Não queria lhe ofender. Somente estava tonteando, e isso não faz mal a ninguém.

Tor o olhou com ar sério. MacSorley tinha chegado à mesma conclusão que Christina.

—A dama não me pertence; Janet é livre de fazer o que quiser — Tor recordou que esteve falando com a Janet no salão nessa mesma manhã. Havia-lhe dito que tomasse o dia livre, mas ela tinha insistido em ir com eles.

«Ajudará-me a deixar de pensar nisso», havia lhe dito ela.

—Hoje é um dia complicado - explicou Tor—. Faz cinco anos mataram ao marido de Janet.

—Ah… compreendo.

Foram caminhar para a broch quando Tor se deu conta de que Campbell não se movera. Parecia fixar seus sentidos em alguma coisa. Observando-o, Tor sentiu que um calafrio lhe percorria o corpo. Apesar de sua utilidade, custava habituar-se à estranha faculdade do Campbell para perceber coisas.

—O que ocorre? —perguntou-lhe.

Campbell o olhou aos olhos.

—Vigiam-nos.

*

Encarapitada ao alto de uma árvore, Christina se deslocou no ramo contíguo para tentar obter uma melhor perspectiva da ampla extensão de pardusco páramo que a separava da antiga broch, situada a várias centenas de metros. Teria preferido aproximar-se mais, mas não queria arriscar-se a que a descobrissem e se viu obrigada a esconder-se no bosque.

Quando tomou a precipitada decisão de seguir lady Janet ignorava o que lhe esperava, mas absolutamente teria imaginado algo assim. Em lugar de uma secreta ramagem onde dizer palavras de amor, Christina tinha tropeçado com uma espécie de campo de treinamento.

Teria que ter se sentido aliviada. Os temores que albergava sobre seu marido e lady Janet esfumaçaram. E embora ao princípio sentisse alívio, à medida que observava, mais segura estava de que algo estranho acontecia.

A maioria dos guerreiros levava posta sua indumentária de combate ao estilo das Highlands, em lugar de ir com a cota de malha. Vestia a casaca de couro tachonada de metal, o leine e o terrível elmo de aço, com uma proteção nasal, de aparência escandinava, que ocultava quase todo o rosto. Entretanto, havia um homem que levava uma cota de malha, um tabardo e um elmo de aço mais comum, com viseira. Christina franziu o cenho. A cimera em forma de dragão lhe era familiar.

Acostumou-se a ver-se rodeada de homens altos e musculosos, mas inclusive para os habitantes das ilhas esse grupo parecia… extremo. Agora bem, apesar dos elmos e da grande abundância de espécimes masculinos de primeira, distinguiu a seu marido no ato. Não o delatava tão somente o nobre porte, a não ser a autoridade e o mando que emanavam dele.

Vendo os homens concentrados em distintas disciplinas, da prática com arco até o lançamento de flechas e pedras e a escalada com cordas ao alto da broch, Christina teve a sensação de que ali passava algo estranho. Esses guerreiros não eram comuns.

Durante o lançamento de pedras, um dos homens levantou por cima de sua cabeça uma rocha enorme que devia pesar centenas de quilos como se estivesse oca. Tor havia tentado levantá-la do chão. Outros guerreiros puseram-se a rir a gargalhadas, mas seu marido não pareceu se importar e se uniu às gargalhadas.

Tor estava claramente ao mando, mas em cada disciplina era um homem diferente o que dirigia a atividade. Se deu conta já durante a prática com arco, quando o homem que destacava por cima de outros se adiantou à frente e ficou a dar ordens.

Levava observando uma hora aproximadamente quando os homens começaram a congregar-se em grupos mais reduzidos. Notou uma pontada de fome e pensou que possivelmente tinha chegado o momento de retornar. Não havia um grande trecho até o povoado, mas o terreno era bastante impraticável, sobre tudo devido à umidade.

Entretanto, ao ver que Tor se levava a mão à costas e desencapava a espada, decidiu ficar um momento mais.

O combate começou de uma maneira bastante civilizada, tudo o civilizado que permitiam duas pesadas folhas de aço, afiadas como navalhas, chocando entre si. Era brutal, mas não parecia com vida ou morte, como a luta que Christina tinha presenciado entre ele e MacRuairi, e embora seu coração seguisse pulsando depressa, pôde contemplá-lo sem ter a sensação de fraquejar as pernas.

Era quase como uma dança: os dois homens, por turnos, atacavam com a espada que empunhavam com ambas as mãos e rechaçavam a do contrário. Christina aguçou o olhar pensando que seu competidor era vagamente familiar. Entretanto, com o elmo de aço posto, não podia lhe distinguir o rosto.

Ao cabo de uns minutos notou que o coração lhe acelerava. O intercâmbio de golpes se voltou mais intenso, o som do aço ao entrechocar-se aumentou sua bravura. De repente, o exercício não lhe pareceu tão amistoso. Caiu para frente, e teve que agarrar-se bem ao recordar que estava encarapitada a um ramo.

Afogou um grito e piscou. Com um movimento suave, Tor rodeou com a sua a perna do competidor, agarrou o braço que se abatia sobre ele ameaçando golpeando-o e volteou ao contrário até tombá-lo de costas.

Em um suspiro, Tor apontava com a folha da espada ao pescoço do outro homem. Durante uns instantes terríveis pensou que ia atravessá-lo com a espada. Como da outra vez. E como daquela vez, deixou escapar um leve som involuntário. Nesta ocasião, por sorte, ele não a ouviu.

Christina suspirou aliviada quando Tor estendeu a mão a seu competidor para ajudá-lo a ficar em pé.

Com o olhar cravado na cena que se desdobrava no pátio de armas, tinha-lhe passado por cima que alguns homens se congregaram ao redor para observá-los também.

E então os viu.

Tapou a boca para afogar uma exclamação de surpresa. Os guerreiros tiraram os elmos, mas apesar da distância, descobriu a identidade de dois deles. Deveria ter reconhecido antes Lachlan MacRuairi, embora só fora por seu jeito leve e indolente. E se não tivesse sido bastante desconcertante ter reconhecido ao inimigo mais reputado de seu marido, mais difícil ainda ficava explicar a presença de um inglês no acampamento. Tinha coincidido com sir Alex em uma ocasião, anos antes que encarcerassem a seu pai, mas dificilmente uma jovenzinha podia esquecer ao atrativo e jovem senhor. Por que seu marido estava treinando a um dos cavalheiros de Eduardo?

O homem que esteve lutando com o Tor tirou o elmo. MacSorley. Deveria ter adivinhado. Quase tinha esquecido que o escudeiro de MacDonald, seguindo as ordens de Tor, tinha embarcado atrás de Beatrix sem pigarrear.

Seu olhar pousou em outro homem e demorou uns segundos em recuperar o fôlego. Deus misericordioso, que rosto! Encarnava a perfeição masculina, era um bronzeado Apolo de cabelos dourados como o caramelo e uns rasgos cinzelados pela divindade, o homem mais belo que tinha visto jamais. Parecia digno de figurar em um pedestal.

Os homens começaram a passar para a broch e Christina supôs que faziam uma pausa para almoçar. Tor se entreteve um momento falando com o MacSorley e outro homem.

O que estava passando ali?

A advertência de seu marido lhe veio à memória. Seriam esses os problemas que lhe tinha mencionado? Christina mordeu o lábio repensando a decisão de ter seguido lady Janet.

Possivelmente não tinha sido uma boa idéia. Tinha pensado que ele se zangaria, mas em seu momento não tinha dado importância. Se lhe agradar não tinha funcionado, acaso tinha algo que perder?

«Não saia do castelo desprotegida», havia lhe dito, recordou ela mordendo o lábio. Muito tarde para pensar em promessas.

Ansiosa de repente por retornar ao castelo, aventurou-se a olhar para o pátio e viu que outros homens tinham entrado na fortificação. Suspirou aliviada e se dispôs a descer da árvore. A descida era fácil. Saltou para salvar os últimos metros e aterrissou brandamente sobre o terreno enlameado e coberto de folhas.

Franziu o nariz e desejou ter calçado um par de velhas botas resistentes. As sapatilhas de fino couro não eram feitas para passear pela escarpada paisagem das Highlands no inverno; nem no verão, de fato.

Voltou sobre seus passos sorteando as árvores e sentindo-se melhor agora que sua aventura tinha terminado. Embora ignorasse todas as respostas, ao menos sabia que seu marido não partiu para reunir-se com outra mulher. E se ninguém se precavera de sua ausência, como supunha, ele nunca se inteiraria de sua inocente excursão.

Enquanto se orientava entre as árvores, Christina sentiu certo desgosto. Um desgosto que atribuiu à fantasmagórica quietude do bosque. Acelerou o passo e quando estava a ponto de cruzar os limites do bosque, de repente, sentiu que um calafrio lhe percorria as costas. Alguém estava…

Sem lhe dar tempo a girar, agarraram-na por atrás, e Christina se viu apertada contra um peito duro como uma pedra.

Um pânico atroz a paralisou. Ia gritar, mas o atacante lhe tampou a boca com a mão e sussurrou ao ouvido:

—Não te aconselho isso, esposa minha. E ainda menos tendo as mãos tão perto deste teu formoso pescoço.

A Christina deu um tombo no coração. Fria e dura como o aço, a voz de Tor tinha divulgado desumana. O possível alívio que tivera ao descobrir que o homem que a agarrava era seu marido se esfumou ante a aterrorizante perspectiva de ser vítima de sua cólera.

Nunca tinha enfrentado ao guerreiro que semeava o pânico nas Terras Altas, mas soube que isso ia mudar.

*

O estupor de Tor ao descobrir que era sua esposa quem lhe espiava cedeu passo a uma raiva cega.

Desconcerto. Medo. A possibilidade de uma traição. Um amontoado de emoções díspares, de sentimentos desencontrados, confundiu-se em uma voragem que, como uma corrente, clamava por abrir passo. Cada palmo de seu corpo acusava a pressão. Ouvia fluir o sangue em suas veias, sentia fogo na pele e os batimentos de seu coração lhe retumbavam nos ouvidos. Somente a suavidade desse corpo pressionado contra o seu e a certeza de que poderia esmagá-lo sem dificuldade alguma o reteve.

Tor cruzou o olhar com o Campbell e viu que este sacudia a cabeça. Ao menos Christina estava sozinha. Assentindo com brutalidade, ordenou em silencio a seus homens que partissem.

Depois de terem partido, Tor deu a volta a sua mulher e, sustentando-a pelos ombros, obrigou-se a respirar fundo. Olhou fixamente seus olhos negros tentando ignorar o remorso que sentiu ao ver em sua boca o branco rastro de sua mão e o temor em seu surpreendido olhar.

Devia estar assustada. Muito assustada.

—Vale mais que tenha uma boa desculpa por estar me espiando.

Christina abriu os olhos de par em par.

—Não te estava espiando. Como é possível que pense algo assim?

Tor não queria pensar mas… maldição, tampouco podia ignorar essa possibilidade.

—Possivelmente porque tenho descoberto que estava escondida me observando no alto de uma árvore. Ou porque me seguiste. Ou porque te deixei muito claro que não te metesse em assuntos que não lhe concernem. —Tor endureceu o rosto e aguçou o olhar—. Ou possivelmente porque lembra a traição que uniu a nos dois.

Christina se sobressaltou como se a tivesse golpeado. Tentou escapar, mas ele não o permitiu. Ao contrário, Tor se aproximou ainda mais a ela, obrigando-a a olhá-lo aos olhos.

—Alguém te pediu que me seguisse, Christina?

Apesar da clara ameaça, ela ergueu com altivez a cabeça. Seu marido media um metro noventa e pesava o dobro que ela, tinha matado a centenas de homens no campo de batalha e era um dos guerreiros mais temidos da região, mas ante esse comentário, Christina o olhou como se fosse um inseto insignificante.

—Claro que não. Nunca te trairia. —Sua voz e sua expressão delatavam que estava dizendo a verdade—. Esperava que, a estas alturas, à margem de como começou nosso matrimônio, confiaria em mim.

Tor confiava em pouca gente, e mesmo assim, nunca de tudo. A confiança matava.

—Se não esta espiando por conta de ninguém, me explique como terminaste sozinha e encarapitada a uma árvore.

Christina se mordeu o lábio inferior e um rubor apareceu em suas pálidas bochechas.

—Tinha ido ao povoado a procurar uns pasteizinhos de mel na loja do Cook para dar uma surpresa ao Iain, que está doente…, são seus favoritos, sabe? —Tor não sabia—. Vi lady Janet e decidi segui-la.

Christina viu que lhe pulsava a têmpora. Atuava como se quão único tivesse feito fora sair a um agradável passeio pelo campo em lugar de ignorar as instruções que lhe tinha dado. Tor deu outro passo para ela, com os punhos fechados, esforçando-se por recuperar a paciência.

—Tenho que entender que a razão de que te tenha encontrado aqui é que em um ataque de ciúmes decidiste seguir à mulher com a que acreditava que me deitava, apesar de te haver dito que não me deito com ela, e saíste a campo aberto… sozinha? —A voz lhe tremia da ira. Quando pensava no que teria podido lhe acontecer… estava a ponto de perder a cabeça—. Por todos os Santos, sabe o perigo que correste? —Várias possibilidades cruzaram sua mente, incluindo uma imagem dela com esse mesmo vestido rasgado—. Prometeu-me que não sairia do castelo sem uma guarda.

Tor a empurrou contra uma árvore, e como Christina foi incapaz de retroceder ante essa presença que se abatia sobre ela, inclinou a cabeça a modo de desculpa.

Tinha-a muito perto. Podia cheirar seu perfume doce e floral, e isso lhe enfureceu mais. Sempre tinha que cheirar tão bem essa mulher? Punha a prova sua capacidade de controle com tanta crueldade que ia ficar louco.

—Diz como se fosse uma tolice, mas o que queria que pensasse? Vai durante vários dias sem me dizer aonde, mas é óbvio que sim confia em sua amante.

Porque estava tentando protegê-la, maldição. Não queria que se mesclasse em nada de tudo aquilo. Gelava-lhe o sangue de pensar no perigo que corria só por conhecer a existência da guarda de Bruce. Isso era traição, e o fato de que fosse uma mulher não deteria a Eduardo da Inglaterra.

—Janet cozinha para nós, isso é tudo. O pedi, e ela acessou… sem fazer perguntas.

Entretanto, Christina ignorou a mofa.

—O que está acontecendo aqui? —perguntou franzindo seu narizinho. Tor a fulminou com um olhar de advertência, mas ela fez caso omisso—. Quem são esses homens e por que os está treinando em segredo?

O frio que lhe roeu as vísceras só podia atribuir ao medo.

—Voltará para castelo, esquecerá tudo o que viu e não retornará nunca mais. Entende? —Tor gritava. Ninguém o fazia perder o controle como ela. Christina se recostou contra o tronco da árvore, mas Tor a pegou pelo braço e a obrigou a olhá-lo. Os batimentos do seu coração seguiam retumbando em seus ouvidos. Queria sacudi-la até que o escutasse—. Nunca volte a me perguntar sobre isto.

Tão somente uns centímetros os separavam. Tor nunca tinha tentado intimidar a uma mulher com sua altura, mas se isso o fazia compreender a gravidade da situação, faria o que tivesse que fazer. Pelo mais sagrado jurou que a aterrorizaria. Entretanto, parecia que sua miúda esposa confiava nele mais do que deveria. Nesses momentos, quem não confiava em si mesmo era precisamente ele.

Um olhar rebelde cruzou seus delicados traços.

—Acho melhor perguntar a sir Alex —disse Christina sustentando seu temível olhar sem piscar.

«Maldição, reconheceu ao maldito inglês.»

—Ou ao Lachlan MacRuairi - arremedou com um sorriso de paquera—. Disseme que se alguma vez necessitava…

Tor reagiu. Estreitou-a contra seu peito, uma escura emoção o embargava.

—MacRuairi é uma víbora. Te afaste dele.

Estupefata, Christina assentiu. Fora qual fosse essa escura emoção, viu-a, ou a ouviu em sua voz, e o medo sossegou qualquer esforço de discussão.

—Não pretendia dizer isso - atravessou ela tremendo—. Não voltarei a mencioná-lo nunca mais, se isso for o que quer.

Tor ficou imóvel. O que estava fazendo? Christina o olhava como se ele fosse golpeá-la. Pelo amor de Deus, nem os homens eram como seu pai. Nunca lhe faria mal, tão somente queria protegê-la. Era só que o fazia sentir… ciúmes.

E, entretanto, ele não era ciumento.

Sentia um peso tão grande no peito que não podia respirar. Atraiu-a para si sabendo que essa era a única maneira de encontrar alívio. Não podia lutar contra isso. Ela estava muito perto, e a tentação era muito forte.

Seus olhares se cruzaram; Tor se estava afogando.

—Ah, o que quer de mim?

Christina o olhou, surpreendendo-se da grande emoção que plasmava sua voz. Entretanto, antes que pudesse responder, Tor inclinou a cabeça e fez o que esteve desejando fazer do primeiro momento em que a viu. Com um grunhido, afundou a boca em seus lábios.


Capítulo 17


A exclamação de assombro de Christina ficou afogada por sua boca. Esse contato ia fazer lhe estalar o coração. Foi incrível…, diferente a qualquer beijo anterior. O suave roce de seus lábios no dia de suas bodas mal podia comparar-se com essa brutal massacre. Com essa posse.

A deliciosa pressão, a incrível sensação, a cercania. Era perfeito. Ideal. Como se sua boca tivesse sido criada para isso. Somente para isso. Com ele.

Sentiu como se acabasse de mergulhar em um lago escuro e a afogassem as sensações. O calor. A robusta força de seu corpo. Seu aroma sensual. O sabor pecaminoso de especiarias dele. Esse homem lhe nublava os sentidos com a força essencial de sua masculinidade.

E sua boca… deslizava-se, saboreava, movia-se sobre seus lábios. Era o paraíso! Os lábios de Tor eram firmes e ternos em cada um de seus movimentos, incitavam-na… Não, exigiam-lhe que reagisse.

E Christina se rendeu. De bom grado. Afundando-se em seu feroz abraço, devolvendo seu beijo com o ofegante entusiasmo que sua inexperiência lhe permitia.

Tor grunhiu, atraindo-a para si, encaixando seu corpo no dele. Ela sentiu o duro desejo desse homem contra o ventre. Uma calidez a embargou e se concentrou entre suas pernas. No sensível perfil de seus seios. Sua pele se avermelhou, tensa. Mais perto, exigia seu corpo. Fundiu-se no beijo. Em sua pessoa.

O beijo se intensificou. Ficou mais intenso, mais forte. Mais rápido. Mais insistente. Christina gemeu abrindo a boca para recebê-lo, sentindo o quente contato de sua língua.

Afogou um suspiro. A paixão pura e carnal por uns momentos a deixou aniquilada. Entretanto, Tor não lhe deu nem trégua nem tempo para pensar, e a estupefação cedeu às escuras sensações que despertou seu perverso beijo.

Tor mediu. Tor se apropriou. Tomava a lambidas sensuais. Intenso. Ardoroso. Úmidos. Até que ela notou mariposas no estômago e um fogo que se propagava em potentes e estremecedoras ondas.

Christina respirou sua fragrância; nunca tinha imaginado que um beijo pudesse ser assim. Tão poderoso. Não era só luxúria o que sentiu nesse beijo. Havia algo muito mais profundo. Algo que se aferrava a seu coração e atirava dele. Nesse beijo sentiu uma emoção ofegante, pura, que ele sempre tinha reprimido. Era suave e erótica, mesmo que sua ferocidade a deixasse sem fôlego.

A língua de Tor monopolizava a dela exigindo-lhe tudo. Provando, Christina se uniu ao movimento. Em círculos, sinuosa, deslizando-se com a dele, sua língua executou uma deliciosa dança que a penetrou até o mais recôndito de seu ser.

Tor a beijava como se não alcançasse possuí-la. Como se estivesse desesperado por ela. Como se reclamasse sua alma com a boca, com a língua. Entrelaçou os dedos em seu cabelo e atraiu ainda mais sua boca. Christina sentiu a cálida pressão de seus dedos na nuca. O roce da áspera mandíbula em sua pele. Os fortes batimentos do coração do coração de Tor contra o seu.

Ele grunhiu afundando-se em sua boca, afundando-se nela. Notou a pressão do peso de seu corpo. Sua mão tocando o peito, seus quadris movendo-se contra os seus, ao sensual ritmo da língua, dentro de sua boca.

Christina gemeu, seus dedos se cravaram nos ombros de Tor, largos, musculosos. Sentiu-se fraca, inarticulada, seu corpo clamava que lhe desse o alívio que tanto desejava.

Tor acariciou suas nádegas com uma mão, tomando-a, levantando-a, até pressionar-se contra o ponto que ela desejava.

Que sensação! Christina gemeu, envolta em sua boca, esfregando-se contra a grossa coluna de aço que notava em seu baixo ventre, até que sua respiração ficou dificil.

Com uma brusca exclamação, Tor afastou sua boca e se foi para trás.

—Basta!

O corpo de Christina se sobressaltou ao ver-se bruscamente afastado do prazer. De maneira instintiva ela alongou uma mão para ele, mas Tor a reteve com certa distância.

Piscou. A sombra da paixão foi desvanecendo-se, e cruzou com seu olhar perplexo, acusatório. Nesses olhos se viu mais alta, como se tivesse crescido. Como se lhe assustasse. Olhou-o perplexa. Christina lhe dava medo.

Porque o fazia sentir algo que ele não desejava. Importava-lhe. Apesar de que esse homem teimoso e duro não se desse conta. Mas lhe importava. Na boca dolorida e inchada de Christina se desenhou um sorriso. Aquilo era maravilhoso.

Tor se recuperou em seguida, mas não o suficiente.

—Levarei-te ao castelo - disse, agarrando-a pela mão—. Imediatamente!

Christina deixou que a levasse a puxões, sem lhe importar o mínimo a repentina e áspera mudança de atitude ou a careta inconfundível que se desenhava na boca dele.

Nada disso importava. Porque nada podia invalidar a certeza do que acabava de descobrir.

Tinha penetrado na fria couraça protetora. Era o sinal que esteve esperando. Importava-lhe. E a prova estava em seu beijo.

*

Tor não soube que estranho influxo do Hades se abateu sobre dele. Tinha passado de estar furioso a beijá-la como se nunca tivesse beijado a nenhuma outra mulher. Como se estivesse faminto, como se a necessitasse. A paixão não lhe preocupava; o rasgo que sentia no peito, em troca, era um assunto diferente.

Inconscientemente, Tor se absteve de beijá-la, como se de maneira instintiva se deu conta do perigo. Agora já sabia o porquê. A conexão era muito forte. Os sentimentos, muito poderosos. Muito intensos. E tentar contê-los seria um trabalho digno de Hércules, ou de Pandora.

Depois de ter provado a doçura de mel dessa boca já não poderia pensar em outra coisa. Soltou uma maldição e afastou um ramo com tanta força que este se quebrou.

Ouvia-a suas costas, respirando com dificuldade, e diminuiu o passo ao dar-se conta de que estava caminhando muito depressa. Dirigiu-lhe um olhar irado. Christina permanecia calada. Muito calada. Seguia-o com obediência, sem expressar nenhuma só queixa.

Tor não gostou da expressão de seu rosto. A leve curva ascendente de seus lábios podia interpretar-se como um sorriso petulante. Que motivos tinha para sorrir? Se quase a tinha violentado em pleno dia contra uma árvore…

—Falta pouco para chegar - disse Tor com aspereza.

—Que bom.

«Que bom?» Tor entreabriu os olhos. O que estaria maquinando essa mulher?

—Hoje terá que te dedicar aos assuntos de seu clã? —perguntou Christina em tom educado.

—Sim - respondeu ele.

—por que não me tinha beijado alguma vez assim?

Tor quase tropeçou contra uma pedra ante a inesperada mudança de tema.

—Não sei - disse ele com brutalidade—. Suponho que nunca me tinha ocorrido.

Christina arqueou uma sobrancelha como se soubesse que estava mentindo.

—Gostei muito.

Por sorte ele não estava comendo, se não, teria se engasgado.

—Muito mesmo, de fato - prosseguiu ela—. Temo-me que a partir de agora insistirei nisso.

Insistir nisso? Tor não dava crédito. Sua linda mulher estava lhe dando ordens? Ele era um chefe. Ninguém se teria atrevido a lhe falar com tanta insolência. Teria que obrigá-la a retificar. Entretanto, adiantando-se a sua resposta, Christina lhe perguntou: —O que outras coisas não lhe ocorreram ainda? —E escrutinou sua expressão horrorizada—. Me dá raiva pensar que estou perdendo outras coisas.

Seu olhar posou na considerável protuberância que aparecia sob o leine de seu marido. Passou a língua pelo lábio superior e uma chama de prazer sacudiu as lombares de Tor. A Christina não lhe escapou sua reação, e o sorriso que esboçaram então seus sensuais lábios não albergou dúvida alguma.

Que o céu o ajudasse.

Jogando-se para trás sua longa e sedosa cabeleira, Christina empreendeu de novo a marcha deixando ao Tor um pouco assombrado e bastante nervoso.

Uma mudança sutil se operou entre os dois, e Tor tinha a sensação de que aquilo ele não ia gostar. Absolutamente.

Sentiu um profundo alívio quando o povoado apareceu ante seus olhos. Dunvegan consistia em uma vintena de casinhas de teto de palha pulverizadas ao longo de um quilômetro nos contrafortes do porto, em um pequeno mercado no que os granjeiros e os pescadores se reuniam para apregoar suas mercadorias, em uma ferraria, uns estábulos e um botequim.

Teve um indício de inquietação à medida que se aproximavam. Era estranho. Tudo estava muito tranqüilo. Em geral, a essa hora do dia, o povo bulia de atividade, mas nesse momento parecia que todos se encerraram em casa.

Quando giraram para o porto descobriram a razão. Duas galeras desconhecidas tinham ancorado nessas águas.

Tor soltou uma maldição, e estava a ponto de dizer a Christina que se refugiasse em uma das casinhas quando soube o que estava acontecendo ao ver aparecer ao Rhuairi ante eles.

—Menos mal que retornastes. Não me atrevia a lhe enviar uma carta.

—O que passou? A quem pertencem estes navios?

—trata-se de John MacDougall.

Maldição. John do Lorne, o primogênito do chefe dos MacDougall e em tanaiste27. E além disso um bastardo.

—Desde que Eduardo encarcerou ao conde de Ross, MacDougall é quem cobra os impostos. Ao ver que lhe negavam a entrada no castelo (os homens não lhe deixaram passar sem sua permissão), jogou mão dos soldados e decidiu confiscar a metade das reservas para o inverno. Coll recebeu um bom golpe na cabeça quando tentava impedir que levassem a metade de suas provisões de boi seco.

Tor soltou uma blasfêmia e apertou os dentes. Agora o novo xerife de Eduardo decidia fazer notar sua presença no Skye acossando a seu povo?

—Quantos homens foram contigo? —perguntou a seu senescal.

—Poucos. Encontrava-me no povoado quando chegaram.

E Tor ia sem seu séquito. Em princípio a diferença numérica não lhe preocupava, mas em geral não estava acostumado a ter que pensar além em sua mulher. Tor tinha jurado permanecer neutro na guerra da Escócia e não tinha nenhum desejo de enfrentar-se ao xerife de Eduardo, mas MacDougall era um imbecil arrogante e desconfiava dele.

—Acompanha à senhora ao castelo…

—Temo-me que já é muito tarde para isso - atravessou Christina assinalando para o porto.

Tinham-nos visto. MacDougall e uma quarentena de homens se aproximavam em direção contrária do mercado, carregados com as caixas que pretendiam embarcar em seus navios. MacDougall coxeava ligeiramente ao andar, e essa claudicação lhe tinha dado o apelido de John Bacach, quer dizer, o Coxo.

O olhar de Tor pousou em sua mulher.

—Fica do meu lado e não te mova. —Christina assentiu—. E deixa que eu fale-acrescentou.

MacDougall lhe faria perguntas sobre seu matrimônio e Tor não queria que Christina dissesse algo inadvertidamente que fizesse duvidar de sua neutralidade ao novo xerife de Eduardo. Fechou os punhos. Poria a prova o plano de MacDonald. John MacDougall podia ser um imbecil, mas não era tolo. Tor suspeitava que sua oportuna visita não fosse uma coincidência. Eduardo devia ter ouvido falar de suas bodas.

—Ah - exclamou MacDougall aproximando-se com seus soldados—. Haja aqui o homem que estávamos procurando. Vim cobrar os impostos, mas seu guarda me negou a entrada argumentando que estavas fora.

Tor se deteve uns metros dele.

—Como podem ver, já retornei.

Os dois homens se plantaram um defronte ao outro. Tor era mais alto quinze centímetros, mas MacDougall tinha a compleição de um javali: maciço e musculoso. Além disso, contava com a inestimável ajuda de quarenta homens que lhe cobriam as costas. Tor contava com o Rhuari, um punhado de guardas e sua esposa. A presença de Christina lhe impedia de atuar, e ambos sabiam. De todos modos, retirar-se não era seu estilo.

—Por isso lhe ocorreu roubar os bens de minha gente?

MacDougall sorriu com frieza, e Tor recordou o parecido que existia entre ele e MacRuairi, a víbora de seu primo. Os MacDougall, MacDonald, MacRuairi e MacSorley representavam os quatro ramos dos descendentes do Somerled. As rixas e as lutas pelo poder entre os MacDougall e os MacDonald eram tão virulentas, e tão notáveis, como as que haviam entre os Bruce e os Comyn. Ambos os clãs queriam encarnar o poder dominante das ilhas Ocidentais, mas na atualidade esse poder o detinha os MacDougall.

—Considere um adiantamento a conta do pagamento dos impostos que nos devem.

Tor controlou seu mau gênio.

—O rei já recebeu nosso pagamento anual.

MacDougall arqueou uma negra sobrancelha.

—Isso é uma miséria comparado com o que deve.

—Essa era exatamente a dívida. Comprovem os livros se o desejares. As últimas invasões têm feito minguar os rendimentos deste ano.

—Ao rei não lhe interessam seus problemas. Descuidou do pagamento desde que ordenou encarcerar ao Ross, mas as coisas mudaram. Agora conta comigo.

—A que rei te refere? Aquele ante o que lhe inclinavam o ano passado ou ao que fazem reverências este ano?

Tor tinha afiado bem sua faca. MacDougall avermelhou da raiva, e o homem grande que tinha ao lado, seu escudeiro, sem dúvida, pegou a espada. A brigada lealdade que MacDougall rendia a Eduardo o tinha jurado a margem de seus parentes, o rei John Balliol e os Comyn, e aquilo ainda devia lhe arder.

—Estais questionando o direito ao trono do rei Eduardo? Advirto-lhe, como amigo, é obvio, que nosso monarca não toma a traição à ligeira. Suas recentes bodas pôs em interdição sua lealdade.

Dirigiu um olhar calculado a Christina, e Tor teve que resistir o impulso de escondê-la atrás de suas costas. MacDougall não ocultou o brilho de luxúria que apareceu em seus olhos e que teria significado uma condenação a morte em outras circunstâncias. Tor fechou os punhos para refrear a vontade que suas mãos tinham de empunhar a espada. Nunca havia se sentido tão impotente, mas com a Christina a seu lado era como se estivesse preso com correntes.

—Minhas bodas não tiveram nada que ver com política - disse Tor com voz neutra, procurando que seu tom não delatasse a perigosa ira que o avivava por dentro—. Não desejei nada mais depois de vê-la.

MacDougall cravou os olhos em Christina. Atuando como se esperava dela, Christina permaneceu quieta a seu lado. Se percebeu as olhadas lascivas do outro homem, não deu a entender.

—Sim, ouvi quais foram as circunstâncias de suas bodas. Minha senhora… —disse o xerife lhe fazendo uma reverência, e Christina, a sua vez, inclinou a cabeça com secura. Logo se dirigiu ao Tor—. Não é difícil entender a razão de que estejas louco por ela. —Aguçou o olhar—. Embora deva admitir que me surpreendeu ouvir que o amor tenha sido o pretexto para organizar umas núpcias tão precipitadamente.

Christina ia intervir, mas Tor lhe agarrou a mão com rapidez e, estreitando-lhe a levou aos lábios.

—Sim, fiquei enfeitiçado na primeira vez que a vi.

Seus olhos se cruzaram e Tor adivinhou a surpresa de sua mulher. Teria que lhe explicar isso mais tarde, embora a conversação não lhe entusiasmasse precisamente.

—Isso está acostumado a acontecer em sua família - agulhou MacDougall fazendo-se eco das palavras que Tor tinha dirigido ao MacDonald—. Encontra-se aqui seu irmão? Temos que cobrar uma promessa quebrar de matrimônio.

Tor agradeceu que trocassem de tema, mas sabia que MacDougall não tinha ficado convencido de tudo.

—Não está aqui, mas quando retornar procurarei lhe compensar de todos quão inconvenientes tenham podido sofrer.

—Procurarei que assim seja - repôs MacDougall—. Acredito que a metade do dote da garota Nicolson bastará.

Tor se forçou a manter a boca fechada. Estava-lhe ameaçando e roubando sem piedade, mas Torquil já se encarregaria de liderar suas próprias batalhas.

MacDougall voltou a admirar Christina e logo se voltou para Tor.

—Quando as notícias de suas bodas chegaram aos ouvidos do rei, o monarca se deu conta de que se incorreu em um descuido.

Tor entreabriu os olhos adivinhando que não ia gostar do que MacDougall tinha que lhe dizer.

—Que tipo de descuido?

—Seu nome não aparece nos Cilindros do Ragman.

Maldição. Não era um descuido. Tor não tinha assinado intencionadamente o cilindro onde se jurava a lealdade, a fidelidade e a vassalagem a Eduardo anos antes, como fora pedido a todos os nobres escoceses.

—Nessa época eu estava na Irlanda.

MacDougall sorriu. A expressão de Tor não delatava nenhuma emoção, mas o xerife não caiu no engano.

—Não importa - disse este com um dramalhão—. O descuido pode reparar-se sem maiores conseqüências. Não precisarão viajar até o Berwick. O castelo de Stirling nos servirá, durante o parlamento que celebraremos no fim de janeiro.

MacDougall partiu pouco depois levando consigo uma parte das reservas invernais. E no momento, Tor não pôde fazer nada salvo vê-lo partir enquanto ele se consumia de raiva. De todos os modos, já estava planejando uma insurreição para recuperar o roubado. MacDougall o esperava. Assim se solucionavam as coisas nas Highlands. Mas o xerife se dedicava a um jogo perigoso. Ao Tor apertariam as cavilhas, mas John do Lorne estava a bordo da asfixia.

De todos os modos, enfureceu-se. A aventura de sua esposa não só tinha posto em perigo a segurança da equipe de Bruce, mas sim além custado uma fortuna. Pior ainda, suas bodas o tinha situado exatamente onde temia: no olho do furacão. Em menos de um par de meses teria que tomar uma decisão.

*

Christina se sentia desventurada. De volta ao castelo, permaneceram em silêncio. Foi um verdadeiro suplício. O beijo apaixonado que tinham compartilhado e a paquera brincalhona de Christina parecia uma longínqua lembrança. Tor nem sequer a olhava. Ela não so lhe tinha seguido e tinha sido testemunha de algo que sem lugar a dúvidas não devia ter visto, mas sim sua presença no povoado o tinha preso de pés e mãos. Teria tentado impedir seu marido que MacDougall se levasse as provisões de que dispunha o povo para passar o inverno? Não sabia, mas com ela presente, Tor não tinha tido escolha.

A visita do MacDougall também lhe tinha dado a entender que suas bodas tinha conduzido os problemas que até então tinha tentado evitar, e com isso tinha atraído a atenção do rei. Por causa de Christina, Eduardo questionava a lealdade de seu marido e tentava obrigá-lo a escolher um lado mediante um juramento.

Christina não tinha entendido a magnitude da ameaça até que conheceu o MacDougall. John do Lorne era conhecido por sua falta de piedade, e apesar de se declarar amigo de Tor, não foi amizade o que Christina viu em seu olhar, a não ser outra coisa: animosidade e possivelmente ciúmes. Seus olhares lascivos lhe tinham lhe estremecido. Até sabendo que esse homem tentava encolerizar a seu marido, tinha conseguido que ela sentisse a necessidade de tomar um banho. MacDougall tinha desfrutado demonstrando sua supremacia sobre o temido senhor da guerra das Highlands, e Christina pressentiu que esse tão somente seria o primeiro dos problemas que teriam com o poderoso xerife de Eduardo.

Ficou estupefata quando Tor afirmou que se casou com ela porque tinha ficado enfeitiçado. O modo que a olhou quando lhe beijou a mão…

Tinha-lhe dado um tombo o coração, embora logo compreendesse que possivelmente o havia dito pelo MacDougall. Sem lugar a dúvidas, Tor era muito cortês para revelar as autênticas circunstâncias de suas bodas. Mas ela quis acreditar que era verdade.

Tor ia ajudar a desembarcar do birlinn quando Christina já não pôde suportar mais o silêncio.

—Sinto que nosso matrimônio te trazido problemas. Sei que não tem vontade de ver-te misturado na política escocesa.

—Isto não tem nada que ver contigo, Christina.

Odiava quando a despachava assim. Tor tentou que subisse a escada, mas Christina se manteve firme. Seus homens tiveram o tato suficiente para afastar-se um pouco deles.

—Por que é tão importante para ti? —perguntou-lhe ela.

Tor deixou escapar um suspiro e a olhou.

—O que é tão importante para mim?

—Te manter à margem. Depois de hoje, não vê que será impossível? Eduardo não renunciará nem a um só palmo de seu reino… Por muito longe que esteja.

—MacDougall tão somente me deu um aviso, deu-me a entender que me vigia. Enquanto eu não atue contra ele, ele não atuará contra mim. E por agora, com isso me basta.

Christina notou que lhe bulia o sangue patriótico dos Fraser.

—E te parece bem te manter à margem e deixar que Eduardo e homens como MacDougall governem a Escócia?

Os olhos de Tor jogavam brasas. Tinha interpretado sua pergunta como uma crítica, e possivelmente era.

—Parece-me bem não arrastar a meu povo a uma guerra que quão único trará serão desgraças. Parece-me bem não ver meus homens com o crânio destroçado no campo de batalha porque lutavam por um rei que não sabe nada das Highlands e das ilhas Ocidentais, e que além nada lhe importe. Ver que as mulheres perderam a seus maridos e os meninos a seus pais, ver minhas terras arrasadas e o gado esquartejado… Passei vinte anos de minha vida fazendo todo o possível por devolver a paz e a prosperidade a meu clã, e maldita a graça que me faria ver todo isso destruído porque uns reis longínquos decidiram brigar entre eles. Tanto gosta de entrar em guerra, Christina?

—Claro que não - replicou ela, assombrada pela intensidade de sua reação. Havia tocado um ponto delicado e suspeitava qual era sua procedência—. O ataque surpresa no qual seus pais morreram assassinados deve ter sido devastador.

—Foi - disse ele com brutalidade. Era óbvio que não se pronunciaria mais sobre o tema—. Vê com cuidado o que desejas; pode ser que a guerra não tarde em nos alcançar. Bem, se tivermos terminado com isto, tenho assuntos que atender.

Voltando-se, Tor se afastou com passo decidido e Christina teve que retornar ao castelo sozinha. Sentindo-se mais desgraçada que antes. Com sua tentativa de pedir desculpas só tinha conseguido enfurecê-lo mais. Não era de se admirar que Tor não queria mesclar-se em política. Como podia ter sido tão ingênua? Tinha pensado tão somente nos problemas de um homem, quando o que teria que considerar era o bem-estar de todo um clã.

*

Durante os dias seguintes Christina não teve ocasião de ver seu marido como costumava. Quando este retornava ao castelo, encerrava-se em seus aposentos pessoais com o Rhuairi ou com seus guardas. Seguia sem confiar nela, mas Christina se deu conta de que a cena vivida com o MacDougall tinha deixado rastro nele: sulcos profundos nas comissuras dos lábios e um ar de fadiga em seu olhar denotavam sua preocupação.

Essa era a situação que seu matrimônio lhe tinha dado.

E em seus pensamentos sempre a assaltava o temor de que lamentasse haver-se casado com ela. Que pudesse culpá-la por ter atraído sobre ele as suspeitas de Eduardo. E se seu clã saísse prejudicado, cada vez que a olhasse pensaria que essa mulher tinha sido o grande engano de sua vida.


Oxalá encontrasse a maneira de compensá-lo. E como Tor tinha dormido três noites na broch depois da partida do MacDougall, com os estranhos guerreiros sobre os quais não lhe permitia fazer perguntas, Christina não tinha tido a oportunidade de compensá-lo com apaixonados beijos. Tor a tratava com a cortês indiferença do passado, mas Christina sempre levava no pensamento a emoção descarnada de seu beijo.

«Importo-lhe; devo importar.» Tinha-o notado em seus lábios. E o tinha sentido em seu coração.

Suspirando, deixou um infolio28 sobre uma prateleira e sacudiu o pó das mãos. O irmão John se ausentara para que pudessem ordenar a sala e Christina se atrasava. Dizer que o jovem clérigo era desorganizado era pouco. O senescal Rhuairi, por outro lado, andava-lhe atrás. Christina negou com a cabeça. Escapava a sua compreensão que, com tanto confusão, tirassem-se o trabalho de cima.

Recolheu os diferentes pergaminhos e papéis de vitela que tinha pulverizado sobre a mesa e os amontoou em ordem. Repassou por cima alguns documentos e viu que fundamentalmente eram recibos de quantidades que os chefes das tribos e os arrendatários entregavam em conceito de arrendamento e usufruto de propriedades. Além de possuir uma grande parte do Skye, parecia que Tor tinha terras nas ilhas do Lewis, do Harris e do North Uist.

Advertiu um infolio aberto sobre a mesa, e estava a ponto de fechá-lo quando seu olhar se pousou em uma entrada recente que correspondia ao recibo que acabava de pôr sobre o montão que havia na prateleira superiora.

Franziu o cenho e voltou a ler a anotação, somente para assegurar-se de não ter cometido um engano. Seus olhos se centraram de novo no livro de contabilidade. Essa entrada estava mal feita. Tinham cotado os cem quarteirões de cevada como quinhentos.

Christina revisou por cima outros recibos e localizou um engano mais na transcrição: em lugar de dez ducados de prata, tinham cotado uma quantidade recebida de dezesseis.

Tor tinha sorte de que MacDougall tivesse declinado seu oferecimento de revisar os livros… porque estes não enquadravam.

Christina mordeu o lábio tentando decidir o que tinha que fazer. Quem quer que fosse o responsável corria o perigo de perder seu posto se ela revelava seu achado. Entretanto, não queria causar problemas ao irmão John; tinha tido tanto trabalho e estava tão cansado ultimamente que não era de se admirar que tivesse cometido alguns enganos. E tampouco queria dar ao senescal mais motivos para lhe desgostar.

De repente, uma idéia começou a tomar forma em sua mente. Sentou-se à mesa, colocou frente a ela o livro de contabilidade e o examinou com maior atenção. O mesmo dom que lhe tinha permitido aprender idiomas desde a mais suave idade também parecia poder aplicar-se aos números. Era capaz de fazer a maioria dos cálculos, inclusive os que resultavam complicados mentalmente. O pai Stephen lhe havia dito que em toda sua vida só tinha visto um caso parecido ao dele. Somando as colunas da direita, Christina descobriu outros enganos de cálculo.

Já estava! Tinha descoberto a maneira de ajudar. Organizar e classificar essas contas não lhe levaria muito tempo, uns dias, possivelmente uma semana. Não só era a maneira perfeita de pôr a seu marido à corrente de seus incomuns dotes, mas sim além demonstraria que também podia ajudá-lo. Que não era necessário que se sentisse tão só.

Experimentou uma onda de excitação. Como ia surpreender-se! As vezes que Christina tinha tentado demonstrar que era útil tinham sido em vão, mas aquilo era importante, algo que ele não podia ignorar. Com isso o surpreenderia.

Estava impaciente por ver sua expressão. Primeiro de surpresa, logo depois de gratidão, e, finalmente, possivelmente de orgulho. O coração lhe acelerou. Deixaria de considerar a garota covarde que o tinha enganado para casar-se com ele e a veria como a mulher que podia estar a seu lado, como uma confidente? Christina podia passar a formar parte de sua vida, e não só ser um corpo em seu dormitório.

Veio-lhe ao pensamento uma imagem de seu pai. Também tinha pensado que o impressionaria mas…

Era absurdo. Afastou essa idéia passageira de sua cabeça. Tor não se parecia em nada a seu pai. Em nada. Era uma pessoa decente, justa, e inclusive quando se zangava não perdia nunca o controle. Possivelmente fora brusco expressando-se, mas jamais levantaria uma mão contra ela. Havia-se posto furioso ao descobri-la na árvore e ainda mais quando ela quis provocá-lo estupidamente lhe falando do Lachlan MacRuairi. Tinha querido lhe pôr ciumento, porque ela estava ciumenta. E se sua reação era indicativa de alguma coisa, tinha funcionado. Entretanto, por mais zangado que estivesse, Tor jamais lhe faria mal fisicamente.

Não era a crueldade o que lhe tinha impedido de fixar-se nela, a não ser a cegueira. Somente precisava abrir um pouco os olhos.

Estipulado o caminho a seguir, Christina abandonou as dependências de seu marido com passo decidido. Estava impaciente por começar, mas teria que esperar até entrada a noite se não quisesse que a descobrissem. Nesse momento ouviu a rouca gritaria de umas vozes a suas costas procedentes do grande salão.

Deu-lhe um tombo o coração. Tor devia ter retornado!

Acelerou o passo, saiu ao corredor pela porta traseira e ao entrar no salão se deteve em seco, paralisada.

O terror a sacudiu em uma explosão fria e vertiginosa. Sentiu uma pontada no estômago e notou um sabor bilioso na boca.

Um gemido estrangulado escapou de sua garganta, como o de um animal ferido.

De pé no soalho, lhe dando as costas, estava seu marido… abraçando apaixonadamente a uma mulher alta e loira.


Capítulo 18


Christina ficou imóvel, aniquilada, incapaz de mover-se.

O beijo se fez eterno, fez-se mais ardente à medida que a multidão os incitava animando-os e chiando. Basta. Basta, por favor. Sentiu um peso imenso no coração. As lágrimas lhe nublaram os olhos.

Como podia lhe fazer isso? E como podiam animar os homens de seu clã? Christina acreditava que tinha começado a gostar dela.

Sentia que lhe faltava o ar e que lhe queimava o peito. Notou que muito profundo se rachava, se trincava como o gelo de um lago gelado. Tremia, e soube que esses tremores se converteriam em sacudidas.

Lady Janet e seu marido se separaram, rindo a gargalhadas, e Christina ficou paralisada.

Havia algo que não encaixava… que era diferente. Seu marido não atuava como um rei ante seus súditos, e sua indumentária era muito mais luxuosa que a que estava acostumada a ver nele. O porte tranqüilo e relaxado, a roupa desconhecida, o cabelo com mechas douradas… Seus ombros eram tão largos como os dele, mas sua constituição, até sendo musculosa, era mais fina, não tão corpulenta.

Christina piscou. Acaso via visões porque desejava as ver? Não. No fundo de seu coração soube. O homem que estava de pé no soalho não era seu marido.

Quando deslizou a mão pela cintura da mulher e se voltou para dirigir-se à multidão, Christina soube. O perfil era endiabradamente parecido, mas a mandíbula não era tão poderosa e o perfil do nariz não estava ligeiramente torcido. Além disso, a fina cicatriz da bochecha direita e as rugas de expressão nos olhos não pertenciam ao Tor.

E se ainda ficava alguma dúvida, esta se dissipou quando a mulher apareceu ante seu olhar. Não era lady Janet, a não ser uma jovem pouco mais velha que ela. Era bonita, com uns traços finos e delicados e uns enormes e risonhos olhos verdes; sua beleza não era firme e serena como a de lady Janet, a não ser natural e vivaz. Uma flor silvestre da primavera em lugar de uma rosa de inverno.

A garota reparou na Christina e sorriu. Puxando o braço do homem, ficou nas pontas dos pés para lhe sussurrar algo ao ouvido e ele se voltou para a Christina.

Ver desenhar um amplo sorriso em um rosto tão parecido ao de seu marido a deixou sem fôlego. Essa deveria ser a expressão de Tor, uma expressão de felicidade.

O desconhecido se dirigiu a ela com passo decidido. Quando esteve em frente, deteve-se e fez uma reverência tão cortês que Christina não pôde evitar sorrir.

—Minha senhora, me perdoe, não lhe tinha visto chegar. —Dedicou-lhe um sorriso pícaro e a puxou pela mão para conduzi-la até a mesa—. Temo que me deixei levar um pouco apresentando a minha mulher ao clã. Meu nome é Torquil, e você deve ser lady Christina. —Sacudiu a cabeça com determinação—. Sem dúvida meu irmão está cheio de surpresas.

Christina franziu os lábios em um sorriso.

—Sem dúvida são gêmeos.

Torquil arqueou uma sobrancelha muito bem desenhada, e sua expressão irônica foi tão parecida com a de seu irmão que ficou estupefata.

—Não havia lhe isso dito?

Christina sacudiu a cabeça.

Torquil a olhou com expressão preocupada.

—Sinto muito, o que viu… deve lhe haver afetado muito.

Christina assentiu; embora o que tinha experimentado era muito mais doloroso que isso. E naquele momento chegaram à mesa.

—Minha senhora, desejo lhe apresentar a minha esposa, lady Margaret.

A jovem se aproximou pressurosa a ela e deu umas palmadas de alegria.

—É um prazer conhece-la, minha senhora. Posso lhe chamar Christina? Têm que me chamar Meg. Estou segura de que seremos muito boas amigas, casadas como estamos com dois irmãos… que são gêmeos, além disso. Teremos muito de que falar —disse Meg, olhando a seu marido com malícia— e que comparar.

Christina só acertou a assentir e a sorrir a sua vez, sentindo-se como se tivesse ficado apanhada em um redemoinho.

—Que malote é! —Torquil rodeou a seu recém casado entre seus braços e fingiu sentir-se ofendido—. Cuida sua língua ou terei que usá-la para outros usos.

Meg piscou.

—O que outros usos lhe ocorrem?

Torquil lhe acariciou a bochecha com um só dedo, com tanto amor e adoração em seu olhar que Christina sentiu como seu coração se enchia de ternura. Agachando-se, Torquil sussurrou algo ao ouvido do Meg. Fossem quais fossem suas palavras, estas fizeram ruborizar-se a sua formosa mulher até a raiz do cabelo, mas o olhar de sensual antecipação que advertiu nos olhos dela não semeava nenhuma dúvida.

«O que quer de mim?»

Lembrou-se da pergunta que Tor, com estranha intensidade, pronunciou justo antes de beijá-la. Mas agora conhecia a resposta: isso era o que desejava.

Possivelmente deveria contentar-se com o que possuía. Tor fazia muito por ela. Tinha-a salvado de umas circunstâncias horríveis e lhe tinha dado seu nome, um lar e, sobre tudo, uma sensação de segurança. Tinha-lhe dado paixão, e Christina sabia que terminaria por lhe dar filhos. Protegeria-a com sua vida, como faria qualquer dos homens de seu clã, porque sabia que isso formava parte de seus deveres. Tratava-a, se não com ternura, ao menos com consideração. Depois do que tinha acontecido no bosque, Christina sabia que por muito que o enfurecesse, ele jamais a golpearia. Tor controlava a situação, estava ao mando, tinha sentido da honra, era direto e firme como uma rocha; um guerreiro no pleno sentido da palavra, e um líder digno de admiração.

Era tudo isso, e, entretanto não lhe bastava. Sobre tudo quando olhava ao casal que nesse momento se sentava a seu lado. O que queria dele? Queria tudo. Queria olhares de ternura, beijos apaixonados, sorrisos amorosos e passar juntos longas noites frente à chaminé. Queria risadas, companheirismo, intimidade e um homem que a valorizasse… Não como a um corpo formoso com o que jogar, mas sim como pessoa.

Queria seu coração.

Porque ele já tinha o seu na palma de sua poderosa mão de ferro.

«Amo-o.» A verdade era tão óbvia que se perguntava como não se dera conta antes. Christina amava sua sólida fortaleza, sua confiança, sua determinação, seu inato sentido da justiça e inclusive suas maneiras sérias. Sabia que sempre poderia contar com ele. Era um chefe importante, o guerreiro mais reputado de sua época, e sempre a tinha tratado com respeito e escutado suas opiniões.

E se por acaso tinha ficado alguma dúvida a respeito, a profunda desolação que sentiu ao presenciar esse beijo a tinha dissipado. Do momento em que a salvou de ser violentada no Finlaggan até o beijo que deram no bosque, Tor tinha reclamado para si seu coração. E agora lhe pertencia.

Se ele o quisesse.

*

Era tarde quando Tor saiu pelo portão que dava ao mar. Seu olhar pousou imediatamente no homem que o aguardava de pé no pátio. O pródigo tinha retornado.

Colyne lhe tinha enviado uma carta pelas mãos do Murdoch, seu escudeiro, para anunciar sua chegada. Tor teria acudido imediatamente, mas esteve ajudando a guarda a preparar-se para a viagem. Ao dia seguinte partiriam para as montanhas Cuillen para começar a última fase do treinamento, a mais intensa. O que alguns chamavam «Perdição». Sem exagerar. E, por contra, nada unia tanto a uma equipe como compartilhar o sofrimento.

Tor levava muito tempo esperando esse momento. Cortou a distância que separava a ambos em poucos passos. Torquil o viu aproximar-se com certa intranqüilidade, mas antes de poder abrir a boca e dizer nada, Tor ergueu o punho e o estampou em sua mandíbula. O impacto lhe jogou para trás a cabeça, e Torquil deixou escapar um grunhido de dor.

Que gosto, Deus divino!

Massageando a mandíbula, Torquil o observou com receio, como esperando um novo golpe. Tor titubeava.

—Eu também me alegro de ver-te, chefe.

—Chefe? Convém-te recordar isso - disse Tor com frieza. A chuva lhe açoitava o rosto—. Qual é a razão de que tenha preferido sair em lugar de ficar no grande salão?

Torquil parecia incômodo.

—Queria que primeiro nos víssemos a sós, se não te importar.

Importava-lhe, mas seu irmão parecia estranhamente inquieto.

—Nos deixem - ordenou Tor aos guardas. E quando se retiraram, disse—: Agora, te explique.

Torquil o olhou titubeando e tentando calibrar seu estado de ânimo. O tinha imaginado. Tor nunca cedia. E terminou por encolher-se de ombros.

—Sabia que te zangaria.

Não era necessário que o dissesse, Torquil sabia perfeitamente.

—Te ocorreu que me zangaria menos se ficássemos fora, sob a chuva?

Torquil se endireitou e lhe sustentou o olhar de aço com seus olhos também de aço.

—Não quis desgostar a minha mulher. E foi uma boa idéia, visto o recebimento -agulhou, esfregando a dolorida mandíbula para recalcar suas palavras.

Tor demorou um pouco em interpretar aquilo.

—Quer dizer, estou aqui fora me gelando as bolas para que a noiva que seqüestraste não se sinta ferida em seus sentimentos? —perguntou com incredulidade.

Seu irmão ficou embevecido. Disparou-lhe o músculo da mandíbula. Apertou os dentes e assentiu.

—A garota não tem culpa do que passou. Eu sou o único culpado, ou seja, que faz o que considere, mas não obrigarei a minha mulher a presenciar isto… ou a levar uma falsa impressão de ti.

Tor entreabriu os olhos.

—A que impressão te refere?

Seu irmão esboçou um sorriso irônico.

—Dá um pouco de medo quando tira o mau gênio.

Não era estranho, desde que tinha conhecido Christina, pensou Tor.

—Só um pouco? —perguntou arqueando uma sobrancelha.

Torquil sorriu.

—Meg não te conhece tanto como eu. Poderia pensar que em realidade queria me arrancar a cabeça ou outras partes às que se há aficionado especialmente.

—E teria razão. —Tor tinha recebido o relatório do Murdoch, seu capitão e escudeiro, mas preferia ouvir a explicação de boca de seu irmão antes de decidir sua sorte—. Dê-me uma boa razão pela qual não deveria te colocar entre grades neste mesmo instante e deixar que te apodreça em uma masmorra. Conhecia perfeitamente os problemas que estas bodas conduziria a todos e, entretanto, desafiou-me.

Tor deu um passo à frente, fechando os punhos e sentindo que o dominava a raiva. Seu irmão possivelmente achasse divertido, mas suas ações poderiam ter posto em perigo anos de esforços e obrigá-los a entrar em guerra.

—Como pudeste fazer esta loucura, ser tão irresponsável? Tem idéia das condições que tive que aceitar para impedir que Nicolson nos atacasse?

Torquil fez frente a seu arremesso sem alterar-se.

—Não me deixou escolha… Mas esperava que já tivesse entendido.

Tor franziu o cenho.

—Maldito seja o Hades! Do que está falando?

—Ouvi o que contam de suas bodas, e pensei que o entenderia. Tinha que estar com Meg. Essa mulher é minha. E não me importam as conseqüências.

As notícias voavam. Tor franziu os lábios em uma careta grave.

—Nenhuma mulher compensa o sacrifício de faltar o dever para com seu clã. O que ouviste é falso. Minhas bodas foi o preço que tive que pagar por seus atos.

Ante o olhar assombrado de seu irmão, Tor explicou com brevidade o que tinha acontecido no Finlaggan e os termos do endiabrado acordo que tinha selado com o MacDonald. Como tanaiste dele, ao menos de momento, Torquil tinha direito a conhecer o perigo que os espreitava, embora ele fora o máximo responsável.

Apesar da raiva que sentia Tor e da diferença de caráter, o vínculo que existia entre os dois irmãos sempre tinha sido forte. Torquil o conhecia melhor que ninguém, e às vezes melhor do que ao Tor teria gostado. Notava o olhar penetrante de seu irmão fixo nele, intenso, enquanto terminava de contar sua história.

Torquil sacudiu a cabeça com incredulidade.

—Enganou-te e, mesmo assim, casou-te com ela?

Tor não respondeu, sabia que suas palavras resultariam incompreensíveis.

—Está seguro de que não há outra razão?

—As bodas e acessar a treinar a guarda secreta de Bruce foram o preço que tive que pagar para que MacDonald nos ajudasse a nos tirar de cima Nicolson. —Tor esboçou um sorriso azedo—. Embora não estou seguro de que tenha valido a pena se com isso nos ganhamos a inimizade do MacDougall.

Tor contou a seu irmão a recente visita do xerife.

—Não sei se acreditou ou não a história de que me sinto enfeitiçado pela Christina, e o certo é que tampouco importa. Minhas bodas com uma Fraser bastou para que Eduardo e seu novo lacaio tenham começado a fazer perguntas.

—Mas você sabia que isso podia acontecer - assinalou Torquil.

Tor deu de ombros.

—Sim. Era uma possibilidade.

—E, entretanto te casaste com ela. —Torquil voltou a menear a cabeça, sacudindo do cabelo umas frias gotas de chuva—. Está seguro de que não existe outra razão? —insistiu.

Um retumbo de trovões se ouviu ao longe. Aquilo encaixava com a expressão de Tor.

—O que outra razão poderia existir?

—conheci à garota. É uma preciosidade. Não te dê vergonha admitir que a queria.

Tor examinou com frieza seu irmão sob a sombria e úmida neblina.

—Só porque tenha atuado como um idiota por uma mulher, não vás tomar a outros por idiotas.

Seu irmão o olhou com perspicácia.

—Sua esposa está apaixonada por ti.

Tor ficou imóvel; o coração lhe deu um estranho tombo.

—Do que está falando?

Torquil lhe explicou que Christina tinha entrado no grande salão quando ele estava abraçando a sua recém casada esposa.

—De entrada não a vi, mas quando reparei nela me encontrava o suficientemente perto para ver seu olhar de perplexidade. Estava destroçada. Exatamente como eu me sentiria se tivesse visto o que ela viu.

Tor perjurou, e passou uma mão pelo cabelo, que por então já tinha encharcado. Era capaz de imaginar o que ela teria pensado. Agora bem, aquilo do amor… Esperava que seu irmão estivesse equivocado. Porque isso somente causaria sofrimento a Christina.

—por que não lhe contaste que somos gêmeos? —perguntou Torquil. Entretanto, antes que Tor pudesse responder, deteve-o com um gesto da mão—. Esquece o que te perguntei. Você nunca conta nada a ninguém. Inclusive Florence teve que perguntar a mim qual era o dia de nosso santo.

Tor franziu o cenho; não sabia que a sua primeira mulher importassem essas coisas.

—Você não foste precisamente meu tema favorito de conversa. Coisa difícil de aceitar para ti, já sei.

Um sorriso petulante apareceu em rosto de seu irmão.

—Deus sabe que essa preciosa tua mulher deve estar cansada de seus rudes encantos. Possivelmente deveríamos fazer quando jovens…

Tor o agarrou pela garganta antes que pudesse terminar a frase tomando-o completamente por surpresa. Teria que dar as graças ao Boyd mais tarde por essa rapidez de movimentos.

—Toca-a e te mato - disse olhando a seu irmão nos olhos—. entendeste?

Torquil assentiu, e então Tor o soltou.

—Maldição, somente era uma brincadeira. —Massageando a nuca, Torquil olhou fixamente a seu irmão na escuridão. Seu olhar era de inteligência, e ao Tor recordou a do MacSorley—. grande reação para estar falando de uma esposa a que não quer, não te parece? Acredito que está louco por ela. E já era hora, se me perguntar isso. —Torquil percebeu a raiva de seu irmão—. Só espero que te dê conta antes que seja muito tarde. As mulheres necessitam um pouco de afeto e de ternura.

Seu endiabrado irmão tinha casado um par de meses, e se considerava um perito? Ignorava o que Torquil acreditava saber, mas o certo era que não sabia nada.

—Fecha essa bocarra, Torquil, ou dará com os ossos na masmorra antes do que imagina.

—Significa que me perdoa?

Tor deixou transcorrer uns instantes para que seu irmão esperasse, preocupado, sua resposta. Deveria castigá-lo, e o castigaria, mas agora o necessitava para algo mais importante. Sua intranqüilidade só aumentara desde a inesperada aparição do John MacDougall no Skye. Havia algo estranho em tudo isso, e não queria correr nenhum risco.

—Não, significa que pensarei no seu castigo. Primeiro te encomendarei uma missão.

Percebendo a importância do assunto, Torquil adotou um semblante sério e se concentrou nas palavras de Tor.

—Do que se trata?

—vou exilar lhe a ti e a sua esposa à ilha do Lewis, para que possa vigiar ao Malcolm e ao Murdoch até que me inteire de quem está atrás dos recentes ataques e termine de treinar aos homens. Se alguém descobrir no que estou comprometido, quero saber que meus filhos se encontram a salvo.

A expressão de Torquil se escureceu profundamente.

—Crie que alguém lhe faria mal?

—Não quero correr riscos.

—Quem?

Tor soltou uma gargalhada.

—Ganhei um montão de inimigos com os anos. Por não falar de nossos inimigos acérrimos, os MacRuairi.

—Filhos da grande cadela - espetou Torquil com expressão lúgubre. Seu irmão os odiava tanto como ele.

Tor desejou poder contar ao Torquil que tinha ao Lachlan MacRuairi sob suas ordens, mas tinha que manter as identidades dos homens em segredo.

—Por outro lado, temos que considerar também a seu sogro, e ao MacDougall.

—E se pensarem que você e eu não estamos envolvidos…

—Isso servirá para protege-los de meus inimigos - atravessou Tor terminando a frase—. Embora espere que não seja necessário - disse sorrindo a seu irmão com sarcasmo—. Temo-me que isso também significa que sua mulher terá uma falsa impressão sobre mim.

Torquil torceu o gesto.

—Darás uma de mau, verdade?

—Não parecerá estranho, dado que é o que te merece. Mas não pode contar a ninguém a verdade. —Torquil ia protestar, mas Tor lhe cortou em seco—. Não me arriscarei. Além disso, seria muito perigoso para sua mulher.

—ficará furiosa quando descobrir que a enganei.

—Vale mais que fique furiosa a que corra perigo. Considera uma ordem direta. —Algo que sabia que seu irmão não podia desobedecer—. Faz isto por mim e possivelmente tão somente te arrancarei as partes do corpo às que sua jovem esposa não há se aficionado especialmente.

Torquil riu, mas se sobrepôs imediatamente.

—Sinto muito, irmão. Sei que te causei problemas. Oxalá tivesse podido atuar de outra maneira. Dou-te minha palavra de que farei tudo o que possa para lhe compensar - No subestimes a John de Lorne..

Tor assentiu.

—Sim, sei. Mas não só tem que ajustar as contas comigo. MacDougall quer cobrar pela promessa de compromisso que quebrou. A metade do dote da garota.

Torquil soltou um taco.

—Ao MacDougall que lhe dêem…

—Não subestime ao John do Lorne. É um filho de cadela, mas muito ardiloso. Minhas bodas lhe deu toda a munição que necessita para tentar me dobrar.

—O que fará?

Tor sacudiu a cabeça.

—Espero que aconteça algo antes de janeiro que me impeça de ter que decidir formalmente. Esta guerra pertence a Escócia, não a nós.

Tinha trabalhado toda sua vida para que seu clã tivesse uma posição destacada e fosse próspero; escolher mal nessa guerra poderia voltar a afundá-los na escuridão e lhes fazer perder tudo o que tinham conseguido. Entretanto, sabia que os ventos de rebelião sopravam com renovada força. A guerra era algo iminente, inclusive para as ilhas Ocidentais, e Tor sentia que esticavam uma soga ao redor de seu pescoço.

Seu irmão compreendeu a situação.

—Ao inferno com Eduardo da Inglaterra e com Robert de Bruce. O que sabem das ilhas Ocidentais?

—O bastante para ter compreendido que nos necessitam para ganhar - respondeu Tor claudicando—, e isso é mais do que já sabiam.

A chuva começou a aumentar.

—Vamos. Quero conhecer a mulher que nos causou tantos problemas, embora duvide que ela se alegre de me conhecer quando ouvir o que vou dizer.

Acertou. A recém casada tinha caráter; isso concedia. Essa menina rebelde tinha todo o aspecto de querer lhe arrancar os testículos com a colher que fazia oscilar ante ele. Tor, por causa da tormenta, permitiu-lhe ficar no castelo até a manhã seguinte. Em outras circunstâncias teria recebido a Meg Nicolson com os braços abertos, por ser a mulher de Torquil, embora somente fosse por dar o gosto de ver seu feroz irmão dobrado por uma mulher. Desgraçado…

Tor saiu do grande salão pela porta que dava ao corredor sabendo de que não podia procrastinar mais. Tinha que ver sua esposa.

As palavras de seu irmão o tinham incomodado mais do que teria gostado de admitir. Christina o amava? Egoisticamente, por uns instantes experimentou uma satisfação primitiva. De entrada, queria seu amor…, sua devoção. Queria-a para ele.

Entretanto, também sabia que lhe faria mal ao ser incapaz de dar o que ela desejava. Tor não era como seu irmão.

O dever. O clã. A guerra. Tudo isso vinha em primeiro lugar. Agora bem, era inegável o que Torquil lhe tinha feito notar: estava louco pela Christina, e isso não o havia sentido nunca por uma mulher. Queria agradá-la. Fazê-la feliz.

Ao aproximar-se do dormitório dela, Tor observou que uma fresta de luz aparecia sob a porta que dava ao seu quarto. Franziu o cenho perguntando-se quem estaria de pé essas horas trabalhando em suas dependências particulares. O irmão John? Esse homem sempre parecia andar brincando de correr de um lado a outro. Tor sabia que era absurdo, mas começava a sentir bastante antipatia pelo novo escrivão. O dia em que Rhuairi advertiu um engano nas contas, Tor pediu que vigiasse ao tímido clérigo, quase esperando encontrar uma razão para livrar-se dele. Entretanto, o senescal não encontrou nada mais, e Tor, que esteve emprestando mais atenção às traduções de sua correspondência que às contas, tampouco. Não obstante, para ser um clérigo, o maldito amanuense passava muito tempo com sua esposa.

Abriu a porta e lhe surpreendeu não encontrar ao irmão John, a não ser a sua mulher.

Christina se sobressaltou com o ruído e ao vê-lo ficou em pé. A brutalidade de seu gesto fez que se pulverizassem pelo chão vários papéis que devia ter tido em cima do regaço.

—Retornaste!

A clara alegria que notou na voz dela contrastou com a culpa que o retorcia. Uma culpa que não tinha por que sentir. Estava cumprindo com seu dever. Atendendo suas responsabilidades. Não podia estar sempre ao seu dispor e vê-la em todo momento. Entretanto, em realidade tinha sentido falta dela. Todos e cada um dos minutos que esteve separado dela. Christina o estava abrandando, estava o pondo fraco, e isso não podia permitir.

Examinou a mesa a que estava sentada e advertiu a presença de tinta, uma pluma solta a toda pressa, os livros de contabilidade abertos, os documentos empilhados, as manchas negras de suas mãos… e inclusive uma que destacava em sua bochecha.

—O que está fazendo aqui?

Tor compreendeu o significado de todo aquilo, mas não encontrava sentido. Cravou seu olhar nela e viu que o rubor aparecia em suas bochechas.

Christina mordeu o lábio, colocando o escuro cabelo atrás de sua rosácea e bem desenhada orelha.

—Queria te surpreender.

Tudo parecia encaixar com exatidão. Tor a olhou de novo. Com maior atenção. Surpreso ante o que via… ou não tinha sido capaz de ver.

—Sabe ler e escrever.

Christina assentiu e deu uns passos para ele, com a excitação plasmada em seu delicado rosto.

—Ainda não terminei; desejava que fosse perfeito. Sei que estiveste muito ocupado e queria encontrar a maneira de ajudar, por isso estive pondo em ordem as contas. Estavam embaralhadas. —Christina falou gesticulando e esboçou um franco sorriso—. Surpresa!

Tor não soube como reagir. Dizer que estava aniquilado era pouco. Era pouco freqüente que os homens das Highlands dominassem essa disciplina, por não falar das mulheres. Repassar as contas não era uma tarefa fácil. Era essa a razão de que Rhuairi tivesse encontrado enganos? Tor franziu o cenho.

—Por que mantiveste isto em segredo e não me há isso dito?

Christina mudou de expressão; era óbvio que a reação de seu marido não tinha sido a esperada. Agora bem, acaso podia esperar o contrário? Tor tinha entrado em seus aposentos para descobrir não só que esteve ocultando um grande secreto, mas sim se tinha metido totalmente em seus assuntos particulares. Só Deus sabia quanto haveria essa mulher embaralhado as coisas.

—Queria te dar uma surpresa. Demonstrar-te que posso ajudar.

Conhecendo sua sensibilidade, Tor franziu os lábios para tentar controlar seu mau gênio.

—Isto não é um jogo, Christina - disse com paciência—. Está interferindo em uns assuntos do clã da máxima importância. Assuntos sobre os que te adverti que te mantivesse a margem.

—Só tentava ajudar. Vi um engano nos livros, e depois da recente visita do MacDougall, soube que tinha que fazer algo.

—Tenho escrivães que me levam os livros. Este não é seu lugar. —Tor tentou falar com doçura—. É minha esposa. E se encontrar algum engano, sua obrigação é me comunicar isso. Tor passeou o olhar por um dos livros de contabilidade, percorrendo com os olhos as colunas perfeitamente alinhadas.

Christina se endireitou com olhar desafiante.

—Não encontrará nenhum engano.

Tor se voltou para olhá-la.

—Tão segura está de ti mesma?

—Muito.

Sustentaram-se no olhar. De repente, um pensamento cruzou pela mente de Tor. Não, ela não teria ousado… teria se atrevido…?

—Que mais estiveste lendo? —perguntou agarrando-a pelo braço—. Estivestes lendo minha correspondência, minha correspondência privada?

Christina afastou os olhos dele, mas a escura mancha de sua bochecha destacou com a intensidade do rubor.

Tor perjurou, esquecendo que estava fazendo um grande esforço por controlar seu mau gênio. Repassou mentalmente as últimas semanas. Somente tinha recebido duas cartas secretas de MacDonald, que tinha guardado em seu sporran e logo tinha queimado. Pensou que tinha sido cuidadoso, embora naqueles momentos não suspeitasse que sua esposa soubesse ler.

O medo se apoderou dele. Quando pensava no perigo que Christina podia correr se de maneira fortuita via algo que não devia…

Como poderia protegê-la se ela não deixava de colocar os narizes em assuntos que não lhe concerniam? Sua mulher tinha cruzado a linha.

—Maldita seja, Christina, dissete que te mantivesse à margem.

*

Desconsolada, Christina sentiu a coceira das lágrimas nos olhos. Aquilo não estava indo como tinha planejado. Tor tinha que estar agradecido, possivelmente mostrar-se impressionado e orgulhoso dela, mas não furioso.

Como seu pai.

Tor não era como seu pai. Era um homem justo. Tor se mostraria agradecido se lhe emprestasse sua ajuda, sem importar sua procedência. Ou não?

«Não te preciso» era o que, a efeitos práticos, havia dito.

Seu rosto perfeitamente cinzelado era tão duro e inexpugnável como o granito.

—Não entendo que te tenhas zangado tanto —disse Christina—. Pensei que assim te agradaria.

Umas linhas brancas sulcaram as comissuras de seus lábios.

—Pensou que me agradaria saber que estiveste lendo minha correspondência privada?

Christina amaldiçoou sua pigmentação clara e a incapacidade de controlar o rubor que lhe acalorava as bochechas. Não havia desculpa alguma. Agora bem, acaso Tor não se dava conta de que ela so queria formar parte de sua vida?

—Só queria saber mais coisas de ti. Saber o que faz durante todo o dia. Por que está sempre tão ocupado. Por que te parte continuamente. —Levantou os olhos para ele e advertiu o duro gesto de sua mandíbula. Não tinha feito o comentário adequado… E isso lhe recordou o que tinha visto na broch. Entretanto, a culpa não era so dela—. Se de vez em quando me contasse algo, não me veria obrigada a recorrer a outros meios para me inteirar.

—Pelos pregos de Cristo! Isto não é um jogo de meninos, é perigoso. Se atuo assim, é para te proteger.

Os olhos de Christina jogavam brasas pela raiva e a humilhação.

—Então deixa de me tratar como a uma menina e me conte o que está passando. —Christina o agarrou pelo braço e o olhou com ar suplicante. Estavam muito perto. O bastante para tocá-lo. Para acariciar sua áspera bochecha e sentir o forte tic de sua mandíbula sob o polegar—. Diga-me do que está tentando me proteger.

Ficaram olhando à luz das velas, ela estendendo a mão, ele retirando-se. Uma dança que pareciam condenados a repetir uma e outra vez.

Salvo que nessa ocasião Tor titubeou. Durante um momento Christina pensou que contaria. Viu-o em seus olhos.

Mas sua força de vontade era férrea, e Tor se soltou dela com cuidado. Christina notou a tensão que irradiava dele na dura contração de seus ombros, a resistência a deixar-se levar pela natural atração que sentiam seus corpos e a rigidez com que se mantinha afastado dela.

—Fica à margem, Christina. À margem dos livros, das cartas. Basta de me seguir, basta de perguntas.

Christina quis chorar de raiva.

—por que tem que te comportar assim?

Tor pareceu confundido.

—Como me comporto?

—Com evasivas. Com obstinação. Nunca me contas nada. Por que não pode confiar em mim? Tanto dano te faria compartilhar seus pensamentos comigo?

Tor endureceu seu olhar.

—Não, mas isso poderia fazer mal a outros.

A acusação a feriu.

—Eu nunca faria nada que pudesse te trair. Esperava que a estas alturas já saberia que podes confiar em mim.

—Não é assim como funcionam as coisas, Christina. Isto é a vida real, não uma história de cavalarias. De verdade acredita que em tão só dois meses teria que lhe confiar isso tudo, mesmo que haja coisas que põem em perigo as vidas de outras pessoas, simplesmente porque é minha esposa? Embora quisesse, meu dever como chefe é me reservar a opinião.

Tor lhe fez sentir-se ridícula, ingênua. Entretanto, não tudo formava parte de seu dever.

—Está seguro de que não se trata so de uma desculpa? É impossível que no clã tudo seja questão de vida ou morte. —Christina se apoiou nele pressionando-se contra seu peito. Sentiu sua fragrância escura e masculina. Recordou o sabor rico e especial de sua pele, a sedosa e cálida pressão de sua boca. O roce intenso e erótico de sua língua—. Que dano pode fazer…?

—Basta - espetou Tor com aspereza largando dela—. É minha mulher. E me obedecerá nisto. Não tenho que te explicar meus motivos. E tampouco me obrigará a fazer sua vontade usando seu corpo. —escureceu o olhar—. Por muito atraente que sejas.

Christina deu um coice como se a escaldasse.

Estava ela fazendo isso? Tapou a boca envergonhada. O fazia, embora sem ser consciente disso.

—Não me tinha dado conta…

Tor pareceu acreditar e suspirou profundamente.

—vim a te dizer que preciso partir.

Christina afogou um grito.

—Partir? Mas se acabar de chegar…

—Retornarei antes da festa do Yule.

Caiu-lhe a alma aos pés.

—Mas isso é dentro de duas semanas… —agora pareciam eternas—. Aonde…? —conteve-se, e ficou olhando seus infranqueáveis olhos. «Dá igual», pensou sabendo que tampouco o diria—. Mas seu irmão acaba de chegar. Não posso acreditar que não me dissesse que são gêmeos.

—Pensei que não era importante - replicou Tor, endurecendo a expressão de seus lábios—. Além disso, Torquil parte amanhã.

Christina abriu uns olhos como pratos.

—por quê?

Tor a olhou com dureza, com olhos inescrutáveis.

—Enviei-o longe.

—Para que?

Estava claro que não desejava lhe dar explicações.

—Por ter raptado a sua mulher e nos deixar a ponto de provocar uma guerra.

—Mas estão apaixonados. Qualquer pode ver. Se tivesse conhecido a Meg…

—Conhecia. Os sentimentos que alberguem não mudam as coisas.

—Não mudam as coisas? —O que acontecia com esse homem? Tratava-se de seu irmão. De seu irmão gêmeo. Como podia não lhe importar sua felicidade?—. Como pode ser tão frio e desumano?

«É frio.»

Não. Christina se negava a acreditar que o que havia sentido com antecedência fossem imaginações. Tor podia parecer um senhor da guerra duro e implacável por fora, mas em seu interior havia muito mais. Era capaz de amar; somente terei que lhe ensinar a abrir o coração.

Sua acusação sortiu efeito. A mandíbula de Tor se contraiu e o tic lhe disparou com força.

—Porque tenho que ser. Centenas de pessoas contam com que eu as proteja, com que tome decisões pelo bem do clã. O que fez meu irmão podia desencadear uma guerra que teria conduzido a morte de dúzias de habitantes de meu povo. Se isso é ser frio, que assim seja.

Christina se retorceu as mãos, sentindo-se fatal. Nunca o tinha considerado dessa maneira. Não era assim como tinham que ir as coisas. A surpresa que queria lhe dar tinha tomado um lado negativo.

—Sinto muito, de verdade. Somente tentava ajudar. Prometo que não voltarei a interferir. Mas não vá assim. —Lhe escapou uma lágrima—. Não pode ficar só esta noite?

A intensidade de seu olhar a deixou perplexa. Tor estava travando uma batalha, embora ela desconhecesse sua natureza.

—Não posso - disse ele com brutalidade.

Sem nenhuma explicação. Sem ternura. Nada. Christina lhe dirigiu um longo olhar interrogativo procurando algum signo de debilidade. Foi inútil. Desviou o olhar ao chão, sentindo-se muito desgraçada.

—Bem. Até que retorne então.

«Que Deus te proteja.»

Tor se dirigiu à porta, e de repente se voltou soltando um juramento como somente tinha ouvido dele uma só vez. Antes de dar-se conta do que estava acontecendo, viu-se envolta em seus braços, pressionada contra o escudo de aço de seu peito, e com sua boca na sua, lhe exigindo um beijo. Um beijo que fez que lhe desbocasse o coração e sentisse mariposas no estômago. Um beijo que a deixou sem fôlego.

Um beijo que terminou muito cedo.

Com um rugido que mais parecia um grunhido, Tor se separou dela. Seus olhos se encontraram, e por um momento Christina captou o brilho da

ternura que com tanto desespero tinha querido ver. E sem mais palavras, Tor se foi.


Capítulo 19

—Vêem algo? —perguntou Tor ao Lamont, embora com a tez curtida pelos elementos, as mechas de cabelo gelados e as grossas peles que lhe protegiam a cabeça e os ombros podia confundir-se com qualquer dos homens.

Lamont, ou o Caçador, como o tinha apelidado MacSorley por sua perícia seguindo rastros, sacudiu a cabeça e entreabriu os olhos para ver bem através da espessa névoa que se levantou o final do dia.

—Não, capitão, nada.

Tor perjurou; a impaciência começava a apoderar-se dele. Estava desejando que terminasse esse exercício de práticas. Não se tratava tão somente do cansaço ou das brutais condições do entorno: não podia livrar-se da intranqüilidade com que havia partido do Dunvegan.

—Sigam olhando, não desapareceu. Estará por aí.

Lachlan MacRuairi era um bastardo escorregadio, e estava demonstrando sua habilidade para entrar e sair sem ser visto. Era o único ao que ainda ninguém tinha encontrado. Até enfrentado à capacidade de rastrear do Lamont, levava quatro dias evitando a captura, quase um mais que MacKay, o único homem que tinha conseguido se esconder duas noites na gelada e inclemente sombra das Black Cuillins. As Black Cuillins, que deviam o nome às escuras rochas ígneas que constituíam seus picos, eram a cordilheira montanhosa mais alta do Skye e a considerava uma das mais imponentes de toda Escócia.

No inverno podiam ser mortais.

No inferno não ardia tudo em chamas, pensou Tor; fazia frio, e muita umidade. Um frio que paralisava as articulações inclusive na luz do dia. Mas as noites… Tor tremeu ao recordar: as noites eram pura agonia. O ar gélido penetrava entre suas volumosas peles e lhe cravava como agulhas de gelo.

Tor sabia que era muito possível que MacRuairi estivesse congelado e sepultado sob um metro de neve recente. A noite anterior tinham tido uma tormenta: uma neve espessa e consistente tinha caído em rajadas, como uma incessante cortina branca, deixando o cerco que havia ao pé da montanha coberto por mais de trinta centímetros de neve e formando umas geleiras de traidora profundidade em alguns setores. No alto da montanha a neve minguava, devido às estreitas cristas e às vertentes rochosas dos topos, e era substituída pelo gelo.

Aquele exercício de treinamento estava desenhado com dois propósitos. As montanhas e o mau tempo eram dois fatores a ter em conta porque os homens enfrentariam a eles durante os dias próximos. Se queriam aplicar com êxito suas táticas piratas em terra firme, precisavam ser capazes de aclimatar-se para sobreviver em quaisquer condição. Tor sabia além que nada unia tanto a um grupo como compartilhar penalidades.

Que a maioria dos homens tivesse resistido bem durante dois dias nesse entorno hostil era incomum. A provocação se desenhara para que fora virtualmente impossível de superar: esconder-se em algum ponto entre os três lagos situados entre o Sgurr e Lagain, «o pico do pequeno terreno baixo», o topo mais alto da cordilheira, durante sete noites sem ser descoberto. E era uma façanha considerável, porque o terreno nu e rochoso mal oferecia rincões onde manter-se coberto ou proteger-se. A maioria dos homens que Tor tinha conduzido a esse lugar tinham resistido tão somente umas horas, uma noite no máximo. Tor conhecia todas as covas, e inclusive no caso de que alguém pudesse arrumar-se reunindo suficiente turva ou madeira para acender um fogo, isso lhe prejudicaria porque seria facilmente visto.

Tinha dado aos homens da guarda uma hora de vantagem e logo os tinha ido caçando um a um. Os homens localizados passavam a incorporar-se ao grupo de caçadores até que, como então, somente ficava um.

Tor contemplou aos temíveis guerreiros que o rodeavam, convertidos agora em um grupo asqueroso e de aspecto lamentável.

—Abertos em leque - ordenou que—. Subiremos à cúpula desde todas as direções e desse modo o obrigaremos a sair.

Se MacRuairi estava vivo, encontrariam-no.

E o estava. Em algum lugar, vigiando-os. Sentia-o. Era como se ambos estivessem travando uma batalha particular de estratégias: a do caçador e a presa. Chefe contra chefe. Líder contra discípulo ressentido. Em outra situação teria desfrutado do desafio, mas nesse momento queria acabar com aquilo de uma vez por todas.

Dispôs à maioria de seus homens em vários grupos distanciados aproximadamente entre si ao pé da montanha. Campbell, MacKay, Lamont e ele subiriam pela crista principal do topo entre todas as vertentes possíveis.

Iniciaram a ascensão pisando metodicamente o caminho para o alto da montanha. Tor tinha empreendido a rota mais difícil, a que arrancava do sudeste e exigia escalar por um pronunciado e escarpado ravina.

Pouco depois se deteve para recuperar o fôlego sobre uma estreita e pedregosa crista no alto da ladeira. Com a mão em modo de escudo, Tor escrutinou os picos ocultos entre a névoa em busca de algum sinal de movimento ou incongruência na paisagem.

Nada. Tanta quietude parecia fantasmagórica. Quão único pôde ver através da névoa foram retalhos de rochas negras engalanadas com finas faixas brancas. Depois de um gole energizante de uisge-beatha, reatou a extenuante ascensão da montanha. Movendo-se com a graça ligeira e o passo seguro de um puma, hábil e rápido, escalou o terreno traidor com uma facilidade ganha com um árduo treinamento.

Estar em boa forma física, entretanto, não lhe impedia de ser imune às forças da natureza. Mal sentia as pontas dos dedos sob as grossas luvas de couro, ou os dedos dos pés nas botas envoltos com peles de animais. Tinha a pele dos lábios e as bochechas que o elmo não cobria avermelhada pelo frio, a mandíbula sem barbear acusava o peso do gelo e os músculos lhe doíam pelo desgaste que tinha quatro dias subindo e descendo pelas montanhas em busca de um fantasma.

Se fosse qualquer outro, Tor teria posto fim à provocação. Mas se havia um homem que pudesse sobreviver nessas condições era o bastardo do MacRuairi, um homem de sangue-frio; somente o diabo sabia cuidar tão bem de si mesmo.

Não obstante, e com toda a reticência do mundo, Tor teve que admitir que seu inimigo, convertido temporalmente em seu irmão de armas, tinha-o impressionado durante essas últimas semanas. Lachlan MacRuairi era um guerreiro preparado e temerário que assumia todos os obstáculos que Tor punha em seu caminho, e eram muitos, com uma determinação e uma coragem incomparaveis. MacRuairi encarnava o único lema que Tor respeitava: Não abandone nunca, não te renda jamais.

Agora bem, embora parecesse um guerreiro perfeitamente preparado e predisposto, Tor não confiava nele. MacRuairi era como uma serpente adormecida que aguardava para atacar. Tinha a alma de um mercenário, e a única lealdade que observava era para consigo mesmo. Nunca poderia integrar-se plenamente em uma equipe. Por que tinha aceitado a lutar pelos Bruce? Por dinheiro, por vingança, por um desejo de morte ou seguindo um arrevesado plano que lhe permitisse sair de tudo aquilo em louvor de multidões?

Tor adivinhava os propósitos da maioria de seus homens, mas MacRuairi era um buraco negro impossível de penetrar. Possivelmente isso era o que lhe preocupava. Era difícil compreender a um inimigo…, irmão, retificou, quando não se sabia quais eram os motivos que o impulsionavam.

Onde diabos estava?

A inédita impaciência de Tor não só se devia ao frio ou à ânsia de ganhar no MacRuairi, mas também ao desejo de terminar o trabalho que se propusera para poder retornar a Dunvegan. Não ao castelo, a não ser com sua mulher.

Maldição, sentia falta dela. Seu rosto lhe aparecia por todo lado. Inclusive no alto dos rochosos topos da poderosa Cuillin, Christina o espreitava. Possivelmente fora devido à absoluta desolação do entorno, ao agreste e amargo isolamento, que lhe trazia sua lembrança. Christina era uma presença cálida e liviana para um homem que levava muito tempo vivendo em terra erma. Já começava a parecer-se com um desses personagens das histórias de cavalaria que a ela tanto gostava.

Ao chegar ao alto da estreita crista que havia justo debaixo da cúpula, Tor voltou a escrutinar a montanha a tênue luz do dia e viu em frente ao Campbell, quem tinha subido por uma rota teoricamente mais fácil, um monte de rochas alisadas pela erosão. Tor fez sinais com a mão para comprovar a outra vertente do pico antes de seguir adiante e para assegurar-se de que não deixava nem um claro por cobrir.

Não gostava de passar outra noite na montanha, mas o tempo lhe jogava em cima. Logo escureceria.

Christina estaria sentada junto à chaminé com seu trabalho…

Aquilo tinha que terminar. Não podia concentrar-se. Seus pensamentos voavam para sua mulher. Christina o tinha posto na incerteza. Não podia deixar de reviver mentalmente a cena que se desenrolara entre os dois em seus aposentos antes de sua partida. A excitação de Christina. O assombro inicial dele ao inteirar-se de que sua mulher tinha estudo, e logo sua cólera, desatada pelo medo, ao deduzir que ela tinha lido sua correspondência privada. Tor não podia tirar do pensamento a lembrança de sua expressão abatida e de seus doídos olhos, alagados de lágrimas.

Por alguma razão as contas eram importantes para ela, e sua reação a tinha decepcionado muitíssimo. O medo era o que tinha provocado nele sua atitude arruda. Deu-se conta nesse momento. Por muito equivocadas que fossem suas intenções, Christina só pretendia ajudá-lo. Estava ansiosa por surpreendê-lo, e o único que a ele tinha ocorrido era que a iniciativa de ajudá-lo poderia pô-la em perigo.

Pior ainda, esteve quase a ponto de lhe contar suas razões. E se tivesse ficado, o teria feito com toda segurança. Contenção. Resistência. Ambas as qualidades pareciam lhe abandonar quando entrava em cena sua encantadora esposa. Seu desesperado beijo de despedida o tinha demonstrado.

Louco por ela? Completamente louco. Levava a essa mulher no sangue, nos ossos, e não sabia o que fazer. Se não se andasse com cuidado, terminaria convertendo-se em um estúpido como seu irmão, que atuava em função das emoções em lugar de sopesar o que era melhor para o clã. Que tipo de líder seria se dançava ao som dos caprichos de uma mulher?

Quase tinha escurecido quando começou a descer. Ao não estar concentrado como devia, deu um mau passo e escorregou lançando uma placa de gelo ladeira abaixo que, na pronunciada costa, desencadeou uma pequena avalanche de rochas e neve. Recuperou o equilíbrio sem problemas, mas se reprovou o lapso. Mais valia concentrar-se no que estava fazendo se não quisesse terminar morto.

E então o viu.

Aos pés da pronunciado ravina, a uns cento e cinqüenta metros de altura, sepultado quase por completo sob a neve, havia a carcaça de um cervo. Situada não no cerco como deveria, se o animal tivesse morrido despencado, a não ser em uma estreita crista.

Isso era obra do MacRuairi. A pequena avalanche tinha posto ao descoberto seu esconderijo.

Tor sentiu que lhe bulia o sangue com o instinto do caçador que acaba de avistar sua presa. Com renovadas energias, começou a deslizar-se costa abaixo. Havia suficiente luz para orientar-se.

Ao aproximar-se de uma estreita saliencia rochosa, diminui a marcha e apoiou os pés com cuidado, centrando todos seus sentidos no terreno.

Tinha avançado uns passos quando aconteceu a catástrofe.

O chão a cedeu sob seus pés. Tor escorregou. Deu com o corpo contra uma rocha, de cara, e começou a deslizar-se pela saliencia. Lutou por agarrar-se a algo, mas a neve e a rocha caíam com ele precipitando-o abruptamente para a borda da ravina.

Ia muito depressa. O vento era ensurdecedor. Tentou agarrar-se onde fosse com ambas as mãos e medindo com os pés. A velocidade ia lançá-lo de costas ao ar quando seu corpo impactou contra uma rocha recortada que reduziu sua marcha, então Tor conseguiu colocar os dedos em uma greta que achou na vertente rochosa.

Mediu com os pés o muro de rocha, mas não encontrou nenhum ponto de apoio. Com o coração desbocado, tentou impulsionar-se para cima, mas foi inútil. A lisa parede de rocha e gelo não teve piedade dele.

Tor pendurava sobre o vazio agarrando-se com as mãos, com o corpo maltratado pela queda e provido com as pesadas armas que tinha atadas à costas. Não se atrevia a soltar uma mão para tirar-lhe ou alcançar a corda que levava em um lado, porque se se movesse, era homem morto.

E a menos que acontecesse um milagre, assim terminaria provavelmente ao cabo de uns minutos.

Escorregavam-lhe os dedos. As luvas de couro que levava eram tão escorregadias como a pele de uma enguia e não ofereciam resistência.

Movendo-se o menos possível, voltou a cabeça na direção em que tinha visto Campbell por última vez. Gritou na escuridão, mas tão somente ouviu o sufocado eco de sua própria voz reverberando em seus ouvidos.

Diabos. Sempre tinha pensado que morreria no campo de batalha, não despencando-se por uma ravina.

Ardiam-lhe os braços, e o peso de seu corpo o puxava para baixo. Apertou os dentes, lutando por sustentar-se. Não temia à morte, mas tampouco estava disposto a morrer.

De repente notou que algo lhe golpeava na mão. Ao princípio pensou que se tratava de uma rocha, mas então se deu conta de que era uma corda.

Uma voz imaterial gritou de acima:

—Agarrem, subirei-te.

MacRuairi. Se a situação não fosse tão extrema, teria se rido. Lachlan MacRuairi estaria mais disposto a enviá-lo ao inferno que a salvá-lo.

—Como sei que não soltaras a corda quando a agarrar?

Durante um momento só se ouviu o silêncio.

—Não sabes. Mas de onde estou não me parece que tenhas outra escolha.

Tor perjurou. MacRuairi tinha razão. Ia contra seu instinto, contra todo seu ser, mas tinha que confiar nessa víbora de sombrias intenções.

—Estás preparado? —gritou Tor.

—Sim.

Tomando uma baforada de ar, Tor soltou uma mão e se agarrou à corda.

Sustentou-o.

Temendo ainda debater-se no ar, soltou a outra mão e se agarrou à corda com os dedos. A operação levou um quarto de hora, mas lentamente e com muitíssimo esforço Tor foi içado pelo ravina. A uns metros da crista, MacRuairi atou a corda à rocha que tinha usado para içá-lo e lhe estendeu a mão.

Seus olhos se encontraram na escuridão. Sem titubear, Tor soltou a corda de salvamento e com a mão direita agarrou o braço e o antebraço do MacRuairi. Uns segundos depois seus pés descansavam sobre terra firme.

Tor se dobrou para frente tentando recuperar o fôlego e deixando que o sangue voltasse para circular por seus braços. A cabeça dava voltas em todas as direções. Endireitou-se e seu olhar se encontrou com o de seu salvador. Malvado. Implacável. Animado pelos princípios morais com que se regeria uma serpente. Mais predisposto a lhe fatiar o pescoço que a lhe salvar a pele. Enfrentaram-se em muitas batalhas para que Tor duvidasse de que MacRuairi não desejava sua morte.

—por quê? —perguntou.

MacRuairi deu de ombros como se a resposta carecesse de importância.

—Agora já não lhe devo nada.

Por lhe haver perdoado a vida no Finlaggan. Tor assentiu, embora soubesse que as coisas não seriam tão singelas. A razão de que Lachlan MacRuairi se encontrasse ali poderia ser mais complexa do que supunha. MacRuairi em pessoa podia ser mais complexo do que supunha. Tinha os nervos crispados. Levava tanto momento vendo tudo negro que espionar um retalho de cinza foi uma emoção.

Entretanto, uma coisa sim sabia com segurança: Tor devia a vida ao Lachlan MacRuairi.

*

Ao ser os dias tão curtos (o sol nessa época não se levantava até quase as nove para se por pouco menos que sete horas depois), o tempo deveria ter transcorrido com rapidez, mas as horas pareciam um canto fúnebre: lentas, monótonas e cadenciosas.

Nem sequer tinha passado uma semana, e, entretanto parecia que fazia um mês que Tor tinha partido. Apesar de que esteve fora em outras ocasiões, essa era a vez que Christina levava mais tempo sem vê-lo, e a paciência, como virtude, estava esquiva.

Tinha sido uma parva. Estar casada com um cavalheiro não consistia em encher os dias com excitantes torneios, contemplá-lo nas justas com seu véu pendurando da manga e passar longas noites abraçados diante da chaminé enquanto ele compunha um poema sobre seu amor por ela. Consistia em agüentar meses, possivelmente inclusive anos, de guerra e solidão.

Não havia nada romântico no fato de ficar sozinha, inquieta e preocupada. Correria perigo? Tor tinha negado a dizer seu paradeiro, e Christina ignorava se se encontraria a salvo. Entretanto, ao ter deixado todo seu corpo de guarda no castelo, suspeitava que não tivesse ido combater e que em lugar disso estaria em algum lugar com os homens aos que o tinha visto treinar.

Quais eram?

Não cedeu à curiosidade e afastou essa idéia de seu pensamento recordando perfeitamente sua advertência. Não tinha por que preocupar-se. Não era problema dela. Não era seu lugar.

Por conseguinte, Christina atendia seus deveres como a senhora do castelo e ajudava ao irmão John quando Rhuairi não andava perto, procurando não ler nenhum dos documentos que desfilavam ante seus olhos. Agora bem, até contando com os preparativos da festa do Yule, era curioso que tivesse tão poucas coisas que fazer atrás dessas muralhas do castelo que bem pareciam masmorras. O barmkin pelo que passeava pela manhã tinha começado a lhe parecer uma jaula.

E agora nem sequer tinha os livros de contabilidade para manter-se ocupada. Esteve tão segura de que funcionaria, de que organizar suas contas seria a maneira de demonstrar que podia formar parte de sua vida… Possivelmente essa certeza fora o que a tinha decepcionado mais.

Admiração… respeito… orgulho? Dificilmente. As tentativas de o impressionar com suas habilidades tinham fracassado tão estrepitosamente como com seu pai.

Enfurecia-lhe o modo em que Tor tinha reagido, ao princípio com ar protetor e logo com um ataque de raiva. Possivelmente ela se excedera lendo as cartas, mas o que queria que fizesse? Do que outra maneira podia chegar a ele? Tinha-lhe mostrado tudo o que tinha que lhe oferecer… mas não tinha sido suficiente.

Ali não havia um lugar para ela. Nem na vida de seu marido nem em seu coração. Se seria assim a partir de então, não seria capaz de suportar.

Durante um tempo acariciou a idéia de partir. Entretanto seguia albergando esperanças. Fazia depender sua felicidade de um beijo, ao que se aferrava pela breve fresta de ternura que tinha visto nele, a primeira greta em sua pétrea fachada.

Era parva por dar tanta importância a um beijo?

Christina atou a capa ao pescoço, fechou a porta atrás dela e se enfiou no corredor até tropeçar virtualmente com o irmão John, que saía dos aposentos particulares de Tor.

O clérigo se sobressaltou e demorou uns instantes em recuperar-se. Ao ver que Christina levava a capa, perguntou:

—Aonde vai esta manhã, milady?

—Tinha pensado ir ao povoado. O filho mais novo do curtidor está doente e a cozinheira preparou um caldo de frango que levarei. —Ao ver que ele também se vestira para resistir as inclemências do tempo, perguntou por sua vez—: E você?

—Ao povoado também - respondeu o irmão John franzindo o cenho—. Estais segura de que é prudente sair do castelo, minha senhora? Dizem que a febre se contagia. Possivelmente seria melhor que esperasses que retornasse o chefe; tem que voltar um dia destes.

O amalucado coração de Christina deu um tombo.

—Têm notícias dele?

O escrivão sacudiu a cabeça.

—Não, mas tenho entendido que o senhor estaria fora tão somente uns dias…

—Uns dias não - esclareceu ela com ar taciturno—, duas semanas.

O irmão John a olhou surpreso.

—Ah, compreendo. Possivelmente interpretei mal ao senescal.

Christina não se surpreendeu; ultimamente Rhuairi se mostrara muito pouco comunicativo. Tinha-a estado vigiando com um olhar estranho. Tor não a tinha proibido ajudar ao irmão John, mas Christina caiu na conta de que seu marido não tinha falado com o escrivão, e se perguntava se este estaria informado do que ela tinha feito. O irmão John a contemplava com atenção.

—Não acredito que o chefe goste que te ponhas em perigo.

Christina torceu o gesto. Que tentasse protestar «o chefe»! Assistir aos habitantes do povoado era seu dever como senhora do castelo. E Tor tinha deixado muito claro qual era seu lugar.

—Valorizo seu interesse, mas o risco é insignificante. A febre parece leve. —Christina dedicou um sorriso cúmplice—. Além disso, se ficar um dia mais encerrada atrás destes muros, acredito que ficarei louca.

O irmão John devolveu o sorriso.

—Entendo perfeitamente. Importaria se te acompanho? Se aguardares um momento, irei procurar uma coisa que esqueci nos aposentos do senhor.

—eu adorarei contar com sua companhia. Reunimo-nos na porta de entrada? Tenho que ir recolher a panela com o caldo que preparou a cozinheira.

Christina se alegrou de poder contar com sua companhia. A princípio o irmão John lhe pareceu curiosamente angustiado, mas quando este retornou, a angústia tinha desaparecido de seu rosto. O amanuense passou todo o dia com ela visitando não só ao filho do curtidor, mas também a vários meninos que tinham caído doentes. A cozinheira tinha dado caldo para alimentar a um exército, e não foi desperdiçado. Além disso, Christina deu aos meninos os últimos figos que restavam, e que tão apreciados eram para ela, para quando se restabelecessem.

Vários soldados da guarda de seu marido insistiram em acompanhá-la. Ao princípio Christina não acreditou ser necessário, mas logo agradeceu seu amparo. No momento em que saiu pelas portas do castelo, acusou vivamente a ausência de seu marido. Não tinha dado conta até então da segurança que lhe transmitia. Sem o escudo protetor de sua presença, de repente lhe pareceu que o mundo não pressagiava nada bom. Era absurdo, sim, e sabia. Não temia um possível ataque, ao menos durante o dia, mas a lembrança da visita do MacDougall seguia fresco em sua memória.

Entretanto, Tor tinha tomado precauções e tinha posto um guarda permanente no povoado.

Em qualquer caso, a satisfação de ter feito algo útil a compensou com acréscimo de qualquer temor que pudesse sentir. Enquanto retornava ao castelo no birlinn junto ao irmão John, sentiu-se feliz de ter ido ao povo e prometeu que voltaria a fazê-lo nos próximos dias.

Anoitecia, e a névoa descia à medida que se aproximavam do embarcadouro que havia junto à grade de saída para mar. Quando estavam a poucos passos de distância, Christina vu outra embarcação amarrada.

Deu-lhe um calafrio ao ver o falcão de temível aspecto que aparecia esculpido na proa.

—Reconhecem o navio? —perguntou ao escrivão.

—Não, nunca o tinha visto - respondeu ele sacudindo a cabeça.

Os guardas de Tor não pareciam preocupados.

O navio parecia estar a ponto de zarpar. Havia dois homens no molhe. Um deles era Rhuairi. O outro lhe entregou algo, saltou como uma centelha a bordo e largou as amarras. O irmão John também se fixou na operação.

—Possivelmente somente seja um mensageiro - sugeriu.

Christina relaxou um pouco pensando que provavelmente teria razão. Embora até que o navio se afastou não soltou um suspiro de alívio.

Rhuairi foi a seu encontro quando desembarcaram e estendeu a mão a Christina para ajudá-la a baixar.

—Passastes um bom dia, milady?

—Sim - respondeu ela—. Muito bom. Este que acaba de partir era um mensageiro?

Rhuairi lhe dirigiu um olhar inexpressivo.

—Não, minha senhora. Somente alguns homens dos clãs da região que queriam ver o chefe.

Christina cruzou olhar com o irmão John. Homens dos clãs da região? Esses homens eram guerreiros.

E só recordou o estranho intercâmbio momentos depois.

*

Várias horas depois de quase despencado, Tor se sentava com as costas apoiada em uma rocha baixa e lisa e as pernas estendidas frente às resplandecentes brasas da fogueira enquanto escutava discutir os guerreiros. A situação o relaxava curiosamente. Estava cômodo, porque era previsível. Era como quando, de pequenos, brigava com seus irmãos dando voltas ao assoalho. Como sempre, conversavam da guerra que se abatia entre Escócia e Inglaterra, e do momento, se é que existia a possibilidade, de que Bruce movesse a sua peça no tabuleiro.

Devia ser perto de meia-noite, e pensando no que tinha planejado para o dia seguinte, teria que estar deitado já. Entretanto, seguia muito inquieto pelo acontecido horas antes para poder dormir.

Quando os homens viram que MacRuairi e ele retornavam colina abaixo, deram por certo que era Tor quem o tinha encontrado. MacRuairi, um homem cheio de surpresas, não tentou desenganá-los, mas sim foi Tor quem explicou brevemente o que tinha acontecido. Os homens ficaram tão surpresos como ele, possivelmente exceção de Gordon. MacRuairi se mantinha à margem, e à maioria dos homens parecia bem essa atitude. Entretanto, Gordon, o jovem e sociável alquimista, parecia não perceber a ameaçadora nuvem que se abatia sobre o MacRuairi e ambos tinham travado uma espécie de amizade, se podia chamar-se amizade ao feito de que Gordon falasse e MacRuairi escutasse.

A profunda voz do MacLean interrompeu o fio de seus pensamentos.

—O erro do Wallace foi pensar que podia repetir o êxito que teve no Stirling Bridge e vencer a Eduardo em uma batalha campal, enfrentando dois exércitos. Deveria ter seguido atacando de surpresa; essa era a força de sua liderança. Depois de perder no Falkirk, era um homem acabado. Somente sua estratégia de terra queimada impediu que Eduardo se apropriasse da Escócia naquele momento.

Quanto mais Tor escutava ao MacLean, mais valorizava a mente tão clara que tinha para organizar táticas e estratégias militares. E sua intenção adiante era aproveitar esse talento. Embora, retificou, seria MacSorley quem o aproveitaria.

—Vocês não estiveram ali - reprovou Boyd, encolerizado. O bravo patriota não tolerava que se criticasse ao Wallace porque tinha lutado junto a ele durante anos—. Não foi Wallace o traidor, senão os Comyn, que nos fizeram perder no Falkirk ao retirarem-se e abandonar à mercê dos arqueiros de Eduardo os nossos lançadores formados em falange escocesa.

MacRuairi em geral evitava falar de política, mas gostava de jogar lenha ao fogo entre o Seton e Boyd, embora sua ajuda fosse desnecessária.

—Sir Dragão, parece que têm algo que dizer - comentou utilizando o apelido pelo que o conheciam e que se referia ao brasão que Seton insistia em levar em seu tabardo.

Seton apertou a mandíbula.

—Não é um dragão, maldito bárbaro, é um guiverno29 — lhe espetou com guelra. MacRuairi sabia perfeitamente de que animal se tratava—. Wallace perdeu porque não foi capaz de controlar seus homens na batalha campal. Sabia provocar incêndios e atacar de noite, mas o que Falkirk nos demonstrou foi que uma infantaria desorganizada e indisciplinada, por mais valente que seja, não pode enfrentar a cavalheiros treinados.

Boyd tinha o aspecto de querer arrancar a cabeça do jovem inglês, mas depois da recente catástrofe do lago não queria dar rédea solta à raiva que lhe inspirava seu colega.

—Se isso for o que pensam, por que demônios estais aqui?

Seton o olhou com um desprezo altivo.

—Bruce é meu suserano.

—E seu suserano é o rei Eduardo -assinalou Boyd—. Não deverias estar lutando para ele?

Seton avermelhou de raiva.

—por que vocês estão aqui? Não faz muito tempo lutavam no lado do Comyn.

—Lutei no lado do Leão - protestou Boyd entre dentes, referindo-se ao símbolo escocês da realeza—. Sempre pela Escócia, e agora é Robert de Bruce quem a representa. Antes verei você no trono que ao Comyn. Esse perdeu o direito à coroa quando desertou e nos abandonou no campo de batalha.

Com ânimo de aliviar a tensão, MacLean interveio.

—Bruce aprendeu com os erros do Wallace. Que estejamos aqui dá fé disso. Não se enfrentará a Eduardo com os exércitos até que esteja preparado. E Bruce é um cavalheiro, um dos melhores da Cristandade. Quando chegar o momento, saberá como comandar um exército.

Seton se dirigiu ao MacRuairi para lhe fazer compreender que tinha captado que era ele quem tinha provocado a discussão.

—E você? Por que estás aqui? Por algum assunto nobre como encher suas arcas? —perguntou-lhe com uma gargalhada zombadora sem preocupar-se de dissimular seu desprezo.

A expressão do MacRuairi era inescrutável.

—Certamente não arriscaria a pele por um pouco tão efêmero como o patriotismo ou o dever. O que pode haver melhor que a riqueza?

Tinha respondido com muita naturalidade, mas Tor compreendeu que não estava dizendo a verdade. Ao menos, toda a verdade.

—E por uma mulher? —interveio MacSorley sorrindo ao Tor—. Não me ocorre um motivo melhor para arriscar a pele que a promessa de uma doce moça em minha cama.

—Te está cansando a mão, MacSorley? —perguntou Lamont com brutalidade.

O enorme escandinavo sacudiu a cabeça com desconsolo.

—Como seguimos assim durante mais semanas terei que fazer proposições.

Os homens riram a gargalhadas. Praticamente surto da necessidade. A guerra e os deslocamentos às vezes os obrigavam a passar várias semanas sem mulheres.

—Quando terminarmos com isto, farei uma parada no Mull porque ali me espera uma jovem muito fogosa, com as maiores e doces tetas do mundo. Uma pele branca como o leite, perfeita. Uns mamilos de um rosa muito claro e do tamanho de duas pérolazinhas. —MacSorley sorriu, nostálgico—. Um vento favorável, a pança cheia e uma garota bonita. Não é preciso de grandes coisas para me fazer feliz.

MacSorley tinha adotado a atitude de despreocupação que o fazia tão popular e eficaz na hora de aliviar a tensão nas filas. Era a atitude que também adotava no campo de batalha. Tor recordou seu assombro ao ver sorrir ao grande viking enquanto brandia sobre ele sua terrível tocha de guerra no fragor da batalha.

Entretanto, Tor não confundia a afabilidade do MacSorley por debilidade ou tibieza. Detrás daquele sorriso se escondia um homem de aço. Somente em uma ocasião lhe tinha visto perder esse sorriso pícaro, e tinha sido algo digno de ver. Alguns diziam dele que era frio e desumano.

—Casara-te com a garota, MacSorley? —perguntou Seton.

O viking virtualmente se afogou com um gole do cuirm que estava tomando.

—Pelo sangue de Cristo! Pode saber-se por que teria que cometer essa barbaridade? A diferença de nosso santo padroeiro, esse daí - disse assinalando ao MacKay—, vocês acreditam que me conformarei com um único par de tetas, por muito tentadoras que sejam, para toda a vida? —E deu de ombros—. Além disso, não quereria privar às outras garotas dos benefícios de minha experiência.

—Que se lasque, MacSorley - grunhiu o áspero escocês das Highlands.

Contrariamente ao resto dos homens, MacKay nunca falava de mulheres. E esse rasgo avivava a curiosidade do MacSorley quem, ao não vê-la satisfeita, indevidamente seguia cravando-o.

—Isso é o mais romântico que o ouvi dizer desde que estão aqui - se burlou MacSorley—. Entre você e MacLean, é difícil dizer quem dos dois vai ser monge.

MacLean estava recém casado; entretanto permaneceu em silêncio quando surgiu o tema. Por uma boa razão: casou-se com uma MacDowell, parente dos MacDougall e dos Comyn.

—Nunca falas de sua prometida, Gordon - disse Seton desviando a atenção do MacLean.

Gordon deu de ombros.

—Não há muito que dizer, apenas a conheço.

—Quem é? —perguntou Seton.

Gordon titubeou.

—Helen, a filha do William de Moray, conde de Sutherland.

Tor estava olhando ao MacKay no momento em que Gordon anunciou a nova, e viu o assombro e a dor pintar-se em seu rosto antes que pudesse dissimulá-los. Gordon deve ter interpretado também a expressão de seu amigo, porque Tor viu o olhar de silenciosa desculpa que lhe dirigiu.

Tor compreendeu por que Gordon não havia dito nada até então. Inflamadas brigas dos MacKay com o clã dos Sutherland eram muito conhecidas, mas Tor se perguntou se não haveria algo mais.

A conversação derivou de novo para a política e o momento em que seriam chamados as armas. Tor agradeceu a mudança de tema, porque sabia que o viking não demoraria muito em voltar a açulá-lo. E ele quão último desejava falar era de sua mulher. Tinha um trabalho que fazer, e só quando o tivesse terminado arrumaria as coisas entre eles. Não lhe faria nenhum bem dar voltas e mais voltas as coisas que não podia mudar. Entretanto, preocupava-lhe o modo em que se despediu de Christina. Prometeu-se que a compensaria da rudeza quando retornasse.

Voltou a recordar a cena recente na montanha. MacRuairi estava sentado um pouco afastado do grupo, envolto na escuridão, passando a pedra de afiar pela folha de uma de suas espadas.

Tor ficou em pé e foi sentar se junto a ele. Ao cabo de um momento, disselhe:

—Não foram vocês… Refiro aos últimos ataques por surpresa que sofremos no Skye.

MacRuairi não se incomodou em levantar o olhar, mas sim seguiu afiando a folha com a pedra.

—Tinha a impressão de que tínhamos combinado uma trégua.

—Não é a primeira vez que me encontro no outro lado de uma de suas «tréguas».

Se MacRuairi se ofendeu, não o deixou entrever, mas sim deixou de afiar sua espada.

—É certo, mas agora somos da mesma família. —Sorriu ao ver a careta de Tor—. Quem acreditas que pode ter sido?

A expressão de Tor era séria.

—Não sei. Possivelmente Nicolson, embora MacDonald me assegurasse que ultimamente se acha calmo.

—Melhor que os ataques não foram dirigidos contra você, mas sim tão somente fostes um objetivo propício.

Tor franziu o cenho.

—Sim, é possível.

Entretanto, os ataques não pareciam produto do azar, a não ser algo pessoal. Não só tinham consistido em capturar o gado e roubar as colheitas; seu povo também esteve no ponto do alvo. Por essa razão, entre outras, tinha suspeitado do MacRuairi.

—Quando foi o último?

—Quando me encontrava no Finlaggan.

—E o anterior? Também tinham te ausentado?

Tor negou com a cabeça, mas então recordou.

—Teria que estar fora, mas no último momento troquei de planos.

MacRuairi o observou com ar pensativo.

—Sem dar tempo a que alguém recebesse uma carta anunciando a mudança?

—Sim - coincidiu Tor ao compreender o que MacRuairi estava sugerindo—. Acredita ser possível que alguém esteja me espiando - disse cansativamente. Seu instinto se rebelava ante essa idéia. Conhecia seus homens.

MacRuairi deu de ombros.

—É uma possibilidade.

Por muito que a Tor desgostasse pensar que entre seu povo havia alguém que pudesse traí-lo, MacRuairi tinha razão. Devia considerar essa opção. Quem podia estar tão zangado com ele para tomar-se tantas moléstias? Nicolson, sem dúvida. E a julgar pelos ataques mais recentes, teria que acrescentar o nome do MacDougall à lista.

Se alguém o estava espiando…

Soltou um suspiro. Seu primeiro pensamento voou para Christina. Obrigou-se a fazer caso omisso de uma pontada que somente podia interpretar como pânico. Ela estava a salvo. Ninguém podia introduzir-se no castelo; Dunvegan era impenetrável.

—Quem sabe quanto tempo estaras fora? —perguntou MacRuairi lhe lendo o pensamento.

—Muita gente - respondeu Tor, ficando em pé de um salto e esquecendo o cansaço—. Se partirmos agora mesmo, poderemos chegar ali antes de meio-dia.

*

O irmão John se estava convertendo em uma enfermeira extremamente protetora.

—Hoje não, minha senhora. Indo amanhã é suficiente. Os meninos se encontram melhor e você perdoe que lhe diga isso, parecem cansada.

Estava cansada em realidade. Quando estava por vir a menstruação, como sempre, sentia uns espasmos dolorosos e tinha enxaqueca. Agora não ia explicar lhe isso a um clérigo.

—Estou bem, e não vou perder um dia tão bonito. Esqueci já o aspecto que tem o sol. Vamos, não demoraremos muito em voltar.

Entretanto, Christina se equivocara. Os meninos se encontravam muito melhor e tinham decidido entretê-la com uma canção e uma dança dedicada especialmente a ela. Era quase meio-dia quando pôde embarcar com o irmão John na galera que os levaria de retorno ao castelo.

—Mais devagar, irmão John - disse ela rindo-se—. Jamais o tinha visto caminhar tão depressa.

O escrivão sorriu.

—Ah, sim? Sinto muito, minha senhora. Deve ser a fome.

—depois dos bolos que comestes?

—Tenho debilidade pelas ameixas - confessou ele, ruborizando-se.

—Eu também. Que delícia as comer quando a temporada está já tão avançada!

De repente, o irmão John se parou em seco.

—ouvistes isso?

—Ouvir o que…?

Sua pergunta se viu interrompida pelo som distante de uma corneta. Ficou lívida. Olhou ao amanuense e, refletido em seu olhar, viu seu próprio pânico.

—O que foi isso? —perguntou ao Colyne, um dos guardas do séquito.

Embora adivinhasse a resposta, não por isso lhe impactou menos ouvi-la.

—É uma advertência do castelo, milady - esclareceu o irmão John com expressão sombria—. Atacam-nos.


Capítulo 20


Tor viu as primeiras colunas de fumaça procedentes do povoado desde de um quilômetro de distância, justo quando Campbell e MacGregor retornavam com seu relatório.

Sua expressão era lúgubre.

—Ao menos há uns cento e cinqüenta homens, quase todos mercenários, isso parece -disse Campbell—. Contei quatro galeras de guerra no molhe, mas acredito que no castelo deve haver mais para impedir que os homens que ficam dentro possam chegar ao povoado.

«Ela está a salvo», recordou-se. Obrigou-se a controlar a mente sabendo que não podia permitir distrações. Mercenários, havia dito Campbell. Aquilo não era um ataque surpresa, a não ser uma guerra a grande escala. Tinha destcado um corpo de guarda para proteger o povoado, mas seus homens eram superados com acréscimo pelas forças inimizades.

—Quantos feridos?

—Várias dúzias - respondeu MacGregor—. Quase todos inimigos. Dois dos seus homens. Seus guardas formaram um muro protetor para assegurar o passo do molhe até o povoado.

Tor assentiu, nada surpreso. Seus homens estavam bem treinados, acostumados a enfrentar-se com forças superiores a eles. Era uma de suas táticas favoritas. Como o rei Leônidas fizera na batalha das Termópilas, tinham escolhido lutar na parte mais estreita do povoado para rebater a vantagem numérica de seus inimigos. Durante um tempo. Mas não poderiam resistir eternamente com tão poucas probabilidades de ganhar. E a semelhança do mesmo destino fatal dos trezentos espartanos que resistiram no passo das Termópilas, havia mais de um caminho para acessar ao povo.

—E entre as pessoas do povoado? —perguntou Tor.

Ao MacGregor lhe quebrou a voz.

—Três homens, uma mulher e um menino pelo que pude comprovar. Outros devem ter encontrado algum refúgio, mas o inimigo atua sem piedade.

Tor fechou os punhos com uma raiva mal contida. Dirimiria a cólera que sentia nascer nele com a acerada espada da justiça. Fossem quem fosse seus inimigos, pagariam pelo que tinham feito.

Tor não era o único ansioso por lutar. Apesar da equipe ter percorrido vários quilômetros de terreno escarpado durante toda a noite, as notícias do Campbell e MacGregor causaram o impacto de um raio. Nada estimulava tanto a um guerreiro como a promessa da batalha. E esses guerreiros levavam muito tempo contendo-se.

Entretanto, não era essa sua guerra.

Os homens se reuniram em torno dele no arvoredo. A pesar do rigoroso treinamento que tinham suportado na semana anterior e de ter caminhando toda a noite sem ter dormido, a guarda de elite parecia brava e letal. Seu aspecto andrajoso e descuidado so contribuía a conferir ferocidade a seus rostos grisalhos e curtidos nas batalhas. Tor olhou a cada um deles.

—Alistaram-se para lutar pelo Bruce, não por mim. Ouvistes o que contou Campbell: ao menos são uns cento e cinqüenta homens; eu tenho dezoito, pode ser que menos.

—Dezenove - apostilou MacSorley dando um passo à frente—. Nem por todo o ouro do mundo vou deixar que sejam o único em lhe divertir. —O enorme viking sorriu—. Demos aos histriões escandinavos motivos para nos cantar.

Outros homens deram um passo à frente e se situaram atrás dele, salvo um.

—É hora de pôr em prática o treinamento, capitão - disse Boyd.

Tor olhou ao homem que se ficou atrás. MacRuairi se apoiava indolentemente em uma árvore. Deu de ombros e descruzou os braços. Os dois punhos de suas espadas se elevaram ameaçadoras atrás de seus ombros, como o sorriso que curvava seus lábios.

—Alguém terá que cobrir ao MacSorley.

Tor assentiu, comovido pela unânime amostra de apoio.

Consciente de que tinham que atuar depressa, Tor esboçou o plano. A metade da equipe atuaria como reforço dos homens que formavam o muro protetor; a outra metade se deslocaria ao redor para flanqueá-los e atacaria por ambos os lados.

—Estão preparados?

—Sim, capitão - responderam os guerreiros ao uníssono, com a determinação e a antecipação grafitada em seus rostos.

Detrás da máscara metálica de seu elmo, Tor sorriu, e seus lábios se curvaram em uma terrorífica careta em que não cabia a piedade.

—demos então uma surpresa antes de mandá-los ao inferno - afirmou levantando sua adaga ao ar—. Vitória ou morte!

—Vitória ou morte! —exclamaram seus homens ao uníssono.

Sabendo que somente carregariam com um peso desnecessário, abandonaram seus pertences para trás e saíram correndo. Em pouco mais de cinco minutos chegaram aos subúrbios do povoado.

O distante clamor da batalha em contraste com a desolada quietude das casas de pedra cobertas de cal era fantasmagórico. Várias flechas acesas tinham centrado seu objetivo nos tetos de palha. No ar carregado de fumaça se cheirava a densidade inconfundível e metálica do sangue.

Quando chegaram perto, Tor amaldiçoou ao advertir que era muito tarde para pôr em prática o plano de flanqueá-los. Os atacantes, providos com pesadas armaduras, tinham ocupado todo o povoado. O muro protetor tinha sido franqueado.

Tor mudou de tática imediatamente. Não consistiria em um ataque por surpresa cuidadosamente orquestrado, a não ser em uma explosão acérrima de força e perícia.

Tinham tudo em contra. Tor sabia que se tivesse sozinho, não teria tido nenhuma oportunidade. Mas não estava. E nunca lhe tinha preocupado ter tudo em contra. Lutava para ganhar.

Levando a mão à costas, desembainhou sua magnífica cutilada claidheamh dá laimh e deu o sinal que todos estavam esperando. Com um feroz grito de guerra, o grupo atacou.

MacGregor lançou uma rápida surriada de flechas, disparada com uma pontaria perfeita e uma trajetória em ângulo que perfuraria qualquer armadura, de malha ou de couro. Caíram seis homens antes que Tor tivesse a oportunidade de usar a espada.

Com um movimento letal, este último acrescentou um par de homens mais à lista. Girou sobre si mesmo rechaçando a folha de um atacante. Entrechoque de aço. Apesar da confrontação corpo a corpo, Tor mal moveu a espada, tão somente flexionou os músculos, duros como uma pedra.

Sem piedade. Com um rugido colérico, arremeteu contra seu competidor, levantou a espada e a brandiu com todas suas forças sobre sua cabeça lhe destroçando o crânio como se fosse uma cabaça.

Não sentiu nada. Animava-o um frio propósito.

Esfaqueando, brandindo, rechaçando, Tor riscou com sua espada um caminho de sangue e destruição entre os assombrados atacantes. Como o raio de que tinha tomado seu nome, bheithir arremeteu contra tudo o que encontrou a seu passo. O prazer da batalha corria pelas veias de Tor. Tinha os sentidos acordados, afinados, e uma estranha euforia se apoderou dele. Sua mente se concentrou na única certeza que importava em uma guerra: vitória ou morre.

A morte estava presente. Entretanto, enfrentado a sua mortalidade, sentiu-se mais vivo que nunca. A cada golpe que dava se sentia mais forte. Mais resistente. Mais invencível.

E não estava sozinho.

A visão desses homens juntos era terrorífica. Onze guerreiros magníficos arremetendo à carga com violência. Eram selvagens e temíveis, e lutando em parceria, semeavam o terror. Formavam uma combinação letal de espadas, tochas de guerra, maças e lanças dirigidas com soma mestria.

O inimigo nunca tinha visto nada parecido.

Em lugar de encontrar-se com uns indefesos habitantes do povoado, tinham que enfrentar a um exército fantasmagórico formado por guerreiros de aparência indestrutíveis. Estava claro que não eram essas as condições que os mercenários esperavam, nem as que tinham aceito alistando-se. Por isso, quando nem sequer tinha transcorrido um quarto de hora, bateram-se em retirada. Imitando aos guardas de Tor, os atacantes formaram um muro de amparo com o passar do caminho que conduzia ao molhe para alcançar suas galeras.

Tor e seus homens abriram caminho lutando, mas os navios de guerra começavam já a zarpar.

—Sigam - gritou ao MacSorley e ao MacRuairi.

Os aparentados guerreiros de sangue escandinavo saltaram sem hesitações a um pequeno birlinn que se usava como transbordador do castelo, e com um punhado de homens partiram para a caça das galeras que se afastavam.

Alguns mercenários não puderam alcançar as naves a tempo. Com a intenção de interrogá-los, Tor quis capturá-los vivos. Foi um engano.

MacGregor tinha deixado o arco e estava atendendo a um dos guardas feridos de Tor quando um dos inimigos que ficou em terra lançou sua lança.

Tor o aniquilou com a espada e lançou um grito de advertência, mas MacGregor se voltou muito tarde. A lança sulcou uma trajetória letal no ar apontando a sua cabeça.

Se Tor não tivesse visto com seus próprios olhos o que aconteceu a seguir, jamais teria acreditado.

Campbell se adiantou e apanhou a lança com uma mão, tão somente a uns centímetros do rosto do MacGregor. Com um sutil movimento a levou ao joelho, partiu a grosa madeira em dois e a lançou aos pés de seu companheiro.

Ouviu-se uma exclamação no campo de batalha.

MacGregor, que tinha visto a morte cara a cara, demorou uns segundos em recuperar-se.

—Demônios, Campbell, onde aprendeu a fazer isso?

O silencioso soldado das Terras Altas deu de ombros.

—Jogava isso com meus irmãos.

—A esta família gosta do sangue… —disse MacGregor com ironia.

Sem que lhe escapasse o sarcasmo, Campbell sorriu e lançou um olhar desafiante a esse homem que, apesar de ser de um clã rival, já se tinha convertido em um companheiro.

—Agora não poderão dizer que um Campbell nunca levantou uma mão para salvar a um MacGregor.

Em lugar de lhe soltar um bufo, como estava acostumado a fazer, MacGregor jogou a cabeça para trás e riu a gargalhadas.

Nesse momento Tor pensou que pouco ficava por ver. A menos que se equivocasse, Campbell e MacGregor tinham começado a superar suas diferenças. A camaradagem ia consolidando-se no grupo, e nem sequer ele era imune a isso. Restava esperança ainda para o Boyd e Seton?

Não lhe pareceu tão impossível.

Sacudindo a cabeça, Tor se voltou para terminar de atar aos prisioneiros. Muito tarde: todos os inimigos tinham sido mortos. Amaldiçoou sua sorte, embora soubesse que descobrir da boca de algum mercenário a identidade dos que estavam atrás do ataque surpresa era uma possibilidade muito remota. Possivelmente se MacSorley e MacRuairi alcançassem às naves obteria mais informação.

Poucos homens eram capazes de reunir um grupo tão numeroso de mercenários, embora um nome lhe viesse à cabeça: MacDougall.

A notícia de suas bodas teria sido a causa desse ataque? Não tinha sido como os anteriores. Aqueles homens tinham ido destruir e assassinar.

Gelou-lhe o sangue quando viu os cadáveres de uma mulher e de seu filho. O menino não teria mais de três anos. A mãe tinha tentado protegê-lo com seu corpo, mas a espada tinha atravessado a ambos. A raiva, o pesar e a amargura lhe deixaram um estranho sabor na boca.

Isso era exatamente o que queria evitar.

Voltou-se para não ver os cadáveres, mas a imagem lhe tinha gravado a fogo vivo na memória.

Consciente do perigo, ordenou a seus homens que retornassem a broch para que não fossem vistos por todos no povoado. Seu trabalho já tinha terminado.

Devia-lhes muito, e sabia que jamais teria conseguido sem eles. E isso o deixava em uma posição muito estranha, na posição de ter que confiar em outros. Combater junto a eles tinha sido uma experiência única. Tinha treinado a muitos homens, mas não eram como esses. Eles eram seus iguais, e tinham umas habilidades que superavam as suas próprias. Como líder, Tor estava acostumado a manter-se à margem. O irônico de seu encargo era que tinha que fomentar a camaradagem, mas nunca pudera integrar-se no grupo. Entretanto, esse dia as coisas tinham ido de uma maneira difernte.

Lentamente o povoado foi voltando para a vida. Portas se abriram e os homens do clã, emocionados, saíram de suas casas. Tor se surpreendeu ao ver que Colyne e um grupo de guardas saíam da capela.

—O que estão fazendo aqui? Por que não estavam lutando com os outros?

—Graças a Deus que viestes no momento oportuno, RI tuath.

—Porquê…?

Estrangulou-lhe a pergunta ao ver depois dos guardas à pessoa que saía pela porta da capela.

Ficou como pedra. Lívido. O que somente poderia ter qualificado de um terror que lhe gelava o sangue se apoderou dele. Não era possível.

Entretanto, sim era. Sua esposa estava ante ele. Seus olhos grandes e cheios de lágrimas destacavam em seu pálido e ovalado rosto cravando-se nele. Durante uns momentos o tempo pareceu deter-se. Ficaram se olhando, e entre os dois fluiu algo grande e poderoso. Uma emoção tão estranha que Tor nem sequer soube descrevê-la, salvo como um peso no peito, um nó ardente de dor e horror.

«Podiam tê-la assassinado.»

Quis soltar um alarido instintivo, mas o que ela fez então o deixou petrificado. Ignorando o que havia a seu redor, o açougue, o sangue que manchava o chão, que o manchava a ele, jogou-se em seus braços.

A Tor o coração deu um tombo. Algo se revolveu em seu interior. Algo quente e poderoso.

Estreitou-a entre seus braços e murmurou umas palavras cálidas para consolar não só à mulher que soluçava contra seu peito, mas também para consolar-se a si mesmo.

*

Com os olhos arrasados em lágrimas, Christina olhou ao homem sujo e manchado de sangue que a abraçava. Nunca tinha se alegrado tanto de ver alguém. Abriu os olhos da surpresa ao advertir o grande corte que tinha no rosto e o arroxeado do olho.

—Está ferido - disse, chorando e lhe acariciando o rosto.

Entretanto, Tor a tirou de cima.

—Estou bem - disse ele com brutalidade.

Christina franziu o cenho. Podia ser o grande guerreiro invencível com seus homens, mas quando voltasse para castelo com lhe curaria essa ferida, por bem ou não.

—Estou muito contente de que esteja são e salvo. Vieram muitas galeras.

Os que se resguardaram na igreja não puderam ver nada, mas quando ouviu o fragor da luta, ela soube que ali estava seu marido.

Tor ficou perplexo.

—Contente de que eu esteja são e salvo?

Christina viu que sua incredulidade se convertia em raiva. Agarrou-a pelos ombros enquanto parecia esforçar-se por não sacudi-la.

—Está bem da cabeça? E você, o que? Sabe o que teria passado se eu não tivesse chegado a tempo?

«Está assustado.» A preocupação que sentia por ela o tinha feito ir às nuvens. Por que não teria dado conta antes? Isso arrojava uma luz completamente diferente a seus arranques de mau gênio.

—estive a salvo no santuário da igreja, junto a outros. Foi idéia do irmão John - disse ela sorrindo ao escrivão, que acabava de chegar e se situou a suas costas.

Tor pareceu algo irritado ao vê-lo.

—Não todos os homens respeitam o santuário da igreja.

—E por essa razão seus homens insistiram em custodiar a porta em lugar de unir-se a outros. Não corri nenhum perigo, de verdade. —Tinha tido um medo espantoso, mas dado o estado de ânimo de Tor decidiu guardar essa informação para mais adiante—. E embora tivessem violado o santuário, o irmão John tinha me escondido sob o banco do confessionário. Nunca me teriam encontrado.

Tor se voltou para o amanuense, e com a boca seca lhe disse:

—Acredito que lhe devo minha gratidão.

O agradecimento fez avermelhar ao jovem clérigo. Um rubor coloriu suas finas e sardentas bochechas.

—Desejava com toda a alma poder retornar a tempo ao castelo - explicou—. Não imaginam nossa alegria ao ouvir que chegavam com seus homens. Pelo estrondo, parecia que lhe acompanhava um exército. —O amanuense olhou ao redor franzindo o cenho—. Aonde foram todos?

—Retornei cedo e pude reunir a alguns homens do castelo - explicou Tor—. Foram perseguir os assaltantes.

A incredulidade fez que o irmão John franzisse o cenho. Christina temeu que a explicação de Tor não o tivesse satisfeito.

—Entendo - respondeu o irmão John.

—Quem eram? —perguntou Christina—. Por que razão quereria ninguém nos atacar com tanta sanha?

—Não sei - disse Tor com expressão lúgubre—. Mas tenho a intenção de averiguar.

Vendo o olhar desumano que aparecia nos olhos de seu marido, Christina quase compadeceu do responsável quando Tor o encontrasse. Esteve afastando o olhar do panorama que se estendia a suas costas, mas o que havia no chão não lhe permitiu escapar do horror. O nauseabundo aroma da morte impregnava o ar. Não precisava desviar o olhar para os cadáveres para saber que se encontravam ali.

Tor pareceu recordar o contexto no que estavam no mesmo instante que ela. Pegou-a pelo braço e fez o gesto de levá-la —Vem pra cá…

Christina se soltou ao chamar a sua atenção algo que havia no chão.

Por todos os Santos, oxalá não se fixara.

—Não. Vem. —Tor tentou afastá-la dali, mas ela se soltou de seu braço.

—me deixe - exclamou com um grito afogado. O estômago lhe revolveu e notou o sabor da bílis. Tampou a boca com a mão, como se assim pudesse reter as náuseas. Adiantou-se uns passos e se pôs de joelhos no chão, embargada pelo desespero e o horror.

O cadáver de uma mulher jazia de barriga para baixo atravessado sobre o de um menino. Christina os conhecia. Eram a mulher do oficial e seu filho. Tremendo, acariciou o sedoso e loiro cabelo do menino. Ainda estava quente pelo sol. As lágrimas se amontoaram em seus olhos. Olhou a seu marido, musculoso e provido com sua armadura, uma sombra imponente a contraluz. Como podia dedicar-se a isso? Como podia estar sempre rodeado de tantas mortes? Como não morria do espanto?

—Que tipo de monstro pode ter feito algo assim?


Tor sacudiu a cabeça com ar sombrio.

De repente, uma idéia horripilante cruzou pelo pensamento de Christina. E essa idéia lhe pesou no coração. Todo aquilo era culpa dela?

—Pode ter sido MacDougall?

Tor apertou a mandíbula como se tivesse adivinhado o que pensava sua mulher. Tinha pensado ele também?

—É possível. Mas há outros candidatos.

Christina voltou a contemplar à mãe e ao menino, com as lágrimas rodando pelas bochechas, rezando para que isso não tivesse nada que ver com ela.

—Vem. —Tor a afastou dali com cuidado—. Não pense nisso.

Christina se voltou para ele, indignada, e olhou fixamente esse rosto brutalmente formoso. Nem um indício de emoção em sua estóica expressão. Era impensável que pudesse olhar o cadáver de um menino inocente sem que isso lhe afetasse.

—Como não vou pensar nisso? O que te passa? Nada lhe afeta?

Tor a olhou com dureza; seus olhos azuis eram frios como o gelo.

—Não me posso permitir isso. Mas porque não demonstre minhas emoções não significa que seja incapaz de sentir.

Compreender isso foi como receber um murro. Assim funcionava Tor. Pela primeira vez compreendeu por que precisava ser tão frio. Compreendeu que ao ocultar as emoções protegia a si mesmo dessas condições tão monstruosas e brutais.

Mal conhecia a mulher e ao menino que estavam frente a ela, e entretanto a embargavam um sofrimento, uma tristeza e um horror insuportáveis. O que devia sentir-se quando eram os amigos, os homens com os que tinha lutado durante anos os que morriam brutalmente assassinados ante seus olhos?

Estremeceu. O gelo era um bom escudo protetor que seu marido necessitava para sobreviver.

Teve piedade dele do fundo de seu coração. Embora Tor não mostrasse compaixão, sentia-a. E que ocultasse suas emoções não era surpreendente se tinha em conta seu passado. Somente precisava ter mais paciência com ele.

—Sinto muito - disse ela com ternura.

Tor assentiu. Permitiu que a levasse dali, mas o chão a parecia mover-se sob seus pés, como se caminhasse pelo convés de um navio em plena tormenta. Tinha o estômago revolto e sentia arcadas. O suor perolava a testa.

Não se encontrava bem.

—por que saiu do castelo? —perguntou Tor—. O que estava fazendo no povo?

Christina perdeu o equilíbrio.

—Tina, o que acontece?

Detectou um que de alarme em sua voz, embora soasse longínqua, como se ela estivesse sob a água. Dava-lhe voltas a cabeça, e quando ergueu os olhos para olhá-lo, viu sua imagem imprecisa, desfocada.

—Não me… —conseguiu articular antes que todo se ficasse escuro.

*

Quando despertou estava sumida na escuridão. Moveu as pálpebras, mas lhe pesavam tanto que as manteve fechadas. Por que fazia tanto calor? Sentia como se estivesse dormindo sobre uma fogueira. Afastou os lençóis, revolveu-se e tentou ficar cômoda sem conseguir.

Notou uma mão grande na frente que a acalmava. Uns murmúrios de fundo. Haviam tornado a cobri-la. Queixou-se fracamente, e só se tranqüilizou quando voltou a ouvir a voz. Suspirou, rebelou-se, até que a escuridão voltou a abater-se sobre ela.

*

Quando Christina despertou pela segunda vez era pela manhã. Foi capaz de abrir os olhos, embora antes piscou umas quantas vezes. Se despertou sentindo-se como nova, como se tivesse dormido profundamente.

Franziu o cenho. Dormido? Como tinha chegado a seus aposentos? Quão último recordava era…

Ouviu um ruído e olhou para o outro extremo do aposento. Tor se revolvia em uma cadeira de madeira, coberto com uma manta, tentando, sem conseguir pelo que parecia, ficar a vontade. Soltou uma maldição, e algo em sua expressão colérica e exaltada a fez rir.

Tor deixou cair ao chão a banda escocesa que levava a ombro, ficou em pé e correu a seu lado.

—Está acordada.

Christina sorriu ante o que era óbvio. Tor, por outro lado, tinha o aspecto de não ter dormido toda uma semana. Trocou-se e limpou as manchas da batalha, mas as linhas de expressão de seu rosto acusavam um cansaço e uma fadiga difíceis de dissimular. Seu cabelo loiro escuro estava revolto, como se tivesse passado os dedos por ele uma e outra vez; tinha a roupa enrugada, e a mandíbula escura por não ter se barbeado fazia mais de uma semana. Entretanto, seguia incrivelmente bonito.

Christina pousou seu olhar na cadeira e enrugou o nariz.

—dormiste aí?

Tor franziu o cenho.

—Estava doente.

De verdade? Encontrava-se bem. Apesar de recordava ter se sentido estranha e enjoada justo antes de perder o sentido. Era a primeira vez que passavam a noite juntos e ela não recordava nada.

—Quanto tempo?

—Dois dias. —Tor a olhou enfurecido—. Não voltará a te pôr doente nunca mais. —cruzou os braços adotando uma atitude de mando—. Não o permitirei.

Christina piscou ao dar-se conta de que falava a sério. Esteve muito preocupado por ela. Um brilho de alegria apareceu em seus olhos. Ia sorrir, mas ao vê-lo furioso, dissimulou o sorriso.

—Farei tudo o que possa - disse com sobriedade.

Tor entreabriu os olhos como se tivesse adivinhado que lhe estava tirando o sarro. Sentou-se a borda da cama e a examinou com atenção, para assegurar-se de que realmente estava recuperada.

—por que quis ir ao povoado quando sabia que havia febre?

Christina ergueu o queixo, desgostosa por seu tom.

—Queria ajudar, e a febre não era grave. Além disso, meu dever como senhora do castelo é atender aos habitantes do povoado. Deixou-me muito claro que tinha que me rodear a determinadas tarefas.

Tor esboçou uma careta de desgosto.

—Acredito que falei com muita dureza…

—Acredita? —interrompeu-o ela arqueando uma sobrancelha.

Tor voltou a franzir o cenho, mas Christina estava ficando imune a essas olhadas turvas. Quem teria pensado que a jovem que há poucos meses se protegia entre as sombras diante da cara brava do guerreiro mais temido das Highlands?

—Estou acostumado a falar sem pensar, e estava zangado - disse ele—. Além disso, ninguém está acostumado a ignorar minhas ordens.

—Tenta te desculpar?

Tor franziu o cenho como se a idéia o surpreendesse.

—Suponho que sim. Tinha razão em algumas das coisas que me disse. Nem tudo consiste em cumprir meu dever com o clã, mas me acostumei tanto a me reservar minhas opiniões que não estou seguro de saber fazer o contrário.

Christina ficou surpresa ao comprovar que suas palavras tinham causado tanto impacto.

—Alguma vez quiseste ter alguém com quem falar, a quem escutar? Ser responsável por tanta gente deve ser uma carga muito pesada para um homem sozinho. Ter a alguém com quem falar poderia te facilitar as coisas.

Tor parecia pensativo.

—Possivelmente.

Christina inclinou a cabeça, estudando-o com curiosidade.

—por que te custa tanto compartilhar seus pensamentos?

Tor lhe sustentou o olhar. A julgar por seu silêncio, parecia que estava travando algum debate interno. E gostou que lhe desse uma resposta.

—Porque meu dever como chefe é me reservar as opiniões. Sei perfeitamente que o contrário traz sofrimentos.

—O que aconteceu?

—Falei do ataque surpresa que sofremos no Dunvegan e de como assassinaram a meus pais?

Christina assentiu.

—A meu pai o traiu um homem que considerava amigo dele, um parente. O conde de Ross tirou informação a minha mãe com más artes e ordenou o ataque que matou a meus pais e quase destruiu a meu clã. Mulheres, meninos…, ninguém escapou ao derramamento de sangue. Foi um açougue.

Christina tapou a boca, horrorizada. A primeira vez que contou não caiu na conta.

—Você estava ali.

Tor assentiu, com os olhos sombrios.

—Sim, escondido na capela com meu irmão e minha irmã. Meu pai viveu o suficiente para me contar o que tinha passado. —Tor fez uma pausa—. Minha mãe não teve tanta sorte depois de que os homens de Ross terminassem com ela.

Christina afogou um grito e as lágrimas saltaram aos olhos.

—OH, Meu Deus… Sinto muito.

Tor deu de ombros.

—Foi faz muito tempo.

Entretanto Christina não se deixou enganar. Seu marido vivia ainda com o legado desse dia. Por isso se mostrava distante. Solitário. Christina teve piedade dele. Do menino pequeno que tinha visto como assassinavam a seus pais e destruíam virtualmente a seu clã, e que tinha assumido a carga de ter que recompor todo isso.

—E depois somente você ficou para reconstruí-lo todo?

Tor a olhou como se a resposta fora óbvia.

—Era o chefe.

—Mas so tinha dez anos - disse ela, atônita. Se já era muita responsabilidade para uma só pessoa, que não seria para um menino de sua idade? Esse menino teve uma infância muito curta.

—Saí adiante.

Christina apoiou a mão em seu braço.

—E muito bem, isso parece. Seu clã tem sorte de contar contigo.

Era um homem incrível. Sabia, mas para ouvir de sua própria voz quanto tinha sofrido, sentiu-se mais orgulhosa dele. E decidida a ajudá-lo. Depois da generosa devoção com a que se entregou a seu clã durante anos, Tor merecia desfrutar da felicidade.

Entretanto, Christina era consciente de que nesse momento não conseguiria nada mais dele. O fato de que se abrira, embora somente um pouco, era um êxito, um milagre em realidade. Via-o debater-se em um estado de inquietação, e teve que obrigar-se a não lhe saltar ao pescoço para abraçá-lo, de tão adorável como era. Mas Roma não se fez em um dia, e seu marido tampouco mudaria de repente uma vida inteira marcada pelo silêncio.

—Eu também sinto - disse ela—. Estava tão obcecada por que confiasse em mim que não me detive pensar no que em realidade estava pedindo. Oxalá pudesse confiar em mim, mas compreendo que não possa.

—tento te proteger, Christina, não te ferir.

—Sei.

—Não quero que te mescle nisto porque correria perigo. Necessito que confie no que te digo. —Tor cravou seus olhos intensamente em sua esposa—. Será capaz?

Ela assentiu, embora desejasse que a confiança fosse mútua.

Tor parecia estar pensando em algo. Quando falou o fez com cautela, como se lhe custasse escolher as palavras.

—Eu gostaria de te propor uma solução de compromisso.

Christina abriu os olhos de par em par.

—Uma solução de compromisso? Teria jurado que não conhecia essa expressão.

Tor a olhou à defensiva.

—Não a uso muito freqüentemente, mas por ti estou disposto a fazer uma exceção.

Estava tirando o sarro. Christina não podia acreditar.

—Sinto-me muito honrada, meu senhor - respondeu exagerando uma inclinação de cabeça.

Tor lhe dedicou um sorriso pícaro, e foi como se o céu tivesse se aberto e o sol brilhasse entre as nuvens. Esse sorriso lhe mudou a expressão, e lhe fez parecer mais jovem.

—Quantos anos tem? —espetou-lhe Christina.

Tor franziu o cenho assombrado.

—Trinta e um. —Ignorando sua estranha pergunta, retomou o tema que estava tentando explicar e pigarreou—: Se aceitar que haverá momentos nos que não lhe poderei contar tudo, eu me comprometo a ser mais…

Tor parecia ter dificuldades para encontrar a palavra justa.

—Comunicativo - propôs ela, tentando reprimir um sorriso.

Tor sorriu do meio lado afetando certa ironia.

—Sim, comunicativo.

Christina sorriu a sua vez.

—Isso eu gosto.

Bastava-lhe. De momento. Mas seguia esperando que terminasse por incluí-la de tudo em sua vida. Depois de sua experiência organizando os livros, sabia que podia recorrer a ela.

Tor lhe afastou o cabelo do rosto e pousou nela seus claros olhos azul gelo com tanta intensidade que um rubor mal controlado apareceu nas bochechas de Christina.

—Devo estar espantosa - disse desviando o olhar.

Os olhos de Tor se acenderam de paixão.

—Está preciosa.

Essas palavras tão simples a sobressaltaram por sua sinceridade. E sentiu uma calidez envolvente. Tinha ouvido essas palavras antes, mas nunca tinha emprestado atenção.

—Não me disse isso.

Tor pareceu surpreso.

—Ah, não? Pensei centenas de vezes.

—Devo estar perdendo a capacidade de ler o pensamento.

Tor estalou em gargalhadas, e Christina pensou que esse som era o mais belo do mundo. O momento no que sempre tinha sonhado. Oxalá pudesse durar para sempre.

Tor deixou de rir e seus olhos se encontraram.

Saltavam faíscas no ar. Uma febre de distinta natureza acalorou a pele dela. Tinha passado muito tempo. Ansiava seu corpo de maneira elementar; como a água, os mantimentos e o ar, Christina necessitava seu corpo.

Era consciente de sua presença na borda da cama, de seus largos ombros e seus fortes braços. De seu masculino aroma de especiarias. De sua boca gloriosa.

Tor se inclinou para ela.

Christina conteve o fôlego.

Entretanto, em lugar de beijá-la, roçou-lhe a fronte com os lábios.

—Precisa descansar - disse Tor.

—Encontro-me bem - insistiu ela em um tom que mais parecia o de uma menina a que negam um brinquedo. Seu brinquedo favorito.

Entretanto, sua tentativa de faze-lo mudar de idéia caiu em saco furado. Tor se levantou.

—Voltarei mais tarde para ver como te encontra. Se necessitar algo, chame Morag.

Um banho seria o primeiro. Mas como estava segura de que ele não compartilharia sua opinião, decidiu não mencioná-lo.

—Morag esteve aqui? Acreditava que andaria ocupada assistindo aos feridos.

—Os homens só têm hematomas e arranhões.

Christina sentiu um profundo alívio. A lembrança dos que não tinham tido tanta sorte passou como uma sombra.

Tor se incorporou, e Christina o viu dirigir-se para a porta.

—Descansa. Direi a Mhairi que venha ver-te.

—Não é necessário que…

Entretanto a porta já se fechou.

 


C O N T I N U A

Capítulo 11


No interior do dormitório havia pouco que fazer para passar o momento enquanto esperava. Christina sentiu a tentação de tirar seu livro do esconderijo do baú, mas não estava segura de como reagiria seu marido se soubesse que lia. Ainda tinha muito fresca na memória a reação de seu pai, e seu matrimônio ainda era muito recente. Embora não acreditasse que se zangasse, seu marido era muito difícil de decifrar. Justo quando acreditava que tinha conseguido um pedacinho do autêntico homem que havia abaixo do temível guerreiro, o muro de aço tinha se erguido de novo.

De modo que tentou bordar. Mas depois de dar muitas espetadas com a agulha, se deu conta de que essa energia nervosa não era exatamente propícia ao bordado, de maneira que o afastou. Se tivesse um giz e uma piçarra, que não os tinha, desenharia. Se se parecesse mais com sua irmã, rezaria. Pedindo o que, não sabia. Paciência? Modéstia feminina? Ambas seriam bem vindas nesse momento. Tinha medo de estar muito ansiosa essa noite, e talvez sua ansiedade fosse imprópria. Era uma donzela inocente; deveria estar morta de medo, e não sentir uma comichão de excitação em lugares nos que não devia pensar.

Quase lamentava ter despachado Mhairi tão rápido, mas não tinha pensado que passaria a metade da noite esperando. Já quase devia ser meia-noite.


Arrependia-se de ter rechaçado a garrafa de vinho doce que lhe tinha dado a curandeira. Algo para mitigar seus nervos crispados.

Cansada de contemplar as sombras da chama do candelabro que refletiam no teto, Christina afastou o cobertor e saltou da cama. Curiosamente, a impressão do ar frio na pele e nos pés procedente do gélido chão de pedra a tranqüilizou. Caminhou de um lado a outro até que o candelabro se reduziu a nada. Até que na residência se fez um doloroso silêncio.

Finalmente ele não viria.

Dizendo a si mesma que não tinha importância, que não havia motivo para a devastadora tensão que sentia no peito, obrigou-se a deitar de novo na cama. Não obstante, custou-lhe conter o pranto.

O que tinha que mau nela? Acaso seu marido não a desejava?

O atordoamento do sonho a chamava, rondava como um oásis ao que não conseguia chegar. Estava a ponto de sucumbir quando a porta se abriu.

O ruído despertou de repente. Instintivamente se cobriu até o peito com o cobertor. Na escuridão só distinguiu a sombra de sua enorme silhueta na soleira. Estava ali imóvel. Ainda não tinha entrado, mas sua presença parecia encher o ambiente.

—Ainda está acordada — disse.

O timbre de sua voz fez que a Christina lhe arrepiasse o pêlo dos braços.

—Sim — disse em voz baixa.

Era o homem mais aterrorizante que tinha visto, e nunca tinha percebido o perigo de um modo tão intenso. Parecia alguém preparado para o combate, mais que um marido que ia fazer o amor a sua mulher. Rodeava-lhe uma aura de ferocidade. Suas pernas longas e musculosas pareciam crispadas e tensas.

De repente ela sentiu um espasmo de terror. Não lhe faria mal, verdade?

Ele fechou a porta ao entrar e cruzou o ambiente virtualmente às escuras. Somente os tênues raios da lua, que se filtravam através das placas de madeira das venezianas, mitigavam a penumbra.

Ela tinha os nervos a flor de pele. O coração palpitante. Depois de dias de perguntas, de espera, o momento tinha chegado por fim. Estavam sozinhos. E contrariamente da vez anterior, ambos eram conscientes do fato… e do que ia passar.

Agora que Tor estava ali, ela estava um pouco assustada, mas o que ainda lhe dava mais medo era decepcioná-lo em certo modo.

Seus olhos se estavam acostumando à escuridão, e viu como ele desabotoava o grande broche que levava ao pescoço e retirava a capa dos ombros. Tirou o resto da roupa com a mesma naturalidade, como se estivesse sozinho no quarto, e não com sua esposa, quem com os olhos muito abertos, muito nervosa e sem fôlego, dissecava todos seus movimentos.

Negócios. Dever. Essas palavras foram a ela sem prévio aviso. Era isso o que significava para ele? Pensou com uma pontada de dor. Queria que Tor desfrutasse aquilo.

Quando Tor deu a volta e se dirigiu para a cama, Christina tragou saliva. O suave perfil de seus músculos, que se distinguia entre as sombras, não deixava dúvidas de que estava nu. Senão tivesse tão aflita teria ruborizado. Poder. Força. Vitalidade. Seu corpo era uma fortaleza. Masculinidade crua em sua forma mais impressionante.

A sua mente acudiu uma idéia imprópria de uma donzela: que pena que a vela se apagara.

Talvez ele tivesse ouvido sua respiração entrecortada, porque quando se deslizou a seu lado, disse:

—Não há nada que temer. Serei amável. Não se parecerá com a última vez.

Ela não sabia se aquilo era mau ou bom. A última vez tinha sido bastante extraordinária, em certo sentido.

A cama cedeu sob seu peso. A Christina já não palpitava o coração, porque tinha detido em seco. Tor não a havia tocado, mas estava bastante perto para que sentisse o frio roce de sua pele. Frio do vento.

—saístes? —perguntou, surpreendida. Acreditava que estava com seus homens na sala.

Tor assentiu.

—Sim.

—Onde estavas? Há algum problema?

Sentiu seus olhos nela, penetrando o véu de escuridão.

—Nada que seja de sua incumbência.

Ela franziu o cenho ante a falta de resposta. Se incumbia a ele, incumbia a ela. Estava claro que Tor era o homem mais teimoso que tinha conhecido. Mas antes que pudesse lhe fazer outra pergunta, ele se colocou a seu lado, tombou-se junto a ela, e apagou qualquer outra idéia de sua mente.

Com delicadeza, agarrou os lençóis que Christina seguia segurando com os dedos e afastou a um lado. Ela notou o peso de seu corpo pressionando seu flanco. Até através da camisola, sua pele ardeu com aquele roce.

—Agora mesmo somente quero pensar em uma coisa. —A voz era profunda e sensual, carregada de promessas maliciosas.

Ao notar que ele riscava com o dedo uma delicada linha sobre o contorno de seu seio, ela se estremeceu. A etérea carícia fez que arrepiassem todas as terminações nervosas. Sentiu que o coração pulsava na garganta.

—E o que é? —conseguiu dizer, quase sem fôlego.

Tor descobriu a ponta tirante de seu mamilo com a pele áspera do dedo e a rodeou através do ligeiro tecido de sua camisola. Quando substituiu o dedo pela boca, ela ofegou. A cálida umidade daquele beijo enviou descargas de prazer diretamente de seu seio ao centro de suas pernas. Deus, era incrível! As sensações eram como uma labareda de ardoroso prazer que a cobria de chuva efervescente. Mas quando ele sugou a ponta, puxando levemente com os dentes, seu ofego se converteu em um profundo gemido.

Tor soltou uma risada, sem separar-se de Christina.

—Isto —respondeu— é o único no que quero pensar. —Voltou a sugar, rodeando com a língua a pontinha vibrante—. Quero sugar seus encantadores mamilos com a boca, até que seu corpo gema de desejo.

Deslizou os dedos até a planície de seu ventre, e com sua mão grande e forte cobriu com delicadeza seu monte de Vênus. Sem vacilar. Pura e crua energia sexual. Com esse possessivo gesto, Christina adquiriu plena consciência de seu destino, tal como ia ser.

—Quero te tocar aqui… —Varreu com o dedo a ardente feminilidade através do tecido—. E conseguir que te umedeça, até que esteja preparada para mim.

O corpo de Christina reagiu com uma onda de calor e umidade no ponto exato onde ele a tinha acariciado.

—E então… —Baixou a cabeça para lhe beijar o pescoço—. E então desejo estar dentro de ti e conseguir que te desfaça.

Ante essas palavras maliciosas, ela se arqueou, revolveu-se, e quando ele descobriu com a língua e os lábios uma zona sensível sob a orelha, estremeceu-se.

Tor levantou a cabeça para olhá-la aos olhos. Entre as sombras, as atraentes e severas linhas de seu rosto pareciam ainda mais perigosas.

—Assusta-te isso?

Christina negou com a cabeça.

—Não. —O medo tinha desaparecido no momento em que Tor a havia tocado. Seu coração revoou como as asas de um colibri, enquanto se esforçava em achar as palavras—. Eu também o desejo. Eu gosto do que sinto quando me tocas.

Ele ficou quieto. Christina teria jurado que notou como seu olhar se avivava com maior intensidade. Ruborizou-se, perguntando-se se havia dito algo mau. Mas ele já voltava a acariciá-la, e Christina se esqueceu de tudo, salvo da pressão de sua boca sobre seu seio e da cálida fricção de suas mãos, que cobriam seu corpo.

*

Tor tinha que recordar-se constantemente que a mulher apaixonada que se retorcia em seu leito era virtualmente uma virgem. Mas quando gemia e se arqueava sob sua boca e suas mãos, lhe suplicando em silêncio que beijasse os seios com maior rudeza, era fácil esquecer.

Suas atrevidas palavras para distraí-la de suas perguntas tinham funcionado - esteve fora porque alguns homens se apresentaram antes de tempo e precisavam chegar até o fiorde —, mas quem tinha rido por último tinha sido ela, que lhe tinha distraído com sua resposta. «Eu gosto do que sinto quando me toca.» Jesus, como podia não reagir ante isso?

A inocente honestidade de suas palavras só incrementaram a fome que sentia dela. Uma parte dele se perguntou se simplesmente tinha imaginado sua receptividade daquela noite. Não. Mas bem tinha subestimado seu sensual encanto.

«Virgem», lembrou-se, tentando reduzir o martelar de seu sangue, a primitiva chamada que ansiava dar resposta.

Tinha desejado deitar-se com Christina no momento em que tinha posado seus olhos nela. Mas depois de tê-la tratado com tanta brutalidade durante seu primeiro encontro, tinha jurado que a faria desfrutar. Desfrutar muito. Apaixonado, mas controlado.

Isso foi o que compreendeu. Na escuridão. Homem e mulher. Nada mais que paixão, primitiva e crua. Ele sabia como fazer que uma mulher desejasse suas carícias. Como fazê-la gemer. Como debilitá-la a base de prazer. Sabia o que Christina necessitava e o daria. E ela daria a ele em troca. Nada mais. Nada menos. Satisfação de necessidades básicas.

Na cama, Christina Fraser era igual a qualquer outra mulher. Sua necessidade dela era mais abrasadora. Mais intensa, possivelmente. Mas a luxúria era luxúria, e Tor não podia controlá-la.

Era um homem apaixonado. Christina era uma mulher apaixonada. Era tão simples como isso. A paixão no leito conjugal era algo pelo que estar agradecido; sua primeira esposa não tinha sido tão entusiasta. Nada que tivesse que se preocupar.

Mas era incapaz de deixar de olhar a boca. Até na penumbra, atraía-lhe a erótica sensualidade de seus lábios carnudos e rosados. Intrigava-o a intimidade desses beijos, algo que não estava acostumado a pensar.

Mas podia saborear o resto de seu corpo. Desatou o laço da camisola, farto de ter uma barreira entre os lábios e a pele dela. Cheirava de um modo incrível. Quente e floral. Inspirou com força e seu delicado aroma lhe rodeou com seu doce abraço.

Ao sentir a primeira carícia sobre sua pele nua, Christina gemeu, e a pétrea ereção de Tor se endureceu ainda mais.

Ante a primeira tentativa dela de lhe acariciar as costas, ele ficou imóvel. A pressão exigente de seus dedos, massageando a firme musculatura de ombros e braços, fez que Tor amaldiçoasse e sentisse fora de si. Christina gostava de lhe tocar. Uma intensa chama de desejo e um espasmo de luxúria nublaram a visão de Tor, que perdeu a consciência durante um segundo.

Controle. Esforçando-se por reduzir sua temperatura interior, monopolizou a beleza de seus seios com suas mãos e os levou a boca, devorando-os sucessivamente. Seu membro pulsava com força pego a seu ventre e conseguiu certo alívio esfregando-se brandamente contra a coxa dela enquanto sugava. A leve fricção lhe acendeu ainda mais.

«Posso fazer.» Mas nunca em sua vida estivera tão excitado. As inocentes reações de Christina eram mais eróticas que os experientes movimentos das mulheres com que estava acostumado a deitar-se.

Lambeu-lhe o mamilo e sentiu na língua um meloso sabor de ambrosia. Beijou-a com maior paixão e arranhou com o queixo essa pele tão sensível. Sugou e rodeou com a língua aquela pontinha tensa, até que ela começou a levantar os quadris para ele.

Percorreu todo seu corpo com as mãos. Não podia deixar de tocá-la. Tinha a pele muito suave, e o corpo sensual e docemente feminino.

Tor grunhiu. Christina era incrível. Tão natural e espontânea com sua paixão. Mas ficava cada vez mais difícil controlar seus instintos, ignorar a fome e o desejo que crescia em seu interior. Seu corpo ardia, dava mil voltas sua cabeça. Cada vez lhe custava mais ser racional, enquanto uma bruma avermelhada de desejo caía sobre ele.

Deslizou as mãos sobre seu corpo e até as pernas para lhe levantar a borda da camisola. Ouviu-a respirar entrecortadamente quando varreu com os dedos a aveludada suavidade da zona interna da coxa. Ela cravou os dedos nos braços. Parecia flutuar, suspensa por suas carícias.

Ser consciente de até que ponto ela desejava aquilo teve um efeito nele. Um efeito que ia a além da satisfação ou o orgulho varonil. Encheu-o de uma intensa calidez que chegou ao fundo de suas vísceras e atirou delas. Naquele momento nada parecia mais importante que lhe agradar.

Mas ainda não. A única coisa que desejava mais que ter um orgasmo era fazê-lo durar. Aproveitou com cuidado o momento, sentindo como estremecia o corpo dela quando roçou essa pele de bebê junto a sua entranha, com uma etérea carícia dos dedos, que se aproximaram e se afastaram depois. Para habituá-la a suas carícias e a seu próprio desejo. Queria que identificasse o que queria seu corpo. O que necessitava.

Imitou os movimentos do dedo com a língua, sobre seu seio. Primeiro deslizando-a rapidamente e logo detendo-se, deixando que a calidez de seu fôlego passasse sobre o topo úmido e sensível.

Ela gemeu e se queixou, e com cada som, ele sentia o palpite do sangue em cada centímetro do corpo e ficava mais difícil concentrar-se.

Christina sentia que ardia a pele. Tor sabia que se pudesse ver o rosto, comprovaria que tinha as bochechas ruborizadas de prazer e os sensuais lábios separados.

Maldição, estava muito excitada. Seu corpo tremia de prazer. Deus, ia ter um orgasmo assim que a tocasse. Sentiu um batimento do coração no membro, suando de espera. Teve que fazer uso de todas suas forças para reprimir-se, e não envolver seus quadris com as pernas de Christina e lhe penetrar, deixando que o ardente punho do corpo lhe fizesse explodir e gozar até cair na inconsciência.

Esticou todos os músculos em um esforço por controlar-se; seu próprio orgasmo espreitava, era uma maldita ameaça, muito próxima.

—me diga o que quer — perguntou entre dentes, enquanto seu dedo se aproximava do vulcão com uma lhe torturem carícia.

—Não sei — gemeu Christina.

—Isto? — disse ele, deslizando o dedo junto à fenda úmida. Christina se sentiu invadida por um espasmo de prazer e seu corpo se agitou bruscamente.

—Sim — respondeu sem fôlego—. Por favor.

—vou fazer que goze, Christina.

Ela não sabia o que queria dizer, mas não se importou. Quão único desejava era que desaparecesse essa corrosiva sensação de ansiedade. Seu corpo inteiro estava sumido em um desejo que seguia crescendo e crescendo sem medida, até que pareceu que já não poderia suportar a tensão. Sentia-se suspensa a bordo de uma espécie de cataclismo.

Como podia sentir-se tão bem e ao mesmo tempo tão inquieta? Cada carícia, cada vez que Tor lhe tocava o corpo era como estar no céu e o inferno de uma vez.

Todos seus pensamentos, toda sua energia parecia concentrada entre suas pernas, e cada vez que ele a provocava com uma carícia com o dedo, a agonia aumentava. Estava úmida e em chamas, com os músculos constrangidos de ansiedade, escuros e pulsando de frustrada ignorância. Sabia, instintivamente, que necessitava algo, mas ignorava como conseguir. Ele a provocou até que já não pôde suportá-lo mais, até que acreditou que estalaria.

Nunca teria imaginado umas carícias tão leves e delicadas dessas mãos tão grandes e fortes que hasteavam a espada com uma força letal.

Mas ela desejava sentir essa força, esse poder em seu interior.

E então o fez. Tor sugou com ardor o mamilo até o interior da boca úmida e cálida no momento em que afundava o dedo nela, acariciando e pressionando, em círculo. O corpo de Christina gemeu aliviado ante a pressão que desejava e que tinha demorado tanto em chegar. As sensações se amontoaram em suas vísceras: a boca que atormentava seu seio, o dedo que a acariciava, o roce da palma da mão que a agarrava. Tudo chegou de uma vez, intensificando-se e esticando-se depois durante um prolongado instante, até que se rompeu em pedaços, estalando em mil direções.

Ela lançou um gemido alto enquanto sucessivas ondas de sensações estremeceram seu interior e os espasmos de prazer mitigaram sua férrea garra.

Christina teve a sensação de que tinha morrido e estava no céu. Quão único via era luz e beleza, como muito estrelas cintilantes expostas ante ela em uma maré oscilante. Nunca tinha imaginado nada que pudesse provocar essa incrível sensação.

Era excessivo. Tor perdeu as rédeas que estavam sob seu controle ao ver seu corpo tenso. Então, ao escutar os eróticos gritos de sua entrega, deixou ir. Era mais do que podia suportar.

Nunca havia sentido nada parecido. Um desejo que ia além da luxúria que se acumulava em suas virilhas e em seu membro ereto. Desejava penetrar em seu interior, afundar-se nele e não sair jamais.

Estar dentro dela. Provocar-lhe um novo orgasmo. Isso era o único importante.

Moveu-se sobre Christina, colocando-se entre suas pernas.

Utilizou o dedo para lhe provocar prolongados espasmos de entrega e grunhiu:

—Preciso estar dentro de ti.

Ela suspirou sonhadora, obediente e ele agradeceu a penumbra. Agradeceu não poder ver os olhos entreabertos e o leve rubor rosado do êxtase em seu rosto. Porque sabia que não poderia evitar aproximar a boca de seus lábios. E então ela seria diferente.

Levantou-lhe os quadris brandamente e separou as pernas para acomodar-se. Apoiou as mãos junto aos ombros de Christina, para agüentar o peso de seu torso.

Gotas de suor caíram de sua fronte ao tentar ir devagar. Mas não era fácil.

Deslizou a ponta sensível de seu membro ao longo da fenda dela, até que esteve escorregadio da umidade de Christina.

Quando abriu caminho entre suas dobras, ela ofegou e esticou o corpo instintivamente.

—Relaxe — a tranqüilizou Tor, reprimindo todos os músculos ante um impulso primário.

—Mas é muito grande — protestou ela.

«E você está muito rígida.»

—Chist — sussurrou—, deixa que seu corpo se acostume a mim.

Seu dedo descobriu o ponto sensível de seu clitóris e a acariciou, até que relaxou. Ela se deixou ir lentamente e seu corpo se tranqüilizou enquanto voltou a invadi-la uma onda de prazer.

O impulso de penetrá-la ferozmente era quase intolerável. Mas Tor tomou seu tempo, adaptando-se a cada centímetro de seu interior e entrando, ditoso, até o último milímetro.

Quando finalmente acessou todo o interior aveludado e molhado, quase não podia respirar e o esforço por conter-se captou virtualmente toda sua concentração. Precisava deixar-se ir. Necessitava-o tanto que quase lhe doía.

—O que sente? —conseguiu balbuciar.

Christina demorou um momento em responder.

—Sinto-me cheia… —Suspirou entrecortadamente—. Maravilhosamente cheia.

Era a resposta perfeita, e justo o que seu ânimo que necessitava. Começou a mover os quadris, para trás e para frente, devagar ao princípio e logo mais rapidamente, sobre o corpo convulso de Christina.

Ela gemia com cada impulso, e esses eróticos ruidinhos que o deixava louco.

Os músculos lhe ardiam pela tensão de manter-se fora dela. A pressão crescia e crescia. Nunca se havia sentido assim. Nunca. Com todo o corpo consumido pelas sensações que percorriam seu interior. O sustentava com o corpo, espremendo com cada prolongado puxão.

Não podia agüentar mais tempo.

—OH… Deus — gemeu ela.

Por fim. Tinha chegado o momento que esperava. Cravou fundo sua espada.

Mais depressa. Mais forte. Encontrou o ritmo perfeito para que ela…

Christina gritou e ele se deixou ir, penetrando-a profundamente uma vez mais e jogando a cabeça para trás com um primitivo uivo de prazer. O sangue retumbou em seus ouvidos enquanto a força de seu orgasmo estalava em uma tormentosa corrente de sensações, pulsando e pulsando até que seu corpo expulsou o último grama de prazer. O êxtase era muito potente e ficou aturdido um momento.

Quando já tinha caído a última maré que emergiu de seu corpo, caiu derrubado junto a ela, totalmente exausto. Nunca havia se sentido tão derrotado em sua vida. Tentou recuperar o fôlego. Sentia-se fraco; seus membros pareciam de gelatina.

O que lhe tinha feito Christina?

Aparentemente, não era o único que estava submerso em uma aturdida letargia. A respiração dela era tão entrecortada e instável como a sua. Tor agradeceu o silêncio. Pela primeira vez em sua vida, não sabia o que fazer nem o que pensar.

A confusão lhe inquietou.

Fixou o olhar na penumbra e se disse que não tinha importância.

Acabava de convencer-se de que estava exagerando e dando muita importância ao estado de sua mente, quando ela se aproximou a ele, aninhando-se contra seu corpo. Ao notá-lo, ficou imóvel e sentiu uma queimação no peito. Vacilou um segundo, e seu instinto lutou contra a consciência de que devia manter distância.

De momento venceu o instinto. Por uma vez não faria mal. Rodeou-a com o braço e tentou não pensar em quão agradável era senti-la a seu lado. Toda essa pele cálida e suave pega a ele. A sedosidade de seu cabelo derramando sobre seu torso e essa mão deliciosa sobre seu coração.

Tor esperou para ouvir o som estável e suave do sonho e se deslizou para fora da cama. Recuperou a roupa em silêncio, com pressa. Olhou por última vez a silhueta aninhada na cama e fechou a porta com firmeza.


Capítulo 12


Christina emergiu de repente de um sonho profundo ao sentir um calafrio nas costas. Aninhou-se instintivamente contra o calor que emanava de seu marido, mas somente descobriu os lençóis frios, o leito vazio.

A julgar o quanto gelados que estavam devia ter partido fazia tempo.

Franziu o cenho. Possivelmente tinha dormido mais do que pensava. Mas quando conseguiu abrir os olhos viu que a luz cinzenta do amanhecer se filtrava através das venezianas de madeira.

Enquanto tentava mover-se, perguntou-se o que podia ter provocado que Tor despertasse tão cedo. Se não fosse pelo frio intenso da alvorada, Christina teria dormido umas horas mais. Mas se aproximava o inverno, e no norte golpeava com uma força glacial. Eilean ao Cheo, a ilha da Bruma, o nome gaélico do Skye, não pressagiava nada bom. Provavelmente os matizes do cinza seriam os únicos tons que pintariam o céu durante um tempo.

Espreguiçou-se, mas inclusive isso custou certo esforço. Tinha todos os músculos do corpo intumescidos e débeis pela fadiga. O rubor alagou suas bochechas quando recordou o porquê.

Nunca podia ter imaginado que se comportaria com um abandono tão lascivo. Mas em realidade tinha parecido a coisa mais natural e o único modo de atuar. Seu corpo tinha reagido com seu próprio critério.

Ele soube exatamente como tocá-la, como fazer que tremesse de prazer até obter uma sensual inconsciência. Aquilo era muito melhor que em seus livros!

Um sorriso de satisfação se desenhou em seus lábios. Por muito que seu marido se mostrasse frio e indiferente, a paixão que sentia não mentia. A noite passada tinha visto uma face distinta de Tor, um lado selvagem e apaixonado, mas também doce e considerado. Não tinha limitado a obter prazer, mas sim o tinha proporcionado Preocupou-se com ela; tinha que ser assim. Tinha notado na ternura de suas carícias, no som que tinha nascido de seu prazer e no batimento frenético de seu coração.

E quando ambos caíram em um êxtase satisfeito, ele tinha ficado tão exausto como ela e a profundidade de sua respiração e a lassidão de suas pernas demonstrava até que ponto estava afetado.

Essas longas noites junto à chaminé pareciam muito mais próximas.

Mas onde tinha ido Tor?

Afastou o cobertor e saltou da cama, sem notar o calafrio em sua ansiedade por encontrá-lo. A última noite tinha derrubado uma barreira entre ambos e estava impaciente por lhe ver, por falar. Tinha amanhecido um novo dia em seu matrimônio.

Chamou o Mhairi, que dormia no quarto contíguo, e se lavou e se vestiu a toda pressa. Enquanto cruzava a extensa galeria em direção para o grande salão, viu que a porta estava entreaberta. Confiante em encontrar ali Tor, empurrou-a com cuidado para espionar o interior. Entretanto, o rangido das dobradiças de ferro arruinou seus esforços por não fazer ruído.

O escrivão se sobressaltou e deixou cair o montão de pergaminhos que estava folheando.

—Milady! —exclamou surpreso, apartando-se da mesa frente à que estava sentado.

Christina sorriu, pensando que sua voz era mais estridente que a porta.

—bom dia, irmão John. Levantastes logo nesta manhã.

Ele pareceu recuperar a compostura e lhe devolveu o sorriso.

—Como todos os dias. Os matinais à alvorada, já sabes.

Ela assentiu, incapaz de evitar a sensação de alívio ante a monótona vida da qual se livrou por pouco. Confiava em que Beatrix fosse feliz. O dia de sua chegada em Dunvegan tinha recebido o recado de que sua irmã tinha chegado sã e salva a Iona. Aquele pilantra encantador, lugar-tenente de MacDonald, tinha cumprido com sua palavra. MacSorley tinha arrumado para alcançar aos viajantes e tinha escoltado ao Beatrix durante o resto do caminho até o convento. Os ilhéus tinham fama de ser excelentes navegantes, graças a seus antepassados vikings. Certamente seu marido fazia honra a essa fama, mas a extraordinária proeza de MacSorley era incrível inclusive para um ilhéu.

—Deseja algo, milady? —perguntou o clérigo.

Christina moveu a cabeça e se inclinou para recolher um pergaminho que tinha caído junto a seus pés. Deu uma olhada, viu que era uma carta e a devolveu.

—Esperava encontrar a meu marido. O viu esta manhã?

—Não, mas provavelmente estará no salão com seus homens, tomando o café da manhã. —dispôs-se a guardar os documentos—. Eu também ia para ali. Permitem-me que lhe acompanhe?

—eu adoraria — disse ela—. Mas não desejo lhe distrair de seu trabalho.

O irmão John meneou a cabeça, e seu cabelo liso, cortado em forma de semicírculo, deslizou-se para voltar a colocar-se imediatamente em seu lugar.

—Não é nada urgente. Correspondência e pouca coisa mais.

Dirigiram-se juntos para o salão, comentando que o tempo tinha piorado e que se esperava um longo inverno. Descobriu que o jovem amanuense tinha chegado a Dunvegan pouco antes que ela, e Christina alegrou-se ao inteirar-se de que tinha passado certo tempo no monastério que havia junto a sua casa de Stirlingshire. Talvez não devesse ficar surpresa ao descobrir que a única pessoa que tinha sido amável com ela era alguém chegado de fora.

—Teremos muito do que falar — disse.

—Em efeito — respondeu ele. E fazendo eco dos pensamentos de Christina, acrescentou—: Espero que não lhe incomode que diga quão contente estou de que estejas aqui, milady. O seu é o primeiro sorriso que vi em bastante tempo. O matrimônio do chefe foi uma surpresa para o clã, mas é fácil compreender por que se apaixonou por você.

Christina ficou gelada, imóvel, a poucos passos da entrada ao salão.

—O que? —replicou com voz rouca. Parecia que lhe custava respirar.

O frade ficou avermelhado como uma beterraba amadurecida.

—Me perdoe, não deveria me fazer eco das fofocas dos criados.

A Christina não incomodou absolutamente. Mas adotando um ar de indiferença, brincou com o grosso bracelete de ouro que levava no pulso e disse como se tal coisa fosse nada: —O que comentam exatamente?

Ele soprou confundido e baixou o olhar ao chão.

—Que assim que o chefe lhe deu uma olhada decidiu que tinha que te possuir. Uma dos moços ouviu do próprio conselheiro particular do chefe.

Christina, agradada, ruborizou-se até a medula dos ossos. Sabia que essa história não era certa, embora procedesse do confidente mais próximo que tinha seu marido… ou sim?

—especulou-se muito, porque aconteceu de forma muito repentina — esclareceu ele—. E o chefe não tinha comentado que desejasse voltar a casar-se. E a aliança com a casa Fraser foi ainda mais inesperada, dadas as atuais circunstâncias.

Christina ficou desconcertada.

—A que te referes?

O clérigo baixou a voz.

—Guerra.

A ela parou o coração.

—Ouvistes algo?

Ele negou com a cabeça.

—Não, mas há rumores que com a captura de Wallace os focos da revolta estão estendendo-se por toda Escócia. O chefe se esforçou em manter sua neutralidade até agora. Mas sua família é famosa por ser fervente partidária da causa patriótica. Casar-se com uma Fraser…

Não era necessário que terminasse. Casar-se com ela punha em dúvida essa neutralidade. A isso se referiu seu marido no navio: a razão pela que se negou a casar-se com ela em um princípio.

—Nosso matrimônio não tem nada que ver com política — disse com firmeza—. Quão último o senhor desejava era uma aliança com meu pai. —Foi incapaz de ocultar o deixe sardônico de sua voz—. Qualquer que pense o contrário está equivocado… Muito equivocado — insistiu.

Mas uma voz em seu interior se perguntou se não haveria possivelmente um pingo de verdade nesse rumor de que o agradava. Tor MacLeod não era um homem a quem se pudesse obrigar a fazer nada. Senão quisesse, não teria casado com ela, sobretudo peã objeção política.

A naturalidade com que o frade tinha falado de traição a afetou. Embora não conhecia pessoalmente a Eduardo da Inglaterra, estava muito a par dos riscos que supunha lhe desafiar.

—Falar assim de guerra é perigoso. Skye está muito longe de Londres, mas o rei Eduardo tem espiões por toda parte. Espero que ponham freio a qualquer rumor deste tipo. Não quero que meu matrimônio cause nenhum problema desnecessário a meu marido.

O clérigo assentiu, pormenorizado.

—É obvio, milady. Sois tão sábia quanto formosa.

Christina aceitou a galanteria com um sorriso; não estava disposta que as ameaçadoras nuvens de guerra e a política lhe danificassem o dia. A noite passada tinha sido um sonho feito realidade; uma noite sobre a qual construir um futuro, e nada podia atenuar a felicidade que albergava seu coração.

Ou acreditava nisso.

O escrivão e Christina entraram no salão sem serem vistos. Mesmo sendo muito cedo havia muita gente pululando por ali e isso a surpreendeu. Dirigiu o olhar instintivamente para a ampla poltrona, semelhante a um trono, que havia sobre o estrado e ficou imóvel.

Aquela felicidade que acreditava tão afiançada desapareceu como a água através de uma peneira.

Sentada junto a seu marido no estrado, na cadeira que pertencia a ela, estava àquela formosa mulher em quem se fixou a noite de sua chegada. Ambos tinham as cabeças juntas e seus ombros se roçavam. Comportavam-se com naturalidade e a intimidade entre ambos era evidente.

—Acontece-lhe algo, milady?

Christina, consciente de que exteriorizava seus sentimentos com claridade, amaldiçoou a brancura de sua tez e desejou recuperar a cor nas bochechas. Mas tinha que saber.

—Essa mulher - disse, sem olhar—, sentada ao lado de meu marido… Quem é?

O frade olhou para o estrado e ficou tão avermelhado como antes. Igual a Christina, sua expressão permitia interpretar facilmente suas emoções, e nesse momento era evidente que se sentia incômodo.

—Lady Janet MacKinnon, milady. A viúva do anterior tenente do chefe.

Viúva. Seu coração desfaleceu ainda mais.

—São muito amigos? —perguntou depois de um suspiro.

O amável e jovem clérigo não fingiu que não entendia sua pergunta. Nem lhe respondeu com uma mentira piedosa.

—Sim, tenho entendido que sim.

A segurança que Christina acaba de adquirir ficou pulverizada. A tristeza invadiu seu peito. Aquela mulher tinha sido sua amante. Mas, era ainda?

*

Tor acabava de expor o que desejava dela, quando de repente Janet ficou tensa.

—É melhor que eu vá - disse, assinalando a entrada.

Tor deu a volta e viu Christina aproximando-se do estrado. Janet tinha razão. Ele não queria que sua esposa ouvisse o que estavam falando; era muito propensa a fazer perguntas inconvenientes. Ao fixar-se na gélida rigidez da expressão de Christina e no rubor de suas bochechas, franziu o cenho. Parecia molestada por algo. Rapidamente deu uma olhada pelo salão, para ver se havia algum outro toque de feminilidade que deveria ter notado.

Ao não ver nada se dirigiu para Janet, que já se pôs em pé.

—Terminaremos isto mais tarde - lhe disse em voz baixa.

Ela assentiu e se foi a toda pressa.

Ao cabo de um momento, sua esposa ocupou o assento que Janet acabava de deixar livre. Estava preciosa e régia com seu cote-hardie de veludo azul, mas estranhamente reservada também. Sentou-se sem dizer uma palavra.

—bom dia - disse Tor—. Confio em que tenha dormido bem.

Não havia nada provocador em seu tom, mas ela se ruborizou. Olhou-o por debaixo dos cílios.

—Sim, muito bem. —Levantou o olhar para ele—. E você? —Inclinou a cabeça—. Saiu muito cedo. Espero que não tenha acontecido nada mal.

A preocupação no seu tom de voz e o que levava implícito fez que Tor adotasse certa cautela. Estava claro que ela esperava que dormisse a seu lado. Não queria decepcioná-la, mas isso era impensável.

—Nada mau - disse—. Dormi no salão com meus homens, como faço todas as noites. —Onde devia estar, pensou.

Prevendo a reação dela, preparou-se. Mas não o suficiente. O brilho de dor que apareceu no olhar de Christina atravessou as defesas que tanto custara levantar.

—Já entendo - apontou ela.

Baixou os olhos para sua terrina para evitar o olhar de Tor, e ele se alegrou por isso. Mas aquilo não mitigou o desconforto da carga que sentia no peito, consciente de que tinha ferido seus ternos sentimentos. Ela não podia evitar ser vulnerável; as mulheres eram criaturas emocionais. Sentiu o peculiar impulso de tomar a mão e apertar como um gesto de carinho. Mas se desfez dessa estranha idéia, sabendo que não tinha motivos para sentir-se culpado. Ele sempre tinha dormido no salão com seus homens; não era nada pessoal contra Christina. Mas primeiro vinha o clã.

Ela se equivocava lhe exigindo esse tipo de coisas, é obvio. Mas era uma recém casada. Já aprenderia. Obviamente, tinha certas ilusões sobre esse matrimônio, e quanto mais cedo se desse conta de que não ia ser uma história romântica como as que interpretavam os bardos, melhor. Ele era um chefe das Terras Altas, não um cavalheiro namorador, educado no amor cortesão.

Certamente não pensava perder a cabeça por uma moça.

Bebeu um último gole de cerveja e se separou da mesa com um empurrão. A maioria dos homens chegariam nesse dia, e queria estar presente.

—Vais? —perguntou ela.

Tor tentou ignorar a decepção de seu tom de voz.

—Sim. —Recordou sua promessa e acrescentou—: Estarei fora várias noites, assim que me despeço até então.

Sua esposa ficou desolada.

—Mas se acabar de voltar… Aonde vais?

Ele queria lhe dizer que uma mulher não devia fazer perguntas a seu marido, mas Christina parecia um gatinho maltratado. E se sentiu como uma maldita besta. A pressão que sentia no peito aumentou. Não desejava mentir, mas tampouco podia lhe dizer a verdade.

—Há várias coisas que requerem minha atenção. Freqüentemente passo tempo fora, visitando minhas propriedades. —A torre de pedra de Waternish22 era, em efeito uma dessas propriedades, mesmo assim, estava mentindo.

—Sinto muito. É obvio. Tudo isto é novo para mim. —Olhou-o espectador—. Adeus.

Christina separou os lábios a modo de um ingênuo convite. Ele observou sua boca rosada e suculenta durante um minuto, absolutamente tentado. Com um grunhido, que foi metade maldição, metade gemido, desviou o olhar e apertou a mandíbula.

—Adeus - disse, antes de fazer alguma tolice como atraí-la a seus braços e beijá-la até que se desfizesse o nó que tinha no peito.

*

Em Skye se congregou o melhor do melhor.

A última hora da tarde seguinte, os dez guerreiros tinham chegado à antiga fortaleza em ruínas do Dun Hallin Broch. Cravada em uma zona remota da península do Waternish, a franja de terra que confinava com Dunvegan. A torre e o assentamento dos arredores estavam abandonados muito antes que os ancestrais escandinavos de Tor desembarcassem em Skye.

A torre era uma fortaleza circular de pedra com um diâmetro interior de uns sete metros e meio, e muros de três metros de largura, situada em uma pequena elevação do páramo rochoso. Em outra época, os muros alcançavam uma altura de nove metros, mas a parte superior da torre e o teto tinham desaparecido há muito tempo. Mesmo assim, com um pouco de madeira para um telhado nova e fogo de turfa, proporcionaria refúgio suficiente para os piores ventos e chuvas do inverno. Não seria confortável absolutamente, mas comparado com o que esses homens iriam experimentar nos meses vindouros era um luxo.

A situação era ideal. Estava perto de Dunvegan, mas o abrupto terreno limítrofe o convertia em um lugar de difícil acesso e escassamente povoado. Os ilhéus se mantinham afastados das estranhas construções e dos marcos de pedra dispersos pela paisagem, assim como das antigas torres circulares, que acreditavam habitadas por fadas e outros espíritos. Essa superstição ajudaria a manter afastado todas as pessoas.

Embora fosse improvável que os descobrissem ali, Tor se comportaria com extrema precaução. Havia muito em jogo. E com os recentes ataques a Dunvegan, não podia correr nenhum risco até que não averiguasse quem era o responsável.

Embora não duvidasse em pôr sua vida nas mãos de sua guarda, e o tinha feito em mais de uma ocasião, seguiu com sua prática habitual de contar a seus homens só o imprescindível. Naquele momento, quando seu primeiro-tenente seguia atrás de seu irmão, seus homens eram Fergus, seu conselheiro particular; Rhuairi, seu senescal; e seu an gille mor, primeiro espada, Colyne. A partir do dia seguinte, Colyne acompanharia as idas e vindas de Janet ao castelo para levar comida e provisões aos homens.

Se havia uma mulher em quem podia confiar, essa era Janet. Conheciam-se da infância. Ele tinha dançado em suas bodas com seu meio-irmão e ajudante, e penou com ela sua morte poucos anos depois. Aquela tristeza compartilhada tinha evoluído de uma forma inesperada, mas bem vinda, quando se tinham tornado amantes. Essa situação era conveniente a ambos, e se não fosse por suas recentes bodas, com certeza teria continuado indefinidamente. Ela era cômoda e não lhe exigia nada.

Tor sabia, não obstante, que a relação tinha terminado, mas não desejava analisar as razões daquela decisão. O matrimônio não tinha por que pôr fim a aquilo, não havia nada extraordinário em manter uma amante. Janet tinha aceitado a mudança de circunstâncias com a mesma praticidade que lhe tinha unido em um princípio. Se lamentava que a relação terminou, não o demonstrava; oxalá sua esposa fosse capaz de esconder com tanta facilidade suas emoções. Sua relação com Janet se modificara facilmente antes e tinha se modificado de novo agora, para voltar para a amizade.

À medida que foram chegando todos os guerreiros, Tor os pôs a trabalhar recolhendo lenha para reparar o teto e cortar turfa.

Era uma espécie de prova. O trabalho físico não tinha intenção de ser humilhante, a não ser pôr lutadores de elite no mesmo nível e que começassem a trabalhar juntos como se fossem um só, em equipe. Alguns dos homens conheciam bem e a outros nada absolutamente, mas em seguida se deu conta de que formavam uma equipe sem comparação.

Tor preferia trabalhar sozinho e manter a seu próprio conselho, e estava acostumado a trabalhar segundo seu critério. Aqueles homens não. A maioria deles eram cabeças ou líderes por direito próprio, acostumados a dar ordens, não às receber, e a ter um forte séquito ao redor. Não estava certo do que os tinha motivado a aceitar que ele lhes treinassem e estar sob suas ordens. Suspeitava que todos tinham suas razões para encontrar-se ali. Sabia que alguns tinham vínculos estreitos com Bruce, e indubitavelmente a premissa da equipe lhe tinha intrigado tanto quanto a ele. Sua fama como instrutor certamente tinha influenciado. Mas obedecer a ordens ia ser um desafio para alguns deles.

Tor suspeitava que tivesse passado muito tempo desde que Lachlan MacRuairi tinha empunhado uma espada para cortar um coração ou um machado para cortar uma árvore (mais que a um homem), mas o orgulhoso líder, que se não fosse por sua condição de bastardo poderia disputar com seu primo MacDonald o trono do antigo reino das Ilhas, não pestanejou. Mesmo assim, a obediência imediata não enganou Tor. MacRuairi estaria lhe vigiando.

Surpreendeu-lhe que somente um homem se mostrasse resistente ante suas ordens. Sua identidade, entretanto, não. Sir Alex Seton era o irmão mais novo do cunhado e camarada mais próximo de Bruce, «o bom de sir Christopher». Mas segundo as últimas notícias de Tor, Yorkshire, de onde procediam os Seton, seguia sendo na Inglaterra. E não importava em que lado da fronteira residia agora, pois Alex Seton brilhava nos mesmos arreios que seus compatriotas, da brilhante cota de malha ao elmo com plumas, e um peitilho profusamente bordado para enaltecer sua superioridade. Mas ao menos o arrogante inglês aprendia rápido. Se pensava que cortar turfa não era digno dele, ocultou seu desdém quando Tor lhe ordenou que em lugar disso cavasse latrinas.

Tor esperava em parte que Seton subisse a um navio de um salto e navegasse diretamente de volta à fronteira, e lhe surpreendeu o encontrar cavando uma hora depois, com sua brilhante cota de malha e seu peitilho profusamente bordado dos Wyvern e o escudo com três meias luas e duplo estandarte real, dobrados cuidadosamente a seu lado.

—Isto não lhe servirá muito por aqui - disse Tor, cravando sua pá na terra a poucos centímetros para começar uma segunda fossa.

—Eu sou um cavalheiro — repôs Seton com orgulho—. E penso ter o aspecto que me corresponde.

Seton não devia ter mais de vinte e um anos, e Tor teria apostado que não fazia muito que levava as esporas.

—Fostes um cavalheiro. Aqui não são mais que outro de meus homens, o qual está ainda por demonstrar. Seu código de cavalaria não tem lugar aqui. —Olhou-lhe com dureza—. Compreendestes o que lhe exigirá aqui? Para que assinastes?

O homem apertou os lábios até que empalideceram, mas assentiu. Disse, «sim» mas seu rosto gotejava desaprovação.

— Ponha a roupa que queira — acrescentou Tor com gesto de desinteresse—, embora logo descobriras que é um fardo muito pesado para o tipo de instrução e luta que levaremos a cabo.

Suspeitava que o menino fosse passar bastante mal para ficar a prova ante outros; não só devido a seu sangue inglês, mas também a sua juventude. MacGregor e MacLean eram jovens, mas tinham alguns anos mais que Seton. O resto dos homens teria em torno de trinta ou trinta e um, como o próprio Tor.

Cavaram um junto a outro em silêncio, mas Tor tinha demonstrado: não exigiria a seus homens que fizessem nada que ele não fizesse. Quando terminaram, ofereceu a Seton um gole de cerveja do odre que tinha cruzado sobre o torso. Seton aceitou agradecido, e limpou o suor da frente antes de dar um bom gole.

Tor o olhou, pensativo. Era alto, mas tinha a estupidez da juventude. Tinha uma espada de cavalheiro clássica e um estilete.

—E qual é sua maior habilidade? —perguntou Tor.

Dos outros homens eram óbvias. No caso de sua fama não lhe precedesse, sua escolha de armas ou adorno o fez. Somente olhando a Robbie Boyd bastava para saber por que tinha fama de ser o guerreiro mais forte da Escócia e um perito no combate corpo a corpo. Aquele homem estava forjado em ferro.

Seton avermelhou.

—Sou bom com a faca.

Tor franziu o cenho. Bom? Todos os cavalheiros eram bons com a faca.

—E para que viestes?

—Para aprender. Meu irmão também queria vir, mas Bruce não quis nem ouvir falar disso.

Sir Christopher era casado com a irmã de Bruce, por isso Alex era irmão de Bruce por matrimônio.

—Assim Bruce me enviou você. —Tor quase sentiu pena dele. Seton teria muito que demonstrar, efetivamente. Inglês, jovem… e sem habilidades especiais para conter os sarcasmos—. Não serei benevolente com você, seja quem for que lhe envie.

Aquele arrogante gesto da mandíbula reapareceu.

—Já sei. Não teria aceitado outra coisa.

—Os outros não facilitarão a ti.

O jovem sustentou o olhar com determinação.

—Isso também sei.

Tor assentiu e o deixou trabalhar, sabendo que teria que provar essa determinação.

Reatou sua marcha ao redor do acampamento para vigiar aos homens. A maioria o tinha impressionado. Havia montes de turfa postos a secar, e todos haviam trabalho com pressa para cortar a madeira e construir as vigas do teto. As habilidades marinhas de MacSorley não se limitavam à navegação e a natação. Também sabia como construir navios e brandir um machado de guerra, e tinha utilizado ambas para converter a madeira em pranchas e vigas para o teto.

Entretanto, e a pesar do promissor começo, Tor não demorou muito em se dar conta de quão árdua seria sua tarefa, quando estalasse a primeira briga no pátio traseiro da torre.

Esse grupo de homens não se parecia com nenhum dos que tinha treinado. As mesmas coisas que tinham unido à maioria, vínculos de sangue de clã, dividiam-lhe. Converter inimigos em irmãos seria seu maior desafio.

Sobre tudo quando descobriu dois homens golpeando-se até ficar inconscientes. Naquele momento utilizavam tão somente os punhos, mas Tor sabia que as armas não demorariam em aparecer.

Acreditava ter deixado muito claro quando chegaram que não toleraria nenhuma briga entre eles. Pelo visto, necessitavam que recordasse.

Furioso, não só pela falta de disciplina mas sim pela afronta a sua autoridade, Tor encheu um balde de água gelada do arroio próximo e a lançou sobre os dois guerreiros em luta. Quão único precisavam era um impacto momentâneo. Ambos eram fortes e corpulentos, mas amarrou as mãos do MacGregor à costas e afastou ao Campbell como se não fosse mais que um rapazola. Esteve tentado em lançar a ambos ao arroio, para que se refrescassem, mas conhecia um castigo muito mais efetivo, embora confiasse que finalmente se convertesse em uma lição.

Empurrou longe ao famoso arqueiro. MacGregor sacudiu o cabelo e olhou ao Campbell como se estivesse disposto a começar onde tinham deixado.

—Eu não faria — advertiu Tor em tom glacial—. Necessitarão-nos nos próximos meses.

Eles não sabiam ainda, mas MacGregor e Campbell acabaram de se converter em aliados.

MacGregor cuspiu e limpou o nariz e a boca machucadas.

—Antes se apagará o sol que um MacGregor necessite a um velhaco presunçoso como Campbell. —Os MacGregor eram um clã antigo e orgulhoso de linhagem real, e sua voz gotejava condescendência.

O irmão caçula de Neil Campbell se incorporou de um salto. Arthur era o melhor explorador das Terras Altas, mas por desgraça recentemente tinha posto essa habilidade ao serviço dos ingleses, em total desacordo com sua família. Vigiaria-lhe de perto como ao MacRuairi. Até então, a única impressão que tinha Tor era que se tratava de um homem tranqüilo e ensimesmado.

—Presunçoso? —disse Campbell—. E vocês o que são? O orgulhoso clã Gregor descendia de reis, mas, sem poder nem influências. Que baixo têm caído os poderosos. Mas se vieres aqui e me pedes isso com muita educação, possivelmente vos lance um osso alguma vez. —Torceu os lábios—. Ou têm muito medo de que te desfigure ainda mais esse bonito rosto?

Além de ser o melhor arqueiro das Terras Altas, MacGregor também era muito conhecido entre seus companheiros por ser muito atraente. Tor sentiu pena do pobre bastardo. Certamente para um guerreiro essa ridícula reputação era um pesadelo.

MacGregor grunhiu e deu um passo para ele, mas Tor o segurou pela borda do cotun e o reteve.

—Já basta — disse, e então olhou ao Campbell—. Os dois. —O matiz inflexível de sua voz deixava claro seu aborrecimento.

Deu uma olhada ao redor e viu que outros homens se juntaram para olhar. Bem. O que tinha que dizer afetava a todos.

—Advirto isso, não tolerarei brigas. —dirigiu-se ao resto—: De jeito nenhum. Não me importa que suas famílias se odiaram durante anos, nem se seu pai matou ao dele; nada disso importa. Qualquer briga ou inimizade que tiveram antes de chegar aqui deve desaparecer neste mesmo momento.

MacRuairi cravou a pá no chão com um terminante golpe. Seus olhos escuros eram muito ameaçadores e desafiantes.

—Isso também afeta a você, chefe?

A Tor não passou despercebido o sarcasmo, e reprimiu o impulso de socar o punho nesse queixo petulante. Ele não era seu chefe e nunca seria. Mas somente MacSorley sabia que ele não seria o líder do grupo quando terminasse a instrução, e era melhor que seguisse sendo desse modo no momento. Embora ele não fosse seu líder no futuro, durante os próximos meses seria, e até então aplicaria as mesmas normas. Por muito que o odiasse, por agora MacRuairi seria seu irmão. Quando aquilo tivesse terminado, converteriam-se de novo em inimigos.

—Sim — disse Tor, lhe olhando diretamente aos olhos—. Tendo em conta no que estamos a ponto de nos embarcar, não poderia ser de outro modo. Se triunfarmos, este será o maior exército que o mundo tenha visto; reunirá o melhor que a Escócia jamais ofereceu na arte da guerra. Jamais se tentara nada parecido a isto. —Olhou a todos—. Cada um de vós é o melhor em seu campo, mas somente com sua força e habilidade não chegaria tão longe. Somente podem vencer a… quantos homens…?, possivelmente vinte ou trinta? Lutem juntos e poderão vencer exércitos, centenas, possivelmente milhares. Sozinhos são os melhores, juntos se converterão em lenda. Mas aqui não há honras pessoais. A honra está em servir juntos como parte da equipe.

O êxito desta guarda, suas vidas e as de todos os que nos rodeiam só estarão a salvo se confiarem no homem que têm ao lado. —Tor olhou sucessivamente ao MacGregor e ao Campbell—. Já não são um MacGregor e um Campbell. Esta guarda é seu novo clã. Estes homens são seus irmãos.

Deixou que suas palavras fizessem rachaduras neles. Estava claro que não estavam dispostos a aceitar aquilo, Tor tampouco esperava: os guerreiros das Terras Altas não confiavam facilmente. Mas eles fariam. Não existia alternativa para uma equipe como essa.

—Eu trabalho sozinho — disse MacRuairi.

—Não, já não. Se querem ficar aqui, não. —Tor deixou cair a ameaça mas, desgraçadamente, MacRuairi não mordeu o anzol. A forma como lhe olhou, entretanto, deixava entrever tudo menos conformidade.

Tor passou revista ao resto dos homens.

—A partir de agora, consagrarão tudo à equipe. Seu dever e lealdade são para mim e para esta guarda.

—Não te esqueces algo? —perguntou Seton—. O que passa com Bruce, nosso senhor e soberano por direito?

—Deixem que eu me preocupe com Bruce — replicou Tor. Para operar com esse grupo, a máxima autoridade devia radicar no líder do mesmo, mas essa discussão tinha que esperar outro dia, e ia deixá-la para o MacSorley.

—Agora mesmo, nós não existimos; inclusive Bruce estaria de acordo. O segredo é primitivo. Nossos nomes. Nosso objetivo. Tudo. Não podem contar a ninguém o que fazemos. Isso inclui esposas e famílias, se alguém é casado.

A pouca informação que tinha obtido de MacDonald e do Lamberton antes de ir não falava de esposas. Ele sabia que MacRuairi acabara de ficar viúvo, de uma MacDonald, nada menos. Confiava que a maioria deles não fossem casados; assim era menos complicado. Os homens estavam calados, com expressão sombria, refletindo sobre o que havia dito e perguntando-se sem dúvida se tinham cometido um engano.

—Se alguém quiser partir, que diga agora. —Não esperava que respondesse ninguém; ainda não em qualquer caso, e nenhum o fez.

—Então, descansem um pouco — acrescentou—. Necessitarão. Amanhã começamos.

O grupo se dispersou lentamente. MacGregor e Campbell começaram a afastar-se com outros. MacGregor o fez sozinho, e Campbell, atrás do grupo mais numeroso.

—Esperem — disse Tor, lhes detendo—. Não terminei com vós.

Deu um par de pernadas até uma bolsa de pele com fornecimentos que tinha levado consigo e extraiu uma corrente de ferro de um metro de longitude. Com grilhões nas pontas. Embora confiasse em não necessitá-los no primeiro dia, tinha ido preparado. Aquele mecanismo tinha demonstrado ser efetivo quando se produzira alguma disputa ocasional entre as filas, mas ali ia ser de inestimável ajuda.

Durante os próximos aqueles dias dois homens estariam atados entre si, desejassem-no ou não. Confiava que gostassem de correr porque estavam a ponto de realizar um extenso percurso pelo Waternish.

Ambos os guerreiros lhe olharam com receio quando se aproximou, com as correntes ressonando a cada passo. Mas foi MacGregor quem perguntou: —O que é isso?

Tor sorriu, recordando as anteriores palavras do MacGregor.

—Para vós; hoje é o dia em que se apagou o sol.


Capítulo 13


Christina observou Tor na escuridão. Os movimentos apressados e precisos, que nas duas últimas semanas se converteram em um pouco dolorosamente familiar para ela, pareciam um pouco menos rápidos, um pouco menos resolvidos e decididos. Dirigiu o olhar para a janela, tentando adivinhar que horas era. Faltava pouco para que amanhecesse? Era uma ingenuidade pensar, ou ele se entretinha cada vez mais?

«Estarei fora uns dias» se convertera em algo freqüente. Via muito pouco a seu marido, salvo de noite, envolto em um véu de penumbra. Desde sua noite de bodas atrasada, Tor tinha passado apenas dois dias no castelo de Dunvegan. Quando estava ali, ia a sua cama sem falta, sempre tarde, mas nunca dormia a seu lado. Ela desejava que ficasse. Que a agarrasse em seus braços. Falar. Ele seguia sendo basicamente um estranho para ela, e estava se desesperada por conhecê-lo melhor. Mas por ardente que fora a paixão entre ambos, quando terminava Tor retornava ao salão, com seus homens. E por muito que ela dissesse a si que aquilo não tinha importância, sim tinha.

Mas nessa noite, Christina se negava que a decepção escurecesse a satisfação que sentia depois de fazer amor. Ainda experimentava a calidez de suas mãos no corpo. A plenitude de lhe ter entre as pernas. Notar aquele peso, cada vez que a penetrava. Seu intenso aroma varonil seguia suspenso no ar, em seu nariz e em sua pele. Ainda notava debilidade nas extremidades devida à força de sua entrega.

A promessa de sua noite de bodas se cumpriu com acréscimo. A paixão que havia entre ambos era mais maravilhosa do que tivesse sonhado jamais.

Suficiente, por agora.

Fechou os olhos, com o desejo de reter a sensação de satisfação. Se lhe olhasse, sabia que diria algo que arruinaria o momento. Essa noite não haveria perguntas sobre seus planos para o dia seguinte ou sobre quando voltaria, e portanto tampouco receberia respostas cortantes que atenuariam sua felicidade.

Esperava ouvir o som da porta fechando-se de repente. Em lugar disso, ouviu passos que se aproximavam da cama. Teve que esforçar-se para conter a respiração e não abrir os olhos para ver o que estava fazendo Tor. Era como se pudesse notar o peso de seu olhar sobre ela. Ele permaneceu ali quieto um bom momento. Christina teria dado tudo por saber o que estava pensando.

O ar se moveu. Seu aroma escuro e masculino se fez mais intenso. Christina ouviu o som estável de sua respiração quando se inclinou para ela.

O coração deu um tombo. Teve que fazer uso de todas suas forças para não dar um salto quando lhe acariciou a testa com os lábios.

A delicadeza daquele gesto fez que o que aconteceu a seguir resultasse cômico em certo modo. Ele deu um par de pernadas, e não um par de pisões, para a porta. Somente quando ouviu que se fechava, Christina permitiu que em sua boca se desenhasse um grande sorriso.

Embora seu marido não gostasse, não ficava tão indiferente como aparentava.

Quão único precisava era um pouco de paciência.

*

Christina seguia sorrindo quando terminou de tomar o café da manhã. Tor não se reunira com ela, e supôs que partira pra aonde fosse que ia constantemente. Mas nesse dia não estava necessitada de companhia. Pelo visto ganhara uma escolta privada.

Desde que tinha pilhado olhando-a da despensa da cozinha, tinham-na seguido como sabujos. Nesse mesmo instante estavam observando como arrumava as últimas flores de outono em um vaso de cerâmica vidrada, na cabeceira da mesa do estrado, esforçando-se por ser pacientes (o qual claramente estava custando muitíssimo) e não entremeter-se em seu caminho (o qual, tendo virtualmente pegos aos seus calcanhares, era impossível).

Quando ela se afastou um pouco do vaso, Deidre já não pôde esperar mais.

—Fizemos o que vocês disse, milady — disse a garotinha, espectadora.

Christina baixou o olhar a volta dos três rostos suplicantes, cujas bochechas estavam manchadas com as conservas de bagos especiais que o cozinheiro tinha preparado, e sorriu ante sua expressão de ansiedade.

A filha do cozinheiro tinha ido visitar a ilha de Harris e tinha levado seus três filhos: Ewan, de oito anos, Deidre, de sete, e Anna, que acabava de fazer cinco.

—Lavastes as mãos e o rosto?

Os três moveram a cabeça, acima e abaixo.

—Sim, milady.

Ela apertou os lábios para não sorrir.

—Mãe disse que não lhe incomodássemos — explicou Deidre. Mordeu a comissura do lábio inferior com os dentinhos e logo a olhou com gesto de preocupação—. Não lhe estamos incomodando, verdade?

—Claro que não a estamos incomodando — disse Ewan indignado—. A senhora disse que podíamos olhá-la e que depois, quando tivesse terminado com seus deveres matutinos, contaria-nos o resto. Verdade, milady?

—É verdade, Ewan.

Ele se dirigiu a sua irmã com as mãos cruzadas e assentiu com ar de superioridade.

—terminastes então, milady? —perguntou a pequena Anna.

Christina sorriu e limpou as mãos no avental.

—Acabo de terminar — mentiu, prescindindo da cera que ainda teria que retirar das toalhas, das velas que teria que substituir e do candelabro de prata que teria que polir. Todo isso podia esperar.

Além disso, Tor tampouco se dava conta.

Paciência, disse. Se a rusticidade em que se encontrava o salão quando chegou indicava algo, era que fazia muito tempo que ninguém se ocupara de que ele estivesse cômodo. Finalmente, Tor notaria os esforços que ela tinha feito para criar um lar confortável, um lugar onde gostasse de estar e ao que ansiasse voltar.

Dedicou seus pensamentos novamente aos meninos e disse:

—Então onde tinha parado?

—O malvado Meleagant afastou à rainha de Arthur e a levou a seu horrível castelo em…

—Gorre — interveio Christina.

—por que Lancelot, sir Kay e sir Gawain vão atrás da rainha e não do rei Arthur? —perguntou Deidre.

Boa pergunta, pensou Christina. Mas como explicar que a decisão do rei Arthur de não lutar por sua dama era o que justificava a infidelidade de Genebra? Uma nova pergunta a salvou de ter que responder.

—Lancelot matará ao Meleagant e salvará à rainha?

Ewan soprou.

—Claro que matará, tola. Lancelot é o melhor guerreiro de sua época; como o RI tuath. O chefe jamais permitiria que ninguém lhe raptasse, verdade milady?

Christina sorriu.

—Eu diria que não, Ewan. Mas se estiver tão seguro da vitória de Lancelot, talvez não precisem ouvir o resto.

Eles responderam saltando virtualmente sobre ela, negando com entusiasmo. Assim que os coros do «não» tiveram cessado, Christina agarrou a palmatória e retomou a história onde a tinha deixado no dia anterior.

*

Tor deixou ao senescal e a seu escrivão na galeria. Revisar a correspondência e as contas tinha levado muito mais tempo do esperado; tinha previsto estar no fiorde um momento antes, e estava ansioso por reunir-se com seus homens. O treinamento ia progredindo; em alguns aspectos melhor que em outros. Levaria tempo derrubar as barreiras que havia entre eles. Tempo do que não dispunha. Uma semana mais e encadearia a todos juntos se era necessário.

Esfregou a nuca, tentando mitigar a rigidez que sentia em toda a costa. Deus, que noite tão espantosa. Não tinha conseguido ficar a vontade. E era fácil saber a razão: comparado com a confortável cama com sedosos lençóis de linho e cálidas cobertas que tinha abandonado, a manta e a rugosidade do chão lhe tinha parecido tão agradável como um leito de pedras.

Os baús de Christina tinham chegado, e com eles apareceram muitos luxos que ele não tinha experimentado nunca. Lençóis tão suaves que pareciam de seda, e talvez o mais fascinante… Travesseiros de plumas. A primeira vez que tinha apoiado a cabeça em um, acreditou que tinha morrido e que tinha chegado ao céu.

Cada noite tinha que abrir mão de toda sua força de vontade para afastar-se de tanta comodidade. Mas, maldita seja, os guerreiros não dormiam em camas.

Diabos, a quem estava enganando? Não eram os travesseiros e os lençóis de linho o que lhe havia custado tanto abandonar, era essa mulher, muito tentadora. Mas sua fome dela era previsível, pensou. A novidade de seu matrimônio e seu insaciável desejo de Christina acalmariam logo.

Tor ouviu um sonoro estalo de risadas e aplausos procedente do salão. Perguntando-se a que era devido tanto alvoroço, dobrou a esquina, entrou e se deteve em seco. Não sabia o que esperava ver, mas certamente não a sua mulher sentada em cima da mesa com o que parecia ser uma palmatória na mão, e brandindo como uma espada.

Conteve o fôlego. Deus, era preciosa. Afastou o cabelo do rosto com um simples laço e o levava solto sobre as costas, seus enormes olhos negros brilhavam como a lua sobre o mar e suas bochechas aveludadas estavam ruborizadas de emoção. Parecia feliz, relaxada e jovem. Muito jovem. Tor não recordava ter sido tão jovem, tão feliz, ou ter estado tão relaxado, por certo.

Ela era uma rajada de ar fresco da primavera no frio e úmido inverno.

Mas que diabo estava fazendo? Dava voltas sobre a mesa a toda pressa. Uma espécie de atuação, pelo visto. Juntos a seu redor estava o que parecia a maioria dos criados da casa e três meninos pequenos, que a olhavam com expressões encantadas.

Ninguém o tinha visto chegar; toda a atenção estava centrada na veemente atuação da moça miúda. Por um momento, seu subconsciente lhe pregou uma brincadeira e viu o rosto jovial de sua mãe quando lhe contava um conto ao deitar. Tor sentiu uma intensa nostalgia dos tempos passados e teve uma fugaz ideia de quão diferente teria sido sua vida se seus pais tivessem vivos. Envergonhado ante essa debilidade, desprezou-a.

Christina agitou a palmatória frente ao menino que tinha debaixo.

—Esta vez não te libertará de seu castigo, Maleagant — disse com uma voz exageradamente grave—. Manchaste a honra de minha dama e eu, Lancelot, o principal cavalheiro do reino, defenderei-a. Deve pagar com sua vida. —Fingiu um apunhalar com uma colher—. Morre, vilão.

O menino gritou e fingiu uma morte muito teatral para grande regozijo de suas irmãs e do grupo, que estalou em outra ronda de aplausos quando estirou as pernas em um prolongado gesto final.

—Isso foi magnífico, Ewan — disse Christina, deixando a palmatória para unir-se ao aplauso—. Será um cavalheiro estupendo.

—Mas eu não quero ser cavalheiro, milady.

Ela parecia perplexa.

—Eu acreditava que todos os meninos queriam ser cavalheiros.

Ewan inflou o torso.

—Eu quero ser um feroz guerreiro das Terras Altas como o RI tuath.

«Que menino tão preparado», pensou Tor sorrindo.

—OH, milady — disse a menina maior—, e agora o que acontece? Como recompensou a rainha ao Lancelot por sua devoção?

Um vivo rubor apareceu nas bochechas de Christina. De repente, seu olhar se encontrou com Tor. Um gemido de sobressalto brotou do centro de seus lábios suaves, separados, e pareceu que suas bochechas se ruborizavam ainda mais.

—Milorde! Estás aqui!

Ao dar-se conta de que lhe tinham pilhado vadiando, os criados se apressaram a aparentar que trabalhavam e se dispersaram imediatamente. O menino e a menina maiores agarraram a irmãzinha e a levaram.

A pequena tentou soltar-se.

—Mas, eu quero ouvir…

—Chist, Anna — disse o menino. Saiu a toda pressa e acrescentou por cima do ombro—: Obrigado, milady.

—Vejo que seu público te abandonou — disse Tor. Percorreu a distância que lhe separava com um par de pernadas e se colocou de frente a ela.

Christina sorria com ironia.

—Isso parece. Muito pouco galante de sua parte, não acredita?

Devolveu o sorriso, sem pensar.

—Desculparia-me pela interrupção, mas acredito que neste caso foi bastante oportuna. Não é verdade que a rainha deu as graças ao cavalheiro de uma forma que preferiria não contar aos meninos?

Ela avermelhou de novo e ergueu os olhos para ele.

—Me parece que Deidre se deu conta de que estava suavizando as partes «românticas» da história.

Dispôs-se a descer da mesa, mas ele a deteve e lhe rodeou a cintura com as mãos. Com seus olhos escuros fixos nela. A pele sensível e arrepiada. As lembranças da noite passada fazendo o amor seguiam vivos em sua mente… E em seu corpo.

—Me permita — disse com voz rouca. Levantou-a como se fosse ligeira como uma pluma, atraiu-a para si e a baixou lentamente até o chão, desfrutando de do instante de contato de seu corpo deslizando-se pego a ele.

Alagou-lhe uma onda de ardor. Ela era tão suave e cheirava tão bem… Somente tendo-a perto se avivava.

—Assim, o que fez a rainha para demonstrar sua gratidão? —perguntou em voz baixa, incapaz de resistir.

Se não deixava de brincar com ela, pode ser que suas bochechas ficassem permanentemente tintas de rosa. Mas, maldita seja, era adorável.

—Eu… Eu - balbuciou Christina.

Ele tentou não rir. Pode ser que já não fora donzela, mas seguia sendo deliciosamente inocente. Muito distinta de qualquer que tivesse conhecido antes. Reteve-a um momento mais do necessário, tentado de levá-la de novo a seu quarto. Soltou-a.

—Tenho que ir - afirmou, para convencer-se a si mesmo, mais que outra coisa—. Tenho obrigações que atender.

Falou com brutalidade, e ela o interpretou como uma crítica, embora não tinha essa intenção. Parecia desolada.

—Deve acreditar que te casaste com uma mulher suja. Estava a ponto de limpar a prata, mas…

—Decidiu praticar seus dotes de espadachim?

Esta vez a brincadeira não funcionou.

—Os meninos —disse ela retorcendo as mãos— estavam tão ansiosos por ouvir o resto da história que me temo que me deixei levar. Voltarei para minhas obrigações agora mesmo.

Parecia tão abatida que tomou-lhe a mão, por impulso, desejando tranqüilizá-la.

—Não te considero preguiçosa absolutamente. Está fazendo muito bem o papel de senhora do castelo.

Christina abriu os olhos de par em par.

—Isso pensa? De verdade?

Era óbvio que sua opinião era muito importante para ela.

—Sim, de verdade.

Tor se deu conta de que era certo. Christina estava fazendo-o muito bem.

Levava pouco tempo ali, mas se tinha adaptado a seu novo papel de senhora do castelo facilmente. Ao pensar reconheceu quão difícil devia ter sido. Era jovem inexperiente e estava rodeada de desconhecidos. Mas tinha conseguido suficiente autoridade para obter o respeito dos homens do clã. Assim devia ser, ou do contrário não obedeceriam suas ordens. Agora que pensava, recordou que nas poucas refeições que tinham compartilhado, os serventes apresentavam as bandejas do desjejum a ela para que as passasse, e sorriam radiantes quando o fazia. Não só a respeitavam, gostavam dela.

E isso não era tudo. Havia algo diferente na fortaleza desde que ela tinha chegado. Algo, além das tapeçarias e das mudanças que Christina tinha feito e que ele mal tinha notado. Era mais cálida. Tor franziu o cenho, perguntando-se se ela estaria queimando muita turfa.

—Acontece algo? —perguntou ela.

Ele meneou a cabeça, sem deixar de franzir o cenho. Não queria ocultar seus sentimentos, mas assim que tivesse oportunidade falaria com o senescal sobre a turfa.

—Não, tenho que ir.

Os homens estavam esperando. Mas por alguma razão não estava tão ansioso por voltar para a instrução como minutos antes.

*

Deu a volta para ir, e uma borbulha de desespero surgiu no interior de Christina. Era a primeira vez que tinha tido a oportunidade de falar com ele durante o dia, desde que havia retornado e a tinha encontrado coberta de cinza na cozinha. Aparentemente começava a ser um costume encontrá-la em circunstâncias muito pouco favorecedoras. Mas não se importou. Estava ansiosa por saber mais dele e não queria desperdiçar a oportunidade.

—Espera! —Ele se voltou, perplexo, e ela se sentiu como uma parva. Suas bochechas se tingiram de rubor e se retorceu as mãos sobre a saia—. Eu… —O que ia dizer? Pensou— Não sei o que você gosta - soltou.

—O que eu gosto?

—Para comer - explicou, sentindo-se ridícula. Não era capaz nem de construir uma frase coerente quando Tor estava perto. Ruborizava-se e gaguejava e atuava como uma mocinha apaixonada, do momento em que ele entrava no aposento—. Deveria conhecer suas preferências para planejar as refeições da semana com o cozinheiro.

—Cormac permite que lhe diga o que deve preparar? —diria que ele não dava crédito.

Christina franziu o cenho.

—Não deveria fazê-lo?

—Deveria, mas Cormac é teimoso como uma mula velha. Faz o que quer sem escutar a ninguém.

Ela sorriu com doçura.

—Exceto a mim.

Ele a olhou com os olhos entoados durante um momento.

—O que fez em troca?

Christina se levou a mão ao coração como se estivesse escandalizada.

—Estou profundamente ofendida.

Tor arqueou uma sobrancelha.

Ela torceu os lábios.

—Alguém já te disse alguma vez que suspeitas de tudo?

Tor cruzou os braços, enfatizando a protuberância de seus músculos. Christina nunca se cansava de o olhar.

—Continuamente - repôs ele — É meu trabalho.

Teve a sensação de que seu marido fosse capaz de esperar eternamente, e pigarreou decepcionada.

—Ah, muito bem. Tenho descoberto que é muito mais razoável depois de uma grande jarra de cerveja.

Tor riu entre dentes, e aquele som a encheu de calidez. A brancura de seus dentes se destacava junto a sua pele bronzeada, e as rugas que rodeavam seus lábios se intensificavam quando sorria.

—Pelo visto me casei com uma moça ardilosa.

Ela se perguntou por um momento se referia ao que tinha ocorrido no Finlaggan, mas se tranqüilizou ao descobrir uma faísca zombadora em seu olhar. Sorriu-lhe.

—Eu prefiro pensar que sou esperta.

—Estou impressionado, fizesse o que fizesse.

Apesar da despreocupação com a que o disse, a agradou enormemente. Talvez tivesse notado seus esforços, mais do que tinha acreditado? Essa idéia a encorajou.

—Já sei que está ocupado, mas já levamos quase três semanas casados, e tivemos tão pouco tempo para falar… Tenho a sensação de que mal te conheço. —O sorriso desapareceu do rosto de Tor, mas ela ignorou a advertência. Deixou-se levar pela emoção de sua primeira conversação «normal» entre marido e mulher, e não quis parar—. Quase é a hora do almoço, e há muitas coisas que eu gostaria de comentar contigo. —A sua mente aparecera uma multidão de perguntas. Tinha visto os travesseiros novos? Também queria saber sua opinião sobre a cor dos novos dosséis para a cama. Tinha tanto que lhe perguntar!—. Possivelmente poderia ficar? —Então teve uma idéia ainda melhor—. Ou eu poderia ir contigo. Não chove, talvez uma refeição ao ar livre…

—Isso é impossível - replicou ele ocultando-se de novo atrás de sua aparência de chefe, e ela se deu conta de seu engano. Sentiu-se como se tivesse topado de cabeça contra um muro de pedra.

Esforçou-se por dissimular sua decepção porque não queria danificar o momento, embora temesse justamente tê-lo feito, devido a sua ansiedade.

—Talvez em outra ocasião - disse como se não desse importância. E acrescentou em seguida para repor-se—: Embora ainda não disse quais são suas preferências.

Tor fez um gesto de indiferença.

—O que você fizer estará bem.

—De acordo - disse ela em voz baixa. O momento tinha passado. Por que tinha que lhe pressionar? Por que não se contentava com o que Tor estava disposto a lhe dar?

Ele deveu notar sua expressão abatida.

—Beterraba.

Christina ergueu os olhos.

—O que?

—Eu não gosto de beterraba. Nem mandioquinhas, por certo.

A Christina iluminou o rosto.

—A mim tampouco. Algo mais?

—Os molhos doces para as carnes. O açúcar é para as sobremesas. —Olhou-a com ironia—. E para os figos secos.

Ela avermelhou, ao dar conta de que ele devia ter notado sua afeição pelas coisas doces.

—Vinho ou cerveja? —perguntou-lhe.

—Uísque, e logo cerveja. —Sorriu—. Nada dessa espécie de xarope que gosta a ti.

Também tinha notado que gostava do vinho doce? Pelo visto se dera conta de muitas mais coisas das quais ela acreditava. Desejava fazer centenas de perguntas mais, mas era óbvio que ele estava ansioso por partir e Christina não queria lhe atrasar mais.

—Obrigado.

Ele assentiu e se dispôs a ir, mas se deteve.

—Estarei fora…

—Uns dias - terminou ela a frase com tranqüilidade, sem aparentar absolutamente sua decepção.

Tor a olhou, penetrante, e Christina temeu que tivesse notado de todas as formas.

—Sim, alguns dias.

Ela se obrigou a sorrir como uma esposa complacente.

—Verei-te quando voltar, pois.

Ele a olhou longamente e pareceu que queria dizer algo, mas girou sobre seus calcanhares e se foi sem pronunciar mais nenhuma palavra. Christina o viu cruzar o pátio da janela, perguntando-se o que era o que o mantinha afastado durante tanto tempo.

Estava a ponto de desviar o olhar quando ficou gelada.

Foi como se lhe tivessem atirado um balde de água gelada em cima.

Lady Janet avançava para ele com uma grande cesta. O tipo de cesta que se usava para levar a comida para uma refeição ao ar livre.

Pelo visto o esteve esperando. Tor disse algo, e desceram a escada até a comporta marítima juntos.

O coração de Christina pulsava tão rápido que mal podia respirar. Estava convencida de que aquilo não significava nada. Mas por que ia com lady Janet e não com ela?


Capítulo 14


O inverno era feroz como um leão, trazia temperaturas glaciais, ventos gelados, dias curtos e intermináveis mantos de bruma cinza e nuvens. Quando o sol falhava, a água caía abundante dos céus.

O dia de Todos os Santos chegou e se foi, quão mesmo o de São Martín. Christina não demoraria em iniciar os preparativos para o Yule e Hogmanay. Os netos do cozinheiro se foram. Havia pouca alegria no interior daqueles lúgubres muros de pedra, mas ela tinha a intenção de fazer todo o possível para mudar isso.

Estava desanimada, mas não vencida. Paciência, disse.

O vento uivou e a chuva golpeou as finas venezianas do salão. Que noite tão horrível! Ela terminou de arrumar as samambaias, a única seguia crescendo em abundância nos arredores do castelo, além da urze, e deu um passo atrás para admirar os diversos matizes de laranja e marrom.

Deu uma olhada pelo ambiente, satisfeita de que tudo estivesse preparado para o jantar, e voltou para seu quarto para trocar-se. Nunca sabia se Tor se reuniria com ela, mas tentava ter o melhor aspecto possível para as poucas ocasiões em que o fazia.

Os dias tinham adquirido certo ritmo. Ele quase sempre abandonava o castelo ao amanhecer e retornava muito depois do crepúsculo, e às vezes nem sequer isso. Mas sempre mantinha sua promessa e lhe informava que ia partir «uns dias». Ela já não se incomodava em perguntar aonde ia; sabia que a única resposta que obteria seria a mesma de sempre: estava se ocupando de assuntos do clã, por só, aparentemente.

Christina não pôde evitar de reparar que lady Janet também estava fora freqüentemente.

Queria pensar que aquilo somente era uma coincidência. Mas lhe custava cada vez mais convencer-se de que seu marido não albergava nenhum sentimento especial por ela.

Em realidade, não sabia o que pensar. Não existia nenhum problema entre eles; certamente que não… Não tinha do que queixar-se. Mesmo assim, seu matrimônio não estava progredindo tal como tinha esperado, e não sabia o que podia fazer.

Já estava há mais de um mês no Dunvegan, mas em muitos aspectos seu marido seguia sendo um desconhecido para ela, como no dia de sua chegada.

Tinha averiguado o que gostava de comer e beber; que seu clã lhe reverenciava como a uma lenda viva, um rei divino e um herói guerreiro, tudo em uma peça; que mantinha a ordem e o funcionamento de seu lar com precisão militar; que quase nunca se relaxava; que além de um irmão tinha uma irmã (isso disse o escrivão). E que era capaz de rendê-la com uma carícia.

Conhecia o tato ardente de sua pele sobre ela, como se intensificava o aroma de pinheiro de seu sabão quando seu corpo fervia de paixão, o roçar tosco de seu queixo junto à pele, o «v» de pêlo suave e sedoso de seu torso, a pressão de seus lábios em seu seio e a deliciosa sensação de suas mãos lhe cobrindo o corpo.

Christina entrou em seu quarto e dirigiu o olhar para a cama; o único lugar onde se conectavam. Sobreveio-lhe uma ardorosa onda de lembranças viscerais.

Sabia como os músculos de seus braços e de seus ombros se flexionavam quando se sustentava sobre ela para penetrá-la. Conhecia a dureza que adquiriam esses músculos sob suas mãos. Sabia quanto pesava o corpo de Tor sobre o seu, conhecia a plenitude desse corpo em seu interior, o ritmo com o que o fazia o amor, movendo-se dentro e fora dela. Sabia como os músculos de seu estômago se esticavam, convertendo-se em rígidas faixas antes que ele gritasse, entregue. Conhecia o som dessa entrega, o áspero grunhido e o profundo gemido que ressonavam em seus ouvidos muito depois de que ele se fosse. E ia, sempre, por muito que ela desejasse que ele quisesse ficar. Despertar em seus braços tão somente uma vez…

Sentiu uma opressão no peito e se afastou da cama.

Conhecia sua forma de lhe fazer amor, mas não sabia nada do homem. Ele guardava seus pensamentos para si mesmo. Por muito que ela tentara derrubar o muro que tinha edificado a seu redor, não conseguia. Talvez devesse pedir ao rei Eduardo que lhe emprestasse seu infame mecanismo de assédio «Warwolf» 23 pensou a contra gosto.

Tor estava tão acostumado a estar sozinho, a agüentar ele mesmo suas cargas, que ela acreditava que nem sequer imaginava o que estava perdendo. Nem que seus esforços por mantê-la à margem lhe doíam. Nas estranhas ocasiões nas que se reunia com ela nas refeições, suas tentativas por ter uma conversa mais pessoal eram recebidas com educação, mas firmemente rechaçadas. Seu esforço para que a residência tivesse um ambiente mais alegre e por contribuir um pouco de calidez ao lúgubre salão tinham ficado em nada. Ela tentava ser útil. De fazer coisas bonitas para ele, de dizer ao cozinheiro que lhe preparasse seus pratos preferidos ou de conservar sua roupa perfeitamente limpa e imaculada. Mas, pelo visto, ele estava muito ocupado para se dar conta.

Christina tinha começado a sentir-se como um de seus cães. Um cachorrinho devoto que seguia lhe pisando os calcanhares, esperando uma mínima amostra de afeto. Uma carícia.

Um olhar. Algo que demonstrasse que lhe importava. Inclusive outro beijo na testa lhe teria dado esperanças.

Não que Tor fosse cruel. A crueldade teria exigido certa dose de sentimento. Talvez isso fosse mais fácil. Nesse caso, ao menos, Christina saberia qual era sua situação.

Ela tinha acreditado captar algo especial entre eles, mas e se estava equivocada? E se não havia noites confortáveis junto ao fogo? O que faria em tal caso?

Aparentemente Tor tinha dois sentimentos a ela: educada indiferença durante o dia e paixão de noite. Esse último lhe dava esperanças. A paixão entre ambos não tinha deixado de crescer, e ela se habituou de forma gradual aos desejos de seu próprio corpo e começava a deixar-se ir.

Ao menos, esse era seu caso, e desejava pensar que era mútuo. Mesmo assim, a verdade era que ela não podia compará-lo com nada. E ele sim.

Mas inclusive na cama, Christina não podia evitar sentir que algo ia mal. Que ele se retinha. Sentiu um agudo espasmo no peito, temendo ser uma decepção para seu marido. «Devo estar fazendo algo ruim.»

Desejava desesperadamente lhe agradar. Mas como? Impressionar-lhe com suas habilidades de esposa certamente não estava sortindo efeito. Tor tinha ensinado a paixão, como reconhecer os desejos de seu próprio corpo, mas ela seguia sem saber quase nada dele. O que gostava?

Ele sempre parecia tão controlado, salvo…

Isso era! A primeira vez. Houve algo selvagem e real a primeira vez. Talvez fosse assim como gostava?

As bochechas lhe arderam ante a escandalosa lembrança de como Tor a havia possuído por trás.

Sentiu uma espessa calidez no ventre. Tinha um plano. Exigia descaramento, mas a modéstia não a deteria. Precisava dar um golpe terminante para derrubar o muro de desconfiança e isolamento que ele tinha erguido a seu redor. Warwolf não era nada comparado com o que ela tinha planejado.

*

A onda golpeou ao Tor, derrubou-o e lhe impediu de levantar-se durante o tempo suficiente para que à maioria de seus homens entrasse o pânico. Com os pulmões ardendo, conseguiu voltar para a superfície da água, absorvendo rajadas de ar a fervuras.

—Alguém disposto a abandonar? —gritou, e sua voz ficou apagada pelo rugido do vento e o martelar da chuva.

Sua pergunta foi recebida por um coro de homens exaustos mas convencidos:

—Não, capitão.

Mas depois de mais de uma hora nas geladas águas do fiorde, durante a pior tormenta que tinha sofrido Skye essa temporada, inclusive MacSorley dava mostras de debilidade.

Só um demente estaria na água em uma noite como essa. Mas era justo a noite que ele estivera esperando. Nem mesmo planejando a tormenta ele pessoalmente, teria previsto as condições de supor um desafio maior.

Thor tinha desatado sua vingança com uma poderosa corrente. A água arremetia em ondas enormes contra as escarpadas rochas que delimitavam o fiorde.

Eles tinham nadado até a boca do mesmo, a uns quatrocentos metros da costa, através de um fluxo de metro e meio de altura e uma corrente que tentava o levar de volta. Tentando à sorte no mar, esforçando-se ao máximo por manter-se a flutuação, rodeados de redemoinhos de águas negras e de uma incessante neve.

Em um tranqüilo dia de verão, ele era capaz de estar ali fora indefinidamente. Mas as gélidas águas do inverno e a ferocidade do mar minavam a fortaleza de um homem em questão de minutos. Já não batia os dentes, e fazia muito tempo que não queimavam nem as pernas nem os braços. Não sentia nada. Conhecia os sintomas do perigo, mas seguiu forçando, forçando através da dor e o medo que teriam vencido à maioria dos guerreiros de elite.

Fortaleza. Resistência. Não render-se jamais. A dureza de corpo e de mente era o que convertia a seus homens nos melhores.

Quando outros ficavam na borda, tremendo, seus homens mergulhavam.

E sendo que ele era um dos melhores nadadores do grupo, tão bom como MacRuairi, embora não tão forte quanto MacSorley, podia imaginar que alguns outros deviam estar sofrendo.

Mas abandonar era impensável. Jamais. Era melhor que averiguassem se tinham o necessário em um momento assim, quando o que estava em risco era perder a um e não à equipe inteira.

A maioria dos homens eram bons nadadores, mas Seton e MacKay não estavam tão cômodos como os outros na água; Seton porque era inglês, e MacKay porque procedia de uma região montanhosa situada no coração das Terras Altas.

A fortaleza do grupo era quão mesma a de seu elo mais fraco. E esse exercício, junto a muitos dos que ele lhe tinha imposto nos últimos dias, pretendia demonstrar a importância de trabalhar unidos, além da necessidade de estar preparados em qualquer circunstância que pudesse apresentar-se, tanto física como mental. Para vencer a um exército muito mais numeroso e melhor equipado precisariam ser mais rápidos, mais preparados, mais fortes, e capazes de mover-se pelo território mais difícil com facilidade, incluída a água.

—Enumere - ordenou. Estava muito escuro e a água muito turva para ver todos os homens, de maneira que tinha que confiar nessas recontagens periódicas para assegurar-se de que estava todo mundo.

Tinha-lhe emparceirado o primeiro dia e indicou que não deviam separar-se nunca de seu companheiro; na água significava não afastar-se mais da longitude do braço. Trabalhariam sempre juntos, por grupos, pequenos ou grandes, mas precisava lhes preparar para isso.

—Equipe um, preparado, capitão.

MacSorley e MacRuairi. O navegante e o pirata. Primos e descendentes do poderoso Somerled, ambos eram excelentes nadadores, mas a habilidade especial do MacRuairi radicava em infiltrar-se. Dizia-se que era capaz de entrar e sair de qualquer parte. Uma habilidade útil não só para resgatar homens, mas também para cortar pescoços.

Um assassino, agora Tor via claro.

Tinha emparceirado ao alegre MacSorley com seu severo e lúgubre primo para que lhe vigiasse. O fato de que as brincadeiras constantes do MacSorley irritassem ao MacRuairi era uma vantagem acidental, mas bem-vindas. MacRuairi, habituado a trabalhar sozinho, contribuía à associação outro benefício.

—Equipe dois, preparado.

Campbell e MacGregor. O explorador e o arqueiro. Campbell também era muito hábil lançando a lança, e os dois se meteram em crescentes e descabelados desafios de pontaria à medida que passavam os dias.

Depois de estar uma semana encadeados, o antagonismo entre os dois inimigos não tinha feito mais que crescer, mas tinham aprendido a trabalhar juntos e a cumprir com suas tarefas. De momento, bastava.

Acorrentar os dois tinha sido mais acertado do que tinha previsto. Os dois homens evitavam a conversação em grupo. MacGregor era solitário e Campbell observador, e gostavam de manter-se à margem; embora seus similares temperamentos não tivessem mitigado absolutamente o antagonismo.

—Equipe três, preparado, capitão.

MacKay e Gordon. Outra dupla apropriada. O duro e bondoso montanhês e o esbelto alquimista não podiam parecer mais diferentes, mas resultara que MacKay era também uma espécie de inventor e experimentador. Em lugar do peculiar pó negro que Gordon utilizava para criar raios e trovões de fogo, MacKay experimentava com armas, forjando aterrorizantes instrumentos com nomes truculentos, mas descritivos, como «arranca olhos» ou «abre crânios»

—Equipe quatro, preparado, capitão.

Lamont e MacLean. O caçador e o atacante. Lamont era um famoso caçador de homens, capaz de seguir qualquer rastro, por leve que fosse. MacLean brandia um formidável machado de guerra e se dizia que tinha liderado uma série de audazes ataques contra os ingleses no Carrick.

Os Lamont, além disso, levavam muito tempo em uma disputa com os Boyd. Se soubesse antes, Tor possivelmente o teria emparceirado de outra forma.

—Equipe cinco, preparado, capitão.

Boyd e Seton. O mais forte e o mais fraco. O inglês era o elo mais frágil da cadeia, e isso lhe enfurecia constantemente. Não era uma consideração sobre se merecia ou não estar ali, a não ser o simples reflexo de sua juventude e inexperiência. De fato, Seton tinha subestimado bastante sua habilidade com a faca: lançava o estilete com extraordinária habilidade. Mas não correspondia ao Tor lhe dizer que merecia estar ali; Seton tinha que averiguá-lo por si só.

Tor tentou franzir o cenho, mas tinha o rosto rígida de frio. Se o treinamento não melhorava ao Seton, possivelmente Boyd o faria. Apesar da evidente diferença de força entre ambos, Seton se negava a dar-se por vencido. Cada vez que Boyd se burlava dele, Seton mordia o anzol. Aquilo lhe estava devorando por dentro, e Tor se limitava a esperar que reagisse. Seu altivo orgulho inglês podia lhe causar a morte.

Talvez tivesse cometido um engano lhe emparceirando, sem ter em conta o grau do ódio do Boyd pelos ingleses. Boyd e Lamont, os rivais do clã, possivelmente teria sido melhor opção. A discórdia não era algo que escasseasse nesse grupo.

Uma nova onda lhe cobriu. Basta. Tinha chegado o momento de voltar. Deu a ordem e notou a sensação de alívio dos homens, que, entretanto estavam muito exaustos e gelados para aclamar.

Estava orgulhoso deles. Normalmente estava acostumado a reservar essa prova para uma fase posterior do treinamento, mas a tormenta lhe tinha parecido muito tentadora.

Dessa vez as ondas e a corrente estavam a seu favor, e nadaram até a borda com uma facilidade maior que quando se afastaram da costa.

Quando os homens conseguiram sair da água, Tor esteve a ponto de cair rendido nu, sobre as rochas. Ao inclinar-se para puxar mais ar, se deu conta de que havia um punhado de homens que estavam fazendo exatamente o mesmo.

—Trabalho bem feito - disse quando recuperou a respiração, como incomum elogio.

O vento e a neve úmida tinham amainado o bastante para que distinguisse as silhuetas na escuridão. Arrepiaram-lhe os cabelos da nuca, e não pelo frio. As nove silhuetas. Fazia a recontagem sem pensar; era algo que fazia por instinto. Tinha que saber que tinha contado a todos seus homens.

Lançou uma maldição. Deu uma olhada ao Boyd.

—Onde está Seton?

Boyd se sobressaltou e olhou em redor.

—Estava bem atrás de mim…

Tor não quis perder nem um segundo mais. Atirou-se de novo à água; a raiva lhe proporcionou um renovado empurrão de energia.

Ia matar ao Boyd com suas próprias mãos, fosse o mais forte ou não. Tor odiava perder um homem, pela razão que fosse. Mas não vigiar ao companheiro era imperdoável. Não tinha intenção de explicar Bruce como tinha conseguido que seu jovem cunhado se afogasse.

MacSorley nadava a seu lado.

—Já o viu?

—Não - replicou Tor. Estava escuro como boca de lobo. Deu a volta e viu o resto dos homens que tinham ficado atrás—. Dispersem. Não deixem de olhar à frente e esperem que as ondas…

—Ali! —MacRuairi assinalou uns seis metros mais à frente. Sua capacidade de ver na escuridão era assombrosa. Tor mal distinguia um brilho que emergia na superfície. Seton era loiro, felizmente para ele.

Diabos, Tor confiava em chegar a tempo.

MacSorley foi o primeiro. Sua velocidade na água não era um mito; Tor não tinha visto nunca a ninguém que nadasse tão rápido.

Com a ajuda de Tor, MacSorley arrastou Seton de volta à costa e empurrou o corpo sem forças sobre a praia rochosa.

Inclinaram-se sobre o jovem.

—Não respira - disse MacSorley.

Tor amaldiçoou. Sem pensar virou ao menino e lhe golpeou as costas com a palma da mão. Não aconteceu nada. Voltou a amaldiçoar e repetiu o golpe, com mais força.

Dessa vez deu resultado. Seton expulsou a água dos pulmões, e se engasgou enquanto seu corpo se convulsionava entre espasmos e expectorações.

Tor notou como se distendiam as costas e os ombros.

Passados uns minutos, o corpo do Seton tinha eliminado a água do mar e tentou sentar-se. Mas MacSorley lhe conteve.

—Acredito que é melhor que sigam convexo. Parece-me que bebestes muito por esta noite.

Seton conseguiu esboçar um sorriso, que em seguida se converteu em uma careta.

—Completei a prova? —perguntou, olhando ao Tor.

Este assentiu.

—Sim, menino, completou-a.

A ira retornou com toda sua força. Boyd não havia dito nenhuma palavra, e ficou quieto enquanto outros homens tentavam reanimar a seu companheiro. A julgar por sua sombria expressão, Tor se deu conta de que era consciente de seu erro, mas era muito tarde, maldita seja.

Rodeou o grosso pescoço do Boyd com uma mão; uma fúria cega percorria seu corpo.

—Qual era a regra?

Boyd o olhou sem pestanejar.

—Não se separem de seu companheiro.

Tor apertou e outros homens se aproximaram mais. Pego à cara do Boyd, ele cuspiu suas palavras.

—Estes homens contam com que estejam a seu lado, com que cumpram com seu papel, que formem parte desta equipe, e você acaba de abandonar a um de nós. Se tiverem que carregar com um homem até as profundidades do inferno, farão, porque eles o farão por você. Compreendido?

A vergonha invadiu ao resistente guerreiro. Assentiu.

—cometi um engano. Não voltará a acontecer.

Tor lhe separou de um empurrão.

—Podem jurar que não.

Tor não mandou ao Boyd a casa naquele mesmo momento, porque em parte tinha sido culpa dele. Não acreditava que tivesse pressionado muito aos homens, pressionados mais à frente do ponto que alguém acredita que há de chegar para demonstrar que alguém tem o necessário para ser um guerreiro de elite. Ou se tem o necessário ou não se tem. Possivelmente era severo, mas Tor devia ao grupo, não a um homem. Sabia exatamente até onde pressionar, e essa era uma das coisas que lhe tinham convertido em um bom líder.

Mas com escuridão ou sem ela, em última instância esses homens eram responsabilidade dele. Deveria ter se dado conta de que Seton tinha desaparecido.

—Se voltares a fazer algo assim, despacharei-te. Não me importa o forte ou extraordinário que sejas. Isto é uma equipe. Se queres lutar sozinho, retornem pra casa.

Os homens ficaram abatidos depois daquilo, e voltaram para a torre a verem comida que Janet lhes tinham preparado. Houve menos conversa do habitual, embora MacSorley não pôde resistir burlar-se de Seton umas vezes mais, a respeito de sua afeição pela água de mar, lhe oferecendo uma taça, se por acaso preferisse beber isso em lugar de cuirm.

Não era assim como Tor esperava que acontecesse, mas essa noite teve a sensação de que algo tinha mudado. Não porque Seton tivesse estivera a ponto de morrer. A esses homens não dava medo a morte. Para um homem das Terras Altas, morrer na batalha era a recompensa definitiva; o qual explicava possivelmente essa maneira de lutar selvagem e sem limites que tinha gerado terror no coração de seus inimigos.


O que tinha mudado era que os homens já não se limitaram a escutar suas palavras sobre a importância de trabalhar juntos; essas palavras tinham impregnado por fim. A mudança não aconteceria em uma noite; estavam muito acostumados a lutar sozinhos pela glória pessoal, mas chegaria.

Depois de semanas de martelar, a desatinada guarda tinha chegado a um ponto decisivo, e pela primeira vez, o êxito parecia possível. Talvez ao final não precisasse encadear todos juntos.

Deixou-lhes falando em voz baixa junto ao fogo e retornou a Dunvegan.

A tormenta tinha amainado, embora Tor tivesse se orientado pela escorregadia escada de pedra da comporta marinha sem o nebuloso reflexo da luz da lua. Os guardiães do muro lhe saudaram quando entrou no barmkin24. Não pela primeira vez, amaldiçoou a promessa que tinha feito a sua esposa. Exausto, encharcado e frio até os ossos, havia sentido a tentação de passar a noite na torre, mas não a tinha avisado de que não voltaria a dormir. Não estava acostumado a sentir-se obrigado com ninguém a atuar de uma forma determinada, e isso o incomodava.

Por que permitia que o distraísse de suas obrigações? Deveria estar com seus homens, embebedando-se e ouvindo a incessante fanfarronice e sarcasmos de MacSorley, as histórias de Gordon sobre as proezas de seu avô na última cruzada, quando lutou junto aos cavalheiros templários, os relatos de Boyd sobre as injustiças dos ingleses nas fronteiras, ou o tema preferido de quão guerreiros estavam longe de casa: as mulheres.

Mas uma parte dele, uma parte que era maior cada dia, não queria decepcioná-la. Christina estava desempenhando seu papel, ocupava-se do castelo e de suas obrigações de um modo que não lhe dava nenhum motivo de queixa. Mas o olhava de uma forma que lhe corroia a consciência.

Tor lhe estava fazendo mal, e isso o incomodava. Ela tinha alimentado esperanças sobre ele que não podia cumprir. A visão dela do matrimônio era própria do relato romântico de um bardo, como o que a tinha ouvido contar aos meninos, sobre o cavalheiro devoto de sua dama. Ele a vestiria, daria-lhe refúgio e amparo; daria sua vida por ela sem pensar um momento, mas o tipo de intimidade que desejava dele era impossível.

Embora tivesse obrigações com seu clã, não era capaz de mostrar esse tipo de sentimentos. Há muito tempo era um chefe e um guerreiro. Rodeado de morte e sangue durante a maior parte de sua vida, tinha visto coisas que lhe arrepiariam a pele. Desde o começo tinha aprendido a não sentir-se preso a ninguém. Tinha visto morrer a muita gente: a seus pais, a amigos…, diabos, inclusive a sua primeira mulher.

A distância lhe tinha proporcionado o nervo que necessitava para que seu clã sobrevivesse e prosperasse, para ser capaz de tomar decisões a vida ou morte, para conseguir a vitória no campo de batalha. Não podia permitir-se ser de nenhuma outra maneira. Era o que a guerra e o dever tinham feito dele: um homem frio e desumano.

Enquanto se aproximava viu o brilho da luz no salão, embora o jantar já devia ter terminado. Soltou outra maldição. Inclusive meio morto de cansaço, seguia sentindo esse inconfundível puxão na virilha, sabendo que logo a veria.

A novidade não desaparecia. Começava a perguntar-se se alguma vez se cansaria dela. Noite atrás noite, era incapaz de estar longe de sua mulher. Inclusive quando se obrigava a dormir na torre alguns dias, para demonstrar-se a si mesmo que podia, pensava nela. Christina tinha invadido seus pensamentos, seus sonhos, inclusive seus malditos sentidos nos momentos mais inoportunos. No dia anterior estava no meio de um duelo de espada com MacRuairi, quando levantou o braço para brandir a espada e notou o aroma de sua fragrância floral na pele. Tinha recebido um golpe no ombro por culpa dessa desorientação.

Não estava funcionando. Não importava as vezes que a possuía, o desejo por sua esposa não morria. Avivava-se. Com mais intensidade, arrastava-lhe de novo junto a ela, por muito que resistisse.

Mas essa noite, não. Essa noite estava muito esgotada. Não importava quão fascinante fosse seu aspecto, aninhada na cama, com sua cabeleira negra derramada sobre os ombros e sua delicada bochecha apoiada no travesseiro; desejaria-lhe boa noite e cairia rápido junto ao fogo com o resto de seus homens. Onde devia estar.

Entrou no salão, inspirou o aroma marcante misturado com a turfa da chaminé. Alhos e noz moscada. A calidez lhe invadiu. A pesar do cansaço, sentiu que seu corpo se relaxava. Apareceu uma lembrança enterrada nos limites de sua mente: compota de frutas. O aroma recordou a sua infância. A sua mãe. Outros tempos.

O que tinha sua jovem esposa que provocava nele essas peculiares lembranças?

Embora Rhuairi lhe tivesse assegurado que Christina não estava desperdiçando a turfa, diria que ali fazia mais calor. Não era capaz de averiguar o motivo, mas Dunvegan parecia diferente. O ar era mais quente; o ambiente mais acolhedor. Notava-o cada vez que retornava. Tinha medo de que começasse a gostar de muito.

A maioria dos componentes de seu clã seguiam desfrutando da bebida, mas uns poucos tinham desenrolado as mantas para dormir. Rhuairi se aproximou para lhe informar das idas e vindas pelas imediações do castelo durante a jornada, incluindo mais problemas com as rendas. Quando Tor abandonou o salão estava ainda mais exausto, arrasado pelas exigências de sua dupla responsabilidade. Treinar aos homens estava prejudicando seu dever com o clã.

Mas não podia enganar-se. Gostava de os treinar. Eram diferentes a qualquer outra equipe que jamais tivera treinado. Normalmente se sentia desdobrado entre capitão e soldado, mas esses homens eram seus iguais. Não só em fila, a não ser em habilidades. Sentia que era parte de algo importante.

Viu uma franja de luz por debaixo da porta e chamou. Ouviu um ofego e um trocar de um lugar a outro antes de abri-la. Quando entrou, Christina estava de joelhos, guardando algo no baú. Ela fechou de repente a tampa e se voltou para ele com um inconfundível rubor culpa nas bochechas. Tor viu o prato vazio junto à cama de Christina, e se fixou em restos de açúcar. O que estava fazendo? Acumulando figos para o inverno?

Eram bastante custosos. Mesmo assim, quando ele se deu conta de quanto gostava dos figos e as ameixas maduras, disse ao Rhuairi que comprasse mais para o Yule. Talvez assim conseguisse que ela sorrira. Gostava quando sorria.

—Viestes! —exclamou Christina, levantando-se de um salto e correndo para ele.

Por muito que gostasse de suas entusiasmadas boas vindas, teve a sensação de que tentava lhe distrair. Deu uma olhada à arca e de novo para ela.

—Incomodei-te?

Ela negou com a cabeça.

—Não, somente estava guardando uns objetos que terei que remendar.

Ele arqueou uma sobrancelha.

—Enquanto comia figos?

As bochechas de Christina avermelharam de um modo adorável, e ele sentiu uma onda familiar no peito. Levava a cabeleira azeviche solta e caída sobre o rosto como um denso véu de cetim. Sem se dar conta do que estava fazendo, adiantou-se e colocou com cuidado atrás da orelha. Algo que a tinha visto fazer muitas vezes.

Ela conteve a respiração e seus olhares se encontraram. Tor não soube qual dos dois ficou mais surpreso por aquele gesto. Foi como aquela vez em que lhe tinha beijado na cabeça. Por desgraça, nesta ocasião não estava adormecida.

Rapidamente baixou o braço e afastou o olhar.

Esses estranhos sentimentos por sua jovem esposa lhe desarmavam. Nunca tinha conhecido a ninguém como ela: doce, amável, considerada, e maldita seja, ansiosa por agradar. Tocava-lhe constantemente, roçava-lhe levemente o braço, fazia uma sutil carícia. Ninguém lhe havia tocado com tanta naturalidade desde que perdera a sua mãe. Havia algo nela que convidava à cercania.

Deveria estar na torre com a guarda de Bruce e não ali, a sós no aposento com ela, sem desejar mais que tomá-la em braços, abraçar sua suave pele nua contra ele e aspirar seu aroma fresco que era como ambrosia para um moribundo.

Tor entendia o anseio sexual. Mas esse desejo de estar perto dela não era certo, sobretudo quando atrapalhava suas obrigações. Estava se tornando brando, e, maldita seja, mais valia fazer algo.

Deu um passo atrás e ergueu as costas.

—Vim te desejar boa noite.

Christina ficou desolada.

—Não vai…

Tor fez caso omisso da punhalada no peito.

—Foi um dia muito longo.

Olhou-lhe como se tivesse pisoteado a seu cachorrinho favorito.

—OH - disse Christina, retorcendo as mãos—, é que…

Baixou os olhos para evitar seu olhar, mas ele viu o leve matiz de cor que adquiriram suas bochechas.

«É tão bela», pensou, e o peso que sentia no peito se estendeu a garganta. Às vezes lhe doía somente olhá-la. Sua doce vulnerabilidade lhe chamava de um modo que não tinha nunca experimentado. Levantou a mão para lhe acariciar a bochecha, mas imediatamente deixou cair.

Obrigou-se a desviar o olhar. Aquilo era uma loucura. Tinha que conter-se. Ela era uma distração que não podia permitir-se. Dispôs-se a dar boa noite, mas as palavras de Christina lhe deixaram gelado.

—Esperava que fizéssemos algo diferente esta noite.

Tor lhe lançou um olhar; seu corpo voltou para a vida imediatamente.

—Diferente? —disse com a voz tomada. Disse a si mesmo que não se referia ao que ele pensava. Não sabia quão provocadora soava. Ou sim? Tor tinha notado a luta que crescia no interior de Christina: sua apaixonada curiosidade natural brigava com uma modéstia de donzela profundamente arraigada. Sua inocente esposa era cada vez mais audaz. Que Deus lhe ajudasse se finalmente dava rédea solta a sua paixão.

Aproximou mais, o suficiente para que a madura redondez de seu seio lhe acariciasse o linho da camisa. As pontas eretas de seus mamilos lhe cravavam e esteve a ponto de perder o controle. Apoiou as mãos sobre o peito e moveu a cabeça para lhe olhar. A sensualidade daqueles exóticos olhos escuros não deixava dúvidas a respeito do que desejava.

O peso que Tor sentia na virilha se intensificou. Ardeu-lhe o sangue, enquanto inundava-se um suave aroma de feminilidade. Christina não tinha nem idéia do que o fazia. Como a desejava. Como o descarado desejo que sentia por ele o agradava.

—Perguntava-me se poderíamos…

Tor esperou. Seu coração pulsava desbocado sob a palma da mão de Christina. Se deu conta de que ela não sabia como dizer o que queria.

—O que é moça? —disse com voz bronca, incapaz de deixar de lhe acariciar a curva aveludada da bochecha. Sentiu um rasgo interior, como sempre que a acariciava.

—Diga o que quer.

—Perguntava-me se poderíamos tentar como…na primeira noite.

Ele ficou gelado. Mas o sangue circulava e palpitava em seu interior como uma fogueira. As correntes da cortesia nunca lhe tinham parecido tão escuras. Todos seus instintos animais se elevaram, como um leão disposto a fugir da jaula. Endureceu-lhe o membro, como uma rocha, ansioso…

Não podia estar lhe pedindo que…

Mas sim o fez. Sem deixar de lhe olhar aos olhos.

—por atrás…


Capítulo 15


Christina se ruborizou violentamente perguntando-se se não teria cometido um engano. Durante uns instantes de agonia ele não se moveu, não disse nenhuma palavra. Os músculos de seu corpo estavam tensos como a corda de um arco. No aposento ressonava um silêncio doloroso.

Não podia olhá-lo, humilhada por seu próprio atrevimento. No que teria estado pensando? O que devia pensar ele de sua desavergonhada petição? Esse devia ser o momento mais violento de toda sua vida.

—Sinto - murmurou dando um passo para trás para afastar-se dele—. Queria partir. Esquece…

Sentiu um calafrio ao ouvir o som gutural que emanou de sua garganta. Era o mesmo que ele tinha ouvido antes de…

Interrompeu-a bruscamente.

—Ao diabo - exclamou ele puxando-a até levá-la contra seu peito.

Christina afogou um grito; o contato imediato com seu corpo avivou todas suas terminações nervosas. Cravou o olhar em seu rosto e viu que sua expressão era mais fera que nunca. O tic da mandíbula tinha disparado, forte, rápido.

Inconscientemente, Christina tentou escapar, assustada do que tivesse podido desatar sem saber. Todo seu ser delatava que era um guerreiro aterrorizante, mais bárbaro que cavalheiro. E não a soltava. Seu olhar lacerante a apanhou em uma armadilha selvagem.

—Não vou a nenhuma parte. E você tampouco. Não depois de uma petição como esta. —Levantou-a no colo, e com ela nos braços subiu os degraus que conduziam à cama.

O coração de Christina começou a palpitar devido ao crescente nervosismo. Podia sentir a tensão aumentando nele, o desejo que lhe inspirava até cotas jamais imaginadas. Parecia um homem levado a extremo, a bordo de perder o controle. Aquilo era algo selvagem, perigoso e excitante, muito excitante.

Deitou-a sobre as mantas com uma suavidade surpreendente, dada a rudeza com que se despiu. Soltou a banda que levava sobre os ombros e tirou as botas e o cotun de couro reforçado.

Entretanto, quando se inclinou para apagar a vela de um sopro, Christina o deteve.

—Não, por favor. —Não queria que houvesse mais escuridão entre os dois—. Não a deixa acesa?

Seus olhos se cruzaram, e o olhar safira do guerreiro era sombria e penetrante. Não queria? Por quê?

Christina pensou que ia rechaçar sua petição, mas em troca se limitou a assentir.

—Como queira.

Tirou o leine e Christina ficou sem fôlego. Esse homem era divino! Espetacular em tudo, tal e como recordava. Um colosso de beleza e força masculinas. Cinzelado por uns músculos firmes e robustos. Seus ombros, de uma largura incrível; seus braços, grossos e definidos. Em seu abdômen apareciam marcadas umas ondas que pareciam de ferro. Por que estranha razão lhe via mais musculoso e espetacular sem a roupa e a armadura postas?

Christina não sabia onde colocar as mãos. Mas foi sua proeminente ereção a que, com um quente comichão entre as pernas, fez decidir-se. A atrevida manifestação do desejo masculino a excitou. Grossa e longa, a arredondada ponta, roliça e inchada. Brutalmente e inegavelmente masculina. Erguendo-se para seu ventre, crescendo sob o olhar insidioso e desavergonhada dela. A fina pele se esticou tanto que parecia brilhar como o mármore.

Nesse momento Christina soube exatamente onde desejava colocar as mãos.

—Cuidado, menina - a advertiu ele em tom sombrio, com uma voz perigosa e sedutora de uma vez—. Olhe-me assim e levará muito mais do que pretende.

Uma onda de prazer a invadiu ao dar-se conta de que sua admiração o excitava.

—Posso te tocar? —espetou-lhe, perguntando o que não se atrevera jamais.

Os músculos de seu abdômen se contraíram. Ele deixou cair as mãos aos flancos e assentiu.

—Sim.

Christina rodou para ficar-se de joelhos ante ele. Alongou uma mão titubeando e lhe roçou com os dedos os duros sulcos do ventre.

Tor soltou um suspiro, e seus músculos reagiram ante esse tato, suave como uma pluma. Christina mordeu o lábio para não sorrir, maravilhada pela capacidade de provocar uma reação como essa com o simples contato.

Com a mesma suavidade percorreu com o dedo a longa longitude de sua virilidade. Seus lábios se abriram de surpresa. A pele era muito suave. Como o veludo. E debaixo dela, a rígida coluna era do mesmo aço com que estava lavrado seu corpo.

Explorou a esse homem com os dedos, e logo, voltando-se mais atrevida, com a mão, rodeando-o, embora sem poder fechá-la de tudo ao redor.

Ele rugia a cada carícia, como se estivesse agonizando.

Christina o soltou e o olhou com ar dúbio.

—Estou fazendo algo mal?

Ele negou com a cabeça. Viu que os músculos de seu pescoço e de seus ombros se inchavam e ficavam tensos.

—Não, absolutamente… —conseguiu articular ele—. Segue fazendo o mesmo. —Pôs sua mão em cima da dela e lhe ensinou a tomá-lo. Olhou-a aos olhos, lhe mostrando a intensidade de seu desejo—. Ah… Assim, Tina, me acaricie.

Tina. Gostou. Era quase uma expressão de carinho.

Sustentando-lhe o olhar, fez o que lhe pedia. Algo ocorreu entre os dois. Algo que foi além da sensualidade erótica do momento e realçava cada carícia, cada movimento.

Christina observou que o prazer se apropriou de todos seus traços quando o agarrou com a mão e moveu esta de cima pra baixo, de baixo pra cima. Devagar ao princípio, e logo mais depressa, quando a paixão apareceu em seu belo rosto.

Uma estranha sensação de poder a embargou ao compreender que ela tinha a capacidade de lhe fazer isso. De levá-lo a alturas insondáveis. Aquilo devia ter algum significado especial, sem dúvida alguma.

Notou-o quente e pulsátil em contato com a palma de sua mão. Christina pôde sentir o batimento do coração no sangue, uma e outra vez, até que os batimentos do coração cobrou força. Afastou-lhe a mão com um grunhido. Uma gota perolada surgiu da ponta. Christina sentiu a necessidade de agachar-se para lambê-la. Para saborear a esse homem.

—Basta. Preciso estar dentro de ti.

Sua voz era tensa e premente. Nunca lhe tinha visto assim. Antes sua paixão tinha sido fera e intensa, mas controlada sempre. Nesse momento, entretanto, Christina sentia que esse controle ia cedendo, sentia que ele estava lutando contra algo interior. Algo que estava a ponto de deixar ir.

Outro empurrão mais. Possivelmente logo saltaria a barreira que havia entre os dois. O atrevimento tinha funcionado com antecedência. Esquecendo o pudor, Christina tirou a camisa pela cabeça e a deixou cair a um lado. Resistindo o impulso de tampar-se com os braços, ajoelhou-se diante dele, nua.

—Tome então.

*

Tor procurou agüentar, mas ia empurrando para o limite com seu inocente anseio. Oferecia-se. Nunca tinha conhecido a uma mulher que se oferecesse tanto.

Por atrás. Incrível. Nem sequer com a mais experimentada amante estava acostumado a recrear-se nesse prazer, e nem sequer se atreveu a imaginar que faria algo assim, apesar de seu primeiro encontro, com essa sua pequena mulher criada entre algodões. Embora essa mulher não deixasse de lhe surpreender.

Da petição ladina de que tomasse por atrás até a intensidade do erótico olhar que ela posou sobre seu membro e o prazer perfeito de masturbá-lo com sua doce e miúda mão, Tor esteve controlando-se. Esforçava-se para não jogá-la sobre a cama e lhe dar exatamente o que lhe pedia: a rudeza e guelra que lhe gostavam.

Entretanto, quando Christina tirou a camisa por cima revelando sua pele nívea e nua, perdeu o controle. Seu domínio se veio abaixo e ficou no chão, descuidado ao lado de seu vestido.

A lembrança de seu exuberante corpo o tinha enganado na escuridão, mas essa lembrança era incomparável vendo-a ao natural. Desfrutando de cada centímetro dessa gloriosa pele, suave como a de um recém-nascido, revelada a cálida luz das velas.

Espetacular. Sedutora. Mais bela que nenhuma outra mulher. Uma ninfa de cabelos longos e escuros que lhe caíam pelos ombros em divinas ondas enquanto seguia ajoelhada ante ele, com os seios tersos e exuberantes, coroados pelos mamilos mais suculentos que tivesse saboreado. Em contraste com a pálida brancura de sua pele, o delicado rosa parecia inclusive mais tentador e delicioso.

À luz das velas não pôde evitar contemplar a beleza de seu corpo, e em especial de seus olhos. Sustentavam-lhe o olhar, e não o permitiam desviar a deles. Escuros e luminosos, cheios de ternura e de uma emoção que ele não quis ver.

«Tome então.»

Se tinha pretendido deixá-lo louco de desejo, tinha conseguido. Pelos pregos de Cristo que tomaria. Por atrás, por cima, por baixo, de lado… De qualquer forma possível tomaria. Já.

Rodeando-a pela cintura com ambas as mãos, levantou-a da cama e a atraiu para seu peito, sobressaltando-se ao ser consciente da aguda faísca que saltou com o contato de suas peles ao roçar-se e seus corpos ao encaixar. Afundou o rosto em seu cabelo, faminto de seu sabor. Devorou com a boca, com a língua, a pele de seu pescoço, doce como o mel, enquanto deslizava as mãos por suas costas e sustentava nelas a arredondada curva de suas nádegas.

Grunhiu ao ver-se embargado de sensações conhecidas. Reconheceria a essa mulher estivesse onde estivesse. Tinha acreditado que a escuridão a faria parecer-se com as demais, mas tinha sido justo o contrário. A escuridão tinha potencializado o resto de seus sentidos, e tinha feito ser inclusive mais consciente de sua presença. O tato de sua pele, suave como o de um recém-nascido, a fragrância floral, o sabor de mel dessa mulher… Gravaram-se indelevelmente em sua memória.

Tor tinha se amparado na escuridão, escondia-se do que sabia que não poderia vencer. Entretanto, não tinha funcionado. Seus corpos se deslizaram juntos como se parecessem o um para o outro. Jamais havia sentido assim. Não pôde seguir lutando contra a paixão que existia entre os dois… Aquilo era muito forte.

Os quadris de Christina insistiam dando círculos ante ele, esfregando-se contra suas partes, duras como uma pedra. Um fogo pulsava em suas veias. Era fantástico. Era ideal. Adorava como ela se movia, vibrando, esfregando-se, abandonando-se a uma dança escura e cativante.

Sua lasciva reação tinha sido impressionante.

Tor deu a volta, sem separá-la de seu peito, e tomou um de seus exuberantes e curvos seios com uma mão enquanto que com a outra lhe acariciava o ventre e a afundava entre suas pernas.

Christina tremeu e deixou escapar um suspiro de prazer quando o dedo dele encontrou a sedosa umidade da excitação sexual. Deliciosamente molhada. Deslizou o dedo em seu interior avivando-a, dilatando-a. A respiração dela se acelerou, voltou-se irregular e se converteu em um suave lamento. Tor soube que se aproximava o momento.

—Me diga que quer isto - lhe ordenou, afundando o rosto em seu cabelo. Uma parte dele desejava que se negasse, desejava assustá-la para que fugisse.

Entretanto ela seguiu a aposta. Respondeu-lhe com seu corpo. Arqueou-se contra ele empurrando o peito contra sua mão e pressionando as nádegas com insistência contra seu membro turgente. Tor estava a ponto de explodir.

Não existia volta atrás. Para nenhum dos dois. Já não.

—Te agache — ordenou tentando controlar a luxúria que o possuía—. Ponha as mãos sobre a cama.

Christina fez o que Tor lhe indicava sem titubear, e colocou suas lindas e curvas nádegas no ângulo adequado. Ele roçou com a mão sua pele nívea e imaculada saboreando o instante de pura sensualidade. Que doçura… Resultava-lhe incrível que estivesse fazendo isso, com ela, com a jovem e inocente donzela que tinha desejado nada mais vê-la e que nunca tinha acreditado que teria.

Deslizou seu membro ereto entre as pernas dela brincando com a longitude, deslizando-se, adiante e atrás, por sua abertura, até umedecer-se com ela. E agarrando-a pelos quadris com ambas as mãos, colocou a sensível ponta e empurrou. Nublou-lhe a mente. Teve que fechar os olhos quando a intensidade o assaltou com uma fera sacudida. Afundou-se nela devagar, alongando esse incrível momento, essa sensação de prazer aniquilador.

Quente. Tenso. Bom.

Quando já não pôde mais, empurrou até o fundo. Christina gritou, surpreendida pelo prazer.

—Você gosta disto, doce Tina? —perguntou-lhe Tor incrustando-se nela—. É isto o que queria?

Tor voltou a empurrar atraindo para si seus quadris para afundar-se mais nela, para afundar-se no mais profundo.

—Sim - gemeu Christina levantando os quadris contra ele—. Por favor. Quero tudo.

Entre as brumas do desejo o sentido de suas palavras ressonou com maior profundidade. Tor sentiu que lhe cravavam com força no peito.

Deixou-se levar. Desatou sua paixão liberando a de suas ataduras, oferecendo a essa mulher tudo o que tinha. Deixando que visse exatamente quanto a desejava em toda sua primitiva ferocidade.

Christina se agarrou à cama enquanto ele arremetia contra ela uma e outra vez, e seus duros grunhidos se mesclaram com os suaves gritos dela em uma cacofonia de desejo e prazer.

Os sentidos esporearam seu corpo alojando-se na massa formigante e tórrida de seus lombares. Todos os músculos esticaram querendo relaxar-se.

Tor apertou a mandíbula concentrando-se nas sensações, no ato perverso de que estavam desfrutando. Seus olhos se desfrutavam com a visão sensual que se oferecia ante ele. O escuro cabelo de Christina esparramando-se pela pálida pele de suas esbeltas costas. O brilho do suor de Christina sobre sua pele enquanto ele a penetrava, entrando e saindo dela. As nádegas de Christina altas, para receber cada um de seus embates.

Tor contemplou o movimento de seus turgentes e grandes peitos ao ritmo de suas sacudidas, as pálidas aureolas rosas duras como duas pérolas. Acaso havia algo mais erótico que isso?

Suas fantasias se converteram em realidade. Se isso era o cume da paixão para ele… por que sentia como se faltasse algo? Acelerou o ritmo, tentando descobrir.

Ouviu que Christina tomava ar com força, e logo os tênues gritos enquanto se deixava ir, tremendo e agarrando-se a ele.

Tor ficou quieto. Um incompreensível ataque de raiva o sacudiu por dentro. Sentiu-se enganado. Tinham-lhe negado o prazer que mais queria: ver seu rosto.

Saiu dela. Ignorando a impressão do ar frio em contato com seu membro molhado, deu meia volta e a deitou de costas sobre o colchão até que ficou com as nádegas na borda da cama.

A visão de suas avermelhadas bochechas e suas pálpebras entrecerradas o enfureceu. Era como uma mofa do que se perdeu.

—O que acontece? —perguntou ela notando a mudança em Tor.

—Nada - respondeu ele entre dentes. Como homem, tinha uma missão. Queria que essa mulher voltasse a gozar. E nessa ocasião a contemplaria.

O que lhe acontecia? Estava mais descontrolado, zangado e excitado do que esteve em toda sua vida. Estava a ponto de explodir, tinha o corpo tenso pela paixão que ela tinha despertado nele. Mas necessitava mais. Maldita seja, precisava olhá-la aos olhos.

Colocou-se entre suas pernas, levantou-as e as levou a sua cintura. Agarrou-a pelas nádegas e a penetrou com força, grunhindo aliviado por voltar a encontrar-se envolto nesse fogo tenso e molhado.

Christina teve que agarrar a sua nuca para não perder o equilíbrio, dada a força de seu embate, e Tor pôde sentir o erótico comichão de seus mamilos contra o peito.

Seus rostos estavam a poucos centímetros. À luz das velas Tor viu tudo, cada traço em suas pupilas, cada matiz, cada rubor, seus lábios abertos e seu fôlego entrecortado.

Não podia afastar os olhos dela, enfeitiçado pelos sinais de prazer que descobria em seu rosto.

Quando Christina o olhou, ele já era incapaz de respirar. Tinha o peito tenso, cheio, era muito…

Era isso. Isso era o que ele tinha procurado inconscientemente.

O rubor tingiu as bochechas de Christina, e seu olhar foi cobrando intensidade enquanto seus lábios pugnavam por fechar-se.

O sangue pulsava nas veias de Tor. Podia sentir a pressão ao final da coluna vertebral, enroscando-se, aumentando a cada grito afogado que escapava dos doces lábios entreabertos dessa mulher.

Notou que lhe esticavam os testículo, uma pressão quente e poderosa acompanhando ao clímax que o devorava por dentro.

Entretanto, Tor resistiu, interpôs uma mão entre os dois e encontrou o ponto sensível dela com o dedo que lhe tinha introduzido até o fundo. Até que já não pôde mais.

Notou uma contração nas nádegas.

O corpo de Christina começou a tremer.

—Me olhe - exigiu ele com ferocidade. Ela abriu as pálpebras.

Seus olhos se cruzaram e o mundo se deteve. Durante um longo e único segundo quão único Tor viu foi Christina. Uma euforia como jamais tinha conhecido lhe embargou. Sentiu-se suspenso, como se tivesse saído de si mesmo e tivesse sido transportado ao topo mais alta da felicidade. E então teria saído voando, e o mundo teria explodido em um amontoado de sensações e de luz.

Estremeceram-se de uma vez, seus corpos tremeram sacudidos por um fluxo.

Tor a sustentou contra si, sentindo o frenético coração de Christina desbocando-se contra o seu, afundando o rosto na cálida seda de seu cabelo, inalando seu aroma terno e feminino.

Permaneceu nessa posição até muito depois de que terminassem: não desejava romper esse vínculo, não desejava partir, não desejava pensar.

Só quando sua respiração se acalmou e as pernas começaram a lhe tremer se separou. O calor que tinha unido seus corpos se esfriou com a corrente repentina do gélido ar da noite.

Ela afogou um grito de protesto e se aproximou dele. Instintivamente. Com uma confiança que o desarmou. Em um arrebatamento protetor, Tor tomou em seus braços, deitou-a na cama e se aninhou junto a ela. «Somente será um momento», disse. Para esquentá-la com seu corpo. Embora fosse ela quem lhe deu seu calor, quem lhe provocou uma sensação de satisfação que nunca tinha acreditado possível em um homem como ele. As responsabilidades de seu clã e a crueldade do campo de batalha lhe pareceram muito longínquas.

Afastou-lhe o cabelo do rosto e lhe acariciou a suave bochecha com o verso do dedo até que ela caiu em um sonho profundo.

Isso era diferente. Ela era diferente. Tinha acreditado que não era capaz de sentir emoções, mas essa mulher lhe tinha feito sentir. Havia tocado uma parte de si mesmo que levava muito tempo enterrada, e precaver-se disso o transtornou.

Sentiu como se estivesse liderando uma batalha perdida com um inimigo invisível e não estivesse seguro de como defender-se. Mas sim sabia uma coisa: estava intimamente ligado. E a intimidade não era para homens como ele. A emoção era uma debilidade que não podia permitir-se. Muitas pessoas contavam com ele.

«Mantem sob controle», disse-se. Aquilo não podia voltar a ocorrer.

*

Christina sumiu em um sonho reparador, segura nos braços de seu marido, com a certeza de que algo significativo acabava de acontecer. Um adiantamento decisivo, ao fim!

Nenhum homem podia olhar a uma mulher enquanto fazia o amor dessa maneira sem sentir algo por ela.

Entretanto, pareceu-lhe que acabava de fechar os olhos quando saiu da modorra causada pela saciedade ao notar que seu marido trocava de posição. Momentaneamente desorientada, rodou sobre o leito, abriu os olhos e viu a luz das velas. Ainda não era de dia.

Tor estava sentado na borda da cama, de costas para ela. Um muro de músculos e carne, mas tão efetivo atuando de barreira como a pedra. Tinha posto já o leine e parecia estar atando os cordões de couro cru de seus brogues25. Partia. Outra vez.

Christina se obrigou a não mostrar sua decepção, mas o desencanto aninhou em seu peito.

—Parte-te de novo -disse em um tom neutro.

Tor se voltou, olhando-a intensamente por cima do ombro.

—Volte a dormir, Christina.

Christina. Tina, não. De novo, as maneiras de dois estranhos. Um brilho de raiva se impôs à dor. Pelo que parecia, assim desejava Tor que fossem as coisas, salvo quando estavam na cama. Entretanto, por não querer adotar o papel da consorte exigente, Christina dissimulou sua raiva e tragou o orgulho.

—Eu gostaria que pudesse ficar.

Durante uns instantes Tor ficou completamente imóvel, e logo seguiu movendo-se, sem responder. O coração de Christina pulsava com força na escuridão. De verdade era tão insensível esse homem, ou simplesmente era obtuso? Acaso não entendia que ela desejava algo mais que jogar na cama?

Christina queria contribuir um pouco de doçura e calor a sua vida. Tor levava muito tempo sem que ninguém cuidasse dele. Mas estava pondo muito difícil por não dizer impossível.

Quando terminou, Tor se voltou para olhá-la. Nada em seus olhos azul gelo delatava a intimidade que acabaram de compartilhar. Voltou a encarnar ao homem de Estado. Era o temível e ousado senhor da guerra, o orgulhoso chefe do clã.

—Demorarei uns dias em retornar.

Para Christina lhe caiu a alma aos pés. A frieza de seu tom de voz a feriu. «Basta», disse a si mesma, mas lhe saltaram as lágrimas, umas lágrimas quentes que ameaçavam afogando-a. por que tinha que atuar desse modo? Tão difícil era lhe dedicar um olhar de ternura, uma palavra agradável a que ela pudesse aferrar-se? Por que tinha que mostrar-se sempre tão reservado? O grande chefe, o grande guerreiro… Mas e o homem?

—Aonde vai?

Tor apertou a mandíbula e torceu o gesto.

—Eu não gosto que me interroguem, Christina. Já te disse que tenho que atender uns assuntos do clã. Nada que tenha a ver contigo.

E era assim? Essa era a explicação que pretendia lhe dar? Christina sabia que desgostava que o apressassem, mas estava farta de tantos segredos. Incorporou-se e atirou do lençol para cobrir sua nudez. Apesar do gesto, os olhos de Tor se cravaram nela recreando-se durante uns instantes na curva turgidez de sua pele, que os lençóis deixavam visíveis. Entretanto, nesse momento o fogo de sua paixão a enfureceu. Ela queria mais. Agarrou-se com os punhos ao lençol.

—Nem sequer vais dizer-me aonde vai? Uma esposa não tem direito, que quando seu marido a abandona durante dias sem lhe dizer quando retornará, sem lhe dar nenhuma explicação?

—Não - respondeu ele com aspereza.

Christina viu com grande assombro essa fria determinação que fazia de Tor um chefe gabado e um guerreiro temido.

—Vê problemas onde não há - disse Tor como se tentasse acalmar a uma menina—. Não há nada que dizer.

A condescendência de seu tom lhe doeu. Ela era um brinquedo, indigna de maiores confidências. Tor decidiu que a conversa tinha terminado e se voltou para partir lhe dando as costas, umas costas duras, implacável. Doída, zangada e confusa, Christina não pôde evitar lhe espetar quase com um grito: —Também lady Janet vai?

Tor se deteve em seco, voltou-se devagar e cravou os olhos nela.

—Por que me pergunta isso?

Com as bochechas avermelhadas, como se não fosse digna do chão que pisava esse homem, Christina se esforçou por sustentar o olhar sem desfalecer na tentativa.

—Sei quem é - respondeu com atrevimento, e ergueu o queixo desafiando-o a que o negasse—. Não pude evitar me fixar que ela também está acostumada partir sempre que vais.

Tor entrecerrou os olhos. Não era que não fosse digna do chão que pisava esse homem, pensou ela, mas sim parecia um inseto esmagado por uma rocha. Um inseto parvo e amalucado, intrascendente.

—Está me acusando de algo, Christina? —Tor empregou um tom de voz grave e pausado, mas a ela não enganou. Estava furioso. Esse não era um tema que deveria expor uma esposa. Christina tinha que fazer caso omisso disse tipo de disposições. Fingir que não existiam. Fingir que não lhe importavam. Mas não era certo, e a idéia de que ele estivesse com outra mulher lhe partia o coração.

—Não estou te acusando de nada - retificou ela com a voz trêmula e com um nó na garganta da emoção—. Só uma observação.

—Fique tranqüila - respondeu ele passeando o olhar ao longo de todo seu corpo. O fulgor de seus olhos incinerou o fino lençol de linho que cobria sua nudez. Sua pele, traidora, acalorou-se ao notar, seus mamilos se endureceram e se esticaram protuberantes—. Colocar-me na cama de outra mulher ainda não me passou pela cabeça.

Ainda. Christina notou um peso no coração, notou que uma dolorosa flecha enfurecida lhe partia o coração em dois.

—No momento estou muito satisfeito neste terreno.

—Isso diz para me tranqüilizar?

Tor esboçou uma careta de desgosto.

—Não tenho por que te tranqüilizar.

Christina ficou sem fôlego. Tor acabava de pô-la em seu lugar, com determinação. Teria que ter imaginado. Não podia obrigá-lo a afirmar o que ela queria ouvir. Uma esposa não tinha nenhum direito a exigir fidelidade de seu marido. Se ele queria uma amante, teria, e ela não podia fazer nada a respeito. Não podia obrigá-lo a nada. Seus intuitos eram implacáveis. Quanto mais insistisse ela, com maior frieza e dureza resistiria Tor. Mas se ela não insistia, como ia romper as barreiras que a afastavam dele?

—Mas…

—Janet não é teu assunto. Nada de tudo isto é teu assunto. —Seu tom de voz, frio como o aço, feriu-a tão certeiramente como se tivesse empregado contra ela a folha da espada que empunhava com força bruta—. Fica à margem, Christina. Falo sério. —Seu olhar se abrandou um pouco—. Não quero te fazer dano, mas não tolerarei que te coloque onde não deve. Dedique-te a suas obrigações, deixa que eu dedique às minhas e tudo irá bem. Se te colocar onde não deve, somente nos conduzirá problemas entre os dois.

E com essa abominável advertência ressonando nos ouvidos de Christina, Tor deu meia volta e partiu.


Capítulo 16


Três dias depois Christina terminou de enxugar as lágrimas, embora seguisse mortificada pela dura maneira em que seu marido a tinha posto em seu lugar. A injustiça a indignava. Como pôde lhe falar com tanta rudeza? Quão único ela tinha feito desde sua chegada tinha sido tentar agradá-lo, inclusive recorrendo a desavergonhadas mutretas para satisfazê-lo na cama. Em um momento tinham compartilhado o que para ela tinha sido a experiência mais sensual de sua vida, com cenas de um erotismo e certa perversão que jamais teria imaginado. Nesses momentos sentiu que nunca tinha tido tanta intimidade com uma pessoa. No minuto seguinte, em troca, Tor a punha em seu lugar com absoluta determinação. Distanciando-se. Excluindo-a. Fazendo que se sentisse como uma fulana desavergonhada por tentar ganhar a esse homem com seu corpo.

Era paixão o único que lhe daria?

Isso parecia, sem dúvida alguma.

Ela tinha sonhado com muitas outras coisas. Se tão somente se abrisse um pouco, Christina sabia que seria maravilhoso. Tor se encontrava tão sozinho… Necessitava um pouco de calor em sua vida. Mas isso era como tentar cinzelar a pedra com uma agulha de osso, uma empreitada exaustiva, e condenada ao fracasso.

Ao Hades com ele! O arrebatamento de cólera a surpreendeu. Entretanto, se assim fossem ser as coisas, se a paixão era quão único ele estava disposto a lhe dar, aceitaria-o, e encontraria a maneira de procurar certa felicidade para si mesma.

E isso não incluía compartilhá-lo com lady Janet.

Apesar de sua advertência, Christina era incapaz de superá-lo. Tor a tinha tomado por uma garota tola e ciumenta, e tinha acertado, porque assim era exatamente como se sentia. Seus ciúmes não tinham cessado de aumentar desde dia em que ele se fora.

Que lady Janet também estivesse ausente não contribuía para melhorar a situação. Maldito Tor, o que outra coisa podia pensar?

Se não tivesse sido pelo irmão John, teria se tornado louca. O irmão John parecia desfrutar de sua companhia tanto como ela mesma, e juntos estavam acostumados a dar um passeio matutino ao redor do barmkin, se o tempo permitia. Quando, como esse dia, Rhuairi estava ocupado, Christina entrava nos aposentos do senhor enquanto o amanuense se dedicava a transcrever o que lhe parecia uma correspondência inacabável e a fazer contas. Apesar dos esforços de Christina, o senescal de seu marido se mostrava frio com ela, e em sua pessoa percebia algo que a incomodava. Tinha-lhe deixado muito claro que não acreditava que os aposentos particulares de seu marido fosse um lugar adequado para ela.

Se se inteirasse de que sabia ler, ficaria horrorizado. Apoiando-se nas leituras que tinha feito às escondidas, Christina era consciente de que não tinha a menor ideia da enorme quantidade de trabalho que representava ser chefe de um grande clã. Do mais cotidiano, como arrumar as goteiras do telhado de uma casa do povoado e arrecadar os impostos que financiassem suas vastas empresas, até o mais formal, como as jornadas legais para resolver os litígios entre os homens de seu clã ou para ditar sentença nos delitos mais graves, seu marido intervinha em tudo. Não era de admira-se que estivesse tão ocupado. Apesar de não podia evitar sentir-se orgulhosa, aquilo era muito para que o administrasse um só homem e isso tinha influenciado a decidir-se. Queria ajudar. Na vida existiam outras coisas além da guerra e o dever, e confiava em que ele pudesse compreendê-la algum dia.

Tinha esperado que seu marido confiasse nela por instinto, mas como não tinha sido assim, contentava-se aprendendo algo que pudesse saber dele.

Esteve tentada a confessar ao irmão John que sabia ler e escrever - lhe iria muito bem sua ajuda—, mas muitos documentos eram confidenciais e temeu que se ele se inteirasse, proibiria-lhe de voltar para os aposentos de seu senhor.

Por outro lado, queria dizer primeiro a seu marido. Esteve a ponto de fazê-lo na noite em que a surpreendeu comendo figos enquanto lia seu livro, mas, por alguma razão, não se decidira. Não porque pensasse que reagiria como seu pai, mas por ser um homem orgulhoso, ignorava se lhe incomodaria ter uma esposa mais culta que ele. De todos os modos, estava começando a perguntar-se se suas habilidades incomuns não poderiam lhe servir de ajuda. Possivelmente lhe seriam úteis para que a visse de modo diferente, como algo mais que uma mera companheira de cama.

O escrivão terminou seu relato e Christina riu de sua absurda descrição.

—Estou segura de que não deve ser para tanto - disse ela em tom amável, lhe estendendo a pluma que acabava de afiar.

—Asseguro-lhe que foi pior - disse ele, aceitando-a com um gesto de agradecimento—. Estava tão assustado que saí correndo do dormitório sem levar nada em cima. Quando o tutor abriu a porta na manhã seguinte, digamos que a cena não lhe pareceu divertida.

—Os outros meninos tiveram problemas?

O escrivão pareceu ofender-se.

—Claro que não. Jurei que enquanto caminhava em sonhos a porta se fechou a minhas costas. O tutor me disse que a partir de então dormisse com a camisola posta, se por acaso voltasse a ocorrer sair caminhando.

—Um gesto muito generoso por sua parte. Esses meninos foram muito cruéis ao despertar enquanto dormias.

O irmão John desviou o olhar para o papel de vitela com o que estava trabalhando.

—Generoso, não - reconheceu incômodo—. Covarde. Tive medo do que poderiam me fazer esses meninos, se contasse. —Torceu o gesto—. Embora meu silêncio tampouco lhes importassem muito.

Christina tinha piedade dele com todo seu coração. Ela também conhecia a vergonha da covardia. A vergonha de ver-se obrigada a enfrentar à própria impotência ante um inimigo muito mais forte. O irmão John e ela tinham muito em comum.

Pôs sua mão em cima da dele e a estreitou a modo de consolo.

—Às vezes sobreviver é o mais valente do mundo. —Uma fria sombra cruzou a suas costas e sentiu calafrios. Voltou-se, mas não havia ninguém.

Ele contemplou sua mão durante longo momento. Quando Christina começou a entrever o irrefletido de seu gesto, o escrivão lhe dedicou um sorriso irônico.

—Sabias que a princípio não quis entrar para a Igreja?

—Ah, não? —respondeu ela retirando a mão.

O irmão John sacudiu a cabeça.

—Tinha três irmãos mais velhos.

Ela assentiu dando a entender que o compreendia. A um quarto filho não estava acostumado a ficar grande coisa.

—O que queria ser?

Ele a olhou com ar inseguro.

—Um grande cavalheiro - confessou ele com cor às bochechas—. Como Lancelot.

Christina abriu uns olhos como pratos.

—Conhecem o Chrétien?

—eu adoro suas histórias.

Um amplo sorriso se desenhou no rosto de Christina.

—A mim também.

Voltaram a rir, e passaram a hora seguinte obsequiando-se mutuamente com as façanhas do magnífico cavalheiro de Arthur. Somente pararam quando ela se deu conta de que nem tinham tomado o desjejum.

Christina retornou a seus aposentos para refrescar-se e logo se encaminhou sozinha para o grande salão. Agradeceu que ninguém tivesse sido testemunha de seu assombro. Sabia que o irmão John se compadecia dela porque seu marido a ignorava, e não teria podido ocultar o tumulto de emoções que a embargava.

No outro extremo do salão, perto da entrada principal, viu lady Janet rodeada de um grande séquito de varões. O alívio que sentiu ao comprovar que a mulher tinha retornado sozinha foi breve. Quando o grupo se moveu, reconheceu a formidável figura de seu marido. O coração lhe deu um tombo como estava acostumado a ocorrer ao vê-lo. Inconscientemente deu um passo à frente. Acaso acabava de retornar?

E então se deteve em seco. Parecia mas a ponto de partir, recém banhado e vestido com um leine limpo que ela havia cerzido fazia tão somente um dia.

Caiu-lhe a alma aos pés quando se deu conta de que Tor tinha retornado na noite anterior e nem sequer o havia dito.

E tinha toda a intenção de voltar a partir sem despedir-se dela.

Nublaram-lhe os olhos, não só de pena, mas também de raiva. Sem lhe importar o que pensassem, decidiu apresentar-se com passo firme ante ele para lhe exigir uma explicação, e então a preciosa loira amazona apoiou a mão sobre o braço de seu marido.

Tor posou a sua em cima da dela. Não foi o contato, a não ser o olhar que lhe dirigiu o que partiu o coração de Christina como se tivessem empregado contra ela uma faca dentada. Suave. Carinhosa. Esse gesto de afeto que ela levava semanas procurando e que agora ele brindava sem esforço algum a outra mulher.

Sentiu uma dor insuportável. Experimentou um peso tão grande no peito que lhe custou respirar.

Contemplou como ele partia, de pé, como uma parva sem recursos, aniquilada. Por isso não lhe escapou o olhar de desejo que lady Janet lhe dedicou ao partir. Um desejo parecido ao dele. A corrente de empatia não sentou muito bem a Christina dadas as circunstâncias. Se tinha albergado alguma dúvida, esta se dissipou: a relação não tinha terminado… ao menos para um dos dois.

Perdido o apetite, Christina deu um passo atrás com a intenção de retornar a seus aposentos. De sair correndo. Não. Deteve-se, concedendo uns instantes para recuperar-se. Não sairia correndo com o rabo entre as pernas. Essa vez, não. Não ia deixar que outra mulher tivesse a seu marido. Sabia que existia paixão entre os dois, e embora isso fora quão único recebesse de Tor, não renunciaria a ele sem brigar.

«O que tem ela que eu não tenha?»

Tomando fôlego para encarar uma batalha, Christina entrou no grande salão e tomou assento à cabeceira da mesa.

Forçando um encantador sorriso, Christina desempenhou o papel da graciosa senhora do castelo sem deixar que adivinhassem que lhe tinham destroçado o coração.

Foi consciente da presença da outra mulher durante todo o almoço, mas lady Janet parecia ignorar sua existência. Quando Christina percebeu que a dama se levantava para partir, expôs sua jogada. O brilho de ciúmes que advertiu nos olhos da outra mulher enquanto se aproximava dela contribuiu grandemente a reforçar sua confiança. Ambas se entenderam à perfeição.

—Lady Janet… —Aludida ela lhe fez a reverência obrigada—. Permite-me um momento?

—Claro, minha senhora. —Seu tom diferente não ocultava o fato de que teria preferido o contrário.

Christina respirou fundo e se obrigou a olhá-la aos olhos.

—Como a festa do Yule será dentro de umas semanas, estava pensando em pendurar os ramos esta tarde. Sei que vive aqui há anos e esperava que pudessem me ajudar a colocar. Meu marido valoriza muito sua amizade, e eu gostaria que nos conhecêssemos melhor.

Christina tinha decidido dar morte ao inimigo recorrendo à amabilidade. Seria mais difícil para lady Janet manter uma relação com seu marido se ambas fossem amigas.

Funcionou. Tinha tomado lady Janet com surpresa; era óbvio que o amistoso oferecimento a tinha confundido. Seus formosos olhos azuis olharam para a lonjura, incômodos.

—Sinto muito, minha senhora. Não posso. Hoje não. Tenho que me dedicar a um assunto.

Christina entrelaçou as mãos até que seus nódulos embranqueceram. Seu orgulho começava a tornar-se desumano, mas se obrigou a manter a calma.

—Esse assunto tem a ver com meu marido?

Se tivessem feito esta pergunta a Cristina, lhe teriam avermelhado as bochechas. A expressão serena e a tez pálida de lady Janet, entretanto, não delataram emoção alguma. Esteve contemplando a Christina durante um momento, até que esta sentiu um violento rubor nas bochechas.

—Sois muito jovem - disse lady Janet como se acabasse de precaver-se desse detalhe.

Humilhada, Christina sentiu na calada segurança dessa mulher os anos que as distanciavam. O que tinha lady Janet que não tivesse ela? Uma experiência e uma maturidade com as que Christina não podia competir.

Pensou que era impossível sentir-se pior. Mas se equivocava.

Lady Janet mudou de expressão. Estava claro que compreendia a dor que se ocultava atrás da pergunta de Christina.

—Tor… —Lady Janet se interrompeu—. O RI tuath tem que fazer frente a muitas responsabilidades.

E lady Janet sabia quais eram. Christina se sentiu muito desgraçada. Tor tinha crédito em sua amante, mas não em sua esposa.

Lady Janet parecia sopesar suas palavras com supremo cuidado.

—Todos colaboramos na medida do possível. Não devem te preocupar com nada.

Acaso era possível viver uma situação mais humilhante? Agora a antiga amante de seu marido tinha piedade dela.

Tragando o orgulho como pôde, Christina se obrigou a esboçar um sorriso despreocupado. Se lhe saiu tremente, a outra mulher atuou com a elegância suficiente para fingir que não se deu conta.

—Possivelmente em outra ocasião. —Lady Janet inclinou a cabeça, e se voltou. Christina a viu partir, e fez provisão de todas suas forças para não tornar a chorar.

*

Tor levantou a espada por cima da cabeça de seu rival e a brandiu em cima de seu grosso capacete.

MacSorley, que o diabo o levasse! Limitou-se a sorrir.

—Cuidado, capitão - exclamou MacSorley querendo pô-lo em evidência—, ou acabarei acreditando que em realidade quer me arrancar a cabeça com isso.

A cabeça, não, mas o maldito sorriso de sabichão, sim. Tor apertou a mandíbula e voltou a balançar a espada. Seu ataque foi brutal, excessivo, um ataque ao que poucos homens poderiam fazer frente. O descomunal escandinavo possivelmente não sabia manter a boca fechada, mas sim sabia dirigir a espada. Todos e cada um desses homens eram espadachins de primeira, e nesse nível a diferença entre a vitória e a derrota só dependia de leves matizes técnicos.

MacSorley interceptou o golpe, embora necessitasse ambas mãos para isso. O entrechocar do aço reverberou na atmosfera cinza e invernal. Tor pressionou com a espada até que seus rostos ficaram a poucos centímetros de distância.

—Não têm bastante ainda?

MacSorley seguia esboçando um sorriso que mais parecia uma careta. Sacudiu a cabeça.

—Ainda não. —Falou com voz tensa, com cada um dos músculos rígidos pelo esforço de impedir que a espada de Tor lhe partisse em dois. Empurrou a sua vez e, em precário equilíbrio, cedeu o justo para desembaraçar-se da espada de Tor—. Estou me divertindo muito.

Tor soltou uma maldição reconhecendo que deveria haver antecipado seu movimento. Mas estava muito enfurecido para pensar com frieza. Em uma batalha, a falta de concentração podia matá-lo. Pior ainda, MacSorley sabia e estava explorando isso em benefício próprio, provocando-o para que perdesse a concentração. Em geral Tor era imune a essas táticas, mas o tinham posto contra as cordas, e os homens sabiam.

Tor não tinha perdido um só combate fazia mais de dez anos, e passariam outros dez mais sem que tivesse que ouvir presumir MacSorley de sua vitória. Afastou qualquer outro pensamento de sua mente negando-se a considerar a inquietante energia que ia formando-se em seu interior, alcançando a ebulição, como um vulcão a ponto de explodir. Negando-se a recordar a risada de sua mulher, que tinha ouvido ao cruzar suas dependências pessoais nessa mesma manhã. Negando-se a rememorar a ternura com que ela tinha apoiado a mão na do escrivão, ou no cômodo que os via os dois juntos. Um escrivão, Por Deus! Durante um instante de loucura quis dar um murro a esse rosto infantil de coroinha.

MacSorley dava voltas em círculo, com a espada suspensa no ar para repelir outro ataque.

—Espero que sua mulher não demore em lhe perdoar… pelo bem de todos.

Tor torceu o rosto em uma careta irada.

—De que demônios estas falando?

Detrás do elmo de aço que lhe cobria o nariz, MacSorley sorriu, regozijando-se.

—Lhe vê um pouco mais… tenso do que o acostumado depois de ter voltado do castelo. Parece razoável deduzir que este maravilhoso estado de ânimo deve ter algo a ver com essa bela mulher. E como imagino que a doce moça não é capaz de matar a uma mosca, suponho que a culpa deve ser sua.

Tor controlou a raiva… com muita dificuldade. Entretanto o mero feito de ouvir outro homem falando da beleza de sua mulher o enfureceu. Estava perdendo o controle.

As tentativas de consumir-se no trabalho, e de sobrecarregar seus homens, não estavam funcionando. Tor não podia esquecer o rosto que tinha posto Christina quando partiu. Não estava acostumado a ver-se pressionado nem interrogado, e tinha reagido mau. Com rudeza. Dizendo-lhe sinceramente o que ela não queria ouvir. Apesar da sutileza as boas palavras não ficaram familiares, se queria desfrutar de certa tranqüilidade mental, teria que tentar. Christina conseguia influir nele como ninguém.

Estar distraído era mau. Que os homens tivessem reparado nisso, e adivinhado a razão, era pior. Voltou a atacar, centrando agora sua atenção na tarefa presente: MacSorley lhe tocando o nariz.

O viking fazia frente a seus golpes, mas Tor pôde ver que começava a cansar-se. Cheirou a vitória. Possivelmente também a cheirou MacSorley, porque este fez um nova tentativa.

—Se uma mulher como essa me esquentasse o leito, passaria poucas noites metido entre este frio montão de rochas. Já eu gostaria ocupar seu lugar…

Tor perdeu o controle. Nublou-lhe a mente. Um bombeamento selvagem ressonou em seus ouvidos. E teve a esse canalha jogado de costas, com a folha da espada ao pescoço, antes que este pudesse acabar de falar. Finalmente o sorriso desafiante lhe tinha apagado do rosto.

O sangue pulsava com força pelas veias de Tor. Depois de muitos anos de batalhas, a necessidade de matar se tornou instintiva. Os dois homens se olharam, soprando, ambos os conscientes da vontade que tinha Tor de afundar essa espada na garganta do MacSorley. Este tinha provocado à fera muitas vezes. Todos os músculos do corpo de Tor tremeram enquanto este com muita dificuldade tentava conter-se.

Esforçou-se por recuperar o controle e, pouco a pouco, conseguiu. A prudência emergiu da loucura. Seus lábios se franziram em uma linha dura e implacável.

—Têm algo mais que dizer?

Para ser um homem a ponto de morrer, MacSorley parecia curiosamente desconcertado. Arqueou uma sobrancelha, mas a seguir esboçou uma careta como se inclusive o mais insignificante dos movimentos fosse doloroso. Esfregando a nuca, disse: —Vejo que estivestes praticando com o Boyd. —Entrecerrou os olhos para proteger-se da luz do sol—. Bheithir, verdade? —perguntou referindo-se à inscrição da espada de Tor. As inscrições serviam para acrescentar o poder de uma espada—. Nunca tinha me aproximado tanto para poder lê-la. Mas «relâmpago» é uma palavra apropriada. Sinto como se me tivesse caído um em cima.

Tor ficou absolutamente quieto, como se ainda não tivesse decidido qual ia ser a sorte de MacSorley. Depois de uma interminável pausa, pressionou um pouco mais a ponta de sua espada sustentando o olhar do outro homem.

—Um dia destes essa lábia que têm será sua perdição.

MacSorley sorriu… com inquietação, dada sua situação.

—Não duvido.

Tor afastou sua espada e lhe estendeu a mão. MacSorley se agarrou a seu braço e Tor o ajudou a ficar em pé.

O incidente o tinha transtornado. Esteve a ponto de matar a um homem ao que considerava um amigo por uma futilidade, por uma brincadeira procaz que tinha ouvido centenas de vezes durante as longas noites transcorridas ao redor das fogueiras dos acampamentos.

Um punhado de homens tinha terminado seus exercícios e se congregaram ao redor para observar a luta. Pela expressão de suas caras era óbvio que tinham visto o suficiente para saber que o guerreiro com fama de ter gelo nas veias tinha perdido seu sangue-frio. E também era óbvio que não sabiam exatamente como interpretar aquilo.

E ele tampouco.

Cruzando os braços, olhou-os com olhos inexpressivos.

—Bem, quem quer ser o seguinte?

Depois de uns momentos de absoluto silêncio, MacSorley se pôs a rir.

—Está brincando, senhores.

Alguns homens sorriram titubeando. E liberando ainda mais a tensão, MacSorley respirou fundo.

—Se não me equivocar, nossa bela cozinheira nos está preparando um guisado de boi. E, por agora, penso regá-lo bem regado.

A proposta do MacSorley foi a desculpa que todos necessitavam, e os homens se encaminharam por volta da broch26 para almoçar. Tor se deu conta de que o viking paquerava com Janet, e embora soubesse que essa mulher sabia cuidar de si mesmo, advertiu-lhe que não seguisse por aí.

—Deixem à dama tranqüila por hoje.

MacSorley franziu o cenho e o olhou, admirado.

—Pensei… —Pigarreou—. Não me tinha dado conta de que a dama ainda lhe pertence. Não queria lhe ofender. Somente estava tonteando, e isso não faz mal a ninguém.

Tor o olhou com ar sério. MacSorley tinha chegado à mesma conclusão que Christina.

—A dama não me pertence; Janet é livre de fazer o que quiser — Tor recordou que esteve falando com a Janet no salão nessa mesma manhã. Havia-lhe dito que tomasse o dia livre, mas ela tinha insistido em ir com eles.

«Ajudará-me a deixar de pensar nisso», havia lhe dito ela.

—Hoje é um dia complicado - explicou Tor—. Faz cinco anos mataram ao marido de Janet.

—Ah… compreendo.

Foram caminhar para a broch quando Tor se deu conta de que Campbell não se movera. Parecia fixar seus sentidos em alguma coisa. Observando-o, Tor sentiu que um calafrio lhe percorria o corpo. Apesar de sua utilidade, custava habituar-se à estranha faculdade do Campbell para perceber coisas.

—O que ocorre? —perguntou-lhe.

Campbell o olhou aos olhos.

—Vigiam-nos.

*

Encarapitada ao alto de uma árvore, Christina se deslocou no ramo contíguo para tentar obter uma melhor perspectiva da ampla extensão de pardusco páramo que a separava da antiga broch, situada a várias centenas de metros. Teria preferido aproximar-se mais, mas não queria arriscar-se a que a descobrissem e se viu obrigada a esconder-se no bosque.

Quando tomou a precipitada decisão de seguir lady Janet ignorava o que lhe esperava, mas absolutamente teria imaginado algo assim. Em lugar de uma secreta ramagem onde dizer palavras de amor, Christina tinha tropeçado com uma espécie de campo de treinamento.

Teria que ter se sentido aliviada. Os temores que albergava sobre seu marido e lady Janet esfumaçaram. E embora ao princípio sentisse alívio, à medida que observava, mais segura estava de que algo estranho acontecia.

A maioria dos guerreiros levava posta sua indumentária de combate ao estilo das Highlands, em lugar de ir com a cota de malha. Vestia a casaca de couro tachonada de metal, o leine e o terrível elmo de aço, com uma proteção nasal, de aparência escandinava, que ocultava quase todo o rosto. Entretanto, havia um homem que levava uma cota de malha, um tabardo e um elmo de aço mais comum, com viseira. Christina franziu o cenho. A cimera em forma de dragão lhe era familiar.

Acostumou-se a ver-se rodeada de homens altos e musculosos, mas inclusive para os habitantes das ilhas esse grupo parecia… extremo. Agora bem, apesar dos elmos e da grande abundância de espécimes masculinos de primeira, distinguiu a seu marido no ato. Não o delatava tão somente o nobre porte, a não ser a autoridade e o mando que emanavam dele.

Vendo os homens concentrados em distintas disciplinas, da prática com arco até o lançamento de flechas e pedras e a escalada com cordas ao alto da broch, Christina teve a sensação de que ali passava algo estranho. Esses guerreiros não eram comuns.

Durante o lançamento de pedras, um dos homens levantou por cima de sua cabeça uma rocha enorme que devia pesar centenas de quilos como se estivesse oca. Tor havia tentado levantá-la do chão. Outros guerreiros puseram-se a rir a gargalhadas, mas seu marido não pareceu se importar e se uniu às gargalhadas.

Tor estava claramente ao mando, mas em cada disciplina era um homem diferente o que dirigia a atividade. Se deu conta já durante a prática com arco, quando o homem que destacava por cima de outros se adiantou à frente e ficou a dar ordens.

Levava observando uma hora aproximadamente quando os homens começaram a congregar-se em grupos mais reduzidos. Notou uma pontada de fome e pensou que possivelmente tinha chegado o momento de retornar. Não havia um grande trecho até o povoado, mas o terreno era bastante impraticável, sobre tudo devido à umidade.

Entretanto, ao ver que Tor se levava a mão à costas e desencapava a espada, decidiu ficar um momento mais.

O combate começou de uma maneira bastante civilizada, tudo o civilizado que permitiam duas pesadas folhas de aço, afiadas como navalhas, chocando entre si. Era brutal, mas não parecia com vida ou morte, como a luta que Christina tinha presenciado entre ele e MacRuairi, e embora seu coração seguisse pulsando depressa, pôde contemplá-lo sem ter a sensação de fraquejar as pernas.

Era quase como uma dança: os dois homens, por turnos, atacavam com a espada que empunhavam com ambas as mãos e rechaçavam a do contrário. Christina aguçou o olhar pensando que seu competidor era vagamente familiar. Entretanto, com o elmo de aço posto, não podia lhe distinguir o rosto.

Ao cabo de uns minutos notou que o coração lhe acelerava. O intercâmbio de golpes se voltou mais intenso, o som do aço ao entrechocar-se aumentou sua bravura. De repente, o exercício não lhe pareceu tão amistoso. Caiu para frente, e teve que agarrar-se bem ao recordar que estava encarapitada a um ramo.

Afogou um grito e piscou. Com um movimento suave, Tor rodeou com a sua a perna do competidor, agarrou o braço que se abatia sobre ele ameaçando golpeando-o e volteou ao contrário até tombá-lo de costas.

Em um suspiro, Tor apontava com a folha da espada ao pescoço do outro homem. Durante uns instantes terríveis pensou que ia atravessá-lo com a espada. Como da outra vez. E como daquela vez, deixou escapar um leve som involuntário. Nesta ocasião, por sorte, ele não a ouviu.

Christina suspirou aliviada quando Tor estendeu a mão a seu competidor para ajudá-lo a ficar em pé.

Com o olhar cravado na cena que se desdobrava no pátio de armas, tinha-lhe passado por cima que alguns homens se congregaram ao redor para observá-los também.

E então os viu.

Tapou a boca para afogar uma exclamação de surpresa. Os guerreiros tiraram os elmos, mas apesar da distância, descobriu a identidade de dois deles. Deveria ter reconhecido antes Lachlan MacRuairi, embora só fora por seu jeito leve e indolente. E se não tivesse sido bastante desconcertante ter reconhecido ao inimigo mais reputado de seu marido, mais difícil ainda ficava explicar a presença de um inglês no acampamento. Tinha coincidido com sir Alex em uma ocasião, anos antes que encarcerassem a seu pai, mas dificilmente uma jovenzinha podia esquecer ao atrativo e jovem senhor. Por que seu marido estava treinando a um dos cavalheiros de Eduardo?

O homem que esteve lutando com o Tor tirou o elmo. MacSorley. Deveria ter adivinhado. Quase tinha esquecido que o escudeiro de MacDonald, seguindo as ordens de Tor, tinha embarcado atrás de Beatrix sem pigarrear.

Seu olhar pousou em outro homem e demorou uns segundos em recuperar o fôlego. Deus misericordioso, que rosto! Encarnava a perfeição masculina, era um bronzeado Apolo de cabelos dourados como o caramelo e uns rasgos cinzelados pela divindade, o homem mais belo que tinha visto jamais. Parecia digno de figurar em um pedestal.

Os homens começaram a passar para a broch e Christina supôs que faziam uma pausa para almoçar. Tor se entreteve um momento falando com o MacSorley e outro homem.

O que estava passando ali?

A advertência de seu marido lhe veio à memória. Seriam esses os problemas que lhe tinha mencionado? Christina mordeu o lábio repensando a decisão de ter seguido lady Janet.

Possivelmente não tinha sido uma boa idéia. Tinha pensado que ele se zangaria, mas em seu momento não tinha dado importância. Se lhe agradar não tinha funcionado, acaso tinha algo que perder?

«Não saia do castelo desprotegida», havia lhe dito, recordou ela mordendo o lábio. Muito tarde para pensar em promessas.

Ansiosa de repente por retornar ao castelo, aventurou-se a olhar para o pátio e viu que outros homens tinham entrado na fortificação. Suspirou aliviada e se dispôs a descer da árvore. A descida era fácil. Saltou para salvar os últimos metros e aterrissou brandamente sobre o terreno enlameado e coberto de folhas.

Franziu o nariz e desejou ter calçado um par de velhas botas resistentes. As sapatilhas de fino couro não eram feitas para passear pela escarpada paisagem das Highlands no inverno; nem no verão, de fato.

Voltou sobre seus passos sorteando as árvores e sentindo-se melhor agora que sua aventura tinha terminado. Embora ignorasse todas as respostas, ao menos sabia que seu marido não partiu para reunir-se com outra mulher. E se ninguém se precavera de sua ausência, como supunha, ele nunca se inteiraria de sua inocente excursão.

Enquanto se orientava entre as árvores, Christina sentiu certo desgosto. Um desgosto que atribuiu à fantasmagórica quietude do bosque. Acelerou o passo e quando estava a ponto de cruzar os limites do bosque, de repente, sentiu que um calafrio lhe percorria as costas. Alguém estava…

Sem lhe dar tempo a girar, agarraram-na por atrás, e Christina se viu apertada contra um peito duro como uma pedra.

Um pânico atroz a paralisou. Ia gritar, mas o atacante lhe tampou a boca com a mão e sussurrou ao ouvido:

—Não te aconselho isso, esposa minha. E ainda menos tendo as mãos tão perto deste teu formoso pescoço.

A Christina deu um tombo no coração. Fria e dura como o aço, a voz de Tor tinha divulgado desumana. O possível alívio que tivera ao descobrir que o homem que a agarrava era seu marido se esfumou ante a aterrorizante perspectiva de ser vítima de sua cólera.

Nunca tinha enfrentado ao guerreiro que semeava o pânico nas Terras Altas, mas soube que isso ia mudar.

*

O estupor de Tor ao descobrir que era sua esposa quem lhe espiava cedeu passo a uma raiva cega.

Desconcerto. Medo. A possibilidade de uma traição. Um amontoado de emoções díspares, de sentimentos desencontrados, confundiu-se em uma voragem que, como uma corrente, clamava por abrir passo. Cada palmo de seu corpo acusava a pressão. Ouvia fluir o sangue em suas veias, sentia fogo na pele e os batimentos de seu coração lhe retumbavam nos ouvidos. Somente a suavidade desse corpo pressionado contra o seu e a certeza de que poderia esmagá-lo sem dificuldade alguma o reteve.

Tor cruzou o olhar com o Campbell e viu que este sacudia a cabeça. Ao menos Christina estava sozinha. Assentindo com brutalidade, ordenou em silencio a seus homens que partissem.

Depois de terem partido, Tor deu a volta a sua mulher e, sustentando-a pelos ombros, obrigou-se a respirar fundo. Olhou fixamente seus olhos negros tentando ignorar o remorso que sentiu ao ver em sua boca o branco rastro de sua mão e o temor em seu surpreendido olhar.

Devia estar assustada. Muito assustada.

—Vale mais que tenha uma boa desculpa por estar me espiando.

Christina abriu os olhos de par em par.

—Não te estava espiando. Como é possível que pense algo assim?

Tor não queria pensar mas… maldição, tampouco podia ignorar essa possibilidade.

—Possivelmente porque tenho descoberto que estava escondida me observando no alto de uma árvore. Ou porque me seguiste. Ou porque te deixei muito claro que não te metesse em assuntos que não lhe concernem. —Tor endureceu o rosto e aguçou o olhar—. Ou possivelmente porque lembra a traição que uniu a nos dois.

Christina se sobressaltou como se a tivesse golpeado. Tentou escapar, mas ele não o permitiu. Ao contrário, Tor se aproximou ainda mais a ela, obrigando-a a olhá-lo aos olhos.

—Alguém te pediu que me seguisse, Christina?

Apesar da clara ameaça, ela ergueu com altivez a cabeça. Seu marido media um metro noventa e pesava o dobro que ela, tinha matado a centenas de homens no campo de batalha e era um dos guerreiros mais temidos da região, mas ante esse comentário, Christina o olhou como se fosse um inseto insignificante.

—Claro que não. Nunca te trairia. —Sua voz e sua expressão delatavam que estava dizendo a verdade—. Esperava que, a estas alturas, à margem de como começou nosso matrimônio, confiaria em mim.

Tor confiava em pouca gente, e mesmo assim, nunca de tudo. A confiança matava.

—Se não esta espiando por conta de ninguém, me explique como terminaste sozinha e encarapitada a uma árvore.

Christina se mordeu o lábio inferior e um rubor apareceu em suas pálidas bochechas.

—Tinha ido ao povoado a procurar uns pasteizinhos de mel na loja do Cook para dar uma surpresa ao Iain, que está doente…, são seus favoritos, sabe? —Tor não sabia—. Vi lady Janet e decidi segui-la.

Christina viu que lhe pulsava a têmpora. Atuava como se quão único tivesse feito fora sair a um agradável passeio pelo campo em lugar de ignorar as instruções que lhe tinha dado. Tor deu outro passo para ela, com os punhos fechados, esforçando-se por recuperar a paciência.

—Tenho que entender que a razão de que te tenha encontrado aqui é que em um ataque de ciúmes decidiste seguir à mulher com a que acreditava que me deitava, apesar de te haver dito que não me deito com ela, e saíste a campo aberto… sozinha? —A voz lhe tremia da ira. Quando pensava no que teria podido lhe acontecer… estava a ponto de perder a cabeça—. Por todos os Santos, sabe o perigo que correste? —Várias possibilidades cruzaram sua mente, incluindo uma imagem dela com esse mesmo vestido rasgado—. Prometeu-me que não sairia do castelo sem uma guarda.

Tor a empurrou contra uma árvore, e como Christina foi incapaz de retroceder ante essa presença que se abatia sobre ela, inclinou a cabeça a modo de desculpa.

Tinha-a muito perto. Podia cheirar seu perfume doce e floral, e isso lhe enfureceu mais. Sempre tinha que cheirar tão bem essa mulher? Punha a prova sua capacidade de controle com tanta crueldade que ia ficar louco.

—Diz como se fosse uma tolice, mas o que queria que pensasse? Vai durante vários dias sem me dizer aonde, mas é óbvio que sim confia em sua amante.

Porque estava tentando protegê-la, maldição. Não queria que se mesclasse em nada de tudo aquilo. Gelava-lhe o sangue de pensar no perigo que corria só por conhecer a existência da guarda de Bruce. Isso era traição, e o fato de que fosse uma mulher não deteria a Eduardo da Inglaterra.

—Janet cozinha para nós, isso é tudo. O pedi, e ela acessou… sem fazer perguntas.

Entretanto, Christina ignorou a mofa.

—O que está acontecendo aqui? —perguntou franzindo seu narizinho. Tor a fulminou com um olhar de advertência, mas ela fez caso omisso—. Quem são esses homens e por que os está treinando em segredo?

O frio que lhe roeu as vísceras só podia atribuir ao medo.

—Voltará para castelo, esquecerá tudo o que viu e não retornará nunca mais. Entende? —Tor gritava. Ninguém o fazia perder o controle como ela. Christina se recostou contra o tronco da árvore, mas Tor a pegou pelo braço e a obrigou a olhá-lo. Os batimentos do seu coração seguiam retumbando em seus ouvidos. Queria sacudi-la até que o escutasse—. Nunca volte a me perguntar sobre isto.

Tão somente uns centímetros os separavam. Tor nunca tinha tentado intimidar a uma mulher com sua altura, mas se isso o fazia compreender a gravidade da situação, faria o que tivesse que fazer. Pelo mais sagrado jurou que a aterrorizaria. Entretanto, parecia que sua miúda esposa confiava nele mais do que deveria. Nesses momentos, quem não confiava em si mesmo era precisamente ele.

Um olhar rebelde cruzou seus delicados traços.

—Acho melhor perguntar a sir Alex —disse Christina sustentando seu temível olhar sem piscar.

«Maldição, reconheceu ao maldito inglês.»

—Ou ao Lachlan MacRuairi - arremedou com um sorriso de paquera—. Disseme que se alguma vez necessitava…

Tor reagiu. Estreitou-a contra seu peito, uma escura emoção o embargava.

—MacRuairi é uma víbora. Te afaste dele.

Estupefata, Christina assentiu. Fora qual fosse essa escura emoção, viu-a, ou a ouviu em sua voz, e o medo sossegou qualquer esforço de discussão.

—Não pretendia dizer isso - atravessou ela tremendo—. Não voltarei a mencioná-lo nunca mais, se isso for o que quer.

Tor ficou imóvel. O que estava fazendo? Christina o olhava como se ele fosse golpeá-la. Pelo amor de Deus, nem os homens eram como seu pai. Nunca lhe faria mal, tão somente queria protegê-la. Era só que o fazia sentir… ciúmes.

E, entretanto, ele não era ciumento.

Sentia um peso tão grande no peito que não podia respirar. Atraiu-a para si sabendo que essa era a única maneira de encontrar alívio. Não podia lutar contra isso. Ela estava muito perto, e a tentação era muito forte.

Seus olhares se cruzaram; Tor se estava afogando.

—Ah, o que quer de mim?

Christina o olhou, surpreendendo-se da grande emoção que plasmava sua voz. Entretanto, antes que pudesse responder, Tor inclinou a cabeça e fez o que esteve desejando fazer do primeiro momento em que a viu. Com um grunhido, afundou a boca em seus lábios.


Capítulo 17


A exclamação de assombro de Christina ficou afogada por sua boca. Esse contato ia fazer lhe estalar o coração. Foi incrível…, diferente a qualquer beijo anterior. O suave roce de seus lábios no dia de suas bodas mal podia comparar-se com essa brutal massacre. Com essa posse.

A deliciosa pressão, a incrível sensação, a cercania. Era perfeito. Ideal. Como se sua boca tivesse sido criada para isso. Somente para isso. Com ele.

Sentiu como se acabasse de mergulhar em um lago escuro e a afogassem as sensações. O calor. A robusta força de seu corpo. Seu aroma sensual. O sabor pecaminoso de especiarias dele. Esse homem lhe nublava os sentidos com a força essencial de sua masculinidade.

E sua boca… deslizava-se, saboreava, movia-se sobre seus lábios. Era o paraíso! Os lábios de Tor eram firmes e ternos em cada um de seus movimentos, incitavam-na… Não, exigiam-lhe que reagisse.

E Christina se rendeu. De bom grado. Afundando-se em seu feroz abraço, devolvendo seu beijo com o ofegante entusiasmo que sua inexperiência lhe permitia.

Tor grunhiu, atraindo-a para si, encaixando seu corpo no dele. Ela sentiu o duro desejo desse homem contra o ventre. Uma calidez a embargou e se concentrou entre suas pernas. No sensível perfil de seus seios. Sua pele se avermelhou, tensa. Mais perto, exigia seu corpo. Fundiu-se no beijo. Em sua pessoa.

O beijo se intensificou. Ficou mais intenso, mais forte. Mais rápido. Mais insistente. Christina gemeu abrindo a boca para recebê-lo, sentindo o quente contato de sua língua.

Afogou um suspiro. A paixão pura e carnal por uns momentos a deixou aniquilada. Entretanto, Tor não lhe deu nem trégua nem tempo para pensar, e a estupefação cedeu às escuras sensações que despertou seu perverso beijo.

Tor mediu. Tor se apropriou. Tomava a lambidas sensuais. Intenso. Ardoroso. Úmidos. Até que ela notou mariposas no estômago e um fogo que se propagava em potentes e estremecedoras ondas.

Christina respirou sua fragrância; nunca tinha imaginado que um beijo pudesse ser assim. Tão poderoso. Não era só luxúria o que sentiu nesse beijo. Havia algo muito mais profundo. Algo que se aferrava a seu coração e atirava dele. Nesse beijo sentiu uma emoção ofegante, pura, que ele sempre tinha reprimido. Era suave e erótica, mesmo que sua ferocidade a deixasse sem fôlego.

A língua de Tor monopolizava a dela exigindo-lhe tudo. Provando, Christina se uniu ao movimento. Em círculos, sinuosa, deslizando-se com a dele, sua língua executou uma deliciosa dança que a penetrou até o mais recôndito de seu ser.

Tor a beijava como se não alcançasse possuí-la. Como se estivesse desesperado por ela. Como se reclamasse sua alma com a boca, com a língua. Entrelaçou os dedos em seu cabelo e atraiu ainda mais sua boca. Christina sentiu a cálida pressão de seus dedos na nuca. O roce da áspera mandíbula em sua pele. Os fortes batimentos do coração do coração de Tor contra o seu.

Ele grunhiu afundando-se em sua boca, afundando-se nela. Notou a pressão do peso de seu corpo. Sua mão tocando o peito, seus quadris movendo-se contra os seus, ao sensual ritmo da língua, dentro de sua boca.

Christina gemeu, seus dedos se cravaram nos ombros de Tor, largos, musculosos. Sentiu-se fraca, inarticulada, seu corpo clamava que lhe desse o alívio que tanto desejava.

Tor acariciou suas nádegas com uma mão, tomando-a, levantando-a, até pressionar-se contra o ponto que ela desejava.

Que sensação! Christina gemeu, envolta em sua boca, esfregando-se contra a grossa coluna de aço que notava em seu baixo ventre, até que sua respiração ficou dificil.

Com uma brusca exclamação, Tor afastou sua boca e se foi para trás.

—Basta!

O corpo de Christina se sobressaltou ao ver-se bruscamente afastado do prazer. De maneira instintiva ela alongou uma mão para ele, mas Tor a reteve com certa distância.

Piscou. A sombra da paixão foi desvanecendo-se, e cruzou com seu olhar perplexo, acusatório. Nesses olhos se viu mais alta, como se tivesse crescido. Como se lhe assustasse. Olhou-o perplexa. Christina lhe dava medo.

Porque o fazia sentir algo que ele não desejava. Importava-lhe. Apesar de que esse homem teimoso e duro não se desse conta. Mas lhe importava. Na boca dolorida e inchada de Christina se desenhou um sorriso. Aquilo era maravilhoso.

Tor se recuperou em seguida, mas não o suficiente.

—Levarei-te ao castelo - disse, agarrando-a pela mão—. Imediatamente!

Christina deixou que a levasse a puxões, sem lhe importar o mínimo a repentina e áspera mudança de atitude ou a careta inconfundível que se desenhava na boca dele.

Nada disso importava. Porque nada podia invalidar a certeza do que acabava de descobrir.

Tinha penetrado na fria couraça protetora. Era o sinal que esteve esperando. Importava-lhe. E a prova estava em seu beijo.

*

Tor não soube que estranho influxo do Hades se abateu sobre dele. Tinha passado de estar furioso a beijá-la como se nunca tivesse beijado a nenhuma outra mulher. Como se estivesse faminto, como se a necessitasse. A paixão não lhe preocupava; o rasgo que sentia no peito, em troca, era um assunto diferente.

Inconscientemente, Tor se absteve de beijá-la, como se de maneira instintiva se deu conta do perigo. Agora já sabia o porquê. A conexão era muito forte. Os sentimentos, muito poderosos. Muito intensos. E tentar contê-los seria um trabalho digno de Hércules, ou de Pandora.

Depois de ter provado a doçura de mel dessa boca já não poderia pensar em outra coisa. Soltou uma maldição e afastou um ramo com tanta força que este se quebrou.

Ouvia-a suas costas, respirando com dificuldade, e diminuiu o passo ao dar-se conta de que estava caminhando muito depressa. Dirigiu-lhe um olhar irado. Christina permanecia calada. Muito calada. Seguia-o com obediência, sem expressar nenhuma só queixa.

Tor não gostou da expressão de seu rosto. A leve curva ascendente de seus lábios podia interpretar-se como um sorriso petulante. Que motivos tinha para sorrir? Se quase a tinha violentado em pleno dia contra uma árvore…

—Falta pouco para chegar - disse Tor com aspereza.

—Que bom.

«Que bom?» Tor entreabriu os olhos. O que estaria maquinando essa mulher?

—Hoje terá que te dedicar aos assuntos de seu clã? —perguntou Christina em tom educado.

—Sim - respondeu ele.

—por que não me tinha beijado alguma vez assim?

Tor quase tropeçou contra uma pedra ante a inesperada mudança de tema.

—Não sei - disse ele com brutalidade—. Suponho que nunca me tinha ocorrido.

Christina arqueou uma sobrancelha como se soubesse que estava mentindo.

—Gostei muito.

Por sorte ele não estava comendo, se não, teria se engasgado.

—Muito mesmo, de fato - prosseguiu ela—. Temo-me que a partir de agora insistirei nisso.

Insistir nisso? Tor não dava crédito. Sua linda mulher estava lhe dando ordens? Ele era um chefe. Ninguém se teria atrevido a lhe falar com tanta insolência. Teria que obrigá-la a retificar. Entretanto, adiantando-se a sua resposta, Christina lhe perguntou: —O que outras coisas não lhe ocorreram ainda? —E escrutinou sua expressão horrorizada—. Me dá raiva pensar que estou perdendo outras coisas.

Seu olhar posou na considerável protuberância que aparecia sob o leine de seu marido. Passou a língua pelo lábio superior e uma chama de prazer sacudiu as lombares de Tor. A Christina não lhe escapou sua reação, e o sorriso que esboçaram então seus sensuais lábios não albergou dúvida alguma.

Que o céu o ajudasse.

Jogando-se para trás sua longa e sedosa cabeleira, Christina empreendeu de novo a marcha deixando ao Tor um pouco assombrado e bastante nervoso.

Uma mudança sutil se operou entre os dois, e Tor tinha a sensação de que aquilo ele não ia gostar. Absolutamente.

Sentiu um profundo alívio quando o povoado apareceu ante seus olhos. Dunvegan consistia em uma vintena de casinhas de teto de palha pulverizadas ao longo de um quilômetro nos contrafortes do porto, em um pequeno mercado no que os granjeiros e os pescadores se reuniam para apregoar suas mercadorias, em uma ferraria, uns estábulos e um botequim.

Teve um indício de inquietação à medida que se aproximavam. Era estranho. Tudo estava muito tranqüilo. Em geral, a essa hora do dia, o povo bulia de atividade, mas nesse momento parecia que todos se encerraram em casa.

Quando giraram para o porto descobriram a razão. Duas galeras desconhecidas tinham ancorado nessas águas.

Tor soltou uma maldição, e estava a ponto de dizer a Christina que se refugiasse em uma das casinhas quando soube o que estava acontecendo ao ver aparecer ao Rhuairi ante eles.

—Menos mal que retornastes. Não me atrevia a lhe enviar uma carta.

—O que passou? A quem pertencem estes navios?

—trata-se de John MacDougall.

Maldição. John do Lorne, o primogênito do chefe dos MacDougall e em tanaiste27. E além disso um bastardo.

—Desde que Eduardo encarcerou ao conde de Ross, MacDougall é quem cobra os impostos. Ao ver que lhe negavam a entrada no castelo (os homens não lhe deixaram passar sem sua permissão), jogou mão dos soldados e decidiu confiscar a metade das reservas para o inverno. Coll recebeu um bom golpe na cabeça quando tentava impedir que levassem a metade de suas provisões de boi seco.

Tor soltou uma blasfêmia e apertou os dentes. Agora o novo xerife de Eduardo decidia fazer notar sua presença no Skye acossando a seu povo?

—Quantos homens foram contigo? —perguntou a seu senescal.

—Poucos. Encontrava-me no povoado quando chegaram.

E Tor ia sem seu séquito. Em princípio a diferença numérica não lhe preocupava, mas em geral não estava acostumado a ter que pensar além em sua mulher. Tor tinha jurado permanecer neutro na guerra da Escócia e não tinha nenhum desejo de enfrentar-se ao xerife de Eduardo, mas MacDougall era um imbecil arrogante e desconfiava dele.

—Acompanha à senhora ao castelo…

—Temo-me que já é muito tarde para isso - atravessou Christina assinalando para o porto.

Tinham-nos visto. MacDougall e uma quarentena de homens se aproximavam em direção contrária do mercado, carregados com as caixas que pretendiam embarcar em seus navios. MacDougall coxeava ligeiramente ao andar, e essa claudicação lhe tinha dado o apelido de John Bacach, quer dizer, o Coxo.

O olhar de Tor pousou em sua mulher.

—Fica do meu lado e não te mova. —Christina assentiu—. E deixa que eu fale-acrescentou.

MacDougall lhe faria perguntas sobre seu matrimônio e Tor não queria que Christina dissesse algo inadvertidamente que fizesse duvidar de sua neutralidade ao novo xerife de Eduardo. Fechou os punhos. Poria a prova o plano de MacDonald. John MacDougall podia ser um imbecil, mas não era tolo. Tor suspeitava que sua oportuna visita não fosse uma coincidência. Eduardo devia ter ouvido falar de suas bodas.

—Ah - exclamou MacDougall aproximando-se com seus soldados—. Haja aqui o homem que estávamos procurando. Vim cobrar os impostos, mas seu guarda me negou a entrada argumentando que estavas fora.

Tor se deteve uns metros dele.

—Como podem ver, já retornei.

Os dois homens se plantaram um defronte ao outro. Tor era mais alto quinze centímetros, mas MacDougall tinha a compleição de um javali: maciço e musculoso. Além disso, contava com a inestimável ajuda de quarenta homens que lhe cobriam as costas. Tor contava com o Rhuari, um punhado de guardas e sua esposa. A presença de Christina lhe impedia de atuar, e ambos sabiam. De todos modos, retirar-se não era seu estilo.

—Por isso lhe ocorreu roubar os bens de minha gente?

MacDougall sorriu com frieza, e Tor recordou o parecido que existia entre ele e MacRuairi, a víbora de seu primo. Os MacDougall, MacDonald, MacRuairi e MacSorley representavam os quatro ramos dos descendentes do Somerled. As rixas e as lutas pelo poder entre os MacDougall e os MacDonald eram tão virulentas, e tão notáveis, como as que haviam entre os Bruce e os Comyn. Ambos os clãs queriam encarnar o poder dominante das ilhas Ocidentais, mas na atualidade esse poder o detinha os MacDougall.

—Considere um adiantamento a conta do pagamento dos impostos que nos devem.

Tor controlou seu mau gênio.

—O rei já recebeu nosso pagamento anual.

MacDougall arqueou uma negra sobrancelha.

—Isso é uma miséria comparado com o que deve.

—Essa era exatamente a dívida. Comprovem os livros se o desejares. As últimas invasões têm feito minguar os rendimentos deste ano.

—Ao rei não lhe interessam seus problemas. Descuidou do pagamento desde que ordenou encarcerar ao Ross, mas as coisas mudaram. Agora conta comigo.

—A que rei te refere? Aquele ante o que lhe inclinavam o ano passado ou ao que fazem reverências este ano?

Tor tinha afiado bem sua faca. MacDougall avermelhou da raiva, e o homem grande que tinha ao lado, seu escudeiro, sem dúvida, pegou a espada. A brigada lealdade que MacDougall rendia a Eduardo o tinha jurado a margem de seus parentes, o rei John Balliol e os Comyn, e aquilo ainda devia lhe arder.

—Estais questionando o direito ao trono do rei Eduardo? Advirto-lhe, como amigo, é obvio, que nosso monarca não toma a traição à ligeira. Suas recentes bodas pôs em interdição sua lealdade.

Dirigiu um olhar calculado a Christina, e Tor teve que resistir o impulso de escondê-la atrás de suas costas. MacDougall não ocultou o brilho de luxúria que apareceu em seus olhos e que teria significado uma condenação a morte em outras circunstâncias. Tor fechou os punhos para refrear a vontade que suas mãos tinham de empunhar a espada. Nunca havia se sentido tão impotente, mas com a Christina a seu lado era como se estivesse preso com correntes.

—Minhas bodas não tiveram nada que ver com política - disse Tor com voz neutra, procurando que seu tom não delatasse a perigosa ira que o avivava por dentro—. Não desejei nada mais depois de vê-la.

MacDougall cravou os olhos em Christina. Atuando como se esperava dela, Christina permaneceu quieta a seu lado. Se percebeu as olhadas lascivas do outro homem, não deu a entender.

—Sim, ouvi quais foram as circunstâncias de suas bodas. Minha senhora… —disse o xerife lhe fazendo uma reverência, e Christina, a sua vez, inclinou a cabeça com secura. Logo se dirigiu ao Tor—. Não é difícil entender a razão de que estejas louco por ela. —Aguçou o olhar—. Embora deva admitir que me surpreendeu ouvir que o amor tenha sido o pretexto para organizar umas núpcias tão precipitadamente.

Christina ia intervir, mas Tor lhe agarrou a mão com rapidez e, estreitando-lhe a levou aos lábios.

—Sim, fiquei enfeitiçado na primeira vez que a vi.

Seus olhos se cruzaram e Tor adivinhou a surpresa de sua mulher. Teria que lhe explicar isso mais tarde, embora a conversação não lhe entusiasmasse precisamente.

—Isso está acostumado a acontecer em sua família - agulhou MacDougall fazendo-se eco das palavras que Tor tinha dirigido ao MacDonald—. Encontra-se aqui seu irmão? Temos que cobrar uma promessa quebrar de matrimônio.

Tor agradeceu que trocassem de tema, mas sabia que MacDougall não tinha ficado convencido de tudo.

—Não está aqui, mas quando retornar procurarei lhe compensar de todos quão inconvenientes tenham podido sofrer.

—Procurarei que assim seja - repôs MacDougall—. Acredito que a metade do dote da garota Nicolson bastará.

Tor se forçou a manter a boca fechada. Estava-lhe ameaçando e roubando sem piedade, mas Torquil já se encarregaria de liderar suas próprias batalhas.

MacDougall voltou a admirar Christina e logo se voltou para Tor.

—Quando as notícias de suas bodas chegaram aos ouvidos do rei, o monarca se deu conta de que se incorreu em um descuido.

Tor entreabriu os olhos adivinhando que não ia gostar do que MacDougall tinha que lhe dizer.

—Que tipo de descuido?

—Seu nome não aparece nos Cilindros do Ragman.

Maldição. Não era um descuido. Tor não tinha assinado intencionadamente o cilindro onde se jurava a lealdade, a fidelidade e a vassalagem a Eduardo anos antes, como fora pedido a todos os nobres escoceses.

—Nessa época eu estava na Irlanda.

MacDougall sorriu. A expressão de Tor não delatava nenhuma emoção, mas o xerife não caiu no engano.

—Não importa - disse este com um dramalhão—. O descuido pode reparar-se sem maiores conseqüências. Não precisarão viajar até o Berwick. O castelo de Stirling nos servirá, durante o parlamento que celebraremos no fim de janeiro.

MacDougall partiu pouco depois levando consigo uma parte das reservas invernais. E no momento, Tor não pôde fazer nada salvo vê-lo partir enquanto ele se consumia de raiva. De todos os modos, já estava planejando uma insurreição para recuperar o roubado. MacDougall o esperava. Assim se solucionavam as coisas nas Highlands. Mas o xerife se dedicava a um jogo perigoso. Ao Tor apertariam as cavilhas, mas John do Lorne estava a bordo da asfixia.

De todos os modos, enfureceu-se. A aventura de sua esposa não só tinha posto em perigo a segurança da equipe de Bruce, mas sim além custado uma fortuna. Pior ainda, suas bodas o tinha situado exatamente onde temia: no olho do furacão. Em menos de um par de meses teria que tomar uma decisão.

*

Christina se sentia desventurada. De volta ao castelo, permaneceram em silêncio. Foi um verdadeiro suplício. O beijo apaixonado que tinham compartilhado e a paquera brincalhona de Christina parecia uma longínqua lembrança. Tor nem sequer a olhava. Ela não so lhe tinha seguido e tinha sido testemunha de algo que sem lugar a dúvidas não devia ter visto, mas sim sua presença no povoado o tinha preso de pés e mãos. Teria tentado impedir seu marido que MacDougall se levasse as provisões de que dispunha o povo para passar o inverno? Não sabia, mas com ela presente, Tor não tinha tido escolha.

A visita do MacDougall também lhe tinha dado a entender que suas bodas tinha conduzido os problemas que até então tinha tentado evitar, e com isso tinha atraído a atenção do rei. Por causa de Christina, Eduardo questionava a lealdade de seu marido e tentava obrigá-lo a escolher um lado mediante um juramento.

Christina não tinha entendido a magnitude da ameaça até que conheceu o MacDougall. John do Lorne era conhecido por sua falta de piedade, e apesar de se declarar amigo de Tor, não foi amizade o que Christina viu em seu olhar, a não ser outra coisa: animosidade e possivelmente ciúmes. Seus olhares lascivos lhe tinham lhe estremecido. Até sabendo que esse homem tentava encolerizar a seu marido, tinha conseguido que ela sentisse a necessidade de tomar um banho. MacDougall tinha desfrutado demonstrando sua supremacia sobre o temido senhor da guerra das Highlands, e Christina pressentiu que esse tão somente seria o primeiro dos problemas que teriam com o poderoso xerife de Eduardo.

Ficou estupefata quando Tor afirmou que se casou com ela porque tinha ficado enfeitiçado. O modo que a olhou quando lhe beijou a mão…

Tinha-lhe dado um tombo o coração, embora logo compreendesse que possivelmente o havia dito pelo MacDougall. Sem lugar a dúvidas, Tor era muito cortês para revelar as autênticas circunstâncias de suas bodas. Mas ela quis acreditar que era verdade.

Tor ia ajudar a desembarcar do birlinn quando Christina já não pôde suportar mais o silêncio.

—Sinto que nosso matrimônio te trazido problemas. Sei que não tem vontade de ver-te misturado na política escocesa.

—Isto não tem nada que ver contigo, Christina.

Odiava quando a despachava assim. Tor tentou que subisse a escada, mas Christina se manteve firme. Seus homens tiveram o tato suficiente para afastar-se um pouco deles.

—Por que é tão importante para ti? —perguntou-lhe ela.

Tor deixou escapar um suspiro e a olhou.

—O que é tão importante para mim?

—Te manter à margem. Depois de hoje, não vê que será impossível? Eduardo não renunciará nem a um só palmo de seu reino… Por muito longe que esteja.

—MacDougall tão somente me deu um aviso, deu-me a entender que me vigia. Enquanto eu não atue contra ele, ele não atuará contra mim. E por agora, com isso me basta.

Christina notou que lhe bulia o sangue patriótico dos Fraser.

—E te parece bem te manter à margem e deixar que Eduardo e homens como MacDougall governem a Escócia?

Os olhos de Tor jogavam brasas. Tinha interpretado sua pergunta como uma crítica, e possivelmente era.

—Parece-me bem não arrastar a meu povo a uma guerra que quão único trará serão desgraças. Parece-me bem não ver meus homens com o crânio destroçado no campo de batalha porque lutavam por um rei que não sabe nada das Highlands e das ilhas Ocidentais, e que além nada lhe importe. Ver que as mulheres perderam a seus maridos e os meninos a seus pais, ver minhas terras arrasadas e o gado esquartejado… Passei vinte anos de minha vida fazendo todo o possível por devolver a paz e a prosperidade a meu clã, e maldita a graça que me faria ver todo isso destruído porque uns reis longínquos decidiram brigar entre eles. Tanto gosta de entrar em guerra, Christina?

—Claro que não - replicou ela, assombrada pela intensidade de sua reação. Havia tocado um ponto delicado e suspeitava qual era sua procedência—. O ataque surpresa no qual seus pais morreram assassinados deve ter sido devastador.

—Foi - disse ele com brutalidade. Era óbvio que não se pronunciaria mais sobre o tema—. Vê com cuidado o que desejas; pode ser que a guerra não tarde em nos alcançar. Bem, se tivermos terminado com isto, tenho assuntos que atender.

Voltando-se, Tor se afastou com passo decidido e Christina teve que retornar ao castelo sozinha. Sentindo-se mais desgraçada que antes. Com sua tentativa de pedir desculpas só tinha conseguido enfurecê-lo mais. Não era de se admirar que Tor não queria mesclar-se em política. Como podia ter sido tão ingênua? Tinha pensado tão somente nos problemas de um homem, quando o que teria que considerar era o bem-estar de todo um clã.

*

Durante os dias seguintes Christina não teve ocasião de ver seu marido como costumava. Quando este retornava ao castelo, encerrava-se em seus aposentos pessoais com o Rhuairi ou com seus guardas. Seguia sem confiar nela, mas Christina se deu conta de que a cena vivida com o MacDougall tinha deixado rastro nele: sulcos profundos nas comissuras dos lábios e um ar de fadiga em seu olhar denotavam sua preocupação.

Essa era a situação que seu matrimônio lhe tinha dado.

E em seus pensamentos sempre a assaltava o temor de que lamentasse haver-se casado com ela. Que pudesse culpá-la por ter atraído sobre ele as suspeitas de Eduardo. E se seu clã saísse prejudicado, cada vez que a olhasse pensaria que essa mulher tinha sido o grande engano de sua vida.


Oxalá encontrasse a maneira de compensá-lo. E como Tor tinha dormido três noites na broch depois da partida do MacDougall, com os estranhos guerreiros sobre os quais não lhe permitia fazer perguntas, Christina não tinha tido a oportunidade de compensá-lo com apaixonados beijos. Tor a tratava com a cortês indiferença do passado, mas Christina sempre levava no pensamento a emoção descarnada de seu beijo.

«Importo-lhe; devo importar.» Tinha-o notado em seus lábios. E o tinha sentido em seu coração.

Suspirando, deixou um infolio28 sobre uma prateleira e sacudiu o pó das mãos. O irmão John se ausentara para que pudessem ordenar a sala e Christina se atrasava. Dizer que o jovem clérigo era desorganizado era pouco. O senescal Rhuairi, por outro lado, andava-lhe atrás. Christina negou com a cabeça. Escapava a sua compreensão que, com tanto confusão, tirassem-se o trabalho de cima.

Recolheu os diferentes pergaminhos e papéis de vitela que tinha pulverizado sobre a mesa e os amontoou em ordem. Repassou por cima alguns documentos e viu que fundamentalmente eram recibos de quantidades que os chefes das tribos e os arrendatários entregavam em conceito de arrendamento e usufruto de propriedades. Além de possuir uma grande parte do Skye, parecia que Tor tinha terras nas ilhas do Lewis, do Harris e do North Uist.

Advertiu um infolio aberto sobre a mesa, e estava a ponto de fechá-lo quando seu olhar se pousou em uma entrada recente que correspondia ao recibo que acabava de pôr sobre o montão que havia na prateleira superiora.

Franziu o cenho e voltou a ler a anotação, somente para assegurar-se de não ter cometido um engano. Seus olhos se centraram de novo no livro de contabilidade. Essa entrada estava mal feita. Tinham cotado os cem quarteirões de cevada como quinhentos.

Christina revisou por cima outros recibos e localizou um engano mais na transcrição: em lugar de dez ducados de prata, tinham cotado uma quantidade recebida de dezesseis.

Tor tinha sorte de que MacDougall tivesse declinado seu oferecimento de revisar os livros… porque estes não enquadravam.

Christina mordeu o lábio tentando decidir o que tinha que fazer. Quem quer que fosse o responsável corria o perigo de perder seu posto se ela revelava seu achado. Entretanto, não queria causar problemas ao irmão John; tinha tido tanto trabalho e estava tão cansado ultimamente que não era de se admirar que tivesse cometido alguns enganos. E tampouco queria dar ao senescal mais motivos para lhe desgostar.

De repente, uma idéia começou a tomar forma em sua mente. Sentou-se à mesa, colocou frente a ela o livro de contabilidade e o examinou com maior atenção. O mesmo dom que lhe tinha permitido aprender idiomas desde a mais suave idade também parecia poder aplicar-se aos números. Era capaz de fazer a maioria dos cálculos, inclusive os que resultavam complicados mentalmente. O pai Stephen lhe havia dito que em toda sua vida só tinha visto um caso parecido ao dele. Somando as colunas da direita, Christina descobriu outros enganos de cálculo.

Já estava! Tinha descoberto a maneira de ajudar. Organizar e classificar essas contas não lhe levaria muito tempo, uns dias, possivelmente uma semana. Não só era a maneira perfeita de pôr a seu marido à corrente de seus incomuns dotes, mas sim além demonstraria que também podia ajudá-lo. Que não era necessário que se sentisse tão só.

Experimentou uma onda de excitação. Como ia surpreender-se! As vezes que Christina tinha tentado demonstrar que era útil tinham sido em vão, mas aquilo era importante, algo que ele não podia ignorar. Com isso o surpreenderia.

Estava impaciente por ver sua expressão. Primeiro de surpresa, logo depois de gratidão, e, finalmente, possivelmente de orgulho. O coração lhe acelerou. Deixaria de considerar a garota covarde que o tinha enganado para casar-se com ele e a veria como a mulher que podia estar a seu lado, como uma confidente? Christina podia passar a formar parte de sua vida, e não só ser um corpo em seu dormitório.

Veio-lhe ao pensamento uma imagem de seu pai. Também tinha pensado que o impressionaria mas…

Era absurdo. Afastou essa idéia passageira de sua cabeça. Tor não se parecia em nada a seu pai. Em nada. Era uma pessoa decente, justa, e inclusive quando se zangava não perdia nunca o controle. Possivelmente fora brusco expressando-se, mas jamais levantaria uma mão contra ela. Havia-se posto furioso ao descobri-la na árvore e ainda mais quando ela quis provocá-lo estupidamente lhe falando do Lachlan MacRuairi. Tinha querido lhe pôr ciumento, porque ela estava ciumenta. E se sua reação era indicativa de alguma coisa, tinha funcionado. Entretanto, por mais zangado que estivesse, Tor jamais lhe faria mal fisicamente.

Não era a crueldade o que lhe tinha impedido de fixar-se nela, a não ser a cegueira. Somente precisava abrir um pouco os olhos.

Estipulado o caminho a seguir, Christina abandonou as dependências de seu marido com passo decidido. Estava impaciente por começar, mas teria que esperar até entrada a noite se não quisesse que a descobrissem. Nesse momento ouviu a rouca gritaria de umas vozes a suas costas procedentes do grande salão.

Deu-lhe um tombo o coração. Tor devia ter retornado!

Acelerou o passo, saiu ao corredor pela porta traseira e ao entrar no salão se deteve em seco, paralisada.

O terror a sacudiu em uma explosão fria e vertiginosa. Sentiu uma pontada no estômago e notou um sabor bilioso na boca.

Um gemido estrangulado escapou de sua garganta, como o de um animal ferido.

De pé no soalho, lhe dando as costas, estava seu marido… abraçando apaixonadamente a uma mulher alta e loira.


Capítulo 18


Christina ficou imóvel, aniquilada, incapaz de mover-se.

O beijo se fez eterno, fez-se mais ardente à medida que a multidão os incitava animando-os e chiando. Basta. Basta, por favor. Sentiu um peso imenso no coração. As lágrimas lhe nublaram os olhos.

Como podia lhe fazer isso? E como podiam animar os homens de seu clã? Christina acreditava que tinha começado a gostar dela.

Sentia que lhe faltava o ar e que lhe queimava o peito. Notou que muito profundo se rachava, se trincava como o gelo de um lago gelado. Tremia, e soube que esses tremores se converteriam em sacudidas.

Lady Janet e seu marido se separaram, rindo a gargalhadas, e Christina ficou paralisada.

Havia algo que não encaixava… que era diferente. Seu marido não atuava como um rei ante seus súditos, e sua indumentária era muito mais luxuosa que a que estava acostumada a ver nele. O porte tranqüilo e relaxado, a roupa desconhecida, o cabelo com mechas douradas… Seus ombros eram tão largos como os dele, mas sua constituição, até sendo musculosa, era mais fina, não tão corpulenta.

Christina piscou. Acaso via visões porque desejava as ver? Não. No fundo de seu coração soube. O homem que estava de pé no soalho não era seu marido.

Quando deslizou a mão pela cintura da mulher e se voltou para dirigir-se à multidão, Christina soube. O perfil era endiabradamente parecido, mas a mandíbula não era tão poderosa e o perfil do nariz não estava ligeiramente torcido. Além disso, a fina cicatriz da bochecha direita e as rugas de expressão nos olhos não pertenciam ao Tor.

E se ainda ficava alguma dúvida, esta se dissipou quando a mulher apareceu ante seu olhar. Não era lady Janet, a não ser uma jovem pouco mais velha que ela. Era bonita, com uns traços finos e delicados e uns enormes e risonhos olhos verdes; sua beleza não era firme e serena como a de lady Janet, a não ser natural e vivaz. Uma flor silvestre da primavera em lugar de uma rosa de inverno.

A garota reparou na Christina e sorriu. Puxando o braço do homem, ficou nas pontas dos pés para lhe sussurrar algo ao ouvido e ele se voltou para a Christina.

Ver desenhar um amplo sorriso em um rosto tão parecido ao de seu marido a deixou sem fôlego. Essa deveria ser a expressão de Tor, uma expressão de felicidade.

O desconhecido se dirigiu a ela com passo decidido. Quando esteve em frente, deteve-se e fez uma reverência tão cortês que Christina não pôde evitar sorrir.

—Minha senhora, me perdoe, não lhe tinha visto chegar. —Dedicou-lhe um sorriso pícaro e a puxou pela mão para conduzi-la até a mesa—. Temo que me deixei levar um pouco apresentando a minha mulher ao clã. Meu nome é Torquil, e você deve ser lady Christina. —Sacudiu a cabeça com determinação—. Sem dúvida meu irmão está cheio de surpresas.

Christina franziu os lábios em um sorriso.

—Sem dúvida são gêmeos.

Torquil arqueou uma sobrancelha muito bem desenhada, e sua expressão irônica foi tão parecida com a de seu irmão que ficou estupefata.

—Não havia lhe isso dito?

Christina sacudiu a cabeça.

Torquil a olhou com expressão preocupada.

—Sinto muito, o que viu… deve lhe haver afetado muito.

Christina assentiu; embora o que tinha experimentado era muito mais doloroso que isso. E naquele momento chegaram à mesa.

—Minha senhora, desejo lhe apresentar a minha esposa, lady Margaret.

A jovem se aproximou pressurosa a ela e deu umas palmadas de alegria.

—É um prazer conhece-la, minha senhora. Posso lhe chamar Christina? Têm que me chamar Meg. Estou segura de que seremos muito boas amigas, casadas como estamos com dois irmãos… que são gêmeos, além disso. Teremos muito de que falar —disse Meg, olhando a seu marido com malícia— e que comparar.

Christina só acertou a assentir e a sorrir a sua vez, sentindo-se como se tivesse ficado apanhada em um redemoinho.

—Que malote é! —Torquil rodeou a seu recém casado entre seus braços e fingiu sentir-se ofendido—. Cuida sua língua ou terei que usá-la para outros usos.

Meg piscou.

—O que outros usos lhe ocorrem?

Torquil lhe acariciou a bochecha com um só dedo, com tanto amor e adoração em seu olhar que Christina sentiu como seu coração se enchia de ternura. Agachando-se, Torquil sussurrou algo ao ouvido do Meg. Fossem quais fossem suas palavras, estas fizeram ruborizar-se a sua formosa mulher até a raiz do cabelo, mas o olhar de sensual antecipação que advertiu nos olhos dela não semeava nenhuma dúvida.

«O que quer de mim?»

Lembrou-se da pergunta que Tor, com estranha intensidade, pronunciou justo antes de beijá-la. Mas agora conhecia a resposta: isso era o que desejava.

Possivelmente deveria contentar-se com o que possuía. Tor fazia muito por ela. Tinha-a salvado de umas circunstâncias horríveis e lhe tinha dado seu nome, um lar e, sobre tudo, uma sensação de segurança. Tinha-lhe dado paixão, e Christina sabia que terminaria por lhe dar filhos. Protegeria-a com sua vida, como faria qualquer dos homens de seu clã, porque sabia que isso formava parte de seus deveres. Tratava-a, se não com ternura, ao menos com consideração. Depois do que tinha acontecido no bosque, Christina sabia que por muito que o enfurecesse, ele jamais a golpearia. Tor controlava a situação, estava ao mando, tinha sentido da honra, era direto e firme como uma rocha; um guerreiro no pleno sentido da palavra, e um líder digno de admiração.

Era tudo isso, e, entretanto não lhe bastava. Sobre tudo quando olhava ao casal que nesse momento se sentava a seu lado. O que queria dele? Queria tudo. Queria olhares de ternura, beijos apaixonados, sorrisos amorosos e passar juntos longas noites frente à chaminé. Queria risadas, companheirismo, intimidade e um homem que a valorizasse… Não como a um corpo formoso com o que jogar, mas sim como pessoa.

Queria seu coração.

Porque ele já tinha o seu na palma de sua poderosa mão de ferro.

«Amo-o.» A verdade era tão óbvia que se perguntava como não se dera conta antes. Christina amava sua sólida fortaleza, sua confiança, sua determinação, seu inato sentido da justiça e inclusive suas maneiras sérias. Sabia que sempre poderia contar com ele. Era um chefe importante, o guerreiro mais reputado de sua época, e sempre a tinha tratado com respeito e escutado suas opiniões.

E se por acaso tinha ficado alguma dúvida a respeito, a profunda desolação que sentiu ao presenciar esse beijo a tinha dissipado. Do momento em que a salvou de ser violentada no Finlaggan até o beijo que deram no bosque, Tor tinha reclamado para si seu coração. E agora lhe pertencia.

Se ele o quisesse.

*

Era tarde quando Tor saiu pelo portão que dava ao mar. Seu olhar pousou imediatamente no homem que o aguardava de pé no pátio. O pródigo tinha retornado.

Colyne lhe tinha enviado uma carta pelas mãos do Murdoch, seu escudeiro, para anunciar sua chegada. Tor teria acudido imediatamente, mas esteve ajudando a guarda a preparar-se para a viagem. Ao dia seguinte partiriam para as montanhas Cuillen para começar a última fase do treinamento, a mais intensa. O que alguns chamavam «Perdição». Sem exagerar. E, por contra, nada unia tanto a uma equipe como compartilhar o sofrimento.

Tor levava muito tempo esperando esse momento. Cortou a distância que separava a ambos em poucos passos. Torquil o viu aproximar-se com certa intranqüilidade, mas antes de poder abrir a boca e dizer nada, Tor ergueu o punho e o estampou em sua mandíbula. O impacto lhe jogou para trás a cabeça, e Torquil deixou escapar um grunhido de dor.

Que gosto, Deus divino!

Massageando a mandíbula, Torquil o observou com receio, como esperando um novo golpe. Tor titubeava.

—Eu também me alegro de ver-te, chefe.

—Chefe? Convém-te recordar isso - disse Tor com frieza. A chuva lhe açoitava o rosto—. Qual é a razão de que tenha preferido sair em lugar de ficar no grande salão?

Torquil parecia incômodo.

—Queria que primeiro nos víssemos a sós, se não te importar.

Importava-lhe, mas seu irmão parecia estranhamente inquieto.

—Nos deixem - ordenou Tor aos guardas. E quando se retiraram, disse—: Agora, te explique.

Torquil o olhou titubeando e tentando calibrar seu estado de ânimo. O tinha imaginado. Tor nunca cedia. E terminou por encolher-se de ombros.

—Sabia que te zangaria.

Não era necessário que o dissesse, Torquil sabia perfeitamente.

—Te ocorreu que me zangaria menos se ficássemos fora, sob a chuva?

Torquil se endireitou e lhe sustentou o olhar de aço com seus olhos também de aço.

—Não quis desgostar a minha mulher. E foi uma boa idéia, visto o recebimento -agulhou, esfregando a dolorida mandíbula para recalcar suas palavras.

Tor demorou um pouco em interpretar aquilo.

—Quer dizer, estou aqui fora me gelando as bolas para que a noiva que seqüestraste não se sinta ferida em seus sentimentos? —perguntou com incredulidade.

Seu irmão ficou embevecido. Disparou-lhe o músculo da mandíbula. Apertou os dentes e assentiu.

—A garota não tem culpa do que passou. Eu sou o único culpado, ou seja, que faz o que considere, mas não obrigarei a minha mulher a presenciar isto… ou a levar uma falsa impressão de ti.

Tor entreabriu os olhos.

—A que impressão te refere?

Seu irmão esboçou um sorriso irônico.

—Dá um pouco de medo quando tira o mau gênio.

Não era estranho, desde que tinha conhecido Christina, pensou Tor.

—Só um pouco? —perguntou arqueando uma sobrancelha.

Torquil sorriu.

—Meg não te conhece tanto como eu. Poderia pensar que em realidade queria me arrancar a cabeça ou outras partes às que se há aficionado especialmente.

—E teria razão. —Tor tinha recebido o relatório do Murdoch, seu capitão e escudeiro, mas preferia ouvir a explicação de boca de seu irmão antes de decidir sua sorte—. Dê-me uma boa razão pela qual não deveria te colocar entre grades neste mesmo instante e deixar que te apodreça em uma masmorra. Conhecia perfeitamente os problemas que estas bodas conduziria a todos e, entretanto, desafiou-me.

Tor deu um passo à frente, fechando os punhos e sentindo que o dominava a raiva. Seu irmão possivelmente achasse divertido, mas suas ações poderiam ter posto em perigo anos de esforços e obrigá-los a entrar em guerra.

—Como pudeste fazer esta loucura, ser tão irresponsável? Tem idéia das condições que tive que aceitar para impedir que Nicolson nos atacasse?

Torquil fez frente a seu arremesso sem alterar-se.

—Não me deixou escolha… Mas esperava que já tivesse entendido.

Tor franziu o cenho.

—Maldito seja o Hades! Do que está falando?

—Ouvi o que contam de suas bodas, e pensei que o entenderia. Tinha que estar com Meg. Essa mulher é minha. E não me importam as conseqüências.

As notícias voavam. Tor franziu os lábios em uma careta grave.

—Nenhuma mulher compensa o sacrifício de faltar o dever para com seu clã. O que ouviste é falso. Minhas bodas foi o preço que tive que pagar por seus atos.

Ante o olhar assombrado de seu irmão, Tor explicou com brevidade o que tinha acontecido no Finlaggan e os termos do endiabrado acordo que tinha selado com o MacDonald. Como tanaiste dele, ao menos de momento, Torquil tinha direito a conhecer o perigo que os espreitava, embora ele fora o máximo responsável.

Apesar da raiva que sentia Tor e da diferença de caráter, o vínculo que existia entre os dois irmãos sempre tinha sido forte. Torquil o conhecia melhor que ninguém, e às vezes melhor do que ao Tor teria gostado. Notava o olhar penetrante de seu irmão fixo nele, intenso, enquanto terminava de contar sua história.

Torquil sacudiu a cabeça com incredulidade.

—Enganou-te e, mesmo assim, casou-te com ela?

Tor não respondeu, sabia que suas palavras resultariam incompreensíveis.

—Está seguro de que não há outra razão?

—As bodas e acessar a treinar a guarda secreta de Bruce foram o preço que tive que pagar para que MacDonald nos ajudasse a nos tirar de cima Nicolson. —Tor esboçou um sorriso azedo—. Embora não estou seguro de que tenha valido a pena se com isso nos ganhamos a inimizade do MacDougall.

Tor contou a seu irmão a recente visita do xerife.

—Não sei se acreditou ou não a história de que me sinto enfeitiçado pela Christina, e o certo é que tampouco importa. Minhas bodas com uma Fraser bastou para que Eduardo e seu novo lacaio tenham começado a fazer perguntas.

—Mas você sabia que isso podia acontecer - assinalou Torquil.

Tor deu de ombros.

—Sim. Era uma possibilidade.

—E, entretanto te casaste com ela. —Torquil voltou a menear a cabeça, sacudindo do cabelo umas frias gotas de chuva—. Está seguro de que não existe outra razão? —insistiu.

Um retumbo de trovões se ouviu ao longe. Aquilo encaixava com a expressão de Tor.

—O que outra razão poderia existir?

—conheci à garota. É uma preciosidade. Não te dê vergonha admitir que a queria.

Tor examinou com frieza seu irmão sob a sombria e úmida neblina.

—Só porque tenha atuado como um idiota por uma mulher, não vás tomar a outros por idiotas.

Seu irmão o olhou com perspicácia.

—Sua esposa está apaixonada por ti.

Tor ficou imóvel; o coração lhe deu um estranho tombo.

—Do que está falando?

Torquil lhe explicou que Christina tinha entrado no grande salão quando ele estava abraçando a sua recém casada esposa.

—De entrada não a vi, mas quando reparei nela me encontrava o suficientemente perto para ver seu olhar de perplexidade. Estava destroçada. Exatamente como eu me sentiria se tivesse visto o que ela viu.

Tor perjurou, e passou uma mão pelo cabelo, que por então já tinha encharcado. Era capaz de imaginar o que ela teria pensado. Agora bem, aquilo do amor… Esperava que seu irmão estivesse equivocado. Porque isso somente causaria sofrimento a Christina.

—por que não lhe contaste que somos gêmeos? —perguntou Torquil. Entretanto, antes que Tor pudesse responder, deteve-o com um gesto da mão—. Esquece o que te perguntei. Você nunca conta nada a ninguém. Inclusive Florence teve que perguntar a mim qual era o dia de nosso santo.

Tor franziu o cenho; não sabia que a sua primeira mulher importassem essas coisas.

—Você não foste precisamente meu tema favorito de conversa. Coisa difícil de aceitar para ti, já sei.

Um sorriso petulante apareceu em rosto de seu irmão.

—Deus sabe que essa preciosa tua mulher deve estar cansada de seus rudes encantos. Possivelmente deveríamos fazer quando jovens…

Tor o agarrou pela garganta antes que pudesse terminar a frase tomando-o completamente por surpresa. Teria que dar as graças ao Boyd mais tarde por essa rapidez de movimentos.

—Toca-a e te mato - disse olhando a seu irmão nos olhos—. entendeste?

Torquil assentiu, e então Tor o soltou.

—Maldição, somente era uma brincadeira. —Massageando a nuca, Torquil olhou fixamente a seu irmão na escuridão. Seu olhar era de inteligência, e ao Tor recordou a do MacSorley—. grande reação para estar falando de uma esposa a que não quer, não te parece? Acredito que está louco por ela. E já era hora, se me perguntar isso. —Torquil percebeu a raiva de seu irmão—. Só espero que te dê conta antes que seja muito tarde. As mulheres necessitam um pouco de afeto e de ternura.

Seu endiabrado irmão tinha casado um par de meses, e se considerava um perito? Ignorava o que Torquil acreditava saber, mas o certo era que não sabia nada.

—Fecha essa bocarra, Torquil, ou dará com os ossos na masmorra antes do que imagina.

—Significa que me perdoa?

Tor deixou transcorrer uns instantes para que seu irmão esperasse, preocupado, sua resposta. Deveria castigá-lo, e o castigaria, mas agora o necessitava para algo mais importante. Sua intranqüilidade só aumentara desde a inesperada aparição do John MacDougall no Skye. Havia algo estranho em tudo isso, e não queria correr nenhum risco.

—Não, significa que pensarei no seu castigo. Primeiro te encomendarei uma missão.

Percebendo a importância do assunto, Torquil adotou um semblante sério e se concentrou nas palavras de Tor.

—Do que se trata?

—vou exilar lhe a ti e a sua esposa à ilha do Lewis, para que possa vigiar ao Malcolm e ao Murdoch até que me inteire de quem está atrás dos recentes ataques e termine de treinar aos homens. Se alguém descobrir no que estou comprometido, quero saber que meus filhos se encontram a salvo.

A expressão de Torquil se escureceu profundamente.

—Crie que alguém lhe faria mal?

—Não quero correr riscos.

—Quem?

Tor soltou uma gargalhada.

—Ganhei um montão de inimigos com os anos. Por não falar de nossos inimigos acérrimos, os MacRuairi.

—Filhos da grande cadela - espetou Torquil com expressão lúgubre. Seu irmão os odiava tanto como ele.

Tor desejou poder contar ao Torquil que tinha ao Lachlan MacRuairi sob suas ordens, mas tinha que manter as identidades dos homens em segredo.

—Por outro lado, temos que considerar também a seu sogro, e ao MacDougall.

—E se pensarem que você e eu não estamos envolvidos…

—Isso servirá para protege-los de meus inimigos - atravessou Tor terminando a frase—. Embora espere que não seja necessário - disse sorrindo a seu irmão com sarcasmo—. Temo-me que isso também significa que sua mulher terá uma falsa impressão sobre mim.

Torquil torceu o gesto.

—Darás uma de mau, verdade?

—Não parecerá estranho, dado que é o que te merece. Mas não pode contar a ninguém a verdade. —Torquil ia protestar, mas Tor lhe cortou em seco—. Não me arriscarei. Além disso, seria muito perigoso para sua mulher.

—ficará furiosa quando descobrir que a enganei.

—Vale mais que fique furiosa a que corra perigo. Considera uma ordem direta. —Algo que sabia que seu irmão não podia desobedecer—. Faz isto por mim e possivelmente tão somente te arrancarei as partes do corpo às que sua jovem esposa não há se aficionado especialmente.

Torquil riu, mas se sobrepôs imediatamente.

—Sinto muito, irmão. Sei que te causei problemas. Oxalá tivesse podido atuar de outra maneira. Dou-te minha palavra de que farei tudo o que possa para lhe compensar - No subestimes a John de Lorne..

Tor assentiu.

—Sim, sei. Mas não só tem que ajustar as contas comigo. MacDougall quer cobrar pela promessa de compromisso que quebrou. A metade do dote da garota.

Torquil soltou um taco.

—Ao MacDougall que lhe dêem…

—Não subestime ao John do Lorne. É um filho de cadela, mas muito ardiloso. Minhas bodas lhe deu toda a munição que necessita para tentar me dobrar.

—O que fará?

Tor sacudiu a cabeça.

—Espero que aconteça algo antes de janeiro que me impeça de ter que decidir formalmente. Esta guerra pertence a Escócia, não a nós.

Tinha trabalhado toda sua vida para que seu clã tivesse uma posição destacada e fosse próspero; escolher mal nessa guerra poderia voltar a afundá-los na escuridão e lhes fazer perder tudo o que tinham conseguido. Entretanto, sabia que os ventos de rebelião sopravam com renovada força. A guerra era algo iminente, inclusive para as ilhas Ocidentais, e Tor sentia que esticavam uma soga ao redor de seu pescoço.

Seu irmão compreendeu a situação.

—Ao inferno com Eduardo da Inglaterra e com Robert de Bruce. O que sabem das ilhas Ocidentais?

—O bastante para ter compreendido que nos necessitam para ganhar - respondeu Tor claudicando—, e isso é mais do que já sabiam.

A chuva começou a aumentar.

—Vamos. Quero conhecer a mulher que nos causou tantos problemas, embora duvide que ela se alegre de me conhecer quando ouvir o que vou dizer.

Acertou. A recém casada tinha caráter; isso concedia. Essa menina rebelde tinha todo o aspecto de querer lhe arrancar os testículos com a colher que fazia oscilar ante ele. Tor, por causa da tormenta, permitiu-lhe ficar no castelo até a manhã seguinte. Em outras circunstâncias teria recebido a Meg Nicolson com os braços abertos, por ser a mulher de Torquil, embora somente fosse por dar o gosto de ver seu feroz irmão dobrado por uma mulher. Desgraçado…

Tor saiu do grande salão pela porta que dava ao corredor sabendo de que não podia procrastinar mais. Tinha que ver sua esposa.

As palavras de seu irmão o tinham incomodado mais do que teria gostado de admitir. Christina o amava? Egoisticamente, por uns instantes experimentou uma satisfação primitiva. De entrada, queria seu amor…, sua devoção. Queria-a para ele.

Entretanto, também sabia que lhe faria mal ao ser incapaz de dar o que ela desejava. Tor não era como seu irmão.

O dever. O clã. A guerra. Tudo isso vinha em primeiro lugar. Agora bem, era inegável o que Torquil lhe tinha feito notar: estava louco pela Christina, e isso não o havia sentido nunca por uma mulher. Queria agradá-la. Fazê-la feliz.

Ao aproximar-se do dormitório dela, Tor observou que uma fresta de luz aparecia sob a porta que dava ao seu quarto. Franziu o cenho perguntando-se quem estaria de pé essas horas trabalhando em suas dependências particulares. O irmão John? Esse homem sempre parecia andar brincando de correr de um lado a outro. Tor sabia que era absurdo, mas começava a sentir bastante antipatia pelo novo escrivão. O dia em que Rhuairi advertiu um engano nas contas, Tor pediu que vigiasse ao tímido clérigo, quase esperando encontrar uma razão para livrar-se dele. Entretanto, o senescal não encontrou nada mais, e Tor, que esteve emprestando mais atenção às traduções de sua correspondência que às contas, tampouco. Não obstante, para ser um clérigo, o maldito amanuense passava muito tempo com sua esposa.

Abriu a porta e lhe surpreendeu não encontrar ao irmão John, a não ser a sua mulher.

Christina se sobressaltou com o ruído e ao vê-lo ficou em pé. A brutalidade de seu gesto fez que se pulverizassem pelo chão vários papéis que devia ter tido em cima do regaço.

—Retornaste!

A clara alegria que notou na voz dela contrastou com a culpa que o retorcia. Uma culpa que não tinha por que sentir. Estava cumprindo com seu dever. Atendendo suas responsabilidades. Não podia estar sempre ao seu dispor e vê-la em todo momento. Entretanto, em realidade tinha sentido falta dela. Todos e cada um dos minutos que esteve separado dela. Christina o estava abrandando, estava o pondo fraco, e isso não podia permitir.

Examinou a mesa a que estava sentada e advertiu a presença de tinta, uma pluma solta a toda pressa, os livros de contabilidade abertos, os documentos empilhados, as manchas negras de suas mãos… e inclusive uma que destacava em sua bochecha.

—O que está fazendo aqui?

Tor compreendeu o significado de todo aquilo, mas não encontrava sentido. Cravou seu olhar nela e viu que o rubor aparecia em suas bochechas.

Christina mordeu o lábio, colocando o escuro cabelo atrás de sua rosácea e bem desenhada orelha.

—Queria te surpreender.

Tudo parecia encaixar com exatidão. Tor a olhou de novo. Com maior atenção. Surpreso ante o que via… ou não tinha sido capaz de ver.

—Sabe ler e escrever.

Christina assentiu e deu uns passos para ele, com a excitação plasmada em seu delicado rosto.

—Ainda não terminei; desejava que fosse perfeito. Sei que estiveste muito ocupado e queria encontrar a maneira de ajudar, por isso estive pondo em ordem as contas. Estavam embaralhadas. —Christina falou gesticulando e esboçou um franco sorriso—. Surpresa!

Tor não soube como reagir. Dizer que estava aniquilado era pouco. Era pouco freqüente que os homens das Highlands dominassem essa disciplina, por não falar das mulheres. Repassar as contas não era uma tarefa fácil. Era essa a razão de que Rhuairi tivesse encontrado enganos? Tor franziu o cenho.

—Por que mantiveste isto em segredo e não me há isso dito?

Christina mudou de expressão; era óbvio que a reação de seu marido não tinha sido a esperada. Agora bem, acaso podia esperar o contrário? Tor tinha entrado em seus aposentos para descobrir não só que esteve ocultando um grande secreto, mas sim se tinha metido totalmente em seus assuntos particulares. Só Deus sabia quanto haveria essa mulher embaralhado as coisas.

—Queria te dar uma surpresa. Demonstrar-te que posso ajudar.

Conhecendo sua sensibilidade, Tor franziu os lábios para tentar controlar seu mau gênio.

—Isto não é um jogo, Christina - disse com paciência—. Está interferindo em uns assuntos do clã da máxima importância. Assuntos sobre os que te adverti que te mantivesse a margem.

—Só tentava ajudar. Vi um engano nos livros, e depois da recente visita do MacDougall, soube que tinha que fazer algo.

—Tenho escrivães que me levam os livros. Este não é seu lugar. —Tor tentou falar com doçura—. É minha esposa. E se encontrar algum engano, sua obrigação é me comunicar isso. Tor passeou o olhar por um dos livros de contabilidade, percorrendo com os olhos as colunas perfeitamente alinhadas.

Christina se endireitou com olhar desafiante.

—Não encontrará nenhum engano.

Tor se voltou para olhá-la.

—Tão segura está de ti mesma?

—Muito.

Sustentaram-se no olhar. De repente, um pensamento cruzou pela mente de Tor. Não, ela não teria ousado… teria se atrevido…?

—Que mais estiveste lendo? —perguntou agarrando-a pelo braço—. Estivestes lendo minha correspondência, minha correspondência privada?

Christina afastou os olhos dele, mas a escura mancha de sua bochecha destacou com a intensidade do rubor.

Tor perjurou, esquecendo que estava fazendo um grande esforço por controlar seu mau gênio. Repassou mentalmente as últimas semanas. Somente tinha recebido duas cartas secretas de MacDonald, que tinha guardado em seu sporran e logo tinha queimado. Pensou que tinha sido cuidadoso, embora naqueles momentos não suspeitasse que sua esposa soubesse ler.

O medo se apoderou dele. Quando pensava no perigo que Christina podia correr se de maneira fortuita via algo que não devia…

Como poderia protegê-la se ela não deixava de colocar os narizes em assuntos que não lhe concerniam? Sua mulher tinha cruzado a linha.

—Maldita seja, Christina, dissete que te mantivesse à margem.

*

Desconsolada, Christina sentiu a coceira das lágrimas nos olhos. Aquilo não estava indo como tinha planejado. Tor tinha que estar agradecido, possivelmente mostrar-se impressionado e orgulhoso dela, mas não furioso.

Como seu pai.

Tor não era como seu pai. Era um homem justo. Tor se mostraria agradecido se lhe emprestasse sua ajuda, sem importar sua procedência. Ou não?

«Não te preciso» era o que, a efeitos práticos, havia dito.

Seu rosto perfeitamente cinzelado era tão duro e inexpugnável como o granito.

—Não entendo que te tenhas zangado tanto —disse Christina—. Pensei que assim te agradaria.

Umas linhas brancas sulcaram as comissuras de seus lábios.

—Pensou que me agradaria saber que estiveste lendo minha correspondência privada?

Christina amaldiçoou sua pigmentação clara e a incapacidade de controlar o rubor que lhe acalorava as bochechas. Não havia desculpa alguma. Agora bem, acaso Tor não se dava conta de que ela so queria formar parte de sua vida?

—Só queria saber mais coisas de ti. Saber o que faz durante todo o dia. Por que está sempre tão ocupado. Por que te parte continuamente. —Levantou os olhos para ele e advertiu o duro gesto de sua mandíbula. Não tinha feito o comentário adequado… E isso lhe recordou o que tinha visto na broch. Entretanto, a culpa não era so dela—. Se de vez em quando me contasse algo, não me veria obrigada a recorrer a outros meios para me inteirar.

—Pelos pregos de Cristo! Isto não é um jogo de meninos, é perigoso. Se atuo assim, é para te proteger.

Os olhos de Christina jogavam brasas pela raiva e a humilhação.

—Então deixa de me tratar como a uma menina e me conte o que está passando. —Christina o agarrou pelo braço e o olhou com ar suplicante. Estavam muito perto. O bastante para tocá-lo. Para acariciar sua áspera bochecha e sentir o forte tic de sua mandíbula sob o polegar—. Diga-me do que está tentando me proteger.

Ficaram olhando à luz das velas, ela estendendo a mão, ele retirando-se. Uma dança que pareciam condenados a repetir uma e outra vez.

Salvo que nessa ocasião Tor titubeou. Durante um momento Christina pensou que contaria. Viu-o em seus olhos.

Mas sua força de vontade era férrea, e Tor se soltou dela com cuidado. Christina notou a tensão que irradiava dele na dura contração de seus ombros, a resistência a deixar-se levar pela natural atração que sentiam seus corpos e a rigidez com que se mantinha afastado dela.

—Fica à margem, Christina. À margem dos livros, das cartas. Basta de me seguir, basta de perguntas.

Christina quis chorar de raiva.

—por que tem que te comportar assim?

Tor pareceu confundido.

—Como me comporto?

—Com evasivas. Com obstinação. Nunca me contas nada. Por que não pode confiar em mim? Tanto dano te faria compartilhar seus pensamentos comigo?

Tor endureceu seu olhar.

—Não, mas isso poderia fazer mal a outros.

A acusação a feriu.

—Eu nunca faria nada que pudesse te trair. Esperava que a estas alturas já saberia que podes confiar em mim.

—Não é assim como funcionam as coisas, Christina. Isto é a vida real, não uma história de cavalarias. De verdade acredita que em tão só dois meses teria que lhe confiar isso tudo, mesmo que haja coisas que põem em perigo as vidas de outras pessoas, simplesmente porque é minha esposa? Embora quisesse, meu dever como chefe é me reservar a opinião.

Tor lhe fez sentir-se ridícula, ingênua. Entretanto, não tudo formava parte de seu dever.

—Está seguro de que não se trata so de uma desculpa? É impossível que no clã tudo seja questão de vida ou morte. —Christina se apoiou nele pressionando-se contra seu peito. Sentiu sua fragrância escura e masculina. Recordou o sabor rico e especial de sua pele, a sedosa e cálida pressão de sua boca. O roce intenso e erótico de sua língua—. Que dano pode fazer…?

—Basta - espetou Tor com aspereza largando dela—. É minha mulher. E me obedecerá nisto. Não tenho que te explicar meus motivos. E tampouco me obrigará a fazer sua vontade usando seu corpo. —escureceu o olhar—. Por muito atraente que sejas.

Christina deu um coice como se a escaldasse.

Estava ela fazendo isso? Tapou a boca envergonhada. O fazia, embora sem ser consciente disso.

—Não me tinha dado conta…

Tor pareceu acreditar e suspirou profundamente.

—vim a te dizer que preciso partir.

Christina afogou um grito.

—Partir? Mas se acabar de chegar…

—Retornarei antes da festa do Yule.

Caiu-lhe a alma aos pés.

—Mas isso é dentro de duas semanas… —agora pareciam eternas—. Aonde…? —conteve-se, e ficou olhando seus infranqueáveis olhos. «Dá igual», pensou sabendo que tampouco o diria—. Mas seu irmão acaba de chegar. Não posso acreditar que não me dissesse que são gêmeos.

—Pensei que não era importante - replicou Tor, endurecendo a expressão de seus lábios—. Além disso, Torquil parte amanhã.

Christina abriu uns olhos como pratos.

—por quê?

Tor a olhou com dureza, com olhos inescrutáveis.

—Enviei-o longe.

—Para que?

Estava claro que não desejava lhe dar explicações.

—Por ter raptado a sua mulher e nos deixar a ponto de provocar uma guerra.

—Mas estão apaixonados. Qualquer pode ver. Se tivesse conhecido a Meg…

—Conhecia. Os sentimentos que alberguem não mudam as coisas.

—Não mudam as coisas? —O que acontecia com esse homem? Tratava-se de seu irmão. De seu irmão gêmeo. Como podia não lhe importar sua felicidade?—. Como pode ser tão frio e desumano?

«É frio.»

Não. Christina se negava a acreditar que o que havia sentido com antecedência fossem imaginações. Tor podia parecer um senhor da guerra duro e implacável por fora, mas em seu interior havia muito mais. Era capaz de amar; somente terei que lhe ensinar a abrir o coração.

Sua acusação sortiu efeito. A mandíbula de Tor se contraiu e o tic lhe disparou com força.

—Porque tenho que ser. Centenas de pessoas contam com que eu as proteja, com que tome decisões pelo bem do clã. O que fez meu irmão podia desencadear uma guerra que teria conduzido a morte de dúzias de habitantes de meu povo. Se isso é ser frio, que assim seja.

Christina se retorceu as mãos, sentindo-se fatal. Nunca o tinha considerado dessa maneira. Não era assim como tinham que ir as coisas. A surpresa que queria lhe dar tinha tomado um lado negativo.

—Sinto muito, de verdade. Somente tentava ajudar. Prometo que não voltarei a interferir. Mas não vá assim. —Lhe escapou uma lágrima—. Não pode ficar só esta noite?

A intensidade de seu olhar a deixou perplexa. Tor estava travando uma batalha, embora ela desconhecesse sua natureza.

—Não posso - disse ele com brutalidade.

Sem nenhuma explicação. Sem ternura. Nada. Christina lhe dirigiu um longo olhar interrogativo procurando algum signo de debilidade. Foi inútil. Desviou o olhar ao chão, sentindo-se muito desgraçada.

—Bem. Até que retorne então.

«Que Deus te proteja.»

Tor se dirigiu à porta, e de repente se voltou soltando um juramento como somente tinha ouvido dele uma só vez. Antes de dar-se conta do que estava acontecendo, viu-se envolta em seus braços, pressionada contra o escudo de aço de seu peito, e com sua boca na sua, lhe exigindo um beijo. Um beijo que fez que lhe desbocasse o coração e sentisse mariposas no estômago. Um beijo que a deixou sem fôlego.

Um beijo que terminou muito cedo.

Com um rugido que mais parecia um grunhido, Tor se separou dela. Seus olhos se encontraram, e por um momento Christina captou o brilho da

ternura que com tanto desespero tinha querido ver. E sem mais palavras, Tor se foi.


Capítulo 19

—Vêem algo? —perguntou Tor ao Lamont, embora com a tez curtida pelos elementos, as mechas de cabelo gelados e as grossas peles que lhe protegiam a cabeça e os ombros podia confundir-se com qualquer dos homens.

Lamont, ou o Caçador, como o tinha apelidado MacSorley por sua perícia seguindo rastros, sacudiu a cabeça e entreabriu os olhos para ver bem através da espessa névoa que se levantou o final do dia.

—Não, capitão, nada.

Tor perjurou; a impaciência começava a apoderar-se dele. Estava desejando que terminasse esse exercício de práticas. Não se tratava tão somente do cansaço ou das brutais condições do entorno: não podia livrar-se da intranqüilidade com que havia partido do Dunvegan.

—Sigam olhando, não desapareceu. Estará por aí.

Lachlan MacRuairi era um bastardo escorregadio, e estava demonstrando sua habilidade para entrar e sair sem ser visto. Era o único ao que ainda ninguém tinha encontrado. Até enfrentado à capacidade de rastrear do Lamont, levava quatro dias evitando a captura, quase um mais que MacKay, o único homem que tinha conseguido se esconder duas noites na gelada e inclemente sombra das Black Cuillins. As Black Cuillins, que deviam o nome às escuras rochas ígneas que constituíam seus picos, eram a cordilheira montanhosa mais alta do Skye e a considerava uma das mais imponentes de toda Escócia.

No inverno podiam ser mortais.

No inferno não ardia tudo em chamas, pensou Tor; fazia frio, e muita umidade. Um frio que paralisava as articulações inclusive na luz do dia. Mas as noites… Tor tremeu ao recordar: as noites eram pura agonia. O ar gélido penetrava entre suas volumosas peles e lhe cravava como agulhas de gelo.

Tor sabia que era muito possível que MacRuairi estivesse congelado e sepultado sob um metro de neve recente. A noite anterior tinham tido uma tormenta: uma neve espessa e consistente tinha caído em rajadas, como uma incessante cortina branca, deixando o cerco que havia ao pé da montanha coberto por mais de trinta centímetros de neve e formando umas geleiras de traidora profundidade em alguns setores. No alto da montanha a neve minguava, devido às estreitas cristas e às vertentes rochosas dos topos, e era substituída pelo gelo.

Aquele exercício de treinamento estava desenhado com dois propósitos. As montanhas e o mau tempo eram dois fatores a ter em conta porque os homens enfrentariam a eles durante os dias próximos. Se queriam aplicar com êxito suas táticas piratas em terra firme, precisavam ser capazes de aclimatar-se para sobreviver em quaisquer condição. Tor sabia além que nada unia tanto a um grupo como compartilhar penalidades.

Que a maioria dos homens tivesse resistido bem durante dois dias nesse entorno hostil era incomum. A provocação se desenhara para que fora virtualmente impossível de superar: esconder-se em algum ponto entre os três lagos situados entre o Sgurr e Lagain, «o pico do pequeno terreno baixo», o topo mais alto da cordilheira, durante sete noites sem ser descoberto. E era uma façanha considerável, porque o terreno nu e rochoso mal oferecia rincões onde manter-se coberto ou proteger-se. A maioria dos homens que Tor tinha conduzido a esse lugar tinham resistido tão somente umas horas, uma noite no máximo. Tor conhecia todas as covas, e inclusive no caso de que alguém pudesse arrumar-se reunindo suficiente turva ou madeira para acender um fogo, isso lhe prejudicaria porque seria facilmente visto.

Tinha dado aos homens da guarda uma hora de vantagem e logo os tinha ido caçando um a um. Os homens localizados passavam a incorporar-se ao grupo de caçadores até que, como então, somente ficava um.

Tor contemplou aos temíveis guerreiros que o rodeavam, convertidos agora em um grupo asqueroso e de aspecto lamentável.

—Abertos em leque - ordenou que—. Subiremos à cúpula desde todas as direções e desse modo o obrigaremos a sair.

Se MacRuairi estava vivo, encontrariam-no.

E o estava. Em algum lugar, vigiando-os. Sentia-o. Era como se ambos estivessem travando uma batalha particular de estratégias: a do caçador e a presa. Chefe contra chefe. Líder contra discípulo ressentido. Em outra situação teria desfrutado do desafio, mas nesse momento queria acabar com aquilo de uma vez por todas.

Dispôs à maioria de seus homens em vários grupos distanciados aproximadamente entre si ao pé da montanha. Campbell, MacKay, Lamont e ele subiriam pela crista principal do topo entre todas as vertentes possíveis.

Iniciaram a ascensão pisando metodicamente o caminho para o alto da montanha. Tor tinha empreendido a rota mais difícil, a que arrancava do sudeste e exigia escalar por um pronunciado e escarpado ravina.

Pouco depois se deteve para recuperar o fôlego sobre uma estreita e pedregosa crista no alto da ladeira. Com a mão em modo de escudo, Tor escrutinou os picos ocultos entre a névoa em busca de algum sinal de movimento ou incongruência na paisagem.

Nada. Tanta quietude parecia fantasmagórica. Quão único pôde ver através da névoa foram retalhos de rochas negras engalanadas com finas faixas brancas. Depois de um gole energizante de uisge-beatha, reatou a extenuante ascensão da montanha. Movendo-se com a graça ligeira e o passo seguro de um puma, hábil e rápido, escalou o terreno traidor com uma facilidade ganha com um árduo treinamento.

Estar em boa forma física, entretanto, não lhe impedia de ser imune às forças da natureza. Mal sentia as pontas dos dedos sob as grossas luvas de couro, ou os dedos dos pés nas botas envoltos com peles de animais. Tinha a pele dos lábios e as bochechas que o elmo não cobria avermelhada pelo frio, a mandíbula sem barbear acusava o peso do gelo e os músculos lhe doíam pelo desgaste que tinha quatro dias subindo e descendo pelas montanhas em busca de um fantasma.

Se fosse qualquer outro, Tor teria posto fim à provocação. Mas se havia um homem que pudesse sobreviver nessas condições era o bastardo do MacRuairi, um homem de sangue-frio; somente o diabo sabia cuidar tão bem de si mesmo.

Não obstante, e com toda a reticência do mundo, Tor teve que admitir que seu inimigo, convertido temporalmente em seu irmão de armas, tinha-o impressionado durante essas últimas semanas. Lachlan MacRuairi era um guerreiro preparado e temerário que assumia todos os obstáculos que Tor punha em seu caminho, e eram muitos, com uma determinação e uma coragem incomparaveis. MacRuairi encarnava o único lema que Tor respeitava: Não abandone nunca, não te renda jamais.

Agora bem, embora parecesse um guerreiro perfeitamente preparado e predisposto, Tor não confiava nele. MacRuairi era como uma serpente adormecida que aguardava para atacar. Tinha a alma de um mercenário, e a única lealdade que observava era para consigo mesmo. Nunca poderia integrar-se plenamente em uma equipe. Por que tinha aceitado a lutar pelos Bruce? Por dinheiro, por vingança, por um desejo de morte ou seguindo um arrevesado plano que lhe permitisse sair de tudo aquilo em louvor de multidões?

Tor adivinhava os propósitos da maioria de seus homens, mas MacRuairi era um buraco negro impossível de penetrar. Possivelmente isso era o que lhe preocupava. Era difícil compreender a um inimigo…, irmão, retificou, quando não se sabia quais eram os motivos que o impulsionavam.

Onde diabos estava?

A inédita impaciência de Tor não só se devia ao frio ou à ânsia de ganhar no MacRuairi, mas também ao desejo de terminar o trabalho que se propusera para poder retornar a Dunvegan. Não ao castelo, a não ser com sua mulher.

Maldição, sentia falta dela. Seu rosto lhe aparecia por todo lado. Inclusive no alto dos rochosos topos da poderosa Cuillin, Christina o espreitava. Possivelmente fora devido à absoluta desolação do entorno, ao agreste e amargo isolamento, que lhe trazia sua lembrança. Christina era uma presença cálida e liviana para um homem que levava muito tempo vivendo em terra erma. Já começava a parecer-se com um desses personagens das histórias de cavalaria que a ela tanto gostava.

Ao chegar ao alto da estreita crista que havia justo debaixo da cúpula, Tor voltou a escrutinar a montanha a tênue luz do dia e viu em frente ao Campbell, quem tinha subido por uma rota teoricamente mais fácil, um monte de rochas alisadas pela erosão. Tor fez sinais com a mão para comprovar a outra vertente do pico antes de seguir adiante e para assegurar-se de que não deixava nem um claro por cobrir.

Não gostava de passar outra noite na montanha, mas o tempo lhe jogava em cima. Logo escureceria.

Christina estaria sentada junto à chaminé com seu trabalho…

Aquilo tinha que terminar. Não podia concentrar-se. Seus pensamentos voavam para sua mulher. Christina o tinha posto na incerteza. Não podia deixar de reviver mentalmente a cena que se desenrolara entre os dois em seus aposentos antes de sua partida. A excitação de Christina. O assombro inicial dele ao inteirar-se de que sua mulher tinha estudo, e logo sua cólera, desatada pelo medo, ao deduzir que ela tinha lido sua correspondência privada. Tor não podia tirar do pensamento a lembrança de sua expressão abatida e de seus doídos olhos, alagados de lágrimas.

Por alguma razão as contas eram importantes para ela, e sua reação a tinha decepcionado muitíssimo. O medo era o que tinha provocado nele sua atitude arruda. Deu-se conta nesse momento. Por muito equivocadas que fossem suas intenções, Christina só pretendia ajudá-lo. Estava ansiosa por surpreendê-lo, e o único que a ele tinha ocorrido era que a iniciativa de ajudá-lo poderia pô-la em perigo.

Pior ainda, esteve quase a ponto de lhe contar suas razões. E se tivesse ficado, o teria feito com toda segurança. Contenção. Resistência. Ambas as qualidades pareciam lhe abandonar quando entrava em cena sua encantadora esposa. Seu desesperado beijo de despedida o tinha demonstrado.

Louco por ela? Completamente louco. Levava a essa mulher no sangue, nos ossos, e não sabia o que fazer. Se não se andasse com cuidado, terminaria convertendo-se em um estúpido como seu irmão, que atuava em função das emoções em lugar de sopesar o que era melhor para o clã. Que tipo de líder seria se dançava ao som dos caprichos de uma mulher?

Quase tinha escurecido quando começou a descer. Ao não estar concentrado como devia, deu um mau passo e escorregou lançando uma placa de gelo ladeira abaixo que, na pronunciada costa, desencadeou uma pequena avalanche de rochas e neve. Recuperou o equilíbrio sem problemas, mas se reprovou o lapso. Mais valia concentrar-se no que estava fazendo se não quisesse terminar morto.

E então o viu.

Aos pés da pronunciado ravina, a uns cento e cinqüenta metros de altura, sepultado quase por completo sob a neve, havia a carcaça de um cervo. Situada não no cerco como deveria, se o animal tivesse morrido despencado, a não ser em uma estreita crista.

Isso era obra do MacRuairi. A pequena avalanche tinha posto ao descoberto seu esconderijo.

Tor sentiu que lhe bulia o sangue com o instinto do caçador que acaba de avistar sua presa. Com renovadas energias, começou a deslizar-se costa abaixo. Havia suficiente luz para orientar-se.

Ao aproximar-se de uma estreita saliencia rochosa, diminui a marcha e apoiou os pés com cuidado, centrando todos seus sentidos no terreno.

Tinha avançado uns passos quando aconteceu a catástrofe.

O chão a cedeu sob seus pés. Tor escorregou. Deu com o corpo contra uma rocha, de cara, e começou a deslizar-se pela saliencia. Lutou por agarrar-se a algo, mas a neve e a rocha caíam com ele precipitando-o abruptamente para a borda da ravina.

Ia muito depressa. O vento era ensurdecedor. Tentou agarrar-se onde fosse com ambas as mãos e medindo com os pés. A velocidade ia lançá-lo de costas ao ar quando seu corpo impactou contra uma rocha recortada que reduziu sua marcha, então Tor conseguiu colocar os dedos em uma greta que achou na vertente rochosa.

Mediu com os pés o muro de rocha, mas não encontrou nenhum ponto de apoio. Com o coração desbocado, tentou impulsionar-se para cima, mas foi inútil. A lisa parede de rocha e gelo não teve piedade dele.

Tor pendurava sobre o vazio agarrando-se com as mãos, com o corpo maltratado pela queda e provido com as pesadas armas que tinha atadas à costas. Não se atrevia a soltar uma mão para tirar-lhe ou alcançar a corda que levava em um lado, porque se se movesse, era homem morto.

E a menos que acontecesse um milagre, assim terminaria provavelmente ao cabo de uns minutos.

Escorregavam-lhe os dedos. As luvas de couro que levava eram tão escorregadias como a pele de uma enguia e não ofereciam resistência.

Movendo-se o menos possível, voltou a cabeça na direção em que tinha visto Campbell por última vez. Gritou na escuridão, mas tão somente ouviu o sufocado eco de sua própria voz reverberando em seus ouvidos.

Diabos. Sempre tinha pensado que morreria no campo de batalha, não despencando-se por uma ravina.

Ardiam-lhe os braços, e o peso de seu corpo o puxava para baixo. Apertou os dentes, lutando por sustentar-se. Não temia à morte, mas tampouco estava disposto a morrer.

De repente notou que algo lhe golpeava na mão. Ao princípio pensou que se tratava de uma rocha, mas então se deu conta de que era uma corda.

Uma voz imaterial gritou de acima:

—Agarrem, subirei-te.

MacRuairi. Se a situação não fosse tão extrema, teria se rido. Lachlan MacRuairi estaria mais disposto a enviá-lo ao inferno que a salvá-lo.

—Como sei que não soltaras a corda quando a agarrar?

Durante um momento só se ouviu o silêncio.

—Não sabes. Mas de onde estou não me parece que tenhas outra escolha.

Tor perjurou. MacRuairi tinha razão. Ia contra seu instinto, contra todo seu ser, mas tinha que confiar nessa víbora de sombrias intenções.

—Estás preparado? —gritou Tor.

—Sim.

Tomando uma baforada de ar, Tor soltou uma mão e se agarrou à corda.

Sustentou-o.

Temendo ainda debater-se no ar, soltou a outra mão e se agarrou à corda com os dedos. A operação levou um quarto de hora, mas lentamente e com muitíssimo esforço Tor foi içado pelo ravina. A uns metros da crista, MacRuairi atou a corda à rocha que tinha usado para içá-lo e lhe estendeu a mão.

Seus olhos se encontraram na escuridão. Sem titubear, Tor soltou a corda de salvamento e com a mão direita agarrou o braço e o antebraço do MacRuairi. Uns segundos depois seus pés descansavam sobre terra firme.

Tor se dobrou para frente tentando recuperar o fôlego e deixando que o sangue voltasse para circular por seus braços. A cabeça dava voltas em todas as direções. Endireitou-se e seu olhar se encontrou com o de seu salvador. Malvado. Implacável. Animado pelos princípios morais com que se regeria uma serpente. Mais predisposto a lhe fatiar o pescoço que a lhe salvar a pele. Enfrentaram-se em muitas batalhas para que Tor duvidasse de que MacRuairi não desejava sua morte.

—por quê? —perguntou.

MacRuairi deu de ombros como se a resposta carecesse de importância.

—Agora já não lhe devo nada.

Por lhe haver perdoado a vida no Finlaggan. Tor assentiu, embora soubesse que as coisas não seriam tão singelas. A razão de que Lachlan MacRuairi se encontrasse ali poderia ser mais complexa do que supunha. MacRuairi em pessoa podia ser mais complexo do que supunha. Tinha os nervos crispados. Levava tanto momento vendo tudo negro que espionar um retalho de cinza foi uma emoção.

Entretanto, uma coisa sim sabia com segurança: Tor devia a vida ao Lachlan MacRuairi.

*

Ao ser os dias tão curtos (o sol nessa época não se levantava até quase as nove para se por pouco menos que sete horas depois), o tempo deveria ter transcorrido com rapidez, mas as horas pareciam um canto fúnebre: lentas, monótonas e cadenciosas.

Nem sequer tinha passado uma semana, e, entretanto parecia que fazia um mês que Tor tinha partido. Apesar de que esteve fora em outras ocasiões, essa era a vez que Christina levava mais tempo sem vê-lo, e a paciência, como virtude, estava esquiva.

Tinha sido uma parva. Estar casada com um cavalheiro não consistia em encher os dias com excitantes torneios, contemplá-lo nas justas com seu véu pendurando da manga e passar longas noites abraçados diante da chaminé enquanto ele compunha um poema sobre seu amor por ela. Consistia em agüentar meses, possivelmente inclusive anos, de guerra e solidão.

Não havia nada romântico no fato de ficar sozinha, inquieta e preocupada. Correria perigo? Tor tinha negado a dizer seu paradeiro, e Christina ignorava se se encontraria a salvo. Entretanto, ao ter deixado todo seu corpo de guarda no castelo, suspeitava que não tivesse ido combater e que em lugar disso estaria em algum lugar com os homens aos que o tinha visto treinar.

Quais eram?

Não cedeu à curiosidade e afastou essa idéia de seu pensamento recordando perfeitamente sua advertência. Não tinha por que preocupar-se. Não era problema dela. Não era seu lugar.

Por conseguinte, Christina atendia seus deveres como a senhora do castelo e ajudava ao irmão John quando Rhuairi não andava perto, procurando não ler nenhum dos documentos que desfilavam ante seus olhos. Agora bem, até contando com os preparativos da festa do Yule, era curioso que tivesse tão poucas coisas que fazer atrás dessas muralhas do castelo que bem pareciam masmorras. O barmkin pelo que passeava pela manhã tinha começado a lhe parecer uma jaula.

E agora nem sequer tinha os livros de contabilidade para manter-se ocupada. Esteve tão segura de que funcionaria, de que organizar suas contas seria a maneira de demonstrar que podia formar parte de sua vida… Possivelmente essa certeza fora o que a tinha decepcionado mais.

Admiração… respeito… orgulho? Dificilmente. As tentativas de o impressionar com suas habilidades tinham fracassado tão estrepitosamente como com seu pai.

Enfurecia-lhe o modo em que Tor tinha reagido, ao princípio com ar protetor e logo com um ataque de raiva. Possivelmente ela se excedera lendo as cartas, mas o que queria que fizesse? Do que outra maneira podia chegar a ele? Tinha-lhe mostrado tudo o que tinha que lhe oferecer… mas não tinha sido suficiente.

Ali não havia um lugar para ela. Nem na vida de seu marido nem em seu coração. Se seria assim a partir de então, não seria capaz de suportar.

Durante um tempo acariciou a idéia de partir. Entretanto seguia albergando esperanças. Fazia depender sua felicidade de um beijo, ao que se aferrava pela breve fresta de ternura que tinha visto nele, a primeira greta em sua pétrea fachada.

Era parva por dar tanta importância a um beijo?

Christina atou a capa ao pescoço, fechou a porta atrás dela e se enfiou no corredor até tropeçar virtualmente com o irmão John, que saía dos aposentos particulares de Tor.

O clérigo se sobressaltou e demorou uns instantes em recuperar-se. Ao ver que Christina levava a capa, perguntou:

—Aonde vai esta manhã, milady?

—Tinha pensado ir ao povoado. O filho mais novo do curtidor está doente e a cozinheira preparou um caldo de frango que levarei. —Ao ver que ele também se vestira para resistir as inclemências do tempo, perguntou por sua vez—: E você?

—Ao povoado também - respondeu o irmão John franzindo o cenho—. Estais segura de que é prudente sair do castelo, minha senhora? Dizem que a febre se contagia. Possivelmente seria melhor que esperasses que retornasse o chefe; tem que voltar um dia destes.

O amalucado coração de Christina deu um tombo.

—Têm notícias dele?

O escrivão sacudiu a cabeça.

—Não, mas tenho entendido que o senhor estaria fora tão somente uns dias…

—Uns dias não - esclareceu ela com ar taciturno—, duas semanas.

O irmão John a olhou surpreso.

—Ah, compreendo. Possivelmente interpretei mal ao senescal.

Christina não se surpreendeu; ultimamente Rhuairi se mostrara muito pouco comunicativo. Tinha-a estado vigiando com um olhar estranho. Tor não a tinha proibido ajudar ao irmão John, mas Christina caiu na conta de que seu marido não tinha falado com o escrivão, e se perguntava se este estaria informado do que ela tinha feito. O irmão John a contemplava com atenção.

—Não acredito que o chefe goste que te ponhas em perigo.

Christina torceu o gesto. Que tentasse protestar «o chefe»! Assistir aos habitantes do povoado era seu dever como senhora do castelo. E Tor tinha deixado muito claro qual era seu lugar.

—Valorizo seu interesse, mas o risco é insignificante. A febre parece leve. —Christina dedicou um sorriso cúmplice—. Além disso, se ficar um dia mais encerrada atrás destes muros, acredito que ficarei louca.

O irmão John devolveu o sorriso.

—Entendo perfeitamente. Importaria se te acompanho? Se aguardares um momento, irei procurar uma coisa que esqueci nos aposentos do senhor.

—eu adorarei contar com sua companhia. Reunimo-nos na porta de entrada? Tenho que ir recolher a panela com o caldo que preparou a cozinheira.

Christina se alegrou de poder contar com sua companhia. A princípio o irmão John lhe pareceu curiosamente angustiado, mas quando este retornou, a angústia tinha desaparecido de seu rosto. O amanuense passou todo o dia com ela visitando não só ao filho do curtidor, mas também a vários meninos que tinham caído doentes. A cozinheira tinha dado caldo para alimentar a um exército, e não foi desperdiçado. Além disso, Christina deu aos meninos os últimos figos que restavam, e que tão apreciados eram para ela, para quando se restabelecessem.

Vários soldados da guarda de seu marido insistiram em acompanhá-la. Ao princípio Christina não acreditou ser necessário, mas logo agradeceu seu amparo. No momento em que saiu pelas portas do castelo, acusou vivamente a ausência de seu marido. Não tinha dado conta até então da segurança que lhe transmitia. Sem o escudo protetor de sua presença, de repente lhe pareceu que o mundo não pressagiava nada bom. Era absurdo, sim, e sabia. Não temia um possível ataque, ao menos durante o dia, mas a lembrança da visita do MacDougall seguia fresco em sua memória.

Entretanto, Tor tinha tomado precauções e tinha posto um guarda permanente no povoado.

Em qualquer caso, a satisfação de ter feito algo útil a compensou com acréscimo de qualquer temor que pudesse sentir. Enquanto retornava ao castelo no birlinn junto ao irmão John, sentiu-se feliz de ter ido ao povo e prometeu que voltaria a fazê-lo nos próximos dias.

Anoitecia, e a névoa descia à medida que se aproximavam do embarcadouro que havia junto à grade de saída para mar. Quando estavam a poucos passos de distância, Christina vu outra embarcação amarrada.

Deu-lhe um calafrio ao ver o falcão de temível aspecto que aparecia esculpido na proa.

—Reconhecem o navio? —perguntou ao escrivão.

—Não, nunca o tinha visto - respondeu ele sacudindo a cabeça.

Os guardas de Tor não pareciam preocupados.

O navio parecia estar a ponto de zarpar. Havia dois homens no molhe. Um deles era Rhuairi. O outro lhe entregou algo, saltou como uma centelha a bordo e largou as amarras. O irmão John também se fixou na operação.

—Possivelmente somente seja um mensageiro - sugeriu.

Christina relaxou um pouco pensando que provavelmente teria razão. Embora até que o navio se afastou não soltou um suspiro de alívio.

Rhuairi foi a seu encontro quando desembarcaram e estendeu a mão a Christina para ajudá-la a baixar.

—Passastes um bom dia, milady?

—Sim - respondeu ela—. Muito bom. Este que acaba de partir era um mensageiro?

Rhuairi lhe dirigiu um olhar inexpressivo.

—Não, minha senhora. Somente alguns homens dos clãs da região que queriam ver o chefe.

Christina cruzou olhar com o irmão John. Homens dos clãs da região? Esses homens eram guerreiros.

E só recordou o estranho intercâmbio momentos depois.

*

Várias horas depois de quase despencado, Tor se sentava com as costas apoiada em uma rocha baixa e lisa e as pernas estendidas frente às resplandecentes brasas da fogueira enquanto escutava discutir os guerreiros. A situação o relaxava curiosamente. Estava cômodo, porque era previsível. Era como quando, de pequenos, brigava com seus irmãos dando voltas ao assoalho. Como sempre, conversavam da guerra que se abatia entre Escócia e Inglaterra, e do momento, se é que existia a possibilidade, de que Bruce movesse a sua peça no tabuleiro.

Devia ser perto de meia-noite, e pensando no que tinha planejado para o dia seguinte, teria que estar deitado já. Entretanto, seguia muito inquieto pelo acontecido horas antes para poder dormir.

Quando os homens viram que MacRuairi e ele retornavam colina abaixo, deram por certo que era Tor quem o tinha encontrado. MacRuairi, um homem cheio de surpresas, não tentou desenganá-los, mas sim foi Tor quem explicou brevemente o que tinha acontecido. Os homens ficaram tão surpresos como ele, possivelmente exceção de Gordon. MacRuairi se mantinha à margem, e à maioria dos homens parecia bem essa atitude. Entretanto, Gordon, o jovem e sociável alquimista, parecia não perceber a ameaçadora nuvem que se abatia sobre o MacRuairi e ambos tinham travado uma espécie de amizade, se podia chamar-se amizade ao feito de que Gordon falasse e MacRuairi escutasse.

A profunda voz do MacLean interrompeu o fio de seus pensamentos.

—O erro do Wallace foi pensar que podia repetir o êxito que teve no Stirling Bridge e vencer a Eduardo em uma batalha campal, enfrentando dois exércitos. Deveria ter seguido atacando de surpresa; essa era a força de sua liderança. Depois de perder no Falkirk, era um homem acabado. Somente sua estratégia de terra queimada impediu que Eduardo se apropriasse da Escócia naquele momento.

Quanto mais Tor escutava ao MacLean, mais valorizava a mente tão clara que tinha para organizar táticas e estratégias militares. E sua intenção adiante era aproveitar esse talento. Embora, retificou, seria MacSorley quem o aproveitaria.

—Vocês não estiveram ali - reprovou Boyd, encolerizado. O bravo patriota não tolerava que se criticasse ao Wallace porque tinha lutado junto a ele durante anos—. Não foi Wallace o traidor, senão os Comyn, que nos fizeram perder no Falkirk ao retirarem-se e abandonar à mercê dos arqueiros de Eduardo os nossos lançadores formados em falange escocesa.

MacRuairi em geral evitava falar de política, mas gostava de jogar lenha ao fogo entre o Seton e Boyd, embora sua ajuda fosse desnecessária.

—Sir Dragão, parece que têm algo que dizer - comentou utilizando o apelido pelo que o conheciam e que se referia ao brasão que Seton insistia em levar em seu tabardo.

Seton apertou a mandíbula.

—Não é um dragão, maldito bárbaro, é um guiverno29 — lhe espetou com guelra. MacRuairi sabia perfeitamente de que animal se tratava—. Wallace perdeu porque não foi capaz de controlar seus homens na batalha campal. Sabia provocar incêndios e atacar de noite, mas o que Falkirk nos demonstrou foi que uma infantaria desorganizada e indisciplinada, por mais valente que seja, não pode enfrentar a cavalheiros treinados.

Boyd tinha o aspecto de querer arrancar a cabeça do jovem inglês, mas depois da recente catástrofe do lago não queria dar rédea solta à raiva que lhe inspirava seu colega.

—Se isso for o que pensam, por que demônios estais aqui?

Seton o olhou com um desprezo altivo.

—Bruce é meu suserano.

—E seu suserano é o rei Eduardo -assinalou Boyd—. Não deverias estar lutando para ele?

Seton avermelhou de raiva.

—por que vocês estão aqui? Não faz muito tempo lutavam no lado do Comyn.

—Lutei no lado do Leão - protestou Boyd entre dentes, referindo-se ao símbolo escocês da realeza—. Sempre pela Escócia, e agora é Robert de Bruce quem a representa. Antes verei você no trono que ao Comyn. Esse perdeu o direito à coroa quando desertou e nos abandonou no campo de batalha.

Com ânimo de aliviar a tensão, MacLean interveio.

—Bruce aprendeu com os erros do Wallace. Que estejamos aqui dá fé disso. Não se enfrentará a Eduardo com os exércitos até que esteja preparado. E Bruce é um cavalheiro, um dos melhores da Cristandade. Quando chegar o momento, saberá como comandar um exército.

Seton se dirigiu ao MacRuairi para lhe fazer compreender que tinha captado que era ele quem tinha provocado a discussão.

—E você? Por que estás aqui? Por algum assunto nobre como encher suas arcas? —perguntou-lhe com uma gargalhada zombadora sem preocupar-se de dissimular seu desprezo.

A expressão do MacRuairi era inescrutável.

—Certamente não arriscaria a pele por um pouco tão efêmero como o patriotismo ou o dever. O que pode haver melhor que a riqueza?

Tinha respondido com muita naturalidade, mas Tor compreendeu que não estava dizendo a verdade. Ao menos, toda a verdade.

—E por uma mulher? —interveio MacSorley sorrindo ao Tor—. Não me ocorre um motivo melhor para arriscar a pele que a promessa de uma doce moça em minha cama.

—Te está cansando a mão, MacSorley? —perguntou Lamont com brutalidade.

O enorme escandinavo sacudiu a cabeça com desconsolo.

—Como seguimos assim durante mais semanas terei que fazer proposições.

Os homens riram a gargalhadas. Praticamente surto da necessidade. A guerra e os deslocamentos às vezes os obrigavam a passar várias semanas sem mulheres.

—Quando terminarmos com isto, farei uma parada no Mull porque ali me espera uma jovem muito fogosa, com as maiores e doces tetas do mundo. Uma pele branca como o leite, perfeita. Uns mamilos de um rosa muito claro e do tamanho de duas pérolazinhas. —MacSorley sorriu, nostálgico—. Um vento favorável, a pança cheia e uma garota bonita. Não é preciso de grandes coisas para me fazer feliz.

MacSorley tinha adotado a atitude de despreocupação que o fazia tão popular e eficaz na hora de aliviar a tensão nas filas. Era a atitude que também adotava no campo de batalha. Tor recordou seu assombro ao ver sorrir ao grande viking enquanto brandia sobre ele sua terrível tocha de guerra no fragor da batalha.

Entretanto, Tor não confundia a afabilidade do MacSorley por debilidade ou tibieza. Detrás daquele sorriso se escondia um homem de aço. Somente em uma ocasião lhe tinha visto perder esse sorriso pícaro, e tinha sido algo digno de ver. Alguns diziam dele que era frio e desumano.

—Casara-te com a garota, MacSorley? —perguntou Seton.

O viking virtualmente se afogou com um gole do cuirm que estava tomando.

—Pelo sangue de Cristo! Pode saber-se por que teria que cometer essa barbaridade? A diferença de nosso santo padroeiro, esse daí - disse assinalando ao MacKay—, vocês acreditam que me conformarei com um único par de tetas, por muito tentadoras que sejam, para toda a vida? —E deu de ombros—. Além disso, não quereria privar às outras garotas dos benefícios de minha experiência.

—Que se lasque, MacSorley - grunhiu o áspero escocês das Highlands.

Contrariamente ao resto dos homens, MacKay nunca falava de mulheres. E esse rasgo avivava a curiosidade do MacSorley quem, ao não vê-la satisfeita, indevidamente seguia cravando-o.

—Isso é o mais romântico que o ouvi dizer desde que estão aqui - se burlou MacSorley—. Entre você e MacLean, é difícil dizer quem dos dois vai ser monge.

MacLean estava recém casado; entretanto permaneceu em silêncio quando surgiu o tema. Por uma boa razão: casou-se com uma MacDowell, parente dos MacDougall e dos Comyn.

—Nunca falas de sua prometida, Gordon - disse Seton desviando a atenção do MacLean.

Gordon deu de ombros.

—Não há muito que dizer, apenas a conheço.

—Quem é? —perguntou Seton.

Gordon titubeou.

—Helen, a filha do William de Moray, conde de Sutherland.

Tor estava olhando ao MacKay no momento em que Gordon anunciou a nova, e viu o assombro e a dor pintar-se em seu rosto antes que pudesse dissimulá-los. Gordon deve ter interpretado também a expressão de seu amigo, porque Tor viu o olhar de silenciosa desculpa que lhe dirigiu.

Tor compreendeu por que Gordon não havia dito nada até então. Inflamadas brigas dos MacKay com o clã dos Sutherland eram muito conhecidas, mas Tor se perguntou se não haveria algo mais.

A conversação derivou de novo para a política e o momento em que seriam chamados as armas. Tor agradeceu a mudança de tema, porque sabia que o viking não demoraria muito em voltar a açulá-lo. E ele quão último desejava falar era de sua mulher. Tinha um trabalho que fazer, e só quando o tivesse terminado arrumaria as coisas entre eles. Não lhe faria nenhum bem dar voltas e mais voltas as coisas que não podia mudar. Entretanto, preocupava-lhe o modo em que se despediu de Christina. Prometeu-se que a compensaria da rudeza quando retornasse.

Voltou a recordar a cena recente na montanha. MacRuairi estava sentado um pouco afastado do grupo, envolto na escuridão, passando a pedra de afiar pela folha de uma de suas espadas.

Tor ficou em pé e foi sentar se junto a ele. Ao cabo de um momento, disselhe:

—Não foram vocês… Refiro aos últimos ataques por surpresa que sofremos no Skye.

MacRuairi não se incomodou em levantar o olhar, mas sim seguiu afiando a folha com a pedra.

—Tinha a impressão de que tínhamos combinado uma trégua.

—Não é a primeira vez que me encontro no outro lado de uma de suas «tréguas».

Se MacRuairi se ofendeu, não o deixou entrever, mas sim deixou de afiar sua espada.

—É certo, mas agora somos da mesma família. —Sorriu ao ver a careta de Tor—. Quem acreditas que pode ter sido?

A expressão de Tor era séria.

—Não sei. Possivelmente Nicolson, embora MacDonald me assegurasse que ultimamente se acha calmo.

—Melhor que os ataques não foram dirigidos contra você, mas sim tão somente fostes um objetivo propício.

Tor franziu o cenho.

—Sim, é possível.

Entretanto, os ataques não pareciam produto do azar, a não ser algo pessoal. Não só tinham consistido em capturar o gado e roubar as colheitas; seu povo também esteve no ponto do alvo. Por essa razão, entre outras, tinha suspeitado do MacRuairi.

—Quando foi o último?

—Quando me encontrava no Finlaggan.

—E o anterior? Também tinham te ausentado?

Tor negou com a cabeça, mas então recordou.

—Teria que estar fora, mas no último momento troquei de planos.

MacRuairi o observou com ar pensativo.

—Sem dar tempo a que alguém recebesse uma carta anunciando a mudança?

—Sim - coincidiu Tor ao compreender o que MacRuairi estava sugerindo—. Acredita ser possível que alguém esteja me espiando - disse cansativamente. Seu instinto se rebelava ante essa idéia. Conhecia seus homens.

MacRuairi deu de ombros.

—É uma possibilidade.

Por muito que a Tor desgostasse pensar que entre seu povo havia alguém que pudesse traí-lo, MacRuairi tinha razão. Devia considerar essa opção. Quem podia estar tão zangado com ele para tomar-se tantas moléstias? Nicolson, sem dúvida. E a julgar pelos ataques mais recentes, teria que acrescentar o nome do MacDougall à lista.

Se alguém o estava espiando…

Soltou um suspiro. Seu primeiro pensamento voou para Christina. Obrigou-se a fazer caso omisso de uma pontada que somente podia interpretar como pânico. Ela estava a salvo. Ninguém podia introduzir-se no castelo; Dunvegan era impenetrável.

—Quem sabe quanto tempo estaras fora? —perguntou MacRuairi lhe lendo o pensamento.

—Muita gente - respondeu Tor, ficando em pé de um salto e esquecendo o cansaço—. Se partirmos agora mesmo, poderemos chegar ali antes de meio-dia.

*

O irmão John se estava convertendo em uma enfermeira extremamente protetora.

—Hoje não, minha senhora. Indo amanhã é suficiente. Os meninos se encontram melhor e você perdoe que lhe diga isso, parecem cansada.

Estava cansada em realidade. Quando estava por vir a menstruação, como sempre, sentia uns espasmos dolorosos e tinha enxaqueca. Agora não ia explicar lhe isso a um clérigo.

—Estou bem, e não vou perder um dia tão bonito. Esqueci já o aspecto que tem o sol. Vamos, não demoraremos muito em voltar.

Entretanto, Christina se equivocara. Os meninos se encontravam muito melhor e tinham decidido entretê-la com uma canção e uma dança dedicada especialmente a ela. Era quase meio-dia quando pôde embarcar com o irmão John na galera que os levaria de retorno ao castelo.

—Mais devagar, irmão John - disse ela rindo-se—. Jamais o tinha visto caminhar tão depressa.

O escrivão sorriu.

—Ah, sim? Sinto muito, minha senhora. Deve ser a fome.

—depois dos bolos que comestes?

—Tenho debilidade pelas ameixas - confessou ele, ruborizando-se.

—Eu também. Que delícia as comer quando a temporada está já tão avançada!

De repente, o irmão John se parou em seco.

—ouvistes isso?

—Ouvir o que…?

Sua pergunta se viu interrompida pelo som distante de uma corneta. Ficou lívida. Olhou ao amanuense e, refletido em seu olhar, viu seu próprio pânico.

—O que foi isso? —perguntou ao Colyne, um dos guardas do séquito.

Embora adivinhasse a resposta, não por isso lhe impactou menos ouvi-la.

—É uma advertência do castelo, milady - esclareceu o irmão John com expressão sombria—. Atacam-nos.


Capítulo 20


Tor viu as primeiras colunas de fumaça procedentes do povoado desde de um quilômetro de distância, justo quando Campbell e MacGregor retornavam com seu relatório.

Sua expressão era lúgubre.

—Ao menos há uns cento e cinqüenta homens, quase todos mercenários, isso parece -disse Campbell—. Contei quatro galeras de guerra no molhe, mas acredito que no castelo deve haver mais para impedir que os homens que ficam dentro possam chegar ao povoado.

«Ela está a salvo», recordou-se. Obrigou-se a controlar a mente sabendo que não podia permitir distrações. Mercenários, havia dito Campbell. Aquilo não era um ataque surpresa, a não ser uma guerra a grande escala. Tinha destcado um corpo de guarda para proteger o povoado, mas seus homens eram superados com acréscimo pelas forças inimizades.

—Quantos feridos?

—Várias dúzias - respondeu MacGregor—. Quase todos inimigos. Dois dos seus homens. Seus guardas formaram um muro protetor para assegurar o passo do molhe até o povoado.

Tor assentiu, nada surpreso. Seus homens estavam bem treinados, acostumados a enfrentar-se com forças superiores a eles. Era uma de suas táticas favoritas. Como o rei Leônidas fizera na batalha das Termópilas, tinham escolhido lutar na parte mais estreita do povoado para rebater a vantagem numérica de seus inimigos. Durante um tempo. Mas não poderiam resistir eternamente com tão poucas probabilidades de ganhar. E a semelhança do mesmo destino fatal dos trezentos espartanos que resistiram no passo das Termópilas, havia mais de um caminho para acessar ao povo.

—E entre as pessoas do povoado? —perguntou Tor.

Ao MacGregor lhe quebrou a voz.

—Três homens, uma mulher e um menino pelo que pude comprovar. Outros devem ter encontrado algum refúgio, mas o inimigo atua sem piedade.

Tor fechou os punhos com uma raiva mal contida. Dirimiria a cólera que sentia nascer nele com a acerada espada da justiça. Fossem quem fosse seus inimigos, pagariam pelo que tinham feito.

Tor não era o único ansioso por lutar. Apesar da equipe ter percorrido vários quilômetros de terreno escarpado durante toda a noite, as notícias do Campbell e MacGregor causaram o impacto de um raio. Nada estimulava tanto a um guerreiro como a promessa da batalha. E esses guerreiros levavam muito tempo contendo-se.

Entretanto, não era essa sua guerra.

Os homens se reuniram em torno dele no arvoredo. A pesar do rigoroso treinamento que tinham suportado na semana anterior e de ter caminhando toda a noite sem ter dormido, a guarda de elite parecia brava e letal. Seu aspecto andrajoso e descuidado so contribuía a conferir ferocidade a seus rostos grisalhos e curtidos nas batalhas. Tor olhou a cada um deles.

—Alistaram-se para lutar pelo Bruce, não por mim. Ouvistes o que contou Campbell: ao menos são uns cento e cinqüenta homens; eu tenho dezoito, pode ser que menos.

—Dezenove - apostilou MacSorley dando um passo à frente—. Nem por todo o ouro do mundo vou deixar que sejam o único em lhe divertir. —O enorme viking sorriu—. Demos aos histriões escandinavos motivos para nos cantar.

Outros homens deram um passo à frente e se situaram atrás dele, salvo um.

—É hora de pôr em prática o treinamento, capitão - disse Boyd.

Tor olhou ao homem que se ficou atrás. MacRuairi se apoiava indolentemente em uma árvore. Deu de ombros e descruzou os braços. Os dois punhos de suas espadas se elevaram ameaçadoras atrás de seus ombros, como o sorriso que curvava seus lábios.

—Alguém terá que cobrir ao MacSorley.

Tor assentiu, comovido pela unânime amostra de apoio.

Consciente de que tinham que atuar depressa, Tor esboçou o plano. A metade da equipe atuaria como reforço dos homens que formavam o muro protetor; a outra metade se deslocaria ao redor para flanqueá-los e atacaria por ambos os lados.

—Estão preparados?

—Sim, capitão - responderam os guerreiros ao uníssono, com a determinação e a antecipação grafitada em seus rostos.

Detrás da máscara metálica de seu elmo, Tor sorriu, e seus lábios se curvaram em uma terrorífica careta em que não cabia a piedade.

—demos então uma surpresa antes de mandá-los ao inferno - afirmou levantando sua adaga ao ar—. Vitória ou morte!

—Vitória ou morte! —exclamaram seus homens ao uníssono.

Sabendo que somente carregariam com um peso desnecessário, abandonaram seus pertences para trás e saíram correndo. Em pouco mais de cinco minutos chegaram aos subúrbios do povoado.

O distante clamor da batalha em contraste com a desolada quietude das casas de pedra cobertas de cal era fantasmagórico. Várias flechas acesas tinham centrado seu objetivo nos tetos de palha. No ar carregado de fumaça se cheirava a densidade inconfundível e metálica do sangue.

Quando chegaram perto, Tor amaldiçoou ao advertir que era muito tarde para pôr em prática o plano de flanqueá-los. Os atacantes, providos com pesadas armaduras, tinham ocupado todo o povoado. O muro protetor tinha sido franqueado.

Tor mudou de tática imediatamente. Não consistiria em um ataque por surpresa cuidadosamente orquestrado, a não ser em uma explosão acérrima de força e perícia.

Tinham tudo em contra. Tor sabia que se tivesse sozinho, não teria tido nenhuma oportunidade. Mas não estava. E nunca lhe tinha preocupado ter tudo em contra. Lutava para ganhar.

Levando a mão à costas, desembainhou sua magnífica cutilada claidheamh dá laimh e deu o sinal que todos estavam esperando. Com um feroz grito de guerra, o grupo atacou.

MacGregor lançou uma rápida surriada de flechas, disparada com uma pontaria perfeita e uma trajetória em ângulo que perfuraria qualquer armadura, de malha ou de couro. Caíram seis homens antes que Tor tivesse a oportunidade de usar a espada.

Com um movimento letal, este último acrescentou um par de homens mais à lista. Girou sobre si mesmo rechaçando a folha de um atacante. Entrechoque de aço. Apesar da confrontação corpo a corpo, Tor mal moveu a espada, tão somente flexionou os músculos, duros como uma pedra.

Sem piedade. Com um rugido colérico, arremeteu contra seu competidor, levantou a espada e a brandiu com todas suas forças sobre sua cabeça lhe destroçando o crânio como se fosse uma cabaça.

Não sentiu nada. Animava-o um frio propósito.

Esfaqueando, brandindo, rechaçando, Tor riscou com sua espada um caminho de sangue e destruição entre os assombrados atacantes. Como o raio de que tinha tomado seu nome, bheithir arremeteu contra tudo o que encontrou a seu passo. O prazer da batalha corria pelas veias de Tor. Tinha os sentidos acordados, afinados, e uma estranha euforia se apoderou dele. Sua mente se concentrou na única certeza que importava em uma guerra: vitória ou morre.

A morte estava presente. Entretanto, enfrentado a sua mortalidade, sentiu-se mais vivo que nunca. A cada golpe que dava se sentia mais forte. Mais resistente. Mais invencível.

E não estava sozinho.

A visão desses homens juntos era terrorífica. Onze guerreiros magníficos arremetendo à carga com violência. Eram selvagens e temíveis, e lutando em parceria, semeavam o terror. Formavam uma combinação letal de espadas, tochas de guerra, maças e lanças dirigidas com soma mestria.

O inimigo nunca tinha visto nada parecido.

Em lugar de encontrar-se com uns indefesos habitantes do povoado, tinham que enfrentar a um exército fantasmagórico formado por guerreiros de aparência indestrutíveis. Estava claro que não eram essas as condições que os mercenários esperavam, nem as que tinham aceito alistando-se. Por isso, quando nem sequer tinha transcorrido um quarto de hora, bateram-se em retirada. Imitando aos guardas de Tor, os atacantes formaram um muro de amparo com o passar do caminho que conduzia ao molhe para alcançar suas galeras.

Tor e seus homens abriram caminho lutando, mas os navios de guerra começavam já a zarpar.

—Sigam - gritou ao MacSorley e ao MacRuairi.

Os aparentados guerreiros de sangue escandinavo saltaram sem hesitações a um pequeno birlinn que se usava como transbordador do castelo, e com um punhado de homens partiram para a caça das galeras que se afastavam.

Alguns mercenários não puderam alcançar as naves a tempo. Com a intenção de interrogá-los, Tor quis capturá-los vivos. Foi um engano.

MacGregor tinha deixado o arco e estava atendendo a um dos guardas feridos de Tor quando um dos inimigos que ficou em terra lançou sua lança.

Tor o aniquilou com a espada e lançou um grito de advertência, mas MacGregor se voltou muito tarde. A lança sulcou uma trajetória letal no ar apontando a sua cabeça.

Se Tor não tivesse visto com seus próprios olhos o que aconteceu a seguir, jamais teria acreditado.

Campbell se adiantou e apanhou a lança com uma mão, tão somente a uns centímetros do rosto do MacGregor. Com um sutil movimento a levou ao joelho, partiu a grosa madeira em dois e a lançou aos pés de seu companheiro.

Ouviu-se uma exclamação no campo de batalha.

MacGregor, que tinha visto a morte cara a cara, demorou uns segundos em recuperar-se.

—Demônios, Campbell, onde aprendeu a fazer isso?

O silencioso soldado das Terras Altas deu de ombros.

—Jogava isso com meus irmãos.

—A esta família gosta do sangue… —disse MacGregor com ironia.

Sem que lhe escapasse o sarcasmo, Campbell sorriu e lançou um olhar desafiante a esse homem que, apesar de ser de um clã rival, já se tinha convertido em um companheiro.

—Agora não poderão dizer que um Campbell nunca levantou uma mão para salvar a um MacGregor.

Em lugar de lhe soltar um bufo, como estava acostumado a fazer, MacGregor jogou a cabeça para trás e riu a gargalhadas.

Nesse momento Tor pensou que pouco ficava por ver. A menos que se equivocasse, Campbell e MacGregor tinham começado a superar suas diferenças. A camaradagem ia consolidando-se no grupo, e nem sequer ele era imune a isso. Restava esperança ainda para o Boyd e Seton?

Não lhe pareceu tão impossível.

Sacudindo a cabeça, Tor se voltou para terminar de atar aos prisioneiros. Muito tarde: todos os inimigos tinham sido mortos. Amaldiçoou sua sorte, embora soubesse que descobrir da boca de algum mercenário a identidade dos que estavam atrás do ataque surpresa era uma possibilidade muito remota. Possivelmente se MacSorley e MacRuairi alcançassem às naves obteria mais informação.

Poucos homens eram capazes de reunir um grupo tão numeroso de mercenários, embora um nome lhe viesse à cabeça: MacDougall.

A notícia de suas bodas teria sido a causa desse ataque? Não tinha sido como os anteriores. Aqueles homens tinham ido destruir e assassinar.

Gelou-lhe o sangue quando viu os cadáveres de uma mulher e de seu filho. O menino não teria mais de três anos. A mãe tinha tentado protegê-lo com seu corpo, mas a espada tinha atravessado a ambos. A raiva, o pesar e a amargura lhe deixaram um estranho sabor na boca.

Isso era exatamente o que queria evitar.

Voltou-se para não ver os cadáveres, mas a imagem lhe tinha gravado a fogo vivo na memória.

Consciente do perigo, ordenou a seus homens que retornassem a broch para que não fossem vistos por todos no povoado. Seu trabalho já tinha terminado.

Devia-lhes muito, e sabia que jamais teria conseguido sem eles. E isso o deixava em uma posição muito estranha, na posição de ter que confiar em outros. Combater junto a eles tinha sido uma experiência única. Tinha treinado a muitos homens, mas não eram como esses. Eles eram seus iguais, e tinham umas habilidades que superavam as suas próprias. Como líder, Tor estava acostumado a manter-se à margem. O irônico de seu encargo era que tinha que fomentar a camaradagem, mas nunca pudera integrar-se no grupo. Entretanto, esse dia as coisas tinham ido de uma maneira difernte.

Lentamente o povoado foi voltando para a vida. Portas se abriram e os homens do clã, emocionados, saíram de suas casas. Tor se surpreendeu ao ver que Colyne e um grupo de guardas saíam da capela.

—O que estão fazendo aqui? Por que não estavam lutando com os outros?

—Graças a Deus que viestes no momento oportuno, RI tuath.

—Porquê…?

Estrangulou-lhe a pergunta ao ver depois dos guardas à pessoa que saía pela porta da capela.

Ficou como pedra. Lívido. O que somente poderia ter qualificado de um terror que lhe gelava o sangue se apoderou dele. Não era possível.

Entretanto, sim era. Sua esposa estava ante ele. Seus olhos grandes e cheios de lágrimas destacavam em seu pálido e ovalado rosto cravando-se nele. Durante uns momentos o tempo pareceu deter-se. Ficaram se olhando, e entre os dois fluiu algo grande e poderoso. Uma emoção tão estranha que Tor nem sequer soube descrevê-la, salvo como um peso no peito, um nó ardente de dor e horror.

«Podiam tê-la assassinado.»

Quis soltar um alarido instintivo, mas o que ela fez então o deixou petrificado. Ignorando o que havia a seu redor, o açougue, o sangue que manchava o chão, que o manchava a ele, jogou-se em seus braços.

A Tor o coração deu um tombo. Algo se revolveu em seu interior. Algo quente e poderoso.

Estreitou-a entre seus braços e murmurou umas palavras cálidas para consolar não só à mulher que soluçava contra seu peito, mas também para consolar-se a si mesmo.

*

Com os olhos arrasados em lágrimas, Christina olhou ao homem sujo e manchado de sangue que a abraçava. Nunca tinha se alegrado tanto de ver alguém. Abriu os olhos da surpresa ao advertir o grande corte que tinha no rosto e o arroxeado do olho.

—Está ferido - disse, chorando e lhe acariciando o rosto.

Entretanto, Tor a tirou de cima.

—Estou bem - disse ele com brutalidade.

Christina franziu o cenho. Podia ser o grande guerreiro invencível com seus homens, mas quando voltasse para castelo com lhe curaria essa ferida, por bem ou não.

—Estou muito contente de que esteja são e salvo. Vieram muitas galeras.

Os que se resguardaram na igreja não puderam ver nada, mas quando ouviu o fragor da luta, ela soube que ali estava seu marido.

Tor ficou perplexo.

—Contente de que eu esteja são e salvo?

Christina viu que sua incredulidade se convertia em raiva. Agarrou-a pelos ombros enquanto parecia esforçar-se por não sacudi-la.

—Está bem da cabeça? E você, o que? Sabe o que teria passado se eu não tivesse chegado a tempo?

«Está assustado.» A preocupação que sentia por ela o tinha feito ir às nuvens. Por que não teria dado conta antes? Isso arrojava uma luz completamente diferente a seus arranques de mau gênio.

—estive a salvo no santuário da igreja, junto a outros. Foi idéia do irmão John - disse ela sorrindo ao escrivão, que acabava de chegar e se situou a suas costas.

Tor pareceu algo irritado ao vê-lo.

—Não todos os homens respeitam o santuário da igreja.

—E por essa razão seus homens insistiram em custodiar a porta em lugar de unir-se a outros. Não corri nenhum perigo, de verdade. —Tinha tido um medo espantoso, mas dado o estado de ânimo de Tor decidiu guardar essa informação para mais adiante—. E embora tivessem violado o santuário, o irmão John tinha me escondido sob o banco do confessionário. Nunca me teriam encontrado.

Tor se voltou para o amanuense, e com a boca seca lhe disse:

—Acredito que lhe devo minha gratidão.

O agradecimento fez avermelhar ao jovem clérigo. Um rubor coloriu suas finas e sardentas bochechas.

—Desejava com toda a alma poder retornar a tempo ao castelo - explicou—. Não imaginam nossa alegria ao ouvir que chegavam com seus homens. Pelo estrondo, parecia que lhe acompanhava um exército. —O amanuense olhou ao redor franzindo o cenho—. Aonde foram todos?

—Retornei cedo e pude reunir a alguns homens do castelo - explicou Tor—. Foram perseguir os assaltantes.

A incredulidade fez que o irmão John franzisse o cenho. Christina temeu que a explicação de Tor não o tivesse satisfeito.

—Entendo - respondeu o irmão John.

—Quem eram? —perguntou Christina—. Por que razão quereria ninguém nos atacar com tanta sanha?

—Não sei - disse Tor com expressão lúgubre—. Mas tenho a intenção de averiguar.

Vendo o olhar desumano que aparecia nos olhos de seu marido, Christina quase compadeceu do responsável quando Tor o encontrasse. Esteve afastando o olhar do panorama que se estendia a suas costas, mas o que havia no chão não lhe permitiu escapar do horror. O nauseabundo aroma da morte impregnava o ar. Não precisava desviar o olhar para os cadáveres para saber que se encontravam ali.

Tor pareceu recordar o contexto no que estavam no mesmo instante que ela. Pegou-a pelo braço e fez o gesto de levá-la —Vem pra cá…

Christina se soltou ao chamar a sua atenção algo que havia no chão.

Por todos os Santos, oxalá não se fixara.

—Não. Vem. —Tor tentou afastá-la dali, mas ela se soltou de seu braço.

—me deixe - exclamou com um grito afogado. O estômago lhe revolveu e notou o sabor da bílis. Tampou a boca com a mão, como se assim pudesse reter as náuseas. Adiantou-se uns passos e se pôs de joelhos no chão, embargada pelo desespero e o horror.

O cadáver de uma mulher jazia de barriga para baixo atravessado sobre o de um menino. Christina os conhecia. Eram a mulher do oficial e seu filho. Tremendo, acariciou o sedoso e loiro cabelo do menino. Ainda estava quente pelo sol. As lágrimas se amontoaram em seus olhos. Olhou a seu marido, musculoso e provido com sua armadura, uma sombra imponente a contraluz. Como podia dedicar-se a isso? Como podia estar sempre rodeado de tantas mortes? Como não morria do espanto?

—Que tipo de monstro pode ter feito algo assim?


Tor sacudiu a cabeça com ar sombrio.

De repente, uma idéia horripilante cruzou pelo pensamento de Christina. E essa idéia lhe pesou no coração. Todo aquilo era culpa dela?

—Pode ter sido MacDougall?

Tor apertou a mandíbula como se tivesse adivinhado o que pensava sua mulher. Tinha pensado ele também?

—É possível. Mas há outros candidatos.

Christina voltou a contemplar à mãe e ao menino, com as lágrimas rodando pelas bochechas, rezando para que isso não tivesse nada que ver com ela.

—Vem. —Tor a afastou dali com cuidado—. Não pense nisso.

Christina se voltou para ele, indignada, e olhou fixamente esse rosto brutalmente formoso. Nem um indício de emoção em sua estóica expressão. Era impensável que pudesse olhar o cadáver de um menino inocente sem que isso lhe afetasse.

—Como não vou pensar nisso? O que te passa? Nada lhe afeta?

Tor a olhou com dureza; seus olhos azuis eram frios como o gelo.

—Não me posso permitir isso. Mas porque não demonstre minhas emoções não significa que seja incapaz de sentir.

Compreender isso foi como receber um murro. Assim funcionava Tor. Pela primeira vez compreendeu por que precisava ser tão frio. Compreendeu que ao ocultar as emoções protegia a si mesmo dessas condições tão monstruosas e brutais.

Mal conhecia a mulher e ao menino que estavam frente a ela, e entretanto a embargavam um sofrimento, uma tristeza e um horror insuportáveis. O que devia sentir-se quando eram os amigos, os homens com os que tinha lutado durante anos os que morriam brutalmente assassinados ante seus olhos?

Estremeceu. O gelo era um bom escudo protetor que seu marido necessitava para sobreviver.

Teve piedade dele do fundo de seu coração. Embora Tor não mostrasse compaixão, sentia-a. E que ocultasse suas emoções não era surpreendente se tinha em conta seu passado. Somente precisava ter mais paciência com ele.

—Sinto muito - disse ela com ternura.

Tor assentiu. Permitiu que a levasse dali, mas o chão a parecia mover-se sob seus pés, como se caminhasse pelo convés de um navio em plena tormenta. Tinha o estômago revolto e sentia arcadas. O suor perolava a testa.

Não se encontrava bem.

—por que saiu do castelo? —perguntou Tor—. O que estava fazendo no povo?

Christina perdeu o equilíbrio.

—Tina, o que acontece?

Detectou um que de alarme em sua voz, embora soasse longínqua, como se ela estivesse sob a água. Dava-lhe voltas a cabeça, e quando ergueu os olhos para olhá-lo, viu sua imagem imprecisa, desfocada.

—Não me… —conseguiu articular antes que todo se ficasse escuro.

*

Quando despertou estava sumida na escuridão. Moveu as pálpebras, mas lhe pesavam tanto que as manteve fechadas. Por que fazia tanto calor? Sentia como se estivesse dormindo sobre uma fogueira. Afastou os lençóis, revolveu-se e tentou ficar cômoda sem conseguir.

Notou uma mão grande na frente que a acalmava. Uns murmúrios de fundo. Haviam tornado a cobri-la. Queixou-se fracamente, e só se tranqüilizou quando voltou a ouvir a voz. Suspirou, rebelou-se, até que a escuridão voltou a abater-se sobre ela.

*

Quando Christina despertou pela segunda vez era pela manhã. Foi capaz de abrir os olhos, embora antes piscou umas quantas vezes. Se despertou sentindo-se como nova, como se tivesse dormido profundamente.

Franziu o cenho. Dormido? Como tinha chegado a seus aposentos? Quão último recordava era…

Ouviu um ruído e olhou para o outro extremo do aposento. Tor se revolvia em uma cadeira de madeira, coberto com uma manta, tentando, sem conseguir pelo que parecia, ficar a vontade. Soltou uma maldição, e algo em sua expressão colérica e exaltada a fez rir.

Tor deixou cair ao chão a banda escocesa que levava a ombro, ficou em pé e correu a seu lado.

—Está acordada.

Christina sorriu ante o que era óbvio. Tor, por outro lado, tinha o aspecto de não ter dormido toda uma semana. Trocou-se e limpou as manchas da batalha, mas as linhas de expressão de seu rosto acusavam um cansaço e uma fadiga difíceis de dissimular. Seu cabelo loiro escuro estava revolto, como se tivesse passado os dedos por ele uma e outra vez; tinha a roupa enrugada, e a mandíbula escura por não ter se barbeado fazia mais de uma semana. Entretanto, seguia incrivelmente bonito.

Christina pousou seu olhar na cadeira e enrugou o nariz.

—dormiste aí?

Tor franziu o cenho.

—Estava doente.

De verdade? Encontrava-se bem. Apesar de recordava ter se sentido estranha e enjoada justo antes de perder o sentido. Era a primeira vez que passavam a noite juntos e ela não recordava nada.

—Quanto tempo?

—Dois dias. —Tor a olhou enfurecido—. Não voltará a te pôr doente nunca mais. —cruzou os braços adotando uma atitude de mando—. Não o permitirei.

Christina piscou ao dar-se conta de que falava a sério. Esteve muito preocupado por ela. Um brilho de alegria apareceu em seus olhos. Ia sorrir, mas ao vê-lo furioso, dissimulou o sorriso.

—Farei tudo o que possa - disse com sobriedade.

Tor entreabriu os olhos como se tivesse adivinhado que lhe estava tirando o sarro. Sentou-se a borda da cama e a examinou com atenção, para assegurar-se de que realmente estava recuperada.

—por que quis ir ao povoado quando sabia que havia febre?

Christina ergueu o queixo, desgostosa por seu tom.

—Queria ajudar, e a febre não era grave. Além disso, meu dever como senhora do castelo é atender aos habitantes do povoado. Deixou-me muito claro que tinha que me rodear a determinadas tarefas.

Tor esboçou uma careta de desgosto.

—Acredito que falei com muita dureza…

—Acredita? —interrompeu-o ela arqueando uma sobrancelha.

Tor voltou a franzir o cenho, mas Christina estava ficando imune a essas olhadas turvas. Quem teria pensado que a jovem que há poucos meses se protegia entre as sombras diante da cara brava do guerreiro mais temido das Highlands?

—Estou acostumado a falar sem pensar, e estava zangado - disse ele—. Além disso, ninguém está acostumado a ignorar minhas ordens.

—Tenta te desculpar?

Tor franziu o cenho como se a idéia o surpreendesse.

—Suponho que sim. Tinha razão em algumas das coisas que me disse. Nem tudo consiste em cumprir meu dever com o clã, mas me acostumei tanto a me reservar minhas opiniões que não estou seguro de saber fazer o contrário.

Christina ficou surpresa ao comprovar que suas palavras tinham causado tanto impacto.

—Alguma vez quiseste ter alguém com quem falar, a quem escutar? Ser responsável por tanta gente deve ser uma carga muito pesada para um homem sozinho. Ter a alguém com quem falar poderia te facilitar as coisas.

Tor parecia pensativo.

—Possivelmente.

Christina inclinou a cabeça, estudando-o com curiosidade.

—por que te custa tanto compartilhar seus pensamentos?

Tor lhe sustentou o olhar. A julgar por seu silêncio, parecia que estava travando algum debate interno. E gostou que lhe desse uma resposta.

—Porque meu dever como chefe é me reservar as opiniões. Sei perfeitamente que o contrário traz sofrimentos.

—O que aconteceu?

—Falei do ataque surpresa que sofremos no Dunvegan e de como assassinaram a meus pais?

Christina assentiu.

—A meu pai o traiu um homem que considerava amigo dele, um parente. O conde de Ross tirou informação a minha mãe com más artes e ordenou o ataque que matou a meus pais e quase destruiu a meu clã. Mulheres, meninos…, ninguém escapou ao derramamento de sangue. Foi um açougue.

Christina tapou a boca, horrorizada. A primeira vez que contou não caiu na conta.

—Você estava ali.

Tor assentiu, com os olhos sombrios.

—Sim, escondido na capela com meu irmão e minha irmã. Meu pai viveu o suficiente para me contar o que tinha passado. —Tor fez uma pausa—. Minha mãe não teve tanta sorte depois de que os homens de Ross terminassem com ela.

Christina afogou um grito e as lágrimas saltaram aos olhos.

—OH, Meu Deus… Sinto muito.

Tor deu de ombros.

—Foi faz muito tempo.

Entretanto Christina não se deixou enganar. Seu marido vivia ainda com o legado desse dia. Por isso se mostrava distante. Solitário. Christina teve piedade dele. Do menino pequeno que tinha visto como assassinavam a seus pais e destruíam virtualmente a seu clã, e que tinha assumido a carga de ter que recompor todo isso.

—E depois somente você ficou para reconstruí-lo todo?

Tor a olhou como se a resposta fora óbvia.

—Era o chefe.

—Mas so tinha dez anos - disse ela, atônita. Se já era muita responsabilidade para uma só pessoa, que não seria para um menino de sua idade? Esse menino teve uma infância muito curta.

—Saí adiante.

Christina apoiou a mão em seu braço.

—E muito bem, isso parece. Seu clã tem sorte de contar contigo.

Era um homem incrível. Sabia, mas para ouvir de sua própria voz quanto tinha sofrido, sentiu-se mais orgulhosa dele. E decidida a ajudá-lo. Depois da generosa devoção com a que se entregou a seu clã durante anos, Tor merecia desfrutar da felicidade.

Entretanto, Christina era consciente de que nesse momento não conseguiria nada mais dele. O fato de que se abrira, embora somente um pouco, era um êxito, um milagre em realidade. Via-o debater-se em um estado de inquietação, e teve que obrigar-se a não lhe saltar ao pescoço para abraçá-lo, de tão adorável como era. Mas Roma não se fez em um dia, e seu marido tampouco mudaria de repente uma vida inteira marcada pelo silêncio.

—Eu também sinto - disse ela—. Estava tão obcecada por que confiasse em mim que não me detive pensar no que em realidade estava pedindo. Oxalá pudesse confiar em mim, mas compreendo que não possa.

—tento te proteger, Christina, não te ferir.

—Sei.

—Não quero que te mescle nisto porque correria perigo. Necessito que confie no que te digo. —Tor cravou seus olhos intensamente em sua esposa—. Será capaz?

Ela assentiu, embora desejasse que a confiança fosse mútua.

Tor parecia estar pensando em algo. Quando falou o fez com cautela, como se lhe custasse escolher as palavras.

—Eu gostaria de te propor uma solução de compromisso.

Christina abriu os olhos de par em par.

—Uma solução de compromisso? Teria jurado que não conhecia essa expressão.

Tor a olhou à defensiva.

—Não a uso muito freqüentemente, mas por ti estou disposto a fazer uma exceção.

Estava tirando o sarro. Christina não podia acreditar.

—Sinto-me muito honrada, meu senhor - respondeu exagerando uma inclinação de cabeça.

Tor lhe dedicou um sorriso pícaro, e foi como se o céu tivesse se aberto e o sol brilhasse entre as nuvens. Esse sorriso lhe mudou a expressão, e lhe fez parecer mais jovem.

—Quantos anos tem? —espetou-lhe Christina.

Tor franziu o cenho assombrado.

—Trinta e um. —Ignorando sua estranha pergunta, retomou o tema que estava tentando explicar e pigarreou—: Se aceitar que haverá momentos nos que não lhe poderei contar tudo, eu me comprometo a ser mais…

Tor parecia ter dificuldades para encontrar a palavra justa.

—Comunicativo - propôs ela, tentando reprimir um sorriso.

Tor sorriu do meio lado afetando certa ironia.

—Sim, comunicativo.

Christina sorriu a sua vez.

—Isso eu gosto.

Bastava-lhe. De momento. Mas seguia esperando que terminasse por incluí-la de tudo em sua vida. Depois de sua experiência organizando os livros, sabia que podia recorrer a ela.

Tor lhe afastou o cabelo do rosto e pousou nela seus claros olhos azul gelo com tanta intensidade que um rubor mal controlado apareceu nas bochechas de Christina.

—Devo estar espantosa - disse desviando o olhar.

Os olhos de Tor se acenderam de paixão.

—Está preciosa.

Essas palavras tão simples a sobressaltaram por sua sinceridade. E sentiu uma calidez envolvente. Tinha ouvido essas palavras antes, mas nunca tinha emprestado atenção.

—Não me disse isso.

Tor pareceu surpreso.

—Ah, não? Pensei centenas de vezes.

—Devo estar perdendo a capacidade de ler o pensamento.

Tor estalou em gargalhadas, e Christina pensou que esse som era o mais belo do mundo. O momento no que sempre tinha sonhado. Oxalá pudesse durar para sempre.

Tor deixou de rir e seus olhos se encontraram.

Saltavam faíscas no ar. Uma febre de distinta natureza acalorou a pele dela. Tinha passado muito tempo. Ansiava seu corpo de maneira elementar; como a água, os mantimentos e o ar, Christina necessitava seu corpo.

Era consciente de sua presença na borda da cama, de seus largos ombros e seus fortes braços. De seu masculino aroma de especiarias. De sua boca gloriosa.

Tor se inclinou para ela.

Christina conteve o fôlego.

Entretanto, em lugar de beijá-la, roçou-lhe a fronte com os lábios.

—Precisa descansar - disse Tor.

—Encontro-me bem - insistiu ela em um tom que mais parecia o de uma menina a que negam um brinquedo. Seu brinquedo favorito.

Entretanto, sua tentativa de faze-lo mudar de idéia caiu em saco furado. Tor se levantou.

—Voltarei mais tarde para ver como te encontra. Se necessitar algo, chame Morag.

Um banho seria o primeiro. Mas como estava segura de que ele não compartilharia sua opinião, decidiu não mencioná-lo.

—Morag esteve aqui? Acreditava que andaria ocupada assistindo aos feridos.

—Os homens só têm hematomas e arranhões.

Christina sentiu um profundo alívio. A lembrança dos que não tinham tido tanta sorte passou como uma sombra.

Tor se incorporou, e Christina o viu dirigir-se para a porta.

—Descansa. Direi a Mhairi que venha ver-te.

—Não é necessário que…

Entretanto a porta já se fechou.

 


C O N T I N U A

Capítulo 11


No interior do dormitório havia pouco que fazer para passar o momento enquanto esperava. Christina sentiu a tentação de tirar seu livro do esconderijo do baú, mas não estava segura de como reagiria seu marido se soubesse que lia. Ainda tinha muito fresca na memória a reação de seu pai, e seu matrimônio ainda era muito recente. Embora não acreditasse que se zangasse, seu marido era muito difícil de decifrar. Justo quando acreditava que tinha conseguido um pedacinho do autêntico homem que havia abaixo do temível guerreiro, o muro de aço tinha se erguido de novo.

De modo que tentou bordar. Mas depois de dar muitas espetadas com a agulha, se deu conta de que essa energia nervosa não era exatamente propícia ao bordado, de maneira que o afastou. Se tivesse um giz e uma piçarra, que não os tinha, desenharia. Se se parecesse mais com sua irmã, rezaria. Pedindo o que, não sabia. Paciência? Modéstia feminina? Ambas seriam bem vindas nesse momento. Tinha medo de estar muito ansiosa essa noite, e talvez sua ansiedade fosse imprópria. Era uma donzela inocente; deveria estar morta de medo, e não sentir uma comichão de excitação em lugares nos que não devia pensar.

Quase lamentava ter despachado Mhairi tão rápido, mas não tinha pensado que passaria a metade da noite esperando. Já quase devia ser meia-noite.


Arrependia-se de ter rechaçado a garrafa de vinho doce que lhe tinha dado a curandeira. Algo para mitigar seus nervos crispados.

Cansada de contemplar as sombras da chama do candelabro que refletiam no teto, Christina afastou o cobertor e saltou da cama. Curiosamente, a impressão do ar frio na pele e nos pés procedente do gélido chão de pedra a tranqüilizou. Caminhou de um lado a outro até que o candelabro se reduziu a nada. Até que na residência se fez um doloroso silêncio.

Finalmente ele não viria.

Dizendo a si mesma que não tinha importância, que não havia motivo para a devastadora tensão que sentia no peito, obrigou-se a deitar de novo na cama. Não obstante, custou-lhe conter o pranto.

O que tinha que mau nela? Acaso seu marido não a desejava?

O atordoamento do sonho a chamava, rondava como um oásis ao que não conseguia chegar. Estava a ponto de sucumbir quando a porta se abriu.

O ruído despertou de repente. Instintivamente se cobriu até o peito com o cobertor. Na escuridão só distinguiu a sombra de sua enorme silhueta na soleira. Estava ali imóvel. Ainda não tinha entrado, mas sua presença parecia encher o ambiente.

—Ainda está acordada — disse.

O timbre de sua voz fez que a Christina lhe arrepiasse o pêlo dos braços.

—Sim — disse em voz baixa.

Era o homem mais aterrorizante que tinha visto, e nunca tinha percebido o perigo de um modo tão intenso. Parecia alguém preparado para o combate, mais que um marido que ia fazer o amor a sua mulher. Rodeava-lhe uma aura de ferocidade. Suas pernas longas e musculosas pareciam crispadas e tensas.

De repente ela sentiu um espasmo de terror. Não lhe faria mal, verdade?

Ele fechou a porta ao entrar e cruzou o ambiente virtualmente às escuras. Somente os tênues raios da lua, que se filtravam através das placas de madeira das venezianas, mitigavam a penumbra.

Ela tinha os nervos a flor de pele. O coração palpitante. Depois de dias de perguntas, de espera, o momento tinha chegado por fim. Estavam sozinhos. E contrariamente da vez anterior, ambos eram conscientes do fato… e do que ia passar.

Agora que Tor estava ali, ela estava um pouco assustada, mas o que ainda lhe dava mais medo era decepcioná-lo em certo modo.

Seus olhos se estavam acostumando à escuridão, e viu como ele desabotoava o grande broche que levava ao pescoço e retirava a capa dos ombros. Tirou o resto da roupa com a mesma naturalidade, como se estivesse sozinho no quarto, e não com sua esposa, quem com os olhos muito abertos, muito nervosa e sem fôlego, dissecava todos seus movimentos.

Negócios. Dever. Essas palavras foram a ela sem prévio aviso. Era isso o que significava para ele? Pensou com uma pontada de dor. Queria que Tor desfrutasse aquilo.

Quando Tor deu a volta e se dirigiu para a cama, Christina tragou saliva. O suave perfil de seus músculos, que se distinguia entre as sombras, não deixava dúvidas de que estava nu. Senão tivesse tão aflita teria ruborizado. Poder. Força. Vitalidade. Seu corpo era uma fortaleza. Masculinidade crua em sua forma mais impressionante.

A sua mente acudiu uma idéia imprópria de uma donzela: que pena que a vela se apagara.

Talvez ele tivesse ouvido sua respiração entrecortada, porque quando se deslizou a seu lado, disse:

—Não há nada que temer. Serei amável. Não se parecerá com a última vez.

Ela não sabia se aquilo era mau ou bom. A última vez tinha sido bastante extraordinária, em certo sentido.

A cama cedeu sob seu peso. A Christina já não palpitava o coração, porque tinha detido em seco. Tor não a havia tocado, mas estava bastante perto para que sentisse o frio roce de sua pele. Frio do vento.

—saístes? —perguntou, surpreendida. Acreditava que estava com seus homens na sala.

Tor assentiu.

—Sim.

—Onde estavas? Há algum problema?

Sentiu seus olhos nela, penetrando o véu de escuridão.

—Nada que seja de sua incumbência.

Ela franziu o cenho ante a falta de resposta. Se incumbia a ele, incumbia a ela. Estava claro que Tor era o homem mais teimoso que tinha conhecido. Mas antes que pudesse lhe fazer outra pergunta, ele se colocou a seu lado, tombou-se junto a ela, e apagou qualquer outra idéia de sua mente.

Com delicadeza, agarrou os lençóis que Christina seguia segurando com os dedos e afastou a um lado. Ela notou o peso de seu corpo pressionando seu flanco. Até através da camisola, sua pele ardeu com aquele roce.

—Agora mesmo somente quero pensar em uma coisa. —A voz era profunda e sensual, carregada de promessas maliciosas.

Ao notar que ele riscava com o dedo uma delicada linha sobre o contorno de seu seio, ela se estremeceu. A etérea carícia fez que arrepiassem todas as terminações nervosas. Sentiu que o coração pulsava na garganta.

—E o que é? —conseguiu dizer, quase sem fôlego.

Tor descobriu a ponta tirante de seu mamilo com a pele áspera do dedo e a rodeou através do ligeiro tecido de sua camisola. Quando substituiu o dedo pela boca, ela ofegou. A cálida umidade daquele beijo enviou descargas de prazer diretamente de seu seio ao centro de suas pernas. Deus, era incrível! As sensações eram como uma labareda de ardoroso prazer que a cobria de chuva efervescente. Mas quando ele sugou a ponta, puxando levemente com os dentes, seu ofego se converteu em um profundo gemido.

Tor soltou uma risada, sem separar-se de Christina.

—Isto —respondeu— é o único no que quero pensar. —Voltou a sugar, rodeando com a língua a pontinha vibrante—. Quero sugar seus encantadores mamilos com a boca, até que seu corpo gema de desejo.

Deslizou os dedos até a planície de seu ventre, e com sua mão grande e forte cobriu com delicadeza seu monte de Vênus. Sem vacilar. Pura e crua energia sexual. Com esse possessivo gesto, Christina adquiriu plena consciência de seu destino, tal como ia ser.

—Quero te tocar aqui… —Varreu com o dedo a ardente feminilidade através do tecido—. E conseguir que te umedeça, até que esteja preparada para mim.

O corpo de Christina reagiu com uma onda de calor e umidade no ponto exato onde ele a tinha acariciado.

—E então… —Baixou a cabeça para lhe beijar o pescoço—. E então desejo estar dentro de ti e conseguir que te desfaça.

Ante essas palavras maliciosas, ela se arqueou, revolveu-se, e quando ele descobriu com a língua e os lábios uma zona sensível sob a orelha, estremeceu-se.

Tor levantou a cabeça para olhá-la aos olhos. Entre as sombras, as atraentes e severas linhas de seu rosto pareciam ainda mais perigosas.

—Assusta-te isso?

Christina negou com a cabeça.

—Não. —O medo tinha desaparecido no momento em que Tor a havia tocado. Seu coração revoou como as asas de um colibri, enquanto se esforçava em achar as palavras—. Eu também o desejo. Eu gosto do que sinto quando me tocas.

Ele ficou quieto. Christina teria jurado que notou como seu olhar se avivava com maior intensidade. Ruborizou-se, perguntando-se se havia dito algo mau. Mas ele já voltava a acariciá-la, e Christina se esqueceu de tudo, salvo da pressão de sua boca sobre seu seio e da cálida fricção de suas mãos, que cobriam seu corpo.

*

Tor tinha que recordar-se constantemente que a mulher apaixonada que se retorcia em seu leito era virtualmente uma virgem. Mas quando gemia e se arqueava sob sua boca e suas mãos, lhe suplicando em silêncio que beijasse os seios com maior rudeza, era fácil esquecer.

Suas atrevidas palavras para distraí-la de suas perguntas tinham funcionado - esteve fora porque alguns homens se apresentaram antes de tempo e precisavam chegar até o fiorde —, mas quem tinha rido por último tinha sido ela, que lhe tinha distraído com sua resposta. «Eu gosto do que sinto quando me toca.» Jesus, como podia não reagir ante isso?

A inocente honestidade de suas palavras só incrementaram a fome que sentia dela. Uma parte dele se perguntou se simplesmente tinha imaginado sua receptividade daquela noite. Não. Mas bem tinha subestimado seu sensual encanto.

«Virgem», lembrou-se, tentando reduzir o martelar de seu sangue, a primitiva chamada que ansiava dar resposta.

Tinha desejado deitar-se com Christina no momento em que tinha posado seus olhos nela. Mas depois de tê-la tratado com tanta brutalidade durante seu primeiro encontro, tinha jurado que a faria desfrutar. Desfrutar muito. Apaixonado, mas controlado.

Isso foi o que compreendeu. Na escuridão. Homem e mulher. Nada mais que paixão, primitiva e crua. Ele sabia como fazer que uma mulher desejasse suas carícias. Como fazê-la gemer. Como debilitá-la a base de prazer. Sabia o que Christina necessitava e o daria. E ela daria a ele em troca. Nada mais. Nada menos. Satisfação de necessidades básicas.

Na cama, Christina Fraser era igual a qualquer outra mulher. Sua necessidade dela era mais abrasadora. Mais intensa, possivelmente. Mas a luxúria era luxúria, e Tor não podia controlá-la.

Era um homem apaixonado. Christina era uma mulher apaixonada. Era tão simples como isso. A paixão no leito conjugal era algo pelo que estar agradecido; sua primeira esposa não tinha sido tão entusiasta. Nada que tivesse que se preocupar.

Mas era incapaz de deixar de olhar a boca. Até na penumbra, atraía-lhe a erótica sensualidade de seus lábios carnudos e rosados. Intrigava-o a intimidade desses beijos, algo que não estava acostumado a pensar.

Mas podia saborear o resto de seu corpo. Desatou o laço da camisola, farto de ter uma barreira entre os lábios e a pele dela. Cheirava de um modo incrível. Quente e floral. Inspirou com força e seu delicado aroma lhe rodeou com seu doce abraço.

Ao sentir a primeira carícia sobre sua pele nua, Christina gemeu, e a pétrea ereção de Tor se endureceu ainda mais.

Ante a primeira tentativa dela de lhe acariciar as costas, ele ficou imóvel. A pressão exigente de seus dedos, massageando a firme musculatura de ombros e braços, fez que Tor amaldiçoasse e sentisse fora de si. Christina gostava de lhe tocar. Uma intensa chama de desejo e um espasmo de luxúria nublaram a visão de Tor, que perdeu a consciência durante um segundo.

Controle. Esforçando-se por reduzir sua temperatura interior, monopolizou a beleza de seus seios com suas mãos e os levou a boca, devorando-os sucessivamente. Seu membro pulsava com força pego a seu ventre e conseguiu certo alívio esfregando-se brandamente contra a coxa dela enquanto sugava. A leve fricção lhe acendeu ainda mais.

«Posso fazer.» Mas nunca em sua vida estivera tão excitado. As inocentes reações de Christina eram mais eróticas que os experientes movimentos das mulheres com que estava acostumado a deitar-se.

Lambeu-lhe o mamilo e sentiu na língua um meloso sabor de ambrosia. Beijou-a com maior paixão e arranhou com o queixo essa pele tão sensível. Sugou e rodeou com a língua aquela pontinha tensa, até que ela começou a levantar os quadris para ele.

Percorreu todo seu corpo com as mãos. Não podia deixar de tocá-la. Tinha a pele muito suave, e o corpo sensual e docemente feminino.

Tor grunhiu. Christina era incrível. Tão natural e espontânea com sua paixão. Mas ficava cada vez mais difícil controlar seus instintos, ignorar a fome e o desejo que crescia em seu interior. Seu corpo ardia, dava mil voltas sua cabeça. Cada vez lhe custava mais ser racional, enquanto uma bruma avermelhada de desejo caía sobre ele.

Deslizou as mãos sobre seu corpo e até as pernas para lhe levantar a borda da camisola. Ouviu-a respirar entrecortadamente quando varreu com os dedos a aveludada suavidade da zona interna da coxa. Ela cravou os dedos nos braços. Parecia flutuar, suspensa por suas carícias.

Ser consciente de até que ponto ela desejava aquilo teve um efeito nele. Um efeito que ia a além da satisfação ou o orgulho varonil. Encheu-o de uma intensa calidez que chegou ao fundo de suas vísceras e atirou delas. Naquele momento nada parecia mais importante que lhe agradar.

Mas ainda não. A única coisa que desejava mais que ter um orgasmo era fazê-lo durar. Aproveitou com cuidado o momento, sentindo como estremecia o corpo dela quando roçou essa pele de bebê junto a sua entranha, com uma etérea carícia dos dedos, que se aproximaram e se afastaram depois. Para habituá-la a suas carícias e a seu próprio desejo. Queria que identificasse o que queria seu corpo. O que necessitava.

Imitou os movimentos do dedo com a língua, sobre seu seio. Primeiro deslizando-a rapidamente e logo detendo-se, deixando que a calidez de seu fôlego passasse sobre o topo úmido e sensível.

Ela gemeu e se queixou, e com cada som, ele sentia o palpite do sangue em cada centímetro do corpo e ficava mais difícil concentrar-se.

Christina sentia que ardia a pele. Tor sabia que se pudesse ver o rosto, comprovaria que tinha as bochechas ruborizadas de prazer e os sensuais lábios separados.

Maldição, estava muito excitada. Seu corpo tremia de prazer. Deus, ia ter um orgasmo assim que a tocasse. Sentiu um batimento do coração no membro, suando de espera. Teve que fazer uso de todas suas forças para reprimir-se, e não envolver seus quadris com as pernas de Christina e lhe penetrar, deixando que o ardente punho do corpo lhe fizesse explodir e gozar até cair na inconsciência.

Esticou todos os músculos em um esforço por controlar-se; seu próprio orgasmo espreitava, era uma maldita ameaça, muito próxima.

—me diga o que quer — perguntou entre dentes, enquanto seu dedo se aproximava do vulcão com uma lhe torturem carícia.

—Não sei — gemeu Christina.

—Isto? — disse ele, deslizando o dedo junto à fenda úmida. Christina se sentiu invadida por um espasmo de prazer e seu corpo se agitou bruscamente.

—Sim — respondeu sem fôlego—. Por favor.

—vou fazer que goze, Christina.

Ela não sabia o que queria dizer, mas não se importou. Quão único desejava era que desaparecesse essa corrosiva sensação de ansiedade. Seu corpo inteiro estava sumido em um desejo que seguia crescendo e crescendo sem medida, até que pareceu que já não poderia suportar a tensão. Sentia-se suspensa a bordo de uma espécie de cataclismo.

Como podia sentir-se tão bem e ao mesmo tempo tão inquieta? Cada carícia, cada vez que Tor lhe tocava o corpo era como estar no céu e o inferno de uma vez.

Todos seus pensamentos, toda sua energia parecia concentrada entre suas pernas, e cada vez que ele a provocava com uma carícia com o dedo, a agonia aumentava. Estava úmida e em chamas, com os músculos constrangidos de ansiedade, escuros e pulsando de frustrada ignorância. Sabia, instintivamente, que necessitava algo, mas ignorava como conseguir. Ele a provocou até que já não pôde suportá-lo mais, até que acreditou que estalaria.

Nunca teria imaginado umas carícias tão leves e delicadas dessas mãos tão grandes e fortes que hasteavam a espada com uma força letal.

Mas ela desejava sentir essa força, esse poder em seu interior.

E então o fez. Tor sugou com ardor o mamilo até o interior da boca úmida e cálida no momento em que afundava o dedo nela, acariciando e pressionando, em círculo. O corpo de Christina gemeu aliviado ante a pressão que desejava e que tinha demorado tanto em chegar. As sensações se amontoaram em suas vísceras: a boca que atormentava seu seio, o dedo que a acariciava, o roce da palma da mão que a agarrava. Tudo chegou de uma vez, intensificando-se e esticando-se depois durante um prolongado instante, até que se rompeu em pedaços, estalando em mil direções.

Ela lançou um gemido alto enquanto sucessivas ondas de sensações estremeceram seu interior e os espasmos de prazer mitigaram sua férrea garra.

Christina teve a sensação de que tinha morrido e estava no céu. Quão único via era luz e beleza, como muito estrelas cintilantes expostas ante ela em uma maré oscilante. Nunca tinha imaginado nada que pudesse provocar essa incrível sensação.

Era excessivo. Tor perdeu as rédeas que estavam sob seu controle ao ver seu corpo tenso. Então, ao escutar os eróticos gritos de sua entrega, deixou ir. Era mais do que podia suportar.

Nunca havia sentido nada parecido. Um desejo que ia além da luxúria que se acumulava em suas virilhas e em seu membro ereto. Desejava penetrar em seu interior, afundar-se nele e não sair jamais.

Estar dentro dela. Provocar-lhe um novo orgasmo. Isso era o único importante.

Moveu-se sobre Christina, colocando-se entre suas pernas.

Utilizou o dedo para lhe provocar prolongados espasmos de entrega e grunhiu:

—Preciso estar dentro de ti.

Ela suspirou sonhadora, obediente e ele agradeceu a penumbra. Agradeceu não poder ver os olhos entreabertos e o leve rubor rosado do êxtase em seu rosto. Porque sabia que não poderia evitar aproximar a boca de seus lábios. E então ela seria diferente.

Levantou-lhe os quadris brandamente e separou as pernas para acomodar-se. Apoiou as mãos junto aos ombros de Christina, para agüentar o peso de seu torso.

Gotas de suor caíram de sua fronte ao tentar ir devagar. Mas não era fácil.

Deslizou a ponta sensível de seu membro ao longo da fenda dela, até que esteve escorregadio da umidade de Christina.

Quando abriu caminho entre suas dobras, ela ofegou e esticou o corpo instintivamente.

—Relaxe — a tranqüilizou Tor, reprimindo todos os músculos ante um impulso primário.

—Mas é muito grande — protestou ela.

«E você está muito rígida.»

—Chist — sussurrou—, deixa que seu corpo se acostume a mim.

Seu dedo descobriu o ponto sensível de seu clitóris e a acariciou, até que relaxou. Ela se deixou ir lentamente e seu corpo se tranqüilizou enquanto voltou a invadi-la uma onda de prazer.

O impulso de penetrá-la ferozmente era quase intolerável. Mas Tor tomou seu tempo, adaptando-se a cada centímetro de seu interior e entrando, ditoso, até o último milímetro.

Quando finalmente acessou todo o interior aveludado e molhado, quase não podia respirar e o esforço por conter-se captou virtualmente toda sua concentração. Precisava deixar-se ir. Necessitava-o tanto que quase lhe doía.

—O que sente? —conseguiu balbuciar.

Christina demorou um momento em responder.

—Sinto-me cheia… —Suspirou entrecortadamente—. Maravilhosamente cheia.

Era a resposta perfeita, e justo o que seu ânimo que necessitava. Começou a mover os quadris, para trás e para frente, devagar ao princípio e logo mais rapidamente, sobre o corpo convulso de Christina.

Ela gemia com cada impulso, e esses eróticos ruidinhos que o deixava louco.

Os músculos lhe ardiam pela tensão de manter-se fora dela. A pressão crescia e crescia. Nunca se havia sentido assim. Nunca. Com todo o corpo consumido pelas sensações que percorriam seu interior. O sustentava com o corpo, espremendo com cada prolongado puxão.

Não podia agüentar mais tempo.

—OH… Deus — gemeu ela.

Por fim. Tinha chegado o momento que esperava. Cravou fundo sua espada.

Mais depressa. Mais forte. Encontrou o ritmo perfeito para que ela…

Christina gritou e ele se deixou ir, penetrando-a profundamente uma vez mais e jogando a cabeça para trás com um primitivo uivo de prazer. O sangue retumbou em seus ouvidos enquanto a força de seu orgasmo estalava em uma tormentosa corrente de sensações, pulsando e pulsando até que seu corpo expulsou o último grama de prazer. O êxtase era muito potente e ficou aturdido um momento.

Quando já tinha caído a última maré que emergiu de seu corpo, caiu derrubado junto a ela, totalmente exausto. Nunca havia se sentido tão derrotado em sua vida. Tentou recuperar o fôlego. Sentia-se fraco; seus membros pareciam de gelatina.

O que lhe tinha feito Christina?

Aparentemente, não era o único que estava submerso em uma aturdida letargia. A respiração dela era tão entrecortada e instável como a sua. Tor agradeceu o silêncio. Pela primeira vez em sua vida, não sabia o que fazer nem o que pensar.

A confusão lhe inquietou.

Fixou o olhar na penumbra e se disse que não tinha importância.

Acabava de convencer-se de que estava exagerando e dando muita importância ao estado de sua mente, quando ela se aproximou a ele, aninhando-se contra seu corpo. Ao notá-lo, ficou imóvel e sentiu uma queimação no peito. Vacilou um segundo, e seu instinto lutou contra a consciência de que devia manter distância.

De momento venceu o instinto. Por uma vez não faria mal. Rodeou-a com o braço e tentou não pensar em quão agradável era senti-la a seu lado. Toda essa pele cálida e suave pega a ele. A sedosidade de seu cabelo derramando sobre seu torso e essa mão deliciosa sobre seu coração.

Tor esperou para ouvir o som estável e suave do sonho e se deslizou para fora da cama. Recuperou a roupa em silêncio, com pressa. Olhou por última vez a silhueta aninhada na cama e fechou a porta com firmeza.


Capítulo 12


Christina emergiu de repente de um sonho profundo ao sentir um calafrio nas costas. Aninhou-se instintivamente contra o calor que emanava de seu marido, mas somente descobriu os lençóis frios, o leito vazio.

A julgar o quanto gelados que estavam devia ter partido fazia tempo.

Franziu o cenho. Possivelmente tinha dormido mais do que pensava. Mas quando conseguiu abrir os olhos viu que a luz cinzenta do amanhecer se filtrava através das venezianas de madeira.

Enquanto tentava mover-se, perguntou-se o que podia ter provocado que Tor despertasse tão cedo. Se não fosse pelo frio intenso da alvorada, Christina teria dormido umas horas mais. Mas se aproximava o inverno, e no norte golpeava com uma força glacial. Eilean ao Cheo, a ilha da Bruma, o nome gaélico do Skye, não pressagiava nada bom. Provavelmente os matizes do cinza seriam os únicos tons que pintariam o céu durante um tempo.

Espreguiçou-se, mas inclusive isso custou certo esforço. Tinha todos os músculos do corpo intumescidos e débeis pela fadiga. O rubor alagou suas bochechas quando recordou o porquê.

Nunca podia ter imaginado que se comportaria com um abandono tão lascivo. Mas em realidade tinha parecido a coisa mais natural e o único modo de atuar. Seu corpo tinha reagido com seu próprio critério.

Ele soube exatamente como tocá-la, como fazer que tremesse de prazer até obter uma sensual inconsciência. Aquilo era muito melhor que em seus livros!

Um sorriso de satisfação se desenhou em seus lábios. Por muito que seu marido se mostrasse frio e indiferente, a paixão que sentia não mentia. A noite passada tinha visto uma face distinta de Tor, um lado selvagem e apaixonado, mas também doce e considerado. Não tinha limitado a obter prazer, mas sim o tinha proporcionado Preocupou-se com ela; tinha que ser assim. Tinha notado na ternura de suas carícias, no som que tinha nascido de seu prazer e no batimento frenético de seu coração.

E quando ambos caíram em um êxtase satisfeito, ele tinha ficado tão exausto como ela e a profundidade de sua respiração e a lassidão de suas pernas demonstrava até que ponto estava afetado.

Essas longas noites junto à chaminé pareciam muito mais próximas.

Mas onde tinha ido Tor?

Afastou o cobertor e saltou da cama, sem notar o calafrio em sua ansiedade por encontrá-lo. A última noite tinha derrubado uma barreira entre ambos e estava impaciente por lhe ver, por falar. Tinha amanhecido um novo dia em seu matrimônio.

Chamou o Mhairi, que dormia no quarto contíguo, e se lavou e se vestiu a toda pressa. Enquanto cruzava a extensa galeria em direção para o grande salão, viu que a porta estava entreaberta. Confiante em encontrar ali Tor, empurrou-a com cuidado para espionar o interior. Entretanto, o rangido das dobradiças de ferro arruinou seus esforços por não fazer ruído.

O escrivão se sobressaltou e deixou cair o montão de pergaminhos que estava folheando.

—Milady! —exclamou surpreso, apartando-se da mesa frente à que estava sentado.

Christina sorriu, pensando que sua voz era mais estridente que a porta.

—bom dia, irmão John. Levantastes logo nesta manhã.

Ele pareceu recuperar a compostura e lhe devolveu o sorriso.

—Como todos os dias. Os matinais à alvorada, já sabes.

Ela assentiu, incapaz de evitar a sensação de alívio ante a monótona vida da qual se livrou por pouco. Confiava em que Beatrix fosse feliz. O dia de sua chegada em Dunvegan tinha recebido o recado de que sua irmã tinha chegado sã e salva a Iona. Aquele pilantra encantador, lugar-tenente de MacDonald, tinha cumprido com sua palavra. MacSorley tinha arrumado para alcançar aos viajantes e tinha escoltado ao Beatrix durante o resto do caminho até o convento. Os ilhéus tinham fama de ser excelentes navegantes, graças a seus antepassados vikings. Certamente seu marido fazia honra a essa fama, mas a extraordinária proeza de MacSorley era incrível inclusive para um ilhéu.

—Deseja algo, milady? —perguntou o clérigo.

Christina moveu a cabeça e se inclinou para recolher um pergaminho que tinha caído junto a seus pés. Deu uma olhada, viu que era uma carta e a devolveu.

—Esperava encontrar a meu marido. O viu esta manhã?

—Não, mas provavelmente estará no salão com seus homens, tomando o café da manhã. —dispôs-se a guardar os documentos—. Eu também ia para ali. Permitem-me que lhe acompanhe?

—eu adoraria — disse ela—. Mas não desejo lhe distrair de seu trabalho.

O irmão John meneou a cabeça, e seu cabelo liso, cortado em forma de semicírculo, deslizou-se para voltar a colocar-se imediatamente em seu lugar.

—Não é nada urgente. Correspondência e pouca coisa mais.

Dirigiram-se juntos para o salão, comentando que o tempo tinha piorado e que se esperava um longo inverno. Descobriu que o jovem amanuense tinha chegado a Dunvegan pouco antes que ela, e Christina alegrou-se ao inteirar-se de que tinha passado certo tempo no monastério que havia junto a sua casa de Stirlingshire. Talvez não devesse ficar surpresa ao descobrir que a única pessoa que tinha sido amável com ela era alguém chegado de fora.

—Teremos muito do que falar — disse.

—Em efeito — respondeu ele. E fazendo eco dos pensamentos de Christina, acrescentou—: Espero que não lhe incomode que diga quão contente estou de que estejas aqui, milady. O seu é o primeiro sorriso que vi em bastante tempo. O matrimônio do chefe foi uma surpresa para o clã, mas é fácil compreender por que se apaixonou por você.

Christina ficou gelada, imóvel, a poucos passos da entrada ao salão.

—O que? —replicou com voz rouca. Parecia que lhe custava respirar.

O frade ficou avermelhado como uma beterraba amadurecida.

—Me perdoe, não deveria me fazer eco das fofocas dos criados.

A Christina não incomodou absolutamente. Mas adotando um ar de indiferença, brincou com o grosso bracelete de ouro que levava no pulso e disse como se tal coisa fosse nada: —O que comentam exatamente?

Ele soprou confundido e baixou o olhar ao chão.

—Que assim que o chefe lhe deu uma olhada decidiu que tinha que te possuir. Uma dos moços ouviu do próprio conselheiro particular do chefe.

Christina, agradada, ruborizou-se até a medula dos ossos. Sabia que essa história não era certa, embora procedesse do confidente mais próximo que tinha seu marido… ou sim?

—especulou-se muito, porque aconteceu de forma muito repentina — esclareceu ele—. E o chefe não tinha comentado que desejasse voltar a casar-se. E a aliança com a casa Fraser foi ainda mais inesperada, dadas as atuais circunstâncias.

Christina ficou desconcertada.

—A que te referes?

O clérigo baixou a voz.

—Guerra.

A ela parou o coração.

—Ouvistes algo?

Ele negou com a cabeça.

—Não, mas há rumores que com a captura de Wallace os focos da revolta estão estendendo-se por toda Escócia. O chefe se esforçou em manter sua neutralidade até agora. Mas sua família é famosa por ser fervente partidária da causa patriótica. Casar-se com uma Fraser…

Não era necessário que terminasse. Casar-se com ela punha em dúvida essa neutralidade. A isso se referiu seu marido no navio: a razão pela que se negou a casar-se com ela em um princípio.

—Nosso matrimônio não tem nada que ver com política — disse com firmeza—. Quão último o senhor desejava era uma aliança com meu pai. —Foi incapaz de ocultar o deixe sardônico de sua voz—. Qualquer que pense o contrário está equivocado… Muito equivocado — insistiu.

Mas uma voz em seu interior se perguntou se não haveria possivelmente um pingo de verdade nesse rumor de que o agradava. Tor MacLeod não era um homem a quem se pudesse obrigar a fazer nada. Senão quisesse, não teria casado com ela, sobretudo peã objeção política.

A naturalidade com que o frade tinha falado de traição a afetou. Embora não conhecia pessoalmente a Eduardo da Inglaterra, estava muito a par dos riscos que supunha lhe desafiar.

—Falar assim de guerra é perigoso. Skye está muito longe de Londres, mas o rei Eduardo tem espiões por toda parte. Espero que ponham freio a qualquer rumor deste tipo. Não quero que meu matrimônio cause nenhum problema desnecessário a meu marido.

O clérigo assentiu, pormenorizado.

—É obvio, milady. Sois tão sábia quanto formosa.

Christina aceitou a galanteria com um sorriso; não estava disposta que as ameaçadoras nuvens de guerra e a política lhe danificassem o dia. A noite passada tinha sido um sonho feito realidade; uma noite sobre a qual construir um futuro, e nada podia atenuar a felicidade que albergava seu coração.

Ou acreditava nisso.

O escrivão e Christina entraram no salão sem serem vistos. Mesmo sendo muito cedo havia muita gente pululando por ali e isso a surpreendeu. Dirigiu o olhar instintivamente para a ampla poltrona, semelhante a um trono, que havia sobre o estrado e ficou imóvel.

Aquela felicidade que acreditava tão afiançada desapareceu como a água através de uma peneira.

Sentada junto a seu marido no estrado, na cadeira que pertencia a ela, estava àquela formosa mulher em quem se fixou a noite de sua chegada. Ambos tinham as cabeças juntas e seus ombros se roçavam. Comportavam-se com naturalidade e a intimidade entre ambos era evidente.

—Acontece-lhe algo, milady?

Christina, consciente de que exteriorizava seus sentimentos com claridade, amaldiçoou a brancura de sua tez e desejou recuperar a cor nas bochechas. Mas tinha que saber.

—Essa mulher - disse, sem olhar—, sentada ao lado de meu marido… Quem é?

O frade olhou para o estrado e ficou tão avermelhado como antes. Igual a Christina, sua expressão permitia interpretar facilmente suas emoções, e nesse momento era evidente que se sentia incômodo.

—Lady Janet MacKinnon, milady. A viúva do anterior tenente do chefe.

Viúva. Seu coração desfaleceu ainda mais.

—São muito amigos? —perguntou depois de um suspiro.

O amável e jovem clérigo não fingiu que não entendia sua pergunta. Nem lhe respondeu com uma mentira piedosa.

—Sim, tenho entendido que sim.

A segurança que Christina acaba de adquirir ficou pulverizada. A tristeza invadiu seu peito. Aquela mulher tinha sido sua amante. Mas, era ainda?

*

Tor acabava de expor o que desejava dela, quando de repente Janet ficou tensa.

—É melhor que eu vá - disse, assinalando a entrada.

Tor deu a volta e viu Christina aproximando-se do estrado. Janet tinha razão. Ele não queria que sua esposa ouvisse o que estavam falando; era muito propensa a fazer perguntas inconvenientes. Ao fixar-se na gélida rigidez da expressão de Christina e no rubor de suas bochechas, franziu o cenho. Parecia molestada por algo. Rapidamente deu uma olhada pelo salão, para ver se havia algum outro toque de feminilidade que deveria ter notado.

Ao não ver nada se dirigiu para Janet, que já se pôs em pé.

—Terminaremos isto mais tarde - lhe disse em voz baixa.

Ela assentiu e se foi a toda pressa.

Ao cabo de um momento, sua esposa ocupou o assento que Janet acabava de deixar livre. Estava preciosa e régia com seu cote-hardie de veludo azul, mas estranhamente reservada também. Sentou-se sem dizer uma palavra.

—bom dia - disse Tor—. Confio em que tenha dormido bem.

Não havia nada provocador em seu tom, mas ela se ruborizou. Olhou-o por debaixo dos cílios.

—Sim, muito bem. —Levantou o olhar para ele—. E você? —Inclinou a cabeça—. Saiu muito cedo. Espero que não tenha acontecido nada mal.

A preocupação no seu tom de voz e o que levava implícito fez que Tor adotasse certa cautela. Estava claro que ela esperava que dormisse a seu lado. Não queria decepcioná-la, mas isso era impensável.

—Nada mau - disse—. Dormi no salão com meus homens, como faço todas as noites. —Onde devia estar, pensou.

Prevendo a reação dela, preparou-se. Mas não o suficiente. O brilho de dor que apareceu no olhar de Christina atravessou as defesas que tanto custara levantar.

—Já entendo - apontou ela.

Baixou os olhos para sua terrina para evitar o olhar de Tor, e ele se alegrou por isso. Mas aquilo não mitigou o desconforto da carga que sentia no peito, consciente de que tinha ferido seus ternos sentimentos. Ela não podia evitar ser vulnerável; as mulheres eram criaturas emocionais. Sentiu o peculiar impulso de tomar a mão e apertar como um gesto de carinho. Mas se desfez dessa estranha idéia, sabendo que não tinha motivos para sentir-se culpado. Ele sempre tinha dormido no salão com seus homens; não era nada pessoal contra Christina. Mas primeiro vinha o clã.

Ela se equivocava lhe exigindo esse tipo de coisas, é obvio. Mas era uma recém casada. Já aprenderia. Obviamente, tinha certas ilusões sobre esse matrimônio, e quanto mais cedo se desse conta de que não ia ser uma história romântica como as que interpretavam os bardos, melhor. Ele era um chefe das Terras Altas, não um cavalheiro namorador, educado no amor cortesão.

Certamente não pensava perder a cabeça por uma moça.

Bebeu um último gole de cerveja e se separou da mesa com um empurrão. A maioria dos homens chegariam nesse dia, e queria estar presente.

—Vais? —perguntou ela.

Tor tentou ignorar a decepção de seu tom de voz.

—Sim. —Recordou sua promessa e acrescentou—: Estarei fora várias noites, assim que me despeço até então.

Sua esposa ficou desolada.

—Mas se acabar de voltar… Aonde vais?

Ele queria lhe dizer que uma mulher não devia fazer perguntas a seu marido, mas Christina parecia um gatinho maltratado. E se sentiu como uma maldita besta. A pressão que sentia no peito aumentou. Não desejava mentir, mas tampouco podia lhe dizer a verdade.

—Há várias coisas que requerem minha atenção. Freqüentemente passo tempo fora, visitando minhas propriedades. —A torre de pedra de Waternish22 era, em efeito uma dessas propriedades, mesmo assim, estava mentindo.

—Sinto muito. É obvio. Tudo isto é novo para mim. —Olhou-o espectador—. Adeus.

Christina separou os lábios a modo de um ingênuo convite. Ele observou sua boca rosada e suculenta durante um minuto, absolutamente tentado. Com um grunhido, que foi metade maldição, metade gemido, desviou o olhar e apertou a mandíbula.

—Adeus - disse, antes de fazer alguma tolice como atraí-la a seus braços e beijá-la até que se desfizesse o nó que tinha no peito.

*

Em Skye se congregou o melhor do melhor.

A última hora da tarde seguinte, os dez guerreiros tinham chegado à antiga fortaleza em ruínas do Dun Hallin Broch. Cravada em uma zona remota da península do Waternish, a franja de terra que confinava com Dunvegan. A torre e o assentamento dos arredores estavam abandonados muito antes que os ancestrais escandinavos de Tor desembarcassem em Skye.

A torre era uma fortaleza circular de pedra com um diâmetro interior de uns sete metros e meio, e muros de três metros de largura, situada em uma pequena elevação do páramo rochoso. Em outra época, os muros alcançavam uma altura de nove metros, mas a parte superior da torre e o teto tinham desaparecido há muito tempo. Mesmo assim, com um pouco de madeira para um telhado nova e fogo de turfa, proporcionaria refúgio suficiente para os piores ventos e chuvas do inverno. Não seria confortável absolutamente, mas comparado com o que esses homens iriam experimentar nos meses vindouros era um luxo.

A situação era ideal. Estava perto de Dunvegan, mas o abrupto terreno limítrofe o convertia em um lugar de difícil acesso e escassamente povoado. Os ilhéus se mantinham afastados das estranhas construções e dos marcos de pedra dispersos pela paisagem, assim como das antigas torres circulares, que acreditavam habitadas por fadas e outros espíritos. Essa superstição ajudaria a manter afastado todas as pessoas.

Embora fosse improvável que os descobrissem ali, Tor se comportaria com extrema precaução. Havia muito em jogo. E com os recentes ataques a Dunvegan, não podia correr nenhum risco até que não averiguasse quem era o responsável.

Embora não duvidasse em pôr sua vida nas mãos de sua guarda, e o tinha feito em mais de uma ocasião, seguiu com sua prática habitual de contar a seus homens só o imprescindível. Naquele momento, quando seu primeiro-tenente seguia atrás de seu irmão, seus homens eram Fergus, seu conselheiro particular; Rhuairi, seu senescal; e seu an gille mor, primeiro espada, Colyne. A partir do dia seguinte, Colyne acompanharia as idas e vindas de Janet ao castelo para levar comida e provisões aos homens.

Se havia uma mulher em quem podia confiar, essa era Janet. Conheciam-se da infância. Ele tinha dançado em suas bodas com seu meio-irmão e ajudante, e penou com ela sua morte poucos anos depois. Aquela tristeza compartilhada tinha evoluído de uma forma inesperada, mas bem vinda, quando se tinham tornado amantes. Essa situação era conveniente a ambos, e se não fosse por suas recentes bodas, com certeza teria continuado indefinidamente. Ela era cômoda e não lhe exigia nada.

Tor sabia, não obstante, que a relação tinha terminado, mas não desejava analisar as razões daquela decisão. O matrimônio não tinha por que pôr fim a aquilo, não havia nada extraordinário em manter uma amante. Janet tinha aceitado a mudança de circunstâncias com a mesma praticidade que lhe tinha unido em um princípio. Se lamentava que a relação terminou, não o demonstrava; oxalá sua esposa fosse capaz de esconder com tanta facilidade suas emoções. Sua relação com Janet se modificara facilmente antes e tinha se modificado de novo agora, para voltar para a amizade.

À medida que foram chegando todos os guerreiros, Tor os pôs a trabalhar recolhendo lenha para reparar o teto e cortar turfa.

Era uma espécie de prova. O trabalho físico não tinha intenção de ser humilhante, a não ser pôr lutadores de elite no mesmo nível e que começassem a trabalhar juntos como se fossem um só, em equipe. Alguns dos homens conheciam bem e a outros nada absolutamente, mas em seguida se deu conta de que formavam uma equipe sem comparação.

Tor preferia trabalhar sozinho e manter a seu próprio conselho, e estava acostumado a trabalhar segundo seu critério. Aqueles homens não. A maioria deles eram cabeças ou líderes por direito próprio, acostumados a dar ordens, não às receber, e a ter um forte séquito ao redor. Não estava certo do que os tinha motivado a aceitar que ele lhes treinassem e estar sob suas ordens. Suspeitava que todos tinham suas razões para encontrar-se ali. Sabia que alguns tinham vínculos estreitos com Bruce, e indubitavelmente a premissa da equipe lhe tinha intrigado tanto quanto a ele. Sua fama como instrutor certamente tinha influenciado. Mas obedecer a ordens ia ser um desafio para alguns deles.

Tor suspeitava que tivesse passado muito tempo desde que Lachlan MacRuairi tinha empunhado uma espada para cortar um coração ou um machado para cortar uma árvore (mais que a um homem), mas o orgulhoso líder, que se não fosse por sua condição de bastardo poderia disputar com seu primo MacDonald o trono do antigo reino das Ilhas, não pestanejou. Mesmo assim, a obediência imediata não enganou Tor. MacRuairi estaria lhe vigiando.

Surpreendeu-lhe que somente um homem se mostrasse resistente ante suas ordens. Sua identidade, entretanto, não. Sir Alex Seton era o irmão mais novo do cunhado e camarada mais próximo de Bruce, «o bom de sir Christopher». Mas segundo as últimas notícias de Tor, Yorkshire, de onde procediam os Seton, seguia sendo na Inglaterra. E não importava em que lado da fronteira residia agora, pois Alex Seton brilhava nos mesmos arreios que seus compatriotas, da brilhante cota de malha ao elmo com plumas, e um peitilho profusamente bordado para enaltecer sua superioridade. Mas ao menos o arrogante inglês aprendia rápido. Se pensava que cortar turfa não era digno dele, ocultou seu desdém quando Tor lhe ordenou que em lugar disso cavasse latrinas.

Tor esperava em parte que Seton subisse a um navio de um salto e navegasse diretamente de volta à fronteira, e lhe surpreendeu o encontrar cavando uma hora depois, com sua brilhante cota de malha e seu peitilho profusamente bordado dos Wyvern e o escudo com três meias luas e duplo estandarte real, dobrados cuidadosamente a seu lado.

—Isto não lhe servirá muito por aqui - disse Tor, cravando sua pá na terra a poucos centímetros para começar uma segunda fossa.

—Eu sou um cavalheiro — repôs Seton com orgulho—. E penso ter o aspecto que me corresponde.

Seton não devia ter mais de vinte e um anos, e Tor teria apostado que não fazia muito que levava as esporas.

—Fostes um cavalheiro. Aqui não são mais que outro de meus homens, o qual está ainda por demonstrar. Seu código de cavalaria não tem lugar aqui. —Olhou-lhe com dureza—. Compreendestes o que lhe exigirá aqui? Para que assinastes?

O homem apertou os lábios até que empalideceram, mas assentiu. Disse, «sim» mas seu rosto gotejava desaprovação.

— Ponha a roupa que queira — acrescentou Tor com gesto de desinteresse—, embora logo descobriras que é um fardo muito pesado para o tipo de instrução e luta que levaremos a cabo.

Suspeitava que o menino fosse passar bastante mal para ficar a prova ante outros; não só devido a seu sangue inglês, mas também a sua juventude. MacGregor e MacLean eram jovens, mas tinham alguns anos mais que Seton. O resto dos homens teria em torno de trinta ou trinta e um, como o próprio Tor.

Cavaram um junto a outro em silêncio, mas Tor tinha demonstrado: não exigiria a seus homens que fizessem nada que ele não fizesse. Quando terminaram, ofereceu a Seton um gole de cerveja do odre que tinha cruzado sobre o torso. Seton aceitou agradecido, e limpou o suor da frente antes de dar um bom gole.

Tor o olhou, pensativo. Era alto, mas tinha a estupidez da juventude. Tinha uma espada de cavalheiro clássica e um estilete.

—E qual é sua maior habilidade? —perguntou Tor.

Dos outros homens eram óbvias. No caso de sua fama não lhe precedesse, sua escolha de armas ou adorno o fez. Somente olhando a Robbie Boyd bastava para saber por que tinha fama de ser o guerreiro mais forte da Escócia e um perito no combate corpo a corpo. Aquele homem estava forjado em ferro.

Seton avermelhou.

—Sou bom com a faca.

Tor franziu o cenho. Bom? Todos os cavalheiros eram bons com a faca.

—E para que viestes?

—Para aprender. Meu irmão também queria vir, mas Bruce não quis nem ouvir falar disso.

Sir Christopher era casado com a irmã de Bruce, por isso Alex era irmão de Bruce por matrimônio.

—Assim Bruce me enviou você. —Tor quase sentiu pena dele. Seton teria muito que demonstrar, efetivamente. Inglês, jovem… e sem habilidades especiais para conter os sarcasmos—. Não serei benevolente com você, seja quem for que lhe envie.

Aquele arrogante gesto da mandíbula reapareceu.

—Já sei. Não teria aceitado outra coisa.

—Os outros não facilitarão a ti.

O jovem sustentou o olhar com determinação.

—Isso também sei.

Tor assentiu e o deixou trabalhar, sabendo que teria que provar essa determinação.

Reatou sua marcha ao redor do acampamento para vigiar aos homens. A maioria o tinha impressionado. Havia montes de turfa postos a secar, e todos haviam trabalho com pressa para cortar a madeira e construir as vigas do teto. As habilidades marinhas de MacSorley não se limitavam à navegação e a natação. Também sabia como construir navios e brandir um machado de guerra, e tinha utilizado ambas para converter a madeira em pranchas e vigas para o teto.

Entretanto, e a pesar do promissor começo, Tor não demorou muito em se dar conta de quão árdua seria sua tarefa, quando estalasse a primeira briga no pátio traseiro da torre.

Esse grupo de homens não se parecia com nenhum dos que tinha treinado. As mesmas coisas que tinham unido à maioria, vínculos de sangue de clã, dividiam-lhe. Converter inimigos em irmãos seria seu maior desafio.

Sobre tudo quando descobriu dois homens golpeando-se até ficar inconscientes. Naquele momento utilizavam tão somente os punhos, mas Tor sabia que as armas não demorariam em aparecer.

Acreditava ter deixado muito claro quando chegaram que não toleraria nenhuma briga entre eles. Pelo visto, necessitavam que recordasse.

Furioso, não só pela falta de disciplina mas sim pela afronta a sua autoridade, Tor encheu um balde de água gelada do arroio próximo e a lançou sobre os dois guerreiros em luta. Quão único precisavam era um impacto momentâneo. Ambos eram fortes e corpulentos, mas amarrou as mãos do MacGregor à costas e afastou ao Campbell como se não fosse mais que um rapazola. Esteve tentado em lançar a ambos ao arroio, para que se refrescassem, mas conhecia um castigo muito mais efetivo, embora confiasse que finalmente se convertesse em uma lição.

Empurrou longe ao famoso arqueiro. MacGregor sacudiu o cabelo e olhou ao Campbell como se estivesse disposto a começar onde tinham deixado.

—Eu não faria — advertiu Tor em tom glacial—. Necessitarão-nos nos próximos meses.

Eles não sabiam ainda, mas MacGregor e Campbell acabaram de se converter em aliados.

MacGregor cuspiu e limpou o nariz e a boca machucadas.

—Antes se apagará o sol que um MacGregor necessite a um velhaco presunçoso como Campbell. —Os MacGregor eram um clã antigo e orgulhoso de linhagem real, e sua voz gotejava condescendência.

O irmão caçula de Neil Campbell se incorporou de um salto. Arthur era o melhor explorador das Terras Altas, mas por desgraça recentemente tinha posto essa habilidade ao serviço dos ingleses, em total desacordo com sua família. Vigiaria-lhe de perto como ao MacRuairi. Até então, a única impressão que tinha Tor era que se tratava de um homem tranqüilo e ensimesmado.

—Presunçoso? —disse Campbell—. E vocês o que são? O orgulhoso clã Gregor descendia de reis, mas, sem poder nem influências. Que baixo têm caído os poderosos. Mas se vieres aqui e me pedes isso com muita educação, possivelmente vos lance um osso alguma vez. —Torceu os lábios—. Ou têm muito medo de que te desfigure ainda mais esse bonito rosto?

Além de ser o melhor arqueiro das Terras Altas, MacGregor também era muito conhecido entre seus companheiros por ser muito atraente. Tor sentiu pena do pobre bastardo. Certamente para um guerreiro essa ridícula reputação era um pesadelo.

MacGregor grunhiu e deu um passo para ele, mas Tor o segurou pela borda do cotun e o reteve.

—Já basta — disse, e então olhou ao Campbell—. Os dois. —O matiz inflexível de sua voz deixava claro seu aborrecimento.

Deu uma olhada ao redor e viu que outros homens se juntaram para olhar. Bem. O que tinha que dizer afetava a todos.

—Advirto isso, não tolerarei brigas. —dirigiu-se ao resto—: De jeito nenhum. Não me importa que suas famílias se odiaram durante anos, nem se seu pai matou ao dele; nada disso importa. Qualquer briga ou inimizade que tiveram antes de chegar aqui deve desaparecer neste mesmo momento.

MacRuairi cravou a pá no chão com um terminante golpe. Seus olhos escuros eram muito ameaçadores e desafiantes.

—Isso também afeta a você, chefe?

A Tor não passou despercebido o sarcasmo, e reprimiu o impulso de socar o punho nesse queixo petulante. Ele não era seu chefe e nunca seria. Mas somente MacSorley sabia que ele não seria o líder do grupo quando terminasse a instrução, e era melhor que seguisse sendo desse modo no momento. Embora ele não fosse seu líder no futuro, durante os próximos meses seria, e até então aplicaria as mesmas normas. Por muito que o odiasse, por agora MacRuairi seria seu irmão. Quando aquilo tivesse terminado, converteriam-se de novo em inimigos.

—Sim — disse Tor, lhe olhando diretamente aos olhos—. Tendo em conta no que estamos a ponto de nos embarcar, não poderia ser de outro modo. Se triunfarmos, este será o maior exército que o mundo tenha visto; reunirá o melhor que a Escócia jamais ofereceu na arte da guerra. Jamais se tentara nada parecido a isto. —Olhou a todos—. Cada um de vós é o melhor em seu campo, mas somente com sua força e habilidade não chegaria tão longe. Somente podem vencer a… quantos homens…?, possivelmente vinte ou trinta? Lutem juntos e poderão vencer exércitos, centenas, possivelmente milhares. Sozinhos são os melhores, juntos se converterão em lenda. Mas aqui não há honras pessoais. A honra está em servir juntos como parte da equipe.

O êxito desta guarda, suas vidas e as de todos os que nos rodeiam só estarão a salvo se confiarem no homem que têm ao lado. —Tor olhou sucessivamente ao MacGregor e ao Campbell—. Já não são um MacGregor e um Campbell. Esta guarda é seu novo clã. Estes homens são seus irmãos.

Deixou que suas palavras fizessem rachaduras neles. Estava claro que não estavam dispostos a aceitar aquilo, Tor tampouco esperava: os guerreiros das Terras Altas não confiavam facilmente. Mas eles fariam. Não existia alternativa para uma equipe como essa.

—Eu trabalho sozinho — disse MacRuairi.

—Não, já não. Se querem ficar aqui, não. —Tor deixou cair a ameaça mas, desgraçadamente, MacRuairi não mordeu o anzol. A forma como lhe olhou, entretanto, deixava entrever tudo menos conformidade.

Tor passou revista ao resto dos homens.

—A partir de agora, consagrarão tudo à equipe. Seu dever e lealdade são para mim e para esta guarda.

—Não te esqueces algo? —perguntou Seton—. O que passa com Bruce, nosso senhor e soberano por direito?

—Deixem que eu me preocupe com Bruce — replicou Tor. Para operar com esse grupo, a máxima autoridade devia radicar no líder do mesmo, mas essa discussão tinha que esperar outro dia, e ia deixá-la para o MacSorley.

—Agora mesmo, nós não existimos; inclusive Bruce estaria de acordo. O segredo é primitivo. Nossos nomes. Nosso objetivo. Tudo. Não podem contar a ninguém o que fazemos. Isso inclui esposas e famílias, se alguém é casado.

A pouca informação que tinha obtido de MacDonald e do Lamberton antes de ir não falava de esposas. Ele sabia que MacRuairi acabara de ficar viúvo, de uma MacDonald, nada menos. Confiava que a maioria deles não fossem casados; assim era menos complicado. Os homens estavam calados, com expressão sombria, refletindo sobre o que havia dito e perguntando-se sem dúvida se tinham cometido um engano.

—Se alguém quiser partir, que diga agora. —Não esperava que respondesse ninguém; ainda não em qualquer caso, e nenhum o fez.

—Então, descansem um pouco — acrescentou—. Necessitarão. Amanhã começamos.

O grupo se dispersou lentamente. MacGregor e Campbell começaram a afastar-se com outros. MacGregor o fez sozinho, e Campbell, atrás do grupo mais numeroso.

—Esperem — disse Tor, lhes detendo—. Não terminei com vós.

Deu um par de pernadas até uma bolsa de pele com fornecimentos que tinha levado consigo e extraiu uma corrente de ferro de um metro de longitude. Com grilhões nas pontas. Embora confiasse em não necessitá-los no primeiro dia, tinha ido preparado. Aquele mecanismo tinha demonstrado ser efetivo quando se produzira alguma disputa ocasional entre as filas, mas ali ia ser de inestimável ajuda.

Durante os próximos aqueles dias dois homens estariam atados entre si, desejassem-no ou não. Confiava que gostassem de correr porque estavam a ponto de realizar um extenso percurso pelo Waternish.

Ambos os guerreiros lhe olharam com receio quando se aproximou, com as correntes ressonando a cada passo. Mas foi MacGregor quem perguntou: —O que é isso?

Tor sorriu, recordando as anteriores palavras do MacGregor.

—Para vós; hoje é o dia em que se apagou o sol.


Capítulo 13


Christina observou Tor na escuridão. Os movimentos apressados e precisos, que nas duas últimas semanas se converteram em um pouco dolorosamente familiar para ela, pareciam um pouco menos rápidos, um pouco menos resolvidos e decididos. Dirigiu o olhar para a janela, tentando adivinhar que horas era. Faltava pouco para que amanhecesse? Era uma ingenuidade pensar, ou ele se entretinha cada vez mais?

«Estarei fora uns dias» se convertera em algo freqüente. Via muito pouco a seu marido, salvo de noite, envolto em um véu de penumbra. Desde sua noite de bodas atrasada, Tor tinha passado apenas dois dias no castelo de Dunvegan. Quando estava ali, ia a sua cama sem falta, sempre tarde, mas nunca dormia a seu lado. Ela desejava que ficasse. Que a agarrasse em seus braços. Falar. Ele seguia sendo basicamente um estranho para ela, e estava se desesperada por conhecê-lo melhor. Mas por ardente que fora a paixão entre ambos, quando terminava Tor retornava ao salão, com seus homens. E por muito que ela dissesse a si que aquilo não tinha importância, sim tinha.

Mas nessa noite, Christina se negava que a decepção escurecesse a satisfação que sentia depois de fazer amor. Ainda experimentava a calidez de suas mãos no corpo. A plenitude de lhe ter entre as pernas. Notar aquele peso, cada vez que a penetrava. Seu intenso aroma varonil seguia suspenso no ar, em seu nariz e em sua pele. Ainda notava debilidade nas extremidades devida à força de sua entrega.

A promessa de sua noite de bodas se cumpriu com acréscimo. A paixão que havia entre ambos era mais maravilhosa do que tivesse sonhado jamais.

Suficiente, por agora.

Fechou os olhos, com o desejo de reter a sensação de satisfação. Se lhe olhasse, sabia que diria algo que arruinaria o momento. Essa noite não haveria perguntas sobre seus planos para o dia seguinte ou sobre quando voltaria, e portanto tampouco receberia respostas cortantes que atenuariam sua felicidade.

Esperava ouvir o som da porta fechando-se de repente. Em lugar disso, ouviu passos que se aproximavam da cama. Teve que esforçar-se para conter a respiração e não abrir os olhos para ver o que estava fazendo Tor. Era como se pudesse notar o peso de seu olhar sobre ela. Ele permaneceu ali quieto um bom momento. Christina teria dado tudo por saber o que estava pensando.

O ar se moveu. Seu aroma escuro e masculino se fez mais intenso. Christina ouviu o som estável de sua respiração quando se inclinou para ela.

O coração deu um tombo. Teve que fazer uso de todas suas forças para não dar um salto quando lhe acariciou a testa com os lábios.

A delicadeza daquele gesto fez que o que aconteceu a seguir resultasse cômico em certo modo. Ele deu um par de pernadas, e não um par de pisões, para a porta. Somente quando ouviu que se fechava, Christina permitiu que em sua boca se desenhasse um grande sorriso.

Embora seu marido não gostasse, não ficava tão indiferente como aparentava.

Quão único precisava era um pouco de paciência.

*

Christina seguia sorrindo quando terminou de tomar o café da manhã. Tor não se reunira com ela, e supôs que partira pra aonde fosse que ia constantemente. Mas nesse dia não estava necessitada de companhia. Pelo visto ganhara uma escolta privada.

Desde que tinha pilhado olhando-a da despensa da cozinha, tinham-na seguido como sabujos. Nesse mesmo instante estavam observando como arrumava as últimas flores de outono em um vaso de cerâmica vidrada, na cabeceira da mesa do estrado, esforçando-se por ser pacientes (o qual claramente estava custando muitíssimo) e não entremeter-se em seu caminho (o qual, tendo virtualmente pegos aos seus calcanhares, era impossível).

Quando ela se afastou um pouco do vaso, Deidre já não pôde esperar mais.

—Fizemos o que vocês disse, milady — disse a garotinha, espectadora.

Christina baixou o olhar a volta dos três rostos suplicantes, cujas bochechas estavam manchadas com as conservas de bagos especiais que o cozinheiro tinha preparado, e sorriu ante sua expressão de ansiedade.

A filha do cozinheiro tinha ido visitar a ilha de Harris e tinha levado seus três filhos: Ewan, de oito anos, Deidre, de sete, e Anna, que acabava de fazer cinco.

—Lavastes as mãos e o rosto?

Os três moveram a cabeça, acima e abaixo.

—Sim, milady.

Ela apertou os lábios para não sorrir.

—Mãe disse que não lhe incomodássemos — explicou Deidre. Mordeu a comissura do lábio inferior com os dentinhos e logo a olhou com gesto de preocupação—. Não lhe estamos incomodando, verdade?

—Claro que não a estamos incomodando — disse Ewan indignado—. A senhora disse que podíamos olhá-la e que depois, quando tivesse terminado com seus deveres matutinos, contaria-nos o resto. Verdade, milady?

—É verdade, Ewan.

Ele se dirigiu a sua irmã com as mãos cruzadas e assentiu com ar de superioridade.

—terminastes então, milady? —perguntou a pequena Anna.

Christina sorriu e limpou as mãos no avental.

—Acabo de terminar — mentiu, prescindindo da cera que ainda teria que retirar das toalhas, das velas que teria que substituir e do candelabro de prata que teria que polir. Todo isso podia esperar.

Além disso, Tor tampouco se dava conta.

Paciência, disse. Se a rusticidade em que se encontrava o salão quando chegou indicava algo, era que fazia muito tempo que ninguém se ocupara de que ele estivesse cômodo. Finalmente, Tor notaria os esforços que ela tinha feito para criar um lar confortável, um lugar onde gostasse de estar e ao que ansiasse voltar.

Dedicou seus pensamentos novamente aos meninos e disse:

—Então onde tinha parado?

—O malvado Meleagant afastou à rainha de Arthur e a levou a seu horrível castelo em…

—Gorre — interveio Christina.

—por que Lancelot, sir Kay e sir Gawain vão atrás da rainha e não do rei Arthur? —perguntou Deidre.

Boa pergunta, pensou Christina. Mas como explicar que a decisão do rei Arthur de não lutar por sua dama era o que justificava a infidelidade de Genebra? Uma nova pergunta a salvou de ter que responder.

—Lancelot matará ao Meleagant e salvará à rainha?

Ewan soprou.

—Claro que matará, tola. Lancelot é o melhor guerreiro de sua época; como o RI tuath. O chefe jamais permitiria que ninguém lhe raptasse, verdade milady?

Christina sorriu.

—Eu diria que não, Ewan. Mas se estiver tão seguro da vitória de Lancelot, talvez não precisem ouvir o resto.

Eles responderam saltando virtualmente sobre ela, negando com entusiasmo. Assim que os coros do «não» tiveram cessado, Christina agarrou a palmatória e retomou a história onde a tinha deixado no dia anterior.

*

Tor deixou ao senescal e a seu escrivão na galeria. Revisar a correspondência e as contas tinha levado muito mais tempo do esperado; tinha previsto estar no fiorde um momento antes, e estava ansioso por reunir-se com seus homens. O treinamento ia progredindo; em alguns aspectos melhor que em outros. Levaria tempo derrubar as barreiras que havia entre eles. Tempo do que não dispunha. Uma semana mais e encadearia a todos juntos se era necessário.

Esfregou a nuca, tentando mitigar a rigidez que sentia em toda a costa. Deus, que noite tão espantosa. Não tinha conseguido ficar a vontade. E era fácil saber a razão: comparado com a confortável cama com sedosos lençóis de linho e cálidas cobertas que tinha abandonado, a manta e a rugosidade do chão lhe tinha parecido tão agradável como um leito de pedras.

Os baús de Christina tinham chegado, e com eles apareceram muitos luxos que ele não tinha experimentado nunca. Lençóis tão suaves que pareciam de seda, e talvez o mais fascinante… Travesseiros de plumas. A primeira vez que tinha apoiado a cabeça em um, acreditou que tinha morrido e que tinha chegado ao céu.

Cada noite tinha que abrir mão de toda sua força de vontade para afastar-se de tanta comodidade. Mas, maldita seja, os guerreiros não dormiam em camas.

Diabos, a quem estava enganando? Não eram os travesseiros e os lençóis de linho o que lhe havia custado tanto abandonar, era essa mulher, muito tentadora. Mas sua fome dela era previsível, pensou. A novidade de seu matrimônio e seu insaciável desejo de Christina acalmariam logo.

Tor ouviu um sonoro estalo de risadas e aplausos procedente do salão. Perguntando-se a que era devido tanto alvoroço, dobrou a esquina, entrou e se deteve em seco. Não sabia o que esperava ver, mas certamente não a sua mulher sentada em cima da mesa com o que parecia ser uma palmatória na mão, e brandindo como uma espada.

Conteve o fôlego. Deus, era preciosa. Afastou o cabelo do rosto com um simples laço e o levava solto sobre as costas, seus enormes olhos negros brilhavam como a lua sobre o mar e suas bochechas aveludadas estavam ruborizadas de emoção. Parecia feliz, relaxada e jovem. Muito jovem. Tor não recordava ter sido tão jovem, tão feliz, ou ter estado tão relaxado, por certo.

Ela era uma rajada de ar fresco da primavera no frio e úmido inverno.

Mas que diabo estava fazendo? Dava voltas sobre a mesa a toda pressa. Uma espécie de atuação, pelo visto. Juntos a seu redor estava o que parecia a maioria dos criados da casa e três meninos pequenos, que a olhavam com expressões encantadas.

Ninguém o tinha visto chegar; toda a atenção estava centrada na veemente atuação da moça miúda. Por um momento, seu subconsciente lhe pregou uma brincadeira e viu o rosto jovial de sua mãe quando lhe contava um conto ao deitar. Tor sentiu uma intensa nostalgia dos tempos passados e teve uma fugaz ideia de quão diferente teria sido sua vida se seus pais tivessem vivos. Envergonhado ante essa debilidade, desprezou-a.

Christina agitou a palmatória frente ao menino que tinha debaixo.

—Esta vez não te libertará de seu castigo, Maleagant — disse com uma voz exageradamente grave—. Manchaste a honra de minha dama e eu, Lancelot, o principal cavalheiro do reino, defenderei-a. Deve pagar com sua vida. —Fingiu um apunhalar com uma colher—. Morre, vilão.

O menino gritou e fingiu uma morte muito teatral para grande regozijo de suas irmãs e do grupo, que estalou em outra ronda de aplausos quando estirou as pernas em um prolongado gesto final.

—Isso foi magnífico, Ewan — disse Christina, deixando a palmatória para unir-se ao aplauso—. Será um cavalheiro estupendo.

—Mas eu não quero ser cavalheiro, milady.

Ela parecia perplexa.

—Eu acreditava que todos os meninos queriam ser cavalheiros.

Ewan inflou o torso.

—Eu quero ser um feroz guerreiro das Terras Altas como o RI tuath.

«Que menino tão preparado», pensou Tor sorrindo.

—OH, milady — disse a menina maior—, e agora o que acontece? Como recompensou a rainha ao Lancelot por sua devoção?

Um vivo rubor apareceu nas bochechas de Christina. De repente, seu olhar se encontrou com Tor. Um gemido de sobressalto brotou do centro de seus lábios suaves, separados, e pareceu que suas bochechas se ruborizavam ainda mais.

—Milorde! Estás aqui!

Ao dar-se conta de que lhe tinham pilhado vadiando, os criados se apressaram a aparentar que trabalhavam e se dispersaram imediatamente. O menino e a menina maiores agarraram a irmãzinha e a levaram.

A pequena tentou soltar-se.

—Mas, eu quero ouvir…

—Chist, Anna — disse o menino. Saiu a toda pressa e acrescentou por cima do ombro—: Obrigado, milady.

—Vejo que seu público te abandonou — disse Tor. Percorreu a distância que lhe separava com um par de pernadas e se colocou de frente a ela.

Christina sorria com ironia.

—Isso parece. Muito pouco galante de sua parte, não acredita?

Devolveu o sorriso, sem pensar.

—Desculparia-me pela interrupção, mas acredito que neste caso foi bastante oportuna. Não é verdade que a rainha deu as graças ao cavalheiro de uma forma que preferiria não contar aos meninos?

Ela avermelhou de novo e ergueu os olhos para ele.

—Me parece que Deidre se deu conta de que estava suavizando as partes «românticas» da história.

Dispôs-se a descer da mesa, mas ele a deteve e lhe rodeou a cintura com as mãos. Com seus olhos escuros fixos nela. A pele sensível e arrepiada. As lembranças da noite passada fazendo o amor seguiam vivos em sua mente… E em seu corpo.

—Me permita — disse com voz rouca. Levantou-a como se fosse ligeira como uma pluma, atraiu-a para si e a baixou lentamente até o chão, desfrutando de do instante de contato de seu corpo deslizando-se pego a ele.

Alagou-lhe uma onda de ardor. Ela era tão suave e cheirava tão bem… Somente tendo-a perto se avivava.

—Assim, o que fez a rainha para demonstrar sua gratidão? —perguntou em voz baixa, incapaz de resistir.

Se não deixava de brincar com ela, pode ser que suas bochechas ficassem permanentemente tintas de rosa. Mas, maldita seja, era adorável.

—Eu… Eu - balbuciou Christina.

Ele tentou não rir. Pode ser que já não fora donzela, mas seguia sendo deliciosamente inocente. Muito distinta de qualquer que tivesse conhecido antes. Reteve-a um momento mais do necessário, tentado de levá-la de novo a seu quarto. Soltou-a.

—Tenho que ir - afirmou, para convencer-se a si mesmo, mais que outra coisa—. Tenho obrigações que atender.

Falou com brutalidade, e ela o interpretou como uma crítica, embora não tinha essa intenção. Parecia desolada.

—Deve acreditar que te casaste com uma mulher suja. Estava a ponto de limpar a prata, mas…

—Decidiu praticar seus dotes de espadachim?

Esta vez a brincadeira não funcionou.

—Os meninos —disse ela retorcendo as mãos— estavam tão ansiosos por ouvir o resto da história que me temo que me deixei levar. Voltarei para minhas obrigações agora mesmo.

Parecia tão abatida que tomou-lhe a mão, por impulso, desejando tranqüilizá-la.

—Não te considero preguiçosa absolutamente. Está fazendo muito bem o papel de senhora do castelo.

Christina abriu os olhos de par em par.

—Isso pensa? De verdade?

Era óbvio que sua opinião era muito importante para ela.

—Sim, de verdade.

Tor se deu conta de que era certo. Christina estava fazendo-o muito bem.

Levava pouco tempo ali, mas se tinha adaptado a seu novo papel de senhora do castelo facilmente. Ao pensar reconheceu quão difícil devia ter sido. Era jovem inexperiente e estava rodeada de desconhecidos. Mas tinha conseguido suficiente autoridade para obter o respeito dos homens do clã. Assim devia ser, ou do contrário não obedeceriam suas ordens. Agora que pensava, recordou que nas poucas refeições que tinham compartilhado, os serventes apresentavam as bandejas do desjejum a ela para que as passasse, e sorriam radiantes quando o fazia. Não só a respeitavam, gostavam dela.

E isso não era tudo. Havia algo diferente na fortaleza desde que ela tinha chegado. Algo, além das tapeçarias e das mudanças que Christina tinha feito e que ele mal tinha notado. Era mais cálida. Tor franziu o cenho, perguntando-se se ela estaria queimando muita turfa.

—Acontece algo? —perguntou ela.

Ele meneou a cabeça, sem deixar de franzir o cenho. Não queria ocultar seus sentimentos, mas assim que tivesse oportunidade falaria com o senescal sobre a turfa.

—Não, tenho que ir.

Os homens estavam esperando. Mas por alguma razão não estava tão ansioso por voltar para a instrução como minutos antes.

*

Deu a volta para ir, e uma borbulha de desespero surgiu no interior de Christina. Era a primeira vez que tinha tido a oportunidade de falar com ele durante o dia, desde que havia retornado e a tinha encontrado coberta de cinza na cozinha. Aparentemente começava a ser um costume encontrá-la em circunstâncias muito pouco favorecedoras. Mas não se importou. Estava ansiosa por saber mais dele e não queria desperdiçar a oportunidade.

—Espera! —Ele se voltou, perplexo, e ela se sentiu como uma parva. Suas bochechas se tingiram de rubor e se retorceu as mãos sobre a saia—. Eu… —O que ia dizer? Pensou— Não sei o que você gosta - soltou.

—O que eu gosto?

—Para comer - explicou, sentindo-se ridícula. Não era capaz nem de construir uma frase coerente quando Tor estava perto. Ruborizava-se e gaguejava e atuava como uma mocinha apaixonada, do momento em que ele entrava no aposento—. Deveria conhecer suas preferências para planejar as refeições da semana com o cozinheiro.

—Cormac permite que lhe diga o que deve preparar? —diria que ele não dava crédito.

Christina franziu o cenho.

—Não deveria fazê-lo?

—Deveria, mas Cormac é teimoso como uma mula velha. Faz o que quer sem escutar a ninguém.

Ela sorriu com doçura.

—Exceto a mim.

Ele a olhou com os olhos entoados durante um momento.

—O que fez em troca?

Christina se levou a mão ao coração como se estivesse escandalizada.

—Estou profundamente ofendida.

Tor arqueou uma sobrancelha.

Ela torceu os lábios.

—Alguém já te disse alguma vez que suspeitas de tudo?

Tor cruzou os braços, enfatizando a protuberância de seus músculos. Christina nunca se cansava de o olhar.

—Continuamente - repôs ele — É meu trabalho.

Teve a sensação de que seu marido fosse capaz de esperar eternamente, e pigarreou decepcionada.

—Ah, muito bem. Tenho descoberto que é muito mais razoável depois de uma grande jarra de cerveja.

Tor riu entre dentes, e aquele som a encheu de calidez. A brancura de seus dentes se destacava junto a sua pele bronzeada, e as rugas que rodeavam seus lábios se intensificavam quando sorria.

—Pelo visto me casei com uma moça ardilosa.

Ela se perguntou por um momento se referia ao que tinha ocorrido no Finlaggan, mas se tranqüilizou ao descobrir uma faísca zombadora em seu olhar. Sorriu-lhe.

—Eu prefiro pensar que sou esperta.

—Estou impressionado, fizesse o que fizesse.

Apesar da despreocupação com a que o disse, a agradou enormemente. Talvez tivesse notado seus esforços, mais do que tinha acreditado? Essa idéia a encorajou.

—Já sei que está ocupado, mas já levamos quase três semanas casados, e tivemos tão pouco tempo para falar… Tenho a sensação de que mal te conheço. —O sorriso desapareceu do rosto de Tor, mas ela ignorou a advertência. Deixou-se levar pela emoção de sua primeira conversação «normal» entre marido e mulher, e não quis parar—. Quase é a hora do almoço, e há muitas coisas que eu gostaria de comentar contigo. —A sua mente aparecera uma multidão de perguntas. Tinha visto os travesseiros novos? Também queria saber sua opinião sobre a cor dos novos dosséis para a cama. Tinha tanto que lhe perguntar!—. Possivelmente poderia ficar? —Então teve uma idéia ainda melhor—. Ou eu poderia ir contigo. Não chove, talvez uma refeição ao ar livre…

—Isso é impossível - replicou ele ocultando-se de novo atrás de sua aparência de chefe, e ela se deu conta de seu engano. Sentiu-se como se tivesse topado de cabeça contra um muro de pedra.

Esforçou-se por dissimular sua decepção porque não queria danificar o momento, embora temesse justamente tê-lo feito, devido a sua ansiedade.

—Talvez em outra ocasião - disse como se não desse importância. E acrescentou em seguida para repor-se—: Embora ainda não disse quais são suas preferências.

Tor fez um gesto de indiferença.

—O que você fizer estará bem.

—De acordo - disse ela em voz baixa. O momento tinha passado. Por que tinha que lhe pressionar? Por que não se contentava com o que Tor estava disposto a lhe dar?

Ele deveu notar sua expressão abatida.

—Beterraba.

Christina ergueu os olhos.

—O que?

—Eu não gosto de beterraba. Nem mandioquinhas, por certo.

A Christina iluminou o rosto.

—A mim tampouco. Algo mais?

—Os molhos doces para as carnes. O açúcar é para as sobremesas. —Olhou-a com ironia—. E para os figos secos.

Ela avermelhou, ao dar conta de que ele devia ter notado sua afeição pelas coisas doces.

—Vinho ou cerveja? —perguntou-lhe.

—Uísque, e logo cerveja. —Sorriu—. Nada dessa espécie de xarope que gosta a ti.

Também tinha notado que gostava do vinho doce? Pelo visto se dera conta de muitas mais coisas das quais ela acreditava. Desejava fazer centenas de perguntas mais, mas era óbvio que ele estava ansioso por partir e Christina não queria lhe atrasar mais.

—Obrigado.

Ele assentiu e se dispôs a ir, mas se deteve.

—Estarei fora…

—Uns dias - terminou ela a frase com tranqüilidade, sem aparentar absolutamente sua decepção.

Tor a olhou, penetrante, e Christina temeu que tivesse notado de todas as formas.

—Sim, alguns dias.

Ela se obrigou a sorrir como uma esposa complacente.

—Verei-te quando voltar, pois.

Ele a olhou longamente e pareceu que queria dizer algo, mas girou sobre seus calcanhares e se foi sem pronunciar mais nenhuma palavra. Christina o viu cruzar o pátio da janela, perguntando-se o que era o que o mantinha afastado durante tanto tempo.

Estava a ponto de desviar o olhar quando ficou gelada.

Foi como se lhe tivessem atirado um balde de água gelada em cima.

Lady Janet avançava para ele com uma grande cesta. O tipo de cesta que se usava para levar a comida para uma refeição ao ar livre.

Pelo visto o esteve esperando. Tor disse algo, e desceram a escada até a comporta marítima juntos.

O coração de Christina pulsava tão rápido que mal podia respirar. Estava convencida de que aquilo não significava nada. Mas por que ia com lady Janet e não com ela?


Capítulo 14


O inverno era feroz como um leão, trazia temperaturas glaciais, ventos gelados, dias curtos e intermináveis mantos de bruma cinza e nuvens. Quando o sol falhava, a água caía abundante dos céus.

O dia de Todos os Santos chegou e se foi, quão mesmo o de São Martín. Christina não demoraria em iniciar os preparativos para o Yule e Hogmanay. Os netos do cozinheiro se foram. Havia pouca alegria no interior daqueles lúgubres muros de pedra, mas ela tinha a intenção de fazer todo o possível para mudar isso.

Estava desanimada, mas não vencida. Paciência, disse.

O vento uivou e a chuva golpeou as finas venezianas do salão. Que noite tão horrível! Ela terminou de arrumar as samambaias, a única seguia crescendo em abundância nos arredores do castelo, além da urze, e deu um passo atrás para admirar os diversos matizes de laranja e marrom.

Deu uma olhada pelo ambiente, satisfeita de que tudo estivesse preparado para o jantar, e voltou para seu quarto para trocar-se. Nunca sabia se Tor se reuniria com ela, mas tentava ter o melhor aspecto possível para as poucas ocasiões em que o fazia.

Os dias tinham adquirido certo ritmo. Ele quase sempre abandonava o castelo ao amanhecer e retornava muito depois do crepúsculo, e às vezes nem sequer isso. Mas sempre mantinha sua promessa e lhe informava que ia partir «uns dias». Ela já não se incomodava em perguntar aonde ia; sabia que a única resposta que obteria seria a mesma de sempre: estava se ocupando de assuntos do clã, por só, aparentemente.

Christina não pôde evitar de reparar que lady Janet também estava fora freqüentemente.

Queria pensar que aquilo somente era uma coincidência. Mas lhe custava cada vez mais convencer-se de que seu marido não albergava nenhum sentimento especial por ela.

Em realidade, não sabia o que pensar. Não existia nenhum problema entre eles; certamente que não… Não tinha do que queixar-se. Mesmo assim, seu matrimônio não estava progredindo tal como tinha esperado, e não sabia o que podia fazer.

Já estava há mais de um mês no Dunvegan, mas em muitos aspectos seu marido seguia sendo um desconhecido para ela, como no dia de sua chegada.

Tinha averiguado o que gostava de comer e beber; que seu clã lhe reverenciava como a uma lenda viva, um rei divino e um herói guerreiro, tudo em uma peça; que mantinha a ordem e o funcionamento de seu lar com precisão militar; que quase nunca se relaxava; que além de um irmão tinha uma irmã (isso disse o escrivão). E que era capaz de rendê-la com uma carícia.

Conhecia o tato ardente de sua pele sobre ela, como se intensificava o aroma de pinheiro de seu sabão quando seu corpo fervia de paixão, o roçar tosco de seu queixo junto à pele, o «v» de pêlo suave e sedoso de seu torso, a pressão de seus lábios em seu seio e a deliciosa sensação de suas mãos lhe cobrindo o corpo.

Christina entrou em seu quarto e dirigiu o olhar para a cama; o único lugar onde se conectavam. Sobreveio-lhe uma ardorosa onda de lembranças viscerais.

Sabia como os músculos de seus braços e de seus ombros se flexionavam quando se sustentava sobre ela para penetrá-la. Conhecia a dureza que adquiriam esses músculos sob suas mãos. Sabia quanto pesava o corpo de Tor sobre o seu, conhecia a plenitude desse corpo em seu interior, o ritmo com o que o fazia o amor, movendo-se dentro e fora dela. Sabia como os músculos de seu estômago se esticavam, convertendo-se em rígidas faixas antes que ele gritasse, entregue. Conhecia o som dessa entrega, o áspero grunhido e o profundo gemido que ressonavam em seus ouvidos muito depois de que ele se fosse. E ia, sempre, por muito que ela desejasse que ele quisesse ficar. Despertar em seus braços tão somente uma vez…

Sentiu uma opressão no peito e se afastou da cama.

Conhecia sua forma de lhe fazer amor, mas não sabia nada do homem. Ele guardava seus pensamentos para si mesmo. Por muito que ela tentara derrubar o muro que tinha edificado a seu redor, não conseguia. Talvez devesse pedir ao rei Eduardo que lhe emprestasse seu infame mecanismo de assédio «Warwolf» 23 pensou a contra gosto.

Tor estava tão acostumado a estar sozinho, a agüentar ele mesmo suas cargas, que ela acreditava que nem sequer imaginava o que estava perdendo. Nem que seus esforços por mantê-la à margem lhe doíam. Nas estranhas ocasiões nas que se reunia com ela nas refeições, suas tentativas por ter uma conversa mais pessoal eram recebidas com educação, mas firmemente rechaçadas. Seu esforço para que a residência tivesse um ambiente mais alegre e por contribuir um pouco de calidez ao lúgubre salão tinham ficado em nada. Ela tentava ser útil. De fazer coisas bonitas para ele, de dizer ao cozinheiro que lhe preparasse seus pratos preferidos ou de conservar sua roupa perfeitamente limpa e imaculada. Mas, pelo visto, ele estava muito ocupado para se dar conta.

Christina tinha começado a sentir-se como um de seus cães. Um cachorrinho devoto que seguia lhe pisando os calcanhares, esperando uma mínima amostra de afeto. Uma carícia.

Um olhar. Algo que demonstrasse que lhe importava. Inclusive outro beijo na testa lhe teria dado esperanças.

Não que Tor fosse cruel. A crueldade teria exigido certa dose de sentimento. Talvez isso fosse mais fácil. Nesse caso, ao menos, Christina saberia qual era sua situação.

Ela tinha acreditado captar algo especial entre eles, mas e se estava equivocada? E se não havia noites confortáveis junto ao fogo? O que faria em tal caso?

Aparentemente Tor tinha dois sentimentos a ela: educada indiferença durante o dia e paixão de noite. Esse último lhe dava esperanças. A paixão entre ambos não tinha deixado de crescer, e ela se habituou de forma gradual aos desejos de seu próprio corpo e começava a deixar-se ir.

Ao menos, esse era seu caso, e desejava pensar que era mútuo. Mesmo assim, a verdade era que ela não podia compará-lo com nada. E ele sim.

Mas inclusive na cama, Christina não podia evitar sentir que algo ia mal. Que ele se retinha. Sentiu um agudo espasmo no peito, temendo ser uma decepção para seu marido. «Devo estar fazendo algo ruim.»

Desejava desesperadamente lhe agradar. Mas como? Impressionar-lhe com suas habilidades de esposa certamente não estava sortindo efeito. Tor tinha ensinado a paixão, como reconhecer os desejos de seu próprio corpo, mas ela seguia sem saber quase nada dele. O que gostava?

Ele sempre parecia tão controlado, salvo…

Isso era! A primeira vez. Houve algo selvagem e real a primeira vez. Talvez fosse assim como gostava?

As bochechas lhe arderam ante a escandalosa lembrança de como Tor a havia possuído por trás.

Sentiu uma espessa calidez no ventre. Tinha um plano. Exigia descaramento, mas a modéstia não a deteria. Precisava dar um golpe terminante para derrubar o muro de desconfiança e isolamento que ele tinha erguido a seu redor. Warwolf não era nada comparado com o que ela tinha planejado.

*

A onda golpeou ao Tor, derrubou-o e lhe impediu de levantar-se durante o tempo suficiente para que à maioria de seus homens entrasse o pânico. Com os pulmões ardendo, conseguiu voltar para a superfície da água, absorvendo rajadas de ar a fervuras.

—Alguém disposto a abandonar? —gritou, e sua voz ficou apagada pelo rugido do vento e o martelar da chuva.

Sua pergunta foi recebida por um coro de homens exaustos mas convencidos:

—Não, capitão.

Mas depois de mais de uma hora nas geladas águas do fiorde, durante a pior tormenta que tinha sofrido Skye essa temporada, inclusive MacSorley dava mostras de debilidade.

Só um demente estaria na água em uma noite como essa. Mas era justo a noite que ele estivera esperando. Nem mesmo planejando a tormenta ele pessoalmente, teria previsto as condições de supor um desafio maior.

Thor tinha desatado sua vingança com uma poderosa corrente. A água arremetia em ondas enormes contra as escarpadas rochas que delimitavam o fiorde.

Eles tinham nadado até a boca do mesmo, a uns quatrocentos metros da costa, através de um fluxo de metro e meio de altura e uma corrente que tentava o levar de volta. Tentando à sorte no mar, esforçando-se ao máximo por manter-se a flutuação, rodeados de redemoinhos de águas negras e de uma incessante neve.

Em um tranqüilo dia de verão, ele era capaz de estar ali fora indefinidamente. Mas as gélidas águas do inverno e a ferocidade do mar minavam a fortaleza de um homem em questão de minutos. Já não batia os dentes, e fazia muito tempo que não queimavam nem as pernas nem os braços. Não sentia nada. Conhecia os sintomas do perigo, mas seguiu forçando, forçando através da dor e o medo que teriam vencido à maioria dos guerreiros de elite.

Fortaleza. Resistência. Não render-se jamais. A dureza de corpo e de mente era o que convertia a seus homens nos melhores.

Quando outros ficavam na borda, tremendo, seus homens mergulhavam.

E sendo que ele era um dos melhores nadadores do grupo, tão bom como MacRuairi, embora não tão forte quanto MacSorley, podia imaginar que alguns outros deviam estar sofrendo.

Mas abandonar era impensável. Jamais. Era melhor que averiguassem se tinham o necessário em um momento assim, quando o que estava em risco era perder a um e não à equipe inteira.

A maioria dos homens eram bons nadadores, mas Seton e MacKay não estavam tão cômodos como os outros na água; Seton porque era inglês, e MacKay porque procedia de uma região montanhosa situada no coração das Terras Altas.

A fortaleza do grupo era quão mesma a de seu elo mais fraco. E esse exercício, junto a muitos dos que ele lhe tinha imposto nos últimos dias, pretendia demonstrar a importância de trabalhar unidos, além da necessidade de estar preparados em qualquer circunstância que pudesse apresentar-se, tanto física como mental. Para vencer a um exército muito mais numeroso e melhor equipado precisariam ser mais rápidos, mais preparados, mais fortes, e capazes de mover-se pelo território mais difícil com facilidade, incluída a água.

—Enumere - ordenou. Estava muito escuro e a água muito turva para ver todos os homens, de maneira que tinha que confiar nessas recontagens periódicas para assegurar-se de que estava todo mundo.

Tinha-lhe emparceirado o primeiro dia e indicou que não deviam separar-se nunca de seu companheiro; na água significava não afastar-se mais da longitude do braço. Trabalhariam sempre juntos, por grupos, pequenos ou grandes, mas precisava lhes preparar para isso.

—Equipe um, preparado, capitão.

MacSorley e MacRuairi. O navegante e o pirata. Primos e descendentes do poderoso Somerled, ambos eram excelentes nadadores, mas a habilidade especial do MacRuairi radicava em infiltrar-se. Dizia-se que era capaz de entrar e sair de qualquer parte. Uma habilidade útil não só para resgatar homens, mas também para cortar pescoços.

Um assassino, agora Tor via claro.

Tinha emparceirado ao alegre MacSorley com seu severo e lúgubre primo para que lhe vigiasse. O fato de que as brincadeiras constantes do MacSorley irritassem ao MacRuairi era uma vantagem acidental, mas bem-vindas. MacRuairi, habituado a trabalhar sozinho, contribuía à associação outro benefício.

—Equipe dois, preparado.

Campbell e MacGregor. O explorador e o arqueiro. Campbell também era muito hábil lançando a lança, e os dois se meteram em crescentes e descabelados desafios de pontaria à medida que passavam os dias.

Depois de estar uma semana encadeados, o antagonismo entre os dois inimigos não tinha feito mais que crescer, mas tinham aprendido a trabalhar juntos e a cumprir com suas tarefas. De momento, bastava.

Acorrentar os dois tinha sido mais acertado do que tinha previsto. Os dois homens evitavam a conversação em grupo. MacGregor era solitário e Campbell observador, e gostavam de manter-se à margem; embora seus similares temperamentos não tivessem mitigado absolutamente o antagonismo.

—Equipe três, preparado, capitão.

MacKay e Gordon. Outra dupla apropriada. O duro e bondoso montanhês e o esbelto alquimista não podiam parecer mais diferentes, mas resultara que MacKay era também uma espécie de inventor e experimentador. Em lugar do peculiar pó negro que Gordon utilizava para criar raios e trovões de fogo, MacKay experimentava com armas, forjando aterrorizantes instrumentos com nomes truculentos, mas descritivos, como «arranca olhos» ou «abre crânios»

—Equipe quatro, preparado, capitão.

Lamont e MacLean. O caçador e o atacante. Lamont era um famoso caçador de homens, capaz de seguir qualquer rastro, por leve que fosse. MacLean brandia um formidável machado de guerra e se dizia que tinha liderado uma série de audazes ataques contra os ingleses no Carrick.

Os Lamont, além disso, levavam muito tempo em uma disputa com os Boyd. Se soubesse antes, Tor possivelmente o teria emparceirado de outra forma.

—Equipe cinco, preparado, capitão.

Boyd e Seton. O mais forte e o mais fraco. O inglês era o elo mais frágil da cadeia, e isso lhe enfurecia constantemente. Não era uma consideração sobre se merecia ou não estar ali, a não ser o simples reflexo de sua juventude e inexperiência. De fato, Seton tinha subestimado bastante sua habilidade com a faca: lançava o estilete com extraordinária habilidade. Mas não correspondia ao Tor lhe dizer que merecia estar ali; Seton tinha que averiguá-lo por si só.

Tor tentou franzir o cenho, mas tinha o rosto rígida de frio. Se o treinamento não melhorava ao Seton, possivelmente Boyd o faria. Apesar da evidente diferença de força entre ambos, Seton se negava a dar-se por vencido. Cada vez que Boyd se burlava dele, Seton mordia o anzol. Aquilo lhe estava devorando por dentro, e Tor se limitava a esperar que reagisse. Seu altivo orgulho inglês podia lhe causar a morte.

Talvez tivesse cometido um engano lhe emparceirando, sem ter em conta o grau do ódio do Boyd pelos ingleses. Boyd e Lamont, os rivais do clã, possivelmente teria sido melhor opção. A discórdia não era algo que escasseasse nesse grupo.

Uma nova onda lhe cobriu. Basta. Tinha chegado o momento de voltar. Deu a ordem e notou a sensação de alívio dos homens, que, entretanto estavam muito exaustos e gelados para aclamar.

Estava orgulhoso deles. Normalmente estava acostumado a reservar essa prova para uma fase posterior do treinamento, mas a tormenta lhe tinha parecido muito tentadora.

Dessa vez as ondas e a corrente estavam a seu favor, e nadaram até a borda com uma facilidade maior que quando se afastaram da costa.

Quando os homens conseguiram sair da água, Tor esteve a ponto de cair rendido nu, sobre as rochas. Ao inclinar-se para puxar mais ar, se deu conta de que havia um punhado de homens que estavam fazendo exatamente o mesmo.

—Trabalho bem feito - disse quando recuperou a respiração, como incomum elogio.

O vento e a neve úmida tinham amainado o bastante para que distinguisse as silhuetas na escuridão. Arrepiaram-lhe os cabelos da nuca, e não pelo frio. As nove silhuetas. Fazia a recontagem sem pensar; era algo que fazia por instinto. Tinha que saber que tinha contado a todos seus homens.

Lançou uma maldição. Deu uma olhada ao Boyd.

—Onde está Seton?

Boyd se sobressaltou e olhou em redor.

—Estava bem atrás de mim…

Tor não quis perder nem um segundo mais. Atirou-se de novo à água; a raiva lhe proporcionou um renovado empurrão de energia.

Ia matar ao Boyd com suas próprias mãos, fosse o mais forte ou não. Tor odiava perder um homem, pela razão que fosse. Mas não vigiar ao companheiro era imperdoável. Não tinha intenção de explicar Bruce como tinha conseguido que seu jovem cunhado se afogasse.

MacSorley nadava a seu lado.

—Já o viu?

—Não - replicou Tor. Estava escuro como boca de lobo. Deu a volta e viu o resto dos homens que tinham ficado atrás—. Dispersem. Não deixem de olhar à frente e esperem que as ondas…

—Ali! —MacRuairi assinalou uns seis metros mais à frente. Sua capacidade de ver na escuridão era assombrosa. Tor mal distinguia um brilho que emergia na superfície. Seton era loiro, felizmente para ele.

Diabos, Tor confiava em chegar a tempo.

MacSorley foi o primeiro. Sua velocidade na água não era um mito; Tor não tinha visto nunca a ninguém que nadasse tão rápido.

Com a ajuda de Tor, MacSorley arrastou Seton de volta à costa e empurrou o corpo sem forças sobre a praia rochosa.

Inclinaram-se sobre o jovem.

—Não respira - disse MacSorley.

Tor amaldiçoou. Sem pensar virou ao menino e lhe golpeou as costas com a palma da mão. Não aconteceu nada. Voltou a amaldiçoar e repetiu o golpe, com mais força.

Dessa vez deu resultado. Seton expulsou a água dos pulmões, e se engasgou enquanto seu corpo se convulsionava entre espasmos e expectorações.

Tor notou como se distendiam as costas e os ombros.

Passados uns minutos, o corpo do Seton tinha eliminado a água do mar e tentou sentar-se. Mas MacSorley lhe conteve.

—Acredito que é melhor que sigam convexo. Parece-me que bebestes muito por esta noite.

Seton conseguiu esboçar um sorriso, que em seguida se converteu em uma careta.

—Completei a prova? —perguntou, olhando ao Tor.

Este assentiu.

—Sim, menino, completou-a.

A ira retornou com toda sua força. Boyd não havia dito nenhuma palavra, e ficou quieto enquanto outros homens tentavam reanimar a seu companheiro. A julgar por sua sombria expressão, Tor se deu conta de que era consciente de seu erro, mas era muito tarde, maldita seja.

Rodeou o grosso pescoço do Boyd com uma mão; uma fúria cega percorria seu corpo.

—Qual era a regra?

Boyd o olhou sem pestanejar.

—Não se separem de seu companheiro.

Tor apertou e outros homens se aproximaram mais. Pego à cara do Boyd, ele cuspiu suas palavras.

—Estes homens contam com que estejam a seu lado, com que cumpram com seu papel, que formem parte desta equipe, e você acaba de abandonar a um de nós. Se tiverem que carregar com um homem até as profundidades do inferno, farão, porque eles o farão por você. Compreendido?

A vergonha invadiu ao resistente guerreiro. Assentiu.

—cometi um engano. Não voltará a acontecer.

Tor lhe separou de um empurrão.

—Podem jurar que não.

Tor não mandou ao Boyd a casa naquele mesmo momento, porque em parte tinha sido culpa dele. Não acreditava que tivesse pressionado muito aos homens, pressionados mais à frente do ponto que alguém acredita que há de chegar para demonstrar que alguém tem o necessário para ser um guerreiro de elite. Ou se tem o necessário ou não se tem. Possivelmente era severo, mas Tor devia ao grupo, não a um homem. Sabia exatamente até onde pressionar, e essa era uma das coisas que lhe tinham convertido em um bom líder.

Mas com escuridão ou sem ela, em última instância esses homens eram responsabilidade dele. Deveria ter se dado conta de que Seton tinha desaparecido.

—Se voltares a fazer algo assim, despacharei-te. Não me importa o forte ou extraordinário que sejas. Isto é uma equipe. Se queres lutar sozinho, retornem pra casa.

Os homens ficaram abatidos depois daquilo, e voltaram para a torre a verem comida que Janet lhes tinham preparado. Houve menos conversa do habitual, embora MacSorley não pôde resistir burlar-se de Seton umas vezes mais, a respeito de sua afeição pela água de mar, lhe oferecendo uma taça, se por acaso preferisse beber isso em lugar de cuirm.

Não era assim como Tor esperava que acontecesse, mas essa noite teve a sensação de que algo tinha mudado. Não porque Seton tivesse estivera a ponto de morrer. A esses homens não dava medo a morte. Para um homem das Terras Altas, morrer na batalha era a recompensa definitiva; o qual explicava possivelmente essa maneira de lutar selvagem e sem limites que tinha gerado terror no coração de seus inimigos.


O que tinha mudado era que os homens já não se limitaram a escutar suas palavras sobre a importância de trabalhar juntos; essas palavras tinham impregnado por fim. A mudança não aconteceria em uma noite; estavam muito acostumados a lutar sozinhos pela glória pessoal, mas chegaria.

Depois de semanas de martelar, a desatinada guarda tinha chegado a um ponto decisivo, e pela primeira vez, o êxito parecia possível. Talvez ao final não precisasse encadear todos juntos.

Deixou-lhes falando em voz baixa junto ao fogo e retornou a Dunvegan.

A tormenta tinha amainado, embora Tor tivesse se orientado pela escorregadia escada de pedra da comporta marinha sem o nebuloso reflexo da luz da lua. Os guardiães do muro lhe saudaram quando entrou no barmkin24. Não pela primeira vez, amaldiçoou a promessa que tinha feito a sua esposa. Exausto, encharcado e frio até os ossos, havia sentido a tentação de passar a noite na torre, mas não a tinha avisado de que não voltaria a dormir. Não estava acostumado a sentir-se obrigado com ninguém a atuar de uma forma determinada, e isso o incomodava.

Por que permitia que o distraísse de suas obrigações? Deveria estar com seus homens, embebedando-se e ouvindo a incessante fanfarronice e sarcasmos de MacSorley, as histórias de Gordon sobre as proezas de seu avô na última cruzada, quando lutou junto aos cavalheiros templários, os relatos de Boyd sobre as injustiças dos ingleses nas fronteiras, ou o tema preferido de quão guerreiros estavam longe de casa: as mulheres.

Mas uma parte dele, uma parte que era maior cada dia, não queria decepcioná-la. Christina estava desempenhando seu papel, ocupava-se do castelo e de suas obrigações de um modo que não lhe dava nenhum motivo de queixa. Mas o olhava de uma forma que lhe corroia a consciência.

Tor lhe estava fazendo mal, e isso o incomodava. Ela tinha alimentado esperanças sobre ele que não podia cumprir. A visão dela do matrimônio era própria do relato romântico de um bardo, como o que a tinha ouvido contar aos meninos, sobre o cavalheiro devoto de sua dama. Ele a vestiria, daria-lhe refúgio e amparo; daria sua vida por ela sem pensar um momento, mas o tipo de intimidade que desejava dele era impossível.

Embora tivesse obrigações com seu clã, não era capaz de mostrar esse tipo de sentimentos. Há muito tempo era um chefe e um guerreiro. Rodeado de morte e sangue durante a maior parte de sua vida, tinha visto coisas que lhe arrepiariam a pele. Desde o começo tinha aprendido a não sentir-se preso a ninguém. Tinha visto morrer a muita gente: a seus pais, a amigos…, diabos, inclusive a sua primeira mulher.

A distância lhe tinha proporcionado o nervo que necessitava para que seu clã sobrevivesse e prosperasse, para ser capaz de tomar decisões a vida ou morte, para conseguir a vitória no campo de batalha. Não podia permitir-se ser de nenhuma outra maneira. Era o que a guerra e o dever tinham feito dele: um homem frio e desumano.

Enquanto se aproximava viu o brilho da luz no salão, embora o jantar já devia ter terminado. Soltou outra maldição. Inclusive meio morto de cansaço, seguia sentindo esse inconfundível puxão na virilha, sabendo que logo a veria.

A novidade não desaparecia. Começava a perguntar-se se alguma vez se cansaria dela. Noite atrás noite, era incapaz de estar longe de sua mulher. Inclusive quando se obrigava a dormir na torre alguns dias, para demonstrar-se a si mesmo que podia, pensava nela. Christina tinha invadido seus pensamentos, seus sonhos, inclusive seus malditos sentidos nos momentos mais inoportunos. No dia anterior estava no meio de um duelo de espada com MacRuairi, quando levantou o braço para brandir a espada e notou o aroma de sua fragrância floral na pele. Tinha recebido um golpe no ombro por culpa dessa desorientação.

Não estava funcionando. Não importava as vezes que a possuía, o desejo por sua esposa não morria. Avivava-se. Com mais intensidade, arrastava-lhe de novo junto a ela, por muito que resistisse.

Mas essa noite, não. Essa noite estava muito esgotada. Não importava quão fascinante fosse seu aspecto, aninhada na cama, com sua cabeleira negra derramada sobre os ombros e sua delicada bochecha apoiada no travesseiro; desejaria-lhe boa noite e cairia rápido junto ao fogo com o resto de seus homens. Onde devia estar.

Entrou no salão, inspirou o aroma marcante misturado com a turfa da chaminé. Alhos e noz moscada. A calidez lhe invadiu. A pesar do cansaço, sentiu que seu corpo se relaxava. Apareceu uma lembrança enterrada nos limites de sua mente: compota de frutas. O aroma recordou a sua infância. A sua mãe. Outros tempos.

O que tinha sua jovem esposa que provocava nele essas peculiares lembranças?

Embora Rhuairi lhe tivesse assegurado que Christina não estava desperdiçando a turfa, diria que ali fazia mais calor. Não era capaz de averiguar o motivo, mas Dunvegan parecia diferente. O ar era mais quente; o ambiente mais acolhedor. Notava-o cada vez que retornava. Tinha medo de que começasse a gostar de muito.

A maioria dos componentes de seu clã seguiam desfrutando da bebida, mas uns poucos tinham desenrolado as mantas para dormir. Rhuairi se aproximou para lhe informar das idas e vindas pelas imediações do castelo durante a jornada, incluindo mais problemas com as rendas. Quando Tor abandonou o salão estava ainda mais exausto, arrasado pelas exigências de sua dupla responsabilidade. Treinar aos homens estava prejudicando seu dever com o clã.

Mas não podia enganar-se. Gostava de os treinar. Eram diferentes a qualquer outra equipe que jamais tivera treinado. Normalmente se sentia desdobrado entre capitão e soldado, mas esses homens eram seus iguais. Não só em fila, a não ser em habilidades. Sentia que era parte de algo importante.

Viu uma franja de luz por debaixo da porta e chamou. Ouviu um ofego e um trocar de um lugar a outro antes de abri-la. Quando entrou, Christina estava de joelhos, guardando algo no baú. Ela fechou de repente a tampa e se voltou para ele com um inconfundível rubor culpa nas bochechas. Tor viu o prato vazio junto à cama de Christina, e se fixou em restos de açúcar. O que estava fazendo? Acumulando figos para o inverno?

Eram bastante custosos. Mesmo assim, quando ele se deu conta de quanto gostava dos figos e as ameixas maduras, disse ao Rhuairi que comprasse mais para o Yule. Talvez assim conseguisse que ela sorrira. Gostava quando sorria.

—Viestes! —exclamou Christina, levantando-se de um salto e correndo para ele.

Por muito que gostasse de suas entusiasmadas boas vindas, teve a sensação de que tentava lhe distrair. Deu uma olhada à arca e de novo para ela.

—Incomodei-te?

Ela negou com a cabeça.

—Não, somente estava guardando uns objetos que terei que remendar.

Ele arqueou uma sobrancelha.

—Enquanto comia figos?

As bochechas de Christina avermelharam de um modo adorável, e ele sentiu uma onda familiar no peito. Levava a cabeleira azeviche solta e caída sobre o rosto como um denso véu de cetim. Sem se dar conta do que estava fazendo, adiantou-se e colocou com cuidado atrás da orelha. Algo que a tinha visto fazer muitas vezes.

Ela conteve a respiração e seus olhares se encontraram. Tor não soube qual dos dois ficou mais surpreso por aquele gesto. Foi como aquela vez em que lhe tinha beijado na cabeça. Por desgraça, nesta ocasião não estava adormecida.

Rapidamente baixou o braço e afastou o olhar.

Esses estranhos sentimentos por sua jovem esposa lhe desarmavam. Nunca tinha conhecido a ninguém como ela: doce, amável, considerada, e maldita seja, ansiosa por agradar. Tocava-lhe constantemente, roçava-lhe levemente o braço, fazia uma sutil carícia. Ninguém lhe havia tocado com tanta naturalidade desde que perdera a sua mãe. Havia algo nela que convidava à cercania.

Deveria estar na torre com a guarda de Bruce e não ali, a sós no aposento com ela, sem desejar mais que tomá-la em braços, abraçar sua suave pele nua contra ele e aspirar seu aroma fresco que era como ambrosia para um moribundo.

Tor entendia o anseio sexual. Mas esse desejo de estar perto dela não era certo, sobretudo quando atrapalhava suas obrigações. Estava se tornando brando, e, maldita seja, mais valia fazer algo.

Deu um passo atrás e ergueu as costas.

—Vim te desejar boa noite.

Christina ficou desolada.

—Não vai…

Tor fez caso omisso da punhalada no peito.

—Foi um dia muito longo.

Olhou-lhe como se tivesse pisoteado a seu cachorrinho favorito.

—OH - disse Christina, retorcendo as mãos—, é que…

Baixou os olhos para evitar seu olhar, mas ele viu o leve matiz de cor que adquiriram suas bochechas.

«É tão bela», pensou, e o peso que sentia no peito se estendeu a garganta. Às vezes lhe doía somente olhá-la. Sua doce vulnerabilidade lhe chamava de um modo que não tinha nunca experimentado. Levantou a mão para lhe acariciar a bochecha, mas imediatamente deixou cair.

Obrigou-se a desviar o olhar. Aquilo era uma loucura. Tinha que conter-se. Ela era uma distração que não podia permitir-se. Dispôs-se a dar boa noite, mas as palavras de Christina lhe deixaram gelado.

—Esperava que fizéssemos algo diferente esta noite.

Tor lhe lançou um olhar; seu corpo voltou para a vida imediatamente.

—Diferente? —disse com a voz tomada. Disse a si mesmo que não se referia ao que ele pensava. Não sabia quão provocadora soava. Ou sim? Tor tinha notado a luta que crescia no interior de Christina: sua apaixonada curiosidade natural brigava com uma modéstia de donzela profundamente arraigada. Sua inocente esposa era cada vez mais audaz. Que Deus lhe ajudasse se finalmente dava rédea solta a sua paixão.

Aproximou mais, o suficiente para que a madura redondez de seu seio lhe acariciasse o linho da camisa. As pontas eretas de seus mamilos lhe cravavam e esteve a ponto de perder o controle. Apoiou as mãos sobre o peito e moveu a cabeça para lhe olhar. A sensualidade daqueles exóticos olhos escuros não deixava dúvidas a respeito do que desejava.

O peso que Tor sentia na virilha se intensificou. Ardeu-lhe o sangue, enquanto inundava-se um suave aroma de feminilidade. Christina não tinha nem idéia do que o fazia. Como a desejava. Como o descarado desejo que sentia por ele o agradava.

—Perguntava-me se poderíamos…

Tor esperou. Seu coração pulsava desbocado sob a palma da mão de Christina. Se deu conta de que ela não sabia como dizer o que queria.

—O que é moça? —disse com voz bronca, incapaz de deixar de lhe acariciar a curva aveludada da bochecha. Sentiu um rasgo interior, como sempre que a acariciava.

—Diga o que quer.

—Perguntava-me se poderíamos tentar como…na primeira noite.

Ele ficou gelado. Mas o sangue circulava e palpitava em seu interior como uma fogueira. As correntes da cortesia nunca lhe tinham parecido tão escuras. Todos seus instintos animais se elevaram, como um leão disposto a fugir da jaula. Endureceu-lhe o membro, como uma rocha, ansioso…

Não podia estar lhe pedindo que…

Mas sim o fez. Sem deixar de lhe olhar aos olhos.

—por atrás…


Capítulo 15


Christina se ruborizou violentamente perguntando-se se não teria cometido um engano. Durante uns instantes de agonia ele não se moveu, não disse nenhuma palavra. Os músculos de seu corpo estavam tensos como a corda de um arco. No aposento ressonava um silêncio doloroso.

Não podia olhá-lo, humilhada por seu próprio atrevimento. No que teria estado pensando? O que devia pensar ele de sua desavergonhada petição? Esse devia ser o momento mais violento de toda sua vida.

—Sinto - murmurou dando um passo para trás para afastar-se dele—. Queria partir. Esquece…

Sentiu um calafrio ao ouvir o som gutural que emanou de sua garganta. Era o mesmo que ele tinha ouvido antes de…

Interrompeu-a bruscamente.

—Ao diabo - exclamou ele puxando-a até levá-la contra seu peito.

Christina afogou um grito; o contato imediato com seu corpo avivou todas suas terminações nervosas. Cravou o olhar em seu rosto e viu que sua expressão era mais fera que nunca. O tic da mandíbula tinha disparado, forte, rápido.

Inconscientemente, Christina tentou escapar, assustada do que tivesse podido desatar sem saber. Todo seu ser delatava que era um guerreiro aterrorizante, mais bárbaro que cavalheiro. E não a soltava. Seu olhar lacerante a apanhou em uma armadilha selvagem.

—Não vou a nenhuma parte. E você tampouco. Não depois de uma petição como esta. —Levantou-a no colo, e com ela nos braços subiu os degraus que conduziam à cama.

O coração de Christina começou a palpitar devido ao crescente nervosismo. Podia sentir a tensão aumentando nele, o desejo que lhe inspirava até cotas jamais imaginadas. Parecia um homem levado a extremo, a bordo de perder o controle. Aquilo era algo selvagem, perigoso e excitante, muito excitante.

Deitou-a sobre as mantas com uma suavidade surpreendente, dada a rudeza com que se despiu. Soltou a banda que levava sobre os ombros e tirou as botas e o cotun de couro reforçado.

Entretanto, quando se inclinou para apagar a vela de um sopro, Christina o deteve.

—Não, por favor. —Não queria que houvesse mais escuridão entre os dois—. Não a deixa acesa?

Seus olhos se cruzaram, e o olhar safira do guerreiro era sombria e penetrante. Não queria? Por quê?

Christina pensou que ia rechaçar sua petição, mas em troca se limitou a assentir.

—Como queira.

Tirou o leine e Christina ficou sem fôlego. Esse homem era divino! Espetacular em tudo, tal e como recordava. Um colosso de beleza e força masculinas. Cinzelado por uns músculos firmes e robustos. Seus ombros, de uma largura incrível; seus braços, grossos e definidos. Em seu abdômen apareciam marcadas umas ondas que pareciam de ferro. Por que estranha razão lhe via mais musculoso e espetacular sem a roupa e a armadura postas?

Christina não sabia onde colocar as mãos. Mas foi sua proeminente ereção a que, com um quente comichão entre as pernas, fez decidir-se. A atrevida manifestação do desejo masculino a excitou. Grossa e longa, a arredondada ponta, roliça e inchada. Brutalmente e inegavelmente masculina. Erguendo-se para seu ventre, crescendo sob o olhar insidioso e desavergonhada dela. A fina pele se esticou tanto que parecia brilhar como o mármore.

Nesse momento Christina soube exatamente onde desejava colocar as mãos.

—Cuidado, menina - a advertiu ele em tom sombrio, com uma voz perigosa e sedutora de uma vez—. Olhe-me assim e levará muito mais do que pretende.

Uma onda de prazer a invadiu ao dar-se conta de que sua admiração o excitava.

—Posso te tocar? —espetou-lhe, perguntando o que não se atrevera jamais.

Os músculos de seu abdômen se contraíram. Ele deixou cair as mãos aos flancos e assentiu.

—Sim.

Christina rodou para ficar-se de joelhos ante ele. Alongou uma mão titubeando e lhe roçou com os dedos os duros sulcos do ventre.

Tor soltou um suspiro, e seus músculos reagiram ante esse tato, suave como uma pluma. Christina mordeu o lábio para não sorrir, maravilhada pela capacidade de provocar uma reação como essa com o simples contato.

Com a mesma suavidade percorreu com o dedo a longa longitude de sua virilidade. Seus lábios se abriram de surpresa. A pele era muito suave. Como o veludo. E debaixo dela, a rígida coluna era do mesmo aço com que estava lavrado seu corpo.

Explorou a esse homem com os dedos, e logo, voltando-se mais atrevida, com a mão, rodeando-o, embora sem poder fechá-la de tudo ao redor.

Ele rugia a cada carícia, como se estivesse agonizando.

Christina o soltou e o olhou com ar dúbio.

—Estou fazendo algo mal?

Ele negou com a cabeça. Viu que os músculos de seu pescoço e de seus ombros se inchavam e ficavam tensos.

—Não, absolutamente… —conseguiu articular ele—. Segue fazendo o mesmo. —Pôs sua mão em cima da dela e lhe ensinou a tomá-lo. Olhou-a aos olhos, lhe mostrando a intensidade de seu desejo—. Ah… Assim, Tina, me acaricie.

Tina. Gostou. Era quase uma expressão de carinho.

Sustentando-lhe o olhar, fez o que lhe pedia. Algo ocorreu entre os dois. Algo que foi além da sensualidade erótica do momento e realçava cada carícia, cada movimento.

Christina observou que o prazer se apropriou de todos seus traços quando o agarrou com a mão e moveu esta de cima pra baixo, de baixo pra cima. Devagar ao princípio, e logo mais depressa, quando a paixão apareceu em seu belo rosto.

Uma estranha sensação de poder a embargou ao compreender que ela tinha a capacidade de lhe fazer isso. De levá-lo a alturas insondáveis. Aquilo devia ter algum significado especial, sem dúvida alguma.

Notou-o quente e pulsátil em contato com a palma de sua mão. Christina pôde sentir o batimento do coração no sangue, uma e outra vez, até que os batimentos do coração cobrou força. Afastou-lhe a mão com um grunhido. Uma gota perolada surgiu da ponta. Christina sentiu a necessidade de agachar-se para lambê-la. Para saborear a esse homem.

—Basta. Preciso estar dentro de ti.

Sua voz era tensa e premente. Nunca lhe tinha visto assim. Antes sua paixão tinha sido fera e intensa, mas controlada sempre. Nesse momento, entretanto, Christina sentia que esse controle ia cedendo, sentia que ele estava lutando contra algo interior. Algo que estava a ponto de deixar ir.

Outro empurrão mais. Possivelmente logo saltaria a barreira que havia entre os dois. O atrevimento tinha funcionado com antecedência. Esquecendo o pudor, Christina tirou a camisa pela cabeça e a deixou cair a um lado. Resistindo o impulso de tampar-se com os braços, ajoelhou-se diante dele, nua.

—Tome então.

*

Tor procurou agüentar, mas ia empurrando para o limite com seu inocente anseio. Oferecia-se. Nunca tinha conhecido a uma mulher que se oferecesse tanto.

Por atrás. Incrível. Nem sequer com a mais experimentada amante estava acostumado a recrear-se nesse prazer, e nem sequer se atreveu a imaginar que faria algo assim, apesar de seu primeiro encontro, com essa sua pequena mulher criada entre algodões. Embora essa mulher não deixasse de lhe surpreender.

Da petição ladina de que tomasse por atrás até a intensidade do erótico olhar que ela posou sobre seu membro e o prazer perfeito de masturbá-lo com sua doce e miúda mão, Tor esteve controlando-se. Esforçava-se para não jogá-la sobre a cama e lhe dar exatamente o que lhe pedia: a rudeza e guelra que lhe gostavam.

Entretanto, quando Christina tirou a camisa por cima revelando sua pele nívea e nua, perdeu o controle. Seu domínio se veio abaixo e ficou no chão, descuidado ao lado de seu vestido.

A lembrança de seu exuberante corpo o tinha enganado na escuridão, mas essa lembrança era incomparável vendo-a ao natural. Desfrutando de cada centímetro dessa gloriosa pele, suave como a de um recém-nascido, revelada a cálida luz das velas.

Espetacular. Sedutora. Mais bela que nenhuma outra mulher. Uma ninfa de cabelos longos e escuros que lhe caíam pelos ombros em divinas ondas enquanto seguia ajoelhada ante ele, com os seios tersos e exuberantes, coroados pelos mamilos mais suculentos que tivesse saboreado. Em contraste com a pálida brancura de sua pele, o delicado rosa parecia inclusive mais tentador e delicioso.

À luz das velas não pôde evitar contemplar a beleza de seu corpo, e em especial de seus olhos. Sustentavam-lhe o olhar, e não o permitiam desviar a deles. Escuros e luminosos, cheios de ternura e de uma emoção que ele não quis ver.

«Tome então.»

Se tinha pretendido deixá-lo louco de desejo, tinha conseguido. Pelos pregos de Cristo que tomaria. Por atrás, por cima, por baixo, de lado… De qualquer forma possível tomaria. Já.

Rodeando-a pela cintura com ambas as mãos, levantou-a da cama e a atraiu para seu peito, sobressaltando-se ao ser consciente da aguda faísca que saltou com o contato de suas peles ao roçar-se e seus corpos ao encaixar. Afundou o rosto em seu cabelo, faminto de seu sabor. Devorou com a boca, com a língua, a pele de seu pescoço, doce como o mel, enquanto deslizava as mãos por suas costas e sustentava nelas a arredondada curva de suas nádegas.

Grunhiu ao ver-se embargado de sensações conhecidas. Reconheceria a essa mulher estivesse onde estivesse. Tinha acreditado que a escuridão a faria parecer-se com as demais, mas tinha sido justo o contrário. A escuridão tinha potencializado o resto de seus sentidos, e tinha feito ser inclusive mais consciente de sua presença. O tato de sua pele, suave como o de um recém-nascido, a fragrância floral, o sabor de mel dessa mulher… Gravaram-se indelevelmente em sua memória.

Tor tinha se amparado na escuridão, escondia-se do que sabia que não poderia vencer. Entretanto, não tinha funcionado. Seus corpos se deslizaram juntos como se parecessem o um para o outro. Jamais havia sentido assim. Não pôde seguir lutando contra a paixão que existia entre os dois… Aquilo era muito forte.

Os quadris de Christina insistiam dando círculos ante ele, esfregando-se contra suas partes, duras como uma pedra. Um fogo pulsava em suas veias. Era fantástico. Era ideal. Adorava como ela se movia, vibrando, esfregando-se, abandonando-se a uma dança escura e cativante.

Sua lasciva reação tinha sido impressionante.

Tor deu a volta, sem separá-la de seu peito, e tomou um de seus exuberantes e curvos seios com uma mão enquanto que com a outra lhe acariciava o ventre e a afundava entre suas pernas.

Christina tremeu e deixou escapar um suspiro de prazer quando o dedo dele encontrou a sedosa umidade da excitação sexual. Deliciosamente molhada. Deslizou o dedo em seu interior avivando-a, dilatando-a. A respiração dela se acelerou, voltou-se irregular e se converteu em um suave lamento. Tor soube que se aproximava o momento.

—Me diga que quer isto - lhe ordenou, afundando o rosto em seu cabelo. Uma parte dele desejava que se negasse, desejava assustá-la para que fugisse.

Entretanto ela seguiu a aposta. Respondeu-lhe com seu corpo. Arqueou-se contra ele empurrando o peito contra sua mão e pressionando as nádegas com insistência contra seu membro turgente. Tor estava a ponto de explodir.

Não existia volta atrás. Para nenhum dos dois. Já não.

—Te agache — ordenou tentando controlar a luxúria que o possuía—. Ponha as mãos sobre a cama.

Christina fez o que Tor lhe indicava sem titubear, e colocou suas lindas e curvas nádegas no ângulo adequado. Ele roçou com a mão sua pele nívea e imaculada saboreando o instante de pura sensualidade. Que doçura… Resultava-lhe incrível que estivesse fazendo isso, com ela, com a jovem e inocente donzela que tinha desejado nada mais vê-la e que nunca tinha acreditado que teria.

Deslizou seu membro ereto entre as pernas dela brincando com a longitude, deslizando-se, adiante e atrás, por sua abertura, até umedecer-se com ela. E agarrando-a pelos quadris com ambas as mãos, colocou a sensível ponta e empurrou. Nublou-lhe a mente. Teve que fechar os olhos quando a intensidade o assaltou com uma fera sacudida. Afundou-se nela devagar, alongando esse incrível momento, essa sensação de prazer aniquilador.

Quente. Tenso. Bom.

Quando já não pôde mais, empurrou até o fundo. Christina gritou, surpreendida pelo prazer.

—Você gosta disto, doce Tina? —perguntou-lhe Tor incrustando-se nela—. É isto o que queria?

Tor voltou a empurrar atraindo para si seus quadris para afundar-se mais nela, para afundar-se no mais profundo.

—Sim - gemeu Christina levantando os quadris contra ele—. Por favor. Quero tudo.

Entre as brumas do desejo o sentido de suas palavras ressonou com maior profundidade. Tor sentiu que lhe cravavam com força no peito.

Deixou-se levar. Desatou sua paixão liberando a de suas ataduras, oferecendo a essa mulher tudo o que tinha. Deixando que visse exatamente quanto a desejava em toda sua primitiva ferocidade.

Christina se agarrou à cama enquanto ele arremetia contra ela uma e outra vez, e seus duros grunhidos se mesclaram com os suaves gritos dela em uma cacofonia de desejo e prazer.

Os sentidos esporearam seu corpo alojando-se na massa formigante e tórrida de seus lombares. Todos os músculos esticaram querendo relaxar-se.

Tor apertou a mandíbula concentrando-se nas sensações, no ato perverso de que estavam desfrutando. Seus olhos se desfrutavam com a visão sensual que se oferecia ante ele. O escuro cabelo de Christina esparramando-se pela pálida pele de suas esbeltas costas. O brilho do suor de Christina sobre sua pele enquanto ele a penetrava, entrando e saindo dela. As nádegas de Christina altas, para receber cada um de seus embates.

Tor contemplou o movimento de seus turgentes e grandes peitos ao ritmo de suas sacudidas, as pálidas aureolas rosas duras como duas pérolas. Acaso havia algo mais erótico que isso?

Suas fantasias se converteram em realidade. Se isso era o cume da paixão para ele… por que sentia como se faltasse algo? Acelerou o ritmo, tentando descobrir.

Ouviu que Christina tomava ar com força, e logo os tênues gritos enquanto se deixava ir, tremendo e agarrando-se a ele.

Tor ficou quieto. Um incompreensível ataque de raiva o sacudiu por dentro. Sentiu-se enganado. Tinham-lhe negado o prazer que mais queria: ver seu rosto.

Saiu dela. Ignorando a impressão do ar frio em contato com seu membro molhado, deu meia volta e a deitou de costas sobre o colchão até que ficou com as nádegas na borda da cama.

A visão de suas avermelhadas bochechas e suas pálpebras entrecerradas o enfureceu. Era como uma mofa do que se perdeu.

—O que acontece? —perguntou ela notando a mudança em Tor.

—Nada - respondeu ele entre dentes. Como homem, tinha uma missão. Queria que essa mulher voltasse a gozar. E nessa ocasião a contemplaria.

O que lhe acontecia? Estava mais descontrolado, zangado e excitado do que esteve em toda sua vida. Estava a ponto de explodir, tinha o corpo tenso pela paixão que ela tinha despertado nele. Mas necessitava mais. Maldita seja, precisava olhá-la aos olhos.

Colocou-se entre suas pernas, levantou-as e as levou a sua cintura. Agarrou-a pelas nádegas e a penetrou com força, grunhindo aliviado por voltar a encontrar-se envolto nesse fogo tenso e molhado.

Christina teve que agarrar a sua nuca para não perder o equilíbrio, dada a força de seu embate, e Tor pôde sentir o erótico comichão de seus mamilos contra o peito.

Seus rostos estavam a poucos centímetros. À luz das velas Tor viu tudo, cada traço em suas pupilas, cada matiz, cada rubor, seus lábios abertos e seu fôlego entrecortado.

Não podia afastar os olhos dela, enfeitiçado pelos sinais de prazer que descobria em seu rosto.

Quando Christina o olhou, ele já era incapaz de respirar. Tinha o peito tenso, cheio, era muito…

Era isso. Isso era o que ele tinha procurado inconscientemente.

O rubor tingiu as bochechas de Christina, e seu olhar foi cobrando intensidade enquanto seus lábios pugnavam por fechar-se.

O sangue pulsava nas veias de Tor. Podia sentir a pressão ao final da coluna vertebral, enroscando-se, aumentando a cada grito afogado que escapava dos doces lábios entreabertos dessa mulher.

Notou que lhe esticavam os testículo, uma pressão quente e poderosa acompanhando ao clímax que o devorava por dentro.

Entretanto, Tor resistiu, interpôs uma mão entre os dois e encontrou o ponto sensível dela com o dedo que lhe tinha introduzido até o fundo. Até que já não pôde mais.

Notou uma contração nas nádegas.

O corpo de Christina começou a tremer.

—Me olhe - exigiu ele com ferocidade. Ela abriu as pálpebras.

Seus olhos se cruzaram e o mundo se deteve. Durante um longo e único segundo quão único Tor viu foi Christina. Uma euforia como jamais tinha conhecido lhe embargou. Sentiu-se suspenso, como se tivesse saído de si mesmo e tivesse sido transportado ao topo mais alta da felicidade. E então teria saído voando, e o mundo teria explodido em um amontoado de sensações e de luz.

Estremeceram-se de uma vez, seus corpos tremeram sacudidos por um fluxo.

Tor a sustentou contra si, sentindo o frenético coração de Christina desbocando-se contra o seu, afundando o rosto na cálida seda de seu cabelo, inalando seu aroma terno e feminino.

Permaneceu nessa posição até muito depois de que terminassem: não desejava romper esse vínculo, não desejava partir, não desejava pensar.

Só quando sua respiração se acalmou e as pernas começaram a lhe tremer se separou. O calor que tinha unido seus corpos se esfriou com a corrente repentina do gélido ar da noite.

Ela afogou um grito de protesto e se aproximou dele. Instintivamente. Com uma confiança que o desarmou. Em um arrebatamento protetor, Tor tomou em seus braços, deitou-a na cama e se aninhou junto a ela. «Somente será um momento», disse. Para esquentá-la com seu corpo. Embora fosse ela quem lhe deu seu calor, quem lhe provocou uma sensação de satisfação que nunca tinha acreditado possível em um homem como ele. As responsabilidades de seu clã e a crueldade do campo de batalha lhe pareceram muito longínquas.

Afastou-lhe o cabelo do rosto e lhe acariciou a suave bochecha com o verso do dedo até que ela caiu em um sonho profundo.

Isso era diferente. Ela era diferente. Tinha acreditado que não era capaz de sentir emoções, mas essa mulher lhe tinha feito sentir. Havia tocado uma parte de si mesmo que levava muito tempo enterrada, e precaver-se disso o transtornou.

Sentiu como se estivesse liderando uma batalha perdida com um inimigo invisível e não estivesse seguro de como defender-se. Mas sim sabia uma coisa: estava intimamente ligado. E a intimidade não era para homens como ele. A emoção era uma debilidade que não podia permitir-se. Muitas pessoas contavam com ele.

«Mantem sob controle», disse-se. Aquilo não podia voltar a ocorrer.

*

Christina sumiu em um sonho reparador, segura nos braços de seu marido, com a certeza de que algo significativo acabava de acontecer. Um adiantamento decisivo, ao fim!

Nenhum homem podia olhar a uma mulher enquanto fazia o amor dessa maneira sem sentir algo por ela.

Entretanto, pareceu-lhe que acabava de fechar os olhos quando saiu da modorra causada pela saciedade ao notar que seu marido trocava de posição. Momentaneamente desorientada, rodou sobre o leito, abriu os olhos e viu a luz das velas. Ainda não era de dia.

Tor estava sentado na borda da cama, de costas para ela. Um muro de músculos e carne, mas tão efetivo atuando de barreira como a pedra. Tinha posto já o leine e parecia estar atando os cordões de couro cru de seus brogues25. Partia. Outra vez.

Christina se obrigou a não mostrar sua decepção, mas o desencanto aninhou em seu peito.

—Parte-te de novo -disse em um tom neutro.

Tor se voltou, olhando-a intensamente por cima do ombro.

—Volte a dormir, Christina.

Christina. Tina, não. De novo, as maneiras de dois estranhos. Um brilho de raiva se impôs à dor. Pelo que parecia, assim desejava Tor que fossem as coisas, salvo quando estavam na cama. Entretanto, por não querer adotar o papel da consorte exigente, Christina dissimulou sua raiva e tragou o orgulho.

—Eu gostaria que pudesse ficar.

Durante uns instantes Tor ficou completamente imóvel, e logo seguiu movendo-se, sem responder. O coração de Christina pulsava com força na escuridão. De verdade era tão insensível esse homem, ou simplesmente era obtuso? Acaso não entendia que ela desejava algo mais que jogar na cama?

Christina queria contribuir um pouco de doçura e calor a sua vida. Tor levava muito tempo sem que ninguém cuidasse dele. Mas estava pondo muito difícil por não dizer impossível.

Quando terminou, Tor se voltou para olhá-la. Nada em seus olhos azul gelo delatava a intimidade que acabaram de compartilhar. Voltou a encarnar ao homem de Estado. Era o temível e ousado senhor da guerra, o orgulhoso chefe do clã.

—Demorarei uns dias em retornar.

Para Christina lhe caiu a alma aos pés. A frieza de seu tom de voz a feriu. «Basta», disse a si mesma, mas lhe saltaram as lágrimas, umas lágrimas quentes que ameaçavam afogando-a. por que tinha que atuar desse modo? Tão difícil era lhe dedicar um olhar de ternura, uma palavra agradável a que ela pudesse aferrar-se? Por que tinha que mostrar-se sempre tão reservado? O grande chefe, o grande guerreiro… Mas e o homem?

—Aonde vai?

Tor apertou a mandíbula e torceu o gesto.

—Eu não gosto que me interroguem, Christina. Já te disse que tenho que atender uns assuntos do clã. Nada que tenha a ver contigo.

E era assim? Essa era a explicação que pretendia lhe dar? Christina sabia que desgostava que o apressassem, mas estava farta de tantos segredos. Incorporou-se e atirou do lençol para cobrir sua nudez. Apesar do gesto, os olhos de Tor se cravaram nela recreando-se durante uns instantes na curva turgidez de sua pele, que os lençóis deixavam visíveis. Entretanto, nesse momento o fogo de sua paixão a enfureceu. Ela queria mais. Agarrou-se com os punhos ao lençol.

—Nem sequer vais dizer-me aonde vai? Uma esposa não tem direito, que quando seu marido a abandona durante dias sem lhe dizer quando retornará, sem lhe dar nenhuma explicação?

—Não - respondeu ele com aspereza.

Christina viu com grande assombro essa fria determinação que fazia de Tor um chefe gabado e um guerreiro temido.

—Vê problemas onde não há - disse Tor como se tentasse acalmar a uma menina—. Não há nada que dizer.

A condescendência de seu tom lhe doeu. Ela era um brinquedo, indigna de maiores confidências. Tor decidiu que a conversa tinha terminado e se voltou para partir lhe dando as costas, umas costas duras, implacável. Doída, zangada e confusa, Christina não pôde evitar lhe espetar quase com um grito: —Também lady Janet vai?

Tor se deteve em seco, voltou-se devagar e cravou os olhos nela.

—Por que me pergunta isso?

Com as bochechas avermelhadas, como se não fosse digna do chão que pisava esse homem, Christina se esforçou por sustentar o olhar sem desfalecer na tentativa.

—Sei quem é - respondeu com atrevimento, e ergueu o queixo desafiando-o a que o negasse—. Não pude evitar me fixar que ela também está acostumada partir sempre que vais.

Tor entrecerrou os olhos. Não era que não fosse digna do chão que pisava esse homem, pensou ela, mas sim parecia um inseto esmagado por uma rocha. Um inseto parvo e amalucado, intrascendente.

—Está me acusando de algo, Christina? —Tor empregou um tom de voz grave e pausado, mas a ela não enganou. Estava furioso. Esse não era um tema que deveria expor uma esposa. Christina tinha que fazer caso omisso disse tipo de disposições. Fingir que não existiam. Fingir que não lhe importavam. Mas não era certo, e a idéia de que ele estivesse com outra mulher lhe partia o coração.

—Não estou te acusando de nada - retificou ela com a voz trêmula e com um nó na garganta da emoção—. Só uma observação.

—Fique tranqüila - respondeu ele passeando o olhar ao longo de todo seu corpo. O fulgor de seus olhos incinerou o fino lençol de linho que cobria sua nudez. Sua pele, traidora, acalorou-se ao notar, seus mamilos se endureceram e se esticaram protuberantes—. Colocar-me na cama de outra mulher ainda não me passou pela cabeça.

Ainda. Christina notou um peso no coração, notou que uma dolorosa flecha enfurecida lhe partia o coração em dois.

—No momento estou muito satisfeito neste terreno.

—Isso diz para me tranqüilizar?

Tor esboçou uma careta de desgosto.

—Não tenho por que te tranqüilizar.

Christina ficou sem fôlego. Tor acabava de pô-la em seu lugar, com determinação. Teria que ter imaginado. Não podia obrigá-lo a afirmar o que ela queria ouvir. Uma esposa não tinha nenhum direito a exigir fidelidade de seu marido. Se ele queria uma amante, teria, e ela não podia fazer nada a respeito. Não podia obrigá-lo a nada. Seus intuitos eram implacáveis. Quanto mais insistisse ela, com maior frieza e dureza resistiria Tor. Mas se ela não insistia, como ia romper as barreiras que a afastavam dele?

—Mas…

—Janet não é teu assunto. Nada de tudo isto é teu assunto. —Seu tom de voz, frio como o aço, feriu-a tão certeiramente como se tivesse empregado contra ela a folha da espada que empunhava com força bruta—. Fica à margem, Christina. Falo sério. —Seu olhar se abrandou um pouco—. Não quero te fazer dano, mas não tolerarei que te coloque onde não deve. Dedique-te a suas obrigações, deixa que eu dedique às minhas e tudo irá bem. Se te colocar onde não deve, somente nos conduzirá problemas entre os dois.

E com essa abominável advertência ressonando nos ouvidos de Christina, Tor deu meia volta e partiu.


Capítulo 16


Três dias depois Christina terminou de enxugar as lágrimas, embora seguisse mortificada pela dura maneira em que seu marido a tinha posto em seu lugar. A injustiça a indignava. Como pôde lhe falar com tanta rudeza? Quão único ela tinha feito desde sua chegada tinha sido tentar agradá-lo, inclusive recorrendo a desavergonhadas mutretas para satisfazê-lo na cama. Em um momento tinham compartilhado o que para ela tinha sido a experiência mais sensual de sua vida, com cenas de um erotismo e certa perversão que jamais teria imaginado. Nesses momentos sentiu que nunca tinha tido tanta intimidade com uma pessoa. No minuto seguinte, em troca, Tor a punha em seu lugar com absoluta determinação. Distanciando-se. Excluindo-a. Fazendo que se sentisse como uma fulana desavergonhada por tentar ganhar a esse homem com seu corpo.

Era paixão o único que lhe daria?

Isso parecia, sem dúvida alguma.

Ela tinha sonhado com muitas outras coisas. Se tão somente se abrisse um pouco, Christina sabia que seria maravilhoso. Tor se encontrava tão sozinho… Necessitava um pouco de calor em sua vida. Mas isso era como tentar cinzelar a pedra com uma agulha de osso, uma empreitada exaustiva, e condenada ao fracasso.

Ao Hades com ele! O arrebatamento de cólera a surpreendeu. Entretanto, se assim fossem ser as coisas, se a paixão era quão único ele estava disposto a lhe dar, aceitaria-o, e encontraria a maneira de procurar certa felicidade para si mesma.

E isso não incluía compartilhá-lo com lady Janet.

Apesar de sua advertência, Christina era incapaz de superá-lo. Tor a tinha tomado por uma garota tola e ciumenta, e tinha acertado, porque assim era exatamente como se sentia. Seus ciúmes não tinham cessado de aumentar desde dia em que ele se fora.

Que lady Janet também estivesse ausente não contribuía para melhorar a situação. Maldito Tor, o que outra coisa podia pensar?

Se não tivesse sido pelo irmão John, teria se tornado louca. O irmão John parecia desfrutar de sua companhia tanto como ela mesma, e juntos estavam acostumados a dar um passeio matutino ao redor do barmkin, se o tempo permitia. Quando, como esse dia, Rhuairi estava ocupado, Christina entrava nos aposentos do senhor enquanto o amanuense se dedicava a transcrever o que lhe parecia uma correspondência inacabável e a fazer contas. Apesar dos esforços de Christina, o senescal de seu marido se mostrava frio com ela, e em sua pessoa percebia algo que a incomodava. Tinha-lhe deixado muito claro que não acreditava que os aposentos particulares de seu marido fosse um lugar adequado para ela.

Se se inteirasse de que sabia ler, ficaria horrorizado. Apoiando-se nas leituras que tinha feito às escondidas, Christina era consciente de que não tinha a menor ideia da enorme quantidade de trabalho que representava ser chefe de um grande clã. Do mais cotidiano, como arrumar as goteiras do telhado de uma casa do povoado e arrecadar os impostos que financiassem suas vastas empresas, até o mais formal, como as jornadas legais para resolver os litígios entre os homens de seu clã ou para ditar sentença nos delitos mais graves, seu marido intervinha em tudo. Não era de admira-se que estivesse tão ocupado. Apesar de não podia evitar sentir-se orgulhosa, aquilo era muito para que o administrasse um só homem e isso tinha influenciado a decidir-se. Queria ajudar. Na vida existiam outras coisas além da guerra e o dever, e confiava em que ele pudesse compreendê-la algum dia.

Tinha esperado que seu marido confiasse nela por instinto, mas como não tinha sido assim, contentava-se aprendendo algo que pudesse saber dele.

Esteve tentada a confessar ao irmão John que sabia ler e escrever - lhe iria muito bem sua ajuda—, mas muitos documentos eram confidenciais e temeu que se ele se inteirasse, proibiria-lhe de voltar para os aposentos de seu senhor.

Por outro lado, queria dizer primeiro a seu marido. Esteve a ponto de fazê-lo na noite em que a surpreendeu comendo figos enquanto lia seu livro, mas, por alguma razão, não se decidira. Não porque pensasse que reagiria como seu pai, mas por ser um homem orgulhoso, ignorava se lhe incomodaria ter uma esposa mais culta que ele. De todos os modos, estava começando a perguntar-se se suas habilidades incomuns não poderiam lhe servir de ajuda. Possivelmente lhe seriam úteis para que a visse de modo diferente, como algo mais que uma mera companheira de cama.

O escrivão terminou seu relato e Christina riu de sua absurda descrição.

—Estou segura de que não deve ser para tanto - disse ela em tom amável, lhe estendendo a pluma que acabava de afiar.

—Asseguro-lhe que foi pior - disse ele, aceitando-a com um gesto de agradecimento—. Estava tão assustado que saí correndo do dormitório sem levar nada em cima. Quando o tutor abriu a porta na manhã seguinte, digamos que a cena não lhe pareceu divertida.

—Os outros meninos tiveram problemas?

O escrivão pareceu ofender-se.

—Claro que não. Jurei que enquanto caminhava em sonhos a porta se fechou a minhas costas. O tutor me disse que a partir de então dormisse com a camisola posta, se por acaso voltasse a ocorrer sair caminhando.

—Um gesto muito generoso por sua parte. Esses meninos foram muito cruéis ao despertar enquanto dormias.

O irmão John desviou o olhar para o papel de vitela com o que estava trabalhando.

—Generoso, não - reconheceu incômodo—. Covarde. Tive medo do que poderiam me fazer esses meninos, se contasse. —Torceu o gesto—. Embora meu silêncio tampouco lhes importassem muito.

Christina tinha piedade dele com todo seu coração. Ela também conhecia a vergonha da covardia. A vergonha de ver-se obrigada a enfrentar à própria impotência ante um inimigo muito mais forte. O irmão John e ela tinham muito em comum.

Pôs sua mão em cima da dele e a estreitou a modo de consolo.

—Às vezes sobreviver é o mais valente do mundo. —Uma fria sombra cruzou a suas costas e sentiu calafrios. Voltou-se, mas não havia ninguém.

Ele contemplou sua mão durante longo momento. Quando Christina começou a entrever o irrefletido de seu gesto, o escrivão lhe dedicou um sorriso irônico.

—Sabias que a princípio não quis entrar para a Igreja?

—Ah, não? —respondeu ela retirando a mão.

O irmão John sacudiu a cabeça.

—Tinha três irmãos mais velhos.

Ela assentiu dando a entender que o compreendia. A um quarto filho não estava acostumado a ficar grande coisa.

—O que queria ser?

Ele a olhou com ar inseguro.

—Um grande cavalheiro - confessou ele com cor às bochechas—. Como Lancelot.

Christina abriu uns olhos como pratos.

—Conhecem o Chrétien?

—eu adoro suas histórias.

Um amplo sorriso se desenhou no rosto de Christina.

—A mim também.

Voltaram a rir, e passaram a hora seguinte obsequiando-se mutuamente com as façanhas do magnífico cavalheiro de Arthur. Somente pararam quando ela se deu conta de que nem tinham tomado o desjejum.

Christina retornou a seus aposentos para refrescar-se e logo se encaminhou sozinha para o grande salão. Agradeceu que ninguém tivesse sido testemunha de seu assombro. Sabia que o irmão John se compadecia dela porque seu marido a ignorava, e não teria podido ocultar o tumulto de emoções que a embargava.

No outro extremo do salão, perto da entrada principal, viu lady Janet rodeada de um grande séquito de varões. O alívio que sentiu ao comprovar que a mulher tinha retornado sozinha foi breve. Quando o grupo se moveu, reconheceu a formidável figura de seu marido. O coração lhe deu um tombo como estava acostumado a ocorrer ao vê-lo. Inconscientemente deu um passo à frente. Acaso acabava de retornar?

E então se deteve em seco. Parecia mas a ponto de partir, recém banhado e vestido com um leine limpo que ela havia cerzido fazia tão somente um dia.

Caiu-lhe a alma aos pés quando se deu conta de que Tor tinha retornado na noite anterior e nem sequer o havia dito.

E tinha toda a intenção de voltar a partir sem despedir-se dela.

Nublaram-lhe os olhos, não só de pena, mas também de raiva. Sem lhe importar o que pensassem, decidiu apresentar-se com passo firme ante ele para lhe exigir uma explicação, e então a preciosa loira amazona apoiou a mão sobre o braço de seu marido.

Tor posou a sua em cima da dela. Não foi o contato, a não ser o olhar que lhe dirigiu o que partiu o coração de Christina como se tivessem empregado contra ela uma faca dentada. Suave. Carinhosa. Esse gesto de afeto que ela levava semanas procurando e que agora ele brindava sem esforço algum a outra mulher.

Sentiu uma dor insuportável. Experimentou um peso tão grande no peito que lhe custou respirar.

Contemplou como ele partia, de pé, como uma parva sem recursos, aniquilada. Por isso não lhe escapou o olhar de desejo que lady Janet lhe dedicou ao partir. Um desejo parecido ao dele. A corrente de empatia não sentou muito bem a Christina dadas as circunstâncias. Se tinha albergado alguma dúvida, esta se dissipou: a relação não tinha terminado… ao menos para um dos dois.

Perdido o apetite, Christina deu um passo atrás com a intenção de retornar a seus aposentos. De sair correndo. Não. Deteve-se, concedendo uns instantes para recuperar-se. Não sairia correndo com o rabo entre as pernas. Essa vez, não. Não ia deixar que outra mulher tivesse a seu marido. Sabia que existia paixão entre os dois, e embora isso fora quão único recebesse de Tor, não renunciaria a ele sem brigar.

«O que tem ela que eu não tenha?»

Tomando fôlego para encarar uma batalha, Christina entrou no grande salão e tomou assento à cabeceira da mesa.

Forçando um encantador sorriso, Christina desempenhou o papel da graciosa senhora do castelo sem deixar que adivinhassem que lhe tinham destroçado o coração.

Foi consciente da presença da outra mulher durante todo o almoço, mas lady Janet parecia ignorar sua existência. Quando Christina percebeu que a dama se levantava para partir, expôs sua jogada. O brilho de ciúmes que advertiu nos olhos da outra mulher enquanto se aproximava dela contribuiu grandemente a reforçar sua confiança. Ambas se entenderam à perfeição.

—Lady Janet… —Aludida ela lhe fez a reverência obrigada—. Permite-me um momento?

—Claro, minha senhora. —Seu tom diferente não ocultava o fato de que teria preferido o contrário.

Christina respirou fundo e se obrigou a olhá-la aos olhos.

—Como a festa do Yule será dentro de umas semanas, estava pensando em pendurar os ramos esta tarde. Sei que vive aqui há anos e esperava que pudessem me ajudar a colocar. Meu marido valoriza muito sua amizade, e eu gostaria que nos conhecêssemos melhor.

Christina tinha decidido dar morte ao inimigo recorrendo à amabilidade. Seria mais difícil para lady Janet manter uma relação com seu marido se ambas fossem amigas.

Funcionou. Tinha tomado lady Janet com surpresa; era óbvio que o amistoso oferecimento a tinha confundido. Seus formosos olhos azuis olharam para a lonjura, incômodos.

—Sinto muito, minha senhora. Não posso. Hoje não. Tenho que me dedicar a um assunto.

Christina entrelaçou as mãos até que seus nódulos embranqueceram. Seu orgulho começava a tornar-se desumano, mas se obrigou a manter a calma.

—Esse assunto tem a ver com meu marido?

Se tivessem feito esta pergunta a Cristina, lhe teriam avermelhado as bochechas. A expressão serena e a tez pálida de lady Janet, entretanto, não delataram emoção alguma. Esteve contemplando a Christina durante um momento, até que esta sentiu um violento rubor nas bochechas.

—Sois muito jovem - disse lady Janet como se acabasse de precaver-se desse detalhe.

Humilhada, Christina sentiu na calada segurança dessa mulher os anos que as distanciavam. O que tinha lady Janet que não tivesse ela? Uma experiência e uma maturidade com as que Christina não podia competir.

Pensou que era impossível sentir-se pior. Mas se equivocava.

Lady Janet mudou de expressão. Estava claro que compreendia a dor que se ocultava atrás da pergunta de Christina.

—Tor… —Lady Janet se interrompeu—. O RI tuath tem que fazer frente a muitas responsabilidades.

E lady Janet sabia quais eram. Christina se sentiu muito desgraçada. Tor tinha crédito em sua amante, mas não em sua esposa.

Lady Janet parecia sopesar suas palavras com supremo cuidado.

—Todos colaboramos na medida do possível. Não devem te preocupar com nada.

Acaso era possível viver uma situação mais humilhante? Agora a antiga amante de seu marido tinha piedade dela.

Tragando o orgulho como pôde, Christina se obrigou a esboçar um sorriso despreocupado. Se lhe saiu tremente, a outra mulher atuou com a elegância suficiente para fingir que não se deu conta.

—Possivelmente em outra ocasião. —Lady Janet inclinou a cabeça, e se voltou. Christina a viu partir, e fez provisão de todas suas forças para não tornar a chorar.

*

Tor levantou a espada por cima da cabeça de seu rival e a brandiu em cima de seu grosso capacete.

MacSorley, que o diabo o levasse! Limitou-se a sorrir.

—Cuidado, capitão - exclamou MacSorley querendo pô-lo em evidência—, ou acabarei acreditando que em realidade quer me arrancar a cabeça com isso.

A cabeça, não, mas o maldito sorriso de sabichão, sim. Tor apertou a mandíbula e voltou a balançar a espada. Seu ataque foi brutal, excessivo, um ataque ao que poucos homens poderiam fazer frente. O descomunal escandinavo possivelmente não sabia manter a boca fechada, mas sim sabia dirigir a espada. Todos e cada um desses homens eram espadachins de primeira, e nesse nível a diferença entre a vitória e a derrota só dependia de leves matizes técnicos.

MacSorley interceptou o golpe, embora necessitasse ambas mãos para isso. O entrechocar do aço reverberou na atmosfera cinza e invernal. Tor pressionou com a espada até que seus rostos ficaram a poucos centímetros de distância.

—Não têm bastante ainda?

MacSorley seguia esboçando um sorriso que mais parecia uma careta. Sacudiu a cabeça.

—Ainda não. —Falou com voz tensa, com cada um dos músculos rígidos pelo esforço de impedir que a espada de Tor lhe partisse em dois. Empurrou a sua vez e, em precário equilíbrio, cedeu o justo para desembaraçar-se da espada de Tor—. Estou me divertindo muito.

Tor soltou uma maldição reconhecendo que deveria haver antecipado seu movimento. Mas estava muito enfurecido para pensar com frieza. Em uma batalha, a falta de concentração podia matá-lo. Pior ainda, MacSorley sabia e estava explorando isso em benefício próprio, provocando-o para que perdesse a concentração. Em geral Tor era imune a essas táticas, mas o tinham posto contra as cordas, e os homens sabiam.

Tor não tinha perdido um só combate fazia mais de dez anos, e passariam outros dez mais sem que tivesse que ouvir presumir MacSorley de sua vitória. Afastou qualquer outro pensamento de sua mente negando-se a considerar a inquietante energia que ia formando-se em seu interior, alcançando a ebulição, como um vulcão a ponto de explodir. Negando-se a recordar a risada de sua mulher, que tinha ouvido ao cruzar suas dependências pessoais nessa mesma manhã. Negando-se a rememorar a ternura com que ela tinha apoiado a mão na do escrivão, ou no cômodo que os via os dois juntos. Um escrivão, Por Deus! Durante um instante de loucura quis dar um murro a esse rosto infantil de coroinha.

MacSorley dava voltas em círculo, com a espada suspensa no ar para repelir outro ataque.

—Espero que sua mulher não demore em lhe perdoar… pelo bem de todos.

Tor torceu o rosto em uma careta irada.

—De que demônios estas falando?

Detrás do elmo de aço que lhe cobria o nariz, MacSorley sorriu, regozijando-se.

—Lhe vê um pouco mais… tenso do que o acostumado depois de ter voltado do castelo. Parece razoável deduzir que este maravilhoso estado de ânimo deve ter algo a ver com essa bela mulher. E como imagino que a doce moça não é capaz de matar a uma mosca, suponho que a culpa deve ser sua.

Tor controlou a raiva… com muita dificuldade. Entretanto o mero feito de ouvir outro homem falando da beleza de sua mulher o enfureceu. Estava perdendo o controle.

As tentativas de consumir-se no trabalho, e de sobrecarregar seus homens, não estavam funcionando. Tor não podia esquecer o rosto que tinha posto Christina quando partiu. Não estava acostumado a ver-se pressionado nem interrogado, e tinha reagido mau. Com rudeza. Dizendo-lhe sinceramente o que ela não queria ouvir. Apesar da sutileza as boas palavras não ficaram familiares, se queria desfrutar de certa tranqüilidade mental, teria que tentar. Christina conseguia influir nele como ninguém.

Estar distraído era mau. Que os homens tivessem reparado nisso, e adivinhado a razão, era pior. Voltou a atacar, centrando agora sua atenção na tarefa presente: MacSorley lhe tocando o nariz.

O viking fazia frente a seus golpes, mas Tor pôde ver que começava a cansar-se. Cheirou a vitória. Possivelmente também a cheirou MacSorley, porque este fez um nova tentativa.

—Se uma mulher como essa me esquentasse o leito, passaria poucas noites metido entre este frio montão de rochas. Já eu gostaria ocupar seu lugar…

Tor perdeu o controle. Nublou-lhe a mente. Um bombeamento selvagem ressonou em seus ouvidos. E teve a esse canalha jogado de costas, com a folha da espada ao pescoço, antes que este pudesse acabar de falar. Finalmente o sorriso desafiante lhe tinha apagado do rosto.

O sangue pulsava com força pelas veias de Tor. Depois de muitos anos de batalhas, a necessidade de matar se tornou instintiva. Os dois homens se olharam, soprando, ambos os conscientes da vontade que tinha Tor de afundar essa espada na garganta do MacSorley. Este tinha provocado à fera muitas vezes. Todos os músculos do corpo de Tor tremeram enquanto este com muita dificuldade tentava conter-se.

Esforçou-se por recuperar o controle e, pouco a pouco, conseguiu. A prudência emergiu da loucura. Seus lábios se franziram em uma linha dura e implacável.

—Têm algo mais que dizer?

Para ser um homem a ponto de morrer, MacSorley parecia curiosamente desconcertado. Arqueou uma sobrancelha, mas a seguir esboçou uma careta como se inclusive o mais insignificante dos movimentos fosse doloroso. Esfregando a nuca, disse: —Vejo que estivestes praticando com o Boyd. —Entrecerrou os olhos para proteger-se da luz do sol—. Bheithir, verdade? —perguntou referindo-se à inscrição da espada de Tor. As inscrições serviam para acrescentar o poder de uma espada—. Nunca tinha me aproximado tanto para poder lê-la. Mas «relâmpago» é uma palavra apropriada. Sinto como se me tivesse caído um em cima.

Tor ficou absolutamente quieto, como se ainda não tivesse decidido qual ia ser a sorte de MacSorley. Depois de uma interminável pausa, pressionou um pouco mais a ponta de sua espada sustentando o olhar do outro homem.

—Um dia destes essa lábia que têm será sua perdição.

MacSorley sorriu… com inquietação, dada sua situação.

—Não duvido.

Tor afastou sua espada e lhe estendeu a mão. MacSorley se agarrou a seu braço e Tor o ajudou a ficar em pé.

O incidente o tinha transtornado. Esteve a ponto de matar a um homem ao que considerava um amigo por uma futilidade, por uma brincadeira procaz que tinha ouvido centenas de vezes durante as longas noites transcorridas ao redor das fogueiras dos acampamentos.

Um punhado de homens tinha terminado seus exercícios e se congregaram ao redor para observar a luta. Pela expressão de suas caras era óbvio que tinham visto o suficiente para saber que o guerreiro com fama de ter gelo nas veias tinha perdido seu sangue-frio. E também era óbvio que não sabiam exatamente como interpretar aquilo.

E ele tampouco.

Cruzando os braços, olhou-os com olhos inexpressivos.

—Bem, quem quer ser o seguinte?

Depois de uns momentos de absoluto silêncio, MacSorley se pôs a rir.

—Está brincando, senhores.

Alguns homens sorriram titubeando. E liberando ainda mais a tensão, MacSorley respirou fundo.

—Se não me equivocar, nossa bela cozinheira nos está preparando um guisado de boi. E, por agora, penso regá-lo bem regado.

A proposta do MacSorley foi a desculpa que todos necessitavam, e os homens se encaminharam por volta da broch26 para almoçar. Tor se deu conta de que o viking paquerava com Janet, e embora soubesse que essa mulher sabia cuidar de si mesmo, advertiu-lhe que não seguisse por aí.

—Deixem à dama tranqüila por hoje.

MacSorley franziu o cenho e o olhou, admirado.

—Pensei… —Pigarreou—. Não me tinha dado conta de que a dama ainda lhe pertence. Não queria lhe ofender. Somente estava tonteando, e isso não faz mal a ninguém.

Tor o olhou com ar sério. MacSorley tinha chegado à mesma conclusão que Christina.

—A dama não me pertence; Janet é livre de fazer o que quiser — Tor recordou que esteve falando com a Janet no salão nessa mesma manhã. Havia-lhe dito que tomasse o dia livre, mas ela tinha insistido em ir com eles.

«Ajudará-me a deixar de pensar nisso», havia lhe dito ela.

—Hoje é um dia complicado - explicou Tor—. Faz cinco anos mataram ao marido de Janet.

—Ah… compreendo.

Foram caminhar para a broch quando Tor se deu conta de que Campbell não se movera. Parecia fixar seus sentidos em alguma coisa. Observando-o, Tor sentiu que um calafrio lhe percorria o corpo. Apesar de sua utilidade, custava habituar-se à estranha faculdade do Campbell para perceber coisas.

—O que ocorre? —perguntou-lhe.

Campbell o olhou aos olhos.

—Vigiam-nos.

*

Encarapitada ao alto de uma árvore, Christina se deslocou no ramo contíguo para tentar obter uma melhor perspectiva da ampla extensão de pardusco páramo que a separava da antiga broch, situada a várias centenas de metros. Teria preferido aproximar-se mais, mas não queria arriscar-se a que a descobrissem e se viu obrigada a esconder-se no bosque.

Quando tomou a precipitada decisão de seguir lady Janet ignorava o que lhe esperava, mas absolutamente teria imaginado algo assim. Em lugar de uma secreta ramagem onde dizer palavras de amor, Christina tinha tropeçado com uma espécie de campo de treinamento.

Teria que ter se sentido aliviada. Os temores que albergava sobre seu marido e lady Janet esfumaçaram. E embora ao princípio sentisse alívio, à medida que observava, mais segura estava de que algo estranho acontecia.

A maioria dos guerreiros levava posta sua indumentária de combate ao estilo das Highlands, em lugar de ir com a cota de malha. Vestia a casaca de couro tachonada de metal, o leine e o terrível elmo de aço, com uma proteção nasal, de aparência escandinava, que ocultava quase todo o rosto. Entretanto, havia um homem que levava uma cota de malha, um tabardo e um elmo de aço mais comum, com viseira. Christina franziu o cenho. A cimera em forma de dragão lhe era familiar.

Acostumou-se a ver-se rodeada de homens altos e musculosos, mas inclusive para os habitantes das ilhas esse grupo parecia… extremo. Agora bem, apesar dos elmos e da grande abundância de espécimes masculinos de primeira, distinguiu a seu marido no ato. Não o delatava tão somente o nobre porte, a não ser a autoridade e o mando que emanavam dele.

Vendo os homens concentrados em distintas disciplinas, da prática com arco até o lançamento de flechas e pedras e a escalada com cordas ao alto da broch, Christina teve a sensação de que ali passava algo estranho. Esses guerreiros não eram comuns.

Durante o lançamento de pedras, um dos homens levantou por cima de sua cabeça uma rocha enorme que devia pesar centenas de quilos como se estivesse oca. Tor havia tentado levantá-la do chão. Outros guerreiros puseram-se a rir a gargalhadas, mas seu marido não pareceu se importar e se uniu às gargalhadas.

Tor estava claramente ao mando, mas em cada disciplina era um homem diferente o que dirigia a atividade. Se deu conta já durante a prática com arco, quando o homem que destacava por cima de outros se adiantou à frente e ficou a dar ordens.

Levava observando uma hora aproximadamente quando os homens começaram a congregar-se em grupos mais reduzidos. Notou uma pontada de fome e pensou que possivelmente tinha chegado o momento de retornar. Não havia um grande trecho até o povoado, mas o terreno era bastante impraticável, sobre tudo devido à umidade.

Entretanto, ao ver que Tor se levava a mão à costas e desencapava a espada, decidiu ficar um momento mais.

O combate começou de uma maneira bastante civilizada, tudo o civilizado que permitiam duas pesadas folhas de aço, afiadas como navalhas, chocando entre si. Era brutal, mas não parecia com vida ou morte, como a luta que Christina tinha presenciado entre ele e MacRuairi, e embora seu coração seguisse pulsando depressa, pôde contemplá-lo sem ter a sensação de fraquejar as pernas.

Era quase como uma dança: os dois homens, por turnos, atacavam com a espada que empunhavam com ambas as mãos e rechaçavam a do contrário. Christina aguçou o olhar pensando que seu competidor era vagamente familiar. Entretanto, com o elmo de aço posto, não podia lhe distinguir o rosto.

Ao cabo de uns minutos notou que o coração lhe acelerava. O intercâmbio de golpes se voltou mais intenso, o som do aço ao entrechocar-se aumentou sua bravura. De repente, o exercício não lhe pareceu tão amistoso. Caiu para frente, e teve que agarrar-se bem ao recordar que estava encarapitada a um ramo.

Afogou um grito e piscou. Com um movimento suave, Tor rodeou com a sua a perna do competidor, agarrou o braço que se abatia sobre ele ameaçando golpeando-o e volteou ao contrário até tombá-lo de costas.

Em um suspiro, Tor apontava com a folha da espada ao pescoço do outro homem. Durante uns instantes terríveis pensou que ia atravessá-lo com a espada. Como da outra vez. E como daquela vez, deixou escapar um leve som involuntário. Nesta ocasião, por sorte, ele não a ouviu.

Christina suspirou aliviada quando Tor estendeu a mão a seu competidor para ajudá-lo a ficar em pé.

Com o olhar cravado na cena que se desdobrava no pátio de armas, tinha-lhe passado por cima que alguns homens se congregaram ao redor para observá-los também.

E então os viu.

Tapou a boca para afogar uma exclamação de surpresa. Os guerreiros tiraram os elmos, mas apesar da distância, descobriu a identidade de dois deles. Deveria ter reconhecido antes Lachlan MacRuairi, embora só fora por seu jeito leve e indolente. E se não tivesse sido bastante desconcertante ter reconhecido ao inimigo mais reputado de seu marido, mais difícil ainda ficava explicar a presença de um inglês no acampamento. Tinha coincidido com sir Alex em uma ocasião, anos antes que encarcerassem a seu pai, mas dificilmente uma jovenzinha podia esquecer ao atrativo e jovem senhor. Por que seu marido estava treinando a um dos cavalheiros de Eduardo?

O homem que esteve lutando com o Tor tirou o elmo. MacSorley. Deveria ter adivinhado. Quase tinha esquecido que o escudeiro de MacDonald, seguindo as ordens de Tor, tinha embarcado atrás de Beatrix sem pigarrear.

Seu olhar pousou em outro homem e demorou uns segundos em recuperar o fôlego. Deus misericordioso, que rosto! Encarnava a perfeição masculina, era um bronzeado Apolo de cabelos dourados como o caramelo e uns rasgos cinzelados pela divindade, o homem mais belo que tinha visto jamais. Parecia digno de figurar em um pedestal.

Os homens começaram a passar para a broch e Christina supôs que faziam uma pausa para almoçar. Tor se entreteve um momento falando com o MacSorley e outro homem.

O que estava passando ali?

A advertência de seu marido lhe veio à memória. Seriam esses os problemas que lhe tinha mencionado? Christina mordeu o lábio repensando a decisão de ter seguido lady Janet.

Possivelmente não tinha sido uma boa idéia. Tinha pensado que ele se zangaria, mas em seu momento não tinha dado importância. Se lhe agradar não tinha funcionado, acaso tinha algo que perder?

«Não saia do castelo desprotegida», havia lhe dito, recordou ela mordendo o lábio. Muito tarde para pensar em promessas.

Ansiosa de repente por retornar ao castelo, aventurou-se a olhar para o pátio e viu que outros homens tinham entrado na fortificação. Suspirou aliviada e se dispôs a descer da árvore. A descida era fácil. Saltou para salvar os últimos metros e aterrissou brandamente sobre o terreno enlameado e coberto de folhas.

Franziu o nariz e desejou ter calçado um par de velhas botas resistentes. As sapatilhas de fino couro não eram feitas para passear pela escarpada paisagem das Highlands no inverno; nem no verão, de fato.

Voltou sobre seus passos sorteando as árvores e sentindo-se melhor agora que sua aventura tinha terminado. Embora ignorasse todas as respostas, ao menos sabia que seu marido não partiu para reunir-se com outra mulher. E se ninguém se precavera de sua ausência, como supunha, ele nunca se inteiraria de sua inocente excursão.

Enquanto se orientava entre as árvores, Christina sentiu certo desgosto. Um desgosto que atribuiu à fantasmagórica quietude do bosque. Acelerou o passo e quando estava a ponto de cruzar os limites do bosque, de repente, sentiu que um calafrio lhe percorria as costas. Alguém estava…

Sem lhe dar tempo a girar, agarraram-na por atrás, e Christina se viu apertada contra um peito duro como uma pedra.

Um pânico atroz a paralisou. Ia gritar, mas o atacante lhe tampou a boca com a mão e sussurrou ao ouvido:

—Não te aconselho isso, esposa minha. E ainda menos tendo as mãos tão perto deste teu formoso pescoço.

A Christina deu um tombo no coração. Fria e dura como o aço, a voz de Tor tinha divulgado desumana. O possível alívio que tivera ao descobrir que o homem que a agarrava era seu marido se esfumou ante a aterrorizante perspectiva de ser vítima de sua cólera.

Nunca tinha enfrentado ao guerreiro que semeava o pânico nas Terras Altas, mas soube que isso ia mudar.

*

O estupor de Tor ao descobrir que era sua esposa quem lhe espiava cedeu passo a uma raiva cega.

Desconcerto. Medo. A possibilidade de uma traição. Um amontoado de emoções díspares, de sentimentos desencontrados, confundiu-se em uma voragem que, como uma corrente, clamava por abrir passo. Cada palmo de seu corpo acusava a pressão. Ouvia fluir o sangue em suas veias, sentia fogo na pele e os batimentos de seu coração lhe retumbavam nos ouvidos. Somente a suavidade desse corpo pressionado contra o seu e a certeza de que poderia esmagá-lo sem dificuldade alguma o reteve.

Tor cruzou o olhar com o Campbell e viu que este sacudia a cabeça. Ao menos Christina estava sozinha. Assentindo com brutalidade, ordenou em silencio a seus homens que partissem.

Depois de terem partido, Tor deu a volta a sua mulher e, sustentando-a pelos ombros, obrigou-se a respirar fundo. Olhou fixamente seus olhos negros tentando ignorar o remorso que sentiu ao ver em sua boca o branco rastro de sua mão e o temor em seu surpreendido olhar.

Devia estar assustada. Muito assustada.

—Vale mais que tenha uma boa desculpa por estar me espiando.

Christina abriu os olhos de par em par.

—Não te estava espiando. Como é possível que pense algo assim?

Tor não queria pensar mas… maldição, tampouco podia ignorar essa possibilidade.

—Possivelmente porque tenho descoberto que estava escondida me observando no alto de uma árvore. Ou porque me seguiste. Ou porque te deixei muito claro que não te metesse em assuntos que não lhe concernem. —Tor endureceu o rosto e aguçou o olhar—. Ou possivelmente porque lembra a traição que uniu a nos dois.

Christina se sobressaltou como se a tivesse golpeado. Tentou escapar, mas ele não o permitiu. Ao contrário, Tor se aproximou ainda mais a ela, obrigando-a a olhá-lo aos olhos.

—Alguém te pediu que me seguisse, Christina?

Apesar da clara ameaça, ela ergueu com altivez a cabeça. Seu marido media um metro noventa e pesava o dobro que ela, tinha matado a centenas de homens no campo de batalha e era um dos guerreiros mais temidos da região, mas ante esse comentário, Christina o olhou como se fosse um inseto insignificante.

—Claro que não. Nunca te trairia. —Sua voz e sua expressão delatavam que estava dizendo a verdade—. Esperava que, a estas alturas, à margem de como começou nosso matrimônio, confiaria em mim.

Tor confiava em pouca gente, e mesmo assim, nunca de tudo. A confiança matava.

—Se não esta espiando por conta de ninguém, me explique como terminaste sozinha e encarapitada a uma árvore.

Christina se mordeu o lábio inferior e um rubor apareceu em suas pálidas bochechas.

—Tinha ido ao povoado a procurar uns pasteizinhos de mel na loja do Cook para dar uma surpresa ao Iain, que está doente…, são seus favoritos, sabe? —Tor não sabia—. Vi lady Janet e decidi segui-la.

Christina viu que lhe pulsava a têmpora. Atuava como se quão único tivesse feito fora sair a um agradável passeio pelo campo em lugar de ignorar as instruções que lhe tinha dado. Tor deu outro passo para ela, com os punhos fechados, esforçando-se por recuperar a paciência.

—Tenho que entender que a razão de que te tenha encontrado aqui é que em um ataque de ciúmes decidiste seguir à mulher com a que acreditava que me deitava, apesar de te haver dito que não me deito com ela, e saíste a campo aberto… sozinha? —A voz lhe tremia da ira. Quando pensava no que teria podido lhe acontecer… estava a ponto de perder a cabeça—. Por todos os Santos, sabe o perigo que correste? —Várias possibilidades cruzaram sua mente, incluindo uma imagem dela com esse mesmo vestido rasgado—. Prometeu-me que não sairia do castelo sem uma guarda.

Tor a empurrou contra uma árvore, e como Christina foi incapaz de retroceder ante essa presença que se abatia sobre ela, inclinou a cabeça a modo de desculpa.

Tinha-a muito perto. Podia cheirar seu perfume doce e floral, e isso lhe enfureceu mais. Sempre tinha que cheirar tão bem essa mulher? Punha a prova sua capacidade de controle com tanta crueldade que ia ficar louco.

—Diz como se fosse uma tolice, mas o que queria que pensasse? Vai durante vários dias sem me dizer aonde, mas é óbvio que sim confia em sua amante.

Porque estava tentando protegê-la, maldição. Não queria que se mesclasse em nada de tudo aquilo. Gelava-lhe o sangue de pensar no perigo que corria só por conhecer a existência da guarda de Bruce. Isso era traição, e o fato de que fosse uma mulher não deteria a Eduardo da Inglaterra.

—Janet cozinha para nós, isso é tudo. O pedi, e ela acessou… sem fazer perguntas.

Entretanto, Christina ignorou a mofa.

—O que está acontecendo aqui? —perguntou franzindo seu narizinho. Tor a fulminou com um olhar de advertência, mas ela fez caso omisso—. Quem são esses homens e por que os está treinando em segredo?

O frio que lhe roeu as vísceras só podia atribuir ao medo.

—Voltará para castelo, esquecerá tudo o que viu e não retornará nunca mais. Entende? —Tor gritava. Ninguém o fazia perder o controle como ela. Christina se recostou contra o tronco da árvore, mas Tor a pegou pelo braço e a obrigou a olhá-lo. Os batimentos do seu coração seguiam retumbando em seus ouvidos. Queria sacudi-la até que o escutasse—. Nunca volte a me perguntar sobre isto.

Tão somente uns centímetros os separavam. Tor nunca tinha tentado intimidar a uma mulher com sua altura, mas se isso o fazia compreender a gravidade da situação, faria o que tivesse que fazer. Pelo mais sagrado jurou que a aterrorizaria. Entretanto, parecia que sua miúda esposa confiava nele mais do que deveria. Nesses momentos, quem não confiava em si mesmo era precisamente ele.

Um olhar rebelde cruzou seus delicados traços.

—Acho melhor perguntar a sir Alex —disse Christina sustentando seu temível olhar sem piscar.

«Maldição, reconheceu ao maldito inglês.»

—Ou ao Lachlan MacRuairi - arremedou com um sorriso de paquera—. Disseme que se alguma vez necessitava…

Tor reagiu. Estreitou-a contra seu peito, uma escura emoção o embargava.

—MacRuairi é uma víbora. Te afaste dele.

Estupefata, Christina assentiu. Fora qual fosse essa escura emoção, viu-a, ou a ouviu em sua voz, e o medo sossegou qualquer esforço de discussão.

—Não pretendia dizer isso - atravessou ela tremendo—. Não voltarei a mencioná-lo nunca mais, se isso for o que quer.

Tor ficou imóvel. O que estava fazendo? Christina o olhava como se ele fosse golpeá-la. Pelo amor de Deus, nem os homens eram como seu pai. Nunca lhe faria mal, tão somente queria protegê-la. Era só que o fazia sentir… ciúmes.

E, entretanto, ele não era ciumento.

Sentia um peso tão grande no peito que não podia respirar. Atraiu-a para si sabendo que essa era a única maneira de encontrar alívio. Não podia lutar contra isso. Ela estava muito perto, e a tentação era muito forte.

Seus olhares se cruzaram; Tor se estava afogando.

—Ah, o que quer de mim?

Christina o olhou, surpreendendo-se da grande emoção que plasmava sua voz. Entretanto, antes que pudesse responder, Tor inclinou a cabeça e fez o que esteve desejando fazer do primeiro momento em que a viu. Com um grunhido, afundou a boca em seus lábios.


Capítulo 17


A exclamação de assombro de Christina ficou afogada por sua boca. Esse contato ia fazer lhe estalar o coração. Foi incrível…, diferente a qualquer beijo anterior. O suave roce de seus lábios no dia de suas bodas mal podia comparar-se com essa brutal massacre. Com essa posse.

A deliciosa pressão, a incrível sensação, a cercania. Era perfeito. Ideal. Como se sua boca tivesse sido criada para isso. Somente para isso. Com ele.

Sentiu como se acabasse de mergulhar em um lago escuro e a afogassem as sensações. O calor. A robusta força de seu corpo. Seu aroma sensual. O sabor pecaminoso de especiarias dele. Esse homem lhe nublava os sentidos com a força essencial de sua masculinidade.

E sua boca… deslizava-se, saboreava, movia-se sobre seus lábios. Era o paraíso! Os lábios de Tor eram firmes e ternos em cada um de seus movimentos, incitavam-na… Não, exigiam-lhe que reagisse.

E Christina se rendeu. De bom grado. Afundando-se em seu feroz abraço, devolvendo seu beijo com o ofegante entusiasmo que sua inexperiência lhe permitia.

Tor grunhiu, atraindo-a para si, encaixando seu corpo no dele. Ela sentiu o duro desejo desse homem contra o ventre. Uma calidez a embargou e se concentrou entre suas pernas. No sensível perfil de seus seios. Sua pele se avermelhou, tensa. Mais perto, exigia seu corpo. Fundiu-se no beijo. Em sua pessoa.

O beijo se intensificou. Ficou mais intenso, mais forte. Mais rápido. Mais insistente. Christina gemeu abrindo a boca para recebê-lo, sentindo o quente contato de sua língua.

Afogou um suspiro. A paixão pura e carnal por uns momentos a deixou aniquilada. Entretanto, Tor não lhe deu nem trégua nem tempo para pensar, e a estupefação cedeu às escuras sensações que despertou seu perverso beijo.

Tor mediu. Tor se apropriou. Tomava a lambidas sensuais. Intenso. Ardoroso. Úmidos. Até que ela notou mariposas no estômago e um fogo que se propagava em potentes e estremecedoras ondas.

Christina respirou sua fragrância; nunca tinha imaginado que um beijo pudesse ser assim. Tão poderoso. Não era só luxúria o que sentiu nesse beijo. Havia algo muito mais profundo. Algo que se aferrava a seu coração e atirava dele. Nesse beijo sentiu uma emoção ofegante, pura, que ele sempre tinha reprimido. Era suave e erótica, mesmo que sua ferocidade a deixasse sem fôlego.

A língua de Tor monopolizava a dela exigindo-lhe tudo. Provando, Christina se uniu ao movimento. Em círculos, sinuosa, deslizando-se com a dele, sua língua executou uma deliciosa dança que a penetrou até o mais recôndito de seu ser.

Tor a beijava como se não alcançasse possuí-la. Como se estivesse desesperado por ela. Como se reclamasse sua alma com a boca, com a língua. Entrelaçou os dedos em seu cabelo e atraiu ainda mais sua boca. Christina sentiu a cálida pressão de seus dedos na nuca. O roce da áspera mandíbula em sua pele. Os fortes batimentos do coração do coração de Tor contra o seu.

Ele grunhiu afundando-se em sua boca, afundando-se nela. Notou a pressão do peso de seu corpo. Sua mão tocando o peito, seus quadris movendo-se contra os seus, ao sensual ritmo da língua, dentro de sua boca.

Christina gemeu, seus dedos se cravaram nos ombros de Tor, largos, musculosos. Sentiu-se fraca, inarticulada, seu corpo clamava que lhe desse o alívio que tanto desejava.

Tor acariciou suas nádegas com uma mão, tomando-a, levantando-a, até pressionar-se contra o ponto que ela desejava.

Que sensação! Christina gemeu, envolta em sua boca, esfregando-se contra a grossa coluna de aço que notava em seu baixo ventre, até que sua respiração ficou dificil.

Com uma brusca exclamação, Tor afastou sua boca e se foi para trás.

—Basta!

O corpo de Christina se sobressaltou ao ver-se bruscamente afastado do prazer. De maneira instintiva ela alongou uma mão para ele, mas Tor a reteve com certa distância.

Piscou. A sombra da paixão foi desvanecendo-se, e cruzou com seu olhar perplexo, acusatório. Nesses olhos se viu mais alta, como se tivesse crescido. Como se lhe assustasse. Olhou-o perplexa. Christina lhe dava medo.

Porque o fazia sentir algo que ele não desejava. Importava-lhe. Apesar de que esse homem teimoso e duro não se desse conta. Mas lhe importava. Na boca dolorida e inchada de Christina se desenhou um sorriso. Aquilo era maravilhoso.

Tor se recuperou em seguida, mas não o suficiente.

—Levarei-te ao castelo - disse, agarrando-a pela mão—. Imediatamente!

Christina deixou que a levasse a puxões, sem lhe importar o mínimo a repentina e áspera mudança de atitude ou a careta inconfundível que se desenhava na boca dele.

Nada disso importava. Porque nada podia invalidar a certeza do que acabava de descobrir.

Tinha penetrado na fria couraça protetora. Era o sinal que esteve esperando. Importava-lhe. E a prova estava em seu beijo.

*

Tor não soube que estranho influxo do Hades se abateu sobre dele. Tinha passado de estar furioso a beijá-la como se nunca tivesse beijado a nenhuma outra mulher. Como se estivesse faminto, como se a necessitasse. A paixão não lhe preocupava; o rasgo que sentia no peito, em troca, era um assunto diferente.

Inconscientemente, Tor se absteve de beijá-la, como se de maneira instintiva se deu conta do perigo. Agora já sabia o porquê. A conexão era muito forte. Os sentimentos, muito poderosos. Muito intensos. E tentar contê-los seria um trabalho digno de Hércules, ou de Pandora.

Depois de ter provado a doçura de mel dessa boca já não poderia pensar em outra coisa. Soltou uma maldição e afastou um ramo com tanta força que este se quebrou.

Ouvia-a suas costas, respirando com dificuldade, e diminuiu o passo ao dar-se conta de que estava caminhando muito depressa. Dirigiu-lhe um olhar irado. Christina permanecia calada. Muito calada. Seguia-o com obediência, sem expressar nenhuma só queixa.

Tor não gostou da expressão de seu rosto. A leve curva ascendente de seus lábios podia interpretar-se como um sorriso petulante. Que motivos tinha para sorrir? Se quase a tinha violentado em pleno dia contra uma árvore…

—Falta pouco para chegar - disse Tor com aspereza.

—Que bom.

«Que bom?» Tor entreabriu os olhos. O que estaria maquinando essa mulher?

—Hoje terá que te dedicar aos assuntos de seu clã? —perguntou Christina em tom educado.

—Sim - respondeu ele.

—por que não me tinha beijado alguma vez assim?

Tor quase tropeçou contra uma pedra ante a inesperada mudança de tema.

—Não sei - disse ele com brutalidade—. Suponho que nunca me tinha ocorrido.

Christina arqueou uma sobrancelha como se soubesse que estava mentindo.

—Gostei muito.

Por sorte ele não estava comendo, se não, teria se engasgado.

—Muito mesmo, de fato - prosseguiu ela—. Temo-me que a partir de agora insistirei nisso.

Insistir nisso? Tor não dava crédito. Sua linda mulher estava lhe dando ordens? Ele era um chefe. Ninguém se teria atrevido a lhe falar com tanta insolência. Teria que obrigá-la a retificar. Entretanto, adiantando-se a sua resposta, Christina lhe perguntou: —O que outras coisas não lhe ocorreram ainda? —E escrutinou sua expressão horrorizada—. Me dá raiva pensar que estou perdendo outras coisas.

Seu olhar posou na considerável protuberância que aparecia sob o leine de seu marido. Passou a língua pelo lábio superior e uma chama de prazer sacudiu as lombares de Tor. A Christina não lhe escapou sua reação, e o sorriso que esboçaram então seus sensuais lábios não albergou dúvida alguma.

Que o céu o ajudasse.

Jogando-se para trás sua longa e sedosa cabeleira, Christina empreendeu de novo a marcha deixando ao Tor um pouco assombrado e bastante nervoso.

Uma mudança sutil se operou entre os dois, e Tor tinha a sensação de que aquilo ele não ia gostar. Absolutamente.

Sentiu um profundo alívio quando o povoado apareceu ante seus olhos. Dunvegan consistia em uma vintena de casinhas de teto de palha pulverizadas ao longo de um quilômetro nos contrafortes do porto, em um pequeno mercado no que os granjeiros e os pescadores se reuniam para apregoar suas mercadorias, em uma ferraria, uns estábulos e um botequim.

Teve um indício de inquietação à medida que se aproximavam. Era estranho. Tudo estava muito tranqüilo. Em geral, a essa hora do dia, o povo bulia de atividade, mas nesse momento parecia que todos se encerraram em casa.

Quando giraram para o porto descobriram a razão. Duas galeras desconhecidas tinham ancorado nessas águas.

Tor soltou uma maldição, e estava a ponto de dizer a Christina que se refugiasse em uma das casinhas quando soube o que estava acontecendo ao ver aparecer ao Rhuairi ante eles.

—Menos mal que retornastes. Não me atrevia a lhe enviar uma carta.

—O que passou? A quem pertencem estes navios?

—trata-se de John MacDougall.

Maldição. John do Lorne, o primogênito do chefe dos MacDougall e em tanaiste27. E além disso um bastardo.

—Desde que Eduardo encarcerou ao conde de Ross, MacDougall é quem cobra os impostos. Ao ver que lhe negavam a entrada no castelo (os homens não lhe deixaram passar sem sua permissão), jogou mão dos soldados e decidiu confiscar a metade das reservas para o inverno. Coll recebeu um bom golpe na cabeça quando tentava impedir que levassem a metade de suas provisões de boi seco.

Tor soltou uma blasfêmia e apertou os dentes. Agora o novo xerife de Eduardo decidia fazer notar sua presença no Skye acossando a seu povo?

—Quantos homens foram contigo? —perguntou a seu senescal.

—Poucos. Encontrava-me no povoado quando chegaram.

E Tor ia sem seu séquito. Em princípio a diferença numérica não lhe preocupava, mas em geral não estava acostumado a ter que pensar além em sua mulher. Tor tinha jurado permanecer neutro na guerra da Escócia e não tinha nenhum desejo de enfrentar-se ao xerife de Eduardo, mas MacDougall era um imbecil arrogante e desconfiava dele.

—Acompanha à senhora ao castelo…

—Temo-me que já é muito tarde para isso - atravessou Christina assinalando para o porto.

Tinham-nos visto. MacDougall e uma quarentena de homens se aproximavam em direção contrária do mercado, carregados com as caixas que pretendiam embarcar em seus navios. MacDougall coxeava ligeiramente ao andar, e essa claudicação lhe tinha dado o apelido de John Bacach, quer dizer, o Coxo.

O olhar de Tor pousou em sua mulher.

—Fica do meu lado e não te mova. —Christina assentiu—. E deixa que eu fale-acrescentou.

MacDougall lhe faria perguntas sobre seu matrimônio e Tor não queria que Christina dissesse algo inadvertidamente que fizesse duvidar de sua neutralidade ao novo xerife de Eduardo. Fechou os punhos. Poria a prova o plano de MacDonald. John MacDougall podia ser um imbecil, mas não era tolo. Tor suspeitava que sua oportuna visita não fosse uma coincidência. Eduardo devia ter ouvido falar de suas bodas.

—Ah - exclamou MacDougall aproximando-se com seus soldados—. Haja aqui o homem que estávamos procurando. Vim cobrar os impostos, mas seu guarda me negou a entrada argumentando que estavas fora.

Tor se deteve uns metros dele.

—Como podem ver, já retornei.

Os dois homens se plantaram um defronte ao outro. Tor era mais alto quinze centímetros, mas MacDougall tinha a compleição de um javali: maciço e musculoso. Além disso, contava com a inestimável ajuda de quarenta homens que lhe cobriam as costas. Tor contava com o Rhuari, um punhado de guardas e sua esposa. A presença de Christina lhe impedia de atuar, e ambos sabiam. De todos modos, retirar-se não era seu estilo.

—Por isso lhe ocorreu roubar os bens de minha gente?

MacDougall sorriu com frieza, e Tor recordou o parecido que existia entre ele e MacRuairi, a víbora de seu primo. Os MacDougall, MacDonald, MacRuairi e MacSorley representavam os quatro ramos dos descendentes do Somerled. As rixas e as lutas pelo poder entre os MacDougall e os MacDonald eram tão virulentas, e tão notáveis, como as que haviam entre os Bruce e os Comyn. Ambos os clãs queriam encarnar o poder dominante das ilhas Ocidentais, mas na atualidade esse poder o detinha os MacDougall.

—Considere um adiantamento a conta do pagamento dos impostos que nos devem.

Tor controlou seu mau gênio.

—O rei já recebeu nosso pagamento anual.

MacDougall arqueou uma negra sobrancelha.

—Isso é uma miséria comparado com o que deve.

—Essa era exatamente a dívida. Comprovem os livros se o desejares. As últimas invasões têm feito minguar os rendimentos deste ano.

—Ao rei não lhe interessam seus problemas. Descuidou do pagamento desde que ordenou encarcerar ao Ross, mas as coisas mudaram. Agora conta comigo.

—A que rei te refere? Aquele ante o que lhe inclinavam o ano passado ou ao que fazem reverências este ano?

Tor tinha afiado bem sua faca. MacDougall avermelhou da raiva, e o homem grande que tinha ao lado, seu escudeiro, sem dúvida, pegou a espada. A brigada lealdade que MacDougall rendia a Eduardo o tinha jurado a margem de seus parentes, o rei John Balliol e os Comyn, e aquilo ainda devia lhe arder.

—Estais questionando o direito ao trono do rei Eduardo? Advirto-lhe, como amigo, é obvio, que nosso monarca não toma a traição à ligeira. Suas recentes bodas pôs em interdição sua lealdade.

Dirigiu um olhar calculado a Christina, e Tor teve que resistir o impulso de escondê-la atrás de suas costas. MacDougall não ocultou o brilho de luxúria que apareceu em seus olhos e que teria significado uma condenação a morte em outras circunstâncias. Tor fechou os punhos para refrear a vontade que suas mãos tinham de empunhar a espada. Nunca havia se sentido tão impotente, mas com a Christina a seu lado era como se estivesse preso com correntes.

—Minhas bodas não tiveram nada que ver com política - disse Tor com voz neutra, procurando que seu tom não delatasse a perigosa ira que o avivava por dentro—. Não desejei nada mais depois de vê-la.

MacDougall cravou os olhos em Christina. Atuando como se esperava dela, Christina permaneceu quieta a seu lado. Se percebeu as olhadas lascivas do outro homem, não deu a entender.

—Sim, ouvi quais foram as circunstâncias de suas bodas. Minha senhora… —disse o xerife lhe fazendo uma reverência, e Christina, a sua vez, inclinou a cabeça com secura. Logo se dirigiu ao Tor—. Não é difícil entender a razão de que estejas louco por ela. —Aguçou o olhar—. Embora deva admitir que me surpreendeu ouvir que o amor tenha sido o pretexto para organizar umas núpcias tão precipitadamente.

Christina ia intervir, mas Tor lhe agarrou a mão com rapidez e, estreitando-lhe a levou aos lábios.

—Sim, fiquei enfeitiçado na primeira vez que a vi.

Seus olhos se cruzaram e Tor adivinhou a surpresa de sua mulher. Teria que lhe explicar isso mais tarde, embora a conversação não lhe entusiasmasse precisamente.

—Isso está acostumado a acontecer em sua família - agulhou MacDougall fazendo-se eco das palavras que Tor tinha dirigido ao MacDonald—. Encontra-se aqui seu irmão? Temos que cobrar uma promessa quebrar de matrimônio.

Tor agradeceu que trocassem de tema, mas sabia que MacDougall não tinha ficado convencido de tudo.

—Não está aqui, mas quando retornar procurarei lhe compensar de todos quão inconvenientes tenham podido sofrer.

—Procurarei que assim seja - repôs MacDougall—. Acredito que a metade do dote da garota Nicolson bastará.

Tor se forçou a manter a boca fechada. Estava-lhe ameaçando e roubando sem piedade, mas Torquil já se encarregaria de liderar suas próprias batalhas.

MacDougall voltou a admirar Christina e logo se voltou para Tor.

—Quando as notícias de suas bodas chegaram aos ouvidos do rei, o monarca se deu conta de que se incorreu em um descuido.

Tor entreabriu os olhos adivinhando que não ia gostar do que MacDougall tinha que lhe dizer.

—Que tipo de descuido?

—Seu nome não aparece nos Cilindros do Ragman.

Maldição. Não era um descuido. Tor não tinha assinado intencionadamente o cilindro onde se jurava a lealdade, a fidelidade e a vassalagem a Eduardo anos antes, como fora pedido a todos os nobres escoceses.

—Nessa época eu estava na Irlanda.

MacDougall sorriu. A expressão de Tor não delatava nenhuma emoção, mas o xerife não caiu no engano.

—Não importa - disse este com um dramalhão—. O descuido pode reparar-se sem maiores conseqüências. Não precisarão viajar até o Berwick. O castelo de Stirling nos servirá, durante o parlamento que celebraremos no fim de janeiro.

MacDougall partiu pouco depois levando consigo uma parte das reservas invernais. E no momento, Tor não pôde fazer nada salvo vê-lo partir enquanto ele se consumia de raiva. De todos os modos, já estava planejando uma insurreição para recuperar o roubado. MacDougall o esperava. Assim se solucionavam as coisas nas Highlands. Mas o xerife se dedicava a um jogo perigoso. Ao Tor apertariam as cavilhas, mas John do Lorne estava a bordo da asfixia.

De todos os modos, enfureceu-se. A aventura de sua esposa não só tinha posto em perigo a segurança da equipe de Bruce, mas sim além custado uma fortuna. Pior ainda, suas bodas o tinha situado exatamente onde temia: no olho do furacão. Em menos de um par de meses teria que tomar uma decisão.

*

Christina se sentia desventurada. De volta ao castelo, permaneceram em silêncio. Foi um verdadeiro suplício. O beijo apaixonado que tinham compartilhado e a paquera brincalhona de Christina parecia uma longínqua lembrança. Tor nem sequer a olhava. Ela não so lhe tinha seguido e tinha sido testemunha de algo que sem lugar a dúvidas não devia ter visto, mas sim sua presença no povoado o tinha preso de pés e mãos. Teria tentado impedir seu marido que MacDougall se levasse as provisões de que dispunha o povo para passar o inverno? Não sabia, mas com ela presente, Tor não tinha tido escolha.

A visita do MacDougall também lhe tinha dado a entender que suas bodas tinha conduzido os problemas que até então tinha tentado evitar, e com isso tinha atraído a atenção do rei. Por causa de Christina, Eduardo questionava a lealdade de seu marido e tentava obrigá-lo a escolher um lado mediante um juramento.

Christina não tinha entendido a magnitude da ameaça até que conheceu o MacDougall. John do Lorne era conhecido por sua falta de piedade, e apesar de se declarar amigo de Tor, não foi amizade o que Christina viu em seu olhar, a não ser outra coisa: animosidade e possivelmente ciúmes. Seus olhares lascivos lhe tinham lhe estremecido. Até sabendo que esse homem tentava encolerizar a seu marido, tinha conseguido que ela sentisse a necessidade de tomar um banho. MacDougall tinha desfrutado demonstrando sua supremacia sobre o temido senhor da guerra das Highlands, e Christina pressentiu que esse tão somente seria o primeiro dos problemas que teriam com o poderoso xerife de Eduardo.

Ficou estupefata quando Tor afirmou que se casou com ela porque tinha ficado enfeitiçado. O modo que a olhou quando lhe beijou a mão…

Tinha-lhe dado um tombo o coração, embora logo compreendesse que possivelmente o havia dito pelo MacDougall. Sem lugar a dúvidas, Tor era muito cortês para revelar as autênticas circunstâncias de suas bodas. Mas ela quis acreditar que era verdade.

Tor ia ajudar a desembarcar do birlinn quando Christina já não pôde suportar mais o silêncio.

—Sinto que nosso matrimônio te trazido problemas. Sei que não tem vontade de ver-te misturado na política escocesa.

—Isto não tem nada que ver contigo, Christina.

Odiava quando a despachava assim. Tor tentou que subisse a escada, mas Christina se manteve firme. Seus homens tiveram o tato suficiente para afastar-se um pouco deles.

—Por que é tão importante para ti? —perguntou-lhe ela.

Tor deixou escapar um suspiro e a olhou.

—O que é tão importante para mim?

—Te manter à margem. Depois de hoje, não vê que será impossível? Eduardo não renunciará nem a um só palmo de seu reino… Por muito longe que esteja.

—MacDougall tão somente me deu um aviso, deu-me a entender que me vigia. Enquanto eu não atue contra ele, ele não atuará contra mim. E por agora, com isso me basta.

Christina notou que lhe bulia o sangue patriótico dos Fraser.

—E te parece bem te manter à margem e deixar que Eduardo e homens como MacDougall governem a Escócia?

Os olhos de Tor jogavam brasas. Tinha interpretado sua pergunta como uma crítica, e possivelmente era.

—Parece-me bem não arrastar a meu povo a uma guerra que quão único trará serão desgraças. Parece-me bem não ver meus homens com o crânio destroçado no campo de batalha porque lutavam por um rei que não sabe nada das Highlands e das ilhas Ocidentais, e que além nada lhe importe. Ver que as mulheres perderam a seus maridos e os meninos a seus pais, ver minhas terras arrasadas e o gado esquartejado… Passei vinte anos de minha vida fazendo todo o possível por devolver a paz e a prosperidade a meu clã, e maldita a graça que me faria ver todo isso destruído porque uns reis longínquos decidiram brigar entre eles. Tanto gosta de entrar em guerra, Christina?

—Claro que não - replicou ela, assombrada pela intensidade de sua reação. Havia tocado um ponto delicado e suspeitava qual era sua procedência—. O ataque surpresa no qual seus pais morreram assassinados deve ter sido devastador.

—Foi - disse ele com brutalidade. Era óbvio que não se pronunciaria mais sobre o tema—. Vê com cuidado o que desejas; pode ser que a guerra não tarde em nos alcançar. Bem, se tivermos terminado com isto, tenho assuntos que atender.

Voltando-se, Tor se afastou com passo decidido e Christina teve que retornar ao castelo sozinha. Sentindo-se mais desgraçada que antes. Com sua tentativa de pedir desculpas só tinha conseguido enfurecê-lo mais. Não era de se admirar que Tor não queria mesclar-se em política. Como podia ter sido tão ingênua? Tinha pensado tão somente nos problemas de um homem, quando o que teria que considerar era o bem-estar de todo um clã.

*

Durante os dias seguintes Christina não teve ocasião de ver seu marido como costumava. Quando este retornava ao castelo, encerrava-se em seus aposentos pessoais com o Rhuairi ou com seus guardas. Seguia sem confiar nela, mas Christina se deu conta de que a cena vivida com o MacDougall tinha deixado rastro nele: sulcos profundos nas comissuras dos lábios e um ar de fadiga em seu olhar denotavam sua preocupação.

Essa era a situação que seu matrimônio lhe tinha dado.

E em seus pensamentos sempre a assaltava o temor de que lamentasse haver-se casado com ela. Que pudesse culpá-la por ter atraído sobre ele as suspeitas de Eduardo. E se seu clã saísse prejudicado, cada vez que a olhasse pensaria que essa mulher tinha sido o grande engano de sua vida.


Oxalá encontrasse a maneira de compensá-lo. E como Tor tinha dormido três noites na broch depois da partida do MacDougall, com os estranhos guerreiros sobre os quais não lhe permitia fazer perguntas, Christina não tinha tido a oportunidade de compensá-lo com apaixonados beijos. Tor a tratava com a cortês indiferença do passado, mas Christina sempre levava no pensamento a emoção descarnada de seu beijo.

«Importo-lhe; devo importar.» Tinha-o notado em seus lábios. E o tinha sentido em seu coração.

Suspirando, deixou um infolio28 sobre uma prateleira e sacudiu o pó das mãos. O irmão John se ausentara para que pudessem ordenar a sala e Christina se atrasava. Dizer que o jovem clérigo era desorganizado era pouco. O senescal Rhuairi, por outro lado, andava-lhe atrás. Christina negou com a cabeça. Escapava a sua compreensão que, com tanto confusão, tirassem-se o trabalho de cima.

Recolheu os diferentes pergaminhos e papéis de vitela que tinha pulverizado sobre a mesa e os amontoou em ordem. Repassou por cima alguns documentos e viu que fundamentalmente eram recibos de quantidades que os chefes das tribos e os arrendatários entregavam em conceito de arrendamento e usufruto de propriedades. Além de possuir uma grande parte do Skye, parecia que Tor tinha terras nas ilhas do Lewis, do Harris e do North Uist.

Advertiu um infolio aberto sobre a mesa, e estava a ponto de fechá-lo quando seu olhar se pousou em uma entrada recente que correspondia ao recibo que acabava de pôr sobre o montão que havia na prateleira superiora.

Franziu o cenho e voltou a ler a anotação, somente para assegurar-se de não ter cometido um engano. Seus olhos se centraram de novo no livro de contabilidade. Essa entrada estava mal feita. Tinham cotado os cem quarteirões de cevada como quinhentos.

Christina revisou por cima outros recibos e localizou um engano mais na transcrição: em lugar de dez ducados de prata, tinham cotado uma quantidade recebida de dezesseis.

Tor tinha sorte de que MacDougall tivesse declinado seu oferecimento de revisar os livros… porque estes não enquadravam.

Christina mordeu o lábio tentando decidir o que tinha que fazer. Quem quer que fosse o responsável corria o perigo de perder seu posto se ela revelava seu achado. Entretanto, não queria causar problemas ao irmão John; tinha tido tanto trabalho e estava tão cansado ultimamente que não era de se admirar que tivesse cometido alguns enganos. E tampouco queria dar ao senescal mais motivos para lhe desgostar.

De repente, uma idéia começou a tomar forma em sua mente. Sentou-se à mesa, colocou frente a ela o livro de contabilidade e o examinou com maior atenção. O mesmo dom que lhe tinha permitido aprender idiomas desde a mais suave idade também parecia poder aplicar-se aos números. Era capaz de fazer a maioria dos cálculos, inclusive os que resultavam complicados mentalmente. O pai Stephen lhe havia dito que em toda sua vida só tinha visto um caso parecido ao dele. Somando as colunas da direita, Christina descobriu outros enganos de cálculo.

Já estava! Tinha descoberto a maneira de ajudar. Organizar e classificar essas contas não lhe levaria muito tempo, uns dias, possivelmente uma semana. Não só era a maneira perfeita de pôr a seu marido à corrente de seus incomuns dotes, mas sim além demonstraria que também podia ajudá-lo. Que não era necessário que se sentisse tão só.

Experimentou uma onda de excitação. Como ia surpreender-se! As vezes que Christina tinha tentado demonstrar que era útil tinham sido em vão, mas aquilo era importante, algo que ele não podia ignorar. Com isso o surpreenderia.

Estava impaciente por ver sua expressão. Primeiro de surpresa, logo depois de gratidão, e, finalmente, possivelmente de orgulho. O coração lhe acelerou. Deixaria de considerar a garota covarde que o tinha enganado para casar-se com ele e a veria como a mulher que podia estar a seu lado, como uma confidente? Christina podia passar a formar parte de sua vida, e não só ser um corpo em seu dormitório.

Veio-lhe ao pensamento uma imagem de seu pai. Também tinha pensado que o impressionaria mas…

Era absurdo. Afastou essa idéia passageira de sua cabeça. Tor não se parecia em nada a seu pai. Em nada. Era uma pessoa decente, justa, e inclusive quando se zangava não perdia nunca o controle. Possivelmente fora brusco expressando-se, mas jamais levantaria uma mão contra ela. Havia-se posto furioso ao descobri-la na árvore e ainda mais quando ela quis provocá-lo estupidamente lhe falando do Lachlan MacRuairi. Tinha querido lhe pôr ciumento, porque ela estava ciumenta. E se sua reação era indicativa de alguma coisa, tinha funcionado. Entretanto, por mais zangado que estivesse, Tor jamais lhe faria mal fisicamente.

Não era a crueldade o que lhe tinha impedido de fixar-se nela, a não ser a cegueira. Somente precisava abrir um pouco os olhos.

Estipulado o caminho a seguir, Christina abandonou as dependências de seu marido com passo decidido. Estava impaciente por começar, mas teria que esperar até entrada a noite se não quisesse que a descobrissem. Nesse momento ouviu a rouca gritaria de umas vozes a suas costas procedentes do grande salão.

Deu-lhe um tombo o coração. Tor devia ter retornado!

Acelerou o passo, saiu ao corredor pela porta traseira e ao entrar no salão se deteve em seco, paralisada.

O terror a sacudiu em uma explosão fria e vertiginosa. Sentiu uma pontada no estômago e notou um sabor bilioso na boca.

Um gemido estrangulado escapou de sua garganta, como o de um animal ferido.

De pé no soalho, lhe dando as costas, estava seu marido… abraçando apaixonadamente a uma mulher alta e loira.


Capítulo 18


Christina ficou imóvel, aniquilada, incapaz de mover-se.

O beijo se fez eterno, fez-se mais ardente à medida que a multidão os incitava animando-os e chiando. Basta. Basta, por favor. Sentiu um peso imenso no coração. As lágrimas lhe nublaram os olhos.

Como podia lhe fazer isso? E como podiam animar os homens de seu clã? Christina acreditava que tinha começado a gostar dela.

Sentia que lhe faltava o ar e que lhe queimava o peito. Notou que muito profundo se rachava, se trincava como o gelo de um lago gelado. Tremia, e soube que esses tremores se converteriam em sacudidas.

Lady Janet e seu marido se separaram, rindo a gargalhadas, e Christina ficou paralisada.

Havia algo que não encaixava… que era diferente. Seu marido não atuava como um rei ante seus súditos, e sua indumentária era muito mais luxuosa que a que estava acostumada a ver nele. O porte tranqüilo e relaxado, a roupa desconhecida, o cabelo com mechas douradas… Seus ombros eram tão largos como os dele, mas sua constituição, até sendo musculosa, era mais fina, não tão corpulenta.

Christina piscou. Acaso via visões porque desejava as ver? Não. No fundo de seu coração soube. O homem que estava de pé no soalho não era seu marido.

Quando deslizou a mão pela cintura da mulher e se voltou para dirigir-se à multidão, Christina soube. O perfil era endiabradamente parecido, mas a mandíbula não era tão poderosa e o perfil do nariz não estava ligeiramente torcido. Além disso, a fina cicatriz da bochecha direita e as rugas de expressão nos olhos não pertenciam ao Tor.

E se ainda ficava alguma dúvida, esta se dissipou quando a mulher apareceu ante seu olhar. Não era lady Janet, a não ser uma jovem pouco mais velha que ela. Era bonita, com uns traços finos e delicados e uns enormes e risonhos olhos verdes; sua beleza não era firme e serena como a de lady Janet, a não ser natural e vivaz. Uma flor silvestre da primavera em lugar de uma rosa de inverno.

A garota reparou na Christina e sorriu. Puxando o braço do homem, ficou nas pontas dos pés para lhe sussurrar algo ao ouvido e ele se voltou para a Christina.

Ver desenhar um amplo sorriso em um rosto tão parecido ao de seu marido a deixou sem fôlego. Essa deveria ser a expressão de Tor, uma expressão de felicidade.

O desconhecido se dirigiu a ela com passo decidido. Quando esteve em frente, deteve-se e fez uma reverência tão cortês que Christina não pôde evitar sorrir.

—Minha senhora, me perdoe, não lhe tinha visto chegar. —Dedicou-lhe um sorriso pícaro e a puxou pela mão para conduzi-la até a mesa—. Temo que me deixei levar um pouco apresentando a minha mulher ao clã. Meu nome é Torquil, e você deve ser lady Christina. —Sacudiu a cabeça com determinação—. Sem dúvida meu irmão está cheio de surpresas.

Christina franziu os lábios em um sorriso.

—Sem dúvida são gêmeos.

Torquil arqueou uma sobrancelha muito bem desenhada, e sua expressão irônica foi tão parecida com a de seu irmão que ficou estupefata.

—Não havia lhe isso dito?

Christina sacudiu a cabeça.

Torquil a olhou com expressão preocupada.

—Sinto muito, o que viu… deve lhe haver afetado muito.

Christina assentiu; embora o que tinha experimentado era muito mais doloroso que isso. E naquele momento chegaram à mesa.

—Minha senhora, desejo lhe apresentar a minha esposa, lady Margaret.

A jovem se aproximou pressurosa a ela e deu umas palmadas de alegria.

—É um prazer conhece-la, minha senhora. Posso lhe chamar Christina? Têm que me chamar Meg. Estou segura de que seremos muito boas amigas, casadas como estamos com dois irmãos… que são gêmeos, além disso. Teremos muito de que falar —disse Meg, olhando a seu marido com malícia— e que comparar.

Christina só acertou a assentir e a sorrir a sua vez, sentindo-se como se tivesse ficado apanhada em um redemoinho.

—Que malote é! —Torquil rodeou a seu recém casado entre seus braços e fingiu sentir-se ofendido—. Cuida sua língua ou terei que usá-la para outros usos.

Meg piscou.

—O que outros usos lhe ocorrem?

Torquil lhe acariciou a bochecha com um só dedo, com tanto amor e adoração em seu olhar que Christina sentiu como seu coração se enchia de ternura. Agachando-se, Torquil sussurrou algo ao ouvido do Meg. Fossem quais fossem suas palavras, estas fizeram ruborizar-se a sua formosa mulher até a raiz do cabelo, mas o olhar de sensual antecipação que advertiu nos olhos dela não semeava nenhuma dúvida.

«O que quer de mim?»

Lembrou-se da pergunta que Tor, com estranha intensidade, pronunciou justo antes de beijá-la. Mas agora conhecia a resposta: isso era o que desejava.

Possivelmente deveria contentar-se com o que possuía. Tor fazia muito por ela. Tinha-a salvado de umas circunstâncias horríveis e lhe tinha dado seu nome, um lar e, sobre tudo, uma sensação de segurança. Tinha-lhe dado paixão, e Christina sabia que terminaria por lhe dar filhos. Protegeria-a com sua vida, como faria qualquer dos homens de seu clã, porque sabia que isso formava parte de seus deveres. Tratava-a, se não com ternura, ao menos com consideração. Depois do que tinha acontecido no bosque, Christina sabia que por muito que o enfurecesse, ele jamais a golpearia. Tor controlava a situação, estava ao mando, tinha sentido da honra, era direto e firme como uma rocha; um guerreiro no pleno sentido da palavra, e um líder digno de admiração.

Era tudo isso, e, entretanto não lhe bastava. Sobre tudo quando olhava ao casal que nesse momento se sentava a seu lado. O que queria dele? Queria tudo. Queria olhares de ternura, beijos apaixonados, sorrisos amorosos e passar juntos longas noites frente à chaminé. Queria risadas, companheirismo, intimidade e um homem que a valorizasse… Não como a um corpo formoso com o que jogar, mas sim como pessoa.

Queria seu coração.

Porque ele já tinha o seu na palma de sua poderosa mão de ferro.

«Amo-o.» A verdade era tão óbvia que se perguntava como não se dera conta antes. Christina amava sua sólida fortaleza, sua confiança, sua determinação, seu inato sentido da justiça e inclusive suas maneiras sérias. Sabia que sempre poderia contar com ele. Era um chefe importante, o guerreiro mais reputado de sua época, e sempre a tinha tratado com respeito e escutado suas opiniões.

E se por acaso tinha ficado alguma dúvida a respeito, a profunda desolação que sentiu ao presenciar esse beijo a tinha dissipado. Do momento em que a salvou de ser violentada no Finlaggan até o beijo que deram no bosque, Tor tinha reclamado para si seu coração. E agora lhe pertencia.

Se ele o quisesse.

*

Era tarde quando Tor saiu pelo portão que dava ao mar. Seu olhar pousou imediatamente no homem que o aguardava de pé no pátio. O pródigo tinha retornado.

Colyne lhe tinha enviado uma carta pelas mãos do Murdoch, seu escudeiro, para anunciar sua chegada. Tor teria acudido imediatamente, mas esteve ajudando a guarda a preparar-se para a viagem. Ao dia seguinte partiriam para as montanhas Cuillen para começar a última fase do treinamento, a mais intensa. O que alguns chamavam «Perdição». Sem exagerar. E, por contra, nada unia tanto a uma equipe como compartilhar o sofrimento.

Tor levava muito tempo esperando esse momento. Cortou a distância que separava a ambos em poucos passos. Torquil o viu aproximar-se com certa intranqüilidade, mas antes de poder abrir a boca e dizer nada, Tor ergueu o punho e o estampou em sua mandíbula. O impacto lhe jogou para trás a cabeça, e Torquil deixou escapar um grunhido de dor.

Que gosto, Deus divino!

Massageando a mandíbula, Torquil o observou com receio, como esperando um novo golpe. Tor titubeava.

—Eu também me alegro de ver-te, chefe.

—Chefe? Convém-te recordar isso - disse Tor com frieza. A chuva lhe açoitava o rosto—. Qual é a razão de que tenha preferido sair em lugar de ficar no grande salão?

Torquil parecia incômodo.

—Queria que primeiro nos víssemos a sós, se não te importar.

Importava-lhe, mas seu irmão parecia estranhamente inquieto.

—Nos deixem - ordenou Tor aos guardas. E quando se retiraram, disse—: Agora, te explique.

Torquil o olhou titubeando e tentando calibrar seu estado de ânimo. O tinha imaginado. Tor nunca cedia. E terminou por encolher-se de ombros.

—Sabia que te zangaria.

Não era necessário que o dissesse, Torquil sabia perfeitamente.

—Te ocorreu que me zangaria menos se ficássemos fora, sob a chuva?

Torquil se endireitou e lhe sustentou o olhar de aço com seus olhos também de aço.

—Não quis desgostar a minha mulher. E foi uma boa idéia, visto o recebimento -agulhou, esfregando a dolorida mandíbula para recalcar suas palavras.

Tor demorou um pouco em interpretar aquilo.

—Quer dizer, estou aqui fora me gelando as bolas para que a noiva que seqüestraste não se sinta ferida em seus sentimentos? —perguntou com incredulidade.

Seu irmão ficou embevecido. Disparou-lhe o músculo da mandíbula. Apertou os dentes e assentiu.

—A garota não tem culpa do que passou. Eu sou o único culpado, ou seja, que faz o que considere, mas não obrigarei a minha mulher a presenciar isto… ou a levar uma falsa impressão de ti.

Tor entreabriu os olhos.

—A que impressão te refere?

Seu irmão esboçou um sorriso irônico.

—Dá um pouco de medo quando tira o mau gênio.

Não era estranho, desde que tinha conhecido Christina, pensou Tor.

—Só um pouco? —perguntou arqueando uma sobrancelha.

Torquil sorriu.

—Meg não te conhece tanto como eu. Poderia pensar que em realidade queria me arrancar a cabeça ou outras partes às que se há aficionado especialmente.

—E teria razão. —Tor tinha recebido o relatório do Murdoch, seu capitão e escudeiro, mas preferia ouvir a explicação de boca de seu irmão antes de decidir sua sorte—. Dê-me uma boa razão pela qual não deveria te colocar entre grades neste mesmo instante e deixar que te apodreça em uma masmorra. Conhecia perfeitamente os problemas que estas bodas conduziria a todos e, entretanto, desafiou-me.

Tor deu um passo à frente, fechando os punhos e sentindo que o dominava a raiva. Seu irmão possivelmente achasse divertido, mas suas ações poderiam ter posto em perigo anos de esforços e obrigá-los a entrar em guerra.

—Como pudeste fazer esta loucura, ser tão irresponsável? Tem idéia das condições que tive que aceitar para impedir que Nicolson nos atacasse?

Torquil fez frente a seu arremesso sem alterar-se.

—Não me deixou escolha… Mas esperava que já tivesse entendido.

Tor franziu o cenho.

—Maldito seja o Hades! Do que está falando?

—Ouvi o que contam de suas bodas, e pensei que o entenderia. Tinha que estar com Meg. Essa mulher é minha. E não me importam as conseqüências.

As notícias voavam. Tor franziu os lábios em uma careta grave.

—Nenhuma mulher compensa o sacrifício de faltar o dever para com seu clã. O que ouviste é falso. Minhas bodas foi o preço que tive que pagar por seus atos.

Ante o olhar assombrado de seu irmão, Tor explicou com brevidade o que tinha acontecido no Finlaggan e os termos do endiabrado acordo que tinha selado com o MacDonald. Como tanaiste dele, ao menos de momento, Torquil tinha direito a conhecer o perigo que os espreitava, embora ele fora o máximo responsável.

Apesar da raiva que sentia Tor e da diferença de caráter, o vínculo que existia entre os dois irmãos sempre tinha sido forte. Torquil o conhecia melhor que ninguém, e às vezes melhor do que ao Tor teria gostado. Notava o olhar penetrante de seu irmão fixo nele, intenso, enquanto terminava de contar sua história.

Torquil sacudiu a cabeça com incredulidade.

—Enganou-te e, mesmo assim, casou-te com ela?

Tor não respondeu, sabia que suas palavras resultariam incompreensíveis.

—Está seguro de que não há outra razão?

—As bodas e acessar a treinar a guarda secreta de Bruce foram o preço que tive que pagar para que MacDonald nos ajudasse a nos tirar de cima Nicolson. —Tor esboçou um sorriso azedo—. Embora não estou seguro de que tenha valido a pena se com isso nos ganhamos a inimizade do MacDougall.

Tor contou a seu irmão a recente visita do xerife.

—Não sei se acreditou ou não a história de que me sinto enfeitiçado pela Christina, e o certo é que tampouco importa. Minhas bodas com uma Fraser bastou para que Eduardo e seu novo lacaio tenham começado a fazer perguntas.

—Mas você sabia que isso podia acontecer - assinalou Torquil.

Tor deu de ombros.

—Sim. Era uma possibilidade.

—E, entretanto te casaste com ela. —Torquil voltou a menear a cabeça, sacudindo do cabelo umas frias gotas de chuva—. Está seguro de que não existe outra razão? —insistiu.

Um retumbo de trovões se ouviu ao longe. Aquilo encaixava com a expressão de Tor.

—O que outra razão poderia existir?

—conheci à garota. É uma preciosidade. Não te dê vergonha admitir que a queria.

Tor examinou com frieza seu irmão sob a sombria e úmida neblina.

—Só porque tenha atuado como um idiota por uma mulher, não vás tomar a outros por idiotas.

Seu irmão o olhou com perspicácia.

—Sua esposa está apaixonada por ti.

Tor ficou imóvel; o coração lhe deu um estranho tombo.

—Do que está falando?

Torquil lhe explicou que Christina tinha entrado no grande salão quando ele estava abraçando a sua recém casada esposa.

—De entrada não a vi, mas quando reparei nela me encontrava o suficientemente perto para ver seu olhar de perplexidade. Estava destroçada. Exatamente como eu me sentiria se tivesse visto o que ela viu.

Tor perjurou, e passou uma mão pelo cabelo, que por então já tinha encharcado. Era capaz de imaginar o que ela teria pensado. Agora bem, aquilo do amor… Esperava que seu irmão estivesse equivocado. Porque isso somente causaria sofrimento a Christina.

—por que não lhe contaste que somos gêmeos? —perguntou Torquil. Entretanto, antes que Tor pudesse responder, deteve-o com um gesto da mão—. Esquece o que te perguntei. Você nunca conta nada a ninguém. Inclusive Florence teve que perguntar a mim qual era o dia de nosso santo.

Tor franziu o cenho; não sabia que a sua primeira mulher importassem essas coisas.

—Você não foste precisamente meu tema favorito de conversa. Coisa difícil de aceitar para ti, já sei.

Um sorriso petulante apareceu em rosto de seu irmão.

—Deus sabe que essa preciosa tua mulher deve estar cansada de seus rudes encantos. Possivelmente deveríamos fazer quando jovens…

Tor o agarrou pela garganta antes que pudesse terminar a frase tomando-o completamente por surpresa. Teria que dar as graças ao Boyd mais tarde por essa rapidez de movimentos.

—Toca-a e te mato - disse olhando a seu irmão nos olhos—. entendeste?

Torquil assentiu, e então Tor o soltou.

—Maldição, somente era uma brincadeira. —Massageando a nuca, Torquil olhou fixamente a seu irmão na escuridão. Seu olhar era de inteligência, e ao Tor recordou a do MacSorley—. grande reação para estar falando de uma esposa a que não quer, não te parece? Acredito que está louco por ela. E já era hora, se me perguntar isso. —Torquil percebeu a raiva de seu irmão—. Só espero que te dê conta antes que seja muito tarde. As mulheres necessitam um pouco de afeto e de ternura.

Seu endiabrado irmão tinha casado um par de meses, e se considerava um perito? Ignorava o que Torquil acreditava saber, mas o certo era que não sabia nada.

—Fecha essa bocarra, Torquil, ou dará com os ossos na masmorra antes do que imagina.

—Significa que me perdoa?

Tor deixou transcorrer uns instantes para que seu irmão esperasse, preocupado, sua resposta. Deveria castigá-lo, e o castigaria, mas agora o necessitava para algo mais importante. Sua intranqüilidade só aumentara desde a inesperada aparição do John MacDougall no Skye. Havia algo estranho em tudo isso, e não queria correr nenhum risco.

—Não, significa que pensarei no seu castigo. Primeiro te encomendarei uma missão.

Percebendo a importância do assunto, Torquil adotou um semblante sério e se concentrou nas palavras de Tor.

—Do que se trata?

—vou exilar lhe a ti e a sua esposa à ilha do Lewis, para que possa vigiar ao Malcolm e ao Murdoch até que me inteire de quem está atrás dos recentes ataques e termine de treinar aos homens. Se alguém descobrir no que estou comprometido, quero saber que meus filhos se encontram a salvo.

A expressão de Torquil se escureceu profundamente.

—Crie que alguém lhe faria mal?

—Não quero correr riscos.

—Quem?

Tor soltou uma gargalhada.

—Ganhei um montão de inimigos com os anos. Por não falar de nossos inimigos acérrimos, os MacRuairi.

—Filhos da grande cadela - espetou Torquil com expressão lúgubre. Seu irmão os odiava tanto como ele.

Tor desejou poder contar ao Torquil que tinha ao Lachlan MacRuairi sob suas ordens, mas tinha que manter as identidades dos homens em segredo.

—Por outro lado, temos que considerar também a seu sogro, e ao MacDougall.

—E se pensarem que você e eu não estamos envolvidos…

—Isso servirá para protege-los de meus inimigos - atravessou Tor terminando a frase—. Embora espere que não seja necessário - disse sorrindo a seu irmão com sarcasmo—. Temo-me que isso também significa que sua mulher terá uma falsa impressão sobre mim.

Torquil torceu o gesto.

—Darás uma de mau, verdade?

—Não parecerá estranho, dado que é o que te merece. Mas não pode contar a ninguém a verdade. —Torquil ia protestar, mas Tor lhe cortou em seco—. Não me arriscarei. Além disso, seria muito perigoso para sua mulher.

—ficará furiosa quando descobrir que a enganei.

—Vale mais que fique furiosa a que corra perigo. Considera uma ordem direta. —Algo que sabia que seu irmão não podia desobedecer—. Faz isto por mim e possivelmente tão somente te arrancarei as partes do corpo às que sua jovem esposa não há se aficionado especialmente.

Torquil riu, mas se sobrepôs imediatamente.

—Sinto muito, irmão. Sei que te causei problemas. Oxalá tivesse podido atuar de outra maneira. Dou-te minha palavra de que farei tudo o que possa para lhe compensar - No subestimes a John de Lorne..

Tor assentiu.

—Sim, sei. Mas não só tem que ajustar as contas comigo. MacDougall quer cobrar pela promessa de compromisso que quebrou. A metade do dote da garota.

Torquil soltou um taco.

—Ao MacDougall que lhe dêem…

—Não subestime ao John do Lorne. É um filho de cadela, mas muito ardiloso. Minhas bodas lhe deu toda a munição que necessita para tentar me dobrar.

—O que fará?

Tor sacudiu a cabeça.

—Espero que aconteça algo antes de janeiro que me impeça de ter que decidir formalmente. Esta guerra pertence a Escócia, não a nós.

Tinha trabalhado toda sua vida para que seu clã tivesse uma posição destacada e fosse próspero; escolher mal nessa guerra poderia voltar a afundá-los na escuridão e lhes fazer perder tudo o que tinham conseguido. Entretanto, sabia que os ventos de rebelião sopravam com renovada força. A guerra era algo iminente, inclusive para as ilhas Ocidentais, e Tor sentia que esticavam uma soga ao redor de seu pescoço.

Seu irmão compreendeu a situação.

—Ao inferno com Eduardo da Inglaterra e com Robert de Bruce. O que sabem das ilhas Ocidentais?

—O bastante para ter compreendido que nos necessitam para ganhar - respondeu Tor claudicando—, e isso é mais do que já sabiam.

A chuva começou a aumentar.

—Vamos. Quero conhecer a mulher que nos causou tantos problemas, embora duvide que ela se alegre de me conhecer quando ouvir o que vou dizer.

Acertou. A recém casada tinha caráter; isso concedia. Essa menina rebelde tinha todo o aspecto de querer lhe arrancar os testículos com a colher que fazia oscilar ante ele. Tor, por causa da tormenta, permitiu-lhe ficar no castelo até a manhã seguinte. Em outras circunstâncias teria recebido a Meg Nicolson com os braços abertos, por ser a mulher de Torquil, embora somente fosse por dar o gosto de ver seu feroz irmão dobrado por uma mulher. Desgraçado…

Tor saiu do grande salão pela porta que dava ao corredor sabendo de que não podia procrastinar mais. Tinha que ver sua esposa.

As palavras de seu irmão o tinham incomodado mais do que teria gostado de admitir. Christina o amava? Egoisticamente, por uns instantes experimentou uma satisfação primitiva. De entrada, queria seu amor…, sua devoção. Queria-a para ele.

Entretanto, também sabia que lhe faria mal ao ser incapaz de dar o que ela desejava. Tor não era como seu irmão.

O dever. O clã. A guerra. Tudo isso vinha em primeiro lugar. Agora bem, era inegável o que Torquil lhe tinha feito notar: estava louco pela Christina, e isso não o havia sentido nunca por uma mulher. Queria agradá-la. Fazê-la feliz.

Ao aproximar-se do dormitório dela, Tor observou que uma fresta de luz aparecia sob a porta que dava ao seu quarto. Franziu o cenho perguntando-se quem estaria de pé essas horas trabalhando em suas dependências particulares. O irmão John? Esse homem sempre parecia andar brincando de correr de um lado a outro. Tor sabia que era absurdo, mas começava a sentir bastante antipatia pelo novo escrivão. O dia em que Rhuairi advertiu um engano nas contas, Tor pediu que vigiasse ao tímido clérigo, quase esperando encontrar uma razão para livrar-se dele. Entretanto, o senescal não encontrou nada mais, e Tor, que esteve emprestando mais atenção às traduções de sua correspondência que às contas, tampouco. Não obstante, para ser um clérigo, o maldito amanuense passava muito tempo com sua esposa.

Abriu a porta e lhe surpreendeu não encontrar ao irmão John, a não ser a sua mulher.

Christina se sobressaltou com o ruído e ao vê-lo ficou em pé. A brutalidade de seu gesto fez que se pulverizassem pelo chão vários papéis que devia ter tido em cima do regaço.

—Retornaste!

A clara alegria que notou na voz dela contrastou com a culpa que o retorcia. Uma culpa que não tinha por que sentir. Estava cumprindo com seu dever. Atendendo suas responsabilidades. Não podia estar sempre ao seu dispor e vê-la em todo momento. Entretanto, em realidade tinha sentido falta dela. Todos e cada um dos minutos que esteve separado dela. Christina o estava abrandando, estava o pondo fraco, e isso não podia permitir.

Examinou a mesa a que estava sentada e advertiu a presença de tinta, uma pluma solta a toda pressa, os livros de contabilidade abertos, os documentos empilhados, as manchas negras de suas mãos… e inclusive uma que destacava em sua bochecha.

—O que está fazendo aqui?

Tor compreendeu o significado de todo aquilo, mas não encontrava sentido. Cravou seu olhar nela e viu que o rubor aparecia em suas bochechas.

Christina mordeu o lábio, colocando o escuro cabelo atrás de sua rosácea e bem desenhada orelha.

—Queria te surpreender.

Tudo parecia encaixar com exatidão. Tor a olhou de novo. Com maior atenção. Surpreso ante o que via… ou não tinha sido capaz de ver.

—Sabe ler e escrever.

Christina assentiu e deu uns passos para ele, com a excitação plasmada em seu delicado rosto.

—Ainda não terminei; desejava que fosse perfeito. Sei que estiveste muito ocupado e queria encontrar a maneira de ajudar, por isso estive pondo em ordem as contas. Estavam embaralhadas. —Christina falou gesticulando e esboçou um franco sorriso—. Surpresa!

Tor não soube como reagir. Dizer que estava aniquilado era pouco. Era pouco freqüente que os homens das Highlands dominassem essa disciplina, por não falar das mulheres. Repassar as contas não era uma tarefa fácil. Era essa a razão de que Rhuairi tivesse encontrado enganos? Tor franziu o cenho.

—Por que mantiveste isto em segredo e não me há isso dito?

Christina mudou de expressão; era óbvio que a reação de seu marido não tinha sido a esperada. Agora bem, acaso podia esperar o contrário? Tor tinha entrado em seus aposentos para descobrir não só que esteve ocultando um grande secreto, mas sim se tinha metido totalmente em seus assuntos particulares. Só Deus sabia quanto haveria essa mulher embaralhado as coisas.

—Queria te dar uma surpresa. Demonstrar-te que posso ajudar.

Conhecendo sua sensibilidade, Tor franziu os lábios para tentar controlar seu mau gênio.

—Isto não é um jogo, Christina - disse com paciência—. Está interferindo em uns assuntos do clã da máxima importância. Assuntos sobre os que te adverti que te mantivesse a margem.

—Só tentava ajudar. Vi um engano nos livros, e depois da recente visita do MacDougall, soube que tinha que fazer algo.

—Tenho escrivães que me levam os livros. Este não é seu lugar. —Tor tentou falar com doçura—. É minha esposa. E se encontrar algum engano, sua obrigação é me comunicar isso. Tor passeou o olhar por um dos livros de contabilidade, percorrendo com os olhos as colunas perfeitamente alinhadas.

Christina se endireitou com olhar desafiante.

—Não encontrará nenhum engano.

Tor se voltou para olhá-la.

—Tão segura está de ti mesma?

—Muito.

Sustentaram-se no olhar. De repente, um pensamento cruzou pela mente de Tor. Não, ela não teria ousado… teria se atrevido…?

—Que mais estiveste lendo? —perguntou agarrando-a pelo braço—. Estivestes lendo minha correspondência, minha correspondência privada?

Christina afastou os olhos dele, mas a escura mancha de sua bochecha destacou com a intensidade do rubor.

Tor perjurou, esquecendo que estava fazendo um grande esforço por controlar seu mau gênio. Repassou mentalmente as últimas semanas. Somente tinha recebido duas cartas secretas de MacDonald, que tinha guardado em seu sporran e logo tinha queimado. Pensou que tinha sido cuidadoso, embora naqueles momentos não suspeitasse que sua esposa soubesse ler.

O medo se apoderou dele. Quando pensava no perigo que Christina podia correr se de maneira fortuita via algo que não devia…

Como poderia protegê-la se ela não deixava de colocar os narizes em assuntos que não lhe concerniam? Sua mulher tinha cruzado a linha.

—Maldita seja, Christina, dissete que te mantivesse à margem.

*

Desconsolada, Christina sentiu a coceira das lágrimas nos olhos. Aquilo não estava indo como tinha planejado. Tor tinha que estar agradecido, possivelmente mostrar-se impressionado e orgulhoso dela, mas não furioso.

Como seu pai.

Tor não era como seu pai. Era um homem justo. Tor se mostraria agradecido se lhe emprestasse sua ajuda, sem importar sua procedência. Ou não?

«Não te preciso» era o que, a efeitos práticos, havia dito.

Seu rosto perfeitamente cinzelado era tão duro e inexpugnável como o granito.

—Não entendo que te tenhas zangado tanto —disse Christina—. Pensei que assim te agradaria.

Umas linhas brancas sulcaram as comissuras de seus lábios.

—Pensou que me agradaria saber que estiveste lendo minha correspondência privada?

Christina amaldiçoou sua pigmentação clara e a incapacidade de controlar o rubor que lhe acalorava as bochechas. Não havia desculpa alguma. Agora bem, acaso Tor não se dava conta de que ela so queria formar parte de sua vida?

—Só queria saber mais coisas de ti. Saber o que faz durante todo o dia. Por que está sempre tão ocupado. Por que te parte continuamente. —Levantou os olhos para ele e advertiu o duro gesto de sua mandíbula. Não tinha feito o comentário adequado… E isso lhe recordou o que tinha visto na broch. Entretanto, a culpa não era so dela—. Se de vez em quando me contasse algo, não me veria obrigada a recorrer a outros meios para me inteirar.

—Pelos pregos de Cristo! Isto não é um jogo de meninos, é perigoso. Se atuo assim, é para te proteger.

Os olhos de Christina jogavam brasas pela raiva e a humilhação.

—Então deixa de me tratar como a uma menina e me conte o que está passando. —Christina o agarrou pelo braço e o olhou com ar suplicante. Estavam muito perto. O bastante para tocá-lo. Para acariciar sua áspera bochecha e sentir o forte tic de sua mandíbula sob o polegar—. Diga-me do que está tentando me proteger.

Ficaram olhando à luz das velas, ela estendendo a mão, ele retirando-se. Uma dança que pareciam condenados a repetir uma e outra vez.

Salvo que nessa ocasião Tor titubeou. Durante um momento Christina pensou que contaria. Viu-o em seus olhos.

Mas sua força de vontade era férrea, e Tor se soltou dela com cuidado. Christina notou a tensão que irradiava dele na dura contração de seus ombros, a resistência a deixar-se levar pela natural atração que sentiam seus corpos e a rigidez com que se mantinha afastado dela.

—Fica à margem, Christina. À margem dos livros, das cartas. Basta de me seguir, basta de perguntas.

Christina quis chorar de raiva.

—por que tem que te comportar assim?

Tor pareceu confundido.

—Como me comporto?

—Com evasivas. Com obstinação. Nunca me contas nada. Por que não pode confiar em mim? Tanto dano te faria compartilhar seus pensamentos comigo?

Tor endureceu seu olhar.

—Não, mas isso poderia fazer mal a outros.

A acusação a feriu.

—Eu nunca faria nada que pudesse te trair. Esperava que a estas alturas já saberia que podes confiar em mim.

—Não é assim como funcionam as coisas, Christina. Isto é a vida real, não uma história de cavalarias. De verdade acredita que em tão só dois meses teria que lhe confiar isso tudo, mesmo que haja coisas que põem em perigo as vidas de outras pessoas, simplesmente porque é minha esposa? Embora quisesse, meu dever como chefe é me reservar a opinião.

Tor lhe fez sentir-se ridícula, ingênua. Entretanto, não tudo formava parte de seu dever.

—Está seguro de que não se trata so de uma desculpa? É impossível que no clã tudo seja questão de vida ou morte. —Christina se apoiou nele pressionando-se contra seu peito. Sentiu sua fragrância escura e masculina. Recordou o sabor rico e especial de sua pele, a sedosa e cálida pressão de sua boca. O roce intenso e erótico de sua língua—. Que dano pode fazer…?

—Basta - espetou Tor com aspereza largando dela—. É minha mulher. E me obedecerá nisto. Não tenho que te explicar meus motivos. E tampouco me obrigará a fazer sua vontade usando seu corpo. —escureceu o olhar—. Por muito atraente que sejas.

Christina deu um coice como se a escaldasse.

Estava ela fazendo isso? Tapou a boca envergonhada. O fazia, embora sem ser consciente disso.

—Não me tinha dado conta…

Tor pareceu acreditar e suspirou profundamente.

—vim a te dizer que preciso partir.

Christina afogou um grito.

—Partir? Mas se acabar de chegar…

—Retornarei antes da festa do Yule.

Caiu-lhe a alma aos pés.

—Mas isso é dentro de duas semanas… —agora pareciam eternas—. Aonde…? —conteve-se, e ficou olhando seus infranqueáveis olhos. «Dá igual», pensou sabendo que tampouco o diria—. Mas seu irmão acaba de chegar. Não posso acreditar que não me dissesse que são gêmeos.

—Pensei que não era importante - replicou Tor, endurecendo a expressão de seus lábios—. Além disso, Torquil parte amanhã.

Christina abriu uns olhos como pratos.

—por quê?

Tor a olhou com dureza, com olhos inescrutáveis.

—Enviei-o longe.

—Para que?

Estava claro que não desejava lhe dar explicações.

—Por ter raptado a sua mulher e nos deixar a ponto de provocar uma guerra.

—Mas estão apaixonados. Qualquer pode ver. Se tivesse conhecido a Meg…

—Conhecia. Os sentimentos que alberguem não mudam as coisas.

—Não mudam as coisas? —O que acontecia com esse homem? Tratava-se de seu irmão. De seu irmão gêmeo. Como podia não lhe importar sua felicidade?—. Como pode ser tão frio e desumano?

«É frio.»

Não. Christina se negava a acreditar que o que havia sentido com antecedência fossem imaginações. Tor podia parecer um senhor da guerra duro e implacável por fora, mas em seu interior havia muito mais. Era capaz de amar; somente terei que lhe ensinar a abrir o coração.

Sua acusação sortiu efeito. A mandíbula de Tor se contraiu e o tic lhe disparou com força.

—Porque tenho que ser. Centenas de pessoas contam com que eu as proteja, com que tome decisões pelo bem do clã. O que fez meu irmão podia desencadear uma guerra que teria conduzido a morte de dúzias de habitantes de meu povo. Se isso é ser frio, que assim seja.

Christina se retorceu as mãos, sentindo-se fatal. Nunca o tinha considerado dessa maneira. Não era assim como tinham que ir as coisas. A surpresa que queria lhe dar tinha tomado um lado negativo.

—Sinto muito, de verdade. Somente tentava ajudar. Prometo que não voltarei a interferir. Mas não vá assim. —Lhe escapou uma lágrima—. Não pode ficar só esta noite?

A intensidade de seu olhar a deixou perplexa. Tor estava travando uma batalha, embora ela desconhecesse sua natureza.

—Não posso - disse ele com brutalidade.

Sem nenhuma explicação. Sem ternura. Nada. Christina lhe dirigiu um longo olhar interrogativo procurando algum signo de debilidade. Foi inútil. Desviou o olhar ao chão, sentindo-se muito desgraçada.

—Bem. Até que retorne então.

«Que Deus te proteja.»

Tor se dirigiu à porta, e de repente se voltou soltando um juramento como somente tinha ouvido dele uma só vez. Antes de dar-se conta do que estava acontecendo, viu-se envolta em seus braços, pressionada contra o escudo de aço de seu peito, e com sua boca na sua, lhe exigindo um beijo. Um beijo que fez que lhe desbocasse o coração e sentisse mariposas no estômago. Um beijo que a deixou sem fôlego.

Um beijo que terminou muito cedo.

Com um rugido que mais parecia um grunhido, Tor se separou dela. Seus olhos se encontraram, e por um momento Christina captou o brilho da

ternura que com tanto desespero tinha querido ver. E sem mais palavras, Tor se foi.


Capítulo 19

—Vêem algo? —perguntou Tor ao Lamont, embora com a tez curtida pelos elementos, as mechas de cabelo gelados e as grossas peles que lhe protegiam a cabeça e os ombros podia confundir-se com qualquer dos homens.

Lamont, ou o Caçador, como o tinha apelidado MacSorley por sua perícia seguindo rastros, sacudiu a cabeça e entreabriu os olhos para ver bem através da espessa névoa que se levantou o final do dia.

—Não, capitão, nada.

Tor perjurou; a impaciência começava a apoderar-se dele. Estava desejando que terminasse esse exercício de práticas. Não se tratava tão somente do cansaço ou das brutais condições do entorno: não podia livrar-se da intranqüilidade com que havia partido do Dunvegan.

—Sigam olhando, não desapareceu. Estará por aí.

Lachlan MacRuairi era um bastardo escorregadio, e estava demonstrando sua habilidade para entrar e sair sem ser visto. Era o único ao que ainda ninguém tinha encontrado. Até enfrentado à capacidade de rastrear do Lamont, levava quatro dias evitando a captura, quase um mais que MacKay, o único homem que tinha conseguido se esconder duas noites na gelada e inclemente sombra das Black Cuillins. As Black Cuillins, que deviam o nome às escuras rochas ígneas que constituíam seus picos, eram a cordilheira montanhosa mais alta do Skye e a considerava uma das mais imponentes de toda Escócia.

No inverno podiam ser mortais.

No inferno não ardia tudo em chamas, pensou Tor; fazia frio, e muita umidade. Um frio que paralisava as articulações inclusive na luz do dia. Mas as noites… Tor tremeu ao recordar: as noites eram pura agonia. O ar gélido penetrava entre suas volumosas peles e lhe cravava como agulhas de gelo.

Tor sabia que era muito possível que MacRuairi estivesse congelado e sepultado sob um metro de neve recente. A noite anterior tinham tido uma tormenta: uma neve espessa e consistente tinha caído em rajadas, como uma incessante cortina branca, deixando o cerco que havia ao pé da montanha coberto por mais de trinta centímetros de neve e formando umas geleiras de traidora profundidade em alguns setores. No alto da montanha a neve minguava, devido às estreitas cristas e às vertentes rochosas dos topos, e era substituída pelo gelo.

Aquele exercício de treinamento estava desenhado com dois propósitos. As montanhas e o mau tempo eram dois fatores a ter em conta porque os homens enfrentariam a eles durante os dias próximos. Se queriam aplicar com êxito suas táticas piratas em terra firme, precisavam ser capazes de aclimatar-se para sobreviver em quaisquer condição. Tor sabia além que nada unia tanto a um grupo como compartilhar penalidades.

Que a maioria dos homens tivesse resistido bem durante dois dias nesse entorno hostil era incomum. A provocação se desenhara para que fora virtualmente impossível de superar: esconder-se em algum ponto entre os três lagos situados entre o Sgurr e Lagain, «o pico do pequeno terreno baixo», o topo mais alto da cordilheira, durante sete noites sem ser descoberto. E era uma façanha considerável, porque o terreno nu e rochoso mal oferecia rincões onde manter-se coberto ou proteger-se. A maioria dos homens que Tor tinha conduzido a esse lugar tinham resistido tão somente umas horas, uma noite no máximo. Tor conhecia todas as covas, e inclusive no caso de que alguém pudesse arrumar-se reunindo suficiente turva ou madeira para acender um fogo, isso lhe prejudicaria porque seria facilmente visto.

Tinha dado aos homens da guarda uma hora de vantagem e logo os tinha ido caçando um a um. Os homens localizados passavam a incorporar-se ao grupo de caçadores até que, como então, somente ficava um.

Tor contemplou aos temíveis guerreiros que o rodeavam, convertidos agora em um grupo asqueroso e de aspecto lamentável.

—Abertos em leque - ordenou que—. Subiremos à cúpula desde todas as direções e desse modo o obrigaremos a sair.

Se MacRuairi estava vivo, encontrariam-no.

E o estava. Em algum lugar, vigiando-os. Sentia-o. Era como se ambos estivessem travando uma batalha particular de estratégias: a do caçador e a presa. Chefe contra chefe. Líder contra discípulo ressentido. Em outra situação teria desfrutado do desafio, mas nesse momento queria acabar com aquilo de uma vez por todas.

Dispôs à maioria de seus homens em vários grupos distanciados aproximadamente entre si ao pé da montanha. Campbell, MacKay, Lamont e ele subiriam pela crista principal do topo entre todas as vertentes possíveis.

Iniciaram a ascensão pisando metodicamente o caminho para o alto da montanha. Tor tinha empreendido a rota mais difícil, a que arrancava do sudeste e exigia escalar por um pronunciado e escarpado ravina.

Pouco depois se deteve para recuperar o fôlego sobre uma estreita e pedregosa crista no alto da ladeira. Com a mão em modo de escudo, Tor escrutinou os picos ocultos entre a névoa em busca de algum sinal de movimento ou incongruência na paisagem.

Nada. Tanta quietude parecia fantasmagórica. Quão único pôde ver através da névoa foram retalhos de rochas negras engalanadas com finas faixas brancas. Depois de um gole energizante de uisge-beatha, reatou a extenuante ascensão da montanha. Movendo-se com a graça ligeira e o passo seguro de um puma, hábil e rápido, escalou o terreno traidor com uma facilidade ganha com um árduo treinamento.

Estar em boa forma física, entretanto, não lhe impedia de ser imune às forças da natureza. Mal sentia as pontas dos dedos sob as grossas luvas de couro, ou os dedos dos pés nas botas envoltos com peles de animais. Tinha a pele dos lábios e as bochechas que o elmo não cobria avermelhada pelo frio, a mandíbula sem barbear acusava o peso do gelo e os músculos lhe doíam pelo desgaste que tinha quatro dias subindo e descendo pelas montanhas em busca de um fantasma.

Se fosse qualquer outro, Tor teria posto fim à provocação. Mas se havia um homem que pudesse sobreviver nessas condições era o bastardo do MacRuairi, um homem de sangue-frio; somente o diabo sabia cuidar tão bem de si mesmo.

Não obstante, e com toda a reticência do mundo, Tor teve que admitir que seu inimigo, convertido temporalmente em seu irmão de armas, tinha-o impressionado durante essas últimas semanas. Lachlan MacRuairi era um guerreiro preparado e temerário que assumia todos os obstáculos que Tor punha em seu caminho, e eram muitos, com uma determinação e uma coragem incomparaveis. MacRuairi encarnava o único lema que Tor respeitava: Não abandone nunca, não te renda jamais.

Agora bem, embora parecesse um guerreiro perfeitamente preparado e predisposto, Tor não confiava nele. MacRuairi era como uma serpente adormecida que aguardava para atacar. Tinha a alma de um mercenário, e a única lealdade que observava era para consigo mesmo. Nunca poderia integrar-se plenamente em uma equipe. Por que tinha aceitado a lutar pelos Bruce? Por dinheiro, por vingança, por um desejo de morte ou seguindo um arrevesado plano que lhe permitisse sair de tudo aquilo em louvor de multidões?

Tor adivinhava os propósitos da maioria de seus homens, mas MacRuairi era um buraco negro impossível de penetrar. Possivelmente isso era o que lhe preocupava. Era difícil compreender a um inimigo…, irmão, retificou, quando não se sabia quais eram os motivos que o impulsionavam.

Onde diabos estava?

A inédita impaciência de Tor não só se devia ao frio ou à ânsia de ganhar no MacRuairi, mas também ao desejo de terminar o trabalho que se propusera para poder retornar a Dunvegan. Não ao castelo, a não ser com sua mulher.

Maldição, sentia falta dela. Seu rosto lhe aparecia por todo lado. Inclusive no alto dos rochosos topos da poderosa Cuillin, Christina o espreitava. Possivelmente fora devido à absoluta desolação do entorno, ao agreste e amargo isolamento, que lhe trazia sua lembrança. Christina era uma presença cálida e liviana para um homem que levava muito tempo vivendo em terra erma. Já começava a parecer-se com um desses personagens das histórias de cavalaria que a ela tanto gostava.

Ao chegar ao alto da estreita crista que havia justo debaixo da cúpula, Tor voltou a escrutinar a montanha a tênue luz do dia e viu em frente ao Campbell, quem tinha subido por uma rota teoricamente mais fácil, um monte de rochas alisadas pela erosão. Tor fez sinais com a mão para comprovar a outra vertente do pico antes de seguir adiante e para assegurar-se de que não deixava nem um claro por cobrir.

Não gostava de passar outra noite na montanha, mas o tempo lhe jogava em cima. Logo escureceria.

Christina estaria sentada junto à chaminé com seu trabalho…

Aquilo tinha que terminar. Não podia concentrar-se. Seus pensamentos voavam para sua mulher. Christina o tinha posto na incerteza. Não podia deixar de reviver mentalmente a cena que se desenrolara entre os dois em seus aposentos antes de sua partida. A excitação de Christina. O assombro inicial dele ao inteirar-se de que sua mulher tinha estudo, e logo sua cólera, desatada pelo medo, ao deduzir que ela tinha lido sua correspondência privada. Tor não podia tirar do pensamento a lembrança de sua expressão abatida e de seus doídos olhos, alagados de lágrimas.

Por alguma razão as contas eram importantes para ela, e sua reação a tinha decepcionado muitíssimo. O medo era o que tinha provocado nele sua atitude arruda. Deu-se conta nesse momento. Por muito equivocadas que fossem suas intenções, Christina só pretendia ajudá-lo. Estava ansiosa por surpreendê-lo, e o único que a ele tinha ocorrido era que a iniciativa de ajudá-lo poderia pô-la em perigo.

Pior ainda, esteve quase a ponto de lhe contar suas razões. E se tivesse ficado, o teria feito com toda segurança. Contenção. Resistência. Ambas as qualidades pareciam lhe abandonar quando entrava em cena sua encantadora esposa. Seu desesperado beijo de despedida o tinha demonstrado.

Louco por ela? Completamente louco. Levava a essa mulher no sangue, nos ossos, e não sabia o que fazer. Se não se andasse com cuidado, terminaria convertendo-se em um estúpido como seu irmão, que atuava em função das emoções em lugar de sopesar o que era melhor para o clã. Que tipo de líder seria se dançava ao som dos caprichos de uma mulher?

Quase tinha escurecido quando começou a descer. Ao não estar concentrado como devia, deu um mau passo e escorregou lançando uma placa de gelo ladeira abaixo que, na pronunciada costa, desencadeou uma pequena avalanche de rochas e neve. Recuperou o equilíbrio sem problemas, mas se reprovou o lapso. Mais valia concentrar-se no que estava fazendo se não quisesse terminar morto.

E então o viu.

Aos pés da pronunciado ravina, a uns cento e cinqüenta metros de altura, sepultado quase por completo sob a neve, havia a carcaça de um cervo. Situada não no cerco como deveria, se o animal tivesse morrido despencado, a não ser em uma estreita crista.

Isso era obra do MacRuairi. A pequena avalanche tinha posto ao descoberto seu esconderijo.

Tor sentiu que lhe bulia o sangue com o instinto do caçador que acaba de avistar sua presa. Com renovadas energias, começou a deslizar-se costa abaixo. Havia suficiente luz para orientar-se.

Ao aproximar-se de uma estreita saliencia rochosa, diminui a marcha e apoiou os pés com cuidado, centrando todos seus sentidos no terreno.

Tinha avançado uns passos quando aconteceu a catástrofe.

O chão a cedeu sob seus pés. Tor escorregou. Deu com o corpo contra uma rocha, de cara, e começou a deslizar-se pela saliencia. Lutou por agarrar-se a algo, mas a neve e a rocha caíam com ele precipitando-o abruptamente para a borda da ravina.

Ia muito depressa. O vento era ensurdecedor. Tentou agarrar-se onde fosse com ambas as mãos e medindo com os pés. A velocidade ia lançá-lo de costas ao ar quando seu corpo impactou contra uma rocha recortada que reduziu sua marcha, então Tor conseguiu colocar os dedos em uma greta que achou na vertente rochosa.

Mediu com os pés o muro de rocha, mas não encontrou nenhum ponto de apoio. Com o coração desbocado, tentou impulsionar-se para cima, mas foi inútil. A lisa parede de rocha e gelo não teve piedade dele.

Tor pendurava sobre o vazio agarrando-se com as mãos, com o corpo maltratado pela queda e provido com as pesadas armas que tinha atadas à costas. Não se atrevia a soltar uma mão para tirar-lhe ou alcançar a corda que levava em um lado, porque se se movesse, era homem morto.

E a menos que acontecesse um milagre, assim terminaria provavelmente ao cabo de uns minutos.

Escorregavam-lhe os dedos. As luvas de couro que levava eram tão escorregadias como a pele de uma enguia e não ofereciam resistência.

Movendo-se o menos possível, voltou a cabeça na direção em que tinha visto Campbell por última vez. Gritou na escuridão, mas tão somente ouviu o sufocado eco de sua própria voz reverberando em seus ouvidos.

Diabos. Sempre tinha pensado que morreria no campo de batalha, não despencando-se por uma ravina.

Ardiam-lhe os braços, e o peso de seu corpo o puxava para baixo. Apertou os dentes, lutando por sustentar-se. Não temia à morte, mas tampouco estava disposto a morrer.

De repente notou que algo lhe golpeava na mão. Ao princípio pensou que se tratava de uma rocha, mas então se deu conta de que era uma corda.

Uma voz imaterial gritou de acima:

—Agarrem, subirei-te.

MacRuairi. Se a situação não fosse tão extrema, teria se rido. Lachlan MacRuairi estaria mais disposto a enviá-lo ao inferno que a salvá-lo.

—Como sei que não soltaras a corda quando a agarrar?

Durante um momento só se ouviu o silêncio.

—Não sabes. Mas de onde estou não me parece que tenhas outra escolha.

Tor perjurou. MacRuairi tinha razão. Ia contra seu instinto, contra todo seu ser, mas tinha que confiar nessa víbora de sombrias intenções.

—Estás preparado? —gritou Tor.

—Sim.

Tomando uma baforada de ar, Tor soltou uma mão e se agarrou à corda.

Sustentou-o.

Temendo ainda debater-se no ar, soltou a outra mão e se agarrou à corda com os dedos. A operação levou um quarto de hora, mas lentamente e com muitíssimo esforço Tor foi içado pelo ravina. A uns metros da crista, MacRuairi atou a corda à rocha que tinha usado para içá-lo e lhe estendeu a mão.

Seus olhos se encontraram na escuridão. Sem titubear, Tor soltou a corda de salvamento e com a mão direita agarrou o braço e o antebraço do MacRuairi. Uns segundos depois seus pés descansavam sobre terra firme.

Tor se dobrou para frente tentando recuperar o fôlego e deixando que o sangue voltasse para circular por seus braços. A cabeça dava voltas em todas as direções. Endireitou-se e seu olhar se encontrou com o de seu salvador. Malvado. Implacável. Animado pelos princípios morais com que se regeria uma serpente. Mais predisposto a lhe fatiar o pescoço que a lhe salvar a pele. Enfrentaram-se em muitas batalhas para que Tor duvidasse de que MacRuairi não desejava sua morte.

—por quê? —perguntou.

MacRuairi deu de ombros como se a resposta carecesse de importância.

—Agora já não lhe devo nada.

Por lhe haver perdoado a vida no Finlaggan. Tor assentiu, embora soubesse que as coisas não seriam tão singelas. A razão de que Lachlan MacRuairi se encontrasse ali poderia ser mais complexa do que supunha. MacRuairi em pessoa podia ser mais complexo do que supunha. Tinha os nervos crispados. Levava tanto momento vendo tudo negro que espionar um retalho de cinza foi uma emoção.

Entretanto, uma coisa sim sabia com segurança: Tor devia a vida ao Lachlan MacRuairi.

*

Ao ser os dias tão curtos (o sol nessa época não se levantava até quase as nove para se por pouco menos que sete horas depois), o tempo deveria ter transcorrido com rapidez, mas as horas pareciam um canto fúnebre: lentas, monótonas e cadenciosas.

Nem sequer tinha passado uma semana, e, entretanto parecia que fazia um mês que Tor tinha partido. Apesar de que esteve fora em outras ocasiões, essa era a vez que Christina levava mais tempo sem vê-lo, e a paciência, como virtude, estava esquiva.

Tinha sido uma parva. Estar casada com um cavalheiro não consistia em encher os dias com excitantes torneios, contemplá-lo nas justas com seu véu pendurando da manga e passar longas noites abraçados diante da chaminé enquanto ele compunha um poema sobre seu amor por ela. Consistia em agüentar meses, possivelmente inclusive anos, de guerra e solidão.

Não havia nada romântico no fato de ficar sozinha, inquieta e preocupada. Correria perigo? Tor tinha negado a dizer seu paradeiro, e Christina ignorava se se encontraria a salvo. Entretanto, ao ter deixado todo seu corpo de guarda no castelo, suspeitava que não tivesse ido combater e que em lugar disso estaria em algum lugar com os homens aos que o tinha visto treinar.

Quais eram?

Não cedeu à curiosidade e afastou essa idéia de seu pensamento recordando perfeitamente sua advertência. Não tinha por que preocupar-se. Não era problema dela. Não era seu lugar.

Por conseguinte, Christina atendia seus deveres como a senhora do castelo e ajudava ao irmão John quando Rhuairi não andava perto, procurando não ler nenhum dos documentos que desfilavam ante seus olhos. Agora bem, até contando com os preparativos da festa do Yule, era curioso que tivesse tão poucas coisas que fazer atrás dessas muralhas do castelo que bem pareciam masmorras. O barmkin pelo que passeava pela manhã tinha começado a lhe parecer uma jaula.

E agora nem sequer tinha os livros de contabilidade para manter-se ocupada. Esteve tão segura de que funcionaria, de que organizar suas contas seria a maneira de demonstrar que podia formar parte de sua vida… Possivelmente essa certeza fora o que a tinha decepcionado mais.

Admiração… respeito… orgulho? Dificilmente. As tentativas de o impressionar com suas habilidades tinham fracassado tão estrepitosamente como com seu pai.

Enfurecia-lhe o modo em que Tor tinha reagido, ao princípio com ar protetor e logo com um ataque de raiva. Possivelmente ela se excedera lendo as cartas, mas o que queria que fizesse? Do que outra maneira podia chegar a ele? Tinha-lhe mostrado tudo o que tinha que lhe oferecer… mas não tinha sido suficiente.

Ali não havia um lugar para ela. Nem na vida de seu marido nem em seu coração. Se seria assim a partir de então, não seria capaz de suportar.

Durante um tempo acariciou a idéia de partir. Entretanto seguia albergando esperanças. Fazia depender sua felicidade de um beijo, ao que se aferrava pela breve fresta de ternura que tinha visto nele, a primeira greta em sua pétrea fachada.

Era parva por dar tanta importância a um beijo?

Christina atou a capa ao pescoço, fechou a porta atrás dela e se enfiou no corredor até tropeçar virtualmente com o irmão John, que saía dos aposentos particulares de Tor.

O clérigo se sobressaltou e demorou uns instantes em recuperar-se. Ao ver que Christina levava a capa, perguntou:

—Aonde vai esta manhã, milady?

—Tinha pensado ir ao povoado. O filho mais novo do curtidor está doente e a cozinheira preparou um caldo de frango que levarei. —Ao ver que ele também se vestira para resistir as inclemências do tempo, perguntou por sua vez—: E você?

—Ao povoado também - respondeu o irmão John franzindo o cenho—. Estais segura de que é prudente sair do castelo, minha senhora? Dizem que a febre se contagia. Possivelmente seria melhor que esperasses que retornasse o chefe; tem que voltar um dia destes.

O amalucado coração de Christina deu um tombo.

—Têm notícias dele?

O escrivão sacudiu a cabeça.

—Não, mas tenho entendido que o senhor estaria fora tão somente uns dias…

—Uns dias não - esclareceu ela com ar taciturno—, duas semanas.

O irmão John a olhou surpreso.

—Ah, compreendo. Possivelmente interpretei mal ao senescal.

Christina não se surpreendeu; ultimamente Rhuairi se mostrara muito pouco comunicativo. Tinha-a estado vigiando com um olhar estranho. Tor não a tinha proibido ajudar ao irmão John, mas Christina caiu na conta de que seu marido não tinha falado com o escrivão, e se perguntava se este estaria informado do que ela tinha feito. O irmão John a contemplava com atenção.

—Não acredito que o chefe goste que te ponhas em perigo.

Christina torceu o gesto. Que tentasse protestar «o chefe»! Assistir aos habitantes do povoado era seu dever como senhora do castelo. E Tor tinha deixado muito claro qual era seu lugar.

—Valorizo seu interesse, mas o risco é insignificante. A febre parece leve. —Christina dedicou um sorriso cúmplice—. Além disso, se ficar um dia mais encerrada atrás destes muros, acredito que ficarei louca.

O irmão John devolveu o sorriso.

—Entendo perfeitamente. Importaria se te acompanho? Se aguardares um momento, irei procurar uma coisa que esqueci nos aposentos do senhor.

—eu adorarei contar com sua companhia. Reunimo-nos na porta de entrada? Tenho que ir recolher a panela com o caldo que preparou a cozinheira.

Christina se alegrou de poder contar com sua companhia. A princípio o irmão John lhe pareceu curiosamente angustiado, mas quando este retornou, a angústia tinha desaparecido de seu rosto. O amanuense passou todo o dia com ela visitando não só ao filho do curtidor, mas também a vários meninos que tinham caído doentes. A cozinheira tinha dado caldo para alimentar a um exército, e não foi desperdiçado. Além disso, Christina deu aos meninos os últimos figos que restavam, e que tão apreciados eram para ela, para quando se restabelecessem.

Vários soldados da guarda de seu marido insistiram em acompanhá-la. Ao princípio Christina não acreditou ser necessário, mas logo agradeceu seu amparo. No momento em que saiu pelas portas do castelo, acusou vivamente a ausência de seu marido. Não tinha dado conta até então da segurança que lhe transmitia. Sem o escudo protetor de sua presença, de repente lhe pareceu que o mundo não pressagiava nada bom. Era absurdo, sim, e sabia. Não temia um possível ataque, ao menos durante o dia, mas a lembrança da visita do MacDougall seguia fresco em sua memória.

Entretanto, Tor tinha tomado precauções e tinha posto um guarda permanente no povoado.

Em qualquer caso, a satisfação de ter feito algo útil a compensou com acréscimo de qualquer temor que pudesse sentir. Enquanto retornava ao castelo no birlinn junto ao irmão John, sentiu-se feliz de ter ido ao povo e prometeu que voltaria a fazê-lo nos próximos dias.

Anoitecia, e a névoa descia à medida que se aproximavam do embarcadouro que havia junto à grade de saída para mar. Quando estavam a poucos passos de distância, Christina vu outra embarcação amarrada.

Deu-lhe um calafrio ao ver o falcão de temível aspecto que aparecia esculpido na proa.

—Reconhecem o navio? —perguntou ao escrivão.

—Não, nunca o tinha visto - respondeu ele sacudindo a cabeça.

Os guardas de Tor não pareciam preocupados.

O navio parecia estar a ponto de zarpar. Havia dois homens no molhe. Um deles era Rhuairi. O outro lhe entregou algo, saltou como uma centelha a bordo e largou as amarras. O irmão John também se fixou na operação.

—Possivelmente somente seja um mensageiro - sugeriu.

Christina relaxou um pouco pensando que provavelmente teria razão. Embora até que o navio se afastou não soltou um suspiro de alívio.

Rhuairi foi a seu encontro quando desembarcaram e estendeu a mão a Christina para ajudá-la a baixar.

—Passastes um bom dia, milady?

—Sim - respondeu ela—. Muito bom. Este que acaba de partir era um mensageiro?

Rhuairi lhe dirigiu um olhar inexpressivo.

—Não, minha senhora. Somente alguns homens dos clãs da região que queriam ver o chefe.

Christina cruzou olhar com o irmão John. Homens dos clãs da região? Esses homens eram guerreiros.

E só recordou o estranho intercâmbio momentos depois.

*

Várias horas depois de quase despencado, Tor se sentava com as costas apoiada em uma rocha baixa e lisa e as pernas estendidas frente às resplandecentes brasas da fogueira enquanto escutava discutir os guerreiros. A situação o relaxava curiosamente. Estava cômodo, porque era previsível. Era como quando, de pequenos, brigava com seus irmãos dando voltas ao assoalho. Como sempre, conversavam da guerra que se abatia entre Escócia e Inglaterra, e do momento, se é que existia a possibilidade, de que Bruce movesse a sua peça no tabuleiro.

Devia ser perto de meia-noite, e pensando no que tinha planejado para o dia seguinte, teria que estar deitado já. Entretanto, seguia muito inquieto pelo acontecido horas antes para poder dormir.

Quando os homens viram que MacRuairi e ele retornavam colina abaixo, deram por certo que era Tor quem o tinha encontrado. MacRuairi, um homem cheio de surpresas, não tentou desenganá-los, mas sim foi Tor quem explicou brevemente o que tinha acontecido. Os homens ficaram tão surpresos como ele, possivelmente exceção de Gordon. MacRuairi se mantinha à margem, e à maioria dos homens parecia bem essa atitude. Entretanto, Gordon, o jovem e sociável alquimista, parecia não perceber a ameaçadora nuvem que se abatia sobre o MacRuairi e ambos tinham travado uma espécie de amizade, se podia chamar-se amizade ao feito de que Gordon falasse e MacRuairi escutasse.

A profunda voz do MacLean interrompeu o fio de seus pensamentos.

—O erro do Wallace foi pensar que podia repetir o êxito que teve no Stirling Bridge e vencer a Eduardo em uma batalha campal, enfrentando dois exércitos. Deveria ter seguido atacando de surpresa; essa era a força de sua liderança. Depois de perder no Falkirk, era um homem acabado. Somente sua estratégia de terra queimada impediu que Eduardo se apropriasse da Escócia naquele momento.

Quanto mais Tor escutava ao MacLean, mais valorizava a mente tão clara que tinha para organizar táticas e estratégias militares. E sua intenção adiante era aproveitar esse talento. Embora, retificou, seria MacSorley quem o aproveitaria.

—Vocês não estiveram ali - reprovou Boyd, encolerizado. O bravo patriota não tolerava que se criticasse ao Wallace porque tinha lutado junto a ele durante anos—. Não foi Wallace o traidor, senão os Comyn, que nos fizeram perder no Falkirk ao retirarem-se e abandonar à mercê dos arqueiros de Eduardo os nossos lançadores formados em falange escocesa.

MacRuairi em geral evitava falar de política, mas gostava de jogar lenha ao fogo entre o Seton e Boyd, embora sua ajuda fosse desnecessária.

—Sir Dragão, parece que têm algo que dizer - comentou utilizando o apelido pelo que o conheciam e que se referia ao brasão que Seton insistia em levar em seu tabardo.

Seton apertou a mandíbula.

—Não é um dragão, maldito bárbaro, é um guiverno29 — lhe espetou com guelra. MacRuairi sabia perfeitamente de que animal se tratava—. Wallace perdeu porque não foi capaz de controlar seus homens na batalha campal. Sabia provocar incêndios e atacar de noite, mas o que Falkirk nos demonstrou foi que uma infantaria desorganizada e indisciplinada, por mais valente que seja, não pode enfrentar a cavalheiros treinados.

Boyd tinha o aspecto de querer arrancar a cabeça do jovem inglês, mas depois da recente catástrofe do lago não queria dar rédea solta à raiva que lhe inspirava seu colega.

—Se isso for o que pensam, por que demônios estais aqui?

Seton o olhou com um desprezo altivo.

—Bruce é meu suserano.

—E seu suserano é o rei Eduardo -assinalou Boyd—. Não deverias estar lutando para ele?

Seton avermelhou de raiva.

—por que vocês estão aqui? Não faz muito tempo lutavam no lado do Comyn.

—Lutei no lado do Leão - protestou Boyd entre dentes, referindo-se ao símbolo escocês da realeza—. Sempre pela Escócia, e agora é Robert de Bruce quem a representa. Antes verei você no trono que ao Comyn. Esse perdeu o direito à coroa quando desertou e nos abandonou no campo de batalha.

Com ânimo de aliviar a tensão, MacLean interveio.

—Bruce aprendeu com os erros do Wallace. Que estejamos aqui dá fé disso. Não se enfrentará a Eduardo com os exércitos até que esteja preparado. E Bruce é um cavalheiro, um dos melhores da Cristandade. Quando chegar o momento, saberá como comandar um exército.

Seton se dirigiu ao MacRuairi para lhe fazer compreender que tinha captado que era ele quem tinha provocado a discussão.

—E você? Por que estás aqui? Por algum assunto nobre como encher suas arcas? —perguntou-lhe com uma gargalhada zombadora sem preocupar-se de dissimular seu desprezo.

A expressão do MacRuairi era inescrutável.

—Certamente não arriscaria a pele por um pouco tão efêmero como o patriotismo ou o dever. O que pode haver melhor que a riqueza?

Tinha respondido com muita naturalidade, mas Tor compreendeu que não estava dizendo a verdade. Ao menos, toda a verdade.

—E por uma mulher? —interveio MacSorley sorrindo ao Tor—. Não me ocorre um motivo melhor para arriscar a pele que a promessa de uma doce moça em minha cama.

—Te está cansando a mão, MacSorley? —perguntou Lamont com brutalidade.

O enorme escandinavo sacudiu a cabeça com desconsolo.

—Como seguimos assim durante mais semanas terei que fazer proposições.

Os homens riram a gargalhadas. Praticamente surto da necessidade. A guerra e os deslocamentos às vezes os obrigavam a passar várias semanas sem mulheres.

—Quando terminarmos com isto, farei uma parada no Mull porque ali me espera uma jovem muito fogosa, com as maiores e doces tetas do mundo. Uma pele branca como o leite, perfeita. Uns mamilos de um rosa muito claro e do tamanho de duas pérolazinhas. —MacSorley sorriu, nostálgico—. Um vento favorável, a pança cheia e uma garota bonita. Não é preciso de grandes coisas para me fazer feliz.

MacSorley tinha adotado a atitude de despreocupação que o fazia tão popular e eficaz na hora de aliviar a tensão nas filas. Era a atitude que também adotava no campo de batalha. Tor recordou seu assombro ao ver sorrir ao grande viking enquanto brandia sobre ele sua terrível tocha de guerra no fragor da batalha.

Entretanto, Tor não confundia a afabilidade do MacSorley por debilidade ou tibieza. Detrás daquele sorriso se escondia um homem de aço. Somente em uma ocasião lhe tinha visto perder esse sorriso pícaro, e tinha sido algo digno de ver. Alguns diziam dele que era frio e desumano.

—Casara-te com a garota, MacSorley? —perguntou Seton.

O viking virtualmente se afogou com um gole do cuirm que estava tomando.

—Pelo sangue de Cristo! Pode saber-se por que teria que cometer essa barbaridade? A diferença de nosso santo padroeiro, esse daí - disse assinalando ao MacKay—, vocês acreditam que me conformarei com um único par de tetas, por muito tentadoras que sejam, para toda a vida? —E deu de ombros—. Além disso, não quereria privar às outras garotas dos benefícios de minha experiência.

—Que se lasque, MacSorley - grunhiu o áspero escocês das Highlands.

Contrariamente ao resto dos homens, MacKay nunca falava de mulheres. E esse rasgo avivava a curiosidade do MacSorley quem, ao não vê-la satisfeita, indevidamente seguia cravando-o.

—Isso é o mais romântico que o ouvi dizer desde que estão aqui - se burlou MacSorley—. Entre você e MacLean, é difícil dizer quem dos dois vai ser monge.

MacLean estava recém casado; entretanto permaneceu em silêncio quando surgiu o tema. Por uma boa razão: casou-se com uma MacDowell, parente dos MacDougall e dos Comyn.

—Nunca falas de sua prometida, Gordon - disse Seton desviando a atenção do MacLean.

Gordon deu de ombros.

—Não há muito que dizer, apenas a conheço.

—Quem é? —perguntou Seton.

Gordon titubeou.

—Helen, a filha do William de Moray, conde de Sutherland.

Tor estava olhando ao MacKay no momento em que Gordon anunciou a nova, e viu o assombro e a dor pintar-se em seu rosto antes que pudesse dissimulá-los. Gordon deve ter interpretado também a expressão de seu amigo, porque Tor viu o olhar de silenciosa desculpa que lhe dirigiu.

Tor compreendeu por que Gordon não havia dito nada até então. Inflamadas brigas dos MacKay com o clã dos Sutherland eram muito conhecidas, mas Tor se perguntou se não haveria algo mais.

A conversação derivou de novo para a política e o momento em que seriam chamados as armas. Tor agradeceu a mudança de tema, porque sabia que o viking não demoraria muito em voltar a açulá-lo. E ele quão último desejava falar era de sua mulher. Tinha um trabalho que fazer, e só quando o tivesse terminado arrumaria as coisas entre eles. Não lhe faria nenhum bem dar voltas e mais voltas as coisas que não podia mudar. Entretanto, preocupava-lhe o modo em que se despediu de Christina. Prometeu-se que a compensaria da rudeza quando retornasse.

Voltou a recordar a cena recente na montanha. MacRuairi estava sentado um pouco afastado do grupo, envolto na escuridão, passando a pedra de afiar pela folha de uma de suas espadas.

Tor ficou em pé e foi sentar se junto a ele. Ao cabo de um momento, disselhe:

—Não foram vocês… Refiro aos últimos ataques por surpresa que sofremos no Skye.

MacRuairi não se incomodou em levantar o olhar, mas sim seguiu afiando a folha com a pedra.

—Tinha a impressão de que tínhamos combinado uma trégua.

—Não é a primeira vez que me encontro no outro lado de uma de suas «tréguas».

Se MacRuairi se ofendeu, não o deixou entrever, mas sim deixou de afiar sua espada.

—É certo, mas agora somos da mesma família. —Sorriu ao ver a careta de Tor—. Quem acreditas que pode ter sido?

A expressão de Tor era séria.

—Não sei. Possivelmente Nicolson, embora MacDonald me assegurasse que ultimamente se acha calmo.

—Melhor que os ataques não foram dirigidos contra você, mas sim tão somente fostes um objetivo propício.

Tor franziu o cenho.

—Sim, é possível.

Entretanto, os ataques não pareciam produto do azar, a não ser algo pessoal. Não só tinham consistido em capturar o gado e roubar as colheitas; seu povo também esteve no ponto do alvo. Por essa razão, entre outras, tinha suspeitado do MacRuairi.

—Quando foi o último?

—Quando me encontrava no Finlaggan.

—E o anterior? Também tinham te ausentado?

Tor negou com a cabeça, mas então recordou.

—Teria que estar fora, mas no último momento troquei de planos.

MacRuairi o observou com ar pensativo.

—Sem dar tempo a que alguém recebesse uma carta anunciando a mudança?

—Sim - coincidiu Tor ao compreender o que MacRuairi estava sugerindo—. Acredita ser possível que alguém esteja me espiando - disse cansativamente. Seu instinto se rebelava ante essa idéia. Conhecia seus homens.

MacRuairi deu de ombros.

—É uma possibilidade.

Por muito que a Tor desgostasse pensar que entre seu povo havia alguém que pudesse traí-lo, MacRuairi tinha razão. Devia considerar essa opção. Quem podia estar tão zangado com ele para tomar-se tantas moléstias? Nicolson, sem dúvida. E a julgar pelos ataques mais recentes, teria que acrescentar o nome do MacDougall à lista.

Se alguém o estava espiando…

Soltou um suspiro. Seu primeiro pensamento voou para Christina. Obrigou-se a fazer caso omisso de uma pontada que somente podia interpretar como pânico. Ela estava a salvo. Ninguém podia introduzir-se no castelo; Dunvegan era impenetrável.

—Quem sabe quanto tempo estaras fora? —perguntou MacRuairi lhe lendo o pensamento.

—Muita gente - respondeu Tor, ficando em pé de um salto e esquecendo o cansaço—. Se partirmos agora mesmo, poderemos chegar ali antes de meio-dia.

*

O irmão John se estava convertendo em uma enfermeira extremamente protetora.

—Hoje não, minha senhora. Indo amanhã é suficiente. Os meninos se encontram melhor e você perdoe que lhe diga isso, parecem cansada.

Estava cansada em realidade. Quando estava por vir a menstruação, como sempre, sentia uns espasmos dolorosos e tinha enxaqueca. Agora não ia explicar lhe isso a um clérigo.

—Estou bem, e não vou perder um dia tão bonito. Esqueci já o aspecto que tem o sol. Vamos, não demoraremos muito em voltar.

Entretanto, Christina se equivocara. Os meninos se encontravam muito melhor e tinham decidido entretê-la com uma canção e uma dança dedicada especialmente a ela. Era quase meio-dia quando pôde embarcar com o irmão John na galera que os levaria de retorno ao castelo.

—Mais devagar, irmão John - disse ela rindo-se—. Jamais o tinha visto caminhar tão depressa.

O escrivão sorriu.

—Ah, sim? Sinto muito, minha senhora. Deve ser a fome.

—depois dos bolos que comestes?

—Tenho debilidade pelas ameixas - confessou ele, ruborizando-se.

—Eu também. Que delícia as comer quando a temporada está já tão avançada!

De repente, o irmão John se parou em seco.

—ouvistes isso?

—Ouvir o que…?

Sua pergunta se viu interrompida pelo som distante de uma corneta. Ficou lívida. Olhou ao amanuense e, refletido em seu olhar, viu seu próprio pânico.

—O que foi isso? —perguntou ao Colyne, um dos guardas do séquito.

Embora adivinhasse a resposta, não por isso lhe impactou menos ouvi-la.

—É uma advertência do castelo, milady - esclareceu o irmão John com expressão sombria—. Atacam-nos.


Capítulo 20


Tor viu as primeiras colunas de fumaça procedentes do povoado desde de um quilômetro de distância, justo quando Campbell e MacGregor retornavam com seu relatório.

Sua expressão era lúgubre.

—Ao menos há uns cento e cinqüenta homens, quase todos mercenários, isso parece -disse Campbell—. Contei quatro galeras de guerra no molhe, mas acredito que no castelo deve haver mais para impedir que os homens que ficam dentro possam chegar ao povoado.

«Ela está a salvo», recordou-se. Obrigou-se a controlar a mente sabendo que não podia permitir distrações. Mercenários, havia dito Campbell. Aquilo não era um ataque surpresa, a não ser uma guerra a grande escala. Tinha destcado um corpo de guarda para proteger o povoado, mas seus homens eram superados com acréscimo pelas forças inimizades.

—Quantos feridos?

—Várias dúzias - respondeu MacGregor—. Quase todos inimigos. Dois dos seus homens. Seus guardas formaram um muro protetor para assegurar o passo do molhe até o povoado.

Tor assentiu, nada surpreso. Seus homens estavam bem treinados, acostumados a enfrentar-se com forças superiores a eles. Era uma de suas táticas favoritas. Como o rei Leônidas fizera na batalha das Termópilas, tinham escolhido lutar na parte mais estreita do povoado para rebater a vantagem numérica de seus inimigos. Durante um tempo. Mas não poderiam resistir eternamente com tão poucas probabilidades de ganhar. E a semelhança do mesmo destino fatal dos trezentos espartanos que resistiram no passo das Termópilas, havia mais de um caminho para acessar ao povo.

—E entre as pessoas do povoado? —perguntou Tor.

Ao MacGregor lhe quebrou a voz.

—Três homens, uma mulher e um menino pelo que pude comprovar. Outros devem ter encontrado algum refúgio, mas o inimigo atua sem piedade.

Tor fechou os punhos com uma raiva mal contida. Dirimiria a cólera que sentia nascer nele com a acerada espada da justiça. Fossem quem fosse seus inimigos, pagariam pelo que tinham feito.

Tor não era o único ansioso por lutar. Apesar da equipe ter percorrido vários quilômetros de terreno escarpado durante toda a noite, as notícias do Campbell e MacGregor causaram o impacto de um raio. Nada estimulava tanto a um guerreiro como a promessa da batalha. E esses guerreiros levavam muito tempo contendo-se.

Entretanto, não era essa sua guerra.

Os homens se reuniram em torno dele no arvoredo. A pesar do rigoroso treinamento que tinham suportado na semana anterior e de ter caminhando toda a noite sem ter dormido, a guarda de elite parecia brava e letal. Seu aspecto andrajoso e descuidado so contribuía a conferir ferocidade a seus rostos grisalhos e curtidos nas batalhas. Tor olhou a cada um deles.

—Alistaram-se para lutar pelo Bruce, não por mim. Ouvistes o que contou Campbell: ao menos são uns cento e cinqüenta homens; eu tenho dezoito, pode ser que menos.

—Dezenove - apostilou MacSorley dando um passo à frente—. Nem por todo o ouro do mundo vou deixar que sejam o único em lhe divertir. —O enorme viking sorriu—. Demos aos histriões escandinavos motivos para nos cantar.

Outros homens deram um passo à frente e se situaram atrás dele, salvo um.

—É hora de pôr em prática o treinamento, capitão - disse Boyd.

Tor olhou ao homem que se ficou atrás. MacRuairi se apoiava indolentemente em uma árvore. Deu de ombros e descruzou os braços. Os dois punhos de suas espadas se elevaram ameaçadoras atrás de seus ombros, como o sorriso que curvava seus lábios.

—Alguém terá que cobrir ao MacSorley.

Tor assentiu, comovido pela unânime amostra de apoio.

Consciente de que tinham que atuar depressa, Tor esboçou o plano. A metade da equipe atuaria como reforço dos homens que formavam o muro protetor; a outra metade se deslocaria ao redor para flanqueá-los e atacaria por ambos os lados.

—Estão preparados?

—Sim, capitão - responderam os guerreiros ao uníssono, com a determinação e a antecipação grafitada em seus rostos.

Detrás da máscara metálica de seu elmo, Tor sorriu, e seus lábios se curvaram em uma terrorífica careta em que não cabia a piedade.

—demos então uma surpresa antes de mandá-los ao inferno - afirmou levantando sua adaga ao ar—. Vitória ou morte!

—Vitória ou morte! —exclamaram seus homens ao uníssono.

Sabendo que somente carregariam com um peso desnecessário, abandonaram seus pertences para trás e saíram correndo. Em pouco mais de cinco minutos chegaram aos subúrbios do povoado.

O distante clamor da batalha em contraste com a desolada quietude das casas de pedra cobertas de cal era fantasmagórico. Várias flechas acesas tinham centrado seu objetivo nos tetos de palha. No ar carregado de fumaça se cheirava a densidade inconfundível e metálica do sangue.

Quando chegaram perto, Tor amaldiçoou ao advertir que era muito tarde para pôr em prática o plano de flanqueá-los. Os atacantes, providos com pesadas armaduras, tinham ocupado todo o povoado. O muro protetor tinha sido franqueado.

Tor mudou de tática imediatamente. Não consistiria em um ataque por surpresa cuidadosamente orquestrado, a não ser em uma explosão acérrima de força e perícia.

Tinham tudo em contra. Tor sabia que se tivesse sozinho, não teria tido nenhuma oportunidade. Mas não estava. E nunca lhe tinha preocupado ter tudo em contra. Lutava para ganhar.

Levando a mão à costas, desembainhou sua magnífica cutilada claidheamh dá laimh e deu o sinal que todos estavam esperando. Com um feroz grito de guerra, o grupo atacou.

MacGregor lançou uma rápida surriada de flechas, disparada com uma pontaria perfeita e uma trajetória em ângulo que perfuraria qualquer armadura, de malha ou de couro. Caíram seis homens antes que Tor tivesse a oportunidade de usar a espada.

Com um movimento letal, este último acrescentou um par de homens mais à lista. Girou sobre si mesmo rechaçando a folha de um atacante. Entrechoque de aço. Apesar da confrontação corpo a corpo, Tor mal moveu a espada, tão somente flexionou os músculos, duros como uma pedra.

Sem piedade. Com um rugido colérico, arremeteu contra seu competidor, levantou a espada e a brandiu com todas suas forças sobre sua cabeça lhe destroçando o crânio como se fosse uma cabaça.

Não sentiu nada. Animava-o um frio propósito.

Esfaqueando, brandindo, rechaçando, Tor riscou com sua espada um caminho de sangue e destruição entre os assombrados atacantes. Como o raio de que tinha tomado seu nome, bheithir arremeteu contra tudo o que encontrou a seu passo. O prazer da batalha corria pelas veias de Tor. Tinha os sentidos acordados, afinados, e uma estranha euforia se apoderou dele. Sua mente se concentrou na única certeza que importava em uma guerra: vitória ou morre.

A morte estava presente. Entretanto, enfrentado a sua mortalidade, sentiu-se mais vivo que nunca. A cada golpe que dava se sentia mais forte. Mais resistente. Mais invencível.

E não estava sozinho.

A visão desses homens juntos era terrorífica. Onze guerreiros magníficos arremetendo à carga com violência. Eram selvagens e temíveis, e lutando em parceria, semeavam o terror. Formavam uma combinação letal de espadas, tochas de guerra, maças e lanças dirigidas com soma mestria.

O inimigo nunca tinha visto nada parecido.

Em lugar de encontrar-se com uns indefesos habitantes do povoado, tinham que enfrentar a um exército fantasmagórico formado por guerreiros de aparência indestrutíveis. Estava claro que não eram essas as condições que os mercenários esperavam, nem as que tinham aceito alistando-se. Por isso, quando nem sequer tinha transcorrido um quarto de hora, bateram-se em retirada. Imitando aos guardas de Tor, os atacantes formaram um muro de amparo com o passar do caminho que conduzia ao molhe para alcançar suas galeras.

Tor e seus homens abriram caminho lutando, mas os navios de guerra começavam já a zarpar.

—Sigam - gritou ao MacSorley e ao MacRuairi.

Os aparentados guerreiros de sangue escandinavo saltaram sem hesitações a um pequeno birlinn que se usava como transbordador do castelo, e com um punhado de homens partiram para a caça das galeras que se afastavam.

Alguns mercenários não puderam alcançar as naves a tempo. Com a intenção de interrogá-los, Tor quis capturá-los vivos. Foi um engano.

MacGregor tinha deixado o arco e estava atendendo a um dos guardas feridos de Tor quando um dos inimigos que ficou em terra lançou sua lança.

Tor o aniquilou com a espada e lançou um grito de advertência, mas MacGregor se voltou muito tarde. A lança sulcou uma trajetória letal no ar apontando a sua cabeça.

Se Tor não tivesse visto com seus próprios olhos o que aconteceu a seguir, jamais teria acreditado.

Campbell se adiantou e apanhou a lança com uma mão, tão somente a uns centímetros do rosto do MacGregor. Com um sutil movimento a levou ao joelho, partiu a grosa madeira em dois e a lançou aos pés de seu companheiro.

Ouviu-se uma exclamação no campo de batalha.

MacGregor, que tinha visto a morte cara a cara, demorou uns segundos em recuperar-se.

—Demônios, Campbell, onde aprendeu a fazer isso?

O silencioso soldado das Terras Altas deu de ombros.

—Jogava isso com meus irmãos.

—A esta família gosta do sangue… —disse MacGregor com ironia.

Sem que lhe escapasse o sarcasmo, Campbell sorriu e lançou um olhar desafiante a esse homem que, apesar de ser de um clã rival, já se tinha convertido em um companheiro.

—Agora não poderão dizer que um Campbell nunca levantou uma mão para salvar a um MacGregor.

Em lugar de lhe soltar um bufo, como estava acostumado a fazer, MacGregor jogou a cabeça para trás e riu a gargalhadas.

Nesse momento Tor pensou que pouco ficava por ver. A menos que se equivocasse, Campbell e MacGregor tinham começado a superar suas diferenças. A camaradagem ia consolidando-se no grupo, e nem sequer ele era imune a isso. Restava esperança ainda para o Boyd e Seton?

Não lhe pareceu tão impossível.

Sacudindo a cabeça, Tor se voltou para terminar de atar aos prisioneiros. Muito tarde: todos os inimigos tinham sido mortos. Amaldiçoou sua sorte, embora soubesse que descobrir da boca de algum mercenário a identidade dos que estavam atrás do ataque surpresa era uma possibilidade muito remota. Possivelmente se MacSorley e MacRuairi alcançassem às naves obteria mais informação.

Poucos homens eram capazes de reunir um grupo tão numeroso de mercenários, embora um nome lhe viesse à cabeça: MacDougall.

A notícia de suas bodas teria sido a causa desse ataque? Não tinha sido como os anteriores. Aqueles homens tinham ido destruir e assassinar.

Gelou-lhe o sangue quando viu os cadáveres de uma mulher e de seu filho. O menino não teria mais de três anos. A mãe tinha tentado protegê-lo com seu corpo, mas a espada tinha atravessado a ambos. A raiva, o pesar e a amargura lhe deixaram um estranho sabor na boca.

Isso era exatamente o que queria evitar.

Voltou-se para não ver os cadáveres, mas a imagem lhe tinha gravado a fogo vivo na memória.

Consciente do perigo, ordenou a seus homens que retornassem a broch para que não fossem vistos por todos no povoado. Seu trabalho já tinha terminado.

Devia-lhes muito, e sabia que jamais teria conseguido sem eles. E isso o deixava em uma posição muito estranha, na posição de ter que confiar em outros. Combater junto a eles tinha sido uma experiência única. Tinha treinado a muitos homens, mas não eram como esses. Eles eram seus iguais, e tinham umas habilidades que superavam as suas próprias. Como líder, Tor estava acostumado a manter-se à margem. O irônico de seu encargo era que tinha que fomentar a camaradagem, mas nunca pudera integrar-se no grupo. Entretanto, esse dia as coisas tinham ido de uma maneira difernte.

Lentamente o povoado foi voltando para a vida. Portas se abriram e os homens do clã, emocionados, saíram de suas casas. Tor se surpreendeu ao ver que Colyne e um grupo de guardas saíam da capela.

—O que estão fazendo aqui? Por que não estavam lutando com os outros?

—Graças a Deus que viestes no momento oportuno, RI tuath.

—Porquê…?

Estrangulou-lhe a pergunta ao ver depois dos guardas à pessoa que saía pela porta da capela.

Ficou como pedra. Lívido. O que somente poderia ter qualificado de um terror que lhe gelava o sangue se apoderou dele. Não era possível.

Entretanto, sim era. Sua esposa estava ante ele. Seus olhos grandes e cheios de lágrimas destacavam em seu pálido e ovalado rosto cravando-se nele. Durante uns momentos o tempo pareceu deter-se. Ficaram se olhando, e entre os dois fluiu algo grande e poderoso. Uma emoção tão estranha que Tor nem sequer soube descrevê-la, salvo como um peso no peito, um nó ardente de dor e horror.

«Podiam tê-la assassinado.»

Quis soltar um alarido instintivo, mas o que ela fez então o deixou petrificado. Ignorando o que havia a seu redor, o açougue, o sangue que manchava o chão, que o manchava a ele, jogou-se em seus braços.

A Tor o coração deu um tombo. Algo se revolveu em seu interior. Algo quente e poderoso.

Estreitou-a entre seus braços e murmurou umas palavras cálidas para consolar não só à mulher que soluçava contra seu peito, mas também para consolar-se a si mesmo.

*

Com os olhos arrasados em lágrimas, Christina olhou ao homem sujo e manchado de sangue que a abraçava. Nunca tinha se alegrado tanto de ver alguém. Abriu os olhos da surpresa ao advertir o grande corte que tinha no rosto e o arroxeado do olho.

—Está ferido - disse, chorando e lhe acariciando o rosto.

Entretanto, Tor a tirou de cima.

—Estou bem - disse ele com brutalidade.

Christina franziu o cenho. Podia ser o grande guerreiro invencível com seus homens, mas quando voltasse para castelo com lhe curaria essa ferida, por bem ou não.

—Estou muito contente de que esteja são e salvo. Vieram muitas galeras.

Os que se resguardaram na igreja não puderam ver nada, mas quando ouviu o fragor da luta, ela soube que ali estava seu marido.

Tor ficou perplexo.

—Contente de que eu esteja são e salvo?

Christina viu que sua incredulidade se convertia em raiva. Agarrou-a pelos ombros enquanto parecia esforçar-se por não sacudi-la.

—Está bem da cabeça? E você, o que? Sabe o que teria passado se eu não tivesse chegado a tempo?

«Está assustado.» A preocupação que sentia por ela o tinha feito ir às nuvens. Por que não teria dado conta antes? Isso arrojava uma luz completamente diferente a seus arranques de mau gênio.

—estive a salvo no santuário da igreja, junto a outros. Foi idéia do irmão John - disse ela sorrindo ao escrivão, que acabava de chegar e se situou a suas costas.

Tor pareceu algo irritado ao vê-lo.

—Não todos os homens respeitam o santuário da igreja.

—E por essa razão seus homens insistiram em custodiar a porta em lugar de unir-se a outros. Não corri nenhum perigo, de verdade. —Tinha tido um medo espantoso, mas dado o estado de ânimo de Tor decidiu guardar essa informação para mais adiante—. E embora tivessem violado o santuário, o irmão John tinha me escondido sob o banco do confessionário. Nunca me teriam encontrado.

Tor se voltou para o amanuense, e com a boca seca lhe disse:

—Acredito que lhe devo minha gratidão.

O agradecimento fez avermelhar ao jovem clérigo. Um rubor coloriu suas finas e sardentas bochechas.

—Desejava com toda a alma poder retornar a tempo ao castelo - explicou—. Não imaginam nossa alegria ao ouvir que chegavam com seus homens. Pelo estrondo, parecia que lhe acompanhava um exército. —O amanuense olhou ao redor franzindo o cenho—. Aonde foram todos?

—Retornei cedo e pude reunir a alguns homens do castelo - explicou Tor—. Foram perseguir os assaltantes.

A incredulidade fez que o irmão John franzisse o cenho. Christina temeu que a explicação de Tor não o tivesse satisfeito.

—Entendo - respondeu o irmão John.

—Quem eram? —perguntou Christina—. Por que razão quereria ninguém nos atacar com tanta sanha?

—Não sei - disse Tor com expressão lúgubre—. Mas tenho a intenção de averiguar.

Vendo o olhar desumano que aparecia nos olhos de seu marido, Christina quase compadeceu do responsável quando Tor o encontrasse. Esteve afastando o olhar do panorama que se estendia a suas costas, mas o que havia no chão não lhe permitiu escapar do horror. O nauseabundo aroma da morte impregnava o ar. Não precisava desviar o olhar para os cadáveres para saber que se encontravam ali.

Tor pareceu recordar o contexto no que estavam no mesmo instante que ela. Pegou-a pelo braço e fez o gesto de levá-la —Vem pra cá…

Christina se soltou ao chamar a sua atenção algo que havia no chão.

Por todos os Santos, oxalá não se fixara.

—Não. Vem. —Tor tentou afastá-la dali, mas ela se soltou de seu braço.

—me deixe - exclamou com um grito afogado. O estômago lhe revolveu e notou o sabor da bílis. Tampou a boca com a mão, como se assim pudesse reter as náuseas. Adiantou-se uns passos e se pôs de joelhos no chão, embargada pelo desespero e o horror.

O cadáver de uma mulher jazia de barriga para baixo atravessado sobre o de um menino. Christina os conhecia. Eram a mulher do oficial e seu filho. Tremendo, acariciou o sedoso e loiro cabelo do menino. Ainda estava quente pelo sol. As lágrimas se amontoaram em seus olhos. Olhou a seu marido, musculoso e provido com sua armadura, uma sombra imponente a contraluz. Como podia dedicar-se a isso? Como podia estar sempre rodeado de tantas mortes? Como não morria do espanto?

—Que tipo de monstro pode ter feito algo assim?


Tor sacudiu a cabeça com ar sombrio.

De repente, uma idéia horripilante cruzou pelo pensamento de Christina. E essa idéia lhe pesou no coração. Todo aquilo era culpa dela?

—Pode ter sido MacDougall?

Tor apertou a mandíbula como se tivesse adivinhado o que pensava sua mulher. Tinha pensado ele também?

—É possível. Mas há outros candidatos.

Christina voltou a contemplar à mãe e ao menino, com as lágrimas rodando pelas bochechas, rezando para que isso não tivesse nada que ver com ela.

—Vem. —Tor a afastou dali com cuidado—. Não pense nisso.

Christina se voltou para ele, indignada, e olhou fixamente esse rosto brutalmente formoso. Nem um indício de emoção em sua estóica expressão. Era impensável que pudesse olhar o cadáver de um menino inocente sem que isso lhe afetasse.

—Como não vou pensar nisso? O que te passa? Nada lhe afeta?

Tor a olhou com dureza; seus olhos azuis eram frios como o gelo.

—Não me posso permitir isso. Mas porque não demonstre minhas emoções não significa que seja incapaz de sentir.

Compreender isso foi como receber um murro. Assim funcionava Tor. Pela primeira vez compreendeu por que precisava ser tão frio. Compreendeu que ao ocultar as emoções protegia a si mesmo dessas condições tão monstruosas e brutais.

Mal conhecia a mulher e ao menino que estavam frente a ela, e entretanto a embargavam um sofrimento, uma tristeza e um horror insuportáveis. O que devia sentir-se quando eram os amigos, os homens com os que tinha lutado durante anos os que morriam brutalmente assassinados ante seus olhos?

Estremeceu. O gelo era um bom escudo protetor que seu marido necessitava para sobreviver.

Teve piedade dele do fundo de seu coração. Embora Tor não mostrasse compaixão, sentia-a. E que ocultasse suas emoções não era surpreendente se tinha em conta seu passado. Somente precisava ter mais paciência com ele.

—Sinto muito - disse ela com ternura.

Tor assentiu. Permitiu que a levasse dali, mas o chão a parecia mover-se sob seus pés, como se caminhasse pelo convés de um navio em plena tormenta. Tinha o estômago revolto e sentia arcadas. O suor perolava a testa.

Não se encontrava bem.

—por que saiu do castelo? —perguntou Tor—. O que estava fazendo no povo?

Christina perdeu o equilíbrio.

—Tina, o que acontece?

Detectou um que de alarme em sua voz, embora soasse longínqua, como se ela estivesse sob a água. Dava-lhe voltas a cabeça, e quando ergueu os olhos para olhá-lo, viu sua imagem imprecisa, desfocada.

—Não me… —conseguiu articular antes que todo se ficasse escuro.

*

Quando despertou estava sumida na escuridão. Moveu as pálpebras, mas lhe pesavam tanto que as manteve fechadas. Por que fazia tanto calor? Sentia como se estivesse dormindo sobre uma fogueira. Afastou os lençóis, revolveu-se e tentou ficar cômoda sem conseguir.

Notou uma mão grande na frente que a acalmava. Uns murmúrios de fundo. Haviam tornado a cobri-la. Queixou-se fracamente, e só se tranqüilizou quando voltou a ouvir a voz. Suspirou, rebelou-se, até que a escuridão voltou a abater-se sobre ela.

*

Quando Christina despertou pela segunda vez era pela manhã. Foi capaz de abrir os olhos, embora antes piscou umas quantas vezes. Se despertou sentindo-se como nova, como se tivesse dormido profundamente.

Franziu o cenho. Dormido? Como tinha chegado a seus aposentos? Quão último recordava era…

Ouviu um ruído e olhou para o outro extremo do aposento. Tor se revolvia em uma cadeira de madeira, coberto com uma manta, tentando, sem conseguir pelo que parecia, ficar a vontade. Soltou uma maldição, e algo em sua expressão colérica e exaltada a fez rir.

Tor deixou cair ao chão a banda escocesa que levava a ombro, ficou em pé e correu a seu lado.

—Está acordada.

Christina sorriu ante o que era óbvio. Tor, por outro lado, tinha o aspecto de não ter dormido toda uma semana. Trocou-se e limpou as manchas da batalha, mas as linhas de expressão de seu rosto acusavam um cansaço e uma fadiga difíceis de dissimular. Seu cabelo loiro escuro estava revolto, como se tivesse passado os dedos por ele uma e outra vez; tinha a roupa enrugada, e a mandíbula escura por não ter se barbeado fazia mais de uma semana. Entretanto, seguia incrivelmente bonito.

Christina pousou seu olhar na cadeira e enrugou o nariz.

—dormiste aí?

Tor franziu o cenho.

—Estava doente.

De verdade? Encontrava-se bem. Apesar de recordava ter se sentido estranha e enjoada justo antes de perder o sentido. Era a primeira vez que passavam a noite juntos e ela não recordava nada.

—Quanto tempo?

—Dois dias. —Tor a olhou enfurecido—. Não voltará a te pôr doente nunca mais. —cruzou os braços adotando uma atitude de mando—. Não o permitirei.

Christina piscou ao dar-se conta de que falava a sério. Esteve muito preocupado por ela. Um brilho de alegria apareceu em seus olhos. Ia sorrir, mas ao vê-lo furioso, dissimulou o sorriso.

—Farei tudo o que possa - disse com sobriedade.

Tor entreabriu os olhos como se tivesse adivinhado que lhe estava tirando o sarro. Sentou-se a borda da cama e a examinou com atenção, para assegurar-se de que realmente estava recuperada.

—por que quis ir ao povoado quando sabia que havia febre?

Christina ergueu o queixo, desgostosa por seu tom.

—Queria ajudar, e a febre não era grave. Além disso, meu dever como senhora do castelo é atender aos habitantes do povoado. Deixou-me muito claro que tinha que me rodear a determinadas tarefas.

Tor esboçou uma careta de desgosto.

—Acredito que falei com muita dureza…

—Acredita? —interrompeu-o ela arqueando uma sobrancelha.

Tor voltou a franzir o cenho, mas Christina estava ficando imune a essas olhadas turvas. Quem teria pensado que a jovem que há poucos meses se protegia entre as sombras diante da cara brava do guerreiro mais temido das Highlands?

—Estou acostumado a falar sem pensar, e estava zangado - disse ele—. Além disso, ninguém está acostumado a ignorar minhas ordens.

—Tenta te desculpar?

Tor franziu o cenho como se a idéia o surpreendesse.

—Suponho que sim. Tinha razão em algumas das coisas que me disse. Nem tudo consiste em cumprir meu dever com o clã, mas me acostumei tanto a me reservar minhas opiniões que não estou seguro de saber fazer o contrário.

Christina ficou surpresa ao comprovar que suas palavras tinham causado tanto impacto.

—Alguma vez quiseste ter alguém com quem falar, a quem escutar? Ser responsável por tanta gente deve ser uma carga muito pesada para um homem sozinho. Ter a alguém com quem falar poderia te facilitar as coisas.

Tor parecia pensativo.

—Possivelmente.

Christina inclinou a cabeça, estudando-o com curiosidade.

—por que te custa tanto compartilhar seus pensamentos?

Tor lhe sustentou o olhar. A julgar por seu silêncio, parecia que estava travando algum debate interno. E gostou que lhe desse uma resposta.

—Porque meu dever como chefe é me reservar as opiniões. Sei perfeitamente que o contrário traz sofrimentos.

—O que aconteceu?

—Falei do ataque surpresa que sofremos no Dunvegan e de como assassinaram a meus pais?

Christina assentiu.

—A meu pai o traiu um homem que considerava amigo dele, um parente. O conde de Ross tirou informação a minha mãe com más artes e ordenou o ataque que matou a meus pais e quase destruiu a meu clã. Mulheres, meninos…, ninguém escapou ao derramamento de sangue. Foi um açougue.

Christina tapou a boca, horrorizada. A primeira vez que contou não caiu na conta.

—Você estava ali.

Tor assentiu, com os olhos sombrios.

—Sim, escondido na capela com meu irmão e minha irmã. Meu pai viveu o suficiente para me contar o que tinha passado. —Tor fez uma pausa—. Minha mãe não teve tanta sorte depois de que os homens de Ross terminassem com ela.

Christina afogou um grito e as lágrimas saltaram aos olhos.

—OH, Meu Deus… Sinto muito.

Tor deu de ombros.

—Foi faz muito tempo.

Entretanto Christina não se deixou enganar. Seu marido vivia ainda com o legado desse dia. Por isso se mostrava distante. Solitário. Christina teve piedade dele. Do menino pequeno que tinha visto como assassinavam a seus pais e destruíam virtualmente a seu clã, e que tinha assumido a carga de ter que recompor todo isso.

—E depois somente você ficou para reconstruí-lo todo?

Tor a olhou como se a resposta fora óbvia.

—Era o chefe.

—Mas so tinha dez anos - disse ela, atônita. Se já era muita responsabilidade para uma só pessoa, que não seria para um menino de sua idade? Esse menino teve uma infância muito curta.

—Saí adiante.

Christina apoiou a mão em seu braço.

—E muito bem, isso parece. Seu clã tem sorte de contar contigo.

Era um homem incrível. Sabia, mas para ouvir de sua própria voz quanto tinha sofrido, sentiu-se mais orgulhosa dele. E decidida a ajudá-lo. Depois da generosa devoção com a que se entregou a seu clã durante anos, Tor merecia desfrutar da felicidade.

Entretanto, Christina era consciente de que nesse momento não conseguiria nada mais dele. O fato de que se abrira, embora somente um pouco, era um êxito, um milagre em realidade. Via-o debater-se em um estado de inquietação, e teve que obrigar-se a não lhe saltar ao pescoço para abraçá-lo, de tão adorável como era. Mas Roma não se fez em um dia, e seu marido tampouco mudaria de repente uma vida inteira marcada pelo silêncio.

—Eu também sinto - disse ela—. Estava tão obcecada por que confiasse em mim que não me detive pensar no que em realidade estava pedindo. Oxalá pudesse confiar em mim, mas compreendo que não possa.

—tento te proteger, Christina, não te ferir.

—Sei.

—Não quero que te mescle nisto porque correria perigo. Necessito que confie no que te digo. —Tor cravou seus olhos intensamente em sua esposa—. Será capaz?

Ela assentiu, embora desejasse que a confiança fosse mútua.

Tor parecia estar pensando em algo. Quando falou o fez com cautela, como se lhe custasse escolher as palavras.

—Eu gostaria de te propor uma solução de compromisso.

Christina abriu os olhos de par em par.

—Uma solução de compromisso? Teria jurado que não conhecia essa expressão.

Tor a olhou à defensiva.

—Não a uso muito freqüentemente, mas por ti estou disposto a fazer uma exceção.

Estava tirando o sarro. Christina não podia acreditar.

—Sinto-me muito honrada, meu senhor - respondeu exagerando uma inclinação de cabeça.

Tor lhe dedicou um sorriso pícaro, e foi como se o céu tivesse se aberto e o sol brilhasse entre as nuvens. Esse sorriso lhe mudou a expressão, e lhe fez parecer mais jovem.

—Quantos anos tem? —espetou-lhe Christina.

Tor franziu o cenho assombrado.

—Trinta e um. —Ignorando sua estranha pergunta, retomou o tema que estava tentando explicar e pigarreou—: Se aceitar que haverá momentos nos que não lhe poderei contar tudo, eu me comprometo a ser mais…

Tor parecia ter dificuldades para encontrar a palavra justa.

—Comunicativo - propôs ela, tentando reprimir um sorriso.

Tor sorriu do meio lado afetando certa ironia.

—Sim, comunicativo.

Christina sorriu a sua vez.

—Isso eu gosto.

Bastava-lhe. De momento. Mas seguia esperando que terminasse por incluí-la de tudo em sua vida. Depois de sua experiência organizando os livros, sabia que podia recorrer a ela.

Tor lhe afastou o cabelo do rosto e pousou nela seus claros olhos azul gelo com tanta intensidade que um rubor mal controlado apareceu nas bochechas de Christina.

—Devo estar espantosa - disse desviando o olhar.

Os olhos de Tor se acenderam de paixão.

—Está preciosa.

Essas palavras tão simples a sobressaltaram por sua sinceridade. E sentiu uma calidez envolvente. Tinha ouvido essas palavras antes, mas nunca tinha emprestado atenção.

—Não me disse isso.

Tor pareceu surpreso.

—Ah, não? Pensei centenas de vezes.

—Devo estar perdendo a capacidade de ler o pensamento.

Tor estalou em gargalhadas, e Christina pensou que esse som era o mais belo do mundo. O momento no que sempre tinha sonhado. Oxalá pudesse durar para sempre.

Tor deixou de rir e seus olhos se encontraram.

Saltavam faíscas no ar. Uma febre de distinta natureza acalorou a pele dela. Tinha passado muito tempo. Ansiava seu corpo de maneira elementar; como a água, os mantimentos e o ar, Christina necessitava seu corpo.

Era consciente de sua presença na borda da cama, de seus largos ombros e seus fortes braços. De seu masculino aroma de especiarias. De sua boca gloriosa.

Tor se inclinou para ela.

Christina conteve o fôlego.

Entretanto, em lugar de beijá-la, roçou-lhe a fronte com os lábios.

—Precisa descansar - disse Tor.

—Encontro-me bem - insistiu ela em um tom que mais parecia o de uma menina a que negam um brinquedo. Seu brinquedo favorito.

Entretanto, sua tentativa de faze-lo mudar de idéia caiu em saco furado. Tor se levantou.

—Voltarei mais tarde para ver como te encontra. Se necessitar algo, chame Morag.

Um banho seria o primeiro. Mas como estava segura de que ele não compartilharia sua opinião, decidiu não mencioná-lo.

—Morag esteve aqui? Acreditava que andaria ocupada assistindo aos feridos.

—Os homens só têm hematomas e arranhões.

Christina sentiu um profundo alívio. A lembrança dos que não tinham tido tanta sorte passou como uma sombra.

Tor se incorporou, e Christina o viu dirigir-se para a porta.

—Descansa. Direi a Mhairi que venha ver-te.

—Não é necessário que…

Entretanto a porta já se fechou.

 


C O N T I N U A

Capítulo 11


No interior do dormitório havia pouco que fazer para passar o momento enquanto esperava. Christina sentiu a tentação de tirar seu livro do esconderijo do baú, mas não estava segura de como reagiria seu marido se soubesse que lia. Ainda tinha muito fresca na memória a reação de seu pai, e seu matrimônio ainda era muito recente. Embora não acreditasse que se zangasse, seu marido era muito difícil de decifrar. Justo quando acreditava que tinha conseguido um pedacinho do autêntico homem que havia abaixo do temível guerreiro, o muro de aço tinha se erguido de novo.

De modo que tentou bordar. Mas depois de dar muitas espetadas com a agulha, se deu conta de que essa energia nervosa não era exatamente propícia ao bordado, de maneira que o afastou. Se tivesse um giz e uma piçarra, que não os tinha, desenharia. Se se parecesse mais com sua irmã, rezaria. Pedindo o que, não sabia. Paciência? Modéstia feminina? Ambas seriam bem vindas nesse momento. Tinha medo de estar muito ansiosa essa noite, e talvez sua ansiedade fosse imprópria. Era uma donzela inocente; deveria estar morta de medo, e não sentir uma comichão de excitação em lugares nos que não devia pensar.

Quase lamentava ter despachado Mhairi tão rápido, mas não tinha pensado que passaria a metade da noite esperando. Já quase devia ser meia-noite.


Arrependia-se de ter rechaçado a garrafa de vinho doce que lhe tinha dado a curandeira. Algo para mitigar seus nervos crispados.

Cansada de contemplar as sombras da chama do candelabro que refletiam no teto, Christina afastou o cobertor e saltou da cama. Curiosamente, a impressão do ar frio na pele e nos pés procedente do gélido chão de pedra a tranqüilizou. Caminhou de um lado a outro até que o candelabro se reduziu a nada. Até que na residência se fez um doloroso silêncio.

Finalmente ele não viria.

Dizendo a si mesma que não tinha importância, que não havia motivo para a devastadora tensão que sentia no peito, obrigou-se a deitar de novo na cama. Não obstante, custou-lhe conter o pranto.

O que tinha que mau nela? Acaso seu marido não a desejava?

O atordoamento do sonho a chamava, rondava como um oásis ao que não conseguia chegar. Estava a ponto de sucumbir quando a porta se abriu.

O ruído despertou de repente. Instintivamente se cobriu até o peito com o cobertor. Na escuridão só distinguiu a sombra de sua enorme silhueta na soleira. Estava ali imóvel. Ainda não tinha entrado, mas sua presença parecia encher o ambiente.

—Ainda está acordada — disse.

O timbre de sua voz fez que a Christina lhe arrepiasse o pêlo dos braços.

—Sim — disse em voz baixa.

Era o homem mais aterrorizante que tinha visto, e nunca tinha percebido o perigo de um modo tão intenso. Parecia alguém preparado para o combate, mais que um marido que ia fazer o amor a sua mulher. Rodeava-lhe uma aura de ferocidade. Suas pernas longas e musculosas pareciam crispadas e tensas.

De repente ela sentiu um espasmo de terror. Não lhe faria mal, verdade?

Ele fechou a porta ao entrar e cruzou o ambiente virtualmente às escuras. Somente os tênues raios da lua, que se filtravam através das placas de madeira das venezianas, mitigavam a penumbra.

Ela tinha os nervos a flor de pele. O coração palpitante. Depois de dias de perguntas, de espera, o momento tinha chegado por fim. Estavam sozinhos. E contrariamente da vez anterior, ambos eram conscientes do fato… e do que ia passar.

Agora que Tor estava ali, ela estava um pouco assustada, mas o que ainda lhe dava mais medo era decepcioná-lo em certo modo.

Seus olhos se estavam acostumando à escuridão, e viu como ele desabotoava o grande broche que levava ao pescoço e retirava a capa dos ombros. Tirou o resto da roupa com a mesma naturalidade, como se estivesse sozinho no quarto, e não com sua esposa, quem com os olhos muito abertos, muito nervosa e sem fôlego, dissecava todos seus movimentos.

Negócios. Dever. Essas palavras foram a ela sem prévio aviso. Era isso o que significava para ele? Pensou com uma pontada de dor. Queria que Tor desfrutasse aquilo.

Quando Tor deu a volta e se dirigiu para a cama, Christina tragou saliva. O suave perfil de seus músculos, que se distinguia entre as sombras, não deixava dúvidas de que estava nu. Senão tivesse tão aflita teria ruborizado. Poder. Força. Vitalidade. Seu corpo era uma fortaleza. Masculinidade crua em sua forma mais impressionante.

A sua mente acudiu uma idéia imprópria de uma donzela: que pena que a vela se apagara.

Talvez ele tivesse ouvido sua respiração entrecortada, porque quando se deslizou a seu lado, disse:

—Não há nada que temer. Serei amável. Não se parecerá com a última vez.

Ela não sabia se aquilo era mau ou bom. A última vez tinha sido bastante extraordinária, em certo sentido.

A cama cedeu sob seu peso. A Christina já não palpitava o coração, porque tinha detido em seco. Tor não a havia tocado, mas estava bastante perto para que sentisse o frio roce de sua pele. Frio do vento.

—saístes? —perguntou, surpreendida. Acreditava que estava com seus homens na sala.

Tor assentiu.

—Sim.

—Onde estavas? Há algum problema?

Sentiu seus olhos nela, penetrando o véu de escuridão.

—Nada que seja de sua incumbência.

Ela franziu o cenho ante a falta de resposta. Se incumbia a ele, incumbia a ela. Estava claro que Tor era o homem mais teimoso que tinha conhecido. Mas antes que pudesse lhe fazer outra pergunta, ele se colocou a seu lado, tombou-se junto a ela, e apagou qualquer outra idéia de sua mente.

Com delicadeza, agarrou os lençóis que Christina seguia segurando com os dedos e afastou a um lado. Ela notou o peso de seu corpo pressionando seu flanco. Até através da camisola, sua pele ardeu com aquele roce.

—Agora mesmo somente quero pensar em uma coisa. —A voz era profunda e sensual, carregada de promessas maliciosas.

Ao notar que ele riscava com o dedo uma delicada linha sobre o contorno de seu seio, ela se estremeceu. A etérea carícia fez que arrepiassem todas as terminações nervosas. Sentiu que o coração pulsava na garganta.

—E o que é? —conseguiu dizer, quase sem fôlego.

Tor descobriu a ponta tirante de seu mamilo com a pele áspera do dedo e a rodeou através do ligeiro tecido de sua camisola. Quando substituiu o dedo pela boca, ela ofegou. A cálida umidade daquele beijo enviou descargas de prazer diretamente de seu seio ao centro de suas pernas. Deus, era incrível! As sensações eram como uma labareda de ardoroso prazer que a cobria de chuva efervescente. Mas quando ele sugou a ponta, puxando levemente com os dentes, seu ofego se converteu em um profundo gemido.

Tor soltou uma risada, sem separar-se de Christina.

—Isto —respondeu— é o único no que quero pensar. —Voltou a sugar, rodeando com a língua a pontinha vibrante—. Quero sugar seus encantadores mamilos com a boca, até que seu corpo gema de desejo.

Deslizou os dedos até a planície de seu ventre, e com sua mão grande e forte cobriu com delicadeza seu monte de Vênus. Sem vacilar. Pura e crua energia sexual. Com esse possessivo gesto, Christina adquiriu plena consciência de seu destino, tal como ia ser.

—Quero te tocar aqui… —Varreu com o dedo a ardente feminilidade através do tecido—. E conseguir que te umedeça, até que esteja preparada para mim.

O corpo de Christina reagiu com uma onda de calor e umidade no ponto exato onde ele a tinha acariciado.

—E então… —Baixou a cabeça para lhe beijar o pescoço—. E então desejo estar dentro de ti e conseguir que te desfaça.

Ante essas palavras maliciosas, ela se arqueou, revolveu-se, e quando ele descobriu com a língua e os lábios uma zona sensível sob a orelha, estremeceu-se.

Tor levantou a cabeça para olhá-la aos olhos. Entre as sombras, as atraentes e severas linhas de seu rosto pareciam ainda mais perigosas.

—Assusta-te isso?

Christina negou com a cabeça.

—Não. —O medo tinha desaparecido no momento em que Tor a havia tocado. Seu coração revoou como as asas de um colibri, enquanto se esforçava em achar as palavras—. Eu também o desejo. Eu gosto do que sinto quando me tocas.

Ele ficou quieto. Christina teria jurado que notou como seu olhar se avivava com maior intensidade. Ruborizou-se, perguntando-se se havia dito algo mau. Mas ele já voltava a acariciá-la, e Christina se esqueceu de tudo, salvo da pressão de sua boca sobre seu seio e da cálida fricção de suas mãos, que cobriam seu corpo.

*

Tor tinha que recordar-se constantemente que a mulher apaixonada que se retorcia em seu leito era virtualmente uma virgem. Mas quando gemia e se arqueava sob sua boca e suas mãos, lhe suplicando em silêncio que beijasse os seios com maior rudeza, era fácil esquecer.

Suas atrevidas palavras para distraí-la de suas perguntas tinham funcionado - esteve fora porque alguns homens se apresentaram antes de tempo e precisavam chegar até o fiorde —, mas quem tinha rido por último tinha sido ela, que lhe tinha distraído com sua resposta. «Eu gosto do que sinto quando me toca.» Jesus, como podia não reagir ante isso?

A inocente honestidade de suas palavras só incrementaram a fome que sentia dela. Uma parte dele se perguntou se simplesmente tinha imaginado sua receptividade daquela noite. Não. Mas bem tinha subestimado seu sensual encanto.

«Virgem», lembrou-se, tentando reduzir o martelar de seu sangue, a primitiva chamada que ansiava dar resposta.

Tinha desejado deitar-se com Christina no momento em que tinha posado seus olhos nela. Mas depois de tê-la tratado com tanta brutalidade durante seu primeiro encontro, tinha jurado que a faria desfrutar. Desfrutar muito. Apaixonado, mas controlado.

Isso foi o que compreendeu. Na escuridão. Homem e mulher. Nada mais que paixão, primitiva e crua. Ele sabia como fazer que uma mulher desejasse suas carícias. Como fazê-la gemer. Como debilitá-la a base de prazer. Sabia o que Christina necessitava e o daria. E ela daria a ele em troca. Nada mais. Nada menos. Satisfação de necessidades básicas.

Na cama, Christina Fraser era igual a qualquer outra mulher. Sua necessidade dela era mais abrasadora. Mais intensa, possivelmente. Mas a luxúria era luxúria, e Tor não podia controlá-la.

Era um homem apaixonado. Christina era uma mulher apaixonada. Era tão simples como isso. A paixão no leito conjugal era algo pelo que estar agradecido; sua primeira esposa não tinha sido tão entusiasta. Nada que tivesse que se preocupar.

Mas era incapaz de deixar de olhar a boca. Até na penumbra, atraía-lhe a erótica sensualidade de seus lábios carnudos e rosados. Intrigava-o a intimidade desses beijos, algo que não estava acostumado a pensar.

Mas podia saborear o resto de seu corpo. Desatou o laço da camisola, farto de ter uma barreira entre os lábios e a pele dela. Cheirava de um modo incrível. Quente e floral. Inspirou com força e seu delicado aroma lhe rodeou com seu doce abraço.

Ao sentir a primeira carícia sobre sua pele nua, Christina gemeu, e a pétrea ereção de Tor se endureceu ainda mais.

Ante a primeira tentativa dela de lhe acariciar as costas, ele ficou imóvel. A pressão exigente de seus dedos, massageando a firme musculatura de ombros e braços, fez que Tor amaldiçoasse e sentisse fora de si. Christina gostava de lhe tocar. Uma intensa chama de desejo e um espasmo de luxúria nublaram a visão de Tor, que perdeu a consciência durante um segundo.

Controle. Esforçando-se por reduzir sua temperatura interior, monopolizou a beleza de seus seios com suas mãos e os levou a boca, devorando-os sucessivamente. Seu membro pulsava com força pego a seu ventre e conseguiu certo alívio esfregando-se brandamente contra a coxa dela enquanto sugava. A leve fricção lhe acendeu ainda mais.

«Posso fazer.» Mas nunca em sua vida estivera tão excitado. As inocentes reações de Christina eram mais eróticas que os experientes movimentos das mulheres com que estava acostumado a deitar-se.

Lambeu-lhe o mamilo e sentiu na língua um meloso sabor de ambrosia. Beijou-a com maior paixão e arranhou com o queixo essa pele tão sensível. Sugou e rodeou com a língua aquela pontinha tensa, até que ela começou a levantar os quadris para ele.

Percorreu todo seu corpo com as mãos. Não podia deixar de tocá-la. Tinha a pele muito suave, e o corpo sensual e docemente feminino.

Tor grunhiu. Christina era incrível. Tão natural e espontânea com sua paixão. Mas ficava cada vez mais difícil controlar seus instintos, ignorar a fome e o desejo que crescia em seu interior. Seu corpo ardia, dava mil voltas sua cabeça. Cada vez lhe custava mais ser racional, enquanto uma bruma avermelhada de desejo caía sobre ele.

Deslizou as mãos sobre seu corpo e até as pernas para lhe levantar a borda da camisola. Ouviu-a respirar entrecortadamente quando varreu com os dedos a aveludada suavidade da zona interna da coxa. Ela cravou os dedos nos braços. Parecia flutuar, suspensa por suas carícias.

Ser consciente de até que ponto ela desejava aquilo teve um efeito nele. Um efeito que ia a além da satisfação ou o orgulho varonil. Encheu-o de uma intensa calidez que chegou ao fundo de suas vísceras e atirou delas. Naquele momento nada parecia mais importante que lhe agradar.

Mas ainda não. A única coisa que desejava mais que ter um orgasmo era fazê-lo durar. Aproveitou com cuidado o momento, sentindo como estremecia o corpo dela quando roçou essa pele de bebê junto a sua entranha, com uma etérea carícia dos dedos, que se aproximaram e se afastaram depois. Para habituá-la a suas carícias e a seu próprio desejo. Queria que identificasse o que queria seu corpo. O que necessitava.

Imitou os movimentos do dedo com a língua, sobre seu seio. Primeiro deslizando-a rapidamente e logo detendo-se, deixando que a calidez de seu fôlego passasse sobre o topo úmido e sensível.

Ela gemeu e se queixou, e com cada som, ele sentia o palpite do sangue em cada centímetro do corpo e ficava mais difícil concentrar-se.

Christina sentia que ardia a pele. Tor sabia que se pudesse ver o rosto, comprovaria que tinha as bochechas ruborizadas de prazer e os sensuais lábios separados.

Maldição, estava muito excitada. Seu corpo tremia de prazer. Deus, ia ter um orgasmo assim que a tocasse. Sentiu um batimento do coração no membro, suando de espera. Teve que fazer uso de todas suas forças para reprimir-se, e não envolver seus quadris com as pernas de Christina e lhe penetrar, deixando que o ardente punho do corpo lhe fizesse explodir e gozar até cair na inconsciência.

Esticou todos os músculos em um esforço por controlar-se; seu próprio orgasmo espreitava, era uma maldita ameaça, muito próxima.

—me diga o que quer — perguntou entre dentes, enquanto seu dedo se aproximava do vulcão com uma lhe torturem carícia.

—Não sei — gemeu Christina.

—Isto? — disse ele, deslizando o dedo junto à fenda úmida. Christina se sentiu invadida por um espasmo de prazer e seu corpo se agitou bruscamente.

—Sim — respondeu sem fôlego—. Por favor.

—vou fazer que goze, Christina.

Ela não sabia o que queria dizer, mas não se importou. Quão único desejava era que desaparecesse essa corrosiva sensação de ansiedade. Seu corpo inteiro estava sumido em um desejo que seguia crescendo e crescendo sem medida, até que pareceu que já não poderia suportar a tensão. Sentia-se suspensa a bordo de uma espécie de cataclismo.

Como podia sentir-se tão bem e ao mesmo tempo tão inquieta? Cada carícia, cada vez que Tor lhe tocava o corpo era como estar no céu e o inferno de uma vez.

Todos seus pensamentos, toda sua energia parecia concentrada entre suas pernas, e cada vez que ele a provocava com uma carícia com o dedo, a agonia aumentava. Estava úmida e em chamas, com os músculos constrangidos de ansiedade, escuros e pulsando de frustrada ignorância. Sabia, instintivamente, que necessitava algo, mas ignorava como conseguir. Ele a provocou até que já não pôde suportá-lo mais, até que acreditou que estalaria.

Nunca teria imaginado umas carícias tão leves e delicadas dessas mãos tão grandes e fortes que hasteavam a espada com uma força letal.

Mas ela desejava sentir essa força, esse poder em seu interior.

E então o fez. Tor sugou com ardor o mamilo até o interior da boca úmida e cálida no momento em que afundava o dedo nela, acariciando e pressionando, em círculo. O corpo de Christina gemeu aliviado ante a pressão que desejava e que tinha demorado tanto em chegar. As sensações se amontoaram em suas vísceras: a boca que atormentava seu seio, o dedo que a acariciava, o roce da palma da mão que a agarrava. Tudo chegou de uma vez, intensificando-se e esticando-se depois durante um prolongado instante, até que se rompeu em pedaços, estalando em mil direções.

Ela lançou um gemido alto enquanto sucessivas ondas de sensações estremeceram seu interior e os espasmos de prazer mitigaram sua férrea garra.

Christina teve a sensação de que tinha morrido e estava no céu. Quão único via era luz e beleza, como muito estrelas cintilantes expostas ante ela em uma maré oscilante. Nunca tinha imaginado nada que pudesse provocar essa incrível sensação.

Era excessivo. Tor perdeu as rédeas que estavam sob seu controle ao ver seu corpo tenso. Então, ao escutar os eróticos gritos de sua entrega, deixou ir. Era mais do que podia suportar.

Nunca havia sentido nada parecido. Um desejo que ia além da luxúria que se acumulava em suas virilhas e em seu membro ereto. Desejava penetrar em seu interior, afundar-se nele e não sair jamais.

Estar dentro dela. Provocar-lhe um novo orgasmo. Isso era o único importante.

Moveu-se sobre Christina, colocando-se entre suas pernas.

Utilizou o dedo para lhe provocar prolongados espasmos de entrega e grunhiu:

—Preciso estar dentro de ti.

Ela suspirou sonhadora, obediente e ele agradeceu a penumbra. Agradeceu não poder ver os olhos entreabertos e o leve rubor rosado do êxtase em seu rosto. Porque sabia que não poderia evitar aproximar a boca de seus lábios. E então ela seria diferente.

Levantou-lhe os quadris brandamente e separou as pernas para acomodar-se. Apoiou as mãos junto aos ombros de Christina, para agüentar o peso de seu torso.

Gotas de suor caíram de sua fronte ao tentar ir devagar. Mas não era fácil.

Deslizou a ponta sensível de seu membro ao longo da fenda dela, até que esteve escorregadio da umidade de Christina.

Quando abriu caminho entre suas dobras, ela ofegou e esticou o corpo instintivamente.

—Relaxe — a tranqüilizou Tor, reprimindo todos os músculos ante um impulso primário.

—Mas é muito grande — protestou ela.

«E você está muito rígida.»

—Chist — sussurrou—, deixa que seu corpo se acostume a mim.

Seu dedo descobriu o ponto sensível de seu clitóris e a acariciou, até que relaxou. Ela se deixou ir lentamente e seu corpo se tranqüilizou enquanto voltou a invadi-la uma onda de prazer.

O impulso de penetrá-la ferozmente era quase intolerável. Mas Tor tomou seu tempo, adaptando-se a cada centímetro de seu interior e entrando, ditoso, até o último milímetro.

Quando finalmente acessou todo o interior aveludado e molhado, quase não podia respirar e o esforço por conter-se captou virtualmente toda sua concentração. Precisava deixar-se ir. Necessitava-o tanto que quase lhe doía.

—O que sente? —conseguiu balbuciar.

Christina demorou um momento em responder.

—Sinto-me cheia… —Suspirou entrecortadamente—. Maravilhosamente cheia.

Era a resposta perfeita, e justo o que seu ânimo que necessitava. Começou a mover os quadris, para trás e para frente, devagar ao princípio e logo mais rapidamente, sobre o corpo convulso de Christina.

Ela gemia com cada impulso, e esses eróticos ruidinhos que o deixava louco.

Os músculos lhe ardiam pela tensão de manter-se fora dela. A pressão crescia e crescia. Nunca se havia sentido assim. Nunca. Com todo o corpo consumido pelas sensações que percorriam seu interior. O sustentava com o corpo, espremendo com cada prolongado puxão.

Não podia agüentar mais tempo.

—OH… Deus — gemeu ela.

Por fim. Tinha chegado o momento que esperava. Cravou fundo sua espada.

Mais depressa. Mais forte. Encontrou o ritmo perfeito para que ela…

Christina gritou e ele se deixou ir, penetrando-a profundamente uma vez mais e jogando a cabeça para trás com um primitivo uivo de prazer. O sangue retumbou em seus ouvidos enquanto a força de seu orgasmo estalava em uma tormentosa corrente de sensações, pulsando e pulsando até que seu corpo expulsou o último grama de prazer. O êxtase era muito potente e ficou aturdido um momento.

Quando já tinha caído a última maré que emergiu de seu corpo, caiu derrubado junto a ela, totalmente exausto. Nunca havia se sentido tão derrotado em sua vida. Tentou recuperar o fôlego. Sentia-se fraco; seus membros pareciam de gelatina.

O que lhe tinha feito Christina?

Aparentemente, não era o único que estava submerso em uma aturdida letargia. A respiração dela era tão entrecortada e instável como a sua. Tor agradeceu o silêncio. Pela primeira vez em sua vida, não sabia o que fazer nem o que pensar.

A confusão lhe inquietou.

Fixou o olhar na penumbra e se disse que não tinha importância.

Acabava de convencer-se de que estava exagerando e dando muita importância ao estado de sua mente, quando ela se aproximou a ele, aninhando-se contra seu corpo. Ao notá-lo, ficou imóvel e sentiu uma queimação no peito. Vacilou um segundo, e seu instinto lutou contra a consciência de que devia manter distância.

De momento venceu o instinto. Por uma vez não faria mal. Rodeou-a com o braço e tentou não pensar em quão agradável era senti-la a seu lado. Toda essa pele cálida e suave pega a ele. A sedosidade de seu cabelo derramando sobre seu torso e essa mão deliciosa sobre seu coração.

Tor esperou para ouvir o som estável e suave do sonho e se deslizou para fora da cama. Recuperou a roupa em silêncio, com pressa. Olhou por última vez a silhueta aninhada na cama e fechou a porta com firmeza.


Capítulo 12


Christina emergiu de repente de um sonho profundo ao sentir um calafrio nas costas. Aninhou-se instintivamente contra o calor que emanava de seu marido, mas somente descobriu os lençóis frios, o leito vazio.

A julgar o quanto gelados que estavam devia ter partido fazia tempo.

Franziu o cenho. Possivelmente tinha dormido mais do que pensava. Mas quando conseguiu abrir os olhos viu que a luz cinzenta do amanhecer se filtrava através das venezianas de madeira.

Enquanto tentava mover-se, perguntou-se o que podia ter provocado que Tor despertasse tão cedo. Se não fosse pelo frio intenso da alvorada, Christina teria dormido umas horas mais. Mas se aproximava o inverno, e no norte golpeava com uma força glacial. Eilean ao Cheo, a ilha da Bruma, o nome gaélico do Skye, não pressagiava nada bom. Provavelmente os matizes do cinza seriam os únicos tons que pintariam o céu durante um tempo.

Espreguiçou-se, mas inclusive isso custou certo esforço. Tinha todos os músculos do corpo intumescidos e débeis pela fadiga. O rubor alagou suas bochechas quando recordou o porquê.

Nunca podia ter imaginado que se comportaria com um abandono tão lascivo. Mas em realidade tinha parecido a coisa mais natural e o único modo de atuar. Seu corpo tinha reagido com seu próprio critério.

Ele soube exatamente como tocá-la, como fazer que tremesse de prazer até obter uma sensual inconsciência. Aquilo era muito melhor que em seus livros!

Um sorriso de satisfação se desenhou em seus lábios. Por muito que seu marido se mostrasse frio e indiferente, a paixão que sentia não mentia. A noite passada tinha visto uma face distinta de Tor, um lado selvagem e apaixonado, mas também doce e considerado. Não tinha limitado a obter prazer, mas sim o tinha proporcionado Preocupou-se com ela; tinha que ser assim. Tinha notado na ternura de suas carícias, no som que tinha nascido de seu prazer e no batimento frenético de seu coração.

E quando ambos caíram em um êxtase satisfeito, ele tinha ficado tão exausto como ela e a profundidade de sua respiração e a lassidão de suas pernas demonstrava até que ponto estava afetado.

Essas longas noites junto à chaminé pareciam muito mais próximas.

Mas onde tinha ido Tor?

Afastou o cobertor e saltou da cama, sem notar o calafrio em sua ansiedade por encontrá-lo. A última noite tinha derrubado uma barreira entre ambos e estava impaciente por lhe ver, por falar. Tinha amanhecido um novo dia em seu matrimônio.

Chamou o Mhairi, que dormia no quarto contíguo, e se lavou e se vestiu a toda pressa. Enquanto cruzava a extensa galeria em direção para o grande salão, viu que a porta estava entreaberta. Confiante em encontrar ali Tor, empurrou-a com cuidado para espionar o interior. Entretanto, o rangido das dobradiças de ferro arruinou seus esforços por não fazer ruído.

O escrivão se sobressaltou e deixou cair o montão de pergaminhos que estava folheando.

—Milady! —exclamou surpreso, apartando-se da mesa frente à que estava sentado.

Christina sorriu, pensando que sua voz era mais estridente que a porta.

—bom dia, irmão John. Levantastes logo nesta manhã.

Ele pareceu recuperar a compostura e lhe devolveu o sorriso.

—Como todos os dias. Os matinais à alvorada, já sabes.

Ela assentiu, incapaz de evitar a sensação de alívio ante a monótona vida da qual se livrou por pouco. Confiava em que Beatrix fosse feliz. O dia de sua chegada em Dunvegan tinha recebido o recado de que sua irmã tinha chegado sã e salva a Iona. Aquele pilantra encantador, lugar-tenente de MacDonald, tinha cumprido com sua palavra. MacSorley tinha arrumado para alcançar aos viajantes e tinha escoltado ao Beatrix durante o resto do caminho até o convento. Os ilhéus tinham fama de ser excelentes navegantes, graças a seus antepassados vikings. Certamente seu marido fazia honra a essa fama, mas a extraordinária proeza de MacSorley era incrível inclusive para um ilhéu.

—Deseja algo, milady? —perguntou o clérigo.

Christina moveu a cabeça e se inclinou para recolher um pergaminho que tinha caído junto a seus pés. Deu uma olhada, viu que era uma carta e a devolveu.

—Esperava encontrar a meu marido. O viu esta manhã?

—Não, mas provavelmente estará no salão com seus homens, tomando o café da manhã. —dispôs-se a guardar os documentos—. Eu também ia para ali. Permitem-me que lhe acompanhe?

—eu adoraria — disse ela—. Mas não desejo lhe distrair de seu trabalho.

O irmão John meneou a cabeça, e seu cabelo liso, cortado em forma de semicírculo, deslizou-se para voltar a colocar-se imediatamente em seu lugar.

—Não é nada urgente. Correspondência e pouca coisa mais.

Dirigiram-se juntos para o salão, comentando que o tempo tinha piorado e que se esperava um longo inverno. Descobriu que o jovem amanuense tinha chegado a Dunvegan pouco antes que ela, e Christina alegrou-se ao inteirar-se de que tinha passado certo tempo no monastério que havia junto a sua casa de Stirlingshire. Talvez não devesse ficar surpresa ao descobrir que a única pessoa que tinha sido amável com ela era alguém chegado de fora.

—Teremos muito do que falar — disse.

—Em efeito — respondeu ele. E fazendo eco dos pensamentos de Christina, acrescentou—: Espero que não lhe incomode que diga quão contente estou de que estejas aqui, milady. O seu é o primeiro sorriso que vi em bastante tempo. O matrimônio do chefe foi uma surpresa para o clã, mas é fácil compreender por que se apaixonou por você.

Christina ficou gelada, imóvel, a poucos passos da entrada ao salão.

—O que? —replicou com voz rouca. Parecia que lhe custava respirar.

O frade ficou avermelhado como uma beterraba amadurecida.

—Me perdoe, não deveria me fazer eco das fofocas dos criados.

A Christina não incomodou absolutamente. Mas adotando um ar de indiferença, brincou com o grosso bracelete de ouro que levava no pulso e disse como se tal coisa fosse nada: —O que comentam exatamente?

Ele soprou confundido e baixou o olhar ao chão.

—Que assim que o chefe lhe deu uma olhada decidiu que tinha que te possuir. Uma dos moços ouviu do próprio conselheiro particular do chefe.

Christina, agradada, ruborizou-se até a medula dos ossos. Sabia que essa história não era certa, embora procedesse do confidente mais próximo que tinha seu marido… ou sim?

—especulou-se muito, porque aconteceu de forma muito repentina — esclareceu ele—. E o chefe não tinha comentado que desejasse voltar a casar-se. E a aliança com a casa Fraser foi ainda mais inesperada, dadas as atuais circunstâncias.

Christina ficou desconcertada.

—A que te referes?

O clérigo baixou a voz.

—Guerra.

A ela parou o coração.

—Ouvistes algo?

Ele negou com a cabeça.

—Não, mas há rumores que com a captura de Wallace os focos da revolta estão estendendo-se por toda Escócia. O chefe se esforçou em manter sua neutralidade até agora. Mas sua família é famosa por ser fervente partidária da causa patriótica. Casar-se com uma Fraser…

Não era necessário que terminasse. Casar-se com ela punha em dúvida essa neutralidade. A isso se referiu seu marido no navio: a razão pela que se negou a casar-se com ela em um princípio.

—Nosso matrimônio não tem nada que ver com política — disse com firmeza—. Quão último o senhor desejava era uma aliança com meu pai. —Foi incapaz de ocultar o deixe sardônico de sua voz—. Qualquer que pense o contrário está equivocado… Muito equivocado — insistiu.

Mas uma voz em seu interior se perguntou se não haveria possivelmente um pingo de verdade nesse rumor de que o agradava. Tor MacLeod não era um homem a quem se pudesse obrigar a fazer nada. Senão quisesse, não teria casado com ela, sobretudo peã objeção política.

A naturalidade com que o frade tinha falado de traição a afetou. Embora não conhecia pessoalmente a Eduardo da Inglaterra, estava muito a par dos riscos que supunha lhe desafiar.

—Falar assim de guerra é perigoso. Skye está muito longe de Londres, mas o rei Eduardo tem espiões por toda parte. Espero que ponham freio a qualquer rumor deste tipo. Não quero que meu matrimônio cause nenhum problema desnecessário a meu marido.

O clérigo assentiu, pormenorizado.

—É obvio, milady. Sois tão sábia quanto formosa.

Christina aceitou a galanteria com um sorriso; não estava disposta que as ameaçadoras nuvens de guerra e a política lhe danificassem o dia. A noite passada tinha sido um sonho feito realidade; uma noite sobre a qual construir um futuro, e nada podia atenuar a felicidade que albergava seu coração.

Ou acreditava nisso.

O escrivão e Christina entraram no salão sem serem vistos. Mesmo sendo muito cedo havia muita gente pululando por ali e isso a surpreendeu. Dirigiu o olhar instintivamente para a ampla poltrona, semelhante a um trono, que havia sobre o estrado e ficou imóvel.

Aquela felicidade que acreditava tão afiançada desapareceu como a água através de uma peneira.

Sentada junto a seu marido no estrado, na cadeira que pertencia a ela, estava àquela formosa mulher em quem se fixou a noite de sua chegada. Ambos tinham as cabeças juntas e seus ombros se roçavam. Comportavam-se com naturalidade e a intimidade entre ambos era evidente.

—Acontece-lhe algo, milady?

Christina, consciente de que exteriorizava seus sentimentos com claridade, amaldiçoou a brancura de sua tez e desejou recuperar a cor nas bochechas. Mas tinha que saber.

—Essa mulher - disse, sem olhar—, sentada ao lado de meu marido… Quem é?

O frade olhou para o estrado e ficou tão avermelhado como antes. Igual a Christina, sua expressão permitia interpretar facilmente suas emoções, e nesse momento era evidente que se sentia incômodo.

—Lady Janet MacKinnon, milady. A viúva do anterior tenente do chefe.

Viúva. Seu coração desfaleceu ainda mais.

—São muito amigos? —perguntou depois de um suspiro.

O amável e jovem clérigo não fingiu que não entendia sua pergunta. Nem lhe respondeu com uma mentira piedosa.

—Sim, tenho entendido que sim.

A segurança que Christina acaba de adquirir ficou pulverizada. A tristeza invadiu seu peito. Aquela mulher tinha sido sua amante. Mas, era ainda?

*

Tor acabava de expor o que desejava dela, quando de repente Janet ficou tensa.

—É melhor que eu vá - disse, assinalando a entrada.

Tor deu a volta e viu Christina aproximando-se do estrado. Janet tinha razão. Ele não queria que sua esposa ouvisse o que estavam falando; era muito propensa a fazer perguntas inconvenientes. Ao fixar-se na gélida rigidez da expressão de Christina e no rubor de suas bochechas, franziu o cenho. Parecia molestada por algo. Rapidamente deu uma olhada pelo salão, para ver se havia algum outro toque de feminilidade que deveria ter notado.

Ao não ver nada se dirigiu para Janet, que já se pôs em pé.

—Terminaremos isto mais tarde - lhe disse em voz baixa.

Ela assentiu e se foi a toda pressa.

Ao cabo de um momento, sua esposa ocupou o assento que Janet acabava de deixar livre. Estava preciosa e régia com seu cote-hardie de veludo azul, mas estranhamente reservada também. Sentou-se sem dizer uma palavra.

—bom dia - disse Tor—. Confio em que tenha dormido bem.

Não havia nada provocador em seu tom, mas ela se ruborizou. Olhou-o por debaixo dos cílios.

—Sim, muito bem. —Levantou o olhar para ele—. E você? —Inclinou a cabeça—. Saiu muito cedo. Espero que não tenha acontecido nada mal.

A preocupação no seu tom de voz e o que levava implícito fez que Tor adotasse certa cautela. Estava claro que ela esperava que dormisse a seu lado. Não queria decepcioná-la, mas isso era impensável.

—Nada mau - disse—. Dormi no salão com meus homens, como faço todas as noites. —Onde devia estar, pensou.

Prevendo a reação dela, preparou-se. Mas não o suficiente. O brilho de dor que apareceu no olhar de Christina atravessou as defesas que tanto custara levantar.

—Já entendo - apontou ela.

Baixou os olhos para sua terrina para evitar o olhar de Tor, e ele se alegrou por isso. Mas aquilo não mitigou o desconforto da carga que sentia no peito, consciente de que tinha ferido seus ternos sentimentos. Ela não podia evitar ser vulnerável; as mulheres eram criaturas emocionais. Sentiu o peculiar impulso de tomar a mão e apertar como um gesto de carinho. Mas se desfez dessa estranha idéia, sabendo que não tinha motivos para sentir-se culpado. Ele sempre tinha dormido no salão com seus homens; não era nada pessoal contra Christina. Mas primeiro vinha o clã.

Ela se equivocava lhe exigindo esse tipo de coisas, é obvio. Mas era uma recém casada. Já aprenderia. Obviamente, tinha certas ilusões sobre esse matrimônio, e quanto mais cedo se desse conta de que não ia ser uma história romântica como as que interpretavam os bardos, melhor. Ele era um chefe das Terras Altas, não um cavalheiro namorador, educado no amor cortesão.

Certamente não pensava perder a cabeça por uma moça.

Bebeu um último gole de cerveja e se separou da mesa com um empurrão. A maioria dos homens chegariam nesse dia, e queria estar presente.

—Vais? —perguntou ela.

Tor tentou ignorar a decepção de seu tom de voz.

—Sim. —Recordou sua promessa e acrescentou—: Estarei fora várias noites, assim que me despeço até então.

Sua esposa ficou desolada.

—Mas se acabar de voltar… Aonde vais?

Ele queria lhe dizer que uma mulher não devia fazer perguntas a seu marido, mas Christina parecia um gatinho maltratado. E se sentiu como uma maldita besta. A pressão que sentia no peito aumentou. Não desejava mentir, mas tampouco podia lhe dizer a verdade.

—Há várias coisas que requerem minha atenção. Freqüentemente passo tempo fora, visitando minhas propriedades. —A torre de pedra de Waternish22 era, em efeito uma dessas propriedades, mesmo assim, estava mentindo.

—Sinto muito. É obvio. Tudo isto é novo para mim. —Olhou-o espectador—. Adeus.

Christina separou os lábios a modo de um ingênuo convite. Ele observou sua boca rosada e suculenta durante um minuto, absolutamente tentado. Com um grunhido, que foi metade maldição, metade gemido, desviou o olhar e apertou a mandíbula.

—Adeus - disse, antes de fazer alguma tolice como atraí-la a seus braços e beijá-la até que se desfizesse o nó que tinha no peito.

*

Em Skye se congregou o melhor do melhor.

A última hora da tarde seguinte, os dez guerreiros tinham chegado à antiga fortaleza em ruínas do Dun Hallin Broch. Cravada em uma zona remota da península do Waternish, a franja de terra que confinava com Dunvegan. A torre e o assentamento dos arredores estavam abandonados muito antes que os ancestrais escandinavos de Tor desembarcassem em Skye.

A torre era uma fortaleza circular de pedra com um diâmetro interior de uns sete metros e meio, e muros de três metros de largura, situada em uma pequena elevação do páramo rochoso. Em outra época, os muros alcançavam uma altura de nove metros, mas a parte superior da torre e o teto tinham desaparecido há muito tempo. Mesmo assim, com um pouco de madeira para um telhado nova e fogo de turfa, proporcionaria refúgio suficiente para os piores ventos e chuvas do inverno. Não seria confortável absolutamente, mas comparado com o que esses homens iriam experimentar nos meses vindouros era um luxo.

A situação era ideal. Estava perto de Dunvegan, mas o abrupto terreno limítrofe o convertia em um lugar de difícil acesso e escassamente povoado. Os ilhéus se mantinham afastados das estranhas construções e dos marcos de pedra dispersos pela paisagem, assim como das antigas torres circulares, que acreditavam habitadas por fadas e outros espíritos. Essa superstição ajudaria a manter afastado todas as pessoas.

Embora fosse improvável que os descobrissem ali, Tor se comportaria com extrema precaução. Havia muito em jogo. E com os recentes ataques a Dunvegan, não podia correr nenhum risco até que não averiguasse quem era o responsável.

Embora não duvidasse em pôr sua vida nas mãos de sua guarda, e o tinha feito em mais de uma ocasião, seguiu com sua prática habitual de contar a seus homens só o imprescindível. Naquele momento, quando seu primeiro-tenente seguia atrás de seu irmão, seus homens eram Fergus, seu conselheiro particular; Rhuairi, seu senescal; e seu an gille mor, primeiro espada, Colyne. A partir do dia seguinte, Colyne acompanharia as idas e vindas de Janet ao castelo para levar comida e provisões aos homens.

Se havia uma mulher em quem podia confiar, essa era Janet. Conheciam-se da infância. Ele tinha dançado em suas bodas com seu meio-irmão e ajudante, e penou com ela sua morte poucos anos depois. Aquela tristeza compartilhada tinha evoluído de uma forma inesperada, mas bem vinda, quando se tinham tornado amantes. Essa situação era conveniente a ambos, e se não fosse por suas recentes bodas, com certeza teria continuado indefinidamente. Ela era cômoda e não lhe exigia nada.

Tor sabia, não obstante, que a relação tinha terminado, mas não desejava analisar as razões daquela decisão. O matrimônio não tinha por que pôr fim a aquilo, não havia nada extraordinário em manter uma amante. Janet tinha aceitado a mudança de circunstâncias com a mesma praticidade que lhe tinha unido em um princípio. Se lamentava que a relação terminou, não o demonstrava; oxalá sua esposa fosse capaz de esconder com tanta facilidade suas emoções. Sua relação com Janet se modificara facilmente antes e tinha se modificado de novo agora, para voltar para a amizade.

À medida que foram chegando todos os guerreiros, Tor os pôs a trabalhar recolhendo lenha para reparar o teto e cortar turfa.

Era uma espécie de prova. O trabalho físico não tinha intenção de ser humilhante, a não ser pôr lutadores de elite no mesmo nível e que começassem a trabalhar juntos como se fossem um só, em equipe. Alguns dos homens conheciam bem e a outros nada absolutamente, mas em seguida se deu conta de que formavam uma equipe sem comparação.

Tor preferia trabalhar sozinho e manter a seu próprio conselho, e estava acostumado a trabalhar segundo seu critério. Aqueles homens não. A maioria deles eram cabeças ou líderes por direito próprio, acostumados a dar ordens, não às receber, e a ter um forte séquito ao redor. Não estava certo do que os tinha motivado a aceitar que ele lhes treinassem e estar sob suas ordens. Suspeitava que todos tinham suas razões para encontrar-se ali. Sabia que alguns tinham vínculos estreitos com Bruce, e indubitavelmente a premissa da equipe lhe tinha intrigado tanto quanto a ele. Sua fama como instrutor certamente tinha influenciado. Mas obedecer a ordens ia ser um desafio para alguns deles.

Tor suspeitava que tivesse passado muito tempo desde que Lachlan MacRuairi tinha empunhado uma espada para cortar um coração ou um machado para cortar uma árvore (mais que a um homem), mas o orgulhoso líder, que se não fosse por sua condição de bastardo poderia disputar com seu primo MacDonald o trono do antigo reino das Ilhas, não pestanejou. Mesmo assim, a obediência imediata não enganou Tor. MacRuairi estaria lhe vigiando.

Surpreendeu-lhe que somente um homem se mostrasse resistente ante suas ordens. Sua identidade, entretanto, não. Sir Alex Seton era o irmão mais novo do cunhado e camarada mais próximo de Bruce, «o bom de sir Christopher». Mas segundo as últimas notícias de Tor, Yorkshire, de onde procediam os Seton, seguia sendo na Inglaterra. E não importava em que lado da fronteira residia agora, pois Alex Seton brilhava nos mesmos arreios que seus compatriotas, da brilhante cota de malha ao elmo com plumas, e um peitilho profusamente bordado para enaltecer sua superioridade. Mas ao menos o arrogante inglês aprendia rápido. Se pensava que cortar turfa não era digno dele, ocultou seu desdém quando Tor lhe ordenou que em lugar disso cavasse latrinas.

Tor esperava em parte que Seton subisse a um navio de um salto e navegasse diretamente de volta à fronteira, e lhe surpreendeu o encontrar cavando uma hora depois, com sua brilhante cota de malha e seu peitilho profusamente bordado dos Wyvern e o escudo com três meias luas e duplo estandarte real, dobrados cuidadosamente a seu lado.

—Isto não lhe servirá muito por aqui - disse Tor, cravando sua pá na terra a poucos centímetros para começar uma segunda fossa.

—Eu sou um cavalheiro — repôs Seton com orgulho—. E penso ter o aspecto que me corresponde.

Seton não devia ter mais de vinte e um anos, e Tor teria apostado que não fazia muito que levava as esporas.

—Fostes um cavalheiro. Aqui não são mais que outro de meus homens, o qual está ainda por demonstrar. Seu código de cavalaria não tem lugar aqui. —Olhou-lhe com dureza—. Compreendestes o que lhe exigirá aqui? Para que assinastes?

O homem apertou os lábios até que empalideceram, mas assentiu. Disse, «sim» mas seu rosto gotejava desaprovação.

— Ponha a roupa que queira — acrescentou Tor com gesto de desinteresse—, embora logo descobriras que é um fardo muito pesado para o tipo de instrução e luta que levaremos a cabo.

Suspeitava que o menino fosse passar bastante mal para ficar a prova ante outros; não só devido a seu sangue inglês, mas também a sua juventude. MacGregor e MacLean eram jovens, mas tinham alguns anos mais que Seton. O resto dos homens teria em torno de trinta ou trinta e um, como o próprio Tor.

Cavaram um junto a outro em silêncio, mas Tor tinha demonstrado: não exigiria a seus homens que fizessem nada que ele não fizesse. Quando terminaram, ofereceu a Seton um gole de cerveja do odre que tinha cruzado sobre o torso. Seton aceitou agradecido, e limpou o suor da frente antes de dar um bom gole.

Tor o olhou, pensativo. Era alto, mas tinha a estupidez da juventude. Tinha uma espada de cavalheiro clássica e um estilete.

—E qual é sua maior habilidade? —perguntou Tor.

Dos outros homens eram óbvias. No caso de sua fama não lhe precedesse, sua escolha de armas ou adorno o fez. Somente olhando a Robbie Boyd bastava para saber por que tinha fama de ser o guerreiro mais forte da Escócia e um perito no combate corpo a corpo. Aquele homem estava forjado em ferro.

Seton avermelhou.

—Sou bom com a faca.

Tor franziu o cenho. Bom? Todos os cavalheiros eram bons com a faca.

—E para que viestes?

—Para aprender. Meu irmão também queria vir, mas Bruce não quis nem ouvir falar disso.

Sir Christopher era casado com a irmã de Bruce, por isso Alex era irmão de Bruce por matrimônio.

—Assim Bruce me enviou você. —Tor quase sentiu pena dele. Seton teria muito que demonstrar, efetivamente. Inglês, jovem… e sem habilidades especiais para conter os sarcasmos—. Não serei benevolente com você, seja quem for que lhe envie.

Aquele arrogante gesto da mandíbula reapareceu.

—Já sei. Não teria aceitado outra coisa.

—Os outros não facilitarão a ti.

O jovem sustentou o olhar com determinação.

—Isso também sei.

Tor assentiu e o deixou trabalhar, sabendo que teria que provar essa determinação.

Reatou sua marcha ao redor do acampamento para vigiar aos homens. A maioria o tinha impressionado. Havia montes de turfa postos a secar, e todos haviam trabalho com pressa para cortar a madeira e construir as vigas do teto. As habilidades marinhas de MacSorley não se limitavam à navegação e a natação. Também sabia como construir navios e brandir um machado de guerra, e tinha utilizado ambas para converter a madeira em pranchas e vigas para o teto.

Entretanto, e a pesar do promissor começo, Tor não demorou muito em se dar conta de quão árdua seria sua tarefa, quando estalasse a primeira briga no pátio traseiro da torre.

Esse grupo de homens não se parecia com nenhum dos que tinha treinado. As mesmas coisas que tinham unido à maioria, vínculos de sangue de clã, dividiam-lhe. Converter inimigos em irmãos seria seu maior desafio.

Sobre tudo quando descobriu dois homens golpeando-se até ficar inconscientes. Naquele momento utilizavam tão somente os punhos, mas Tor sabia que as armas não demorariam em aparecer.

Acreditava ter deixado muito claro quando chegaram que não toleraria nenhuma briga entre eles. Pelo visto, necessitavam que recordasse.

Furioso, não só pela falta de disciplina mas sim pela afronta a sua autoridade, Tor encheu um balde de água gelada do arroio próximo e a lançou sobre os dois guerreiros em luta. Quão único precisavam era um impacto momentâneo. Ambos eram fortes e corpulentos, mas amarrou as mãos do MacGregor à costas e afastou ao Campbell como se não fosse mais que um rapazola. Esteve tentado em lançar a ambos ao arroio, para que se refrescassem, mas conhecia um castigo muito mais efetivo, embora confiasse que finalmente se convertesse em uma lição.

Empurrou longe ao famoso arqueiro. MacGregor sacudiu o cabelo e olhou ao Campbell como se estivesse disposto a começar onde tinham deixado.

—Eu não faria — advertiu Tor em tom glacial—. Necessitarão-nos nos próximos meses.

Eles não sabiam ainda, mas MacGregor e Campbell acabaram de se converter em aliados.

MacGregor cuspiu e limpou o nariz e a boca machucadas.

—Antes se apagará o sol que um MacGregor necessite a um velhaco presunçoso como Campbell. —Os MacGregor eram um clã antigo e orgulhoso de linhagem real, e sua voz gotejava condescendência.

O irmão caçula de Neil Campbell se incorporou de um salto. Arthur era o melhor explorador das Terras Altas, mas por desgraça recentemente tinha posto essa habilidade ao serviço dos ingleses, em total desacordo com sua família. Vigiaria-lhe de perto como ao MacRuairi. Até então, a única impressão que tinha Tor era que se tratava de um homem tranqüilo e ensimesmado.

—Presunçoso? —disse Campbell—. E vocês o que são? O orgulhoso clã Gregor descendia de reis, mas, sem poder nem influências. Que baixo têm caído os poderosos. Mas se vieres aqui e me pedes isso com muita educação, possivelmente vos lance um osso alguma vez. —Torceu os lábios—. Ou têm muito medo de que te desfigure ainda mais esse bonito rosto?

Além de ser o melhor arqueiro das Terras Altas, MacGregor também era muito conhecido entre seus companheiros por ser muito atraente. Tor sentiu pena do pobre bastardo. Certamente para um guerreiro essa ridícula reputação era um pesadelo.

MacGregor grunhiu e deu um passo para ele, mas Tor o segurou pela borda do cotun e o reteve.

—Já basta — disse, e então olhou ao Campbell—. Os dois. —O matiz inflexível de sua voz deixava claro seu aborrecimento.

Deu uma olhada ao redor e viu que outros homens se juntaram para olhar. Bem. O que tinha que dizer afetava a todos.

—Advirto isso, não tolerarei brigas. —dirigiu-se ao resto—: De jeito nenhum. Não me importa que suas famílias se odiaram durante anos, nem se seu pai matou ao dele; nada disso importa. Qualquer briga ou inimizade que tiveram antes de chegar aqui deve desaparecer neste mesmo momento.

MacRuairi cravou a pá no chão com um terminante golpe. Seus olhos escuros eram muito ameaçadores e desafiantes.

—Isso também afeta a você, chefe?

A Tor não passou despercebido o sarcasmo, e reprimiu o impulso de socar o punho nesse queixo petulante. Ele não era seu chefe e nunca seria. Mas somente MacSorley sabia que ele não seria o líder do grupo quando terminasse a instrução, e era melhor que seguisse sendo desse modo no momento. Embora ele não fosse seu líder no futuro, durante os próximos meses seria, e até então aplicaria as mesmas normas. Por muito que o odiasse, por agora MacRuairi seria seu irmão. Quando aquilo tivesse terminado, converteriam-se de novo em inimigos.

—Sim — disse Tor, lhe olhando diretamente aos olhos—. Tendo em conta no que estamos a ponto de nos embarcar, não poderia ser de outro modo. Se triunfarmos, este será o maior exército que o mundo tenha visto; reunirá o melhor que a Escócia jamais ofereceu na arte da guerra. Jamais se tentara nada parecido a isto. —Olhou a todos—. Cada um de vós é o melhor em seu campo, mas somente com sua força e habilidade não chegaria tão longe. Somente podem vencer a… quantos homens…?, possivelmente vinte ou trinta? Lutem juntos e poderão vencer exércitos, centenas, possivelmente milhares. Sozinhos são os melhores, juntos se converterão em lenda. Mas aqui não há honras pessoais. A honra está em servir juntos como parte da equipe.

O êxito desta guarda, suas vidas e as de todos os que nos rodeiam só estarão a salvo se confiarem no homem que têm ao lado. —Tor olhou sucessivamente ao MacGregor e ao Campbell—. Já não são um MacGregor e um Campbell. Esta guarda é seu novo clã. Estes homens são seus irmãos.

Deixou que suas palavras fizessem rachaduras neles. Estava claro que não estavam dispostos a aceitar aquilo, Tor tampouco esperava: os guerreiros das Terras Altas não confiavam facilmente. Mas eles fariam. Não existia alternativa para uma equipe como essa.

—Eu trabalho sozinho — disse MacRuairi.

—Não, já não. Se querem ficar aqui, não. —Tor deixou cair a ameaça mas, desgraçadamente, MacRuairi não mordeu o anzol. A forma como lhe olhou, entretanto, deixava entrever tudo menos conformidade.

Tor passou revista ao resto dos homens.

—A partir de agora, consagrarão tudo à equipe. Seu dever e lealdade são para mim e para esta guarda.

—Não te esqueces algo? —perguntou Seton—. O que passa com Bruce, nosso senhor e soberano por direito?

—Deixem que eu me preocupe com Bruce — replicou Tor. Para operar com esse grupo, a máxima autoridade devia radicar no líder do mesmo, mas essa discussão tinha que esperar outro dia, e ia deixá-la para o MacSorley.

—Agora mesmo, nós não existimos; inclusive Bruce estaria de acordo. O segredo é primitivo. Nossos nomes. Nosso objetivo. Tudo. Não podem contar a ninguém o que fazemos. Isso inclui esposas e famílias, se alguém é casado.

A pouca informação que tinha obtido de MacDonald e do Lamberton antes de ir não falava de esposas. Ele sabia que MacRuairi acabara de ficar viúvo, de uma MacDonald, nada menos. Confiava que a maioria deles não fossem casados; assim era menos complicado. Os homens estavam calados, com expressão sombria, refletindo sobre o que havia dito e perguntando-se sem dúvida se tinham cometido um engano.

—Se alguém quiser partir, que diga agora. —Não esperava que respondesse ninguém; ainda não em qualquer caso, e nenhum o fez.

—Então, descansem um pouco — acrescentou—. Necessitarão. Amanhã começamos.

O grupo se dispersou lentamente. MacGregor e Campbell começaram a afastar-se com outros. MacGregor o fez sozinho, e Campbell, atrás do grupo mais numeroso.

—Esperem — disse Tor, lhes detendo—. Não terminei com vós.

Deu um par de pernadas até uma bolsa de pele com fornecimentos que tinha levado consigo e extraiu uma corrente de ferro de um metro de longitude. Com grilhões nas pontas. Embora confiasse em não necessitá-los no primeiro dia, tinha ido preparado. Aquele mecanismo tinha demonstrado ser efetivo quando se produzira alguma disputa ocasional entre as filas, mas ali ia ser de inestimável ajuda.

Durante os próximos aqueles dias dois homens estariam atados entre si, desejassem-no ou não. Confiava que gostassem de correr porque estavam a ponto de realizar um extenso percurso pelo Waternish.

Ambos os guerreiros lhe olharam com receio quando se aproximou, com as correntes ressonando a cada passo. Mas foi MacGregor quem perguntou: —O que é isso?

Tor sorriu, recordando as anteriores palavras do MacGregor.

—Para vós; hoje é o dia em que se apagou o sol.


Capítulo 13


Christina observou Tor na escuridão. Os movimentos apressados e precisos, que nas duas últimas semanas se converteram em um pouco dolorosamente familiar para ela, pareciam um pouco menos rápidos, um pouco menos resolvidos e decididos. Dirigiu o olhar para a janela, tentando adivinhar que horas era. Faltava pouco para que amanhecesse? Era uma ingenuidade pensar, ou ele se entretinha cada vez mais?

«Estarei fora uns dias» se convertera em algo freqüente. Via muito pouco a seu marido, salvo de noite, envolto em um véu de penumbra. Desde sua noite de bodas atrasada, Tor tinha passado apenas dois dias no castelo de Dunvegan. Quando estava ali, ia a sua cama sem falta, sempre tarde, mas nunca dormia a seu lado. Ela desejava que ficasse. Que a agarrasse em seus braços. Falar. Ele seguia sendo basicamente um estranho para ela, e estava se desesperada por conhecê-lo melhor. Mas por ardente que fora a paixão entre ambos, quando terminava Tor retornava ao salão, com seus homens. E por muito que ela dissesse a si que aquilo não tinha importância, sim tinha.

Mas nessa noite, Christina se negava que a decepção escurecesse a satisfação que sentia depois de fazer amor. Ainda experimentava a calidez de suas mãos no corpo. A plenitude de lhe ter entre as pernas. Notar aquele peso, cada vez que a penetrava. Seu intenso aroma varonil seguia suspenso no ar, em seu nariz e em sua pele. Ainda notava debilidade nas extremidades devida à força de sua entrega.

A promessa de sua noite de bodas se cumpriu com acréscimo. A paixão que havia entre ambos era mais maravilhosa do que tivesse sonhado jamais.

Suficiente, por agora.

Fechou os olhos, com o desejo de reter a sensação de satisfação. Se lhe olhasse, sabia que diria algo que arruinaria o momento. Essa noite não haveria perguntas sobre seus planos para o dia seguinte ou sobre quando voltaria, e portanto tampouco receberia respostas cortantes que atenuariam sua felicidade.

Esperava ouvir o som da porta fechando-se de repente. Em lugar disso, ouviu passos que se aproximavam da cama. Teve que esforçar-se para conter a respiração e não abrir os olhos para ver o que estava fazendo Tor. Era como se pudesse notar o peso de seu olhar sobre ela. Ele permaneceu ali quieto um bom momento. Christina teria dado tudo por saber o que estava pensando.

O ar se moveu. Seu aroma escuro e masculino se fez mais intenso. Christina ouviu o som estável de sua respiração quando se inclinou para ela.

O coração deu um tombo. Teve que fazer uso de todas suas forças para não dar um salto quando lhe acariciou a testa com os lábios.

A delicadeza daquele gesto fez que o que aconteceu a seguir resultasse cômico em certo modo. Ele deu um par de pernadas, e não um par de pisões, para a porta. Somente quando ouviu que se fechava, Christina permitiu que em sua boca se desenhasse um grande sorriso.

Embora seu marido não gostasse, não ficava tão indiferente como aparentava.

Quão único precisava era um pouco de paciência.

*

Christina seguia sorrindo quando terminou de tomar o café da manhã. Tor não se reunira com ela, e supôs que partira pra aonde fosse que ia constantemente. Mas nesse dia não estava necessitada de companhia. Pelo visto ganhara uma escolta privada.

Desde que tinha pilhado olhando-a da despensa da cozinha, tinham-na seguido como sabujos. Nesse mesmo instante estavam observando como arrumava as últimas flores de outono em um vaso de cerâmica vidrada, na cabeceira da mesa do estrado, esforçando-se por ser pacientes (o qual claramente estava custando muitíssimo) e não entremeter-se em seu caminho (o qual, tendo virtualmente pegos aos seus calcanhares, era impossível).

Quando ela se afastou um pouco do vaso, Deidre já não pôde esperar mais.

—Fizemos o que vocês disse, milady — disse a garotinha, espectadora.

Christina baixou o olhar a volta dos três rostos suplicantes, cujas bochechas estavam manchadas com as conservas de bagos especiais que o cozinheiro tinha preparado, e sorriu ante sua expressão de ansiedade.

A filha do cozinheiro tinha ido visitar a ilha de Harris e tinha levado seus três filhos: Ewan, de oito anos, Deidre, de sete, e Anna, que acabava de fazer cinco.

—Lavastes as mãos e o rosto?

Os três moveram a cabeça, acima e abaixo.

—Sim, milady.

Ela apertou os lábios para não sorrir.

—Mãe disse que não lhe incomodássemos — explicou Deidre. Mordeu a comissura do lábio inferior com os dentinhos e logo a olhou com gesto de preocupação—. Não lhe estamos incomodando, verdade?

—Claro que não a estamos incomodando — disse Ewan indignado—. A senhora disse que podíamos olhá-la e que depois, quando tivesse terminado com seus deveres matutinos, contaria-nos o resto. Verdade, milady?

—É verdade, Ewan.

Ele se dirigiu a sua irmã com as mãos cruzadas e assentiu com ar de superioridade.

—terminastes então, milady? —perguntou a pequena Anna.

Christina sorriu e limpou as mãos no avental.

—Acabo de terminar — mentiu, prescindindo da cera que ainda teria que retirar das toalhas, das velas que teria que substituir e do candelabro de prata que teria que polir. Todo isso podia esperar.

Além disso, Tor tampouco se dava conta.

Paciência, disse. Se a rusticidade em que se encontrava o salão quando chegou indicava algo, era que fazia muito tempo que ninguém se ocupara de que ele estivesse cômodo. Finalmente, Tor notaria os esforços que ela tinha feito para criar um lar confortável, um lugar onde gostasse de estar e ao que ansiasse voltar.

Dedicou seus pensamentos novamente aos meninos e disse:

—Então onde tinha parado?

—O malvado Meleagant afastou à rainha de Arthur e a levou a seu horrível castelo em…

—Gorre — interveio Christina.

—por que Lancelot, sir Kay e sir Gawain vão atrás da rainha e não do rei Arthur? —perguntou Deidre.

Boa pergunta, pensou Christina. Mas como explicar que a decisão do rei Arthur de não lutar por sua dama era o que justificava a infidelidade de Genebra? Uma nova pergunta a salvou de ter que responder.

—Lancelot matará ao Meleagant e salvará à rainha?

Ewan soprou.

—Claro que matará, tola. Lancelot é o melhor guerreiro de sua época; como o RI tuath. O chefe jamais permitiria que ninguém lhe raptasse, verdade milady?

Christina sorriu.

—Eu diria que não, Ewan. Mas se estiver tão seguro da vitória de Lancelot, talvez não precisem ouvir o resto.

Eles responderam saltando virtualmente sobre ela, negando com entusiasmo. Assim que os coros do «não» tiveram cessado, Christina agarrou a palmatória e retomou a história onde a tinha deixado no dia anterior.

*

Tor deixou ao senescal e a seu escrivão na galeria. Revisar a correspondência e as contas tinha levado muito mais tempo do esperado; tinha previsto estar no fiorde um momento antes, e estava ansioso por reunir-se com seus homens. O treinamento ia progredindo; em alguns aspectos melhor que em outros. Levaria tempo derrubar as barreiras que havia entre eles. Tempo do que não dispunha. Uma semana mais e encadearia a todos juntos se era necessário.

Esfregou a nuca, tentando mitigar a rigidez que sentia em toda a costa. Deus, que noite tão espantosa. Não tinha conseguido ficar a vontade. E era fácil saber a razão: comparado com a confortável cama com sedosos lençóis de linho e cálidas cobertas que tinha abandonado, a manta e a rugosidade do chão lhe tinha parecido tão agradável como um leito de pedras.

Os baús de Christina tinham chegado, e com eles apareceram muitos luxos que ele não tinha experimentado nunca. Lençóis tão suaves que pareciam de seda, e talvez o mais fascinante… Travesseiros de plumas. A primeira vez que tinha apoiado a cabeça em um, acreditou que tinha morrido e que tinha chegado ao céu.

Cada noite tinha que abrir mão de toda sua força de vontade para afastar-se de tanta comodidade. Mas, maldita seja, os guerreiros não dormiam em camas.

Diabos, a quem estava enganando? Não eram os travesseiros e os lençóis de linho o que lhe havia custado tanto abandonar, era essa mulher, muito tentadora. Mas sua fome dela era previsível, pensou. A novidade de seu matrimônio e seu insaciável desejo de Christina acalmariam logo.

Tor ouviu um sonoro estalo de risadas e aplausos procedente do salão. Perguntando-se a que era devido tanto alvoroço, dobrou a esquina, entrou e se deteve em seco. Não sabia o que esperava ver, mas certamente não a sua mulher sentada em cima da mesa com o que parecia ser uma palmatória na mão, e brandindo como uma espada.

Conteve o fôlego. Deus, era preciosa. Afastou o cabelo do rosto com um simples laço e o levava solto sobre as costas, seus enormes olhos negros brilhavam como a lua sobre o mar e suas bochechas aveludadas estavam ruborizadas de emoção. Parecia feliz, relaxada e jovem. Muito jovem. Tor não recordava ter sido tão jovem, tão feliz, ou ter estado tão relaxado, por certo.

Ela era uma rajada de ar fresco da primavera no frio e úmido inverno.

Mas que diabo estava fazendo? Dava voltas sobre a mesa a toda pressa. Uma espécie de atuação, pelo visto. Juntos a seu redor estava o que parecia a maioria dos criados da casa e três meninos pequenos, que a olhavam com expressões encantadas.

Ninguém o tinha visto chegar; toda a atenção estava centrada na veemente atuação da moça miúda. Por um momento, seu subconsciente lhe pregou uma brincadeira e viu o rosto jovial de sua mãe quando lhe contava um conto ao deitar. Tor sentiu uma intensa nostalgia dos tempos passados e teve uma fugaz ideia de quão diferente teria sido sua vida se seus pais tivessem vivos. Envergonhado ante essa debilidade, desprezou-a.

Christina agitou a palmatória frente ao menino que tinha debaixo.

—Esta vez não te libertará de seu castigo, Maleagant — disse com uma voz exageradamente grave—. Manchaste a honra de minha dama e eu, Lancelot, o principal cavalheiro do reino, defenderei-a. Deve pagar com sua vida. —Fingiu um apunhalar com uma colher—. Morre, vilão.

O menino gritou e fingiu uma morte muito teatral para grande regozijo de suas irmãs e do grupo, que estalou em outra ronda de aplausos quando estirou as pernas em um prolongado gesto final.

—Isso foi magnífico, Ewan — disse Christina, deixando a palmatória para unir-se ao aplauso—. Será um cavalheiro estupendo.

—Mas eu não quero ser cavalheiro, milady.

Ela parecia perplexa.

—Eu acreditava que todos os meninos queriam ser cavalheiros.

Ewan inflou o torso.

—Eu quero ser um feroz guerreiro das Terras Altas como o RI tuath.

«Que menino tão preparado», pensou Tor sorrindo.

—OH, milady — disse a menina maior—, e agora o que acontece? Como recompensou a rainha ao Lancelot por sua devoção?

Um vivo rubor apareceu nas bochechas de Christina. De repente, seu olhar se encontrou com Tor. Um gemido de sobressalto brotou do centro de seus lábios suaves, separados, e pareceu que suas bochechas se ruborizavam ainda mais.

—Milorde! Estás aqui!

Ao dar-se conta de que lhe tinham pilhado vadiando, os criados se apressaram a aparentar que trabalhavam e se dispersaram imediatamente. O menino e a menina maiores agarraram a irmãzinha e a levaram.

A pequena tentou soltar-se.

—Mas, eu quero ouvir…

—Chist, Anna — disse o menino. Saiu a toda pressa e acrescentou por cima do ombro—: Obrigado, milady.

—Vejo que seu público te abandonou — disse Tor. Percorreu a distância que lhe separava com um par de pernadas e se colocou de frente a ela.

Christina sorria com ironia.

—Isso parece. Muito pouco galante de sua parte, não acredita?

Devolveu o sorriso, sem pensar.

—Desculparia-me pela interrupção, mas acredito que neste caso foi bastante oportuna. Não é verdade que a rainha deu as graças ao cavalheiro de uma forma que preferiria não contar aos meninos?

Ela avermelhou de novo e ergueu os olhos para ele.

—Me parece que Deidre se deu conta de que estava suavizando as partes «românticas» da história.

Dispôs-se a descer da mesa, mas ele a deteve e lhe rodeou a cintura com as mãos. Com seus olhos escuros fixos nela. A pele sensível e arrepiada. As lembranças da noite passada fazendo o amor seguiam vivos em sua mente… E em seu corpo.

—Me permita — disse com voz rouca. Levantou-a como se fosse ligeira como uma pluma, atraiu-a para si e a baixou lentamente até o chão, desfrutando de do instante de contato de seu corpo deslizando-se pego a ele.

Alagou-lhe uma onda de ardor. Ela era tão suave e cheirava tão bem… Somente tendo-a perto se avivava.

—Assim, o que fez a rainha para demonstrar sua gratidão? —perguntou em voz baixa, incapaz de resistir.

Se não deixava de brincar com ela, pode ser que suas bochechas ficassem permanentemente tintas de rosa. Mas, maldita seja, era adorável.

—Eu… Eu - balbuciou Christina.

Ele tentou não rir. Pode ser que já não fora donzela, mas seguia sendo deliciosamente inocente. Muito distinta de qualquer que tivesse conhecido antes. Reteve-a um momento mais do necessário, tentado de levá-la de novo a seu quarto. Soltou-a.

—Tenho que ir - afirmou, para convencer-se a si mesmo, mais que outra coisa—. Tenho obrigações que atender.

Falou com brutalidade, e ela o interpretou como uma crítica, embora não tinha essa intenção. Parecia desolada.

—Deve acreditar que te casaste com uma mulher suja. Estava a ponto de limpar a prata, mas…

—Decidiu praticar seus dotes de espadachim?

Esta vez a brincadeira não funcionou.

—Os meninos —disse ela retorcendo as mãos— estavam tão ansiosos por ouvir o resto da história que me temo que me deixei levar. Voltarei para minhas obrigações agora mesmo.

Parecia tão abatida que tomou-lhe a mão, por impulso, desejando tranqüilizá-la.

—Não te considero preguiçosa absolutamente. Está fazendo muito bem o papel de senhora do castelo.

Christina abriu os olhos de par em par.

—Isso pensa? De verdade?

Era óbvio que sua opinião era muito importante para ela.

—Sim, de verdade.

Tor se deu conta de que era certo. Christina estava fazendo-o muito bem.

Levava pouco tempo ali, mas se tinha adaptado a seu novo papel de senhora do castelo facilmente. Ao pensar reconheceu quão difícil devia ter sido. Era jovem inexperiente e estava rodeada de desconhecidos. Mas tinha conseguido suficiente autoridade para obter o respeito dos homens do clã. Assim devia ser, ou do contrário não obedeceriam suas ordens. Agora que pensava, recordou que nas poucas refeições que tinham compartilhado, os serventes apresentavam as bandejas do desjejum a ela para que as passasse, e sorriam radiantes quando o fazia. Não só a respeitavam, gostavam dela.

E isso não era tudo. Havia algo diferente na fortaleza desde que ela tinha chegado. Algo, além das tapeçarias e das mudanças que Christina tinha feito e que ele mal tinha notado. Era mais cálida. Tor franziu o cenho, perguntando-se se ela estaria queimando muita turfa.

—Acontece algo? —perguntou ela.

Ele meneou a cabeça, sem deixar de franzir o cenho. Não queria ocultar seus sentimentos, mas assim que tivesse oportunidade falaria com o senescal sobre a turfa.

—Não, tenho que ir.

Os homens estavam esperando. Mas por alguma razão não estava tão ansioso por voltar para a instrução como minutos antes.

*

Deu a volta para ir, e uma borbulha de desespero surgiu no interior de Christina. Era a primeira vez que tinha tido a oportunidade de falar com ele durante o dia, desde que havia retornado e a tinha encontrado coberta de cinza na cozinha. Aparentemente começava a ser um costume encontrá-la em circunstâncias muito pouco favorecedoras. Mas não se importou. Estava ansiosa por saber mais dele e não queria desperdiçar a oportunidade.

—Espera! —Ele se voltou, perplexo, e ela se sentiu como uma parva. Suas bochechas se tingiram de rubor e se retorceu as mãos sobre a saia—. Eu… —O que ia dizer? Pensou— Não sei o que você gosta - soltou.

—O que eu gosto?

—Para comer - explicou, sentindo-se ridícula. Não era capaz nem de construir uma frase coerente quando Tor estava perto. Ruborizava-se e gaguejava e atuava como uma mocinha apaixonada, do momento em que ele entrava no aposento—. Deveria conhecer suas preferências para planejar as refeições da semana com o cozinheiro.

—Cormac permite que lhe diga o que deve preparar? —diria que ele não dava crédito.

Christina franziu o cenho.

—Não deveria fazê-lo?

—Deveria, mas Cormac é teimoso como uma mula velha. Faz o que quer sem escutar a ninguém.

Ela sorriu com doçura.

—Exceto a mim.

Ele a olhou com os olhos entoados durante um momento.

—O que fez em troca?

Christina se levou a mão ao coração como se estivesse escandalizada.

—Estou profundamente ofendida.

Tor arqueou uma sobrancelha.

Ela torceu os lábios.

—Alguém já te disse alguma vez que suspeitas de tudo?

Tor cruzou os braços, enfatizando a protuberância de seus músculos. Christina nunca se cansava de o olhar.

—Continuamente - repôs ele — É meu trabalho.

Teve a sensação de que seu marido fosse capaz de esperar eternamente, e pigarreou decepcionada.

—Ah, muito bem. Tenho descoberto que é muito mais razoável depois de uma grande jarra de cerveja.

Tor riu entre dentes, e aquele som a encheu de calidez. A brancura de seus dentes se destacava junto a sua pele bronzeada, e as rugas que rodeavam seus lábios se intensificavam quando sorria.

—Pelo visto me casei com uma moça ardilosa.

Ela se perguntou por um momento se referia ao que tinha ocorrido no Finlaggan, mas se tranqüilizou ao descobrir uma faísca zombadora em seu olhar. Sorriu-lhe.

—Eu prefiro pensar que sou esperta.

—Estou impressionado, fizesse o que fizesse.

Apesar da despreocupação com a que o disse, a agradou enormemente. Talvez tivesse notado seus esforços, mais do que tinha acreditado? Essa idéia a encorajou.

—Já sei que está ocupado, mas já levamos quase três semanas casados, e tivemos tão pouco tempo para falar… Tenho a sensação de que mal te conheço. —O sorriso desapareceu do rosto de Tor, mas ela ignorou a advertência. Deixou-se levar pela emoção de sua primeira conversação «normal» entre marido e mulher, e não quis parar—. Quase é a hora do almoço, e há muitas coisas que eu gostaria de comentar contigo. —A sua mente aparecera uma multidão de perguntas. Tinha visto os travesseiros novos? Também queria saber sua opinião sobre a cor dos novos dosséis para a cama. Tinha tanto que lhe perguntar!—. Possivelmente poderia ficar? —Então teve uma idéia ainda melhor—. Ou eu poderia ir contigo. Não chove, talvez uma refeição ao ar livre…

—Isso é impossível - replicou ele ocultando-se de novo atrás de sua aparência de chefe, e ela se deu conta de seu engano. Sentiu-se como se tivesse topado de cabeça contra um muro de pedra.

Esforçou-se por dissimular sua decepção porque não queria danificar o momento, embora temesse justamente tê-lo feito, devido a sua ansiedade.

—Talvez em outra ocasião - disse como se não desse importância. E acrescentou em seguida para repor-se—: Embora ainda não disse quais são suas preferências.

Tor fez um gesto de indiferença.

—O que você fizer estará bem.

—De acordo - disse ela em voz baixa. O momento tinha passado. Por que tinha que lhe pressionar? Por que não se contentava com o que Tor estava disposto a lhe dar?

Ele deveu notar sua expressão abatida.

—Beterraba.

Christina ergueu os olhos.

—O que?

—Eu não gosto de beterraba. Nem mandioquinhas, por certo.

A Christina iluminou o rosto.

—A mim tampouco. Algo mais?

—Os molhos doces para as carnes. O açúcar é para as sobremesas. —Olhou-a com ironia—. E para os figos secos.

Ela avermelhou, ao dar conta de que ele devia ter notado sua afeição pelas coisas doces.

—Vinho ou cerveja? —perguntou-lhe.

—Uísque, e logo cerveja. —Sorriu—. Nada dessa espécie de xarope que gosta a ti.

Também tinha notado que gostava do vinho doce? Pelo visto se dera conta de muitas mais coisas das quais ela acreditava. Desejava fazer centenas de perguntas mais, mas era óbvio que ele estava ansioso por partir e Christina não queria lhe atrasar mais.

—Obrigado.

Ele assentiu e se dispôs a ir, mas se deteve.

—Estarei fora…

—Uns dias - terminou ela a frase com tranqüilidade, sem aparentar absolutamente sua decepção.

Tor a olhou, penetrante, e Christina temeu que tivesse notado de todas as formas.

—Sim, alguns dias.

Ela se obrigou a sorrir como uma esposa complacente.

—Verei-te quando voltar, pois.

Ele a olhou longamente e pareceu que queria dizer algo, mas girou sobre seus calcanhares e se foi sem pronunciar mais nenhuma palavra. Christina o viu cruzar o pátio da janela, perguntando-se o que era o que o mantinha afastado durante tanto tempo.

Estava a ponto de desviar o olhar quando ficou gelada.

Foi como se lhe tivessem atirado um balde de água gelada em cima.

Lady Janet avançava para ele com uma grande cesta. O tipo de cesta que se usava para levar a comida para uma refeição ao ar livre.

Pelo visto o esteve esperando. Tor disse algo, e desceram a escada até a comporta marítima juntos.

O coração de Christina pulsava tão rápido que mal podia respirar. Estava convencida de que aquilo não significava nada. Mas por que ia com lady Janet e não com ela?


Capítulo 14


O inverno era feroz como um leão, trazia temperaturas glaciais, ventos gelados, dias curtos e intermináveis mantos de bruma cinza e nuvens. Quando o sol falhava, a água caía abundante dos céus.

O dia de Todos os Santos chegou e se foi, quão mesmo o de São Martín. Christina não demoraria em iniciar os preparativos para o Yule e Hogmanay. Os netos do cozinheiro se foram. Havia pouca alegria no interior daqueles lúgubres muros de pedra, mas ela tinha a intenção de fazer todo o possível para mudar isso.

Estava desanimada, mas não vencida. Paciência, disse.

O vento uivou e a chuva golpeou as finas venezianas do salão. Que noite tão horrível! Ela terminou de arrumar as samambaias, a única seguia crescendo em abundância nos arredores do castelo, além da urze, e deu um passo atrás para admirar os diversos matizes de laranja e marrom.

Deu uma olhada pelo ambiente, satisfeita de que tudo estivesse preparado para o jantar, e voltou para seu quarto para trocar-se. Nunca sabia se Tor se reuniria com ela, mas tentava ter o melhor aspecto possível para as poucas ocasiões em que o fazia.

Os dias tinham adquirido certo ritmo. Ele quase sempre abandonava o castelo ao amanhecer e retornava muito depois do crepúsculo, e às vezes nem sequer isso. Mas sempre mantinha sua promessa e lhe informava que ia partir «uns dias». Ela já não se incomodava em perguntar aonde ia; sabia que a única resposta que obteria seria a mesma de sempre: estava se ocupando de assuntos do clã, por só, aparentemente.

Christina não pôde evitar de reparar que lady Janet também estava fora freqüentemente.

Queria pensar que aquilo somente era uma coincidência. Mas lhe custava cada vez mais convencer-se de que seu marido não albergava nenhum sentimento especial por ela.

Em realidade, não sabia o que pensar. Não existia nenhum problema entre eles; certamente que não… Não tinha do que queixar-se. Mesmo assim, seu matrimônio não estava progredindo tal como tinha esperado, e não sabia o que podia fazer.

Já estava há mais de um mês no Dunvegan, mas em muitos aspectos seu marido seguia sendo um desconhecido para ela, como no dia de sua chegada.

Tinha averiguado o que gostava de comer e beber; que seu clã lhe reverenciava como a uma lenda viva, um rei divino e um herói guerreiro, tudo em uma peça; que mantinha a ordem e o funcionamento de seu lar com precisão militar; que quase nunca se relaxava; que além de um irmão tinha uma irmã (isso disse o escrivão). E que era capaz de rendê-la com uma carícia.

Conhecia o tato ardente de sua pele sobre ela, como se intensificava o aroma de pinheiro de seu sabão quando seu corpo fervia de paixão, o roçar tosco de seu queixo junto à pele, o «v» de pêlo suave e sedoso de seu torso, a pressão de seus lábios em seu seio e a deliciosa sensação de suas mãos lhe cobrindo o corpo.

Christina entrou em seu quarto e dirigiu o olhar para a cama; o único lugar onde se conectavam. Sobreveio-lhe uma ardorosa onda de lembranças viscerais.

Sabia como os músculos de seus braços e de seus ombros se flexionavam quando se sustentava sobre ela para penetrá-la. Conhecia a dureza que adquiriam esses músculos sob suas mãos. Sabia quanto pesava o corpo de Tor sobre o seu, conhecia a plenitude desse corpo em seu interior, o ritmo com o que o fazia o amor, movendo-se dentro e fora dela. Sabia como os músculos de seu estômago se esticavam, convertendo-se em rígidas faixas antes que ele gritasse, entregue. Conhecia o som dessa entrega, o áspero grunhido e o profundo gemido que ressonavam em seus ouvidos muito depois de que ele se fosse. E ia, sempre, por muito que ela desejasse que ele quisesse ficar. Despertar em seus braços tão somente uma vez…

Sentiu uma opressão no peito e se afastou da cama.

Conhecia sua forma de lhe fazer amor, mas não sabia nada do homem. Ele guardava seus pensamentos para si mesmo. Por muito que ela tentara derrubar o muro que tinha edificado a seu redor, não conseguia. Talvez devesse pedir ao rei Eduardo que lhe emprestasse seu infame mecanismo de assédio «Warwolf» 23 pensou a contra gosto.

Tor estava tão acostumado a estar sozinho, a agüentar ele mesmo suas cargas, que ela acreditava que nem sequer imaginava o que estava perdendo. Nem que seus esforços por mantê-la à margem lhe doíam. Nas estranhas ocasiões nas que se reunia com ela nas refeições, suas tentativas por ter uma conversa mais pessoal eram recebidas com educação, mas firmemente rechaçadas. Seu esforço para que a residência tivesse um ambiente mais alegre e por contribuir um pouco de calidez ao lúgubre salão tinham ficado em nada. Ela tentava ser útil. De fazer coisas bonitas para ele, de dizer ao cozinheiro que lhe preparasse seus pratos preferidos ou de conservar sua roupa perfeitamente limpa e imaculada. Mas, pelo visto, ele estava muito ocupado para se dar conta.

Christina tinha começado a sentir-se como um de seus cães. Um cachorrinho devoto que seguia lhe pisando os calcanhares, esperando uma mínima amostra de afeto. Uma carícia.

Um olhar. Algo que demonstrasse que lhe importava. Inclusive outro beijo na testa lhe teria dado esperanças.

Não que Tor fosse cruel. A crueldade teria exigido certa dose de sentimento. Talvez isso fosse mais fácil. Nesse caso, ao menos, Christina saberia qual era sua situação.

Ela tinha acreditado captar algo especial entre eles, mas e se estava equivocada? E se não havia noites confortáveis junto ao fogo? O que faria em tal caso?

Aparentemente Tor tinha dois sentimentos a ela: educada indiferença durante o dia e paixão de noite. Esse último lhe dava esperanças. A paixão entre ambos não tinha deixado de crescer, e ela se habituou de forma gradual aos desejos de seu próprio corpo e começava a deixar-se ir.

Ao menos, esse era seu caso, e desejava pensar que era mútuo. Mesmo assim, a verdade era que ela não podia compará-lo com nada. E ele sim.

Mas inclusive na cama, Christina não podia evitar sentir que algo ia mal. Que ele se retinha. Sentiu um agudo espasmo no peito, temendo ser uma decepção para seu marido. «Devo estar fazendo algo ruim.»

Desejava desesperadamente lhe agradar. Mas como? Impressionar-lhe com suas habilidades de esposa certamente não estava sortindo efeito. Tor tinha ensinado a paixão, como reconhecer os desejos de seu próprio corpo, mas ela seguia sem saber quase nada dele. O que gostava?

Ele sempre parecia tão controlado, salvo…

Isso era! A primeira vez. Houve algo selvagem e real a primeira vez. Talvez fosse assim como gostava?

As bochechas lhe arderam ante a escandalosa lembrança de como Tor a havia possuído por trás.

Sentiu uma espessa calidez no ventre. Tinha um plano. Exigia descaramento, mas a modéstia não a deteria. Precisava dar um golpe terminante para derrubar o muro de desconfiança e isolamento que ele tinha erguido a seu redor. Warwolf não era nada comparado com o que ela tinha planejado.

*

A onda golpeou ao Tor, derrubou-o e lhe impediu de levantar-se durante o tempo suficiente para que à maioria de seus homens entrasse o pânico. Com os pulmões ardendo, conseguiu voltar para a superfície da água, absorvendo rajadas de ar a fervuras.

—Alguém disposto a abandonar? —gritou, e sua voz ficou apagada pelo rugido do vento e o martelar da chuva.

Sua pergunta foi recebida por um coro de homens exaustos mas convencidos:

—Não, capitão.

Mas depois de mais de uma hora nas geladas águas do fiorde, durante a pior tormenta que tinha sofrido Skye essa temporada, inclusive MacSorley dava mostras de debilidade.

Só um demente estaria na água em uma noite como essa. Mas era justo a noite que ele estivera esperando. Nem mesmo planejando a tormenta ele pessoalmente, teria previsto as condições de supor um desafio maior.

Thor tinha desatado sua vingança com uma poderosa corrente. A água arremetia em ondas enormes contra as escarpadas rochas que delimitavam o fiorde.

Eles tinham nadado até a boca do mesmo, a uns quatrocentos metros da costa, através de um fluxo de metro e meio de altura e uma corrente que tentava o levar de volta. Tentando à sorte no mar, esforçando-se ao máximo por manter-se a flutuação, rodeados de redemoinhos de águas negras e de uma incessante neve.

Em um tranqüilo dia de verão, ele era capaz de estar ali fora indefinidamente. Mas as gélidas águas do inverno e a ferocidade do mar minavam a fortaleza de um homem em questão de minutos. Já não batia os dentes, e fazia muito tempo que não queimavam nem as pernas nem os braços. Não sentia nada. Conhecia os sintomas do perigo, mas seguiu forçando, forçando através da dor e o medo que teriam vencido à maioria dos guerreiros de elite.

Fortaleza. Resistência. Não render-se jamais. A dureza de corpo e de mente era o que convertia a seus homens nos melhores.

Quando outros ficavam na borda, tremendo, seus homens mergulhavam.

E sendo que ele era um dos melhores nadadores do grupo, tão bom como MacRuairi, embora não tão forte quanto MacSorley, podia imaginar que alguns outros deviam estar sofrendo.

Mas abandonar era impensável. Jamais. Era melhor que averiguassem se tinham o necessário em um momento assim, quando o que estava em risco era perder a um e não à equipe inteira.

A maioria dos homens eram bons nadadores, mas Seton e MacKay não estavam tão cômodos como os outros na água; Seton porque era inglês, e MacKay porque procedia de uma região montanhosa situada no coração das Terras Altas.

A fortaleza do grupo era quão mesma a de seu elo mais fraco. E esse exercício, junto a muitos dos que ele lhe tinha imposto nos últimos dias, pretendia demonstrar a importância de trabalhar unidos, além da necessidade de estar preparados em qualquer circunstância que pudesse apresentar-se, tanto física como mental. Para vencer a um exército muito mais numeroso e melhor equipado precisariam ser mais rápidos, mais preparados, mais fortes, e capazes de mover-se pelo território mais difícil com facilidade, incluída a água.

—Enumere - ordenou. Estava muito escuro e a água muito turva para ver todos os homens, de maneira que tinha que confiar nessas recontagens periódicas para assegurar-se de que estava todo mundo.

Tinha-lhe emparceirado o primeiro dia e indicou que não deviam separar-se nunca de seu companheiro; na água significava não afastar-se mais da longitude do braço. Trabalhariam sempre juntos, por grupos, pequenos ou grandes, mas precisava lhes preparar para isso.

—Equipe um, preparado, capitão.

MacSorley e MacRuairi. O navegante e o pirata. Primos e descendentes do poderoso Somerled, ambos eram excelentes nadadores, mas a habilidade especial do MacRuairi radicava em infiltrar-se. Dizia-se que era capaz de entrar e sair de qualquer parte. Uma habilidade útil não só para resgatar homens, mas também para cortar pescoços.

Um assassino, agora Tor via claro.

Tinha emparceirado ao alegre MacSorley com seu severo e lúgubre primo para que lhe vigiasse. O fato de que as brincadeiras constantes do MacSorley irritassem ao MacRuairi era uma vantagem acidental, mas bem-vindas. MacRuairi, habituado a trabalhar sozinho, contribuía à associação outro benefício.

—Equipe dois, preparado.

Campbell e MacGregor. O explorador e o arqueiro. Campbell também era muito hábil lançando a lança, e os dois se meteram em crescentes e descabelados desafios de pontaria à medida que passavam os dias.

Depois de estar uma semana encadeados, o antagonismo entre os dois inimigos não tinha feito mais que crescer, mas tinham aprendido a trabalhar juntos e a cumprir com suas tarefas. De momento, bastava.

Acorrentar os dois tinha sido mais acertado do que tinha previsto. Os dois homens evitavam a conversação em grupo. MacGregor era solitário e Campbell observador, e gostavam de manter-se à margem; embora seus similares temperamentos não tivessem mitigado absolutamente o antagonismo.

—Equipe três, preparado, capitão.

MacKay e Gordon. Outra dupla apropriada. O duro e bondoso montanhês e o esbelto alquimista não podiam parecer mais diferentes, mas resultara que MacKay era também uma espécie de inventor e experimentador. Em lugar do peculiar pó negro que Gordon utilizava para criar raios e trovões de fogo, MacKay experimentava com armas, forjando aterrorizantes instrumentos com nomes truculentos, mas descritivos, como «arranca olhos» ou «abre crânios»

—Equipe quatro, preparado, capitão.

Lamont e MacLean. O caçador e o atacante. Lamont era um famoso caçador de homens, capaz de seguir qualquer rastro, por leve que fosse. MacLean brandia um formidável machado de guerra e se dizia que tinha liderado uma série de audazes ataques contra os ingleses no Carrick.

Os Lamont, além disso, levavam muito tempo em uma disputa com os Boyd. Se soubesse antes, Tor possivelmente o teria emparceirado de outra forma.

—Equipe cinco, preparado, capitão.

Boyd e Seton. O mais forte e o mais fraco. O inglês era o elo mais frágil da cadeia, e isso lhe enfurecia constantemente. Não era uma consideração sobre se merecia ou não estar ali, a não ser o simples reflexo de sua juventude e inexperiência. De fato, Seton tinha subestimado bastante sua habilidade com a faca: lançava o estilete com extraordinária habilidade. Mas não correspondia ao Tor lhe dizer que merecia estar ali; Seton tinha que averiguá-lo por si só.

Tor tentou franzir o cenho, mas tinha o rosto rígida de frio. Se o treinamento não melhorava ao Seton, possivelmente Boyd o faria. Apesar da evidente diferença de força entre ambos, Seton se negava a dar-se por vencido. Cada vez que Boyd se burlava dele, Seton mordia o anzol. Aquilo lhe estava devorando por dentro, e Tor se limitava a esperar que reagisse. Seu altivo orgulho inglês podia lhe causar a morte.

Talvez tivesse cometido um engano lhe emparceirando, sem ter em conta o grau do ódio do Boyd pelos ingleses. Boyd e Lamont, os rivais do clã, possivelmente teria sido melhor opção. A discórdia não era algo que escasseasse nesse grupo.

Uma nova onda lhe cobriu. Basta. Tinha chegado o momento de voltar. Deu a ordem e notou a sensação de alívio dos homens, que, entretanto estavam muito exaustos e gelados para aclamar.

Estava orgulhoso deles. Normalmente estava acostumado a reservar essa prova para uma fase posterior do treinamento, mas a tormenta lhe tinha parecido muito tentadora.

Dessa vez as ondas e a corrente estavam a seu favor, e nadaram até a borda com uma facilidade maior que quando se afastaram da costa.

Quando os homens conseguiram sair da água, Tor esteve a ponto de cair rendido nu, sobre as rochas. Ao inclinar-se para puxar mais ar, se deu conta de que havia um punhado de homens que estavam fazendo exatamente o mesmo.

—Trabalho bem feito - disse quando recuperou a respiração, como incomum elogio.

O vento e a neve úmida tinham amainado o bastante para que distinguisse as silhuetas na escuridão. Arrepiaram-lhe os cabelos da nuca, e não pelo frio. As nove silhuetas. Fazia a recontagem sem pensar; era algo que fazia por instinto. Tinha que saber que tinha contado a todos seus homens.

Lançou uma maldição. Deu uma olhada ao Boyd.

—Onde está Seton?

Boyd se sobressaltou e olhou em redor.

—Estava bem atrás de mim…

Tor não quis perder nem um segundo mais. Atirou-se de novo à água; a raiva lhe proporcionou um renovado empurrão de energia.

Ia matar ao Boyd com suas próprias mãos, fosse o mais forte ou não. Tor odiava perder um homem, pela razão que fosse. Mas não vigiar ao companheiro era imperdoável. Não tinha intenção de explicar Bruce como tinha conseguido que seu jovem cunhado se afogasse.

MacSorley nadava a seu lado.

—Já o viu?

—Não - replicou Tor. Estava escuro como boca de lobo. Deu a volta e viu o resto dos homens que tinham ficado atrás—. Dispersem. Não deixem de olhar à frente e esperem que as ondas…

—Ali! —MacRuairi assinalou uns seis metros mais à frente. Sua capacidade de ver na escuridão era assombrosa. Tor mal distinguia um brilho que emergia na superfície. Seton era loiro, felizmente para ele.

Diabos, Tor confiava em chegar a tempo.

MacSorley foi o primeiro. Sua velocidade na água não era um mito; Tor não tinha visto nunca a ninguém que nadasse tão rápido.

Com a ajuda de Tor, MacSorley arrastou Seton de volta à costa e empurrou o corpo sem forças sobre a praia rochosa.

Inclinaram-se sobre o jovem.

—Não respira - disse MacSorley.

Tor amaldiçoou. Sem pensar virou ao menino e lhe golpeou as costas com a palma da mão. Não aconteceu nada. Voltou a amaldiçoar e repetiu o golpe, com mais força.

Dessa vez deu resultado. Seton expulsou a água dos pulmões, e se engasgou enquanto seu corpo se convulsionava entre espasmos e expectorações.

Tor notou como se distendiam as costas e os ombros.

Passados uns minutos, o corpo do Seton tinha eliminado a água do mar e tentou sentar-se. Mas MacSorley lhe conteve.

—Acredito que é melhor que sigam convexo. Parece-me que bebestes muito por esta noite.

Seton conseguiu esboçar um sorriso, que em seguida se converteu em uma careta.

—Completei a prova? —perguntou, olhando ao Tor.

Este assentiu.

—Sim, menino, completou-a.

A ira retornou com toda sua força. Boyd não havia dito nenhuma palavra, e ficou quieto enquanto outros homens tentavam reanimar a seu companheiro. A julgar por sua sombria expressão, Tor se deu conta de que era consciente de seu erro, mas era muito tarde, maldita seja.

Rodeou o grosso pescoço do Boyd com uma mão; uma fúria cega percorria seu corpo.

—Qual era a regra?

Boyd o olhou sem pestanejar.

—Não se separem de seu companheiro.

Tor apertou e outros homens se aproximaram mais. Pego à cara do Boyd, ele cuspiu suas palavras.

—Estes homens contam com que estejam a seu lado, com que cumpram com seu papel, que formem parte desta equipe, e você acaba de abandonar a um de nós. Se tiverem que carregar com um homem até as profundidades do inferno, farão, porque eles o farão por você. Compreendido?

A vergonha invadiu ao resistente guerreiro. Assentiu.

—cometi um engano. Não voltará a acontecer.

Tor lhe separou de um empurrão.

—Podem jurar que não.

Tor não mandou ao Boyd a casa naquele mesmo momento, porque em parte tinha sido culpa dele. Não acreditava que tivesse pressionado muito aos homens, pressionados mais à frente do ponto que alguém acredita que há de chegar para demonstrar que alguém tem o necessário para ser um guerreiro de elite. Ou se tem o necessário ou não se tem. Possivelmente era severo, mas Tor devia ao grupo, não a um homem. Sabia exatamente até onde pressionar, e essa era uma das coisas que lhe tinham convertido em um bom líder.

Mas com escuridão ou sem ela, em última instância esses homens eram responsabilidade dele. Deveria ter se dado conta de que Seton tinha desaparecido.

—Se voltares a fazer algo assim, despacharei-te. Não me importa o forte ou extraordinário que sejas. Isto é uma equipe. Se queres lutar sozinho, retornem pra casa.

Os homens ficaram abatidos depois daquilo, e voltaram para a torre a verem comida que Janet lhes tinham preparado. Houve menos conversa do habitual, embora MacSorley não pôde resistir burlar-se de Seton umas vezes mais, a respeito de sua afeição pela água de mar, lhe oferecendo uma taça, se por acaso preferisse beber isso em lugar de cuirm.

Não era assim como Tor esperava que acontecesse, mas essa noite teve a sensação de que algo tinha mudado. Não porque Seton tivesse estivera a ponto de morrer. A esses homens não dava medo a morte. Para um homem das Terras Altas, morrer na batalha era a recompensa definitiva; o qual explicava possivelmente essa maneira de lutar selvagem e sem limites que tinha gerado terror no coração de seus inimigos.


O que tinha mudado era que os homens já não se limitaram a escutar suas palavras sobre a importância de trabalhar juntos; essas palavras tinham impregnado por fim. A mudança não aconteceria em uma noite; estavam muito acostumados a lutar sozinhos pela glória pessoal, mas chegaria.

Depois de semanas de martelar, a desatinada guarda tinha chegado a um ponto decisivo, e pela primeira vez, o êxito parecia possível. Talvez ao final não precisasse encadear todos juntos.

Deixou-lhes falando em voz baixa junto ao fogo e retornou a Dunvegan.

A tormenta tinha amainado, embora Tor tivesse se orientado pela escorregadia escada de pedra da comporta marinha sem o nebuloso reflexo da luz da lua. Os guardiães do muro lhe saudaram quando entrou no barmkin24. Não pela primeira vez, amaldiçoou a promessa que tinha feito a sua esposa. Exausto, encharcado e frio até os ossos, havia sentido a tentação de passar a noite na torre, mas não a tinha avisado de que não voltaria a dormir. Não estava acostumado a sentir-se obrigado com ninguém a atuar de uma forma determinada, e isso o incomodava.

Por que permitia que o distraísse de suas obrigações? Deveria estar com seus homens, embebedando-se e ouvindo a incessante fanfarronice e sarcasmos de MacSorley, as histórias de Gordon sobre as proezas de seu avô na última cruzada, quando lutou junto aos cavalheiros templários, os relatos de Boyd sobre as injustiças dos ingleses nas fronteiras, ou o tema preferido de quão guerreiros estavam longe de casa: as mulheres.

Mas uma parte dele, uma parte que era maior cada dia, não queria decepcioná-la. Christina estava desempenhando seu papel, ocupava-se do castelo e de suas obrigações de um modo que não lhe dava nenhum motivo de queixa. Mas o olhava de uma forma que lhe corroia a consciência.

Tor lhe estava fazendo mal, e isso o incomodava. Ela tinha alimentado esperanças sobre ele que não podia cumprir. A visão dela do matrimônio era própria do relato romântico de um bardo, como o que a tinha ouvido contar aos meninos, sobre o cavalheiro devoto de sua dama. Ele a vestiria, daria-lhe refúgio e amparo; daria sua vida por ela sem pensar um momento, mas o tipo de intimidade que desejava dele era impossível.

Embora tivesse obrigações com seu clã, não era capaz de mostrar esse tipo de sentimentos. Há muito tempo era um chefe e um guerreiro. Rodeado de morte e sangue durante a maior parte de sua vida, tinha visto coisas que lhe arrepiariam a pele. Desde o começo tinha aprendido a não sentir-se preso a ninguém. Tinha visto morrer a muita gente: a seus pais, a amigos…, diabos, inclusive a sua primeira mulher.

A distância lhe tinha proporcionado o nervo que necessitava para que seu clã sobrevivesse e prosperasse, para ser capaz de tomar decisões a vida ou morte, para conseguir a vitória no campo de batalha. Não podia permitir-se ser de nenhuma outra maneira. Era o que a guerra e o dever tinham feito dele: um homem frio e desumano.

Enquanto se aproximava viu o brilho da luz no salão, embora o jantar já devia ter terminado. Soltou outra maldição. Inclusive meio morto de cansaço, seguia sentindo esse inconfundível puxão na virilha, sabendo que logo a veria.

A novidade não desaparecia. Começava a perguntar-se se alguma vez se cansaria dela. Noite atrás noite, era incapaz de estar longe de sua mulher. Inclusive quando se obrigava a dormir na torre alguns dias, para demonstrar-se a si mesmo que podia, pensava nela. Christina tinha invadido seus pensamentos, seus sonhos, inclusive seus malditos sentidos nos momentos mais inoportunos. No dia anterior estava no meio de um duelo de espada com MacRuairi, quando levantou o braço para brandir a espada e notou o aroma de sua fragrância floral na pele. Tinha recebido um golpe no ombro por culpa dessa desorientação.

Não estava funcionando. Não importava as vezes que a possuía, o desejo por sua esposa não morria. Avivava-se. Com mais intensidade, arrastava-lhe de novo junto a ela, por muito que resistisse.

Mas essa noite, não. Essa noite estava muito esgotada. Não importava quão fascinante fosse seu aspecto, aninhada na cama, com sua cabeleira negra derramada sobre os ombros e sua delicada bochecha apoiada no travesseiro; desejaria-lhe boa noite e cairia rápido junto ao fogo com o resto de seus homens. Onde devia estar.

Entrou no salão, inspirou o aroma marcante misturado com a turfa da chaminé. Alhos e noz moscada. A calidez lhe invadiu. A pesar do cansaço, sentiu que seu corpo se relaxava. Apareceu uma lembrança enterrada nos limites de sua mente: compota de frutas. O aroma recordou a sua infância. A sua mãe. Outros tempos.

O que tinha sua jovem esposa que provocava nele essas peculiares lembranças?

Embora Rhuairi lhe tivesse assegurado que Christina não estava desperdiçando a turfa, diria que ali fazia mais calor. Não era capaz de averiguar o motivo, mas Dunvegan parecia diferente. O ar era mais quente; o ambiente mais acolhedor. Notava-o cada vez que retornava. Tinha medo de que começasse a gostar de muito.

A maioria dos componentes de seu clã seguiam desfrutando da bebida, mas uns poucos tinham desenrolado as mantas para dormir. Rhuairi se aproximou para lhe informar das idas e vindas pelas imediações do castelo durante a jornada, incluindo mais problemas com as rendas. Quando Tor abandonou o salão estava ainda mais exausto, arrasado pelas exigências de sua dupla responsabilidade. Treinar aos homens estava prejudicando seu dever com o clã.

Mas não podia enganar-se. Gostava de os treinar. Eram diferentes a qualquer outra equipe que jamais tivera treinado. Normalmente se sentia desdobrado entre capitão e soldado, mas esses homens eram seus iguais. Não só em fila, a não ser em habilidades. Sentia que era parte de algo importante.

Viu uma franja de luz por debaixo da porta e chamou. Ouviu um ofego e um trocar de um lugar a outro antes de abri-la. Quando entrou, Christina estava de joelhos, guardando algo no baú. Ela fechou de repente a tampa e se voltou para ele com um inconfundível rubor culpa nas bochechas. Tor viu o prato vazio junto à cama de Christina, e se fixou em restos de açúcar. O que estava fazendo? Acumulando figos para o inverno?

Eram bastante custosos. Mesmo assim, quando ele se deu conta de quanto gostava dos figos e as ameixas maduras, disse ao Rhuairi que comprasse mais para o Yule. Talvez assim conseguisse que ela sorrira. Gostava quando sorria.

—Viestes! —exclamou Christina, levantando-se de um salto e correndo para ele.

Por muito que gostasse de suas entusiasmadas boas vindas, teve a sensação de que tentava lhe distrair. Deu uma olhada à arca e de novo para ela.

—Incomodei-te?

Ela negou com a cabeça.

—Não, somente estava guardando uns objetos que terei que remendar.

Ele arqueou uma sobrancelha.

—Enquanto comia figos?

As bochechas de Christina avermelharam de um modo adorável, e ele sentiu uma onda familiar no peito. Levava a cabeleira azeviche solta e caída sobre o rosto como um denso véu de cetim. Sem se dar conta do que estava fazendo, adiantou-se e colocou com cuidado atrás da orelha. Algo que a tinha visto fazer muitas vezes.

Ela conteve a respiração e seus olhares se encontraram. Tor não soube qual dos dois ficou mais surpreso por aquele gesto. Foi como aquela vez em que lhe tinha beijado na cabeça. Por desgraça, nesta ocasião não estava adormecida.

Rapidamente baixou o braço e afastou o olhar.

Esses estranhos sentimentos por sua jovem esposa lhe desarmavam. Nunca tinha conhecido a ninguém como ela: doce, amável, considerada, e maldita seja, ansiosa por agradar. Tocava-lhe constantemente, roçava-lhe levemente o braço, fazia uma sutil carícia. Ninguém lhe havia tocado com tanta naturalidade desde que perdera a sua mãe. Havia algo nela que convidava à cercania.

Deveria estar na torre com a guarda de Bruce e não ali, a sós no aposento com ela, sem desejar mais que tomá-la em braços, abraçar sua suave pele nua contra ele e aspirar seu aroma fresco que era como ambrosia para um moribundo.

Tor entendia o anseio sexual. Mas esse desejo de estar perto dela não era certo, sobretudo quando atrapalhava suas obrigações. Estava se tornando brando, e, maldita seja, mais valia fazer algo.

Deu um passo atrás e ergueu as costas.

—Vim te desejar boa noite.

Christina ficou desolada.

—Não vai…

Tor fez caso omisso da punhalada no peito.

—Foi um dia muito longo.

Olhou-lhe como se tivesse pisoteado a seu cachorrinho favorito.

—OH - disse Christina, retorcendo as mãos—, é que…

Baixou os olhos para evitar seu olhar, mas ele viu o leve matiz de cor que adquiriram suas bochechas.

«É tão bela», pensou, e o peso que sentia no peito se estendeu a garganta. Às vezes lhe doía somente olhá-la. Sua doce vulnerabilidade lhe chamava de um modo que não tinha nunca experimentado. Levantou a mão para lhe acariciar a bochecha, mas imediatamente deixou cair.

Obrigou-se a desviar o olhar. Aquilo era uma loucura. Tinha que conter-se. Ela era uma distração que não podia permitir-se. Dispôs-se a dar boa noite, mas as palavras de Christina lhe deixaram gelado.

—Esperava que fizéssemos algo diferente esta noite.

Tor lhe lançou um olhar; seu corpo voltou para a vida imediatamente.

—Diferente? —disse com a voz tomada. Disse a si mesmo que não se referia ao que ele pensava. Não sabia quão provocadora soava. Ou sim? Tor tinha notado a luta que crescia no interior de Christina: sua apaixonada curiosidade natural brigava com uma modéstia de donzela profundamente arraigada. Sua inocente esposa era cada vez mais audaz. Que Deus lhe ajudasse se finalmente dava rédea solta a sua paixão.

Aproximou mais, o suficiente para que a madura redondez de seu seio lhe acariciasse o linho da camisa. As pontas eretas de seus mamilos lhe cravavam e esteve a ponto de perder o controle. Apoiou as mãos sobre o peito e moveu a cabeça para lhe olhar. A sensualidade daqueles exóticos olhos escuros não deixava dúvidas a respeito do que desejava.

O peso que Tor sentia na virilha se intensificou. Ardeu-lhe o sangue, enquanto inundava-se um suave aroma de feminilidade. Christina não tinha nem idéia do que o fazia. Como a desejava. Como o descarado desejo que sentia por ele o agradava.

—Perguntava-me se poderíamos…

Tor esperou. Seu coração pulsava desbocado sob a palma da mão de Christina. Se deu conta de que ela não sabia como dizer o que queria.

—O que é moça? —disse com voz bronca, incapaz de deixar de lhe acariciar a curva aveludada da bochecha. Sentiu um rasgo interior, como sempre que a acariciava.

—Diga o que quer.

—Perguntava-me se poderíamos tentar como…na primeira noite.

Ele ficou gelado. Mas o sangue circulava e palpitava em seu interior como uma fogueira. As correntes da cortesia nunca lhe tinham parecido tão escuras. Todos seus instintos animais se elevaram, como um leão disposto a fugir da jaula. Endureceu-lhe o membro, como uma rocha, ansioso…

Não podia estar lhe pedindo que…

Mas sim o fez. Sem deixar de lhe olhar aos olhos.

—por atrás…


Capítulo 15


Christina se ruborizou violentamente perguntando-se se não teria cometido um engano. Durante uns instantes de agonia ele não se moveu, não disse nenhuma palavra. Os músculos de seu corpo estavam tensos como a corda de um arco. No aposento ressonava um silêncio doloroso.

Não podia olhá-lo, humilhada por seu próprio atrevimento. No que teria estado pensando? O que devia pensar ele de sua desavergonhada petição? Esse devia ser o momento mais violento de toda sua vida.

—Sinto - murmurou dando um passo para trás para afastar-se dele—. Queria partir. Esquece…

Sentiu um calafrio ao ouvir o som gutural que emanou de sua garganta. Era o mesmo que ele tinha ouvido antes de…

Interrompeu-a bruscamente.

—Ao diabo - exclamou ele puxando-a até levá-la contra seu peito.

Christina afogou um grito; o contato imediato com seu corpo avivou todas suas terminações nervosas. Cravou o olhar em seu rosto e viu que sua expressão era mais fera que nunca. O tic da mandíbula tinha disparado, forte, rápido.

Inconscientemente, Christina tentou escapar, assustada do que tivesse podido desatar sem saber. Todo seu ser delatava que era um guerreiro aterrorizante, mais bárbaro que cavalheiro. E não a soltava. Seu olhar lacerante a apanhou em uma armadilha selvagem.

—Não vou a nenhuma parte. E você tampouco. Não depois de uma petição como esta. —Levantou-a no colo, e com ela nos braços subiu os degraus que conduziam à cama.

O coração de Christina começou a palpitar devido ao crescente nervosismo. Podia sentir a tensão aumentando nele, o desejo que lhe inspirava até cotas jamais imaginadas. Parecia um homem levado a extremo, a bordo de perder o controle. Aquilo era algo selvagem, perigoso e excitante, muito excitante.

Deitou-a sobre as mantas com uma suavidade surpreendente, dada a rudeza com que se despiu. Soltou a banda que levava sobre os ombros e tirou as botas e o cotun de couro reforçado.

Entretanto, quando se inclinou para apagar a vela de um sopro, Christina o deteve.

—Não, por favor. —Não queria que houvesse mais escuridão entre os dois—. Não a deixa acesa?

Seus olhos se cruzaram, e o olhar safira do guerreiro era sombria e penetrante. Não queria? Por quê?

Christina pensou que ia rechaçar sua petição, mas em troca se limitou a assentir.

—Como queira.

Tirou o leine e Christina ficou sem fôlego. Esse homem era divino! Espetacular em tudo, tal e como recordava. Um colosso de beleza e força masculinas. Cinzelado por uns músculos firmes e robustos. Seus ombros, de uma largura incrível; seus braços, grossos e definidos. Em seu abdômen apareciam marcadas umas ondas que pareciam de ferro. Por que estranha razão lhe via mais musculoso e espetacular sem a roupa e a armadura postas?

Christina não sabia onde colocar as mãos. Mas foi sua proeminente ereção a que, com um quente comichão entre as pernas, fez decidir-se. A atrevida manifestação do desejo masculino a excitou. Grossa e longa, a arredondada ponta, roliça e inchada. Brutalmente e inegavelmente masculina. Erguendo-se para seu ventre, crescendo sob o olhar insidioso e desavergonhada dela. A fina pele se esticou tanto que parecia brilhar como o mármore.

Nesse momento Christina soube exatamente onde desejava colocar as mãos.

—Cuidado, menina - a advertiu ele em tom sombrio, com uma voz perigosa e sedutora de uma vez—. Olhe-me assim e levará muito mais do que pretende.

Uma onda de prazer a invadiu ao dar-se conta de que sua admiração o excitava.

—Posso te tocar? —espetou-lhe, perguntando o que não se atrevera jamais.

Os músculos de seu abdômen se contraíram. Ele deixou cair as mãos aos flancos e assentiu.

—Sim.

Christina rodou para ficar-se de joelhos ante ele. Alongou uma mão titubeando e lhe roçou com os dedos os duros sulcos do ventre.

Tor soltou um suspiro, e seus músculos reagiram ante esse tato, suave como uma pluma. Christina mordeu o lábio para não sorrir, maravilhada pela capacidade de provocar uma reação como essa com o simples contato.

Com a mesma suavidade percorreu com o dedo a longa longitude de sua virilidade. Seus lábios se abriram de surpresa. A pele era muito suave. Como o veludo. E debaixo dela, a rígida coluna era do mesmo aço com que estava lavrado seu corpo.

Explorou a esse homem com os dedos, e logo, voltando-se mais atrevida, com a mão, rodeando-o, embora sem poder fechá-la de tudo ao redor.

Ele rugia a cada carícia, como se estivesse agonizando.

Christina o soltou e o olhou com ar dúbio.

—Estou fazendo algo mal?

Ele negou com a cabeça. Viu que os músculos de seu pescoço e de seus ombros se inchavam e ficavam tensos.

—Não, absolutamente… —conseguiu articular ele—. Segue fazendo o mesmo. —Pôs sua mão em cima da dela e lhe ensinou a tomá-lo. Olhou-a aos olhos, lhe mostrando a intensidade de seu desejo—. Ah… Assim, Tina, me acaricie.

Tina. Gostou. Era quase uma expressão de carinho.

Sustentando-lhe o olhar, fez o que lhe pedia. Algo ocorreu entre os dois. Algo que foi além da sensualidade erótica do momento e realçava cada carícia, cada movimento.

Christina observou que o prazer se apropriou de todos seus traços quando o agarrou com a mão e moveu esta de cima pra baixo, de baixo pra cima. Devagar ao princípio, e logo mais depressa, quando a paixão apareceu em seu belo rosto.

Uma estranha sensação de poder a embargou ao compreender que ela tinha a capacidade de lhe fazer isso. De levá-lo a alturas insondáveis. Aquilo devia ter algum significado especial, sem dúvida alguma.

Notou-o quente e pulsátil em contato com a palma de sua mão. Christina pôde sentir o batimento do coração no sangue, uma e outra vez, até que os batimentos do coração cobrou força. Afastou-lhe a mão com um grunhido. Uma gota perolada surgiu da ponta. Christina sentiu a necessidade de agachar-se para lambê-la. Para saborear a esse homem.

—Basta. Preciso estar dentro de ti.

Sua voz era tensa e premente. Nunca lhe tinha visto assim. Antes sua paixão tinha sido fera e intensa, mas controlada sempre. Nesse momento, entretanto, Christina sentia que esse controle ia cedendo, sentia que ele estava lutando contra algo interior. Algo que estava a ponto de deixar ir.

Outro empurrão mais. Possivelmente logo saltaria a barreira que havia entre os dois. O atrevimento tinha funcionado com antecedência. Esquecendo o pudor, Christina tirou a camisa pela cabeça e a deixou cair a um lado. Resistindo o impulso de tampar-se com os braços, ajoelhou-se diante dele, nua.

—Tome então.

*

Tor procurou agüentar, mas ia empurrando para o limite com seu inocente anseio. Oferecia-se. Nunca tinha conhecido a uma mulher que se oferecesse tanto.

Por atrás. Incrível. Nem sequer com a mais experimentada amante estava acostumado a recrear-se nesse prazer, e nem sequer se atreveu a imaginar que faria algo assim, apesar de seu primeiro encontro, com essa sua pequena mulher criada entre algodões. Embora essa mulher não deixasse de lhe surpreender.

Da petição ladina de que tomasse por atrás até a intensidade do erótico olhar que ela posou sobre seu membro e o prazer perfeito de masturbá-lo com sua doce e miúda mão, Tor esteve controlando-se. Esforçava-se para não jogá-la sobre a cama e lhe dar exatamente o que lhe pedia: a rudeza e guelra que lhe gostavam.

Entretanto, quando Christina tirou a camisa por cima revelando sua pele nívea e nua, perdeu o controle. Seu domínio se veio abaixo e ficou no chão, descuidado ao lado de seu vestido.

A lembrança de seu exuberante corpo o tinha enganado na escuridão, mas essa lembrança era incomparável vendo-a ao natural. Desfrutando de cada centímetro dessa gloriosa pele, suave como a de um recém-nascido, revelada a cálida luz das velas.

Espetacular. Sedutora. Mais bela que nenhuma outra mulher. Uma ninfa de cabelos longos e escuros que lhe caíam pelos ombros em divinas ondas enquanto seguia ajoelhada ante ele, com os seios tersos e exuberantes, coroados pelos mamilos mais suculentos que tivesse saboreado. Em contraste com a pálida brancura de sua pele, o delicado rosa parecia inclusive mais tentador e delicioso.

À luz das velas não pôde evitar contemplar a beleza de seu corpo, e em especial de seus olhos. Sustentavam-lhe o olhar, e não o permitiam desviar a deles. Escuros e luminosos, cheios de ternura e de uma emoção que ele não quis ver.

«Tome então.»

Se tinha pretendido deixá-lo louco de desejo, tinha conseguido. Pelos pregos de Cristo que tomaria. Por atrás, por cima, por baixo, de lado… De qualquer forma possível tomaria. Já.

Rodeando-a pela cintura com ambas as mãos, levantou-a da cama e a atraiu para seu peito, sobressaltando-se ao ser consciente da aguda faísca que saltou com o contato de suas peles ao roçar-se e seus corpos ao encaixar. Afundou o rosto em seu cabelo, faminto de seu sabor. Devorou com a boca, com a língua, a pele de seu pescoço, doce como o mel, enquanto deslizava as mãos por suas costas e sustentava nelas a arredondada curva de suas nádegas.

Grunhiu ao ver-se embargado de sensações conhecidas. Reconheceria a essa mulher estivesse onde estivesse. Tinha acreditado que a escuridão a faria parecer-se com as demais, mas tinha sido justo o contrário. A escuridão tinha potencializado o resto de seus sentidos, e tinha feito ser inclusive mais consciente de sua presença. O tato de sua pele, suave como o de um recém-nascido, a fragrância floral, o sabor de mel dessa mulher… Gravaram-se indelevelmente em sua memória.

Tor tinha se amparado na escuridão, escondia-se do que sabia que não poderia vencer. Entretanto, não tinha funcionado. Seus corpos se deslizaram juntos como se parecessem o um para o outro. Jamais havia sentido assim. Não pôde seguir lutando contra a paixão que existia entre os dois… Aquilo era muito forte.

Os quadris de Christina insistiam dando círculos ante ele, esfregando-se contra suas partes, duras como uma pedra. Um fogo pulsava em suas veias. Era fantástico. Era ideal. Adorava como ela se movia, vibrando, esfregando-se, abandonando-se a uma dança escura e cativante.

Sua lasciva reação tinha sido impressionante.

Tor deu a volta, sem separá-la de seu peito, e tomou um de seus exuberantes e curvos seios com uma mão enquanto que com a outra lhe acariciava o ventre e a afundava entre suas pernas.

Christina tremeu e deixou escapar um suspiro de prazer quando o dedo dele encontrou a sedosa umidade da excitação sexual. Deliciosamente molhada. Deslizou o dedo em seu interior avivando-a, dilatando-a. A respiração dela se acelerou, voltou-se irregular e se converteu em um suave lamento. Tor soube que se aproximava o momento.

—Me diga que quer isto - lhe ordenou, afundando o rosto em seu cabelo. Uma parte dele desejava que se negasse, desejava assustá-la para que fugisse.

Entretanto ela seguiu a aposta. Respondeu-lhe com seu corpo. Arqueou-se contra ele empurrando o peito contra sua mão e pressionando as nádegas com insistência contra seu membro turgente. Tor estava a ponto de explodir.

Não existia volta atrás. Para nenhum dos dois. Já não.

—Te agache — ordenou tentando controlar a luxúria que o possuía—. Ponha as mãos sobre a cama.

Christina fez o que Tor lhe indicava sem titubear, e colocou suas lindas e curvas nádegas no ângulo adequado. Ele roçou com a mão sua pele nívea e imaculada saboreando o instante de pura sensualidade. Que doçura… Resultava-lhe incrível que estivesse fazendo isso, com ela, com a jovem e inocente donzela que tinha desejado nada mais vê-la e que nunca tinha acreditado que teria.

Deslizou seu membro ereto entre as pernas dela brincando com a longitude, deslizando-se, adiante e atrás, por sua abertura, até umedecer-se com ela. E agarrando-a pelos quadris com ambas as mãos, colocou a sensível ponta e empurrou. Nublou-lhe a mente. Teve que fechar os olhos quando a intensidade o assaltou com uma fera sacudida. Afundou-se nela devagar, alongando esse incrível momento, essa sensação de prazer aniquilador.

Quente. Tenso. Bom.

Quando já não pôde mais, empurrou até o fundo. Christina gritou, surpreendida pelo prazer.

—Você gosta disto, doce Tina? —perguntou-lhe Tor incrustando-se nela—. É isto o que queria?

Tor voltou a empurrar atraindo para si seus quadris para afundar-se mais nela, para afundar-se no mais profundo.

—Sim - gemeu Christina levantando os quadris contra ele—. Por favor. Quero tudo.

Entre as brumas do desejo o sentido de suas palavras ressonou com maior profundidade. Tor sentiu que lhe cravavam com força no peito.

Deixou-se levar. Desatou sua paixão liberando a de suas ataduras, oferecendo a essa mulher tudo o que tinha. Deixando que visse exatamente quanto a desejava em toda sua primitiva ferocidade.

Christina se agarrou à cama enquanto ele arremetia contra ela uma e outra vez, e seus duros grunhidos se mesclaram com os suaves gritos dela em uma cacofonia de desejo e prazer.

Os sentidos esporearam seu corpo alojando-se na massa formigante e tórrida de seus lombares. Todos os músculos esticaram querendo relaxar-se.

Tor apertou a mandíbula concentrando-se nas sensações, no ato perverso de que estavam desfrutando. Seus olhos se desfrutavam com a visão sensual que se oferecia ante ele. O escuro cabelo de Christina esparramando-se pela pálida pele de suas esbeltas costas. O brilho do suor de Christina sobre sua pele enquanto ele a penetrava, entrando e saindo dela. As nádegas de Christina altas, para receber cada um de seus embates.

Tor contemplou o movimento de seus turgentes e grandes peitos ao ritmo de suas sacudidas, as pálidas aureolas rosas duras como duas pérolas. Acaso havia algo mais erótico que isso?

Suas fantasias se converteram em realidade. Se isso era o cume da paixão para ele… por que sentia como se faltasse algo? Acelerou o ritmo, tentando descobrir.

Ouviu que Christina tomava ar com força, e logo os tênues gritos enquanto se deixava ir, tremendo e agarrando-se a ele.

Tor ficou quieto. Um incompreensível ataque de raiva o sacudiu por dentro. Sentiu-se enganado. Tinham-lhe negado o prazer que mais queria: ver seu rosto.

Saiu dela. Ignorando a impressão do ar frio em contato com seu membro molhado, deu meia volta e a deitou de costas sobre o colchão até que ficou com as nádegas na borda da cama.

A visão de suas avermelhadas bochechas e suas pálpebras entrecerradas o enfureceu. Era como uma mofa do que se perdeu.

—O que acontece? —perguntou ela notando a mudança em Tor.

—Nada - respondeu ele entre dentes. Como homem, tinha uma missão. Queria que essa mulher voltasse a gozar. E nessa ocasião a contemplaria.

O que lhe acontecia? Estava mais descontrolado, zangado e excitado do que esteve em toda sua vida. Estava a ponto de explodir, tinha o corpo tenso pela paixão que ela tinha despertado nele. Mas necessitava mais. Maldita seja, precisava olhá-la aos olhos.

Colocou-se entre suas pernas, levantou-as e as levou a sua cintura. Agarrou-a pelas nádegas e a penetrou com força, grunhindo aliviado por voltar a encontrar-se envolto nesse fogo tenso e molhado.

Christina teve que agarrar a sua nuca para não perder o equilíbrio, dada a força de seu embate, e Tor pôde sentir o erótico comichão de seus mamilos contra o peito.

Seus rostos estavam a poucos centímetros. À luz das velas Tor viu tudo, cada traço em suas pupilas, cada matiz, cada rubor, seus lábios abertos e seu fôlego entrecortado.

Não podia afastar os olhos dela, enfeitiçado pelos sinais de prazer que descobria em seu rosto.

Quando Christina o olhou, ele já era incapaz de respirar. Tinha o peito tenso, cheio, era muito…

Era isso. Isso era o que ele tinha procurado inconscientemente.

O rubor tingiu as bochechas de Christina, e seu olhar foi cobrando intensidade enquanto seus lábios pugnavam por fechar-se.

O sangue pulsava nas veias de Tor. Podia sentir a pressão ao final da coluna vertebral, enroscando-se, aumentando a cada grito afogado que escapava dos doces lábios entreabertos dessa mulher.

Notou que lhe esticavam os testículo, uma pressão quente e poderosa acompanhando ao clímax que o devorava por dentro.

Entretanto, Tor resistiu, interpôs uma mão entre os dois e encontrou o ponto sensível dela com o dedo que lhe tinha introduzido até o fundo. Até que já não pôde mais.

Notou uma contração nas nádegas.

O corpo de Christina começou a tremer.

—Me olhe - exigiu ele com ferocidade. Ela abriu as pálpebras.

Seus olhos se cruzaram e o mundo se deteve. Durante um longo e único segundo quão único Tor viu foi Christina. Uma euforia como jamais tinha conhecido lhe embargou. Sentiu-se suspenso, como se tivesse saído de si mesmo e tivesse sido transportado ao topo mais alta da felicidade. E então teria saído voando, e o mundo teria explodido em um amontoado de sensações e de luz.

Estremeceram-se de uma vez, seus corpos tremeram sacudidos por um fluxo.

Tor a sustentou contra si, sentindo o frenético coração de Christina desbocando-se contra o seu, afundando o rosto na cálida seda de seu cabelo, inalando seu aroma terno e feminino.

Permaneceu nessa posição até muito depois de que terminassem: não desejava romper esse vínculo, não desejava partir, não desejava pensar.

Só quando sua respiração se acalmou e as pernas começaram a lhe tremer se separou. O calor que tinha unido seus corpos se esfriou com a corrente repentina do gélido ar da noite.

Ela afogou um grito de protesto e se aproximou dele. Instintivamente. Com uma confiança que o desarmou. Em um arrebatamento protetor, Tor tomou em seus braços, deitou-a na cama e se aninhou junto a ela. «Somente será um momento», disse. Para esquentá-la com seu corpo. Embora fosse ela quem lhe deu seu calor, quem lhe provocou uma sensação de satisfação que nunca tinha acreditado possível em um homem como ele. As responsabilidades de seu clã e a crueldade do campo de batalha lhe pareceram muito longínquas.

Afastou-lhe o cabelo do rosto e lhe acariciou a suave bochecha com o verso do dedo até que ela caiu em um sonho profundo.

Isso era diferente. Ela era diferente. Tinha acreditado que não era capaz de sentir emoções, mas essa mulher lhe tinha feito sentir. Havia tocado uma parte de si mesmo que levava muito tempo enterrada, e precaver-se disso o transtornou.

Sentiu como se estivesse liderando uma batalha perdida com um inimigo invisível e não estivesse seguro de como defender-se. Mas sim sabia uma coisa: estava intimamente ligado. E a intimidade não era para homens como ele. A emoção era uma debilidade que não podia permitir-se. Muitas pessoas contavam com ele.

«Mantem sob controle», disse-se. Aquilo não podia voltar a ocorrer.

*

Christina sumiu em um sonho reparador, segura nos braços de seu marido, com a certeza de que algo significativo acabava de acontecer. Um adiantamento decisivo, ao fim!

Nenhum homem podia olhar a uma mulher enquanto fazia o amor dessa maneira sem sentir algo por ela.

Entretanto, pareceu-lhe que acabava de fechar os olhos quando saiu da modorra causada pela saciedade ao notar que seu marido trocava de posição. Momentaneamente desorientada, rodou sobre o leito, abriu os olhos e viu a luz das velas. Ainda não era de dia.

Tor estava sentado na borda da cama, de costas para ela. Um muro de músculos e carne, mas tão efetivo atuando de barreira como a pedra. Tinha posto já o leine e parecia estar atando os cordões de couro cru de seus brogues25. Partia. Outra vez.

Christina se obrigou a não mostrar sua decepção, mas o desencanto aninhou em seu peito.

—Parte-te de novo -disse em um tom neutro.

Tor se voltou, olhando-a intensamente por cima do ombro.

—Volte a dormir, Christina.

Christina. Tina, não. De novo, as maneiras de dois estranhos. Um brilho de raiva se impôs à dor. Pelo que parecia, assim desejava Tor que fossem as coisas, salvo quando estavam na cama. Entretanto, por não querer adotar o papel da consorte exigente, Christina dissimulou sua raiva e tragou o orgulho.

—Eu gostaria que pudesse ficar.

Durante uns instantes Tor ficou completamente imóvel, e logo seguiu movendo-se, sem responder. O coração de Christina pulsava com força na escuridão. De verdade era tão insensível esse homem, ou simplesmente era obtuso? Acaso não entendia que ela desejava algo mais que jogar na cama?

Christina queria contribuir um pouco de doçura e calor a sua vida. Tor levava muito tempo sem que ninguém cuidasse dele. Mas estava pondo muito difícil por não dizer impossível.

Quando terminou, Tor se voltou para olhá-la. Nada em seus olhos azul gelo delatava a intimidade que acabaram de compartilhar. Voltou a encarnar ao homem de Estado. Era o temível e ousado senhor da guerra, o orgulhoso chefe do clã.

—Demorarei uns dias em retornar.

Para Christina lhe caiu a alma aos pés. A frieza de seu tom de voz a feriu. «Basta», disse a si mesma, mas lhe saltaram as lágrimas, umas lágrimas quentes que ameaçavam afogando-a. por que tinha que atuar desse modo? Tão difícil era lhe dedicar um olhar de ternura, uma palavra agradável a que ela pudesse aferrar-se? Por que tinha que mostrar-se sempre tão reservado? O grande chefe, o grande guerreiro… Mas e o homem?

—Aonde vai?

Tor apertou a mandíbula e torceu o gesto.

—Eu não gosto que me interroguem, Christina. Já te disse que tenho que atender uns assuntos do clã. Nada que tenha a ver contigo.

E era assim? Essa era a explicação que pretendia lhe dar? Christina sabia que desgostava que o apressassem, mas estava farta de tantos segredos. Incorporou-se e atirou do lençol para cobrir sua nudez. Apesar do gesto, os olhos de Tor se cravaram nela recreando-se durante uns instantes na curva turgidez de sua pele, que os lençóis deixavam visíveis. Entretanto, nesse momento o fogo de sua paixão a enfureceu. Ela queria mais. Agarrou-se com os punhos ao lençol.

—Nem sequer vais dizer-me aonde vai? Uma esposa não tem direito, que quando seu marido a abandona durante dias sem lhe dizer quando retornará, sem lhe dar nenhuma explicação?

—Não - respondeu ele com aspereza.

Christina viu com grande assombro essa fria determinação que fazia de Tor um chefe gabado e um guerreiro temido.

—Vê problemas onde não há - disse Tor como se tentasse acalmar a uma menina—. Não há nada que dizer.

A condescendência de seu tom lhe doeu. Ela era um brinquedo, indigna de maiores confidências. Tor decidiu que a conversa tinha terminado e se voltou para partir lhe dando as costas, umas costas duras, implacável. Doída, zangada e confusa, Christina não pôde evitar lhe espetar quase com um grito: —Também lady Janet vai?

Tor se deteve em seco, voltou-se devagar e cravou os olhos nela.

—Por que me pergunta isso?

Com as bochechas avermelhadas, como se não fosse digna do chão que pisava esse homem, Christina se esforçou por sustentar o olhar sem desfalecer na tentativa.

—Sei quem é - respondeu com atrevimento, e ergueu o queixo desafiando-o a que o negasse—. Não pude evitar me fixar que ela também está acostumada partir sempre que vais.

Tor entrecerrou os olhos. Não era que não fosse digna do chão que pisava esse homem, pensou ela, mas sim parecia um inseto esmagado por uma rocha. Um inseto parvo e amalucado, intrascendente.

—Está me acusando de algo, Christina? —Tor empregou um tom de voz grave e pausado, mas a ela não enganou. Estava furioso. Esse não era um tema que deveria expor uma esposa. Christina tinha que fazer caso omisso disse tipo de disposições. Fingir que não existiam. Fingir que não lhe importavam. Mas não era certo, e a idéia de que ele estivesse com outra mulher lhe partia o coração.

—Não estou te acusando de nada - retificou ela com a voz trêmula e com um nó na garganta da emoção—. Só uma observação.

—Fique tranqüila - respondeu ele passeando o olhar ao longo de todo seu corpo. O fulgor de seus olhos incinerou o fino lençol de linho que cobria sua nudez. Sua pele, traidora, acalorou-se ao notar, seus mamilos se endureceram e se esticaram protuberantes—. Colocar-me na cama de outra mulher ainda não me passou pela cabeça.

Ainda. Christina notou um peso no coração, notou que uma dolorosa flecha enfurecida lhe partia o coração em dois.

—No momento estou muito satisfeito neste terreno.

—Isso diz para me tranqüilizar?

Tor esboçou uma careta de desgosto.

—Não tenho por que te tranqüilizar.

Christina ficou sem fôlego. Tor acabava de pô-la em seu lugar, com determinação. Teria que ter imaginado. Não podia obrigá-lo a afirmar o que ela queria ouvir. Uma esposa não tinha nenhum direito a exigir fidelidade de seu marido. Se ele queria uma amante, teria, e ela não podia fazer nada a respeito. Não podia obrigá-lo a nada. Seus intuitos eram implacáveis. Quanto mais insistisse ela, com maior frieza e dureza resistiria Tor. Mas se ela não insistia, como ia romper as barreiras que a afastavam dele?

—Mas…

—Janet não é teu assunto. Nada de tudo isto é teu assunto. —Seu tom de voz, frio como o aço, feriu-a tão certeiramente como se tivesse empregado contra ela a folha da espada que empunhava com força bruta—. Fica à margem, Christina. Falo sério. —Seu olhar se abrandou um pouco—. Não quero te fazer dano, mas não tolerarei que te coloque onde não deve. Dedique-te a suas obrigações, deixa que eu dedique às minhas e tudo irá bem. Se te colocar onde não deve, somente nos conduzirá problemas entre os dois.

E com essa abominável advertência ressonando nos ouvidos de Christina, Tor deu meia volta e partiu.


Capítulo 16


Três dias depois Christina terminou de enxugar as lágrimas, embora seguisse mortificada pela dura maneira em que seu marido a tinha posto em seu lugar. A injustiça a indignava. Como pôde lhe falar com tanta rudeza? Quão único ela tinha feito desde sua chegada tinha sido tentar agradá-lo, inclusive recorrendo a desavergonhadas mutretas para satisfazê-lo na cama. Em um momento tinham compartilhado o que para ela tinha sido a experiência mais sensual de sua vida, com cenas de um erotismo e certa perversão que jamais teria imaginado. Nesses momentos sentiu que nunca tinha tido tanta intimidade com uma pessoa. No minuto seguinte, em troca, Tor a punha em seu lugar com absoluta determinação. Distanciando-se. Excluindo-a. Fazendo que se sentisse como uma fulana desavergonhada por tentar ganhar a esse homem com seu corpo.

Era paixão o único que lhe daria?

Isso parecia, sem dúvida alguma.

Ela tinha sonhado com muitas outras coisas. Se tão somente se abrisse um pouco, Christina sabia que seria maravilhoso. Tor se encontrava tão sozinho… Necessitava um pouco de calor em sua vida. Mas isso era como tentar cinzelar a pedra com uma agulha de osso, uma empreitada exaustiva, e condenada ao fracasso.

Ao Hades com ele! O arrebatamento de cólera a surpreendeu. Entretanto, se assim fossem ser as coisas, se a paixão era quão único ele estava disposto a lhe dar, aceitaria-o, e encontraria a maneira de procurar certa felicidade para si mesma.

E isso não incluía compartilhá-lo com lady Janet.

Apesar de sua advertência, Christina era incapaz de superá-lo. Tor a tinha tomado por uma garota tola e ciumenta, e tinha acertado, porque assim era exatamente como se sentia. Seus ciúmes não tinham cessado de aumentar desde dia em que ele se fora.

Que lady Janet também estivesse ausente não contribuía para melhorar a situação. Maldito Tor, o que outra coisa podia pensar?

Se não tivesse sido pelo irmão John, teria se tornado louca. O irmão John parecia desfrutar de sua companhia tanto como ela mesma, e juntos estavam acostumados a dar um passeio matutino ao redor do barmkin, se o tempo permitia. Quando, como esse dia, Rhuairi estava ocupado, Christina entrava nos aposentos do senhor enquanto o amanuense se dedicava a transcrever o que lhe parecia uma correspondência inacabável e a fazer contas. Apesar dos esforços de Christina, o senescal de seu marido se mostrava frio com ela, e em sua pessoa percebia algo que a incomodava. Tinha-lhe deixado muito claro que não acreditava que os aposentos particulares de seu marido fosse um lugar adequado para ela.

Se se inteirasse de que sabia ler, ficaria horrorizado. Apoiando-se nas leituras que tinha feito às escondidas, Christina era consciente de que não tinha a menor ideia da enorme quantidade de trabalho que representava ser chefe de um grande clã. Do mais cotidiano, como arrumar as goteiras do telhado de uma casa do povoado e arrecadar os impostos que financiassem suas vastas empresas, até o mais formal, como as jornadas legais para resolver os litígios entre os homens de seu clã ou para ditar sentença nos delitos mais graves, seu marido intervinha em tudo. Não era de admira-se que estivesse tão ocupado. Apesar de não podia evitar sentir-se orgulhosa, aquilo era muito para que o administrasse um só homem e isso tinha influenciado a decidir-se. Queria ajudar. Na vida existiam outras coisas além da guerra e o dever, e confiava em que ele pudesse compreendê-la algum dia.

Tinha esperado que seu marido confiasse nela por instinto, mas como não tinha sido assim, contentava-se aprendendo algo que pudesse saber dele.

Esteve tentada a confessar ao irmão John que sabia ler e escrever - lhe iria muito bem sua ajuda—, mas muitos documentos eram confidenciais e temeu que se ele se inteirasse, proibiria-lhe de voltar para os aposentos de seu senhor.

Por outro lado, queria dizer primeiro a seu marido. Esteve a ponto de fazê-lo na noite em que a surpreendeu comendo figos enquanto lia seu livro, mas, por alguma razão, não se decidira. Não porque pensasse que reagiria como seu pai, mas por ser um homem orgulhoso, ignorava se lhe incomodaria ter uma esposa mais culta que ele. De todos os modos, estava começando a perguntar-se se suas habilidades incomuns não poderiam lhe servir de ajuda. Possivelmente lhe seriam úteis para que a visse de modo diferente, como algo mais que uma mera companheira de cama.

O escrivão terminou seu relato e Christina riu de sua absurda descrição.

—Estou segura de que não deve ser para tanto - disse ela em tom amável, lhe estendendo a pluma que acabava de afiar.

—Asseguro-lhe que foi pior - disse ele, aceitando-a com um gesto de agradecimento—. Estava tão assustado que saí correndo do dormitório sem levar nada em cima. Quando o tutor abriu a porta na manhã seguinte, digamos que a cena não lhe pareceu divertida.

—Os outros meninos tiveram problemas?

O escrivão pareceu ofender-se.

—Claro que não. Jurei que enquanto caminhava em sonhos a porta se fechou a minhas costas. O tutor me disse que a partir de então dormisse com a camisola posta, se por acaso voltasse a ocorrer sair caminhando.

—Um gesto muito generoso por sua parte. Esses meninos foram muito cruéis ao despertar enquanto dormias.

O irmão John desviou o olhar para o papel de vitela com o que estava trabalhando.

—Generoso, não - reconheceu incômodo—. Covarde. Tive medo do que poderiam me fazer esses meninos, se contasse. —Torceu o gesto—. Embora meu silêncio tampouco lhes importassem muito.

Christina tinha piedade dele com todo seu coração. Ela também conhecia a vergonha da covardia. A vergonha de ver-se obrigada a enfrentar à própria impotência ante um inimigo muito mais forte. O irmão John e ela tinham muito em comum.

Pôs sua mão em cima da dele e a estreitou a modo de consolo.

—Às vezes sobreviver é o mais valente do mundo. —Uma fria sombra cruzou a suas costas e sentiu calafrios. Voltou-se, mas não havia ninguém.

Ele contemplou sua mão durante longo momento. Quando Christina começou a entrever o irrefletido de seu gesto, o escrivão lhe dedicou um sorriso irônico.

—Sabias que a princípio não quis entrar para a Igreja?

—Ah, não? —respondeu ela retirando a mão.

O irmão John sacudiu a cabeça.

—Tinha três irmãos mais velhos.

Ela assentiu dando a entender que o compreendia. A um quarto filho não estava acostumado a ficar grande coisa.

—O que queria ser?

Ele a olhou com ar inseguro.

—Um grande cavalheiro - confessou ele com cor às bochechas—. Como Lancelot.

Christina abriu uns olhos como pratos.

—Conhecem o Chrétien?

—eu adoro suas histórias.

Um amplo sorriso se desenhou no rosto de Christina.

—A mim também.

Voltaram a rir, e passaram a hora seguinte obsequiando-se mutuamente com as façanhas do magnífico cavalheiro de Arthur. Somente pararam quando ela se deu conta de que nem tinham tomado o desjejum.

Christina retornou a seus aposentos para refrescar-se e logo se encaminhou sozinha para o grande salão. Agradeceu que ninguém tivesse sido testemunha de seu assombro. Sabia que o irmão John se compadecia dela porque seu marido a ignorava, e não teria podido ocultar o tumulto de emoções que a embargava.

No outro extremo do salão, perto da entrada principal, viu lady Janet rodeada de um grande séquito de varões. O alívio que sentiu ao comprovar que a mulher tinha retornado sozinha foi breve. Quando o grupo se moveu, reconheceu a formidável figura de seu marido. O coração lhe deu um tombo como estava acostumado a ocorrer ao vê-lo. Inconscientemente deu um passo à frente. Acaso acabava de retornar?

E então se deteve em seco. Parecia mas a ponto de partir, recém banhado e vestido com um leine limpo que ela havia cerzido fazia tão somente um dia.

Caiu-lhe a alma aos pés quando se deu conta de que Tor tinha retornado na noite anterior e nem sequer o havia dito.

E tinha toda a intenção de voltar a partir sem despedir-se dela.

Nublaram-lhe os olhos, não só de pena, mas também de raiva. Sem lhe importar o que pensassem, decidiu apresentar-se com passo firme ante ele para lhe exigir uma explicação, e então a preciosa loira amazona apoiou a mão sobre o braço de seu marido.

Tor posou a sua em cima da dela. Não foi o contato, a não ser o olhar que lhe dirigiu o que partiu o coração de Christina como se tivessem empregado contra ela uma faca dentada. Suave. Carinhosa. Esse gesto de afeto que ela levava semanas procurando e que agora ele brindava sem esforço algum a outra mulher.

Sentiu uma dor insuportável. Experimentou um peso tão grande no peito que lhe custou respirar.

Contemplou como ele partia, de pé, como uma parva sem recursos, aniquilada. Por isso não lhe escapou o olhar de desejo que lady Janet lhe dedicou ao partir. Um desejo parecido ao dele. A corrente de empatia não sentou muito bem a Christina dadas as circunstâncias. Se tinha albergado alguma dúvida, esta se dissipou: a relação não tinha terminado… ao menos para um dos dois.

Perdido o apetite, Christina deu um passo atrás com a intenção de retornar a seus aposentos. De sair correndo. Não. Deteve-se, concedendo uns instantes para recuperar-se. Não sairia correndo com o rabo entre as pernas. Essa vez, não. Não ia deixar que outra mulher tivesse a seu marido. Sabia que existia paixão entre os dois, e embora isso fora quão único recebesse de Tor, não renunciaria a ele sem brigar.

«O que tem ela que eu não tenha?»

Tomando fôlego para encarar uma batalha, Christina entrou no grande salão e tomou assento à cabeceira da mesa.

Forçando um encantador sorriso, Christina desempenhou o papel da graciosa senhora do castelo sem deixar que adivinhassem que lhe tinham destroçado o coração.

Foi consciente da presença da outra mulher durante todo o almoço, mas lady Janet parecia ignorar sua existência. Quando Christina percebeu que a dama se levantava para partir, expôs sua jogada. O brilho de ciúmes que advertiu nos olhos da outra mulher enquanto se aproximava dela contribuiu grandemente a reforçar sua confiança. Ambas se entenderam à perfeição.

—Lady Janet… —Aludida ela lhe fez a reverência obrigada—. Permite-me um momento?

—Claro, minha senhora. —Seu tom diferente não ocultava o fato de que teria preferido o contrário.

Christina respirou fundo e se obrigou a olhá-la aos olhos.

—Como a festa do Yule será dentro de umas semanas, estava pensando em pendurar os ramos esta tarde. Sei que vive aqui há anos e esperava que pudessem me ajudar a colocar. Meu marido valoriza muito sua amizade, e eu gostaria que nos conhecêssemos melhor.

Christina tinha decidido dar morte ao inimigo recorrendo à amabilidade. Seria mais difícil para lady Janet manter uma relação com seu marido se ambas fossem amigas.

Funcionou. Tinha tomado lady Janet com surpresa; era óbvio que o amistoso oferecimento a tinha confundido. Seus formosos olhos azuis olharam para a lonjura, incômodos.

—Sinto muito, minha senhora. Não posso. Hoje não. Tenho que me dedicar a um assunto.

Christina entrelaçou as mãos até que seus nódulos embranqueceram. Seu orgulho começava a tornar-se desumano, mas se obrigou a manter a calma.

—Esse assunto tem a ver com meu marido?

Se tivessem feito esta pergunta a Cristina, lhe teriam avermelhado as bochechas. A expressão serena e a tez pálida de lady Janet, entretanto, não delataram emoção alguma. Esteve contemplando a Christina durante um momento, até que esta sentiu um violento rubor nas bochechas.

—Sois muito jovem - disse lady Janet como se acabasse de precaver-se desse detalhe.

Humilhada, Christina sentiu na calada segurança dessa mulher os anos que as distanciavam. O que tinha lady Janet que não tivesse ela? Uma experiência e uma maturidade com as que Christina não podia competir.

Pensou que era impossível sentir-se pior. Mas se equivocava.

Lady Janet mudou de expressão. Estava claro que compreendia a dor que se ocultava atrás da pergunta de Christina.

—Tor… —Lady Janet se interrompeu—. O RI tuath tem que fazer frente a muitas responsabilidades.

E lady Janet sabia quais eram. Christina se sentiu muito desgraçada. Tor tinha crédito em sua amante, mas não em sua esposa.

Lady Janet parecia sopesar suas palavras com supremo cuidado.

—Todos colaboramos na medida do possível. Não devem te preocupar com nada.

Acaso era possível viver uma situação mais humilhante? Agora a antiga amante de seu marido tinha piedade dela.

Tragando o orgulho como pôde, Christina se obrigou a esboçar um sorriso despreocupado. Se lhe saiu tremente, a outra mulher atuou com a elegância suficiente para fingir que não se deu conta.

—Possivelmente em outra ocasião. —Lady Janet inclinou a cabeça, e se voltou. Christina a viu partir, e fez provisão de todas suas forças para não tornar a chorar.

*

Tor levantou a espada por cima da cabeça de seu rival e a brandiu em cima de seu grosso capacete.

MacSorley, que o diabo o levasse! Limitou-se a sorrir.

—Cuidado, capitão - exclamou MacSorley querendo pô-lo em evidência—, ou acabarei acreditando que em realidade quer me arrancar a cabeça com isso.

A cabeça, não, mas o maldito sorriso de sabichão, sim. Tor apertou a mandíbula e voltou a balançar a espada. Seu ataque foi brutal, excessivo, um ataque ao que poucos homens poderiam fazer frente. O descomunal escandinavo possivelmente não sabia manter a boca fechada, mas sim sabia dirigir a espada. Todos e cada um desses homens eram espadachins de primeira, e nesse nível a diferença entre a vitória e a derrota só dependia de leves matizes técnicos.

MacSorley interceptou o golpe, embora necessitasse ambas mãos para isso. O entrechocar do aço reverberou na atmosfera cinza e invernal. Tor pressionou com a espada até que seus rostos ficaram a poucos centímetros de distância.

—Não têm bastante ainda?

MacSorley seguia esboçando um sorriso que mais parecia uma careta. Sacudiu a cabeça.

—Ainda não. —Falou com voz tensa, com cada um dos músculos rígidos pelo esforço de impedir que a espada de Tor lhe partisse em dois. Empurrou a sua vez e, em precário equilíbrio, cedeu o justo para desembaraçar-se da espada de Tor—. Estou me divertindo muito.

Tor soltou uma maldição reconhecendo que deveria haver antecipado seu movimento. Mas estava muito enfurecido para pensar com frieza. Em uma batalha, a falta de concentração podia matá-lo. Pior ainda, MacSorley sabia e estava explorando isso em benefício próprio, provocando-o para que perdesse a concentração. Em geral Tor era imune a essas táticas, mas o tinham posto contra as cordas, e os homens sabiam.

Tor não tinha perdido um só combate fazia mais de dez anos, e passariam outros dez mais sem que tivesse que ouvir presumir MacSorley de sua vitória. Afastou qualquer outro pensamento de sua mente negando-se a considerar a inquietante energia que ia formando-se em seu interior, alcançando a ebulição, como um vulcão a ponto de explodir. Negando-se a recordar a risada de sua mulher, que tinha ouvido ao cruzar suas dependências pessoais nessa mesma manhã. Negando-se a rememorar a ternura com que ela tinha apoiado a mão na do escrivão, ou no cômodo que os via os dois juntos. Um escrivão, Por Deus! Durante um instante de loucura quis dar um murro a esse rosto infantil de coroinha.

MacSorley dava voltas em círculo, com a espada suspensa no ar para repelir outro ataque.

—Espero que sua mulher não demore em lhe perdoar… pelo bem de todos.

Tor torceu o rosto em uma careta irada.

—De que demônios estas falando?

Detrás do elmo de aço que lhe cobria o nariz, MacSorley sorriu, regozijando-se.

—Lhe vê um pouco mais… tenso do que o acostumado depois de ter voltado do castelo. Parece razoável deduzir que este maravilhoso estado de ânimo deve ter algo a ver com essa bela mulher. E como imagino que a doce moça não é capaz de matar a uma mosca, suponho que a culpa deve ser sua.

Tor controlou a raiva… com muita dificuldade. Entretanto o mero feito de ouvir outro homem falando da beleza de sua mulher o enfureceu. Estava perdendo o controle.

As tentativas de consumir-se no trabalho, e de sobrecarregar seus homens, não estavam funcionando. Tor não podia esquecer o rosto que tinha posto Christina quando partiu. Não estava acostumado a ver-se pressionado nem interrogado, e tinha reagido mau. Com rudeza. Dizendo-lhe sinceramente o que ela não queria ouvir. Apesar da sutileza as boas palavras não ficaram familiares, se queria desfrutar de certa tranqüilidade mental, teria que tentar. Christina conseguia influir nele como ninguém.

Estar distraído era mau. Que os homens tivessem reparado nisso, e adivinhado a razão, era pior. Voltou a atacar, centrando agora sua atenção na tarefa presente: MacSorley lhe tocando o nariz.

O viking fazia frente a seus golpes, mas Tor pôde ver que começava a cansar-se. Cheirou a vitória. Possivelmente também a cheirou MacSorley, porque este fez um nova tentativa.

—Se uma mulher como essa me esquentasse o leito, passaria poucas noites metido entre este frio montão de rochas. Já eu gostaria ocupar seu lugar…

Tor perdeu o controle. Nublou-lhe a mente. Um bombeamento selvagem ressonou em seus ouvidos. E teve a esse canalha jogado de costas, com a folha da espada ao pescoço, antes que este pudesse acabar de falar. Finalmente o sorriso desafiante lhe tinha apagado do rosto.

O sangue pulsava com força pelas veias de Tor. Depois de muitos anos de batalhas, a necessidade de matar se tornou instintiva. Os dois homens se olharam, soprando, ambos os conscientes da vontade que tinha Tor de afundar essa espada na garganta do MacSorley. Este tinha provocado à fera muitas vezes. Todos os músculos do corpo de Tor tremeram enquanto este com muita dificuldade tentava conter-se.

Esforçou-se por recuperar o controle e, pouco a pouco, conseguiu. A prudência emergiu da loucura. Seus lábios se franziram em uma linha dura e implacável.

—Têm algo mais que dizer?

Para ser um homem a ponto de morrer, MacSorley parecia curiosamente desconcertado. Arqueou uma sobrancelha, mas a seguir esboçou uma careta como se inclusive o mais insignificante dos movimentos fosse doloroso. Esfregando a nuca, disse: —Vejo que estivestes praticando com o Boyd. —Entrecerrou os olhos para proteger-se da luz do sol—. Bheithir, verdade? —perguntou referindo-se à inscrição da espada de Tor. As inscrições serviam para acrescentar o poder de uma espada—. Nunca tinha me aproximado tanto para poder lê-la. Mas «relâmpago» é uma palavra apropriada. Sinto como se me tivesse caído um em cima.

Tor ficou absolutamente quieto, como se ainda não tivesse decidido qual ia ser a sorte de MacSorley. Depois de uma interminável pausa, pressionou um pouco mais a ponta de sua espada sustentando o olhar do outro homem.

—Um dia destes essa lábia que têm será sua perdição.

MacSorley sorriu… com inquietação, dada sua situação.

—Não duvido.

Tor afastou sua espada e lhe estendeu a mão. MacSorley se agarrou a seu braço e Tor o ajudou a ficar em pé.

O incidente o tinha transtornado. Esteve a ponto de matar a um homem ao que considerava um amigo por uma futilidade, por uma brincadeira procaz que tinha ouvido centenas de vezes durante as longas noites transcorridas ao redor das fogueiras dos acampamentos.

Um punhado de homens tinha terminado seus exercícios e se congregaram ao redor para observar a luta. Pela expressão de suas caras era óbvio que tinham visto o suficiente para saber que o guerreiro com fama de ter gelo nas veias tinha perdido seu sangue-frio. E também era óbvio que não sabiam exatamente como interpretar aquilo.

E ele tampouco.

Cruzando os braços, olhou-os com olhos inexpressivos.

—Bem, quem quer ser o seguinte?

Depois de uns momentos de absoluto silêncio, MacSorley se pôs a rir.

—Está brincando, senhores.

Alguns homens sorriram titubeando. E liberando ainda mais a tensão, MacSorley respirou fundo.

—Se não me equivocar, nossa bela cozinheira nos está preparando um guisado de boi. E, por agora, penso regá-lo bem regado.

A proposta do MacSorley foi a desculpa que todos necessitavam, e os homens se encaminharam por volta da broch26 para almoçar. Tor se deu conta de que o viking paquerava com Janet, e embora soubesse que essa mulher sabia cuidar de si mesmo, advertiu-lhe que não seguisse por aí.

—Deixem à dama tranqüila por hoje.

MacSorley franziu o cenho e o olhou, admirado.

—Pensei… —Pigarreou—. Não me tinha dado conta de que a dama ainda lhe pertence. Não queria lhe ofender. Somente estava tonteando, e isso não faz mal a ninguém.

Tor o olhou com ar sério. MacSorley tinha chegado à mesma conclusão que Christina.

—A dama não me pertence; Janet é livre de fazer o que quiser — Tor recordou que esteve falando com a Janet no salão nessa mesma manhã. Havia-lhe dito que tomasse o dia livre, mas ela tinha insistido em ir com eles.

«Ajudará-me a deixar de pensar nisso», havia lhe dito ela.

—Hoje é um dia complicado - explicou Tor—. Faz cinco anos mataram ao marido de Janet.

—Ah… compreendo.

Foram caminhar para a broch quando Tor se deu conta de que Campbell não se movera. Parecia fixar seus sentidos em alguma coisa. Observando-o, Tor sentiu que um calafrio lhe percorria o corpo. Apesar de sua utilidade, custava habituar-se à estranha faculdade do Campbell para perceber coisas.

—O que ocorre? —perguntou-lhe.

Campbell o olhou aos olhos.

—Vigiam-nos.

*

Encarapitada ao alto de uma árvore, Christina se deslocou no ramo contíguo para tentar obter uma melhor perspectiva da ampla extensão de pardusco páramo que a separava da antiga broch, situada a várias centenas de metros. Teria preferido aproximar-se mais, mas não queria arriscar-se a que a descobrissem e se viu obrigada a esconder-se no bosque.

Quando tomou a precipitada decisão de seguir lady Janet ignorava o que lhe esperava, mas absolutamente teria imaginado algo assim. Em lugar de uma secreta ramagem onde dizer palavras de amor, Christina tinha tropeçado com uma espécie de campo de treinamento.

Teria que ter se sentido aliviada. Os temores que albergava sobre seu marido e lady Janet esfumaçaram. E embora ao princípio sentisse alívio, à medida que observava, mais segura estava de que algo estranho acontecia.

A maioria dos guerreiros levava posta sua indumentária de combate ao estilo das Highlands, em lugar de ir com a cota de malha. Vestia a casaca de couro tachonada de metal, o leine e o terrível elmo de aço, com uma proteção nasal, de aparência escandinava, que ocultava quase todo o rosto. Entretanto, havia um homem que levava uma cota de malha, um tabardo e um elmo de aço mais comum, com viseira. Christina franziu o cenho. A cimera em forma de dragão lhe era familiar.

Acostumou-se a ver-se rodeada de homens altos e musculosos, mas inclusive para os habitantes das ilhas esse grupo parecia… extremo. Agora bem, apesar dos elmos e da grande abundância de espécimes masculinos de primeira, distinguiu a seu marido no ato. Não o delatava tão somente o nobre porte, a não ser a autoridade e o mando que emanavam dele.

Vendo os homens concentrados em distintas disciplinas, da prática com arco até o lançamento de flechas e pedras e a escalada com cordas ao alto da broch, Christina teve a sensação de que ali passava algo estranho. Esses guerreiros não eram comuns.

Durante o lançamento de pedras, um dos homens levantou por cima de sua cabeça uma rocha enorme que devia pesar centenas de quilos como se estivesse oca. Tor havia tentado levantá-la do chão. Outros guerreiros puseram-se a rir a gargalhadas, mas seu marido não pareceu se importar e se uniu às gargalhadas.

Tor estava claramente ao mando, mas em cada disciplina era um homem diferente o que dirigia a atividade. Se deu conta já durante a prática com arco, quando o homem que destacava por cima de outros se adiantou à frente e ficou a dar ordens.

Levava observando uma hora aproximadamente quando os homens começaram a congregar-se em grupos mais reduzidos. Notou uma pontada de fome e pensou que possivelmente tinha chegado o momento de retornar. Não havia um grande trecho até o povoado, mas o terreno era bastante impraticável, sobre tudo devido à umidade.

Entretanto, ao ver que Tor se levava a mão à costas e desencapava a espada, decidiu ficar um momento mais.

O combate começou de uma maneira bastante civilizada, tudo o civilizado que permitiam duas pesadas folhas de aço, afiadas como navalhas, chocando entre si. Era brutal, mas não parecia com vida ou morte, como a luta que Christina tinha presenciado entre ele e MacRuairi, e embora seu coração seguisse pulsando depressa, pôde contemplá-lo sem ter a sensação de fraquejar as pernas.

Era quase como uma dança: os dois homens, por turnos, atacavam com a espada que empunhavam com ambas as mãos e rechaçavam a do contrário. Christina aguçou o olhar pensando que seu competidor era vagamente familiar. Entretanto, com o elmo de aço posto, não podia lhe distinguir o rosto.

Ao cabo de uns minutos notou que o coração lhe acelerava. O intercâmbio de golpes se voltou mais intenso, o som do aço ao entrechocar-se aumentou sua bravura. De repente, o exercício não lhe pareceu tão amistoso. Caiu para frente, e teve que agarrar-se bem ao recordar que estava encarapitada a um ramo.

Afogou um grito e piscou. Com um movimento suave, Tor rodeou com a sua a perna do competidor, agarrou o braço que se abatia sobre ele ameaçando golpeando-o e volteou ao contrário até tombá-lo de costas.

Em um suspiro, Tor apontava com a folha da espada ao pescoço do outro homem. Durante uns instantes terríveis pensou que ia atravessá-lo com a espada. Como da outra vez. E como daquela vez, deixou escapar um leve som involuntário. Nesta ocasião, por sorte, ele não a ouviu.

Christina suspirou aliviada quando Tor estendeu a mão a seu competidor para ajudá-lo a ficar em pé.

Com o olhar cravado na cena que se desdobrava no pátio de armas, tinha-lhe passado por cima que alguns homens se congregaram ao redor para observá-los também.

E então os viu.

Tapou a boca para afogar uma exclamação de surpresa. Os guerreiros tiraram os elmos, mas apesar da distância, descobriu a identidade de dois deles. Deveria ter reconhecido antes Lachlan MacRuairi, embora só fora por seu jeito leve e indolente. E se não tivesse sido bastante desconcertante ter reconhecido ao inimigo mais reputado de seu marido, mais difícil ainda ficava explicar a presença de um inglês no acampamento. Tinha coincidido com sir Alex em uma ocasião, anos antes que encarcerassem a seu pai, mas dificilmente uma jovenzinha podia esquecer ao atrativo e jovem senhor. Por que seu marido estava treinando a um dos cavalheiros de Eduardo?

O homem que esteve lutando com o Tor tirou o elmo. MacSorley. Deveria ter adivinhado. Quase tinha esquecido que o escudeiro de MacDonald, seguindo as ordens de Tor, tinha embarcado atrás de Beatrix sem pigarrear.

Seu olhar pousou em outro homem e demorou uns segundos em recuperar o fôlego. Deus misericordioso, que rosto! Encarnava a perfeição masculina, era um bronzeado Apolo de cabelos dourados como o caramelo e uns rasgos cinzelados pela divindade, o homem mais belo que tinha visto jamais. Parecia digno de figurar em um pedestal.

Os homens começaram a passar para a broch e Christina supôs que faziam uma pausa para almoçar. Tor se entreteve um momento falando com o MacSorley e outro homem.

O que estava passando ali?

A advertência de seu marido lhe veio à memória. Seriam esses os problemas que lhe tinha mencionado? Christina mordeu o lábio repensando a decisão de ter seguido lady Janet.

Possivelmente não tinha sido uma boa idéia. Tinha pensado que ele se zangaria, mas em seu momento não tinha dado importância. Se lhe agradar não tinha funcionado, acaso tinha algo que perder?

«Não saia do castelo desprotegida», havia lhe dito, recordou ela mordendo o lábio. Muito tarde para pensar em promessas.

Ansiosa de repente por retornar ao castelo, aventurou-se a olhar para o pátio e viu que outros homens tinham entrado na fortificação. Suspirou aliviada e se dispôs a descer da árvore. A descida era fácil. Saltou para salvar os últimos metros e aterrissou brandamente sobre o terreno enlameado e coberto de folhas.

Franziu o nariz e desejou ter calçado um par de velhas botas resistentes. As sapatilhas de fino couro não eram feitas para passear pela escarpada paisagem das Highlands no inverno; nem no verão, de fato.

Voltou sobre seus passos sorteando as árvores e sentindo-se melhor agora que sua aventura tinha terminado. Embora ignorasse todas as respostas, ao menos sabia que seu marido não partiu para reunir-se com outra mulher. E se ninguém se precavera de sua ausência, como supunha, ele nunca se inteiraria de sua inocente excursão.

Enquanto se orientava entre as árvores, Christina sentiu certo desgosto. Um desgosto que atribuiu à fantasmagórica quietude do bosque. Acelerou o passo e quando estava a ponto de cruzar os limites do bosque, de repente, sentiu que um calafrio lhe percorria as costas. Alguém estava…

Sem lhe dar tempo a girar, agarraram-na por atrás, e Christina se viu apertada contra um peito duro como uma pedra.

Um pânico atroz a paralisou. Ia gritar, mas o atacante lhe tampou a boca com a mão e sussurrou ao ouvido:

—Não te aconselho isso, esposa minha. E ainda menos tendo as mãos tão perto deste teu formoso pescoço.

A Christina deu um tombo no coração. Fria e dura como o aço, a voz de Tor tinha divulgado desumana. O possível alívio que tivera ao descobrir que o homem que a agarrava era seu marido se esfumou ante a aterrorizante perspectiva de ser vítima de sua cólera.

Nunca tinha enfrentado ao guerreiro que semeava o pânico nas Terras Altas, mas soube que isso ia mudar.

*

O estupor de Tor ao descobrir que era sua esposa quem lhe espiava cedeu passo a uma raiva cega.

Desconcerto. Medo. A possibilidade de uma traição. Um amontoado de emoções díspares, de sentimentos desencontrados, confundiu-se em uma voragem que, como uma corrente, clamava por abrir passo. Cada palmo de seu corpo acusava a pressão. Ouvia fluir o sangue em suas veias, sentia fogo na pele e os batimentos de seu coração lhe retumbavam nos ouvidos. Somente a suavidade desse corpo pressionado contra o seu e a certeza de que poderia esmagá-lo sem dificuldade alguma o reteve.

Tor cruzou o olhar com o Campbell e viu que este sacudia a cabeça. Ao menos Christina estava sozinha. Assentindo com brutalidade, ordenou em silencio a seus homens que partissem.

Depois de terem partido, Tor deu a volta a sua mulher e, sustentando-a pelos ombros, obrigou-se a respirar fundo. Olhou fixamente seus olhos negros tentando ignorar o remorso que sentiu ao ver em sua boca o branco rastro de sua mão e o temor em seu surpreendido olhar.

Devia estar assustada. Muito assustada.

—Vale mais que tenha uma boa desculpa por estar me espiando.

Christina abriu os olhos de par em par.

—Não te estava espiando. Como é possível que pense algo assim?

Tor não queria pensar mas… maldição, tampouco podia ignorar essa possibilidade.

—Possivelmente porque tenho descoberto que estava escondida me observando no alto de uma árvore. Ou porque me seguiste. Ou porque te deixei muito claro que não te metesse em assuntos que não lhe concernem. —Tor endureceu o rosto e aguçou o olhar—. Ou possivelmente porque lembra a traição que uniu a nos dois.

Christina se sobressaltou como se a tivesse golpeado. Tentou escapar, mas ele não o permitiu. Ao contrário, Tor se aproximou ainda mais a ela, obrigando-a a olhá-lo aos olhos.

—Alguém te pediu que me seguisse, Christina?

Apesar da clara ameaça, ela ergueu com altivez a cabeça. Seu marido media um metro noventa e pesava o dobro que ela, tinha matado a centenas de homens no campo de batalha e era um dos guerreiros mais temidos da região, mas ante esse comentário, Christina o olhou como se fosse um inseto insignificante.

—Claro que não. Nunca te trairia. —Sua voz e sua expressão delatavam que estava dizendo a verdade—. Esperava que, a estas alturas, à margem de como começou nosso matrimônio, confiaria em mim.

Tor confiava em pouca gente, e mesmo assim, nunca de tudo. A confiança matava.

—Se não esta espiando por conta de ninguém, me explique como terminaste sozinha e encarapitada a uma árvore.

Christina se mordeu o lábio inferior e um rubor apareceu em suas pálidas bochechas.

—Tinha ido ao povoado a procurar uns pasteizinhos de mel na loja do Cook para dar uma surpresa ao Iain, que está doente…, são seus favoritos, sabe? —Tor não sabia—. Vi lady Janet e decidi segui-la.

Christina viu que lhe pulsava a têmpora. Atuava como se quão único tivesse feito fora sair a um agradável passeio pelo campo em lugar de ignorar as instruções que lhe tinha dado. Tor deu outro passo para ela, com os punhos fechados, esforçando-se por recuperar a paciência.

—Tenho que entender que a razão de que te tenha encontrado aqui é que em um ataque de ciúmes decidiste seguir à mulher com a que acreditava que me deitava, apesar de te haver dito que não me deito com ela, e saíste a campo aberto… sozinha? —A voz lhe tremia da ira. Quando pensava no que teria podido lhe acontecer… estava a ponto de perder a cabeça—. Por todos os Santos, sabe o perigo que correste? —Várias possibilidades cruzaram sua mente, incluindo uma imagem dela com esse mesmo vestido rasgado—. Prometeu-me que não sairia do castelo sem uma guarda.

Tor a empurrou contra uma árvore, e como Christina foi incapaz de retroceder ante essa presença que se abatia sobre ela, inclinou a cabeça a modo de desculpa.

Tinha-a muito perto. Podia cheirar seu perfume doce e floral, e isso lhe enfureceu mais. Sempre tinha que cheirar tão bem essa mulher? Punha a prova sua capacidade de controle com tanta crueldade que ia ficar louco.

—Diz como se fosse uma tolice, mas o que queria que pensasse? Vai durante vários dias sem me dizer aonde, mas é óbvio que sim confia em sua amante.

Porque estava tentando protegê-la, maldição. Não queria que se mesclasse em nada de tudo aquilo. Gelava-lhe o sangue de pensar no perigo que corria só por conhecer a existência da guarda de Bruce. Isso era traição, e o fato de que fosse uma mulher não deteria a Eduardo da Inglaterra.

—Janet cozinha para nós, isso é tudo. O pedi, e ela acessou… sem fazer perguntas.

Entretanto, Christina ignorou a mofa.

—O que está acontecendo aqui? —perguntou franzindo seu narizinho. Tor a fulminou com um olhar de advertência, mas ela fez caso omisso—. Quem são esses homens e por que os está treinando em segredo?

O frio que lhe roeu as vísceras só podia atribuir ao medo.

—Voltará para castelo, esquecerá tudo o que viu e não retornará nunca mais. Entende? —Tor gritava. Ninguém o fazia perder o controle como ela. Christina se recostou contra o tronco da árvore, mas Tor a pegou pelo braço e a obrigou a olhá-lo. Os batimentos do seu coração seguiam retumbando em seus ouvidos. Queria sacudi-la até que o escutasse—. Nunca volte a me perguntar sobre isto.

Tão somente uns centímetros os separavam. Tor nunca tinha tentado intimidar a uma mulher com sua altura, mas se isso o fazia compreender a gravidade da situação, faria o que tivesse que fazer. Pelo mais sagrado jurou que a aterrorizaria. Entretanto, parecia que sua miúda esposa confiava nele mais do que deveria. Nesses momentos, quem não confiava em si mesmo era precisamente ele.

Um olhar rebelde cruzou seus delicados traços.

—Acho melhor perguntar a sir Alex —disse Christina sustentando seu temível olhar sem piscar.

«Maldição, reconheceu ao maldito inglês.»

—Ou ao Lachlan MacRuairi - arremedou com um sorriso de paquera—. Disseme que se alguma vez necessitava…

Tor reagiu. Estreitou-a contra seu peito, uma escura emoção o embargava.

—MacRuairi é uma víbora. Te afaste dele.

Estupefata, Christina assentiu. Fora qual fosse essa escura emoção, viu-a, ou a ouviu em sua voz, e o medo sossegou qualquer esforço de discussão.

—Não pretendia dizer isso - atravessou ela tremendo—. Não voltarei a mencioná-lo nunca mais, se isso for o que quer.

Tor ficou imóvel. O que estava fazendo? Christina o olhava como se ele fosse golpeá-la. Pelo amor de Deus, nem os homens eram como seu pai. Nunca lhe faria mal, tão somente queria protegê-la. Era só que o fazia sentir… ciúmes.

E, entretanto, ele não era ciumento.

Sentia um peso tão grande no peito que não podia respirar. Atraiu-a para si sabendo que essa era a única maneira de encontrar alívio. Não podia lutar contra isso. Ela estava muito perto, e a tentação era muito forte.

Seus olhares se cruzaram; Tor se estava afogando.

—Ah, o que quer de mim?

Christina o olhou, surpreendendo-se da grande emoção que plasmava sua voz. Entretanto, antes que pudesse responder, Tor inclinou a cabeça e fez o que esteve desejando fazer do primeiro momento em que a viu. Com um grunhido, afundou a boca em seus lábios.


Capítulo 17


A exclamação de assombro de Christina ficou afogada por sua boca. Esse contato ia fazer lhe estalar o coração. Foi incrível…, diferente a qualquer beijo anterior. O suave roce de seus lábios no dia de suas bodas mal podia comparar-se com essa brutal massacre. Com essa posse.

A deliciosa pressão, a incrível sensação, a cercania. Era perfeito. Ideal. Como se sua boca tivesse sido criada para isso. Somente para isso. Com ele.

Sentiu como se acabasse de mergulhar em um lago escuro e a afogassem as sensações. O calor. A robusta força de seu corpo. Seu aroma sensual. O sabor pecaminoso de especiarias dele. Esse homem lhe nublava os sentidos com a força essencial de sua masculinidade.

E sua boca… deslizava-se, saboreava, movia-se sobre seus lábios. Era o paraíso! Os lábios de Tor eram firmes e ternos em cada um de seus movimentos, incitavam-na… Não, exigiam-lhe que reagisse.

E Christina se rendeu. De bom grado. Afundando-se em seu feroz abraço, devolvendo seu beijo com o ofegante entusiasmo que sua inexperiência lhe permitia.

Tor grunhiu, atraindo-a para si, encaixando seu corpo no dele. Ela sentiu o duro desejo desse homem contra o ventre. Uma calidez a embargou e se concentrou entre suas pernas. No sensível perfil de seus seios. Sua pele se avermelhou, tensa. Mais perto, exigia seu corpo. Fundiu-se no beijo. Em sua pessoa.

O beijo se intensificou. Ficou mais intenso, mais forte. Mais rápido. Mais insistente. Christina gemeu abrindo a boca para recebê-lo, sentindo o quente contato de sua língua.

Afogou um suspiro. A paixão pura e carnal por uns momentos a deixou aniquilada. Entretanto, Tor não lhe deu nem trégua nem tempo para pensar, e a estupefação cedeu às escuras sensações que despertou seu perverso beijo.

Tor mediu. Tor se apropriou. Tomava a lambidas sensuais. Intenso. Ardoroso. Úmidos. Até que ela notou mariposas no estômago e um fogo que se propagava em potentes e estremecedoras ondas.

Christina respirou sua fragrância; nunca tinha imaginado que um beijo pudesse ser assim. Tão poderoso. Não era só luxúria o que sentiu nesse beijo. Havia algo muito mais profundo. Algo que se aferrava a seu coração e atirava dele. Nesse beijo sentiu uma emoção ofegante, pura, que ele sempre tinha reprimido. Era suave e erótica, mesmo que sua ferocidade a deixasse sem fôlego.

A língua de Tor monopolizava a dela exigindo-lhe tudo. Provando, Christina se uniu ao movimento. Em círculos, sinuosa, deslizando-se com a dele, sua língua executou uma deliciosa dança que a penetrou até o mais recôndito de seu ser.

Tor a beijava como se não alcançasse possuí-la. Como se estivesse desesperado por ela. Como se reclamasse sua alma com a boca, com a língua. Entrelaçou os dedos em seu cabelo e atraiu ainda mais sua boca. Christina sentiu a cálida pressão de seus dedos na nuca. O roce da áspera mandíbula em sua pele. Os fortes batimentos do coração do coração de Tor contra o seu.

Ele grunhiu afundando-se em sua boca, afundando-se nela. Notou a pressão do peso de seu corpo. Sua mão tocando o peito, seus quadris movendo-se contra os seus, ao sensual ritmo da língua, dentro de sua boca.

Christina gemeu, seus dedos se cravaram nos ombros de Tor, largos, musculosos. Sentiu-se fraca, inarticulada, seu corpo clamava que lhe desse o alívio que tanto desejava.

Tor acariciou suas nádegas com uma mão, tomando-a, levantando-a, até pressionar-se contra o ponto que ela desejava.

Que sensação! Christina gemeu, envolta em sua boca, esfregando-se contra a grossa coluna de aço que notava em seu baixo ventre, até que sua respiração ficou dificil.

Com uma brusca exclamação, Tor afastou sua boca e se foi para trás.

—Basta!

O corpo de Christina se sobressaltou ao ver-se bruscamente afastado do prazer. De maneira instintiva ela alongou uma mão para ele, mas Tor a reteve com certa distância.

Piscou. A sombra da paixão foi desvanecendo-se, e cruzou com seu olhar perplexo, acusatório. Nesses olhos se viu mais alta, como se tivesse crescido. Como se lhe assustasse. Olhou-o perplexa. Christina lhe dava medo.

Porque o fazia sentir algo que ele não desejava. Importava-lhe. Apesar de que esse homem teimoso e duro não se desse conta. Mas lhe importava. Na boca dolorida e inchada de Christina se desenhou um sorriso. Aquilo era maravilhoso.

Tor se recuperou em seguida, mas não o suficiente.

—Levarei-te ao castelo - disse, agarrando-a pela mão—. Imediatamente!

Christina deixou que a levasse a puxões, sem lhe importar o mínimo a repentina e áspera mudança de atitude ou a careta inconfundível que se desenhava na boca dele.

Nada disso importava. Porque nada podia invalidar a certeza do que acabava de descobrir.

Tinha penetrado na fria couraça protetora. Era o sinal que esteve esperando. Importava-lhe. E a prova estava em seu beijo.

*

Tor não soube que estranho influxo do Hades se abateu sobre dele. Tinha passado de estar furioso a beijá-la como se nunca tivesse beijado a nenhuma outra mulher. Como se estivesse faminto, como se a necessitasse. A paixão não lhe preocupava; o rasgo que sentia no peito, em troca, era um assunto diferente.

Inconscientemente, Tor se absteve de beijá-la, como se de maneira instintiva se deu conta do perigo. Agora já sabia o porquê. A conexão era muito forte. Os sentimentos, muito poderosos. Muito intensos. E tentar contê-los seria um trabalho digno de Hércules, ou de Pandora.

Depois de ter provado a doçura de mel dessa boca já não poderia pensar em outra coisa. Soltou uma maldição e afastou um ramo com tanta força que este se quebrou.

Ouvia-a suas costas, respirando com dificuldade, e diminuiu o passo ao dar-se conta de que estava caminhando muito depressa. Dirigiu-lhe um olhar irado. Christina permanecia calada. Muito calada. Seguia-o com obediência, sem expressar nenhuma só queixa.

Tor não gostou da expressão de seu rosto. A leve curva ascendente de seus lábios podia interpretar-se como um sorriso petulante. Que motivos tinha para sorrir? Se quase a tinha violentado em pleno dia contra uma árvore…

—Falta pouco para chegar - disse Tor com aspereza.

—Que bom.

«Que bom?» Tor entreabriu os olhos. O que estaria maquinando essa mulher?

—Hoje terá que te dedicar aos assuntos de seu clã? —perguntou Christina em tom educado.

—Sim - respondeu ele.

—por que não me tinha beijado alguma vez assim?

Tor quase tropeçou contra uma pedra ante a inesperada mudança de tema.

—Não sei - disse ele com brutalidade—. Suponho que nunca me tinha ocorrido.

Christina arqueou uma sobrancelha como se soubesse que estava mentindo.

—Gostei muito.

Por sorte ele não estava comendo, se não, teria se engasgado.

—Muito mesmo, de fato - prosseguiu ela—. Temo-me que a partir de agora insistirei nisso.

Insistir nisso? Tor não dava crédito. Sua linda mulher estava lhe dando ordens? Ele era um chefe. Ninguém se teria atrevido a lhe falar com tanta insolência. Teria que obrigá-la a retificar. Entretanto, adiantando-se a sua resposta, Christina lhe perguntou: —O que outras coisas não lhe ocorreram ainda? —E escrutinou sua expressão horrorizada—. Me dá raiva pensar que estou perdendo outras coisas.

Seu olhar posou na considerável protuberância que aparecia sob o leine de seu marido. Passou a língua pelo lábio superior e uma chama de prazer sacudiu as lombares de Tor. A Christina não lhe escapou sua reação, e o sorriso que esboçaram então seus sensuais lábios não albergou dúvida alguma.

Que o céu o ajudasse.

Jogando-se para trás sua longa e sedosa cabeleira, Christina empreendeu de novo a marcha deixando ao Tor um pouco assombrado e bastante nervoso.

Uma mudança sutil se operou entre os dois, e Tor tinha a sensação de que aquilo ele não ia gostar. Absolutamente.

Sentiu um profundo alívio quando o povoado apareceu ante seus olhos. Dunvegan consistia em uma vintena de casinhas de teto de palha pulverizadas ao longo de um quilômetro nos contrafortes do porto, em um pequeno mercado no que os granjeiros e os pescadores se reuniam para apregoar suas mercadorias, em uma ferraria, uns estábulos e um botequim.

Teve um indício de inquietação à medida que se aproximavam. Era estranho. Tudo estava muito tranqüilo. Em geral, a essa hora do dia, o povo bulia de atividade, mas nesse momento parecia que todos se encerraram em casa.

Quando giraram para o porto descobriram a razão. Duas galeras desconhecidas tinham ancorado nessas águas.

Tor soltou uma maldição, e estava a ponto de dizer a Christina que se refugiasse em uma das casinhas quando soube o que estava acontecendo ao ver aparecer ao Rhuairi ante eles.

—Menos mal que retornastes. Não me atrevia a lhe enviar uma carta.

—O que passou? A quem pertencem estes navios?

—trata-se de John MacDougall.

Maldição. John do Lorne, o primogênito do chefe dos MacDougall e em tanaiste27. E além disso um bastardo.

—Desde que Eduardo encarcerou ao conde de Ross, MacDougall é quem cobra os impostos. Ao ver que lhe negavam a entrada no castelo (os homens não lhe deixaram passar sem sua permissão), jogou mão dos soldados e decidiu confiscar a metade das reservas para o inverno. Coll recebeu um bom golpe na cabeça quando tentava impedir que levassem a metade de suas provisões de boi seco.

Tor soltou uma blasfêmia e apertou os dentes. Agora o novo xerife de Eduardo decidia fazer notar sua presença no Skye acossando a seu povo?

—Quantos homens foram contigo? —perguntou a seu senescal.

—Poucos. Encontrava-me no povoado quando chegaram.

E Tor ia sem seu séquito. Em princípio a diferença numérica não lhe preocupava, mas em geral não estava acostumado a ter que pensar além em sua mulher. Tor tinha jurado permanecer neutro na guerra da Escócia e não tinha nenhum desejo de enfrentar-se ao xerife de Eduardo, mas MacDougall era um imbecil arrogante e desconfiava dele.

—Acompanha à senhora ao castelo…

—Temo-me que já é muito tarde para isso - atravessou Christina assinalando para o porto.

Tinham-nos visto. MacDougall e uma quarentena de homens se aproximavam em direção contrária do mercado, carregados com as caixas que pretendiam embarcar em seus navios. MacDougall coxeava ligeiramente ao andar, e essa claudicação lhe tinha dado o apelido de John Bacach, quer dizer, o Coxo.

O olhar de Tor pousou em sua mulher.

—Fica do meu lado e não te mova. —Christina assentiu—. E deixa que eu fale-acrescentou.

MacDougall lhe faria perguntas sobre seu matrimônio e Tor não queria que Christina dissesse algo inadvertidamente que fizesse duvidar de sua neutralidade ao novo xerife de Eduardo. Fechou os punhos. Poria a prova o plano de MacDonald. John MacDougall podia ser um imbecil, mas não era tolo. Tor suspeitava que sua oportuna visita não fosse uma coincidência. Eduardo devia ter ouvido falar de suas bodas.

—Ah - exclamou MacDougall aproximando-se com seus soldados—. Haja aqui o homem que estávamos procurando. Vim cobrar os impostos, mas seu guarda me negou a entrada argumentando que estavas fora.

Tor se deteve uns metros dele.

—Como podem ver, já retornei.

Os dois homens se plantaram um defronte ao outro. Tor era mais alto quinze centímetros, mas MacDougall tinha a compleição de um javali: maciço e musculoso. Além disso, contava com a inestimável ajuda de quarenta homens que lhe cobriam as costas. Tor contava com o Rhuari, um punhado de guardas e sua esposa. A presença de Christina lhe impedia de atuar, e ambos sabiam. De todos modos, retirar-se não era seu estilo.

—Por isso lhe ocorreu roubar os bens de minha gente?

MacDougall sorriu com frieza, e Tor recordou o parecido que existia entre ele e MacRuairi, a víbora de seu primo. Os MacDougall, MacDonald, MacRuairi e MacSorley representavam os quatro ramos dos descendentes do Somerled. As rixas e as lutas pelo poder entre os MacDougall e os MacDonald eram tão virulentas, e tão notáveis, como as que haviam entre os Bruce e os Comyn. Ambos os clãs queriam encarnar o poder dominante das ilhas Ocidentais, mas na atualidade esse poder o detinha os MacDougall.

—Considere um adiantamento a conta do pagamento dos impostos que nos devem.

Tor controlou seu mau gênio.

—O rei já recebeu nosso pagamento anual.

MacDougall arqueou uma negra sobrancelha.

—Isso é uma miséria comparado com o que deve.

—Essa era exatamente a dívida. Comprovem os livros se o desejares. As últimas invasões têm feito minguar os rendimentos deste ano.

—Ao rei não lhe interessam seus problemas. Descuidou do pagamento desde que ordenou encarcerar ao Ross, mas as coisas mudaram. Agora conta comigo.

—A que rei te refere? Aquele ante o que lhe inclinavam o ano passado ou ao que fazem reverências este ano?

Tor tinha afiado bem sua faca. MacDougall avermelhou da raiva, e o homem grande que tinha ao lado, seu escudeiro, sem dúvida, pegou a espada. A brigada lealdade que MacDougall rendia a Eduardo o tinha jurado a margem de seus parentes, o rei John Balliol e os Comyn, e aquilo ainda devia lhe arder.

—Estais questionando o direito ao trono do rei Eduardo? Advirto-lhe, como amigo, é obvio, que nosso monarca não toma a traição à ligeira. Suas recentes bodas pôs em interdição sua lealdade.

Dirigiu um olhar calculado a Christina, e Tor teve que resistir o impulso de escondê-la atrás de suas costas. MacDougall não ocultou o brilho de luxúria que apareceu em seus olhos e que teria significado uma condenação a morte em outras circunstâncias. Tor fechou os punhos para refrear a vontade que suas mãos tinham de empunhar a espada. Nunca havia se sentido tão impotente, mas com a Christina a seu lado era como se estivesse preso com correntes.

—Minhas bodas não tiveram nada que ver com política - disse Tor com voz neutra, procurando que seu tom não delatasse a perigosa ira que o avivava por dentro—. Não desejei nada mais depois de vê-la.

MacDougall cravou os olhos em Christina. Atuando como se esperava dela, Christina permaneceu quieta a seu lado. Se percebeu as olhadas lascivas do outro homem, não deu a entender.

—Sim, ouvi quais foram as circunstâncias de suas bodas. Minha senhora… —disse o xerife lhe fazendo uma reverência, e Christina, a sua vez, inclinou a cabeça com secura. Logo se dirigiu ao Tor—. Não é difícil entender a razão de que estejas louco por ela. —Aguçou o olhar—. Embora deva admitir que me surpreendeu ouvir que o amor tenha sido o pretexto para organizar umas núpcias tão precipitadamente.

Christina ia intervir, mas Tor lhe agarrou a mão com rapidez e, estreitando-lhe a levou aos lábios.

—Sim, fiquei enfeitiçado na primeira vez que a vi.

Seus olhos se cruzaram e Tor adivinhou a surpresa de sua mulher. Teria que lhe explicar isso mais tarde, embora a conversação não lhe entusiasmasse precisamente.

—Isso está acostumado a acontecer em sua família - agulhou MacDougall fazendo-se eco das palavras que Tor tinha dirigido ao MacDonald—. Encontra-se aqui seu irmão? Temos que cobrar uma promessa quebrar de matrimônio.

Tor agradeceu que trocassem de tema, mas sabia que MacDougall não tinha ficado convencido de tudo.

—Não está aqui, mas quando retornar procurarei lhe compensar de todos quão inconvenientes tenham podido sofrer.

—Procurarei que assim seja - repôs MacDougall—. Acredito que a metade do dote da garota Nicolson bastará.

Tor se forçou a manter a boca fechada. Estava-lhe ameaçando e roubando sem piedade, mas Torquil já se encarregaria de liderar suas próprias batalhas.

MacDougall voltou a admirar Christina e logo se voltou para Tor.

—Quando as notícias de suas bodas chegaram aos ouvidos do rei, o monarca se deu conta de que se incorreu em um descuido.

Tor entreabriu os olhos adivinhando que não ia gostar do que MacDougall tinha que lhe dizer.

—Que tipo de descuido?

—Seu nome não aparece nos Cilindros do Ragman.

Maldição. Não era um descuido. Tor não tinha assinado intencionadamente o cilindro onde se jurava a lealdade, a fidelidade e a vassalagem a Eduardo anos antes, como fora pedido a todos os nobres escoceses.

—Nessa época eu estava na Irlanda.

MacDougall sorriu. A expressão de Tor não delatava nenhuma emoção, mas o xerife não caiu no engano.

—Não importa - disse este com um dramalhão—. O descuido pode reparar-se sem maiores conseqüências. Não precisarão viajar até o Berwick. O castelo de Stirling nos servirá, durante o parlamento que celebraremos no fim de janeiro.

MacDougall partiu pouco depois levando consigo uma parte das reservas invernais. E no momento, Tor não pôde fazer nada salvo vê-lo partir enquanto ele se consumia de raiva. De todos os modos, já estava planejando uma insurreição para recuperar o roubado. MacDougall o esperava. Assim se solucionavam as coisas nas Highlands. Mas o xerife se dedicava a um jogo perigoso. Ao Tor apertariam as cavilhas, mas John do Lorne estava a bordo da asfixia.

De todos os modos, enfureceu-se. A aventura de sua esposa não só tinha posto em perigo a segurança da equipe de Bruce, mas sim além custado uma fortuna. Pior ainda, suas bodas o tinha situado exatamente onde temia: no olho do furacão. Em menos de um par de meses teria que tomar uma decisão.

*

Christina se sentia desventurada. De volta ao castelo, permaneceram em silêncio. Foi um verdadeiro suplício. O beijo apaixonado que tinham compartilhado e a paquera brincalhona de Christina parecia uma longínqua lembrança. Tor nem sequer a olhava. Ela não so lhe tinha seguido e tinha sido testemunha de algo que sem lugar a dúvidas não devia ter visto, mas sim sua presença no povoado o tinha preso de pés e mãos. Teria tentado impedir seu marido que MacDougall se levasse as provisões de que dispunha o povo para passar o inverno? Não sabia, mas com ela presente, Tor não tinha tido escolha.

A visita do MacDougall também lhe tinha dado a entender que suas bodas tinha conduzido os problemas que até então tinha tentado evitar, e com isso tinha atraído a atenção do rei. Por causa de Christina, Eduardo questionava a lealdade de seu marido e tentava obrigá-lo a escolher um lado mediante um juramento.

Christina não tinha entendido a magnitude da ameaça até que conheceu o MacDougall. John do Lorne era conhecido por sua falta de piedade, e apesar de se declarar amigo de Tor, não foi amizade o que Christina viu em seu olhar, a não ser outra coisa: animosidade e possivelmente ciúmes. Seus olhares lascivos lhe tinham lhe estremecido. Até sabendo que esse homem tentava encolerizar a seu marido, tinha conseguido que ela sentisse a necessidade de tomar um banho. MacDougall tinha desfrutado demonstrando sua supremacia sobre o temido senhor da guerra das Highlands, e Christina pressentiu que esse tão somente seria o primeiro dos problemas que teriam com o poderoso xerife de Eduardo.

Ficou estupefata quando Tor afirmou que se casou com ela porque tinha ficado enfeitiçado. O modo que a olhou quando lhe beijou a mão…

Tinha-lhe dado um tombo o coração, embora logo compreendesse que possivelmente o havia dito pelo MacDougall. Sem lugar a dúvidas, Tor era muito cortês para revelar as autênticas circunstâncias de suas bodas. Mas ela quis acreditar que era verdade.

Tor ia ajudar a desembarcar do birlinn quando Christina já não pôde suportar mais o silêncio.

—Sinto que nosso matrimônio te trazido problemas. Sei que não tem vontade de ver-te misturado na política escocesa.

—Isto não tem nada que ver contigo, Christina.

Odiava quando a despachava assim. Tor tentou que subisse a escada, mas Christina se manteve firme. Seus homens tiveram o tato suficiente para afastar-se um pouco deles.

—Por que é tão importante para ti? —perguntou-lhe ela.

Tor deixou escapar um suspiro e a olhou.

—O que é tão importante para mim?

—Te manter à margem. Depois de hoje, não vê que será impossível? Eduardo não renunciará nem a um só palmo de seu reino… Por muito longe que esteja.

—MacDougall tão somente me deu um aviso, deu-me a entender que me vigia. Enquanto eu não atue contra ele, ele não atuará contra mim. E por agora, com isso me basta.

Christina notou que lhe bulia o sangue patriótico dos Fraser.

—E te parece bem te manter à margem e deixar que Eduardo e homens como MacDougall governem a Escócia?

Os olhos de Tor jogavam brasas. Tinha interpretado sua pergunta como uma crítica, e possivelmente era.

—Parece-me bem não arrastar a meu povo a uma guerra que quão único trará serão desgraças. Parece-me bem não ver meus homens com o crânio destroçado no campo de batalha porque lutavam por um rei que não sabe nada das Highlands e das ilhas Ocidentais, e que além nada lhe importe. Ver que as mulheres perderam a seus maridos e os meninos a seus pais, ver minhas terras arrasadas e o gado esquartejado… Passei vinte anos de minha vida fazendo todo o possível por devolver a paz e a prosperidade a meu clã, e maldita a graça que me faria ver todo isso destruído porque uns reis longínquos decidiram brigar entre eles. Tanto gosta de entrar em guerra, Christina?

—Claro que não - replicou ela, assombrada pela intensidade de sua reação. Havia tocado um ponto delicado e suspeitava qual era sua procedência—. O ataque surpresa no qual seus pais morreram assassinados deve ter sido devastador.

—Foi - disse ele com brutalidade. Era óbvio que não se pronunciaria mais sobre o tema—. Vê com cuidado o que desejas; pode ser que a guerra não tarde em nos alcançar. Bem, se tivermos terminado com isto, tenho assuntos que atender.

Voltando-se, Tor se afastou com passo decidido e Christina teve que retornar ao castelo sozinha. Sentindo-se mais desgraçada que antes. Com sua tentativa de pedir desculpas só tinha conseguido enfurecê-lo mais. Não era de se admirar que Tor não queria mesclar-se em política. Como podia ter sido tão ingênua? Tinha pensado tão somente nos problemas de um homem, quando o que teria que considerar era o bem-estar de todo um clã.

*

Durante os dias seguintes Christina não teve ocasião de ver seu marido como costumava. Quando este retornava ao castelo, encerrava-se em seus aposentos pessoais com o Rhuairi ou com seus guardas. Seguia sem confiar nela, mas Christina se deu conta de que a cena vivida com o MacDougall tinha deixado rastro nele: sulcos profundos nas comissuras dos lábios e um ar de fadiga em seu olhar denotavam sua preocupação.

Essa era a situação que seu matrimônio lhe tinha dado.

E em seus pensamentos sempre a assaltava o temor de que lamentasse haver-se casado com ela. Que pudesse culpá-la por ter atraído sobre ele as suspeitas de Eduardo. E se seu clã saísse prejudicado, cada vez que a olhasse pensaria que essa mulher tinha sido o grande engano de sua vida.


Oxalá encontrasse a maneira de compensá-lo. E como Tor tinha dormido três noites na broch depois da partida do MacDougall, com os estranhos guerreiros sobre os quais não lhe permitia fazer perguntas, Christina não tinha tido a oportunidade de compensá-lo com apaixonados beijos. Tor a tratava com a cortês indiferença do passado, mas Christina sempre levava no pensamento a emoção descarnada de seu beijo.

«Importo-lhe; devo importar.» Tinha-o notado em seus lábios. E o tinha sentido em seu coração.

Suspirando, deixou um infolio28 sobre uma prateleira e sacudiu o pó das mãos. O irmão John se ausentara para que pudessem ordenar a sala e Christina se atrasava. Dizer que o jovem clérigo era desorganizado era pouco. O senescal Rhuairi, por outro lado, andava-lhe atrás. Christina negou com a cabeça. Escapava a sua compreensão que, com tanto confusão, tirassem-se o trabalho de cima.

Recolheu os diferentes pergaminhos e papéis de vitela que tinha pulverizado sobre a mesa e os amontoou em ordem. Repassou por cima alguns documentos e viu que fundamentalmente eram recibos de quantidades que os chefes das tribos e os arrendatários entregavam em conceito de arrendamento e usufruto de propriedades. Além de possuir uma grande parte do Skye, parecia que Tor tinha terras nas ilhas do Lewis, do Harris e do North Uist.

Advertiu um infolio aberto sobre a mesa, e estava a ponto de fechá-lo quando seu olhar se pousou em uma entrada recente que correspondia ao recibo que acabava de pôr sobre o montão que havia na prateleira superiora.

Franziu o cenho e voltou a ler a anotação, somente para assegurar-se de não ter cometido um engano. Seus olhos se centraram de novo no livro de contabilidade. Essa entrada estava mal feita. Tinham cotado os cem quarteirões de cevada como quinhentos.

Christina revisou por cima outros recibos e localizou um engano mais na transcrição: em lugar de dez ducados de prata, tinham cotado uma quantidade recebida de dezesseis.

Tor tinha sorte de que MacDougall tivesse declinado seu oferecimento de revisar os livros… porque estes não enquadravam.

Christina mordeu o lábio tentando decidir o que tinha que fazer. Quem quer que fosse o responsável corria o perigo de perder seu posto se ela revelava seu achado. Entretanto, não queria causar problemas ao irmão John; tinha tido tanto trabalho e estava tão cansado ultimamente que não era de se admirar que tivesse cometido alguns enganos. E tampouco queria dar ao senescal mais motivos para lhe desgostar.

De repente, uma idéia começou a tomar forma em sua mente. Sentou-se à mesa, colocou frente a ela o livro de contabilidade e o examinou com maior atenção. O mesmo dom que lhe tinha permitido aprender idiomas desde a mais suave idade também parecia poder aplicar-se aos números. Era capaz de fazer a maioria dos cálculos, inclusive os que resultavam complicados mentalmente. O pai Stephen lhe havia dito que em toda sua vida só tinha visto um caso parecido ao dele. Somando as colunas da direita, Christina descobriu outros enganos de cálculo.

Já estava! Tinha descoberto a maneira de ajudar. Organizar e classificar essas contas não lhe levaria muito tempo, uns dias, possivelmente uma semana. Não só era a maneira perfeita de pôr a seu marido à corrente de seus incomuns dotes, mas sim além demonstraria que também podia ajudá-lo. Que não era necessário que se sentisse tão só.

Experimentou uma onda de excitação. Como ia surpreender-se! As vezes que Christina tinha tentado demonstrar que era útil tinham sido em vão, mas aquilo era importante, algo que ele não podia ignorar. Com isso o surpreenderia.

Estava impaciente por ver sua expressão. Primeiro de surpresa, logo depois de gratidão, e, finalmente, possivelmente de orgulho. O coração lhe acelerou. Deixaria de considerar a garota covarde que o tinha enganado para casar-se com ele e a veria como a mulher que podia estar a seu lado, como uma confidente? Christina podia passar a formar parte de sua vida, e não só ser um corpo em seu dormitório.

Veio-lhe ao pensamento uma imagem de seu pai. Também tinha pensado que o impressionaria mas…

Era absurdo. Afastou essa idéia passageira de sua cabeça. Tor não se parecia em nada a seu pai. Em nada. Era uma pessoa decente, justa, e inclusive quando se zangava não perdia nunca o controle. Possivelmente fora brusco expressando-se, mas jamais levantaria uma mão contra ela. Havia-se posto furioso ao descobri-la na árvore e ainda mais quando ela quis provocá-lo estupidamente lhe falando do Lachlan MacRuairi. Tinha querido lhe pôr ciumento, porque ela estava ciumenta. E se sua reação era indicativa de alguma coisa, tinha funcionado. Entretanto, por mais zangado que estivesse, Tor jamais lhe faria mal fisicamente.

Não era a crueldade o que lhe tinha impedido de fixar-se nela, a não ser a cegueira. Somente precisava abrir um pouco os olhos.

Estipulado o caminho a seguir, Christina abandonou as dependências de seu marido com passo decidido. Estava impaciente por começar, mas teria que esperar até entrada a noite se não quisesse que a descobrissem. Nesse momento ouviu a rouca gritaria de umas vozes a suas costas procedentes do grande salão.

Deu-lhe um tombo o coração. Tor devia ter retornado!

Acelerou o passo, saiu ao corredor pela porta traseira e ao entrar no salão se deteve em seco, paralisada.

O terror a sacudiu em uma explosão fria e vertiginosa. Sentiu uma pontada no estômago e notou um sabor bilioso na boca.

Um gemido estrangulado escapou de sua garganta, como o de um animal ferido.

De pé no soalho, lhe dando as costas, estava seu marido… abraçando apaixonadamente a uma mulher alta e loira.


Capítulo 18


Christina ficou imóvel, aniquilada, incapaz de mover-se.

O beijo se fez eterno, fez-se mais ardente à medida que a multidão os incitava animando-os e chiando. Basta. Basta, por favor. Sentiu um peso imenso no coração. As lágrimas lhe nublaram os olhos.

Como podia lhe fazer isso? E como podiam animar os homens de seu clã? Christina acreditava que tinha começado a gostar dela.

Sentia que lhe faltava o ar e que lhe queimava o peito. Notou que muito profundo se rachava, se trincava como o gelo de um lago gelado. Tremia, e soube que esses tremores se converteriam em sacudidas.

Lady Janet e seu marido se separaram, rindo a gargalhadas, e Christina ficou paralisada.

Havia algo que não encaixava… que era diferente. Seu marido não atuava como um rei ante seus súditos, e sua indumentária era muito mais luxuosa que a que estava acostumada a ver nele. O porte tranqüilo e relaxado, a roupa desconhecida, o cabelo com mechas douradas… Seus ombros eram tão largos como os dele, mas sua constituição, até sendo musculosa, era mais fina, não tão corpulenta.

Christina piscou. Acaso via visões porque desejava as ver? Não. No fundo de seu coração soube. O homem que estava de pé no soalho não era seu marido.

Quando deslizou a mão pela cintura da mulher e se voltou para dirigir-se à multidão, Christina soube. O perfil era endiabradamente parecido, mas a mandíbula não era tão poderosa e o perfil do nariz não estava ligeiramente torcido. Além disso, a fina cicatriz da bochecha direita e as rugas de expressão nos olhos não pertenciam ao Tor.

E se ainda ficava alguma dúvida, esta se dissipou quando a mulher apareceu ante seu olhar. Não era lady Janet, a não ser uma jovem pouco mais velha que ela. Era bonita, com uns traços finos e delicados e uns enormes e risonhos olhos verdes; sua beleza não era firme e serena como a de lady Janet, a não ser natural e vivaz. Uma flor silvestre da primavera em lugar de uma rosa de inverno.

A garota reparou na Christina e sorriu. Puxando o braço do homem, ficou nas pontas dos pés para lhe sussurrar algo ao ouvido e ele se voltou para a Christina.

Ver desenhar um amplo sorriso em um rosto tão parecido ao de seu marido a deixou sem fôlego. Essa deveria ser a expressão de Tor, uma expressão de felicidade.

O desconhecido se dirigiu a ela com passo decidido. Quando esteve em frente, deteve-se e fez uma reverência tão cortês que Christina não pôde evitar sorrir.

—Minha senhora, me perdoe, não lhe tinha visto chegar. —Dedicou-lhe um sorriso pícaro e a puxou pela mão para conduzi-la até a mesa—. Temo que me deixei levar um pouco apresentando a minha mulher ao clã. Meu nome é Torquil, e você deve ser lady Christina. —Sacudiu a cabeça com determinação—. Sem dúvida meu irmão está cheio de surpresas.

Christina franziu os lábios em um sorriso.

—Sem dúvida são gêmeos.

Torquil arqueou uma sobrancelha muito bem desenhada, e sua expressão irônica foi tão parecida com a de seu irmão que ficou estupefata.

—Não havia lhe isso dito?

Christina sacudiu a cabeça.

Torquil a olhou com expressão preocupada.

—Sinto muito, o que viu… deve lhe haver afetado muito.

Christina assentiu; embora o que tinha experimentado era muito mais doloroso que isso. E naquele momento chegaram à mesa.

—Minha senhora, desejo lhe apresentar a minha esposa, lady Margaret.

A jovem se aproximou pressurosa a ela e deu umas palmadas de alegria.

—É um prazer conhece-la, minha senhora. Posso lhe chamar Christina? Têm que me chamar Meg. Estou segura de que seremos muito boas amigas, casadas como estamos com dois irmãos… que são gêmeos, além disso. Teremos muito de que falar —disse Meg, olhando a seu marido com malícia— e que comparar.

Christina só acertou a assentir e a sorrir a sua vez, sentindo-se como se tivesse ficado apanhada em um redemoinho.

—Que malote é! —Torquil rodeou a seu recém casado entre seus braços e fingiu sentir-se ofendido—. Cuida sua língua ou terei que usá-la para outros usos.

Meg piscou.

—O que outros usos lhe ocorrem?

Torquil lhe acariciou a bochecha com um só dedo, com tanto amor e adoração em seu olhar que Christina sentiu como seu coração se enchia de ternura. Agachando-se, Torquil sussurrou algo ao ouvido do Meg. Fossem quais fossem suas palavras, estas fizeram ruborizar-se a sua formosa mulher até a raiz do cabelo, mas o olhar de sensual antecipação que advertiu nos olhos dela não semeava nenhuma dúvida.

«O que quer de mim?»

Lembrou-se da pergunta que Tor, com estranha intensidade, pronunciou justo antes de beijá-la. Mas agora conhecia a resposta: isso era o que desejava.

Possivelmente deveria contentar-se com o que possuía. Tor fazia muito por ela. Tinha-a salvado de umas circunstâncias horríveis e lhe tinha dado seu nome, um lar e, sobre tudo, uma sensação de segurança. Tinha-lhe dado paixão, e Christina sabia que terminaria por lhe dar filhos. Protegeria-a com sua vida, como faria qualquer dos homens de seu clã, porque sabia que isso formava parte de seus deveres. Tratava-a, se não com ternura, ao menos com consideração. Depois do que tinha acontecido no bosque, Christina sabia que por muito que o enfurecesse, ele jamais a golpearia. Tor controlava a situação, estava ao mando, tinha sentido da honra, era direto e firme como uma rocha; um guerreiro no pleno sentido da palavra, e um líder digno de admiração.

Era tudo isso, e, entretanto não lhe bastava. Sobre tudo quando olhava ao casal que nesse momento se sentava a seu lado. O que queria dele? Queria tudo. Queria olhares de ternura, beijos apaixonados, sorrisos amorosos e passar juntos longas noites frente à chaminé. Queria risadas, companheirismo, intimidade e um homem que a valorizasse… Não como a um corpo formoso com o que jogar, mas sim como pessoa.

Queria seu coração.

Porque ele já tinha o seu na palma de sua poderosa mão de ferro.

«Amo-o.» A verdade era tão óbvia que se perguntava como não se dera conta antes. Christina amava sua sólida fortaleza, sua confiança, sua determinação, seu inato sentido da justiça e inclusive suas maneiras sérias. Sabia que sempre poderia contar com ele. Era um chefe importante, o guerreiro mais reputado de sua época, e sempre a tinha tratado com respeito e escutado suas opiniões.

E se por acaso tinha ficado alguma dúvida a respeito, a profunda desolação que sentiu ao presenciar esse beijo a tinha dissipado. Do momento em que a salvou de ser violentada no Finlaggan até o beijo que deram no bosque, Tor tinha reclamado para si seu coração. E agora lhe pertencia.

Se ele o quisesse.

*

Era tarde quando Tor saiu pelo portão que dava ao mar. Seu olhar pousou imediatamente no homem que o aguardava de pé no pátio. O pródigo tinha retornado.

Colyne lhe tinha enviado uma carta pelas mãos do Murdoch, seu escudeiro, para anunciar sua chegada. Tor teria acudido imediatamente, mas esteve ajudando a guarda a preparar-se para a viagem. Ao dia seguinte partiriam para as montanhas Cuillen para começar a última fase do treinamento, a mais intensa. O que alguns chamavam «Perdição». Sem exagerar. E, por contra, nada unia tanto a uma equipe como compartilhar o sofrimento.

Tor levava muito tempo esperando esse momento. Cortou a distância que separava a ambos em poucos passos. Torquil o viu aproximar-se com certa intranqüilidade, mas antes de poder abrir a boca e dizer nada, Tor ergueu o punho e o estampou em sua mandíbula. O impacto lhe jogou para trás a cabeça, e Torquil deixou escapar um grunhido de dor.

Que gosto, Deus divino!

Massageando a mandíbula, Torquil o observou com receio, como esperando um novo golpe. Tor titubeava.

—Eu também me alegro de ver-te, chefe.

—Chefe? Convém-te recordar isso - disse Tor com frieza. A chuva lhe açoitava o rosto—. Qual é a razão de que tenha preferido sair em lugar de ficar no grande salão?

Torquil parecia incômodo.

—Queria que primeiro nos víssemos a sós, se não te importar.

Importava-lhe, mas seu irmão parecia estranhamente inquieto.

—Nos deixem - ordenou Tor aos guardas. E quando se retiraram, disse—: Agora, te explique.

Torquil o olhou titubeando e tentando calibrar seu estado de ânimo. O tinha imaginado. Tor nunca cedia. E terminou por encolher-se de ombros.

—Sabia que te zangaria.

Não era necessário que o dissesse, Torquil sabia perfeitamente.

—Te ocorreu que me zangaria menos se ficássemos fora, sob a chuva?

Torquil se endireitou e lhe sustentou o olhar de aço com seus olhos também de aço.

—Não quis desgostar a minha mulher. E foi uma boa idéia, visto o recebimento -agulhou, esfregando a dolorida mandíbula para recalcar suas palavras.

Tor demorou um pouco em interpretar aquilo.

—Quer dizer, estou aqui fora me gelando as bolas para que a noiva que seqüestraste não se sinta ferida em seus sentimentos? —perguntou com incredulidade.

Seu irmão ficou embevecido. Disparou-lhe o músculo da mandíbula. Apertou os dentes e assentiu.

—A garota não tem culpa do que passou. Eu sou o único culpado, ou seja, que faz o que considere, mas não obrigarei a minha mulher a presenciar isto… ou a levar uma falsa impressão de ti.

Tor entreabriu os olhos.

—A que impressão te refere?

Seu irmão esboçou um sorriso irônico.

—Dá um pouco de medo quando tira o mau gênio.

Não era estranho, desde que tinha conhecido Christina, pensou Tor.

—Só um pouco? —perguntou arqueando uma sobrancelha.

Torquil sorriu.

—Meg não te conhece tanto como eu. Poderia pensar que em realidade queria me arrancar a cabeça ou outras partes às que se há aficionado especialmente.

—E teria razão. —Tor tinha recebido o relatório do Murdoch, seu capitão e escudeiro, mas preferia ouvir a explicação de boca de seu irmão antes de decidir sua sorte—. Dê-me uma boa razão pela qual não deveria te colocar entre grades neste mesmo instante e deixar que te apodreça em uma masmorra. Conhecia perfeitamente os problemas que estas bodas conduziria a todos e, entretanto, desafiou-me.

Tor deu um passo à frente, fechando os punhos e sentindo que o dominava a raiva. Seu irmão possivelmente achasse divertido, mas suas ações poderiam ter posto em perigo anos de esforços e obrigá-los a entrar em guerra.

—Como pudeste fazer esta loucura, ser tão irresponsável? Tem idéia das condições que tive que aceitar para impedir que Nicolson nos atacasse?

Torquil fez frente a seu arremesso sem alterar-se.

—Não me deixou escolha… Mas esperava que já tivesse entendido.

Tor franziu o cenho.

—Maldito seja o Hades! Do que está falando?

—Ouvi o que contam de suas bodas, e pensei que o entenderia. Tinha que estar com Meg. Essa mulher é minha. E não me importam as conseqüências.

As notícias voavam. Tor franziu os lábios em uma careta grave.

—Nenhuma mulher compensa o sacrifício de faltar o dever para com seu clã. O que ouviste é falso. Minhas bodas foi o preço que tive que pagar por seus atos.

Ante o olhar assombrado de seu irmão, Tor explicou com brevidade o que tinha acontecido no Finlaggan e os termos do endiabrado acordo que tinha selado com o MacDonald. Como tanaiste dele, ao menos de momento, Torquil tinha direito a conhecer o perigo que os espreitava, embora ele fora o máximo responsável.

Apesar da raiva que sentia Tor e da diferença de caráter, o vínculo que existia entre os dois irmãos sempre tinha sido forte. Torquil o conhecia melhor que ninguém, e às vezes melhor do que ao Tor teria gostado. Notava o olhar penetrante de seu irmão fixo nele, intenso, enquanto terminava de contar sua história.

Torquil sacudiu a cabeça com incredulidade.

—Enganou-te e, mesmo assim, casou-te com ela?

Tor não respondeu, sabia que suas palavras resultariam incompreensíveis.

—Está seguro de que não há outra razão?

—As bodas e acessar a treinar a guarda secreta de Bruce foram o preço que tive que pagar para que MacDonald nos ajudasse a nos tirar de cima Nicolson. —Tor esboçou um sorriso azedo—. Embora não estou seguro de que tenha valido a pena se com isso nos ganhamos a inimizade do MacDougall.

Tor contou a seu irmão a recente visita do xerife.

—Não sei se acreditou ou não a história de que me sinto enfeitiçado pela Christina, e o certo é que tampouco importa. Minhas bodas com uma Fraser bastou para que Eduardo e seu novo lacaio tenham começado a fazer perguntas.

—Mas você sabia que isso podia acontecer - assinalou Torquil.

Tor deu de ombros.

—Sim. Era uma possibilidade.

—E, entretanto te casaste com ela. —Torquil voltou a menear a cabeça, sacudindo do cabelo umas frias gotas de chuva—. Está seguro de que não existe outra razão? —insistiu.

Um retumbo de trovões se ouviu ao longe. Aquilo encaixava com a expressão de Tor.

—O que outra razão poderia existir?

—conheci à garota. É uma preciosidade. Não te dê vergonha admitir que a queria.

Tor examinou com frieza seu irmão sob a sombria e úmida neblina.

—Só porque tenha atuado como um idiota por uma mulher, não vás tomar a outros por idiotas.

Seu irmão o olhou com perspicácia.

—Sua esposa está apaixonada por ti.

Tor ficou imóvel; o coração lhe deu um estranho tombo.

—Do que está falando?

Torquil lhe explicou que Christina tinha entrado no grande salão quando ele estava abraçando a sua recém casada esposa.

—De entrada não a vi, mas quando reparei nela me encontrava o suficientemente perto para ver seu olhar de perplexidade. Estava destroçada. Exatamente como eu me sentiria se tivesse visto o que ela viu.

Tor perjurou, e passou uma mão pelo cabelo, que por então já tinha encharcado. Era capaz de imaginar o que ela teria pensado. Agora bem, aquilo do amor… Esperava que seu irmão estivesse equivocado. Porque isso somente causaria sofrimento a Christina.

—por que não lhe contaste que somos gêmeos? —perguntou Torquil. Entretanto, antes que Tor pudesse responder, deteve-o com um gesto da mão—. Esquece o que te perguntei. Você nunca conta nada a ninguém. Inclusive Florence teve que perguntar a mim qual era o dia de nosso santo.

Tor franziu o cenho; não sabia que a sua primeira mulher importassem essas coisas.

—Você não foste precisamente meu tema favorito de conversa. Coisa difícil de aceitar para ti, já sei.

Um sorriso petulante apareceu em rosto de seu irmão.

—Deus sabe que essa preciosa tua mulher deve estar cansada de seus rudes encantos. Possivelmente deveríamos fazer quando jovens…

Tor o agarrou pela garganta antes que pudesse terminar a frase tomando-o completamente por surpresa. Teria que dar as graças ao Boyd mais tarde por essa rapidez de movimentos.

—Toca-a e te mato - disse olhando a seu irmão nos olhos—. entendeste?

Torquil assentiu, e então Tor o soltou.

—Maldição, somente era uma brincadeira. —Massageando a nuca, Torquil olhou fixamente a seu irmão na escuridão. Seu olhar era de inteligência, e ao Tor recordou a do MacSorley—. grande reação para estar falando de uma esposa a que não quer, não te parece? Acredito que está louco por ela. E já era hora, se me perguntar isso. —Torquil percebeu a raiva de seu irmão—. Só espero que te dê conta antes que seja muito tarde. As mulheres necessitam um pouco de afeto e de ternura.

Seu endiabrado irmão tinha casado um par de meses, e se considerava um perito? Ignorava o que Torquil acreditava saber, mas o certo era que não sabia nada.

—Fecha essa bocarra, Torquil, ou dará com os ossos na masmorra antes do que imagina.

—Significa que me perdoa?

Tor deixou transcorrer uns instantes para que seu irmão esperasse, preocupado, sua resposta. Deveria castigá-lo, e o castigaria, mas agora o necessitava para algo mais importante. Sua intranqüilidade só aumentara desde a inesperada aparição do John MacDougall no Skye. Havia algo estranho em tudo isso, e não queria correr nenhum risco.

—Não, significa que pensarei no seu castigo. Primeiro te encomendarei uma missão.

Percebendo a importância do assunto, Torquil adotou um semblante sério e se concentrou nas palavras de Tor.

—Do que se trata?

—vou exilar lhe a ti e a sua esposa à ilha do Lewis, para que possa vigiar ao Malcolm e ao Murdoch até que me inteire de quem está atrás dos recentes ataques e termine de treinar aos homens. Se alguém descobrir no que estou comprometido, quero saber que meus filhos se encontram a salvo.

A expressão de Torquil se escureceu profundamente.

—Crie que alguém lhe faria mal?

—Não quero correr riscos.

—Quem?

Tor soltou uma gargalhada.

—Ganhei um montão de inimigos com os anos. Por não falar de nossos inimigos acérrimos, os MacRuairi.

—Filhos da grande cadela - espetou Torquil com expressão lúgubre. Seu irmão os odiava tanto como ele.

Tor desejou poder contar ao Torquil que tinha ao Lachlan MacRuairi sob suas ordens, mas tinha que manter as identidades dos homens em segredo.

—Por outro lado, temos que considerar também a seu sogro, e ao MacDougall.

—E se pensarem que você e eu não estamos envolvidos…

—Isso servirá para protege-los de meus inimigos - atravessou Tor terminando a frase—. Embora espere que não seja necessário - disse sorrindo a seu irmão com sarcasmo—. Temo-me que isso também significa que sua mulher terá uma falsa impressão sobre mim.

Torquil torceu o gesto.

—Darás uma de mau, verdade?

—Não parecerá estranho, dado que é o que te merece. Mas não pode contar a ninguém a verdade. —Torquil ia protestar, mas Tor lhe cortou em seco—. Não me arriscarei. Além disso, seria muito perigoso para sua mulher.

—ficará furiosa quando descobrir que a enganei.

—Vale mais que fique furiosa a que corra perigo. Considera uma ordem direta. —Algo que sabia que seu irmão não podia desobedecer—. Faz isto por mim e possivelmente tão somente te arrancarei as partes do corpo às que sua jovem esposa não há se aficionado especialmente.

Torquil riu, mas se sobrepôs imediatamente.

—Sinto muito, irmão. Sei que te causei problemas. Oxalá tivesse podido atuar de outra maneira. Dou-te minha palavra de que farei tudo o que possa para lhe compensar - No subestimes a John de Lorne..

Tor assentiu.

—Sim, sei. Mas não só tem que ajustar as contas comigo. MacDougall quer cobrar pela promessa de compromisso que quebrou. A metade do dote da garota.

Torquil soltou um taco.

—Ao MacDougall que lhe dêem…

—Não subestime ao John do Lorne. É um filho de cadela, mas muito ardiloso. Minhas bodas lhe deu toda a munição que necessita para tentar me dobrar.

—O que fará?

Tor sacudiu a cabeça.

—Espero que aconteça algo antes de janeiro que me impeça de ter que decidir formalmente. Esta guerra pertence a Escócia, não a nós.

Tinha trabalhado toda sua vida para que seu clã tivesse uma posição destacada e fosse próspero; escolher mal nessa guerra poderia voltar a afundá-los na escuridão e lhes fazer perder tudo o que tinham conseguido. Entretanto, sabia que os ventos de rebelião sopravam com renovada força. A guerra era algo iminente, inclusive para as ilhas Ocidentais, e Tor sentia que esticavam uma soga ao redor de seu pescoço.

Seu irmão compreendeu a situação.

—Ao inferno com Eduardo da Inglaterra e com Robert de Bruce. O que sabem das ilhas Ocidentais?

—O bastante para ter compreendido que nos necessitam para ganhar - respondeu Tor claudicando—, e isso é mais do que já sabiam.

A chuva começou a aumentar.

—Vamos. Quero conhecer a mulher que nos causou tantos problemas, embora duvide que ela se alegre de me conhecer quando ouvir o que vou dizer.

Acertou. A recém casada tinha caráter; isso concedia. Essa menina rebelde tinha todo o aspecto de querer lhe arrancar os testículos com a colher que fazia oscilar ante ele. Tor, por causa da tormenta, permitiu-lhe ficar no castelo até a manhã seguinte. Em outras circunstâncias teria recebido a Meg Nicolson com os braços abertos, por ser a mulher de Torquil, embora somente fosse por dar o gosto de ver seu feroz irmão dobrado por uma mulher. Desgraçado…

Tor saiu do grande salão pela porta que dava ao corredor sabendo de que não podia procrastinar mais. Tinha que ver sua esposa.

As palavras de seu irmão o tinham incomodado mais do que teria gostado de admitir. Christina o amava? Egoisticamente, por uns instantes experimentou uma satisfação primitiva. De entrada, queria seu amor…, sua devoção. Queria-a para ele.

Entretanto, também sabia que lhe faria mal ao ser incapaz de dar o que ela desejava. Tor não era como seu irmão.

O dever. O clã. A guerra. Tudo isso vinha em primeiro lugar. Agora bem, era inegável o que Torquil lhe tinha feito notar: estava louco pela Christina, e isso não o havia sentido nunca por uma mulher. Queria agradá-la. Fazê-la feliz.

Ao aproximar-se do dormitório dela, Tor observou que uma fresta de luz aparecia sob a porta que dava ao seu quarto. Franziu o cenho perguntando-se quem estaria de pé essas horas trabalhando em suas dependências particulares. O irmão John? Esse homem sempre parecia andar brincando de correr de um lado a outro. Tor sabia que era absurdo, mas começava a sentir bastante antipatia pelo novo escrivão. O dia em que Rhuairi advertiu um engano nas contas, Tor pediu que vigiasse ao tímido clérigo, quase esperando encontrar uma razão para livrar-se dele. Entretanto, o senescal não encontrou nada mais, e Tor, que esteve emprestando mais atenção às traduções de sua correspondência que às contas, tampouco. Não obstante, para ser um clérigo, o maldito amanuense passava muito tempo com sua esposa.

Abriu a porta e lhe surpreendeu não encontrar ao irmão John, a não ser a sua mulher.

Christina se sobressaltou com o ruído e ao vê-lo ficou em pé. A brutalidade de seu gesto fez que se pulverizassem pelo chão vários papéis que devia ter tido em cima do regaço.

—Retornaste!

A clara alegria que notou na voz dela contrastou com a culpa que o retorcia. Uma culpa que não tinha por que sentir. Estava cumprindo com seu dever. Atendendo suas responsabilidades. Não podia estar sempre ao seu dispor e vê-la em todo momento. Entretanto, em realidade tinha sentido falta dela. Todos e cada um dos minutos que esteve separado dela. Christina o estava abrandando, estava o pondo fraco, e isso não podia permitir.

Examinou a mesa a que estava sentada e advertiu a presença de tinta, uma pluma solta a toda pressa, os livros de contabilidade abertos, os documentos empilhados, as manchas negras de suas mãos… e inclusive uma que destacava em sua bochecha.

—O que está fazendo aqui?

Tor compreendeu o significado de todo aquilo, mas não encontrava sentido. Cravou seu olhar nela e viu que o rubor aparecia em suas bochechas.

Christina mordeu o lábio, colocando o escuro cabelo atrás de sua rosácea e bem desenhada orelha.

—Queria te surpreender.

Tudo parecia encaixar com exatidão. Tor a olhou de novo. Com maior atenção. Surpreso ante o que via… ou não tinha sido capaz de ver.

—Sabe ler e escrever.

Christina assentiu e deu uns passos para ele, com a excitação plasmada em seu delicado rosto.

—Ainda não terminei; desejava que fosse perfeito. Sei que estiveste muito ocupado e queria encontrar a maneira de ajudar, por isso estive pondo em ordem as contas. Estavam embaralhadas. —Christina falou gesticulando e esboçou um franco sorriso—. Surpresa!

Tor não soube como reagir. Dizer que estava aniquilado era pouco. Era pouco freqüente que os homens das Highlands dominassem essa disciplina, por não falar das mulheres. Repassar as contas não era uma tarefa fácil. Era essa a razão de que Rhuairi tivesse encontrado enganos? Tor franziu o cenho.

—Por que mantiveste isto em segredo e não me há isso dito?

Christina mudou de expressão; era óbvio que a reação de seu marido não tinha sido a esperada. Agora bem, acaso podia esperar o contrário? Tor tinha entrado em seus aposentos para descobrir não só que esteve ocultando um grande secreto, mas sim se tinha metido totalmente em seus assuntos particulares. Só Deus sabia quanto haveria essa mulher embaralhado as coisas.

—Queria te dar uma surpresa. Demonstrar-te que posso ajudar.

Conhecendo sua sensibilidade, Tor franziu os lábios para tentar controlar seu mau gênio.

—Isto não é um jogo, Christina - disse com paciência—. Está interferindo em uns assuntos do clã da máxima importância. Assuntos sobre os que te adverti que te mantivesse a margem.

—Só tentava ajudar. Vi um engano nos livros, e depois da recente visita do MacDougall, soube que tinha que fazer algo.

—Tenho escrivães que me levam os livros. Este não é seu lugar. —Tor tentou falar com doçura—. É minha esposa. E se encontrar algum engano, sua obrigação é me comunicar isso. Tor passeou o olhar por um dos livros de contabilidade, percorrendo com os olhos as colunas perfeitamente alinhadas.

Christina se endireitou com olhar desafiante.

—Não encontrará nenhum engano.

Tor se voltou para olhá-la.

—Tão segura está de ti mesma?

—Muito.

Sustentaram-se no olhar. De repente, um pensamento cruzou pela mente de Tor. Não, ela não teria ousado… teria se atrevido…?

—Que mais estiveste lendo? —perguntou agarrando-a pelo braço—. Estivestes lendo minha correspondência, minha correspondência privada?

Christina afastou os olhos dele, mas a escura mancha de sua bochecha destacou com a intensidade do rubor.

Tor perjurou, esquecendo que estava fazendo um grande esforço por controlar seu mau gênio. Repassou mentalmente as últimas semanas. Somente tinha recebido duas cartas secretas de MacDonald, que tinha guardado em seu sporran e logo tinha queimado. Pensou que tinha sido cuidadoso, embora naqueles momentos não suspeitasse que sua esposa soubesse ler.

O medo se apoderou dele. Quando pensava no perigo que Christina podia correr se de maneira fortuita via algo que não devia…

Como poderia protegê-la se ela não deixava de colocar os narizes em assuntos que não lhe concerniam? Sua mulher tinha cruzado a linha.

—Maldita seja, Christina, dissete que te mantivesse à margem.

*

Desconsolada, Christina sentiu a coceira das lágrimas nos olhos. Aquilo não estava indo como tinha planejado. Tor tinha que estar agradecido, possivelmente mostrar-se impressionado e orgulhoso dela, mas não furioso.

Como seu pai.

Tor não era como seu pai. Era um homem justo. Tor se mostraria agradecido se lhe emprestasse sua ajuda, sem importar sua procedência. Ou não?

«Não te preciso» era o que, a efeitos práticos, havia dito.

Seu rosto perfeitamente cinzelado era tão duro e inexpugnável como o granito.

—Não entendo que te tenhas zangado tanto —disse Christina—. Pensei que assim te agradaria.

Umas linhas brancas sulcaram as comissuras de seus lábios.

—Pensou que me agradaria saber que estiveste lendo minha correspondência privada?

Christina amaldiçoou sua pigmentação clara e a incapacidade de controlar o rubor que lhe acalorava as bochechas. Não havia desculpa alguma. Agora bem, acaso Tor não se dava conta de que ela so queria formar parte de sua vida?

—Só queria saber mais coisas de ti. Saber o que faz durante todo o dia. Por que está sempre tão ocupado. Por que te parte continuamente. —Levantou os olhos para ele e advertiu o duro gesto de sua mandíbula. Não tinha feito o comentário adequado… E isso lhe recordou o que tinha visto na broch. Entretanto, a culpa não era so dela—. Se de vez em quando me contasse algo, não me veria obrigada a recorrer a outros meios para me inteirar.

—Pelos pregos de Cristo! Isto não é um jogo de meninos, é perigoso. Se atuo assim, é para te proteger.

Os olhos de Christina jogavam brasas pela raiva e a humilhação.

—Então deixa de me tratar como a uma menina e me conte o que está passando. —Christina o agarrou pelo braço e o olhou com ar suplicante. Estavam muito perto. O bastante para tocá-lo. Para acariciar sua áspera bochecha e sentir o forte tic de sua mandíbula sob o polegar—. Diga-me do que está tentando me proteger.

Ficaram olhando à luz das velas, ela estendendo a mão, ele retirando-se. Uma dança que pareciam condenados a repetir uma e outra vez.

Salvo que nessa ocasião Tor titubeou. Durante um momento Christina pensou que contaria. Viu-o em seus olhos.

Mas sua força de vontade era férrea, e Tor se soltou dela com cuidado. Christina notou a tensão que irradiava dele na dura contração de seus ombros, a resistência a deixar-se levar pela natural atração que sentiam seus corpos e a rigidez com que se mantinha afastado dela.

—Fica à margem, Christina. À margem dos livros, das cartas. Basta de me seguir, basta de perguntas.

Christina quis chorar de raiva.

—por que tem que te comportar assim?

Tor pareceu confundido.

—Como me comporto?

—Com evasivas. Com obstinação. Nunca me contas nada. Por que não pode confiar em mim? Tanto dano te faria compartilhar seus pensamentos comigo?

Tor endureceu seu olhar.

—Não, mas isso poderia fazer mal a outros.

A acusação a feriu.

—Eu nunca faria nada que pudesse te trair. Esperava que a estas alturas já saberia que podes confiar em mim.

—Não é assim como funcionam as coisas, Christina. Isto é a vida real, não uma história de cavalarias. De verdade acredita que em tão só dois meses teria que lhe confiar isso tudo, mesmo que haja coisas que põem em perigo as vidas de outras pessoas, simplesmente porque é minha esposa? Embora quisesse, meu dever como chefe é me reservar a opinião.

Tor lhe fez sentir-se ridícula, ingênua. Entretanto, não tudo formava parte de seu dever.

—Está seguro de que não se trata so de uma desculpa? É impossível que no clã tudo seja questão de vida ou morte. —Christina se apoiou nele pressionando-se contra seu peito. Sentiu sua fragrância escura e masculina. Recordou o sabor rico e especial de sua pele, a sedosa e cálida pressão de sua boca. O roce intenso e erótico de sua língua—. Que dano pode fazer…?

—Basta - espetou Tor com aspereza largando dela—. É minha mulher. E me obedecerá nisto. Não tenho que te explicar meus motivos. E tampouco me obrigará a fazer sua vontade usando seu corpo. —escureceu o olhar—. Por muito atraente que sejas.

Christina deu um coice como se a escaldasse.

Estava ela fazendo isso? Tapou a boca envergonhada. O fazia, embora sem ser consciente disso.

—Não me tinha dado conta…

Tor pareceu acreditar e suspirou profundamente.

—vim a te dizer que preciso partir.

Christina afogou um grito.

—Partir? Mas se acabar de chegar…

—Retornarei antes da festa do Yule.

Caiu-lhe a alma aos pés.

—Mas isso é dentro de duas semanas… —agora pareciam eternas—. Aonde…? —conteve-se, e ficou olhando seus infranqueáveis olhos. «Dá igual», pensou sabendo que tampouco o diria—. Mas seu irmão acaba de chegar. Não posso acreditar que não me dissesse que são gêmeos.

—Pensei que não era importante - replicou Tor, endurecendo a expressão de seus lábios—. Além disso, Torquil parte amanhã.

Christina abriu uns olhos como pratos.

—por quê?

Tor a olhou com dureza, com olhos inescrutáveis.

—Enviei-o longe.

—Para que?

Estava claro que não desejava lhe dar explicações.

—Por ter raptado a sua mulher e nos deixar a ponto de provocar uma guerra.

—Mas estão apaixonados. Qualquer pode ver. Se tivesse conhecido a Meg…

—Conhecia. Os sentimentos que alberguem não mudam as coisas.

—Não mudam as coisas? —O que acontecia com esse homem? Tratava-se de seu irmão. De seu irmão gêmeo. Como podia não lhe importar sua felicidade?—. Como pode ser tão frio e desumano?

«É frio.»

Não. Christina se negava a acreditar que o que havia sentido com antecedência fossem imaginações. Tor podia parecer um senhor da guerra duro e implacável por fora, mas em seu interior havia muito mais. Era capaz de amar; somente terei que lhe ensinar a abrir o coração.

Sua acusação sortiu efeito. A mandíbula de Tor se contraiu e o tic lhe disparou com força.

—Porque tenho que ser. Centenas de pessoas contam com que eu as proteja, com que tome decisões pelo bem do clã. O que fez meu irmão podia desencadear uma guerra que teria conduzido a morte de dúzias de habitantes de meu povo. Se isso é ser frio, que assim seja.

Christina se retorceu as mãos, sentindo-se fatal. Nunca o tinha considerado dessa maneira. Não era assim como tinham que ir as coisas. A surpresa que queria lhe dar tinha tomado um lado negativo.

—Sinto muito, de verdade. Somente tentava ajudar. Prometo que não voltarei a interferir. Mas não vá assim. —Lhe escapou uma lágrima—. Não pode ficar só esta noite?

A intensidade de seu olhar a deixou perplexa. Tor estava travando uma batalha, embora ela desconhecesse sua natureza.

—Não posso - disse ele com brutalidade.

Sem nenhuma explicação. Sem ternura. Nada. Christina lhe dirigiu um longo olhar interrogativo procurando algum signo de debilidade. Foi inútil. Desviou o olhar ao chão, sentindo-se muito desgraçada.

—Bem. Até que retorne então.

«Que Deus te proteja.»

Tor se dirigiu à porta, e de repente se voltou soltando um juramento como somente tinha ouvido dele uma só vez. Antes de dar-se conta do que estava acontecendo, viu-se envolta em seus braços, pressionada contra o escudo de aço de seu peito, e com sua boca na sua, lhe exigindo um beijo. Um beijo que fez que lhe desbocasse o coração e sentisse mariposas no estômago. Um beijo que a deixou sem fôlego.

Um beijo que terminou muito cedo.

Com um rugido que mais parecia um grunhido, Tor se separou dela. Seus olhos se encontraram, e por um momento Christina captou o brilho da

ternura que com tanto desespero tinha querido ver. E sem mais palavras, Tor se foi.


Capítulo 19

—Vêem algo? —perguntou Tor ao Lamont, embora com a tez curtida pelos elementos, as mechas de cabelo gelados e as grossas peles que lhe protegiam a cabeça e os ombros podia confundir-se com qualquer dos homens.

Lamont, ou o Caçador, como o tinha apelidado MacSorley por sua perícia seguindo rastros, sacudiu a cabeça e entreabriu os olhos para ver bem através da espessa névoa que se levantou o final do dia.

—Não, capitão, nada.

Tor perjurou; a impaciência começava a apoderar-se dele. Estava desejando que terminasse esse exercício de práticas. Não se tratava tão somente do cansaço ou das brutais condições do entorno: não podia livrar-se da intranqüilidade com que havia partido do Dunvegan.

—Sigam olhando, não desapareceu. Estará por aí.

Lachlan MacRuairi era um bastardo escorregadio, e estava demonstrando sua habilidade para entrar e sair sem ser visto. Era o único ao que ainda ninguém tinha encontrado. Até enfrentado à capacidade de rastrear do Lamont, levava quatro dias evitando a captura, quase um mais que MacKay, o único homem que tinha conseguido se esconder duas noites na gelada e inclemente sombra das Black Cuillins. As Black Cuillins, que deviam o nome às escuras rochas ígneas que constituíam seus picos, eram a cordilheira montanhosa mais alta do Skye e a considerava uma das mais imponentes de toda Escócia.

No inverno podiam ser mortais.

No inferno não ardia tudo em chamas, pensou Tor; fazia frio, e muita umidade. Um frio que paralisava as articulações inclusive na luz do dia. Mas as noites… Tor tremeu ao recordar: as noites eram pura agonia. O ar gélido penetrava entre suas volumosas peles e lhe cravava como agulhas de gelo.

Tor sabia que era muito possível que MacRuairi estivesse congelado e sepultado sob um metro de neve recente. A noite anterior tinham tido uma tormenta: uma neve espessa e consistente tinha caído em rajadas, como uma incessante cortina branca, deixando o cerco que havia ao pé da montanha coberto por mais de trinta centímetros de neve e formando umas geleiras de traidora profundidade em alguns setores. No alto da montanha a neve minguava, devido às estreitas cristas e às vertentes rochosas dos topos, e era substituída pelo gelo.

Aquele exercício de treinamento estava desenhado com dois propósitos. As montanhas e o mau tempo eram dois fatores a ter em conta porque os homens enfrentariam a eles durante os dias próximos. Se queriam aplicar com êxito suas táticas piratas em terra firme, precisavam ser capazes de aclimatar-se para sobreviver em quaisquer condição. Tor sabia além que nada unia tanto a um grupo como compartilhar penalidades.

Que a maioria dos homens tivesse resistido bem durante dois dias nesse entorno hostil era incomum. A provocação se desenhara para que fora virtualmente impossível de superar: esconder-se em algum ponto entre os três lagos situados entre o Sgurr e Lagain, «o pico do pequeno terreno baixo», o topo mais alto da cordilheira, durante sete noites sem ser descoberto. E era uma façanha considerável, porque o terreno nu e rochoso mal oferecia rincões onde manter-se coberto ou proteger-se. A maioria dos homens que Tor tinha conduzido a esse lugar tinham resistido tão somente umas horas, uma noite no máximo. Tor conhecia todas as covas, e inclusive no caso de que alguém pudesse arrumar-se reunindo suficiente turva ou madeira para acender um fogo, isso lhe prejudicaria porque seria facilmente visto.

Tinha dado aos homens da guarda uma hora de vantagem e logo os tinha ido caçando um a um. Os homens localizados passavam a incorporar-se ao grupo de caçadores até que, como então, somente ficava um.

Tor contemplou aos temíveis guerreiros que o rodeavam, convertidos agora em um grupo asqueroso e de aspecto lamentável.

—Abertos em leque - ordenou que—. Subiremos à cúpula desde todas as direções e desse modo o obrigaremos a sair.

Se MacRuairi estava vivo, encontrariam-no.

E o estava. Em algum lugar, vigiando-os. Sentia-o. Era como se ambos estivessem travando uma batalha particular de estratégias: a do caçador e a presa. Chefe contra chefe. Líder contra discípulo ressentido. Em outra situação teria desfrutado do desafio, mas nesse momento queria acabar com aquilo de uma vez por todas.

Dispôs à maioria de seus homens em vários grupos distanciados aproximadamente entre si ao pé da montanha. Campbell, MacKay, Lamont e ele subiriam pela crista principal do topo entre todas as vertentes possíveis.

Iniciaram a ascensão pisando metodicamente o caminho para o alto da montanha. Tor tinha empreendido a rota mais difícil, a que arrancava do sudeste e exigia escalar por um pronunciado e escarpado ravina.

Pouco depois se deteve para recuperar o fôlego sobre uma estreita e pedregosa crista no alto da ladeira. Com a mão em modo de escudo, Tor escrutinou os picos ocultos entre a névoa em busca de algum sinal de movimento ou incongruência na paisagem.

Nada. Tanta quietude parecia fantasmagórica. Quão único pôde ver através da névoa foram retalhos de rochas negras engalanadas com finas faixas brancas. Depois de um gole energizante de uisge-beatha, reatou a extenuante ascensão da montanha. Movendo-se com a graça ligeira e o passo seguro de um puma, hábil e rápido, escalou o terreno traidor com uma facilidade ganha com um árduo treinamento.

Estar em boa forma física, entretanto, não lhe impedia de ser imune às forças da natureza. Mal sentia as pontas dos dedos sob as grossas luvas de couro, ou os dedos dos pés nas botas envoltos com peles de animais. Tinha a pele dos lábios e as bochechas que o elmo não cobria avermelhada pelo frio, a mandíbula sem barbear acusava o peso do gelo e os músculos lhe doíam pelo desgaste que tinha quatro dias subindo e descendo pelas montanhas em busca de um fantasma.

Se fosse qualquer outro, Tor teria posto fim à provocação. Mas se havia um homem que pudesse sobreviver nessas condições era o bastardo do MacRuairi, um homem de sangue-frio; somente o diabo sabia cuidar tão bem de si mesmo.

Não obstante, e com toda a reticência do mundo, Tor teve que admitir que seu inimigo, convertido temporalmente em seu irmão de armas, tinha-o impressionado durante essas últimas semanas. Lachlan MacRuairi era um guerreiro preparado e temerário que assumia todos os obstáculos que Tor punha em seu caminho, e eram muitos, com uma determinação e uma coragem incomparaveis. MacRuairi encarnava o único lema que Tor respeitava: Não abandone nunca, não te renda jamais.

Agora bem, embora parecesse um guerreiro perfeitamente preparado e predisposto, Tor não confiava nele. MacRuairi era como uma serpente adormecida que aguardava para atacar. Tinha a alma de um mercenário, e a única lealdade que observava era para consigo mesmo. Nunca poderia integrar-se plenamente em uma equipe. Por que tinha aceitado a lutar pelos Bruce? Por dinheiro, por vingança, por um desejo de morte ou seguindo um arrevesado plano que lhe permitisse sair de tudo aquilo em louvor de multidões?

Tor adivinhava os propósitos da maioria de seus homens, mas MacRuairi era um buraco negro impossível de penetrar. Possivelmente isso era o que lhe preocupava. Era difícil compreender a um inimigo…, irmão, retificou, quando não se sabia quais eram os motivos que o impulsionavam.

Onde diabos estava?

A inédita impaciência de Tor não só se devia ao frio ou à ânsia de ganhar no MacRuairi, mas também ao desejo de terminar o trabalho que se propusera para poder retornar a Dunvegan. Não ao castelo, a não ser com sua mulher.

Maldição, sentia falta dela. Seu rosto lhe aparecia por todo lado. Inclusive no alto dos rochosos topos da poderosa Cuillin, Christina o espreitava. Possivelmente fora devido à absoluta desolação do entorno, ao agreste e amargo isolamento, que lhe trazia sua lembrança. Christina era uma presença cálida e liviana para um homem que levava muito tempo vivendo em terra erma. Já começava a parecer-se com um desses personagens das histórias de cavalaria que a ela tanto gostava.

Ao chegar ao alto da estreita crista que havia justo debaixo da cúpula, Tor voltou a escrutinar a montanha a tênue luz do dia e viu em frente ao Campbell, quem tinha subido por uma rota teoricamente mais fácil, um monte de rochas alisadas pela erosão. Tor fez sinais com a mão para comprovar a outra vertente do pico antes de seguir adiante e para assegurar-se de que não deixava nem um claro por cobrir.

Não gostava de passar outra noite na montanha, mas o tempo lhe jogava em cima. Logo escureceria.

Christina estaria sentada junto à chaminé com seu trabalho…

Aquilo tinha que terminar. Não podia concentrar-se. Seus pensamentos voavam para sua mulher. Christina o tinha posto na incerteza. Não podia deixar de reviver mentalmente a cena que se desenrolara entre os dois em seus aposentos antes de sua partida. A excitação de Christina. O assombro inicial dele ao inteirar-se de que sua mulher tinha estudo, e logo sua cólera, desatada pelo medo, ao deduzir que ela tinha lido sua correspondência privada. Tor não podia tirar do pensamento a lembrança de sua expressão abatida e de seus doídos olhos, alagados de lágrimas.

Por alguma razão as contas eram importantes para ela, e sua reação a tinha decepcionado muitíssimo. O medo era o que tinha provocado nele sua atitude arruda. Deu-se conta nesse momento. Por muito equivocadas que fossem suas intenções, Christina só pretendia ajudá-lo. Estava ansiosa por surpreendê-lo, e o único que a ele tinha ocorrido era que a iniciativa de ajudá-lo poderia pô-la em perigo.

Pior ainda, esteve quase a ponto de lhe contar suas razões. E se tivesse ficado, o teria feito com toda segurança. Contenção. Resistência. Ambas as qualidades pareciam lhe abandonar quando entrava em cena sua encantadora esposa. Seu desesperado beijo de despedida o tinha demonstrado.

Louco por ela? Completamente louco. Levava a essa mulher no sangue, nos ossos, e não sabia o que fazer. Se não se andasse com cuidado, terminaria convertendo-se em um estúpido como seu irmão, que atuava em função das emoções em lugar de sopesar o que era melhor para o clã. Que tipo de líder seria se dançava ao som dos caprichos de uma mulher?

Quase tinha escurecido quando começou a descer. Ao não estar concentrado como devia, deu um mau passo e escorregou lançando uma placa de gelo ladeira abaixo que, na pronunciada costa, desencadeou uma pequena avalanche de rochas e neve. Recuperou o equilíbrio sem problemas, mas se reprovou o lapso. Mais valia concentrar-se no que estava fazendo se não quisesse terminar morto.

E então o viu.

Aos pés da pronunciado ravina, a uns cento e cinqüenta metros de altura, sepultado quase por completo sob a neve, havia a carcaça de um cervo. Situada não no cerco como deveria, se o animal tivesse morrido despencado, a não ser em uma estreita crista.

Isso era obra do MacRuairi. A pequena avalanche tinha posto ao descoberto seu esconderijo.

Tor sentiu que lhe bulia o sangue com o instinto do caçador que acaba de avistar sua presa. Com renovadas energias, começou a deslizar-se costa abaixo. Havia suficiente luz para orientar-se.

Ao aproximar-se de uma estreita saliencia rochosa, diminui a marcha e apoiou os pés com cuidado, centrando todos seus sentidos no terreno.

Tinha avançado uns passos quando aconteceu a catástrofe.

O chão a cedeu sob seus pés. Tor escorregou. Deu com o corpo contra uma rocha, de cara, e começou a deslizar-se pela saliencia. Lutou por agarrar-se a algo, mas a neve e a rocha caíam com ele precipitando-o abruptamente para a borda da ravina.

Ia muito depressa. O vento era ensurdecedor. Tentou agarrar-se onde fosse com ambas as mãos e medindo com os pés. A velocidade ia lançá-lo de costas ao ar quando seu corpo impactou contra uma rocha recortada que reduziu sua marcha, então Tor conseguiu colocar os dedos em uma greta que achou na vertente rochosa.

Mediu com os pés o muro de rocha, mas não encontrou nenhum ponto de apoio. Com o coração desbocado, tentou impulsionar-se para cima, mas foi inútil. A lisa parede de rocha e gelo não teve piedade dele.

Tor pendurava sobre o vazio agarrando-se com as mãos, com o corpo maltratado pela queda e provido com as pesadas armas que tinha atadas à costas. Não se atrevia a soltar uma mão para tirar-lhe ou alcançar a corda que levava em um lado, porque se se movesse, era homem morto.

E a menos que acontecesse um milagre, assim terminaria provavelmente ao cabo de uns minutos.

Escorregavam-lhe os dedos. As luvas de couro que levava eram tão escorregadias como a pele de uma enguia e não ofereciam resistência.

Movendo-se o menos possível, voltou a cabeça na direção em que tinha visto Campbell por última vez. Gritou na escuridão, mas tão somente ouviu o sufocado eco de sua própria voz reverberando em seus ouvidos.

Diabos. Sempre tinha pensado que morreria no campo de batalha, não despencando-se por uma ravina.

Ardiam-lhe os braços, e o peso de seu corpo o puxava para baixo. Apertou os dentes, lutando por sustentar-se. Não temia à morte, mas tampouco estava disposto a morrer.

De repente notou que algo lhe golpeava na mão. Ao princípio pensou que se tratava de uma rocha, mas então se deu conta de que era uma corda.

Uma voz imaterial gritou de acima:

—Agarrem, subirei-te.

MacRuairi. Se a situação não fosse tão extrema, teria se rido. Lachlan MacRuairi estaria mais disposto a enviá-lo ao inferno que a salvá-lo.

—Como sei que não soltaras a corda quando a agarrar?

Durante um momento só se ouviu o silêncio.

—Não sabes. Mas de onde estou não me parece que tenhas outra escolha.

Tor perjurou. MacRuairi tinha razão. Ia contra seu instinto, contra todo seu ser, mas tinha que confiar nessa víbora de sombrias intenções.

—Estás preparado? —gritou Tor.

—Sim.

Tomando uma baforada de ar, Tor soltou uma mão e se agarrou à corda.

Sustentou-o.

Temendo ainda debater-se no ar, soltou a outra mão e se agarrou à corda com os dedos. A operação levou um quarto de hora, mas lentamente e com muitíssimo esforço Tor foi içado pelo ravina. A uns metros da crista, MacRuairi atou a corda à rocha que tinha usado para içá-lo e lhe estendeu a mão.

Seus olhos se encontraram na escuridão. Sem titubear, Tor soltou a corda de salvamento e com a mão direita agarrou o braço e o antebraço do MacRuairi. Uns segundos depois seus pés descansavam sobre terra firme.

Tor se dobrou para frente tentando recuperar o fôlego e deixando que o sangue voltasse para circular por seus braços. A cabeça dava voltas em todas as direções. Endireitou-se e seu olhar se encontrou com o de seu salvador. Malvado. Implacável. Animado pelos princípios morais com que se regeria uma serpente. Mais predisposto a lhe fatiar o pescoço que a lhe salvar a pele. Enfrentaram-se em muitas batalhas para que Tor duvidasse de que MacRuairi não desejava sua morte.

—por quê? —perguntou.

MacRuairi deu de ombros como se a resposta carecesse de importância.

—Agora já não lhe devo nada.

Por lhe haver perdoado a vida no Finlaggan. Tor assentiu, embora soubesse que as coisas não seriam tão singelas. A razão de que Lachlan MacRuairi se encontrasse ali poderia ser mais complexa do que supunha. MacRuairi em pessoa podia ser mais complexo do que supunha. Tinha os nervos crispados. Levava tanto momento vendo tudo negro que espionar um retalho de cinza foi uma emoção.

Entretanto, uma coisa sim sabia com segurança: Tor devia a vida ao Lachlan MacRuairi.

*

Ao ser os dias tão curtos (o sol nessa época não se levantava até quase as nove para se por pouco menos que sete horas depois), o tempo deveria ter transcorrido com rapidez, mas as horas pareciam um canto fúnebre: lentas, monótonas e cadenciosas.

Nem sequer tinha passado uma semana, e, entretanto parecia que fazia um mês que Tor tinha partido. Apesar de que esteve fora em outras ocasiões, essa era a vez que Christina levava mais tempo sem vê-lo, e a paciência, como virtude, estava esquiva.

Tinha sido uma parva. Estar casada com um cavalheiro não consistia em encher os dias com excitantes torneios, contemplá-lo nas justas com seu véu pendurando da manga e passar longas noites abraçados diante da chaminé enquanto ele compunha um poema sobre seu amor por ela. Consistia em agüentar meses, possivelmente inclusive anos, de guerra e solidão.

Não havia nada romântico no fato de ficar sozinha, inquieta e preocupada. Correria perigo? Tor tinha negado a dizer seu paradeiro, e Christina ignorava se se encontraria a salvo. Entretanto, ao ter deixado todo seu corpo de guarda no castelo, suspeitava que não tivesse ido combater e que em lugar disso estaria em algum lugar com os homens aos que o tinha visto treinar.

Quais eram?

Não cedeu à curiosidade e afastou essa idéia de seu pensamento recordando perfeitamente sua advertência. Não tinha por que preocupar-se. Não era problema dela. Não era seu lugar.

Por conseguinte, Christina atendia seus deveres como a senhora do castelo e ajudava ao irmão John quando Rhuairi não andava perto, procurando não ler nenhum dos documentos que desfilavam ante seus olhos. Agora bem, até contando com os preparativos da festa do Yule, era curioso que tivesse tão poucas coisas que fazer atrás dessas muralhas do castelo que bem pareciam masmorras. O barmkin pelo que passeava pela manhã tinha começado a lhe parecer uma jaula.

E agora nem sequer tinha os livros de contabilidade para manter-se ocupada. Esteve tão segura de que funcionaria, de que organizar suas contas seria a maneira de demonstrar que podia formar parte de sua vida… Possivelmente essa certeza fora o que a tinha decepcionado mais.

Admiração… respeito… orgulho? Dificilmente. As tentativas de o impressionar com suas habilidades tinham fracassado tão estrepitosamente como com seu pai.

Enfurecia-lhe o modo em que Tor tinha reagido, ao princípio com ar protetor e logo com um ataque de raiva. Possivelmente ela se excedera lendo as cartas, mas o que queria que fizesse? Do que outra maneira podia chegar a ele? Tinha-lhe mostrado tudo o que tinha que lhe oferecer… mas não tinha sido suficiente.

Ali não havia um lugar para ela. Nem na vida de seu marido nem em seu coração. Se seria assim a partir de então, não seria capaz de suportar.

Durante um tempo acariciou a idéia de partir. Entretanto seguia albergando esperanças. Fazia depender sua felicidade de um beijo, ao que se aferrava pela breve fresta de ternura que tinha visto nele, a primeira greta em sua pétrea fachada.

Era parva por dar tanta importância a um beijo?

Christina atou a capa ao pescoço, fechou a porta atrás dela e se enfiou no corredor até tropeçar virtualmente com o irmão John, que saía dos aposentos particulares de Tor.

O clérigo se sobressaltou e demorou uns instantes em recuperar-se. Ao ver que Christina levava a capa, perguntou:

—Aonde vai esta manhã, milady?

—Tinha pensado ir ao povoado. O filho mais novo do curtidor está doente e a cozinheira preparou um caldo de frango que levarei. —Ao ver que ele também se vestira para resistir as inclemências do tempo, perguntou por sua vez—: E você?

—Ao povoado também - respondeu o irmão John franzindo o cenho—. Estais segura de que é prudente sair do castelo, minha senhora? Dizem que a febre se contagia. Possivelmente seria melhor que esperasses que retornasse o chefe; tem que voltar um dia destes.

O amalucado coração de Christina deu um tombo.

—Têm notícias dele?

O escrivão sacudiu a cabeça.

—Não, mas tenho entendido que o senhor estaria fora tão somente uns dias…

—Uns dias não - esclareceu ela com ar taciturno—, duas semanas.

O irmão John a olhou surpreso.

—Ah, compreendo. Possivelmente interpretei mal ao senescal.

Christina não se surpreendeu; ultimamente Rhuairi se mostrara muito pouco comunicativo. Tinha-a estado vigiando com um olhar estranho. Tor não a tinha proibido ajudar ao irmão John, mas Christina caiu na conta de que seu marido não tinha falado com o escrivão, e se perguntava se este estaria informado do que ela tinha feito. O irmão John a contemplava com atenção.

—Não acredito que o chefe goste que te ponhas em perigo.

Christina torceu o gesto. Que tentasse protestar «o chefe»! Assistir aos habitantes do povoado era seu dever como senhora do castelo. E Tor tinha deixado muito claro qual era seu lugar.

—Valorizo seu interesse, mas o risco é insignificante. A febre parece leve. —Christina dedicou um sorriso cúmplice—. Além disso, se ficar um dia mais encerrada atrás destes muros, acredito que ficarei louca.

O irmão John devolveu o sorriso.

—Entendo perfeitamente. Importaria se te acompanho? Se aguardares um momento, irei procurar uma coisa que esqueci nos aposentos do senhor.

—eu adorarei contar com sua companhia. Reunimo-nos na porta de entrada? Tenho que ir recolher a panela com o caldo que preparou a cozinheira.

Christina se alegrou de poder contar com sua companhia. A princípio o irmão John lhe pareceu curiosamente angustiado, mas quando este retornou, a angústia tinha desaparecido de seu rosto. O amanuense passou todo o dia com ela visitando não só ao filho do curtidor, mas também a vários meninos que tinham caído doentes. A cozinheira tinha dado caldo para alimentar a um exército, e não foi desperdiçado. Além disso, Christina deu aos meninos os últimos figos que restavam, e que tão apreciados eram para ela, para quando se restabelecessem.

Vários soldados da guarda de seu marido insistiram em acompanhá-la. Ao princípio Christina não acreditou ser necessário, mas logo agradeceu seu amparo. No momento em que saiu pelas portas do castelo, acusou vivamente a ausência de seu marido. Não tinha dado conta até então da segurança que lhe transmitia. Sem o escudo protetor de sua presença, de repente lhe pareceu que o mundo não pressagiava nada bom. Era absurdo, sim, e sabia. Não temia um possível ataque, ao menos durante o dia, mas a lembrança da visita do MacDougall seguia fresco em sua memória.

Entretanto, Tor tinha tomado precauções e tinha posto um guarda permanente no povoado.

Em qualquer caso, a satisfação de ter feito algo útil a compensou com acréscimo de qualquer temor que pudesse sentir. Enquanto retornava ao castelo no birlinn junto ao irmão John, sentiu-se feliz de ter ido ao povo e prometeu que voltaria a fazê-lo nos próximos dias.

Anoitecia, e a névoa descia à medida que se aproximavam do embarcadouro que havia junto à grade de saída para mar. Quando estavam a poucos passos de distância, Christina vu outra embarcação amarrada.

Deu-lhe um calafrio ao ver o falcão de temível aspecto que aparecia esculpido na proa.

—Reconhecem o navio? —perguntou ao escrivão.

—Não, nunca o tinha visto - respondeu ele sacudindo a cabeça.

Os guardas de Tor não pareciam preocupados.

O navio parecia estar a ponto de zarpar. Havia dois homens no molhe. Um deles era Rhuairi. O outro lhe entregou algo, saltou como uma centelha a bordo e largou as amarras. O irmão John também se fixou na operação.

—Possivelmente somente seja um mensageiro - sugeriu.

Christina relaxou um pouco pensando que provavelmente teria razão. Embora até que o navio se afastou não soltou um suspiro de alívio.

Rhuairi foi a seu encontro quando desembarcaram e estendeu a mão a Christina para ajudá-la a baixar.

—Passastes um bom dia, milady?

—Sim - respondeu ela—. Muito bom. Este que acaba de partir era um mensageiro?

Rhuairi lhe dirigiu um olhar inexpressivo.

—Não, minha senhora. Somente alguns homens dos clãs da região que queriam ver o chefe.

Christina cruzou olhar com o irmão John. Homens dos clãs da região? Esses homens eram guerreiros.

E só recordou o estranho intercâmbio momentos depois.

*

Várias horas depois de quase despencado, Tor se sentava com as costas apoiada em uma rocha baixa e lisa e as pernas estendidas frente às resplandecentes brasas da fogueira enquanto escutava discutir os guerreiros. A situação o relaxava curiosamente. Estava cômodo, porque era previsível. Era como quando, de pequenos, brigava com seus irmãos dando voltas ao assoalho. Como sempre, conversavam da guerra que se abatia entre Escócia e Inglaterra, e do momento, se é que existia a possibilidade, de que Bruce movesse a sua peça no tabuleiro.

Devia ser perto de meia-noite, e pensando no que tinha planejado para o dia seguinte, teria que estar deitado já. Entretanto, seguia muito inquieto pelo acontecido horas antes para poder dormir.

Quando os homens viram que MacRuairi e ele retornavam colina abaixo, deram por certo que era Tor quem o tinha encontrado. MacRuairi, um homem cheio de surpresas, não tentou desenganá-los, mas sim foi Tor quem explicou brevemente o que tinha acontecido. Os homens ficaram tão surpresos como ele, possivelmente exceção de Gordon. MacRuairi se mantinha à margem, e à maioria dos homens parecia bem essa atitude. Entretanto, Gordon, o jovem e sociável alquimista, parecia não perceber a ameaçadora nuvem que se abatia sobre o MacRuairi e ambos tinham travado uma espécie de amizade, se podia chamar-se amizade ao feito de que Gordon falasse e MacRuairi escutasse.

A profunda voz do MacLean interrompeu o fio de seus pensamentos.

—O erro do Wallace foi pensar que podia repetir o êxito que teve no Stirling Bridge e vencer a Eduardo em uma batalha campal, enfrentando dois exércitos. Deveria ter seguido atacando de surpresa; essa era a força de sua liderança. Depois de perder no Falkirk, era um homem acabado. Somente sua estratégia de terra queimada impediu que Eduardo se apropriasse da Escócia naquele momento.

Quanto mais Tor escutava ao MacLean, mais valorizava a mente tão clara que tinha para organizar táticas e estratégias militares. E sua intenção adiante era aproveitar esse talento. Embora, retificou, seria MacSorley quem o aproveitaria.

—Vocês não estiveram ali - reprovou Boyd, encolerizado. O bravo patriota não tolerava que se criticasse ao Wallace porque tinha lutado junto a ele durante anos—. Não foi Wallace o traidor, senão os Comyn, que nos fizeram perder no Falkirk ao retirarem-se e abandonar à mercê dos arqueiros de Eduardo os nossos lançadores formados em falange escocesa.

MacRuairi em geral evitava falar de política, mas gostava de jogar lenha ao fogo entre o Seton e Boyd, embora sua ajuda fosse desnecessária.

—Sir Dragão, parece que têm algo que dizer - comentou utilizando o apelido pelo que o conheciam e que se referia ao brasão que Seton insistia em levar em seu tabardo.

Seton apertou a mandíbula.

—Não é um dragão, maldito bárbaro, é um guiverno29 — lhe espetou com guelra. MacRuairi sabia perfeitamente de que animal se tratava—. Wallace perdeu porque não foi capaz de controlar seus homens na batalha campal. Sabia provocar incêndios e atacar de noite, mas o que Falkirk nos demonstrou foi que uma infantaria desorganizada e indisciplinada, por mais valente que seja, não pode enfrentar a cavalheiros treinados.

Boyd tinha o aspecto de querer arrancar a cabeça do jovem inglês, mas depois da recente catástrofe do lago não queria dar rédea solta à raiva que lhe inspirava seu colega.

—Se isso for o que pensam, por que demônios estais aqui?

Seton o olhou com um desprezo altivo.

—Bruce é meu suserano.

—E seu suserano é o rei Eduardo -assinalou Boyd—. Não deverias estar lutando para ele?

Seton avermelhou de raiva.

—por que vocês estão aqui? Não faz muito tempo lutavam no lado do Comyn.

—Lutei no lado do Leão - protestou Boyd entre dentes, referindo-se ao símbolo escocês da realeza—. Sempre pela Escócia, e agora é Robert de Bruce quem a representa. Antes verei você no trono que ao Comyn. Esse perdeu o direito à coroa quando desertou e nos abandonou no campo de batalha.

Com ânimo de aliviar a tensão, MacLean interveio.

—Bruce aprendeu com os erros do Wallace. Que estejamos aqui dá fé disso. Não se enfrentará a Eduardo com os exércitos até que esteja preparado. E Bruce é um cavalheiro, um dos melhores da Cristandade. Quando chegar o momento, saberá como comandar um exército.

Seton se dirigiu ao MacRuairi para lhe fazer compreender que tinha captado que era ele quem tinha provocado a discussão.

—E você? Por que estás aqui? Por algum assunto nobre como encher suas arcas? —perguntou-lhe com uma gargalhada zombadora sem preocupar-se de dissimular seu desprezo.

A expressão do MacRuairi era inescrutável.

—Certamente não arriscaria a pele por um pouco tão efêmero como o patriotismo ou o dever. O que pode haver melhor que a riqueza?

Tinha respondido com muita naturalidade, mas Tor compreendeu que não estava dizendo a verdade. Ao menos, toda a verdade.

—E por uma mulher? —interveio MacSorley sorrindo ao Tor—. Não me ocorre um motivo melhor para arriscar a pele que a promessa de uma doce moça em minha cama.

—Te está cansando a mão, MacSorley? —perguntou Lamont com brutalidade.

O enorme escandinavo sacudiu a cabeça com desconsolo.

—Como seguimos assim durante mais semanas terei que fazer proposições.

Os homens riram a gargalhadas. Praticamente surto da necessidade. A guerra e os deslocamentos às vezes os obrigavam a passar várias semanas sem mulheres.

—Quando terminarmos com isto, farei uma parada no Mull porque ali me espera uma jovem muito fogosa, com as maiores e doces tetas do mundo. Uma pele branca como o leite, perfeita. Uns mamilos de um rosa muito claro e do tamanho de duas pérolazinhas. —MacSorley sorriu, nostálgico—. Um vento favorável, a pança cheia e uma garota bonita. Não é preciso de grandes coisas para me fazer feliz.

MacSorley tinha adotado a atitude de despreocupação que o fazia tão popular e eficaz na hora de aliviar a tensão nas filas. Era a atitude que também adotava no campo de batalha. Tor recordou seu assombro ao ver sorrir ao grande viking enquanto brandia sobre ele sua terrível tocha de guerra no fragor da batalha.

Entretanto, Tor não confundia a afabilidade do MacSorley por debilidade ou tibieza. Detrás daquele sorriso se escondia um homem de aço. Somente em uma ocasião lhe tinha visto perder esse sorriso pícaro, e tinha sido algo digno de ver. Alguns diziam dele que era frio e desumano.

—Casara-te com a garota, MacSorley? —perguntou Seton.

O viking virtualmente se afogou com um gole do cuirm que estava tomando.

—Pelo sangue de Cristo! Pode saber-se por que teria que cometer essa barbaridade? A diferença de nosso santo padroeiro, esse daí - disse assinalando ao MacKay—, vocês acreditam que me conformarei com um único par de tetas, por muito tentadoras que sejam, para toda a vida? —E deu de ombros—. Além disso, não quereria privar às outras garotas dos benefícios de minha experiência.

—Que se lasque, MacSorley - grunhiu o áspero escocês das Highlands.

Contrariamente ao resto dos homens, MacKay nunca falava de mulheres. E esse rasgo avivava a curiosidade do MacSorley quem, ao não vê-la satisfeita, indevidamente seguia cravando-o.

—Isso é o mais romântico que o ouvi dizer desde que estão aqui - se burlou MacSorley—. Entre você e MacLean, é difícil dizer quem dos dois vai ser monge.

MacLean estava recém casado; entretanto permaneceu em silêncio quando surgiu o tema. Por uma boa razão: casou-se com uma MacDowell, parente dos MacDougall e dos Comyn.

—Nunca falas de sua prometida, Gordon - disse Seton desviando a atenção do MacLean.

Gordon deu de ombros.

—Não há muito que dizer, apenas a conheço.

—Quem é? —perguntou Seton.

Gordon titubeou.

—Helen, a filha do William de Moray, conde de Sutherland.

Tor estava olhando ao MacKay no momento em que Gordon anunciou a nova, e viu o assombro e a dor pintar-se em seu rosto antes que pudesse dissimulá-los. Gordon deve ter interpretado também a expressão de seu amigo, porque Tor viu o olhar de silenciosa desculpa que lhe dirigiu.

Tor compreendeu por que Gordon não havia dito nada até então. Inflamadas brigas dos MacKay com o clã dos Sutherland eram muito conhecidas, mas Tor se perguntou se não haveria algo mais.

A conversação derivou de novo para a política e o momento em que seriam chamados as armas. Tor agradeceu a mudança de tema, porque sabia que o viking não demoraria muito em voltar a açulá-lo. E ele quão último desejava falar era de sua mulher. Tinha um trabalho que fazer, e só quando o tivesse terminado arrumaria as coisas entre eles. Não lhe faria nenhum bem dar voltas e mais voltas as coisas que não podia mudar. Entretanto, preocupava-lhe o modo em que se despediu de Christina. Prometeu-se que a compensaria da rudeza quando retornasse.

Voltou a recordar a cena recente na montanha. MacRuairi estava sentado um pouco afastado do grupo, envolto na escuridão, passando a pedra de afiar pela folha de uma de suas espadas.

Tor ficou em pé e foi sentar se junto a ele. Ao cabo de um momento, disselhe:

—Não foram vocês… Refiro aos últimos ataques por surpresa que sofremos no Skye.

MacRuairi não se incomodou em levantar o olhar, mas sim seguiu afiando a folha com a pedra.

—Tinha a impressão de que tínhamos combinado uma trégua.

—Não é a primeira vez que me encontro no outro lado de uma de suas «tréguas».

Se MacRuairi se ofendeu, não o deixou entrever, mas sim deixou de afiar sua espada.

—É certo, mas agora somos da mesma família. —Sorriu ao ver a careta de Tor—. Quem acreditas que pode ter sido?

A expressão de Tor era séria.

—Não sei. Possivelmente Nicolson, embora MacDonald me assegurasse que ultimamente se acha calmo.

—Melhor que os ataques não foram dirigidos contra você, mas sim tão somente fostes um objetivo propício.

Tor franziu o cenho.

—Sim, é possível.

Entretanto, os ataques não pareciam produto do azar, a não ser algo pessoal. Não só tinham consistido em capturar o gado e roubar as colheitas; seu povo também esteve no ponto do alvo. Por essa razão, entre outras, tinha suspeitado do MacRuairi.

—Quando foi o último?

—Quando me encontrava no Finlaggan.

—E o anterior? Também tinham te ausentado?

Tor negou com a cabeça, mas então recordou.

—Teria que estar fora, mas no último momento troquei de planos.

MacRuairi o observou com ar pensativo.

—Sem dar tempo a que alguém recebesse uma carta anunciando a mudança?

—Sim - coincidiu Tor ao compreender o que MacRuairi estava sugerindo—. Acredita ser possível que alguém esteja me espiando - disse cansativamente. Seu instinto se rebelava ante essa idéia. Conhecia seus homens.

MacRuairi deu de ombros.

—É uma possibilidade.

Por muito que a Tor desgostasse pensar que entre seu povo havia alguém que pudesse traí-lo, MacRuairi tinha razão. Devia considerar essa opção. Quem podia estar tão zangado com ele para tomar-se tantas moléstias? Nicolson, sem dúvida. E a julgar pelos ataques mais recentes, teria que acrescentar o nome do MacDougall à lista.

Se alguém o estava espiando…

Soltou um suspiro. Seu primeiro pensamento voou para Christina. Obrigou-se a fazer caso omisso de uma pontada que somente podia interpretar como pânico. Ela estava a salvo. Ninguém podia introduzir-se no castelo; Dunvegan era impenetrável.

—Quem sabe quanto tempo estaras fora? —perguntou MacRuairi lhe lendo o pensamento.

—Muita gente - respondeu Tor, ficando em pé de um salto e esquecendo o cansaço—. Se partirmos agora mesmo, poderemos chegar ali antes de meio-dia.

*

O irmão John se estava convertendo em uma enfermeira extremamente protetora.

—Hoje não, minha senhora. Indo amanhã é suficiente. Os meninos se encontram melhor e você perdoe que lhe diga isso, parecem cansada.

Estava cansada em realidade. Quando estava por vir a menstruação, como sempre, sentia uns espasmos dolorosos e tinha enxaqueca. Agora não ia explicar lhe isso a um clérigo.

—Estou bem, e não vou perder um dia tão bonito. Esqueci já o aspecto que tem o sol. Vamos, não demoraremos muito em voltar.

Entretanto, Christina se equivocara. Os meninos se encontravam muito melhor e tinham decidido entretê-la com uma canção e uma dança dedicada especialmente a ela. Era quase meio-dia quando pôde embarcar com o irmão John na galera que os levaria de retorno ao castelo.

—Mais devagar, irmão John - disse ela rindo-se—. Jamais o tinha visto caminhar tão depressa.

O escrivão sorriu.

—Ah, sim? Sinto muito, minha senhora. Deve ser a fome.

—depois dos bolos que comestes?

—Tenho debilidade pelas ameixas - confessou ele, ruborizando-se.

—Eu também. Que delícia as comer quando a temporada está já tão avançada!

De repente, o irmão John se parou em seco.

—ouvistes isso?

—Ouvir o que…?

Sua pergunta se viu interrompida pelo som distante de uma corneta. Ficou lívida. Olhou ao amanuense e, refletido em seu olhar, viu seu próprio pânico.

—O que foi isso? —perguntou ao Colyne, um dos guardas do séquito.

Embora adivinhasse a resposta, não por isso lhe impactou menos ouvi-la.

—É uma advertência do castelo, milady - esclareceu o irmão John com expressão sombria—. Atacam-nos.


Capítulo 20


Tor viu as primeiras colunas de fumaça procedentes do povoado desde de um quilômetro de distância, justo quando Campbell e MacGregor retornavam com seu relatório.

Sua expressão era lúgubre.

—Ao menos há uns cento e cinqüenta homens, quase todos mercenários, isso parece -disse Campbell—. Contei quatro galeras de guerra no molhe, mas acredito que no castelo deve haver mais para impedir que os homens que ficam dentro possam chegar ao povoado.

«Ela está a salvo», recordou-se. Obrigou-se a controlar a mente sabendo que não podia permitir distrações. Mercenários, havia dito Campbell. Aquilo não era um ataque surpresa, a não ser uma guerra a grande escala. Tinha destcado um corpo de guarda para proteger o povoado, mas seus homens eram superados com acréscimo pelas forças inimizades.

—Quantos feridos?

—Várias dúzias - respondeu MacGregor—. Quase todos inimigos. Dois dos seus homens. Seus guardas formaram um muro protetor para assegurar o passo do molhe até o povoado.

Tor assentiu, nada surpreso. Seus homens estavam bem treinados, acostumados a enfrentar-se com forças superiores a eles. Era uma de suas táticas favoritas. Como o rei Leônidas fizera na batalha das Termópilas, tinham escolhido lutar na parte mais estreita do povoado para rebater a vantagem numérica de seus inimigos. Durante um tempo. Mas não poderiam resistir eternamente com tão poucas probabilidades de ganhar. E a semelhança do mesmo destino fatal dos trezentos espartanos que resistiram no passo das Termópilas, havia mais de um caminho para acessar ao povo.

—E entre as pessoas do povoado? —perguntou Tor.

Ao MacGregor lhe quebrou a voz.

—Três homens, uma mulher e um menino pelo que pude comprovar. Outros devem ter encontrado algum refúgio, mas o inimigo atua sem piedade.

Tor fechou os punhos com uma raiva mal contida. Dirimiria a cólera que sentia nascer nele com a acerada espada da justiça. Fossem quem fosse seus inimigos, pagariam pelo que tinham feito.

Tor não era o único ansioso por lutar. Apesar da equipe ter percorrido vários quilômetros de terreno escarpado durante toda a noite, as notícias do Campbell e MacGregor causaram o impacto de um raio. Nada estimulava tanto a um guerreiro como a promessa da batalha. E esses guerreiros levavam muito tempo contendo-se.

Entretanto, não era essa sua guerra.

Os homens se reuniram em torno dele no arvoredo. A pesar do rigoroso treinamento que tinham suportado na semana anterior e de ter caminhando toda a noite sem ter dormido, a guarda de elite parecia brava e letal. Seu aspecto andrajoso e descuidado so contribuía a conferir ferocidade a seus rostos grisalhos e curtidos nas batalhas. Tor olhou a cada um deles.

—Alistaram-se para lutar pelo Bruce, não por mim. Ouvistes o que contou Campbell: ao menos são uns cento e cinqüenta homens; eu tenho dezoito, pode ser que menos.

—Dezenove - apostilou MacSorley dando um passo à frente—. Nem por todo o ouro do mundo vou deixar que sejam o único em lhe divertir. —O enorme viking sorriu—. Demos aos histriões escandinavos motivos para nos cantar.

Outros homens deram um passo à frente e se situaram atrás dele, salvo um.

—É hora de pôr em prática o treinamento, capitão - disse Boyd.

Tor olhou ao homem que se ficou atrás. MacRuairi se apoiava indolentemente em uma árvore. Deu de ombros e descruzou os braços. Os dois punhos de suas espadas se elevaram ameaçadoras atrás de seus ombros, como o sorriso que curvava seus lábios.

—Alguém terá que cobrir ao MacSorley.

Tor assentiu, comovido pela unânime amostra de apoio.

Consciente de que tinham que atuar depressa, Tor esboçou o plano. A metade da equipe atuaria como reforço dos homens que formavam o muro protetor; a outra metade se deslocaria ao redor para flanqueá-los e atacaria por ambos os lados.

—Estão preparados?

—Sim, capitão - responderam os guerreiros ao uníssono, com a determinação e a antecipação grafitada em seus rostos.

Detrás da máscara metálica de seu elmo, Tor sorriu, e seus lábios se curvaram em uma terrorífica careta em que não cabia a piedade.

—demos então uma surpresa antes de mandá-los ao inferno - afirmou levantando sua adaga ao ar—. Vitória ou morte!

—Vitória ou morte! —exclamaram seus homens ao uníssono.

Sabendo que somente carregariam com um peso desnecessário, abandonaram seus pertences para trás e saíram correndo. Em pouco mais de cinco minutos chegaram aos subúrbios do povoado.

O distante clamor da batalha em contraste com a desolada quietude das casas de pedra cobertas de cal era fantasmagórico. Várias flechas acesas tinham centrado seu objetivo nos tetos de palha. No ar carregado de fumaça se cheirava a densidade inconfundível e metálica do sangue.

Quando chegaram perto, Tor amaldiçoou ao advertir que era muito tarde para pôr em prática o plano de flanqueá-los. Os atacantes, providos com pesadas armaduras, tinham ocupado todo o povoado. O muro protetor tinha sido franqueado.

Tor mudou de tática imediatamente. Não consistiria em um ataque por surpresa cuidadosamente orquestrado, a não ser em uma explosão acérrima de força e perícia.

Tinham tudo em contra. Tor sabia que se tivesse sozinho, não teria tido nenhuma oportunidade. Mas não estava. E nunca lhe tinha preocupado ter tudo em contra. Lutava para ganhar.

Levando a mão à costas, desembainhou sua magnífica cutilada claidheamh dá laimh e deu o sinal que todos estavam esperando. Com um feroz grito de guerra, o grupo atacou.

MacGregor lançou uma rápida surriada de flechas, disparada com uma pontaria perfeita e uma trajetória em ângulo que perfuraria qualquer armadura, de malha ou de couro. Caíram seis homens antes que Tor tivesse a oportunidade de usar a espada.

Com um movimento letal, este último acrescentou um par de homens mais à lista. Girou sobre si mesmo rechaçando a folha de um atacante. Entrechoque de aço. Apesar da confrontação corpo a corpo, Tor mal moveu a espada, tão somente flexionou os músculos, duros como uma pedra.

Sem piedade. Com um rugido colérico, arremeteu contra seu competidor, levantou a espada e a brandiu com todas suas forças sobre sua cabeça lhe destroçando o crânio como se fosse uma cabaça.

Não sentiu nada. Animava-o um frio propósito.

Esfaqueando, brandindo, rechaçando, Tor riscou com sua espada um caminho de sangue e destruição entre os assombrados atacantes. Como o raio de que tinha tomado seu nome, bheithir arremeteu contra tudo o que encontrou a seu passo. O prazer da batalha corria pelas veias de Tor. Tinha os sentidos acordados, afinados, e uma estranha euforia se apoderou dele. Sua mente se concentrou na única certeza que importava em uma guerra: vitória ou morre.

A morte estava presente. Entretanto, enfrentado a sua mortalidade, sentiu-se mais vivo que nunca. A cada golpe que dava se sentia mais forte. Mais resistente. Mais invencível.

E não estava sozinho.

A visão desses homens juntos era terrorífica. Onze guerreiros magníficos arremetendo à carga com violência. Eram selvagens e temíveis, e lutando em parceria, semeavam o terror. Formavam uma combinação letal de espadas, tochas de guerra, maças e lanças dirigidas com soma mestria.

O inimigo nunca tinha visto nada parecido.

Em lugar de encontrar-se com uns indefesos habitantes do povoado, tinham que enfrentar a um exército fantasmagórico formado por guerreiros de aparência indestrutíveis. Estava claro que não eram essas as condições que os mercenários esperavam, nem as que tinham aceito alistando-se. Por isso, quando nem sequer tinha transcorrido um quarto de hora, bateram-se em retirada. Imitando aos guardas de Tor, os atacantes formaram um muro de amparo com o passar do caminho que conduzia ao molhe para alcançar suas galeras.

Tor e seus homens abriram caminho lutando, mas os navios de guerra começavam já a zarpar.

—Sigam - gritou ao MacSorley e ao MacRuairi.

Os aparentados guerreiros de sangue escandinavo saltaram sem hesitações a um pequeno birlinn que se usava como transbordador do castelo, e com um punhado de homens partiram para a caça das galeras que se afastavam.

Alguns mercenários não puderam alcançar as naves a tempo. Com a intenção de interrogá-los, Tor quis capturá-los vivos. Foi um engano.

MacGregor tinha deixado o arco e estava atendendo a um dos guardas feridos de Tor quando um dos inimigos que ficou em terra lançou sua lança.

Tor o aniquilou com a espada e lançou um grito de advertência, mas MacGregor se voltou muito tarde. A lança sulcou uma trajetória letal no ar apontando a sua cabeça.

Se Tor não tivesse visto com seus próprios olhos o que aconteceu a seguir, jamais teria acreditado.

Campbell se adiantou e apanhou a lança com uma mão, tão somente a uns centímetros do rosto do MacGregor. Com um sutil movimento a levou ao joelho, partiu a grosa madeira em dois e a lançou aos pés de seu companheiro.

Ouviu-se uma exclamação no campo de batalha.

MacGregor, que tinha visto a morte cara a cara, demorou uns segundos em recuperar-se.

—Demônios, Campbell, onde aprendeu a fazer isso?

O silencioso soldado das Terras Altas deu de ombros.

—Jogava isso com meus irmãos.

—A esta família gosta do sangue… —disse MacGregor com ironia.

Sem que lhe escapasse o sarcasmo, Campbell sorriu e lançou um olhar desafiante a esse homem que, apesar de ser de um clã rival, já se tinha convertido em um companheiro.

—Agora não poderão dizer que um Campbell nunca levantou uma mão para salvar a um MacGregor.

Em lugar de lhe soltar um bufo, como estava acostumado a fazer, MacGregor jogou a cabeça para trás e riu a gargalhadas.

Nesse momento Tor pensou que pouco ficava por ver. A menos que se equivocasse, Campbell e MacGregor tinham começado a superar suas diferenças. A camaradagem ia consolidando-se no grupo, e nem sequer ele era imune a isso. Restava esperança ainda para o Boyd e Seton?

Não lhe pareceu tão impossível.

Sacudindo a cabeça, Tor se voltou para terminar de atar aos prisioneiros. Muito tarde: todos os inimigos tinham sido mortos. Amaldiçoou sua sorte, embora soubesse que descobrir da boca de algum mercenário a identidade dos que estavam atrás do ataque surpresa era uma possibilidade muito remota. Possivelmente se MacSorley e MacRuairi alcançassem às naves obteria mais informação.

Poucos homens eram capazes de reunir um grupo tão numeroso de mercenários, embora um nome lhe viesse à cabeça: MacDougall.

A notícia de suas bodas teria sido a causa desse ataque? Não tinha sido como os anteriores. Aqueles homens tinham ido destruir e assassinar.

Gelou-lhe o sangue quando viu os cadáveres de uma mulher e de seu filho. O menino não teria mais de três anos. A mãe tinha tentado protegê-lo com seu corpo, mas a espada tinha atravessado a ambos. A raiva, o pesar e a amargura lhe deixaram um estranho sabor na boca.

Isso era exatamente o que queria evitar.

Voltou-se para não ver os cadáveres, mas a imagem lhe tinha gravado a fogo vivo na memória.

Consciente do perigo, ordenou a seus homens que retornassem a broch para que não fossem vistos por todos no povoado. Seu trabalho já tinha terminado.

Devia-lhes muito, e sabia que jamais teria conseguido sem eles. E isso o deixava em uma posição muito estranha, na posição de ter que confiar em outros. Combater junto a eles tinha sido uma experiência única. Tinha treinado a muitos homens, mas não eram como esses. Eles eram seus iguais, e tinham umas habilidades que superavam as suas próprias. Como líder, Tor estava acostumado a manter-se à margem. O irônico de seu encargo era que tinha que fomentar a camaradagem, mas nunca pudera integrar-se no grupo. Entretanto, esse dia as coisas tinham ido de uma maneira difernte.

Lentamente o povoado foi voltando para a vida. Portas se abriram e os homens do clã, emocionados, saíram de suas casas. Tor se surpreendeu ao ver que Colyne e um grupo de guardas saíam da capela.

—O que estão fazendo aqui? Por que não estavam lutando com os outros?

—Graças a Deus que viestes no momento oportuno, RI tuath.

—Porquê…?

Estrangulou-lhe a pergunta ao ver depois dos guardas à pessoa que saía pela porta da capela.

Ficou como pedra. Lívido. O que somente poderia ter qualificado de um terror que lhe gelava o sangue se apoderou dele. Não era possível.

Entretanto, sim era. Sua esposa estava ante ele. Seus olhos grandes e cheios de lágrimas destacavam em seu pálido e ovalado rosto cravando-se nele. Durante uns momentos o tempo pareceu deter-se. Ficaram se olhando, e entre os dois fluiu algo grande e poderoso. Uma emoção tão estranha que Tor nem sequer soube descrevê-la, salvo como um peso no peito, um nó ardente de dor e horror.

«Podiam tê-la assassinado.»

Quis soltar um alarido instintivo, mas o que ela fez então o deixou petrificado. Ignorando o que havia a seu redor, o açougue, o sangue que manchava o chão, que o manchava a ele, jogou-se em seus braços.

A Tor o coração deu um tombo. Algo se revolveu em seu interior. Algo quente e poderoso.

Estreitou-a entre seus braços e murmurou umas palavras cálidas para consolar não só à mulher que soluçava contra seu peito, mas também para consolar-se a si mesmo.

*

Com os olhos arrasados em lágrimas, Christina olhou ao homem sujo e manchado de sangue que a abraçava. Nunca tinha se alegrado tanto de ver alguém. Abriu os olhos da surpresa ao advertir o grande corte que tinha no rosto e o arroxeado do olho.

—Está ferido - disse, chorando e lhe acariciando o rosto.

Entretanto, Tor a tirou de cima.

—Estou bem - disse ele com brutalidade.

Christina franziu o cenho. Podia ser o grande guerreiro invencível com seus homens, mas quando voltasse para castelo com lhe curaria essa ferida, por bem ou não.

—Estou muito contente de que esteja são e salvo. Vieram muitas galeras.

Os que se resguardaram na igreja não puderam ver nada, mas quando ouviu o fragor da luta, ela soube que ali estava seu marido.

Tor ficou perplexo.

—Contente de que eu esteja são e salvo?

Christina viu que sua incredulidade se convertia em raiva. Agarrou-a pelos ombros enquanto parecia esforçar-se por não sacudi-la.

—Está bem da cabeça? E você, o que? Sabe o que teria passado se eu não tivesse chegado a tempo?

«Está assustado.» A preocupação que sentia por ela o tinha feito ir às nuvens. Por que não teria dado conta antes? Isso arrojava uma luz completamente diferente a seus arranques de mau gênio.

—estive a salvo no santuário da igreja, junto a outros. Foi idéia do irmão John - disse ela sorrindo ao escrivão, que acabava de chegar e se situou a suas costas.

Tor pareceu algo irritado ao vê-lo.

—Não todos os homens respeitam o santuário da igreja.

—E por essa razão seus homens insistiram em custodiar a porta em lugar de unir-se a outros. Não corri nenhum perigo, de verdade. —Tinha tido um medo espantoso, mas dado o estado de ânimo de Tor decidiu guardar essa informação para mais adiante—. E embora tivessem violado o santuário, o irmão John tinha me escondido sob o banco do confessionário. Nunca me teriam encontrado.

Tor se voltou para o amanuense, e com a boca seca lhe disse:

—Acredito que lhe devo minha gratidão.

O agradecimento fez avermelhar ao jovem clérigo. Um rubor coloriu suas finas e sardentas bochechas.

—Desejava com toda a alma poder retornar a tempo ao castelo - explicou—. Não imaginam nossa alegria ao ouvir que chegavam com seus homens. Pelo estrondo, parecia que lhe acompanhava um exército. —O amanuense olhou ao redor franzindo o cenho—. Aonde foram todos?

—Retornei cedo e pude reunir a alguns homens do castelo - explicou Tor—. Foram perseguir os assaltantes.

A incredulidade fez que o irmão John franzisse o cenho. Christina temeu que a explicação de Tor não o tivesse satisfeito.

—Entendo - respondeu o irmão John.

—Quem eram? —perguntou Christina—. Por que razão quereria ninguém nos atacar com tanta sanha?

—Não sei - disse Tor com expressão lúgubre—. Mas tenho a intenção de averiguar.

Vendo o olhar desumano que aparecia nos olhos de seu marido, Christina quase compadeceu do responsável quando Tor o encontrasse. Esteve afastando o olhar do panorama que se estendia a suas costas, mas o que havia no chão não lhe permitiu escapar do horror. O nauseabundo aroma da morte impregnava o ar. Não precisava desviar o olhar para os cadáveres para saber que se encontravam ali.

Tor pareceu recordar o contexto no que estavam no mesmo instante que ela. Pegou-a pelo braço e fez o gesto de levá-la —Vem pra cá…

Christina se soltou ao chamar a sua atenção algo que havia no chão.

Por todos os Santos, oxalá não se fixara.

—Não. Vem. —Tor tentou afastá-la dali, mas ela se soltou de seu braço.

—me deixe - exclamou com um grito afogado. O estômago lhe revolveu e notou o sabor da bílis. Tampou a boca com a mão, como se assim pudesse reter as náuseas. Adiantou-se uns passos e se pôs de joelhos no chão, embargada pelo desespero e o horror.

O cadáver de uma mulher jazia de barriga para baixo atravessado sobre o de um menino. Christina os conhecia. Eram a mulher do oficial e seu filho. Tremendo, acariciou o sedoso e loiro cabelo do menino. Ainda estava quente pelo sol. As lágrimas se amontoaram em seus olhos. Olhou a seu marido, musculoso e provido com sua armadura, uma sombra imponente a contraluz. Como podia dedicar-se a isso? Como podia estar sempre rodeado de tantas mortes? Como não morria do espanto?

—Que tipo de monstro pode ter feito algo assim?


Tor sacudiu a cabeça com ar sombrio.

De repente, uma idéia horripilante cruzou pelo pensamento de Christina. E essa idéia lhe pesou no coração. Todo aquilo era culpa dela?

—Pode ter sido MacDougall?

Tor apertou a mandíbula como se tivesse adivinhado o que pensava sua mulher. Tinha pensado ele também?

—É possível. Mas há outros candidatos.

Christina voltou a contemplar à mãe e ao menino, com as lágrimas rodando pelas bochechas, rezando para que isso não tivesse nada que ver com ela.

—Vem. —Tor a afastou dali com cuidado—. Não pense nisso.

Christina se voltou para ele, indignada, e olhou fixamente esse rosto brutalmente formoso. Nem um indício de emoção em sua estóica expressão. Era impensável que pudesse olhar o cadáver de um menino inocente sem que isso lhe afetasse.

—Como não vou pensar nisso? O que te passa? Nada lhe afeta?

Tor a olhou com dureza; seus olhos azuis eram frios como o gelo.

—Não me posso permitir isso. Mas porque não demonstre minhas emoções não significa que seja incapaz de sentir.

Compreender isso foi como receber um murro. Assim funcionava Tor. Pela primeira vez compreendeu por que precisava ser tão frio. Compreendeu que ao ocultar as emoções protegia a si mesmo dessas condições tão monstruosas e brutais.

Mal conhecia a mulher e ao menino que estavam frente a ela, e entretanto a embargavam um sofrimento, uma tristeza e um horror insuportáveis. O que devia sentir-se quando eram os amigos, os homens com os que tinha lutado durante anos os que morriam brutalmente assassinados ante seus olhos?

Estremeceu. O gelo era um bom escudo protetor que seu marido necessitava para sobreviver.

Teve piedade dele do fundo de seu coração. Embora Tor não mostrasse compaixão, sentia-a. E que ocultasse suas emoções não era surpreendente se tinha em conta seu passado. Somente precisava ter mais paciência com ele.

—Sinto muito - disse ela com ternura.

Tor assentiu. Permitiu que a levasse dali, mas o chão a parecia mover-se sob seus pés, como se caminhasse pelo convés de um navio em plena tormenta. Tinha o estômago revolto e sentia arcadas. O suor perolava a testa.

Não se encontrava bem.

—por que saiu do castelo? —perguntou Tor—. O que estava fazendo no povo?

Christina perdeu o equilíbrio.

—Tina, o que acontece?

Detectou um que de alarme em sua voz, embora soasse longínqua, como se ela estivesse sob a água. Dava-lhe voltas a cabeça, e quando ergueu os olhos para olhá-lo, viu sua imagem imprecisa, desfocada.

—Não me… —conseguiu articular antes que todo se ficasse escuro.

*

Quando despertou estava sumida na escuridão. Moveu as pálpebras, mas lhe pesavam tanto que as manteve fechadas. Por que fazia tanto calor? Sentia como se estivesse dormindo sobre uma fogueira. Afastou os lençóis, revolveu-se e tentou ficar cômoda sem conseguir.

Notou uma mão grande na frente que a acalmava. Uns murmúrios de fundo. Haviam tornado a cobri-la. Queixou-se fracamente, e só se tranqüilizou quando voltou a ouvir a voz. Suspirou, rebelou-se, até que a escuridão voltou a abater-se sobre ela.

*

Quando Christina despertou pela segunda vez era pela manhã. Foi capaz de abrir os olhos, embora antes piscou umas quantas vezes. Se despertou sentindo-se como nova, como se tivesse dormido profundamente.

Franziu o cenho. Dormido? Como tinha chegado a seus aposentos? Quão último recordava era…

Ouviu um ruído e olhou para o outro extremo do aposento. Tor se revolvia em uma cadeira de madeira, coberto com uma manta, tentando, sem conseguir pelo que parecia, ficar a vontade. Soltou uma maldição, e algo em sua expressão colérica e exaltada a fez rir.

Tor deixou cair ao chão a banda escocesa que levava a ombro, ficou em pé e correu a seu lado.

—Está acordada.

Christina sorriu ante o que era óbvio. Tor, por outro lado, tinha o aspecto de não ter dormido toda uma semana. Trocou-se e limpou as manchas da batalha, mas as linhas de expressão de seu rosto acusavam um cansaço e uma fadiga difíceis de dissimular. Seu cabelo loiro escuro estava revolto, como se tivesse passado os dedos por ele uma e outra vez; tinha a roupa enrugada, e a mandíbula escura por não ter se barbeado fazia mais de uma semana. Entretanto, seguia incrivelmente bonito.

Christina pousou seu olhar na cadeira e enrugou o nariz.

—dormiste aí?

Tor franziu o cenho.

—Estava doente.

De verdade? Encontrava-se bem. Apesar de recordava ter se sentido estranha e enjoada justo antes de perder o sentido. Era a primeira vez que passavam a noite juntos e ela não recordava nada.

—Quanto tempo?

—Dois dias. —Tor a olhou enfurecido—. Não voltará a te pôr doente nunca mais. —cruzou os braços adotando uma atitude de mando—. Não o permitirei.

Christina piscou ao dar-se conta de que falava a sério. Esteve muito preocupado por ela. Um brilho de alegria apareceu em seus olhos. Ia sorrir, mas ao vê-lo furioso, dissimulou o sorriso.

—Farei tudo o que possa - disse com sobriedade.

Tor entreabriu os olhos como se tivesse adivinhado que lhe estava tirando o sarro. Sentou-se a borda da cama e a examinou com atenção, para assegurar-se de que realmente estava recuperada.

—por que quis ir ao povoado quando sabia que havia febre?

Christina ergueu o queixo, desgostosa por seu tom.

—Queria ajudar, e a febre não era grave. Além disso, meu dever como senhora do castelo é atender aos habitantes do povoado. Deixou-me muito claro que tinha que me rodear a determinadas tarefas.

Tor esboçou uma careta de desgosto.

—Acredito que falei com muita dureza…

—Acredita? —interrompeu-o ela arqueando uma sobrancelha.

Tor voltou a franzir o cenho, mas Christina estava ficando imune a essas olhadas turvas. Quem teria pensado que a jovem que há poucos meses se protegia entre as sombras diante da cara brava do guerreiro mais temido das Highlands?

—Estou acostumado a falar sem pensar, e estava zangado - disse ele—. Além disso, ninguém está acostumado a ignorar minhas ordens.

—Tenta te desculpar?

Tor franziu o cenho como se a idéia o surpreendesse.

—Suponho que sim. Tinha razão em algumas das coisas que me disse. Nem tudo consiste em cumprir meu dever com o clã, mas me acostumei tanto a me reservar minhas opiniões que não estou seguro de saber fazer o contrário.

Christina ficou surpresa ao comprovar que suas palavras tinham causado tanto impacto.

—Alguma vez quiseste ter alguém com quem falar, a quem escutar? Ser responsável por tanta gente deve ser uma carga muito pesada para um homem sozinho. Ter a alguém com quem falar poderia te facilitar as coisas.

Tor parecia pensativo.

—Possivelmente.

Christina inclinou a cabeça, estudando-o com curiosidade.

—por que te custa tanto compartilhar seus pensamentos?

Tor lhe sustentou o olhar. A julgar por seu silêncio, parecia que estava travando algum debate interno. E gostou que lhe desse uma resposta.

—Porque meu dever como chefe é me reservar as opiniões. Sei perfeitamente que o contrário traz sofrimentos.

—O que aconteceu?

—Falei do ataque surpresa que sofremos no Dunvegan e de como assassinaram a meus pais?

Christina assentiu.

—A meu pai o traiu um homem que considerava amigo dele, um parente. O conde de Ross tirou informação a minha mãe com más artes e ordenou o ataque que matou a meus pais e quase destruiu a meu clã. Mulheres, meninos…, ninguém escapou ao derramamento de sangue. Foi um açougue.

Christina tapou a boca, horrorizada. A primeira vez que contou não caiu na conta.

—Você estava ali.

Tor assentiu, com os olhos sombrios.

—Sim, escondido na capela com meu irmão e minha irmã. Meu pai viveu o suficiente para me contar o que tinha passado. —Tor fez uma pausa—. Minha mãe não teve tanta sorte depois de que os homens de Ross terminassem com ela.

Christina afogou um grito e as lágrimas saltaram aos olhos.

—OH, Meu Deus… Sinto muito.

Tor deu de ombros.

—Foi faz muito tempo.

Entretanto Christina não se deixou enganar. Seu marido vivia ainda com o legado desse dia. Por isso se mostrava distante. Solitário. Christina teve piedade dele. Do menino pequeno que tinha visto como assassinavam a seus pais e destruíam virtualmente a seu clã, e que tinha assumido a carga de ter que recompor todo isso.

—E depois somente você ficou para reconstruí-lo todo?

Tor a olhou como se a resposta fora óbvia.

—Era o chefe.

—Mas so tinha dez anos - disse ela, atônita. Se já era muita responsabilidade para uma só pessoa, que não seria para um menino de sua idade? Esse menino teve uma infância muito curta.

—Saí adiante.

Christina apoiou a mão em seu braço.

—E muito bem, isso parece. Seu clã tem sorte de contar contigo.

Era um homem incrível. Sabia, mas para ouvir de sua própria voz quanto tinha sofrido, sentiu-se mais orgulhosa dele. E decidida a ajudá-lo. Depois da generosa devoção com a que se entregou a seu clã durante anos, Tor merecia desfrutar da felicidade.

Entretanto, Christina era consciente de que nesse momento não conseguiria nada mais dele. O fato de que se abrira, embora somente um pouco, era um êxito, um milagre em realidade. Via-o debater-se em um estado de inquietação, e teve que obrigar-se a não lhe saltar ao pescoço para abraçá-lo, de tão adorável como era. Mas Roma não se fez em um dia, e seu marido tampouco mudaria de repente uma vida inteira marcada pelo silêncio.

—Eu também sinto - disse ela—. Estava tão obcecada por que confiasse em mim que não me detive pensar no que em realidade estava pedindo. Oxalá pudesse confiar em mim, mas compreendo que não possa.

—tento te proteger, Christina, não te ferir.

—Sei.

—Não quero que te mescle nisto porque correria perigo. Necessito que confie no que te digo. —Tor cravou seus olhos intensamente em sua esposa—. Será capaz?

Ela assentiu, embora desejasse que a confiança fosse mútua.

Tor parecia estar pensando em algo. Quando falou o fez com cautela, como se lhe custasse escolher as palavras.

—Eu gostaria de te propor uma solução de compromisso.

Christina abriu os olhos de par em par.

—Uma solução de compromisso? Teria jurado que não conhecia essa expressão.

Tor a olhou à defensiva.

—Não a uso muito freqüentemente, mas por ti estou disposto a fazer uma exceção.

Estava tirando o sarro. Christina não podia acreditar.

—Sinto-me muito honrada, meu senhor - respondeu exagerando uma inclinação de cabeça.

Tor lhe dedicou um sorriso pícaro, e foi como se o céu tivesse se aberto e o sol brilhasse entre as nuvens. Esse sorriso lhe mudou a expressão, e lhe fez parecer mais jovem.

—Quantos anos tem? —espetou-lhe Christina.

Tor franziu o cenho assombrado.

—Trinta e um. —Ignorando sua estranha pergunta, retomou o tema que estava tentando explicar e pigarreou—: Se aceitar que haverá momentos nos que não lhe poderei contar tudo, eu me comprometo a ser mais…

Tor parecia ter dificuldades para encontrar a palavra justa.

—Comunicativo - propôs ela, tentando reprimir um sorriso.

Tor sorriu do meio lado afetando certa ironia.

—Sim, comunicativo.

Christina sorriu a sua vez.

—Isso eu gosto.

Bastava-lhe. De momento. Mas seguia esperando que terminasse por incluí-la de tudo em sua vida. Depois de sua experiência organizando os livros, sabia que podia recorrer a ela.

Tor lhe afastou o cabelo do rosto e pousou nela seus claros olhos azul gelo com tanta intensidade que um rubor mal controlado apareceu nas bochechas de Christina.

—Devo estar espantosa - disse desviando o olhar.

Os olhos de Tor se acenderam de paixão.

—Está preciosa.

Essas palavras tão simples a sobressaltaram por sua sinceridade. E sentiu uma calidez envolvente. Tinha ouvido essas palavras antes, mas nunca tinha emprestado atenção.

—Não me disse isso.

Tor pareceu surpreso.

—Ah, não? Pensei centenas de vezes.

—Devo estar perdendo a capacidade de ler o pensamento.

Tor estalou em gargalhadas, e Christina pensou que esse som era o mais belo do mundo. O momento no que sempre tinha sonhado. Oxalá pudesse durar para sempre.

Tor deixou de rir e seus olhos se encontraram.

Saltavam faíscas no ar. Uma febre de distinta natureza acalorou a pele dela. Tinha passado muito tempo. Ansiava seu corpo de maneira elementar; como a água, os mantimentos e o ar, Christina necessitava seu corpo.

Era consciente de sua presença na borda da cama, de seus largos ombros e seus fortes braços. De seu masculino aroma de especiarias. De sua boca gloriosa.

Tor se inclinou para ela.

Christina conteve o fôlego.

Entretanto, em lugar de beijá-la, roçou-lhe a fronte com os lábios.

—Precisa descansar - disse Tor.

—Encontro-me bem - insistiu ela em um tom que mais parecia o de uma menina a que negam um brinquedo. Seu brinquedo favorito.

Entretanto, sua tentativa de faze-lo mudar de idéia caiu em saco furado. Tor se levantou.

—Voltarei mais tarde para ver como te encontra. Se necessitar algo, chame Morag.

Um banho seria o primeiro. Mas como estava segura de que ele não compartilharia sua opinião, decidiu não mencioná-lo.

—Morag esteve aqui? Acreditava que andaria ocupada assistindo aos feridos.

—Os homens só têm hematomas e arranhões.

Christina sentiu um profundo alívio. A lembrança dos que não tinham tido tanta sorte passou como uma sombra.

Tor se incorporou, e Christina o viu dirigir-se para a porta.

—Descansa. Direi a Mhairi que venha ver-te.

—Não é necessário que…

Entretanto a porta já se fechou.

 

 

 

 


C O N T I N U A